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DOI: http://dx.doi.org/10.18817/ot.v16i28.703
O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA NO BRASIL E O DEBATE DA BNCC1
THE TEACHING OF ANCIENT HISTORY IN BRAZIL AND THE BNCC DEBATE
LA ENSEÑANZA DE HISTORIA ANTIGUA EN BRASIL Y EL DEBATE DE LA BNCC
DOMINIQUE SANTOS
Doutorado/FURB – Universidade de Blumenau
Blumenau/Santa Catarina/Brasil
[email protected]
Resumo: A primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), anunciada em setembro de
2015 e publicada em 2016, objetivava padronizar o ensino no Brasil, apontando temas que deveriam
corresponder a 60% da carga horária do Ensino Fundamental e Médio. Na área de História, as
intepretações apresentadas geraram grande polêmica, uma vez que duas categorias importantes para o
trabalho do historiador, tempo e espaço, foram insuficientemente abordadas. O texto inicial da BNCC
praticamente excluiu, dentre outras áreas, a História Antiga do currículo sugerido, provocando
respostas imediatas. No âmbito de tal debate, professores (as) de História Antiga manifestaram-se,
sobretudo a partir de artigos científicos, redes sociais e mídia, respondendo, de certa maneira, a
pergunta: História Antiga para quê? Este artigo analisa tais intervenções de modo a tentar
compreender quais justificativas foram apresentadas naquela ocasião para a permanência de História
Antiga em um currículo nacional.
Palavras-chave: História Antiga. Currículo. BNCC.
Abstract: The first version of the National Curricular Common Base, announced in September 2015
and published in 2016, aimed to standardize teaching in Brazil, pointing out themes that should
correspond to 60% of the hours of primary and secondary education. In History, it was all, but
controversy, since two important categories to the historian's work, time and space, were insufficiently
approached. Initially, among other areas, Ancient History was excluded of the suggested curriculum,
which caused immediate criticism. In the context of such a debate, teachers of Ancient History
addressed the subject on academic papers, social networks and the media. In a certain way, all of them
answered the question: Ancient History, what for? This article analyzes these interventions in order to
comprehend what justifications were presented at that time for the permanence of Ancient History in a
national curriculum.
Keywords: Ancient History. Curriculum. BNCC.
Resumen: La primera versión de la Base Nacional Común Curricular, anunciada en septiembre de
2015 y publicada en 2016, objetivaba estandarizar la enseñanza en Brasil, apuntando temas que
deberían corresponder a 60% de la carga horaria de la Enseñanza en el Fundamental y Medio. En
Historia, las interpretaciones presentadas generaron gran polémica, ya que dos categorías importantes
al trabajo del historiador, tiempo y espacio, fueron insuficientemente abordadas. El texto inicial de la
BNCC prácticamente excluyó, entre otras áreas, la Historia Antigua del currículo sugerido,
provocando respuestas inmediatas. En el marco de tal debate, los profesores de Historia Antigua se
manifestaron, sobre todo a partir de artículos científicos, redes sociales y medios digitales,
respondiendo la pregunta: Historia Antigua para qué? Este artículo analiza estas intervenciones para
intentar comprender qué justificaciones se presentaron en aquella ocasión para la permanencia de la
Historia Antigua en un currículo nacional.
Palabras clave: Historia Antigua. Currículo. BNCC.
1
Artigo submetido à avaliação em fevereiro de 2019 e aprovado para publicação em junho de 2019.
129
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Introdução
O artigo 210 da Constituição Federal de 1988 já apontava para a necessidade da
existência de uma formação mínima comum que abrangesse todo o território nacional. O fato
foi relembrado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, que também sugeria uma
Base Nacional Comum. Com a publicação do Plano Nacional de Educação, indicador das
metas que deveriam ser atingidas pela Educação Brasileira até o ano de 2024, volta-se a falar
em uma Base Curricular Comum. A primeira versão da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), no entanto, só veio a ser sistematizada e apresentada formalmente quase trinta anos
depois de sua previsão constitucional, foi anunciada em setembro de 2015 e publicada em
2016.
Apesar das três décadas que separam a primeira menção a tal exigência e sua
publicação em forma de documento, a primeira versão não foi elaborada em diálogo com os
pesquisadores das áreas envolvidas, as entidades científicas, os grupos de pesquisa e assim
por diante. Ou seja, não foi fruto de um debate aberto com o conhecimento da sociedade
brasileira. Ao contrário, uma comissão de especialistas composta por 116 pessoas foi formada
e a participação externa só foi permitida, limitada a um sistema previamente concebido que
não permitia alterações, mas apenas acréscimos e questionamentos feitos individualmente a
cada um dos itens disponíveis, a partir da elaboração de um texto base.
Na área de História, as interpretações apresentadas geraram grande polêmica, uma
vez que duas categorias importantes ao trabalho do historiador, tempo e espaço, foram
insuficientemente abordadas. Assim, as várias associações, grupos de pesquisa, núcleos de
estudo, laboratórios e docentes, que não haviam sido consultados (as), manifestaram-se sobre
o tema, também por motivações diversificadas, pois o texto inicial da BNCC prejudicou
inúmeras áreas do conhecimento histórico e, além disso, praticamente excluiu a História
Antiga do currículo sugerido, algo sugestivo, sobretudo se considerarmos que a tal comissão
especialista não contava com nenhum representante sequer da grande área de História Antiga
e Medieval da CAPES. A reação foi quase imediata, professores (as) de História Antiga de
todas as partes do Brasil manifestaram-se, principalmente a partir de artigos científicos, redes
sociais e mídia, questionando o porquê de uma narrativa de tal natureza ter sido sequer
concebida e, ao mesmo tempo, apresentando alguns motivos que justificam a necessidade de
se estudar as sociedades antigas em um currículo que se pretende nacional. Essa é a temática
que analisamos.
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A (Não) Presença de História Antiga na BNCC (Versão 1)
O MEC manteve em sua página sobre a Base Nacional Curricular Comum a
história do processo de construção do documento, o que permite acesso à primeira versão
lançada, que aparece como “1ª Versão BNCC”, disponibilizada em 16 de setembro de 20152.
Foram pouquíssimas as menções às temáticas relacionadas com as sociedades
antigas naquele documento. Na parte de História, como bem sintetizou Priscila Gontijo Leite3,
a presença da Antiguidade só se fez notar a partir da relação com o ensino de uma percepção
temporal. A Antiguidade é mencionada no 6º ANO/EF, ou seja, sexto ano do Ensino
Fundamental, que recebe o título de “representações, sentidos e significados do tempo
histórico”4. São três menções: a primeira delas ocorre no conteúdo CHHI6F0A066, quando há
apenas uma referência aos “egípcios”, que aparecem relacionados com as diversas maneiras
de contagem e de registro do tempo; a segunda é uma referência ao modelo quadripartite
francês, que a BNCC convida-nos a conhecer e problematizar. Trata-se do conteúdo
CHHI6F0A071, que faz referência à “idade antiga”; a terceira e última aparece no conteúdo
CHHI6F0A072. O texto convida-nos a “identificar e discutir características, pessoas,
instituições, ideias e acontecimentos” relacionados aos vários períodos históricos, sendo a
“idade antiga” um deles5.
Há apenas mais duas referências à Antiguidade. A penúltima delas ocorre no 3º
ANO/EF, ou seja, terceiro ano do Ensino Fundamental. Na parte relacionada com as
“comunidades e outros lugares de vivências”, no item “categorias, noções e conceitos”, o
conteúdo CHHI3F0A028 objetiva “compreender década, século e milênio como medidas de
tempo, considerando a utilização de algarismos romanos”6. A última ocorre no 3º ANO/EM,
terceiro ano do Ensino Médio, no trecho “Mundos Europeus e Asiáticos”, em que o conteúdo
CHHI3M0A055 conclama-nos a "valorizar os patrimônios materiais e imateriais de povos
europeus e asiáticos, tais como gregos, romanos, fenícios e mesopotâmicos, reconhecendo os
2
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Consulta Pública. Brasília: MEC: CONSED: UNDIME,
2015. Disponível em: http://historiadabncc.mec.gov.br/documentos/BNCC-APRESENTACAO.pdf. Acesso em:
2 abr. 2019.
3
LEITE, P. G. O ensino da Antiguidade no Brasil: percepções a partir das propostas da BNCC. Apresentação de
Trabalho/Comunicação. 2016.
4
BRASIL, op. cit., p. 250-251.
5
Ibid.
6
BRASIL, op. cit., p. 247.
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legados culturais e as diversas formas de se relacionarem com a Estética, a Ética e a
Política"7.
Para observarmos mais referências à Antiguidade na 1ª Versão BNCC temos que
deixar a área de História e recorrer ao currículo previsto para mais duas áreas: Filosofia e
Física. Na primeira, há uma referência sobre a Grécia, quando, na definição de tal
componente curricular, explica-se que é da “Grécia Antiga que vem seu nome: amiga (filos)
da sabedoria (sofia)”8.
Já na segunda encontramos mais referências. As unidades de conhecimento e
objetivos de aprendizagem para 1º ANO/EM, ou seja, primeiro ano do Ensino Médio 9, por
exemplo, na parte denominada como “Contextualização Histórica, Social e Cultural”, sugere,
no conteúdo CNFI1MOA005, que sejam estudados “o movimento não inercial em
Aristóteles”, os conceitos de “lugar natural”, na física aristotélica” e também a “descrição das
constelações em diferentes culturas dos hemisférios Norte e Sul (como a Europa atual, a
Babilônia da Antiguidade e as comunidades indígenas da Amazônia)”10. Os objetivos de
aprendizagem para a Física no 2º ANO/EM também apontam para a necessidade do estudo de
sociedades antigas, pois sugerem, no conteúdo CNFI2MOA008, que seja estudado o
“magnetismo na Antiguidade”11. No 3º ANO/EM, terceiro ano do Ensino Médio, na parte
“Matéria e Radiação em Sistemas e Processos Naturais e Tecnológicos”, no conteúdo
CNFI3MOA005, a BNCC também sugere que, na Física, sejam estudados o "átomo grego" e
o “horror ao vácuo em Aristóteles”12. Por fim, também no 3º ANO/EM, na mesma parte, mas
agora no conteúdo CNFI3MOA014, o texto pede para que os estudantes de Física reconheçam
“a existência de modelos explicativos da origem e da constituição do universo, segundo
diferentes épocas e culturas”, apontando para o estudo de “Aristóteles, Ptolomeu e o mundo
grego da Antiguidade” e a “cosmologia dos egípcios, babilônios”13.
De acordo com o documento da BNCC, a área de Física sugere que sejam
abordadas “as diferenças e as mudanças socioculturais na compreensão do espaço e do
tempo”, bem como “os contextos históricos, sociais e culturais e os problemas que levaram à
produção de descrições e explicações sobre o movimento, percebendo as mudanças de
7
BRASIL, op. cit., p. 265.
Ibid., p. 294.
9
Ibid., p. 208.
10
Ibid., p. 209.
11
Ibid., p. 214.
12
Ibid., p. 218.
13
Ibid., p. 220.
8
132
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significados dos conceitos ao longo do tempo”14. Assim, ao que parece, a área de Física
mostrou-se mais preocupada em aprofundar e ampliar a compreensão de seus futuros
estudantes a partir de exemplos relacionados com as sociedades antigas do que a própria área
de História.
Segundo o texto da BNCC debatido, a área de História deveria enfatizar a História
do Brasil, chegando, inclusive, a apresentar quatro fundamentos que justificariam tal escolha.
Em primeiro lugar, o foco selecionado poderia oferecer “um saber significativo para crianças,
jovens e adultos, pois conhecer a trajetória histórica brasileira é conhecer a própria trajetória”
(como se a compreensão de outras temporalidades históricas e espaços geográficos também
não desempenhasse o mesmo papel); em segundo, afirma que o saber histórico deve fomentar
a curiosidade científica e a familiarização com outras formas de raciocínio, porém, isso deve
ocorrer “a partir do acesso a processos e a problemas relacionados à constituição e à
conformação do Brasil, como país e como nação” (algo desprovido de sentido, pois o objetivo
desejado é talvez melhor atingido ou, pelo menos, mais aprofundado por histórias diferentes
da nacional); o terceiro argumento é de que a escolha pelo Brasil faculta o acesso às fontes,
aos documentos, aos monumentos e ao conhecimento historiográfico (argumento incoerente,
pois, na era digital, milhões de fontes estão disponíveis na palma da mão, pelo celular ou
tablet); o quarto e último argumento é de que “a História do Brasil deve ser compreendida a
partir de perspectivas locais, regionais, nacional e global, para construção e manutenção de
uma sociedade democrática” (algo que, sem dúvida, o estudo de histórias e historiografias não
nacionais também poderia fomentar)15.
Assim, a primeira versão da BNCC, área de História, pôde facilmente ser
caracterizada como “presentista” e “brasilcêntrica” pela crítica geral. As áreas mais
contempladas no documento inicial da BNCC foram, curiosamente, aquelas relacionadas com
as dos especialistas convidados a trabalhar na confecção do texto. Elaboraram aquela versão
cinco especialistas em populações nativas brasileiras; três eram da área de Ensino de História;
dois estudam e pesquisam temáticas afro-brasileiras, e um era especialista em metodologia da
História. Talvez isso nos auxilie a compreender a presença de temáticas como as do
componente CHHI6FOA074, que preveem o estudo do “Grão-Pará e do Maranhão” ou o
“Reino Unido a Portugal e Algarves”16. A ANPUH-RS, por exemplo, considerou que seria
necessário suprimir conteúdos assim da BNCC. Em sua manifestação sobre o tema, afirmou
14
Ibid., p. 209.
Ibid., p. 243.
16
Ibid., p. 251.
15
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que deveria ocorrer a “supressão de exemplos de fenômenos históricos excessivamente
localizados e específicos – como economia gomífera, pacificação do Rio de Janeiro,
escravidão no Grão-Pará, dentre outros – mais adequados para propostas curriculares
regionais”17.
Não sem motivo, coordenações de curso e de NDE, chefias de departamento,
diretores de centro, reitores, laboratórios, núcleos e grupos de pesquisa, professores e
associações, incluindo a própria ANPUH – Associação Nacional de História –, tanto a direção
central quanto suas secções estaduais, expressaram seu descontentamento. Historiadores (as)
de várias áreas do conhecimento histórico manifestaram-se na ocasião (História da África,
História da América, Teoria da História, História Medieval, dentre outras).
A (não) presença de História Antiga na primeira versão da BNCC intrigou os (as)
docentes da área, que reagiram à proposta e passaram a debatê-la a partir de vários meios.
Passemos a analisar, então, como foram as intervenções dos (as) professores (as) de História
Antiga no Brasil. O objetivo é tentar compreender quais justificativas foram apresentadas na
ocasião para a permanência de História Antiga em um currículo nacional, o que parece ter
sido considerado, uma vez que a área apareceu com maior destaque na segunda versão e foi
ainda mais amplamente representada no documento final, apesar deste estar longe de ser o
ideal.
História antiga pra quê? As justificativas apresentadas nos debates em torno da BNCC
(versão 1)
Um dos principais argumentos apresentados é o de que estudar História Antiga
poderia aprofundar a compreensão dos estudantes brasileiros de noções como alteridade e
multiplicidade das experiências humanas, ou seja, a percepção de que as identidades são
socialmente construídas. Um Ensino de História pautado em tais concepções poderia
contribuir para desnaturalizar a forma como a nossa sociedade está organizada, permitindo
entendê-la como uma invenção humana. Segundo Priscila Gontijo Leite, o Ensino de História
Antiga poderia assegurar aprendizados assim, pois “permite ao aluno o encontro com o outro,
exercitando sua alteridade, permitindo o desenvolvimento da consciência do seu passado e de
17
ANPUH-RS. Documento da ANPUH-RS sobre a BNCC/MEC. Porto Alegre, 20 de Fevereiro de 2016. O texto
pode ser consultado na página da ANPUH nacional e encontra-se disponível a partir do link: http://www.anpuhrs.org.br/informativo/view?ID_INFORMATIVO=5658&fbclid=IwAR0RUwjJgfwO1w3LcBcuovpWxj_58EnLJjcI1V-iJJ_YkQWfGlNWgziIjQ. Acesso em: 2 abr. 2019.
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suas ligações com o presente”18. Segundo José Petrúcio de Farias Júnior, o estudo das
sociedades antigas colabora para o exercício deste “olhar sobre o ‘outro’, seus modos de agir
e pensar, crenças e percepções de si” e isso “permite-nos aprimorar a reflexão sobre o nosso
lugar no presente”19.
A questão também é destacada pela carta aberta dos professores do Norte e
Nordeste sobre a BNCC, em que podemos ver as assinaturas de Roberta Alexandrina (UFPA),
José Maria Gomes de Souza Neto (UPE), Márcia Severina Marques (UFRN), Joana Clímaco
(UFAM), além de Priscila Gontijo Leite (UFPB) e José Petrúcio de Farias Júnior (UFPI),
mencionados no parágrafo anterior. Para o coletivo de professores (as), o Ensino de História
Antiga poderia “colaborar para a compreensão da formação e da dinâmica de sociedades
diferentes da nossa a partir de suas próprias categorias de pensamento, visões de mundo e
expectativas sobre vida, bem como modos de agir e pensar”20.
Outro argumento recorrente é o de que a História Antiga possibilita acesso às
experiências humanas globais, uma perspectiva universal da formação humana. O documento
produzido pelo GT Catarinense de História Antiga e Medieval, dos quais faziam parte naquele
contexto Dominique Santos (FURB) e Renato Viana Boy (UFFS), além da medievalista Aline
Dias da Silveira (UFSC), expressa bem a questão. A proposta é que as histórias locais,
regionais e nacionais sejam estudadas a partir de sua relação com uma história da
humanidade. Em sintonia com o que a historiografia internacional tem chamado de “História
Global” e “História Transnacional”, a História Antiga poderia colaborar para que o Ensino de
História transcendesse as identidades nacionais e evitasse nacionalismos. O conhecimento de
outras culturas, sobretudo sociedades em diferentes temporalidades, em escalas globais,
poderia proporcionar uma perspectiva descolonizadora e um conhecimento crítico da história
mundial, evitando déficit teórico e carência de orientação e sentido21.
O documento elaborado pela Rede Goiana de Pesquisa em História Antiga e
História Medieval da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Goiás, em que constam as
assinaturas de Ana Teresa Marques Gonçalves (UFG), Edson Arantes Júnior (UEG), Luana
Neres de Souza (IFG), Luciana Munhoz de Omena (UFG) e Victor Passuello (UEG), também
18
LEITE, op. cit., p. 17.
FARIAS JÚNIOR, José Petrucio de. Reflexões em torno do ensino de História Antiga na graduação: relato de
experiência a partir da Universidade Federal do Piauí. Sobre Ontens, v. 1, p. 1-13, 2016. Cf. páginas 3-4.
20
CARTA ABERTA DOS PROFESSORES DO NORTE E NORDESTE SOBRE A BNCC. Recife, 25 nov.
2015. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/bncc-historia/item/3149-carta-de-professores-do-norte-enordeste-sobre-a-bncc. Acesso em: 2 abr. 2019.
21
PROPOSTA DO GT ANPUH/SC. Proposta do GT ANPUH/SC de História Antiga e Medieval para o debate
sobre a BNCC. Disponível em: http://meridianum.ufsc.br/2016/02/proposta-do-gt-anpuhsc-de-historia-antiga-emedieval-para-o-debate-sobre-a-bncc/. Acesso em: 2 abr. 2019.
19
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compartilha o argumento. A rede de professores (as) lembra que é objetivo da própria BNCC
fomentar “a curiosidade científica e a familiarização com outras formas de raciocínio” 22. O
Ensino de História Antiga, justamente por ter uma perspectiva abrangente e proporcionar o
contato com uma multiplicidade de fontes, documentos e monumentos, pode colaborar para
garantir esse objetivo. A História Antiga pode, então, superar as fronteiras tradicionais do
conhecimento histórico, possibilitando acesso à toda experiência humana, pois toda ela tem
relevância para a área. Assim, a pretensão é de que o Ensino de Antiga colabore para afirmar
“a pluralidade da experiência dos sujeitos históricos como algo enriquecedor da formação dos
estudantes e como elemento constitutivo de uma concepção ampla de cidadania e expressão
do acesso irrestrito à informação e à formação de sujeitos críticos e ativos”23.
Considerando a síntese das críticas da área de Antiga produzidas no âmbito do
GTHA, Alexandre Moraes, escolhido, em diálogo com a própria ANPUH, pelo coletivo do
GTHA como seu representante, reuniu-se nos dias 17 e 18 de fevereiro de 2016 no âmbito da
Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC), em Brasília, e
participou da elaboração da “Carta de Intenções” da BNCC, que considerou que a História
Antiga devesse fazer parte de um currículo nacional, pois colabora, dentre muitas outras
coisas, para a compreensão da noção de temporalidade como eixo central do conhecimento
histórico. A diversidade e a alteridade tão presentes no raciocínio histográfico desenvolvido
na área de História Antiga não seriam apenas com relação ao espaço, mas também ao tempo,
alargando noções como: fronteira, território, temporalidade, dentre outras24.
A ANPUH – Associação Nacional de História –, considerando as proporções que
o debate havia tomado, convidou Pedro Paulo Funari para elaborar um parecer sobre o tema.
Na ocasião, além do argumento da universalização do conhecimento, o professor da
UNICAMP também defendeu que a ausência da História Antiga em um currículo nacional
poderia aprofundar desigualdades em um país já desigual como é o Brasil. Segundo ele, um
currículo nacional deve fornecer a possibilidade de aquisição de “um repertório cultural que
não deve ser apanágio de poucos, se estivermos preocupados com a igualdade de acesso ao
22
BRASIL, op. cit., p. 243.
REDE GOIANA DE PESQUISA EM HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL. Carta aberta sobre BNCC
(MEC).
Goiânia,
1
dez.
2015.
Disponível
em:
<https://www.facebook.com/edson.arantes.148/posts/1052502081436782> Acesso em: 2 abr. 2019.
24
CARTA DE INTENÇÕES. Registro da reunião entre os representantes da ANPUH – Associação Nacional de
História e os especialistas responsáveis pela produção do documento preliminar do componente História Base
Nacional Comum Curricular (BNCC). Realizada na cidade de Brasília, 18 fev. 2016. Disponível em:
<https://www.anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/3307-colaboracaoda-anpuh-nacional-na-revistao-da-proposta-da-bncc>. Acesso em: 2 abr. 2019.
23
136
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conhecimento e às oportunidades”25. De acordo com o autor, é tentando garantir essa
igualdade que trabalham os países com as menores disparidades sociais, “como Portugal,
Espanha, França, Alemanha, ou Suécia, pelo princípio de permitir a todos conhecer o passado,
próximo ou distante, para que todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades”26. É
importante que os estudantes brasileiros conheçam a história em sua integridade, uma ideia
presente no próprio título do parecer. Funari argumenta que ensinar História Antiga aos
jovens brasileiros é, então, garantir “a inclusão de uma perspectiva universal, que dê conta do
repertório da tradição e inclua um inventário de diversidades, [o que] poderá resultar em uma
educação menos excludente”27.
Em entrevista concedida à rádio da UNICAMP, Funari explica algumas questões
sustentadas em seu parecer técnico. A ideia é de que as elites brasileiras jamais deixaram de
estudar História Antiga. Caso retirada da BNCC, a população mais carente ficaria sem acesso
aos conhecimentos dessa área, disponíveis somente aos que pudessem pagar, geralmente a
partir de escolas particulares28. Ele lembra ainda que o Brasil é um país multicultural, que
recebeu imigrações do mundo inteiro. Isso precisa fazer parte do Ensino de História, pois
integra a História do Brasil. O estudo da Antiguidade permite aprofundar também tal aspecto,
relevante em um mundo globalizado. Ou seja, a compreensão da Antiguidade auxilia a
expandir a profundidade do conhecimento histórico e a diversidade, pois fornece referenciais
comparativos e garante diversidade e igualdade29.
A questão da universalidade da História Antiga e da igualdade de oportunidades
que a disciplina proporciona também se fez presente nas argumentações da Sociedade
Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC). Durante assembleia geral da entidade, que ocorreu
em seu XX Congresso, realizado na cidade de Mariana, Minas Gerais, foi criada uma
comissão nacional para elaborar um documento sobre a proposta do Governo. Foram
escolhidos para compor a comissão cinco professores de História Antiga: Katia Paim Pozzer
(UFRGS), Manuel Rolph Cabeceiras (UFF), Norberto Guarinello (USP), Regina Bustamante
25
FUNARI, Pedro Paulo A. Parecer para o MEC sobre a Base Nacional Comum Curricular: a história em sua
integridade 17/02/2016. 2016. Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatoriosanaliticos/Pedro_Paulo_A._Funari.pdf>
e/ou
<https://www.academia.edu/22106025/A_Historia_em_sua_integridade_a_prop%C3%B3sito_da_Base_Naciona
l_Comum_Curricular>. Acesso em: 21 de Maio de 2019.
26
FUNARI, IDEM.
27
FUNARI, IDEM, P. 03.
28
FUNARI, Pedro Paulo A. Entrevista. Pedro Paulo Funari fala sobre Base Nacional Comum Curricular de
História. 9 mar. 2016. Série Conexão Cultura. RTV Unicamp. Disponível em: <
http://www.rtv.unicamp.br/?audio_listing=pedro-paulo-funari-fala-sobre-base-nacional-comum-curricular-dehistoria&fbclid=IwAR1R5jZrlm6e5umnIaBwwiIureYIOfRNBFn_1BK7GNGxk1ns91dOZYqhxhM >. Acesso
em: 02/04/2019.
29
Ibid.
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(UFRJ) e Renata Garraffoni (UFPR). Segundo as considerações feitas pela SBEC na ocasião,
a exclusão da área de História Antiga da BNCC “é fato grave, pois fere o princípio de
oportunidade e de igualdade do ensino de parte fundamental da História da Humanidade para
todos os estudantes”30.
Justamente por debater uma formação assim, o Ensino de História Antiga também
é um incentivo ao diálogo internacional. Esse é um dos argumentos apresentados pelo
documento intitulado “Manifesto do GTHA sobre a BNCC”, no qual é possível verificar as
assinaturas de Adriene Baron Tacla (UFF) e Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF), na
ocasião, coordenadores nacionais do Grupo de Trabalho em História Antiga da ANPUH. De
acordo com o manifesto, os estudos sobre a Antiguidade pensam “as movimentações
populacionais entre os continentes, a circulação de ideias e objetos pelo Atlântico, pelo
Mediterrâneo, Oceano Índico e até o Mar da China. Portanto, não perpetuam visões
eurocêntricas, mas ao contrário as combatem”31. Assim, a área contribui para a compreensão
das histórias globais, transnacionais e interconectadas, sobretudo valorizando perspectivas
comparadas no tempo e espaço. Houve investimento público na área de História para ampliar
a internacionalização do ensino, uma intervenção do Governo Federal e seus principais órgãos
de pesquisa (CAPES e CNPQ). Uma História nacionalista, como a proposta pela primeira
versão, que exclui a reflexão sobre as sociedades antigas, caminha na direção contrária dos
objetivos definidos pelos principais documentos da área de Educação. A História Antiga pode
garantir a compreensão de experiências múltiplas ao longo da História da humanidade, o que
certamente se conecta às perspectivas de internacionalização do ensino, pois estudar as
sociedades antigas significa ampliar o ensino, a pesquisa e a extensão na área de História para
outras territorialidades e temporalidades, dialogando com pesquisadores (as) do mundo
inteiro32. É característica de quem faz pesquisas sobre Antiguidade, por exemplo, o estudo de
línguas estrangeiras, tanto antigas, como o Grego, o Latim, o Egípcio, o Hebraico, quanto
modernas, como o Alemão, Francês, Italiano, além, claro, do Inglês.
O Ensino de História Antiga possui ferramentas, então, para desmobilizar o
eurocentrismo, um argumento também lembrado. Segundo Fábio Frizzo, a História Antiga
30
SBEC. A SBEC e a BNCC. Mariana, Minas Gerais. Dezembro de 2015. Disponível em:
https://www.facebook.com/groups/sbec.classica/permalink/10153883494517139/. Acesso em: 2 abr. 2019.
31
MANIFESTO DO GTHA. Um manifesto pela História e pelas experiências das culturas da Antiguidade. Rio
de Janeiro, nov. 2015. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/bncc-historia/item/3123-manifesto-dogtha-sobre-a-bncc. Acesso em: 2 abr. 2019.
32
Ibid.
138
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debate “milênios de experiências humanas interessantíssimas”33. Justamente por isso, sua
trajetória cronológica fornece possibilidades ao Ensino de História que não estão disponíveis
em outro lugar. Neste imenso arco cronológico, o autor aponta para o fato de que nem sempre
a Europa foi centro, muito pelo contrário, “a África e parte da Ásia foram o centro mais
dinâmico da história humana e isto é um tema fundamental para demonstrar uma crítica
verdadeira ao eurocentrismo”34. Ou seja, “durante a maior parte da trajetória humana, a
Europa não passou de uma periferia no que diz respeito ao desenvolvimento social da nossa
espécie”35. Assim, não se justifica a retirada de História Antiga, sobretudo do Egito
Faraônico, se o objetivo é desmobilizar o eurocentrismo, pois a área vem trabalhando a
questão há décadas36.
É a mesma linha de argumentação de Alexandre Moraes. Para ele, a História
Antiga contribui para o questionamento das ideias eurocêntricas, objetivo da própria BNCC.
Estudar a Antiguidade fornece-nos subsídios para tecer comparações que ultrapassem as
barreiras simples territoriais e espaciais de uma História nacional. Moraes explica que discutir
a República Romana, por exemplo, colocaria a própria noção de república em perspectiva; a
questão feminina na Atenas Clássica poderia nos auxiliar a pensar questões de gênero de
nosso tempo; a democracia ateniense pode auxiliar a pensar nossa própria democracia;
discutir o processo de “branqueamento” da História Egípcia pode nos auxiliar a pensar sobre
preconceito e racismo. Para o autor, a História Antiga amplia o debate do Ensino de
História37.
Devemos também estudar História Antiga para compreender a política
contemporânea. Para Priscila Gontijo Leite, há ligações entre a Antiguidade e o Brasil e
precisamos de História Antiga para “encontrar novas leituras de mundo e, com esse novo
olhar, possamos encarar os desafios futuros, principalmente no campo da política38. Segundo
a autora, constantemente, exemplos do passado antigo são utilizados de forma equivocada
pelos políticos brasileiros, algo que se mostrou constante durante o processo de votação do
33
FRIZZO, Fábio. A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e os descaminhos do ensino da Antiguidade
Egípcia no Brasil. In: BRANCAGLION JR., Antonio; GAMA-ROLLAND, Cintia Alfieri (org.). Semna: estudos
de egiptologia III. Rio de Janeiro: Seshat - Laboratório de Egiptologia do Museu Nacional, 2016. p. 49-68.
34
Ibid., p. 56
35
Ibid.
36
FRIZZO, op. cit.
37
MORAES, Alexandre Santos de. Resposta a Hebe Mattos sobre a BNCC e os historiadores. Disponível em:
https://medium.com/@alexandremoraes/resposta-a-hebe-mattos-sobre-a-bncc-e-os-historiadores-httpconversadehistoriadoras-com-2015959892416794?fbclid=IwAR2leSGopSFUYogSTRZhe5fcoAYeDMyLKRDoiOKT-wIlfSXucmZAvPkNpUI.
Acesso em: 2 abr. 2019
38
LEITE, P. G. Ensino de História, reformas do ensino e percepções da Antiguidade: apontamentos a partir da
atual conjuntura brasileira. Mare Nostrum, v. 8, p. 13-29, 2017. Cf. p. 28-29.
139
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processo de “impeachment” da presidenta Dilma Rousseff. O fato de os políticos recorrerem a
tais exemplos por si só já demonstraria a importância do estudo da Antiguidade. Porém, para
Leite, o problema tem raízes mais profundas, uma vez que caso a BNCC tivesse levado
adiante a ideia de retirar História Antiga do currículo nacional, a maior parte da população
deixaria de ter acesso às ferramentas necessárias para compreender os usos do passado antigo
feitos pelos políticos brasileiros, estando em desvantagem para sequer perceber os equívocos
apresentados39.
É o argumento também defendido por Ygor Klain Belchior, na ocasião na
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e agora na Universidade Estadual De Feira de
Santana (UEFS), que, escrevendo junto com Ana Lucia Santos Coelho, sustenta que o mundo
antigo é um entre os universos que compõem a sociedade multicultural brasileira. A partir de
uma espécie de elogio ao anacronismo, são confrontados os motivos que alimentaram a
contestação política de Nero, imperador romano na Antiguidade, e de Dilma Rousseff,
governante brasileira da atualidade afastada pelo golpe parlamentar-jurídico-midiático de
2016, para tentar responder à pergunta: o que é um bom governo? Assim, o estudo da
Antiguidade pode proporcionar uma compreensão de semelhanças e divergências, mudanças e
permanências que auxiliariam os estudantes na avaliação de questões políticas do tempo
presente. Ou seja, “a política brasileira é útil para a proposição de abordagens sobre o mundo
antigo e vice-versa”40. Para Farias Júnior, o Ensino de História Antiga pode fornecer subsídios
para auxiliar os estudantes brasileiros a “perceber diferentes categorias de pensamento,
particularidades quanto a valores e princípios político-culturais bem como especificidades no
âmbito da organização administrativa”41. Assim, como aponta Denis Correa, o Ensino de
História Antiga pode ampliar a compreensão do Brasil contemporâneo42.
Cláudia Beltrão da Rosa, professora de História Antiga da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), observa que “mesmo no nível mais quotidiano, é
difícil escapar dos clássicos”. Segundo ela, “desde as colunas que adornam as fachadas dos
bancos, dos edifícios públicos e dos condomínios residenciais que se pretendem luxuosos aos
filmes hollywoodianos, o clássico faz parte do tecido da nossa modernidade diária”. Seja
porque nosso idioma é uma língua latina e nossas palavras com ela se conectam seja por conta
das diversas apropriações e ressignificações que fizemos ao longo do tempo, “os clássicos,
39
Ibid.
BELCHIOR, Ygor Klain; COELHO, A. L. S. A BNCC e a História Antiga: uma possível compreensão do
presente pelo passado e do passado pelo presente. Mare Nostrum, v. 8, p. 62-78, 2017.
41
FARIAS JÚNIOR, op. cit., p. 7-8.
42
CORREA, Denis. A base e o edifício: balanço e apontamento sobre a fortuna crítica da BNCC. Revista do
Lhiste, Porto Alegre, 2016. Artigo Livre.
40
140
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então, estão ao nosso redor e em nosso interior, tenhamos consciência disso ou não”. Assim
sendo, não faz o menor sentido pensar em uma Antiguidade desconectada com o Brasil do
tempo presente, pois ela tem ligações com o nosso país. A autora recorre a Koselleck e Funari
para argumentar que “boa parte, senão a maior parte, dos conceitos ocidentais modernos
implicam apropriações e ressemantizações de conceitos, noções e palavras oriundas do grego
e/ou do latim, em um processo cuja estruturação é demonstrada por Reinhart Koselleck, em
seus estudos sobre a contemporaneidade do não-contemporâneo”, por isso, afirma, o estudo
da Antiguidade é fundamental43.
Outro argumento, apresentado por Farias Júnior, é o de que a História Antiga é
capaz de mostrar aos estudantes uma amplitude de fontes, pois nas aulas de História Antiga é
comum a reflexão, análise e interpretação de diferentes tipos de fontes históricas (papiros,
cerâmica, estátuas, moedas, e assim por diante). De igual modo, amplia a reflexão sobre a
natureza lacunar das fontes, bem como todo o longo processo de descoberta, sistematização,
classificação, catalogação, edição, digitalização, tradução, dentre outras interferências até que
uma fonte utilizada para a escrita de alguma temática de História Antiga possa ser utilizada no
livro didático44.
Considerando isso, o Núcleo de Estudos Mediterrânicos (NEMED) da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), cujo um dos líderes é o antiquista Renan Frighetto,
também elaborou uma nota sobre a BNCC ressaltando que o Ensino de História Antiga pode
colaborar para a formação da cidadania, o aprimoramento do senso crítico, a compreensão de
que as ideologias são construções parciais da realidade e a noção de que as diversidades são
importantes. Tudo isso, de acordo com o documento, ficaria impedido caso tivesse sido
aprovada a ideia de um Ensino de História que contemplasse apenas temporalidades
posteriores ao século XVI, como apareceu na proposta da BNCC em sua primeira versão. O
Ensino de História Antiga garantiria no currículo nacional uma História dinâmica, cinética, de
dimensão universal, que respeita a multiplicidade de ideias, de visões de mundo e
cosmogonias, de pontos de vista políticos. Lemos no documento do NEMED que “o mundo
não começou no século XVI nem para África, nem para o Brasil, nem para Portugal, nem para
qualquer outra parte desse planeta” e que a História Antiga pode “mostrar com evidências
diversas que as sociedades mudam, que se refazem, que empregam tempo e energia diversos
43
BELTRÃO, C. Em tempos de BNCC, algumas considerações sobre o ensino de Antiguidade Clássica no
Brasil. Disponível em http://simpohis2016.blogspot.com/p/claudia-beltrao.html Acesso em: 2 abr. 2019.
BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton (org.) Para um novo amanhã: visões sobre
aprendizagem histórica. União da Vitória: LAPHIS: Sobre ontens, 2016. v. 1. p. 69-78.
44
FARIAS JÚNIOR, op. cit., p. 12.
141
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para encontrarem soluções para seus problemas”, por isso, retirar História Antiga de um
currículo nacional seria “amputar o conhecimento histórico”45.
Foi isso que talvez tenha levado o professor Marcos Caldas da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) a considerar a primeira versão da BNCC como
“auriverdeocêntrica”46. Escrevendo para o jornal Folha de São Paulo, o assiriólogo Marcelo
Rede, professor da USP, afirma que a ausência dos estudos sobre Antiguidade representaria o
assassinato da História, título de seu texto para o periódico paulista, pois deixa-se de
contemplar horizontes essenciais da trajetória humana. Segundo ele, a História Antiga auxilia
o estudante a compreender tais horizontes e amplia sua noção temporal dos processos sociais,
questões que são características da própria área de História, cujo estudo “tem impacto
decisivo nas concepções de mundo de grupos e sociedades, na formação de seus interesses
morais e materiais e na fabricação de seus projetos de futuro”47.
Além dos textos e áudio mencionados, os (as) professores (as) de História Antiga
fizeram intervenções em diversos espaços, debatendo, apresentando trabalhos etc. São os
casos de Alex Degan, na ocasião na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e
agora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que participou no Debate “Jornada
de Ensino de História ANPUH-MG – A Base Nacional Comum Curricular em Debate”, em
17 de fevereiro de 2016, realizado no Anfiteatro da FUNEPU, Uberaba – MG; Adriene Baron
Tacla (debatedora) e Manuel Rolf Cabeceiras (principal divulgador), que participaram no
debate sobre a BNCC promovido pelo Centro Acadêmico de História da UFF (Niterói, RJ),
realizado na Sala Paulo Freire, Bloco D, Sala 318, e Auditório do Bloco O da referida
instituição; Alexandre Moraes, também da UFF, apresentando o trabalho “Eurocentrismo e os
debates sobre a BNCC”; Renato Pinto, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que
falou sobre “a História Antiga e a BNCC” no Colóquio História Antiga – Ensino e Pesquisa;
Cláudia Beltrão, que apresentou o trabalho “em tempos de BNCC, algumas considerações
sobre o ensino de Antiguidade Clássica no Brasil”; além da "discussão sobre a BNCC –
Fórum dos docentes de História Antiga e Medieval", realizada pela Universidade Federal do
45
NEMED SOBRE O BNCC HISTÓRIA – ESPECIALMENTE ENSINO MÉDIO. Curitiba. 30 nov. 2015.
Disponível
em:
http://nemed.he.com.br/nemed-sobre-o-bncc-historia-especialmente-o-ensinomedio/?fbclid=IwAR0SVyjlZA9VMp__LaQYwQ4hiuyUpdv72OZ9rQA-PSIzj4z_3XmTBoCHAew.
Acesso
em: 2 abr. 2019.
46
CALDAS, Marcos. Carta sobre a proposta da BNCC. Rio de Janeiro, nov. 2015. Disponível em:
https://www.anpuh.org.br/index.php/bncc-historia/item/3128-carta-do-prof-dr-marcos-caldas-sobre-a-propostada-bncc. Acesso em: 2 abr. 2019.
47
REDE, Marcelo. O assassinato da História. Folha on line, São Paulo, 17 fev. 2016. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/paywall/signup.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1744204o-assassinato-da-historia.shtml?cmpid=compfb&fbclid=IwAR0N7tnLIQI5CVYX4XttHn5lpzVs7jfU_bBjNog0Eas9sN6aXhXqECP75g. Acesso em: 2 abr. 2019.
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Rio de Janeiro (UFRJ), que ocorreu às 14:00 no IFCS - UFRJ, 18.12.2015, Rio de Janeiro.
Pelo teor dos títulos dos trabalhos, é possível cogitar que os argumentos que justificariam o
Ensino de História Antiga na BNCC. Considerando o conjunto dos argumentos apresentados,
vejamos, na tabela da próxima página, uma síntese de quais foram as principais justificativas
dadas pelos (as) professores (as) de História Antiga no Brasil para legitimar a permanência do
Ensino de História Antiga na BNCC. Devemos estudar História Antiga porque a área:
Tabela 1. Quadro contendo motivos pelos quais deve-se estudar História Antiga.
Promove a alteridade, multiplicidade de experiências e percepção de que as identidades
são socialmente construídas.
Contribui para compreensão de que a sociedade é uma invenção humana.
Guarda experiências humanas interessantes.
Auxilia em discussões fundamentais à formação do ser humano a partir de temáticas
discutidas no mundo todo.
Ensina a relativizar a duração da sociedade capitalista moderna.
Auxilia na crítica ao Eurocentrismo.
Auxilia na crítica do racismo estrutural da sociedade brasileira.
Possibilita discutir as diferentes materialidades das heranças humanas.
Promove conhecimento crítico da história mundial.
Incentiva perspectivas descoloniais, decoloniais e pós-coloniais.
Evita déficit teórico e carência de orientação e sentido.
Fornece uma formação humanista.
Amplia percepção de que o Brasil é parte da história da experiência humana.
Problematiza a ideia do Brasil como parte do Ocidente, apontando a categoria como
uma construção sociocultural.
Auxilia na reflexão sobre temáticas importantes do Brasil no tempo presente,
aprofundando sua compreensão.
Permite compreender melhor os discursos políticos contemporâneos, produzidos tanto
no Brasil quanto no exterior.
É fundamental para a formação de uma cidadania crítica.
Possibilita compreender que heranças significativas da Antiguidade influenciam nosso
cotidiano.
Mobiliza saberes de diversas áreas para além da História, possibilitando a inter e a
143
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multidisciplinaridade.
Valoriza perspectivas comparadas no tempo e no espaço.
Colabora para ampliar a internacionalização, valorizando investimento público feito
nos últimos anos.
Amplia capacidade reflexiva dos estudantes.
Evita a desigualdade social, permitindo acesso geral de toda a população às temáticas
internacionalmente relevantes.
Aprofunda compreensão conceitual.
Amplia conhecimento sobre diferentes fontes históricas.
Aprofunda a compreensão e problematização da natureza lacunar das fontes e
metodologias.
Aumenta a compreensão das dificuldades e também das responsabilidades do ofício do
historiador.
Auxilia a repensar as fronteiras tradicionais do conhecimento histórico.
Aprofunda o debate sobre Ensino de História no Brasil
Em palestra proferida já em 2018 e disponível no Youtube, Guilherme Moerbeck,
professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), apesar de não estar analisando
a primeira versão, com ela dialoga para também sintetizar o debate. Segundo ele, a História
Antiga pode contribuir para aprofundarmos o debate político, debater polarizações,
radicalismos, visando o interesse do bem comum, no sentido Aristotélico. Refletir sobre as
sociedades antigas pode colaborar para incentivar a curiosidade, a dúvida e a possibilidade de
comparações. No entanto, Moerbeck faz-nos uma advertência, é preciso ter cuidado para
evitar a visão conservadora e tradicional de uma História Antiga apenas como origem e
herança do Ocidente e apenas política, sobretudo de maneira quantitativa, acumulando
conteúdos, por exemplo, de grandes nomes, feitos e heróis, principalmente no sexto ano do
Ensino Fundamental, algo que é questionado há décadas na área e, no entanto, ainda habita o
imaginário até mesmo de professores de História. Assim, se o debate que ocorre na área for
atualizado, a História Antiga pode ser crucial para o ensino na escola e auxiliar na
144
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compreensão sobre alteridade social, cultural e religiosa, algo extremamente relevante para
interpretarmos, principalmente, o Brasil do tempo presente e do tempo imediato48.
É o que afirma Uiran Gebara da Silva, para quem o Ensino de História Antiga
pode despertar, ao mesmo tempo, tanto a familiaridade quanto o exotismo e assim, sobretudo
considerando a dimensão espaço-temporal, pode colaborar para desnaturalizar a relação dos
seres humanos no tempo e, fazendo isso, estará também “deslocando e subvertendo a ideia de
uma Antiguidade como herança cultural pura e simplesmente49.
Gilberto Francisco, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), explica
que, reconfigurada, a História Antiga pode ser fundamental “como um tema relevante de
narrativas que influencia o debate sobre identidade e memória nacional”50.
A Antiguidade precisa ser estudada porque ela “é uma dos reservatórios mais
férteis para os usos do passado que a memória coletiva e a história científica eurocêntricas
contemporâneas utilizaram para a construção de identidades"51. Isso é algo que não pode ser
ignorado, pois, se o fizermos, corremos o risco de "eliminar a alteridade fundante do passado,
algo particularmente inadequado em contextos periféricos (do ponto de vista das economiasmundo capitalistas) como Brasil"52. Assim, a História Antiga apresenta potencial “para a
crítica e reconstrução das relações de diferentes grupos da sociedade brasileira com o tempo
histórico e o espaço mundial"53 e essa seria a principal razão pela qual seria impensável que a
disciplina deixasse de fazer parte de um currículo nacional, pois os estudantes brasileiros
deixariam de contar com essa importante ferramenta54.
Considerações Finais
A partir do que foi discutido ao longo do artigo, vimos que a primeira versão da
Base Nacional Curricular Comum (BNCC) foi amplamente questionada por diversos grupos,
dentre eles o coletivo de professoras e professores de História Antiga no Brasil. Construída
sem discussão por uma pequena comissão de especialistas que não contava com um único
48
MOERBECK, Guilherme. Algumas palavras sobre o ensino de História na Educação Básica, consciência
histórica e BNCC. 2018. (Apresentação de Trabalho/Conferência ou palestra). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=xa3xwwgOm3E>. Acesso em: 2 abr. 2019.
49
SILVA, U. G. Introdução ao Dossiê História Antiga no Brasil: ensino e pesquisa: uma antiguidade fora
dolLugar?. Mare Nostrum: estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, v. 8, p. 1-12, 2017.
50
FRANCISCO, G. da S. O lugar da História Antiga no Brasil. Mare Nostrum: estudos sobre o Mediterrâneo
Antigo, v. 8, p. 30-61, 2017.
51
MORALES, Fábio Augusto. Por uma didática da História Antiga no ensino superior. Mare Nostrum: Estudos
sobre o Mediterrâneo Antigo, v. 8, p. 79-114, 2017. Cf. p. 88.
52
Ibid.
53
Ibid., p. 104-105.
54
MORALES, op. cit.
145
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nome relacionado com os estudos antigos, além de não ter ouvido seus pares na academia e
nem as professoras e professores da Educação Básica, a narrativa inicial foi rejeitada pela
comunidade dos historiadores profissionais a partir de diversos coletivos e pela própria
ANPUH – Associação Nacional de História –, que considerou a ausência de História Antiga
como uma lacuna inaceitável da Proposta, algo para o qual não há justificativas 55. No
contexto de tal debate, inúmeros argumentos acerca da importância de se estudar a chamada
História Antiga foram produzidos, e aqui foram sistematizados.
Foi possível perceber que tanto a equipe que trabalhou na produção da versão
inicial da BNCC quanto aqueles que apoiaram tal narrativa brasilcêntrica e presentista
associaram o ensino de História Antiga com algumas nomenclaturas, conceitos e práticas que
não possuem primazia na área há pelo menos três décadas. Quem estuda a elaboração de
currículos e de planos político-pedagógicos de curso sabe que no momento em que
documentos assim são aprovados nas instâncias burocráticas e legais eles já nascem
desatualizados, pois tais sistematizações não conseguem acompanhar o ritmo e nem as
necessidades do mundo da vida, da vida prática, da vida viva. Por que, então, certos coletivos
de historiadores registraram por escrito opiniões tão retrógadas sobre o Ensino de História
Antiga, diminuindo, ou até mesmo, em alguns casos, negando sua importância e colaboração
para o debate sobre as funções sociais da História no Brasil? Talvez não seja por conta de um
déficit teórico, uma dificuldade cronológica, ou um limite historiográfico, mas algo
relacionado a um projeto político de poder, cuja finalidade é exercer a primazia sobre
determinadas áreas, sobretudo a do Ensino de História, algo que a comunidade dos
historiadores profissionais precisa avaliar com cuidado.
55
MANIFESTAÇÃO PÚBLICA DA ANPUH SOBRE A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR. São
Paulo, 10 mar. 2016. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticiasdestaque/item/3352-manifestacao-publica-da-anpuh-sobre-a-base-nacional-comum-curricular. Acesso em: 2 abr.
2019; ANPUH-RIO. Carta crítica da ANPUH-RIO à composição do componente curricular História na BNCC.
Rio de Janeiro, nov. 2015. Disponível em: <https://www.anpuh.org.br/index.php/bncc-historia/item/3124-cartacritica-da-anpuh-rio-a-composicao-do-componente-curricular-historia-na-bncc>. Acesso em: 2 abr. 2019;
FÓRUM DOS PROFISSIONAIS DE HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL. Carta de repúdio à Base Nacional
Comum
Curricular
de
História.
Rio
de
Janeiro,
26
nov.
2015.
Disponível
em:
https://anpuh.org.br/index.php/bncc-historia/item/3127-carta-de-repudio-a-bncc-produzida-pelo-forum-dosprofissionais-de-historia-antiga-e-medieval. Acesso em: 2 abr. 2019; TACLA, Adriene B. Base Nacional
Comum Curricular em debate. Coletânea de links, cartas, reportagens e manifestos. Rio de Janeiro, 30 nov.
2015. Disponível em: http://www.historia.uff.br/depto/bncc.php. Acesso em: 2 abr. 2019.