Lição em Filosofia Medieval, apresentada a 18 de Janeiro de 2011, durante as
provas de habilitação ao título de Agregada pela Universidade de Lisboa, de Maria
Leonor Lamas de Oliveira Xavier.
A Questão do Argumento Anselmiano
Maria Leonor L.O. Xavier
Universidade de Lisboa
Volvidos nove séculos sobre a morte de Santo Anselmo, ao longo dos quais fez
tradição, o seu mais célebre argumento, através de comentários, de argumentos
congéneres e alternativos, bem como de refutações, o que resta dizer sobre essa
produção admirável do pensamento especulativo do Ocidente? Decerto já tudo foi dito e
qualquer intento de originalidade é pura ilusão ou mera presunção. Tal é o peso da
história da filosofia na nossa idade civilizacional, pelo menos nos motivos mais
incontornáveis e persistentes do pensamento humano. Será esse peso, um fardo que nos
acabrunha e que nos condena ou a repetir ou a querer esquecer? Seria preferível não têlo? Seria preferível que todas as bibliotecas tivessem ardido e como que pela
purificação do fogo se tivesse resgatado, para as gerações vindouras, a inocência do
pensar? Mas seria tal inocência mais virtude do que ilusão? Julgamos que mais ilusão
do que virtude: a ilusão do esquecimento do já pensado, irredutível a nada. Sabemos
que a nossa cultivada memória do já pensado não nos permite senão repetir, mas cremos
também que há infindáveis combinações possíveis dos repetíveis, entre as quais cada
reapropriação dos grandes motivos do pensar se pode configurar singularmente e tornarse única. É esta crença intrinsecamente filosófica que nos anima a repensar o legado do
argumento anselmiano.
Um argumento suscita naturalmente argumentos, pró e contra, e o meio em que
os argumentos se confrontam e debatem é o espaço de contraditório a que os filósofos
escolásticos chamavam quaestio. De facto, o argumento anselmiano foi debatido no
âmbito da quaestio da existência de Deus, a questão prioritária da teologia na tradição
escolástica, por ser a mais acessível à razão. Não vamos aqui repetir a quaestio da
existência de Deus, tal como a questão fora disputada nos meios universitários
medievais. Tal repetição seria um exercício inevitavelmente afectado de anacronismo.
Todavia, uma rica tradição de vias de argumentação a favor da existência de Deus
suscita naturalmente, a posteriori, o próprio questionamento das vias, enquanto motivos
do esforço especulativo do pensar humano. É assim que uma dessas vias, decerto
pioneira, mesmo com antecedentes, se tornou para nós questão: a questão do argumento
anselmiano. O que é que está então para nós em questão no argumento anselmiano?
Não é, desde logo, a validade lógica do argumento, aspecto que a tradição da
filosofia analítica tem privilegiado quer nas recensões críticas daquele argumento quer
no esforço de construção de argumentos congéneres. A estrita consideração da forma
lógica do argumento não pode senão abster-se de pronúncia sobre os conteúdos
inevitavelmente envolvidos no sentido do argumento, como ressalta em inúmeras
descrições formais do mesmo, ou de argumentos congéneres, às quais sempre se
acrescenta a dilucidação em linguagem natural de conteúdos postulados como premissas
ou pressupostos como condições do raciocínio1. Não cremos, pois, que o esforço de
formalização dos argumentos conduza ao seu cabal esclarecimento2. Também nunca nos
alentou o desafio intelectual de detectar erros lógicos mais ou menos elementares nas
construções conceptuais dos grandes especulativos do passado, porque sempre
assumimos que o essencial de tais construções está nos conteúdos, não na forma, e
sobretudo nos conteúdos das crenças mais primitivas dos filósofos, que decidem, como
princípios, a orientação das respectivas posições. Quanto à forma lógica do argumento
anselmiano, reconhecemos nele um raciocínio por redução ao absurdo, repetindo uma
convicção recorrente entre os comentadores. No entanto, as razões do absurdo da
hipótese, ou em termos anselmianos, as razões da insipiência da hipótese – Deus não
existe – não são de ordem lógica; são conteúdos filosóficos disputáveis, que são, porém,
decisivos para a concessão ou rejeição do argumento.
Perante esse argumento, a nossa primeira tarefa foi discernir uma interpretação
dos respectivos conteúdos filosóficos, que satisfizesse o desígnio da nossa compreensão
pessoal. Fizemo-lo ao longo dos anos, incluindo auto-correcções, e temos deixado
registo desse esforço de revisão interpretativa em diversos escritos3. A nossa
1
Como reconhece Nelson G. Gomes, após ter exposto as versões formais do argumento ontológico de
Gödel (1970) e de Gödel-Anderson (1990): «A metafísica pode aplicar lógica para tratar da questão de
Deus, tal como ocorre em Gödel e em Gödel-Anderson, mas aí não mais estamos no âmbito da lógica
pura. Sem o acréscimo de premissas ou postulados adicionais, não há discurso sobre Deus, dentro da
lógica.» Nelson G. Gomes, “Summum Bonum”, in Manfredo Oliveira e Custódio Almeida (Orgs.), O
Deus dos filósofos contemporâneos, Petrópolis, Vozes, 2003, p.148.
2
Ao contrário da expectativa expressa por um dos principais responsáveis pela valorização da versão
modal do argumento anselmiano na filosofia do séc. XX, Charles Hartshorne: «I suspect that the future of
the ontological problem lies largely in rather technical developments in formal logic (including modal
logic or, perhaps I should say, metalogic) or in such studies in the philosophy of logic as only those who
know the logic can promote or adequately judge. The stage of mere ‘talkietalk’ about this matter is
probably nearing its close.» Charles Hartshorne, Anselm’s Discovery: a re-examination of the ontological
proof for God’s existence, La Salle (Ill.), Open Court, 1965, p.xiii.
3
Delineámos a nossa interpretação do argumento anselmiano na nossa dissertação de doutoramento: cf.
Razão e Ser. Três questões de ontologia em Santo Anselmo, Lisboa, FCG – FCT, 1999, pp.503-577. Aí
assumimos sem questionar o apriorismo do argumento e traduzimos conceptualmente o nome divino de
Proslogion 2 por ‘supremo pensável’, por exigência da economia do discurso. Reflectindo sobre o sentido
desse nome, valorizámos o seu significado como regra de pensamento sobre Deus, que visa impedir a sua
redução a um deus menor: cf. “O nome anselmiano de Deus”, in Carlos João Correia (Coord.), A Mente, a
Religião e a Ciência. Actas do Colóquio, Lisboa, CFUL, 2003, pp.269-278. Continuando a aprofundar o
sentido de tal nome, substituímos a nossa anterior tradução conceptual por uma expressão mais fidedigna
– “insuperável na ordem do pensável” – e apercebemo-nos de que esta não podia ser a designação de um
conceito puramente a priori: cf. “O conhecimento de Deus: Anselmo e Gaunilo”, in Maria Cândida
Pacheco e José F. Meirinhos (Eds.), Intellect et imagination dans la Philosophie Médiévale. Actes du XIe
Congrès International de Philosophie Médiévale de la Société Internationale pour l’Étude de la
Philosophie Médiévale (S.I.E.P.M.), Porto, du 26 au 31 août 2002 (Rencontres de philosophie médiévale,
11), Turnhout, Brepols Publishers, 2006, Vol. II, pp.867-880. Entretanto, fixámos uma exposição concisa
da nossa interpretação do argumento anselmiano, centrada nos dois elementos que reputamos decisivos
para a sua compreensão, o nome anselmiano de Deus e os princípios da ordem da existência, que
medeiam os raciocínios de Proslogion 2 e 3: cf. “Anselme et Bonaventure. Au sujet de l’argument du
Proslogion ”, in José F. Meirinhos (Ed.), Itinéraires de la Raison. Études de philosophie médiévale
offertes à Maria Cândida Pacheco (Textes et Études du Moyen Âge, 32), Louvain-la-Neuve, Fédération
Internationale des Instituts d’Études Médiévales, 2005, pp.127-145; cf. “Tomás de Aquino e o argumento
anselmiano”, in José Antônio de C. R. de Souza (Org.), Idade Média: tempo do mundo, tempo dos
homens, tempo de Deus, Porto Alegre, Edições EST, 2006, pp.117-128. Também procurámos testar a
repercussão da metafísica da unidade entre essência e existência, tal como sugerida em Monologion 6,
sobre a interpretação do argumento anselmiano: cf. “Do pensável e do impensável na filosofia do
Argumento Anselmiano”, in João J. Vila-Chã (Ed.), Revista Portuguesa de Filosofia 64: Filosofia e
Espiritualidade: O Contributo da Idade Média (Braga, 2008), fasc.1, pp.275-296. A análise do
2
interpretação distinguiu, antes de mais, duas espécies de conteúdos filosóficos decisivos
para a compreensão do argumento anselmiano: por um lado, o sentido do nome
perifrástico de Deus, que Anselmo compôs para a sua via única do Proslogion – aliquid
quo nihil maius cogitari possit4–, que nós traduzimos conceptualmente por “o
insuperável na ordem do pensável” ou “o insuperavelmente pensável”, e a que nos
referimos habitualmente como sendo “o nome anselmiano de Deus”; por outro lado,
dois juízos da ordem da existência, enquanto esta é posicionável no pensamento e na
realidade, e modalizável como absolutamente necessária, cuja negação é impensável, e
como relativamente contingente, cuja negação é pensável, constituindo os juízos que
ordenam tais posições e modalidades da existência, duas crenças filosóficas de
Anselmo, que ele aplica como óbvias, sem precisão de justificá-las, e que, por isso, nós
tomamos por princípios justificativos do argumento do Proslogion. O primeiro princípio
estabelece que a existência pensada e real é maior do que a existência apenas pensada.
A admissão do nome anselmiano de Deus, como nome do insuperavelmente pensável,
em conjunção com o princípio da superioridade da existência pensada e real à existência
apenas pensada, torna contraditória a hipótese de Deus ser apenas uma ficção do
pensamento humano, como se evidencia em Proslogion 2. O segundo princípio, por seu
turno, postula que a existência absolutamente necessária, cuja negação é impensável, é
maior do que a existência relativamente contingente, cuja negação é pensável. A mesma
admissão do nome anselmiano de Deus, como nome do insuperavelmente pensável, em
conjunção com o princípio da superioridade da existência cuja negação é impensável à
existência cuja negação é pensável, torna contraditória a hipótese de pensar a não
existência de Deus, ou seja, a possibilidade de duvidar da sua existência, como se
evidencia em Proslogion 3. Os dois princípios da ordem da existência, em estrutural
conexão com o conceito de Deus, como insuperavelmente pensável, são as razões
filosóficas que justificam a dupla conclusão do argumento anselmiano: Deus existe
realmente e tão necessariamente que nem sequer é pensável que não exista.
Chegou agora o momento de testarmos as consequências do nosso entendimento
daquilo que identificámos como conteúdos filosóficos do argumento anselmiano,
confrontando-nos com a problemática recorrentemente debatida na tradição do
argumento. Para esse efeito, recuperamos a quaestio escolástica, como modelo de
análise e de exposição metódica das razões em confronto no processo de apuramento de
uma posição sobre o assunto em causa. A nossa quaestio é acerca do argumento
anselmiano, e, através dela, pretendemos ponderar razões e apurar por partes a nossa
posição face a essa criação insigne do pensamento filosófico. Tal como a quaestio
escolástica, a nossa questão acerca do argumento anselmiano é constituída por uma
série ordenada de perguntas em discurso indirecto, os artigos, que solicitam respostas
separadas. São três, as perguntas principais, que seleccionámos como artigos da nossa
questão, e a que devemos responder a fim de obtermos uma posição filosoficamente
ponderada sobre o argumento em causa:
Artigo 1: Se o argumento anselmiano é uma inferência directa da existência
como perfeição da essência divina.
Artigo 2: Se o argumento anselmiano é um argumento a priori.
Artigo 3: Se o argumento anselmiano é desdobrável num duplo argumento a
favor do dualismo divino.
argumento anselmiano, que propomos na presente questão, resulta deste continuado esforço de insatisfeita
compreensão.
4
Proslogion (Pr.) 2, in F. S. Schmitt (Ed.), S. Anselmi Cantuariensis Archiepiscopi Opera Omnia,
Stuttgart – Bad Cannstatt, 1968, I, p 101, 5.
3
O artigo primeiro é a pergunta mais clássica da tradição sobre o argumento de
Anselmo. Ela adivinha-se já nas recepções escolásticas deste argumento, mas é,
sobretudo a partir da via da “Quinta Meditação de Filosofia Primeira”, de Descartes,
que ela se torna uma pergunta inevitável acerca do antecedente pioneiro, que é a via
anselmiana do Proslogion. Esta pergunta solicita uma resposta atinente à relação entre
essência e existência, que constitui um capítulo central da ontologia clássica. É, pois,
nesse capítulo que vem ainda inserir-se este nosso primeiro artigo.
O artigo segundo é a pergunta que não pode deixar de ser feita após o apriorismo
de Kant. Ela também já emerge no debate escolástico em torno da questão de saber se o
conhecimento da existência de Deus é por si evidente e, desse modo, a priori. Mas a
crítica kantiana de toda a prova ontológica, entendida como prova a priori e
exemplificada pela quinta via cartesiana, projectou sobre o argumento anselmiano a
classificação de prova a priori. Tal projecção tem afectado em grande escala as
recepções pós-kantianas deste argumento, de modo que a pergunta impõe-se a fim de
questionar uma resposta dada por óbvia e de equacionar a alternativa à luz do
testemunho escrito de Anselmo, que não manifesta ter-se preocupado com alguma
forma de apriorismo.
O artigo terceiro é uma pergunta que formulamos a partir do debate do
argumento anselmiano no séc. XX, século que assistiu a um intenso desenvolvimento
dos estudos de história da filosofia e a um renascimento da filosofia medieval a partir
dos anos 30, inicialmente protagonizado por Étienne Gilson. Inúmeras foram as
revisitações do argumento anselmiano ao longo das décadas seguintes, nos meios
universitários. Dessas revisitações, seleccionámos aquela que mais profundamente nos
interpela: a hipótese académica de construir um argumento rigorosamente simétrico ao
argumento anselmiano, a favor da existência de algo absolutamente mau, concebível
como um princípio eterno e divino do mal. A combinação do argumento anselmiano
com o seu simétrico alentaria de novo uma mundividência de tipo maniqueísta. É essa
combinação que está em causa no nosso terceiro artigo.
ARTIGO 1
Se o argumento anselmiano é uma inferência directa da existência como perfeição da
essência divina
Parece que o argumento anselmiano é uma inferência directa da existência
como perfeição da essência divina.
1. Antes de mais, porque a essência, o ser e o ente relacionam-se entre si como a
luz, o luzir e o luzente, como diz Anselmo em Monologion 65. Significa esta
comparação que a essência, o ser e o ente constituem uma unidade indivisível na
realidade, tal como a luz, o luzir e o luzente são realmente inseparáveis entre si, ainda
que sejam destrinçáveis entre si pela análise. Também a essência, o ser e o ente,
constituindo uma unidade realmente indivisível, são aspectos racionalmente discerníveis
entre si da realidade. Portanto, o ser, ou o existir de Deus pode ser directamente
deduzido da consideração da sua essência, uma vez que não é realmente separável dela.
2. Além disso, Anselmo formulou, em Proslogion 2, um nome de Deus, que
pode significar a essência divina, como é o caso de “algo maior do que o qual nada
5
«Quemadmodum enim sese habent ad invicem lux et lucere et lucens, sic sunt ad se invicem essentia et
esse et ens, hoc est existens sive subsistens.» Anselmo, Monologion 6 (Schmitt: I, p.20, 15-16).
4
possa ser pensado”6. Com efeito, a formulação deste nome perifrástico de Deus resulta
da crítica de supremo, como atributo divino, em Monologion 15: uma vez que a
suspensão da relação de supremacia não diminui a essencial grandeza de Deus, supremo
não deve ser admitido como um atributo divino, bem como o termo “supremo” não deve
em rigor integrar algum nome significativo da essência divina7. Um nome que satisfaça
esta exigência pode ser o nome de algo absoluto, inclusivamente não relativo a algo
superior, isto é, insuperável, que seja omisso quanto à condição prescindível de ser
supremo: tal é o caso de “algo maior do que o qual nada possa ser pensado”, que
significa literalmente algo insuperavelmente pensável. Através desse nome perifrástico,
Anselmo consegue obter uma consideração da essência divina. Como, ademais, ele
identifica esse nome com o seu argumento único8, nada mais este argumento contém
senão uma dedução directa da existência a partir de uma consideração da essência
divina.
3. Além disso, Anselmo assume, em Proslogion 2, um juízo da ordem da
existência, segundo o qual algo existente em pensamento e na realidade é maior do que
o mesmo existindo só em pensamento. Este é decerto um juízo de valorização da
existência real, mas não é só isso. Se fosse só um juízo de valorização da existência real,
poderia dizer-se que qualquer coisa realmente existente seria maior do que qualquer
outra coisa existente apenas no pensamento, como, por exemplo, um monte de lixo
realmente existente seria maior do que uma boa intenção não realizada. Mas o juízo
anselmiano evita a bizarria de tais comparações, ordenando as duas posições da
existência, no pensamento e na realidade, a respeito do mesmo existente, considerado
nas duas posições. Por isso, o juízo anselmiano é um juízo de valorização da existência
real, que não é indiferente à ordem da essência. À luz desse juízo, algo
insuperavelmente pensável não pode existir só em pensamento, mas tem de existir
também na realidade, pois, se existisse só em pensamento, não seria insuperável, mas
seria superado por si mesmo, enquanto pensável como existente na realidade9. A
dedução da existência real de algo insuperavelmente pensável, assim justificada por um
juízo da ordem da existência, que atende à ordem da essência, pode ser entendida como
uma inferência directa da existência a partir de uma consideração da essência divina nas
duas posições ordenadas da existência.
4. Além disso, Anselmo assume, em Proslogion 3, um juízo da ordem da
existência, segundo o qual algo existente de modo que a sua inexistência é impensável,
é maior do que algo existente de modo que a sua inexistência é pensável. À luz deste
juízo, algo insuperavelmente pensável não pode ser algo dubitável, cuja inexistência é
pensável, mas tem de existir tão necessariamente que a sua inexistência seja impensável,
6
«Et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit.» Id., Pr. 2 (Schmitt: I, p.101, 4-5).
«Si enim nulla earum rerum umquam esset, quarum relatione summa et maior dicitur, ipsa nec summa
nec maior intelligeretur: nec tamen idcirco minus bona esset aut essentialis suae magnitudinis in aliquo
detrimentum pateretur. Quod ex eo manifeste cognoscitur, quoniam ipsa quidquid boni vel magni est, non
est per aliud quam per seipsam. Si igitur summa natura sic potest intelligi non summa, ut tamen
nequaquam sit maior aut minor quam cum intelligitur summa omnium: manifestum est quia summum non
simpliciter significat illam essentiam quae omnimodo maior et melior est, quam quidquid non est quod
ipsa.» Id., Mon. 15 (Schmitt: I, p.28, 13-22).
8
«Quid enim si quis dicat esse aliquid maius omnibus quae sunt, et idipsum tamen posse cogitari non
esse, et aliquid maius eo etiam si non sit, posse tamen cogitari? An hic sic aperte inferri potest: non est
ergo maius omnibus quae sunt, sicut ibi apertissime diceretur: ergo non est quo maius cogitari nequit?
Illud namque alio indiget argumento quam hoc quod dicitur ‘maius omnibus’; in isto vero non est opus
alio quam hoc ipso quod sonat ‘quo maius cogitari non possit’.» Id., Quid ad haec respondeat editor
ipsius libelli (Resp.) [5.] (Schmitt: I, p.135, 14-20).
9
«Et certe id quo maius cogitari nequit, non potest esse in solo intellectu. Si enim vel in solo intellectu
est, potest cogitari esse et in re, quod maius est.» Id., Pr. 2 (Schmitt: I, p.101, 15-17).
7
5
pois, se fosse dubitável, não seria insuperável, mas seria superado por algo pensável
cuja inexistência é impensável10. Este é decerto um juízo de valorização da existência
necessária relativamente à existência contingente, mas não é um juízo adstrito à ordem
da existência. Se fosse um juízo estritamente da ordem da existência, indiferente à
ordem da essência, a qualquer pensável seria atribuível qualquer das duas modalidades
da existência, mas tal não é o caso. Na verdade, a modalidade necessária da existência
não é compossível com qualquer pensável, mas só com algo pensável sem limites de
começo e fim, e sem composição de partes. Só algo essencialmente eterno e simples é
compatível com a modalidade necessária da existência. Por isso, a dedução da
existência necessária do insuperavelmente pensável, assim justificada pelo juízo de
superioridade da existência necessária à existência contingente, pode ser entendida
como uma inferência directa da existência necessária a partir da consideração dos
atributos de eternidade e de simplicidade da essência divina.
Mas contra isto, há duas posições dignas de consideração.
Por um lado, disse o Venerável Inceptor que “nenhum inexistente é maior do
que um existente”11, o que é um juízo de valorização unilateral da existência, que não
permite deduzir a existência como perfeição de uma essência.
Por outro lado, disse o Filósofo da Crítica da Razão Pura que “cem táleres reais
não contêm mais do que cem táleres possíveis”12, o que é um juízo de desvalorização
unilateral da existência, em nome da identidade do conceito de cada coisa na dupla
condição de possível e de real, que não permite deduzir a existência do conceito do que
quer que seja.
Respondo dizendo que o argumento anselmiano não é uma inferência directa da
existência como perfeição da essência divina, mas é uma dedução da existência real e
necessária da essência divina por mediação de princípios de uma ordem da existência,
que é correlativa de uma ordem da essência.
A esboçada metafísica da relação entre essência e existência, concebendo esta
relação como uma unidade realmente inseparável, à semelhança da unidade da luz e do
luzir, adverte-nos contra o simplismo de reduzir o argumento do Proslogion a uma
inferência directa da existência como perfeição da essência divina. A metáfora de luzluzir-luzente para essência-ser-ente indica decerto a unidade real de essência, ser e ente,
em que ser é permutável com existir, e ente, com existente. De acordo com esta
unidade, a qualquer essência pertence existir, e ser a essência de um ente; bem como a
qualquer existir, corresponde uma essência e um ente; bem como, ainda, a qualquer ente
compete uma essência e uma existência. Por conseguinte, qualquer essência ou qualquer
ente existe inseparavelmente, nem que seja apenas em potência, como possível, ou em
pensamento, como pensável, ou em ficção, como fictício. Pode, pois, deduzir-se que é,
ou existe, para qualquer essência, ou ente. Tal procedimento não é um feito especial e
exclusivo para o caso divino. Aquilo que cabe fazer é deduzir o tipo de ser, ou de
existência, que convém proporcionalmente a cada essência e ente. É isto que, a nosso
ver, acontece para o caso divino, no argumento anselmiano: aí deduz-se a existência real
10
«Nam potest cogitari esse aliquid, quod non possit cogitari non esse; quod maius est quam quod non
esse cogitari potest.» Id., Pr. 3 (Schmitt: I, p.102, 6-8).
11
«Nihil quod non existit in re est maius de facto eo quod existit in re» Guilherme de Ockham, Quodlibet
VII, q.15 (Quodlibeta Septem, ed. de Joseph C. Wey, in Guillelmi de Ockham Opera Theologica IX, St.
Bonaventure, N. Y., 1980, p.761, 146-147).
12
«Hundert wirkliche Taler enthälten nicht das mindeste mehr, als hundert mögliche.» Kant, KrV B 627.
6
(cap.II) e necessária (cap.III) do ente divino, concebido como algo insuperavelmente
pensável.
A perífrase anselmiana “algo maior do que o qual nada possa ser pensado”
designa o ente inseparável da essência divina, através do conceito de insuperavelmente
pensável. Este conceito de insuperável supera, por um lado, a relatividade do conceito
de supremo, omitindo a relação com dependentes reais ou possíveis; e, por outro lado,
supera a relatividade do próprio conceito de superável, negando explicitamente a
relação com algum possível superador. De forma duplamente negativa, por omissão e
por negação explícita, o conceito de algo insuperavelmente pensável adequa-se a
conceber o ente divino, cuja essência se caracteriza por uma grandeza incondicionada
ou absoluta13. Com efeito, a inseparabilidade real entre ente e essência e a dupla
negação de relatividade, que caracteriza propriamente o conceito anselmiano de
insuperavelmente pensável, autorizam a extensão deste conceito à própria essência
divina. Impõe-se, então, determinar a existência que convém à essência divina,
concebida como insuperavelmente pensável.
Nesse sentido, Anselmo admite um juízo que ordena como maior a dupla
posição de ser no intelecto e na realidade em comparação com a posição de ser apenas
no intelecto. Dada a inseparabilidade real entre essência, ente e ser, este juízo pode ser
formulado de três maneiras, atribuindo o primado a qualquer um dos três termos:
segundo o primado da essência, pode dizer-se que qualquer essência é maior existindo
no intelecto e na realidade do que existindo apenas no intelecto; segundo o primado do
ente, pode dizer-se que qualquer ente é maior existindo no intelecto e na realidade do
que existindo apenas no intelecto; e segundo o primado do ser permutável com a
existência, pode dizer-se que a dupla existência no intelecto e na realidade, de qualquer
essência ou de qualquer ente, é maior do que a existência do mesmo só no intelecto.
Este é, prioritariamente, um juízo acerca da ordem da existência, que por via da
existência, afecta o ente e a essência correspondentes. Tal juízo, porém, não se torna
explícito, no argumento anselmiano, senão de forma já aplicada ao insuperavelmente
pensável: se este fosse uma ficção, existente apenas no intelecto, então não seria algo
insuperavelmente pensável, porquanto seria superável por si mesmo enquanto pensável
com uma existência real – «o que é maior», como diz Anselmo14.
Este juízo de ordem é aplicado sem ser questionado; é assumido, de facto, como
sendo por si evidente: por isso, o mesmo opera verdadeiramente, no argumento
anselmiano, como um princípio da ordem da existência, que justifica a inferência da
existência real do insuperavelmente pensável. Trata-se de um princípio da ordem da
existência, que é realmente inseparável da ordem da essência, na ontologia implícita do
Filósofo pré-escolástico.
Este princípio não é por certo indiferente à ordem da essência, de acordo com a
tripla formulação explicitada, uma vez que o juízo de maior, que ele enuncia, concerne,
não à existência simplesmente considerada, mas sim à existência inseparável de
qualquer essência e ente. Mais, em todo o caso, é a existência da mesma essência e ente,
que é comparada nas duas posições discriminadas. O facto de a comparação entre as
duas posições da existência se fazer a respeito da mesma essência e ente, e não a
respeito de essências e entes distintos, acusa que o princípio anselmiano não é
indiferente à ordem da essência. Se o mesmo juízo fosse feito a respeito de essências e
13
«Sicut nefas est putare quod substantia supremae naturae sit aliquid, quo melius sit aliquomodo non
ipsum, sic necesse est ut sit quidquid omnino melius est quam non ipsum. Illa enim sola est qua penitus
nihil est melius, et quae melior est omnibus quae non sunt quod ipsa est.» Anselmo, Mon. 15 (Schmitt: I,
p.29, 17-21).
14
Vd. nota 9.
7
entes distintos, tal significaria que diferenças essenciais e entitativas não constituiriam
factores de ponderação para a ordem da existência. Daí resultaria, por exemplo, que um
monte de lixo existente na realidade e no intelecto, enquanto conhecido, seria maior do
que uma boa intenção não realizada. O princípio que fundamentasse este juízo seria, ele
próprio, um juízo de valorização unilateral da existência, indiferente à ordem de
perfeição da essência. No entanto, o princípio anselmiano, comparando as duas posições
da existência a respeito da mesma essência e ente, abstendo-se de considerar à mistura
diferenças de carácter essencial e entitativo, pressupõe que a ordem da essência e do
ente pode aduzir factores de ponderação à ordem da existência, como esta também pode
aduzir factores de ponderação àquela. Tal é, aliás, aquilo que ilustra o actual princípio, o
qual comunica à ordem da essência e do ente, factores de ponderação da ordem da
existência, como seja a diferença e ordem entre existência intelectual e existência real.
Com efeito, o princípio anselmiano da ordem da existência intelectual e real não
se deduz da ordem da essência, porquanto o mesmo aplica-se a qualquer essência,
qualquer que seja o seu grau de perfeição. O juízo de maior, que tal princípio contém,
não é determinado pelo grau de perfeição de essência alguma. O princípio em causa não
se justifica, pois, pela ordem da essência. Essência e existência são realmente
inseparáveis, mas não é impertinentemente que se deixam discernir racionalmente entre
si e analisar diferenciadamente. A ordem da existência condiciona a ordem da essência
mediante factores de ponderação, que lhe são próprios, como seja, no caso vertente, a
distinção e relação entre existência intelectual e existência real. Por isso, dizemos que a
existência real do insuperavelmente pensável, no argumento anselmiano, não se deduz
directamente da consideração da perfeição da essência divina, mas sim por mediação do
princípio anselmiano da ordem da existência no intelecto e na realidade.
Este princípio introduz na ordem da existência, a posição de ser no intelecto, o
que significa a integração do pensamento, como factor de ponderação da ordem da
existência. A circunstância de algo ser no intelecto, enquanto pensado, não é uma mera
inexistência, mas é uma forma de existência, comensurável com as demais na ordem da
existência. A própria distinção entre ser no intelecto e ser na realidade é já uma forma
de tornar comensurável o pensado com o real, através da noção comum de ser, que é
permutável com existir. Ser pensado e ser real correspondem, assim, a duas formas de
existência. O princípio anselmiano, que as ordena entre si, não valoriza a existência real
em total detrimento da existência intelectual, antes valoriza a existência real com a
existência intelectual, menorizando esta sem aquela.
É certo que este princípio é uma afirmação do valor da existência real, porquanto
postula que esta existência constitui um acréscimo ao objecto pensado. Neste ponto, o
Doutor Magnífico reconhece que uma coisa real não se identifica completamente com
alguma representação sua, como seja através do pensamento, no que converge com o
Filósofo das Categorias, que considera coisas homónimas, um homem real e um
homem pintado15; e no que diverge do Filósofo da Crítica da Razão Pura, que declara
que cem táleres reais não são mais do que cem táleres pensados. No entanto, o princípio
anselmiano não é uma afirmação do valor unilateral da existência real, porquanto não
compara esta existência à mera inexistência, à qual não reduz tudo o que seja apenas
pensado, no que diverge do que disse o Venerável Inceptor. Por isso, dizemos que tal
princípio não é um princípio de valorização unilateral da existência. Entre Kant e
Guilherme, Anselmo valoriza conjuntamente a existência e o pensamento. Com efeito,
este último, para além de instaurar a existência intelectual, como uma segunda
15
Cf. Aristóteles, Categorias 1 a 1-5.
8
existência do real, também acede ao horizonte de possibilidades racionais, que, em
linguagem anselmiana, se diz ser o que “pode ser pensado” (cogitari potest).
Ora, no horizonte do que pode ser pensado, distinguem-se duas modalidades da
existência: é pensável algo existir de modo que é pensável que não exista e também é
pensável algo existir de modo que é impensável que não exista. À primeira destas duas
modalidades pensáveis da existência, chamamos nós, de forma usual e económica,
“existência contingente”; à segunda, chamamos, de igual forma, “existência necessária”.
Acresce um juízo de ordem da existência, que ordena entre si estas duas modalidades,
postulando a superioridade da existência necessária à existência contingente. Formulado
segundo o primado do ente, ou do existente, este juízo enuncia-se assim: algo pensável
existir de modo que é impensável que não exista é maior do que algo pensável existir de
modo que é pensável que não exista16. Este é o segundo juízo da ordem da existência,
que intervém, no argumento anselmiano, para justificar a inferência da existência
necessária do insuperavelmente pensável: se este fosse algo pensável existir de modo
que fosse pensável não existir, então não seria algo insuperavelmente pensável, pois
seria superável por algo pensável existir de modo que fosse impensável não existir, uma
vez que esta modalidade necessária da existência, cuja negação é impensável, é julgada
superior à modalidade contingente da existência, cuja negação é pensável. A
modalidade da existência, que concorda com algo insuperavelmente pensável, não pode
pois ser senão aquela que é ordenada como maior ou superior, isto é, a existência
absolutamente indefectível, a que chamamos “necessária”. Tal é o juízo da ordem da
existência, que justifica a segunda conclusão de existência do argumento anselmiano:
algo insuperavelmente pensável existe tão necessariamente que nem sequer é pensável
que não exista17.
Tal como o juízo anterior, ordenador da existência real e intelectual, também
este juízo ordenador da existência necessária e contingente é postulado sem ser
questionado; é assumido, de facto, como sendo por si evidente: por isso, também ele
opera verdadeiramente, no argumento anselmiano, como um princípio da ordem da
existência, que justifica a inferência da existência necessária do insuperavelmente
pensável. E, mais ainda que o princípio anterior, este denuncia um vínculo estreitíssimo
com a ordem da essência.
Na verdade, este princípio da ordem da existência pode até ser reduzido a um
corolário da ordem da essência para a ordem da existência, uma vez que qualquer das
duas modalidades da existência não pertence a um ente senão a partir das suas
propriedades essenciais. Qualquer ente com início e fim não pode senão existir de modo
contingente, dado que é pensável não existir, tal como não existe antes do seu início e
após o seu fim18. Existir de modo necessário só poderá então convir a algum ente sem
início e sem fim, como seja algo eterno e imutável. Também qualquer ente composto
não pode senão a existir de modo contingente, dado que é pensável não existir, como
um todo, e em todas as suas partes, tal como umas partes não existem onde e quando
16
Vd. nota 10.
«Sic ergo vere est aliquid quo maius cogitari non potest, ut nec cogitari possit non esse.» Anselmo, Pr.
3 (Schmitt: I, p.103, 1-2).
18
«Quidquid autem potest cogitari esse et non est, per initium potest cogitari esse.» Id., Resp. [1.]
(Schmitt: I, p.131, 3-4); «Procul dubio quidquid alicubi aut aliquando non est: etiam si est alicubi aut
aliquando, potest tamen cogitari numquam et nusquam esse, sicut non est alicubi aut aliquando. Nam
quod heri non fuit et hodie est: sicut heri non fuisse intelligitur, ita numquam esse subintelligi potest. Et
quod hic non est et alibi est: sicut non est hic, ita potest cogitari nusquam esse.» Id., Resp. [1.] (Schmitt: I,
p.131, 18-23).
17
9
existem as outras19. Logo, a existência necessária só poderá convir a algum ente
essencialmente indivisível e simples. Portanto, tal como aos entes essencialmente
mutáveis e compósitos não compete senão o modo contingente de existir, assim também
o modo necessário de existir não pode caber senão a algum ente eterno e simples; e tal
como a essência imutável é superior à mutável, e a simples, superior à composta, assim
também a existência necessária é julgada superior à contingente. Este é, pois, um juízo
da ordem da existência, determinado pela ordem da essência.
Todavia, não é directamente a partir da ordem da essência que Anselmo deduz
as duas conclusões no seu argumento, mas sim mediante os dois princípios da ordem da
existência, que nele operam. Em primeiro lugar, a conclusão da existência real do
insuperavelmente pensável, através da qual o argumento refuta a hipótese do carácter
ficcional de Deus, não se justifica senão pelo princípio que ordena a existência real e a
intelectual, integrando o pensamento como factor de ponderação da ordem da
existência. Em segundo lugar, a conclusão da existência necessária do insuperavelmente
pensável, através da qual o argumento refuta a dubitabilidade de Deus, não só não se
obtém senão com base na conclusão anterior da existência real como não se justifica
sem o princípio que ordena a existência necessária e a contingente, supondo a ordem da
essência como factor de ponderação da ordem da existência.
Quanto ao primeiro ponto, deve dizer-se que a concepção anselmiana da
relação entre essência, ser e ente, à semelhança da unidade real da luz, do luzir e do
luzente, não é razão suficiente para entender o argumento do Proslogion como uma
inferência directa da existência a partir da consideração da essência divina. Com efeito,
a ordem da existência, no argumento, inclui determinações, como as de real, intelectual,
contingente e necessária, que aquela semelhança por si só não permite adivinhar nem
situar.
Quanto ao segundo, deve dizer-se que, por Anselmo ter conseguido obter,
através da perífrase “algo maior do que o qual nada possa ser pensado”, uma concepção
mais apropriada à essência divina do que a relação de supremacia, e de ter identificado
essa perífrase com o seu argumento único, daí não se segue que tenha inferido
directamente a existência a partir da consideração da essência divina através do seu
argumento único, pois este supõe factores de ponderação da ordem da existência que
não se deduzem exclusivamente da consideração da essência divina.
Quanto ao terceiro, deve dizer-se que, pelo facto do primeiro princípio da
ordem da existência, que opera no raciocínio anselmiano, não ser indiferente à ordem da
essência, daí não segue que a conclusão da existência real seja directamente inferida a
partir da consideração da essência divina, uma vez que tal conclusão não se infere sem a
ponderação, na ordem da existência, da existência intelectual, a qual não é uma
perfeição inseparável da essência divina.
Quanto ao quarto, deve dizer-se que, embora o segundo princípio da ordem da
existência, que opera no raciocínio anselmiano, possa ser reduzido a um corolário da
ordem da essência, de modo que a superioridade da existência necessária à existência
contingente seja deduzida da superioridade de atributos essenciais, como a eternidade e
a simplicidade, aos respectivos contrários, daí não se segue que a conclusão da
existência necessária seja directamente inferida a partir da consideração da essência
divina, em conformidade com tais atributos essenciais. De facto, é em razão da
superioridade da existência necessária, não da superioridade de correlativos atributos
divinos, que tal conclusão se obtém.
19
« Similiter cuius partes singulae non sunt, ubi aut quando sunt aliae partes, eius omnes partes et ideo
ipsum totum possunt cogitari numquam et nusquam esse.» Id., Resp. [1.] (Schmitt: I, p.131, 23-25).
10
ARTIGO 2
Se o argumento anselmiano é a priori ou a posteriori
Parece que o argumento anselmiano é a priori.
1. Antes de mais, porque Anselmo manifesta-se insatisfeito, no Proémio do
Proslogion, com as quatro vias a posteriori, que já tinha elaborado no Monologion: a
via da bondade, que parte da consideração de múltiplos bens, maiores ou menores entre
si, para deduzir a necessidade de um bem supremo20; a via da grandeza, que parte da
consideração de múltiplas coisas grandes, também maiores ou menores entre si em
dignidade, para deduzir a necessidade de algo sumamente grande21; a via da existência,
que parte da consideração de múltiplos entes, cuja razão de ser ou causa de existência
não pode residir, em última análise, senão num ente ou existente supremo22; e a via da
perfeição, que parte da consideração de múltiplas naturezas com graus distintos de
perfeição, que não podem senão culminar numa natureza suma e insuperavelmente
perfeita, pois, caso contrário, incorrer-se-ia num processo até ao infinito de busca da
natureza mais perfeita, o que é, tradicionalmente, uma inconveniência racional23. Todas
estas vias partem, assim, de premissas a posteriori, uma vez que cada premissa
considera, sob uma perspectiva distinta, a multiplicidade dos entes que encontramos no
mundo circundante. Todavia, o facto de serem várias vias interdependentes causou
suficiente incómodo intelectual a Anselmo para nele desencadear um esforço de
unificação e de simplificação, que conduziu ao argumento único do Proslogion. Ora,
neste argumento, parte-se, não já de premissas dependentes do conhecimento do mundo,
mas sim de uma ideia de Deus, que não é objecto de experiência sensível. Por isso, a
diferença entre as vias do Monologion e o argumento único do Proslogion é que aquelas
são a posteriori enquanto este é a priori.
2. Além disso, a ideia anselmiana de Deus, dita pelo nome perifrástico “algo
maior do que o qual nada possa ser pensado”, isto é, a ideia de algo insuperavelmente
pensável não é permutável com a ideia de Deus, como ente supremo. Esta ideia não tem
a mesma força de argumento que aquela tem: a ideia de um ente supremo não é
contraditória com a possibilidade de tal ente ser superado por um ente maior, ainda que
não existente; já a ideia de algo insuperavelmente pensável é evidentemente
contraditória com alguma possibilidade de superação por algo maior. Por isso, Anselmo
concentra toda a força do seu argumento único na ideia de algo insuperavelmente
pensável24. Entretanto, a ideia de um ente supremo é um conceito conotativo de Deus,
uma vez que concebe Deus em conjunção com os outros entes, que lhe estão
subordinados; já a ideia de algo insuperavelmente pensável é um conceito puramente
20
Cf. Id., Mon. 1 (Schmitt: I, pp.13-15). A premissa a posteriori é patente: «Cum tam innumerabilia bona
sint, quorum tam multam diversitatem et sensibus corporeis experimur et ratione mentis discernimus:
estne credendum esse unum aliquid, per quod unum sint bona quaecumque bona sunt, an sunt bona alia
per aliud?» Id., Mon. 1 (Schmitt: I, p.14, 5-9).
21
Cf. Id., Mon. 2 (Schmitt: I, p.15).
22
Cf. Id., Mon. 3 (Schmitt: I, pp.15-16).
23
Cf. Id., Mon. 4 (Schmitt: I, pp.16-18). A inconveniência racional do processo até ao infinito é
expressamente assumida: «Cum igitur naturarum aliae aliis negari non possint meliores, nihilominus
persuadet ratio aliquam in eis sic supereminere, ut non habeat se superiorem. Si enim huiusmodi graduum
distinctio sic est infinita, ut nullus ibi sit gradus superior quo superior alius non inveniatur, ad hoc ratio
deducitur, ut ipsarum multitudo naturarum nullo fine claudatur. Hoc autem nemo non putat absurdum,
nisi qui nimis est absurdus.» Id., Mon. 4 (Schmitt: I, p.17, 3-8).
24
Vd. nota 8.
11
negativo: um conceito negativo de supremo por omissão, uma vez que não diz a relação
de supremacia que lhe está subjacente; e um conceito negativo de Deus, uma vez que
não diz aquilo que Deus é, apenas diz aquilo que Deus não tem, a saber, a relação com
algum pensável maior. Ora, se um conceito conotativo de Deus, como o de ente
supremo, não pode ser desprendido do conhecimento daquilo que conota juntamente
com Deus, de modo que não pode ser entendido senão como um conceito a posteriori,
já o conceito duplamente negativo de algo insuperavelmente pensável não se concebe
senão separadamente de qualquer outro pensável, seja menor por omissão seja maior
por contradição, desligando-se de toda a referência possível da experiência e
confinando-se a um conceito a priori. Por isso, o argumento único de Anselmo é a
priori.
3. Além disso, na réplica à crítica de Gaunilo, Anselmo acaba por dispensar a
premissa da experiência de alguém pensar algo insuperavelmente pensável, mesmo que
seja o insipiente a pensar, para inferir da simples pensabilidade de algo
insuperavelmente pensável, a sua existência necessária: se isso é pensável, então existe
necessariamente25. Ora, a substituição de uma experiência de pensar algo pela
possibilidade de pensá-lo é uma apriorização da premissa e, portanto, do argumento.
4. Além disso, o conceito de existência necessária, cuja negação é impensável,
não é cognoscível a posteriori, porque a experiência só nos dá conhecimento de coisas
que existem contingentemente, cuja inexistência é pensável. Dos dois conceitos modais
de existência, só o conceito de existência necessária é consistente com o conceito de
algo insuperavelmente pensável, à luz do princípio de superioridade da existência
necessária à existência contingente26. E só o conceito de algo insuperavelmente
pensável, na condição de ser algo supra-espácio-temporal, é consistente com o conceito
de existência necessária27. Tanto o conceito de algo insuperavelmente pensável quanto o
conceito de existência necessária excedem completamente o enquadramento da
experiência e da imaginação. Ora, o argumento anselmiano mais não faz do que trazer à
evidência a consistência entre os dois conceitos; por isso, é um argumento a priori.
Mas contra isto:
25
«Certe ego dico: si vel cogitari potest esse, necesse est illud esse.» Id., Resp. [1.] (Schmitt: I, p.131, 12); «Si utique vel cogitari potest, necesse est illud esse. Nullus enim negans aut dubitans esse aliquid quo
maius cogitari non possit, negat vel dubitat quia si esset, nec actu nec intellectu posset non esse. Aliter
namque non esset quo maius cogitari non posset. Sed quidquid cogitari potest et non est: si esset, posset
vel actu vel intellectu non esse. Quare si vel cogitari potest, non potest non esse ‘quo maius cogitari
nequit’. Sed ponamus non esse, si vel cogitari valet. At quidquid cogitari potest et non est: si esset, non
esset ‘quo maius cogitari non possit’. Si ergo esset ‘quo maius cogitari non possit’, non esset quo maius
cogitari non possit; quod nimis est absurdum. Falsum est igitur non esse aliquid quo maius cogitari non
possit, si vel cogitari potest.» Id., Resp. [1.] (Schmitt: I, p.131, 6-16).
26
«Nam potest cogitari esse aliquid, quod non possit cogitari non esse; quod maius est quam quod non
esse cogitari potest. Quare si id quo maius nequit cogitari, potest cogitari non esse: id ipsum quo maius
cogitari nequit, non est id quo maius cogitari nequit; quod convenire non potest.» Id., Pr. 3 (Schmitt: I,
p.102, 6-10).
27
«Procul dubio quidquid alicubi aut aliquando non est: etiam si est alicubi aut aliquando, potest tamen
cogitari numquam et nusquam esse, sicut non est alicubi aut aliquando. Nam quod heri non fuit et hodie
est: sicut heri non fuisse intelligitur, ita numquam esse subintelligi potest. Et quod hic non est et alibi est:
sicut non est hic, ita potest cogitari nusquam esse. Similiter cuius partes singulae non sunt, ubi aut quando
sunt aliae partes, eius omnes partes et ideo ipsum totum possunt cogitari numquam et nusquam esse. […].
Quare quidquid alicubi aut aliquando totum non est: etiam si est, potest cogitari non esse. At ‘quo maius
nequit cogitari’: si est, non potest cogitari non esse. Alioquin si est, non est quo maius cogitari non possit;
quod non convenit.» Id., Resp. [1.] (Schmitt: I, p.131, 18-25; 31-33; p.132, 1).
12
Agostinho disse que um dos erros possíveis acerca de Deus é concebê-lo à
semelhança daquilo que não se conhece28. E o que é que nós podemos conhecer sem
experiência? Nem o mundo nem nós próprios. Deus deve, pois, ser concebido com base
no conhecimento a posteriori, que podemos ter do mundo e de nós próprios.
João Duns Escoto disse que entendemos o infinito através do finito29. Não
conhecemos, pois, o infinito a priori. Ora, o conceito anselmiano de algo
insuperavelmente pensável é um conceito de infinito30, pelo que não pode ser um
conceito puramente a priori.
Guilherme de Ockham disse que tal como podemos conhecer as substâncias
sensíveis em conceitos comuns, assim também podemos conhecer Deus em conceitos
comuns31. Ora, conhecer Deus em conceitos comuns é concebê-lo conotativamente, isto
é, juntamente com outras realidades. Se não podemos conceber Deus sem o
conhecimento de outras realidades, não podemos formar acerca dele um conceito
puramente a priori.
Respondo dizendo que o artigo em análise não é uma questão que se tenha
colocado ao autor do argumento do Proslogion. Anselmo não dá testemunho de querer
obter um argumento a priori; dá conta, sim, de pretender um argumento único, que
superasse a pluralidade das vias interdependentes do Monologion. Há, sem dúvida, um
esforço de unificação e de simplificação da argumentação a favor da existência de Deus,
na passagem do Monologion para o Proslogion, mas isso não corresponde forçosamente
a um processo de apriorização. Anselmo aparece-nos completamente indiferente à
questão do apriorismo na busca do seu argumento único, quer se trate da questão
escolástica de saber se a existência de Deus é por si evidente (per se nota) quer se trate
da questão decorrente da distinção kantiana entre argumentos a priori e a posteriori.
Alguns escolásticos, como Tomás de Aquino e Boaventura, reduzem o argumento
anselmiano a uma formulação em defesa da existência de Deus, como sendo por si
evidente: Tomás de Aquino, para o rejeitar32; Boaventura, para o acolher33. Resistindo e
sobrevivendo a este modo de redução, o argumento anselmiano é hoje amplamente
reconhecido como um raciocínio mediado por passos e por razões justificativas. Será
que o mesmo também resiste a uma outra redução, a que tem vindo a ser sujeito nos
séculos mais recentes: a de exemplificar a acepção kantiana de prova a priori34? A
nosso ver, sim. Vejamos como.
28
Cf. Agostinho, De Trinitate I, 1,1.
«Infinitum intelligimus per finitum» João Duns Escoto, Ordinatio. I, d.2, p.1, q.1, n.132 (Ioannis Duns
Scoti Opera Omnia II, Civitas Vaticana, 1950, p.207, 7); «infinitum intelligimus per finitum» Id.,
Tractatus de Primo Principio (TPP), c.4, n.78 (Ed. Kluxen, BAC 503, Madrid, 1989, p.150).
30
Com efeito, o argumento anselmiano é integrado por Escoto na sua via da eminência a favor da
infinitude divina. Aquele é, pois, na interpretação escotista, um argumento a favor da existência de Deus
como ente infinito: cf. Id., Ord. I, d.2, p.1, q.1, nn.137-138 (Ed. Vat. II, pp.208-210); Id., TPP, c.4, n.79
(BAC 503, p.152).
31
«Secundum patet, quia sicut creatura potest cognosci in conceptu aliquo communi simplici, ita potest
Deus, quia aliter nullo modo esset a nobis cognoscibilis.» Guilherme de Ockham, Ordinatio I, d.3, q.2
(Ed. de Stephanus Brown e Gedeone Gál, in Guillelmi de Ockham Opera Theologica II, St. Bonaventure,
N. Y., 1970, p..403, 17-19). A conjunção de múltiplos conceitos comuns é que pode produzir um conceito
composto, que é o nosso conceito possível e próprio de Deus: cf. Id., Ord. I, d.3, q.2 (Brown e Gál: p.403,
19-24; p.404, 1-24).
32
Cf. Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles I, 10-11; Summa Theologiae I, q.2, a.1.
33
Cf. Boaventura, Commentarium in primum librum Sententiarum, d.8, p.1, a.1, q.2; Quaestiones
disputatae de mysterio Trinitatis, q.1, a.1; Itinerarium mentis in Deum 5; Collationes in Hexaemeron,
coll.10.
34
Cf. Kant, KrV B 618-619.
29
13
Antes de mais, reconsidere-se a ideia anselmiana de Deus, como algo
insuperavelmente pensável: tratar-se-á mesmo de um conceito a priori? Não, atendendo
ao processo da sua formação. Desde logo, nas vias do Monologion, o conceito de
insuperável está tão estreitamente associado ao conceito de supremo que aparece como
uma consequência imediata da relação de supremacia: o bem ou a natureza suprema é
de tal modo suprema que é insuperável35. Ora, supremo é um conceito conotativo de
Deus com os demais entes, que não pode, por isso, ignorar o conhecimento destes. Esta
condição conotativa não pode deixar de afectar também o conceito consequente de
insuperável. Portanto, nem supremo nem insuperável podem ser conceitos puramente a
priori de Deus. Em Monologion 15, porém, Anselmo reconhece a relatividade de
supremo e demite-o do domínio selecto dos atributos divinos. Em consequência disso,
os conceitos de supremo e de insuperável não só se tornam separáveis entre si como se
inverte a ordem de prioridades entre eles, de modo que supremo cede a sua primitiva
prioridade a insuperável: a essência divina é insuperável, porquanto é tudo aquilo que é
absolutamente melhor ser do que não ser, e só relativamente se pode dizer que é
suprema36. No entanto, Anselmo não consegue ainda substituir supremo por insuperável
na composição dos nomes divinos do Monologion. Tal só acontece verdadeiramente no
argumento único do Proslogion. Essa substituição era necessária ao processo de
apuramento do conceito anselmiano de Deus, tornando-o menos relativo e mais
confinado à essência divina. De facto, o conceito de essência suprema, dominante no
Monologion, dá lugar ao conceito de algo insuperavelmente pensável, estruturante no
raciocínio de Proslogion 2-3. Este é, como vimos, um conceito duplamente negativo,
uma vez que nega por omissão a relação de supremacia com os demais pensáveis e nega
expressamente a relação de subordinação a algum pensável maior. Mas a negação de
tais relações não é uma apriorização. Qualquer conceito negativo é derivado de algum
conceito afirmativo, pelo que nunca se esvazia totalmente do conhecimento suposto
pelo conceito afirmativo donde procede. Também o conceito duplamente negativo de
algo insuperavelmente pensável não se esvazia totalmente do conhecimento suposto no
género de relações que nega, para poder ser compreendido, pelo que não pode ser
concebido puramente a priori.
Mais: Anselmo, na sua réplica à crítica de Gaunilo, também esclarece como é
pensável algo insuperavelmente pensável e, de acordo com a sua descrição, não é a
priori. Gaunilo é um crente, que é céptico em teologia racional, negando que Deus,
mesmo na acepção anselmiana de algo insuperavelmente pensável, seja racionalmente
acessível ou sequer conjecturável a partir de algum género ou espécie conhecida, porque
nada de semelhante a Ele é por nós conhecido37. Anselmo contrapõe que há fundamento
no nosso domínio de conhecimento para conjecturar acerca daquilo que é
insuperavelmente pensável. Como? Repescando o domínio amplo das coisas que
reputamos como boas, e que já tinha servido de ponto de partida para a primeira via do
35
«Id enim summum est, quod sic supereminet aliis, ut nec par habeat nec praestantius.» Anselmo, Mon.
1 (Schmitt: I, p.15, 9-10); «Est igitur ex necessitate aliqua natura, quae sic est alicui vel aliquibus
superior, ut nulla sit cui ordinetur inferior.» Id., Mon. 4 (Schmitt: I, p.17, 8-10); «Restat igitur unam et
solam aliquam naturam esse, quae sic est aliis superior, ut nullo sit inferior.» Id., Mon. 4 (Schmitt: I, p.17,
24-25).
36
«Illa enim sola est qua penitus nihil est melius, et quae melior est omnibus quae non sunt quod ipsa
est.» Id., Mon. 15 (Schmitt: I, p.29, 20-21).
37
«Huc accedit illud quod praetaxatum est superius, quia scilicet illud omnibus quae cogitari possunt
maius, quod nihil aliud posse esse dicitur quam ipse Deus, tam ego secundum rem vel ex specie mihi vel
ex genere notam, cogitare auditum vel in intellectu habere non possum, quam nec ipsum Deum, quem
utique ob hoc ipsum etiam non esse cogitare possum.» Gaunilo, Quid ad haec respondeat quidam pro
insipiente (Pro ins.) [4.] (Schmitt: I, p.126, 29-31; p.127, 1-2).
14
Monologion. Entre os bens que conhecemos, os bens menores são semelhantes aos
maiores, enquanto são bens, de modo que é possível progredir a partir dos bens
superáveis até ao bem insuperável: tal como um bem com início e fim é racionalmente
superável por outro com início, mas sem fim, assim também este é igualmente superável
por algum bem perpétuo, sem início nem fim no tempo; e também este é ainda
racionalmente superável algum bem que seja completamente imutável e eterno: se este
não for superável por outro, nele encontramos o conceito de bem supremo e
insuperável, que mais se aproxima do conceito de algo insuperavelmente pensável38.
Assim somos convidados a retomar o conceito anselmiano de bem supremo e
insuperável, da primeira via do Monologion, a fim de encontrarmos um caminho
racional para pensar algo insuperavelmente pensável. Deste modo, Anselmo confirma
que o conceito de algo insuperavelmente pensável não pode ignorar o conceito de bem
supremo e insuperável, do qual procede, e que não é um conceito puramente a priori.
Também as razões justificativas, que medeiam o raciocínio de Proslogion 2-3, e
que são princípios da ordem da existência, muito dificilmente podem ser consideradas a
priori. Desde logo, porque se trata de juízos de valor sobre a existência, e a existência
não é um dado de conhecimento a priori39. Em especial, o princípio que opera em
Proslogion 2, e que postula que qualquer pensada e real é maior do que a mesma apenas
pensada, só pode ter sido um juízo induzido a partir da experiência, pois não é senão no
mundo da experiência que as coisas reais valem mais do que só os respectivos
conceitos, ou porque as coisas nos são mais úteis do que os conceitos apenas, ou porque
elas nos opõem a resistência de uma irredutível independência. Assim, é inteiramente
conforme com o senso comum, ou com o bom senso informado pela experiência, o
princípio anselmiano da ordem da existência, que justifica a consistência da existência
real com o conceito de algo insuperavelmente pensável.
Já o princípio anselmiano da ordem da existência, expresso em Proslogion 3,
que justifica a consistência da existência necessária com o conceito de algo
insuperavelmente pensável, postulando que a existência necessária é maior do que a
contingente, elege uma modalidade da existência, que não é um dado de conhecimento
a posteriori. Todavia, não é senão através da existência contingente que Anselmo nos
convida a conceber a existência necessária, tal como não é senão através do
conhecimento das coisas no mundo que se esclarece o próprio conceito anselmiano de
existência contingente. Esta é a modalidade da existência, que se caracteriza pela
possibilidade de ser negada. Ora, esta possibilidade é concordante com os limites das
coisas espácio-temporalmente circunscritas e compostas, que conhecemos na
experiência: algo circunscrito no espaço, tal como não existe noutros lugares, é pensável
nenhures existir; algo circunscrito no tempo, como o eu por exemplo40, tal como não
38
Quoniam namque omne minus bonum in tantum est simile maiori bono inquantum est bonum, patet
cuilibet rationali menti, quia de bonis minoribus ad maiora conscendendo ex iis quibus aliquid maius
cogitari potest, multum possumus conicere illud quo nihil potest maius cogitari. Quis enim verbi gratia
vel hoc cogitare non potest, etiam si non credat in re esse quod cogitat, scilicet si bonum est aliquid quod
initium et finem habet, multo melius esse bonum, quod licet incipiat non tamen desinit; et sicut istud illo
melius est, ita isto esse melius illud quod nec finem habet nec initium, etiam si semper de praeterito per
praesens transeat ad futurum; et sive sit in re aliquid huiusmodi sive non sit, valde tamen eo melius esse
id quod nullo modo indiget vel cogitur mutari vel moveri? An hoc cogitari non potest, aut aliquid hoc
maius cogitari potest? Aut non est hoc ex iis quibus maius cogitari valet, conicere id quo maius cogitari
nequit? Est igitur unde possit conici ‘quo maius cogitari nequeat’.» Anselmo, Resp. [8.] (Schmitt: I, 137,
14-28).
39
Cf. Kant, KrV B 629.
40
«Scito igitur quia potes cogitare te non esse, quamdiu esse certissime scis; quod te miror dixisse nescire.
Multa namque cogitamus non esse quae scimus esse, et multa esse quae non esse scimus; non
existimando, sed fingendo ita esse ut cogitamus.» Anselmo, Resp. [4.] (Schmitt: I, p.134, 7-10).
15
existe noutros tempos, é pensável nunca existir; um composto, tal umas partes não
existem onde e quando existem as outras, é pensável nenhures e nunca existir, quer na
soma das as suas partes quer na unidade do seu todo. O próprio mundo é um composto,
e tal como umas partes não existem onde existem as outras, todas são pensáveis
nenhures existirem, e o próprio mundo, na unidade do seu todo, é pensável não existir41.
O próprio tempo é um composto, e tal como umas partes não existem quando existem as
outras, todas são pensáveis nunca existirem, e o próprio tempo, como um todo, é
pensável não existir42. O mundo e o tempo não existem, pois, senão com uma existência
contingente, cuja negação é pensável. É preciso, pois, superar a defectibilidade da
existência do mundo e do tempo para conceber a indefectibilidade da existência
necessária. Com efeito, esta é a modalidade da existência, que se caracteriza pela
impossibilidade de ser negada, ao contrário da existência contingente. O conceito de
existência necessária define-se, assim, por contrariedade face ao conceito de existência
contingente, de modo que não é totalmente separável deste, nem pode ser
completamente esvaziado do conhecimento da realidade espácio-temporal, que informa
o conceito de existência contingente. Por isso, o conceito anselmiano de existência
necessária não é um conceito puramente a priori.
Em suma, o argumento anselmiano não é um argumento a priori, porque nem o
conceito anselmiano de Deus, como algo insuperavelmente pensável, é um conceito
puramente a priori, nem os princípios da ordem da existência, que medeiam, como
razões justificativas, o raciocínio de Proslogion 2-3, podem ser reduzidos a juízos
puramente a priori.
Quanto ao primeiro ponto, deve dizer-se que o processo de unificação e de
simplificação das vias do Monologion, que deu origem ao argumento único do
Proslogion, não corresponde de facto a uma substituição de várias vias a posteriori por
uma só via a priori. Por um lado, a unificação foi possível graças ao conceito
amplíssimo de pensável (quod cogitari potest), que inclui na sua compreensão os
conceitos de bom, de grande, de ente e de natureza, que diversificavam as vias do
Monologion. É certo que o argumento do Proslogion já não parte de uma consideração
da pluralidade dos pensáveis, mas parte de um conceito de Deus, como
insuperavelmente pensável, que não se concebe nem se distingue senão no domínio e na
ordem do pensável. Por outro lado, a simplificação deu-se através da redução do
número de premissas e de razões justificativas das inferências que compõem as vias. As
quatro vias do Monologion, para além da variedade das premissas respectivas,
dependem, pelo menos, de cinco princípios metafísicos, que operam como razões
justificativas de passos constituintes dos raciocínios: – a) o princípio da co-integração
do uno e múltiplo através da relação por algo (per aliquid), segundo o qual múltiplas
coisas boas não podem ser mais ou menos boas entre si senão por algo uno e bom, pelo
qual são todas boas (1ª via)43, ou múltiplas coisas grandes não podem ser maiores ou
menores entre si senão por algo uno e grande, pelo qual são todas grandes (2ª via); – b)
41
«Et singulae mundi partes, sicut non sunt, ubi aliae sunt, ita subintelligi possunt nusquam esse. Sed et
quod partibus coniunctum est, cogitatione dissolvi et non esse potest. Quare quidquid alicubi aut
aliquando totum non est: etiam si est, potest cogitari non esse.» Id., Resp. [4.] (Schmitt: I, p.131, 28-32).
42
«Et sicut singulae partes temporis non sunt quando aliae sunt, ita possunt numquam esse cogitari.
[…].Quare quidquid alicubi aut aliquando totum non est: etiam si est, potest cogitari non esse.» Id., Resp.
[4.] (Schmitt: I, p.131, 27-28; 31-32).
43
«Certissimum quidem et omnibus est volentibus advertere perspicuum quia, quaecumque dicuntur
aliquid ita, ut ad invicem magis vel minus vel aequaliter dicantur: per aliquid dicuntur, quod non aliud et
aliud sed idem intelligitur in diversis, sive in illis aequaliter sive inaequaliter consideretur.» Id., Mon. 1
(Schmitt: I, p. 14, 9-13).
16
o princípio de ordem dos termos da relação por algo, estabelecendo que aquilo que é por
algo é menor do que aquilo pelo qual é, à luz do qual se depreende a supremacia de
Deus, como bem pelo qual são todos os bens (1ª via), como grandeza pela qual são
todas as coisas grandes (2ª via), ou como ente pelo qual existem todos o entes (3ª via)44;
– c) o princípio da disposição relacional do ser segundo a relação por algo, que
estabelece que tudo aquilo que é, é por algo, ou seja, tem razão de ser ou causa de
existência, e que basta para eliminar desde logo a hipótese de algo ser por nada (3ª
via)45; – d) o princípio de assimetria da relação por algo, que inviabiliza a hipótese de
uma pluralidade primordial de entes que existam simetricamente uns pelos outros (3ª
via)46; – e) e ainda o princípio de finitude da ordem de perfeição das naturezas, que
obriga a parar a busca da perfeição em alguma natureza que seja suma e
insuperavelmente perfeita (4ª via)47. O concurso de todos estes princípios nas vias do
Monologion é revelador da complexidade que Anselmo pretendia ultrapassar no
Proslogion. De facto, a compreensão da via única do Proslogion já só requer três
elementos: o conceito de algo insuperavelmente pensável e os dois princípios da ordem
da existência, oportunamente discriminados e comentados acima, mas nenhum destes
elementos é um pensável puramente a priori.
Quanto ao segundo, deve dizer-se que, sendo certo que o conceito de algo
insuperavelmente pensável não deve ser confundido com o conceito conotativo de ente
supremo, a verdade é que conceitos conotativos, como o de ente supremo ou o de bem
supremo, são conceitos muito próximos daquele, e é com base neles que o próprio
Anselmo nos conduz a pensar aquele, como vimos. Por conseguinte, o conceito de algo
insuperavelmente pensável não pode ser completamente esvaziado da informação
contida nos conceitos conotativos que o precedem na sua concepção. Para mais, sendo
certo que tal conceito é puramente negativo, a fim de superar a relatividade dos
conceitos conotativos, a verdade é que nenhum conceito negativo se compreende sem a
consideração daquilo que nega, de modo que também não o conceito anselmiano de
algo insuperavelmente pensável.
Quanto ao terceiro, deve dizer-se que é verdade que Anselmo, na réplica a
Gaunilo, infere da simples pensabilidade de algo insuperavelmente pensável, a sua
existência necessária. Anselmo substituiu, de facto, a circunstância de alguém, como o
insipiente, pensar o conceito, pela simples possibilidade racional do conceito, e, deste
modo, firmou a premissa, incondicionando-a pela circunstância de alguém pensar
actualmente o conceito. Mas a simples possibilidade racional do conceito não determina
que o conceito seja a priori, apenas implica que o mesmo não é em si contraditório.
Quanto ao quarto, é verdade que o conceito de algo insuperavelmente pensável
tem de ser referido a algo supra-espácio-temporal, para ser consistente com o conceito
de existência necessária, mas daí não se segue que tanto aquele conceito como o próprio
conceito de existência necessária sejam conceitos puramente a priori, como vimos ao
longo da resposta.
44
«At nullum bonum, quod per aliud est, aequale aut maius est eo bono, quod per se est bono.» Id., Mon.
1 (Schmitt: I, p. 15, 7-8); «At quidquid est per aliud, minus est quam illud per quod cuncta sunt alia, et
quod solum est per se.» Id., Mon. 3 (Schmitt: I, p.16, 20-21).
45
«Omne namque quod est, aut est per aliquid aut per nihil. Sed nihil per nihil est. Non enim vel cogitari
potest, ut sit aliquid non per aliquid. Quidquid est igitur, non nisi per aliquid est.» Id., Mon. 3 (Schmitt: I,
p.15, 29-30; p.16, 1).
46
«Ut vero plura per se invicem sint, nulla patitur ratio, quoniam irrationabilis cogitatio est, ut aliqua res
sit per illud, cui dat esse.» Id., Mon. 3 (Schmitt: I, p.16, 10-12).
47
Vd. nota 23.
17
ARTIGO 3
Se o argumento anselmiano impede a construção de outro argumento estruturalmente
idêntico a favor da existência real e necessária de algum mal insuperavelmente pensável
Parece que o argumento anselmiano não impede a construção de outro
argumento estruturalmente idêntico a favor da existência real e necessária de algum mal
insuperavelmente pensável48.
1. Antes de mais, porque tal como no domínio dos bens, ou dos entes, é pensável
algo insuperavelmente pensável, assim também no domínio dos males, não podendo nós
percorrer um caminho infinito na busca de males maiores, é pensável algum mal
insuperavelmente pensável, de modo que não seja menor do que algum outro e seja
maior do que todos os outros males pensáveis.
2. Além disso, um mal insuperavelmente pensável não pode ser uma ficção da
mente. Se fosse uma ficção da mente, só existiria na mente. Mas se só existisse na
mente, seria pensável que existisse também na realidade, o que é maior. Com efeito,
aquilo que existe na mente e na realidade é maior do que isso mesmo existindo só na
mente. Por exemplo, um mal em intenção e na acção é maior do que o mesmo só em
intenção. Por conseguinte, se um mal insuperavelmente pensável existisse só na mente,
não seria um mal insuperavelmente pensável, o que é uma contradição. Um mal
insuperavelmente pensável existe, pois, não só na mente mas também realmente.
3. Além disso, um mal insuperavelmente pensável existe tão necessariamente
que nem sequer é possível duvidar da sua existência. Na verdade, é pensável que algo
exista de modo que é impensável que não exista, o que é maior do que algo que exista
de modo que a sua inexistência é pensável. Assim também um mal cuja inexistência é
impensável é um mal maior do que outro, cuja inexistência é pensável. Como a
inexistência de algo é pensável através de um início ou de um fim, um mal cuja
inexistência é pensável é um mal que começa ou que acaba. Ao contrário, um mal, cuja
inexistência é impensável, não pode começar nem acabar. Um mal que não começa nem
acaba é decerto maior do que um mal que ou começa ou acaba. Por conseguinte, se um
mal insuperavelmente pensável existisse de modo que seria pensável não existir, não
seria um mal insuperavelmente pensável, o que é uma contradição. Um mal
insuperavelmente pensável existe, pois, tão necessariamente que não é sequer dubitável.
48
O “argumento demonológico”, como lhe chamou Michael Tooley, no âmbito do seu debate com Alvin
Plantinga em torno do argumento anselmiano: «If, for example, we use the expressions ‘the Devil’ and
‘maximaly evil’ in such a way that it is analytically true that x is the Devil if and only if x is omnipotent,
omniscient, and perfectly evil, and that x is maximally evil if and only if x exists in every possible world,
and is omnipotent, omniscient, and perfectly evil in every world, we can construct a precisely parallel
argument to show that the Devil necessarily exists. And from this it follows that God does not exist. For
even if it is not logically impossible, as some have contended, for there to be two distinct, co-existing
beings, both of whom are omnipotent, it is impossible for there to be two distinct, omnipotent, co-existent
beings which are such that it is not necessarily the case that their wills coincide. And this will certainly be
so if one being is perfectly good, and the other perfectly evil. – Not surprisingly, Plantinga prefers the
ontological argument to the demonological one. But as he offers no argument in support of this
preference, it is difficult not to view it as logically arbitrary.» Michael Tooley, “Plantinga’s Defense of
Ontological Argument”, Mind, Vol. XC (Julho 1981) nº 359, p.425. – Um argumento similar noutro
artigo da mesma época, mas paralelo apenas ao raciocínio de Proslogion 2: «But, counters the Fool, does
not this method of proof generalize to so many áreas that its validity becomes dubious? For he can also
say in his heart: There is no being than which no more evil can be conceived. So there is, if only in his
mind, something than which no more evil can be conceived. But something more evil than it could be
conceived, if it existed only in his mind, namely something as evil, but also really existing. So that than
which no more evil can be conceived does not exist only in the mind of the Fool, but also in reality. This
Satan, that than which no more evil can be conceived, really exists.» Stephen Read, “Reflections on
Anselm and Gaunilo”, International Philosophical Quarterly, Vol. XXI (Dezembro 1981) nº 4, p.437.
18
4. Além disso, um mal insuperavelmente pensável não é algo insuperavelmente
pensável no âmbito de determinado género ou espécie, como é o caso da ilha perdida de
Gaunilo. Este e qualquer outro exemplo análogo permitem caricaturar o argumento
anselmiano, mas não conseguem satisfazer a condição da existência necessária.
Qualquer coisa insuperavelmente perfeita no seu género não pode existir senão
contingentemente, de modo que a sua inexistência seja pensável, através da sua
divisibilidade e dos seus limites espácio-temporais. Já um mal insuperavelmente
pensável não só não cabe num género determinado como se opõe diametralmente a um
bem insuperavelmente pensável, que coincide com o conceito anselmiano de Deus,
como algo insuperavelmente pensável na ordem da essência ou do bem. Tal como o
conceito anselmiano de Deus é pensável num processo que parte de bens menores em
busca de bens maiores, assim também o conceito de um mal insuperavelmente pensável
se forma num processo que parte de males menores em direcção a males maiores. E tal
como o conceito anselmiano de Deus não é consistente senão com a existência real e
necessária, à luz dos princípios da ordem da existência, que intervêm no argumento do
Proslogion, assim também o conceito de um mal insuperavelmente pensável não é
consistente senão com a existência real e necessária, em razão dos mesmos princípios.
E, ainda, tal como o conceito anselmiano de Deus tem de ser referido a algo supraespácio-temporal, para ser concebido com a existência necessária que lhe compete,
assim também o conceito oposto de um mal insuperavelmente pensável terá de ser algo
supra-espácio-temporal, para existir necessariamente, de modo que a sua inexistência
seja impensável. Mas algo supra-espácio-temporal, que existe necessariamente, é mais
omnipresente do que o mundo e o tempo, porque nenhum destes está todo
indivisivelmente presente em qualquer das suas partes, de modo que é pensável a
inexistência do mundo todo em qualquer das suas partes ou a inexistência da totalidade
do tempo também em qualquer das suas partes49. Só o atributo de uma indefectível
omnipresença é verdadeiramente consistente com a modalidade necessária da
existência, aquela cuja negação é impensável, o que é uma maneira de dizer também a
sua indefectibilidade. Por conseguinte, o argumento anselmiano não só deduz a
existência necessária de um omnipresente bem insuperavelmente pensável como não
impede igual dedução da existência necessária de um omnipresente mal
insuperavelmente pensável. Assim é possível concluir racionalmente a existência
necessária de dois absolutos omnipresentes, mas opostos entre si.
Mas contra isto, perfilam-se os argumentos tradicionais contra o dualismo, visto
que o combate anti-dualista emerge como uma das tendências dominantes da história do
pensamento ocidental. Os exemplos seguintes ilustram esta tendência.
O próprio Anselmo, cujo pensamento não é dualista, permite construir um
argumento anti-dualista, com base em elementos da terceira via do Monologion e da via
única do Proslogion. Se dois absolutos contrários existissem necessariamente, ambos
teriam em comum a força de existir necessariamente. Donde lhes viria esta força
comum? Ou de algo extrínseco, pelo qual ambos existissem necessariamente, ou
reciprocamente um do outro, de modo que cada um dos dois absolutos não existiria
necessariamente senão pelo outro. Se ambos existissem necessariamente por algo
extrínseco, então nenhum dos dois seria algo insuperavelmente pensável, mas qualquer
dos dois seria um pensável superável pela causa extrínseca da comum existência
necessária, o que é uma contradição. Ou o que é o mesmo: ambos não seriam absolutos
mas relativos. Se ambos existissem necessariamente um pelo outro, cada um seria a
49
Vd. notas 41 e 42.
19
causa da existência necessária do outro, o que é impossível, à luz do princípio de
assimetria da relação por algo, segundo o qual nenhum efeito pode causar a sua causa
ou nenhuma causa pode ser causada pelo seu efeito50. Portanto, se dois absolutos
contrários existissem necessariamente, ficaria por explicar racionalmente a comum
existência necessária.
João Duns Escoto, pensador do primeiro princípio, empenha-se explicitamente
em salvaguardar a unicidade do primeiro princípio, argumentando contra o dualismo.
Também a propósito da existência necessária, o Doutor Subtil fornece-nos o seguinte
argumento: se dois primeiros princípios existissem necessariamente, ambos cairiam sob
um género comum, o das coisas que existem necessariamente; mas as espécies que
caem sob um mesmo género não têm o mesmo grau de perfeição, pelo que dois
primeiros princípios pertencentes ao género dos necessariamente existentes não
existiriam com o mesmo grau de necessidade, mas um existiria mais necessariamente do
que o outro. Portanto, se dois princípios existissem necessariamente, não existiriam
ambos de modo igualmente necessário51.
Entretanto, Tomás de Aquino, ao inferir a unicidade de Deus, da sua infinita
perfeição, também formula a hipótese de haver mais do que um Deus: se houvesse dois
deuses, eles teriam de ser diferentes entre si, caso em que alguma propriedade conviria a
um e não ao outro, o que é uma privação. Os dois deuses diferenciar-se-iam um do
outro por uma privação, pelo que não seriam ambos igualmente perfeitos, mas um seria
mais perfeito do que o outro. Portanto, não poderiam existir dois deuses com o mesmo
grau sumo de perfeição52.
Já no âmbito dos primeiros esforços de autodilucidação racional do cristianismo,
Justino argumenta a favor da unicidade do incriado, acusando a dificuldade de explicar
racionalmente a diferença entre dois incriados: se a explicação obriga a encontrar uma
causa substancial para a diferença, então incorrer-se-ia num processo infinito de busca
de causas para as diferenças, começando pela causa da diferença entre os dois incriados,
passando para as causas das diferenças entre a causa descoberta e cada um dos
incriados, e assim sucessivamente53. A diferença requer explicação, pelo que não pode
ser originária. O único, não. Esta terá sido a orientação de fundo dos antigos filósofos
gregos, que conceberam a origem das coisas a partir de um princípio único, em vez de
vários, como Tomás de Aquino também o reconhece54.
Aos argumentos em defesa do monoteísmo, acrescem ainda as soluções clássicas
do problema do mal, que não permitem equiparar o mal ao seu contrário, uma vez que
lhe negam o estatuto de substância ou de causa e o reduzem a efeito ou estado: seja
como ignorância (Platão); seja como desordem da alma, oposta ao equilíbrio da virtude
(Aristóteles), constituída pelo domínio da paixão sobre a razão (estoicismo), e
consentida pelo livre arbítrio (Agostinho); seja como efeito de causas múltiplas, em
oposição ao efeito procedente de causa única, o Uno ou o Bem (Pseudo-Dionísio); seja
50
Vd. nota 46.
«Duae naturae sub eodem communi non habent gradum aequalem. Probatur per differentias dividentes
genus; si sunt inaequales, ergo et esse unius erit perfectius esse alterius; nullum esse perfectius ipso
necesse esse ex se.» João Duns Escoto, Tractatus de Primo Principio, c.3, n.35 (BAC 503, p.88).
52
«Si ergo essent plures dii, oporteret eos differre. Aliquid ergo conveniret uni, quod non alteri. Et si hoc
esset privatio, non esset simpliciter perfectus: si autem hoc esse perfectio, alteri eorum deesset.
Impossibile est ergo esse plures Deos.» Tomás de Aquino, Summa Theologiae I, q.11, a.3, resp. (BAC
77, Madrid, 1978, p.68).
53
Cf. Justino de Roma, Diálogo com Trifão 5 (BAC 116, Madrid, 1954, p.312).
54
«Unde et antiqui philosophi, quasi ab ipsa coacti veritate, ponentes principium infinitum, posuerunt
unum tantum principium.» Tomás de Aquino, Summa Theologiae I, q.11, a.3, resp. (BAC 77, p.68).
51
20
como falha de perseverança no desejo natural de justiça (Anselmo) ou como erro na
escolha do caminho para a felicidade (Tomás de Aquino); etc.
Em suma, contra a concepção de dois absolutos contrários e omnipresentes, o
bem e o mal insuperavelmente pensáveis, militam quer os argumentos a favor do
monoteísmo quer as soluções clássicas do problema do mal, que reduzem o mal a um
contrário diminuto do bem.
Respondo dizendo que o argumento anselmiano não impede de facto a
construção de outro argumento estruturalmente idêntico a favor da existência real e
necessária de algum mal insuperavelmente pensável. Este argumento do mal costuma
ser usado para refutar o argumento anselmiano. A nosso ver, porém, não é esse o
verdadeiro alcance do argumento do mal. Este duplo ao contrário do argumento
anselmiano, que a filosofia contemporânea inventou, pareceu-nos, numa primeira
abordagem, ser uma montagem provocatória, feita com alguma perversão e ligeireza, a
respeito de uma peça antológica da tradição filosófica ocidental. Mas, atentando bem, o
caso é sério. O argumento anselmiano parte de uma noção de Deus, que é racionalmente
apurada e admissível, e justifica a sua conclusão por princípios da ordem da existência,
que não sendo irrecusáveis, são, todavia, racionalmente plausíveis e, portanto, elegíveis.
De igual modo, é possível construir racionalmente uma noção-limite de mal e justificar,
como vimos, a sua existência real e necessária, mediante os mesmos princípios
racionalmente elegíveis da ordem da existência. Por conseguinte, tanto o argumento
anselmiano quanto o seu duplo ao contrário são ambos sustentáveis pelas mesmas
razões admissíveis. Laborar com base no apenas admissível: tal é, porventura, a
condição própria dos construtos racionais da filosofia, como há muito advertira
Aristóteles, ao apresentar as questões de mais elevada dificuldade, como aquelas que os
dialécticos debatem com base em premissas prováveis55.
Na medida, porém, em que têm a mesma base de sustentação plausível, o
argumento do mal não é um argumento mais forte que refute o argumento anselmiano.
Mas ambos constituem uma dupla de argumentos defensáveis a favor do dualismo. O
argumento anselmiano pode atingir o ateísmo, mas não consegue evitar o dualismo, ou,
para referirmos o sistema de pensamento que mais vincadamente corporiza uma
mundividência dualista, o maniqueísmo. Este é o perigo maior do longo alcance do
argumento anselmiano. Seria preferível que Anselmo não tivesse formulado um
argumento contra o ateísmo, que viabiliza indirectamente o maniqueísmo? De acordo
com as nossas páginas iniciais, ter-se-ia perdido uma notável porção da história do
pensamento ocidental. Mesmo que o ateísmo seja preferível ao maniqueísmo.
55
Cf. Aristóteles, Metafísica III, 995 b 5-25.
21
Resumo
Esta lição trata do argumento de Anselmo sob a forma de uma quaestio
escolástica. A questão do argumento anselmiano divide-se, então, em três artigos, que
são três principais problemas debatidos na tradição do argumento até aos nossos dias. O
primeiro artigo pergunta se o argumento de Anselmo é uma dedução directa da
existência como perfeição da essência divina. Contra um lugar comum acerca de tal
argumento, a resposta justificada nesta lição é: não. O segundo artigo pergunta se o
argumento de Anselmo é um argumento a priori. Contra uma forte corrente de
interpretação, a resposta justificada nesta lição é: não. Por fim, o terceiro artigo pergunta
se o argumento anselmiano oferece a possibilidade de construir um duplo argumento a
favor do dualismo divino. Certamente contra qualquer expectativa de Anselmo, esta
lição admite muito seriamente tal possibilidade.
Palavras-chave: argumento de Anselmo; essência-existência; apriorismo; mal
Abstract
This lesson treats of Anselm’s argument in the form of a scholastic quaestio.
The question of the anselmian argument is then divided in three articles, which are three
main issues discussed within the argument’s tradition until our-days. The first article
asks if Anselm’s argument is a direct deduction of existence as a perfection of divine
essence. Against a common place about that argument, this lesson’s justified answer is:
no. The second article asks if Anselm’s argument is an a priori argument. Against a big
stream of interpretation, this lesson’s justified answer is: no. Finally, the third article
asks if the anselmian argument offers the possibility of constructing a double argument
in favor of divine dualism. Certainly against any Anselm’s expectation, this lesson
admits very seriously that possibility.
Keywords: Anselm’s argument; essence-existence; apriority; evil
22