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Desconstrução Da Alegoria

2022, Revista Estética e Semiótica

Tanto se sugere desconstruir a alegoria quanto examinar o processo de desconstrução inerente à alegoria, desconstrução pela alegoria. Ela se torna uma chave metafísica. O que se pretende, no entanto, é algo que não seja apenas a dicotomia dos procedimentos, mas algo nos dois e entre os dois para, aos poucos, buscar algo que fique além deles.

https://doi.org/10.18830/issn2238-362X.v11.n2.2021.09 Desconstrução da Alegoria DECONSTRUCTION OF ALLEGORY FLÁVIO R. KOTHE Resumo: Tanto se sugere desconstruir a alegoria quanto examinar o processo de desconstrução inerente à alegoria, desconstrução pela alegoria. Ela se torna uma chave metafísica. O que se pretende, no entanto, é algo que não seja apenas a dicotomia dos procedimentos, mas algo nos dois e entre os dois para, aos poucos, buscar algo que fique além deles. Palavras-chaves: hermenêutica, alegoria, estética, tradição metafísica Abstract: We suggest here to deconstruct the allegory as well to examine the process of deconstruction that is inherent to the allegory, deconstruction through the allegory. What we pretend is, however, something that is not just the dichotomy of the procedements, but something that occurs in both e between both, to find, peu a peu, something that ist beyond them. Keywords: hermeneutics, allegory, aesthetics, metaphysical tradition FIGURA AMBÍGUA O título é ambíguo. Tanto sugere desconstruir a alegoria quanto poderia ser entendido como um processo de desconstrução inerente à alegoria, desconstrução pela alegoria. Ela se torna uma chave metafísica. O que se pretende, no entanto, é algo que não seja apenas a dicotomia dos procedimentos, mas algo entre os dois para, aos poucos, buscar algo que fique além deles. Pretende-se retomar a figura da alegoria para ver como, sendo considerada a expressão concreta de uma ideia abstrata, possa estabelecer um pontilhão para atacar tanto a “ideia” quanto a sua “representação”. A alegoria explica o renascimento italiano, 101 no qual artistas procuravam mostrar em obras supostas ideias da mente divina. Walter Benjamin a utilizou para estudar o drama barroco, como linguagem convencional imposta, mas também a poesia de Baudelaire, no qual diversas figuras alegóricas – o albatroz, o cisne, o espadachim, a prostituta, os gatos – servem para captar a tensão subterrânea da modernidade urbana. Paul de Man e Derrida propuseram a leitura alegórica de textos, mas essa busca de um sentido latente em conteúdos manifestos também norteou a psicanálise de Freud e Jung, que mostrava como aquilo que aparecia pode significar algo bastante diverso. A hermenêutica do sentido recôndito do texto leva a decifrar as estruturas subjacentes à tradição metafísica e às manifestações artísticas. Há uma tensão entre a concepção de alegoria como representação concreta da ideia abstrata, como linguagem convencional, como busca de sentidos reprimidos e como desconstrução de estruturas mentais do pensamento ocidental. A contradição interna da alegoria – de ela ser, por um lado, uma linguagem convencional, que impõe a vontade do poder dominante, das convenções vigentes num meio e momento, e, por outro, induzir a busca de um sentido oculto, que vá além dos conteúdos manifestos – leva a propor uma hermenêutica que dê conta dessa ambiguidade, a ponto de se supor que o texto projeta um texto que não podia ser expresso quando ele foi erigido. A alegoria é figura estratégica para pensar a relação entre a concretude da obra e o caráter abstrato – da “ideia, verdade, aura, alétheia” – que através dela se sugere. Leva a revisar o determinismo estrutural da tradição metafísica, bem como a contradição inerente à concepção de que ela seja, por um lado, uma linguagem convencional, imposta, e, por outro, seja um dizer alternativo, a enunciar e sugerir o que transcende a DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA superfície do dito. Não se pretende aqui restabelecer ou continuar a estética da arte sacra, mesmo que em versão laica e sob aparência filosófica. A escolástica acreditava que houvesse na mente divina um mundo de ideias feitas de puras formas, transpostas para as coisas na criação: o cosmos seria, nesse sentido, uma múltipla alegoria, a ser lida como livro da natureza. Na arte católica preponderou a alegoria, vista como representação concreta de uma ideia abstrata: as imagens serviam para representar noções como maternidade, paternidade, caridade, compaixão, amor ao próximo, salvação. A iconografia é uma linguagem cifrada, em que os fiéis acreditam entender ao que se referem as imagens. Os luteranos praticamente aboliram a presença de imagens pintadas ou esculpidas em suas igrejas, como que forçando o fiel a se catapultar diretamente ao divino, sem a mediação icônica: em compensação, enfatizaram o texto e a música. Por um lado, a estética cristã quer representar ideias da mente divina, celestiais; por outro, fez do feio o seu cerne, ao enfatizar a figura de Cristo crucificado. Fez o feio parecer bonito. Ao ver num condenado impotente O Salvador, impôs uma interpretação antitética àquilo que aparece e, ao mesmo tempo, dogmatizou essa “imaginação hermenêutica”. Quando filósofos tentam explicar a arte, não costumam ter a vivência interior do artista. Acham que a obra existe para encenar uma ideia, que é o que lhes importa: eles querem ser a destinação da arte: dar-lhes ideias. Hegel inventou o fim da arte para colher e recolher suas ideias na filosofia da arte. A ideia é vista na arte sacra como anterior à obra, como algo predisposto na mente divina, vagando pelos espaços siderais à espera do corpo quente da obra para entrar nele. A arte religiosa encena alegorias. É preciso discernir o cerne teológico da filosofia da arte. A alegoria fascina: o mágico filósofo encontra na cartola o coelho que ele mesmo colocou lá; o espectador acha que é elevado a um plano superior, a uma mensagem divina, quando fica surfando na onda do artista. O filósofo da arte tende a reduzir as obras às Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2 ideias que ele já tinha antes de se adentrar na obra. Tende a ter pouca sensibilidade para as dificuldades do fazer do artista, o sofrimento que é parir uma obra, um fazer que encontra o que não esperava. A fábula é um curto conto alegórico, destinada a revelar a moral ideativa da conclusão. Na alegoria da caverna em Platão, as sombras projetadas na parede somente são percebidas pelo que não é sombra, uma fímbria luminosa que, embora estreita, permite discernir algo além, algo outro diferente dela. A natureza do olho não é ver as sombras, mas a mente reconstrói o perímetro das sombras pelo halo que as circunda. Na grande obra filosófica ou poética, há uma luz que se projeta em seu contorno e, ao mesmo tempo, é gerada como que uma sombra luminescente, um halo que prenuncia e enuncia a obra no além de si mesma. Há certo ser na concretude da obra que sugere e prenuncia o que não pode ser plenamente enunciado. Há uma confluência subterrânea do ente da obra com a projeção de uma transcendência que a faz ser mais que a coisa da qual surge. Isso gera estranho entranhamento, estranhamento nas entranhas. Esse algo a mais, esse “je ne sais pas quoi” deriva de buscas do autor, mas fora da intenção consciente. É algo que ocorre, que conduz o texto, a textura da boa obra, para ser algo mais que a mera tensão entre conteúdo manifesto e conteúdo latente. É uma transcendência, uma aura, que acontece em algumas obras, mas não na maioria. É como que um milagre, que faz a obra ultrapassar suas origens, preservando o frescor do seu pensar. Religiões procuraram dar a sua versão para um fenômeno que não é de natureza religiosa, mas antes uma profanação, um levar para frente do templo. LINGUAGEM CIFRADA Central em Walter Benjamin é o conceito de aura, a aparição próxima de algo distante, como a au- 102 réola das nuvens ou a luminescência de um galho contra o sol. 164 O próximo da nuvem remete aí ao sol distante, antiga representação do divino. Sabe-se que o sol existe, está lá, não é a luminescência que o faz existir. Este é o esquema da arte sacra e da estética da alegoria que o consagra. Faltou a Benjamin rever o conceito de aura, despindo-o de seu comprometimento religioso, fazendo uma leitura crítica do cânone das obras consagradas. Na alegoria, o que aparece como imagem não é aquilo que ela significa: costuma ser uma linguagem convencional, em que cada parte da figura significa tais e tais coisas, diferente do que ela aparenta ser. A figura da Justiça pode, inclusive, ter no sentido literal de suas imagens uma conceituação mais correta do que o sentido convencional. Exatamente por isso se impôs um sentido que quer impedir que se veja o que está aí. A espada pode ser lida como a institucionalização da vontade do mais forte, a força como fundamento do poder: por ser este o seu efetivo sentido social, faz-se de conta que a espada seja apenas a capacidade da “equidade” impor sua vontade. A balança significa que consegue se impor quem tem “mais peso”, ou seja, mais ouro para colocar num prato, mas se faz de conta que significa apenas sopesar os argumentos. Representa-se a Justiça na figura de uma mulher, como se ela fosse sempre “compreensão, equidade, bondade”. O politicamente correto é uma forma de repressão sob a aparência de ser contra a opressão. No drama barroco, a alegoria evidenciou ser uma linguagem convencional, em que cada elemento significa algo outro, mas essa significação não se esgota nessa imposição, pois permite que se veja até mesmo o avesso do que a convenção imposta pelo poder quer que se leia. A leitura alegórica permite que se desvende esse outro, que está além do significado primeiro que se manifesta. Às vezes, o sentido mais oculto é o mais evidente e que não se quer ver: a justiça como imposição da força, como cega às estruturas iníquas da sociedade, a balança a sopesar quem tem mais ouro a colocar nos pratos. 165 Isso está no espectro da estética sacra, ao impor a leitura dogmática. A alegoria é linguagem cifrada, assim como são gestos, falas e roupagens em cerimoniais. Falta liberdade hermenêutica. Quando Benjamin procurou captar a modernidade de Baudelaire pela figura da alegoria, teve de subsidiar a compreensão da poesia na metrópole capitalista: a “ideia” de que partia estava em O capital de Karl Marx. Não foi esse, porém, o procedimento do poeta ao criar: buscou em figuras marcantes uma significação icônica, que permitisse apreender a vivência da grande metrópole. O poeta constitui novas figuras alegóricas – o albatroz, o espadachim, a prostituta, o cisne, o gato – e é preciso buscar sua significação pelo poema em que aparecem. Elas não são a repetição da convenção antiga, mas a invenção do novo. A boa obra de arte organiza em sua concretude algo que transcende sua singularidade e lhe garante caráter único, por ela ser a via de sugerir algo que não pode ser dito de outro modo. 166 Karl Solger considerou alegoria e símbolo como pilares da estética. A distinção entre os dois não é tão fácil quanto parece. O símbolo – o jogar junto elementos que estavam distantes – pode ter se originado do costume de escrever numa telha de barro os termos de um contrato, que era então posto no forno, ficando depois cada parte com uma parte, sendo as duas novamente juntadas ao concluir o negócio. É preciso ver como um elemento se encaixa no outro. Na leitura do sonho, é básico ver a que corresponde no conteúdo latente ao que nele está manifesto. Ao se abrir para a alteridade, o símbolo se torna alegórico; 164 KOTHE, Flávio R. Benjamin e Adorno: confrontos. Cotia, Editora Cajuína, 2ª edição revista, 2020, p.33 e ss. KOTHE, Flávio R. A alegoria, ensaio, São Paulo, Editora Ática, 1985. 166 KOTHE, Flávio R. Benjamin e Adorno: confrontos, Cotia, Editora Cajuína, 2ª edição revista, 2020. 165 103 DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA a alegoria, ao ser capaz de sugerir o que não se devia dizer, assume caráter simbólico. FALÁCIAS DO EVIDENTE As figuras retóricas têm sido vistas só como figuras verbais, especialmente do discurso político, como se ele fosse o melhor modo de chegar ao “bem comum” (e não de passar outros na conversa). Texto é, no entanto, um conjunto organizado de signos. É preciso aprender a ler palácios, templos, cidades, esculturas, pinturas. Aprender a ler a própria leitura. Na Arte retórica, Aristóteles disse que a retórica seria um modo de ajudar a verdade, pois ela por si é fraca e frágil. Aquilo que nos tempos modernos tem sido entendido como retórica, ou seja, o conjunto das figuras de linguagem, maneiras de impressionar ouvintes e leitores, desempenha papel pouco relevante no “Mestre”: só no fim, e de modo bem secundário, ele vai tratar de figuras como metáfora e metonímia. Aristóteles, logo após anunciar o primado da verdade, deixa de se preocupar, no entanto, com a verdade e, ao passar a estudar a psicologia das multidões, busca mecanismos coletivos com que o político teria de contar para manipular as massas no sentido de fazê-las acreditar que seria o “bem comum” aquilo que ele estaria propondo. A preocupação estava em ver como se poderia chegar a elas para que entendessem como “bem comum” aquilo que o político propunha. O que se pretendia era saber, entretanto, como manipulá-las, convencendo-as a fazerem o que o orador queria. A noção de “verdade” foi deslocada do desencobrimento da coisa para aquilo que se diz “sobre ela”. Muito profissional da palavra – políticos, religiosos, jornalistas, professores e outros – passou a viver da mentira como se verdade fosse, só porque enunciada por ele. Fake news rememoram fake oldies. Em Kant, a “verdade” de um conceito parece ocorrer para o sujeito quando as percepções que ele tem se Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2 mostram adequadas à “vontade” dele. Essa vontade costuma ser inconsciente. Não quer dizer, portanto, que o que lhe parece “verdadeiro” seja a apreensão plena do objeto, mas a constituição do objeto na subjetividade segundo as premissas e intenções desse sujeito dito cognoscente. Hegel subverteu isso ao propor a verdade como o captar o objeto em suas múltiplas determinações. Como essas determinações são predeterminadas e determinantes, a verdade se tornou busca, deixou de ser dogma. Se as figuras de linguagem são um modo de obter mais eficácia na manipulação da vontade coletiva, mostra-se contraditório querer que elas sejam a grande chave para compreender não só a linguagem e a manipulação do poder, mas portal de entrada para a verdade de todo o ser. Se a grande obra de arte sugere mais do que diz, sendo tal sugerir o mais importante de sua existência, então esse a mais não pode ser redutível ao que estaria no horizonte da linguagem. Esse “sugerir outro” fica além do âmbito literal da obra, embora esteja nele. DIZER O OUTRO Alegoria tem o sentido etimológico de dizer o outro, ou seja, é preciso saber decifrar na imagem um sentido codificado e socialmente estabelecido. Ela é rígida como linguagem convencional e trata de interditar que se faça uma leitura diferente da que interessa ao poder. Assim, a estátua da Justiça poderia ser lida como sendo cega às injustiças sociais, pesando na balança quem possa colocar mais ouro num prato, sendo ornamento da força bruta da espada, sendo acomodada, tendo os caprichos da mulher. Nada disso estaria de acordo com a leitura convencional, ainda que possa corresponder ao fático. Já se propôs a “leitura alegórica do texto” no sentido de decifrar a alteridade subjacente ao conteúdo manifesto. Isso quer fazer o desencobrimento do que está reprimido, embora a tendência histórica da alegoria tenha sido a consagração do discurso do do- 104 minus: portanto, ideologia codificada e imposta em signos. Talvez não se consiga ainda fazer o contrário do imposto pela poética da dominação. Mesmo que se tolerem algumas assertivas inoficiais, quando a leitura passa a questionar pontos realmente nevrálgicos da estrutura ideativa aflora a repressão e a leitura divergente é cessada e cassada. Tão relevante quanto a liberdade de criação é a liberdade hermenêutica. Um exercício dela pode ser descobrir aquilo que não foi dito, a palavra ocultada, aquela que ficou interditada, mas que é a chave e o sentido de todo o texto. Na estátua da Justiça, há o descaramento de exigir que se interprete outra coisa que não aquela que está mais evidenciada. Quer-se que a espada não seja a vontade do mais forte, que a balança não seja o interesse do mais rico a pesar no prato da decisão, que a venda nos olhos não seja a falta de consideração do sistema judiciário quanto às injustiças sociais ao supor que justiça seja aplicar a lei feita pelo poderoso, a figura da mulher como mais compreensiva. Em vez de camuflar o que seja a “Justiça” como parte do sistema de poder dominante, coloca-se tudo às claras e, ao mesmo tempo, impõe-se uma interpretação que pretende ser o oposto daquilo que está evidenciado. As pessoas então olham e não enxergam o que está mais à vista. A alegoria cristã é tão diferente da moderna que ambas parecem coincidir apenas no nome, designando coisas completamente diversas. Por que se finge coincidir o que não coincide? É como se a repetição do nome não quisesse assumir a ruptura radical subjacente. A alegoria católica pressupõe haver ideias puramente formais na mente divina, como expresso por Tomás de Aquino, e que essas ideias sejam representadas em pinturas, esculturas, templos, ritos religiosos, fazendo a encenação concreta da ideia abstrata: isso leva à repetição do mesmo, pois se pressupõe que tal ideia seja eterna: mesmo acontecimentos de 2000 anos atrás já estariam previstos desde sempre na suprema sapiência divina. Algo bem diferente é ver sob o conteúdo manifesto um conteúdo latente diferenciado, a que só é possível chegar mediante a leitura “alegórica”, ver 105 o outro subjacente à fachada que é ostentada; mais diferente ainda é o que fizeram Baudelaire, Mallarmé ou Kafka, que, a partir da vivências da realidade, construíram imagens que passaram a ser ícones significativos, sintomas de algo mais amplo. São três sentidos bem diferentes, cuja unificação sob o mesmo rótulo beneficia apenas a definição tradicional – a aparição sensível da ideia – o que acaba levando à reimposição da visão escolástica, de uma divindade originadora da ideia e de sua aparição. Mesmo na vertente grega, se a “alétheia” é primeiro uma deusa, o que se manifesta ao sabichão é uma divindade. Ela não se mostra a um escravo: prefere patrícios. A “revelação” tem caráter privilegiado, pois se considera o único a quem a divindade vai se manifestar. Há uma visão recôndita de superioridade e, portanto, de direito de dominar, manipular. A deusa não se mostra para qualquer um: tem seus eleitos, que são os seus eleitores: aristocratas com sangue divino. Se o que está subjacente como ideia é considerado de fonte religiosa, a leitura a ser feita exige que esteja de acordo com o que se pretende intencionado pela divindade. É “lógico” então que se faça uma exegese de acordo com os parâmetros da religião. Não se permite, nesse espectro, que se faça uma “leitura alegórica”, que possibilite ver conteúdos latentes que subvertam a pretensa ordem do que “está manifesto”, do que teria sido manifestado pela divindade. Aquilo que na psicanálise se chama de “atenção flutuante”, que busca apreender sentidos subjacentes à “livre-associação”, isso pressupõe que ela não seja “livre” e sim determinada por traumas, pulsões e tensões inconscientes. É como se o hermeneuta fosse um caçador a tentar surpreender passos incautos da presa. Ele faz isso a pretexto de “ajudar”, assim como o caçador faz um “upgrade” da vítima ao devorá-la. A questão é que o manifestado pode permitir leituras diferentes da prevista pela doutrina. Surge assim o espectro da “leitura alegórica”, como se o bom texto induzisse a ver correntes subterrâneas, em que a atenção é desviada para novas plagas e praias. O DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA problema é que ela pode se tornar um amontoado de fantasias hermenêuticas. Embora para o não-crente seja evidente que os “livros sagrados” foram todos elaboração de escritores dos quais não temos noções claras, da perspectiva da “fé” eles são inspirados por um deus, que apenas usou alguns escribas para ditar o que ocorrera ou devia ser pensado. Baudelaire usou o antigo recurso de construir determinadas cenas – como a do albatroz desajeitado no tombadilho ou o cisne perdido no Carrefour – para captar aspectos sintomáticos da vida moderna na metrópole decorrente da industrialização capitalista. Essas figuras são mais, no entanto, do que uma reportagem plangente de um aqui e agora. Elas propõem algo que não é apenas urbano nem local: conjugam entes determinados com algo que é mais abrangente. Há uma conjunção subjacente, como se emanassem de um mesmo fundamento e só se dividissem no processo de manifestação. É o escritor que se põe a elaborar a obra de modo laico e sem mistificação, para apreender algo transcendental, mas que não é divino. O resultado pode ser maravilhoso pela habilidade de dizer algo de modo marcante que sugere um descortínio que não se tinha antes. Não é uma alegoria, no sentido de representar uma ideia abstrata prévia, mas é uma busca do que está contido numa cena ou figura que a fantasia prefigura na mente do autor e que ele tem o dom de expressar em palavras precisas e necessárias. Não deriva de uma ideia anterior. O realismo socialista foi, de certo modo, uma regressão à estética da alegoria que alimentava a arte sacra. Queria divinizar determinada política, o artista tinha de fazer o que o partido queria. Não se concedia liberdade de busca. A “verdade” já era anterior à obra. Esta era feita para demonstrá-la. Como na arte sacra. Diferente disso é o que está proposto por Poe, Bau- 167 delaire, Mallarmé, Kafka e outros bons autores. A construção imagética é uma busca, cujo resultado não se sabe de antemão. O autor começa fazendo algo que provém de uma inquietação, uma fantasia que não quer deixá-lo sossegado e o leva a gerar e parir imagens. Assim como não se pergunta a uma grávida se quer parir, não cabe perguntar ao artista se ele está ou não disposto a fazer a obra. Ele faz porque precisa. Não é nem opção. A obra está a usá-lo para se nascer. Ela é uma busca, a “ideia” é uma resultante, não uma fonte. FAKE OLDIES Algo sintomático ocorre nos milagres bíblicos. É evidente para o não-crente que não se para o giro da Terra ou o suposto movimento do Sol para que Josué conclua uma injusta conquista: quer-se, porém, que se acredite, a pretexto de que a terra invadida era a prometida por Jeová; é evidente que não se abre o mar com o gesto de uma varinha, mas isso é celebrado no texto dito sagrado e na iconografia; é evidente que ninguém retorna do mundo dos mortos, no entanto é isso que se diz que Cristo teria feito com Lázaro. Na linhagem greco-romana de crenças, é evidente que uma pitonisa prevê o futuro, que uma criança recém-nascida estraçalha serpentes, que Prometeu criou a humanidade e a salvou da destruição. Quer-se que se acredite na ficção, para não se perceber a ficção que é o divino. Quando Rafael pinta um anjo soltando Pedro da prisão ou “O milagre na missa em Bolsena” em que a hóstia teria começado a sangrar, os teólogos que instruíram o pintor queriam que se acreditasse naquilo que estava sendo representado, como se não fosse fake, como se, por estar na tela de um pintor consagrado já fosse por si verdade sagrada. 167 Segundo os teólogos, tudo já estava previsto na mente CHAPMAN, Hugo, HENRY, Tom e PLAZZXOTA, Carol. Raffael, von Urbino nach Rom, Stuttgart, Belser Verlag, 2004, p. 286 e 287. Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2 106 divina: a criação de Adão e Eva, o pecado original, a concepção da Virgem Maria, Jesus menino, Cristo crucificado, Cristo ressurrecto, Pedro na prisão, a missa em Bolsena. Confunde-se verdade com crença. O temor reverencial diante da arte serve ao logro. Quanto maior a competência técnica do pintor, pior o uso que faz. O pressuposto é que haveria uma “ideia transcendental” que seria divina, crença conveniente à instituição que vive disso. A chave da transposição da ideia para a obra é a figura da alegoria. Ela serve para fazer, mas ora serve para desfazer. Esse esquema tem servido para encenar o que seria arte. Ele está, no entanto, abalado por dois lados. Pelo lado da filosofia, está expresso que não se sustenta a duplicação metafísica do mundo, ainda que a maior parte das pessoas no Ocidente cristão acredite nela; pelo lado da produção artística, não se tem mais como parâmetro de artisticidade a encenação de crenças dogmáticas. A obra de arte se constitui para sugerir algo que a transcenda, mas que não é uma “ideia a priori”. Ela é a busca inquieta desse fantasma que paira na mente do artista e que faz uso dele para se concretizar. Só quando o fantasma se corporifica no “suporte material” é que o autor tem maior certeza do que estava buscando. Mesmo assim, quando retornar ao que deixou, estará tentado a modificar detalhes aqui e ali. Esses aperfeiçoamentos somente são possíveis porque o trabalho grosso foi feito, algo que estava no artista exigindo ser posto à luz. Karl Solger achava que arquitetura por excelência era o templo, que devia ser a expressão simbólica ou alegórica da ideia. 168 Se a obra não expressasse uma ideia, não seria arte. Para ele, Vitrúvio e Alberti não haviam entendido isso. A noção de que a obra de arte deveria expressar uma ideia estava, porém, implícita neles: um queria mostrar a grandeza do im- pério romano e o caráter divino do César; o outro, a perfeição divina e o poderio da Igreja Católica. Tais “ideias” eram verdades para eles, mas revelaram ser ideologias. O pressuposto do idealismo é que a ideia seja sempre verdadeira. Mas que “ideia” é essa que se expressa no templo? Seria ela ainda verdadeira? O pressuposto “pagão” é que os deuses existiam, que o imperialismo romano merecia ser celebrado, que o César era divino. O pressuposto “católico” é que haveria um deus todo poderoso, carente de afeto, criador de tudo e até de uma vida post-mortem, sendo a Igreja sua representante na Terra. Um enaltecia o genocídio de povos invadidos pelas tropas romanas; o outro, a perseguição e matança de apóstatas, hereges, infiéis. Tanto para o patrício romano quanto para o bispo católico, era “justo” e “bom” e “correto” o que propunham. Foram elevados pelas instituições a que serviam e levados sem críticas séculos afora. A ética é um conjunto de usos e costumes de uma época e um meio. Isso pode não ser bom nem justo para outros, mas é o ajustado aos interesses que então dominam o grupo que os propõe. O pressuposto católico é que o homem seria criação de Jeová, assim como os sacerdotes de Apolo recebiam donativos para que o Sol continuasse girando em torno da Terra. Cabia suplicar pela misericórdia divina, para obter salvação. Feitos os donativos e as rezas a Apolo, se houvesse dia seguinte já estava provado que o fiel havia sido atendido. Torres de igrejas se erguem para o alto como braços em súplica. O templo expressa em pedra o gesto da comunidade, petrifica o que vale. A “verdade” pretende estar nessa correspondência. É um paralogismo imagético: parece lógica, sem ser. Os braços das torres se erguem ao céu em busca de resposta, a súplica imagina ter uma resposta, sem ter noção de que só existe 168 SOLGER, Karl W. F. Vorlesungen über Ästhetik, reprint da edição original de L. Heyse, Leipzig, 1829, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973, há versão italiana. SOLGER, Karl W. F. L’art et la tragédie du beau, édition d’Anne Baillot, Paris, Edition Rue d’Ulm, 2004. 107 DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA na imaginação. multidões ao fanatismo e países à desgraça coletiva. Tomás de Aquino endossou a crença de que Deus teria todas as formas do universo inteiro em sua mente, de todas as coisas que existiram e poderiam existir. Aquino diz que segue Aristóteles, mas o trai, fazendo uma inversão sintomática. O Mestre disse claramente que com o desenho de uma serra não se consegue serrar nada. Condição básica é que se tenha o material para fazer uma serra. Matéria é algo que perdura, enquanto a forma vai variando. Para o grego, a matéria seria mais importante que a forma. Aquino diz exatamente o contrário: na mente divina haveria um infinito repertório de formas possíveis e a partir delas é que teriam sido feitas as coisas. As ideias de Platão foram interpretadas na linha do neoplatonismo cristão, como um conjunto de formas abstratas: o cristianismo é um neopitagorismo. Aristóteles já disse que os números não geram as coisas: as coisas é que geram os números. Para Platão, ideias não eram formas abstratas, mas protótipos com forma e matéria. Platão não é platônico. Diz, no final da República, que o mundo das ideias não existe, seria apenas o reflexo das coisas no grande espelho da mente: primeiro existem as coisas, depois o seu reflexo na mente. O cristianismo ignorou isso, não servia à sua ideologia. Tomás de Aquino dizia que era impossível haver um órgão do corpo que pensasse, pois o pensamento tinha de ser puramente espiritual. O escritor em Platão vai além do filósofo nele: gerou imagens que permitiam pensar adiante. Tem-se evitado isso por dois milênios e meio. ENCENAÇÕES DA IDEIA Aristóteles criticou expressamente o pitagorismo, que supunha que os números poderiam gerar as coisas. Dizia que os números derivam das coisas, as coisas não são criadas pelos números. Existem primeiro as coisas, depois elas são contadas. O número é uma formalização do contar as coisas. Aquino é um pitagórico, que substitui o número pela ideia puramente formal, como se fosse uma abstração de tipo numérico. A concepção de veritas como “adaequatio rei et intellectus” é lida em geral como intelecto humano, mas este teria de captar o que estaria no intelecto divino. Quem faria isso? O teólogo católico. Quem expressaria a verdade suprema, de modo infalível? O papa. Sendo argumentação em causa própria, fingia não ser, mas servia para dizer aos artistas como deveriam fazer as obras, supondo que seriam verdadeiras sendo sacras, postas em templos. Até hoje não se questionou essa disseminação de fake oldies na “arte sacra”. Se o argumento escolástico diz que a obra deve ser verdadeira, isto se volta contra ele. A “tolerância” manifesta na “história da arte” consagra a mentira pretérita e deixa o povo preparado para políticos demagogos arrastarem Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2 Platão não se define por uma das posições, idealista ou materialista. Ele dá maior ênfase à idealista porque é Sócrates quem fala. Só que ele é irônico. Nunca diz o que pensa. Prega o contrário do que pensa e se diverte com os outros que acreditam naquilo que ele diz. Isso fica explícito no Simpósio. Nietzsche ficava irritado com Sócrates porque ele teria propiciado a profunda perversão filosófica que seria o cristianismo. Platão deixou claro, no entanto, que a teoria idealista não se sustentava. Nietzsche se perguntou, no Le livre du philosophe: por que eu xingo tanto Sócrates? E respondeu: porque sou parecido com ele. Nietzsche disse que cristianismo é platonismo para os pobres, não só por ter sido a religião de pescadores e escravos, os extratos mais baixos da sociedade, mas de pobres de espírito, pessoas que acreditam em teses ingênuas, incapazes de resistir à crítica. Hegel argumenta que não tem sentido falar de forma separada de conteúdo. Toda forma é forma de algo, toda matéria tem um formato. A cavalidade do cavalo está em cada cavalo, o abstrato é concreto nele, o concreto tem nele a ideia que o forma, a espécie a que ele pertence. Heidegger disse que não bastaria inverter o platonis- 108 mo cristão para entender a “ideia” em Platão, pois isso seria o mesmo pelo avesso. Sugere que a “ideia” deva ser tomada como um “protótipo”, com forma e matéria, um tipo primeiro, que serve de modelo aos demais: não tem apenas a forma, mas também o material de que se constitui. Seria preciso observar, no entanto, que esse protótipo também não existe. Não existe um armazém em que estejam depositados os protótipos de todas as coisas que já existiram e ainda venham a existir. Como seria preciso prever as metamorfoses de tudo, elas teriam de estar todas já no “mundo das ideias da mente divina”: isso duplicaria o mundo, levou ao panteísmo, deus se tornou dispensável. Vivemos a “era do homem”, como o animal que conseguiu alterar a temperatura do planeta, destruiu e continua a destruir milhares de espécies de animais e plantas. As viagens espaciais permitem vislumbrar a fragilidade da Terra, a grandeza infinita dos espaços siderais, a pequenez do ser humano, mas ainda não levaram a uma reformulação radical do homem, do seu agir e pensar, saber aquilo que deve ser preservado e em função do qual vale a pena viver e morrer. Isso é mais amplo do que ser de direita ou de esquerda, ser democrata ou totalitário. A revolução filosófica terá de vir pela cosmologia. O homem precisa mudar. FALÁCIAS DA SINÉDOQUE A alegoria autoritária é um sinédoque que não se compreendeu. A sinédoque pretende ser o todo, mas expõe só um aspecto. Faz parte da ânsia totalitária, que não quer a verdade como captação de tudo o que determina o objeto. Se não há um todo último, as totalizações são limitadas e mais ou menos artificiais. Não há, portanto, uma sinédoque última que, em sua parte manifesta, conseguiria sugerir e dizer o que seria a totalidade nela encenada. Todo espírito totalitário acredita que nele a totalidade se manifesta. Pretende estar falando em nome do todo ou até representar o todo em palavras, gestos, ritos, indumentárias. Ainda que declare ser um pobre servo, o único senhor 109 que reconhece é o “Todo Poderoso”, do qual imagina ser uma extensão, um mediador. Na sinédoque entendida como “pars pro toto”, velas em vez de navios, a parte que se apresenta como um todo serve para sugerir que aquilo que nela aparece seria o todo. Sugere que a navegação deva ser pela força do vento. Um todo parece aparecer como aquela parte que serve para concentrar sua significação e excluir como impertinente tudo o que não é dito naquela parte. Ela nem mais se reconhece como parte, pois assume ser a plena representação do todo, e o todo só poderia ser aquilo que ela diz que ele é. A ideologia se utiliza da sinédoque como adequado e inconsciente estratagema. O totalitário tanto mais pretende ser o todo quanto mais parcial ele é como tanto mais quer poder quanto mais incompetente. A arrogância tende a ser proporcional à ignorância. Pretende absolutizar uma perspectiva parcial como se fosse irretorquível, não havendo nada mais a considerar senão o nela exposto e, se possível, imposto. Ao espírito dogmático falta espírito e sobra dogma. Mostra-se autoritário porque acha que fala em nome da única totalidade certa, a dele ou da divindade que ele representa. Quanto mais for parcial, mais pretende ser total, como se fosse a única certeza. Os pobres de espírito acreditam nisso, e eles tendem a ser maioria. Como há, no entanto, pessoas que sabem mais sobre algo, as assertivas que fazem – ou calam – não são arrogância e sim impaciência com quem pretende ostentar uma sapiência que não tem. Toda pintura é uma sinédoque, todo projeto arquitetônico, mesmo que em três dimensões, é uma sinédoque em miniatura, assim como o prédio acaba sendo apenas uma pequena sinédoque da vida que nele vai transcorrer. Uma casa pode ter, por exemplo, uma torre que cita um castelo: isso é sinédoque. Pode ser vaidade do dono, que finge estar construindo um castelo quando está construindo apenas uma casa que não chega sequer a ser uma grande mansão, mas pode ser uma citação de “my home, my castle”: esse é o meu espaço, só entra quem eu quero. Mesmo que a substituição do todo por uma parte DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA que queira qualificá-lo de determinado modo, como se fosse feita apenas para mentir, como ocorre na manipulação ideológica, a sinédoque não seria uma figura desprezível: ela mostraria essa estruturação e, assim, poderia decifrar o que foi feito. Se é apresentada determinada faceta de algo para dizer que tudo é assim, ou se cria uma fachada para ocultar o que está subjacente ou até se usa a verdade para melhor mentir, o próprio deslocamento é sintoma do que está por baixo. Fachadas podem ser também necessárias para que verdades difíceis possam ser ditas, assim como é preciso usar máscaras, mesmo de civilidade, para sobreviver em meio inimigo. A sinédoque é como a máscara: tanto serve para esconder o rosto real quanto para mostrar uma dimensão oculta da personalidade. Toda fotografia é uma sinédoque, pois sempre recorta parte de um todo maior (que, por sua vez, sempre é parte de outro todo ainda maior: nunca se tem, portanto, a totalidade e, por via de consequência, também nunca um fundamento último para alguma verdade absoluta). Enquanto reprodução de uma realidade ou constituição de uma realidade própria, as artes plásticas também são, nesse sentido, sinédoques, partes de um todo maior. Como ninguém consegue perceber a totalidade de nada e nem de tudo, como Deus Onisciente é o símbolo lógico dessa impossibilidade, toda totalidade com que operamos é apenas uma parte, uma parcialidade. A sinédoque pode ser o meio para sugerir o que se tem a dizer em curto espaço ou curto tempo, ela é um modo de fazer a verdade aparecer de modo mais contundente. A verdade é sempre o todo, mas o todo é o que a gente nunca tem. Nele pode estar escondido, porém, justamente aquele detalhe que acaba sendo o mais decisivo para explicar um enigma, encaminhar um impasse, resolver um imbróglio. Em nome do que não se tem e nem se pode ter, acaba-se negando aquilo que se tem. Será que essa conceituação da verdade, oriunda do último Hegel, peca por uma origem metafísica? Ou será ela um modo de formular o que normalmente não se pode dizer? Se nunca se tem a totalidade, tudo se torna sinédoque de um todo sempre ausente. Ele é uma sombra Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2 que acompanha o dito como se fosse o seu ser em forma de não ser. Se o todo nada é, cada parte fica acompanhada pela ausência e negação de si. Ao não se ter a totalidade, não se pode dizer que a parte seja propriamente parte. Esta, ao se revelar estratégica para toda a percepção e todo o conhecimento, para todo desvio da atenção e toda deformação, permite perceber o que se passa e, ao mesmo tempo, nela se dilui, tornando-se como que nada. Se tudo é sinédoque, nada é. Se o todo sempre é parte de um todo maior e se toda parte é um todo de partes menores, então a sinédoque não é sinédoque: oxímoro e paradoxo seriam sua verdade. Este se tornaria a figura das figuras, na medida em que expressaria de modo mais condensado a natureza de todas elas. Ele acabaria sendo superado, no entanto, não só pela tendência de os contrários acabarem pelo conflito com a união que constituem. Cada um dos termos polarizados seria também a negação de si mesmo. Os contrários não deixam de ser contrários, mas também são aliados secretos, complementando-se em sua conjunção. Enquanto ela impera, são incapazes de se ultrapassarem, abrindo espaço para uma alternativa que nenhum deles admite nem permite. O CONSTRUCTO ALEGÓRICO A obra de arte atual apenas encena a lembrança do que poderia ter sido, mas não foi. Ao propor um “signo”, faz dele o sinal de uma ausência. Encena-se a ruína da linguagem. Não há mais o que dizer. A consciência da perda trágica não permite mais afirmar nada como solução dos choques da existência. Ainda há o momento em que, como uma luz que vai se apagando, a obra encena o seu esforço de sugerir essa perda, mas não se firma uma ideia que resplandeça divina. A arte hoje não se define mais como aparição sensível da ideia, da verdade, da alétheia. Ela não diz mais com clareza. No máximo, sugere. Sua signifi- 110 cação apenas se acena de longe pelos significados postos e propostos pela obra. Ela é antes ausência que presença, antes um balbuciar que uma fala. A encenação da obra encena uma figura virtual, que é aquilo que a obra realmente quer configurar. É algo sugerido pela obra, uma sombra mais que uma auréola, está contido nela, mas não se confunde com ela, embora se funde nela. É a sugestão de uma ausência que é presentificada, como uma sombra que acompanha a obra, é seu sentido como também sua negação. O poema hermético radicaliza essa operação, pois o que ele institui é tão fragmentado, tão elíptico, que fica mais a caminho da não linguagem do que da expressão clara de algo. Há, portanto, uma contradição na linguagem da arte: ela se faz entre querer dizer e não poder dizer, entre sugerir o que não consegue dizer e a necessidade de ir além da vaga sugestão. Surge então a pergunta se, a pretexto de ultrapassar a tradição metafísica, não se recaiu novamente na estética da alegoria, em que se teria a representação concreta de uma ideia abstrata, um produto a acenar algo divino? Em vez de progredir se recairia no mesmo, que retornaria sob a aparência de ter superado a duplicação metafísica, de não ter retornado ao mesmo. As demais figuras de linguagem também elaboram a conexão entre algo que é exposto e algo que por ele fica sugerido. Os românticos alemães, como Jean Paul e Tieck, insistiram na ironia, figura em que uma antítese ao dominante é desenvolvida, dando espaço ao sujeito para desenvolver seus pensamentos fora do âmbito do poder. Chklóvski mostrou como o Macbeth e Don Quijote são elaborados à base da figura retórica do oxímoro, a junção íntima de opostos. A hipérbole pode levar a conexões engraçadas, a exageros que não se sustentam, como pode também para examinar as sequelas do que fica oculto no cotidiano. Quando o papa usa roupagem branca nas cerimônias católicas, ele está se vestindo como “Sua Santidade”, ou seja, como alguém impoluto, sem pecado, capaz de conversar com Deus e trazer mensagens di- 111 vinas para a Terra. Ninguém mais pode aí usar apenas branco. Os cardeais usam vestimentas encarnadas, que eram reservadas à nobreza. Essas cores são alegorias ou são símbolos? De qualquer modo, são uma linguagem que foi convencionada pela instituição, a exigir respeito e submissão. A questão que aí se omite é que não é simplesmente um signo num processo de comunicação. Há algo na obra de arte que se transmite, se sugere, mas não se comunica: em vez de tornar algo comum, um comunicar, abre-se uma transcendência. O símbolo era a figura de linguagem que tipificava essa dimensão ignota da obra, enquanto a alegoria servia para instrumentar a obra no sentido de divulgar e auratizar certa ideologia, proposta como ideia, mas que era antes uma crença da igreja, da aristocracia, do país. Era apresentado como se fosse uma verdade, uma “ideia”, mas era propaganda com a utilização de recursos estéticos. Os artistas costumavam acreditar naquilo que propagavam: os princípios da fé, a grandeza da aristocracia, o direito divino do rei, a santidade das figuras eclesiais. Algo diferente se dá quando a preocupação é apresentar algo forte, comovente, que precisa ser dito rompendo as barreiras do discurso dominante. Mesmo o autor quando elabora fica perplexo diante do que vai sendo sugerido pelo artefato à sua frente. Há lampejos que ele não sabe de onde aparecem, mas que ele aprende a seguir, pois são mais espertos e pertinentes que o cálculo frio. Quem acredita na ideologia do mecenas também procura fazer algo impactante, algo que ele acha que precisa ser apresentado como quem coloca um embrulho festivo numa compra de brechó. A mera diferença de postura não diferencia a boa da má obra. Como é que artistas tão inteligentes e hábeis no renascimento italiano foram tão limitados em seu horizonte? A rigor, teríamos de considerá-los antes artesãos do que artistas, já que suas obras são antes panfletos bem-feitos de propaganda religiosa ou aristocrática do que veiculadoras da verdade. Esta não se reduz a documento do pensar de uma época e lugar. Ela precisa ser válida ainda hoje, precisa DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA trazer algo novo, pois a grande obra é o único modo de sugerir algo que não pode ser dito em outra linguagem. Fica mais fácil repetir o consagrado do que enfrentar a descoberta da validade do novo. Reconsagrar o já consagrado, como faz a estética da alegoria sacra, não pensa o novo, o alternativo. A concepção teológica de infinitude marcou a estética, supondo-se que as grandes obras estariam fora do tempo, valeriam para todos os lugares, abrigariam uma sapiência inesgotável e seriam perfeitas. Nenhuma obra é assim. Tal teoria não sabe que é teologia disfarçada. Sob as belas roupagens artísticas desfila a crença desnuda. Ela foi rompida, sem querer, pela escola de Konstanz, com sua estética da recepção: em vez de se ater apenas à relação entre autor e obra, como tem sido feito sob a suposição de que o artista seja uma figura iluminada a trazer luz celestial aos pobres mortais, enfatizou a relação entre obra e receptor. Isso levou a perceber que obras consideradas “clássicas” foram esquecidas durante muito tempo (assim como podem ficar fora do alcance de grandes regiões). Nessa historiografia montada na relação obra-receptor, e não autor-obra, se perceberam coisas estranhas. O que se abre é a perspectiva de que seria preciso ter tanta liberdade para a hermenêutica quanto o iluminismo pleiteou para a criação de arte. ADENDO Quando Kafka constrói ficções como O processo ou A metamorfose, elabora em situações concretas de personagens a presença de discriminações, prepotências, impotências que se encontram diluídas na sociedade. A vivência dele podia ser a do judeu, que era minoria em Praga, numa cidade que era parte de uma minoria pertencente ao Império Austro-Húngaro, mas ele escrevia na língua senhorial. A situação poderia ser invertida, por exemplo, nas vivências de um não-judeu em Israel em torno de 1970 – 2020, ou até mesmo de um judeu pertencente a uma minoria lá menos prestigiada: a pessoa poderia ler a sua própria situação na fantasmagoria intuída por Kafka para encenar Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2 o que se passava na sua região natal uns cem anos antes. A ficção constrói algo que pode ser vivenciado por leitores que não pertencem nem a um nem a outro desses esquemas de recepção. O autor que fuja ao esquema teológico trata de dar forma às inquietações que perambulam em sua mente, imagens fugidias que querem dizer algo que não se consegue mais que sugerir, fantasmagorias obsessivas que é preciso expor para poder domar. Elas não são oriundas de uma teologia prévia baseada num livro sagrado. São invenção do autor, que se assume solitário na empreitada, cujo resultado ele não pode avaliar. Pode dar pouca importância ao que será relevante para outros assim como dar relevância ao que para outros será irrelevante. Há um imponderável nisso. Há, porém, filtros socialmente estabelecidos que podem descartar obras de melhor qualidade, promover obras menores, não levar em conta o que poderia elevar o gosto vigente num meio e momento. Podem ser filtros étnicos, em que uma minoria que se apresenta como perseguida e se dá ao direito de perseguir outras, que ela considera culpadas, promovendo autores que promovam a sua ideologia; filtros sociais, em que a oligarquia latifundiária promove autores oriundos de sua classe; filtros políticos, em que se promovem artistas convenientes ao partido que está no poder enquanto se difamam ou se sufocam os que não forem coniventes; filtros morais, em que determinado tipo de moralidade sexual passa a ser considerada válida em detrimento de outras; filtros religiosos, que podem chegar ao ponto de impor um nihil obstat para só permitir a publicação do que estiver de acordo com as premissas da crença; filtros teóricos, em que determinada filosofia se impõe, passando a destratar ou sabotar as que não forem seguidoras de sua linha. Há mais tipos de filtros do que se consegue elencar. São perversos ou justiceiros, mas funcionam mais do que se admite: é de sua natureza se esconderem, não parecerem que existem. É de sua convicção que melhoram a qualidade da cultura que se bebe. Querem fazer tudo certo, enquanto estragam o que lhes 112 convém. A ignorância pode ser um filtro, ao não deixar passar o que a ultrapasse. O dito pouco popular “não se deve dar pérolas aos porcos” faz parte da política populista que gosta tanto do povo que prefere que ele fique como está. Finge ser uma postura de esquerda, enquanto mantém a imposição oligárquica. çava a transposição de tecnologia de ponta para o país. Conseguiu criar o modo mais competitivo de produção dos últimos decênios, fez uma revolução interna melhorando as condições de existência do povo, mas gerando também uma oligarquia de milionários que parecia inviável e indesejável ao modelo soviético. Os porcos têm razão ao não quererem pérolas: elas são indigestas, quebram os dentes, não são gostosas. Eles preferem milho: estão certos, para eles. Se pérolas forem jogadas no solo que habitam, vão pisar em cima, ignorá-las, fazê-las desaparecer na lama, no lodo, nos detritos. Tendo se desfeito da contrapartida socialista na Europa e nas Américas (com exceção de Cuba, rotulado como capitalismo de Estado), o capitalismo seguiu a tendência de concentrar renda e pouco se importar com a miséria das grandes massas. Para manter e aumentar os privilégios, as oligarquias tenderam a optar por regimes fascistas, que usaram da democracia para chegar ao poder e de processos indecentes para alcançar e manter o poder. O pressuposto filosófico parece inverter a tese de que o homem é bom por natureza, para acabar postulando que ele deve ser mau para a natureza para obter o máximo para si. Assim, a era do homem escancara a destruição da vida no planeta. Bilionários pagam para si viagens espaciais, como se pudessem escapar com dinheiro às condições de vida na Terra. Na revolução russa, Lênin quis introduzir, com a ajuda de Górki, boas traduções dos grandes clássicos mundiais nas escolas e na leitura popular. Milhões e milhões de exemplares foram impressos. No fim, a revolução socialista fracassou porque partia do pressuposto de que o homem é bom por natureza, mas a sociedade é que o corrompe. Os comunistas no poder esperavam que, suprimida a exploração dos grandes proprietários, cada trabalhador daria o melhor de si para o bem de todos. Isso pode até ter funcionado com milhões deles durante alguns anos. Com o correr do tempo, no entanto, como o emprego era garantido e não devia haver desemprego, os trabalhadores foram se acomodando, cada um tratando de fazer o mínimo que podia para o máximo de vantagens que conseguisse. A velocidade de uma caravana no deserto é a do camelo mais lento. Sem lenha para fazer churrasco dele, há uma acomodação geral e o sistema acaba falindo por dentro. Isso acontece também em cooperativas nas quais os cooperativados ficam acumulando vantagens para si, em detrimento da produtividade da empresa. A falência do comunismo europeu decorreu de uma premissa filosófica errônea. Crendo ter a filosofia certa, a discussão filosófica mais profunda foi estiolada, as reformas econômicas não foram feitas, a modificação do sistema administrativo e política foi postergada até que era tudo tarde demais. Na China, o partido criou diversas empresas no mesmo ramo, obrigando-as a competirem entre si, enquanto for- 113 A maioria das pessoas, desempregadas e sem boa formação escolar, descobre que sua existência é inútil. Quanto melhor a formação, mais deslocadas ficam. Seria melhor não terem nascido e, se nasceram, que morram o quanto antes. Sileno ressurge como fantasmagoria. Promessas de redenção socialdemocrata não conseguem se cumprir. Os elos das oligarquias são mais fortes. BIBLIOGRAFIA CHAPMAN, Hugo, HENRY, Tom e PLAZZXOTA, Carol. Raffael, von Urbino nach Rom, Stuttgart, Belser Verlag, 2004, p. 286 e 287. KOTHE, Flávio R. Benjamin e Adorno: confrontos. Cotia, Editora Cajuína, 2ª edição revista, 2020, p.33 e ss. KOTHE, Flávio R. A alegoria, ensaio, São Paulo, Editora Ática, 1985. DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA SOLGER, Karl W. F. Vorlesungen über Ästhetik, reprint da edição original de L. Heyse, Leipzig, 1829, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973, há versão italiana. SOLGER, Karl W. F. L’art et la tragédie du beau, édition d’Anne Baillot, Paris, Edition Rue d’Ulm, 2004. Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2 114