CADERNOS DE ASTRONOMIA – vol. 4, n◦ 1 (2023)
Seção Temática - Buracos Negros
Introdução à física de buracos negros
Santiago Esteban Perez Bergliaffa
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
O artigo apresenta de forma introdutória as principais características dos diferentes tipos de buracos negros,
sejam eles isolados ou em interação com o entorno.
Abstract
We present, in an introductory way, the main features of different types o black holes, both isolated or interacting
with the environment.
Palavras-chave: Buracos negros, Relatividade Geral.
Keywords: Black holes, General Relativity.
DOI: 10.47456/Cad.Astro.v4n1.40192
1 Introdução
Nos últimos anos, os buracos negros ocuparam
repetidamente as manchetes da imprensa internacional, seja pela detecção das ondas gravitacionais, ou pela imagem obtida pelo telescópio
Event Horizon [1] (Figura 1). Como veremos ao
longo do artigo, os buracos negros são objetos fascinantes, cuja descrição envolve diversas áreas da
física. Mas o que é um buraco negro (BN)? Uma
primeira definição poderia ser “un BN é uma região do espaço-tempo, limitada por um horizonte,
da qual nada pode sair”. Mesmo essa definição
simples a pouco precisa faz com que seja necessário introduzir conceitos tais como espaço-tempo,
interação gravitacional, e colapso, entre outros.
Tais conceitos serão discutidos de forma introdutória no presente artigo, além de outros relacionados. Para evitar detalhes técnicos, o conceito
de BN será apresentado em função do comportamento dos cones de luz, definidos pela geometria
associada ao BN, sem entrar no detalhe da resolução das equações de Einstein.1
Para entender o conceito de cone de luz e da
geometria associada será utilizada uma analogia
na Seção 3. A seção 4 será dedicada ao BN de
Schwarzschild. Outros buracos negros (incluindo
o BN de Kerr) serão apresentados na Seção 6.
Na Seção 7 veremos qual o processo que origina a
1
Mas serão fornecidas referências com os detalhes técnicos ao longo do texto.
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formação dos buracos negros estelares. A Seção 8
será dedicada à astrofísica de buracos negros, em
particular à interação com seu entorno, incluindo
o fenômeno de lenteamento, e as ondas gravitacionais. A relação entre os buracos negros e a
mecânica quântica será discutida na Seção 10. A
termodinâmica de buracos negros será apresentada na Seção 11. A Seção 12 contém as considerações finais.
A seguir, será a presentado um breve (e necessariamente incompleto) resumo da evolução do
conceito de buraco negro.
2 Um pouco de história
Os buracos negros são regiões do espaço-tempo
das quais nada pode sair. Tais regiões são representadas por soluções das equações de campo de
alguma teoria que descreve à interação gravitacional. Em particular, a primeira solução representando um buraco negro foi obtida por Karl
Schwarzschild em 1916 [2] no contexto da teoria
da Relatividade Geral de Einstein [3]. Mas a existência de corpos tais que a atração gravitacional
é intensa o suficiente para que a luz não consiga
escapar dele foi de fato proposta muito antes da
criação da RG. Em 1783, John Michell [4] aplicou
a lei da gravitação de Newton à luz, que segundo
a teoria vigente naquela época era composta de
partículas. O raciocínio de Michell é simples: se
49
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
Figura 1: A figura mostra a imagem do buraco negro
Sagitario A, no centro da Via Láctea. Crédito: EHT Collaboration.
uma partícula de luz de massa m é lançada verticalmente para cima desde a superfície de uma
estrela, em qualquer ponto da trajetória é valida
a conservação da energia [5] ,
1
E = mvz2 + V (z),
2
(1)
onde V (z) = −GmM/z é o potencial gravitacional, G é a constante de Newton, M é a massa
da estrela, e a origem da coordenada z coincide
com o centro da estrela. Lembrando que a energia cinética não pode ser negativa, segue que para
E < 0 a partícula atinge uma altura máxima e
volta à superfície, mas para E ≥ 0 a partícula
consegue escapar. A velocidade de escape ve é
definida como a mínima velocidade inicial com
que a partícula consegue chegar “apenas” (isto é,
com velocidade zero) no infinito, caso este que
corresponde a E = 0. Segue então da equação
(1) que
r
2M G
ve =
(2)
R
onde R é o raio da estrela. A título de referencia,
no caso da Terra, ve ≈ 106 cm/seg.
A expressão para ve mostra que fixando a
massa M , ve é maior quanto menor é o raio da
estrela (o que é compreensível já que a partícula
estaria saindo de uma região onde a força gravitacional é mais intensa). Michell concluiu que
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
existe um raio crítico, tal que ve é igual à velocidade da luz c: para uma estrela com raio menor
do que Rc = 2M G/c2 , a luz não pode escapar
da estrela. Ele ainda foi mais longe, e postulou que poderia existir no universo um grande
número destas estrelas escuras (antepassados dos
buracos negros da RG), sem que pudessem ser
vistas.2 Infelizmente esta ideia caiu no esquecimento devido aos experimentos de interferência
da luz realizados por Thomas Young, que apoiavam a tese (defendida entre outros por Christian
Huygens) de que a luz era uma onda e não um
“jato” de partículas . Foi preciso esperar quase
150 anos para que ela renascesse, já no contexto
da teoria da gravitação de Einstein, graças ao trabalho de Karl Schwarszchild.
Pouco tempo depois da publicação do artigo
apresentando a RG, Schwarszchild divulgou no
exemplar de 25 de Novembro de 1915 dos Proceedings of the Prussian Academy of Science [2]
a solução das equações de Einstein para o exterior de uma estrela com simetria esférica e
sem rotação.3 Em 1916, ele conseguiu calcular
ainda a solução para o interior de uma estrela
com densidade constante e esfericamente simétrica [8].4 Como veremos na Seção 4, a solução de
Schwarszchild que descreve o exterior de uma estrela descreve também um buraco negro e, nesse
caso tem características exóticas, que levaram aos
especialistas da época (o próprio Einstein e A.
Eddington entre eles) a não acreditar na existência de objetos por ela descritos na natureza. Em
particular, a questão da(s) singularidade(s) desta
solução só ficou esclarecida definitivamente nos
anos 50 do século passado [9]. Um outro tipo
de buraco negro, que difere do de Schwarzchild
devido à presença de carga não nula foi descoberto H. Reissner em 1916, e redescoberto por G.
Nordstrom em 1918.
Quase simultaneamente à questão das características da solução de Schwarszchild, foi progredindo o estudo do interior das estrelas e do
colapso gravitacional, graças aos trabalhos de
Chandrasekhar (anãs brancas) e Oppenheimer
(colapso esférico), entre outros. Em 1963, Roy
2
Em 1796, Pierre Laplace apresentou os mesmos resultados no livro [6].
3
Os detalhes da historia do desenvolvimento do conceito de buraco negro podem ser encontrados em [7].
4
Schwarzschild, engenheiro de formação, veio a falecer
pouco depois por causa de uma doença contraída na frente
russa da Primeira Guerra Mundial.
50
Introdução à física de buracos negros
Kerr publicou [10] a primeira solução das EE descrevendo o exterior de uma estrela compacta em
rotação, e também um buraco negro com momento angular não nulo. Em 1965 a solução de
Kerr foi generalizada ao caso de uma configuração com carga por Newman et al [11]. O nome
de buraco negro foi dado em 1967 por John Wheeler5 ao estado final do colapso gravitacional de
uma estrela muito massiva, sendo mais tarde generalizado para abranger qualquer solução que
apresente horizonte(s) de eventos (tal como as
de Schwarszchild, Kerr e Kerr-Newmann).6 Dois
anos mais tarde, Roger Penrose desenvolveu um
processo para extrair energia rotacional do buraco
negro de Kerr (veja por exemplo [13]).
Um outro resultado que foi sendo elaborado na
década dos 60 foi o teorema que mostra que “os
buracos negros não tem cabelo”. Isto quer dizer
que os buracos negros não conservam nenhum detalhe da estrela que colapsou para formá-los. De
outra forma, os únicos parâmetros que caraterizam um buraco negro são a massa, o momento
angular, e a carga elétrica [14].
Como em qualquer situação de interesse em física, é importante determinar se os buracos negros são estáveis e, caso não sejam, a escala de
tempo associada à instabilidade. No inicio da década dos 70 foi começado o estudo da teoria de
perturbações lineares das geometrias associadas
a buracos negros de Schwarszchild, completando
assim a análise dos dos buracos negros isolados,
do ponto de vista clássico.7 Na Sec. 8 apresentaremos algumas características dos buracos negros
astrofísicos, isto é, em interação com o entorno,
incluindo situações tais como a formação de um
disco de acreção, o lenteamento, e a geração de
ondas gravitacionais.
Como veremos na Sec. (10), a surpresa chegou
no ano 1974, quando Hawking mostrou que efeitos quânticos fazem com que o buraco negro emita
radiação com um espectro de corpo negro. Esta
descoberta foi fundamental para a dar sentido à
formulação da termodinâmica de buracos negros,
e levantando também novos problemas (ver Sec.
(11)).
Para descrever as características essenciais dos
buracos negros, utilizaremos inicialmente um modelo análogo de buraco negro, que será apresen-
S.E.P. Bergliaffa
Figura 2: Fluxo com um ponto ( o “ponto sônico”) a
partir do qual a velocidade do fluido é maior do que a
velocidade do som. A configuração mostrada na figura é
chamada bocal de Laval.
tado na seção seguinte.
3 Uma analogia
A seguir discutiremos um modelo análogo de
um buraco negro, chamado “buraco mudo” [16],
que ajudará na descrição dos buracos negros gravitacionais. Consideremos um fluido ideal que flui
com velocidade ⃗v com relação ao sistema do laboratório na situação descrita na Figura 2. O fluxo é
estacionário (isto é, a velocidade não depende do
tempo), mas ⃗v = ⃗v (x, y, z). À esquerda do “ponto
sônico” da figura a velocidade do fluido é maior do
que a velocidade do som no meio (cs ), enquanto
que à direita, v < cs . Na região sub-sônica, o
som pode se propagar tanto para esquerda quanto
para direita, mas na região supersônica, o som é
literalmente “arrastado” pelo fluido, e não consegue sair do espaço limitado pelo “ponto sônico”,
que define assim o horizonte do “buraco mudo”.
Matematicamente, a situação é descrita pela adição de velocidades da mecânica clássica [17]:
d⃗x
= cs⃗n + ⃗v ,
dt
(3)
onde ⃗x é a posição do raio com relação ao sistema
da laboratório, cs é a velocidade do som relativa
ao fluido, e ⃗n é um vetor unitário na direção de
propagação do fluido. Usando a equação ⃗n.⃗n = 1,
a equação (3) pode ser reescrita como segue:
−c2s dt2 + (d⃗x − ⃗v dt)2 = 0,
(4)
5
A partir de uma observação feita por Robert Dicke
[12].
6
A rigor, qualquer solução não cosmológica.
7
Para a estabilidade não linear, veja por exemplo [15].
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
que define um “cone de som” para cada ponto
(x, y, z), como mostra a figura 3. Vemos que o
lado externo do cone fica cada vez mais vertical a
51
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
Figura 3: Cones correspondentes à propagação do som
num fluido. Crédito: [17].
medida que o som é emitido em pontos mais próximos do ponto sônico, e fica “virado para dentro”
do horizonte depois do ponto sônico„ ilustrando o
fato de que o som fica preso dentro do horizonte.
A Figura 4 mostra o mesmo fenômeno num fluxo
radial bidimensional.
Note que a equação (4) pode ser escrita na
forma
(ef)
gµν
dxµ dxν = 0,
(5)
onde
ef
gµν
=
T
−(c2s − v 2 ) −⃗v
−⃗v
I3×3
é a chamada métrica efetiva, x0 = t, x1 = x,
x1 = y, x3 = z e os índices repetidos indicam
uma soma sobre os valores permitidos.
É importante frisar que a analogia entre o buraco mudo e o BN tem limites. No buraco mudo,
somente o som fica preso dentro do horizonte,
enquanto que num buraco negro o horizonte representa um limite para qualquer tipo de objeto.
Tem ainda o fato de que o horizonte do buraco
mudo origina-se num efeito cinemático (soma de
velocidades), enquanto que no buraco negro, é a
gravitação a responsável pelo aprisionamento de
qualquer tipo de matéria.8
3.1 Cones de luz
A relatividade restrita, introduzida por Einstein em 1905, unifica o espaço e o tempo (objetos
separados na física newtoniana) num objeto só: o
8
O tratamento usado aqui para introduzir a noção de
horizonte é baseado na “acústica geométrica”. Para um
tratamento que leva em conta as propriedades ondulatórias do som, veja [18]
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
Figura 4: O desenho mostra um corte transversal de um
buraco “mudo” realizado a partir de um fluido em fluxo
radial. Vemos como os cones de som vão sendo inclinados
na direção do centro do buraco. Crédito: [19].
espaço-tempo. Nele, o intervalo entre dois eventos é dado (no caso de uma dimensão espacial)
por9
ds2 = c2 dt2 − dx2 ,
(6)
onde c é a velocidade da luz. Os raios de luz se
propagam com velocidade c segundo ds2 = 0, ou
c2 dt2 − dx2 = 0,
(7)
que pode ser reescrita como
ηµν dxµ dxν = 0,
(8)
onde ηµν = diag(1, −1) é a métrica de Minkowski.
Note a semelhança com a eq. (4). De fato, a eq.
(7) define um “cone de luz” para cada evento do
espaço-tempo. É importante notar que, dado que
a velocidade da luz estabelece um limite máximo
para qualquer propagação, os cones de luz restringem as possíveis linhas de universo de qualquer partícula,10 já que a tangente a uma destas necessariamente deve estar dentro ou sobre o
cone de luz (caso contrário, a velocidade da partícula seria maior que c). Temos ainda o fato de
que cada cone define o conjunto de eventos que
podem influenciar um evento dado, e o conjunto
daqueles eventos que podem ser por ele influenciados (Figura 5). Para mais detalhes veja por
exemplo [21].
9
Para uma revisão sobre a relatividade restrita ver, por
exemplo, [20]
10
Diferentemente dos dos cones de som definidos na seção anterior, válidos somente para “raios de som”.
52
Introdução à física de buracos negros
Figura 5: O desenho mostra cones de luz correspondentes
a alguns eventos, bem como as regiões “passado”, “futuro”,
e “sem contato causal” com relação ao evento E. Crédito:
[22].
S.E.P. Bergliaffa
Figura 6: A figura mostra como os cones de luz mudam,
acompanhando aos raios de luz, devido à curvatura da
geometria. Crédito: [22].
espaço-tempo de Schwarzschild, e os cones de luz
associados.
3.2 Cones de luz em presença de matéria
A Relatividade Geral, introduzida por Einstein
em 1915, estabelece que a gravitação não é mais
do que a “deformação” da geometria do espaçotempo devida à materia-energia nele contida. Tal
deformação é relativa à geometria em ausência de
matéria (isto é, a geometria de Minkowski). De
forma concisa, a matéria faz com que a geometria
seja “curva” (com relação à geometria plana em
ausência de matéria), e a matéria se move como a
geometria manda [23, 24]. É precisamente devido
à curvatura que os cones de luz podem ter diferentes orientações em diferentes eventos, como na
Figura 6. É importante notar que a “curvatura”
deve ser entendida aqui como uma propriedade
do espaço-tempo, e que ele se reduz localmente,11
ao espaço-tempo plano, de mesma forma que uma
esfera S 2 no espaço R3 pode ser aproximada por
um plano. A curvatura do espaço-tempo se manifesta só quando saímos da vizinhança de um
evento e nos deslocamos para pontos não tão próximos. Em particular, quando o espaço-tempo é
curvo, a curvatura faz os cones se achatarem e/ou
inclinarem, como veremos nas seções seguintes.12
A seguir, veremos algumas características do
11
Isto é, numa vizinhança no espaço e no tempo pequena
o suficiente de um evento
12
A curvatura pode ser calculada a partir da métrica, e
ela pode ser obtida através das equações da Relatividade
Geral de Einstein, para detalhes veja por exemplo [25].
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
4 O buraco negro de Schwarzschild
A solução de Schwarzschild das equações da
Relatividade Geral [2] é dada pela métrica exterior de um corpo com simetria esférica. A métrica
de Schwarszchild nas coordenadas (t, r, θ, ϕ) tem
a forma.13
rg −1 2
rg 2
dr
dt − 1 −
ds2 =
1−
r
r
−r2 (dθ2 + sen2 θdϕ2 ),
(9)
onde rg = 2M G/c2 ≈ 3(M/M⊙ ) km, e M⊙ é a
massa do Sol. Algumas de suas características
mais importantes são as seguintes:
• Simetria esférica. Para t e r fixos, as distâncias são determinadas pelo elemento de linha
na esfera,
ds2 = r2 (dθ2 + sen2 θdϕ2 ),
(10)
13
Como em qualquer outra solução das equações da RG
(ou de outra teoria gravitacional), a métrica terá informação não só da geometria mas também do sistema de
coordenadas escolhido. Uma escolha judiciosa do sistema
coordenado ajuda tanto na resolução das EE quanto na
obtenção de uma métrica que explicite algumas das propriedades do espaço-tempo em questão. Por exemplo, no
caso da geometria de Schwarszchild o problema de achar
a solução das EE, que envolve em principio determinar
os 10 coeficientes da métrica, é reduzido usando somente
questões de simetria ao problema de achar duas funções
da coordenada r, determinadas através das EE para o caso
de vácuo [26].
53
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
onde 0 ≤ θ ≤ π, −π ≤ ϕ ≤ π.
• Independência da métrica com a coordenada
t no sistema de coordenadas escolhido. Isto
reflete o fato de que o buraco negro de
Schwarszchild é estático ( Para uma definição mais precisa dessa propriedade, veja
[26]).
• A solução de Schwarszchild é assintoticamente plana (se reduz á geometria de Minkowski em coordenadas esféricas, ηµν =
diag(−1, 1, r2 , r2 sen2 θ), no limite r → ∞).
• Ela representa a solução exterior de um objeto com massa M , como pode verse a partir
do limite de campo fraco [26].
• Vemos da eq.(9) que há (potenciais) problemas em r = rg e r = 0. Tais valores da
coordenada r correspondem ao horizonte de
eventos e a “singularidade” central, conceitos
esses que serão discutidos nas Seções 4.1 e
4.2.
De fato, é possível mostrar (devido à divergência
da métrica em r = rg ) que a coordenada t de
Schwarzschild não é uma boa coordenada (veja
por exemplo [13]). Para representar mais fielmente a situação é preciso usar por exemplo o
sistema de coordenadas de Eddington-Finkelstein
(EF) associado aos raios de luz direcionados para
o interior do BN, introduzido por Eddington em
1924 e por Finkelstein em 1958, em que a métrica
toma a forma14
2M
4m
2
ds =
1−
dt̄ dr
dt̄2 −
r
r
2M
− 1+
dr2 − r2 dΩ2 . (11)
r
Novamente é possível traçar as curvas percorridas
pelos raios de luz a partir da equação ds2 = 0,
desconsiderando a parte angular (devido à simetria esférica). O diagrama espaço-temporal resultante para a solução de Schwarszchild nas coordenadas EF é o da figura (7). Os cones abrem a
45◦ em r = ∞, já que nesse limite a geometria
é plana. O lado esquerdo dos cones (correspondente aos raios direcionados para o interior do
BN) é dado por uma linha a -45◦ com o eixo r.
14
Em algumas equações é usado são usadas as unidades
geométricas, definidas por c = G = 1, veja por exemplo
[13].
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
Figura 7: Raios de luz na solução de Schwarszchild em
coordenadas de Eddington-Finkelstein avançadas
O lado direito (correspondente aos raios direcionados para o exterior do BN) começa a 45◦ em
infinito, e depois vai se fechando a medida que
r diminui, atingindo a vertical em r = 2M , e
continuando a se fechar depois. Vemos que em
r = 2M os raios de luz direcionados para fora só
conseguem ficar na superfície r = 2M .
4.1 Horizonte de eventos
Da Figura 7 vemos que longe da origem, os cones de luz são os do espaço-tempo de Minkowski,
como na Figura 5. A medida que vamos nos aproximando a r = 0, as frentes de onda15 direcionados para o exterior do BN são atraídos “para
dentro” (isto é, os cones viram). Em r = 2M ,
fótons direcionados para fora do BN ficam sobre
a superfície r = 2M , enquanto os direcionados
para dentro são atraídos para r = 0. Já dentro
da superfície r = 2M , até os fótons direcionados para fora são atraídos na direção da singularidade. Segue então que a superfície r = 2M
age como uma membrana unidirecional [27], permitindo que as curvas de partículas com v ≤ c
dirigidas ao futuro passem do exterior do BN ao
interior, mas não deixando que tais curvas possam sair do interior para o exterior. A superfície
r = 2M é chamada de horizonte de eventos já que
representa a fronteira dos eventos que podem ser
observados desde r > 2M . A figura (8) representa esquematicamente num diagrama espacial
o comportamento dos cones de luz num plano arbitrário do buraco negro de Schwarszchild. Note
15
Lembrando que as direções angulares foram suprimidas devido à simetria esférica.
54
Introdução à física de buracos negros
Figura 8: Diagrama espacial do espaço-tempo de
Schwarszchild nas coordenadas de E-F avançadas.
que o horizonte existe tanto para curvas geodésicas como para curvas aceleradas, já que mesmo
as partículas aceleradas se movem dentro do cone
de luz (mas não seguem retas).
4.2 Singularidades
De uma forma geral, uma singularidade é um
evento em que quantidades físicas são divergentes. Por exemplo, o campo elétrico de uma carga
pontual é divergente no “ponto” em que a carga se
encontra.16 Mas há ainda singularidades não físicas, isto é, não associadas à divergência de quantidades físicas. Por exemplo, o eixo θ = 0, π não
pode ser descrito pela métrica de Minkowski nas
coordenadas (t, r, θ, ϕ), já que para tais valores do
ângulo θ o elemento de linha de Minkowski (assim como qualquer outro com simetria esférica) é
degenerado. Isto é o que se chama uma singularidade de coordenadas, porque reflete uma deficiência no sistema coordenado escolhido (enquanto
o espaço-tempo é regular), e pode ser removida
(no caso, introduzindo coordenadas cartesianas).
A métrica de Schwarszchild é degenerada no caso
θ = 0, π e ainda em outros dois casos: r = 0 e
r = rg . Qual seria o critério conveniente para
decidir se uma singularidade é fictícia (isto é, devida a uma escolha inadequada do sistema de coordenadas) ou real [9]? Poderíamos por exemplo calcular quantidades que não dependam do
sistema coordenado escolhido, e se alguma delas
fosse divergente, estaríamos em presença de uma
singularidade “essencial”, já que a invariância assegura que a divergência acontece em qualquer
16
Tal singularidade na teoria clássica não existe no tratamento quântico.
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sistema coordenado.17 Um outro critério que poderíamos adotar é o seguinte: uma singularidade
é real (isto é, não associada à escolha do sistema
coordenado) se as forcas de maré que agem sobre um objeto na suposta singularidade são infinitas. Este critério concorda com a noção de
singularidade como divergência da força associada ao campo, bem conhecida no caso do eletromagnetismo por exemplo. Não será apresentado
aqui o cálculo das forças de maré no caso do BN
de Schwarzschild (para detalhes veja [26]), mas
a ideia será ilustrada pela figura 9. As forças de
maré comprimem e esticam o cubo, de forma cada
vez mais intensa quanto mais próximo ele estiver
de r = 0.18 De fato, as forças de maré são finitas no horizonte, e continuam aumentando dentro
dele, e divergem no centro do BN, o que confirma
o caráter essencial da singularidade em r = 0,
estabelecendo ainda que a superfície r = rg não
é uma singularidade real, mas uma consequência
do sistema de coordenadas escolhido.
Até aqui analisamos a solução de Schwarzschild, que possui um alto grau de simetria (ela
é esfericamente simétrica e estática). Do ponto
de vista da astrofísica, seria interessante dispor
também de soluções descrevendo objetos em rotação (isto é com simetria axial). Estudaremos a
seguir um tipo de buraco negro que possui velocidade angular não nula.
5 O buraco negro de Kerr
A métrica que descreve o espaço-tempo de um
buraco negro em rotação pode ser escrita convenientemente de várias formas diferentes. Daremos
aqui duas. A primeira é a forma de EF avançada,
17
No caso da métrica ((9)) é suficiente calcular alguma
quantidade invariante, por exemplo
Rµνρσ Rµνρσ =
48M 2
,
r6
(12)
onde Rµνρσ é o tensor de Riemann [26], para mostrar que
o ponto r = 0 é uma singularidade essencial. Mas este
resultado não permite concluir nada sobre a superfície r =
rg .
18
As forças de maré no BN de Schwarzschild dependem
de M/r3 . No caso de um BN supermassivo, como o do
centro da Via Láctea, as forças de maré no horizonte são
muito mais fracas do que aquelas num BN de algumas
massas solares, como o da figura.
55
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
Figura 9: A figura mostra um cubo caindo na direção de um BN de Schwarzschild com M = 5M⊙ . Em (a), o cubo se
encontra longe do BN, e o efeito deste é desprezível. Nas posições (b),(c), e (d), o cubo é cada vez mais deformado pelas
forças de maré assim que ele fica mais próximo do BN. Crédito: [28].
dada por
2M r
2
dv 2 − 2 dv dr − ρ2 dθ2
ds = 1 − 2
ρ
2M r
(2a sen2 θ) dv dϕ̄ + 2a sen2 θ dr dϕ̄
ρ2
2M r 2
2
2
2
4
− (r + a ) sen θ + 2 a sen θ) dϕ̄2 ,
ρ
+
onde
ρ2 = r2 + a2 cos2 θ.
Esta forma pode ser obtida a partir da métrica
de Schwarszchild , fazendo uma transformação de
coordenadas onde r pode ter valores complexos
[11].
A segunda é a métrica de Boyer-Lindquist (BL):
ds2 =
∆
sen2 θ 2
2
2 2
(r + a2 )dϕ
(dt
−
a
sen
θdϕ
)
−
ρ2
ρ2
−adt]2 −
ρ2 2
dr − ρ2 dθ2 ,
∆
(13)
onde
∆ = r2 − 2M r + a2 .
Os detalhes do cálculo da solução podem ser encontrados por exemplo em [29].
A forma de B-L é talvez a mais utilizada, e vale
a pena salientar algumas das suas propriedades.
Primeiramente, as superfícies t = constante, r =
constante têm a métrica
ds2 =
∆
(−a sen2 θdϕ2 )2
ρ2
2
sen2 θ 2
(r + a2 )dϕ − ρ2 dθ2 ,
−
2
ρ
t → −t,
ϕ → −ϕ,
t → −t,
a → −a.
e sob
A primeira sugere que o campo tem como fonte
um corpo em rotação. A outra simetria sugere
que a tem relação com o momento angular. De
fato, e possível mostrar que a é o momento angular por unidade de massa, a = J/M [26].
5.1 Singularidades e horizontes
A figura (10) mostra um esquema da solução
de Kerr. Segue do cálculo dos invariantes que a
métrica de Kerr tem somente uma singularidade
essencial quando ρ = 0. Da definição de ρ,
ρ2 = r2 + a2 cos2 θ,
vemos que ρ = 0 traz como consequência r =
cos θ = 0. A partir da transformação de coordenadas ligando a métrica em coordenadas E-F com
a métrica em coordenadas tipo cartesianas segue
a equação [26]
x2 + y 2 = a2 ,
(14)
que não coincide com a métrica da 2-esfera (10),
como era de esperar numa geometria sem simetria
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
esférica. Em segundo lugar, a métrica de Kerr depende de dois parâmetros, M e a. Fazendo a = 0
recuperamos a solução de Schwarszchild nas coordenadas de Schwarszchild , dada pela Eq. (9), e
então M é a massa do buraco negro. Vemos também que os coeficientes da métrica independem
de t e ϕ, e consequentemente a solução é estacionaria e axialmente simétrica (ela é invariante
respeito de rotações com eixo z). A métrica tem
ainda duas simetrias discretas: ela é invariante
sob a transformação
z = 0.
A diferença do caso de Schwarszchild, onde a singularidade é um ponto, a singularidade na geometria de Kerr é um anel de raio a no plano equatorial z = 0. As superfícies dadas pela condição
56
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
buraco negro carregado, ou mais precisamente,
da solução estática, assintoticamente plana, e
com simetria esférica das equações de EinsteinMaxwell descoberta por H. Reissner em 1916, e
redescoberta por G. Nordstrom em 1918.19 A
fonte do campo elétrico é uma carga pontual situada na origem (logo o campo será radial). Sem
entrar nos detalhes do cálculo, a métrica de R-N
tem a forma
Figura 10: Esquema da solução de Kerr
g00 = 0, com raio
rS ± = M ±
p
M 2 − a2 cos2 θ,
denotadas por S+ e S− são as superfícies do limite
estacionário, e têm propriedades especiais (veja
por exemplo [30]). No limite a = 0, a expressão
para rS± se reduz a rS+ = 2M , rS− = 0. As
superfícies tem simetria axial, e a S− está dentro
da S+ . Já os dois horizontes da solução de Kerr
vêm dados pela equação g 11 = 0, cuja solução é
p
r± = M ± M 2 − a 2 .
no caso em que a2 < M 2 , que é o relevante em astrofísica. O horizonte r+ está totalmente dentro
de S+ , e a região entre eles é a ergosfera. É possível extrair energia do buraco negro de Kerr através de determinados processos nessa região (veja
por exemplo [13]). Antes de concluir a apresentação das características principais do BN de Kerr,
é importante salientar que a métrica de Kerr governa o movimento da matéria no entorno do BN,
em particular dos fótons. A través das equações
de movimento para eles, e depois de complexas simulações numéricas, foi possível obter a imagem
teórica do buraco negro no centro da galáxia Messier 87. Tal imagem foi comparada com a obtida
da observação, o que permitiu estabelecer limites
sobre os parâmetros do BN (como por exemplo a
massa e o momento angular), veja a Figura 11.
ds2 = A(r) dt2 −A(r)−1 dr2 −r2 (dθ2 + sen2 θdϕ2 ),
q2
+
, e o campo elétrico
onde A(r) = 1 − 2M
r
r2
é
q
E(r) = 2 .
r
No caso q = 0, a solução de R-N se reduz à métrica de Schwarszchild. A análise da solução mostra que há uma singularidade essencial em r = 0,
e dois horizontes (no caso q 2 < m2 ), situados em
r± = m ±
p
m2 − q 2 .
O estudo da solução em coordenadas de
Eddington-Finkelstein mostra que r = r+ é um
horizonte, mas r = r− é na verdade um horizonte
aparente (veja por exemplo [31]).
6.2 O buraco negro mais geral
é possível obter a forma mais geral da métrica de um buraco negro (que é solução das
equações de Einstein) usando uma transformação complexa na solução de R-N em coordenadas
de E-F, como foi feito para passar da métrica de
Schwarszchild para a métrica de Kerr (ver detalhes em [26]). O resultado é a métrica de KerrNewman,
ds
2
=
2M r q 2
1− 2 + 2
ρ
ρ
dv 2 − 2 dv dr +
2a
(2M r − q 2 ) sen2 θ dv dϕ̄ +
ρ2
2a sen2 θ dr dϕ̄ − ρ2 dθ2 −
[(r2 + a2 )2 − (r2 − 2M r + a2 + q 2 )
6 Outros buracos negros
6.1 Buracos negros carregados
Existe de fato um outro tipo de buraco negro,
importante do ponto de vista teórico. Trata-se do
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
a2 sen2 θ]
sen2 θ
dϕ̄2 ,
ρ2
(15)
19
A interpretação da solução como descrevendo um buraco negro carregado foi feita por J. Graves e D. Brill em
1960.
57
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
Figura 11: A imagem do lado esquerdo mostra o caminho dos raios de luz obtido usando a métrica de Kerr. Já a da
direita mostra a imagem obtida pelo Event Horizon Telescope para o BN no centro da galáxia Messier 87. Crédito: [1].
que depende de três parâmetros: M, a, q (massa,
momento angular por unidade de massa, e carga
do buraco negro respectivamente). Esta solução
se reduz à de Schwarzschild no caso q = a = 0, á
de Kerr se q = 0, e à de Reissner-Nordstrom se
a = 0. Trata-se de uma geometria estacionária
com simetria axial e assintoticamente plana, que
tem uma superfície estacionária limite dada por
r =m+
p
m2 − q 2 − a2 cos2 θ,
e um horizonte de eventos externo em
r =m+
p
m2 − q 2 − a2
para a2 + q 2 ≤ m2 . Os detalhes desta solução
podem ser encontrados em [32].
Foi mostrado por Carter, Hawking e Robinson
que a solução de Kerr-Newman é a única solução
estacionária das equações de Einstein no vácuo.
Sendo que aparentemente não existem objetos astrofísicos com carga apreciável, a solução de Kerr,
caracterizada pelos parâmetros M e a é a solução
relevante do ponto de vista astrofísico.
Concluímos aqui o nosso estudo das propriedades clássicas dos buracos negros isolados. Várias
questões fundamentais dentro deste item, mas
exigindo ferramentas matemáticas mais sofisticadas, não foram abordadas aqui. Entre elas podemos citar a teoria de perturbações em geometrias
descrevendo buracos negros [32].
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
7 Colapso gravitacional e buracos negros
De fato, o resultado de um colapso arbitrário
(isto é, sem simetrias) deve dar como resultado
um buraco negro de Kerr. Ou seja, sem importar
o estado inicial da matéria em colapso, o estado
final é caracterizado por M e J.
A teoria de evolução estelar mostra que estrelas
com massa da ordem de 1 M⊙ atingem o equilíbrio como anãs brancas ou estrelas de nêutrons,
mas não existe estado de equilíbrio no final da
evolução de estrelas de massa muito maior do que
M⊙ (veja por exemplo [33]). A figura 12 mostra
as possíveis configurações de equilíbrio de forma
qualitativa.20 Caso a massa da estrela seja muito
maior do que M⊙ , chegará um ponto na evolução em que a matéria não conseguirá gerar pressões grandes o suficiente para contrabalançar a
ação da gravitação, e o colapso será inevitável:
as camadas centrais da estrela serão afundadas
pelo peso das camadas externas. A RG prediz
que o resultado do colapso de uma estrela com
simetria esférica é um objeto descrito pela solução de Schwarszchild, isto é, um buraco negro.
Os modelos detalhados de colapso gravitacional
exigem resolver as equações de Einstein numericamente.21 Analisaremos aqui qualitativamente
20
Isto porque os detalhes dependem da equação de estado utilizada para descrever a matéria que compõe a estrela, e há ainda incertezas na descrição da matéria para
altas densidades.
21
Para modelos analíticos simplificados, veja por exem-
58
Introdução à física de buracos negros
Figura 12: A figura mostra qualitativamente a forma
da curva massa-raio para as configurações de equilíbrio de
estrelas compactas. Crédito: [34].
o caso de uma estrela com simetria esférica que
está colapsando, até que o raio da superfície da
estrela alcance o valor r = 2M . Lembremos que
enquanto a estrela permaneça com simetria esférica, o campo externo é descrito pela solução
de Schwarszchild. Para visualizar o que acontece durante o colapso, utilizaremos um diagrama
espaço-tempo bidimensional nas coordenadas de
Eddington-Finkelstein, Figura 13. Vemos da figura que os fótons emitidos desde a superfície
da estrela nos estágios iniciais do colapso conseguem chegar até infinito, mas o intervalo entre
eles cresce com o tempo, sendo que aqueles fótons
emitidos quando a superfície atinge r = 2M ficam
nessa superfície, e os emitidos posteriormente são
inexoravelmente atraídos pela singularidade. A
superfície da estrela some então da vista do observador situado num ponto longe da objeto em
colapso, dando lugar a um buraco negro.
A métrica de Schwarszchild é útil então em
dois casos. No primeiro, ela representa o exterior de um objeto compacto (uma estrela de nêutrons, por exemplo, ver [36]). Neste caso, o raio
gravitacional está sempre no interior do corpo,
não há singularidade nenhuma, e a métrica de
Schwarszchild descreve a geometria a partir da
superfície do objeto.22 O segundo caso é aquele
o mostrado na figura (13), no qual, como resulplo [35].
22
O interior deve ser descrito por uma solução das EE
em presença de matéria, que deve ser “colada ” continuamente com a solução de Schwarszchild na superfície do
objeto.
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
S.E.P. Bergliaffa
Figura 13: Colapso em coordenadas de Schwarszchild.
tado do colapso, a superfície da estrela atravessa o
raio gravitacional, e o horizonte fica “descoberto”.
Este é o caso do buraco negro.
O que acontece no caso mais geral de uma estrela colapsando sem manter a simetria esférica?
Não existe critério geral que permita decidir em
quais condições se formará um horizonte, dada
uma situação inicial arbitrária. A dificuldade
principal deste problema é a dependência temporal do processo: durante o colapso, existe um
período de tempo durante o qual o horizonte está
aumentando desde raio zero até 2M no caso de
Schwarszchild. Isto fica claro da figura (13), onde
vemos que existe um último fóton que fica no horizonte. Nesta situação de simetria esférica não é
difícil determinar a posição do horizonte, mas em
situações assimétricas, e com emissão de radiação gravitacional, o cálculo é extremamente complexo. Para um resumo dos resultados obtidos
até agora, veja [37].23
8 Buracos Negros Astrofísicos
Até aqui exploramos algumas propriedades
clássicas de buracos negros isolados, mas estes dificilmente podem ser observados.24 Nesta seção
discutiremos brevemente a observação de buracos
23
Resultados de simulações numéricas podem ser vistos
em https://www.aei.mpg.de/283432/gravitationalcollapse
24
Uma possibilidade seria o microlensing, veja por
exemplo
https://hubblesite.org/contents/newsreleases/2022/news-2022-001
59
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
cado à observações astronômicas, o Uhuru.25 Ele
observou mais de 300 fontes de raios X, muitas
delas em sistemas binários. Estes dados foram
interpretados como consequência da acreção de
matéria num objeto compacto. Os motivos que
sustentam tal interpretação ão os seguintes:
• A variabilidade observada na emissão dos
raios X tem uma escala temporal curta, o
que se deve ao fato de que a região emissora
deve ser pequena (do tamanho de um objeto
compacto).
Figura 14: O desenho mostra o disco de acreção em
torno de um buraco negro que atrai matéria de uma estrela
normal (ilustrando a situação no sistema GRO J1655-40,
na galáxia Scorpius). Vemos ainda o vento produzido pela
presença de um campo magnético, e o espectro de emissão
de raios X. Crédito: Chandra Photo Album.
negros em interação com um corpo celeste (uma
estrela normal ou uma anã branca por exemplo).
Neste caso, a atração gravitacional do BN faz com
que a matéria que compõe a estrela comece a
“cair” na direção dele. A descrição deste fenômeno é extremamente complicada: trata-se de
um problema de hidrodinâmica onde o fluxo fica
confinado num disco que gira em torno do equador de um BN de Kerr. As diferentes camadas do
disco giram com uma velocidade angular que aumenta com a proximidade ao buraco, provocando
o aquecimento do material em queda até altíssimas temperaturas. O material quente emite radiação, que pode ou não interagir fortemente com
o gás. Em muitos casos existe um campo magnético na estrela, o que transforma o processo num
problema de magnetoidrodinâmica. Finalmente,
todo isto acontece com a geometria de Kerr como
pano de fundo. Resumindo, trata-se de um problema de magnetoidrodinâmica relativística dependente do tempo, com equações em duas (ou
três) dimensões, com transferência radiativa [38]
(veja a Figura (14)).
O caminho que leva a o modelo descrito no parágrafo anterior começou no ano 1962, quando
foram observadas as primeiras fontes de raios X
em nossa galáxia, num projeto comandado por
R. Giacconi (Prêmio Nobel 2002 por seu trabalho em astronomia de raios X). Logo foram observadas fontes variáveis no tempo, algumas com
contrapartida na parte óptica do espectro. Mas
o aporte decisivo foi o do primeiro satélite dediCadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
• Muitas das fontes são efetivamente sistemas
binários, com uma estrela observável no óptico em órbita elíptica em torno de um companheiro “invisível”.
Acredita-se hoje que a emissão de raios X devese ao processo descrito acima, cuja observação é
uma prova indireta da existência dos buracos negros. De fato, supõe-se que buracos negros supermassivos (com massas entre 105 e 109 vezes a
massa do Sol) existem no centro da maioria das
galáxias (incluindo a nossa), e buracos negros da
ordem de algumas massas solares compõem os sistemas binários mencionados acima. Mas devemos
mencionar o fato de que no caso dos sistemas binários é preciso decidir por meio da observação
(por exemplo através da medida da massa) se o
objeto “escuro” é um buraco negro ou uma estrela
de nêutrons. Uma outra possibilidade envolve a
diferença fundamental entre estes dois objetos: a
estrela de nêutrons tem uma superfície sólida, enquanto o horizonte do buraco negro é uma superfície matemática (veja [39] para detalhes).
9 Buracos negros e ondas gravitacionais
Em 1916, um ano depois de publicar a teoria de Relatividade Geral, Einstein mostrou que
sua teoria permitia a propagação de ondas [40].26
No dia 14 de setembro de 2015, praticamente
100 anos depois, o observatório LIGO detectou
pela primeira vez tais ondas. A análise dos dados é consistente com a fusão de dois buracos
negros de Kerr, de massas aproximadamente 29
M⊙ e 34 M⊙ , e momento angular por unidade
25
Uhuru significa liberdade em swahili, língua falada na
Etiópia, país de onde foi lançado o satélite.
26
Veja ainda [41], onde Einstein corrige um erro do artigo de 1916.
60
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
Figura 16: Processos quânticos e criação de pares nas
vizinhanças de um horizonte. Crédito: Alexander Kruchkov.
10 Buracos negros e mecânica quântica
um mar de partículas virtuais, que se materializam em pares partícula-antipartícula, para se aniquilarem pouco depois. Lembrando que a solução de Schwarszchild é uma solução de vácuo das
equações de Einstein, perto do horizonte acontecerá também a criação de pares. Embora muitos
pares sejam engolidos pelo buraco, dependendo
do momento de cada uma das partículas do par,
alguns pares podem ser separados, caindo uma
das partículas no buraco negro e escapando a outra em direção ao infinito, onde seria interpretada
como radiação emitida pelo BN, Figura 16.
Hawking mostrou que a radiação estaria distribuída segundo um espectro de corpo negro.
Este processo, que diminui a massa (e o tamanho) do buraco negro, continua sem interrupção,
até a evaporação final do buraco. Para buracos
negros grandes a evaporação total levaria muito
tempo (1066 anos para um buraco de massa M⊙ ).
é possível mostrar que a escala temporal associada à perda de energia (“evaporação ”) vem dada
por [38]
3
M3
M
10
τ≈
≈ 10 yr
,
ℏ
1015 g
Em 1974 Hawking surpreendeu a comunidade
dos físicos teóricos ao mostrar que os buracos
negros são negros somente quando considerados
como objetos clássicos. Se levarmos em conta as
leis da mecânica quântica, os buracos negros emitem energia continuamente, e não são então as
estruturas permanentes que a física clássica prediz [42]. Os cálculos de Hawking estão baseados
no uso de teoria quântica de campos num espaçotempo curvo, e nos limitaremos aqui a apresentar
uma justificativa heurística deste resultado.
A teoria quântica nos diz que o estado que chamamos de vácuo clássico pode ser pensado como
que é irrelevante para buracos negros de algumas
massas solares, mas não para M ≲ 1015 g.
O resultado de Hawking é de extrema importância para a compreensão de fenômenos descritos pela teoria quântica de campos em espaçotempo curvo. Mas a possibilidade de observar
em buracos negros astrofísicos a radiação decorrente é nula, já que os buracos negros astrofísicos
estão rodeados por material em queda em espiral
na direção da singularidade. Este material forma
um disco de acreção, e está a temperaturas elevadas, emitindo consequentemente radiação a altas
temperaturas perto do horizonte (por causa da
Figura 15: .Crédito:LIGO/Caltech/MIT/Sonoma State
(Aurore Simonnet).
de massa aproximadamente 0.7 e 0.8, respectivamente, como ilustra a Figura 15. O BN resultado
da fusão tem uma massa de 62 M⊙ . A (imensa
quantidade de) energia de três massas solares faltante foi irradiada em ondas gravitacionais. Hoje
já foram detectadas dezenas de eventos, tanto da
fusão de dois buracos negros quanto de duas estrelas de nêutrons, e ainda de um buraco negro
com uma estrela de nêutrons, Figura 17. Tais detecções dão suporte ao conceito de BN de Kerr,
abrem uma janela totalmente nova de observação
de fenômenos no Universo, e garantiram o Prêmio
Nobel em Física 2017 para Rainer Weiss, Barry
C. Barish and Kip S. Thorne por suas contribuições decisivas ao detector LIGO e à observação
de ondas gravitacionais.
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
61
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
Figura 17: Fusões de buracos negros detectadas até hoje pela emissão de ondas gravitacionais. Crédito: Carl Knox
(OzGrav, Swinburne University of Technology).
fricção). Por outra parte, a intensidade da radiação do efeito Hawking é extremamente baixa, e
não existe então possibilidade alguma de observar
este efeito nos buracos negros astrofísicos.27
11 Termodinâmica de buracos negros
Um resultado importante, obtido por Hawking
é o teorema da área, que estabelece que em qualquer processo físico que envolva um horizonte, a
área do horizonte não pode diminuir. Este resultado pode ser enunciado matematicamente como
segue:
dA
≥ 0.
dt
Por outra parte, vimos na seção anterior que um
buraco negro emite fótons com o espectro de um
27
Mas existe uma chance de medir a radiação de Hawking no laboratório, usando buracos negros análogos [17].
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
corpo negro de temperatura
ℏ
≈ 10−7 K
T =
8πkM
M⊙
M
,
(16)
onde k é a constante de Boltzmann. No caso do
buraco negro de Schwarszchild [43],
2GM 2
A = 4π
,
c2
e então dA = 32π(G/c2 )M dM , ou
d(M c2 ) =
c6 dA
≡ T dS
G2 32πM
Como T = ℏ/(8πkM ) é a temperatura, segue da
equação anterior que a entropia S do buraco negro vem dada por
S=
kc3 A
,
Gℏ 4
e não pode diminuir por causa do teorema da área
. Temos então o inesperado resultado de que o
62
Introdução à física de buracos negros
S.E.P. Bergliaffa
Tabela 1: Leis da termodinâmica aplicadas à buracos negros
LEI
TERMODINâMICA
BURACOS NEGROS
Zero
T é constante num corpo em equilíbrio térmico
κ é constante no horizonte
de um BN estacionário
Primeira
dE = T dS +termos de trabalho
dM = κ/(8π) dA + ΩdJ
Segunda
δS ≥ 0 em qualquer processo
δA ≥ 0 em qualquer processo
Terceira
é impossível atingir T = 0
é impossível atingir κ = 0
via processos físicos
via processos físicos
buraco negro se comporta como um corpo negro
de temperatura h/8πM e entropia proporcional
a A.
O fato de que os buracos negros deviam possuir entropia já tinha sido notado por Wheeler,28
mas a temperatura de um buraco negro segundo
a física clássica é zero, já que ele absorbe e não
emite nada. Foi somente depois da descoberta da
radiação de Hawking que a termodinâmica de buracos negros foi aceita. Sem entrar em detalhes,
apresentamos a seguir uma tabela comparando as
leis da termodinâmica com conceitos de buracos
negros (no caso de um buraco negro estático, κ
é a força que é necessário fazer desde o infinito
para manter uma partícula pequena sobre o horizonte [34]).
12 Coda
Mas de um século tem transcorrido desde que
Schwarzschild, Reissner e Nordstrom descobriram
as soluções de buraco negro sem e com carga.
Neste tempo, os buracos negros têm se mostrado
como objetos fascinantes, que podem nos conduzir a grandes descobertas. Mencionaremos a seguir somente algumas destas possibilidades.
Como discutimos brevemente na Seção (11), é
possível associar uma temperatura e uma entropia ao buraco negro. Mas a física estatística mostra que no caso de sistemas de muitas partículas,
a temperatura e a entropia são manifestações da
física microscópica que governa as interações entre as partículas. Em particular, a entropia tem
relação com o número de configurações microscópicas compatíveis com um dado estado macros28
De outra forma, se um buraco negro engolisse um
corpo quente, a entropia total do sistema corpo + buraco
negro decresceria para um observador externo.
Cadernos de Astronomia, vol. 4, n◦ 1, 49-66 (2023)
cópico [44]. Qual seria então a “física microscópica” por detrás da entropia do buraco negro?
Esta é uma pergunta que as duas teorias que pretendem descrever a gravitação num nível fundamental (isto é, a teoria de cordas e a gravitação
quântica) têm tentado responder, com diferentes
graus de sucesso. Embora existam respostas parciais ao problema (ver por exemplo [45]), ainda
não temos a resposta definitiva. Seja qual for,
ela estará nos dando informação sobre o regime
quântico da gravitação.
Um problema que teria uma forte relação com
o anterior é o do paradoxo da informação. Como
vimos antes, os buracos negros emitem radiação
com temperatura TH dada pela equação (16). Em
princípio a emissão continuaria até o buraco negro
se evaporar completamente, deixando somente radiação, cuja temperatura e demais características
dependem só dos parâmetros que caracterizam ao
buraco negro. Ou seja, o resultado final independe do estado inicial, isto é, do estado da matéria que colapsa para formar o buraco. Em outras palavras, dado um estado final descrito pelas
características da radiação, não é possível determinar a partir dele o estado inicial. Este é o problema da “perda de informação”. Por argumentos
que não reproduziremos aqui, esta perda de informação traria uma violação a evolução unitária
(um dos pilares da mecânica quântica usual), e
como consequência, a gravitação quântica deveria incorporar esta não unitariedade [46].
Os exemplos aqui citados ilustram a importância dos buracos negros em diferentes áreas da física, e o enorme potencial para desempenhar um
papel fundamental no desenvolvimento das ideias
da física moderna.
63
Introdução à física de buracos negros
Livros texto
Básicos: Refs. [13, 25, 26, 43, 47].
Avançados: [31, 32, 48–50].
Recursos em internet
• Página sobre buracos negros do telescópio
Hubble
http://hubblesite.org/explore_
astronomy/black_holes/
• Página sobre buracos negros do observatório
de raios X Chandra
http://chandra.harvard.edu/xray_
sources/blackholes.html
• Perguntas frequentes sobre buracos negros
http://cosmology.berkeley.edu/
Education/BHfaq.html
• Introdução aos buracos negros
http://www.damtp.cam.ac.uk/user/gr/
public/bh_home.html
• Uma viagem virtual a um buraco negro
http://antwrp.gsfc.nasa.gov/htmltest/
rjn_bht.html
Sobre o autor
Santiago Esteban Perez Bergliaffa (
[email protected]) é Doutor em Física pela
Universidade Nacional de La Plata, Argentina e,
atualmente, é professor do departamento de física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Desenvolve pesquisas na área de Gravitação e Cosmologia, sendo especialista em temas
como buracos negros, modelos análogos, teorias
alternativas da gravitação e modelos cosmológicos não homogêneos.
Referências
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Farther Necessary for That Purpose., Phil.
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