https://doi.org/10.18830/issn2238-362X.v11.n2.2021.09
Desconstrução da Alegoria
DECONSTRUCTION OF ALLEGORY
FLÁVIO R. KOTHE
Resumo: Tanto se sugere desconstruir a alegoria
quanto examinar o processo de desconstrução inerente à alegoria, desconstrução pela alegoria. Ela se
torna uma chave metafísica. O que se pretende, no
entanto, é algo que não seja apenas a dicotomia dos
procedimentos, mas algo nos dois e entre os dois
para, aos poucos, buscar algo que fique além deles.
Palavras-chaves: hermenêutica, alegoria, estética,
tradição metafísica
Abstract: We suggest here to deconstruct the allegory
as well to examine the process of deconstruction that
is inherent to the allegory, deconstruction through
the allegory. What we pretend is, however, something
that is not just the dichotomy of the procedements,
but something that occurs in both e between both, to
find, peu a peu, something that ist beyond them.
Keywords: hermeneutics, allegory, aesthetics, metaphysical tradition
FIGURA AMBÍGUA
O título é ambíguo. Tanto sugere desconstruir a
alegoria quanto poderia ser entendido como um
processo de desconstrução inerente à alegoria,
desconstrução pela alegoria. Ela se torna uma
chave metafísica. O que se pretende, no entanto,
é algo que não seja apenas a dicotomia dos procedimentos, mas algo entre os dois para, aos poucos, buscar algo que fique além deles.
Pretende-se retomar a figura da alegoria para ver
como, sendo considerada a expressão concreta de
uma ideia abstrata, possa estabelecer um pontilhão
para atacar tanto a “ideia” quanto a sua “representação”. A alegoria explica o renascimento italiano,
101
no qual artistas procuravam mostrar em obras supostas ideias da mente divina. Walter Benjamin a
utilizou para estudar o drama barroco, como linguagem convencional imposta, mas também a poesia
de Baudelaire, no qual diversas figuras alegóricas
– o albatroz, o cisne, o espadachim, a prostituta, os
gatos – servem para captar a tensão subterrânea da
modernidade urbana.
Paul de Man e Derrida propuseram a leitura alegórica de textos, mas essa busca de um sentido latente
em conteúdos manifestos também norteou a psicanálise de Freud e Jung, que mostrava como aquilo
que aparecia pode significar algo bastante diverso.
A hermenêutica do sentido recôndito do texto leva
a decifrar as estruturas subjacentes à tradição metafísica e às manifestações artísticas. Há uma tensão
entre a concepção de alegoria como representação
concreta da ideia abstrata, como linguagem convencional, como busca de sentidos reprimidos e como
desconstrução de estruturas mentais do pensamento ocidental.
A contradição interna da alegoria – de ela ser, por
um lado, uma linguagem convencional, que impõe
a vontade do poder dominante, das convenções vigentes num meio e momento, e, por outro, induzir a
busca de um sentido oculto, que vá além dos conteúdos manifestos – leva a propor uma hermenêutica
que dê conta dessa ambiguidade, a ponto de se supor que o texto projeta um texto que não podia ser
expresso quando ele foi erigido. A alegoria é figura
estratégica para pensar a relação entre a concretude da obra e o caráter abstrato – da “ideia, verdade,
aura, alétheia” – que através dela se sugere. Leva a
revisar o determinismo estrutural da tradição metafísica, bem como a contradição inerente à concepção de que ela seja, por um lado, uma linguagem
convencional, imposta, e, por outro, seja um dizer
alternativo, a enunciar e sugerir o que transcende a
DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA
superfície do dito.
Não se pretende aqui restabelecer ou continuar a
estética da arte sacra, mesmo que em versão laica
e sob aparência filosófica. A escolástica acreditava
que houvesse na mente divina um mundo de ideias
feitas de puras formas, transpostas para as coisas na
criação: o cosmos seria, nesse sentido, uma múltipla
alegoria, a ser lida como livro da natureza. Na arte
católica preponderou a alegoria, vista como representação concreta de uma ideia abstrata: as imagens serviam para representar noções como maternidade, paternidade, caridade, compaixão, amor ao
próximo, salvação.
A iconografia é uma linguagem cifrada, em que os
fiéis acreditam entender ao que se referem as imagens. Os luteranos praticamente aboliram a presença de imagens pintadas ou esculpidas em suas
igrejas, como que forçando o fiel a se catapultar diretamente ao divino, sem a mediação icônica: em
compensação, enfatizaram o texto e a música. Por
um lado, a estética cristã quer representar ideias da
mente divina, celestiais; por outro, fez do feio o seu
cerne, ao enfatizar a figura de Cristo crucificado. Fez
o feio parecer bonito. Ao ver num condenado impotente O Salvador, impôs uma interpretação antitética àquilo que aparece e, ao mesmo tempo, dogmatizou essa “imaginação hermenêutica”.
Quando filósofos tentam explicar a arte, não costumam ter a vivência interior do artista. Acham que a
obra existe para encenar uma ideia, que é o que lhes
importa: eles querem ser a destinação da arte: dar-lhes ideias. Hegel inventou o fim da arte para colher
e recolher suas ideias na filosofia da arte. A ideia é
vista na arte sacra como anterior à obra, como algo
predisposto na mente divina, vagando pelos espaços siderais à espera do corpo quente da obra para
entrar nele. A arte religiosa encena alegorias. É preciso discernir o cerne teológico da filosofia da arte.
A alegoria fascina: o mágico filósofo encontra na cartola o coelho que ele mesmo colocou lá; o espectador acha que é elevado a um plano superior, a uma
mensagem divina, quando fica surfando na onda do
artista. O filósofo da arte tende a reduzir as obras às
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ideias que ele já tinha antes de se adentrar na obra.
Tende a ter pouca sensibilidade para as dificuldades do fazer do artista, o sofrimento que é parir uma
obra, um fazer que encontra o que não esperava.
A fábula é um curto conto alegórico, destinada a revelar a moral ideativa da conclusão. Na alegoria da
caverna em Platão, as sombras projetadas na parede somente são percebidas pelo que não é sombra,
uma fímbria luminosa que, embora estreita, permite
discernir algo além, algo outro diferente dela. A natureza do olho não é ver as sombras, mas a mente
reconstrói o perímetro das sombras pelo halo que as
circunda.
Na grande obra filosófica ou poética, há uma luz
que se projeta em seu contorno e, ao mesmo tempo, é gerada como que uma sombra luminescente,
um halo que prenuncia e enuncia a obra no além de
si mesma. Há certo ser na concretude da obra que
sugere e prenuncia o que não pode ser plenamente
enunciado. Há uma confluência subterrânea do ente
da obra com a projeção de uma transcendência que
a faz ser mais que a coisa da qual surge. Isso gera
estranho entranhamento, estranhamento nas entranhas.
Esse algo a mais, esse “je ne sais pas quoi” deriva de
buscas do autor, mas fora da intenção consciente.
É algo que ocorre, que conduz o texto, a textura da
boa obra, para ser algo mais que a mera tensão entre conteúdo manifesto e conteúdo latente. É uma
transcendência, uma aura, que acontece em algumas obras, mas não na maioria. É como que um milagre, que faz a obra ultrapassar suas origens, preservando o frescor do seu pensar. Religiões procuraram
dar a sua versão para um fenômeno que não é de
natureza religiosa, mas antes uma profanação, um
levar para frente do templo.
LINGUAGEM CIFRADA
Central em Walter Benjamin é o conceito de aura,
a aparição próxima de algo distante, como a au-
102
réola das nuvens ou a luminescência de um galho
contra o sol. 164 O próximo da nuvem remete aí ao
sol distante, antiga representação do divino. Sabe-se que o sol existe, está lá, não é a luminescência que o faz existir. Este é o esquema da arte sacra
e da estética da alegoria que o consagra. Faltou a
Benjamin rever o conceito de aura, despindo-o
de seu comprometimento religioso, fazendo uma
leitura crítica do cânone das obras consagradas.
Na alegoria, o que aparece como imagem não é
aquilo que ela significa: costuma ser uma linguagem
convencional, em que cada parte da figura significa
tais e tais coisas, diferente do que ela aparenta ser. A
figura da Justiça pode, inclusive, ter no sentido literal de suas imagens uma conceituação mais correta
do que o sentido convencional. Exatamente por isso
se impôs um sentido que quer impedir que se veja o
que está aí.
A espada pode ser lida como a institucionalização da
vontade do mais forte, a força como fundamento do
poder: por ser este o seu efetivo sentido social, faz-se de conta que a espada seja apenas a capacidade
da “equidade” impor sua vontade. A balança significa que consegue se impor quem tem “mais peso”,
ou seja, mais ouro para colocar num prato, mas se
faz de conta que significa apenas sopesar os argumentos. Representa-se a Justiça na figura de uma
mulher, como se ela fosse sempre “compreensão,
equidade, bondade”. O politicamente correto é uma
forma de repressão sob a aparência de ser contra a
opressão.
No drama barroco, a alegoria evidenciou ser uma
linguagem convencional, em que cada elemento
significa algo outro, mas essa significação não se esgota nessa imposição, pois permite que se veja até
mesmo o avesso do que a convenção imposta pelo
poder quer que se leia. A leitura alegórica permite
que se desvende esse outro, que está além do significado primeiro que se manifesta. Às vezes, o sentido mais oculto é o mais evidente e que não se quer
ver: a justiça como imposição da força, como cega às
estruturas iníquas da sociedade, a balança a sopesar quem tem mais ouro a colocar nos pratos. 165 Isso
está no espectro da estética sacra, ao impor a leitura dogmática. A alegoria é linguagem cifrada, assim
como são gestos, falas e roupagens em cerimoniais.
Falta liberdade hermenêutica.
Quando Benjamin procurou captar a modernidade
de Baudelaire pela figura da alegoria, teve de subsidiar a compreensão da poesia na metrópole capitalista: a “ideia” de que partia estava em O capital
de Karl Marx. Não foi esse, porém, o procedimento
do poeta ao criar: buscou em figuras marcantes uma
significação icônica, que permitisse apreender a vivência da grande metrópole. O poeta constitui novas figuras alegóricas – o albatroz, o espadachim, a
prostituta, o cisne, o gato – e é preciso buscar sua
significação pelo poema em que aparecem. Elas não
são a repetição da convenção antiga, mas a invenção do novo. A boa obra de arte organiza em sua
concretude algo que transcende sua singularidade e
lhe garante caráter único, por ela ser a via de sugerir
algo que não pode ser dito de outro modo. 166
Karl Solger considerou alegoria e símbolo como pilares da estética. A distinção entre os dois não é tão fácil quanto parece. O símbolo – o jogar junto elementos que estavam distantes – pode ter se originado do
costume de escrever numa telha de barro os termos
de um contrato, que era então posto no forno, ficando depois cada parte com uma parte, sendo as duas
novamente juntadas ao concluir o negócio. É preciso ver como um elemento se encaixa no outro. Na
leitura do sonho, é básico ver a que corresponde no
conteúdo latente ao que nele está manifesto. Ao se
abrir para a alteridade, o símbolo se torna alegórico;
164
KOTHE, Flávio R. Benjamin e Adorno: confrontos. Cotia, Editora Cajuína, 2ª edição revista, 2020, p.33 e ss.
KOTHE, Flávio R. A alegoria, ensaio, São Paulo, Editora Ática, 1985.
166
KOTHE, Flávio R. Benjamin e Adorno: confrontos, Cotia, Editora Cajuína, 2ª edição revista, 2020.
165
103
DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA
a alegoria, ao ser capaz de sugerir o que não se devia
dizer, assume caráter simbólico.
FALÁCIAS DO EVIDENTE
As figuras retóricas têm sido vistas só como figuras
verbais, especialmente do discurso político, como
se ele fosse o melhor modo de chegar ao “bem comum” (e não de passar outros na conversa). Texto
é, no entanto, um conjunto organizado de signos.
É preciso aprender a ler palácios, templos, cidades, esculturas, pinturas. Aprender a ler a própria
leitura.
Na Arte retórica, Aristóteles disse que a retórica seria
um modo de ajudar a verdade, pois ela por si é fraca
e frágil. Aquilo que nos tempos modernos tem sido
entendido como retórica, ou seja, o conjunto das figuras de linguagem, maneiras de impressionar ouvintes e leitores, desempenha papel pouco relevante
no “Mestre”: só no fim, e de modo bem secundário,
ele vai tratar de figuras como metáfora e metonímia.
Aristóteles, logo após anunciar o primado da verdade, deixa de se preocupar, no entanto, com a verdade e, ao passar a estudar a psicologia das multidões,
busca mecanismos coletivos com que o político teria
de contar para manipular as massas no sentido de
fazê-las acreditar que seria o “bem comum” aquilo
que ele estaria propondo. A preocupação estava em
ver como se poderia chegar a elas para que entendessem como “bem comum” aquilo que o político
propunha. O que se pretendia era saber, entretanto, como manipulá-las, convencendo-as a fazerem o
que o orador queria. A noção de “verdade” foi deslocada do desencobrimento da coisa para aquilo que
se diz “sobre ela”. Muito profissional da palavra – políticos, religiosos, jornalistas, professores e outros –
passou a viver da mentira como se verdade fosse, só
porque enunciada por ele. Fake news rememoram
fake oldies.
Em Kant, a “verdade” de um conceito parece ocorrer
para o sujeito quando as percepções que ele tem se
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mostram adequadas à “vontade” dele. Essa vontade
costuma ser inconsciente. Não quer dizer, portanto,
que o que lhe parece “verdadeiro” seja a apreensão plena do objeto, mas a constituição do objeto
na subjetividade segundo as premissas e intenções
desse sujeito dito cognoscente. Hegel subverteu
isso ao propor a verdade como o captar o objeto em
suas múltiplas determinações. Como essas determinações são predeterminadas e determinantes, a verdade se tornou busca, deixou de ser dogma.
Se as figuras de linguagem são um modo de obter
mais eficácia na manipulação da vontade coletiva,
mostra-se contraditório querer que elas sejam a
grande chave para compreender não só a linguagem
e a manipulação do poder, mas portal de entrada
para a verdade de todo o ser. Se a grande obra de
arte sugere mais do que diz, sendo tal sugerir o mais
importante de sua existência, então esse a mais não
pode ser redutível ao que estaria no horizonte da
linguagem. Esse “sugerir outro” fica além do âmbito
literal da obra, embora esteja nele.
DIZER O OUTRO
Alegoria tem o sentido etimológico de dizer o outro, ou seja, é preciso saber decifrar na imagem um
sentido codificado e socialmente estabelecido.
Ela é rígida como linguagem convencional e trata
de interditar que se faça uma leitura diferente da
que interessa ao poder. Assim, a estátua da Justiça poderia ser lida como sendo cega às injustiças
sociais, pesando na balança quem possa colocar
mais ouro num prato, sendo ornamento da força
bruta da espada, sendo acomodada, tendo os caprichos da mulher. Nada disso estaria de acordo
com a leitura convencional, ainda que possa corresponder ao fático.
Já se propôs a “leitura alegórica do texto” no sentido
de decifrar a alteridade subjacente ao conteúdo manifesto. Isso quer fazer o desencobrimento do que
está reprimido, embora a tendência histórica da alegoria tenha sido a consagração do discurso do do-
104
minus: portanto, ideologia codificada e imposta em
signos. Talvez não se consiga ainda fazer o contrário do imposto pela poética da dominação. Mesmo
que se tolerem algumas assertivas inoficiais, quando a leitura passa a questionar pontos realmente
nevrálgicos da estrutura ideativa aflora a repressão
e a leitura divergente é cessada e cassada. Tão relevante quanto a liberdade de criação é a liberdade
hermenêutica. Um exercício dela pode ser descobrir
aquilo que não foi dito, a palavra ocultada, aquela
que ficou interditada, mas que é a chave e o sentido
de todo o texto.
Na estátua da Justiça, há o descaramento de exigir
que se interprete outra coisa que não aquela que
está mais evidenciada. Quer-se que a espada não
seja a vontade do mais forte, que a balança não seja
o interesse do mais rico a pesar no prato da decisão,
que a venda nos olhos não seja a falta de consideração do sistema judiciário quanto às injustiças sociais
ao supor que justiça seja aplicar a lei feita pelo poderoso, a figura da mulher como mais compreensiva. Em vez de camuflar o que seja a “Justiça” como
parte do sistema de poder dominante, coloca-se
tudo às claras e, ao mesmo tempo, impõe-se uma
interpretação que pretende ser o oposto daquilo
que está evidenciado. As pessoas então olham e não
enxergam o que está mais à vista.
A alegoria cristã é tão diferente da moderna que
ambas parecem coincidir apenas no nome, designando coisas completamente diversas. Por que se
finge coincidir o que não coincide? É como se a repetição do nome não quisesse assumir a ruptura
radical subjacente. A alegoria católica pressupõe
haver ideias puramente formais na mente divina,
como expresso por Tomás de Aquino, e que essas
ideias sejam representadas em pinturas, esculturas, templos, ritos religiosos, fazendo a encenação
concreta da ideia abstrata: isso leva à repetição do
mesmo, pois se pressupõe que tal ideia seja eterna:
mesmo acontecimentos de 2000 anos atrás já estariam previstos desde sempre na suprema sapiência
divina. Algo bem diferente é ver sob o conteúdo manifesto um conteúdo latente diferenciado, a que só
é possível chegar mediante a leitura “alegórica”, ver
105
o outro subjacente à fachada que é ostentada; mais
diferente ainda é o que fizeram Baudelaire, Mallarmé ou Kafka, que, a partir da vivências da realidade,
construíram imagens que passaram a ser ícones significativos, sintomas de algo mais amplo.
São três sentidos bem diferentes, cuja unificação
sob o mesmo rótulo beneficia apenas a definição
tradicional – a aparição sensível da ideia – o que
acaba levando à reimposição da visão escolástica,
de uma divindade originadora da ideia e de sua aparição. Mesmo na vertente grega, se a “alétheia” é primeiro uma deusa, o que se manifesta ao sabichão
é uma divindade. Ela não se mostra a um escravo:
prefere patrícios. A “revelação” tem caráter privilegiado, pois se considera o único a quem a divindade
vai se manifestar. Há uma visão recôndita de superioridade e, portanto, de direito de dominar, manipular. A deusa não se mostra para qualquer um: tem
seus eleitos, que são os seus eleitores: aristocratas
com sangue divino.
Se o que está subjacente como ideia é considerado
de fonte religiosa, a leitura a ser feita exige que esteja
de acordo com o que se pretende intencionado pela
divindade. É “lógico” então que se faça uma exegese de acordo com os parâmetros da religião. Não se
permite, nesse espectro, que se faça uma “leitura
alegórica”, que possibilite ver conteúdos latentes
que subvertam a pretensa ordem do que “está manifesto”, do que teria sido manifestado pela divindade.
Aquilo que na psicanálise se chama de “atenção
flutuante”, que busca apreender sentidos subjacentes à “livre-associação”, isso pressupõe que ela não
seja “livre” e sim determinada por traumas, pulsões
e tensões inconscientes. É como se o hermeneuta
fosse um caçador a tentar surpreender passos incautos da presa. Ele faz isso a pretexto de “ajudar”,
assim como o caçador faz um “upgrade” da vítima
ao devorá-la.
A questão é que o manifestado pode permitir leituras diferentes da prevista pela doutrina. Surge assim
o espectro da “leitura alegórica”, como se o bom texto induzisse a ver correntes subterrâneas, em que
a atenção é desviada para novas plagas e praias. O
DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA
problema é que ela pode se tornar um amontoado
de fantasias hermenêuticas.
Embora para o não-crente seja evidente que os “livros sagrados” foram todos elaboração de escritores
dos quais não temos noções claras, da perspectiva
da “fé” eles são inspirados por um deus, que apenas
usou alguns escribas para ditar o que ocorrera ou
devia ser pensado. Baudelaire usou o antigo recurso
de construir determinadas cenas – como a do albatroz desajeitado no tombadilho ou o cisne perdido
no Carrefour – para captar aspectos sintomáticos
da vida moderna na metrópole decorrente da industrialização capitalista. Essas figuras são mais, no
entanto, do que uma reportagem plangente de um
aqui e agora. Elas propõem algo que não é apenas
urbano nem local: conjugam entes determinados
com algo que é mais abrangente. Há uma conjunção
subjacente, como se emanassem de um mesmo fundamento e só se dividissem no processo de manifestação.
É o escritor que se põe a elaborar a obra de modo
laico e sem mistificação, para apreender algo transcendental, mas que não é divino. O resultado pode
ser maravilhoso pela habilidade de dizer algo de
modo marcante que sugere um descortínio que não
se tinha antes. Não é uma alegoria, no sentido de
representar uma ideia abstrata prévia, mas é uma
busca do que está contido numa cena ou figura que
a fantasia prefigura na mente do autor e que ele tem
o dom de expressar em palavras precisas e necessárias. Não deriva de uma ideia anterior.
O realismo socialista foi, de certo modo, uma regressão à estética da alegoria que alimentava a arte sacra. Queria divinizar determinada política, o artista
tinha de fazer o que o partido queria. Não se concedia liberdade de busca. A “verdade” já era anterior à
obra. Esta era feita para demonstrá-la. Como na arte
sacra.
Diferente disso é o que está proposto por Poe, Bau-
167
delaire, Mallarmé, Kafka e outros bons autores. A
construção imagética é uma busca, cujo resultado
não se sabe de antemão. O autor começa fazendo
algo que provém de uma inquietação, uma fantasia
que não quer deixá-lo sossegado e o leva a gerar e
parir imagens. Assim como não se pergunta a uma
grávida se quer parir, não cabe perguntar ao artista
se ele está ou não disposto a fazer a obra. Ele faz porque precisa. Não é nem opção. A obra está a usá-lo
para se nascer. Ela é uma busca, a “ideia” é uma resultante, não uma fonte.
FAKE OLDIES
Algo sintomático ocorre nos milagres bíblicos. É
evidente para o não-crente que não se para o giro
da Terra ou o suposto movimento do Sol para que
Josué conclua uma injusta conquista: quer-se, porém, que se acredite, a pretexto de que a terra invadida era a prometida por Jeová; é evidente que
não se abre o mar com o gesto de uma varinha, mas
isso é celebrado no texto dito sagrado e na iconografia; é evidente que ninguém retorna do mundo
dos mortos, no entanto é isso que se diz que Cristo
teria feito com Lázaro. Na linhagem greco-romana
de crenças, é evidente que uma pitonisa prevê o
futuro, que uma criança recém-nascida estraçalha serpentes, que Prometeu criou a humanidade
e a salvou da destruição. Quer-se que se acredite
na ficção, para não se perceber a ficção que é o divino.
Quando Rafael pinta um anjo soltando Pedro da
prisão ou “O milagre na missa em Bolsena” em que
a hóstia teria começado a sangrar, os teólogos que
instruíram o pintor queriam que se acreditasse naquilo que estava sendo representado, como se não
fosse fake, como se, por estar na tela de um pintor
consagrado já fosse por si verdade sagrada. 167 Segundo os teólogos, tudo já estava previsto na mente
CHAPMAN, Hugo, HENRY, Tom e PLAZZXOTA, Carol. Raffael, von Urbino nach Rom, Stuttgart, Belser Verlag, 2004, p. 286 e 287.
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106
divina: a criação de Adão e Eva, o pecado original,
a concepção da Virgem Maria, Jesus menino, Cristo crucificado, Cristo ressurrecto, Pedro na prisão,
a missa em Bolsena. Confunde-se verdade com
crença. O temor reverencial diante da arte serve ao
logro. Quanto maior a competência técnica do pintor, pior o uso que faz. O pressuposto é que haveria
uma “ideia transcendental” que seria divina, crença
conveniente à instituição que vive disso. A chave da
transposição da ideia para a obra é a figura da alegoria. Ela serve para fazer, mas ora serve para desfazer.
Esse esquema tem servido para encenar o que seria arte. Ele está, no entanto, abalado por dois lados. Pelo lado da filosofia, está expresso que não se
sustenta a duplicação metafísica do mundo, ainda
que a maior parte das pessoas no Ocidente cristão
acredite nela; pelo lado da produção artística, não
se tem mais como parâmetro de artisticidade a encenação de crenças dogmáticas.
A obra de arte se constitui para sugerir algo que a
transcenda, mas que não é uma “ideia a priori”. Ela é
a busca inquieta desse fantasma que paira na mente
do artista e que faz uso dele para se concretizar. Só
quando o fantasma se corporifica no “suporte material” é que o autor tem maior certeza do que estava
buscando. Mesmo assim, quando retornar ao que
deixou, estará tentado a modificar detalhes aqui e
ali. Esses aperfeiçoamentos somente são possíveis
porque o trabalho grosso foi feito, algo que estava
no artista exigindo ser posto à luz.
Karl Solger achava que arquitetura por excelência
era o templo, que devia ser a expressão simbólica
ou alegórica da ideia. 168 Se a obra não expressasse
uma ideia, não seria arte. Para ele, Vitrúvio e Alberti
não haviam entendido isso. A noção de que a obra
de arte deveria expressar uma ideia estava, porém,
implícita neles: um queria mostrar a grandeza do im-
pério romano e o caráter divino do César; o outro, a
perfeição divina e o poderio da Igreja Católica. Tais
“ideias” eram verdades para eles, mas revelaram ser
ideologias. O pressuposto do idealismo é que a ideia
seja sempre verdadeira. Mas que “ideia” é essa que
se expressa no templo? Seria ela ainda verdadeira?
O pressuposto “pagão” é que os deuses existiam,
que o imperialismo romano merecia ser celebrado,
que o César era divino. O pressuposto “católico” é
que haveria um deus todo poderoso, carente de afeto, criador de tudo e até de uma vida post-mortem,
sendo a Igreja sua representante na Terra. Um enaltecia o genocídio de povos invadidos pelas tropas
romanas; o outro, a perseguição e matança de apóstatas, hereges, infiéis.
Tanto para o patrício romano quanto para o bispo
católico, era “justo” e “bom” e “correto” o que propunham. Foram elevados pelas instituições a que
serviam e levados sem críticas séculos afora. A ética é um conjunto de usos e costumes de uma época
e um meio. Isso pode não ser bom nem justo para
outros, mas é o ajustado aos interesses que então
dominam o grupo que os propõe.
O pressuposto católico é que o homem seria criação
de Jeová, assim como os sacerdotes de Apolo recebiam donativos para que o Sol continuasse girando
em torno da Terra. Cabia suplicar pela misericórdia
divina, para obter salvação. Feitos os donativos e as
rezas a Apolo, se houvesse dia seguinte já estava provado que o fiel havia sido atendido. Torres de igrejas
se erguem para o alto como braços em súplica. O
templo expressa em pedra o gesto da comunidade,
petrifica o que vale. A “verdade” pretende estar nessa correspondência. É um paralogismo imagético:
parece lógica, sem ser. Os braços das torres se erguem ao céu em busca de resposta, a súplica imagina ter uma resposta, sem ter noção de que só existe
168
SOLGER, Karl W. F. Vorlesungen über Ästhetik, reprint da edição original de L. Heyse, Leipzig, 1829, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973, há versão italiana.
SOLGER, Karl W. F. L’art et la tragédie du beau, édition d’Anne Baillot, Paris, Edition Rue d’Ulm, 2004.
107
DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA
na imaginação.
multidões ao fanatismo e países à desgraça coletiva.
Tomás de Aquino endossou a crença de que Deus
teria todas as formas do universo inteiro em sua
mente, de todas as coisas que existiram e poderiam
existir. Aquino diz que segue Aristóteles, mas o trai,
fazendo uma inversão sintomática. O Mestre disse
claramente que com o desenho de uma serra não
se consegue serrar nada. Condição básica é que se
tenha o material para fazer uma serra. Matéria é algo
que perdura, enquanto a forma vai variando. Para o
grego, a matéria seria mais importante que a forma.
Aquino diz exatamente o contrário: na mente divina
haveria um infinito repertório de formas possíveis e
a partir delas é que teriam sido feitas as coisas.
As ideias de Platão foram interpretadas na linha do
neoplatonismo cristão, como um conjunto de formas abstratas: o cristianismo é um neopitagorismo. Aristóteles já disse que os números não geram
as coisas: as coisas é que geram os números. Para
Platão, ideias não eram formas abstratas, mas protótipos com forma e matéria. Platão não é platônico.
Diz, no final da República, que o mundo das ideias
não existe, seria apenas o reflexo das coisas no grande espelho da mente: primeiro existem as coisas, depois o seu reflexo na mente. O cristianismo ignorou
isso, não servia à sua ideologia. Tomás de Aquino dizia que era impossível haver um órgão do corpo que
pensasse, pois o pensamento tinha de ser puramente espiritual. O escritor em Platão vai além do filósofo nele: gerou imagens que permitiam pensar adiante. Tem-se evitado isso por dois milênios e meio.
ENCENAÇÕES DA IDEIA
Aristóteles criticou expressamente o pitagorismo,
que supunha que os números poderiam gerar as
coisas. Dizia que os números derivam das coisas,
as coisas não são criadas pelos números. Existem
primeiro as coisas, depois elas são contadas. O
número é uma formalização do contar as coisas.
Aquino é um pitagórico, que substitui o número
pela ideia puramente formal, como se fosse uma
abstração de tipo numérico.
A concepção de veritas como “adaequatio rei et intellectus” é lida em geral como intelecto humano,
mas este teria de captar o que estaria no intelecto
divino. Quem faria isso? O teólogo católico. Quem
expressaria a verdade suprema, de modo infalível?
O papa. Sendo argumentação em causa própria, fingia não ser, mas servia para dizer aos artistas como
deveriam fazer as obras, supondo que seriam verdadeiras sendo sacras, postas em templos.
Até hoje não se questionou essa disseminação de
fake oldies na “arte sacra”. Se o argumento escolástico diz que a obra deve ser verdadeira, isto se volta
contra ele. A “tolerância” manifesta na “história da
arte” consagra a mentira pretérita e deixa o povo
preparado para políticos demagogos arrastarem
Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2
Platão não se define por uma das posições, idealista
ou materialista. Ele dá maior ênfase à idealista porque é Sócrates quem fala. Só que ele é irônico. Nunca
diz o que pensa. Prega o contrário do que pensa e se
diverte com os outros que acreditam naquilo que ele
diz. Isso fica explícito no Simpósio. Nietzsche ficava
irritado com Sócrates porque ele teria propiciado a
profunda perversão filosófica que seria o cristianismo. Platão deixou claro, no entanto, que a teoria
idealista não se sustentava. Nietzsche se perguntou,
no Le livre du philosophe: por que eu xingo tanto Sócrates? E respondeu: porque sou parecido com ele.
Nietzsche disse que cristianismo é platonismo para
os pobres, não só por ter sido a religião de pescadores e escravos, os extratos mais baixos da sociedade,
mas de pobres de espírito, pessoas que acreditam
em teses ingênuas, incapazes de resistir à crítica.
Hegel argumenta que não tem sentido falar de forma separada de conteúdo. Toda forma é forma de
algo, toda matéria tem um formato. A cavalidade do
cavalo está em cada cavalo, o abstrato é concreto
nele, o concreto tem nele a ideia que o forma, a espécie a que ele pertence.
Heidegger disse que não bastaria inverter o platonis-
108
mo cristão para entender a “ideia” em Platão, pois
isso seria o mesmo pelo avesso. Sugere que a “ideia”
deva ser tomada como um “protótipo”, com forma e
matéria, um tipo primeiro, que serve de modelo aos
demais: não tem apenas a forma, mas também o
material de que se constitui. Seria preciso observar,
no entanto, que esse protótipo também não existe.
Não existe um armazém em que estejam depositados os protótipos de todas as coisas que já existiram
e ainda venham a existir. Como seria preciso prever
as metamorfoses de tudo, elas teriam de estar todas
já no “mundo das ideias da mente divina”: isso duplicaria o mundo, levou ao panteísmo, deus se tornou dispensável.
Vivemos a “era do homem”, como o animal que conseguiu alterar a temperatura do planeta, destruiu e
continua a destruir milhares de espécies de animais
e plantas. As viagens espaciais permitem vislumbrar
a fragilidade da Terra, a grandeza infinita dos espaços siderais, a pequenez do ser humano, mas ainda
não levaram a uma reformulação radical do homem,
do seu agir e pensar, saber aquilo que deve ser preservado e em função do qual vale a pena viver e
morrer. Isso é mais amplo do que ser de direita ou
de esquerda, ser democrata ou totalitário. A revolução filosófica terá de vir pela cosmologia. O homem
precisa mudar.
FALÁCIAS DA SINÉDOQUE
A alegoria autoritária é um sinédoque que não se
compreendeu. A sinédoque pretende ser o todo,
mas expõe só um aspecto. Faz parte da ânsia totalitária, que não quer a verdade como captação
de tudo o que determina o objeto. Se não há um
todo último, as totalizações são limitadas e mais
ou menos artificiais. Não há, portanto, uma sinédoque última que, em sua parte manifesta, conseguiria sugerir e dizer o que seria a totalidade nela
encenada. Todo espírito totalitário acredita que
nele a totalidade se manifesta. Pretende estar falando em nome do todo ou até representar o todo
em palavras, gestos, ritos, indumentárias. Ainda
que declare ser um pobre servo, o único senhor
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que reconhece é o “Todo Poderoso”, do qual imagina ser uma extensão, um mediador.
Na sinédoque entendida como “pars pro toto”, velas
em vez de navios, a parte que se apresenta como um
todo serve para sugerir que aquilo que nela aparece
seria o todo. Sugere que a navegação deva ser pela
força do vento. Um todo parece aparecer como aquela parte que serve para concentrar sua significação e
excluir como impertinente tudo o que não é dito naquela parte. Ela nem mais se reconhece como parte,
pois assume ser a plena representação do todo, e o
todo só poderia ser aquilo que ela diz que ele é. A
ideologia se utiliza da sinédoque como adequado e
inconsciente estratagema. O totalitário tanto mais
pretende ser o todo quanto mais parcial ele é como
tanto mais quer poder quanto mais incompetente.
A arrogância tende a ser proporcional à ignorância.
Pretende absolutizar uma perspectiva parcial como
se fosse irretorquível, não havendo nada mais a considerar senão o nela exposto e, se possível, imposto.
Ao espírito dogmático falta espírito e sobra dogma.
Mostra-se autoritário porque acha que fala em nome
da única totalidade certa, a dele ou da divindade que
ele representa. Quanto mais for parcial, mais pretende ser total, como se fosse a única certeza. Os pobres de espírito acreditam nisso, e eles tendem a ser
maioria. Como há, no entanto, pessoas que sabem
mais sobre algo, as assertivas que fazem – ou calam
– não são arrogância e sim impaciência com quem
pretende ostentar uma sapiência que não tem.
Toda pintura é uma sinédoque, todo projeto arquitetônico, mesmo que em três dimensões, é uma sinédoque em miniatura, assim como o prédio acaba
sendo apenas uma pequena sinédoque da vida que
nele vai transcorrer. Uma casa pode ter, por exemplo, uma torre que cita um castelo: isso é sinédoque.
Pode ser vaidade do dono, que finge estar construindo um castelo quando está construindo apenas uma
casa que não chega sequer a ser uma grande mansão, mas pode ser uma citação de “my home, my castle”: esse é o meu espaço, só entra quem eu quero.
Mesmo que a substituição do todo por uma parte
DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA
que queira qualificá-lo de determinado modo, como
se fosse feita apenas para mentir, como ocorre na
manipulação ideológica, a sinédoque não seria uma
figura desprezível: ela mostraria essa estruturação e,
assim, poderia decifrar o que foi feito. Se é apresentada determinada faceta de algo para dizer que tudo
é assim, ou se cria uma fachada para ocultar o que
está subjacente ou até se usa a verdade para melhor
mentir, o próprio deslocamento é sintoma do que
está por baixo. Fachadas podem ser também necessárias para que verdades difíceis possam ser ditas,
assim como é preciso usar máscaras, mesmo de civilidade, para sobreviver em meio inimigo. A sinédoque é como a máscara: tanto serve para esconder o
rosto real quanto para mostrar uma dimensão oculta da personalidade.
Toda fotografia é uma sinédoque, pois sempre recorta parte de um todo maior (que, por sua vez, sempre é parte de outro todo ainda maior: nunca se tem,
portanto, a totalidade e, por via de consequência,
também nunca um fundamento último para alguma
verdade absoluta). Enquanto reprodução de uma
realidade ou constituição de uma realidade própria,
as artes plásticas também são, nesse sentido, sinédoques, partes de um todo maior. Como ninguém
consegue perceber a totalidade de nada e nem de
tudo, como Deus Onisciente é o símbolo lógico dessa impossibilidade, toda totalidade com que operamos é apenas uma parte, uma parcialidade.
A sinédoque pode ser o meio para sugerir o que se
tem a dizer em curto espaço ou curto tempo, ela é
um modo de fazer a verdade aparecer de modo mais
contundente. A verdade é sempre o todo, mas o todo
é o que a gente nunca tem. Nele pode estar escondido, porém, justamente aquele detalhe que acaba
sendo o mais decisivo para explicar um enigma, encaminhar um impasse, resolver um imbróglio. Em
nome do que não se tem e nem se pode ter, acaba-se
negando aquilo que se tem. Será que essa conceituação da verdade, oriunda do último Hegel, peca
por uma origem metafísica? Ou será ela um modo de
formular o que normalmente não se pode dizer?
Se nunca se tem a totalidade, tudo se torna sinédoque de um todo sempre ausente. Ele é uma sombra
Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2
que acompanha o dito como se fosse o seu ser em
forma de não ser. Se o todo nada é, cada parte fica
acompanhada pela ausência e negação de si. Ao não
se ter a totalidade, não se pode dizer que a parte seja
propriamente parte. Esta, ao se revelar estratégica
para toda a percepção e todo o conhecimento, para
todo desvio da atenção e toda deformação, permite
perceber o que se passa e, ao mesmo tempo, nela se
dilui, tornando-se como que nada. Se tudo é sinédoque, nada é.
Se o todo sempre é parte de um todo maior e se toda
parte é um todo de partes menores, então a sinédoque não é sinédoque: oxímoro e paradoxo seriam
sua verdade. Este se tornaria a figura das figuras, na
medida em que expressaria de modo mais condensado a natureza de todas elas. Ele acabaria sendo
superado, no entanto, não só pela tendência de os
contrários acabarem pelo conflito com a união que
constituem. Cada um dos termos polarizados seria
também a negação de si mesmo. Os contrários não
deixam de ser contrários, mas também são aliados
secretos, complementando-se em sua conjunção.
Enquanto ela impera, são incapazes de se ultrapassarem, abrindo espaço para uma alternativa que nenhum deles admite nem permite.
O CONSTRUCTO ALEGÓRICO
A obra de arte atual apenas encena a lembrança
do que poderia ter sido, mas não foi. Ao propor um
“signo”, faz dele o sinal de uma ausência. Encena-se a ruína da linguagem. Não há mais o que dizer.
A consciência da perda trágica não permite mais
afirmar nada como solução dos choques da existência. Ainda há o momento em que, como uma
luz que vai se apagando, a obra encena o seu esforço de sugerir essa perda, mas não se firma uma
ideia que resplandeça divina.
A arte hoje não se define mais como aparição sensível da ideia, da verdade, da alétheia. Ela não diz
mais com clareza. No máximo, sugere. Sua signifi-
110
cação apenas se acena de longe pelos significados
postos e propostos pela obra. Ela é antes ausência
que presença, antes um balbuciar que uma fala.
A encenação da obra encena uma figura virtual, que
é aquilo que a obra realmente quer configurar. É algo
sugerido pela obra, uma sombra mais que uma auréola, está contido nela, mas não se confunde com
ela, embora se funde nela. É a sugestão de uma ausência que é presentificada, como uma sombra que
acompanha a obra, é seu sentido como também sua
negação. O poema hermético radicaliza essa operação, pois o que ele institui é tão fragmentado, tão
elíptico, que fica mais a caminho da não linguagem
do que da expressão clara de algo.
Há, portanto, uma contradição na linguagem da arte:
ela se faz entre querer dizer e não poder dizer, entre
sugerir o que não consegue dizer e a necessidade de
ir além da vaga sugestão. Surge então a pergunta se,
a pretexto de ultrapassar a tradição metafísica, não
se recaiu novamente na estética da alegoria, em que
se teria a representação concreta de uma ideia abstrata, um produto a acenar algo divino? Em vez de
progredir se recairia no mesmo, que retornaria sob a
aparência de ter superado a duplicação metafísica,
de não ter retornado ao mesmo.
As demais figuras de linguagem também elaboram a
conexão entre algo que é exposto e algo que por ele
fica sugerido. Os românticos alemães, como Jean
Paul e Tieck, insistiram na ironia, figura em que uma
antítese ao dominante é desenvolvida, dando espaço ao sujeito para desenvolver seus pensamentos
fora do âmbito do poder. Chklóvski mostrou como
o Macbeth e Don Quijote são elaborados à base da
figura retórica do oxímoro, a junção íntima de opostos. A hipérbole pode levar a conexões engraçadas,
a exageros que não se sustentam, como pode também para examinar as sequelas do que fica oculto
no cotidiano.
Quando o papa usa roupagem branca nas cerimônias católicas, ele está se vestindo como “Sua Santidade”, ou seja, como alguém impoluto, sem pecado,
capaz de conversar com Deus e trazer mensagens di-
111
vinas para a Terra. Ninguém mais pode aí usar apenas branco. Os cardeais usam vestimentas encarnadas, que eram reservadas à nobreza. Essas cores são
alegorias ou são símbolos? De qualquer modo, são
uma linguagem que foi convencionada pela instituição, a exigir respeito e submissão.
A questão que aí se omite é que não é simplesmente
um signo num processo de comunicação. Há algo na
obra de arte que se transmite, se sugere, mas não
se comunica: em vez de tornar algo comum, um comunicar, abre-se uma transcendência. O símbolo
era a figura de linguagem que tipificava essa dimensão ignota da obra, enquanto a alegoria servia para
instrumentar a obra no sentido de divulgar e auratizar certa ideologia, proposta como ideia, mas que
era antes uma crença da igreja, da aristocracia, do
país. Era apresentado como se fosse uma verdade,
uma “ideia”, mas era propaganda com a utilização
de recursos estéticos. Os artistas costumavam acreditar naquilo que propagavam: os princípios da fé,
a grandeza da aristocracia, o direito divino do rei, a
santidade das figuras eclesiais.
Algo diferente se dá quando a preocupação é apresentar algo forte, comovente, que precisa ser dito
rompendo as barreiras do discurso dominante. Mesmo o autor quando elabora fica perplexo diante do
que vai sendo sugerido pelo artefato à sua frente. Há
lampejos que ele não sabe de onde aparecem, mas
que ele aprende a seguir, pois são mais espertos e
pertinentes que o cálculo frio. Quem acredita na ideologia do mecenas também procura fazer algo impactante, algo que ele acha que precisa ser apresentado como quem coloca um embrulho festivo numa
compra de brechó. A mera diferença de postura não
diferencia a boa da má obra.
Como é que artistas tão inteligentes e hábeis no
renascimento italiano foram tão limitados em seu
horizonte? A rigor, teríamos de considerá-los antes
artesãos do que artistas, já que suas obras são antes panfletos bem-feitos de propaganda religiosa ou
aristocrática do que veiculadoras da verdade. Esta
não se reduz a documento do pensar de uma época e lugar. Ela precisa ser válida ainda hoje, precisa
DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA
trazer algo novo, pois a grande obra é o único modo
de sugerir algo que não pode ser dito em outra linguagem. Fica mais fácil repetir o consagrado do que
enfrentar a descoberta da validade do novo. Reconsagrar o já consagrado, como faz a estética da alegoria sacra, não pensa o novo, o alternativo.
A concepção teológica de infinitude marcou a estética, supondo-se que as grandes obras estariam fora
do tempo, valeriam para todos os lugares, abrigariam uma sapiência inesgotável e seriam perfeitas.
Nenhuma obra é assim. Tal teoria não sabe que é teologia disfarçada. Sob as belas roupagens artísticas
desfila a crença desnuda.
Ela foi rompida, sem querer, pela escola de Konstanz, com sua estética da recepção: em vez de se ater
apenas à relação entre autor e obra, como tem sido
feito sob a suposição de que o artista seja uma figura
iluminada a trazer luz celestial aos pobres mortais,
enfatizou a relação entre obra e receptor. Isso levou
a perceber que obras consideradas “clássicas” foram
esquecidas durante muito tempo (assim como podem ficar fora do alcance de grandes regiões). Nessa
historiografia montada na relação obra-receptor, e
não autor-obra, se perceberam coisas estranhas. O
que se abre é a perspectiva de que seria preciso ter
tanta liberdade para a hermenêutica quanto o iluminismo pleiteou para a criação de arte.
ADENDO
Quando Kafka constrói ficções como O processo
ou A metamorfose, elabora em situações concretas de personagens a presença de discriminações,
prepotências, impotências que se encontram diluídas na sociedade. A vivência dele podia ser a
do judeu, que era minoria em Praga, numa cidade
que era parte de uma minoria pertencente ao Império Austro-Húngaro, mas ele escrevia na língua
senhorial. A situação poderia ser invertida, por
exemplo, nas vivências de um não-judeu em Israel em torno de 1970 – 2020, ou até mesmo de um
judeu pertencente a uma minoria lá menos prestigiada: a pessoa poderia ler a sua própria situação
na fantasmagoria intuída por Kafka para encenar
Revista Estética e Semiótica | Volume 11 | Número 2
o que se passava na sua região natal uns cem anos
antes. A ficção constrói algo que pode ser vivenciado por leitores que não pertencem nem a um
nem a outro desses esquemas de recepção.
O autor que fuja ao esquema teológico trata de dar
forma às inquietações que perambulam em sua
mente, imagens fugidias que querem dizer algo que
não se consegue mais que sugerir, fantasmagorias
obsessivas que é preciso expor para poder domar.
Elas não são oriundas de uma teologia prévia baseada num livro sagrado. São invenção do autor, que se
assume solitário na empreitada, cujo resultado ele
não pode avaliar. Pode dar pouca importância ao
que será relevante para outros assim como dar relevância ao que para outros será irrelevante. Há um
imponderável nisso.
Há, porém, filtros socialmente estabelecidos que
podem descartar obras de melhor qualidade, promover obras menores, não levar em conta o que poderia elevar o gosto vigente num meio e momento.
Podem ser filtros étnicos, em que uma minoria que
se apresenta como perseguida e se dá ao direito de
perseguir outras, que ela considera culpadas, promovendo autores que promovam a sua ideologia;
filtros sociais, em que a oligarquia latifundiária promove autores oriundos de sua classe; filtros políticos, em que se promovem artistas convenientes ao
partido que está no poder enquanto se difamam ou
se sufocam os que não forem coniventes; filtros morais, em que determinado tipo de moralidade sexual
passa a ser considerada válida em detrimento de outras; filtros religiosos, que podem chegar ao ponto
de impor um nihil obstat para só permitir a publicação do que estiver de acordo com as premissas da
crença; filtros teóricos, em que determinada filosofia se impõe, passando a destratar ou sabotar as que
não forem seguidoras de sua linha.
Há mais tipos de filtros do que se consegue elencar.
São perversos ou justiceiros, mas funcionam mais
do que se admite: é de sua natureza se esconderem,
não parecerem que existem. É de sua convicção que
melhoram a qualidade da cultura que se bebe. Querem fazer tudo certo, enquanto estragam o que lhes
112
convém. A ignorância pode ser um filtro, ao não deixar passar o que a ultrapasse. O dito pouco popular
“não se deve dar pérolas aos porcos” faz parte da
política populista que gosta tanto do povo que prefere que ele fique como está. Finge ser uma postura
de esquerda, enquanto mantém a imposição oligárquica.
çava a transposição de tecnologia de ponta para o
país. Conseguiu criar o modo mais competitivo de
produção dos últimos decênios, fez uma revolução
interna melhorando as condições de existência do
povo, mas gerando também uma oligarquia de milionários que parecia inviável e indesejável ao modelo soviético.
Os porcos têm razão ao não quererem pérolas: elas
são indigestas, quebram os dentes, não são gostosas. Eles preferem milho: estão certos, para eles.
Se pérolas forem jogadas no solo que habitam, vão
pisar em cima, ignorá-las, fazê-las desaparecer na
lama, no lodo, nos detritos.
Tendo se desfeito da contrapartida socialista na Europa e nas Américas (com exceção de Cuba, rotulado
como capitalismo de Estado), o capitalismo seguiu
a tendência de concentrar renda e pouco se importar com a miséria das grandes massas. Para manter
e aumentar os privilégios, as oligarquias tenderam
a optar por regimes fascistas, que usaram da democracia para chegar ao poder e de processos indecentes para alcançar e manter o poder. O pressuposto
filosófico parece inverter a tese de que o homem é
bom por natureza, para acabar postulando que ele
deve ser mau para a natureza para obter o máximo
para si. Assim, a era do homem escancara a destruição da vida no planeta. Bilionários pagam para si
viagens espaciais, como se pudessem escapar com
dinheiro às condições de vida na Terra.
Na revolução russa, Lênin quis introduzir, com a ajuda de Górki, boas traduções dos grandes clássicos
mundiais nas escolas e na leitura popular. Milhões
e milhões de exemplares foram impressos. No fim,
a revolução socialista fracassou porque partia do
pressuposto de que o homem é bom por natureza,
mas a sociedade é que o corrompe. Os comunistas
no poder esperavam que, suprimida a exploração
dos grandes proprietários, cada trabalhador daria o
melhor de si para o bem de todos. Isso pode até ter
funcionado com milhões deles durante alguns anos.
Com o correr do tempo, no entanto, como o emprego era garantido e não devia haver desemprego, os
trabalhadores foram se acomodando, cada um tratando de fazer o mínimo que podia para o máximo
de vantagens que conseguisse. A velocidade de uma
caravana no deserto é a do camelo mais lento. Sem
lenha para fazer churrasco dele, há uma acomodação geral e o sistema acaba falindo por dentro. Isso
acontece também em cooperativas nas quais os cooperativados ficam acumulando vantagens para si,
em detrimento da produtividade da empresa.
A falência do comunismo europeu decorreu de uma
premissa filosófica errônea. Crendo ter a filosofia
certa, a discussão filosófica mais profunda foi estiolada, as reformas econômicas não foram feitas, a
modificação do sistema administrativo e política foi
postergada até que era tudo tarde demais. Na China,
o partido criou diversas empresas no mesmo ramo,
obrigando-as a competirem entre si, enquanto for-
113
A maioria das pessoas, desempregadas e sem boa
formação escolar, descobre que sua existência é
inútil. Quanto melhor a formação, mais deslocadas
ficam. Seria melhor não terem nascido e, se nasceram, que morram o quanto antes. Sileno ressurge
como fantasmagoria. Promessas de redenção socialdemocrata não conseguem se cumprir. Os elos
das oligarquias são mais fortes.
BIBLIOGRAFIA
CHAPMAN, Hugo, HENRY, Tom e PLAZZXOTA, Carol.
Raffael, von Urbino nach Rom, Stuttgart, Belser Verlag, 2004, p. 286 e 287.
KOTHE, Flávio R. Benjamin e Adorno: confrontos. Cotia, Editora Cajuína, 2ª edição revista, 2020, p.33 e ss.
KOTHE, Flávio R. A alegoria, ensaio, São Paulo, Editora Ática, 1985.
DESCONSTRUÇÃO DA ALEGORIA
SOLGER, Karl W. F. Vorlesungen über Ästhetik, reprint
da edição original de L. Heyse, Leipzig, 1829, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1973, há
versão italiana.
SOLGER, Karl W. F. L’art et la tragédie du beau, édition d’Anne Baillot, Paris, Edition Rue d’Ulm, 2004.
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