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FORMA JURÍDICA E SOCIALISMO: UM OLHAR PACHUKANIANO

2023, DIREITO E MARXISMO: CRÍTICAS CONTEMPORÂNEAS

O objetivo deste trabalho é fazer uma análise da teoria do direito desenvolvida por Pachukanis, considerando seus principais elementos, para em seguida contrapô-la à corrente teórica jurídica marxista inaugurada por Márcio Bilharinho Naves, grande estudioso e principal expositor da doutrina pachukaniana no Brasil.

DIREITO E MARXISMO: CRÍTICAS CONTEMPORÂNEAS Organizadores Gladstone Leonel Júnior Enzo Bello 2023 Reservam-se os direitos desta obra à Editora Porta, registrada sob CNPJ 43.095.972/0001-10 O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de exclusiva responsabilidade do autor. CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO Alexandre Coutinho Pagliarini | Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC/SP Ezilda Claudia de Melo | Mestra em Direito Público pela UFBA Míriam Coutinho de Faria Alves | Doutora em Direito pela UFBA Nicole Leite Morais | Mestra em Direito pela UFPB Nelson Cerqueira | Doutor em Literatura comparada pela Indiana University Paulo Ferreira da Cunha | Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da USP Roberta Oliveira Lima | Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF Diagramação e concepção da capa: Luiz Eduardo da Cunha Alves D598Direito e marxismo: críticas contemporâneas / Gladstone Leonel Júnior; EnzoeBello (orgs.).críticas João Pessoa: Editora Porta, 2023. Leonel Direito marxismo: contemporâneas / Gladstone Júnior; Enzo Bello (orgs.). João Pessoa: Editora Porta, 2023. 492 p. ISBN: 978-65-00-69904-3 ISBN: 978-65-00-69904-3 1.Direito 2. Marxismo I Leonel Júnior, Gladstone (org.) II. Bello, Enzo (org.) III. 2. Título. 1.Direito Marxismo I Leonel Júnior, Gladstone (org.) II. Bello, Enzo (org.) III. Título. CDD 340 Índices para catálogo sistemático Índices para catálogo 1. Direito - 340sistemático 1. Marxismo Direito - 340 2. – 335.43 2. Marxismo 335.43 APRESENTAÇÃO O livro “Direito e Marxismo: Críticas contemporâneas” vem a público com o objetivo de apresentar uma síntese de um longo processo de ensino e aprendizagem, envolvendo também atividades de pesquisa e extensão, que vem sendo desenvolvido há anos no âmbito do Programa de Pósgraduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (PPGDC/UFF), com a coordenação dos docentes Gladstone Leonel Jr. e Enzo Bello. Com a participação protagonista de docentes em formação, dentro e fora das salas de aula, cursando disciplinas na pós-graduação, atuando em estágio docência na graduação do curso de direito, realizando pesquisas de mestrado e doutorado – em muitos casos, pesquisas empíricas –, esse processo propõe realizar intervenção social como parte de pesquisas acadêmicas multidisciplinares e críticas. Para tanto, também é fundamental a interação com docentes convidados/as de outras instituições de ensino superior e militantes de movimentos sociais, que oferecem ensinamentos diversos e olhares de alteridade para temas de estudos e objetos de pesquisa desenvolvidos em nosso PPGDC/UFF, com eixo nas disciplinas “Teorias Críticas: Direito e Marxismo”, “Teoria Constitucional Crítica”, “Constitucionalismo Achado na Rua e Epistemologias do Sul” e “Constituição, Cidadania e Cidade na América Latina”, por nós ministradas desde 2017, além do Grupo de Pesquisa Crítica Jurídica Contemporânea, coordenado por Gladstone Leonel Jr., e do Grupo de Extensão e Pesquisa Crítica do Direito no Capitalismo (CriDiCa), liderado por Enzo Bello, que articulam discentes de graduação e pós-graduação da UFF e outras instituições, conectando pesquisadores(as) de DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas diversas áreas do conhecimento, tais como Economia, Sociologia, Ciência Política, Serviço Social, Arquitetura e Urbanismo, Geografia. O livro “Direito e Marxismo: Críticas contemporâneas” busca produzir inovação e se insere na seara de estudos sobre Teoria Crítica do Direito, mais especificamente nos campos do “Direito e Marxismo” e do “Pensamento Descolonial”, com origens no ambiente histórico-social da América Latina e do Brasil. A obra está dividida em dois eixos temáticos: “A Crítica Marxista ao direito e elementos do debate descolonial” e “O direito diante da Crítica Marxiana”. O Eixo I é inaugurado com o artigo “Forma Jurídica e Socialismo: um olhar Pachukaniano”, de Gladstone Leonel Júnior e Josué Alves Gouvêa Filho dando o tom do debate e apresentando o perfil dos textos. Em seguida contamos com a contribuição de convidados/as que colaboraram conosco e agora proporcionam ainda mais elementos para reflexão. Ricardo Prestes Pazello (doutor em direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR e docente na Faculdade de Direito da mesma instituição) e Pedro Pompeo Pistelli Ferreira (doutorando em direito pela UFPR), com o texto intitulado “Direito entre tática e estratégia: contribuições de Lênin para uma crítica marxista ao direito”. Juliane Furno (mestra e doutora em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP), com o artigo “Notas sobre o imperialismo contemporâneo”. 4 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) Na sequência, uma série de textos inéditos de discentes do PPGDC/UFF e outros Programas, que cursaram nossas disciplinas e/ou participaram de atividades que temos desenvolvido. Matheus Guarino Sant’Anna Lima de Almeida, com o artigo “Fascismo e autoritarismo, seus usos para pensar o Brasil”. Júlio César Moreira de Jesus e Mara Rúbia Mendes dos Santos Fernandes, com o texto “As Plataformas Digitais de Trabalho sob a Ótica da Teoria Marxista da Dependência”. Críscila Cristina Ramos e Vitor Fraga da Cunha, com o artigo “A migração internacional de mão de obra valadarense para os EUA e a pandemia da COVID-19”. Fernando Luis de Assis Oliveira Barbosa e Kelda Sofia da Costa Santos Caires Rocha, com o texto “Colonialidade e racismo religioso: intolerância religiosa como terrorismo e o estado de coisas inconstitucional”. E Vanessa Santos do Canto, com o escrito “Por um constitucionalismo Amefricano: pensar o nosso tempo desde uma perspectiva antirracista”. O Eixo II inicia-se com Josué de Matos Ferreira e Davi Rafael Silva Veras, e seu texto “Exercício profissional crítico da Defensoria Pública e Magistratura? Perspectivas e possibilidades a partir do método de Marx”. Vitor Fraga da Cunha, com o escrito “Para além de Pachukanis: um estudo de como o direito distribui o mais-valor do capital portador de juros”. Christiana Sophia de Oliveira Alves e Aline Gomes Mendes, com o artigo “Da acumulação originária do capital à feminização da pobreza: um olhar sobre as mulheres e meninas migrantes e refugiadas ambientais”. Isabelle de Azeredo Silva e Paula Andressa Fernandes Benette, com o texto “‘Fetichismo do peixe limpo’: o caso das mulheres trabalhadoras da pesca artesanal”. Dieric Guimarães Cavalcante e Anna Carolina Cunha Pinto, com o escrito “Entre tensões e ilusões 5 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas na promoção da cidadania: reflexões sociojurídicas a partir da realidade dos catadores de resíduos no Brasil”. E Otávio Henrique Simiano do Bomfim e Daniela Medeiros Depetris, com o artigo “Teoria da Reprodução Social e Tecnologia: Trabalho reprodutivo e a crítica ao solucionismo tecnoliberal”. Niterói, 29 de março de 2023. Gladstone Leonel Jr.1 Enzo Bello2 1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional e da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Doutor em Direitos Humanos e Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com estágio doutoral na Universitat de València, Espanha. Mestre em Direito pela UNESP. Especialista em Sociologia Política pela UFPR. Bacharel em Direito pela UFV. Advogado. Membro do IPDMS (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais) e do Grupo de Pesquisa de “O Direito Achado na Rua” e líder do Grupo de Pesquisa "Crítica Jurídica Contemporânea". ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0069-9221 . Email: [email protected] 2 Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Estágios de Pós-Doutorado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado 2 da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenador do Grupo de Extensão e Pesquisa Crítica do Direito no Capitalismo (CriDiCa-UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3923-195X. 6 SUMÁRIO EIXO I A CRÍTICA MARXISTA AO DIREITO E ELEMENTOS DO DEBATE DESCOLONIAL FORMA JURÍDICA E SOCIALISMO: UM OLHAR PACHUKANIANO 13 Gladstone Leonel Júnior Josué Alves Gouvêa Filho DIREITO ENTRE TÁTICA E ESTRATÉGIA: CONTRIBUIÇÕES DE LÊNIN PARA UMA CRÍTICA MARXISTA AO DIREITO 39 Ricardo Prestes Pazello Pedro Pompeo Pistelli Ferreira NOTAS SOBRE O IMPERIALISMO CONTEMPORÂNEO 85 Juliane Furno FASCISMO E AUTORITARISMO, SEUS USOS PARA PENSAR O BRASIL 119 Matheus Guarino Sant’Anna Lima de Almeida AS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO SOB A ÓTICA DA TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA Júlio César Moreira de Jesus Mara Rúbia Mendes dos Santos Fernandes 155 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas A MIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE MÃO DE OBRA VALADARENSE PARA OS EUA E A PANDEMIA DA COVID-19 181 Críscila Cristina Ramos Vitor Fraga Cunha COLONIALIDADE E RACISMO RELIGIOSO: INTOLERÂNCIA RELIGIOSA COMO TERRORISMO E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL 215 Kelda Sofia da Costa Santos Caires Rocha Fernando Luis de Assis Oliveira Barbosa POR UM CONSTITUCIONALISMO AMEFRICANO: PENSAR O NOSSO TEMPO DESDE UMA PERSPECTIVA ANTIRRACISTA 257 Vanessa Santos do Canto EIXO II O DIREITO DIANTE DA CRÍTICA MARXIANA EXERCÍCIO PROFISSIONAL CRÍTICO DA DEFENSORIA PÚBLICA E MAGISTRATURA? PERSPECTIVAS E POSSIBILIDADES A PARTIR DO MÉTODO DE MARX 287 Davi Rafael Silva Veras Josué de Matos Ferreira PARA ALÉM DE PACHUKANIS: UM ESTUDO DE COMO O DIREITO DISTRIBUI O MAIS-VALOR DO CAPITAL PORTADOR DE JUROS Vitor Fraga da Cunha 8 321 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) DA ACUMULAÇÃO ORIGINÁRIA DO CAPITAL À FEMINIZAÇÃO DA POBREZA: UM OLHAR SOBRE AS MULHERES E MENINAS MIGRANTES E REFUGIADAS AMBIENTAIS 355 Aline Gomes Mendes Christiana Sophia de Oliveira Alves “FETICHISMO DO PEIXE LIMPO”: O CASO DAS MULHERES TRABALHADORAS DA PESCA ARTESANAL 395 Isabelle de Azeredo Silva Paula Andressa Fernandes Benette ENTRE TENSÕES E ILUSÕES NA PROMOCÃO DE CIDADANIA: REFLEXÕES SOCIOJURÍDICAS A PARTIR DA REALIDADE DOS CATADORES DE RESÍDUOS NO BRASIL 421 Dieric Guimarães Cavalcante Anna Carolina Cunha Pinto TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL E TECNOLOGIA: TRABALHO REPRODUTIVO E A CRÍTICA AO SOLUCIONISMO TECNOLIBERAL 461 Daniela Medeiros Depetris Otávio Henrique Simiano do Bomfim 9 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas 10 EIXO I A Crítica Marxista ao direito e elementos do debate descolonial FORMA JURÍDICA E SOCIALISMO: UM OLHAR PACHUKANIANO Gladstone Leonel Júnior1 Josué Alves Gouvêa Filho2 Introdução A análise de determinado objeto da ciência social que esteja ancorada no materialismo-histórico requer uma abordagem desse objeto “não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações” (MARX, 2011a). Esse cuidado é necessário para o cientista que deseja desenvolver uma teoria correta, verdadeiramente científica, sobre esse objeto. Se Karl Marx foi quem melhor elaborou teoricamente a crítica da economia-política, quem melhor 1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional e da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Doutor em Direitos Humanos e Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) com estágio doutoral na Universitat de València, Espanha. Mestre em Direito pela UNESP. Especialista em Sociologia Política pela UFPR. Bacharel em Direito pela UFV. Advogado. Membro do IPDMS (Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais) e do Grupo de Pesquisa de “O Direito Achado na Rua” e líder do Grupo de Pesquisa "Crítica Jurídica Contemporânea". ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0069-9221 . Email: [email protected] 2 Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (PPGDC-UFF). Pesquisador no Grupo de Pesquisa Crítica Jurídica Contemporânea da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). ORCID: https://orcid.org/0009-0006-1448-0318. Email: [email protected]. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/2981531797387093. DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas teorizou sobre a forma do direito foi o jurista soviético Evguiéni Pachukanis. Seu livro A teoria do direito e o marxismo, de 1924, lançou os fundamentos da teoria do direito de Pachukanis, que foi sendo atualizada e modificada no decorrer dos anos por causa de três fatores principais. Em primeiro lugar, Pachukanis algumas vezes percebeu a necessidade de aprimorar sua teoria a partir das críticas feitas por estudiosos de suas obras. Além disso, a exigência por alteração se deu por força do próprio decorrer da história, que veio de encontro a elementos da construção teórica anteriormente desenvolvida, o que demandou de Pachukanis um esforço para adequar sua teoria à realidade concreta. Outro fator de grande relevância para que o jurista soviético viesse a fazer autocríticas em relação ao seu trabalho foi a perseguição empreendida pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) contra estudiosos que não seguiam a linha oficial do partido, perseguição essa que redundou na morte do jurista soviético em 1937. Os aportes teóricos de Pachukanis são fundamentais para o estudo do direito em geral, mas possuem especial relevância para analisar a forma jurídica existente em sociedades socialistas. Uma vez que seu fazer científico se deu em um contexto de construção da experiência socialista soviética, sua obra possui muitas indicações de como ler o desenvolvimento do direito no socialismo, sua relação com o Estado proletário e o papel do direito na construção revolucionária. 14 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) O objetivo deste trabalho é fazer uma análise da teoria do direito desenvolvida por Pachukanis, considerando seus principais elementos, para em seguida contrapô-la à corrente teórica jurídica marxista inaugurada por Márcio Bilharinho Naves, grande estudioso e principal expositor da doutrina pachukaniana no Brasil. Para a elaboração deste trabalho, adota-se como referencial teórico-metodológico o materialismo-histórico (MARX, 2011b), utilizando-se pesquisa de perfil teóriconormativo, com abordagem qualitativa e interdisciplinar, relativamente às esferas do direito e da economia-política, com raciocínio indutivo. A técnica de pesquisa utilizada é a revisão bibliográfica. Utilizam-se como fontes de pesquisa artigos e livros teóricos. 1. A Teoria do Direito de Pachukanis e o Socialismo Apoiando-se no materialismo-histórico e nos escritos marxianos, Pachukanis identifica no princípio da troca de equivalentes a condição fundamental de existência da forma jurídica, revelando a correlação intrínseca entre forma jurídica e a forma mercadoria (PACHUKANIS, 2017, p. 85). Marx já havia ressaltado que “O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida” (MARX, 2012, p. 31), justamente pelo fato da superestrutura jurídica obedecer ao mesmo 15 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas princípio 3 que informa a troca entre mercadorias equivalentes. Pachukanis percebe no modo de produção capitalista a estrutura a partir da qual o direito se desenvolve plenamente, identificando, assim, a natureza burguesa do direito. Rompendo com a Escola normativista, que entende o direito como produto da norma posta por um poder coercitivo externo, Pachukanis descobre que a relação jurídica é gerada “pelas relações materiais de produção existentes entre os homens” (PACHUKANIS, 2017, p. 123), de modo que está na relação social, sobretudo na troca, o fundamento do direito, e não na norma jurídica4. A troca mercantil se expressa juridicamente na forma de contrato entre possuidores de mercadoria que se apresentam no mercado como sujeitos de direito sobre os quais recaem os princípios da igualdade, da liberdade e da autonomia. O desenvolvimento da economia mercantilcapitalista provoca o surgimento, a consolidação e a universalização da propriedade privada, que se realiza como direito no ato da alienação, da troca, em que o objeto, o produto do trabalho, constitui-se como mercadoria. É no 3 Trata-se do princípio segundo o qual, nas palavras de Marx, “uma quantidade de trabalho em uma forma é trocada por uma quantidade igual de trabalho em outra forma” (MARX, 2012, p. 31). 4 Para sustentar que a norma imposta pela autoridade Estatal não é o elemento fundante da superestrutura jurídica, e sim a relação social baseada na troca, Pachukanis recorre a Marx para ressaltar que o Estado se desenvolve quando reunidas determinadas relações de produção, sendo a superestrutura política um elemento derivado da sociedade civil. Ou seja, não é o Estado que mantém a coesão da sociedade burguesa, senão o contrário, a sociedade civil mantém o Estado (PACHUKANIS, 2017, p. 117). 16 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) ato da troca que o possuidor da coisa se apresenta como sujeito de direito. Assim se dá a realização da forma jurídica como produto do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Marx, no livro I d’O capital, descreve a correlação existente entre a relação jurídica e o processo de troca entre possuidores de mercadoria: As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. (...) Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica (MARX, 2017, p. 159). Ainda, ao considerar que a relação jurídica decorre do processo de troca de mercadorias, Pachukanis conclui que a essência da forma jurídica está no direito privado, que “os traços fundamentais do direito privado burguês são, ao mesmo tempo, os traços mais característicos e determinantes da superestrutura jurídica em geral” (PACHUKANIS, 2017, p. 59). O direito público apenas reflete na esfera pública a lógica do direito privado de contraposição de interesses particulares isolados das forças políticas em disputa entre si existentes no seio do aparato estatal. Pachukanis (2017, p. 132-133) cita o exemplo das lutas entre grupos representados no Poder Legislativo e 17 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas grupos representados no Poder Executivo, lutas entre as câmaras legislativas, entre outros. Além disso, o direito público pode exprimir atos políticos que, em decorrência do universalismo da forma jurídica, passaram a ser dotados de qualidades jurídicas5 (PACHUKANIS, 2017, p. 121). O problema entre direito privado e direito público é expressão do problema entre direito subjetivo e direito objetivo, ou seja, da questão da correlação entre a superestrutura jurídica e a superestrutura política. A concepção normativista do direito compreende que a norma objetiva gera a obrigação subjetiva que lhe é correspondente (PACHUKANIS, 2017, p. 130). Indo na direção oposta, Pachukanis compreende o direito subjetivo como primário, pois se baseia no interesse existente independentemente de disposição autoritária externa. De acordo com sua visão, o jurídico não pode ser reduzido à característica da coercitividade externa estatal organizada, sugerindo existir até certa relação de antagonismo entre direito e Estado ao afirmar que “quanto mais consequentemente for introduzido o princípio de regulamentação autoritária, que exclui qualquer indício de vontade isolada e autônoma, menor será o terreno para a aplicação da categoria do direito” (PACHUKANIS, 2017, p. 129). Mesmo assim, Pachukanis (2017, p. 119-120) se preocupa em ressaltar que a norma e o poder do Estado atuam como intermediários entre a relação de produção e a 5 "As exigências 'jurídicas' que partem dos órgãos do poder público, exigências por detrás das quais não está nenhum interesse privado, nada mais são que a estilização jurídica dos fatos da vida política" (PACHUKANIS, 2017, p. 195). 18 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) relação jurídica. Relembra, ainda, a afirmação de Lênin (2017, p. 124) de que o direito burguês pressupõe um Estado burguês que seja capaz de obrigar o cumprimento da norma. Pachukanis (2017, p. 115) nega que a norma gera a relação social nela prescrita, mas compreende o papel do Estado e da norma de assegurar, garantir a relação. Um ponto importante se refere à questão do direito no socialismo, ou seja, o período de transição ao comunismo. No campo do trabalho, Marx já havia constatado que apenas numa fase superior da sociedade comunista seria possível superar o “estreito horizonte jurídico burguês”, já que na primeira fase do comunismo (socialismo) o trabalhador receberia da sociedade uma quantia de meios de consumo equivalente ao seu trabalho, prevalecendo, assim, o princípio da equivalência e, consequentemente, a lógica jurídica. Portanto, o direito haveria de persistir durante o socialismo (MARX, 2012, p. 30-32). Pachukanis (2017, p. 160-161), por sua vez, em sintonia com o que Marx escrevera, sustenta que a forma jurídica permaneceria no período de transição enquanto durasse “a troca mercantil e nexo mercantil das economias isoladas”, no caso dos setores econômicos em que ainda existia a propriedade privada e das empresas estatais que se constituíam em unidades autônomas, cujas relações entre si se operam pela troca mercantil. Para ele, a relação jurídica entre as empresas estatais seria findada pela “vitória definitiva da economia planificada”, dando lugar a uma 19 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas “relação técnica e racional umas com as outras”6. Assim se daria, portanto, o definhamento e morte do direito (PACHUKANIS, 2017, p. 166). Além disso, o jurista soviético critica, em A teoria geral do direito e o marxismo, a concepção de um direito proletário, que, para ele, proclamaria a imortalidade da forma jurídica, por retirá-la da história ao sugerir a possibilidade de sua constante renovação. Pachukanis faz um paralelo entre o direito e categorias econômicas como valor, capital e lucro, que não haveriam de existir no socialismo como novas categorias proletárias. Para ele, o desaparecimento do direito burguês redundaria no desaparecimento da forma jurídica em geral (PACHUKANIS, 2017, p. 83). Por volta dos anos de 1930, Pachukanis teve que rever alguns pontos de sua teoria para que se adequasse à nova realidade econômica e política na União Soviética (URSS7) inaugurada em 1929 pelos Planos Quinquenais, visto que sua tese ia de encontro ao esforço soviético de fortalecer o Estado, e consequentemente a lei, tida como seu acessório (BIERNE; SHARLET, 1979). A partir desse período, Pachukanis (2004a) passou a enfatizar a identificação do direito mais com as relações 6 Para Pachukanis (2017, p. 106) a regulamentação jurídica tem como premissa fundamental a oposição entre interesses privados isolados, enquanto a regulamentação técnica tem por premissa a unidade de interesses. Ele exemplifica essa separação citando as normas de responsabilidade sobre ferrovias, que presumem a contraposição de interesses privados isolados, e as normas técnicas de tráfego ferroviário, que presumem um único objetivo, como a obtenção da capacidade máxima de transporte. 7 União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. 20 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) de produção do que com as relações de mercado e passou a conferir maior importância ao elemento da coerção de classe existente na forma jurídica. Ainda, reclamou uma leitura do direito que leva em consideração a unidade entre forma e conteúdo: “A superestrutura jurídica compreende não apenas a totalidade das normas e ações das agências, mas a unidade desse lado formal e seu conteúdo, isto é, das relações sociais que o direito reflete e ao mesmo tempo sanciona, formaliza e modifica.” (PACHUKANIS, 2004a, tradução nossa). Essa relativa mudança analítica do autor revela certa concessão ao normativismo, ainda que sequer tenha se aproximado das teorias normativistas burguesas do direito, tratando-se apenas numa mudança de ênfase, que antes recaía quase que totalmente na relação de troca mercantil, e a partir de então a norma e o direito positivo passam a ter maior importância na delimitação da forma jurídica. Pachukanis (2004b) passou a enfatizar o caráter instrumental do direito, que poderia ser exercido como arma na construção de uma sociedade socialista sem classes, uma vez que seria forma política do Estado para a organização da produção socialista e do comércio soviético. Ressalta que, tendo sido amplamente superada a exploração, tendo a sociedade soviética cessado quase totalmente a existência da propriedade privada dos meios 21 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas de produção8, a remuneração do trabalho não mais se dava pela venda da força de trabalho como mercadoria, mas pelo princípio socialista da remuneração conforme o trabalho. Apesar disso, restava preservado o direito “burguês” (entre aspas) na URSS, uma vez que, remetendo ao que escrevera Marx na Crítica do Programa de Gotha, uma igual medida era aplicada a pessoas desiguais e a relações desiguais, preservando-se, assim, a desigualdade, questão essa que apenas seria superada no comunismo avançado (PACHUKANIS, 2004b). A norma jurídica passou a ter maior significância na teoria do direito de Pachukanis, que a entendeu como necessária à organização contábil para a supervisão do trabalho e consumo, já que, sendo públicos os meios de produção, a distribuição dos meios de consumo produzidos se dava de acordo com a quantidade e qualidade do trabalho na sociedade soviética (PACHUKANIS, 2021). A autocrítica de Pachukanis também se deu em relação à questão do definhamento do direito no socialismo, que não ocorreu como havia teorizado anteriormente. Em vez disso, afirma que o direito na URSS “espelhou relações socialistas uniformes de produção” (PACHUKANIS, 2021). Reviu também sua posição de que o direito não poderia adquirir um caráter proletário, socialista. Seguindo 8 Estão entre os resultados produzidos pelos primeiros Planos Quinquenais adotados na URSS a eliminação da burguesia urbana (REIS FILHO, 1983, p. 36-37) e a quase total coletivização do campo: nos fins de 1935 atingiu-se a marca de 98% dos camponeses coletivizados (REIS FILHO, 2003, p. 88). Esses dados revelam que, por volta das décadas de 1930 e 1940, a União Soviética eliminou de seu território a propriedade privada e, por conseguinte, a exploração da força de trabalho. 22 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) a linha oficial do PCUS, declarou que o direito soviético era dotado de uma “essência socialista enquanto Direito do Estado proletário” (PACHUKANIS, 2021). Cumpre ressaltar que Pachukanis jamais abandonou todo o fundamento de sua teoria, tendo senão adaptado os elementos teóricos supracitados à linha normativista oficial do Partido Comunista da União Soviética – que objetivava o fortalecimento do Estado – e à própria realidade dos fatos, que não havia confirmado, por exemplo, a conclusão a que chegara a respeito do definhamento do direito quando da “vitória definitiva da economia planificada”9. Tanto que em 1936, em um de seus últimos escritos, Pachukanis relaciona algumas premissas estabelecidas em A teoria geral do direito e o marxismo com novos elementos que passaram a ser considerados: A teoria da “natureza burguesa” de todo Direito persistentemente confundiu coisas diferentes como a coexistência da iniciativa privada e a prestação de contas de empresas socialistas, troca capitalista e troca por cooperativas e agências do Estado proletário, a troca equivalente de mercadorias de acordo com o valor e o princípio socialista de distribuição conforme o trabalho. (PACHUKANIS, 2021). Assim se completa a teoria do direito de Pachukanis, reputada a mais avançada do campo marxista 9 Defende-se que de fato ocorreu na União Soviética, na década de 1930, a “vitória definitiva da economia planificada”, não no sentido de perpetuidade do socialismo ou da planificação no país, que não aconteceu, mas para dizer que se consolidou uma política ancorada no amplo planejamento da economia pelo Estado, estruturada sobre os Planos Quinquenais, em substituição à Nova Política Econômica (NEP) que havia sido instituída por Lênin em 1921. Os Planos Quinquenais organizaram a economia da URSS até seu fim, em 1991. 23 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas e que continua sendo pedra angular entre aqueles que se propõem a analisar a forma jurídica com rigor científico a partir do materialismo-histórico. Passa-se, assim, a tratar da principal corrente teórica que recebeu a teoria pachukaniana no Brasil e que figura como uma das mais importantes linhas teóricas da crítica jurídica marxista do país. 2. Teoria da Transição, Teoria do Direito e sua relação entre si Um fator de enorme relevância que se deve considerar ao se adotar uma teoria desenvolvida a partir do materialismo-histórico é que seus pressupostos serão, no seu devido tempo, testados pela realidade concreta. Diversamente do que ocorre com a maioria das teorias idealistas burguesas, cujas premissas fundamentais muitas vezes são apriorísticas e, portanto, não podem ser testadas na prática, podendo apenas ser contestadas por outras teorias, as doutrinas que utilizam o método marxista serão inevitavelmente postas à prova pelo desenrolar dos acontecimentos. Assim se deu com a teoria do direito de Pachukanis. Embora a pressão exercida pelo Partido Comunista da União Soviética tenha sido fator fundamental para o advento das autocríticas feitas pelo jurista soviético e de sua aproximação à linha oficial do Partido, é fato que, conforme já foi colocado, a realidade concreta não confirmou a “previsão” de que o direito definharia e morreria com a 24 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) vitória da planificação da economia soviética. Na verdade, o direito não apenas não definhou, como a codificação e normatização das relações sociais na União Soviética avançou em acordo com as novas relações socialistas de produção10 (PACHUKANIS, 2021). Portanto, o pensador que vier a analisar a teoria desenvolvida por Pachukanis considerando apenas seus trabalhos produzidos nos anos de 1920, sobretudo em A teoria geral do direito e o marxismo, contrapondo-a ao fato de que a forma jurídica não definhou com a planificação da economia da URSS, deverá adotar uma das seguintes posturas: (i) negar a teoria de Pachukanis por completo; (ii) seguir o caminho do próprio Pachukanis para corrigir os elementos teóricos que se comprovaram incorretos, adequando a construção teórica à realidade concreta; ou (iii) entender como correta a teoria pachukaniana incompleta 11 e compreender que a União Soviética não seguiu o caminho do socialismo e, por esse motivo, o direito se manteve e se desenvolveu no país (ou, invertendo os fatores, entender que a URSS desviou-se do socialismo, de modo que as diferenças existentes entre a realidade soviética e a teoria incompleta de Pachukanis não comprometem sua validade teórica). 10 “Após a vitória do socialismo e a liquidação da estrutura pluralista da economia, o Direito não começou a definhar, em vez disto, este foi o período em que o conteúdo do Direito socialista soviético – tanto na cidade quanto no campo – espelhou relações socialistas uniformes de produção” (PACHUKANIS, 2021). 11 Por “teoria pachukaniana incompleta” leia-se a teoria sem as modificações efetuadas por Pachukanis no decorrer da década de 1930. 25 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas Muitos dos juristas brasileiros que reivindicam a teoria do direito de Pachukanis seguiram o terceiro caminho, o de negar que a experiência soviética seria verdadeiramente socialista (ou pelo menos considerando-a como um socialismo degenerado), muitas vezes acusando a URSS de ser um caso de “capitalismo de Estado”. Esses juristas têm em Márcio Bilharinho Naves seu principal nome, sendo grande divulgador da obra e da teoria de Pachukanis no Brasil. Ricardo Prestes Pazello – que se propôs a fazer um balanço da presença do marxismo entre os estudiosos brasileiros da área do direito –, ao tratar do “reflorescimento do marxismo no campo jurídico brasileiro”, ressalta que a obra de Naves “inaugura uma das mais importantes tendências do estudo de marxismo e direito no Brasil: o aprofundamento na leitura da obra do jurista soviético Evguiéni Pachukanis” (PAZELLO, 2021, p. 73). Assim, em razão de seu pioneirismo e de sua reconhecida importância na produção científica jurídica brasileira no que diz respeito à teoria de Pachukanis, tendo influenciado toda uma Escola do pensamento jurídico crítico no Brasil (PAZELLO, 2021, p. 74), passar-se-á, então, a dialogar com a concepção de Márcio Bilharinho Naves acerca do socialismo, para então analisar o problema da superestrutura jurídica no socialismo. Naves (2005, p. 57-58), ao examinar o processo revolucionário soviético, critica a concepção de que a União Soviética teria sido um país socialista “apenas” porque “o Estado passou a ser o proprietário dos meios de 26 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) produção”, avaliando tal fator como algo restrito à esfera jurídica, “uma simples transferência da titularidade dos meios de produção da burguesia privada para o Estado”. Para ele, a transformação da sociedade burguesa e a supressão das relações de produção capitalistas devem se dar não apenas pela estatização dos principais meios de produção, mas pela superação da divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual e entre as tarefas de direção e as tarefas de execução, o que poria fim ao processo de valorização e à separação do trabalhador dos meios de produção (NAVES, 2005, p. 57-60). Além disso, ressalta que o exercício do poder político pela classe trabalhadora não ocorre por meio do controle do Estado pelo partido operário apenas, mas pela “revolucionarização” do aparato estatal. O Estado deveria relativamente se enfraquecer e as organizações de massas se fortalecer através da operação de transformações que afetassem particularmente o núcleo repressivo e burocrático estatal, como a substituição das forças armadas pelas massas em armas e o controle permanente das massas sobre os quadros burocráticos (NAVES, 2005, p. 59). Ainda que originada de uma revolução social, determinada experiência política se encontraria no marco de um “capitalismo de Estado”, e não do socialismo, caso se limitasse a realizar a estatização dos meios de produção sem promover a superação da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual e da divisão entre as tarefas de direção e as tarefas de execução, bem como se deixasse de realizar uma “revolucionarização” do Estado a partir de um drástico 27 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas processo de desburocratização. Seria esse “capitalismo de Estado”, portanto, um terreno fértil para a reconstituição do tecido jurídico, forma social apenas existente (em seu pleno desenvolvimento) em sociabilidades nas quais ocorrem a circulação mercantil e a valorização do valor (NAVES, 2000, p. 167). Assim, verifica-se que a concepção de direito que o relaciona tão somente à circulação mercantil e a concepção de socialismo como sendo a imediata (ainda que parcial) desintegração do Estado aliada à desorganização das relações hierárquicas de produção se mostram compatíveis entre si; essas concepções – ambas incorretas, como poderse-á verificar – se suportam mutuamente 12 . O inverso também é verdadeiro: uma compreensão bem construída do que é socialismo pode contribuir para o desenvolvimento de uma adequada teoria do direito e vice-versa; e ambas conduzem a uma boa prática revolucionária. Alguns problemas devem ser apontados em relação à concepção de socialismo apresentadapor Márcio Bilharinho Naves. Talvez o mais patente deles seja diminuir a relevância das condições históricas em que se dá o processo de transição ao comunismo. No caso da nascente União Soviética, embora admita a extrema gravidade de sua 12 Naves também compreende que determinada concepção de socialismo corrobora determinada concepção do direito, de modo que a teoria da transição socialista e a teoria do direito podem se influenciar mutuamente. Veja-se: “Pachukanis modifica a sua concepção do direito por força, substancialmente, das contradições internas de seu pensamento, que o tornam extremamente vulnerável quando o ‘socialismo’ parece ter triunfado ao mesmo tempo em que a exigência do direito remanesce, e ele não pode encontrar em sua teoria os elementos para explicar esse paradoxo!” (NAVES, 2000, p. 149). 28 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) situação conjuntural (NAVES, 2005, p. 60), Naves parece não levar em consideração que os problemas historicamente colocados – como o fato da Rússia ter sido um país de notório atraso econômico – e os problemas colocados pelo imperialismo – como invasões, guerras, sabotagens, bloqueios comerciais, incitação à contrarrevolução por meio de propaganda etc. – ameaçavam a própria existência da experiência revolucionária e só poderiam ser enfrentados com o fortalecimento dos instrumentos políticos conquistados pela classe trabalhadora, sem negá-los por terem natureza burguesa13. Tendo em vista que todas as revoluções socialistas sofreram e sofrem desses mesmos problemas – atraso econômico e sabotagem imperialista – a luta pela sobrevivência com todos os meios existentes torna-se necessidade histórica. De um ponto de vista dialético, o Estado, a burocratização, o direito e até o mercado, quando reunidas determinadas condições históricas, são utilizados no sentido de possibilitar a continuidade de determinada experiência revolucionária. Outro problema existente na concepção de socialismo de Márcio Bilharinho Naves está em reclamar a imediata extinção da divisão entre o trabalho manual e o 13 “A eliminação das classes não é alcançada pela supressão da luta de classes, mas pela sua intensificação. O definhamento do Estado não acontecerá se enfraquecendo a autoridade estatal mas através de sua máxima consolidação. Isto é vital se nos colocamos para destruir o restante das classes moribundas e organizar a defesa contra um cerco capitalista o qual está longe de ser eliminado, e não o será tão cedo” (STÁLIN, 1933 apud PACHUKANIS, 2021). 29 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas trabalho intelectual e entre as tarefas de direção e as tarefas de execução no socialismo, sem considerar as condições históricas para tanto. Engels, ao polemizar com socialistas de sua época, já tratava da necessidade de superar historicamente “o princípio da autoridade” no processo produtivo, buscando observar se as “condições da sociedade” lhes permitiriam “dar à vida um outro estado social no qual essa autoridade não [tivesse] mais razão de existir e onde, por conseguinte, [devesse] desaparecer” (ENGELS, 2003). Engels ressalta que mesmo em uma hipotética sociedade socialista, os trabalhadores estariam submetidos à autoridade das máquinas industriais, bem como todos teriam que se submeter à autoridade de um único delegado para decidir sobre as formas de produção coletiva, de modo que, ainda que o delegado tivesse sido eleito pelo voto da maioria, a vontade individual estaria subordinada à vontade da maioria. “Querer abolir a autoridade na grande indústria, é querer abolir a própria indústria” (ENGELS, 2003). Lênin, já no exercício da função de liderança política da Rússia socialista, também se preocupa em tratar necessidade de submissão do trabalho à autoridade planificadora da produção: “O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista construída segundo a última palavra da ciência moderna, sem uma organização estatal planificada que submeta dezenas de milhões de pessoas à mais rigorosa observância de uma norma única na produção e na distribuição dos produtos” (LÊNIN, 1918 apud LÊNIN, 2012). 30 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) Ainda, pode-se vislumbrar um problema mais geral na concepção de socialismo de Naves (e que reflete a questão tratada imediatamente acima): a desconsideração da necessidade de se desenvolver as forças produtivas a fim de se atingir um novo modo de produção. A revolução não se dá simplesmente por uma desorganização das relações capitalistas de produção, mas por sua superação em nível de produtividade do trabalho. Marx atentou para o fato de que “uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade” (MARX, 2008, p. 48). Em outra oportunidade, Marx indica como caminho ao comunismo avançado o crescimento das forças produtivas para se alcançar a abundância produtiva das fontes de riqueza coletiva, atentando para o fato de que até que se atinja esse objetivo haverá distorções na sociedade de transição (MARX, 2012, p. 31-32). No mesmo sentido, Engels ressalta que as transformações sociais e revoluções nas relações de propriedade 14 são consequência da criação de novas e superiores forças produtivas (ENGELS, 2013). Assevera, ainda, que “não se podem fazer aumentar de um só golpe as forças produtivas” e que a revolução do proletariado é Por “relações de propriedade” leia-se relações de produção, considerando que “relações de propriedade” não é mais que a “expressão jurídica” das relações de produção (MARX, 2008, p. 47). 14 31 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas um processo que lentamente poderá transformar a sociedade da qual irrompeu (ENGELS, 2013). Tratando agora do tema do burocratismo e da separação das massas do aparato estatal, é preciso que se observe as contribuições de Lênin em relação ao exercício do poder político pela classe trabalhadora. Sem se deixar cair em um desvio vanguardista, deve-se levar em conta que o processo revolucionário demanda uma vanguarda do proletariado que se ocupe diretamente das atividades políticas na ditadura proletária e que seja capaz de defender a revolução socialista contra a ameaça da contrarrevolução. O afastamento da vanguarda revolucionária em relação às massas acarreta o burocratismo. Porém, é preciso que se verifique em cada caso quais são “as raízes econômicas do burocratismo”, para que esse problema seja adequadamente resolvido. Essas raízes econômicas podem ser o baixo desenvolvimento das forças produtivas, a falta de instrução da população, o analfabetismo, a miséria, a dispersão da população etc. (LÊNIN, 2012). Portanto, a vitória da organização das massas sobre o burocratismo não ocorrerá com uma simples decisão política, ela precisa ser conquistada no seio da luta de classes, por meio do desenvolvimento das forças produtivas, do avanço tecnológico e da educação das massas. Essas considerações de Marx, Engels e Lênin, aprovadas no teste implacável da história, deveriam afastar qualquer concepção imediatista de definhamento do Estado e do direito no socialismo, que enxerga restauração 32 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) capitalista em toda experiência que tem que lidar com as acentuadas contradições do período de transição. Em suma, para que se desenvolva uma concepção correta de socialismo, deve-se levar em consideração estes elementos: a necessidade de sobrevivência da experiência revolucionária diante das ameaças do imperialismo; a necessidade da autoridade no processo produtivo até que seja historicamente superada; o desenvolvimento das forças produtivas como condição para a superação do capitalismo; o reconhecimento da necessidade de se ter uma vanguarda revolucionária ocupada com a defesa da revolução e o reconhecimento da necessidade de um correto embasamento político e econômico da luta contra o burocratismo. A correta compreensão do socialismo proporciona o entendimento de que as experiências revolucionárias como, por exemplo, da antiga União Soviética, da China, de Cuba etc. foram e são efetivamente experiências socialistas. Tendo-se alcançado esse entendimento, deve-se refletir sobre o porquê do elemento jurídico ter perseverado no socialismo, mesmo nos casos em que se avançou na planificação da economia e se superou a propriedade privada dos meios de produção e a exploração, a despeito do que havia teorizado Pachukanis na década de 1920. Tal reflexão deve levar à conclusão de que os fundamentos das modificações teóricas de que Pachukanis se ocupou no decorrer da década de 1930 estão corretos no que se refere ao desenvolvimento do direito no socialismo. 33 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas Feitas essas considerações, pode-se perceber na totalidade da obra de Pachukanis, incluindo seus escritos da década de 1930, a melhor formulação da teoria do direito, a qual, por um lado, utiliza a base do que foi teorizado n’A teoria geral do direito e o marxismo, qual seja, a identificação da forma jurídica nas relações de produção e no princípio da equivalência, que se relaciona com o princípio do "igual direito", e por outro lado compreende o papel do Estado e da norma que atinge a relação social, podendo modificá-la e regulá-la, bem como concebe o papel do direito como instrumento do Estado proletário na construção do socialismo. Conclusão A análise adequada da forma jurídica no socialismo exige um esforço teórico que, por um lado, não dê espaço à ideologia jurídica, e, por outro, não permita uma leitura engessada do direito, ainda que fundamentada em bases gerais corretas. A teoria do direito de Pachukanis não à toa é considerada, por grande parte dos juristas do campo do marxismo, a que melhor explicou a forma jurídica em sua materialidade, ao perceber nas relações de produção e de circulação das mercadorias e dos bens de consumo o fundamento do direito. Deve-se levar em consideração, porém, que as alterações teóricas operadas pelo jurista soviético ocorreram por motivos históricos, quer dizer, a 34 Gladstone Leonel Jr. Enzo Bello (orgs.) própria realidade apontou os limites existentes na teoria e, assim, demandou sua parcial reformulação. Todavia, como se pôde constatar, a recepção recente da doutrina de Pachukanis no Brasil ocorreu por um viés que bate de frente com o marxismo-leninismo, a própria base metodológica e epistemológica na qual o jurista sovético se apoiava ao desenvolver seu estudo15. Observouse que a corrente teórica que liderou essa recepção da obra pachukaniana faz uma leitura desviante do direito, pois nega as mudanças teóricas operadas pelo jurista soviético que foram impostas pela própria realidade. Além disso, essa corrente mostra com clareza seus limites ao debater sobre o caráter socialista da União Soviética, uma vez que nega o fato amplamente reconhecido de que o país representava uma experiência socialista, caracterizando-o como um “capitalismo de Estado”. Ambos os equívocos acabam se favorecendo mutuamente, de modo que a análise incorreta do socialismo pode corroborar a análise incorreta do direito e vice-versa. Ao examinar a superestrutura jurídica de um país socialista, deve-se cuidar para não incorrer nesses erros; deve-se observar a realidade tal como é, sem se deixar pautar por convenientes apriorismos. Qualquer leitura pretensamente marxista que, ao analisar determinada experiência socialista, encara na existência de “direito burguês” a negação do caráter Isso é admitido por Naves quando afirma que a “relação que Pachukanis estabelece entre o socialismo e o direito (...) [é] limitada pela problemática marxista da Terceira Internacional” (NAVES, 2000, p. 170). 15 35 DIREITO E MARXISMO Críticas contemporâneas socialista dessa experiência padece de materialismo, uma vez que observa a realidade a partir de elementos apriorísticos, como “o definhamento do direito”, sem considerar o processo que poderá conduzir a sociedade em questão ao alcance das condições materiais que permitirão a superação da forma jurídica e de todas as formas burguesas. Portanto, verifica-se que a teoria do direito de Pachukanis em sua totalidade, quer dizer, a teoria que inclui os elementos de autocrítica, notadamente as mudanças de ênfase em relação ao papel da norma e do Estado na determinação da superestrutura jurídica, representa a construção teórica mais avançada do direito, se comparada à leitura da doutrina pachukaninana que despreza as modificações empreendidas durante a década de 1930. Esse fato se torna ainda mais notório ao se analisar o desenvolvimento do direito no socialismo e seu papel na construção revolucionária. Referências Bibliográficas BIERNE, Piers; SHARLET, Robert. Introduction to Pashukanis. Marxists’ Internet Archive, 1979. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/pashukanis/biog/biogintro.htm>. Acesso em: 20 jan. 2023. ENGELS, Friedrich. Sobre a autoridade. Marxists’ Internet Archive, 2003. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1873/03/autoridadept.htm>. 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