Alexandria ptolomaica na perspectiva
de uma História Global*
Ptolemaic Alexandria according to the perspective of
Global History
Joana Campos Clímaco**
Resumo: Alexandria foi fundada no litoral mediterrânico egípcio pelo rei
Alexandre III da Macedônia no início da sua campanha contra o Império
Persa-Aquemênida (332/331 AEC). Nas décadas seguintes, a cidade
litorânea substituiu Mênfis como a sede do poder monárquico no Egito.
Seu desenvolvimento reconfigurou a dinâmica urbana e política no
antigo território nilótico e formalizou a presença grega no Delta, nesse
momento por meio de sua inserção também no comando egípcio. Em
diálogo com as recentes perspectivas da História Global, a expectativa
do presente artigo é repensar a história de Alexandria discutindo de
que forma a fundação e história inicial da cidade a tornaram um local
propício à mobilidade e entrelaçamentos.
Palavras-chave:
Alexandria.
Ptolomeus.
Helenismo.
Egito.
História Global.
Abstract: Alexandria was founded on the Egyptian Mediterranean coast
by King Alexander III of Macedon at the start of his campaign against
the Achaemenid-Persian Empire (332/331 BCE). In the following decades,
the seaside city replaced Memphis as the seat of monarchical power in
Egypt. Its development reconfigured the urban and political dynamics
in the former Nilotic territory and formalized the Greek presence in the
Delta, at that time through its insertion also in the Egyptian command. In
dialogue with the recent perspectives of Global History, the expectation
of this article is to rethink the history of Alexandria by discussing how
the foundation and initial history of the city made it a place conducive to
mobility and interlinking.
Keywords:
Alexandria.
Ptolemies.
Hellenism.
Egypt.
Global History.
Recebido em: 17/09/2023
Aprovado em: 21/10/2023
*
O artigo aqui apresentado foi produzido durante o pós-doutorado realizado na University of British Columbia (UBC,
Vancouver). O projeto de pesquisa intitulado “Alexandria e a pluralidade religiosa no Egito greco-romano” foi financiado
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas segundo o Programa de Apoio a Pós-Doutores (Prodoc/
Fapeam), edital n. 003/2022.
**
Professora Adjunta de História Antiga do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Possui doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado pela mesma instituição e
bacharelado e licenciatura em História pela Universidade de Brasília (UnB). É pesquisadora associada ao Laboratório de
Estudos do Império Romano (Leir).
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Introdução
A
lexandria foi fundada no litoral mediterrânico do Egito pelo rei Alexandre III da
Macedônia no início da sua campanha contra o Império Persa-Aquemênida (332/331
AEC). A cidade, seguindo o seu nome, foi erguida em uma estreita faixa de terra
entre o mar e um grande lago, o Mareótis, que se comunicava com o Nilo por canais. Seu
desenvolvimento, na segunda metade do século IV AEC, reconfigurou a dinâmica urbana e
política no antigo território nilótico e formalizou a presença grega no Delta, nesse momento,
por meio de sua inserção também no comando egípcio. No contexto da edificação de
Alexandria, o núcleo de poder persa estava situado em Mênfis, a primeira capital do Reino
Antigo, recinto do deus criador Ptah e centro de coração dos antigos faraós.1 Mesmo
competindo com Tebas como sede da realeza em períodos posteriores, a cidade mantivera
sua proeminência cerimonial, administrativa e militar em meio às diversas mudanças de
capital no período faraônico. Após a derrota persa, o domínio macedônio se acomoda
no território, inicialmente por meio da organização satrápica aquemênida centralizada na
antiga cidade, até que foi substituída por Alexandria, nas décadas seguintes, ao se tornar o
novo centro de comando e sede da recente corte greco-macedônia.2
A circulação de povos helênicos no solo egípcio, sobretudo no Delta, já era
crescente no primeiro milênio AEC, e se intensificou com a presença da colônia comercial
jônica de Náucratis, no século VII AEC, cuja construção colaborara também para a
obtenção de mercenários gregos na luta egípcia contra a Assíria. Náucratis estava a uma
considerável distância do mar e se utilizava de portos fluviais. Entretanto, um núcleo
urbano de dimensões maiores na costa mediterrânica era evitado pelos antigos faraós,
daí seu caráter inovador para o território (VAN DE MIEROOP, 2021, p. 304).3 Ademais, com
o desenvolvimento de Alexandria, o poder passa a ser exercido por uma elite dirigente
greco-macedônia. Pela primeira vez, gregos governavam não-gregos e fizeram do Egito
o seu centro de comando (THOMPSON, 2008, p. 11; VLASSOPOULOS, 2013, p. 278).
Fundada por volta de 3000 AEC, Mênfis foi a capital do Reino Antigo e serviu como residência real entre 2890 e 2173,
desde o contexto da unificação entre o Alto e Baixo Egito. Estava localizada em um ponto nodal a quarenta quilômetros
do vértice do Delta, próximo ao afluente de Pelúsio e no final da rota de caravanas que vinham do Faium, a Leste, e do
Siwa, a Oeste. O nome Mnnfr (em grego Mênfis), significava “a cidade piramidal de Pepi I”, portanto, sua identidade
como cidade mortuária era fundamental, além de sua importância administrativa (THOMPSON, 1988, p. 1).
2
Conforme assinala McKechnie e Cromwell (2018), na introdução da obra Ptolemy I and the transformation of Egypt,
404–282 BCE, há um enorme vazio historiográfico a respeito do período persa no Egito (525-323 AEC).
3
Localizada próximo a um afluente que se comunicava com o Mediterrâneo na região canópica do Delta do Nilo, perto
da vila de Saís (a capital de duas dinastias entre os séculos VII e VI AEC), a colônia foi autorizada pelo faraó Psammético
I e tornou as trocas mediterrânicas mais acessíveis aos egípcios. Heródoto (Historiae, II, 179) faz menções ao local
como o único porto aberto do Egito, mesmo não sendo no litoral. O faraó Amásis lhe concedeu autonomia comercial
e religiosa, momento em que se firmou ainda mais como empório comercial (LEFÈVRE, 2013, p. 113; GRIMAL, 2012, p.
375; GUARINELLO, 2013, p. 69; HUSSON; VALBELLE, 1992, p. 223).
1
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A morte de Alexandre III, em 323 AEC, se desdobrou em inúmeras controvérsias
quanto aos rumos do amplo domínio conquistado. Em longo prazo, as turbulências
resultaram na construção das “monarquias helenísticas”, reinos formados a partir da
divisão provisória do território entre os principais generais (diadochoi) do rei macedônio.
Nesse ensejo, Ptolomeu, filho de Lagos, um dos companheiros de maior confiança do
finado rei, herdou o comando do Egito e depois se transformaria em rei (circa 306-305
AEC) e Alexandria se tornaria sede de sua corte. A dinastia ptolomaica governou pelos
três séculos seguintes até a derrota do território nilótico para Roma, no conturbado reino
de Cleópatra VII (última rainha da linhagem).
O período iniciado entre a morte de Alexandre (323 AEC) e a derrota de Marco
Antônio e Cleópatra na Batalha de Ácio, em 31 AEC, foi nomeado pela historiografia de
“período helenístico” a partir da publicação do historiador alemão Johann Gustav Droysen,
Geschichte des Hellenismus (entre 1836 e 1843). A periodização se caracterizaria pela
sobreposição de reinos greco-macedônios em regiões orientais, resultando na difusão
da língua e cultura gregas por essas terras. A perspectiva de Droysen foi importante por
apontar certa coerência interna no período, que não deveria ser reduzido a uma fase de
decadência do mundo grego clássico, como estudos anteriores avaliavam. As pesquisas
acadêmicas sobre Alexandria foram consagradas nessa mesma conjuntura, em meio aos
estudos clássicos e separados do campo da Egiptologia. Por isso, tendiam a situar a cidade
como um apêndice do mundo grego no litoral egípcio. Compreendia-se que sua vivência
política e cultural fora construída de modo a separá-la das antigas tradições egípcias.
Pela perspectiva acima, a metrópole é explicada como protótipo do helenismo
levado ao Egito e que colaborara para sua “helenização”, possibilitada pelas conquistas
de Alexandre, conforme antigas terras persas foram tomadas pelas tropas macedônias. O
helenismo foi estabelecido como um termo que representaria a “consagração” da cultura
grega em territórios não-gregos, por meio de um processo de aculturação. Portanto,
o período helenístico era entendido, sobretudo, como a expressão da superioridade
helênica transferida para o Oriente, cuja “força” mantivera os reinos helenísticos coesos
(VLASSOPOULOS, 2013, p. 278; MOYER, 2011, p. 13).
Na segunda metade do século XX, na esteira da crítica pós-colonial ao teor
helenocêntrico dos estudos sobre a Antiguidade, as perspectivas sobre a era helenística
também começaram a ser revistas. Novas orientações buscavam enfatizar as resistências
nativas aos processos de helenização e analisar a resiliência das antigas tradições
(MOMIGLIANO, 1991). Com o objetivo de evidenciar a contínua força e diversidade das
culturas orientais, tais propostas interpretativas salientavam certa polarização e pouca
interação dos povos em contato, no caso do Egito, entre os nativos egípcios e gregos
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(VLASSOPOULOS, 2013, p. 278-279). Nessa concepção, construiu-se uma imagem dual
do Egito greco-romano e de Alexandria, ressaltando que as duas culturas predominantes
que ali coabitavam continuaram a se desenvolver com poucas trocas.4
Essas visões começaram a ser contestadas nos últimos vinte anos, conforme o foco
se desloca para os intercâmbios culturais, hibridismos, sincretismos e entrelaçamentos
ocorridos no Mundo Antigo, em especial na periodização helenístico-romana, quando
o multiculturalismo se torna ainda mais notável na documentação. Recentemente, a
perspectiva da História Global despontou como extremamente profícua para auxiliar
esse debate, conforme as histórias compartimentadas e nacionais começaram a se
revelar insuficientes para abarcar a riqueza dos contatos na Antiguidade. Nessa crítica
ao “internalismo metodológico” e ao “eurocentrismo morfológico” (MORALES; GEBARA,
2020) dos estudos tradicionais, cresce a demanda por perspectivas mais amplas e
diversificadas (MOYER, 2011; CONRAD, 2019; VLASSOPOULOS, 2013).
De forma semelhante, o impacto das perspectivas helenocêntricas na história de
Alexandria tendeu a obscurecer seus vínculos com todo o Egito (DUNAND, 2007, p. 253)
e também a desconsiderar a importância do Império Persa como a base para os reinos
helenísticos que se configuraram a partir do desmembramento do reino de Alexandre.
Dentro do mesmo teor crítico, Pierre Briant (2011, p. 1) defende a urgência da história
helenística ser recolocada no contexto mais amplo da história do Oriente Próximo no
primeiro milênio, com a leitura de que o Império Universal dos Aquemênidas foi a síntese
de impérios mesopotâmicos e orientais anteriores (LIVERANI, 2016, p. 747-748). Portanto,
o mundo helenístico surgiria da sobreposição de impérios e processos de integração
anteriores focados no Oriente, ainda que as elites governantes buscassem reforçar e
forjar a superioridade da cultura helênica (GUARINELLO, 2013, p. 139). Grandes cidades
surgiram e se engrandeceram nessa rede interligada, onde o que acontecia em um lugar
impactava em outros (FRANKOPAN, 2019, p. 37).
Em diálogo com tais vertentes, a expectativa do presente artigo é repensar a
história de Alexandria com o amparo das ferramentas da História Global, discutindo
de que forma a fundação e história inicial da cidade a tornaram um local propício
Sebastian Conrad (2019, p. 74) faz uma crítica pertinente a esse tipo de orientação pós-colonialista orientada para
o mundo moderno, mas que é também adequada para discutir a interação entre egípcios e gregos no período
helenístico. Tais vertentes são importantes para contestar o helenocentrismo de tradições acadêmicas anteriores
e trazem novos dados que valorizam resistências das culturas nativas anteriores, mas podem também recair em
extremos, com focos nacionalistas e nativistas, visando a reabilitar experiências indígenas esquecidas. Embora
tenham a sua importância, correm o risco de produzir imagens idealizadas e essencialistas de eras que anteciparam
períodos de conquista, além de imporem lógicas binárias, usando como enquadramento explicativo a oposição entre
colonizadores e colonizados. A ênfase na autonomia de cada povo, pode, portanto, obscurecer interações e ofuscar
assimetrias de poder.
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à mobilidade e entrelaçamentos. Com o enfoque principalmente no seu universo
político e religioso, a intenção é compreender como tradições religiosas e literárias que
lá se configuraram ganham mais sentido nesse universo de trânsito, comunicações e
empréstimos entre diferentes mundos.
O Império Persa e a conquista macedônia
Antes de focar em Alexandria, é necessário recuar brevemente às porções
terrestres incorporadas pelas conquistas macedônias, pois o próprio Egito estava sob
domínio persa, a partir da aquisição por Cambises, em 525 AEC, que o tornou uma
satrapia diretamente governada pelo Império. Em 404 AEC, o herdeiro de uma antiga
dinastia líbia chamado Amirteus (XXVIII dinastia) consegue libertar o Egito e iniciase uma fase duradoura de independência, apesar das diversas tentativas persas de
reconquista. Em 343 AEC, o local foi invadido e incorporado novamente, no reino de
Nectanebo II (361/60-343 AEC), considerado o último rei egípcio nativo. No contexto
da dinastia saíta, a presença grega no território já aumentara consideravelmente,
e na primeira fase de dominação, os abundantes recursos econômicos e militares
aquemênidas começaram a projetar o Egito em um “império mundial”, de forma
diferente ao anterior domínio assírio (HOLBL, 2001, p. 3-4). O Império Persa se difundiu
a partir da abertura às culturas dos conquistados e, então, se tornaria um império
multilíngue e multicultural. Sua estrutura se ergueu mais pelo acúmulo, aprendizado
e tolerância diante da diversidade dos vencidos do que por sua eliminação (LIVERANI,
2016, p. 757).5 Logo, ainda que Felipe II e Alexandre III tenham ganhado notoriedade
como os vencedores dos persas, parte das suas estruturas políticas foi aproveitada e
suas premissas de poder, incorporadas.
A própria ideia de conquista de um amplo território diversificado em regiões antes
inalcançadas pelos gregos certamente fora uma motivação para Alexandre e só teria
se tornado possível pela extensa rede comercial e de estradas iniciadas pelos persas.
Conforme assinala Dorothy Thompson (2008, p. 8), sob os Aquemênidas, a comunicação
por meio do Nilo havia se intensificado através de investimentos em um sistema postal
(admirado por Heródoto), além do desenvolvimento das estradas reais, cuja infraestrutura
iniciada anteriormente pelos assírios e babilônios foi adaptada (LIVERANI, 2016, p. 752).
O importante assiriólogo italiano Mario Liverani (2016, p. 748) sintetiza essa realidade interconectada estabelecida
no período persa-aquemênida: “O império Persa unifica regiões que nos séculos (e nos milênios) precedentes tinham
constituído diferentes polos de desenvolvimento socioeconômico e de agregação política, ligadas entre si por relações
comerciais, diplomáticas e militares, mas tão distintas que poderíamos acompanhar separadamente a história de cada
uma delas – o que, a partir da segunda metade do século VI, não se torna mais possível”.
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Tal império se ergueu, portanto, no espírito de abertura aos conquistados, estruturação
que permitiu a monumentalização de cidades como Alexandria, com produtos vindos de
todos os lados e junto a eles, diferentes informações, culturas e religiões.
Gregos se referiam aos persas com misto de admiração e terror e Alexandre III
certamente fora impactado por esses escritos na preparação de sua campanha antipersa.
Baseara-se também em conhecimentos herdados dos estudos com Aristóteles e na corte
de seu pai, que buscavam na literatura grega as referências necessárias para os macedônios
adentrarem o mundo helênico antes dominado pelas póleis (FRANKOPAN, 2019, p. 25-26;
THOMAS, 2021, p. 7). Alexandre se apropriara de conhecimentos literários prévios sobre
as terras que pretendia invadir, e como ele, seu pai anteriormente fora motivado para a
campanha na Ásia, que era interpretada como uma continuidade das missões históricas
e lendárias contra persas. Autores do século IV representavam os persas como bárbaros,
fracos e corruptos e, portanto, clamavam por ações militares contra eles. Isócrates era
um dos entusiastas antipersas e firme defensor do pan-helenismo encabeçado pela
Macedônia. Logo, Alexandre foi acompanhado em sua campanha por eruditos, filósofos
e “exploradores” cujos conhecimentos seriam aproveitados ao longo do avanço militar,
associando saber à consolidação do poder (MOYER, 2011, p. 9-10).
Todos os pontos da antiga estrada real persa que ligavam territórios europeus
e asiáticos foram tomados pelo exército de Alexandre e a iniciativa de fundar novas
cidades em pontos estratégicos visava, em última instância, a proteger as áreas recém
conquistadas. Provavelmente advém daí sua postura de demonstrar tolerância com as
culturas e elites locais e de se colocar mais como herdeiro dos reinos antigos do que
como invasor, ainda que posteriormente seus generais enfatizassem, sobretudo, seus
vínculos com o mundo grego (FRANKOPAN, 2019, p. 29).
Os novos reis helenísticos conquistam sua legitimidade como monarcas dos
territórios conquistados, mas também como sucessores dos persas, do rei Alexandre III
e da realeza macedônia (ANDRÉ, 2018, p. 151; BRIANT, 2011, p. 114). Como condensar
em um único cargo autoridades tão discrepantes e plurais? A monarquia ptolomaica
recém-instalada no Egito procuraria acenar para essa diversidade, da mesma forma que
Alexandria, a sede da corte, desenvolveria instituições que buscavam harmonizar distintas
tradições de poder e de saber de modo a legitimá-la.
Alexandre, Mênfis e a fundação de Alexandria
A tradição literária sobre a passagem de Alexandre pelo Egito cobre três momentos
principais: a reverência aos deuses locais em Mênfis, a fundação de Alexandria e a
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consulta ao oráculo de Amon na Líbia. Arriano (Anabasis Alexandri, III, 1, 3) menciona
que, ao passar pela antiga capital faraônica, Alexandre oferecera sacrifícios ao touro
Ápis e a outros deuses. Ademais, o Romance de Alexandre (I, 34, 1) relata que ele foi
também coroado faraó. Apesar das controvérsias acerca das informações providas pelo
Romance, diversas inscrições em templos corroboram seu reconhecimento como rei
pelos egípcios. Alan Lloyd (2011, p. 88-89) observa que a existência dessas evidências
é crucial não tanto por demonstrar os investimentos nos templos durante o seu curto
governo, pois a citação de seu nome não significa que ele fora o iniciador formal de tais
obras e nem delas estivesse ciente. É fundamental, contudo, por apontar que ao menos
um setor da elite sacerdotal reconhecia a realeza de Alexandre, o que não encontra
paralelos para o Segundo Período Persa (LLOYD, 2011, p. 88-89). Ademais, aludem à
sua autoridade pautada em traços dos faraós de tempos recentes, cujas atividades de
restauração em templos eram referenciadas, por serem atividades habituais esperadas
de reis egípcios. Tais inscrições assinalam ainda a percepção do poder do rei associada à
defesa de estrangeiros, um aspecto central do poder faraônico, ao invés de o abordarem
como um rei estrangeiro no Egito. Além disso, oferecer sacrifícios era uma prerrogativa
do faraó e Alexandre provavelmente sabia que para ascender à realeza era primordial
se inserir como intermediário dos deuses (HOLBL, 2001, p. 9).
É plausível afirmar, portanto, que tais ações orientadas para o sagrado visavam
também a um projeto político mais amplo. Além dos sacrifícios, Arriano (Anab. Alex.,
III, 1) narra que o macedônio organizara competições literárias e atléticas no local, nas
quais artistas de renome de toda a Hélade foram participar. Provavelmente fizera isso
pela falta de tempo de preparar uma cerimônia de coroação com a pompa necessária
(HOLBL, 2001, p. 10). Além disso, o ato poderia ensejar uma sinalização destinada aos
gregos sobre a conquista do Egito. Logo, as festividades em estilo helênico visariam a
um equilíbrio orientado para a população grega, almejando contrabalancear a reverência
prestada aos deuses egípcios.
Após a temporada em Mênfis, o rei seguiu para o litoral, onde fundaria Alexandria. O
episódio é narrado com engrandecimentos lendários e algumas variações pelos biógrafos
de Alexandre. Sobre tal momento, Arriano (Anab. Alex., III, 1, 4, 2) relata:
Quando ele alcançou Canopo, e navegou em volta do lago Mareótis, desembarcou
exatamente onde agora fica a cidade de Alexandria, nomeada segundo Alexandre.
Ele teve certeza de que a disposição era admirável para fundar uma cidade e que
tal cidade seria destinada a ser próspera. Ele ficou, então, tomado de ansiedade
para começar o trabalho, e ele mesmo marcou o plano geral da cidade, onde
deveria ficar a ágora, quantos templos deveriam ser construídos, em honra a quais
deuses, alguns gregos e Ísis, a egípcia (grifo nosso).
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Como na passagem citada de Arriano, as demais narrativas sobre a fundação de
Alexandria enfocam, sobretudo, o seu planejamento por meio do plano hipodâmico, a
sofisticação expressa mediante a construção de grandes edifícios e a riqueza e prosperidade
do terreno. Contudo, cabe observar (no trecho destacado em itálico) a ênfase atribuída ao
fundador, visando também à preservação de antigas heranças cultuais nativas, projetando
e destinando espaços a templos de deidades de origens díspares, o que sugere certa
dualidade na ânsia pela manutenção das crenças helênicas e egípcias. Portanto, há aqui
um realce explícito na ideia de acolhimento e diversidade associada à nova metrópole
greco-egípcio-mediterrânica, ainda que estabelecida pela tradição retrospectivamente. O
comentário sugere também o entendimento de que até a vivência religiosa de Alexandria
seria planejada e orquestrada inicialmente para harmonizar diferentes deuses.
Podemos entrever, na narrativa, uma relação na reverência praticada por
Alexandre em Mênfis e a expectativa de planejar Alexandria focando no cotidiano
divino, talvez visando a promover um elo entre as duas cidades? Entendendo que, para
ter condições de competir com Mênfis, a nova cidade deveria se destacar por meio do
aparato religioso. Ou talvez, que a religiosidade de Alexandria deveria funcionar de
forma complementar à de Mênfis? Alexandria foi construída ex nihilo, desenvolvida por
iniciativas reais e atendendo a ambições grandiosas, por isso era importante estabelecer
um eixo de comunicação com antigos centros urbanos de prestígio, mirando em um
projeto para seu cotidiano divino (DUNAND, 2007, p. 253).6 Nesse ensejo, além de ter
Atenas como modelo, é extremamente plausível que Mênfis, ao mesmo tempo, deveria
servir de referência para a criação do ambiente religioso de Alexandria.
Na própria postura atribuída a Alexandre por Arriano no contexto da fundação de
Alexandria, fica evidenciada a reverência pelas antigas tradições egípcias na organização
da cidade, ainda que motivadas por projeções políticas maiores. No relato de Plutarco
sobressai a inspiração helênica para a construção da cidade após um sonho visionário do
rei com Homero lhe indicar o local, contudo, logo se confirma a composição multicultural
de Alexandria no episódio dos pássaros. Vejamos:
Alexandre levantou-se sem demora e encaminhou-se para Faro, que nessa altura
era ainda uma ilha situada um pouco acima da boca Canópica do Nilo, mas que
hoje em dia está ligada ao continente por um paredão. Quando viu o lugar e as
vantagens incríveis que possuía (trata-se de uma tira larga de terra, semelhante a
Kostas Vlassopoulos (2013, p. 294-295) igualmente enfatiza a especificidade de Alexandria no Egito e Antioquia na
Síria, as mais importantes fundações do Mediterrâneo Oriental no período helenístico, por terem surgido do “zero”, daí
precisarem de ondas significativas de migrantes da Macedônia e da Grécia. Se a fundação de cidades dinásticas já era
uma tradição do Oriente Próximo, o que era novidade das fundações helenísticas era a aplicação do modelo grego de
apoikia em circunstâncias diferentes de sua base original.
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um istmo, que separa do mar uma grande lagoa, rematada por um porto amplo),
declarou que Homero, além de outras qualidades admiráveis, era também um
arquiteto de excelência; decidiu, portanto, que o traçado da cidade tivesse em
consideração a topografia do lugar. Como não tinham giz, pegaram em farinha
e, com ela, traçaram no solo negro um espaço circular, de cuja base interior
partiam traços radiais que dividiam o arco em espaços regulares, formando o
desenho de uma clâmide. O rei ficou satisfeito com o traçado; foi então que de
repente um bando imenso de aves, de todas as espécies e tamanhos, surgiu do
rio e do lago e se abateu sobre o lugar, como nuvens, sem deixar rasto de farinha;
de tal modo que até Alexandre ficou perturbado com a profecia. Foi então que os
adivinhos lhe aconselharam ânimo, porque a cidade por ele fundada havia de ter
enormes recursos e de ser capaz de proporcionar condições de vida à gente vinda
de toda a parte. Alexandre ordenou aos encarregados que arrancassem com a
obra, enquanto ele se dirigia ao templo de Ámon (Plutarco, Vita Alexandri, XXVI,
6-10, grifo nosso).
É plausível que o relato de Plutarco se deixara influenciar pelo desenvolvimento da
Alexandria romana do tempo em que escrevera. Podemos observar como a própria leitura
crítica da tradição textual colabora para problematizar o quadro predominantemente
helênico da cidade tão enfatizado pela literatura e historiografia tradicional, pautado pela
inspiração políade de suas instituições. A presença do arquiteto grego Dinócrates de
Rodes, além do traçado hipodâmico e do plano urbano centrado na ágora e nos palácios,
e, por fim, a burocracia ordenada em torno da língua grega, durante muito tempo foram
argumentos usados para enfatizar o isolamento de Alexandria em relação ao Egito. Tal
cenário tem mudado nos últimos trinta anos, conforme as descobertas da Arqueologia
Subaquática evidenciam a presença egípcia na cidade em diversos níveis (DUNAND, 2007,
p. 253). Embora a ênfase na separação do Egito ainda esteja presente até mesmo entre
egiptólogos (VAN DE MIEROOP, 2021, p. 304).
Após fundar e projetar Alexandria, Alexandre seguira viagem rumo à Líbia para
consultar o oráculo de Amon. O oráculo de Zeus-Amon, em Siwa, era uma ramificação do
templo principal de Amon, em Tebas, cujo sincretismo com Zeus já havia se popularizado
no séc. V AEC por diversos lugares da Hélade e mesmo na Macedônia. Talvez o rei
almejasse visitar o deus na sua morada original. Ademais, o oráculo de Zeus-Amon era
destinado exclusivamente a reis, o que sustentava a visão de Alexandre com relação à
própria natureza divina, que harmonizava perfeitamente com a concepção egípcia do rei
como filho de um deus (HOLBL, 2001, p. 10-11). Segundo Plutarco (Vit. Alex., XXVII, 5-11),
o oráculo tinha confirmado seu governo sobre toda a humanidade. Além disso, uma
confusão no entendimento da língua fizera o profeta do oráculo se dirigir a Alexandre
como filho de deus, o que foi convenientemente aceito por ele como confirmação de sua
divindade. Como o Amon da Líbia era associado a Zeus, em relação ao Amon tebano,
Pierre Briant (2011, p. 96) defende que a ação do rei seria direcionada, sobretudo, ao
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público helênico mais amplo. Porém, sua tentativa de divinização como filho de Amon
pode ter sido mal interpretada por gregos, pois a veneração de um monarca era entendida
como mais natural entre os egípcios. De qualquer forma, o fato de ter buscado uma
divindade que tinha adquirido características supremas (no Reino Novo) para autorizá-lo
como governante de todas as terras enseja que a visita ao oráculo de Zeus-Amon teria
pretensões políticas mais amplas. Tal medida pode também ter auxiliado seus sucessores
a serem aceitos como faraós (DAVID, 2011, p. 416).
Ptolomeu I Sóter, o Egito e o Mediterrâneo
Após a morte de Alexandre, em 323 AEC, as décadas seguintes foram marcadas
por conflitos entre o exército macedônio e os diádocos a respeito dos rumos do amplo
território conquistado. O maior dilema era se deveria predominar a unidade ou divisão e
quem deveria ser o sucessor. Um consenso inicial foi alcançado no acordo de Triparadiso,
na Babilônia, de que o trono deveria ser corregido pelo meio irmão de Alexandre III,
Filipe III Arridaio e pelo filho ainda não nascido gerado com a princesa báctria Roxana,
Alexandre IV, com Pérdicas servindo de regente a ambos. Nessa ocasião, também o reino
foi inicialmente dividido em satrapias, a serem governadas por sátrapas, que deveriam
atuar como representantes dos futuros reis. Nesta divisão inicial, Ptolomeu recebeu o
Egito, a Líbia e parte da Arábia, com Cleômenes como seu representante.
Arridaio foi morto, em 317 AEC, a mando de Olímpia, mãe de Alexandre III, e o
poder real de fato era exercido por Pérdicas, regente de Roxana e de seu filho, até que
ambos foram mortos por Cassandro, em 311 AEC, o que representou o fim oficial da
linhagem argeada (Pausânias, Graeciae descriptio, I, 25, 6; Diodoro de Sicília, Bibliotheca
Historica, I, 19, 105). O vácuo de poder abriu o caminho para os diádocos se proclamarem
reis, o que ocorreu a partir de 306 AEC.
Ptolomeu, portanto, atuou como sátrapa baseado na antiga cidade egípcia de
Mênfis entre 323 e 306/305 AEC. O título aparece a ele associado pela primeira vez no 14º
ano de seu comando, em um contrato de casamento na língua grega (THOMPSON, 2008,
p. 7). Filipe Arridaio (323-317) aparece em alguns hieróglifos como faraó (LLOYD, 2011, p.
89-90) e Alexandre IV é reconhecido como rei na Estela do Sátrapa, cujo texto da inscrição
é dedicado a Ptolomeu pelo sacerdócio da cidade de Buto, no Delta, em 311 AEC.
Trata-se do principal documento em hieróglifo referente ao seu governo como
sátrapa. Embora tenha sido redigido antes da formalização de sua realeza, demonstra já
nessa fase o desenvolvimento de um projeto monárquico na sua aproximação com os
templos. Ademais, Ptolomeu é descrito com os atributos típicos de um faraó, sobretudo,
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a proteção contra inimigos estrangeiros e o cuidado com os deuses (OCKINGA, 2008, p.
168). A realeza de “fachada” de Alexandre – II do Egito e IV da Macedônia – é reconhecida,
mas o texto gera um entendimento ambíguo de que a figura monárquica estaria sendo
exercida em território nilótico pelo sátrapa.
Ptolomeu é descrito como uma espécie de vice-rei presente em solo egípcio e são
exaltadas suas qualidades na liderança, e atributos como guerreiro e vencedor, noção
semelhante ao que se esperava da realeza entre gregos e macedônios. Principalmente
no período tardio, cenário de afirmação imperial do reino, o posto faraônico começou
a adquirir conotações guerreiras. A Estela celebra o controle de Ptolomeu na Síria e na
Palestina e também uma doação real aos deuses nativos de Pe e Dep no recinto sagrado
de Buto, no Delta. Segue a primeira parte do texto:
Ano de reinado 7, primeiro mês da estação da Inundação, sob a Majestade de
Hórus: “O jovem, de grande força”; As Duas Damas: “O amado dos deuses, a
quem foi dado o ofício de seu pai”; o Hórus de Ouro: “O governante de toda a
terra”; o Rei do Alto e Baixo Egito, Senhor das Duas Terras, Haaibre-Setepenamon,
o Filho de Re, Alexandre (II), vivendo para sempre, amado dos deuses de Pe e Dep.
Ele é rei nas Duas Terras e nos países estrangeiros. Sua Majestade está no meio dos
asiáticos, enquanto um grande Príncipe está no Egito, cujo nome é Ptolomeu.
É um homem jovem, forte nos dois braços, eficaz nos planos, com exércitos
poderosos, coração forte, pés firmes, que ataca os poderosos sem virar as costas,
que golpeia o rosto de seus oponentes quando eles lutam, com mão precisa,
aquele que agarra o arco para si mesmo sem disparar, que luta com sua espada
no meio da batalha, sem que ninguém possa ficar por perto, um campeão cujos
braços não são repelidos, sem reversão do que sai de sua boca, não há outro
igual nas Duas Terras ou nos países estrangeiros.
Como ele, trouxe de volta as imagens sagradas dos deuses que foram encontrados
na Ásia, e juntamente com todos os implementos rituais e todos os rolos sagrados
dos templos do Alto e Baixo Egito, os restaurou em seus devidos lugares.
Ao estabelecer sua residência, chamada Fortaleza do Rei do Alto e Baixo Egito
Merikaamon-Setepenre, o Filho de Re, Alexandre, cujo antigo nome era Rakotis, na
costa do grande mar verde dos gregos, ele reuniu muitos Gregos com / seus cavalos
e muitos navios com suas tropas. Ele então foi com seus exércitos para a terra dos
sírios, com o resultado que eles lutaram com ele e ele entrou entre eles com o
coração forte como um raptor em busca de pequenos pássaros, agarrando-os
em um único instante. Para o Egito, ele trouxe seus príncipes, seus cavalos, seus
navios e todas as suas maravilhas (Estela do Sátrapa, 1-5, grifo nosso).
A ambiguidade da Estela poderia ser proposital, visando a preparar o terreno para
a liderança de Ptolomeu e confirma a construção de uma relação de reciprocidade com
o sacerdócio, que atribuía ao “príncipe” qualidades reais, antes de sua consagração. O
reconhecimento de sua atuação militar na memória institucional egípcia seria primordial
para moldar a forma com que Ptolomeu se apresentaria a este público (MCKECHNIE,
2018, p. 4; RITNER, 2003, p. 392). Ao mesmo tempo, a ênfase em sua autoridade guerreira
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o aproxima da liderança em estilo faraônico, que era responsável pela manutenção da paz
e ordem, mantendo os estrangeiros afastados do Baixo e Alto Egito.
A Estela é uma fonte fundamental pois ilustra, além disso, a conjuntura da
transferência da estrutura administrativa e real de Mênfis para Alexandria. Apesar da
nebulosidade em torno da questão, Dorothy Thompson (2008, p. 11) e Gunther Holbl
(2001, p. 33) defendem que a fonte corrobora a data limite para a mudança de cidade
na conclusão da campanha síria, em 311 AEC, o que demonstra a crescente importância
da cidade, cujo antigo nome era Racótis, na costa do grande mar verde dos gregos, que
contava com uma fortaleza e residência para o monarca.7
A despeito da polêmica em torno da exatidão da data, inegavelmente a Estela
sugere o começo de um reposicionamento e/ou uma divisão de poderes entre Mênfis e
Alexandria, com algumas instituições administrativas migrando para a cidade litorânea,
ainda que com certo “aval” do antigo centro. Alexandria já contaria com uma residência
real, ainda que o rei oficial não residisse lá, era representado pelo “príncipe” Ptolomeu.
A natureza da residência era militar, pois o local é chamado de fortaleza, além da ênfase
na presença significativa de gregos no exército, o que aponta para a construção da
cidade como uma base de poder litorânea, visando à costura da política internacional
egípcia com diversas regiões mediterrânicas (HOLBL, 2001, p. 25-26; DUNAND, 2007, p.
11). É possível afirmar com mais segurança que a transferência estaria concluída quando
Ptolomeu se tornou rei (306/305 AEC). Apesar da mudança, conforme já mencionado,
diferentemente dos predecessores persas, Ptolomeu era um faraó residente no Egito
e logo demonstrou interesse em aprender com a cultura local e com a autoridade
baseada nos templos, como a Estela informa.
Ptolomeu I Sóter foi rei entre 306/304 e 283/282 AEC, contudo, havia governado por
quase duas décadas anteriormente como sátrapa, conforme já observado.8 De certa forma,
seu governo de quase meio século estabeleceu as bases para a dinastia dos Ptolomeus
que governaria o Egito por quase trezentos anos. Grande parte da vida do primeiro rei da
linhagem foi dedicada ao engrandecimento de Alexandria, onde se fixara a nova corte. A
Racótis é convencionalmente entendido pela historiografia como o nome da antiga ocupação egípcia no terreno antes
da construção de Alexandria e que posteriormente se tornou o bairro que continuou abrigando a população nativa da
cidade. Contudo, pouco se conhece sobre esse povoamento, o que leva o historiador francês Michel Cheaveau (2000,
p. 57) a polemizar a questão. Ele defende que a nomenclatura é fruto da confusão de tradução dos autores clássicos
e que historiadores contemporâneos continuaram perpetuando, pois Ra-qed era o nome dado a Alexandria pelos
egípcios, que significa “terreno de construção”, o que poderia até indicar certa ironia na referência dos nativos ao novo
projeto. Contudo, o autor não nega que haveria egípcios nessa localização, que foram convocados, sobretudo, para a
construção dos edifícios públicos e privados da cidade (DUNAND, 2007, 253-254).
8
Tornou-se Ptolomeu I Sóter (“o Salvador”), título recebido provavelmente em Rodes, importante parceira comercial
do Egito, como agradecimento após o apoio na manutenção de sua independência contra a invasão por Demétrio
Poliorcetes, filho de Antígono I da Macedônia (ELLIS, 1994, p. 46).
7
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despeito de se estruturar como sede da realeza macedônia, sua consolidação na metrópole
mediterrânica se estabeleceria também a partir dos aprendizados da temporada de Sóter,
em Mênfis, onde teve contato com diversos preceitos faraônicos que seriam afirmados na
sucessão. O monarca compreendera que a manutenção das práticas religiosas atreladas
ao poder colaboraria para a sua legitimidade no território, conforme conhecera noções
faraônicas de comando na aproximação com às elites dos templos. O sumo-sacerdote
de Mênfis, que realizava a coroação real, tinha o maior cargo na hierarquia religiosa de
todo o território (DAVID, 2011, p. 423; SALES, 2005, p. 85). Ademais, as ações de Alexandre
III mencionadas acima possivelmente estabeleceram o precedente para Ptolomeu I, no
sentido de enfatizar a continuidade de práticas faraônicas, com o rei sendo coroado em
Mênfis e se associando aos antigos deuses enquanto projetava instituições de inspiração
helênica para Alexandria (DAVID, 2011, p. 415).
Dessa forma, Ptolomeu I herdara de Alexandre III não somente o talento militar,
como também o interesse por vasculhar as tradições de conhecimento dos lugares
conquistados, o que fizera com o apoio de conselheiros. Ele mesmo registrara as
campanhas de Alexandre III, atuando como “historiador” talvez na fase final de sua vida,
em Alexandria. A obra não sobreviveu, mas fora a principal fonte de Arriano. Embora haja
diversos debates sobre a natureza do texto original, há um consenso de que pretendia
responder às narrativas exageradamente eloquentes e fantasiosas a respeito do rei, com
pretensões de objetividade e focando, sobretudo, nos aspectos militares de sua vida
(ELLIS, 1994, p. 15; GREEN, 2014, p. 24; THOMPSON, 2008, p. 11). Valorizar a memória do
rei macedônio era mais uma maneira de Ptolomeu se vincular ao seu legado e condensar
seus feitos, como instrumento de informação da monarquia.
Além do cuidado de registrar suas memórias, Ptolomeu procurou reunir eruditos
ao seu redor em busca de refinar seu conhecimento sobre o passado egípcio. Dentre eles,
alguns escreveram histórias e foram visitar Tebas, como foi o caso de Hecateu de Abdera,
a quem encomendara um relato, em grego, sobre o Egito, ainda antes de se tornar rei
(por volta de 317 AEC) e que foi depois a principal fonte de Diodoro Sículo (SALES, 2005,
p. 94; FRASER, 1972, p. 311). O próprio Diodoro (Bibl., I, 46, 7-8) elucida o interesse letrado
pelo Egito, por parte de Ptolomeu e seus próximos.
A presença de conselheiros reais permanece como um traço da realeza ptolomaica
inicial, além de também orientar o cotidiano religioso de Alexandria, reconhecendo sua
pluralidade e de que forma a monarquia nela atuaria. Tácito (Historiae, 4, 84) e Plutarco
(De Iside et Osiride, 361-362, 28) fazem menção ao grego Timóteo, do clã dos Eumólpidas
de Elêusis e ao sacerdote Maneton, da cidade de Sebenito, proveniente do clero de
Heliópolis, no contexto da elaboração do culto sincrético de Serápis. Os relatos sobre
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sua origem são posteriores e controversos em seus detalhes. Não obstante, diversos
elementos apontam para sua ambientação já no governo de Ptolomeu I, além do cenário
corresponder às expectativas do rei em “traduzir” e adaptar para Alexandria experiências
religiosas adquiridas em Mênfis, como proposto acima (CLIMACO, 2020).
Serápis foi o deus híbrido que se tornou patrono de Alexandria e da dinastia. Seu
nome era uma contração do deus Osíris-Ápis de Mênfis, uma divindade monárquica,
associada às origens divinas do cargo e responsável pela vitalidade do faraó. No Período
Tardio, momento que correspondeu também ao início de ondas migratórias gregas
para o Delta egípcio, se fortaleceu uma forma tardia da adoração a Osíris associada
com o touro Ápis, específico de Mênfis, que se materializara no engrandecimento do
complexo do Serapeum, residência e local de sepultamento do touro.9 Em vida, o faraó
entronizado era a encarnação de Hórus, filho de Osíris, que passara a governar no lugar
de seu pai após a morte pelo irmão Seth. Portanto, no culto de Osíris-Ápis, o processo
de sincretismo se iniciaria efetivamente por ocasião da morte de Ápis, quando era
estabelecido o vínculo com Osíris, o governante do domínio dos mortos, responsável
pela regeneração do cargo e representante do faraó defunto.
O Serapeum de Alexandria, seu templo central, foi construído no bairro egípcio de
Racótis (local ao qual a Estela do Sátrapa também faz referência) com o possível intuito
de associar os recém-chegados à cultura autóctone. Sua ordenação seguiu o modelo do
de Mênfis, com nilômetro e galerias subterrâneas, o que é importante para corroborar
o debate acerca de sua proveniência associada e derivativa do Osíris-Ápis de Mênfis
e combater a perspectiva que entende Serápis como uma “invenção” de Ptolomeu I
(PFEIFFER, 2008, p. 393). O complexo de Alexandria foi concluído com o rei Ptolomeu
III Evergeta, quando uma biblioteca auxiliar foi incorporada. Outras evidências sugerem,
contudo, que anteriormente já existia um santuário no local, conforme observa-se no
seguinte trecho de Tácito (Hist., IV, 84, 15):
Um templo, apropriado para o tamanho da cidade foi construído no quarteirão
chamado Racótis, onde antes havia um santuário dedicado a Serápis e Isis. Essa é
a versão mais conhecida sobre a origem e chegada do deus. Mas eu estou ciente
que alguns dizem que o mesmo deus foi trazido da Selêucia na Síria no reino de
Ptolomeu III, outros dizem que o mesmo Ptolomeu introduziu o deus, mas que o
lugar de que ele veio era Mênfis, que havia sido uma famosa cidade e o símbolo do
antigo Egito (grifo nosso).
O templo foi construído na XXVI dinastia e engrandecido, principalmente, na XXX, quando várias construções foram
adicionadas ao complexo, como o santuário à Ísis, associada à vaca sagrada e deificada após dar à luz ao touro Ápis.
Havia também galerias de enterramento de vacas, falcões e babuínos sagrados. No tempo de Amásis, foram erguidos
o Bubasteion e Anubeion, os templos dedicados à Bastet e Anúbis, respectivamente (BOMMAS, 2012, p. 423; HOLBL,
2001, p. 99).
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A contínua adoração no mesmo ambiente, institucionalizada ainda mais por
Ptolomeu III, evidencia que a conexão com Mênfis seria reafirmada na sucessão
ptolomaica e não seria uma preocupação exclusiva do primeiro Ptolomeu. Em suma, a
ligação com Mênfis seria um projeto de longa duração na busca por uma política religiosa
para Alexandria que se comunicasse com egípcios e gregos. No sítio do Serapeum de
Alexandria, foi encontrada uma estátua de basalto do touro Ápis, proveniente do tempo
do imperador Adriano, o que evidencia também a continuidade do culto autóctone em
paralelo à adoração a Serápis, que atravessaria o período ptolomaico e sobreviveria no
contexto do Alto Império romano (SALES, 2005, p. 111).
É plausível que Ptolomeu tenha percebido a popularidade de Osíris-Ápis entre
os “helenomenfitas”,10 e em uma forma de adaptar seu culto para Alexandria, pois
entendia-se que o mundo divino reproduzia o princípio dinástico da hereditariedade,
o que seria conveniente para os novos governantes apropriarem. Em Mênfis, Ptolomeu
poderia ter compreendido a força “fundante” dessa história como fonte de poder dos
antigos faraós, que seria apropriado transferir para sua própria monarquia. Essa derivação
visaria a absorver a autoridade divina do centro menfita ao vincular o templo novo com
o antigo? Nesse ensejo, o “coração” religioso de Alexandria estabeleceria uma ponte com
Mênfis, de forma a buscar a promoção divina da nova dinastia ali instalada. A imagem
de Serápis poderia ter surgido posteriormente, como fruto do ímpeto de traduzir noções
relacionadas ao submundo e renascimento de forma compreensível e aceitável para os
gregos, o que resultaria na criação de sua imagem humana e familiar com os deuses
helênicos (BOWMAN, 1986, p. 174; STAMBAUGH, 1972, p. 13).
Ptolomeu II Filadelfo e a tradição literária alexandrina
A intenção até aqui foi demonstrar o contexto emaranhado da edificação de
Alexandria, ressaltando que um dos principais anseios dos primeiros governantes
teria sido o de estabelecer vínculos com as tradições ancestrais nativas, a despeito da
orientação litorânea da cidade ter sido idealizada buscando intensificar contatos com o
Mediterrâneo. Esse exercício interpretativo visa a problematizar a corrente historiográfica
que concebe a cidade como um núcleo essencialmente grego e apartado do Egito.11
O termo se refere à população de gregos de Mênfis, que era significativa desde o tempo de Amásis (séc. VI AEC), que
havia atraído mercenários para o Delta, sobretudo cários e jônios. Eles tinham os próprios bairros na cidade, embora
muitos tenham se casado com nativos (THOMPSON, 2008, p. 14).
11
Para citar um exemplo relativamente recente, o capítulo de Henri Riad (1993, p. 30), “Egyptian influence on daily
life in Ancient Alexandria”, na obra Alexandria and Alexandrinism, reconhece que a maioria da população no contexto
de fundação era composta de nativos, mas considera que os primeiros três ptolomeus desenvolveram uma política
10
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Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global
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Conforme já mencionado, nas perspectivas acadêmicas tradicionais, Alexandria
foi percebida como uma pólis, um corpo estranho e isolado no Egito que fazia uma
ponte direta com o mundo helênico. Ademais, a predominância da língua grega nas
elites letradas e de gregos e macedônios nos grupos de poder, além da presença de
instituições políades (ex: ginásio, ágora, tribos e demos) e da ordenação hipodâmica
das ruas tornaram a cidade objeto de estudos, especialmente dos classicistas, o que
tendeu a reforçar ainda mais o isolamento do Egito.
A fronteira disciplinar também foi corroborada por sua nomenclatura na literatura
clássica, de Alexandria ad Aegyptum (“Alexandria ao lado do Egito”), o que tendia a reforçar
a ideia de não pertencimento ao Egito. Contudo, a questão foi muitas vezes tratada
de forma literal e carente de perspectiva crítica, que desconsidera o nome, sobretudo,
como uma representação da cidade pela tradição literária estrangeira, que buscava forjar
uma identidade grega para a metrópole, nem sempre considerando suas subjetividades
identitárias internas. Se a ênfase na separação do Egito sugere sua realidade atípica no
território nilótico, evidencia também, no contexto antigo, um estranhamento com relação
ao seu estatuto dentro do Egito e de que forma essa inserção estaria sendo apreendida
pelos diferentes grupos da cidade. Por esse motivo, um dos objetivos aqui é analisar as
tramas que a construção de Alexandria ensejou no Egito de forma mais ampla, além das
relações que se estabeleceram com os entornos.
A perspectiva de Peter Fraser (1972), célebre estudioso da Alexandria ptolomaica, em
Ptolemaic Alexandria, tornou-se dominante no realce de sua “grecidade” e separação do
Egito. Seu ponto de vista foi também influente no entendimento do governo ptolomaico
inicial como a fase áurea da dinastia em sua helenização, que fora, contudo, corrompida
mais adiante conforme avançava a “egipcianização” da monarquia que desencadearia a
decadência da própria metrópole. Portanto, se em um primeiro momento Alexandria seria
estudada como o exemplo mais emblemático da cultura grega que se alastra para o Oriente
e alcança o Egito, sua degradação acompanharia o aumento da miscigenação e perda da
“pureza cultural” das primeiras gerações de gregos na cidade (MOYER, 2011, p. 23-25).
Do lado da Egiptologia, tal “helenidade” atribuída à cidade no período grecoromano também foi motivo de sua rejeição como objeto de investigação pela área,
pois a compreensão geral era a de que a progressiva presença estrangeira resultara no
afastamento das tradições nativas milenares. O desinteresse foi agravado ainda mais
fortemente helênica e macedônia, tratando os nativos como uma “raça conquistada”, que colaborara para a cidade
somente por meio de influências, embora fossem desprovidos da agência sobre a organização embrionária da cidade.
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pela sua conjuntura arqueológica lacunar, o que tem se alterado nas últimas décadas
(EMPEREUR, 1998; GODDIO; BERNAND, 2004).
Além de Alexandria, o estudo do período “greco-romano” no Egito, como o próprio
nome já aponta, foi alvo primordial dos classicistas, guiados pelas descobertas documentais
em língua grega. A situação tem se alterado também como resultado do aprimoramento
do conhecimento acadêmico do demótico (MOYER, 2011, p. 29). A esse quadro acadêmico
se soma o contexto de crítica e revisão das posturas teórico-metodológicas que se
desenvolveram pautadas na percepção da centralidade da cultura greco-romana como
modelo do imperialismo europeu (GUARINELLO, 2013; VERHOOGT, 2019, p. 5).
O quadro acadêmico mais diversificado, crítico e multidisciplinar da atualidade,
além de um aumento significativo de estudos com abordagem nas especificidades das
temporalidades pós-faraônicas, e que privilegiam os entrelaçamentos culturais, colaboram
também para um olhar mais crítico sobre as fontes clássicas em grego e latim. No caso
de Alexandria, podemos observar que diversas evidências advindas da própria literatura
corroboram a perspectiva de que a formação inicial da cidade atendia a projeções e
expectativas entrelaçadas. As elites de poder buscavam referências plurais para governar
e, dentre elas, as experiências egípcias de comando revelaram-se apropriadas como
modelo. Se a monarquia ptolomaica foi inicialmente entendida como uma corte estrangeira
grega instalada no Egito, estudos atuais têm explicitado que os novos mestres tentaram,
desde cedo, se integrar ao sistema egípcio de comando, combinando práticas políticas e
religiosas faraônicas com diversas outras referências de poder. Estas, aos poucos, foram
se imbricando e ganhando contornos globais (DUNAND, 2007, p. 253).
A obra inovadora de Ian Moyer (2011, p. 29-32), Egypt and the limits of Hellenism,
demonstra como pesquisadores envolvidos ao mesmo tempo com evidências gregas e
egípcias, e mais abertos a parcerias multidisciplinares e colaborativas, evidenciaram que
as “franjas de cooperação” entre egípcios e gregos era mais ativa do que inicialmente se
supunha. Tais estudos apontam também para uma interdependência maior de egípcios
na corte ptolomaica, antes negligenciadas ou vistas como inexistentes.
Uma das intenções aqui é enfatizar que não se pode reduzir a ordenação
política, cultural e religiosa de Alexandria a uma única matriz cultural. Sua
configuração monárquica e portuária a contrastava com outros núcleos urbanos até
então conhecidos, tanto do Egito quanto da Hélade. Os diversos portos da cidade a
tornaram um centro de confluência para viajantes e comerciantes, resultando em certa
propensão à diversidade e multiculturalismo desde a formação inicial. Ademais, a elite
greco-macedônia se transformou na protagonista das relações sociais e dos trâmites
administrativos, enquanto os egípcios residentes passam a ser por elas governados.
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Constrói-se cotidianamente um cenário notadamente multilíngue e de profunda
diversidade cultural, que desponta em permanente diálogo com as antigas e vigorosas
tradições nativas. Logo, seus aspectos multiculturais começaram a se configurar cedo
e eram acumulativos (e não excludentes). Além disso, foram orientados para encobrir e
amenizar tensões que surgiriam como resultado da pluralidade.
Portanto, o crescimento de Alexandria e sua transformação em capital ptolomaica
altera o centro de gravidade do território nilótico, intensificando as correntes migratórias
gregas para a região e envolvendo o Egito ainda mais nos fluxos mediterrânicos
(GUARINELLO, 2013, p. 122; LLOYD, 2011, p. 91). Os entraves com os sucessores
continuaram durante todo o reino de Ptolomeu I Sóter, tempo em que é confirmada
além de sua autoridade sobre o Egito, também o controle sobre a Líbia, Síria, Fenícia,
Chipre, Lícia, além de algumas cidades e ilhas gregas. Logo, como Alexandre III, Ptolomeu
I procurava se direcionar a súditos heterogêneos e com expectativas divergentes com
relação à realeza. Nessa ocasião, Alexandria se torna a corte não somente do Egito, mas
também dos demais estados ptolomaicos. Essa “zona tampão” mediterrânica em torno
do Egito visaria, sobretudo, à sua proteção (HOLBL, 2001, p. 16). Portanto, as instituições
e tradições culturais e religiosas da metrópole se desenvolveram nesse emaranhado de
demandas políticas variadas e de competições entre os diádocos, que continuam também
com seus descendentes, conforme as monarquias helenísticas se estabelecem.
Os embates entre os reis repercutiram igualmente na motivação dos novos líderes
para preservar heranças literárias e religiosas dos lugares em que se estabelecem. Nesse
sentido, as cortes disputavam por riquezas e conhecimentos como forma de ostentar
suas vitórias. Ao mesmo tempo, competiam pela afirmação da superioridade cultural
helênica, edificada e elevada de forma a valorizar, sistematizar e transformar inúmeras
referências do passado greco-macedônio. Ou seja, o ambiente erudito de Alexandria se
estruturou a partir de contínuas disputas por memória, conforme a cidade construía sua
própria cultura diversificada.
Tais traços configuram o ambiente cultural e político do período ptolomaico inicial,
oscilando entre a valorização da erudição grega, das antigas crenças e da autoridade
dos sacerdócios, enquanto uma nova dinastia busca suas referências para afirmar
sua autoridade e angariar consenso entre grupos diversos. Dessa forma, Alexandria
se engrandece como um portal onde a antiga tradição letrada grega seria fixada e
perpetuada, traço que se fortalece ainda mais no governo de Ptolomeu II Filadelfo
(282-246 AEC), em paralelo ao resgate do passado egípcio, que é também adaptado
e apropriado para a língua grega. A despeito da disparidade de regiões governadas, a
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base principal do poder Ptolomaico se centralizou no Egito e, por isso, pretendeu se
apropriar de sua longa tradição monárquica na mudança da corte para Alexandria.
O sacerdote Maneton de Heliópolis, citado acima, atuara como conselheiro de
Ptolomeu I e foi responsável pela produção da Aegyptiaca. Trata-se de uma síntese
da realeza faraônica sistematizada em trinta dinastias e produzida na língua grega. A
intenção da obra talvez visasse a tornar a longa duração da história institucional egípcia
compreensível para o público helênico e para a corte, a fim de que funcionasse como seu
próprio instrumento de informação. Fora encomendada no tempo de Ptolomeu II, ainda
que Maneton estivesse na corte desde o tempo de seu pai, o que insinua sua duradoura
influência como conselheiro. E mais: sua redação se materializou no contexto de disputa
de Filadelfo com Antíoco I Sóter pelo domínio do Mediterrâneo Oriental, logo, ilumina os
mecanismos propagandístico-ideológicos implementados pelos Ptolomeus ao tentarem
estabelecer uma mediação entre o Egito e o mundo do helenismo (MOYER, 2011, p. 85).
Como sacerdote, Maneton conhecia a escrita hieroglífica e tivera acesso a listas
reais e arquivos dos templos. Em contraste com Hecateu anteriormente, que desconhecia
a língua. Nesse momento, era um egípcio que instruía os gregos na história de sua terra,
permitindo que o passado faraônico fosse apropriado pela dinastia reinante, com o
entendimento de que para preservar a tradição remota era primordial se inserir nesse
projeto bilíngue (HOLBL, 2001, p. 27; SALES, 2005, p. 80-92). Sua obra está, portanto,
em sintonia com a historiografia política dos Ptolomeus, que começara com Ptolomeu I
registrando as histórias de Alexandre III (SALES, 2005, p. 94-96).
Infelizmente, o original de Maneton se perdeu, tendo sido preservado por meio
de citações de autores do período romano (como Flávio Josefo e Eusébio de Cesareia),
além de manuscritos medievais, o que evidencia seu valor na Antiguidade (SALES,
2005, p. 73-75). Contudo, o ímpeto para a produção da obra propõe que a elite grecomacedônia entendera a importância de conhecer o passado político egípcio, visando a
estabelecer uma continuidade “genealógica-cultural” com a tradição faraônica, por serem
estrangeiros no comando. Tal ponte poderia servir para que os Ptolomeus se inserissem
na nova dinastia em meio aos antigos reis, para se colocarem como seus sucessores e
continuadores. Portanto, organizar a história egípcia tendo a realeza como eixo ordenador
seria proposital, visando a demarcar o sucesso duradouro da instituição monárquica como
algo herdado, além de reforçar o valor da consanguinidade e ascendência. Dessa forma,
Filadelfo conseguiria assegurar o elo entre passado e presente, de forma semelhante
a Alexandre III e Ptolomeu I (SALES, 2005, p. 85-90). Ademais, a produção da memória
monárquica egípcia produzida por um sacerdote egípcio na conjuntura interna da corte
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seria uma forma de controlar o conhecimento sagrado em benefício da monarquia recéminstalada e visando à sua inserção em meio à tal tradição, além da própria legitimação.
Por um lado, a tradição monárquica egípcia era essencialmente ancorada no seu
universo religioso, por isso buscava manter sua presença simbólica em Alexandria. Isso
foi feito visando à confirmação do poder monárquico sobre o território egípcio mais
amplo, daí a criação de Serápis e do Serapeum e a aproximação com o sacerdócio de
Mênfis, como já visto. Por outro, os primeiros Ptolomeus sabiam do orgulho grego por
sua tradição literária e que a paideia era um aspecto fundamental da identidade helênica.
Surge daí a motivação para tornar a cidade um centro de erudição, rememorando-se a
tradição literária helênica remota como símbolo das conquistas dinásticas e da hegemonia
greco-macedônia no Mediterrâneo Oriental. Nessa perspectiva, a criação do Museu e da
Biblioteca teria sido idealizada ainda no tempo de Ptolomeu I, no ambiente de competição
com os outros diádocos. O enfraquecimento de Atenas pode ter também suscitado uma
demanda por novos centros de erudição.12
Foi com Ptolomeu II Filadelfo que essa atmosfera de erudição se desenvolveria, de
modo a tornar Alexandria o polo aglutinador de diferentes saberes por meio de instituições
vinculadas à corte (HOLBL, 2001, p. 26). Mediante o patrocínio monárquico, foram atraídos
estudiosos de diversas partes do mundo grego, que se atrelavam pelo domínio da paideia
(FRASER, 1972, p. 306-310). Tal elite letrada torna-se fortemente vinculada à realeza, ao
mesmo tempo que começa a estruturar na cidade um saber compartilhado, com base
na valorização da memória literária grega. Susan Stephens (2003, p. 251-254) destaca a
importância da Biblioteca para reforçar a noção de coletividade grega em Alexandria. Pela
aquisição, cópias e edições de textos consagrados (sobretudo Homero e as tragédias)
e da tradução para o grego da literatura de outros povos, a cidade serviu de eixo para
reunir a cultura literária de diversas partes do mundo. Não-gregos tiveram a oportunidade
inédita de “globalizar” seu saber por meio da tradução de seus clássicos (MOMIGLIANO,
1991, p. 14). Lionel Casson (2002, p. 43-47) questiona a motivação dos reis em fundarem
Pascal Ballet (1999, p. 145) questiona a fama de Alexandria como a “Nova Atenas”, argumentando que o saber criado
na metrópole era mais voltado para a descontração do que para temas filosóficos e “elevados” e, nesse sentido, a nova
cidade nunca substituiu a capital “intelectual” do mundo grego com relação ao saber nutrido de projetos filosóficos. O
autor considera que o saber acumulado em Alexandria não suscitava reflexões originais sobre o homem e o cosmos,
pois preservava principalmente os conhecimentos antigos. Os gêneros popularizados em Alexandria, como a mímica
e as novelas, embora inspirados nas antigas tragédias e comédias gregas, eram mais voltados para a descontração, do
que para temas filosóficos (BALLET, 1999, p. 173). Alan Samuel (1983, p. 67-74) enfatiza o conservadorismo dos gregos
nessas instituições, justificando que seus membros aceitavam pouca literatura de outros povos em seu cânone e que
mesmo entre os escritos gregos o interesse maior era por autores “consagrados”, como Homero. Realça ainda que,
mesmo quando algum escrito egípcio alcançava as bibliotecas, seu conteúdo era helenizado e esvaziado de sua base
egípcia. É notável como tais acadêmicos adotam como padrão a literatura grega clássica e entendem que pouco havia
a acrescentar conforme “outros povos” adentram sua esfera.
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as duas instituições em Alexandria, uma cidade nova sem qualquer tradição literária, que
era uma espécie de “deserto cultural”. Ele argumenta que as conquistas de Alexandre
mudaram o Mundo Antigo, na medida em que as pessoas passaram a estar inseridas
dentro de realidades mais amplas conforme as populações se diversificavam. Por tudo
isso, os reis entenderam que era necessário oferecer incentivos para atrair eruditos de
destaque para a cidade, considerando que o Egito já tinha uma longa tradição textual
controlada, sobretudo, pelos templos. Era necessário contrabalancear isso valorizando a
cultura literária grega em torno da realeza.
Segundo a tradição literária, foi influenciado por Demétrio de Falero, conselheiro
ateniense fixado na corte por Ptolomeu I, que Filadelfo buscou dar continuidade a
alguns padrões estabelecidos pelo pai, no sentido de acenar para públicos distintos,
mas com traços comuns e que poderiam se comunicar.13 Flávio Josefo, historiador
da Judeia que escreveu sob o Império Romano, situa Demétrio na corte de Filadelfo,
provavelmente de maneira anacrônica. Josefo o ilustra como o principal entusiasta
por angariar escritos de outras tradições, conjuntura que motivou a tradução da Torá
para a língua grega, a Septuaginta ou Bíblia dos Setenta. A história ganhou conotação
lendária na Carta de Aristeas, provavelmente composta no séc. II AEC e que foi a base
do relato de Flávio Josefo no livro XII das Antiguidades Judaicas. Há referências pontuais
ao evento também na obra de Filo de Alexandria (De Vita Mosis, II, 41). Segundo Josefo
(Antiquitates Judaicae, XII, 2, 1):
Alexandre reinou doze anos, e depois dele Ptolomeu Sóter quarenta e um; então
Filadelfo assumiu o poder real no Egito e o manteve por trinta e nove anos;
e ele teve a lei traduzida e libertou da escravidão em torno de cento e vinte
e quatro mil nativos de Jerusalém que eram escravos no Egito pelo seguinte
motivo. Demétrio de Falero, encarregado da biblioteca do rei, estava ansioso para
coletar, se pudesse, todos os livros do mundo habitado e, se ouvisse falar ou visse
algum livro digno de estudo, ele o compraria; e assim ele se esforçou para atender
aos desejos do rei, pois era muito dedicado à arte de colecionar livros (grifo nosso).
O grandioso feito é atribuído exclusivamente à iniciativa monárquica. Contudo,
não é improvável que a Septuaginta tenha sido produzida como demanda da própria
comunidade judaica de Alexandria, que começava a perder o conhecimento do hebraico
e há indícios que apontam sua produção posterior. Portanto, a elaboração ambientada no
reinado de Ptolomeu II pode ser uma “retroprojeção” anacrônica de Josefo (MOMIGLIANO,
Demétrio de Falero, retórico, filósofo peripatético e influente na política de Atenas fora aluno de Teofrasto, o sucessor
de Aristóteles, que já conhecera o Egito e mantinha uma boa relação com os Ptolomeus. Falero tinha sido exilado de
Atenas por ordem de Demétrio Poliorcetes (307 AEC), até que foi convidado para ser conselheiro real de Ptolomeu I na
corte Alexandrina (297 AEC) (HOLBL, 2001, p. 26).
13
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1991, p. 74). De todo modo, o autor delineia o cenário multicultural configurado na cidade,
e as tensões entre culturas que podem ter se acumulado na corte de Filadelfo. Assim,
diferentes comunidades poderiam buscar a “helenização” de seus saberes particulares
visando a suas próprias necessidades (Jos., Ant. Jud., XII,12-25).
A dinastia ptolomaica procuraria se distinguir não somente como vencedora nas
batalhas, mas também se empenhou em transformar Alexandria em uma espécie de
“vitrine” ao congregar, recuperar e ordenar a tradição literária ateniense, reunindo gregos
influentes em torno da monarquia, para contrabalancear o saber cunhado em Atenas,
além de incorporar a medicina e cultura egípcia antigas (HOLBL, 2001, p. 25). Visando a
refletir o poder dos Ptolomeus, o projeto tinha ambições imperiais, pois visava a reunir
saberes estrangeiros com o objetivo de traduzi-los para o grego e, dessa forma, tornar
Alexandria um portal literário mediterrânico, por meio do intercâmbio de saber entre os
seus pensadores itinerantes. Se inicialmente o domínio da paideia servia como fator de
integração entre gregos diversificados reunidos em território estrangeiro, o saber global
criado passa a alcançar regiões mais amplas (WATTS, 2006, p. 147-152).
Os estudiosos do Museu eram nomeados de forma vitalícia e gozavam de uma
série de privilégios. Casson (2002, p. 49-56) sugere que foi provavelmente para eles que
inicialmente a Biblioteca teria sido iniciada, visando a adquirir livros como ferramentas de
pesquisa. Um diretor nomeado pela corte chefiava a Biblioteca. O primeiro foi Zenódoto,
que organizou um sistema de armazenamento (por autor, gênero, assunto e ordem
alfabética). Com o crescimento da Biblioteca, foi necessário desenvolver um sistema
de busca. Nesse contexto, Calímaco de Cirene, que se juntou ao círculo de intelectuais
de Ptolomeu II e desenvolveu o Pinakes, uma espécie de catálogo que listava os rolos
armazenados (em torno de 400 mil), que infelizmente não sobreviveu, mas foi citada
por diversos autores. As primeiras fases foram mais dedicadas à literatura, mas diretores
posteriores, como Eratóstenes, buscaram conhecimentos mais específicos, como a
geometria, a astronomia e a geografia.
Os diretores eram também estudiosos e poetas, como o próprio Calímaco e
Teócrito. Logo, a tradição poética alexandrina foi também impulsionada no tempo de
Sóter e Filadelfo por meio do patrocínio real e celebrava a monarquia e temas caros aos
reis, como a memória de personagens, heróis e deuses gregos consagrados no passado
que seriam, nesse momento, rememorados e vinculados aos novos governantes. Os
escritos visavam exaltar a tradição mitológica grega em um novo contexto, inserindo a
monarquia na genealogia heroica e divina, de modo a legitimá-la para além do Egito
e fortalecer o vínculo com a Hélade. A produção poderia ter sido uma demanda dos
gregos da cidade em busca de um eixo de identificação com a monarquia. Teócrito,
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por exemplo, no Encômio a Ptolomeu Filadelfo (79-95), celebra o rei associando-o ao
passado mítico grego, mas “atualizando-o” para o contexto egípcio, como vemos no
trecho a seguir:
Incontáveis terras e incontáveis raças de homens cultivam suas colheitas com a
ajuda da chuva de Zeus, mas nenhuma terra é tão produtiva quanto o humilde
Egito, quando a inundação do Nilo encharca e rompe o solo; nem nenhuma terra
tem tantas cidades cheias de pessoas habilidosas em ofícios [...] Ele pega fatias da
Fenícia, da Arábia, da Síria, da Líbia e dos etíopes de pele escura; todos os panfílios
e os guerreiros da Cilícia ele comanda, e os lícios e os cários, que se deleitam na
guerra, e as ilhas das Cíclades, pois seus são os melhores navios que navegam no
oceano. Todo o mar e a terra e os rios turbulentos estão sujeitos a Ptolomeu, e ao
redor dele se reúnem um grande número de cavaleiros e um grande número de
soldados portando escudos, carregados com bronze brilhante.
Considerações finais
O início do comando ptolomaico no Egito evidencia a intenção da monarquia de
promover sua autoridade por meio do reconhecimento das antigas tradições de poder
faraônicas, macedônias, gregas e persas, cujos fundamentos seria conveniente incorporar.
A dinastia e a nova cidade se constroem em um ambiente de intensas competições
e disputas por memória. Portanto, a demonstração de apreço por referências antigas
engrandeceria Alexandria como uma espécie de “guardiã” de escritos e tradições do
passado, o que a transformaria em uma cidade global e multicultural. Tal padrão poderia
servir para dar coesão a uma população diversificada, mas que se abre ao novo e às
transformações, engrandecida mediante investimentos monárquicos que buscavam
unificar conhecimentos plurais e adaptá-los em prol dos seus interesses. Dessa forma,
a “tradução” de antigos saberes e vivências visava afirmar a autoridade dos novos reis,
demonstrando que Alexandria prezava por suas tradições díspares, o que a elevaria em
relação a outras cidades eminentes, com base em modelos urbanos anteriores, sobretudo
Mênfis e Atenas.
Com exceção da tradição poética helenística, grande parte dos relatos sobre
Alexandria que cobrem o período analisado advêm da era romana, ainda que sejam
baseados em fontes anteriores, contemporâneas aos Ptolomeus, mas hoje perdidas.
O fato de recuperarem tais posturas multiculturais ao descreverem os reinados dos
primeiros reis macedônios no Egito denotaria as tensões étnicas que se avivaram na
cidade sob domínio romano e também a longa duração de seu projeto multicultural.
Nesse ensejo, os escritos constroem um retrato de Alexandria que harmonizaria gregos,
egípcios e judeus sob amparo monárquico, apontando que as tensões deveriam ser
amenizadas, considerando a trajetória plural da cidade associada às suas origens. Ou
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seja, recuar aos seus primórdios visaria a mascarar controvérsias e acomodar novas
formas de convivência. Alexandria como a segunda maior cidade do Império Romano
poderia servir de modelo, como “idealização”, tendo como pano de fundo a própria
cidade de Roma e suas polêmicas. Em um mundo integrado e de intensas comunicações,
crenças e saberes antigos eram rememorados, descartados, enfatizados e acomodados
no passado helenístico.
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