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Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global

Alexandria foi fundada no litoral mediterrânico egípcio pelo rei Alexandre III da Macedônia no início da sua campanha contra o Império Persa-Aquemênida (332/331 AEC). Nas décadas seguintes, a cidade litorânea substituiu Mênfis como a sede do poder monárquico no Egito. Seu desenvolvimento reconfigurou a dinâmica urbana e política no antigo território nilótico e formalizou a presença grega no Delta, nesse momento por meio de sua inserção também no comando egípcio. Em diálogo com as recentes perspectivas da História Global, a expectativa do presente artigo é repensar a história de Alexandria discutindo de que forma a fundação e história inicial da cidade a tornaram um local propício à mobilidade e entrelaçamentos. * O artigo aqui apresentado foi produzido durante o pós-doutorado realizado na University of British Columbia (UBC, Vancouver). O projeto de pesquisa intitulado "Alexandria e a pluralidade religiosa no Egito greco-romano" foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas segundo o Programa de Apoio a Pós-Doutores (Prodoc/ Fapeam), edital n. 003/2022.

Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global* Ptolemaic Alexandria according to the perspective of Global History Joana Campos Clímaco** Resumo: Alexandria foi fundada no litoral mediterrânico egípcio pelo rei Alexandre III da Macedônia no início da sua campanha contra o Império Persa-Aquemênida (332/331 AEC). Nas décadas seguintes, a cidade litorânea substituiu Mênfis como a sede do poder monárquico no Egito. Seu desenvolvimento reconfigurou a dinâmica urbana e política no antigo território nilótico e formalizou a presença grega no Delta, nesse momento por meio de sua inserção também no comando egípcio. Em diálogo com as recentes perspectivas da História Global, a expectativa do presente artigo é repensar a história de Alexandria discutindo de que forma a fundação e história inicial da cidade a tornaram um local propício à mobilidade e entrelaçamentos. Palavras-chave: Alexandria. Ptolomeus. Helenismo. Egito. História Global. Abstract: Alexandria was founded on the Egyptian Mediterranean coast by King Alexander III of Macedon at the start of his campaign against the Achaemenid-Persian Empire (332/331 BCE). In the following decades, the seaside city replaced Memphis as the seat of monarchical power in Egypt. Its development reconfigured the urban and political dynamics in the former Nilotic territory and formalized the Greek presence in the Delta, at that time through its insertion also in the Egyptian command. In dialogue with the recent perspectives of Global History, the expectation of this article is to rethink the history of Alexandria by discussing how the foundation and initial history of the city made it a place conducive to mobility and interlinking. Keywords: Alexandria. Ptolemies. Hellenism. Egypt. Global History. Recebido em: 17/09/2023 Aprovado em: 21/10/2023 * O artigo aqui apresentado foi produzido durante o pós-doutorado realizado na University of British Columbia (UBC, Vancouver). O projeto de pesquisa intitulado “Alexandria e a pluralidade religiosa no Egito greco-romano” foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas segundo o Programa de Apoio a Pós-Doutores (Prodoc/ Fapeam), edital n. 003/2022. ** Professora Adjunta de História Antiga do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Possui doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado pela mesma instituição e bacharelado e licenciatura em História pela Universidade de Brasília (UnB). É pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos do Império Romano (Leir). Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 110 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ Introdução A lexandria foi fundada no litoral mediterrânico do Egito pelo rei Alexandre III da Macedônia no início da sua campanha contra o Império Persa-Aquemênida (332/331 AEC). A cidade, seguindo o seu nome, foi erguida em uma estreita faixa de terra entre o mar e um grande lago, o Mareótis, que se comunicava com o Nilo por canais. Seu desenvolvimento, na segunda metade do século IV AEC, reconfigurou a dinâmica urbana e política no antigo território nilótico e formalizou a presença grega no Delta, nesse momento, por meio de sua inserção também no comando egípcio. No contexto da edificação de Alexandria, o núcleo de poder persa estava situado em Mênfis, a primeira capital do Reino Antigo, recinto do deus criador Ptah e centro de coração dos antigos faraós.1 Mesmo competindo com Tebas como sede da realeza em períodos posteriores, a cidade mantivera sua proeminência cerimonial, administrativa e militar em meio às diversas mudanças de capital no período faraônico. Após a derrota persa, o domínio macedônio se acomoda no território, inicialmente por meio da organização satrápica aquemênida centralizada na antiga cidade, até que foi substituída por Alexandria, nas décadas seguintes, ao se tornar o novo centro de comando e sede da recente corte greco-macedônia.2 A circulação de povos helênicos no solo egípcio, sobretudo no Delta, já era crescente no primeiro milênio AEC, e se intensificou com a presença da colônia comercial jônica de Náucratis, no século VII AEC, cuja construção colaborara também para a obtenção de mercenários gregos na luta egípcia contra a Assíria. Náucratis estava a uma considerável distância do mar e se utilizava de portos fluviais. Entretanto, um núcleo urbano de dimensões maiores na costa mediterrânica era evitado pelos antigos faraós, daí seu caráter inovador para o território (VAN DE MIEROOP, 2021, p. 304).3 Ademais, com o desenvolvimento de Alexandria, o poder passa a ser exercido por uma elite dirigente greco-macedônia. Pela primeira vez, gregos governavam não-gregos e fizeram do Egito o seu centro de comando (THOMPSON, 2008, p. 11; VLASSOPOULOS, 2013, p. 278). Fundada por volta de 3000 AEC, Mênfis foi a capital do Reino Antigo e serviu como residência real entre 2890 e 2173, desde o contexto da unificação entre o Alto e Baixo Egito. Estava localizada em um ponto nodal a quarenta quilômetros do vértice do Delta, próximo ao afluente de Pelúsio e no final da rota de caravanas que vinham do Faium, a Leste, e do Siwa, a Oeste. O nome Mnnfr (em grego Mênfis), significava “a cidade piramidal de Pepi I”, portanto, sua identidade como cidade mortuária era fundamental, além de sua importância administrativa (THOMPSON, 1988, p. 1). 2 Conforme assinala McKechnie e Cromwell (2018), na introdução da obra Ptolemy I and the transformation of Egypt, 404–282 BCE, há um enorme vazio historiográfico a respeito do período persa no Egito (525-323 AEC). 3 Localizada próximo a um afluente que se comunicava com o Mediterrâneo na região canópica do Delta do Nilo, perto da vila de Saís (a capital de duas dinastias entre os séculos VII e VI AEC), a colônia foi autorizada pelo faraó Psammético I e tornou as trocas mediterrânicas mais acessíveis aos egípcios. Heródoto (Historiae, II, 179) faz menções ao local como o único porto aberto do Egito, mesmo não sendo no litoral. O faraó Amásis lhe concedeu autonomia comercial e religiosa, momento em que se firmou ainda mais como empório comercial (LEFÈVRE, 2013, p. 113; GRIMAL, 2012, p. 375; GUARINELLO, 2013, p. 69; HUSSON; VALBELLE, 1992, p. 223). 1 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. Joana Campos Clímaco 111 _________________________________________________________________________________ A morte de Alexandre III, em 323 AEC, se desdobrou em inúmeras controvérsias quanto aos rumos do amplo domínio conquistado. Em longo prazo, as turbulências resultaram na construção das “monarquias helenísticas”, reinos formados a partir da divisão provisória do território entre os principais generais (diadochoi) do rei macedônio. Nesse ensejo, Ptolomeu, filho de Lagos, um dos companheiros de maior confiança do finado rei, herdou o comando do Egito e depois se transformaria em rei (circa 306-305 AEC) e Alexandria se tornaria sede de sua corte. A dinastia ptolomaica governou pelos três séculos seguintes até a derrota do território nilótico para Roma, no conturbado reino de Cleópatra VII (última rainha da linhagem). O período iniciado entre a morte de Alexandre (323 AEC) e a derrota de Marco Antônio e Cleópatra na Batalha de Ácio, em 31 AEC, foi nomeado pela historiografia de “período helenístico” a partir da publicação do historiador alemão Johann Gustav Droysen, Geschichte des Hellenismus (entre 1836 e 1843). A periodização se caracterizaria pela sobreposição de reinos greco-macedônios em regiões orientais, resultando na difusão da língua e cultura gregas por essas terras. A perspectiva de Droysen foi importante por apontar certa coerência interna no período, que não deveria ser reduzido a uma fase de decadência do mundo grego clássico, como estudos anteriores avaliavam. As pesquisas acadêmicas sobre Alexandria foram consagradas nessa mesma conjuntura, em meio aos estudos clássicos e separados do campo da Egiptologia. Por isso, tendiam a situar a cidade como um apêndice do mundo grego no litoral egípcio. Compreendia-se que sua vivência política e cultural fora construída de modo a separá-la das antigas tradições egípcias. Pela perspectiva acima, a metrópole é explicada como protótipo do helenismo levado ao Egito e que colaborara para sua “helenização”, possibilitada pelas conquistas de Alexandre, conforme antigas terras persas foram tomadas pelas tropas macedônias. O helenismo foi estabelecido como um termo que representaria a “consagração” da cultura grega em territórios não-gregos, por meio de um processo de aculturação. Portanto, o período helenístico era entendido, sobretudo, como a expressão da superioridade helênica transferida para o Oriente, cuja “força” mantivera os reinos helenísticos coesos (VLASSOPOULOS, 2013, p. 278; MOYER, 2011, p. 13). Na segunda metade do século XX, na esteira da crítica pós-colonial ao teor helenocêntrico dos estudos sobre a Antiguidade, as perspectivas sobre a era helenística também começaram a ser revistas. Novas orientações buscavam enfatizar as resistências nativas aos processos de helenização e analisar a resiliência das antigas tradições (MOMIGLIANO, 1991). Com o objetivo de evidenciar a contínua força e diversidade das culturas orientais, tais propostas interpretativas salientavam certa polarização e pouca interação dos povos em contato, no caso do Egito, entre os nativos egípcios e gregos Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 112 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ (VLASSOPOULOS, 2013, p. 278-279). Nessa concepção, construiu-se uma imagem dual do Egito greco-romano e de Alexandria, ressaltando que as duas culturas predominantes que ali coabitavam continuaram a se desenvolver com poucas trocas.4 Essas visões começaram a ser contestadas nos últimos vinte anos, conforme o foco se desloca para os intercâmbios culturais, hibridismos, sincretismos e entrelaçamentos ocorridos no Mundo Antigo, em especial na periodização helenístico-romana, quando o multiculturalismo se torna ainda mais notável na documentação. Recentemente, a perspectiva da História Global despontou como extremamente profícua para auxiliar esse debate, conforme as histórias compartimentadas e nacionais começaram a se revelar insuficientes para abarcar a riqueza dos contatos na Antiguidade. Nessa crítica ao “internalismo metodológico” e ao “eurocentrismo morfológico” (MORALES; GEBARA, 2020) dos estudos tradicionais, cresce a demanda por perspectivas mais amplas e diversificadas (MOYER, 2011; CONRAD, 2019; VLASSOPOULOS, 2013). De forma semelhante, o impacto das perspectivas helenocêntricas na história de Alexandria tendeu a obscurecer seus vínculos com todo o Egito (DUNAND, 2007, p. 253) e também a desconsiderar a importância do Império Persa como a base para os reinos helenísticos que se configuraram a partir do desmembramento do reino de Alexandre. Dentro do mesmo teor crítico, Pierre Briant (2011, p. 1) defende a urgência da história helenística ser recolocada no contexto mais amplo da história do Oriente Próximo no primeiro milênio, com a leitura de que o Império Universal dos Aquemênidas foi a síntese de impérios mesopotâmicos e orientais anteriores (LIVERANI, 2016, p. 747-748). Portanto, o mundo helenístico surgiria da sobreposição de impérios e processos de integração anteriores focados no Oriente, ainda que as elites governantes buscassem reforçar e forjar a superioridade da cultura helênica (GUARINELLO, 2013, p. 139). Grandes cidades surgiram e se engrandeceram nessa rede interligada, onde o que acontecia em um lugar impactava em outros (FRANKOPAN, 2019, p. 37). Em diálogo com tais vertentes, a expectativa do presente artigo é repensar a história de Alexandria com o amparo das ferramentas da História Global, discutindo de que forma a fundação e história inicial da cidade a tornaram um local propício Sebastian Conrad (2019, p. 74) faz uma crítica pertinente a esse tipo de orientação pós-colonialista orientada para o mundo moderno, mas que é também adequada para discutir a interação entre egípcios e gregos no período helenístico. Tais vertentes são importantes para contestar o helenocentrismo de tradições acadêmicas anteriores e trazem novos dados que valorizam resistências das culturas nativas anteriores, mas podem também recair em extremos, com focos nacionalistas e nativistas, visando a reabilitar experiências indígenas esquecidas. Embora tenham a sua importância, correm o risco de produzir imagens idealizadas e essencialistas de eras que anteciparam períodos de conquista, além de imporem lógicas binárias, usando como enquadramento explicativo a oposição entre colonizadores e colonizados. A ênfase na autonomia de cada povo, pode, portanto, obscurecer interações e ofuscar assimetrias de poder. 4 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. Joana Campos Clímaco 113 _________________________________________________________________________________ à mobilidade e entrelaçamentos. Com o enfoque principalmente no seu universo político e religioso, a intenção é compreender como tradições religiosas e literárias que lá se configuraram ganham mais sentido nesse universo de trânsito, comunicações e empréstimos entre diferentes mundos. O Império Persa e a conquista macedônia Antes de focar em Alexandria, é necessário recuar brevemente às porções terrestres incorporadas pelas conquistas macedônias, pois o próprio Egito estava sob domínio persa, a partir da aquisição por Cambises, em 525 AEC, que o tornou uma satrapia diretamente governada pelo Império. Em 404 AEC, o herdeiro de uma antiga dinastia líbia chamado Amirteus (XXVIII dinastia) consegue libertar o Egito e iniciase uma fase duradoura de independência, apesar das diversas tentativas persas de reconquista. Em 343 AEC, o local foi invadido e incorporado novamente, no reino de Nectanebo II (361/60-343 AEC), considerado o último rei egípcio nativo. No contexto da dinastia saíta, a presença grega no território já aumentara consideravelmente, e na primeira fase de dominação, os abundantes recursos econômicos e militares aquemênidas começaram a projetar o Egito em um “império mundial”, de forma diferente ao anterior domínio assírio (HOLBL, 2001, p. 3-4). O Império Persa se difundiu a partir da abertura às culturas dos conquistados e, então, se tornaria um império multilíngue e multicultural. Sua estrutura se ergueu mais pelo acúmulo, aprendizado e tolerância diante da diversidade dos vencidos do que por sua eliminação (LIVERANI, 2016, p. 757).5 Logo, ainda que Felipe II e Alexandre III tenham ganhado notoriedade como os vencedores dos persas, parte das suas estruturas políticas foi aproveitada e suas premissas de poder, incorporadas. A própria ideia de conquista de um amplo território diversificado em regiões antes inalcançadas pelos gregos certamente fora uma motivação para Alexandre e só teria se tornado possível pela extensa rede comercial e de estradas iniciadas pelos persas. Conforme assinala Dorothy Thompson (2008, p. 8), sob os Aquemênidas, a comunicação por meio do Nilo havia se intensificado através de investimentos em um sistema postal (admirado por Heródoto), além do desenvolvimento das estradas reais, cuja infraestrutura iniciada anteriormente pelos assírios e babilônios foi adaptada (LIVERANI, 2016, p. 752). O importante assiriólogo italiano Mario Liverani (2016, p. 748) sintetiza essa realidade interconectada estabelecida no período persa-aquemênida: “O império Persa unifica regiões que nos séculos (e nos milênios) precedentes tinham constituído diferentes polos de desenvolvimento socioeconômico e de agregação política, ligadas entre si por relações comerciais, diplomáticas e militares, mas tão distintas que poderíamos acompanhar separadamente a história de cada uma delas – o que, a partir da segunda metade do século VI, não se torna mais possível”. 5 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 114 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ Tal império se ergueu, portanto, no espírito de abertura aos conquistados, estruturação que permitiu a monumentalização de cidades como Alexandria, com produtos vindos de todos os lados e junto a eles, diferentes informações, culturas e religiões. Gregos se referiam aos persas com misto de admiração e terror e Alexandre III certamente fora impactado por esses escritos na preparação de sua campanha antipersa. Baseara-se também em conhecimentos herdados dos estudos com Aristóteles e na corte de seu pai, que buscavam na literatura grega as referências necessárias para os macedônios adentrarem o mundo helênico antes dominado pelas póleis (FRANKOPAN, 2019, p. 25-26; THOMAS, 2021, p. 7). Alexandre se apropriara de conhecimentos literários prévios sobre as terras que pretendia invadir, e como ele, seu pai anteriormente fora motivado para a campanha na Ásia, que era interpretada como uma continuidade das missões históricas e lendárias contra persas. Autores do século IV representavam os persas como bárbaros, fracos e corruptos e, portanto, clamavam por ações militares contra eles. Isócrates era um dos entusiastas antipersas e firme defensor do pan-helenismo encabeçado pela Macedônia. Logo, Alexandre foi acompanhado em sua campanha por eruditos, filósofos e “exploradores” cujos conhecimentos seriam aproveitados ao longo do avanço militar, associando saber à consolidação do poder (MOYER, 2011, p. 9-10). Todos os pontos da antiga estrada real persa que ligavam territórios europeus e asiáticos foram tomados pelo exército de Alexandre e a iniciativa de fundar novas cidades em pontos estratégicos visava, em última instância, a proteger as áreas recém conquistadas. Provavelmente advém daí sua postura de demonstrar tolerância com as culturas e elites locais e de se colocar mais como herdeiro dos reinos antigos do que como invasor, ainda que posteriormente seus generais enfatizassem, sobretudo, seus vínculos com o mundo grego (FRANKOPAN, 2019, p. 29). Os novos reis helenísticos conquistam sua legitimidade como monarcas dos territórios conquistados, mas também como sucessores dos persas, do rei Alexandre III e da realeza macedônia (ANDRÉ, 2018, p. 151; BRIANT, 2011, p. 114). Como condensar em um único cargo autoridades tão discrepantes e plurais? A monarquia ptolomaica recém-instalada no Egito procuraria acenar para essa diversidade, da mesma forma que Alexandria, a sede da corte, desenvolveria instituições que buscavam harmonizar distintas tradições de poder e de saber de modo a legitimá-la. Alexandre, Mênfis e a fundação de Alexandria A tradição literária sobre a passagem de Alexandre pelo Egito cobre três momentos principais: a reverência aos deuses locais em Mênfis, a fundação de Alexandria e a Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 115 Joana Campos Clímaco _________________________________________________________________________________ consulta ao oráculo de Amon na Líbia. Arriano (Anabasis Alexandri, III, 1, 3) menciona que, ao passar pela antiga capital faraônica, Alexandre oferecera sacrifícios ao touro Ápis e a outros deuses. Ademais, o Romance de Alexandre (I, 34, 1) relata que ele foi também coroado faraó. Apesar das controvérsias acerca das informações providas pelo Romance, diversas inscrições em templos corroboram seu reconhecimento como rei pelos egípcios. Alan Lloyd (2011, p. 88-89) observa que a existência dessas evidências é crucial não tanto por demonstrar os investimentos nos templos durante o seu curto governo, pois a citação de seu nome não significa que ele fora o iniciador formal de tais obras e nem delas estivesse ciente. É fundamental, contudo, por apontar que ao menos um setor da elite sacerdotal reconhecia a realeza de Alexandre, o que não encontra paralelos para o Segundo Período Persa (LLOYD, 2011, p. 88-89). Ademais, aludem à sua autoridade pautada em traços dos faraós de tempos recentes, cujas atividades de restauração em templos eram referenciadas, por serem atividades habituais esperadas de reis egípcios. Tais inscrições assinalam ainda a percepção do poder do rei associada à defesa de estrangeiros, um aspecto central do poder faraônico, ao invés de o abordarem como um rei estrangeiro no Egito. Além disso, oferecer sacrifícios era uma prerrogativa do faraó e Alexandre provavelmente sabia que para ascender à realeza era primordial se inserir como intermediário dos deuses (HOLBL, 2001, p. 9). É plausível afirmar, portanto, que tais ações orientadas para o sagrado visavam também a um projeto político mais amplo. Além dos sacrifícios, Arriano (Anab. Alex., III, 1) narra que o macedônio organizara competições literárias e atléticas no local, nas quais artistas de renome de toda a Hélade foram participar. Provavelmente fizera isso pela falta de tempo de preparar uma cerimônia de coroação com a pompa necessária (HOLBL, 2001, p. 10). Além disso, o ato poderia ensejar uma sinalização destinada aos gregos sobre a conquista do Egito. Logo, as festividades em estilo helênico visariam a um equilíbrio orientado para a população grega, almejando contrabalancear a reverência prestada aos deuses egípcios. Após a temporada em Mênfis, o rei seguiu para o litoral, onde fundaria Alexandria. O episódio é narrado com engrandecimentos lendários e algumas variações pelos biógrafos de Alexandre. Sobre tal momento, Arriano (Anab. Alex., III, 1, 4, 2) relata: Quando ele alcançou Canopo, e navegou em volta do lago Mareótis, desembarcou exatamente onde agora fica a cidade de Alexandria, nomeada segundo Alexandre. Ele teve certeza de que a disposição era admirável para fundar uma cidade e que tal cidade seria destinada a ser próspera. Ele ficou, então, tomado de ansiedade para começar o trabalho, e ele mesmo marcou o plano geral da cidade, onde deveria ficar a ágora, quantos templos deveriam ser construídos, em honra a quais deuses, alguns gregos e Ísis, a egípcia (grifo nosso). Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 116 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ Como na passagem citada de Arriano, as demais narrativas sobre a fundação de Alexandria enfocam, sobretudo, o seu planejamento por meio do plano hipodâmico, a sofisticação expressa mediante a construção de grandes edifícios e a riqueza e prosperidade do terreno. Contudo, cabe observar (no trecho destacado em itálico) a ênfase atribuída ao fundador, visando também à preservação de antigas heranças cultuais nativas, projetando e destinando espaços a templos de deidades de origens díspares, o que sugere certa dualidade na ânsia pela manutenção das crenças helênicas e egípcias. Portanto, há aqui um realce explícito na ideia de acolhimento e diversidade associada à nova metrópole greco-egípcio-mediterrânica, ainda que estabelecida pela tradição retrospectivamente. O comentário sugere também o entendimento de que até a vivência religiosa de Alexandria seria planejada e orquestrada inicialmente para harmonizar diferentes deuses. Podemos entrever, na narrativa, uma relação na reverência praticada por Alexandre em Mênfis e a expectativa de planejar Alexandria focando no cotidiano divino, talvez visando a promover um elo entre as duas cidades? Entendendo que, para ter condições de competir com Mênfis, a nova cidade deveria se destacar por meio do aparato religioso. Ou talvez, que a religiosidade de Alexandria deveria funcionar de forma complementar à de Mênfis? Alexandria foi construída ex nihilo, desenvolvida por iniciativas reais e atendendo a ambições grandiosas, por isso era importante estabelecer um eixo de comunicação com antigos centros urbanos de prestígio, mirando em um projeto para seu cotidiano divino (DUNAND, 2007, p. 253).6 Nesse ensejo, além de ter Atenas como modelo, é extremamente plausível que Mênfis, ao mesmo tempo, deveria servir de referência para a criação do ambiente religioso de Alexandria. Na própria postura atribuída a Alexandre por Arriano no contexto da fundação de Alexandria, fica evidenciada a reverência pelas antigas tradições egípcias na organização da cidade, ainda que motivadas por projeções políticas maiores. No relato de Plutarco sobressai a inspiração helênica para a construção da cidade após um sonho visionário do rei com Homero lhe indicar o local, contudo, logo se confirma a composição multicultural de Alexandria no episódio dos pássaros. Vejamos: Alexandre levantou-se sem demora e encaminhou-se para Faro, que nessa altura era ainda uma ilha situada um pouco acima da boca Canópica do Nilo, mas que hoje em dia está ligada ao continente por um paredão. Quando viu o lugar e as vantagens incríveis que possuía (trata-se de uma tira larga de terra, semelhante a Kostas Vlassopoulos (2013, p. 294-295) igualmente enfatiza a especificidade de Alexandria no Egito e Antioquia na Síria, as mais importantes fundações do Mediterrâneo Oriental no período helenístico, por terem surgido do “zero”, daí precisarem de ondas significativas de migrantes da Macedônia e da Grécia. Se a fundação de cidades dinásticas já era uma tradição do Oriente Próximo, o que era novidade das fundações helenísticas era a aplicação do modelo grego de apoikia em circunstâncias diferentes de sua base original. 6 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 117 Joana Campos Clímaco _________________________________________________________________________________ um istmo, que separa do mar uma grande lagoa, rematada por um porto amplo), declarou que Homero, além de outras qualidades admiráveis, era também um arquiteto de excelência; decidiu, portanto, que o traçado da cidade tivesse em consideração a topografia do lugar. Como não tinham giz, pegaram em farinha e, com ela, traçaram no solo negro um espaço circular, de cuja base interior partiam traços radiais que dividiam o arco em espaços regulares, formando o desenho de uma clâmide. O rei ficou satisfeito com o traçado; foi então que de repente um bando imenso de aves, de todas as espécies e tamanhos, surgiu do rio e do lago e se abateu sobre o lugar, como nuvens, sem deixar rasto de farinha; de tal modo que até Alexandre ficou perturbado com a profecia. Foi então que os adivinhos lhe aconselharam ânimo, porque a cidade por ele fundada havia de ter enormes recursos e de ser capaz de proporcionar condições de vida à gente vinda de toda a parte. Alexandre ordenou aos encarregados que arrancassem com a obra, enquanto ele se dirigia ao templo de Ámon (Plutarco, Vita Alexandri, XXVI, 6-10, grifo nosso). É plausível que o relato de Plutarco se deixara influenciar pelo desenvolvimento da Alexandria romana do tempo em que escrevera. Podemos observar como a própria leitura crítica da tradição textual colabora para problematizar o quadro predominantemente helênico da cidade tão enfatizado pela literatura e historiografia tradicional, pautado pela inspiração políade de suas instituições. A presença do arquiteto grego Dinócrates de Rodes, além do traçado hipodâmico e do plano urbano centrado na ágora e nos palácios, e, por fim, a burocracia ordenada em torno da língua grega, durante muito tempo foram argumentos usados para enfatizar o isolamento de Alexandria em relação ao Egito. Tal cenário tem mudado nos últimos trinta anos, conforme as descobertas da Arqueologia Subaquática evidenciam a presença egípcia na cidade em diversos níveis (DUNAND, 2007, p. 253). Embora a ênfase na separação do Egito ainda esteja presente até mesmo entre egiptólogos (VAN DE MIEROOP, 2021, p. 304). Após fundar e projetar Alexandria, Alexandre seguira viagem rumo à Líbia para consultar o oráculo de Amon. O oráculo de Zeus-Amon, em Siwa, era uma ramificação do templo principal de Amon, em Tebas, cujo sincretismo com Zeus já havia se popularizado no séc. V AEC por diversos lugares da Hélade e mesmo na Macedônia. Talvez o rei almejasse visitar o deus na sua morada original. Ademais, o oráculo de Zeus-Amon era destinado exclusivamente a reis, o que sustentava a visão de Alexandre com relação à própria natureza divina, que harmonizava perfeitamente com a concepção egípcia do rei como filho de um deus (HOLBL, 2001, p. 10-11). Segundo Plutarco (Vit. Alex., XXVII, 5-11), o oráculo tinha confirmado seu governo sobre toda a humanidade. Além disso, uma confusão no entendimento da língua fizera o profeta do oráculo se dirigir a Alexandre como filho de deus, o que foi convenientemente aceito por ele como confirmação de sua divindade. Como o Amon da Líbia era associado a Zeus, em relação ao Amon tebano, Pierre Briant (2011, p. 96) defende que a ação do rei seria direcionada, sobretudo, ao Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 118 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ público helênico mais amplo. Porém, sua tentativa de divinização como filho de Amon pode ter sido mal interpretada por gregos, pois a veneração de um monarca era entendida como mais natural entre os egípcios. De qualquer forma, o fato de ter buscado uma divindade que tinha adquirido características supremas (no Reino Novo) para autorizá-lo como governante de todas as terras enseja que a visita ao oráculo de Zeus-Amon teria pretensões políticas mais amplas. Tal medida pode também ter auxiliado seus sucessores a serem aceitos como faraós (DAVID, 2011, p. 416). Ptolomeu I Sóter, o Egito e o Mediterrâneo Após a morte de Alexandre, em 323 AEC, as décadas seguintes foram marcadas por conflitos entre o exército macedônio e os diádocos a respeito dos rumos do amplo território conquistado. O maior dilema era se deveria predominar a unidade ou divisão e quem deveria ser o sucessor. Um consenso inicial foi alcançado no acordo de Triparadiso, na Babilônia, de que o trono deveria ser corregido pelo meio irmão de Alexandre III, Filipe III Arridaio e pelo filho ainda não nascido gerado com a princesa báctria Roxana, Alexandre IV, com Pérdicas servindo de regente a ambos. Nessa ocasião, também o reino foi inicialmente dividido em satrapias, a serem governadas por sátrapas, que deveriam atuar como representantes dos futuros reis. Nesta divisão inicial, Ptolomeu recebeu o Egito, a Líbia e parte da Arábia, com Cleômenes como seu representante. Arridaio foi morto, em 317 AEC, a mando de Olímpia, mãe de Alexandre III, e o poder real de fato era exercido por Pérdicas, regente de Roxana e de seu filho, até que ambos foram mortos por Cassandro, em 311 AEC, o que representou o fim oficial da linhagem argeada (Pausânias, Graeciae descriptio, I, 25, 6; Diodoro de Sicília, Bibliotheca Historica, I, 19, 105). O vácuo de poder abriu o caminho para os diádocos se proclamarem reis, o que ocorreu a partir de 306 AEC. Ptolomeu, portanto, atuou como sátrapa baseado na antiga cidade egípcia de Mênfis entre 323 e 306/305 AEC. O título aparece a ele associado pela primeira vez no 14º ano de seu comando, em um contrato de casamento na língua grega (THOMPSON, 2008, p. 7). Filipe Arridaio (323-317) aparece em alguns hieróglifos como faraó (LLOYD, 2011, p. 89-90) e Alexandre IV é reconhecido como rei na Estela do Sátrapa, cujo texto da inscrição é dedicado a Ptolomeu pelo sacerdócio da cidade de Buto, no Delta, em 311 AEC. Trata-se do principal documento em hieróglifo referente ao seu governo como sátrapa. Embora tenha sido redigido antes da formalização de sua realeza, demonstra já nessa fase o desenvolvimento de um projeto monárquico na sua aproximação com os templos. Ademais, Ptolomeu é descrito com os atributos típicos de um faraó, sobretudo, Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 119 Joana Campos Clímaco _________________________________________________________________________________ a proteção contra inimigos estrangeiros e o cuidado com os deuses (OCKINGA, 2008, p. 168). A realeza de “fachada” de Alexandre – II do Egito e IV da Macedônia – é reconhecida, mas o texto gera um entendimento ambíguo de que a figura monárquica estaria sendo exercida em território nilótico pelo sátrapa. Ptolomeu é descrito como uma espécie de vice-rei presente em solo egípcio e são exaltadas suas qualidades na liderança, e atributos como guerreiro e vencedor, noção semelhante ao que se esperava da realeza entre gregos e macedônios. Principalmente no período tardio, cenário de afirmação imperial do reino, o posto faraônico começou a adquirir conotações guerreiras. A Estela celebra o controle de Ptolomeu na Síria e na Palestina e também uma doação real aos deuses nativos de Pe e Dep no recinto sagrado de Buto, no Delta. Segue a primeira parte do texto: Ano de reinado 7, primeiro mês da estação da Inundação, sob a Majestade de Hórus: “O jovem, de grande força”; As Duas Damas: “O amado dos deuses, a quem foi dado o ofício de seu pai”; o Hórus de Ouro: “O governante de toda a terra”; o Rei do Alto e Baixo Egito, Senhor das Duas Terras, Haaibre-Setepenamon, o Filho de Re, Alexandre (II), vivendo para sempre, amado dos deuses de Pe e Dep. Ele é rei nas Duas Terras e nos países estrangeiros. Sua Majestade está no meio dos asiáticos, enquanto um grande Príncipe está no Egito, cujo nome é Ptolomeu. É um homem jovem, forte nos dois braços, eficaz nos planos, com exércitos poderosos, coração forte, pés firmes, que ataca os poderosos sem virar as costas, que golpeia o rosto de seus oponentes quando eles lutam, com mão precisa, aquele que agarra o arco para si mesmo sem disparar, que luta com sua espada no meio da batalha, sem que ninguém possa ficar por perto, um campeão cujos braços não são repelidos, sem reversão do que sai de sua boca, não há outro igual nas Duas Terras ou nos países estrangeiros. Como ele, trouxe de volta as imagens sagradas dos deuses que foram encontrados na Ásia, e juntamente com todos os implementos rituais e todos os rolos sagrados dos templos do Alto e Baixo Egito, os restaurou em seus devidos lugares. Ao estabelecer sua residência, chamada Fortaleza do Rei do Alto e Baixo Egito Merikaamon-Setepenre, o Filho de Re, Alexandre, cujo antigo nome era Rakotis, na costa do grande mar verde dos gregos, ele reuniu muitos Gregos com / seus cavalos e muitos navios com suas tropas. Ele então foi com seus exércitos para a terra dos sírios, com o resultado que eles lutaram com ele e ele entrou entre eles com o coração forte como um raptor em busca de pequenos pássaros, agarrando-os em um único instante. Para o Egito, ele trouxe seus príncipes, seus cavalos, seus navios e todas as suas maravilhas (Estela do Sátrapa, 1-5, grifo nosso). A ambiguidade da Estela poderia ser proposital, visando a preparar o terreno para a liderança de Ptolomeu e confirma a construção de uma relação de reciprocidade com o sacerdócio, que atribuía ao “príncipe” qualidades reais, antes de sua consagração. O reconhecimento de sua atuação militar na memória institucional egípcia seria primordial para moldar a forma com que Ptolomeu se apresentaria a este público (MCKECHNIE, 2018, p. 4; RITNER, 2003, p. 392). Ao mesmo tempo, a ênfase em sua autoridade guerreira Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 120 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ o aproxima da liderança em estilo faraônico, que era responsável pela manutenção da paz e ordem, mantendo os estrangeiros afastados do Baixo e Alto Egito. A Estela é uma fonte fundamental pois ilustra, além disso, a conjuntura da transferência da estrutura administrativa e real de Mênfis para Alexandria. Apesar da nebulosidade em torno da questão, Dorothy Thompson (2008, p. 11) e Gunther Holbl (2001, p. 33) defendem que a fonte corrobora a data limite para a mudança de cidade na conclusão da campanha síria, em 311 AEC, o que demonstra a crescente importância da cidade, cujo antigo nome era Racótis, na costa do grande mar verde dos gregos, que contava com uma fortaleza e residência para o monarca.7 A despeito da polêmica em torno da exatidão da data, inegavelmente a Estela sugere o começo de um reposicionamento e/ou uma divisão de poderes entre Mênfis e Alexandria, com algumas instituições administrativas migrando para a cidade litorânea, ainda que com certo “aval” do antigo centro. Alexandria já contaria com uma residência real, ainda que o rei oficial não residisse lá, era representado pelo “príncipe” Ptolomeu. A natureza da residência era militar, pois o local é chamado de fortaleza, além da ênfase na presença significativa de gregos no exército, o que aponta para a construção da cidade como uma base de poder litorânea, visando à costura da política internacional egípcia com diversas regiões mediterrânicas (HOLBL, 2001, p. 25-26; DUNAND, 2007, p. 11). É possível afirmar com mais segurança que a transferência estaria concluída quando Ptolomeu se tornou rei (306/305 AEC). Apesar da mudança, conforme já mencionado, diferentemente dos predecessores persas, Ptolomeu era um faraó residente no Egito e logo demonstrou interesse em aprender com a cultura local e com a autoridade baseada nos templos, como a Estela informa. Ptolomeu I Sóter foi rei entre 306/304 e 283/282 AEC, contudo, havia governado por quase duas décadas anteriormente como sátrapa, conforme já observado.8 De certa forma, seu governo de quase meio século estabeleceu as bases para a dinastia dos Ptolomeus que governaria o Egito por quase trezentos anos. Grande parte da vida do primeiro rei da linhagem foi dedicada ao engrandecimento de Alexandria, onde se fixara a nova corte. A Racótis é convencionalmente entendido pela historiografia como o nome da antiga ocupação egípcia no terreno antes da construção de Alexandria e que posteriormente se tornou o bairro que continuou abrigando a população nativa da cidade. Contudo, pouco se conhece sobre esse povoamento, o que leva o historiador francês Michel Cheaveau (2000, p. 57) a polemizar a questão. Ele defende que a nomenclatura é fruto da confusão de tradução dos autores clássicos e que historiadores contemporâneos continuaram perpetuando, pois Ra-qed era o nome dado a Alexandria pelos egípcios, que significa “terreno de construção”, o que poderia até indicar certa ironia na referência dos nativos ao novo projeto. Contudo, o autor não nega que haveria egípcios nessa localização, que foram convocados, sobretudo, para a construção dos edifícios públicos e privados da cidade (DUNAND, 2007, 253-254). 8 Tornou-se Ptolomeu I Sóter (“o Salvador”), título recebido provavelmente em Rodes, importante parceira comercial do Egito, como agradecimento após o apoio na manutenção de sua independência contra a invasão por Demétrio Poliorcetes, filho de Antígono I da Macedônia (ELLIS, 1994, p. 46). 7 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. Joana Campos Clímaco 121 _________________________________________________________________________________ despeito de se estruturar como sede da realeza macedônia, sua consolidação na metrópole mediterrânica se estabeleceria também a partir dos aprendizados da temporada de Sóter, em Mênfis, onde teve contato com diversos preceitos faraônicos que seriam afirmados na sucessão. O monarca compreendera que a manutenção das práticas religiosas atreladas ao poder colaboraria para a sua legitimidade no território, conforme conhecera noções faraônicas de comando na aproximação com às elites dos templos. O sumo-sacerdote de Mênfis, que realizava a coroação real, tinha o maior cargo na hierarquia religiosa de todo o território (DAVID, 2011, p. 423; SALES, 2005, p. 85). Ademais, as ações de Alexandre III mencionadas acima possivelmente estabeleceram o precedente para Ptolomeu I, no sentido de enfatizar a continuidade de práticas faraônicas, com o rei sendo coroado em Mênfis e se associando aos antigos deuses enquanto projetava instituições de inspiração helênica para Alexandria (DAVID, 2011, p. 415). Dessa forma, Ptolomeu I herdara de Alexandre III não somente o talento militar, como também o interesse por vasculhar as tradições de conhecimento dos lugares conquistados, o que fizera com o apoio de conselheiros. Ele mesmo registrara as campanhas de Alexandre III, atuando como “historiador” talvez na fase final de sua vida, em Alexandria. A obra não sobreviveu, mas fora a principal fonte de Arriano. Embora haja diversos debates sobre a natureza do texto original, há um consenso de que pretendia responder às narrativas exageradamente eloquentes e fantasiosas a respeito do rei, com pretensões de objetividade e focando, sobretudo, nos aspectos militares de sua vida (ELLIS, 1994, p. 15; GREEN, 2014, p. 24; THOMPSON, 2008, p. 11). Valorizar a memória do rei macedônio era mais uma maneira de Ptolomeu se vincular ao seu legado e condensar seus feitos, como instrumento de informação da monarquia. Além do cuidado de registrar suas memórias, Ptolomeu procurou reunir eruditos ao seu redor em busca de refinar seu conhecimento sobre o passado egípcio. Dentre eles, alguns escreveram histórias e foram visitar Tebas, como foi o caso de Hecateu de Abdera, a quem encomendara um relato, em grego, sobre o Egito, ainda antes de se tornar rei (por volta de 317 AEC) e que foi depois a principal fonte de Diodoro Sículo (SALES, 2005, p. 94; FRASER, 1972, p. 311). O próprio Diodoro (Bibl., I, 46, 7-8) elucida o interesse letrado pelo Egito, por parte de Ptolomeu e seus próximos. A presença de conselheiros reais permanece como um traço da realeza ptolomaica inicial, além de também orientar o cotidiano religioso de Alexandria, reconhecendo sua pluralidade e de que forma a monarquia nela atuaria. Tácito (Historiae, 4, 84) e Plutarco (De Iside et Osiride, 361-362, 28) fazem menção ao grego Timóteo, do clã dos Eumólpidas de Elêusis e ao sacerdote Maneton, da cidade de Sebenito, proveniente do clero de Heliópolis, no contexto da elaboração do culto sincrético de Serápis. Os relatos sobre Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 122 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ sua origem são posteriores e controversos em seus detalhes. Não obstante, diversos elementos apontam para sua ambientação já no governo de Ptolomeu I, além do cenário corresponder às expectativas do rei em “traduzir” e adaptar para Alexandria experiências religiosas adquiridas em Mênfis, como proposto acima (CLIMACO, 2020). Serápis foi o deus híbrido que se tornou patrono de Alexandria e da dinastia. Seu nome era uma contração do deus Osíris-Ápis de Mênfis, uma divindade monárquica, associada às origens divinas do cargo e responsável pela vitalidade do faraó. No Período Tardio, momento que correspondeu também ao início de ondas migratórias gregas para o Delta egípcio, se fortaleceu uma forma tardia da adoração a Osíris associada com o touro Ápis, específico de Mênfis, que se materializara no engrandecimento do complexo do Serapeum, residência e local de sepultamento do touro.9 Em vida, o faraó entronizado era a encarnação de Hórus, filho de Osíris, que passara a governar no lugar de seu pai após a morte pelo irmão Seth. Portanto, no culto de Osíris-Ápis, o processo de sincretismo se iniciaria efetivamente por ocasião da morte de Ápis, quando era estabelecido o vínculo com Osíris, o governante do domínio dos mortos, responsável pela regeneração do cargo e representante do faraó defunto. O Serapeum de Alexandria, seu templo central, foi construído no bairro egípcio de Racótis (local ao qual a Estela do Sátrapa também faz referência) com o possível intuito de associar os recém-chegados à cultura autóctone. Sua ordenação seguiu o modelo do de Mênfis, com nilômetro e galerias subterrâneas, o que é importante para corroborar o debate acerca de sua proveniência associada e derivativa do Osíris-Ápis de Mênfis e combater a perspectiva que entende Serápis como uma “invenção” de Ptolomeu I (PFEIFFER, 2008, p. 393). O complexo de Alexandria foi concluído com o rei Ptolomeu III Evergeta, quando uma biblioteca auxiliar foi incorporada. Outras evidências sugerem, contudo, que anteriormente já existia um santuário no local, conforme observa-se no seguinte trecho de Tácito (Hist., IV, 84, 15): Um templo, apropriado para o tamanho da cidade foi construído no quarteirão chamado Racótis, onde antes havia um santuário dedicado a Serápis e Isis. Essa é a versão mais conhecida sobre a origem e chegada do deus. Mas eu estou ciente que alguns dizem que o mesmo deus foi trazido da Selêucia na Síria no reino de Ptolomeu III, outros dizem que o mesmo Ptolomeu introduziu o deus, mas que o lugar de que ele veio era Mênfis, que havia sido uma famosa cidade e o símbolo do antigo Egito (grifo nosso). O templo foi construído na XXVI dinastia e engrandecido, principalmente, na XXX, quando várias construções foram adicionadas ao complexo, como o santuário à Ísis, associada à vaca sagrada e deificada após dar à luz ao touro Ápis. Havia também galerias de enterramento de vacas, falcões e babuínos sagrados. No tempo de Amásis, foram erguidos o Bubasteion e Anubeion, os templos dedicados à Bastet e Anúbis, respectivamente (BOMMAS, 2012, p. 423; HOLBL, 2001, p. 99). 9 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. Joana Campos Clímaco 123 _________________________________________________________________________________ A contínua adoração no mesmo ambiente, institucionalizada ainda mais por Ptolomeu III, evidencia que a conexão com Mênfis seria reafirmada na sucessão ptolomaica e não seria uma preocupação exclusiva do primeiro Ptolomeu. Em suma, a ligação com Mênfis seria um projeto de longa duração na busca por uma política religiosa para Alexandria que se comunicasse com egípcios e gregos. No sítio do Serapeum de Alexandria, foi encontrada uma estátua de basalto do touro Ápis, proveniente do tempo do imperador Adriano, o que evidencia também a continuidade do culto autóctone em paralelo à adoração a Serápis, que atravessaria o período ptolomaico e sobreviveria no contexto do Alto Império romano (SALES, 2005, p. 111). É plausível que Ptolomeu tenha percebido a popularidade de Osíris-Ápis entre os “helenomenfitas”,10 e em uma forma de adaptar seu culto para Alexandria, pois entendia-se que o mundo divino reproduzia o princípio dinástico da hereditariedade, o que seria conveniente para os novos governantes apropriarem. Em Mênfis, Ptolomeu poderia ter compreendido a força “fundante” dessa história como fonte de poder dos antigos faraós, que seria apropriado transferir para sua própria monarquia. Essa derivação visaria a absorver a autoridade divina do centro menfita ao vincular o templo novo com o antigo? Nesse ensejo, o “coração” religioso de Alexandria estabeleceria uma ponte com Mênfis, de forma a buscar a promoção divina da nova dinastia ali instalada. A imagem de Serápis poderia ter surgido posteriormente, como fruto do ímpeto de traduzir noções relacionadas ao submundo e renascimento de forma compreensível e aceitável para os gregos, o que resultaria na criação de sua imagem humana e familiar com os deuses helênicos (BOWMAN, 1986, p. 174; STAMBAUGH, 1972, p. 13). Ptolomeu II Filadelfo e a tradição literária alexandrina A intenção até aqui foi demonstrar o contexto emaranhado da edificação de Alexandria, ressaltando que um dos principais anseios dos primeiros governantes teria sido o de estabelecer vínculos com as tradições ancestrais nativas, a despeito da orientação litorânea da cidade ter sido idealizada buscando intensificar contatos com o Mediterrâneo. Esse exercício interpretativo visa a problematizar a corrente historiográfica que concebe a cidade como um núcleo essencialmente grego e apartado do Egito.11 O termo se refere à população de gregos de Mênfis, que era significativa desde o tempo de Amásis (séc. VI AEC), que havia atraído mercenários para o Delta, sobretudo cários e jônios. Eles tinham os próprios bairros na cidade, embora muitos tenham se casado com nativos (THOMPSON, 2008, p. 14). 11 Para citar um exemplo relativamente recente, o capítulo de Henri Riad (1993, p. 30), “Egyptian influence on daily life in Ancient Alexandria”, na obra Alexandria and Alexandrinism, reconhece que a maioria da população no contexto de fundação era composta de nativos, mas considera que os primeiros três ptolomeus desenvolveram uma política 10 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 124 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ Conforme já mencionado, nas perspectivas acadêmicas tradicionais, Alexandria foi percebida como uma pólis, um corpo estranho e isolado no Egito que fazia uma ponte direta com o mundo helênico. Ademais, a predominância da língua grega nas elites letradas e de gregos e macedônios nos grupos de poder, além da presença de instituições políades (ex: ginásio, ágora, tribos e demos) e da ordenação hipodâmica das ruas tornaram a cidade objeto de estudos, especialmente dos classicistas, o que tendeu a reforçar ainda mais o isolamento do Egito. A fronteira disciplinar também foi corroborada por sua nomenclatura na literatura clássica, de Alexandria ad Aegyptum (“Alexandria ao lado do Egito”), o que tendia a reforçar a ideia de não pertencimento ao Egito. Contudo, a questão foi muitas vezes tratada de forma literal e carente de perspectiva crítica, que desconsidera o nome, sobretudo, como uma representação da cidade pela tradição literária estrangeira, que buscava forjar uma identidade grega para a metrópole, nem sempre considerando suas subjetividades identitárias internas. Se a ênfase na separação do Egito sugere sua realidade atípica no território nilótico, evidencia também, no contexto antigo, um estranhamento com relação ao seu estatuto dentro do Egito e de que forma essa inserção estaria sendo apreendida pelos diferentes grupos da cidade. Por esse motivo, um dos objetivos aqui é analisar as tramas que a construção de Alexandria ensejou no Egito de forma mais ampla, além das relações que se estabeleceram com os entornos. A perspectiva de Peter Fraser (1972), célebre estudioso da Alexandria ptolomaica, em Ptolemaic Alexandria, tornou-se dominante no realce de sua “grecidade” e separação do Egito. Seu ponto de vista foi também influente no entendimento do governo ptolomaico inicial como a fase áurea da dinastia em sua helenização, que fora, contudo, corrompida mais adiante conforme avançava a “egipcianização” da monarquia que desencadearia a decadência da própria metrópole. Portanto, se em um primeiro momento Alexandria seria estudada como o exemplo mais emblemático da cultura grega que se alastra para o Oriente e alcança o Egito, sua degradação acompanharia o aumento da miscigenação e perda da “pureza cultural” das primeiras gerações de gregos na cidade (MOYER, 2011, p. 23-25). Do lado da Egiptologia, tal “helenidade” atribuída à cidade no período grecoromano também foi motivo de sua rejeição como objeto de investigação pela área, pois a compreensão geral era a de que a progressiva presença estrangeira resultara no afastamento das tradições nativas milenares. O desinteresse foi agravado ainda mais fortemente helênica e macedônia, tratando os nativos como uma “raça conquistada”, que colaborara para a cidade somente por meio de influências, embora fossem desprovidos da agência sobre a organização embrionária da cidade. Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. Joana Campos Clímaco 125 _________________________________________________________________________________ pela sua conjuntura arqueológica lacunar, o que tem se alterado nas últimas décadas (EMPEREUR, 1998; GODDIO; BERNAND, 2004). Além de Alexandria, o estudo do período “greco-romano” no Egito, como o próprio nome já aponta, foi alvo primordial dos classicistas, guiados pelas descobertas documentais em língua grega. A situação tem se alterado também como resultado do aprimoramento do conhecimento acadêmico do demótico (MOYER, 2011, p. 29). A esse quadro acadêmico se soma o contexto de crítica e revisão das posturas teórico-metodológicas que se desenvolveram pautadas na percepção da centralidade da cultura greco-romana como modelo do imperialismo europeu (GUARINELLO, 2013; VERHOOGT, 2019, p. 5). O quadro acadêmico mais diversificado, crítico e multidisciplinar da atualidade, além de um aumento significativo de estudos com abordagem nas especificidades das temporalidades pós-faraônicas, e que privilegiam os entrelaçamentos culturais, colaboram também para um olhar mais crítico sobre as fontes clássicas em grego e latim. No caso de Alexandria, podemos observar que diversas evidências advindas da própria literatura corroboram a perspectiva de que a formação inicial da cidade atendia a projeções e expectativas entrelaçadas. As elites de poder buscavam referências plurais para governar e, dentre elas, as experiências egípcias de comando revelaram-se apropriadas como modelo. Se a monarquia ptolomaica foi inicialmente entendida como uma corte estrangeira grega instalada no Egito, estudos atuais têm explicitado que os novos mestres tentaram, desde cedo, se integrar ao sistema egípcio de comando, combinando práticas políticas e religiosas faraônicas com diversas outras referências de poder. Estas, aos poucos, foram se imbricando e ganhando contornos globais (DUNAND, 2007, p. 253). A obra inovadora de Ian Moyer (2011, p. 29-32), Egypt and the limits of Hellenism, demonstra como pesquisadores envolvidos ao mesmo tempo com evidências gregas e egípcias, e mais abertos a parcerias multidisciplinares e colaborativas, evidenciaram que as “franjas de cooperação” entre egípcios e gregos era mais ativa do que inicialmente se supunha. Tais estudos apontam também para uma interdependência maior de egípcios na corte ptolomaica, antes negligenciadas ou vistas como inexistentes. Uma das intenções aqui é enfatizar que não se pode reduzir a ordenação política, cultural e religiosa de Alexandria a uma única matriz cultural. Sua configuração monárquica e portuária a contrastava com outros núcleos urbanos até então conhecidos, tanto do Egito quanto da Hélade. Os diversos portos da cidade a tornaram um centro de confluência para viajantes e comerciantes, resultando em certa propensão à diversidade e multiculturalismo desde a formação inicial. Ademais, a elite greco-macedônia se transformou na protagonista das relações sociais e dos trâmites administrativos, enquanto os egípcios residentes passam a ser por elas governados. Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 126 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ Constrói-se cotidianamente um cenário notadamente multilíngue e de profunda diversidade cultural, que desponta em permanente diálogo com as antigas e vigorosas tradições nativas. Logo, seus aspectos multiculturais começaram a se configurar cedo e eram acumulativos (e não excludentes). Além disso, foram orientados para encobrir e amenizar tensões que surgiriam como resultado da pluralidade. Portanto, o crescimento de Alexandria e sua transformação em capital ptolomaica altera o centro de gravidade do território nilótico, intensificando as correntes migratórias gregas para a região e envolvendo o Egito ainda mais nos fluxos mediterrânicos (GUARINELLO, 2013, p. 122; LLOYD, 2011, p. 91). Os entraves com os sucessores continuaram durante todo o reino de Ptolomeu I Sóter, tempo em que é confirmada além de sua autoridade sobre o Egito, também o controle sobre a Líbia, Síria, Fenícia, Chipre, Lícia, além de algumas cidades e ilhas gregas. Logo, como Alexandre III, Ptolomeu I procurava se direcionar a súditos heterogêneos e com expectativas divergentes com relação à realeza. Nessa ocasião, Alexandria se torna a corte não somente do Egito, mas também dos demais estados ptolomaicos. Essa “zona tampão” mediterrânica em torno do Egito visaria, sobretudo, à sua proteção (HOLBL, 2001, p. 16). Portanto, as instituições e tradições culturais e religiosas da metrópole se desenvolveram nesse emaranhado de demandas políticas variadas e de competições entre os diádocos, que continuam também com seus descendentes, conforme as monarquias helenísticas se estabelecem. Os embates entre os reis repercutiram igualmente na motivação dos novos líderes para preservar heranças literárias e religiosas dos lugares em que se estabelecem. Nesse sentido, as cortes disputavam por riquezas e conhecimentos como forma de ostentar suas vitórias. Ao mesmo tempo, competiam pela afirmação da superioridade cultural helênica, edificada e elevada de forma a valorizar, sistematizar e transformar inúmeras referências do passado greco-macedônio. Ou seja, o ambiente erudito de Alexandria se estruturou a partir de contínuas disputas por memória, conforme a cidade construía sua própria cultura diversificada. Tais traços configuram o ambiente cultural e político do período ptolomaico inicial, oscilando entre a valorização da erudição grega, das antigas crenças e da autoridade dos sacerdócios, enquanto uma nova dinastia busca suas referências para afirmar sua autoridade e angariar consenso entre grupos diversos. Dessa forma, Alexandria se engrandece como um portal onde a antiga tradição letrada grega seria fixada e perpetuada, traço que se fortalece ainda mais no governo de Ptolomeu II Filadelfo (282-246 AEC), em paralelo ao resgate do passado egípcio, que é também adaptado e apropriado para a língua grega. A despeito da disparidade de regiões governadas, a Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. Joana Campos Clímaco 127 _________________________________________________________________________________ base principal do poder Ptolomaico se centralizou no Egito e, por isso, pretendeu se apropriar de sua longa tradição monárquica na mudança da corte para Alexandria. O sacerdote Maneton de Heliópolis, citado acima, atuara como conselheiro de Ptolomeu I e foi responsável pela produção da Aegyptiaca. Trata-se de uma síntese da realeza faraônica sistematizada em trinta dinastias e produzida na língua grega. A intenção da obra talvez visasse a tornar a longa duração da história institucional egípcia compreensível para o público helênico e para a corte, a fim de que funcionasse como seu próprio instrumento de informação. Fora encomendada no tempo de Ptolomeu II, ainda que Maneton estivesse na corte desde o tempo de seu pai, o que insinua sua duradoura influência como conselheiro. E mais: sua redação se materializou no contexto de disputa de Filadelfo com Antíoco I Sóter pelo domínio do Mediterrâneo Oriental, logo, ilumina os mecanismos propagandístico-ideológicos implementados pelos Ptolomeus ao tentarem estabelecer uma mediação entre o Egito e o mundo do helenismo (MOYER, 2011, p. 85). Como sacerdote, Maneton conhecia a escrita hieroglífica e tivera acesso a listas reais e arquivos dos templos. Em contraste com Hecateu anteriormente, que desconhecia a língua. Nesse momento, era um egípcio que instruía os gregos na história de sua terra, permitindo que o passado faraônico fosse apropriado pela dinastia reinante, com o entendimento de que para preservar a tradição remota era primordial se inserir nesse projeto bilíngue (HOLBL, 2001, p. 27; SALES, 2005, p. 80-92). Sua obra está, portanto, em sintonia com a historiografia política dos Ptolomeus, que começara com Ptolomeu I registrando as histórias de Alexandre III (SALES, 2005, p. 94-96). Infelizmente, o original de Maneton se perdeu, tendo sido preservado por meio de citações de autores do período romano (como Flávio Josefo e Eusébio de Cesareia), além de manuscritos medievais, o que evidencia seu valor na Antiguidade (SALES, 2005, p. 73-75). Contudo, o ímpeto para a produção da obra propõe que a elite grecomacedônia entendera a importância de conhecer o passado político egípcio, visando a estabelecer uma continuidade “genealógica-cultural” com a tradição faraônica, por serem estrangeiros no comando. Tal ponte poderia servir para que os Ptolomeus se inserissem na nova dinastia em meio aos antigos reis, para se colocarem como seus sucessores e continuadores. Portanto, organizar a história egípcia tendo a realeza como eixo ordenador seria proposital, visando a demarcar o sucesso duradouro da instituição monárquica como algo herdado, além de reforçar o valor da consanguinidade e ascendência. Dessa forma, Filadelfo conseguiria assegurar o elo entre passado e presente, de forma semelhante a Alexandre III e Ptolomeu I (SALES, 2005, p. 85-90). Ademais, a produção da memória monárquica egípcia produzida por um sacerdote egípcio na conjuntura interna da corte Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 128 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ seria uma forma de controlar o conhecimento sagrado em benefício da monarquia recéminstalada e visando à sua inserção em meio à tal tradição, além da própria legitimação. Por um lado, a tradição monárquica egípcia era essencialmente ancorada no seu universo religioso, por isso buscava manter sua presença simbólica em Alexandria. Isso foi feito visando à confirmação do poder monárquico sobre o território egípcio mais amplo, daí a criação de Serápis e do Serapeum e a aproximação com o sacerdócio de Mênfis, como já visto. Por outro, os primeiros Ptolomeus sabiam do orgulho grego por sua tradição literária e que a paideia era um aspecto fundamental da identidade helênica. Surge daí a motivação para tornar a cidade um centro de erudição, rememorando-se a tradição literária helênica remota como símbolo das conquistas dinásticas e da hegemonia greco-macedônia no Mediterrâneo Oriental. Nessa perspectiva, a criação do Museu e da Biblioteca teria sido idealizada ainda no tempo de Ptolomeu I, no ambiente de competição com os outros diádocos. O enfraquecimento de Atenas pode ter também suscitado uma demanda por novos centros de erudição.12 Foi com Ptolomeu II Filadelfo que essa atmosfera de erudição se desenvolveria, de modo a tornar Alexandria o polo aglutinador de diferentes saberes por meio de instituições vinculadas à corte (HOLBL, 2001, p. 26). Mediante o patrocínio monárquico, foram atraídos estudiosos de diversas partes do mundo grego, que se atrelavam pelo domínio da paideia (FRASER, 1972, p. 306-310). Tal elite letrada torna-se fortemente vinculada à realeza, ao mesmo tempo que começa a estruturar na cidade um saber compartilhado, com base na valorização da memória literária grega. Susan Stephens (2003, p. 251-254) destaca a importância da Biblioteca para reforçar a noção de coletividade grega em Alexandria. Pela aquisição, cópias e edições de textos consagrados (sobretudo Homero e as tragédias) e da tradução para o grego da literatura de outros povos, a cidade serviu de eixo para reunir a cultura literária de diversas partes do mundo. Não-gregos tiveram a oportunidade inédita de “globalizar” seu saber por meio da tradução de seus clássicos (MOMIGLIANO, 1991, p. 14). Lionel Casson (2002, p. 43-47) questiona a motivação dos reis em fundarem Pascal Ballet (1999, p. 145) questiona a fama de Alexandria como a “Nova Atenas”, argumentando que o saber criado na metrópole era mais voltado para a descontração do que para temas filosóficos e “elevados” e, nesse sentido, a nova cidade nunca substituiu a capital “intelectual” do mundo grego com relação ao saber nutrido de projetos filosóficos. O autor considera que o saber acumulado em Alexandria não suscitava reflexões originais sobre o homem e o cosmos, pois preservava principalmente os conhecimentos antigos. Os gêneros popularizados em Alexandria, como a mímica e as novelas, embora inspirados nas antigas tragédias e comédias gregas, eram mais voltados para a descontração, do que para temas filosóficos (BALLET, 1999, p. 173). Alan Samuel (1983, p. 67-74) enfatiza o conservadorismo dos gregos nessas instituições, justificando que seus membros aceitavam pouca literatura de outros povos em seu cânone e que mesmo entre os escritos gregos o interesse maior era por autores “consagrados”, como Homero. Realça ainda que, mesmo quando algum escrito egípcio alcançava as bibliotecas, seu conteúdo era helenizado e esvaziado de sua base egípcia. É notável como tais acadêmicos adotam como padrão a literatura grega clássica e entendem que pouco havia a acrescentar conforme “outros povos” adentram sua esfera. 12 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 129 Joana Campos Clímaco _________________________________________________________________________________ as duas instituições em Alexandria, uma cidade nova sem qualquer tradição literária, que era uma espécie de “deserto cultural”. Ele argumenta que as conquistas de Alexandre mudaram o Mundo Antigo, na medida em que as pessoas passaram a estar inseridas dentro de realidades mais amplas conforme as populações se diversificavam. Por tudo isso, os reis entenderam que era necessário oferecer incentivos para atrair eruditos de destaque para a cidade, considerando que o Egito já tinha uma longa tradição textual controlada, sobretudo, pelos templos. Era necessário contrabalancear isso valorizando a cultura literária grega em torno da realeza. Segundo a tradição literária, foi influenciado por Demétrio de Falero, conselheiro ateniense fixado na corte por Ptolomeu I, que Filadelfo buscou dar continuidade a alguns padrões estabelecidos pelo pai, no sentido de acenar para públicos distintos, mas com traços comuns e que poderiam se comunicar.13 Flávio Josefo, historiador da Judeia que escreveu sob o Império Romano, situa Demétrio na corte de Filadelfo, provavelmente de maneira anacrônica. Josefo o ilustra como o principal entusiasta por angariar escritos de outras tradições, conjuntura que motivou a tradução da Torá para a língua grega, a Septuaginta ou Bíblia dos Setenta. A história ganhou conotação lendária na Carta de Aristeas, provavelmente composta no séc. II AEC e que foi a base do relato de Flávio Josefo no livro XII das Antiguidades Judaicas. Há referências pontuais ao evento também na obra de Filo de Alexandria (De Vita Mosis, II, 41). Segundo Josefo (Antiquitates Judaicae, XII, 2, 1): Alexandre reinou doze anos, e depois dele Ptolomeu Sóter quarenta e um; então Filadelfo assumiu o poder real no Egito e o manteve por trinta e nove anos; e ele teve a lei traduzida e libertou da escravidão em torno de cento e vinte e quatro mil nativos de Jerusalém que eram escravos no Egito pelo seguinte motivo. Demétrio de Falero, encarregado da biblioteca do rei, estava ansioso para coletar, se pudesse, todos os livros do mundo habitado e, se ouvisse falar ou visse algum livro digno de estudo, ele o compraria; e assim ele se esforçou para atender aos desejos do rei, pois era muito dedicado à arte de colecionar livros (grifo nosso). O grandioso feito é atribuído exclusivamente à iniciativa monárquica. Contudo, não é improvável que a Septuaginta tenha sido produzida como demanda da própria comunidade judaica de Alexandria, que começava a perder o conhecimento do hebraico e há indícios que apontam sua produção posterior. Portanto, a elaboração ambientada no reinado de Ptolomeu II pode ser uma “retroprojeção” anacrônica de Josefo (MOMIGLIANO, Demétrio de Falero, retórico, filósofo peripatético e influente na política de Atenas fora aluno de Teofrasto, o sucessor de Aristóteles, que já conhecera o Egito e mantinha uma boa relação com os Ptolomeus. Falero tinha sido exilado de Atenas por ordem de Demétrio Poliorcetes (307 AEC), até que foi convidado para ser conselheiro real de Ptolomeu I na corte Alexandrina (297 AEC) (HOLBL, 2001, p. 26). 13 Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 130 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ 1991, p. 74). De todo modo, o autor delineia o cenário multicultural configurado na cidade, e as tensões entre culturas que podem ter se acumulado na corte de Filadelfo. Assim, diferentes comunidades poderiam buscar a “helenização” de seus saberes particulares visando a suas próprias necessidades (Jos., Ant. Jud., XII,12-25). A dinastia ptolomaica procuraria se distinguir não somente como vencedora nas batalhas, mas também se empenhou em transformar Alexandria em uma espécie de “vitrine” ao congregar, recuperar e ordenar a tradição literária ateniense, reunindo gregos influentes em torno da monarquia, para contrabalancear o saber cunhado em Atenas, além de incorporar a medicina e cultura egípcia antigas (HOLBL, 2001, p. 25). Visando a refletir o poder dos Ptolomeus, o projeto tinha ambições imperiais, pois visava a reunir saberes estrangeiros com o objetivo de traduzi-los para o grego e, dessa forma, tornar Alexandria um portal literário mediterrânico, por meio do intercâmbio de saber entre os seus pensadores itinerantes. Se inicialmente o domínio da paideia servia como fator de integração entre gregos diversificados reunidos em território estrangeiro, o saber global criado passa a alcançar regiões mais amplas (WATTS, 2006, p. 147-152). Os estudiosos do Museu eram nomeados de forma vitalícia e gozavam de uma série de privilégios. Casson (2002, p. 49-56) sugere que foi provavelmente para eles que inicialmente a Biblioteca teria sido iniciada, visando a adquirir livros como ferramentas de pesquisa. Um diretor nomeado pela corte chefiava a Biblioteca. O primeiro foi Zenódoto, que organizou um sistema de armazenamento (por autor, gênero, assunto e ordem alfabética). Com o crescimento da Biblioteca, foi necessário desenvolver um sistema de busca. Nesse contexto, Calímaco de Cirene, que se juntou ao círculo de intelectuais de Ptolomeu II e desenvolveu o Pinakes, uma espécie de catálogo que listava os rolos armazenados (em torno de 400 mil), que infelizmente não sobreviveu, mas foi citada por diversos autores. As primeiras fases foram mais dedicadas à literatura, mas diretores posteriores, como Eratóstenes, buscaram conhecimentos mais específicos, como a geometria, a astronomia e a geografia. Os diretores eram também estudiosos e poetas, como o próprio Calímaco e Teócrito. Logo, a tradição poética alexandrina foi também impulsionada no tempo de Sóter e Filadelfo por meio do patrocínio real e celebrava a monarquia e temas caros aos reis, como a memória de personagens, heróis e deuses gregos consagrados no passado que seriam, nesse momento, rememorados e vinculados aos novos governantes. Os escritos visavam exaltar a tradição mitológica grega em um novo contexto, inserindo a monarquia na genealogia heroica e divina, de modo a legitimá-la para além do Egito e fortalecer o vínculo com a Hélade. A produção poderia ter sido uma demanda dos gregos da cidade em busca de um eixo de identificação com a monarquia. Teócrito, Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 131 Joana Campos Clímaco _________________________________________________________________________________ por exemplo, no Encômio a Ptolomeu Filadelfo (79-95), celebra o rei associando-o ao passado mítico grego, mas “atualizando-o” para o contexto egípcio, como vemos no trecho a seguir: Incontáveis terras e incontáveis raças de homens cultivam suas colheitas com a ajuda da chuva de Zeus, mas nenhuma terra é tão produtiva quanto o humilde Egito, quando a inundação do Nilo encharca e rompe o solo; nem nenhuma terra tem tantas cidades cheias de pessoas habilidosas em ofícios [...] Ele pega fatias da Fenícia, da Arábia, da Síria, da Líbia e dos etíopes de pele escura; todos os panfílios e os guerreiros da Cilícia ele comanda, e os lícios e os cários, que se deleitam na guerra, e as ilhas das Cíclades, pois seus são os melhores navios que navegam no oceano. Todo o mar e a terra e os rios turbulentos estão sujeitos a Ptolomeu, e ao redor dele se reúnem um grande número de cavaleiros e um grande número de soldados portando escudos, carregados com bronze brilhante. Considerações finais O início do comando ptolomaico no Egito evidencia a intenção da monarquia de promover sua autoridade por meio do reconhecimento das antigas tradições de poder faraônicas, macedônias, gregas e persas, cujos fundamentos seria conveniente incorporar. A dinastia e a nova cidade se constroem em um ambiente de intensas competições e disputas por memória. Portanto, a demonstração de apreço por referências antigas engrandeceria Alexandria como uma espécie de “guardiã” de escritos e tradições do passado, o que a transformaria em uma cidade global e multicultural. Tal padrão poderia servir para dar coesão a uma população diversificada, mas que se abre ao novo e às transformações, engrandecida mediante investimentos monárquicos que buscavam unificar conhecimentos plurais e adaptá-los em prol dos seus interesses. Dessa forma, a “tradução” de antigos saberes e vivências visava afirmar a autoridade dos novos reis, demonstrando que Alexandria prezava por suas tradições díspares, o que a elevaria em relação a outras cidades eminentes, com base em modelos urbanos anteriores, sobretudo Mênfis e Atenas. Com exceção da tradição poética helenística, grande parte dos relatos sobre Alexandria que cobrem o período analisado advêm da era romana, ainda que sejam baseados em fontes anteriores, contemporâneas aos Ptolomeus, mas hoje perdidas. O fato de recuperarem tais posturas multiculturais ao descreverem os reinados dos primeiros reis macedônios no Egito denotaria as tensões étnicas que se avivaram na cidade sob domínio romano e também a longa duração de seu projeto multicultural. Nesse ensejo, os escritos constroem um retrato de Alexandria que harmonizaria gregos, egípcios e judeus sob amparo monárquico, apontando que as tensões deveriam ser amenizadas, considerando a trajetória plural da cidade associada às suas origens. Ou Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 22, p. 109-135, 2023. ISSN: 2318-9304. 132 Alexandria ptolomaica na perspectiva de uma História Global _________________________________________________________________________________ seja, recuar aos seus primórdios visaria a mascarar controvérsias e acomodar novas formas de convivência. Alexandria como a segunda maior cidade do Império Romano poderia servir de modelo, como “idealização”, tendo como pano de fundo a própria cidade de Roma e suas polêmicas. Em um mundo integrado e de intensas comunicações, crenças e saberes antigos eram rememorados, descartados, enfatizados e acomodados no passado helenístico. Referências Documentação textual ARRIAN. Anabasis of Alexander. Translated by P. A. Brunt. Cambridge: Harvard University Press, 1976-1983. 2 v. DIODORUS SICULUS. Library of History: Books 1-2.34. Translated by C. H. Oldfather. Cambridge: Harvard University Press, 1933. v. 1. HERÓDOTO. História. Tradução de J. Brito Broca. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1964. JOSEPHUS. Jewish Antiquities: Books 1-3. Translated by H. St. J. Thackeray. Cambridge: Harvard University Press, 1930. v. 1. PAUSANIAS. Description of Greece: Books 1-2 (Attica and Corinth). Translated by W. H. S. Jones. Cambridge: Harvard University Press, 1918. v. 1. PHILO. On Abraham. On Joseph. On Moses. 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