Ou-Ou
Um Fragmento de Vida
(PRIMEIRA PARTE)
S0REN KIERKEGAARD
. ![
Soren Kierkegaard
Relógio D' Água Editores
Rua Sylvio Rebelo, n," 15
1000-282 Lisboa
tel.: 218 474 450
fax: 218 470 775
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Ou-Ou
Título: Ou-Ou. Urn Fragmento de Vicia - Primcira Parte
Título original: E11te11 Eller. Et Livs-fragment. Ferste Deel (1844)
De acordó corn a edi91ío Seren Kierkegaards Skrifter. vols. 2 e K2-3
© S91re11 K ierkegaard Forxkningscenterct , Copen haga. 1994.
O S¡;¡re11 Kicrkegaard Forskningscenrcr é apoiado pela
Fundacñc Nacional Dinamarquesa para a tnvcstigacáo
Autor: Sercn Kicrkcgaard
Traoucño do dinamarqués,
introducño e notas: Elisabelc M. de Sousa
Coordcnacño editorial: Pia Sefolt. Pedro Calafate,
José Mi rancla Justo e Elisabctc M. de Sousa
Rcsponsabilidade
científica: José Miranda Justo e Elisabctc M. de Sousa
Revisño do texto: Anabela Pratcs Carvalho
Um Fragmento de Vida
Primeira Parte
Traducáo do dinamarqués, lntroducáo e Notas de
Elisabctc M. de Sousa
Capa: Carlos César Vasconcelos (www.cvascoucelos.com)
sobre fragmento de Sophienliotm, de J. L. l.und
~ Rclógio
l)' Água l:!ditorc~ . Janeiro
de 2013
Edi9ao feita co111 o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e com Seren
Kierkegaard Forskniugscerucret da Universidade ele Copenhaga. Por protocolo assinado
entre as duas insriruícócs. o SKrC ceden no Cf'Ul. os dircitos sobre a utilizucflo da
ecli91ío dos Seren Kierkegaards Skrifter e dos respectivos aparatos críticos.
O Centro de Filosofía da Uuivcrsidadc del .isboa é upoiado no ilrnbito do Programa
ele Financiamcnto Plurianuul das Unidades de l&D da Fundacño para a Ciencia e a
Tccnologia (fCT). que se cuquadra no Programa Operacional Ciencia, Tccnologia,
lnovacño (POCTI). Este Programa insere-se 110 111 Quadro Comunitário de Apoio e
co-Iinanciudo pelo Governo Portugués e a Uniiio Europeia, através do Fundo Europeu
para o Desenvolvimento
Regional (PEDER).
é
A presente traducáo Ioi financiada pelo Danish Arts Council (Statens Kunstrád og
Statens Kunstfond).
STATENSA
KUNSTR
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OLN< 11
Encomendé os seus livros em:
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ISBN 978-989-641-318-5
Composicño e paginacño:
lmprc:-.•il11: Guide
Relógio
1\r11:~ Grál
D'Água Editor~'
icas, Lda.
Filo .ofia
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Índice Gcral
introducño
Num liclitorial
( l11
Ou. Urn Fragmento de Vida - Primeira Parte
9
17
2.1
INTRODU\:AO
Por ocasiño da traducáo portuguesa de
Ou-Ou
Primeira Parte
(Ju
011. Um Fragmento de Vida é uma obra impar da literatura e da
/1111,w~//(/ ocidentais, a todos os ntveis e vista de todos os ángulos; ruio [osse
11 r l1<·1111s1a11cia de, na Europa de entáo, como na actual, a llngua dinamar1¡111•.w [irar submersa por outros idiomas dominantes, e cer1U11111.n1e que
/1•1 h¡ ,1id11 reconhecida universalmente como um ckissico da literatura e da
/1/11,w~/10 110 geraciio seguinte ao seu aparecimento, A consciencia plena por
¡1111 t1• do sen autor de que assini é constituí, aliás, um dos seus intuitos, se
11tlr1 1·011/( ssos, pelo menos explicados e demonstrados ao longo da obra.
\li.110 110 conjunto da produrlio de Kierkegaard, Ou-Ou. Um Fragmcn1
t11 d1· Vida introdu; a esnuigadora maioria dos conceitos e categorías que
o /i/11.1<d(, desenvolverá posteriormente e, para citar apenas alguns, enconf11111111,1 rtqui o estético e o ético, o ético e o religioso, o desespero e a espe
' uuc«, o amor eni todas as suas fases e modalidades, os diferentes tipos e
ust» do peusamento, a possibilidade e a realidade, a escolha, a liberdade,
u lr'('Ot'fla('ÜO e o esquecimento, e o instante. A obra confere, além disso,
11111 110110 1w110 a outros conccitos e caiegorias já apresentados em obras
111111•1 iore», tais como a ironia e o interessante. Mas, sobretudo, desenha as
/11111/1•im.1· da problemática kierkegaardiana de uma maneira magistral.
/11 1•11</o cotn que, a partir da upresenuuuio de «um fragmento de vida» que
r vlvulo sob formas aparentemente exclusivas, irrompa a apresentacdo da
1•11sr1·11('ia
humana com todos os seus cambiantes, passando assim a cons11111i1 o verdadeiro pano de fundo da discussiio dos conceitos e categorias
ntras mencionados, e de outros que sdo debatidos coma mesma intensidatk: lttosofico e literária; entre estes, contam-se o ácio e o tedio, o desejo, o
r1 rt>:ico. o cómico. o musical, a morte. o demoniaco, a par de um conjunto
i/1• 1'r•111i11w11to.1· que véeui agora reconhecido o seu papel determinante na
r/1•/111irr10 do que r! o humano, tais como a seducüo, a mágoa, o pesar, a dor,
11 dispol'i('(io; a c1111izc1rl!', o t111fi1Íl'lio. T11do isto é levado a cabo com urna
10
l 1111 otlu~·uo
qualidade literária primorosa que realce um movimento de peusamento
que ora surge centrípeto, ora surge centrifugo, o tuda que é afina! imprescindivel para que Ou-Ou. Um Fragmento de Vida seja irrepetivel, exactamente urna das condiciies que seráo anunciadas no capiutlo do erótico-musical como decisivas para que a obra de arte possa ser considerada um
clássico,
Olhemos entiio mais de perta esta obra, cuja primeira parte surge agora
traduzida em língua portuguesa.
As duas partes de Ou-Ou. Urn Fragmento ele Vida. publicadas a 20 de
Fevereiro de 1843 em Copenhaga, vieram a fume com um pseudánimo
como editor, Víctor Eremita. e outros dois como autores de cada uma das
partes, o autor A na Primeira Parte, e o autor R na Segunda Parre. Quatro
días antes, havia saldo um pequeno volume, Dois Discursos Edificantes,
assinado «S. Klerkegaard», o pritneiro do conjunto de seis do mesmo teor
e com títulos semelhantes que acompanharam a publicacüo das obras assinadas por pseudánimos nos anos de 1843 e 1844. Se lembrarmos agora
que Kierkegaard partiu para Berlim a 25 de Outubro de 1841, menos de
um mes apás defendera sua dissenacüo para o grau de Magistcr (publicada a 16 de Setembro, e defendidaa 29) e, ainda, que é conhecida a data de
conclusüo do «Prefacio», tl saber. Novembro de 1842 (Pap. /JI B 189),
Kierkegaard parece nüo ter andado multo longe da verdade quando, em
1846, deixou anotado que Ou-Ouflcara pronto em onze meses (Pap, VII
A 92). Escrever urna obra téio longa e tilo complexa como esta, a par dos
dois mencionados discursos, em rilo curto espaco de tempo, parece. por si
sá, justificar a escolha do nome de Yictor Eremita para pseudánimo do
editor. Mas talve; a vitoria deste editor nao tenhu sido obtida de uma maneira nem tiio fulgurante, nem táo sozinha. De facto, vários estudos tém
vindo a estabelecer a dataciio da génese dos escritos reunidos nas duas
partes. apontando para a utilizacüo em cerca de metade deles de diversos
esbocos e de notas anteriores, que entretanto nüo chegaram até nás, Nesse
sentido. a entrada do diario de 1846 é tdo-somente uma meia-verdade; a
composicao da obra terá pois sido concluida nesse espaco de tempo, mas
este período mio é necessariamente coincidente com a escrita dos diferentes capítulos, ou de partes de capítulos, de Ou-Ou.
Tendo isto ent conta, será sem dúvida mais razoável e produtivo olhar
Ou-Ou. Um Fragmento de Vida no conjunto da obra de Kierkegaard
como sendo um marco monumentalque, nessa sua monumentalidade, assinata simultaneamente um ponto de chegada e um ponto de partida. Ponto
de chegada de um. autor que deixou para trás duas obras publicadas, ambas assinadas no seu proprio nome. O título da primeira, de 1838, sugere
que quem. a escreveu está nao sá moribundo, mas tambéni contrariado:
Dos Papéis de Alguérn ainda cm Vicia, publicado contra a vontade do au-
l
111
Ot1,
lJ111
hag111en10 de
ida
11
un • dr S. A ierkegaard. Do ttudo da segunda obra, Sobre o Conceito de
111111111 ~·111 'onsruntc Referencia a Sócrates, e obviamente do seu conteüdo,
111111/11 se f<•111 retirado, mas interessa-nos aqui reter apenas o movimento de
¡11•11M11111•1110 que este IÍtulo encerra 110 fórmula «em constante referencia»,
111r> /ll"O¡J1·io de Kierkegaard em todas as fases da sua produciio como autor.
Ow, u partir de Ou-Ou. Urn Fragmento de Vida, a constante referencia
¡/1• A ll'tkeRaurd passa decisiva e incisivamente a ser ele práprio, na sua
1¡1111/1(/(ld<' de autor de autores, na sua natureza multíplice, cuja unidade
/''' 11'11 por es/e tipo de auto-referencialidade,
entre outros aspectos. Esses
1111111w11tos de refercncialidade concretizam-se, designadamente, no modo
1 1111·111o e exponencial como Kierkegaard concretiza a autoconsciéncia de
11 tlo« románticos, [á que sente tudo de muitas maneiras. e sentiré aquí ver,
11111•i1 e pensar, para partir rumo a urnaforma de pensamento que irá proi;11•1,111•0111e11te cw encontro dos caminhos de que é./eita a modem~dade. _
(11· doi.1· aspectos salientados nos t(rulos das d11as obras anterwre.1· dao
1i:1utl11w11re 11m novo contorno ao n.ome do ediwr. qua1110 mais nüo seja.
¡111/Y¡11e obrigam. a questionar o epÍle/o de eremita, já que .wzinho n.o mun
1/n 11i11g11é111 conquista viu5rias, e ninguém sai vitorioso sem ter derrot~do
11111 i11i11iifiO. Ou-Ou. Um rragmento de Vida é entüo o ponto de parrida
¡1t110 aquí/o que Kierkegaard designou como «a minha actividade con'.o
o111or», 11111a afirma{:lio que desde logo nos leva a colocá-lo na comµanhia
¡/1• 011rros aut~res. nos qua is se englobamos múltiplos pseudón.imos kierkeJ:"urdianos, mas também. todos os outro.1· de que eles se.fa.zem_ac01~1pan/Jar,
11fl'llde11do a densidade e ahundtmciade alusties e de c1tac;oes directa.~ e
11ulin•c1as constantes da escrita kierkega.ardiana. Nao é, portan/o. por se
c•11cr1111rar sozin.ho que Víctor vence; como concretizará entao esse deside1 (l/o df' a/canrar a vitória por si e para si? A1ravés da vislJo, enquanto
ollwr. enquanto acto de ver em todas as suas vertentes e corn todas as suas
im¡!licaroes: ver do ponto de vista sensível e do ponto de vista raci~na.l, e.
11('.l'la dualidade e dup/icidade, nüo deixar passar nada do que está a vista,
11crificar, c0t1fror11ar.rnmellu.m<,:ase diferen<,:as, ver de perto e. ver de l~11ge,
,.,·crutinar, olhar de relance, trespassar com o olha1; espreitar - e esta
aliú.1· uma das perdas inevitáveis na tradurilo portuguesa e, de um. modo
Rera/, em todas as outras, visto que o que acabou de ser enumerado é de110/ado em língua dinamarquesa, pelo verbo «at see», ou seja, «ver», e
.1·t 11s d;rivados;se a isto juntarmos um conjunto de termos da mesma área
semántica, profusamente ocorrentes na obra, tais como, «hl ik)>: i. e.,
«olhar», e «0Íe», i. e .. <<olho», os quais, uma vez justapostos, formam
<<0ieblik», i. e., «instante», facilmente constatamos que estamos dian.te de
uma ohra em que tudo o que se diz depende do que está em jogo nos modos
e nos tempos de «ven> e de «observar» ( «at betragt.e»). A esta visii.o e a
este observa1; junta-se o ouvido e o escurar, que também se desdobram le1
12
l 111 roducflo
13
xicalmente, embora nao de maneira tilo pródiga, fazendo entdo com que
Kierkegaard seja muito provavelmente o primeiro dos autores que, culminando em Proust, investiriio no ouvido o magno atributo que estava reservado el visüo, designadamente, a certificaciio da verdade.
Assim, ao longo dos dois volumes de Ou-Ou. Um Fragmento de Vida.
sobressai progressivamente que nao se trata de expor fragmentos de vida
em antinomia; é o «Ou=Ou» que em si constitui umfragmento de vida; a
vida é entiio apresentada ao leitor em duas partes narradas segundo a focatizacao de dais autores diferentes, urna estrategia que permite que seja
devolvida ao leitor a disjunciio que permanentemente habita a existencia
do homem face a muitos dos conceitos, categorías e sentimentos atrás
mencionados, os quais constituem, mais do que o teor da obra, os setts
protagonistas; u disjuncáo, porém, oo ser devolvida, surge potenciada:
para o leitor, a obra constitui-se como um fragmento dama propria vida,
e esquecé-la equivalería inevitavelmente a esquecer umfragmento da s110
propria vida.
Atentemos agora na estrutura capitular da primeira parte de Ou-Ou.
Um Fragmento de Vida, na confessa ambicüo de conseguinnos ser suficientemente sucintos paro que o leitor nao deixe de fruir integralmente a
apresentacüo de Víctor Eremita no «Prefacio», o qua! é em si um extraor-
1111. ln¡ 11111rr1111os oí trotados quatro dos mais significativos fios condurares
t/1• ( )11 Ou, o saber, o representacdo e o apresentacdo, a imediaticidade e
1111•/fr.1rto. os quais sc7o [ulrrais, por exemplo, para a distinciio entre o Don
1111111 11111.1·ical e o protagonista de «Diário do Sedt;tor» e, no mito de Don
1/11111, para o entcndimento das configuracées do herái don-juanesco, quer
110 10111<111tis1110
quer posteriormente.
0,1 quatro capitulas que constituem a parte central da primeira parte de
( >11 Ou. Um Fragmento de Vida perspectivam a critica de teatro e a aná1/,\1' litcrária a partir de categorías elou conceitos filosáficos, relacionados
1//11(/o c·o111 dispostcoes e ambiéncias diferenciadas, com tres deles curiosa11w111c• dirigidos a uma irmandade de morfos. No capítulo «0 Reflexo do
fi'llJ.iirn A111ir:o 110 Trágico Moderno», debatem-se problemas da poética do
/111¡.:wo. de Aristáteles a Hegel, estabelecendo-se a diferenca entre o herái
t11í¡.:1co untigo e o herái trágico moderno através da análise da presenca
''" do tutséncia de culpa, e da diferenca entre o pesar e a dor. No capítulo
Sllhuett)«. Passatempo Psicológico». duas perso11agens de Goethe (Marie
l•1•t111111urc//(/i,,· de Clavigo e Marga rete de Faust), juntamente com Donna
I !Piro rft• Don Giovanni de Mozart, teslam o que se discule na seq:r7o ini('/(I/, i. <' ., o exequibilidade de uma representarüo estética do conjlito inte1 /111 t!u 1111J/fler seduzida e aba11do11ada,fazendo-o através da apresentar;iio
1' 11•¡m•se11Wfii.O
da sua dor e da sua mágoa, as q11ais, por sua vez, sc7o
1h.11·111ida.1· na po.1·.l'ibilidade rejlectida e na possihilidade irrejler·tido. No
m¡1ft11!0 «0 muis lnj'eliZ>>, estüo objecrivamente e111 jogo as rnusas do que
11•1 da 11wior infelicida.de, a par da rela~'iio da il1f'elicidade coma morte, e
i/(I 1·orrelaciio entre a .felicidade e a recorda<;éí.o, bem como o desenvolvi1111•11w ria capacidade de observar senfim.entos, de os descrever, assim como
rt q1w.11c70 de se ser, ou nao se ser, um observador participativo da vida,
111lu uq11i nos seus casos de in.(elicidade. Falemos agora de «0 Primeiro
mor». cen.lrado sobre a pera de Eugene Scrihe de onde re lira o nome:
/l(tta 110 realidade de diversos «primeiros amores», afina! o título original
rlo ¡1cro comentada; a categoría de ocasiiio é introduzida no preümhulo, no
r¡110/. oo amor el. pefa de Scribe, se juntam o amor declarado de A pela
1•.1·<Tito. as recorda9iJes das suas primeíras vivencias amorosas, e o papel
tl11 ocaso nestes dois tipos de «primeiro amor». O capítulo possibilita tam1u:111 que Emmeline, a protagonista da pef'ª de Scribe. seja tipificada como
11111 produto do amor roméin1ico, senda entiio a relafiiO amorosa analisada
rll' 1111w maneira acentuadamenle dijeren.te de outros casos comentados nos
1·apít11/os anteriores, designadamente, o de Antígona no capítulo do trágico. <:os da.1· diferentes situat;ñes em jogo n.o capítulo do erótico-musical e
e111 «Silhuetas». Adiante-se, aliús, que «0 Primeiro Amor» é imprescindível
¡wro entender o primeiro capítulo da segunda parre de Ou-Ou. Um Fragmento de Vida. O penúltimo capítulo da primeira parte, «A Rota9ii.o de
dinário cartiio-de-visita de Kierkegaard. Lago nasfrases introdutárias.fica claro como é parte integrante da obra: está em jogo, ao longo das duas
partes e também no «Pre/licio». a dicotomia entre o exterior e o interior, e
aquilo que se anuncia que vai ser dilo nao pode ser separado do modo
como val ser dilo. O capítulo «Diapsalrnata» reúne cerca de noventa fragmentos, dirigidos ad se ipsurn, de extenstio acentuadamente diversa, sendo
que neles se cruzum motivos filosoficos, literários, musicais, religiosos e
psicológicos. de índole vária, desenvolvidos num acentuado movimento
auto-reflexivo centrado sobre o poeta e sobre a tarefa de poetar; esse movimento auto-reflexivo percorre as disposicoes que marcaram os caminhos
que levaram o poeta a ser o que ele é, ou melhor, que o conduziram
decisiio de ser quem é, nos dominios de aplicaciio dos motivos acima enumerados, um percurso que é anunciado nofragmento inicial nunt tom de angüsüa e revolta, para no fragmento conclusivo ceder terreno ao riso. O
capítulo «Os Estados Eróticos lmediatos ou o Erótico-Musical» amplifica
o movimento combiuatário entre seducdo e escrita que havia sido delineado no «Prefacio», a vários niveis; um. deles está centrado sobre o desejo,
em diversas vertentes, incluindo-se a{ a descriciio dos tres estádios do desejo que constituem. o cerne da teoría do erotico-musical. O capítulo é
bastante mais do que urna análise pormenorizada da ópera Don Giovanni
de Mozart, embora essa análise, por sisó, tenha sido o suficiente para que
se tornasse um marco incontornável na recepcdo da obra-prima mozartia-
a
14
l 1111 Othu;uo
Culiu~as».,é.um ensaio sobre o tedio em que o argumento transforma aquilo que o tédio é, quando habitualmente considerado como a rai: do mal
na possibilidade de uma vida divina, na qua! é possivel .associar a recor~
da9~0 e afelicid~de. Sub~ capa de unta apologia, levado a cabo por um
narrador na esteira de Epicuro, a recordacáo e a esperance silo postas em
contraste e na dependencia delas proprios e dos eventuais beneficios do
esquectmento,
«Diário do Sedutor» é o mais longo capítulo da primeira parte de
Ou-~)u. Um Fragmento de Vida e coloca-se a partido numo. posicüo sui
generis: por um lado, possui uma unidade e uma coeréncia tais que levam
.frequentemente a que seja licio como unta novela autónoma; por outro,
que~1 o fizer perderá a possihilidade de captar, sinndtaneamerue, 0 modo
particular como condensa as temáticas que siio tratadas nos capítulos
precedentes, modo esse que, por seu turno, se constituí como determinante
para a ~esposta que B ensaia na segunda parte de Ou-Ou. Um Fragmento de v.rda~ [ohunnes, o sedutor, prima pelo uso da linguagem verbal e
pela reflexdo no exercicio do amor psíquico, a antltese do amor sensual de
Don Juan, que sá é exprimivel musicalmente, e exibe a verve de libertino
e a vervc literárla com que seduz Cordelia. A recordaciio de Motan está
presente, neste diário,. na ·!igura de um sedutor reflexivo, por oposicüo a
~on Juan, o sedutor imediato por excelencia. Mas encontramos também
(Joet~u: e Wcrther, Schlegel e Lucindc, lacios e Les Liaisons Dangereuses,
Ovtdio co~n Arte de Amar e Amores, e também Arnlm e a novela Dolores,
num mov11nent<~ de re~eliféío e recordaciio Impar, que faz des/e capúulo
un'.a o~ra clássica da literatura do género, e clássica, nos termos de A, ou
seja, }~rma e conteüdo interpenetram-s« a tal ponto, que se torna cabalmente iniposstvel distinguir ama coisa da outra.
Sem pretender desenvolver a estrutura capitular da segunda parte de
O~~Ou. Urn Fragmento de Vicia, que a seu tempo chegará aos olhos do
pt~bltco, cabe todavía dizer algumas palavras que permitam auxiliar 0
leitor a estabelecer pontos de referencia para uma futura conclasiio da
leitura de O.u-Ou. Vrn Fragmento de Vida. Os títulos das cartas-capitulos
que a const;t~4em - ;<~ validadeEstética do Matrim6nio» e «O Equilibrio
entre o E.~teuco e º.F.tico» - sdo da responsabilidadede Eremita e, segundo ele proprio confessa, poderla haver outros igualmente «felizes», Sao de
algum modo reduiores eni relacdo a alguns aspectos debatidos pelo Juiz, 0
a~tor B, e pecam ta/vez por demasiado abrangenies.fa que podem condunr a ,que se pense qu:- o poruo de vista do Jui: é uniforme e, de facto,
f~1mbem ele
d1vr;~·ws modalidades de vivéncia de um amor que
cu~1pra urna funciio estéttca, para além da ética. Na realidade, se, na primetr~ parte de Ou-Ou. Urn Fragmento de Vida, a natureza estetizante dos
esenios ndo elimina de todo as implicacóes éticas dos mesmos, como aliás
=:
()p
()u 1)111
hll~'llll'lllO
dt
15
\/id11
r1l>M·11·111·" o ¡n O/JI io narrador r/(I .1'<'1<111ulu porte. por seu turno, es/e ta111nao exrlu! o <'.l'f<ftico do debate o que se propée, Assim, 11a primeira
1 (11 tu, aprescuta-se o cost1111e1110 como a possibilidade de transfigurar o
1111u•1 < .\léli('O 110 r1111or ético. de/entiendo-se que o casamento cumpre ca/i(l/1t1<·111c o lado estético do amor defendido por A. Na segunda carta, a
h1/o.1e recaí 110 escolha e 110 desenvolvimento de usos da imaginaoio ao
11•11•irr1
do ético presente 110 acto de esca/her, indo para além do que faz.A,
r/1· 111110 perspectivo estetizante, quando amplifica as possibilidades das
111us vivéucias 110 dominio do imediato, e indo também para além do que
/rt ¡\' de //(//(/ perspecliva .filo.w~fica. qucmdo, a partir da realidad e que ve
1• o/Jservo. dú asas ao pen.mmento e avan{-·a pelo domfnio teórico. A tercei111 <'Urfo é a mais breve e serve de introdurilo ao muito discutido sernuio
rlo w1s1or da Jutlrlndia, com que se encerra a obra. O 1ttulo do sermüo ... () Q11e Há de F:d(/1cante no Pensamento de que aos Olhos de De11s F.sta1110.1 S<'111pre F.rrado.P> - é discutido e analisado sob diversas premissas,
111<' ceder progressivame11te 1erreno ao campo das questoes ético-religiosas,
a1 q11ois serao condensadas na epif?ramática frase com que se conclui o
1·o¡>ft11/o, e portan/o a ser:unda parte. mas rambém tnda a obra: «Só a verdnde <¡11e ed(fica é verdade para n<Í.I'.>>
No 1J1odo como se ve, observa e comen1a as modalidades de vida, no
11 oto111e1110 ora poético-lilenírio, ora jllosójico, ora psicológico e existen' iul. ora combinando todas estas ver/entes ao lonf?O de 10da a obra, resi"'''" <t)i11al as d!jiculdades demasiadas vezes apontadas presellle obra.
l-.'.\.l'W d{/iculdades sao todavia superadas pelo fascínio, e este pelafrui9ao
/ifl'l'<írio e pelo movimento do pensar que advem de percorrer com o auwr
º·' <·0111i11hos por onde temas, ccmceitos e categorías se e11trelaram, recom/1ilw11do-se em modalidades genéricas que <·ontinuamente se renovam, e
1·111 rel{istos estil{sticos que de c:apftulo a capftulo nos surpreendem. Resta11m terminar, fazendo eco de Víctor Eremita no seu «Prefácio», corn a
1·1•rf1'-:.a de que, urna vez lida a obra, havendo quem queira recordá-la, será
r·o¡1u-:, de ofazer sem esquecer esse conjunto de caixas chinesas que envol"'' u apreseniOf:GO e a representaf'OO de narradores, perso1w[!,ens, lemas,
c•pi.wídios. o qua/ constituí o artifício nece.uúrio para que seja poss{vel dar
/11gor a esperanra de que() leitor nüo queira ver pontos de vista resolvidns
¡1or outros intervenientes que nao ele pr6prio.
/11'111
1
a
Cascais, Novembro de 2012
NOTA EDITORIAL
Referencias bibliográficas, enquadramento institucional
da presente traducáo e agradecimentos
/\ presente traducáo segue o texto constan/e da quarta edicüo das obras,
S11rcn Kicrkegaards Skriítcr (Escritos de S. K.; abreviatura: SKS, com in1'111.wio do número do volume em árabes e da página em árabes), organizado por Niels Jorgen Cappelern, .loakim Garf], Johnny Kondrup, Anne
Mett« Hansen, Tonny Aagaard Olesen e Steen Tullberg . A publicaciio desta
t'rliciio teve inicio em /'}97, na editora C. E. C. Gads Forlag de CopenhuJ.:", e ficará concluida e111 20 I 3, ano do bicentenário do nasciniento do
autor. Reúne as obras em 16 volumes, numerados de / a 16, e os diários.
radcruos e canas ern J 2 volumes, numerados de 17 a 29; o aparato critico
t!I' rada volutne é publicado em separado cotn o título «Kornmcntarbi nd»,
.1<'1:11ido do número do volume respectivo (abreviatura: SKS, co111 a identi/trn(·l7o do volume pela letra K seguida do número do volume em árabes e
do página em árabes). Entcn-Ellcr, F!(1rstc Deel é o volume 2. e o aparato
c1 frico está incluido no volume K2-3. pp. 85-242.
Nas notas e comentários, é referenciada em primeiro fugar a primeira
1't!irüo das obras, Seren Kierkegaards Sarnlede Vzerker (Obras completas
de S. K.; abreviatura: SVJ, seguida do número do volume em romanos e da
/HÍ¡.:ina em árabes), edioio etn 14 volutnes, organizada por A. B. Drach111011, J. L. Heiberg e H. O. Lange. publicada pela primeira vez em Copenhaga pela casa editora Gyldendal, entre 1901 e 1906.
Nas notas e comentários a presente traducüo, as referenciasaos diarios
e cedernos de Kierkegaard silofeítas de acordo coma classificaciio e numeraciio adoptada em SKS, indicando-se a referenciado diário ou cader110, seguida da numeracüo do fragmento adoptada em SKS, seguida do
11ú111ero do volume em árabes e da página em árabes. Nos casos de fragmentas nüo publicados nesta edicdo, utiliza-se a referenciatradicional dos
Papirer (Pap. seguida da respectiva identificaciio), de acordo coma edicüo
( 111
Seren Kierkegaards Papircr, e111 11 volutnes, org . de P. A. Heiherx. V. Kuhr
e E. 1orsting, Copenlwxa 19091948.
Procedeu-se ao confronto comas seguintes traducscs:
- duas trad11r1Jes alemds: a de F:111011uelHirsch. Entweder-Oder - Tcil 1 .,
publicada em S. K., Gcsammclte Werke, org . de E. Hirsch e Hayo Gerdes,
1957, e reeditada em Gütersloh: Giitersloher Verlag, 1986; e a de Heiurich
Fauiek, Entwcdcr-Odcr. Tcil I uncl II, inicialmente publicada em 1960, e
reeditada em Munique: Deutscher Taschenburh Verlag. 2005.
- duas lradllf<kr inglesas, Eirhcr-Or: a de Howani V. Hong e Edna H.
flo11g, KW, vol. VI, Princeton, New Jersey: Princetou Universi¡» Press,
1987; e a de Alastair Hannay. Harnwndsworth: Penguin, 1992.
a trad11rilo italiana de Alessandro Cortese, Enten-Ellcr, Milik»: Adel
phi, 19761989. em cinco vols., designadamenre, os trés orimeiros: Tomo
1, 1976: Avvcr1c111;a di Víctor Eremita, editore; Diapsalmata; Gli stadi erotici immediarl, ovvcro il 111usicale-erotico;
tomo 11. 1977: 11 riflcsso del
trágico
antico
sul lrugico moderno; Silhoucttcs;
11
pil1 infclicc:
11
primo
a more, comrncdia in un ano di Scrihe, tradotta in danesc da J. L. Heiberg;
tomo 111, 1978: La rotazione dellc colturc: 11 diario del seduttore.
- a traduciio francesa de Odette Prior, Ferdinand Prior e Marte-Uenriane Guignot, Ou bien ... Ou bien ... , París: Gallimard, 2008, puhlico
da ortginalmeute ent 1943.
- a traduciio portuguesa do capttulo «Diapsalmata», de Bárbara Silva,
M. Jorge' de Carl'al/w. Nuno Ferro e Sara Carval/wis, lisboa: Asstrio e
Alvitn, 2011.
Para refereuciar, com <:i1ar<70 integral, os verslculos da Btblia, aludidos 011 citados indirecto 011 parcialmente, railizou-se a rradurcio de Jodo
Ferreira d'Almeida. Lisboa: Sociedade Bíblica de Portugal, 2001.
As no/as iuclutdasfornecem as eluddaroe.1· neces.wírias para que o
tniblico se possa situar dentro do contexto da obra e do autor,
procurando-se todavía incluir outra informacüo julguda pertinente que
possa auxiliar o leitor em futuras leituras do autor ou sobre o autor.
Utiliwu-se a informaf(io reunida em SKS, volume K2-3, e/a propria
fruto do trabalho da actual equipa editorial, e do saber acumulado nas
anteriores edir:oes dinamarquesas; recorreu-se igualmente ao aparato
critico das traduroes acima mencionadas.
A presente traducüo constituí a tarefa principal do pós-doutoramento da
tradutora, a decorrerem. paralelo como projecto de tradur;{io das obras do
.ftMsofó, ambos sob a égide do Centro de Filosofia da Universidade de
lisboa e como apoio da Fundacáo para a Ciencia e a Tecnología,e coordenados por José Miranda Justo. Tamo as tare/asdeste p6s-doutoramento,
como o projecto no seu todo, silo desenvolvidos em estreita colahoraf·iio
com os dois mais importantes centros de investigar;iio de Kierkegaard,
e Ju , 11111
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rl Ana Pinto Leite, por todo o en1pe11ho e
¡111·1tado:
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ill'rl1<·"<'ºº co111 que ~·o/ablorm~111 iwlaet1~'1c/1woo ao longo da s110 elabora, t• ·
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11~om.1o deste trabalho.
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E.S.
111
Ou-Ou
Um Fragmento de Vida
Primcira Parte
N. B. - As notas do autor váo indicadas com asterisco. As notas do tradutor
sao numeradas. Por razócs tipográficas, as notas do tradutor que dizcm respeito
a passagens situadas dentro das notas do autor víío assinaladas corn +, t-¡-, etc.
1<)1
Ou-Ou
U m Fragmento de Vida
publicado por
VICTOR EREMITA
1
Primeira Parte
Contcndo os Papéis de A
Será táo-sorncnte a razño baptizada,
Seráo as paixñcs pagas?
Copenhaga 1843
A venda na Livraria Universitaria C.A.
Reitzel
Impresso na Tipografía de Bianco Luno
Young2
1111
Prefácio
< 'aro lcitor, talvcz por vczcs te tivcsse até ocorrido duvidar urna migalha
dn cxactidáo da conhccida tese filosófica segundo a qual o exterior é o inll'• ior e o interior o exterior'. Tal vez. tivcsscs guardado mesmo um segredo que te era demasiado querido, na alegria ou na dor que rrazia, para poé
1 Segundo Judith Purver, a cscolha do nome de Víctor Ere111il11 explica-se pela influéucía da Novel!e de Joscph K. B. f1. von Hichcndorff ( t 788-1857), Dictuer und ihre (Jesellen [Poetas e Scus Companhciros] de 1834, cujo protagonista, Viktor von Hohens-
tcin, assume diversas entidades, entre outras, a de eremita; vd. Judith Purver,
«Eichcndorff Kierkcgaard's Reccprion of a Germán Romantic», in Kierkegaard and his
Germen Contcmporaries, vol. 6. 'Iome 11 l: Literaturc, cdi9!10 de Jon Stewart, Aldcrshot:
Ashgatc. 2008, pp, 25·50; aquí, pp. 46 e segs. Víctor Eremita reaparece na qualidade <le
pcrsonagem, como um dos oradores 110 banquete ern «In. Vino ventas», o primciro capítulo de Estádios 110 Caminho da Vida ele 1844; vd. SV 1, vol. VI. pp, 57-65. SKS, vol.
6. pp. 57-66; cm lfugua portuguesa: In Vino \!erilas. tradui¡:iio, notas e posfácio de José
Miranda Justo, Lisboa: Anrígona, 2005, pp. 105-'126.
2 A epígrafe 6 a trndui;:i'in para dinamarqués de Kierkcgaard da lradw;;iio alemñ de um
verso <lo poeta inglés Edward Young ( 1681-1765). extraído de The Complaint or Niglu· Thoughts un Life. Deatn and lmmortality 10 Lamento ou Pensamentos Nocturnos sobre a Vida, a Morte e a lmortalidade], livro IV. v. 629: publicada cm Londres cm 1790,
a obra fez de Young um dos poetas favoritos dos primordios do rornantismo, reflcctindo-sc a sua temática ern vários capítulos <la presente obra. em especial «Diapsalmata»,
«Silhuetas» e <<0 mais Infeliz». No original, a ordein <las pcrguntas é a inversa: «Are
passions, then, tlie pagans of the soul? Rea.1·011 alone baptized?» Fonte do autor: \..Yoldentar (1779). romance de E 11. Jacobi (1743-1819)
in Friedricli Heinricti Iacobi's
Werke [Obras de F. H . Jacobi], edicáo de F. Roth e F. Koppcn, vols.1-Vll, Leipzig.
1812-1825;
vol. V. "1820, p. 114. onde se le: «Wohl einmal ubermiahig oder tmtzig,
fragen Sic mil Yo1111g: Ist denn die Vemuntt allein getauft, und xind die Leidenschaften
Heiden?» [«Urna vez ainda com <mojo e altivez, fazei a pcrgunta de Young: Será táo-somcnte a razfio baptizada, scrño as pai xócs pagñs?» l. Informacáo gentilmente cedida
por R. Purkarrhofer,
\ Kierkcgnard prosscguc aquí a tliscussao da nao-rda41!10 entre o interior e o exterior,
miciada cm Sobre o Conceito de Ironia etn Constante Referencia a Sócrates. SV 1, vol.
XIII, pp. 108-109, e SKS, vol. 1, pp, 74-75. Em Hegel, o exterior e o interior siio_objcetn 1k rruramcnto cm duas circunstancias: (1) corno catcgoriax de reñexüo na lógica em
¡ >íe wissenschaf: dar Logik, Die objektive Logik: LA Ciencia da Légica. A Lógica Obj:etivu]. Segundo t.ivro, 3. C .. in Georg willielm Frtedricli Hegel's Werke. Vollsliindtg~?
/\11.1µabe [Obras de G. W. r. Hegel, Edi<;íio Completa 1, vols. 1-XVIIL edi~ao ele Phillip
Murhciueke et al., Berlim, 1832-1845. doravante mencionado como Werke: aqui, vol.
IV. 6. pp. 177-183: Sttmtliche Werke. Juhildumsausgahe [Obras Completas. Edil(aO
Comcmorativa], vols. l-XXVI,edil(ao Hermann Glockner,Estugarda, 1927-1940,dorav:1111c mencionado como Jubil<lwns; aqui, vol. 1 V, pp. 655-661: e <;eorg Wilhelm Frierlrid1 Hegel: Werke in 20 Blinden mit Re11is1erband [G. r. 11.: Obras cm 20 Vlllunies
rnm VolunJc de fndjccs[, Suhrkamp, Frnnkl'url am Main, 1986, dorava11te Suhrkarnp;
aqui. vol. v L. pp. 179-185: e (2) também em Ell':.yklopadieder philosophischen Wis
.ve11sclta/ien im. Cmndrisse, /,(>f!.ik lfl.m;iclopédia das Cit!11cias Filosóficas em Epítome.
Lógicaj, primeira parte.§§ 138-140. in Werke, vol. VJ, 6, pp. 275-28'1, Juhila111ns,
vol. Vlll, pp. 313-319, e Suhrkamp, vol. VIII, pp. 274-279. Vd., em pormgues. G. W. F.
l legel, t:ncidopédiu da.v Ciencias Filosóficas em Epítome, tradw.;ao de Artur Morao,
vols.1-UJ. Lisboa: F.<li¡;ócs 70, 1988-1992; vol. l, 1988. pp. 169-170. Também Johan
Ludvig Heiberg_ (l 791:1860), a pers.~malidadc dominante no CllJllJ)~ da lit~rat~lnl e <l.ª e
filosofía no tempo de Kierkegaard e igualment~ um dos mentores do h~gehamsn~o d,1· (\; :i,
namarq1._1e~, def~1der~ u.ma tcori~ ~fas apar~ncias na qual e:-;ti~~l~t~<~ a ,supr1:n~a~1~~ .d~) '"'..) ~
exterior sobre ti 1111~.nor con1Q.cntcno estél1co, sendo que o obJec_tno lllUCO d,1 cu,!Jc,1 .. ,
1>eria analisar a forma. enquanto factor determinante p<iJa o entemhmenl<.> <lo conteudo: ..~:"'
vd .. en.t:rc outros escritos, Om l'hilo.wphiens Bezvdning jár den nuva~rende Tld. Et . .¡ ·,
Jndbydelses-Skr{ft til 1?n Rwkke af philosophiske Forehesninger LSnbre a h11porta'.1~ia da
. ..!
Filosofía para o Nosso Tempo. Anúncio de Urna Série de Coutcréncms C'ilosotrcasl,
,/
Copenhaga, 1833: vd. op. cit., vol. ll. pp. 129-215; sobre 1:sle assun~o. pp. _198-_199;
/,'".
Adiante-se que a discussao das assimelrias e divergencias entl'e o cxtcnor e o mtcnor e
o tema da Nove/le Pe1er Schlemihls de Adclbert von Chamisso. Vd. nota seguinle.
26
deres confia-Io a tercciros. Talvcz a vida te pusesse cm contacto com
pessoas ~as. quais presumías ser este o caso, sern que contudo o teu poder,
ou a tua insinuacáo, fosscm capazes de levar o oculto a manifestar-se. Talvez nenhum destes casos se aplique a ti, ou a tua vida, e cssa dúvida nño te
todavia desconhecida; sentiste que passava de vez em quando pelo reu
pcusarnenro, pairando como urna figura fugaz. Scmclhantc dúvida vai e
~cm. e ninguém sabe de onde veme para onde se dirige. Pela minha parte,
tive sempre uma propensáo herética cm relacño a este ponto da filosofia e,
por isso, habituci-rnc desde cedo, tanto quanro possfvcl, a ser eu a Iazcr
observac¡;oe~ e invcsti~a9ocs; procurci orientacño em autores" cuja intuic¡;ao
a este rcspcuo cu partilhava, em suma. fiz rudo o que esta va ao meu alcance para compensar a lacuna deixada pelos escritos filosóficos. A pouco e
po~1co, a audicño tornou-se, cntáo, para mirn no muis querido dos sentidos;
pors que tal como a voz é a rnanifcstacño da inicrioridade que é incornensurável com o exterior, tambérn o ouvido é o instrumento através do qual
se apr~cnde esta intcrioridadc, e a audicílo
o sentido por rncio do qual nos
a~ropnamos del.a. Scrnprc que deparava com urna contradicño entre o que
vra e o que ouvra, achava, cntño, que a minha dúvida ficava mais rortc. e
que o ~cu dcscjo de observar se intcnsificava.
Um confcssor está cparado
do p~n1tentc por urna grelha; nao ve, limita-se a ouvir. A pouco e pouco,
medida qu:_ ouve , cria urn exterior cm corrcspondüncia corn o que ouvc;
portante, nao entra cm contradicáo. Passa-: e outra coisa, ao invés, quando
se ve e se ouvc cm simultaneo, vendo-se todavía uma grclha entre si e o
intcrlocutoré. Os meus esforcos 1121 para colocar obscrvacóes ncsse sentido
lorarn bastante desiguais, no que diz rcspcito aos resultados. Urnas vczcs
t.iv~ ~ felicidade .do mcu lado, curras vczes, nao tive, e é sernprc preciso ter
felicidade para tirar algurn provcito dcstas andaricas. Entretanto, nunca todavia p.ercli a vontadc de prosseguir comas minhas investigacñes. Se bcm
q~e esuvcssc perro, urna única vez, de me arrcpcnder da minha persistenera, tarnbérn os meus esforcos se viram corcados, urna única vec, por urna
é
'\
é
a
4 Como presumíveis autores consultados, para alérn ele Joscph K. B. F. von Eichendortf',
a1ra:és da mcn~ionada Novelic Dichter 1111d ihre Gesellen, J. Purvcr aponta Ludwig
Achirn von Arnrm ( 1781-1831
27
Sor en K rcr 1.crmud
). corn outra Novelle de 181 O, Armut, Reic/111111111, Schuld
und Bujle der Griifin Dolores !Pobreza. Riqueza. Culpa e Penitencia dn Condessa Dolores 1: doravantc mencionada como Dolores; e também, Adclbcrt von Chamisso, cm
cspecral. com Peter Schletnihls wundersame Geschichte IA História Espantosa de P. S.I.
Vd. Judith Purvcr. «Without Authority: Kierkegaard's Pscudonymous Works as Roman1i~. arratives», in KierkegaardStudies. Yearbook2007, cdicño de iels J. Cappelern el
alar. Berlim, Nova Iorque: 2007. pp, 401-423: aquí, pp, 405-406. 408. 412-415: doravantc mencionado por Purver, Auihority,
5 Este é um dos elementos presentes igualmente ern Dolores. a par do episodio da se-
crctária comentado na nota scguintc,
1111 .p1'11Hh1
lnr111na.
lJ11111 tkssa'> Iortunas inesperadas
fe1 corn que, de um
111rnln 1111111 hs1 mo curiovo, cu vicssc a encontrar-me na pO!-.sC dos papéis que
"' 1 h 11110 .t ltonw de 'uh111ctcr ao público
lcitor. Encontrci nestes papéis a
111 •1111111111h1tk tk lan<;ar um olhar sobre a vida de duas pcssoas, fortale1 1 111h1 ~l' 11 111111ha
duvida de que o exterior nño é o interior. lsto é válido cm
1 ¡11 1 1111 p111u u111a delas. O scu exterior estava cm plena contradi9ao como
11111 r lot l '111 t'e1ta medida. também é válido para a ourra, tendo cm conta
11111 •,11h 11111 nlcrior mais insignificante
escondía um interior mais signifi1 111\0
N.10 ol)"tank, o.;cr;'.Í ccrtamcntc melhor que por uma questño de ordem eu
~ 1111111
l' pot 1ta1 rar como cheguci a posse desscs papéis. l lá cerca de . ere
11111 1111rna lo1a de vclharias aqui da cidade, rcparei numa sccretária que
1Ir111un1
u .,1 a minha atcm;ño logo da primeirn vc7. que a vi. Nao cm de
1 illt1• 1nodl'1110. estnva bastante usada e, contudo, cativou-mc. É.-mc impos1\ 1 1 npltt·ar o motivo dcsta impressao. mas mu ita gente j;í passou deccrto
11111 .1li•o dt: parecido alguma vez na vida. A minha volea diária lcvava-mc a
1•,111s111 pelo :111tiquário e pela sua sccretária, e nunca eu dcixava correr um
1111 tiras em que por lá passava scm cravar os olhos nela. A pouco e pouco.
111111 l.1 sc.:c1ct:íria criou cm mim uma história: <;urgía-me a nccessidadc de a
1 1 l' para cumprir tal l'irn, nem scqucr hesita va cm fazer um dcsvio por sua
11111'11, t1uando numa altura excepcional se tornava premcntc ve-la. Quanto
111111\ a via. tanto rnais dcspertava o meu dcscjo de querer possuf-la. Hem
1 1111.i l'tr que este era um e<,tranho dcsejo. visto que nenhum uso faria des" 1110H·I; adquiri-lo ~cria urna extravagancia da rninha parte. Ora o dc!.cjo,
1111110 e sabido, é muilo sofístico. Arranjei uns assuntos para tratar naquela
lt1¡.i 1k vclharias, perguntci por outras coisas e. quando eslava para sair, fit.
d1 11<11 lll~<'lll urna oferta bastante baixa pela sccrctária. Pcni;ava eu que
1111\'i1velmcn1c
o antiquário haveria de aceitá-la. Tcria sido. cntao, uma ca1,111111d:1dc
a fa¿er com que a secrctária me vicsse parar
maos. Nao era de
11 r toa por causa do dinheiro
que cu agia desse modo, mas por causa da
111111ha consciencia.
1131 Nao fui hcm-sucedido, o antiquário estava invulr1111111:111c determinado.
Durante algum tempo. tornei a pas~ar por lá todoo.;
11"' dras. e contempla va a ~ccretária com olhos apaixonaclos.
Tcns ele decidir11, pcn~ei cu, ~up6e que é vendida, dcpois será tarde; mesmo que, numa
111111a vez, ven has a conseguir ficar com ela, contudo. nao mai. obterás esta
1111prcs't5o dela. Palpitava-me o cornc,;ao quando cntrei. cntao, na loja de
Vl'llwria:-..
Comprei-a e paguei-a. Que seja esta a última vez em que és tiio
1w1dul:írio. pensei cu; hem, é justamente uma felicidadc que a tenbas comp1.1do. visto que scmpre que a contemplares, haverás de pensar no quanto
tt1 lo:--tc pcrdulário; corn a secretária. inaugurar-se-á um novo capítulo na
111:1 vida. Ai, o clesejo é rnuito eloquenre, e as boas intenc;ocs estao sempre
,1 mao.
as
:.rn
S1-irc11 Klcrkcgaard
Mandei, entáo, instalar a secretaria no rneu quarto e, tal corno nos primeiros tempos de enarnoramento eu scntira alegria ao observá-Ia da rua,
tarnbérn agora passava eu por ela em casa. A pouco e pouco, aprendí a conheccr todo o seu abundante conteúdo, os seus muitos compartimentos e
gavetas, e sentia-rne em todos os aspectos muito satisleiro com ela". Nao
haveria, porém, de assirn continuar. No Vcráo de 1836, os meus afazeres
permitiram-me realizar urna pequcna digressáo pelo campo durante uns
oito días. Mandci viro postilhño
cinco. Na véspera, fizera as malas corn
as roupas que precisava de levar: rudo estava em ordem, Já acordara as
quatro da manhñ, mas a imagem da beta paisagem que eu havia de visitar
produziu em m.im urn efeito tao inebriante que voltci a cair no sono ou em
sonhos. O meu criado nao quis presumivelmcnre privar-me de todo o sono
que cu conseguisse dormir, visto só me ter chamado
seis e meia. Já soava a rrornbera do postilhño e, apesar de habitualmente cu nao ser daoo a
cumprir ordens ele tercciros, scmprc abrí urna excepcáo para corn o postilháo e os scus motivos poéticos. Vcsri-rnc prcssa; já esta va i'i porta quando
me ocorrcu o scguinte: será que tcns dinhciro suficiente na cartcira? Nao
havia lá grande coisa. Abri a secretaria para ir gaveta do dinheiro, e retirar
o que rivcsse cm casa. Mas vede, a gaveta ncm sequcr se movia: Tocios os
meios foram baldados. Nao podía haver maior fatalidade do que ter de
enfrentar tais dificuldadcs precisamente no instante em que nos meus ouvidos rcssoavarn a inda os encantos dos sons do postilháo. Subiu-rnc o sangue
cabeca; Iiquci exasperado. Tal como Xcrxes mandara flagelar os marcs7,
assim dccidi cu aplicar urna terríveJ vinganca. Mandei vir um maco. Usei-o
para dcsferir na secretaria urna pancada terrivelrncnte violenta. Quer tivesse sido eu, na minha ira, a falhar o golpe, quer fosse porque a gaveta era tao
casrnurra quanto cu, 1141 o efcito nao foi o previsto. A gaveta esta va fecha-
as
as
a
a
a
6 Encontram-sc neste parágrafo elementos narrativos inspirados na Novel/e Dicluer und
ihre Cese/len de Eichcndorff, designadamente. o arrombamento da secretaria e o toque do
postilhño, os quais, urna vez articulados com a inclusño ele urna caixa de pistolas no episodio, pcrmitcm a Purver concluir que Kierkegaarcl encerra neste momento um período de
criacño litcrária sob a influencia de Die Leiden des jungen Werthers LO Sofrimenro do
Jovern Werthcr] de 1874, a Novel/e epistolar de Johann W. von Gocthc (1749-1832).
Kierkegaard seguiu assim o rumo trilhado por Eichendorff', e tambérn por Arnirn e Brenrano, os quais se dirigcm ao leitor apresentando proposias éticas e religiosas através de
urna crítica dos valores vciculados na sua época e da valorizacño das escolhas ele vida
individua is aplicáveis a sua inscriv1io no tempo histórico; vd. Purvcr, Authoriry, pp. 22-23.
7 Trata-se da reaccáo de Xerxes ao saber que uma violenta tcrnpestade destruíra as pontes sobre o estreito de Dardanelos. Narrado em Historias de Heródoto (c. 484-c. 420 a.
C.). livro VII. vv, 34-35; cdivao consultada pelo autor: Die Geschicluen des Ilerodotos
11\s Historias de H.J. vols. 1-11, traducáo de Friedrich Lange. Bcrlirn: 1811; vol. 11.
pp. 347-349. Vd. Herodotus, The Persian \Vctr.v IAs Guerras Persas], vols.T-JV, traducño
de A. D. Godley (Loeb). Nova Jorque: Pulnam, 1921-1924; vol. 111. pp. 347-349.
011
Ou
111 1'111¡'1111.'ll[U
UI.' Vldn
29
da e fechada ficou. Succdcu, ao invés , urna coisa diferente. Fosse porque o
111!.:u gorpc aiingira precisamente aquclc ponto, ou porque tocio o abalo
produzido na cstrutura gcral da secretaria tal iivcsse ocasionado, é coisa
que nao sci, mas sci que saltou urna portinhola secreta na qual eu nunca
antes reparara. Fechava-sc sobr~ om esconderijo, o qual obviamente eu
1ambém nao havia desvendado. Para minha grande admira9ao, descobri aí
urna quantidade de papéis, os papéis que constituem o cooteúdo dos es_crilos ora submetidos. A minha decisfto manteve-se inabalável. Na primcira
eslayao, iria contrair um empréstimo. Na maior das pressas, csva:t.iei uma
caixa ele mogno na qua! costumava estar guardado urn par de pistolas, e
dcpositei nela os papéis. A alegria triunfara ganhando um inesperado incremento; no íntimo do rneu cora~ao, pecli pcrdao
sccretária pelo duro tralamcnto, enquanto o rneu pensamcnto via fortalecida a cltívida de que o exterior nao é todavia o interior, e comprovada a minha tese experimental de
que é preciso ter fortuna para fozcr lais dcscobcrtas.
A meio da tarde chcguei a Hiller0d8, pus as minhas finan9as em orclem,
deixei que a magnífica paisagem procluzisse cm mirn uma impressao geral.
Logo na rnanha seguintc comecei as minhas cxcursocs, dotadas agora de
11111 carácter completamente
diverso claqucle que cu inicialmente
lhcs destinara. O meu criado scguia atrás de mim coma caixa de mogno. Proeurava,
cntao, um lugar ron1antico na lloresta, onde tanto quanto possível puclesse
1cr a certeza ele evitar qualquer surpresa, e retira va os documentos da caixa.
Ü CStaJajadeiro, que ficara UITI tanto atento as rninhas frequenleS deambu]a\'OCS na companhia da caixa ele mogno, rnanil'cs1.ou-se dizendo que talvez
cu estivcssc a praticar o tiro de pistola. Mostrei-mc muito reconhecido pelo
~cu reparo e dcixci-o ficar nessa cren9a.
Um olhar de relance aos papéis enconlraclos mostrou-me facilmente que
constiluíam duas forma9oes, cuja cliferenya esta va igualmente acentuada no
exterior. Urna estava escrita muna espécie de papel velino de carta, in-quarto,
com urna rnargem bastante larga. A caligrafía era legível, por vczes mesmo
um pouco rebuscada, noutros passos esborratada. O outro esta va c:scrito cm
rol has inteiras de papel ele ofício com col unas marcadas. tal como se escreve
cm documentos legais ou cm outros afins. A caligrafía era clara, um tanto
distendida, uniforme e regular; parecia pertencer a um comerciante. Tarnbém
o contcúdo rnostrou desde logo que era diferente: uma das pa11es continha
urna quantida<le <le ensaios estéticos. de dimensao maior ou menor, a outra
era composta por 1151 duas grandes pesquisas e uma menor. todas de conteúdo ético, aoque parece, e ern forma epistolar. Observando com maior pormenor, ficou a cliferen9a cabalmente refor9acla. A última forma<;ao ele papéis
é designadamente constituída por cartas, dirigidas ao autor da primeira.
a
8 Pcguena cidade da Zclilndia. a no1te de Copenbaga.
\()
\
¡
31
Torna-se todavía necessário encontrar urna exprcssáo mais cuita para
poder designar os dois autores, Percorri para esse cfeito os papéis com
todo o cuidado, mas nada ou quasc nada encontrei, t-12_gue diz respeiro
ao primeiro autor, o estético, nem scquer se encentra qualquer esclarecímento sobre quern seja. Quanto ao segundo, o redactor de cartas, fica a
saber-se que se chamavaJ&'.i/helm_ e havia sido juiz assess..Qr, sem ficar
todavía determinado e.m que tribunal. Fosse eu cingir-me escrupulosamente ao que é histórico, chamando-lhc Wilhclm e, cntáo, faltar-me-ia
urna dcsignacáo corrcspondente para o primeiro autor; tcria pois de
arribuir-lhe um nome arbitrario. Por isso , preferí chamar ao prirneiro autor A. e ao segundo B.
Além dos ensaios maiorcs, encontrava-se entre esscs papéis urna quantidadc de pedacos de papel. nos quais haviam siclo escritos aforismos, dcsabatos líricos. reflexñes. A caligrafia já indicava que pcrtenciam a A, e o
conteúdo vcio confirma-lo.
Ora eu csforcei-mc por ordenar os papéis da melhor maneira. Quanto aos
papéis de 8, foi coisa bastante fácil de fazer. Urna das cartas pressupóe a
outra. Na segunda cana encentra-se uma ciracño da primeira, e a tcrceira
carta prcssupóe as duas anteriores.
Nao Ioi assirn tao rácil ordenar os papéis de A. Deixei, por ísso, que
fossc o acaso a determinar a ordern, ou seja. dcixei-os ficar pela orclem na
qua! cu prirneiro os encontrara, scm ser obviamente capaz de decidir se
esta ordcm tinha um valor cronológico ou urna signiflcacño ideal. Os fragmentos de papel cstavarn sol tos no compartimento, por isso. vi-me forcado
a atribuir-lhes um lugar. Dcixei que Iicassem Jogo no início, porque me
parcceu que consentiarn urna melhor considcracáo cnquanto amostra preliminar daquilo que as seccóes maiores desenvolviam com mais consistencia. Ch~ei-lhes 6La·ipctA.~,.:u9 e acresccntei cm jeito de mote: ad se _
ipsum'". De certo modo, o título e o mote sao rneus e, cornudo, nao sao
meus. Sao meus, t:endo em conta que se refercm a coleccáo completa de
aforismos; em contrapartida, pertencem ao proprio A, pois num dos papelitos esta va escrita a palavra 6Lmjm/..µcn;a, e cm dois deles as palavras «ad
se ipsum»: Tarnbém fiz imprimir no verso da página de rosto uns versi nhos
em francés que encimavam 1161 um daquelcs aforismos,
sernelhanca do
que o próprio A arnitide fizera. Como o maior número destcs aforismos era
de carácter lírico, pensei assim que seria bastante adequado utilizar a palavra 6Lmprú.µ.a como título principal. Haja o leitor de ciar esta cscolha por
infeliz, e cabe-me agora confcssar, a bem da verdadc, que Ioi invencáo
a
9 Em grcgo no original, entre outras dcnoracñes: «interhidio musical». Vd. nota 1 no
capítulo seguinte.
10 Em latim no original: «para si mesmo».
1111nlrn., e 1,¡11c n palnvra fora certamcnrc usada corn gesto pelo p~·ó~rio A
p111n o aforismo onde se cncontrava. Quanto
ordenacáo dos aforismos,
a
111d1vidualmc11tc
tornados, deixei reinar o casual. Achci até muito ccrto que
u~ cxpressóes particulares se contradissessern com frequéncia, .pois isso
prende-se csscncialrnente com a disposicño; achei que nao vaha a pena
(li,pO-l:ls entre si de molde a que as contradicñes se tornassem menos not<Sria~. Fui atrás da casualidade, e também é urna casualidade, que me cha.uou a atcncáo, o facto de o primeiro e o último aforismo responderern de
t \'1 l<i mancira um ao outro, na medida cm que um como que percorre o que
ho de doloroso cm ser-se poeta, e o outro desfruta a satisfacáo que reside
1•in ter scmprc o riso do scu lado.
·
Qunnto aos opúsculos estéticos de A. nada tcnho a salicntar a seu rcspcito. l~ncontrav:un-se todos prontos para seguir para o prelo e, se bem que
conrivcssern dificuldades, tenho de deixar que falern por si proprios. Pela
¡llll te que me toca, tenho a observar que acrescentei a traducáo das citacóes
1·111 grcgo que aqui e ali se encontram, retiradas de uma das melhores tradtu;oes alemas.
o último dos papéis de A é urna história intitulada «Diário do Sedutor».
Surge111 aqui novas di l'icuJdades, na medida cm que A nao se declara como
11u1or,
mas tao-somcnlc como editor. Trata-se de um vclho truque de ron1:rr1t:is1a, contra o qua! nada mais haveria cu de objectar, caso nao contrihu ísse para tornar a minha posi9ao tao complicada. n~ medida em qu~ um
1n1tor acaba por ficar dentro de outro autor, como ca1xas de um conjunto
de cnixa~ chinesas. Níi.o é este o local para adiantar mais sobre aquilo que
wro corroborar a minha opinifío, quero apenas observar que a disposi9ao
1 t:inante no preambulo de A, de certo modo, denuncia o poela. É real~ncnll' como se o próprio A houvesse tido receio da sua obra, a qual contmuavu a angustiá-lo como um sonho agitado, também enquanto era narrada.
Sl· l'osse um acontccimento vercladeiro, do qual ele tivesse sido testemu11lra, parccer-me-ia assim estranho que o preambulo nao t1~ouxes~e qualqticr marca da alcoria de A ao ver realizada a ideia que mu1to mais vezes
l lle pairara na me1~c. ~ ideia do scdutor cncontra-se sugerida. tanto. no 1171
,11 tigo sobre o erótico-musical
como em «Silhuetas>> e, aqu1, dcs1gnada1, 1cnte por analogia com Don Juan 11, terá de tratar-se de um sedutor reflec1 ido, inserido na categoría do interessante12, de modo nen.hum dando lugar
1 J A personagem homónima da ópera Don Giovanni (1787) de WolfgangAmad~us Mo1ar1 (1756-1791) é semprc referida como Don Ju~n. de acord~ ~om a ~1dapta9ao drna~
111arquesa da <>pera mo;c,artiana. Vd. nota l no capitulo «Üs Estadios Erotlcos lmedratos
011 o Erótico-Musical».
12 Na época, o interessante era objecto de reflexao no panorama .filosófico ~inamarqucs e Kicrkegaard. ª~1.9.~·d~!;? já c~t!I ca~cgo,ria_est~t.1.caªº.discutir a ,centralrclade d.~
l ·ricdrich Schlegel ( 1772-1829) no conte>;to..da analise da 1rollla roma¡1t.lca em Sobl(:
'\
-
32
Oo
a perguntas sobre quantas seduziu, mas corno seduziu. Nao encontrei vestígios de semelhantc alegria no preámbulo, mas antes, como observado, ele
um trernor, de um cerro horror, que deceno encontra o respectivo fundamento na relacáo poética de A com esta ideia. E nao me espanta que assim
tenha acontecido com A; pois até eu, que nada tenho que ver com esta
historia, que estou mesmo distanciado do autor original através de dois
planos, até eu também me sentí assim por vezes muitíssimo esquisito,
quando na quietude da noitc me ocupava dos papéis. Para mirn, era como
se o sedutor caminhasse como uma sombra pelo soalho, como se lancasse
os olhos sobre os papéis, como se fixasse sobre mimo olhar demoníaco, e
dissessc: «Com que entño, quereis publicar os rneus papéis! Que grande
irresponsabilidade a vossal lreis dcveras inculcar urna angústia nas queridas meninas. No enramo, comprecnde-sc que, em compcnsacño. facais de
mime dos rncus pares inofensivos. E com isso. incorreis cm erro; porque
basta-me mudar de método para que as minhas condicóes sejam ainda
rnais vantajosas. E que corrupio de rapariguinhas Jogo nao acorrerá para
cair nos nossos bracos, ao ouvir este atracnte norne: urn sedutor! Dai-me
mcio ano e cu componho urna história que virá a ser mais inrercssante do
que tudo aquilo que até agora viví. Imagino urna rapariga jovern, vigorosa
e genial, a ter a inusitada ideia de querer vingar ern mirn o seu sexo. Pensa que havcria ele ser capaz de me obrigar a sentir o travo das dores do
amor infeliz. Vede como esta rapariga está ~1 minha altura. Caso cla nao se
lance a fundo nisso, cntño, acorrerei em scu auxílio. Hei-dc contorcer-me
o Concetto de Ironía e111 Constante Referéncia a Sácrates, SY J. vol. Xlll, pp.
357-370, SKS. vol. 1. pp. 321-334. J. L. Heibcrg, pouco antes da publicacño de 011
Ou, adiantura que a natureza «moderna» da categoría nao encontrava urna dcsigna9iio
nas línguas clássicas, mas que era aplicávcl, por exernplo. aoque a rragédia antiga tem
de «grande» e «colossal» e, simultancamems, ao modo como circunscreve esse mesmo aspecto. o que no seu entender explicarla o carácter menos dinámico das personagens trágicas. Heiberg atribuí ainda um carácter plástico as pcrsonagcns da tragédia
ctassica, e um carácter pictórico
da trugédia moderna; vd. «Dina», tnteltigensbtade
[Folha dos lntelectuais l. vol. 11. n .0 J 6- J 7. p. 80, 15 de Novernbro de 1842. Rele91brc-se a reJevancia_do intercssantc corno categoría estética cm Über das Stutli~ler
grleciusctien Poesie [Sobre o Estudo da Poesía Gregal de Friedrich Schlegel, urn •
ensaio de 1795-1796. Para urna génese da categoría, vd. Aage Henriksen, Kierkegaards romaner . Copcnhaga, Gyldendal, 1.969, pp. 33-36. Enquanto categorías estéJ_ic.11.!i
de diferenciacño do modo como cada pessoa percepciona O. mundocxteríor, o interéssanie e o interessc sao abordados com incidencia variavel tamhém ern Tem~-
as
mor, A Repeticiio, O Conceitp qe Angustia e Postscriptum Conclusivo Ncio;Cievt(fi._r;,~J
ás Migalhas Filosóficas. Ao longo da presente obra, assinala-se em nota alguns dos
usos de «intercssante» como categoría estética, em especial no capítulo «Diário do
Sedutor».
Ou. Uru ht11!n1~·1110
de Vidu
mino u cnguia de Motboc':'.
J.1
E quando a river levado ao ponto que cu
qucro , scnl rninha.»
Mas já icrci porvcntura abusado da rninha posicño de editor para sobre-
currcgar os lcitores corn as minhas observacóes. Terá de ser a ocasiño a vir
dcsculpar-rne, pois foi por ocasiáo da minha precaria posicáo, causada pelo
lacto de A apenas se autodesignar como editor e nao como autor desta
história, que me deixei arrebatar.
O que mais tenho a acrescentar sobre esta historia posso apenas fazé-lo
na qualidadc de editor. Crcio encontrar, designadamcntc ncsta história, urna
dctcrminacño temporal. No diário encentra-se aquí e acola urna dala, mas,
cm contrapartida, falla o ano. Sondo assirn, parece-me que nao haveria de
ir mais longo; no entamo, ao observar eom maior pormenor as <latas em
particular, creio 1181 ter encontrado urn indício. Se é cornprovadamenre
vcrdadc que todos os anos tem um dia scte de Abril, um clia tres de Ju.lho,
um dia dois de Agosto, etc., de modo algum daí resulta que o dia sete de
Abril caía tocios os anos a segunda-feira. Fiz, cntao, uns cálculos, e descohri que esta clctennina9ao corresponde ao ano de 1834. Nao meé possívcl
decidir se A pcnsou nisto, e inelinar-mc-ia a crer que nao; pois ncsse caso
nfo tcria tomado tanta prccau9ao como de resto tornou. No cliário tambérn
nao está escrito: «Segunda-fcira, 7 de Abril». ele., mas simplesmentc «7 de
Ahrih>, e a própria entrada come<;a assim «Ora, na segunda-feirn», o que nos
pode juslarnc.;ntc desviar a atcn9i.io; mas ao lcr novarncnlc a entrada que se
c11<.:011tra por baixo clcssa dala, vé-se que tcm de ter acontecido numa
,cgu11da-f'cira. No que di:t respeito a esta histór.ia, tenho, entao. uma dcter111in:t\:aO temporal: ao invés, qualquer tentativa, por mim realizada com
cs~a ajuda, para determinar temporalmente os restantes ensaios, nao teve
,uccsso. Poderia até de bom grado ter posto esta história em terceiro lugar;
por0m, tal como atrás afirmei, preferí entregar isso ao acaso, e deixar tuclo
11a ordem cm que foi encontrado.
Quanto aos papéis de H, dcixaram-se ordenar com urna natural facilidadc. Procedí cm contrapartida a urna altcra9ao, na medida cm que me permil i dar-lhes um título, dado que a forma epistolar havia impedido o autor
dt.: dar um título a essas investigas;oes. Se, depois de estar inteirado do conl.\ Molboe, actualmente Mols. é uma pequena pe11ínsula a sul da Ojurslanu, na costa
micnlal da Jutlanclia, entre Alborg e Arhus. Riclicularizados como gente pouco csperta,
1>~ lwbitantes prolagonizam rnuitas anedotas, recolhidas no tempo de Kierkegaard na
rnlccl5nea Beretni11g 0111 de vidt bekje11dte Molboers vise Gja11inger og tapfre Bedrijier
1 Notícia dos Sábios Feitos e;: Valentes Proezas dos Afarnados Habitantes de Molsj, Copc11haga, 1827; aqui, pp. 3-5. Tcndo apanhado uma enguia gigante que acrcditav:m1 ter
devorado a sua cultura de arenques. os habitantes de Mols concordaram em lanc;:a-la ao
lag.o convencidos de que se afogaria; ao ve-Ja contorcer-se na água. tomaram csscs
111ovimentos por espasmos da morte.
J4
1111
teúdo. o leitor houver de considerar que os títulos nao sao urna cscolha
feliz, estarcí sempre disposto a ficar com a dor que nos vem de termos
feito urna coisa errada. quando desejávamos fazer urna coisa bcrn feíta.
Em alguns passos. encontrava-se um comentario na margem. tendo eu
transformado cada um dcstes em nota, de modo a que cu nao houvcsse de
interferir e perturbar o texto.
Quanto ao manuscrito de B, nao me permití fazer qualqucr alteracáo,
antes os olhci rigorosamcruc como urn documento processual. Podcria
cilmcnte ter talvez eliminado urna ou outra imprecisáo, urna coisa bastante
cornpreensfvel quando se pcnsa que se trata simplesmentc de alguérn que
escrcve cartas. Nao quis fazé-lo, porque temia ir demasiado longe. Quando,
na opiniáo de B. entre cem jovens perdidos no mundo, se salvam noventa
e nove por intcrvencño das rnulhcres, e um por intervcncño da graca divina!", é fácil de ver que nao foi rigoroso nas contas que fez. visto que ncm
scqucr rcscrvou lugar algum para aquclcs que realmente acabararn por se
perder. Ter-rnc-ia sido fácil introduzir urna pcqucna altcracáo nos números,
mas parece-me 1191 que há cortamente algo bastante rnais belo nos cálculos
falhado · de D. Ern outro passo15• B menciona um sábio grego de nome
Mf.1·01116, e con ta-nos como ele goza va da rara felicidaclc de estar contado
entre os sere sábios, quando o número destes sabios está definido como
endo catorzc. Fiquci por um instante perplcxo. pois de onde podcria vira
sabedoria de B. e rarnbérn quul podcria ser o autor grego por ele citado. As
minhas suspeitas cafram logo sobre Diágenes Laércio e. ao consultar
Jecher'! e Morért'", confirmei a respectiva referencia. Ora certarnente que
ra-
14 Mntcus, 18:12-13:
«Que vos parece? Se algum homcrn tivcr ccm ovclhas. e urna
delas se desgarrar. 11üo irtí pelos montes. deixando as noventa e nove ern busca da que
se dcsgarrou? 1 I!. se porvcnrura a acha, cm verdadc vos digo que maior prazcr tem por
uqucla do que pelas noventa e nove que nilo se desgarrarum.»
15 Vd. 011-011. Segunda Parte. SVJ. vol. [!J. p. 287. e SKS. vol. 3. p. 303.
16 Míson. um do~ sete 1-ábios gregos de que nos fala Diógenes Laércio (séc, 111 d. C.)
cm vidas de Grandes Pil6sofos. livro 1, vv, 13 e 106-108: cdiyocs consultadas pelo
autor: Oioge11i1· Laertti de vitis philosophorum I Vida'> dos Filósofo» de D. L.j. vols. 1 11.
Lcipzig , 1933; vol. 1, pp. 6 e 51-53. e Diogen Laértses filosofiske lllstorie f História da
l-ilosofia de D. L.1. vots. 1-11. tradw,:ao de H¡1rge Riisbrigh. Copenhaga, J 812: vol. 1, pp,
5 e 48-50. Vd. Diogcncs Lacrtius. Lives of Emi11e111 Philosophers. traducño de R. O.
Hicks (Loeb), Cambridge. Massachussellf.: Harvard Universitv Prcss. 1991. vols, 1-11:
vol. J, pp, J5e111-J13.
·
17 Christian Gottlieb Jocher ( 1694-1758). editor do Allge111ei11e1· Gelehrten-Lexicon
1 Léxico Geral de Termos Eruditos 1, vols, 1-TV, Lcipzig, 1750-5 l ; sobre Míson, vd. vol.
ni. p. 798.
18 Louis Moréri ( 1643-1680), autor do Grand dictionnaire historique, 011 le 111é/011¡;:e
curieux de l'histoire sacrée el profane [Grande Dicionário Histórico ou a Curiosa Mistura da 1 listória do Sagrado e do Profano! de 1674: Kicrkcgaard possuta urna cdi~ao de
t )11 l lru 1 1,1r111l·11111
d~ Vida
«-l.uo 1k B podiu precisar Je urna rcctificucao, porque níío se passa ele
111d111..01110 ele aurma . ve bcrn que na /\ntiguidade houvesse alguma incer111,1 c111 dctcrmiuar quais scriam os sctc sabios; nao senti entretanto que
\ .ill'''c a pena, parcccu-mc que o seu cornentário, apc. ar de nao ser rigoro1,11 do ponto de vista histórico, possuía um outro valor.
l la cinco anos, já cu esta va onde agora chcguei: ordenara os papéis da
111111u:ira como ainda esrño ordenados; tomara a decisño ele os ciar a cstarnpu. ma;; fui todavía de opiniáo que seria melhor esperar algum tempo.
< ouvidcrci que cinco anos scriam um lapso adequado. Esgotados csscs
1111l'O anos, comcco onde cntáo interrompera. Torna-se ctecerto desneces,111<1 .. ~..,egurar ao leitor que envidei todos os rncios para seguir uma pista
rloi- autores. O antiquário nao tinha livro de rcgistos, o que, como se sabe.
11.10 e caso raro entre os antiquários, e nao sabia a quem havia comprado
11q11l'lc móvcl; parccia-lhe que tinha sido comprado num leilflo geral. Nem
llll" alrcvcrei a pur-mc a conlar ao leitor a multiplicidade de inl'rutfferos
l ll,:110~ que muito tempo me tiraram e, muito menos ainda, porque tal re( onlac;iio é para mim muito clesagradávcl. Do resultado, posso cu, cm
l 011trapartida. dar conta ao leitor com toda a hrevidadc. pois o resultado
foi rigoro~amente nulo.
()L;ando me aprontava para concretizar a decisao ele entregar os papéis
pa1a publicac;üo, despcrtou cm mim um ci.cnípulo particular. Talve1. o
1l•i111r me permita fa lar ele cora9üo abcrto. Ocorreu-me pensar ~e eu nüo me
111a \Cntir culpado por cometer uma indi ·cri9ao pcrante os ignotos autores .
C.)11anto mais eu entretanto me rarni 1 iari1ava com os papéis, tanto mais
l'"c escrúpulo diminuía. Os papéis eram de urna naturez.a tal que. apesar
d.1i- minhas aturadas ohscrva<;oc!.. nao adiantavam qualqucr csclarecimento, menos ainda que um leitor houvcsse de encontrar algo de semelhante,
atl' porque ouso certamentc medir-me com qualquer lcitor, nao quanto ao
¡!mio,
simpatia e cornpreens5o. mas, sem dúvida. quanto aplicac;ao e
an 1.elo. Pressupondo que os ignotos autores ainda existiam, que 1201 viv1am aquí na cidacle e chegavam a travar inesperado conhecimcnto comos
'-l'US próprios papéis; se rossem, cntao. eles mesmos a manterem-se calado\. nada resultaría da publicac;ao. pois que a esses papéis aplicar-se-in. no
111ai\ rigoroso ~entido. aquilo que é aliás costume cli1.cr-sc de todas asmatcnas escritas - calam-se.
Fui acometido de um outro escrúpulo. em si e para ~¡ de menor signifil'a~·ao. ba ·tante ·imples de superar. e que acahou por ser superado de urna
maneira ainda mais simples do que cu pensara. Ocorreu-me designada
11
a
a
a
lla~ileia de 17 31-1732. Sohre Míson. vd. vol. V. p. 449. e sobre o~ sábio!I grego\ com
mcn\:ªº de Diógencs Laércio. vtl. vol. VI, p. 230.
J7
mente que estos papéi« poderiam transformar-se em pecúlio. Achei que
seria deccrto ajustado que eu rccebcsse uns pcquenos honorários pelo meu
esíorcado trabalho como editor; mas honorarios de autor, tinha de
considerá-los demasiado elevados. Tal como os íntegros Iazendeiros de A
Dama Branca 19 clecidiram comprar a propriedade e cultivá-la para a oferccerern depois aos Condes de Avenel/", se algurna vez eles houvessern de
rcgressar, assim dccidi eu por a render todos os honorarios por inteiro,
para que se algurna vez os ignotos autores houvessern de dar-se a conhecer, cu pudesse dar-lhcs tudo como respectivo rendimenro e o rcndimento
do rcndirnento. Se por minha completa inépcia o lcitor nao se houver ainda certificado de que cu nao sou autor nenhurn, ncm sequer um literato que
faca de ser editor a sua profissáo, entáo, com certeza que a ingenuidadc
deste raciocínío acabará com todas as dúvidas. Portante, este escrúpulo Ioi
superado de urna maneira bastante mais simples, visto que na Dinamarca
os honorári.os de autor nao sao urna herdade, e os ignores autores teriam
de ficar alastados durante rnuiro tempo, antes que os seus honorários,
mesmo com o respectivo rendimento e o rendimcnto do rendimcnto, pudcsscm transformar-se cm peculio.
Rcsrava agora dar simplesmcnrc um lítulo a éstes papéis. Poclcr-lhcs-ia
chamar papéis, papéis póstumos, papéis encontrados, papéis perdidos.
etc.; como
sabido, há urna multiplicidade
de variantes, mas ncnhurn
destcs títulos iría satisfazer-rne. Ao determinar o título. concedí a rnim
proprio urna liberdadc, urna impostura, da qua! me esforcarcí por dar conla. Durante a minha ocupacño permanente com estes papéis, fez-se-me luz:
podía ganhar-se urna nova perspectiva, considerando-os
corno pertcnccntes a uru mesmo individuo. Sei muito bcm tudo quanto há para objeciar
contra esta obscrvacño: que nao é histórica, que inverosímil, que irrazoável que um mesmo indivíduo pudcsse ser o autor de ambas as partes e,
isto, cmbora o Ieitor pudcsse ser facilmente tentado pelo trocadilho: quando se diz A, também tem de dizer-se Il21• Entretanto, nao fui todavía capaz
ele desistir. Trata va-se, cntño, de alguém que na sua vida havia 1211 efectuado integralmente os dois movimentns, ou havia ponderado os dois movimentos. Os papéis ele A coruinham dcsignadarncnte urna tnultiplicidade de
incursócs cm torno de urna visño estética da vida. Urna visño estética da
é
é
é
19 l a dame blanche [A Dama Branca] ( J 825), ópera cómica <le Frani;ois-Adricn Boicldicu ( 1775-1834), extremamente popular cm París e rambém ern Copcnhaga, na adapta<;ao de 1826 de Thomax Overskou ( 1798-1873): o libreto 6 de Eugéne Scribc (J 791-1861 ), bascado cm Tite Monastery [O Mosteiro] de .1820, romance de Walier Scou
(1771-1832).
20 Personagcns <le La dame blanchc.
21 Trata-se do primciro ditado recolhido por N. F. S. Grundtvíg (1783-1872)
em Danske
OrdJ1JTOfi og Mundheld [Proverbies e Adagios Dinamarqueses). Copenhaga. J 845. p. 1.
vulu t'Ol'11;11lc 1100 é de lodo passfvcl de ser exposta. Os papéis de B contioluun 1111w visño ética da vida. Enquanto dcixava a minha alma sob o
1 ¡1 110 <k:sl<.::-. pcnsarncntos. tornou-se para mim claro que podcria dcixar
fllll
cs,cs pcnsumcnros me levassern a determinar o título. O título que
exprime precisamente isro. O que o leitor possivelmcntc perderá
1,uilhi
1 l!ill este título
nao pode ser grande coisa,já que durante a leitura pode até
1111111o l>c111 csqucccr o título. Depois de ter lido o livro, talvez possa, entáo,
pl ustu no rftulo. Ora isso libertá-lo-á de qualquer pergunta finita ~ara salil 1 :-.~·A ficou agora realmente convencido e se arrepcndcu, se H triunfou ,
1111 se porvcntura aquilo acabou com Ha ceder a opiniáo de A. Quanto a
qualquer conclusáo. Se. al.guém
1~111• os papéis nao térn designadamente
1,;i 1ilN1dcrar
que isto nao está cerro, também nao se encentra no dire.Jt~ d.c
di1c1 que se trata de urn erro, pois que teria de chamar-se-lile urna inlcli1 1ilndc. Pela parte que me toca, considero
que é urna felicidacle. Deparamo110, por vczcs com novelas c1n que sao expostas cluas visoes da ~ida
1 rn1lnidi16rias
através de determinadas personagens. Costumam lcrrnmar
1 ¡1111 11111 dos pontos ele vista a persuadir
o outrn. Em vez de deixar que
l Jll c~sc ponto de vista a ralar por si' rornece-se
lcitor o resu~t~clo hisln11rn: toi o outro quern ficou persuadido. Considero uma fehc1dade o
l.n lo de cstes papéis nada esclarecerem ncsse sentido. Se A é autor dos
1'i1:-. op1h.culos estéticos dcpois de ter rcccbido as carlas el~ ~- se ~ .sua
11111:1, passado esse tempo, continuou a revirar-se na sua.bravrn 111doc1.li~acl1. 1111 ,e ela se aquietou, é eoisa sobre a qual nao me s1nto cm cond19ocs
tl1· p1l'Slar urn único esclarccimcnto, ciado que os papéis nenhum esclare1 i1m·1110
contcm. Também nao encerram qualquer indício sobre o que
lll OlllC<.:CU a IJ, se ele teve for9a para mantcr O SCU ponto de vista OU nao.
l lina vez Jido o livro. esquece-se A e B, ficam só os pornos de vista dianh 11111 do outro sem esperar por qualquer rcsolu9ao final de determinadas
¡111so11aliclades.
Nada mais tenho a comentar. apenas me ocorreu que os honrados autol\'' ·se.: estivessem ao corrente do meu cometimcnto, desejariam possivclltll'lltc f'azer acompanhar os seus papéis ele uma palavra ao leitor. Acrescen1111 ci, por isso, algumas palavras, com parcimónia. A certamente n~da teria
11 11hJc<..:tar contra a publica<;ao dos papéis, e seria provável que gn~asse ª?
lc.'itor: «Quer leias, quer nao leías, arrepen<ler-te-ás de ambas as co1sas.» E
llllllS difícil determinar o que B diria. Talvcz me fizcssc 1221 uma ou outra
11dvc.:rtcncia,
cm especial no que diz respeito a publicrn;:ao dos papéis de A:
1111 rnc-ia sentir que nada ele seu ali havia e que podia lavar daí as maos.
l l111a vez isto feito, dirigir-se-ia talvez ao Jivro ncstes tc1mos: «Yai, cntao.
¡wlo mundo fora, evita se possívcl a atcni;ao da crítica, visir~ em bo.a .hora
11111 lcilor singular»; e, houvesscs tu de deparar com urna lettora, cima eu
ª?
entáo: «Minha cstirnávcl lciiora. encontrarás ncstc livro algo que porvcnrura nao deverias saber, e urna mitra coisa da qual tirarías proveito cm ficar a
saber; lé pois esse algo de modo a que. tu que o leste, possas ser como
aquclc que nao lcu, e a outra coisa, de modo a que, tu que o leste, possas
ser como aquelc que nao esqueceu o que leu.»22 Na qualidadc de editor,
quero apenas acrcsccntar o descjo de que o livro venha a encontrar o leitor
numa boa hora, e que a estimável leitora venha a ser bem-sucedida no escrupuloso cumprimenro do bem-intencionado
consclho de H.
Índice
Novcmbro de 1842.
O editor
41
\1u 1¡1uA.µttTCL
,
e)<;
1
e)
Est(ldios
Eróticos (mediatos ou
o Erótico-Musical
lh:t lcxo do Trágico Antigo no Trágico Moderno
1 \dhucta'>
~ 1l111ai-; Infeliz
,, < J ¡•1 imriro Amor. Urna Comédia em Um Acto de Scribe,
l uuluzida
por J. L. Heibcrg
;\ Rotai;ao de Culturas
1 li.1110
22 Ch termos corn que Víctor Eremita se dirige ao lcitor, e a leitora, aproxiuuun-xe das
considcracóes dirigidas ao leitor nox prcfácios, <to~ diversos livros de discursos edifican-
te.'. publicados, cm 184.1e1844. Vd. SYI. vol. lIL pp. lle 271. vol. IV, pp. 7, 73 e 121.
e vol. V. p. 79: e SKS. vol. 5. pp. 11. 63. 113. 183. 231 e 289.
do Scdutor
81
173
203
251
267
313
335
ólA'PAAMATA
1
ad se ip5um2
1261
1171
Grandeur, savoir, renomée,
Amitié, plaisir el bien,
'lout 11 'est que ve111. que [umée:
Pour mieux dire, 10111 n 'est rien.3
O que é um poeta? Um homcm infeliz que esconde profundos tormentos
110 coracño, mas cujos lábios se moldarn de tal forma que suspiro ou grito
cpll' deles irrompa soa como urna bela música. Acontcce-lhe como aos inlt•li1.cs que dentro do touro ele Fálaris4 cram lentamente torturados cm turne
alcancavarn os ouvidos do tirano para o aterrosoavam-lhe como urna música suave. E as pessoas aglomcram-sc a
luundo; os scus gritos nao
111ar,
voila do poeta e dizcm-lhe: canta logo curra vez! como qucm diz: oxalá
uovos sofrirncntos atormentcrn a tua alma e os teus láblos pcrrnanccam
moldados como antes, pois o grito havcria apenas de angustiar-nos, a rnú... it'a é porérn celestial. E os reccnseadores avancam e dizcm: está cerio,
,1..,~im que eleve ser de acorde comas rcgras da estética. Ora é evidente que
11111 rccenseador tambérn se parece com urn poeta como duas gotas de agua,
so que nem no coracíío t.em tormentos, nern nos lábios tern música. Vede,
prcfiro por isso ser porqueiro cm Amagerbro5 e ser entendido por porccs,
d\\ que ser poeta e ser mal entendido pelos homens.
é
1 ~m grego no. or~ginal; «diapsatmata», plural de «diapsalma», designa ern grego «int.e.1v~lo no recuauvo de um cantar», «interlúdio musical», aplicado tambérn corn 0
scnt~do ele :<mudanr;a. de tom». No singular, foi usado para rraduzir o hebraico «Selah»
nar,Septuag11.
anuga das traducóes
dos· livros da Bfbliae hebraica
p·ctr,1· grcgo.
¡ · lta, a · mais
·
.,.
' '
2 ·~m aum no original: «para si próprio».
3. E1~ francés no original: «Grandeza, saber. fama,/ Amizade , prazcr e bem,/ Tudo nao
p.iss.'t de vento, e de fumo: I d1zcnd? melhor. rudo nao passa de nada», citar;ao de Paul
~~U1s~on (1~2¡-1693).111 tEuvres diverses [Obras Diversas]. París, 1735, vol.I, p. 212.
eiIsos. pro'
av el mente recolhidos em «Zerstreute
.
· · ·Annierkungen
• ,,
. 1·1· ·h<:'
. 1· das
. E'·¡>·tgrmnm
111'.' euug~ der vornehmsten Epigr~1r1111a1iste11.»1 «Anotacñes Dispersas sobre 0 Epigrama e sob1e A_lgu~s dos mars D_1st111tos Epigrarnistas»]. de Gottholtl Ephraim Les~ng
(1729-1781).111
Gouhold Ephraim Lessing'.s sümtlirhe Schriften 1 Escritos Completos de
G. ~Be~ilm. 1~25-1828, vol. XVII, p. 82: vd. Gouhold Ephrairn Lcssing , Werke
[Obras],
Munique,
Carl
Hanser
Verla«.,,, vols . !-VIII , ·1970
. ktnti
· ík·
,
.
.
.
.
.
- 1979· , \'OI
· . V'. « Lit
1 eratur
f oetik und Philologie» [«Literatura, Poética e Filologia»], 1973, p. 425.
'
!-'·],
* *
*
:t
A primeira pergunta na prirneira e mais compendieuse'' li<;ao ministrada
urna crianca é, como sabido, a scguinte: o que quer o bebé? A resposta
é
1 Instrumento de tortura inventado por Falaris, tirano de Agrigento. na Sicília , no século vt a. C.; a vítima era supliciada dentro do touro, colocado sobre uma togueira: ao
aproximar-se da boca do touro para escapar ao sufocamento. os gritos da vftirna soavam
como urna melodía harmoniosa, já que a boca do animal eslava talhada como um instrumento de sopro.
'i Arnagcrbro, a parte norte da ilha de Arnager, onde habitava urna parte dos lavradores
que abasteciam os mercados de Copenhaga.
6 Em francés no original: «sucinta».
44
45
é: tau-tau". E corn ob:-.crva<,:oes dcsta espécie corncca a vida e. no entant
nc.ga-~e o pecado original. E a quem tem todavia a enanca ele agradecera
pnrncrra sova, a nao ser aos país.
* *
*
Prefiro.. fala_r ,~om .crianr;as. pois delas ainda podemos esperar que se
tornern seres racionars; mas Jaqueles que nisso se tornararn . · D
livre!
. .
e
'ai,.
Conselho aprovado? para autores
Asscntu-sc negligentemente
as suas proprias observacóes. manda-se
1111p1 irnir e, durante as diferentes rcvisóes de prevas, ocorre-nos cutáo a
)HlllCO e pouco urna quantidade ele boas ideias. Tende por isso coragern, vós
qt1c ninda nao arriscastes ter algo no prelo; também as gralhas tipográficas
11110 sao de dcscurar, e ser-se espirituoso por via de urna gralha tipográfica
k16 de ser considerado como urna maneira legítima de o ser.
cus me
* *
*
* *
*
1281
~ Os ~iomcn: sao 1~esmo irraz~ávcis. Nunca utilizam
as libcrdades
que
tein, ~111es ex1gem aquelas que nao rém: térn Iibcrdadc de pcnsamcnto exi-
gern liberdadc de expressño,
·
* *
*
Na~ me :1pctece mesmo nada. Nño me apetece montar,
um movimento
demasiado. intenso: n~o me apetece andar, demasiado extenuante· nao me
apetece ~e1tar-me, pors ou haveria de ficar deuado, e isso nao me 'apetece
<~u haverín de levantar-~ne outra vez, e tarnbém nao me apetece tazcr isso.
Sununa Suntmarumr, nao me apetece fazer mesmo nada.
é
é
*
*
*
... ~ s~b~do que há insectos que °'.orrem no instante da fecundac;ao; tambérn
assun acontece ~om toda a alegria, o mais intenso e voluptuoso momento
de prazer é acolitado pela rnorte.
* *
*
7 Em di1~amar~ucs. a ono1.11at.opeia «dada» rcproduz o balbuciar infantil, sendo igualmente utilizada corn um significado e urna intencáo equivalentes ao uso ern portugués
de «tau-tau».
8 Ern latim no original: «a soma das somas», «em suma».
"' ·
E111 gcral , a irnpcrfeicáo em tudo o que é humano consiste apenas ern
l)Dssu ir através do seu contrario aquilo que se deseja arden temen te 10. Nao
¡ 11 ctcndo talar da multipl icidade de Iorrnacóes que podcm bastar para dar
qt1l' f'al.cr aos psicólogos (o melancólico tem rnais sentido do cómico, o
exuberante tcm arniüdc mais sentido do idílico; o dissoluto tem amiúdc
111:11s sentido do moral; o duvidador tem amiúde mais sentido do religio~o): qucro táo-somcntc recordar que só se vislumbra a suprema felicida<11· urravés do pecado.
1 ( 'onxclho rnuito scmelhantc ao expresso por E. T. A. Hoffmann (\4mvort des I lerausin l.cbens-Ansichten des Katers M11rr nebst frugtnentaris' /11•1 Biographi« des Kapellmeisters Johaunes Krcisler in :.u/iifligenMukulaturhlduern
I V1(l:1 e Opiniñes do Galo Murr Apcnsas a Biografi« cm Frngmcnros clo Mestre Capela
Jnll:11111e~ Krcislcr em Folhas Sollas de Papel Maculatura] de J819. Vd. igualmente
q11<11Jn dos cinco prefacios de Pe ter Schlemihl ( 1814) de Adelbcrt von Chamisso. tal
rnnm sugerido por J. Purvcr em «Eichendorff: Kierkcgaard's Reception ora Gcrman
lt1u11;intic». in «Without Aurhority: Kicrkegaard's Pscudonyrnous Works as Romantic
Nu11 .uivcs», in KierkegaardStudies. Yearbook2007. edicño ele Niels J. Cappelern el al..
lkili111, Nova Jorque: 2007, pp. 401-423: aqui, p. 412.
10 Aqui , «det Attraaede», Ao longo da presente obra, ocorrcm paralelamente dois tern10' airavés dos quais a língua dinamarquesa distingue duas modalidades de dcscjo, para
••1' quais a lfngua portuguesa nao possui urna equivalencia rigorosa aplicável a todas as
vuléncias morfológicas em que csscs tennos sao usados; trata-se de «allraa». na grafia
lll'tual «attrch>.e de <<f)nske». O primeim C011'espondc ao dcscjo arden te, veeJllente, cúpido e, cm determinados contextos. aproxima-se do fünbito sernantico de <<atrair», «atrne\':lo>> e «atraentc»: o segundo denota a significac.;ao gcral de «desejo». podendo todavía
11plic:1r-sc tarnbém ao domínio erótico. :\fo intuito de permitir ao leitor <1 distinc;ao entre
º' dois tennos, e principalmente porque n uso de «atlraa» e seus derivndos implü:a uma
111odalidade de desejo em resposta a um estimulo forte, predominantemente erótico.
optou-se por traduzir, ao longo de toda a obra, «attraa» por «descjo ;u·dente». e «at at
111""' por «descjar ardentemente» ou «dcscjar com ardor», procedendo-se a adaptni;ocs
rnn~oante a morfo logia do termo no original, assinalando-sc cm nota, sempre que for
111lrado pertinente para o comexto do capítulo em questao, qual o termo no texto original.
4
~· brr« [Prefacio do Editor],
46
* *
*
1291
, lu 11ulr1111e11 wlederltoltes Gefiihl des Sclunerzens» (cf. Flogcl, Geschichte
1·n1111.1·c!te11 Uueratur; Band I. pág. 50).14 E se tudo no mundo Iossc um
1!t 1
1111111
cntcndimcnto,
e se o riso íossc realmente choro!
Para além dos rneus restantes e numerosos conhecimentos, tenho ainda
um co~1fidente íntimo - a minha melancolía; no mcio da minha alegria.
no mero do meu labor, acena-mc, chama-me ao lado, embota físicamente
e~ n~o saia
lugar. A rninha melancolia é a amante mais fiel que conhect , nao admira cntáo que cu lhe retribua o amor.
?º
* *
*
1 lá no raciocínlo um palavreado, que na sua infinitude está para 0 rcsultad~ ta~ ~orno as intermináveis listas dos reís egípcios estáo para 0 provento h1stonco.
* *
*
~ velhicc realiza os sonhos dajuventude11: é o que se observa cm Swift12;
na juvcntude construiu urn mnnicórnlo, na velhicc foi ele qucm para Já foi.
*
1111 ocasiñcs particulares em que ver alguérn completamente so no mun1111 pode atingir urn indivíduo com urna dor tao infinita. Vi assim neutro dia
11111,1 rnpariga pobre, dirigindo-se completamente so para a igrcja para rece111 1 11 con Iirmacáo.
* *
*
l IOI
Con ta Cornclius Nepos15 que cerro general,
zuerst bei Kindern zeiget, so ist es ein entsteheudes Weinen, welches durcñ
Schmer; erregt wird, oder ein plotlidi gehemmtes und in sehr kurzen Zwis11 Ci~a9ao indirecta ..de urna formula9ao goetheana: «Was 111a11 in der Jugend wünsclu, hut
man_ un Alter die Fiille» 1 «Aquilo que se rieseja na juventude, tcm-se crn abundancia na
velhice» 1. Vd. Goethes Werke.HamburgerAusgab« 1 Obras de Goethe, Edicño de r Iarnburgo l, vols. 1-XIV, l-lamburgo: Christian Wcgner, 1948-1960: vol. IX (Au1ohiographische
Schriften, F:rster.Band [Escritos Autobiográficos. Primeiro Volumej), 1955. p. 217.
12 ,J?natha11 Swift (1667-1745), escritor e ensaísta ingles, cujos textos marcadamente
sat~n~os assu1~e111 relevancia na tradicáo da sátira maniqucia; debilitado pela docnca de
Me~1er~, dest1'.1ou os seus bens em testamento a construcño de um hospício, hoje SI.
Patrick 's Hospital, ern Dubl in.
·
13 Da.vid Hanley (1705-[757). filósofo ingles e fundador da correntc associacionista
cm psicología.
rendo ficado prisionciro
e
11 l1do 110 interior ele urna fortaleza com um importante regimento de cava11111!1,
maudava chicotear os cavalos tocios os días para que nao houvcsscm
dt• sotrcr danos dcvido i1 prolongada inaccáo - assim vivo eu nesta época
1 llllHl urn sitiado; mas para nao sofrer danos devido a prolongada inaccáo,
t
horo até
* *
*
Quan_do se ve com que profondidade hipocondríaca os antigos ingleses
descobrirarn o equívoco que dá fundamento ao riso, tern de ficar-se angustiado. O Dr. Hartley'- comentou o seguinte: «dq/3 wenn sicñ das Lachen
47
Ou. \)111 P111¡.:111e1110 de Vidn
1 'JI
a cxaustáo.
* *
*
1 1 1 \111 alcrnño no original: «que quando o riso se manifesta pela primeira vez nas crianum choro nascente provocado pelador, ou um scnrimcnro de dor, rcpcnti1111111t·111c refrendo e repetido em intervalos de tempo rnuito curtos». Edi9lio consultada
1wl11 autor: Karl l-riedrich Plogel ( 1729-1788), Geschichte der komischen Litteratur
l l li.\lcíria da Literatura Cómica], vol. 1-IV, Liegnitz e Leipzig, 1784-87: vol. l. p. 50.
l 'I Coruelius [Cornélio] Nepos (c. 99-c. 24 a. C.), historiador e biógrafo romano; as
l1111i•ralias dos generais gregos pertencem ao livro De excellentibus ducibus exterarum
i¡1•111it1111 [Dos Excelentes Chefes dos Povos Estrangeiros¡ e as de Cato. o velho. e de
A neo. ao livro De La1inis his1oricis LAcerca de Histórias Latinas]. Vd. «Eumenes», livro
V. <I 5. Obra disponível para consulta do autor: Comelii Nepotis vitae excel/en1i11m
1111¡11•ra1om111 LVidas dos Excelentes lmperadores de C. N.], París, s. d .. p. 99. Vd. The
/11111Á of Comeliu.1· Nepos on the Great Genera Is of Foreign Natirms. X V 111,.ou Corne/111s Nepos, together with Lucius An11aeus Florus. traduc,:lio de John C. Rolfc (Loeb),
Nnva Jorque: Putuam, 1929, p. 583: e a 1radll(;ao portuguesa de Joao Felix Pereira:
( \H nclio Nepote. Vida dos Capit{les Ilustres. Lisboa: lmprensa de Lucas Evangelista
l'urrcs. 1888. pp. 125-127.
.,11~. e .:nliío
1 •11
Do rncu pesar!". digo o que o inglés diz da sua casa: o mcu pesar is 111v
casi/e. Muito · homens consideram que ter pesaré urna das comodidades
desta vida.
1d.1
111 ¡, ,,., < muo u111 paxa com trés rabo-, de cavalo-', cioso de mim mesmo e dos
111 1" Jll.'11\amcmo-;. tal como o banco
cioso do scu papel-moeda, e sobret11d1111111 1cf lcctido cm mirn 1111.:smo como um pm110111en reflexivum, Mas, se
1 111klil·1dadc.., e nos pesares se aplicasse o que se aplica as obras conscien1• 1111 11k boas
que aquclcs que as fazern ficarn sern recompcnsa22 - • se
'ti ,\' upl1ctMc aos pesares, cu seria entño 1311 o mais feliz dos hornens, já
•1111 .uuccipo todas as prcocupacóes e, no entanto, fico com todas elas.
é
* *
*
Sinto-rne como urna peca de um tabuleiro de xadrcz tem de sentir-se
quando um jogador diz a seu respeito: essa peca nao pode ser movida.
'
* *
*
É por isso que Aladdin11 é tao revigoranrc - porque esta peca possui
~ma audácia infantil e genial na maioria dos scus rnai extravagantes deseJOS. Ora quantos havcrá cortamente no nosso lempo que, na verdade ousern
dcscjar, ousern cobicar, ouscm dirigir-se ~t naturcza nem que seja com um
gracioso e infantil bine, bi11e1R, ou coma fúria do inclivíduo perdido? Quantos havcrá, no scntimcnto daquilo ele que tanto se fala no nosso tempo que o horncrn é criado imagcrn de Dcus - , que tcnharn a verdadeira voz
de comando? Ou nao estarnos ali todos como Nourcddin!", a fazcr vénias e
reverencias. na angü tia de exigir a mais, ou de exigir a menos? Ou nao se
reduzirá a pouco e pouco qualquer exigencia grandiosa ao mórbido reflexionar sobre o eu, do exigir ao estar corn cxigéncias, como de facto lomos
para tal educados e instruidos.
a
* *
*
Sou ti~orato como um sheva. fraco e mudo como urn dagesch /ene20.
como se fosse urna letra irnprcssa na linha ao contrário, e todavía sem rna16 «Sorg» urn tlos tennos muis rccorrcrucs cm 011-011, cm especial nos capftulos «Ü
Rcflcx.o do Trágico Antigo no Trágico Modemo» e «Silhuetav»: 110 primciro, é scrnprc
trad,u11do por «pesar»,ªº. paxso que 110 segundo a op9ao rccaiu sobre «míigoa». No
capítulo presente. é traduzído por «pesar».
17 J'e1:sonagem de Ataddin, eller Den forundertige' Lampe [Aladino, ou A Lampada
Mara:llhosal ', de Adam Ochlcnschlager. Vd. Adam Oehlenschliiger» Poctiske Skrifter
[Escritos Poéticos de A. 0.J, vols. 1-11, Copcnhaga, 1805; vol. ll. pp. 75-436. Entre J 839
e 1842. a peca foi representada vintc e duas vezcs no Teatro Real de Copcnhaga.
l8 Em alemño no origiual: «por favor».
19 Nourt.'<.ltlin contraccna com Aladdin na mesma J>C\:ª de Oehlenschlager.
20 Na lín~ua hebraica. o sheva urna marca consonilnl ica cuja pronunciacño, como
n~ma sermvogal, eleve '>C.r v.o~~lica. ao passo que o dagesch lene indica urna pronunciaforte, oferecendo resrstencra á consoantc, em vez de a suavizar.
é
é
~ªº
< >11 U111 1 • ·•!•111l·11111 d\: \
* *
*
l•11l1'l' outras coisas, exprime-se na literatura popular urna enorme forera
1111t'l1r:1 a de ter vigor para cobicar. Em comparacáo com esta forca poética,
, 1 nhh;a do nosso tempo é ao mesmo tempo pecaminosa e erucdiantc, porq1w cobica o que é do próximo. Essa literatura el>tá bem ciente de que o
possui tao pouco o que procura quanto ela própria. E se vier a
, 111lu;ar pccamino: amente. será de bradar tanto aos céu'> que terá de abalar
11 l111111cm. Nao se deixa depreciar pelo frio cálculo de probabilidades do
11, º'airn entendí mento. Don Juan ainda pisa o palco coma~ suas mil e tres
1111111111cs ''. Ningu6m ousa sorrir com deferencia diante da vencrabi 1 idadc da
11ll(lu;fio. Se um poeta houvesse ousado tal coisa no nosso tempo, ter-se-iam
111111 dele a bom rir.
I''°'""º
* "'
*
e 'omo fico estranhamente nO'\táJgico s6 de ver um pobre coitado
1111 a-;tando-se pelas ruas vestindo um casaco verde-claro, bastante c~ado e
l om laivos de amarelo24• Tive pena dele: ma-; o que todavía mais me como11 Prov:ível alusao a um estandarte corn tres rabos-clc-cavalo ui.ado cm cerimoniais
du1,1111c o lmpério Otomano.
>, /\pó~ o Sermao tia Mo11tanha. Cristo exorta os scus seguidores a dar esmola. a orar
l ,, 1cj11ar cm recolhimento sem buscar recompen~a. Cite-se. a título de excmplo. Malrni-. 6: 1: «Guardai-vos. nao fac;ais ai. vossas boas obras <liante dos homc11s. como fírn
1k ,crdes vistos por eles: de outr.i so11e nao tereis a recompensa da müo de vosso Pai
<¡Ul' esuí nos céus.»
'\Vd. ária do catálogo,W. A. MoLart, Don Gim·a1111i. Acto l. cena 5. 11." 4.
2•1 Vd. descrir,:üo sc111elha11te cm/\ RepNir<io, no momento em que Constantius conlir111a a impossibilidade de rcpetic¡:iío. descric¡:ao que por ~ua vez retira igualmente clemcn'º' figurativos do «diapsali11a)> sobre os violinistas cegos. adia111c. pp. 67-68. Vd. SV 1.
vol. 111. pp. 208-209. e SKS. vol. 4. p. 70: cm p<>rtugues: ~ Repeti¡:ao. tradu~ao. introdu¡;ao e notas tle José Miranda Justo. Lisboa: Relógio D'Agua. 2009. p. 76.
50
t )11
veu foi o facto de essa mesma cor do casaco me recordar, ele mancira tao
vívida, as primeiras criacóes da minha infancia na nobrc arte da pintura.
Esta cor era precisamente urna das minhas couleurer25 favoritas. Nao
deveras de lastimar que estas misturas de cores, nas quais ainda penso corn
tanta alegria, emparre algurna da vida se encontrern! O mundo intciro acha
que sao bcrrantes e garridas, adequadas apenas para estampas de Nuremberga26. Uma única vez que esbarrernos com aquelas cores, e o encontro
há-de ser tao desventurado quanto agora este. l Iá-de ser sempre urn pobre
de espírito ou urn aleijado, em suma, sempre alguém que se sentc como um
estranho na vida, e que o mundo nao qucr reconhecer. E eu que sempre
pintei os mcus heróis com csres tons nos trajes, de urn verdc-amarelado
eternamente inesquecível ! Nao assim que acontece com todas as misturas
de cores da infancia? Aos nossos olhos pardos, o brilho da vida de outrora
torna-se gradualmente demasiado force, demasiado garrido!
'il
Ou, LJ 111 Frogn tí.!lllo de Vid u
*
é
é
* *
*
*
*
Ouño cstércis sao a minha alma e o mcu pensarnento e, cornudo, tao
Ht'l:ssunlcmcntc atormentados por atrozes dores de parto, vazias e volup,\u,S~r{i que o freio da língua do espírito nunca para mim se soltará?",
,1 1,1 que scmprc balbuciarei?
Aquilo de que nccessito é de u.rna voz ~ene11111111: como 0 olhar de Linccu-", aterrorizadora como o suspiro dos gigan11·s '". persistente como um som da natureza31, troc:_ista com~2 um golpe de
vr-nto gélido, maldosa como o desprezo sem cora9ao do ceo· , de urna ~xll tt~ao entre 0 baixo mais profundo até aos mais requebrados. dós de.!)~t~~·
modulada desde um murmúrio suave e santo até a energia d~ luna-3.
1~ disloque ncccssito para ter ar, para dar cxprcssño aoque me vaina. mcn11', para fazcr com que se agirem tanto as vísceras da ira c?mo as d.a s1 mpa1111.
Mas a minha voz é unicarnente rouca como um gnro de gaivota, ou
dt•sralcce como a bcn9ao nos lábios de urn mudo.
i
1 "'"'
***
1321
Ai ! A porta da fortuna nao abre para dentro. de modo a poder escaneará-Ja ao entrar de rornpantc: abre antes para fora e, por isso, nada há a fazcr,
* *
a
Tenho coragern. crcio eu, para duvidar de tudo; tenho coragem, creio cu,
para lutar contra tudo; mas nao tenho coragern para reconheccr urna coisa:
nao tcnho coragern para possuir, para ficar na possc de alguma coisa.
A rnaioria das pessoas qucixa-sc de que o mundo é tao prosaico que, na
vida, nao se passa como nos romances, nos quais a oportunidadc sempre
tao vantajosa; queixo-rne de, na vida, o mundo nao ser como nos romances, nos quais tem de combarcr-se país de coracáo empedernido, an6es e
trolls27, e libertar princesas encantadas. O que sao Lodos éstes adversarios,
comparados com as pálidas, exangues e tenazes figuras nocturnas que eu
combato, e as quais dou eu mesmo vida e existir.
é
é
25 Adaptacáo do termo francés «couleurs» («cores»)
na língua dinamarquesa.
o que irá acontecer? O que trará o futur?? Na? sei , ~ada prcssinro.
Quando urna aranhu mcrgulha na consequéncia de st ~1 partir ele um ponto
l rxo, ve sernpre um cspaco vazio sua frente, onde nao é capa~ ele enconunr apoio firme, por mais que espcrncic. Assim acontece corrugo; sempre
a flexño
do plural do substantivo
26 Cidade alemü no Norte do estado da Baviera, grande centro de artes gráficas e de
industria diversa.
27 Seres antropomórficos da cultura popular escandinava, habitualmente representados
com enormes orelhas e narizes. que dearnbulam por montanhas. escarpas e cavernas.
'X Le-se na narracño da cura de um surdo e gago. em Marcos 7:35: «E lngo se abriram
os scus ouvidos, e a prisáo da língua se dcsfcz, e falava perfeitamentc.»
.
H) l lm dos Argonautas, conhccido pela sua visan apurada, decisiva para '.natar o Javali
de Calídou. Corn 0 innño Ida, assassinou Pólux e Castor, vingando assun o rapto de
h:be e Hilária, filhas de Lcucipo.
.
\O Referencia aos gigantes da mitologia grcga, os quais, uma vez venctdos pelos deuses,
fnram aprisionados no interior dos vulcoes, sendo as crup¡¡:ocs causadas pelos seus suspiros e qucixumes.
.
.
.
•
11 Sobre a «ironia da naturcza». vd. Sobre o Concello de Iro111a em Cons/unle Referenáa a Sócrates, SV 1. vol. XllL p. 329. e SKS, vol. 1, p. 292. . ,
,
....
12 Na mitología grcga, Narciso era amado por Eco. urna das n.mlas Oreade;. ReJc1t.1<la
r Narciso Eco <lesfez-se em água criando urna lagoa, ouvtndo-sc nas aguas o seu
po
' murmúrio. Para castigar Narciso, a e1 cusa N cmcs1s
,
· fez cor n que ele. se.
melancólico
apaixona.sse mortalmente pelo scu próprio rcflexo na lagoa de Eco. Na hora de ser 111c1nerado. as ninfas viram que Narciso havia dado lugar a uma flor.
.
33 Quando Elias sobe ao monte l-lorcb. a passagem de Deus é dcscnl.a .ª~·ravés d~ c~t~~
clismos mua manifosta<,:ao de sinal contrário a voz com que Deus se dinge ao p10tcta,
vd: 1 R;is, 19: 12: «E depois do tcrramoto. um fogo. porém, tambétn, o Senhor nao eslava no fogo, e dcpoi.s do fogo, urna voz mansa e delicada.»
52
S0n:11 1-: 1c1 i-cguard
53
um espaco vazio a frente, o que me empurra 1331 urna consequéncia xituada atrás de mirn. A vida está virada ao contrario e horrível, nao supertável.
cm ca ... a, salvou a tenaz da lareira? Que mais pñcm eles devoras a salvo do
1•r11ndc incendio da vida?
* *
* *
*
é
é
é
*
A prirneira fase do cnamoramento é certamente o tempo mais belo,
quando em cada encentro, cm cada olhar, se leva para casa algo de novo
para alegria nossa.
* *
*
A rninha observacáo da vida
inteiramcnre desprovida de sentido. Admito que um espírito malévolo me tcnha colocado uns óculos no nariz, nos
quais uma das lentes aumenta numa escala monstruosa, e a outra diminui
de acordo com a mesma escala.
Falta-me acima de rudo paciencia para vivcr. Nao sou capaz de ver a
relva a crcsccr'", mas quando nao consigo fazé-lo. ncm scquer me dá para
me pór a olhar. As minhas intuicócs sao observacóes passageiras ele L~m
«[ahrender 1341 Scholastikersí' que se precipita pela vida adentro na ~a1or
das prcssas. Diz-se que Nosso Scnhor sacia o estómago antes ~e saciar. os
olhos, coisa que nao consigo discernir: os meus olhos estáo saciados e larlo~ de ludo, e todavía tenho fome.
* *
*
é
'
* *
*
O duvidador
um Me¡.uxoi:(yop.1wo~34; aguenta-sc, como um pifio, sobre urna extremidade, durante menos ou rnais tempo ern fun9ao das chicoradas, mas nao é capaz de ficar em pé. tao pouco quanto o piño.
lucam-me perguntas sobre o que quiserern, só nao me tacam pcrguntas
sobre fundamentos. Pcrdoa-sc a urna jovem rapariga que nao scja capaz de
adiantar fundamentos, diz-se que vive de sentimento. Comigo é diferente.
'Icnho na gcncralidade tantos fundamentos, e na maior parte das vezcs reciprocamente conrraditóriosl",
que se torna para rnirn impossível. por isso
é
* *
*
Entre todas as coisas risfveis, parece-me que a mais risívcl de todas é
andar atarclado no mundo, ser hornern despachado a comer, e despachado
nos scus actos. Por isso, quando vejo urna mosca pousar no instante decisivo em cima do nariz de um comerciante, ou quando ele é salpicado por urna
carruagem que por ele passa corn urna prcssa ainda rnaior, ou quando a
ponte Knippe135 se abre, ou quando Lhe cai cm cima urna telha que o deixa
mono, cntáo, rio-me do fundo do coracño. E qucm conseguiría mesmo
contero riso? O que levam a cabo éstes diligentes trabalhadorcs apressados? Nao lhes acontece como a essa mulher que, no alvoroco de ha ver fogo
3~ Em gre~o no original: «chicoteado».
grnta. no Livro de Job. 15: 11.
termo usado na rraducño grega, dita da Septua-
35 Ponte rnóvel que atravcssa o canal entre Copenhaga e a ilha de Amager.
16 /\dapta~iio do adagio «at kunne /ipre graisset ¡.¡rv>>, literalmente, «poder ouvir a relva
a crescer», usado para designar mu ita cspcrteza e múltiplos talentos. Na saga Elida (c.
1220) de Snorri Sturluson ( J 179-1241), o domé atribuído ao deus Heimd~I.
.
n Em alemño no original: «viajante escolástico». correspondcntc ao latim «cle1:1rns
vugans», cm referencia
deambulacóes dos univcrsitários medievais entre as un1.versidades e as abadías da Europa Central e Setentrional. A exprcssño pode estar associada
a out ro dos papéis assumidos por Víctor von Hohcnstcin, o protagonista da novela .Pe ter
Srhlemihl, de A. v. Chamisso: mas tambérn a Mefistófeles. quando aparece a Fausto
trujado como «ein fahrender Scolast» («Scholas1ikus» na diclascália do v. 1322), ,na
cena do Gabinete de Trabalho; no v. 1324. é identificado através de urna palavra idéntica, «Skolast», Vd. J. W. Goethe, Fausto, na traducáo de Joño Barrento, Lisboa: Círculo de Leitores, l 999. p. 89, «estudioso medieval vagante» e «bacharcl vagante», respec1 i vamcnte; e Goethes Werke. Hamburger Ausgabe [Obras de G. Edic,:ao de Hamhurgnl,
vols.1-XlV. 1-Jamburgo: Christian Wegner. 1948-1960; vol. 111, Drnmati.vche Vicht11nge11. F.rster Band [Poemas Dramáticos. Primciro Volumel, 1949, p. 46.
38 Em vários diap.mlmata, a contradi~ao assume um papel operacional: era terna ~e
gcneraliLado debate no meio filosófico conlem~oríln~o de Kierkcgaard .. c~1 resposla as
considerai;ües de Hegel sobre o proc.:esso dialéctico entre contrad1<¡ao e contra-contradii,:ao. que termina nao na superac,:ao da contrndic,:ao, ma~ na proposta ~e urna
icleia absoluta livre de contradic,:oes; vcl. Wissenschaji der l,ogik !Ciencia da Lógica], m
Werke. vol. IV, pp. 57-73, Juhilüums, vol. IV. pp. 535-551, e Suhrkamp, vol. VI,
pp. 64-80. Vd. igualmente os seguintes textos de vários dos nornes relevantes no hcgc-
as
54
55
mesmo, adiantar fundamentos. Parece-me rarnbérn que causa e efcito nao
se articulam cla maneira cena. Ora de causas enormes e poderosas se obiém
urn cfeito bern pequeno e insignificante, por vezcs, ncnhurn; ora urna causa
pcquena e irrequieta gera um efeito colossal.
* *
*
* *
*
o
tempo passa, a vida é um rio'.39, dizem os homens, etc. Nao dou ¡~or
l'>so, 0 lempo está parado, e cu parei co~ ele. Todos os .pl~n~s. ~o~ mi~
~·1'h<H,:ados voam Jogo de rcgresso para 1111m, quando 4uc10 cuspir, sou et
11u.:s1110 qucm se cospe no rosto.
1
E agora as inocentes alcgrias da vida. Tern de admitir-se que possucm
apenas um único deleito: sercm assim tao inocentes. Acrescente-se que
dcvem ser gozadas com rnoderacño. Quando o médico me prescreve urna
dieta, tem de ser cumprida: abstcnho-me de cerros e determinados alimentos durante um curto e determinado tempo; mas ser dietético enquanro se
faz dicta - é realmente exigir demasiado.
\'il
* *
*
Quundo de manhá me levanto, volto logo novamentc para a cama: Sintome rnclhor a noite, no instante em que apago a luz e puxo o ed1:edao para
~·i
*
ma da cabeca. Soergo-rne na cama a inda mais t~ma vez, o.l~o a volta .d.o
ora cntao boa-noitc, e ala para
quano com urna satisfacáo indcscritívcl:
dchaixo do edredáo.
* *
*
A vida toruou-sc para mirn urna bebida amarga e, nfto obstante. eleve ser
tornada as golas, lentamente, contando-as.
* *
*
Ninguérn rcgrcssa dos morros, ninguém cntrou no mundo sem chorar:
ninguém pcrgunta a alguém quando qucr chcgar, ninguérn pergunta quando
quer partir.
«Om den Maade, livorpaa Co111radic1io11sprincipet hehandles i den ltegelske Skole» !«Sobre o Modo como o Princípio da Contradicño
É Tratado na Escola Hegeliana» 1. in Muunedsskri]¡ for Litteratur 1 Mcnsário de Litera-
·
• · par ·a o que for40 · .f: um préstimo
Pura que sirvo
eu? Para nac 1 a, ou seja
1
uro: será que na vida o apreciarño?
* *
*
lianismo dinarnarques: F. C. Sibberu,
tura]. número 19, Copenhaga, J ll38. pp, 424-460; J. P. Mynster, «Rationalis111e. Supra11at11ralis111e» l«Racionaüsmo, Supranatural ismo» l. in Tidsskriftfor Litteratur og Kritik
[Periódico de Literatura e de Crft ica], n,? 1. Copcnhaga, 1839, pp. 249-268; J. L. Heiberg , «E11 /ogisk Benuer/...11ing i A11/edning af h. h. Hr. Biskop Dr. Mynsters Ajhandli11g
otn Rationalisme og Supranaturalisnie» f«Um Comentario Lógico por Ocasiáo do Ensaio de S. E. o Bíspo Mynster, sobre o Racionalismo e o Supranaturalisrno»J,
ibid.. pp.
441-456: 11. L. Martcnsen «Rarionalisme, Supranaturalisme og principium exclusi medii i Anledning afh . h. Biskop Mynsters Afhandling» f «Racionalismo, Supranaturalismo
e o principium exclusi medii no Ensaio de S. E. o Bispo Mynster»], ibid., pp. 456-473;
J. P. Mynstcr «Om de logiske Principper» f«Sobre os Principios Lógicos»], ibid., pp.
325-352; e A. F. Schiodrc, «El Par Ord ti/ nainnere Overveielse angaaende de tre saakaldte iogiske Principer» l «Algumas Palavras para Reflexáo mais Profunda 110 Que
Diz Respcito aos Tres Denominados Princípios da LógicaJ, in Tidsskriftfor Litteratur
og Kritik [Periódico de Literatura e de Crítica], n.? 2. Copenhaga, 1839, pp. 120-128.
Deus sa.be se as rapanga~ en·c.ontran:
um lugar cm que se procura a condicáo de criada para todo o serv190 ou, a
lulta disso , seja para o que for.
Deve ser-se insondável nao apenas para os outros, '1:1ªs também par~ _si
nicsmo. Estudo-mc a mim próprio; quando me canso d1sso, fumo ~m c.~<1rulo para passar 0 tempo, e penso: sabe Deus o que Nosso Senh~1 tenc1011ava propriamente fazer comigo, ou o que Ele quer akan9ar co1111go.
* *
*
Nao há parturiente que tenha dese jos mais estranh~)s e ma.is .in:i,pa~i~n..tes
<lo que eu. Tais <lescjos rccaem urnas vczcs sobre as co1sas ma1s rns1gn1f1c,m19 Plat-ao Crálilo 402a. Vd. Platflo, Crátilo, vcrsao do grego, prcfácio e notas pelo P."
( ( .
'
.
. , .
2" d' 56
D i·is Palmeira Lishoa: L1vrana Sa da Costa, 1994, . e 19ao. P· - · _
..
'
· por «SeJa
· · p<1ta
· .. o que• fº.r>>, cxprcs··sao· utilizada para
40 '·«Hvadsomhelsl»,
aqu1· traduz1do
identificar
a secc;:iio de an(incios a pedir servic;:os indiferenciados.
011.
'i6
Ou
tes, outras vezes sobre as mais sublimes. mas todos possucm no mesmo
elevado gran a paixáo momentánea da alma. Desejo ncste instante um prato
de papas de trigo sarraceno. Tcnho uma recordacáo dos mcus tempos de
escota, comíamos papas <le trígo sarraceno as quartas-feiras. Recordo como
as papas eram macias e brancas, como a manteiga sorria para mirn, que
qucntes estavam as papas só de olhar, recordo a fome que eu tinha, como
ficava impaciente por rcccber liccnca para comecar. Um prato dcstes, de
papas de trigo sarraceno! Daria por ele mais do que a minha primogenitura41.
iniido
* *
*
Virgílio, o mago42, fez com que o cortassem aos bocados e o puscsscm
a cozer num caldeiro durante oito días a fim de rejuvenescer por este processo. Pos alguérn a vigiar para que nenhum intruso espreitasse o caldeiro.
O vigia, entretanto, nao conseguiu resistir a tentacño; foi algo demasiado
prematuro 1361 e Virgílio era enanca pcquena, dcsaparcccu com um grito.
Tarnbérn cu espreitci para o caldeiro demasiado cedo, o caldeiro da vida e
o do descnvolvimento da história, e nunca isto me levará a rnais do que
continuar a ser urna enanca.
* *
«Nunca eleve perder-se a coragernl Quando as infelicidades se acurnulam
sobre um individuo da mais tcrrível mancira, ve-se cntáo nos céus urna máo
auxiliadora»; assirn falou Sua Reverencia Jesper Morten43 nas passadas
vésperas. Estou habituado a deslocar-rne bastante sob céu aberto. mas nunca
observei tal coisa. Alguns dias atrás, presencici um fenómeno semclhante
durante urn passcio a pé. Nao se trarava propriamente de urna máo, era mais
como se fosse urn braco a pender de urna nuvern. Mergulhei ern contempla\:ªº: ocorreu-me que se Jesper Morten estivesse sirnplesmente ali presente,
poderia decidir se era o fenómeno a que ele aludía. Eslava eu no rneio destes
pensamentos quando fui abordado por um caminheiro que me disse, apon41 Génesis, 25:31:
«Eniño dissc Jacob: vende-me hojc a tua prirnogcnitura.»
Na tradu-
c,;fío dinamarquesa da Bíblia, le-se: «direito de nascimento».
42 Virgílio (70- t 9 a. C.), o poeta romano, era tido durante a ldadc Média nao só como
poeta. mas também como mago. profeta, teólogo e feiti'ceiro; foi protagonista de histórias
singulares e os seus poderes mágicos e divinatorios povoararn o imaginário medieval.
43 Pcrsonagcm de um conto de Jens Immanuel Baggesen ( 1764-1826), Jeppe, el sjcellandsk Eventyr [Jeppe, l Jm Contó da Zelándia], in Jens Baggesens danske Va!rker [Obras cm
Dinamarqués de J. B.], edicño dos filhos do autor e de C. J. Boye, vols, J-Xll, Copenhaga,
1827-1832; vol. 1, p. 201. Doravante, Vcerker, seguido de indicacáo de volumc e página.
lJ m
Prn~111tnto
de
57
Vid;1
para os céus: «Está a ver aqucle ciclone, é bastan~e r~ro obse~var tal
u)i ... a ncstas paragcns; por vczcs, arrasta corn ele casas inteuas,» A1, Deus
uos p.u:1 rdc, pcnsci eu. é um ciclone, e dei a perna o mais que eu pude. O que
ll'' iu fcito cm mcu lugar Sua Reverencia, o Senhor Pastor Jesper Morten?
* *
*
Que sejarn os ourros a queixarem-se de que os tem~o: sao rnaus; queixo1Hc UC que sao miseráveis, porque SaO tempos sem pruX~O. ?S ~ens~1me1~lOS
dos horncns sao finos e quebradicos como rendas, eles proprios tao dignos de
d() quanto as rcndeiras. Os pcnsamcntos que lhes váo no corac;a? sao tao
niiscr{ivcis, que nao chegam a ser pecaminosos. Talvez fosse possívcl, pa~a
um verme, considerar como pecado alimentar tais pensarncn~os, mas nao
para urn homern, que criado a imagern de Dcus. Os seus dcscjos voluptuo"ºs'~ sao comedidos e indolentes, as suas paixñes, sonolcnras; estas almas
mcrcantis cumprern os scus devercs. porém, tal como os judcus, da.o~~e todavía ao dircito ele desbastar urna migalhinha da mocda; cm sua opuuao, emhora osso Scnhor mantcnha as contas bastante ern ordcm, iambém é c~1taincntc possf vel escapar, aldrabando-o um pouco. Desavergonhados! Por 1sso,
a minha alma regrcssa scmpre ao /\ntigo Testamento e a Shakespcare. Sent.esc dcveras que sao homens que falam; e que aí, odeia-sc, e aí, ama-se, mata:>l: 0 inimigo, amaldi9oa-se a descendcnciu por todas as gera9oes, aí, peca-se.
é
1.171
* *
*
/\ssim divido 0 meu tempo. Dunno metade do tempo. e sonho. na outra
nH.:tade; quando durmo. nunca sonho, seria pecado, porque donrnr é a suprl!ma gen iali<lade.
* *
*
Ser um homem perfeito é entretanto o que há de supremo. Apareceramm~ agora calos, coisa que entretanto semprc é urna grande ajucla.
* *
*
44 Aqui. «Lysren>.
58
(}11
()11
O resultado da minha vida nem sequer dá em nada, é urna disposicño,
uma cor singular. O meu resultado tern parccencas coma pintura45 claquele
¡l~·iHl
*
A dignidade humana, entretanto, ainda é reconhecida na naturcza. pois
quando se quer manter os pássaros afastados das árvores, monta-se algo
que vcnha a asscmelhar-sc a um homem, e basta até a remota parcccnca
com urn homcm, como a que tcm o espantalho, para incutir respcito.
* *
*
Quando o amor47 viera conter algo que signifique, tem de ter sido iluminado pelo luar na hora do nascirnento, tal como Ápis48, para ser o verda-
f.;
*
:ns.
. .· el o.s homcns. corre tao vigorosamente atrás do
prazer, que.· passa
A rnatotta
. .
..
. ele a correr Acontccc-lhes como a essc anño que vrgiava urna p1 mccsa
p(l1 .... 1.; ,
•
•
Q
i · rdou
. t· da 1381 no scu castelo. Um dia, pós-se a dormir asesta. uan( o ,tco
1.ip <I.'
•
d'amen te as. SU'lS'.
uma 11ora mats. , t·<trde , J·.<<1 ela' se fora embora. Cal9a apressa
•
•
f
holas das sete léguas; e com um só passo. fica-lhe mu110 ma1s a rente.
* *
*
A minhn alma está t¡:¡o pesada que pensamento alg.um co,nsegue ~1<~~
:>.llSIC-"
l a nen 11Ut 11 bacer
conseoue
elevá-la ma1s no cter. Caso el
<
u.1c asas
'
o
. .
. , , . lana en tao rente terra, como o voo raso das aves quan o
mova, apenas p
, .
d
ser incuba uma
cre~cc 0 vento a gerar trovoada. Sobre o 111t1rno o meu
opressao, uma angústia, que pressente um tremor de Lerra.
a
é
é
* *
*
narrada cm «Det gunstig« (J)iehlikfor
Maleren» l <<0 1 nstantc Oportuno do Pintor» l. in Kipbrnlwv11.1· Moerskabsblad indeholdendeAlvor og Skjemt l Folha Satírica de Copcnhaga Con rendo Coisas Sérias e para R ir],
número 84. edi\:íi'O e publica\:1íO <le J. C. Udtberg. Copcnhaga. 1831, p.
lnforma\:iiO
gcntihncntc cedida por R. Purkurthofcr,
46 O episodio está narrado 110 Livro do éxodo 14:21-31.
do qual se citam os versículos
28 e 29: «Porque as águas. tornando. cobriram os carros e os cavalciros de todo o cxército ele Faraó, que os havia seguido 110 mar; nem ainda um deles ficou. / Mas os filhos
de Israel foram pelo mcio do mar seco. r. as águus forarn-Ihcs como muro,
sua mño
direita e il sua esqucrda,»
47 Aqui e ao longo dcste fragmento, «Etskov», Ernbora corn incidencias bastante diferenciadas, o autor recorre a dois leimos traduzfveis em Jíngua portuguesa por «amor», dcsignadamente, «Elskov» e «Kjairlighed», O primeiro
habitualmente usado no sentido do
grego «eros». por oposicño ao segundo termo, que te111 um sentido menos dcrcrminado,
próximo do grego «agape», Porém, na época de Kicrkegaard. os dois termos possuíam um
uso muito aproximado, designadamente porque o verbo «at elske», i. c., «amar», denota a
aq:iio de por cm prática qualqucr um dos tipos ele amor; na relayiio amorosa, o primeiro
scntirnento despertado seria o de «Kjterlighed», seguindo-se um sentirnento de «Elskov»,
seudo, cornudo, que o senrimento que 110 final une os dois amantes é ainda o de «Kjasrliglied», Assim sen do. «Elskov» nao <le tocio traduzfvel por «amor erótico», OJJ\:ªº utilizada por 1 loward V. Hong e Edna Hong. Para cssc fon, Kicrkegaard utiliza o adjectivo
«erotisk»; bcm como a sua forma substantiva, «det Erotiskt»; aJiás. o ambito do erótico
está implicado noutra área lexical , a de «attraa»; arnplamente explorada por Kierkcgaard
ao caracterizar a sedu9iio, no capítulo do erótico-musical e em «Diário do Scdutor» (vd.
acirna nota 10). Dada a relevancia da temática do amor e a inda a da dicotomia «Kjterlighed
I Elskov» cm 011-0u, assinala-se ern nota as respectivas ocorréncias de forma clara. embora de urna maneira variável. cingida incidencia dos tennos cm cada um dos capítulos.
48 Na religiáo cgípcia, o boi sagrado Ápis (Hapi-ankh) encarna va os deuses Osíris e Ptah.
a
a luz
A prova que mclhor dernonstra a miscrávcl ~on~ic;~o da existencia
uqucla que se retira da considcracáo da sua magnificéncia.
* *
*
é
59
tll' Vid11
, 1 LIZ· ( la<. L•1a
A vaca
que deu
pÍS, hOUVC de ser banhuc 1 0 pe 1 <I
'
•
· e
~
pis houvc de ter sido iluminada pelo luar no instante da conccpcao.
artista incumbido de pintar os judeus na travessia do Mar Vermelbo'"; com
tal firn. piruou toda a parede de vermclho, enquanto explicava que os judeus
haviam atravessado para o outro lado e que os egípcíos se haviam afogado.
45 Trata-se de uma historia de Till Eulenspicgcl
\]111 h(IF111Clll0
a
~: *
e
"da é oca< e v·a ,,'Ía de significar·ao!
- Enterra-se
um
homem
.·. é
OlTIO a V l e
'
y
•
·
1
levado até a cova, lanc;am-se-lhe tres pás de Lcrra em cima; sai-se e ~~t
agem re•~ressa-se a casa de carruagem; encontra-se consolo porque t11nc a
~~ te~ u~rn .vida longa a frente. Quanto tempo é realmente se~e vez~s..de~
. ., Mas por11ue nao se acaba tudo de urna vez, porque nao se fo.:a la
anos.
"
. ,
ber a qucm
rora. e nao se desee
também a sepultura. e se.tm1 a sortc' para.sa ·".
caberá a infclicidade de ser o último dos vivos, o que lan((a tles pas de
tcrra sobre o último dos mortos?
e
n;~
¡'.
* *
*
A., raparigas nao me agradam. A bcleza dela', fenece como um sonho ou
como odia de ontcm quando pas. ou49. A fidclidade - sirn, cssa sua Iidclidadc! Ou sao in fiéis. e disso nao me ocupo eu, ou sao fiéis. Se cu cncontrassc urna assim, cla iría agradar-me. rendo em consideracño que se trata va
de urna raridade, e nüo me agradaría. tcndo cm consideracñn a exrcnsño de
tempo: porque ou se manteriu continuamente fiel, e eu acabaría por ser
vítima do meu zelo cxperlrncntama, já que tcria de suporta-ta, ou chegaria
um momento do tempo em que ela dcixava de o ser. e lá volrava cu entáo
ii vclha historia.
*
*
Miserável destino! Dcbaldc pintas o tcu rosto sulcado, como urna velha
prostituta. dcbaldc Iazcs barulho comos tcus guizos de bufño: cntedias-me:
1391 acaba por ser entretanto o mesmo, urn idem per idem'", Scm variar,
scmprc requemado. Vcnham, sono e mortc: tu nada prometes, tu tudo cumpres,
Esta-; duas conhecidas arcadas de violino!
ll11111.1prrn.11111
ti~ \ rd.1
61
1
¡, 1 r 1
111:111 unv dczussctc unos. cnfiudo num ensaco verde de calmuco'" com
hotoc.., dc osso. O ensaco cstava-lhc demasiado grande. Scgurava o
\ 11111110 f 11 mcmcnte dcbaixo do qucixo: o boné esta va enterrado até aos
l•lh11 ;1 111ao eslava escondida por urna luva scm dedos. Os dedos cstavam
~· 11m•lho!-. e azui« do trie. O outro era mais velho, vestía um balandrau.
1 1 1111 urnhos ccgos. Urna menina. que provavclrncnte lhes servia de guia,
'""" a trente deles com as mao~ dcbaixo <lo cachecol. Reunimo-nos, a
1 .. 1111 o L' pouco, alguns admiradores destcs sons, um cartciro coma mal~ do
1111110,11111
rupazinho, uma criada de servir, alguns trabalhadores da estiva.
l o111 uagcns elegantes passavarn por nos. rolando com grande rufdo, os
u 111, de mercaderías abafavarn esscs sons que por entre eles crnergiarn
11111l¡¡11IL'<i. Sabci, infeliz duo de artistas, que estés sons escondcm cm si a
11111v11rlrcc11cin
do mundo inteiro. - Nño é que isto foi como um encontro a
.¡, ,.,
1 111dt•\
* *
*
1;111
* ..
*
>u
• 111
certn teatro. aconteceu ter deflagrado um incendio nos ba~tidorcs~5•
11 1rnlll:u,:o vcio avisar o público. Pen!>aram que se tratava de um dilO cspi1111111'0
Estas duax conhccidns arcadas
de violino aquí oeste instante no mcio da rua. Terei perdido o entcndirnentn,
e aplaudiram-no: ele repct iu o avi~o: rcjubilaram a inda mai-;. Tam-
1i, 111 l'll a-.sim penso que o mundo cairá por terra. sob o júbilo geral da
p 11tl' c-.;prrituosa que pensa tratar-se de um Wit~56.
a
e por amor~' müsica de Mozart52, tcráo os rneus ouvidos deixado de ouvir,
ter rnc-ño os deuses enviado corno recompensa, a mim, infeliz, postado como urn mendigo porta do tcmplo53• um ouvido que debita para si proprio
o que ele proprio ouve? Só esta'> duas conhccidas arcadas de violino; já que
1~ais nao oico agora. Tal como nessa irnortal abertura clas irrompcm da profundcza dos sons corais. tambérn assirn S<.! desprcndem do tumulto e do ruido
da rua corn tocia a surprcsa ele urna manifo~tac,:Uo. - Térn todavía de estar
por aquí perlo, porque oico agora os sons ligeiros da danca, - Sois portante
vós. infeliz duo de artistas. a qucm cu fico a dever esta alegria. - Um deles
* *
*
a
49 Salmos, 90:4: «Porque mil anos aos rcus olhos siio como o día de 0111cm que passou,
e corno urna vigília da noite,»
50 Em latim no original: «O mesmo pelo mesmo».
51 Neste Pª""º· «Kjwrlighed».
52 A «música de Mozart» é aquí Don Giovanni, como cm toda a presente obra. com
especial relevo no capítulo seguinte,
53 Actos dos Apóstolos, 3:2: «F. era pura ali tra/ido um homern. coxo desde o ventre ele
sua .rnae. o qual todos os días punham a porta do templo. chamada a Especiosa. para que
pedisse esmolas ao- quc cntravarn no tcmplo.»
/
{
1101
<.)ual é. em suma. a sig11ifica9iío
desta vida'? Oividi11do os homens cm
d1111o.; µrandes classcs, poder-se-á dizer que uma trabalha para vi ver. e qui.! a
dtsso nao tem neces~idade. Mas trabalhar para vivcr nao pode cfecti~cr a significa9ao da vida. visto ser cleveras uma contradic;fio que
11 l.1r10 de estar scmprc a procluzir conclic;oes constitua a rcsposrn u pergun111 ~obre cssa ~ignificac;fio. a qual é estipulada rccorrcndo a cssa!-i condic;oe~.
\ \ rda dos dcmais nao tem em geral qualquer outra significac;ao além da ele
, 011>.umir as condi96cs. Vir di1.er que a significac,:ao da vicia é morrer parece
1 11l:lo voltar a ser uma contradic;ao.
llllllil
\ollllClllC
'i 1 kt·itlo de la de qualidade grosscira.
~ lntcndio muito noticiado que vitimou seiccenlas pcssoa!. nu111 teatro de Sao Petcrsht11µ0. a 14 de Feverciro de 1836.
'" l.m alcmao no original: «chiste».
()2
( )11 U111 F1 Hflllt'11to
111
* *
*
O prazer propriarnenre dilo nao reside naquilo que se goza, mas na represcntacáo. Tivesse eu ao meu servico um cspírito subserviente que me
trouxesse os mais caros vinhos do mundo deliciosame111.e misturados num
cálice, reclamando-Ihe cu um copo de água, e té-lo-ia despedido, para que
ele aprendesse como o prazer nao reside no que eu gozo, mas cm que scja
do occano. Grito (aprendí isso corn os Gregos, com quem é possível
'l'll'IHk·r o que é puramente humano). pois que 1411 tenho realmente urna
~t1Hlt1 ¡¡ volra <Ja cintura. mas nao vejo a vara que há-de suster-rne. É urna
llll lll
1111111.·ini
pavorosa de
*
1•
bastante csrranho que se obrenha urna representacáo da eternicla.de
das duas mais horrendas contradicóes. Se eu imaginar aquele 111-
111 uves
lc 111 guarda-livros
a quem fugiu o ent.endimen~~· clevido ao c~ese~pero de
1 levado 0 negocio
falencia. porque contabilizou sete mars seis como
, lldo carorzc; se cu o imaginar, dia após dia, impcrturbávcl a tudo o
111111N. a repetir para si mesmo «setc e seis sao catorzc» , renho as~im.u~na
11,111µem
da crcrnidade. - Se cu imaginar urna opulenta bclcza lcm111111a
1111111 hurérn, rcpousando num sofá cm todo o scu encanto, sern se preocl~pi11' com nada deste mundo, volto assim a ter urna imagcm para a eterm-
a
11
Nao sou eu quemé pois scnhor da minha vida, sou um dos fios com que
há-dc urdir-se o pano de chita da vicla57. Ora se bem que eu nao saiba teccr,
sei todavía corlar
o fio.
* *
rl.1dl'''1.
* *
*
Tudo será adquirido cm tranquilidade e divinizado em silencio. Ao filho
esperado por Psique nao se aplica apenas que o seu futuro dependa do silencio dela:
Mit eiuem Ki11d. das xmt!ic/i, wenn Du scliweigs¡ Doch nienschlich, wenu Dudas Geheim11ijJ -;.eigst.58
* *
*
Parece-me que estou destinado a ha ver de sofrcr profundamente todas as
disposicóes possíveis, a haver ele ganhar experiencia ern todas as dircccócs.
Encentro-me a cada instante como uma crianca que vai aprender a nadar no
57 A metáfora «livs Kattun»
retirada do poema de Jens Baggcsen, «Dausk
Trwu¡vebar-Vise tned tnesopotamisk Omqvted» l«Cani;iio Dinamarquesa ele Tranquebur
com Estribilho Mesopotárnico» l. Va'rker, vol. JI, p. 401.
é
58 Ern alernño no original: «Com urna crianya.clivina,
se te calares - / Porém humana,
se revelares o scgredo.» Versos do episodio de Amor e Psique narrado por Apulcio ( 125-c. 180 d. C.). F,di9ifo consultada pelo autor: Apttleius: Amor und Psyche fApuleio:
Amor e Psique], traducño de Joseph Kehrcin. Giessen. 1834, p. 40. Na tradu9ao portuguesa de Delfim l .cáo: «Se conscguires guardar cm silencio este nosso segredo. terá
naturcza divina: se o profanares. será um simples mortal», in Apuleio, O burrode oura,
Lisboa: Livros Corovia, 2007. p. 119.
ganhar experiencia.
* *
feíta a minha vonradc,
* *
63
d~ V1(1¡1
o que os
1110
filósofos dizern sobre a realidade é amiúde tao enganoso'v coquundo se Jé no letreiro ele urna loja de velharias: aqui en?or~a-se. Quem
uouxcsse roupa para mandar engomar ver-sc-ia entáo ludibriado; porque
l'l':t meramente o lctrciro que cstava
venda.
a
* *
*
w Vd. Pap. 111 B J 79:58. referenciado corn omissño da indexacño em SKS, vol. ~2-3.'
pp. 103- 105, onde pode lcr-se urna outra. vcrsño da dc~cri9ao da odalisca; ª.lus1v¡~ a
vi:ivura dezassete da edi91ío na posse ele K1erke~aarú de Tause~d 1111d eme1\ach~. A1a·
tnsclu: Erzdhlungen 1 Mil e Urna Noitcs. Conros Arabos], traducáo de G. Wcil , vols. T-IV.
htugarda, 1838-1841;
vol. 1, p. 123.
•
(,() Afirmacño coincidente com as imprcssócs de Kicrkcgaard so.brc ª.abordagcm a carcgoria ele eternidade por parte de Frieclrich Wilhelm .Toseph Schellrng ( 1775-1854 ).
, 1mstante dos apontamentos das liyoes a que assistiu na estada cm Bcrlrm, entre Outuhr11 de J 841 e Mar~o ele 1842: vd. Pap. IIT A l 79, Not. 8:33, SKS, vol. 19. p. 235. bem
romo passos <le cartas a Bmil Rocscn, nlÍmcr~s 62, 68 c.69, ~.euers and Docwrwnts,
Acrkegaanl:\- Writings, vol. XXV, Princeton: Pnnceton Un1vers1ty Press, 1978. pp. 125,
1 ~6 e 139.
64
"\<'
'e
\
1111
N¿a
d
para mim mais pcrigoso do que recordar?'. So rccordo tño-sornente uma circunstancia da vida, essa circunstancia cessa por si. Diz-sc
que a separacáo ajuda a reanimar o arnor62. É inteiramente verdade, mas
reanima-o de um modo puramente poético. Viver ern recordacño
a mais
perfcita vida em que é possível pensar, a recorda~ífo sacia mais fartamente
do que.toda a :e~iclade. e rern urna seguranca que realidade alguma possui.
Urna circunstancia da vida que é recordada já cntrou na etcrnidade e nao
tern mais ncnhum interessc temporal.
'
é
é
( 111. U1111ot11g1n<.:nlo1k·
pllL'l•\·(J~s. Na minha juvcntudc, quando ia a um restaurante, dizia cntáo para
11 ( 1111do: um naco bom, um naco rnuito bom, do lombo, sem ser demasiado
1·111 do. Tnlvcz o criado nem sequcr ouvisse o meu clamor, e menos ainda hou11esc de nclc ter atentado. e menos ainda houvesse a minha voz de conseguir
1111 p111 1't cozinha e iníluenciar o cortador. e mesmo que tudo isto acontecesse,
11lv1·'.I 11iío houvesse um bom naco cm todo o assado. Agorajá nao grito mais,
* *
*
* *
Houvcsse alguém de manter um diario, e cssc alguém haveria de ser cu
para assirn prestar algum auxílio a minha memoria. Decorrido algum tempo, acontece-me rnuitas vezcs ter-me completamente esquecldo dos fundamentos que me levaram a fazer isro ou aquilo, niio se limitando a acontecer
corn minudéncias, mas com os mais decisivos passos. Se cntño me ocorrc
fundamento, consegue por vczes 1421 ser tao cstranho, que ncm mesmo eu
fico ern crcr que foi esse o fundamento. esta dúvida ficaria arrecada, se cu
ho~1vcsse escrito algo cm que me apoiassc. Um fundamento
cm geral urna
corsa estranha; s~ eu o olhar com tocia a minha paixño , cresce até que se
torna urna neccssidude monstruosa capaz de por o céu e a terra em movímcnto; se cstiver scrn paixño, lanyo-lhe urn olhar superior ele desdém. f':ndo há bastante tempo a especular sobre o facto de ter propriarnente ha~1do um fundamento que me levassc a abdicar do cargo de professor de
! 1c~u. Ora, quai~do rcflicto nisso. parece-me que urna posi9ao dessas era
tnd1eadé~ para mrrn. l loje fez-se-me luz, o fundamento foi justamente eu ter
de ~ons1derar-me como estando perfeirarnente talhado para esse Jugar. Se
eu uvesse permanecido no meu cargo, havcria de ter rudo a perder, e nada
a ganhar. Por conscguinte, dou por acertado abdicar do rneu lugar, e procurar c~nt~ato muna cornpanhia de teatro itinerante, como fundamento de que
eu nao tinha talento ncnhum, tendo portanto tudo a ganhar,
?.
é
* *
*
É preciso todavia urna grande ingcnuidade para crcr que gritar e bradar no
mundo há-de auxiliar, como se dessa rnaneira o destino de um indivíduo se
modificasse. Aceita-se cal como nos oferecido, e contorna-se todas as comé
61 Vd. A Repetictio, SVJ, vol. III, p. 175, SKS, vol. 4, p. Y; traducáo portuguesa, p. 32.
62 Aquí, «Kjcerlighed».
65
Vido
nspiracáo social e a bcla simpatía sua concomitante espalham-sc cada
\11 mais. Em Leipzig, fundararn urna cornissño que, ern simpatía com o
ill''illl0\0
rim dos cavalos velhos, decidiu come-los.
* *
*
'tcnho
apenas um único amigo, é o eco; e porque ele mcu amigo? Poros meus pesares e ele nao os leva de rnirn. Tenho apenas um único
11 11 couñdcnte, o silencio da noitc; e porque é ele meu confidente? Porque
é
q11l' 111110
é
•I \'lila.
* *
*
Tal como na lcnda sucedeu com Parrnenisco que na caverna de Trofó1110111
pcrdcu a capacidade de rir, recuperando-a na i lha de Del fos ao por os
nlllos no cepo informe que supostamente represenrava a imagcrn da dcus.a
1 1·1061• também assirn suceden comigo. Quando era muito jovem, csquec1inL' de como rir na caverna de Trofónio, quando me tornei adulto, qumiclo
111111 os olhos e observei a realidadc, clei comigo a rir e nunca mais parci
a
11 I /\ rderencia lcnda da passagcm de Pannenisco pela gruta de Trofónio cncontra-se
1 111 C. r. rtiigcl, Ge.\'chi<"hte der ko111isc/1e11Li11eratur11 listória da Literatura Cómica],
vnls. 1 IV, Liegnitz e Lcipzig, 1784-1787; vol. l, pp. 35-36. Trofónio. rcsponsável pela
l1111sl1ll<;ao do Templo de Delfos, ficou célebre pelos oráculos proferidos na caverna
1111<k liii sepultado. Qucm consultasse o on1culo de Trofónio ficav'.1 melancólico para_o
11·,to da vida, o 4ue fundamenta a denota~lío de pcssoa grave e taciturna ern assocrn«ao
rn111 a <.:averna de Trofónio; aquclcs cujos oráculos eram interpretados pelo dem6n10
l 1l'av:1111 desfigurados.
..
._
¡,.¡ /\ deusa Leto para os gregos (Latona para os romanos) era hlha dos. litas.. Ceos e
1 :die e irma de Astéria e Ortígia. Lcto dcu a luz. os gémeos Apolo e Artenusa. hfüos de
/t·u,. chamados Lctóides.
• 111
desde essa ~1ltu~·a. Vi que a significa9ao da vicia consistía cm ganhar o pilo
e ter por objectivo ser conselheiro do tribunal, que a rica volúpia do amor65
era arranjar urna rapariga abastada, que na amizade a suprema feJiciclade
era a ajuda recíproca nas diflculdades financeiras: vi que era sabedoria o
que a maioria a~nútia como tal; que era entusiasmo fazer urn discurso; que
era corage1~1 arnsc;.~r ser multado em dez tálercs6('; que era gentileza desojar
bom proveito depois da refeicño; que era temor a Deus ir urna vez por ano
a cornunhño.
Poi o que vi, e ri-rne.
* *
*
Que coisa é essa que me amarra? De que era feíta a correntc com que
prcndcram o dio de fo'enr.is67? Fora forjada com o barulho que fazem as
patas do gato ao pisarcm o chao, com barba de mulhcr, com raízcs de rocha,
com crva do urso, com fólcgo de pcixes e saliva de pássaros. Tarnbém eu
assim me encontro preso a urna corrente, fcira de escuras fantasías. de sonhos angustiantes, de pensamcnros intranquilos, de presscntimentos amedroruados, de inexplicáveis angustias. A corrcnte «rnuitíssimo flexível
suave como seda, resiste mais forre tcnsño, e nem se parte ou desgasta»<1
é
a
8:
* *
*
É bastante cstranho que seja scmpre a mesma coisa a ocupar um indivíduo em todas as idadcs da vida.e que seja scrnpre a mesma distancia a ser
atcancada, ?u mclhor, que se volte atrás. Quando eu tinha quinzc anos,
escrevi no Iiceu, corn rnuita uncáo, sobre as prevas da existencia de Dcus e
sobre a imortalidacle da alma, sobre o conceito de te, sobre a significa9ao
65 Nestc passo, «Elskov»,
66 No original, «Rbd »; i. e .. «ri¡¡shankdaler»: mocea introduzida após a reforma monet~na ~e 1625 e que vigorou até 1873: dozc «penning» (corrcsponclendo a «vintém»)
equivaliam a 11m «skilliug» («xelim>>). dczasscis xelins a um «ntark» («marco»). seis
marcos a um «rigsdater» («t~lcr») e oito marcos a urna «krone» (ecoroa»), Silo frcqucntes as rnetáfora» e as analog1as fiduciarias cm Kierkcgaard.
67 O dio de_ Fenris (ou o lobo de Fenris) pcrtence a mitología nórdica; guardava as
portas do Interno, e é filho de Loke, o deus que personifica o mal.
6,8 Fornes consultadas pelo autor para a presente citacño: J. B. Meinichen, Nordiske
~~lks Overtroe: Guder, Fahler og He/te. indril Frode 7 Tider !Supcrsli((oes, Dcuses.
Fabulas e Heróis do Povo Nórdico até aos Tempos de Frode Vll], Copcnhaga. 1800:
p. 101." Vd. tgu~lmen~e ~-F.
Gnmdtvig, Nordens Mytholog¡ eller Siru:lbilled-.SiJrog
1 M11o_s e Alegorías Nórdicas]. Copenhaga, 1832, pp. 518 e segs.: doravanre esta obra é
mencionada pelo nome do autor.
S:
1 !11. lli11
"1ag111¡;1llo
de V1(11i
Co1110 c'\0111e11 orriwn69, cscrcvi um cnsaio sobre a imortalidade
com o qua! 14•11 obtive a classificacño de pra: ceteris'"; rnais tarde
,11Ji1, 11 premio para urn cnsaio nesta materia, Qucm havcria de acreditar
¡111 dt·imis de urn comeco táo sólido e prometedor, corn vinte e cinco a~~s
1 rlni,, huvcria de chegar ao ponto de nao ser capaz de apresentar urna uru1 p1ovu da imortalidade da alma. Recorclo-me ern especial de. nos rneus
1 11i¡1m, de cscola, um dos meus ensaios sobre a imorralidade da alma ter
11111 cxuuordinariamcntc elogiado, e licio cm voz alta pelo professor, tanto
do contcúdo como da linguagcm. Ai! Ai! Ai! Há quanto
1. 111 cxcclüncia
, 111po nüo dcitci cu fora cssc cnsaio. Mas que infelicidadc! Tal vez a minha
11111.1 dubitat iva se dcixassc cativar por ele, tondo tanto cm conta a lingua1111 quaruo o conteúdo. Por isso , o mcu consclho a pais, tutores e profes111,•r-. e que recomendem
criancas a si confiadas para guardarem os en1ilm de dinamarques que escreveram aos quinze anos. Dar este conselho é
1 1111it:n coisa que posso fazer para o bem da humanidade.
l11111il11v11·.
1, 11111111,
as
* *
*
a
'J'alveL eu tenha <.:hegado ao conhecimento da ven.Jade; lcliciclade suprede certeza que nao71. Que hei-de eu fazer? Actuar no mundo. respondem
11~ llomens. Haveria eu nesse caso de comunicar ao mundo o mcu pesar, de
i1.11 111ais um contributo para demonstrar como rucio é pesaroso e meclíocre,
dl porvcntura descobrir uma nova mancha na vida humana que até aí pennalll'n~ra desaperccbida? Poderia entao colher a rara recompensa de alcanc;ar
1l·110111e. tal como o horncm que descobriu as manchas de .lúpiter72. Prefiro
l'111rctanto ficar calado.
111ll,
e,•¡ 1 ;c\rmula latina para dc~ignar o ex ame linal do en sino secund<írio.
!O l(m lalim no original, abreviado de «laudahilis prte ceteri.rn, i. e., «louvávcl peranle
º' oulros». f6nnula lalina 4ue designa a atribuii;:ao do nível superior ele aprovac;fío nesw cxame.
/ 1 E1ubora a alusao seja aquí a primeira epístola ele Paulo a Timótco, 2:4 («Que 4ucr
•iuc tocios os homens se salvcm e vcnham ao conhccimento d¡1 vcrdaclc>>). Kic1:kcgaard
mlt:rpcla directamente a tese de Johann Gottlicb Fichtc ( l762-1814) sobre a valrdade do
nmhccimcmo da vcnfodc paru atingir a bcm-avcnluraru;a divina. Vd. Die A11weis11ngen
11111 seligel! /,ehen oder au("h die Religionslehre l Conselhos para Urna Vicia ~em1\vc11lurada ou Doutrina da Religi1íoj: eclii;:ao consultada pelo autor: J. G. F1chte,
Siimtlic·he Werke LObras Cornpletasj, vols. 1-XI, Berlím e Bona. 1834-1846: vol. 5. pp.
·110-412. Vd. igualmente J. G. Fichte, Gesamlausgabe der Bayerischen Akademie der
Wissensclwf1e11. ed. Reinhard Lauth e H<ms Gliwitzky. vols. 1-lV. Stuttgart-Bad Cannslall: Priedrich Frommann Verlag, 1964: vol. l. p. 9.
72 Giovann.i Domcnico Cassini ( 1625-1712),
astrónomo italiano fundador do Observa11írio de París.
IJI'>
:-lp1('1i h ll.'1 kcg11a1cJ
* *
*
ta Co~110.a natu;eza. humana é igual a si propria! Com que genialidade ina.L~mct ~nanc;a e capaz d.e no: mostrar urna imagem vívida das relac;ocs dos
m,lJ,ores: Be.'~ que me divertí hoje corn o pequeno Ludvig. Estava sentado
na. sua cadeirinha; olhava cm redor corn visível
. .. -1 M
.
clgrclc o. .aren a ama das
enancas, passou entño pela sala. «Maren !» grirou ele· 8·
'
.
'
L ¡ ·
• ·
, «srm, meu pequeno
u~ .v'~>> res~on~eu ela na sua habitual bonornia, dirigindo-se ao pequeno.
Ele inclinou ligeiramenre a grande cabeca para um lado Ii
l
'l''
u
, ixou ne a os olhos
enormes com urna cerra malícia, dizendo-lhe com toda ·1 flc
. M·
' ' urna: «nao era
esta
aren, era a outra Maren»73. E que fazemos nós os adultos'} .B . 1
mos ao m d . t .
,
'
. . rc1c aun
in erro e quando vem amistosamente
ao nosso cncontro,
.
d tzcmos-lhe entáo: «nao era esta Muren».
°
1451
'1nu tul e qual o porco de Luncburgo?". O mcu pensaré urna paixáo. Sci
d1 cutcu ar na pcrfeicño trufas para os outros, mas eu próprio nao retiro
llf 11.¡o qualqucr alegria. Fico comos problemas no nariz, mas com eles nao
11 1111.cr mai-, do que arrcrnessa-los
para trás da minha cabeca.
* *
l-m vño dou luta. Escorrcga-mc o pé. A minha vida permanece todavía
1111111 ex isténcia de poeta. Pode algo de mais infeliz ser pensado? Estou pre1 li -.t ruado; o destino ri-sc ele mim, quando de súbito me rnostra como .tudo
11¡i1ilo contra o qua! eu ajo se torna momento"? numa tal existencia. Consi11 dcscrcvcr a esperarn~:a de rnaneira tiío vívida, que cada individualidade
1 pcrancosa reconbeccrá como sua a minha descricño; e trata-se, no cntan111, de urna falsi ficacáo, porque enquanro a descrevo, pcnso na recorda9ao78.
* *
*
* *
*
. J\ . minha vicia é como uma noit' e e t er • na;• . quando cu urn dia. morrer poderct dizcr como Aquiles:
·
IJu bis¡ vollbruchr, Nachtwache meiues Daseynsl+
* *
*
A rninha vida esta totalmente dcsprovida de sentido Quando obs
· · d·~ ·
é
·
·
'
servo as
suas ' erentcs pocas, sucede coma rninha vida como no dicionário com
a palavra «Sclmurn75; ern prirneiro lugar sianifica
,
·d J
,
· º
um «Coi e » e cm se~~·nd~>. urna «nora». Só falta va que a palavra «Schnur» signific;tsse cm
cerro lugar um «camelo» c. em quarto, Lll11 «espanador».
* *
*
73 Este nome proprio possui ·1 v· [' .·
·
.
.
' "e11crn e o uso equivalente
na», para nomc de criada.
em portu.,ues ·10 de M'
"' · '
«1 a-
~;. ~nd1 alemño no original: «Foste c~11nprida. i vigía nocturna da minha vida», verso idcnt 1 rc,i 0 corno sendo da autona de Esquil · . r ,.
._
Werke [Obr d , . .
- o. e< 19,10 consultada pelo autor: Des i11srhylos
- ., .
rns, e Esqu1loJ, traducáo de Johann Gustav Droysen, Berlim 1842
498
7) lcrrno da lmgua ulerná.
'
·p.
·
l l<í todavía ainda urna preva para a existencia
v1·1 até agora. É introduzida por um
de Deus que deixaram por
criado em Aristófanes, O Cuvaleiro, v.
11 l' -;cg-;.79:
/11 < l porco de l .11neburgo traz também prosperidadc, e é por isso um símbolo de sorte.
11 No 'cntido cm que o «momento <.k uma forya» é na Física :1 grandc7a que rcpresenlu 11 111agn it.ude da forya aplicada a um sistema roracional, colocado a urna determinada
1lh1:111cia de um eixo de rota<,¡iio, tornando-se l'undamental. por excmplo, para o funcio11111111.·1110 de alavanca~.
/H /\' idcias aqui avani;adas sobre csperanga e rernrda9iio sao alvo de um trntamcnto
11111" daborado no capítulo «Ü mais Jnfcliz». na presente obra. Posteriorrm:ntc. a cate~·Olla de rccordai;iio é aprofundada ern A Repe1i¡:üo, SVJ. vol. Ill. pp. 173-175, SKS.
'ºl. '-1, pp. 9-10; tradu<;iio portuguesa. pp. 31-33. Vd. igualmentc «In vino verifas». in
/ 11adios 110 Caminlw da Vida. SV 1, vol. VI, pp. 15-21, SKS. vol. 6, pp. J 7-26; tradu<,¡iio
p111111g11csa, pp. 11-32.
7<I O título da comédia de Arist<>ranes é Os Cavaleiros. Edii;ao consultada pelo autor: Aristnlalll:~, Comoediw jComédias], vols. l-U. cdii;iio de Wilhclm Dindorf. Leipzig. l 830: vol.
1 pp. 69-70. Em grego no original; na lraduy,'io de Maria de FátiJna de Sousa e Silva: «DEM< >S rENES: O que? De urna estátua? Tu ainda vais ncssa treta dos deuses? i NÍCL'-\S: Ai
111111. que 1150 vou! ! DEMÓSTENES: Mas corn que fundamento?! NfClAS: Como de que
,1111 um perseguido pela divindadc.
iio é urna boa rnzao? I DEMÓSTENES: Sem dúvida.
J •,111u plenamente convencido.>>, in Arist6fanes, Os Cavafeiros. introdui;iio, vcrsao do grego
t' notas de Maria de Fátima de Sousa e Silva. Coimbrn: l11stitu10 Nacional de Jnvestigar;ao
( '1c11tífica, Centro de fatudos Cl¡\s~icos e Humanísticos da Univcrsidadc, [985, pp. 31-32.
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ó·qµoua10vl1i;.
rroíov f~Qei:ui;: éreóv r1yei: YÚQ 1')eo1Ji;:
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Ll r1 µ.ou-O·Evlii;.
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JT.{.)()Uf3t0á~e1,i; ue.
JWÍ(f)
cu
pcrdcu para mimo rcfrigério. Se me ofcreccsscrn tod~s as magnido mundo, ou todas as dores do mundo. afectar-rne-iam todas de
11 d umnciru , nao me voltaria
para o outro lado ncm para delas me apro11111,
1;~·111 para delas fugir. Morro de morte83. E o que haveria de ser
,1111 de me distrair? Sirn, se eu acabasse por ver urna fidelidade que e•~=
, , 11111
roela a provacño'", urn entusiasmo que tudo suportasse; u.ma le
um pensarnento que ligasse
1111 movcxsc monranhasf"; se eu vislurnbrasse
1111110 corn o infinito. Mas a venenosa dúvida da minha alma tuclo con,1,11
A 111i11ha alma
como o Mar Morto, sobre o qual ncnhum pássaro
afunda-se exausta na mor11 1 ~·11c voar; quando chcga a rucio carninho,
' 11r1 n11iquilac;ao86.
1 , , , t1111
111 lllN
1,
1.,~·
é
* *
*
Como o tédio é francamente pavoroso - pavorosamente cniediante:
ní'ío conheco ncnhuma curra expressáo mais forte, ncnhuma outra expréssao muis vcrdadcira; pois só pelo scmclhanre é o scrnelhanro reconheciclo80. Oxalá houvessc urna cxpressño mais elevada, rnais Iortc, ainda havoria entretanto um movirncnto. Pico estirado, inerte; a única coisa que vejo
é o vazio, a única coisa de que vivo o vazio, a única coisa em que me
movirnento é o vazio. Ncm scquer sofro dores. O aburre debicou afinal o
l'ígado de Promcteu'": sobre Loke, gotejou afinal o veneno continuarncnte82: havia ainda assirn urna interrupcño, se bcrn que monocórdica. A proé
* *
*
l~ro.ptHitoso! Com que angúsria equívoca, a ele perder e a ele conservar, o
se auarra todavía a esta vida. Pcnsci algumas vczcs em ciar um
e
,
.
¡1
decisivo, face ao qual todos os mcus passos a.ntenores mais nao
11 ia111 do que infantilidadcs - crnprcendcr a grande viagcrn ele dcscobcr1 1 'l'¡d
como urn barco ao sair do estaleiro é saudado com salvas ck caulit1t> também eu me saudaria a mim próprio. E afinal. Será que me !'alta
, 1 nr~1gc111? Se urna pc<lra me alingissc e me matasse, seria tocia vi a urna
11,111w111
'"º
11fd:1.
11/1
* *
*
80 O autor usa diversas variantes retiradas de urn corneuulrio u Empédoctcs em Aristóteles, Metafisir«. lOOOb: urna desxas variantes está rcgiMada como 11." 1630 in Gr11ndtvig. p. 62. Vd. nota 10 no capítulo «0 Primeiro Amor» e nota 2l no capítulo «Os
Estádios Eróticos Imediatos 011 o Erótico-Mu~ical>>.
81 Por ter ouxudo roubar o fogo divino a Zcus para o conceder aos mortais, Prometcu
foi condenado a permanecer para sernprc agrilhoado a urna rocha, cxposto aos araqucs dos aburres: o fígado sarava durante a noitc para voltar a ser dilacerado 110 dia
scguinte.
82 O deus Lokc é a pcrsonificacso do mal na mitología nórdica. Da sua ligai;:ao coma
gigante Angrboda nasccrarn tres criaturas monstruosas: Fcnris (011 Fenrisulfr), o lobo.
Jormungand, a scrpenrc de Midgard, e Hel, a deusa do mundo inferior. Como castigo
por rer mono Baldcr. o dcus da luz. Loke viu os scus umbros. a cintura e os calcanharcs
sercm amarrados comos intestinos de Narvi (filho de Loke e Sigyn) a tres gigantescas
rochas dentro de urna caverna, ficando dcbaixo da boca de urna scrpentc gigante gorcjaudo veneno. Sigyn, esposa del .oke, rccolhcu o veneno 1111111 recipiente, mas. ao tentar
despeja-lo, dcrrarnou-o sobre l .oke, que continuaría cm cativeiro até ao Ragnarok (o
cumprimento do destino dos deuscs), momento cm que o dcsígnio de Loke se cumpriria,
ao chefiar o cxérciro do mal na batalha final comos dcuses. na qua] é morro por Hcimdal.
1Ciénesis,2:17: «Mas nao comas do fruto da árvorc da ciencia do bcm e do mal; por4ue
quaJ4uer dia que comeres dele, rnorrerás ele morte.» A i~leia de morrer ele m011c é
1 i'l·l;1borada em Doe11{'a para a Morte, SV 1. vol. XI, p. 132, S~S, ~ol. 11, P; 134.
.
X 1 KierkcgaanJ dt:senvolvt: a ideia de fé corno promessa ele hdehdade r~c1proea cnuc
t kui. e 0 homem cm Temor e Tremar, a obra publicada seis meses dcpms de 011 011,
·m Outubro de J 843 J'tmlarnenle cmn A Repetir,:cio e 1'rf!s Discursos Edificantes.
i
'
E
K5 Marcos. 11:23: «Em vcrdade vos afirmo que todo o 4ue disser a esLe monte: rguell' e Jarn;a-te 110 mar, e isto sern hesitar no seu corairao. mas tendo fé de que tudo o que
d1s~er sucederá. ele o verá assim cumprir.»
.
K(1 Vd. J. L. Hciherg. Formenlehre der diinischen Sprache [Morfología da Língua D111amarquesa], Altona, 1823, in Prosaiske Skrifter [Esc1.ilos ern Pros'.1¡, vol. Vlll, 18~:·
p J 92: «Das Ge.fiihrlichste aher Ruhe und Stillsta11d, dieses wahrhajl lod~e. Meer, WOl,"hcr kein Vogel zu fliegen vermag» 1 «Ü mais perigoso, emhora de tranqu d1dacle e. qu1etude. este verdadeiro Mar Morto, sobre o qual nenhuma ave consegue voan>l. Intorma1,'iío gentilmente cedida por R. Purka11hofor.
1(
, 111
72
73
A tautologia é e continuará a ser o principio supremo, 0 principio supremo
do pensamento87. Nao admira pois que a rnaioria dos homens a utilizc. Também nao é assim tao pobre, e é rnuito capaz de preencher a vicia intcira.
P?ss~i urna forma jocosa, espirituosa e que entretém. que sao os iuízos infinitos'". Esta espécic de tautología é a tautología paradoxal e transcendente.
A fo~na que toma
séria, científica e edilicante. A fórmula respectiva é a
segumte: quando duas grandezas sao iguais a urna e a mesma tcrceira, sao
nesse caso todas iguais entre si89. Trata-se de urna conclusáo quantitativa.
Esta espécie de tautología é usada especialmente cm cátedras e púlpitos onde
há muito para dizcr.
é
* *
O desproporcionado
na minha cornplcic,:ao reside no facto de as minhas
patas dianreiras scrern demasiado pcquenas. Tal como a lebre da Nova Ho!ar~.d;~90, tenho urnas patas dianteiras muito pequcnas, mas patas traseiras
rnl 1.n1tamente c~mpridas. Deixo-rnc em geral ficar completamente quieto;
se faco um mov11~ento, é um salto monstruoso, para horror de todos aqueles a quem cstou ligado por ternos Jacos ele parentesco e de arnizadc.
* *
*
87.Seguudo Estflpon de Mégara (c. 360-c. 280 a. C.), os conceitos universais nao teriam
objecto. resultando dessc modo que apenas ex istern proposicñes idénticas entre si· obra
eo1~sulrntla pelo autor: W. G. Tcnnernann, Geschichte der Philosophi»[História da' 1-ii [osofia], vols, l.~XI. 1798-18!9. vol. 11, pp, 160 e scgs. Para a discussao ele Hegel, vd.
'.,gualme.•He W1ssensC'/1aft der Logik [Ciéncia da Lógica] 1; in Werke. vol. IV, pp. 30, '.'12,
.>4; Juln.liiwn.~·· vol. IV, pp. 508, 510. 5 J 2; e Suhrkamp, vol. VI, pp, 38-39. 41-43.
88 A referéncwaos jufzos infinitos está relacionada comas obst:rvat,:ües efe Hegel sobre
a mesma materia. Vd. Hegel. wissensonaf; der Logik [Ciencia da Lógica] ll; in Werke.
vol. V, pp. 90-91, Jubilüums, vol. V, pp. 89-91; e Suhrkanip; vol. VI, pp. 324-326. Vd.
igua!mt:nte .1. L. Hciberg, Gnmdtra:k ti/ Philosophiens Philosophie eller den speculative
Logik, ~om le__detraa~ ved Forelatsninger paa den kongelige militaire Hoisko!« [Elementos de Filosofía da Fil.osofia ou Lózica
Especulativa , . Como Guia
· C
• ·
"'
.• • 1Ja, 1~" as
on ferencras
na Escola Real M.ilitarl. Copcnhaga: Andreas Seidclin, 1832. § 144, nota 3. pp. 90 e segs.
89 ~~·Hegel. W1sse11schajl der Logik l Ciéncia da Lógica] JI; in Hhke, vol. v. p. 139.
Jubildums, vol. V, p. 139: e Suhrkamp ; vol. VI. pp. 371-372.
90 Ou .lehre-canguru. macrópode de pequeno porte entretanto extinto. A Australia era
conhecida nesta,épo~a por Nova Holanda. «Hollandia Nova», nome atribuído pelo explorador holandés Willem Jansz (c. 1570-c. 1630), de uso corrente até que James Cook
( 1728-1779) lhe den o nomc de Nova Inglaterra.
Ou-Ou
Urna prclcccáo extática
< 'usa-te, e arrcpender-te-ás;
nao te cases, e também te arrependerás; se te
, 1"11111•s uu s0 nao te casares, arrepender-te-ás de ambas as coisas; ou te
, 11i.,11~. ou nao te casas, e arrependes-te de ambas as coisas'". Ri das loucuras
d11 utundo. e arrepender-te-ás: chora sobre elas, e tarnbém te arrependerás;
111111 tu das loucuras do inundo, ou chores tu sobre elas, e arrcpendcr-tc-ás
d1 11r11hns as coisas; ou te ris das loucuras do mundo, ou choras sobre elas,
1 1111 cpcndcr-tc-as de ambas as coisas. Confía muna rapariga, e arrepcndcr11 lh; nao confíes nela, e tarnbém te arrependerás; confies tu numa rapariflll. ou ni'ío confíes tu nela, e arrepender-te-ás de ambas as coisas; ou confías
111111111
rupariga ou nao confías, e arrepender-te-ás
de ambas as coisas,
1•11torca-tc, e arrepender-te-ás; nao te enforques, e também te arrepenelerás;
1• re entorcares ou se nao te enforcares, arrcpcnder-tc-ás ele ambas as coi~1111, ou te enforcas, ou nao te enforcas, e arrcpcndcr-te-ás
de ambas as
1 n'"ª"· Meus scnhorcs, esta é a 148l quinta-csséncia de tocia a sabedoria ele
vldu. Nao é sirnplcsmcntc ern instantes específicos, como diz Espinosa'",
que considero tudo teterno modo93• estou antes continuamente ceterno mo-
•11 111 a~c atribufda a Sócrates por l)iógcncs Laércio. Ecli9c'Ses consultadas pelo autor:
/110¡.:l'lli.v Laertii de vilis philosophorum lVitlas dos l-'il6sofos de D. L.I. vols. 1-IL Lei1111/.\. 1933; vol. 1, p. 76, e T)io¡.:e11 fnfrtses.filosojiske lfistnrie lllislória da Filosofía ele
1 l 1,.1. vols. I-H, tradui;:ao ele B~rge Riisbrigh. Copenhaga, 1812; vol. 1. p. 7 l. Vd. Dio¡11·11l'~ Laertius, l.iw·.v of F:minem Philo.iophers, 1radu9iio de R. D. Hieks. Cambridge:
11111 vard Universily Pre~~ (Loeb). 199 l; vol. l, p. 163 . .lens ~aggesen usa igualmente
1 ''" l'ita1;ao cm Ja og 11ein ISim e Naol, Vcerker, vol. T. p. 304. Em Estádios 110 Ca111i11ho
rlo Vida. a réplica de Sócrates é discutida eom maior pormenor no capítulo «Reflexoos
.nlnc o Ca.~amcnto», in SV 1, vol. VI, pp. 149-150, SKS, vol. 6, pp. 146-'147.
tp Alusao ao princípio ele Espinosa sub .vpedae aetemitati.v. i. e .. «sob o aspecto ele
1·1rn1icla<le>>, Ética, Parte V, Prop. 29; na obra consuhada pelo autor: Be11edicti de Spi""··" opera philosopflica om11ia [Obras Filosóficas Completas de 8. ele Spinoza]. edi9ao
1k A. Gfroerer, Estugarda, 1830, p. 424. In F,rhica, in Spinoza Opera, irn A11ftrag der
1 h.:iclclberger Akademie der Wissenschaften, edi9ao ele Carl Gebhardt, vols. 1-IV. Heiddbcrg. Carl Winters Universitcctshuchhandlung, 1972; vol. 11. p. 298. Vtl. igualmente
!lento ele Espinosa, É1ica, introdui;:ao e notas de Joaquim de Carvalho, tradur,:ao ele Joaquin1 de Carvalho, Joaquirn Ferrt:ira Gomes e António Sirnües. Lisboa: Relógio
I)' Água, 1992, pp. 468 e segs., ele que se transcreve a proposic;ao: «1~o ~que a !\_lma ,,.'.
rnmpn:ende, do ponto de vista da elernidade, nao o cornpreende porque concebe a
c>..i:-tencia present.;; actual do Corpo. mas poJque concebe a essencia do Corpo do ponto
de vista tla etemidade.»
1)3 Em latim no original: <<de um modo eterno»; vd. Espinosa, ibid .. Parte V. Prop. 40,
np. cit., p. 429: no presente passo, as duas fórmulas de Espinosa estao subsumidas.
articulando-se a apreensao do pensamento sub specite a'temitmis eom a estipulai;:iio do
pcnsamento corno substancia divina aeterno modo.
74
1)11
• •11
do. Depois de terern feíto urna coisa ou a outra, muitos acrcditam que
· também o sao, quando unem ou rncdeiarn esscs contrarios. Trata-se, no
entanto, de um mal-entendido, pois que a vcrdadcira ctcrnidadc nao se situa
atrás do ou-ou, mas adiante. A eternidade deles será, tambérn por isso,
urna dolorosa sucessáo ele tempo, pois que teráo de consumir nele o duplo
arrepenclimento. A minha sabedoria é entáo fácil de apreender, visto que
icnho apenas um princípio fundamental, do qual eu nem sequer parto. Tem
de diferenciar-se entre a dialéctica subsequcnte ao ou-ou e a dialéctica
eterna aqui aludida. Quando assim cu aqui digo que nao parto do mcu princípio fundamental, tal nao tcm como seu contrario urn partir-dal. é antes a
mera expressáo negativa do meu princípio fundamental, que por cssa via se
apreende a si mesmo ern contradicáo com um partir-daí e com um nño-partir-daí. Nao parto do meu princípio fundamental, já que se eu dele
partissc, arrcpcndcr-mc-ia, e se dele nao partisse, arrepender-rne-ia tarnbém, Por conscguintc , se a um ou a outro dos meus honoráveis ouvintes
houvcssc de parecer que havcria algo no que cu dizia, estaría pois cabalmente a demonstrar que nao tern a cabcca feíta para a filosofía; se lhc
houvesse de parecer que havia movirnento no que ficou dilo, cstaria pois a
demonstrar o mesmo. Inversamente. para os ouvintes que cstáo cm condiy5es de seguir-me, apesar de eu nao fazer movimento algurn, irei agora
desenvolver a vcrdaclc eterna, por vía da qual a filosofía permanece em si
mesma, e nada de rnais elevado consente. Se eu, designadamente, partissc
do meu princípio fundamental, entiío, nao conseguiría parar outra vez: porque se eu nao parasse, entáo , iria arrepender-rne; se eu parasse, entáo, iría
cu tambérn arrepcnder-rne disso, e assirn por diante. Ora, ao invés, como eu
nunca parto. tambérn posso scmpre parar, dado que a minha eterna partida
é a minha
eterna paragcm. A experiencia comprovou que, para a filosofia.
nao de modo algum diffcil comecar'". Longe disso: comcca de facto corn
nada e, portanto, pode comecar sempre. Ao invés, o que para a filosofia e
para os filósofos se torna difícil é parar. Tambérn evitei esta dificuldade,
l ril
94 A discussño de como e por onde corneen a filosofía percorre o idealismo alemño e o
hegelianismo dinamarqués. Vd. Hegel na sua crítica a Descartes, scccño introdutória de
wissenschaft der logik (Ciencia da Lógica] 1; in Werke. vol. 111, pp. 59, 63. 66-67, 68;
Jubildums, vol. IV, pp. 69. 73. 76-77, 78; e Suhrkamp, vol. V, 65, 68-69, 71-76. E igualmente Fichte, Über Gegensatz, Wendepwikt und Ziel heutiger Philosophie [Sobre a Oposlcño, o Ponlo de Viragem e o Objeetivo da Filosofia Contemporánea], Erster krltischer
Theil 1 Primeira Parte Crítica], Heidelberg, J. 1-1. B. Mohr, 1832, pp. 76-77. Por seu lado,
Heiberg assinou artigos de índole vária sobre o mesmo tópico no scu periódico Perseus,
Journal [or den speculative Idee [Perseu, Jornal para o Pensarnento Especulativo], em
especial «Del logiske System» L«O Sistema da Lógica»]. Perseus, n," 2. Agosto de 1838,
§-§ 1-1 O. Kierkegaard prossegue esta discussño em Postscriptum Conclusivo Niio
-Cienttfico ás Migalhas Filosóficas, SVl. vol. VH, pp. 91-96, SKS, vol. 7. pp. 108-1"13.
11~
é
l1111 h11g111c11lo
75
de Vidn
vicsse a crcr que eu, na medida em.quc agora p~ro,
iuc paro, dcmonslraria assim que nao tem conceito especulativo.
,, 1
~ ll 11i10 paro propriarncnte;
antes parci na altura em que comccei.
Iil
o
sofia
tem
por
conseguintc
a superna qualidade de ser breve e
111wiio
1. 1 1 li 1du1~ívcl,já
que se alguém me contradisscr. ouso decerto cxercer o
1111 1111 de o declarar como 1491 doido. O filósofo é pois continuamente
, 11 1110 modo e nao possui , como o abencoado Sintcnis95, meramente horas
q1tl' se algu6111
d111l
'
¡111
!linis que sao vividas para a ctcrnidadc.
* *
*
1\111', porque nao nasci eu em Nybodcrt", porque nao morri eu quando
, 1 1 1 11an\·a'! O meu pai ter-rne-ia entáo deposto num pcqueno caixáo , le11do dcbaixo do brayo. acompanhado até cova um domingo de rnanha,
, 1111 ele mesmo a lan9ar sobre mirn aterra, e a dizcr a meia-voz algumas
I' i111vn1s que só ele próprio entendería. Só feli:t Antiguidade podcria
111 1111 cr por as criancinhas
a chorar no Eliseu97 por terem morrido tao
a
a
11
do
* *
*
N11111 ..:a fui alegre: e contudo, sempre pareceu que a alegria estivcsse entre
q111•11t 11tc seguía, como se os génios !estos da alegria dan9assem
mjnha
\111l11, invisíveis para os outros, mas nao para mim. comos seus olhos a
111 ilharcm ele júbilo: quando assim p<1sso pelos homens, 1.ao feliz e alegre
1111110 um deus, e me invcjam a folicidade, río-me cntao, pois que desprezo
1111 llo111cns,
e vingo-me. Nunca dcscjei f¡u,cr mal a homem nenhum, mas
,1•111prc deixci transparecer que cada um dos que minha bcira chegasse
a
a
J\lu~ao ao título da obra de C<1rl Heinrich Sintenis (1750-1820), Su111denflir die
/ 11'1!{/...cit gelebt LHora.~ Vividas para a Etcrnidadel. Berlim, 1791-1792,
l:Olll tradw;:ao
d111111narquesa, de Copenhaga, no ano de 1795.
•111 Zona da cidade de Copenhaga, onde se situa um conjunto de casas geminadas 111anih1das construir por Christian IV para as famílias dos marinheiros ao servii;o da marinha
ll'ai. Em J 817. um inl:i\ndio dl:slruiu aí um orfanato. J\r1encionaclo por Luclvig llnlberg
( 11184-1754) na comédia Den S111ndes/qise [O Cheio de Azáfamal corno local do nasci111t·11to de 1.rinta e duas criani.;a.~ de uma só mae, nados-vivos, baptizados. mas imediata111t·111c
falecidos.
E11eida, Livro VI, vv. 426 e scgs. Vd. «Encida», in Virgílio, Obras de
Vir!{flio: Bucólicas, Geórgicas, Eneida, tradll(;ao do latim de Agoslinho da Silva. Lishna: Temas e IJebatcs, 1999, 2." edii;ao, pp. 297 e segs.
1¡¡ Cf. Virgílio,
76
• •••
acab~ria magoado e fcrido. Quando oico outros scrcrn elogiados pela sua
111il11 .t p.11 te cuconuundo conhccidov, por toda a parte apontando-rnc urna
"I 111111111d.idc Tal tomo um homcm ebrio reúne sua voila o bulício irreh 1111· du juvcntudc, asxirn confluíam cm mcu redor os elfos da alegria 100,
11 111u1 ,0111M) dirigia-sc-lhcs.
A minha alma perdcu a possibilidade. Hou-
fidelidade, pela sua rcctidáo, rio-rne cntáo. pois que dcxprczo os homcns. e
vingo-me. Nunca o meu coracáo se cndureccu contra horncrn algum, mas
scmprc dcixci transparcccr, justamente quando esta va mais comovido, que
o rneu coracáo eslava fechado e era alheio a qualquer sentimento. Quundo
oico cutres ficarern com a fama de rcrem bom coracáo, quando os vejo
serem amados pelos seus ricos e profundos sentimentos. rio-me entáo, pois
que desprezo as pessoas, e vingo-me. Quando me vejo amaldicoado, execrado, odiado por ser frio e scm coracño, rio-mc cntáo, e logo fica saciada
a rninha ira. Se, dcsignadamcntc, os hornens bons pudcsscm fazcr com que
cu realmente nao tivcssc razño, com que realmente cu proccdcssc mal _
cmño si 111, cu tcria perdido.
* *
*
A rninha infelicidaclc é esta: um anjo da mortc ancla scmprc ao mcu lado,
e nao sao as porta'> dos clcito:
que cu aspirjo com sangue. cm sinal de
que 1501 ele há-dc passar-lhcs ao largo''X; nao, é exactamente pela porta
deles que ele entra - pois sé o amor da rccordacño é feliz?",
ª"
*
O vinho nao me deleita rnais o coracño: em pouca quantidade. deixa-me
~ostálgieo; em muita - melancólico. A minha alma está csgotada e sem
Iorcas: debakle sulco o seu flanco corn a espora da volúpia. já nño pode
mais, já nao se ergue mais no scu salto real. Perdi toda a minha ílusño.
lento em vño entregar-me a infinitude da alegria, já nao conscguc elevar-me, ou melhor, sou eu qucm nao conscguc elevar-se. Outrora, mal cla me
accnava, logo eu me erguia ligciro, sadio e nfoito. Quando cavalgava lentamente pela floresta, era como se voassc: quando agora o cavalo espuma,
pr~sles a cair, parece-me que 11ao saio do lugar. Estou sozinho como sempre
csuvc; abandonado. nao pelos homens, o que nao me causaría dor, mas
pelos génios Iclizes da alegria, que me rodeiarn em legióes incontáveis, por
98 Exo<lo. 12:22-23: «Ensoput um molho de hissopo no snnguc que hñ-de estar no limiar da porta e borrifai com ele a verga da porta e as <luas ornbreiras: ueuhum de vós
saia da porta ~a sua cuxa até pela manhft. /Porquc o Senhor passani fcrindo os ílgípcios;
e. logo que VU' o sangue sobre a verga da porta e sobre as duas ombrciras. passará a
porta da casa. e nao dcixará entrar ncla o cxtcrminado-, nem fazcr-vos algurn mal.»
99 Vd. acima nota 79.
e >11
IJ111
l·1<1r111(
1110 de\
1d,1
11
a
1·11 de dcscjar algo para mim, e nao descjaria cntño riqueza ou poder.
pa1\5o tia possibilidadc, o olho que por tocia a parte. eternamente
1 1 1 111 crcrnameruc
ardcnre, ve a possibilidade.
Ü gozo
cnganador, a
ji1I 1<tlnl1dadC lliÍO. (que vinho Será 11.íO eSpUITIOSO. IDO aromático e cmbria1111\ 1
\•
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1111
11
é
* *
*
< >11de nao chcgam os ralos tic .ol, chcgarn porém os sons. O rncu quarro
uro e sornbrio. um muro alto qual)C a fasta a lut: do clia. Devc ser no
11111111,il do vi1inho, é provável que seja um 1mísico ambulante. Oe que ins1111111t•1110 se trata? Uma flauta de pastor? ... que oi~o eu - o minuete de
0111111111111 1•
Lcvai-me logo, sons ricos e fortes, para fora daqui 0t11ra vez,
¡i111 .i a roda das raparigas, para a volúpia da dan9a. O farmaccutico bate no
1li1111l:1ri1.. a criada csfrcga o iacho, o m~o ele estrebaria escova o cavalo e
li111c c.:0111 a escova nas pcdras da cal9ada; cstcs sons dirigem-se só a mim,
11 •·11am
só pnra mim. Oh. grac;as te sejam ciadas onde quer que estejas,
111111ta-; grnc,:as! Tao rica, sa e ébria de alegria está a niinha alma.
li 11
hl
º
*
l .m si e para si, o salmao é um alimento muito delicado: mas quando
dele se abusa, é prejudicial a saúde, visto tratar-se de urna comida indigcs1.1. Por isso, quanclo urna vez em Hamburgo houve urna grande pescaria de
,almiío. a polícia cstipulou que cada patrao apena-; dcsse salmao a rcspee11va criadagem urna vez por semana. Seria de descjar que viesse a sair um
1..'dllo policiaJ parecido. que di. ses~e rcspeito ao sentimentalismo.
* *
*
100 O elfo é uma criatura <la mitologia 11órdica. um ser luminc.,cenlc com caraetcrísticas
si:miuivinas e imortal; é um cleus menor da na1ureza e da fcrti)jdacle - daí a sua ligai;ao
.t alegria - . habitando grutas subten-anea~. fontc.<> t: outros recantos <la naturcza.
101 Vd. Mozart. 0011 GiOl'n1111i. J\cto l. cena XX.
' 111
78
O mcu pesaré o mcu castclo senhorial , erguido corno urn ninho ele
águia no curne da rnontanha entre as nuvcns; ninguérn conscguc torná-lo
ele assalio. Lanco-mc daí em voo sobre a realidadc e agarro a minha presa:
mas nao fico em baixo, trago a minha presa para casa, e é ela a imagern
que eu entreteco nas tapecarias do meu castelo. Vivo entño como um defunto. Mergulho tudo o que vivido no baptismo do esquecimento até
eternidade da recordacáo. Tudo o que é finito e casual
esquecido e eliminado. Sento-me entáo pensativo, como um velho ele cabelos brancos, e
explico as imagcns cm vea. branda, quase cm murmúrio, e ao mcu lado
senta-sc urna enanca
escura, ernbora de tuclo cla se lembrc, antes ele eu
o contar.
a
é
é
a
* *
O sol brilha com tanta beleza e vivaciclade pelo meu quarto adentro, a
janela está aberra no quarto contíguo: tudo na rua está calmo, é domingo
tarde: oico distintamente urna cotovia que lanca o scu chilrcio , do lado de
fora da jancla de um dos quintáis vizinhos, onde vive aqucla bonita rapariga; muito ao longo, vindo de urna rua distante, oico um horncm que aprcgoa
carnaráo; o ar está tao quente, e todavía a cidade inreira está como rnorta.
- Faz-me lembrar a minha juvcntudc e o rncu primciro amor102 - ansiavu
cntáo , agora sinto ansias apenas pelo rncu primciro anseio. O que é a juvcntudc? Um sonho. O que é o amor? O conteúdo do sonho.
a
+
{_
I")
* *
*
Acontcccu-mc urna coisa prodigiosa. Fui arrebatado até ao sétimo céu.
Estavam lá reunidos todos os dcuses. Foi-rne concedido por especial graca
o favor de realizar um desejo. «Queres tu», disse-rne Mercurio 103, «queres
1521 tu ter juventude, ou beleza, ou poder, ou urna longa vida. ou a mais
bela rapariga, ou urna outra magnificencia das multas que ternos na arca
da quinquilharia - escolhe lá, mas só urna coisa.» Piquei baralhado por ·
um instante. mas dirigí-me aos deuses ern seguida: «Honoráveis contemporáneos, escolho urna única coisa - que possa sernpre contar como riso
!02 «Kjcerlighed» nas duas ocorréncias deste fragmento.
J 03 Na mitología romana. Mcrcúrio corresponde a Hcnnes na mitología grega. Dcus
romano do comércio, e da eloquéncia, dos viajantes. dos ladrñes e dos rebanhos: como
veloz cmissário de Júpiter, era facilmcnte Identificávcl através do elmo e das sandalias
aladas, bem como pela bolsa e pelo caduceo.
(
111 1J111 h t11::>11H:11to
1k Vid u
79
u lndo.» cm um único dos deuscs responden urna palavra, ao invés,
iodos a rir. Pcrantc isto, concluí que o rneu pedido fora cumprido,
'' IJ¡•1 que os dcuses sabiarn exprimir-se com requinte; porque teria sido
,1 \1 '"' inapropriado responder com scriedade: «foi-tc concedido».
111
t
11H
11 v11111111
1 di
Os Estadios Eróticos Imediatos
ou
o Erótico-Musical
Introducáo
Insipiente
/\ partir do instante em que pela prirneira vez a rninha alma ficou descoma música de Mozart', e humildemente se prostrou em adrni111\110. cnrrcguei-me amiúde a urna ocupacáo dilecta e reparadora. a de rell1·1'tir no modo como essa feliz ponderacáo dos gregos sobre o mundo, ao
i¡11nl por isso chamam xouµ.o~2 (porque se rnostra como um todo bem ortl1•1111do, como um adorno requintado e transparente para o cspfrito, que
1.ohn: ele actua e gcra ac<_,:flo), e no modo como cssa alegre pondcracño é
¡HtN'>Ívcl de ser repetida numa ordcm mais elevada das coisas, no mundo
do-. idea is, e no modo como volta aqui a encontrar-se urna sabcdoria provitl1·111c, digna de admiracño porque, em particular, ligt1 um ao nutro o que
1l·111 de estar em conjunto. Axcl e Valborg", Homero e a Guerra ele Tróia,
l<111'acl e o catolicismo, Mozart e Don Juan. Há urna dcscrcnca mesquinha ·
que parece conter um grande remédio . Em sua opiniño. urna Liga<;ao dcstc
1 ipo é casual,
e nada mais af ve que nao seja um encontró a dois, bastante
.rlortunado, das diferentes forcas do jogo da vida. Ern sua opiniño, é casual
dois amantes darern um com o outro, e casual arnarern-se um ao outro;
huvcria outras ccm raparigas comas quais ele poderia ter viudo a ser igual111c11te feliz. pelas quais podcria ter sentido um amor igualmente intenso.
ltuuhruda
é
1 Wolfgang Arnadcus Mozart cornpós em 1787 !l dissoluto punito ossia Don Giovan11i 10 Dissoluto Punido, ou Don Giovanni]. sobre o libreto de Lorenzo da Ponte (17491838); doravantc a vcrsño original é rcfcrcnciada pelo nome original: IJ011 Giovunni,
Ao longo do presente capítulo, sao frequentes as rernissóes para a versño dinamarquesa,
d;1 auroria de l .aurids Kruse. Don Juan. Opera i tvende Akter bearbeidet ti/ Mozurts
Musik [Don Juan. Ópera em Dois Actos Arranjada para a Música de Mozart], Copcnha!!ª· 1807; doravanrc, esta vcrsáo referenciada pelo norne de Kruse.
2 Em grego no original: «cosmos».
1 Axcl e Valborg proragonizam o drama rornñnuco Axe/ og valborg de Adam Oehé
lenschláger, in Oehlenschldgers Tragedier [Tragedias de 0.1, vols, 1-!X. Copenhaga.A.
F. Host, 1841-1849; vol. VI, pp. 5-108. Unidos por um amor profundo, nao recebem
autorizacño da Igreja para contraír rnatrimónio, visto scrcrn irrnáos de baptismo, ou
scja, reccbcram o baptismo no mesmo <lia e na mesma cerimónia.
84
1.~
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(i {)
,/
Em sua opiniáo, já vivcram muitos poetas que havcriarn igualmente ele
chegar a ser tao imortais quanto Hornero. se essa magnífica maréria nao
lhes houvesse sido usurpada por ele, muitos compositores haveriam igualmente de vira ser tao imortais quanto Mozart, se lhes houvesse sido oferccicla a oportunidacle. Ora esta sabedoria contérn um consolo grande e um
bálsamo para todos os rneclíocrcs, que assirn se véem investidos da capaci,, cladc de imaginar, para si e para os que pensarn da mesma maneira, que é
J
urna confusáo do destino. um erro do mundo, nao tercrn sido eles a
notabilizar-so tanto guamo esses notávcis. Trata-se de um optimismo muito
f{tcil, o que assim é produzido. Para qualquer alma magnñnima, ao invés,
,'para qualquer optimate4, para qucm nao é tao imperioso salvar-se a si próprio de modo tao mcsquinho quanro perder-se a si mesmo ao contemplar o
grande.1561 obviamente trata-se de urna aborninacño, ao passo que é para a
sua aln~a urn júbilo, urna alegria sagrada. ver reunido o que tem de estar
junto. E isto o que há de feli:r., nao corn a signific:1yao do que
casual.
prcssupondo por isso dois factores, ao passo que o casual reside nas ínterjcicóes inarticuladas do destino. É isto o que há de feliz na historia, o divino jogo concertado das forcas históricas, a solcnidadc do tempo histórico.
O casual possui apenas um único factor: casual que 1 romero cncontrassc
na hisrória da Guerra de Tróia a mais notável matéria épica que cabe imaginar. O que feliz tcm dois: é feliz que a rnais notávcJ matéria épica coubesse em sorte a Homero; a énfase recaí aquí nomcadamenta tanto ern
Homero quanto na maréria. Nisso reside a profunda harmonía que ressoa
cm cada urna das produc;oes a que chamamos clásslcas. Ora assim que
acontece corn Mozart: é feliz que a única matéria que talvcz em sentido
mais profundo seja musical haja sido ciada a - Mozart.
é
é
é
é
Como seu Don Juan, Mozarr entra no pequeno grupo irnortal ele homens
os recorda. E ernbora soja indiferente. quando nele se admitido pela primeira
vez. ficar cm lugar superior ou inferior. porque ern certo sentido se está ao
mesmo nível , urna vez que se Iica nurn lugar infinitamente elevado; ernbora seja tao infantil lutar pelo lugar superior ou inferior quanto por urn Jugar
na igreja a caminho do altar durante urna confirmacño, ainda sou todavía
muito enanca, ou mclhor, sou como urna rapariguínha apaixonada por Mozart , e tenho de o por no lugar cirneiro, custe o que custar, E irei ter corno
sacristáo, com o pastor, com o vigário, corn o bispo e com todo o consistório, e hci-dc pedir e rogar que se dignern curnprir a rninha precc, e hei-de
implorar o mesmo a toda a congregacño e, se a rninha prece nao for aten-
cujos nemes e obras o tempo nao esquccerá, visto que a etcmidade
é
~Na organizacáo política da Roma Auriga. os «optimates» constituíarn urna torca política de cidadáos nobrcs e de tendencia mais conservadora, opondo-se aos «populares»;
Cícero considera va-os virtuosos e honestos.
>11
85
( )11 l lm h11gnw11lo de Vidn
ditln, se 0 mcu infantil desojo nao Ior cumprido, sairci cntáo da cornunidatll xepurnr-mc-ci dessa maneira de pensar. fundo entño urna seita que n~o
, ll111i1n u colocar Mozart ern lugar cimeiro. mas que ncm scquer tcm mars
11111¡.:,iK·ni alérn de Mozart; e quero pedir a Mozart que me per~l?e pelo .facto
tlt• a Nu:i música nao me haver entusiasmado para alcancar feítos rnaiores,
111111.·-. ter teito de mim um tolo, que por sua causa perdeu a rnigalha de enu-uuimcnro que tinha, csgorando eu agora o tempo na maioria das vezes
1111111u calma nostalgia". a cantarolar aquilo que nao cnrendo , rondando em
Mii 'llL'iO COlll() lllll fantasma, día C 110ÜC,
voila claquiJO Clll que nao SOU
11111111 de entrar. !mortal Mozart~ Tu, a qucrn cu ludo elevo, a quem elevo
l111vcr perdido o entendimento, ha ver-se a minha alma deslumbrad~, havcr
11, L·slrcmccido no 1571 mais íntimo do meu ser, tu, a quem devo nao havcr
ulnivcssaclo a vida sem que houvesse algo capaz de me emocionar'. tu,.~
qlll'll1 agrade90 nao morrer sem haver amado. se bem q.ue o r:ieu .tmor
ll'llha ~ido infcli7 .. Nao é pois de admirar que eu zele mu1to ma1s pela sua
)d(lrifica<,:ao do que pelo instante mais feliz da mi1~ha própria. vida.' q~e ~u
~t'l:t mais cioso da sua imortalidadc <lo que da minha própna ex1stenc1a.
Si.111, -,e ele tivesse sido eliminado, se o scu nomc tivcssc sido apagado, caía
por 1crra o único pilar que até agora impcdiu que ludo para rnim ruísse num
111rnmcnsunível caos. num horroroso nada.
No cntanto nao neeessito certamente de temer que alguma época.yucira
ll~g:ir-lhe o lu~ar naquele reino de deuscs, mas ccrtament~ q~1e ~eccssit? de
••slnr preparado para que alguém venha a pensar que é mlantil da m1nha
parte po-lo em primeiro lugar. E apesar de eu nao tencionar de modo algu1~
t•nvcrnonhar-mc da minha infantilidade. apesar de, para mim, ele possuir
-,c111p~ rnaior significa9ao e maior valor do que qualquer outra consider~1,·ao cxaurívcl, exactamente por ser inexauríveL efectuarei agora um cnsa10
para demonstrar os scus legítimos direitos rec?rrenclo via. d~ deliberas;a~.
o que há de fofü. na producriio clássica, aquilo que const1tu1 o seu class1rismo e a sua imortalidade, é a absoluta jun¡;ao c~nju~1ta das dua~ for9a\
l~ssa junc,:ao conjunta é tao abso.luta que urna posterior epoca reflex1onante
a
a
'i A cdi9ao SKS rcgista «Veemod». o termo constante da primeira e<fo;:ao ~e t:nt.enWler (SV J. vol. 1, p. 33), aqui traduzido por «nostalgia»; a segunc1:1 cd1i;;ao rcg1sta
«Va11vid», i. c., <<loucurn».
(, Aqui. «Kjter!ighed».
.
.
7 O termo ut'ilizado é «reflekterende», do alemiio «reflectermde»; vd. § 81.' Ka~1t.
/,ogik. Physische <ieographie, Piidagogik [Lógica. Gcografia física, ~cdagogial. Vd.
Kant.1• Werke !Obras de K.l, edi\;ÍÍO da Küniglich-Preussischen Akadenue der W1ssenschaflen, vols. I-lX, Berlim, G. Reimcr, 1907-1923; vol. IX.. pp. 131-132;
dorava~le a
cdi¡;ao será referida por AA, seguida pelo número do volume em questño. Kat~t d1st11~"Ue dois tipos da faculdade de julgar. a detennjnantc, por mcio da qual é poss1vel atribuir um universal a um parti¡;ular através do uso da razao, e a reflexionante. pela qual.
87
86
nem sequer será alguma vez capaz de separar em pensamento o que está tiío
intimamente unido scm correr o perigo de provocar ou de incorrer num mau
entendimento. Quando assim se diz que a felicidade de Homero foi ter encontrado a materia épica mais notável, entáo, é fácil vira dar ocasiáo a que
se esqucca que continuamos a ter essa materia épica arravés da concepcáo
de Homero, e que o facto de se mostrar corno a mais perfeita materia épica
fica para nós apenas claro na rransubstanciacáo, e coma transubstanciacáo,
que pcrtence a Hornero. Se, ao invés, se destacar o trabalho poético de Homero no tocante ao penetrar a materia. fácil correr o pcrigo de esqueccr
que o poema nunca se teria tornado aquilo que é, se o pcnsamento com que
Homero o pcnctrou nao fosse o próprio pensamento dele, se a forma nao
fosse a propria forma da materia. O poeta desoja a sua materia, mas, corno
se costuma dizer, desejar nao urna arte, o que está inteirarncntc cerio e se
aplica com grande verdadc a urna grande quantidade de impotentes dcsejós
de poetas. Desejar da mancira cerra é, ao invés, urna grande arte, ou melhor,
um dom. É o guc há de insondávcl e de misterioso no genio. tal como
numa vara ele vcdor, ~1 qual nunca ocorrc 1581 desejar outra coisa a nao ser
aquilo que cleseja8. Dcsejar tem assirn urna significacño bcm mais profunda
do que comum, surgindo até ao pcnsamento abstracto como urna ridícularia, dado que este está mais perlo de pensar cm dcsejar em relacáo ao que
' nao há, e ní'ío ern relacño aoque há.
Houve urna cscola de estéticos? que, ao destacar unilateralmente a significacño da forma, nao fica isenta da culpa de ter ocasionado o corrcspondente mau crucndimento contrário. Tem sido para mim multas vczcs notório corno éstes estéticos se aliavarn, scm mais delongas, ~. filosofía
hegeliana. visto que tamo u m conheci mento geral de JI e gel 1 n quanro um
é
é
é
é
111na vez dado o particular. se chega a urn universal empírico e nño-lógico. possuindo
apenas validado subjectiva. Vd., cm portugués, lmmanucl Kant. Lógica, tradui¡;ao ele
Artur Morño, Lisboa: Edicóes Texto & Grafía. 2009, p. 125.
8 «~mkerqvist>>,literalmentc
«vurinha dos desejos», replicando as diferentes ocorréncias
de «al onske», «desejar». e de «YJmke», «desojo». na seceso final dcstc parágrafo.
9 Alusáo ao filósofo alemño Christian Hermann Weissc ( 1801-1866) e sua obra System
der Aesthetik als wissenschafs 11011 der ldee der Schonheit [Sistema da Estética como
Ciencia da ldcia da Beleza], vols. 1-11, Leipzig, 1830; vd. nota l e111 «Prcfácio».
1 O 1 lcgcl, vorlesungen iiber die Aesthetik 11 .icócs sobre a Estética I, cdicño de Heinrich
Gustav l-lotho (1802-1873), vols. 1-UI, Berlim, 1835; Werke. vol. X. PI;· J-3, e pp. 99-101, Jubtlüums, vol. XII., pp. Ll5-I 17, e Suhrkamp , vol. XIII, pp, 107-109. Vd. em
portugués: O. W. Hegel. Estética, traducño de Álvaro Ribciro e Orlando Vitorino. introdueño de Pinharanda Gorncs, Lisboa: Guimarács Editores, J 993. pp. 49-50. Hotho
frequentementc citado ao longo destc capítulo pela xua obra vorstudien fiir Leben und
Kunst [Estudos Prévios para a Vida e para a Arte]. Esrugarda e Tübingcu, 1835. cuja
primeira parteé inteiramente dedicada a Don Giovanni (pp. 1-172): doravantc referida
pelo neme do autor, seguido de vorstudien,
a
é
onhccimcnj.o específico da sua estética asseguram que ele destaca muitís"i111n u :-:igni í"icac¡:a.o da matéria, particularmente de um ponlo de vista esté111'1). Ambas as partes tém entretanto de ser tidas em conjunto. e bastará
umn única considcracáo para mostrar como semelhante fenómeno permalll'CCU aliás inexplicável. É comum ser uma ú1úca obra, ou urúa única sequG11cia de obras, a marcar um indíviduo singular enguanto poeta ou artista
rl~s:-.ico. ere. A mesma individualidade pode ter produzido rnuitas coisas
tk'>iguais. as qua.is nao cstahelecem todavía qualquer rela9ao corn essa
ol>ra. Assirn, l lomero escrcveu igualmente uma Batraclwmyomachi 11, mas
11t10 foi através dela que se tornou imortal ou clássico. Dizer que isso havc11u de ter por fundamento o facto de o assunto ser irrelevante é deveras urna
tolicc, visto que o clé.íssico reside no equilíbrio. Ora se aquilo que faz com
que urna produc;ao cl:í.ssica seja uma produc;ao clássica asscntasse única e
L~xclusivamente na individualiclade produtora, entao, ludo o que ele proclu1issc teria de facto de ser clássico, em sentido idcntieo. se hcm que mais
el.evado, ao que sucede corn as abelhas, as quais produz.cin semprc um
cerio tipo de favo. Ora se a rcsposta a tal coisa fosse que isso aconlcccra
por ele ter t:ido 1uaior fortuna com urna do que com outra. nao se teria propriamente dado n.:sposta alguma. Por uro lado, é apenas uma tautología
l'lcgnnte que desfruta da honra de ser vista como resposra demasiadas vezes
11a vida; e por outro, considerada como resposta, responde dentro ele uma
rclatividade diferente daquela em que foi pcrguntada. lsto nada esclarece,
designada.mente. no que diz respeilo a relac;ao entre a matéria e a forma e,
no máximo, poderia ser tido em considera<;í.io, quando se tratasse unica111c111.c de uma questflo acerca da activiclade formadora.
Ora. passa-se com Mo1.art um caso identico, apenas urna única das suas
obras i'cl. dele um compositor clássico e absolutamente imort.al. F.ssa obra
é Don Juan. Tudo o mais que produziu pode encher de alegria ou de pn11.cr,
despertar a nossa admirac;í.io, cmiqueccr a alma, satisfazer o ouvido, deleiLar o cora<yao; mas 1591 nao se presta servic,:o nenhum a Mozart e sua
imortalidade misturando-as todas urnas com as outras, é tornando tudo
igualment_e gnmde. Don Juan é a sua obra-prima12• Com Don Juan, Mozart
entra nessa eternidade que nao se situa forado tempo, mas sim no rneio do
tempo, que nao fica oculta dos olhos dos homens atrás de nenhum.a cortina,
onde os .irnortais nao sao admitidos de urna vez por todas. mas sao antes
1
a
a
11 Bm:gaxo.uvo¡uJ.xw[<iucrra cl:ls Ras e dos Ratos!, paródia epopeia homérica, cs<.:rita soh.o nome de Homero. É possfrel que Kíerkegaard tivcssc conhecimentn da tradu<¡i'ío de Poul Martin Mtlllcr (1794-1838). Frf>ernes og Musenes Krig [Guerra das Ras
e dos Ratos], publicada postllmamente; vd. l:!Jterladte Skr(fter [Escritos P6slumos], 2."
edi<;ao, vols. 1-Vl, Copenhaga, J 848; vol. l. pp. 254-264.
L2 Aqui. «Rec:eplion.sstykke», o trabalho cuja validai;:ao garantia ao artista ser admitido
na Academia das Artes.
J
t
continuamente admitidos, i1 medida que urna gcrai;ilo passa e para eles dirige o olhar, feliz na conrcmplacüo dos imortais e, dcsccndo esta gcracño
a sepultura, a geracáo seguintc passeia-se de novo por eles e deixa-sc transfigurar pela contcrnplacáo deles 13: com Don Juan, Mozart entra na galeria
daquelcs imortais, desses visivclmcnte transfigurados, os quais nuvem alguma arrasta para longe dos olhos dos homens14; com Don Juan ocupa o
lugar cirnciro entre eles. Esta última afirmacáo, como acima mencionado,
foi aquilo que procurei demonstrar.
Todas as producñes clássicas se erguem a mesma altura, como foi acima
observado, porque cada uma delas se crguc infinitamente alto. Portante. se
mesmo assim se quiscr efectuar um ensaio para introduzir urna cena ordern
nestc cortejo. iria daí resultar que nao pode ser fundamentada ern algo de
cssencial, dado que o resultado efectivo seria ha ver urna di fercnca csscncial, do qual resultaria de novo que a palavra «clássico» havia injustificadamente sido predicado de todas clas. Se assirn se qui. essc fundamentar urna
classificacño na diferente qualidadc da materia. entño, ficar-se-ia enredado
num rnau cntendimcnto, o qual, na sua mais prolixa disseminacíío, acabarla
por rclevar15 todo o conccito de clássico. A matéria é, dcsignadarncnte, urn
momento esscncial, porquanto é o único factor, nño scndo todavía o absoluto, pois é apenas o único momento. Poder-sc-ia assirn chamar a atcncño
para o facto de nao existir, de algurna maneira, qualquer matéria cm cerios
tipos de producóes clássicas. ao passo que, ao invés, a matéria desernpenha
um papel t~o significativo neutras obras. O prirneiro é o ca ·o das obras que
é
13 No longo parágrafo introdutório de «Elogio tic Abruño», Joh;u1111.:s de silentio recupera
e amplifica o tnuamenio da imortalidade consagrada na recorda!;iiO das succssivns gcra!;OCS: vd. SKS. vol. 4. pp, 112-113. SVI. vol. 111. pp. 68-69, Temor e Tremar, pp. 65-67.
14 Vd. Actos dos Apóstolos, 1 :9: «E quaudo dizia isto. vendo-o eles. foi elevado as
alturas. e urna nuvern o receben. ocultando-o aos seus olhos.»
15 «Ophaive» que corresponde ao ulcmño «aufheben»: traduzido sempre por «relevar»
para manter a contacáo hegeliana. A «A11jlwb1111g» urn clemcruo-chavc na dialéctica
hegeliana. e o couccito surge corn muita frcquñncia cm Kicrkegaard. Na Encicíopedío
das Ciencias Filo.1óftca.v (* 96, Juhilütuns, vol. V 111. p. 229. Suhrkatnp, vol. 8. p. 203).
1 legcl faz notar o duplo sentido que o verbo «aufheben» tern, mesmo na linguagern coré
rente: «Por "aulhebcn" entendernos. por um lado. o mesmo que remover, negar - e
ncste sentido dizernos, por excrnplo. que urna lci. urna disposicño. etc .. sao "autgchoben". Porém. para além disso. "auíhcben" significa também o mesmo que preservar. e
ncste sentido dizemos que urna dada coisa é "aufgchobcn",» Derrida sugería que cm
francés o verbo «rrlever», no seu duplo sentido (que cm portugués o verbo «relevar»
tambérn tcrn), se aproximava razoavclmentc de poder cobrir este conceito de urna negac;iío que nao suprime o seu objecto, antes o conserva no estadio subscqucnte. com um
outro valor: vd. «Le puits et la pvramide», exposicño pronunciada no Seminario de Jcan
Hyppolitc, no Collcge de Franco. ern l6 de Janciro de 1968. integrada posteriormente em
J. Derrida, Murges de la Philosophie,Paris: Éditions de Minuit, 1972. pp. 79-127: p. 102.
h1
( h1 l 1111 1:1t1fllll'lllil tk' Vida
89
11 .imus corno cl:ís~icas na arquitectura. na escultura, na músic~, na pi~puncrpatmcntc nas trés primciras, de ta1 modo que, no que d.iz resp~1111 1 prutura, conquaruo se possa falar de matéria, esta pode quando muito
ipr11l icur «ser ocasiáo». O segundo aplica-se ~1 poe~ia, tomada esta pala~ra
1111 ~11a s1gnilicar,:5o mai vasta, arravés da qua! des1~~1a ~oda~ as ?roduyoc~
que ,e baseiam na tinguagem e na consciencra h1st~nca. Em s1
11t1,111:a\
,
111n, este comentario está inteiramente
ccrto: mas ao querer l ~ndamcntar
1111
le
u
1
1
1
a
classificacáo,
cai-se
cm
erro,
por
vía de olhar para a falta de ma111
11 1111 ou para a sua prcscrn;a como urna vantagem, ou um. impedimento,
-;u jeito produtor. Estr1tamcntc tomado. chcga 1601'. des1gnadamcntc, a
11,11,1 0
111..,1s1ir -.e no contrário daquilo que realmente se prelendra. tal como sempre
m ontccc quando alguém se move abstractamente em dct~rmina?oes dialée111 :1\, nas qua is nao importa meramente dizer-se uma co1~a, oyrnan~o u~a
antes importa dizer a outra; o que se pensa que se dtz nao se d'.z, Jr~1111trn.
M' antes o contrário. Assim acontece ao aplicar a matéria como pnncípro
d1visao. Ao falar-se da matéria, c~tá a falar-sc de urna coi~a complcta111'
1111.:ntc diferente, de. ignadamentc, da aclividadc rormadora1<'. Se. ao in~é~,
.,1• quiscr sair da actividadc
formadora. destacando unicamcntc ~sla ac1.1v1d,itk, cntao, tcm-sc 0 me!.mO destino. N;i medida em que se quiser aplr~ar
,1qui a difcrcnr;a. destacando de te modo que a actividade f~nnadora é criador a cm certas dircccroes, a ponto de criar neta a rnaténa. quando pelo
ro11trário em outras recebe a matéria, apcsar de 1;e julgar que :se Cala da act1vidadc formadora, voila aquí a falar-se da matéria propriamente dita,~ a
h1t1darncntar-se a classifica¡;ao propriamente dita na divisao da .~até1~a.
1\ actividade formadora como ponto de partida para uma tal class1f1car;ao,
,1plica-se exactamente o mesmo que é aplicáve.l ~ matéria. Para fu~dam~ntar
hierarquía nunca é possfvel, portanto, utilizar um~ perspectiva ~.'~gu11rna
iar. porque essa perspectiva é semprc demasiado cssencral para ser sul~crcnteinente casual. e demasiado casual para fundamentar urna ordcmwao es'cncial. Mas essa absoluta pcnetrar;ao recíproca. :l qual fa1, (quando se qu~r
!'alar clara e distintamente fica igualmente bcm di:ter-se) com que a maténa
pciielrc na forma como a forma penetra na matéria, esse recípr:oco pei~etra~··
cssc igual por igual na imortal amiz.ade do clássico pode servir para ilun~inar 0 clássico de uma nova perspectiva e circunscreve-lo de modo ª.qu~ nao
~e torne demasiado amplo. Os estéticos. designadarnentc os que t~s1stem
unilateralmente na actividade poética, alargaram tanto csse concc1t~ que
es..,c panteao se enriqueceu a tal ponto, atafulhando-s~ mesmo de hug1ga~gas clá~sicas e de bagatelas, que a rcprcscnta9ao mais natural de um átno
glacial com cerlos e determinados grandes vultos dcsaparcccu por complc-
111 1111
1111,1,
16 Alu,ao ao 8ild1111gMrieb (Nis11sformatil'lls), conccito criado pelo zoól~go e antropó~ogo Johann fricurich Blumenbach ( 1752-1840) para designar o impul~o vital de formai;ao.
90
t)
to,_ lransfo~1nando-se antes esse panteáo num quarto de arrumes. Qualqucr
corsa gen~II, bcm trabalhada do ponto de vista artístico. seguramente para
cssa estética urna obra clássica de absoluta imortalidadc; sirn,
ncsta balbúrdia que na rnaior parte das vezcs se encontra Jugar para ninharias scmclhantes; ernbora, aliás. se detestassc os paradoxos, nao se receou todavía 0
paradoxo de a rnais pequena coisa ser a arte propriamcntc dita. O nao verdadeiro reside no facto de a actividadc formal ter siclo unilateralmente
destacada. Urna estética dcste tipo. portante, poder-se-ia apenas manrer
durante um determinado tempo, desde que. designadamentc, nao se ficassc
atento ao facto de 1611 o tempo trocar dessa estética e das respectivas obras
classicas. No campo da estética, esta intuicyao era urna forma do radicalismo
que se exprirniu de maneira corre. pondente cm tantos domíniov, era urna
exteriorizacáo do sujcito licencioso na sua igualmente licenciosa inconsistencia. Bs~e esfor9?. como tantos ouiros, cncontrou entretanto em Hegel 0
s~u conqu1stad?r. E cm gcral urna vcrdadc a lamentar. no que diz rcspeito a
filosofía hegeliana, nao ter de todo alcancado a significacáo, nem para o
lempo pas~ado, r~cm para o presente, que poderia ter alcancado, se o tempo
pass~do nao se tr.:essc dado tanto ao trabalho de intimidar as pcssoas para
adcrircrn a cssa Iilosofla: mas se, ao invés, tivcssc ricio urn pouco mais de
calma presencial quando dela se apropriou. o presente nao tcria sido liío
~nfotig:welmente diligente a correr corn as pcssoas dela pura fora. Hegel
ms~aurou de novo a materia, a ideia, nos respectivos direitox, e cxpulsou
ass1111 cxsas obras clássicns efémeras. esses seres leves, cssus borbolcrus
~·1octur~1as p~tra fora da cúpula da classicidadc. Nao é de modo algurn nossa
mtencao retirar a e: sas obra. o rcconhccido valor, mas importa estar vigilante para que aqut como cm tantos outros lugares nño se confunda a linguagcm, nao se enervemos couccitos. Pode atribuir-sc-lhes até mesmo urna
cerca ctemidadc, e é isso que as enche de mérito; mas esta eteruidade limita-se, cornudo, a ser o instan le eterno. proprio de qualquer vcrclacleira produ9ao artfstica. e nño a plena eternidadc no mcio das inconstantes vicissitudcs
dos t~mpos. O que faltava a essas producñcs eram idcias e, quanto rnai
pcrfeitarnente acabadas cstivessern, do ponto de vista formal. tanto mais se
consumiriam a si proprias, quanto mais descnvolvida estivesse a capacidade
técnica. até ao mais elevado grau de virtuosismo. tanto mais efémeras se
tornariarn. e nao tcriam ncm animo. nem íorca OU atitude, para resistir
voragcrn do tempo, visto que continuavam a exercer ele maneira cada vez
mais elegante a rnaior prctcnsáo de serem do mais refinado espirito!". Só
quando a ideia é levada ao repouso e a transparencia numa forma determinada. só entáo pode falar-se de urna obra clássica; mas tambérn reunirá
entáo condicóes para resistir aos tempos. Esta unidadc, esta interioridade
é
é
a
17 No original, «Spiritus», termo que designa «espírito» e tambérn «bebida espirituosa».
ll'< 1p1ou1 u111 no outro , qualqucr
t
obra clás~ica a possui, e vé se íacilrncntc
atentado U classificacáo das diferentes obras clássicas que
111111\' como ponto de partida urna scparacáo entre a matéria e a forma. ou
l 11111.• 11 «Icia e n íorma. c~l:í eo ipso errado.
( 'ontudo , podcr-sc-ia imaginar um outro carninho. Poder-sc-ia tornar o
111l 10. utravé- do qual a ideia se torna visívcl, como objecto da observacño
1 , cnquunto se comenta va que um mcio era mais rico e o outro mais pobre,
1<1 'l lundarncnrar-se-ia a divisáo , tornando a diferente pobreza ou a riqueza
do mero como urna atenuante ou urna agravante. Mas o mcio rnaniém urna
rdm,;:10 demasiado neccssária corn toda a producáo artística. para que a
divi-.ao, assirn fundamentada no mcio, náo vcnha a envolver-se nas dificuld.tdc-; acima destacadas. por vía de alguns rO<leios do pensamento.
i\o invés. ercio que atrnvés das considcra~óes que se scgucm abro per<,
IK'l'I i va-; panl uma divisao que terá vulidadc. justamente porque é inleiraIHl'l1tc casual. Quanto rnais abstracta e, portanto, mai:-. pobre for a idcia,
t.11110 mais ab!>tracto e. po11anto. mais pobre será o meio, tanto maior scr(i
também a probabilidadc de que nenhuma rcpeli9ao seja pensável, tanto
maior :-.er(i a probabifidade de que, quando a ideiu Livcr atingido a sua exprc-. ... ao. o tcnha fcito de urna vez por todas. Ao invés. quanto mai-. concreta c. portanto. mais rica ror a ideia, assim como o meio. tanto maior a
prohabilidadc de urna rcpeti9ao. Ora, ao colocar todas a!. diferentes obras
cf¡¡..,..,ica-; ao lado urnas da<, outra'\, sem pretender ordená-las, admiro-me
prccbamcntc porque toda<, ~e ergucm a mesma altura e. entao, é ríícil mo-.lrar tnmbém como urna sec9ifo conta com mais obra" do que a outra e, se
1150 contar. h(i a possihilicladc de vira l'az.é-lo. ao passo que para a outra nüo
..,e mostra tao facilmcnte alguma possibilidade.
Goslaria de desenvolver isto aqui um pouco mais. Quanto mais abstrae
la é urna ideia. menor a probabilidade. Ma!> como se tornará a idcia concreta? Ao ::.cr penetrada pelo histórico. Quanto mais concreta a idcia. maior
-,crá a probabilidade. Quanto muis abstracto é o rneio, tanto menor será a
probabilidadc. quanto mais concrelo, tanto maior. Mas o que signil'ica dizcr
que o meio é concreto. a nao ser que ou é concreto, ou é viMo na sua aproxima9iio a linguagcm, visto que a linguagem é o mais concreto de todos o~
meio~. A ideia que dcssa maneira alcaJl<;a 1nanifcstayiio na escullura é completamente ab!>tracta e nao entra cm relacyao alguma como histórico: o meio
atravé~ do qual se dá a ver é igualmente abstracto e. portanto. maior é a
probabiliclade de que a scc9ao das obras clássicas que engloba a escultura
apenas vcnha a reunir poucas obras. Nestc aspe<.:to, conto plenamente com
o testemunho do tempo e coma concordancia da experiencia. Se, ao invés.
eu tomar urna ideia concreta e um meio concreto, cntao. a questao mostra-se de mancira diferente. É assim certo que Homero é um poeta épico
clássico. mas exactamente porque a ideia que se dá a ver no épico é uma
11111111
qualqucr
92
1111
idcia concreta. e porque o meio
a linguagern, entño , é possívcl imaginar
várias obras na scccáo das obras clássicas que engloba o épico, as quais sao
todas igualmente clássicas, porque a historia continua a dispor de nova
matéria épica. Neste 1631 aspecto, conto rarnbém como testernunho da história e o assentirnento da experiencia.
Ora se cu fundamentar urna cornpartimentacáo neste cabalmente casual,
entáo, nao me podcm propriamente vir negar que se trata de algo de casual.
Ao invés, se quiserern censurar-me, entño, respondo que cometem um erro,
pois é justamente assim que deve ser. É casual que urna seccáo conte, ou
possa contar, com um maior número de obras do que a outra. Mas como
isto é casual, cntáo, é fácil de intcligir que era igualmente possívcl colocar
outra vez em lugar cimciro a classe que conta ou pode contar coma maioria das obras. Ora eu poderia reiterar o que anteriormente dissc e rerorquir
com toda a calma que, quanto a isso, tinha-se plenamente razño, mas que
por essc motivo a minha conscquéncia era de louvar ainda rnais, dado eu
ter pesto a seccño oposta cm lugar cimeiro intcirarnentc por acaso. Nao é
isto entretanto o que quero Iazer, ao invés, qucro invocar urna circunstancia
que fala em mcu favor, dcsignadamcnre, a circunstancia de as scccócs que
reúncm as ideias concretas nao sercm fechadas, e nao se deixarcrn assim
fechar. É por isso rnais natural dispor primciro as outras e, no que diz respcito as últimas, rnantcr semprc as portas aberras de par em par. Quiscsse
alguérn. por scu lado, dizcr que tal facto era urna irnperfeicáo, urna falta
para com essa prirneira clusse e. entáo, estaría a sair da esteira da minha
consideracáo. e nao posso atentar no que diz. por mais profundo que scja,
pois
ponto assente que tudo quanto
Lomado no essencial
igualmente
é
é
hh
mais abstracta, que pcnsávcl , é a da genialidade sensual 18• Mas atra\1., de que mcio é ela aprcsentávcl? Única e exclusivamente
através da
11111,1cn. Nao se deixa apresentar na escultura, visto que esta cm si mesma
1111111 cspécie de deterrninacáo da interioridade; também nao se dcixa pintar,
Vli'ilo que 1180 é possível captá-la com contornos definidos; a gcnialidade
Hl'1hual é urna forca, um tempo, impaciencia, paixño. etc., em todo o seu
lii is1110. de tal modo que nao ocorre todavía num único momento, mas numa
.11•·1.:s,iio de momentos, pols se ocorresse num único instante podía ser re¡11 oduzida ou pintada. O facto de acorrer numa sucessáo de momentos ex111 i111c o scu carácter épico, mas nño é todavía épico cm sentido mais rigoro•.o, visto uño estar tao dilatado que se concretizo cm palavras; movc-sc
l ontinuurnente
numa imediaticidadc. Na poesia, também nflo se dcixa pois
Hprcsenrar. O único meio capaz de a apresentar é a música. A música Lern cm
•.i. dcsignadamcnte, um momento ele tempo, mas nao decorre no tempo, a
11.m ser cm sentido figurado. Nao pode exprimir o histórico dentro do tempo.
/\ pcrf'cita unidadc entre esta idcia e a forma que lhe é corrcspondente
l'1trn11lra1110-la agora cm Don J11a11 de Mozart. Mas precisamente porque a
1<k'ia é t5o desmedidamente abstracta, cntao. o mcio também é abstracto e
1H:nhuma probabilidade existe de Mozart encontrar alguma vez un1 concor1c111c. O que há de feliz para Mozart éter ele encontrado urna matéria que
1.·rn si mesma é absolutamente musical, e houvesse um outro compositor ele
1 ivnlizar com Mo·tart c, cntao, nada mais lhc rcstaria fazer a nao ser compor
1)011 Juan outra vez.. Homero recebcu uma matéria épica pcrl'cita, mas é
po-;sível imaginar diversos poemas épicos, porque a história ofcrccc mais
niatéria épica. Nao acontece assim com Don Juan. Talvcz o que cu qucira
propriamente opinar seja rnais inteligível se eu mostrar a diferenc,:a a propósito de urna iclcia aparentada. O Fuust ele Goethe19 é. com tocia a proprie-
é
é
é
é
é
i11
é
é
pcrfeito.
Ora qual a ideia rnais abstracta? Aqui, a pergunta obviamente apenas
acerca ele uma icleia que possa ser objecto de tratamento artístico, e nao
acerca ele ideias que se prcstcrn a aprcsentacño científica. Qual dos meios é
o rnais abstracto? Respondcrei primeiro a esta última. É o rneio que mais
afastado estiver cla linguagcm.
Entretanto, antes de prosseguir com a resposta a esta pergunta, recordarci
que se mostra aquí urna circunstancia relativa ü solucáo final da minha tarefa. Nem scmpre o mcio mais abstracto Loma assim como objecto a ideia
mais abstracta. Assim acontece com o mcio utilizado pela arquitectura, o
qua! deceno o mais abstracto e, contudo, as ideias que alcancam manitestacáo na arquitectura nao sao ele tocio as rnais abstractas. A arquitectura estabelecc urna relacáo muito mais próxima com a história do que com a escultura, por exernplo. Voila aquí a mostrar-se a possibilidade de urna nova
escolha. Para a prirneira classe naquela hierarquía, posso escolhcr ou as
obras cujo meio o 1641 muis abstracto. ou aquelas cuja ideia é mais abstracta. No que a isto diz rcspeito, quero agora deter-rne na ideia e nao no meio.
dí: Villa
< >rn os rucios abstraeros ~iio tanto a arquitectura quanto a escultura, a
¡111J!111·u e a música. Nao este o lugar para levar mais longe este estudo. A
é
é
011. lJ111 1•1w•111l:11to
\
18 O termo é «sanliJl!ÍiM». cognato ao alcmuo «si11nlich»; corno este, designa aquilo
que cm gcral é pertell(,;a dos sentidos e clo clomínio tia sensa~ao; assim, o seu uso remete 1.imultaneamente para o campo da scnsibilidadc e da ~cnsualidadc. Ao longo do pre-.cnlc capítulo, «Sa11dse/ighed», cognato do alemao «.%mlic/1keit», é traduziclo por
«sensualidade».
Recorde-se que. parn Kant. a «Si1111/ichkei1>> é inclispcnsávcl
ao conhecimento. porque lhe rornece o 1>eu objecto. masé «cega» sem o trabalho da razao. Vd.
Kant. Kritik de1~Rt~i11en Vermmji [Crítica da Razao Pura l. Logik, Einleitung, 1 [Lógica.
lnlrodu~ao. 11, AA 111, p. 75. Em portugués: «Sem a sensibilidade, nenhum objecto nos
seria dacio: sem o cntendimento. ncnbum seria pensado. Pcnsamentos scm conteúdo sao
va.dos; intui\;oes sern conceitos sao cegas». in Crítica da Razüo Pura. tradu9ño de Manuela Pinto dos Santos e de Alcxandrc Fradique Morujao, introclu9ao e notas de Alexandre !"radique Morujao, Lisboa: Funcla9ao Calouste Gulbenkian. 1989. 2." cdi\;áo. p. 89.
L 9 Kicrkegaard utiliza abundamcntc citac;ocs directas e indirectas ele Goethe; ern Ou011. além de Fa11st, também a pe9a Clavigo (com a protagonisu1 Maric Bcaumarchais)
94
95
urna ideia histórica e, por isso, coda época
terá o seu Faust. Faust tem como meio a linguagcm, e
dadc, urna obra clássica;
mas
é
insigne da história
esta é um rneío muitíssimo mais concreto, e presta-se por este motivo a que
se imagine várias obras do mesmo tipo. Don Juan, ao invés, é e permanece
o único no seu género, no mesmo sentido em que as obras clássicas da escultura grega o sao. Mas sendo a ideia de Don Juan ainda 1651 mais abstracta do que aquela que serve de fundamento
escultura, é fácil de intcligir
que, enguanto a escultura tcrn multas obras, na música cncontra-sc apenas
urna única. Na música, é possível imaginar mu itas obras clássicas variadas,
mas resta apenas urna única obra, acerca da qua! se pode dizcr que contérn
urna idcia absolutamente musical, de tal modo que a música nao intervém
como acompanhamento. mas, na medida cm que rnanifesta a ideia, manifesta a sua mais íntima esséncia específica. Por isso. como seu Don Juan,
Mozart erguc-sc acirna ele todos aquclcs irnortais.
Contudo, desisto de toda esta invcstigacño. Está escrita apenas para apaixonados. t:: tal como urna enanca com pouco se alegra, também assirn
acontece. como é sabido, que urna coisa amiúde rnuiussimo cstranha pode
alegrar os apaixonados. É como urna calorosa disputa de amor sobre coisa
ncnhurna, e nao dcixu, contudo, de ter o seu valor - para os amantes.
Enquanto no precedente, através de todas as maneiras possíveis, fosscm
clas pensáveis ou impcnsáveis, se procurou Iazcr com que se reconheca que
o Don Juan de Mozart ocupa o primeiro lugar entre todas as obras clássicas, cm contrapartida, Ioi possível demonstrar, t5o bcm quanto qualquer
outro cnsaio. que esta obra é realmente um clássico, dado que os indícios
singulares, que aquí e ali se encontrarn, mostram exactamente, pelo facto
de só aparecerem como indfcios, que o propósito nao havia sido o de demonstrar, mas apenas o de iluminar incidentalmente. Esta condura podcria
parecer mais do que estranha. Demonstrar que Don Juan é urna obra clássica
no mais cstrito sentido, urna tarefa para o pensarncnto; ao invés, o
outro csforco, no que diz respeito ao domínio específico do pensarnento, é
totalmente despropositado. O movimento do pensamcnto tranquiliza-se por
ter reconhccido que se trata de urna obra clássica, bcm como por saber que
tocias as producñes clássicas sao igualmente pcrfeitas; o mais que se queira
lazer para o mal desse pensamcnto, Alias, todo o precedente está enredado numa autocontradicño, e fácilmente se dissolve em nada, o que entretanto
inteirarnente ceno, estando tuna contradicáo destas profundamente
fundamentada na naiurcza humana. A adrniracáo que há cm mim, a simpatía, a piedade, a enanca que há em rnirn , a mulher que há cm mim, exigiarn
a
é.
é
é
serve de fundamentacño 1t análise da mágoa no capítulo «Silhuetas». Para urna clcncagern exaustiva da utilizacño de Goethe em toda a producáo de Kierkegaard, vd. Car!
Reos, Kierkegaard og Goethe, Copcnhaga: Gads Forlag. 1955.
1111t11, do que o pcnsamcnto poderia ciar. O pensamento tranquilizara-se, e
¡HH1-.ava alegre no seu reconhecimento; dirigi-me entáo até ele e pedi-Ihe
l(lll' M' puscssc ern movirnento ainda urna vez mais para arriscar rudo por
J111lo. nic sabia bern que era em váo; mas como tenho por hábito manter
1 tw1 ele 11111 bom cntcndirncnto, nao me ofereccu afinal recusa alguma. Os
t'llN .novimcntos entretanto a nada conduziram; incitado por mim, conti11l1011 scmprc a elevar-se e a voltar scmpre a cair 1661 cm si mesmo. Conti1111uvn a procurar manter semprc o pé e nao o conseguía. continuava a
p1 ocurur o fundo, mas nem conseguía nadar, nem passar a vau20. Dava
1111110 para rir como para chorar. Fiz por isso ambas as coisas, e fiquei-lhe
ll••vcr~1s agradecido por nao me haver negado este servico. Ora apesar de eu
•.ulH.:r pcrfcitamcnte que de nada serve, fui todavía muito capaz ele me lemtunr de lhc pedir que jogassc ainda urna vez mais este jogo que é para mim
1111)(1 lontc incsgotávcl de alegria. Qualqucr lcitor que pcnsc que brincaré
1111111 macada nao é obviamente cá dos rncus, nao lhc atribuí qualqucr signil 1rar,;iio e, contudo, aplica-se aquí como ern toda a parte: as criancas parel'r<la.., brincarn melhor21. Para ele, tudo o que está dito atrás sao coisas supc1flu::1s, enquanro para mim tem tanta significac¡:ao que me pronuncio
~obre isso através de Horácio:
11
t?.xilis dn111us est, uhi 11n11et11111/ta
.wper.1·1111122;
pnra ele é uma loucura, para mimé sabecloria, para ele é tédio, para rnim é
1L·¡wí'.ijo e júbilo.
Um leitor dcst.c Lipo nao iria po·is simpati:t.ar coma lírica do rncu pcnsamcnto, que de tao extravasada ser extravasa o pcnsamcnto; em contrapartida. lalvez fosse suricientememc benévolo para dii'.cr: «Ora nao nos canse111os com isto, eu salto esta parte, e ve tu agora como consegues chcgar ao
que é bem mais importante: demonstrar que Don Juan é urna obra clássica». pois confesso que esta constituiria urna introduc¡:ao deveras adequada
para a investigayao propriamente dita. Deixarei por decidir até que ponto
:w Em
Temor e 'J'remor, a deseric;ao do propósito de de sile11tio em imitar o duplo
movimcntodo cavalcimda fééfcita nos mesmos termos. Vd. SVI. vol.111. p. 88.SKS,
vol. 4. pp. l32-133; na traduc;iio pottugucsa. p. 93.
21 Vd. nota 10 no capítulo «O Primeiro Amor», para a referencia do ditaclo que inspira
esta sentenc;a, a qual, por sua vez. faz eco da teorizac;iio de Fricdrich Schiller sobre o
jogo e sobre a rclevencia da actividade lúdica para a forrnac;ao do indivíduo.
22 Em latim no original: «pobre é a casa cm que nao sobra muito»; vd. Horácio, Epis10/arum, livro 1. 6, v. 45; edic;ao consultada pelo autor: Q. Horatii Flacci opera, Leipzig,
1828. p. 223; na traduc;ao de António Luiz de Scabra: «[ ... ] É pobre a casa I Onde muiln nao ha>>, in Satyras e epistola.v por (J11into Horado Flacco, traduzidas e annotadas
por António Luiz de Scabra, Porto: Casa de Cruz Couünho, J 846. p. 22.
1111
seria esta urna introducño
adequuda.
111a'> fico de novo co111 a inlclicidadc
simpatizar corn ele, pois , por mais fácil que me
também assim jamáis me ocorrcria todavía de-
de nao poder aqui voltar a
parccesse dernonstrá-lo,
monstrá-lo. Na medida em que eu, ao invés. continuo a prcssupor que a
coisa está decidida, o texto seguinte servirá para iluminar Don ./11011 mu itas
vczes e de mu itas manciras sob esta perspectiva, tal como o texto precedente já contém alguns indícios.
l
Aquilo a que esta invcstigacño prirnciramente se propós é a iarefa de
mostrar a significa9ao do erótico-musical e. com tal fim, evidenciar por seu
turno os diferentes estadios, os quais, rendo em cornum scrern todos eles
eróticos e imedintos, concordam cm simultaneo coma circunsráncia de, por
esséncia, scrern todos musicais. Dcvo única e simplcsmcnte a Mezan o que
tcnho a dizer sobre o assunto. Houvesse por isso um ou outro indivfduo de
ter a cortesía bastante para me dar razño 1671 naquilo que meu intento
aprcscnrar, mas que cm contrapartida houvesse ele ter algurnas dúvidas sobre o facto de isso se encontrar na música de Mozart, ou de nao ter sido
antes cu qucm neta pos tal coisa, cntüo, posso assegurar-Ihe que na música
de Mozart nao se encentra so a migulha que sou capaz de cxpor, mas infinitamente multo rnais: sirn, posso a. segurar-lhe que é precisamente este
pensamcnto a dar-me a ousadia do atrevirncnto de querer tentar explicar
cenas coisas da música rnozartiana. O que se amou com cxaltacáo juvenil,
o que se adrnirou com entusiasmo juvenil, o que se manteve na interioridade da alma ern misteriosa e enigmática companhia, o que se escondeu no
coracáo, ¡;~fo coisas de que nos acercamos sernprc corn urna cena timidez,
com seruirneruos mistos, quando se sabe que o propósito é querer comprecndé-Ias. O que se aprcndcu a conheccr peca a peca, como um pássaro
que para si recolhe qualquer tronquinho, mais contente com qualquer pequenina parte do que corn todo o resto do mundo. de coracño dividido, o
que o ouvido enamorado ubsorvcu cm solidño, sozinho entre a grande rnultidño, dcsaperccbido no seu esconderijo secreto. o que o ouvido insaciávcl
apreendeu, nunca saciado: o que o ouvido ávido, nunca confíame. cscondcu, aquilo cujo eco mais suave jamáis desiludiu a atencáo insone do ouvido perscnuador: o que se viveu durante odia e se rcviveu durante a noite,
o que afugentou o sono e o tornou agitado, aquilo corn que se sonhou durante o sono, o que nos fez acordar para acordados voltarrnos a sonhar, o
que nos fez saltar da cama a meio da noitc 110 temor de o csqueccr, o que
nos mais entusiasmados instantes se mostrou a qualquer um. o que se tem
sernpre ~1 rnáo como se fosse lavor íerninino; o que nos seguiu cm noites
iluminadas pela Lua, em florestas sclitárias nas rnargens do lago. nas ruas ·
é
011 U111l1,1~•mc111111k
i)7
\ ul.1
a mero da noitc, ao romper da aurora. o que montou connosco o
.,
11
10
cava
lo. o que loi companheiro de carruagern, aquilo de que a casa
1rn
l 1l uu unprcgnada. o que o quarto prescnciou, o que no ouvido ~e r~perc~1IH1 o que na alma rcssoou, o que a alma entrctcceu na sua mais fina teia
nulo ivto ve rnosira agora no pcnsarncnto , sernclhanca dcsscs seres
t 111g111ali<.:os das histórias de tempos idos subindo do fundo ~o~ mares re\c.,t1do., de algas. tudo isla emerge assim do mar da rccordacáo cntrancado
111111 lcmbrancas. A alma fica nostálgica e o coracáo embrandecido, pois é
1 rn110 se alguém se clcspedisse daquilo ele que se está separado para nunca
111,11., haver cncontro ncm no tempo, nem na etcrnidade. Parece que se lhe
1• 111l rcl , que se rornpcu o pacto, scnic-sc que nao se é mais o 1681 mesmo,
111.11, 1fio jovcm, ncm tifo infantil: teme-se por si mesmo, teme-se perder
m¡tnlo que tomou um individue alegre. feliz e rico: teme-se pelo que !.C
.i111a. terne-se que vcnha a sofrcr com esta transformacáo, mostrando-se
prn ventura menos perfeito. ficando sem respo'>I~~ para as muit<~s pcrgu1~tas.
,111. e tudo fica cntiío perdido, desaparece a magta e nunca mat~ podcra ser
rn11vocada. Ora no que cli7, rcspeito
música de Mozart, a minha alma
nu:do 11cnhum conhcce. e a minha confian9a. limite nenhum. Em parte.
dl",1gnadamente, aquilo que a1é agora cu entendí; é apenas mui1í~simo pm~to. c resta sempre o bastante para se esconder nas sombras do presscn11ml.'111o: e, cm parte. C\IOu convencido de que se. para mim, Mm.art o:;c tor11as~l! alguma ve1, completamente conccbível para mim, torm1r-~e-ia ent5o
para mim tlio-só perfci1a.mcnle inconcebível.
Afirmar que o cri.,tianismo introdu1iu a !>ensua.lidade no mundo parece
~cr um atrcvimento audaz. Mas como é costumc di1er-se, audácia e atrcviml'nto oarantem mcia vitória23• ent5o, trunbém aquí é aplicável. o que é
1111eligfvd quando se pondera que, ao supor urna coisa, supoe-se indir~c1a111c11tc uma outra que se excluí. Dacio que o !>ensual é geralmente aquilo
que há-de ser negado. só rica realmente a vista, só é suposto. atr~vés ~o
acto que o cxclui por via de !>e supor o positivo contrário. Como pnncfp10,
wmo rorc,:a e como sistema cm si. a sensualidade é inicialmente suposta
pelo cristianismo. e nesta medida o cristianismo introdu:riu a scnsualidad_e
no mundo. Quando entretanto se quer entender correctamente a proposi\·5o «O cristianismo introduziu a sensualidade no mundo», esta tem de ser
concebida ele modo iclcntico ao seu contrário. i. e .. o cristianismo expuhou
a sensualidade do mundo, excluiu a sensualidade do mundo. Como princípio. como for9a e como sistema, a scnsualidadc é suposta só pelo cristia,111111>1 i;1.,,
a
a
23 Optou-se pela tradur;ao literal do ditado «ririsri¡¡ v<wer halvf fer/ vw1d~t>>." na t:1~n?i~
la<;ao de N. r. S. Grundtvig. Ow1vke Orcl.\¡Jrog og Mundheld [Provérb1os e Ad~gms
Dinamarqucsc l. Copcnhaga. 1845. n." 2941, p. 112; com 11~0 semelhante ao d11ado
portugues «quem mais alto sonha, mais airo voa».
98
nismo: eu poderla juntar a inda urna dctcrnunacao
que tal ver movtre a
minha opiniño com rnaior énfasc: a scnsualidade
suposta pelo crixriauis
mo sob a determinacáo do espírito. Isto é inteiramcnte
ébvio , j:í que o
cristianismo é espfrito e o espirito o princípio positivo que ele introduziu
no mundo. Mas na medida cm que a scnsualidade
vista soba determina9ao do cspírito, cntáo, a sua significacño é vista como senclo aquilo que
há-dc ser cxcluído: mas precisamente por isso, pelo facto ele havcr de ser
excluida, c~tá determinada corno principio, como poder, pois aquilo que o
espirito, que é ele mesmo principio, há-de excluir tem de ser algo que se
mostrc como princípio , ncm que apenas se mostrc como princípio no instanto em que for cxcluíclo. Afirmar que a sensualidade já existía no mundo
antes do cristianismo seria obviamente 1691 urna objeccáo muitíssimo tola
minha idcia, dado que daí resultaría, com efcito. que aquilo que há-de ser
excluido existe scmprc antes daquilo que o excluí. se bern que neutro sentido venha existcncia24 na medida cm que é cxcluído. Tal dccorrc novamente do facto de vir existencia num outro sentido c. por isso mesmo.
rarnbérn eu disse desde logo que audacia e atrcvimcnto garantern meia
é
é
é
a
a
a
vitoria.
Portante. deceno que a sensualidade j{i antes existía no mundo, mas nao
esta va espiritualmente determinada. Como existía ela, cntáo? Existía determinada animicamcntc. Assim acontcccu no paganismo. e se se quiscr procurar a expressáo muis perfeita para tal, assim era a senxuulidadc na Grécia.
Mas a sensualidade determinada anirnicarnente nao é contradicño. cxclusao,
antes harmonía e consonancia. Mas precisamente pelo facto de a
scnsualidade ser suposia como estando harmoniosamcntc determinada. nao
é suposta como princfpio, mas antes como urn enclitiron cónsono.
Esla obscrvacño tcrá significacño para iluminar as diferentes figuras que
o erótico assume cm varias etapas de dcscnvolvimcnto da consciencia do
mundo, e conduzir-nos-á utravés delas 11 determinacño do erótico irncdiato
como idéntico ao erótico-musical. No helenismo, a sensualidade esta va dominada na i nd ividual idacle bel a. ou rnelhor, nao era dom inada, j{i que nño se
tratava efectivamente de um inimigo que houvcsse ele ser subjugado, ou de
um pcrigoso insurrecto que houvc: se de ser mantido em respeito, era deixada cm libcrdadc para ter vida e alegria na indiviclualicladc bcla.A scnsualidadc nao cstava assirn suposta como princípio: o anímico, constitutivo da
individualidade befa, era impensável sem o sensual; por csse motivo, o eróé
24 No original «.bli.1'<'1· til». O verbo «blive»: na construcáo com «til»; pode significar
«nascer», «consuunr-se» ou «devir (alguma coisa)»: na presente traducño, «blivo til»
traduzido por «vir ii existencia». para denotar cxprcssarncntc a passagcm de nao-existir
ao existir. Para traduzir o substantivo «'11/blivelse» optou-se por utilizar o verbo na sua
forma substantivada. i. C .. «O vira exi tcncia».
trrn 1 undudo no vcnsual rambcm uño esta va suposto como princípio. O
1111101 ·~ cstuva presente cm todo o lado como momento e. de um modo mo11w11tanco. na individualidadc
bcla. Os deuses, nao menos do que os ho11tL'n'>, conhcciam o xcu poder. os dcuses, nao menos do que os homens.
l n11ltcc¡¡1111 historias
de amor felizes e inlclizes. Entretanto. cm nenhurna
dl'la.., csrcve o amor presente como principio e, conquanro nclas cstivesse
prcxcntc, no indivíduo singular, era como se fosse urn momento da torca
universal do amor, o qual nao eslava entretanto presente em parte alguma e.
por convcguimc, ncrn scquer na imaginacáo grcga, ou na consciencia grega.
/\lguém poderla levantar-me a objeccño de que Eros era ele facto o dcus do
.1111or c. portante. tcria de imaginar-se nele a prcsenca do amor como princípro. Ora purtindo de que. no entamo, o amor nao voila a repousar aquí sobre
o L'l'ÓI ico. como se esti vcsse unicamcnte baseado no sensual, antes rcpousando no anímico. cntao, há simultancamente uma outra circunstancia que
1wrrnancce ainda por 170! assinalar. a qual irci agora destacar com maior
pormenor. Ero'> era o dcus do amor. ma-; ele próprio nao estava apaixonado.
/\111da que os rcl.Wntcs dcuscs ou homcns encontras.,em vestígios do poder
do amor cm si mesmos. atribuíam-no a Eros. imput:ivam-lho, mas Eros, ele
1111.::-.mo, nao . e apaixonava; e a inda que tal lhc tenha acontecido uma vc1.•
1 ratara-sc. cntüo. de urna cxcep¡;ao e, embora fosse o deus do amor, licava
lwm atrás do· outros dcuses e dos homcn'i quanto ao número de aventuras2".
()11c ele se apaixonou. também pode nisso ficar muito bem cxpresso como
de \C curvou igualmente diante do poder universal do amor, o qual se tor11ou, de algum modo. um poder fora dele próprio e. scndo dele agorn afastado, mal cncontrnva agora alg,um lugar onde pudcssc sl!r procurado. O amor
de Eros também nao tcm por hase o :-.ensual. ma~ antes o anímico. É uma
idcia genuinamente grcga nao estar o próprio dcu~ do amor apaixonado. ao
pa~so que todos oc; outros lhe dcvem o facto de estarcm apaixonados. Se cu
1111agina~se um dem, ou urna dcusa para o anseio. entao, i.eria urna idcia
g.cnuinaml!ntc grcga que, enquanto todos aqueles que conhecessem o doce
<.lesas os... cgo ou a dor do anseio imputá-lo-iam a e~se ser. esse me. mo ser
nada conhecessc do anseio. Nao conhe<,:o manl!ira mais próxima de designar
o que há de assinalávcl nesta rela9ao do que di1.cr que é o inver'io de urna
rcla<;ao representativa. Na rela<;:ao representativa, toda a for<,:a está reunida
num indivíduo singular, e os indivíduos singulares participam ncla, porquanto participam nes. es movimentOf, ~ingulm·es. Também pocleria acresccntar que esta rcla9ao é o inverso daquela que est(i no fundamento da incama\:ao. Na incarna<rao. o individuo ~ingular contém em si toda a plenitudc
é
:?.5 Toda' a~ ocorrcncias de «amor». a partir <leste ponto. corrcspondcm no original a
«l:.l~k01'». salvo indicac;ao cm contr:írio.
26 Eros apaixonou se por Pi-.iquc: vd. nota 58 no capítulo «Diapsalmata».
1 ()()
101
da vida, senclo que. para os demais indivfduos. é apenas aquilo .uruvés do
qua! contcmplam o indivícluo incarnado. Na relacáo grcga, passava-sc pois
de rnaneira inversa. O que consritui a forca dos deuscs nao se encentra nos
deuses, mas sim nos demais individuos, que lho irnputam: ele proprio fica
como que desvigorado, impotente, porque comunica essa torca a todo o
resto do mundo. O indivíduo incarnado como que suga a forca de todos os
restantes e, assirn, a plcnitucle cnconrra-se pois ncste inclivícluo e, quando
muito, apenas nos curros que a contemplarern ncsse indivíduo. lsto revestc-se de importancia no que diz respeito aoque adiante se dirá, tal como, cm
si e para si, tern significacáo no que diz respeito as categorías que a consciencia universal utiliza ern diferentes épocas. Por conscguinte, no helenismo.
nao encontramos a scnsualidade enguanto princípio, tambérn nao encontramos o erótico como princípio bascado na scnsualidade como princípio, e
mesmo que o tivésscrnos encontrado, vemos. no entamo. que da máxima
importancia para este cstudo que a consciencia grcga 17 J l nao tenha a torca
de concentrar o todo num único indivíduo. antes ra~a irradiar o todo de um
ponto. que nao o tcm, na direccáo de lodos os curros, de tal modo que essc
ponto consthuintc quase se torna reconhccívcl por ser o único que nao tcrn
aquilo que dá a todos os outros.
A scnsualidade como principio foi, portante, suposta como princípio
pelo cristianismo, tal como aconreccu com o erótico sensual como princípio: a ideia da rcprescuracño-" foi inrroduzida no mundo pelo cristianismo.
Ora se eu imaginar o erótico-sensual corno princípio, como torca, como
domínio. determinado pelo espirito, ou seja, determinado ele tal modo que
o cspírito o cxclui, imagino-o concentrado num único indivícluo, e obtcnho
assim o conceito de genialidade erótico-sensual. Esta
urna ideia que o
helenismo nao tinha, que só foi introduzida no mundo pelo cristianismo, se
bcrn que apenas cm sentido indirecto.
Ora. se esta gcnialidadc erótico-sensual. corn toda a sua imediaucidadc,
exige urna exprcssáo, cntáo. cabe perguntar qual o mcio rnais apropriado
para o Iazer. O que aqui terá especialmente de se reter é o facto de a geniaIidadc exigir ser exprcssa e apresentada na sua imediaticidadc. Na sua
rnediatez e rcflexividade no outro, entra no dominio da linguagern e acaba
por ficar sob determinacñcs éticas. Na sua irnediaticidade, a genialidade
erótico-sensual só pode ser cxpressa na música. A este respcito. tenho de
pedir ao lcitor que recordc o que Iicou dito sobre o assunto na introducño
insipiente. A significacño da música mostra-se aína sua plena validade e.
cm sentido mais estrilo. mostra-se como urna arte crista ou. dito melhor,
rnostra-sc como a arte que o cristianismo estipula ao excluí-la de si mesmo.
na qualidade de meio para aquilo que o cristianismo expulsa ele si mesmo
é
é
é
27 Aqui. «Reprtrsentation»,
, dcs~i.: modo estipula. Por curras palavras. a música
o demoníaco. Na
IH urulidadc erótico-musical.
a música tcm o scu objecto absoluto. Ora é
uhvio que corn isto nao Iicará dito de modo algum que a música na.o pode
, xprimir curras corsas. mas este é o seu objecto propriamente dito. A arte
¡;srult6rica pode assim representar muito mais do que a beleza humana,
111111' para esta arte é este, contudo, o seu objecto absoluto: e a pintura pode
l l presentar muiro mais do que a beleza divina
transfigurada, mas, para a
~1111ura,
este,
contudo,
o
seu
objecto
absoluto.
A
este respcito, importa ver
1
11 l onccito cm cada arte e nao ficar perturbado pelo que ela pode fazer para
ult•111 disso. O conceito de homem
espirito e ninguém deve dcixar-se per1111 bar lú porque ele, aliás, tarnbérn anda corn duas pernas. Q_ conceito da
li11g11ag.cm
pcnsarnento, e ninguérn eleve deixar-se perturbar pelo facto de
11lg11m:1s pessoas scnsíveis 1721 opinarcrn que a significacño mais profunda
d11 linguagern
produzir sons inarticulados.
Pcrrnitam-mc aquí novamente um pcqucno interlúdio insipiente; praite11•o ce11seo28, Motar!
o maior entre todos os autores clássicos e o scu Don
.111011 merece o prirnciro lugar entre todas as producócs clássicas.
Ora no tocante a música como rncio.
óbvio que tal continua a ser sernpre urna questño muitíssimo inreressantc. Continua a ser urna ourra questño
saber se eu reúno condicócs para dizer algurna coisa satisfatória sobre isso.
l.ici muito bem que nao sou entendido em música, e de boa vontacle admito
(¡uc sou leigo, nao escondo que nao pcrten\(O a tribo escolhicla dos entendidos cm música, e sou no máximo um pros~lito junto ao po11iio29, tralido ele
longc até aquí por um impulso estranhamcntc irresistívcl. porém, nao mais
para além clisso; mas apesar disso, era todavia possívcl que a migalha que
L'll tinha para dizer contivcsse um comentário singular. o qual, deparando
mm boa vontade e indulgencia. provasse conter alguma vcrclade, se bem
que escondida debaixo de uma vestimenta pobre. Eu estou l'ora da música
e observo-a a parür dest.e ponto ele vista. Admito de boa vontadc que este
ponto de vista é muitíssimo impcrfcito; nao nego que consigo ver pouquíssimo cm comparar,:fío com os fclizcs que estao por dentro du música, mas
conlinuo todavía a ter esperan<;a de ser capaz de comunicar um csclarecimenlo singular a partir do meu ponlo de vista, embora os iniciados pudcssem fazG-lo muito melhor. e até entender ainda muito melhor o que eu digo.
até certo ponto. melhor do que eu próprio. Se eu imaginasse dois reinos que
estabelecessem fronteira um como outro, e um deles me fosse conhecido e
é
é
é
é
é
é
é
28 Em latim 110 original: «coni;idero além do mnis».
29 Na antiga Judeia. lrnvia dois tipos de prosélitos. o prosélito justo. que se convertera
ao judaísmo e observa va todos os seus prcccitos, e o prosélito do portiio. o qua! vivia
ainda como estrangeiro na Judcia, emhora observasse alguns dos scus costumes, podendo seguir O ritual a distancia, 110 templo, junto a l)Ofta.
'1
1
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103
102
( 111
corn bastante rigor, mas o curro me fosse totalmente dcsconhccido e M~, por
mais que cu dcsejasse tal coisa, me tivesse sido vedada a entrada naquclc
reino desconhccido, entño, eu seria todavia capaz ele produzir cm mim urna
representacáo desse reino. Ia andando até as fronteiras do reino mcu conhecido, seguía sempre pela fronteira e, enquanto fazia isto, dcscrcvcria com
este movirnento o contorno daquele país desconhecido, obtendo urna rcprcsentacáo geral, apesar ele nunca lá ter poste os pés. Ora se este fossc um
trabalho que me ocupassc bastante. se cu Iossc iuíatigavclmcntc mcticuloso, também por vczes poderla até vir muito bem a acontecer, estando eu
nostálgico na frontcira do mcu reino a lancar um olhar de anseio sobre
aquele país dcsconhccido, o qual me era tilo próximo e, porém, tao distante,
que me caíssc em serte urna pequena e singular 1731 manifestacáo. E se bem
que eu sinra que a música é urna arte que exige experiencia cm alto gran
para que dela se chcguc a poder formar justificadamente urna opiniño, cntño. volto a consolar-me, como tantas vczcs, corn o paradoxo que consiste
cm tambérn se conseguir obtcr urna cspécic de experiencia no prcssentimento e no dcsconhccimcnto:
consolo-rne com o facto de Diana30, que
nunca dcu a luz, ter vindo em socorro das parturientes, possuindo mesmo
cssc dom inato de parteira desde enanca, visto haver sido ela quern ajudou
Larona nas dores de parto, aquando do nascimento da propria Diana.
O reino rneu conheciclo. cujas frontciras mais extremas qucro explorar
para descobrir a música, a linguagern. Se se quisesse ordenar os diferentes
mcios segundo um determinado processo ele desenvolvimento, entáo, seríamos obrigados a colocar a linguagern e a música rnais perro urna da outra,
e por isso que tarnbém se diz que a música 6 urna linguagcrn. o que é
multo mais cloque urna obscrvacáo plena de espíritu. Quando. designadamente, se tern dese jo de ser levado pela cspirituosidadc, en tao. podía dizcr-se que a escultura e a pintura sao urna espécie de Iinguagern, dado em
conta que qualqucr cxprcssño de urna ideia urna Iinguagem, sendo que a
esséncia da ideia a linguagem. Por isso, as gentes espirituosas falam da
linguagem da natureza e os padres piegas abrern por vezes o livro da natureza e Iéem-nos qualquer coisa, que nem mesmo eles. nern os respectivos
ouvintes, entcndem. Se nao se obtivcssc mclhor resultado dcssc comentario
a nao ser que a música é urna linguagcm, ncm scqucr me incomodaría corn
ele. antes cleixava que ficasse cm claro e tossc lomado por aquilo que era.
Mas nao assim que entretanto se passa. Só quando o espírito está suposto
a linguagcm
investida nos seus direitos; porérn, quando o espírito está
suposto, Lucio quanto nao espírito excluído. Mas esta exclusáo é determinacáo do espirito e. portante, tendo em canta que a expulsáo fará com
q11c• scjn aplicávcl, exige uru meio ele cxpressáo que estcja determinado~~¡111 nualmcntc: este mcio é a música. Mas um mero detennu~ado pelo .e~p111lt1 e por cssencia íinguagcm; ora como a música
determinada espiritual11w111c é com tocio o direito chamada de linguagem.
Enquanto meio de cxpressáo, a linguagem
considerada o meio e~piri111111 mente determinado cm absoluto; por isso, a Iinguagem
o mero ele
t•xprcs-;1ío das idcias propriamente dito. Nem da minha competencia, ncm
do intercssc dcstc pequcno cstudo , aprofundar o dcscnvolvimcnto
desea
nuuéria. Encentra aqui lugar apenas um único comentário que me conduz
di: voila a música. Na linguagem, o sensual. enqLtat1to meio. está assim rcduí'ido a mero instrumento e é continuamente negado. Nao acontece assim
uim os outros rneios de expressao. Seja na escultura. seja na pintura, o
i-.i.;nsual nao é 1741 um mero instnunento. é antes uma parte que pcrtencc ao
t onjunto. e tamhém nao dcvc ser continuamente
negad?· porque dev.c ser
i-.i.;inprc visto conjuntarncntc. Seria uma observa9~0 particularmente ?1storcida acerca de uma escultura ou de uma pintura, se cu fosse observa-la de
ial forma que me desse ao trabalho ele por de parte o sensual: indo assim
a11ulnr por completo a respectiva bele7.a. Na escultura, 1~a ~rqu~tcctura ~na
pintura. a ideia está ligada ao meio, mas o facto ele a 1deia nao rcduzir o
1ncio a mero instrumento. o facto de niío o negar continuamente. é como se
fos'>c uma cxpri.;ssao parn clizer que este meio nao é capuz de falar. Tarnbém
;1s~im acontece na narure1.a. Por isso se diz com todo o clireilo que a naturcza. e a arquitectura. e a escultura e a pintura sao mudas; di:t~c;e .isto eco~
todo 0 direito, apesar ele todos os ouviclos apurados e sens1ve1s que sao
1.:apazes de as ouvir falar. Por isso, é uma tolice afirmar que a na~ureza é
11ma linguagern, e h:.í tanta vcrdade quanlo h{i inépcia, quand~ se d1z que o
mudo fala, visto que nem scquer é urna linguagem no sentido em que a
linguagem gestual é. Ao invés, assim nao acontece com a linguagem. O
sensual é reduzido a mero instrumento e, como tal. relevado. Se um homcm
falasse de modo a que se ouvissc o cstalar da língua. cte., entao. estaría a
falar mal: se alguém ouvisse de rno<lo a ouvir vibra<¡:ües no ar: em vez de
palavras, entao, estaria a ouvir mal; se um indiví<luo 1~,sse u1_n l1vro de m~do a fixar cada urna das letras, entao, estaría a ler mal . .E precmunentc cntao
que a linguagem é o meio perfeito, quando todo o sc1~sual é ncla negado.
Tamhém assim acontece com a música: o que é propnamente para ser ouvido liberta-se continuamente do sensual. Que a música, enquanto meio de
cxpressao, nao está a mesma altura da linguagcm, já foi an~eriorrnent.e recordado e, por isso, também eu clisse que a música era urna hnguagem num
certo sentido.
A linguagem di.rige.~e ao • .QJlVido. Nenhum outro meio fa.z o 1~~smo.
o ouvido é por seu turno o sentido que está determinado mais espintualmente. Estou em crer que a maioria das pessoas concordará comigo; se
é
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é
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é
30 Na mitologia romana, Diana era a densa da caca. Ja Lua e dos partos. tal como
Árternis
na
mitología grcga.
Ou.
lJ111
l•1'1\g11u.:1110
de
id11
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é
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(
104
alguérn deseja esclarecirnentos
adiciona is. sugiro-lhc que consulte o prcfácio de «Karrikaturen des Heitigsren» de Srcffcns ". Além da Iinguagcrn, a
música o único meio que se dirige ao ouvido. Reside aquí de novo urna
analogía e urna preva do sentido no qual a música é urna linguagcm. Há
mu ita coisa na natureza que se dirige ao ouvido, mas o que atingc o ouvido
é aquilo que é puramente sensual e, portanto, a naturcza é muda; e urna
fantasía caricata ouvir-se algo, porque se ouve uma vaca a mugir ou, o que
tal vez fossc prerensáo maior, um rouxinol a cantar; urna fantasia ouvir-se
algo, é urna fanrasia urna coisa ter mais valor do que a curra, porque tanto
faz urna como a outra.
1751 A linguagem tcm o seu elemento no tempo, todos os restantes mcios
rérn o espaco como elemento. Portante, só a música progride no tempo:
Mas o facto de progredir no tempo é por sua vez urna negacño do sensual.
O que as restantes artes produzcm deixa entrever a respectiva sensual idade
justamente através do seu subsistir no cspaco. Ora há por seu turno muira
coisa na naturcza que progride no tempo. Por excrnplo, quando um ribciro
murmura, continuamente murmurando, parece existir aí urna dctcrminacáo
temporal. No entamo, isso nífo é assim, e conquanro haja alguérn que acabe
por aceitar que dcvc estar aqui presente urna dctcrminacño do tempo. entáo
devcrá dizer-se que ussirn é, sondo que é, contudo, determinada espacialmente. A música náo existe para alérn do instante em que é exccutada, e
mesmo que alguém até soubcssc lcr rnuito bern partituras e tivesse urna
imaginacño suficientemente vívida, ncm sequcr poderla negar que a música, cnquanto licia. existe apenas cm sentido figurado. Existe propriamcnte apenas quando é executada. Tal poderla parecer urna irnperfeicáo desta
arte em comparacño como conjunto das outras artes, cujas producñes subsistern de mancira permanente. porque tóm o seu subsistir no sensual. E
contudo, nao é assim. Trata-se antes de urna preva de que a música
urna
arte mais elevada, mais espiritual.
Ora se eu partir da linguagem c. por intermedio de um rnovirnento ele
penetracüo, se eu cscutar de certo modo a música que dela sai, entño, o
assunto afigura-sc mais ou menos assirn. Se eu admitir que a prosa é a
forma da linguagem que mais afusrada está da música. cntáo, já observo no
discurso oratório, na construcáo sonora dos períodos, urna toada do musical
que emerge cada vez rnais forte através de patarnares diferentes no discurso
poético, na construcáo do verso, na rima, até que por íim o musical se desenvolveu tanto que a linguagern ccssa e tudo passa a ser música. Esta.é,
é
é
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31 Caricaturendes Heiligsten [Caricatura do Sagrado]. vols. 1-11, Lcipzig, 1819-182 l.
obra de Heinrich Steffens (1773-1845). poeta e filósofo alernáo; vd. Einleitung [Introdueño], vol. II, pp. 82-120, onde o autor analisa as Jiga~oes entre a música e a linguagern, considerando o ouvido como o sentido mais espiritual.
105
cxprcssuo favorita usada pelos poetas para denotar que de certa forma
a idcia, ;1 idcia desaparece diante deles, e lucio acaba em música.
l 'odcria aqui parecer que a música
urn meio ainda mais perfeito do que a
l111! uugem.
No cntanto. este
um desses rnaus entendimentos langorosos
que '>Ó nascem de cabecas ocas. Que se trata ele urn rnau entendimento,
volta a ser adiante demonsrrado; limitar-me-ei aqui a chamar a atencáo
pnrn a ussinalávcl circunstancia de deparar outra vez coma música, dcsiguudamcntc através de um movirnento em sentido oposro, dcsignadarncnte
qunudo deseo da prosa penetrada pelo conccito até chcgar as interjeicóes,
u~ quais sao por scu turno musicais, tal como por sua vez os primeiros
bnlbucios da enanca sao efectivamente 1761 musicais. No entanto, nao cabe
uqui ccrtarncntc discutir se a música
um meio rnais pcrfeito do que a
linguagern, ou se a música
um meio rnais rico do que a linguagem, a
111c11os que se admita que dizer «uhm» tem mais valor do que um pensa1nc1110 acabado. Mas concluir-se-á daqui que, onde quer que a linguagcm
ccssa , cu encontro o musical? Entretanto, esta pode hem ser a cxprcssño
muis perfeita para dizer que a música fa7. fronlcira com a linguagcm onde
qucr que seja. Daqui se deprccnclc simultaneamcntc como isso se encadeia
l'11111 o mau cntenclimento
que consiste cm fazcr da música uro mcio mais
1 ico do que a 1 inguagcm.
Na medida cm que a linguagem cessa, a música
<'omcc;a, nu medida em que ludo é musical, como é uso dizer-se, eorao, n?ío
v:ii para a frente, mas sim para trás. Daqui se conclui que eu, e t.ulvez também os entendidos me dcem ra1ao ncstc ponto, nunca senli simpat.ia pela
música sublime da qual se opina nao t.t!r nt!cessidade da paJavra. Em regra,
opina-se que é, designadamente, superior a palavra, embora seja inferior.
Ora alguém podia decerto levantar-me a seguinte objecc;:ao: se é verdade
que a linguagcm é um meio mais rico do que a música, entao. é inconcebívcl que esteja ligada a uma tao grande dificuldade para se discorrcr do
ponto de vista estético sobre o musical: é inconcehível que a linguagem
aqui se mostre semprc como um meio rnais pobre do que a música. No
cntanto, nem isto é inconccbível, nem é inexplicávcl. A música exprime
semprc, designadamcnte, o imcdiato na sua imcdiaticidade; conclui-se daqui tambérn que, em rela<,:í.ío a linguagem, a música se mostrado princípio
ao fim, mas torna-se igualmente inteligível que é um mau entendimento
dizer-se que a música é um meio mais perfeito. Na linguagem reside a re11exao e, por isso, a linguagem nao pode enunciar o imediato. A reflexao
mata o imediato e, por isso, é impossível enunciar o imediato na linguagem,
mas·'esta aparente pobreza da linguagem é precisamente a sua riqueza. O
imediato é, designadamente, o indeterminável e, por isso, a linguagem nao
pode concebé-lo; mas o facto de ser isso o indetcnninável nao é perfei<;ao
sua, é antes falta dela, o que é indirectamente reconhecível de muitas maneiras. Assim, e apenas p¡¡ra introduzir um exemplo, diz-se: «nao sei pro1111111
rcuunciam
é
1
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é
107
1 ()()
priarncnre adiantar porque Iaco cu isro ou aquilo tiesta ou duqucla mancira,
faco-o de ouvido». Utiliza-se arniúdc, para coisav que 11:::ío térn rclacño al
guma com o mu ical, urna cxpressáo retirada da música, mas que designa
ao mesmo tempo o obscuro, o inexplicável, o imcdiato.
Ora se o imcdiato determinado espiritualmente é aquilo que propriumcnte chega a ter cxpressño na música, cntño, pode voltar a pcrguntar-se mais
rigorosamcntc 1771 de que cspécie é o imediato que em esséncia. o objecto da música. O imcdiaio determinado espirirualmente pode estar: ou determinado de modo a cair sob a aleada do espírito12, poclcndo deceno encontrar a sua expressáo no musical. mas esse imcdiato nao pode todavía ser o
objecto absoluto da música. visto que. quando e.;,tá determinado de modo a
cair na aleada do espirito. cntño. denota-se por essa vía que a música está
num domínio alheio, criando um prclúdio que é continuamente relevado;
uo invés, S\.: o imediato está determinado espiritualmente. determinado de
modo a cair rora da aleada do espirito, cntño, a música tern aquí o seu objecto absoluto. Para o primeiro imcdiato, é incsscncial que csteja exprcsso
na música, no passo que lhc é csscncinl tornar-se cspírlto e, portante, estar
cxprcsso na linguagcm; para o segundo, é csscncial estar cxpresso na música, só aí pode ser cxprcsso, nao pode ser cxprcsso na linguagem. visto que
c<.,tá determinado espiritualmente ele modo a ficar tora <lo espirito e. por
conscguintc, lora da linguagem. Mas o irnediato que assirn rica cxclufdo do
cspíruo a irncdiaticidadc sensual. a qua! pcrtence ao cristianismo e tcrn na
música o seu mcio absoluto, e torna-se também assim cxplicável o facto de
na Aruiguidadc a música nño ter sido propriarnentc dcscnvolvida+'. pe11e11ccndo antes ao mundo cristño. t\ imcdiaticidadc
entño o rneio para o
irnediato. o qual, determinado espiritualmente. é determinado de modo a
ficar fora do espirito. É óbvio que a música pode exprimir rnuitas curras
coisas, mas este o scu objecto absoluto. Tambérn
simples de observar
como a música é um mcio mais sensual do que a linguagcrn. dado que, na
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32 Neste Pª·""º· os editores de SKS scgucrn o texto da segunda cdicño de Enten-Eller, em
detrimento de outra estrururacño sintáctica constante da primeira edicílo. na qual a disjunt;iio está desde logo expressn no início do período: «0 imcdiato determinado espiritualmente pode estar determinado ou de modo a cair sob a aleada do cspfrito ou de modo a
cair tora da aleada do espfrito. Quando o imcdiato determinado espiritualmente e!>UÍ determinado de modo a cair sob a aleada do cspírito, pode 1 ... [»: vd. SV 1. vol. I. p. 52.
33 ldcia originalmente avancadn por E. T. A. l loffmaun ( 1776-1822) no seminal ensaio
/:Je(!th01·e11.1 Instrumental-Musik 1 A Música Instrumenta I de Beethovcn], de 1813-1814,
cuja vcrsño preliminar havia sido publicada cm 1810 como rcccnsño a Quinta Si11.J(111ia
de Beethovcn: Hoffmann provsegue este curso de idciax cm A/te 1111d 11e11e Kirche1111111si~
[Amiga e Moderna Música Sacra] de 1814; vd. E. T. A. Hoffmanns ausgewdhlte \Verke
infiin] Bii11de11. cdicao de Martin Hürli11111n11. vols. 1-V, Zurique: Atlantis Verlag, 1956:
vol. 1, Autobiographische,uuisikalische 1111d vermisclue Schrifteu [Esenios Autobiográficos e Musicais e de Índole Véria], pp. 422-433.
111111-icu. se coleen de 1:1c.:10 muito mai:-. peso na vibracño sensual do que na
l 1111' ll!l!'C 111
\ pcmuhdadc sensual é pois o objecto absoluto da música. A genialidade
t111 ..,l·n..,ual e absolutamente lírica e cxplodc na música corn toda a sua irn¡ 111t'1l·11ci:r lírica: está, dcsignadurncntc, determinada espiritualmente e por
''"" e íorcu. vida. movirncnto, permanente dcsassosscgo, permanente su11.
max este dcsassovscgo. esta succssáo. nao a cnriqucccm, cla pcrma111.·rc constantemente a mesma. nao se desdobra, antes irrompe explosiva1111.•1111.: como num só folcgo. Ora houvesse eu de designar este lirismo com
11111 11111co predicado. entño, teria de dizer que rcssoa: e com isto regresso
1111\ amente a gcnialidadc sensual como sendo aquela que '>C mostra de ma11111 <1 imcdiata e musical.
Sci qu!.: a respcito deslc ponto até cu podía clizer muito rnais, que será
1111sa r:ícil para os entendidos 1781 deixar tudo csclarcciclo de uma maneira
1111nplc1ami.:ntc dikrcntc; estou convicto (visto que ninguém, 1anto quanto
111 ,cr. efcctuou um cnsaio sobre is-;o. ou deu a cara por isso.j;í que continua
11 1q>ctir-sc, apenas e sempre. que a coroa entre as 6peras~4 é Oon ./11011 de
l\l111ar1. scm desenvolver o que é a sua opinifío, apesar de tocios o dizerem
cl1• 11111 modo que dcmon.;,tra obviamente que queriam dessa forma di1er algo
111:1..., do que «Don }11<111 é a melhor ópera») de que entre esta e todas as
1111tnis <Íperm, hú umu dil'cn.:n\:a qualitntiva, uma diferen<ru que nño será cer
1.1111c111e de procurar em outra coisa que nao seja a rela9i'io absoluta entre
1tk1a. forma. matéria e mcio35; como sou eu a dizer que se relacionam desta
''·'º·
a J. L. 1-lciool'g, na rubrica «Tlleatrel>> 10 teatro!.
1 >11n Juan» in Kjc!be11/um1.1j7yl'l!tldeP01f !Correio Yol:1111e de Copenhugal. 1827. nrímcro
•J 1 de Outubm (Edicao impressa. vol. l. pp. 325 e seg~.): «de1111e Kmll(' a/alfe Operaer»
1 1..,ta cnroa de tocias as úpcnl'»]. A exprcs),iio foi rcwrnada cm 1833 pelo poeta rrctlcrik
J '¡¡l11tla11-MUl1er ( 1809-1876)
no poema Dwul.1eri1ule11 lA Bailarina 1. 1 'J70. p. 8: 1 ." cdi<;ao
1111 1833. 2." cm 1834, 3." cm 1837: «Pide <'r det / ! ll'Or o/le Ko11ster.1 Moder. llar111011i. I
1/ 'i111ii/ og 'foarer sine Krmul.wflettter. I Naar Hi111111el, liefred for 1•ort ~re Ha111{ I
/ Opera1•11\' Kmne. 0011 J11w1» l«IÉ o tempo! Em quc toda a matri1 das arte:-, a harmo111.1, / tece11do grinaldas de sorTisos e lágrimas,/ quando ~oou infernal nos nossos ouvidos
n 1.·cu /na coroti da ópera, Don Juan»¡. l11forma<;iío gcntil111enle cedidu por R. Purkarthofer.
l'I L)epois uo elogio de Mozan. Kierl.egaard continua a cumprir 1extualmcnte os dita111c' de Roben Schumann ( 18 to 1856) para a elabon1<;ao de uma crítica mu~ical (itáliul\
no~sos): «( ... ) nac/1 den 1·ier Ge1ic/11sp1111kte11. unrer de11e11 1111111 ei11 Muri~werk
h1•tmf'hte11 kr11111, d.i.1uu·/1 der Form (des (iw1~e11. der ei11::.el11e11 Teife, der Periode. der
/'hrase i.je 1wch der 11111.1ikali.1c:/1en Komposilion (Jlamumie. Mefodie. Sarz. Ar!Jeit. Stil),
111wlt der be.wmleren kh.:c. die der Kiinstler darstel/e11 wollte. wul llll('h dem Gei1·1e. der
111><'1' Form. Stoff. ldee waltl'I.» [«( ... l ~egundo quatro pontos de vi ... ta. de acordo comos
q11ai~ ~e pode examinar urna obra musirnl, i. e., a fonna (o todo. a~ partes isol:rda~, os
períodos. as frases). a composi~ao musical (harmonin. melodia. frase. trabalho. cslllo),
.i ideia principal. que o <rrlista quis representar. e o espíri10. que regc a fonna. a rnatéria
,. a ideia»]: vd. Robert Schumarui. Gela111111elte Schrifte11 iiber Muvi~ und Muliker [Es1.1 Vd. 0 scguintc come11tál'in atribuívcl
108
109
maneira, entáo , fui eu qucm rornpeu o silencio. Tulvcz cu tcnha sido algo
precipitado, talvcz viesse a conseguir dizé-lo melhor, tivcssc cu ainda aguardado algum lempo, tal vez. nao sei, mas sci que nao me precipitei para lera
alegria de vira falar. sei que nao me prccipitei por temer que um entendido
houvessc de fazer isso primeiro, mas por recear que, se tambérn eu rnantivesse silencio, entáo, as pedras36 havcriam de comccar a falar cm honra de
Mezan, para vergonha de tocios os homens a qucm foi concedido falar.
Admito que aquilo que até agora ficou dito relativamente suficiente·
rendo em conta esta pequena investigacáo, dado que há-de essencialrnenre
servir para abrir caminho a dcnominacáo dos estadios eróticos imcdiatos,
t.al como aprendemos a conhecé-los em Mozart37. Antes de passar entretanto a esse ponto, gostaria ainda de introduzir urna constaracño, a qual, partindo de urna outra perspectiva, pode guiar o pcnsamenro na relacño absoluta entre a genialidadc do sensual e o musical. Como sabido. a música
foi scmpre objecto da desconfiada atencño do zelo religioso. Nao contitui
ocupacáo nossa vir aqui saber se h}í ou nao há razño ncste ponto, pois que,
com cfeito, tal coisa teria apenas inrercssc religioso; cm contrapartida, nao
dcixa de ter significacáo atentar no que até aquí ñcou determinado. Se cu
seguir o fervor religioso a este respcito, entño, sou capaz de determinar o
rumo do movirnento assim, de urna rnaneira muito geral: quanio mais severa é a rcligiosidadc tanto mais se abdica da música e se destaca a palavra.
A este respcito, os diferentes estadios cstáo representados na historia mundial. O último estadio excluí por completo a música e apoia-se unicarncnte
na palavra. Eu podia abrilhantar o que aqui disse corn urna rnultiplicidade
de obscrvacñes singulares; nao quero entretanto fazé-lo, quero simplesmente introduzir urnas palavrus de um presbiteriano, tal corno aparecem
num corito de Achim von Arnim38: «Wir 1791 Presbyterianer halten die
é
é
critos Reunidos sobre a Música e os Músicos] Lcipzig: 1854; Rcprini Ausgabc, Wiesband: Breitkopf & Hartel, J 985. vol. 1, p. l 18.
36 Vd. Lucas, J 9:40: «E respondcndo ele. disse-lhcs: Digo-vos que. se estes se calarcm, as próprias pedras clamarño.»
37 Para urna anrilisc pormenorizada do contexto musical que está na origern das observacóes e comentarios de Kicrkegaard a Mozart, designadamente, o sen conhecimcnto
da crítica musical contemporánea da autoría de Hcctor Berlioz (1803-1869), Robert
Schumann ( 1810-1856), Richard Wagner ( 1813-1883) e Franz Liszt ( 1811-1886), bem
como a sua panicipacáo na fundacño da primeira sociedade musical em Copenhaga, vd.
Elisabete M. de Sousa, Formas de Arte: A Prática Crítica de Berlior. Us-::.1, Kierkegaard
e Schumann, Lisboa: Centro de Filosofía da Universiclade de Lisboa. 2008.
38 Retirado da Nove/le de Ludwig Achim von Arnim, Owen Tudor, de 1821; edi<;ao
consultada pelo autor: Novellen, edicáo de W. Grirnm. vols. 1-VI. Berlim, 1839-1842:
vol. IL p. 260: cdicño moderna: Achim von Arnim, Siimtliche Romane und Erzdlilungen
[Romances e Narrativas Completos], edíi;ao de Walther Migge , vols, I-111. Munique:
Carl Hansen.1962-1965; vol. IU. 1965, p. 73.
Orgc! [ür des Ieufols Dudelsack, womit er den Ernst der Betraclitung in
S<'hl11111111ff
wieg), so wie der Ta11::, die guten vorsar:e heléiuht.»39 lsto tem
de ser considerado como urna réplica instar omnium40... Ora que motivo
pode ser invocado para excluir a música, fazendo assim da palavra o único
elemento dominante? Que a palavra pode confundir os cspíritos tanto quan10 a música, quando é mal usada, todas as seitas restauradas seguramente o
udmitirño. Tcm pois de havcr urna dilcrcnca qualitativa entre etas. Mas
espirito
aquilo que o fervor religioso quer ver expresso, por isso exige a
linguagcm, que o meio específico do espírito, e rejeita a música que é
para eles urn mcio sensual, sendo sempre, aliás, um meio imperfeito para
exprimir o espírito. Se o fervor religioso tern razáo ao excluir a música, é
urna outra questao, como j~í foi clito: em contrapartida, é possível que a
ob~ervac;ao que 'faz !;Obre a rela9ao entre a música e a linguagcm esteja
completamente certa. A música nao necessita, designadamente, ele ser ele
todo excluícla, mas tcm de ver-se que, no domínio do espírito, é todavia um
rncio impc1fcito, e que nfio pode. portant.o, ter o scu objecto absoluto no
c:-.piritual irnediato. determinado como cspírilo. lsto nao acarreta de modo
algum que scj<i 11cccssário considcrá-la como obra do diabo. mesmo quando os nossos tempos hajam <le ofcrecer muitas provas terrívcis do poder
di.!moníaco com que a música pode agarrar um inclivfduo, e esse indivíduo.
por sua ve7., arrasta e prende a mullidfío, em especial as mulheres, na armadilha scdutora da angústia, 1,;0111 todo o provocante poder da volúpia. Tsto
nño acarreta de todo que scja nccessário considerá-la como uma obra do
diabo, mesmo quando se conslata com uma espécie de secreto horror que
esta arte. ma.is do que qualquer outra arte, arrebata muitas vezes os seus
seguidores de um modo assustador, um fenómeno que muito estranhamente parece escapar a aten9ao dos psicólogos e das gentes, excepto quando
numa vez particular ficam alarmados corn o grito de angústia de um indivíduo clcsespcraclo. Merece entretanto ser assinalado que nas len<las populares e, portanto, na consciGncia popular de que a lenda é expressao, o·
musical é semprc o demoníaco41• Como exemplo, recorro a Irische t:lfemndrchen, de Grimm, 1826, pp. 25, 28, 29, 3042.
é
é
39 Em alemao no original: «Nós. os presbiterianos, considerarnos que o órgil'o é u
gaita-cle-foles do diabo. coma qual ele embala até dormir a sericdaclc da contcrnpla~áo.
lal como a daw;:a dcixa os bons propósitos atordoados.»
40 Em latim no original: «Crn ve1. de out ras».
41 [l também no mundo musical: Niccolo Paganini ( l 782-1840) eullivava uma imagem cénica so111bria e misteriosa que, uma vez aliada aus prodígios <le virtuoso. contribuiu para o atributo de demoníaca a sua música e a sua execu~ao.
42 lrische J::lfenmiirchen lContos de Elfos da Irlanda!, tradur;ao dos irmáos Grimm.
J ,cipzig, 1826. da obra de Thomas Crofton Croker (1798-1854), Fairy Legends muí
Traditiom of the Soutlz c~l /rela11d 1 Lendas de Fadas e Trndi~oes do Su! da Irlanda],
110
SC11t:11
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Ora no tocante aos cstádios crótico-imediatos+'. tudo o que sci dizcr a
esse respeito fico a eleve-lo única e exclusivamente a Mozart, a quern eu ele
urna mancira gcral tudo dcvo. Corno entretanto a classificacáo que eu quería aquí cnsaiar só pode ser atribuida a Mozart indirectamente. em combinucáo com um terceiro, sujeitei-rne eu próprio
prova. bem como classifica9ao, antes de me Juncar seriamente ao trabalho. 1801 nao fosse eu de
algum modo privar-me a rnirn proprio. ou ao leitor, da alegria de admirar
as obras imortais de Mozart. Quem quiscr ver Mozart na sua vcrdadcira
grandeza imortal tem ele tomar cm considcracáo o scu Don Juan; comparado com Don Iuan, tudo o mais é casual, incsscncial, Porém, observando
agora Do11 Juan. para ver conjuntamente nclc coisas particulares de outras
óperas ele Mozart sob este ponto de vista. entño, fico convencido de que
ncm se rebaixa Mozart, nem ninguém se prejudica a si proprio, ou prejudica o scu próximo. Tcr-se-á enrño oportunidade ele rejubilar como facto de
u propria potencia da música se esgotar na música ele Mozart.
De resto, quando acima utilizei, e continuo adiantc a utilizar, a cxprcssáo
«estadio», nao terá de ser assumido corno se cada um dcsscs estadios, isolado, existisse autonomamente tora um do outro. Podcria talvcz ter usado
com maior propriedad e a cxprcssño «mctamcrfosc». Os diferentes estadios
tomados no scu conjunto constitucm o estadio imcdiato, e tornar-se-á inteligívcl a partir daqui que os estadios enquanto singulares sao mais urna
manifestacño de um predicado, de molde a que lodos os predicados se precipitern na riqueza do último estadio. pois este é o estadio propriamente
dito. Os outros estadios nao tém qualqucr existencia autónoma; para si
mesmos, siío apenas para a representacño, e daí chegar-se também a ver a
respectiva casualidade diante do último estadio. Como entretanto cncontraram na música de Mozart urna expressño em separado. enráo, falarei deles
em separado. Acirna de tudo , nao terá, no entanto, de pensar-se crn di lcrcntes patarnares de consciencia, pois ncm mesmo o último estadio alcancou
a inda consciencia; estou scmprc a tratar do imcdiato na sua perfeita imediaticidade.
É obvio que rambém aqui nao Ialtam as dificuldades que sempre se Jevantam, quando se quer tomar a música como objecto para tima observacáo
estética. As dificuldades no que acima foí dito residiam principalmente no
facto de, querendo eu demonstrar, seguínclo o curso do pensamento, como
a genialidade do sensual é o objecto essencial da música, isso poder apenas
ser propriamente demonstrado através da música, tal como também eu
a
,
\
1
a
Londres, 1825: a presente referencia pcrtcncc a Der kleine Sackpfeifer [O Pequeno
Tocador de Gaita].
43 O esboce inicial de urna teoría dos estadios do desejo encentra-se na entrada do diário de 26 de Janeiro de 1836; vd. Pa¡». l C 125, BB:24, SKS. vol. 17, p. l l 3.
própriu ele !'acto c.:licguei a cssc conhecirncnto através da música. A dificuldude co111 que a seccáo adiantc se detronta está mais perlo de ser a seguinre: aquilo que a música exprime. e que constitui aquí objecto de discussáo,
é csscncialrnente o objecto da música propriamente dito, e a música exprime-o logo de urna maneira muito mais perfeita do que aqueta que
possívcl linguagem. a qual, junto daquela. assume para si um ~1specto muilo
pobre. Claro que se cu aqui me ocupasse dos diferentes pata.mares de consciencia, é óbvio que a vantagcm estaría en tao do meu lado e 1811 do lacio da
li11guagem,
mas nao é e.sse o ca.so aquí. Portanto, aqLtilo que se trata ele
desenvolver aqui s6 pode itkaru;:ar significar;ao para qucm ouviu e permanece continuamente ouvindo. Para ele, taJvcz possa conl.er um único sinal
singular que possa move-lo a ouvir outrn vez.
é
a
Primeiro Estádio44
O primeiro estÍldio eslá sugerido no Pt~jem115 de Figttro46. Nao importa
obviamente ver aquí no pajem um indivíduo singular, coisa que se fica facilmente tentado a fazer, quando, em pensamcnlo <.)u na realidadc, se ve o
pajem aprescntado por urna pessoa. É difícil, entao, evitar. o que cm parte
ta1nbérn é o caso do pajcm na obra, que nada de casual. nenhurna idcia intrusa venha imiscui.r-se, para que ele nao cheguc a ser mais do que aquilo
que deve ser, pois em certo sentido passa insta.ntanearnente a ser tal coisa,
assim que se torna inclivíduo. Porém, ao tomar-se mais, toma-se menos.
ccssa de ser a ideia. Por isso, nao é possível atribuir-lhe réplicas, 1.ornando-se antes a música a única exprcssao adequacla, e é por isso <le assinalar que
tanto Fígaro como Don Juan., tal como saíram das maos de Mozart, perlen44 Das óperas de Mwarl no scu conjunlo. Kierkegaard. em tempo füil para a rcdacc;fio
dcste capfüdo, viu as tres que cstfío na origcm dc~tes tres estúdios. e evc11tuah11e11le O
Rapto do Serrnlho, represen lado sete vezes entre J 829 e 1837. As norias de Fígaro
contou c:om scsscnta e cinco récitas enl.re '1821 e 1838: e Don Juan (Kruse), com oite11la e nove entre 1807 e 1845; A Flauw Mcígica contou com trinta e urna rcprcscntac,:ocs
entre 1825 e 1842.
45 Na ópera de l\.fo;1art e Da Po11te Le Noz,::.e di Figaro [As Bodas de Fígarol de l7S6,
Chcrubino está apaixonado pela Condcssa, mas senle-sc atraído por todas as nmlheres
e1JJ geral. Ycrsao dinamarquesa: Figaro.1 Givlermaal eller Den Rale Dag. Syngestykke i
jire Alaer, oversat til Musik af' Moz.art. 1:fier den italienske Omarheidelse af Beaumarr:hais · frwiske Original LAs Bodas de Fígaro ou a Jornada Louca. Pe<.;<i musical cm
cinco actos, trndu7i.da pa,rn a música de Mozart, de acordo com a versao italiana do
original frances de Heaumarchais], traduvíío del\. T. 13ruun, Copenhaga, 1817; dora·
vantc mencionada corno Givtermaal.
46 Fígaro é a personagem principal da mesma ópera. mas Kicrkegaard usa frcqucntcmcntc o nome da pcrso1Jagcm para se referir i1 ópera.
112
S1í1C1l
1,
ll'i
l
l·¡~w11d
cem a opera serii/", Ora se se considerar o pajern como u rna pcrsouugcm
mítica, entáo , encontrar-se-á cxpresso na música o que é próprio do primciro estadio.
Despena o sensual, embota nao para movimento, mas antes para calma
aquiescencia. nao para júbilo e alegria. mas para melancolía profunda. O
desejo ardente'" ainda nao está despeno, é presscntido mclancolicarncntc.
Neste desejo reside sernpre o que é desojado. o qua] aumenta a partir do
desejo, mostrando-se nurn amanhecer gerador de confusáo. Esta relacáo
dá-se diante do sensual, distancia-se do sensual através de nuvens e neblinas, aproxima-se através do reflexo por elas emitido. O que viera tornar-se objecto de desojo é possuído pelo desejo, mas este possui-o scrn que o
ten ha dcscjado e, assirn scndo, nao o possui. Dolorosa (mas também por
viada sua docura, enfeiticanre e cncantatória) é esta contradicáo que ncstc
estadio rcssoa com a sua nostalgia e a sua melancolía. A dor dcstc estadio
nao reside, designaclamente, no facto de ser cxccssivamcnte escassa, mas
antes no facto ele ser excessiva. O desejo é desejo tranquilo, o anseio é
anscio tranquilo, a cxaltacño é exalracáo tranquila, na qual o objecto desponra ficando tao peno do desojo que está dentro 1821 dele. O desojado
paira sobre o desojo, afunda-se nele, sern que todavía este movimenro
ocorra por via da propria torca de atraccáo do dcscjo, ou porque seja descjado. O desojado nño desaparece. nao se csgucira do abrace do dcscjo.
visto que cruáo o desojo iría justamente despertar: mas sem que soja desejado está diantc do dcscjo que, justamente por isso. fica mclancél ico, por
nao ser capaz de chegur et dcsejar. Assim que o ele. cjo despena. ou mclhor,
no seu despertar e corn o seu despertar, o dcscjo e o objecto do desejo
separarn-se. o desejo respira pois sao e livre, ao passo que anteriormente
nao conseguia respirar diante do desojado. Quando o desejo nao está desperto, encanta e fascina o desojado. chega mesmo a angustiá-Io. O desejo
tern ele ter ar, tem de cxplodir, o que acontece ao ficarern separados; o
desejado póc-sc cm fuga, tímida e pudicarnente corno urna mulhcr, dá-sc
a separacáo entre eles, o dcsejado desaparece et apparet sublimis'", ou ern
47 Sic. Na real idadc, dramma giocoso
a classi ficayao original de Don Giovanni.
Opera seria está aquí utilizado como sinónimo de drama musical com recitativo.
48 Aqui, «Attraa»: Vd. nota 1() no capítulo «Diapsalmata», A partir daqui todas as
ocorréucias de «clescjo» correspondem a «Attraa» ou a «0nske».
49 Em latim no original: «e aparece suspenso». Vd. Virgílio, Georgira [Geórgicas],
livro I, v. 404: «Adparet liquido sublimis in acre Nisus»: cdicáo consultada pelo autor:
P. virgilii Maronis opera [Obras de P. V.M.], edicño de J . Badén. vols, 1-11, Copenhaga,
1778-1780;
vol. 1. p. 124. Segundo a tradu<;flo de Agostinho da Silva: «No firmamento
'límpido, bem alto, Niso aparece», vd. «Geórgicas», in Virgílio, O/iras de Virgílio: Bucólicas, Georgicas. Eneida, traducáo do latim de Agostinho d;i Silva. Lisboa: Temas e
Debates. 1999, 2." edicáo, p. 68.
113
qunlqucr
caso, rora do dcsejo. Quando
se pinta todo o recto <le urna sala
rn111 pcrsonagcns urnas ao lado das outras, rebaixa-se assim o recto, dizern
oi-. pintores; utilizando urna única personagern, leve e fugaz, socrgue-se
cntuo o tccto. Acontece o mesmo na relacño entre o desejo e o desejado no
primeiro e no último estádio.
O desojo, que ncste estádio está apenas presente como um pressenrimento de si mesmo, fica pois scm movimento, sem dcsassosscgo, é apenas
suavemente agitado por urna inexplicávcl ernocáo interior, e tal como a
vida da planta está presa ~1 terra, assim está ele mergulhado em tranquilo
nnscio presencial, absorto na conremplacño. e nao é capaz ele esgotar o scu
objecto, porque nao há essencialmente qualquer objecto ern sentido mais
profundo e, contudo, esta falta ele objecto nao é objecto seu, pois, estivessc ¡;le prontamente assím cm moví mento e, entfto, ficaria dcterminado50,
se n1io f"osse de outro modo. cnt.ao, seria na mágoa e na dor, mas mágoa e
dor nflo tcm cm si u contradir;ao que é própria da melancolía e do abatimcnto profundo. a equivocidade que constitui a doc,:ura <loqueé melancó1 ico. Apesar de neste estádio o desejo nao estar determinado corno dcsejo,
npesar ele este descjo (pressentido naquilo que ao seu objecto diz respeito)
estar completamente indeterminado, possui todavia uma única cletermina\·üo. a saber, é infinit.amentc profundo. A semclhan9a ele Thorn51, bebe por
um corno cuja cxtrcmidacle se ergue do occano; contudo. o motivo pelo
qual nao consegue sorver para si o respectivo objecto nao reside no facto
de este ser infinito, mas antes no facto ele esta i11íinitucle nao poder tornarse para ele urn objecto. O sorvo do desejo 1831 níio designa de tocio urna
rclac,:iio como objecto, é antes identico ao seu suspiro, e este é inf"i11itamen1e profundo.
Em harmonía corn a descris;ao aqui dada do primeiro estádio. acaba por
~e revestir ele grande significas;ao o facto ele o papel do pajern estar composto, no respeitante a música, para ser atribuído a urna voz feminina.
O que há de contraditório ncste estádio como que está sugerido nesta conlradiirao, o clesejo está tao indeterminado, o objecto está tao escassamente
~eparado. que o des~jado repousa no desejo de um modo andrógino, tal
como na vida vegetal o macho e a femea se encontram numa única flor.
é
50 Aqui, «deter111i11ere1».
51 Na mitología nórdica. Thorn é incapaz de csvaziar o corno pelo qual bebe, já que o
scu inimigo ligara a exlrcrnidacle do corno ao mar. Vd. J. 8. J\,tf;inichen. Nordi.vke Folks
Orcrlroe, Guder, Fa/Jler og llelte, i11d1il Frade 7 Tider [Supcrsti\:ÜCS. Dcuscs, Fábulas e
Heróis do Povo Nórdico até aos Tempos de frocle VII l. Copenhaga. 1800. pp. 436-438;
o cpisódio também está narrado por A. OchlcnschUigcr, Thors Reise ti/ Joth1111heim. Et
episk Digt i 5 Sa11ge IA Viagem ele Thor para Jothunheim. Um Poema Épico cm Cinco
Cantos]. Nordiske Digl<:? [Poemas Nórdicosl, Copcnhaga, 1807: canto IV. vv. 23-41,
pp. 82-88, e canro V, v. 24. p. 111.
l14
Ou
O desejo e o desejado ficam unidos na unidadc que h{i cm sercm ambos
neutrius generis52•
Apesar de a réplica nao pertencer ao pajern mítico. mas ao pajem da
peca, a personagcm poética Cherubino, e, consequcntemente, apesar ele nao
ser possível ncstc contexto reflectir sobre ela. visto que por urn lado nao
pertcnce a Mozart e, por outro, expressa algo intcirarnente diferente daquilo que aqui se discute, qucro todavía destacar com maior pormenor urna
réplica em particular53, porque me proporciona ocasiáo para denotar este
estadio cm analogía corn um estadio posterior. Susanno'" troca de Cherubino, porque ele cerio modo ele tarnbém está apaixonado por Marseline55 e
o pajem nao tem a máo mitra resposta que nao seja: é urna mulhcr. No tocante ao pajern da obra, é csscncial que o pajem se apaixone pela condessa,
e nao é essencial que ele se apaixonc por Marscline; o pajcm é urna mera
expressáo indirecta e paradoxal para a intensidadc da paixáo que o dcixa
preso 11 condcssa. No tocante ao pajcm mítico, é igualmente cssencial que
csteja apaixonado pela condessa e por Marscline, a fcrninilidade é, dcsignadarnentc, o objecto do pajem, e ambas a tém ern comum. Por isso, quando mais tarde ouvimos sobre Don Juan:
Até as coquetos de sesscnta
A legre, ele
a 1 ista acresccnta-",
trata-se pois da analogía perfeita, só que a intensidadc e a determinacño do
desojo cstáo muito mais descnvolvidas.
Ora houvessc cu de me arriscar num cnsaio para designar com um único
predicado o que é proprio da música <le Mozart no tocante ao pajcm de
Fígaro, e iría dizer, entáo: está ébrio de amor; mas tal como todos os estados de embriaguez tarnbém a embriaguez de amor é, entáo, capaz de produzir efeito de dois modos: ou dilata a transparente alegria de viver, ou
adensa a turva melancolía. É este último o caso da música nestc passo, e
tarnbérn está certo que assim scja: 1841 a música nao é capaz ele fornecer o
fundamento desse cfeito, isso está fora do seu alcance; e nem mesmo as
52 Em latim no original: «género neutro».
53 Vd. Acto I, cena V: Givtermaal, pp. 20 e segs.
54 Na peca de Beaumarchais. como na ópera de Mozart, Susana. camarcira da Con·
dessa. está noiva de Fígaro e sufre o assédio do Conde.
55 Marcclline aparece para cobrar dívidas a Fígarn, objecto ele ciúrnc pela parte de
Susana. até se dcscobrir que é afina] a rnñc que enjeitara Fígaro.
56 Traducáo adaptada dos versos da ária do catálogo na versáo de Krusc, p. 21: Don
Giovanni.Xct« 1, cena 4. Kierkcgaard cita com urna variacfio: «Fryd» cm ve¿ de «Lyst»,
i. e., «júbilo», em vez de «volúpia» (cdicño de 1807, p. 23). e cm ve: de «Smiil», i. e.,
«sorriso» (edicáo de 1822. p. 226).
é
Ou.
U1n
"1tti1111\•11111
1 l~
ti\ Vltl,1
pulavras s~lo capazos de exprimir a disposicño, é demasiado pesada e ~~nsa
pura que as palavras a possum sustentar. so a música cons~guc tran~m11.1-~1.
O fundamento da melancolia do pajern reside numa prol unda contradicño
interior, para a qual procurámos chamar a arcncáo no que acirna ficou clito.
Dcixamos agora o primeiro cstádio que é denotado pelo pajcm mítico;
dcixarnos que continue a sonhar melancolicamcnte com aquilo que ele tc111,
que continue a desojar com melancolía o que. possui, N_~m~a vai. mais alé~n,
nunca sai do mesmo lugar, pois os seus movimentos sao ilusórios e, ass1111
seudo, nada
Passa-sc de maneira diferente como pajcm da obra; com
urna vcrdadcira e sincera amizade. qucreríamos intcressar-nos pelo scu
futuro felicitá-lo por ter subido a capitño, convidá-Io ainda urna vez a bci
jar Susanna na despedida57; nao denunciaremos a marca que traz n.a tesla58•
que mais ninguérn é capaz de ver a nao ser qucm já sabe; mas ma1s do que
islo, também nao, rneu bom Chcrubíno, ou entao, chamemos o conde. para
sao.
assim log~ dizer: «Que saía
j•í,
c~a ~ortayara fora:,~1ue vá para o regimcnt~c)
já nao é cnan9a nenhuma, nao ha mngucm que o s,11ha melhor do que cu.»
Segundo Estádio
Este estádio está denotado no Popogenn<1.l cm!\ Flauta M<ÍMi<a. Importa
aqui obviamente separar de novo entre o essencinl e o ca~u.al, evoc<~r o Papageno mítico e csquecer a pcrsonagem real na obra, res1d1.ndo aqui
particularídade no Cacto de esta personagem da obra ter surgido nssocrnda a
toda a espécíe de galimatías hcsitantes. A este respeito, nao seria destituído
de intcrcsse percorrer toda a ópera para mostrar como o tema, observado
enquant.o tema operálico. erra quanto ao seu fundamento mais ~rofundo. Ao
mesmo tcrnpo, nao se sentiría aqui a falta da ocasiao para ilummar o erót1~0
de um novo lado, na medida em que se assume que o modo como aquilo
que foi feíto para aí colocar urna intui<;ao ética mais profunda, para que
.ª
57 V<l. Acto I. cena VIII, que culmina na ária ele Fígaro Non piil andrai ... : na versao
dinamarquesa: Du lille Captain!. (iivtermaal, p. 36.
..
.
58 Vd. <iivtennaol, Acto Ul. cena 13, p. !09, quando a Condessa bc•Ja Cherubrno na
testa: Acto llt, cena 15, p. 112, para a evoca<;iio ele Cherubino.
59 A réplica niio consta do libreto, embora retlicta a troca de palavras entre o Conde e
a Condessa: Acto 1, cena 8, Givtennaal, p. 35.
60 Papageno. o passarinheíro, é uma das personagcns prínci.pais de Die Zaube1:fl0te IA
flauta Má.gicaj, de 1791, sobre um libreto de Emanuel Sch1kaneder (1751- 1812). Versao dinamarquesa: Trvllejltt>iten. Sy11ge.1·(vkke i to Acter af Emmanuel Scl11c~aneder.
Oversa/ 1il l'vtozart.1· Musik ved N.T. Bruun IA flauta M:ígica. Sing.1piel cm Do1s Actos
de E. S., Traduzido para a Música de Mozart por N.T. Bruun], Copen haga. 1816: doravante mencionada por Tryllejl~iten.
116
Ou
esta seja ensalada com toda a cspécie ele provacñcs dialécticas nwis significativas, é um golpe ele audacia, que se atreven a ir toralmentc para alérn das
fronteiras da música, a tal ponto que, até mesmo para urn Mezan, teria siclo
impossível emprestar-lhe algum interesse mais profundo. A tendencia definitiva nesta ópera é precisamente 1851 aquilo que nela há de nao-musical e.
por isso, apesar de alguns números de conccno perfeitos e de algumas exprcssñes patéticas profundamente emocionadas, continua a nao ser de modo
algum urna ópera clássica. Na.o obstante, nao podemos ocupar-nos de rudo
isto na presente pequena investigacáo. Só ternos ele dedicar-nos a Papageno,
o que constitui urna grande vantagem para nós. se nao por outro motivo,
entáo. que seja porque nos exime de qualquer cnsaio que qucira explicar a
significacño da relacáo de Papagcno corn Tamino'": urna rclacáo aparentemente lí'ío aprofundada e ponderada, no que di 1. respeito ao plano geral, que
para ponderacáo pura e simples quuse se torna impensável.
Para um ou outro dos leirorcs. semelhantc tratamento de A Flauta Mági
ca poderla talvcz parecer arbitrario, tanto por ver coisas a mais em Papageno como por ver coisas a menos em todo o resto da ópera: talvcz nao
viesse a poder aprovar a nossa condura, rcsidindo o fundamento no facto de
nao estar de acordó connosco quanto ao ponto de partida para qualquer
cornentário sobre a rruisica de Mozart. Ern nossa opiniño, o ponlo de partida é, dcsignadnmcntc, non Juan, e simultáneamente
nossa conviccño que
se mostra muis veneracáo por Mozart quando se diferencia Don Juan das
restantes óperas, sem que por isso eu qucira negar a signifícacño de tomar
urna ópera particular como objecto de comentário especial.
O desojo ardentc acorda e, tal como semprc acontece quando só se repara que se estevc a sonhar no instante em que se acorda, também aqui o
sonho já acabou. Este despertar como qual o desejo acorda, este abalo,
separa o desejo do objecto e faculta um objecto ao dese jo. Trata-se ele urna
dctcrminacño dialéctica que tcrn de ser rctida corn acutiláncia: so na medida em que há objecto, há desejo; só na medida cm que há dcsejo, há
objecto; o dcscjo e o objecto sao um par de gérneos, cm que um nao veio
ao mundo antes do outro, nern sequcr urna ínfima parte de urn instante.
Mas aposar de assim tcrem viudo ao mundo absolutamente ao mesmo
tempo C, se bem que nño haja entre eles O espaco de tempo que habitualmente há entre os génicos. entáo, a significacño deste vira existencia nao
ficarcm unidos, mas, pelo contrario, ficarem separados. Mas este movimento do sensual, este abalo telúrico, abre por um instante urna infinita
fissura entre o dcsejo e o respectivo objecto; mas como o princípio motor
é
é
61 Papagcno e Tamino pa11ilham a hu~ca pelo amor. constituindo urn par antin6mico
4uanto ideia que tcm do arnor e quanto motivai;.:lío com que cnfrcntam os obstáculos
a
a :;uperar até enconlrnrcm a amada.
a
Ou
U111
hag111c11tP
tiL: Vitln
se mostrn durante urn instante corno o gcraclor de fragmenta9ao, também
as.,im se mauifcsta novamcnte ao querer unir o que eshí separado. A conscquencia da scparas:ifo é ser o desejo arrancado do respectivo repouso
substancial cm si mesmo e, por eonsequcncia, o objecto cleixa de entrar
1861 na clelerminac;,:ao da substancialidadc, fragmentando-se, porém, muna
mu 1 ti pi iciclade.
Tal como a vida da planta está ligada ao solo. assim está o prirneiro est{idio preso ao an. cio substancial. O desejo acorda, o objecto voa, nmlríplicc na sua maniü:sta~i.ío. o a·n~cio desliga-se do solo e entrega-se ~1 <lcambulac;,:flo, a flor re<.:cbe asas e, inconstante e incansável, esvoa~.a para cá e para
lá. O desejo orienta-,'ic na dirccflio do 0bjccto, movendo-se ao mesmo tempo dentro de .si .mesmo, o coLw,:a.o palpita alegre e sadio. os objectos desaparecem e aparecem rapidament.e. porérn, ant.es de cada dcsaparecimento.
urn ápice de desfrute, um instante de emoc;iío. breve mas sumamente feliz.
brilhante como urn pirilampo, inconstante e incansável como o pousar de
uma borbolcl<) ele Vcrao, inofensiva como esta; beijos int:ont.áveis, mas tao
rapidamente gozados que é só como se aquilo que se tivesse lirado de um
objecto fosse dado ao objecto scguintc. Pressente-se um descjo rnais profundo apenas momcntanea ..mcnte, mas este pressentimento é esquccido. Rln
Papageno. o desejo tem por objcct.ivo a dcscoberta. l::ste apetite pela des<.:obcrtu é o pulsar do desejo, a sua jovial idadc. Papagcno nao encontra. o objecto propria.mente dito para esla descoberta. nrns descobrc o que é múltiplo, na medida em procura aí o objcct<) que quer descobriJ. É assim que o
desejo é acordado. mas nao está dct.crrninaclo como desejo. Recorde-se que
o dcscjo está presente em todos os tres estádios, podcnclo pois clizer-se que
no primcirn está determinado como aquilo que so11ha, no segundo como
aquí.lo qnc procura e, no terceiro, como aquilo que deseja arclen1eme11te. O
desejo qui.: procura ainda nao é, designadamente, o <lcscjo que deseja com
ardor, só procura <1.quilo que¿ capaz de desejar, mas nfio o dcst:ja. Por isso,
o predicado que melhor o designa será: o desejo descobre. Se compararrnos
Papageno com Don Juan, a viagem dcste através do mundo é mais do que
urna viagem de descoberta, nfio se limita a desfrutar as aventuras da viagern
de dcscobe1ta. é antes um cavaleiro que sai á li9a para triunfar (veni-vidi-vici61). A descobcna e o triunfo sao aquí o mesmo; cm. cerio sentido, pode
62 Em latim no original: «cheguei. vi, vencí», frase atribuida a C. Júlio César (100 ou lOJ_44 a. C.), dirigida ao senado para designar o modo como vencen a ílatalha de Zela. Vd.
«Júlio César» in Plutarco, Vidas Para/das, 50, 3 e «Divus lulius» in Suetónio, De Vita
Caessarum, 37, 4. F.m portugués: «.lúlio César». in Plutarco, Vidas paralelas, tradu\:ifo revista por L. Nazaré, Lisboa: Amigos do 1 .ivro, ·¡ 975, p. 157: e também «Caio Júlio César»,
in Suctónio, As vidas dos Do;c Césares. vols. I-III, traducáo de Angelina Pires (vol. I) e
Adriaan de Man (vols. Il e III). estudo introdutório e notas de Vicror Raquel (vol. I) e
Adriaan de Mm> ( vols. 11 ' 111), Lisboa Odi¡iie' Sí1'>1x>, WOó-2007; vol. I , livro I, p. 71. /
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119
118
até dizer-se que, no triunfo, ele esquccc a descoberta, ou a dcscobci ta rica
para trás, e entrega-a a Leporello, seu criado e secretario, o quat elabora o
catálogo num sentido completamente diferente daquele em que eu imagino
Papagcno a fazer regisios em livro. Papageno selecciona, Don Juan desfruta, Leporello verifica.
Sou até capaz de apresentar em pcnsamento o que é próprio deste estádio, tal como de outro qualquer. mas apenas e semprc no instante cm que
cessou de existir. Mas por mais que eu conseguissc descrever pcrfcitamente o que 1871 lhe é proprio, explicando os respectivos fundamentos, entáo,
sobra semprc, afina! alguma coisa que nao consigo exprimir e que afina!
será ouvida. E demasiado irnediato para ser apreendido cm palavras. Acontece assim com Papagcno, é a mesma cantiga, a mesma melodía: comeca
lcsto outra vez do princípio quando acaba, e assim succssivarnentc. Ora.
alguérn poderla levantar-me a objcccño de que, em gcral, seria impossívcl
enunciar algo de imcdiato, o que cm cerro sentido tarnbérn está pcrlcitamente certo; porém, a irnediaticidade do espírito (cm, ern primciro lugar. a
sua exprcssño imediata na linguagem e, cm seguida, na medida cm que o
pensamento intervém e produz conjuntamente urna rransformacño, permanece rodavia essencialmcntc a mesma, justamente porque é dcrcrrninacáo
do espirito. Ao invés, trata-se aquí ele uma irnediaticidadc da sensualidadc,
rendo, nessa qualidadc, urn meio completamente diferente e, portante, a
desproporcño entre os mcios torna absoluta a impossibilidadc.
Ora. houvcsse eu de efectuar urn ensaio para designar com um único
predicado o que proprio da música de Mozart na parte dcsta obra que nos
intcressa, e di ria, cntño: é um chilrcio jovial, esfuziantc de vida, efervescente de amor. O que cu tenho ele enfatizar muito em especial é a primcira ária
e o toque de campuinhas; o dueto com Tamino<>3 e posteriormente o dueto
com Papagcna'" saem fora da deterrninacáo do musical imediato. Ern contrapartida, se se considerar a prime ira áriaú5. cntño, decerto que Iicarn sancionados os predicados por rnim usados e, atentando-se com maior pormenor, cncontra-se ao mesmo tempo urna oportunidadc para ver qual a
signiíicacáo ele que o musical é portador. mostrando-se aquí como a exprcssño absoluta da idcia, seudo que esta é, portante, musical e imediaia . .É
sabido que Papageno acompanha com urna flauta de pa a sua jovialidade,
plena de alegria de viver. Seguramente que todo e qualquer ouvido já se
sentiu comovido por este acompanharnento ele urna rnaneira peculiar: mas
quanto mais nele se pensa tanto mais se ve, cm Papageno , o Papageno mítico, tanto rnais se achaque tem rnais capacidade de exprcssíío e de cienoé
63 Sic., O duel:o é com Pamina; Acto I, cena 14, Tryllefl~>iten. p. 37.
64 Vd. Acto II, cena 29. Tryllejl~iiien, p. 106.
65 Vd. Ado 1, cena 2, fryllfjkiiten, p. 6.
la<,:•fo: nJo SL: ficu causado de o ouvir urna vez atrás da outra, porque é a
cxprcssáo absolutamente
udcquada para toda a vida de Papageno, se toda a
vida Ior um chilrcar imparávcl deste tipo, a soltar-se ininterrupta e despreocupadamente corn toda a Irivolidade e, como alegre e prazenteiro por ser
este o conteúdo da sua vida, é alegre nos scus actos e alegre no seu canto.
Ora, como é sabido, tudo está orientado com tanta profundiclade na ópera.
que as flautas de Tamino e de Papagcno cntram cm correspondencia urna
com a outra. E no entanto, que diferenca! A flauta de Tarnino, 1881 se bcm
que soja aquilo que dá o nome a obra, falha completamente o seu efeito, e
porqué? Porque Tamino nem sequer urna figura musical. e isto tcm que
ver corno erro 110 plano gcral de tocia a ópera. 'lamino torna-se muitíssimo
enrcdiantc e sentimental ao tocar flauta, e quando alguém reflecte em tocio
o restante desenvolvimento
de Tumino, no estado da sua consciencia, de
cada vez que ele puxa a flauta e ncla toca uma pcc;a, chega-se a pensar no
campones de Horácio (rusticus exspectat, dum defluat anmi.~h6), só que
1 lorácio nao deu ao seu campones uma flauta como passat·empo ocioso. Na
4ualidadc de figura dramática, Tamino está inteiramente para além do musical, tal <.:orno u dcsenvolvimento
do espírito. que a obra quer em geral
levar 1.1 cabo. é urna idcia cornpletamente nao-musical. Tamino chegou justamente tao longc que. por isso, o rnusical ces:r;a. Lomando-se a sua flauta
apenas u n1 desperd ício de t·empo para dcsanu viar o pensamento. Dcsanuviar o pcnsarncnLO é coisa que a mtísica alcanc;a, designadament.e. de maneira ex.ccJcntc, at.é mesmo os pcnsamentos maus, tal como é cleveras dito
acerca de David: «desanuviou o mau humor de Saul tocando música»67.
Reside aqui todavía uma grande desilusfío,já que wl acontece lcndo apenas
cm conta que a consciencia
é levada de regresso
imed.iat.ici<ladc,
embalando-se nela. Por isso, o indivíduo é bem capaz de sentir-se .ldi:t. no
inst.ant.e da embriaguez, mas fica tao-só cada vez rnais infeliz. Permito-me
aqui um comcnt.ário, t.otalmemc in parenthesi. A música tem sido usada
para curar os dementes; cm cert.o sentido. lambém o scu propósito foi alcanc,:ado e, cont.udo. é urna ilusa.o. Quando, dcsignaclamente,
a demencia
tem uma fundamentac,:5.o mental, entao, prende-se scmpre com um endurecimento de um ou de outro ponto da consciencia. Este cndurecirnento tern
de ser vencido, mas para que, na verdade. venha a ser vencido. tem de sair-se completamente do caminho contrário daquele que conduz. ¡t música. Ora
é
é
a
66 Em latim no original: <<o rústico espera que o rio acabe ele correr». verso retirado de
Horácio, t:pi.vlolarum, livro I, 2. v. 42: ediyfio consultada pelo autor: Q. florarii Flar:ci
opem, Lcipzig, 1828. p. 228. Na traduyao porluguesa: «I::'.' como esse alde¡jo, que loueo
espera! Que se despeje o rio». p. 10.
(;7 Primeiro Livro de Samuel, 16:23: «E :;ucedia que, quando o espfrito mau. da pan.e
de Deus. vinha sobre Saul. David tomava a harpa. e a 10cava com a sua mao; entao Saul
scntia alívio, e se achava melhor, e o espfrilo mau se retirava dele.»
121
120
Ou
quando se utiliza a música, scgue-se entño, completamente pelo carninho
errado, tornando o paciente ainda mais demente, mesmo que ele pareen que
cessou de o ser.
Posso muito bem mantero que aquí disse sobre Tamino a tocar flauta.
sem receio de ver que mal entendido. Nao é de todo meu propósito negar
aquilo que até eu varias vezes também adrniti, o facto de a música, enquanto acompanhamento, poder ser portadora de significacáo , na medida cm
que entra num domínio estranho , designadamcnte, o da linguagern; em
A Flauta Mágica, o erro reside entretanto no facto de ser a consciencia
aquilo para que tocia a obra mostra tendencia e, portante. a tendencia propriamcntc dita da obra relevar a música e, no cntanto. continua a ser urna
ópera, se bcrn que este pcnsarncnto nao esteja claro na obra. Como meta
para o scu dcscnvolvirnento, supóe-se o amor determinado cticamcnte ou o
1891 amor68 no matrimonio. e reside aí o erro fundamental da obra, pois bcm
podcm, alias, deixar o casamento ser o que quer que seja, cm tennos eclesiásticos ou seculares, urna coisa ele nao
nao musical.
de facto absolutamente nao-musical.
Do ponto de vista musical, a prirneira ária possui, portanto, a sua grande
significacáo enguanto cxprcssáo musical irnediata ele toda a vida de Papageno, e da respectiva história. a qual, cm grau idéntico áquele em que a
música
cxprcssáo absolutamente adequada para aqueta. apenas é história
ern sentido figurado; ao invés, o toque de campainhas a expressño musical
da actividade de Papagcno, da qual, por scu turno, se pode apenas obter
urna represcntacáo através da música, seudo que esta produz encantamento,
é tentadora e cativante, como quando aquele homem tocava e fazia os pcixcs pararcm para cscutar69.
Na gencrulidade, as réplicas que ficarn a de ver-se ou a Schikaneder, ou
ao tradutor dinamarqués/", sño tao hilariantcs e estúpidas que quuse chega
a ser incompreensível o modo como Mozart conseguiu obtcr o que fez a
partir delas. Pór Papageno a dizcr acerca de si mesmo: «sou urna criatura
da natureza»?", fazcndo assirn com que. neste mesmo agora, passe por
mentiroso, pode ser visto como um exemplo instar omnitun, Seria possívcí
fazcr urna cxccpcáo corn as palavras do texto da primeira ária72, quando
coloca as raparigas que apanha dentro da gaiola. Se, designadamcntc. pouco muis se quiser colocar nas palavras do que aquilo que o autor provavcl-
mente netas colocou , cntño , clas dcnotarn precisamente o que há ele inofensivo na actividadc ele Papagcno. tal como acirna sugerimos.
Dcixemos por ora o Papageno mítico. Nao nos ocupemos do destino do
Papagcno real, enviamos-lhe votos de felicidades na companhia da sua
pequcna Papagcna, e que possam deveras buscar alegria povoando urna
floresta primitiva ou um continente inteiro pura e simplesmente eom Papagenos73.
é
Ou, Un1 Joi ag11w1110
d1: Vklu
Terceiro Estádio
é
é ,
é
é
é
é
68 A estas duas ocurrencias de <<amor>), corresponde no original «K)1rrli¡\licd».
69 Alusiío a versos de Johannes Carsten l-lauch (1790-1872); vcJ. Ri<'r¡.:,¡11'xe11 IA Rapariga dos MontesJ, in Lyriske Di¡\te 1 Poemas Líricos]. Copen haga. 1842, p. 164.
70 Vd. acima nota 60.
71 Vd. Acto 11. cena 3, Trvllejlf)iten, p. 59.
72 Vd. acima nota 63.
Este cstádio
denotado por Don Juan. Tal como no que acima está exurna parte particular de urna
ópera; nao importa aqui separar. mas antes congregar, dado que toda a
ópera é cssencialmcnte
urna cxprcssáo da idcia e, exceptuando alguns
números, rcpousa essencialmente
ncla , gravitando na direccño da ideia
com nccessidadc dramática, como para o respectivo centro. Por isso, surge
aquí 1901 de novo oportunidade para ver com que signiñcacáo posso cu
atribuir aos estadios antecedentes essc norne , quando chamo ao tercciro
estadio «Don Jua1,1». Anteriormente, já eu havia recordado que nao tém
nenhuma existencia em separado, e quando se torna como ponto de partida
este tcrceiro estadio, o qual todo o estadio propriarncnte dito, cntáo. nao
podern ser tao bem observados cnquanto abstraccócs unilarcrais, ou enquanto antccipacócs preliminares, mas prefcrencialmente como pressentimentes de Don Juan: só que continua. contudo. a sobrar scmpre alguma
coisa que de algurna maneira justifica que eu use a expressíío «estadio»,
que eles sejarn pressentiment.os unilaterais, e que cada urn deles pressinta
apenas um lado.
No prirneiro estadio, a conrradicáo residia no facto de o desejo nao ter
nlcancado objecto nenhum, porérn, sem ter desejado, ficou na possc do seu
objecto, e nao conseguiu de modo algum dcsejar ardentemcnte. No segundo
estáclio. o objecto mostra-sc na sua multíplicidade, mas enquanto o descjo,
nesta multiplicidade, procura o seu objecto, cm sentido mais profundo nao
obtém todavia desejo algum. nao está ainda determinado como desejo. Ao
invés, em Don Juan, o desejo está determinado como desejo em absoluto e,
cm sentido intensivo e extensivo, é a unidade imediata dos dois estádios
precedentes. O primciro estádio descjava idealmente o uno; o segundo dcsejava o sing~lar sob a <leterminac,:ao do múltiple~, o tercei'.·o estádio é a
unidade daí resultante. No singular, o desejo possu1 o seu objecto absoluto.
ddeja cm absoluto o singular. Nísto reside o que é próprio da sedu\:aO, de
é
poste, nño estou no caso de ter de seleccionar
1
é
73 Vd. acima nota 62.
J
t
122
121
que adiante havcrernos ele falar, Neste estadio. o desejo é por isso absolutamente salutar74, vitorioso, triunfante, irrcsistível e demoníaco. Nao é obviamente de descurar que nao se trata aquí do desojo num indivíduo singular,
mas do dcsejo enquanto princtpio, determinado espiritualmente como aquilo que o cspírito excluí. Esta ideia a icleia de genialidadc sensual, tal como
tambérn acima sugerimos. A expressáo para esta ideia Don Juan e, por seu
turno, a expressáo para Don Juan é única e exclusivamente a música. Sao
especialmente estas as duas observacócs que serño arniúde destacadas de
diferentes lados no que adiante se seguc, ao mesmo tempo que é indirectamente aprescniada a preva da significacáo clássica tiesta ópera. Para entretanto tornar rnais fácil ao lcitor a manurencáo de urna panorámica de conjunto, procurarei reunir observacócs csparsas cm pontos particulares.
Nao é minha intcncño dizcr algo ele particular acerca desta música e,
com o apoio de todos os bons cspíritos, irci especialmente resguardar-me
de cspavorir conjuntamente urna multidáo de predicados, insipientes. mas
muito alarmantes. ou de denunciar a impotencia da linguagem com lascivia
linguística, 1911 tanto rnais ainda que nao vejo isso como urna irnperfcicáo
da linguagem, mas antes como urna potencia elevada, masé por isso que
csrou ainda mais disposto a reconhcccr a música dentro dos scus limites. O
que em contrapartida larci
em parte, iluminar a idcia de tantos lados
quantos os possfvcis, e 11 sua rcla9ao com a linguagern, e continuar assirn a
circunscrever cada vez rnais o territorio no qual a música habita, bern como
a angustiá-Ia
para que irrornpa e, na medida cm que ela se Iizcr ouvir, scm
que eu possa todavía dizcr mais que nao seja: «ouve». Em minha opiniño,
terei fcito o máximo que a estética é capaz de Iazer; se screi bem-sucedido,
outro caso. Apenas num único lugar um predicado indicará a respectiva
sinalizacáo, corno se Iosse um mandado de captura, sern que por isso eu
ven ha a esqucccr, ou a permitir que o lcitor esqueca, que quem tcm na máo
um mandado de captura ele modo algum capturou a pessoa sobre quem ele
recaí por cssc motivo. Também tocio o plano gcral da ópera, a sua constru9ao interior, será objecto de comentario específico em lugar proprio, mas
voltará por sua vez a ser feito ele modo a que eu nao me ponha em altos
berros, a valer por dois: «0! bravo schwere Noth Gotts Blit; bravissimo» 75,
mas antes tente sernpre fazer com que o musical apareen; e cm minha opié
é
é.
é
74 «Verdadeiro». i. e .. «.wnd». na primcisa ecli~ao de E11tenEller, e nao «sund».
75 Em alemao no original: <<Oh! brnvo. grande necessicladc. raios me· livrcm. bravíssi1110>>. Cita1;ao retirada da pc~a de .lohanncs Ewal<l (1743-1781),
De brutafe Kfappere,
lragicomisk Forspil i 1 Acl lOs Brutais Mernbros da Claque. Prelúclio Tragicómico em
Um Acto J; vd. J. Ewal<l, Samlede SkrUier 1 Escritos Completos), vol s. 1-VI, Copcnhaga:
Gylden<lal, l 914-1924; vol. 11. 1915. p. 125. l. 29. Kíerkegaard volta a ulilizar esta cita9ao no prefácio ele O Co11cei10 de Angús1ia. S\! 1, vol. fV. SKS. vol. 4. p. 313. p. 280:
na 1 radu~i'io brasi lei ra, p. 9.
uiuo, rcrci desta forma feíto o máximo que cm sentido puramente estético
< possfvcl fazer corn o musical. O que eu, portante, quero oferecer nao
un: corncntário corrido da música, o qual nao poderá entretanto contcr esscncialmcntc outras coisas para além de casualidades subjcctivas e idiossincrasias, podendo apenas dirigir-se a algo que lhe seja correspondente
j11n10 do lcitor. Nem urn comentador tao multiíacetado e corn urna expréssiio tao requintada e elaborada na reílexüo como o Dr. Hotho conseguíu
todavía evitar que, por um lado, a sua interpreracáo degenere numa verborrcia que acaba por gerar a contrapartida da riqueza tonal de Mozart. ou que
soc como um eco fraco, urna pálida cópia da esplendida exuberancia inteiramcnrc tonal de Mozart e, por outro lado. nao conscguiu evitar que Don
J11a11 ora se torne mais do que ele é na ópera, passando a ser um individuo
rcflcxionantc, ora se torne menos. Este último aspecto encentra fundamento óbvio no facto de o ponlo central, profundo e absoluto, de Don Juan ter
escapado 11 Hotho; para Hotho. conrudo, Don Juan apenas a melhor ópera, nño é qualitarivamente diferente de todas as outras óperas. Mas quando
nao se inteligiu isto corn a scguranca omnipresente do olho especulativo,
cntño, nao pode falar-sc digna ou justificadamente ele Don Juan, mesmo
que, ti ves se ísso sido i ntcl igido, csti vcsscrn reunidas as cond i9oes para fa lar
sobre o assunto. ele urna rnancira mais magnífica. mais rica e, acima de
ludo. mais verdadeirn, do que a daquelc que aqui se atreve a lomar a palavra. - 1921 Ao invés, continuarci a detectar o musical a partir da icleia, da
situa9ao, etc., a cscutá-lo, e quando tiver cntao levado o leitor a ficar musicalmente receptivo a um grau tal que lhc parece estar a ouvir a música
apesar de nada estar a ouvir, eolao. terei cumprido a minha larcfa e, entao,
calar-me-ei. dizenclo ao Jeitor tal como a mim mesmo cu digo: «ouve».
Vós. espfritos am{iveis. que protegeis todo o amor76 inocente, a vós enco.
rnendo toda a minha mente, fazei com que os pensamentos em laborac.:ao
possam ser dignos do objecto, moldai a minha alma como um instrumento
harmonioso, fa1,ei com que as suaves brisas da eloqucncia corram sobre ela,
enviai-me o Crutuoso refrigério e a frutuosa bcrn;iio das clisposi9oes! Vós.
espírit.os justos, que estais de guarda nas linhas de frontcira do reino da
beleza, protegei-me. para que eu, levado pela co1ú'usao do entusiasrno e
pela cegueira do zelo. nao fa¡;:a ele Don Juan tuclo, nao cometa a injusli9a
de o apoucar, fazendo-o diferente daquilo que realmente ele é, que é ser o
máximo; vós, espíritos fortes. que sabeis captar o cora9ao do homem, ficai
do meu lado para que cu possa prender o leitor, nao nas redes da paixao ou
nos artificios da cloqucncia, mas na verdade eterna da convic9ao.
é
é
76 Aqoi. «K)crrlighed».
Oti
124
1. A Genialidade Sensual Determinada corno Scducao
'\
'\
\.).
1111·11!11
lit Vldll
a ldade Médiu. Po1 tanto, a idcia pericnce ¡, ldadc Médi:1 c. por seu
turno. na ldadc Médi;J uño pcrtence a um poeta particular, é urna dcsras idcins
prirnordiais que irrompcm com originalidadc autóctono no universo da consciencia da vida popular. Havia de ser a fractura entre a carne e o espirito i11
uoduzida no mundo pelo cristianismo aquilo que a Idadc Média tomaría como objecto de consideracáo sua e, para esse Iim. Iaria das torcas em combate.
cada urna por si, um objecto da intuicáo: Ora. Don Juan, se assirn ouso di/cr,
a incarnacáo da carne, ou a inspiracáo da carne pelo genuino cspfriio da
carne, o que acuna já Ioi suficientemente destacado: ao invés. aquilo para que
eu qucro chamar a atcncáo a qucstáo de saber se se eleve atribuir Don .Jun11
a Alta Idadc Méclia ou ~l Baixa Idadc Méclia. Seguramente que para qualqucr
um será fácil notar que Don Juan cstabclccc urna relacño csscncial com a
cavalaria medjcva!82. Ora. ou ele é a anrccipacño divergente e mal entendida
do erótico, que vcm A luz no cavaleiro, ou a cavalaria medieval urna oposic,:üo ao espírito, apenas ainda relativa e, só na medida cm que a oposicño se
cindc ainda mais profundamente, só entño. ganhu Don Juan visibilidadc 11a
quulidadc daquilo que é o sensual, o qual, na vicia e na ruorte. está contra o
espirito. No tempo dos cavalciros. o erótico possui urna certa parecenca com
o erotismo helénico, sondo que este é dcsignadamente determinado animica
mente tal como o primeiro, rcsidindo iodavia a difcrcnca no facto de esta
dctcrminacño anímica cair dentro de urna dctcrrninacño espiritual universal.
ou de urna dcterminacáo tida como totalidacle. A ideia ele feminilidadc esl:.í
conunuamcnte em movimcnto de multas maneiras. nao sendo este o caso no
helenismo. no qual cada urna era apenas uma indiviclualiclacle bela sem que
fosse pressentida a feminilidade. Tambérn por isso, na consciencia da ldadc
Média, o erótico do cavaleiro estabelecia urna relacüo de algum modo conciliatória como espirito, se bem que o espíritu, na sua ciosa 1941 scvcridadc. o
mantivesse sob suspeita. Ora partindo de que no mundo se supós o priucípio
do cspfrito, ou se imagina que primeiro surgiu a oposicño rnais flagrante, n
separacño que mais brada aos céus, atenuando-se clepois gradualmente. e Don
Juan pcricnce nessc caso a Alta lclade Média; ou, proceclenclo inversamente.
admite-se que a rclacño se loi progrcssivamente clesenvolvendo até atingir
esta oposicño absoluta e, assirn sendo, também é mais óbvio, na medida em
que o espirito retira cada vez mais as suas accóes da socicdadc anónima para
agirsozinho, produzindo-se por essa via o oxavocLf..ov!l> propriamcnic dilo
e, cntáo, Don Juan pertence a Baixa Idade Média. Somos pois levados até ao
ponto no tempo no qual a ldade Média está prestes a erguer-se, e também aí
mente
Nao se sabe quanclo tcvc origcm aideia de Don Juan, sabe-se apenas que
pcrtence ao cristianismo e que, percorrendo o crisiianismo, pertence por seu
turno a Idadc Média.
Se nao fosse possívcl sczuir
a ideia com alaurna
sesu....
._,
....
b
ranca, recuando na consciencia humana até cssc capílulo da história universal, urnn ohscrvac,;ao sobre a constitui<;ao imerior da ideia seria desde logo
capa7. de afastar qualquer dúvida. A ldade Média é acima de tuclo tcmpo77 da
rcprcsentac,;ao, por um la~lo, .conscicnle e, por outro~ inc9nsci~nl~;2 total
representado num inclivíduo singular, de mo)de. porén)1.~ m1e seja apenas UH)
1ínico lado a ficar determinado como tota.lidade; e como ganha, enlao visihilidade nuni inclivíduo singular, o qual é. por isso, tanto mais quanto é meno~
do que um indivíduo. Junl.o desse indivíduo está assim um.ottl.ro indivíduo, o
qual como que representa toialmcnte um ourro lado do contetído da vida;
assim acontece com o cavaJei.ro e o escolástico, com o clérigo e o lcigo.
A magnificente dialéctica da vida é continuamente iluslrada por intlivíduos
reprcscnlantcs, os quais na maioria das vezes se conl'rontam um como oulro,
aos pares; a vidu cslú continuamente presente apenas suh 193111110 specie.7R. e
a grande unidadc dialéctica que a vida possui na unidade sub utmque specie7Y
nao é prcsscntida. Por jsso. os contrários sao na maioria das vc1.cs fadü'erentes
um ao oul.ro.A Idade Média nao sabia clisso. Sendo assim, n.:alfaa jnconscienternente a própria ideia da rcprescnt.a<¡:i'ío, ao passo que só uma posterior ohserva~ao ve a idcia aí contida. Se. para a sua própria consciencia, a ldadc
Média supoc um inclivíduo como representante da icleia, entao, a seu lado e
ern rcla9iio com ele. supüc de bom grado um outro indivícluo; é comum ~cr
esta rclac,:1ío uma relac,:1ío cóntica, sendo que um dos indivíduos como que
corrige a desproporcionada grandeza do outro cliante da vida real. G assim
que. a seu lado, o rei temo bobo, Fausro tem WagnerK0,Do.!!iQui.xore_,S(l11c/Jo
Panf¡a81; Don Juan, Leporcllo. Esta forma9ao lambém pcrlence essencial-
e
1'
Ou. Um l•ir1¡
77 «Idee». 11a primeira edi\ao de fi1tl1!11·liller.
78 Expressfío latina usada no rito católico para designar a comunhao pelo pao.
79 Exprcssao latina que designa a comunhao pelo pao e pelo viuho.
80 Criado de f'austo no Fausl de Goethe. Entre 1835 e 1837 Kierkegaard recolheu
inúmcros ele1m:ntos de investigai;ao sobre a leuda de FauMo. distribuklo1> por cerca de
sesse11ta e1nraclas dos diários e cadcmos: o projccro foi abandonado ap6s a publicai;i'ío
do opúsculo de Hans L. Mancnscn ( 1808-1884) Ueber l.e11au'.~ Fwm !Sobre o Faust de
Lenau], Estugarda. 1836, o qual constituía a úll.ima parte de 11111 outro escrito. «Bctragtninger over Ideen aj'f'aust. Mcd 1 Jcnsyn paa l.e1wus hlllsl>> IOb:-crvac,;éics ~obre a Idcia
de Fausto. Com Rcspcito ao Fausto de Lenauj. l'erseus, .loumal .fin· de11 spec11/alive
fdee IPcrscu, Jornal para o Pensamenlo Especulativo]. edi9i\o de .J. L. l lciberg. n.u 1.
Junho de 1837. Copenhaga, pp. ')1-164.
81 Kierkegaard possuía dua& tradt196es da obra de Cervantes: a di11n111arquesa.
LJun
Quixote aj ;\tfunchas lel'!1el ug Bedri(ter [Vida e Pcitos de Don Q11 ixotc da Mancha].
é
é
é
traduc;ao de C. D. Biehl, vols. 1-IV. Copenhaga. 1776-1777; e a al.cma. Don Q11ixore von
/..a Mancha. tradui;.:ao de Heinrich Reine. vols. 1-II, Estugarda. l 837.
82 «Middelalderem>. i. c., «a ldadc. \llédia». na prirneira edic;ao de tirtlen-t:ller.
83 Ern grego no original: «escándalo».
12(i
Ou
encontramos urna ideia aparentada. designadamcruc a idcia de FHU1'to, so que
Don Juan tem de situar-se um pouco mais cedo. Na medida em que o espirito.
ao estar única e exclusivamente determinado como espirito, abdica dcste
mundo, sente que o mundo nao é meramente a sua casa, se bem que afina!
nao scja também o seu palco, retirando-se para as rcgiócs mais altas; deixa
assim para tras o mundano como espaco de recreio para o poder, como qua!
sempre vivcu em Juta, e ao qua! cede agora o lugar. Na medida em que o espírito se desprende da terra, a scnsualidade mostra-se assirn com todo o seu
poder, nada tcm a objectar contra a mudanca, tambérn lhe inteligível que
ganha ern ficar separada, e alegra-se com o facto de a Igreja nao permitir que
continuern juntos. mas corta o elo que os unia, Mais forte do que alguma vez
antes cstivera, a scnsualidade despena agora com toda a sua riqueza, com
tocio o regozijo e júbilo e, tal como a solitaria habitante da natureza, a rcscrvada EcoK4 (que nunca fala primeiro a ninguém ou nunca fala sem a tcrcm
interrogado, encontrando grande contento na trompa do cacador e nas suas
cuncóes de amor, no latido do eso, no rcsfolgar do cavalo, nunca se cansando
ele o repetir vczcs a fío e, por fim. rnuito suavemente para si mesma, para nao
o csqucccr), também assim o mundo intciro se tornou urna morada que por
tocio o lado Iaz ceo do cspírito mundano da scnsualidade, ao passo que o espfrito havia abandonado a terra. Na Idadc Média ouvia-se muito Ialar de um
monte que em mapa nen hum se encentra denominado monte de VénusK5.
É onde habita a scnsualidadc,
onde habiiam as suas alegrías bravías, pois
de um reino. de um estado, que se trata. Ncstc reino, nao habita a linguagem.
ncm a sobriedade do pcnsamento, nern os aladigados afazercs da rcflcxáo,
ncssc reino ouve-sc sirnplcsmente as vozes clcrncntais da paixáo, o jogo da
volúpia, o ruído bravío da embriaguez. nesse reino desfruta-se simplesmcntc
com eterno folguedo. O primogénito deste reino é Don Juan. Nao se quer com
isto dizcr que o reino do pecado, ciado que tal facto tcni de 1951 ser apreendido no instante ern que se mostra corn indiferenca estética. Só se mostra
como reino do pecado, quando entra em campo a reflexño, mas ncssa altura
Don Juan está morto, a música cala-se, vé-sc apenas o desafio desesperado
que contra ela vocifera impotente, sern que todavía encontre consistencia al-·
guma, nem mesmo nos sons. Na medida ern que a sensualidade se rnostra
corno aquilo que h<í de ser cxclufdo, como aquilo com que o espirito nada
qucr rer que ver. scm que rodavia este tivesse ainda pronunciado um juízo
sobre cla, ou a tivesse condenado, o sensual assurne assim essa forma, a forma do demoníaco na indifcrenca estética. É apenas um assunto do instante,
ludo depressa se modifica, tambérn a música cntáo acaba. Fausto e Don Juan
sao os titas e gigantes da Idade Média, nao sondo diferentes dos da Antiguidado pela grandiosidade dos esforcos, mas cortamente por se erguerern isolados. por nao criarem urna uniáo de forcas que só se tornaría titánica através
da uniáo; mas toda a forca fica reunida nesse único inclivíduo.
Don Juan é pois a cxpressáo para o demoníaco, determinado como o
sensual, Fausto é a cxpressáo para o demoníaco, determinado como o
espiritual
que é excluido pelo espirito cristáo. Estas ideias cstabelecem
urna relacáo csscncial urna coma outra , e térn mu itas parecencas; portan10. poder-se-ia esperar que tarnbérn tivcsscrn cm comurn rerern ambas
sido preservadas numa (enda. É sabido ser este o caso de Fausto. Existe
um livro popular cujo título é sobejamcntc conhecidot", se bem que o livro tenha menor uso. o que é especialmente
curioso nos nossos tempos.
nos quais tanto se tem trabal hado a idcia de Fausto. Assirn acontece quando urn qualquer profcssor ou docente livre em ascen~ao87 .• alguém amadurecido espirilualmenle.
cm sua opiniao, ganha créüito junto da corle do
público leitor ao publicar um livro sobre Fausto. no qual repele fielmente
o que todos os outros licenciados e confirmantes811 científicos j¿\ haviam
dito; em sua opiniflo, podem ter a ousaclia ele clcscurar um tal livrinho
popular e insignificante.
Nunca lhe ocorrc como é al'inal tao bclo que a
verdadeira grandeza seja comum a tocios, que um campónio se dirija a
vit'.1va do TribJerH9 ou a uma cantadeira da Halmtorv90•
e leía para si a
é
é
é
é
84 Vd. nota 32 no capítulo «Diapsal111ata».
85 A ideia ele um lugar-origem para a sexualieladc remonta a primcirn mctadc do século xv. e consta das 'fo1111hauserballaden 1 Baladas ele Tannhiluscrl, transcrita~ pela prime ira vez no início do século xvr: edi~ao consultada pelo autor: Der Ta1111hiiuser 10
Tannhiiuscrj, in Des K11obe11 W1.111derhom. Alte deutscl1e l .ieder 1 A Trompa Mágica do
Rapaz. Poemas J\lcmaes Antigos], cdi<;ao de L. Achim von Arnim e de C. Brentano,
vols. 1-111, 2." edic;:ao. Heidelberg, 1819; vol. l, pp. 86 e segs. Vd. também De~ Knabe11
Wwulerhom. /\Lte deuls<'he Lieder, edic;:ao de L. Achirn von Arni111 e Clcmcns Brentano,
posfácio ele Willi A. Koch, Munique: Winkler Verlag. 1964. pp. 60 c ~cgs.
Ou, Un1 l•10¡·111r111u
dl· Vid11
127
86 Relato lcndário da vida do Doutor Johann Faust (c. 1490-c. 1540), mágico e alquimista, e do scu pacro com o cliabo. A primcin1 cdi((fío cm dinamarqucs é De11 i den
gandske Vel'llen hekie11dte F:rt::,- Sort- K1111s1ner og frold-Kur/ Doclor Johan Frwsl, n¡¡
/fans med Dievelen oprellede Forhund, For111ulri11g.~fulde Lev11el ug skra:kkeliRe E11delig1 {O Mundialmente Conheciclo Alquimista e Aprendil de Peiticciro. DouLor J. F., o
Scu Pacto como Diabo. a Sua Vida Adminívcl. e o Scu llorrcndo Finall, Copenhaga.
s. d.: vd. ig~ah11ente Ein Volkshiichlein 1 Um Livrinho Popularj, edic,¡ao de L. Aurbachcr.
vols. 1-11. 2." edi<.,:ao, Muniquc: 1835: vol. Tl.
87 Alusao ao opúsculo de H. L. Martcnsen. Vd. acima nota 80.
88 Aqui. «Confir111ander>>, os que se preparam para reccber o sacramento da Confürna9ao.
89 Elisabelh Margrethc Tribler hcrdou o negócio do marido em 1818. e nos livros e
can((oes que cditava ligurava a inscri9ño cm que se identificava como «viúva do cncadernador»: <~J::. M. Trihler. Bogbinder Enke. Holm~~nsgade114.>> l'or seu turno. Hilarius
Bogbinder. o alegre encadcrnaclor que cdiW Stadier paa Livets \l¡~i IEstádios no Can:tinbo da Vida). é viúvo. e evoca crn várias instancias o papel determinante da falecicla
esposa para o cabal desempcnho das suas fun<.,:i'íes de pai e de cncadcrnador.
90 Antiga pra9a de Copenhaga. hojc a Radhusplads, a Prn9a do Município.
129
128
meia-voz, ao mesmo tempo que Goerhe cornpóc urn poema de
Fo11s19'.
E na verdade , este livro popular merece ser tido em conta , tcm acima de
ludo o que se elogia como urna qualiclade louvável no vinho, tern houquet, é um excelente produto engarrafado que vem da Idacle Média e.
quando se abre, derrama sobre um individuo um aroma tao perfumado,
delicioso e característico que, estranhamente , acabamos por ficar como
ele. Mas já basta disto, 1961 quería simplesmente chamar a atcncáo para o
facto ele nao se encontrar qualquer lenda deste tipo acerca de Don Juan.
Ncnhum livro popular, nenhurna balada. scmprc publicada este ano92,
preservou Don Juan na recordacáo. Presume-se que até tenha existido
urna lencla, mas rcstringiu-se, corn roda a probabilidade, a um único e só
inclício, porvcntura aincla mais breve do que as escassas cstroles que
constitucm o fundamento de Lenore de Bürger'", Talvcz contivesse urna
mera indicacño numérica, pois pode ser que eu esteja rnuito enganado,
mas o presente número de mil e Lrcs pertence a urna lcncla. Urna lencla que
nao contivesse mais nada parece urn tanto pobre e, conquanto seja fácil
de explicar que nao tcnha sido recolhido por escrito, esse número é urn
excelente atributo, urna ousadia lírica, cm que rnuitos tal vez nem rcparcm
por estarern tao habituados a vé-lo'": Se bcm que esta ideia nao renha
encontrado urna expressño assim muna lcnda popular, entño , ficou preservada ele urna outra maneira. R sabido que Don Juan, há muiro tempo,
cx istiu , designadarncntc como peca burlcsca95, terá decerto sido propriamente esta a sua prirneira existencia. Mas a ideia foi aquí concebida do
ponto de vista cómico, sendo no gcrat de assinalar que a ldudc Média foi
tao_ l~sta a rnunir-se de ideáis quaruo a ter a certeza de ver o cómico que
residía na grandeza sobrenatural do ideal. Fazcr de Don Juan um fanfarráo. que se imaginava como tondo seduzido todas as raparigas, deixando
que Leporello acreditassc nas suas mentiras, nao era certamente urn plano
gcral cómico que tossc desafortunado ele tocio. E nao tivesse siclo este o
caso, nao tivessc sido esta a concepcño, a viragern cómica nunca poderla.
entño, ter deixado de aparecer, já que cla reside na oposicáo entre o herói
( J•
( .
~
'1
91 c:;oethe ocupou-se de Faust. em diferentes fases de escrita, entre 17<ft) ~ 1832.
92 A época de Kierkegaard, esta era urna frase de inscrir,:ao frcqucntc na capa das
edicñcs de contos e de leudas populares.
93 Goufried August Bürger ( 1747-1794),
poeta alemáo autor da balada «Lenore»
( 1774). a partir de urna tradicño oral, na qual se narra a histeria ele urn rei morro, Wilhelrn, que vern durante a noite buscar a sua amada para a levar para o scu túmulo; vd.
Biirgers Gediclue [Poemas de Bürgcr], Gotha. 1828. pp. 48-57. Vd. nota 102 ern «Diário do Sedutor».
94 <<A ouvi-lo», i. e .. «at hore det»; na segunda edic;;ao de Enreu-Ellcr,
95 A vld.f!..~)on Juan foi difundida através da Europa por grupos de teatro ambulante, e também pelo teatro de marionetas e ele fantoches.
0 teatro no qual se movlrucnta. É tarnbérn assim possível , na lclade Média, ouvir contar histórias ele hcróis construidas com um tal vigor que lhes
punharn rncio palmo entre os olhos, mas se um hornem cornurn subisse ao
palco mostrando cara de qucm tcm meio palmo entre os olhos, entáo, o
cómico fica em pleno undamento. O que se disse a respcito da lenda de
Don Juan nao havcria <le encontrar aquí lugar, se nao cstabeleccssc urna
relacáo mais próxima com o objecto <leste cstudo, se nao servissc para
conduzir o pensamento até ao objectivo anteriormente determinado. O
motivo pelo qual esta icleia, em comparacáo com Fausto, tern um passado
tao pobre reside corn tocia a certeza no facto de ela encerrar algo de misterioso, cnquanto nao se inteligiu que a música era o seu meio propriamente dilo. Fausto é idcia, mas urna icleia que, ao mesmo tempo, é essencialmente um individuo. Imaginar o demoníaco espiritual concentrado
num único individuo 1971 é consequéncia própria do pcnsamento, contrariamente ao facto de nfüner possível imaginar o sensual num único indivíduo. Don .luan está no contínuo pairar entre ser ideia, ou seja.. f'or9a,
vicia - e indivíduo. Mas esse pairaré a vibra9ao musical. Quando o mar
se movc agitado, ncsse dcsassosscgo, as ondas espumosas formam enlfto
imagcns scmelhantes a scres96; é como se fosscm estes seres a po-las em
movimcnto e, contudo, passa-sc o inverso, é a 011<.lulac;ao que cría as imagens. É assim 4ue Don Juan é uma i111age111 4ue se torna continuamente
visívcl, mas sern adquirir figura ou consistencia, é continuamente criado,
mas nunca l'ica pronto, nada se capta da sua história além de escutar o
barulho das ondas. Quando Don Juan é aprccndido dcsLa maneira, tudo se
reveste entao de sentido e de profunda significar,:ao. Se cu imaginar um
inclivícluo singular, se eu o vir, ou se eu o ouvir falar, entao, passa a ser
cómico que ele tenha seduzido mil e tres: assim que ele G um in<livícluo
singular, a énfase recaí inteiramente noutro lugar, sublinhando, designadamcntc, qucm ele seduziu e como secluziu. A ingenuidade da cren9a
popular e da kncla é capaz ele enunciar tais coisas sem deixar pressentir o
cómico, o que para a rcf'lexao é impossível. Ao invés. quanclo Don Juan
é concebido por música, entao, tenho nao um indivíduo singular, tenho o
poder da natureza, o demoníaco, que fica tao cansado de sccluzir ou ele dar
a seclU<;ao por terminada quanto o vento fica cansado de bramar, o rnar ele
encapela'r-se, ou uma cascara de precipitar-se da sua altura. Aliás, o número de seduzidas pode também ser um outro qualquer, muitíssimo
e
96 Tal como consta da gravura CXY. com a legenda «Welle11111iidche11» LOndinas]. na
obra de W. VoUmcr, Vol/s1andiRes Worterbuch der Mytlwlogie aL/er Na1ionen [Dicionário Completo da Mitología de Todas as Na9oes], Estugarda, 1836. na posse de Kicrkcgaard; rcproduzida cm SKS, vol. K2-3, ilustra9ao 18, p. 129. Doravanle. esta obra é
mencionada pelo nome do autor.
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maior. Nao é amiúde um rrabalho fékil, quando se qucr traduzir urn libreto de urna ópera, fazé-lo com tanto cuidado que a traducño nao vcnha
simplesmente a ser cantável, mas antes, quanto ao sentido, esteja razoavelmente em harmonia como libreto e também coma música. Exernplificando como isto pode as vczcs ser de todo indiferente, mencionarei a
grandeza do número na lista de Don Juan. sern que por isso leve o assunto da maneira lcviana com que o povo em geral a aceita, opinando que é
de pouca monta. Pelo contrario, tomo o assunto com um elevado grau
estético e sério e, por isso, em minha opiniáo, a grandeza do número é
indiferente. Quero apenas louvar urna qualidacle do número mil e tres, é
nomeadamente ímpar e casual, o que de modo algum é irrelevante, dá
designadamente a impressáo de que a 1 ista nao está de todo fechada, mas
que Don Juan, pelo contrario, prosscguc para diante; quase se chega a
lamentar Leporello, o qual, tal como ele próprio diz97, nao deve simplesmente estar de vigía a porta, antes 1981 deve além disso manter urna contabilidade tao circunstanciada que daria que fazer a um escriturário de
expediente com rnuita prática.
Tal como a sensualidadc está concebida cm Don Juan - cnquanto princípio - , nunca antes havia sido concebida no mundo; por ísso, o erótico
está igualmente determinado por mcio de um outro predicado. o erótico é
aqui seducüo . É bastante curioso que o helenismo tenha plenamente falta
da ideia de um sedutor. Nao é de todo intcncáo minha querer elogiar o
helenismo por tal facto, pois é bastante notorio para todos que, tanto os
deuses quanto os horncns, cram pouco escrupulosos nos seus casos amorosos; também nao é intcncáo minha culpar o cristianismo, pois com efeito o
cristianismo tern táo-somente a ideia fora de si mesmo. O motivo pelo qual
o helenismo carece desta ideia reside no facto de toda a vida helénica estar
determinada como individualidade. É assim que o anímico é o predominante ou o que está sernpre ern harmonia com o sensual. Por isso, o amor
helénico era anímico. e nao sensual, seudo isso que infunde a modestia que
repousa sobre tocio o amor grego. Apaixonavam-sc por urna rapariga, rnoviam céu e terra para chegarem ~1 sua possc; quando eram bern-sucedidos,
talvcz cmáo ficasscrn cansados, e procuravam novo amor. Na inconstancia,
deceno que podiarn ter urna certa parecenca com Don Juan e, para citar
apenas um, Hércules poderia bem contribuir com urna lista bastante considerável , quando se pondera que se encarregava por vezes ele famílias inteiras. chegando-se a contar até cinquenta ftlhas e, na qualiclade de gcnro
da familia, clava conta de todas elas, segundo alguns relatos, numa única
97 Y d. a primeirn <íria de Leporello, Notte e giorno fatticar ... , em que o servo se queixa de ter ele ficar na rua, cnquanto Don Juan está dentro <le casa com a seduz.ida, nesse
momento, Donna Anna.
·L C •>H . I''!.ll t 1'ctanto
por c~séncia
1 lércules é todavia diferente de Don Juan;
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nao é scdutor ncnhurn. Quando, dcsignadamente, se pensaAnº.ªm..or ~rego,
cnlao. de acorde corn 0 respectivo conceito, ele é.Pº'. ~ssenc'.a fiel , Jl:stamente por ser anímico. e aquilo que casual no individuo singular e ele ':;;
, ias e ern relacño
várias que ele ama é por seu ...tumo
casual em
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:ul1arvan<s.
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cada vez que ele ama urna nova; enquanto ama urna, nao pcns~ n~t p1~x . ·
Ao invés, Don Juan radicalmente um sedutor. O scu am<~r nao e p~1ql1JC_?·
é antes sensual' e o amor sensual, ?e .acord_? como rcspecttv.o ~once1to, nao ,,.> '· <'
é
fiel. mas antes absolutamente infiel; nao ama urna, mas sim todas, ou
scja , ele scduz todas. É amor, nomeadamcnte. apenas no ~1o~ento. mas, 1~0
· o m omento é pensado
como a soma dos momentos, obtendo
nos
conceito,
·e
.
assim 0 sedutor. amor do cavaleiro é portante anímico e, por isso. dec?rre do respectivo conceito ser por essencia fiel; de acordo como rc~p~~tlv?
conccito sé 0 amor sensual é cssencialmente infiel. Mas esta ~ua infidelidadc m;stra-se dcsignadamcntc rambém de urna 0~1tra man~"~"· torna~sc
continuamente apenas L1111a rcpctic,:ao. O amor ?ním1c? pos~u1 1)91 cm s1 ~
dialéctico cm duplo sentido. Em parte. possui cm. si, des1g1~adamcntc., a
dúvida e 0 dcsassosscgo. se bem que tambérn que1ra ser .feliz, ver o seu
c.lesejo99 cumprido e ser amado. O amor sens~al ~5o p~ssu1 est<~ pre~cup~'ÍÍO. Até um Ji1piter100 estt) inseguro e.Jo seu tnunlo, e nao pode ser ~e ou~a
~mancira,
·
ele 1-oderÍ'I
fossc de outra 111ancira. Nao
nem m e'mo
s
,
' dcseJ·ar oue
·1
.•
é c.:stc 0 caso ele Don Juan. ele abrevia o proccsso e tcm sempre de s~1.
pensado como vencedor absoluto. Poclia parecer urna vantagem .s~1a; n~as
trata-se afina! propriamente de urna pobrela. Por um lado, o a~no1 c1n11111co
tem igualmente urna segunda dialéctica, é, designadamenlc, d1ferc~tc tam~
bém na rela1rao com cada indivíduo que é o objecto e.lo. arnor. Reside aqui
a sua riqueza, o seu pleno conteúdo. Nao se passa ass1~ c~m. D~n, Juan_Nao tem, designadarnente. tempo para tal, para ele tuc.lo se limita a ser u~i
101 e cm certo sent1A
assunto do momento. Ve-la
e am á - ¡ a era urnas ·6 coisa
,
'
'
IH)I
as
>.;
é
•
é
o
9S Aos dezoito anos. Hércules matou um lcáo fcrocíssimo que atormenlav.a a rcgiáo ~o
.t .. :rei Tés¡)ÍO reccbeu cm sc.,uida Hércules cm sua casa e ofercceu-lhe ,1s
monte C L ei ,10.
·
º
. · . " d Ylillmer
suas cinquenta filhas para que c~tas pudcsscm concebcr horncns cor,\JOS<.>s. v ·
·
o
a
p. 833.
,,n1t1.~ke>> e. duas linhas adianle, «descjar» corresponde
99 Aquí. «desejo» tracluz , "'
forma vcrhal «1~nske».
.
·. ,
- e i ·ódios
lOO Júpiter. na mitologia romana, e Zcus, na grega, pro1.agon1zam lllurneros P s
s
eróticos.
· E ,
·h L ,~ premiers
LO¡ Alusao a urna réplica de Charles, na pec.a de Augustrn
ugene ·en e é, .
• .·
amours. que fundamenta o capítulo «0 Primeiro Alllor» em Ou.vd. A. l:.. Sci.ibc,
Denjórste Kjcerfighed. f.ys1spif; een. Act 10 Primciro Amor.. Comedia e1~ Um ~cto),
.
,- d J L Hcihero Det kon.<>eli<>e
Theaters Repertoire (Repert.6110 do leatro
0
tiac1 u<;ao e . · ·
e'
"
.
64
't 1
Real de Cope1lhaga], n." 45, Copcnhaga, 1832, cena 16, p. 13. Vd. nota
no cap1 u o
º'.';
«Diário do Scdutor>>.
112
\
do, podía dizcr-sc isso acerca do amor unímico. mas tambcm nqui !.!.-.ta
meramente sugerido um comeco. No tocante a Don Juan, aplica 1-C de maneira diferente. Ye-la e arná-la é uma sé coisa. e isso é o momento. no
mesmo momento ludo acaba, e repete-se o mesmo no infinito. Ao pensar
que o anímico está em Don Juan, torna-se assirn urna ridicularia ou urna
autocontradícño, que nem decorre da ideia, colocar mil e trés em Espanha,
Torna-se um exagero que produz um cfcito perturbador, mesmo que se
queira imaginar que está a ser pensado idealmente. Se nao se dispuscr de
outro mcio para dcscrcver este amor que nao seja a linguagern, cai-sc numa
situacño cmbaracosa, pois assirn que se abdicar da ingenuidade que. com
toda a inocencia, é capaz de sustentar que em Espanha havia mil e tres,
cntño , exige-se algo rnais. designadamcnte , a individualizacáo
anímica. O
estét ico nao fica de modo algum satisfcito por via de se pór ludo no mesmo
saco. e qucr surpreendcr pela grandeza do número. O amor anímico
movirnema-se justamente na rica multiplicidade da vida individual. na qual
os maiizcs constituern aquilo que é propriamcnte significativo. Ao invés, o
amor sensual pode por ludo no mesmo saco. O csscncial é para ele a fcmini lidadc, total e abstracta, e, no máximo. é a diferenca rnais sensual. O
amor anímico é subsistir no tempo. o sensual é desaparecer no tempo, mas
o rncio que o exprime é justamente a música. A música está cxcclcntcmcnte moldada para o cxecutar, dado que é multo mais abstracta do que a linguagcm, nao enunciando de todo o singular. mas antes o universal em toda
a sua universalidadc c. cornudo. nao enuncia esta universalidadc dentro da
abstraccño da reflexño. mas antes na concrerudc da imediaticidadc. 11001
Como cxernplo do que qucro dizcr, irei discutir com muis algum pormenor
a segunda ária do criado: o catálogo das scduzidas. Este número pode ser
visto como a epopcia de Don Juan propriamcntc dita. Se duvidas da justeza da rninha afirrnacño. realiza este experimento: Imagina urn poeta, habilitado pela naturcza com rnuito rnaior fclicidadc do que qualquer outro
antes dele. dá-Ihc abundancia de cxpressüo, dá-lhc domínio e autoridadc
sobre os poderes da linguagcm. faz com que tudo aquilo em que há o cspírito da vida lhc scja obediente, submisso ao seu ínfimo gesto, l'az com que
ludo csicja pronto e disposto espera da voz ele comando, fa¿ corn que se
rodeic de um numeroso grupo ele artilharia ligcira, de mensageiros de pés
.
l estos 102 que no scu rapiidíissuno
voo trazcrn o pensamemo, fa1 com que
nada lhe escape, ncrn o menor dos movimcntos, faz com que nao lhe reste
segredo algum, coisa alguma impronunciável
em todo o mundo - dá-Ihe
cm seguida a tarcfa de cantal' Don Juan cm epopeia, dcsenrolando o catálogo das seduzidas. E qual será o resultado? - Nunca mais acaba. O épico
tcm o dcfeito, se assim se quiser, de poder alongar-se tanto quunto quiser,
a
102 Alusño aos epítetos atribuídox por Homero a Mercúrio en Aquiles.
.., \
e
o hcrói, o improvisador , pode alongar-se tanto quanto ele quiscr. Ora o
poeta entrará na multipl icidadc, que sempre será o suficiente para lhc dar
alegría. mns nunca alcancará o efcito que Mozart alcancou, pois mesmo
que finalmente rerrninasse , nem havcria. cornudo. de chegar a dizer metade
daquilo que Mozarl cxprirniu ncssc único número. Ora Mozart nao se deixou levar pela multiplicidacle,
trata-se ele cortas graneles formacñes que
passarn cm movirncnto. Estas cncoruram a respectiva razáo suficiente no
proprio rncio, na música. que é demasiado abstracta para exprimir as diferencas. A cpopeia musical torna-se assim algo proporcionalmente breve,
possuindo todavía. de urna rnancira incornparável. a qualidadc épica de
conseguir permanecer tanto quaruo se qucira, dado que é possívcl. designada mente, comecar sernpre do início. e ouvi-la urna vez atrás da outra,
justamente porque o universal está cxpresso na concretudc da imcdiatlcidadc. Nao se ouve aqui Don Juan na qualidade de individuo singular. nao
-.e ouvc o scu discurso. ouvc-sc antes a vo«, o clamor da . ensualidade.
ouvindo nós isto através da clangucscéncia
da fcminilidacle. Só dc!.sa maneirn pode Don Juau tornar-se épico, estando conlinua111cntc a terminar e
continuamente a comc<rar de novo. pois a sua vicia é a ~oma <le momentos
que se rejeitnm, O!> quab, cnquanto momento. ncnhum cncadeamento possuem; enquanto momento. a sua vida é a soma de momentos e, cnqu111110
soma de momentos. é o momento. Nestc comum universal, ncsle pairar
entre ser indivíduo e ser l'orya da naturcza, 11011 está Don Juan: as!>im que
se torna indivíduo. o e\tético adquire categoría!> inteiramcnte clifcrcntcs. É
por isso perfcitamentc adequado e portador de profunda signilica9üo interior que, na sc<.iu~ao que decorre na pe9a. a ele Zerlina lll', a rapariga seja
urna camponcsa comum. Talvcz os estéticos hipócritas. os quais. vcstindo
a pele de quem cntende os poetas e os compoc;itores, em tudo contribuern
para este mau entendimenlo. nos impuscssem que 7,crlina é urna rapariga
incomum. Quem quer que seja desta opiniao mostra que entendcu Mozart
mal e que utiliza categorías erradas. Que cntendeu Mo1arl mal é bastante
claro, poi-; Mozart diligenciou por manter Zerlina tao insignil'icanle quanto
possível, algo a que também Hotho104 est<1 atento, sem que veja. porém, o
motivo profundo. Se. dcsignadamente, o amor de Don Juan tivesse sido
determinado de outro modo que nao fosse o c;ensual. se ele tivesse sido um
~cclutor de significa~ao espiritual, algo que posteriormente passará a ser
objecto de observayi\o, cntao, havcria um erro fundamental na obra: a heroína da seduc;fio, com a qual nos confrontamos na obra do ponto de vista
103 A4ui. Don Gimw111i, Acto 1, cena 9; Krusc. p. 26. Todas as personagens da ópera
mozarti.ana ~tio designadas pelo nomc original. e nao pelas variantes cla adaptn~ao de
Kruse. utiliL.adas por Kierkegaard.
104 Vd. Hotho. Vors111dic11.pp. 109-110.
I
J
,,
134
011
~ramático, é urna pcquena camponcsa. A estética cxigiria assim que lhc
t1~ess: sido. a~ri~uída urna tarefá rnais difícil. Ao invés, estas difcrcncas
nao sao aplicávels a Don Juan. Se cu conseguisse imagina-lo a conduzir
sc~nelhante conversa acerca de si mesmo, tal vez entño ele disscsse: «Incorreís em erro, nao sou urn qualquer homem casado que necessite de urna
rapar~ga incomum para vira ser feliz; aquilo que me torna feliz, qualqucr
rapan~a o tcm e, por isso, Iico com todas clas.» É assirn que térn de ser
entendidas as palavras a que anteriormente recorri: «Até as coquetes de
s_~ssenta>), ou noutro passo: pur che porti la gonella, voi sapete que! che
.fa105. Para Don Juan, cada rapariga é urna raparíga comum, cada aventura
de amor é urna historia do quotidiano. Zerlina
jovcm e linda, e é urna
mulher, isto é o incornum que ela tem em cornum com centenas de curras
mas isto nao é o incornum que Don Juan desoja ardentemente, mas antes~
~omum. universal que cla tem em cornurn com qualquer das mulhcres, Se
1~t.o assun nílo acontecer, cntño , Don Juan ccssa de ser absolutamente musical e, enuto, a estética exige a palavra, a réplica, ao passo que agora, como no caso presente, Don Juan 6 absolutamcnrc musical. Qucro esclarecer
a construcño interior da obra tarnbém de um outro ponto ele vista. Para Don
J~1a11. Elvir:1 é urna perigosa i~1imiga; as réplicas que dcvcmos ao tradutor
dinamarqués desracarn-no rnuuas vczes. Por Don Juan a falar é corn toda a
certeza um erro, mas daí nao resulta que a réplica nao houvesse de contcr
urna obscrvacño particularmente boa. Don Juan, portaruo. leme Elvira. É
prcsumív~I que um ou outro estético, dando seguimento
sua opiniáo 11021
para exr~licar cabalmente tal coisa, dcsenrolassc urna longa conversa fiada,
que Elvira
urna rapariga incomum. etc. Tuclo isto falha o alvo. Para Don
Juan, cla pcrigosa porque é seduzida. No mesmo sentido, exactamente no
1~esmo sentido, Zcrlina torna-se para ele perigosa quando é seduzida. As~tm. que scduzida, é elevada a urna esfera rnais alta, há nela urna conscicncra que ?ºn Juan nfio pos~ui. Por isso, para ele, Zerlina
perigosa,
Portante, 11~10 é outra vez por vra do casual que cla é perigosa para ele, mas
antes por via do comum universal'P".
. P~r conse?uin~e, Don Juan sedutor, o erótico nele scducño. Ora com
i_slo d1z-~e ale muuo, quando 6 entendido corn corrcccáo, e pouco. quando
e entendido com urna certa falta ele clareza geral. Já vimos que 0 conceito
de s~dutor, no que dj~ rcspeito a Don Juan, fica modificado na esséncia, na
medida ern que o objecto do seu desejo ardcnte o sensual e apenas este,
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Ou. ll111 1•111n11K·11tu
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id.1
115
o quc
de s1g11il'icavao para mostrar o musical cm Don Juan. Na Antiguidude, o sensual cncontrou exprcssáo na quietude silenciosa das artes plásé
ricas, 110 mundo cristáo, tinha de fervilhar com toda a sua impaciente paixño. Ora, apesar ele também ser possível dizer, desta maneira, com verdade
que Don Juan é sedutor, esta expressáo, que pode fácilmente produzir um
cfcito perturbador nos fracos cérebros de alguns estéticos, tern dado frequcnrc ocasiáo a mau entendimento, na medida cm que se reuniu toda a
especie ele coisas que acerca disso pudcsscm dizcr-se, transferindo-as, sem
mais, para Don Juan. Urnas vezes, puseram a descoberto toda a sua propria
dissirnulacáu ao seguir no encalco da de Don Juan, mitras vezcs, ficararn
roucos de tanta conversa para explicar as suas maquinacóes e argucia. ern
suma, a palavra «sedutor» deu ocasiáo a que cada urn lhe fizesse oposicáo
como rnelhor podía, contribuindo com o scu 6bolo107 para um mau entcndimcnto total. Ao falar de Don Juan, lcrn de utilizar-se a palavra «scdutor»
com grande cautela, desde que seja mais conscqucnte dizcr uma coisa acertada do que dizcr seja o que f'or, nao porque Don Juan seja demasiado bom,
mas porque el.e nem sequer entra em determinac;oes éticas. Por isso, prefiro
chamar-lhe impostor, dacio que sempre aí reside, contudo, algo que é mais
equívoco. J>ara ser sedutor, é sernpre necessário ter uma cena rcflexao e
uma certa consciencia e, assim que clas estao presentes, pode entao ser
este o lugar para falar de maquina\:OCS, e de ciladas astutas1os. Falta a Don
Jtian esta consciencia. Por isso, nao seduz. Deseja ardentcmente, e esse
desejo procluz um efeito geraclor de sedu\:ao; ncsta medida, ele seduz. Desfruta a satisfa\:aO do clesejo; assim que a clcsfrurou, procura entao um novo
objecto, prosscguindo assim infinitamente. Por isso, certamente que engana, mas 11031 na.o de modo a planear a sua impo¡;tura de antemao, é o próprio poder da scnsuaiidade que cngana as seduzidas, e csse poder é antes
uma espécie de Némesis 109. Ele deseja com ardor e continua scmprc a desejar. desfrutando continuamente a satisfar;ao do descjo. Para ser sedutor,
falta-lhe o tempo para deline:u previamente o seu plano, e o tempo para
posteriormente ficar'consciente do seu agir. Um sedutor eleve por isso estar
na posse de um poder que Don Juan nao tem, por mais bern equipado que
de resto se enconlrc - o poder da palavra. Assim que lhc damos o poder
da palavra, cessa de ser musical. e o intercsse estético torna-se completamente diferente. Achim v. Arnim110 fala algures de um scdutor de um esti-
é
105 Em_ita~iano nu original: «basta que andern de saias. /e 1-:abeis 0 que ele faz», os dois
versos t111a1s da ána do catálogo.
106 Ao longo deste parágrafo. traduziu-sc «det Almindelige>>por «cornurn universal» d.e
modo.ª rnanter o paralcJismo corn o uso do correspondentc adjectivo <<afmindelig».
traduz1do aqur por «comum».
·
107 O episódio sobre o mau entcndimento do óbolo da viúva consta do Evangclho de
Marcos, 12:41-44.
108 Vd. Epístola de Paulo aos Efesios, 6: l l: «Revesti-vos de toda a armadura de Dcus.
para que possais estar firmes contra as astutas ciladas do diaho.»
109 Vd. nota 32 no capítulo «Diapsalmata».
11 O Esta é a única referéncia explícita em Ou-Ou a novela de L. Achim von Arnim.
11.rmul, Reic/11h11m, Schuld 1111d Buj.Je der Grii)7nDolores LT'obreza, Riqueza, Culpa e
011
)
lo imciramente diferente, um sedutor que entra cm dctcruuuucóc-, cricn ....
Para talar dele. utiliza urna expressño que. na verdadc, na ousadia e na
concisño. é quase comparável a urna arcada de violino de Mozart. Di1. Arnim que ele era capaz de fular de tal modo com urna mulher que, se o diabo
o apunhasse, entño, tinha conversa para se livrar do diabo, se conscguisse
chcgur a fa lar com a bisavó dele 111. Este
o scdutor propriamcntc dito , o
interesse estético tambérn aqui é outro, designadamente , o como. o método. ~
Por isso, reside urna coisa muis profunda, que tal vez tenha escapado aten9ao ele muitos, no facto de Fausto, o qual reproduz Don Juan, seduzir apenas urna rapariga, ao passo que Don Juan seduz as centenas; mas. assim,
esta única rapariga é, portante. seduzida em sentido intensivo e dcstruída
de urna maneira completamente diferente de todas as outras que Don Juan
cnganou, precisamente porque Fausto, enquanto rcproducáo, contém em si
a dererminacño do espirito. t\ fon;a de um scdutor deste tipo é o discurso.
ou seja. a mentira. Ouvi há día uro soldado a talar com um segundo acerca
de um terceiro que havia cnganado urna rapariga; nao forncccu urna descri<,;i'ío circunstanciada
e. cornudo, a cxprcssño que usou era inteiramcnrc
adcquada: «conseguiu a coisa com mentiras e coisas assirn». Semclhantc
sedutor é de um tipo completamente diferente do de Don Juan, na sua c~r
séncia é diferente dele, como pode ver-se pelo facto de quer ele, quera sua
actividade, sercm nño-rnusicais cm alto gran e, do ponto de vista estético,
se situarcm dentro da dcterminacño do intcressantc'!",
Tambérn por isso. o
objecto do seu desojo, urna vez estcticarnente pensado da rnaneira corta. é
algo rnais do que meramente sensual.
Mas que especie de forca é cssa coma qua! Don Juan seduz? G a forca
<lo dese jo ardcntc, a energía do desejo sensual. Deseja em cada mulher toda
a Ierninilidadc, e nisso reside o poder sensualmente idealizantc, como qual
ele embelcza ao mesmo tempo que triunfa sobre a sua presa. O reflexo 11041
desta gigantesca paixáo cmbeleza e dcscnvolve a desojada, que ganha o
rubor de urna belcza acrescida pelo resplendor do rcflcxo. Tal corno o íogo
do entusiasta ilumina com brilho scdutor até aquclcs que, nao sondo os
visados, corn ele cstabelecern relacáo, tarnbérn ele transfigura cm sentido
muito muis profundo qualquer rapariga. dacio que a sua relacño com ela
uma relacáo csscncial. Por lsso, todas as difcrcncas finitas dcsaparecern de
é
a
é
Peniréncia da Condcssa Dolores]. vols. 1-Il. Berlim, 1810; vol. II. p. 21. Na obra de
Arnlm, o seduror da Coudessa acompanhava a disposicño das scduzidus: era sensual
corn as scnsuais, obscrvava a moral comas moralistas. e orava corn as religiosas. Vd.
Achim von Arnim. Sümtliche Romane und Er:llhlu11gen [Romance!' e Narrativas Cornpletos]. cdicáo de Walrhcr Migge. vols. 1-111. Munique: Carl llansen. 1962· 1965: vol.
Ul. 1965. p. 248. Vd. igualmente notas 2 e 3 em «Prcfácio»,
J 11 Exprcssáo coloquial
que significa «fular de coisa nenhurna».
112 Enquauto categoría estética. Vd. nota JO ern «Prctácio».
011 ll111 1 1 a¡.:1111.:1110
de
117
Vtd.1
w~ parn ele, cm comparncao com nquilo que
o nsxunto pri11c'.p;.d: ~c.r urna
mulhcr. Rcjuvcncscc a-. muis vclhus na bela rncia-idadc da lem111d1da_de:
1111a-.c amadurccc as novinhas num ápice: rudo o que for rnulhcr consr.1tu1
p1l·~a sua (pur che porti la gonella voi sapete que! che ja). No e~tanto, isto
11t111 é para ser cnte11dido de modo nenhum como se a sensuahdade <lclc
lo\Sl! ccgucirn; instintivamente,
ele sabe fa1.cr muito bem a diferct~<,.:a e,
,1l 11na de tudo. ideaJiza. Se. por um instante, cu voltar a pensar aqut num
l''>tadio anlerior, no pajem, cntfio, talvez o leitor se recorde daquilo ~ue eu
JI' anles dis'>Cra, ao comparar urna réplica do pajem co~n urna répl1cn de
1 )on Juan. Fn~o parar 0 pajcm mítico, e mando o verdade1ro asscntar prn9a.
( )1 a -.e cu imaginasse que o pajcm n1ítico se havia libertado e se pusera em
111ovimcnto. cntao. recordaria eu aqui uma réplica do pajem que asscnta
hc111 em Don Juan. Chcrubino ao saltar da janela para fora11\ designada111c11rc (ioeiro como um passarinho e atrevido. causa uma imprcssao tao
' o
.
lortc cm Su\anna que cla quase de-.maia; quando depois ela volta a s1, cxrla111a: «Vede como ele corre - nao é que vai lcr succsso com as rapa11gasl» 1111 Trata-se, designada.mente, de uma coisa muilo hcm dita p~r Su-.anirn. e 0 fundamento do dcsmaio nao está na mera rcprcscnta9ao do
a11cvido salto, rnac; antes no facto de ele já ter tido suces~o com cla. OpafClll. designa<lamcntc,
é o futuro Don Juan, scm que isto tenha de ser entendido de urna mancirn tño L'isfvel como se o pnjcm se tornasse Don .Juan
quando tivcsse mais idadc. Ora Dl>n Juan nao se limita a ~cr feliz com .ªs
1 aparigas, ele torna as raparigas foli1cs e - infelit.es. roa~ é ha~tante cunoSil .,erem clas a quererem que a~sim scja. e seria urna rapanga horrfvel.
aquel a que nao <lcscjasse1 is ser infeliz por t.cr sido fcl iz com Don Juan uma
ve1.. Se continuar por is<>o a chamar sedutor a Don Juan. entao, de modo
algum o imagino como alguém que delineia os c;cus plano~ perfidamentc,
rn111abilizando com astúcia os efeitos das suas intrigas; aqullo com que l:lc
éngana é a gcnialidade da i;ensualidacle, sendo que ele é como se fosse a
im:arna<;ao dessa genialidade. ralta-lhc a circunspecc;ao tia csp~rteza: a sua
vida é espumosa como o vinho 4ue lhc dá fon;as, a sua 11051 .v•d~ move-:e
como os sons que lhe acompanham os repastos, é semprc lnunlante. Nao
11ccessita de ncnhuma preparairíio, de nenhum plano geral. de tempo ncnhum, porque está scmprc pronto. a forc;a e tá, dcsignadamente. semprc
ncle e. portanto, no dcscjo ardente. e só está realmente no seu elemento
quando deseja. Senla-sc
mesa, ergue o copo. alegre con~o um deus levanta-se de guardanapo na rn5o, pronto para o ataque. Se Leporello o
dc~pcrta a rneio da 110ite. acurda sempre seguro do seu triunfo. Mas esta
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a
1 13 Fígaro, Aclo II, cena 4; Givtermaal, pp. 55-58.
l l4 A frase ocurre apenas na versao de 11nrnn, <iivtermaal, p. 58.
115 Aqui. «í)nskede».
138
011 l
( )11
f~rc;a, este poder, a palavra níío conscgue exprimi-lo, só a 111ú1,jcn pode
oferecer-nos urna reprcscntacáo .. a qua! nao pode, designadarncntc, ser
enunciada pela rcñcxáo e pelo pensarnento. Posso distintamente por cm
palavras a argucia de um sedutor com urna determinacáo ética, e a música
arriscar-sc-ia cm víío a curnprir tal tarcfa. Com Don Juan passa-se o inverso. Que especie de poder este? - Ninguém o pode dizcr, mesmo se eu
pcrguntar a Zerlina antes de ela ir para o baile 116: «Que espécie de poder é
esse com que ele te prendc?» - rcspondcr-me-ia: «Nao se sabe»; e dir-lhc-i~t ~u: «M~it~ bern dito, minha filha ! falas com mais sabcdoria do que os
sabios da India. richtig, das weijJ man 11ich1117: e que infclicidadc níio ser
eu também capaz de to di/cr,»
Essa forca cm Don Juan. essa omnipotencia. cssa vida, só a música
capaz de exprimir. e nao conheco outro predicado alérn deste: jovialielade
exuberante de vida. Por isso. quando Krusc póc Don Juan a dizer, ao entrar
na cena da boda de Zerlina: «Décm larga a jovialidade. mocos! Até já esta is vestidos para a boda!»11x. está pois a dizer urna coisa intciramcntc
cerra e, ao mesmo tempo, algo mais do que ele talvez este ja a pensar. Quanlo ~1 jovialidade, é, dcsignadamcntc, ele próprio quem a traz consigo c. no
respeitante a boda. o facto de estarern todos vestidos como que para urna
boda nao dcixa de ter significacño, visto que Don Juan nao simplesmente
hom~m para Zcrlina, antes festeja com jogos e cuncñcs as bodas das jovcns
raparigas por tocia a paróquia. Nño admira. portante, que se juntcrn a sua
voila as alegres raparigas. E tarnbérn nao ficam dcsiludidas. pois ele tern
que chcguc para todas. Elogios, suspiros, olharcs atrevidos. apertos ele mño
suaves, secretos sussurros, a perigosa proximldadc, a tentadora distancia
- e estos apenas sao afinal os mistérios menores 119, prendas antes da boda.
Para Don Juan. motivo de júbilo lancar os olhos sobre tao rica colhcita,
cncarrega-se ele toda a paróquia C, contudo, nao lhe CUSta talvcz tanto tempo quanto aquclc que 1 .eporcllo gasta na contabiliclacle.
Arravés do que aqui foi desenvolvido. o pensamcnto é de novo dirizido
até ñquilo que é propriarncnre o objecto da investigacño: Don Juan absolutamente musical. Ele deseja sensualmente, scduz coma Jorca demoníaca da
scnsualidade, 11061 todas seduz. Nao lhc asscntam palavras e réplicas; cntño
passaria prontamente a ser um individuo reflexionanret-". Nao é este de todo
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116 Don Giovanni. Acto I, cena 18.
117 Em alemáo no original: «cerro, isso nao se sabe».
111
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11 vcu vubvrxrir,
ante'> se uprcssa nu111 eterno desaparecer, justamente como a
111ú<,ic~1. da qual se aplica dizcr que acaba quando cessa de soar, e s6 vcm
novamcntc ;, cxisténcia na medida cm que volta a soar. Por isso. mesmo que
cu vies ... e aqui lancar a qucstáo de saber qual o aspecto de Don Juan. !>C é
hc!o. se é jovern ou mais velho, que idadc aproximada rerá. entño, mais nño
Sl'r::í do que urna mera acornodacáo da minha parte; e aquilo que acerca dis'º posxívcl dizer apenas pode esperar encontrar aqui lugar com a mesma
.,ignificai;üo que urna seita tolerada o enc.:ontra dentro da lgrcja Oficial ele
1 ~~lado. É hclo. nao muito jovem; a haver de propor uma idadc. proporia
trinta e !Tes anos, designadamente. a idade de urna gcn1<;iio. Quando se csl<l
cnvolvido cm inves1iga90cs dcstc tipo. dá que pensar o facto de facilmcntc
\l: perder o total, na medida cm que nos detemos no singular. como se ro~sc
por intermédio da si1a beleLa, ou por conta do que para além disso fosse
po~sívcl nomear. que Oon Juan scdu1.; vcmo-lo, cntao. mas j:.i nao estamos a
ouvi-lo e, por via disso, perde-se. Orn se cu, na medida do possível. quisesse
por isso fa7.er a minha parte para ajudar o leitor a ter uma inrui9ao de üon
Juan, <liria: «ve, ci-lo, ve como os olhos dele flamejam, como os lábios se
abrem num soll"iso, tüo certo ele está do seu triunfo; observa 1.1 scu olhar
majestáti<.:o, cxigindo o que é de César121, ve como ele entra ligciro na dan~a.
com que orgulho estendc u mao. como está fcli1 aqueta que lha pede» - ou
entao, iría diz.er: «ve, ei-lo na sombra da floresta, encostado a uma árvorc,
acompanhaudo-sc
viola, e ve, desaparece além urna jovcm rapariga por
entre as {u·vorc '.angustiada como urna cor9a ~elvagem, ma!:> ele nao se aprcc;!la. ele sabe que ela o procura: ou emao, iria cliz.er: ei-lo que repousa na
rnargem do lago numa noite clara. tau bclo que a Lua fica parada a reviver o
amor da sua juventude, tilo belo que as raparigas jovens da cidade muilo
dariam para conseguir escapru· até ali e aprovcitar a escuridao do instante.
enguanto a Lua se crguc ele novo para iluminar o céu, para o beijar» - se eu
fizcss1; isso, u lcitor atcnLo cliria: «ve, lá estragou ele 1.udo pura si próprio, foi
ele mesmo qucm es4uecL:u que Don Juan nao é péU'a ser visto, mas para ser
ouvido». Portanlo. Lambém nao é isso que eu vou fazer. ames digo: «Ouve
Don Juan. digamos que se nao forcs capa7. de obter urna representac;í.io de
Don Juan ouvindo-o, entiío, nunca lambém o conseguirás. Ouve o comc<..;o
da sua vida; tal como o relfunpago se desprende da escurid5o das nuvens da
trovoada. também ele assim irrumpe <lo abismo da. crieclade, mais rápido do
que o curso do relámpago, rnais inconstante 11071 do que ele, e todavia com
a mesma cadencia; ouvc como se despenha na mullíplkidacle da vida. como
é
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a
118 C'ila<,:iío livrc a partir de Kruse.Acto 1, cena 8, p. '26.
119 Na Antiguidade grega, celchruvam.sc cm Fcvereiro os mistériox menores de Eléu-
sis. e cm Setembro o- misterios maiores.
120 O scduror reflexionante é Johanncs, o protagonista de «Diári« do Scdutor», capítuJo do qual podcrá dizcr-se que. a partir de urn objecto. a scduzida (Cordel ia e mu itas
curras). se cria um conceito de scducáo do qual a 1(12.<'ío náo se encentra excluida, ou
seja. o conhccimcnto gcrado provém contínua 1:: concomita.ntemcntc, no scu co111cúdo e
no scu pron:s).a1111::nlo, da razao e da sensibilidadc.
121 Vd. Matcus. 22:21: «f>isscram-lhc eles: De César. b1tao ele lhcs dissc: Dai, pois, a
César o 4uc é de Cé.<.ar, e a lJeus o que é de Deus.»
140
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irrompe contra as suas sólidas represas; ouvc esses sons do vinlino , ligciros
e dancantes, ouve os sinais de alegria, ouvc o júbilo da votüpia, ouvc a bcatitude festiva do desfrute, ouve u sua fuga bravia; corrcndo, ultrapassa-sc a
si proprio, sernpre mais rápido, sempre mais inconstante; ouve a concupiscencia desregrada da paixáo, ouve o sussurro do amor, ouve o murmurio da
tentacáo, ouve o remoinho da seducño, ouve a tranquilidade do instante ouvc, ouvc, ouve o Don Juan de Mozart.» 122
2. Outras Adaptacóes de Don Juan, Observadas
na Relacáo
com a Concepcáo Musical
Como é sabido, a ideia de Fausto tem siclo objecto de urna multiplicidade de conccpcóes; ao invés, de modo algurn é este o caso de Don Juan. o
que até podía parecer cstranho, tanto mais que esta última ideia designa urn
capítulo do dcscnvolvimcnto
da vida individual muito mais universal do
que a prirncira. Entretanto, torna-se fácil de explicar justamente pelo facto
ele o fáustico prcssupor urna maiuridadc espiritual de urna tal naturcza que
torna urna conccpcüo bastante mais natural. Acrescente-se o que cu acima
recordei no tocante a circunstancia de ncstc sentido nao existir urna lcnda
de Don .Juan, de se terem feíto sentir sérias dificuldades no que diz respeito ao meio, até Mozart ter dcscobcrto o rncio e a idcia. Só a partir do ins. tant.e em que a ideia alcan9ou a sua vcrcladcirn dignidadc, voltando assim,
mais do que nunca, a preencher um per(odo da vicia individual, porém. de
modo tao satisfatório, que o ímpet.o para extrair poeticamente o que foi
vivido na fantasia nao veio a existencia como uma necessidade poética.
Trata-se novamente de urna prova indirecta do valor clássico e absoluto das
óperas rnozartianas. Nesta perspectiva, já o ideal havia encontrado a sua
exprcssao artística cm tao consumado grau que poderia decerto produzir
122 Na vcrsfío de Kruse. cm ve"!. da irnita~aodos passos da estátua do Comendador por
Leporello («ta ICI fa ta ta ta»), Lcporello dirige o ouvido de Don Juan para o som dos
pa~sos da cstát.ua, exclamando: «Hf>r. hf>r. h¡tirh>; Kruse. Acto 11, cena 19. pp. 121-122.
No entanto, esta secyao celebra a plenitude de vida em Don Juan. cm vez de prcssagiar
a sua morte e descida aos infernos. Ganha pertinencia a inclicayao avan9ada originalmente por Georg Brandes: trata-se muito provavclmcnt.c da citai,;ao indirecta da frase
conclusiva de uma fala do «Epílogo» (que na realidade é o «Prólogo») da obra de Ludwig Tieck, Die verkeltrte Welt [O Mundo as Avcssas]; vd. Georg Ilrandcs, lloveds·
trflmniger i del 19 de aarhundredes Litteratw: Forelre.rninger holdte ved Kj(libenhavns
U11iversi1et 1 Foraarshalvaaret 1873 [Principais Correnres da Uteratura do Século
XIX. Conferfincias Proferidas na Univer.vidade de Copenhaga no Primeiro Seme.1tre de
1873]. Volume JJ: Den romanriske Skole i Tyskland IAEscola Romantica na Alemanhal.
Copenhaga: Gylclendalske Boghandel, 1873. pp. 146-147.
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(Ji1 \J111 l•111g1111..•111n
1111
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um cloito tentador. mas 1150 tentador para a produtividade poética. Seguramente que a música de Mozart tem gerado rentacño, pois deceno que haverá por af um jovcm que, na vicia, tevc instantes nos quais teria dado metade
da sua riqueza para ser urn Don Juan, ou tal vez toda ela; teria dado metade
do seu tempo de vicia. ou talvcz a vida toda, para ser Don Juan por um ano.
Mas arravés da música tarnbérn as naturezas mais profundas passaram a ser,
assi m, tocadas por essa 11081 ideia, encontraram ex prcssa na música ele
Mozart cada urna e tocias as coisas, até a brisa mais suave; cncontraram na
grandiosa paixáo da música de Mozart a plena cxpressáo sonora para aquilo que no próprio interior delas se movimentava. aperceberam-se de como
cada urna das disposicócs aspirava a essa música, tal como o ribeiro corre
veloz para se perder na infinitude do mar. No Don Juan ele Mozart, estas
naturezas encontraram quasc tanto texto quanto comentario e, enquanto se
dcixavarn levar para cá e para lá pela música, gozavam a alegria ele se pcrdcrem ganhando ao mesmo Lempo a riqueza da adrniracño. No que a isto
rcspeita. a música de Mozart nao era exccssivamente rcstrita, pelo contrario, as suas próprias disposicóes dilatavam-sc.
assurniam urna dimensáo
sobrenatural, na medida cm que se reencontra va cssas disposicóes ern Mozart. A~ naturezas inferiores, as quais nenhuma infinitude prcssentern, nenhurna infinitude conccbcm, aldrabócs que se tomavam a si préprios por
um Don Juan por terern bcliscado urna camponesa na face. por tcrcrn abracado urna criada de servir, ou por tcrcm despertado o rubor nurna douzelinha, nao cntenderam obviamente nern a idcia, ncm Mozurt, nern mesmo
como produzir um Do11 Juan que nao fosse urna monstruosidade ridícula,
um ídolo de família, o qual, diante dos olhares sentimcntais assumidos por
algumas primas, talvez parccesse um vcrdadeiro Don Juan, a quinta-esséncia <le toda a dignidade de amar123. Neste sentido, Fausto nunca
uinda encontrou urna expressño e, como acima observado, nunca pode
encorurá-la, dado que a ideia
multo rnais concreta. Urna concepcño de
Fausto pode mereces que lhe charnern perfeita e, cornudo. urna geracño
seguintc dará a luz. um novo Fausto, ao passo que Don Juan, devido ao
carácter abstracto da ideia. vive eternamente em todas as épocas, e querer
fazer um Don Juan depois ele Mozart será sernpre como querer cscrever
urna Jlias post Homerum'I", num sentido ainda mais profundo daquclc corn
que é aplicado a 1 tornero.
Ora, se bem que aquilo que foi acirna dcscnvolvido se manteuha igualmente cerro, tambérn de modo ncnhum se concluirá, contudo, que urna
dada natureza de talento nao houvesse de ensaiar-se para conceber Don
é
J 23 No original. <<F.lksvrerdighed». termo que no capítulo «0 Primeiro Amor» é unnbém
traduzido por «qualidadcs cstimáveis».
124 Em latim no original: «urna Ilía<la pós-homéric:a».
142
n
14:\
Juan de urna outra maneira. Qualquer um sabe que a~ coisas SI.! pasxam
assim, mas porventura nao fez a inda reparo no facto de o arquétipo de (odas
as outras concepcóes ser essencialmente o Don.Juan-áe Moliere125: mas
este, por seu tumo, com efeito muito mais antigo do que o de Mozárr;
além de ser cómico, e relaciona-se com o Don Juan de Mozart como 1:Hn
conto (Je fadas de Musaus'?" se relaciona com urna adaptacáo de Ticck~27.
Tendo isto em conta, posso propriamente restringir-me a discutir o Don
Juan ele Moliere e. cnquanto procuro avaliá-lo do ponto de vista estético,
avalio simultánea e indirectamente as out1:as ~onccp5oe?. No :nt<~nto, l~uero
abrir urna cxccpcáo como.Don Juan de1 l le1herg1~. E o proprio Heiberg
é
125 Jcan Baptiste Poquelin ( 1622-1673), dito Moliere. e Don Juan 011 le [estin de pi erre
[Don Juan ou o Convidado de Pcdra], de 1665. sao amplamcruc comentados ao longo
dcsta seceso. a partir ele tradu1;i'fos da época que Jutroduzcm um numero siguificativo de
alreracóes ao original. Edicño consultada pelo autor: Don Juan eller Sieengiccsten, Skues
pil ifem Optoge [Don Juan ou o Convidado de Pcdra, Peca ele Teatro cm Cinco Actos 1.
in./. B.!'. Molieres urlrolgt1'Skuespi! [Pecas Escolhidas de J. B. P. Moliere!, tradTi"ªº de
K. 1 .. Rahbck, Copenhaga. 1813; vol. 1, pp. 171-258. Doravantc a obra é mencionada por
Molieres udvalgtc Skucspit, seguido de iudicacño de pagina. Para um cstudo uprofuodado
da rclacáo entre Kicrkcgaard e Moliere. vd. Ronuld Grirnslcy, «Kicrkcgaard.and IQ~ D_on
Juan Legend. 1. Kierkcgaard as..!!. <;_riti.c ~· .\1oli~rCl,>,Jn Seren Kierkegaard 1111d PrP11ch
Literature, Carditf: Univcrsity of Wales Press, 1966, pp. 11-25.
126 Joha1111 Karl August Musiius ( 17~5- l n7), autor alemño de aventuras fantásticas;
edi9í'ío cousulrada pelo <tutor: Muslius· volksmarchen der Deutscheti [Cornos Populares
d1)~ Alcmács, por Musaus], edi9ño ele Christoph Martin Wiclund, vols. l-V. Viena. 1815-1816.
127 Obras des ·e tipo do autor na biblioteca de Kicrkcgaard: Johann Ludwig 'I'ieck
( 1773-1853).
Pluuüasus, Eiu« Sanunlung vun Mührchen, J::r<,iihlw1ge11, Schauspielen
und Nove/len !Pha11t.<1Sl1S. Urna Corupilacño de Conros, Narrativas, Pecas de Teatro e
Novellerú, ecliyao de L. Tieck , vols. 1-111, Bcrlim. 1828. e Sii111mtli<:he Werke [Obras
Completas]. vols. 1-U, París, l837.
128 A traducño de Heiberg <la peca de Moliere é na realidade uma versño livrc, na qual
1 leiberg introduz coufcssadamente elementos que a aproximarndo teatro de marionetas;
vd.1>011 Juan. Skuespit i jire Acter ! Don Juan. Peca cm Cinco Actos], in Murionettheater [Teatro de Marionetas], Copcnhaga. 1814. pp. 1-94; e Don Juan. in J. L. Ileiberg:
Samlede Skrifter. Skuespi! [Escritos Reunidos de J. L. H. Teatro], vol s. !-VII. Copenhaga, 1833-1841;
vol. VI. 1836, pp. 173-275: nesta edicño. ligura o scguintc subtítulo:
«Tildeels efter Moliere» 1 «Em Parle. Segundo Moliere»]. Johau Lucl vig Heiberg, poeta,
dramaturgo. e filósofo de succsso ao longo de varias décadas na Dinamarca, bcm como
crítico e tradutor de pecas de teatro, ocupou o cargo de director do Teatro Real de Copenhaga, a partir de 1849. Unanimemente reconhecido como filósofo e, cm especial,
como o introdutor da filosofia hegeliana na Dinamarca, foi professor da cadeira de
Lógica, Estética e l.itcraturn na Real Academia Militar; autor desde 1830 de diversos
trabalhos de naturcza filosófica, e editor de varios periódicos. As referencias a Heiberg
em Ou-Ou sao elogiosas, numa fase em que Kierkegaard aspirava ainda a ver o seu
talento rccon.heciclo por Heiberg e a escrever para as mencionadas publicac¡:oes. A ruptura leve lugar após a publi.cac;iio da recensao a Ou-Ou, da autoria de Hcibcrg, «Lit-
qucm csclnrccc 110 título que é «em pa1te segundo Moliere». Ora tal coisa
é 11091 int.eiramentc exacta. mas a pec;a ele Heiberg possui afina! urna grande vantagcm face a de Moliere, urna vantagem certamente fundamentada
na seguranc;a do olbar estético com que l lc-iberg sempre conct.:bc as suas
tarefas: o gosto com que sabe fazer distin<,.:i'.fos. mas nao é irnpossívcl; contudo, que no caso presente o prof. Heiberg tivessc sofrido a. influencia ínclireera da concep<;ao de Mo:1.art de molde a ver. designadamente, corno
Don Juan tem de ser concebido. sempre que nao se pretenda que a música
seja a expressao genuína, ou que se pretenda introdu7.i-lo soh categorias
estéticas completamente diferentes. O prof. Hauch também trahalhou num
Don J11an129, em condi<;ocs de ser incluído na catcgoria do intercssante.
Portanto. passando eu agora a discuür a segunda formar,:ao de concep96es
de Don Juan, também nao ncccssitarei ccrtamenle ele recordar o Jcitor de
que tal niío ocorre na pequena investiga<_;fü.1 aqui presente por ca.usa própria
sua. mas apenas para esclarecer a signifü:ar,:fl.o da concepc,:ao musical ele
uma maneira mais completa do que anteriormente havia sido possível.
ponto de vfragcm na con¡;ep~ao de Don Juan já acima foi designado
clestc modo: assim que lhe dfío réplicas, tuclo se transforma. A reflexfío
que, designadamentc. motiva a réplica reflecte-o para l'ora da ohscuridacle. na qual ele é apenas audfvel por m(1sica. Tendo isto em conta, pocleria
parecer que a melhor mancira ele con<.:eber Don .luan seria porvcntura
comoTha/fot J'fambém é sobejamente sabido que já l'oi assim concebiclo13º.
No e~tanLo.' esta concep9ao tem de ser elogiada por ler reconhcciclo as
suas forc,:us e, por isso, circunscreveu-sc a cena final. na qual a paixao de
Don Juan haveria de ser mais facilmenlc visívcl no jogo muscular da
pantomima. O resultado é noval'nente nao estar Don Juan apresentado de
acorclo coma sua paixao esscncial. mas de acordo como casual, e o carta1.
de scmelhante representai;:ao comém sempre mais do que a pei;;a; di:l o
cont.eúdo, designadamente, que é Don Juan, o seclutor Don Juan. ao passo
ciue o ballet quase que apresenta apenas os tormentos do desespero, cuja
expressao, conguant.o scja apenas pantomímica, é algo que ele tem em
comum com muitos out.ros desesperados. Em Don .luan. o esscncial nao
pode ser aprcsent¡.¡do em balleL, e qualqucr um sentc facilment.c quao ri-
o
tera?r Vintersa:d» 1 «Semente de Inverno Literária»], in lmelligensblaúe [Polha dos Intelectuais] n." 24, 01.03.1843; vol. 11, pp. 285-292).
129 Johannes Carsten 1-lauch, natural.isla dinarnarques; vd. Don .luan, in Gregoriu5 den
Syvemle og Don .l11a11. To Dramaer lGregório VII e Don Juan!, in Dramatiske Vwrker
íOhras Dramáticas 1, vols. 1-lli. Copcnhaga. 1828-1830; vol. U, 1829, pp. 137-270.
130 Don Juan, ou le festin de Pierre, criado cm Viena ern 1761, música de Christoph
Willihald Gluck (1714-1787)
e corcografia de GasparnAngiolini (1731-1803),
bascado
na pec¡:a de Moliere. Levado cena na coreografía de Vincen~.o Galeotti ( 1733-18161
no Teatro Real de Cope11haga em 1781.
a
;·
144
dículo seria ver Don Juan enfeiticar urna rapariga através dos scus passos
de danca e de gesticulacóes engenhosas. Don .luan é urna deterrninacño
dirigida para dentro, e nao pode pois tornar-se visívcl ou manifestar-se
nas formas do corpo e nos respectivos movimcntos, ou corn harmonía
plástica.
Ora mesmo que nao se quiscsse atribuir réplicas a Don .Juan, pcderia
todavia imaginar-se urna conccpcáo de Don Juan que apesar disso utilizasse a palavra como rneio. 11101 Semel han te concepcáo real mente tambérn
existe, é de Bynm131• É certo e seguro que Byron estava apetrechado de
modos diversos para aprcscntar urn Don Juan e, por isso , possível ter a
certeza de que, fossc csse emprecndimcnto mal-sucedido, o motivo nao
residiría em Byron, mas em algo muito mais profundo. Byron ousou Iazer
corn que Don Juan viesse a existencia para nos, ousou contar-nos a sua
vida na infancia e na juventude, ousou construí-lo a partir do contexto de
circunstancias da vida finitas. Por essa via, Don Juan tornou-sc urna personalidadc rcflcctida, a qual pcrde a idealidacle que possui na rcpresenracáo
tradicional. Passo prontamente a desenvolver qua] a modificacño ocorrida
na idcia. Quando Don Juan é concebido musicalmente, cntáo, oico nele
tocia a infinitude da paixño, mas oico simultaneamentc o scu poder infinito,
ao qual ninguérn é capa¿ de resistir; oico a concupiscencia bravia do desejo, mas oico sirnultaneamente cssc triunfalismo absoluto do desojo, contra
o qual seria baldado ter ofcrecido qualqucr resistencia. Se o pensameuto se
dctivcr urna vez que scja no obstáculo, cntáo, este irá antes obter significac;ao apenas porque inccndeia a paixño, mais do que por se colocar rcalmente cm oposicáo: o desfrute dilata-se, o triunfo é ccrto e o obstáculo é um
mero estímulo. Sernelhante vida, movida de urna forma elementar, e poderosa e irresistívcl dernoniacarncntc - tenho-a cu cm Don Juan. É esta a sua
idealidacle, da qua! posso retirar urna imperturbável alegria, porque a música nao me apresenta Don Juan como pessoa ou como indivfduo, mas como
poder. Se Don Juan concebido como indivíduo, fica logo eo ipso em conffito com o mundo que o rodeia; enquanto indivíduo scnte-se preso e agrilhoado por esta ambiéncia, porventura triunfará, como grande indivíduo
que é, mas sente-sc desde logo que as dificuldadcs nos obstáculos dcsernpenharam aqui um papel diferente. É delas que o interessantc essencialmente se ocupa. Mas assim sendo, Don Juan conduzido sob a determina9ao do interessante. Se se quisesse apresentá-lo como triunfador absoluto
recorrendo
pompa das palavras, entáo, sente-se prontamente que essa
é
é
é
a
131
Oeorgc Gordon Byron. Lord Byron (1788-1824). trabalhou at.é
a morte no
poema
épico em cantos Don Juan; edi<;ao consultada pelo autor: Lord Byron'.s stimmtliche
Werke 1 Obras Completas de Lord By ron I, vários tradutores, vol s. 1-X, Estugarda, 1839;
vol. VIII, p. 1; vol. X, p. 100.
ajuda nao sal is fu, visto que, por csséncia, nño compete a sernelhante indi-
víduo triunfar. e exige-se crise do conflito.
A rc~i&l.Cncia que o indivíduo tem para combater pode ern parte ser exterior, nao residindo tanto no objecto como no mundo que o rodeia, e pode
encontrar-se parcialmente no proprio objecto. A primcira é aquela de que
rnais se térn ocupado todas as concepcóes de Don Juan, porque se reteve
o momento da ideia de havcr de ser ele a triunfar, enquanto erótico. Ao
invés. destacando-se o outro lado, só cntño rico ern crer que está abcrta a
perspectiva para urna concepcáo significativa de Don Juan, a qua! irá 11111
criar urna imagem de contraste corn o Don Juan musical, ao passo que
qualqucr conccpcño que se encontre entre estas duas contém sempre imperfeicñes, No Don Juan musical, ter-se-ia assim o scdutor extensivo e, na
outra, o intensivo. Este último Don Juan é cntao aprcscntado nao corno
rendo chegado ~ possc do seu objecto através dc-urn jinico golpe, nao é o
scdutor determinado de mancira imcdiata, é o sedutor reflexivo. Aquilo ele
que aqui nos ocuparemos
a manha , a dissimulacáo , com a qua! ele sabe
insinuar-se no coracáo de urna rapariga, o domínio sobre ela que ele sabe
obter para si mesmo, a seducño cnfciricantc, arquirectada e consecutiva.
Torna-se aquí indiferente o número de vezes que ele seduziu, aquilo de
que nos ocupamos
a arte, a fundamentacáo, a profundidade da dissimula9ao, com as qua is ele scduz. Por fim , o desfrute acaba por ser tao reflectido que se torna diferente em relacáo ao desfrute do Don Juan musical. O
Don Juan musical desfruta a satisfacáo , o Don Juan reflexivo desfruta a
impostura. desfruta a argúcia. O desfrute iruediato acaba, e desfruta-se
mais urna reflexáo sobre o desfrute. A esse rcspcito, encentra-se um indício particular na concepcño de Moliere132, só que este nao chcga de modo
algum a exercer o seu dircito deviclo a interferencia de toda a restante
conccpcño. Em Don Juan, o clesejo ardentc acorda porque ele ve urna claquelas raparigas feliz na rela~ao com quem ela ama, e comec;a a ter ciúmes, o que constitui urn interesse que na ópera nao nos ocuparía de todo,
justamente porque Don Juan nao é um indivíduo reffectido. Assim que
Don Juan é concebido como um indivíduo rcflcctido, só é possível alcan9ar urna idealidade correspondente a idealidade musical, quando se conduz o assunto para o ambito psicológico. A idealidadc da intcnsidade
passa entao a ser aquilo que se alcanc;a. Por isso, o Don Juan de Byron tem
de ser considerado como tendo errado, porque se desenvolve de urna forma épica. O Don .Juan imediato terá de seduzir mil e tres, o sedutor reflexivo precisará de sccluzir apenas urna, e aquilo de que nos ocupamos é o
modo coino ele o faz. A secluc;ao do Don Juan reflexivo é urna obra de
arte, na qual cada um dos pequenos trnyos tem a sua significa9ao especíé
é
132 Vd. Molieres udvalgleSkuespil, p. 184; el leibcrg. Skuespil, vol. VI, p. 188.
(
,'.:¡
146
Iica; a scducáo do Don Juan musical
< >11
é
um golpe de mao , um asvumo do
instante, mais _fácil de fazcr do que de dizcr. Lcrnbro-mc de u111 quadro que
u~a vez cu vi. Um horncrn jovern e bonito. um vcrdadciro mulhercngo.
Brincava corn um grupo de raparigus jovens, todas na perigosa idade ern
que nem sao adultas, nem sao enancas. Divertiarn-se entre curras coisas a
saltar por cima de um. fosso. Ele ficava na be ira e 11121 ajudava-as a saltar,
segurando-lhes pela cintura para as erguer no ar e depositar do outro lado.
Er~ urna visño ~raciosa; clava-me alegria, tanto por ele como pelas raparigumhas. Pcnsci cntáo cm Don Juan. As jovcns raparigas corriarn para os
scus bracos, ele agarrava-as cntño com a mesma rapidez, corn a mesma
agilidadc, depositando-as do out ro lado do Iosso da vida.
O Don Juan musical triunfa ern absoluto e, por isso, tarnbém esta obviamente na posse absoluta de cada um dos rncios capazes de o conduzir a
este triunfo, ou rnelhor, está na possc tao absoluta do meio que é como se
nao nccessitasse de o utilizar, ou seja, nao o utiliza enquanto meio. Assim
que passa a ser um individuo rcflectido, cntño, mostra-sc que há algo que
se ~h~m~ «O mcio», Se o poeta lho conceder, fazcndo, porérn, com que a
~~srstcnc.ia e o obstáculo rcsultcm conjuntumentc tao graves que o triunfo
rica duvidoso, cntíío, Don Juan entra na dctcrrninacáo <lo imcrcssanrc e.
nesta perspectiva, pode pensar-se cm várias conccpcócs de Don Juan, até
chegar ao que ~nterio~mente chamamos de seducño intensiva; se 0 poeta
lhe negar o mero, cntao, a conccpcño entra na dctcrminacáo do cómico.
Urna conccpcño pcrfcita que o tcnha conduzido sob o dominio do intcressanre, n~nca cu_ vi; cm contrapartida,
maioria das concepcócs de Don
Juan aplica-se dizer que se aproxirnarn do cómico. o que explicável pelo
facto de estarem associadas a Moliere, em cuja concepcño 0 cómico está
latente. seudo que o mérito de Heiberg consiste ern ter tomado nítida consciencia dis~o e, por conseguintc, nao chama i\ sua pe9a meramente urn teatro ele marionetas, antes dcixa que o cómico brilhe neta de multas manciras 133. Assirn que urna paixño, ao ser upresentada, ve negado o rncio com
que atinge_ a satisfacáo, cruño. é possívcl de rencadcar urna viragcrn trágica
ou urna v~rn~em cómica. Nao é possível fazer surgir a viragcrn trágica,
quando a ideia se rnostra como seudo de todo injustificada e. por isso. 0
a
é
133 Alu!>~o provável ª.º último grau de caracterizacñn da comédia (termo aqui equivalente a «forma dramática») cm Heibcrg: o primciro grau, a comédia imediata, situa-se
entre O bu~)ef.l:O e a car~a: 11<! segundo. a comédia alfa cu reflexiva, prevalece a ironía:
e no tcrccrro .. a comedia universal ou especulativa. a ironía. aliada ao riso, produz 0
\ humor: v~I. Kj~!benhvam flyvende I'ost it [Correio Volante de Copcnhaga(. u." 7-8, J0-16. Janciro-Fcvcreim de 1828. Kicrkcgaard esquematiza parcialmente cstu tipología
c~a.~ fo~rnas dramáticas n~ seu diario: vd. BB: 23, SKS. vol. 17. p. 113. Para urna apres~ntar,:a~ comen~ada da h1erar<.¡11iz.a9ao das formas dramáticas cm Hcibcrg. vd. Hcnning
Fenger, The Heibergs. Nova lorque: Twayne Publishcrs, lnc .. 197 t. pp. 134-139.
< >11 U111 l •1.w1w
111111h V1d.1
comico Iica tao pt:1 to Se cu aprcscntar o vício do jogo num indivíduo e dcr
cinco tült:rcs a cssc mdrvfduo para ele os perder no jogo , a viragcrn passa a
ser cómica. Deceno que assirn nao acontece no Do11 Juan de Moliere, mas
ocorrc afinal de um modo semclhanic.
Se cu fizcr Don Juan passar por
npcrtos de dinhciro. acossado pelos credores, ele pcrde desde logo a idcalidude que possui na ópera, e o efcito passa a ser cómico. A famosa cena
cómica cm Molicre134, rendo grande valor enquanto cena cómica e estando
ao mesmo tempo muitíssimo bern adequada comédia de Moliere. 11131
obviamente que, por esse motivo, nunca dcveria ser incluída na ópera, na
qual produ1iria um efeito inteiramentc pe11urbador.
Que a concep9ao de Moliere aspira ao cómico, nao está meramente
mostrado na cena cómica de que falámos. a qual, se estivcssc completamente isolada, nada sequer demonstraria; é antes o plano geral que traz a
marca do cómico. A primeira e a última réplica de Sga11arel135, o início e o
fim ele tocia a pe9a, dao disso um testemunho mais <lo que suficicnre. Sganarel comc9a por elogiar uma pilada de rapé. dedu'.l.indo-se, entre outras
coisas, que ele nao pode ter assim tanto para fazer ao . ervi90 <leste Don
Juan: termina, qucixando-se de ter sido o único a quem injusti9a foi feíta.
Ora quando se pondera que Moliere também fez com que a estátua'-'6 viesse buscar L)on Juan e que, apesar de Sgaranel ter igualmente sido testcmunha clesta terrível coi. a, coloca-lhe afinal essas palavras na boca, corno se
quisesse dizcr que a estátua. visto que se entrega, aliás, a praticar n justi\:a
na terra. a castigar o vício. deveria também ter ponderado que podia pagar
n SgHnarel o soldo que !he era clevido por longos e leais servi9os em ca~a
de Don Juan. coisa que o seu amo nao tivera condi9oes para l'azer dcvido
sua repentina partida; quando se pondera isto, entiio. qualquer um acabaría por sentir o cómico no Don 111011 dt: Moliere. (A adapta~ao de Heibcrg,
que diantc da de Moliere possui a grande vantagt:m ele ser mais correcta.
<leu também lugar a uma viragem cómica de muitas maneiras. pondo na
boca de Sganarel urna sabcdoria casual que nos permite ver nele um aprendiz. de ladrao, o qual acaba como criado de Don Juan depois ele rer experimentado mu itas outras fun9óes.) O hcrói da peya. Oon Juan, é nada meno
do qut: urn hcrói, é um sujeito mais do que infeliz, que presumivelmente
a
a
134 Cenn com o creclor, Mrn1&icur Dimanchc. Acto IV, cena 1. in Molier<>s 11d1•a/g1e
Sl..uespil. pp. 231-237. nesta tradu9áo. M. Di manche dá pelo nomc de Hr. Knapmanl e
na adaptn9áo tle Heibcrg tcm o nomc del len Paa~ke: vd. S/..11('.l"fJil, vol. VI, pp. 259-262.
A ópera de ~01.art nao tem qualquer cena equivalente; sugere-se antes o contrário. já
que 01)11 Juan entrega urna bolsa com dinheiro a Leporello; vtl. Don (iiol'l11111i, Acto 11.
cena J. Kruse, pp. 71-75.
135 Nome do criado ele Don Juan na pc<;a de Moliere.
136 Na verdade, o monumento funerário do Comendador. pni de Donna Anna, a\sa~sinado por Don Juan na primt:ira cena da ópera. Vd. aclíante nota 167.
~º"
148
11 1 1 •ti,('!Jlllli
(1
náo foi admitido ao cxamc iinal137 e que cscolhcu agora um outro modo de
vida. Vcm, dcsignadamcnte, a saber-se que ele Iilho ele um horncm muito
disiinto!". o qual procura igualmente entusiasma-lo a seguir a virtudc e os
feitos imortais através da ideia representada no norne grande dos seus antepassados; mas isto resulta tao inverosímil, ern relacáo a toda a sua restante conduta, que se é antes levado a pensar que tudo nao haveria de ser urna
mentira perpetrada pelo proprio Don Juan. A sua conduta nao muito cavalheiresca, nao visto de espada na mño abrindo carninho por entre as
dificuldadcs da vida; distribuí bofetadas ora a urn, ora a outro, sirn, chega
praticamcntc a batcr-sc com o noivo de urna das raparigus 139. Portante, se
o Don Juan de Moliere tossc realmente um cavalheiro, entño. o poeta sabe
fazcr muitíssimo bcrn corn que nos esque\:amos disso e, 11141 em vez de14
cavalheiro, dá-nos a ver um espadachirn, urn vulgar dissoluto, que nao tem
medo de andar ao murro. Quern já teve oportunidade ele ter como objecto
de observacño aquele a quern se dá o nome de dissoluto. rambém sabcrá
que esta classe de homcns senté um amor excessivo141 pelo mar e. por isso,
achara igualmente adcquaclo que Don Juan tcnha pesto os olhos nurn par
ele salas e que agora se tcnha prontamente metido nurn barco para ir atrás
delas pelo Kal lcbocstrand 142, urna aventura domingucira no rnar.juntamente corn o barco a virar-se. Don Juan e Sganarel esrño prestes a perder a
vida e sño, enfirn. salvos por Pedro e pelo infinclo Lucas143, cuja prirneira
aposta havia siclo entre scrcrn eles horncns ou urna pedra, urna aposta que
custou a t.ucas um marco e oito xclins, o que quuse é demasiado para Lucas, e para Don Juan. Ora quundo se acha que tuclo isto está adequado, a
irnprcssáo fica pois perturbada por um instante. dacio que vem a saber-se
que Don Juan
simultaneamente um tipo que secluziu Elvira144, assassinou
é
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137 Aquí. «AUe.11a1».
138 Don Louis. pai de Don Juan. surge como personagem em Moliere. e também na
tr<1du9ao da pei;:a (como nomc de Don Lodovico), mas niío figura no elenco da versüo
de 1 leiberg: vd. Acto IV, cena 4, in Molieres 11dval¡¡1e Skuespil. pp. 237-239.
139 Pierre, namorado de Charlotte: Acto 11, cena 3. in Molieres udval¡¡te Skuespil, pp.
202-205. Na ópera, esta situa<¡:iío está transposta para a relar;iio entre Don Juan e Massello; vd. Don Giovwmi. Acto 11. ce11a Y.
140 Na primcira edir;üo de E111e11-Eller, nao figura «istederfor». mas «strteber derfor»,
o que implicaría traduzir a frase como: «e esfon;:a-se por isso para 4ue vejamos».
141 Aqui. «K)a'rlighed».
142 Bra<¡:o de mar entre a Zeli\ndia e a ilha de Amager, a sul <le Copenhaga. Heihcrg
tlesloca a aci;:fa1 da sua vcrsiío parn este local. sem o nomear explícitamente.
143 Acto U, cena l; em Moliere, as personagens tern os nomes <le Pierrol e Luca.~, na
traduc;;ao para dinamarqucs da pec,:a de Moliere, Pedrillo e Lucas, e na versao de Heiberg, Pedro e Lucas.
144 Em Moliere. Elvira é esposa de Oon Juan c. no elenco de pcrsonagcns, 1-Iciberg
descreve-a como «consorte».
Ot1
Ou,
lJ111
l•ir1¡·1111•111<i
d~
ld!I
o 'omcndador, etc .. algo que é tido como imensarnenrc desmedido, e que
(cm outra vec ele ser explicado como urna mentira, de molde a restabelecer
harmonia. Se é Sganarel quem nos eleve fornecer urna rcpresentacño da
puixáo que lavra em Don Juan, entáo a sua expressáo está tao travestida que
o riso é impossível de comer, quando Sganarel diz assim para Gusman11145:
«Para conseguir o que ele deseja146, Don Juan era bem capaz de casar corn
o dio ou com o gato dela, sim. até contigo, o que seria ainda pior»; ou
quando observa que o seu amo nao se limita a dcscrer do amor, descrcndo
também da medicina 147•
Ora se a conccpcáo ele Don Juan ele Moliere, considerada enquanto adapta<;ao cómica, fossc correcta, uño seria eu quem cominuaria aqui a discutí-la, dado que neste cstudo só tenho de centrar-me na conccpcáo ideal e na
significacáo da música, rendo em vista cssa concepcáo. Poderla entáo
contentar-me cm chamar a atcncáo para a curiosa circunstancia ele apenas
por música se ter concebido Don Juan de urna maneira ideal, na idcalidade
que ele possui na tradicional
rcprcscntacáo medieval. A falta de urna conccpcáo ideal, que tcnha a palavra como meio. poderla entáo fornecer urna
preva indirecta da justeza da minha tese. No entamo, sou capaz ele ir rnais
além.justamentc porque Moliere nño está correcto, e aquilo que o impediu
de atingir a correcciío é o facto de ele ter conservado algo do ideal de Don
Juan, tal como devido na representacáo tradicional. A medida que eu assinalar este facto. mostrar-se-á de novo que a conccpcáo ideal só pode
exprimir-se esscncialmenre através da música, e rcgrcsso assim de novo
minha tese propriarncnte dita.
11151 Logo no primciro acto de Don Juan de Moliere, Sganarel tem uma
fala muito longa, na qual nos quer ofereccr urna representacáo da ilimitada
paixáo do seu amo e da multiplicidade das suas aventuras. Esta fala corresponde por inteiro a segunda ária do criado na ópera. A fala nao faz surgir
outro efeito que nao seja o cómico, e aquí a concepcáo de Heiberg voila a
possuir a vanragcm de o cómico estar menos amalgamado do que em Moliere. Ao invés, este cfcctuou um cnsaio para nos deixar pressentir o poder dele,
mas o efeito nao resulta, apenas a música pode dar-lhc uniño. porque descrcve ao mesmo tempo a condura de Don Juan, levando-nos a ouvir o poder da
seclu<,:ao, ao mesmo tempo que o catálogo é clesenrolado <liante de nós.
Em Moliere, a estátua vem buscar Don Juan no último acto. Ora por
rnais que o poeta tenha procurado motivar a entrada da estátua, fazendo
é
a
145 Nome do cscutleiro de El vira na tradui;:ao da pcc,,:a de Moliere: vd. Molieres udva/gte Skuespil, p. 176.
146 Aqui, «~nsken>.
147 Acto 111, cena 1, in Molieres udval¡¡1e Skuespil. p. 214: e Heiherg, Skuespil, vol. VJ.
p. 227.
150
:\¡)1~
11
I\ il'I I_¡
g(l(l1tl
com que fosse precedida por urna exortacílo. esta pcdra , porérn, torna-se
semprc urna pedra de escándalo. Se Don Juan é concebido idcalrn~ntc como forca, corno paixáo, entáo, o próprio céu rerá de por-se em movimento.
Se nao foreste o caso, a utilizacáo de mcios tao forres dá semprc que pensar. O Comendador nao necessita, na verdade, de dar-se ao incómodo, dado
que se fica mesmo mais perro de ver o senhor Paaske148 meter Don Juan na
prisáo por <lívidas. o que cairia plenamente dentro do cspírito ~a !nodern.a
comédia, a qual nao neccssiia de um tao grande poder de dcstruicáo, precisamcntc porque os proprios poderes cm movimento nao sao tao grandiosos.
Seria inteirarnente consentánco com a cornédia moderna fazcr com que
Don Juan aprcndcsse a conhecer os sustos triviais da realidadc. Na ópera
está perícitamcntc cerro que o Comendador rcgrcsse , mas enláo a sua entrada possui igualmente verclacle ideal. Desde logo, a música faz do Comendador algo rnais do que um individuo singular, a sua voz expande-se até
chegar a ser urna voz de cspírito. Por isso, tal como na ópera Don Juan
está concebido corn sericdadc estética, também assirn acontece com o Comendador. Em Moliere, ele surge com gravidadc estética e peso, a ponto de
quasc o rornarem ridículo; na ópera, surge corn leveza estética, com vcrdade metafísica. Ncnhurn poder na obra, ncnhurn poder no mundo é capaz de
coarctar Don Juan, só urn espirito, um fantasma, pode fazé-lo. Quando isto
fica cabalmente entendido, entño, clarifica-se a conccpcáo de Don Juan.
Um cspírito , um fantasma, sao reproducáo. é esse o segredo que resi~e. no
facto de rcgrcssarern, mas Don Juan é capaz de tudo, capaz de rcsisnr a
tudo, excepto a rcproducáo da vida. precisamente porque ele vida sensual
irnediata, de que o cspíriro
negacáo.
Tal como concebido por Moliere, Sganarel permanece urna personagern
inexplicável, 11161 cujo carácter se torna confuso cm elevado grau. Aq~ülo
que aquí produz um elcito perturbador novamcntc o facto de Moliere
conservar alguma coisa do tradicional. Corno Don Juan acima de tudo um
poder, tarnbém esse poder se rnostra na sua relacño com Lcporcllo. Este
sente-sc arrastado na sua direccáo, sentc-se esmagado por Don Juan, funde-se nele, tornando-se um mero órgiío da vontade do seu amo. Esta simpatía
obscura e intransparcnte faz justamente de Lcporello urna personagcm
musical, achando-se pcrfcitamente adequado que nao lhe seja possível
livrar-se ele Don Juan. Com Sganarel, o assunto 6 outro. En1 Moliere, Don
Juan é um individuo singular e, por conseguinte, Sganarel estabelece com
ele urna relacáo, tal como com um indivíduo. Ora se Sganarel se sente indissociavelmente ligado a Don Juan, cntáo, mais nao será do que um razoávcl requisito estético exigir que se clarifique o modo como isso pode ser
explicado. De nada serve que Moliere o faca dizer que nao conseguc ver-se
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148 Vd. acima nota 134.
011
Ou, U111hnt1111.•11to
de Vidu
151
livrc de Don Juan 149: o lcitor OLI o espectador nao véern fundamento nenhum para tal. e aqui a questáo é justamente em torno de um fundamento
sensato. A inconstancia que há em Leporello está decerto motivada na ópera, porque Leporello, na sua relacáo com Don Juan, está mais pcrto de ser
urna consciencia individual e, por isso, a vida donjuanesca reflecte-se nele
de maneira diferente, sem que todavía ele esteja propriamcnte ern condicóes de nela penetrar. Ern Moliere, tambérn Sganarcl urnas vczes é pior, e
outras é mclhor, do que Don Juan, mas torna-se inconcebível que ele nao o
abandone, dado que nern sequer recebe o respectivo salario. Se cm Sganarel se imaginar urna unidadc, correspondente a simpatética obscuridadc
musical que Leporello tem na ópera, nao resta outra coisa que nao seja tomar a unidade como urna idiotice parcial. Volta aquí a ver-se um exemplo
de como o musical tem de surgir para que Don Juan possa ser concebido na
sua verdadeira idealidacle. O erro de Moliere nao está cm ter concebido
Sganarel no modo cómico, mas sim c1T1 nño o ter lcito correctamente.
O Don Juan de Moliere tambérn um sedutor, mas a peca ofcrecc-nos
apenas urna parca represenracño de que ele assim é. Que Elvira cm Moliere é esposa de Don Juan é inegável, e particularmente bem delineado, tendo
cm vista o cícito cómico. Ve-se desde logo que se está perante urna personagern comum, que utiliza promessas de casamcnto para levar urna rapariga ao engano. Por essa vía, El vira pcrdc toda a atitudc ideal que possui na
ópera, ondeé encontrada sem ourras armas que nao sejam a fcrninilidade
ultrajada, ao passo que a imaginamos aquí com certidñes de casarnento,
perdendo Don Juan a equivocidacle da ~edu9ao pelo facto de ser um hornem
jovem e 11 171 um esposo ex peri mentado, ou scja, ex peri mentado em experiencias extraconjugais. O modo como ele enganou Clvira, os rneios com
os quais a incitou a sair do convento, seriam decerto algo que urnas ciadas
réplicas de Sganarel haveriam ele ter-nos esclarecido; mas visto que a cena
de sedu9ao ocorrente na obra nao nos oferece a oportunidacle de admin1r a
arte de Don Juan. é óbvio que a nossa confian9a nesses feítos fica abalada.
Ora. conquanto Don Juan de Moliere seja cómico, isso nem sequer era
necessário; mas como, no entanto, é ele próprio quem nos quer fazer entender que o seu Don Juan é realmente o herói Don Juan, 4ue conquistou Elvira e assassinou o Comendador, é fácil de ver onde está o erro ern Moliere,
mas somos simullaneamcnte levados a pensar se tal nao terá afina! propriarnente fundamento no facto de Don Juan nem uma vez sequer poder ser
apresentaclo na yualidade de seclutor, sem que seja como auxílio da música,
a menos que se enverecle, como acima mencionado, pelo aspecto psicológico, o qua!, por seu turno, nao se reveste facilmente ele intercsse dramático. Em Moliere, também nao se ouve Don Juan conquistar as duas jovens
é
149 No fecho da primeira cena do primeiro acto; Molieres udvalgte Skuespil, p. 176.
152
153
raparigas, Mathttrine e Clwrlofle150, a conquista ocn1 re font de cena e como Moliere nos deixa de novo presumir que Don Juan lhcs ofcrcccu prornessas de c~samento, entáo, só se obtém novamente urna parca no<;ffo do seu
t~llento. Enganar uma raparíga com promessas de casamento
urna arte part1~ularmcnte pobre e,já que alguérn é suficientemente baixo para o fazcr, daí
nao resulta de todo que seja suficientemente grande para que lhc charncm
Do~ !uan. A única cena que parece querer apresentar-nos Don Juan na sua
actividade de seduzir, se bem que pouco sedutora, a cena com Charlotre'>'.
Ma~ dizer a uma jovem carnponesa que ela linda, que tem olhos cintilantcs,
pcdir-Ihe que de urna volta para observar as suas formas, nao deixa trair
nada de in~omum em Don Juan, mas antes um hornem dissoluto que observa
urna rapanga tal como um negociante observa um cavalo. É possívcl conceder de ~orn grado que a cena produz urn cfeito cómico e, houvesse a cena de
prodt~zu· ape~1as essc cfciio, e nao iria eu aquí discutí-la. Mas dacio que este
n~)tón.o cnsaio de Don Juan nño cstabelcce rclacáo alguma com as multas
~1s~ónas que ele possa ter tido, esta cena contribuí assim de novo, directa pu
iudirectamentc, para mostrar aquilo que na comedia
imperfciLo. Moliere
parece l.er querido retirar algo rnais de Don Juan, parece ter querido igualmente rnantcr nelc o ideal, mas lalrou-lhe o meio e, por isso, tudo 0 que rea~menle acontece redunda cm algo de negligenciávcl.
Na globalidade, pode
dizer-se que no Don Juan de Moliere acabamos por saber que ele é sedutor
~penas numa perspectiva histórica; nao vemos isso do ponlo ele vista dramat~co. A cena na qual ele se mostra nurna maior actividade é a cena com
Charlotte e 11181 Mathurine152•
sustentando aí a conversa de ambas, e
fazendo-lhes crcr qu~ cada urna delas era justamente aquela com quem ele
prornetera casar. Aqui, porém, aquilo que prende a nossa arencáo nao a sua
arte da seducáo, mas urna intriga teatral inteirarnente cornurn.
Para concluir, talvez eu possa elucidar o que aqui ficou desenvo.lviclo
pegando numa observacár, frequcntemente avancada: o facto ele Don Juan
de Moli~re ser myis moral do que o de Mozart. Entretanto, entendido isto
da mancira certa, trata-se justamente de urn elogio a ópera. Na ópera, nao
se trata meramente de conversas sobre um sedutor, antes Don Juan que
é u~1 sedutor, e inegável que a música, nas suas singularidades, pode ser
multas vezes bastante sedutora. Entretanto, é assirn que eleve ser; esta
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justamente a sua grandc1.a. Por isso, clizer que a ópera é imoral é urna
palerrnice, o que provérn tao-semente de gente que nao entende como se
concilie urna totalidade e antes acaba por ficar presa nas singularidades.
A aspirac;ao definitiva da ópera é moral em elevado grau, e a impressao
que dela se retira é absolutamente salutar, porque ludo é grande, tudo possui um parhos genuíno. sem cosmética, a paixao da volúpia nao menos do
que a da seriedacle, a do desfrute nao menos do que a da ira.
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150 Nornes das personagcns na adaptai;:ao de Heiberg; no original e na tradu~ao dinamarquesa, as personagcns ternos nomes de Maturina e Car!otta.
151 Cen'.1 que encontra rnrrespondencia no dueto Lit ci darem la mano ... entre Don
G1.º~'ann1 e Zerhna:_ vtl .. 1>011 Ciovanni. Acto 1, cena 9. No Don Juan efe Moliere (no
ongrnal e na tradu~ao clmamar4uesa), Acto II, cena 2; na versao de Heibcrg Acto u
cena 3.
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152 No original e na tratlu9ao dinamarquesa, Acto IJ, cena 4; na versao de Heiberg.
Acto 11, cena 7.
3. A Const.ruyao Interna da Ópera
A pesar de o título desta seccáo já ter de ser considerado como suficientemente esclarecedor, no entamo, por urna qucstáo de scguranca, guero
chamar a atencáo para o facto de nao ser obviamente intencño rninha vir de
modo algum ofercccr aquí urna avalíacáo estética da obra Don Juan, ou
urna dcmonstracño da cstrutura dramática do texto. Tern sempre ele ser-se
muito cauteloso ao Iazer separacóes destas, ern especial diante de urna
producño clássica. Quero repetir ainda urna vez, nomeadarncntc, aquilo que
acima j11 dcstaquei rnuitas vezes: Don Juan só passível de exprcssáo musical, um facto que eu proprio constatei esscncialmcntc através da música
e devo, por isso, vigiar de todas as manciras para que isso nao revista o
aspecto de ser a música a surgir de um modo exterior. Se lidarmos assirn
corno assunto. pode a meu ver admirar-se a música nesta ópera tanto quanlo se quiscr, que a sua significacño absoluta nao captada. 1 totho nao Iicou
isento de urna abstraccáo inverídica dcste tipo, daí resultando que nüo
possível considerar a sua aprcscntacáo como satisfatória, por rnais talentosa que 11191 ele resto seja, Em Hotho , o estilo, a aprcscntacíío, a reproducáo,
tém vida e movirncnto; as categorías siio indeterminadas e pairam, a concep9ao de Don Juan níio está penetrada por um único pensamento, mas
dissolvida em muitos. Para ele, Don Juan é um sedutor. Mas esta categoría
já é incleterm.inada e, contudo, tem de estar determinado em que sentido ele
é sedutor, tal como eu também tentei fazer. Ora acerca <leste sedutor diz-se
uma quantidacle de coisas em si e para si verdadeiras; mas como aqui as
representa9oes comuns chegarn a ter o dircilo ele reinar muito excessivamente, semelhante sedutor torna-se sirnplcsmcnte tao reflectido que cessa
de ser em absoluto musical. Holho penetra na obra cena a cena, o seu relato está fresca e profundamente acidulado pela sua própria individualiclade,
em alguns passos, porventura um nadinha em excesso. Quanclo tal acontece, seguem-se entao efusoes simpatéticas sobre o quanto há debelo, rico e
diversificado no modo como Mozart exprimiu tudo isto. Mas é deveras
pequena a alegria lírica suscitada pela música de Moz.art e, por muito bem
que vista o homem e, por rnuito bem que ele saiba exprimir-se. na concepé
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c;ao de Hotho, Don Juan de Mozart nao rcconhecido na ua absoluta validade. Este reconhccimento é aquilo a que eu aspiro, porque este rcconhccimento é idéntico a justa cornpreensáo daquilo que constitui o objecto
desta invcstigacáo. Nao é de modo algum mcu propósito tomar toda a ópera como objecto de consideracao , mas sima ópera na sua totalidadc. nern
scquer discutir as diversas partes cm separado. mas incorpora-las nas minhas observacñes tanto quanto possívcl, e nao as ver fora da sua ligacño
como todo, mas sim dentro dessa ligacáo.
Num drama, o intcresse principal congrega-se de urna maneira perfeitamente natural cm tomo do que chamamos o hcrói da obra; na relacáo que
estabclcccm com ele. as restantes personagcns rcvcstern-se apenas de urna
significacáo subordinada e relativa. Entretanto. quanto mais a reflcxáo interior penetrar no drama com o scu poder de separacáo. tanto mais as pcrsonagens secundarias admitcrn tambérn urna certa absolutez relativa, se é
que me atrevo a dizé-lo. lsto nao de modo algum um erro, é antes pelo
contrário urna vantagcm, tal como a observacáo do mundo que sé tem olhos
para alguns indivíduos proeminentes e para a respectiva significacño no
dcscnvolvirncnto do mundo, nao dando, porém, valoraos subalternos,
em
certo sentido mais elevada, mas inferior aqueta que ve o que menor, na
respectiva validado de igual grandeza. O dramaturgo conseguirá apenas
alcancá-lo na mesma medida cm que nada reste de incornensurávcl, cm que
nada reste da disposicño da qual o drama se desprende, ou seja, nada reste
da disposicño qua disposicáo, 11201 sendo ludo, no entamo. convertido na
sagrada moeda153 dramática: ac9ao e situacño, Na mesma medida cm que
o dramaturgo conseguir alcancá-lo. também na mesma medida a impressáo
total. produzida pela sua obra, será menos urna disposicáo do que um pensarnento, urna ideia. Quanto rnais a irnpressáo total de um drama for urna
disposicáo, tanto maior a certeza de o próprio poeta a ter pressentido na
disposicáo, e ter feito com que a irnpressáo total viesse progressivamente a
existencia a partir da disposicño, nao a tondo captado na ideia, nern dcixado
que esta se desdobrasse do ponto de vista dramático. Um drama deste tipo
sotrc entáo de um peso exccssivo e anormal de lirismo154• Num drama,
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153 Na antiga Judeia, as ofertas e esmolas tinham de ser feitas na moe<la do povo judeu.
justificando a prcsenc,:a de cambistas em volta dos templos; vd. Matcus. 21: 12, Marcos.
11: 15, e Joao. 2: 14-15. Aqui, porém, a <<sagrada moeda» é metáfora para a regra aristotélica.
154 fonnulac;:ao de Heiberg, na sua crítica ao Trauerspiel de A. Oehlenschlügcr, Vteringeme i Miklagard [Os Yarnngianos de Miklagard] de 1826 (OehlenschWKer~· frag~dier
ITragéclias de O.). vols. I-X, Copenhaga. 1841-1849;
vol. IV, 1842, pp. 115-240). in Kjflbenhvans flyvende Post ICon"Cio Volante de Copenhagal. números 99-101, Copenhaga,
1827, e números 7-8 e 10-16, Copenhaga. 1828; vd. igualmente J. L. Heiberg, Prosaiske
Skrijier [Escritos em Prosa l, vols. I-III, Copenhaga, 1841-1843; vol. [, pp. 251-381.
trata-se de um erro, mas muna ópera nao de modo algum urn erro. O que
conserva a unidade na ópera a nota fundamental que sustém o todo.
O que aqui se diz sobre o efeito dramático global válido, por scu turno,
para as partes individuáis do drama. Houvesse eu de designar o efeito dramatico do drama com urna única palavra, conquanto este seja diferente do
produzido por qualquer outra forma poética, entáo. diria eu que o drama
actua através do simultaneo. No drama, vejo reunidos na situacño, na unídadc da accáo, os momentos que sao exteriores uns aos outros. Ora, quanto
mais excretados forem os momentos discretos, quanto mais profundamente
a situacáo drarruitica estivcr penetrada pela rcflcxáo, tanto menos a unidadc
dramática será urna disposicáo e tanto mais eta será um pcnsamcnto dctcrminado. Mas tal como a totalidade da ópera tarnbérn nao pode ser assim
penetrada pela rcflcxño , como é o caso do drama propriamenre dito. tarnbérn assim este o caso da situacáo musical, a qual , se bem que dramática,
possui todavía a sua unidadc na disposicño. A semelhanca de qualquer situacño dramática. a situacáo musical tcrn o simultaneo, mas a actividadc
das forcas urn som conjunto, urna voz conjunta, é harmonia. e a irnprcssño
da situac;ao musical é a unidadc que se produz ao ouvir cm conjunto aquilo
que soa cm conjunto. Quanto mais profundamente penetrado pela rcflcxño
estiver o drama, tanto mais a disposicño se transfigura em accño. Quanto
menos accño , tanto mais prcvalcccntc o momento lírico. Na ópera, tudo
isto pcrfcitarncntc conforme. Como scu objcctivo imancntc, a ópera nao
tem tanto assirn u descricáo de personagens e a ac\:aO, nao está suficientemente reflectida para tal. Ao invés, na ópera. H paixño substancial e irrcllcxiva encentra a sua expressño. A situacño musical reside na unidade da
disposic;ao, na discreta pluralidade de vozes, O que próprio da música
justamente ser capaz ele conservar a pluralidade ele vozes na unidade da
disposicño. Quando cm linguagcm corrcnlc se clizem as palavras «pluralidade de vozes». entfío, designa-se prcfcrencialmcntc urna unidadc 11211 que
é um resultado finito; na música, nfío é esse o caso.
O interesse dramático exige uma rápida progressao, um rilmo animado,
aquilo a que pudesse chamar-se velocidade da queda em crescimcnto imanente. Quanto mais o drama estiver profundamente penetrado pela reflexfío,
tanto mais inintcrrupta é a pressa com que avanc;a. Se, ao invés, foro momento lírico ou o épico a prevalecer unilateralmente, entao, sobressai um ce1to
ent.orpccimcnto que faz adormecer a situac;ao, tornando lentos e pesados o
processo e o prosseguimento dramáticos. Na esscncia da ópera nao reside
esta pressa, em parte devido aoque é próprio de urna certa dilac;ao, um ccrto
auto-espraiamento no tempo e no cspac,:o. A ac<;ao nao possui a ccleridadc da
queda ou o respectivo direccionamento. movimentando-se antes num plano
mais horizontal. A disposic;ao nao está sublimada na personagem e na ac<,:ao.
Por consequencia, numa ópera a acc;ao só pode ser acr;ao irnediata.
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Se aplicarmos a ópera Don Juan o que foi aquí dcscnvolvido, entño ,
isso dar-nos-á ocasiáo de ver rudo isto cm toda a sua vcrdadcira validade
clássica. Don Juan o herói da ópera, o interesse principal agrega-se em
torno dele; nao se limita, no entamo, a ser meramente isto,
antes ele
qucm conlere interesse a todas as curras personagcns. Contudo. tal nao
eleve ser lomado em sentido um tanto exterior, sendo justamente este,
porém, o segredo desta ópera: dentro da ópera, o hcrói
simultaneamen-,
le a Jorca das restantes pcssoas, a "vida de Don Juan o respectivo princípio vital. A paixño de Don Juan pñe cm movimento a paixáo dos out ros,
a paixño dele ressoa profundamente cm ludo, ressoa profundamente e
sustenta a sericdadc do Comendador, a ira de Elvira, o óclio de Arma. a
importancia de 0Uavio155, a angustia de Zerlina. a exaspcracüo de Massetto156, a confusáo de Leporcllo, Sondo na ópera o hcrói , Don Juan é o
denominador da obra, sendo o hcrói, atribui-lhe, cm gcral, o seu nome ,
masé mais, se assim posso cu dizcr, ele é o denominador cornum. Tocias
as outras existencias, cm rclacño corn a dele, sao apenas urna derivada.
Ora, se se exigir que numa ópera a sua unidadc scja urna nota fundamcn1.al, Iacilrnente se pcrccbcrá que nao se torna possível imaginar urn tema
mais perfeito para urna ópera do que Don Juan. A nota fundamental pode
estar ern relacáo com torcas tercciras na obra. sustentando estas últimas.
Como cxcmplo de uma ópera dcstc tipo mencionarci A Dama Branca'Y';
mas urna tal unidadc , na rclacño com a ópera, 6 urna dererminacño ultcrior do lírico. Em non Juan. a nota fundamental rnais nao é do que a
forca fundamental na propria ópera, a 1101a fundamental
Don Juan. mas
ele, por scu turno.
absolutamente musical - precisamente por nao ser
personagcm, mas vida esscncial. 11221 As restantes figuras da ópera também nao süo personagens. sao antes paixñes esscnciais, supostas por intcrmédio de Don Juan e, ncssa medida, tornam-sc por sua vez musicais.
Como
Don Juan qucm entrelaca tocias clas, estas por seu turno
enuelacarn-se também em Don Juan, e constituem as cousequéncias externas, su postas continuamente pela propria vida de Don Juan. Na ópera,
esta a absoluta ccntralidade da vicia musical de Don Juan, pcrmitindo
que a ópera cxcrca um poder de ilusño como nenhuma outra, e que a vida
musical de Don Juan transporte um individuo para a vida contida na obra.
Devido a ornnipresenca do musical nesta música possívcl desfrutar urna
única pcquena parte dela. e ser-se instantaneamentc transportado; chega-sc a meio da obra, e fica-sc instantaneamentc noqueé central, porque o
que central, a vida de Don Juan, está cm lodo o lado. Diz a vclha cxpeé
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que nño
agrudável csíorcar dois sentidos ao mesmo tempo, e
utilizar muiro a vista, ao mesmo tempo que se temo ouvido ocupado,
torna-se assirn factor de frcqucnte pcrturbacáo. Por isso, quando se ouve
música, há tendencia para fechar os olhos, lsto aplica-se cm maior ou
menor grau a toda a música, e a Don Juan in sensu eminentiori . Assim
que os olhos estáo ocupados, perturba-se a imprcssáo, visto que a unidade dramática que aos olhos se oferece
completamente subordinada e
impcrfcita, cm comparacáo coma unidade musical que ouvida cm conjunto com a dramática. A minha própria experiencia
deixou-me esta
conviccáo. Scntci-mc de perro. afastei-rne cada vez mais, procurei um
recanro no teatro, para me conseguir ocultar completamente nesta música. Quanto melhor cu a cnicudia, ou cslav~-cu1.crcL.CJUC a entendía. tanto
mais e~ me afastava para .Ionge dela, n,,iío p9r fricza, mas ~r~or158,
pois a música quer set entendida ~' <lís_1.fü19i;L Este facto trouxc consigo
algo de particularmente enigmático para a minha vida. Ilouvc alturas cm
que tcria dado ludo por um bilhete, agora nem sequer picciso de pagar
um táler15'J por um bilhclc. Fico cá fora no corredor, encosto-me a div.isória que me separa dos lugares do espectador, entao. o efeit.o produzido
é forlissüno. é cm si rncsmo um mundo, apartado ele mim. nao sou capa:¿
de ver nada, mas eslou suficicntcmcnlc
peri.o para ouvir e. contuclo, infinitamente longe.
Como us restantes personagens que entram na ópera nao necessitam dc
ser lfío prof'undamentc re llcx i vas que passem a ser transparentes enq ua11to
caracteres dramáticos, resulta l.arnbérn dcslc !"acto o que acin1a foi destacado: a situa\:fio nao consegue desenvolver-se ou dcsponlar por completo.
mas é em certo grnu sustentada por uma disposi<;fío. Aplil:a-sc o mesmo
ac9ao ele urna ópera. Aquilo que no mais rigoroso sentido tem o nome ele
ac<;fio.11231 o acto que é levado a cabo coma conse.iencia de um objeclivo,
nfío pode encontrar a sua cxpressao na música, a nao ser naquilo a que se
poderia chamar ac\:fÍO irncdiata. Em Don Juan. é o caso de ambas as coisas.
A ac<,:¡¡o é ac<;ao irnediata; a este respeito tenho de remeter para o que acima
ficou dito. quando desenvolví a significa9lio ele Don Juan corno sedutor.
Devido ao facto de a acr;flo ser acr;fío imcdiala, é inteiramentc adequado que
a ironía seja tao preponderante nesta obra, visto que a ironia é e continua a
ser o mestre disciplinador da vida imedial.a. Para inlroduzir apenas um
cxcmplo, é assim que o retorno do Comendador160 é urna desmedida ironia.
dado que Don Juan pode vencer qualquer obstáculo, masé sabido que na.o
riéncia
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155 Don Otravio está noivo ele Donna Auna e jura vingar a honra de ambos.
156 Noivo de Zerlina.
157 Vd. nota 17 cm «Prefacio».
158 A qui, «Kjasrlighed»,
159 Quantia equivalente ao salario semanal de um trabalhador.
160 Don Giovanni, Acto 11. cena 15; Kruse. Acto II. cena 20. p. 123.
158
é possívcl assassinar um espectro'?'. /\ situacño c~u'í curra vez completamente sustentada pela disposicáo: a este rcspciio, icnho de recordar a sianificacáo de Don Juan para o todo, bern como a existencia
relativa dus
restantes personagens ern relacáo a Don Juan. Mostrarci a minha opinlño
discutindo com rnaior pormenor urna situacáo particular. Escolho para o
efeito a primeira ária de Elvira162. A orquestra cxecuta o preludio, Elvira
entra. A paixáo que no peito dela brada tcm de ganhar fólego e o canto
ajuda-a nesse intuito, o qual seria todavía demasiado lírico para ser propriamente urna situacáo; a aria de Elvira seria entáo da mesma naturcza do
monólogo. no drama. A difcrcnca residiría apenas no facto de o monóloaob
estar rnars perlo de dar o universal de urna forma individual, e a ária, o individual ele forma universal. Mas, tal como cu dissc, isto seria cxcessivamente pouco para chegar a ser urna situacáo. É por isso que tambérn assirn
nao
Em segundo plano, ve-se Don Juan e Lcporcllo na ansiosa expectativa de ver surgir a dama que já haviam observado a janela, Ora se esrivéssemos perante um drama, cntño. a situacáo niío residí ria no facto de El vira
estar em primciro plano e Don Juan ern segundo plano, antes residiría no
inesperado confronto entre os dois. O intcresse repousaria no modo como
Don Juan iria escapar. Na ópera, o confronto entre os dois também adquirc
urna significacño sua. mas multo subordinada. O confronto é para ser visto,
ª. s~tua(ffü~ musical para ser ouvida: Ora a unidadc na situacflo a disposicao eOnJunta16\ na qual Elvira e Don Juan ressoam em conjunto. Também
por isso, é intciramentc acertado que Don Juan se rnantenha rccuado tanto
quanto possível, pois nño deve ser visto. nao apenas por Elvira, mas ainda
menos pelo público. A ária de Elvira comcca. Nao sci designar a paixáo de
Elvira a nño ser como um amor-ódio, urna paixáo amalgamada. vibrante e
sonor~. O seu interior movimenta-sc cm dcsassossego, ganhou fülego, fica
11241 traca por um instante, mais rraca do que urna qualquer explosao apaixonaclu. segue-sc uma pausa na música. Mas basta a movimenta9ao no seu
interior para i.ndi.car que ainda nao há paixao suficiente para que chcgue a
explodir; o diafragma da ini tem de ser abaJado ainda corn mais intcnsidadc. Mas que coisa será capaz de fazer surgir este abalo, que incitamento?
Só pode ser um único - a tro9a de Don Juan. Por isso, Mozarl utilizou a
pausa - oxalá eu fosse grego, já que assim d.iria que a utilizou de uma
maneira plenamente divina - para aí entrelas;ar a tros;a de Don Juan. Flaé.
é
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1ncja agora 1111tis 1'01 le a 1x1ixao, irrompe por ela aclcnlro mais violentamente, l'>Urgindo de ro111pa111c cin ,:..ons. Repele-se ainda mais uma vez, estremece cnti:io o scu interior, irrompem entilo a ira e a clor como urna torrente de
lava, na conhecida tirada com que termina a ária. Ora ve-se aqui qual era a
minha opiniao ao afirmar que Don Juan ressoa em El vira, ve-se que é algo
mais cloque fraseado. O espectador nao eleve ver Don Juan, nao eleve ve-lo
juntamente com Elvirn na unidade da sittta9ao, deve ouvi-lo entrando em
Elvira, saindo de Elvira. pois se bem que seja Don Juan quern canta, ele
canta, porém, de modo a que quanto mais descnvolvido estiver o ouvido do
espectador, tanto mais lhe parecerá que provém da própria El vira. Tal como
o amor164 cría o seu objecto, também assim acontece com a exasperas;ao.
Está obcecada por Don Juan. Esta pausa e a vo¿ ele Don Juan tornam a situa9ao dramática. mas a unidaclc na paixiío de Elvira, na qual Don Juan
rcssoa. sendo embora essa sua paixao suposta por Don Juan, torna a situac;ao musical•. A sitml9ao, observada como situa((flo musical, é inigualável.
Se, ao invés, Don Juan, bem como Elvira, forem personagens, enliio, a situac;ao falhou, cntao, resulta errado por Elvira a expectorar em primciro
plano e Don Juan a tro((ar em ·segundo plano, visto que seria aqui de exigir
que eu os ouvissc 11251 em conjunto, scm que afina! seja dacio o meio para
o fazer, e apesar ele ambos serem personagens a quem seria irnpossfvel
soar em conjunto dessa forma. Se forem personagcns, entao, a colisao entre
os dois é a si1.ua9ao.
* Em minha opiniño. é assím que devern ser concebidas a ária e a situacño de
Elvira. A incomparávcl ironía de Don Juan nao dcvc ser mantida no exterior,
antes eleve permanecer oculta na paixáo substancial de El vira. Jsto tern de ser
ouvido em conjunto. Tal como o olhar especulativo ve ern conjunto, tambérn o
ouvido especulativo ouve assirn em conjunto. Vou dar urn exemplo retirado <lo
que puramente físico. Quando alguérn, ergucndo-sc num ponto alto, observa
urna regiño plana e ve os diferentes caminhos que corrern paralelos uns aos
curros, se ti ver falta de intuicño, verá táo-sorncmc os carninhos, e as terras que
os entrernciam como que desaparecern, ou verá tao-somente as terras e os caminhos desaparcccráo; aqueles que pelo contrario possuem um olhar intuitivo,
vé-los-áo cm conjunto, verño riscas a toda a cxtcnsño. Também assim acontece
como ouvido. O que foi aqui dito aplica-se obviamente a situacáo musical; a
situacáo dramática tcm esse mais, l. e., o espectador sabe que é Don Juan qucrn
está em segundo plano e que Elvira quern está cm primeiro plano. Ora se cu
assurnir que o espectador é conhecedor destas anteriores relacóes (algo de que
o espectador nao pode ter conhecimento na primcira vez). entáo, a situacáo
ganha rnuito, mas também se verá entño que, houvesse a énfase de rccair nesse
ponto, nao estaría cerro manté-Ios longc um do outro durante tanto tempo.
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161
Forrnulacño
original
de Jens Immanuel
Baggesen,
Kallundhorgs Krenike eller
Censurens Oprindelse [Crónicas <le Kalundborg ou Origcm da Censura], de 1786, in
Jens Baggesens danske varker [Obras em Dinamarqués de J. B.], vol. L p. 236.
162 Don Giovanni, Acto I, cena Y; Krusc. Acto l. cena 6, pp. 20-2l.
163 Recordc-sc outra valencia de «Ste111ni11g», que permite ler a expressáo como «afinacño conjunta».
164 Aqui. «K)(.(!r/ighed».
161
160
Comcnrou-sc acirna como, na ópera, nao M.: C.:\1gc a p1c~su drumárica,
a
crescentc celeridadc no scu curso, tipicn do drama, e como a silua<;iio se
espraia corn agrado mais urna migalhinha. nao tcndo isvo. cornudo, de de
generar ern constante paragem. Corno exemplo da verdadcira mediana,
posso destacar a situacáo que acabo de discutir, nao como se esta suuacño
fossc a única cm Don Juan, ou a mais pcrfeita, pelo comráric, todas cías
assirn sao. e todas sao perfeitas, mas porque o leitor a retérn como rccorda<;ao mais próxima. E contudo, aproximo-me de um ponto comprometedor,
pois conlesso que há duas íirias dispcnsáveis, as quais, por rnais perfcitas
que cm si mesmas sejam, produzcrn afinal um efcito perturbanrc, e urn
cfeiro retardador. Prefería guardar scgrcdo, mas já ele nada serve agora, a
verdadc tem de vir a IU/ do clia. Se forem retiradas, toda a restante ópera
fica igualmente perfcita. Urna de Ottavio165• e outra é de Anna166, ambas
sao mais pc~as ele concerto cloque música dramática, tal como ele um modo
gcrul Ottavio e Anna sao personagens demasiadamente insignificantes para
ousarem fazer parar o andamcnto. Se forem retiradas, a ópera adquirc, aliás,
urna pcrlcita cclcridade dramático-musical,
pcrfcita como ncnhurna outra.
Valcria ccrtamcntc a pena pcrcorrer tocias as situa<,:oes urna a urna, nao
para
Iazer acompanhar de pontos de cxclarnacño, mas para mostrar a
respectiva significacáo, a respectiva validade enquanro siruacño musical, o
que entretanto está fora dos limites da pcquena invcstigacño aqui presente,
na qual de especial importáncia destacar a centralidade ele Don Juan cm
toda a 11261 ópera. Repetc-se urna coisa parecida no que di; rcspeito as '>iruacócs singulares.
Quero esclarecer rnais pormcuorizadurnente a j:í discutida ccntralidadc
ele Don Juan na ópera. passando a observar as restantes pcrsonagens na obra
na rclacáo com Don Juan. Tal como no sistema solar os corpos oscuros, ao
rccebercm a Ju¿ do Sol, que está em posicño central, ficam semprc apena),
iluminados pela mctade, e lcm luz, dcsignadarnentc, no lacio que está voltado para o Sol, tambérn é este o caso das personagcns desta obra: só está
iluminado o momento de vida, o lado que está voltado para Don Juan,
quanto ao resto, sao obscuras e opacas. lsto nao tcm de ser tomado cm
sentido restritivo, como se cada urna desras personagcns fossc urna ou outra
paixño tomada cm abstracto. como se, por exemplo, Anna fossc o ódio.
Zcrlina, a lcviandade. Sernclhante falta de gosto é a última coisa a caber
aqui. No indivíduo singular, a paixáo
concreta, porérn, concreta em si
mesma, nao sendo concreta na personal icladc, ou para me exprimir com
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ª"
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mui-, rigor, o que resta da pcrsonulidudc
cngolido por cssa paixílo. Ora
1slo está absolutamente cerio. porque é ele urna ópera que estamos a tratar. \
1 :sta obscuridade, esta misteriosa comunicacáo com Don Juan, em parte
srmpatética, cm parte antipatética, fat. com que sejam conjuntamen~e musi-;
cuis e, cm 1)011 Juan. produz o efcito de toda a ópera soar cm conjunto. A
única figura na obra que parece ser cxccpcíío é obviamente o Comendador;
mas iambérn por isso está tao sabiamente distribuído que, cm certo grau,
Iica de Iora ou delimita a obra; quanto mais o Comendador fossc impelido
para a frente, tanto mais a ópera ccssaria de ser absolutamente musical. Por
isso.
continuamente rnantido cm segundo plano, e tño encoberto quanto
possível. O Comendador
a vigorosa proposicño antecedente e a intrépida
proposícáo consequentc, situando-se entre estas a proposi9a~ in.termédia_ <l~
Don Juan, masé o rico conreúdo dcsia proposicáo intcrrnédia que constitui
o teor da ópera. O Comendador só aparece duas vczcs167• Na primcira ve~,
aparece de noitc; está no fundo do palco. nao é possívcl _ve-lo, ~as é_ ouv~do quando eai sob a espada de Don Juan. A sua scriedadc já ah esta,
mostrando-se apenas mais forre diante da troca e da parodia de Don Juan,
algo que Mozart exprimiu na música ele maneira excelente; a seriedudc do
Comendador já demasiado profunda para pcnencer a um homcm; ele é
c~pírito antes de morrer. Na segunda vc1., mostra-se como espírito, e o clamor troantc do céu ressoa na sua vo1, solcne e séria; mas tal como o Comendnclor se transfigurou. a sua voz ve-se assim transfigurada para algo que é
mais do que urna vo1 humana; o Comendador já nao fala, julga.
11271 A seguir a Don Juan, a personagcm mais importante na obra é manifestamcnte Leporello. A sua rela<_;ao com o amo passu a ser explicável
precisamente através da música, sem a música, toma-se incxplicávcl. Se
Don Juan for uma personagem reflectida. cntiio. Lcporcllo torna-se um
patife quase ainda maior do que ele, e fica por explicar como pode Don
Juan exercer um poder tiío grande sobre ele; o único motivo que resta é ele
pagar mais do que todos os outros, um motivo que nem sequer Moliere
parece ter querido utililar, dado permitir que Don Juan passe por apertos <le
dinheiro. Ao invés. tomando nós Don Juan como vicia irnediata, entao.
torna-se fácil entender que ele seja capaz de cxercer uma influencia decisiva sobre Leporcllo, que o assimile para si a ponto ele Leporello quasc chegar a ser um órgao de Don Juan. Em certo sentido, l..eporeHo eMá mais
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165 Dalla sua pace, Acto l. cena 14, composta para a estrcia da ópera cm Viena cm
1788: nao figura na vcrsño de Krusc.
166 Non mi dir. betl'ldol mio. :1 segunda ária de Donna Anna.Acto 11, cena 12; Krusc,
Acto 11. cena 16. p. 114.
167 Kicrkcgaard scguc a indica<;ao de llotho, que apenas considera duas e1~tra~las do
Comendador; vtl. Holho. Vorswdien. p. 41; e referencia
cena do cem1léno nas
pp. 133-136. !\a realirladc, o Comendador aparece urna vez em vida. i. c .. quando é
a~sassinado, Don Giow11111i, Acto l. cena l: e <luas vc7.es como espectro: na cena do
ccmitério, Don Giovanni, Acto JI, cena 11, Kruse, Acto TI, cena IS, p. 102: c na cena
conclusiva, a ceia em casa de Don Giova111ú, Don Giovanni. Acto ll, cena 15. Kruse.
a
Acto ll. cena 20. p. 123.
16.l
162
perto de ser urna consciencia pessoal do que Don Juan, mns para que tal
aconteca, teria de ser ele a tornar clara a rclacíío corn ele csrabclccida; mas
nao consegue fazé-lo, nao consegue eliminar o encantamento. Vol ta aquí a
impor-se que Leporello tenha de ficar transparente para nós, assirn que
profcre urna réplica. Tambérn na rclacño de .Leporello com Don Juan há
algo de erótico, há um poder corn o qua! Don Juan o prende contra a voniadc dele; mas dentro dcsta cquivocidade Lcporello musical e Don Juan
continua a ressoar nele, algo de que darei posteriormente um exemplo para
mostrar que é mais do que urna frase.
A excepcáo do Comendador, todas as personagens estabelecem urna
espécie de relacño erótica com Don Juan. Nao é capaz de excrcer poder
algum sobre o Comendador, ele é consciencia; os outros cstáo cm scu poder. Elvira ama-o, está por cssa via cm scu poder, Anna odeia-o, está por
cssa via cm scu poder, Zcrlina teme-o. está por essa vía em seu poder, Ottavio e Masscuo juntam-sc-lhes por razócs de afinidade. já que os laces de
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sanguc
sao ternos.
Ora ~<>e eu voltar por um instante no que aqui foi desenvolvido, entáo,
talvez 'o leitor veja corno aqui se dcsenvolveu novamcnte, ern diversas
perspectivas, o tipo de relacáo que a ideia de Don Juan estabelecc com o
musical, o modo como essa rclacáo é aquilo que é constitutivo de toda a
ópera. o modo corno cla se rcpctc nas partes particulares da ópera. Poderia
de bom grado parar aqui , mas por urna qucstáo de completude suplementar
quero todavia esclarecer essa relacáo percorrendo algumas pecas em separado. A escolha nao há-de ser arbitraria. Escolho para cssc cfcito a abertura 1<>8, a qua l. está bern perlo de dar a tonalidade fundamental H ópera pela
sua condensada concentracño; escolho a seguir o momento mais épico e o
momento mais lírico na obra. para mostrar como 11281 a perfeicáo conservada até nos limites rnais extremos da ópera. e o dramático-musical
devidamente mantido, e como Don .Juan quern sustenta a ópera musicalmente.
Nao é este o lugar para um dcscnvolvirncnto da significacáo trazida, na
globalidade, pela abertura a ópera; quando multo, pode aquí ser destacada
a circunstancia de urna ópera, ao exigir urna abertura, mostrar bastante a
preponderancia do lírico, e que o efeito visado por essa via o de fazer
surgir urna disposicáo, algo a que o drama nao pode permitir-se, dado que
tudo eleve ser transparente. É por isso adequado que a abertura seja cornposta em último Jugar, para que até mesmo o artista possa ficar profundamente penetrado pela música. Por isso, é cornum a abertura conceder a
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168 Para urna análise circunstanciada do quanro Kicrkcgaard se apropriou do cnsaio
wagneriano «De l'Ouverture» (1841). vd. Elisabete M. de Sousa, «What Kierkegaard did
after reading Wagner», in Filosofia e Literatura J, Actas do l." Colóquio de Filosofia e
Literatura, ed. Humberto Brito, Lisboa: fnstituto de filosofía da Linguagem, pp. 57-69.
uportuuidudc de lancar u111 olhar profundo sobre o compositor, e s~obre a
rel:1c;ao anímica que maruém com a ~11a música. Se nao captar corn éxito o
que central na música, nao entra nurn relacionamento mais prof~ndo corn
a disposicño fundamental da ópera, cntáo, isso fica inconfund1velmentc
denunciado na abertura; esta passa entáo a ser um agregado dos pontos
salientes cntrelacados por urna frouxa associacáo de ideias, e nao totalidadc
algurna. nao contendo a abertura. como era propriamente dcver seu, esclarccimentos mais profundos sobre o conteúdo da música. E comurn que urna
abertura dcssc tipo seja tambérn por isso completamente arbitrária, .e pode,
dcsignadamente, tornar-se táo longa ou tao breve quanto se querrá, e. o
elemento congregador, o de continuidadc, dado que apenas urna associac;uo de idcias, pode ser desc1lrolado tanto quanto se que~ra. Por ísso, urna
abertura é arniúde urna renracáo perigosa para compositores de segunda
ordcm que se dcixam embarcar com muita facilidade no plagio el.e si m~smos, roubando do seu proprio bolso. algo que produz urn efclto rnuuo
perturbador. Tendo assim claramente cm conta que a .abertura nao dc~e
contcr o mesmo que a ópera contém, cntáo, torna-se 6bv10 que tamb~m nao
dcve corucr urna coisa absolutamente diferente. Ha-de conter, des1gnadamerite, 0 mesmo que a obra contém, mas de urna maneira diferente, deve
conté-lo de urna mancira central e agarrar o ouvinte corn todo o poder do
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que é central.
A este rcspeito, a scmpre admirada abe1tura de Don .luan é e permanece
uma obra-prima perfcita. e se nao se pudesse introduzir ncnhuma outra
prova da classicidade de Don Juan, entao, ser.ia surici~nle destacar es:a
única: o que há de impensável no facto de aquilo que tinha o central. nao
houvesse de ter também o periférico. Esta abertura niío é nenhuma misturada ele temas, nao eslá enredada em a~socia¡,;oes de ideias em labirinto, é
concisa, determinada, fortemente construída c. acima de 11291 tudo. está
impregnada da esséncia de toda a ópera. É vigorosa como~ pensarncnto ~e
um c(eus movimentada como a vida de um mundo, arrepia pela sua senedade, esi'remece na sua volúpia, esmaga com a sua Lcrrívcl ira, inspi:a por
viada profunda alegria de vi ver; é cavernosa nas suas se~1lenc,:as, cs~ndente
na volúpia,é vagarosamentcsolene na sua imponente digntdade, movunenta-se, esvoa<;a e danc,:a nesse seu gáudio. E isso nao foi alcanc;ado sugando o
sangue da ópera, pelo contrário, cm rclac,:ao a ópera, a abertura é uma pro·
fecia. e a música desdobra nela toda a sua amplitude e, batcndo levemente
as asas com vigor, como que fica a pairar; fica a pairar sobre o local onde
irá pousar. É uma luta. mas urna luta nas mais altas ~egioes eté~eas. Para
quem ouvir a abertura depois de ter obticlo um co~~cc1mento ma.1s aturado
da ópera, talvez pare9a que entrou na remota oftcrna onde. as io~c,:as que
aprendeu a conhecer na ópera se agitam com uma for9a pnmor<l1al, onde
irrompern urnas contra as outras com todos os poderes. No entanto, o com-
164
f ht
bate é excessivamcntc desigual, urn ú11 ico dos poderes j11 e 'K'111lor do 1 riunfo antes <la batalha, fogc e esquiva-se, mas esta ruga é prccixarncntc a sua
paixáo, o ardente desa. sossego da sua breve alegria de vivcr, o pulso acelerado do scu ardor apaixonado. R assirn que este poder pñc cm movimcnto o outro poder, arrastando-o consigo. Este. que prirneiro se mostrara tao
inabalavelrnentc seguro que quase esiivera imóvel, tem agora de sair e,
rapidarneruc, o movirnento torna-se tao veloz que parece ser urn combate
real. Nao é possívcl prosseguir com rnaior pormenor, importa agora ouvir
a música. pois o combate nao é um combate de palavras. mas urna fúria dos
elementos. Tcnho apenas de chamar a atcncáo para o que anteriormente Ioi
dcscnvolvido: o interessc da ópera Don Juan, e nao Don Juan e o Comendador, e tudo isto cvtá mostrado na abertura. Parece que Mozart se aplicou
e dispós a abertura de molde a que aqueta voz profunda que soa no início,
tornando-se a pouco u pouco cada vez mais fraca, como que perca o seu
porte rnajcstático e tcnha de correr para conseguir acompanhar a pressa
demoníaca que !he escapa e, contudo, quasc arranjc poder para a aviltar.
arrasiando-a consigo para urna corrida na brcvidade do instante. Assim é
criada progrcssivamentc a 11w1si9í:ío para a propria obra. No scguimento
<lis ro. tem de imaginar-se o final 169 cm rclacño cstrcita com a primcira
parte da abertura. No final, a scriedadc regressa outra vez a si mesma, ao
pusso que no decurso da abertura como que cstivcra lera de si mesma: a
qucstáo nao é agora correr ao desafio 11301 com a volúpia, a sericdadc regrcssou novamentc e, dcssc modo, cortou todas as sardas para urna nova
corrida.
é
Por isso. conquanto ern determinado sentido veja indcpendente , num
outro ·entido, é de considerar a abertura como um prenúncio da ópera.
Procurei acirna Iembrá-lo, refrescando a recordacüo do leitor quanto ao
dccréscirno progressivo corn que no infcio da obra urn dos poderes se avizinha. Constata-se o mesmo ao observar o outro poder, o qual aumenta,
dcsignadumcnte, cm progrcssño cresccnte; corncca na abertura, cresce e
aumenta. E especialmente digno de admiracño o que está cxpresso no seu
comeco. Ouve-sc o corneco sugerido tao ténue e misteriosamente. ouvc-se,
mas acabando de forma tao rápida que se recebe justamente a irnpresxño de
que se ouviu urna coisa que nao se ouviu. É preciso ter urn ouvido atento,
urn ouvido erótico, para reparar da prirncira vez como a abertura faz a sugcstáo do jogo Iigeiro dessa vohipia, a qual depois se recebe, ricamente
expressa ern toda a xua pródiga abundancia. Indicar com rigor e exactidáo
onde está essc lugar é algo que nao sou capa¿ de fuzer, já que nao sou um
169 /\ última cena é aqui a cena da ceia, Acto 11. cena 15; Krusc, Acto IJ. cena 20,
p. 123. A chamada scena ultima. cstreada na verxílo de Viena. nunca foi e" ibida na Dinamarca. a scmclhanca do que acontcceu na Alcmanha durante todo o século xix.
Ou lJ111 "'·'l'ttll't1h1 d;. V1d.1
IM
couhcccdor de musicu. 1na-. La1111Jém cxtou a cscrcvcr apenas para apaixoii.1do-.. e e-.1c-. vao deceno entender· me, e alguns deles ainda rnelhor do que
l u 111c cntcndo a mim mesmo. Contento-me entretanto coma parte que me
couhc. com este enigmático cnarnorarncnto e, aposar ele eu aliás agradecer
.tus dcuscs ter nascido horncm e nao rnulhcr'?", acontece que a ópera de
1\ lu/art me cnsinou como é bclo, e reconfortante, e enriquecedor, amar
L'111no u ma n tu 1 her.
no sou um dcsscs amigos de irnagens: a moderna literatura tem criado
cm mim, cm grande medida, urna avervño a irnagens, visto que por vczcs
chcgarn a cstcndcr-sc tanto que, de cada vez que encentro urna imagem, sou
mvoluntariurncntc pcrcorrido por um temor, o ele que o verdadeiro propóvuo dessas imagens seja ocultar urna obscuridadc do pcnsamcnto. Nao me
atrcvcrci de modo algum a efectuar um ensaio incomprccnsívcl ou infrutíkrn para traduzir a contida e enórgica brcvidade muna linguagcm figurativa, verbosa e in. ipiente: qucro apenas dcswcar um único ponto na abertura
l'. para chamar a atcn!:faO do lcitor, utilizarei uma imagem. o único rncio de
que <lisponho para cstubelcccr ligayffo com essc ponto, o qual nao é (~bviami;nte outro que nao ... eja a primcira apari':fi'iO de Don Juan. o pressent11nenque dele se tcm. e do poder com que mais tarde ele irrompe outra ve¿. A
abertura comcya c.:om alguns acordes profundos. sérios. e uniformes, ~oando cntao pela prirncira ve1. um simtl infinitamente longínquo e. como se
11vesse chegado dema-.iado cedo, é retirado no mesmo in~tante. até que
111ais tarde se ouvc 11311
repetidamente, cada vez mais intrépida, cada vez
mais sonante, aquela vul que primeiramcnte con~cguira entrar com astúcia
e garridicc e, contudo. como que com angústia. nao scndo por seu tumo
capaL de penetrar profundamente. É as:.im que por VelUS ~C VC na natureza
o horizonte, obscuro e encoberto; demasiado pesado para se suster a 5i
próprio, rcpousa sobre aterra, tudo ocultando na sua noitc escura: fa1.em-se
ouvir apena!> alguma" nota~ cavernosa.,, porém, nao em movimento, mas
como um profundo munnúrio a si mesmo dirigido - ve-se entao jlmlo ao
mais extremo limite do céu. longe no horizonte. um clarao: precipita-:.e
rapidamente a toda a largura da terra. "orne-se num ápice. Mas voila deprcssa a mostrar-se. aumenta de fon,;a, ilumina momcntancamentc todo o
céu comas suas chamas, no instante seguinte o horizonte parece ainda mais
obscuro, mas flameja ainda mais depreso.,a e mah incandescente, é como se
'º
170 Prasc atrihuída a Tules por Diógencs L<iércio em Vidas de Grwules Fi/6svfu1,l. 33:
edi~iies con<>uhadm. pelo autor: Oiugenis ú1er1ii de l'itis plli/osopl10ru111 1 Vid<L' dos Fil6sofos de D. L.]. vob. 1-11, Lep11g. 1933: vol. l. p. 15. e Dioge11 Li1fr1se~jilosofiske
Hiswrie LHistória da Pilosofia de D. L.]. vols. l-11, trad11i.;iío de B0rgc Riisbrigll,Co~nhaga. 1812: vol. 1. p. 14. Vd. Diogenes Laertius. Li1•es of Emi11e111 Philosopller.v. tradui,;ao de R. D. Hicks. Cambridge: Harvard L:nivcrsity Prco;s (Loeb). 1991. vob. l-11:
vol. l. p. 35.
166
a propria cscuridño tivcsse perdido o vosscgo e se puses:-w c111 mov111w111o.
Tal como os olhos pressentcrn a deflagracño ncssc primciro clarño, também
os ouvido pressentern toda a paixño ncssa agoni/aruc arcada de violino.
Há urna angustia naqucle claráo, é como ter nascido na obscuridadc profunda e com angustia assim a vida de Don Juan. Há nclc urna angústia,
mas esta angustia
a sua energía. Nao se trata de urna angústia que csteja
rcflectida ncle subjectivarnentc, mas sim de urna angustia substancial. Ña
abertura. nao há o que é comum dizcr-se sem saber o que se está a dizcr
- nao há de. espero; a vida tic Don Juan nao desespero; é antes tocio o
poder da scnsualidade, nascido na angustia, e o próprio Don Juan é esta
angústia, mas esta angustia
exactamente o demoníaco desejo ele vivcr.
Depois ele Mozart ter assim feíto corn que Don Juan viesxc existencia. a
vida de Don Juan descnvolvc-ve agora diantc de nós nos sons dancantcs dos
violinos, nos quais ele se precipita no abismo. ligciro e fugaz. Tal corno ao
lancar urna pcdra de molde a que vcnha a tocar de raspáo na supcrfície da
água, esta c~nsegue cntño saltitar sobre a água durante algurn tempo e,
pelo contnirio, assim que acaba de saltar, afunda-sc instanrancarncnrc
no
abismo. tarnbérn ele danca assirn sobre o abi\1110, rejubiluntc ncste scu
breve pravo.
Ora. se. como acimn foi comentado, a abertura puder todavía ser tida
como u111 prcnúncio da ópera; se na abertura se dcscer duquclas elevadas
rcgiñcs, entño. é ele pcrguniar cm qual dos lugares na ópera se aterra melhor, ou como proceder para que a ópera tcnha infcio. Quanto a isto, Mozurt
viu a única coisa que esta va cerra: cornccar corn Leporello. Podía até parec:r que isso nao tcm grande mérito. tanto mais que quasc todas as concepcocs de Don Juan comccarn por um monólogo de Sganarcl. No entamo, é
urna grande diferencu, e surge aquí novamcnte a oportunidade ele admirar
11321 a mcstria de Mozart. Colocou a prirneira ária do criado cm ligadío
' d.
171 ,t.
T
1111~ tata corn a abertura
. e. algo que raramente ocorre: cnquadra-se aqui
muno bem, e lanca urna nova luz sobre o plano geral da abertura. A abertura procura dcsccr até asscntar os pés na realidadc cónica: já ouvírarnos 0
Comendador e D. J. na abertura; a seguir a eles. Lcporello é a figura rnais
importante. Nao obstante, Leporello nao pode ser elevado para travar cssc
combate nas regiües etéreas e, no entanto, mais do que ninguém,
parle
desse combate. Por conscguiruc, a obra tem início com ele de modo a que
ele fique cm Iigacáo imediara corn a abertura". É por isso inteiramente
ccrto contar a primcira ária de Leporello172 como parle da abertura. A ária
é
é
é
é
a
é
171 O~ editores de SKS imercalam um conjunto de frases do manuscrito, corn início
nesrc local e conclusño no asterisco. seto linhax abaixo nesia página.
1
Acto 1. cena 1. prime ira ária de Leporello. No11e e giorno fatticar .... cm liga<;iio
directa coma abertura.
y2
de l .cporcllo corresponde ao 11ao 111c11os ramoso monólogo de Sganarel cm
Moliere. Observaremos a c;ituac;iío urn pouco mais de perro. O monólogo de
Sganarel '7' está longo de ser pouco espirituoso. e quando lido nos v~rsos
! luidos e leves do Prof. Heibcrg, devoras que entretém; cm contrapartida, a
xituacíío peca por defcito. Digo isio mais em relacáo a Moliere. já que, em
l tcibcra, o caso
outro. e nao digo isto para rebaixar Moliere, mas para
mostrar o mérito de Mozart. Em maior ou menor grau, um monólogo rompe scrnprc corn o dramático e. quanclo o poeta. para fazer surgir tal cfcito,
procura produzi-lo através da propria e .. pirituoxidade do diálogo. e nao
utravés da respectiva pcrsonagcm, foi etc qucm partiu a vara nas suas próprias costa-; ao abdicar do intcrcssc dram:í.tico. Na ópera, é diferente. A si=
tua9ao é aqui absolutamente musical. Já atrás recordei a dirercnc;a que ha
entre mna situa9ao dram:ítica e urna situa9ao dramútico-musical.
No drama,
a conversa nao é tolerávcl. exige-se acc,:fio e situa\:i'lO. Na ópera. há um repouso na situac;ao. Mas entao. o que faz desra situa<rao uma situa<rao musical? Foi destacado anteriormente que Lcporello é urna figura mu~ical e,
t.:ontudo. nao é ele quem sustérn a siluac,:ITo. Se assim fossc, a sua ária seria
análoga ao monólogo de Sganarcl, se hcm que por isso se tivcsse igualmente demonstrado que urna qua.<,e-<;ituac;ao deste tipo a1-scnta mclhor na ópera
do que no drama. Aquilo 4uc torna a -;ituac,:ao musical é Don Juan. que estú
tá dentro. O fulcro nao estú em Leporello, que c-;tá próximo, mas em Don
Juan. que nao ·e ve - mas 4ue se ouve. Seria deccrto possívcl contrapor o
!.eguinte: «nao se ouvc 0011 Juan de tocio». A isso. rcsponderia eu: «sim.
ouvc-sc. pois ele ressoa em Leporello.» Em relac,:ao a isto, devo chamar a
atern;ao para a transic,:ao ( 11110/ star dentro colla l)el/a)174• na qual L:po~ello
est<í manil'estamcntc a rcproduzir Don Juan. Mas mesmo que nao tosse
este o caso. 11331 a situac;ao está todavía delineada de modo a que ncla se
inclua involuntariamente Don Juan. cf..qucccnclo-f..e Leporello que está cá
fora. em favor de Don Juan que está lá dentro. Acima de tudo, Motart fez
com que Leporello reproduz.issc Don Juan com genufna gt.:nialidade.c. por
es!.a vía. alcanc,:ou duas coisa.,: o efeito musical 4ue consiste cm ouv1r Don
Juan cm todo o lado por onde Leporello ande sozinho, e o cfeito paródico.
que consiste cm ouvir Leporello a repetir Don Juan, e~tando Don Juan
também presente, através desse efeito. a parodiá-lo inconscientemente.
Como cxemplo, mcncionarei a conclusao do baile 175.
é
é
l73 Acto[. cena J: in Molieres udwilRte Sk111•.vpil, p. 173.
174 Em italiano no original: «qucr estar lá den1ro eom a bcla»: a Ncuc Mo7.art-Ausgabc
~ubs1itui «1•1wl» por «1•ni».
175 Don (iiovamú. Ac10 I, cena 20, Kruse. Acto l. cena 20, p. l23; scguindo ordens de
Don Giovanni, Lcporcllo dall(,:a com Massel.lll e distrihui os pare¡, nu dan9a. Além desta
cena. há ainda toda uma sequencia de cenas em que Lcporello e Don Juan trocam de
identidades: ve!. Do11 Gio1•a1111i. Acto 11. do final da cena 1 até ao início da cena do ce-
1()8
Ou
Se se perguntar qual o momento mais épico na ópera, en tao, nao rcsinm
dúvidas de que a rcsposta fácil: é a segunda riria de l.cporcllo. a .iria do
catálogo. Já foi acima destacado. através da cornparacño dcsta ária com o
correspondentc monólogo em Moliere, qual é a significacáo absoluta da
música: a música, justamente pelo facto de nos deixar ouvir Don Juan
ouvir a variacóes nelc, faz surgir o efcito que nao está ao alcance da palavra ou do .diálogo. É aqui de irnportáncia salienrar a situacáo e o que nela
há de musical. Ora se olharmos para o palco, o conjunto em cena constituído por Leporcllo, Elvira e o criado fiel. O amante infiel, ao invés, nao
está presente. está dcsignadarncntc, como Leporcllo exprime, dizendo com
propriedadc - «está fora»176. É um virtuosismo que está na posse de Don
Juan: ele está cá, e - en tao, ele está Iora, e torna-se para ele tao conveniente estar fora (designadamentc fora de si mesmo), quanto
conveniente a
entrada de Jeronimus'?', Como agora se mostra que ele nao está, podcria
parecer estranho que eu falc dele, inrroduzindo-o de certa rnancira dentro
~la situacño; com urna apreciacáo mais rigorosa, tal vez isto venha a parecer
mterrarncnte adcquado, vendo-se aquí um excmplo de como a ornniprcscn9a de Don Juan na ópera tcm de ser tomada a letra, visto que nao pode ser
denotada de maneira mais incisiva do que chamando a atcncño para a circunstancia de ele estar presente. mesmo quando está fora. No entamo.
queremos deixá-lo agora ficar de Iora.já que con. cguiremos ver rnais tarde
com que significacño ele estn presente. Ern contrapartida, queremos observar ~s tres pcrsonagens ern palco.
facto de el vira estar presente contribuí
obviamente para produzir urna situacño, poís seria descabido pór Leporello
a dcsenrolar a lista para passaternpo seu: mas a posicño dela contribui ao
mesmo tempo para tornar a sit.ua~ao ernbaracosa. Nao posslvel negar que,
cm .gerul, a troca por vetes dirigida ao amor17l! de Elvira é quasc cruel.
Assirn . acontece no segundo acto 179, no instante decisivo cm que Ouavio
p.uxa Iinalrnentc a coragern do peito e a espada da bainha para 11341 a~sassmar Don Juan, e ela mete-se entre os deis, descobrindo agora que nao
Don Juan, mas sirn Leporello, urna diíercnca que Mozart assinalou marcadamente através de uma espécie de gemido trémulo. Acontece assirn nesta
é
é
é
é
o
é
Ou
l1111
h,1¡•1111.11111111
\
16()
111.1
nos ... a situacao, e há algo de doloro ...o no lacto de cln estar presente para vir
a saber das mil e trl!s que h(i c111 Espanha c. mesmo, o que ainda
rnais, na
vcrsño alcmá cla
igualmente nomcada como urna das mil e tres, o que
sen do um apcrfcicoarncnto alernáo 1 HO revelador, em idéntico grau, de urna
estúpida indecencia, tal como a rraducáo alemá, de urna maneira ~ao ~en.os
estúpida, é ridículamente indecente e completamente falhada. E a El:1ra
que Leporello oferece urna panorámica épica da vida do seu amo, : é. megável que é inteiramente adcquado ser Lcporcllo a declamar e ~lv1ra a
cscutá-Io, já que ambos cstáo intcrcssados nisso cm alto grau. Por isso, tal
como se continua a ouvir Don Juan em toda a ária, tambérn nalguns passos
ouvc-sc assirn Elvira , a qua! está visivclrncntc presente cm palco, como
urna testcmunha instar 011111i11111, nao por motivo de algurn privilégio acidental da sua parte, mas porque o método permanece essencialmente o
mesmo, urna vale por todas. Se Leporello fosse urna personagern dramática
ou urna personalidade profundamente reflectida. entáo, seria difícil imaginar sernclhante monólogo, mas, exactamente por ser uma figura musical.
afunda-sc cm Don Juan; por isso, a ária tcm uma tao grande significa9ao.
A ária é uma reprodu<;ao de toda a vida de Don Juan. Lcporello é o narrador
épico. Dcce1to que scmclhantc narrador épico nao pode ser frio ou .ncar
indiferente ao que está a narrar. mas devc, contudo, manter urna a11tude
objectiva diante disso. Nao é este o caso de Leporello. Deixa-"e levar cornplctamentc pela vida que dcscrevc. csquccc-se de si crn Don Juan. Volto
aqui a ter assim um cxcmplo do que é di1.cr que Don Juan rcssoa por toda
a parte. A situa<,:ao nao reside de modo algum nu c.:onfabula<;íio de Lcporello
e de Elvira sobre Don Juan. mas na disposi<;iio 4ue sustém o todo, na prese111~a espiritual e invisível de Don Juan. Desenvolver mais a tra~si<;üo
desta ária. o modo como ela come~a tranquilamente. com pouca mov1menta9ño, inflamando-se, porém. cada vez mais a medida que a vida de Don
Juan cada vez mais ncla resc;oa; desenvolver mais o modo como Lcporello
é
é
é
é
mitério, cena JO. Ao longo dcsta primcira parte, sernpre que Don Juan e Lcporcllo
coutracenam com curras personagcns. Iazcm-no trocando ele identidadc: é corn a intervcncño d~ cstárua do Comendador que as respectivas identidades sao repostas.
176 Répl~ca de Lcporello apenas ocorrentc em Kruse. Acto J. cena 5, p. 22.
177 Alusao.a oportuna entrada de Jeronirnus. após uma outra pcrsonagem ter manifestado o dcsejo de que ele aparecesse; vd. Ludvig llolbcrg, Barselstuen [Sala de P;111osl.
de J 724. Acto V, cena 6; in L. Holberg, Den Danske Skue-Plads [O Teatro Dinamarqués]. vols. 1-VII, Copenhaga, 1758-1788; vol. 11, sem indicacáo de página.
178 Aqui, «Kjarlighed»,
·
179 Don Giovanni, Acto 11. cena 8: Krusc, Acto 11, cena 11, p. 94.
a ária do c?tálogo: •<1(111 ~e11<! ''.mi
md11 Tau.1e11d 111ul drei: Sie sim! c111('/1 dahei», i. e., «Mil e <lua;. - nao, mil\!
;·res. També1~1 cst:iis incluída». Vd. o seguintc comentário atribufvel a J. L. Hciberg. in
Kjflhe11hm·11sfly1•e11de Post ICorrcio Volante de Copenhagal, IR~?. n~mero 79, 1 d1:
Outubro (cdi91io irnpressa. vol. l. pp. 328 e scgs.), na mesma 1:ubnca «1 heatret», «Don
Juan»: <<Den dwiske Bearheidelse aj 0011 J11a11er11paal1'ivlel1¡: de11 bedste .wm exwerer. [ ... } /)en 1yd.1ke Bearbeidelse er 1111der al Kri1ik. /seer de:1 MacHle, /11:orpaa den
t\'dske Omarbeider /wr ¡1/yndret Molieres Don Juan, og c11dog 111df9>rt hele .ke11e11 med
Mr. Di manche ... er nol(el af det F11skeral(ligste man har see1 i Omarbeidelve~fager .»
1 «A adapta<;1ío dinamarquesa <le Don Juan é induhitavelmente a mdhor que existe [. ".: 1
A a<lapta(fUO alema é cm 1udo criticávcl. Em especial. o modo como o adapta~or alemao
pilhou 0 Do11 Juan de Moliere, tcndo mesmo introdui.iclo a ce~a com ~r. D1o~nache .. · ·
É uma das maiorcs trapalhiccs já vistas no campo das adapta<;ocs.»] lntormai,:ao genlllmente cedida por R. Purkarthofer.
J 80 /\ verstio a lema regi~ta os scguiotc~ versos para
'll'l'Í -
170
l '/I
é cada vez mais transportado, deixando-sc arrastar e embalar por estas hri
sas eróticas; o modo como a ária está matizada difcrcnciadamcnre. de
acordo com as diferencas da ferninilidade que estáo no scio de Don Juan,
tornando-se aqui audíveis - nao é este o lugar para o fazer,
Se se perguntar quaJ é o momento rnais lírico na ópera, enráo, a resposta
talvcz suscirasse mais dúvidas: pelo contrario, certamcnte que nao 11351
restarn quaisquer dúvidas de que o momento mais lírico só pode ser atribuído a Don Juan, e que redundaría numa ruptura em relacño subordinacáo
dramática, se fosse tolcrável que urna personagern secundária vicsse de
alguma maneira ocupar a nossa arencño. Mozart também teve isto cm consideracáo. A cscolha fica assirn significativamente circunscrita e, verificando mais de perlo, só pode falar-sc ou do banquctc'U, a primcira parte do
grande final, ou da conhecida ária do champanhc'P. No que diz respcito
cena do banquete, até ceno ponto, pode cortamente ser rida como um momento lírico, e a inebriantc e plena sacicdadc da refcicáo, o vinho a espumar, os longínquos sons festivos da música, tudo isro se une para potenciar
a disposicño de Don Juan, tal como a sua propria natureza festiva lanca urna
luz engrandecida sobre todo o desfrute que produz um efcito tao torre que
até mesmo Lcporello se transfigura nesse rico instante. o do último sorriso
da alegria, o do aceno de despedida do desfrute. Entretanto, trata-se afinal
mais de urna situacáo do que ele urn momento meramente lírico. A situacáo
n.iio reside obviamente no facto de se comer e beber ern palco. pois isso , cm
si e por si,
rnuito insuficiente para ser tomado como situacño. A situa~ao
reside no facto de Don Juan ser empurrado para o ponto mais extremo da
vida. Perseguido por tocio o mundo. o outrora triunfante Don Juan nao tem
agora outra morada. que nao scja urna salinha remota l 83. Ncste cu me mais
extremo da báscula da vida, Don Juan, ainda urna vez míngua de cornpanhia festiva, accnde todo o dcsejo ele viver no seu proprio peito. Se Don
Juan fosse um drama. entáo, o desassosscgo interior da situacño exigiría
que esta fossc tao breve quanto possível. Ao invés, está certo que na ópera
a situacño seja mantida, que seja glorificada com toda a excelencia possível, apenas soando ainda mais bravía porque. para qucrn ouve, ecoa no
abismo sobre o qual Don Juan paira.
a
a
triga., c1 u/adas; nao se senté
entretanto saciado. a sua alma possui a inda a
torca vital de scmprc, nfío carece de cornpanhia prazenteira, ou de ver e
ouvir a espuma do vinilo, ou de se fortalecer a bebe-lo; a vitalidadc interior
irrompc nelc mais forre e mais rica do que nunca. Mozart concebe-o ainda
e scrnprc idealmente. como vida. como poder, porém de urna maneira ideal
no confronto com urna rcalidadc; aquí ele está como que embriagado consigo mesmo de urna maneira ideal. Se todas as raparigas do mundo o rodeasscm oeste instante, nao constituiría perigo para elas, já que como se ele
fossc demasiado forre para as encantar. 11361 para ele. ern cornparacáo com
uquilo que ele desfruta de si proprio. até o desfrute multíplice da rcalidadc
é cxccssivamcntc pouco. Fica aquí bem mostrado o que significa dizcr que
a esséncia de Don Juan música. Diante de nós, ele como que se dissolvc
na música, desdobrando-se num mundo de sons. Chamou-se a esta ária «a
ária do champanhe», o que incgavclmcntc muito denota. Mas aquilo que,
cm particular, acaba por se ver é o facto de nao cstabclccer urna rclacño
casual com Don Juan. Assim é a vida dele. espumosa como o champanhe.
E t.aJ como sobcm permanentemente as pérolus neste vinho, cnquanto horbulham no seu ardor, soanclo ricamente com a melodía que lhcs é própria,
lambém assim ressoa o pra7.er do desfrute no fervilhar elemental que conslitui a vida de Don Juan. Aquilo que dá significa9ao dramática a esta ú1ia.
nao é a situac¡ao. é antes a nota fundamental da ópera que nela soa. ressoando em si mesma.
é
é
é
a
Passa-se ele maneira diferente coma iíria do charnpanhe. Em váo, creio
eu, irá procurar-se aquí urna situacáo dramática, mas tanto maior a sua
significacáo enquanto cfusáo 1 frica. Don Juan está cansado das muirás iné
181 Don Giovanni, Acto 11, cena JJ: Krusc, Acto 11, cena 17, p. 114.
l 82 Don Giovanni, Acto l. cena 20: Kruse. Acto l. cena 15, pp. 49-50.
183 Na didascália de Kruse para a cena final da ópera, le-se o seguinte: «Iin smuk Sal¡ Don
Juans petite Maison. Dcekket Ta.ftel; et tille Orchester», i. c., «Urna sala bonita na casinha
de Don Juan. Mesa posta; urna pequcna orqucstra»; vd. Kruse, Acto 11. cena 17. p. J 14.
Poslúdio l nsignificante
Ora,
se aquilo que foi aquí desenvolvido eslivcr certo, cntao, regresso
novamcntc ao meu tema favorito: entre todas as obras clássicas, o Don
Juan ele Mo;,art eleve erguer-se no lugar cimeiro; alegrar-me-ci ainda urna
vez com a fe] iciclade ele Mozart, urna felicidade que na verdadc é digna de
inv~ja, ern sic par.a si, e também porque faz felizes todos aquelcs que simplesmente conceberam de algum modo a feliciclacle de Mozart. Eu. pelo
menos, sinto-me indescritivelmente feliz por ter entendido MclZart mesmo
que tao-só remotamente, e por ter presscnlido a sua fclicidade; quanto mais
fclizes nao estarao aqueles que o ent.cndcram pcrfcitamente, quanto mais
fcli..,,es nao terao de sentir-se com aquele que é feliz.
11371
O Retlexo do Trágico Antigo
no Trágico Moderno
Um Ensaio de Esforco Fragmentario
Proferido <liante dos
2:u ~LnagavcX.QW ¡IBVOL 1
11391
Se alguém viessc dizcr:
«O
trágico continuará sernprc a ser o trágico»,
nao seria eu a recordar muita coisa em contrario, na medida cm que qual-
qucr desenvolvimento histórico rem todavía sempre lugar no scio da circunscricño do conceito. Partindo, dcsignadamente, do prcssuposto de que
haveria de produzir-se algum sentido nas suas palavras, e que a palavra
«trágico», que por duas vezes af ocorrc, nao havcria ele ser tomada como
criadora Jo sinal ele parénteses destituído de significacáo em torno de um
nada destituído de contcüdo, o sentido dessas palavras teria certamentc de
ser o seguinte: o contcúdo do conceito nao destronou o conceito, antes o
enriqueccu. Por outro lado, nern sequer cscapou a atencáo de nenhurn observador aquilo que o leitor, ou o público trcqucntador de teatro. já pensa
ter em sua legitima posse, como se fossem dividendos seus provenientes
dos esforcos dos conhcccdorcs ele arte, nomeadamcntc o facto de havcr
urna diferenca essencial entre a tragédia auriga e a moderna. Se alguém
aplicasse aquí a diíerenca cm absoluto. servindo-se sé da insfdia, e posteriormcnte tal vez do poder, para se introduzir entre o trágico amigo e o trágico moderno, entáo. a sua condura nao seria menos desmedida do que a do
primeiro, na medida ern que pretendería ter o proprio trágico como a base
de sustcniacáo que lhe era imprescindívcl, e cssa base. por seu turno, estaría tao longo de poder ser separada que acabaria precisamente por ligar o
trágico antigo e o moderno. Como aviso contra qualqucr csforco unilateral
dcste género em prol dessa scparacáo, terá igualmente de contar-se como
facto de os estéticos? sernprc rcgrcssarem ainda i1s detcnninacñcs e aos
1 Hm grcgo no original, traduzivcl por «cornunidade ele defuntos». ou «companheirox
na mene». Este capítulo. bcrn como os dois capítulos scguintes, sao a presentados como
seudo discursos proferidos ern asscmbleias estatutarias desta associacño.
2 V d. a rernissño de Hegel para a Poética de Aristóteles ern vorlesungen über die Aesthetik [L{9oess°Z:>bré a Estérical.Hl , in \Verke, vol. XJ, pp. 506-507; Iubiliiums, vol. XIV,
pp. 506-507; e Suhrkump, vol. XV, pp. 500-501. Doravante mencionada como Aesthetik, seguida das referencias nas diferentes edicóes. Ern portugués: G. W. F. Hegel, Estética. traducáo de Alvaro Ribeiro e Orlando Vitorino, inrroducño de Pinharanda Gomcs.
Lisboa: Guimarñcs Editores. l 993, p. 640. Para os apontamcntos de Kierkegaard sobre
esta ohm de Hegel. vd. Pop. III C 34, Not. 10: 1. SKS. vol. 19, pp. 285-286.
1 '//
176
requisitos estipulados por Aristóteles3 para o trágico. como sendo aqucles
que esgotam o conceito; tem de ser tomado como aviso, tanto mais aiuda
por ser capaz de deixar qualqucr individuo preso a urna certa nostalgia, a
de que por muito que o mundo se tenha modificado a representacáo do
trágico mantém-se ainda essencialmente inalterada. tal como chorar continua ainda a ser igualmente natural para o homem. Por tranquilizante que tal
possa parecer para quem nao deseja divorcio algum, e menos 11401 ainda
qualquer rompimento, mostra-se assim a mesma dificuldadc que acaba de
ser rejeitada, sob urna curra figura que quase mais perigosa. Regressar
ainda e sernpre a estética aristotélica, nao simplesmcnte por atencáo deferente ou hábito antigo,
seguramente admitido por quern quer que esteja
familiarizado com a estética contemporánea", ficando desta maneira convencido do escrupuloso rigor com que aincla se está ligado aos pontos de
rnovimento estipulados por Aristóteles5,
os quais continuam ainda a
aplicar-se a estética contemporánea. Entretanto, assim que nos aproximamos desses pontos, a dificuldacle mostra-se prontamente. As dctcrminacóes
sño, designadarncnte,
ele ámbito rnuito gcral, e é bem possível estar de
acorclo com Aristóteles ncstc ámbito e, no cntanto, nño estar de acorde com
ele em outro sentido. Para nao antccipar o desenvolvimenro ulterior menclonando desde já cxcrnplos <lo que constituirá o respectivo conteüdo,
prcfiro ilustrar a minha opiniáo no que diz respeito a comédia proccdcndo
a urna observacño corrcspondcnte. Se urn estético da Antiguidade tivesse
dito que aquilo que está prcssuposto na comédia
personagern e situacño,
e que o riso aquilo que a cornédia quer despertar, entño, certo que seria
possívcl rcgrcssar a este ponto vezes sern conta; porém, assim que se ponderassc no quño diferente pode ser aquilo que leva urna pcssoa a rir-sc,
cntáo , dcpressa se ficava convencido de como o espaco requerido por esta
exigencia
colossal. Quern algurna vez tomou o riso dos outros, ou o seu
é
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é
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3 Vd. Aristóteles, Poética 144%. Na trad111;üo de Eudoro de Sousa. Lisboa: IN-CM,
1994. pp. 109-11 l. Edic;ocs consultadas pelo autor: Aristoleles gnece ¡A. ern gregoJ,
edic;iío de lmmanuel Bekker, vols. 1-11, Berlim. 1831; vol. 11, p. l449; e /\.ri~toleles Dichtkww 1 Poél ica de A. I, traduc;üo de Michael Conrad Curtius, Han6ver, 1753, pp. 11-J 2. Doravante, estas tres lradu<;;oes sao mencionadas pelo nornc dos respectivos tradu1.ores, i. c., Sousa, 13ckkcr e Curtius. antecedido de Poética.
4 G. E. Lessing, Humburgische Dramaturgie 1 Dramal.urgia de 1 lamburgo]. in Gotthold
Ephrairn Lessing, Werke !Obras!, Munique: Car! Hanser Verlag. vols. l-Vlll, 1970-1979; vol. IV («Dra111aturgische Schriften» !«Escritos sobre Teatro»]), 1973. textos
37-39 (4, 8 e 11 de Sctcmbro de 1767), pp. 399-414. Edic;ao consultada pelo autor:
Hamburgische Vramaturgie LDrarnalurgia de llamburgol. textos XXXVlT-XXXIX. in
Gottlw/d Ephraim Lessing'.~ siimmtliclte Schr(lien [Escritos Completos ele G. E. L.],
vols. I-XXXIl, Berlim, 1825-1828; vol. XXIV, pp. 267-284.
5 Poética. 1449b-1450a.
Vd. Sousa, pp. 109-112; Bekker, pp. 1449-1450; e Cunius,
pp. 12-13.
próprio nso, como objecto de obscrvucño, qucm nao leve tanto em vista o
casual quanto o universal, como ncstc esforco , quern agora observou com
intcrcssc psicológico como diferente aquilo que em cada idade da vida
despena o riso, dcixa-se fácilmente convencer de que o imutável requisito
para a comédia, o de devcr despertar o riso, contém em sí mesmo um alto
grau de mutabilidade em relacáo a diferente representacáo da consciéncia
do mundo sobre o rislvel, sern que, no entanto, a diferenciacño seja tao
difusa que a correspondente exprcssáo nas funcóes somáticas fosse a extcriorizacáo do riso arravés do choro. Ora também assim acontece com o
trágico.
Ora aquilo que está mais perro de ser o conteúdo desta pequena indagacáo nao tanto a rclacáo entre o trágico antigo e o moderno quanto o cnsaio
para mostrar como é próprio do trágico antigo dcixar-sc assimilar para
dentro do trágico moderno, de molde a que o verdadeiro trágico nelc se
torne visfvel. Mas, por multo que eu me esforce para que tal vcnha a ser
visívcl. 11411 elevo todavía abster-rne de qualquer profecía sobre ser tal
coisa aquilo que a época exige, de modo a que cssa ocorréncia fique inteirarnente scm conscquéncias, tanto mais que toda esta época trabalha mais
na direccáo do cómico. Nessa medida, a existéncia está minada pela dúvida
dos sujeitos, o ísolamento ganha cada vez mais preponderancia. algo ele que
nos podemos certificar rnclhor ao prestar atcncáo as múltiplas aspiracóes
sociais, Estas dcrnonstrarn que procurarn contrariá-la, designadarnente,
tanto através do csforco do tempo. tomado isoladameruc, quanto por via de
procurarern opor-se-lhc de urna maneira irracional. O estar isolaclo consiste
sernpre em alguém fazer-se valer como Numerus"; quando urn indivíduo
quer fazcr-se valer como urn único individuo, cntáo , tcm-se um isolamento;
todos os membros de associacóes iráo dar-me razáo neste ponto, sem que,
por isso , possam ou queiram inteligir que acima de tudo um isolamento
idéntico ao que ocorre quando urna centena quer fazcr-se valer única e
exclusivamente como urna centena. O número é sempre indiferente em
relacáo a si próprio, e é inteiramente indiferente que soja urn ou rniL ou
todos os habitantes do mundo no seu conjunto, determinados apenas numedcamente. Por conseguinle, no scu princípio, o espírito desta associa~ao é
tao revolucionário quanto o espírito a que quer opor-se. Quando David quis
sentir com rigor o seu poder e a sua magnificéncia, mandou contar o seu
povo7; nos nossos tenlpos, ao invés, pode clizcr-se que os povos se contam
é
é
é
6 Corno cm Horácio. 1:..-pisto/arum LEpístolas]. livro I, 2, v. 27: <<Nos numerus .mmus, et
jruges conswnere 110ti», i. c., «Nós somos número, nascidos para consumir as colheitas»;
cdi<;;ao consultada pelo autor: Q. Horatii F/acci opera Lübras de Q. Horácio Flaco],
Leipzig, 1828, p. 227.
7 Alusao ao episódio narrado no Segundo Livro de SamueL 24: 1-9.
178
a si próprios para seruircrn a sua significacuo diuruc de um pode, superior.
Todas estas associacócs cxibcm entretanto a marca da arburariedadc, cría
das que foram, na rnaioria das vczcs, para urna ou outra finalidadc casual.
cujo dono e senhor é obviamente a associacáo, As multas associacócs cornprovam assim a dissolucño do tempo e contribuem elas mesmas para a
acelerar; sao infusórios no organismo do Estado. indicadores ele que este se
dis.solvcu. Quando aconteceu na Grécia comecarem os hetairistass a general izar-se. se nao quando o Estado cstava prestes a desintegrar-se?
E nao rerño os nossos tempos urna scmclhanca notoria corn aquclc tempo,
que ncm mesmo Aristofanes conseguí u tornar mais risível do que realmente era? Nao estará desenlacado. cm sentido político. o clo que mantém
unidos os estados de urna mane ira invisfvel e espiritual, nao estará cnfraquccido ou destrufdo o poder que na religiao segura o invisível e, tal como
outrora os áugurcs, nao terño os estadistas e os eclesiásticos cm cornum o
facto de nao conscguircm olhar-sc recíprocamente sem urn sorriso"? Oí.
nossos tempo possucm com cfcito algo que lhcs proprio face a esse tempo na Grecia, os nossos tempos siio dcsignadarncntc mais melancólicos, c.
por isso, rérn um desespero rnais profundo. Os nossos tempos sao assirn
suficientemente melancólicos para sabcrcm que existe algo chamado responsabilidade, e que a responsabllidade tern algo para significar. 11421 Por
isso. se bcm que todos queiram mandar, ninguém quer ter a rcsponsabilidade. Ainda está na mcméria recente huver um estadista francés explicado.
quundo lhe voltaram a olcrccer a pasta ministerial, que a accuaria na condi9flo de ser o secretario de Estado a assumir a rcsponsabilidadc!", O rci de
Franca, como é sabido, nño assurnc a responsabilldade, ao invés.
o rninisé
é
X Sociedade política cm A tena), 11m, finais do século va. C.
9 ~Cícero qucm r~lala o ccpriclsmo de C:110 sobre o~ augurios. Cato considcruva que
do1i. áugurcs. d:vcn~m sornr u111.ao outro quando se cruzam. visto ambos sabcrcm que
as suas prcvisoes nao se concrcuzam. Vd. Cícero. De Divinatione [Sobre a Adivinhacño], livro 11. 24; De Natura Deorum (Sobre a Naiureza dos Dcuses], livro l. XXVI. 71;
cdicño consultada pelo autor: M. Tullii Ciceronis opera 011111ia [Obras Completas de M.
Túlio Cícero). vots. 1-IV e índex , edicño de Johann August Ernesti. Halle. 1756-1757.
vol. IV, pp. 491 e 678. F.m portugués: Da natureza dos deuses, iniroducño, lraduc;ao e
notas de Pedro Braga Falcño, revisáo de Alice Araújo. Lisboa: Vega, 2004. p. 45: «Já
me parece suficientemente admirável o facto de um hanispice nao se rir quando ve um
colega, mas ainda mais admirável é o facto de vos comerdcs o riso entre vós.» /\. mcncáo
a esta obscrvacáo de Cato sobre os áugures repele-se na segunda parle de E11te11 Eller,
SV t. vol. 11. p. 286. e SKS. vol. 3. p. 164.
10 Eco de urna noticia publicada no jornal Bcrlingske Tidende [Notfcias de Berling] a
22 de Ma~90 ~e 18~~· sobre L~uis-Aclolphc Thier1> (1797-1877).
político francés que,
quando pnmcrro-muustro. exrgiu que cm cada ministério o~ secrcuirios de Estado se
ocupassem de todas as matéria correntcs para que os ministros pudcsscrn dedicar-se a
trabalho político na axsemblcia ou ern reunióes.
rro que o l'a1.: o mmisuo
nao qucria a rcsponsabilidadc,
mas quería ser
nunistro , desde que o secretario de Estado fosse o rcsponsávcl; por último.
acubaram obviamente por ser os guardas-nocturnos, ou os cornissários de
rua, a ficar responsáveis. E nao seria esta historia de rcsponsabilidadc as
avcssas urn assunto digno de Aristófanes! E por outro lado. porque térn o
governo e os govcrnantes tanto medo de assumir a responsabilidadc , a nao
ser por tcmcrern urn partido da oposicáo, o qual, por scu turno e em idéntica escala, continua a declinar novamcnte a responsabilidade? Quando se
imagina cstes doi~ poderes <.liante um do outro, mas sem capacidadc para
tercm miio um no outro. porque um deles continuou a esquivar-se do outro.
urn deles 1 imito u-se a fa,1,er figura di ante do out ro. um plano geral assim
disposto nao ficaria com toda a certeza scm forr;a cómica. Está pois cabalmente dernonstrado que se di-;solvcu aquilo que propriamcntc mantém
unido o estado. mas o isolamento deste modo criado é obviamente cómico.
e o cómico reside no facto de a subjcctividade fazer-se aquí aplicar apenas
enquanto fom1a. Qualquer pcrsonalidade i~olada !te torna semprc cómica
quando pretende fazer valer a ~ua casualidade pcrante a ncccssidade de
desenvolvimento. Fazer com que um in<livfduo ca!.uaJ conccbcsse a idcia
universal de vir a ser o libertador de todo o mundo encerraría indubitavelmcnte o mais profundo cómico. Ao invé~. o surgimento de Crisro é, cm
ccrto sentido (e é, designadamcntc
noutro sentido, infinitamente
muito
mais), a tragédia mais profunda, porque Cristo veio na plc11itudc do tempo11 e carregou o pecado do mundo12, algo que tenho especialmente de
:-.ublinhar tcndo cm conta o trecho seguintc.
Como se sabe, Ari tóteles aponta como f'ontc!. para a acryao da tragédia
duas coisas, füavmet xcü. ·1\()oi;1\ mas observa simullaneamcnte que o as~unto principal é ti::A.o~14. e que os indivíduos nao agem para representar
personagens. sendo antes estas inseridas devido ti ac9flo. Facilmcnte se
nota aquí urna divergencia face a tragédia contcn1poranea15• Aquilo que,
11 Gálatas. 4:4: «M:b vindo a plenitudc dos tempo~. Dcu~ cnviou o seu filho. na,cido
de mulher, 11ascidn ~ob a lci»; vd. igualmente Efésios, 1: 10: «Oc torna!' a congregar e111
Cristo todas as coisa~. na dispcnsa9ao da plenitu<le dos lcmpos. tanto as que e~tiio no~
1.:éus, como as que esiao na 11.:rra.>>
12 Joao, 1 :29: «No dia scguinte . .loan viu a .lc~11s. que vinha para ele. e dissc::: Eis o
Cordeiro de Dcus. que tira o pecado do mundo.»
13 Em grcgo no original: «pcn,amento c carácter».
14 Em grcgo no original: «lilll>>.
15 Para as considera95cs de l legel sobre a subjcctividade vista através da difcrern,:a
entre a trngédia e a cornédia. e na ~ua 111an.ifesta95o na trag.édia moderna. vd. Hegel.
AeJthetik /11 (Estética 111], in Werke. vol. X3. pp. 562-564: Jubili/11m.1. vol. X.IV. PP·
562-564; e S11hrka111p. vol. XV, pp. 555-557; e G. W. F. Hegel. Hstética, tradu95o de
Álvaro Ribciro e Orlando Vitorino. intrcxlur;:iío de Pinharanda Gomcs, Lisboa: Guimaracs Editores. 1993. pp. 66<)-661.
180
011
dcsignadamcnrc, constituí o que próprio da 1ragédia ar11ig:i e a accuo nao
derivar meramente da personagcm,
a accño nao estar xubjcctivamcutc
rcflecrida em cxccsso. mas antes ter a propria accáo um relativo acréscimo
de passividade. Por isso, a tragédia antiga tambérn nao desenvolvcu o diálogo até atingir o grau de reflcxíío cxaustiva 11431 cm que tudo convergisse;
no monólogo e no coro, contém propriamente a tragédia os elementos discretos para o diálogo. Quer o coro se aproxime rnais da subsrancialidade
épica, ou da cxaltacño lírica, indica afina! como que esse rnais que nao será
diluído na individualidade: por sua ver, o monólogo é mai a conceruracño
lírica, e tem csse rnais que nao será diluído na accño e na situacüo. Na tragédia antiga, a propria accáo conrérn ern si um momento épico!"; é tanto
um aconrccirncnto como urna accño. Tal fica obviamente a devcr-se ao
facto de o mundo antigo nao ter a subjectividade rcflecrida cm si mesma 17.
Ainda que um indivíduo se rnovcsse livremcnte. rcpousaria ufinal em determinacñcs substanciáis no estado, na farnília. no destino. Esta determinar;ao substancial é aquilo que, na tragédia grcga. é propriamcnte funesto e é
realmente o que é proprio dela. A queda do hcrói nao é de modo algurn urna
mera consequéncia da sua accáo, é antes simultancarnentc uma passividade, enquanto na tragedia contemporánea a queda do herói nao é propriamente passividade, mas sim acto. Por conseguintc, na época contemporánea a situa<,:fto e a pcrsonagern süo realmente os elementos prcvalccentcs.
O herói trágico está rcflecrido subjectivarncnte cm si, e esta reflexño nao 0
rcílectiu apenas para fora de toda e qualqucr relacño imediata como estado,
a linhagem, o destino. antes o rcflectiu multas vezcs para rora da sua pr6pria vida anterior. O que nos ocupa é um cerro e determinado momento da
sua vida cnquanto acto próprio seu. Por causa disso, o trágico deixa-sc esgotar na siwa~üo e na réplica. porque nao sobrou de lodo imcdiaticidade
é
é
16 Alusño a teoría dos géneros Iitcrárir», de J. L. Heiberg. segundo a qunl os géneros
constituem urn mcio de avaliar o desenvolvimcmo pessoal do autor dentro de urn proccsso dialéctico, do género lfrico até uo dramático, através do épico, Vd. J. L. Heibcrg.
0111 vaudevillen sotn dramatisk Digtart, OI( om de111· Betydniug paa den danske Skuepla
ds [Sobre o Vaudeville como Género da Poesia Dramática. e sobre a Sua lmportáncia
para o Teatro Dinamarqués], Copcnhaga, 1826, i11 Prosaiske Skrifter [Escritos ern Pro-
sa l. vols. 1-111. Copcnhagu. 1 ll4l-1843. vol. L pp, 123-247. Sobre 1 lcibcrg, vd. nota 128
no capftulo «Üi. fatádios eróticos lmcdiatos 011 o Erótico-Musical».
17 Sobre o dircito a liberdadc da subjccrividade e i\ sua cxprcssño no cristianismo, vd.
Hegel. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht und Stautswissenschaft
i111 Grundrisse [Fundamentos <la Filosofiu do Dircito ou Dircito Natural e Ciencia do
Estado em Epítome], § 124. in Werke. vol. VIII, p. 166; J11bilii11111s, vol. VII, p. 182; e
Suhrkamp, vol. VII, pp. 232-233. E111 portugués: l Icgel. Principios da Filosofia do Di
reito, traducáo de Orlando Vitorino. 4." cdir,:ao. Lisboa: Guimarñcs Editores, 1990, pp,
122-124. Dorava me mencionada como Philosophie des Rechts, seguida das referencias
nas tres edicóes e na traducílo.
011 ll111 l 1,1••111111111111
V1d.1
IKI
ncnhurna. Por isso, u 11ugéd1a moderna nao coniém qualqucr prirneiro plano
cpico. qualqucr legado épico póstumo. O hcrói crgue-sc e caí. acirna de
rudo, dcvido aos scus proprios actos.
O que acaba aquí de ser dcsenvolvido, de mancira breve mas suficiente,
encentra a sua significacáo ao ilustrar urna diferenca entre a tragédia rnais
amiga e a rnais recente, que considero ser de grande significacáo: a diferente espécie de culpa trágica. Como é sabido, Aristóteles exige que o herói
trágico tenha áµcxgnu11l. Mas tal corno na tragedia grega a ac~üo é urn
mcio-termo entre acr;ao e passividade. também assim acontece na culpa,
residindo aí a coli!>lio trágica. Ao iuvés, quanto mais rcflcctida estiver a
subjcctividadc, tanto mais o indivíduo é visto. numa perspectiva pelagiana 19, como e tando entregue a si própdo, tanto mais ética a culpa se torna.
O trágico ja;¿ entre estes dois extremos. Nao tendo o indivíduo qualqucr
tipo de culpa, entüo, o interesse trágico é relevado, pois nesse caso a colisao trágica é debilitada; 11441 ao invés, tendo em absoluto culpa, entiío.
deixa de interessar-nos do ponto de vista trágico. Por conscguintc, é seguramente um rnau entcndimc11Lo do trágico, quando os nossos tempos aspiram a que Ludo o que é runcslo seja transubstanciado na individualidade e
na subjcctividadc. Nada se qucr saber acerca do passado do herói. descarrcga-se toda a sua vida. t.al como os seus actos. cm cima dos seus ombros,
tornando-o de tudo imputável. mas desl.a maneira transforma-se também a
sua culpa estética cm culpa ética. O herói trágico torna-~e as!:.im mau. o mal
convertc-se no pr6prio objecto u·ágico; porém, o mal niio possui qualquer
intcrcssc eslélico e o pecado niio é um elemento estético. Ora este esfor~o
mal entendido tem seguramente fundamento em todo o trabalho deste tempo na direcc;ao do cómico. O cómico reside precisamente no isolamento;
ora quando se pretende aplicar o trágico dentro do isolamento, obtém-sc o
mal na sua vileza, e nao o vcrdadeiro delito trágico na sua equívoca inculpabilidade. Quando nos debru~amos sobre a literatura contemporanca, nao
é difícil encontrar excmplos. É assim que uma obra como a dt: Grabbe,
Fumt WI(/ Don Juan2 cm tantos modos tao genial. estií propriamentc
construída sobre o mal. Para entretanto nao argumentar apenas a pa11ir de
um único exemplo escrito, prefiro demonstrá-lo dentro da consciencia universal de toda a época contcmporanea. Quando se pretende apresentar um
individuo, no qual as infelizes circunstancias da infancia se haviam repercutido com tal perturba~ao que precipitaram a sua queda, cnrao, isso nem
º.
18 Em grego no original: «erro», «culpa».
19 Pel~gio (c. 360-422) ncgou o pecado original e defcndcu a liberdade, a iniciativa e a
responsabilidade do indivíduo. 110 seu percurso para alingir a grn<;a.
20 Christian Oictrich Grabbc ( 1801-1836). autor de 0011 Juan und Fa11st. Ei11e Tragüdie
in fünf Akten [Don Juan e Fau~lo. Urna Tr.igédia cm Cinco Acto~!. Frankfurt. 1829.
182
011
scquer apelaría aos tempos hodiernos c. obviamente. nao porque icnha sido
mal tratado, pois tenho o direito de imaginar que tcnha xido tratado de urna
maneira excepcional, mas porque os tempos dispñcm de urna curra medida.
Nao querem saber de sernclhanres pusilanimidades. scm ir rnais longc, fazern do indivíduo o responsável pela sua vida. Portante. se o individuo caí,
entño. nao trágico, mas sim vil. Seria agora de pensar que a geracño t1 qual
tenho a honra de pertencer tcria de ser um reino de deuses. E no entamo
nao é de todo assim: a plenitude de forca. a coragem que assirn qucr ser a'
criadora da sua propria fcl icidade, ser até a sua própria criadora,
urna
ilusño, e ao perder o trágico, o tempo ganha o desespero. Enccrra-se no
trágico urna nostalgia e urna cura, da qual na vcrdade nao é possível desdenhar e, ao quercrrnos ganhar-nos a nós proprios de urna maneira sobrenatural. como se tenia fazer nos nossos tempos, perdcmo-nos a nos próprios21 e tornarno-nos cómicos. Cuela indivfduo, por muis original que scja,
é todavía
filho ele Dcus, do scu tempo. do seu povo, da sua Iamflia. dos scus
amigos; i.Ó nelcs encentra a sua verdade e, se em todos eles a sua relarividade foro absoluto, eruño, torna-se risívcl. Rncon1ra-se por vczes nas 11451
llnguas urna palavra que cm virtude da sua construcáo é frequcntcmcntc
usada nurn determinado caso, acabando por ve tornar autónoma ncssc caso,
digamos que como advérbio; ora, para os especialistas, urna palavra dcstu
especie possui de urna vez por todas urna accntuacño e urna impcrfeicño
das quais nunca se restabclece: se, aposar de tudo, viesse a estabelccer-sc
agora o requisito de ser substantivo, cxigindo-sc que fosse declinada nos
..
.,., .
.
.
crnco casos+. sena cntao genuinamente cómica. Turnbérn assirn acontece
corn o indivíduo. quando este, porvcntura retirado corn bastante dificuldade do ventre materno do tempo, pretende ser absoluto ncssa desmedida
relatividadc, Ao invés, se abdicar dessa exigencia, vindo a ser relativo,
entáo, possui eo ipso o trágico, nern que ele fossc o rnais feliz dos indivíduos; eu até diria que o indivfduo so é feliz quundo possui o trrigico. O
trágico tcrn cm si urna infinita suavidade , a qua! é propriamente aquilo que
sao a graca e a miscricórdia divinas, nurn sentido estético em relacño
vicia humana; é ainda mais branda e afirmo, portante: é um amor2J maternal
que aquieta o aflito. Quanto ao ético, é severo e duro. Por isso, quando um
criminoso diante do juiz dá como dcsculpa que a rnñc íinha tendencia para
roubar, especialmente durante o tempo cm que cstivcra grávida. entño. o
é
é
-
a
21 Mateus. 16:26: «Pois que aproveita ao homcrn ganhar o mundo inreiro. se viera
perder a sua alma? ou que comutacño far:í o homcm para recobrar a sua alma?»: vd,
igualmente Marcos, 8:36-37, e Lucas, 9:25.
22 Da gramática grega.
23 Aquí. «Kjarligtted»; 1al como ao longo de todo o capítulo. excepcño de urna única
ocorréncia de «Elskov»; assinalada na nota 43.
a
011
ll111
J
1,1¡.,11111111
d1 \ul.1
jui1 acura a dclibc: ai;ao do ( 'onsclho de Saúdc24 sobre o scu estado ~1ental.
e opina que tcm de actutu contra o ladráo e nao contra a mác do ladríio. O~a
rendo cm coma que aqui se discute u111 crimc, é cerro que o pecador nao
pode fugir para dentro do templo da estética. cmbora esta iambém ~iesse a
encontrar urna cxpressño complacente para corn ele. No enianto , nao estaría cerio que ele a procurasse na estética, pois o carninho dcl,c na.o~ condt~I'.
ao estético, mas sirn ao religioso. O estético fica agora arras de s1, e sena
um novo pecado seu agan-ar agora o estético. O religioso é a expr~ssao <.~o
amor paternal. pois possui cm si o ético, masé cornplacente, ~por 1nte.rmedio de que, a niio ser precisamente por via do mesmo que da ao 1rág1co a
respectiva suavidade: por intermédio da conli.nuida.dc. Mas, c'.1quanto o
estético lhe concede esse descanso antes que seJa valttlada a prol unda contradi~ao do pecado, o religioso só a conceden\ depois de esta contradi9ao
ser vista cm todo o seu horror. Exactamente no insrnnte cm que o pecador
está prestes a sucumbir ao pecado universal. que sobre si mcsm~ carre~ou
por ter sentido que, quunto mai!. pecador se tornasse, ranto ma1or sena a
perspectiva de o;c salvar, ncssc mesmo im,tantc de pavor mostra~sc o co.n:
solo contido no facto de ser também a culpabilidadc comum aquilo que 101
aplicado no seu caso: 11461 mao; e ·se consolo é. um con~olo religioso, e
quem for da opiniao de que pode chegar aí por out ro cam111ho, por cxcniplo, a1ravés de urna volatiliza\1íO e ·téticn. ~ecc~e11 o con-..nlo dc~alcle. ~
realmente n1ío o tem. Por isso. cm ce1to scnlldo. e uma medida 1nu1to acc11ada do tempo querer tornar o indivíduo rcsponsávcl por tudo: rnas.a infclicidadc está cm nao o fazer de urna maneira suficientemente prolunda e
íntima, e daí a !>ua insuficiencia; tem presun9ao bastante para desdenhar
das líigrimas da tragédia, mas tcm igualmente presun¡yao bastante para
querer prescindir da clemencia. E o que é a final a vida humana .. quando :..e
retira estas cluas coisas. o que é o género humano'! Ou a nostalgia do trágico, ou o pesar profundol5 e a alegria profunda da rcligiiio. Ou nao será urna
melancolía, urna nostalgia na :-.ua arte. na sua poesía. na sua vi~a, na su~
alegria, aquilo que é próprio de tudo o que provém desse povo aJ011tmado?
No precedente. tcntci particularmente destacar a cliferen9a entre.ª tragédia antiga e a moderna, tanto quanlo cMa se toma perceptível na cl1feren9a
dentro da culpa do herói tnígico. É este o verdadciro foco de onde ludo !rraclia na diferenya específica. Se o hcrói é inequívocamente culpado. ent~o. o
monólogo desaparece, o coro desaparece, a fatalidade desaparece, entao, o
24 Trata-!>c.: de «S1111dheds-Collegiet». a entidade que entre 1807 e 1907 rcgulou os a~
suntos de saúdc pública.
.
25 Nt:stc capítulo. «Sorg» está tradu¿ido por «pesar>> e os termo' derivados como ~pesaroso», «pcsarosamente», «exprimir pesar» ou «lamentar». Vd. nota 16 no capitulo
«Diapsalmata>>.
184
Ou
pensamento fica transparente no diálogo e a acoso, na si1ua9ao. No que diz
respeito a disposicáo, pode também exprimir-se o mesmo de urna outra
perspectiva, designadamente, aquela que a tragédia faz surgir. Como é sabido, Aristóteles exige qu_e a tragédia despertc no espectador temor e compaixao26. Recordo que Hegel, na sua Estética, se apoia neste comentário e
junto de cada um destcs pontos, coloca urna dupla consideracño, a qua! nño
entretanto particularmente exaustiva27. Quando Aristóteles distingue entre
temor e compaixáo, entáo, bem que seria possível, no tocante ao temor,
ponderar antes a disposicáo que acompanha o singular e, quanto a compaixáo, a disposicáo que é a imprcssáo definitiva. Esta última disposicáo é
aqu~la que tenho sobretudo ern vista, por ser aqueta que corresponde a culpa
trágica e, também por isso, rcm cm si a mesma dialéctica desse conceito. Ora
sobre isto, Hegel comenta que há duas espécies de compaixáo, a habitual
qt~e .vai ao encentro do lado finifo do sofrimento, e a verdadeira compaixad
trágica. Ora esta obscrvacáo está intciramcnte certa, mas para rnim tern urna
signif'ica<;ao menor, pois aquela ernocáo universal um rnau cntendimento,
que tanto pode abatcr-se sobre a antiga como sobre a moderna 11471 rragédia.
Verdadeiro e vigoroso é entretanto o que ele acrcscerua cm rclacño a verdadeira compaixáo: «das wahrhafte Mitleiden ist im Gegentheil die Sympathie
mil der zugleicn siulichen Berechtigung des Leidenden» (vol. 3, pág. 53 l )28.
Enguanto Hegel observa agora a cornpaixño no universal e a respectiva difercnca na difercnca da individualidadc, prcfiro destacar a diferenca da
cornpaixño em relacílo diferenca da culpa trágica. Para sugerir isto prontamente, farei com que aquilo que gcrador de passividade e se encentra na
p~lavra. «comp~ixao»29 se divida ern dois, e acrescentarei a cada parte o que
ha de simpatético e se encentra na palavra «corn», porém, de molde a que
nao chcgue a pronunciar-me sobre a disposicño do espectador com algo que
pudessc apo.ntar par~ a sua arbitrariedadc. mas antes de tal modo que, enguanto expruno a diferenca na sua disposicño, acentuo sirnultanearnente a
é
é
a
é
26 Pol!lirn, 1452b-1453a. Vd. Sousa. pp. 118-121; 13ckker, vol. JI, pp. 1452-53; e Curtius, pp. 25-26.
27 O comcntário de Hegel sobre o temor e a compa.ixiío enconlra-se em Aesthetik 111
in Werke~ vol. X3, pp. 531-532; Jubiliiwns, vol. XIV, pp. 531-532; e Suhrkamp, vo1.'xv:
pp. 524-:>25; na lradw;;iío portuguesa: pp. 648-649.
28 Em alemao no original; fragmento de urna passagcm de 1 legel: «Das wahrhafte
Mitleiden ist im Gegenthei/ die Sympathie mil der z11gfeich .sitllichen Berecl11igung des
le1denden, ~nit dem A.f/im'.ativen und Substantielfen, das in ihm vorlumde11. sein muj.J»;
em po11ugues: «A verdadeira compa1xiío é, pelo contrário. a simpatia corn a simultanea
, lcgitimidade moral de quem sofre, como af'im1ativo e o substancial, que neJe tcm de
estar presentes.» Vd. Ae.vthetik III, in Werk.e, vol. X3, p. 532; .fubilawns, vol. XIV
p. 532; e Suhrkamp, vol. XV, pp. 524-525.
'
29 No original, a correspomlcncia entre «den Lidende>, (<<O paciente», «O sofredor») e
«Medlidenhed» («a compa.ixao») resulta mais evidente do que na língua portuguesa.
011.
111 111.1•111111lil
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lt{5
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difercnca na culpa trúgica. Na tragédia amiga, o pesaré mais profundo e a
dor, menor; na tragedia moderna, a doré maior e o pesar, menor. O pesar
contém semprc em si algo de mais substancial''" do que a dor. A dor aponta
sernpre para urna reflexáo sobre o sofrimento que o pesar nao conhece. Do
ponto de vista psicológico,
dcveras interessante observar urna enanca
quando olha para urn adulto que sofre. A enanca ainda nao está suficientemente reflectida para sentir dor e, no entanto, o seu pesar é infinitamente
profundo. Nao está suficientemente reñectida para ter urna representacáo do
pecado ou da culpa; quando ve um adulto sofrer, nao lhe ocorre ponderar
nisso, e contudo, se lhe for ocultado o fundamento do sofrirnento, há um
obscuro pressentimcnto que se junta a este seu pesar. É também assim o
pesar dos grcgos. mas muna harmonía profunda e completa, por isso, é simultaneamente tao suave e tao profundo. Ao invés, quando um adulto ve um
jovem, urna crianca, a sofrer, entño, adoré rnaior e o pesar. menor. Quanto
mais a rcpresentacáo da culpa sohrevier tanto rnaior é adore tanto menor é
0 pesar profundo. Ora, ernpregando isto na relacáo entre a rragédia antiga e
a moderna, entáo, terá de dizer-sc que na tragédia antiga o pesar é mais
profundo e, na consciencia que lhe é correspondentc, o pesar~ mai~ prof~111do. Tem, dcsignadamente, de recordar-se continuarncntc que isso nao reside
em mirn, mas antes na tragedia e, para que cu legítimamente cntenda a tragédia grcga. tenho de estar bcm familiarizado com a consciencia grcga. É
com certeza por ísso que nao passa multas vezes de mero papaguear haver
tanta gente a admirar a tragédia grcga, pois torna-se dessa mancira rnanifesto que, no mínimo, os nossos tempos nao guardarn grande simpatía por
aquilo que o pesar grcgo propriamcntc dito, O pesaré mais profundo porque a culpa possui a equivocidade estética. Na época contemporánea 1J481 a
dor é maior. Poder-se-ia dizer, acerca da tragédia grega, que terrível cair
nas maos de um dcus vi vo31• A ira dos de uses é tenível, mas afina! a dor nao
é ta.o grande como na tragédia moderna, na qua! o hcrói sofre toda a culpa,
e é ele mesmo transparente no sofrirnento resultante dcssa sua culpa. Cabe
agora aqui mostrar, a semelhan9a da culpa trágica, qua! dos pesa.resé o vercladeiro pesar estético e qua] é a verdadeira dor estética. A dor mais amarga
é agora manifestamentc o arrependi~cnto, mas. o arrependimento pos~ui
urna realidade32 ética, e nao estérica. E a dor mais amarga porque possu1 a
é
é
é
30 Sobre a perda de substancia no indivíduo. uma vez subsumido na família, no estado ou na linhagem. vd. Philosophie des Rechts. § 264, in Werke, vol. Vlll, p. 327;
Jubitaums, vol. VII, pp. 343-344; e Suhrkamp. vol. Vil, pp. 411-412. Na tradLI<;ao
portuguesa: pp. 2%-237.
.
31 Hcbreus, J 0:31: «Horrenda coisa é cair nas maos do Dcus vivo.»
32 Aqui, «Realitet»; quando usado cm paralelo com «Virke/ighed», denota unu1 realidade última, num sentido aproximado ao da ideia platónica, algo que se apresenta corno
real por ser aquilo que representa o cxemplo consumado. Vd. nota 44 nestc capítulo, e
186
Ou
transparencia total de toda a culpa, porém.justnmcruc por c.:au1.,a dcssu transparencia. nao interessa do ponto de vista estético. O arrepcndirncruo tcm
urna santidadc que eclipsa o estético, nao quer ser visto, ainda menos pelo
espectador, e exige urna espécie de iniciativa pcssoal completamente diferente. É ccrto que a comédia contemporánea. de vez em quando, püe em
cena o arrcpendimcnto, mas isso rnostra apenas desentcndirncnro por parte
do autor. Recordou-se e bem o intercsse psicológico que é possívcl obter
quando se ve o arrependimento retratado, mas aquí o intcrcsse psicológico
nao
por sua vez, o interessc estético. Isto faz parte cla confusáo que nos
nossos tempos se aplica de tantos modos: procura-se urna coisa onde nao
haveria de ser procurada e, pior ainda, encentra-se essa coisa onde nao haveria de ser encontrada: qucrem edificar-se no teatro, e cxercer urna influencia estética na igreja; querem convertcr-se com os romances, e ter prazer
com escritos edificantes; querern ter a filosofia no púlpito, e o padre na cátedra. Esta dor nao portante, a dor estética c. contudo, torna-se manifestó
que o tempo cornemporáneo trabalha nessa direccáo, como se isso losse do
rnais airo intcrcssc trágico. Volta aqui a mostrar-se a mesma coisa, no que
diz respeito a culpa trágica. Os nossos tempos pcrdcrarn todas as determinac,:oes substanciais de tamflia, de estado e ele Jinhagcm; térn de dcixar o indivfduo completamente abandonado a si proprio. de molde a que, no rnais rigoroso sentido, se convcrta no seu proprio criador, cuja culpa
ponanro,
pecado, e cuja doré arrepcndimento; com ludo isto. porérn, o trágico é anulado. Tambérn no muis rigoroso sentido, a tragédia onde há soírimento perdeu propriarnente o seu imeressc trágico, pois o poder do qual provérn o
sofrimento percleu a sua significacño, e o espectador grita: ajuda-te a ti mesmo, e o céu te ajudará3\ por outras palavras: o espectador pcrdeu a cornpaixño, mas a cornpaixáo
tanto em sentido subjectivo quanto objectivo, a
vcrdadcira expressáo para o trágico. Ora. a bern da clareza. antes de seguir
por di ante com 11491 o que atrás desenvolví, quero agora cornecar por determinar mais circunstanciadamenre o verdadeiro pesar estético. ~esar tem o
é,
é.
é.
é,
nutras occrréncias esparsas, assinaladas, na nota 65 do capítulo «Silhuctas», e nas notas
68, 69 e 105 em «Diário do Sedutor». As ocorréncias assinaladas nas notas 39 e 44 do
capítulo «A Rotacáo de Culturas». e na nota l 5 no capítulo «Ü mais Infeliz» constitucm
os dois casos rnais relevantes do uso ele «Realitet»,
33 Kierkegaard usa urna variante de dois ditados registados cm C. Molbech, Danske
Ordsprog, Tankcsprog og Riimsprog [Provérbios, Ditados e LengaJengas Dinamarqueses l. Copenhaga, 1850. p. 96, igualmente comuns na cultura curopeia, que substituem a
fatalidadc presente na matriz grega por uma relacño entre Deus e o hornern, na qua! a
iniciativa do singular é valorizada. Vd .. por excmplo, Ésquilo, Os Penas, v. 472: «Oh!
Céu inimigo, como tu iludiste os Persas nas suas csperancas!», in Ésquilo, Persas. tradU<;:ao de Manuel ele Oliveira Pulquério, Coimbra: Instituto Nacional de Invesrigacño
Científica, 1992. p. 31.
Ou.
Un1 l'1tl~'tlll'tllt1
de Vida
187
rnovirnento oposto ao da dor; se nao se quiser vi~iá-lQ por meio de ergotismos - alzo que tarnbém eu evitarei de urn outro modo - pode dizer-se:
o
quanto menos culpa ti ver. mais profundo o pesar. Se se insistir, acaba por
anular-se o trágico. Resta sempre um momento de culpa, mas esse momento
nao está propriamente rcflectido subjectivamente; por isso, na tragédia grega
o pesaré tao profundo. Para evitar consequéncias intempestivas, limitar-me-ci a comentar que. corn todos os exageres, apenas se chcgará ao ponto de
conduzir o pesar para um outro dornínio. A unidade, dcsignadamcnte entre
um absoluto sern culpa e a culpa absoluta, nao é urna determinacño estética,
é antes urna determinacáo metafísica. É realmente este o fundamento pelo
qual sernpre houve pejo em chamar «trágica» a vida ele Cristo, porque se
sentía que as dcterminacóes estéticas nao esgotam o assunto. Tarnbém assim
se mostra, de um ouiro modo, que a vida de Cristo é rnais do que aquilo que
se dcixa csgorar cm dctcrminacñcs estéticas. já que as detcrminacócs estéticas ficarn neutralizadas ncste fenómeno e colocadas cm indifcrcnca. A accño
trágica contérn scmprc em si urn momento de solrirncnto. e o solrimento
trágico. um momento de ac¡¡:fto, e o estético reside na relaüvidade. A identiclade ele um agir absoluto e ele uma passividade absoluta é superior as fon;as
da estética e pertence metafísica. Na vida de Cristo verifica-se esta identicladc, pois o seu sofrimento é absoluto porque o seu agir é absolutamente livrc, e o scu agir é absoluto sofrimcmo porque é obediencia absoluta. Portanto, o momento de culpa remanescente nao está reflectido su~jectivamente, o
que faz com que o pesar seja profundo. A culpa trágica é designadamcnte
mais do que urna mera culpa subjectiva, é a culpa original; mas a culpa original, tal como o pet:ado original, é urna dctcrmina9ao substant:ial, e é precisamente esse subs1·ancial que torna o pesar mais profundo. A semprc admirada rrilogia tn1gica de S(~/bcles, Oedipus Culoneus, Oeclipus Rex e l\11t{f.:011a34,
gira essencialmente em torno deste autentic.:o interesse lrágico. Mas a culpa
original encerra em si uma autocontracli9ao, a de ser culpa e. porém, nao ser
culpa35. O elo através do qual o indivícluo se torna culpado é exactamente a
piedaclc, mas a culpa cm que incorre possui toda a anfibología estética possívcl. Até podia ser fácil vir aqui pensar que haviam sido os jucleus o povo a
quem caberia ter desenvolvido o trágico prorundo. Quando de Jcová se diz
que era um deus invejoso, que nos filhos visita as iniquidades dos pais até a
tercei..ra ou quarta gen1<;:ao~6, ou quando se escuta as pavorosas maldic;oes no
é
a
34 S6focles. t!:dipoem Colono, Rei Édipo e A11tígo11a.
35 Sobre inocencia e culpa cm Kicrkcgaarcl. vd. O Co11cei10 de Angústia, SV 1, vol. Vl.
pp. 306-309. e SKS, vol. 4, pp. 341-344: e «Culpado? 'lío-Culpado?», capítulo de
Estádiosno Cnminlro da Vida, SV l. vol. IV. pp. 175-459. e SKS, vol. 6, pp. 173-368.
36 13xodo. 20:5: «Nao te encurvarás a elas. nem as servirás: porque cu. o Senhor. teu
Dc11s, sou Dcus 7.closo. que visiro as maldades dos pais nos filhos. até á lerceira e quarla gerac;ao daqueles que me aborrecem.»
l
1
J
~l
188
Antigo 11 SOi Testamento, en tao, podia cair-se na tcnta<:Jo l'Ácil de procurar aí
materia trágica. Mas o judafsmo est¡) demasiado clescnvolviclo do ponto de
vista ético para o fazer; as maldi9oes de Jeová, se bern que pavorosas, silo ao
mesmo tempo castigos justificadamente merecidos. Nao era assim que acontecia na Grécia; a ira dos deuses nao tinha qualquer carácter ético, mas sirn
equivocidade estética.
Na própria tragédia grega encontra-se urna passagem do pesar para a dor,
e quería agora introduzir Filoctetes'l como exemplo. No rnais rigoroso
sentido, urna tragedia onde há sofrirncnto. Mas, tambérn aquí. ainda domina afina! urn elevado grau de objectiviclade. O hcrói grego repousa no
seu destino, o seu destino
imutável, isso ncm sequcr se discute. Este elemento é propriarnente o momento ele pesar na dor. A primeira dúvida. com
a qual a dor de facto comeca, é a seguintc: porque acontece isto comiso
"" '
porque nao pode ser de outra maneira? Deceno que há ern Filoctetes urn
alto grau ele rcflexáo que scmprc me parcceu notório. através do qua! esta
tragédia cstabclecc a dilercnca cssencial corn aqucla irnortal trilogía: a autocontradi<,:ao na sua dor, magistralmente retratada, na qual há urna verdade
Wo profundamente humana, havendo todavía urna objectividade que sustérn o todo. A reílexáo de Filoctetes nao está absorvida cm si mesma, e é
genuinamente grcgo que ele se qucixe de que ninguém é tcstcmunha da sua
doi-18. Reside nisto urna verdade extraordinaria e, no entamo, fica aquí ao
mesmo tempo mostrada a difercnca em rela9ao n autentica dor reflexiva, a
qual sempre descja estar só corn a sua dor. e procura urna nova dorna solidáo dcsta dor.
é
é
-
Portanro, o vcrdadciro pesar trágico exige urn momento de culpa, a verdadeira dor trágica exige um momento de inculpnbilidacle;
o verdadeiro
pesar .trágico exige urn momento de transparencia, e a verdadeira dor trágica exige u?1 m~mento de obscuridade. Creio desta forma poder sugerir
melhor o dialéctico dentro do qual as determina9oes do pesar e dador en37 Füoctetes, tragédia ele Sófocles.
38
Sófocles, Fitoctetes, vv. 691-707; na !raclw;5o de José Ribeiro Fcrreira: «Aí ele era
:iLinho de si mesmo. scm poder andar,/ sem ter alguém ao lado da sua desgraca, f
Junto de qucm cncontrassem eco os gemidos/ pela chaga sangrenta que 0 devorava, ¡
~e al.guma crisc surgisse, nao havia quern /o cálido fluxo de sangue que jorrava da ferida infectada f do pé lhe pudessc aplacar./ com ervas calrnanres, / colhidas da [erra
fecunda. 1 Era ele que rasrejava por aqui e por ali. f arrastando-se / qual um menino
abandonado da ama, i até lugares onde enconrrasse rcmédio /para a sua dor, enquanto
adonneci~a /.'1 roaz tortuni».' in Sófocles. Filoctetes, inrroducáo, versño do grcgo e notas
de José Ribciro .Fcrre1rn, Lisboa: Funda9ao para a Ciencia e a Tecnología e Junta Nacional de lnvest1ga9ao Científica e Tecnológica. 1979. pp. 66-67. F.diyocs consultadas
pelo autor: Sophoclis Tragardia: [Tragedias de S.), vols, 1-II, cdi9i'ío de C. H. Weisc,
Lcipzig; vol. 11, pp. 255-256; e Sophokles's Tragadier [Tragédias de S.], vols. [-IV.
tradu9iio de Peder Grib Fibigcr. Copenhaga. 1821-1822:
vol. ll. p. 288.
trarn cm contacto. u.-.s1111 como o dialéctico que jaz no conceito ele culpa
trágica,
Considerando que fornecer trabalhos de contextualizacño, ou de ámbito
maior, está contra os esforcos da nossa associacño. considerando que nao
remos tendencia para trabalhar em prol de urna torre babilónica, podendo
Deus em sua justi9a vir por ela abaixo, destruindo-a39• considerando que,
tendo consciencia ele que aquela confusao aconteceu com tocio o direito,
os reconheccmos no que é próprio ele todo o csfor90 humano na sua verdade como senclo fragmentários, e reconheccnclo que cssc é precisamente
o factor através do qual se clifercnciam da infinita concordancia da natureza; considerando que a 11511 riqueza da individualiclade consiste exactamente na for9a ele prodiga! idade fragmentária, e que aquilo que é o gozo
do indivíduo proclutor, e também do indivíduo receptor, nao é o dcsempenho árduo e meticuloso, nern a prolongada concep9::fo clesse clesempenho.
mas a proclrn;;ao e o gozo da cintilante fügacidade, a qual contém, para o
produ1·or, um mais que é mais do que o contido no dcscmpcnho consumado, visto que se trata do aparecimcnto da ideia. e para o receptor conlém
um mais. j<í que a respectiva fulgura<,:flo despe11a a própria produtiviclade
do receptor - dizia eu, considerando que ludo isto está contra a tendencia
da nossa associa9~'ío, sim, considerando que o período agora licio quase
tcrá de ser considerado como um sério ntent::iclo ao estilo inte1:jeetivo, por
onde brotam as ideias sem que cheguem a desabrochar. um estilo que é o
estilo oficial da nossa associa9ao, enrno, Jimit·ar-mc-ci a recordar, dcpois
de ter chamado a aten9ao para o facto ele nao poder todavia designar-se a
minha condura como insubordinada, ciado que o elo que sustém este período está pois tao frouxo que as ora9oes intercaladas se eri9arn de um
modo bastante aforístico e particular, entao, limitar-me-ei a recordar que o
meu estilo foz um ensaio para dar a aparencia ele ser aqui lo que nao é revolucionário.
Em cada uma das reunioes, a nossa associa<;ao exige renova9ao e rcnascimento, coma finalidade de fazer rejuvenescer a activ.idade interna através
de urna nova designa9ao da sua produtividade. Designemos entao a nossa
tendencia como um ensaio de esfor90 fragmentário ou um ensaio na arte de
escrever papéis póstumos. Urna obra completamente concluída nao estabelece ncnhuma rela9ao coma personaliclade geradora de poesia; com papéis
póstumos e, em virtude daquilo que há de dcscontínuo, de desultório, sente-se sempre um impulso para, conjuntamente, inventar poet.icamente a personalidade. Os papéis póstumos sao como uma ruína, e que lugar de rcfúgio
poderia ser mais natural para os sepultados? A arte consiste agora cm procluzir artistícamente o mesmo efeito, a mesma negligencia e casualidade, o
39 O episódio da Torre de Babel está narrado no Livro do Génesis.
11:1-9.
l';)\J
( )11
mesmo raciocínio anac.olútico; a arte consiste cm produ/rr urn dcl-11 rute que
nunca se torne presencial, mas que sernprc contcnha cm 1.i um momento do
tem~? passado, de molde a que esteja presente no tempo passndo. É ixto
que.Ja se encentra expresso na palavra «póstumo». Ern ccrto sentido, rudo
aquilo que um poeta produz é de facto póstumo; masnunca ocorreria a alguérn ,chamar trabalho .póstumo a algo cornplctameme concluído, ernbora
~o~st~1s~ a casual qual1dad': de nao ter sido publicado enquanto a sua vida
e vivida . Também eu admito que, cm sua vcrdade, isto soja urna qualidnde de toda a ~.rodw;:ao. humana, tal como 11521 a lemas concebido, que seja
um legado póstumo. Já que aos horncns nao é concedido viver na eterna
contemplacáo dos dcuses. Portante, dcsignarci como legado póstumo aquílo qt.1e se produz entre nos, ou seja, um legado póstumo artístico; chamarci
negl1.gcncia. i.ndolcncia,
gcnialidadc a que arribuímos preco; vis iuertiar"
ns lcis narurars a que prestamos culto. Dcsta forma, procedí em conformi.
dado comos nossos sagrados usos e costumes"2.
a
Ora apr?xin~ai-vos cnrño de rnirn. caros LtJµ."tUQUVFX(H1>µrvot, fazei
urna roda a minha ~.olla, agora que entrego a rninha heroína trágica ao
mundo. agora que filhn do pesar entrego como cnxoval o dote da dor, Ela
~ obra _minha. mas o seu contorno está todavía tao indeterminado, a sua
f igura e tao nebulosa que qualquer um de vos pode apaixonar-se por ela e,
ª:~cu modo, ser capaz de a amar. Ela é cria9ao minha. os pensarncntos dela
sao o· mcus pcnsarncntos e, 110 cmanro, é corno se cu tivesse repousado cm
~ua casa numa noite de nmor'", como se clame tivcsse confiado 0 scu profundo scgredo. no meu abrace o tivessc expirado conjuntamente coma alma, e.corno se ncsse mesmo agora estivcsse para rnim transformada, desa~ar~c1da,
m~>lde ~1 _que apenas fossc possívcl seguir o rasto da sua
1~c
realidade
na disposicño rernancscente, cm ve; ele havcr acontecido 0 inverso, e ter ela nascido da minha disposicño para urna rcalidade cada vez
maior. Coloco-lhc palavras na boca c. cornudo, sou eu qucm agc como se
a
40 No ongi.nal «i l1<111s levendc Live»; uma alusao ao título da primciru obra de Kicrkcgaard, puhli.cacla cm 1838. Al en e11d1111 l evendos Papirer. i. e .. «Dos Papéis de Alguém
tunda cm Vida».
41 Em lutim no original: «forp da inércia».
a
42 Ao longo dcste pnrágrafo. a idcia de posicrldade surge associada
uunsmissáo de
bcns mat~na1s e c~p1r11ua1s. e a dois modos de rcccpcño dcssa heranca. atmvés do uso
dos scgu11~1cs termos: «eftertadte Papirer»; i. e .. «papéis póstumos», e «Efterladens/..~1h». 1. e .. «hcranca» ou «legado póstumo». A suspciia sobre cs~a idcia tic postcrid'.1d: e l~.1n~:.1cl11 pelo cmprego simult~n~o ~le ouiros termos corn o me.,1110 prefixo «e]ll.r». «F:;¡udade11!11'<Í». 1. e .. ~negligencia». e ainda o verbo «efterkonune«, aqui
rradio-ido por «agir cm conformidadc».
43 Única ocorréncin de «Elskov» no presente capítulo.
44 Aquí e nas duas ocorréncia-, seguimos. «realidade» truduz «virketiuhed», Vd. acima
nota 32.
011
IJ111
1 1.1¡•1111
11111 1li
\ 111.1
11) 1
ubusussc tia sua contlancu, qucrn rica c.:01110 se cla estivcssc utnis de mima
rcprccndcr me c. c.:011t11do, acontece o inverso: no scu scgrcdo, ela torna-se
continuamcnrc cada vez muis visívcl. Ela é propriedadc rninha, é minha
legítima propricdadc e, contudo, é por vezes corno se cu me houvesse introcluódo insidiosamente na sua confian<;a. como se tivesse continuamente
de olhar cm voila, procurando-a para trás e, contuclo, acontece o inverso,
cla está !.empre i1 minha frente. continua apenas a vir i1 existencia na medida cm que a levo para a frente. Chama-se Antí~o110. Quero manter este
nome da antiga tragéclia45, a qual quero na globalidade ficar ligado. embora visto de um otllro lado tudo se tome moderno. No cntanto, um comcntário, em primeiro lugar. Utili1,o urna figura fominina, porque crcio sobrctudo
que urna natureza fcminina se presta melhor para mostrar a diferen9a. Corno mulhcr tcrá a substancialidade
suficiente para que o pesar possa
mostrar-se, mas enquanto pcrtencente ao mundo rcllexionante terá H reflexao suficiente para ficar corn a dor. Para ficar como pesar. a culpa trágica
tcrn de vacilar entre culpa e sem culpa, aquilo com que a culpa passa para
dentro da respectiva consciencia tem ele ser sempre uma detcrmina9iio da
subsrancialidadc:
mas se, para ficar com o pesar, a culpa trágica tivcr de
possuir esta inclctcrrnina9iío. 11531 cntao, a reflexiio nao tcní de estar presente na sua infinitudc. vislo que iria pois reflecti-la para fura da sua culpa.
na medida cm que a rcflexao. na sua infinita objcctividadc. niío pode dcixélf"
que o momento de culpa original que concede o pe:..ar ven ha a parar. Quando entretnnto a rcflexao estivcr despertada. entii.o, nao irá rcflecti-la para
forado scu pesar, mas para dentro dele. e transformar-lhc-á a cada instante
o pesar cm dor.
A Jinhagcm de Lábdaco46 é. portanto. objecto da irrita9ño dos deuses
irados, tdipo matou a esfinge. libertou Tebas, f-.c.lipo rnatou o pai. casou
com a mae47, e Antígona é fntto dcsle easarncnto. 8 o que se passa na tragédia grcga. fa90 aquí um desvío. Passa-sc comigo tudo de maneira parecida e, no cntanlo. é tudo diferente. Todos sao sabedores de 4ue ele matou
a esfinge e libertou Tcbas, e Édipo vive prezada e honradamente, feliz. no
scu casamcnlo com Jocasra. O restante está escondido dos olhos das pessoas, e ncnhum pressentimento chamou alguma vc1, csse sonho pavoroso
realidade. Só Antígona o sabe. Como chcgou ao scu conhccimenlo reside
a
45 De Sófocles, com o mesmo tíntlo. Para uma análise i.:omparativa da discu~~fto de
Hegel sobre a tragéclia de S6focles e a proposla divergente ele Kierkcgaa~d no. presente
capítulo, vd. Gcorgc Stcincr. A11rigone.L New Havcn e Londres: Yalc U111vers1ty Prcss.
1996, pp. 51- 66. e Jon Stew~in. «Hcgel's lntlucncc on Kierkegaar<l\ lnterprctmion of
«Antigonc», Persono y Derecho, n ." 39. Oezembro. 1998. pp. 195-21 (i.
46 Lábdaco. avo ele Édipo. profanou Ulll altar a Dionísio. provocando a ira dos deuses
contra si e comra toda a dcsccnclcncia.
47 Jocasrn. ml'íe de Édipo. de~posa o lilho após a mortc de Laio.
l
193
192
Ou-Ou. Um F1.1¡i11)l'11ll1
forado iuteresse trágico, e cada um pode entregar-se as ~W)S proprias COll1binacóes, no que a isso diz respeito. Em iclaclc precoce, ainda antes de
atingir o pleno desenvolvimento, obscuras alusócs a este pavoroso segredo
apoderaram-se momentáneamente da sua alma, até que, com um só golpe,
a certeza a lancou nos bracos da angústía. Tenho aquí agora, desde Jogo,
urna detcrminacáo da tragedia moderna. A angustia é, a saber, urna reflexáo
e, assim scndo, cssencialmente diferente do pesar. A angustia é o órgao
através do qual o sujeito se apropria do pesar e o assimila para si. A angústia a forca do movimento como qual o pesar trespassa o coracíío de cada
um. Mas o movimento nao é rápido como o da seta.
progrcssivo, nao
acontece de urna vez por todas, está antes cm constante devir, Tal como um
olhar erótico de paixáo desoja ardcntcmcnte o seu objecto, assim a angustia
olha o pesar para o desojar corn ardor. TaJ como um silencioso olhar de
amor incorruptfvcl se ocupa do objecto amado. também a angustia
ocupa<;ffo propria no pesar. Mas a angustia possui em si mais um momento,
capaz. de Iazer com que fique agarrada ao seu objecto com mais íorca aindu,
pois ama-o tanto quanto o reeeia. J\ angustia possui urna dupla funcáo, é,
parcialmente, o movimento de descobcrta que corninuamcnte lhe toca e
através desse toque descobrc o pesar, na medida cm que anda a volta do
pesar. Ou entáo a angustia
repentina, instala num sé agora tocio o pesar,
de tal forma. porém, que esse agora se dissolvc instantancamente em sucessáo. Corn esta significacáo, a angustia
urna auténtica dcterrninacáo trágica 11541, e a velha expressño quem deus vult perdere, primutn demen1a14S
encontra aqui corn vcrdadc justo cabimento. Que a angustia é urna determina~ao da rcllcxfío, dernonstra-o a propria língua, pois digo scmprc
«angustiar-se com alguma coisa», separando desta forma a angústia daquilo corn que Iiquei angustiado, e nunca posso usar angustia cm sentido objectivo, ao passo que dizenclo ao invés «O mcu pesar», posso tanto exprimir
aquilo por que sinto pesar. como o mcu pesar por tal coisa. Além disso, a
angústia contérn sempre em sí urna rcflcxño sobre o tempo, pois eu nao
consigo angustiar-me com o tempo que presente, mas apenas com o tempo que passado ou cmn o tempo que futuro. mas o tempo que passado,
ou o tempo que é futuro. assim antagonizados reciprocarncntc de modo a
que o presencial desapareca, urna determinacáo da reflcxáo. O pesar grego, ao invés, tal como a vida dos gregos, presencial, e o pesaré por isso
mais profundo. 111as a dor é menor. Por conseguinte. a angustia
parte esscncial do trágico modcrno49. itP-.or i~so que Ham!e150
tño trágico, pois
suspeita do crirne da mác, Robert le diable" pergunta como foi afina! possível causar ele tanto mal. Hf>f?ne52, cuja máe o havia gcrado de um troll ,
ao acabar casualmente por ver a sua ímagem na agua, pcrgunta agora a máe
é
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é
48 Em Jatim no original: «a quem Deus 4uer perder, tira p.rimcüo a razao», tradu~ao
latina tlo coment:'írio ao v. 620 de 1\f/lÍ[(ona de Sófocles. Na tradui,:ao portuguesa do
respectivo verso do texto grego le-se: «parecer he.m o 4ue é mal, é só a qucm ! o deus
leva
ruína». in Sófocles, f\¡¡tfgona, inti:odtH;:fio, versao do grego e notas de Maria 1 lelcna da Rocha Pereíra, Coimbra: lnstituto Nacional de lnvesl:igac,;ao Científica. Centro
de Esludos Clássicos e llumanfsticos da Uníversidade, 1984. p. 66. Doruvunlc mencionada por A..ruf¡::ona.
a
1k Vidu
é
é
de quem reccbcra o seu corpo aquela forma.
Agora a diícrcnca salta facilmente aos olhos. Na tragedia grega, Anl.ígona nao se ocupa de todo como infeliz destino do pai. Este destino repousa
como um pesar irnpcnetrável sobre toda a linhagcrn; Antígona vive a vida
sem pesar como qualqucr outra jovcm grega, apesar de o coro a lastimar,
pois a sua morte está determinada, visto que deixará esta vida crn idade tao
precoce, dcixá-la-á sem ter provado a sua mais bela alegria, e no manifesto
csquecimento do autentico pesar profundo da família. De modo aJgurn se
quer agora di'l,er que é de animo leve, Oll que O indivíduo singulal' fíca SOmente entregue a si mesmo, sem se preocupar com a sua rela~ao com alinhagem. Mas isto é genuinamente grego. Nesse tempo. as círcum:tancias da
v.ida eram-lhes concedidas a semclhan9a do ho1i'l.Onte sob o qual viviaro.
Se b<.:m que obscuro e encoberlo, também é ao mesmo tempo inalterávd.
Atribui li. alma uma nota fundamental, e esta nota fundamental é o pesar.
nao a dor. Em Anlíf(ona, a culpa trágica congrega-se num det<.:rminado
ponto, foi ela quem scpulrou o irmft.o apesar da proihi9ao do rei. Visto como
um facto ·isolado, como urna coJ.isao entre o amor fraternal e a piedade, e
uma arbitrária proibic,;íi.o humana, <.:nlao, Antf!{ona dcixaria de ser urna tragédia grega, e seria um tema trágico int.eiramente moderno. Aquilo que em
scnlido grego lhc atribuí intcresse trági<.:o l 1551 é o facto de na infeli'I. mor49 Na prime ira cdic,;áo dt: 1:.:nte11-r:ller, le-se apenas <<l d lo trágico».
50 Personagern principal da l.ragédia homónima de W. Shakcspeare (1564-1616),
com
múltiplas alusocs no co11junto da obra de Kierkcgaard.
51 A Jcnda conhece várjas vcr:-:oes e deve a sua grande divulga~ao no século x1x a ópera homónima de ()iacolllo Meyerheer ( l 791- '1864) com libreto de l:iugenc Scrihe e
Germain J)clavigne (1790-·1868); foi levada cena em Copenhaga. com lihrelo traduzido por Thomas Ovcri;kou, como nomc de Robert af Nonnandier 1 Roherto da Nonm111clia), conr.ando-~e vinte récitas entre 1833 e 1839, e dozc enl.re 184 l e 1844. J\o primciro acto, o trovador Rimbaut reprodut, a lcnda na versao mais popularizada: Robert
confcssa-se repetidamente perseguido pelo mal e pela infelicidade, acabando por renegar a patenúdade do diabo, Ilert.ram. e os pode.res mágicos que este lhe au·ibuírn; no
cerceiro acto, tem lugar uma cena paradigmática do góti.co rornfü1tíco, cujos protagonistas sao mortos-vivos, designadarnenle, fantasmas de urna irmandadc de freiras que haviam profanado os seus votos.
52 Nome do filho que a rainha Grimhild, esposa do reí Gjuke, concebeu de urr1 trol!.
Edic,:iio consultada pelo autor: Old nordiske Kmnpe-Historier ejier islandske Haandskrijier [I-l istórias (le G iga111cs Nórdicos de /\cordo com Manuscritos Islandeses 1, vols.
1-111. traduc;ao d..: C. C. Ruin. Copenhaga. 1821-1826; vol. lL pp. 242-244.
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194
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19'1
53 Proverbios. 25: 11: «Aquele que profere a paluvra a scu tempo. é como uns pomos
de oiro cm lcitos de prara.»
alma. Nc111 ncccssuo de recordar que cla nao é de modo algurn urna mulher
fraca e docntia, pelo contrário,
orgulhosa e chcia de forca. Nada há que
porventura enobreca tanto urn horncm como conservar um segrcdo. Dá a
roda a sua vida urna signíficacño.embora apenas para ele proprio, que 11561
o salva de qualquer aprecia<,:ao frívola sobre o mundo a sua volta; bastando-se a si próprio, pode quase dizer-se que repousa sumamente feliz no seu
'>egrcdo. se bem que o scu segredo fossc o mais sumamente infeli¿. Assim
é a nossa Antígona. Está orgulhosa do scu segredo. orgulhosa de ter sido
estranhamcnte escolhida para salvar a honra e a glória da linhagem de Édipo e, quando o povo reconhecido aclama Édipo cm gratidao e apre~o, en1ño, ela sente a sua autentica ~ignifica9ao. e o seu segredo cava-se cada vez
rnais fundo na sua alma, mais inacessfvel a qualqucr ser vivo. Sen le o quanto está agora colocado nas suas maos, e isso dá-lhe a grandeLa sobrenatural
que é neccss:íria para que ven ha a poder ocupar-nos do ponto de vista trágico. Apenas lcrá de intcressar enquanto figura singular. Ela é mai-; do que
uma jovem rapariga cm sentido geral e, contudo, ela é um<1 jovcm; é esposa e, contudo, com toda a sua virgindade e pureza. Como esposa, a mulher
alcan\:OU a sua dctermina9ao e, por is o, urna mulher pode em geral
inleressar-nos apenas na mcsnia medida em que cstcja em rehu;ao com csrn
sua detcrmina¡;ao. Há entretanto analogía~ com e ·te caso. Fala-~c a~sim de
uma esposa de Deu~56• que possui na fé e no cspírito o cont<.:údo no qual
rcpousa. Gostaria de chamar esposa lt nossa /\ntígona talvc1. ainda num
... entido mab bclo, com ef'eilo, ela é quase mais, ela é mae, de um pomo de
vista puramente estético. ela é vi1">(0 11101er~7• sobo cora<,:ao transporta o seu
'>Cgredo, c!.condido e dic;simulado. Ela é silencio precisamente por estar
repleta de segrcdo, mas este retorno a si mesma, que jaz no silencio,
concede-lhe um porte -;obrenatural. Scnte orgulho no seu pesar, é ciosa
dele, pois o seu pesaré o seu amor. Mas, no entanto. o seu pesar nao é uma
propríedadc mor1a e imóvel, move-se continuamente, dá
luz a dor e é
dado a lt1l com dor. Tal como uma rapariga fica noiva quando decide sacrificar a sua vida por urna idcia, quando tra;, a grinalda do sacrifício íl volta
da testa. pois que a grande e cntusias111ante ideia transforma-a. e a grinalda
do sacril'ício é como a grinalda nupcial. Nenhurn homem conhecc~8, e contudo é esposa; ncm sequer conhece a ideia que a entusiasma. pois isso nfto
!.eria feminil. e, contudo, é esposa. A~sim acontece coma nossa Antígona,
54 Mareus, 6: 19-20: «Nao queiruis entesourar para vós tcsouros na torra. onde a ferrugem e u traca os consome. e onde os Iadróes os desenrerrarn e roubam: /Mas entesourai ~ara ~ós rcsouros 110 céu, onde nao os consume a íerrugem ncm a traca, e onde
os ladroe.s nao os descnrcrram, ncm roubarn»: palavras retomadas por Paulo na Epístola_ de Tiago, 5:3: «Ü vosso ouro e a vossa prata se enferrujaram: e a fcrrugcm deles
dt~ra testcrnunho contra vos. e devorará a vossa carne como urn fogo, Ajun1a1>tes para
vos um tesouro de ira para os dias últimos.»
55 Fórmula latina de fal,a modéstia com que um autor apela ~1 car 1d.1dc do lcuur
56 Vtl .. por exemplo. nos canlicos de Salomao, 4:9a5:1. Kicrkegaartl repete esta ideia
\arias vc1c~. citando também a partir de Kruse. Acto L cena 6. Kru<.e, p. 20. Vd. igual111c11Le nllla 36 no capítulo «Silhuetas».
"17 bn lati111110 original: «virgcrn 11wc».
'\X \d. L Ul'ª'· 1: ·' 1· •+ d"w t\l:u r¡i Como 'e fara !\to. vis10 que niio conhc<;o varlío'!»
te do irrnño, na colisáo da irrnñ com urna proibicíío humana particular,
rcssoar o pesaroso destino de Édipo. o destino trágico de Édipo. tal como
nas dores tortas. a ramificar-se em cada rebento singular da sua família. É
é
este lota! que torna o pesar do espectador tao infinitamente profundo. Nfio
um individuo que sucumbe, mas um pcqueno mundo, é o pesar objcctivo
que agora avanca, soltó, como urna forca da naturcza na sua autentica e
é
terríve~ consequéncia de si, e o destino pesaroso de Antígona é um pesar
tal como a rcssonáncia do destino do pai. Por isso, quando
Antígona decide enterrar o irrnáo aposar da proibicáo do rei, entáo, nisso
nao vemos tanto a accáo livre quanto a necessidade funesta que visita as
iniquidad~s dos pais nos filhos. E há certamcnte tanta libcrdadc ncssa ac9fio
que podenamos amar Antígona pelo seu amor fraternal, mas na ncccssidad: da fotali~ade r~side et~ ~imultaneo como que um rcfrño mais alto, o qual
nao só rodela a vida de Edipo. como também a sua linhagcm.
Ora cnquanto a Antígona grcga vive assim a vida scrn pesares - e se
este novo facto nao tivcssc surgido, podcr-sc-ia imaginar a vicia dela neste
~radual desdobramento, se bcm que feliz - . a vida da nossa Anttgona. ao
invés, chcgou csscncialmcnte ao firn. Nfío foi corn parcirnónia que a provi
e urna palavra adequada no lugar certo
como é costume dizcr-sc, como
macñs de ouro em vaso de prata5-', a sirn tarnbérn cu pus o fruto do pesar
110 vaso da dor, O scu dote nao tcrn um esplendor efémero que possa ser
devorado pelas tracas ou pela ferrugem, é um tesouro eterno, os ladróes niio
o conseguern assaltar e roubar'", pois ela propria estaría demasiado vigilante. A sua vida nao se desenrola como a vida da /\ntígona grcga, nao está
voltada para fora, mas sim para dentro, o palco nño está no exterior, mas no
interior,
urn palco do cspírito. Será que nao fui bcrn-sucedido. caros
LuµmtQavt:xQ(llµl'VOt. no despertar do vosso interesse por urna tal jovern.
ou dcvo recorrer a urna caprario benevolentioeé'; Tarnbérn ela nao pertencc
ao mundo no qual vive e, se bem que florescenre esa. a sua vida autentica
é todavía clandestina, pois, apesar de ela estar viva, neutro sentido tarnbém
está morta, esta vida
silenciosa e escondida, o mundo nem scqucr lhc
ouve um suspiro. visto que tcm os suspiros escondidos no recóndito da sua
potenciado,
é,
é
é
é
u
197
196
Ot1
é esposa do pesar59. Ela consagra a vida a sentir pesar pelo dc~11110 do pai,
mnpropnado'", 111:1.., c'>ta mupropriacáo é a dor propriamente dita. Os gregos
cxprirnium-sc de uin modo figurativo, justamente porque a reflexño que
lhc-, é incrcnte nao estava contida nas suas vidas. Quando assim Filoctetes
lastima de que vive só e abandonado na ilha de. erra, o seu enunciado
pns<;ui simultancamcntc urna verdadc exterior; ao invés, quando a nossa
ntígona scntc adorna sua solidáo, é devoras inapropriaclo dizcr que está
xo, porérn, precisamente por isso, só adoré devoras autentica.
Ora no que diz rcspeito íl culpa trágica, esta reside entño, por um lado. no
lacto de cla sepultar o irmño e, parcialmente, no contexto do pesaroso desl ino do pai, subentendido nas duas 1J581 tragédias anteriores62. Neste ponto.
volto agora a ficar perante urna curiosa dialéctica que coloca as iniquidades
da linhngcm na rclacño com o indivíduo. É isto que é o atávico. Em geral.
i111agina-se a dialéctica bastante abstractamcnte, pcnsa-sc sobretudo nos
movimcntos lógicos. A vida vem entretanto cnsinar-nos que há mu itas cspéc1e-. de dialéctica. que qua!-.c cada paixao tema sua. Por isso, a dialéctica que
coloca as iniquidades da li11hagum ou da ramília cm ligac,;üo com o sujeito
-.ing.ular, de molde a que este nao só sofre sob o seu efeito - pois é urna
rnn~equencia da nature1a contra a qual o indivíduo procuraría cm vao
<.:alejar-se - , como carrega a culpa. participa dela; esta dialéctica é-nos
alheia. nada de imperioso para 116!-. contém. Se. no entanto. <;e pensa\se num
1c11a:.ci111ento da tragédia antigu. entao, cada indivíduo tcria de ponderar o
-.cu próprio renascimento. nflo apenas em sentido espiritual. mas no sentido
1111 ito do ventre materno da famíl ia e da 1 inhagem. A dialéctica que coloca o
111uivíduo em liga~ao com a família, e com a linhagem, nao é de todo urna
dialéctica subjcctiva, já que elimina precisamente a liga9ao e o indivíduo
para fora do contexto; é uma dialéctica objectiva6•1• É es. cncialmente a picdade. Conservar a picdade nao pode ser visto como um dano para o indivíduo. Nos nossos tempos. passou a apli<.:ar-sc uma coisa relai,:ao natural que
mio é aplicável rela<;ao espiritual.
se quer todavia ficar tao isolado, ser
1ao desnaturado. yue nao se considere a familia como um todo. do qual é
po-.sível dizer que. quando um membro sofre. todos sofrem também64.
cm lugar do seu. Urna tal infelicidade como aqucla que aringiu o scu pai
reclama o pesar e, no entanto, nao há ninguém que possa sentir pesar por
ele, dado que nao há ninguém que saiba. E tal como a Antígona grega nao
pode suportar que o corpo do irmño seja sepultado sern as últimas honras,
11571 também assim cla semc quáo difícil teria sido se ninguérn tivesse
chegado a saber, angustia-a que nao houvessc de ter sido derramada urna
lágrima, quasc agradece aos deuscs ter sido escolhida como instrumento.
Assirn, na sua dor, Antígona é grande. Posso também mostrar aquí urna
diferenca entre o que grcgo e o que é moderno. É genuinamente grcgo que
Pilocrctes se queixc de que ninguém sabe que ele sofre. é urna neccssidadc
profundamente humana querer que os outros chcguem a saber dis io: a dor
reflcxionantc, emrcranto. nao <leseja tal coisa, Nao ocorrc a Antígona desejar que alguérn houvcssc de vira saber da sua dor, mas, ao invés, sentc-o
em relacáo ao pai, sentc a jusiica que reside em sentir pesar. o que. do ponto de vista estético, é tao merecido como sofrcr um castigo quando se agiu
mal. Por isso, enquanto na tragédia grcga sé a idcia de estar determinada
para ser enterrada cm vida arranca a Antígona esta exclarnacño de pesar:
é
(850)
OU"t'
i<li oúorcvoc,
f.:'\1
f3Q01:0L; OÜ"t' CV Vt:Y.(lOLCJL
µé1:01.xo~,
º
oú ~<l>ow, oiJ 1':J<:tvoúot''6
a nossa Antígena pode dizer isto durante a vida inteira acerca de si mesma.
A difcrcnca é notória; o seu enunciado cncerra urna vcrdadc factual que faz
com que a dor scja menor. Se a nossa Antígona dissesse o mesmo. cría
• (844). O weh Unselige!
Nicht 1111rer Menschen, 11i<·/i1 11111er Todten,
lm Leben nicht lteituiscli nocn im 7ix/e!t
t Em ulemilo no original: «Ai, infeliz! I Ncm entre os homens , nern entre os monos, /
Na vicia liio pouco cm casa como nu morte!» A truducño ulcmñ do v. 850 citada pelo
autor retirada de Sophokles Trugtrdien [Tragédias de S.J. traducño de Johann Christian Donncr. Heidelberg. 1839. p. 186.
é
59 Complc1a_-~e uqui a cornparacáo iniciada linhas antes curn Ifigénia, protagonista de
tfigénia em Aulid« de Eurípedcs. Vd. Eurípcdcs. tfigénia em Áulidr, introducño e versño
de Carlos Albe110 País de Almeida. notas e revisño de Maria de Fátima Silva, Lisboa:
Funclac;ao Caloustc Gulbenkian. Junta Nacional de lnvestigacño Científica e Tecnológica. 1998, 2.ª edi9ao.
60 Na traducáo portuguesa de Maria 1 lclena da Rocha Percira: «Ai de 1111111, dc,¡p·ac;adaJ
I que nem comos hornens I nem c.:0111 º"' cadáveres / eu vou habiuu '». /\111111"""· p. 76
011. Um
h11r111~
11tn
1h V1du
,l.
a
Nao
a
<> 1 Na~ frases conclusivas do parágrafo. o autor joga com duas valéncias de «ll<'ge11
11t11». i. c .• «inapropriado» 011 •<figurado» em rela~o ao 'cntido de uma palavra ou
lia-,c. contrastadas com «egl'111/ig». i. c., «autcn1ico», 011 «propriamente dito».
(¡2 Nei Édi¡ll) e Édi¡m e111 Co/0110.
<>' l lc••cl e~tabclccc a difcrcnr;a entre dialéctic;i subjcctiva e dialéctica objectiva em
1 orle.1~11gt•11 iiber die Gescl1ichte der Philosophie 1 Lir;<'íe~ sobre a Hbtória da rilosofia].
vol. XIII, pp. 130 e segs.; J11bifii11111s, vol. XVII, pp. 326 e
111 Wer~c. vols. Xllt-XY:
'l"f'>.: e 'i11hrf..w11p. vol. XVIII. pp. 302 e segs.
I Primcira Epí,tola ao~ Corínlio-;. 12:26: «De maneira que, se um membro padece.
1odoi. 0~ 111cmbn'1' padccc1u c\lln ele: e se urn 111e111bro recebe glória. todos o~ 111embros
'l" 1 CfO'flJHlll COlll ele ...
(1
199
198
Fazemo-lo involuntariamente e. aliás, por que motivo ir{l o rndivrduo singular ter assim tanto medo de que um outro memoro da familia lhc traga desonra. senño por sentir que sofrc com cssa dcsonra. Ora o indivíduo tcrn
manifcstarnentc de aceitar este sofrirnento, quer queira , quer nao queira.
Mas, quando o ponto ele onde se parteé o individuo e nao a linhagem. este
sofrimcnto forcado é o 111axi11111111; sente-se que o hornem nao mais consegue
ser senhor da sua rclacño natural, mas deseja-o tanto quanto )he for possível.
Ao invés, se o individuo olhar a relacáo natural como um momento incluído
na sua vcrdade, esta exprime-se entáo no mundo do espíritu como sendo o
indivíduo a participar na culpa. Muitos nao seriam porvcntura capazos de
pcrccbcr esta consequéncia. mas assirn tarnbérn nao conscguiriarn percebcr
o trágico. Se o indivfduo está isolado, ou é em absoluto o criador do seu
destino e, assirn sondo, nada mais haverá de trágico, mas apenas o mal pois ncm sequcr é trágico que o tivcssem cegado ou aprisionado cm si próprio, pois isso é 11591 propriamente obra sua -: ou os individuos sño meras
modificacócs da existencia da substancia eterna e, asvirn seudo, o trágico
volra a ser afastado.
Ora, em rclacño i'1 culpa tnigica, mostra-sc tarnbérn Iacilmcntc urna difcren~a na moderna. dcpois de ter acolhido cm si a amiga, pois só agora pode
propriarnente fular-se disso. Por vía da sua piedadc infantil, a Antígona
grega participa na culpa do pni, tal como na rrngédia moderna: mas para a
Antígona grcga a culpa e o sofrirneruo do pai ~ao um facto externo, um
facto inabalávcl, que o scu pesar nílo rnovc (quod non volvit in /U!Ctore65);
c. conquanto cla sofra pcssoalrnenrc coma culpa do pai cm virtudc da conscquéncia natural. esta culpa está por '\CU turno cm toda a sua facticidadc
cxtcrior.Com a nossa Antígena, passu-se de maneira diferente. Avsumo que
Édipo morrcu . .lá quando ele era vivo, Antígona ero sabedora dcsse segrcdo, mas nunca rivera coragem para ·e confiar ao pai. Coma rnorte do pai,
dcspojaram-na da única saída para ficar liberta dcstc '>CU scgrcdo. Confiá-lo
agora a outro ser vivo seria desonrar o pai, a vida tcrn para cla signif'ica9ao
enquanto consagrada a prestar-lhe a dcrradcira homcnagcm dia a dia, quase
hora a hora, atruvés do scu silencio inquebrantávcl, De urna coiva ela nao
esui todavía sabedora. dcsconhecc se o próprio pai sabia disso. ou nao. Bi"'
aqui o que é o moderno: a inquietude no seu pesar, a anfibología na sua dor,
Ela ama o pai com toda a sua alma, e essc amor arrasta-a para tora de si
propria e para dentro da culpa do pai; como fruto de um mi amor scntc-sc
albeada dos homens. scnre tanto mais a sua culpa quanro mais amar o pai,
só junto dele encorura rcpouso; como sao igualmente culpados, sentiriam
pesar junto urn do outro. Porérn, cm vida do pai , nao foi capaz de Ihe conque cla nao agita no pcito». «/11 pectore w1/icn·, ~ urna
cita~ao Je Hon1ero. ocorrenic em Lucn:cio e cm Virgílio.
65 Em latim no original:
«O
fiar 0 scu pe... ar. pois de tacto nao sabia se ele tinha conhecimento disso e.
por conseguintc, havia urna possibilidadc de o mergul~ar numa dor comp.~rável a sua. E cornudo. se ele disso nao tivesse conhec1mento, a culpa sena
menor. Aqui 0 movimento é sempre relativo. Se Anttgona nao conl~eces~c
contexto factual com precisño, entáo, tornar-se-ia insignificante, nao tena
0
mais para combater do que um presscntimcnto, o que é cxccssivarnente
pouco para nos ocupar do ponto de vista trágico. Mas ela ~abe tudo: porém,
no scio dcstc conhccimento, há todavía urn desconhec11nento que pode
continuar a mantero pesar cm movimcnto. co~tinuando a tra~~sfo_rmá-lo.~m
dor. Acrcsce que cla continua a estar em confltto com a amb1enc1a extet 1or.
Édipo vive na memória do povo como um rei feliz, honrado e louvado;
11601 a própria Antígona admirava tanto o pai quanto amava. Tom_a parte
em qualquer júbilo e celebra~ao do pai, sente entusiasmo ¡x:lo pa1 corno
nenhuma outra jovem em todo o reino, o seu pcnsamcnt~ a ele re~rcssa
continuamente, é louvada no paí-; como um modelo de hlha adorav~I e,
contudo, este eniusiasmo é o linit:o modo através do qual é capaz de de1xar
irromper a dor. o pai está scmprc nos seus pensamentos,_mas o modo como
aí está constitui esse seu doloroso -;egredo. E. contudo, nao ousa entr~gar-se
ao pesar, nao ousa afligir-se. sente o quanto repou~a s??re cla, r~cc1a que,
se a vissem sofrer, houvessem de eneo111rar um 1nd1c10 e, ass1111 sendo,
vindo cJcssc lado. também nao receberá o pesar, mas sima dor.
Se ror elaborada e profundamente reelaborada desta forma, penso .qu_e
Antígona poderá decerto ser ocupa9ao nossa, e penso que nao me_ 1~e1s
acusar de ligeireta de espírito ou de excesso de amor ptcmt~I. se cu 101 de
opiniao que ela pode muito bcm cnsaiar-sc na m_atéria tníg1ca e, a~arccer
numa tragédia. Até aqui é somente uma figura épica e, nela, o trag1co tem
.º
apenas intcressc épico.
.
Tainbém neni scquer é assim t5o difícil descobm um encadeamento no
qua! possa inserir-se: a este respeito, podemo~ muito_ bem contentar_-'.10~
com aquilo que a tragédia grega oferece. Anttgona _a1nda tem urna ~tm<•.
viva: vou fazé-Ja um pouco mais velha e casado. A mae tambérn pode csta1
viva ainda. Daqui decorre que passam obviamente a ser scrnpre per_sonagens secundárias. tal como decorrc que, de um modo gcral. a tragédia a~quire em si um momento épico, a sc111clha119a do q~c acontcc~ na tragé<lia
grcga, <;ern que por isso neccssite de ser tao proemmentc; aqu~. con:udo, o
monólooo dcscmpenha scmpre um papel principal, embora a s1tua~ao _<leva
continu:mcnte vir em auxilio. Tudo isto tem de ser imaginado em c,OllJUnto
com 0 único interesse principal que é o conteúdo da vida de Ant1gona; e
quanc.lo agora 0 todo estiver assim ordenado. resta perguntar: como é produzido o interesse dramático?
,
A nossa heroína. tal como aprcscntado nos parágrafos anteccdentcs. esta
a 1.:aminho de qucrci -.altar por cima de um momento e.la sua vida, está pres-
200
201
tes a dispor-se a viver espiritualmente por inteiro, algo que a n.uurcza nao
tolera. Corn a profundidadc que lhc vai na alma, quando fica apaixonada.
t~m neccs~ariamente de amar com urna paixáo extraordinária. Eis-rnc pois
diante do interesse dramático - Antígona está apaíxonacla, e digo-o com
dor, Antígona está mortalmente apaixonada, A colisáo trágica66 reside manífestamcnte nisto. Na generalidadc, devíamos ser um pouco mais esquisitos
face 11611 aoque chamamos colisáo trágica. Quanto rnais simpatéticos forcm
os poderes em colisáo, quant.o mais profundos e simult.aneament.e mais congéneres, tanto mais significativa será a colisño. Ela está pois apaixonada e
aquele que constituí o objecto do seu amor nao tern dcsconhecimento disso.
Ora a minha Antígona nao urna rapariga comum e, assim scndo, tarnbém
o dote cicla é incomum: é a sua dor. Nao lhe é possível pertcncer a um homc.111. scm este elote, senté que seria urna ousadia cxccssivarnente grande;
sena impossfvel esconde-lude um tal observador.vira esconde-la seria uma
ofensa contra o seu amor; mas poderá cla pertencer-lhe tendo esta dor? Ou~ará confiá-la a alguérn, mesmo sendo ao homern amado? Anrfgona tcrn
torca, a qucstáo nao é saber se ela, por sua propria culpa, para aliviar o pciro
irá confiar a alguém a sua dor, porque cla conscguc suportá-la bcrn sen;
apoio; mas conseguirá ela justificá-la diantc de urn morto? Ela propria, de
cerco modo, sofrc igualmente ao confiar-lhc o scu scgredo, pois a sua vicia
tambérn está pesarosarnenrs cntrelacada ncssc segredo. Nao obstante isso
nño a preocupa. A questño é apenas o pai. Vista por este lado, a colisño é
portante de urna natureza simpatética. A sua vida, que antes era tranquila e
calma, tom~-se agora violenta e apaixonada, obviamente que sernpre no seu
eu: e a r~p.lrca del~1 comeca aquí a tornar-se patética. Lula consigo propria.
qurs sacrificar a vida ao scu scgredo, mas agora exigem-lhe o seu amor em
sacrificio. Ela vence, ou seja, o scgredo vence, e ela pcrde, Surge agora a
segunda coüsáo. pois para que a colisño trágica sejajustificadarnente profunda. os poderes em colisáo térn de ser homólogos. !\ colisño descrita até
agora nao possui esta qualidade,já que a colisño propriarncnte entre o amor
dela pelo pai e o amor por si mesma, e em tomo de o seu proprio amor nao
ser um sacrifício demasiado grande. O outro poder em colisüo é 0 amor
simpatético pelo seu amado. Ele sabe que é amado, e passa a ofensiva com
ousadia e audacia. A reserva ele Anrígona surprcende-o deveras; ele percebe
que tern de haver dificuldades muiüssimo particulareg , mas que nao térn ele
ser para ele inultrapassáveis. Tudo o que lhe importa convence-la do quanto ele a ama, sim, de que a vida dele acubou quando ti ver de abdicar do amor
dela. Por fon, a paixáo dele torna-se quase urna inverdade, apenas ainda rnais
engenhosa devido a esta resistencia. Cada vez que !he reitera o seu amor, ele
é
é
é
66 Hegel, Aesthetik, ITI. in Werke, vol. X3, p. 527; .!11bilii11ms, vol. XIV, p. 527: e
Suhrkamp. vol. XV, p . .521; tradw,:iio portuguesa, p. 647.
aumcnta-lhc a dor, tl cndn suspiro scu 11621 a seta do pesar fica cravada cada
ve¿ mais fundo no coracño. Para a demover. nao deixa meio algum por experimentar. Corno todos os outros, ele sabe quanto ela ama o pai. Encontra-a junto do túmulo de Édipo, aonde cla se dirigirá para aliviar o coracáo,
onde se entrega a saudade do pai, embora essa saudade se misture com clor,
porque ela nao sabe como há-dc encontrar-se corn ele outra vez. nao sabe se
ele conhecedor da sua culpa ou nao. Ele surpreende-a, suplica-Ihe pelo
amor com que ela rodeia o pai, repara que lhe causa urna irnpressáo in vulgar,
insiste, tuclo espera deste rneio, e nao sabe que está precisamente a agir contra si proprio.
O facto em torno do qual gira o interesse consiste, portanto, cm ele conseguir arrancar dela o seu scgredo. De nada serviría lcvá-la tcmporariarncnte ao delirio para que dcssa forma ela o traíssc. Os poderes cm cclisáo
mantém-sc a par um do outro cm tal grau que a accáo se torna impossível
para o indivíduo trágico. A dor de Antígona é agora dilatada por vía do scu
:unor, por via do sofrirnento simpatético dirigido a quem cla ama. Só na
mortc poclerá encontrar paz; a sua vida está assim consagrada ao pesar, e
ela como que estabeleccu urna cspécie de fronteira, um dique contra a infelicidade que porventura se iri.a fatalmente propagar na gera9ao seguinte.
Só no instante da morte poclerá ela confessar o seu fervoroso amor, só poderá confessar que Jhe pertence no instante em que nao lhe pertence. Quando Epaminondas67 foi ferido na Batalha ele Mantineia, deixou que a seta
ficasse enterrada na ferida até ouvir dizer que a batalha estava ganha, porque sabia que a morte chcgaria quando a cxtraíssem. É assim que a nossa
Antígona carrega o scu scgredo no cora~ao, como urna flecha que a vida
continuamente crava cada vc1, mais rundo, scrn lhc roubar a vida, pois desde que cstcja enterrada no scu cora1,:ao, vivcrá, mas no instante cm que f'or
retirada, tení de morrer. O seu amado ten1 de lutar para a despojar do seu
segredo e, nao obstante, para ela, isso trará conjuntamente morte ce1ta.
A que maos cairá ela agora? As do vivo ou as do morto? Em certo sentido,
é
67 Epaminondas (c. 418-362 a. C.). general de Tebas. Vd. Cornelius [Cornélio) Nepos,
«Eparní11011das». livro XV, 9. De excelle11tibus ducihus exterarum ge11ti111n LDos Excelentes Chefcs dos Povos Estrangeiros]. Outra fonte disponível para o autor: «Epamino11das». in Ludvig Holberg, Helte-Historier [Hist6rias de Her6is]. vol. 11. in Ludvig
llotbergs udvalRte Skri/ier [Escritos Escolhidos de L. H.1. edis:ao de K. L. Rahbek,
vols. J-XXI, Copenhaga. 1804-1814;
vol. X, 1807. pp. 513 e segs. Vd. The Book of
Cor11eli11s Nepos 011 the Great Generals of Foreign Natio11s, XVIII, ou Cornelius Nepos, together with Lucius Annaeus Florus, tradui;:ao de John C. Rolfe (Loeb). Nova
lorque: Putnam, 1929. p. 547. Vd. tradus:ao ponugucsa de Jofio Fclix Pcreira: Cornelio
Nepote, Vida dos Capiteles Ilustres. Lisboa: Irnprensa de Lucas Evangelista Torres.
1888. pp. 106-107.
202
as máos do morro. e aquilo que fora pre isagiado a Hérrnle\.<>l'.
que havc-
ria de ser assassinado nao por um vivo, mas por um morro - iambém se
lhe aplica, dado que a recordacáo do pai é o motivo da mortc dela; neutro
sentido. caí as máos do vivo, rendo em conta que o seu amor infeliz
a
ocasiáo para que a recordacáo a mate.
11631
é
Silhuetas
Passatcrnpo Psicológico'
Proferido diante dos
L·uµMQCLVl'.'X.Q(J)µevm2
68 Hércules morrcu envenenado pelo sungue do centauro Nesso, anos depois de este
ter sido mono por urna tia~ setas envenenadas de Hércules. Sófocles menciona a protccia da morrc de l lércules e narra asna rnorte na rragédiu 11s Traqutnias, vv. 1159 e
segs .. 555 e 705: vd. A.I' Traquinias de Sófocles, introdueño. ver •fío do grcgo e notas
de Maria do Céu Zambuja Fialho, Coimbra: Instituto Nacional de lnvestigucáo Cic11tífica, 1984: p. 79 [vv. 1159 e segs. [: «HÉRACLLlS: 1 .•. 1 Fora-rnc outrora revelado por
mcu pai que cu nao viria a rnorrcr ai. müos de urn homern vivo, mas de alguém já
morto que habitasse o Hades. Esse alguém
scm dúvida, o Centauro [ ... ]»: p. 55 1 vv,
555 e segs.]: <<DG.IANIRA: Conservo desde há muiro, guardada nu111 vaso de bronze, a
dádiva de um antigo monsrro. Era a inda jovcm, quando a recolhi do peito cabeludo de
Ncsso. no momento cm que expirava, assassinado»: p. 61 [vv. 705 e scgs.]: «DFJA.'l/J.
l{A: 1 ... 1 vejo-me autora de um Ieito horrendo. Pois por que razño, por 411e motivo.
havia o Centauro. ao morrer, de se mostrar indulgente para comlgo. que fui a causa da
sua mortc?' Nao o faria:» Outra fontc disponívcl para o autor. Paul Friedrich A. Nitsch, Neues mythologisches WiJrterlmch 1 Novo Dicionário Mitológico 1. vol s. 1-11, revisan de Friedrich Gorthilf Klopfer, Lcipzig. Sorau. 1821: vol. l. p. 842.
é,
11641
11651
Alocucáo
ll~>geschworen mag die Liebe immer seyn;
Ltebes-Za11ber wiegt in dieser Hoh!«
Die berausclue, überrasc/Jte Seele
111 vergessenhoitdes Schwures ein:1
* *
*
Cornemoramos ncsta hora a lundacáo da nossa associacáo, regozijarno-nos urna vez mais porque esta alegre ocasiño rcpctiu-sc novamente, porque acabou o cija mais longo. e a noitc corncca a triunfar. Esperarnos durante este longuíssimo dia, ainda há um instante suspirávamos por viada
sua longura, mas o nosso desespero está agora transformado cm alegria. É
cerro que o triunfo
meramente insignificante, e que a preponderancia do
dia irá sentir-se ao longo do tempo, mas nao escapa nossa atcncño que o
scu dominio se rompen. Por isso, nao protelarnos o nosso júbilo pelo triunfo da noite até que se torne pcrccptível para todos, nao o protelarnos até
que a indolente vicia burguesa nos venha recordar de que odia dirninui.
Nao, tal como uma jovem noiva espera impaciente a chegada da noitc,
tarnbém assim aguardamos cheios de anseio o primeiro cair da noitc, o
prirneiro anuncio do scu futuro triunfo, e a alegria e a sorpresa seráo tanto
maiores quanto rnais porto ficámos de desesperar do modo como haveríamos de su portar, se os d ias nao cncurtasscm.
Decorreu um ano, e a nossa associacño ainda subsiste - haveríamos nós
ele alegrar-nos por isso, caros rupJtagave1<Qú)µevo1., de alegrar-nos porque
a sua subsistencia troca da nossa doutrina sobre a queda de ludo, ou nao
haveríamos antes de sentir mágoa5 porque subsiste. e alegrar-nos por, cm
qualqucr dos casos, ter apenas rnais urn ano para existir; pois que se nao
tiver desaparecido ncssc cspaco de tempo, nao foi deveras decisáo nossa
serrnos nós a dissolvé-la? Nao gizámos planos ele longo alcance" aquando
da sua fundacáo; demasiado familiarizados com a miséria da vida e com a
é
Gestern liebt · iclt,
Heutc leid' ich ,
Morgen sterb • ich
Dennoch denk' ich
Heut und Mwt:e11
Geru cm Gestern.4
Ju;I~~-~~
1 O subtítulo inicialmente escolhido en «Forrf)~ i de
1 K
sobre a Arte Negra»; vd. Pap, 111 B 17;: J de ~5 de
e18~1~1st», ou seja, «Ensaio
2 Vd. nota 1 no capítulo anterior.
·
3 Em alernño no original: «Pode sempre renegar-se 0 amor· ¡ Nesta . lila 3
·. d
I A alma ébria e surprcendida I No esquecimer:IO eta s~ajura.>: ,;~~;~ªna:
~:~;·i~~;~~:'.1
~ ~m -a~e~11íio n~ original: «Ontcm amei, I Hl~jc sufro, I Amanhñ morro! Prcfíro, porém I
I OJe e amanhñ, 1 Pensar em ontcm.» Poema de G E Lessing
¡ · ¡
S
.'
1
I , IC· ,- T
·
· ·
, « ,¡e( aus aem
patu s
e wn~> . mi_?ªº raduzida do Espanhol]; cdi9ao consultada pelo autor: GoufrieaEohraini
1 ·
Lessing.1 sdmmüiche Schrifteu [Escritos Completos de C1· E 1 ] r ¡ 1 xx
1825-28· vol XVJI
.
~
.•
· '· • '0 s. XII. Berlirn,
1
'
·
,p.281.\d.GottholdEphra1ruLessino.WerkejObras]
Munique:1
ear J• HanscrVeriag.vols.1-VIIL
1970-1979· vol l(C·/' ¡° F.! 1
".
.
•
mas, Fábulas, Comédias]), 1970, p. 125.
.
.
ec te tte, 'a Je n. Lnstspie!e [Poe-
improvisada
a
5 «Af serge» é traduzfvcl por «lamernar», «lastimar». e também «sentir rnágoa» ou
«andar em cuidados». Sendo «Sorg», «mágoa», a palavra-chave neste capftulo. preferiram-sc as duas últimas opcócs.
6 Vd. Horácio, Odes; livro l. 4, v. 15: «Spem nos vetat incohare longum»; «a breve
Jurac,:iío da vida impede-nos de encetar duradouras esperances»: e livro 11, 16, v. 17:
«Quid brevi jorfes iaculamur Mu/10'!>>, i. e .. «Porque intrépidos na nossa breve vida
tanto visamos?», in Horácio, Odes. traducáo de Pedro Braga Falcáo, Lisboa: Livros
Coiovia. 2008. respectivamente, pp. 56 e 162.
206
'l..07
perfídia da existencia, resolvemos ir em auxílio da lei universal? e aniquilar-nos a nós proprios, se a nós ela nao se antecipar. Um ano passou e a
nossa associacáo ainda conta com todos; ninguérn foi ainda substituído.
ninguém se fez substituir.já que cada um 11661 de nós
demasiado orgulhoso para tal. porque todos vemos a rnorte como a maior das felicidades.
1 la veríamos nós de ter nisso alegria e nao haveríamos antes de anclar em
cuidados, e exultar apenas na csperanca de que a confusáo da vida depressa
nos vcnha separar. na esperanca de que a tcrnpestadc da vida deprcssa nos
arraste! Na vcrdadc, éstes pcnsarncntos adcquam-se bem rnelhor
nossa
associacáo, concordam óptimamente com a festividade destc instante, com
tocia a ambiéncia Pois nao é engcnhoso e significativo que o chao desta
pequena sala, de acordo com o costumc da nossa terra, csteja juncado de
verdura como se Iosse para um funeral, e nao nos conceden a propria natureza o scu asscntirnento, quando atentamos na brava tempcstade que ¿1
nossa volta ruge, quando ficarnos de vigia poderosa voz do vento'! Sim,
calerno-nos por um instante para escurar a música da rempcsradc, 0 seu
intrépido curso, o seu audaz desafio. e o obstinado rugido do mar e o suspiro angustiado da floresta, e o desesperado quebrar das árvores e o cobarde silvo da crva. Bem podem os homcns reiterar que a voz da divindade nao
está no vento impetuoso, mas na brisa suaves: mas, de facto, os nossos
ouviclos nao estño feítos para captar as brisas suaves, mas antes para sorver
o ruíclo dos elementos. E porque nao irrornpe ainda com mais violencia,
pondo fim vida e ao mundo, e a este pcqueno discurso, que sobre todo o
resto tem pelo menos a vantagern de em breve chegar ao firn. Sim, oxalá
esse turbilháo que consütuí o princípio mais interior do mundo", mesmo
que os ~ornens riele nao reparcrn, mas antes comam e bcbarn, se casem e se
rnuJtipliquem numa despreocupada agitacáo, oxalá irrompessc e com funda
indignacño sacudisse de si as monranhas e os estados, e as obras da cultura
e as invencñcs sagazes dos hornens; oxalá irrornpesse com o dcrradeiro
bramido pavoroso que anuncia o crepúsculo de rudo com maior certeza do
que a trompeta do Juízo Final; oxalá se agitasse e fizessc rernoinhar esta
rocha nua sobre a qual nos erguernos, com a mesma ligcireza corn que um
é
a
a
a
7.Na filosofia tlos cstóicos, o fogo está presente como lei universal que regula 0 princíp10 e o tim tlo mundo.
8 Vd. nota 33 110 capítulo «Diap.1·almata».
9 Na filosofi~i pré-socnítiea, Dcmócrilo (e. 460-c. 370 a. C.), na csteira de Leucipo (c.
460-370 a. C.), u criador do atomismo. descreveu u cosmos, incluindo nele t:ambém a
alma, como um turbilhiío eo11slituído por número infinito de átomos cm movimento 110
vazio. Por seu turno, Anaxágoras (500-428 a. C.) encontrou no conceito de nous a
for9a e o princípio ordenador da matéria, constituída por um número infinito de elementos, construindo Anaxágoras uma explica9iio evolutiva da matéria de acordo com a separn91io e a eombina91io desses elementos.
J loco d iantc do '>OJ)m do ... cu nariz 10. -
A noite triunfa, porérn, e o dia fica
mais curto, e a espcranca crcscc! Enrño, enchamos urna vez mais os copos,
caros cornpanheiros ele bebida; saúdo-tc com este cálice, ó máe eterna de
rodas as coisas, ó noite silenciosa! Tudo provém de ti, tuclo a ti volta a regressar. Apieda-te, entáo, do mundo outra vez. dcscerra-tc de novo para
ludo reunir e guarda-nos a todos no abrigo do teu vcntre materno! Saúdo-tc,
ó noire escura, saúdo-te como vitoriosa, e esse o meu consolo, já que tu
abrevias tudo no eterno esquecimento, odia e o tempo, e a vida e as fadigas
é
da rccordacáo:
1
'\ 1 ('
11671
Desde o tempo em que no seu famoso tratado Laocoonte" Lessing regulou
os diferendos das fronteiras entre a poesía e a arte. pode ser considerado co1110 um resultado reconhecido unanimemente por todos os estéticos que a
difcrcnca reside no facto de a arte12 se encontrar sob dererminacóes espaciáis
e a poesía sob dctcrminacñes temporais, e no facto ele a arte representar o que
está cm rcpouso e a poesía aquilo que se movc. Por isso, o que vier a ser
objecto de represenracáo artística tcrn ele possuir urna transparencia tranquila
para que o interior repouse num exterior correspondcntc. Quanto menos for
este o caso, rnais difícil se torna a tarcfa para o artista, até que se faca valer a
diícrcnca que lhc cnsina que cssa tarcfa nao de modo algum a sua. Se tomarmos o que aquí nao íoi adiantado, mas apenas csbocado, para a relacáo
entre a mágoa e a alegria, é simples de inteligir que é muito rnais fácil representar artísticamente a alegria do que representar a mágoa. Posto isto, de
modo nenhum se há-de negar que a mágoa é reprcscntávcl artísticamente,
mas para falar corn clareza,
chegado um ponto em que se toma cssencial
que a mágoa estabcleca urna contradicáo entre o interior e o exterior, e esta
fa:t. com que a reprcsenla9ao da mágoa seja impossível para a arte. A contradi\(1io reside urna vez rnais na própria essencia da mágoa. É próprio da alegria
querer manifestar-se, a rnágoa qucr esconder-se e até por vezes levar ao ené
é
10 Vd. Livro dos Salmos, 18: 15: «Bntiio foram vistas as profundezas das águas. e foram
descobcrtos os fundamentosdo inundo: pela tua repreensiio. ao soprar das tuas narinas.»
l l Vd. G. E. Lessing. lAOKOON oder iiber die Grenzen der Malerei und Poesie [Laocoonle ou das Fronteiras da Pintura e da Poesía). Edi9iio consultada pelo autur: <<Laokoun», in Got/hold Ephraim Lessing s sammtliche Scllr(ften 1 Escritos Cornpletos de G. E.
L.I. vol. JI. pp. 121-397; vd. Gotthold Ephraim Lessing, \Verke IObrasl, M1111iquc: Carl
l[anser Verlag, vols. l-Vlll, 1970-1979; vol. VI (Kunst theoretische und kwwhistorisl'he Schriflen [Escritos Teóricos sobre Arte e sobre História de Arte)), J 974. pp. 7-187.
12 Ao 1.ongo dcsta sec«ao, enlende-sc por arle a pintura e a escultura, tal como em La
o(·oome.
208
Ou
gano. A alegria comunicativa, social e franca, qucr exteriorizar-se: a mágoa
é fechada. silenciosa, solitaria, e procura recolhcr-sc. Ninguém negará a
exactidáo deste facto, por pouco que tcnha feito da vida objecto seu de observacáo. Há pessoas cuja compleicáo está de tal modo organizada que,
quando se emocionam, o sangue afluí i1 epiderrne, e o movimento interior
toma-se assim visível do exterior; a compleicño de outras é de tal espéc:e que
o sanguc refluí, rccolhc-se interiormente na dircccño dos ventrículos e das
partes internas do organismo. É mais ou menos assim que se passa com a
alegria e a mágoa, no que di/ rcspcito as modalidades de exprcssño. A compleicño primciramente descrita é muito mais fácil de observar do que a segunda. Na primeiru, ve-se a exprcssño. o rnovimcnro interior é visível do
exterior; na segunda compleicño presscnte-se o rnovirnento interior, A palidez
exterior como se fosse a despedida do interior. e o pensamcnto e a fantasía
corrcm atrás do que é fugidio e se esconde no oculto. Isto aplica-se sobretudo
ao género de mágoa que trararci com maior pormenor, a qual terá de chamar-se mégoa rcflcxiva!'. No máximo, o interior contém aqui apenas um indício
que nos póc cm pista, por vczcs ncrn scqucr 11681 tanto. Esta mágoa nao se
dcixa representar cm arte. pois o cquilfbrio entre o interior e o exterior está
anulado. e nao cabe assim cm dctcrminacñes cspaciais. Também num outro
sentido nño se deixa representar cm arte, pois nao rcm essa quietude interior,
antes está em movirncnto constante; aposar de este movirncnto nño a enriquecer corn noves resultados. o próprio movimcnto
todavía csscncial, Como
um esquilo na gaiola. corre assirn 11 voila de si mesma, mas niio de urn modo
tao uniforme como faz esse animal, antes de urna maneira em que alterna
continuamente a combinacño dos momentos interiorc r dn rnágoa. Aquilo que
faz com que a rnágoa reflexiva nao possa tornar-se objecto de representacño
artística é ter falta de repouso,
nao ficar de acordó consigo mesma, nao
rcpousar cm alguma cxprcssño única e determinada. 'Ial como o doente com
dores se vira ora para um lado, ora para o outro. tarnbérn assim a mágoa reflcx iva se revira para encontrar o respectivo objecto e a respectiva expressáo.
Quando a mágoa tem rcpouso, cntáo, o interior da mágoa qucr desprender-se
progressivamente, ficundo visível no exterior, tornando-se assim objecto de
representacáo artística. Quando a mágoa em si mesma contém descanso e
repouso, entáo. o movimento acciona-se de dentro para fora: a mágoa reflexiva rnovirnenta-se para dentro, como se fosse o sangue a refluir da periferia,
e dcixa apenas que a pressintam por via da fugiclía palidez. A magoa reflexiva nao conduz a ncnhuma mudanca csscncial no exterior; apressa-se a ir
para dentro até no prirnciro instante da mágoa. e só um observador mais
cuidadoso presscntc o seu dcsaparccimcnto; mais tarde zclará cuidadosamente para que o scu exterior soja tao pouco notório quanto for possívcl.
é
é
é
é
13 Na pnmeira ediciío «reflekterende»;
i. e .. «reflcxionantc».
Ou
U111 1•··~·1111111111k
\
rd.1
209
Ora, iJO tentar rccolhcr-sc assirn para dentro. lago encontra finalmente
um cercado, um recóndito, onde, em sua opiniáo. pode ficar. e comcca
agora o scu movimcnto unifonnc. Como o péndulo do relógio, oscila assim
para a frente e para tnis, sern conseguir encontrar repouso. Corneca sernpre
do principio, reflecte outra vez, interroga as testcmunhas, coteja e analisa
os diferentes depoimentos, coisa que já fez centenas de vczcs, mas que
nunca chega a dar por concluida. Com o dccorrer do tempo. o uniforme
comporta cm si algo ele ancstesiante. Tal como anestesiam o pingar uniforme da goteira, o girar uniforme da roca de fiar, o sorn monótono que se
propaga quando alguém anda para a frente e para Irás. mcdindo os passos
no andar por cima do nosso, também assim a mágoa reflexiva acaba por
encontrar alívio ncste movirncnto que se torna para cla urna ncccssidadc
como se fosse urna movimeruacílo ilusoria. Surge por tirn um ccrto cquilíbrio, o Impero para 11691 deixar a rnágoa irrompcr cessa, conquanto possa
ter-se exteriorizado urna única vez. o exterior está calmo e tranquilo. e no
mais recóndito do scu pequcno rccanto, vive a mágoa corno um prisioneiro
bcm guardado numa prisño subterránea, ano upós ano gastando a vida no
scu rnovimcnto uniforme. a andar para a frente e para irás no eu reduto.
nunca se cansando de pcrcorrcr o caminho longo ou curto da mágoa.
O que ocasiona a miígoa rcllcxiva pode parcialmente residir na condi9ao
subjectiva do indivíduo. e parcialrncntc na mágoa objectiva ou na ocasiao
da mágoa. Um indivíduo que pade9a de rcílcxao tran-.formará qualquer
mágoa cm mágoa rcllcctida, a sua e. trutura individual e a sua complci9ao
fazem com que lhe scja impossívcl assimilar cm si a mágoa scm ir mais
além. No entanto, é urna coisa doentia, que nao consegue ter particular interesse, pois desta forma qualquer casuaJidade pode 1:.ofrer urna metamorfose através da qual vem a existencia como miígoa rellcctida. O assunto é
outro quando é a mágoa objectiva, ou a ocasifío da mágoa. a gerar a reflexao no próprio indivíduo. fazcndo da mágoa urna mágoa reflectida. É este,
~obretudo, o caso em que a mágoa objectiva nao é dada por conclufda. em
que subsiste urna dúvida, seja qua! for aliás o modo como está constituícla.
Mostra-sc logo aqui no pensament.o uma grande multiplicidade, maior ern
tudo de acordo corn aquilo que um indivíduo viveu e cxpe1ienciou, ou segundo a inclina¡;ao sentida para dar uso a sua perspicácia em tais experiencias. Nao é de modo algum intenr;ao minha percorrer cxaustivamcnte tocia
1.:sta multipliciclade, quero apenas assinalar um lado particular, tal como se
rcvelou a minha observa~ao. Quando a ocasiao de mágoa é uma impostura,
cntao, a própria mágoa objectiva é constitufda de molde a gerar no indivíduo a mágoa reflexiva. Que uma impostura seja realmemc urna impostura,
é rnuitas ve¿es bastante difícil de apurar c. nao obstante, tudo depende discnquanto for quc.;tiom1vel. a mágoa n5o cncontra descanso. antes tem
de cont rnuar u dca111h1rlar para a frente e para trá!> na rcllcxao. Quando além
"º:
211
210
disso esta impostura nao tcm que ver com urna coisa cxtc: 101. llHI'> corn
toda a vida interior de um individue, como ümago mais Intimo da sua vida,
entño, torna-se cada vez maior a probabilidade de persistencia da mágoa
reflexiva. Mas o que poderá decerto ser designado com maior verdade como urna vida de mulher do que o seu amor!"? Por isso, quando a mágoa de
urn amor infeliz tem por fundamento urna impostura, entáo ternos urna
mágoa incondicionalmente
reflcctida, qucr ela se conserve toda a vida. qucr
o individuo a venca. É cerro que o amor infeliz. para urna mulher, constituí
em si e para si a rnágoa rnais profunda, mas daí 11701 nao redunda que todo
o amor infeliz engendre urna mágoa reflectida. Quando assim o amado
morre , ou eta talvcz simplcsmerue nao veja o scu amor correspondido, ou
quando as circunstáncias da vida fazcm da concrcrizacáo do seu dese jo uma
coisa impossívcl , entño, há aqui deceno ocasiño para ha ver mágoa, mas nao
pura urna mágoa reflcctida, excepto se a propria pessoa cm qucstáo estivosse anteriormente docnte, o que a coloca assirn forado nosso intercsse. Ao
invés, se nao cstivcr docnte, cntáo. a sua mágoa toma-se urna mágoa irnediata e, nessa qualidade, poderá pois vira ser objecto de rcpresentacáo artística. ao passo que, para a arte. surge inversamente a impossibilidade de
exprimir e de representar a mágoa reflexiva ou o respectivo fulcro. A mágon imcdiata
dcsignadamcnte a reproducño e a cxprcssño da impressáo da
mágoa. intciramcnte congruentes, a scmelhanca da irnagcrn que Verónica rs
conservou no seu pano de linho, e a escrita sagrada da mágoa fica estampada no seu exterior. beta. clara e legível para todos.
A mágoa reflexiva nao pode. por conseguinte, tornar-se objecto de reprcscntacáo artística; em parte, porque designadarnentc nunca está presente,
antes se encontra continuamente ern devir e, ern parte, porque o exterior, o
visívcl.
indiferente ou vale a mesma coisa. Portante, se a arte nño quiscr
cingir-se
ingcnuidade, da qual se cncontra cxemplos de e. critos antigos,
nos quais apresentuda urna figura que quase pode representar soja quern
for, enquanto, ao invés, se descobre no seu peito urna placa, um coracáo ou
coisa parecida, onde pode lcr-sc ludo. em especial quando a figura torna
urna posicáo que nos guia a atcncáo para isso, e até aponta para lá, um
efeito que tarnbém podía ser bem conseguido escrevendo por cima «é favor
observar»: se nao quiser cingir-: e a ingenuidade, ve-se abrigada a renunciar
é
é
a
é
14 Neste passo, «Kjterlighed»,Ao longo desic capítulo o uso de «Kjterlighed»aplica-se
ao amor das mulhcres aquí ex postas como mulhcrcs enganadas pelos respectivos scdurores. Dado que as ocorréncias de «amor» cnquanto «Kjarlighed» ultrapassam largamente as de «amor» enquanto «Elskov»; doravantc seráo assinaladas 1;:111 nota upenas as
ocorréncias de «Elskov»,
15 De acorde com a tradicño, uma mulhcr de nome Verónica cnxugou o sangue e o
suor de Cristo no caminho do calvário com uma toalha, na qual ficou gravado o rosto
de Jesus.
n apn;scrna~ocs
ncssa dircccuo. e a cntrcgá-lax
para tratarncnto
poético ou
psicológico.
É esta mágoa reflexiva que me proponho por cm relevo. tornando-a pe~ccptívcl em algumas imagens dentro do que possível. Chamo-lhes «SI~
lhuetas». em parte para através da designacáo lembrar desde logo que fui
buscá-las ao lado obscuro da vida e, em parte, porque, tal como aconte_:e
com as silhuctas, nao sao visíveis de forma imediata. Se eu segurar na mao
urna silhucta. nao retiro dela qualqucr imprcssáo, nao consigo obter com
cla nen huma reprcscntacáo propriamcntc dita, so quando a seguro contra a
paredc sem observar agora a ima~em imcdiata. mas sirn o quc.!.e revela na
pnredc, só entáo consigo ve-la. E assim que acontece com a imagcrn que
vou mostrar, urna imagern interior. que só 11711 se torna obs~rvável des~e
que 0 meu olhar penetre profundamente o exterior. O exterior latv:z n~o
tcnha em si nada de notorio, mas só na medida em que o perscruto, so entao
descubro a imagem interior. aqueta que quero mostrar, uma image~11 in.terior demasiado ténue para se tornar visível exteriormente, porque e tec1da
comas mais suaves disposirroes da alma. Se cu olhar urna folha de p~pcl,
1alve1. esta nao possua qualquer particularidade após uma ob. e~va9ao 1mediata; só quando a seguro contra a luz do dia e a olho prolundam~ntc,
descubro, entao, finas imagens interiores, as quais "ªºcomo que demasiado
anímicas para se verem de uma mancira imediata. Fixai pois o vo~so.olhar,
caros tvµna.QavexQwµ.evm, nesta imagem interio~. nao vo~ de1xc~s perturbar pelo exterior, ou antes, nüo scjais vós a cná-lo, po1s con11r1u~ a
afastá-lo para 0 lado, de modo a poder observar me.lhor para den~ro ~lo interior. Porém. nao necessito certamente de encorajar esta assoc1a~ao. da
qual tenho a honra de ser membro, a faze-lo; pob sene.lo cmbora .1ovens,
tcmos idade suficiente para nao nos deixarmos levar ao engano pelo exterior, ou para licarmos parados diante dele. Entao, l~averia de ser u~a es!~ranrra va, aqueta com que me Iisonjeio, se eu acred1tasse que vos d1gnar.1e1s
concc<ler a vossa aten<;Üo a esta imagcm, ou que os meus csfor9os havenam
de vos ser alhcios e indiferentes. e nao cm hannonia com os i~te_resscs .eta
nossa associa\:ao, urna associa9ao que conhece apenas urna pa1xao, dcs1gnaclamente, a simpatia pelo segredo da mágoa. Também nós formamos de
facto uma ordem, também nós de facto nos ausentamos de quando em vez
como cavaleiros errantes pelo mundo fora, cada um segui~do o .seu
nho nao ¡)ara combatermos monstros, ou para ir em auxílJo da 111ocencia,
'
ou para
sermos testados cm aventuras amorosas 16 . Na d a d'1sto no: o~upa.
nem mesmo a última coisa. pois a seta no olhar de urna rnulher nao !ere o
nosso peito empedernido. e o sorriso jovial das al~gres rapari.gas nao no.
move, mas o aceno secreto da mágoa decerto que s1m. Que seJam outros a
é
:~j-
16 No original. «Blskn11s-Eve11tw».
212
!':yir
~·ti 1, lt't
k~guunJ
011
orgulharem-se de nao havcr rapariga em parte alguma capaz. de resistir no
poder do seu amor17, nao os invejamos, flcaríamos orgulhosos se nenhuma
mágoa secreta cscapasse it nossa arencáo, se nenhuma mágoa escondida
fossc tao esquiva. ou tao orgulhosa, que nao nos fossc possível penetrar
triunfalmente no seu mais íntimo refugio: Que Juta havcrá mais perigosa,
que comporte rnais arte e ofereca maior prazcr, algo que nao queríamos
investigar, a nossa escolha está feíta, só amamos a mágoa, só buscamos a
magoa. e onde quer que descubramos a sua pista, segui-la-emos, intrépidos.
inabaláveis, até que cla se manifesté. Equipamo-nos para este combate,
exercitamo-nos ncsta Juta diariamente. E na verdade, a mágoa csgucira-sc
assim chcia de secretismo rodeando o mundo, e só qucm 11721 por cla tem
simpatia acaba por conseguir pressenti-la. Caminha-sc pela rua, cada urna
das casas parecida com a seg u inre , e só o observador ex perimentado presscntc que esta casa por volta da meia-noitc parece completamente diferente. ronda por ali um infeliz que nao encentra rcpouso , sobe as escadas. os
seus passos ecoam na quictudc da noitc. Passamos uns pelos outros na rua,
cada um é parecido com o outro, e este outro com quase toda a gente. e sé
o observador expcricntc prcsscnic que dentro daquela cabcca habita um
locatário que nada tcm que ver com mundo. mas que apenas consomc a
vida solitaria num tranquilo ofício doméstico. É bcm ceno que o exterior
entáo objecto da nossa obscrvacño, mas nao do nosso intercssc: é assim
que o pescador sesenta impcrturbávcl, dirigindo o olhar para o rio, nao se
interessando, porém, pelo rio, mas sim pelos movimentos no fundo. Por
isso. o exterior possuí deceno significacño para nós, porérn, nao como exprcssáo do interior. mas antes como urna informacño telegráfica de que
algo está escondido no interior profundo. Quando se observa um rosto longa e atentamente, encontramos por vezes urna especie de outro rosto dentro
daquele que olhamos. Trata-se cm gcral de um sinal inconfundível de que
a alma esconde um emigrante que se rctirou do exterior para vigiar um tesouro oculto. e o caminho para o movimento da observacáo sugerido
pelo facto de esse rosto parecer estar incluso no outro, o qual dá a entender
que se tem de fazcr cslorco para o penetrar, caso se pretenda dcscobrir alguma coisa. O rosto, que aliás o espelho da alma, assumc aquí urna equivocidadc que nao se deixa representar em arle, e yuc TJa gcneralidade
também se conserva apenas durante um fugaz momento. É preciso um olho
muito proprio para o ver. urn olhar muito proprio para perseguir este indício
indefectivel de urna mágoa secreta. Essc olhar deseja ardentemente, e contudo, é tifo solícito, angustiantc e imperioso, e contudo, tao compadecido,
persistente e insidioso, e cornudo, tao sincero e bern-intencionado, que
embala o indivíduo numa especie de agradável languidez, na qual ele enó
é
é
é
é
é
17 No original, <<Elskovs-Magt».
Ou, lJ111
111.tj'1111•1il(1
de Vitla
213
a volúpia que deleita no esvaimcnto cm sanguc. O presente está esquccido, o exterior. rasgado,
o passado está ressuscitado, o sopro da mágoa, aplacado. Quem sente mágoa encentra alivio, e o simpatético cavaleiro da mágoa alegra-se por ter
encontrado o que buscava, pois o que buscamos nao é de todo o presente,
mas o passado, nao a alegria, pois ela está sempre presente, mas a magoa.
já que a sua csséncia é passar e. no instante do tempo presente, a vemos
11731 apenas como quem ve um homem, quando os olhos apenas o captam
no preciso momento cm que vira para outru rua e desaparece.
Nao obstante, a mágoa esconde-se por vez.es ainda melhor, e o exterior
nada deixa pressentfr, ncm mesmo o que ínfimo for. Durante bastante tempo
pode passar despercebido a nossa aten9fío, mas se casualmente um trejeito,
urna palavra, um suspiro, um tom na voz, um sinal. no olhar, um trcmor nos
láhios, lllll falso agarrar 11() aperto de maos, pe1fidamentc atraii;oarcm o que
fora escondido com o máximo cuidado, despe1ta entao a paixao, come9a
entíío a lula. Importa agora usar de vigilancia, de persevernn((a e de argúcia;
pois quem será 1.odavia tao engenhoso como a rnágoa solitária. embora um
solitário prisionciro perpétuo tenha lambém bastante tempo para conccber
muita coisa, e qucm será tao !esto a esconder-se como a mágoa solit.íiria;
pois nenhuma jQvcm rapariga consegue esconder com maior angústia e
pressa o scio que havia posto a descoberto do que a mágoa escondida ao ser
surprecndi.da. F,x igc-se en tao urna inlrcpidel'. inabalável, pois luta-sc contra
um Prot.eu 18, que tcm de dar-se por vencido quando simplesmente se persevera e, por mais que ~1 scmclhan9a desse tritao asswna qualquer figura para
se cscapulir. contorcendo-sc na nossa mao como urna cobra, apavorando-nos com o rugido de um lcíio, transformando-se numa árvore cujas folhas
sussurram, ou em água revolla, ou cm fogo crepitante, porém, por últin10,
tem aünal de augurar e. por último. a mágoa tem de manifestar-se. Vede,
estas aventuras sao dese jo nosso, passatcmpo nosso, e lan9armo-nos nclas é
a nossa rcgra de cavalaria; ora, com tal firn, erguemo-nos a meio da noile
contra urna volupia ao verter a sua rnágoa, semelhante
é
l 8 Na mitología grega. Proteu era tilho dos tita5 Tétis e Oceano, ou aim.la de Posíclon.
Tinha o dom da prerno11ic;:ao, mas resguarda.va-se, fugi11do de quem o procurassc, ou
metamorfoseava-sc, exig:imlo entao coragem por pmtc dos que lhe pedissem augúrios.
Vd. Odissda, can lo t V. vv. 450-459: «Ao meio-dia ernergiu o vclho do mar, que ali
e11controu ! as gordas focas: verificou todas e contou-lhcs o número.! Contou-nos lambém a nós como focas, sem suspcitar i que havia algum dolo, em seguida, dcii.ou-se. i
Atirárno-110~ entiío a ele com urn grito e segurámo-lo i com as miíos; mas o Velho nao
se csqueceu das artimanhas: i transformou-se primeiro num lciiobarbudo; i depois 11urna
serpente. m1m leopardoe num enorme javali; i dcpois cm água molhada e numa árvorc
de altas folhas. / ;-.rós segurámo-lo com persisténcia, de espírit.o paciente>>, in Homero.
Odisseia, tradu9fio de Frederico Lourenc;:o, Lisboa: Livros Cotovia. 2003. pp. 78-79.
Doravante. esta tradu9ao é referida como Odisseia.
214
Ou
como salteadores 19, por isso, ludo ousarnos, pois que nenhuma paixrro bravía como a paixáo da simpatía. E nao necessitarnos de temer que nos Ialtern
aventuras, mas sim de deparar com resistencia, demasiado dura e impenetrável, pois tal como acontece no que contamos naturalistas, os quais, ao fazcr
saltar blocos de granito que desafiararn os séculos, encontrararn dentro do
seu interior um animal vivo que havia salvo a sua vida sem ser descoberto,
também certarnente seria possível havcr homens cujo exterior fosse urna
montanha firme como urna rocha, guardando urna vida de mágoa eternamente escondida. E contudo, isto nao irá moderar a nossa paixño ou esfriar
o nosso zclo, pelo contrario. irá inflamá-Io; pois que a nossa paixáo nao é ele
todo curiosidadc que se satisfaca corn o exterior ou corn o superficial; é
antes urna angustia simpatética que sonda os rins20 e os pcnsamcnros ocultos;
e por rneio de magia e de esconjuro convoca o oculto, mesmo aquelc que a
rnortc arrancou do nosso olhar. Conta-se que antes da batalha Saul, disfarcado. aproximou-se de urna vidente exigindo que lhe mostrasse a imagern
de Sarnuel. Nao era com toda a certeza mera curiosidade, aquilo que 11741 o
impelia, nao era o dcsejo de ver a imagem visívcl de Samuel-', quería antes
experimentar o seu pcnsamcnto, e espcrou com certeza cm desassossego até
ouvir a voz condenatoria do severo juiz. Tambérn assirn nao se tratará apenas de mera curiosidadc a mover um ou outro de entre vós, caros
LVµrt<XQClVeXQU>f.lliVOL, a observar as irnagens que vos aprcsentarci. Ernbora
cu designadarnente as designe através de determinados nomes poéticos, nao
deve por via disso ficar sugerido que se trata de meras figuras poéticas que
surgcm diante de vós; os nemes tórn antes de ser tomados como nomina
é
19 Como em Horácio, Fpütolarwn [Epístolas], livro 1, 2, v. 32: «Ut i11g11/ent lw111i11es,
.n1rgu111 de 110cte latrmies»; edi9ao consultada pelo autor: Q. Horatii F!acti opera
!Obras de Q. Horácio l'Jaco¡, Lcipzig, 1828: vol. 11, p. 187. Na traduyao de António
Lui:1. de Seabra: «Alta noitc o ladrao ímprobo se crgue /A fim de apunhalar um dcsgrac,:ado». in Satyras e epistolas por Q11i1110 Horacio Ffacco. traduzidas e annotadas por
António Luiz de Scabra, Porto: Casa de Cruz Coutiuho, 1846, p. 10.
20 Vd. Jercmias, 20: 11: «Mas, ó Senhor dos Exércitos. Justo Juir., que provas os rins e
o conu,:iío. veja cu a tua vingan9a sobre eles: pois a ti descobri a minha causa»; e também Apocalipse, 2:23: «E ferirei de morte os scus filhos. e todas as igrejas saberao que
eu sou aquele que sonda os rins e os corn90es; e darei a cada um de vós segundo as
vossas obras.»
21 Vd. o episódio cm que Saul consulta a pitonisa de Endor. narrado no Primeiro Livro
de Samuel, 28:4-18. em especial, 11-14: <<A mulher. en tao, Jhe dissc: A qucm te farei
subir? E disse ele: Faze-me subir a Samuel. í Vemlo. pois. a mulher a Samuel, gritou cm
afta voz, e a mulher falou a Saul. dizendo: Por que me tens enganado? Pois tu mesmo
és Saul. /E o rei lhc disse: Nao temas. porém, que é o que ves? Ent1ío a mulber disse a
Saul: Vejo deuses que sobcm da terra. / E ele lhc disse: Como é a sua figura? E disse
eta: Vem subindo urn hornem anciao, e está envolto numa capa. Entendendo Saul que
era Samuel. inclinou-se como rosto em terra, e se prostrou.»
Ou,
U111 h,1¡111111110
215
tk Vitla
oppe/lotivo)J., e pelo mcu lado nada haverá que impeca urn ou outro de vós
de vira sucumbir
rcntacáo de dar um outro nome a uma das imagcns, um
nome rnais querido, ou o nome que porventura lhes pareca mais obvio.
u
1. Marie Beaumarchais23
Aprendemos a conhecer esta rapariga em Clavigo de Goethe24, obra a
qua! ficarnos ligados apenas para a seguir um pouco mais adiantc no tempo,
quando perdeu o interesse dramático, quando progressivamente abrandararn as consequéncias. Continuemos a segui-la, já que n6s, cavaleiros da
simpatia, ternos tanto o dom inato como a capacidade adquirida de, em
procissño, acompanhar a passo a mágoa. A sua história é breve; Clavigo
prometcu dcsposá-la, Clavigo abandonou-a. Esta inforrnacáo
suficiente
para qucm costurna observar os fenómenos da vicia como se observa raridades nurn gabinete de artes: quanto mais diminuto tanto rnelhor, tanto
mais se acaba por ver. Da mesma maneira. pode tarnbém contar-se de forma
muito sucinta que Tántalo tem sede e que Sísifo faz rolar urna pcdra por
u ma montanha aci ma25. Em caso de grande pressa, acabaría por redundar
é
22 Em latim no original: «nemes comuus».
23 Maric Bcaumarchais, pcrsonagcm principal de Clavigo tic Gocthc. Vd. nota seguintc.
24 Clavigo, l::i11 Truuerspiel, tragédia de Goethe em cinco actos de 1774. buscada em
acoruccimcnros rcais, Mnric Bcaurnarchais era irrnñ de Pierre Augusto Caron de Bcaumarcháis ( 1732-1799), e toi duas vezes abandonada por Clavijo y fajardo ( 1726-1806).
Em Gocthc, o tratarncnto 1 ircrário apresen la desvíos acentuados, visto que, na vida real,
nem Marie morre de amor, nem o seu irmño mata Clavigo. Edi9ao consultada pelo autor: Clavigo, in J. W. Goethc. Goethe's Werke, vollsuindig« Ausgabe letzter Hand
[Obras de O .. Edi9ao Completa na Última Revisan], vols. f-LX. Estugarda, Tübingen,
1828-1842; vol. X. pp. 49-124. Vd. tambérn Clavigo, in J. W. Gocrhc, Goethes Werke.
Hamburger Ausgabe lObras de G., Edi91ío de Hamburgo]. vols. I-XIV. Hamburgo:
Christian Wcgncr, 1948-1960: vol. IV (Dm111ntische Dicht1111gen. Zweiter Band IPocmai; Dramáticos. Segundo Yolume]), 1953, pp. 260-306. Doravante a obra é referida
como Clavigo, seguido de Werke e l/amburger Ausgabe para a.~ duas cdic,:oes, respcclivamente.
25 A forma sucinta cxcmplificada nao tem ohviamente em conla, mais do que a extens1ío dos respectivos passos na Odisseia, a dimensao mítica dos episódios; vd. Canto XI,
vv. 582-600: <<Vi TiintaJo a sofrcr grandes l.onncntos, I em pé num lago: a água chegava·lhe ao queixo. / Estava cheio de sede, mas nao tinha maneira de beber:/ cada vez que
o anciao se haixava para hcbcr, /a água dcsaparccia, sugada, e cm volta dos seus pés !
aparecía terra negra. pois um deus tudo secava. / Havia árvorcs altas e frondosas que
clcixavam pender seus frutos,/ peras, romas e macieiras de frutos resplandecentes; /
doces figos e azeitonas luxuriantes. I Mas quando o anci1ío estendia as maos para os
frutos, I arrebatava-os o ven[() para as nuvens sombrías. / Vi Sísifo a sofrer grandes
tormentos,/ tenninclo lcvar11nr com ns maos uma pcdra monstruosa.! Fsfon,:ando-sc por
216
Ot1
em demora alongarmo-nos no assunto. dado que nño se rica a saber mais
do que aquilo que já se sabe, e que é o todo. O que trará urna exigencia de
rnaior atencáo tcrá de ser <le urna outra espécie. Reunidos a volta da mesa
de chá cm íntimo convívio, o samovar aproxima-se do firn, a dona da casa
pcde ao enigmático estranho que alivie o coracño, manda vir água acucarada e compota para essa finalidade, e corneca ele agora: «é urna historia
multo comprida». É assim que se passa nos romances. e também aí se trata
de urna coisa completamente diferente: urna historia muito comprida 11751
e um anunciozito tao breve. Se, para Marie Beaumarchais, se trata de urna
historia breve, é urna outra questáo; por muis que se saiba que nao é comprida, pois urna historia comprida tem todavia urna extensáo rncnsurávcl,
por vezcs urna história breve tern, ao invés, urna qualidadc enigmática, a de
ser mais longa do que a mais comprida das historias, aposar da sua brevidade.
No acirna cxposto, já comentei como a mágoa reflexiva nao fica visível
no exterior, ou seja, encontra nele a sua cxprcssáo bela e repousante. O
desassossego interior nao permite esta transparencia, o exterior prcfere ser
consumido desse modo e, fossc ele Ca$O de o interior haver de declarar-se
no exterior, seria prcfcrcncialrnentc por meio de uma certa morbidez, a qual
nunca pode tornar-se objecto de representacáo artística, visto nao possuir o
interesse do belo. Goethe sugcriu isto corn alguns indicios particulares-",
Ora mesmo que se concordassc com a justeza desra observacño. cntño,
poder-se-ia ficar tentado a tomá-la por algo de casual e só quando nos convencéssernos, através de urna avaliacáo em tennos puramente estéticos e
poéticos, de que aquilo que a observacáo dá a conheccr icm verdade estética, só cntáo se atingiria a consciencia mais profunda. Ora se cu imaginasse urna mágoa rcflectida e perguntassc se nao se dcixaria representar em
arte, cntáo, ficaria dernonstrado desde logo que o exterior completamente
casual ern relacño a mágoa; mas se isto for verdadeiro, entño, renuncia-se
ao belo artístico. Se a mágoa é grande ou pequena, significativa ou insignificante, bela ou menos bcla, ludo isto é indiferente; avaliar se seria mais
acertado deixar a cabcca muis inclinada para um lado do que para o outro ,
ou antes para o chao, deixar que o olhar se fixasse, melancólico, ou se eravasse no chao, nostálgico; coisas destas sao completamente indiferentes,
nao há urna que exprima a mágoa reflexiva mais adcquadarneute do que a
curra. Em courparacuo
é
empurrar com as rnaos e com os pés, ! conseguia levá-la até ao rnme do monte: mas
quando i ia a chcgar ao ponto mais alto. o pesu fazia-a rcgrcdir, /e rola va para a planície a pedra sem vergonha. / Ele csfor~ava-se de novo para a empurrar: dos se11s memhros / escotT.ia o suor: e poeira da sua cabe\(a se elevava>>, in Odisseia, pp. 196-197.
26 C/avigu. Acto 1, cena 2, in Werke, vol. X. pp. 59-60; Hwnburger Ausgabe, vol. IV.
pp. 263-267.
Ou,
IJ111l111¡•111111111
21 ·1
<il' V1dt1
como interior. o exterior tornou-sc insignificante, e
postulado na indifcrcuca. Na mágoa reflexiva. o fulcro reside no facto de a
mágoa procurar continuamente o seu objecto, constituindo esta busca o
dcsassosscgo da mágoa e a sua vida. Mas esta busca urna flutuacáo constanto e, se o exterior fosse em cada momento urna perfcira expressáo do
interior, entáo, para representar a mágoa reflexiva, tcria ele dispor-se de
urna completa sucessáo de imagens; mas ncnhuma irnagcm singular exprimiria a mágoa, e ncnhuma imagcrn singular obteria propriarnente valor
artísrico. pois nao seria bcla. mas vcrdadeira. Estas imagens teriam de ser
observadas tal como se observa o ponteiro dos segundos num relógio; nao
se ve o mecanismo, mas o movimento interior é continuamente exteriorizado pelo facto de o exterior 11761 continuamente se modificar. Mas esta
mutabilidadc nao pode ser representada em arte e, no entanto, é este o fulcro de toda a questáo. Quando o amor infeliz encontra assim fundamento
na impostura. a dore o sofrirnento sao tais, que a mágoa nao capaz, de
encontrar o seu objecto. Confirmada a impostura, e rendo o visado inteligido que se trata de urna impostura, cntáo, ceno que a mágoa nao termina,
trarar-se-á porérn ncssc caso ele urna mágoa imcdiata, e nao de urna rnágoa
rctlectida. Torna-se fácil ver a dificuldade dialéctica, pois de que coisa
sentirá ola mágoa? Se ele fosse um impostor, entño, o facto de ele a ter
abandonado teria devoras sido benéfico, e quanto mais cedo tanto melhor;
ela haveria de preferir encontrar nisso alegria e havcria de sentir rnágoa
pelo facto de o ter amado; e cornudo, ele ter sido um impostor urna mágoa
profunda. Mas isto, se bcm que seja urna impostura,
o desassossego no
perpetuum mobi!e27 da mágoa. Procluzir urna certeza para o facto exterior
de urna impostura ser urna impostura já bastante difícil e, contudo, dcssa
maneira nem se dá o assunto de modo algum por encerrado, ncm o movimento por parado. Para o amor, uma ímpostura é designadamenle um paradoxo absoluto, encerrando-se no parndoxo a necessidade de urna mágoa
retlectida. Os diferentes factores do amor poderiam ser articulados no indivícluo singular de modos muilíssimo diferentes e, sendo assim, o amor de
um nao poderia ser o mesmo que o amor de outro; pode prevalecer mais o
egoísta. ou o simpatético; mas seja lá como for o amor, tanto nos seus momentos singulares como na sua totalidade, uma impostura é um paradoxo
que o amor nao consegue pensar, e no qual acabará, contudo, por pensar.
Quer fosse o amor egoísta a estar absolutamente presente, ou o simpatético,
o paradoxo ficava assim elimfaado, isto é, por forc;:a do absoluto o indivíé
é
é
é
é
é
27 Em latim no original: «moto contínuo». O termo aplica-se a hipotéticas máquinas de
movimento que usam a energía procluzicla por elas próprias. Diz-se igualmcnlc de u111a
pci;;a musical que se caracteriza l)Or um !luxo contínuo de notas fixa~. habitualmente
cadcnciadas com tempo rápido.
218
Ou
duo está para além da rcílcxño , nao pcnsa ccrtamcnrc 110 paradoxo no
sentido cm que é eliminado por meio de urn como-da-rcllexao, antes é
salvo precisamente por via de nao pensar nelc, nao se preocupa com as
trabalhosas explicacóes ou confus6es da reflexáo, repousa em si mesmo.
Por causa do seu orgulho, o amor egoístamente orgulhoso considera que a
impostura é irnpossível, nao se preocupa em chegar a saber o que é possível
dizer a favor ou contra, tal como o visado pode defender-se ou dcsculpar-sc. tcrn absoluta certeza porque é demasiado orgulhoso para acreditar que
alguém haveria de ter a ousadia de Icvá-lo ao cngano. O amor simpatético
possui a fé capa/ de mover montanhas-". para ele qualquer defesa nada é
em comparacíío corn a inabalável conviccáo que possui de que nao se rratava de impostura ncnhuma, qualquer acusacáo nada prova contra o intcrcessor que explica nao se tratar de urna impostura, explicando-o nao de um
ou de outro modo, mas 11771 cm absoluto. Mas na vida, ve-se um amor
dcstes raramente, ou ralvcz nunca. Ern gcral, o amor conrérn cm si ambos
os momentos, e estos colocam-no cm rcl<u;ao com o paradoxo. Nos dois
casos descritos, o paradoxo tambérn se d;í cortamente no amor. mas nao lhe
diz rcspcito: no último ca o, o paradoxo dá-sc no amor. O paradoxo é impcn ·Ctvcl c. cornudo. o amor pensará ncle c. de acorde com os diferentes
factores momentaneamente presentes, aproxima-se muitas vezes ele um
modo coruraditório ele nclc pensar. mas nüo conscguc íazé-lo. Este rumo do
pcn ... amento infinito e ·ó termina quando o indivíduo rompe com ele arbitrariamente, ao fazer aplicar urna outra coba, urna deterrninacño da vontade, mas dessa rnaneira o inclivfduo singular fica sujeito a determinacñcs
éticas. e nao nos diz respeito do ponto de vista estético. Airavés de urna
decisño, alcanca aquilo que nao conseguc atingir scguindo o caminho da
reflexño: fim, repouso.
é
lsto é válido para qualqucr amor infcli« cujo fundamento scja urna impostura; aquilo que cm Mario Beaurnarchais terá de Iuzer surgir a mágoa
reflexiva ainda mais é o facto de ser um noivado que se rompeu. Um noivado é urna possibilidade, nflo urna rcalidade. mas exactamente por ser
apenas urna possibilidade pode parecer que nao produz um efeito tao forre
quando se rompe, que se torna bastante mais fácil para o indivíduo suportar
este golpe. Por vezes. é certamente possfvel que scja este o caso: mas. por
outro lado, a reflexáo fica tentada a avancar rnuito mais, dacia a circunstñncia de ser semente urna possibilidade que é dcstrufda, Quando a rcalidadc
se rompe, en tao, o rompimcnto é cm gcral muito mais drástico. cada nervo
é cortado e o rompirncnto, cnquanto rompimcnto. conserva urna completude crn si mesmo: quando urna possibilidade se rompe. entáo, a dor instantánca talvez nao seja tao grande, mas tambérn deixa multas vezes atrás de
28 Vd. nota 85 no capitulo «Dlapsalmata»,
011
l
111 h.11•1111
11111
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d1 \ 111.1
si urn ou out ro pcqucno ligamento intciro ou incólume, o qual passa a ser
ocasiño constante de dor instalada. A possibilidade dcstrufda rnostra-se
transfigurada numa possibilidade mais elevada, ao passo que a tentacño de
criar por magia urna nova possibilidadc dessc tipo nao é tao grande, quando
se trata de uma rcalidadc que se rompe, porque a rcalidade eleva-se mais
alto do que a possibilidadc.
Ora Clavigo abandonou-a. anulou pcrfidarnente a relacáo. l labituada a
repousar nele, quando ele a alasta ele si, nao tem forcas para se sustcr e caí
desfalecida nos bracos dos que a acornpanham. Parece ter acontecido assim
com Maric. Também aliás imaginável urn outro corncco, pode imaginar-se que logo no prirnciro instante eta teve íorca 11781 suficiente para transformar a mágoa cm mágoa rcfleciida , e que Ioi cla, ou para evitar a humilha9ao ele ouvir os curros dizcr que cla tinha sido cnganadu. ou porque o
e rirnava tanto que lhl: causaría mal ouvi-lo ser insultado vc1.cs scm conla
por ser impostor. a quebrar prontamente qualquer liga9ao comos omros, de
modo a consumir a mágoa dentro de si me. ma e a con~umir-se a si mesma
na mágoa. Sigamos Gocthc. Os que a rodciarn niio dcixam de compadecer-se. scntcm com cla a sua dor. e levados pelo scntimento dizem: vai ser a
mortc dela. Falando agora de urna perspectiva estética, isto está pois perfcitamcnte cerio. U m amor infeliz pode ser de um tal carácl.cr que o -;u icícl io
terá de ser considerndo certo do ponto de vista estético, 111as nao tcrá cntao
de ter urna impostura por fundamento. Se ro~sc este o caso, entao, o '>uicídio pcrderia todo o ~ublime e conteria uma conccs. aoque o orgulho terá de
proibir que scja concedida. Se ela pelo contrário acabar por morrcr, cntao,
será idcntico a ter sido ele a matá-la. fo.ta expressao está em perfcita harmonia como forte movimcnto interior dentro de !>i me-;ma. cela cncontra
alívio nis<,o. Ma-; a vida nem scmpre seguc escrupulo!.amente as catcgoriac;
estéticas, nem sempre obedect:
normalividade estética, e ela nao morrc.
Perantt: i-.to. os que a rodeiam ficam em apuros. Senlem que nao é praticável continuar a repetir garantidamcnte qul: Maric morrcrá, quando cla permanece cm vida; além disso. nao pensam reunir condic;0cs para se pronunciarem com a mesma cncrgia patética tal como no início, e havia todavia
sido esta a condi9ao para que houvcsse de haver alguma consoln\fto para
cla. Mudam pois de método. Ele era um velhaco. di7cm-lhe. um impostor,
um homem execrável. nao valia a pena morrer por ele; csquecc-o. nao pcnses mais nisso, foi me~mo tau-<>omentc um noivado, apaga este acontecimento da tua recorda9ao. e vol tas novamcnte a ser jovem. capa1 de ter esperanr;a outra vez. lsto inflama-a. pois o patlios da ira entra em harmonia
com as suas outras disposi96cs interiorn~. o orgulho fica saciado com o
pensamcnto vingativo ele transformar rudo aquilo em nada, nao era por ele
-;cr alguém cxtraordinário que o amara. long.e disso. ela vira rnuilo bem
...cu~ dcfeitos. ma<. acredita' a que ele era um bom homcm. um homcm fiel,
é
a
º"
220
221
por isso o amara, fora por cornpaixáo e, por isso. vai ser r:ícil csquccé-lo,
pois ela nunca dele teve necessidade. Marie e os que a rodciarn esiño outra
vez em uníssono e o dueto entre eles corre oprirnamcntc. Pensar que Cluvigo era urn impostor nao se afigura aos seus acornpanhantcs como difícil:
pois nunca o amaram e, assim sendo, 11791 nao se trata de paradoxo nenhum
e, conquanto talvez o estimassern (algo que Goethe sugere em relacáo a
irma29), esse interesse torna-se precisamente urna arma contra ele, e a benevolencia, que porvcntura era um pouco mais do que benevolencia, torna-se excelente materia inflamável para alimentar as chamas do ódio. Apagar
a recordacáo de Clavigo tarnbérn nao se afigura corno difícil para os scus
acornpanhantcs. e, por isso, exigem que Marie faca o mesmo. O orgulho
dela irrompc cm ódio, os que a rodeiam espevitam-no , Mario dcsabafa com
palavras forres e comas animosas intcncócs vigorosas com que se embriaga. Alcgrarn-se os que a acompanham. Nao rcpararn naquilo que nem sequer ela própria quer confessar para si, nao repararn que no instante seguinte fica esgotada e fraca, nao rcparam no pressentirncnto angustiante que
dela se apodera, nao rcpararn que a Jorca que ela naquele instante possui
urna desilusáo. Esconde-o cuidadosamente e a ninguém o confessa. Os que
a rodeiam insistcm com éxito nos seus exerclcios teóricos, mas cornccarn
entretanto a querer vestigios de efeitos práticos. Mas éstes iardam. Continuarn a acirrá-la. as palavras dela denunciarn forca interior. e surge-Ihes
rodavia a suspeita de que as coisas nao estilo a bater cerro. Impacientam-sc,
arriscam o máximo, pcrscgucrn a pista da troca, a seu lado, para a desemboscar. É demasiado tarde. Está instalado o mau entendirncnto. Para os seus
acompanhantcs, o facto ele ele ter siclo impostor nao constitui hurnilhacño,
mas deceno que
assim para Mario. A vinganca que lhe é oferecida,
dcsprczá-lo. nao traz porém realmente muita signilicacáo, visto que, para
assim ser, ele teria ele arná-la, mas nao [oi devoras isso o que ele fez, e o
desprezo ele Marie tornou-sc assim urna ordern de pagamento que ninguérn
honra. Por outro lado, ser ele impostor nada tem de doloroso para qucrn a
rocleia, mas para Marie cortamente que sim e, entretanto. ele nern sequcr
tem falta ele um defensor no íntimo dela. Ela sente que foi demasiado longe,
deixou que prcsscntissern nela urna forca que nao está na sua posse. e nao
quer admiti-lo. E que consolo haverá tambérn em dcsprczar? Entáo, melhor
será sentir mágoa. Além disso, possuirá porventura um ou outro bilhete
secreto, de grande significacáo para a explicacáo do texto, mascujo teor
de ordern a poder simultaneamente colocá-Io sob urna luz mais favorável
ou mais desfavorável, de acordo comas circunstancias. E contudo, a ninguém ela o conficlenciou, e a ninguérn quer confidenciar, pois se ele nao
é
é
Iosse urn impostor, scriu nré conccbívcl que se arrepcndcsse do passo que
dcra e voliassc atrás. ou, o que seria ainda mais magnífico, talvez ele nem
ncccssirassc ele arrepender-se, e conseguisse justificar-se em absoluto, ou
explicar rudo, e constituiría entáo 11801 porventura urna afronta se cla tivesse feíto uso disso, nao seria possível restabcleccr a antiga rclacáo, e seria
por sua própria culpa, pois fora ela quern teria arranjado confidentes para o
rnais secreto crescimcnto do amor dele; e se cla conscguisse realmente
convencer-se de que ele era impostor, cntáo, para ela rudo valeria de facto
o mesmo e, em qualquer dos casos, seria todavía mais bonito da sua parte
nao íazcr uso disso.
Ora, assim que. contra sua vontade, os seus acompanhantes vieram em
auxílio do desenvolvimento de urna nova paixáo, o ciúme da sua própria
mágoa. A decisáo dela está tornada, scntc-sc nos scus acompanhantes, cm
tocios os sentidos, a falta de energia para estar de harmonia com a sua paixño - Marie recebe o véu; nao entra no convento, mas recebe o véu da
mágoa que a c~condc de qualquer olhar alheio. O seu exterior está tranquilo, Lucio rica csquecido, o scu discurso nada deixa pressentir, dirige os votos
da mágoa a si mesma. e comec,;a agora a sua solitária vida oculta. No mesmo instm1te, tudo fica transformado; antigamente tinha para si como possível !'alar comos outros, mas nao se limita agora a estar amarrada aos votos
ele silencio, extorquidos pelo seu orgulho com o consentimento do seu
amor, ou exigidos pelo seu amor e aprovados pelo orgulho. porém. nao
sabe agora de todo por onde come<;ar, ou como come9ar, nao porque tenha111 surgido momentos novos. mas porque a reflexao triunfou. Ora se
alguém lhe perguntasse ele que coisa ela sentia mágoa, nada tcria para responder, ou entao. respondería do mc~mo rnodo que aquclc sábio30• a qucm
perguntaram que eoisa era a religiao, e que pediu tempo para pensar e mais
tempo a:incla para pensar, continuando assim a dcver resposta. Marie está
agora perdida para o mundo, perdida para os que a rodeiam, emparedada
em vida; fecha a última abertura com nostalgia, sente neste instante que
talvez fosse ainda possível manifestar-se. no instante seguinte fica afastada
deles para sempre. Nao obstante. está decidido, inabalavelmente decidido,
e nao necessita de temer corno aquelc que vivia ernparedado ao ver csgotar-se a magra ra9ao de pao e água que lhc l'oi dada, na.o sucumbirá, pois t.cm
alimento para muito tempo, nao nccessita de temer o tédio, tcm mesmo
é
é
29 Cluvigo, Acto 111, cena 1, in Werke,vol. X, p. 83; Hamhurger Ausgahe, vol. IV. pp.
280-281.
30 Simónides de Ceos (c. 556-c. 467 a. C.). famoso pelos seus epigramas. Vd. Cícero,
De 11awra deorwn l Da Nanire7.a dos Deuses], Livro l. XXI, 60. Edi):iio consultada pelo
autor: M. Tullii Ciceronis opera 01nnia [Obras Completas de M. Túlio CíceroJ, vols.
1-IV e índex, e<li<,:ao de Johann August Ernesti, Jlallc. 1756-1757: vol. IV. pp. 487-488.
Ern poitugues: Cícero, Da nawrez,a dos deuses. introdu):iío, tradrn,:ao e notas de Pedro
Braga Falcao. rcvisiío de Al ice Araújo, Lisboa: Vega. 2004. p. 41.
222
Ou
multo com que se ocupar. O scu interior está tranquilo e calmo, nada tcrn
de notorio e, no entanto, o seu interior nao a esséncia incorruptível de um
espirito tranquilo:", mas a actividade estéril de um espírito inquieto. Procura a solidáo ou o contrario. Em solidáo , repousa do esforco sempre despendido ao impor ao seu 11811 exterior urna determinada forma. Tal como
aquele que, tendo permanecido durante muito tempo em pé ou sentado em
posicáo forcada, alonga o corpo com volúpia e, como um ramo que há
muito vcrgado pela rorca, ao romper-se a amarra, retoma de novo com
gáudio a sua posicáo natural, assim ela encentra refrigerio. Ou, por contraste, procura ruido, divcrsáo, pois cnquanto a atencáo de todos se dirigir para
outras coisas, pode asseguradamente ocupar-se de si propria: e o que acontece ali a sua volta, os sons da música. as conversas ruidosas, soa tao distante que lhe parece estar num pequeno quarto só para ela, afasrada de tocio
o mundo. E se porventura nao conseguir reter as lágrimas. entño, terá a
certeza de ser mal entendida, ficará porvenrura debulhada cm lágrimas:
pois quando se vive cm ecclesia pressa32, scntc-sc urna legítima alegria
pelo facto de o ritual religioso de um individuo estar cm conforrnidadc corn
o ritual público no modo de cxtcriorizacño. Apenas recela a convivencia
mais tranquila, pois ncla fica menos sujeita il desatencáo, é tao fácil cometer um deslize, e tao dificil evitar que nele nao reparern.
Por rora. nada h<í pois a observar, por dentro, h{i todavía intensa actividado. Dccorrc aquí urn irncrrogatório que pode. com todo o dircito e com
especial énfase. ser chamado urna acareacño embaracosa; tudo trazido e
escrupulosamente poste ~t prava, a sua figura, a sua expressáo, a sua voz,
as suas palavras. Devern ter sido poucas as vezes em que um juiz instrutor
de urna acareacño deste tipo, cativado pela beleza da acusada, tenha ínterrompido o interrogatório, por nao se encontrar ern condicóes de prosseguir.
O tribunal espera com expectativa o resultado do scu imcrrogatório, que
tarda cm chcgar, e tal nao llca, contudo, a dcvcr-se ao facto de o juiz ter
fallado ~1s suas obrigacócs; o carccrciro pude tcstcmunhar que ele comparece todas as noitcs, que lhc entrega o acusado, que o interrogatório dura
varias horas, que nao houve no seu tempo um juiz tao perseverante quanto
este. O tribunal retira daí a conclusño de que este terá de ser um caso muito intrincado. É assim que acontece cometa, nao urna única vez. mas urna
vez atrás da outra. Todas as coisas sao apresentadas tal e qua! se passaram,
de urna maneira fidedigna, o que exige justica e - amor. O acusado é citado, «ei-lo que chega, vira a esquina, abre o portáo da cerca, vede como se
aprcssa, tevc saudades minhas, dir-sc-ia que pos tudo de lado na impaciéné
é
31 Vd. I Pedro, 3:4: «Mas o homem encoberto no conu;:ao, no incorruptível traje de urr1
cspírito manso e quieto. que é precioso <liante de Deus.»
32 Em latim no original: «igreja perseguida».
Ou. Uru 1•111¡•111111111
¡I¡•
22:1
Vklu
cia ele vir ter comigo o mais dcprcssa possfvel, ouco-lhc a rápida passada,
rnais rápida do que o bater do meu coracáo. ei-lo que chcga , é ele» - e o
interrogatório - é adiado.
«Dcus altíssirno, essa pequena palavra que tantas vezcs repetí para mirn
mesma. 11821 recordando-a entre tantas outras, sern que nunca tivcsse feito
reparo no que propriamente aí se ocultava. Sim, tudo explica, nao era seu
propósito sério deixar-me , ele está de volta. O que pode o mundo inteiro
contra esta pcqucna palavra, as pessoas cansaram-sc ele mim, nao tcnho um
amigo sequer, mas tenho agora um amigo, um confidente, urna palavrinha
que tudo explica - ele está de volta, nao baixa os olhos , olha-rnc meio a
ralbar e diz: ó tu, ele pouca fé33, e essa palavra baila nos scus lábios como
urna folha de oliveira34 - ele está ali» - e o interrogatório é adiado.
Tendo cm conta tais circunstancias, é pcrfcitamente natural considerar-se que o pronunciarncnto de um juízo está scmprc ligado a grandes dificuldades. É evidente que urna jovem nao jurista, mas já náo é de tocio evidente que ela nao possa pronunciar um juízo, e contudo , o juízo desta
jovem rapariga será sernprc de tal carácter que. sondo a primcira vista um
juízo, contérn simultaneamcntc algo mais que mostra nüo ser um jufzo,
mostrando em simultaneo que no instante seguinte pode vira ser pronunciado um jufzo totalmente contrário. «Ele nao era impostor nenhum. pois
para que houvesse de ser tal, teria de estar consciente clisso logo desde o
comc90; mas ele nao estava. diz-mo o cora9ao, ele amou-mC.)) Quando
assim se reafirma o conceito de impostor, bcm feitas as contas, talvez até
nunca tcnha havido um impostor. Clibá-lo com este fundamento revela um
intcressc pelo acusado que nao pode subsistir com rigorosa justic;,:a, e que
também nao resiste a urna única objec9ao. «Era um impostor, um homem
abominável, frio e sem eora9ao, deu-me uma infelicidade scm limites. Antes de o conhecer, vivía satisfeita. Sim. é verdadc, nao fazia a menor idcia
de que poderia vira ser tao feliz, ou de que havia uma riqueza tal na alegria
como essa que ele me deu a conhecec mas também nao fazia a menor idcia
de que poderia vira ser tao infeliz quanto ele me deu a conhecer. Por isso,
hei-de odiá-lo, abominá-lo, amaldi9oá-lo. Sim, Clavigo, maldito scjas, do
mais recóndito íntimo da minha alma, amaldii;oo-te; ninguém t.erá de saber
disso, nao posso permitir que scja outro a faze-lo, pois mais ninguém tem
esse direito a nao ser eu; amei-tc como mais ninguém, mas também te
é
33 lnvO(;a9ao de Cristo frequentc no bvangelho de Mateus (6:30; 8:26: 14:31; 16:8) e
tambérn cm Lucas, 12:28: «E se Deus assim veste a erva, que hoje cst{i no campo. c
~manha é lan9ada no forno. quanto rnais a vós. homens de pouca fé?»
34 Livro do Génesis, 8: 11: «E a pomba voltou a ele sobre a larde; e cis. arra1H.:ad:1. urna
f'olha de oliveira no ~cu bi<.:<J: e <.:011hcccu Noé que as águas tinhnm minguado ~obre :1
1crrn.>>
Ou. Un: Fragnu.:1110 de V1du
225
224
Ou
odeio, pois ninguém conhece a tua dissirnulacáo como cu conhcco. Vós,
bons deuses. a quema vinganca pertence, entregai-ma por um tempo breve,
nao lhe darci mau uso. nao scrci cruel. Entáo. irci insinuar-me na sua alma
quando amar uma outra, nao para matar essc amor, nao seria 11831 castigo
nenhurn, pois sei que ele a ama tao pouco quanto a mim amou, de modo
algum ama ele alguém, ama táo-sornente a ideia, o pensamento, a sua poderosa influencia na corte, o seu poder espiritual, tudo aquilo de que nem
cu consigo fazer ideia de como ele capaz de amar. Despojá-lo-ei ele rudo
isso; aprenderá entáo a conhecer a mínha dor; e quando estiver a beira clo
desespero, dcvolvcr-lhc-ci cntáo ludo, mas há-dc ser a mirn que ele agradece - fico assim vingada.»
«Nao. níío era impostor. já nao me amava mais, por isso abandonou-me ,
mas isso nao era impostura nenhuma; se rivesse ficado corrugo sem me
amar, entño. teria sido um impostor e eu, tal como urn pensionista, haveria
de ter vivido do amor que outrora rivera por mirn, haveria de ter vivido da
sua piedade, do óbolo que talvcz até generosamente me tivessc atirado ,
vivido até ser um fardo para ele e até ser um tormento para mim própria.
Coracáo cobarde e rniscrávcl, dcsprcza-tc a ti mesmo, aprende a ser grande,
aprende isso com ele; amou-mc mais do que cu entendía ser amar-me a
mim propria. E haveria cu de sentir cólera contra ele? Nao, coníinuarei a
amá-!o, porque o scu amor era mais fortc. o scu pcnsamcnto mais altivo do
que a rninha fraqucza e a minha cobardía. E talvcz aincla me ame, sim. foi
por amor a rnim que me abandonou.»
«Sirn, agora alcancei, agora já nao tenho dúvidas, era um impostor. Eu
vi-o, a expressáo orgulhosa e triunfante percorria-rne com urn olhar trocista. Ao seu lado, seguía urna espanhola, irradiando a sua beleza; porque
havia ela de ser tao bonita - estava capaz de matá-Ia - porque nao sou
eu assim tao bonita? E nao o era eu? - nao o sabia, ele tinha-rno dacio a
saber. e porque já nao o sou? - De qucm
a culpa? - Maldito sojas,
Clavigo, se tivcsscs ficaclo comigo, tcr-mc-ia tornado ainda mais bonita,
pois o mcu amor crcscia com as iuas palavras e as tuas garantias, e com
ele a minha beleza. Agora fenecí, já níío ganho vigor, que forca tem todo
o carinho do mundo em comparacáo com uma palavra tua? Oh, oxalá eu
voltasse a ser bela. oxalá pudesse outra vez agradar-lhe. pois só por isso
desejo ser bela. Oh. oxalá ele nao conseguisse amar mais a juventude e a
beleza! Afligir-me-ia eu entáo rnais do que outrora, e quern será capaz de
afligir-se corno eu !»
«Sirn, ele era um impostor. Como poderia ele alias cessar de amar-me?
Deixei eu cntáo de o amar? Nao há urna mesma leí para o amor de um
homem corno para o amor de urna mulher? Ou será o homcm 11841 mais
fraco do que o fraco? Ou tal vez ele tivesse errado, tal vez fosse urna desilusao ter-me amado, urna desilusáo que desapareceu como urn sonho , asscn-
tará isto a um horncm? Ou terá sido urna inconstancia. ficará bem a um
horncm ser inconstante? E porque me assegurou ele no comeco do muito
que me ama va? Se o amor nao tem subsistencia, o que poderá entáo subsistir? Sirn, Clavigo, despojaste-me de rudo, da minha fé, da minha fé no
amor, e nao apenas no teu [».
«Nao era impostor. O que o arrancou da minha beira, nao sei; nao conheco essa forca obscura: mas essa forca obscura infligiu-lhe dor, urna dor
profunda; nño quis dar-me a saber a sua dor, por isso, fez de conta que era
impostor. Sim, se ele se ligasse a outra rapariga, cntáo, eu diría: era urn
impostor. nenhum outro poder no mundo me levará a crcr outra coisa; mas
ele nao fez isso. Porventura acredita que fazendo-se passar por um impostor
diminui a minha dor, que me deixa armada contra ele. Exibe-sc, por lsso,
de vez em quando com outras raparigas jovens. lan~ou-me, por isso, um
olhar tao trocist~1, outro dia, para me agastar e dessa forma deixar-me livre.
Nao, nao era de certeza um impostor, e como havcria aquela voz de poder
enganar? Era tao calma e no ent.anto tao emotiva; como se rompessc caminho por entre os rochcdos, ::;oava assim vinda de um interior cuja profundidade eu mal conseguia prcssentir. Pode esta voz enganar'? O que é cntao a
voz, será um estalar da língua, um ruído que é possível provocar como bem
se quiser? Tem contudo de ter morada algures na alma, tem de ter um lugar
de origem. E tinha-o. tinha morada no mais recóndito do seu cora<;:ao, ele
amava-me, ele ama-me. É verdade que tinha também uma outra voz, fria,
gélida, capaz de matar qualquer alegria na minha alma, ele sufo<.:ar q~~.lqu~r
pensamento jubiloso. capaz até ele para mirn mesma tornar o meu betJO fno
e repugnante. Qua! delas era a verdacleira? Ele era capaz de enganar ele
tocias as maneiras, sinto porém que aquela voz trémula na qual palpitava
toda a sua paíxiio nao era uma impostura, é irnpossível. A outra voi era uma
impostura. Ou entao. seriam poderes malignos a exercerem domínio sobre
ele. Nao, nao era impostor nenhum, esta voz que dele me fez cativa para
sempre nao é urna impostura. Nao era imposcor, mesmo que eu nunca o
entenclesse.»
O inte1Tooatório
nunca é dacio por concluído, e o julgarnenlo tambérn
b
.
nao; o interrogatório, porque se introduzem continuamente pausas, o Julgamento, 11851 porque se limita a ser urna clisposi<,:ao. Por conseguintc. quan<lo este movimento é accionado, pode instalar-se durante o tempo que se
quiser. nao se lhe vislumbrando o fim. Só um rompimcnto pode conduzir
ao seu termo, conduzindo-o clesignadamente a interromper todo o movimento do pensamento; mas nao é possívcl que tal acontec;a, pois a vontade
é sempre serva da reflexao, e fornece encrgia a momentánea paixao.
Quando ela entao pretende por vezes desprender-se do todo, recluzi-lo a
nada, tal nao passa novamentc de uma disposi<,:ao, de urna paixao momentanea, e a reflexao continua a permanecer vitoriosa. Urna mediac;ao é im-
é
é
226
Syl1 i.:11 1 1c1
k1.:guurd
possível; se ela comecar de modo a que o corneco seja de urn ou de outro
modo urn resultado de operacóes da reflexáo, entáo é arrastada nesse mesmo instante. A vontade tem sobrctudo de comportar-se de urna maneira
completamente indiferente, tem de cornecar por forca da sua própria vontade, e só assim
possível talar de um comeco, Se tal acontecer. entáo
deccrto que poderá comccar, mas ficará completamente fora do nosso intercssc, cntregá-la-ernos cntáo com prazer aos moralistas, ou a quem de resto
estiver disposto a ficar com ela. dcscjamos-lhe um casamento honrado, e
comprornetemo-nos a dancar no diada boda, quando felizmente tarnbém a
rnudanca do nome nos terá entáo feíto esquecer que havia sido a Marie
Beaumarchais de quern falamos.
Nao obstante. regressernos a Marie Beaumarchais. Como foi acima observado, o que próprio da sua mágoa é o dcsassossego que a irnpede de
encontrar o objecto da mágoa. A dor dela nao acolhe tranquilidadc, Ialta-lhe
a paz de que qualquer vida nccessita, quando de prever ao scu alimento e
de se restabelecer com ele: nenhuma ilusáo lhe dá a sombra da sua tranquila frescura, enquanto absorve a dor, Pcrdeu a ilusño da infancia ao ganhar
a do amor35, pcrdcu a do amor quando Clavigo a cnganou; se lhe tivcssc
sido possível ganhar a ilusáo da mágoa, reria sido urna ajuda. Entáo, a mágoa dela ter-se-ia aprox imado da rnaturidadc vi ri 1, e te ria u ma compensacño
para o perdido. Mas a mágoa ele Marie nao ganhava vigor, pois ela nao
perdera Clavigo, ele enganou-a, cla ñca sempre como urna enanca ele tcnra
idade no scu choro, urna crianca sern pai nem mae,já que se lhc houvessem
arrebatado Clavigo, possuiria entáo o pai na rccordacáo da sua Iídclidade e
do scu afecto. e a rnác, na exaltacáo de Maria; e nada tem com que possa
criá-la; pois o que vi vcu rora decerto bel o. mas ern si e para si nao tinha
todavía significacño, era antes como provar o futuro. Tambérn nao pode ter
esperanca 11861 de que este filho da dor se transforme cm filho da alegria,
rarnbém nao pode ter esperanca de que Clavigo houvesse de regressar; pois
que nao terá forca para carregar um futuro; perdeu a alegre confianca com
a qual tcria temerariamente seguido Clavigo no abismo e, ern vez disso,
ficou com centenas de escrúpulos, estaría no máximo em condicóes de viver o passado com ele ainda mais urna vez. A sua frente cstendia-se um
futuro quando Clavigo a abandonou, um futuro tao belo, tao promissor ele
encantamento, que quase lhe confundía o pensarnento, cxercendo obscuramente o seu poder sobre ela; já se iniciara a sua mctarnorfose, quando o
desenvolvimcnto foi interrornpido e a transformacáo parada; havia prcssenticlo urna nova vida, havia intuído as torcas dessa vida agitando-se dentro
dela, quando o rompimento se deu e ela foi repelida, e nao há para ela
é
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é
35 A qui, bem como
original.
as duas ocoriencias seguintes de «amor». corresponde
«Elskov» no
Ou
Ou.
l11111•111¡.i11)l1110
d~·
idu
227
qualqucr compensacño, qucr seja neste ou no mundo futuro. O que houvesse ele vir sorria-lhc 1·:Jo pródigamente ao espelhar-se na ilusáo do seu amor
e, cornudo, Ludo era tao natural e tao directo; tal vez urna pálida rcflexño lhe
tcnha entáo pintado urna pálida ilusáo que nao actue sobre ela corn um
cfcito tentador, mas que por um instante seja mitigante. É assim que o tempo continua a passar para ela, aré que tenha consumido o proprio objecto
da sua rnágoa, o qual nao era idéntico a mágoa sua, mas antes a ocasiáo
para que ela continuasse a procurar um objecto para a mágoa. Se alguém
possuísse urna carta, e soubesse ou acreditassc que continha algum csclarccimento sobre aquilo que teria de considerar para a íclicidadc suprema da
sua vida, urna carta cuja letra estivesse, porém, fina e esbatida, a caligral'ia
quase ilcgível, lcria essa carta urna vez atrás da outra. certamente que com
angústia e desassossego, mas com toda a paixao e, num primeiro instante,
tiraria um sentido, no instante seguinte, um outro, em rela¡;ao ao qual,
quando estivesse na certeza de erer que havia licio urna palavra, ex pi icaria
tudo de acorclo com esse segundo sentido; mas nunca seria capaz de ir para
alérn cla mesma incerteza com que havia iniciado. Olharia fixamente, cada
vez mais angustiadamente. e quanto mais fixarnenl.c olhasse, menos veria;
os olhos ficariam por vezes repletos de lágrimas, e quanto mais assim acontccesse, menos veria; com o decorrer do tempo, o texto tornar-se-ia mais
desvanecido e mais inclecifrável. por último, o papel haveria de dcsfazer-se,
e nada mais lhe restaria do que olhos marejados de lágrimas.
11871
2. Donna Elvira
Aprendemos a conhecer esta rnpariga na ópera Don Juan, e nao será
desprovido de significac¡:fío para a nossa ulterior investiga\(ao atentar nos
indícios contidos na obra sobre a sua vida anterior. Elvira era freira, foi da
paz do convento que Don Juan a arrancou36. Oeste modo, é sugerida a
desmedida intensicladc da sua paixao. Nao era uma rapariguinha tagarela
saída de um internato que tivessc aprendido a amar na escola, e a namoriscar nos bailes; que alguém desla cspécie seja seduzido, nao contém nada de
36 Vd. Don Giovanni. l\cto 1, cena 5; Kruse. Acto I, cena 6, pp. 18 e 20. Enguanto Da
Ponle no seu libreto apenas diz: «M'innamori, o crudel. l Mi dichiari tua sposa, e poi
111oncw1dv I TJella terra e del cielo al santo dritto I ... >> («Enamorei-me. ó crnel. J
Declarei-me tua esposa, e faltando i ao santo direito do céu e da terra I ... » ), Kruse faz
Donna Eivini dizcr: «Far dig. jeg glemte alt, min Stammes !Ere./ Min Paf!,t med Gud
( ... ) I Den Agr jeg nf)d i Klosrers stille Celler» («Por ti. tudo csqueci. a honra da rninha
linhagcm, I O mcu pacto com Dcui; ( ... ) I A aten9ao de que precisava nas celas do convi.:nto>> ). e «Gud.1/m1rl 1•or je~» («De Dcus era cu a noiva» ); vd. Krm;e, pp. 18 e 20.
228
Sl)1L'11
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k1L'' kcguurd
grandemente significativo. Ao invés, El vira foi criada na disciplina do convento, mas esta disciplina nao logrou erradicar-Ihe a paixáo, porérn, decerto que a ensinou a reprimi-la e, por essa via, a torná-la aincla mais violenta,
logo que se cncontra no direito ele soltá-la. É presa segura para um Don
Juan; ele sabcrá fazcr jorrar a paixño, bravia, indomável, insaciável, capaz
de se saciar apenas no seu amor. Nele, ela tcm tudo , e o passado é nada; se
o abandonar perderá entáo tudo, e iambém o passado. Renunciara ao mundo, quando surge entáo uma figura a qual nao pode renunciar, e essa figura
Don Juan. A partir de agora, a tudo renuncia para viver com ele. Quanto
mais significativo fosse o que ela abandonava, tanto maior teria de ser a
firmeza com que a ele se agarra; quanto maior for a firmeza com que ele a
abraca, tanto mais terrível se torna o desespero dela quando ele a abandona.
O scu amor já desde o início um desespero, nada para ela tcm significa9ao, scja no céu ou na terra, scm Don Juan.
Na obra, Elvira inrercssa-nos desde que a rclacño dela com Don Juan
tenha significacáo para ele. Houvesse de ser eu a sugerir em poucas palavras a respectiva signiflcacáo , entño, diria que ela o destino épico de Don
Juan, e o Comendador, o seu destino dramático. Há nela um ódio que irá
cm busca de Don Juan por todos os recantos, urna chama que iluminará o
cscondcrijo mais obscuro, e nao houvessc cla ainda assirn ele dcscobri-lo,
há dentro dela um amor que o encontrará. Participa com os restanres'? na
pcrseguicño a Don Juan, mas se eu imaginasse que todos os poderes haviam
sido neutralizados, que os csforcos dos perseguidores se haviam reciprocamente anulado, para que assim El vira ficassc sozinha com Don Juan, ficando ele a sua rnercé, entño, o ódio haveria de ser a arma para o assassinar,
mas o seu amor haveria de o proibir, mas nao 11881 por compaixáo, pois
para ela Don Juan demasiado grande, e assim haveria de conservar-lhe
sempre a vida, pois se o rnatasse , entáo, rnatar-se-ia a si pr6pria. Portanto,
se nao houvcsse na ópera outras forcas em movimento contra Don Juan que
nao Iossc Elvira. cntño, nunca teria fim, visto que, fosse isso possível, Elvira impediría o proprio raio de o atingir'" para ser cla a vingar-sc e, contudo, nao conseguiría de novo excrcer vinganca. É assim que na ópera ela
interessa; mas ocuparno-nos aquí apenas da sua relacáo com Don Juan na
medida em que trouxer para ela significacño. Ela objecto do interesse de
muitos, mas ele modos muitfssimo diferentes. Don Juan interessa-se por ela
antes ele a peca comecar, o espectador oferece-lhe o seu interesse dramático, mas nós, os amigos da mágoa, nao a seguimos meramente até a próxima
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37 Os restantes sao Donna Anua e Don Ottavio, aos quais se rcúncm posteriormente
Zerlina e Masseuo.
38 Na cena do banquete final. dcpois de dar a máo ao Comendador, Don Juan atingido por raios e sugado pelos espíritos do inferno.
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blfurcacílo, até ao iusuuuc e111 que sobe ao palco, náo, nós seguimo-la no
seu caminho solitario.
Portante, Don Juan seduziu Elvira e abandonou-a, acontcceu depressa,
tao deprcssa quanto «um tigre a derrubar um lírio»39; se só em Espanha sao
já mil e tres411, pode por aquí ver-se como Don .luan está cheio de prcssa.
seudo assim possível calcular aproximadamente a rapidez do movimento.
Don Juan abandonou-a, mas El vira nao tem acompanhantes em cujos bracos possa cair desfalecida, nao neccssita de temer que decidarn estrcitar-lhc
o cerco em demasía, sabern bcm como abrir fileiras para facilitar a partida
dela, nao ncccssita de temer que alguérn queira vir disputar a sua perda;
talvez aparees antes urn ou outro que se encarregue ele o demonstrar. Ficou
so e abandonada, e clúvida alguma a lenta; claro que ele era urn impostor
que a dcspojou de rudo, deixundo-a a mercé da desonra e da ignomínia.
Nao é o pior que lhe pode acontecer, estéticamente falando, durante breve
tempo salva-a da mágoa reflexiva, que de certeza mais dolorosa do que a
mágoa imediata. É lacto aquí indubitável. e a reñcxño nao consegue chegar
a transforrná-lo ora muna coisa, ora neutra. Urna Marie Beaumarchais teria
sido capaz de amar um Clavigo de urna maneira igualmente ardente, bravia
e apaixonada; e proporcionalmente a sua paixao, pode tratar-se de pura
casualidade nao ter o pior acontecido, Marie quase poclia desejar que tal
tivesse acontecido, visto que isso t.cria consliluíclo um final para a história,
entao, teria licado muito mais bem armada contra ele, mas tal nao aconteceu. É muito mais duvidoso o facto que tem a sua frente, cujo vercladeiro
carácter permanece sempre um segredo entre ela e Clavigo. Quando pensa
na fria IJ 891 dissimulac,:ao, no mcsquinho senso eomum necessários para a
cnganar de molde a que aos olhos do mundo surgisse com urna aparencia
bcm mais suave, de molde a fazer dela a presa do compadecimento, diz-se:
«Üra, Senhor Oeus, o caso nao é assim tao grave»; é capaz de a deixar indignada, ela é capaz de quase perder o juízo só de pensar na orgulhosa altivez. cliante da qual cla enlrctanto nem scquer tem nada para significar,
estabelecendo-lhe um limjte que diz: «até aqui e daqui nao passas». E nao
obstante, é possível explicar o todo de outra maneira, de um modo mais
bonito. Mas a medida yuca explica9ao se torna outra, também o faclo se
torna outro. Port.anto, a reflexao dispoe desde logo do suficienle para agir,
e a mágoa reflexiva é inevitável.
Don Juan abandonou El vira, nestc mesmo agora tuclo para ela ganha nitidez, nenhuma clúvida retém a mágoa no parlatório da retlexao; remete-se
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39 Citas;ao retirada de Aladdin, eller Den fomnderlige Lampe 1 Aladdin ou a Lampada
Maravilhosa], in Adam Oehle11sclzliigers Poetiske Skrijter 1 Escritos Poéticos de A. O.],
vol~. 1-!L Copenhaga, 1805: vol. Il. pp. 75-436; vol. .11, p. 275.
40 Vd. nota 23 no capítulo «Diapsa/111(t1a».
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S11r1•11 "1 ·1 l-.1.:ga:11d
ao silencio no seu desespero. Com um único pulsar, a magon circula profun
<lamente através dela, e essa circulacáo proccssa se para fora, a paixao rclul
ge com chama arravés dela e toma-se visível do exterior. Ódio, desespero,
vinganca, amor, rudo isto irrompe para se manifestar visivelmentc. Nestc
instante, Elvira
pictórica. Tarnbém por isso, a fantasia mostra-nos desde
logo urna imagern dela, e o exterior nao fica aquí pesto na indifcrcnca, a
reflexño dccorrcnte nao está desprovida de eonteúdo, e a sua actividade nao
deixa de ter significacño, dado que cla rejeita e selecciona.
Se ncste momento El vira constituí tarefa para reprc: cntacáo artística, é
urna outra qucsiño; mas urna coisa é certa, neste instante ela é visível e
pode ser vista, obviamente que nao no sentido ern que e na ou aquela El vira
real possa realmente ser vista. o que na maioria das veles equivale a dizcr
que nao é possível ve-la, mas a Elvira por nós imaginada é visível na sua
cssencialidade. Deixo por decidir o grau no qual a arte está cm condicécs
de transmitir os cambiantes de exprcssño na sua facc, para tornar intuitivo
O amago do scu desespero, mas torna-se pOSSÍve( dcscrcvé-Ia, e a imagem
que assirn surge nao se torna um mero fardo para a mcmória, que nada poe
ou tira, antes possui a sua validade. E quern nao viu El vira! Era de manhñ
cedo quundo cmprccndi urna caminhada por urna das rcgióes románticas ele
Espanha. A natureza acordava, as árvorcs da floresta agitavam as copas, e
as folhas como que csfregavarn o s1J110 dos olhos, urna árvorc inclinava-sc
sobre urna mitra para ver se esta jéí estava a pé, e toda a floresta ondulava
co111 a brisa fresca e refrescante; urna leve neblina lcvantava-se da rerra, o
sol arrancou-a como se lossc um tapete sob o qual havia 11901 rcpousado
durante a noite, e olhando agora como u111a mñc amorosa para as flores e
para tudo o que era vicia, dizia: «l .cvanrcm-sc, Iilhos queridos, já brilha o
Sol,» Ao virar para urna ravina, saltou-rnc vista um convento, ergucndo-sc
no alto do cumc de urna serru, para onde conduzia urna vereda rnuito tortuosa. Derive nclc a minha mente, pensci que ali se encontrava assirn como
que urna casa de Dcus firmemente aliccrcada nas rochas41. O mcu guia
contou-rne que se iratava de um convento de freiras, conhecido pela rígida
disciplina. Abrandou-sc-me o passo, bem como o pensarncnto, e que coisa
ha verá tarnbérn para atrás dela correr. quando se está tao perro de um convento. É provávcí que até acabassc por parar completamente. se nao tivcssc
sido despertado por um rápido movimento a rninha beira. Virei-me involuntariamente, e vi urn cavaleiro passando por mirn em toda a pressa. Como era
belo. o passo tao ligeiro e todavía tao vigoroso, tao majestoso e. conrudo,
é
a
41 Vd. Mateus. 7:24-25: «Tocio aquele , pois. que escura estas minhas palavras, e as
pratica, asscmelhá-lo-ei ao homcm prudente. que edificou sobre a rochai ? E deseen a
chuva. e correram rios. e assoprararn ventes. e combutcram aqueta casa. e nao caiu.
porque estava edificada sobre a rocha.»
tao fuga1.. voltava a cubcca para olhar para trás, o rosto tao fascinante e
todavia o olhar tao inquieto; era Don Juan. Ou seguc apressado para um
cncontro, ou já vem de regressol Entretanto, assim que desaparecen dos
1111.:us olhos e ficou esquecido do meu pensarnento, o meu olhar voltou a
tixur-sc no convento. Estava outra vez rnergulhado em considcracóes sobre
a volúpia da vida e a tranquila paz do convento, quando vi urna figura feminina Jií no alto do montc42. Corría dcscnlrcadarncntc pela vereda fora,
mas o caminho era rnuito inclinado, e parecia sernpre que clase despenhava
do monte abaixo. Aproxirnou-se. O rosto dela cstava pálido, só os olhos
í'lamcjavam terrivelmente, o corpo exausto. o peito arque java violentamente e cornudo, corría cada vez rnais deprcssa, O'> caracóis do cabclo esvoacavam sollos. dcslcitos pelo vento, mas ncm mesmo a fresca brisa matinal
e 0 seu passo aprcssado eram capazos de enrubescer as pálidas faces, o scu
véu de freira rasgara-se e [ugira para trás, o leve hábito branco multo havcria traído diante <le um olhar profano, nao tivcsse a paixao no scu rosto
atraído a aten9ao do mais corrupto dos homens. Passou por rnim a correr.
1150 ousei falar-lhe. para tal era o seu porte demasiado majestático, o olhar
demasiado régio, a paixao demasiado ilustre. A que lugar pertence e:-.ta jovem? Ao convento'! Paix5cs destas tcm aí morada'! - Ao mundo? Este
hábito - Por que motivo corre'! Para esconder a sua vergonha c desonra.
ou para perseguir Don Juan? Corre para a floresta. que sobre. ela se encerra.
c-.condendo-a, e nao a vejo rnais, mas oi90 apenas o suspiro da floresta.
Pobre Etvira! l louvessem as árvores de saber alguma coisa - e nao obstante, 11911 as árvores sao melhorcs do que os homcns, pois as árvores
suspiram e calam-sc - os homcns murmurarn.
Ne!>te primeiro momento, Elvira é pa~sível ~e ser r~prcsc.nta~~~·(,e bcm
que a arte nao possa propriamentc ocupar-se d1sso. pois sena dtflcLl encor~trar uma unidade de expressao que tivesse em si simultaneamente a mult1pli<.:i<ladc das paixoes, entao, a alma exige ve-la. Foi ~ q~1e pro~urei sugerir
coma pequena imagem que acima esbocei: nao constttu1u des1gnadarnente
minha inten9ao representar Elvira através dcssa imagem, ~t'.eria po.rém
sugerir que cabia aqui descrevc-la. que nao se trata va. dc.um s~b1to capnch~
da minha parte. mas de urna imposi9ao válida da 1dc1a. ao obstante. e
apenas um momento e. por isso. ternos de seguir Elvira mais para diant~.
O movimento que se nos impüe é um movimento no tempo. Elvrra
111antém-se no cume quase pictórico acima sugerido através de urna sucesde momentos temporais. Adquire por essa via interesse dramático. Na
pressa com que por mim passou. vai apanhar Don Juan. Tuclo isto está
pcrfeitamentc adcquado, pois se bcrn que ele a tenha abando.nad~, porém,
arrastou-a consigo para dentro da prccipitar;ao da sua própna vida, e eta
"ªº
'-12 Na V('rsií0 de Kru~l'.
001111;1
rnvira ~ frcir:i. Vd. acima 1101:1 36.
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tem de alcancá-lo.
Se o alcancar, toda a atencáo dela se vira cnrño novamente para fora, e ainda nao obternos urna mágoa reflexiva. Ela perdcu
tudo, o céu, ao escolher o mundo, o mundo, ao perder Juan. Por isso, nño
tem a quern recorrer a nao ser ele, só estando na sua proximidade
capaz
de rnanter o desespero i1 distancia, quer seja abafando as vozcs interiores
com o ruído da cxasperacáo e do ódio. as quais todavía apenas se fazern
ouvir com ressonáncia se ele estiver presente pcssoalmente, quer seja tendo
esperance. Esta última forma já indica que os momentos da mágoa reflexiva estilo presentes, mas nao lhcs foi <linda possível encontrar tempo para
confluírem para dentro de si. «Tcrá primeiro de ficar cruelmente convencida», d iz-se na adaptacáo de Kruse43, mas esta exigencia denuncia completamente a disposicño interior. Se como que sucedcu nao Iicou persuadida
de que Don Juan era um impostor, enrño, nunca ficará. Mas desde que exija urna preva suplementar, entño, será bcm-succdida por meio de urna vida
inquieta e errante, eternamente ocupada a perseguir Don Juan, evitando o
dcsassossego interior do desespero tranquilo. O paradoxo encontra-sc já
diante da sua alma, mas desde que consiga manter a alma em agita9ao,
através de prevas exteriores que nao hajarn de explicar o passado , mas sim
de dar informacño sobre a presente condicáo de Don Juan, nao possuirá a
11921 mágoa reflexiva. Alternarn-se ódio, exasperacño, maldicócs, súplicas,
conjuracóes, mas a alma dela a inda nao regressou a si mesma para repousar
na consideracáo de que foi cnganada. Espera urna explicacáo viuda do exterior. Quando portante Kruse poe Don Juan a dizer:
é
Se estás agora disposta a ouvir,
A crer na rninha palavra - tu que de mim desconfías;
Quase posso cntño dizcr como inverosímil
O motivo que me impele, etc.44,
é
entáo, ternos de manter-nos em vigía para nao ficarmos em crer que aquilo
que aos ouvidos do espectador soa como chacota produz um cfcito sernelhante em Elvira. Para ela, esta conversa serve ele rcírigério, visto que Elvira exige o inverosímil, e quer acreditar nelc, precisamente por ser inverosímil.
Ora se deixarrnos que Don .Juan e Elvira colidarn, ficamos nesse caso
<liante da escolha de deixar que o mais forte seja Don Juan ou seja Elvira.
Se for ele o mais forre, toda a conduta dela nada chegará a significar. Ela
exige «urna prova, para ficar cruelmente convencida»: ele é suficientemente galante para nao dcixar que tal preva tarde. Obviamente que cía nao fica
43 Kruse, Acto l. cena 6. pp. 20-21.
44 lbid.
convencida e exige urna nova preva, visto que exigir a preva constitui um
ulívio, e a incertcza. um rcfrigério. Passa, entáo, a ser apenas rnais urna
icsrcmunha das proezas de Don Juan. Mas podíamos também imaginar que
cla a mais forte. É raro acontecer tal coisa, mas irei fazé-lo por galantería
para corn o sexo ferninino. Ei-la entáo ainda na plenitude da sua beleza,
pois se bcm que tenha chorado, as lágrimas nao ofuscaram todavía o brilho
dos olhos e, se bem que tenha sentido rnágoa, esta nao esgotou todavía a
exuberancia da juvcntude e, se bcm que se tenha afligido, a afli9fü.1 dela nao
dcsgastou todavía a vitalidade da sua bcleza e, se bem que lhe empalidecesscrn as faces, por isso, há porém na expressáo ainda mais animo e, se bcm
que nao se mova eom a leveza da inocencia infantil, avanca todavía eom a
firmeza enérgica da paixáo feminina.. É assim que enfrenta Don Juan.
Amou-o acima ele tudo no mundo, acirna da Iclicidadc suprema da sua alma, tudo dcsbaratou por ele, até a propria honra, e ele foi-lhc infiel. Conhece agora urna única paixño apenas, é o ódio, um único pcnsamento apenas,
6 a vinganca. É assirn tao grande como Don Juan; pois que «seduzir todas
as raparigas» a cxprcssáo masculina para a expressáo ferninina «dcixar-se
xcduzir urna vez com toda a sua alma», e agora odiar ou, se assirn se quiscr,
amar o sedutor com urna energía que ncnhuma 11931 esposa possui, É assim
que cla enfrenta Don Juan, nao lhe falla a coragcm para ousar ir contra ele,
niio se bate por princípios moráis, bate-se pelo seu amor, um amor nlio
fundamentado no rcspeito; nao luta para vir a ser o seu par, lula pelo scu
amor, e nao se contenta com urna fidelidade contrita, esse amor antes exige
vinganca: por amor a Don Juan, deitou a perder a sua suprema felicidadc e,
se voltasscm a oferecé-la, voltaria a deitá-la a perder para se vingar. Urna
figura dcstc género nunca deixa de produzir efeito sobre Don Juan. Ele
conhece qual o desfrute que há em cheirar as mais bolas e tragrantes flores
da primeira juvcntude; sabe que é apenas um instante, e sabe o que se lhe
seguirá, viu demasiadas vezes estas pálidas figuras estiolarem tao deprcssa
que quase se tornava visível. mas aconteceu aquí o prodigioso, romperamsc as leis do curso universal da existencia, seduziu urna jovem rapariga,
mas a sua vida nao se extinguiu, a belcza dela nao esmoreceu, transformou-se, e está mais bela do que nunca. Nao pode negá-lo, ela cativa-o mais do
que nunca outra jovem o fez, mais do que a própria Elvira,já que a inocente freira, apesar da sua bcleza, fora todavia uma jovcm como tocias as ouLras, este seu namoro urna aventura como muitas oulras; mas esta jovem é
única no seu género. Esta rapariga está armada, nao esconde um punhal no
peito45' mas traz urna armadura que nao é visível' pois o ódio dela nao fica
~;.iciaclo com discursos e declamac;oes, mas antes de urna maneira invisível,
e eis pois o seu ódio. Dcsperta a paixao de Don Juan, ela tem de pertenceré
é
45 Nova cliscrcpi\ncia e111 rcl;19iío ao librcLO ele Da Ponte; vd. Krusc. Acto 1. cena 5. p. 18.
235
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-lhc urna vez mais ainda, mas tal nao acontece. Sim, se se uurassc de u111:1
jovem que conhecessc a baixeza dele, que o odiasse. cmboru nao houvcssc
sido enganada por ele, cntño , Don Juan triunfaría, mas nao pode vencer
esta rapariga, toda a seducáo dele é impotente. Mesmo se a sua vcu. fossc
rnais insinuante do que a sua própria voz, os seus avances mais engcnhosos
do que os seus proprios avances, nao a dcrnovcria, mesmo que os anjos por
ele implorasscm, mesmo que a mae de Deus Iossc dama de honor no casamento, rudo seria em vilo. Tal como nos infernos Die/o se a fasta de E11eia.1A6•
que lhe tora infiel. também ela certamerue nao irá afastar-se dele, voltar-sc-á antes contra ele, com maior írieza ainda do que Dido.
Nao obstante. o encontro de El vira com Don Juan é apenas um momento
de transicño , ela atravessa o palco, o pano desee, mas nós, caros
!uµn:auuvexl)WµEvm. deslizamos silenciosamente atrás dela. pois só agora
ela passa a ser, com toda a 11941 propricdadc, Elvira. Enquanto csrivcr na
proxirnidade de Don Juan, está fora de si mesma; quando rcgrcssa a si mesma, importa cntño pensar no paradoxo. Pen ar urna contradicüo, aposar de
todas as certezas da ñlosoña moderna"? e da atrevida coragcrn dos seus jovcns scguidorcv, estará scmpre ligado a grandes dificuldadcs, Perdoar-sc-á
dcccrto a urna jovcrn rapariga que cla achc que é difícil pensar que aqucle
que ama era um impostor e esta é, no entamo, a tarefa que lhc está destinada.
Tcrn isto cm cornum com Marie Bcaurnarchais e, cornudo, há urna diferenca
no modo como cada urna cm particular atinge o paradoxo, O facto tido por
Marie para ncle se apoiar era cm si tao dialéctico que a reflcxño tcriu desde
logo de aprcendé-lo cm toda a sua concupiscencia. No que di7. respcito a
El vira, a preva factual de que Don Juan era um impostor parece tao evidente que nem se ve bem como a reflcxño pode ter máo nisso. Por is .o, apreende o assunto a partir de urn outro lado. Elvira perdeu tudo e, cornudo, tern a
vida intcira a sua frente, e a alma reclama um viático de que possa vivcr.
Mostram-se aqui duas possibilidadcs: ou ficar su jeito a determinacócs éticas
e religiosas. ou conservar o seu amor por Don Juan. Se cumprir a primeira.
ficará forado nosso intercsse, e tercmos o prazer de deixá-la ingressar nurna
associacño de madalenas'", ou onde ela aliás quiser. É entretanto provável
46 Vd. o episodio ele Dido e Encias, in Virgílio. Eneida, livro VI. vv . 469-474: «Ela, scrn
se voltar. fita no chao./ só mosrrava a firmeza que tcria I se da mais dura pedra fosse
fcita, ! se cm mármore Marpesso ali cstivcssc. /Por fon l;í parle e para o bosque fogc /
1 onde Siqueu, o scu esposo outrora. I sofre da mesma dor, igual amor», in Obras de
virgtlio: 811cólicm. Geárgicas, Eneida, tradu~ao do latim de Agostinho da Silva, Lisboa: Temas e Debates. 1999, 2.'' cdicño. p. 299.
47 Vd. Hegel. Die wissenschaft der Logik IA Ciencia da Lógica, A Lógica Objectiva]
ll: in \Vede, vol. IV. pp. 70-71 . Jubilüums, vol. IV. pp. 548-549. e Suhrkamp . vol. VI.
pp. 77-78.
48 «Magdalene-Stiftelse» , urna instituicáo criada para albergar prostitutas.
que 1a111bé111
lhc scj11 dilrcil 1';11c-lo. pois para que tal vcnha a ~e~ possívcl
ll'I a previamente de desesperar; já uma ve/: soubc o que era o religioso e, da
,l'gunda vez, este iní colocar-lhc grandes exigencias. O religioso acima de
tudn urn poder perigoso para cntabular conversa. é cioso de si próprio e nao
,c dcixa escarnecer. Quando cscolhcu o convento, a sua alma orgulhosa
tulvcz tcnha aí encontrado abundante satisfacño, pois. diga-se o que se dis\CI', ncnhuma rapariga arranja partido tao brilhante como aqueta que dcspo..,.1 0 céu: e agora. ao invés, agora dcverá regressar como um penitente, cm
"' 11.:pendimento e contri9ao. Além disso, resta . empre ainda a qucstao de
-.ahcr ~e conseguirá encontrar um padre capaz de pregar o evangelho do
,111cpendimento e da contri9ao como mesmo vigor com que Don Juan prei•ou a boa nova da volúpia. Por conseguintc, parn se salvar dc!->te c.les~sp~r~.
tcm de agarrar-se ao amor por Don Juan, algo que lhe será tanto ma1s fac1I
vislo que entretanto o ama ainda. Uma terceira possibilidade é impensávcl.
dado que, houvesse ela de ser capaz de encontrar consolo no amor de out ro
horncm, e isso seria mais medonho do que a mais medonha das coisas. Por1.wto. é por sua causa própria que tcm de amar Don 11951 Juan: é a c;ua legf11111a defc~a que o exige, e c~ta é a espora da rcflexño que lhe impüe olhar
l l\amente para o paradoxo de poder amá-lo, cmbora ele a cngana~ ·e. De
l:ada ve1.. que o desespero qucr cntao apoderar-se dela, refugia-se na lembrnn~a do amor de Don Juan. e para ~e sentir realmentl! bem neste lugar de
ahngo. deixa-se tenlar pelo pensamcnto de que ele nao era impostor, cmbora o f;.19a de diferente!-. modos. dado que a dialéctica de urna mulhcr é peculiar. e só qucm já tcve a oportunidade de obscrvá-la. só csse é cap~z.de
1mi1á-la. ao passo que o maior <los dialécticos que alguma vez tenha v1v1do
pode cndoidcccr de tanto especular para produlir tal dialéctica. Tíve entre1;11110 a fortuna de conheccr alguns exemplos notáveis, com os quais frcqucntei um curso completo de dialéctica. Curiosamente, seria de crer qu.e
losscm preferencialmcnte de encontrar na capital, pois o barulho <.:as mult1di>c!> muito escondem: entretanto. nao é assim que todavía acontece, diga-se,
quando se quer obter cspécimes nobres. Nas províncias, nas pcqucn:1s lo.ca:
lidades, nos solares, encontramos os mais bclos. A4ucle que me esta mais a
mfio de pensar era urna sen hora sueca, uma jovem da no breza. O seu primciro amante nao poderia te-la cobic,:ado com maior veeméncia do que me estor<rava cu, 0 seu segundo amante, por seguir o andamen~o dos p.ensame~1tos
do seu cora<;:ao. No entanto, devo a verdade confessar nao ter sido a mmha
pcrspicácia ou esperteza que me colocou na sua pista, mas sim uma circunslancia casual que a ser aqui contada resultaria excessivamente prolixa. Vivecm Extocolmo, travara aí conhccimento com um conde frances, tendo
'>ido vílima da dcslealdade das eslimávcis quali<la<lcs destc. Ain<la agora é
como \e cstivcsse viva, a minha frl!nte. A primcira ve¿ que a vi nao produziu
l'lll mim propriamc111c
imprc!-.sao alguma. Era ainda bonita, com um porte
é
'ª
"36
S0n:11 I< ic1 kcgaard
altivo e distinto. nao falava muito , e c11 lc1 i:i provavclmcntc rcgrcssado lfto
inrcirado como quando chcgara, se urna casualidadc nño me tivesse feito
testernunha do scu segredo, A partir desse instante. adquiriu significacáo
para rnim; oíereceu-rne urna imagern tao vívida de urna Elvira que nao conscguia cansar-me <le a olhar. Urna noite estive com ela numa festa em sociedadc e, tendo eu chegado primeiro do que ela, esperara já um pouco quando
me dirigi a janela para ver se ela chegava e, um instante depois, a sua carruagcm parou <liante da porta. Deseen da carruagern e o seu traje causou-me
desde logo urna impressño particular. Vestía urna fina e leve capa de seda,
parecida como dominó com que na ópera Elvira se mostra na cena do bailc49. Entrou 11961 com urna dignidade elegante, realmente imponente, rrazia
urn vestido de seda preta, estava vestida com o mais elevado bom gosto e
entretanto extremamente simples, sern jóias que a ornamenrassem. o colo
descoberto, a pele mais branca do que a neve, nunca vi um contraste tao
belo como este, entre o seu vestido de seda prcta e o scu colo branco. Ve-se
bastante arniúde um colo descobcrto, mas é tao raro ver-se urna jovcm que
renha realmente regace. lnclinou-sc dianre de todos os convidados e, quando
a seguir o anfitriáo se dirigia para a cumprimentar, fez urna reverencia mais
profunda. mas aposar de os scus labios se abrirern num sorriso. nao ouvi
qualquer palavra da parte dela. Para mirn, a sua condura era vcrdadcira no
mais alto grau, e eu, que era o seu confidente, no silencio da minha mente,
apliquei-lhe as palavras proferidas pelo oráculo: oüre MyeL oüre XQ'ÚJttfl,
úA.A.ó. or¡µ,c::cíve1.50. Aprendí muito corn ela e, entre outras coisas, também
corroborei a obscrvacáo que multas vezes flz: urna pessoa que esconda urna
mágoa, com o passar do tempo, encontra urna palavra singular ou um pensamento singular. com o qual conseguía designar hielo para si mesma, ou
para o singular que nisso fora iniciado. Urna tal palavra ou um tal pcnsarncnto como um diminutivo em relacáo a prolixidadc da rnágoa, é como um
tratamento carinhoso que se cmprega no uso diário. Estubclccc amiúdc urna
relacáo completamente acidcntal com aquilo que designa, e fica quase sernpre a dcver a sua origcm a urna casualidade. Depois de haver ganho a confianca dela, de ter licio sucesso na derrota da sua suspeicño para comigo,
porque urna casualidade a fez cair no meu poder, depois de ela me ter contado tudo, percorri com ela muitas vezes toda a escala de disposicóes. Ao
é
49 Provávcl alusáo ao traje de Donna Elvira na cena do baile (Don Giovanni, Acto I,
cena 19: Kruse, Acto I, cena 19, pp. 59-60), usado na encenacño dinamarquesa a que
K ierkegaard assistiu.
50 Fragmento «Heráclito B 93» atribuído ao filósofo como rendo sido proferido pelo
oráculo tic Delfos, Na traducáo de Alcxandrc Costa: «O senhor, de quemé o oráculo.
aquele em Delfos, nao diz nem oculta, porém, assinala». Vd. Fragmentos rontcxtualizados. edicño bilinguc. prefacio, aprcscntacño. traducáo e comentarios ele Alcxandre
Costa. Lisboa: lmprcnsa N<1cional-Casa da Moeda. 2005, p. 111.
Ou
Ou. Um
11111!!111l·11to
de Vidu
237
invés, nao estando predisposta para tal, mas querendo entretanto sugerir-me
que a sua alma eslava entregue a mágoa, pcgava-me na máo, olhava-rne e
dizia: «eu era mais fina do que um junco, ele era mais magnífico do que o
cedro do Líbano»51• Nao sei onde tcria ido buscar estas palavras; mas cstou
convencido ele que, na altura em que Caronte vicr no seu barco para a Iazer
arravessar o reino dos mortos52, nao encontrará na sua boca o óbolo regi111cntaclo, mas sirn estas palavras nos lábios: «eu era mais fina <lo que um
junco, ele era mais magnífico do que o cedro do Líbano!»
Ora El vira nao consegue dcscobrir Don Juan, e cabe-lhe pois encontrar
sozinha uma saída para a complica9ao da sua vida; tem de voltar a si. Mudou de companhias, e fica assim afastada a ajuda que talvcz desse algum
contributo para fazer soltar a míigoa. 1 ·1971 As suas novas companh ias nada
conhccem da sua vida anterior, e nada pressentem; pois o seu exterior nada
1cm de notório ou de assinalável, nenhuma marca de mágoa, ncnhuma placa a avisar toda a gente de que aqui há mágoa. Consegue dominar qualquer
cxpressao, pois a pcrda da sua honra sabe bem ensinar-lhe tal coisa; e embora nao atri.bua um precto alto ao juízo dos homens, pode pelo menos
prescindir das suas condolencias. Ora, assim, fica Lucio em ordem e cla
pode contar, eom tocia a certeza, fazer a sua vida scm despertar suspeitas na
gentalha curiosa, que na generalidade é Llio estúpida 4uanlo curiosa. Está
cntüo na legítima e incontcstacla posse da sua mágoa, e só se houvesse de
1cr tanto infortúnio que cleparasse com um contrabandista profissional, só
cntao 1cria a recear uma inspec-;ao mais rigorosa. O que se passa realmente
no seu interior? Sente mágoa? Se scnte! Mas como luí-de designar-se esta
mágoa? Chamar-lhe-ia cuidados eom as neccssidades da vida53; pois a vida
dos homens nao consiste apenas em comer e beber; também a alma exige
que a sustentem. É jovem e, con tu do. as suas reservas vitais consumiramsc, mas daí nao resulta que venha a morrer. A este respeito. preocupa-se
cm cada dia como día de amanha. Nao pode deixar de o amar e, nao obstante, ele enganou-a, mas se ele a enganou. deveras que o amor dela54
p~rde a respectiva fon;a nutriente. Sim. se ele nao a tivcsse enganado, se
um poder mais alto o tivesse anebatado, deveras que ela estaría tao bem
cuidada como qualqucr rapariga pode para si desejar, visto que a lembrarn;:a
51 Vd. Salmos. 92: 12: «0 justo tlorescerá como a palmcira: crescerá como o cedro no
Líbano»: e Salomao. 5: 15: <<As suas pernas. como col unas de mármore, fundadas sobre
base~ de ouro puro: o seu parecer, como o Líbano, excelente como os cedros.»
52 Ca ron te transporta va os defuntos na sua barca atsavés do río J\queronte até chcgarcm
ao n.:i110 de Hades. bra costume colocar uma moeda, o óbolo, sob a língua do cadáver.
ou duas. urna em cad:i olho, para pagar a viagem.
5"\ No original, «Nll!ri11f.:.1sor8». substantivo formado a partir de «Ncering>>. i. e .. «ali111c1110». c «Sm"K», i. c., «tnágo<1», «cuidado~».
5.1. /\qui.
«/Jls/..m•».
Ou
238
de J?on Juan valia rnuito rnais do que muitos esposos cm vida. Mas quando
abdica do seu amor, entáo,
levada a cair na mcndicidade, eruño, terá de
regressar ao convento para escarnio e vergonha seus. Sirn, pudesse ela com
isso comprar para si aquele amor ainda mais urna vez! Assim vai vivcndo.
Odia, que agora o presente. parecc-lhe a inda como capaz de ser suportado, há ainda um resto de que pode viver; mas do dia scguinte, ela sente
temor. Entáo, cisma e volta cismar, agarra-se a qualqucr saída e, contudo,
nenhuma encentra, e nunca consegue assirn chegar a sentir mágoa de urna
maneira consequentc esa, porque continua a procurar como há-de ela sentir mágoa.
«Qucro esquecé-lo, erradicar a imagcm dele da minha alma, ser eu qucm
me dcvassa corno urn fogo devorador, e qualqucr pensamcnto que lhc pertenca há-de arder, só cntáo poderci salvar-me,
ern minha legítima defesa,
se nao erradicar cada um deles, mesmo o pcnsarnento mais remoto sobre
ele. ficarci cntáo perdida, s6 assirn é possível que seja eu propria a
salvaguardar-me. Eu propria - o que este rneu 11981 eu? mcsquinhez e
'.11i~éri~, fui infiel ao meu prirnciro amor, e haveria cu agora ele reparar cssa
infidelidade tornando-me infiel ao scgundo?»
«N~o. odiá-Io-ci, só no ódio pode a minha alma encontrar satisfacño, só
no ódio posso encontrar rcpouso e ocupacáo. Tecerei urna corca de maldi\:Ü~s com ludo aquilo que rno faz recordar. e direi por cada beijo: maldito
sejas, e por cada urna das vezcs que me abracou: dcz vezes maldito sejas, e
por cada urna das vczes que jurou que me ama va, hei-de jurar que o odiare].
Será esta a rninha obra, o rncu rrabalho, a isso me consagro; habituei-me 110
convento a rezar o rosario. e continuo assim a ser urna freira a rezar marinas
e véspcras. Ou talvez houvesse de contentar-me corn o facto ele ele me ter
amado urna vez, talvez houvessc de ser urna rapariga ajuizada que nao 0
rcpelisse com altivo dcsprezo, agora que sei que era impostor, tal vez houvcsse de ser urna boa dona de casa que sabe economizar e esticar tanto quanto
possível u que pouco. Nao, odiá-Io-ei , só dessa forma conscguirei desligar-me dele e demonstrar a mim mesma que dele nao necessito. Mas ficar-lhe-ei
a devcr algurna coisa, quando o odcio? Nao estarei a vivcr as custas dele?
Pois que coisa alimenta o rneu ódio, a nao ser o meu amor por ele?»
«Nao era impostor, nao fazia a menor ideia daquilo que urna mulher
pode sofrer. Se tivesse sido essa a sua ideia, nao me teria abandonado. Era
um homem, b~stava-se a si própriu. Serve-me entáo isso de consoló? Seguramente que srrn, pois o meu sofrimento e o meu tormento comprovam-me
o quanto eu fui feliz. tao feliz que ele ncm sequer tcrn qualqucr ideia disso.
Por que motivo, entño, me queixo eu, porque um homern nño é como urna
muJher, nao é tao feliz quanto ela, quando ela feliz, e nao tao infeliz
quanto ela quando ela ilimitadamente infeliz, porque a felicidade dela nao
tinha limites.»
é
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é
011. U111 1
111r1111·1110
(11· Vidtl
239
«Enganou-uic?
Nuo! l luvin-rne prometido alguma coisa? Nao. O meu
Juan nao era pretendcntc nenhurn; nao era um pobre ladráo de galinhas, por
tal coisa urna freira nao se rebaixa. Nao me pcdiu a máo, estendeu-rne a
rnño dele, agarrei-a. olhou-me, fui sua, abriu-rne os bracos, pertenci-lhe.
l~llcostei-rne, enlcci-rne nelc como urna planta, repousci a rninha cabeca no
scu peito, contemplei essc rosto todo-poderoso com o qual dominava o
mundo, e que todavía repousava cm mim como se. para ele, cu fossc todo
o mundo: como urna enanca de mama suguei a plenitude, a riqueza e a
Iclicidade suprema. Posso exigir mais? Nao era eu sua? Nao era ele mcu?
E se ele nao fossc meu, 11991 seria eu menos sua por isso? Quando os dcuses vagueavam sobre a terra e se apaixonavam por mulheres, foram fiéis as
suas amantes? E todavía a ninguém ocorre dizcr que eles as enganavam! E
porque? porque se dizque urna rapariga deve ficar orgulhosa de ser amada
por um dcus. E o que sao todos os deuses do Olimpo diantc do meu Juan.
E nao havcria eu de estar orgulhosa, haveria eu de rcbaixa-lo , deveria eu
ultrajá-lo cm pensamento, pcrmitindo-lhe que este o sujeitassc as apcrtadas
e miserávcis lcis que se aplicam a gencralidade dos homens? Nao, qucro
sentir-me orgulhosa por ele me ter amado, era rnaior do que os dcuses, e
quero honrá-lo rcduzindo-me eu mesma a nada. Quero arná-lo porque me
pertencia, amá-lo porque me abandonou, e continuo ainda a ser sua, eguardarei o que ele dcsperdi9ar.»
«Nao, nao posso pensar nele: de todas as vezes que quero recordar-me
dele. de tocias as vez.es que o meu pensamcnto se aproxima do esconderijo
da minha alma onde habita a sua rnemória, é entao como se cometesse um
novo pecado, sinto uma angústia, urna angústia indizívcl, urna angústia
como aquela que me invadía no convento, quando sentada na minha cela
solitária espera va por ele, com pensamentos que me at.erroriz.avarn: o severo dcsdém da abadessa, a puni<,:ao Lerrível do convento. a minha ofensa a
Oeus. E nao fazia entretanto esta angústia parte disso? O que seria do mcu
amor sem ela! Ele nao era de facto meu esposo, nao receberamos a bcn9ao
da igreja. os sinos nao dobrararn por nós, ncm soaram os hines e. conludo,
o que eram toda a música e todo o cerimonial da igreja, comparados com
aquela angústia, como havcriam eles de conseguir prcdispor-me! - Mas
ele cntao chegou e a desarmonía tia angústia dissipou-sc na suprema e feliz
harmonía da seguranrya, e apenas frémitos suaves agitavam voluptuosamente a 1ninha alma. Haveria eu entao de temer esta angústia, nao é claque mo
recon.la. nao é ela o anúncio da sua chegada? Se eu pudesse recordá-lo sem
esta angústia, nao cstaria entao efectivamente a recordá-lo. Ele chcga, ofcrece silencio, domina os espíritos que querem arrancar-me dele, sou sua,
:-.umamente feliz. com ele.))
Se eu imaginasse alguém cm perigo no mar, desintcrcssado da vida, que
continuassc a bordo porque havia alguma coisa que qucria salvar e que nao
240
~01 t•11 K ic1 kcguard
era capaz de salvar, porque eslava indeciso acerca do que havcria de salvar,
obtenho assim urna imagem de Elvira; está cm pcrigo no mar, está prestes
a afondar-se, mas isso nao a preocupa, nao repara nisso, está indecisa acerca do que há-de salvar.
12001
Ou
241
Vid11
Ol1. U111 h.1r111~·n1111k
parcela de tcrra corn cssa especie de flores, e tcrás trabalho de máos para
toda a tua vida.
Já foi comenrado58 como era notório que enquanto a lenda de Don Juan
fala de mil e tres seduzidas só em Espanha, a lenda de Fausto fala apenas
de urna única jovem seduzida. Valerá certamente a pena nao esquecer esta
obscrvacño, pois é significativa para o que adiante se scgue, guiando-no~<>
na deterrninacáo do que
próprio da mágoa reflexiva de Margarcte. A
primeira vista poderla designadamente parecer que se tratava apenas da
difercnca entre El vira e Margarete , cnquanto difcrenca entre duas individualidades distintas que haviam passado pelo mesmo. A difercnca entretanto multo mais esscncial e, contudo, nao se fundamenta tanto na distincáo
entre os seres femininos quanto na distincáo essencial que tcrn lugar entre
um Don. Juan e um Faust. Tern de ha ver. j~í desde o início, urna difcrenca
entre urna Elvira e urna Margarctc, porquanto a rapariga que venha a afectar um Fausto tcm de ser cssencialmente diferente da rapariga que afecta
um Don Juan; mesmo que eu imagine 12011 que se trata da mesma rapariga
a dar que fazcr a atencüo de ambos, havcria todavía urna outra coisa: urn
deles sentía-se fascinado de maneira diferente do outro. A difcrenca, que
assim apenas estava presente como urna possibilidadc, ao ser colocada cm
relacño ora com Don Juan, ora corn fausto, descnvolvc-se até atingir urna
realidade completa. É cerro que Fausto designadamcnte urna reproducáo
ele Don Juan; mas o facto ele ser urna rcproducáo Iaz justamente corn que
ele próprio scja, por esséncia. diferente do outro no estadio da vida em que
pode ser designado como Don Juan; pois, com efcito , reproduzir urn outro
estadio nao dizer que passa simplesmeníc a ser esse estadio, mas antes
que se passa a ser esse estádio contendo ern si todos os momentos do estádio anterior'". Por conseguinte, cmbora desoje ardentementé0 o mesmo
que um Don Juan, desoja-o porém de um outro modo. Mas para que ele
vcnha a conseguir desejar de urn outro modo. também isso tem de estar
presente de outro modo. Há momentos em Fausto que fazem do método um
outro, tal como tambérn há momentos em Margarete que tornam necessario
um outro método. O método de Fausto está nutra vez na dependencia da
sua volúpia, e a sua volúpia é distinta da de Don Juan, apesar de haver urna
é
3. Margarete=
Conhcccmos esta menina do Faust de Goet.he. Era urna rapariguinha
burguesa e nao cstava, como Elvira, destinada ao convento; mas fora, no
cntanto, criada no temor a Deus, mesmo se a sua alma fosse demasiado
infantil para sentir a seriedade, como eliz Goethe de inigualável maneira:
Halb Kinderspiel,
tlalb Gou i111 l-ler-;.en.56
Aquilo que ncsta rapariga amamos, cm particular, é a grácil sirnplicidade e hurnildadc da sua alma pura. Logo na prirncira vez em que ve Fausto,
scntc-sc demasiado pequena para ser amada por ele, e nao pela curiosidacle de vira saber se Fausto a ama que arranca as pétalas do malmequer,
mas sim por humildadc, por se sentir demasiado pcqucna para escolher e,
por isso, inclina-se diantc da sentenca oracular de um misterioso poder.
Sim, querida Margarete! Goethe traiu o motivo por que arrancavas as
pétalas ao proferir estas palavras «ama-me, nao me ama»57; pobre Margarete, podes até prosseguir corn esta tarefa, mudando simplesrnente as palavras: «enganou-rne, nao me enganou»; podes até cultivar urna pcqucna
é
55 O autor nao utiliza o nome da personagem 110 original alemáo, i. e .. mas sim o nome
com que a personagem [icou conhecida na traducáo dinamarquesa. «Margrctc».
56 E111 alemiio no original: «chelo de brinquedos /e já de Deus o coracño». na traducáo
de Joáo Barreruo, Fw1s10. Lisboa: Círculo del .citorcs, 1999, p. 2l6. Edi<¡:ao consultada
pelo autor: J. W. Gocthe. Goethe 's Werke. vollstitndig« Ausgahe lettler Ha11d [Obras de
Goethe, bdi«iio Completa na Última Revisaol, vols. 1-LX, Estugarda. Tübingen, 1828-1842; vol. xn. VV. 3781-3782, p. 199. Vd. também Faust. J::ine Tragodie in Coethes
Werke, Hwuhurger Ausgahe lObras de G .. E<li<;ao de 1 Iamburgol. vols.1-XIV, HallJburgo: Cluistian Wegner, 1948- l 960; vol. UI (Drwna1isc/1e Dichtungen. Ers/er Band [Poemas Dramáticos. Primeiro Volumel). 1949, p. 120. A obra será doravante referida
apenas por Fousf !; as duas edi96es. por Werke e Hamburger Ausxabe. respectivamente;
a tradu«iio portuguesa, por Fauslo.
57 No texto original alemao, lC-se: «Er lieb1 mich liebl mich 11ich1», i. e., «ama-me
- nao me ama». lendo-se na tradu<;;ao portuguesa se lé: <<Mal me 4uer - bem me
quer>>. Vd. Fausr !, v. 3182, in Werke, vol. XII, p. 156, Hamburger A11sgabe, vol. IIJ.
p. JOl; Fausto. p. 184.
é
é
é
58 Vd. cm especial a sec<¡:ao l. «A Genialidadc Sensual Determinada como Sedu<;:ao»,
no capítulo «Üs bstfüiios Eróticos lmediatos ou o Erótico-Musical».
59 Vd. os parágrafos conclusivos do preambulo as tres sec<;:i:it:s que descrcvem os u·cs
estádios do descjo no capítulo <<Os F.stádios Eróticos !mediatos ou o Erótico-Musical».
pp. 110-tll.
60 Todas as ocorrencias de «desejo» e de <~desejo ardente», ou de «dcsejar ardentemenle I com ardor». na sec'<ªº dedicada a Marga rete. corrcspondem no original. respectivamente a «Allroa>) e «atlrua». a exccp9ao da ocorréncia do último parágrafo <leste capílUlo. devidamenlc
n-;~inal;tda.
24J
242
scrnelhanca e. sencial entre elas. Na generalidadc, eré-ve estar a dizcr urna
coisa muito perspicaz quando se destaca o facto de Fausto acabar por se
lomar um Don Juan e. com isso, diz-se todavía muitíssirno pouco, dado que
importa aqui saber com que significacño Fausto se transforma cm Don
Juan. Fausto é um demonio tal como um Don Juanrrnas , urn demónio
superior. O sensual só adquire significacño para ele depois de ter perdido
tocio urn mundo anterior. mas a consciencia dessa perda nao se apagou.
está continuamente presente e. portanto, no sensual nao procura tanto o
desfrute como procura a divcrsño, A sua alma duvidantc nada encentra
onde possa repousar-sc, e agarra agora o amor?'. nao porque acredite ncle ,
mas por ele conrer urn momento presencial, no qua! há um instante de repouso, e urna aspiracño que distrai e desvía a atencño da inaniclade da dúvida. A sua volúpia nao contém pois a «l leiterkeil»62 que distingue um Don
Juan. O rosto dele nao é sorridcntc, a fronte nao está desanuviada, e a alegria nao é sua companhcira; as jovcns raparigas nao dancarn nos scus
bracos, antes ele que as angustia até si. Por isso, o que ele busca nao é
meramente a volúpia da sensualidade, o que ele desoja com ardor é antes a
imcdiaticidadc do cspírito. Tal como as sombras no mundo dos monos
quando se apodera vam de alguérn vivo 1 he sugavam o sangue , con seg u indo
agora vi ver cnquanto o sangue as aqucccs e e alimentasse , também Fausto
procura urna vida imecliata que o rcjuvencsca e fortalecu. E 12021 onde será
mclhor encontrar tal vida do que numa jovcm rapariga. e como poderá ele
sugar tal vida mais intcirarncnte do que no abrace do amor? Tal como a
ldade Média Iala de Iciticciros que sabiam como preparar um elixir da juventudc utilizando para tal o coracño de urna enanca inocente, iambérn é
deste Iortalccirnento que a sua alma cxausta necessita, a única coisa que
por um instante pode saciá-lo. A sua alma doente nccessita daquilo a que
podcríamos chamar os prirnciros verdores do coracüo; e a que outra coisa
haveria cu de comparar a prima juventudc da inocente alma fcminina? Se
eu dissesse que como uma flor. di ria muitíssimo pouco, já que é mais, é
um desabrochar; a saúde da csperanca, da fé e da confiunca brota e floresce com rica multiplicidade, e suaves anscios movem os finos botócs e os
sonhos dño sombra fecundidadc destcs, É assirn que urn Fausto a rnovc,
acena a sua alma inquieta como urna ilha de paz no mar tranquilo. Ninguérn
melhor do que Fausto sabe quanto isto é efémero; nao acredita nisso, tal
como nao acredita em coisa alguma; mas no abrace do amor. ele convence-se de que existe. Só a plenitude da inocencia e da puerilidade sao capazes
de reconfortá-lo por um instante.
é
é
a
No Fuust dé Oocthc, Meplii.1·10p/1ele.1· faz com que ele veja Margarctc
uum cspclho. Dclcitarn-sc-lhc os olhos com cal contcmplacáo, mas ~ao é
todavía a bclcza o que ele deseja com ardor, se bcm que a receba conjuntamente.
que ele clescja com ardor é a alegria pura. impcrturbávcl,
rica. e
imcdiata de urna alma fcminina, mas nao a dcseja de urna mancira espiritunl, mas antes sensual, Em cerio sentido. tarnbém deseja como Don Juan,
desojando todavía de urna maneira completamente diferente. Porvet~tu~a
urn qualquer professor extraordinário63, convencido de que ele proprio
havia sido um Fausto, dado que lhe teria sido imposstvel chegar ele outro
modo a professor extraordinário, observaría aqui que Fausto exige dcscnvolvirncnto espiritual e cducacño por parte da rapariga que vcnha a dcsperrar o scu de cjo. Porvcntura urn número maior de professorcs extrnord~nários acharia que se trata de urna obscrvacíío brilhantc, e as respectivas
esposas e namoradas inclinariam a cabcca cm sinal de aprovacño. Entretanto, falhararn redondamente. visto que Fausto nada desejaria com meno.
ardor. Urna rapuriga, a quern se desse o nornc de educada, situar-sc-ia d~ntro da mesma relarividade tal como ele próprio e, ernbora para ele tal corsa
ncm scquer tivcsse significacño ncnhuma, ncm scqucr seria nada. Com a
sua migalha de cducacño tal vez tentassc o vclho rnc-,t~c da d~vi~a a lcvá~la
l'Om ele para a corrcntc onde clu deprcssa desespcnmu. /\o rnves, urna JOvcm inocente rica dentro de mitra relatividaclc e, por isso. nada é, cm ccrlo
12031 sentido, pcrante fausto e, no entanto, noutro <,entido, é imensamcntc
nrnis, dado que cla é imcdiaticidaclc. Só dentro desta imcdiatieidude ela se
con-;titui como alvo do desejo ardcntc dele e ulirmci, por bso. que ele de... cja a ime<liuticidadc nao <le uma maneira espiritual, mas sim sensual.
Gocthe intcligiu tudo islo perfeitamente e, por isso. Margarele é urna
rapariguinha burguesa, urna rapariga a quem poderíamos ter quase a te1lta\ªº de chamar insignificante. Dado que é de impo11fincia para a mágoa de
Margarcte, vamos agora examinar mais.de pcrto como havcrá Fa~sto de
produz.ido efeito sobre eta. Os trac;os s111gulares rcal¡;ados por (1oethe sao
obviamente de grande valor: mas creio todavía que, a bcm da complctuúc.
há urna pcquena modifica<;ao que tem de ser pensada. Na sua. inocent.e
-;implicidade, Margarcle depressa repara que, em Fausto. no que d1z respe110
fé. alguma coisa nao bate eerto. Em Goethc. isto surge na pequena
l.'cna da catequiza¡yao64, inegavelmente uma excelente inven<;iio do poeta.
1.cvanta-se agora a questao de saber quais as consequencias que este ex~mc
pode implicar para a sua relac;ao recíproca. Fausto mostra-sc como duv1da-
o
t:r
a
h1 J\lu,ao a Martcnscn.
61 Ncsta ocorréncia de «amor», bem como nas duas seguintes. IG-sc no original «El
skov»,
62 Em alernño e entre aspas no original: «jovialidadc».
Vd. nota 80 no capítulo «ÜS Estádios
Eróticos lmcdiato~ ou o
F1 <íl ico Musical>>.
(l-1 Vd. Faust f. vv. 341.1 ll68. 111 Werkc, \OI. 11. pp. 60~6l. lln111/11ir¡¡er Aus¡¡abe. vol.
111, pp I 09 l lO; ¡.'uu.110, ¡lp 197 I 99
244
K ll'' kegnurd
245
dor, e parece que Gocthe quis dcixar que Fausto continuassc a ser duvidudor também diante de Margarcte, pois nada mais sugcriu a cssc respeito.
Esíorcou-se por afastar a atcncáo dela de todas as investigacñes sernelhantes, e por fixá-la única e exclusivamente na rcalidadc'" do amor. Mas. por
um lado, creio que, urna vez surgido o problema. seria difícil para Fausto
e. por outro lado, creio que nao está certo do ponto de vista psicológico.
Nao é devido a Fausto que me deterei mais neste ponto, mas sim dcvido a
Margarete; pois se ele nao se houver mostrado <liante dela enquanto duvidador, a mágoa dela tcrn mais um momento. Portanro, Fausto é duvidador,
mas nao é um tolo vaidoso que queira (azer-sc passar por portador de significacáo duvidando daquilo cm que os outros acreditam; a sua dúvida tcm
urn fundamento objectivo ncle próprio. Seja isto dito cm honra de Fausto.
r .ogo que ele, ao invés, pretende impor a sua dúvida aos out ros. pode f'acilmente urna paixño impura imiscuir-se.
Logo que a dúvída é imposta aos
curros, encentra-se nisso urna invcja que se alegra quando os despoja daquilo que tinharn por garantido. Mas para que cssa paixño da inveja venha
a ser despertada no duvidador, rcrn de ser possível falar de urna oposicño
por parte do individuo visado. Onde nao coubcr [alar de oposicño, ou onde
nao for todavía bo11i10 pensar nisso, acaba aí a rentacño. Este último é o
caso de urna rapariga jovcm. Diantc dela, o duvidador está sernpre em 12041
apuros. Despojá-la da sua fé nao é tarcfa para ele: pelo contrario, ele sentc
que é apenas por via da fé que ela possui a grandeza que tern. Sente-sc
humilhado, visto que há nela urna exigencia natural para com ele, para que
ele seja o seu apoio, conquanto ela propria se tornassc vacilante. Sim, um
duvidador desajcitudo, um talso sábio, poderla muito bem encontrar satisfac,;ao por extorquir a fé ele urna rapariga, e alegria por apavorar mulhcrcs e
criancas, visto que nao é capaz de aterrorizar homcns, Mas isto nao se aplica a Fausto; é demasiado grande para tal. Portante. é possível estar de
acordo corn Goethe quanto ao facto de fausto trair a sua dúvida urna primeira vez, porérn, ao invés, nao creio de todo que lhe suceda o mesmo na
segunda vez. Isto é de grande importancia no que diz respeito
concepcáo
de Margarete. Fausto vé prontamente que toda a significacáo de Margarcte
assenra na sua inocente simplicidade; se lha tirarem. Margarete ern sí nao é
nada, nada é para ele: por conseguinte, tem de ser conservada. Ele duvidador, mas. nessa qualidade, tem todos os momentos do positivo em si,
caso contrário seria um péssimo duvidador. Falta-lhc o ponto de conclusño,
através do qual lodos os momentos se transforrnam em momentos negativos. Gla, ao invés. tcm o ponto da conclusáo, tema puerilidade e a inocéncia. Portanto, nada é mais fácil para ele do que equipá-la. A sua prática da
Sp1 ~·11
a
é
65 Vd. notas 32 e 44 no capítulo «O Rctlexo do Trágico Antigo no Trágico Moderno»,
e rambém outras ocorréncias esparsas. assinaladas nas notas 68, 69, e 105 cm «Diario
do Sedutor». As ocorréncias assinaladas nas notas 39 e 44 do capítulo «A Rotacño de
Culturas». bcm como a nota 15 no capítulo «Ü mais Infeliz», constituem os dois casos
mais relevantes do uso de «Realitet»,
vida cnsinou-Ihc bastantes vczcs como aquilo que expunha como dúvida
produzia nos outros o clcito de verdacle positiva. Ele encontra entáo alegria
:10 enriquece-la agora com urn conteúdo rico de intuicáo, toma tocio o ador110 imediato da te, encentra alegria ao enfeitá-la coma Ié, porque lhe asscnLa bem e fica assirn mais bonita a seus olhos. Em simultáneo, retira daí a
vantagem de a alma dela ficar cada vez mais firmemente ligada i\ sua. Ela
ncrn sequer propriamente o entende: liga-se cada vez rnais a ele como urna
enanca: o que para ele
dúvida. para ela é verdade incontestável. Mas
enguanto Fausto edifica assim a fé dela, corrói-lhe ao mesmo tempo essa
fe, pois ele próprio acaba por se tornar um objecto de fé para ela, um deus,
nao urn homem. Só tcnho aqui de csforc;:ar-mc por evitar um mau entcnclimcnto. Podcria parecer que l'a<;o de Fausto um jgnóbil hipócrita. Nao é de
10<.10 o caso. É a própría Grete qucm trouxe o assunto ~1 baila; ele abarca de
um só relance a magnificencia que ela ere possuir e ve que esta nao pode
-;ubsistir diante da sua dúvida, mas nao lhe falta a coragem para a destrui_r,
e agora é gra9as a uma certa benevolencia que assím se comporta. O amor
que ela sente dá a Orctc a significa9ao
dele e, contudo. continua sendo
quase uma crian9a; ele 12051 condescende coma puerili<lade dela, e alegrase ao ver como Margarete se apropria de tudo. Para o futuro el<:? Margarete
tuclo isto traz entretanto consequencias
das mais penosas. Se Fausto se tivcssc mostrado a Grctc como duvidador, mais tarde eta teria porventura
conseguido salvar a sua f'é, entao, teria rcconhccido com toda a humilclacle
que os pcnsa111c111.os arnbiciosos e arrojados ele Fausto nao eram para ela,
tcr-sc-ia segurado bem ao que tinha. Ao invés, devc-lhc agora o conteúdo
da fé e, contudo, quando ele a abandona, ela int.t:ligc que ncm ele próprio
acreditava nisso. Enquanto ele esteve com ela, nao descobriu a dúvida,
agora que ele partiu, tudo para ela se altera, ve dúvida em tudo, uma dúvicla que nao é capaz de dominar, pois continua a pensar conjuntamente na
circunstancia ele o próprio Fausto nao haver conseguido controlá-la.
Também segundo a co11ccp1rao de Goethe. aquilo com que Fausto prende
Margaretc nao é tanto mn talento sedutor de Don Juan. mas sim a enorme
supcrioridade de Fausto. Por isso. nem scquer é propriamente capaz de perceber, como ela diz de maneira tao estimável, o que Fausto pode nela encontrar de extraordinário66• Portanto, a primeira impressao que ele lhe causa é
avassaladora, diante dele, fica mesmo reduzida a nada. Ela nao é de todo
perten9a ele Fausto, no sentido em que El vira pertence a Don Juan, pois esta
é
66 Fc11w !, vv. 3211-3216.
in Werke, vol. 11. pp. 60-61.
pp. 109-110: Fn11.1f(), pp. 197-199.
Hambw:~er Ausgabe, vol. IIL
246
Ou
todavía a expressño ele um subsistir autonomamcmc cm rclacño a efe,
Margarete antes desaparece por completo em Fausto; rambém nao rompe
corn.o céu par~ lhe pertencer, pois isso encerraría urna justificacáo perante
ele; rrnpcrceptivelmem-, sern a mais remota reflcxüo, Fausto torna-se tudo
para ela. Porém, como desde o início cla nada é, se me é permitido dizé-lo,
t?rna-sc.c~tda vez menos, quanto mais convencida estivcr da quase superioridade d1v111a de Fausto; cla nada é e sirnultaneamenrc limita-se a ser através
dele. O que Goethe diz neutro lugar acerca de Hamlet67, que a sua alma
estava para o corpo como urna semente de carvalho plantada num vaso de
flores, a qual acaba dcsse modo por rebcntar o recipiente, aplica-se ao amor
de Margarete. Fausto
demasiado grande para cla e o amor de Margarete
t~rá de acabar por Ihe dcspedacar a alma. E essc instante nao pode tardar,
visto que Fausto sente muito bcm que cla nao pode continuar nesta irnediaticidadc; nao a conduz agora as mais altas rcgiñcs do cspíriro, pois é dessas
rcgiócs que fogc; deseja-a sensualmente - e abandona-a.
Por conscguintc. Fausto abandonou Margarcte. A perda dela é tao tcrrível
que até os que a rodciarn csqueccrn por um instante aquilo que de curro
modo lhes custaria tanto 12061 esqueccr, esquccern que foi dcsonrada; ela
repousa nu.n:a impotencia total, na qual nño lhc possívcl pensar a sua perda,
e até lhc foi roubada a forca para fazer urna idcia da sua infelicidade. Se
esta condicño pudesse perdurar, cntáo, seria impossível que a mágoa reflexiva surgissc. Todavia, a pouco e pouco, a consolacño dos que a rodeiam devolve Margaretc a si propria, dando-lhc um impulso ao pcnsarncnto através
do qual ele entra de novo cm movirncnto: mas assim que se póe ern movi,~~nto, rnostra-se el_:iramcnte que eta nao está en1 condicóes de segurar urna
uruca das observacñes do pensamento. Escuta-as entáo como se nao fosse
para cla que estivcssern a falar. e ncnhuma dessas palavras trava ou acelera
o desassosscgo do curso do seu pcnsarncnto. O problema é para cla 0 mesmo, tal como foi para Elvira, pensar que Fausto era um impostor, mas
ainda mais difícil, porque fausto leve sobre eta uma influencia mais profunda; nao era um mero impostor. era devoras um hipócrita; cla nada abandonou
por ele, mas deve-lhe tudo e possui ainda este rudo até certo ponto, sé que
agora este rudo mosrra-sc como impostura. E será o que ele disse menos
vcrdadciro, porque ele proprio nisso nao quis crer? De modo nenhurn e, nao
obstante, para ela, isso é assim, pois foi através dele que ela nisso quis crer.
é
é
é
é
67 Vd. Wilhelm Meisters Lehrjahre IOs Anos de Aprendizagem ele W. M.I, We.rke
[Obras], vol. XIX, Livro IV, cap. 13, p. 76: vd. igualmente Goethes Werke. Hamburger
Ausgabe (Obras de G ., Ed_i9ao de Hamburgo], vols. 1-XIV, Hamburgo: Christian Wegner, _1948-1960: vol. V 11 (Romane und Novel/en, Zweiter Band 1 Romances e Novel/en 1).
1950, ~· 246. Em portugués: Os A.nos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, vols. l-IJ,
tradu9ao portuguesa de Paulo Osório ele Castro, Lisboa: Relógio D'Água, 1998; vol. 1,
p. 32.
Ou.
U111 1•111!'1111,.1110
tk Vid:i
247
Podcria parecer que. no caso ele Margarete, te ria ele ser mais difícil por a
rcflexíío cm rnovirneruo; aquilo que a trava é o sentimento de que simplesmente nada era. No entamo, reside aqui outra vez urna colossal elasticidade
dialéctica. Se eta conseguisse segurar o pensamento ele que, no mais rigoroso sentido, nada era, entáo, a reflexáo ficava excluída, cntño, também ela
niio havia sido enganada; pois quando nada se é, entáo, níio há qualqucr
rclacáo, e onde nao há qualquer relacáo, também nao pode falar-se de enga110. Até aqui, cla está em sossego. Este pensamento nao se deixa todavia
segurar. antes varia instantáneamente
na sua contracli9ao. Nada ser é tao-somcnte a exprcssao para o facto de codas as infinitas cliferen9as do amor
Lercm sido negadas e, precisamente por isso, é a exprcssao para a absoluta
validade do seu amor, na qual reside por sua vez a respectiva justificar;íio
absoluta. A conduta dele nao é meramente urna impostura, mas urna ubsolula impostura. porque o amor dela era absoluto. E nao lhe é possível voltar a
ter aquí repouso, visto que, como ele foi tudo para eta, Margarete nem ser:í
capa1. de segurar esse pensamcn10, sem que seja por intcrmédio de Fausto;
mas nao pode pcns<í-lo por scu intermédio, porque ele era um impostor.
Agora que se vai alheando cada vez mais dos que a rocleiam, 12071 comc<;a o movimento interior. Nao se limitara a amar Pausto com toda a sua alma. tinha sido antes ele a sua fon,:a vital, ela veio 11 existéncia por intermédio dele. Jst<.l impli<.:a que a alma dela, quanto a disposi9ao, nao se comova
decerto menos do que a de El vira. antes in1plica que a disposi<;ao singular
se comova menos. Está a caminho de ter urna disposi9ao fundamental. e a
disposi9ao singular é como uma bolha que sobe das profundezas. que oem
tem for9a para se suster, nem é empurrada por uma nova bolha, desfaz-se
antes na disposi9IT0 geral, a de ela nada ser. Esta disposi9i:io fundamental é
por seu lurno urna concli9ao que é sentida, que nño se exprime numa qualquer exclamac;ao singular, é inclizívcI, e é baldado o cnsaio levado a cabo
pela disposic,;ao singular de modo a ergue-La. a elevá-la. Por isso, a clisposic,;ao total continua a soar em conjunto com a disposic;ao singular, criando-lhe ressonancia sob a forma de impotencia e prostrac,;ao. A disposic;a.o
singular encontra expressao, mas nao alivia, nao atenua e, para empregar
urna expressao da rninha Elvira sueca. a qual é seguramente bem mais de1101.ativa, se hem que um hornem a conceba aincla menor, a disposic;ao singular é um falso suspiro que dcscngana, nao é como um suspiro ele verdacle,
que é urna movimenta9ao revigorante e benéfica. A disposi9ao singular
11cm sequer é tonificante, ou enérgica, para o ser, é demasiado pesado o scu
suspiro68.
68 A edi9iío SKS regista «Aa11de1raek», i. e., «suspiro>>, de acordo como manuscrito.
cm dc1riincn10 de «Udll)>k». i. e .• «expressfto». termo usado na primeira e na segunda
cdi9oes de En1e11-ll.'ller, aind11 cm vida ele Kicrkegaanl
249
248
Ou
«Podcrei csquccé-lo? Pode o ribeiro, por mais longc que conrinuc a
correr, esqueccr a forne. csqueccr a sua nascente , apartar-se dela? Entño,
teria de parar de correr! Pode a flecha, por mais veloz que voc, csqucccr
a corda do arco? Entáo, teria de parar no seu voo! Pode a gota de chuva,
por rnais longe que caía. esquccer o céu de onde cai? Entño, tcria de
dcsfazer-scl Poderci tornar-me outra, poderei nascer outra vez de urna
mñe que nfío é a rnínha? Poderei csquecé-Io? Enráo teria eu dcveras de
cessar de ser!»
«Podcrei lembrá-lo'? Pode a minha recordacáo fazé-lo surgir, agora que
ele dcsapareccu, eu que apenas sou a minha recordacño dele'! Esta pálida
imagern encvoada, é es e o Fausto que eu adora va'! Recordo as suas palavras, mas nño possuo a harpa da sua voz! Lembro-rne das . uas conversas,
mas o meu pcito é demasiado fraco para lhcs ciar corpol A ouvidos moucos
soarn sem signiflcacáo!»
«Fausto! Oh! Fausto! Regrcssa, sacia os farnintos, veste os nus, consola
quem morre de sede. visita o solitárío69! Sei bcrn que o rneu amor nenhurna
significacño tcvc para ti, mas também ncrn sequer pedí tal coisa. O mcu
amor prostrou-se humilde a teus pés, o mcu 12081 suspiro era urna precc, o
rncu bcijo urna olereuda de gra~:i1s, o mcu abrace, urna adoracño. Qucrcs
por isso abandonar-me? Nao o subías de anternáo? Ou nao serve de razño
para me amares, o facto de eu precisar de ti, de a minha alma sucumbir
quando nao estás junto de rnim?»
«Dcus do céu, perdoa-rne eu ter amado um homem rnais do que te amo,
e que entretanto o ame ainda; sirn, eu sci que falar-te desta maneira é um
novo pecado. Amor eterno, oh!, deixa que a tua clemencia me ampare, nao
me afastes de ti, devolve-o a mim, inclina o scu coracño de novo para
mim70, apicda-te de mirn, picdude, por voltar a suplicar-te assim!»
«Podcrci rnaldizé-lo? O que sou cu para a tal me atrever? Pode o vaso de
barro afrontar o olciro71? O que era eu? Nada! Barro nas suas rnáos, urna
costcla a partir da qual me criou72! O que era eu? Urna pequenina planta, e
ele inclinou se para chcgar até mirn, criou-mc com amor", era rudo para
rnim, o mcu dcus, a origcm do meu pcnsamento, o alimento da mínha alma»
«Podcrci sentir rnágoa? Nao. nao! Como urna bruma nocturna, a mágoa
cobre a mínha alma. Oh ' , regrcssa para mím. renunciarci a tí, jarnais cxigirci pertcnccr-te, scnta-te sirnplcsrncnte junto de mirn, olha-rne para que cu
ganhe forca para suspirar. fala comigo, fala-me de ti. como se fosses um
cstranho. esquecerci que és tu: fata para que as lágrimas consígam soltar-se.
ao sou eu tampouco nada, nem sequer capaz de chorar a nao ser por seu
Ou. Um
h11¡•111i
11111
d~·
1d:i
intermédio!»
«Onde poderei encontrar paz e rcpouso? Sobem-rnc os pensamcntos
pela alma, crgucm-sc um contra o curro, confundcm-sc um com o outro.
Quando cstavas junto de mim, obcdcciam ao tcu sinal, brincava cu cntao
com eles como urna crian\:a. cntntn\:ava-os numa grinalda e colocava-os
..,obre a minha caber;a, deixava que ewoa9as1:>em como o meu cabclo sollo
ao vento. Agora enrolam-se de urna maneira aterradora ~t minha volta.
cnroscam-se como cobras apertando a minha alma angustiada.»
«E sou mae! Um ser vivo exige-me alimento. Pode o faminto saciar o
faminto, e qucm morre de sede dar de beber ao sedento? Hei-de entao
tornar-me uma assassína'! Oh!, Fausto, voila para mim, salva a crian9a no
-,eio materno, mesmo que ncm sequer queiras salvar a mae!»
É assim que Margarete nao é movida pela dísposi<rao, mas antes na
disposi\:ao; mas a disposi~ao singular nao a alivia, porque se desfaz na
disposir;fío total que eta nao conscguc anular. Sim, se Fausto lhe fosse arrancado, Margarctc nao procuraría qualquer apaziguamento; a '\ua sortc
~cria todavia ínvejávcl ao~ scus olhos - mas foi cnganada. Falla-lhe o
12091 que se poderia chamar a situar;ao da múgoa, pois nao lhc é possívcl
i.entir mágoa sozinha. Sim, pudesse eta encontrar a entrada de urna gruta de
eco. como a pobre Florine no conto de fadas74, sabendo que cada suspiro,
mela qucixume que claí saísse seria ouvido pelo seu amado. e nao passaria
aí meramente tres noites como Florine, antes quereria af pennanecer dia e
noitc; mas no palácio de Fausto nao há nenhuma gruta do eco, e ele, ouvido
11enhum tcm no conl\:ªº dela.
69 Mateus, 25:35-36: «Porque rivc fume e dcstes me de comer: tive sede. e desies-rnc
de beber: era estrangeiro e hospedastcs-me, I Estava nu e vestistcs-rne; adocci, e
visitastes-mc; csrive na prisño , e fostes vcr-rnc.»
70 Salmos. 119:36: «Inclina o meu coracáo aos tcus testcmunhos. e nño
cobica», e
também 141 :4: «Nao inclines o meu coracáo para o mal. nern para se ocupar de cobas
más com aquelcs que praticarn a iniquidade: e nao coma das suas delfcias,»
71 Romanos, 9:21: «Ou nao tem o olciro poder sobre o barro, para, da mesma massa,
fazer um vaso para honra e outro para dcsonra?»
72 Livro do Génesis. 2:21-23: «Entño o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre
Adño, e este adormcceu: e tornou urna das suas costclas. e ccrrou a carne cm scu lugar;
I E da costela, que o Senhor tomou do homern. lormou urna mulher: e 11011~c a a Adao.»
a
* *
*
73 O autor utiliLa o verbo «ill opelske». tenno corn múltiplas ocorrencias nos Discursos
J:cltfirn111es e em Ol>ras do Amor.
74 ·Protagonista do conto ele facla~ Den blaa F11gl [O Pássaro Azul]. aclapta\:iiO do original fra11ccs /_'oiseau 8/eu. in Maric Calhcrinc d'Aulnoy (1651
1705). Le., Conte.\ de
/ <'t''· vol .... 1-lV. Pari..,, 1810: vol. I, pp. 88-96. O conto é uma das muiias variante~.
'llfgida' no período 1nm5nlll'11, da novela mcdieva llistoria de los dos c11w11orad().I
F/11re.1 1· /J/1111cq/lor.
~ 1
250
Talvez já vos tenha tomado demasiado tempo, prcndcndo a vossa aten<;ao para estas imagens, caros 2:vµnagavexv(l)f!eVOL, tanto mais ainda que,
por mais que eu ten ha Ialado, nada de visível se mostrou diante de vós. No
entanto, tal nao fica de facto a dever-se a natureza fraudulenta da rninha
apresentacáo, mas ao próprio assunto e a dissimulacáo da mágoa. Quando
a oportunidade propicia se oferece, rnanilcsta-se entáo o que está escondído.Temo-Jo pois em nosso poder, e queremos agora na despedida fazer
com que estas tres noivas da mágoa se unarn, deixemos que se abracem
urnas as curras na consonancia da mágoa, que diantc de nós facarn um
grupo, um tabernáculo, onde a voz da rnágoa nao cmudccc, onde o suspiro
nao cessa, porque sao clas, mais zelosas e mais fiéis do que vestais, aguardar a obscrvacáo dos ritos sagrados. Fósscrnos nós interrompé-las, fósscmos nós descjar-lhcs'" o regrcsso do perdido, e constituiría isso urn ganho
para clas? Nao haviarn já rccebido urna consagracáo superior? E esta consagracño uni-las-á, [aneando urna bclcza sobre a sua uniño. e nessa uniáo
laculrando-lhes alívio, pois só aquele que mordido pelas cobras sabe o
que terá de sofrcr qucm mordido por cobras.
é
é
75 Aqui, «onske»,
12111
O mais Infeliz
Urna Alocucáo Entusiástica aos L"UµJtagavEXQWµEVOL1
Pcroracáo nos Encontros de Scxia-Fcira
12131
Como é sabido, dizern que há algures em Inglaterra urna sepultura que
nao se destaca por ter um monumento esplendoroso ou urna ambiéncia
melancólica, mas sim por urna pequena inscricño - «Ü mais iníelizs '.
Dizern que a sepultura foi aberta, mas que nao cncontraram qualquer vesugio ele um cadáver. Despertará rnaior surprcsa nño se encontrar um cadáver. ou abrir-se a sepultura'! É cstranho, na verdade, que renham arranjado
tempo para verificar se havia alguém l:i dentro. Quando se le um nome num
cpitáfio, surge tacilmcntc a tcntacño de pensar em como lhe tcria corrido a
vida no mundo, poder-se-ia até desejar descer ao seu encontró na sepultura
para com ele conversar. Mas esta inscri<;ao tilo significativa! Um livro
pode ter um título que nos dá vontadc de Ier o Iivro, mas urn título pode ser
cm s.i tuo rico de idcias, e tifo intcrpelador do ponto ele vista pcssoal. que
nunca se chega a Ier o livro. Na verdade, esta inscricáo é tao significativa,
ludo está em conformidade coma disposicño, comovcntc ou alegre - para
aquele que. na tranquilidade da sua mente. porvcntura tivcssc secretamente
desposado o pensamento ele que era ele o mais infeliz. Mas posso pensar
é
2 Trata-se de um túmulo 11a Catedral ele Worcestcr na Inglaterra onde se le a inscricño
«Miserrimns» , i. c., «o muis infeliz». No periódico The Keepsake [A Lembranca]. editado por Frederic Mansel Reynolds (1800-1850).
William Wordsworth (1770-1850)
publicara, cm J 829, 1m1 soneto intitulado «il Gravestone Upon Tlie Floor 1111'/ie Cloisters Of Worcester Cuthedral» [«Uma Lapide Tumular no Chao <los Claustros da Catedral de Worccstcr» 1. cujo tcor rnuito scmclhunte ao parágrafo inicial do presente capítulo; o soneto foi posteriormente publicado ern The l'oems, em 1832. Tarnbém Rcné
Chateaubriand ( l 768-1 !l48) descreve o mesmo túmulo etn Mémoires d'Outre-Tombe
[Memórias para Além do Túmulo]. edi9ao de Maurice Levaillant e Gcorgcs Moulinicr,
París: Bibíiothcquc de la Pléiade , 1951, vols. l-II; vol. I. livro X, cap. V. p. 354. Tal
corno o presente capítnlo de 011-0u, qualquer urna destas eventuais tomes rcaccndc a
discussño de Aristóteles, no prirneiro livro da f.;,¡ca a Nicomaco, em torno do conceito
de íclicidadc como supremo bcm: vd. cm especial 11 OOa e 11O1 b, ern confronto coma
11arra;.;iío de Heródoto sobre Sólon, referida na nota 10 dcste capítulo. Em portugués:
Aristóteles. Ética a Nicáruaco. traducño do grego e notas de Antonio C. Caciro, l .isboa:
Quetzal Editores, 2004, pp, 34-~5 e :18-39, respectivamente.
é
1 Vd. nota l no capítulo «0 Rctlcxo do Trágico Antigo no Trágico Moderno».
254
Ou
mis ocupacócs,
e que cstabclcccu como tarefa da sua curiosidade vira saber se realmente se cnconuuva alguém
naquela sepultura. Mas vede, a sepultura estava vazia: Tal vez tenha rcssuscitado, talvez tenha querido trocar das palavras do poeta:
- na sepultura há paz,
O seu silencioso ocupante nao conhece o pesar-';
rcpouso algum cncontrou, ncm mesmo na sepultura, talvcz ande outra vez,
a vagabundear errante pelo mundo, abandonou a casa, o lar. limitando-se a
deixar urn enderece! Ou ainda nao foi encontrado, ele, o mais infeliz, que
nern mesmo as Eurnénidas perseguem até que encentre a porta do templo4
e o humilde banco dos que orarn, seudo, porérn, manticlo em vicia pelos
pesares, perseguido até a sepultura pelos pesares!
1 1 aja elcdc nao serencon tradoccabc-nos en tao .caros CJ'U µJtaQovgxow usvor,
cmprcendcr uma pcregrinacño como cruzados, nao até cssc Santo Sepulcro
no 12141 feliz Oriente, mas até cssa pesarosa sepultura no infeliz Oeidentc.
Queremos procurá-lo, o rnais infeliz. junto a cssa sepultura vazia. certos ele
que o encontramos, pois tal como o anseio do crente aspira pelo Santo Sepulcro, também os infelizes sao arrastados para Ocidentc até essa sepultura
vazia, deixando-se cada um deles invadir pelo pensamento de que ela lhes
está des ti nada.
Ou nao houvesse urna ponderacño clestas de ser um objecto digno da
nossa consíderacáo, nós, cuja actividade, estando eu a agir de acorde com
os santos preceitos da nossa associacáo. é urn ensaio ele recolhimento casual e aforístico, nós que nao pensamos nem falamos por aforismos, mas que
antes vi vemos aforisticarnente, nós que vivernos <X<pOQLOp.cvm5 e segregar/\ como aforismos na vida, fora do convívio corn os horncns, scrn tomar
parte nos scus pesares e nas suas alegrías. nós que nao estamos cm censonáncia com o barulho da vida, seudo antes pássaros soliuirios na quietude
urna única vez apenas para sermos edificados por
rcprcscntacñes da rniséria da vida, da duracáo do dia e da infinita durabilidado do tempo, nós. caros CJ'UµnaoavexgwµEvm, que nao acreditamos no
jogo da alegria, nem na felicidade dos tolos, nós que em nada acreditarnos,
a nao ser na inlclicidade.
Vede corno eles avancarn numa íncontável multidáo, todos os infelizes. Sao
afinal muitos os que créern ter sido chamados, mas poucos os escolhidos7. Há
que estabelecer urna separacáo entre eles - urna palavra, e a horda desaparece; os excluídos sao, dcsignadamcntc, convidados indesejáveis, todos aqueles
cuja opiniáo é ser a morte a maior das infelicidades, que ficam iníclizes porque temcm a mortc; pois que nós, caros ouµ..1'[0l)<XVEXQWµtwm. nós. quais
soldados romanos, nao tememos a morte", conhecemos urna infelicidade pior,
sobrcrudo e acima de rudo - a infelicidade ele vivcr, Sim, se houvesse um
homcm que nao puclesse morrer, se for verdadc o que a leuda conta sobre
csse Judeu Errante", como havcríamos de ter hcsiracóes em declará-lo como
num hornem, cuja alma nao conhece
3 Versos retirados do poema épico de Christian Henriksen Pram (1756-1821). Suerkod
der [Starcaterus], Copenhaga , 1785, ode Vil, p. 142.
4 Na tragedia As Euménides, de Ésquilo, Orcstes perseguido pelas Fúrias até que se
refugia no templo de Delfos. Vd. Ésquito, Oresteia: Agamémnon, Coéforas, Eutnénides,
traducño de Manuel de Oliveira Pulquério. Lisboa: Edicóes 70, 199 l. Sao duas aspassagens que melhor evidenciam que Orestes foi a Delfos. A primeira encontra-se na peca
anterior as F.uménides: Coéforas, v. 1035. p. 170: «ORESTES: agora vede: com este
ramo, assim envolvido ele la, vou dirigir-me ao santuario erguido sobre o umbigo da
tena. solo de Lóxias. onde o esplendor do togo brilha incxtingufvcl , para fugir ao sangue <le minha mlíe. Lóxias nao permitiu que recorresse a nutro lar»; a segunda.já em As
Euménides, vv. 40 e segs; p. 187: «PITONISA: Entro no santuario inundado de coroas, e
eis que vejo, junto do "omphalós", Lllll homem odiado pelos deuses, em atitude de suplicante. com as máos a cscorrer de sanguc e a espada rcccntcmcnrc dcscmbainhada.»
5 Em grego no original: «Separados». «postes a parte».
6 Traducáo latina do termo grcgo «acpOQHJµ.Ev01»; vd. nota anterior.
é
Ou. U111 F1:i¡•111l'1tlo
lil' Vida
255
do noitc, rcuniudo-nos
7 Matcus, 22: 14: «Porque muitos silo os chamados. mas poucos os cscolhidos.»
8 Retirado do relato ele Cícero sobre Calo, o velho, Para o presente passo, vd. Cato
maior de senectute [Cato, o Vclho. sobre a Velhice]. livro XX, p. 75. fali91ío consullada
pelo autor: M. 'l'ullii Ci<·ero11is opera omnia !Obras Completas ele M. Túlio Cícero!.
vols. 1-IV e fndex. edi9íio de Johann August Ernesti, l lallc. 1756-1757: vol. IV, p. 956.
l~lll portugucs: CatriooV<'lho ou Oa Vefhice. tradu9ao do lat im. i11trotlL1C,ao e noias de
Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Cotovia, 1998. pp. 50 e SJ.
9 Ou Ahasveru:-:, pcrsonagem lend:írü1 do Sul da Europa, com lendas lranscriws no início
do século x1u. sobre a qual recaiu u rmildic.:ao ele ser imortill como castigo por ter batido
e tro<;ado de Jes11s a caminho do Calvário, tendo-lhe Jesus dilo que ele haveria de esperar
:ité il segunda vinda do Cristo. A lenda baseia-se ern parte nas palavras de Jesus, Mateus,
16:28 («cm verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estao, que nao provarlío a
morte, até que vcjam viro Filho do hornem no seu reino.>>), mas os factos nam1dos relevam do imaginário medieval: convertido ao cristianismo, o Jucleu Errante tcrá vivido até
:1os cem anos, altura em que mudou de pele e voll:ou a 1.cr o aspecto de um hornem de
Lrinta anos. Extremamente popular foi a publica~lío na Alemanha em 1602 de Kurcze
IJ1'schreibt111R und Erz.ii.hlung vun einem .!11de11 111it Namen Ahasverus 1 Pequena Descri~·iio e Narrativa de Um Judcu de Nome J\hasverus], com oitentas edi9{>es até flnais do
~éculo xv1n, traduzicla em inúmeras línguas, entre as 4uais o dinamarqucs. Durante este
período, o destino do judeu errante e a errílncia do povo jucleu na Europa confl1.1ír~1m no
imaginário popular. A. von Chamisso e Nikolaus Lenau ( 1802-1850) cscrevernm poemas
:-.obre a lenda. respectivamente Der ewige Jude lO Judeu Errante] de 1838, in Adelbctt
von Chamisso. Si:i.11u/iche Werke [Obras CompletasJ, fixay:iO do texto de Jost Perfahl,
notas, glossário, cronologia e posfácio de Volk.er Hoffmann. vols.1-ll. Munique: Wink.Jer
Yerlag, 1975: vol. l, pp. 611-613; e Ahasve1; der ewige .lude IA., o Judcu Errante], de
1827-1831, in Nikolaus Lenau. Siimtlir:he Werke, Briefe !Obras Completas. Carlas l. Es1ugarda: J. G. Cotta'schc Buchhandlung Nachf., 1959, p. 65. Kierkegaar<l at.ribui caracLcrí~ticas do Jucleu Errante a outras figuras mítico-lcndárias que sao alvo de tral.amento
cxtc11sivo na presente obra. Em Pnp. I C 58 (Not 2:7, SKS, vol. 19. p. 94) ePap. lJ ASO
(AA:38, SKS, vol. 17, p. 49), 1_5-ierkc&·wrcl afirma que, cm Don Juan .. sceombinam ele-
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o mais infeliz'! Seria entáo explicáveJ por que motivo esta va a sepultura vazia;
era para indicar que o mais infeliz seria aquele que nño pudcsse morrer, que
nao pudessc sumir-se para dentro de uma sepultura. Ficava o assunto arrumado. e a rcsposta era fácil. visto que o mais infeliz seria aquelc que nao pudcsse morrcr, e seria feliz qucm pudesse morrcr; seria feliz qucm morresse na
velhicc, mas rnais feliz seria quem morrcsse na juventude, seria felicfssimo
qucm morresseao nascer, e o mais feliz de todos seria aqucle que nunca tivesse nascido. Mas as coisas nao se passam assim, a mortc a felicidadc comum a todos os homcns e, rendo em conta que o mais infeliz nao foi por conscguin1.e encontrado, tcm pois de ser procurado dentro dcstas limitacñcs.
Vede, desaparecen a horda, reduziu-se o número. Nao vou agora dizer:
conccdci-me 12151 a vossa atencño, pois sci bem que a tcnho: nao digo:
emprcstai-rne os vossos ouvidos, pois sci bem que sao meus. Os vossos
olhos cintilum.já vos crgueis na cadcira. É urna contcnda na qual vale bcm
a pena participar, um combate ainda muis terrível do que se fossc de vida
ou de morte, já que nño tememos a rnorte. Mas a recompensa, claro que
mais soberba do que qualqucr outra no mundo, e mais garantida, pois aguele que tem a certeza de ser o mais infeliz, nao nccessita sequcr de temer a
felicidadc. nao ha-de saborear a humilhacño de ter ele gritar na sua última
hora: S61on, Sólon. Sólon1º~
Ora abramos entño urna livre concorréncia. da qual ninguém ficará excluído. seja por vía da sua condicño, ou da idadc. Ninguérn fica exclufdo a
excepcáo de quemé feliz e de quem teme a morte - sao bcm-vindos todos
os rncmbros da congrcgacño dos infclizcs, o Jugar ele honra está destinado
a qucm for realmente infeliz. a sepultura <10 mais infeliz de todos. A minha
voz rcssoa pelo mundo foru. escutai-a, lodos vós que vos designais como
inlclizes no mundo, mas nao tcmais a rnorte. J\ minha voz ressoa para trás
no tempo. dacio que nao seríamos suficientemente sofísticos para excluir os
defuntos por já terern morrido, pois que de facto viveram. Eu vos conjuro,
é
é
memos de Pausto e do .ludeu Errante. atribuindo a este o elemento de desespero, sublique o Judeu Errante, tcm de ser interpretado epicarnente; cm Pap, II A 56
(AA:46, SKS, vol. 17, p. 59), afirma ainda que Fausto de verá cvoluir para urna nova
ideia. precisamente a icleia simbolizada pelo Judeu Errante.
10 Segundo Heródoto (Historias, livro l. 30-34. 86-90), Creso, rci da Lídia, condenado
il. morte por Ciro, reí da Pérsia, chamou já na Iogueira tres vezes pelo nomc de Sólon.
Ao ter de justificar-se, Creso acaba por confcssar o que Sólon lhc dlssera, i. e., nao ser
a riqueza o que faz um homern mais feliz do que outro. Ciro anula a ordcm de execucáo.
mas nao conseguem apagar a togueira; Creso é salvo pela ch uva que eai por intervcncño
de Apelo. Edicáo consultada pelo autor: Die Geschichtendes Herodotos 1 As Historias
de H.1. vol s. 1-11, rraducáo de Friedrich Langc, Bcrlim, 1824; vol. 1, pp. 18-19. 20, 49-50. Edicáo portuguesa: Heródoto, Historias. Livro l. introducño geral lle Maria Helena
da Rocha Percira, intro<lui.;ao ao Livro 1, vcrsao do grego e notas de José Ribeiro Fcrreira e de Maria de r:'át.ima Silva, Lishoa: Edi96es 70. 2002, pp. 74-77. 115-119.
í"~~ ~ind~
perdoal-i ne por peri urbar a vossa tranqui liclade por u m instante; en con tremo-
-nos junto a sepultura vazia. Tres vczcs grito eu bem alto por esse mundo
fora, vos. os infelízes, escutai-me; pois nao é nossa intencáo resolver este
assunto aqui entre nós, neste recanto do mundo. Encontrado está o lugar
onde terá de ser resolvido diante do mundo intciro!
No entanto, antes de passarmos a interrogar os singulares, lomcrnos os
nossos Jugares aqui sentados na qualiclade ele dignos juízes e companhciros
ele combate. Í'orlalcc;arnos o nosso pensamento, armemo-Jo contra o cneanlamento do ouvido; pois que voz será dcveras tao insinuante como a do
infeliz, que voz ser{i tí.'ío enfcít.ic;antc como a do infeliz, quando fata da sua
própria infelicidade. Tenhamos a dignidade de lomar aqui assento na qualicladc de juízes, na quaJidade de companheiros de combate, para que nao
pcrcamos a visao de conjunto, níio nos dcixando confund'ir pelos singulares, pois que a eloquencia do pesar é infinita e infinitamente inventiva.
Iremos dividir os infelizes em determinados grupos. e apenas será ciada a
paJavra a um cm cada grupo, ciado que nao negaríamos que nenhum imiivíduo singular seja o mais infcli7., mas trata-se antes de uma cJasse; m<is de
modo algum t.crcmos hcsita<;oes na atribui9ao ao representante dessa classe
do nome «O mais infcli1,», nao hesitaremos cm atribuir-lhe a sepultura.
:Cm lodos os escritos si stcmáticos de Hegel, há um único parágrafo que
!rala 12 J 61 da consciencia ínfeliz11• É num profundo desassossego e de co1w~fto palpitante que alguón scrnprc embarca na leitura de tais estudos, no
receio de acabar por vira saber a mais ou a menos. A consciencia infeliz é
uina exe.ressao que basta ser usada _casualmcnlc qo dccorrer de uma conversa para quase conseguir fazer gelar o saqguc e pór os nervos em franja
c. ao ser agora proferida tao formalmente, i'l. semellian9a claquclas misteriosas palavras de um con to de Clemens Brentano: «tertia m.1x mors est» 1 '.?
- pode levar a que se cstrernec;a como um pecador. AL feliz aquelc que
tem mais que ver com o assunto do que escrever sobre ele um parágrafo;
mais feliz éÚ!lda é aquclc que consegue escrever o parágrafo seguint.c. Ora
o infeliz é aquele que, de uma mancira ou de ourra, temo seu ideaL o con11 Para o desenvolvimcnto dcste conccito cm Hegel, vd. Phünomenologie des Geistes
do l::lspírito], in Werke. vol. II, pp. 158-173; Jubiliiums, vol. 11, pp. 166-181; Suhrkamp, vol. f[I, pp. 163 e seg:s. (l. W. F. Hegel. Fenomenologia do Espírito,
1radui.;ao de Pauln Meueses, com a colaborn9ao de Karl-Hcinz Efkcn (vol. 1) e .losé
Nogueira Machado (vol. 11), aprc.senta\.'ªº de 1-Jcnrique Yaz, vols. I-Il, Petrópolis: P.ciitora Vo1..es, 1992; vol. L pp. 140-151.
12 Em latim, 110 original: <<morrcu a terccira no.o>. Vd. Clemens Brentano (1778-'1842),
Oi<: drei Niis.ve [As Tres Nozes] de 1817. Bcrl.im, Konigsberg, 1834. Vd. cíLayao na pági1ia inicial do conto in Clc111e11s Brenlano, Die drei Nii.vse, in Werke.editado por Friedhelm
Kc1npetal, vol s. 1-UL Muniquc: l lnnscr Vcrlag. l %3-1968; vol. 11, 1963. pp. 762-773.
l l'enomcnologia
258
259
tcúdo da sua vida, a plenitude da sua consciéncia, a sua própria csséncia.
fora de si mesmo. O infeliz está scmprc ausente de si mesmo, nunca está
presente em si mesmo. Mas é possível estar manifestamentc ausente quer
num tempo passado, qucr num tempo futuro. Por esta via, todo o territorio
da consciencia infeliz rica suficientemente circunscrito. Agradecemos a
Hegel esta rigorosa delimitacáo e, agora, dado que nao nos limitamos a ser
filósofos que olham para este reino a distancia, pretendemos observar com
rnais rigor, na qualidade de nativos, os diferentes estadios que af se.encoutram. O infeliz está portante ausente. Mas fica-se ausente, quando se está
nurn tempo passado ou num tempo futuro. Tem de insistir-se nesta exprcssao, dado que é manifesto o que a ciencia da linguagem tambérn nos cnsina,
que há um tempus que é presente num tempo passado , e um tempus que
presente num tempo futuro; mas cnsina-nos a mesma ciencia cm simultaneo que há um tempus, que é o plus quam perfectum, no qual nada há de
presencial, e urn futurum exactum13 com cssa mesma característica. Sao
estas as individualidades esperancosas e recordadoras". Em certo sentido,
trata-se dcccrto de individualidades infclizes, designadarnente, por scrcm
apenas cspcrancosas ou apenas recordadoras. se aqueta que feliz. aliás,
for unicamente a individualidadc que está presente a si propria. Entretanto,
nao pode todavía designar-se como infeliz, em sentido estrito, urna individualidadc que seja presencial na esperance ou na recordacáo. Aquilo que
designadarncnte tem de ser aquí relevado é o facto de a individualidadc ser
af presencial. Tambérn assirn verificamos que seria impossível que um
golpe, fosse qual fosse de resto a sua dureza, tornasse um homcrn o rnais
infeliz. Um golpe pode dcsignadamente roubar-lhe ou apenas a esperanca,
fazendo desse modo corn que seja presencial na recordacáo, ou a rccorda~ao, fazendo dcsse modo corn que seja presencial na cspcranca. Ora sigamos em frente para vermes agora como terá cntño a individualidade infeliz
ele ser determinada com maior rigor. 12171 Observemos primeiro a individualiclade cspcrancosa. Quando ela nao agora presencial ern si mesma, na
qualidade de individualidade esperancosa (e consequenternente, nesta medida, infeliz), entño , fica infeliz no mais rigoroso sentido. Urn individuo
que tern esperanca na vida eterna, em certo sentido, pode rnuito bem ser
urna individualidade infeliz, na medida em que abdica do que presente.
mas em sentido rigoroso nao
afina] infeliz porque, ncssa csperanca,
presencial em si mesmo, e nao trava combate cornos momentos singulares
da finitude. Ao invés. se na esperanca nao for capaz de ser presencial em si
mesmo, mas antes perder a sua esperanca, voltar a ter a esperanca, e assirn
sucessivamentc, entáo, está ausente de si proprio, nao apenas noqueé preé
é
é
é
é
13. Correspondcnte ao futuro perfeito.
14 Vd. nota 78 no capítulo «Diapsalmata»,
é
scnrc, mas unnb 111 11t) tempo futuro; entáo, ternos urna forrnacño de infelizcs. Se observarrnos a individualidade recorclaclora, entáo, também assim
acontece. Se capaz de se tornar presente no tempo passado, em sentido
rigoroso, cntáo, nao é infeliz; mas se nao for capaz, mantendo-se antes ela
própria scmpre ausente num tempo passado, entáo , ternos urna forrnacáo de
infclizcs.
A rccordacño é prcfcrcncialmcntc o elemento específico dos infclizcs, o
que obvio. porque o tempo passado tema assinalável qualidade de já ter
passudo, e o lempo futuro, a de que há-de vir, e pois possívcl dizer, cm
cerro sentido. que o tempo futuro está rnais perto do presente do que está o
passado. Ora, para que a indiviclualidade esperancosa venha a tornar-se
presencial no tempo futuro, para ela este tern de conter realidade15, ou melhor, rem de para ela constituir realidade; para que a inclividualidade recordadora vcnha a tornar-se presencial no tempo passado , este tem de para ela
comer realicladc. Mas quanclo a indiviclualicladc espcrancosa qucr ter cspcranca num tempo futuro, o qual nao possui para cla ncnhuma rcalidadc, ou
quando a individualidadc recordadora qucr recordar urn lempo que rcalidade ncnhuma conicvc, cntño, obremos as individualidades
inlelizcs propriamente ditas. Acerca da primeira, nao haveria de crcr-se que fosse possívcl,
ou que fosse dada como pura loucura; entrernentes nño é assim, visto que
hcm pode a individualidade csperancosu nao ter csperanca cm algo CJUC
para cla nao tcnha rcalidade , porérn, tcrn cspera.nr;a cm algo que cla própria
nao sabe se poderá realitar-sc. Quando designadamcnte uma indivi<lualicfodc, na medida ern que perde a esperarn;:a, em vez de se tornar uma individualidacle recordadora. qu.iser tornar-se uma individualidade esperanc;:osa,
cntao, obtemos uma fonnar;ao 12181 desse tipo. Quando uma individualicladc, na medida em que percle a recorda9ao, ou na medida em que nada tem
para recordar, nao quiser tornar-se urna individualidade esperanr;osa. mas
antes quiser continuar a ser urna individualidadc recordadora, cntao, ternos
u111a forrna9ao de infcli:r.cs. Assim, se um inclivíduo se perdesse na Antiguidadc ou na ldade Média, ou cm qualquer outra época, mas de molde a que
c~sa época contivesse para ele uma dada rcalidadc, ou se ele se perdcsse na
sua própria infancia ou juventude, mas <le molde a que a infancia ou a juvc11tude contivesse para ele urna realida<le irrcfutável, enüio, de nao seria
propriamente urna individualidade infeliz em sentido rigoroso. Inversamente, ..,e cu imaginasse um homem que nem sequer tivesse tido infancia próé
é
é
1 '\ Ncslt: parágrafo. todas as ocorrencias
de «realidade»
correspondem
no original ao
<<Reali1ef>>. Vd. a.s ocorrencias assimiladas nas notas 39 e 44 <lo capllulo <<A Rolac_:ao de Culturas», e também OLilras ocorrencias esparsas. assinaladas nas
1¡·11110 dinarnarqucs
1mws J2 e 44 do capítulo
(1'\ do capítulo
•<SilhL1ct<1s»,
«Ó Rerlexo
\! nn1,
tlo Tdgico Anligo
notas
68, 69
e 105
no Trágico Moden10>>.
cm «Diário
do Scdutor>>.
na nota
u
260
pria, visto que esta idade da vida passara por ele sern signi rica9ao propriamente dita, mas que. ao tornar-se agora, por exemplo, professor de enancas.
descobrissc tudo o que de belo a infancia encerra, e que quisesse agora recordar a sua propria infancia, olhando sernpre fixamente para trás, era deceno um cxernplo justificadamente adeqllado. Olhando para trás, acabaría
entáo por chegar a dcscobrir a significacño daquilo que já passara por ele.
e que entretanto quería recordar na sua siguiñcacáo. Se cu imaginasse um
homern que, tendo vivido sem apreender a alegria ou os prazcrcs da vida,
no instante da morte abrisse agora os olhos para tal. irnagi naria eu que ele
nao rnorria, o que seria a maior das venturas, mas que rcssuscitava scrn que
por isso volrasse a viver; decerto que tal homem poderla dcveras ser tido
cm considcracáo, ao colocar-se a questáo ele saber quem foi o mais infeliz.
As individualidades infelizes na esperance nunca térn consigo o doloroso. como acontece corn as individualidades infelizes na recordacáo. As individualidades cspcrancosas tém sernprc urna desilusáo mais festiva. Por
conseguinte, será semprc de procurar o mais infeliz entre as individualidades infelizes da recordacáo.
Querernos entretanto avancar, vamos imaginar agora urna combinacño, no
muis rigoroso dos sentidos, das duas formacóes de inlelizcs aqui descritas. As
individualidades esperancosas infelizes nao podiarn ser presenciais a si mesmas, a semelhanca do que acontece comas individualidades
inlclizcs recordadoras. A cornbinacáo só pode ser esta: aquilo que a impcdc de ser presencial na sua esperance a recordacáo, e aquilo que a impcdc de ser presencial
na recordacáo a esperance. Por um lado. isso reside no facto de o infeliz ter
continuamente esperance no que haveria de ser recordado; a sua esperanca
continuamente desiludida. mas enquanto é desiludida, ele descubre que isso
nao pode advir do facto de o objectivo ser empurrado de cada vez para mais
longo. mas sim do facto de o objectivo já ter passado, ou de já ter sido vivido,
ou de haver de ter sido vivido. e ter assim transitado para a recordacáo. Por
outro lado, ele rccorda-se continuamente daquilo em que haveria de ter esperanca, dado que, no scu pensameruo.já recolhcu o futuro, viveu-o ern pensamento, e recorda o vivido 12191 ern vez de haver de ter cspcranca nisso.
Aquilo em que, portanto, ele tem esperanca está atrás dele, aquilo que recorda está a sua frente. A sua vida nao anda as arrecuas, mas ern inversüo numa
dupla direccáo. Depressa vai reparar na sua infelicidade, se bem que nao se
aperccba do lugar em que ela propriamente se encontra. Para que ele entretanto possa justificadamente ter oportunidade de sentir a infelicidacle, íntervém o mau cntendimento que a cada instante troca dele de estranha rnaneira.
No quotidiano, goza da honra de ser considerado como tendo os cinco alqueires bem medidos e, cornudo, sabe que, se quisesse explicar a um único homem como nele se encadeiam propriamente as coisas, iriam dá-lo por louco.
Seria coisa ele dar com alguérn cm louco e, no cntanto, ele nao cnlouquccc, e
é
é
é
Ou. Uui h
ur1111•1110
tli' vldn
261
é esta precisamente a sua infclicidade. A sua infelicidadc é ter vi~do dernasiado cedo ao mundo e por esse motivo chegar scmpre demasiado tarde.
Encontra-se sernpre rnuito perto de objectivo, e no mesmo instante fica longe
dele descobre entáo que aquilo que agora o faz infeliz, porque tem csse ob[cctivo, ou porque ele está assim, é precisamente aquilo que o tcria fcito feliz
·há alguns anos, se o tivcsse licio, ao passo que ficou infeliz porque nao o teve.
16•
A sua vida nao possui qualqucr significacáo, tal corno Anceu de quemé uso
e costumc dizcr-se que nada se sabe acerca dele, excepto aquilo que deu
ocasiáo ao ditado:
17,
1{,o),A.a µei:a1;u n;e),m xuA.txo; xm Xt::L)\eo; axgou
como se isto nao fossc mais do que suficiente. A sua vida ncnhum sossego
conhece e conteúdo ncnhum contém, ele nao é presencial em si mesmo no
instante. nao é presencial cm si mesmo no tempo futuro, pois o futuro foi
vivido, nao é presencial em si mesmo no tempo passado, pois o passado
ainda nao chcgou. Tal como Latona 18• é perseguido cm círculos até a escuridáo dos Hiperbóreos l9, até luminosa ilha do Equador, e nao consegu~
chegar a ciar a luz, e permanece sendo urna pa1turicnte. Abandonado a SI
próprio no mundo vazio, nao tem qualqucr contcrnporanciclade a qual se
possa ligar, ncnhum passado pelo qua! possa ansiar, pois o scu t_)assa<lo
ainda nao chegnu. nenhum fuluro no qual possa ter esperans;a, po1s o seu
futuro já passou. Sozinho, temo mundo inteiro pela frente, corno o tu com
0 qua! eslá em conflito, visto que todo o resto do mundo é para ele apenas
urna única pessoa, e esta pessoa. este amigo inscparável e inoportuno, é o
mau cntendimcnto. Nao consegue envelhecer, pois nunca foi novo; nao
consegue ser jovem, pois ja envelhcceu; de um certo modo, nao consegue
morrer, pois efectivamente nao viveu; nao !he é possível vi ver de um outro
modo, pois cfeclivamcnte já 12201 morreu; nao consegue amar, pois o amor20
é semprc presencial, e nao possúi qualquer Lempo presente, qual~ucr ten~po
futuro. qualqucr tempo passado e, sendo ernbora uma natureza sunpatéuca,
odcia o mundo apenas porque o ama; nao possui qualquer paixao, nao porque tcnha falla de paixao, mas porque tem no mesmo instante a paixao
a
16 Anccu, filho de Neptuno. viu <.:umprida a profrcia de que nunca provaria '.> vin.ho da
sua própria vinlrn; prestes a ergucr o cálice. ao ouvir que se aproximava um Javah, par1iu para 0 ca'<ar, e morrcu ncssa mesma ca9ada. Edi((í'iO consuha_da ~elo autor: ~>aul
Fricdrich 1\. Nitsch, Neues mythologisches Wiir1erbucl1 1 Novo D1c1onano M1tológ1col.
vols. 1-11. revisan de Fricdrich Gotthilr Klopfer. Leipzig. Sorau. 1821: vol. l. P· 194.
17 Ern grcgo no original: «há mu ita distancia entre a ta'<ª e o rebordo dos lábios».
18 Vd. nota 64 no capítulo «f)iapsalma/a».
.
.
19 Segundo a mitologia grega, os Hiperbóreos habitavam nas regioes setentnonais da
Tcrra.
20 /\qui. «K)a:rliglted», tal como na frase conclusiva do antepenúltimo
cnpftulll.
parágrafo deste
263
262
contraria. nao tem tempo para nada. nño porque o scu tempo csreja chcio
de outras coisas. mas porque nao tem lempo de espécie algurna; é impotente, nao porque lhe faltem as forcas, mas por ser a sua propria forca a Iazcr
com que fique impotente.
No entanto, cm breve estará o nosso coracáo suficientemente endurecido, e tapados os nossos ouvidos, se bem que nao se fechem. Ouvimos a vo:
sensata da pondcracáo, disponhamo-nos a apreciar a eloquéncia da paixño,
concisa, enérgica, como acontece corn toda a paixño.
Gis urna jovcm rapariga. Queixu-sc de que o scu amado lhe foi infiel.
É coísa sobre a qua! nao possívcl rcllectir muito. Mas só a ele amava no
mundo intciro , arnava-o corn toda a sua alma, corn todo o seu coracáo e corn
tod? o seu pensamento21 - entáo. pode dcveras recordar e sentir pesar.
E urn ente real ou urna imagern,
urn ente vivo que está a morrcr, ou
um mono que vive - é Níobc22. Tudo pcrdeu de urna só vez: pcrdeu aquilo
a que dcu vida, pcrdcu o que a vida lhc dcu! Levantai os olhos para cla,
caros ovµmxoavgxgu>~t..cvm,
crguc-xe um pouco mais alto do que o mundo, como urna lápicle tumular sobre urna sepultura. Mas cspcranca alguma
lhc accna. futuro algum a dcrnovc, perspectiva alguma a tenla, csperanca
alguma a inquieta - desesperancuda, erguc-se petrificada na rccordacño;
foi infeliz por um instante, no mesmo instante ficou feliz, e nada podcrá
rctirar-lhc a Iclicidadc: e o mundo muda. mas cla nao conhcce qualqucr
mudunca. e o tempo chcga, mas para cla nao há qualquer tempo futuro a
chcgar.
, Olhai, alérn , que bela rcuniño! Urna dada gera91io cstendc a mño outrn:
E para urna be119ao.,para urna uniño fiel, para urna danca alegre? É a linhagem repudiada de Edipo, e a dcsgraca propaga-se e atingc a que vern por
último - é Antígona. E, no entamo. scrucrn pesar por ela; o pesar de urna
é
é
é
a
21 Marcos. 12:30: «Amarñs pois no Scnhor tcu Dcus, de lodo o teu coracüo. e de toda
a tua alma. e de todo o tcu cntcudimeuto. e <le rodas as ruas forcax: e-re o primciro
manda mcnto.»
22 O cpisódio mitológico
narrado por Homero 11a Iltadu, canto XXIV, vv. 602-617:
«Ncm Níobe de betas lran9a' dcscurou a comida. / apcsar de dozc filhos lhe tcrem
morrido no palácio 1 sei:, filhas e seis filhov vigorosos. / Aos manccbo-, matou Apolo
com o arco de prara, I encolcrizudo contra Níobe; as donzelas, Ártemis, a archeirn, /
~orquc Níobc se mcdirn co111 f .cto do befo rosto, / dizcndo que a dcusa gcrara so dois
filhos. mas ela gcraru rnuitos. I Por isso. dois cmbora fosscm, rnatarum-nos a todos.v
Du'.·a~1te nove dius jazeram no proprio sanguc, pois ninguérn / havia para os sepultar: o
Crúnida transformara o povo cm pcdra, I Mas no décimo día os deuscs celcstiais os
scpultaram. 1 E Níobe lernbrou-se da comida. pois estava cansada de chorar, /Agora
algurcs nos rochcdos, nas monranhas solitárias, I no Sfpilo onde dizcm estar os lcitos
das ninfas divinas.? clas que dancam em torno da correntc de Aqueloo. / aí está ela, urna
pedra, cismando nas tristezas virutas dos dcuscs», in Homero. lliada . traducño de l-rc
derico Lourenco, Lisboa: Livros Cotovia. 2005. pp. 492 493.
é
é
lmhazeru é bastante para urna vida humana. Virou as costas a esperanc;a,
e
.
.
trocou a sua instabilidade pela fidelidade da rceorda~flo. Que ass1m SeJaS
fCliz, querida Antígona! Desejamos-te urna vida longa, tao significativa
quanto um suspiro profundo. Oxalá nenhum esquecimento venha roubar-te
alguma coisa! Que a amargura quotidiana do pesar te seja concedida cm
abundancia!
12211 Urna figura vigorosa aparece, mas essc nao está todavía sozinho,
tcm entflo amigos, como aparece ele aqui? É o patriarca do pesar, é Job23
e os seus amigos. Pcrdcu tudo. mas nao com um só golpe: pois o Scnhor
tirou, e o Senhor tirou, e o Senhor tirou. Os amigo~ cnsinararn-no a apreciar
a amargura da perda; pois o Senhor deu, e o Scnhor dcu, e até uma esposa
incomprccnsiva como dote o Scnhor deu24. Pcrdeu tudu. pois aquilo que
conscrvou está fora do nosso intcressc. Honra lhe seja fcita, caros
ouµJT.aQ<LVl'XQt•)µt'VOt, pelos scus cabclos gri'>alhos e pela sua infelicidade.
Perdeu tudo; mas tudo havia po~suído.
Tem o eabclo dcsgrenhado, a eabec;a inclinada, o rosto caído, a alma
preocupada. É o pai do filho pródigo. Como Job. pcrdeu o que de rnais
querido 1inha no mundo, nao foi todavia o Scnhor que o lcvou, ma<; !.Ím o
inimigo: nüo o perdeu, mas perdeu-o; nao foi levado para longc dele. mas
dc:.aparcccu. Nao fíen sentado cm casa junto ao lumc, a penit~nciar-se;
lcvantou-se e saiu de casa, tudo largou para procurar o perdido: procura
ag.arrá-lo, mas o seu brac;o nao lhe chega pcrto, grita por ele, mas a sua voz.
nao o alcan9a. Contudo, tem esperanc_;a, mesmo que por entre lágrimas,
:1vista-o. mesmo que por entre a neblina. alcanr.;a-o. mesmo que scja na
mortc. A sua esperan9a envelhcceu o. e nada o prende ao mundo a nao ser
a cspcranc;a para a qual vive. O seu andar e~tá cansado, o!> olhos escurccidos, o corpo procura rcpouso, a sua esperanc;a vive. O cabelo está branco,
o corpo decrépito. o andar cslancou, o corac;ao dilacera-se, a sua esperanc;a
vive. Levantai-o. caros crnµMQClVl'XQmµfVOI, ele foi infeliz.
Quemé a pálida figura, <lcsvigorada como uma sombra de um 1110110! O
~cu nome foi esquecido, decorrenun muitos ~éculos desde csses dias. Era
um jovem. esta va entusiasmado. Busca va o martírio. Em pcnsamcnlo, viasc prcgado na cruz. o céu abrindo-se: mas a realidade era-lhe demasiado
} ~Job. J :21: «E dissc: Nu ~¡1í de dentro do venlrc de minha mae. e nu tonrnrei para lá:
n Se11hor 0 dcu, e o Senhor o tomou. bendito seja o nomc do Scnhor.» Para um lralalllenlo poslcrior do padecimcnto de Job, vd. igualmenll! A Repetircio. SVl. vol. III. pp.
233. 241-248. e SKS. vol. 4. pp. 66-67. 75-80; 1radu<;iio ponug.uesa: pp. 103-105,
l"
1 l..f-121.
i,1Job.2:9
10: «Entao sua mulhcr lhe dissc: i\indn rcléns a tua i.i11cl!ridack? A111:ildi<;oa
lku,. l! morrc. /Mas ele lhc dissc: Como fala qualqucr doida. ª'~im fala:. lll: n:c.:cbere1110, 11 tx:m de Deu<;, e nao 1cc.:chcnam11' o mal"! Em 1udo Í\tO. nao pccou Joh c.:0111 o~
'l.'11\ l;íh10'·"
·.....
264
Ou
pesada, a exaltacño desaparcceu, ncgou o seu Scnhor e ncgou -sc a <,i mesmo. Queria carregar o mundo, mas acabou sucumbindo-lhc; a sua alma nao
foi csrnagada, ncrn destruída, foi rasgada, o espíritu rolheu-se, a alma
paralísou-se-Ihe. Felicitai-o, caros CJ1JµJT.CtQCIVf:XQW~tcvo1, ele loi infeliz. E
cornudo. acabou por ser feliz, tornou-se aquilo que dcsejava tornar-se,
tornou-se mártir. apesar de o seu martfrio nao ter sido aqucle que ele havia
querido. ser prcgado muna cruz ou [ancado
feras, mas antes ter sido
queimado cm vida. consumindo-se lentamente num lume brando.
12221 Ali sentada, está urna jovcm rapariga, ti'ío pensativa. O scu amante
foi-lhc infiel - é coisa sobre a qual níio conscgue reflecrir. Jovem rapariga,
observa os rostos serios da assembleia. ouviram infelicidades das mais terrívcis. as suas almas sequiosas exigern ainda rnaiores. Sim, mas cu arnava-o,
só a ele amava no mundo inreiro, arnava-o com tocia a minha alma. com
lodo o rncu coracño e com tocio o rncu pensarnento25 - Já antes ouvirnos tal
coisa urna vez. nao fatigucis o nosso impaciente anscio; podes até recordar
e sentir pesar. - Nao. nao sou capaz de sentir pesar, pois que talvcz ele me
tcnha sido infiel, talvez nuo se tratussc de um impostor - Como podes tu
nao sentir pesar? Aproxima-te. e colhida entre as jovens, perdoa ao teu severo examinador que tcnha querido repelir-te por um instante - Nao conscgucs sentir pesar - Enrño podes dcveras ter espcranca - Nao. nño posso
ter esperance: poi'> ele era um enigma. Bern, minha fil ha. cntendo-tc, ergues-te alto na escala da infclicidade; obscrvai-a. caros !vµ¡raoavexQwµevot,
cla como que quasc plana sobre o cumc da infclicidade. Contudo, rens de te
dividir. tcns de ter esperance durante o dia, e pesar durante a noite, ou ter
pesar durante odia e esperanca durante a noitc. Se orgulhosa, pois da felicidude nunca se há-de ter orgulho, mas da infelicidade, sim. Nao és certamenle a rnais infeliz. mas nao sois vós de opiniño, caros LVµJTctQaveXQ(l)µevoL,
que lhe concedamos um honroso accessii26'! Nao lhc podcríamos atribuir a
sepultura. mas o lugar que lhe estivessc mais próximo, sim.
Ei-lo, pois, o enviado do reino dos suspiros, o favorito escolhido do sofrimento. o apóstolo do pesar, o silencioso amigo da dor, o infeliz amante
da recordacáo, no seu recordar, confundido pela luz da esperanca, na sua
csperanca, desiludido pelas sombras da recordacáo. Pesa-lhc él cabeca,
ccdern-lhc os joelhos e, cornudo. só pode repousar em si mesmo. Está esgotado e todavía cheio de vigor, os seus olhos nao parccern ter vertido Já-
as
25 Deutcronómio, 6:5: «Amarás. pois, o Scnhor tcu Dcus, ele todo o teu coraeño, e de
toda a rua alma, e de todo o teu poder»; vd. igualmente Mateus, 22:37: <<E Jesus dissc-lhe: Amarás o senhor, rcu Dcus. de todo o ten coracáo, e de toda a tua alma. e de todo
o teu pcnsamento.»
26 Em latim no original, termo que designa habitualmente a conccvsño de um premio
011 classificacño digna de mcncño honrosa.
Ou. Um 1•1.1¡•1111111\1
dt \1d.i
grima-.. ma-, antes 1e1 <orvulo muitas c. cornudo. arde nclcx um Iogo que
poderla devorar o mundo intciro, porérn, no !.CU próprio pcito, uño hü ccn
rclha ele pesar; está dobrado e, no cntunto. a sua juveutudc augura-lhc urna
longa vida, os scus Jábios sorriem ao mundo que erradamente o cntcndc.
Erguci-vov, caros L'UµJtaQO.VEXQú)µ€vo1, inclinai-vos, 6 tcstcmunhas do
pesar, ncsta hora solene. Suúdo-te, grande dcsconhecido, cujo nornc nao
conheco. saúdo-te como teu tfrulo honorífico «O mais infeliz». Recebe aquí
na rua casa a saudacño da comunidade dos infelizes, recebe a saudacño
junto i1 entrada dcsta humilde e modesta morada, a qual é afina! rnais altiva
do que todos os palácios do mundo. Ve, a pedra já foi removida, a sombra
da sepultura espera-te na sua deliciosa frescura. No entamo, talvez nao scja
tempo ainda, e o caminho scja longo; mas prometemos-le que nos reuniremos aquí mais vczcs 12231 para te invcjar a f'cl icidadc. Entfio, aceita o nosso
dcsejo. um bom de ejo: oxal<~ ninguém te enwnda. mas todos te invcjcm;
oxalá amigo ncnhum a ti se junre. oxalá nenhuma rapariga te ame, oxalá
ncnhunia secreta simpatía pressinta a tua dor solit(iria: oxalá ncnhum olhar
vislumbre o teu distante pesar; oxalá nenhum ouvido pcrscrute o teu -.uspiro furtivo! Ou se a tua altiva alma dcsdcnhar de tais desejos compa..,sivos,
se despreznr o alívio. oxalá cntao a~ jovens te amem, oxalá as grávidas na
-.ua angústia a ti rccorram; oxalá as mñcs tenham cm ti csperan9a. oxalá os
moribundos procurem junto de ti consolai;:ao: oxalá os jovens a ti !>e juntem,
oxalá os homens ern ti se apoicm; oxalá os anciaos a ti se agarrem como a
um bordao - oxalá tocio o mundo acredite que reúnes conclic;oes para o
l'a!er feliz. Entao. que tenhas uma boa vida, tu. o mais infeliz! Todavía. que
digo cu: «O mais infeli1,»: dcvc1ia antes dizcr «O mais fcli/.», pois esta é
precisamente a st:pullura da felicidade, a qual ninguém pode conceder a~¡
mesmo. Vede. a linguagem rompe-si!, e o pcnsamento conf unde-sc; po1s
quem pode ser o muis fclil a nao ser o mais infclil, e quern é o mais inl'cli/.,
a nao ser o mais feliz, e o que é a vida. mais do que insflnia, e él fé mais do
que loucura. e a esperanr;a mais do que os últimos moml!ntos do condenado, e o amor mais do que vinagre na ferida.
Desapareceu. e encontrámo-nos novamente diante da sepultura vazia.
Enlffo, querernos dcscjar-lhe paz. repouso e restabelecimento. e toda a felicidade possível, e urna morte rápida. e um esquccimento eterno, e nenhuma
rememora\:ªº· nao vá a lcmhrans:a dele vira fazcr infeliz um outro.
Levantai-vos. caros l:uµ.n:aQUVcXQwµ¿:vm! /\ noitc já passou. o clia comer;a de novo a sua incansável actividade e. ao que parece, nunca !>C can.
17
~ando de scmprc se repctlr eternamente- .
l7 Eck..,ia,1ei.. 1: 1 1 t. cm c'>pcu:il º' vn,ículo' 5 e 9, rci.pec1iva111cnte: «E na,cc o -.ol
~·púe ,e o ...01. e voila ao \cll 111~·.11 de omk 1i:i'cCL1»: e «Ü que fo1. 1''º é o .que ha de -.c1.
,. 11 qul' ~l' fc1.. isM1 ~e l<Hnt1111
r1 lr111·1.
d\' 11111110 que nada h:í ele 1111vu dcba1x11 do ~ol».
12251
O Primeiro Amor
1
Comedia cm Um Acto de Scribe,
Traduzida por J. L. Heiberg2
12261
12271
~ ·1~ artig_o hav'.a de ter sido, de modo determinado, dado a estampa num
pen~d1co. f rederik 1J_11.1·ma111r1 delerminara a xua publ ica~üo dentro ele detcrmrnados prazos, A1, o que sño afina! tocias as determinac,:oe!. humanas:
Qucm já alguma vez sentiu inclinacño para a produtividadc tambérn notou corn certeza urna pcquena circunstancia acidental e exterior que se torna
a ocasitio da producño propriarncntc dita. Sé os autores que, de urna mancira ou de ourra, clegcram para seu último propósito aquilo que os entusiasma
viriarn porvcntura ncgá-lo. Seria entre1anto em seu próprio prejuízo. pois
1 Ot;1 /(lrste Kj11'rligltet!. Lystspil i ecn ikt 10 Pri metro A111or C é J'
lJ
é o 111ulo da rradu<;ao de 1 1 11 ib
d
.
· om e ra cm 111 Acto!
• S ... be
. •.
. . .. c1 erg e urna das co1116d1a¡, de maior !iUCc1i~ode E ig~ne. <.:11 c. Le.1 pn•1111h1•s a111111trs ou l.R.1 souvenirs d'e11fi111C'e 10~ Pri
... A
,l
A-, Recorda<;Oc:l> da Infáncia] cstreada cm 18
.
. rrncrros mores ou
25
París 1841 vols 1 V·
JV •
' '
e publicada cm tEuvre: compléte«
1
a 1 O ~le lu~ho d. . .J83. vio : : pp, 2 J 5 ~30. A tr.u.lu<;<io para dina111ar(Jucs ~ubiu <Jo palc~
e A · con1,1ndo-se
Ollc:nra rcprese111 · .- • ·
,
entre I 83· J e 1855
f . . . .
•1rroe~ no período wmprccndido
Ter .
•.
•. .
rc<;a o1 inicialmente publi<.:adu no~ cadcrnos de repertorio do
L~~tJ? 1~.11.: Co[:enhaga: DenRlnte Kj<cr!iglwd.Lystspi! i eeu llct, lrnduc,:iío <le Johan
1 .. v1g c1 rg.. opcnhaga: Je11~ l Iostrup Schultz, 1832: Repertoire n º 45 parte ·7·
e: 01,1va111c. Den [árste K)terliJiltrd.
·
·
,
2 Sobre Hciberg. vd. nota l28 no
- 1 «O
,, .
, .
.
Erórico-Musical».
cnprru o
:-. E~t.1d1os Er611cos Imcdinto-, ou o
3 Nornc licrício. He1111ing Fcngcr considera que este e· , l 0 .
.
os escritos rer id
'
·
upuu O é mars ant1go de lodos
.
• lfll os cm 0 11-0u- o fllCMllO a1 1 lO .
.
.
1
•
•
r aponta as segurnrcs pubtica -n..
P?C endo ser :1quela a que o autor alude na epígrafe: Nordisk Ugeskrift I" . '. S:~~ cN01~1~
dico], com direci,:iio de P F B f 1 d p
o ·
ocmanai 11) 01
seis númcr x ,
· · • oc .~ e · L. Mollcr, do qual foram publicados \ 1111c e
d .
. o. cm 1836. o que snuaría o conhccimcmo entre Kicrkcgaard e P L :\ti 11
e1 anoi. antes do ca.,o conhceido por «Caso de O('
, .
.
. . . 0 cr
"' . . . orsarto»; podcria'' co1·1t11·'0
t •
.
de Só11d(lgsblnde1 1 A rolh· d . O . •
u , r.1tur-se
M·1r. 1
.
. a os om111gosl. dirigido por 11. P. Holsr, entre Janciro e
•1'<L0 e e ~835. Fcngcr afasra a POS))ibilidacle de se tratar de qualqucr das publi ... - •
d e . . l lcibcre dado que a p bli
- el K.
e
1c,1s;ocs
d C
e· .
u rcacao e J<Jbenlta1'111'fl.n•t•nde Po:.1 [Corrci Vi 1
e opcnhaga) nao obcdccia a periodiz: ·• .
I· . . .. ,
io o anre
scu lado
,d d
ucao regu .11, e .11nd.1 menos pré-anunciada· por
ª:
, . o contcu o o presente cnsaio nao corresponde ao perfil dos artie
,.
dos cm Perscus. pcriódicn de cariz filosófico Vd 11
. r
.. igo, publica-
~::.'.~~'~/~~~:~~~:i~1~~\·uu~i~s in .: Kierke;aaniiw~~;,~~:r.i;~~c¡~1~'.;'..~~~~~~:~~:.:)'~;;
.
, . cw
avene Londres: Yalc Univcrsity Prcvs. 1980 flP 11 1 '.!
vcr-sc-iam dcssa maneirn privados dos pólos extremos da verdadeira e saudável produ1ividade. Um deles é nomcadarncnlc designado pelo tradicional
nome de invoc;u;:ao das musas. e o out ro é a ocasiao. - A cxprcssao «invocm;ao das musas» pode ocasionar um rnau enten<limcnto. Invocar a musa
pode. cm parte. significar designadamcntc que C'\lOu a chamar a musa e, em
parte, que a musa chama por mim. Qualqucr autor que l)Cja ou suficientemente ingénuo para acreditar que tudo depende da íntegra vontade, do cmpcnho e do esfon;o, ou suficientemente dcsavergonhado para por a venda as
produc;oes do espírito. nño dcixará que haja falta de invoca<;ao fervorosa ou
de insi!.tencia desaforada. Por esta via, nada de grande é entretanto alcanc;ado, pois aqui ainda se aplica o que já Wesse/4 havia dito cm rclac,:ílo ao deus
do gosto. «que todos invocam», e que «tao raramente vem». Ao invés, se
pen~armos nesta expressao como ~cndo a musa a chamar-nos, nao me refiro
a nós. mas aos visados, entao, o caso adguire outra signilica9ao. Enquanto
os autores que chamam pela musa também emharcam scm que eta tcnha
chcgaclo. em contrapartida.º" aqui por último referidos encontram- ·e numa
oulra situac,:ao emhara9osa, na medida em que necessitarn de mais um momento, para que aquilo que se tornou urna determina9ao interior possa
tornaM.c uma detennina9ao exterior: este momento é aquiJo a que tcm de
4 Johan Hcrman Wesscl ( 1742-1785).
escritor \atírk:o. all\or do poema «Om en }('>d1>pige»
Reunidos l. vol s. 1-U. Copcle-se no poema: «D11
skja/des G11d, / og Vittiglwde111·
1)0111111cr. I so111 kalde.v ¡1aa ·''"' tid1. I o~ som saa .vie/den ko111111er>>. i. c .. «Oh, tu. dcus de
wdn' º' bnrdo::., /e jui1 da l~Kctia. /que tanta-'> vc1e<; és chamado/ e tao pouca~ vczcs
!«Sobre Uma Rapariga Judía»
nhap1. 1787: vol. 11. p. 130;
\Cll~ n
J. in Samlede Skrifter LEscrito;.
al/e
270
Ou
chamar-se a ocasiño. Tcndo em conta, designadarncntc. que a musa charnou
por eles, lhes acenou de fora do mundo. limitarn-se agora a escutar-lhe a
voz, e abre-se-lhcs a riqueza do pensamento, mas ele um modo tao avassalador que. aposar de cada palavra ser clara e vívida, acaba por ser afinal como
se nao fossc propriedade sua. Quando a consciencia regressou enráo ele novo
a sí propria de modo a apropriar-se de tocio o contcúdo, entáo. dá-se o instante que contérn em si mesmo a possibilidadc de urna existencia autentica
e, no enramo. falta-lhe algo; 12281 talta-lhe. designadamente, a ocasiáo. a
qual é tao necessária, se assim quisermos, se bern que noutro sentido seja
infinitamente insignificante: assim se cornprazeram os deuscs a ligar entre
si as maiores conrradicócs". Este é um segredo que a rcalidadc possui, escandalo para os Judcus, e loucura para os Gregos". A ocasiáo é sernpre o
casual, e reside aquí o enorme paradoxo de o casual ser, a cima de tudo, ahsol utamcntc tao necessario quanto o necessario. Em sentido ideal, a ocasiño
nao o casual, tal como acontece quando pensó o casual em significacño
lógica; mas a ocasiáo com a significacáo de fetichisme é o casual e. no cn1.an1·0, nesta sua casualidadc, é o necessario.
Ora, no que diz respeito aoque
uso e costume chamar ocasiño, reina
por J(J urna grande confusño. Em parte, ve-se excessivamcntc muito c. em
parte, excessivamcntc pouco. Qualquer produtivldadc que cstcja dentro das
dctcrminacñes da trivialidadc - e valha-nos Deus, esta produtividadc está
particularmente na ordem do dia - pcrdc de vista tanto a ocasiáo quanio o
entusiasmo. Por isso, urna produtividade deste tipo também opina, o que
pode ser adrnissfvcl , que Iica igualmente bem a qualqucr época. Por conseguinte, percle completamente de vista a significacño da ocasijío, ou seja, ve
em tuclo urna ocasiño,
como urna pessoa conversadora que nas coisas
mais dtsparcs ve urna ocasiño. tanto naquelas de que j<l se ouviu falar, como
naquclas de que nao se ouviu falar, ve urna ocasiíio para netas se envolver,
ou envolver a sua historia. Mas por esta via perde-se o punctum saliens':
Por outro lado, há urna produtividade que fica fascinada pela ocasiño. Do
primeiro tipo, pode dizer-se que vó cm t.udo urna ocasiáo e, do segundo, que
ve tudo na ocasiáo. Designa-se, <leste modo, a grande comunidade de autores de ocasiáo, dos poetas de ocasiiío em sentido mais profundo, até aos que
ern sentido mais cstrito véem tudo na ocasiáo, e que por isso empregam o
1111.: ... mo verso. n rne11111t1
é
é
é
5 Provável alusao ás considtmu;ücs de Sócrates sobre a prnximidadc das scnsai;ocs de
pnv,er e de dor. Vd. Platfío. Fédon, 60b-c. Ern porl:ugués: Platlio, Fédrm, introdui,;ao,
vcrsao do grego e notas de Maria. Teresa Schiappa de Azevedo, Coimhra: J.nstituto Nacional de lnvestigac;ao Científica, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da
Univcrsidade de Coimbra, 1983, p. 4.
6 1 Coríntios. 1 :23: «Mas nós pregamos a Cristo cruci ficaclo, 4uc é escandalo para os
judcus, e loucura para os gregos.>>
7 Em latirn no original: «ponto saliente».
Ou ,
1 J11i
''•'I'"''
11111111
2'/l
\/1(1.1
lc~1n111la, rendo todavía. espcranca de que, para os
visados, a ocasií'io vcuha a ser uma ocasiáo suficiente para uns honorarios
conscntáncos.
A ocasiáó,
a qual nesta qualidade agora o inesscncial e o casual. nos
nossos tempos, capaz de por vezes proceder a ensaios no revolutionaire.
A ocasiáo desempenha amiúdc o papel ele senhor e mestre: inclina a balan\H, faz do produto ou do produtor alguma coisa , ou reduz ambos a nada,
Ludo conforme ela quer. O poeta espera que a ocasiáo traga entusiasmo, ou
ve com espanto que nao é praticável, ou produz alguma coisa que ele no
rnais íntimo ele si mesmo considera insignificante 12291 e, ao ver agora que
a ocasiáo. dcstas coisas, faz tudo, vé-se honrado e distinguido ele todos os
modos possívcis, e rcconhece para consigo que tem de agradece-lo a urna
ocasiáo. Fixam pois os olhos na ocasiáo. aqueles que representamos no
parágrafo precedente, pcrdcm-na ele vista e, por isso. acabam sempre por
nao ser chamados em qualqucr dos sentidos. Dividem-se propriamente em
duas classes, aqueles que até sugerem que uma ocasifío é necessária, e
aqucle~ que nem sequer se fa:tem notar por far.erem isso. É 6bvio que ambas as partes assentam numa sobrcvalori:1.ai;ao infinita do seu próprio valor.
Quando alguém traz constantemente na boca expressoes, ta-is como
«ocorrc-me nesta ocasiao», «sou levado a pc..:nsar nesta oeasiao)>, etc., podc
~empre ter-se a certczn de que um indivíduo <.lestes vai por rnau caminho.
110 que a si mesmo diz respeito. Até na mais significativa
das coisas, ve
amiúde tao-somente urna ocasUío para l'a:1.er introcluzir a sua migalha de
comcntá1ío. Aqueles que nem sequer sugerern a importfincia da ocasifio
podem ser considerados como menos vaidosos, mas como 1nais doidos.
Sem ol.har para a direila ou para a esquerda, <lesfiam infatigavelmente o
delgado fío da sua tagarelice, produzin<lo na vida, corn a sua conversa e
com a sua escrita, efoi1.o iclcntico ao do moinho no wnt:o de fadas em que
se cliz: «enquanto tu<lo i1>to acontec'ia, o moinho fazia zás-pás, zás-pás»8.
Nao obstante, mesmo a prodlH;ao mais pcrfcita, mais profunda e mais
significativa tem uma ocasiüo. A ocasiao é cssa fina e quase invisível tcia
de aranha da qua! o fruto está suspenso. Conquanto as vezes pare\:a. por
isso, que o cssencial se mostra como ocasiao, entao, na generalidade, é um
mau entendimento, dado que em tal caso constituí apenas urn seu angulo
particular. Se nao me quiserem dar razao neste ponto. ta] resultan) do facto
é
é
8 Trata-se do conto V.-m dem Macha11defboom !Sobre o Zimbreiro.1. recolhido pelos irmaos Grinun. Eclii,;ao consultada pelo autor: Kinder-und I lousmiirchen gesammefr durC'h die Briider Grimm [Contos para a.s Cria111,;as e para a Família Reunidos pelos lrm5.os
Grimm], vols. l-111, Berlirn. 1819-22, n.0 47: vol. I, p. 236. firüdcr Grimrn, Ki11denmd
fJausmdrchen,vols. 1-3, Ausgabc lct.ztcr 1 land mil den Originalbemerkungen der Briider Grimm, Stutt.garL Philipp Reclam, 1980 (2001): vol. 3. pp. 89-91.
Swc11 Kil:rkcguurd
272
de se confundir o fundamento e a causa9 com a ocasiño. Ora, se alguém
assim me perguntasse: «qual é a ocasiáo de todos estes cornentários?», e se
se desse por satisfeito por eu responder: «a scguinre», cntáo. acabaria por
ser culpado e por permitir que eu fossc culpado de urna tal confusáo. Ao
invés, se eu levasse com muito rigor a palavra «ocasiáo» na sua pergunta,
estaría rnuito cerro da minha parte responder: «nao há ocasiáo nenhvma».
Em relacño as partes singulares do todo. seria designadamente urna irrazoabilidade exigir aquilo que se está no direito de exigir em relacáo ao todo.
Hajam designadamenrc esres comentarios de impor a exigencia de urna
ocasiáo e. entáo. teriam de constituir em si um pequeno tocio arredondado,
o qual viria a ser um ensaio egoísta da parte deles.
É assim que a ocasiño é da maior significacáo no que diz rcspcito a
qualquer 12301 producáo, sim, é aquilo que propriarncnte inclina a balanca
no que diz rcspcito ao vcrdadciro valor estético da producáo, Falta semprc
qualqucr coisa as producócs scm ncnhuma ocasiño, nao algo fora de si
mesmas. pois, aposar de a ocasiáo tarnbém aí caber, nao cabe aí todavía
num curro sentido, falta-lhcs antes algo em si mesmas. A urna producño, na
qual a ocasiáo seja tudo, falla por seu turno algurna coisa. Ou seja. a ocasiao nao produtiva positivamente.
antes produtiva negativamente. Urna
criacño urna producño de nada. a ocasiáo, em contrapartida. é o nada que
permite que tudo aparcca, Pode lá haver toda a riqueza do pensamento, a
plenitude da idcia e, cornudo, faltar a ocasiáo. Por vía da ocasiáo, portante,
nao advém algo de novo, mas por via da ocasiáo rudo vern. A modesta
significacño da ocasiño está tumbém expressa na propria palavra.
Ora há muita gente que nao conscguc pcrccbcr isto. mas isso tcm que
ver com o facto de nao terem qualquer pressentimcnto do que propriamente urna producáo estética. U m procurador sabe cscrcver a sua alega9ao, e um comerciante a sua correspondencia, ctc., sem pressentir o
misterio que trcspassa na palavra «ocasiáo», pese embora comece da seguinte forma «por ocasiño do vosso muito honrado».
Talvcz baja um ou outro indivíduo que me conceda razáo no que aqui foi
desenvolvido, e que concorde com a sua significacáo para a producáo poética. mas ficariam agora muitíssirno admirados se eu aplicasse algo parecido
com isto no que diz respeito a recenseadores e críticos. E nao obstante, crcio
gue precisamente aqui da máxima importáncia, e que o facto de se ter
perdido de vista a significacáo da ocasiáo cstcvc na origcm de. na generalidade, as recensóes scrcm tao mal feítas quanto simples trabalhos de amanuense. No mundo da crítica a ocasiáo adquirc urna significacáo potenciada.
Por isso, aposar de se ouvir bastantes vezes fular de ocasiáo nas recensóes
críticas, ve-se. contudo. até de olhos fechados, quilo pouca é a informacáo
é
é
é
é
é
9 Vd. Plarño. Fédon, 97b-99b. Em portugués:
Fédon, pp. 101-103.
Ou-Ou.
U111
F1u¡;u1i.:11to
de
Vida
273
conhccicla sobre o modo como as coisas estáo aí encadeadas. O crítico nao
parece precisar da invocacáo da musa, visto que nao é de todo urna obra
poética o que ele produz; mas se nao precisa da invocacáo da musa, tambérn
nao precisa da ocasiáo. No entanto, a signiñcacáo do velho ditado nao havcria de ser esquecida: só pelos seus pares sao os pares entendidos 1°.
Ora, aquilo que constitui objecto de observacáo para o estético é seguramente o que já está concluído, e nao lhe compete produzir, como ao proprio
poeta. Apesar disso, a ocasiáo manrém a mesma signiñcacáo. O estético
12311 que considera a estética como sua profissáo. e que na sua profissáo ve,
por scu turno, a genuína ocasiáo, está eo ipso perdido. Com isto , de modo
algurn ficará clito que ele pode deveras desempenhar aptidócs em separado;
mas nao apreencleu o scgredo que há cm toda a producáo. Tem sobretudo
muiro de aurocrara pelagiano!' para que, imbuído de urna adrniracáo infantil, consiga regozijar-se como que há de curioso no facto de. por assim dizer,
sercm potencias cstrangciras a produzir aquilo que os homcns pcnsam
pertcncer-lhcs: designadarncnte, o entusiasmo e a ocasiáo. O entusiasmo e a
ocasiño sao inseparávcis um do outro; trata-se de urna fo.rmaGao que se encontra bastantes vci'.CS no mundo reunindo sempre o grande, o elevado,
sempre na companhia de urna pequena pcrsonagem buliyosa. Uma personagem deste tipo constitui a ocasiao, urna personagem a quern, aliás, nao tiraríamos o chapéu, que nao ousa descerrar a boca se esüver entre convivas
elegantes, mas que fica calada com um sorriso malicioso, divertindo-se
consigo mesma, sem deixar transparecer o motivo do sorriso. ou o facto de
saber quao importante. quao indispensúvel eta é: e, ainda menos. urna personagem que houvesse de dei,-<ar-se envolver muna disputa a este respeilo,
pois sabe muito bem que de nada serviria, e que iriam simplesmentc agéuorar
qualquer ocasiao pnra a humilbar. A ocasiao é scmpre de uma naturcza equívoca dest.c tipo, e tanto servirú de muito a um homcm negá-lo, qucrendo
libertar-se deste espinho na carne 12, quanto querer sentar a ocasiao no trono,
já que fica rnuito mal de púrpura e de ccptro na rnao, e ve-se prontamente
que nao nasceu para reinar. Este desvío encontra-se entretanto muito por
perto, e sao frequentemente as rnelhores cabes;as que por ele atalham. Quan10 Vd. nota 21 no capítulo «Os Estádios Eróticos lmediall>S ou o Erótico-Musical». e
nota 80 cm «Diapsalmata».
l l Vd. nota 19 no capít.ulo «0 Reílexo do Trágico Antigo no Trágico Moderno».
12 11Coríntios.12:9-10:
«E disse-me: A minha grai;:a te basta, porque o mcu poder se
apelfcii,:oa na fraqueza. De boa vontadc, pois, me gloriarci nas minhas fraquezas. para
em mim hab.ite o poder de Cristo./ Pelo que sinto prazcr nas injúrias, nas neccssi4ue
daclcs, nas pcrseguii;:oes, nas angústias, por amor ele Cristo. Porque, quando estou fraco,
c111ao so11 forte.» Vd. Pee! i Kj(?det 10 Espinho na Carne]. o segundo discurso do último
livro de discursos cdifican1cs. Qua1ro Discunos Ed(!1can1es de 1844, SVl. vol. V.
pp. 106-123, e SKS, vol. 5, pp. 317-335.
274
S111\'11
Klcrkcpnnrd
do. dcsignadarncnte, urn hornem tem um olhur sobre a vida que é bavtanre
para ver a troca com que o ser eterno zomba do horncm por via de urna
coisa tao insignificante e subalterna. da qual quasc se scntc vcrgonha de
falar em sociedade, de ser absolutamente parle de tudo, cnrño, fica Iacilmente tentado a querer meter-se no que o ser eterno faz. e até a querer mesmo
retribuir cssa chalaca; e, na medida em que, tal como Deus, troca da grandeza do homem por via de a forjar na lci da ocasiüo, vol ta assim a trocar, ao
fazer com que a ocasiño scja rudo, e com que o outro momento scja urna
idiotice e. por via disto. Dcus torna-se supérfluo, e a reprcsentacáo de urna
providencia sabia torna-se loucura, e u ocasiño. um purifc que tanto lanca o
scu gracejo contra Dcus, como contra o homcm, cntáo, toda a existencia
avanca na senda do gracejo: um chiste. urna charade.
A ocasiño é cntáo, de urna só vez, o mais significativo e o menos significativo, o supremo e o ínfimo, o mais relevante o mais irrelevante. Scrn a
ocasiño 12321 ncm sequcr acontece propriamcnte nada e, no cntanto, a ocasiáo nem faz parte do que acontece. A ocasiño é a última categoría. a autentica categoría de transi<;üo13 da esfera da idcia para a realidadc. A Lógica
haveria de ponderar sobre isto. Pode dcixar-se absorvcr tanto quunto quiscr
no pensarncnto imancnte. precipitar-se do nada para dentro da forma mais
concreta 14, nunca alcunca a ocasiáo e, por isso, tambérn nunca alcanca a
realidadc, Na idcia, toda a realidade pode ficar concluída. sem a ocasiño
nunca se torna real. A ocasiño urna categoría da finitudc, e para o pensamento irnancnte é impossívcl apreendé-la , para isso, é demasiado paradoxal. Ve-se iambém a partir disto como aquilo que resulta da ocasiño urna
coisa completamente diferente da propria ocasiáo, o que é urna absurdidade
para qualqucr pcnsamcnto imancnte. Mas também por isso a ocasiño é a
mais divertida, a mais intcressuntc, a rnais espirituosa de todas as categorías. Como um pardal, está cm tocio o lado e cm lado ncnhum. Circula pela
vida como os elfos, invisívcl a todos os mcstres-escola 15, cujos gestos se
é
é
13 «Overgang»: corrcspondentc ao alcmáo «Übergang», Vd. Hegel. t:n:.ykloplidie der
philosophischen Wis.1·e111·cht(ftl'll, § 349. in Werke, vol. VIII, p. 548 . Jubildums, vol. IX,
p. 574; e Suhrkamp . vol. IX. p. 429. cm portugués: Encicíopédía das Ciéncias Fltosofiras cm Epitome. 1radm;ao de Artur Moráo, vols. 1-111, Lisboa: Ediiyües 70, 1988-1992:
vol. 11. 1989, pp. 123-123; wissensctmft der Logik, Werke. vol. 111. pp. l05f e segs ..
J11bilií11111.\. vol. IV. pp. 88-121: e Suhrkamp, vol. V. pp, 83-115.
14 Hm Hegel, o concreto a ideiu cm si. enquanto ideia que se actual iza na historia e no
pensamcnto. O abstracto, para alérn de englobar pensarnentos e conceitos no dominio do
universal, engloba igualmente particulares, desde que nao rcprescntem a totalidadc, Vd.
vorlesungen ilber die Geschichte der Philosophie lLiyocs sobre a 1 listória da Fi losofia].
in Wede, vol. XIII. p. 37; Jubilduins, vol. XVII, p. 53; e S11hrka111p, vol. XVUI, p. 43.
15 /\lusiío a urna pc9a de J. L. Heibcrg. A/feme LOs Elfos], in././,. Heibergs Samtede
Skrifter [Escritos Reunidos de J. L. H.(, vols. 1-Vll. Copcnhaga, 1833-1841: vol. VI.
1836. pp. 1-90.
é
011
Ou. U 111 h
,1¡'1111 111t 1 d1
1d.1
tornarn por isso matc1 "' mcsgotávcl para o riso daquelc que acredita na
ocasiño. Em si e para si. a ocasiño nada é entño e táo-sorncntc alguma
coisa cm relacáo aoque ocasiona e. cm rclacáo a isto, nada é propriamcnte.
Assirn que a ocasiáo fosse dcsignadamcntc urna outra coisa que nao nad~,
é
cntáo, estaría numa relativa rclacáo imanente com o que produz, e . ena
ncssc caso fundamento!" ou causa. Se nao rctivcrrnos bem isto, entño. rudo
se confunde novamente.
Assim. se eu dissesse que a ocasiáo para a presente pequena rccensño de
urna peca de Scribe havia sido o magistral desempenho de que foi al~o,
cstaria a ofender a arte cénica, já que é certamente verdadc que cu tambem
poderia escrcver urna recensao sem a ter visco exibida, sem ter visto um
magistral descmpcnho, sim, até mesmo se cu tivcsse visto um mau dcscmpenho. Neste último caso, poderia antes designar o mau descmpcnh~ como
a ocasiao. Ora, ao invés, como cu a vi dcsempcnhada de uma manc1ra perfcita, e a reprc. cnta<;ao cénica toma- e pois muito mais do que ocasifto. eta
é para mim u1T1 momcnto muitíssimo importante na minha c~ncep~ao, .tendo servido ou para corrigir, ou para corroborar, ou para sancionar a 1mnha
intui~üo. Por isso. a minha piedadc impcde-me de designar a apresenta9ao
em palco como a ocasiao, compele-me a ver nela algo mais, e a c~nfessar
que, scm cla. nao tcria porvcntura abarcado a pc9a por complet_o .. Nao cstou
de todo no caso da gcncralidade daqueles recenscadorc:-. suficientemente
espcrtos. ou estúpidos, 12331 que primciro Jalam da pe~a e posteriormente
do dcsempenho, cm !.eparado. Para mim, o próprio desempenho é a perya,
nao me canso de ficar encantado com ele numa perspectiva puramente estética, nao me cnnso de ficar encantado com ele enquanto patriota .. Se ~u
quisesse mostrar a um estrangeiro o nosso pnlco na sua plena glóna, dtr-lhc-ia: vai ver O primeiro wnor17• Em Fru Heiberg1K, Frydendah/19,
16 Para a <.Jiferenciaiyao do conccito <.le fundamento cm 1 lcgel. vd. Wi.1.vn1.1·chqft der
/.oxil.. [Cicncia da Lógica(. I; in Werke, vol. IV. pp. 75-76: Jubili111111s. vol. IV. pp. 553554: e S11hrkw11p, vol. VI. pp. 82-83.
.
17 Em todas as ocorrcncias <.le «amor>> contcxtualir.adas no título da pcs;a, ou cm vanantcs dc<,se thulo, o tenno corre~pondentc em dinamarques é «Kja•rlighed». termo que
11cstc capítulo é mais frcquc111c do que «Rlskov». Doravantc. no presente capítulo
1efcrcm-se cm nola apenas as ocorrencias de «El:.kov».
.
.
.
18 Johannc Luise Patges l lcibcrg ( 1812-1890), esposa de J. L. l le1herg, actm. de prime ira grandeza no teatro dinamarques no século XJX. Da vcnera~o ~do rcconhecimc1~to público de que foi alvo cnconlra-sc ceo na prollu¡;iío kicrkeg:.mrdrnn'.1 no.cnsa10 ai..s1nado pelo pscudónimo Jntcr et lnter, Krisen og en Krüe i i en ~kue:.p1t1e:mdes ~11• IA
eme e Uma Cri~c na Vida de Urna Actriz], originalmente publicado 110 Jornal fculrl'
/a11det [A Pátria]. n." 188-191.dc 24-27 deJulhodc 1848: vd. SVI, vol.X, pp. 319-344.
~ !'>KS. vol. 14, pp. 93 107.
.
19 Pc1cr .10rgen Fryden<lahl ( 1766-1 X36). actor da gcra9ao anterior a .lohannc Luisc
1 kibcrg. admirado pela sua Vl'1,a11hdadc.
276
Sercn Kici kcgnnrd
Stage20 e Phister+, o palco dinamarqués possui urn trovo de quatro folhas
que aqui se mostra cm toda a sua beleza. Quería chamar a esta reuniáo de
artistas um trevo de quatro folhas e, no entanro, parece-me haver dito excessivamente pouco, pois que um trcvo de quatro folhas distingue-se, contudo, pelo facto de quatro folhas de trevo comuns se cncontrarcrn num
único caule, mas o nosso trevo de quatro folhas possui a particularidade de
cada urna das folhas singulares, mesmo cada urna na respectiva isolacño,
ser tao rara quanto um trevo de quatro folhas e, contudo, reunidas. estas
quatro folhas criam por seu turno um rrevo de quatro folhas.
Ora foi na ocasiáo da ocasiáo desra pcquena crítica que cu, completamente de urna rnancira geral, quis dizcr alguma coisa sobre a ocasiáo, ou
sobre a ocasiáo em geral. Aliás, ainda bcm que cu já dissc o que tinha para
dizer.já que quanto mais rellicto sobre este assunto, tanto rnais me conven<ro de que, em gcral, nem scquer é possível dizcr alguma coisa sobre ele,
porque, ern geral, nao há qualquer ocasiáo. Longe disso. cheguci mais ou
menos sensivclmente tao longc quanro eu chegara na altura cm que cornocei. O lcitor nao tem de ficar zangado comigo, a culpa nño é minha, é da
ocasiáo. Podía tal vez pensar que cu deveria ter pensado o todo cm profundicladc antes de me sentar a escrcver, e que nao deveria ter comecado a
dizer alguma coisa que posteriormente vicsse a mostrar-se como nada sendo. Crcio, entretanto, que o leitor deve conceder a devida justica ao meu
proccdimento, tendo em conta que. de urna maneira mais convincente do
que é comum, ñcou convencido de que a ocasiáo é urna coisa que nada é.
Talvez ele vcnha mais tarde a pensar novamentc nisto , quando se achar
convencido de que nao há outra coisa no mundo acerca da qua! seja possívcl dizer multo. rendo dela a ideia de que alguma coisa, e. urna vez isso
dito, que todavía tcnha entáo de mostrar-se na sua natureza como nada
sendo. O que foi aquí entño <lito tem de ser considerado como urna superfluidadc, como urn frontispício superfluo que nao se cncaderna, quando a
obra cncadernada. Nao sci de todo terminar de outra forma que nao seja
do incomparável modo lacónico com que eu vejo o professor Poul Mv>ller22
é
é
20 Johan Adolph Gouíob Stagc (1791-1845),
da mesma gera9iio de Frydendahl. famoso
pela producño de um efeito irónico no sen desernpcnho.
21 Joachim Ludvig Phister (1807-1896),
actor rnaior da mesma geracño de Johanne
Luisc Heiberg, imbatível em comédia; Kierkegaard deixou urn texto inédito de ·1848.
assinado pelo pseudónimo Procul, no qual salienta o papel da reflcxáo no seu desernpenho: llr Phister sotn Captain Scipio (i Syngestykket »Ludovic«) LO Sr. Phister como
Capitáo Scipio (na peca musical Ludovicís; vd. SKS, vol. 16, pp. 125-143.
22 Poul Martin Meller (1794-1838).
poeta e professor ele Filosofía na Universidade de
Copenhaga; criticou abcrtarnente a filosofia de Hegel e cxerceu grande infhJ.cncia ern
Kierkegaard. nao só na crítica ao hegcllanisñro, mas também no gesto pela cultura
grega e pela escrita. Kierkcgaard dedicou-Ihe O Conceito de Angústia .
Ou
o«.
U111 h11¡•11lt'1110
de Vida
277
terminar a sua excelente recensáo de Extrememe23: com isto termina a introducño.
12341 No que diz respeito a ocasiáo especial da pequcna crítica ora presente, está relacionada com a minha insignificante personalidadc e atreve-se, pois, a recomendar-se ao leitor coma qualidade normal de ser insignificante. A peca de Scribe O primeiro amor tocou a minha vida pessoal de
múltiplas manciras, e atrnvés dessc t.oque ocasionou a presente recensao, a
qual é filha da ocasiao no mais est.rito sentido. Também eu já outrora fui
jovcm, era um cxaJtado, csüve apai.xonado. A rapariga que era objecto do
mcu anseio, conhecia-a eu de outros tempos, mas as diferentes circunstancias da nossa vida concorreram para que nos víssemos apenas raramente.
Ao invés, pensávamos um no outro com muito maior frcqucncia. Esta recíproca ocupa9ao um como outro aproximava-nos e afastava-nos ao mesmo
tempo. Quando, dcsignadamente, nos víarnos, a nossa rcla9ao era tao decorosa, tao tímida, que ficávamos mais longc um do outro do que quando nao
nos víamos. Quando cntao ficávamos de novo separados. csquecido o constrangimcnto desta inquieta\=aO recíproca. o facto de nos termos visto aclquiria entao a scu plena significa9ao, e nos nossos sonhos come9ávamos precisamente onde hav.íamos terminado. Assim era. pelo menos, o meu caso.
e vim a saber mais tarde que se passara o mesmo com a minha amada. Tinha bastanlcs pcr~pcctivas de me casar; por outro lado. o nosso entendimcnt.o ncnhum obsláculo cncontrava que pudesse inflamar-nos, e estávamos assim apaixonados da mais inocente maneira deste mundo. Antes que
~e pudesse falar em declarar os meus sentimentos, teria ele morrer um tio
rico de quem eu era o único herdeiro. Tarnbém isto me parccia belo, visto
que, em todos os romances e comédias que eu conhecia, eu encontrara o
herói na mesma situac;ao, rejubilanclo cu cntao com a ideia de ser urna figura poética. Assim clecorria a minha bda vida poética, quando vi um dia
no jornal que iria ser cxibida urna pc9a intitulada O primeiro amor. Desconhccia que tal pec;a existisse, mas o título agradou-me. e ficou tomada a
dccisao de ir ao teatro. O primeiro amor - penseí eu - é ajusta expressao
para os teus scntímcnt.os. Arnei alguma vez outra a nao ser ela, nao recua o
meu amor até minha recordac,:ao mais antiga, irei alguma vez imaginar
que aimll'ei outra, ou que a verei ligada a outro'! Nao. ela continuará a ser a
minha noiva, ou entao, nunca me casarei. Por isso se dizque «nao há como
a primeira vez». Sugere o que é primordial no amor, pois nao é cm sentido
numérico que se fala do primeiro amor. Bcm podcria Q. p9eta tc(.i.guabnen-
a
23 Reccnsiio de P.M. M0llcr da novela Extrememe [Os Extremos] de Thornasine Gyllc.:rnbourg ( 1773-1856),
in Mao11edsskrift for Litteratur 1 Mcnsário de Literatura l. vol.
15, 1836, pp. 135-163; vd. l:jir:rlarfte Skr(fter [Escritos Pó turnos]. vols. I-UL Copenhaga. 1839 1843; vol. 11, pp 126 157.
278
V
Sp1 c11 "11.:1 "cgaartl
te dito 12351 «O amor verdadeiro», ou ter intitulado a peca (<O primciro amor
é o vcrdadeiro
amor». Ora esta peca ajudar-mc-á a que eu me enicnda. dar-rne-á ocasiáo para deitar um olhar profundo ao interior rnirn mesmo: por
isso, charnarn sacerdotes aos poetas, porque explicam a vida. nao qucrendo,
cornudo. ser entendidos pela multidáo, mas apenas pelas naturezas que tenham coracño para sentir cm conjunto corn efes. Para clas, o poeta é um
cantor entusiasmado que mostra sobrerudo a befeza, mas que acima de ludo
dá testemunho do amor. Através da sua forca poética, esta peca Iará com
que do mcu pciro irrornpa o amor24, cuja flor '>C abrirá com um fragor como
se fosse a flor da paixño. Ai, como eu era jovcm ncssa altura! Mal entendía
o que eu proprio dizi» e. cornudo. achava que estava bcrn dito. A flor do
amor tcm de abrir corn fragor, os sentimcntos, tal como o charnpanhc. térn
de romper com veeméncia as suas amarras. Era urna exprcssáo audaciova,
plena de paixño, e fiquci dcveras contente corn eta. E cornudo, o que cu
dissera, dissera-o bem. pois. cm rninha opiniño, tinha de abrir-se como urna
flor da paixáo. Era este o lado bom do comentario. pois o amor costurna
abrir-se no casamenro e, na medida cm que se quiser dar-Ihc o nornc de unta
flor. é capaz de ser mais adcquado chamar-lhe urna flor da paixáo. Ora bcm,
rcgressemos il rninha juvcntude. Chcgara odia ern que a peca havia de ser
cxibida, arranjara um bilhctc, a minha alma eslava em festa, e corrí para o
teatro num cerio dcsnssosscgo, contente e chelo de cxpcctat ivas. Ao entrar
pela porta adentro. lance o olhar para o primciro balcño. e que vejo eu? A
minha amada, a dona e scnhora do meu coracño. o meu ideal. eslava ali
sentada. Recuci involuntariamente
um passo, de regrcsso il escuridáo das
últimas lilas da plateia, para a observar sem ser visto. Como chegara cla ali.
tinha de ter chcgado ainda hojea cidadc, é coisa que cu nao o sabia, e ei-la
agora aquí no teatro. E havia de ver a mesma peca. Nao era um acaso, era
urna providencia. urna gencrosidade do deus ccgo do amor. Avancei. os
nossos olhos cruzararn-se, eta reparou ern rnim, Eslava fora de questño
Iazcr-lhc urna vénia, conversar com eta, ern suma. nada havia que me pudcsse deixar cmbaracado. A minha exaltacáo
ganhou novo alento.
Encontrávamo-nos a meio caminho, dávnrnos U'> mños urn ao curro como
seres transfigurados. pairávarnos como espíritos. como génios no mundo da
fantasía. O scu olhar repousava elangucscentc sobre mirn, um suspiro
erguia-Ihc o peito, era dirigido a mim. eta pertencia-me, foi o que entendí.
E contudo, eu ncm desejava precipitar-me na sua dircccáo, ncm lancar-rnc
aos seus pés, era coisa que me teria causado embaracado, mas assim,
distancia, sentia a bcleza de a amar 12361 ca belcza de ousar ter a esperanca de ser amado por ela. A sinfonia terminara. O lustre elevava-se , o mcu
olhar scguia-lhc o rnovimento; projectou pela última ve¿ a sua luz sobre o
a
24 Aqui e nas duas ocorréncias scguintcs de «amor», «Elskov»,
Ou
Ou, U111
h.1¡111111110
tll' V1d11
279
prirnciro baldo e ... obre cla. 8spalhou-sc urna luz crepuscular, es.la Iurninosidadc parecía-me ainda mais befa. a inda mais exultante. Subiu o. pano.
Ainda rnais uma vez, quando neta Iixava os olhos. era como se a vislumbrassc num sonho. Virei-me. A peca comecou. Só queria pensar nela e no
mcu amor; quería utilizar riela e na nossa relacáo tudo o que fossc dito cm
honra do primeiro amor. Nao havia porventura ninguérn em todo o teatro
que houvesse de entender o divino discurso do poet~ tal como e~ - tal vez
cla. Pensar na poderosa irnprcssáo já me torna va mars fortc, scnua coragcm
para no dia seguintc dcixar i1Tomper os meus íntimos scnti1~entos, nao
podcriam deixar de pruduzir cfcito nela, qucria rccordá-la claqu1lo que. esta
noirc tínhamos ouvido e visto com uma única alusüo e, houvcsse ass1m o
poeta de vir cm meu auxílio, tornando-a mais receptiva.~ a n:im m~~is forte e mais eloquente do que nunca. - Vi e ouvi - e cont1nue1 a ouv1r - e
0 pano dcs<.:eu. O lustre abandonou novamente o seu escl~ndcrijo ccle.ste,
desapareceu a luz crepuscular. olhei para cima - todas as ~ov~ns parcc1am
agradadas, também a minha amada tinha os olhos cm lagnmas de tanto
ter ricio. o peito movia-1\c ainda inquieto, o riso havia triunf~do. Pa~sara-sc
també111 assim comigo, afortunadamente. Vimo-nus no ella segwnlc cm
casa da minha tia. Dcsapareccra o tímido cmbarac,:o com que costumávamos estar juntos na sala, urna cerla alegria jovial havia tomado o seu lugar.
Rimo-nos urn pouco um para o outro. tínhamo-nos entendido um ao outr~,
coisa que dcvíamos ao poeta. Por isso cha111am vate ao p~cla, porque vat~cina sobre o futuro. Ficámos conversados. No entanto. nao nos conseguimos decidir a destruir totalmente o que ante~ awntecera. Ligámo-no~ entiio
por urna promessa sagrada. Tal como Enuneline e Chu'.·/es haviam prometido um ao out ro contemplar a Lua25, também nós ass1m prometemos ver
esta pe9a, cada vez que fosse exibida. Tenho-°'.c m~ntido fiel a c~ta promessa. Já a vi em dinamarqués, em alcmao, cm 1 ranccs, no estrange1ro e na
nossa term, e nunca rne cansci da sua incsgolúvcl espirituosidadc, cuja
verdaclc ninguém cntcndc melhor do que cu. Foi esta a primeira ocasíüo
para a pcquena crítica a(Jui presente. Por via de a ter visto tanta.'> vezes,
acabci por me tomar produtivo em relar,:üo a esta pe\:ª· Entre.mentes, esta
produtividade 12371 permaneceu parcialmente instalada na mmha cabeya,
tendo eu anotado apenas um único comentário. Esta oca~iao podt; entao s~r
considerada como a ocasiao da possibilidade ideal desta crítica. E presumtvel que eu nao tivcssc ido mais além, se nao fosse a intcrvern;ao ~e uma
nova oca~iao. Há alguns anos que o redactor de urna das nossas revistas se
dirigira a mim, solicitando que cu houvessc de rcdigir-lhe um pequeno artigo. Encontrava-sc na possc de urna invulgar eloquéncia para apanhar al1Tias e, portanto. fc;r,-111~ cair 11u111a promessa. Tarnbém esta prnmessa cons-
tao
25
0<'11 jélrstc Kja•rli)llll'd, n•1111
l, p. 2.
280
tituiu pois urna ocasiáo; mas era urna ocasiáo no geral e. por isso. surtiu cm
mim apenas um cfciio pouco prestativo. Caí num embarace corno aquclc
em que se acharia um candidato a doutor26, se lhe dessern a Bíblia irueira
para ser ele mesmo a escolher o texto respectivo. Esrava entretanto amarrado ~1 minha prornessa. Com muitos outros pensamentos, mas tarnbém
com o pensamento na minha prornessa, empreendi urna pcquena excursáo
na Jutlándia. Quando havia chegado a cstacáo onde tencionava pcrnoitar,
fizo que nunca cosrumava dcixar de aproveitar, mundei o criado trazer-me
os livros que o estalajadciro pudcssc reunir. Costumo sempre observar este
hábito e tcnho muitas vczcs retirado proveito dele, sobretudo porque se dá
casualmente com coisas que de outra rnaneira passariarn desapercebidas a
nossa atcncáo. Náo foi todavía este o caso, pois o prirneiro livro que me
trouxerarn foi - O primeiro amor. Fiquci perplexo, visto que raramente se
ve o Repertário de Teatro'' na provincia. Todavía, eo perderá a fé no primeiro amor, e nunca acredito no primciro. Na cidade scguintc, visitci um
dos rneus amigos. Estava fora, quando cheguci; pcdiram-rnc para esperar e
conduziram-rne ao scu escritorio. Ao dirigir-me para a sua mesa de trabalho. dei corn um livro aberro: era - o Teatro de Scribe, aborto em Les
premiéres amours . Ora parecía que a serte eslava tracada. Decidí-me a
cumprir a rninha promcssa e a cscrever urna recensáo desta peca. Para tornar a minha decisáo inabalável, acaba por suceder urna coisa tflo estranha,
o rneu amor de outrora, o meu prirnciro amor que vivía na regiño, descera
a cidade, nao a capital, mas a cidadczinha onde cu me encontruva. Há muitíssimo tempo que cu nño a via e cncontrei-a agora noiva, feliz e contente,
tanto assim que foi para mim um prazer ve-la. Esclareceu que afinal nunca
me tinha amado, que o seu noivo era afinal o seu primeiro amor, e contou-rne a seguir a mesma historia, tal e qua! Emmeline: só o prirnciro amor é
o verdadeiro. Nao estivesse a rninha decisáo já bem firmada, 12381 e passava agora a estar. Tinha de ver o que significava o prirneiro amor. A rninha
teoría comecava a vacilar, pois «O mcu primciro amor» era irredutível
quanto a questáo de o seu presente amor ser o scu primeiro.
Havia motivos suficientes: o opúsculo estava quase pronto até ao último
ponto final, faltando-lhc urnas quantas frases intercaladas, para interpolar
aquí e acolá. O mcu amigo, o redactor, pressionava-rne implacavelmente
para que cu curnprissc a minha promessa, com uma obstinacáo que teria
feíto honras a urna Emmeline. Expliquei-lhe que o opúsculo estava pronto,
281
que faltavam simplcsrncnte urnas coisinhas de nada, e ele atestou-me a sua
sal isfacáo. A rned ida que o tempo passava, es les mosquitos transformaram-se
entretanto cm elefantes, ern dificuldades inultrapassáveis, Além disso, enquanto escrevia, esqucccra que havia de ser publ icado. Havia já escrito diversos pequcnos opúsculos deste modo, mas nunca chcgara a dar algo a estampa. Ficou farto da conversa de que esta va pronto, quando afinal nao conseguia
rcceber o manuscrito. Fiquci farro das suas solicitacócs constantes, e desejei
que diabos levassem todas as promessas. Aconteceu eruño que a revista dele
Iechou por falla de subscritorcs, e eu agradecí aos deuscs, sentí-me leve outra
vez, nao incomodado por qualquer promessa.
Foi esta a ocasiño para esta crítica vir ao mundo como urna realidade
para mim próprio, como urna possibilldade para o meu amigo, o redactor,
urna possibilidadc que posteriormente se transformou em impossibilidade.
Decorrido outra vez. um ano, fiquei ncsse lapso de tempo exactamente um
ano mais vclho, Ora isto nada tem de mais a assinalar; pois tal como acontcceu cornigo, aconteceu prcsumivelmcntc coma rnaioria da gente. Mas, de
tempos a tempos, um ano pode ter mais significado do que um outro ano,
significar mais do que ficar um ano mais velho. foi c. te o caso. No final
dcsse ano, encontrava-me num novo capítulo da minha vida, num novo
mundo de ilusao que cabe em sorte apenas aos homens mais jovens. Quando
designada mente se pertencc a «seita dos leitores». quando de urna mane ira
ou de outra alguém se distingue como um leitor diligente e atento, entao,
crcsce nos outros a probabilidacle de poder vira dcspontar num indivíduo
urna rnigalha de autor, pois tal como di~ Hamann, «aus Kindem werden
Leute, aus Jungfem werden Brüute, cuis Lesern werden Schr(ftsteller»28.
Comc<;ava agora urna vida cor-de-rosa, com muitas parecen9as coma primeira juventude de uma rapariga. Os redactores e os editores come9aram a
fazer a corte. É um período perigoso, pois o discurso dos redactores é muito 12391 se<lutor e, assim que se cai em seu poder, logo eles nos cnganam, a
nós, pobres criaturas e, entao, ai!, enlao, é tarde de mais. Acautelai-vos,
jovens, nao frequenteis confoitarias e rcst.aurank~s em cxcesso, pois que aí
lan9am os redactores a sua rede. E quando entao veem um jovem inocente
a conversar com a Hngua solta, depressa e bcm. sem fazcr qualquer ideia
daquilo que diz, se presta ou nao presta, mas que se limita a rejubilar deixando o discurso inomper, ouvindo o cora9ao palpitar enquanto fala, pal pi28 Em alemao no original: <<de criam;;as fonnam-se pessoas, de <lonzelas formam-se noi-
26 «Candidat» é a dcsignacáo comum para o estuclante que pretende concluir as prevas
finais de um curso superior, neste caso, <le Tcologia.
27 «Theater-Repertoir», com a chancela do Teatro Real de Copenhaga, reunía textos
ele pecas e de libretos aí representados; Kicrkcgaard possuía diversos números desta
coleccáo.
vas. de lcitores formam-~e escritores». Ligeiro desvio em relac;;ao ao texto original: <<aus
Ki11dem wenie11 l,ewe, aus Ju11¡ifern werden Briiute. aus Lesern entstehen Schriftste/ler».
Ecli9ao consultada pelo autor: Johann Georg Hamann ( 1730-1788), /..eser 1111d Kunstrid11er 10 Lcitor e o Crítico!, in /111ma1111s Schr(fte11 [Escritos de Hamannl. vols. 1-Vlll,
cdi<,;iío de Fricdricll Roth e <i. A. Wicncr. 13erlim. l .cipz.ig, 1821-1843; vol. H, p. 397.
282
283
S¡11c11 1-: 1c1 kcgaard
tando como que diz. aproxima-se entño dele urna escura figura. e essa figu. ra é um redactor. Tem rnuito bom ouvido, é capaz de ouvir desde logo se
aquilo que é dito , urna vez impresso, sai bem ou nao sai. Tenla entño o sanguc jovcm, mostra-lhe a irresponsabilidade que há em desperdicar as suas
perolas dessa rnancira, prornete-lhe dinheiro. poder. influencia. até mesmo
junto do bclo sexo. O coracáo fraqucja, as palavras do redactor sao belas, e
depressa fica preso. Agora já nao procura mais os lugares solitarios para
suspirar. já nao corre contente para o cspacos de rccrcio da juvcntudc para
se embriagar em discursos, cala-se. pois qucm cscrcvc nño rala. Fica sentado, pálido e frio, na sua sala de trabalho, nao muda de cor com o bcijo da
ideia, nao enrubesce como a rosa em botño quando o orvalho se a funda no
scu cálicc, nao tcm sorrisos nem lágrimas, os olhos seguem tranquilamente
o curso da pena sobre o papel, pois autor, e já nao é jovem.
Também a minha juvcniudc estove ex posta a tais tenta90cs29. No enranlo, crcio que ouso olcrcccr-mc para icstcmunhar como a minha resistencia
foi dcstcmida. O que veio cm mcu socorro foi ter passado por esta experiencia scndo ainda muito jovern de idade. O redactor que acolhcra a minha
primeira prornessa era rnuito amisto ·o cornigo, mas coruinuava. cornudo. a
parecer-me como se isso fosse urn favor. urna honra que me cabia cm serte.
qucrerem aceitar urn artigo da minha lavra, como se me apontasscm o dedo
entre todos os jovcns rneux pares, dizendo: «como tempo pode até vira ser
alguém, ele que se esforcc, é para ele um incentivo, honra lhc scja ícita». /\
tentacño nfío era assim tao grande. e todavia aprendi a conhcccr rodas as
terríveis consequéncias de urna promcssa. Jovern ernbora como eu era. estava lnvulgarmentc armado contra a tcntacáo e, por isso , afoitei-rnc a frequentar confeitarias e restaurantes bastante arniúde. O perigo tinha pois de
acabar por chegar ele um out ro lado. e também nao se fez esperar. Acontece
que um dos mcus amigos de café tornou a dccisño de se tornar redactor;
veremos o nomc dele na página de rosto da revista. Mal havia ele 12401
concebido esta ideia e combinado o que era necessario como editor, e já se
sentara urna noite i1 sua secrctária, durante toda a noite, a cscrcver - cartas
para gente de toda a espécie a pedir contribuicñcs. Tarnbérn eu reccbi urna
carta destas. redigida num torn muito cortes. cheia das mais brilhantes perspectivas. Ofereci entretanto forte resistencia, prometendo-lhe, em contraé
29 No original. «Anfagtetse», corrcspondcntc ao aleruño «!l11jecl111f11¡:e11». O termo é
aqui usado como urna forma extrema de tcntacño. ou scja. um complexo estado de espírito, entre a düvida. a incertcza e a angustia. resultante da tentativa do sujeito cm ir
para ulérn das suas capacidades ou daquilo que: expectável da sua parte, e que o deixa
profundamente atormentado. Tida como pecado. distingue-se da tcntacáo, cm que 0
sujeito instado pelo Diabo. da provacáo. cm que o xujeito é poSIO a prova antes de
obter urna dádiva de Deus. e da tribulacáo. que é urn sentimcnto colectivo e abranucrue
para todos os cristñox e: nao um panicular do luteranismo.
~
é
é
partida. ficar de qualqucr dos modos ao seu scrvico para acrcsccntar ou
desbastar urn pouco O!'> artigos que lhe fosscm enviados. Ele próprio trabalhava incansavclmentc no primeiro artigo corn o qual haveria de abrir a
revista. Tinha-o dado como praticarnentc pronto. quando icve a bondadc de
mo mostrar. Passámos urna tarde muito agradávcl, sentía-se satisfcito corn
modificou urna coisa ou outra. A disposicño era excelente, comemos fruta, bolos, e bebemos champunhe, ele divertí u-me com
0 artigo, parecía-me sausfeito com as minhas observar;oes. quando quis a
minha má estrela que, inclinando-me cu para agarrar um alpcrcc, entornas-;c o tinteiro por cima de iodo o manuscrito. O meu amigo cntrou cm fúria.
«Deita~te tudo a perder; o primeiro número da minha revista nao vai con:-.cguir sair na data prevista, o meu crédito deitado a perder, os subscritores
vao desertar. tu nao sabes quanto trabalho dá angariar suhscritorcs, e, uma
vct. angariados. sao dcsleais, quais mcrccnários a aprovcitarem-se de qualquer oportunidadc para no~ cscapulircm. Está tudo perdido. só há uma saída. tcns de enlregar-me um artigo. Eu sei que tcns manuscritos na gaveta,
por que nao dcixas que cu os publique, até tcns a rua crítica sobre C! pri111eiro <1111or, passa-ma. cu acabo-a; rugo-le. imploro-te pela nossa mruzade.
pela rninha honra, pelo futuro da minha revista.)>
·.
Rccebcu o nrtign. e o meu tintciro tornou-sc a m.:asrao para que a rn1nha
digo-o com hor1)Cqucna crítica se torna se urna realidadc. que é agora
ror - ¡mhlici j11ris10.
o~ mcus corncnrários,
Houvesse alguém de sugerir cm poucas palavras o beneficio da comédia
moderna, em especial a de Scribe. tcndo em conta a corn6dia antiga. e calvez pudesse e>.primi-lo da seguintc maneira: o mérito pessoal da figura
poética torna-se comen~urável como diálogo, fa1.cndo com que ns efusoes
do monólogo sejam supérfluas; o valor da ac9ao tlramática torna-se comcnsurável com a situa9ao, 12411 fazendo coro que esclarecí mento~ próprios de
novela scjam '\upérlluos; o diálogo torna-se finalmente audível na t~ansparencia da situa95o. Nenhum esclarccimento se torna entao neccssáno para
orientar o espectador. nenhuma paragcm no drama se torna necesi-.ária para
fornecer indica9ocs e pontos da situarrao. Acontece assirn na vida, havendo
ncccs-;idacle a cacla instante de notas explicativas; mas nao deve acontecer
a-.sirn na poe~ia. O espectador pode entao desfrutar dc~prcocupadamente e
absorvcr sem intcrrup9oes a vida dramática. Ma'> ao passo que o drama
moderno parece tmnbém ex ig.ir as-;im menor espontaneidade por paitc do
espectador. talvc1 exija de urna nutra maneira mais. ou. melhor <.lizendo.
'/
)
284
Ou
nao o exige, mas vinga-sc do csquecimento de tal coisa. Quanto mais imperfeita for a forma dramática ou a construcáo do drama, tanto rnaior a
frequéncia com que o espectador
espicacado no seu sono, desde que esleja a dormir. Quando se sacudido em viagern por urna estrada de terra em
mau estado, sendo que ora é a carruagern que embate nurna pedra, ora sao
os cavalos que ficarn presos nos ramos, entño, deixa de existir urna boa
oportunidade para dormir. Ao invés, se a estrada é calma e sercna-", tem-sc
tempo e oportunidade para olhar em volra, mas também para cair no sono
sern ser perturbado. Assim acontece com o drama moderno, rudo ocorre
com tanta facilidadc e rapidez que o espectador, se nao prestar urn pouco
de atencño, acaba por dcixar passar muita coisa. É bcm vcrdadc que urna
peca de cinco actos da antiga cornédia e urna peca de cinco actos da comédia moderna tém idéntica duracño; mas surge scmprc a qucstáo de saber se
aconrccem tantas coisas nurna como na outra.
Levar esta invcstiga9iío mais longe podcria certamente ter o scu intcressc,
mas nao para esta reccnsáo; demonstrá-lo com maior pormenor no contexto
do teatro de Scribe poderia certarnentc ter a sua significa9ao, mas creio que
se:á suf~cicntc urna rigorosa exposícso dcsta pcqucna obra-prima que constitu: o objecto do presente comenrário. Prefiro multo mais deter-rne na presente peca, .i<í que nño pode negar-se que outras pecas de Scribc tém por vetes
falta de pcrfeíta correccño, na medida cm que a situacáo se arrasta tornando-se o diálogo parcialmente prolixo. O primeiro amor é, ern contrapartida,
urna peca sem dcfeitos, tao perfeita, que tinha por sisó ele imortalizar Scribc.
Vamos observar cm primeiro lugar as personagcns dcsta peca na sua singularidade, para posteriormente vermes como o poeta soubc fazcr com que
a respectiva individualidade ficasse rnanifesra nas réplicas e na situacño,
cmbora toda a peca constitua apenas um esboce.
Derviére, um fundidor rico e viúvo, tcrn urna única filha, 12421 «L11na jovem menina de dezasscis anos»32. Qualquer modesta exigencia da sua parte
para ser considerado um hornem cumpridor e honesto, com rnuito dinheiro,
tern com toda a certeza de ser respeitada; pelo contrario, qualquer ensaio scu
para ser um homem, para ser um pai «que nao entendc graccjoss ", tem ele
ser vist~ como malsucedido, espraiando-sc tambérn sobre a Iilha, sern cujo
consennrnenro e aprovacño ele nem sequcr ousaria olhar-sc como um ser
racional. «Ela conhece-o lao bem que faz dele gato-sapato»:", e ele mosrra
é
é
é
(;'
31 ~o original. «Farimagsvei», i. e., «caminho do andar calmo»; era tambérn a designacao ele urna estrada que ligava tres zonas ele Copenhaga, designadamenre, 0sterbro,
Nerrebro e Vcsterbro.
32 Den ferste Kjcerlighed, cena J. p. l.
33 ldem,
34 Ibid., cena 6, p. 5.
Ou, Um h11i•11111110
<k Vidu
285
para entender gracejos, quando os caprichos
coma sua digniclade paternal.
Ernmcline, a sua filha única, tem agora clezasseis anos. É urna rapariguinha encantadora e cativantc, mas é filha ele Derviere e foi criada pela tia
Judith. A tia cducou-a e forrnou-a através ele romances, e a riqueza do pai
tornou possível que esta formacáo se conscrvasse inalterada pela realidade
da vicia. Tuclo naquela casa atende uo humor dela, cuja instabilidade
se
pode ver, entre outros, no monólogo do criado Lapierre na tcrccira cena>5.
Com a formacáo ciada por .ludith, viveu na casa paterna scrn um particular
conhecimento do mundo, nao deixando passar a oportunidadc de tcccr para
si mesma urna tcia de sentimentalismo. Foi criada com o primo Charles,
seu companhciro de brincadcira, o scu rudo que lhe fornecia o suplemento
para os romances da tia. Corn ele reviu o que lera. para ele rudo transferiu,
quando a inda muito jovcm de icladc ele a abandonou. Os seus caminhos
separaram-se, viviam agora afastaclos um do outro, unidos apenas por «uma
promcssa sagrada»36.
Charles tem em comum com a prima a fonmu;ao romanesca; as concli<;oes de vida, ao invés, nao. Mandaram-no correr mundo muilo jovem de
idadc, com apenas tres mil francos por ano (cf. sexta cena)J7, e dcprcssa se
ve na ncccssidadc ele fa7.er o possível para que a sua formayao frutifiquc no
mundo. Os seus esfor9os neste sentido nao parcccm ter ass_~mido urna saída
afortunada, em breve a realidade o reduúu, mais a sua teoría, in ab.1·11rd11m:
o promissor Charles transformou-se num estroina libertino, um sujcito fracassado, um génio falhado. Urna figura cleste tipo possui, em si e para si, um
et'eito dra1rní.1ico tao grande que é inconcebível ver como é utifüado tao raramente. Um dramaturgo amador seria entretanto focilment.c tentado a
concebé-lo de um modo completamente ahstracto: acima de tudo, como um
sujeito fracassado. Nao se passa assirn com Scribe, mas ele também nao é
um amador, mas sim um virtuoso. Para que scrnclhante figura venha a adquirir interesse, tem de pressenlir-se continuamente como se passaram as
coisas; tem uma preexistencia, designadamenlc, cm sentido mais estrito do
que os outros, 12431 a qual tem ainda de ser tida em vista no seu fracasso
para assim ver a pos'\ibilidade da sua deprava9ao. Nao é entretanto coisa que
seja tao fácil de fazer como ele dizer, e claro que nao é possível admirar suficientemente o virtuosismo com que Scribe soube fazer com que ela surgisse, nao em infindável mon6logo, mas em situa9ao. Talvez Charles seja sobretudo urna das figuras mais geniais que Scribe levou a cena; cada urna das
suas réplicas v<1le ouro e, no entanto, o poeta conceb~u-o ape~as como u111
urna invulgur
p1\.:tli:.p<hÍl(iio
dela subitamente brincam
:15 !bid .. p. 3.
J6 !bid .. cena 1. p. 2.
37 lhid .. cena 6, p. 5.
a cabra-cega
8¡1rc11
286
1 i1.:1
kcgaMd
!·ápido esboce. Charles nao é abstraccáo nenhuma. nao UITI novo Charles,
mas apreende-se prontamente como se passararn as coisas, ve-se nele a consequéncia das prernissas da sua vida.
O fruto de urna Iorrnacáo romanesca pode ser duplo. Ou o indivíduo
imcrgc cada ve/. mais na ilusáo, ou sai dela perclendo a fé na ilusáo, mas
ganhando fé na mistilicacáo. Na ilusáo. o indivíduo fica oculto de si mesmo,
na mistificacáo fica oculto dos outros, mas ambas as coísas ficarn a de ver-se
a urna formacáo romanesca. É rnais comum ser urna rapariga a deixar-se
cair na ilusáo, e o poeta fez com que tal acontcccsse corn Emmeline, e a sua
vida saiu beneficiada nesse aspecto. Passa-sc outra coisa corn Charles. Perdeu a ilusáo; mas apesar de ser poste cm apuros pela realidade, e de diversos
modos. nao ressurnbrou por completo a sua formacño romanesca. Acredita
que é capaz de mistificar. Por isso, quando Emmeline fala de simpaüas '", as
qua is váo multo para alérn do cnrendirnenro do pai, cntáo, ouvimos desde
logo a lcitora de romances; mas nas réplicas de Charles nao dcixamos de
encontrar reminiscencias menos correctas da sua formacáo. Ele acha-se na
possc de invulgares dons para mistificar; mas cssa le na mistificacño é tao
romántica quanto a exaltacáo de Emmclinc, «Dcpois de oito anos de incursócs, rcgrcssa incógnito; tem cnteudimcruo natural e conhecirnentos para
saber que há cinco ou seis modos de comovcr o coracño de um tio: mas o
principal
permanecer desconhecido, urna condicáo nccessaria.s-" Ouvimos desde logo o hcrói de romances. Era perfeitamcntc adcquado que Charles houvesse de achar-se com habilidade suficiente para aldrabar sernelhante azémola, como o tío; mas nño nisso que Charles reflecte, fala de tios ern
geral, de cinco ou seis modos cm gcral, e sobre a condicño de ser dcsconhccido em geral. A sua fé na mistiflcacño
eruño Uio fantástica quanto a ilusño
de Emmeline, e reconhccc-sc cm ambos a escola de Juclith. A este rcspcito,
fica-se com um bom conccito da sobreexcitacño de Charles 12441 pelo facto
de, apesar ele todas estas esplendidas teorías. ele nao ser capaz de forjar a
mais comum das coisas, e ter de deixar-se aconselhar pelo nao menos exaltado Rinville40. A sua fé na misrificacáo
cruáo tao infrutífera quanto a fé
de Ernmeline na ilusáo e. por isso, o poeta tambérn fez com que ambos
chcgassern ao mesmo resultado, a saber, ao resultado contrário daquele que
acreditavam estar a alcancar, pois a sirnpatia de Emmelíne e a mistificacáo
de Charles produzern precisamente o cfeito contrario daquele que eles estavam em crer que viria a ser produzido. Desenvolverei isto rnais tarde.
Ora, apesar de Charles ha ver ganho a fé para mistificar as custas da ilusao, reteve afina! um pouco da ilusáo , e esta a outra coisa através da qual
é
é
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38 lbid., cena 7, p. 6.
39 /hid.,cena 12. pp. 9 e segs.
40 Idem.
Ou
Ou, U111 "1og111~·11t11
d1:
idr1
287
se rcconhccc. no Iracassado Charles, o aluno de Juclith e o companheiro de
brincadeira de Emmcline. Aposar de toda a miseria e futilidadc da sua próp1 ia vida, sabe conccbé-la como urna transfiguracáo romántica. Observa a
sua juventudc, quando partiu pelo mundo fora como «um cavaleiro muitíssirno estimável, um jovem do melhor tom, cheio de fogo, de vida e de
gra9a, destinado a ser alvo de grandes pcrseguicóes por parte do sexo
lcminino»'". Até a historia com Pamela adquire a seus olhos urna aparencia
romántica, embora o espectador pressinta multo bem que Charles fez propriarncntc figura de parvo. É fácil de ver por que motivo cu fiz da mistificacño aquilo que prevalece em Charles; pois a ilusáo em que ele se encontra é propriamente a ilusáo no tocante ao seu talento para mistificar. Volta
a ver-se aquí o herói de romances. Há em Charles urna verdade inigualável.
Em relacáo a gente comurn, na gcneralidadc, um sujcito fracassado desta
especie tem algum garbo, é tocado pela ideia, o seu cérebro nfio está pouco
familiarizado com reprcscnta9oes fantásticas. Por isso, urna figura destas é
real e genuinamente cómica, porque a sua vida jaz abaixo do que é geral,
jaz na miséria e, contudo, ele acredita que executa o extrnordinário.
Acredita que a história com Pmnela42 é «um conto», e gera-sc todavia a suspcita de nao ter sido antes ela que lhe comeu as papas debaixo do nariz; quasc
se fica tentado a crcr que ele está mais inocente do que aquilo que ele próprio crG estar. que Pamela haveria üdo outras razocs parn aJém do seu amor
ultrajado para o aterrorizar «com a tcsoura Je alfaiate»4\ e até mesmo que
estas razoes poderiam muito bcm ter residido fora da relac,:ao dele com cla.
Reconhcce-se finalmente no sujeito fracassado o primitivo Charles crn
virtude de urn abalo baixo-cómico, uma brandura que ere ern grandes sentimcntos e cm ser comovicla por eles. Ao ouvir que o 1.io lhe pagou 12451 as
letras de cainbio, exclama: «Sim, os la\:OS da natureza e de sangue sao
sagrados.»44* Está realmente comovido, tocou-se o seu coras;:ao romanlíco. dá
*Se o leitor esliver bem familia.rizado com esta pe¡;;a, teve oportunidade de se
regozijar com a casualidad1.: poética que reside no facto de Rinville, na primeira cena, em que representa Charles, rcproduzir Charles com tanta verdacle poética que o seu discurso se transforma numa espécie de ventriJoquismo de
efcito infinitamente cómico, porque é como se se visse e ouvisse Charles, encharcado de sentimentalismo, a declamar comovido estas palavras: «Será a voz
do sangue apenas urna fantasía? Nao se dirige cla djrectamente ao vosso cora9ao? Nao vos diz isto, mcu caro tío ... » (cf. cena 6).
41 /bid .. cena 16. p. l2.
42 !bid., cena 16, pp. 12-13.
43 /dem. Pamela ameac,:ou suicidar-se com urna lei>oura de alfaiate. se Charles nao casasse com ela.
44 /bid .. cena 12, p. 9.
288
289
Sv\r(11 Kicrkcgunrd
largas aos seus sentimentos. fica exaltado! «Sim, eu bem pensava que, ou
bem que se tem um tio, ou bem que ninguém se t.em.»45 Nao há nclc qualqucr
vestígio de ironía, sentimentalismo do mais sensaboráo: mas, por isso. o
efeito cómico na peca é infinito. Quando a prima roga o perdáo do pai para o
pressuposto Charles, ele irrompe cornovido. com as lágrimas nos olhos:
«Ohl, que prima tao boazinha!»4ó Nao perdeu ainda a fé de haver na vida,
como nos romances, almas fcmininas nobres, cuja excelsa resignacáo só pode
arrancar-nos lágrimas. Esta le despena agora coma sua exaltacáo de outrora.
Diligcncici por demorar um pouco mais com Charles porque é urna figura que saiu tao perfcita da máo do poeta que crcio ser capaz de cscrcvcr um
livro inteiro sobre ele, cingindo-rne simplesrnentc as suas réplicas. Será
talvez de crer que Ernmeline é a sentimental, e que Charles, ao invés, se
tornou mundano? De modo ncnhurn. A infinita espiriruosidade de Scribe
reside precisamente no facto de Charles, a seu modo, ser tao sentimental
quanto Emmeline, e de ambos se mostrarern com idéntica forca como discípulos da tia Juclith.
Ora, no xcu conjunto, o vclho Ocrvicrc, a filha, e Charles criarn um
mundo completamente l'antástico, cmbora neutro sentido todos scjam figuras capturadas cla vida. Este mundo sen) post o cm rclacño com a real icladc,
o que acontece através do Sr. Rinville. Rinville
um jovcm bcrn formado
que viajou pelo cstrangciro. Está na idade cm que poderia parecer adequado dar um passo decisivo para toda a vida por meio de um casamento.
Rcílcctiu para si mesmo sobre o assunto e cravou o olhar cm Emrneline. É
demasiado entendido em coisas mundanas para ir cm cxaltacócs, 12461 o
seu casarnento um passo bem ponderado a que se decide por vários motivos. Em primeiro lugar, a rapariga rica e oferece a perspectiva de cinquenta mil francos de renda anual; em segundo, há urna relacño de arnizade
entre o pai da rapariga e o seu pai; ern terceiro, declarou num gracejo que
havcria de conquistar esta bcleza distante; ern quarto, ela realmente urna
rapariga digna ele ser amacla47. Este motivo vcrn por último,
urna nota
acrcsccntada posteriormente.
Observamos assirn as forcas isoladas na peca, e vamos passar a analisar
como estas forcas térn de ser colocadas em relacáo urnas com as outras,
para que ganhem interesse dramático. É fácil encontrar aquí urna oportunidade para admirar Scribe. O plano da peca tem de assentar em Emmeline,
disso nao resta qualquer dúvida. Emmel ine está totalmente habituada a mandar, e é perfeitamente adcquado que, na peca, seja também aquela quem é a
dominadora. Tem todas as qualidades possíveis para se tornar heroína, coné
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45 ldem.
46 lbid., cena 18, p. 14.
47 lbid .. cena 5. p. l.
ludo, nao cm sentido substancial, mas ern sentido negativo. Sendo ela entáo
cómica, a peca por seu intcrruédio urna comédia. Está habituada a mandar.
como convém a urna heroína, mas quem ela domina é o tolo de um pai, a
criadagern, etc. Tem pathos, mas como o respectivo conteúdo é nonsense,
cntño, o scu pathos é essencialmente verborreia; tem paixáo, mas como o
respectivo conteúdo é um fantasma, entáo, a sua paixáo é essencialmentc
desvarió: tem exaltacño, mas como o respectivo conteúdo nada é, entño, a
sua cxaltacáo é conversa fiada; qucr ofcrccer sua paixáo qualquer sacrifício, isto é, quer sacrificar tudo por nada. Enquanto pcrsonagern cómica, é
inigualávcl. Ncla, tudo gira a voila de urna fantasía, e Iora dela, Ludo gira a
sua volta e, dcssa forma, em torno da sua fantasia. É fácil de ver como todo
o plano geral tern de tornar-se inteiramente cómico, olha-se para ali como se
se estivesse a olhar para um abismo de risibilidade.
A fantasía de Emmeline passa, nada mais, nada menos, pelo facto de ela
amar o seu primo Charles que ela nao ve desde os seus oito anos. O argumento capital através do qual ela procura salvaguardar a sua ilusño o seguintc: o primciro amor o vcrdadciro amor e só se ama urna vez48.
a qualidadc de defensora da absoluta validadc do primciro amor, Emmelino é representante de urna numerosa classc de pessoas. Pode até
opinar-se que é possível amar mais do que urna vez, mas o prirneiro amor
afinal esscncialmcntc diferente de qualqucr outro. Ora isto 12471 niio
conscgue explicar-se de outra rnancira, a nao ser aceitando que há um
tkmónio compadecido que agraciou o homem com um pouco de douradu1·a para com ela adornar a vida. A tese, <.lesignadamente, o primeiro amor
é o verdadeiro amor, é muito dúctil, poclenclo vir em auxílio das pessoas
de muitas maneirns. Se nao se tem a fortuna de chegar a posse do que se
deseja, entao, tem-se, contudo, a do9ura do primeiro amor. Se tivermos a
desventura de amar várias vezes, entao, que cada urna dessas vezcs scja,
contudo, o primciro amor. A tese é, dcsignadamcntc, urna tese sofística.
No caso de se amar pela terceira vez, diz-se: o meu presente amor é, contudo, tao-só o mcu amor vcrdadciro, mas o verdadciro amor é o primeiro,
ergo este te~·ceiro amor é o primeiro. faz o sofístico na seguinte determina<_;ao: o primeiro deve ser simultaneamente urna determina~ao qualitativa
e numérica. Quando um viúvo e uma viúva juntarnos trapinhos, cada um
deles trazendo os seus cinco filhos, no diado cas<U11ento assegunun todavía um ao outro que o amor deles é o primeiro amor. Na sua ortodoxia
romantica, Emmeline olharia com aversao urna liga9ao destas, seria para
da uma abominai;ao intrujona, que lhe pareceria tifo execrável quanto era
o casamcnto entre um monge e urna freira na ldade Média. Concebc a tese
11u111ericamcntc e pcnsa com uma tal plcnit.udc de consciencia que, em sua
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a
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48 fhid., cena 1, p. 2.
290
Ssiircn K ierkeguard
opiniác, a impressáo daqueles scus oito anos é válida para tocia a vicia.
Concebe a segunda tese do mesmo modo: só se ama urna vez. Esta tese é
entretanto igualmente sofística e igualmente elástica. Ama-se varias vezes,
e ncga-sc de cada vez a validade das vezes anteriores, e reitera-se assim a
recudáo <la tese de que só se ama urna vez.
Emmeline mantém entáo a sua tese que está determinada numcricamente, ninguém consegue refuta-la; pois recusa a sua simpatía a qucrn a tal se
atrever. Tem agora de passar pela experiencia, e a experiencia refutá-la-á.
Resta a questáo de saber como se há-dc entender o poeta neste ponto. Fica
mostrado que ela ama Rinvillc e nao Charles. A resposta será decisiva para
determinar se a peca é cómica cm sentido infinito, ou se moralizante em
sentido finito. Como sabido, a peca termina com Emmeline a afastar-sc
de Charles, e a dizer, cstcndendo a rnáo a Rinville: «Foi um erro, troquei o
passado pelo futuro.»49 Ora se a peca for 12481 moralizante cm sentido infinito, tal como ern gcral entendida, entño, a intencño do poeta é retratar
Emmeline como urna menina infantil e estrambótica, que tinha enfiado na
cabeca que amava táo-somentc o scu Charles. mas que, ao recuperar agora
o tino, fica curada da sua docnca, encentra um partido razoável no Sr. Rinvillc, deixando que o espectador espere o melhor para o seu futuro, que ela
scja urna esposa e mác dedicada, etc., etc. Se foreste o sentido, O primeiro
amor transforma-se. entáo , de obra-prima cm insignificancia teatral, no
pressuposto de que o poeta rnotivou de alguma maneira as melhoras de
Emlneline. Como nao é este o caso, pcrspectivada no seu todo, a peca passa a ser urna peca mcdíocrc, e tcremos agora de queixar-nos de que as brilhantcs singularidades ar comidas sejarn desperdicadas.
Passo agora a mostrar que Scribe nao motivou de modo algum as rnclhoras de Emmeline. Rinville decide fazer-se passar por Charles. É bcm-sucedido e engana Emmeline. Ele entrou completamente dentro da sentimentalidade do presumível Charles e Emmclinc transborda de alegria. Nao
por conseguinte por viada sua pessoa que Rinville a encanta. mas por via
do traje domingueiro de Charles. Mesmo que cm vez de um Charles a fingir
estivesse o verdadciro, mesmo que ele se parecesse exactamente corn Rinvillc, nenhurn novo motivo para amar haveria surgido pela actuacáo desta
figura. Pelo contrario. ela ama-o com um amor objectivamente matemático,
porque ele congruente coma imagem que ela própria criou. Rinvillc nem
sequer produziu entáo propriamente qualquer impressáo em Emmclinc. Fica
tarnbém mostrada a impotencia de Rinville no facto de ela nao o amar quando ele nao tem o anel, e de voltar a amá-lo'" quando ele recebe o anel,
extraindo-se daqui a probabilidade de, para Emmeline, o anel ser um anel
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é
49 lbid., p. 14, a última frase da peca.
50 lbid., cenas 9, 12 e 15, respectivamente, pp, 8, 10 e l 1-12.
üu
Ou, Urn
1•1.1µ111111li1
291
de V1t1u
mágico, e de eta vir <1 amar qualquer um que lhe aparecesse com o anel.
Quanclo Emrnclinc chega finalmente a saber que Charles é casado, decide
desposar Rinville. Ora, se de alguma maneira este passo houvessc de denotar
urna modificacáo em Emmcline. direi mais, urna rnodificacáo para mclhor,
cntño, por um lado, Rinvillc havcria de ter logrado agradar-Ihe por mcio da
sua propria dignidadc de amar, que na peca teria de ser vista como seudo
urna boa qualidade, mas melhor do que a de Charles e, por outro lado, haveria de ter tido sucesso em resolver e explicar a renitencia teórica dela. no que
diz respeito a validade absoluta do prirneiro amor. Nenhuma das partes está
neste caso. Rinville aparece-lhc corno sendo Charles e 12491 agrada-lhe apenas na medida em que se parece com ele. E a imagcm que cla tem de Charles nao é urna grandiosa peca de fantasía, que coubcssc ser prccnchida por
urna figura poética, nao, o scu Charles ideal rcconhccívcl por urna rnultidáo de casualidades, cm especial por um ancl no dedo. Rinville só lhc agrada pela sua parcccnca corn Charles, e nao chega a exibir urna única coisa do
que próprio das suas estirnáveis qualidades, que fosse capaz de produzir
impressáo cm Emmeline. Ela nem ve de todo Rinville, mas apenas o seu
Charles. Chegou ao ponto de amar Charles e de abominar Rinville, nao décide qual dos dois o rnais digno de ser amado por olhar para eles, já está
decidido há muiro tempo. Quando Charles aparece na qualidadc de Rinville,
acha-o «repugnante»?'. Ora o espectador tem de dar-Ihe razáo neste juízo;
mas nao parece ter sido opiniño do poeta atribuir-lhe grande valor; ela sabe
que ele repugnante antes de o olhar; eta olha-o sirnplcsmcnte, e confirma-o. O poeta prefere mostrar o jufzo dela sobre o prcsumívcl Rinvillc como
urna arbitraricdaclc e, por isso, Iaz com que seja continuamente alvo da parodia do juízo do pai. O pai nada de encantador encentra no prcsumível
Charles, ao invés, achaque o presumível Rinville é muitíssimo estimável, ao
contrário da fiUrn; ele achaque é assim porque assim quer achar. e ela também.
espectador ve que ela tem razao, mas o juízo dela nao deixa de ser
urna simples arbitrariedade e, por isso. a situa9ao adquire tanta fon;:a cómica.
Também Rinville nao consegue vencer a teoría de 8mmeline. Charles é
casado, ela nao pode, portan lo, ficar com ele*, a menos que queira afrontar
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o
Podcr-sc-ia talvcz encontrar urna outra saíc.la, fazenc.lo com que Emmclinc
admitissc a idcia de t1ue se contentaría com metac.le do corac,:ao de Charles. Já
-;e viu coisa scmclhanle em romances, e nao seria impensável que pudcsse
-..urgir pcranlc Emmcline em toda a sua clareza. É de um modo geral estranho
que. em toda a literatura curopcia, falte uma contrapartida fcminina a Don
Quixolc. Será que ainc.la nao chegou a época para o fazcr, será que o continente da scnlimcntalidadc ainda nao foi descobcrto?
51l/1id.,<.:c11a13.p.
lOc¡;cna
14,p.
ll.
as autoridades. Casar-se-á com Rinville por dois motivos fundarncntais,
em parte para se vingar de Charles. e em parte para obedecer ao pai. Éstes
fundamentos nao parecem denotar urna mudanca para o melhor. Se se casa
para se vingar de Charles, entáo, fica até demonstrado que ela continua a
amar Charles, 12501 o motivo está completamente de acordo com a lógica
do romance, nao podendo de modo algum ser dada como curada. Ora, se
Emmclinc se casa para obedecer ao pai. ou terá de ter entrado na sua alma
urna seriedade. um arrcpendirncnto e um rcmorso por ter consentido a si
própria levar a melhor sobre o pai, o qual , porém, tinha urna única fraqueza apenas, a de ser demasiado bondoso com cla, mas tal entraría cm contradicáo com toda a pe9a - ou entiío. a sua obediencia tcm fundamento no
facto de a vontadc do pai estar em harmonía com o humor dela e, senda
assim, cla também fica irnurávcl desta vez.
Parece nao haver na peca a mínima coisa que sugira que a opcáo de
Emmclinc por Rinvillc scja rnais razoévcl do que tudo o mais que ela faca.
A csséncia de Emmclinc é o eterno disparate, é tao disparatada no fim como
no princípio e, por isso. é possível deleitarme-nos
plenamente como cfcito
cómico de toda a peca, o qual emerge do facto ele a situacño lhc ser scmpre
adversa. Nao muda entáo para melhor como desfecho da peca, líío pouco
como Erasmus Montanus na peca de Holherg52. Ela demasiado grande na
sua recria, demasiado boa na sua dialéctica (e qucm qucr que tcnha urna
ideia fixa,
urn virtuoso numa só corda53) para se dcixar convencer cmpiricamente. Charles foi-lhe infiel, casa-se com Rinville; mas a sua consciencia romántica nao lhe passa qualquer reprimenda. Atrever-se-ia a surgir
tranquilamente diantc da tia Judith, estivesse ela ainda viva, atrevendo-se a
dizcr: «nao amo Rinville, nunca o amei, amo tño-somente Charles», dizendo ainda: «SÓ se ama urna vez, e o prirnciro amor é o amor verdadeiro; mas
tenho respeito por Rinville, por isso o dcsposci, cm obediencia ao meu pai»
(cf. cena 14). Judith responderla, entño: «Muito bcrn, minha fil ha, o manual autoriza que se de este passo numa nota. Di1. assirn: Quando os amantes
nao conseguern ficar um com o outro. é-lhes permitido levar urna vicia
tranquila e, apesar de nao ficarem um como outro, a sua relacáo há-de todavia ter a mesma significacáo, tal como se tivessem ficado urn com o
outro, e a vida deles há-de ser igualmente bela e considerada, de todas as
manciras, corno uma vicia em cornum. Aprendi isto por experiencia, o meu
primciro amor foi um seminarista, mas nao conseguía ganhar o seu sustené
é
52 Personagcm principal da peca homónima Je Ludvig Holberg, Erasmus Mo11tw111s
eller Rasmus Berg [Erasmus Monranus ou Monte Rasmusl. in Den Danske Skue-Plads
10 Teatro
293
Srir..:11 K 1c1 kcguard
292
Dinamarqués],
vol s. 1-VII, Copen haga, 1788; vol. V, sem indicacáo de página.
53 Provável alusño a Niccolo Paganini. cujo virtuosismo era por si poste cm evidencia
ao tocar nurna só corda Jo violino.
(o. Poi o rneu primciro amor e tornou-se o último, morri eu solteira, e ele
Quando , ao invés, urna parte é infiel a outra, entáo, aquela
tcm direito a casar-se, ernbora de molde a fazé-lo tendo como fundamento
sc111 sustento.
o rcspcito».
Quanclo se tem entáo corno cscolha reduzir a peca de Scribc a urna 12511
iusignificñncia,
reiterando que nada aí se encontra. que possa ser dernonstrudo. ou rejubilar com urna obra-prima por via de tudo conseguir explicar,
cntño, a escolha parece fácil. A peca nao cntíío, em sentido finito, moralizante, mas antes espirituosa, em sentido infinito; nao tem qualquer objccrivo finito, masé um infinito gracejo dirigido a Emmeline. Também por
¡.,~0 a peca nao acaba. Como o novo amor para com Rinvillc nao encontr.a
apenas motivacáo numa troca de identidades, entño, é completamente arbiirário fazcr corn que a peca acabe. Ou se trata de um dcfeito na peca, ou de
mérito. A cscolha
aqui fácil de novo. Na medida cm que o espectador ere
que a peca acabou, e que pisa terreno firme, descobre subi~amente que
nquilo que pisa nao é urna coisa firme,
antes como a extrernidade de .um
1rainpolim,
a qual, ao ser pisada, faz com que toda a pe<;a salte por cima
dele. rica aqui mostrada urna infinita possibilidade de confusoes, porque
l~mmelinc, por causa da sua forma9ao romanesca, tornou-se üherRreifend54
em rclac,:ao a qualquer dctcrminac,:ao da rcalidade. Que o verdadeiro Charles
niío seja o scu Charles é coisa que aprendcu; mas depressa se convencerá,
quand~ Rinville se torna Rinville, de que ele também nao é isso. O t~aje faz
mongc55 e o hábito romflntico é aquele que ela olha. T~lvez v1c~se a
0
mostrar-se aí urna nova figura, parecida com Charles, e ass1rn por d1ante.
Se entendermos a pc9a <lesta rnaneira, a réplica final tem ainda mais prol'undidade. ao passo que, se for outro o caso. no mínimo, torna-se para mim
impossível encontrar aí qualquer sentido. Emmeline denota a t.ransforma<;i'ío do movirnento. Anteriormente, a sua ilusao residía atrás dela no passadu, quer agora procurá-la no mundo e no futuro, pois nao abdicou do
Charles romantico; mas quer ela viaje para a frente ou para trás, a sua cxpcdi9ao cm busca do primeiro amor loma-se cornparável a urna viagcm
empreendicla cm busca da saúde e, como costuma tlizer-sc, a saúde está
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é
é
scmpre urna esta9ao ad.i<U1te.
Também se achará ent.ao adequado que Emmeline nao ofcre9a qualquer
c~clarecimcnto no que diz respeito a sua teoría, o que aliás seria justifica-
54 Ern alcrniio no original: <<sobredetcrrninante».
'i5 No original. «Kllrdeme gj{~re Manden». ou seja. <<O traje faz o homcm», por su~ vez.
variante do ditaJo «Ki<c:derne .1lwher Monden. enten ti/ Held eller Uhe/d>>. ou seJa. <<O
traje e ria o hornern. ou para :i vcntur:.i ou para :i desventura», n." 1844 na recolha de C.
Molbcch, Oamke Ordvproli. 1(111kes11mK ºli NiimsproR [Provérbios. Ditaclos e Lengakngas Dinamarquei.cs l. Co1w1il1t1g11. 1850. p. 121.
294
29')
d~mcntc exigívcl. Quando urn homern muda de le. exige-se urna explica
se ele for urn teórico. justifica-se que seja exigida. Ernmeline nao é
urna rapariga leiga, tem estudos. tern teoria, arnou Charles por torca dela, e
estabeleceu a tese ele que o primeiro amor o verclacleiro. Como irá ola
desenvencilhar-se disto? Se ela disser que nunca amou Charles. mas antes
qu~ Rinville é. o seu prtmeiro amor, entra em contradicño consigo mesma,
pors ela acredita genuinamente que 12521 Rinvillc é Charles. Se ela viera
dizcr: «O primeiro amor era urna criancice , o segundo amor é 0 verdadciro», ve-se [acilrncntc que cla quer escapar-nos por meio de urn sofisma. Se
cla disscr: «nño tcm nada a ver com números, se é o número um ou 0 nú-.
mero dois, sabe-se que o verdadciro amor é urna coisa completamente diferente»; cntáo, tcria de pcrguntar-se quais seriarn as estimávcis qualidadcs
que ela encontrara em Rinville, pois o observador atento nao havia observado qualquer nutra coisa a nao ser que ele fora tao cortes que vcstira a
pele de Charles para lhe agradar. Se a peca ti ver realmente terminado. entao, tcria de ser exigido, e corn pertinencia, um esclarecimento sobre rudo
ísro. Ao invés. ·e Ior opiniño do poeta que a peca seja infinita. cnráo. urna
impcrtinüncía
exigir. um csclarccirncnto da parte de Emmeline, pois ncm
mesmo cla chcgou ainda a ficar esclarecida a esse rcspcito.
O intcrcsse gira enrño ern torno de Emmeline e da sua ilusño. É bastante
simples dar origcm a urna colisño. You agora por um instante colocar as tres
perso1~agens. a exc~p<;ffo de Charles, cm relacño urnas corn as nutras, para
ver ale onde podcrci deste modo chegar. O pai deseja ver Emmeline casada
~ bcrn p~·ov~da. ílla recusa qualquer proposta. Por fim, ele propñc-lhc 0
jovern R111v1lle, recomenda-o rnais caleros amente do que qualqucr out ro.
rnostra m~smo um ar decidido. Emmcline acaba por confcssar que ama
?ut~·o. destgnadamenrc, Charles. Rinvillc chcga, recebe a carta. e tcm a
ideia de se fazer passar por Charles.
Até aqui a peca podía dccorrcr corn tres personagens. e nao iríamos deix~r passar uma.
rnais. espirituosas situacñes na peca: a cena do reconhecimento. You JU aprovcuar aquí a ocasiáo para mostrar como Scribe faz
co'.11 que ludo surja na situacño. Emmeline nunca dá largas ao scu sentimentah~mo em ?1onólogo, mas sernpre em diálogo e cm situacño. Nunca é
ouvH.~a a delirar por Charles sozinha. Só terá de confessar. quando 0 pai a
pr~ss1ona forternente. o que conrribui para que o . cu sentimentalismo se
saia
melhor.
Nao é ouvida. a repetir para si propria, cm monólouo
as rcrni. ....
.
e '
n~scenc1as do scu amor; isso acontece apenas cm situacáo , A sua simpatía
diz-Ihc desde logo que Rinvillc Charles, e pcrcorre agora com ele todas
as suas amigas lcmbrancas. Ncm se conseguiría sequer pensar nurna situa9ao mai~ espirituosa. Rinvillc homem mundano e, auxiliado por alguns
cs~Jarecll11cntos sobre o estado de espirito de Emrneline , depressa ve que o
pnrno Charles urna figura rnuiro nebulosa e mítica. Ela descnhou urna
cao,
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?ªs
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1111a~cm de Cha rlcx, para a sua fantasía, que pode asseruar a todos. 12531 tal
u uno asscntavarn a qualqucr húngaro os restos, um dos 111ehrere1156, pintad ns por Wchmüllcr'". O retrato de Charles tao abstracto quanto os Gesi' ht1r~x nacionais desse pintor. Aquele retrato e algumas formulacñcs gemis. sern esqueccr uns pequcnos versos, constituern o proveito da sua
101 mac;:ao romanesca. A falsificacáo ficou cntño bastante fácil para Rinville,
é
seudo sobrcmaneira bcm-sucedida.
Seria igualmente possívcl criar urna cornédia a partir destas tres personaren-; e da sua recíproca rclacáo. Rinvillc havia inreligido que entño, embota
,1 t-tua qualidade de Rinville fosse tida cm muilo boa conla pelo pai. era todavia de muito maior impmtancia agradar ~1 filha, a cujo gesto tudo obedccia na
c:t~a de Dcrvicre. Qucria continuar entao a fa¿cr-se passar por Charles. Tinha
entiio ganho terreno na família por essa via, e tinha oportunidade de conquis1ar a rapariga parn si. Atrevía-se a contar como domfnio de Emmcline sobre
o pai e, quando ela tivcsse arrancado a autorizac;:ao do pai, entao, haveria de
ter ~abido conquistar a rapariga a ponto de cla nao vir de novo a vacilar.
Ve-se facilmcnte o que neste phrno geral é imperfcito. Para que Dervicre
vcnha a fazer com que a filha confCs!>e o scu segrcdo. tem de ter cxercido
ullla prcssffo rnuito l'orte; caso contrário. ela poderia também te-lo confessado
da primeira vez que ele Jhc falou por alto de casamcnto. Portanto, o pai tinha
mu itas razoes para desejar Rinville para -;eu gcnro. Quanto mais fervoroso é.
1:11110 mais tensa fica a rela<;ao e tanto menos verosímil se torna que venha a
dar o scu conscntimcnto para que Emmeline fique com Charles. Por outro
lado, tem de havcr urna verosimilhan9a dramática para que Emmcline possa
l'Omcter um erro. O poeta alcan9ou-a ao fazer com que Charles seja cspcrudo,
111troduzinclo-o de tal modo que é a própria Rmmclinc a trazcr a notícia. no
mc-;1110 in!->tanle em que se avista o prcsumfvcl Charles. O embara90 e o fervor do pai para esconder a chegada de Charles deixam-na ainda mais convicta de que se trata realmente de Charles.
'i6 Fm alcmiio no original: «v(arios».
'17 i\lusiio a uma novela de Clcmen~ Brcntano. Die melrrere11 \Ve/1111iiller 111ul 1mgari.s'/11•11 Nati<ma/ge.1ic/1ter 1 Os Vários WchmUI ler e Rostos Nacionais da Hungria l. na qmll
a tmca de identidades na vida real e na arte é o tema principal: o pintor Froschauer fazsc passar pelo pintor Wehmüllcr, e este acaba por niio conseguir distinguir as suas
proprias pintura~ daquelas executada5 por Froschauer. dado que ambos trabalham a
111c~111a tcmátic:i. a da fi~ionomia nacional. Edi~1ío consulwda pelo autor: Viel Uir111e11
"'" Niclrt:. IMuito Barulho por NadaJ von Joscph Preihhcrn von Eichcndorf; und Die
1111'hrcre11 Welrmiiller und 1mgarische11 Natio11algesid1ter, von Clemcns Brentano. Berlin. 1833: vd. Clemens Brentano. \Verke, editado por Fricdhelm Kcmp et al., vols. 1-111,
Mllniquc: Hanscr Verlag. 1963-t968: vol. íl. 1963. pp. 653-704. IGerkcgaard con:idc1ava esta novela como 11111 sfmbolo da perda de idcntidadc da época sua contcrnporanca:
id. l'ap. 1 A 337. CC:22. SKS. vol. l 7. p. 207.
'i8 l:m alc1111ío 11<) tiriginal: «r11~LoS».
297
296
Introduzirei agora a quarta personagern para mostrar a excelencia <lo
plano gera1, e para mostrar como cada urna das situacóes ultrapassa a anterior em cspirituosidade.
Tal como o filho pródigo, Charles corre para casa para se lancar nos
bracos do tio, para se descrnbaracar da prima, e para ver as suas contas
saldadas. Mas para alcancar tudo isto, tcm de permanecer incógnito. Como
quase qualquer das siruacócs constituí urna chacota infinitamente espirituosa do sentimentalismo de Emrnelinc, tarnbém quasc qualquer das situacócs
constituí urna chacota igualmente espirituosa da mistificacño de Charles.
Regressa a casa, 12541 cheio de conñanca nos scus dotes de mistificador,
Está em crer que ele quem conduz a intriga, ele qucm mistifica e, entretanto, o espectador ve que a mistificacáo já esté cm curso antes do aparecímento de Charles, visto que Rinville já se fez passar por Charles. A intriga
arrasta consigo Charles, a rnistificacño de Rinvillc afunda Charles na rnisrificacño dcstc e, contudo, Charles ere que tudo provérn da sua parte. A peca
ganha agora imensa vida, um cruzamento de situacóes quase delirante nas
suas tropelias. No scu conjunto, as quatro personagens sao alvo de mistificacño rccfprocu. Ernmclinc quer ter Charles, Charles quer desernbaracar-sc
dela: Charles, o mistiflcador, nao sabe que Rinvillc se faz passar por ele e
que. usando o seu neme, busca por todos os meios conqui: tar a rapnriga.
Rinvillc nao pcnsa que Charles, na qualidade de Rinville, o desconsidera de
todas as maneiras: Dervierc está do lado de Rinville, mas Charles quern
ele apoia; Emmelinc está do lado de Charles. mas Rinville quem ela apoia.
é assim que toda a operacáo se resol ve em nousense, Aquilo volta do qual
a peca gira é nada, aquilo que resulta da peca nada é.
Rmmeline e Charles fazem oposicño um ao outro, e ambos acabam entretanto por atingir o contrario do que qucriam: cla acaba por ficar com
Rinville, e ele que quería mistificar acaba por ludo denunciar.
Em qualquer teatro ern que se leve cena o primeiro amor há de ceneza multa gargalhada diante desta peca. mas atrevo-me a assegurar ao público frcqucntador de teatro de que nunca se ri o bastante. Recordando agora
urna velha hist6ria59, se eu dissesse de urn horncm que riu a bandeiras desprcgadas que ou é doido, ou está a ler, melhor dizendo, que está a ver O
primeiro amor, estou cm crcr que nao estaría a exagerar. Rimo-nos por
vezes de coisas e arrependemo-nos quasc logo no mesmo instante; mas as
situac¡:oes nesra per;:a sao de tal espécie que quanto mais nclas imcrgirnos ,
é
é
é
a
a
59 Ao ver um estudantc a rir e a levar a mño a testa. o rci Filipc lll de Espanha terá comentado que nao seria muito inteligente. ou esraria entáo a lcr Don Quijote. Comentário
inserido no prefacio traducíío da obra de Cervantes. Miguel de Cervantes Saavcdros
Levnet og Bedrifter 1 Vida e Feitos de Miguel de Cervantes Saavcdras]. in Don Quixote.
vols. I-IV. traducño de Charlona Dorothea Bichl. Copcnhagu. 1776 1777: vol. 1. p. 21.
a
.
. . 1 lirantcs se mostram. Ora, como a própria
mtus ri!-íve1-., , tant~) mais te ' •
:é· r cas por si só tao espirituosas,
.1111.1~·ao é risível ao mais :1110 ~rau, as t p t '
•11h1r-.,~acm ainda corn maior primor..
ver ré licas para que se
1 'ºbl!jamente conhccido 5lue S~nhe
escre. , ~ a?nda .mais admira, . . d. t lo t:: admirado por tsto , mas e t
tw ne ncc~sc;an~ vir '' - . ~ be ad uá-las a situacáo, de molde a que
dn pelo v1rrnos1smo com que sa
cq·1
. .
Se urna réplica sua for.
.
por scu turno a i ummcrn .•
ck i 1vc111 da suuacao e,
'
t' mente granJ·eia indulgencia ~
ouco menos correcta, prona
l'lll 1::1!-0 raro. urn p . .
. . . . d d Contudo tem de recordar-se que
11°' vía da 12551 rcspecttva espmtuos1da se. -ibe m·1~ apenas de o primeiro
cstou a falar de todas as pcc;as e c11 . <
1.11110
=
'"'°
111111ir.
perfcita
t personagem, dá'-,•e un1.<1 1·crmcntarño
r-
· ·
o ad1c1onar uma q~ar a
, . . Na-o é necess1rio rcccar que a trama
onto de vista dramauco.
'
d
P
"ª 1ra111a. o
.
.
tes uc a vida neta existente vcnha a tornar\'l'llha a ter falta de vida, mas. an ... q 1· . d
a ·a obedecer as rédcas. Cada
'>t' tkmasiado turbulenta e tnd1sc1p m.id a ~· ~lcsassossego interior da per;a
.. 1t11a<;fio tcm de ter o seu tempo e. c~ntu _.~·, ·ócs Que Scribe é nestc ponto
ll'lll de ser ac;sinalado cm cada umla. a~ s1. ~,g1c;o1·a· 1~1ostrar percorrendo as si· 'cu de tornar-me um
o 111cstrc. é aqu1·1 o que, p•ir·1
' ' conc utr iret ·' •1 .. 'h·iJ·a
1' o 1 e1 o1. < '
. 1
Que me pcrcoe
t11:1<;ocs cm parttcu ar.
. ~ , - ·I s em rcla9ño a S<.:ribe
.
ni fii..:·11 ..í ·1 d1.:vt:r-se aos m1.:us r,c o.
111do nada pro txo, '
' ' •
_
.
meus zelos em rda9ao a
.
1 ' fi' n1"1 em rcla9ao ao 1 ettor. 0•s
.
.
l' ¡l 111111ha (CSCOll
lcl y•
" .
.' . f'cºentemcnte bem COm.
'
. ·sutTO t(UC ele nunc,1 sera su t t
Snihc dtzcm-rnc cm sus
. - .
("va-me a <.:rer que.
. l d , ·onfhn, .. , cm rcla9ao .io 1•·e1tor t:
1m·cndido. a mtn
ese
. , y• ~
d E'· • nt1n1 crcr-se que o cómi. 1
lcttor nao ve tu o. coi
·
l'lll pn-;so'\ partrcu ares, 0
.
t . ·mo-nos como cómit ág· co é um ·1ssunto do instan e, n
,
l'O, mais do que o r, i ,
• é r
nte regressar ao Lrágico e mergut o e c-;quccemo-lo, ao passo qt~e
rcdquc
de réplica ou de situac;ño.
cómi<.:o e 0 trágico po em ser
.
, .
0
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. . é r cas conservá-ltis na memoria.
as prefcrem dcter-se n.1s r P 1 · •
·
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f' ·e 11 deter-se na situa9ao.
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·cc1uentemcntc.
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ór' ., Estas u 11mas sa · •
ieconstru1ndo-a
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V'IS Também nao pretendem negar que umc .
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ais tentado a imcrgir nela do
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qua11do a l ias eco
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menos dcsta· pelo contr icc:ordar uma única réplica, e também me ocup~l.d de n·1 s:1tu~r.iío. Vou dar
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m tod·1 a tranqu1 1 a
'
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d 'G the60 chcga ao conhecimcnto de
11111 cxcmplo. Quando, no Egmonl e
oe
,
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. 1 · cdi<,:1ío eonsulrnda pelo autor: J . W . Cocthe
J
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110 Vd. Gocthc. ~K11111111. A<.:IO V. cena .
f 1 ()b1 ..'s ele O Ediriio Completa na
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A · dJe /e1~1er 1 eme l
...
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U1wtllf' \· ll'nkt'. Vol/slll1111¡.w lllK<
~. .
1 º28-1842· vol. VI 11, pp. 268-272.
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1 t 1 X 1•-.1t1!!:11da t uh111ge11. "
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298
299
C:l~r~hen que Egmnn¡ foi preso, ela a vanea , ..
mena-los a rebeliño Está
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~ para falar aos holandeses e
· , a conve11c1da de que • . .- 1
~ .
no entanto, os holandeses c
b
.
d sua e oquencia os agirará e.
· . .
' orno ons holandeses de'
r·
veis, l.unitarn-se a pensar em co
, rxarn-se tcar irnpassj.
·
e
rno
escapar
dela
Nun
,
.
-rne d e urna única palavra da réplicr d l
.·
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ca consegu¡ lembrar•
,
<t e a, a situarao pe! .
, .
-se mesquec1vel a partir do . .
T . ,
o contrano, tornou.
_
·
mstante ern que .-1 vi p ,1
. .
s1tua9ao trágica, é pcrfeita L[
. 1 .
e
e a pnme1ra vez. Como
.
. t: avena e e pensar-se .
¡· 1 .
por via do seu amor por Enmom , .
1
. que a rnc a jovern, poética
de t
id
e.
, anrrnar a por todo o ser d E
er SJ o capaz ele comover o mund . .
.
e gmont, tcria
entendc. Numa tal situa<·ño
1
. o rnteirn, mas ncnhum holandés a
e T'
' a ama rcpousa nurna . fi .
repousa, a contempla,·ao
12561 . ,
•
m imta nostalgia; mas
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esta completamente e d
contempla~ao a situ•191o co .
.
.
•
m escanso. Para a
,
e e
mica possu1 deccrto um s b . .
com este, mas é simullancarncnte
¡:¡ u Srsttr aparentado
,
.
re cxao em movirnc l
.
q uanto
mars cfescobrc tanto mai . t•" .
.
n o no seu sero, e
, ·
.
'
,.• is 111 mua a s1tu·11·1o , , ·
assim cl11.:cr dentro de si m. ,
. , . 'T' com1ca se torna por
• ,
'
csma, tanto rnais verrigí
'
<f ividuo, scm que t:oclwh se . .· , .
rnosa se torna para o indela.
e ' .
cons1g<1 deixar ele olhar fixamcnle para dentro
. As. sirua9ocs
ern O primeiro amor s-
.r.,
pnmeím irnpressao que cat1s·1111 é . , 1 • ao p~~c1samcntc
e
• e
Jél (e um efe t 6 .
dcsta
espécíe. A
reprocluzidas para a intuir1o o ris l.
' o e mico, mas quando sao
·.
..
-r' •
1. o ornu-se entao ma · . ,, ¡
riso transfigura-se mais qu·1sc . 'is ca mo, mas o sor• ,
e •
nao se consegi
1
scmenro. porque é como se '1· d' .
re vo rar u desviar daí open,
· arn a vrcsse algo de m· ·. · ,
Este
desfrutar tranquilo d· .:
. <llS nsíveí em scouida
.
,1 s1t.w191.10 cm que olha
º
.
scns1velmente como aquelo que , v., ,', b
amos para dentro dela,
.
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e
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d erxa porvcntura de ser f ·1·
'
' entro <O rumo nao
<1m1 iar a um ou ourro leit
S .
,
cu 1 pado; se for essc o cuso entñ
, .
J or,
cribe nao é disso
perante Scribe.
, '
'o, o proprio Jcitor fica com a culpa disso,
Dcrviere exerce urna forte pressfo s b
.
desposar RinvilJe· ela admite o .. ' .. o re Ernmelrne para que ela vcnha a
'
e e
scu amor por Ch-irle,
.e
mento da mais elevada inoce 1l .
e
s, conrcssa o entendie
era
ern
que
tern
vivid
1
pa 1 avras, persuade o pai a escrevcj. o corn e e e, corn boas
urna
carta
·
1
R
·11
d o urna recusa· enviam o cri d
' ' 111v1 e, tendo por conteú. ·
'
•
ua o com a cart· · · f. T
visitas, RinviHe aparece. Em ve d ~, , ~ a, et am1 ia recusa-se a receber
. 1
.
z e est<11 no andar de b .
.
cnat os, Lapierre estava a c· J
b
a1xo a mformar os
.. :f o. Desde Jogo Scrib "r;ar as
otas. de. monta'r. E R'inv1Ue
. é assim
a d nut1c
.
e, em vez de de1xar o S. R' .
aprcscntar-se a si prór)1'io conc b
.
.'
L
mville aparecer e
t
'
e e aqu1 uma situ·ir"'
sa, tambérn possuidora de tanta 'h
.
. <Teto nao pouco espirituoE
.
e acota para co n D ·,
mmelme. Rinville rccebeu a carta e P- E" .1
erv1ere, ~orno para com
. ' e a. is de novo a s1tua9ao. Nao é
G., Edir,:ao ~e HarnburgoJ, voJs. 1-XIV. Ham . . ' .. ·.
IV (Drama11sche Dichtun"en Z1 ., .8
buigo. Chmt1ai1 Wcgner, 1948-1960· vol
1953
° · vet er and !Poema·'s· Dramat1cos.
, ·
·
·
• , pp. 434-437.
Segundo Volumel).
corno oulras, cm qu\.! 111uil:ts
vez.es uma carta é fida para assim se fixar a
11Len9ao exclusiva111c111c
no .scu conreúclo. É na casa do Sr. Dervicrc que o
ru1uro genro recebe a recusa. Rinville trar;a o scu plano. Dcrvicre entra;
R in vi lle fa7.-sc passar por Charles.
Ternos aqui uma situac,:ao cabalmente espirituosa. Para o Sr. Derviere,
nao seria obviamente possível haver urna outra visiw mais indesejável do
tJUC Charles, coisa que RjnviJle nao pressente. Toda a sua intriga é entño
mostrada como uma ideia muito desafortunada. A situa9ao nao reside no
facto de Rinville se fazer passar por Charles, mas no facto de ele ter escolhido a mais desafortunada de todas as situa9ocs que podcria escolhcr e de,
n5o obstante, ter necessariamcnte de acreditar que cscolhcu a mais afortunada. A situa9ao reside, além disso, no facto de Dervicrc ter cm sua casa o
jovcm c exccl<.:ntc Rinville 12571 sem pressentir isso. Ora quando atentamos
nas réplicas, cm si e para si pocticamentc exactas, cntao cheg<\ a desfrutar-se cada vez mais a situac;ao a urna potencia mais elevada, porque o risfvel
da siruac;ao torna-se nelas cada vez mais claro. Rinville come9a por um
cstilo sentimental e patético. Se é o estilo certo, é coisa que pocleria parecer
duviclosa. Mío tem qualquer conhecimento próximo de Charles, por isso,
nao pode saber qual a maneira de agir capaz de produzir um efcito mais
cnganador. Em contrapartida, tem urna representa<;iio da vida familiar de
Derviere, e atreve-se a cleduzir as características dos restantes membros
dcssa familia. Mesmo que queira considerar-se o início corno incorrecto.
ni'ío é possível negar que Scribe remedeia esta fraqucza através da espirituosidade das réplicas. e do presscntimento que é despertado no espectador
sobre o vcrdadciro Charles. O incorrecto reside no facto ele a primcira fala
de Rinville61 ser tao patética que parece que ele receia nao ser bem recebido. coisa na qmtl Rinville to<lavia tem justamente de crer, tendo em conta
o acima mencionado. Por isso, Rinville parece-se um pouco excessivamente como verdadeiro Charles. Apesar da restante estupidez sua, o tio parece
ter percebido muito bem Charles, e tem por opiniao ver-se livre dele corn
dinheiro, e oferece-lhe seis mil francos por ano em vez dos anteriores tres
mi 162. Somos por essa via levados involuntariamente a pensar no verdacleiro Charles. Ter-se-ia dado por muito feliz e teria aceitado com alegria a
oferta. Toda a cena teria entao terminado da mesma patética maneira como
liavia come9ado, ter-se-ia lanr;aclo nos bra<;os do tio, exclamando: «Sim, os
la<,:os naturais e de sangue sao sagrados». Rinville nao se dá entretanto por
bem servido, continua no tom em que come9ara, tal e qual como Charles
haveria de exprimir-se, se nao tivesse necessitado dos seis mil francos. Ora
tio decide-se a levá-lo a bem, a ganhá-lo para a sua causa, conta-lhe since-
61 lhid., cena 6, p. 4.
62 !bid., cena 6. p. 5.
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300
Stlrcn 1 1c1 kcgnurd
ramente o encadearncnro do assunto, foz um elogio ele Rinville, o qual se
torna paródico por viada situacño. A situacáo aproxima-se do pleno apogcu, dado que Derviére confía a Rinville que tem anclado a pensar cm
dcscobrir urna falcauua qualquer que permita a Emmeline travar conhccimemo com Rinvillc, sem que ela de nada suspeitc". O 12581 contraste é
p~m~r~oso. Dervierc quer engendrar urna falcatrua. falcatrua essa que Rinville Ja cngendrou. A Ialcatrua de Rínville cria a siiuacño, e é nela que se
ouvc a réplica de Dcrvierc, Dcrvicre chcga a confcssar que nao é muito
inventivo, a sua falcatrua muitíssimo simples, se Charles tivesse a bondade de se retirar. Se esta falcatrua ti ver succsso, Dcrviérc terá mais ou menos
concretizado a coisa mais estúpida que podía ter feíto.
Cornudo, Rinvillc nao se val embora: cm contrapartida. Emmclinc aparece com a notícia de que um cerro Sr. Zacharic63 deseja falar com 0 seu
pa~ a rcspcito de. Charles, que é esperado a todo o instante. O embarace do
par rudo denuncia, e cla rcconhcce Charles. Corn este plano geral o poeta
ganhou rnuito. O tio é o prirnciro com quemo presumível Charles csbarra;
tcrn ~le ser c~nsiderado como scndo o rnais rúcil de cnganar. É estúpido.
está irurunquilo porque Charles está para chegar c. por isso, demasiado inclinado a acreditar na certeza dcste pesaroso acontecirncnto: tarnbérn nunca
poderia sonhar que alguém ·e lcmbraria de se fazcr passar por Charles. Ern
r~larrao. a Dervi.ere. Rinvillc aré pode ser bastante al revido. Em rela9ao a
Emrncline, ao invés, seria arri: car demasiado, visto que cla é scmpre a
parte mais matreira. Alérn disso, nao seria bonito se Rinvillc pusessc assirn
o decoro de lado. e ainda meno· bonito seria, viudo do lado ele Emrnclinc.
Em contrapartida, no embarace do pai, ela possui agora a preva mais incontcstável de que se trata de Charles. O rcconhccimento ocorrc sobo olhar do
pai, Rinville nao precisa ele fazer nada; cm vez de ha ver de tomar cuidado
c_om o ~cu pap~I, pode comportar-se corn perfeita trunquilidade, pois agora
Emmcline abriu os olhos. Ela pressiona-o, tanto quanto Rinvillc, a ser
Charles, podcndo ele cnfirn nao ter rcmorsos. e ela própria tambérn nao 0.,
ter, visto que foi o pai quern a pressionou a aceitar Rinville por Charles. Por
é
*A Pº\:ª podía acabar propriarnentc aqui, pensaría porveutura um lcitor atento.
Pois que coisa seria mais simples do que Rinvillc se ter manifestado no velho
Dcrvicre. podendo assim navegar com vento duplo, junto de Emmclinc fazer-sc valer por Charles, e junto de Dervierc por aquilo que ele realmente é _
Rinville. Mas nao se pode levar Rinville a mal por se ter mantido incóznito
frente. ª. D~rvicre: pois bastam sirnplesrnente algumas palavras suas para fater
ver a R111v11le que, quando se quer pór em marcha urna intriga. nunca se deve
ter Derviére como parceiro.
63 lbid.. cena 12, p. 9.
Ou
Ou. U1111<111~·111>111n
301
d~· Vid:1
rucio dcstc plano gcrul , o poeta cobriu a situa\:5o de urna ce~ta suavidadc
que lhe retira toda a indecencia, e fu dela um inocente gracejo.
A situa\:iio nño é menos espirituosa do que a precedente. Derviére está
totalmente perplexo e, no entanto, foi ele quem deu ocasiáo a tudo, quem
nux iliou 12591 Rinvillc a superar a dificuldade de fazer-se passar por
Charles diante ele Emmelinc. A situacño cría urna paródia da anterior; o
tio ncm scqucr foi capaz de rcconhccé-lo prontamente. Ao invés, cla .é
capaz. Explica-o como seudo um cstranho prcsscntimcnto , o qual todavia
etc nao sabe 0 que era: mas era como urna vo1. que lhe sussurrav~: ele
ci.tá aJiM. (Esta voz era de certeza a voz do pai. que ludo denuncrava.)
J:xplica-o por viada~ simpatias que ela nfio conseguc explicar ao pai, n~as
que ccrtamente explicaría a tia Judirh. Quem será o mais.esperto: Derv1erc que nao 0 reconhece, que nao tem qualquer pressent11nento. mas que
agora 0 rcconhcce, ou Emmcline que o reconhece .prontai~1~nte'? Quanto
mais se olha para isto. mais risível se torna. A réplica auxrlra novamem.c
da situa~~o. F.m rc<;posta répli0 espectador a mergulhar na risibilicladc
ca de Emmclinc, ele que 1inha um cstranho sent1mcn10 daquele género,
scguc-se a de Dcrvicrc: «pela mi11ha parle. nUo tinha o nnlis ínfimo prcs'cntimento e se ele nao me tives~e explicitamcntc dilo o nome»6!1 ... uma
replica des;as vale ouro. ~:tao 1.imples e natural e, contudo. nüo ~averia
porvcntura um cm del' dramaturgos co111 a scn~atcz e o necessár~o ~l~o
para a siluac,:íio, para a fa:t.er surgir. Um dramat~rgo .~om~m tenafe1to
mm que toda a atenc,:ao repousasse sobre Emmcl1ne: JU ter'.ª con:urna~o
0 reconhecimento entre Derviere e Charles na cena antenor. Nao tena
proclu1.ido estn interac9ao e. no entanto. ela contribuí para tornar u situa\'ªº devcras espirituo1.a. f: cómico que ¡¿mrnel.inc recon~e~~· prontamente
('liarles cm Rinville, mas a prescnc;a ele Derv1ere contnbur paru tornar a
,ituat;ao irónica. Fica ali como um imbecil que nada percebe .. E que coi~~
scrá mais fácil de explicar. se foi Emmclinc quemo pressent1u. ou se 1·01
a
l)crvicre qucm nao o prcsi.cntiu.
.
Seguc-se agora a cena do reconhecimento, uma das ma1s aforwnadas
,ituac,:oes que é possível imaginar. O espirituoso nao resi~; de ~odo algum
110 facto de ela confundir Rinville com Charles. Também Ja se vtu cm pal~o,
vc/'e~ scm canta. trocas ele identiclades66. Uma troca de identidades baseiasc numa parecenc;a real, quer o indivíduo nao esteja consciente disso, quer
1 lhid .. ccrrn 7. ¡). 6.
M /bid .. idem.
(i(i
tci 1110 original e «Forrn/i11~». 011 'cja, «confu,ao». na sua valencia mfli!. usua:;
l''le lcntlll designav::i.11a cpo,:a de K1c1l.cgaard. a e~lratégia dramát~ca fulcrnl nas ~0~11~di;1, de ~c1 ibc. 0 ,11111/ ¡1111111111 que ,·m" mc,mo é urna troca (hab11ualmentc de 1dcnt1
d;idcs mi de pap•·is ,rn.111"¡· ,1 p111111 du qunl se succdcrn inú 11 iplas co11fu-;oc' c 1.:4uívoco~.
(i
o
303
302
tcnha sido ele a estar na sua origern. Se íosse este o caso, entño, Rinville
teria mais ou menos sabido qua! o aspecto aproximado ele Charles. após
passar no exame, dado que Charles teria mesmo de ser mais ou menos parecido com ele. Entretanto, nao é este de todo o caso, qualquer consequéncia desta espécie seria urna idiotice. O espirituoso reside no facto ele Emmeline reconhecer em Rinville alguém que ela nao conhece. O espirituoso
nao reside no facto de ela reconhecer 12601 Rinville, antes fica amostra no
facto de cla nao conheccr Charles. Tal como se passou com Rinvillc, tambérn assirn se passaria, nas mesmas circunstancias, com qualqucr outro
homcrn, cla também o tomarla por Charles. Ernmeline confunde entáo Rinvillc com um individuo que nao conhece, o que é inegavelmente um género muito espirituoso de troca de identidades. Por isso, a situacáo possui um
tao elevado grau de verosimilhanca que. haveria de crcr-se, seria difícil que
lhe fosse concedida. Rinville tambérn faz enráo figura de parvo, tendo ern
conta que acredita ter dado mais um passo cm frente. O Charles de Emrncline é um x , um desideratur'", e ve-se aqui manifcstamcntc o que por hábito tcrn lugar cm silencio, o modo como urna jovcnzinha se comporta quando cria para si urn ideal. F:. no en tanto, arnou Charles nestcs cito anos, e na.o
qucr amar rnais ninguém,
Se deparamos entño com urna réplica completamente isolada que nos
parcca incorrecta, Scribc compensa com urn dilo espirituoso.
assirn que
se passa na réplica de Rinvillc: «Dcus scja louvado, tivc reccio de ter ido
mais longc do que descjara/•8
Portanto, Emmeline reconhece Charles, ou melhor, descobre-o. Enquanto Rinville, como se haveria preferencialrnente de suspeitar, nao chega
designadarnente a saber qual o aspecto de Charles, Ernrneline sabe, o que
está muito sabiamente estruturado , visto que ela nao o sabia de antemño.
A situacáo
tao delirante que possívcl ficar cm dúvida sobre que coisa
dizer, se foi Rinvillc qucm cnganou Emmclinc, ou se foi Emmeline quem
enganou Rinville, visto que, de ceno modo, ele está enganado, na medida
cm que acrcdiiava que existía realmente um Charles. Mas sob tudo isto jaz
a infinita pointe69 no facto de esta cena ser urna cena do reconhecimento.
A situacáo tao louca como seria a réplica de um homem que nunca tivesse visto a sua propria imagern e, vendo-se pela primeira vez ao espelho,
dissesse: reconheco-rne desde logo a rnim mesmo.
a cena do reconhecimento, Ernrneline e o presurnívcl Charles chcgararn justamente ao ponto cm que sao intcrrompidospela partida de Charles,
t
é
é
é
67 Em latim no original: «O dcscjável».
68 lbid .. cena 8. p. 7.
69 «Pointe», termo francés que cm varias línguas designa o súbito, o inesperado. que
num episodio ou muna anedota desencadeia o gracejo.
quando 0 tio voltu u intcrrompc-los com a sua presern;~. Rcce~eu do
Sr. Zacharie cschm;ci1nentos respeitantes a Charles que nao lhc sao part icularmcnte favorávcis. Vai agora recair tudo sobre Rinville. A situacáo
e c!>scncialmcnte a mesma da anterior; mas iremos ver que ganho o poéta
tirou. As proezas de Charles sao ele tal natureza que, se fossem pura .e
simplcsmcntc contadas, poderiam ter um efeito perturbador no que. diz
rcspeito a impressáo global da peca. Importa dar-lhes uma. cert~ ~onahdade lcviana para que nao cheguem a produzir 1261 l urn efe.1to seno. O ~oera alcancou-o por dois meíos. A primeira informa<;ao obtida sobre a vida
de Charles ocorre na nona cena, na qual está Rinville , que se faz passar
por Charles, recaindo tuclo sobre ele. A atcncáo do espectador desviada
dos meandros da história para a troca de identidades; ern vez de se pensar
cm circunstancias particulares acaba unicarnente por pensar-se emparvo(ces cm gcral e no embarace de Rinville, e o cómico consiste cm ~xigir-sc
dele um csclarccimento adicional. A informacño completa é obtida pela
boca do próprio Charles na cena dczasscis, cmbora na~) seja ele. esque,c~r
que Charles se faz passar por Rinvil\c. O que se tornana dcmas'.ado seno
ou demasiado atrevido, se íossc Charles a contá-lo na sua própria pessoa,
rc:-.ulta agora nurna tonalidade cómica, quasc alegre, porque ele .conta:o
pcssoa de Rinvillc, rccorrendo a estar incógnito p~ra tornar isso t~o
11a
lantástico quanto possível. Se ele tivessc narrado a vida .na sua ?rópna
pcssoa, exigir-se-ia que tivessc consciencia disso, e sen~ considerado
como imoral ao mais alto grau, se nao a tivesse. Agora, ao 1nvéi::, quando
ele narra tudo na pessoa de urn outro, e ainda mais para atemorizar Em111cline, acha-se que a tonalidade fantástica da sua história está corno que
pocticarnent.c certa ern duplo sentido.
,
Ora Dcrvicre obteve esclarecimentos sobre o presum1vel Charles,. os
quais ele nao se vG em condiyocs de rectificar ou de completar. Emmchne
dcscobre «que ele já nao é o mesmo» 70. É uma coisa prccipita<~a, depois de
eta estar plenamente convencida de que ele é mesmo o anugo Char~es;
Ernmeline revela-se aqui realmente no seu elemento, rndo o que ela dtl e
disparate. A própria réplica merece urna observa9ao m<ÜS rigo'.:osa.' por~ue
orercce a ocasiao de rcjubilar ainda mais coma situa9fto, qm: hca iluminada. de um outro lado, ern toda a sua risibilidade. O simples som da paJavra
«n mesmo» actua como urn novo ingrediente estimulador na loucura da
situac;:ao, acabamos involuntariamente por rir, já que acabarnos involuntariamente por perguntar a nós próprios: o mesrno, e como quem? O mesmo.
como aqucle que ele mostrou ser na cena da prova9ao. E damos connosco
tono a pensar qufto incompleta fora aquela prova9ao. O mesmo, rn.as como
ql~cm? Como Charles, que ela nao conhecia. Alérn disso, quando cltgo accré
70 J/Jid .• ccm1 9, p. 8.
105
304
ca de alguérn que o mesmo, ou que nao o mesmo, posso torná-Io cm
sentido externo ou em sentido interno, com respciro ao seu exterior. ou ao
cu ser interior. Este último. havcríamos de crcr que de especial irnportáncia para o amante. Ao invés, descobre-se agora que a provacáo 12621 mal
tinha tocado nisso e, nao obstante, ele foi tido como scndo o mesmo. Completamente por casualidade, Emmelinc acaba por ponderar se Charle> nao
se tcrá afinal mudado no tocante ao carácter, e dcscobrc agora que ele nao
é o mesmo. A ncgacáo de que ele, no aspecto moral, já nao o mesmo
contérn simultáneamente a afirrnacño de que ern todos os outros aspectos
ele é o mesmo. No cntanto, Emrncline explica-se com maior minúcia. Nao
busca transformacócs no facto ele Charles se ter tornado um esbanjador e
possivclmcnrc alguma coisa aindu pior, mas antes no facto de ele nao lhc
confiar ludo, coisa a que cla fora habituada. Esta pode ser urna das suas
ideias romanescas, mas que deverá ser entendida. a scrnclhanca da cena de
reconhecimcnro, como se ela cstivessc habituada a dizer disparates acerca
de ludo diante dele. Que Charles eslava habituado a confiar-lhe rudo,
coisa que ela nao sabe por experiencia, mas sim dos romances. onde se
aprende que o. amantes nao dcvern guardar segrcdos. Se Charles fo. se um
penitenciario evadido, nño seria factor de perturbacño , se ela viessc meramente a satisfazer a sua curiosidadc erótica por via de ser ele a confiur-lhc
tnl coisa. O cnsaio que Ernmeline cxccuta por intcrmédio da obscrvacño do
carácter dele, para se convencer da idcntidade dele. entño. terá de ser visto
como disparate, o que cm parte esclarece todo o l>CU ser e, em parte. todo o
scu restante disparate. No mesmo instante, desiste por isso dcstc raciocfuio,
e obtérn agora urna preva rnuito mais segura de que ele nüo o mesmo,
quando descobre que ele niío tem o ancl?'. Já nao nccessita agora de qunlqucr testemunho adicional contra Charles. Confcssa por isso que ele podía
ter feito o que quisessc, a pior das coisas, ou por outras palavras, ter-se
transformado tanto quanto ele quiscsse, que reria todavía continuado a ser
o mesmo. porérn. o facto de nao ter o anel testemunhava contra ele. Emme1 inc destaca-se pela sua especie multo própria de pensarneruo abstracto. O
que entretanto cla rctém, após a absrraccáo e através dela. nao é tanto a
pura csséncia de Charles quanto o anel. É de considerar Emmeline como
sondo o espíritu do anel, que obedece «a quem tcm o anel na mao.»72
Lapierre anuncia um novo forastciro. É ponto assentc que tern de ser
Rinville. Ao receber ordcns para se aprumar, Emmeline exclama: «Que
macada. Ter agora de ir arranjar-rnc por conta de um homem que me é
é
é
é
é
é
é
71 lbid .. cena <),p. 8.
72 Vd. Ada111 Oehlenschlügcr ( 1779-1850), Aluddin, eller Den [orunderlige La111¡1e
(Aladdin ou a Lllmpada Maravilhosa]. in Adam Oehlensrhliigers Pocttsl» Skrifler IE-:
criros Poéticos de A. O.]. vol'>. 1-TI. Copcnhaga. 1805; vol 11. pp 7C, 116, aqtu p 271.
cvtranho e que nao consigo suportar: já sei isso de antemao.»73
Por meio
dcvta réplica. chama se a tempo a atencáo do espectador para a ironia de
urna da'> cenas scguintcs. De um modo geral, Emrnclinc pode gabar-se de
a menina querida da ironía. Faz-lhe a vontadc cm ludo. e a seguir 12631
la-la pagar por isso. Ernmeline quer que o prcsumívcl Charles scja um
hclo jovcrn, a ironia Iaz-lhe a vontade, Dcrvierc nao percebe. está ali a
l111cr figura de parvo, Ernmelinc ganha a palma. e afinal faz figura de rnais
parva. Qucr que Rinville seja urn homcm que ela nao conscguc suportar,
aposar de o pai a pór ao correntc de que se trata de um excelente jovem.
ironía volta a fazer-lhe a vontadc, de tal forma, porém, que cla faz figuni de parva.
A décima primcira cena é um monólogo ele Rinvillc74. Parece prcfcrível
que tivcsse de ser suprimido, visto que o efeito é perturbador em todos os
aspectos. Se bcm que estivessc adequado dcixar Rinville dominar o campo
de baialha e ser o primeiro a rcccber Charles, o monólogo podía ser cncurtudo. Tarnbém nao deixaria ele ficar scrn cícito. Nas palavras do poeta. podía
ter sondo assim: «Bravo! Corre primorosamente! Em luta com o pai. cm
lula com a Iilha, a bem da verdadc, tenho de admitir que um plano bem
gizadu,» Este monólogo iría cniño conter uma espécie de reflexao objectiva
:-.obre o decurso un ¡JC~a. Acliassc o poeta 111..:cessário prolongar um pouco o
111onólogo de molde a dar tempo para a chcgada de Charles. cntao, poderia
até ter !"cito com que Rinvillc graccjasse um pouco consigo próprio sobre o
lacto de que, ao fim e ao cabo, talvel tivesse siclo mais sensato ter apnrecido
na sua pr6pria figura, ou gracejasse com o que há de burlesco em ter assim
pas~ado de mal a pior. a medida que chegavam novos despachos sobre Charle~. Teria sido mclhor fazer com que ele, nestn sua rcflexao. fosse interrompido por uma répli<.:a de Charles nos bastidores. Da maneira como termina o
monólogo cm Scribe, sente-sc demasiado que, uma vez terminado, terá
agora de entrar uma nova pcr~onagem. Se o monólogo de Rinville fosse
1ntcrrornpido daquela fonna, dcrramava-sc uma nova luz sobre a com:ria
avc111ureira de Charles, sobre o inopo1tuno da sua entrada. coisa pela qual
ele scmpre se salienta, item. sobre a esbaforida patctice com que o poeta
marcou de maneira incomparável as suas primciras réplicas75.
E no cntanto, isto é menos impo11ante. O principal erro neste monólogo
reside no facto de a opera~ao sugerida por Rinville se mostrar totalmente
como pulavreado. como um movimento apenas fingido. Rinvillc explica
que nao é por facécia que assume o papel de Charles. Nem nunca f"oi assim,
pelo contrário, no início foi ele mesmo quem apresentou tres sólidos funxcr
é
11 lhul.
7~
cena
//¡11/ • lºCllil
10. p. 8.
11. p
<)
7c, lh11/ , n·na 12. p. 12
Ou. lJ111l•111r111111111
011
damentos para que pudesse dcsejar que o scu casarncnto com Ernmclinc
tivesse lugar. Esclarece cm seguida 12641 que quer impedir que Ernmeline
o confunda com Charles, quer ficar convencido de que é ele quern ela ama,
e nao a recordacáo de Charles. Tsto é da rnais extrema importancia para
toda a peca, pois é por esta via que se decide, como aeima desenvolvido, se
a peca é moralizante em sentido finito, ou espirituosa ern sentido infinito.
Como objectivo, a operacáo de RinviJlc tem cntño de fazer com que as
estimáveis qualidades que lhe sao proprias se tornern vísíveis através da
pessoa de Charles. Ora tal nao acontece entretanto e, se tivcssc acontecido,
enráo, a peca tcria sido uma peca completamente diferente. Com Emmeline, tudo gira em torno do anel, quando na cena quinze ele entra usando o
anel, ela volta a conccdcr-lhc a sua gra9a, reconhece-o corno sondo o mesmo, cte. Tendo ern conta o efcito global da peca, Rinville nao tem de ser
concebido de modo algum como urna figura poética, algo que nem sequcr
se conscgue demonstrar comos esclarccirncntos singulares ele que tem sido
alvo. É um homcm chegaclo á idadc da maturidadc, com sólidas razócs
para fazer o que faz. Incide sobre ele de vez cm quando urna luz cómica,
porque Jica a mostra que as suas sólidas razócs e o scu entendimento de
pouco Jhe valcm para conquistar urna pequena gazela romántica da qualidade da menina Ernmclinc, Por mais que ele fosse um horncm absolutamente esumavcl, mas perigoso para o coracüo de urna rapariga, nao conseguiria ex ercer qualquer poder sobre Emmelinc, cla é i nvu lncrável, só obtérn
efeito sobre cla quando entra em contacto coma sua ideia fixa, logo, com
o anel. Mas como o principal interesse da peca iria neutralizar as suas reais
estirnáveis qualidades, entño, nao resulta certo enfatiza-las, coisa que o
poeta aliás nunca fez, cxccpcáo deste monólogo. Na cena em que Rinville rnais interage com Emrnelinc?", é obvío que, acima de tudo. nunca pode
falar-sc de urna qualquer oportunidade para ele cxibir as suas estirnáveis
qualidades pcssoais. Quando urna jovern se inclina cm tal grau por um
homern, a sernelhanca ele Ernrneline por Rinville. com essa inclinacño , está
sempre a mostrar-lhe a oportunidacle de insinuar-se no coracáo dela e, entao, Rinville teria de ser completamente lorpa, se nao conseguissc vir cm
seu auxílio. Esta cena está cntño longe de poder ser tomada como rendo
sido estruturada de molde a mostrar as cstirnáveis qualidades de Rinvillc,
já que rnais parece estar a colocá-lo sob urna luz urn pouco cómica. Rinville manifestarnente um homem de entcndimento; nurn monólogo anterior,
assumiu-se com algurna importáncia, dando a entender ao espectador e aos
seus amigos de Paris que era suficientemente homern para conseguir domesticar urna jovenzinha desta espécie. E é verdade que foi bern-sucedido;
mas se os seus amigos de Paris 12651 pndessern ver como as coisas se pas-
snram, n5o iria1n t ·1 opouunidadc de admirar os dotes dele. Ensinou-lhe o
scu cntendirncnto que era possível fazer-se passar por Charles. Até aqui,
é-lhc dcvida inrcira justica. É agora que vai acontecer, é agora que vai mostrar as suas estirnáveis qualidades, é agora, pensamos nos, que vai meter as
máos ¡t obra, quando é cntño mostrado que nada lhc resta fazer; a Emmeline pé ligeiro, regrcssando a correr para as rccordacóes de infancia, leva o
Sr. Rinville com eta, e qualquer homern que nao fosse urn completo pacóvio reuniría condicñes para lhe copiar o golpe de mestre.
O que aquí foi desenvolviclo no que diz respeito a personagem ele Rinville
ern minha opiniáo. de absoluta importancia para toda a peca. Nao
ll:r:Í de aí haver urna única figura, nem urna única relacáo cénica, que possa
ter a pretensáo ele sobreviver
derrocada que a ironia prepara para lodos
eles, logo desde o início. Quanclo o pano cntáo cai, ludo é cntíío esquccido,
só nada resta, e é cssa a única coisa que se ve; e a única coisa que se ouvc
é um riso que, corno um ruído da naturcza, nao saí de um único homem, é
a111cs urna .linguagcm da for\)a universal, e essa forc,:a é a ironía.
Charles entra e encontrn-se com Rinville. O espirituoso na sitlia9ao reside no faclo de Charles, cssa cabe<,:a intrigante, chegar tarde de mais, nao só
cm rclac,:ao ao Sr. Zacharie, mas acima de tudo em rela9ao
intriga da pe9a.
/\qui, como em toda a parte, as suas réplicas sao magistrais, e sao ao mesmo tempo tao características quanto subordinadas
situa9ao. Rinvillc
aconsclha Charles a fazer-se passar por Rinville. Jéí Jhe sugeriu cabalmente
a ideia de como o fazer, quando é interrompido por Charles, para quem era
impossível receber liyé5es de terceiros no tocante a mistifica9oes, aparentando ser ele mesmo quem tudo inventa. Porém, mostra-se logo de seguida
como nao scndo hornem para acautelar as coisas mais pequenas; teria assim
acabado por ignorar o anel, se Rinville nao lhc tivesse chamado a atcn9ao
para tal. Rinville recebe o anel.
Charles aprescnta-se a famflia como sendo o Sr. Rinville, e ser recebido
depende c.lessa circunstancia. Derviere acha-o mais jovem e mais bonito do
que Charles, Emmeline acha-o asqueroso, ambos os juízos sao igualmente
pouco fidedignos, e atreverno-nos muito bern a crer que Ernmeline nem
sequer achou que merecesse a pena olhar para ele, mas soube disso pela
fon;a de uma inspira9ao. Passa-se com o pai de urna maneira sernelhante.
Por isso, a situa9ao encerra uma profunda chacota sobre Charles, o qual
atribui prcsumivelmente a 12661 sua habilidade o seu favorávcl acoHlimen10, esperando que l.udo cona bem, limitando-se ele a permanecer incógnito.
Segue-se um monólogo, no qua] Emmeline se aconselha com o seu
cora9ao, descobrindo que nunca esquecerá Charles, mas que desposará
Rinville77.
76 lbid., cena 8. pp. 6 e segs.
77 !bid., p. 11.
a
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ti\.
107
306
1d11
é,
a
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308
S111 ~·11
RinviUe chcga para se despedir e para entregar o ancl. Reco11cilian1 se
novamcnte. Já estamos familiarizados com estas situacócs.
Segue-se a mais brilhante siruacño de toda a peca. Repousa sobre cla urn
nimbo, urna transfiguracño, que traz consigo urna solenidade, a tal ponto,
que quase se poderla desojar ver em segundo plano a tia Judith, como um
espfrito que desee o olhar sobre os scus dois discípulos. Emrneline decide
confiar-se ao prcsumívcl Rinville e revela rudo. Esta situacño ilumina plenamente Emrncline e Charles. A fidclidadc de Ernrncline torna-se por completo em parodia. Nao quer desistir dele a preco algum, nño se dcixa atemorizar nem pelo fogo. nern pela água. o embarace de Charles torna-se cada
ve¿ maior, visto que deseja ver-se livrc dela. Urna tal Iidelidade é totalmente adcquada; pois uma jovenzinha como Emmcline costurna ser scmprc
muis fiel. quundo o amado quer ver-se Iivre cicla. Sabenclo que o Sr. Zacharic nao havia relatado o pior711, Charles scntia-se bastante seguro de que se
descnvcncilhava de rudo com a sua habilidadc, mas passa agora a ser ele
qucm rudo denuncia. A oportunidadc é demasiado tentadora. Pode tornar-se
o trovador da sua propria vida. e espera dcssa rnancira livrar-sc da prima. Já
foi anteriormente recordado que a situar;ao ganha lcvcza corn o facto de us
cstroinices de Charles adquirirem urna ionalidade cómica. Obtérn-sc urna
rcprcscnracáo vívida da sua leviandadc e da confusño do scu espirito, mas
nao se fica indignado. como seria o caso, se ele houvcssc narrado Ludo da
mesma maneira na sua propria pcssoa; e no entamo, presscntc-sc que ele
prcsumivelmcnte iria Iuzé-lo. Prcssentirno-lo, mas nao ouvirnos ísso. Porém, Charles nada leva a cabo, apenas agrada a si proprio. A fidclidadc de
Emrncline nao conhece quaisquer limites. Por fim. Charles confessa que é
casado. É incrível corn que seguranca o poeta soubc ironizar Emrnelinc. Ao
ouvir que ele é casado, fica furiosa. Tal vez. ocorrcsse a algum dos espectadores pensar que o fundamento da suu cxasperacño corn Charles fosse ter
ficado a conheccr todos os scus rnaus passos. De modo nenhum. meu caro
amigo! Nao está!) a entcndé-la, Fica com Charles. se conseguir simplesrncnte ficar corn ele. Mas ele é casado. Claro que ela teria achado rnuito bem, se
ele durante os oito anos nao tivesse olhudo 12671 para nenhurna outra rapariga, e antes tivessc con. cienciosamente contemplado a Lua. Porérn. ela
sabe como colocar-se acima disso. E que ele tivesse scduzido dcz raparigas,
fica corn ele. Iica corn ele ti tout prix19, mas sendo ele casado, jií nao pode
ficar com ele. Hinc illai /acryma!80. Se nao fossc esta a intencáo do poeta,
78
as cenas 7 e 12, o agiota a quem Charles deve dinheiro relata as circunstáncias do
de Charles com Pamela.
79 ~m francés no original: «a todo o cusro».
80 Em latirn no original: «daí aquetas lágrimas». Citacño retirada de A111/na de Teréncio
(190-159 a. C.). Acto 1, cena 1. Edic;ao consultada pelo autor: P. ¡¡''<'11111 \fii conurdia:
casnmento
309
"1crl.cga.11d
cutuo, tc1 in lcuo <.:0111 que 1..~1111111.:line interrornpcsse Charles urn pouco mais
cedo, Charles cvplicou que tinha sido exposto a muitas solicitacóes do belo
<evo. que rivera diversas aventuras galantes, que tinha por vezes levado
demasiado longe a sua dignidade de arnar'". Ela nao o intcrrornpc, prometelhc íazcr rudo por ele para o reconciliar com o pai e para ficar ela própria
mm ele, já que se mosira distintamente que urna vez que cla nao pode ficar
mm ele (assim que ouve que ele é casado), cntño. nao será ela quern vai
csquccer se de fazer soar o alarme no acarnpamento. Charles comeca a
contar a historia de Pamela. ela ouve com sereniclade. Surge o horrível. ele
e casado, e rebenta o reino da Noruega82.
A profunda ironia desta situa9ao jaz na fidelidade inviolávcl de ~mmelinc, que nao é capat. de desistir de Charles por prc90 nen hum, visto que lhc
custaria a vida, bcrn corno no cresccnte embara<;:o de Charles. que nao é
tapa1 de livrar-sc dela. Toda a cena é como se fo· e uma lici1a9ao cm que
o Charle.., ideal é arrematado por Emmcline. Por fim, ludo termina no ponto cm que fica mostrado que ela nflo pode ficar com Charles e cm que
( 'harlcs nao conscgue escapar das suas parvoíces.
Emmeline faz uma gritaria, o pai acode. e jura que nunca há-de perdoar
a 'harte~.
Hntrn ;1gorn o presumível Charles. Emmcline suplicou no pai que nño se
c11colerii'.asse. será eh1 a fazc-lo confessar. Aqui. como noutros pas~os, o
iacto do poeta tcm de ser admirado. A cena tem. dc!>ignadamcnte. de se
tornar risível e a -;ituar;ao, irónica. quando se ve no presumível Rinville a
1111pressao que a fulminante invectiva haveria de fazer no prcsumível
( 'harles: o verdacleiro Charles tem clesignadamente o prazer de estar pre'l'ntc pcs!.oalrnente. enquanto é executaclo in effigie. Tive~se o poeta permitido que rosse Dcrvicre a fa1.cr este discurso, e teria sido urna injustiya
polStica. O tío havia sido o benl"citor de Charles, e está no pleno dircito de
exigir nao faL.cr figura de parvo diantc de Charles. O tío pode até muito
hcm nao <;er tao perspicaz quanto a rapariguinha, mas as suas boas obras
ao longo de válios anos dao-lhe uma vantagcm bem diferente em rcla\:aO
:a Charles. face a uma tao esfarrapada promessa de casamento como aque1n ISm Comédias de P. T. A.]. edi~ilo de M. B. F. & F. Sehmiedcr. Halle. 1819. p. 16·.
l\111por1ug11fü.:A1110,·a q11e l'eio de Antlms, inlrodu<,:ao, vcrsiio tk1 latim e nota~ de Waltc1 de Mcdciros. Coimbra: Instituto Nacional de lnvcstiga~ao Científica. Centro de Bstudo' Clá,,ico~ e llumaní~ticos da Universidade de Coimbra. 1988. p. 36.
X 1 Oen j(lnl<' Kja'riiglred, cena 12. p. 12.
X2 Alu,ao a 11111 episíxlio na Batalha de Svold. no qual o mi OlafTryggvason, ao ouvir
l1111 gr;1ndc cstrondo. 11crp.untou a um arqueiro qua] a sua origcm, tcndo este respondido
que ~e 1ra1ava do reino da Noruega a fugir-lhe das miios. Edir,:iio consullada pelo autor:
Old1um/i,J..1• SaKaer IA11t1ga' Saga-. l·.~candinava,l. 1radu~ao de C. C. Rafn. vols. 1-XII.
( 01X'11hag.1. l l{26 l l{ \7, 'ol 11. pp 'XO 283.
310
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1.1r1111
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311
111.1
la que ofcrecera a Emmclinc. 12681 Dacio que, c111 contrapartida.
rudo
aquilo que Emrnelinc diz rnostra ser disparate. incluindo a prorncssa de
casarncnto , é pois adcquado que cssa oracáo filípica11·' tarnbém assirn se
mostré enguanto tul. O enarnoramcnto de outrora por Charles é disparate.
o novo enamoramcnto por Rinvillc também é disparate: a sua cxaltacño
disparate. a sua ira também
disparate: a sua obstinacáo é disparate. as
suas boas intcncóes tarnbém sao disparare.
Ernmclinc d:í largas a sua ira, e o prcsumível Rinvillc parodia o efeito do
discurso dela através do rosto e dos gestos do vercladciro Charles. Pode
considerar-se que ncsta situucño o clímax se dá quando cla faz a confissáo
de que realmente arnou Charles. A troca de identidades
completa. Aquclc
a qucm ela amou, de acordó com a sua confissáo, ao longo ele oito anos é
Rinville, no qual lego reconheccra Charles. recorrcndo a alguma simpatia,
para lego a seguir se convencer de que este nao era o mesmo, embora flcasse logo rcconhccível outra vez, gracas ao anel.
Desfaz-se finalmente a troca de identidades. Fica mostrado que ela ficou
com Rinville ern vez ele Charles. A pe9a termina aquí. ou, mclhor dizendo,
nao termina aquí. Já desenvolví este ponto anteriormente, qucro ainda aqui
elucidar apenas com algumas palavras o que foi avancado. Se o objcctivo
da peca mostrar que Emmelinc se tornou urna rapariga razoávcl, que tez
urna cscolha razoável no optar por Rinvillc. cntáo, a nota fundamental recai
no lugar errado em toda a peca. Designadamcnte nesre caso. intcressar-nos-ia menos ficar a saber corn rigor ern que sentido Charles Irucassou. Em
contrapartida, exigimos urn esclarccimcnto sobre as cstimáveis qualidadcs
de Rinville. Lá porque Charles se tornou um libertino, isso nao implica de
modo algurn que cla deva escolhcr Rinville , a menos que alguém qucira
relegar Scribe a dramaturgo amador, que respcita a convencáo dramática
segundo a qual qualquer rapariga acaba por se casar, e se nao se casar com
um, entáo, tcrn de casar-se corn outro. Enicnda-se, ao invés, a peca domodo como cu a entendí. entáo, a jocosidade pcrde completamente o rumo. a
espirituosidade é infinita, e a comédia é urna obra-prima.
Cai o pano, a peca acabou. nada mais subsiste, apenas sobrum para contcmplacáo os graneles contornos nos quais se rnostra o fantástico SchattenspiefM dirigido pela ironia. A. iruacáo imediata real a situacño irreal, atrás
da qual fica mostrada urna nova situacño que nao está menos equivocada,
e assim por chante. Na situacíío, ouve-se o diálogo. quando rnais racional
12<1911110-.ira
ve 111nis dcluante e, tal como a siruacáo se afasta, também o
diálogo a scguc, cada vez mais dcsprovido de sentido apesar da sua razoaluhdade.
Para desfrutar merecidamente da ironía dcsta peca de um modo contcmplativo, tem de ser vista, e nao lida; tcm de ser vista vczcs sem conta c.
quando se tcrn a sortc de ser contemporáneo dos quatro talentos do palco
que no nosso teatro, de todos os modos. contribuem para mostrar e deixar
prcsscntir a transparencia da situacño, entáo, o desfrute cada vez rnaior de
cada vez que a vernos.
Por muis que as réplicas nesta peca sejam muito espirituosas, iremos
c~quece-Jas, mas é impossível esquecer as situa9oes dcpois de as vcrmos
vislo uma vez. Quanclo já estamos familiari1.ados corn elas, na vc1, seguintc
cm que se ve a pe9a, aprendemos cnrao a ficar gratos a aprescnta<;üo cm
palco. Nao sei proferir maior elogio sobre o de ·cmpcnho dcst<t pc((a. a nao
scr que é pcrfcito cm tao elevado grau que, nas primeiras vezes, nos faz
sentir acirna de t.udo ingratos, porque o que se recebe é a pe9a, sem mais,
111.:111 menos. Conhe<;o um jovem filósofo que uma vez me fez uma exposi\'áo sobre a doutrina da essénciass. Era tudo tao fácil. tao simples, tao natural, que quando ele acabou, dissc-lhe eu, quasc cncolhcndo os ombros: «é
s6 i~SO». Quando regrcssci a casn, q uis rcprodu:Lir os movi mentos <lu 16gica
e mostrou-se que cu nao saía do mesmo sftio. Reparei entao que teria de
c'>tar cncadeado de outra maneira, sentí como era grande o seu virtuosismo
e a sua superioridade sobre mim próprio e senti quase corno urna chacota
que ele o tivesse fcito tño bem que fiquei mal-agra.decido. Era um artisla da
l"i loc;ofin, e o que acontece com ele acontece a to<los o~ grandes arl ist<ts.
111clusivc a Nosso Senhor.
Tal como me acontcccu com o meu amigo filosófico. também assim
awnteceu com.igo na exibi'(ao de O primeiro amor. Agora que, pelo contrário. a vi <lesempenha<la inúmeras vezes, e também noutros palcos, só agora
me sinto reconhecidamente grato aos nossos artistas dramáticos. Se por
conseguinte eu houvesse ele mostrar a um estrangeiro os nossos palcos, havcria de conduzi-lo ao teatro cm que a pcc;a cstivessc cm cena, e partindo do
prcssuposto de que ele a conhecia. dir-lhc-ia, entao: olha para frydendahl86•
afasta os olhos dele, fecha-os. deixa que a imagem dele sui:ja a tua frente:
csscs tm<;os nobrcs e puros, esse p01te distinto, como con!>eguem eles despertar o riso. volta a abrir os olhos. e olha para Frydendahl. Olha para a se-
83 Alusño ao discurso de Cícero (106-43 a. C.), denominado «Filípica», proferido no
momento cm que Marco Antonio (83-30 a. C.) ocupou o lugar de Julio César; Cícero
inspirou-se no esri!o vccmente e eloqucnte de Demóstenes (384-322 a. C.) no« discursos
aos seus concidadños dirigidos contra Filipe 11 da Macedónia (c. 382-336 a. C.).
84 Em aleruíío no original: «teatro de sombras».
85 Provúvcl ref'erem:ia ao conleúdo das palestras cm Bcrlim de Karl Wcrdcr (18061893). fiió,ofo hegeliano alcmiío, dl11ante a estada de Kierkegaard na cidade entre
Ouwbro de 184 1 e fvfau;o de l 8-12
é
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86 Vd.
11111a
19 nc,1.:
1 ap1111l11
S01·c11 1 icrkcgaard
312
nhora Hcibcrg'", baixa os olhos, pois 12701 as estimáveis qualidadcs de
Emmcline podiam porventura ser perigosas para ti; escura essa languidez
sentimental na voz, a insinuacáo infantil e caprichosa da jovem, mesmo que
sejas seco e rijo como um guarda-livros, contudo, tens de sorrir. Abre os
olhos, como é isso possfvcl? Rcpcte 'estes movimentos muito dcprcssa de
molde a que ambos quasc scjarn coincidentes no momento, e tcrás urna ideia
do que descmpcnhado cm palco. Sem ironía, um artista nunca pode fazer
um esboce, um artista dramático pode apenas fazé-lo através da contradicño,
já que a csséncia do esboce é a superficialidadc, e onde nao é exigido desenho das pcrsonagens dramáticas, há a arte de se transformar numa superfícic, o que 6 um paradoxo para a prcstacño cm palco, e só a alguns é dado
fa:t.c-lo. Um actor dotado de um cómico imediato nunca pode representar
Derviere, porque ele nao tcm qualquer carácter. Tocio o ser de Emrncline é
contradicño e nao pode por isso ser representado de maneira imcdiata. Ela
t.em de ser estimávcl, caso contrario. o efeito de toda a peca é dcitado a
perder; nao tem ele ser cstimavel. mas estrambótica; ou cntño, perde-se, em
outro sentido, o ctcito rotal da peca. Olha para Phíst.cr88. Quase te dói quando fixas o olhar naqucla estupidez infinitamente insípida que Jhe está estampada no rosto, E nao obstante. nao se trata de urna estupidez imediata, o scu
olhar possui ainda urna exaltacño que na sua idiotice faz lembrar um tempo
passado. Ninguérn nasce corn tal rosto; tcm urna historia. Quando eu era
pequeno, lcmbro-rnc de ouvir a minha ama explicar-me que nao se devia
fazer caretas coma cara e, para me pór a mirn e a outras enancas ele sobreaviso, centava urna historia ele um horncm como rosto torcido por ter feíto
caretas, e de como ficara a dcvcr tal coisa a si proprio. Dera-sc designadamente urna coisa deveras estranha, o vento mudara de feicáo e o homcm
Iicou com o rosto contorcido. Phistcr dá-nos a ver um rosto assim contorcído: há ainda vestfgios de caretas románticas, mas quando o vento mudou de
feicáo, ficaram um tanto distorcidas. A apresentacño de Charles feita por
Phister tem menos ironía, mas rnais humor, o que está completamente certo,
pois na esséncia da pcrsonagem a contradicáo nao é tño notoria. Nao se faz
passar por Rinville, a nao ser aos olhos de Dcrviere e de Emmeline, os quais,
cada um a seu modo, sao igualmente tendenciosos.
Olha para Stage89, alegra-te com cssc porte belo e viril, essa pcrsonalidade culta, esse sorriso fácil que denuncia a superioridadc imaginada de
Rinville perante a familia fantasiosa de Derviere. e ve como este representante do entendimcnto rodopiou por entre a confusáo que a oca paixño de
Emmel i ne, como se fossc um impetuoso temporal, ocasiono u.
12711
1
é
87 Vd. nota 18 neste capítulo.
88 Vd. nota 21 ncstc capítulo.
89 Vd. nota 20 neste capítulo.
A Rotac;ao de Cu 1 turas
l
1
Ensaio para Urna Doutrina de Prudencia Social
1
1
12721
12711
X QC,ttvlo~.
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190.
Chremylos .
t:utl. rrávtcov :;ú.11o~tovr1.
...... an. Allem bekommt man endlicñ Ueberdrufi.
EQCJ)T.O;.
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Kaouov,
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Semmel .
X fJC¡wJ...ot;.
Chremylos.
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Karlon.
und Zuckerwerk.
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Chremylos.
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Chremylns.
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Tapferkeit
ÍÚX{}lW'I'.
Karion.
toxáowv.
und Feigenschnitt,
Chremylos.
192. qúonµfo;.
An Ruhui.
KO.(!lW11.
Karíon.
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an Riihrei,
XQE/1VÁor;,.
Chremylos.
<J'{.l)U'fl)YÍ«;.
KO.(!WJ11.
Karlon.
cpaY..fJ;.
Cf. Aristophanis. Plutus, v. 189 e segs.1
am Kommando,
am Ge mus'.
CL Aristofanes, Pluto, de acordó coma traducáo de Droyscn2.
11751
Afirmam os experientes
que
é
muito sensato partir de um princípio
l undnmenral; estou de acorclo com eles. e parto do princípio fundamental
de que todos os homens sao cntcdiantcs. Ou havcrá por aí alguérn que
qucira ser suficientemente
cnicdiantc e vcnha contradizer-me ncstc pon-
possui, no rnais elevado grau, a Iorca
de rcpulsño que scmpre se exige do negativo que é propriamcntc o princípio do movimcnto': este nao
sirnplesrnente repulsivo, mas infinitamente repelente, e quem ti ver este princípio fundamental atrás de si terá
nccessariamente de possuir urna velocidadc infinita para fazer descobertns. Se dcsignadamcnte a minha tese for verdadeira. entño, bastará rcflcc1 ir meramente consigo proprio, em grau idéntico ñquele corn que se modera ou se acelera o seu impetus, com maior ou menor rnoderacño, no
q11fío pernicioso é o tédio para o hornem e, qucrcndo-se elevar a rapidez
<lo movimento ao máximo, quasc pondo cm pcrigo a Iocomotiva. entño.
bastará apenas dizer para consigo: o tedio é a raiz de todo o mal. É deveras curioso que o tédio , que é cm si mesmo de urna esséncia tao tranquila e plácida, possa ter urna tal lorca para accionar movimcnto. É um
cfcito acima de ludo mágico, o exercido pelo tédio, só que este cfciio nño
é ele atraccáo , mas de rcpulsáo.
Ora, cm rclacño ~1s enancas, toda a gente reconhece também quño pernicioso o tédio. Desde que as criancas se divirtam, portarn-se sernpre bern,
é coisa que pode afirmar-se no mais rigoroso dos sentidos, dado que, se
durante a brincadeira até ficam por vezes incontrolávcis, é realmente por10'!
Ora este princípio lundarnental
é
l Em grego no original, vv. 187-l94 de Pluto ; de Aristófanes. Edil(<to consultada pelo
autor: Arisiophanis Conuedio: [Comedias de /\.1, vols. 1-11, edicño de Wilhelm (Guilielm)
L>indorf. Leipzig, 1830, vol. I, pp. J49-50. Traduc,:lfo portuguesa: Aristófanes, Piulo (il
Riqueza), inrroducño. vcrsáo do grego e notas de Américo da Costa Ramalho, Coirnbra:
Instituto Nacional de lnvestigacño Cientffica. Centro de Estudos Classicos del lumanísticos da Univcrsidadc de Coirnhra. 1989 (2.° edicáo), pp. 33-34: «CRÉMJ.1,0: R. por './,eus,
muito mais do que isso, tic tal modo que jamáis alguém está chelo <le ti. De tudo o resto
nos saciarnos: de amor ... !CARI.3..0: de pño ... ! CRÉl'vllLO: de música ... I CARIAO: de
guloseimas ... ! CRÉiVIlLO: de gloria ... i Cl\RLA.O: de holachax ... ! CRÉMILO: decoragem ... i CARLA.O: de figos secos ... ! CRÉM 11.0: de amhi~:üo ... ! CARLA.O: de papas ... i
! CRÉ11fLO: de comandos militares ... !CARIA(): de sopa de leruilhas ...»
2 Em alemáo no original: «CRÉM.11 .O: De Ludo nos enfastiamos, por fim. De amor i
! CARL:\O: páo, / CRÉMILO: arte da musa i CARlÁO: e confeitos. i CRÉMTT.O: De.
honra i CARL\O: bolos. i CRÉMILO: Coragem i CARIAO: e figos. i CRÉl\·11LO: De
fama í CARIA.O: de ovos mexidos ! CRÉMILO: de poder militar! CARLA.O: de legurncx.» Edicáo consultada pelo autor: Des /vistophanes lfrrke [Obras de A.J. vols. 1-111.
tradu<,:ao de Johaun Gustav Droysen, Berlim, 1835-1838; vol. l. pp. 149-150: na primeira Iinha. o autor om.itiu a palavra «andern» a seguir a «Allem» .
é
3 Vd. Hegel, wissenschaft der logik [Ciencia da Lógica]. II, in Werke. vol. V, p. 342:
Jubildums, vol. V, p. 342; Suhrkamp, vol. VI, p. 563-564. Para curras discussóes do
autor envolvendo o principio da negatividadc cm l lcgcl, vd. a segunda parle de 011
011. SV 1, vol. IL p. 86. SKS, vol. 3. p. 97, assim como O Conceito de Angústia, SVL
vol. IV, p. 284, SKS, vol. 4, p. 320; cm portugués: O Conceito de Angústia, traducáo e
posfácio de Alvaro Luiz Montenegro Valls, Sao Paulo. Petrópolis: Editora Universitaria
SJo Francisco e Editora vozes. 201 O, pp. 14-16.
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que comccarn a cntediar-sc; o tédio jti está em Aumarsrtt 1• mas apenas de
um outro modo. Por conscguinte, ao cscolher urna ama, é essencial ter cm
vista que cla nao scja meramente sobria, de confianca e honesta, e assumir
sirnulrancamente urna perspectiva estética para ver se ela sabe divertir as
criancas. e nao ter hcsitacócs cm despedir urna ama, se ela vier a nao demonstrar esta qualidadc, nem que ela tenha todas as curras excelentes virtudes. Com cfcito, reconhece-sc aquí com bastante nitidez o princfpio, mas
nestc mundo passa-se tudo ele urna maneira tao estranha, 12761 o hábito e o
téclio ganharam supremacía a tal ponto que a ama constitui a única relacíío
na qual se foz jus estética. Se alguérn quiscssc pedir o divorcio porque a
esposa era entcdiante, ou caso viessc a exigir- e a deposicño do rei porque
era entcdiante conrcmplá-lo, ou mandar um pastor para o desrerro porque
era entediunte ouvi-lo, ou dcmitir um ministro, ou punir com a mortc um
jornalista porque era furiosamente erucdiante, nao cstariam nesse caso reunidas as condicóes para conseguir romper caminho. Que admiracáo estar o
mundo a andar para Irás, estar o mal a cspalhar-sc cada ve). rnais, já que o
tédio aumenta e o tédio é urna raiz de lodo o mal. coisa que possfvel detectar desde o comeco do mundo. Os dcusc cntcdiaram-sc e por isso criaram os horncns. Adño cntcdiou-se porque esiava sozinho, por isso Eva Ioi
criada". A partir dcsse instante o tédio entrou no mundo, e cresccu em
grandeza na cxactíssima medida cm que a populacño ere cia. Adáo
cntcdiava-sc sozinho, a seguir Adño e Eva cntcdiaram-sc cm conjunto, a
seguir Adño e Eva e Caim e A bel cntcdiaram-sc en famille, a seguir a populacño aumentou no mundo, e os povos entediararn-sc e11 masse . Para se
distraírern. concebcram a idcia de construir urna torre tao alta que se aleantilava céu acirna". É tao entcdiante esta ideia quanto alta a torre, e constitui urna tcrrível prova de como o tédio havia ganho supremacía. Em seguida. foram dispersos pelo mundo. tal como agora se viaja pelo
esrrangciro, mas continuaram a cntcdiar-se. E que conscquéncias nño trouxe este tédio. O horncm ergueu-sc alto e caiu fundo, primeiro por via de
Eva, cm seguida. da ton-e babilónica abaixo. Por outro lado, que coisa re-
a
é
é
4 Em alcmiío no original: «marcha». da cxpressáo «im Anmarsch .1ei11», i. c .. «estar
para breve».
5 Génesis, 2: 18: «E disse o Scnhor Deus: Niío é bom que o homcrn esteja só: Iar-lhe-ci
urna adjutora que estcja como diante dele»: e 2:20: «E Adáo p<>s os nemes a todo o
gado e as aves do céu, e a todo o animal do campo: mas para o homem nño se achava
adjutora que esiivessc como diantc dele.»
6 O cpis6dio da Torre de Babel está narrado no Livro do Génesis. 11:4-9; para este
passo, vd. versículo 4: «b disscrarn: Eia, edifiquemos urna cidade e urna torre. cujo
cumc toque nos céux, e facamo-nos um nome. para que nao scjamos espalhados sobre
a Iace de toda a torra .»
011
Ou
U111 h.1r1111
11111
ch \
1d.1
319
1Hrdou a queda <k kumn? panis e circensesl . E que coisa se faz nos nossos
icmpov? Icm-sc cm convulcracño algum meio de diversáo? Pelo contrario.
p1 ccipita-se
a queda. Pcnsa se em convocar urna reuniáo de Estados Gel'Ui"x· Pode lá pensar-se cm coisa rnais cnrcdiantc, tanto para os senhores
mcmbro-, da assembleia, como para qucm tivcr de ler e de ouvir fular delcv"? Quer rnelhorar-se as financas do Estado através de poupancaslv.
l'odc lú pensar-se cm coisa mais cntcdiante. Em vez de fazer crescer a dí"'~la. pretende-se arnortizá-la. Tanto quanto eu sei da situacáo política, a
l>111amarca tcrá facilidade cm contrair um empréstimo de quinze milhoes.
Por que motivo ninguém pt.:nsa nisso? Ouve-se até clizer, ele vez em quando,
que: um homem é genial e nao paga o que deve, por que motivo nao haveria
11111 E<.,tado de poder fazer o mesmo, bastando havcr um mero acordo?
( 'ontrnia-se, entao, um cmpréstimo de quinzc rnilhoes, mas quc nao seja
1 ?771 usado para a111ortiza9ao, mas para rccrea~ao pública. Festejemos co;,,
.1l~gria e júbilo este reino milcnar. Tal como por todo o lado estrío agora
l'a1xas onde pode depositar-se dinhciro, também haveria, entao, de por todo
o lado ha ver ta9as onde houvcsse dinhciro. Tudo seria grátis; ia-se grátis ao
teatro. e grátis aos pro tíbulos públicos, seria grátis o transporte para
Dyrehaugcn11, o cnterro seria gráris, e grátis seria a ora9ao pública a alguém; digo grátis. pois sempre que se tem dinhciro na mfio, de ccrta manci1a. 1orna--;1.: logo tudo grátis. Ninguém teria de possuir bens imóveis. Have11a de ahrir-sc urna cxcep9ao apenas para comigo. Reservaria cem ráleres
por dia para pOr num banco de Londres, em parte porque nfio posso passar
mm menos e, ern parte, porque fui eu quem teve a ideia, e linalmcnte por1¡uc nao é possível saber se eu nfio seria capaz de inventar urna nova idcia.
11111a vez gastos os quinze milhoes. Que conscqucncias traria este bcm1.:star? Tudo quanto fosse grande afluiria a Copcnhaga, os maiorcs artistas.
1 nxprc¡,s1io latina de Juvenal em Sátiras, X, vv. 80-81: «piio e jogos». Edi<;üo consul1.iua pelo autor: Die Satirendes Ded111us J1111i11s J11ve11alis [ /\s Sátiras ele D. J. J .J. trnclu-
;;;ao de F. G. Findei'>cn. Berlim. Leiplig. 1777, p. 374. Vd. Juvenal, Satire.1, cdi<;iio de
ll"\IO e tradw,:ao de Pierre de Labriollc e l'hinc;ois Villcncuvc. París: Société d"Édition
l .l'' Selles Lcttres, 1957 (7.° edic;a() revista e corrigida), p. 127.
X /\s~crnblcia de representantes, cm func;ücs desde 1834. das diversas classes socia is em
lada urna das quatro províncias da Dinamarca. na época. as ilhas. Jutliindia. Slesvig e
llobtein.
1>
Os Estados Gerais publicavam o conteúdo dos debates e as respecti·vas conclusoes na
1111prensa local.
10 Em 1835. foi criada urna comí sao de representantes. com vista a elaborar a~ medida~ de poupanc;a consideradas neCt:i>~árias para que a Dinamarca saílose da siluai:;ao de
h:111carrota e111 que cntiio se cncontrnva.
11 Ou «Drrelwvsbakkem> [Parque da Tapada dos Veado~I. situado a norte de Copcnha1'ª· o mai~ amigo parque de divcr!>OcS na Europa. coulada real desde o século xv1 e um
do' lugares favoritos p:ua p:w ..c10-. cMivais a partir do início do século x1x.
320
Swcn 1 le: kcgaard
actores e bailarinas. Copenhaga tornar-se-ia urna nova Atenas. Quais i;eriam as consequéncias? Todos os homens abastados viriarn estabcleccr-sc
nesta cidade. Certamente que também para cá viriam. entre outros, o Xá da
Pérsia e o Rci de Inglaterra. Vede agora a minha segunda ideia. Usurpa-se
a pessoa do Xá. Talvez haja alguém que diga: há uma rebeliáo na Pérsia,
póem no trono um novo Xá, já antes aconteceu tantas vezes, e o velho Xá
fica depreciado. Neste caso, a minha ideia é vende-lo aos turcos, saberáo
muito bem transforma-lo cm clinheiro. A isto, junta-se ainda urna circunstancia que os nossos políticos parecern ignorar completamente. A Dinamarca é o equil íbrio da Europa. Nao é possível pensar cm existencia mais fe! iz.
Sei disso por experiencia própria. Já fui urna vez o equilfbrio de urna farnília, poclia fazcr o que eu quisesse, nunca recaía sobre rnim, mas sempre
sobre os curros. Oh! Pudesse o mcu discurso penetrar nos vossos ouvidos,
vós que ocupais os altos cargos para estar sempre a dar consclho. vós homens do rci e do povo, sabios e sensatos cidadáos de todas as classes! Olhai
a vossa vol ta! A velha Dinamarca a funda-se, é fatal, afonda-se debaixo do
tédio que é a mais fatal de todas as coisas. Na antiguidade, era feíto rci
qucm cantasse o rei mono da rnais bela maneira 12; nos nossos tempos,
deve ser rei qucrn dissc a melhor espirituosidade, e o príncipe hcrdciro,
aquele que clcu ocasiáo a que se dissessc a rnclhor espirituosidadc.
Mas para onde me arrastas tu, bela e sensível cxaltacáo! Haveria eu de
abrir a rninha boca para me dirigir aos rneus contemporáneos, de modo a
iniciá-los na minha 12781 sapiencia? De modo nenhum; pois a minha sapiencia nao propriarnente zum Gebrauch jür Jedermann13, e rcgras do
bom senso social sernpre o que há de rnais sensato para se guardar silencio. Nao desejo de todo discípulos, mas se alguérn estivesse a bcira do meu
leito de rnorte, entíío, talvez, estando eu na certeza de que para rnim tudo
cstava acabado, entáo, talvcz num acesso de delirio filantrópico lhe sussurrasse toda a minha doutrina ao ouvido , sem contudo saber se lhe fizcra
um favor ou náo!". Fala-sc tanto de que o homcm um animal social!"
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12 De acorde corn H história lenelária da Escandinávia, foi o que fez o reí Hajrdnc, sucessor do rei Frode. Vd. Den danske Krenike af Saxo Grammaticus [Crónica Dinamarquesa ele Saxus Gramrnaticus], rraducáo ele Anders Sercnscn Vedel, Copenhaga, l851.
vol. VI, cap. 25, p. CXIJ.
13 Em alernño no original: «para uso de qualquer urn».
14 Vd. Platáo, Gorgias, 511e512 b. Em portugués: Platáo, Gárgias, introducáo, rraducáo
do grego e notas de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa: F.diyoes 70, 1992. pp. 187-188.
15 Vd. Aristóteles, Poltiica, 1253a. Em portugués: Aristóteles. Política, cdicño bilingüe.
nota prévia de Joáo Bettencourt da Cámara, prefacio e rcvisáo litcrária de Raul M. Rosado Fernandcs, introducáo e revisáo científica de Mendo Castro Henriqucs, traducño e
notas de António Carnpelo Amara! e Carlos de Carvalho Gomcs, índice ele conceitos e
nomes de Manuel Silvestre. Lisboa: Vega, 1998. pp. 52-57.
Ou
Ou. Um
11111¡•11111110
d1.• Vida
321
e, ao Iim e uo cabo, é urn arurnal predador, algo ele que nao ficamos convencidos sirnplcsrnentc através da observacáo dos cientes. Por conseguinte, tocia a conversa sobre a sociabiliclacle e a comunidade é parcialmente
urna hipocrisia hereditaria e parcialmente urna refinada manha.
Todos os horncns sao pois cntediantes. A propria palavra revela a possibil idade de urna classificacáo. A palavra «cntediante» pode designar igualmente bem urna pcssoa que cntedia os outros, como aquelc que se entedia
a si mesmo. Aquelcs que entediarn os outros sao a plebe, a multidáo e, em
gcral, o infinito cortejo dos homens; aqueles que se entediam a si mesmos
siio os clcitos, os nobres: e como é estranho que aqueles que nao se entendiam a si mesmos em geral entediem os outros, os quais, ao invés, se entediam a si mesmos, entretendo os curros. Os que nao se entediam sao cm
gcral aqueles que ele urna outra maneira andam muito ocupados pelo mundo, porém, precisamente por essc motivo, cstcs sao os rnais entcdiantes de
iodos, os mais insuportávcis. Seguramente que esta classc ele animais nao
~ rruto da cupidc7. do homcm e do descjo da mulhcr. Como todas as classes
de animais mais baixas, salienta-se por um elevado grau ele fertilidade, e
multiplica-se incrivclmentc. Era pottanto inconcebível que a natureza neccssitassc de nove meses para produzir entes desta espécie, que se fariam
prcfcrencialmente produzir as dezcnas. A outra classe ele homens, os de
distirn;ao, é a classe dos que se entecliam a si próprios. Como acima observnclo, crn gcral divcrtem os outros e, por ve:t.es, de uma ce1ta maneira exteriorizada, a populac,:a e. em sentido mais profundo, osco-iniciados. Quanto
mais radicalmente se entediam a si mesmos, tanto rnais potente é o meio de
diversao que oferecem aqueles. pois quando o tédio se aproxima do scu
111áximo, na medida em que ou (a dctermina9ao passiva) morrcm de tédio,
ou (a determinac;ao activa) dfi.o lHTI tiro nos miolos, só por curiosiclade.
É costumc dizcr-sc que o ócio é urna rai:t. de todo o mal. Parn impedir o
mal, recomenda-se trabalho. Entretanto. ve-se facilmente, tanto pela temida
ocasiao como pelo remédio recomendado, que toda esta observa9ao é de
cxlrac<;ao muilo plebeia. O ócio, nessa sua qualidade, nao está de todo na raiz
cio mal, pelo contrário, constitui urna vida vereladeiramente divina, 12791
quando nao nos entediamos. Claro que o ócio pode dar ocasiao a que urn
homem perca o seu património, etc.; mas a nature1,a nobrc nao teme tais
coisas, antes teme deveras entcdiar-sc. Os dcuscs no Olimpo nao se cntcdiavam. viviam felizes em ócio feliz. Urna beldade feminina, que nem cose,
ncm fía, nem engoma, nem lé, nem se dedica a música, é feliz no ócio, já que
níio se enleelia. O óci.o está pois tao longe de estar na raíz do mal que é antes
a raíz do verdadeiro bem. O tédio é urna raíz do mal, é aquilo que tem de ser
mantido afastado. O ócio nao é o mal, tem mesmo ele dizer-se que qualquer
homem que nao tenha sentido para tal mostra dcssa maneira que nao se elevou até ao humano. l lá urna actividacle incansável que exclui o homem do
322
121
mundo do espírito e o coloca numa mesma classc com os animáis,
os quais
térn instintivamente de estar sernprc cm movirnento. Há hornens que possuern um dom extraordinário para transformar tudo em negocio, hornens cuja
vida inteira é negocio, que se apaixonam e se casam, ouvem urna facécia e
adrniram urna obra de arte como mesmo zelo negocia! com que trabalham
no cscritório. O provérbio latino otium est pu/vinar diaholi16 está inteiramente certo; mas quando nao se está entediado, o diabo nao arranja tempo para
deitar a cabeca na almofada17• Como entretanto o povo acredita que trabalhar
é urna determinacño humana, entño, a oposicáo ócio-trabalho está certa, Tenho para mirn que a detcrminacáo do horncm é divertir-se, a minha oposicáo
nao está por isso menos ccrta.
O tédio é o panteísmo demoníaco. Ao permanecer nele enquanto tal.
cntáo, o tédio torna-se o mal; ao invés, assirn que é relevado, entáo,
verdadciro: mas relevado apenas através do divertir-se
- ergo o hornern
deve divertir-se. Afirmar que é relevado por via do trabalho denota ausencia de clareza; pois o ócio pode seguramente ser anulado pelo trabalho,
dacio que este é o seu contrario, mas o tédio nao pode, o que até também se
verifica no facto ele os trabalhadorcs mais diligentes, os insectos mais zurnbidorcs no seu cioso zunido, scrcm os rnais entediantes de todos: e quando
nao se entcdiarn, conclui-se que nao fazern qualquer ideia do que é o tedio;
mas, entáo , o téclio nao é relevado.
O tédio é parcialmente urna genialidade irncdiata, e parcialmente urna
imediaticiclade
adquirida. A na<;ao inglesa, no seu todo, o paradigma das
nacñcs. A vcrdadeira indolencia genial é rnais rara de encontrar, nao se
encentra na natureza, pertence ao mundo do espirito. Encentra-se de vez
cm quando 12801 um viajante ingles. o qual
como que urna incarnacño
desta genialidade, urna marmota pesada e irnóvel, cuja total riqueza lingufstica ascende a um único e só rnonossílabo, urna intcrjcicáo, com a qual
denota a sua suprema admiracáo e a sua rnais profunda indiferenca, porque
adrniracño e indiferenca indiferenciaram-sc
na unidadc do tédio. Para além
da inglesa, nenhuma outra nacño produz tais singularidades da natureza;
qualquer homcrn que pcrtenca a outra na9ao terá sernpre urn pouco mais de
viveza, e náo será, tao absolutamente, um nado-rnorto. A única analogia
que conhcco é a do apóstolo do vazio entusiasmo que de igual modo viaja
pela vida corn uma interjeicáo, homens que por todo o lado fazcm de estar
entusiasmados a sua profissáo, que por todo o lado onde cstejam presentes,
quer aconteca algo de significante, quer acontece algo de insignificante,
é
é
é
é
giitam «Eh!» ou «Oh l», porque, para eles, a diferenca entre o significante
o insignificante ficou indiferenciada no vazio do entusiasmo cegamentc
ulurmante. O tédio ulterior é preferenciaJrnente um fruto de urna diversáo
111111 entendida. Parece dar que pensar que um remédio contra o tédio possa
uvxim suscitar o tédio; mas isso só nesta medida pode igualmente suscitar
o rédio que nao for utilizado acertadamente. Urna diversáo errada, em geral
excentrica, também contém em si o tédio, e é desse modo que ele avanca,
mostrando-se como o imcdiato. Tal como cm rclacáo aos cavalos se distinpuc entre vertigcm idiopática e vcrtigcrn galopante 18, scndo todavia ambas
dl'signadas por vcrtigcns, também é possívcl estabclccer urna difcrcnca
entre duas espécies de tédio, estando ambas todavía unidas na determinal
\'ÜO
do tédio.
No panteísmo reside em geral a deterrninacño de plenitude, mas no tédio
dú-sc o inverso, está construido sobre o vazio, é antes, precisamente por
1-;so. urna deterrninacáo panteística. O tédio repousa no nada que serpcnteia
ntrnvés da existencia, a sua vertigern é como aquela que emerge ao olhar
mfinitumente para o fundo de urn infinito abismo. Que essa diversño excentrica está por isso construida sobre o tédio, pode também ver-se pelo facto
de a divcrsño rcssoar scm ressonñncia, precisamente porque, no nada, nem
-.cqucr há assim tanto para tornar possível um eco.
Ora, como acima dcsenvolviclo,
se o téclio é uma rai.l ele todo o mal, que
coisa será pois mais natural cloque tentar lcvá-lo de vencida. BntTctanto,
aq u i. como por tocia a parte, i mport.a sobretutlo u ma calma pondcra9iio, nao
v¡í alguém, possufdo 12811 demoniacament.e pelo tédio. ao querer escapar
dele, diligenciar por ficar dentro dele. Todos os que se entecliam gritam por
mudan9a. Nisso. estou completamente ele acordo com eles, só importa agir
-.<.:gundo o princfpio.
A minha divergencia corn a intuic;ao generalizada está suficientemente
cxprcssa na cxpressao «rotac;ao de culturas>). Poderia parecer que nestas
palavras residia uma equivocidacle e, quando cu, nestas palavras, quisesse
encontrar lugar para urna designa<_;:ao para o método geral, cntiio, tcria de
di¿er que a rotac;:ao de culturas consiste em mudar continuamente de solo.
Nao é todavía assim que o agricultor usa a expressao. Pretendo, <.:ontudo,
ulilizá-la deste modo por um instante para falar da rotar,:ao de culturas que
depende da infinitude ilimitada da mudanc;a, a sua dimensao extensiva.
Esta mudanc;a de culturas é a vulgaire, a inartística, e assenta numa ilusao.
hca-sc cansado ele viver no campo, viaja-se até a capital; fica-se cansado da
pátria, viaja-se para o estrangeiro; fica-se «europamiide» 19, viaja-se até
América. e assim por <liante, cntregamo-nos a urna exaltada esperanc;a numa
a
16 Em latirn no original: «O ocio é a almofada do diabo».
17 Provérbio dinamarqués; n .º l 581 na colecta nea lle N. F. S. Grundtvig, Danske Ordspm¡: og Mundheld [Provérbios e Adágios Dinamarqueses]. Copenhaga. 1845, p. 60;
doravante mencionada como Grundtvig.
18 Tra1a-sc de duas cspécics de c11ccl'alilc equina.
19 Em alem5o, entre aspas 110 ori~.jnal «can~ado dn Europa».
324
Clu
infinita viagern de estrela cm cstrcla. Ou cntño, o movinicnto é outro. mm.
todavía extensivo. Fica-sc cansado de comer cm scrvico de porcelana, come-se em baixela de prara; fica-se cansado da prata. come-se cm baixcla ele
ouro, lanca-se fogo a metade de Roma para ver o incendio de Tróia. Este
método anula-se a si próprio e é a infinirudc perversa'". Ora. portante, o que
alcancou Nero21? Nao, o imperador Antonino foi entáo rnais cspcrto quando
dissc: úvaBLCuvcxí OOL E~Wi:Lv· i'.fü~ rrá),l'V i:a ;reáy~Lata, <Í)~ É<ÍJQa~· 1~v
1
i:oúi:cp YUQ 1:0 nvaBt<i>VctL. (Btf1A.LOV z .. ~.)22
O método que eu proponho nao consiste cm mudar de terreno. mas antes
em variar o método de cultivo e as espécies de semente, tal corno na vcrdadcira rotacño de culturas. Reside desde logo aqui o princípio da delimitacüo, o único princípio salvffico no mundo. Quanto muis urn horncrn se delimita, tanto muis cngcnhoso se torna. Um prisioneíro solitário cm cativciro
perpetuo é tao engcnhoso que urna arunha pode scrvir-lhc de grande diversao. Pensemos nos tempos de escota. havia-sc entrado na idadc cm que nao
tido cm coma qualquer aspecto estético na cscolha daquclcs que hao-de
ensinar um individuo e. por conseguintc, estcs eram frcqucntcmcrne muito
cntcdianres; e quáo cngcnhosos éramos nós, entüo! Como podía ser 11ío
divertido apanhar urna mosca. rnanté-la presa debaixo de urna casca de noz,
e ver como ela conseguía correr volta dentro da casca; como podía trazer
alegria abrir um buraco no tampo da ·ecretária, e encorralar urna mosca lá
dentro, e esprcirá-la por urn canudo de papel? E corno podía servir de entrctém ouvir 12821 o monótono gotejar do tclhado? E como nos tornarnos
profundos observadores, nem o menor barulho ou movirnento nos escapa.
é
a
20 Yd. l legel. Wi.rn'nScfl(¡ji der Logi/.. [Ciéncia da Lóuica]. I: in Werkt". vol. Ill, pp, 147-148. 154:J11bih111111.\,VOl. IV.pp. l57 158.164;eS11'1rka111p,vol.
vtu.pp. 149, 155.
21 Ncro (37-68). imperudor de Ro111a, rnandou incendiar a cidade no ano de 64. Vd.
Sueténio, «Nero». 38: cdi1;ao consultada pelo autor: Caji Suetoni! Tranquilli Tolv forste
Romerske Keiseres Levnets beskrivelse 1 íliografias dos Primeiros Doze lmperudorcs
por C. S. T.I. vols, I-11. tra<lus;1ío de Jucob Haden. Copcnhaga. 1802-1803; vol. 11, pp.
102-104. Em portugués: «Nero», in Suetónio, A1 Vidas dos Doze Césares. vols. J-111.
traclu<;ao de Angelina Pires (vol. 1) e Adriaan de Man (vols. 11 e 111). estudo introdutório
e notas de Víctor Raquel (vol. 1) e Adriaan de Man (vols. JI e 111). Lisboa: Edicócs Sílabo. 2005-2007; vol. 111. livro VI. pp. 42-43. A figura do impcrador Nero retomada
em vários passov das obras de Kicrkegaard, com especial incidencia no capítulo
<<Ó Equilíbrio entre o Estético e o Ético no Descnvolvimento
da Personalidude» cm
011 011, Segunda Parte.
22 Em grego no original. na traducño de Joilo Maia: «Está na tuu máo rcvivcr. Ve (le
novo as coisas como as viste já. e isso é revivcr,» Palavras do impcrador Marco Aurélio
Antonino (121-180), in Meditationes [Mcditacóes], vn, 2. Edicño consultada pelo autor: M. A111onim1~ Commentarii libri XI/ [Comentários do Livro XII <le M. Antonino].
e<li~iío <le J. M. Schultz. Leipzig, 1829, p. 179. Em portugués: Marco Aurélio, Pe11.111111e111ns, VII, 2. traducño e notas de Joño Muia, Lisboa: Relógio O' Água. 1995. p. 81.
é
Ou
l'
'"º
um
h,1r111111111111
V11h1
aqui o cúmulo do p11nc1p10
mm. airavés d;1 intcusño.
que procura satistacño
nao atravéx da ex ten-
Quanto mais cngcnhoso Ior um hornern ao modificar o método de cultivo. tanto mclhor; mas qualquer modificacáo singular reside contudo no
'l' IO da rcgra gcral da relacáo entre recordar e esquecer+. É entre estas du''' corrcntes que a vida inteira se rnove e, por isso , importa manté-las ern
11os'>o poder da rnaneira certa. Só quando se lancou a esperance borda
cntño se corneca a vi ver a11isticarncntc, enquanto se tem esperan\:ª• nao
po~sívcl
delimitarmo-nos.
Que bonito é ver um hon:em fazer-sc ao ~ar
1•
k'vado pelo vento favorávcl da espcran~a. pode aprovc1tar-sc a oportuntda1k para deixar-sc ir a rcboquc dele, mas nunca se dcvc te-lo a b~rdo da
harca. e ainda menos como arrais. já que nao 6 um comandante dtgno de
lOnfian~a. Também por isso. a espcranc,;a foi o único dos pcrturbantes pre'l'lltcs de Promctcu24; cm vez da presciencia dos imo1tais, deu aos homens
fo1:.
'º
.1
c'pcranc;a.
l~squccer - é o que tocios os homens querern; e quando vcm ao seu
l'ncontro alguma coisa desagradável, scrnpre dizem logo: se ao menos pudl'S"c esquece-la! Mas csquccer é urna arte que tinha de ser previamente
1.'\Crcitada. Ser capaz de csqucecr depende scmprc do modo como ~e lcmhra. mos d<.: que manciru ll!mbrar dcpcnd<.: por seu turno do modo como se
-.1vencia a realidade. Qucm encalhar na rota da esperan~a. rccordar-sc-á de
111oldc a que nao lhc seja possívcl csqueccr. Ni/ admirari25 que ~cja por isso
11ma autentica sabcdoria de vida. Cada um do~ momento. da vida nao tem
dl' wr mais signil'ica<¡1ío para um indivíduo do que poder csquece-lo no
11,,tantc em 4ue se qucira; cada um dos momentos singulares da vida tem,
por outro lado. de ter tanta significa~üo para um indivíduo que é possível
lcmbr:í-lo a cada instante. A idade que melhor lembra é ao mesmo tempo a
) ' Vd. now 78 no capítulo «Diaps11/11111ta».
) t Vd. Ésquilo. Prometeu Agrilltoado. vv. 248-254. EtlictliO consultada pe.lo autor: Des
A11·clt\'lo~ \Verke IObnis de É.], tradus;lio de Joh:urn Gustav Droy~cn, Bcrhm. 1842, PP·
.¡ 19 420. 111 porlllgues: Ésquilo. Pro111c1e11 Agrillwotlo, introduct1ío. tradw,:ao do grego
l' nnla\ de Ana Paula Quintcla Sottomayor, Lisboa: Edi~üc~ 70, 1992. pp. 44-45: «PROM b' l'l!U: Sim. fiz que os home ns deixasse111 de se preocupar com a morte. ICOR 1 rEU:
e
Que rcmédio inventaste para cs'a docn<;a'! I PROMETF.U: lnsutlei-lhcs ce~as c~pcrnn\':t1>. ¡ CORIPEU: Grande bem deste ao~ mortais. / PROME'T8U: B além d1~so - aten
1ai bcm - dei-lhc' o fogo.»
2'i Em latim no original, citactliO retirada de Horácio, t:pí.ltolas, livro 1, ~· l: «na~la h:í
para admirar». dentro do prindpio atribuído a Pitágoras. e caro aol> estoicos, de mdc.~
facc ao~ fenómenos C).teriorcs. Edi9ao consultada pelo autor: Q. H11ra~11
1i.:ndcncia
¡;¡11ffi Opera !Obras de Qui1110 llor{tcio FlacoJ. Lci.pzig. 182~. p. 217. Na.1radu~~o
poi tll¡'llC"t: «Qua~i nada admira1. l\unuciochnro. I c1'> o só me10 de v1vcr d1~0~0». in
Sutrrns <' e¡ii.lfolm rfe Q11111111 l/(Jl<1no l·liwco, trad111.idas e annotadas por Antonio L1111
de Sl·abra. Po110· Ca'" tk C1l11 < ·111111111111 1 H·l<i p 20.
326
Ou ll111 l 1.1¡•111• "'" o11 \
011
mais esquecida: a infancia. Quanro mais pocricarncmc ve lcrnbra , tanto
mais fácil é csqucccr, pois lembrar poeticamentc
propria mente urna mera
cxprcssño para csqucccr. Quando me lembro pocticarnente. jíl revc lugur a
modificacfío no que loi vivido e. por cssa via, o que foi vivido pcrdeu tudo
o que é doloroso. Para conseguir recordar dcsta maneira tcm de atentar-se
no modo como se vive, cm especial no modo como se goza. Gozc-sc logo
tudo até
últimas. retirando continuamente o máximo que o prazcr pode
oferecer e. entáo, nem se será capaz de recordar, nem de esquecer, ¡¡0 se
icm designadarnente de recordar rnais nada para alérn de urna 12831 ultra-sacicdadc que só se deseja esquecer, mas que agora atormenta com urna
rccordacño involuntaria. Quando por isso se nota que o prazer, ou um momento da vida, arrasta demasiado urn indivíduo, pára-sc entño por um instante para recordar. Nño há qualqucr rcmédio que soja mclhor para causar
repugnancia do que persistir durante demasiado lempo. Mantcr-sc desde o
início no comando do prazer: nao navegar a todo o pano cm cada urna da.
decisóes; entregar-se a urna cerra desconflanca, s6 entño se está 1..:111 condi~oes de dar por mentiroso o provérbio que diz niio ser possível ter ao mesmo tempo no saco e na carreira-". Bern pode a polfcia proibir porte secreto de armas, mas ncnhuma amia todavía tao pcrigosa como a arte ele saber
recordar. É um scntimcnto particular quando no mcio do prazcr se olha
para ele para recordar.
Quando assim nos tiverrnos aperfeicoado na arte de esquecer e na arte
de recordar, cruáo, seremos capazos de jogar ao volante-? com toda a existencia.
Pela forera que despende para csqucccr, é realmente posstvcl medir-se a
clasticidadc de um homem. Aquclc que nflo conscguc csqucccr nao chcgara
multo longe. Se ulgures haveria de borbulhar urn Lct.e2X. nflo sci; mas sci
que esta arte pode ser desenvolvida, Mas nao consiste de modo aluum
em
o
havcr urna imprcssño singular de desaparecer scm deixur rasto, jtí que o
csquecimcnto nao é idéntico a arte de saber esquecer, Turnbém se observa
facilmcntc o pouco cntendirncnto que o povo em geral faz desta arte, dado
que na maior parte das ve/es prctcndcm apenas csqucccr o dcsagradável, e
é
as
o
é
~(¡ K icrkcgaurd usa 11m<1 variante do provérhio «11u111 kan ikke faae baade i Pose "J: i
Sa:k» (C. Molbech. Dunske Ordsprog, Tankesprog og Riimsprog [Provfabios. Ditados e
l .cngalcngas Di narnurqucscs 1. Copcnhaga. 1850, p. :141: doravante mencionado corno
Molbech), e-0111 urn sentido aproximado ao uso cm portugués de ter ou gozar dc « ol na
ciru, chuva no nabal»
27 Trata-se de um jogo scmclhantc no actual badminton, en vol vendo um número variávcl de parcciros.
28 Na mirologia grega. o rio do esquccimcnto, Durante a travcssia entre o mundo dos
v ivus e o mundo do" memos, era necessario beber das água" do Lete; na ida. esquecia-se
as tristezas da vida terrena c. no rcgrcsso. a fclicidadc dos Campos rnf"io~.
\27
11111
ag1 udávc] Ol(t 1'llu denuncia urna completa parcialidude , O esquecii: dcxignadruncutc a justu cxprcssño para a assimilacño propriarnente
dua, que rcduz o que e vivido a painel de rcssonáncia. Por isso a natureza é
lito grande, porque csqucccu que 'foru caos29, mas esta idcia pode surgir
'l'Jª lá quundo for. Como é muito mais frequente imaginar apenas o csque( uncnro cm rclacáo ao que é desagradável, rarnbérn na rnaioria das vczes
H.'prcscntamo-lo como um poder bravío que sufoca. Mas o esquccirnento é
p\'lo wntrário um oficio lrn114uilo, e dcve estabelecer rela95o tanto com o
·'!'.1aclável quanto como desagradávcl. Também o agradável. na qualidade
dl' passagciro. precisamente nessa qualidade de passageiro. contém em si o
1ksagraclável através do qual é possívcl acordar a saudade; este desagradáwl é superado pelo esquccimento. Todos admilcm que o de agradável tem
11111 fcrrao. Também ele fíca afastado através do esquecimento. Se cmretan10 llO!) comporlarmos como rnuitos dos que aldrnbarn na arli..: de csquccer e
l''ICOffa~am completamente o desagradável, entiio, depressa se verá para que
M'I ve 1al coisa. Num instantt: tic dcsaten9ao, surpreenderá mu itas vezcs o
indivícluo 12841 como todo o podt:r do ri..:penlino, e isto está em total oposia bcm ordenada estruturncrao de uma cabc9a sensata. Nenhuma infelicidadc, nenhuma aclversiclade. é tao pouco af'ável, tao surda, que nao se deixe
persuaclir um pouco; até Cérbero3 aceitou bolos dt: 111cl. e nau sao só meninas o que se enfeitiyu. É alvo de persuasiio e ucubu ussim despojado da sua
ai•udc.1.a, nao se desejando de modo algum csquecc-lo, mas sim esquecc-lo
para o recordar. Mesmo com lembrnnc.:as de uma nature.1.a tal que o esquel'1111entu cierno havcria ele parecer ser o único l'l.:rnédio contra clas, o i11clivíduo concede a si pr6prio uma astúcia. e o habilidoso é bcm-!>uccdido na
talsifica~ao. O esquedmcnto é a tesourn com que se corta o que nüo é pos~lvt:I usar. note-se bern, sub a suprema supervisao da recordac;fto. O esque11111)
o
1111;1110
'ªº
º
)1) De acorclo com a 'frogonin de l lcsíndo. v. 1 16. «0 que prímciro ex.istíu foi o Caos»,
w¡•uncJo a Lradu1.:ao de Ana J:::lias Pinhciro e José Riheiro Fcrrcira, in l lc&íodo. 'li·ol(u11iu,
Jh1halhos ,. T)ias, prcfádo de:: Ma1ia Helena da Rocha Pcrcira, l.ishoa: lrnprcnsa
\lacional-Cai.a da ~oeda, 2005. p. 44. O relato figurn igualmente:: ern Paul Fricdrich A.
\1111-ch. Neues mythologisches WiJrterbuch [~ovo Dicionário Mitológk-ol. vols. 1-11,
rt•vi~iio de Friedrich Gollhilf Klopfor, Leiwig, Sorau, 1821: vol. l. p. 502.
m Cérbcro,
o ciio de tres cabe~~ que na milologia grcga cstava incumbido de guardar
de Hades. Vd. i~ualmente noia 52 no capítulo «Silhuetas». e Virgílio,
l•.1ll'hla, livro VI, vv. 417-424: edii,:iío consultada pelo uutor: Vi.rgifs lr:neide. vols. 1-ll.
lrndm,:iio de .Jnhan Henrik Sch0nheydcr, Copc11haga. 1812; vol. l. pp. 273-274. Em
poitugucs. na trnduc;iio de Agostinho da Silva: «Cérbcro enorme com ª'tres godas t fu
~·,tes reinos ressoar ao Jongc ! ali dcitado na c¡1verna ern frente. I Vendo a sacerdotisa
que os pcscoc;os /se lhc cril(avam lodos de scrpcnt.c.s / dcira-lhes um bolo de semente e
111cl 1 que logo !he provoca fundo sono», in «t::neicla», in Yirgílio, Oúras de Virgflio:
ll1wolicas. Grórgicas, E11eida. tracluy.'ío do latim de Agoqinho da Silvu, Lisboa: 'lemas
e Debates. 1999. 2.• edi<;fio. p. 297.
n portao do reino
128
011
cimento e a lcmbranca sao assim idéruicos, e a idcntidadc artfsiica ussirn
obtida é o ponto de Arquirncdes no qual se levanta o mundo imciro ". Quando se dizque se escreve algo no livro do esquecimento 12, sugcrc-sc assim
de urna só vez que isso é esqueciclo e que todavía é conservado.
A arte de recordar e de esquecer irá tarnbém prevenir contra ficar enealhado nalguma circunstancia particular da vida, assegurando ao indivíduo
urna perfeita suspensáo.
Que um indivíduo se resguarde, entáo, da amizade. Como se define um
amigo? Um amigo nao é o que a filosofía designa como o outro necessário33•
mas sirn o tcrcciro supérfluo. Quais sao os ccrimoniais da arnizade? Brinda-se
ao íratamcnto por tu, abre-se urna vcia, mistura-se o sangue como do amigo.
É difícil determinar quando chegará este momento; mas faz-se anunciar de
mancira enigmática, scnrc-se que nao é rnais possível o tratarncnto recíproco
por vocé. Quando este sentimento já tcve lugar, cntño, nunca poderá mostrar-se que se comctcu o erro de Gcc11 Vcstphaler, que brindou ao tratarnento por
tu com o carrasco'". Quais sao os sinais seguros da amizade? Responde a
Antiguidadc: ídem ve/le, idem no/le ea demum firma amicitia-:IS, e ao mesmo
tempo extremamente entcdiantc. Qual
a significacáo da amizade? Assisténcia recíproca por palavras e accóes. Dois amigos decidem portante unir-se
para scrcrn ludo urn para o outro; e isro apesar do facto de um hornem mais
11íio poder ser para outro homem do que alguérn que lhe cstorva o caminho.
Bcm podem ajudar-se rcciprocarnentc corn dinheiro, tirar e pór o casaco um
ao outro, bcm podem ser humildes servidores urn do outro. encontrarcm-se
para os votos de feliz ano novo, bcm como em casarnentos, nascimentos e
Mus l(i porque; :-.l· oll:-.tl·111 de .unizadcs. uño se há-dc por isso de ... e vivcr
1 )X'il ...cm contacto co111 o-. homcnx, Pelo contrário, estas rclacócs podcriam
1k ve; cm quando as ... umir urna viragem mais profunda. apenas de molde a
que. embota partilhanclo durante algum tempo a marcha do movimcnto, se
u-uha scmprc contudo muito mais velocidadc de molde a ser capaz de lhc
l·-.capnr. Pode muito bcm ser-se da opiniño que urna tal conduta dcixa ele
lu:ran<;a recordac;ocs dcsagradáveis, residindo o desagradável no facto de
11111a rclar,:¡¡o, após ter sido algo para nós, decrescer até nada ser. Trata-se
1odavia de um mau entcncHmcnto. O desagradável é designadamenle um
111!•rcdiente malicioso nos reve ·es da vida. Além disso. a mesma rela~ao
pode voltar a ganhar significa<,:ao e.le um outro modo. Atente-se sempre cm
1111nca encalhar e, com essa finalidade, em ter sempre o csquccimento atrás
da orelha. O agricultor experiente deixa uma parcela cm pousio, a doutrina
de prudencia social recomenda o mesmo. Tudo regrcssa outra vez mas de
um outro modo; o que já alguma vez foi colhido durante a rota~iío perma111.:ce l(i, masé variado através do modo ele cultivo. É por isso perfcitamcnll.' con'>equentc ter esperanrya c111 encontrar os seus velhos amigos e conhe\ ido" num mundo mclhor, mas nao se partil ha por i!>so o medo da multidiío,
o medo de eles se haverem modi licado tanto que n¡¡o seja possívcl
1cco11hccc-los nutra vez: tem-se antes receio de que houvessem ficado intciramcnte imutáveis. É inacrcditávcl aquilo que mesmo o mais insignifil·ante dos homcns pode ganhar com um tao sensato cultivo.
Que nunca se caia em casar. As pessoas casadas prometem uma a outrn
amor~<> para sempre. Ora isto é bastante fácil, mas também nao significa
flWlde coisa; pois ao darmos o tempo por acabado. estaremos também a dar
a ctcmidade por terminada. Por i<;so, se as partes envolvidac; cm vc;1, de dizer
TI
ó .
. . d
para sempre, dissessem «até a Páscoa>> , ou «até ao pr xnno pnmc1r? e
Maio»3K, entao, haveria contudo sentido no seu discurso; pois estava a <.llzer..,c duas coisas. urna coisa. e urna coisa que tal vez se pudesse cumprir. Tamhém é este o mo<lo como al> coisas aconteccm no casamento. Decorrido um
l'.llrlo cspa90 de tempo, urna das partes é a primeira a reparar que algo vaj
1nal: queixa-se agora a nutra parte e grita aos céus: infidelidade, inficlelidade!
No decurso de mais algum tempo, a outra parte chega ao mesmo ponto. o
que proporciona uma neutralidade, na medida cm que a intidelidade recíproca é compensada pelo contentamcnto e prnzer mútuos. Entretanto, torna-se
larde de mais, dado que um divórcio está ligado a grandes díficuldadcs.
é
entcrros.
31 Vd. «Murccllus» in vidas de Plutarco, 14. Edi9!ío consultada pelo autor: Pl111ad 's
t cvnetsbeskrivelser[Biogrufins de P.]. vols. 1-IV. traducño tic Stcphan Tetcns, Copcnhngn, 1800-1811;
vol. Ill , I'· 272. «Júlio César», in Plutarco. vidas paralelas, trudu91io
revista por L. Nazaré, Lisboa: Amigos do Livro. 1975. p. 157.
32 Variante do provérbio dinamarqués «at slaae noget i G/e111111ebo¡:r11». i. e .. «riscar
algo no livro do esquecimcnto», como sentido de «esqucccr algo». Vd. Molbcch. p. 316.
33 Segundo Hegel. a existencia é algo concreto porque está determinada por um «nutro». Vd. llcgcl. wissensrhaf¡ der Logik [Ciencia da Lógica], L in Werke, vol. IU. pp.
122-124: J11hi/li11111s. IV, pp. 132-134: e S11hrkn111p. vol. V, pp. 125 e ~eg~.
34 Cena da peca de L. Holbcrg. Mester Gen \Vestphaler LO Mcstrc G. W.), Acto 11.
cena 4, in Den Danske Skue-Ptads 10 Teatro Dinamarqués], vols. l-Vll , Copenhaga,
1788. vol. l. se111 indicacñ« de página.
35 Citacáo retirada de Salústio, Catilina, livro XX, ern latim no original: na tradu~fü1 de
Agostinho da Silva: «realmente. só há arnizade firme quando se qucrern as mesmas
coisas e as mesmas coisas nño se querern». Edis;ao consultada pelo autor: C. Sol/1111i
Crispi opera quae supersunt [Obras de Caio Salústio Crispo Que Sobreviverarn], vols.
1-IV, edicño de Fricdrich Kritzius, Leipzig, 1828: vol. l. p. 98. Rm portugués: Co11)11ra{'lio de Catilina, in Salústio. Obra Completa, traducño e introducño de Agostinho da
Silva, Lisboa: Livros Horizonte, 1974. p. 29.
Ou Um l 1,1¡•1111 11111 1h \ 11!.1
~6 Nc~tn ocorrencia de «amor>> e na scguinte. «K)1erli{?hed».
17 Exprc:-..siio utilizacla na lfngua dinamarquesa paru designar urn prazo inclcfinidamen-
1c protel;1do.
l8 Día c'upulado par.1 rcnO\ar 011 anular a co111ra1:u;iío do pe~"ºª' domé,t1co. c. como
tal. día cm que (K.orrram rnurt.1' n111l1.1111¡a' na or~·anrrnt,:iio do111c,11ca.
331
S01 c11 Kici kcgaurd
330
Quando assim acontece no casarnenro, nao
pois de admirar que tcnha
de consolidar-se de tantas maneiras o casamento por meio de escoras rnorais. Quando alguém pretende separar-se da sua esposa, grita-se, entáo:
um homern ignóbil, um patife, etc. Que disparate, e que 12861 ataque indié
é
recto ao casamenro. Ou o casamento tem realidade-? em si mesmo e. assirn
seudo, já se está suficientemente punido por deixar passar cssa realidade,
ou nao possui qualqucr realidade e, sendo assim, é até irrazoávcl injuriá-lo,
porque mais sábio do que outros. Quando alguém, cansado ele ter dinheiro. o lancasse pela janela fora, ninguém viria nesse caso dizer que era urn
homem ignóbil, pois que ou o clinheiro tem realidacle e, sendo assim,já foi
suficientemente punido ao despojar-se dele, ou nao tem rcalidade nenhuma
e entáo estará a ser dcveras sábio.
Que um indivíduo se resguarde sempre de contrair urna relacño na vida
por via da qual scja possível vir a ser vários. Por isso, a amizade já é perigosa, e o casarnento ainda mais. Podem até dizer que os esposos sao urna
sé pcssoa; mas dizer isto é urna conversa muitfssirno obscura e mística.
Quando se vários. entáo, perde-se a Jibcrclade, e nao se pode pedir as
botas ele viagem quando se quer, nao se pode vagabundear por aí, inconstante. Se se tem esposa,já
difícil, se se tem esposa e talvez filhos, duro,
se se tcm esposa e filhos.
impossfvcl. f: certo que ternos o exernplo de
urna eigana que carregou o marido as costas toda a vida40, mas, cm parte,
tal coisa urna raridade e, cm parte, também
cansativo a longo prazo para o marido. Por via do casamento , cai-se alérn disso numa continuidadc
altamente fatal dos usos e costumes, e os usos e costumes scmelhanca do
tempo e do vento sao algo cabalmente indeterminado. Tanto quanto sei, no
Japáo tambérn os maridos recolhem ao Jeito durante o puerpério. E porque
nao podcrá chegar o tempo de ser a Europa a querer introduzir costurnes
dos países estrangeirosl
A amizade já perigosa, o casamento ainda mais perigoso, pois a mulher continua sernpre a ser a ruína do homem, assirn que se contrai urna
relacáo duradoura com ela. Tornai um homem jovem, fogoso como um
cavalo árabe. casai-o, e fica perdido. A partida, a mulher é orgulhosa, depois fraca, depois cla desfalece, depois ele desfalece , depois desfalece a
família inteira. O amor de urna mulher apenas fingimento e Iraqueza.
é
é
é
é
é
é
é
a
é
é
é
é
39 «Realitet» em todas as ocorréncias de «rcalidade» neste parágrafo, bern corno nas
duas primciras no penúltimo parágrafo do presente capítulo. Estas ocorréncias, bem
como a refcrcnciada na nota 15 no capítulo «0 mais Infeliz». constituem os dois casos
rnais relevantes do uso de «Realitet», Vd. notas 32 e 44 no capítulo «Ü Rcflcxo do
Trágico Amigo no Trágico Moderno», e também outras ocorréncias csparsas. assinaladas nas notas 68. 69 e 105 em «Diário do Sedutor» e na nota 65 do capítulo «Silhuctas».
40 Vd. Steen Stccnsen Blicher, Kjeltringliv [Vida de Velhaco], in Samlede Nove/fer
[Novelas Reunidas]. vols. 1-V, Copenhaga, 1833-1836: vol. I. pp. 240-242.
Porque u111 individuo nao se cnvolvc 110 casamento, a vicia dele nao ne~ es-ita por tal motivo de privar-se clo erótico. O erótico eleve também ter
11ll uritudc, mas infinitudc poética, que pode ficar confinada tanto a urna
llora como a um mes. Quando duas pessoas se apaixonarn urna pela outra e
11' csscntern que esta o determinadas urna para a outra, importa ter a coragem
de romper: pois ao continuarem apenas cleitam rudo a perder, e nada ficam
11 SP'.lllar. Parece ser um paradoxo, e é efectivamente um paradoxo para os
l'ol'lll rrncntos, mas nao para o entend i mento. Neste clomín io 12871 importa em
e ... pccial ser capaz de utilizar disposicócs, se o fizerrnos, conscguc entáo
obtcr-sc urna variedade inesgotável de cornbinacócs.
Nunca se cxcrca um qualqucr cargo oficial. Ao fazé-lo, um indivíduo
loma-se pura e simplcsmente uro zé-ninguérn, um pcqucníssirno entalhc na
máquina clo corpo do Estado; deixa-se mesmo de ser senhor do comando e
de pouco servirá enráo a teoria. Recebe-se um título. e residern aí todas as
l'~lllscquencias do pecado e do mal. A lei que escraviza
igualmente ented1a111e. qucr o avance seja rápido ou lento. De um título, nunca se fica descrubaracado, para tal havcria ele suceder um crime que acarretasse o
111;oitainento do indivíduo, e ncm mesmo assirn se tem a certeza de nao
poder vira ser indultado por ordcnacño real, e volcar a reccber o título.
ol'iciais , nao deve ficar
. Se bcm que um indivíduo se abst.enha de caroos
o
111ac1ivo, antes dcve atribuir peso a tocia a ocupa9ao que seja identica a ociosidadc, tcm de cultivar todos os tipos ele artes pouco lucrativas. A este respei10, nao <leve, contuclo, o inclivíduo desenvolver-se
ele uma maneira tanto
cx1cnsiva como intensiva e, apcsar da avans;ada iclade, eleve mostrar a rcctil udc do velho ditado que dizque com pouca coisa se contentam as cria1was41.
Ora, tal como no cumprimento da doutrina de bom senso social se varia
ulé (;Crto grau o solo - visto que, caso apenas se quisesse vi ver em rela9ao
com um único homem, entao, a rota9ao de culturas teria de correr mal, a
st.:melhans,:a de mn agricult.or que livesse apenas urnas jeiras42 de terra,
traz.cndo como consequcncia a impossibilidaclc de deixar alguma vez uma
parcela em pousio, algo que é de extrema importancia - . também assirn o
1ndivídu~ tem pois.de variar-se a si próprio continuamente, e é este o segredo propnamente d1to. Para tal fon, tem necessariamente de manteras disposi96es em seu poder. Mante-las em seu poder, no sentido em que haveria
<lc ser capaz de produzi-las quando quisesse. é urna impossibilidade, mas a
doutrina d~ pr~dencia ensina a aproveitar o instante. Tal como um expericnte rnannhctro, ao lan9ai· um olhar perscrutador sobre a água, avista
ba-;tante ao largo uma borrasca, também <leve sempre avistar-se a disposié
11 Provérbio dinamarqués. n.0 144. Grundtvig, p. 6.
12 \lo original «T~nde», antiga medida agníria. a jeira dinamarquesa; ] ,8·1 equivale a
11111
hcctarc.
332
c-,:ao um pouco antes. Tern de saber-se que efcito produz a disposicño sobre
o proprio individuo, e com que probabilidade produzirá sobre outros, antes
de vestir a disposicáo. Primeiro tange-se para convocar sons puros e verificar o que se agita numa pessoa, segucm-se depois os tons medios. Quanto
mais prática se tiver, mais fácil será ñcarmos convencidos ele que há amiúcle rnuitas coisas num hornern, nas quais nunca pensarnos. Quando homens scnsíveis, e nessa qualidade extremamente cntediantes, entrarn ern
ira, acabam por ser muitus vezcs divertidos. O gracejo provocador é cm
particular um excelente meio de exploracáo.
12881 Na arbitrariedade reside todo o segredo. Cré-sc que nao há arte
alguma em ser arbitrario e, nao obstante, cabe fazer aqui um estudo profundo para que se seja arbitrario de molde a que o inclivíduo nao se deixc extraviar, e que ele proprio daí retire prazer. Nao se goza ele modo irncdiato,
mas antes de urn modo completamente diferente, que é introduzido arbitrariamente. Ve-se o meio de urna peca de teatro, le-se a terceira parre de um
livro. Obtérn-sc dcsse modo um gozo completamente diferente claqucle que
o autor rivera a bondade de nos destinar. Goza-se acima de tudo algo de
casual, observa-se tocia a existencia destc ponto de vista, dcixa-se que a sua
realidade fique aí encalhada, Vou introduzir um exemplo. Havia um homem cuja conversa fiada me foi necessario escurar nurna dada circunstancia da vida. Semprc que ele tinha oportunidadc, eslava pronto para urna
pcquena palestra filosófica que era extremamente entedianre. Prestes a desesperar, descobri de repente como ele, ao falar, transpirava com invulgar
abundancia. O suor charnou a si a minha arencño. Vi corno as gotas de suor
se juntavam na sua testa. corno depois se uniam em rios escorrcgando pelo
nariz abaixo, e terminavam nurn corpo em forma de gota que ficava penduraclo na cxtrernidadc rnais saliente do nariz. Tudo se modificou a partir
dcsse instante, podía até ter alegria quando o incentivava a dar início ~1 sua
licáo de filosofia, só para observar o suor na testa e no nariz dele. Baggesen
conta algures sobre urn homern, seguramente urna pessoa rnuito honesta,
mas com uma coisa que era de criticar: nada rimava com o seu nome='. É
assirn extremamente salutar dcixar que as realidades da vida se indiferenciem através de um interessc arbitrário destc tipo. Converte-se algo de casual ern absoluto e, nessa qualidade, ern objecto ele absoluta admiracño, o
que produz um efcito particularmente excepcional, quando os ánimos estáo
cm rnovimento. Para muita gente, este método constituí urn excepcional
meio ele estimulacáo. Observa-se tudo na vida como urna aposta, etc. Quanto rnais consequente se for em saber como segurar a sua arbitrariedadc,
43 O nome <la personagem é «Hassing»; vd. Jens lmmanuel Baggesen, «Theatcradministratoriade» [Historial da Gerencia Teatral]. in Jens Baggesens danske Vcerker [Obras
em Dinamarqués de J. B.). vol s. l-Xll, Copenhaga. 1827-1832: vol. 1. p. 42 J .
JJ'
muis divc: tidos s~· 1rn 11a111 as combinacócs, O grau ele consequéncia
11101,1ra scrnprc se xc 1.: u111 urtista ou urn aldrabño, já que. em certo grau,
1111110
todos os homcns Iazcm o mesmo. O olho corn que se ve~ a rea 1·c1
1 ac 1 e 44 tern
dl' ser modificado continuamente. Os neoplatónicos tinham para si que as
pc,soas que tivcsscrn sido menos pcrfcitas no mundo, depois da rnortc
roruavam-sc animáis ora mais pcrfcitos, ora menos pcrfcitos, consoante os
.c-pcctivos méritos, aquelcs que, por excmplo, tivcsscm praticado as virtudc'i burguesas ern menor grau (os pequenos comerciantes) tornavam-sc
1 )891 anima is burgueses, por exemplo, abelhas, Uma visáo da vida que
11c,1e mundo ve todas as pessoas transformadas em animais ou em plantas
( uunbérn Plotino45 era da opiniáo que alguns eram transformados em planlll') ofcrccc urna rica multiplicidadc
de variacáo. O pintor Tischbeirr'? tentou
«lcalizar cada homcrn corno animal. O scu método incorrc no erro de ser
.k-mnsiado sério, csfor9ando-se por clescobrir uma parecen<;a real.
¡\ arbilrariedaclc dentro de cada um correspondc a casualidadc fora de
u1da um. Deve por isso manter-se sempre o 0U10 abcrt.o para o casual, ser,._. scrnpre expeditus, por pouco que alguma coisa haja de oferecer-se. As
l h:1madns
alegrias da vida social. pim1 as quais o indivícluo se prepara com
11i10 ou quinze días de antecedencia, nao tem muito com que significar, ao
111vt.!s, a coisa mais insignificante, por via do acaso, pode tornar-se matéria
1xa para divertimento. Nao cabe agui entrar em pormenores. nenhuma le111·ia consegue chegar tao longe. Até a reoria mais circunstanciada é todavia
11111a mera pobreza diante daquilo que na sua ubiquiclacle o génio facilmen1<.: dcscobre.
·11 Aqui, e na ocorréncia seguinte de «realidade». le-se no original <<Virkeli¡¡hed>>. Vd.
:1ci111:1 nora '.l9.
•l 'i Vd. Plotino. t::neiades. livro 111. 4. 2: edi~ao consultada pelo autor: /Jie Er11wade11 des
f'/oti1111s iibersem von Johrmn Geor¡¡ Veit C1111ellwrdt 111i1 jórtl111(/'e11de11 den Urtexter
/11111emden /\11111erk11nge11 beg!eitet. Er.vte Ab1heilw1g [As l:ineiadas de P. Traduzidas por
J. U. Y. R., Acompanhatla~ das !\olas Explicativas Seguindo o Texto Origi11al], Erlan!\l'.11. J. J. Palm und Ernst Enke, 1820. Vd. Plotin, En11éadt'S, vols. !-VI. tcxte établi et
11adui1 par Émile Bréhier. Paris: Société d"Édilion Les Bclles Leures, 1924-1938;
vol.
111. pp. 64-65. Vd. igualmente o comentário de PI a tao no Fédon, 81 c-82b: edic¡:iio con'11l1;1da pelo autor: Udvaf¡¡te Dialoger af Plawn !Diálogos Es<.;olhidos de P.] vols.
1 Ylll. traduc¡:ao de Carl Johan Heise. Copenhaga. 1830-1859: vol. l. pp. 49-52. Em
¡mnugucs: Fédmi, introduc¡:ao, versao tlo grego e notas de Maria Teresa Schiappa de
/\1.cvedo. Coimbra: Institllto Nacional de lnvcstigac¡:ao Científica, Centro de Estudos
CJ:ís~icos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1983. pp. 78-80.
·16 Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (l 751-1829). pintor alcmiio. Fontc provável
para o aulor: J. W. v. Goerhe. An Dense/ben LAo Próprio]. in Werke, vol. II, p. 168. Vd .
.l"hw111 Wo(fxm1f!, von Goethe: Ber!iner /\usgabe [J. W. v. G.: cdic,;ao de Berliml, vols.
J XII. Berlim: Aulbau-Verlag,
1965-1978:
Poetische Werke LObras Poéticas], vols.
1 XVl: vol. l, p. 384.
12() 11
Diário do Sedutor
12921
12931
sua passion 'predomina me
e la giovin principiante.
Nao consigo dissimular de rnim mesmo, nem sequer ser scnhor da anque se apodera de rnirn ncstc preciso instante, quando em mcu próprio intcresse me decido a passar irnpccavclmente a limpo a rápida copia
que naqucla altura eu fora apenas capaz de elaborar na maior das prcssas e
cm grande dcsassossego. A situacáo surge l1 rninha frente tao angustiante,
mas também tao ccnsurávcl, quanto dessa vez. Contra scu hábito. ele nao
havia fechado a sccrctária, cujo conteúdo ficou assirn por inteiro a minha
disposicáo; mas dcbaldc viria eu alindar a minha condura, recordando a
mirn mesmo que nao abrira gaveta nenhuma. Urna das gavetas cstava puxada para fura. Dentro dela achava-se urna quantidadc de papéis soltos e
por cima deles cncontrava-se urn li.vro de formato in-quarto, requintadamente encadernado, No lado que esta va voltado para cima, fora posta urna
etiqueta de papel branco na qual ele escrevera pelo seu próprio punho
«commentarius perpetuus n." 4». Dcbaldc procurei entretanto ser cu a imaginar que, se aquele lado do livro nao cstivesse virado para o ar e se aquele notorio título nao me tivesse tentado, cu nern teria entáo caído na lenta\:ªº· ou teria até oferecido resistencia. O próprio título era estranho, porém,
nao tanto em sisó, mas antes por aquilo que o rodcava. Fiquei a saber, com
urna olhadela de relance a esses papéis soltos, que continham apontarnentos
de situacñes eróticas, algumas alusóes a urna ou outra rclacáo , esboces de
cartas? de urna natureza muito própria, os quais aprendi posteriormente a
conhcccr na sua calculada negligencia, inteiramente conduzida do ponto de
vista artístico. Ora quando relernbro a situacño , depois de ter perscrutado o
interior. pleno de intrigas. desse homem corrupto, quando agora, de olhos
gústia
Don Giovanni, aria número 41•
1 Ern italiano no original, Du11 Giovanni , Acto l. cena 5. vv. 26-27. Trata-se da ária de
Lcporello, dita «do catálogo». Mada111i11a, il catalogo e questo .... cantada por Lcporello
a Donna El vira. O sedutor desie diario chama-se Johanncs como Don Giovanni e Don
Juan, mas na composicño <la pcrsonagcrn reúnem-sc elementos retirados de múltiplas
tonrcs. Para alérn ele aspectos decorrcnres da rccepcño <le Kicrkcgaard da ópera de Mozart, presentes já no capítulo do erótico-musical. tais como os estadios do desojo e a
questüo da imediuticidade da represcntacño da scnsualidadc, aspectos que aqui sño desenvolvidos por analogia ou por contraste. encontram-se ern «Diário do Sedutor» elementos que manifcstarn a confluencia ele várias tradicñes, desde a clássica, através de
Ovíclio (vd. adiante nota 35) literatura libertina sctccemista através de Pierre Choderlos de l.aclos (vd. adiante nota 2). Entre os autores do romantisrno alemáo
L. Achim
von Arnim qucm intervém determinantemcnte através da sua novela Armut, Reichthum,
Sc/111/d und Bujle der Griifin Dolores [Pobreza, Riqueza, Culpa e Penitencia da Condessa Dolores], nao só pela semelhanca entre Johannes enquanto sedutor reflexivo (por
oposicño ao Don.Juan mozartiano como sedutor nao-reflexivo) e o Duque A, protagonista da mencionada novela de Arním, mas tambérn pela inclusño de outros elementos
narrativos: vd. Judith Purvcr, «Arnim: Kierkcgaard's
Encounters with a 1 Icidelberg
Hermit», in Kierkegaardand his Germen Coutemporaries, vol. 6, Tome UI: Literature ,
edicño de Jon Stewart, Aldcrshot: Ashgate, 2008, pp. 1-24, aqui, pp, 14-17; doravantc
mencionado como Purvcr. Arnim .
a
é
2 Vd. Les Liaisons Dangereuses ( l 782) de Pierre Chodcrlos de Lacios (1741-1803);
alérn de ser um romance epistolar, também a seducáo levada a cabo corno um plano de
estratega militar, a par da éufase na liberdadc da scduzida, aproxima o presente diario
tia uarracño da vida de Valmont. Ronald Grimsley analisa exaustivamcnte as sernelhan<,:as e as diforcnc,:as entre .lohannes. o Sedutor, e Valmont em Kierkegaard and tlle Don
.J11r111 7'he111e. 2. Kierkegaard and Lacios, in S~;ren Kierkef!,aard and Frerwh Litera111re,
C::irdiff: Universi1·y of w~1les Prcss. 1966, pp. 26-44.
338
abe~Los para toda aqueta astucia. como que entro dentro daqucla gaveta, e
entao. causa-me a mesma impressño que rerrí de causar a urn oficial de
polícia que entra dentro da sala de urn falsificador, abre o scu escondcrijo,
e des~obre, ~entro de urna gaveta urna quantidade de papéis sol ros. de provas tipograñcas; numa está um pequeno filete de folhagern, neutra. urna
chancela, numa tcrceira, urna linha escrita as avessas. Coisas que facilrncnre lhc mostrarn que está na pista cerra, e a alegria sentida mistura-se com
u~na especie de admira~ao 12941 pelo cstudo, pela aplicacíío, que inconfund1.vcl111entc ali es.tao. Comigo •. tcria sido Iigcirarncnte diferente, visto que
estou menos habituado a despistar crirnes e nao estou armado de _ urna
i~sígnia d~ polícia. Tcria sentido o duplo peso da verdade pelo facto de
pisar carninhos fora-da-lei. Dessa vez. nao fiquei menos parco de pensamentes d~ que de _ralavras. como é cornum acontecer. Fica-sc estupefacto
com uma impressao. até que a reflexñn se solla novamente e, insinuando-~c, persuade o ignot~ desconhccido com os scus múltiplos e rápidos movrmcnios. Quanto mais dcscnvolvida cstivcr a rcflcxüo, tanto rnais rapidamente aprende a rccornpor-sc, lal como acontece com um escriturário de
pas.saport.cs de viajantes eslrangciros, o qual ficu tño familiarizado comas
ma1!> fant{isticas figuras que nao se deixa desconcertar com facilidade. Mas
apesar de a minha reflexño se encontrar agora seguramente muitfssimo bem
descnvolvída, f!quci todavía no primcíro momento irnensamcnte espantado; rccordo mu110 bcm que cmpalidcci, que estive prestes a cair de rmaiado.
e do medo que daquilo sentí. E se eJ1; tivesse chegado a casa, e me tivesse
e~contrado desfalecido coma gaveta nas rnños - que urna má consciencia
sirva ao menos para tornar a vida interessanre.
Em si e ~ara si. o título do livro nao me impressionou; pensei que fosse
urna colectanea de cxccrtos. o que me parcceu perfeitamcnte natural, dado
eu saber que ele scmpre havia abracado os cstudos com zclo. Continha entretanto coisas completamente diferentes. Tratava-se nern rnais nem menos
ele um ~íário, cscrupulosameruc mantido: e como eu. rendo em conta 0 que
até.cntao conhccia acerca dele, nao achasse que a sua vida reclarnasse tanto
assim um comentário. nao nego entáo, depois de agora lhe ter deitado os
olhos, que o título esteja escolhido com rnuito gosto e multo entendimento
co~ pri~nazia objectiva e verdadeiramente estética sobre si proprio e sohr;
a .s1tu~9ao. O título está ern perfeita hannonia com todo o conteúdo. A sua
vida tinha sido um cnsaio para concretizar a iarcla de vivcr pocticamcgte".
3 Em Sobre o <:011ceit~ de Ironía em Constante Referéncia a Sócrates, Kierkcgaard
desenvolv~ a idcia _de viver poeticamenre em relacño com modos de vi ver a ironia. Vd.
com especial relevancia para o presente passo a scccáo uuc dedica ¡'¡ crftica de l. · d
. d · J
•
"
...,
.UCll/ e
d e Fne
ne 1 Schlegel; m SV 1. vol. XIlJ. pp. 351-354 e 360-368: SKS vol. ¡ p 316-318 e 324-333.
'
' p.
011
Ou.
l/111
1
111~•1111111111h
\.1tla
Com um OlfUll tuuuucutc dcscnvolvido para dcscobrir o intercssante" na
vida, xoube co1110 cucorura-Io e, depois de o ter encontrado, continuou a
rcproduzir rncio pocucamcnte aquilo que vivcu. Por isso, o seu diário nao é
1 iuoroso do ponlo de vista histórico, nem simplesmenrc narrativo, nao é indicativo. mas sirn conjuntivo. Embota o vivido seja obviamente descrito em
conformidade com o que foi vivido, por vczes talvcz até bastante tempo
dcpois, porém, é amiúde aprescntado como se acontecesse nessc preciso
mstantc. é tao vívido do ponto de vista dramático que por vezcs como se
rudo tivcsse lugar diante dos nossos olhos, Que ele houvesse de assirn ter
procedido porque tinha urna qualqucr outra intencáo para com o diario é
altamente 12951 improvávcl; salta vista que. cm sentido mais rigoroso, tivera para ele urna mera significacño pessoal; e querer admitir que eu tinha
minha frente urna obra poética, talvez mesmo de'itínada a ser publicada.
tanto o todo como as partes singulares a tal obstavam. Ce11amente que ele
nao nccessitaria de temer algo contra a !>Ua pcssoa se o publicassc, pois que
a maioria dos nome!> era tao estranha que nao havia de todo qualquer probahilidadc de tcrem carácter histórico; apenas se me lcvantou urna suspeita. a
de que o prímeiro nomc esteja certo do ponto de vista histórico, para que
ª""im ele sempre tivcsse a certeza de rcconhecer a pessoa real, ao passo que
qualquer elemento estranho tcria de ser desviado pelo apelido. Assim acontece pelo meno no caso da rapariga que eu conheci. a volta da qual gira o
principal intcresse, Cordclia; chama va-se com cfeíto Cordclia, mns ao invés
niiu se chamava Wahl5.
é
a
a
a
'1 Em «Diário do ScdulOr», o uso de «in1cressante» confcre urna dimensilo e~t6tica
,1ttividade do ~dutor e ao efcilo sobrc a seduzida: vd. 1101a 10 no «Prefácio» da prescnlc obra, e lambém a 1101tt 47. adiantc. Aagc Henriksen salienta que o rcconhecimcnto do
.. interc~:.antc» cnquan10 ca1cgoria cMética permite explorar os el'eitos psicológicos da
,cduc.;ao sobre a seduzida. para além da sua considcra\:ÍÍO como hclos, incluindo-se,
ª'i-im, como inlercl>santc¡,, também uquelcs que a e~té!ica lradicionalmente
das-,ificaria
mino nao-bclos; vd. Aage Hcnriksen, Kierke;¡nards roma11er, Copcnhaga: Gyldendal.
1969, p. 36, doravante mencionado pelo nomc do autor.
'i «Cordelia Wahl» para nome da seduzida cncerra cm si múltiplas concxües, ~cndo
pmvavelmente a meno!. relevante a estabclecida com a innii de Cordelia Ol!.ea. irmá de
Rcgina Olsen. noiva de Kierkegaard. De facto, «Cordelia» é também o nomc da filha
1cjeitada do Rei Lcar. porque este nao soube identificar a dimen~iio e a natureza do scu
a111or (vd. adiante nota 54). Além disso. «Kordelchen», diminutivo de «Cordclia», é,
juntamente com «Lothario>) (norne de outra figurac.;iio literária de sedulor relevante para
Johannes. em «El curio\O impertinente)>. novela intercalada na Parte l, capítulo XXXJll
(k Don Q11Uote), outra das máscarn~ do protagoniMa de Dichter 1111d ihren Gesdlen de
Hchendorff (vd. nota 1 na página de roslo): por seu turno, <<Wahl» alude a outra da~
obras fundamentai~ para o tratamemo das relac;<ies amorosas, Wahfrenl't111dt.\chafte11
1 A-, Afinidade~ Electivas! de Goe1hc. cujos protagonistas também tem nomes utilizados
cm «Diário do ScduH)r>>. designadamente. Eduard e Charloue. Vd. Purvcr, eichendorff.
p 46. e Aurlwriry. p. 407.
J40
Ou
Ora como poderá explicar-se que. nño obstante, o diário tcnha adquirido
urna tonalidade tao poética? A resposta a esta qucstño nao difícil. explica-se pela natureza poética que nclc há, a qual. se quisermos, nao é suficientemente rica, ou se quisermos, nao suficientemente pobre, para separar a
poesía e a realidade urna da outra. O poético era esse rnais que ele proprio
trazia consigo. Essc mais era o poético que ele dcsfrutava na situacño poética da rcalidadc. scndo que era novamcnre por ele recuperado soba forma
ele reflcxño poética. Era o segundo desfrute. e era para o desfrute que toda
a xua vida eslava calculada. No prirnciro caso, ele desfrutava o estético
pcssoalrncrue, no segundo caso dcsfrutuva csteticamcntc a sua personalidade. No prirneiro caso, o ponlo central consiste ern ele desfrutar de uma
rnancira pessoal e egoísta aquilo que a realidade parcialmente !he dera e
que ele proprio parcialmente utilizara para fecundar a realidade; no segundo c~so, a ~ua pcrsonalidade volatiliza va-se. e dcsfrutava cntño a siruacño
e a ~1 proprio na situacño. No primeiro caso. ncccssitava continuamente da
realidadc como ocasiño. como momento; no segundo caso, a rcalidade
afogara-se no poético. Assim, o fruto do prirneiro estadio é a disposicño que
estove na origcm do diário como fruto do segundo estadio, e esta palavra
toma ncste último caso urna significacño um tanto diferente da tomada no
primciro. Possui assim o poético sernpre através da cquivocidadc na qual a
sua vida se dcsenrolava,
Atrás do mundo no qual vivcrnos. bern longe, cm segundo plano, ñca um
nutro mundo, que está scnsivclmcnte na mesma relacño para como primerro, como a que estubclccida entre o palco que por vczcs vemos no teatro
atrás do verdadeiro palco e este último. Através de urna fina gaze vernos
corno que um mundo crn flor, 12961 mais leve, mais etéreo, de urna outra
qualidadc que nao a real. Mu itas pessoas que se rnostram corporearncntc no
mundo real nao pcrtcncem originalmente a este, mas sim ao outro. Mas 0
facto de alguérn assirn se dissipar, quasc desaparccendo mesmo da rcalidade,
pode ter por fundamento razñcs de saúdc ou de doenca. Este último caso foi
o dessc homem que ourrora conhcci scm o conhccer. Nao pcrtcncia ¡, rcalidade e tinha todavía muito a ver com cla. Circula va a correr continuamente
na realidade, mas quanto mais se entrcgava a essa rcalidade, tanto rnais para
<li~m dela ficava. Mas nao era o bem que o afastava, e tambérn nao era propnamentc o mal, ncm sequer me atrevería a di Le-lo neste instante. Tcm algurna exacerbatio cerebri, para a qua! a realidadc nao possui incitamento
suficiente para isso. no máximo. apenas momentaneamentc. Nao <lava tudo
por rudo na realidadc, nao era demasiado fraco para conseguir suportá-la;
nao, ele era demasiado forre; mas csse vigor era urna docnca. Assirn que a
rcalidade havia perdido a respectiva significacáo enquanto incitamento. ficava desarmado e. nele , residía aqui o mal. Eslava disso plenamente consciente até no instante do incitamento e ncssa consciencia rcsidia o mal.
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Ou lJ111 1
'·'I'""
11t111h \ 1d,1
1.J 1
Conhcci a rap1111f•t1 cuja história constituí o conteúdo principal do diario.
Se ele <cduziu vai t:h, nao xci; mas parece que assirn foi, tendo em contaos
xcus papéis. Parece ao mesmo tempo ter siclo versado numa outra especie
tic prática que imcirarncntc o caractcrizava, visto que, acima de rudo, eslava cxccssivamcnte determinado do ponto de vista espiritual para ser urn
scdutor cm sentido comum. Ve-se pois pelo scu cliário que. por vczcs, aqui-
lo que ele descjava ardentcmente era algo de completamente arbitrarlo,
urna saudacáo, por exernplo. e rnais nao aceitaría, por preco nenhum, porque na pcssoa visada era isso o mais belo. Auxiliado pelos seus dotes espirituais. soubc tentar urna rapariga, arrastá-la para si, sem se preocupar em
possuí-la no mais rigoroso sentido. Posso representar ern mim como ele
soubc levar urna rapariga até ao ponto culminante cm que tcve a certeza de
que cla rudo sacrificaria. Quando o caso chcgassc tao longo, rompería en1i'ío. scm que do scu lado tivessc ocorrido a menor aproxirnacáo. scrn que
uvcssc dcixado cair urna palavra de amor" e. ainda menos, urna explicac,:ao.
urna promessa. E contudo aeonteccra, e a infeliz tinha disso urna conscie11ria duplamente amarga. porque nao tinha o mínimo de que pudessc
..,ocorrer-se. porque tinha de continuar a ser -;acudida pelas mais difcrentei.
disposic;oes numa pavorosa dan9a de bruxas, ora quando dirigia reprovac,:ocs a si mesma e lhe perdoava, ora quando \he dirigía reprova9ocs e,
agora que a rela~ao 12971 só havia contudo tido realidade em sentido figurado, tinha continuamente de lutar contra a dúvida de saber se tudo nao
passava de uma fantasía. Nao podía confiar-se em ninguém, jcí que nao tinha propriamente nada para confiar a alguém. Quanclo se sonhou, é possívcl contar a outro~ o sonho, mas aquilo que ela tinha para contar onho
nenhum era, era a real idade e, contudo. assim que a cnunciasse a um terceiro. assim que aliviasse a sua mente inquietada. entao, nada seria. Era algo
que cla muito bcm sentia. Ninguém eni capa1. de o captar, nem mesmo eta
e, contudo, repousava agora sobre ela com uma gravidade angustiante.
Vítimas desta espécie tinham por isso urna natureza muito própria. Nao
eram raparigas infeliz.es, escorra9adas da sociedade. ou tendo ideia de que
o haviam sido, que se afligissem muito e a fundo, e. urna vez que o seu
cora9ao tivesse transbordado, o aliviassem no ódio ou no perdao. Nenhuma
muda119a visívcl se dera nelas; viviarn de acorclo corn as circunstancia~
habituais, respcitadas como sempre e, cornudo, haviam-se transfomrndo
quasc inc~plicavclmente para si próprias e, incornprc1.:nsivclmcnte,
para os
outros. A vida delas nao se partira ou rompcra como a dos outros. cstavam
6 Aquí. «K)a:rligh<!d». Ao longo de «Di:írio do Scdulor» as ocorrencias de «Kjlcrfi
ghetl»
ba:,tanlc mais numcro\as do que as de «El~km·». cuja primcira ocorrencia
'ªº
c,t:í ª''"'alada na nota 48. A'''nalam-<..c as~im toda~ as ocorrcncias del>tc último tc11110.
bcm como a~ lle ambos o~ 1e1 ino~. qua11do 11~adns cm paralelo ni11n me~nHl passo.
141
342
dobradas para dentro de
em vño encontrar-se a si
dizer que o caminho dele
pés cstavam de tal forma
si mesmas; perdidas para os outros, procuravam
proprias. Com a mesma significacño
, poder-se ia
na vida nao deixava vestígios (visto que os scus
configurados que ele conservava a pegada dcbai-
xo deles, axsirn que, para rnim, cu represento melhor a sua infinita rcflcxividadc cm si mesmo): no mesmo sentido, nenhuma vítima caía por ele.
Ele vivía de urna maneira excessivarnente espiritual para ser um scduior cm
sentido comum. Assumia por vezes um corpo parastático e era entáo sensualidade pura e simples. Mesmo assirn, a sua história com Cordelia
tao
intrincada que lhc foi possívcl dcscmpcnhar a parte do seduzido, sirn. até
mesmo a infeliz rapariga conscguc por vezes ficar perplexa com isso. tarnbém aqui a pegada dele é tao impcrceptível que torna impossívcl qualqucr
prova. Os individuos haviam sido para ele mero incitamento sacudía-os de
si tal como as árvores abanam as folhas - rcjuvcncscia-sc, a folhagcrn
cstiolava.
Mas como andariam as coisas na sua propria cabcca? Ora cu pcnso que,
tal como ele desencarninhou outros, acabará tarnbém ele por se extraviar.
Nao desencaminhou os outros no que diz rcspciio ao exterior. mas antes no
respeitante ao próprio interior dos mesmos. Há algo de revoltante quando
um homern conduz um forustciro que, nao sabendo qual o carninho a tomar,
segue pelo percurso errado, dcixando-o agora sozinho nessa erráncia e,
cornudo, o que lsto cm comparacño com levar alguérn a trcsrnalhar-se em
si próprio.?
forastciro errante tcm todavía 12981 o consoló de a paisagem
mudar continuamente a sua voila e. a cada mudanca, nasce-lhc a esperance
de encontrar urna saída; aquele que se trcsmalha cm si proprio nao possui
um territorio tao grande para se movimentar;
deprcssa repara que é urna
órbita da qual nao pode sair. Assim eu penso que com ele sucederá o mesmo
até ~urna escala ainda rnuito mais tcrrível. Nada sou capa¿ de imaginar mais
cheio de tormentos do que urna cabcca intrigante que perca o rumo, e vire
agora toda a sua agudeza de cspfrito contra si mesma. na medida em que a
consciencia desperta e importa agora desembaracar-se dessa desorientacño.
Debalde possui multas saldas na sua toca de raposa; no instante ern que a
sua alma angustiada já acredita ver a luz do clia penetrando. mostra ser urna
nov~ entrad~ e, tal como urna besta apavorada, perseguida pelo desespero.
conunua assim a procurar uma saída, e continua a encontrar urna entrada,
através da qual regressa a si próprio. Um horncm assim nem scrnpre aquilo a que se poderia chamar urn criminoso,
ele próprio iludido pelas suas
intrigas e, contudo , abate-se sobre ele um castigo ainda maís tcrrível do que
sobre o criminoso, pois o que é a propria dor do arrependirnento ern cornparacáo com a insania consciente. O seu castigo possui um carácter puramente estético. visto que diz.er que a consciencia moral despena é urna exprcssáo demasiado ética para que lhe seja aplicada; para ele. a consciencia
é
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é
moral fo1 mn se \1111plc.,111c11tc
como urna consciencia rnais elevada que se
exprime como um dcsassosscgo, o qual, cm sentido mais profundo, nem
scqucr o acusa. mas mantérn-no acordado. scm rcpouso sob si mesmo, na
sua infrutífcra inquictude. Tarnbérn nao está louco, visto que a multiplicidade finita do pensarncnto nao está petrificada na ctcmidadc da loucura.
Pobre Cordelia, tarnbérn lhe será difícil encontrar paz. Ela perdoa-lhc do
mais fundo do seu coracáo, mas nao cncontra repouso, já que a dúvida
dcsperta enrño: fora ela qucm anulara o noivado, fora eta quem constituíra
a ocasiño para a infelicidadc, rora o !)CU orgulho a desejar ardenterncntc o
incomurn, arrepende-se entño. mas nño encentra repouso. pois agora
rcdirncm-na os pensamentos acusatórios: foi ele, com a sua asrúcia, quem
msialou este plano na sua alma; odeia-o entño, o scu coracño scntc-sc aliviado ao maídlzé-lo, mas nao encentra repouso; continua a dirigir rcprova~oes a si própria. rcprovacñcs porque odiou, sim. eta própria era urna pecadora. reprovacóes porque, por rnais astucioso que ele scja,
ela qucm
xcmpre permanece culpada. Para cla, é duro ter sido ele a cnganá-la, e mais
duro ainda, quase se poderla estar tentado a 12991 dizer, que ele tenha despertado a reflexao em muita~ línguas, que ele a tenha de!-.cnvolvido o suficiente do ponto de vista estético de modo a que cla nao mais escutasse
humildemente urna única voz. mas antes conseguissc ouvir as muitas Línguas todas ao mesmo tempo. A recordac;üo dcspcrta entao na sua alma, esquccc o pecado e a culpa, recorda-se dos bclos instantes, fica aturdida numa
cxalla9ao clesnatural. Em momentos tais. nao se limita a rccordá-lo,
concebc-o com urna clarividencia que só mo!)tra como eta está poderosamente de~envolvida. Nao ve cntao nelc o criminoso. mas também nao ve o
homem nobre, sente-o npcnas esteticamente. Escreveu-me uma vc1. urn
bilhete. no qual se pronuncia assim sobre ele: «Era por vezes tao espiritual
que eu me sentía aniquilada como mulhcr, e noutras alturas era tao bravio
e apaixonado, tao concupiscente, que eu quasc estrernecia <liante dele. Por
ve1es sentía-me tao alheada dele, outras vezcs, ele entregava-se completamente; quando o cnla9ava nos meus brayos. tudo se havia entretanto transformado, e eu abnu,:ava uma nuvem7. Conhecia esta expressao antes de o
conhecer. mas foi ele qucm me ensinou a entende-la: quanclo a utili10.
¡)Cnso sempre nele, tal como pcnso cada um dos meus pensarnentos através
dele. Sempre amei a música, ele era um instrumento sem igual, sempre wm
é
é
é
7 o episódio mitológico 4ue envolve Zeus. a sua esposa. Hcra. e lxion; c~tc último
rcccbcra e.Je Zeus o perdao dos scus crimcs. mas mesa <.le Zeus seduz Hera diante do
próprio Zcus. que. cntao. a transforma em nuvem. Dessa uniao nnsccram os centauros.
Fontc prov:ívet do autor: Paul F'ricdrich A. Nitsch. Neucs mytlwlogiscl1es \Viir1erb11cl1
1 Novo l)icionário Mitológico l. vol~. 1-11, rcvisiío de Friedrich Gotthilf Klopfcr, Leipzi.g,
Smau. 1821: vol. 11, pp. 122-121: doravantc :1 obra é 111c111.:ionad:i como Nitsch.
a
344
s~~fCll
Kicrkcguard
emocáo, tinha urna amplitude como nenhurn outro instrumento tcm, era a
quintesséncia de todos os sentimentos e disposicóes, nenhum pensamento
era para ele demasiado alto, nenhum era demasiado desesperado, era capaz.
de troar com urna ternpestade de Outono, era capaz de sussurrar de rnaneira inaudível. Nem urna das minhas palavras ficou sem efeito e, contudo,
nao posso clizer que a minha palavra tenha perdido o seu efeito, já que me
seria impossível saber qual o efcito que produziria. Com urna indescritível
angustia, mas cheia de secretismo, sumamente feliz e inorninávcl , escutava
cssa música que eu propria fazia surgir e, cornudo, nao havia semprc harmonia, ele arrebatava-me sernpre.»
É terrível para ela, e mais terrível se tomará para ele; posso chegar a
esta conclusáo pelo facto de eu próprio mal conseguir dominar o medo que
de mirn se apodera de cada vez que penso no assunto. Tarnbérn eu sou arrebatado para dentro desse reino de bruma, desse mundo de sonho, onde a
cada instante se fica apavorado com a propria sombra. Debalde ensaio
arniüde desprender-me claí, acompanho-a como urna figura amcacadora,
como um qucixoso que é mudo. Que cstranho! Ele cspalhou o mais profundo scgrcdo sobre rudo, e afina! há ainda urn scgrcdo mais profundo, que
consiste ern ser cu testemunha, sendo que eu passci até a ser testernunha de
urna rnaneira ilegal. Nao será possívcl csqucccr tudo. Pcnsei algumas vezes
cm 13001 falar corn ele sobre isto. E contudo de que serviría, ou ele se retractava, argumentando que era um cnsaio poético, ou irnpunha-rnc silencio, algo que cu nao lhe poderla negar, t.endo cm vista o modo como me
havia tornado testernunha. No entanto, nao há coisa algurna sobre a qua!
repouse tanta seducño e tanta maldicáo como um segredo,
Recebi de Cordelia um conjunto de cartas. Nao seise serño todas, se bem
que me parecesse que ela urna vez deixou transpirar ter sido ela quern confiscou algurnas. Copiei-as e vou inserí-las de permeio na minha cópia
limpa. É certo que lhcs falta a data, mas mesmo que cstivcsscm datadas nao
me serviría de grande coisa, visto que o diario, na sua ulterior progressño,
torna-se cada vez mais parcimonioso e, por último, com urna única cxccp9ao. quase abdica de qualquer datacáo, como se no seu desenrolar a história
se tornasse qualitativarnente tao significativa que, apesar da sua realidade
histórica, se aproxima de ser ideia e, por esse motivo, as determinacóes
temporais houvessern de se ter tornado indiferentes. O que, ao invés, me
auxiliou foi o facto de em diferentes passos do diário se encontrarem algumas palavras cuja significacáo eu nao abarquei no início. Ao cotejá-las com
as cartas, tornou-se entretanto inteligível que constituíam os motivos das
respectivas. Por isso, inserí-las no sftio cerro será para mim assunto fácil,
dado que introduzo a carta scmpre junto do passo no qual se encontra esbocado o mesmo motivo. Se eu nao tivesse encontrado estas indicacóes,
teria entáo sido eu a ficar com a culpa de um mau entcndimcnto,
visto que
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Ou. Uin Fit1r111111111
345
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·d••ures na margcm como actumes i.n. dist.ans 'dacio que to
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~¡t~c Cordelia o ocupava demasiado para que tivcsse realmente tempo para
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i1lh~~~: ~~~~~~ dcpois de ter abandonado Cordelia, re,cebeu. dela algu~as
. .
lh devolveu por abrir. Entre as carras que Cordcl1a me con:1ou,
cartt1s que e
1· ·e e por 1sso
cnconrravam-se t.ambém estas. Tinha sido ela a romper o ,~c1 . • e o se~
.
me " faze1· delas urna cópia. Nunca conversou com1go sobr
.
a 1 1cvo" "
l 1 hannes
conteúdo, ern contrapartida, quando falava da sua re a9ao com . o ,
,
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.
. : , .
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d notas de Kicrkcgaard é bastante profusa. sendo
K A margmáha dos d1á1 ios e cade1 nos de. h
. vez es acom¡Janhados de legendas e
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· 1· Nil» a p·1r de csen os. poi
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111u110 comum a s1g a «1
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J . k' G·irff e Johnny Kondrup, Wnlten
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·p _. ,1 . Princeton Univcrsity Press. 2003.
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d .:- de Bruce H Kirmmsc, 1111cc on.
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o/ Paper, tra u9ao
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, cei'to ,4 aplicado nas ciencias natura is
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.· · . 1· · C"ÓeS a d1stancw». 0 con
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9 Em la\lm no 011g111a · «a T
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·nan·i Aristóteles nc"a este
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rav11ac;·10 ou mesmo a vol. 11u1
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;1 fenómenos de magnct1s1110, g '
, ,. . Jt· da pelll aL1lor· Ari~totele~.· graece
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?44b 245b· co1r;ao consu a
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tipo de acc;ocs: vd. isi.ca.
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1 1 ¡Jp 244-245. Johannes
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l B e k ker '."I JI ' Bcr. 1.1m , 18,,
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l1nmanue
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de doze exI A. cm oregoj,
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a de tais acr;oes atrav s d a .ins·ci···-ao
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dcmonstra a .rossib_ihdade a ocou.er'.~~' , • .'
e indica 'ao de páginas: l) «Cuidado.
cursos. aquí idcntLt1cados pelo seu m1.c10, seguido .d ,
9 . .. 1 1
p 352-354·
. 1
349 352· 2) «Ass1m e que cu gosto ... ». p .
'
111inl~1 b:la ?-cscon~ccida.»,.~p. : .. - .
«Sim,
minha
filha
l·;· I», PP·
354_358; 4)
3) «hntao. 11ca pard scgund~ fe1t<1 .L .. ) lPI- 388-393· 6) «Muito bem. H VCJO mUit~
J63-364: 5) «Mas porque nao podcis [ · · · »' P~· ·
'
1 l
416-417' 8) «E
7) «Sera pecado meu · .. >> • PP·
•
ao fundo da rua 1 ... )». PP· 414.415· ·'
d [ ) pp 424.425: 9) «Vá. sorne-te,
dcvcras cstranho. mas acontece que em 0.sterga e ... ».
. . l ] .pp 436-437· 11)
.
. . ,· ..
433-434: 10) «Quando se ama ... ».
·
' .
inrnha pe1x.cu111hc1 [ .... ]», pp.
4~9-441· 12) «Quandn no Verao as criadas de servil'
»: ).
«Falando
1 ... 1»,
sinceramente
pp. 443-445.
1 ...
I», PP·
..l
•
147
costumava
recitar
uns versinhos,
tanto quanto sci de Goeihc,
os qua is pare
ciam significar algo de diferente, segundo a difcrcnca da sua dlsposicño e
a diferente dic9ao por ela condicionada:
,Joh:umcs!
1 lavia um norncm rico que tinha gado graúdo e gado miúdo cm quant~dade, e havia urna rapariguinha pobre que possuía apenas um único cor~et1 o, que comia da sua rnáo e bebía do seu púcaro12• Tu eras o homc1~ neo,
1 reo de toda a rnagnificéncia da tcrra, eu era a pobre. apenas pos~u.1ndo o
mcu amor. Tomaste-o. com ele te alegraste; accnou-te entño a volúpia, e tu
\:ICrificasle o pouco que cu possuía, nao podías sacrificar nada de le~I. Havia urn homcrn rico que tinha gado graúdo e gado miúdo cm quantidadc,
havia urna rapariguinha pobre que possuía só o scu amor.
Gehe,
verschnuihe
Die Treue,
Die Reue
Kommt nach .10
Eis o que di/cm as cartas:
Tiro Cordelia
Johanncs!
Nao te chamo «rncu», é para mim bcrn inteligível que nunca o foste, e
recebo um castigo sobejamcnre fortc por essc pcnsarnento outrora me ter
deleitado a alma: c. contudo, chamo-te «meu», 111eu scdutor, meu impostor.
meu inimigo, meu assassino, fonte da minha infclicidadc, túmulo da rninha
alegria, abismo da minha desventura. Chamo-te «rncu» e chamo-me «rua».
e tal como outroru isto cncantou os teus ouvidos, orgulhosamcnte inclinados cm minha adoracño. que venha agora a soar como urna maldicáo sobre
ti. urna rnaldlcño para toda a cternidade. Nao rejubile. coma ideia de que
hnvcria de ser minha irucncño pcr. cguir-te , ou rnunir-rne de urn punhal 11
para ucicatar a rua chacota! Fogc para onde quiscres, sou porérn tuu,
arrasta-te até aos rnais extremos confins do mundo. sou porérn tua, ama
centenas de outras mulhcres. sou porém tua. sim, até na hora da mortc, sou
tua. Até a língua que uso contra ti tem de demonstrar-te que !.OU tua. Tiveste a ousadia de cnganar urna pessoa de tal modo que te tornaste ludo para
mirn, 13021 entño, quería cu colocar toda a minha alegria cm ser tua escrava,
!.OU a iua. a tua, a tua rnaldicño.
Johannes!
Nem sequcr haverá alguma esperance? Havcrá o teu a~or ~e nunca
despenar outra vez, pois sci que me amaste. cmbora eu nao saiba o q_uc
me dá u certeza disso. Espcrurci , mesmo que o tempo se torne para nurn
longo. cspcrarei, espcrurci que fiques cansado d? amar ºU.tras. o ~cu amor
por mirn há-dc cntño crgucr-se de novo do seu túmulo. hei-dc cntao amar.
11
te como sernprc, agradecer-te como scmpre , como ~nl1gamente, o~-.
lohanncs, como anligamentc! Johanncs ' Será que a fricza scrn cora~ao
que me diriges é a tua verdadcira esséncia. seria o tcu amor. o tcu neo
coracño, mentira e inverdadc, será que voltavte a ser tu mes1~0! Tem paciencia com 0 rneu amor, perdoa se continuo a amar-re, ser que o meu
amor é um fardo para ti; mas chcgará porérn o tempo cm _que voltarás
para a tua Cordclia. A tua Cordclia! Ouve esta palavra suplicante! A tua
Cordelia. a tua Cordclia.
Tua Cordelia
Tua Cordelia
13031
10 Ern alernáo no original: «Vai, / Dcsprcza I A fidclidade. / Seguir-sc-ño /Os rernorsov,», in Johann W. Gocthc. Ja_y und Biitely; in J. W. Goerhc. Goethe Werke, vollstdndig« Ausgabe letuer Hand [Obras de Gocthe, &lic.;ao Completa na l:ltima Revisilo],
s
vols. I-LX, Esrugarda, Tübingen, 1828-1842; vol. XL, p. 10.
11 Analogía com Donna Elvira cm Don J11a11. na vcrsiío de L. K.ruse. Vd. nota 45 no
capítulo «Silhuetas».
.
Se bcm que Cordelia nao estivessc na posse da amplitude por ela _admirada no ~CU Johannc ·, ve-se distintamente que nao C!:>lava desprovrda de
rnodulac;fio. A sua disposic;ao pronuncia-se claramente em cada urna ~as
carta:-. cmbora até certo ponlo lhe tenha faltado clareza na aprcsentac;ao.
348
349
Sy1rc11 Kicrkcgaard
É e.m particular o caso da segunda carta, na qual a sua opiniño se prcsscnrc,
mais do que verdadeiramente se entende, mas, para mirn. essa impcrfeicño
13041
torna essa carta tao comovcnte.
4 de Abril
Cuidado, minha bela desconhecida! Cuidado! Sair de urna carruagem
1150 é assirn um assunto tao ligciro, é por vezes um passo decisivo. Eu podía
emprestar-vos urna novela de Ticck13, na qual verícis como urna dama, ao
dcscer de um cavalo, se dcixou enredar a tal ponto numa cornplicacáo que
csse passo se tornou definitivo para o resto da sua vida. Em gcral, os degraus ele urna carruagern estño tao mal colocados que quasc nos vemos
toreados a abdicar de qualquer graciosidade, e cusamos um salto desesperado para os bracos do cochciro e do criado. Que bcm se sacrn o cochciro e
o criado! Realmente, creio que vou procurar colocacño como criado numa
casa onde haja jovens raparigas; nurna casa dcstas, um criado torna-se fácilmente testemunha dos segredos de urna menina. - Mas, por amor de Dcus,
rogo-vos por ludo que nao saltéis;
está bastante escuro. nao hei-de
incomodar-vos, ponho-rne simplesmente debaixo deste candeciro de rua
para que assirn vos scja impossível ver-me e, contudo , só se continua a ser
recatado na mesma medida cm que se for visto, mas só se continua a ser
visto, na mesma medida em que se está a ver - portante, em consideracño
para com o criado, que níio estaría porventura cm condicócs de resistir a
scmelhante salto. em consideracíío pelo vestido de seda. idem, em considera9ao pelos folhos de renda, ern consideracáo para comigo, deixai que csse
pczinho gracioso, cuja delicadeza eu já admirei, deixai que se ensaic neste
mundo, ousai confiar-vos nele, clecerto que pisará chao firme, e se vos causar calaírios um instante. porque é como se procurasse em vílo onde pode
rcpousá-lo. sim, se ainda tivcrdcs calafrios depois de ele ter pisado o chao,
pende depressa o outro pé junto dele, quem seria tao cruel para vos deixar
1 J Trata-se da Nove/le Die wilde Engldnderin IA Inglesa Bravia], in Das Zauberschlofi
Encantado], in Ludwig Tieck :V gesammelte Nove/len [Nove/len Completas de
L. T.I, vals. I-X, Brcslau, 1835: vol. 11, pp. 144-169. Vd. tambérn Ludwig Tieck. Werke
111 vier Blinde [Obras cm 4 Vols.], vals. 1-lY. Munique: Winklcr-Vcrlag.
1963-1966;
vol. 111 (Novellen), pp. 5t\O 62:1.
l O Casiclo
350
SV11\!l1
1 ierkcgaurd
suspensa nessa posicño, qucm seria tao desclegantc, 1ao lento a acornpanhar
a manifestacño do belo. Ou rcceais aincla algo de inesperado, deceno que o
criado nao, e eu tambérn nao, pois eu até já vi esse pezinho. e como cu sou
um naturalista, aprendí com Cuvier14 como retirar disso conclusñcs com
seguranca. Apressai-vos, entño! Corno cssa angústia eleva a vossa bclcza.
Todavía, a angustia, cm si e para si, nao bela , só bcla quando no mesmo
instante se ve 13051 a energía que a suplanta. Assim mesmo. Ora como esse
pczinho está firme. Já fiz reparo de como as raparigas ele pé pequeno se
sustérn ern gcral com maior firmeza do que as rnais pedestres, as pezudas.
- Quem podcria pensar que era assim? Vai contra toda a experiencia; quando se sai da carruagern, nao se incorrc tanto no perigo de o vestido ficar
preso como quando se salta dela. Mas, no entanto, para as jovens, é sernpre
preocupante anclar de carruagem, por último, acabarn por ficar lá dentro.
Perdcrn-sc as rendas e as filas, e o assunto acaba por aqui. Ninguém há que
possa ter visto coisa alguma; mostra-sc de facto urna figura escura, envolta
até aos olhos numa capa; nao possível ver de onde vern, pois a luz está a
incidir exactamente nos olhos; passa por vós no momento cm que ides entrar pela porta da rua. Precisamente no segundo decisivo, lanca um olhar ele
soslaio sobre o seu objecto. Corais; enchc-sc-vos o peito demasiado para
que possais aliviá-lo de um fólego: há urna irritacño no vosso olhar, um
orgulhoso dcsdérn; há urna prcce, urna lágrima no vosso olhar; ambas as
cois.as sao igualmente betas, aceito ambas igualmente bcrn, pois que eu
podia ser tanto urna quanto a curra. Mas cstou, porém, a ser malicioso qual é afinal o número da porta? que vejo eu, urna exiblcño pública ele artigos de bijutaria; minha bela desconhccida, talvez possa ser indigno da minha parte, mas sigo pelo carninho corn luz ... Ela esqucceu-se do passado
ail, quando se tern dczassete anos, quando nessa feliz idade se sai para ir¡¡~
compras. quanclo cm cada objecto maior ou menor que se agarra coma rnáo
se cncerra urna inorninável alegria, facilrnente se esquece. Ela a inda nao me
viu: estou do outro lado do balcño, bastante afastado e sozinho. Um espelho
esta pendurado na parede oposta, ela nao pcnsa nisso, mas o cspelho pensa.
Como foi fiel ao captar a imagem dela, como um humilde cscravo que rnostra a sua devocáo através da fidelidade, um escravo, para quern ela deceno
tem significacño, sem que tenha, contudo, qualquer significacáo para ele,
que bem se atreve a abarcá-Ia, mas nao a abracá-la. O infeliz espelho que
bem capaz de agarrar a sua imagem, mas nao ela propria, o infeliz espelho
que nao conseguc esconder a imagcm dela no seu segredo, ocultá-la de todo
é
é
é
é
14 O paleontolog:ista frances Ueorgcs Léopold Cuvicr (1769-1832) tcvc como objectivo
expresso reconstituir toda urna espécie a partir de um único osso; vd. Recherches sur /es
ossements Jossiles de quadrnpedes flnvestiga<.;;oes sobre as ossadas fósscis dos quadrúpedes l, vols. I-V,Paris, 1821-1824; vol. l. p. JTI.
Ou
Ou. U111 l•1.1¡•111u11u
tk• Vll1:1
351
o 111u11do, que, pelo contrririo, apenas conseguc denuncié-la aos outros, como agora a rnim. Que tormento. se urn homcm fosse assim criado. E há
todavía rnuitos homens que sao assim, que nada possuern para além do
instante cm que o mostram aos outros, limitando-se a agarrar a superfície e
nuo a csséncia, tudo perdendo quando isso se vai mostrar, 13061 tal como
este cspelho pcrdcria a imagem dela, se ela viesse a trair-lhc o seu coracáo
mm um só suspiro. E se um homern nao fosse capaz de possuir urna imagcm da recordacáo no preciso instante da presenca, entáo, deveras que teria
de dcsejar sernpre rnanter distancia cm relacáo a beldade, nao ficando tao
próximo que o olho terreno também nao consiga ver como é belo o que ele
ubraca, aquilo que o olho exterior perdeu, e aquilo que ele certamente pode
recuperar para a perspectiva exterior afastando-o ele si, mas aquilo que ele
iumbérn pode entáo ter diante do olho da alma, quando nao consegue ver o
objecto porque está demasiado perto, quando os labios se ccrram contra os
lribios
E como é realmente bela! Pobre espelho, há-de ser urna tortura,
a inda bem que nao conhcccs o ciúme. A sua cabe<;:a é perfcitamentc oval,
indina-a um pouco para a frente, elevando dcsse modo a fronte, que seerguc pura e altiva sem qualqucr recorte dos órgaos do intelecto. O seu cabelo escuro rodeia-lhe a testa, terna e doccmcntc. O rosto é como um fruto,
i11tciramcntc torneado em cada transi9ao; a pele é transparente e tem um
loque de veluclo, sou capaz de senti-lo comos meus olhos. Os olhos - sim,
ainda nao os vi - , estao ocul.tos por urna cortina armada de franjas de seda,
que se inclinam como grampos, perigosos para quem quiser encontrar o seu
olhar. A cabe~a é uma cabe9a de madonna, a sua marca é a pureza e a inoc.:cnc.:ia; inclina-se para a frente como uma madonna, mas nao está perdida
na contemplac;:ao do Uno; dá-se uma mudanc,:a na cxprcssao do seu rosto. O
que ela observa é a multiplicidade,
a multiplicidade sobre a qua) o esplendor
e a magnificencia terrenas lan9am o seu reflexo. Tira a !uva para mostrar ao
cspelho e a mim uma mao direita branca e bem formada como urna antiguidade, sem qualquer ornamento, ncm sequer um simples anel de ouro no
quarto declo15 - bravo! - Abre os olhos, como tudo se transforma ficando
lodavia o mesmo, a fronte menos alta, o rosto ligeiramente menos regular
no oval, mas mais vívido. Fala como empregado da loja, está jovial, alegre,
conversadora. Já cscolheu urna, cluas, trés coisas, pega numa quarta, segura-a na mao, desee novamenlc o olhar, pergunta quanto custa. poe-na de lado
debaixo da !uva. deve ser um segrcdo, destinado a um ..,... namorado - mas
ela nao está noiva - ai, há muitas que nao cstao noivas e que tem todavia
namorado, mu itas que estao noivas, e que nao tem todavia namorado ...
l lavcrci eu ele abdicar dela? Havereí de dcixá-la ímpe11urbável na sua ale15 Segundo o costurne dinarnarqucs. após a Reforma, usava-se uma alian~a ele noivado
IJ;l lllaO
clircita,
353
352
gria? ... quer pagar, mas perdeu a bolsa, ... 13071 estará presurnivclrnentc
a
dizer a morada, nao quero ouvi-la, nao qucro roubar a mim mesmo a surpresa; decerto que voltarei a encontrar-me com ela nesra vicia, hei-dc
conhecé-la bem, e calvez eta a mim, nao é fácil esquecer o meu olhar de
soslaio. Quando cu entño ficar surpreendido por a encontrar numa ambiéncia que nao espera va, chcgaré nessa altura a sua vez. Se ela nao me conhecer, se o seu olhar disso Jogo nao me convencer, cntáo , arranjarei oportunidadc para olhar para ela de lado, juro que ela há-dc lembrar-se da situacáo.
Ncnhurna impaciencia, nenhurna avidez, tudo se desfrutará cm demorados
tragos; está assinalada, decerto que será alcancada. -
Dia 5
Assim que cu gosto: sozinha a noite em 0stergade16. Sim, claro que
vejo o criado scguindo atrás dela, nao fiqueis ern crer que pcnso tao mal de
vós a ponto de eaminhardes completamente so, nao fiqucis em crer que sou
tao inexperiente que. ncste olhar de relance pela si1·ua~ao, eu nao tivesse
observado desde logo essa figura séria. Mas porque tíío apressacla? Fica-se
com um pouco de medo, sente-se uma espécie de palpita9ao, cujo fundamento nao é um impaciemc anscio por chegar a casa, mas sim um rcceio
impaciente que. no seu doce desassosscgo, circula alravés de todo o corpo,
e daí o ritmo apressado dos pés. - Masé todavía deslumbrante, inestimável, andar assim sozinha - com o criado atrás ... Tem-se clezasseis anos,
fez-se leituras, ou seja, lciluras de romances, ao passar casualmente no
quaito dos irrnaos apanhou-se uma conversa entre eles e conhecidos seus.
urna palavra acerca de 0stergacle. Mais tarde, cirandou-sc por ali várias
vezes, para se possfvcl obter informa9ao um pouco mais pormenorizada.
Debalde. No cntanto, como convém a urna rapariga grande e crescida, deve
saber-se alguma coisa do que se passa no mundo. Se conseguisse simplesrnenl.e faz.é-lo sem continuar a sair como criado atrás. Nao, obrigada, o pai
e a mae poriam urna cara de caso, e que razao haveria também de ser adiantada. Quando se vai fazer visitas, nao é a oportunidacle adequada, é um
pouco ceclo,já que ouvi o August dizer nove, dez horas; no regresso a casa,
é demasiado tarde e na m<Üoria das vezes tem de arrastar-se urn cavalheiro
consigo. Na quinta-fcira a noite. quando regressássemos do teatro, seria ao
fim e ao cabo urna excelente 13081 oportunidade, mas entao anda-se sempre
de can-uagem e temos de meter-nos nela com a Senhora Thomsen e com as
suas pre1.áveis primas; se ao menos se viajassc só, podía baixar-se a janela
e olhar um pouco a vol ta. No en tanto, unverhofft kommt oft 17. Disse-me
é
16 Ruado centro de Copenhaga, cujo nomc significa «Ruado Este».
17 Em alemao no original: <<inesperadamente aconlece muitas vi.:1c:w.
hojc a 111ae: «Nao vais seguramente acabar o que estás a costurar para os
anos do teu pui; para que nada te perturbe, podes ir hojea casa da tia Jette
e ficar lá até a hora do chá, e o Jens vai buscar-te.» Nem sequer era propriamente urna noticia muito agradável, porque estar em casa da tia Jeuc é
cxiremamente entcdiante; mas assim eu regrcssaria a casa sozinha as nove
corn o criado. Quando cntáo o Jens chcgar, vai ter de esperar até ser um
quarto para as dez, e depois saímos. Se ao menos eu encontrasse o senhor
111eu irmáo, ou o senhor August - porérn, tal vez isso nao fossc descjável.
cnrño , haveria presumivelmente de ser acompanhada até casa - abrigada,
oxalá fiqucrnos livres deles, a libcrdade - mas se eu os avistasse, de modo
a que eles nao me visscm
Ora, rninha menina, o que vedes entño, o
que pcnsais que cu vejo? Em primeiro lugar, a pequcna boina que usáis
fica-vos primorosamente, e está em completa harmonía com toda cssa pressa no vosso porte. Nem é um chapéu, ncm é urna touca, é antes urna espécie
de gorro. Mas é impossível que a tivésscis usado hoje de manhá quando
xaístcs. Haveria de ter sido o criado a trazé-la. ou haverícis de ter sido vós
a pcdi-la emprestada a tia Jcttc? - Estais porvcntura incógnita. - Tarnbérn nño deve deixar-se cair o véu completamente, quando se vai proceder
a obscrvacóes. Ou talvcz ncm scja um véu, mas simplcsmcnte urna blondo
larga? Na cscuridáo, é impossível decidir. Seja o que for, oculta a parte
superior do rosto. O queixo bastante bonito, um rudo-nada puntiagudo; a
boca, pequena, está aberra; de a carninhada ser exccssivamcnte vigorosa.
Os dentes - brancos como a neve. É assim que eleve ser. Os dentes sao da
mais extrema importancia, sao um corpo de guarda que se esconde atrás da
scdurora macieza dos lábios. As faces coradas brilham de saúdc. - Se a
cabeca se inclinasse um pouco para o lado, seria decerto possívcl penetrar
por baixo desse véu, ou dessa renda. Tende cuidado, um olhar viudo assirn
de baixo é mais perigoso do que um gerade aus18. É como na esgrima; e que
arma porérn, tao afiada, tao penetrante, tao cintilante no seu movimento
e. dcssa rnaneira, tao ilusoria quanto os olhos? Finta-se ~1 quarta alta, como
diz o esgrimista, e ataca-se em segunda; quanto rnais veloz foro ataque a
seguir a finta tanto melhor. O momento da finta um instante indescritível.
O opositor como que scnte o golpe, é tocado, sim, verdadc, mas num lugar completamente diferente do que ele pensara
Infatigável, 13091
prossegue sern medo e sem mancha. Tcnde porém cuidado; anda por aí alguém. puxai o véu para baixo, nao deixeis que csse olhar profano vos
conspurque. nao tendes ideia scquer de como vos será porveníura irnpossfvcl esquecer a abominável angústia com que vos tocou - Vós nao repara is,
mas. ao invés, reparo eu como ele visionou a situacáo. O criado escolhido
como alvo mais próximo. - Sim, ora vede o resultado de caminhar sozinha
é
é
é ,
é
é
é
18 Em ;ilc1111ío no original: «a di1cilo».
354
Ou
com o criado. O criado caiu. Ao fim e ao cabo.
ridículo. mas que havcis
vos agora de fazer. Voltar para tras e auxiliá-lo a erguer-se nas pernas uño
é exequível , caminhar com um criado enlameado
dcsagradável , andar
sozinha preocupante. lende cuidado, o monstro aproxima-se . .. .. . ño
me deis resposta, olhai simplesmcnte para mim, deixai que o mcu exterior
vos cause algum temor. Nao vos causo qualqucr imprcssáo, tenho ar de
homern bcm-intencionado, de urn mundo completamente diferente. Nada
há no meu discurso que vos perturbe, nada que vo lcmbre a situacño, nenhurn rnovimento há que nem remotamente se aproxime demasiado de vós.
Estais ainda um pouco angustiada. nao havcis ainda esquecido a corrida
dcssa unhelmliche'" figura contra vós. Usáis de urna cerra bondade cornigo,
o mcu embarace impcde-rne de olhar para vos e concede-vos a supremacía,
o que vos alegra e vos dcixa segura, quase poderíeis ficar tentada a fazer
pouco de mim. Aposto que nestc instante tcrfcis coragem para dar-me o
braco, se fósscis vós a pensar nisso
Ora entño vi veis cm Storrngadcn20. Fazcis-rnc urna rápida vénia seca. Merecí eu isto, cu que vos ajudci
a sair de todo este incómodo? Ficais arrepcndida, voltais atrás, agradecéis
a minha galantería, cstcndeis-rnc a rnáo - porque cmpalideccis? Nao está
a minha voz modificada, nao é o rncu porte o mesmo, níio cstño os mcus
olho · igualmente calmos e tranquilos'! Este apeno de rnño? Poderá, entño,
urn aporto de míio significar algo? Sim, muito, mesmo muito. minha menina, dentro de quinze días explicur-vos-ci tudo , até lá ficai corn a contradi<;ao: sou alguém bem-intcncionado , qual cavalciro vindo cm auxfl io de urna
jovem, e sou capaz ao mesmo tempo de vos apertar a mño de urna mancira
menos do que bern-intcncionada.
é
é
é
13101
7 de Abril
«Entáo, fica para scgunda-feira, a urna. na exposicáo.» Muito bcrn, terci
a honra de lá estar
urna menos um quarto. Um pequeno encontro a dois.
No sábado passado, dispus-rne finalmente a resolver o assunto, e decidí
fazer urna visita ao mcu muito viajado amigo Adolph Bruun. Nesse intuito.
por voila das scte da tarde, fiz-rnc ao caminho pela Vestcrgade21, onde me
disseram que ele havia de morar. Nao foi entretanto possívcl cncontrá-lo,
nem mesmo no terceiro andar, onde cu chegara completamente sem fólego.
Ao seguir escada abaixo , o meu ouvido emocionou-se com urna melódica
voz fcrninina que dizia a mcia-voz: «Entáo, fica para segunda-feira
urna,
a
a
19 Em alcrnño no original: «inquietante».
20 Rua de Copcnhaga cujo nomc significa «Ruada Tormenta», ou «Run d:1 lnvasño».
21 Rua de Copenhaga cuja dt:-;ignar;ao vignifica «Ruado Oeste».
011
Um
h.1p1111•11111
355
de Vida
1111 c>.po~i<;ño. a csva hora os outros cstáo fora, 1_nas sabes que nunca me atrcu ver-te cm casa,» O convite nao era para rrum, mas para um h.omem que,
1111111 ápice, saiu tao depressa porta fora que nem o mcu olhar, e amela men~s
minhas pernas, conseguiram alcancá-lo. Mas po.rque nao poe~ luz a gas
11s
cxcadas, talvcz cu tivesse chcgado a ver se vaha a pena ser
pontual,
11;1,
luv sc houvcssc Ju1. a gás, talvcz cu nao tivcssc chcgado a ou:1r.nada. O
.,ubsi-;tente22
rodavia o racional. sou e continuo a ser um opurmsta. O~a
qucrn será ele? A exposi<;ao fervilha de raparigas, para. usar ~ma exprcssao
de l)onna Anna23. É um quarto para a urna ern ponto. M111ha linda dcsconhcl Ida! Oxalá
0 teu futuro seja em todos os sentidos tao pontual quanto.eu sou,
uu inlvc/ dcsejeis antes que ele nunca chegue um quarto de hor~ .~1ai~ cedo,
l' como quiscrdcs, cstou ao dispor cm todos os sentidos ... «.t"c1t1cc1ra dos
l'ncaiHo~. fada ou bruxa, faz desaparecer a rua névoa», man1fes~a-te, é de
que já cstcja~ aqui, ape~ar de invisívcl para mim, au:ai<;oa .~ tu~
1uc,11mir
pic:-cn<;a. pois que, ~e resto, nen~ scqucr.ouso cspc1.'a~_u~a ;11~'~'.f~~ta~~~; ~
~e porvcntura houvcr aqui cm cima vánas com m1ssao 1denl1C.:<l
<lela. É
hcm possível. Quem conheccrá os caminhos do homem, nté m~sn~o quando
l'ic vai a exposic;:ao. _ - - Eis que chega urna .JAov~m ti pnme1ra s~la, ~
l'OJ rer a inda mais depres~a do que a má consciencia atrás do pecc1dm.
hqucc.:e-se de entregar o bilhctc. o cmprcgado de vermclho fá-la parar. Que
l)cus nos guarde! Mas que grande prcssa cla tem! Tcm de ser ~la. Mas ~1ue
tao intempestiva, a inda nem é uma hora, ~embnu-vos. ~orcm,
11npetuosidndc
de que idcs encontrar o amado; será que numa opo11t1111dade ~estas.~ co~ph:tamentc i nclifercnte o modo como nos npresentamos. ou ent.10. ~e• ,1 que é
:uites no sentido cm que costuma dizcr-sc que dcvc mostrar-~~ que se tem
boas pernas? Quando um sangue a~sim jovcm e i1~o~cnte ~e d1ngc a ~m ennmtro, larn.;a-sc ao assunto como i,c c tivcs::.e cm f una. fata toda alvo1 ac;:a~a.
11111 Eu. ao invés, cstou aquí muito confortavclmcnte scntado.numa ca~c1ra
a contemplar 0 lindo prospecto de uma paisagem rural ... P1lha do diab~.
ci la que invade todas as salas. Ten<lc~ d~ esc~nder um pouco ~ v~ssa lasc1:
via, lembrai-vos do que se di1, da memna L1~bcth: «Será. proprio <le uma
jovcm estar as'iim tao ávida de encontrar par?»-4 Ora é óbv10 que o encontro
'º
ta?
é
a
i2 Aqui, «del Beswmule», correi;ponc.Jenle ao alemao «das B~stehem!.e»:. vd. Hegel:
.. l\{Js 1·erniinfll!/ is1. das ist 11•irklich; 1111d ll'~S 11'.ir/../ich ~si, dns 1s1 ~1er~lll'!~1f!.» <.<'º,~u~
·
1 ,
1
11ue e~ rº'll e' racional»)· in (,n111d/1111e11 der P/11/osopl11e de.~ Rt< l11s
l' rnc1ona e rt:a • o .,
""
'
·
. ..
1
¡hindamc11tos da Filosofía do DircitoJ. in Werke. vol. Vlll. p.
~uhil~ums. vol. ',_11,
17:
p. B: e s11hrkwnp. vol. VU. p. 2~. Vd.ª. t~adu9:10 de Orlando V1tonno, 111 Hegel. 1'1111·
npio.1 da foilosojia do ()ireito, Lisboa: Gu1111an1cs í:.<l1torcs, 1990. p. 13.
Na ver~aü de Kruse. Acto l. cena 16. p. 52.
1 Replica da pcr~onagcm da pc<;a de 1 udvig 1 lolbcrg. F.rns11111s Monf(mus, Acto 1,
1
• .• 'i e Acw v ccmi 'i 1 di<;an c1111'uliada peto autor: Den Va11.1ke SJ..11e-Pla~I~ [O
H I1 "
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'
. d'
- d
ág 1 a
lbtlro dinarnaiqul'~I. vols 1 VII. e op•·nha~•a. 17~X: vol V. ~cm 111 1cac;ao e P• 11. ·
i'
356
deles é um encontro
(Ju
dos inocentes.
-
-
-
Em gcral, urn encontró a dois
é visto pelos amantes como sendo o instante mais belo. Eu mesmo ainda
recordo, com tanta nitidez como se ontern fosse, a prirneira vez. cm que
corri para o local combinado, como coracáo tao repleto quanto dcsconhecedor da alegria que me esperava, a primeira vez ern que bau tres vezes
coma máo, a primeira vez em que se me abriu urna jancla, a primeira vez
cm que a máo invisível de urna rapariga desccrrou urna portinhola,
cscondendo-se atrás dela enquanto a abría, a primcira vez em que escondi
uma rapariga debaixo da minha capa numa clara noitc de Veráo. E cornudo,
irniscui-se nestc juízo mu ita ilusáo. O tranquilo tcrceiro horncm nern scmpre achaque os amantes sao mais belos ncstc momento. Fui tcstcmunha de
enconrros, nos quais. apesar de a rapariga ser grácil25 e o horncrn bolo. a
imprcssáo total era quasc repugnante, e o encontro cstava longe de ser belo,
se bcm que para os amantes tcnha parecido que assim era. Quando se adquirc rnais experiencia, fica-sc de cerra rnaneira a ganhar, pois se bem que
se perca a doce inquictudc do impaciente anscio, ganha-se todavia atitudc
para tornar o instante realmente belo. Sou capaz de irritar-me quando vejo
um hornem ficar tao confundido diantc de urna oportunidade destas que, só
de amor, entra cm delirium tremens. E que sabcrn todavía os camponcscs
acerca de salada de pepino26! Ern vez de ter a sensatez suficiente para gozar
o desassossego dela. para deixar que este inflame a sua beleza, tornando-a
incandescente, produz apenas urna confusáo nada bonita e, contudo, regressa a casa contente, imaginando para si que se tratara de algo magníñco
- - - - Mas onde diabo está o homem. já sao quasc duas horas. Mas
de que raca de gente sao estes namorados? Um miserávcl destes a deixar
que urna jovcm rapariga fique a espera dele. Nao, comigo é diferente. eu
sou um hornem de confianca absoluta! É melhor dirigir-lhe a palavra, agora que passa por mirn pela quinta vez. «Perdoai o mcu atrevimento, bela
menina, procurais dcccrto a vossa família aquí cm cima. haveis varias ve25 Ao longo dcstc capítulo, «grácil» e «graciosidade» remetern corn maior ou menor
incidencia para o uso dos mesmos tennos no ensaio de Fricdrich Schiller Über Anmut
und Wiirde [Sobre a Graciosidade e Dignidadc] de 1793; a graciosidadc denota um estado de harmonia entre a razño e a sensibilidade que propicia a realizacño do dever por
inclinacáo natural, dando lugar a que na condura moral se possa revelar o estético; vd.
«Übcr Anmut und Würde». in Fricdrich Schiller, Philosophische Sctiriften [Escritos
Filosóficos], Schillers Nationaluusgahe [cdicíio nacional ele Schiller], vol. XX, cdicño
de Julius Petersen, Lieselortc Blumcnthal, e Benno von Wicsc, Weimar: Bohlaus Nachfolger, 2000. pp. 25 l-308; doravante mencionado como Anmut und Würde.
26 Dito da pcrsonagem 'Irop no vaudeville de J. L. Heiberg Recensenten og Dyret [O
Recenseador e a Bosta], Acto l. cena 3. Edicfio consultada pelo autor: J. L. Heibergs
Samlede Skrifter. Skuespil [Escritos Reunidos de J. L. 1-1 .. Teatro), vols. I-VII; vol. LIL
p. 204. Doravarue qualqucr vaudeville de Heibcrg é mencionado apenas pelo título em
dinamarqués, seguido de Skuespil para esta cdicño consultada.
011.
LJ111
1'111 1111•1110
dl Vidu
passado aprcssadarncntc por mirn e, cnquanto vos seguia com o olhar,
rcparci que scmprc havcis parado na sala contígua, cstais porventura no
/l:~
dcsconhecimento de que ainda há urna sala a seguir, 13121 é possívcl que
encontreis aí quem procurais,» Fez-me urna vénia; fica-lhe muito bcm. A
nportunidadc é propicia. fico contente por ele nao ter aparecido. pesca-se
xcmprc melhor em águas turvas; se urna rapariga tem agitacáo mental,
pode arriscar-se multo com succsso , o que, de outro modo, resultaría mal.
l ncl inci-me <liante dela com tanta cortesia e distancia quanto possível, vollo a sentar-me na minha cadcira. olho a minha paisagcm e conservo-a <lchaixo de olho. Seria arriscado segui-la prontamente, poderia parecer. inoponuno da minha parte, e assim ela poe-se logo na sua posi':(ao. Ora ela
cstú inclinada a pensar que lhc dirigi a palavra por deferencia, e estou bem
rccomcnda<lo - Sci bern que nao há vivalma na sala lá do fundo. A solidiío
vai procluzir um efcito fovonívcl sobre ela; enquanto vir rnuita g~nte a s.ua
volta, rica inquieta, quando estiver só, fica certamente tranquila. Mu1to
bem, continua lá dentro. Daqui a pouco, vou até lá en passant; tenho a inda
dircito a urna réplica, eleve-me quanto mais nao seja um cumprimenlo.
Scnt.ou-se. Coitada da rapariga, parece tao nostálgica: csteve a chorar, crcio
cu, ou pelo menos tevc lágrimas nos olhos. É rcvoltantc levar urna jovern
t"omo esta as lágrimas. Mas fica tranquila, vais ser vingada, hci-dc vingartc, ele vai saber aquilo que o espera. - Como é bela, agora que a borrasca amainou e rcpousa numa úni<.:a disposi':(ao. O seu seré nostalgia e harrnonia na clor. É realmente encantadora. Está ali sentada em traje de
viagcm, no entanto, nem scquer era ela quem esta va para auscn~ar-se,
vcstiu-o para ir em busca da alegria, agora é urna marca da sua dor, Já q~e
da é como aquele de qucm a alegria se ausenta. Tcm ar de estar a despedtrsc para sempre do seu amado. Ele que parta! - A sitU<t':(ffO é favorável, o
instante acena. Ora importa que eu me exprima de modo a parecer que
cstou inclinado a pensar que ela procura va a farnília ou companhia aqui cm
cima e, contudo, ele urna maneira tao c<tlorosa que cada palavra clenotasse
os. seus scntimentos, e entao arranjo oportuniclade para insinuar-me nos
l\CllS pensamentos - - - - Diabos levem o miserável' nao é que vern
um homem a subir, é ele, sem dúvida. Oh, nao, olhem-me só aquele lorpa,
agora mesmo que eu tinha arranjado a situa':(UO tal como eu a dcsejava.
Sim, sim, é certo que vai tirar-se daqui algum proveito. Tenho de tocar de
raspao no scu relacionamento, fazer com que eu seja parte da situa<;ao.
Quando ela me avistar, acabará involuntariamente por se sorrir a minha
custa, eu, que pensava que ela procura va a família aqui em cim~, ao _passo
que ela procurava algo de completamente diferente. Este sornso faz ele
mim 13131 seu confidente; sempre é alguma coisa. - Muitíssimo obrigaclo,
minha filha, essc sorriso tem para mirn muito mais valor do que tu pens.as,
é 0 comec;;o, e o come<;,:o é scrnpre o mais difícil. Somos agora conhccidos,
358
o nosso ~onh~cimento tem por base urna situacáo rnaliciosa-",
para rnirn
chega, ate rnars ver. Deceno que nao ficareis aqui ern cima mais ele urna
hora.~ sa~erei quem sois dentro de duas horas, ou por que outro motivo
pensars, alias, que a polícia elabora listas de recenseamento.
F
359
Sorcn Kicrkcguard
·
Día 9
. rquei .cego? ~ olho interior da alma pcrdeu a sua forca? Vi-a, mas é
como ~e nvesse visto urna manifcstacño celeste, de tao completamente ter
a sua imagem novarnentc desaparecido diantc de mim. Ern vso reúno
tc~da a fo;·\:a da minha alma para conjurar cssa irnagcm. Se algurna vez eu
vicr a ve-la de novo. iria ser capaz de a rcconhcccr instanraneamente
estivessc eta entre centenas. Agora Iugiu daqui, e o olho da minha alma
procura baldadamcnre alcancá-la como anscio por cla. _ Caminhava eu
na tange Linie28, aparentando alguma negligencia
e sern prestar arencáo
ao ~uc me rodcava. crnbora nada dcixassc por observar com um olhar
cspiador, quando os meus olhos cafrarn sobre cta. Ficaram neta inabala~elmente cravados, nao mais obedccerarn
vontadc do dono; foi-rne
1mp~ssfvel usá-los para encetar qualquer movimento e observar com eles
o Objecto que eu quería ver, que cu nao vía. que eu fitava fixamcnre. Tal
como um esgrimista se imobiliza no assalto, assirn se mantivcram os
'.11eus º!hos in~lterávcis.
petrificados na direccáo entño tornada. Poi-me
unpossrvcl baixar os olhos, foi-me impossívcl virá-Ios para dentro de
mim mesmo, Ioi-rnc impossíve] ver, porque via demasiado. A única coisa
que conseguí rcter toi a capa verde que cla tinha vestido: nisto está 0 tudo; é o que pode chamar-se ter agarrado a nuvern por Juno; tinha-me escapado, t11J como José escapara a esposa do Potifar. largando sirnplcsmen.
te a c~pa para_trás29. Seguía na companhia de urna senhora de idade que
par~c'.ª ser m:e dela. Sou .capaz de dcscrevé-la de alto a baixo e. isio ,
apesa¡ de eu n~o a ter propnamente olhado, antes a captei, no máximo, en
pas.l't~nt. É a~<;JTn que as ~oisas acontecern. A rapariga provocou em mim
um~ 1mpre~sao, e es4~ec1a-a, a outra nao me provocou irnpressño alguma,
e nao consigo csquecé-la.
a
11141
Dia 11
A rninha alma conserva-se ainda continuamente presa na mesma contradiiriio. Sei que a vi, mas tarnbérn sei que a esqueci outra vez e, contudo, de
tnl forma que o resto da recordacáo que ficou para trás nao reconforta. Com
uma inquietude e uma vecméncia como se cstivessc cm jogo o mcu bemestar, a minha alma exige cssa imagem e, cornudo, ela nao se mostra, era
capaz de arrancar os olhos cm castigo pelo esquccimento dela. Quando me
cnfurcccssc, cntño, corn a impaciencia, quando a tranquilidade em mim se
mstalassc, entáo, seria como se o pressentimento e a recordacáo tecesscm
urna irnagem que nao consegue configurar-se para mirn, porque eu nao sou
capaz de fazer com que permanecam fixos num encadeamcnto, é como um
padrño nurn tecido fino, o padráo é mais claro do que o fundo, isotado, nao
conscgue ser visto, é demasiado claro para o cfeito. - É urn estado curioso para nelc cair e, contudo, comport:a o seu agrado, tanto cm si como
lambém pelo facto de me asscgurar que ainda sou jovem. Pode também
c11sinar-rne urna oul.ra observa9ao, dcsignadamcnte, o eu procurar sempre
a rninha presa entre jovens raparigas e nao enlre nwlheres jovens. Urna
n111lher é menos natural, é mais namoradeira. a relac;ao com ela nao é bo11i1a. 11cm inlercssanlc, é maliciosa, e o malicioso fica sempre em último.
Niío cstava
espera de ha ver de vira ser capa¿ de saborear outrn ve1, os
primores do enamoramento. Deixei-me imergir no enamornmento, dcrnrn111c um mergulho, como c.lilem os nadadores, nao admira que esteja um
pow;o revolteado. Tanto melhor, tanto mais promete esta rela9ao.
a
Dia 14
Mal me rcconhc90. A mio ha mente ruge como o mar agitado nas tormentas da paixao. Se alguém pudesse ver a minha alma neste estado, iria
parccer-lhe que era como um barco que se afonda coma proa mar adentro,
1:01110 se no seu pavoroso curso tivesse de descerrumo
as profundezas do
nbismo. Ela nao ve que no mastro vai um marinheiro na vigia. Eriirai-vos,
lon;:as bravias, agitai os vossos poderes da paixao, nem que o rehcntar das
vossas ondas lance espuma contra as nuvens conseguireis entretanto
L'rgucr-vos sohre a minha cabe9a; estou tranquilamente sentado como o rei
das íalésias3
13151 Quase nao tenho pé, tal como urna ave aguática procuro em vao
poisar no mar agitado da minha mente. E contudo, semelhante agita9ao é o
º.
27 Para .lohann.cs, o jogo entre o inocente e o malicioso (no original. «pikant»¡ dctermina o JOgo_ erótico. e sao frequentes as situas;é5es cm que comenta essa relacáo como
factor do mcremcnro do interesse estético da scdu9ao.
2~ Passeio público que contorna a zona de fortificacóes ao longo da costa oeste de
Copcnhaga.
29 L!vro do.Génesis, 39: 12: «E ela lhe pcgou pelo scu vestido, dizendo: lJeita-tc cornigo. E ele deixou o seu vestido na rniío dela, e fugiu. e saiu para fora.»
~O No original «Kli11teko11~em>, figura mític.i que vive e reina sobre as dunas. Vd. Hciv, r;h1erli~i (O Monte do~ 1~1101> 1. Acto l. cena 5, Skuel'pil, vol. 11 l. p. 313.
1)~·1
360
361
S~licn Klcrkcgaa1d
meu elemento, construo sobre cla, tal como o
ninho no mar.
Al<'erlo ispida?
1 const rói o
Os pcrus ericam-se quando véern o vermelho, acontece o mesmo contigo
quando vejo o verde, de cada vez que vejo urna capa verde; e como os meus
olhos muirás vczes me enganam, as minhas expectativas cncalham por
vezcs num maquciro do hospital Fredrik32.
clc..,l i utar. Procuro a prn todo
0 lado. o que me torna arniúdc ~ouco equitadebilita o meu desfrute. Ora chegar~ ~m. breve o
hclo tempo cm que na vida pública se arremata pequenas ex1genc1as ycJas
111a~ e vicias, as quais se Iazcm pagar bastante caro durante a esracao
luvcrno, na vida social, visto que urna jovem rapariga pode esquecer muita
l uisa. mas nao urna situac,:ao. A vida em sociedadc poe-nos ern c~ntac_to
c om bclo sexo. mas nao dcssa mancira que deve cornccar-se a nísróría.
0
a vida em soeiedadc qualquer rapariga está armada, a si1ua9iio é pobre e
ocorre vetes scm conta, e ela nao recebe qualquer abalo volup~u~~o. N_a
i ua , a jovem está cm mar aberto e, por lsso, tudo prod~1i um efcito mars
torre. tal como tudo igualmente rnais enigmático. Daría ce1~ tálcr~s por
1.,orriso de urna jovem rapariga nurna situacáo de rua , e nao d~na dcz
11111
i.ílcrcs por um aperto de máo cm socicdade, sao mocdas de e pécie co~pktamentc diferente. Quando a história já está em curso, proc~ra-:e ~nta?
visada no convfvio social. Estabclccc-sc com ela uma coi:nun1ca9ao 1nte111
111111entc secreta, a qual é tentadora. é o incitamento m~us eficaz que :u
umhc<_:o. Ela nao se atreve a falar di!.SO e, contudo, pensa no assunto: nao
.,,,he .,e foi esquccido ou nao; urnas vczcs, lcvamo-la ao cngano de u~11a
"""'cira e. outras vci.es, de outra. Este ano nao vou ter grande colhe1ta,
L'~ta rapariga traz-me demasiado ocupado. Em c~rto sentido, os 1~e~s rcndimentos ficam pobres, porém, tcnho a pcr. pcc11va do grande premio.
l i vo. iurva-me 0 olhar,
?º
é
Oía 20
Um indivíduo tcm de delimitar-se, é urna condicño capital para todo o
desfrute. Nao me parece que venha em breve a obtcr alguma informacño
sobre a rapariga que preeuchc a minha alma e o mcu pcn amento a ponlo de
alimentar a sua falta. Qucro agora conduzir-me de urna mancira perfeitamente tranquila, visto que tarnbém este estado, a crnocáo obscura e indefinida. porém, igualmente forte, tcm a sua docura. Em noites ele lua cheia,
sernpre aprcciei ficar dcitado nurn barco. num qualqucr dos nossos lindos
lagos. Arreio as velas. rccolho os remos, sollo o leme. cstcndo-rnc ao comprido, e olho acirna a abobada celeste. Quando as ondas balancam o barco
no seu scio, quando as nuvcns sao fortemente arrestadas pelo vento, desaparccendo assim a Lua por um instante para voltar a aparecer, cntáo, encentro
sosscgo ncsse desassossego; os movimcntos das ondas sossegam-me , o ba-
~l~o delas contra o barco urna monótona c1111<;ao de embalar. a fuga precipitada das nuven;c;• a mudanca de luz e <le sombra incbriam-rne a ponto de
sonhar acordado. E assim que fico agora estirado, as velas arreadas, o leme
solio: anseio e impaciente expectativa Iazcm-me girar nos scus bracos, anseio e expectativa que se rornam cada ve/. rnais tranquilos. cada vez mais
bern-avcmurados, mimando-me corno a urna enanca: erguc-sc sobre mirn
cm abobada o céu da cspcranca, a imagem dela paira e passa por rnim como
a da Lua, indeterminada. cegando-me urnas vezcs com a sua luz, outras
vezes corn a sua sombra. Quanto desfrute há ern deixar-sc assim batcr por
águas agitadas - quanto desfrute há cm ser-se agitado dentro de si próprio.
é
é
13161
Dia 21
Os días passarn, ainda cstou no mesmo sítio. As jovens raparigas trazem-me mais contentamcnto do que nunca e, conrudo, nao tenho apetites de
31 ~esigna9lio cie.ntífica da ave conhecida pelos nomes de guarda-ríos. pica-pcixe ou
martim-pcscador; julgava-se na época que nidificava sobre a água.
32 Os enfermeiros dcste hospital. o primciro a ser fundado em Copcnhaga. usavarn urna
capa verde.
Oia 5
Maldito acaso! Nunca te amaldi9oei porque te mostraste, amaldiyoo-tc
porque ncm sequer te mostras. Ou há-de !.er isto 1_alvez uma nov.a descobcrt~
tua. inconcebfvel ser. estéril 111ac de tudo, o ú111co resto que ~obrou desse
tl·mpo ern que a neccssidade dava a luz a libcrdade. cm que a 1_1berdade; por
,cu turno. se deixava enganar dentro do ventre materno? Maldito acas?. Tu,
mcu único confidente, o único ser que eu estimo digno de ser m~u altado;
nicu inimigo. semprc igual a ti mesmo na di!.semclham;a, scmpr~ 111conc_eb1vd. i.,cmpre um enigma! Tu. a quem eu amo com toda H simpaua d~ 1111nha
.ilma, criando-me eu a tua imagem, 13171 porque nao te mostras? Nao CSlOll
,1 mendigar-te, a implorar-te humi~dcmente q~e te m_ostre~ desta ~~ -~aqucla
inancira. urna tal venera~ao sena mesmo 1dolatna. nao te cama bcm.
1 )(;-,afio-te para 0 combate. porque nao te mostras? Ou será qu~ estanco~ o
dc~a~sossego na constru9ao do mundo, ~esol~eu-se. o teu enigma, e~tao~
tamhém tu te precipitaste no mar da etern1~ade? Pensamcr~to pavoroso. e~1
tao 0 mundo está parado pelo tédio! Maldito acaso. estou a tua espera. Nao
lludro vencer-te através de princípios, ou ~r via daquil~ a que a .g~ntc tola
chatna cankter. nao, quero inventar-te poeucamcntc! Nao quero S~I ~11n po1.:tn para outros. rnos1ra-1e. e ponho-te em poema. devoro o meu propno poe-
362
Ou
ele o meu alimento. Ou nao me achas digno? Tal como urna bailadcira do templo danca em honra do deus, assim eu me consagre: ao ten scrvico;
leve~ parcamente vestido, ligeiro, desarmado, a rudo renuncio: nada poss~io'.
?xala na~a ~ossua, n~da amo, nada tenho a perder. mas riño me tornei, por
rsso, mais cl~gno de u, tu que certamente há multo estás fano de retirar aos
homens aquilo que arnam, farto dos seus suspiros cobardes e das suas preces
cobardes. Surprecnde-mc, estou pronto, nada de apostas, lutemos pela honra.
Mostra-rna, mostra-mc urna possibilidade que pareca ser urna imposslbllidade, _rnostra-ma nas sombras do alérn. vou lá busca-Ia'", deixa que ela me
ocl~1e, m~ despreze, scja indiferen_re para comigo, ame curro, nao terno; mas
~g~ta as aguas, rompe o silencio. E miserávcl da tua parte deixares-me assim
a forne, tu, que todavía imaginas que és mais forre do que eu.
ma, e
é
.
6 de Maio
_A Primavera está a porta; tudo rebcnta, e também as jovcns raparigas.
Poe'.n-se ele lado as capas, é de presumir que a minha capa verde tarnbérn
e~t~J~~ pen~lurada." É_ o resultado de t~·avar conhecimento com urna rapariga
na 1 ~~·e nuo em soc1?dacle, onde se fica logo a saber como se chama, de que
fat~1~1a_ve1~, onde vive, se está noiva, Este último facto urna informecño
'.nu1t1ss1mo importante pa~a tocios os prcrendcnres prudentes e perseverantes,
"qu~m nunca ocorre aparxonarcm-se por urna rapariga que está noiva. Um
palafrém destes ficaria em maus lencois, se cstivcsse no meu lugar; acabaría
completamente arra.sacio se as suas diligencias para obter informacñes losscm corcadas pela fortuna e pelo bónus de ela estar noiva. Nao é coisa que
1318~ me preocupe grandemente. Um noivado
apenas urna dificuldade
:Ó'.11Jca. Nem r~ce~o dificuldades cómicas, ncm dificuldades trágicas: as
~n~cas_ que rece~o sa_o as langweilige34. Até agora nao consegui col her urna
t~111c~ mfonna9ao_ e rsto ~pesar ele nada ter seguramente deixado por escruunat e de t~r sentido murtas vezcs a vcrdadc nas palavras do poeta:
nox et hiems longceque vice, stevique dolores
mollibus his castris, el labor omnis inesl.'.\5
é
é
a
33 Alusño <to episodio de Orleu e de Eurídice. dcsignadamenLc,
descida de Orfcu ao
mundo dos morros para ir buscar Eurídice.
34 F.m alernño no original: «mucaooras».
35 Em latirn no original; citai;ao retirada de Ovídio, Ars amandi [Arte de amar]. livro
~· ,v~. 23~ e segs._; na tr~du!ªº ele Carlos Ascenso André: «A noitc e 0 lnverno e jornad~s sem f~m e ~01es t~rnve!s .1 e toda a sorte de padecirnentos, eis o que nos espera nos
c.an~~os da do~uta», in 0~1<110, Arle de Amar, traducño, introdu9¡fo e notas de Carlos
Ascenso Andre, Lisboa: Livros Cotovia, 2006, p. 62; esta traducño doravante mcncionada, •como
Arte
de Amar. Edicño
consultada
pelo 'autor:. P.. v ,·.du.. N asom.1·. opera quae
, .
. _
.
:r
•. '
sapersunt, edicño de A. Richtcr, vols, I-Ill, Leipzig, 1828: vol. I. ). 237 d ...
mencionada .
O . E .,
.
.
.
.
. 1
, oravanre
e como pera. snc Downing analisa exausuvamenra a presenca de Ovídio
o..
é
Ou. l 1111 l 111¡•1111
11111111
Vidu
Talvez ne.n scqucr scja dcsta cidade, talvez seja da provincia, talvez,
tal vez, estou capaz de me enfurecer corn todos éstes talvezcs, e quanto mais
furioso eu ficar tanto rnais seráo os talvezes. Tenho sempre dinheiro de lado
de modo a poder partir em viagern. Debalde a procuro no teatro, em concortos. em bailes, em passeios. Em certo sentido. fico contente: em geral,
n5o vale a pena conquistar urna jovern rapariga que tome parte em tais divertimentos; falta-lhe na maioria das vezes a originalidade, que para mimé
e continua a ser a conditio sine qua 11on. Nao é assim tao inconcebível encontrar uma Prcciosa36 entre as ciganas, tal como nos bailes de fcira cm que
'>e orcrecem as jovens raparigas - com toda a i noecncia - Ai, Deus nus
guarde de quem disser outra coisa!
Dia 12
Sim, minha filha, porque nao vos havcis dcixaclo ficar sosscgadajunto a
porta? üo é de t.odo moLivo para rccrimina9oes abrigar-se urna rapariga do
tempo chuvoso numa c11trada. Fu~o o mesmo quando nao tenho guardachuva, por vezes até quando tcnho urn, como agora, por excmplo. Aliás.
poderia nornear até várias respeitáveis senhorns que nao hesitaram cm fazclo. l-lá que rroccdcr com toda a calma, virando as costas para a rua, de
111odo u que qucm passa nüo chcguc sequer a saber se se está ali parado, ou
prestes a entrar cm casa. Ao invés, nao é prudente esconder-se atrás de
po1tas quando estüo semiabe11as, designadamente, devi<lo as consequendas, dado que guanto mais escondido se está tanto mais desagradável é
ser-se surpreendido. Se entretanto nos tivermos escondido, entao. pennanci;:a-se completamente imóvel, recomendando-se ao seu bom génio e i1
guarda de todos os anjos; em especial, evite-se espreitar para fora para ver
se a ch uva já passou. Se clcsignadamente se qu iscr ter disso a certeza, dá-se
u111 passo firme cm frente e olha-se 13.191 com seriedade para o céu. Ao inv\Ss, quando se eslica a cabc9a com alguma curiosidade, cmbaras:o, anglistia 17, incerteza, recolhendo-a apressa<lamente - qualquer criao9a entende
l'lll
«Diário do Sedutor» cm «Ovicl's Danish Disciple:
Kicrkegaarcl as Reader of lhe
"Ar~ Alllaloria''», l'acijic Coa.vi Pllilology, Vol. 23. Números l/2, Novembro 1988,
pp. 22-29; e Artificial J'.1·: The Se/fas Ar/lVork i11 Ovid, Kierkegaard, 011(/ Thomas Mann.
l'übingen: Niemeyer. 1993. pp. 75-127.
~(¡ Norne ill1 personagem principal do popular drama lírico homónimo ele 1821 (mais de
~l.'tcnta represe11ta96es enlre 1822 e 1843 no Teatro Real de Copenhaga) de Pius /\lcxandcr Wol ff ( 1782-1828), com música de Carl Maria von Weber ( 1786-1828); lraduzido
1n1ra dinamarqucs por Casp;u- Johan Boye (1791-1853), Copenhag;i, 1822.
l7 /\ associai,:fio da angúst.ia no jogo erótico l.ambém é mencionada como característica
do Don .luan nao-reflexivo no capítulo do «OS Estádios Eróticos !mediatos ou O Er61icoMu~ical». As paix0es de Marie Beau111archais e de Donna Elvira. no capítulo «Silhue-
364
este movimento, chama-se brincar as escondidas. E cu, que cxrou sernprc
pronto para brincar, haveria eu de conter-mc, nao haveria cu de responder
quando me fosse pcrguntado .... Nao fiqucis ern crer que eu alimento qualquer pensamento mais injurioso a vosso respeito, nao haveis tido a rnais
remota intencáo ao esticar a cabeca, foi a coisa mais inocente do mundo.
Ern troca, tereis de nao me injuriar no vosso pensarnento , nao o toleram o
rncu bom nome e a minha reputacáo. Além disso, fostes vós quem comecou. Aconsclho-vos a nunca falar desre acontccimento soja a quern for; a
razáo nao está do vosso lado. Que outra coisa me proponho eu fazcr que
qualquer cavalheiro nño Iizesse - oferecer-vos o meu guarda-chuva. - - Onde se meteu cla? Excelente, escondcu-se em baixo, na porta do porteiro. É a rapariguinha mais querida ele tocias, jovial, satisfeit~. - «Tal vez
possais dar-me algurna informacáo sobre urna jovcm senhora que ncstc
sagrado instante csticou a cabcca para rora desta porta. na manifcsta neccssidade de um guarda-chuva. Procuramo-la, eu e o mcu guarda-chuva» Vós rides - «Talvez consintais que cu mande o meu criado vir amanhíí
buscá-lo, ou pretendcis que eu chame um carro?» - «Nao há nada para
agradecer,
tao-somentc a cortesía que vos dcvida» - É urna das rapariguinhas mais alegres que tenho visto há já multo tempo, o seu olhar é tao
infantil e ao mesmo tempo tao atrevido, o scu ser tao grácil, tao casio. e é
todavía tao curiosa. - Vai crn pal.38, rninha filha, se nao existissc urna capa
verde, cntño, dccerro que cu podcria ter desojado encetar urn conhccimenro
mais próximo - Ela desee a storc Kjebmagcrgade ". Como estava livre de
culpa e cheia de confianca, sern vestigios de afectacáo. Vede como ela vai
ligeira, a vivacidadc com que sacode a nuca - A capa verde exige autoncga9ao.
é
é
Dia 15
Obrigado, bum acaso, aceita o meu obrigaclo! Era aprurnada e orgulhosa,
misteriosa e cheia ele ideias, era como um abeto, un1 rebento, um pensamento que irrompe das profundezas do interior da terra contra o céu, inexplicado, ern si mesmo inexplicável, um todo que náo tem partes. A faia
cornpñc urna copa, as suas folhas contam aquilo que debaixo delas se passou, o abeto nao tem nen huma copa, 13201 nenhuma história, é em si mesmo
tas», sao indissociávcis da angustia. quer no scu início, enguanto se seruem amadas pelo
sedutor, quer após terern sido abandonadas. Nas suas observacóes sobre a angúsi.ia ferninina, Vigilius 1 laufniensis cxpressa-se de modo sernelhantc: vcl. O Conceito de Angustia,
SV 1 , vol. IV, p. 336. SKS, vol. 4, p. 371; na traducáo brasileira: p. 72.
38 Saudacño utilizada por Cristo; vd. Marcos, 5:34 e Lucas, 7:50.
39 Rua de Copenhaga cuja designacño significa «Rua Grande dos Mercaderes».
cuigrnático
US!\1111 c1 a cla. Ela própria esta va escondida dentro de si mesma, saía cla propria de dentro de si mesma, havia nela um orgulho rcpou-
santo corno a audaciosa cvasáo do abeto, apcsar de estar pregaclo a tcrra.
Derrumava-se sobre ela urna nostalgia como o arrulho da pornba da floresta. urn profundo anseio que de nada sentía falta. Ela era um enigma que
possuía enigmáticamente a sua propria solucáo, urn scgredo, e o que sao
lodos os segrcdos dos diplomaras perante este, um enigma, e que coisa mais
bela há no mundo do que a palavra que o soluciona? Como a linguagem
tao denotativa, tao concisa". solucionar, quanta ambiguidade aí nao se
cnccrra, corn que bclcza e forca nao atravcssa todas as cornbinacócs onde
esta palavra se encontra! Tal como a riqueza da alma é um enigma cnquanlo o frcio da língua nao se solla e, dcssa forma, o enigma se soluciona, assim tarnbérn uma jovern rapariga é um enigma. - - - Obrigado, bom
acaso, aceita o meu obrigado! Se cu tivesse chegado a ve-la durante a época ele Inverno, estaría certamentc en vol vicia na capa verde, talvez enrcgelada, e as intcmpéries da natureza tcriam ncla diminuído a sua bcleza natural.
Agora,ªº invés, que lcliciclade! Conseguí ve-la pela primcira VC7. na época
mais bela do ano, no início do Verao. banhada pela luz da tarde. O Inverno
tarnbém temas suas vantagens. Uma sala de baile brilhantemcntc iluminada pode muito bem ser urna ambiencia lisonjcira para uma jovem rapariga
cm traje de baile; mas, em parte, é raro esta mostrar-se tirando disso vantagcm, precisamente porque tudo !he exige que assim proceda, uma exigencia que produz um efcito perturbador qucr a jovem a ela ceda, quer fac¡;a o
aposto; e por outro lado, wdo lembra vaidadc e efemeridade, e fa1. surgir
urna impaciencia que diminui o refrigério do desfrute. Em certas alturas,
nHo quereria eu de todo passar scm um salao de baile, nao quereria passar
sem o seu dispendioso luxo, scm a sua profusa.o incstirnável de juventudc
e beleza, scm o seu múltiplo jogo de forc¡;as; mas nao dcsfmto tanto com
isso como com o saborear avidamentc a possibilidade. Nao é urna beleza
singular o que cativa, mas urna totalidadc; paira sobre um indivícluo uma
im;gem ele ::;onho e nela todos esses seres femininos se configuram entre si,
e todos esses movimt:ntos procuram algo, procurarn sossego muna imagem
4ue nao se ve.
Foi no caminho que fica entre Nyjrreport e 0st.erport41• Eram cerca de
seis e meia da tarde. O Sol perdera o seu poder. só a reeordac;ao se conservava numa luminosidade suave que se espalhava pela p~dsagcm. A natureza.
é
40 No original,
«at fr>se», cognato do alcmao «Wsen».
41 Locai~ onde se situavam, respectivamente. a porta norte e a porta oeste da ciclade de
Copenhaga, os quais clesignam actualmente duas estaiyoes de caminho-de-ferro.
O percurso a seguir mencionado no texto seguia as margens de um dos lagos (Sortedamss¡~e)
que nesse tempo rodea va a cidade de Copenhaga.
366
Sth c11 1 ic1 ~cguanJ
respirava mais livrernente. O lago cstava tranquilo. luzcntc como urn cspclho. 13211 Os acolhcdorcs edifícios de Blegdammcn42 cspclhavarn-sc na
água que ao largo dessa longa faixa era escura como metal. O caminho e os
edifícios do outro lado estavarn iluminados pelos ténucs raios do Sol. O céu
estava límpido e puro, só urna única nuvcm fina deslizava imperceptivelmente ao longo do céu, vendo-se melhor ao fixar os olhos no lago sobre
cuja fronte luzente a nuvem desaparecía. Nem urna folha se agitava. - Era
ela. Os meus olhos nao me cnganaram, se bem que a capa verde o tenha
feíto. Apesar de estar há muito preparado para tal. foi-me todavía impossível dominar agora um ccrto dcsassossego, um crescendo e um descendo
como o da cotovia que no scu canto cresce e desee sobre os campos cm
redor. Eslava so. Esqucci já curra vez como ela eslava vestida, mas tcnho
agora urna imagem dela. Estava sozinha, manifestamcnte ocupada nao
consigo mesma, mas comos seus proprios pensamcntos. Ela nao pensava,
mas o tranquilo labor dos pensamcntos tccia-lhc urna imagcm de anseio
para a alma possuída pelo prcsscntirncnto. incxplicável como os suspiros
ele urna jovem rapariga. Bstava na sua mais bola idade. Urna rapariga jovcm
nao se desenvolve no mesmo sentido de um rapaz, ela nao cresce, nascc.
Um rapaz corncca prontamente a desenvolver-se e precisa de bastante tempo para tal, uma jovcrn rapariga demora a nascer e nasce feíta. Reside aí a
sua infinita riqueza; no instante cm que nasce, já está feíta, mas este instante do nascimento chega tarde. Nascc por isso duas vezes, a segunda vez
quando se casa, ou mclhor, ncsse instante cessa de nascer, só nascc ncssc
momento. Nao apenas Minerva que sai da fronte de Júpiter cornplctarncnte formada, nao apenas Vénus que se ergue das águas na sua plena graciosidadc+', acontece assim com todas as jovens cuja fcminilidade nao ficou pervertida por aquilo a que se chama descnvolvimento. Nao desperta
progressivamente, mas de urna so vez, ern contrapartida, sonha durante
mais tempo, se os outros nao Iorern tao insensatos que a acordem demasiado cedo. Mas este sonhar urna riqueza infinita. - Nao estava ocupada
consigo mesma, mas dentro de si mesma. e essa ocupacáo, ern si mesma,
era urna paz e um repouso infinitos. É assim que urna jovcm rica, e abracar essa riqueza enriquece um inclivícluo. Ela rica. ernbora náo saiba que
possui algurna coisa; ela é rica, ela é um tcsouro. Urna paz tranquila repousava sobre ela, e aJgurna nostalgia. Era leve ao sopesar corn o olhar, leve
é
é
é
é
é
42 Zona habitacional na margern oriental do Sortedamssee.
43 Palas Atcna, a deusa Minerva na mitologia romana, nasceu da cabcca de Zcus, com.plctamente armada, depois de Zeus ter engolido a rnñc, Métis. Afrodite, a Vénus roma11a, filha de Zeus e de Dione. emergiu do sangue derramado por Urano, quando este toi
castrado por Cronos. Ponte provável do autor: Nitsch. vol. U, pp. 251 e 613, respectivamente. Os termos corn que neste passo se descreve Vénus na sua graciosidade sao
idénticos aos de Friedrich Schiller ern Anmut und Wiirde. p. 252.
Ou
Ou. l hu
h.1¡•111111111
dt•
367
V1d11
como Psique'!' transportada para longe pelos genios, ainda m~is lev~,já que
se transportava a si própria. Deixai que os cloutores _<la lgreja se ~1spute~
sobre a ascensño da Virgem4s, o que nao me parece incomprcensível, pors
ela já nao pertcncia mais ao mundo; mas a leveza de urna rapariga incornprcensível e 13221 zomba da lei da gravidade. - Ela nao rc?arava ~m. n:da
e acreditava por esse motivo que nao reparavam nela. Mantive-rne ~ c1_1sta~cia e absorvi a sua imagem. Se guia vagarosa mente. nenhuma precípitacao
pcrturbava a sua paz ou o sossego do ambiente. Junto ao lago ~stava sentado urn rapaz a pescar, ela parou, contemplando o espelho de agua e o p~qucno riacho. Nao viera certamentc a andar dcpressa, procurou todavía
refrescar-se: desapcrtou um pcqueno lenco que cstava atado ao pescoco
dcbaixo do xaile; urna brisa suave soprando do lago rodcou um colo branco
como a neve e todavia cálido e farro. O rapaz parecía nao estar satisfeito
por ter uma tcstemunha da sua pescaría, virou-sc com u1~ olhar. b~stante
neumático, e observou-a . .Estava realmente a fazer urna l1gura nd1cula, e
nfío posso levar-lhe a mal que ela tcnha acabado por se rir dele. E <:_ºm qL.1e
riso jovial cla se riu; se ela tivessc ficado sozinha com o :apaz, nao cre10
que receasse bater-se com ele. Ela tinha olhos grandes e bn~hantcs; quand~
se mcrgulhava nclcs, tinham cntao um brilho escuro que de1xava pressenl!r
uma profundiclade infinita, já que era impossível penetrar ncl~s; puros .e
inocentes, doces e tranquilos, cheios de traquinice quando sorna. O nanz
era finamente arqueado e, quando a olhei de perfil. como que se retraía na
testa. ficando assim um pouco mais curto e um pouco mais atrevido. Continuou a andar e eu seguia-a. Havia por sorle vúrias pessoas passcando no
caminho; enquanto eu trocava algumas palavras com urna ou con1 outra,
deixava-a ganhar algum avanc;o, para logo cm seguida_a apa.nh~r ~e nov~,
e libertava-me assim da necessidade de ter de a seguir a d1stanc1a ca1111nhando tao devagar quanto cla. Dirigia-sc para 0sterport. Desejava ve-la d_c
mais perto sem ser visto. A direita f'ica urna casa, da qual tin~~ de cons~gu1f
ve-la. Conhecia a família e só era preciso fazer-lhes uma VJSlta. Passe1 por
ela a correr em passo apressado, como se ncm da mais remota maneira
nela reparasse. Ganhei-lhe um grande avaiwo, curnprimentei a família_ para
a esqucrda e para direita, e apoderei-me da janela que dava para o cam1~1ho.
Ela aproximou-se, mirei-a e rernirei-a, ao mesmo tempo que me mantinha
cm cavaqueira comos parceiros de chá na sala de estar. O seu andar coné
44 Vd. nota 58 no capítulo «Diap.mlrnata»: de acordo como mito, Psique e as suas irm1ís, envergando o traje nupcial, forarn pelos seus pais colocadas num pen~asco, em
ccdcncia a imposiºªº dos deuses: ZéJiro soprou entao de modo a deposita-las num
castelo longe do local onde haviam sido abandonadas.
. .
45 A partir da instituir;ao da festa de 15 de Agosto em 850 pelo papa Leao .IV. fo1 accsa
a disputa teológica sobre a questiío da ascensao de Maria, só tendo tcrnunado com a
clcclarayiío do dogma da Asccnsiío de Maria. por Pio XU, em 1950.
J68
Ou
desde logo de que nao frcqucntarn
qualqucr
escota ele danca
e, contudo, havia nele u111 orgulho. urna nobrcza natural, mas
urna falta de arencáo consigo própria. Ainda conseguí ve-la urna vez para
alérn daquilo com que cu propriarncnte contara. Da janela, nao conseguía
ver muiro do caminho: mas ern contrapartida conseguía 13231 observar urna
ponte que passa por cima do lago e, para minha grande surpresa, descobria-a novamcnte cm cima da ponte. Ocorrcu-rnc que cla talvez fosse aqui do
campo, talvez a famflia tivcsse alugado urna residencia de Veráo. Eslava
prestes a arrcpcnder-rne da visita, reccando que cla se voltassc e que eu a
pcrdessc de vista. sim. o facto de ela ser vista na cxrrernidadc da ponte era
como que urn sinal de que desaparecía para mirn - quando cla se mostrou
na vizinhanca. Passou pela casa, agarrei veloz no ehapéu e na bengala para,
se possfvel, voltar a passar por ela mais urnas vczes e seguí-la até ter descoberto a sua morada - quando, na minha prcssa , esbarrci no braco de
urna scnhora que cstava justamente a preparar-se para oferceer chá. Soltou-se um grito aterrador, fiquci de pé com o chapéu e a bengala, prcocupci-rnc
só cm ir-me dali embora e, tanto quanto possívcl. em dar urna volta no
caso e arranjar motivo para a minha retirada. e bradc¡ com puthos: «Scrci
banido como Caim4'' dcstc lugar que viu este chá derrarnado.» Porérn, como se ludo tivessc conspirado contra mirn, a anfitriñ tevc a desesperante
idcia de ciar coruinuacño ao rneu corncntário e explicar alto e born sorn que
cu nao tinha liccnca para sair antes de ter tomado urna cbávena de chá,
antes de servir eu mesmo [\s damas o chá derramado e recompor assim as
coisas. Como estava plenamente convencido de que no caso presente a
minha anfitriá verla como civilidadc o usar de violencia. nada mais havia a
fazcr a nao ser ficar. - Ela desaparecerá.
vcnceu-rne
conhecida
Dia 16
Como é belo estar apaixonado. como é interessante47 sabe-lo. Vede. cls
a diferenca, Posso ficar exasperado só de pensar que ela me desapareccu
urna segunda vez e, no cntanto, num certo sentido, ter alegria nisso. A irnagcrn que dela possuo paira de rnancira indeterminada entre ser a sua figura
real e ser a sua figura ideal. Ora eu deixo que esta imagem se mostre diante de mim; mas precisamente pelo facto de a irnagem ser a realidude, ou por
46 A historia de ódio e mortc entre os irmños Cairn e Abcl pcrtcnce ao
4:'.\-16.
Livro
do Génesis,
47 Vd. nota 10 do «Prefacio» e nota 3 acima. Neste e no parágrafo seguintc sobrcssai,
na qualificacño de intcrcssantc atribufda ao cnamoramcnto, um elemento dinámico,
funcionando cm dircccño uo interior. a par da graciosidadc, cm dircci;iío ao exterior.
Sobre a graciosidade como «bcleza cm movimento». vd. Schillcr. A11111111 und \Viirdc.
p. 252.
Ou l 1111 1 '•IV
1111 11111
el\
1d.1
169
ser a rcalidadc
utiual a ocasiño, a imagcm tcrn a sua magia própria. Nao
pois cla terá afinal de ser daqui da cidadc e,
ncste instante, basta me isso. Esta possibilidade é a condicáo para que a
imagem dela possa justificadamente mostrar-se - tudo será desfrutado em
tragos lentos. E nao haveriu eu de 13241 estar calmo, eu, que posso
considerar-me urn favorito dos deuscs. a quem coube ern sorte a rara felicidadc de voltar a apaixonar-rne. É todavía algo que nen huma arte, nenhum
cstudo pode suscitar: é urn dom. Mas fui bcm-succdido, erguí de novo um
a mor". logo vcrci entretanto quanto tempo irá subsistí r, Cu ido <leste amor
corn urn mimo como nao fiz com o prirnciro. Já basta que seja parca a
oportunidade que nos cabe ern serte; logo , o que importa na vcrdade é
aprovcitá-la,
pois eis o que é desesperante: nao ser arte nenhuma seduzir
urna rapariga , mas ser urna felicidade encontrar urna única que valha a
pena seduzir. - O amor tern muiros mistérios, e este primeiro enamoramento é também um mistério, aposar de estar inclufdo nos menores - a
maioria dos horncns, os que avancam impetuosamente, fica noivo, ou fa7.
outros disparates, e cm meno-; de nada já tudo passou e ncm sabem o que
conquistaram, ncm o que pcrdcram. Mostrou-se por duas vc1cs <liante de
rnim e dcsapareccu; isto significa que cm breve se mostrará mais vczes.
Quando .José explicou o sonho do faraó. acrcscentou: «mas o facto de teres
-.onhado dua<; vczcs signirica que brevemente será cumprido»49.
vinto qualqucr rmpaciéncia.
Como seria deveras interessante conseguir ver com alguma antccipa~ao
as forc;as cujo apareeimento constituí o contcúdo da vida. Ela vive <1gorn na
~ua paz mais tranquila; ainda nao pressente que eu existo e. ainda menos. o
que decorre no mcu interior e, ainda menos, a eguranc;a com a quaJ eu
pcrscruto o seu futuro, pois a minha alma cada vez mais exige a realidade.
torna-se cada vez mais fortc. Quando uma rapariga nao provoca num indivíduo. a primeira vista, urna imprcssao tao profunda quc lhc clespcrte o que
e ideal, entiio, a real idadc é cm gcral particu lanncnte apctccívcl: ~e provocar
o inverso, por m<iis cxperientc que se seja. fica-se geralmente um pouco
csrnagado. Ora, a quern nao estiver seguro <las suas maos, dos seus olhos e
do seu triunfo, recomendarei scrnpre que arrisque o assalto neste primeiro
estado. no qua!, precisamente por estar esmagado, tern for~as sobrenarurais.
dado que esse esmagamento é uma estranha mistura de simpatía e de egoísmo. Irá cm contrapartida perder um cerio desfrute, pois nao desfruta a situa~ao. dado que ele próprio se cnvolve e se esconde ncla. É difícil decidir
qual é a coisa mais linda; qual é a coisa mai~ intcrcssantc, é fácil. Entretan48 Aquí. «Elskov».
49 Li' ro do Génesi~. 4 t :32: «E que o sonho foi duplicado dtHl' vc7cs a Faraó. é porque
e''ª coi~a é dctenninada de Deu:-.. e l)cus se aprt:~:,a a faze-lo.»
371
370
to, sernpre bom 13251 chegar tao perto do limite qua1110 possívcl. É este 0
desfrute propriamcrue dito, e seguramente que nño conheco o que curros
desfrutarn. A mera posse é pouca coisa, e os meios cmpregues por tais
amantes sao na generalidade bastante mesquinhos; ncm sequer dcsdenham
de l'.sar dinhei~o. ~~oder, influencia alheia, pocóes soporíferas, cte. Mas que
desfrute havcrá afma! no amor-", se este nao comporta em si a cntresa mais
absoluta, diga-se. de urn dos lados, embora para tal scja em rcgra necessario
ter espírito e esses amantes cm regra nao o tém.
é
Dia 19
Corn que entáo chama-se Cordclia! Cordclia ! É urn lindo norne, 0 que
rambérn
ele importancia. pois pode amiúdc produzir um eícito muito
perturbador ter de pronunciar um nome fcio juntamente com os rnais ternos predicados. Há multo que cu já a rcconheccra, caminhavn ela corn
dua:s rapa~i?~,1s do scu lado esquerdo. Pelo rnovimcnto do andar delas parecia que mam em breve fazcr urna paragem. Parei na esquina da rua para
lcr um cartaz, enquanto mantinha debaíxo ele olho a minha desconhccida.
Despediram-se entre si. Prcsumivelmcnte,
as outras duas huviam Icito algum desvío no scu caminho, j~í que tomaram urna dircccño contraria. tia
cncaminhou-se na direccáo da rninha esquina. Quando tinha dado alguns
pas.s<~s, urna das jovcns raparigas veio a correr atrás dela, gritando alto, o
~uf1c1en1.c para eu poder ouvir: Cordclia! Cordclia! Yeio depois a tcrceira;
juntaram as cabccas em conselho sccreto51, cujos segrcdos tentci em váo
captar com o meu mais fino ouvido; riram-se depois as tres e, com um
ritmo ainda mais rápido. scguiram pressa pelo caminho por onde as duas
se cnfiararn. Fui ~ttrás delas. Entrararn n urna casa cm Srrandcn'<. Espcrei
algum tempo, pois corn toda a probabilidade Cordelia sairia em breve sozinha. Tal nao acontcceu entretanto.
é
a
Cordcli.a~ É realmente urn nome excelente, assim se chamava a tcrceira
filha de Lear53, cssa notávcl rapariga cujo corac.;ao nao morava nos lábios,
cujos lábios ficanun mudos quando o seu cora<yao se diJatara54. Assim se
50 Aqui, «Eükov».
51 O termo original é «Geheimeraad>>, designayan <lo Conselho Privado <lo Rci instituído cm 1770.
52 Designar;ao da
.
rua do centro
de Copenhaga que Ja<lcia o Palácio Cluistiansborg ao
longo <lo caual.
'
53 Personagcm principal da pel(a homónima de \Villiam Shakespcarc.
54 Vd .. a f~Ja de Cordel ia, Acto J, cena 1, vv. 78-8,0: «J'hen poor Cordelia, [h.en poor
~orde/w! i í\nd yet not so; since l am sure my love'.~ í Afore richer than mv tangue». e
arnda vv. 93-94: «U11happy tha11 am, I ca11not heave / My !teart into my m;uth»; in
Tfie
passa corn u miuha ( 'ordclia. Tenho a certeza de que se parece com ela. Mas
neutro sentido o seu coracáo mora nos 13261 seus labios, nao sob a forma
ele urna palavra, mas de urna maneira mais calurosa, sob a forma de um
beijo. Como estavam os seus labios pujantes de saúde! Nunca os vi cu mais
bolos.
Que estou realmente apaixonado, sou igualmente capaz de ver, entre out ras coisas, pelo secretismo como qual lido com este assunto até quasc co-
migo mesmo. Todos os amores sño secretos, mesmo os infléis. quando tém
cm si a componente estética que lhcs pcrtence. Nunca me ocorrcu desejar
confidentes ou gabar-mc das minhas aventuras. Assim, quase rico contente
por nao ter chcgado a saber a morada dela, mas antes o lugar que frequenta
com mais assiduidade. Porvcntura fiquci dcssa forma bem mais próximo
ainda do meu objcctivo. Posso levar a cabo as minhas obscrvacñes scrn lhe
despertar a atcncáo e, deste ponto seguro, nao me será difícil urranjar um
rncio para entrar na família dela. Se essa circunstancia, ao invés, se mostrar
como urna dificukladc - eh bien! Aguentarci cssa dificuldadc: rudo o que
taco, faco-o con amore; e é também assim que cu amo con amare,
Din 20
Conseguí hoje alguns csclarecimcntos sobre a casa por onde cla clesapareceu. É de urna viúva com tres fiJhas abenc.;oadas. Junto delas, podia obtcr-se informa<;ao em abundancia, digamos, conquanto estivessem na posst:
dela. A única dificulclade é entender estas infonrnu,:oes a terceira potencia,
dado que faJarn todas tres pela boca umas das outras. Chama-se Cordelia
Wahl e é filha de um capüao da Marinha, faleci<lo há alguns anos, bem
corno a mae. Era um homem rnuito rígido e severo. Ora ela vive cm casa
de urna tia. a irma do pai, que dizem ser parecida com o irmao. mas de
resto uma senhora muito respeitávcl. lsto é bustante bom. mas mais nada
~abem sobre aquela casa: nunca lá vao, mas Cordelia visila-as muitas vczes. Ela e as cluas raparigas recebcrn aulas na cozinha real. Por isso. cla
visita-as de t.arde, de preforcncia cedo, uma vez por outra de manila, nunca
a noite. Vivern rnuito metidas consigo.
Complete (hjrml Shakespeare·, vols. 1-111. edir,:ao de Slanley Wells e Gary Taylor.
Oxford. Oxford University Prcss, 1988, 2." cdic,:ao; vol. Ill. Tragedies, pp. 1273-1274.
Em portugues, na trnduc.;ao e.Je M. Gomcs da Torre: «Agora a pobre Cor<lélia, i lVlas nao
Liío pobre como isso, pois ce11a cstou I Que o amor rne pesa mais que as palavras». e
«Dcsclilosa, que aos lábios nao posso tra1.er ! O que guardo no cora<.;ao [ ... ]»in William
Shakes1)earc. O Rei Lear, introdu~ao. traduc,:1ío e notas por M. Gomes da Tone. Po1to,
Campo das Letras, 2005, p. 36. Edi~lfo de consulta para o autor: Shakspeare's drama·
ti.-clte Werke !Obras dramáticas de S.}. tradu<.;fü:> de August. Wilhelm v. Schlegel e Johan11 Ludwig Tieck. Berlim, 1839-184 l. vols. I-XII: vol. XI, p. 6.
.172
Poranto, a histeria
acaba aqui,
r1i:io se rnosuu urna ponte pela qua] cu
possa deslizar para ir a casa de Cordelia.
13271 Por conscguintc, ela tern urna rcprcsentacáo das dores da vida, do
scu lado sombrío. Qucrn haveria de dizcr isso a seu respeiro. No entamo.
cssas rccordacñes pertcnccm decerto a urna idade mais precocc, sao um
horizonte sobo qual vivcu , scm que realmente reparasse nelc. lsto
muito born, salvou-Ihe a Icminilidade. nao ficou estragada. Por curro lado,
tarnbérn tem a sua significacáo porque a eleva. quando se entende devidamente como Iazé-la surgir. Todo este tipo de coisas, cm gcral, confere orgulho, desde que nao esmague, e ola está bcm longc de ter sido csmagada.
é
Dia 21
Vive junto do aterro, a localizacño nao é das mclhores, nen hum vizinho
a quern pos. a dar-me a conhcccr, sem lugares público'> onde scja po sível
levar a cabo observacóes dcsapcrccbido. O proprio aterro presta-se pouco,
fica-se muito cxposto. Se seguirrnos rua abaixo, nao é possfvel carninhar
pelo lado do atcrrn.já que ninguérn vai por aí e saltaría demasiado ft vista,
ou teria de seguir-se pelo lado da casas e, cntáo. nao é possfvel ver nada.
~urna casa de esquina. Da rua, véern-sc também as janelus que dño para
o pátio.já que a casa nao faz paredes melas com curras. É de presumir que
o quarto dela scja ali.
Día 22
Vi-ahoje pela primcira vez na casa da scnhora Jansen . Fui-lhc apresentado. Nao me parece que se tenha apoqucntado muiro corn isso. ou que
me tenha ligado. Procedí trro discretamente quanto posslvel para assim
poder ficar melhor atento. Dcrnorou-se urn instante apenas. tinha vindo
sirnplesrnentc buscar as fi lhas que cstavarn de salda para a cozinha real.
Enquanto as duas meninas Janscn se enfarpelavarn. Iicámos sozinhos na
sala e, com urna Jlcurna fria e quasc sobranceira, lancci-Ihc algumas palavras,
quais respondcu corn imerecida civilidade. Saírarn logo. Poder-rnc-ia ter oferecido para as acornpanhar: entretanto, isto tcria já bastado
para denunciar o cavalhciro e cu esta va convencido de que nao seria conquistada dcssa maneira. - Em contrapartida, um instante 13281 dcpois de
elas tercm saído, preferí sair cu também, mas multo mais depressa do que
elas e por curros carninhos, cmbora igualmente na direccño da cozinha
real, de modo a que quando virasscm para a storc Kongensgade'é. cu
as
pas-,a ssc por t• 1 us
de espanto.
55 Nome de urna ruado centro de Copcnhaga, literalmente «Rua Grande do Rci». situado lado oriental.
correr scrn as cu rn pri mentar ncm nada, para seu gran-
])ia
23
É-mc necessario arranjar maneira de entrar cm casa dela. quanto a este
propósito, como se diz cm gfria militar, estou pronto. Entretanto, parece
que isto é simultáneamente
complicado e difícil. Nunca conhcci urna família que vivcsse tao isolada, É só ela coma tia. Sern irrnños , scm primos.
scm um fío por onde agarrar. sern um parenrc infinitamente Iongínquo a
qucm se pudcsse dar o braco. Caminho scmpre corn um dos bracos livre
e soltó, nao quererla por nada deste mundo andar ncsta época de braco
dado corn alguérn. o meu braco é um arpíío que tern de estar scmpre a
postes, o mcu braco está destinado a ganhos incertos, nao vá mostrar-se
ao longc, a distancia, algurn patente longínquo ou amigo, a quem cu cá de
longc pudcssc estcndcr urna migalha do meu braco - e cntño. trepar por
aí. De resto, niío está ccrto que urna farnflia viva tao isolada; priva-se a
pobre da rapariga da oportunidade de aprender a conhccer o mundo. para
nao falar de outra<; conscqucncias pcrigosas que isso possa trazer. Acaba
scmprc por havcr desforra. Passa-se o mesmo quando se fa¿ a corte. Num
isolamento destes, está-se precavido contra a gatunagem miúda. Numa
família com bastante vida social. a oportunidade faz o ladrao. Mas isso
nao é de monta, pois em casa dcssa'i raparigas nao há grande coisa para
roubar; aos tlcl:asseis anos, já o corn9ao delas é um pano marcador chcio
de nomesS<i, e nunca me dou ao trabalho de deixar escrito o meu norne
onde muitos outros já cscrcveram, nunca me ocorre ini.crcvcr o meu nome
numa vidra9a ou num recanto, ou numa árvore, ou num banco nos jardins
de frcdcriksberg57.
Dia 27
Quanto mais a olho mai!> me conven<;o de que é urna figura isolada.
É algo que um homem nao e.leve ser, ncm mesmo um 13291 jovem, pois
como nessa a.ltura o seu desenvolvimcmo depende ei.sencialmente da rellexao. cntiio. tcm de entrar em rela9ao com terceiros. Por is<;o ,_urna jovem
rapariga também nao dcve ser intcressantc, porque o intcressante contém
cm .si urna rcflexao, do mesmo modo que em arle o int.cressante tnwsporta
'i6 Aqui. «N111•11eklud». o pano marcador com cli\ersos tipos de letra-. bordadas a ponto
uma das µrimeiras pc~as a exct:ut.ar na aprcndiwgem do bordado.
'i7 Já no tempo de Kierkegaard. os jardins do Ca.,telo de Prcderiksbcrg cst11vam abe1tos
l.'.lllZ.
d11 entre o Teatro Real da cidade e as lonificacóes
11
ao públir.:o.
375
Son.:11 Kicrkcguurd
374
·
· que qucira agradar por ser
~semprc
. . . consigo
. · o arlisla58 . U.rna JOvcm
rapanga
~ntcressant,e quc1: quando muito agradar a si propria. Oo lado da estética, é
rsto que ha a objectar a todo o tipo de atitudes namoradeiras É outro assunto em relacáo
a .tudo o qu. e seJ<1
· ·. antuc
, · l es fiiguranvamente
·
.
',
"''
namoradeiras,
7
que .s~10
o verdadeiro movrrnento da natureza; assirn com a rnodéstia
;.em11~~1a, que é. sem~re ~· mais bel a das formas de ser namoradeira.
apanga que seJª. assim mreressante conseguirá certamente agradar; mas
t~l co,°10 .~la .abd1c~u da sua f?~inilidade, os hornens a quern cla agrada
t~~~~~m s<10 cm .geral ~ou~o vms. Uma rapariga dcstc género torna-se intercssantc ~rópna ~ p:1mc1ramenlc através da rclacáo com os horncns. A
mulher o sexo mais 1 meo e, cornudo, cabc-lhc. muito mais csscncialrncnte do q~1e a~) h.omem. ficar sozinha durante a sua juventude, tern de bastar-s~ a ." ~ropn~, m:'ls ~quilo através do qual, e no qual, ela se basta a si
P.16pna e urna .'lusao; e este o dote que a natureza lhe atribuiu tal como :¡
filha
- f az precisamente
·
.
. de um
. re1 · Mas· esse
. ·., 1·ep ouso na· 1· 1 usao
com que fi-'
q~1e .1:c;~la~a. Te.nho amiüdc especulado no que estará na origem de nao
l~avc1 nada rna1s. depravador para uma jovcm rapariga do que conviver
c~m ?utr~s rapan gas jovcns. Reside manifestarncntc no facto de cssa cornpanh1~1 nao ser ncm urna coisa, ncm outra; perturba a ilusño mas ::transf
.. Ad
.
.
. nao a
. .. igui u.
eterrmnacáo ~nais profunda da mulher
a de ser companhia
par •1 o horncm ..mas ao ~onv1ver como scu proprio sexo é conduzida facilmente a ~ellectir sobre rsso. o que faz dela dama de socicdade cm vez de
companh1a,59 ., A ,própria Iinguagern é multo denotativa a este rcspcit.o; ao
hornern cham:-se s~~hor, mas da rnulher nao se diz que criada ou coisa
se~elhante, nao, utiliza-se urna deterrninacáo essencial: ela cornpanhia
e nao ac?mpanhante. Houvesse eu de imaginar o ideal para urna rapariga,
~ el~' tena s:_inpre de .estar só no mundo, entregue assim a si propria e:
so~1~~udo, nao ter amigas. É bcm vcrclade que as gracas eram tres; mas
~e~urnm~.~l~ que tarnbém nunca ocorrcu a alguérn imaginar que cstavarn
a c~nv~1s<11 u~1a~ ~om as ouu'as; na sua silenciosa trindadc criarn urna
bela unidade ferninina. A este respeito , podía quase ficar tentado a recomendar novamente o gineceu, se este constrangimento , por seu turno nao
pro~luz1sse um efeito pernicioso. É sempre de desejar que urna [overn rapanga. possa ter a sua liberdade. mas que a oportunidade nfü~ Jhe seja
oferecida. Desta maneira torna-se befa e salva-se de vira ser 13301 interesé
um:i
é
é
é
é
58 A.o _longo -~esta .secc;ao. torna-se mais nítida a distim;:ao entre o elemento dina mico
11~te1 •<.>'. p1óp110 do mteressanle e o elemento dinámico exterior. J)r6prio da ora, ·0 'd d
Vd. acuna nota 25.
e ºe c1 s1 a e.
59 Trocadilho
entre «Selska.hdame>>
e «Selska/J» , .sendo (¡ue «<'e/i·k,th'
.. 1 ·B'bl'
•
.
., • " ,, e' 11,
1 ia e¡·rnamaiquesa o termo que designa o propósito para o qua! Deus criou a mulher Vd adt·.1,1
te nota 197.
·
·' ' -
santc. Dcbalde se entrega urn véu virginal ou um véu nupcial a urna jovem
rapariga que conviva muito ern sociedade com outras jovens; ao ínvés,
aqucle que ti ver suficiente sentido estético achará sempre que urna rapariga inocente lhe é entregue cobcrta por urn véu, na mais profunda e eminente accp<(ao, mesmo se nao Ior uso e costumc usar o véu nupcial.
Teve urna educ~19ao rígida, por tal facto prest.o honra aos seus falccidos
pais; vive com muita reserva, era capaz de me lan9ar ao pesco90 da tia em
agradecimento. Nao aprendeu a conheccr as alegrías do mundo, nao tema
sobressatura\:ao da tagarelice. É orgulhosa, obstina-se contra aquilo que
lraz. alegria as outras jovens raparigas, é assim que deve ser. É uma inverdadc que eu hci-de saber utilizar cm meu proveito. Nao lhe agraclam pompas e galas no sentido em que agradam ~ts outras jovens, é algo dada a polémica, mas tal torna-se neccssário numa jovem rapariga com a sua
cxalta9ao. Vive no mundo da fontasia. Se cair em maos erradas, podcr-se-á,
cntao. extrair dela algo ele muiro pouco feminino.justament.e por nela ha ver
tanta fcminilidade.
Dia 30
Os nossos caminhos cruzam-se por todo o lado. Encontrei-a hoje tres
ve1.es. Sou conhecctlor da mais pequena das suas saídas, de onde e quando
hei-de enconlrá-la; mas tnl conheciment.o nao é usado para arranjar um encontro com ela; pelo contrário, sou esbanjador em ternível escala. Um encont.ro que am.iúde me custou várias horas de espera é dcspcrdi9ado como
uma bagatela; nao a encontro, limito-me a tangenciar a sua existencia periférica. Se eu souber que ela vai para casa da senhora Jansen., nao fa<;:o por
encontrar-me com ela, a nao ser que para mim seja importante fazcr uma
observa9ao singular; prefiro chegar um pouco mais cedo a casa da senhora
Jaosen e, se possível, encontro-me com cla a porta, a saída Oll a entrada, OU
nas escadas, onde passo por ela negligentemente a correr. Esta é a primeira
tcia na qual tem de ser enredada. Nao a fa90 péu-ar na rua; ou troco um cumprimcnto cometa, sem contudo nunca me aproximar dela, fixo-a sempre a
distancia. Os nossos frequentes encontros sao-lhe bem notórios, ce1tamente
que repara que no seu horizonte se mostrou um novo corpo, o qua! no scu
ce1minho, de uma maneira peculie1rmente 13311 imperturbável, se interpoe
perturbadoramente no dela; mas nao tem qualquer prcssentimento acerca da
lei reguladora <leste movimento, antes fica tentada a olhar para a clircita e
para esquerda como se nao fosse capaz de descobrir o ponto que é o alvo; é
tao desconhecedora de que é ela o alvo quanto o seu antípoda. Acontece-lhe
o que na gcneralidade acontece comos que me rodeiam: acreditam que eu
tenho urna multiplicidacle ele negócios, ando continuamente em movimento
a dizcr como F(~aro: «Uma. duas, tres, quatro intrigas de uma só vez, é
376
.S01c11 K icrkcgaurd
377
esta a rninha voltJpia.»60 Primeiro tenho de conhccé-Ia, bcm como lodo 0
scu estado de espírito, antes ele dar início ao ataque. A maioria desfruta urna
rapariga co~o ~uem saboreia um copo de champanhe num instante espumoso, ah, ,s1~1, e real~ente ,lindo e, para muitos, urna jovem rapariga é deveras o maxrmo que e possível alcancar; mas aqui há mais. Se o indivíduo
é demasiado frági 1 para tolerar a claridade e a transparencia, ora bem, entáo,
desfruta-se o que nao é claro, mas cla consegue rnanifestarncnte tolerá-la.
Quanto maior for a entrega que possa introduzir-se no amor'", tanto mais
rnte:essante ,s~ torna. O c~esfrute dcsse instante, mesmo que nao seja em
s~nt1d~ explfcito, sendo afinal cm sentido espiritual, é urna violacáo e numa
violacáo há apenas um desfrute imaginado, tal como um beijo roubado
algo i.nclassi'.ic~vel. Nao, quando se é capaz de chegar ao ponto em que urna
rapanga se limita a ter, como única rarcfa para a sua liberdade, a tarefa de
cn~rcg~r-~c, de sentir nisso toda a sua suprema fclicidadc, de quase suplicar
a s1 propria essa entrega, sendo todavía livrc, só enrño há desfrute, mas para
tal requcr-se sernpre urna influencia espiritual.
maní festumcruc cutcdiante, há um cerro sorriso nos labios que parece
indicá-lo. Allcerco-rne neste sorriso. - Neutras alturas é capaz de entregar-se a urna braveza quase própria de rapazes, para grande surpresa das meninas Jansen. Para rnirn, tal coisa nao inexplicável, quando penso na sua
vida na infancia. Tinha urn único irmáo , urn ano mais velho. Só conheceu
o pai e o irrnáo, e foi testernunha de cenas serias que dcixam avcrsáo pelo
cornum cacarejar de galinhas, O pai e a mae nao forarn felizcs um com o
outro: aquilo que mais distinta ou mais obscuramente é sugestivo para urna
rapariga, nao o foi para cla. Pode até muito bem ser que estcja confusa
acerca do que é ser urna jovem rapariga. Talvez até deseje em instantes
particulares nao ser rapariga, mas sim homem.
é
Cordclia! É de facto urn nome rnagnffico. Fico sentado cm casa a
ex.crcitar-me,
talar tal como um papagaio, a dizer: Cordelia, Cordelia,
rninha C~rd~Jia, tu, minha Cordelia. Nao posso dcixar de sorrir ao pensar 110
modo ~·~une1ro com que pronunciarei algurna vez estas palavras num instante decisivo. Devc sempre fazer-se um estudo preliminar, rudo tcm de ser
planead~ da rnancira certa. Nao ele admirar que os poetas descrcvarn sernpre este instante do «tu», o bel o instante cm que os amantes se dcspojam das
suas velhas pessoas, nao porque se salpicam (há rnuitos que daí nao passarn), mas ao mergulhar no mar do amor. ernergem dessc baptismo, e sé
agora se 1:cconhecem. dcveras como vcJhos conhecidos, apesar de apenas
leren~ um instante de idade. Para urna jovem rapariga, este instante é sempre
o rnais bel~ e, para ser desfrutado devidamentc, eleve ficar-se sernpre ligeiramcnte acuna, para que 13321 nao se seja apenas 0 baptizundo, mas ao
mes~o tempo o sacerdote. Um pouco de ironía faz do instante seguinre a
~stc instante -~1~1 dos rnais intercssantes, é um desnudamente espiritual. Tem
de .ser-se sut1c1enternente poético para nao perturbar o acto e, cornudo. 0
patife tcm ele estar
. sempre
. de atalaia.
.ª
é
2 de Junho
Ela é orgulhosa, há muito tempo que reparei nisso, Quando está na cornpanhia das tres meninas Jansen, Jala muito pouco, a tagarelice delas é-lhe
60 Givtermaal , Acto U, cena 2, p. 4 J.
61 Aquí, «Elskov» ,
é
Tem fantasia, alma, paixño, cm suma, tocias as substancialidadcs,
mas
nao está reflectida subjectivamente.
Urna casualidadc deixou-rnc hoje
justamente convencido disso. Sei arravés da firma Jansen que ela nao toca
um instrumento, é contra os princfpios da tia. Scmprc lamentci este facto.
porque a música é scmprc um bom meio ele cornunicacáo com urna rapariga jovcm, quando obv.iamente se tcm o cuidado de nao aparecer na qua1.idade de conhecedor. fui hojc a casa da senhora Jansen, tinha entreabcrto
a port;i sem hal'er, um descarnmento c¡ue tlmiúde vem em meu benefício e
que cu, quando é premente, remedcio com lllna coisa ridícula. a saber,
batendo a porta aberta - esta va sentada sozinha ªºpiano - parecía tocar
piano
escondidas - era uma musiquinha succa62 - nao tocava com
desenvoltura, ficou impaciente, mas eis que surgüam de novo os tons suaves. Fechei a porta e fiquei do lado de fora, escutando a muclan¡;a nas
suas disposi9oes, raramente havia paixao 13331 no que tocava, o que fazia
recordar a menina Metteli/63 a tocar harpa para que o leite jorrassc dos seus
scios. - Mas havia urna certa nostalgia, algo de ditirfünbico na sua presl<u;ao. - Podía ter-me precipitado para agarrar o instante - teria sido uma
loucura. - A rccorda9ao nao se limita a ser um meio de conserva¡,:ao, é
antes um meio de acrescentamento, aquilo que for profundamente penetrado pela recorda9ao produz um efeito duplo. - Encontra-se muitas vezcs
nos livros, em especial nos livros de salmos, uma florzinha - houve um
belo instante que ofereceu a ocasiao para que fosse aí colocada, a lembran9a é todavía ainda mais bela. Ela esconde obviamente que toca piano, ou
as
62 Provavelmente, urna das populares cam.;ües na Dinamarca 11a época, compost.as sobre
pocrnas do autor sueco Carl M. Bellman (J 740-1795).
63 Trata-se do motivo de «Sidsellille» na balada medieval dinamarquesa Herr Medelvold. na qual se canta o tJágico final do seu amor; edic¡:áo consultada pelo autor: Udvalgte Dall.lke Viser fra Middelaldere11 1 Baladas Dinamarquesas Escolhidas em Dinamarqucs da ldadc Média], eclic¡:ao de W. H. P. Abrahamson, K. Nyerup e K. L. Rahbek, vols.
1-\/, Copcnhaga, 1812-1814:
vol. ll. 1813. p. 361.
378
Ou
talvcz só saiba tocar esta musiquinha sueca
tcrá porvcntura um intcrcsse especial por eta. Desconheco rudo isto, mas por isso este acornee: men-
to é para mim de grande importancia. Quando eu tiver rnais confianca a
falar com ela , levá-la-ei inteiramentc em segrcdo até este ponto e farei
com que caia nesta armadilha.
3 de Junho
A inda nao conseguí resolver cornigo mesmo como há-de ela ser compre-
cndida; comporto-me por isso com tanta tranquilidade, tanta discricáo sirn, como um soldado numa ronda de scntinela, que se lanca rente ao chao
e fica a escura da longínqua ressonáncia de urn inirnigo que avanca. Para
ela, eu nao existo propriamentc, nao com a significacño de urna relacüo
negativa, mas com a significa<;ao ele urna relacüo de especie ncnhuma.
Ainda nao arrisque¡ qualquer experimento. - Ve-la e amá-la foi urna só
coisa, como se diz nos romanccs=' - sim, deccrto que vcrdadc, se o amor
nao tivesse nenhuma dialéctica; mas o que tarnbérn se chega realmente a
saber sobre o amor65 lendo romances? Meras mentiras que ajudarn a abreviar a tarefa.
é
Quando, após as informacóes que rccolhi, volto a pensar na impressáo
que o primeiro encentro me causou, entño, a reprcscntacño que dela faco
fica dcveras modificada, mas tanto a scu como a meu favor. Ora nño está
na ordern do dia andar urna rapariga jovem assim completamente sozinha,
ou urna jovern rapariga irnergir assirn em si mesma. Passou na preva da
rninha 13341 rigorosa crítica: grácil. Mas a graciosidade um momento
bastante passageiro, que desaparece como odia de ontern quando acaba66.
Nao a havia imaginado na arnbiéncia em que vive e. ainda menos, tao irreflcctidamentc familiarizada comas tormentas da vida.
é
é
Gostaria afinal de saber ern que pé estüo os seus sentimentos. De certeza
que nunca cstevc apaixonada, para tal, o scu espirito é exccssiva e livremente volante: ainda menos faz parte dessas virgcns experientes cm teoría,
para quern há multo lempo tao corrente imaginarem-se nos bracos de um
homern amado. As figuras <la realidade que tém vindo ao seu encentro nao
estiveram simplesrncnte a altura de lhe tomar pouco clara a relacáo entre
é
64 Vd. nota 101 no capítulo «Os Estádios Eróticos Imediatos ou o Erótico-Musical».
65 Aquí, «Elskov» .
66 Salmos, 90:4: «Porque mil anos sao, aos teus olhos. como o dia de ontem que passou,
e como a vigília da noite.» Sobre o carácter volátil da graciosidade, consequénoia de ser
«belcza em movirnento», vcl. Über An111111 und wurde, p. 252.
011. U111h11¡•11111110
379
tk Vida
sonho e rcalidadc. /\ sua alma ainda se alimenta da divina arnbrósia dos
idcaís. Mas o ideal que paira diante dela nao é certamente urna p~st~.~~ ou
urna heroína ele romance, urna amante, mas antes urna Jeanne d A1c ou
coisa parecida.
A quesráo continua a ser scmpre a ele saber.se a sua fomi1~ilidade é suficientemente forre para deixar que ela se reflicta, ou se sera apenas c.lesfrutada como bclcza e graciosidade; a quesrño é saber se é de ousar cstícar
mais a corda. Já coisa de monta encontrar urna feminilidade puramente
imcdiata, mas caso se ouse a rnudanca, obtérn-se assim o intcrcssantc,
Ncsse caso, seria rnelhor pór-lhe nos bracos um prcten~cnlc sin:pl~s e
honesto. O povo tem a supcrsticáo de que tal coisa ha~ena .. de prejudicar
urna jovem rapariga. - Sim, se for urna planta muuo f~na e branda.
limitando-se a ter na graciosidadc o único ponto alto na vida,
sempre
rnclhor que nunca tcnha ouvido mencionar o amor, mas se nao foreste o
caso, cntño. é um beneficio, e eu nunca hesitaría em prover um pretendente, se nenhum houvcssc. Esse prcrendente tambérn nao tem el.e ser urna
caricatura, jfí que assirn nada se ganha; tem de ser um homem JOVem rcspcitável, se possível ainda estimável, mas todavía cxcessivamc~11c pouco
para a paix5o dela. Ela olha de alto parn um homem desta espéc1c, o amor
nao lhc dá gosto, quasc dcsconfia da própria realiclade68 do ~mor. qua'.1do
~ente a respectiva determina9ao e ve o que a realidade lhe ofcrccc; se 1s10
é amar, diz ela, nao se perde entretanto grande coisa. Fica orgulhosa destc
-.cu amor, esse orgulho torna-a intercssantc, 13351 fa.1. rcsplandcce.r o seu
~cr com um escarlate mais intenso; mas está simultaneamente ma1s perto
da sua queda; tudo isto, porém, torna-a sempre cada vez mais interess<~nte.
Entretanto, é mclhor ccrtificcu--sc primciro de quem sao os conhe~1clos
-.eus, nao houvcssc de entre eles estar um tal pretendente. Em casa, na~ há
ncnhuma oportunidade. pois quase ninguém a frequenta, mas ela .at111al
-.ai, e era certamen te possível encontrar alguém do género. ArranJ~r ~1guém antes de saber disto. dá sem.pre que pens~r'. dois [~ret.et~dcntcs :~s1g.11ificantes, cada um por s1. poclenam ter um cle1lo prCJUd1.cial por H<l <la
rc~pectiva relatividade. Ora cstou para ver se nao havena de eslar um
é
é
67 Jcannc d' Are ( 1412-1431) disfarcrou-se de soldado para comba ter e derrotar os ingleses durante a Guerra dos Cem Anos, coroou Carlos VII na Catedral de Rcims cm 1429
e vcio a ser santificada.
.
<>8 «Realitel» na primeira ocorrencia de «realidade», «Virkligh~d» na segu1ntc. Vd.
nola!> 32 e 44 no capítulo «O Rcflcxo do Trágico Antigo no Trágico Moderno». e tamhém oulras ocon-encias esparsas. assinalaclas na nota 65 do capítulo ,«S1lhuctas» e
adianle na~ notas 69 e 105. A~ ocorréncias assinaladas na nota 39 do capitulo <<A Rota\<io de Cultura~». bem como a nota 15 no capítulo «O mais Infeliz», conslituem o~ do1!>
ca,o:-. 111;1is rclcvanles do uso de «lfralil<'I».
380
Ou
amante <lestes escondido, sem ter coragcm para tomar a casa de assalro.
urn Iadráo de galinhas, que nen huma oportunidade vé cm sernclhante casa
conventual.
horncm bo11i10, bastante agradável, um tanto tímido. e achoque este último
trace nao o prcjudica aos olhos dela.
Por conseguinte, o princípio estratégico, a lci para todos os movimentos
desta carnpanha, é atingi-la scrnpre numa situacño intcressante. O interéssanto é portanro o campo no qua! há-dc travar-se o combate, tcm de esgotar-se a potencia do inreressante. Se uu nao cstiver multo enganado, cntáo,
toda a sua constituicáo está também assim calculada: aquilo que eu exijo
justamente aquilo que ela pode dar. é efectivamente aquilo que ela exige. É
isro que acontece quando se está espreita daquilo que o indivfduo singular
pode olerecer, e do que ela exige em consequéncia disso. Por isso, as minhas historias de amor sernprc rém urna rcalidade''? para mim próprio,
constituem um momento de vida, um período de formacño, do qual tcnho
conhccimcnto preciso. associando-sc-lhe
amiúde urna ou outra habilidade;
aprendí a dancar por culpa da primcira rapariga que umei, aprendí a falar
francés por culpa de urna pequena bailarina. Ncssa altura. como lodos os
palcrmas. ia ao mercado e era frequcnte favcrern de mim parvo. Agora vou
dormir dcpois dos lances prévios. Talvcz cla haja entretanto esgotado um
lado do interessante. a sua vida reclusa parece sugerir isso. Portento. importa encontrar um out ro lado que a primeira vista nem lhe pareen intcrcssante,
mas que precisamente por motivo dcsra colisüo se torne para cla intcrcssante. Para tal fim, nfto escolho o poético, mas o prosaico. Eis pois o comeco,
Prirneiro neutraliza-se a sua feminilidadc com sensatez e troca prosaicas,
nao directas, mas sim indirectas, em conjunto corno neutral absoluto: cspírito. Diante de si mesma quasc perde a sua ferninilidadc. mas ncste estado
nao é capaz de ficar sozinha, lanca-sc nos mcus bracos, nao como se eu
fossc urn amante, náo, ainda de um modo completamente neutral, 13361
desplata agora a fcminilidade, estimula-se até que atinja a sua máxima
elasticidadc, deixa-sc que scja confrontada com uma ou outra validado real.
ela ultrapassa-a, a sua feminilidadc aproxima-se de um pico quase sobrenarural, pertcnce-rnc com toda a paixáo do mundo.
é
á
Dia 5
Nao necessitei de andar muito. Ela é visita da casa do arma¿enista Ba.x1er. Na.o foi só ela qucm eu cncontrci aquí, também cncontrci alguém que
veio rnesmo a calhar. Ed11ard, o filho da casa, está perdidamente apaixonado por ela, hasta que se olhc só com um olho meio aberto, quando se oUrn
para os clois olhos dele. Est<í frente do ncgócio no escritório do pai, é um
a
C.9 Aquí, «Rea!itet».
·
oo.
IJ111 1·111¡1111~•111<>
381
de Vidu
Coitado do Edvard: Ele mal sabe como há-dc dar comcco ao scu amor.
Quando sabe que cla vcm a tarde, ra1. a sua toilette unicarncntc por causa
dela, veste o fato preto novo unicamente por causa dela, poe os punhos
unicamente por causa dela, e quase faz assirn urna figura ridícula entre a
restante companhia de todos os días na sala de estar. O embarace dele roca
o inacreditável.
Se fosse urna máscara. entáo. para mim. Edvard seria um
concorrente perigoso. É preciso urna grande arte para utilizar o embarace,
mas também muito se alcanca por scu intcrmédio. Quantas vczcs cu nao
utilizci já o embarace para ludibriar urna jovcnzinha, É comum as jovcns
scrcm rnuito duras quando talam de horncns tímidos e, contudo, ás escondidas, tém-nos cm grande conta. Um pouco de embarace lisonjeia assim a
vaidade de u ma menina, ela sen te a sua superioridade, é a jóia de inscric;íio.
Ora quando foram deixadas neste embalo. entao,justamente através de uma
oportunidade em que elas teriam de acreditar, mostra-se que se morreria de
embara90, que se está longe disso, e que se pode muito bem seguir sozinho.
Por vía do embara<;o pcrde-sc a significa9ao viril e, por isso, tamhém é um
rncio rclaLiva1ncnte
bom para neutral·i1.ar a rclac;ao entre os sexos; quando
pois reparam que era apenas uma máscara, coram ele vergonha por dentro,
sentem muito bem como em ce1ta medida extravasaram os seus limites;
13371 é corno se continuassem durante demasiado tempo a tratar um rapaz
corno crian\:ª·
Día 7
Ora bem, já somos entao amigos, o Edvard e eu: uma verdacleira amizade, há urna bela rela9ao entre nós, como nao havia desde os mais belos dias
da Grécia70. Em breve ficámos íntimos,já que eu, depois de o ter enredado
numa multipl'icicladc de ohscrva96es com rcspcito a Cordclia. fiz com que
ele confessassc o scu scgredo. F:ntcnda-sc: quando todos os scgrcdos vcm
ao mesmo tempo, esll: também pode vir com des. Pobrl: rapa¿, jú suspi.rn
há rn.uito. Aperalla-se lodas as vezcs que da vem, em seguida acompanha-a a casa ao fim d.o dia, palpita-lhe o corac.;ao só de pensar que o bra<;o dela
descansa no seu, passeiam até casa olhando as estrelas, ele toca campai-
a
70 Possívcl alusiio i.\ runizade de Aquiles e Pátroclo, e ao respectivo trntamcnto cm
fornes várias: Hornero, !líada,cantos: 9. v. 308; 11, v. 780, 16, v. 2; e 23. v. 54; Píndaro,
Odes Olímpicas, IX; Ésquilo. Os iHirmidoes,primeira pe~a da trilogia perdida 11quileia.
vv. J 35-136: Eurípe<les, lfigéniaem Áulide; Plaüío, Banquete. l 79e; e Estkio. Aquileido. VV. J61, 174.182.
382
So1c11 Kic1kcgaard
nh~ ~a porta, ela ~csaparccc, ele desespera -
111as Iica na cspcranca da
proxima vez. Ele ainda nao ganhou coragern para por os pés para alérn do
umbral da porta. ele, que tem urna oporrunidadc tao excepcional para 0
fazcr. Aposar de. no sossego da minha mente. nao poder dcixar de fazcr
tro9.a de Edvard, há rodavia algo de bonito na sua infantilidade. Apesar de
ha?rlualmente cu ter a prctensño de estar bastante habilitado em toda a
qu11~1e~scncia do erótico, nunca obscrvei cm mim mesmo este estado, esta
angustia e. tremer do enamoramento, digamos, pelo menos nurn grau que
roube ª. minha compostura, pois de resto até sei bastante bem o que é, mas
p~ra rrurn é antes c~mo se me ~ornasse rnais forre. Talvez vcnha alguém
dizcr que nunca.c.s11ve ~erdade1ramente enamorado; talvcz. Envcrgonhcí
Edvard e cnccrajci-o a fiar-se na minha amizadc. Amanhíí ele vai dar um
passo decisivo, vai ter com ela pcssoalmente e fazcr-lhc um convite. FiL
com q~JC chegas.se
desesperada idcla de pedir-me que fosse corn ele;
promcti-lhe que ia. Iomou isto como um extraordinario acto de arnizade. A
oportunidade é intciramcntc o que cu dcscjava:
entrar de romparue portas
adent.ro71. Se cla houvcr de ter a rnai remota dúvida sobre a signitica9iio
da minha condura, cnrño, a rninha condura rudo ha-de confundir outra vez.
.ª
é
13?81 Até
aquí nao eslava habituado a preparar as minhas conversas,
mas
surgru-rne ~g~ra a ncccssidade de entreter a tia. Assumi designadamcnte a
honrosa mrssao de marncr conversa corn ela. dando cobertura aos movime~tos apaixonados de Edvard para com Cordelia por cssc mcio. A tia
havia cm tempos vivido no campo. e qucr através do mcu cuidadoso estudo
de textos de agronomía. quer através das cornunicacócs da tia baseadas na
s~a ~x pcriéncia, faco pro gres sos significativos
cm conhccimcruo e competencia.
Junto da tía culmina a rninha fclicidade, tern-rne na conta de ser um
homcm assente e esuivel, corn qucm é justamente possível ter o prazcr de
e~tabelecer relacñcs, que nao é como os nossos janotas. Junto de Cordelia,
n~o .n.1c par~cc que ~stcja partic~larmente bern visto. É cerro que a sua fem111il1dacl~ e demasiado pura e mocentc para exigir que qualquer urn lhe
renda prcuo, mas sentc todavía o que há de insurrecto na rninha existencia.
Quando e~tou assim sentado na confortávcl sala de estar, quando ela,
como um <lllJO born, espclha graciosidadc sobre rudo e sobre todos os que
71 No original, «at jalde 111.edD11re11 ind i S111e11», expressño idiomática usada para denotar
urna conduta.. fogosa. rmpetuosa· e .precipitada· , vd · e . Molbech • D011\'._e
' orasprov;
t.
,.
Tankesprog og R11mspror; 1 Provérbios.
Ditados e Lengalengas
nhaga. 1850. p. 309; doravante esta obra
é
Dinamarqueses
referida pelo nornc do autor.
l.
Cope
Ou
Ou.
lJ111 1•1.1¡•11111110
d1
1d.1
183
cm contacto co111 cla, sobre o bcm e sobre o mal, rico cntáo por
vczes impaciente comigo mesmo, tentado a . air bruscamente do meu escondcrijo. pois ernbora csteja na sala de estar uos olhos de todos, estou
rodavia de atalaia: fico tentado a agarrar-Ihe na rnño, a torná-la toda nos
bracos. a esconde-la dentro de mirn, com medo ele que alguérn houvcsse de
urrcbatá-la de rnirn. Ou quando Edvard e cu a deixamos ao firn da tarde,
quando ela me cstende a máo para se despedir, quando a seguro na minha,
torna-se-me difícil por vezes deixar que o pássaro se escape da minha máo.
Paciencia - quod antea [uit impetus, nunc ratio es172 cla tem de ficar
enreciada na minha teia de urna rnaneira completamente diferente, e deixarci cntiío que de repente todo o poder do amor73 avance impetuosamente.
Niio estragámos essc nosso momento com palavrinhas doces, com antecipa~oes intempestivas, podes agradece-lo a rnim, minha Cordelia. Trabalho
para desenvolver o contraste. estico o arco do amor para assim ferir mais
fundo. Afrouxo a corda. tal como um arqueiro, cstico-a oulra vez, escuro o
~cu cantar, é a minha música de guerra, mas aincla nao viso o alvo. ainda
niio ponho a flecha na corda.
cntram
13391 Quando um número diminuto de pessoas cntram em contacto frequcnte urnas com as ou1ras na mesma sala, facilmcnte ~e dcscnvolve uma
1rndi~ao segundo a qual cada um temo seu lugar. o scu poiso. que se torna
para o indivíduo urna imagcm que, para si. pode clescnrolar um mapa do
1crreno. É assim que também nós, reunidos cm conjunto. formamos agora
uma imagem cm casa das Wahl. A tarde. bebe-~e entao chá. Na gcneralidadc. a tia, que até af estcve sentada no sofá. muda-se para a mesinha da
rn::,tura, de onde Cordeliu por scu turno se levanta. dirigjndo-sc para a mede chá cm frente do sofá; Edvard vai atrás dela, eu vou atrás da tia. Bdvanl procura secretismo. quer sussurrar. cm gcral faz isso tao bem que
cmudcce por completo, eu nao fa90 qualqucr segredo das mirthas efusoes
com a tia, prer;os ele mercado. o cálculo ele quantos potcs7" de leite sao
precisos para urna libra de manteiga, por entre o mcio da nata e a dialéctica
da hateclcira ele manteiga; é realmente uma coisa que qualquer rapariga
JOvem nao só pode simplcsmente ouvir, scm daí retirar prejufzo, mas, o que
ainda é maís raro, é urna conversa<;ao sólida, fundamentada e edificante.
que tanto cnobrcce a eabe<;a como o cora9ao. Na gencralidade. scnto-me de
costas para a mesa de chá e de costas parn a exalta9ao de Edvard e de Cor-
'ª
72 lnvcrs:ío do procedimento de Ovídio in Remedia Amoris IOs rcmédios do amor]. v.
1 O: «el q11od 111111c rmio est. i111pe111s ame /11il>>. «O que agora é razao. antes fora ímpcto»:
l'dii;:ao i:onsullada pelo autor: Opera. vol. 1, p. 321.
71 Aquí. «Elsfov».
7•1 Um pote de lcile equivalía a 0.9() litro.
384
Ou
delia, a minha cxahacáo com a tia. E nao a nuturczn grande e sábia 1ia\
suas criacóes? e nao a manteiga um presente incstimávcl? e como magnífico o resultado da narureza e da arte! A tia nao estaría deceno cm condieñes de ouvi.r aquilo de que se fala entre Edvard e Cordelia. pressupondo
que se cstava realmente a fular de aJguma coisa; prorncti-o a Edvard, e
mantenho sempre a minha palavra. Ao invés. sou capaz de ouvir perfeitamente cada palavra que é trocada e de ouvir cada movirnento. lsto para
mim de importñncia, pois nao possívcl saber o que pode um homern, no
seu desespero, cair cm arriscar. Os homcns mais prudentes e mais pusilñnimes atrcvem-se por vezes a fazcr as coisas mais desesperadas. Embora cu
nao tcnha de facto o mínimo a ver com estas duas criaturas, sou todavía
rnuito bcm capaz de reparar que. para Cordclia, cu sou permanentemente
urna prcscnca invisível entre cla e Edvurd.
é
é
é
é
é
é
Mm. que imagcm peculiar formamos nó os quatro. Se cu pensar em
imagens conhccidas, cntño, conscguiria scm düvida encontrar urna analogia, desde que, para rnim proprio. eu pcnsassc cm Mephlstopheles'í; a di[iculdade reside entrctanro 13401 no facto de Edvard niio ser Fausto nenhurn 1<•. Se cu fizcr de mirn um Fausto, a dificuldadc subsiste, por scu
turno, no facto de Edvard nao ser seguramente ncnhurn Mcfistófcles. Tumbém nao sou um Mcñstófclcs,
muito menos aos olhos de Edvard. Ele
considera-me como o génio born do scu amor, e nisso faz ele muito bcm,
pelo menos pode estar seguro de que ninguém é capaz de vigiar o amor
dele com mais solicitudc do que eu. Promcti-lhc que rnantinha conversa
com a tia, e encarrego-rnc dessu honrosa missño com toda a scricdadc, Aos
nossos olhos, a tia quasc desaparece por entre agronomía pura e simples:
vamos a cozinha e a Cave, ao SÓtaO, tratarnos de galinhas e patos, gansos,
cte. 'ludo isto escandaliza Cordclia. O que eu propriamentc pretendo, é
obvio que ela nao conseguc conccber. Torno-me para cla um enigma. mas
um enigma que nao lhc traz a rcntacáo de querer adivinhar. antes a exaspera, deixando-a mesmo indignada. Sentc multo bcm que a tia quasc se torna
ridícula e, contudo. a tia é urna senhora tao digna de respcito que nao merecia isto, seguramente. Por outro lado, cu taco rudo tao bem feíto que ela
sentc rnuito bem que seria baldado procurar levar-me a vacilar. Chego por
75 Em Janeiro de 1844, Kicrkcgaard cscrevcu um esboce para u111 segundo «Diario do
Sedutor» com o utulo «Forforerens Dagbog / Nr. 2 / Et Forsog i del Dtrmoniske / af /
Johannes Mephistoptteles», ou seja, «Diario do sedutor /número 2 / Urn ensaio no demoníaco f por Johannes Mcphistophcles»; vd. JJ:l83, SKS. vol. 18. p. 199.
76 As pcrsonagcns de Faust de Gocthc sao alvo de tratamento extensivo no capítulo
«Os Estádios Eróticos lmcdiaros ou o Erótico-Musical»,
para o caso de Fausto, e em
«Silhuctas», para o caso de Margarctc. Mefisrófeles é mencionado apenas cm «Diário
do Sedutor».
011 l 1111 l•1111•111111to
cl1 Vul1
vczcs a ir tao lougc que lm;o corn que Cordclia sarria da tia rnuito as escondidas. Sño cstudos que térn de ser feitos. Nño é como se o fizesse em conluio com Cordclia, longe disso, enrño, nunca eu a levaria a sorrir da tia.
Permanece inaltcrávcl e seriamente circunspecto, mas eta nao pode deixar
di! sorrir, Esta a prirncira li9ao de falsidadc: ternos de cnsiná-la a sorrir
irouicamcntc: mas este sorriso tcm tanto a ver comigo como coma tia, pois
cla ncm scqucr sabe o que há-dc pensar de rnim, Era até possível que eu
tosse um homern jovem do género daqueles que se fazern velhos demasiado cedo, isso era possível; era possível urna segunda coisa. urna tcrccira,
cte. Quando pois ela sarria da tia, entiío, ficava indignada consigo própria,
cu voltava-me e, enquanto continuava a falar com a tia. olhava-a muito
sério. e cntao, eta sorria de mim e da situa9ao.
é
A nossa rcla<;ao nao é fcita de abra9os ternos e apcrtados do cnti.:ndimento. de atraci;oes, é feita de rcpulsócs de mau cntendimcnto. A minha relar;ao
com cla ncm sequer é propriamcnlc nada; é puramente espiritual, o que
obviamente nem sequer nada é muna rela¡,;ao com urna rapariga jovem. O
método que eu ora emprego tem todavía extraordin:Jrias conveniencias. Um
homem que apare~a como cavalhciro desperta suspcita e levanta 13411 opo!.i9ao concra si próprio; fico isento de todo este tipo de coi-;as. Nao me vigiam. pelo contrárío, antes preferem olhar-me como um homem fiável,
feito para guardar urna menina jovcm. O método incorre apenas num erro,
é ser lento, mas. por isso, pode ser posto em prática nos indivíduos no.
quais o inreressante é o que se ganha. e s6 com vantagens.
Mas que poder rcjuvencscedor nao cem urna menina jovem; ncm a freltcura da hrisa matinal, ncm o murmúrio do vento, nem o frescor do mar,
111.:m o odor do vinho, nem o seu aroma - nada no mundo tcm esle poder
rejuvene!>Cedor.
Tenho esperanc;a de em breve fazer com que chegue ao ponto em que me
odeia. Assumi completamente a figura de um soheirao. Nao falo de outra
coisa que nao seja estar bcm sentado, ficar confortável, cer um criado de
cnnf'ia119a, um amigo com urna boa posi9iio77, com qucm se pode jul>tamentc contar quando se caminha com ele de bra90 dado. Consiga eu faLer com
que a tia abandone as consídera9ocs sobre agronomia, e entíío, conduzo-a
para outro campo de modo a propiciar uma ocasiao mais directa para a
ironía. É possível rir de um solteirfto, ter até alguma compaixiío dele, porém, um homem jovem. que até nao é de!:iprovido de espírito, com uma tal
77 Aqui. «Fodjleste>>, termo que designa tanto urn «andar firme». ou «terra firme», como «boa posir,;ao na vida».
386
387
conduta ultraja urna jovem menina; toda a significacáo do scu sexo, a bcleza e a poesía dela sao aniquiladas.
Assim passam os días, vejo-a, mas nao falo corn ela, falo com a tia na
sua presenca, Urna noite destas, pode ocorrer-rne dcsabafar o meu amor.
Lé vou eu entáo embrulhado na minha capa. com o chapéu enterrado até
aos olhos, até dcbaixo da janela dela. O seu quarto de dormir dá para o
pátio, mas como a casa é de gavcto, visível da rua. Por vezes, cla chega
junto da janela por um instante. ou abre-a, olha as estrelas, dcsapcrcebida
de todos, mas nao daquclc que ela ere ser qucm menos do que todos se
apcrccbc dela. Nessas horas nocturnas rondo por ali como um espírito,
como um espírito habito o lugar onde cla mora. Esqueco entáo rudo, nao
[aco quaisqucr planos, quaisqucr cálculos, deito fora o cntendimento, dilato 13421 e revigoro o meu peito com suspiros profundos, urna movirncntacño de que ncccssiro para nao sofrer com o que há de sistemático na
minha condura. Outros térn virtudc durante o clia, e pecam de noitc, cu
tcnho dissimulacáo durante o dia, de noitc sou puro desejo ardentc. Se ela
me visse aquí, se cla pudessc olhar dentro da minha alma - se.
é
Se esta rapariga se cntcndesse a si mesma, tinha de admitir que sou ho-
mcm para ela. Ela é demasiado impetuosa, de urna ernotividadc demasiado
profunda para ser feliz no casarncnto; seria exccssivamente pouco fazé-la
cair por um sedutor puro e simples; quando cla ficar caída por mim, entáo,
salva o interessante dcssc naufragio. Ern rclacáo a mim, ela tcm de fazer
aquilo que os filósofos dizern com urn jogo de palavras: zu Grande gehnl",
Ela está realmente farra de ouvir Edvard. Tal como sernpre acontece
quando se estipula limites estrcitos ao interessantc. entño, descobrc-sc ainda mais. Escura por vezes a minha conversa com a tia. Quando reparo
nisso, surge entáo urna insinuacño brilhante ao longe no horizonte vinda de
urn mundo completamente diferente, para espanto tanto da tia quanto de
Cordel ia. A tia ve a luz, mas nada ouve, Cordelia ouve a voz, mas nada ve.
No mesmo agora tudo regressa a sua ordem tranquila, a conversacáo entre
mim e a tia progride no seu passo monótono, tal como os cavalos da malaposta na calma da noite; a nostalgia do samovar acompanha-a. Em sernelhantes instantes pode entño instalar-se por vezes algum incómodo na sala
de estar, especialmente em Cordelia. Nao tcm ninguém com quem fa lar ou
a quem escutar. Se se virar para Edvard, corre cntño o perigo de que ele,
no seu embarace, de um passo errado; se se virar para o ourro lado, para a
tia e para rnim, a seguranca que aqui domina, o martclar monótono da
conversacáo cadenciada, <liante da inseguranca ele Edvard, faz surgir o
mais desconfortável dos contrastes. Sou muito bem capaz de compreender
que. para Cordclia, tenha de parecer que a tia está como que enfcitlcada,
movcndo-sc cla tao completamente ao ritmo do meu cornpasso. Também
nao pode tomar parte neste entretém, visto constituir urn dos rneios que eu
rarnbém cmprcgo para provocá-la, pcrmitindo-mc cu tratá-la cabalmente
como urna crianca. Nao como se, por esse motivo, cu houvcsse de dar-me
a qualqucr tipo de liberclade diante dela, longc disso, sci muito bem quáo
perturbador isso pode ser 13431 e, ern particular, importa que a sua fernini1 idadc, por scu turno, possa crgucr-sc pura e bel a. Ten do cm con ta a m inha
íntima relacáo corn a tia é para mirn fácil trata-la como urna enanca que
nao possui entcndirncruo do mundo. Oeste modo, a sua feminilidade nao é
ofendida, mas simplesmcntc neutralizada, visto que nao ter inforrnacócs
sobre os preces do mercado nao pode ofender a sua lcminilidade, mas
pode dccerto irritá-la que tal coisa constitua o máximo que M na vida. A
tia excede-se a este respeito como meu poderoso apoio. Quasc que ficou
fanática, algo que pode bem agradecer-me. A única coisa que ela nao aprova em mimé cu nao ser coisa nenhurna, Ora cu introduzi o hábito <le dizer,
de cada vez que se fala de um lugar vago num cmprcgo: «é urn lugar para
mim», e em seguida conversar multo seriamente com cla sobre o assunto.
Cordelia repara sernpre na ironía, simplesmente isso que eu quero.
é
78 Em alcmiío 110 original: «iJ· ao fundo». Exprcssiio usada no sentido ele «arrninar-se>>,
e, aqui, simultancamente com conotac;:iío hegeliana, i. c., algo conseguir fundamentar-se; vd. Hegel, Wis.m1srlwftder Logik [Ciencia da Lógica] 11, Werke. vol. IV, p. 156:
Jubiliiums. vol. IV. p. 634 e Suhrkamp, vol. VI, p. 159: «Die erscheinende Welt hat an
der wesen1liche11 Welt ihre negative t:inheit, in der sie zu Gnmde 1111d in die sie als in
ihren Grund zurückgeht» [«0 mundo fenoménico encontra no mundo da essencialidade
a sua unidade negativa. no qual vai ao fundo e para o qual retorna enguanto seu fundamento»: tradu9iío de José Miranda Ju:;t.ol. 1 lciberg faz menc;:ao ao tópico em Grundtra;k
lil f'hilosophiensPhilosophie eller den speculative !,ogik. Som Ledetraad ved Fore!tesninger paa den kongelige mili/aire H(!iskole [Elementos de Filosofía ou Lógica Especulativa. Como Guia para as Conferencias na Escola Real MilitarJ.
as Seidelin. 1832, § 74, p. 32f.
Copcnhaga, Andre-
Coitado do Edvard ! Que pena nao se cha mm· Fritz. De cad¡¡ vc7, que n¡¡s
minhas cogita9oes me detenho na minha rcla9ao com ele, dou semprc comigo a pensar no Fritz de Bruden19. Além do mais, a semelhani,:a do seu
protótipo, Edvard é cabo na guarda civil. P¡¡ra ser honesto, Edvard tambéTn
79 Fritz, um noivo que perde a sua noiva. é a pcrsonagem principal da ópera La Fimu:ée
JA NoivaJ de 1829. música de Danicl-f-'ran9oi:.-Esprit
Auber (l 782-1871 ), e libreto de
Augustin Eugcnc Scribe, contando com quarcnta e quatro récitas entre 183 J e 1842.
A tradu9ao para dinamarques é de J. L. J-leiberg: Bruden [A Noival, Del ko11geli1<<'
The(llers Repertoire LRcpe1t6rio do Teatro Real 1 n." 35, Copenhaga. 183 l.
388
Ou
é bastante cntedianre. Nao agarra bern 110 assuruo, e compnrccc nos cncontros sempre aperaltado e tenso. Por amizadc a ele, uuter uus gesa~1x0, vou
a éstes encontros tao clesleixaclo quanto possívcl. Coitado do Edvardl A
única coisa que quase me faz sentir mal é o facto de ele me estar tño infinitamente reconhecido que quasc nao sabe como há-dc agradecer-me.
Deixar que ele me agradeca por isto é realmente demasiado.
pladsil3 ... Quanto tempo pode decorrcr até aí? penso que cerca de meia hora.
A urna e meia cm ponto chego eu vindo da 0stergade. Ora quando aquele
destacamento ti ver conduzido os amantes para o meio da praca, desferi cntño
contra eles um violento ataque, por vía do qual arrebatareis igualmente o
chapéu dela. despenteai-lhc os caracóis, arrancai-lhc o xaile, enquanto, no
mcio disto tudo, o chapéu dele sobe rejubilante no ar cada vez mais alto; em
suma, produzi urna confusáo, de tal modo que o respeitável público. nao
apenas eu, rebcntc a rir as gargalhadas, os caes comecern a ladrar. o guarda
da torre toque o sino. Arranjai as coisas de tal modo que o chapéu dela voe
até mim, que scrci o fclizardo que há-dc dcvolver-lho. - Eis a segunda. A
seccáo que vem atrás de mim obedece a todos os meus sinais, maruérn-sc
dentro dos limites do decoro, nao ofende nenhuma rapariga bonita, nao conscntc a si mesma qualqucr liberdade maior do que, debaixo de todo este
gracejo, poder a sua alma infantil manter a alegria, os lábios, o sorriso, os
olhos, a tranquilidade e o coracño, permanecer sern angustia. Se um de vós
ousar comportar-se de maneira diferente, maldito seja o vosso nome. - Ora,
ide ernbora para a vida e para a alegria, para a juventudc e para a bclcza:
mostrai-rnc o que arniúde eu vi, o que nunca me canso de ver, mostrai-mc
urna bela e jovcm rapariga. 13451 estcndci diantc ele mim a sua bclcza de tal
modo que fique cada vez rnais bela; cxaminai-a de tal modo que cla retire
alegria dessc cxarncl - - - Escolho a Bredgaden84, porérn, cmno sabeis,
s6 posso dispor do meu tempo até i1 urna e rucia. - - - Yem ali urna jovern
rapariga, rnuito arranjada e aprurnada, sim, hoje tambérn
domingo ....
Rclrcscai-a urn bocadinho, abanicai-a com frescor, deslizai sobre ela cm suaves correntes, enlacai-a como vosso inocente toque! Como eu pressinto o
lino rubor das faces, os labios tingern-se mais Iones, o peito soergue-se ...
Níío vcrdade, rninha menina, é indescritível, nao um desfrute sumamente
feliz inalar esta fresca aragern? O pcqueno colarinho agita-se corno urna folha. Como ésa e funda a sua respiracáo. O seu passo abranda, quasc levada
pela suave brisa, corno urna nuvern, como um sonho .... Vcntai um pouco
mais forte, com o sopro mais prolongado! ... Ela cornpóe-sc: os bracos
ccrram-se contra o peito que ela cobre com maior cuidado, nao v{J urna lufada ser demasiado insistente e csgueirar-se ágil e refrescante sob a leve cobertura ... o seu rubor fica rnais sadio, as faces tornam-sc rnais cheias, os olhos
mais transparentes, o passo rnais ritmado. Toda a tenta9ao85 embeleza urna
Mas porque nao podeis vós ficar sossegadinhos? Que ourra coisa havcis
andado a íazer toda a rnanhá além de abanar o meu toldo, puxar pelo mcu
espelho reflector e pelo respectivo cordel, brincar com o Iio da carnpai nha do
rerceiro andar. cmbatcr nos vidros da jancla, cm suma. proclamar a vossa
existencia de tocias as manciras, como se vos pusésscis a acenar para sair
fora convosco? Sim, o tempo está bastante born, mas nao sinto desejo nenhum, dcixai-mc ficar cm casa ... Zéfiros81 traquinas e foliñcs, alegres rapazcs. podcis ir sozinhos; achai divertimento como sempre comas jovcns raparigas. Sirn, cu sci que ninguérn
tao entendido 13441 em matéria de scoucso
como vós quanto a abracar urna jovem rapariga; cm vao procurará cla
escapar-vos, nao conseguirá desenredar-se do vosso laco - e também nao
qucrerá fazc-lo, j{i que vós, frescos e refrescantes, nao inflamais ... lde pelo
vosso caminbo! Deixai-me fora disso ... Entao. sois da opiniao que deleite
nen hum tendes. nao o fazeis por vossa própria causa ... está bem, cu vou
convosco: mas com duas conclis,:oes. Eis a primcira. F:m Kongens Nytorv82
vive urna jovem rapariga, é rnuit.o lindu, mas t·em ao mesmo tempo o clescaramento de nao querer amar-me, sim, pior ainda, ama outro. e as coisas
chegaram tao longc que já andam a passear de brnc;o dado. Sei que ele vai
buscá-la a uma. Ora promctei-me que os rnais fo11es sopradores de entre vós
pennaneccm escondidos na vizinhan'ra até ao instante cm que ele sair corn
ela pela porta da rua. Nesse preciso momento em que ele virar para clescer a
slore Kongensgade. irrompe esse destacamento, tira-lhc o chapéu da cabcc;a
do modo mais cortes, e leva-o nurna corrida constante, a sua frente, precisamente a distancia ele urna vara; mais rúpido, nao, pois seria concebível que
ele voltasse para casa outra ve7.. Continua a acreditar que vai apanhá-Jo no
segundo seguinte; nem sequcr lhc larga o bra90. Conduzi ambos dessa maneira pela storc Kongensgade, ao longo do aterro de N~rrepo1t até H1<1ibroé
80 Em alemao no original: «dito entre nós».
81 Zéfiro. na mitologia grega, o vento do Oeste, era o mais suave de todos os ventos,
desempenhando papéis de mcnsageiro, de portador de situa9oes favoráveis e de anunciador da chegada da Primavera.
82 Trata-se da pra<;a onde se situa o Teatro Real, literalmente «Pra9a do Reí».
Ou.
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389
Vida
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83 Prcu;;a situada junto do Palácio Christiansborg, cuja designa<;i'ío significa «Pra<;a da
Ponte Alta>>. O percurso descrito é bastante longo, panindo do centro da cidade e percorrendo as muralhas que <1 conlornam a leste e a norte. terminando junto ao palácio.
84 Rua de Copenhaga cuja designa9ao significa <<Rua Larga».
85 Aqui, «Anjreg1else», termo correspondente ao alcmao «A11fech111ng». Vd. nota 29 uo
capítulo «O Primeiro Amor».
390
011
pcssoa. Qualquer jovcrn rupariga dcvcria apaixonar-sc
pelo véfiro, jiÍ que
homem nenhum tem todavía entcndimcnto para elevar a sua bclcza como
aquclc que lula com cla .... O scu corpo inclina-se ligciramcnrc paran frente.
a cabcca olhu para a ponla dos pés .... Parai urn pouco! É demasiado. n figura alarga-sc-lhe, perde a sua bela pcqucnez .... Rcírcscai-a um pouco! .... Nao
mais galhotclrn? \) ve1110. porérn , nao abranda, antes aumenta ... Agora, ao
lado urn do out ro. sao varridos a todo o pano pela rua abaixo ... Será alguma
valsa capaz de arrebatar consigo urna jovem de mancira mais sedutora? o
vento, porém, nao cansa, antes transporta ... Agora viram-se para o marido
e para o cunhado ... Nao
verdade que um pouco de resistencia é agradavcl, luta-sc com gosto para se ficar na posse daquele que se ama; e chega-se
muiro certamente aquilo por que se luta, há urna providencia superior que
vem cm auxílio do amor, vede. por isso o homem tcm o vento a seu favor ...
Nao dispus cu tuda da maneirn ccrta!. quando se tcm o vento pelas costas,
pode facilmenlc condu1.ir-se a amada na frente, mas quando se tem vento
contra, ocorre um agradável movimento, voa-se na direc9ao da amada, e as
lufadas de vento fazem com que um indivíduo parc~a mais sadio, mais
tentador, mais sedutor, e as lufaclas de vento arrefecem o fruto dos lábios.
o qual prcfere ser saboreado frío, porque é tao escaldantc como o champanhc que escalda quando está praticamcnte gelado ... Como eles se riem e
convcrsam, - e o vento leva-lhcs as palavras - l lavení pois, aqui e agora,
alguma coisa de que se possa falar?
e voltam a rir-se e a inclinar-se com
o vento, e a segurar o chapéu, e a acautelar os pés ... Ora parai. para que as
jovens nao se impacientcm. e nao se zangucm connosco. ou nos recciem!
- É assim mesmo, decidida e firme, a perna direita a frente da esquerda ... Como ela, intrépida e atrevida. percorre os olhos 13471 pelo mundo ...
, e vejo bem. vai de bra\:O dado com um deles. está noiva, portanto. Vejamos agora. minha filha. que presente recchestc tu da árvore de natal da
vida87 ... Ah, sim! Parece ser realmente um noivo muito sólido. Ela está
entao no primeiro estádio do noivado, ama-o - é bem possível, mas afina!
O <;eu amor CSVOarya a !>Olta,
imenso C amplo. a roda dele; possui ainda a
capa do amor capaz de esconder muilos88 ... Soprai ainda! ... Quando se
caminha co111 tanto vigor, nao é pois de admirar que as ritas do chapéu se
retesem contra o vento, parecendo que sao estas, como se asas fossem, a
1ranspo11ar e~ta leve criatura - e o seu amor - que seguc também como
um véu de elfos como qual o vento brinca. Sim, quando !>e ve o amor dessa maneira, entao, parece ser tao amplo, mas quando for envergado, quando
o véu viera ser transformado em vestido do dia-a-dia - nao há sobra para
muitos folhos ... Ai, que Deus nos livre! Quando se tevc a audácia de arriscar um passo decisivo para toda a vida, nao havcria de ter-se entao coragem
verdade, minha menina. que traz refrigério, quando se ficara com calor,
sentir entáo éstes arrepios refrescantes; poder-sc-ia abrir os bracos de gratidáo, de alegria pela existencia ... Vira-se ele lado ... Agora um sopro rápido e
vigoroso para que eu possa pressentir a beleza das formas! ... U m pouco muis
forte! Para que o prcgucado possa cingi-la mais acentuadamentc .... É demasiado! A posicño toma-se fcia, o andar ligciro perturba-se ... Volta-sc novamente ... Soprai agora para que seja posta á proval. .. Basta,
demasiado!
Um dos scus caracóis est(J caído, ... ora vede líi se vos controlais! - - cis
que chega um regimento inteiro a marchar:
Die eine ist verliebt MOi' sehr;
Die andre ware es ~erne.H6
Sim, caminhar dando o braco csqucrdo ao scu futuro cunhado é incgavclmente urna ruim ocupacño na vida. Para urna rapariga é rnais ou menos
13461 o mesmo que para urn horncrn ser amanuense tarcfciro ... Mas um
amanuense tarclciro pode subir; além disso. tcm a sua posicño no escritorio, está lá cm oportunidades cxrraordinárias, nao
isto o que caiu cm
sortea cunhada: ma. cm contrapartida, o avance dela nao é assim tao lento
- se cla subir e for transferida para outro escritorio ..... Soprai agora urn
pouco muis agrestes! Quando se te111 um ponto firme onde se agarrar. é-se
capaz de olercccr bastante resistencia
O centro udianta-sc com vigor, as
a-.as nao conscguiram acornpanhá-lo
Ele agucnta-se bem cm pé, o vento
nño o faz vacilar, demasiado pesado para tal
mas tarnbérn
demasiado
pesado para que as asas consigam lcvanrá-lo do chao. Ele irrompe em frente para mostrar - que tcm um corpo pesado; mas quanto rnais imobili/ado
tica, tanto mais as meninas sofrem com isso .... Minhas be las damas, oxalá
vos preste scrvico com um born consclho: dcixai o futuro marido e o cunhadu de lora, tcntai seguir sozinhas, e havcis de ver como tirar rnaior prazcr
disvo .... Soprui agora um pouco muis suaves! Como eles se reviram com
os golpes de vento: daqui a pouco ficarn perfilado em frente um do outro
na rua .... Será alguma música de danca capaz de produzir urna jovialidade
é
é
é
é
é
86 Em alernño no original: «U111a está completamente 'apaixonada: I « outra gostaria de
estar»: adaptacño (por mudanca de género de masculino para fcminino) de dois ver-os
do poema « Vor der Stadt» f «Di ante da crdade» J de Joscph Freiherr von Eichendorff:
cdicño dispouívcl para consulta do autor: J. r. v. Eichcndorff', Gediclue f Poemas], Herlim, l837, p. 24. Eichendorff', Werke, vols, 1-11, Estugarda: J. G. Coua'sche Buchhan-
dlung Nachfolgcr, 1953: vol. 1, p. 27. Para urna análisc da qucstáo da mudanca de gé
nero, vd. Purvcr, Eichendorff, pp. 19-20.
Ou l
111 J 1.1r1111
11111
d1 \ ida
J91
é
87 Jogo de palavras combinando a imagcm da árvorc da vida, no Éclen (Génc<.i,. 2:9).
e a da árvorc de Natal. elemento incorporado na tradi<;ao das festa~ natalícias na Dinamarca a partir de l 811.
88 Vd. 1Pedro,4:8: «Mas, sobretudo, tendc ardente amor uns para comos outros. porque o amor cobrirá urna multidao de pecados.>> Dc\lC versículo, Kierkcgaard retira os
111ulos do~ dob discurso~ edificante~ publicados simuhancamentc com 011 011.
392
SYJ1<.:11
1 ic1 kcgnurd
para Iazer írcntc ao vento. Quem duvida? cu nao; mas nada de fogosidades,
minha menininha, nada de fogosidades. O tempo é 1.1111 disciplinador severo
e o vento também nao ruim .... Provocai-a urn pouco maisl ... Para onde
foi o lenco? ... afina! acabastes por ficar com ele outra v.ez ... Soltou-se urna
fita do chapéu ... É realmente muitíssimo ernbaracoso para o futuro que
está presente ... Chega uma amiga que ides cumprimentar, É a primcira que
vos ve estando vós noiva; é mesmo para vos mostrardes enguanto tal que
estais aquí na Bredgaden e que pretendeis continuar pela lange Linie89.
Tanto quanto sci, os rccérn-casados cosrumarn ir a igreja no primeiro domingo depois da boda, ao passo que os noivos vño a lange Linie. Sirn, em
geral um noivado tern realmente multo cm cornum com a tange Linie ....
Cuidado, o vento está a levar o chapéu, agarrai-o um pouco, inclinai a cabeca para baixo ... É realmente urna faralidade, mal ha veis cumprirncntado
a amiga, nao dispusestes de tranquilidade para cumprimcntá-la coma superioridade no rosto que urna rapariga que está noiva eleve assumir perante as
que nao cstáo .... Soprai agora urn pouco mais suavemente!. .. Ora eis que
chcgarn os días bons .... como cla se encosta firmemente ao amado,
adianta-sc-lhc a urna distancia tal que conseguc virar a cabeca e olhar para
ele, rcgozijar-sc nclc, na sua riqueza, na sua fclicidadc, na sua esperanca,
no seu futuro ... Ó minha Iilha, tcm-lo cm demasiada conta ... Ou nao tem
ele que me agradecer a mime ao vento o facto ele ter um aspecto tao vigoroso'! E nao tcns tu mesmo ele agradecer a rnim e
suaves lutadas, que
agora te sararam e lcvararn a tua dor para o esquccimento, 13481 o facto de
tu propria pareceres estar tao sa de corpo e cspfrito , tao langorosa, tao expectante?
Eu nao quero um estudante,
Que a noitc se dcitc a lcr,
Antes urn oficial quero ter,
é
as
Que de penas no chapéu anclc.90
Ve-se prontamente em ti, minha menina, há algo no teu olhar ... nao, nao
ficas de modo algum servida com um csrudante... Mas porque justamente
um oficial? Nao haveria um licenciado que tivcssc terminado os cstudos,
nao haveria ele de ser capaz de fazer o mesmo? ... Neste instante nao posso
arranjar-te nem um oficial. nern um licenciado. Em contrapartida, posso
arranjar-te alguma brisa amenizadora .... Soprai agora um pouco maisl. ..
Fizeste bem, atira o xaile ele seda para trás dos ornbros; carninha rnuito
89 Outra das ruas de Copenhaga, cujo nome significa «Rua Longa>>.
90 Trata-se da última cstrofo de urna cam;ao rural mui\Q popular na Noruega; edi<;ao
consultada pelo autor: Brage og ldun, et nordisk Fjcerdingaarsskrifi [Brage e Idun. Um
Periódico Trimestral Nórdico]. cdic.;ao de Poul Frederik Barfod, vol. 11, Copenhaga,
1839, p. 445.
Ou
011.
11111 ht1¡'111\'1110
de Vida
393
lentamente, paro que assirn as faces empalidecam um pouco mais. e o brilho do olhar nao se intensifique tanto ... Assirn. Sirn. um pouco de movimentacáo, em especial com um tempo tao lindo como o de hoje, e um
pouco de paciencia, entáo, recebcrcis o oficial. - É um par que está destinado um para o outro. Que cadencia no andar, que seguranca em todo o seu
porte, asscnte na confianca mútua, que harmonia prtestabilud" em todos
os movimcnros, quanta suficiencia na sua solidez. A sua postura nao leve
e graciosa, nao dancam um com o outro, nao, há neles urna durabilidade,
urna intrepidez, que dcsperta urna esperanca indefectível, que lhes infunde
mutuo respeiro. Aposto que a sua intuicéo da vida é esta: a vida é um caminho. E também parcccm estar destinados a seguir ele braco dado pelas alegrías e mágoas da vida. Harrnonizam-se em tal grau que a dama abdicou da
exigencia de carninhar por cima das lajes ... Mas vós, caros zéfiros, porque
rendes tanto trabalho corn este par? Parece que nao vale a pena fazer reparo deles. Haveria de aí havcr alguma coisa especial a notar? - mas já é
urna e mcia, ala! para Heibroplads.
é
Quem haveria de crer que seria possível calcular tao minuciosamente no
scu todo a historia do dcsenvolvimento de urna alma. lsto mostra como
Cordclia
é
sadia. Na vcrdade, ela
é
urna rapariga notável. Se bem que tran-
quila e tímida, desprctcnsiosa, reside inconscientemente ncla, afinal, urna
colossal 13491 exigencia. - Tornou-sc-rne isto notório, quando a vi hoje
entrar pela porta da rua. É como se a migalha de resistencia que urna lufada
de vento pode oícrccer despertassc ncla tocias as torcas scm que. contudo,
houvessc dentro dela lula. Nao urna rapariguinha insignificante, que nos
desaparece por entre os dedos, tíio frágil que quasc receernos que se parta
ern duas quando a olhamos, mas também nao é urna flor ornamental cheia
é
91 Em Jatim no original: <<harmonía pré-estabelecida». Referencia a formula~ao de
Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) sobre o princípio da harmonia pré-estabelecida,
o qual viabiliza o modo de regula\:ªº das mónadas: segundo este priucípio, cada substancia evolui de acordo coma sua essencia e cncontra-se em correspondencia hannoniosa comas outras substancias; vd.
59-62. Goufricd Wilhelm Leibniz. Phifosophisclle Sc:hrifte11. Essais de théodicée sur fa honré de LJirn, la liherré de l'homme et
f'origi11e du mal, Die Theodizee von der Ciire Gottes. der Frei!teil des Menschen und
dem Urspnmg des Übefs !Escritos filosóficos. Teodiceia. Ensaios sobre a Bondade de
Deus, sohre a Liberdacle do Homem e sobre a Origem do Mal], edi¡;ao e tradU<;ao de
Hcrbert Herring. Frankfurt am Main: lnsel, 1986. vol. 1-II. pp. 159-165. Rdi\:ao consultada pelo aut.or: Herrn Gottfried Wilhclms. Freyherrn von Lcibnitz. Theodicee, das ist,
Versuch von der Giire Gottes. Freyheit des 1Vfe11schen, und vo1n Ursprunge des Büse11.
Hannover und Lcipzig, Im Verlage dcr Forsterischen Erben. 1763. p¡>. 169-176.
**
195
394
de pretensóes. Sou por isso capaz, como se fosse médico, ele observar corn
prazer todos os síntomas no historial da sua saúdc.
Comeco a pouco e pouco a aproximar-me dela no meu ataque. a passar
a um ataque mais directo. Se eu fosse designar esta· rnudanca na minha
carla militar desta família, entáo, diria: girei a minha cadeira para lhe ganhar agora o flanco. lntromero-rne mais com ela, interpelo-a, arranco-lhe
urna resposia. A sua alma tcm paixáo, impctuosidadc e, scm chegar ao
extremo da bizarría por vía de rcflexóes tolas e fanfarronas, tcm urna tendencia para o incomum. A minha ironia sobre a palcrrnicc dos homcns, e
a minha chacota a sua cobardia.ü sua indolencia morna, cativarn-na. Gosta bastante de concluzir o carro do Sol sobre o arco do céu, e de se aproximar demasiado da terra, escaldando um pouco os homens'". No entanto,
nao deposita confianca ern rnim; impcdi até agora qualquer aproximacáo
mesmo no aspecto espiritual. Tern de ficar fortalecida em si propria antes
de cu dcixar que cm mim rcpousc. As vczcs pode muito bcm parecer que
era ela qucm eu qucria tornar confidente da minha maconaria, mas isso
tumbém acontece apenas as veL,CS. cla propria que tcm de desenvolver-se; tem de sentir a clasticidade da sua alma. tern de agarrar o mundo e
ergué-lo. Do progresso que faz, dáo-me canta as suas réplicas e os seus
olhos; nelcs vi urna única e so ve¿ urna cólera de anlquilamcnto. Nao tern
de dever-rnc nada, pois que ha-de ser livrc, sé há amor em libcrdadc, so
ern liberdade há recreacño e eterno divertimento. Apesar de eu estar, designadarnente, a planear que ela venha a afondar-se nos meus bracos como
se fosse urna necessidade natural, esforco-me por levá-Ia a gravitar na
minha direc9ao, entao, importa ao mesmo tempo fazer com que nao caia
como um corpo pesado, mas como cspírito que gravita até outro espírito.
Apcsar ele ha ver ele pertenccr-me, tcrá contudo de nao ser idcntico ao nao-belo, repousando ela em mim como um fardo. Nem t:em de ser para 13501
núm um apendice, no aspecto físico. nem um dever, no aspecto moral.
Entre nós os dois há-de apenas reinar o autentico jogo da liberdade. Há-de
para mim ser tao leve que posso levá-la no meu bra\:º·
t
Cordelia quasc que me mantém cxccssivamcntc ocupado. Volto a perder
o mcu cquilfbrio, nao diante dela quando ela está presente, mas quando
cstou sozinho com da 110 mais estrito sentido. Posso ter saudades suas, nao
de convcrsarmos, mas sirnplesmente de fazer com que a sua imagem passe
por mim pairando; chego a seguí-la secretamente, quando sei que ela saiu,
nao para ser visto. mas para ver. Nurna tarde destas salmos juntos da casa
dos Baxters: Edvard acompanhava-a. Na maior das pressas separei-me
deles, corri para urna outra rua onde me esperava o criado. Ern menos de
nada muclei de roupa, e voltei a encontrá-la sem que ela o suspeirasse. Edvarcl cstava mudo como scmpre. Estou seguramente apaixonado, mas nao
no sentido comum, e tem de tomar-se muito cuidado corn isso, há sempre
conscquéncias pcrigosas: e de facto só se está assirn urna vez. No cntanto,
o dcus do amor cego'". quando se esperto , consegue-se bem enganá-lo.
A arte reside em ser tao receptivo quanro possível ern relacáo a irnpressáo,
saber que impressáo se causa, e que impressáo se obtém de cada rapariga.
Dessa rnaneira é possível estar apaixonado por muitas ao mesmo tempo,
porque se está apaixonado de maneira diferente por cada urna, cm singular.
Amar urna única muito pouco; amar todas é supcrficialidadc: conhcccr-sc
a si proprio e amar tantas quanto [or possívcl. íazcr corn que a sua alma
esconda cm si todos os poderes do amor94 de modo a que cada urna receba
o alimento que lhe está determinado, ao passo que a consciencia capta,
porém, o todo isso o desfrute. isso que é vi ver.
é
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3 de Julho
Edvard nao pode propriamente ter queixas rninhas. Quero multo que
Cordelia fique ernbeicada por ele, para que venha a provar o travo do amor
simples e singelo e, por isso, venha a exceder os seus proprios limites; mas
para tal justamente preciso que Edvard nao seja urna caricatura, pois, se
assim for, nao presta auxílio. Edvard nao se limita a ser um bom partido cm
sentido burgués, o que aos olhos dela nada significa, urna rapariga de dezassete anos nao olha para tais coisas; mas 13511 Edvard tcm várias estimaveis qualidades pessoais, as quais eu procuro auxiliá-Io a colocar soba mais
vantajosa das luzes. Como se fosse urna carnareira de bastidores, um decorador, visto-o tao bem quanto possível, tenclo em conta a prata da casa, sim,
por vezes até lhe ponho em cima algum enfeite emprestado. Quando entáo
seguimos para casa dela é-me inteiramente peculiar caminhar a seu lado. É
para mim como se ele fosse rneu irmáo , rneu filho e, contudo. ele meu
amigo, alguém da minha idadc, o mcu rival. Nunca poderá vir a ser-me
pcrigoso. Por isso, quanto mais eu conseguir elevá-lo, tanto melhor será
quando ele afina! vier a cair, tanto maior será a consciencia que despena
é
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92 Faetonte, filho de Hélio. obtcvc autorizai;:aopara guiar o carro do Sol, mas na.o conseguiu dorníná-lo, e acabou por ser rnorlo por urn raio lan<;ado por Zeus, para evitar que
Faetonte e o carro desgovernado se despcnhasscm sobre a Tcrra. F.di91ío consultada
pelo autor: Nitsch. vol. IL pp. 450 e segs. Vd. igualmente Ovídio, Metamorphoses, vv.
1-339; edi9iio portuguesa: Ovídio, Metamorfoses, tradur;iio de Paulo Fannhousc Alberto. Lisboa: Livros Cotovia, 2007, Livro Il, pp. 58-67: doravante a !racluyao port11guesa
é mencionada pelo respectivo título.
93 Eros, bern como Amor, siio frequentemcnte representados de olhos vendados.
94 Aqui, «Elskov».
396
Svl1c11
1 1c1
"cgu:ud
em Corclelia daquilo que cla despreza, tanto mais impetuoso sed o prcsscntimento daquilo que ela dcseja ardenternente. Ajudo-o a orientar-se,
recomendo-o, ern suma, faco tudo o que um amigo pode fazer por um amigo. Justamente para por a minha frieza em relevo, quasc fico acalorado
contra Edvard. Descrevo-o corno um exaltado. Como Edvard nern scquer
sabe ajudar-sc a si mesmo, entáo, tenho de ser eu a pó-lo cm destaque.
Cordelia odeia-me e tem medo ele mim. De que tem urna rapariga medo?
Do espírito. Porque? Porque o cspírito constitui a negacáo de tocia a sua
existencia feminina. Sao bons rncios a beleza masculina, uma esséncia encantadora, etc. Com eles, tambérn
possívcl fazer conquistas, mas nunca
pode alcancar-sc um triunfo completo. Porque? Porque se está a fazcr guerra a urna rapariga na sua propria potencia e, na sua própria potencia, cla
afinal sernprc a rnais Iortc. Com tais rneios, pode levar-se urna rapariga a
enrubescer, a baixar o olhar, mas nunca possível produzir a angustia indcscriuvcl, cativante, que torna a sua bclcza intcrcssantc.
Nouformosus eral, sed erat facundus Ulixes,
é
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é
et f<1111en aequoreas torsit amore /Jeas.95
Cada urn eleve conheccr as suas torcas. Mas urna coisa que amiúde
me
insurge ver até aquclcs que lem talentos cornportarem-sc de uma rnancira
tao rrapalhona. Realmente, ut:via st:r possível ver prontamente em qualqucr
é
rapariga que fosse vítima clo amor ele outro, ou melhor. do seu próprio
amor, em que sentido cla fora enganada. O assassino bem treinado desfcrc
um determinado golpe, e o polícia experiente reconhece prontamente o
autor do crimc. quando ve a ferida. Mas onde encontrar sedutores sist.e1rníticos destc tipo, oncle encontrar psicólogos destes'! Para a rnaioria, scduzir
urna rapariga significa seduzir 13521 uma rapariga e, posto isto, ponto final;
e conludo, toda uma linguagem está escondida ncste pcnsamento.
Odeia-me - como mulhcr; rcccia-me - como urna rnulher dotada;
ama-me - como boa cabeca que é. Este conflito. desencadeei-o eu na sua
alma em primeiro lugar. O mcu orgulho, a minha obstinacáo, a rninha fria
chacota, a minha mais desapiedada ironía tentam-na. nao como se houvcsse ela de vir a amar-me; níío. nao há seguramente vestígios de tais sentimentes nela, muito menos a meu respeito. Quer rivalizar comigo, Tenta-a
a altiva indcpcndéncia ern relacáo aos hornens, urna libcrdadc corno a dos
árabes no deserto. O rneu riso e a minha particularidade neutralizam qual-
Ou
011. U111 l•Jl1¡.,11t•11lt1
de Villa
397
qucr descarga crót ica. Está bastante a voniade corrugo e, conquanto haja
algurna reserva, é mais intelectual do que feminina. Está tao Jonge de ver
cm mim um amante que nos limitamos a ser duas boas cabecas na relacáo
um com o outro. Pega-me na máo, aperta-a na sua, ri. mostra-rnc urna ccrla atencíío nurn puro sentido grego. Quando o ironista e o trocista já trocaram dela rnais do que suficiente, sigo entáo aquelas insrrucñcs que se encontrarn nuns versos antigos: «0 cavalciro csicndc a sua capa tao vermelha,
pedindo a bela donzela que neta se sente,»?" Nao cstcndo entretanto a minha capa para me sentar com ela na relva do chao, mas antes para desaparecer corn ela nos ares, no voo do pensarnento. Ou cntño, nao a levo comigo, mas sento-rne a cavalo de um pensamento, aceno-lhe com a máo,
mando-lhc um beijo, fico invisível para ela, apenas audível no murmurio
alado das palavras, nao fico, como Jcová'", cada vez rnais visívcl na voz.
mas cada vez menos, porque quanto mais falo mais alto subo. Ela qucr
cntáo partir comigo no voo audaz dos pcnsamcntos. Dura todavía apenas
urn único instante, no momento scguintc cstou frio e seco.
Há diversos tipos de rubor feminino. Há o intenso rubor cor de tijolo. É
o rubor do qual os romancistas tem sempre uma gnmde provisao. quando
fa7.crn com que as suas heroínas enrubesc;am üher und über9't>. Há o rubor
delicado; é a aurora do espírito. Numa rapariga jovem, é impagável. O rubor pa~sageiro a seguir a uma ideia feliz é belo no homcm. mais belo 13531
no rapaz, gracioso na mulher. É o brilho do relampago, os coriscos do espírito. É mais belo no rapaz, e gracioso na rapariga, porque se mostra na
sua condi9flo virginal e, por isso, tern igualmente a modéstia da surpresa.
Quanto mais velho se fica, tanto mais este rubor desaparece.
Por vez.es, leio alguma coisa em voz alta para Cordelia, na g<.:neralidade,
coisas muito indiferentes. Como é costumc, Rdvard lcm de servil' de prctexto99; chamei-lhe a ate1wao. designadamente, para o facto de haver um
rneio muito born para estabelecer um relacionarnenl.o com uma rapariga:
emprestar-lhe livros. Também ele ganhou wnsideravelmente por esta via,
pois cla ficou-lhe muito reconhecida por isso. Quem mais ganha sou eu,
pois dctennino a escolha dos livros, continuando a ficar de fora. Tenho aqui
96 Trata-se prcsumivclmcntc <le urna combinacño de versos retirados de lcngalcngas
infantis: «M1111ke11. gaar i Enge» l«0 Monge Vai para o Prado»]. e «Skjen Ridder han
drager sil rede Guldbaand» 1 «0 Bclo Cavalciro Que Arrasta a Sua Faixa Dourada»]:
vd. Ewald Tang Kristensen, Danske Bornerim. Rentser og Lege [Versos Infantis, Rimas
e Brincadciras], Copcnhaga. 1898, n.º 2214, p. 296.
95 Em latim no original. Citar;:ao retirada de Ovídio, 1\.rs <111w11di [Arte ele Amarj, livro
U. vv. 123 e seg!;.: na l:radu<,:iío de C. A. André: «nao era bclo, mas era cloqucnte Ulisses.
I e, no entanto, atormentou deusa~ do mar»; cdic¡:ao do autor: Oµera, vol. I, p. 233; Arre
de Amar, p . .:58.
97 Quando .leová fala com Samuel: vd. 1Samuel.3:1-18.
98 Em alcmño no original: «urna vez atrás da outra».
99 No original. «holde Lyset for een», em sentido literal, «segurar a luz para alguém»
e, em sentido figurado. «Servir de pretexto para alguérn intervir».
398
Ou-Ou.
urna arena livre para as minhas observacócs. Como ele nño nada entendido em literatura, posso dar a Edvard os livros que eu quiser, posso arriscar
o que quiser, seja qual foro extremo. Ora quando de tarde me reúno a ela ,
levo comigo o livro na máo, como se Iosse por acaso, folheio-o um pouco,
leio ern meia-voz, elogio Edvard pela sua atencáo. Ontem á tarde, quis
certificar-me da clasticidadc da alma dela através de um experimento. Escava indeciso cm saber se havia de deixar que Edvard lhe cmprcstasscóedichte de Sch iller, para q~1e.eú. (í'esse casual men te com a cancáo de Tekla too,
que havcria de ser Iida em voz alta, ou Gedichte de Bürgcr'!". Escolhi este
último, especialmente porque o scu Lenore um pouco exagerado, por
multo belo que alias seja. Abrí no Lenore , Ji o poema alto corn todo opathos que me foi possfvcl. Cordclia comoveu-se, costurava com urna prccipitacáo, como se fossc cla qucrn Vilhelm vinha buscar. Parei: a ria tinha
ouvido sem urna participacüo especial; nao tinha medo nem de Vilhclms
vivos ncm ele morlos102 e, alérn disso, também nao domina bcm o alcmáo;
mas cm contrapartida sentiu-se muiro bem na sua pele, quando lhc rnostrei
o hclo cxcmplar encadernado e comccci a conversar com cla sobre o ofício
de cncadcrnador, A rninha íntencño era aniquilar cm Cordelia a impressáo
do patético no mesmo instante cm que tinha sido despertada. Ela sentiu-se
urn pouco angustiada, mas era para mim distinto que esta angustia nao
produzia nela um efeito tentador, mas antes unheimlich 1 o:..
é
é
13541 Os rneus olhos repousaram hojc sobre cla pela primeira vez. Dizern
que o sono pode tornar as pálpcbras líio pesadas que elas se fecham; talvez
este olhar pudessc causar urna coisa parecida. Fecham-se-Ihe os olhos e todavía agitam-se ncla obscuros poderes. Nao ve que a olho; sente-o, scntc-o
por todo o corpo. Os olhos fecharn-se, e noite; mas dentro dela é dia claro.
Edvard tcm de ir embora, Caminha na extremidadc limite; espero a cada
instante que ele se lhe dirija para fazer urna dcclaracáo de amor. Nao há
ninguém que possa saber isso melhor do que cu, que sou seu confidente e o
mantenho zelosarnente nesta exalracáo, para.que ele possa produzir ainda um
maior efeito sobre Cordelia. Fazcr com que ele chegue a confessar o seu
amor é todavía demasiado arriscado. Sei bern que ele vai receber um nao,
é
100 Em alcmao no original: «Poemas>>, uma das niuitas colectfü1cas de poemas de Friedrieb SchilJer. No poerna «Thekla, F.ine Geisterstimme>> [«Thekla, uma voz do cspíril:o>> I, a pcrsonagcm da trilogía Wullenstein fala agora cnquanto espíritu. retomando alguns pontos do enredo tla trilogia.
JO 1 Vd. nota 93 no capítulo «Os Estádios Eróticos [mediatos ou o Erótico-Musical>>.
102 Viillelm (adapta9ao para língua dinamarquc.sa do nome Wilhelm), na balada de
Biirger, é o ;unantc de Lenore que ela acredita ter falecido; ccrta noite, a mortc vcm
buscar Lenore, assumindo a figura humana do scu amado.
103 Em alemiio no original: «inquietante>>.
Um Fragmento de Vicia
399
mas a historia nao acaba aí. Ele vai de certeza levar isso muito a peito, o que
talvez comova e agite Corclelia. Embora nesse caso cu nao necessitc de temer o pior, que ela houvcssc ele volcar atrás, é possível que o orgulho da. sua
alma saísse todavía prcjudicado por via desta pura cornpaixño. Se tal coisa
acontecer, entño, o meu propósito para com Edvard falha redondamente.
A minha relacáo com Cordelia comcca a tomar urn curso dramático.
Algo tcm de acontecer, seja lá o que for, níío posso continuar a conduzir-mc
como um mero observador. sern deixar passar o instante. É necessario que
tenha de ser surprccndida; mas quem quiser surprccndé-la tcrá de estar no
seu posto. Aquilo que, cm comum, surpreenderia talvcz nao surtisse elcito
uela. Tem de ser propriamcntc surprcendida de molde a que aquilo que no
primeiro momento quasc constituí o motivo da sua surpresa scja algo de
inteiramente comum. Tem de mostrar-se progressivarnente que, no entanto,
algo de surpreendente se encentra af implícito. Esta continua pois a ser a lei
do int.crcssantc, e de novo a lei para todos os mcus movimentos no que diz
respeito a Corclc'lia. Quando se sabe cabalmente suqJrcendcr. tem-sc scmpre o jogo ganho; suspende-se por um inslanlc a cncrgia da visada. fa7.-sc
com que lhe scja impos~ívcl ter ac9ao, e isto, qucr se crnprcgue o incomum
ou o comum como mcio. A inda rccordo, com uma certa auto-satisfac;ao, um
atrevido cnsaio junto de uma dama de 13551 wna ilustre farnília. Há algum
tempo que baldadamente me escondia sorratciro a sua volta, buscando um
contacto interessanlc, quanclo a encontrei na rua a mcio do dia. Tinha a
certeza de que ela nao rnc conhccia, nem sabia que eu era aquí da cidadc.
Carninhava sozinha. Ultrapassci-a rapidamente de modo a ir ao scu encontro cara a cara. Desviei-me para que cla pudesse continuar 1.1 pisar as !ajes.
Ncssc momento. lancei-lhe wn o.lhar nostálgico, creio que até tinha uma
lág1irna no olho. Tirei o chapéu. Ela p1lrou. Com uma voz emocionada e urn
olhar sonhador, dissc-lhe: «Nao vos encolerizeis, gentil menina, é tao notória urna parcccni;a entre os vossos tra<,:os e urn ser a quern eu o amo com
toda a minha alma, mas que vive distante de n1i.m, que me perdoarcis a
minha estranha conduta.» Quis crer que eu era um exaltado, e urna rnpa.riga
jovem até gosta de um pouco de cxalta9ao, especialmente se ao mesmo
tempo sentir a sua superioridadc rctribuindo com um sorriso. Muito bem,
sorríu, e é indescritivel como lile assentava bern. Com urna condescendencia nobre, cumprimentou-me e soniu. Rctornou o seu caminho, segui ao
seu lado nao mais do que dois passos. Alguns días maíc; tarde enconrrci-a,
pennil.i-me cumprimentá-la. Riu-se para rrüm .... A paciencia é mesmo urna
virtude preciosa, e quem ri por último ri mellior.
Poclia pensar-se em diferentes meios para surpreender Cordelia. Eu poclia tentar levantar urna tcmpcst:icle erótica capaz ele arrancar {u·vorcs pela
400
Ou
raíz. Assim auxiliado, poderla, se possívcl, tentar dcsl igá-la do chao,
desliga-la do contexto histórico; nesta agitacáo, podcria procurar lazer sair
a sua paixío por meio de encontros secretos. Nao era inconcebível de ser
realizado. Podía levar-se urna rapariga com a paixño dela a fazer fosse o
que fosse. Nao estaria entrernentcs certo do ponto de vista estético. Nao
gosto de vertigens, e esse estado só recomenclável quando tem ele lidar-se
com raparigas que possam ganhar urn reflexo poético táo-sornentc clessa
maneira. Além disso, acaba por perder-se o desfrute propriamenrc dito, pois
excessiva eonfusño tambérn prejudica. No caso dela, iria comprometer por
completo oscu efcito. Corn alguns goles teria conseguido sorvcr aquilo de
que há muito tempo cu podia ter-me aprovcitado e, o que dcveras pior, o
que eu co111 moderacño poderia ter desfrutado de urna rnancira mais rica e
farta. Cordclia nao será desfrutada com exaltacáo. Talvcz a surpreendessc
13561 num primeiro instante, se assim me conduzissc, mas depressa ficaria
saciada, precisamente porque cssa surpresa estaría cxccssivarnente próxima
da sua alma intrépida.
Um nolvado puro e simples continua a ser o melhor de todos os meios,
o mais aprepriado. Talvcz ela viesse a acreditar ainda menos nos scus Oüvidos, se nie ouvissc Iazer-Ihe urna prosaica declaracáo de amor. ídem,
quando lhe pcdissc a rnáo e, ainda menos, se escutassc o calor da minha
eloquóncia sorvessc a rninha venenosa po9ao inebriante, ouvisse o seu
coracño bacr com a idcia de um rapto.
O que hí de maldito, num noivado, continua a ser semprc o ético nele
comido. Oético é tao entediante na ciencia quanto na vicia. Que diferenca,
sob o céu da estética tudo leve, belo, passageiro! Quando chega a ética,
lucio se torna duro, angular, infinitamente langweiligHl4. No mais rigoroso
sentido, un noivado nao tcm entretanto realidade ética105, tal como urn
casamento, o qual só tcm validade ex consensu gentium 106. Esta equivocidadc pode servir-me de muito. O ético aí comido justamente o suficiente
para que Cordelia, a scu tempo, obtenha a impressáo de que está a exceder
os limites do universal; o ético nele comido nao é tao sério que eu possa
temer um abalo mais preocupante. Sempre tive urn cerio respeito pelo ético. Nunca ofereci promessas de casarnento a qualquer rapariga, nem mesmo por descuido, e, conquanto pudesse parecer que o Iizera, nao passava
de urn mero rnovimento fingido. Hei-de gerir as coisas ele molde a ser cía
a anular o comprornetimento. O meu orgulho de cavalheiro desprcza fazer
promessas.Sinto dcsprezo quando urn juiz alicia um criminoso a confessar
corn a promessa ele libcrdade. Semelhante juiz renuncia a sua torca e ao seu
talento. Na rninha prática. acresce ainda a circunstancia ele eu nada desejar
que nao seja urna oferta da liberdade, no mais rigoroso dos sentidos. Que
sejam os maus sedutores a utilizar tais meios .• E que alcancam eles também? Aquele que nao souber assediar urna jovem a ponto de ela perder
totalmente de vista aquilo que se quer que ela nao entrevcja, aquclc que nao
souber inventar-se poeticamente para Iigar-scl'? a urna rapariga a ponto de
ser dela que tudo emana de acordo com o que ele pretende, é e continuará
a ser um trapalháo; nunca hei-de invejar-lhe o desfrute. Semelhante homem
é e será scmprc um trapalháo , um sedutor, o que de modo algum me podem
chamar. Eu sou um estético, um erótico, que apreendeu a esséncia e o fulcro
do amor, que acredita no amor e conhece os respectivos fundamentos, e
reservo apenas para mim a opiniño privada de que tocias as historias de
amor durarn 13571 no máximo meio ano, e de que qualqucr rclacño acaba
assirn que se gozou o derradeiro. Sci tudo isso, e sei tarnbém que o supremo
desfrute que possívcl imaginar ser amado. ser amado acima de rudo o
que há no mundo. Inventar-se poéticamente para se ligar a urna rapariga
urna arte, inventar-se poeticamente para se desligar de urna rapariga é urna
obra-prima. Entretanto. este último depende essencialmentc do primeiro.
Havia urna outra maneira possível. Podia dispor rudo ele modo a que ela
ficasse noiva ele Edvard. Tornava-me amigo da casa. Edvard confiaria ern
mirn incondicionalmente, era deveras a mim que ele devia efectivamente a
sua fclicidacle. Ficaria cntao a ganhar e estaria mais escondido. NITo serve.
Ela nao pode ficar noiva de Edvard, sem ser rebaixada, ele urna maneira ou
de outra. Além disso, a minha rela9ao corn ela tornar-se-ia mai~ maliciosa
do que interessante. O infinito prosaísmo que se encerTa num noivado é
justamente o painel de ressonancia para o interessante.
é
é
é
é
104 Em alemiío no original: <<mat,:ador».
105 Aquí, «Realitet». Vd. acima notas 68 e 69.
106 Em latin no original: «por consenso universal».
Ot1.
U111 1•1,¡¡¡,1111:1110
é
401
tic Vida
é
é
Tuclo se torna mais significativo ern casa das Wahl. Assinala-se distintamente que uma vida escondida se agita sobas formas do quotidiano, e que
cssa vicia terá em breve de ser prochunada numa correspondente revelac;ao.
A casa das Wahl prepara-se para um noivado. Quem fosse um mero observador exterior iría talvez pensar que se formara um par, a tia e eu. O que
I07 No original «al digte sig ilul i en Pige». em antítese com «at digte sig 11d aj en
Pige», adianle, e no parágrafo conclusivo de «Diário do Sedutor». O verbo dinamarques
<{digte»
semelhanya do alemao «dichten» - significa «poetar», ou s~ja, «cornpor
a
um poema», «compor uma obra fücrária, ainda que cm prosa». e, por extensiio. «criar
algo que nao existe». porventura «inventar»; lem paralelo como grego «poieill», que
primitivamente significa «faz;er» e, por cxtcnsiío, <<criar», «criar urn poema»; ncsta
medida, ao longo da presente tracluyao escolheram-se termos e expressOes que envolvarn a raiz do termo «poesia», com variantes de acordo como contexto, scndo os dois
casos aqui apontados os que estiio traduzidos por uma perífrase porventura rnais elaborada. rnas menos riel i1 concisao original.·
403
402
nao poderla realizar-se com um casarnenro dcsres, em prol da expansño dos
conhccimentos de agronomía numa futura geracáo: Passaria assim a ser tío
de Cordelia. Sou amigo da liberdade de pcnsamento, e pensamenio algum
é
tao absurdo que cu nao tenha deveras coragern para agarrar-me a ele.
Cordelia terne urna declaracáo de amor da parte de Eclvarcl, Edvard tem
esperanca de que tal decida tudo. Ora disso pode ele também ter a certeza.
Entretanto, para o poupar as desagradáveis consequéncias de um tal passo,
vou ver se lhe ganho avance. Ora eu tenho espcranca de demiti-Io em breve, cstorva-rne realmente o caminho. Poi isso mesmo que senti hoje. Se ele
nao tivcsse um ar tao sonhador e tao ébrio de amor10s que seria possível
rcccar que ele se ergucssc repentinamente corno um sonámbulo, e confessusse a toda a comunidade o seu amor corn urna intuicáo tao objcctiva que
nern sequer se aproxima de Cordclial Trespassei-o hojc com o olhar. Tal
como um elefante segura urna coisa na tromba. também cu o scgurei com
os olhos, a todo o comprimento. 13581 e atirei-o para trás. Embora tcnha
permanecido sentado, creio que leve urna reaccño corrcspondenre em todo
o corpo.
Cordelia nao está tao segura em rela9ao a mim eomo já antes csteve.
Aprox.imava-se scmprc ele mim com uma seguran<,:a feminina, agora vacila
um pouco. Nao que isso signifique entretanto grande coisa, e nao me seria
difícil vollar a pór tudo no mesmo pé. Nao quero isso. porém. S6 mais uma
cxplorai.:ao a.ifüla, e entao, o noivado. Nao devc ha ver a( dificuldacle nenhurna. Cordelia dizque sim, na sua surpresa, a tia di:t um ámen vindo do cora<_:ao. Ficaria fora de si coma alegria de ter por genro um agrónomo des1.cs! Genro! como ricamos todos unha com earne. quanclo se arrisca entrar
por este campo. Nao me torno prop1iamente seu genro, mas apenas seu
sobrinho, ou mclhor. volante deo109, nenhuma das duas coisas.
Dia23
Colhi hojeo fruto de um rumor posto por miro a circular de que estaria
apaixonado por lnna rapariga. Coma ajuda <le Edvard chcgou tmnbém aos
ouvidos de Cordclia. Está curiosa. dá-me atenr;ao, nao ousa todavia
interrogar-me; e contudo. para ela nao é irrelevante obter a certeza, em
parte, porque lhe parece inacredit<1vel e, em parte, porque quase veria nisso
um antecedente em relai;ao a si própria, pois que se wn trocista tao frio
como eu se apaixona, também cla poderia muilo bcm apaixonar-sc :sem
necessitar de ter vergonha. Trouxe hoje o assunto á col1.19ao. Creio ser ho108 Aqui, «Elskovsdrukken».
l09 Ern latirn no original: «Se Deus quiscr».
mern para contar urna historia sem que se lhc perca o sal, idcrn, para que
também nao surja prematuramente. Manter in suspenso os que cscutam a
minha historia, asscgurar-me através de pequenos movimentos de natureza
episódica de que desfecho eles desejariam que ela tomasse, enganá-Ios no
decorrcr do relato, é esta a miuha volúpia; cmpregar anfibologias para que
os ouvinrcs entendam urna coisa naquilo que é dito , e subitamente reparcm
que as palavras tarnbém podem ser entendidas de curra maneira, é esta a
miuha arte. Quando se quer ter a oportunidadc certa para empreender obscrvacñes nurna ciada direccáo, deve sernpre tomar-se a palavra. Numa
conversa, o visado é capaz de csgueirar-se melhor e, através de pcrguntas e
rcspostas, conscguc 13591 esconder mclhor a imprcssño causada pelas palavras. Com solene scricdade, comecci o meu discurso a tia: «Hei-dc atribuir
bondadc dos meus amigos Oll rnaldadc dos meus inimigos, e quem nao
rem tanto de uns como de outros em dcmasia?» Aquí, a tia fez um comentário que cu ajudei o mais que pude a prolongar de modo a manter Cordclia,
que escutava, numa tensüo que ela nao podía anular. pois era com a tia que
cu falava, e a minha disposieño era solene. Prosscgui: «Ou hci-dc atribuir
ao acaso. a generatio cequivoca 110 de urn rumor» (Cordelia nao entendeu
manifcstamente estas palavras, dcixaram-na simplcsmente confusa, tanto
mais que eu as acentuci com urna Ialsa énfase, dizcndo-as com urna expréssao mareta, corno se aí estivcssc o fulcro) «que cu, habituado corno estou
a viver escondido no mundo, me tcnha tornado objecto de faJa<;ao, andando
a afirmar-se que cstou apaixonado?»; Cordelia sentía manilcstamente a
íaua da minha intcrprctacáo , e continuci: «Aos mcus amigos, visto que,
afinal, apaixonar-se tcrn scmpre de ser considerado como urna grande tclicidadc (ela ficou estupefacta), aos mcus inimigos, visto que, afinal, terá
sernpre de ser considerado como muitíssimo ridículo ter-me essa felicidadc
cabido em serte» (rnovimento na direccño oposta). «ou ao acaso, visto que
nao há o menor fundamento para tal: ou generatio tequivoca do rumor,
visto que tudo pode muito bcrn ter surgido dos impensados tratos a si impostos por urna cabeca oca.» Com curiosidade fcminina, a tia aprcssou-se
a tentar saber quem seria essa dama da qual, de bom grado. me havi;un
feito noivo. Qualqucr pcrgunta nessa direc9ao foi ai·astada. Toda "hist6ria
causou uma tal imprcssao em Cordclia que quase estou cm crer que as ac<;:6es de Edvard subiram alguns pontos.
a
a
a
Aproxima-se o instante decisivo. Podía ditigir-me
tia e pedir por esc1ito a mao de Cordelia. Com efcito, é este o proccdimento or<linário em assuntos do conu;ao, como se. para o corar;ao, fossc rnais natural cscrever do
que falar. O que entretanto haveria de determinar que eu fizesse tal escoU1a
!LO Em latim no original.: «por gera91ío espontanea>>.
404
Ou
é exactamente aquilo que tern de filisrino. Se escolher esta via , icrei ele
passar scm a surpresa que lhe é propria. e nao qucro abdicar disso. - Se
eu tivcsse um amigo. talvez ele me disscsse: «Já ponderaste bcrn no passo
rnuitíssimo sério que estás a dar, um passo que é decisivo para todo o resto
da tua vida e para a felicidade de outro ser.» Tern-sc esta vantagcrn, quando
se tem urn amigo. Eu 13601 nao tenho amigo ncnhum; deixarci por decidir
se isso é urna vantagern, ao invés, considero ser urna vantagern absoluta
estar livre do seu conselho. Alias, seguramente que pensei e repensci todo
este assunto na mais estrita significacño da palavra.
Pela rninha parte, nao luí agora qualquer impedimento para o noivado.
Portante, ando a fazer ele pretendcntc, e quem havcria de ver-me a fazer
isto. F.m breve a minha pessoa ha-de ser vista de um ponto de vista mais
elevado. Ccsso de ser pessoa e torno-me - partido; sim, um born partido,
dirá a tia. Qucm mais mal-estar me causa é a tia, pois ela ama-me com um
puro e franco amor agronómico, ela adora-me quase como um ideal scu.
determinada quanto possível. Num momento destes. a alma ele urna rapariga é
profética como a de um moribundo!". o que tem ele ser evitado.
Minha estimável Cordelia! Engano-te por algo de belo. mas nao pode ser
de ourra mancira, e hei-de dar-te toda a recompensa de que tor capaz. Toda
a cena tcm de ser mantida de urna rnaneira tao insignificante quanto possívcl, para que cla, quando tiver dado o seu «sirn», nao seja capaz de dar a
mínima inforrnacño sobre o que pode esconder-se nesta relacáo. Essa possibilidade infinita
precisamente o intcrcssantc. Se cla for capaz ele prever
alguma coisa, entáo, terei tido urna condura errada, e tocia a rclacáo perderá ern significacáo. Que ela venha a dizcr «sirn» porque me ama é irnpcnsável , pois ela
me ama de todo. O melhor será eu conseguir transformar
o noivado, transformar urna accáo em um acontecirnento. algo que ela faz
em algo que lhc acontece, acerca do qual ela tenha de dizcr: «Sabe Deus
como isto realmente acontcceu.»
Ora eu já fiz multas dcclaracócs ele amor na rninha vida e, conrudo, de
nada me vale aquí toda a minha experiencia.
pois esta dcclaracño rcrn de
ser feita de urna mancira muitfssimo propria. Tenho presumivelmcnte de
inculcar cm mim mesmo que tudo urn mero movimcnto fingido. Prariquei
diversos passos para ver cm que direccño se conseguí ria tomar urna rnclhor
posicño. Tornar erótico o instante seria dúbio, visto que poderla antecipar o
que mais tarde acontecerá, e desenrolando-se progrcssivamente; torná-lo
muito serio
perigoso: para urna rapariga, um momento destes tcm tanta
significacáo que toda a sua alma pode ficar nclc fixada, a scmelhanca ele
urn moribundo no scu último desojo; revestí-lo de cordialidade, de um
baixo-cómico, nao ficaria ern harmonía coma máscara que até aqui utilizci,
ncm corn a nova máscara que tcnciono adoptar e usar; rorná-Io espirituoso
e irónico
demasiado arriscado. Se isto se constituísse para mim, tal como
para a generalidade das pessoas diante de tal oportunidadc, se, para rnim, o
assunto principal fosse consegu ir arrancar o pequen o «sim», fazia-sc com
urna perna as costas. Para mirn é cortamente de importancia, mas nao de
absoluta importancia, visto que apcsar de agora cu já ter escolhido esta
jovern para mim, apesar de eu ter pesto nela multa atencáo, e mesmo todo
o mcu interesse, havia, porém, condicñes sobas quais eu nunca aceitaria o
scu «sirn». Para rnim, nem sequcr se trata de possuir a rapariga em sentido
exterior, mas antes de a desfrutar artísticamente. Por isso, o início tcm de
ser tao artístico quanto possfvel. O início tem ele pairar suspenso tanto
quanto possívcl, tem de ser urna omnipossibilidade.
Se desde logo ela vir
ern rnim um impostor, entáo, entende-rnc mal, pois ern sentido cornum nao
sou impostor nenhum; se ela vir em mim um amanlc fiel, entao, também
me entende mal. Importa que nesra cena a sua alma 13611 fique tao pouco
é
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\1111 hh¡'lll\'lilO
de Vida
405
tao
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Dia 3·1
Hoje escrevi urna carta de amor para um tercciro. É scmpre uma grande
alegria para mim. Em primeiro lugar. é semprc rnuitíssirno intercssante
supormo-nos na situa9ao de maneira tao vívida e, cont.uclo, com tocia a comodidade possível. Eneho o cachimbo, cscuto a rclac;:ao dos factos,
apresent·mn-me car1·as das partes cm questao. Para mim, é sempre objecto
importante ele estudo o modo como urna rapariga escrcve. Ele senl.a-sc a ler
a carta dela em voz alta, perdida e estupidamente apaixonado, enquant.o é
intcrrompido pelos rneus comentários lacónicos: ela sabe escrever bcm,
tern sentimentos, gosto, prudencia, ele certeza que já antes estcve apaixonada, cte. Em segundo Jugar, o que estou a fazer é uma boa ac~Ho. Ajudo urn
parzinho de jovcns a ficar juntos; e ajustamos contas. Por cada casal feJi:¿,
escolho uma vítima para mirn; fa90 duas pessoas felizcs, e, no máximo,
uma. infeliz. Sou probo e honesto, nunca enganei ninguém que cm mim se
confiasse. Acaba por haver scmpre <tlguma brincadcira, ora bem, sao os
custos legais. E porque desfruto eu de tanta confian9a? Porque sci latirn e
tenho estudos, ou porque sempre guardei para mim as minhas historietas.
Ou nao mere90 eu esta confianya? Eu até nunca sou abusador.
13621
as
111 Provável alusao
últimas palavras de Sócrates, Apo/ogia de Sócrates. 39c. Vd.
Plat:"ío, Apologia de Sócrates. Crí1011, introdugao. versao do grego e notas de Manuel de
Oliveira Pulquério, Coimbra: Instituto Nacional de lnvcstigac¡;1io Científica, Centro de
Es tu dos Clássicos e Humanísticos da U11iversidade de Coimbra. 1984. p. 45.
406
407
2 de Agosto
Chegara o instante. Tinha visto a tia de relance na rua, portante, eu sabia
que cla nao cstava em casa. Edvard eslava na alfándega. Havia pois toda a
probabilidade de Cordelia estar sozinha cm casa. E assim foi. Eslava scntada a mesa da costura ocupada com um trabalho. Multo raramente havia cu
visitado a familia de manhá, por isso. Iicou um pouco perturbada por me
ver. A situacáo esteve perlo de tornar-se demasiado emotiva. Nao teria sido
por culpa sua. pois rccompós-se com bastante facilidadc, mas antes minha,
visto que apesar da minha couraca causara-me urna imprcssáo invulgarrnente forre. Como era grácil naquele vestido de percal as riscas azuis, simples,
ele trazcr por casa, com urna rosa ao pcito acabada de apanhar - urna rosa
acabada de apanhar, nao, a própria rapariga era urna flor acabada de apanhar, tao fresca e acabada de abrir; e qucm saberá onde passa as noitcs urna
jovcrn rapariga, penso que no país das ilusóes, de onde rcgrcssa todas as
manhñs, e daí a sua frescura juvenil. Tinha urn ar tao jovcm e todavia tño
arnudurecido. corno se a naturcza, qual máe terna e Iarta, só ncsse instante
a tivesse largado da rnüo. Era como se eu fossc tcstcmunhu dessa cena ele
despedida, vi como aqucla máe extremosa a abracava ainda urna vez na
despedida, ouvi-a dizcr: «Ora vai pelo mundo, minha filha, fiz rudo por ti,
toma este bcijo, como um selo nos tcus labios, um selo que guarda o santuário, ninguém o podcrá romper, se tu propria nao o quiseres, mas quando
chegar o horncm cerio. tu propria entáo o entendcrás.» E imprimiu-lhe um
beijo nos lábios, um bcijo que coisa alguma rirou, como tira urn beijo humano, mas um bcijo divino que rudo clá, que dá }1 rapariga o poder do bcijo.
Prodigiosa natureza, como és profunda e enigmática, ao horncm dás a palavra e a rapariga a eloquéncia do bcijo! Tinha nos labios este bcijo e, na
fronte, a despedida. e no olhar, a alegre saudacáo: por isso, tinha este ar ao
mesmo tempo tao casciro.já que cm a menina da casa, mas ta.o alheada, pois
nao conhecia o mundo, mas tao-somente a mác querida que velava por ela,
invisível. Era realmente grácil.jovem como uma crianca e, contudo, ornada
com a nobre dignidade virginal que inspira vcncracáo. - Nao obstante,
depressa fiquci outra vez despido de paixáo e, solenemente emudecido como é costume ficar-se, quando se quer produzir o efeito de que algo de
significativo acontece de uma mancira que faz com que venha a significar
nada. Depois de uns comentários banais, aproxirnei-me um pouco mais dela, 13631 e apresentei a minha pcticáo. Um homem que falc corno um livro é
extremamente entcdiantc de escurar: entretanto, as vczcs vem muito a propósito falar assim. Um livro tem, a saber, a notávcl qualidade de poder ser
interpretado seja lá como for. Esta qualidade passa também para o discurso
do indivíduo quando se fala como um livro. Mantive-me totalmente sobrio
dentro das fórmulas usuais. É inegávcl que ficou surpreendida, tal como eu
esperara. Para mim, difícil encontrar os termos com que descrevé-la. Tinha
é
é
um ar multíplice, sim, rnais ou menos como o comentario ao meu Iivro,
ainda nao publicado. mas anunciado, u1.n comentario que contém a possibilidacle ele qualquer interprctacáo. Urna palavra, e cla ter-se-ia rído de mim,
urna palavra, e cla ter-se-ia comovido, urna palavra, e cla ter-rne-ia evitado;
mas nenhuma palavra aflorou aos meus lábios, pennaneci solencmente
emudccido, e seguí rigorosamcnte o ritual. - «Ela conhecia-me há tao
pouco tempo», meu Deus, dificuldadcs destas só se encontrarn nos esu·eitos
~aminhos do noivado, e nao nas floridas veredas do amor112.
É bastante estranho. Quando alguns días atrás eu pondcnwa o assunto,
sentia-mc suficientemente preparado e tinha a certeza de que, no instante
da surpresa, ela iria dizcr «sim». Ve-se cntao p<m1 que servem todos os
preparativos, o assunto nao chcgou a ter desfecho, pois cla nao dissc «sim»,
ncm «nao»; remeteu antes para a tia. Oevia ter previsto isto. Ten.ho realmente a felicidadc comigo, já que este resultado foi aiuda melhor.
A thi dá o seu conscntimento. nunca alimcntci sequer a rnais remota
dúvi<la. Cordelia segue o conselho dela. Quanlo ao meu noivado, nao vou
gabar-mc ele que seja poético. é grandemente filistino e burgues de tocias as
n1aneiras. A rapariga nao sabe se há-dc clizer «sim», ou «nao»; a tia diz
«sinl>>, a rapariga também di:G «Sim», eu fico com a rapariga, el<1 fica comigo - e cisque comcs;a a história.
Dia3
Ora cntao estou noivo; e Cordclia também está noiva, e isto é mais ou
menos tudo aquilo que ela sabe cm rcla91ío ao assunto. Se cla tivesse uma
amiga com quem pudcsse falar sinceramente, cntao. decerto que lhe diria:
13641 «0 que tudo isto significa é coisa que realmente nao compreenclo. Há
ncle qualqucr coisa que me arrasta até si, mas nao consigo conceber o que
é, tem um cstranho poder sobre mim, mas amá-lo, nao, nao o amo, e tal vez
nunca venha a amá-lo; em contrapartida, acho que supo1taria muito bem
viver com ele e, por isso, também seria muito feliz com ele, pois seguramente nao será muito exigente, quando se for meramente persistente com
ele.» Minha querida Cordelia! talvcz ele exjja mais e, cm compe1mu;:iío,
menos persistencia. - Entre todas as coisas risíveis, um noivaclo é afinal a
mais risívcl de todas elas. No casamento há até sentido, a.pesar de esse
sentido me trazer desconforto. Um noivado é uma inveny~io puramente
humana e nao confere de todo honra ao scu inventor. Nao é nem urna coisa,
nem outra, e está em relac;fío com o amor113, tal como a da fita que pende
112 Aquí, «Elskov>>.
113 Nova ocorrencia de «El.vko1'».
409
408
Ou
das costas do bedel está em relacño com a beca do professor. Sou agora
membro desta honorável sociedade. Nao deixa de ter significacáo , pois
que, tal como diz Trop, só sendo-sc artista se adquire o direito ele julgar
outros artistas114.
E nao será tambérn um noivo um artista ele Dyrchau-
cla está cm mcu poder. Urna ferninilidade pura e inocente, translúcida como
o mar e todavía profunda como ele, sem pressentimento do que o amor116!
Ora ela há-de aprender o que é afinal o amor enguanto poder. Como urna
filha de um rei que elevada dopó até ao trono do pai, assim há-de ela ser
instalada no reino ao qual pertence. E isso acontecerá por meu intermédio;
e, na medida em que aprender a amar, aprenderá a amar-me; ao desenvolver
regras, desdobra-se progrcssivamcnte o paradigma, e esse paradigma sou
cu. Na medida cm que sentir no amor toda a sua signiflcacáo, serve-se dela
para me amar, e quando pressentir que foi comigo que a aprcndeu, irá amar-me duplarncntc. O pensamento da minha alegria apodera-se de mim a
ponto de eu quasc perder a prudencia.
A sua alma nao está volatizada ou distendida pelas indeterminadas emo~é5es do amor, algo que leva muitas jovcns a nunca chegarern a amar, diga-se, de uma maneira determinada, enérgica, total. Tém na sua consciencia
urna imagem nebulosa e indeterminada do que deve ser o ideal, através da
qual o objecto real é testado. Dcstas melas-medidas produz-sc urna coisa de
que nos podemos servir cristárncntc pelo mundo fora. - Ora, ~t medida que
o amor despena na sua alma, cntrcvejo-o, escuro como sai dela utravés de
tocias as vozcs do amor. Asseguro-rne da forma que tornou nela, e moldo-me eu mesmo a sua semelhanca; e 13661 como já cstou incluido de modo
irncdiato na historia, o amor pcrcorrc-Ihe o coracáo, acabo por voltar assirn
ao scu encontró pelo exterior, de urna maneira tao ilusoria quanto Ior possívcl. Urna rapariga afina! só ama urna vez.
gen'
15?
Edvard está fora de si. de exasperacáo. Deixou crescer a barba e pendurou o rato prcto, o que quer dizer muito, Qucr falar com Cordelia, quer
descrcvcr-lhc a minha rnanha. Seria urna cena chocante: Edvard, com a
barba por fazer, desleixado no vestir, a falar alto com Cordelia. Desde que
nao me deixe mal visto coma sua longa barba. Tente em vño charná-lo a
razáo, explico-lhe que é a tia qucm criou condicóes para este partido, que
Cordelia tal vez nutra por ele scntirnentos, que eu estarei disposto a rccuar,
se ele puder ficar com cla. Vacila. por urn instante, sem saber se há-dc aparar a barba de outra mancira, ou comprar um fato preto novo, no instante
seguintc, cobre-me de injurias. Faco tudo para manter as boas aparéncias
diantc dele. Por maior que seja a sua cólera comigo, tcnho u certeza de que
nao dá um passo sem me consultar; nao se csquccc do quanto ganhou por
me ter tido como mentor. E porque havcria cu de lhe arrancar esta última
esperanca, porque havcria eu de romper com ele?
bom homem, quern
sabe o que podcrá com o tempo acontecer.
é
13651 Ora o que tenho a fazer é, por urn lado, por tudo em ordern de modo a íazer com que o noivaclo se anule, para que assim possa assegurar-rnc
de urna relacáo com Cordelia rnais bela e mais significativa; e, por outro,
utilizar o tempo tao bem quanto possívcl para me deliciar com todo o encanto. toda a amabilicladc com que a natureza tao abundantemente a apetrechou, deliciar-rne com isso, ernbora dentro dos limites e da circunspeccáo
que impcdcm que se antecipe alguma coisa. Quando a tiver levado a aprender o que amar, e que sou eu quem ela ama. entáo, o noivado rompe-se
como urna forma imperfeita, e ela pertence-rnc. Há outros que ficarn noivos
quando chcgam a este ponto. e térn entáo boas perspectivas de um entediante casamento para toda a eternidadc. lsso lá com eles.
é
é
Tudo está ainda in statu quo; mas dificilmente poderá haver um noivo
mais feliz do que eu, um avarento, que tenha encontrado urna moeda de
ouro, mais bem-aventurado do que eu. Estou inebriado coma ideia de que
114 Vd. J. L. 1 lcibcrg. Recen.ven/en ug Dyret 10 Rccenscador e a Besta], Acto V, Skuespi/, vol. III, p. 210.
115 Os artistas que actuavam na tapada de Oyrehaugcn cram conbeciclos pelo virtuosis-
mo das suas actua~oes.
Ou,
U111
l•1.1¡111ll'11lo
de Vida
é
é
Ora, eis-rne na legítima posse de Cordclia; recebi o consentirnento e a
ben9iio da tia, e as feliciracñes dos amigos e parentes; decerto que irá
durar. Portanto, as dificuldades da guerra estáo agora passadas, comecarn
agora as béncáos da paz. Mas que idiotice! Como se a ben9ao da tia e as
felicitacñcs dos amigos Iosscm capazes de colocar-me na possc de Cordel ia cm sentido mais profundo; como se o amor contivcssc urna tal
oposicño entre tempo de guerra e tempo de paz e como se, desde que
exista, nao se Iizesse anunciar preferencialmcntc no combate, apesar de
as armas serem diferentes. A diferenca consiste propriarnente em
cornbater-se cominus ou eminus117• Quanto mais na rela9ao amorosa118 se
ti ver combatido eminus, tanto rnais pesaroso se torna, visto que tanto
mais insignificante se torna a !uta de maos. É próprio da Juta de maos
116 Única ocorrencia oeste e no pan'ígrafo seguinte de «Kja:rliglied», correspondendo
a próxima ocorrcncia de
«Kjt.erlighed», as~inalada na nota l 28.
l 17 Em latim no original, respectivamente, «de perto>> e <<a distancia».
118 Aqui, «Kja:rlighedsforhofd>>.
assim todas as outras ocorrencias de «amor» a «Elskov•>, até
Sercn
410
1( ll'I
k.uguar(J
haver um aporto de máo, um toque no pé, algo que, como é sabido, Ovíclio recomenda tanto quanto profunda e zelosamente censura, para nao
falar ele um beijo , de um abra90119. Aqucle que combater eminus, na gcncralidade, só temo olho para confiar: e cornudo, se for.artista. saberá
utilizar esta arma corn tal virtuosismo que quasc alcanca o mesmo 120. Só
precisa de deixar que o olho repouse numa rapariga com uma ternura
desultória, que actua como se ele lhe tivesse tocado casualmente; será
capaz de agarrá-la com o olho com tanta firmeza como se a tivcsse presa
nos seus bracos. Torna-se entretanto um erro, ou urna infclicidade, lutar-se eminus durante demasiado tempo, dado que sernelhante luta
sempre
urna figuracño, e nao o desfrute. Quando se Juta comlnus , só cntáo ludo
adquire a sua verdadcira significacño.
Quando no amor121 nao ha luta,
cntno, está terminado. É como se eu ncm nunca tivesse lutado eminus, e
nao esto u de todo no fim, mas antes no pri ncípio, esto u a apresentar armas. Estou na posse dela, verdade, designadarnentc, cm sentido jurídico
e rnuito burgués; mas, para rnim, isso nao tem qualquer irnplicacño, tenho
ideias muito mais puras. É minha noiva, é verclade, mas se eu daí concluísse que eta me ama, seria en tao urna dcsilusáo , visto que ela nao ama de
modo algurn. Estou na sua legítima possc e, contudo, náo estou na posse
dela, tal como 11671 muito bem poderia estar na posse de urna rapariga
sem que cstivcsse na legítima possc dela.
é
é
Ou
Ou, lfo1 "111!)111c1110
Je Vida
411
Auj heimlicli errothender Wange
Leuchtet des Herzens Gliihn.122
Está sentada no sofá junto da mesa de chá; e eu estou numa cadeira a seu
lado. Este posicionamento tem um lado confidencial e, por seu turno, um
decoro que afasta. Do posicionamento, acaba sempre por depender imensa
coisa, diga-se, para qucm river olho para isso. O amor rcm multas posicócs,
esta é a primeira. Como a naturcza de facto apctrcchou esta rapariga de urna
maneira soberana! As suas formas puras e suaves. a sua inocencia profundamente fcrninina, os scus olhos claros - Tudo me inebria. - Saudei-a. Veio
ao rneu encentro alegre como de costume, ernbora um pouco embaracada,
um pouco insegura, o noivado tem mesmo de tornar a nossa relacño um
tanto diferente. mas como, eta nao sabe; pega-me na máo, mas nao com urn
sorriso como
habitual. Respondo a este cumprimento pressionando-lhe
ligeiramente a rnño , quase imperceprivclmente;
fui gentil e amistoso, scrn
todavía ser erótico. - Está sentada no sofá junto da mesa de chá; e cu cstou
muna cadcira a scu lado. Urna solcnidadc transfigurada pcrcorrc a sítuaeso,
urna doce luz matinal. Está calada, nada intcrrompc a quictudc. O mcu olho
desliza doccmcntc sobre cta. scm ser cupido. seria na vcrdadc preciso descaramenro para tal. Um fino rubor passageiro, como urna nuvem sobre os
campos, envolve-a, suhindo e descendo. O que significa este rubor? Será
amor. anscio, cspcranca, temor, já que a cor do coracáo é o vcrmclho? De
modo ncnhum. Espanta-se. surprccndc-sc - mas nño comigo; tcria oxeessivarnente pouco a oferecer-lhe; surpreende-se, nao consigo mesma, mm,
dentro de si mesma; transforma-se ern si mesma. Este instante exige quietude, por isso, nenhurna reflexño há-de perturbar cssa quietude, nenhum barulho da paixáo há-de interrornpé-la, É como se eu nao estivesse presente e,
nao obstante, a minha presenca efectiva
a condicáo da sua surpresa contemplativa. O mcu ser está cm harmonía como dela. Ncste estado, presta-se
culto e adoracáo a urna jovcm, r1 scmclhanca do que se faz a alguns dcuscs,
eru silencio.
é
é
119 Vd. Ovfdio, Amores, livro I, vv. 4, J 6. 35-46; na traducño de Carlos Ascenso André,
respectivamente, v. 4: «[Cupido soltou urna gargalhada] / diz-sc e surripiou-lhe umpé»;
vv . 15-16: «Quaudo ele tomar lugar sobre o leito, tu. de rosto recatado, I hás-de ir tomar
lugar ao lado cicle: as escondidas, toca o meu pé»: e vv . 35-46: <<E nao consintas que cm
teus umbros poisem os seus bracos indignos,/ nern deponhas a tua fronte delicada em
tao agreste pcito, / ncm pcrmiiam as caricias de seus dedos o teu pescoyo ou os t.cus
scios. / IJeijos, acima de tudo, é o que cm caso algum lhe hás-de dar; se lhc dcres bcijos,
assumirei i\s claras que sou teu amante/ e dirci: "siio meus"; e deitar-te-ei a mao. / lsto.
porém, é o que eu posso ver: mas o que os panos da mesa tao bcrn ocultam. / isso há-de
ser a causa da m.inJrn cegueira e do meu 1nedo. f Nao achegues a tua perna i\ perna dele,
nemas coxas se colem uma i\ ouira, I nern juntes o teu pé delicado ao seu pé agreste./
Mui1as coisas rcceio, pobre de mim, porque muitas coisas eu fiz, quase scm conto! 1 Eis
que me deixo atormentar pelo medo do rneu próprio excmplo>>, in Ovídio, Amores.
traduyfio. introdw,:ao e notas de Carlos Ascenso André. Lisboa: Livros Cotovia. 2006,
pp. 37-38: Opera, vol. I, p. 148.
120 Vd. A Repetic;:áo, SV 1, vol. lII, p. 224, SKS, vol. 4. p. 56; traduyao portuguesa, p. 94.
121 Aqui. e nas cluas ocorrencias imediatas. «Elskov».
13681 Que felicidade ter eu entao a casa do meu tio. Se eu yuisesse incutir num jovem aversao pelo tabaco, levá-lo-ia a qualquer uma das salas de
fumo na Regense11123; se eu desejar incutir numa jovem aversao por estar
noiva, entao, necessiro simplesmente de conduzi-la até aqui. Tal como a
associa~ao dos alfaiatcs é frcqucntada exclusivamente por alfaiatcs, tam122 l:'lm alemao no original: «Sobre a íace secretamente ruborizada i brilha a incandescéncia do conu,:ao.» Versos identificados como pe1tenccndo a Frínico, pocla l:rágico que
viveu entre os séculos v1 e va. C.,em Des Aischylvs Werke [Obras ele Ésquilo), traduyao
de Johann Gustav Droysen. Bcrlim, 1832, p. 298.
123 Trata-se da mais antiga residencia para estudantes na Universidadc ele Co1)cnhaga.
11
412
Ou
bém esta casa frequcntada exclusivamente por noivos. É urna companhia
pavorosa para ncla se cair, e nao posso levar a mal que Cordclia se impaciente. Quando estamos reunidos en masse, crcio cu que chcgamos a .ser
dez pares, sem contar comos batalhées anexados que dcscern a capital cm
ocasiñes solenes. Nós, os noivos, podíamos entáo desfrutar realmente as
alegrías do noivado. Encentro-me corn Cordelia na praca de armas para lhe
causar aversáo por essas palpabilidades apaixonadas, esses enrabichados
grosscirismos de artesñosl?". Ouve-se um ruído sern cessar, toda a tarde
durch'í"; como .se alguém andasse por ali com um mata-moscas - é o
bcijo dos amantes. Ncsta casa fica-sc na posse de um estirnável denodo;
nern scqucr se procura um recamo. nao! scntarno-nos sentado a urna grande
mesa redonda. Eu tarnbém faco de coma que trato Cordclia da mesma maneira. Para tal firn, tcnho de cxcrccr violencia cm alto grau contra mim
mesmo. Seria realmente revoltantc que eu me pcrrnitissc ultrajar a sua profunda feminilidade deste modo. Lancaria sobre mim censuras multo rnais
severas por esse motivo do que se eu a enganasse. Posso acima de tudo
garantir um rratamento perfeitamenre estético a qualquer rapariga que a
mirn se queira confiar; só que acaba com ela a ser enganada: mas isso tarnbém faz parte da minha estética, já que ou a rapariga cngana o homern, ou
o homcrn cngana a rapariga. Seria bastante intcrcssantc se tossc possívcl
arranjar algum velho rato de biblioteca para inventariar se nos contos de
fadas, lendas, baladas e mitologias
mais frequente ser a rapariga quem
infiel, ou se é o homem.
Níío me arrepcndo do tempo que Cordclia me custa, embota ela me custe rnuito. Cada encontró exige arniúde longos preparativos. Expcricncio
com ela o vir ~1 ex istencia12<> do scu amor127• Eu proprio quasc chcgo a estar
ali invisível, quando estou visivelmente sentado ao lado dela. Tal como
quando urna danca, que é realmente para ser dancada a dois,
dancada
apenas por um, assim me comporto eu corn ela. Sou designaclamente o
outro dancarino, mas invisível. Ela rnove-se como em sonhos e, 13691 contudo, está a dancar com outro; e esse outro sou eu. o qual fica invisível
desde que cu csteja ali visível, e fica visfvel desde que cu scja invisívcl. Os
movirnentos exigem um outro: cla inclina-se para ele, cstendc-lhc a rnño,
Ioge, volta a aproximar-se. Pcgo-lhc na máo , cornplcto-lhc o pcnsamcnto ,
o qual está todavía completo em si mesmo. Move-se na própria melodía da
é
é
é
é
l 24 De j'orelskt~de Haand1'f:rrksji1/ks [Os ArtesaosApaixonados]. Copen haga. 1781, é o
líLulo <la tracluc;ao de Lars Knuclsen para Jinarnarques da pe9a de Cario Goldoni ( l 707-1793), L'amore artiRiano [O Amor Artesanal], de 1761.
125 Em alernao no original, nesta ace1>9i'ío: «durante>>.
126 Aquí. «Till>/ivelse». Vd. nota 24 no capitulo «Üs Estádi.os Eróticos !mediatos ou o
Er6tico-Musical>>.
127 A qui. e na ocorrencia seguintc, «Elsko11».
Ou, 1 í111 "'"!'111~·1110
dt· Vicia
413
sua alma; Ji111i10-111e a ser a ocasiáo para ela se mover. Nao sou erótico, o
que iría simplesmente dcspertá-la, sou flexível, ágil, impcssoal, quase como urna disposicño.
De que falam em gcral os casa is de noi vos? Tanto quanto sei, esta o rnuilo atarclados a arranjar modo de ficarern rcciprocamentc enredados no entediantc encadcamenro das respectivas familias. Nao é de admirar que o erótico desaparcca. Se nao se soubcr fazer do amor o absoluto. e fazer com que,
em comparacáo com ele, todo o resto da historia desapareen, entáo, nunca
se haveria de envcredar pelo caminho do amor, se bcm que se possa casar
dcz vezcs. Se eu tcnho urna tia que se chama Mariano. um tio que se chama
Chrisropher, um pai que é major, etc., etc., lodo este tipo ele coisas públicas
nada tcm que ver comos mistérios do amor128• Sirn. até a propria vida passuda de cada indivfduo tambérn nao tern. Na gencralidade, urna jovem niío
tem nada ele maior para con1ar a eslc re.spcito e, se tivcr, entao, talvez houvessc de valer a pena ouvi-la, porém, cm regra. nao valeria a pena amá-la .
Eu. pela minha pessoa, nao ando ~1 procura de histórias.já sao bem suficientes as que cu tenho; procuro a irnediaticidadc. O que é eterno no amor é os
indivíduos virem it existencia um para o outro só no instanlc do amor.
Tem de dcsperlar-~e nela um pouco de confiarwa, ou melhor. urna dúvicla
tem de ser afastacla. Nao me COl'tlO juslamentc entre o número ele amantes
que se amam um ao outrn por respcito. que casam urn com o out:ro por
rcspeito, tem filhos urn do outro por respeito; mas sei todavia muito bcm
que o amor exige ele quern se constituir como seu objecto, cm especial
cnquanto nao se acciona o movimcnto da paixao. que nao seja obstáculo
estético aoque é moral. Nesle aspecto, o amor possui a sua própria dialéctica. Na medida em que a 11Unha rela9ao com Edvarcl, <lo ponto de vista da
moral. é assirn muito mais digna de rcpreensao do que a minha conduta
coma tia, t.ambém parn mim se tornaria muito mais fácil expli<.:ar a Cordelia aquela 13701 em vez ele esta. É certo que ela nada exteriorizou. mas achci
todavía que era melhor explicar-lhe a necessidade de ter actuado daqucla
maneira. A precau9ao de que usei lisonjeia o seu orgulho. a cliscri~ao com
que tratci de tuclo prende-Jhe a aten9ao. Podia bem parecer que com isto cu
já estava a denunciar cxcessivament.e urna forma9ao erótica, que entro em
contradiyao comigo mesmo, quando mais tarde for compelido a insinuar
que nunca antes havia amado: isso. porém, nada conta. Nao tenho medo ele
entrar em contracli9~fo comigo mesmo. se ela sirnplcsmentc nao reparar
nisso, e aJcan90 o que pretendo. Que sejam os doutos disputadores a tornaJ ~8 .A partir desta ocorrencia de «Kja>r/ighed», o termo «amor» co1Tcspondesempre no
original a «Elskov». até a próxima ocorrcncia ele «KjterliRhed», assinalada na nota 134.
41~
414
rcm para si a glória de evitar qualquer contradicño; a vida ele urna jovcrn é
demasiado rica para que nela nao venha a haver contradicáo, razcndo, portanto, com que a contradicáo seja necessária.
Ela é orgulhosa e, ao mesmo tempo, níío tem propriamcrue qualquer idcia
do erótico. Ora enquanto clase submctc a rnim até determinado grau, se bern
que ern sentido espiritual, adrnissível pensar que. quando o erótico comccar
a impor-se, lhe venha á cabeca virar o seu orgulho contra mim. De acurdo
com ludo aquilo que sou capaz de observar, ela está confusa em relacño á
signiñcacáo específica da feminilidade. Por isso, foi fáciJ fazer corn que o seu
orgulho se crgucssc contra Edvard. Este orgulho era entretanto completamente excéntrico, porque cla nao tinha qualqucr rcprcscntacáo do amor. Tendo-a,
entáo. obterá logo o seu vcrdadciro orgulho: mas um resto daquclc orgulho
excéntrico podcria facilmcnrc sohrcvir. Seria pcnsávcl que vicssc entáo a
virar-se contra mi.m. Apesar de nao se arrcpendcr de ter dacio con~entimcnlo
ao noivado, entí:ío. facilmente verú afinal que o obüve por um prcc,:o bastante
hom; verá que. do seu lado, o come<;o nao saiu bem. Tenha ela esse vislumbre, terá ousadia para me afrontar. Pois que assim seja. ficaJei coma cerleza
de quao profunda é a sua emo\:ªº·
é
Muito bcm .. lá vejo muito ao fundo da rua essa encantadora cabecinha
encaracolada que se clebru\:a o mais possível da janela para fora. É o terceiro tlia cm que tal observo ... Uma jovcm rapariga nao fiea seguramente a
jm1ela por nada, tcrá presumivclmcnlc um born motivo ... 13711 Mas pc~o·vos, por Dcus, 4uc nao vos dcbruccis tanto da janc'la, aposto que estais
apoiada na t.ravessa da cadeira, posso deduúr pela posi<;ao. Pensai no quao
terrível será caireles de caber;a para baix.o, nao para cima de mim, pois até
rnais ver mantenho-me fora deste assunto. mas para cima dele, sim, dele.
sim. porque tem mesmo de ha ver um «ele» ... Nao, que vejo eu, eis que
vcm lá ao longe no meio da rua o meu amigo, o licenciado Hansen. Há
algo ele incomum no seu porte, algo de inabitual nesta. expecli\:ªº· se eu
julgo bcm, vcm cm cima das asas do anscio. Será que ele tem entrada nes1.a casa? e cu scn1 o saber ... l lavcis sumido, minha linda menina; sou capaz
de pensar que fostc.:s abrir a porta pma i_r recebe-Jo... Vindc cá outra vez,
ele nem há-de sequer entrar em casa ... «Como sereis vós a sabé-lo?» .Posso
contudo assegurar-vos ... foi ele que o disse. Se a carruagem que ia a passar
nao tivesse feíto tanto barulho, poderíeis ter sido vós a ouvi-lo. Dissc-lhc
completamente en passant: «Vais entnu·?» Respondeu-me com um claro
«nao» ... Ora podeis dizer-lhe adeus, pois eu e o licenciado vamos agora
passcar. Ele está cmbara9ado, e quem está embara9ado gosta de ser conver-
sador. Ora folti-lhe do lugar de pastor que ele procura ... Adeus, rninha linda
menina, ora v<11110:-i lá a caminho da alfándega. Quanclo lá tivermos chegado, dir-lhe-ei cntáo: «Raros. mas nao que me desviaste do meu caminho,
é
eu havia de ter ido para a Vestergade.» - Vede, estamos aquí outra vez.
Mas que fidelidadc, cla ainda está a janela, Urna rapariga destas tem de
fazer um homcm feliz.... E porque faco eu urdo isto, pcrguntais vós. Porque
sou um hornern ignóbil , que tem alegria em provocar os outros. De modo
nenhum. Faco-o por desvelo para convosco, estimávcl menina. Em primeiro lugar. Haveis esperado pelo licenciado, ansiado por ele e, assim. ele fica
duplamente belo. quando chcga. Em segundo lugar. Ora quando o licenciado entrar porta adentro, entáo, dirá assim: «Quase que tínhamos sido descobertos, nao é que o maldito homcm eslava a porta. quando eu queda
visitar-te? Mas fui experto. enrolei-o numa longa algaravia sobre a posicño
que eu procuro, andci com ele por aquí e por ali, lcvci-o até a alfñndega:
juro que ele níío dcu por nada.» E o que? Bcrn, ainda o tendes mais ero
conta do que anteriormente, pois haveis sernpre estado crn crer que ele tinha urna maneirn excepcional de pensar, mas que ele Ioi cspcrto ... sirn.
podcis agora ver por vós mesmo. E dcvcis agradece-Jo a mim - - - Mas
ainda me ocorre uma coisu. O vosso noivado ainda nem pode scqucr ter
sido proclamado. caso contrário 13721 cu tcria de sabe-lo. A rapariga é linda
e apetecívcl ele olhar; masé jovem. Talvcz o scu descortino nao tenha uinda
amadurccido. Nao seria pcnsávcl que fosse dar um passo muito sério ele
animo leve. Tem de ser impedido; tenho de falar com cla. Dcvo-lhe isso,
pois é seguramente urna rapariga muito cstimável. Devo-o ao licenciado,
pois é mcu amigo e. nessa medida, dcvo-o tambérn a ela, pois a futura do
meu amigo. Dcvo-o a família, pois trata-se seguramente de urna fumília
rnuito respcitávcl. Devo-o a toda a humanidadc, pois urna boa ac<_.:ao. A
toda a humanidadcl Que grande pensarnento, que cxcrcfcio enaltecedor,
agir ern nome de toda a humanidade, estar na posse dos plenos poderes de
urna procuracáo geral. - Rumo a Cordelia, porém. Posso scmprc fazer uso
da disposicño, e realmente comoveu-rne o lindo anseio da jovcm.
é
é
Portanto, comec;:a agora a primeira guerra com Cordelia, na qual eu rujo
em retirada, ensinando-a assim a triunfar enquanto me persegue. fujo continuamente para trás, e ncsre movimento as arrecuas cnsino-a a reconhecer
em mim todos os poderes do amor, os seus pensamentos intranquilos, a sua
paixao, o que sí:ío o anscio e a esperanc;a, e a expectativa impaci.ente. Enquanto assim me configuro diante dela, tudo ist.o se dcscnvolve nela em
correspondencia.~ um cortejo t1iunfal, aquele no qual eu a con.duzo, e eu
mesmo sou tanto aquele que louva em ditirambos a sua vitória como aquele
Ou-Ou.
416
que mostra o caminho. Ela arranjará coragem para acreditar no amor. para
acreditar que um poder eterno, quando viro domínio do amor sobre mirn.
quando vir os meus rnovimcntos. Acreditará em mim, por um lado, porque
conto coma minha arte, por outro, porque há verdade no.fundamento daquilo que eu faco. Se nao fosse este o caso, ela nao acreditaría entáo em mirn.
Corn cada um dos meus movimentos, cla torna-se cada vez mais forre; o
amor dcspcrta-Ihc na alma, é investida da sua significacáo como mulher.
- Até agora nao me declarei, dito no sentido mais burgués do termo; faco-O agora. declaro-me declarando-a livre129, sé assim hei-dc amá-la. Ela nao
tem de pressentir que a rnim o deve, pois dessa maneira pcrde a confianca
em si mesma. Quando ela cntáo se sentir livre. tao livre que quase fica tentada a querer romper cornigo, comcca cntáo a segunda batalha. Ora cla
possui forca e paixño e, para mirn, a batalha possui significacño, sejam lá
quais forcrn as consequéncias do instante. Suponhamos que se deixa atordoar 13731 pelo orgulho, suponharnos que rompe comigo: ora bern ! a liberdade
é dela, mas há-dc todavía pertencer-rne. Que um noivado houvesse de
amarrá-la é urna idiotice, só quera possuí-Ia na sua libcrdadc. Ela que me
abandone, nao obstante, a segunda batalha comecará, e ncssa segunda batalha tao seguro ser cu a vencer quanto foi urna desilusáo ter cla vencido a
primcira, Quanto maior Ior a plcnitudc de forcas nela reunidas, tanto mais
interessante para mim é. A. primeira guerra a guerra da libcrtacño, e um
jogo: a segunda é a guerra da conquista, e de vida ou de mortc.
é
U111 l•w¡•n11.•11t11
de Vida
417
assim o segurais? .. Tcrn um nome no canto ... Chamai-vos Charlotte Hahn ..
É tao seduror chegar a saber o nome de urna dama desta maneira tao casual.
É como se houvesse um espírito servical que misteriosamente me levasse ao
vosso conhecimento ... Ou nao será casual que o lenco csrivessc precisamente dobrado de tal modo que eu conseguissc ver o nomc? ... Estáis emocionada, enxugais urna lágrima nos olhos ... O lenco pende de novo sol to ...
Torna-se para vós notório que olho para vós e nao para o padre. Olhais agora o lenco, e reparáis que dcnunciou o vosso nome ... Trata-se deveras de um
assunto muitíssimo inocente, é fácil acabar por saber o nome de urna jovem ... 13741 Porque há-dc ser o lenco a pagar, porque há-de ele ser amachucado? porque vos encolerizáis contra ele? porque vos encolerizáis
contra
mim? Escutai o que diz o padre: «Que ninguém faca cair alguém cm rentacño; também aquele que o faz sem o saber, tambérn ele tcm rcsponsabilidade, tambérn ele fica em culpa para com o outro, e sé podcrá saldá-la com
rcdobrada boa vontadc» ..... Diz agora o árnen; será que lá rora. i1 porta da
igrcja, ousarcis dcixar que o lenco esvoace solto ao vento .... ou ha veis ficado corn medo de mim, daquilo que cntáo eu fiz? .. fiz mais do que aquilo que
sois capaz de pcrdoar. mais do que ousais recordar - para perdoar.
é
é
é
Será pecado meu, em vez de olhar para o padre, ter eu os olhos pregados
no lindo lencinbo bordado que segurais na mao? Será pecado vosso quando
Torna-se necessario um duplo movirnento'V na relacáo com Cordelia.
Se continuasse a limitar-me a fugir da sua supcrioridadc, era bem possível
que o erótico se tornasse nela demasiado dissolut e Irouxo, até que a ferninil idade rnais profunda pudesse hipostasiar-sc. Nao estaría em condicñes
de opor resistencia, quando comecasse a segunda baialha. Bcm pode
dcixar-sc embalar até a vitória, mas tambérn
isso que fará; mas, por outro
lado, tcrn de ser continuamente despertada. Quando entáo lhe parecer, por
um instante, que a sua vitória como que lhe novamente arrancada, há-de
aprender a querer manté-la segura. Nesta contenda amadurece a sua feminilidade. Eu poderia emprcgar a conversa para inflamar, cartas para esfriar,
ou proceder inversamente. De qualquer mancira, a última alternativa é a
preferível. Desfruto assirn os seus instantes mais exccssivos. Quando tiver
recebido urna epístola, quando o doce veneno desia Ihc ti ver passado para
o sangue, bastará urna palavra para fazer com que o amor irrompa. No
instante scguinte, a ironia e o gelo deixam-na em dúvida, mas nao tanto que
nao continué ainda a sentir o seu triunfo, a senti-lo aumentado coma recepc;ao da epístola seguinle. Em carlas, a ironía também nao se deixa utilizar
tao adequadamente, sem que se corra o perigo de ela nao a entender. Só por
129 Em dinamarqucs, «el/ .frie>> significa «pedir a mao», «declarar-se», mas tarnbém
<<libertar», «tornar livre».
130 A natureza dupla de um movimcnto é igualmente usada para caracterizar o movimento do cavaleiro da fé em Temor e 1/·emor.
é
Amo Cordelia? sim! sinceramente'? sim! fielmente? sim! - em sentido
estético e, contudo, decerto que contém cm si alguma significac;ao. De que
serviria a esta rapariga cair nas maos de um aselha de um marido fiel? o
que seria entao dela? Nada. Dizem que é preciso mais do que um pouco de
honcstidade para alguém se desenvencilhar no mundo; cu digo que, para
amar urna rapariga deseas, é preciso mafa do yue um pouco de honesticlade.
Esse mais, lenho-o eu - é falsidade. E, contudo, amo-a fielmente. Vigío-me a mim mesmo com rigor e contenr;ao para que t.udo quanto nela está se
desenvolva, para que toda a rica natureza divina nela contida possa chegar
a desdobrar-se. Sou um dos poucos que pode fazé-lo, ela é urna das poucas
com aptidao para tal; nao estamos bem um para o outro?
é
é
Ou
StSrcn Kicrkcgaard
418
lampejos pode a exaltacáo ser utilizada em conversa. Em pcssoa, a minha
física impedirá o éxtase. Quando eu apenas estou presente numa
carra, é-lhe mais fácil suportar-me, confunde-me até certo ponto com um
ser universal que vive no seu amor. Numa carta, também
possível ser
mais desenvolto, numa carta posso muitíssirno bern lancar-rne a seus pés,
ctc., algo que me faria parecer um galimatías se o fizesse pessoalmente, e
a ilusáo pcrder-se-ia. Ncla, a coruradicáo contida nestcs 13751 rnovimentos
irá fazer surgir e desenvolver o amor, fortalece-lo e consolida-lo. numa
palavra, rentá-lo. Estas epístolas nao térn todavía de assumir um colorido fortcmcnte erótico
excessivamenre cedo. Será melhor que tenham urn cunho universal no come90, que contenham um único sinal, que afastem urna única dúvida. Oportunamente, podem também referir a vantagem trazida por um noivado, tendo
cm conta que se pode manter os curros afastados recorrcndo a mistificacóes.
Quanto as impcrlcicócs que de resto um noivado tcm, nao lhc faltará ocasiño
para nclas atentar. Em casa do mcu tío, tcnho urna caricatura que dcixo ficar
semprc do rneu lado. Ela nao é Capa¿ de producir O er(ÍlÍCO Íntimo scrn 0 l11CLI
auxilio. Quando lho negar e dcixar que cssa caricatura a atormente, entáo,
há-de ficar suficientemente enfadada por estar noiva, sem que possa propriamente dizer que son eu quem fez com que se enfadasse disso.
Urna cartinha dar-lhc-á hojc um sinal de como estño as coisas no scu
íntimo, na medida em que descrevo o meu estado de alma. Este é o método
certo; e eu tenho método. E posso agradece-Jo a vós, queridas meninas. a
quem eu anteriormente arnei. A vós devo eu esta afinacño da minha alma
que me permite ser para Cordelia aquilo que eu desejo. Lernbro-vos eom
gratidáo, honra vos seja dacia, pois hei-de sernpre admitir que urna jovem
urna mestra nata, corn qucrn se pode aprender, se outra coisa nao for, entño,
como cnganá-la, já que isso se aprende mclhor com as proprias raparigas;
por mais anos que eu tenha, nunca me hci-dc csquecer de que um homcm
só está acabado quando está tao vclho que nao conscguc aprender mais
nada corn urna rapariga jovern.
presenca
é
Ou.
U111
h'l1v111c1ilo
de
Vida
419
nada me horrorizava , mesmo que o espirito me tivcssc batido a porta, teria
segurado no candelabro para a abrir131. Mas repara, nao loi a fantasmas que
cu abri a porta, nao foi a figuras pálidas e exauridas, foi a ti, minha Cordclia, foi a vida e a juventude, e a saúdc e a beleza, que vierarn ao meu encontro. O meu braco estremece, nao consigo manter a luz quieta, rccuo
fugindo de ti, e nao consigo deixar ele fixar os ol hos em U, nao consigo
deixar de desojar que pudesse segurar a luz quietamente 132. Estou mudado;
mas para que, como, cm que consiste esta mudanca? Nao sei, nao sei acrescentar qualquer dctcrminacáo mais exacta. nao sci crnpregar qualquer predicado mais rico do que este, quanclo numa mancira infinitamente enigmática digo de rnim mesmo: muclaram-me133•
Teu, Johannes.
**
Minha Cordelia!
O amor ama o scgrcdo - um noivado é urna rnanifcstacño; o amor
o silencio - urn noivado é um comunicado; o amor ama o sussurro noivado
um anuncio de viva voz: e cornudo, urn noivado, por via
artes da rninha Cordclia, constituirá precisamente um meio excelente
ama
um
das
para
engarrar os inimigos. Numa noite escura nfio há nada mais perigoso para os
outros navíos do que pcndurar urna lanterna no lado de rora, mais enganosa do que a escuridíío.
é
é
é
**
Minha Cordelia!
Dizes que nunca me imaginaste assün, mas cu também nao tinha imaginado que pocleria ficar assim. Será que agora a mudan9a está em ti? porque
cabe aquí pensar que nao fui propiiamcnte cu a modificar-me, mas antes o
olho com que me ves a modificar-se; ou será que está em mim? Está cm
mim, porque te amo; está em tí, porque é a ti que eu amo. A luz quieta e
fria do entendimento, cu observava 13761 tudo. orgulhoso e impassível,
Teu, Johannes.
**
Está sentada no sofá junto da mesa de chá, comigo sentado a seu lado;
segura-me no braco, a cabcca repousa no meu ornbro, pcsam-lhe os muitos
pensamentos. Está tao próxima e, contudo, ainda distante de mim, entrega-se e, contudo, nao me pcrtence. A inda se dá uma resistencia, mas nao está
reflectida subjectivamente, é a resistencia universal da fcminilidade, pois
que a cssencia da mulher é urna entrega, cuja forma é resistencia. - Está
13·1 Alusao a cena final de Don Giova11n.i, Acto 11, cena 14, quando o protagonista se
dirige a porta para rcceber a estátua que assim comparece para cear com Don Juan.
Kmse,Acto 11, p. 19, pp. 122-123.
132 Vd. acima nota 99.
1 JJ Vd. A l?epetifÜO, SV 1, vol. 111, p. 139, SKS. vol. 4. p. 39: tradm,:ao portuguesa, p. 55.
420
S01c11
Kicrkcgnurd
sentada no sofá junto da mesa de chá, corrugo sentado a scu lado. Palpita-lhe o coracáo, ernbora sem paixáo, o scio movc-sc, ernbora nao cm dcsassossego, por vezes muda de cor, cmbora corn suaves transicócs. I~ isto
amor134? De modo ncnhum. Ela escura, 13771 entende. Escura as palavras
que ficam, entcnde-as, cscuta um discurso de um outro, entende-o como se
fossc propriamcnte scu: escuta urna voz de um outro, na medida ern que
ressoa dentro dela, entende este eco como se fosse a sua propria voz que se
manifesta para si e para um outro.
Que coisa estou eu a fazer? a dcslumbrá-Ia? De modo ncnhum; tarnbérn de nada me servirla. A roubar-lhc o coracáo? De modo nenhum.
tarnbém prcfiro que a jovcrn que cu hci-dc amar conserve o coracño. Que
coisa cstou eu cnráo a fazcr? Conccbo para mim urn coracño it semclhanca do scu, Um artista pinta a sua amada, é para ele agorn urna alegria,
um escultor d:i-lhc forma. É o que eu também fa90. mas cm sentido espirilual. Eta nao conhece a imagem que cu possuo e reside propriamcntc
nisso a minha folsifieac,:ao.
Apoclerei-mc
dela em completo scgrcdo e,
nesse sentido, roubei-lhe o cora9ao, tal como se cli7. que Rebeca roubou
o corayño de Labao, quando ele uma mancira sub-rcplícia lhe rclirou as
divindacles do hu·135.
A ambiencia e o enquadramento tem afinal uma grande inílucncia num
inclivíduo, sao coisas claquclas que mais firme e profundamcnLc fi(;am gravadas na memória, ou mclhor, cm todu a alma e. por isso, também nao sao
esquecidas. Por 111ais anos que cu vicssc a ter, para mim. continuaría a ser
sempre urna impossibilidadc pensar em Cordelia muna qualquer outra ambicncia que nao fosse esta pequena sala. Quanclo eu aí chego para visitá-la,
cm gcral, a criada faz-me entrar pela porta do salao; ela própria dirige-se
cntilo para lá vinda do seu quarto e. enquanto cu abro a porta do salao para
entn1r na sala de estar. ela abre a mitra po11a; de tal modo que os nossos
olhos se encontram desde logo no umbral. A salinha de estar é pcquena.
acolhedora, está quase na transii;:ao para ser um gabinete. Apesar de eu já a
134 Aqui, «Kjll'rlig!ted».
135 Lapso do autor: niío se trata de Rebeca. inas sim de Raquel. Vd. Livro do Génesis.
31 :26: «Entao disse Lahao a Jacob: Que tizeste, que te esquivaste de mim, e levaste as
minhas filhas como eativas pela espada?» Nas sucessivas tradw;:oes da Bíblia para dinamarques, até 193l, a icleia de «esquivar», «engan<ir>>, era traduzida literalmente do
hebraico, como «roubar o corar,:ao». i. e., «roubar o entendimento», já que era no corar,:ao que residia o entendirnento: «Da sagde Laban ti/ Jakoh: Hvad /Jar d11 f?.iorl, c11 d11
lwr s~¡aalel mil lljerle Ofi bortf(Jt'I mine D~tre. som vare de fw1g11e med Svterd"!». ou
seja. <<Disse entao Jacob a Labao: o que fizeste. roubasle o meu cora<;ao e levaste <t~
rninhas filhas, que foram tom.adai-. pela esp<1d;1'1»
Ou-Ou
U111 F111i•11t\'nlo
421
de Vida
ter visto de perspectivas muito diferentes, ve-la do sofá continua a ser para
mim a mais querida de todas. Ela está ali sentada ao meu lado. a frente, urna
mesa de chá redonda, sobre a qual se cstende urna toalha de mesa ricamente
drapeada. Em cima da mesa está um candcciro , cm forma de flor. que se
ergue possante e carnuda para suster a sua coroa, da qua! pende um quebra-luz de papel finamente recortado, tao leve que nao conscgue imobilizar-se.
A forma do candeeiro recorda a natureza do Oriente, 13781 e os movimentos
do quebra-luz, os ventos suaves daquelas paragens. O chao está oculto sob
um tapete, tecido numa espécie de vime, um trabalho que prontamente denuncia a sua proveniencia estrangeira. Ern instantes particulares, deixo que
o candcciro seja a iclcia condutora na minha paisagem. Fico ali sentado com
cta. cstendido no chao dcbaixo da flor do cancleciro. Noutras alturas, deixo
que o tapete de vimc taca surgir a rcprcscntacáo de urn barco, de urna cabina de oficial - navegamos cntño no rucio do grande occano. Como estamos
sentados longe da janela, observamos de urna rnancira imcdiata o imcnso
horizonte do céu. Tambérn isto acrescenta fl ilusño, Quando fico ali sentado
ao lado dela, cleixo entño que estas coisas se mostrcrn como urna imagcm
que corre sobre a realidade tao velozmente quanto a morte passa por cima
da nossa cova':". - A arnbiéncia
sempre de grande importancia. ern particular dcvido ~' recordacáo. Qualquer rclacáo erótica rcrn de ser integralmente vivida de tal modo que um indivfduo produza fucilrnentc urna imagem que possua toda a beleza dessa relacáo. Para que isso possa dar-se, a
arnbiéncia tcm de ser tida cm especial atencño. Se nao se puder encontrar
urna ambiéncia como é scu desojo. tcrn de produzir-se urna. Para Cordelia e
o seu amor, esta arnbiéncia é intcirarncntc apropriada. Ao invés. quño diferente a imagern que a mim se rnostra quando pensó na rninha pequena
Emilie e. contudo, como nao seria esta, por scu torno, urna ambiéucia adequada? Nao consigo irnaginá-la, ou melhor, só qucro rccordá-la na salinha
do jardim ele inverno. As portas estavarn aberras, urn pequeno jardim cm
frente da casa limitava a vista. obriganclo o olho a embatcr nelc, a parar
antes de atrevidamente seguir o carreiro que desaparecía na distáncia. Emilie era grácil, mas mais insignificante do que Cordelia. A arnbiéncia estava
pois calculada para tal. O olho mantinha-se rente ao chao, nao irrompendo
ousada e impacientemente, rcpousando no prirneiro plano diminuto; o próprio carreiro, ernbora se perdessc romanticarncnte na distancia, produzia
todavía maior efeito, de tal modo que o olhar percorria as faixas ele terra que
a frente se estendiarn, regressando de novo para voltar a percorrcr a mesma
faixa. A sala era contigua ao nível do solo. A ambiéncia cm torno de Cordelia nao terá de possuir um primeiro plano, mas antes a infinita ousadia do
é
é
136 A cxpressao «d~!de11 gik over mi11 grav>> denota um estremeeimento s1íbi1.o e inesper:Jdo; vd. Molhcch, fl. 308.
422
S0rc11 Kicrkcgunrd
horizonte. Nao terá de estar contígua ao solo, mas antes pairar, nño tcm de
andar. mas antes voar, nao de lá parad, mas eternamente para lá.
Quando se está noivo, cnráo, tem-se o justificado proveito de ser iniciado
nas palcrmices dos noivos. Há alguns días apareceu-me o licenciado l lansen
13791 corn a jovcrn rapariga estimável ele quern tinha ficado noivo. Confiou-mc que ela era gráci 1, eu já o sabia, confiou-rne que era mu ito jovern, também já o-sabia, confiou-rne por fim que tinha sido precisamente por isso que
a cscolhera, para ser ele proprio a formri-Ia de acordo com o scu ideal que
scrnpre lhc pairara na ideia. Meu Dcus, mas que licenciado tao patego - e
que rapariga tao sadia, vicosa e animosa. Ora cu sou um praticante já bastante velho e, contudo, nunca me aproximo ele urna rapariga que nao seja como
de urna venerabile da naturcza, aprcndendo primeiro corn ela. Conquanto eu
possa ter alguma influencia formadora sobre ela, consiste cada vez mais em
ensinar-lhe aquilo que por seu turno aprendí com cla.
A alma dela tem de emocionar-se e ser agitada cm todas as direccñcs
possíveis, porérn, nño parcialmente através ele rajadas, mas totalmente. Ela
tcrn de dcscobrir o infinito, cxpericnciar o infinito como aquilo que rnais
próximo
está de um homcm. Tern de dcscobri-lo, nfio pelo carninho do
rara eta urn desvío, mas na fantasía. que é a genuina
comunicacño entre rnim e cla, visto que aquilo que no hornem é parte, na
mulher
o lodo. Nao é pelo árduo carninho do pensarnento que ela há-de
trabalhar para atingir o infinito, pois a mulhcr nao nasceu para o trabalho,
pelo leve carninho do coracáo e da fantasía que o aprenderá. Para urna
rapariga, o infinito tao natural como a rcpresentacño ele que tocio o amor
terá de ser feliz. Para onde qucr que ela se vol te, urna jovcm tem a infinitude a sua volta e a transi~ao é o salto. note-se, porém, u111 salto fominino,
nao um salto masculino. E quao desajeitados sao os homens, cm geral !
Quando houvcr de dar-se um salto. entao, vá de ganbar impulso, razer longos preparativos, medir a distancia com os olhos, correr alguns passos,
acanhar-sc e voltar para trás. Finalmente saltam, e fa!ham o salto. Urna
jovem rapariga salta de oulra mancira. Nas rcgioes montanhosas encontra-sc amiúde <lois cumes procminentes. Separa-os um abismo devorador137,
lerrível quanclo se mergulha os olhos ncle. Homem nenhum arrisca este
salto. Ao invés, contamos habitantes da regiao, urna jovcm arriscou o salto;
dá-sc-lhe o nome de salto da clonzela. Nao me custa nada acreditar, tal como acredito cm tudo o que é assinalávcl numa jovem rapariga, e fico ine-
pensamento, que
é
é
é
é
137 Exprcssao similar é usada em Temor e fremor para indicar a maonitudc do dur>lo
.
mov1mento tic Abraao para a fé; SVI. vol. III, p. 72; SKS. vol. 4, p. 116: trndw,:ao portuguesa. p. 72.
"'
Ou
Ou, UJ11
hi111111c11lo
423
i..k Vida
briado ao ouvir os ingenuos habitantes falar disto. Acredito cm ludo, acredito no prodigioso, espanto-me com ele simplcsmcntc por acreditar; como
a única coisa que no mundo me deixou espantado é urna jovcm rapariga,
cla a primeira e 13801 será a última. E contudo, para urna jovem, sernelhant.c salto é apenas um pulo, enquanto o salto do hornero se torna sempre
ridículo, porque, por rnais que estique as pernas, o seu esforco como se
nada fosse , visto na relacño com a distancia entre os cumes, e, ao mesmo
tempo, oferece afinal urna espécie de medida. Mas quem poderia ser tao
tolo a ponto de imaginar que urna jovem ganhava impulso? Pode rnuito
bcm imaginar-se a rapariga a correr, mas cntáo cssa mesma corrida é mesmo um jogo, um desfrute, um dcsdobramcnto de graciosldadc: pelo contrario. a rcprcscntacáo de ganhar impulso separa o que na rnulhcr está unido.
Ganhar impulso contém em si o dialéctico, o qua! contrario ~. natureza da
mulher. E agora o salto; quem ousaria voltar a ser desgracioso a ponto de
aquí separar o que está unido. O salto da mulher um pairar. E quando ela
chcgou ao outro lado, ci-la que fica de pé outra vez, sem mostrar fadiga
pelo esforco, mas mais bcla do que nunca, mais chcia de alma, arirando-nos
um bcijo, a nos, que ñcámos do outro lado. Jovcm, rccém-nascida,
como
urna flor que rcbcnta da raíz da montan ha, balanca-sc sobre o abismo, quase nos turvando o olhar, - - - Tcrá de aprender a tazcr todos os movimentes da infinitudc, a balancar-se, a embalar-se ern disposicñes. a confundir a poesía e a realidadc, a verdadc e o poema, a recrear-se na infinitude.
Quando cstivcr acosturnada a esta turbulencia, junto-lhc cntáo o erótico. e
será cntño aquilo que cu qucro e desoje. Findarn cntáo os rncus scrvicos, o
meu trabalho, rccolho entíío todas as minhas velas, sento-rne cntño a scu
lado, e sob as suas velas que seguimos viagem, E na vcrdade, assim que
esta rapariga ficar eroticamente inebriada, entáo , terei bastante que fazer ao
leme de modo a moderar o rumo, para que nada aconteca demasiado cedo.
nern de urna rnaneira pouco bonita. De vez em quando faz-se um furinho
na vela e, no instante seguinte, prosseguimos céleres ern frente.
é
é
é
é
é
Em casa do mcu Lio, Cordclia fica cada vez rnais indignada. Já propós
por várias vezes que nao houvéssemos de Já voltar; ele nada lhc serve, sci
sempre como arranjar pretextos. Quando ontem de lá saíamos, apcrtou-rnc
a mao com uma paixao incomum. Presumivelmente, ter-se-á sentido muito
atormentada lá dentro, o que nao é de admirar. Se eu nunca retirasse divertimento da observa9ao das afecta96es destes produtos artificiais. entao,
ser-me-ia impossível conseguir suportá-lo. Recebi esta manha urna carta
sua, na qua! troGa do noivado corn mais chiste do que aquele que eu lhe
atribuíra. Beijci ~ carta, é 13811 a carta mais querida que dela recebi. É assim
mesmo, Cordclia minha! É assim que cu qucro.
424
S0r1.:n l<icrkcg:iard
É deveras estranho, mas acontece que em 0stcrgade vivern dois pasteleiros em frente um do outro, No primeiro piso do Lado esquerdo, vive urna
menina, ou urna senhora jovem. Em geral, esconde-se atrás de urna gelosia
que cobre a vidraca junto da qual se scnta. A gelosia é de tecido muito fino,
e quem conhecer a jovern, ou melhor, quem já a tivcr visto mais vczes, se
tivcr bons olhos, será capaz de lhe reconheccr cada trace seu facilmcnte, ao
paSSO que, para aquele que nao a conheccr Oll nao tiver bons olhos, ela
mostra-se como urna figura obscura. Até ccrto ponto, o mcu caso é o último;
o primeiro o de um jovcm oficial que tocios os días. ao mcio-dia em ponto.
se mostra, ao largo, dirigindo o scu olhar para aquela gclosia. Comecei propriarnentc por ficar apenas atento a bela relacño telegráfica com a gelosia.
Nao havendo gclosias nas restantes janclas, urna gelosia assim solitaria, que
se limita a ocultar urna vidraca, na gcncralidadc, é sinal de que está scmpre
urna pcssoa sentada atrás dela. Certa manila, cu estava a janela da pastel aria
do outro lado da rua. Era precisamente rncio-dia. Sem atentar ern quem
passava, fixci os olhos naqucla gclosia, quando subitamentc a obscura figura cornecou a mover-se por detrás. Urna cabeca de mulher rnostrou-sc de
perfil contra a vidraca mais próxima, rodando ele urna estranha mancira na
direccáo para a qual clava a gclosia. Ern seguida, a clona desta cabeca acenou
amistosamente e voltou a esconder-se atrás da gclosia. Em primciríssimo
lugar, deduzi que a pessoa por ela cumprirnentada era um homern, já que o
scu rnovimento era demasiado apaixonado para ter surgido ao avistar urna
amiga; em segundo lugar, deduzi que, em geral, aquel e a quem se dirigía o
cumprirnento eslava do outro lado da rua. Tinha-se entáo colocado da maneira pcrfeitarncnte cena para conseguir ve-lo urn born bocado antes, decerto que até mesmo para cumprirnentá-Io escondida pela gelosia. - - Exactamente ao rneio-dia em ponto, chegou o herói desta pequena cena de
arnor1J8, o nosso caro tenentc. Eu eslava sentado na pastelaria que fica no
rés-do-chao do prédio em cujo primeiro andar vive a jovem senhora. O tencnte já a localizara comos olhos. Tome lá bem cuidado, meu caro amigo,
nao é assim um assunto tao fácil fazer urna bonita saudac;ao para um primeiro andar. De resto, ele nao é mau de todo, é bem constituido, aprumado, 13821
urna bel a figura, o nariz arqueado, cabelo preto, o tricórnio assenta-lhe bem.
E agora o busílis: as pernas comes:am aos poucos a traí-lo, a ficarem grandes
<le mais. Causa urna impressao a vista, comparável a sensa9ao que se tern
quando há dor de dentes e os dentes ficam demasiado grandes na boca.
Quando se quer reunir todo o seu poder nos olhos, direccionando-os para o
primeiro andar, é fácil acabar por retirar demasiada forc;;a das pernas. Desé
138 Aquí, «Elskov».
Ou
Ou. Um
ht1!'lllC11!0
425
de Vida
culpe, senhor tenente, por ter parado este olhar na sua ascensáo aos céus. Sei
muito bem que é urna impertinencia. Nao pode clizer-se que este olhar diga
mu ita coisa, antes nada diz e, contudo, é muito prometedor. Masé manifesro que muitas dcsras promcssas lhc sobcm cxcessivarncnte a cabeca; vacila,
·
139 . E"
para usar as palavras do poeta sohre Agnete: «ele cambaleou e catu»
duro; tivesse de ser eu a dar aviso, e nunca haveria ele ter acontecido. Ele é
demasiado bom para isso. Ora isto é deveras fatal. pois se for para fazcr figura de cavalheiro junto das damas, nunca é de cair. Se alguérn quiser ser
um cavalheiro tem de atentar nisto. Ao invés, se alguém se mostra meramente como dimensáo inteligente, entño, tuclo isto é indiferente; se se afundar
em si mesmo, entra cm colapso, acaba realmente por cair redondo, e enráo,
nem scqucr há nisso nada de notorio. - - E que imprcssáo pode esse
acontccimcnto ter devoras causado na minha senhorinha! Mas que infelicidadc cu nao poder estar cm ambos os lados dcsrc cstrcito de Dardanelosl'P)
Bem que eu podcria arranjar alguérn conhecido e pó-lo do outro lado, porérn, por um lado, desejo ser sempre cu, prcferencialrncnrc, a conduzir a
observacáo e, por outro, nunca se sabe o que para mim pode advir ncsta
historia e, nesse caso, nunca bom ter urna testemunha, dado que se perde
urna parte do tempo a extorquir-lhe o que ela sabe e a deixá-lu confusa. - - Comcco realmente a ficar cansado do rncu tcncntc, Día após día
passa por aquí de uniforme completo. É realmente de urna constancia aterradora. É proprio ele urn soldado? Meu caro senhor, nao trazcis armas convoseo? Nao deveis ser vós a tornar a casa de assalto e a rapariga pela forca?
Ainda se fósseis urn estudioso. urn licenciado, um capelño que se mantivesse em vida com a esperanca"", seria urn caso diferente. Náo obstante, eu
pcrdoo-vos. pois quanto mais olho a rapariga, mais me agracia. Ela bonita,
os olhos castanhos csiño repletos ele mal ícia. Quando espera a vossa chegada, o seu rosto transfigura-se numa bclcza mais elevada que lhe assenta indescritivelmente bern. Deduzo a partir disto que ela terá de ter rnuita fantasia, e a fantasía a cosmética natural do belo sexo.
é
é
é
139 Tal como no poema de Jens ílaggescn, «Agnere .fra Holmegaard» l«Agnete ele
Holmegaard»], in Jem Baggesens danske Va•rker [Obras de J. B. cm Dinamarqucs],
vols. I-Xll. Copen haga, 1827-1832; vol. 11, p. 358.
140 Antigo Helesponlo, estreito que Jiga o mar Egeu ao Mar de M~rmara, ponto de
passagcm obrigatório para os cxércitos provenientes da C1récia ou da Asia.
14 l Alusíío a um conselho de J. L. Heiberg cm «Moralsk L.:ese~velse i Vers>> 1 «Exercícios Mornis de Leitura cm Verso»!. in Ny A-8-C-Bog I en Times Undervii.rning ti/ A:::re,
Nylfe. of f·'omf)iefse
for den unge Grundrvig [Novo Livro do ABC numa Lic,:ao de Urna
llora para Hnnra, Pmveito e Divertimento do Jovern Gru11cltvig], Copenhaga, 1817, p.
2; vcl. Johon /,11(/vif!. Hciber¡¡s Pmsaitke Skrifter fEscritos cm Prosa de J. L. 11.1. vols.
l-Xl.C'op1:11hnpa.
1861-1862;
vol. X. p. 25.
1
426
S111cn K 1c1 kcramd
13831
Ou
Ou 11111 l t.tflllntl11 de Vidu
<127
quando se pcnsa unica e exclusivamente numa coisa. e 13841 cu penso só cm
ti - cm sentido corpóreo. nunca se tem venigcns quando se fixa o olhar
única e exclusivamente numa coisa, e eu sé tenho olhos para ti. Agarra-te
bern: se o mundo perecer, se este nosso carro Iigeiro desaparecer dcbaixo de
nós, ficarcmos todavía abracados, pairando na harmonía das esferas •4J.
**
Minha Cordclia!
Teu, Johannes,
O que é o anseio? A lfngua e os poetas Iazern com que rime coma palavra
•
.
14? Q
.
.
«cauvcrro»
-. ue corsa desmedida! Como só pudessc ansiar quem ei;tá
preso. Como se nao se pudcsse sentir anseio quando se está livrc! Suponhamos que eu eslava cm libcrdadc, corno nao iría eu ansiar! E por ourro lado.
!)OU devoras livrc, livrc como um pássaro e. no cnranro. como nño anseio eu!
Anseio quando vou ter contigo, anseio quando ce dcixo , até quando estou ao
teu lado. anseio por ti. É possfvcl an iar por aquilo que se tern? Sim, quando
se pondera que no instante seguinte tal vez. já nao o tcnhamos. O meu anscio
uma eterna impaciencia. S6 se eu tivessc vivido por toda a ctcrnidadc e me
iivcsse convencido de que me pertencias a cada instante, só cntño voltaria
outra vez para ti, e viveria por tocia a eternidade contigo. e nao teria paciencia que chcgassc para ficar de ti separado por um instante sem sentir anscio.
mas teria certeza que chcgasse para ficar tranquilo a tcu lado.
é
Teu, Johannes.
**
Mioha Corclelia!
Lá fora,
**
É quasc excessivo. O meu criado csperou seis horas, cu próprio csperei
duas, a chuva e ao vento, s6 para ver passar Charlouc Hahn, aqucla querida
menina. Todas as quanas, entre as duas e as cinco, cosruma visitar urna tia
idosa que cla tcm, Logo hojc náo há rncio de aparecer, logo hoje que cu tanto desejava encontrá-lu. E porque? porque clame transporta para urna cena e
determinada disposicño. Cumprimenro-a. cla inclina-se de urna maneira que
ao mesmo tempo indcscritivelmente terrena e. conrudo, tifo celestial; quasc
rica parada. é como se houvcssc de afundar-sc no chao e, cornudo, tern um
olhar como se houvcsse de estar a elevar-se ao céu. Quando a olho, a minha
mente torna-se simultancamcnte solene e, cornudo. cupida. De resto, a rapariga nao me imcrcssa de todo, reclamo esta mera saudacño. nada rnais. mes1110 que ela quisessc dar-rna. A sua saudacáo transporta-me para urna disposic.:iio e, mais tarde. é a minha vez de usar prodigarncnte esta disposicüo com
Cordclia. - Até aposto que ela se cscapou de nós de urna qualqucr rnaneira.
Nao só na. cornédias, também acontece na realidadc ser difícil tomar coma
de urna rapariga,
preciso ter olhus na ponta dos dedos. Havia urna ninfa,
Cárdea144, que era ciada a burlar os homcns. l labitava ern rcgióes de floresta,
atraía os seus amantes para o mato mais den o e desaparecía. Também quis
cnganar Jano. mas foi ele qucm a cnganou, pois tinha olhos na nuca.
é
é
é
a porta,
está um pequeno cabriolé, que para mimé maior do que
todo o mundo. pois tem lugar que cheguc para dois: atrclado a dois cava los,
bravíos e indornáveis como forcas da natureza, impacientes como as minhas
paixñcs, audaciosos como os teus pensamentos. Se quiseres, arrebato-te
para lora daqui - minha Cordelia! das ordem para tal? A tua ordem a
chavo que solta as rédcas e a volúpia da fuga. Tiro-te daqui. nao de urnas
pessoas para outras, mas para fora do mundo - os cavalos cmpinarn-se, o
carro levanta-se, os cavalos erguern-sc quasc na vertical sobre as nossas
cabecas, viajamos pelo céu através das cstrelas; sibila cm rcdor. : eremos nós
que estamos quietos. e o mundo intciro a mover-se. ou será antes a nossa
auclaciosa fuga? Se tens vertigens, Cordelia minha, agarra-te cntño bcrn a
mirn; eu nao sinto vertigens. Ern sentido espiritual, nunca se tern vertigcns
é
142 Na língua dinamarquesa. as duas palavras rimam, rc-pcctivamcnre:
«Ftengsel»,
«Lamvsc!» e
As minhas carta!. nao falham o cu propósito. Dcsenvolvem-na do ponto
de vista anímico, se bcm que nao do ponto de vista erótico. Para este cfeito.
143 Concei10 pitagórico, também designado como mú~ica das esferas. baseado na sobrcposi\=ªº da oi1ava na esc<ila musical ao número de planetas emiio conhecido. que era
de oito.
144 Na mitología romnna. :1 ninfa Cárdca, ou Carna. c:onscguiu ludibriar todos os prctendentes. cxccplo Jano. (jlll' a seduziu e lhc concedeu o dom de proteger os gor11os e
ª'abertura~ de pona. bdt<¡ao de con~uha do autor: Nit,ch. 1, p. 465. Ovíclio menciona-a
crn l·a.\11. VI, vv. 101 IJ0.111 Opera. vol.111. pp. 157-158
428
Ou
também nao se devc ernpregar cartas. mas sirn bilhetinhos. Quanto mais o
erótico emerge, rnais breves se tornamos bilhetes, maior a firmeza com que
captarn o ponto erótico. Para nao a tornar entretanto sentimental ou branda,
entáo, a ironia fortalece-lhe por seu turno os sentimentos, ao mesmo tempo
que a torna 13851 mais ávida do alimento que lhe é rnais querido. A distancia
e indeterminadamente, os bilhetinhos fazem com que o presscntimcnto atinja o máximo. No instante cm que este prcsscntimcnto comccar a amanhcccr
na alma dela, rompe-se a rclacáo. Coma minha resistencia, o pressentimento
assumc riguras na sua alma, como se fossem os seus proprios pensamentos,
o impulso do seu proprio coracáo. É meramente isto que cu quero.
<h•. t l111 l
111r1111•11to
de Vidu
'129
**
é
**
Minha Cordefü1!
13861
Minha Cordelia!
Tenho um scgrcdo para le confiar, minha confidente. A quem haveria eu
de confiá-lo? Ao eco? iría atraicoá-lo. As estrelas? sao frias. Aos homens?
nao o entendem. Só me atrevo a confiá-lo a ti, já que sabes esconde-lo. l lá
urna rapariga, mais bela do que os sonhos da minha alma. mais pura do que
a luz do Sol, rnais profunda do que as nascentes do mar, mais orgulhosa do
que o voo da águia - há urna rapariga - Oh! inclina a tua cabcca para o
meu ouvido e para o que eu digo, para que o mcu scgrcdo possa assim
introduzir-sc dentro dela - amo esta rapariga acima da minha vida, pois
cla é a rninha vida; acima de todos os mcus dcscjos, pois eta o rneu único
dcscjo. o mais alto de todos os mcus pensamcntos, pois ela é o mcu único
pcnsamcnro: amo-a com mais calor do que o Sol ama a flor; com mais intcrioridade do que a rnágoa ama o isolamento da mente preocupada; com
mais anseio <lo que a nreia cscaldante do deserto ama a ch uva - tenho-Ihe
um apego rnais terno do que o olhar de un-la mñe pelo seu filho: mais confiante do que a alma de quem reza a Deus; mais inscparávcl do que a planta da sua raiz. - A tua cabeca fica grave e pensativa. afunda-se contra o
pcito , crguc-sc o peito para vir ern seu auxflio - Minha Cordelia!
Entendeste-rne. entendeste-me com todo o rigor, letra a letra, nem dcixaste
escapar urna vírgula! Hei-cle eu distender as cordas do meu ouvido e dcixar
que a tua voz me convence? Haveria cu de poder duvidar? lrás esconder
este segredo, ousarei ter confianca em ti? Coma-se que há horncns que
diante de crimes horrfvcis se comprornctcrarn a silencio rccfproco145.
Confici-tc um scgredo, que a minha vida e o conteúdo da minha vida, nao
terás algo para confiar-me que seja tao significativo, tao belo, tao casto que
as Jorcas sobrenaturais se agitassem, se for traído?
é
Algurcs aqui na cldadc vive urna pcqucna familia constitufda por urna
viúva e tres fil has. Duas delas frcqucntavam a cozinha Jo rci para aprender
a cozinhar. O Vcráo eslava no corncco, cerra tarde, cerca das cinco, a porta
da sala de estar abriu-sc suavemente, e um olhar escrutinador olhou em
voila da divisño. Nao está ninguérn, sé urna jovem rapariga está sentada ao
piano. A porta fica cntrcaberta, é pois possívcl escurar sern ser notado.
Qucm esté a tocar nao é urna artista, cntño, deceno que a porta estaría completamente fechada. Toca urna mclodia sueca que fula da breve duracáo da
belcza e da juvcntude. As palavras da letra trocam da beleza e da juventude
da rapariga; a beleza e a juventude <la rapariga trocam da letra. Quern tem
razño: a rapariga ou a letra? Os sons ressoam tao calmos, tao melancólicos,
como se a nostalgia fosse o juiz arbitral que decidisse a contenda. - Mas
esta nostalgia nao tem razñol Que uniáo há entre a juventudc e estas consideracñes! Que uniáo há entre a manhá e a tarde! As teclas trcmcm e ircpidam; os espíritos da caixa de rcssonancia crgucm-sc na sua conrusao e nao
se entendem - minha Cordclia, porque tanta vcemcncia! para que tanta
paixaol
Quanto lempo haverá um acontecimento de ficar afastado de nós no
tempo para 4ue possamos recordá-lo? Quanto tempo até que o anseio pela
recorda9ao jéí na.o possa captá-lo? A maioria dos homens impoe um limite
a este respeito: nao lhes seria possível recordar o que lhes é demasiado
próximo no tempo; o que !hes é demasiado longe, também nao. Eu nao
reconhec¡:o quaisquer limites. O que foi vivido ontcm, empurro-o mil anos
para trás no tempo, e recordo-o, corno se tivcssc sido vivido ontcm.
Teu, Johannes.
é
Teu, Johannes.
**
145 Como narrado por Salústio. Catilinae coniuratio !Conjura<;ao de Catilinal, § 22;
edi<;ao de consulta clo autor: G. Sall111·ti Crispi opera quae supers1.1nt [Obras de Caio
Salústio Crispo Que Sobreviveram], edi<;ao de F. Kritzius. vols. 1-JI, Leipzig. 1828-1834; vQl. 1, pp. 107-111.
Em portugues: COF~iurarüo de Catilina, in Salústio. Obra
Completa, tradu9ao e introdu9ao ele Agostinho da Silva, Lisboa: Livros Horizo11te.
1974, p. 32.
430
S01cn
Kicrkcguard
Minha Cordelia !
O céu está chcio de nuvens - sulcam-no escuras nuvcns de chuva como
se fosscm um negro sobrolho franzido no seu rosto apaixonado, as árvores da
floresta movimcntam-se, agitadas por sonhos inquietos. Perdestc-tc de mirn
na floresta. Vejo atrás de cada árvore um ser fcminino que se parece contigo.
aproximo-me mais, esconde-se entáo atrás da árvore seguinte. Nao queres
mostrar-te a mim, nao queres rccolhcr-tc? Tudo se torna para mim confuso;
as partes singulares da floresta pcrdcrn o scu 13871 contorno isolaclo, vejo rudo
como um mar de nevoeiro, onde por todo o lado seres femininos parecidos
contigo se rnostram e dcsaparecern. Nao te vejo, movimentas-tc continuamente nas ondas da in1ui9ao e, contudo.já fico feliz com urna qualqucr parecenca tua. Onde se encentra a causa - será a rica unidadc do tcu ser, ou a
pobre multiplicidadc do rneu ser? - Será que amar-te nao é amar um mundo?
Teu, Johannes.
**
Ou
011. U111
l•1.1¡111ll'lllO
431
de Vida
ele ele mesmo. assim este olhar ve para alérn de si mesmo aquilo que a ele
se mostra 13881 de modo imediato, e ve o prodigioso. É ousado, quase arrojado na expectativa, mas nao é ousado na confianca em sí proprio, por isso ,
é um tanto sonhador e solicitador, nao é orgulhoso ou imperioso. Ela procura o prodigioso fora de si mesma, implora-lhe que se mostrc, como se
nao estivesse ao seu alcance fazcr com que surgisse. Isto tem de ser evitado,
caso contrario. acabo por ganhar ascendencia sobre cla prematuramente.
Disse-rne ontern que havia algo de majcstático na minha csséncia. Talvez
queira ficar submissa, o que nao pode de todo acontecer. Seguramente que
há algo de majestático no meu ser, querida Cordclia, porém, tu nem presscntcs que especie de reino é esse sobre o qual eu impero. Está acirna das
tempestades das disposicócs. Tal como Éolo146, mantenho-as fechadas na
minha rnontanha pcssoal e, ora deixo sair urna. ora dcixo sair outra. A adula9ao dar-Ihe-á autoconfianca, dará validacle
diferenca entre o mcu e o
teu, tudo foi posto do seu lado. É necessario ter grande cautela para adular.
As vezes, tem de ficar-se colocado numa posicáo rnuito elevada, porém, de
modo a que possa a inda havcr um lugar superior; as vczcs, tem ele ficar-se
colocado muna posicño muito baixa. O primciro caso o rnais acertado
quando se taz o movirnento em direccño ao espiritual, o segundo caso é o
mais acertado quanclo se faz o movimento ern dircccño ao erótico. - E ela.
eleve-me alguma coisa? De modo nenhurn. Poderla dcscjar tal coisa? De
modo nenhum. Sou demasiado conheccdor, tcnho demasiado entendirnento
do erótico para fazer urna idiotice dessas. Se rossc realmente esse o caso,
csforcar-mc-ia com tocio o meu poder para fuzer corn que ela csquecesse o
erótico, deixando-rnc embalar nos meus proprios pensamentos cm torno
dele. Ern relncáo ao labirinto do seu coracáo. qualquer jovem urna Ariadne147, possui o fío como qua! se pode encontrar ele novo o caminho, mas
possui esse fío de tal modo que nao cla propria quern sabe utilizá-lo.
a
é
Se fosse possfvcl, realmente poderla interessar-rne reproduzir com todo o
rigor as conversas que rnantenho corn Cordclia. Para rnim, entretanto, fácil
de inteligir que é urna impossibiliclaclc, pois mesmo que eu viesse a conseguir recordar cada urna das palavrus singulares trocada entre nós, fica sernpre vedada a rcproducáo do que hH de simultaneo e que constituí propriamente o nervo da conversa, o que ha de surpreenclente na cxclamacáo, de
apaixonado, e que o principio vital da conversacáo. Na gcncralidadc, nao
estou obviamente preparado. o que tambérn vai contra a própria esséncia da
convcrsacáo, em particular, a da conversacáo erótica. Só tenho sernpre in
mente o conteúdo das rninhas cartas, e tcnho sempre debaixo ele olho a disposi!(ao que esse conteúdo possivelrncntc faz surgir riela. É óbvio que nunca
me ocorreria perguntar-lhe se lera a minha carta. Facilmente me certifico de
que a leu. Tambérn nunca falo directamente com ela sobre isso, mas mantcnho urna comunicacáo secreta com as cartas nas rninhas conversas, em
parte, para inculcar urna qualquer irnpressño mais fundo na sua alma e, em
parte, para arrancar dela a impressao e para confundi-la. Ela pode entao ler
a carta novamente e colller aí urna nova impressao, e assim por diante.
é
é
Produziu-se nela uma mudanc;:a, e continua a produzir-se. Houvesse eu
de designar o seu estado de alma neste instante, entao, díxia eu que é ousadia panteísta. O seu olhar denuncia-o prontamente. É ousado, quase arrojado nas expectativas, como se a cada instante exigisse e estivessc preparado
para observar o sobrenatural. A semelhanva de um olho que ve para além
é
é
**
Minha Cordelia!
Fala - cu obcdec;:o, o teu desejo é uma ordem. a tua prccc é um esconjuro todo-poderoso, cada um dos teus dese jos passageiros é para mim
146 Na mitologia grega e ua romana. Éolo era o dcus do vento e mantinha os seus filhos
muna caverna na ilha de .Éolia; fonle provável do autor: Nitsch. vol. 1, pp. 75-78.
147 Ariadne, fil ha do rei Minos e de Pasífae. apaixonou-se por Teseu e ajudou-o a matar o Minotauro no labirinto de Creta: Ariaclne deu a Teseu urn fio que o jovcm dcsenrolou ao longo dos caminhos do labirinto. pcrmitindo-lhc assim encontrar o caminho de
regrcsso. Provável fontc do autor: Nitsch. vol. l, pp. 309-313.
433
432
urna béncáo , pois eu nao te obedece como urn génio servil, corno se cu
cstivesse fora de ti. Enquanto ordenas, nasce a tua vontadc e, corn cla cu,
pois cu sou urna confusáo da alma que se limita a esperar por urna palavra tua.
Teu, Johannes.
13891
**
Minha Cordclial
Minha Cordctía:
Corno pode subsistir um reino que estcja em luta consigo mesmo?148
como hei-dc cu subsistir, estando eu em luta comigo próprio? acerca de
que? acerca de ti para, se possível, encontrar sossego no pensamento de que
estou por ti apaixonado. Mas como hei-de eu encontrar esse sossego? Um
dos poderes em luta quer sempre convencer o outro de que está apaixonado
da mais profunda e íntima maneira; no instante seguinte, é o outro a fazé-lo.
Nao me preocuparía 13901 muiro, se cu tivcssc cssa luta no mcu exterior de
mim, se houvesse alguém que ousassc estar apaixonado por ti, ou ousasse
nao estar, o crimc seria igualmente grande; mas esta lula no mcu proprio
interior consomc-mc, esta paixáo única na sua duplicidadc.
Teu, Johannes,
Tu sabes que me agrada bastante talar cornigo mesmo. Encontrci cm
mim proprio a pcrsonagern mais interessantc entre os meus conhecirnentos.
Por vezes, rcccci vir a ter falta de assunto para estas conversas, agora deixei
ele ter receio, agora tcnho-tc. Ora eu falo entño cornigo acerca de ti por tocia
a etemidade. acerca do mais interessante objecto como homcm mais intercssante - Ai, pois cu sou apenas urn hornern intcrcssantc. e tu. o mais
intcrcssante objecto.
Teu, Johannes .
**
Minha Cordclia!
Parece-te que te amo há multo pouco Lempo, quase parece que recelas
que eu possa ter amado anteriormente. Há cortos manuscritos, nos quais
o olho Icliz prcsscnte desde logo urna escrita mais antiga que no decorrer
do tempo Ioi scndo suprimida por tolices insignificantes. Usando meios
cáusticos. a escrita ulterior é apagada, e a mais antiga surge agora de
maneira nítida e clara. Foi assim que o teu olho me ensinou a encontrar-me a mim em mim mesmo, deixo que o esquecimento consuma tudo o
que nao te diz respeíto, e descubro entao uma escrita primitiva, divinamente jovem, descubro entao que o mcu amor por ti é tao velho quanLo
eu mesmo sou.
Teu, .lohannes.
**
**
Vá, sorne-te, minha peixeirinha; vá, esconde-te entre as árvorcs, recolhe
lá o tcu cabaz; como te ficn bcm inclinares-te. sirn, com que graciosidade
natural te inclinas neste mesmo agora sob a lenha que recolheste - e que
urna criatura como esta tenha de carregar sernelhantes fardos! Denuncias a
bcleza das tuas formas como se fosscs uma bailarina - estreita ele cintura,
larga de pcito, de estatura pujame, qualqucr chofe de rccruramcnto teria de
conlcssá-lo. Porvcntura pcnsas que sao insignificáncias, parece-te que as
damas distintas sao muito mais bolas. ai ! . minha fil ha! nño sabes quanta
Ialsidadc hú nestc mundo. Vá, dirige já a tua caminhada como tcu cabaz
para dentro da floresta imensa, que presumivelmente se estende por muiias,
multas, milhas pelo campo fora até a beira das montanhas azuis. Talvez níío
sejas urna peixeirinha de verdade, mas urna princesa encantada; estás a
servir ern casa de urn troll; ele é suficientemente cruel para te mandar recolher lenha na floresta. Acontece semprc assim nos contos ele fadas. Porque
te cmbrcnhas, aliás, ainda mais nas prolundczas da floresta? se és urna
pcixcirinha de vcrdade, entño. vais até ao tcu lugar coma tua len ha e passas
por mini, que cstou do outro leido do caminho. - Seguc já o trilho que
serpenteia brincando por entre as árvores, o meu olho encontrar-te-a: vá,
vira-te e procura-me comos olhos, o meu olho segue-re, nao és capaz ele
me mover, o anseio nño me arrebata, estou sentado tranquilamente na sebe
a fumar o meu charuto. - Pica para outra altura - talvez. - Sim, o tcu
148 Marcos, 3:24: «E, se um reino se divi<lir contra si mesmo. tal reino nao pode subsistir.»
434
.Sv!r<.;11 Kicrkcgnnrd
olhar malicioso, quando fazcs assirn meia-volia corn a cabeca: o reu pusso ligeiro é sugestivo - sim, eu sei. percebo para onde te dirige o teu caminho - para a solidño da floresta, para o murmurio das arvores, para a
multíplice quietude. Ve como o próprio céu te é benévolo, esconde-se nas
nuvens que obscurecem o tundo da floresta, é como se nos cerrassem as
cortinas. - Aclcus, rninha linda peixeirinha, fica bcm, obrigado pelo teu
favor, foi urn 13911 belo instante, uma disposicáo, nao suficientemente Iorre
para mover-me do rncu assento firme na sebe, mas todavia rica em movimentes interiores.
é
Quando Jacob!"? acertara com Labáo o pagamento dos scus servicos,
rendo cntüo siclo acordado que Jacob havcria de vigiar as ovclhas brancas
e. como paga pelo seu trabalho, ficar com todas as ovelhas malhadas que
Ou
Ou. U111 h'11g111c11to
435
de Vida
dela está Amor151, com um arco scm corda. cnxugando os olhos- Atrás dela
está urna figura feminina alada com um clmo na cabeca. É corn.um. ser esta
figura tida por Némesis'V, Imagina esta imagem, imagina-a hge1~am:nte
modificada. Amor nao chora e o seu arco nao está sem corda; ou tenas ficado menos bcla, menos triunfante, porque eu figuei demente. AJ~or sorri e
estica o arco. Nérncsis nao está inactiva a teu lado, tarnbérn eta csuca o arco.
Na primeira irnagcrn, ve-se urna figura masculina no barco, ocL~pada m~s
suas tarefas, 13921 que é licia como sondo Tesen. ao acontece 11s~1m na rrunha imagem. Está na popa, olha nostalgicamentc para trás. abre os bracos,
arrependeu-se do que fez. ou mclhor, a sua loucura abandonouv- 0 barco.
porérn, leva-o para longe. Amor e Némcsis visam-no ambos, volt urna seta
dos scus respectivos arcos. acertam-lhe no alvo, ve-se, entende-sc, que lhe
accrtaram ambos num único lugar no scu coracáo. cm sinal de que o amor
dele era Némesis a vingar-se.
te« Johannes.
nasccsscm no scu rebanho, espetou varas nos cochos de água e fez com que
as ovclhas olhassern para lá - assim me coloco cu por tocio o lado diante
de Cordelia, o 0U10 dela ve-me scrnpre. Para ela, parece-lhc ser urna mera
atcncño da minha parte; ao invés, pela parte que me toca, eu sei que a sua
alma, por cssa via. pcrde intcrcsse por tudo o mais, e que nela se desenvolve urna concupiscencia espiritual que por Lodo o lado me ve.
**
Minhu Cordcliu!
Estou apaixonado por mirn proprio. o que dizem de mirn. lsso nüo me
espanta, pois como havcria de ser possfveí notar que sou capaz de amar.
quando só a ti amo, como haveria alguérn de prcsscntir que te amo, quando
só a ti arno. Estou apaixonado por mirn mesmo, e porqué? porque estou
apaixonado por ti, porque a ti que cu amo, a ti só, e a tudo o que na verdade te pcrtcnce, e assim que me amo a mim próprio, porque este rncu ~u
pertence-tc, portan lo, se eu eessasse de te amar, cessava de me ai~ar rn~n
mesmo. O que aos olhos profanos do mundo expressáo do maior egoismo , para o teu olhar iniciado expressáo da mais pura simpatia. o_q~e a~s
olhos profanos do mundo cxpressáo da mais prosaica auto-su.bsist.e~cia,
expressáo da mais entusiástica autodestruicáo para a tua be11dita visao.
é
**
Minha Cordelia!
é
Corno se eu pudesse esquecer-te! Será que o rneu amor entáo urna obra
<la memoria? Mesmo que o tempo apagassc ludo das suas tábuas, mesmo
que apagasse a própria memoria. a rninha rclacáo contigo manteria a mesma
vida, tu nao serias todavía esquecida. Como se eu pudesse esquecer-re: Que
haveria eu entáo de recordar? esqueci-mc <le mim mesmo para recordar-te;
se eu entño te csquecesse, acabaría deveras por recordar-me de rnim mesmo,
mas no instante ern que me Iembrasse de mirn, teria de recordar-te novarnente. Como se cu pudesse esqueccr-te! O que iría acontecer? Há urna imagern
da Antiguidade que representa Ariadnc'S'. Ela salta do lcito e procura angustiadarnente como olhar um barco que se aprcssa a sair a todo o pano. Junto
é
149 O episodio está narrado no Livro do Génesis. 30:31-43.
150 Tcscu levou Ariadne para a ilha de Naxos, onde a abandonou. A gravura aludida
cnconrra-se no muscu de Nápoles, reproduzindo um mural das rumas de Herculano, e é
descrita por Nitsch, vol. l. p. 310; vd. ilustracño 19. in SKS. vol. K2-3. p. 227. Vd.
acima nota 147.
é
ª
é
é
é
é
Teu, J.0/¡an nes.
**
151 Outra designaryao para Cupido, dcus 4uc na mitologia rumana equivale a Eros, na
mitología grega.
·
152 Némcsis, dcusa grcga mcnsageira da cólera dos cleuses, enviada
pani· cxecuhr
' '··1ctos
.
· - 011 <e
l rcsla be 1 ec1mento
·
1 · · .· LOS
1 d cuses. . 1·on 1e p1ov,
. áv·el do autor: N11sde p11nH;:ao
UlJUSt19a
ch,
Vt)I.
11, pp. 304-309.
l
436
S0rc11 1 icrkcganrd
Ou-011
LJ111l•11tt1n1L·n1n1.h.:
437
Vida
O que eu mais rcccava era que tocio o desenvolvirnento
houvesse de
tomar-me demasiado tempo. Vejo entretanto que Cordelia fez graneles progrcssos, torna-se até necessário colocar rudo em movimcnto para devoras
lhe mantero fólego. Por nada deste mundo pode cla ficar saciada antes de
tempo, ou seja , antes do tempo ern que o tempo passou por ela.
no conhccimento do segredo deles; só poderla ter vindo a sabe-lo ou arravés dele, ou através dela - por ela, impossível - portante. através dele
abominável - bravo. E contudo. isto quase maldade. Ora bern, espero para ver. Possa eu retirar disto urna determinada impressáo, que de
outra maneira, normalmente corno eu desejo, cu nao consigo retirar. enráo,
nao havcrá outra coisa a fazcr.
13931 Quando se arna, nao se scguc logo estrada Iora. É tflo-somente o
casa mento q uc fica no mcio da Kongevei 15·'. Quando se arna e se passeia
desde Neddcboc 154• nao se segue en tao ao longo do lago de Esrom, a pesar
de rnais nao ser do que um simples trilho ele caca; mas está tracado, e o
an1or155 prcfcrc tracar os seus carninhos. Entra-se mais nas profundczas da
Gribs-Skov156.
E quando assirn se vagucia de braco dado, há cntño cntcndimento recíproco. torna-se entño claro o que antes causava alegria e dor
obscuramente. Nao se presscntc a prcscnca de ninguém, - Eis como esta
linda faia se tornou tcstcmunha do vosso amor; confcssaste-lo pela prirneira vez soba sua copa. Recordaste-vos de Ludo tao nítidamente, da primeira
vez que vos vistes, da primcira vez que destes as máos a dancar, que vos
scparastcs as prirnciras horas da rnanhñ, quando nada queríeis confessar,
ainda menos urn ao outro. - E corno é bclo ouvir passar cm revista o
amor157. - Caíram de joclhos dcbaixo da árvore, jurararn um ao outro
amor inqucbrantávcl , sclaram o pacto corn o primeiro beijo. - Sao disposi96cs fruiuosas que térn de ser prodigalizadas ern Cordelia. - Portante,
esta taia iornou-se restemunha. Ah, sim, uma árvore
urna tcstcmunha
dcvcras adcquada, mas ainda é todavia pouco. Podeis bem opinar que o céu
tambérn foi testemunha, mas o céu, assim sem mais, é urna idcia rnuito
abstracta. Vede, por isso. que ainda houvc urna tcstcrnunha. - Haveria eu
de me erguer, de deixar que visscrn que cstou aqui? Nao, tal vez me conhecessem, e acaba va-se assim o jogo. l laveria cu de me erguer, a medida que
se afastam, ele deixar que cntcndesscm que estivera alguérn presente? ao,
despropositado. Sobre o seu segredo há-de repousar silencio - enguanto
eu quiscr. Estáo cm meu poder, posso separá-los quando eu quiser. Estou
**
é
-
é
é
Minha Cordclia!
Pobre eu sou - és a minha riqueza; sombrío eu sou - és a rninha Ju1.;
nada possuo, nada me falta. E corno haveria cu de ser capaz de possuir alguma coisa, 13941 deveras urna contradicño que quem conscguc possuir
algo nao se possua a si proprio. Sou feliz corno urna enanca, que nada pode
possuir e nada rern de possuir. Eu nada possuo, pois só a ti pcrtcnco: nao
sou, cessei de ser, para ser teu.
é
Teu, Johannes.
**
Minha Corclelia!
é
é
153 Em dinamarqués, a antítese entre «Landevei». «estrada», e «Konge11vei». «estrada
do rei>>, denota a antítese entre um caminho fácil e um caminho árduo.
154 Localidade a norte de Copen haga. junto do lago Esrorn, a seguir mencionado.
155 Aqui. «Elskov». Nesta seci,:ao. há allemilncia no uso dos dois termos para «amor».
a.~sinalando-se apenas as ocorrcncias corresponden tes a «Elskov».
156 Grihs·Skov. literalmente «rloresta do Ahutre», a maior floresta da Dinamarca, e um
dos locais preferidos de Kierkegaard; ocupa lugar ele relevo no «Prelúdio» de «In Vino
Veritas»; vcl. SY 1, vol. VI, p. 21; SKS. vol. 6, p. 23; lradu\fio portuguesa. p. 26.
157 Aqui, «Elskov».
Minha, o que denotará esta palavra? nao aquilo que me pertence , mas
aquilo a que eu pertenco, aquilo que contém todo o rneu ser, o qua! tanto
meu quanto cu sou dele. O mcu deus nao o dcus que me pertcnce, mas o
dcus a quem pertenco, e tarnbém assim é, quando digo a rninha pátria, a
minha casa, a rninha vocacño, o meu anseio, a minha esperanca. Se anteriormente nao tivcsse havido imortaliclade, entíío o pensamento de que sou
tcu iria romper o habitual andamento da natureza.
é
é
Teu, Johannes.
**
Minha Cordelia!
O que sou eu'? o modesto narrador que segue os tcus triunfos; o bailarino
que sob o teu peso se verga enquanto te elevas corn uma grácil lcveza; o
ramo cm que por um instante repousas, quando le cansas de voar; a vo1, do
438
Swcn K ici kcguard
baixo que se interpñe a exaltacáo do soprano para deixar que ela suba a inda
mais alto - o que sou eu? sou a gravidade terrestre que te prende a terra.
O que sou eu cntáo? corpo, massa, terra, pó e cinzas - tu, minha Cordelia,
tu és alma e espirito.
Teu, Johannes.
**
Minha Cordelia!
Ou-011.
439
l-rugmcruo de Vida
U111
Minha Cordelia!
U-se em histórias antigas que um rio se apaixonou por urna rapariga.
Assirn está a minha alma, é como urn río que le ama. Ora fica calma, e
deixa que a tua imagem, profunda e imóvel, se espelhe em si, ora imagina
ter aprisionado a rua imagern. e as suas ondas espumam para impedir-te de
escapar outra vez: ora encrespa suavemente a superffcie, brincando coma
tua imagern; pcrdc-a algurnas vczcs e as suas ondas ficam cntño escuras e
desesperadas. - Assirn é a minha alma: como um rio que se apaixonou
por ti.
O amor é rudo e, por esta razáo , para aquclc que ama, tudo ccssa de ter
Teu, Johannes.
significacáo cm si e para si, e tern significacño apenas através da intcrpretacño que o amor lhe dá. Assim, se urn cerio noivo ficasse convencido de
que era urna outra rapariga aqueta cm qucm ele cuidava. 13951 é de presumir
que acabasse por sentir-se como urn criminoso e que ela se indignasse. Tu,
ao invés, sei que verías urna homenagern cm semelhante confissáo, pois cu
sabes que é uma impossibilidade havcr eu de ser capaz ele amar ourra, é o
mcu amor para contigo que lanca um brilho sobre a vida tocia. Assim, quando cu anclo a cuidar de outra, nao é cntño para convencer-me de que nao a
amo mas táo-somcntc a ti - seria um atrcvirnento - ; porérn. como toda a
minha alma está repleta ele ti, a vida ganha para mim urna outra significa9ao, tornando-se um mito acerca ele ti.
Teu, Johannes .
**
Minha Cordelia!
O meu amor consome-rne, só me resta a rninha voz 158, urna voz que se
apaixonou por ti, por todo o lado sussurrando-te que te amo. Oh! cansa-te
ouvir esta voz? Ela rodeia-te por toda a parte; como um en vol vi mento múltiplo e inconstante, estendo a rninha alma profundamente reflexiva em redor do tcu ser puro e profundo.
Teu, Johannes.
**
158 Foi este o destino de Eco na lenda gmga. depois de se apaixonar por Narci~o; cdi9ao
de consulta do autor: Nitsch, l, p. 656. Vd. nota 32 cm «Diap.mlm<11a».
**
13961 Falando sinceramente, scm ter urna forca da imaginacño invulgarmente vívida, poder-se-ia muito bem imaginar um meio ele transporte mais
confortável, mais cómodo e especialmente mais conforme a posicáo social;
viajar com um carregador ele turfa desperta scnsacño apenas em sentido figurado. - Entretanto.
falta de rnelhor, de aceitar e ficar grato. Scguc-sc um
bocado estrada Iora; sentado lá cm cima, pcrcorrc-sc urna milha, nada se
encentra: duas milhas, ludo corre bcrn; fica-sc calmo e seguro; vista desta
perspectiva, a paisagern
realmente rnuito melhor do que habitualmente;
alcancou-se quase as tres rnilhas - ora, tao longe nesta estrada, qucm haveria de estar ~. espera de encontrar ulguém de Copcnhaga? R é alguém de
Copenhagu, bcm reparáis que nao é homcm ncnhum do campo; tern urna
mancira muitíssimo própria de olhar, tao determinada e observadora, tao
apreciativa e assim um pouco trocista. Sirn, minha querida menina, a tua
posicáo nao de todo confortável, estás sentada como se estivcsscs cm cima
de urna bandeja de oferta, a carruagem é tao achatada que nenhurna reentráncia tcm para os pés. - Mas a culpa é toda vossa, a minha carruagem está
inteiramente ao vosso servico, atrevo-me a oferecer-vos um lugar muito menos incómodo, desde que nao vos incomodéis por ir sentada ao mcu lado.
Nesse caso, cedo-vos a carruagcm por inteiro, e scnto-me no lugar do cocheiro, contente por poder conduzir-vos ao vosso destino. - O chapéu de palha
nao vos resguarda o suficiente de um olhar de soslaio; debalde inclináis a
cabeca, admiro na mesma o vosso belo perfil. - Nao é irritante que o campones me curnprimente? mas até é adcquado que o camponés cumprimcnte
um scnhor distinto. ño é corn isto que escapareis: há aquí urna estalagcm,
urna csracño, e o carrcgador de turra, a sua muneira , é demasiado remonte n
a
é
é
é
441
440
Ou
Deus para nao haver de rezar159. Agora vou encarrcgar-rne dele. Tcnho um
in vulgar talento para encantar carregadores de turfa, Oh! oxalá pudcsse eu
tarnbém ter assim sucesso e agradar-vos! Ele nao consegue resistir a minha
oferta e, quando a aceitou, tarnbém nao conseguiu resistir aos scus cfcitos.
Nao possa cu que assim pode o meu criado. - Dirige-se agora
taberna,
ficais sozinha na carroca, no tugúrio. - Deus sabe quem será esta menina?
Haveria ela de ser urna menina da burguesía, talvez filha de um vigário? Se
assim é, entáo, é urna filha de vigário invulgarmente bonita, e vestida com
inusitado gosto. O vigário tcrn de fazcr bom dinheiro. Ocorre-rne ainda urna
coisa, tal vez ela houvesse de ser urna donzcla de puro-sanguc que está cansada de viajar com a sua equipagem, e talvez estcja a fazcr um passeio a pé
até
casa de campo, e agora quer experimentar-se nurna breve aventura.
É bcrn possível, coisas destas 13971 nao sao inauditas. - O camponés nao
sabe de nada, é um bronco que só sabe beber. Sirn, sim, bebe lá. homcm, que
te faca born provcito! 1<~> - Mas que vejo eu, nem rnais nem menos do que
a menina Jespersen, Hansinc Jcspcrscn, a filha de um armazenista daqui.
Dcus nos livre, nós até nos conhcccmos. Foi cla quem eu urna vez cncontrei
na Brcdgade, viajava de costas na carruagcrn, e nao conseguía fazer subir a
jancla; pus os óculos, e tive entño o prazcr de a seguir comos olhos. Era urna
posicño rnuito incómoda, esrava muita gente na carruagcm e cla nao podía
rnexer-se e, presumivelmcntc, nao se atrevía a fazer alarido. A posicáo actual
tao incómoda quanto cssa. Estamos destinados um para o outro, claro.
1 lá-de ser urna menina romántica: decididamente que saiu por iniciativa própria. - Eis que chega o meu criado como carregador de turfa. Está perdido
de bébado. É dctestável, que gente depravada, estcs carrcgadorcs de turfa.
Ah, sim! mas ainda há gente pior do que carregadorcs <le turfa. - Vede,
agora sois vós qucrn rendes de conduzir a carroca. Sois agora vós qucm necessita de conduzir os cavalos, é inteiramente romántico. - Recusais a minha oferta, afirmáis que sabcis muito bem conduzir. Nao me enganais; vejo
rnuito bem quílo astuta sois. Ao chegar urna migalhinha rnais alérn no carninho, dais um salto, na floresta é fácil encontrar um esconclerijo. - Que selem
o meu cavalo: seguirei na montada. - 01·a vede! agora estou pronto, podeis
estar agora segura contra qualquer assalto. - Nao fiqucis, porém, tao pavorosamente arnedrontada, ou entáo, dou já rneia-volta. - Queria simplesmenle meter-vos medo e dar-vos ocasiáo para que a vossa bclcza natural viesse a
sobressair. Nao sabeis, de facto, que fui eu quern fez com que o camponés se
cmbebcdassc, e nern scquer me permití usar urna palavra ofensiva contra vós.
Tudo pode ainda compor-se; clareí urna viragem tal ueste assunto que ainda
sereis capaz de rir-vos com toda esta historia. Desejo meramente um pequeno
ajuste de contas convosco; jamais penseis que eu apanho as raparigas de
surpresa. Sou um amigo da liberdade, e de modo nenhum me importo com
aquilo que nao meé dado livre. - «Com certeza que 6 para vós inteligível
porque nao é possível prosseguir viagem desra maneira. Dá-se que cu vou a
caca, por isso cstou a cavalo. Em contrapartida, a minha carruagem está recolhida na cstalagcm. Se assim ordcnardcs, virá nestc instante buscar-vos e
conduzir-vos onde quiscrdes. Infelizmente nao podcrei ter o prazer de vos
acompanhar, estou preso a cornprornissos de caca; e sao sagrados» - A final
aceitáis. - Tudo fica em ordern instantaneamente.
- Ora vede como nem
sequer necessitais de ficar embaracada por via de 13981 ver-me outra vez ou,
em qualquer caso, de ficar mais ernbaracada do que aquiJo que vos asscnta
bem. Podéis divertir-vos com tocia esta história, rir urn pouco e pensar um
pouco cm mim. Mais nao exijo. Pode parecer pouco; para rnim, basta. É o
princfpio, e sou especialmente forte nos fundamentos dos princfpios.
a
a
é
é
é
l59 Em <linamarques, <<al !Jede» significa «orar», mas também «alimentar-se».
160 As duas frases aludem a um comportamcnto semelhante nurna situa91ío paralela na
comédia <le L. Holberg. Jeppe paa Bierget. e/fer Den forvandlede /Jonde IJeppc na
Montanha, ou O Camponcs Metamorfoseado l. de 1723; vcl. Den Danske Skue-Plads.
vol. 11, sem indica9ao ele página.
011 { 1111 l •1 og1111,;11lo
Je Vida
Ontern a tarde juntou-sc um pequeno grupo em casa da tia. Eu sabia que
Cordelia iria pegar no t1icó. Escondcra lá dentro um bilhetinho. Oeixou-o
cair, apanhou-o, ernocionou-se, eheia de anscio. É assim que eleve tirar-se
partido da situa9ao. É inacreditávcl quanlas vantagcns é possfvel daqui tirar. Um único e só ínsignificante bilhete, !ido em circunstancias destas,
torna-se para ela infinitamente significativo. Nao chegou a poder falar comigo: eu havia arranjado as coisas de molde a ter de acompanhar urna scnhora a casa. Ela tinha portanto ele esperar por hoje, o que é sempre bom
para fazcr com que a imprcssao trespasse mais fundo na sua alma. Parece
::;empre que fui cu quem lhc cledicou uma ate119ao; a vantagem que cu tenho
consiste cm ser levado nos seus pcnsamcntos por tocio o lado e ern
surpreende-la por todo o lado.
O amor161 tem afina! a sua dialéctica própria. Havia uma jovem por
quem estive urna vez apaixonado. No teatro de Dresclen, no Vcrao passado,
vi uma actriz cuja parecenc;a com ela nos levava ao engano. Por esse motivo, desejei o que vim a conseguir, travar conhecimento com ela, e fiquei
cntao convencido de que a falta de parecenc;a era todavia bastante grande.
Encontrei hoje urna senhora na rua que me recorclou aquela actriz. Esta
história pode tornar-se tao longa quanto se quiser.
161 Aquí, e na ocorrencia seguintc de «amol'», corrc~ponde
110
original a «Elsk<w»
442
S¡6rc11 Kicrkcgnnrd
Ou-Ou.
Os meus pensamentos rodeiam Cordclia por todo o lado, configuro-os
como anjos a sua vol ta. Tal como Vénus no seu carro é puxada por pornbas,
também cla está assirn sentada no seu carro triunfal, e eu atrelo os rneus
pcnsamentos corno se fossern seres alados. Senta-se deveras alegre, rica
como urna crianca, todo-poderosa corno urna deusa e eu sigo a seu lado. Na
vcrdade, urna jovem é e será sernpre a venerabile da narurcza e de toda a
existencia! Nao há ninguém 13991 que saiba isso mclhor do que cu. Só
pena que esta magnificencia dure tao pouco. SoJTi para mirn, saúda-rne,
acena-rne, como se fosse minha irrnñ. Urn olhar rccorda-lhe que ela
a
minha amada.
443
Um Fragmento de Vida
14001 A sernelhanca do que eu já fazia nos tempos do bern-avcnturado
Edvard, cuidando indirectamente das suas leituras, também agora cuido
delas directamente. O que lhe ofereco aquilo que considero ser o rnelhor
alimento: mitología e cornos de fadas. Nisto. porém, ela tcrn libcrdadc corno em tudo, fico a escura de rudo o que dela sai. Se nada aí cstiver anrecipadarnente , cntño, sou eu qucm o porá prirnciro.
é
é
é
O amor tem mu itas posicóes, Cordelia tem progredido bem. Senta-se ao
rncu colo, o scu braco enreda-se meigo e cálido no meu pesco90; deixa-se
rcpousar sobre o meu peito, leve, sem o peso do corpo; as suas formas suaves mal me tocam; a sua grácil figura enrecia-se cm mim corno urna flor,
solta como urna lacada. Os olhos cscondem-sc atrás das pcstanas, o seio
de urna brancura de neve resplandcccnrc, tao macio, que o rncu olhar nao
consegue pousar, deslizaría se o scio nao se movcssc. Que significa este
movimcnto? será amor? Talvcz .. É o seu prcsscruimento, o seu sonho. A inda lhe falta energía. O abrace dela é difuso, como a nuvcrn que abraca o
transfigurado, solto como urna aragem, suave como se abracassc urna flor;
o beijo
indeterminado, como o céu bcijando o mar, suave e tranquilo
como o orvalho beijando a flor, solcne como o mar beijando a imagern da
é
é
Lua.
A esta sua paixño cha maria cu. neste instante, paixíío ingénua. Ora quando ti ver lugar a viragem, e eu cornecar a recuar a sério, ela usará entño tudo
para realmente me prender. Para o efeito, nao terá outros mcios a nao ser o
próprio erótico, só que este mostrar-se-<1 agora numa escala completamente
diferente. Nas suas mños, é uma anna que ela brande contra mim. Tcnho
entao a paixao reflexiva. Eta Juta por sua própria causa, porque sabe que eu
possuo o erótico; luta por sua própria causa para suplantar-me. Tern necessidade de uma forma superior do erótico. O que eu !he ensinei a pressentir
ao inflamá-la, ensina-lhe agora a minha frieza a perceber, mas de molde a
que scja cla própria a crer que o descobriu. Desse modo, quererá tomar-me
de surpresa, crendo que me suplantou ern audácia, e que me prendeu por
esse meio. A sua paixao torna-se entao determinada, enérgica, conclusiva,
dialéctica; o beijo torna-se total, o abra90, scm hiato. - Procura em mirn a
sua liberdade e quanto rnais apertado for o mcu cerco, tanto mclhor a encontra. O noivado estoira. Quando isto acontecer, cla tem necessidade de
algum repouso, para que nada de menos bclo possa surgir nesse bravio
turbilhao. A sua paixao rccornpoc-se urna vez ainda, e ela é 111i11ha.
Quando no Veráo as criadas de servir andam por Dyrchaven, na generalidadc, o divertimento é rnau. Só lá váo urna vez por ano e, por isso , haviamjustamcnre de retirar daí o máximo. Entáo, térn de pór chapéu e xailc,
e desfear-se de todas as manciras. O folgucdo é bravío. pouco bonito, lascivo. Nao, vou para o Fredcriks-Havc162•
Ao domingo a tarde vao para lá,
e cu também. Aquí htí ern rudo decoro e decencia e há rnais calma e nobreza no próprio folguedo. Em geral , o hornem que nao tivcr gosto por criadinhas de servir pcrdc mais com isso do que aquilo que estas pcrdcm. O
bando multíplice de criadas é realmente a rnais bela guarnicáo que ternos
na Dinamarca. Se cu rossc rci - sei aliás o que furia - nao passaria revista as tropas cm linha. Se eu íossc um dos trinta e dois eclis da ciclade,
havcria de prontamente solicitar a institui9ao de urna comissño de bem-estar que envidassc todos os esforcos através de cstudos, conselhos, cxortacóes e recompensas adcquadas, para encorajar as criadas a vestircm-sc
com gosto e cuidado. Porque há-de desperdicar-se beleza, porque há-de cla
passar dcsapcrcebida pela vida fora, que ao menos se mostré urna vez por
semana a luz que a deixa rnais favorecida! Mas, acima de ludo, gosto e
contencáo. Urna criada de servir nao eleve ter ar de senhora, ncsse ponto,
tcm razño Politivennen 163, mas os motivos avancados por este conccituado
periódico sao totalmente erróneos. Se assim possível antever um dcsejável Ilorcscimento na classe das criadas. nao reverteria este ern proveí to das
filhas das nossas familias? Ou será demasiado atrevido, quando tenho cm
vista para a Dinamarca um futuro que, na verdade, pode dizer-se que nao
tern par? Se me fosse <lado chegar a ser contemporáneo desta idadc <le
ouro164, podcr-se-ia em boa consciencia dedicar o dia inteiro a caminhur
é
162 Jardins do Palácio de Frc<lcrik!>berg.
16~ Literalmenle, «O amigo da polícia». revista humorística da época. que publicou um
artigo satiri1.ando a extravagante maneira de vestir das criadas; vtl. Politive1111e11. n." 86,
1837' pp. 219-221. 235-238.
164 Nicol:1i Frederik Scvcrin Grundlvig. figura eminente da história e da cultura dinamarquc~a, roi prcgador. poeta e político: «ldadc do Ouro» era ::i ~ua cxpressiio rn;1i'
co111u111 parn dc1tignar os scu~ pr6prio~ oh.i~·c1ivo~ para a socieclndc di1wnwrqucsa. Vd.
adiuntc nota l 6X.
J
444
Sercn Kicrkcgaurd
14011 pelas ruase rucias. Iruindo só com a volúpia dos olhos. Como estilo
exaltados os meus pensamentos, tao bravíos e atrevidos, tao patrióticos!
mas eis-rne, pois, passeando por aqui em Frederiksbcrg, onde as criadas
vém ao domingo a tarde. e eu também. - - - Chegam primciro as camponcsas, de máo dacia comos namorados, ou, de acorde com outro padráo,
todas as raparigas a frente de mño dacia. e todos os rapazes atrás, ou, de
acordó com outro padrño , duas raparigas e um rapaz. Este grupo forma a
moldura que gesta de ficar cm pé. ou sentada. ao longo das árvores no
grande tcrrciro quadrado cm frente do pavilhño. Tém um ar sadio e fresco,
com contrastes de cores um tudo-nada acentuados, tanto na pele como nas
roupas, Segucm-se agora as criadas da Jutlándia e da Fiónia. Altas, csguias, um rudo-nada forres, o vestuario um tanto cm dcsalinho. Dariam
muito que fazer a cornissño. Tarnbém nao nos falta um representante único
da divisáo de Bornholm 165: cozinheiras competentes. mas lá nño rnuilo
accssívcis, qucr na cozinha, quer cm Frederiksberg, térn um lado orgulhosarncntc agreste. A sua prcscnca nao deixa pois de produzir efeito por
contraste, nao gesto de sentir aquí a sua falta, mas raramente me meto com
elas. - Seguern-sc agora as tropas de elite: as raparigas de Nyboder'P''. De
estatura pequena, cheiinhas, torneadas, finas de pele, joviais, alegres, lestas, faladoras, urn pouco narnoradciras e acimu de ludo de cabeca deseoberta. O vcstuário rende a aproximar-se mais do das senhoras, só h~í duas
coisas a observar: nño tém xailc, mas um lenco. nao usam chapéu, quando
multo urna pequena touca carita, de preferencia, tcndcm a ter a cabeca
clescoberta. - - - - - «Üh,
a Maric, born-dial I.ogo havia de
encontrar-vos aqui! Há rnuito que níío vos via. Seguramente que ainda
estais em casa do conselheiro?» - «pois sim» - «É de certeza urna posis;ao muito boa?» - «sim» - «Mas andais por aqui tao sozinha, sem ninguérn com quern ir ... sern namorado, tal vez ele nao tenha tido tempo hoje,
ou cstais a espera dele - como nao estais ainda noiva? Parece impossível.
A rapariga mais bonita de Copenhaga, urna rapariga que está a servir ern
casa do conselheiro. urna rapariga que é urna jóia e um exemplo para todas
as criadas, urna rapariga que sabe arranjar-sc tao bcm e tao ... tao ricamente. Mas que lindo lencinho segurais na vossa máo, da mais fina carnbraia .
e que vejo eu, com bordado nos cantos. aposto que custou dcz marcos .
há por aí rnuitas senhoras elegantes que níío tém um igual ... luvas francesas ... urna sombrinha ele seda ... E urna rapariga destas nao está noiva ...
é
165 A Jutlandia, a Fiónia, a ZeJandia, onde se situa Copenhaga. e a ilha de Bornholm
sao as quatro rcgiocs que na adualidadc conslituem o território dinamarques. No lempo
de Kierkegaard, o território Slesvig-Holsten. actua.lmcntc Schlcswig-Holstcin na Alcmanha, era território dinamarques.
166 Vd. nota 96 no capítulo «Diapsafmata».
Ou
Ou. U111 l•111r,111cn10
1145
de Vida
É urna coisa absurda. Se nao estou ern en-o, rccordo-me de que o Jcns tinha
grande estima por vós. sabeis quern
o Jcns, o Jcns arrnazenista. 14021
aquele do segundo anclar ... Ora vede, como eu acertei ... porque nao ficustes noivos? Jens era devoras um bonito rapaz, tinha urna boa posicáo,
porventura como dccorrcr do tempo e a influencia do armazenista chegaria a oficial de polícia ou a fogueiro, nao era assim tao mau partido ... A
culpa deve ter sido vossa, fostes demasiado dura com ele ... » - «Nao! mas
vim a saber que o Jens já antes havia estado urna vez noivo de urna rapariga e que nao a tinha tratado nada bcm .» - «Mas que cstou cu a ouvir,
qucm haveria ele acreditar que o .Tens era tao mau fulano ... sirn, os rapazcs
da guarda ... os rapazes da guarda nño sao de fiar ... Pizesrcs muitissirno
bern, urna rapariga como vos é certamen te demasiado boa para ser lancada
a qualquer um ... De certeza que a inda encontrareis um partido mclhor, o
que vos garanro.» - - - - «Onde vive a menina Juliane? Há muit.o
tempo que nao a vejo. A minha linda Marie podía seguramente dar-me urna
ou outra informacño ... lá porque se foi infeliz no amor, nao se deve. de
modo algum, nao ser compadecido para com os outros ... Está aquí mu ita
gente ... nño me atrevo a falar disto con voseo, tenho medo ele que alguém
cstcja a minha espreita ... Escutai-mc, só um instante, rninha linda Maric ...
Vede, eis o lugar, ncste caminho cheio de sombra, onde as árvorcs se inclinam para esconder-nos dos outros. aquí onde nño vimos ninguém, onde
nao ouvimos voz humana, mas apenas o suave eco dos sons da música ...
aquí, atrevo-me a contar o meu segrcdo ... nao é vcrdadc que se o Jcns nao
tivesse sido um mau homem, terias ido passear com el.e. de bra90 dado,
terias ouvido a música alegre, desfrutado de uma alegria a inda maior ...
porque tao cornovida - vá, esquece o Jens ... Nao scja.s injusta para comigo ... foi para encontrar-te que virn aquí. .. foi para ver-te que fui a casa do
conselheiro ... reparaste nisso ... sernpre que me era possível. ia a porta da
cozinha ... tens de pertencer-me ... será anunciado do púlpito ... amanha a
tarde explico-te tudo ... pela cscada da cozinha. a porta a esquerda. em
frente a porta da cozinha ... adeus, rninha linda Marie ... que ninguém saiba
<..JUe me viste aquí ou que falaste comigo, sabes agora o mcu segreclo» - - É realmente linda, podia fazer-se alguma coisa dela. - Se cu conseguir por o pé no quarto dela, sou eu <..juem vai fazcr o anúncio do púlpito.
Sempre procurci desenvolver a cnnagxHa 167 grega feminina e, em especial. tornar o padre supériluo.
14031
é
é
167 1 \111 l' 1 l'fO
110
t'riginal: «autarquía».
S01c11 Kicrkcgaard
446
Se isso Iosse possívcl, podcria interessar-rnc rnuito estar atrás ele Cordclia,
quanclo ela recebe urna carra minha. Seria cmáo fácil certificar-me até que
ponto ela as assimila eroticamente no rnais proprio dos sentidos. Na globalidacle, as cartas sao e continuarño a ser um meio que nao tem prcco para impressionar urna jovem; a letra morta tem amiúde urna influencia muitíssimo
maior do que a palavra viva168• Urna carta é urna comunica\{aO secreta; é-sc
senhor da situa9ao, nao se sente a pressao de alguém que esteja presente, e
uma jovcm, creio cu, prefcre estar completamente sozinha com o seu ideal,
digamos, crn ccrtos instantes particulares, e exactamente nos instantes em que
procluz um clcito mais f'ortc na sua mente. Se bem que o seu ideal tenha encontrado uma expressao bastanlc completa num determinado objecto amado.
no entamo. entiío há momentos em que el.a sentc que há no ideal uma exccssividade que a realidade nao tcm. Que lhe scjam permitidas estas grandes
festas da expia9ao169; só tem de haver cuidado e ulilizá-las acertadamente
para que nao regresse a realiclade csgotada, mas sim l'ortaleci<la. As carlas
contribucm para isso, actuando como se alguém invisível estivesse espiritualmente presente ncstcs instantes sagrados de consagra9ao, porquanto a reprcscnta9í:ío de que a pcssoa real é o autor da ca11a procluz urna transi9ao leve e
natural para a rcalicladc.
Podcria eu ter ciúmes de Corclelia? Diabos me levem, sim! E contudo,
noutro sentido, nao! Visse cu. designadamente, que a sua essencia ficaria
entretanto perturbada, e nao aquilo que eu desejava, se bem que eu safsse
triunfante do mcu combate com o outro - e cu clcsistiria entño dela.
Disse um velho filósofo que, quando se rcgista escrupulosamente
tuclo
aquilo que se experiencia, um individuo já filósofo, antes de saber o que
isso
Há bastante tempo que estou ligado a cornunidade dos noivos. Ora
algum fruto terá pois de sair de uma relacáo destas. Pensei em reunir material para urna obra intitulada Contributo para uma teoria do beijo, dedicada a todos os ternos amantes. De resto. é curioso que nao 14041 exista
é
é.
168 Vd. 11 Coríntios, 3:6:
«Ü qual nos fez. lambém. capazes de ser ministros de um
novo testamento, nao da letra, mas clo espírito; porque a letra mala, e o espírito vivifica.» Eslas palavras de Paulo estao no cerne da disputa e da controvérsia entre «a palavra
escrita» e «a palavra viva>> protagonizadas por duas das figuras maiores da época de
Kierkegaard, Henrik Nicolaj Clauscn (1793-1877), que defcndia uma cxegesc bíblica
renovada, e N. F. S. Gru11cltvig. que concebia um modelo vivo do cristianismo, dando
primazia palavra transmitida pela t.radi<¡:fio oral crista. No iníc:io de PostsC'riptum Co11d11.vivo Niio-Cie111íjil'() Migalhas Filosóficas. Johannes Climacus critica cUrectamcntc
o posieionamento de Grun<ltvig; vd. SV, vol. VII, pp. 28-35, SKS, vol. 7, pp. 46-52.
169 A sexta clas sete festas solenes transmitidas por Deus a Moisés. vcl. Levítico, 23;
aqui, 23:26-32.
a
as
Ou-Ou.
447
Um Fragmento de Vida
nenhuma obra sobre este assunto. Se cu conseguir acabá-la. estarcí ao
mesmo tempo a colmatar urna falta há multo sentida. Haveria de estar esta
falta de literatura sobre o assunro fundamentada no facto de os filósofos
nao pensarem em tais coisas, ou será que nao se entendem corn coisas tais?
- Já me sinto capaz de transmitir algumas sugestóes. Para um beijo perfeito exige-se que os agentes sejam uma rapariga e um homem. Um beijo
entre homens tem falta ele gesto, ou, o que é pior, tem um gosro mau. Alérn disso, crcio que um beijo se aproxima mais da ideia quando um
homcm beija urna rapariga do que quando urna rapariga bcija um homem,
Quando , como clecorrer dos anos, a indiferenca está instalada na rclacáo,
o beijo pcrdeu a sua siguificacáo. Aplica-se isto ao beijo familiar e conjuga], com o qual os casáis, a falta de guardanapo , limpam a boca um ao
curro, enquanto dizem: «born proveito». - Se a diferenca entre as idades
for rnuito grande, entño, o beijo sai fora da ideia, Recordo-rne de numa
escota ferninina. nurna das províncias, a classe das mais velhas ter um dito
proprio, «bcijar o jurisconsulto»,
urna exprcssáo a qual associavam urna
idcia que era bcm menos do que urna idcia agradávcl. /\ origem dcsta exprcssáo era a scguinic: a professora tinha um cunhado que vivía cm casa
dela, o qual tinha sido jurisconsulto e era um horncrn idoso; ora ele tazia-sc
valer dessa forca para tomar a liberdadc de querer beijar as rapariguinhas.
- O bcijo tcm de ser cxprcssño de urna determinada paixáo. Quando se
bcijam um irmáo e urna irmá que sao gérncos, este bcijo nño um beijo a
serio. O mesmo se aplica ao bcijo ciado nas bri ncadciras de Natal, ídem
para o beijo roubado. O beijo urna accño simbólica que nada significa,
quando o sentimento que deve denotar nao está presente, e este sentímento
so pode estar presente sob determinadas circunstancias.
- Se se quiser
fazer urna tentativa de classificar o beijo, entáo, é possível imaginar varios
princípios de classificacáo.
Pode ser classificaclo no que diz respeito ao
som. Lamentavelmente , a linguagem nao tem neste ponto urna extensño
que corresponda as minhas observacñes. Nao creio que todas as línguas do
mundo possuam a necessária provisáo de onomatopcias para denotar as
diíercncas que só ern casa do rneu tio aprendí a conhccer. Ora dá cstalido,
ora sibila; ora estala, ora rebenta, ora troa, ora cheio, ora oco, ora
como algodño , etc., etc. - Pode classificar-se o beijo no que diz rcspeito
ao contacto: o beijo tangente, ou beijo en passant , e o beijo coerente. Pode ser classificado em relacáo ao tempo: o curto e o longo. Em relacáo
ao tempo, há ainda urna outra classiflcacáo, e esta é propriamente a única
que me 14051 agrada. Estabelece-se entáo urna diferenca entre o primeiro
beijo e todos os outros. O que aqui está reflectido é incomensurável corn
aquilo que as restantes classificacóes iluminarn , é indiferente ao som, ao
contacto e ao tempo, na gencralidade. O primciro beijo tern entretanto urna
difcrcnca qualitariva cm relacáo a todos os outros. Há pouquíssirna gente
é
é
é
é
é
448
S0rc11 K icrkcguurd
Ou
Ou.
U111 l•rn!-'11w1110
de
449
Vida
que pense nisto, que grande pena seria eruáo só havcr um único indivfduo
a pensar nisso.
**
Minha Cordelia!
**
Minha Cordelia!
O latinista fala de um discípulo atento como sendo aquclc que se penduna boca do mcstrc. Para o amor, tudo é imagcm e, em troca, a irnagern
por seu turno realidadc. E nao sou eu um discípulo atento e aplicado? Mas
tu nem sequer dizes urna única palavra.
ra
Uma boa resposta como um beijo doce, diz Salomáo'?", Tu sabes como
sou danado por razer perguntas; quase me lcvarn a mal por isso. Acontece que nao entcndern aquilo que estou a pcrguntar, pois tu e só tu entendes
aquilo que cu pergunto, tu e só tu entcndcs como responder, e tu e só tu
entendes como dar urna boa resposta, já que urna boa rcsposta é como urn
bcijo doce, diz Salomáo.
é
é
cu
Teu, Johannes.
Teu. Johannes.
14061
**
Se Iossc outro a conduzir este descnvolvimento, entáo, é presumível que
que suficiente para deixar-sc conduzir, Se entre os
iniciado, entáo, ia decerto dizcr-rne com urn acesso
de atrevirnento erótico: «Procuro em váo, nas posicóes do amor172• a figura
sonora 173 na qual os amantes convcrsarn sobre o scu amor» Eu respondería
assim: «Fico contente por estaros a procurá-la cm váo, já que cssa figura nao
tern qualquer cabirnento no ñmbito do erótico propriamente dito, nem mesmo
quando se introduz nele o interessante.» O amor174 sobretudo demasiado
substancial para ficar saciado com conversa; as situacñcs eróticas sao sobretudo demasiado significativas para scrcm prccnchidas com conversa. Sao
silenciosas, caladas. com contornos determinados e, contudo, eloqucntcs
como a música da estatua ele Mémnon 175• Eros gesticula, nao Iala; ou, conquanto tale, urna alusño misteriosa. urna música imagética. As situacóes
eróticas sao sernpre ou plásticas, ou pictóricas; mas estarem dois a falar um
corn o outro sobre o seu amor nem plástico, nern pictórico. Entretanto, os
solidarnente noivos comecam sempre, invariavelmente, por urn palavreado
deste género, o qual se torna também o laco que mantém unido o seu casamento tagarcla. Este palavrcaclo ao mesmo tempo iniciativa e prenuncio de
que nao faltará no seu casamento o dote de que Ovídio fala: dos est uxoria
tivesse esperteza mais do
noivos eu consultasse urn
**
Há urna difcrcnca entre um erótico espiritual e um erótico terreno. Até
agora, tenho procurado desenvolver maioritariarncntc o espiritual em
Cordclia. Ora a minha presenca física tern de ser outra, nao se limitando
a ser urna disposicáo acornpanhante, terá de ser tentadora. Tcnho continuado a preparar-me nestes dias através da lcitura do conhecido passo de
Fedro sobre o amor171. Este passo electriza lodo o mcu ser e constituí um
excelente preludio. Realmente, Platáo era afina! muito entendido no erótico.
é
é
170 Provérbios. 24:26: «Beija com os lábios o que responde corn palavras rectas»: a
letra do texto está muito próxima da traducño de Lutero, na posse de Kicrkcgaard: «Ei
ne richtige Antwort ist wie ein lieblicher Kusz» ( «Uma resposta corta como um beijo
doce»), in Die Bibel, Kurlsruhe, Leipzig. 1836.
171 Aqui, «Elskov», Vd. Platiio, Fedro, 253c-256;'trata-se da analogía, estabelecida por
Sócrates, que representa u alma do amante como seudo constituida por dois cavalos e urn
auriga. Perante o desojo. urn dos cavalos age com pudor; o outro avanca ávidamente.
toreando o início do contacto erótico corn o amado, contra a vontade (fas duas outras
partes da alma. O auriga, por sua vez, tenta contrariar o cavalo rebelde. que, através dcsta
!uta, aprende a obedecer-lhc. A alma do amante passa, assim, a seguir o amado com respeito e rcceio; este, com o tempo. experimenta ern si o 1-cflexo do amor do amante. No
amor que se estabclece entre os dois pode prevalecer a vonlade do primeiro cava lo; nesse
caso, levarao uma vida virtuosa, alcan9ando um bern que se encontra acima do hum~1110 e
do divino. Se, por otllro lado, dcixarem o cava lo desobediente obt.cr o que quer. recebcrao
apenas aquílo que a maioria das pessoas deseja. Em ponugues: Platao. Fedro. introduc;iío,
tradu9ao de grego e notas de José Ribeiro rerreira, Lisboa: Edii;oes 70. 1997, pp. 71-76.
é
é
é
172 Aqui, <<F:tskov>>. Ncsta scc9iío. rcgista-sc o uso alternado de «Elskov>> e de «Kja~rli
ghed», assinalando-se apenas as ocorréncias de «cl.l'kov».
173 A figura acústica é o desenho configurado pela areia contida num prato posto em
vibra9ao; ou figura de Chladni, em homenagem ao físico alemao que a descobriu, Ernst
Florcns Friedrich Chladni ( l 756-1827).
174 Aquí. «Elskov».
175 Di1ia-~c que a cstMua egípcia de Mémnon, rci da Etiópia. e filho de l~os (a Aurora)
e de Titnno, l:mitia um sorn musical quando o~ primciroi, rnioi-. do Sol lhc tocava1n,
· 11rc11 1. icrkcguurd
450
lites176. - Quando é para falar.já basta que seja urn único a [alar. Há-dc ser
o homern a falar e. por isso, há-dc estar na posse ele algurnas das torcas que
cstavam no cinto com que Vénus exercia o seu encanto 177: a conversa a dois
e a doce adulacáo, ou seja, o insinuante. - Nao se retire daqui, de modo
algum, que Eros seja mudo, ou que houvesse de ser desacertado manter urna
conversa erótica, sé que urna conversa táo-somente erótica se nao se perder
em observacóes edificantes sobre as perspectivas de vida, etc., e a conversa
pode propriamente ser considerada como um rcpouso do acto erótico, um
passatempo, mas nao como o supremo. Scmclhantc conversa, scmclhantc
confabukuio . é, na sua csscncia, intciramcmc divina, e nunca me canso de
conversar com urna jovcm rapariga. Ou scja, posso cansar-me de conversar
com urna jovcm cm particular, mas nunca me canso de conversar com urna
jovem. Para mim, urna impossibilidade tifo grande como ficar cansado de
respirar. O que próprio de semelhante conversa a dois o florescimento
vegetativo da conversacño propriamente dito. A conversa mantém-se rasa ao
chao, nao tem objecto proprio, a casualidadc é 14071 a leí do scu movimcnto
- mas maravílhas'I" é o nomc que se lhc dá, e tts suas producócs.
451
**
Mínha Cordclia!
Será que um abrace
é
um combate?
é
é
é
é
**
Teu, Johannes,
**
Na generalidade, Cordelia mantém-se calada, o que scmprc me Ioi caro.
Ela tcrn urna natureza feminina demasiado profunda para supliciar um individuo com o hiato, tima figura retórica que propria da mulher, a qual
incontornável, quando o homcm que há-dc produzir a consoante que circunscreve o hiato em posicño anterior ou posterior é igualmente fcminino.
Por vczcs, urna única e breve expressño denuncia entretanto o quanto ncla
habita. Vou cntáo cm scu auxílio. Passa-se como se, atrás de alguém que
tracasse alguns riscos num dcscnho com a rnño pouco segura, estivesse
outro que continuamente fizesse disso algo de arrojado e pcrícito, Fica
surprccndida e, contudo,
como se a ela pertcnccssc. Por isso, vigío-a,
vigio qualquer expressño casual, qualquer palavra soha que cla esboce:
quando a dcvolvo, torna-se algo ele mais significativo, coisa que cla tanto
é
é
é
Minha Cordelia!
«Minha-tcu» , estas pulavras cnvolvem o conteúdo das rninhas cartas como
um paréntese. Reparaste como a distáncia entre os seus bracos se encurta?
Oh: Corclelia minha: Nao é de facto belo qlle quanto menos conteúdo há
entre parénteses, tanto rnais significativo se torna.
'teu, Johanues.
176 Em larirn no original. CiLac,:ifo retirada de Ovfdio, /\rs amandi, livro 11, v. 155. 1rn
trndw;:ao de C. A. André: «é dom daf>. esposas a contenda»: Arte de amar, p. 59: Opera,
vol. 1, p. 269.
177 Na mitología romana, Vénus, Afrodite na mitología grega, é a deusa das hortas e
dos jardins. e protcdora da castidadc da mulhcr. O cinto de /\froditc é assim descrito
por Homero, /lfada, livro X[V, vv. 214-217: «falou; e do peito desatou a cinta bordada
e variegada, /na qual eslavam urdidos todos os encantamentos:! ncla está o amor, ncla
está o desejo, nela está o namoro/ e a sedw;ao. que rouba o juízo aos mais ajuiLaclos».
in Hornero, /líad.a, traduc,;iio de Frederico l.ourcm:;o. l.isboa: Livros Cotovia, 2005, p.
288: edicílo consultada pelo autor: Humers Jliade [A Ilíacla de H.), vols. l-Jl, tradu\1íO
de Clnis~iau J-'rederik Ernil Wilsler, Copenhaga, 18>6; vol. 11, p. 34. É St:hiller 4uem
fala do cinto de Vénus e nfio do cinto de AJrodite; vd. Anmut und 1.Vürde, pp. 252-253.
178 Aqui. «Ti1syru.(fryd». lilernlrnenle «mil delícias>> ou <<mil maravilhas>>. designa¡yao
comum para a sempre-viva ou margaricla (Bellis perermis). uma amplifica\ÍÍO da imagética da frase ante1ior.
conhccc como nao conhccc.
Estivemos hoje em sociedade. Nao trocamos uma palavra entre nós.
Ja mesa; entrou entño o criado para comunicar a Cordclia
que havia um mcnsagciro 14081 que desejava falar-lhe. Esse mensagciro
vinha da minha parte, trazia urna carla contendo urnas alusñes a um dito
que eu introduzira a mesa. Tinha sabido fue-lo ~1 mistura com a conversa
generalizada a mesa. de molde a que Cordelia, apesar ele estar sentada bastante afastada de mirn, tivcssc nccessariamente de ouvi-la e de compreendé-la mal. A carta estava a contar com isto. Se eu nao tivesse conseguido
conduzir a conversa a mesa nessa direccáo, entáo, tcria sido cu cm pessoa
a confiscar a curta a determinada hora. Voltou a sala e teve de mentir um
pouco. Assim se consolida o secretismo erótico sern o qual ela nao pode
seguir pelo carninho que lhc está consignado.
Lcvantárno-nos
**
45J
Sy¡r1.:n K 1c1 kcgunrd
452
Vai querer agora prender-me com os mesmos meios que eu com ela utilizei: usando o erótico.
Minha Cordelia!
Crés que quem deita a cabeca sobre a colina dos elfos ve ern sonhos a
imagem da filha dos elfos179? nao sei; mas sei que quando repouso a rninha
cabeca no reu peito, e nao fecho nessa altura os olhos, mas antes espreito
para cima, vejo entáo o semblante de um anjo. Crés que quem rec'Ina a
cabeca sobre a colina dos elfos nao pode jazer tranquilo? nao creio que
assim seja, mas sci que quando a minha cabcca se inclina sobre o tcu peito.
fica tao agitada que o sono nao conscguc dcsccr sobre os mcus olhos.
Teu, Johannes.
**
Jacta alea est18º. A viragcm tcm de ser ciada agora. Estive hoje em casa
dela. completamente tomado por um pcnsamcnto acerca de urna idcia que
scmpre me deu que fazcr, Nern tive para cla ouvidos, nem olhos. A propria
ideia era interessantc e cativou-a. Tcria siclo desacertado comccar a nova
operacño sendo frío na sua presenca. Agora que me fui cmbora e que já
nao está ocupada como pensamento, vai entáo descobrir facilrnente como
eu estava diferente do que habitualmente. O facto de cla dcscobrir a mudanc;a na sua solidao fai com que cssa dcscobcrta lhc scja bastante mais
dolorosa, produzindo um efeito mais lento, mas tmnbém mais penetrante.
Nao é capaz de ficar prontamente exacerbada e. quando U1e for entao oferccida a oportunidade, já ela se esgotou a pensar tanto no assunto que nao
é capaz de falar dele de urna s6 vez, antes conservando sempre 14091 um
rcsíduo de dúvida. Sobe o dcsassossego, cessam as cartas, reduz-se o alimento erótico. tro¡;a-sc do amor181 como se fossc urna ridicularia. Talvcz
até aguente isto um instante, mas a longo prazo nao consegue suportá-Jo.
179 Vd. acima nota 30.
180 Frast: alribuída a JLÍlio César. em latim no original: «A sorte está lan9acla». in Suetónio. De l'ita Caesamm, Juli11s Cccsar, l.ivro l. v. 32, in As Vidas dos Doze Césares,
vols. 1-111. tradu9lío de Angelina Pires (vol. l) e Adriaan ele Man (vols. lI e III), estudo
introclutório e notas de Víctor Raquel (vol. 1) e Adriaan de Man (vols. lle 111), Lisboa:
Edi9oes Sílabo. 2005-2007: vol. l, 2005. livro primeiro, p. 69; doravante mencionado
como As Vidas dos Do-::.e Césares. As palavras de César simholizam uma clecisao inabalável. com risco ele viola9ao consciente ele uma proibi9ao, e o conflito daí resultante.
Edi~iio de consulta para o autor: Caji Suetrmii Tranquilli 1(;/v /fir.1·te Romerske Keisere.1·
Levnersbeskrivelse [Biografias dos primeiros doze imperadorcs romanos por Caio Suctónio Tranquilo!, vols. 1-ll, traduc,:ao de Jacoh Baden, Copenhaga. 1802-1803: vol. l. p.
31; doravante, Le1me1sbeskrivelse.
181 Aquí, «Elskov».
No ponto relativo a relevar um noivado, qualquer rapariguinha um
grande casuísta; e apesar de nao fazerem cursos na escota sobre a matéria,
todas as meninas cstáo todavía excelentemente inteiradas, quando a questáo
versa os casos em que um noivado eleve ser anulado. Esta qucstño deveria
propriamente ser tarefa obrigatória no exarne final do último ano: e apesar
de cu al iás saber que as cornposicñes realizadas nas escolas para raparigas
sao invariavelmente monocórdicas, entáo, tenho também a certeza de que
nao faltaría aqui variedade, visto que o proprio problema abre um largo
campo a perspicacia de urna rapariga. E porque nao há-dc dar-se a urna
jovern a oportunidadc de mostrar a sua perspicacia da mais brilhante rnaneira? Ou nao encontrará ela aqui a oportunidade de mostrar que tem rnaturidade - para ficar noiva? Vivi urna vez urna situacáo que muito me intcrcssou. Numa familia, que cu por vezes visitava , os pais foram passar o
dia rora e, ao invés, as duas jovcns filhas do casal reunirarn um círculo de
amigas para tomar o café da tarde. Eram oito. no total. todas ele idadcs entre
os dczasscis e os vinte anos. É de presumir que nao cstivessern espera de
visita nen huma, tinham dado ordem a criada para negar a entrada. Entretanto cu cntrei e reparei distintamente que ficaram um pouco surprccndidas.
Sabe Dcus de que traram propriarnente oito jovcns desta espécie cm sornelhantc solcnc encontro sinodal. As rnulhcres casadas tambérn se reúncm por
vezes em encontros sernelhantes. Pronunciam-se cntño sobre teología pastoral e tratarn, em especial, das questóes mais importantes: cm que casos
mais acertado mandar a criada sozinha a praca, se mais acertado ter conta
aberta no talho, ou pagar logo; se será provável que a cozinhcira tenha um
namorado, como há-dc pór-se fim a esta brincadeira do namorado, que
atrasa a feitura das refeicócs. - - - Arranjci lugar neste bonito grupo.
Estávamos mesmo no início da Primavera. O Sol emitía alguns raios escassos como mensageiros da sua chcgada. Na propria sala tudo era invcrnoso,
e exactamente por isso eram tao pronunciadores os cscassos raios de Sol. O
café fumegava cm cima da mesa - ora, quanto as raparigas, estavarn l4J 01
alegres, sadias, florcscentes; e prazenteiras, pois o medo dissipara-se, e que
coisa havia a temer, pois de ce110 modo até cstavarn em rnaioria. - Conseguí dirigir a atencáo e a conversa para a qucstáo dos casos cm que deve
anular-se um noivado. Enquanto o meu olhar se deleitava a voltejar de flor
em flor naquela grinalda de raparigas, deleitando-se a repousar ora muna,
ora neutra beldade, o meu ouvido exterior regozijava. deliciando-sc como
desfrute daquela música de vozes, e o meu ouvido interior. observando e
escutando o que era diro. Urna so palavra era o que multas vezes me bastava para perscrutar profundamente o coracño ou a historia de urna destas
é
a
é
é
eren Kkrkcg:iurd
454
raparigas. Como sao cleveras sedutores os caminhos do amor, e como
é
in-
teressante investigar quáo longe o indivíduo singular riele se encentra.
Ateava constantemente a fogucira com obscrvacócs e ditos espirituosos, a
objcctividadc estética contribuía para tornar a relacáo mais livre e, no entanto, mantinha-sc rudo scmprc dentro dos limites do mais rígido decoro.
Enquanto graccjávamos assim pelas mais leves paragens da conversa. permanecia aí latente urna possibilidade de colocar estas boas meninas num
embarace fatal com urna única palavra. Essa possibilidade estava ern mcu
poder. As jovens nao se apercebiarn. nem sequero suspeitavam. o jogo
ligeiro da conversa era a cada instante refrcada, tal como Xcrazadc adiava
a senrenca de mortc contando historias 182• - Urnas vczcs, conduzia cu a
conversa para as Irontciras da nostalgia; e outras, deixava que a traquinice
se soltassc; outras vczcs, tcntava-as para que scguisscm um jogo dialéctico.
11 que rnaiéria havcrá que conrenha ern si urna rnaior rnultiplicidade, tudo
dcpendcndo de como se olha para ela. Eu introduzia constantemente noves
temas. - Contei-Ihes que uma rapariga se vira toreada pela crueldade dos
pais a anular o noivado. A infeliz cotisño quasc lhes fez viras lágrimas aos
olhos.
Contei-lhes que um homem havia anulado o noivado, invocando
duas razñes: a rapariga era demasiado alta, e ele nao se ajoclhara quando
lhe confcssara o scu amor, Colocando-Ihc cu cruño a objcccíío <le que seria
todavía impossível considera-las como razñes suficientes, responderá-me:
«Sim, sao justamente suficientes para alcancar o que eu pretendo, pois nao
há quern seja capaz de contrapor uma rcsposta racional.» - Propus a aprcciacáo da assemblcia um caso muí to difícil. Urna jovcm acabou ludo porque se sentía convicta de que cla e o namorado nao estavam beru um para
o outro. O scu amado quis trazó-la razil.o1x\ assegurando-lhe quanto a
amava, rcspondendo-lhe ela assim: «ou estamos bem um para o outro e há
urna verdadeira simpatía, e vais entño ver que 141J1 estamos bern um para o
outro: OU nao estamos bem lllll para O outro. e vais entño perccbcr que nao
estamos bem um para o outro». Era um prazer olhar como estas jovcns
partiarn a cabeca para apreender esta enigmática historia e, cornudo, rcparci
nítidamente que algumas a haviam entendido lindamente, pois no que toca
a anular um noivado, qualqucr rapariguinha um casuísta nato. - Sim.
crcio realmente que me era mais fácil disputar como proprio diabo do que
a
Ou-Ou.
U111 1~1 agn11.:1Ho
ele Vida
455
com urna jovem rapariga, quando se trata de saber em que casos dcvc
anular-se um noivado. Estive ontem em casa dela. Precipitadamente. com a rapidez do pensamento, inclinei prontamente a conversa para o mesmo objecto, como quaí
a havia ontem ocupado. procurando novamente levá-la ao éxtase. «Há um
comentario que cu já quería ter feíto ontcm; ocorreu-rne logo assim que
saí!» Rcsultou. Enquanto cstou ao pé dela, encentra desfrute cm ouvir-rnc;
quando me vou cmbora, cla deceno repara que foi cnganada, que eu mudei.
Desta rnaneira, retira-se as respectivas aceces do mercado. É urna mancira
manhosa, mas muitíssimo a propósito. como todos os métodos indirectos.
Para si, ela consegue explicar bem que urna coisa semelhante i\quela de que
estou a falar pode manter-me ocupado e, no instante. isto até Ihe intercssa
e. contudo. engano-a, privando-a do erótico propriamente dito.
Oderint, d11111 metum1t184, como se tosscm apenas o temor e o ódio a andarern juntos, ao passo que o temor e o amor ncm scqucr teriarn nada que ver
um com o outro. como se nao Cossc o temor a tornar o amor intcrcssant.c'!
Que amor é esse, como qual abrac,:amos a natureza. nilo haverá nelc um secreto medo e horror. porque a sua bela harmonía emana da ilegalidade e da
bravia confusfio, e a sua seguranc;a emana da ínlidelidadc'l Mas é precisamente esse medo que mais prende. Assim se passa como al'nOr, quando é ele
ser interessante. Atrás dele deve incubar a noite profunda e temerosa, de
onde brota a flor do amor. Assim repousa a nymphrea alba185 como seu di ice na supcrfícic da água, enquanto o pensamento se angustia ao precipitar-se na escuridao profunda, onde tem a sua raíz. - Reparei que ela me chama
scmprc «mCu», quando me cscrcve; mas nao tem coragem para o d izer quando fala contigo. 14121 Lmplorci-lhc hoje que o fizcssc, eorn tanta insinuas;ao
e com todo o calor erótico possível. Comc9ou a fozt:-lo e hastou urn olhar
irónico, mais breve e r(Jpido de fozcr <lo que de di:r,cr. para conseguir que tal
lhe fosse impossível, apesar de os meus lábios a incilarcm com todo o scu
poder. Esta disposiirao é normal.
é
182 Estratagema que al icen;¡t a consl.rui,.;ao narrativa de As Mil e Uma Noites, assegurando a sobrcvivéncia de Xcrazade: para se vingar da trai<¡:ao da sua primeira esposa, o
rei persa Schahriar Jesposava ern cada novo dia uma virgem, matando-a após a noite de
núpcias; Xera7adc conscguc ad.lar a cxccu9fio da sua sentc119a, contando-lhe histórias
durante mil e uma no'ites, até que, por fim, o rei resolve poupar-lhe a vida. F.di<;ao do
autor: Tausendu11d eine Nad11 [As .mil e urna noites], vols. I-IV, tradu9ao de Gustav
Weil. Estugarda. Pforzheim, 1838-1841.
'183 A4ui. <<Raison», grafía anl.iga de <<rtRson>>.
É rninha. Nao o confío as estrelas, como é uso e costume, nem vejo propriamcntc corno pode este anúncio interessar a esses orbes distantes. Tamlll4 rrnse atribuída a Calígula (Caius Cacsar Gcnnanicus, 12-41 ), que passou a história
como tirano cruel e sanguin{trio: ern lalim no original: «Que me ocleiern. desde que inc
temam»; citado in Suetónio. De vi/a Caesarum, Calif?ti/a, livro lV, 30. v. 3. Em ponugucs: As Vidas dos Doze Césares: vol. U. 2006, livro quarlo, pp. 86-87; Lev11e1.1heskri
11efse, vol.[. p. 312.
185 11111 la1 i1n no original, clesignai;;lio cic111 ílic<i dt> 1H.:núfar.
456
S0rc11 Kier"c¡inurd
bém nao o confío a ninguérn, nern mesmo a Cordclia. Conservo este scgredo
só para rnim, corno que o sussurro dentro de mim proprio nas mais secretas
conversas comigo mesmo. As tentativas de resistencia da suu parte nao foram particularmente grandes, ao invés, o poder erótico que ela desdobra é
digno de admiracño. Corno cla é interessante nesta profunda paixño, corno
ela é grande, quase sobrenatural! Corno ela tao dúctil quando se escapa, tao
flexível quando se insinua por tudo aquilo em que ela descobrc um ponlo
fraco! Tudo foi posro ern movimento; masé ncstc frémito dos elementos que
eu me encentro justamente no meu elemento. E contudo, ncstc movimcnto,
ela nao é ele modo algum pouco bcla, nao fica dcspcdacada cm disposicóes,
nao fica cstilhacada cm momentos. Continua a ser urna Anadiómena186• só
que nao se eleva na sua graciosidade ingénua. ou nurna calma desafecrada, é
antes movida pela fortc pulsacáo do amor187, na medida em que
afina!
unidadc e cquilfbrio. Eroricamente, está completamente equipada para o
combate, luta com as setas dos olhos. com o comando do sobrolho, com o
secretismo da fronte, corn a eloquéncia do scio, com os pcrigosos encantos
do abrace. coma prece dos tabios, como sorriso das faces, como doce anseio de tocia a criacáo. Há ncla urna torca, urna cncrgia, como se fosse urna
Valquíria188, mas cssa plcnitudc de torca erótica de novo temperada por
urna corta lassitudc languescente que sobre ela se exala. - Nño pode ser
rnantida durante multo tempo nestc pico, no qua! apenas o medo e o dcsassossego a mantém ele pé, impedindo que cla se precipite. Dcpressa sentirá
que, cm rclacáo a scmclhantcs movimentos, um noivado demasiado constrangcdor, demasiado incornodativo. Torna-se ela mesma a tentadora que me
seduz levando-me a u lrrapassar os limites do uni versal. e fica assim ciente de
que isso para mimo principal.
é
Ou-Ou.
U111 h11~1111!nlo
457
ele Vida
Mínha Cordelia!
Queixas-te do noivado, em tua opiniáo, o nosso amor nao necessita de
um elo exterior que apenas um entrave. Nisso, reconheco eu prontamente a minha excepcional Cordelia! Na verclade, admiro-te. A nossa uniáo
exterior rnais nao é do que urna separacáo. Há ainda urna parede interior
que nos afasta como Pírarno e Tisbe189• A conivéncia dos homens
ainda
factor de perturbacáo. Só há liberdade em oposicáo. Quando ninguérn
alhcio suspeita do amor, só cntáo o amor possui signíficacáo; quando
qualquer intruso acredita que os amantes se odciam, só entño o amor
feliz.
é
é
é
Teu, Johannes.
é
é
é
é
**
Dcpressa se romperá o elo do noivado. É ela quern o vai desenlacar,
P'"'ª se possfvel me prender ainda mais firmemente nessc desenlace. tal
como os caracóis soltos prendern rnais do que os que estáo apanhados. Se
eu anulassc o noivado, ficaria privado dcsse salto mortal erótico, tao sedutor de observar, e um sinal tao seguro do atrevimento da sua alma. Para
mim, isto é o principal. Alérn disso , tocio este acontecimento iria acarretar-me urna quantidadc ele desagradávcis consequéncias em relacáo a terceiros. Ficaria um tanto mal visto, seria odiado, abominado, ernbora injustamente, pois nao viria a ser vantajoso para multas? Há multas donzclinhas,
as quais,
falta de estarern noivas, ficariarn sernpre muitíssimo satisfeitas
se tivessem chcgado lá por perro. No cntanto , sernprc
algurna coisa,
mesmo que seja, para ser sincero, muitíssimo pouco, pois quando alguérn
avanca como quern se acotovela para arranjar urn lugar na lista de espera 190, fica-se precisamente sem csperancas, e quanto mais alto se sobe,
quanto mais longe se avanca, menores sao as esperances. No mundo do
amor 14141 nao se aplica o principio de antiguidadc no que diz respeito a
progressóes ou nomeacñes. Acrescente-se que urna donzelinha desta cspécie está cansada de possuir bens indivisos, precisa que a sua vida seja
agitada por um acontecimento. Mas o que haverá que se compare a uma
história ele amor infeliz, especialmente quando é possível levar todo o
a
é
14131 Nao sao poucas as express6es que da sua parle cuero, sugerindo que
está cansada do noivado. Nao passam clespercebidas aos meus ouvidos, os
quais sao os bateclores da rninha opera9ao na sua alma, dando-me indíca96es claras que consliluem as ponlas dos fios com que a enredo dentrn do
meu plano.
**
186 Designayao de Vénus saindo das <íguas.
187 Aqui, «Elskov>>.
188 Na mitologia n6rdica, as Valquírias erarn deusas enviadas por Odin para rcsgatar
heróis 11101tos em combate, os qua is cram transportados para Val halla, a morada ele
Odin. Ediyao consultada pelo autor: .J. 8. M0i11ichen, NordiskeFolks Overtroe, Guder,
fahler o¡: he/te, intil Frode 7 Tider LSuperstiy6es. Deuscs, Fábulas e Heróis do Povo
Nórdico até aos Tempos de Frode VIIJ, Copenhaga. 1800. p. 458.
189 Píramo e Tisbc amavam-sc. apesar da oposir;ao dos pais; comunicavam através da
parede que separava as cas<t~ das respectivas famílias. Vd. Ovídio, Me1a111orphoses. livro IV. 55-166; Mew111mfn.1'e.1·,pp. 106-109; Opera. 11, pp. 99-102.
190 «{!,xspecw11ce-Lis1», Lct 1110 11~udo l.!111 tltipln valencia, dado que «Eksp1•c1m1ce» ~ignilica <<C~l)Cnllly<l~» e <<CXl)Cl'lllliVll"'·
458
Ou-Ou.
caso de urna maneira tao ligeira, em paralelo. Enfia-se entáo 11a propria
cabeca e na do próximo que se está entre os enganados e, como nao se tcm
qualificacóes para ser admitido numa sociedade de madalenas'?', encentra-se hospitalidadc ao lado numa sociedade de choronas. Odeiam-mc, portanto, ern cumprimcnto do dcvcr. Além disso. chega ainda urna divisáo
com aquclas que alguém enganou na totalidade, enganou por merado ou
cnganou a tres quartos. A este respeito, há bastantes graus, desde as que
térn um anel, como qual pleiteiam, as que alcgam um aporto de mño numa
contradanca. As suas fericlas abrcm-sc novamcntc com as novas dores.
Aceito o ódio delas como um bónus. Mas obvio que todas estas rancorosas, para o meu pobre coracáo, sño como criptoamantes. Um rei scm
terra é urna figura ridícula; mas urna guerra de sucessño entre urna multidño de prercndcntcs a um reino sem rerra suplanta a maior das ridicularias.
f: assim que cu dcvia ser propriamenre amado e cuidado pelo bclo sexo tal
como urna associacáo de socorros mutuos in. Um noivo de vcrdade só
pode ufinal cuidar de urna, mas urna possibilidadc copiosa como esta pode
prover, diga-se, de algum modo provcr cntao scjarn lii quantas forern. Fico
livre de todo este sarilho e. ao mesmo tempo, com a vuntagem de conseguir aparecer mais tarde num papel completamente diferente. As jovcns
raparigas váo lamentar-me, ter compaixño de mim. suspirar por mim, eu
bato exactamente na mesma tecla, também dcssa mancira pode andar-se ~I
14151 Esfrego-o dia e noitc,
Mas nao apago a sombra negra.194
No entanto, extraordinario como a vida contém muito mistério. Urna
pequena circunstancia como esta pode incomodar muiro mais do que o
mais perigoso dos assaltos, a mais tormentosa das situacócs. You tirá-lo,
mas perturba-me a fala e o meu poder de vol. Mas vou mesmo tirá-Io, e
mandar pór um falso; é falso designadarnente para o mundo, para mim, o
negro era falso.
é
conquista.
f: bastante cstranho; tcnho ncsta altura a dor de observar que cstou a ficar
corn o sinal indiciador que Horácio desejou para todas as raparigas infléis
- um denle negro e. mais ainda, um dente da frente1'>3• Como possível
ser 1iio supersticioso! O dente está mesmo a incomodar-me, nem tolero que
me toquern no assunto, é um ponto fraco que cu tcnho. Conquanto em rudo
o mais eu esteja completamente armado, aqui , até mesmo o pior dos lorpas
pode aplicar-me um soco que vai muito mais fundo do que ele pensa ao
atingir o dente. Fa90 o possívcl para branqueá-lo, masé em vño, digo como
Palnatoke:
é
191 Vd. nota 48 no capíLUlo «Silhuelas>>.
192 «Assistenshuus», caixa de socorros mútuos fundada em 1688 corn o intuito de auxiliar as classes ma'is pobres atrav6s da conccssiío de cmpréstimos sob penhor.
193 Ern latim, no original,citac;ifo de Horácio, Odes. livro II, VIH, v. 3: «e se urn dente
negro ou um:i marca na unha»; vcl. Horácio, ()des, tradu~:ffo de Pedro Braga Falcao,
Lisboa: Livros Colovia, 2008, p. 144, vv. 1-4: «Se algum castigo tívesse:-. füfrido ! por
um falso jurnmento. Barine, I e se um dente negro ou uma marca na unha ! mais fcia te
tornasse.» Eclic;ao consultada pelo autor: Q. Horatii F!acci opera [Obras de Quinto
1 forácio FlacoJ. Leipzig. 1828, p. 48.
U111 1•rag1ncnlo de Vicia
459
é
É uma coisa cabal e excelente que Cordelia colida com um noivado.
O casamcnto e será. scrnprc urna instituicáo honrosa, se bem que tenha
consigo o lado entediantc <le na sua juvcntudc gozar parcialmente, desde
logo, das honrarías que a vclhicc lhc acarreta. Ao invés, um noivado é um
invento autenticamenre humano e, nessa qualidadc, la.o significativo e tao
ridículo,já que, por um lado. tudo está conforme pelo Iacto de umajovcm,
no turbilhño da paixáo, se colocar acirna disso e. por curro lado, sentir todavía a signlficacño de tudo isso. sentir a energía da sua alma como um
sistema circulatório superior que em si está presente por toda a parte. Ora
importa conduzi-la de molde a que na sua atrevida fuga ela perca de vista
o casamcnto e, sobretudo, a terra firme da realidade, e que a sua alma, tanto no scu orgulho como no receio ele perder-me, destrua urna forma humana impcrfcita para se precipitar numa coisa que é superior ao humano universal. A este rcspcilo, nao preciso cnlrcranto de sentir temor, pois agora o
seu caminhar na vida já paira corn Lanta lcvcza que já perdeu de vista, em
grande pm1e, a re<tlidadc. A16rn disso, cu até continuo com ela a bordo e
posso sempre desfraJdar as velas.
é
!\ mulher é e continua ainda a ser para mim uma matéria jnesgulável de
aprccia9ao, urna abundancia eterna de contemphl(-,:ao. O homem quc nao se
sinta impe'liclo para tal estudo, por mim, pode aliás ser o q_ue ele muito bem
quiscr no mundo, mas wna coisa ele nao é, nao é estético. Ora, o que é precisamente o glorioso e o divino da estética é ser apenas ela a entrar em rela\:ªº
com o belo; este tem essencialmente a ver com as bclas letras 14161 e com o
belo sexo. Posso alegrar-me,e alegra-se-me o cora9ao. ao imaginar o sol da
feminilidade irradiando numa ii1finita mulliplici<lade, espalhando-se muna
confuc;ao de línguas, na qual cada singulm tem urna pequcna parte de toda a
riqueza da fcminiliclacle, embora de molde a que o restanteque nela se encon194 Retirado de urna fala do Palnatoke, na tragédia horn6nima de Adam OehlenschHiger. Acto V. cena 2; in Oehlenschleigers fragf)dier [Trngédias de 0.1. vols. 1-X. Copcnhiiga, 18<~1-1849.
vol. 11. p. 298. Pec;;1 reprc~entada oito vezcs 110 Teatro Real de Co·
pcnhuga 110 período com¡)reendido c111rc l830 e 1840.
460
Ou -Ou. U111 F1ug11w11lo
tra se forme harmoniosamentc cm torno dcsre ponto. Ncstc sentido, a bclcza
feminina infinitamente divisível. Só a parte particular de bcleza tcm de ser
dominada em harmonía, ou entáo. factor ele perturbacáo, e acabarnos por
pensar que a natureza tinha pensado nalguma coisa para esta rapariga, mas
ficou-se por aí. O meu olho nunca consegue cansar-se de percorrer essas ernanacóes derramadas pela beleza feminina sobre essa periférica multiplicidaclc.
Cada ponto particular tern a sua pequena parte e, conrudo, é completo cm si,
feliz, alegre, helo. Cada urna temo scu: o sorriso divertido; o olhar malicioso;
os olhos cupidos: a inclinacño da cabcca; a mente galholcira; a nostalgia serena; o prcsscruimcnto profundo; a melancolía premonitoria; a saudade da terra;
as cmocóes inconfcssadas: o aceno do sobrolho; os lábios inquiridores; o secretismo da fronte; os caracóis enfeiticantes; as pestanas dissimulantes: o orgulho celestial; a modéstia terrena; a pureza angelical; o rubor furtivo; a passada ligeira; o grácil pairar; a postura lánguida: o sonho cheio de anseio; o
suspiro inexplicávcl: a estatura elegante; as formas suaves; o scio opulento; as
ancas avolumadas: o pé pequeno; a 1niío delicada. - Cada urna tcm o scu, o
que urna nao tcm, a curra tcrn. Ao ter olhado isto vczcs scm conta e observado
vezes sem conta esta multiplicidadc no mundo, quando sorri, suspirci, adulcí,
ameacei, dcscjci arelen temen te, tcntci , ri, chorci, cspcrci, rcccci, sen ti admira9ao, perdí - Jecho cntño o Jeque e o que estava espalhado reúne-se no Uno,
as partes no tocio. Alegra-se-me entño a alma, palpita-me o coracño, inccndcia-se-me a paixáo. Essa rapariga Impar, a única cm todo o mundo. tcm de
pcrtencer-rnc, tem de ser minha. «Que Dcus fique como céu, se cu ficar com
cla.» 195 Sci bcrn o que cscolho, é tiío grande que o proprio céu nao pode ficar
servido com urna tal partilha, pois o que iría sobrar no céu se eu ficasse com
cla? Os rnuculmanos cremes sentir-se-iarn enganados na sua esperanca, se no
seu paraíso abracassem sombras pálidas e exangues, pois nao encontrariarn
coracóes calorosos. já que todo o calor do coracáo foi reunido no peito dela;
inconsoláveis, cairiarn no desespero, quando cncontrasscm lábios pálidos,
olhos bacos, um seio imóvel, 14171 um aporto de rnño frouxo, pois todo o rubor
dos labios e o fogo dos olhos, o dcsassosscgo do seio e a prorncssa de apertar
as mños. e o prcsscntimcnto do suspiro e a bcn9ao <lo beijo, a tremura do toque
e a paixáo do abrace - ludo - Ioi nela unido. ela, que esbanjaria comigo o
que chcgaria para um mundo tanto daqui como do além. É assirn que penso
amiúde neste assunto; mas <le cada vez que assirn penso, fico sernpre acalorado. porque a imagino acalorada. Ernbora seja comurn considerar o calor corno
um bom sinal, daí nao resulta que se outorgue a este meu modo de pensar o
é
é
195 Adapta<;iío de uma exclama;;:iío atribuída ao antigo rci da Dinamarca Valdcmar IV
(1320-1375), utilizada originalmente em referencia ao seu castelo de Gurre. Edir;ao
consultada pelo autor: J. M. Thiclc. nanske Fofkesa8n fl.cndas Dinamarquesas], vols.
l-TV; vol. l. pp. 90 e scgs.
461
de Vida
honroso predicado de ser sólido. Por isso, até para variar, quero pensar nela
fríamente. Vou tentar pensar na mulher de modo categórico. Em que categoría
pode ela ser concebida? enquanto ser para o outro196• Entretanto, nao tern de
ser tomado em mau sentido, como se aquela que fosse para mim fosse em
simultaneo para outro. Aquí, corno sempre acontece no pensamento abstracto,
ternos de abstcr-nos ele ter em conta a experiencia, pois se assim nao for, no
caso presente, cu fiearia, de urna maneira curiosa, com a experiencia tanto a
rncu favor quanto contra mirn. Aquí, como em tocia a parte. a experiencia é
urna personagern curiosa, cuja essóncia é estar scmprc tanto a favor quaruo
contra. A mulher
portante, ser para o outro. Por outro lado, aqui, por scu
turno, nao é ele se dcixar perturbar pela experiencia, a qual nos cnsina que
raramente se encentra urna rnulher que seja na verdadc ser para o outro,
dado que comum urna grande maioria ncm sequer ser nada, nem para si
mesma, ncm para o outro. Ora, a rnulhcr partilha esta dcterminacáo coma
naturcza intci ra, corn todo o fern inino cm gcral. Toda a natureza limita-se a
ser para o outro, nao ern sentido teleológico, de modo a que um segmento
singular da natureza seja para outro segmento singular. porém, toda a natureza é para o outro - para o espírito. A::.sim acontece de novo eom o singular. A vicia da planta, por exernplo, com tocia a ingenuicladc, desdobra a
sua graciosidade escondida e é meramente para o outro. De um modo scmelhante. um enigma, uma charada, um segredo. uma vogal, etc .. sao
apenas ser parn o outro. Daf que scja possível explicar também por que
motivo Deus, ao criar P:va, fez com que cafsse um son o profundo sobre
Adiio197, pois a mulher é o sonho do homcm. Esta história também ensina
de uma oulra maneira que a rnulher é ser para o outro. Diz: dcsignadamcnlc
que Jeová rctirou uma costcla do homem. Se, por exemplo. a tivcsse retirado do cérebro do homem, entao, a mulher pcrmaneceria como ser para o
outro, mas a dcterminac;ao nao seria a de que ela haveria de ser urna quimera198, mas urna coisa completamente diferente. Tornou-se carne e sangue, mas precisamente por essa via eaiu sob a clctcrminac;:ao da natureza,
14 J 81 que é por csscncia ser para o outro. Só alravés do toque do amor199
é,
é
196 De acordo coma lógica hegeliana, há clois modos de detcnninar,:ao do ser, o ser-cm-si, e o ser-para-o-out ro: ao atribuir-se neste passo a catcgoria ele ser-para-o-outro
mulbcr, o sexo feminino fica determinado a partir do sexo masculino. Vd. Hegel, Wis
sen.w:haji der loRik ICiéncia da Lógica), in Werke, vol. Jll. pp. 124-125; J11biliiwn.l". IV,
pp. 134-135; e Suhrkamp. vol. Y, p. 126.
197 No Livro do (lénesis. os versículos 2: 18-23 dizem rcspcito
criar,:ao de Eva: vd.
em especial 2: 18: «E dis~c o Senhor Deus: Niío é bom que o homcm csteja só: far-lhe-ei
uma adjutora que esteja como diantc dele.»
198 Nao é possível rcproduzir o efeito do uso scquencial de «lfierne», «cérebro», e de
«Hjemespi11d». <«l quimera», literalmente «um fio [da tcial do cérebro».
199 Aqui e nas duas ocorréncia~ scguintcs. «l:::fvkov».
a
a
462
Sorcn Kicrkcgúard
Ou
463
Ou. U111 l•mgmc11Lo de Vida
ela desperta, antes desse tempo ela é sonho2ºº· No entamo, ncssa existencia
de sonho
possível distinguir dois estádios: o primciro, no qual o amor
sonha com ela, e o segundo, no qual cla sonha com o amor.
Como ser para o outro, a mulhcr designada arravés da virgindadc pura.
A virgindade é nomcadamente um ser, o qual, conquanto seja para si, propriamente urna abstraccño e mostra-se apenas a outro. Enconrra-sc também
o mesmo na inocencia feminina. Por isso, é possível dizer que, ncsse estado,
urna mulhcr invisível, Tambérn nao existía. como sabido, qualquer imagem de Vcsta201, a deusa que melhor designava a virgindadc propriamentc
dita. Esta cxisténcia, ele Cacto, zela esteticamcnte por si propria, á semelhan9ª do que Jeová faz eticamente202, e nao pretende que tcnha de existir qualqucr imagern, nem scquer nenhuma rcpresentacño sua. É nisto que consiste
a contradicño: aquclc que é para o outro nao é, e só se torna visívcl através
do curro. Em sentido lógico, esta conrradicáo é inteirarnentc adcquada, e
quern se entcndc a pensar logicarnenre nao se sentirá perturbado por ela,
antes se alegra com ela. Qucm em contrapartida pensa ilógicamente.
imaginará que aquclc que é ser para o outro é ser para o outro cm sentido finito,
tal como acerca de urna coisa singular se dizque é algo para mim.
Essc ser da mulhcr (a palavra «cxisténcia» já diz demasiado. dado que cla
nao subsiste fora de si mesma) acertadamente designado co1110 gracíosídade, urna exprcssño que recorda a vida vegetativa; ela como urna flor, como
gostam de dizer os poctas20\ e até o espiritual está nela presente de mancira
vegetativa. EJa encontra-se inteiramcntc dentro da dctcrrninacño da naturcza
e, por conseguintc, só livre estcticamente. Ern sentido mais profundo, só
rica livre através do homern, e por isso se diz «tomo a liberdade de declarar-me», e por isso o homem o faz204• Quando o fa 1, bem, entáo. nflo pode ser
questáo de urna qualquer cscolha, Decerto que a mulher cscolhe, mas se
essa escolha pensada como o resultado de urna longa aprcciacáo, semcIhante cscolha é náo-fcminina. Por isso. dcsonroso ser recusado, porque 0
indivíduo em causa se teve em demasiada consideracño, quis ciar urna libcrdade ao outro, nao estando a altura de o fazer, - Reside urna profunda
ironia nesta relacíío. Aqucle que para o outro surge na sua aparencia como
sendo a parte predominante: o homem torna a liberdade de declarar-se. a
mulhcr cscolhe. A mulhcr, segundo o seu conccito, é a vencida, o homem,
segundo o scu conceito, o triunfador e, cornudo, o triunfador inclina-se
diante do denotado e, no entamo. isto é completamente natural, e nao passa
ele gros seria, estupidez e falta de senso erótico 14191 ignorar o que assim
sucede de modo imcdiato. Tem também um fundamento mais profundo. A
mulher é. designadamcnre, substancia, o homern reílexáo. Por isso, também cla nao escolhe scm rnais delongas, mas o homem torna a liberdade de
declarar-se, e ela escolhc. Mas o pedido do homcm urna pergunta, a escolha dela propriamentc apenas resposta a urna pcrgunta. Em ceno sentido,
o homcm mais do que a mulhcr, neutro sentido infinitamente menos.
Bsse ser para o curro a pura virgindade. Caso proceda· ao ensuio de ficar
ele mesmo. cm rela9ao com um outro ~cr que é ser para ele, cntao, a contradicao mostrn-se no absoluto desdém. mas essa oposir;ao rnostra ao mesmo
1c1~npo que o ser da mulher propriamcntc dito é ser para o outro. Diamet.ra]mente ()posto a entrega ab~oluta está o absoluto clesdém, o qual, cm sentido
inverso. é invisívcl, tal como a abstract;ao contra a qual tudo se rompe, scm
que a abstraccraoganhe vida por isso. Ora a feminilidadc toma um cará.clcr
de crueldade abstracta, que é o curnc caricatura! da Sprodigkeit205 virginal
propriamente dita. Um homcm nunca pode ser lao cruel como uma mulher.
Pela consulta de mitologias. contos de fadas, Je11das populares, ve-se como
este facto sai corroborado. Se há neles clescrjto um princípio da natureza, o
qual na sua inclemencia niio rcconhece quaisquer limites, é o do ser virginal. Ou entfío, f'ica-se horrorizado ao lcr que uma rapariga cleixa, impassívcl, que os seus prctcnclentes arrisqucm a vicia, tal como amiúde se nos
con tos de todos os povos206. Um Blaubart207 mata na noite de núpcias todas
200 Possível alusao ao tratado ele Karl Roscnkran¿ ( l 80.'i-rn79) Psydwlogieoder die
Wissen.w:hq/ivom sufJjectiven Geist [Psicnlogia ou a Ciencia uo Espírito SubjectivoJ,
Künigsberg, 1837, ohra fundamental, por cxemplo, no contexto de O Conceito de An-
205 Em alcmiio 110 original: «recato>>.
206 Tema de um conto do poeta persa Nizami (ou NeL.ami) Ganjavi (l 141-L209), tornado conhccido a partir da publicac;ao de Les Mil/e et un Jours: r-ontes persa11s. turcs el
rhinois [Os l\llil e Um Dias: Contos Persas, Turcos e Chincscsl. de l'iranyois I'étis de la
Croix ( 1653-17 l 3). París, 1710-1712.
obra que se tornou popular, com várias reecli<;oes
nos séculos xvm e x1x. O lema chegou :.io público dinamarqucs através da pe9a de F.
Schillcr, Turandot, Die Prinzessin von China [Turandol, Pri11cesa da China!. 1802).
traduáda como Turandot. l'rindsesse af China. TragikomiskSkuespil ifem Optog. Efier
Schillers Bearbeidelseaf Gonzi.1· Original oversar. tit Rrugfvrden danskeSkuepladsved
M. /'~ Liebenber~ ITurandot. Princesa da China, Peya Trngicómil'.a ern Cinco Actos. De
é
é
é
é
é
é
é
é
é
é
gús1ia.
201 A dcusa era rerrescntada por urna chama ¡miente: vd. Ovídio. Fasli. livro VL vv.
295-298: Opera. vol. III, p. 143; e também l\ilsl'.h. vol. II, p. 622.
202 Vd. Livro do f:xodo, 20:5: «>ll'ín le cncurvarás a elas. ncm as servirás: porque eu.
o Senhor. lcu Dcus, sou Deu~ zcloso, que visito a maldacle dos pais nos filhos. alé a
terceira e quarta gera<;ao daqucles que me ahorrccem»: e Deutcronóm.io, 4:24: <<Porque
o Scnhor. teu Dcus, é um fogo que consome, um Deus zcloso.»
203 Motivo recorrente ao longo ele tocia a Lradi9ao ocidental. e ao longo desle cfi{irio;
rccorde-se ainda que «flor» é larnhém o termo ulilizado para caracleri7ar a poesia e a
figuras_;ao retórica.
204 Vd. acima nota 129.
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Acordo c0rn o Tratamento de $chiller do Original de Uonzi. Traduzida para Levar
Cena na Dinamarci1 I. Copcnhoga. 1815.
207 Em alcn1ao no origi11nl: «ílu1h11 Azul», p0rs01wgc1n da coleclanca de contM populares de Charles Pcrrnull, /,1•,1 r111111·v r/1• 1110 111i>re /'(he 10:; Comos da Mi11h:1 Miic
464
S01c11
Kii.:rk¡;g1n1rcl
as jovens que amou, mas o contcntarncnto nao está cm rnatá-las, pelo contrário, o contentamento deu-se antes, nisso consiste a concrccáo, nao é urna
crueldadc pela crucldadc propriamente dila. Um Don Juan seduz e foge,
mas nao tcm contcntamcnto algum em fugir delas, mas sirn em seduzi-las:
portante, nao é de todo esta crucldade abstracta.
Assim, quanto mais analiso o caso, tanto mais vejo que a minha praxis
está em perfeita harmonía com a minha teoria. A minha praxis sernpre esteve impregnada, a saber, da conviccáo de que a mulhcr csscncialmcntc
ser para o outro. Por isso, tem o instante infinitamente tanto a significar,
pois o ser para o outro é semprc assunto do instante. Pode dccorrcr mais
tempo ou menos tempo até que chcguc o instante. mas assim que chega,
aquclc que originalmente era ser para o outro assume-se como um ser relativo e, dcssa mancira, acaba. Sci muiro bcm que os homeus casados dizem
que a mulhcr tumbém
ser para o outro neutro ~entido.14201 para eles. ela
urdo para a vida inteira. Tem ele dar-se-lhes crédito por isto. Penso realmente que é algo com que se iludem recíprocamente. Em gcral, cada condicño tern na vida certos cosrumcs convcncionais e, cm especial, cerras
mentiras convencionais. Entre eles. tcrn de contar-se este contó do vigário.
Ser entendido no instantc20X nao é um assunto assim tíi.o fácil. e quem o
entender mal recebe obviamente um tédio deste tipo para toda a vida.
O instante é tudo e no instante a mulhcr é tudo; nao cnicndo as conscquéncias. Entre elas, está também a conscquéncia de ter filhos. Ora. cu imagino-me como seudo um pensador bastante conscqucnic, mas mesmo que Iicasse maluco, nao sou homcrn para pensar na consequéncia que mal entendo:
para tal, tcm <le ha ver um hornem casado.
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Ontem, Cordelia e eu fomos visitar uma família na sua casa de Yerao.
O grupo entreteve-se quase sempre no jardirn, passando o tempo com toda
a espécie de exercícios físicos. Entre eles, jogou-se também as argoJas.
Aproveitei a oportunidacle de um outro scnhor que tinhajogado corn Cordclia se ter ido embora para tomar o lugar dele. Quanta 1iqueza de graci.osi<laclc nao cxpunha cla, ainda mais sed u tora por v ia dos esfon,:os embelezadores
do jogo! Quanla hannonia grácil nas contrndi~oes dos movimentos! Como
era ligcira - como uma <lan~a no prado! Como era vigorosa, sem contudo
Gansa I, de 1697. A fo11tc mais .provávcl é Ludwig Ticck, no conto Die sieben Weiber
des Blaul>aris [As Sete Mulheres do Harba Azul 1, de 1797, e na pe((a Ritter Bfaubart 10
Cavaleiro Barba A7.UI 1, de 1812; traduzido para dinamarqucs como «Riddcr Blaasküi::g.
Et Evcntyr>> [O Cavalei.ro Barba Azul. Urna Aventura]. in Digtninger af Ludwig Tieck
l.Os Poernas de L. T.I. traduc:,ao de Ada111 OehlcnschHigc.r, vols. [-U, Copcnhaga, 1839:
vol.I,pp. l-64.
2Q8 Sobre o instanle. vd. O Conceito de AnRÚStia, SVJ. vol. IV, pp. 351-360: SKS, vol.
4, pp. 385-393; na traduc;ao brasileira: pp. 90-98.
Ou- Ou, lJ 111 h
t1g111i,;nlo
¡J¡;
Vida
L165
o:ferecer resistencia, ilusoria até que o equilíbrio tudo transfigurava. como o
seu porte era dltirámbico, como o scu olhar era provocador! ·É obvio que o
proprio jogo tinha um interesse especial para mim. Cordclia nao pareccu
reparar nisso. Urna alusáo da minha parte, dirigida a um dos presentes. sobre
o bonito costurne de trocar anéis atingiu-lhc a alma como urn relámpago.
Uma iluminacáo mais intensa repousou desde csse instante sobre coda a situacáo. imprcgnou-a de urna significacño mais profunda, percorrcu-a com
urna energía mais intensa. Fiquei comas duas argolas no meu pino, parci por
um instante, troquci algumas palavras com quern esiava ii vol ta. Ela comprecndcu esta pausa. Lancei-lhe outra vez as argolas. Pouco depois,já tinha as
duas no pino dela. Lancou ambas para o ar na vertical ao mesmo tempo,
como que inadvertidamente, e foi-me impossfvel apanhá-las. O lancamento
foi acornpauhado de um olhar cheio de urna ilimitada audacia. Conta-se
acerca ele cerro soldado francés, que fizera a campanha 14211 da Rússia, que
lhe ampuiaram a perna devido a gangrena. No preciso instante cm que a
dolorosa opcracáo ficou conclufda, agarrou na perna pela base <lo pé e gritou: «vive l'empereur», Foi com este olhar que ela lancou as argolas ao ar.
multo mais bcla <lo que qualquer das vezes anteriores, dizendo para si mesma: «viva o amor»20'>. Achei entretanto que nao era aconselhável deixá-Ia
prosscguir nesta disposicño desgovernadamcnte, ou deixá-la sozinha com
cla, por temer a lussidño que tao arniúde se !he seguc. Por isso, conduzi-mc
de urna maneira completamente tranquila e, comos dcmais presentes entre
os acompanhantcs, obriguei-a a continuar a jogar, como se eu em nada
se reparado. Urna tal condura limita-se a dar-lhe mais elasliciclade.
tivcs-
Se nos nossos tempos se pudesse esperar alguma simpatía por investiga9<1es destc género. entao, cu colocaria a prémio esta pergunta: Quem tem
rnais pudor do ponto de vista eslético, uma rapa1iga jovem ou urna mulher
joven1. a desc.:onheccdora ou a conhccedora. a qua] delas deve conceder-se
mais liberdade? Mas estas coisas nao dao que fazer aos nossos tempos sérios.
Na Urécia, urna invcstiga9ao cleste tipo tcria despertado a aten9ao geral, toda
a nac;:ao se poria em movimento, em especial as raparigas jovens e as mulhL:res jovcns. Ninguém ac..:reditaria nisto nos nossos tempos, mas nos nossos
tempos lambém 1únguém iría acreditar se contássemos a conhccida disputa
que foi travacla entre duas jovens raparigas gregas210, e a invesligayao alta-
209 i\qui. «Elskov».
210 Sobre qucm teria as nádegas mais belas. As duas i rmas acabam por se casar como
primeiro juiz da contcnda, e corn o seu irlJlao. que acabou por ser o segundo juiz; os
cicladaos de Siracusa ergueram uma estátua a Vénus Calipígia (do grego «kallypigos>>,
i. c .. corn belas nádcgas): episóclio narrado por Ateneu de N~ucrati~. Dei¡mosophisrai
lDeipno$ofi~ta~ ou O Banquclc dos Eruditos 1, livro l 2, v. 554; vd. Nitsch. vol. 1, p. 449.
466
Ou
mente fundamentada a que deu ocasiáo.já que na Grécia ussuntos dcstcs nao
eram tratados de mancira leve e lcviana; e contudo, todos sabcm que, por
ocasiíío desta lula, Vénus era portadora de um epíteto, e tocios adrniravam a
imagem de Vénus que a imort.alizou211. Urna mulher casada tcrn dois capítulos da sua vida nos quais é interessante, a sua prirnciríssima juvcntudc, e só
novamente rnuito mais tarde, quando é rnuitíssimo mais velha. Mas tern
rambérn, nao pode negar-se, um instante em que é mais grácil do que urna
jovcm rapariga, cm que inspira ainda maior respeito; mas esse é o instante
que sucede raramente na vida, é urna imagem para a fantasía que nao nccessita de ser vista na vida, e que talvcz nunca scja vista. Imagino-a entño sa,
floresccnrc. exuberante, dcscnvolvida, segura um filho nos bracos, para o
qual toda a sua atencáo está dirigida, pcrdendo-se na sua contcmplacáo. I~
urna imagem a que podemos chamar a mais graciosa que a vida humana
pode 14221 ex ibir, um mito da narureza, o qual, por isso, sé terá de ser visto
em arte, e nao na realidade. E tambérn nao terño de estar diversas figuras na
imagcm, ninguém terá de ficar sua volta, seria só para perturbar. Se, assim,
alguérn se dirigir as nossas igrcjas, tcrá arniúdc oportunidade de ver entrar
urna mác como filho nos bracos, Pondo agora ele lado o incomodativo choro da enanca. pondo agora de lado os angustiados pcnsamcntos cm torno das
expectativas dos país para o futuro do pequcnino, fundadas no choro da
crianca, toda a ambiéncia é já tao pcrturbantc que, mesmo que rucio o mais
lossc pcrfcito, o cfcito tcr-sc-ia todavía perdido. Ve-se o pai, o que é um
grande erro, pois anula o mítico, o mágico. ve-se - horrenda refero212 o
coro sério dos padrinhos, e ve-se - absolutamente nada. Representada como
urna imagem para a fantasia é a mais graciosa de todas as imagens. Nao me
faltam coragem e valentía, nem atrevimento suficiente para arriscar um ataque - mas se cu visse na realidacle urna imagem destas, ficava desarmado.
dita que é a manhá aquilo que ele anuncia. - Porque será urna jovem rapariga tao bonita e porque permanecerá assim durante tao pouco? Podía
até ficar bastante melancólico com este pensamento e, contudo, isso nao é
do meu interesse. Desfruta, dcixa-te de conversas. A gente que faz profissao destc tipo de rcflcxócs, cm gcral, nao desfruta absolutamente nada.
Nao fará mal, entretanto. que este pcnsamento surja, pois esta nostalgia,
nao falo por mim, mas pelos curros, contcre ern gcral ao individuo um ar
ligciramente mais viril e belo. Uma nostalgia que desponta como um véu
de bruma cobrindo ilusoriamente a forca masculina faz parte do erótico
masculino. Corresponde-lhe na rnulher um certo estado melancólico. Urna vez que urna rapariga se enrregou por completo, cntáo, já rudo passou. Continuo ainda a aproximar-me de urna jovem rapariga com um
cerro rcccio, como coracáo a batcr, porque sinto o eterno poder que reside
no scu ser. Tal nunca me ocorrcu diantc de urna mulher casada. A migalha
de resistencia que cla procura obtcr rccorrcndo
arte nada é. Acaba por
ser, como se alguém vicsse dizcr, que a touca da mulher casada se irnpusessc mais do que a cabeca descobcrta da jovern-!". Por isso. Diana215 foi
sernpre o meu ideal. Essa pura virgindade, esse absoluto decoro, sernpre
teve a ver cornigo. 14231 Mas se bern que sempre me ten ha mantido a aten9ao ocupada, ao mesmo tempo, olhci-a scmprc com rnaus olhos. Considero designadamente
que ela nem sequer mereceu propriarnente todos os
elogios por ela recolhidos
sua virgindade. Ela sabia, com efeito. que o
seu jogo na vida residía na sua virgindade e, por isso , conserva va-a. Alérn
disso, ouvi murmuracóes, num rccanto filológico do mundo, de que ela
tinha urna nocáo das tcrrfvcis dores de parto por que passara a sua mñc.
Seria ísso que a apavorara, e nao posso lcvar-lhc a mal tal coisa , digo designadamcntc pela voz de Eurípcdes: «prcfiro ir guerra tres vczes <lo que
dar luz urna vez»216• Nao seria propriarnente capaz de apaixonar-me por
Diana, mas nao nego que daría muito por urna conversa com ela, aquilo a
que chamaría urna conversacáo honesta. Ela teria justamente de estar dis-
é
a
Como Cordelia me mantérn ocupado! E contudo , cm breve o lempo
terá passado, a minha alma reclama scmprc rcjuvcncscimcnto. É como se
já ouvisse ao longe o galo cantar213. Tal vez cla também o ouca, mas acre211 /\ cstát11a de Vénus Calipígia cncontra-sc no Muscu Nacional de Nápolcs.
212 Em latim no original: «em rcforéncia a horrores». Trocadilho como verso de Virgílio. F:neida, livro 11. v. 204: <<fwrrescorefere11s>>. Na traduc,:ao de Luís M. G. Cer4ueira: «arrepio-me ao contar-vos1». in Yirgílio. Eneida, traduzido do latim por professorcs
da Faculdadc de Letras de Lisboa: Lisboa: Bertrand, 2003, p. 37. Na tradw,;ao de Agostin110 da Silva: «e com horror te conto o que ali bouve», in «Eneida>>, in Vírgflío, Obras
de Vir¡:ílio: Bucólicas, Gerírgicas. Eneida, tradm,:ao do latírr1 de Agostinho ua Silva.
Lisboa: Temas e Debates. 1999, p. 170.
213 Tal como no momento em 4ue Pedro se apercebe de que acabou de negar Cristo por
tres vezes, facto que o faz recordar a profecía do próprio Cristo; vd. Mateus, 26:34, e
Lucas. 22:54-62.
Ou \Ji11 l·111¡•111c11Lo
de Vida
467
a
a
a
a
214 A partir de 1840. generaliwu-sc o uso de urna cspécie de touca pelas 111ulhcrcs
casadas, cujo grau de sofisticac;ao distinguia as mais velhas das mais novas, ao passo
que as solleíras nada usavam.
215 Na mítologia romana, Diana. em correspondencia coma deusa grcga Ártemis. era
uma car;;adora virgem. guardia das llorestas. mas lambém protectora da rnulher, em especial na hora do parto: edic;ao de consulta para o autor: Nitsch. l. pp. 615-625.
216 Eurípedes, Medeia., vv. 250-251; ec.Jii;ao de consulta para o autor: Euripides, lraduc;iio de Christian Fredcrik Wilster. Copenhaga, 1840. p. 58. Em portugucs: «Como cu
preferiria mil vezes estar na linha <le batalha a ser urna só vez rnae!». in Eurípidcs,
Medeia. introduc;ao, versfío do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pcreira, Coimbra: Instituto Nacional de lnvestiga9ao Científica. Centro de Estudos Cl:íssicos e Humanísticos da U1iivcrsidacle de Coimbra, 199 l, p. 43.
468
Ou-üu.
posta a toda a espécie ele partidas. De urna muncira ou de outra, n minha
boa Diana tem manifestamente cm si urn saber que a torna multo menos
ingénua do que Vénus. Nem me preocuparía em espiá-la no banho, de
modo algum, mas iria espiá-Ia com as minhas pergunras. Se cu tivessc
manha para arranjar um encontró a dois, ern que temcssc pelo mcu triunfo,
iría entáo preparado e munido de armas, e colocaría cm movirnento Lodos
os espíritos do erotismo para conversar com cla. -
cu ficar colocado cm segundo plano, especialmente se a menina nada tiver
Tcm constituído frequenre objecto da minha observacáo saber qual a
siruacáo, qual o instante, que dcveras tcria de ser considerado como o mais
scdutor, A resposta depende obviamente daquilo que se desoja ardcntcmente, de como se deseja, e do modo como se está descnvolvido. Pico-me pelo
dia das nupcias e por um determinado instante. Quando ela ali está vestida
ele noiva, e todo o scu esplendor todavía empalidece diante da sua belcza,
e ela por sua vez empalidece; quando lhc pára o sungue , quando o scic repousa, quando o olhar hesita, quando o pé vacila, quando a donzcla estremece, quando o fruto amadurecc; quando o céu a eleva, quando a sericdade
a fortalece, quando a prornessa a sustém, quando a prccc a abcncoa, quando
o mirlo a coroa; quando o coracño estremece, quando os olhos se colam ao
chao, quando se esconde cm si mesma, quando nilo pertence ao mundo
para lhc pertencer por inteiro; quando o peito ondula, quando a criacáo
suspira, quando a voz falha, quando as lágrimas trcmcrn antes de ser o
enigma explicado, quando a locha se acendc, quando o noivo espera - eis
entño o instante. Em breve será tarde de rnais. 14241 Só resta dar um passo,
mas é o que basta para dar urn passo cm falso. Esse instante torna até significante urna rapariga insignificante, até urna pequena Zerlina217 se torna
um objecto. Terá de reunir-se tudo, a maioria dos contrastes unidos no instante, se faltar alguma coisa, cm especial, urna das principais antíteses, a
situacño perde desde logo urna parte da seducño. Há urna conhecida gravura que representa urna penitente. Tem um aspecto tao jovem e inocente,
quase se sentc embarace <liante dela e do seu confessor, ao pensar no que
pode ela ter propriamente para confessar, Ela levanta urna ponla do véu no
ar e olha o mundo como se procurasse algo, como se talvcz urna ocasiáo
ulterior lhe desse oportunidade <le confessar algo, e entendc-sc claramente
que mais nao é tambérn do que obrigacáo, fruto da considcracáo - pelo
confessor. A siruacáo
dcveras sedutora, e como cla a única figura na
gravura, nada há que obste a pensar na igrcja, onde tudo tem lugar, como
sendo tao cspacosa que muitos e variados pregadores poderiam nela pregar
ao mesmo tempo. A situacáo é deveras scdutora, e nada tenho a obstar se
é
é
217 A c¡imponesa que na ópera mot:artiana é a protagonista, ao lado cJe Don Giovanni,
da cena de sedu9¡fo no dueto La ci rlarem la mano. Acto l. cena 9.
U111 l•1ttgrnc11to
469
de Vida
contra. Entretanto, sernpre permanece todavía urna situacáo muito subalterna. pois a jovem parece afina! ser apenas urna crianca em ambas as acep\:Ües218 e, portanto, tem de ha ver tempo antes ele o instante chegar.
Terei eu sido sempre fiel ao meu pacto na minha rclacáo com Cordclia?
Estou a falar do meu pacto com o cstérico, pois é csse que me faz íortc, já
que tenho semprc a idcia do mcu lado. É urn segredo como o do cabelo de
Sansáo, que Dalila ncnhuma me há-dc arrancar'!". Nao teria seguramente a
tenacidadc para pura e simplcsmcntc enganar urna rapariga: mas o facto de
a idcia contida no movimenro ser a de que esrou a agir ao sen servico, de que
me consagro ao seu servico, dá-rne firmeza comigo proprio e contencáo
pcrante qualquer desfrute proibido. Será que o inreressanre se conserva scmpre? Sim. atrevo-me a dizé-lo livre e abertamente ncsta conversa secreta. O
próprio noivado foi o intercssante justamente por uño ter ciado o que comum entender-se como sondo o intcrcssanrc. Conscrvou o intcrcssantc precisamente por vía ele a aparencia exterior estar cm contradicáo com a vida
interior. Estivcsc;c cu secretamente ligado a cla, cnrno, só teda sido intcressantc a primeira potencia. Mas trata-se aquí, ao favés, do interess~mte ~'segunda poléncia e, por isso, para cla é 14251 unicamente o 111tcressante. O
noivado rompe-se, mas por vía de ser cla própria a anulá-lo para ganhar
balan90 para subir a urna esfera mais alta. É assim que dcvc ser; a forma do
interessante que mais a mantcrá ocupada é designadaml!nte esta.
é
16 de Setcmbro
Rasgado o Ja90, ei-la que voa como uma ave, plena de anseio, fortc,
atTevida, divina, só agora rendo direito a desdobrar a extcnsao das suas
asas. Voa, ave, voa!22 Na vcrdadc, se este voo majestoso fosse u1.n distanciamento em rela9ao a mim, causar-rnc-ía urna dor irtlinitamcnte profunda.
º
218 «Penitente» lra<luz aqui o tcnno <linamarques «Skrifreharn». e «confcssor». «SJ..r{f
te/adererm; no original há uma outra significa9ao a ter em conta, «bam» e «/ader», i.
e., «filho(a)» e «pai».
219Tal como narrado cm Juízcs, L6:13-l9.
220 «Flyv, Fugl, flyv! / Over Fureswe11s Vove>> 1 «Voa, 0:1vc voal Por sobre as ondas do
~urcs0»] é o primciro verso de um poema de Christian Frederik Wmther ( 1796-1876),
Digte [Poemas), Copenhaga. 1828, pp. 40-41; a ilustrac;ao <lo roema representa aves e
raparigas. O poema ganhou enorme popularidadc que se mantém até aos nossos clias,
cm especial através de um Lied do mesmo tílulo, com música de Johann Pcter P.miliu~
Hartman11 ( 1805-1900), publicado na colcctanca lieder de 1838, por iniciativa da sociedadc lllll'•ical de Copcnhaga. cujo círculo era frcquentado por Kierkegaard.
470
S<-11c11 K 1c:rkcguartl
Como se a amada de Pigrnaliáo tivesse voltado a ser pcdra+", assirn acon
teceria comigo. Tornci-a leve, leve como um pensarncnto, e haveria agora
este pensamento de nao me pertencer! Deixar-me-ia desesperado. Um instante antes, e nao me daria que fazer, um instante mais tarde, e na.o me
apoquentará; mas agora - agora - este agora que para rnirn urna ctcrnidadc. Mas cla nao voa para longe de núm. Vá, voa, ave, voa, eleva-le, orgulhosa das tuas asas, desliza pelos suaves reinos dos ares, em breve estarei
contigo, cm breve me esconderei contigo na profunda solidáo!
é
A tia sentiu-se um tanto atingida pela noticia. Entrementes, ela tem demasiado de livre-pensador para pressionar Cordelia, apesar de eu ter fcito alguns cnsaios para a levar a intcrcssar-sc por mim, cm parte para a adormecer
rnais profundamente, cm parte para arreliar Cordelia um pouco. De resto, eta
rnostra para contigo muito cornpadecimento. e nao suspeita do quanto eu
posso estar fundamentado para poder declinar tocio o compadccimcnto.
Obteve autorizacño da tia para ir passar algum tempo ao campo, vai visitar urna família. Da-se esta ventura que ela nao possa entregar-se prontamente cxccssividadc da disposicño. Maruérn-sc cntño tensa, durante algurn tempo, através de lodo o tipo de resistencia proveniente do exterior.
Continuo a manter urna ténue comunicacáo com ela, recorrcndo a cartas,
para que assirn a nossa rclacño reverdeje. Ela terá agora de fortalecer-se de
qualquer rnaneira, em especial, melhor deixá-la mostrar alguns arremessos de um excentrico 14261 desprczo para corn as pcssoas e para com o gcral. Quando chcgar odia da partida, encontrará um rapaz de confianca como cocheiro. C.1 fora, a porta, reúne-se-lhes o meu fiel criado. Ele
acompanha-a ao local combinado e fica junto dela ao scu scrvico, assistindo-a cm caso de nccessidadc. A seguir a mim, nao conheco ninguém
rnais talhado para isto do que Johan. Fui eu mesmo que tudo aí dispus com
o rnaior gosto possfvel. Nada falta que possa de algurna mancira servir
para encantar a alma dela, tranquilizando-a com um excelente bcm-cstar.
Ou-Ou. Um h11g111c:n10
tic Vida
nhas tido de suportar alguns solos individuáis.
Imagina todo o ajuntamcnto formado pelas rnadames de café e pelos fedelhos de água chalada;
imagina a presidir urna dama capaz de criar urna boa imitacáo desse irnortal presidente Lars em Claudius223, e tens urna imagern e urna representar;ao e urna medida do que tu perdeste e junto de quem perdeste: o juízo da
gente boa.
Junto aqui a famosa gravura que representa o presidente Lars. ao conscgui comprá-la cm separado, cornprci por isso todo o Claudius, arranquci-a e dcitci rora o resto, pois como havcria cu de atrever-me a incomodar-te
corn um presente que nenhuma significacáo tem nesre instante para ti; como haveria eu de nao remover céu e terra para arranjar aquilo que poderla
ser do teu agrado, um único instante que fosse; como haveria eu de permitir que se imiscuíssc mais ncsta sittia9ao do que aquilo que lhe compete'!
Urna prolixidade dcste tipo é propria da naturcza e da gente escravizada
pelas relacóes finitas da vida, mas tu, Cordelia minha, ncssa tua libcrcladc,
detestarlas tal coi sa.
a
é
**
Minha Cordelia!
A inda nao se uniram os gritos de «fogo!» de algumas farnílias na generalizada confusáo capitolina222 da guerra urbana. É de presumir que já te-
Teu, Johannes.
**
A Primavera é afina! a mais linda cstacáo para nos apaixonarmos, o fim
do Vcrflo a estacño mais linda para ficar perto do objecto do seu desejo.
No fim do Verño, 14271 instala-se urna nostalgia, que em tudo corresponde
ao movirnento com o qual o pensamento se acerca do cumprirnento do
desejo que percorre ern torrente o indivícluo. Estive eu mesmo hoje na
casa de campo, onde dentro de poneos dias Cordel ia encontrará urna arnbiéncia em harrnonia com a sua alma. Nao desojo ser cu a partilhar a surpresa e a alegria por tal facto. semclhantes pontos eróticos iriam meramente cnfraquecer-lhe a alma. Ao invés , se ela ficar sozinha com tuclo isto,
entrará aí entáo como num sonho, por todo o lado encontrará alusñes. urn
indicio, um mundo encantado, mas tudo isto perderia a sua significacáo se
eu estivesse a seu lado: faria corn que se esquecesse de que, para nós, ficara para trás o momento do tempo, no qual algo de semelhante. desfrutado em companhia, tinha significacño. Esta ambiéncia nao tcrá de
é
223 Lars Hochedeln, personagern caricaturada por Daniel Nikolaus
221 Vd. Ovídio, Metamorphoses, livro X. vv. 243-297; Meramorfoses. pp. 252 e scgs.,
Opera, vol. JI, pp. 220-223.
222 Alusiio aos gansos cujo grasnar acordou a guarni<,:ao romana do Capitólio,
alertando-a para a chegada dos Gálios.
Chodowic<.:ki
( 1726-1801 ), como sendo o elemento que preside a urna disputa entre crndiro::.: a grnvura, de perfil, mostra um nariz de configura~ao fálica: vd. SKS. vol. K2-3. p. 241, e
Matthias Claudius (1741-1815),
ASMUS 011111ia sua SECUM portans odcr Sii1111111ficlte
Werke des Wwulsbecker Bot!te11 IAsinu-. ll!vando consigo lucio o que é seu üu Obra~
reunidas do 111ensageiro de W<lndshcl.'kl'1 I, vols. 1 11. l lamburgo: 1838: vol. 1, p. 69.
l'ragrncnto ele Vicia
472
Ou-Ou.
cntorpecer-lhe a alma como um narcótico, antes tern de dcixar sernprc que
Encontrar-nos-emes novamente no fundo do mar, pois só nesta fundura
pertencemos dcveras um ao outro.
cla se eleve, na medida ern que a desconsidera como um jogo, que nada
U111
significa em comparacáo com o que está para vir. Nestcs días que ainda
restam, tenciono eu mesmo visitar este Jugar mais vezes para rnanter-rne
na disposicáo.
Teu, Johannes.
**
**
**
Minha Cordelia!
Minha Cordelia!
Chamo-te agora minha de verdadc, nao há sinal exterior a recordar-me
da minha posse. - Em breve te charnarci minha de verdadc. E quando eu
te tivcr bem segura nos mcus bracos, quando me enlacares no tcu abrace,
nao ncccssitarernos de qualqucr anel a lembrar-nos de que pcrtcnccmos um
ao curro, pois nao este abrace um anel que é mais do que urna designa9ao? E quanto rnais esse anel nos rodear, quanto mais indivisivelmentc nos
unir, tanto maior será a libcrdadc, pois a tua liberdade consiste em seres
minha. tal como a minha consiste cm ser teu.
é
7'e11, Johannes.
Breve, brevemente serás minha. Quando o sol fechar os olhos com que
espía. quando a história terminar e os mitos come9arem, nao me limitarei a
lancar sobre mirn a minha capa, antes lancarei a noitc como urna capa sobre
mirn, e correrei para ti, pondo-me a escura para encontrar-te. á escura nao
dos teus passos, mas dos batimentos do coracáo.
Teu. Johannes.
**
Ncstcs dias cm que nao posso estar presente junto dela pessoalrncntc
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quando cu quero, inquietou-me o pcnsarncnto de que. em algum instante,
Alfeu apaixonou-se pela ninfa Aretusa, enquanto ca9ava224. Ela nao
quería dar ouvidos as suas súplicas, antes fugindo sempre dele até que se
metarnorfoseou em nascente na ilha de Ortígia. O pesar de Alfcu foi 14281
tffo grande que se mctamorfoseou em río. no Elis do Peloponeso. Nao esqueceu entretanto o scu amor, unindo-se dcbaixo do mar áqucla nascente.
O tempo das metamorfoscs já passou? Resposta: O tempo do amor225 já
passou? Com que coisa haveria cu de comparar a tua alma pura e profunda,
que nenhuma ligacáo tem como mundo, a nao ser com urna nascentc? E
nao te disse eu que sou como um río que se apaixonou? E nao rnergulho
agora eu para o fundo do mar, separados como estamos. para a ti me reunir?
vicsse a ocorrer-lhe pensar no futuro. Até agora nunca tal coisa lhe ocorreu e, para isso. soubc cu muito bem anestesiá-la estcticamcntc. Mío há
nada menos erótico que possa ser pensado do que a tagarelice sobre o
futuro, que encentra cssencialrnente fundamento no facto de nao se ter
nada corn que prccncher o tempo presente. Desde que eu esteja simplesmente na sua presenca.já nao receio cntño tal coisa. levo-a decerto a esqueccr tanto o tempo quanto a eternidadc. Se o individuo nao entender cm
que medida colocar-se no relacionarncnto com a alma de urna rapariga ,
nunca <leve entregar-se a vontadc de fascinar, pois. enrño , será impossível
evitar dois escolhos, a pcrgunta sobre o futuro e a catcquizacáo da fé.
É por isso intcirarncnte adequado que, no Faust , Gretchcn Ihe aplique um
pequeno examc desse lipo226, visto que Fausto usou <la 14291 imprudencia
ele dcixar sobressair o cavaleiro , e uma rapariga está sempre armada contra tal assalto.
224 Na mitología grcga, Alfeu, filho de Océano e de Tétis, pcrsonificava o rio que
corria pelo Peloponeso. Nao rendo conseguido seduzir Árternis, apaixonou-sc por Aretusa, que seguiu até ilha de Ortígia: edicáo consultada pelo autor: Nitsch, I, p. 413.
225 A partir dcsta ocorréncia de «Elskov», «Kjcerlighed» ocorre apenas duas vczcs; vd.
nota 231.
226 Vd. nota 64 no capítulo «Silhuetas». E tambérn: J. W. Goethc, Faust l , vv, 3058-3173; Werke, vol. Xll , pp. 178-184; Hamburger Ausgabe , vol. 11 l. pp .. 98-101;
e111
portugués: .1. W. Goethe, Fausto, 1 raducáo de Joáo Barrento, Lisboa: Círculo tic Lcitores. 1999. pp. 176-183.
Minha Cordclia!
a
S~H·c11 K ic1·kcganrd
474
Ora creio eu que está rudo em ordem para a sua recepcáo; nño lhc faltarño
oportunidades para admirar a minha memoria. ou rnelhor, nño encontrará
tempo para admirá-la. Nada foi esquecido que para ela pudcssc ter algurna
significacáo e, ao invés, nada foi trazido que pura e simplesmcntc pudessc
fazer com que me recordassc, na medida ern que estou presente invisivelmente. O efcito estará em grande parte dependente do modo como cla vicr
a olhar da prirneira vez. A este respcito, o meu criado rccebeu as rnais rigorosas insrrucóes c. a sua maneira. ele é um virtuoso perícito. Ele sabe lancar
um comentario <le mancira casual e negligente, quando tem ordens para tal;
sabe passar despercebido, cm suma, para mim impagável, - A localizacáo
é aquela que ela poderia desojar para si. Urna vez alguém sentado no meio
da sala, olhando em ambas as direccóes para alérn de tudo o que está em
primeiro plano.tem o horizonte infinito em ambas as direccócs, ñca sozinho
no vasto mar da atmósfera. Ao chcgar junto de urna fileira de janelas,
cstcndc-se ao longe no horizonte a abobada de uma llorcsta como urna grinalda. que delimita e circunscreve. Assim deve ser. O que ama o amor? um espaco vedado; nao era o próprio Paraíso um lugar vedado, um jardim
virado para o Orientc?227 Mas este ancl lecha-se, demasiado apertado, em
torno de um individuo - chegando rnais perlo da janela, um lago tranquilo
esconde-se humildemente entre a ambiéncia mais elevada - junto a margcrn, está um barco. Um suspiro da plcnitude do coracüo, um sopro do desassosscgo do pensamcnto - sol ta-se da amarra, desliza pela superfície do
lago, movido suavemente pela brisa doce do inclizível anscio; desaparece na
misteriosa solidño da floresta. embalado pela superffcie do lago que sonha
coma profunda escuridño da floresta. - Ao virar para o outro lado da sala,
o mar espraia-sc cliante dos olnos, nada os faz parar, perseguidos pelo pensamento que nada retérn. - O que ama o amor? Infinitude. - O que terne
o amor? - Limites. - - Atrás desta sala fica uma divisáo rnais pequcna,
ou melhor, um gabinete, pois o que aqucla sala na casa <las Wahl se encontrava na transicáo para vira ser, aquí, era. A parecenca rnuito enganadora.
Urna carpete tecicla <le vimc cobre o chao, cm frente do sofá está urna mesinha de chá, cm cima. um candeeiro, idéntico ao lá de casa. É tudo igual,
14301 mas mais deslumbrante. É ccrto que tive a ousadia de conceder a mim
mesmo urna modificacáo nesta divisáo. Na sala está um piano. muito simples, mas lembra o piano que está cm casa das Janscn. Está aberto; na estante da partitura está abcrta a pequena ária sueca. A porta que dá para a entrada está entreaberta. Ela entra pela porta do fundo, Johan tern instrucóes
ncsse sentido. Os seus olhos abarcam ao mesmo tempo o gabinete e o piano,
desperta na sua alma a rccordacáo no mesmo instante em que .lohan abre a
é
é
227 Livro do Génesis, 2:8: «E plantou o Senhor Deus um jardim no tdcn, da banda do
oriente: e pos ali o homem que tinha formado.»
Ou-Ou.
U111 F1ug111cnLo de Vida
porta. - A ilusño é completa. Entra no gabinete. Está satisfeita, estou convencido disso. Quando o olhar dela cair sobre a mesa, ve um livro; nessc
mesmo agora. Johan pega nele. como se fosse arruma-lo, cnquanto acrescenta casualmente: «0 senhor deve ter-se esquecido dele, esteve ca esta
manhá.» Fica assim a saber em primeiro lugar que já lá cstive de manhá, a
seguir vai querer ver o livro. É urna traducáo alerná <le Amor e Psique, o
conheciclo volume de Apuleio228. Nao se trata ele urna obra poética, mas
tambérn nao era isso o pretendido, pois constitui scmpre um agravo a urna
jovcm ofcrccer-Ihc urna obra poética propriamcnte dita, como se ela em
sernelhantc instante nao fosse cm si tao poética que nao absorvcsse a poesía
que se esconde de mancira imcdiata no factual, e que nao foi previamente
devorada pelo pensamento de outro. Na generalidade, nao se pensa nisto c.
contudo, passa-se assirn. - Ela lerá o Iivro e dessa forma alcanca-sc o objectivo. - Ao abrir o livro no sítio lido por último, encontrará aí um rarninho de mirto229, descobrindo ao mesmo tempo que tem algo mais a significar do que ser um marcador de livros.
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Minha Cordclia!
Que temor?' Quando ficarnos juntos, somos cntáo forres, mais forres do
que o mundo, mais Iones do que os proprios dcuscs. Sabes, houvc urna vez
urna raca na terra, a qual era de facto <le homens que. contudo, se bastavam
a si mesmos, nao conhecendo a íntima uniao do amor. No entanto, cram
poderosos, tao poderosos que queriam assaltar o céu. Júpiter atemorizou-os, e divicliu-os ele tal modo que a partir de um se fizesse dois. um homem
e uma rnulher230. Por vezes, acontece entño que aquilo que antes estivera
unido é <le novo reunido pelo amor231, e uma uniao clcstas é mais forte do
que Júpiler; nao só niío sao 14311 simplesmente tao fortes quanto era o in228 Vd. nota 58 110 capítulo «Diopsa/mala>>.
229 O mirto simboliza a pureza e a inocencia e, por esse motivo. era usado na grinalda
nupcial como símbolo da virgindade da noiva. Por outro lado, é uma planta dedicada a
Afroditc, e a Vénus, representada segurando urn ramo de mirlo. estando assim associado simbologia eªº culto da própria deusa.
230 Vd. o discurso de Arist6fanes, in Platao, Banquete, 189d-191.a, no qual se narra o
modo como Z:Cus pos fon
primitjva rac;;a humana que possuía tres géneros duplos
(masculino-masculino. ferninino-feminino; rnasculíno-feminino). Edic;:ao consultada pelo
autor: Udvalf(le Dialof(er a/ Platon, vols. 1-VI 11. traduc;:ao e.le Carl Johan l lcise. Copenhaga, 1830-1859. vol. IV, pp. 37-43; em po11ugues: Platíio. O Bwu¡uele, tradu<;:<'io, introduc;:ao
e notas de Maria Teresa Schii11Jpa de Azcvcdo. Li:-.boa: Edi<;Oc.s 70, 1991. pp. 51-55.
231 Aquí, e 11a ocorrcnci<i scguinlc, «K)wrli¡;lied».
a
a
Ou-Ou.
476
divíduo singular, mas sao ainda mais fortes.já que a uniáo do amor
mais elevada.
é
ainda
Teu, Iohannes,
**
24 de Setcrnhro
A noite está calma - sao onze e um quarto - o cacador junto a porta
da cidade faz soar a sua benc.:ao sobre a terra, ccoando desde Blegdammen
- entra pela porta - volta a tocar. e ccoa ainda mais longe. - Tudo dorme em paz, só o amor nao. Erguci-vos, secretos poderes do amor, reuní-vos
ncste pcito! A noite está silenciosa - urna ave solitaria quebra este silencio
como seu grito e o seu batcr de asas, enquanto voa sobre o campo orvalhado deslizando pelo talude inclinado; tarnbém ela corre para um encontró a
dois - accipio 0111e11232! Como toda a naturcza
prcmonitória! Aceito o
aviso do voo das aves, dos scus gritos, dos exuberantes golpes dos peixes
contra a supcrfície da água, do seu dcsaparecimento sobas profundczas, de
um longínquo latido. do chiar distante de urna carruagcm , das passadas que
ccoarn desde muito ao longe. Nao vejo fantasmas a esta hora nocturna. nao
vejo o que já foi, vejo o que está para vir, no seio do lago, no beijo do orvalho , na neblina que se estcnde sobre a tcrra, escondendo o seu fecundo
abrace. Tudo é irnagcm, eu próprio sou urn mito acerca de mim mesmo,
pois nao é como um mito estar cu a correr para este encentro? Quem cu sou
nada tern que ver com o caso; tudo o que finito e temporal
csquecido ,
so resta o eterno, o poder do amor, o scu anseio , a sua felicidade suprema.
- Como a minha alma está afinada como urn arco tenso, como cstáo prontos os meus pensameutos como setas na minha aljava, nao envenenadas,
porérn, justamente prontas para se misturarcm com sanguc. Como a minha
alma está vigorosa, sa, alegre, presente como um deus. - - Era bela por
naturcza. Gracas te dou, natureza prodigiosa! Olhaste por cla corno urna
rnñe. Aceita o meu agradecimcnro pelo teu cuidado! Ela esta va inalterada.
A vós agradece, hornens, a quem ela íicou a devé-lo. O seu descnvolvirnento foi obra minha - em breve desfrutarei a minha recompensa. - Quanto
nao reuni eu neste único instante ora iminente! Eu seja morro e danado, se
pcrco i sto ! é
é
é
232 Em latim no original: «aceito o presságio». A sernelhanc;a dos cxcmplos apontados
por Cícero, in De Divinalione LSobre a Adivinha<;_;ao]. livro l. XJV, 103; e<ligao consultada pelo autor: M. Tullii Ciceroni~ opera 01n11ia [Obras Completas de M. Túlio Cícero),
vols. I-IV e índex, cdigao de Johann August Ernesti. Halle. 1756-1757. vol. IV. p. 644.
Um Fragmento de Vida
14321 Ainda nao vejo a minha carruagern. - Ou90 o estalo do chicote,
o meu cocheiro. - Scgue ncsta corrida de vida ou de mortc, mesmo que
até os cavalos sucumbam, desde que nao scja no segundo anterior a lá chegarmos.
é
25 de Setembro
Porque nao pode urna noitc como esta durar mais tempo? Nao poderia
Alcctriao2~3 csqucccr-sc, nao poderia o sol ser suficientemente compassivo
ncsse sentido? Mas agora já passou e desojo nunca mais a ver. Quando urna
rapariga entregou rudo, enfraqucce, pcrdcu rudo, pois, no horncm, a inocéncia é um momento negativo, na rnulher, o mérito do scu ser. Agora toda
a resistencia é lmpossívcl e, enquanto ela existe,
belo amar; quando cessa,
resta fraqueza e hábito. Nao desojo que me lernbrcm a minha rclacáo com
cla: pcrdcu a fragráncia e já lá váo os tempos em que urna rapariga. coma
dor de perder o amante. era transformada cm heliotrópio234. Nño quero
despedir-me dela, nada me repugna rnais do que choro de mulhcr e súplicas
de rnulher, que tudo modiíicarn, nao rendo, porérn, propriamente nada para
significar. Amei-a; mas. a partir de agora, j<l nao constituí ocupacño para a
rninha alma. Se eu fosse um deus, furia corn cla o que Neptuno fez corn a
ninfa235: transformava-a em horncm.
Afinal valeu realmente a pena saber se nao havcria ele ter-se alguérn
capaz de se inventar poéticamente para desligar-se de uma rapariga, conseguindo torná-la tao orgulhosa que irnaginassc ter sido cla a ficar saturada
da rclacáo. Podcria constituir um epílogo deverus interessantc, o qual, cm
si e para si, poderia ter interesse psicológico e. conjuntamente. enriquecer
um indivíduo com multas observacóes eróticas.
é
é
233 Na mitologia grega. Aléctrion adonneccu quaudo estava de vigília. a pedido de
Ares. para que este e Afrodít.e se encontrassem sem levantar a suspeita de l-lefcsto,
marido de Afrodite. Aléctríon foi surpreendido por llélin, que dcscobriu os a111antes e
lcvou a notícia a He resto: edi91ío consultada pelo autor: Nitsch, vol. [,p. l37.
234 Na nútologia grcga, Clítí:1 era urna ninfa que se apaixonou por Hélio e que foi por
este lr<msforrnada cm girn~sol; cdic;ao consultada pelo autor: Nitsch. vol.[. p. 535.
235 Na mitologia grcga. a 11í11fa ('~111~ foí 1ran~for111ada por Po~íclo11 em Ceneu. o ilo
m..:111 pnr quem ela se np:iiJ1on(1111, l·dii,-,10 •·on~ultada pelo autor: Nit~ch, vol. l. p. i~4