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Alegorias do regime autoritário:
o cinema infantil da Abertura Política (1974-1985)
Allegories of authoritarian regime:
children´s cinema of Political Opening (1974-1985)
André de Paula Eduardo
Doutor (2021) em Comunicação Audiovisual pela Universidade Anhembi Morumbi - UAM. Mestre (2013) em
Comunicação pela Universidade Estadual Paulista - Unesp. Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Unesp.
Universidade Anhembi Morumbi, Programa de Pós-graduação em Comunicação, São Paulo (SP), Brasil.
Maria Ignes Carlos Magno
Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)
e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi.
Universidade Anhembi Morumbi, Programa de Pós-graduação em Comunicação, São Paulo (SP), Brasil.
Felipe Abramovictz
Doutorando em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Comunicação pela
Universidade Anhembi Morumbi (UAM/SP) e bacharel em Comunicação e Multimeios pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP).
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas (SP), Brasil.
O problema dos gêneros e o cinema infantil
Existe de fato um cinema infantil, enquanto um gênero ou subgênero bem definido? A questão se
faz relevante quando pretendemos o estudo de um conjunto de obras fílmicas que têm como
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denominador comum o fato de buscarem se encaixar nessa classificação, mesmo que dentro de uma
perspectiva, por assim dizer, do “senso comum”: seriam “filmes para crianças” por conta de uma série de
características. O interesse deste artigo, afinal, se concentra na localização, na identificação e no estudo de
determinados conteúdos de natureza política e social em um pequeno conjunto de filmes, cujo públicoalvo são, majoritariamente, as crianças, com destaque para o alegórico Maneco, o Super Tio (Flávio
Migliaccio, 1978). De antemão, teríamos possíveis dificuldades de classificação: um filme pertenceria a
determinado gênero por conta de seu público? Seria possível classificar o filme de horror, o faroeste ou o
suspense dentro dessa chave? Parece pouco provável, embora falar em cinema para crianças soe mais
razoável. Contudo, se a presença de um público específico é importante para a classificação, é evidente
que tais filmes carregam códigos que permitem tal definição. Caberia perguntar, antes, sobre o que de fato
define um gênero. Nogueira (2010) oferece um caminho:
A identificação de um determinado gênero haverá de passar inevitavelmente pela identificação de
um esquema genérico. Essa concepção esquemática partirá de uma grelha de aspectos que uma obra deve
preencher e do modo como a preenche: tipo de personagens retratadas, tipo de situações encenadas,
temas correntemente abordados, elementos cenográficos e iconográficos, princípios estilísticos ou
propósitos semânticos, por exemplo. Quando esse esquema permite identificar um padrão recorrente num
vasto grupo de obras, temos então que um gênero ganha dimensão crítica – isto é, um elevado número de
qualidades é partilhado por uma elevada quantidade de filmes (NOGUEIRA, 2010, p. 4).
José Mario Ortiz Ramos (1993, p. 112), por sua vez, aponta para dificuldades da reflexão sobre os
gêneros no cinema e na televisão brasileiros, “ligada a um outro ponto de estrangulamento da reflexão
brasileira: a questão da cultura popular numa sociedade modernizada”. Haveria, portanto, uma lacuna
dentro do processo de reflexão teórica a respeito, faltaria “uma concepção atualizada, contemporânea,
que passe a conectar a cultura popular e a de massa, que perceba a imersão do país na cultura pop,
realidade que já tem décadas e se manifesta mais claramente nas camadas jovens” (RAMOS, 2004, p. 112).
A definição de um cinema infantil enfrentaria tais problemas; porém, é possível encontrar subsídios para
tentar ao menos compreendê-lo enquanto um gênero dotado de suficiente dose de elementos próprios. O
filme infantil, assim, não seria aquele que traz crianças como protagonistas; antes, carrega em si um olhar
que poderia ser chamado, grosso modo, de infantil, ou, ainda, “os filmes para crianças podem ser definidos
como aqueles que oferecem principalmente ou inteiramente um ponto de vista da criança, o qual lida com
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interesses, medos, apreensões e preocupações da criança em sua própria concepção” (BAZALGETTE e
STAPLES, 1995, p. 96, tradução nossa)1.
Podemos, assim, situar o filme infantil como um cinema com pretensões comerciais, pois se destina
a um público bem definido e opera pela busca da cativação do olhar do espectador (sobretudo o mirim,
mas não apenas), que, via de regra, se dá a partir da costura de outros gêneros, justapostos de forma a se
inserir em um universo para crianças. Ou, ainda, tal como ocorre com Maneco, o Super Tio, “busca
recuperar o sentido poético do tempo perdido pelos adultos, o que só pode ser realizado – e ainda que por
meio de uma representação – através da recriação de um universo infantil” (SIQUEIRA, 2010, p. 387).
Nesse cinema, se destaca a presença da aventura e da comédia, mas também elementos do drama ou do
romance e outros gêneros2, muitas vezes por meio da paródia, sempre atuando em prol desse olhar
infantil, além do constante diálogo com o universo televisivo e a cultura pop, algo identificável nos filmes
dos Trapalhões. As crianças costumam assumir o protagonismo ou, ainda, dividem-no com adultos que
conseguem adentrar e entender seu ponto de vista particular3; e não raro os personagens adultos mais se
assemelham com “crianças crescidas”.
Interessa neste artigo discutir a relação entre o cinema infantil e o processo da Abertura Política no
Brasil, por meio da apreciação de Maneco, o Super Tio, mas tendo como pontos de contato outras obras,
como Os Paspalhões e o Pinóquio 2000 (Victor Lima, 1982) e Os Saltimbancos Trapalhões (J. B. Tanko,
1981). Maneco se configuraria em uma alegoria mais bem acabada de um tempo repressivo na vida
política brasileira, ao passo que os demais filmes citados seriam eivados de referências ao processo
histórico de seu tempo.
Abertura Política e o expediente alegórico
A Abertura Política toma corpo a partir de 1974, impulsionada por dois fatores principais: “pela alta
do petróleo e pela votação esmagadora nos candidatos da oposição ao Senado” (KUCINSKI, 1982, p. 14). O
1
2
3
No original: “children´s films can be defined as ofering mainly ou entirely a child´s point of view. That deal with the interests,
fears, misapprehensions and concerns of children in their own terms.” (BAZALGETTE e STAPLES, 1995, p. 96)
A estratégia de hibridação de gêneros encontra bons exemplos na construção dos filmes da trupe Os Trapalhões, tal como em
Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (Adriano Stuart, 1978), O Cangaceiro Trapalhão (Daniel Filho, 1983) e diversos outros,
caso de Paspalhões e o Pinóquio 2000 (Victor Lima, 1982).
Caso do personagem Maneco (Flávio Migliaccio) em Maneco, o Super Tio ou, ainda, do Velho Gui (Dionísio Azevedo) em A
Pequena Órfã (Clery Cunha, 1973); e encontraremos, naturalmente, tais procedimentos junto aos filmes protagonizados pelos
Trapalhões.
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choque do petróleo assinalava o fim do chamado “milagre econômico”, cujo modelo tinha dentre seus
pilares a indústria automobilística. “Morreu o 'milagre brasileiro', que nada mais era do que o crescimento
desmesurado de forças produtivas em custos vis de energia e mão de obra” (p. 27). Caminha-se para uma
ruptura de um pacto entre setores da burguesia e a tecnoburocracia estatal que dirige o Estado (BRESSER
PEREIRA, 1978, p. 125); o colapso do modelo que se ancorava em uma aliança entre os militares e setores
empresariais – e também o capital estrangeiro – marca o começo do fim do regime a aponta para a
promessa de redemocratização.
A grande burguesia monopolista, especialmente a estrangeira, não hesitou em pôr fim ao pacto político
entre os setores privados e estatais quando viu que a condição econômica essencial para a manutenção
desse acordo típico dos dias do “milagre” – o crescimento acelerado – havia desaparecido. Rompia-se assim,
por iniciativa da própria burguesia, a aliança entre os grupos monopolistas privados e a tecnocracia
(KUCINSKI, 1982, p. 30).
Os reflexos desse processo no cinema brasileiro logo surgiram, de formas distintas. Obras como
Iracema (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1974) apontam, de forma quase herética, para os rumos
catastróficos do dito “milagre”. O modelo de desenvolvimento dos militares, traduzido em obras
grandiloquentes, como estradas imensas que cortam o país de norte a sul, ecoando um discurso de
“integração nacional” – cuja lógica seria, anos mais tarde, problematizada no emblemático atoleiro de Sete
Dias de Agonia (Denoy de Oliveira, 1982) –, ganha contornos malditos: miséria, trabalho escravo,
prostituição infantil, degradação das matas, violência por toda parte. A crítica ao modelo econômico dos
militares ganha forças em filmes com contornos distópicos e alegóricos, caso de Cordão de Ouro (Antônio
Carlos Fontoura, 1978), Parada 88, O Limite do Alerta (José de Anchieta, 1978) e Abrigo Nuclear (Roberto
Pires, 1981), nos quais, assim como em Maneco, o Super Tio, a questão dos recursos naturais tem vital
relevância. Celso Furtado (1981), ao comentar a crise do “milagre”, escrevia à época:
O dinamismo da economia brasileira não se explica sem uma referência ao sacrifício imposto a grande parte
da população do país e ao caráter extensivo da exploração dos recursos naturais de um vasto território. Os
instrumentos da análise econômica são inadequados para explicitar esses custos sociais e ecológicos. A
exportação de recursos não-renováveis – minerais preciosos ou industriais – constitui um traço da vida
econômica do país desde a época colonial. As vendas ao exterior de minério de ferro já alcançam os oitenta
milhões de toneladas anuais e deverão crescer consideravelmente (…). Mais significativo ainda é o uso
depredatório – frequentemente levado ao ponto da irrecuperabilidade – dos recursos florestais, dos solos
aráveis e da fauna (FURTADO, 1981, p. 21).
Se a alegoria é, conforme o entendimento de Ella Shotat e Robert Stam (2006, p. 389), a tendência
principal dos textos realizados em países do então dito Terceiro Mundo, observaremos sua larga utilização
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nos primeiros anos que se seguiram ao Golpe de 64, especialmente no Cinema Novo e também no
chamado Cinema Marginal (RAMOS, 1987), quando se evidenciam respostas distintas sobre os novos
rumos a tomar (XAVIER, 2015, p. 14), mas também em diversas obras do contexto da Abertura Política,
período de cerca de uma década em que o expediente é largamente utilizado com tintas críticas ao regime.
Em A Noite do Espantalho (Sérgio Ricardo, 1974), Quem Tem Medo de Lobisomem? (Reginaldo Faria, 1975),
Crônica de um Industrial (Luiz Rosemberg Filho, 1978), A Ilha dos Prazeres Proibidos (Carlos Reichenbach,
1978), Tensão no Rio (Gustavo Dahl, 1982), dentre diversos outros, a todo momento encontramos tramas
quase sempre em localidades fictícias que carregam uma quota de referencialidade fundamental para que
identifiquemos tais filmes como alegóricos.
Ismail Xavier (1993, p. 9) havia apontado para o fato de o cinema brasileiro ter sofrido com a
derrota política representada pelo Golpe de 1964, seguida, tragicamente, do Ato Institucional nº 5.
Durante os anos da Abertura Política, será ainda Xavier (2001, p. 86-87) a lembrar que certas “expectativas
oficiais” quanto à produção nacional foram frustradas em obras da Embrafilme que terminavam por trazer
conteúdos “heterodoxos”, pouco afeitos a uma visão oficial; caso de Aleluia, Gretchen (Sylvio Back, 1976),
com a ambientação nos tempos autoritários do Estado Novo e sua alusão ao nazismo e à tortura; ou,
ainda, em Ajuricaba, o Rebelde da Amazônia (Oswaldo Caldeira, 1977), no qual o indígena heroico se
assemelha a um guerrilheiro urbano. O descumprimento de uma agenda oficial, na qual o elogio a figuras
históricas prevaleceria, atua como forma de resistência de cineastas que conseguiam captação de recursos
junto à Embrafilme. Tal procedimento não será tão diferente em Maneco, destinado (sobretudo) a um
público infantil, mas que, a sua maneira, “trafica” conteúdos que poderiam ser tomados como
“subversivos”. Também encontraremos – a título de exemplo – tais conteúdos em Os Saltimbancos
Trapalhões, ainda que os filmes da trupe liderada por Renato Aragão tentassem, via de regra, algum
equilíbrio entre o adesismo ao poder dos militares e algum elogio de um processo tido como irresistível: o
retorno do poder aos civis, celebrado em Saltimbancos.
Maneco, o Super Tio: sociedade de controle e economia predatória na Caverna de Platão
Aventuras com Tio Maneco (Flávio Migliaccio, 1971), concebido e lançado no auge do “milagre
econômico” brasileiro, antecipava alguns aspectos temáticos de Maneco, o Super Tio, de 1978. O herói
cômico Maneco, interpretado por Flávio Migliaccio, também roteirista e diretor, antípoda de certos
padrões de comportamento afeitos a uma classe média bem-sucedida, encarna uma espécie sui generis de
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resistência, o espaço da aventura e da imaginação em oposição à frieza do mundo do trabalho,
representada pelo pai das crianças, Alfredo (Walter Forster), um capitalista mais interessado em aumentar
as divisas do que na relação com seus próprios filhos4. Inclui-se, ainda, no enredo de Aventuiras com Tio
Maneco, uma fábula sobre um povo, em outro planeta, escravizado por máquinas, que surge em uma
inserção de animação no final do filme. Cabe a Maneco e seus sobrinhos a missão de instigar a sublevação
popular, que termina com a vitória sobre as máquinas. É possível que Migliaccio se referisse, em Aventuras
– algo sutilmente –, ao Brasil dos tempos do “milagre”, no qual o trabalho semiescravo, o arrocho salarial e
as péssimas condições para o trabalhador perduravam, em um ano (1971) em que diversas obras
cinematográficas abordavam as questões econômicas do país e problemas dos trabalhadores5.
Nos anos da Abertura Política, a caminho do governo Figueiredo, ressurge o personagem de
Migliaccio em Maneco, o Super Tio, e há o confronto com o pai das crianças, o empresário que se preocupa
com os negócios e detesta a presença do tio “maluco”. Merece atenção o automóvel de Maneco, que anda
precariamente, com explosões a todo momento e partes do carro que se soltam pela estrada – caindo aos
pedaços. Trata-se de um veículo disfuncional, colorido, que solta fumaça de cores diferentes, com
destaque para o rosa, psicodélico, evocando uma estética hippie. O carro, um dos emblemas do “milagre”
e da indústria automobilística brasileira, vital para a economia do país desde os tempos de Juscelino
Kubitschek até os anos pós-1964, é em Maneco o oposto do ideal de sucesso econômico e de um mundo
de competitividade. Destoa, assim, dos carros conversíveis caríssimos que abundam nas pornochanchadas,
nas quais os pressupostos de desempenho econômico e sexual são tão caros. “O automóvel erigia-se em
símbolo de status da nova classe média determinando seu modo de vida e o estilo da arquitetura urbana.
Os sobradinhos-classe média erguiam-se a partir do espaço do automóvel para o qual era reservada a
entrava principal” (KUCINSKI, 1982, p. 25). Assim, Maneco tem uma espécie de missão: incutir alguma
rebeldia no espírito dos sobrinhos, tão cercados pelo mundo de competitividade / alta produtividade de
seu pai industrial. Sérvulo Siqueira (2010) comenta a importância de Migliaccio no cinema daquele
momento, por sua formação e sua visão crítica:
4
5
Após Aventuras com Tio Maneco e antes de Maneco, o Super Tio, Migliaccio realizou O Caçador de Fantasma (1975), segundo
longa com o personagem Maneco, no qual o tio aventureiro também atua como contraponto a uma sociedade materialista,
consumista e egoísta, encarnada no pai das crianças.
Caso de Em Família (Paulo Porto, 1971), Um Homem Sem Importância (Alberto Salvá, 1971), Na Boca da Noite (Walter Lima Jr,.
1971), André, a Cara e a Coragem (Xavier de Oliveira, 1971), dentre outras.
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A formação de Migliaccio, construída na militância de um teatro social e político – Teatro de Arena de São
Paulo – lhe propicia hoje um conhecimento que sabe combinar a informação cultural e social com a
necessidade de entretenimento que o efeito hipnótico da imagem de cinema (e que é ainda maior na
criança) possibilita (…). Com o “know-how” que 20 anos de cinema6 lhe deram e uma explícita visão
humanista e socialmente empenhada, o diretor-autor encontra um ponto de equilíbrio ao mesmo tempo de
apelo dramático e social que lhe permite contar a fábula da destruição ecológica e da automatização do
homem (SIQUEIRA, 2010, p. 388).
Siqueira (2010, p. 388) observa que Maneco é, “portanto, primeiramente um filme e, depois, um
filme para crianças, ou seja, carrega duplamente o sentido do imaginário – embora este seja apenas o seu
ponto de partida”. Estarão, assim, Maneco e sobrinhos no repositório afetivo e espaço da pureza e
aventura que é o campo, à procura do avô inventor Camargo (Rodolfo Arena), que descobrem estar
desaparecido, e a trama será em torno de sua localização – logo saberemos que está perdido no tempo,
tragado por uma máquina que criou. A ênfase inicial na comicidade cessa, e perduram o mistério, o
suspense e o diálogo com a ficção científica. O “supertio” – alusão à cultura pop, das histórias em
quadrinhos, programas televisivos ou filmes que envolvem super-heróis – e seus pupilos, em sua jornada,
se deparam com um imenso parque industrial, no qual a trama deverá desenrolar-se. À procura de uma
cidade que “sumiu” do mapa chamada Bento Pereira, o grupo passa por diversas intercorrências causadas
justamente por aqueles que representam símbolos do progresso7, propositalmente contrapostos com esse
lugar do imaginário das “traquitanas” e invencionices. Terminam, pois, por chegar em um misto de
indústria com cidade, e subitamente o universo do “milagre econômico” ressurge; tal como o extrativismo
e a indústria, está também presente o trabalho precarizado, representado no filme pelo trabalho escravo.
Nesse imenso parque de extração e produção de minérios, no qual os trabalhadores habitam cavernas
insalubres, o aspecto distópico prevalece. Na “parte de cima”8, espaço do trabalho, quem ali está é
condicionado a não falar, e não se escuta ruído algum que não seja o das engrenagens.
A antiga cidade deu lugar ao parque hipervigiado, com câmeras por toda parte, reino de escravidão
e terror. O “milagre”, cujos pilares se alicerçavam em abundância de mão de obra barata, está
devidamente alegorizado neste mundo à parte de Bento Pereira, local misterioso cujo administrador local
6
7
8
Após algumas breves participações como ator, Migliaccio estreia na direção no cinema em 1962, em Os Mendigos.
Caso do trem que não pode parar (e quase atropela o carro de Maneco) e das gigantescas “máquinas” presentes tanto em Bento
Pereira quanto em espaço intermediário, situado entre a “capital” e o seu destino final, que será o local onde os “familiares
industriais” irão dormir: uma cidade que é apresentada pelos “tratores”, com ruínas ao redor de estátuas, onde se nota um
evidente contraste entre as máquinas (reiteradas pelos ruídos sonoros) e o patrimônio histórico (ignorado, destruído).
Local onde se encontram pouquíssimos vestígios da “antiga” cidade – destacam-se, em especial, as ruínas do coreto, justamente
um local que supostamente seria um emblema de uma sociabilidade perdida no regime autoritário ali imposto.
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é o tirano Adolpho (clara alusão ao notório ditador alemão) e no qual a entrada só é possível
clandestinamente9. A serviço do tirano, há guardas por toda parte, com a roupa amarela em destaque, e
até um personagem que atua como delator. O assunto do trabalho precarizado e da exploração de mão de
obra, bem como a relação entre a extração de minérios e a economia brasileira, está amplamente presente
no cinema da Abertura Política, com destaque para obras de ficção como Cordão de Ouro (Antonio Carlos
Fontoura, 1976) e Os Trapalhões na Serra Pelada (J.B. Tanko, 1982), ou mesmo em obras como Iracema,
uma transa amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1974-1975), Jari (Jorge Bodanzky e Wolf Gauer,
1979) ou A Pedra da Riqueza (Vladmir Carvalho, 1976). Em Bento Pereira, local trevoso em que até crianças
são escravizadas, evoca-se a definição de Shelton Davis (1989, p. 122), ao descrever o trabalho nos rincões
do Brasil durante os tempos do “milagre”, “onde trabalhadores são forçados à labuta por longas horas
debaixo das mais miseráveis e opressivas condições”10 e nos quais “os chefes das equipes de trabalho
carregam pistolas e metralhadoras e usam toda forma de terror para garantir que os trabalhadores não se
rebelem ou fujam11” (p. 122). A analogia se completa na exploração dos recursos minerais, traço
fundamental da economia brasileira.
O dinamismo da economia brasileira não se explica sem uma referência ao sacrifício imposto a grande parte
da população do país e ao caráter extensivo da exploração dos recursos naturais de um vasto território. Os
instrumentos da análise econômica são inadequados para explicitar esses custos sociais e ecológicos. A
exportação de recursos não-renováveis – minerais preciosos ou industriais – constitui um traço da vida
econômica do país desde a época colonial (FURTADO, 1981, p.22).
Do psicodelismo do carro de Maneco, passamos à cidade-usina distópica, cinza, fumacenta, feia,
que evocará outras ficções científicas da década de 1970, caso de Soylent Green (Richard Fleischer, 1973)
ou THX-1138 (George Lucas, 1971), e com especial diálogo com produções brasileiras daqueles anos, caso
de Parada 88 e, especialmente, Abrigo Nuclear. Também em Maneco a caracterização da distopia traz uma
“tendência de protestar contra a política governamental de modernização, tanto quanto contra a de
repressão” (GINWAY apud SUPPIA, 2007, p. 181-182). Um assunto tende a unir Abrigo Nuclear e Maneco:
ambos evocam a mítica caverna de Platão, presença no imaginário ocidental há milênios, alegoria sobre
um falso mundo real no qual se vêem sombras, em oposição a um mundo (fora da caverna) em que viceja
9
10
11
Bento Pereira é acessada por meio de um trem e longas de esteiras que remetem às traquitanas industriais vistas em Tempos
Modernos, de Charlie Chaplin (1936).
No original: “where workers are forced to labor for long hours under the most miserable and oppressive conditions.” (DAVIS,
1989, p. 122)
No original: “the heads of the jungle labor teams carry pistols and machine guns and use every form of terror to assure that the
workers do not rebel or escape”.(DAVIS, 1989, p. 122)
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a vida. A presença de cavernas enquanto moradias dos trabalhadores acentua a citação platônica. Não é
apenas uma metáfora sobre a libertação, mas, também, sobre a progressiva evolução da percepção que
permite que o ser aprisionado em um mundo de ilusão, gradualmente, enfrente estágios que o levem para
além da caverna, aspecto vital em Maneco e Abrigo Nuclear. Conforme Nettleship (1906, p. 238), Platão se
ocupa a distinguir em estágio o processo no qual a mente deverá passar da ignorância à luz (ou seja, ao
conhecimento); “de um ponto em que o mundo objetivo é, digamos, perfeitamente ininteligível até outro
ponto no qual se torna perfeitamente luminoso12” (p. 238, tradução nossa).
Tanto em Maneco quanto em Abrigo, os habitantes imaginam que o mundo “lá fora” nada mais é
que uma continuidade do mundo em que vivem, um local inabitável, em ruínas e trevas, sendo que, no
filme Migliaccio, a população simplesmente desconhece que ainda há plantas e animais fora dessa cidadeprisão (o motivo ecológico é agregado ao discurso do filme). Desta forma, Maneco e Abrigo se unem a
Parada 88 enquanto obras que carregam referências platônicas e ambiências distópicas, todos eles com
presença essencial da ficção científica. Se, em Parada 88 e Abrigo Nuclear, o sci-fi está presente não
apenas na representação distópica – ecodistópica, (SUPPIA, 2006, p. 28) –, situada em um tempo futuro e
em locais de total controle nos quais há uma clara separação entre o mundo habitável e outro, na
superfície, supostamente venenoso ou arruinado, no caso de Maneco, câmeras de vigilância13 estão por
toda parte e o onisciente observador é o próprio Adolpho: a privacidade desapareceu, dando lugar a um
local de controle e disciplina, no qual todos os eventos são registrados. Daí, segue-se outro aspecto
(metalinguístico) fundamental no filme, que diz respeito ao velho inventor desaparecido: ele criou uma
máquina que registra tudo que está à vista, tal como um cinematógrafo; mais que isso, registra também o
tempo e o espaço de modo a mantê-los presos na gravação, como que magicamente. O inventor Camargo
desapareceu por estar preso no registro que fez – a máquina é tão perfeita que grava (ou seja, aprisiona)
até a si mesma. Quando Maneco e os sobrinhos, ao seguirem sua trilha, conseguem encontrá-lo, este
amaldiçoa o invento, pois teria como resultado a morte completa da ideia de privacidade, caso caísse em
mãos erradas. Décadas antes da internet, das redes sociais, do reality shows e dos drones, Maneco antevia
uma sociedade na qual o controle adentraria cada lar ou, ainda, seria algo tão absoluto a ponto de
12
13
No original: “From a point at which the objective world is, so to say, perfectly dark and unintelligible, to a point at which it is
perfectly luminous” (NETTLESHIP, 1906, p.238).
Por outro lado, quando começa a se organizar, a população das “profundezas” fará uso, de forma rudimentar, de um dispositivo
de visão (periscópio) para “resistir”, com o qual observa a chegada dos órgãos de repressão. Sem contar com o aparato
tecnológico dos detentores do poder, busca à sua maneira, subverter as suas lógicas.
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aprisionar pessoas. Segundo as palavras do avô, a máquina destrói o que há “de mais sagrado, a
intimidade”.
Por meio da máquina e de seu poder de transitar no tempo passado, Maneco, assim, resgata
Camargo e é informado que Bento Pereira foi usurpada por Adolpho décadas antes, tornando-se uma
megausina e tendo seu povo escravizado. Os moradores descobrem que o mundo para além dos limites da
cidade não está degradado (em nova alusão ao mito platônico). Maneco e os sobrinhos conseguem voltar
e trazer o velho Camargo de volta; a missão pessoal soma-se à missão política: a semente da revolta está
plantada em Bento Pereira, encarnada em um personagem singular, um homem idoso que transita da
apatia à revolta ao longo do filme – destaque-se o fato de esse personagem ser uma espécie de guardião
da memória do local, fato invulgar e revelador tendo em vista que a memória é vítima habitual de regimes
autoritários. Outro personagem especialmente simbólico é o músico (ou, ainda, o artista) que toca seu
oboé sem que ninguém possa ouvi-lo, em meio ao imenso ruído industrial; toca como se fosse louco, ao
longo do filme. Na verdade, representa, a um só tempo, a mudez e a censura em tempos autoritários, pois
nunca se escuta seu instrumento, e também a resistência em tocar, ou seja, a resistência do artista em
persistir em sua expressão; ou, ainda, a cultura, que insiste em sobreviver em meio à adversidade política
de um contexto ditatorial. Ao final, com a explosão da libertação do local, ouve-se com encanto o soar do
oboé do músico, que passa a ser acompanhado por diversos instrumentistas em uma fanfarra final, em um
momento de eclosão da revolta e libertação popular.
Afinal, Maneco, Camargo e sobrinhos terminam por sair do parque industrial, não sem antes, nos
diálogos, trazerem outra possível alusão ao regime autoritário brasileiro daqueles dias: Maneco perguntase por que teria aquele povo se deixado escravizar sem rebelião, em nome de uma falsa ideia de
“progresso”. Assim, é necessária a revolta, a partir da assertiva do velho Camargo ao constatar que é
preciso preservar a intimidade humana, tendo em vista sua dimensão política, ou seja, combater a
sociedade de plena vigilância e controle opressivo. “Essa operação requer um verdadeiro espírito de
organização, cujo objetivo implica na verdade a subversão do sistema repressivo de policiamento e
sonegação da informação que permite a existência da usina” (SIQUEIRA, 2010, p. 389). Por fim, os
moradores do local destroem todas as câmeras e preparam o caminho para sua libertação por meio de
uma grande rebelião popular com o objetivo de “reconstruir a cidade”. A cartela final, que costuma afirmar
que a história é mera ficção e, de resto, que qualquer semelhança será coincidência, traz dizeres mais que
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reveladores: segundo ela, embora a história seja fictícia, é preciso “cuidado”, pois “existem outros fatos,
locais e personagens tão incríveis quanto estes, e absolutamente reais”.
Trapalhões, Paspalhões: outros exemplos de filme para o público infantil e política
Grupo de longeva trajetória na televisão, Os Trapalhões tiveram também fecunda carreira no
cinema e, apenas no intervalo entre 1979 e 1984, estrelaram uma dezena de obras, caracterizadas por
referências pop e recheada de elementos paródicos. Entremeado a tal jogo intertextual, incluem-se
“referências culturais” (RAMOS, 2004, p. 142) calcadas naquilo que é familiar ao espectador, em um
esquema que garante certa serialidade entre os filmes.
A filmografia dos Trapalhões é toda construída com a repetição de estruturas, elementos, situações. A
narrativa e a alocação dos personagens seguem na maioria dos filmes um modelo fixo: o herói/cômico
principal e os 3 companheiros enfrentam um antagonista/vilão e seus asseclas, sendo que após uma série de
enfrentamentos os derrotam. Complementando o quadro há a heroína/“mocinha” por quem o herói sempre
se apaixona. Se existir o galã, ou “herói verdadeiro”, esse amor está fadado ao insucesso e terminará
solitário. (...) A inspiração chapliniana14 é clara: Aragão protagonizando tipos humildes e solidários que
vencem o jogo com os poderosos (RAMOS, 2004, p. 143).
A exploração das potencialidades da figura clownesca de comicidade circense do herói como aquele
que subverte as estruturas de poder por meio do riso (encarnados sobretudo em Didi) será, portanto, uma
constante em todos os filmes. Diferentemente do Maneco criado por Flávio Migliaccio, que personifica
uma abertura a um imaginário da fantasia e da invencionice da primeira infância enquanto um gesto de
liberdade, Didi encarna a ingenuidade que transforma o mundo por meio do afeto e da solidariedade. A
comicidade reside mais na gestualidade do personagem que compõe as gags do que nos diálogos,
reprocessando um largo universo de referências do cinema, da literatura e também do contexto histórico e
político vigentes.
Enquanto corria o processo de redemocratização, na década de 1980, temas domésticos antes
potencialmente polêmicos alcançam protagonismo, caso de Os Saltimbancos Trapalhões (1981), de
especial interesse quanto a sua relação com a política da época, embora esteja distante de configurar uma
alegoria. Os Saltimbancos foi encenado pela primeira vez em 1977 a partir do original15 italiano adaptado
14
15
Referência citada diretamente em filmes como Bonga, o Vagabundo (1969) e A Filha dos Trapalhões (1984), cujo enredo faz
diversas menções a O Garoto (Charlie Chaplin, 1921).
Com letra de Sergio Bardotti e música de Luis Enríquez Bacalov.
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por Chico Buarque16 e traz a presença do circo, o Grande Circo Bartholo, controlado por um empresário
ganancioso (o Barão, interpretado por Paulo Fortes), seus comparsas (o Mágico Assis Satã, vivido por
Eduardo Conde) e um pequeno exército de capangas trajados com uniformes vermelhos. Os quatro
trapalhões (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias) que ali trabalham são submetidos a uma condição próxima à
de escravidão, mas subitamente um número circense de autoria da trupe se torna grande sucesso de
público da companhia e eles se aliam, então, ao acrobata Frank (Mário Cardoso), namorado da filha do
dono do circo, Karina (Lucinha Lins) – por quem Didi é apaixonado –, visto como “subversivo e oportunista”
pelo Barão, com o objetivo de lutar contra a estrutura autoritária e repressiva à qual eles estão
submetidos.
A reverberação do processo político no que se refere ao renascimento dos movimentos grevistas
ecoa em Saltimbancos quando Didi fala em uma reunião de “sindicato” para tomarem uma “decisão” entre
permanecerem ou não no circo (sem perspectivas, e manipulados pelo Barão, aceitam as condições
impostas, inclusive o que eles chamam de “trabalho forçado”). No discurso, há também referências à
economia daqueles anos, marcados pela hiperinflação. Incentivados pelo trapezista Frank, a trupe foge do
circo, a fim de obter sucesso (“rumo a Hollywood”). O quarteto segue até a “cidade grande” 17, onde
passam a fazer seus números nas ruas, se intitulando os “saltimbancos trapalhões”. Em suas andanças, a
trupe mambembe é reprimida pela polícia por suas ações e provoca uma série de situações, caso do
momento em que a reação vem de uma pichação “arroz e macarrão / saúde e educação”, reafirmando o
lugar do artista na sociedade enquanto agente de transformação. É, portanto, a partir das vivências na
cidade que eles decidem voltar ao circo e lutar por direitos. Tomam consciência que, enquanto artistas
circenses, seria o circo o local para que exercessem um papel de transformação social. A produção de
Saltimbancos no começo da década se afina com a economia do período, bem como com o ressurgimento
da luta sindical, além de com a sincronia com uma pauta de reivindicações populares de toda sorte,
“intensa mobilização reivindicatória das mais diversas categorias profissionais” (BRUM, 1985, p.179). Ao
voltarem ao local do circo para se apropriarem do picadeiro, reaparecem de braços dados com um grupo
formado por dezenas de crianças e jovens ao som de uma canção que evoca o potencial da coletividade,
16
17
Chico é creditado como argumentista ao lado de Sérgio Bardotti, Tereza Trautman, Antonio Pedro e Renato Aragão, mas o
roteiro em si é de autoria de Gilvan Pereira e J. B. Tanko.
No filme, o trajeto – que evoca um sonho-delírio da trupe que, enfim, se concretiza com tal momento de liberdade ao se verem
livres da estrutura opressiva a que o barão os submetia – é feito a bordo de uma nave-osso que faz referência direta a 2001,
uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e inclui flashes do grupo em um estúdio hollywoodiano (filmados nos EUA).
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Todos Juntos18 (“Todos juntos somos fortes / Somos flecha e somos arco / Todos nós no mesmo barco/
Não há nada pra temer”). Ao chegarem ao circo, há um breve enfrentamento, e, vencido, o Barão atira ao
chão a capa preta que vestia, símbolo de seu poder e autoridade. O único que destoa é o Mágico, que
mantém seus óculos escuros, ecoando a resistência de setores linha dura do poder militar. Didi sobe ao
ponto mais alto do picadeiro e anuncia: “o show vai continuar”, agora “o circo será de todos”. Se Os
Trapalhões sempre foram caracterizados como produto vendido pela Rede Globo, identificada com o
poder dos militares, não se pode menosprezar sua capacidade de compreender as mudanças dos ventos
políticos. Ainda que em uma fábula infantil, Saltimbancos representa uma passagem do bastão do poder
autoritário para setores da sociedade civil; se foram assim pintados na tela, é porque a principal emissora
televisiva brasileira não mais acreditava em um recrudescimento do regime, mas numa transição lenta e
bastante negociada. Os Paspalhões e o Pinóquio 2000 (Victor Lima, 1982) é um caso à parte. O filme
carrega diversos emblemas do autoritarismo, sobretudo as alusões ao nazismo e ao uso da ciência
enquanto mecanismo de controle, além do diálogo com o universo da ficção científica, bastante presentes
em outras produções daquela época. Aqui, à maneira dos filmes protagonizados pelos Trapalhões na
década de 1970, a trama é calcada em referências pop, costuradas a códigos do cinema de gênero, do
filme de espionagem à ficção científica, do musical ao filme de aventuras, apropriados em meio ao humor
chanchadesco, imerso em pastiches de matrizes distintas. É nesse caldo de referências e personagens, e
em meio a inúmeros percalços de produção (o diretor Victor Lima faleceu antes de o filme ser finalizado),
que a trama se constrói, de forma dispersiva, na qual temos um regime autoritário que se vale de uma
guerra bacteriológica como uma forma de controle.
O argumento é canhestro: um grupo paramilitar, chefiado por um inescrupuloso empresário, o
Barão Von Karko (Dary Reis), pretende pôr em prática um plano bisonho. Sequestra o professor Ezequiel
(Older Cazarré), o único que saberia criar uma fórmula que servisse aos seus interesses. Assim como o pai
de Maneco nos filmes de Migliaccio, Ezequiel representa a figura do cientista enquanto aquele que evoca o
lugar da fabulação e que, ao não se curvar às estruturas de poder, põe a ética em primeiro plano quando
cria suas invenções, recusando-se a obter lucros ou quaisquer vantagens: um benfeitor convicto. Após
prender o professor, o Barão o conduz a uma máquina “de lavagem cerebral” e leva adiante sua trama:
poluir a água da cidade a fim de vender papel higiênico de sua fabricação e, com isso, se aproveitar de uma
18
Versão de Chico Buarque no musical Os Saltimbancos.
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crise social por ele provocada como um instrumento de dominação. Afinal, para o vilão, seu “aditivo”
(criado pelo cientista, que raptou) é seu “poder”, ou, conforme suas palavras, emulando um modo
supostamente germanizado de se falar português: “com ele, não vai dominar só a cidade não. Todo o país,
depois o mundo. Todo o universo! Eu serei rei do universo”. E conclui, altivo: “vou realizar o sonho do
Terceiro Reich”. O Barão e seus aliados são tomados por clichês de um regime autoritário: capacetes do
Império Germânico, característicos da Primeira Guerra Mundial; uniformes prussianos, ridículos chicotes,
pastores alemães levados pela coleira, bandeiras com cruzes que remetem a uma iconografia nazista;
gritos de “heil Hitler”, pistolas luger e uma forma militar de caminhar em cena19.
É dentro desse argumento – por mais pueril que possa soar – que a trama se desenvolve, com a
presença de curiosos heróis que tentarão impedir os planos do barão: a jovem donzela carateca Gracinha
(Alba Valéria); um galã (Dudu França) que surge um tanto gratuitamente na história – figura, aliás, típica
dos filmes dos Trapalhões; os ditos paspalhões, um trio de sujeitos atabalhoados que dividiam a casa com
cientista: Curió, Kiko e Bira (respectivamente, Ronny Cócegas, Olney Cazarré e Sidney Marques).
Completam a trupe o citado Pinóquio 2000 e uma boneca de pano chamada Iaiá, idêntica a Emília,
personagem de Monteiro Lobato, que formam um casal de personagens, por assim dizer, “emprestados”
de narrativas bastante populares, pois têm seus próprios criadores e contextos20. A possível alegoria em
Paspalhões, construto fílmico essencialmente confuso, seria, portanto, uma alegoria imprecisa, dado que,
diferentemente de Maneco ou outras criações alegóricas do período da Abertura Política, teria um
coeficiente menor de referências que permitiram a afirmação categórica de que temos diante dos olhos
um discurso alegórico. No entanto, é preciso relevar a contribuição de Kothe (1986, p. 38), para quem “a
formação e formulação de alegorias deve, por sua vez, conseguir transformar experiências individuais
concretas em experiência coletiva universalizante”.
A leitura alegórica busca acompanhar (…) essa insistente busca do outro (em que acena, mas não se encerra,
a identidade). À medida que o texto constrói a aura, a leitura alegórica a desconstrói. Não se trata só de ver
o outro, mas de um dizer que presentifica o outro, em que o outro se torna presença. A leitura alegórica
pretende compreender esse jogo em que um não elimina o outro, mas inclusive o relembra
constantemente. O texto não mais é lido como se fosse um “em si” (…); pelo contrário, a leitura lembra e
relembra a todo momento que o texto é contexto estruturado verbalmente. (KOTHE, 1986, p. 75)
19
20
Elementos que também se fazem presentes em produções da época que, em boa medida, alegorizam ou satirizam o regime
autoritário brasileiro, casos de Aleluia, Gretchen (Sylvio Back, 1976), Reformatório das Depravadas (Ody Fraga, 1978) e O
Torturador (Antônio Calmon, 1980).
Pinóquio surge na literatura com o escritor italiano Carlo Collodi (1826-1890). Emília pertence à galeria de personagens de
Monteiro Lobato (1882-1948).
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Entre as diversas idas e vindas da trama – grotesca e mal-ajambrada –, os heróis são presos e
ameaçados com formas clássicas de tortura, como arrancar as unhas, a despeito da súplica a Max (Milton
Moraes), chefe da repressão e fiel escudeiro de Von Karko, cujas afirmações evocam diretamente o
processo político da Abertura (“você não lê jornal não? Esse negócio de tortura é coisa superada”). Além
dessas referências, também há atentados a bomba perpetrados para prejudicar opositores – a lembrança
imediata é do atentado ao Riocentro em abril de 1981, que se soma a dezenas de outros que ocorreram na
época com menor repercussão. Ao final, é durante uma festa convocada por Von Karko para celebrar o
sucesso da operação, com autoridades que compactuam com seu plano de dominação, que os Paspalhões
decidem agir, quando, com ajuda do professor, criam um antídoto para a arma biológica que, ao fim,
garantirá condecorações aos heróis, entregues pelos detentores do poder político. Pouco memorável e
desfocado, o filme assinado pelo veterano Victor Lima merece a afirmação de Bakhtin (2002, p. 97-98),
que, ao referir-se ao Gargantua de Rabelais, afirmava: “embora seja certo que a obra de Rabelais
comporta alusões históricas, não se deve, contudo, em nenhum caso admitir que exista um sistema de
alusões precisas, rigorosas”. Assim, seria inútil “procurar uma chave precisa e única para cada um dos
fatos” (p. 97-98); antes, importa a liberdade interpretativa, e, dentro da miríade de referências coladas em
Paspalhões, resta a curiosa tentativa de se juntarem fragmentos narrativos distintos e até confusos, mas
com a intenção de satirizar o que restava do regime autoritário brasileiro naqueles dias.
Considerações finais
Umberto Eco (1988, p. 87) conclui que, ao refletirmos sobre uma determinada obra de arte algum
tempo após sua fruição, há uma tendência a nos descobrimos “maravilhados diante de suas sugestões”.
Afinal, “também nossa inteligência amadureceu, nossa memória foi enriquecida, nossa cultura
aprofundou-se” (p. 87). Tal assertiva possui especiais contornos ao tratarmos não apenas da questão
acerca da interpretação da obra artística, mas também da indissociabilidade da instância interpretativa
como parte da própria obra de arte. Em outras palavras, existe a obra e existe o espectador, partícipe ativo
da construção que contempla ou frui. A lição é especialmente valiosa quando se pensa a obra enquanto
dotada de procedimentos alegóricos ou, ainda, de construtos que atuam como alegorias; e, por meio dos
exemplos trazidos por Maneco, o Super Tio ou Os Paspalhões e o Pinóquio 2000, é possível extrair algumas
conclusões fundamentais. Nos filmes citados neste artigo, há evidente articulação entre a mudança dos
ventos políticos e os ingredientes narrativos justapostos na tela. Maneco surge como alegoria bem
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definida, na qual os códigos significantes parecem se encaixar dentro do quebra-cabeças chamado
significado com considerável desenvoltura. Porém, dentro da produção de filmes destinados sobretudo a
crianças naquele período, encontramos em Os Saltimbancos Trapalhões a fábula de uma transição política,
e mesmo no caótico Paspalhões é possível encontrar o recurso satírico, ainda que difuso, diluído na
tempestade de códigos. A obra, assim, é dotada de certa “abertura”, o que não significa que a
interpretação seja uma espécie de terra sem lei – mas talvez um campo minado. O Brasil caminhava para a
transição, lenta, dolorosa, parto de mais de uma década, para uma sonhada democratização. Se o texto
alegórico, antes tão presente no Cinema Novo, com destaque nos anos de chumbo, possuía, por vezes,
uma carga próxima do hermetismo, a partir da Abertura Política – sobretudo quando a década de 1970 vai
se esvaindo –, o recurso persiste, ainda que seja possível a um só tempo ser alegórico e ter um nível de
clareza e uma cota de referencialidade maiores.
O recurso alegórico teve, pois, imenso espaço nos anos da Abertura e sofreria como sofreu todo o
cinema brasileiro nos momentos seguintes, com as crises de produção desde a década de 1980 até os anos
1990, mas ele persiste e ressurge tempos depois em obras como Bacurau (Kléber Mendonça Filho, 2019).
Se demonstrava inegável vocação estética em tempos de repressão (durante a ditadura civil-militar
instaurada a partir de 1964), continua a emergir quando, mesmo em tempos de democracia, os uivos
autoritários reaparecem.
André de Paula Eduardo
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4701-7147
Universidade Anhembi Morumbi, Programa de Pós-graduação em Comunicação, São Paulo (SP), Brasil
Doutor em Comunicação Audiovisual pela Universidade Anhembi Morumbi
E-mail:
[email protected]
Maria Ignes Carlos Magno
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1520-9256
Universidade Anhembi Morumbi, Programa de Pós-graduação em Comunicação, São Paulo (SP), Brasil
Doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP)
E-mail:
[email protected]
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Felipe Abramovictz
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1459-7568
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas (SP), Brasil
Mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi
E-mail:
[email protected]
Recebido em: 25 de setembro de 2020.
Aprovado em: 10 de outubro de 2021.
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SALTIMBANCOS Trapalhões, Os. Direção: J. B. Tanko. Brasil: Renato Aragão Produções Artísticas e
Empreendimentos Indústria e Comércio Ltda. 1 cópia (100 min.). Cópia digital.
Resumo
Este artigo pretende refletir sobre a presença de conteúdos alegóricos, satíricos e metafóricos de
natureza política, no cinema destinado ao público infantil realizado durante o regime militar
brasileiro – especificamente, nos anos da Abertura Política (1974-1985). Parte-se do pressuposto de
que o recurso alegórico, amplamente presente no cinema brasileiro, atuava como vetor de crítica
ao regime, e também estava presente no cinema para crianças. A reflexão ocorre a partir de
Maneco, o Super Tio (1978), trazendo também a citação de outras obras importantes do período.
Palavras-chave: Cinema brasileiro. Ditadura civil-militar. Abertura Política. Cinema infantil.
Alegorias.
Abstract
This article intends to reflect on the presence of allegorical, satirical and metaphorical contents of a
political nature, in the cinema intended for the child audience realized during the Brazilian military
regime - specifically, in the years of the Political Opening (1974-1985). It is based on the assumption
that the allegorical resource, widely present in Brazilian cinema, acted as a vector of criticism of the
regime, and was also present in children's cinema. The reflection occurs from Maneco, o Super Tio
(1978), but also with a contribution of anothers important movies of those years.
Keywords: Brazilian cinema. Civil-military dictatorship. Political Opening. Children´s cinema.
Allegories.
Resumen
Este artículo pretende reflexionar sobre la presencia de contenidos alegóricos, satíricos y
metafóricos de carácter político, en el cine destinado al público infantil realizado durante el
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régimen militar brasileño - específicamente, en los años de Apertura Política (1974-1985). Se parte
del supuesto de que el recurso alegórico, ampliamente presente en el cine brasileño, actuó como
vector de crítica al régimen y también estuvo presente en el cine infantil. La reflexión se produce a
partir de: Maneco, Super Tio (1978), pero tambien se hace com la reflexion de otras películas de lo
mismo período.
Palabras clave: Cine brasileño. Dictadura cívico-militar. Apertura política. Cine infantil. Alegorías.
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