DIREITO E MARXISMO:
CRÍTICAS CONTEMPORÂNEAS
Organizadores
Gladstone Leonel Júnior
Enzo Bello
2023
Reservam-se os direitos desta obra à Editora Porta, registrada sob CNPJ
43.095.972/0001-10
O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são
prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de exclusiva responsabilidade do autor.
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO
Alexandre Coutinho Pagliarini | Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC/SP
Ezilda Claudia de Melo | Mestra em Direito Público pela UFBA
Míriam Coutinho de Faria Alves | Doutora em Direito pela UFBA
Nicole Leite Morais | Mestra em Direito pela UFPB
Nelson Cerqueira | Doutor em Literatura comparada pela Indiana University
Paulo Ferreira da Cunha | Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da USP
Roberta Oliveira Lima | Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF
Diagramação e concepção da capa: Luiz Eduardo da Cunha Alves
D598Direito e marxismo: críticas contemporâneas / Gladstone Leonel
Júnior;
EnzoeBello
(orgs.).críticas
João Pessoa:
Editora Porta,
2023. Leonel
Direito
marxismo:
contemporâneas
/ Gladstone
Júnior; Enzo Bello (orgs.). João Pessoa: Editora Porta, 2023.
492 p.
ISBN: 978-65-00-69904-3
ISBN: 978-65-00-69904-3
1.Direito 2. Marxismo I Leonel Júnior, Gladstone (org.) II. Bello, Enzo
(org.)
III. 2.
Título.
1.Direito
Marxismo I Leonel Júnior, Gladstone (org.) II. Bello, Enzo
(org.) III. Título.
CDD 340
Índices para catálogo sistemático
Índices para
catálogo
1. Direito
- 340sistemático
1. Marxismo
Direito - 340
2.
– 335.43
2. Marxismo 335.43
APRESENTAÇÃO
O
livro
“Direito
e
Marxismo:
Críticas
contemporâneas” vem a público com o objetivo de apresentar
uma síntese de um longo processo de ensino e aprendizagem,
envolvendo também atividades de pesquisa e extensão, que vem
sendo desenvolvido há anos no âmbito do Programa de Pósgraduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense (PPGDC/UFF), com a coordenação dos docentes
Gladstone Leonel Jr. e Enzo Bello.
Com a participação protagonista de docentes em
formação, dentro e fora das salas de aula, cursando disciplinas na
pós-graduação, atuando em estágio docência na graduação do
curso de direito, realizando pesquisas de mestrado e doutorado –
em muitos casos, pesquisas empíricas –, esse processo propõe
realizar intervenção social como parte de pesquisas acadêmicas
multidisciplinares e críticas.
Para tanto, também é fundamental a interação com
docentes convidados/as de outras instituições de ensino superior
e militantes de movimentos sociais, que oferecem ensinamentos
diversos e olhares de alteridade para temas de estudos e objetos
de pesquisa desenvolvidos em nosso PPGDC/UFF, com eixo nas
disciplinas “Teorias Críticas: Direito e Marxismo”, “Teoria
Constitucional Crítica”, “Constitucionalismo Achado na Rua e
Epistemologias do Sul” e “Constituição, Cidadania e Cidade na
América Latina”, por nós ministradas desde 2017, além do
Grupo de Pesquisa Crítica Jurídica Contemporânea, coordenado
por Gladstone Leonel Jr., e do Grupo de Extensão e Pesquisa
Crítica do Direito no Capitalismo (CriDiCa), liderado por Enzo
Bello, que articulam discentes de graduação e pós-graduação da
UFF e outras instituições, conectando pesquisadores(as) de
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
diversas áreas do conhecimento, tais como Economia,
Sociologia, Ciência Política, Serviço Social, Arquitetura e
Urbanismo, Geografia.
O
livro
“Direito
e
Marxismo:
Críticas
contemporâneas” busca produzir inovação e se insere na seara
de estudos sobre Teoria Crítica do Direito, mais especificamente
nos campos do “Direito e Marxismo” e do “Pensamento
Descolonial”, com origens no ambiente histórico-social da
América Latina e do Brasil.
A obra está dividida em dois eixos temáticos: “A Crítica
Marxista ao direito e elementos do debate descolonial” e “O
direito diante da Crítica Marxiana”.
O Eixo I é inaugurado com o artigo “Forma Jurídica e
Socialismo: um olhar Pachukaniano”, de Gladstone Leonel
Júnior e Josué Alves Gouvêa Filho dando o tom do debate e
apresentando o perfil dos textos. Em seguida contamos com a
contribuição de convidados/as que colaboraram conosco e agora
proporcionam ainda mais elementos para reflexão. Ricardo
Prestes Pazello (doutor em direito pela Universidade Federal do
Paraná - UFPR e docente na Faculdade de Direito da mesma
instituição) e Pedro Pompeo Pistelli Ferreira (doutorando em
direito pela UFPR), com o texto intitulado “Direito entre tática e
estratégia: contribuições de Lênin para uma crítica marxista ao
direito”. Juliane Furno (mestra e doutora em Desenvolvimento
Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual
de Campinas - UNICAMP), com o artigo “Notas sobre o
imperialismo contemporâneo”.
4
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
Na sequência, uma série de textos inéditos de discentes
do PPGDC/UFF e outros Programas, que cursaram nossas
disciplinas e/ou participaram de atividades que temos
desenvolvido. Matheus Guarino Sant’Anna Lima de
Almeida, com o artigo “Fascismo e autoritarismo, seus usos para
pensar o Brasil”. Júlio César Moreira de Jesus e Mara Rúbia
Mendes dos Santos Fernandes, com o texto “As Plataformas
Digitais de Trabalho sob a Ótica da Teoria Marxista da
Dependência”. Críscila Cristina Ramos e Vitor Fraga da
Cunha, com o artigo “A migração internacional de mão de obra
valadarense para os EUA e a pandemia da COVID-19”.
Fernando Luis de Assis Oliveira Barbosa e Kelda Sofia da
Costa Santos Caires Rocha, com o texto “Colonialidade e
racismo religioso: intolerância religiosa como terrorismo e o
estado de coisas inconstitucional”. E Vanessa Santos do Canto,
com o escrito “Por um constitucionalismo Amefricano: pensar o
nosso tempo desde uma perspectiva antirracista”.
O Eixo II inicia-se com Josué de Matos Ferreira e
Davi Rafael Silva Veras, e seu texto “Exercício profissional
crítico da Defensoria Pública e Magistratura? Perspectivas e
possibilidades a partir do método de Marx”. Vitor Fraga da
Cunha, com o escrito “Para além de Pachukanis: um estudo de
como o direito distribui o mais-valor do capital portador de
juros”. Christiana Sophia de Oliveira Alves e Aline Gomes
Mendes, com o artigo “Da acumulação originária do capital à
feminização da pobreza: um olhar sobre as mulheres e meninas
migrantes e refugiadas ambientais”. Isabelle de Azeredo Silva
e Paula Andressa Fernandes Benette, com o texto
“‘Fetichismo do peixe limpo’: o caso das mulheres trabalhadoras
da pesca artesanal”. Dieric Guimarães Cavalcante e Anna
Carolina Cunha Pinto, com o escrito “Entre tensões e ilusões
5
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
na promoção da cidadania: reflexões sociojurídicas a partir da
realidade dos catadores de resíduos no Brasil”. E Otávio
Henrique Simiano do Bomfim e Daniela Medeiros Depetris,
com o artigo “Teoria da Reprodução Social e Tecnologia:
Trabalho reprodutivo e a crítica ao solucionismo tecnoliberal”.
Niterói, 29 de março de 2023.
Gladstone Leonel Jr.1
Enzo Bello2
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional e da
Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Doutor
em Direitos Humanos e Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)
com estágio doutoral na Universitat de València, Espanha. Mestre em Direito
pela UNESP. Especialista em Sociologia Política pela UFPR. Bacharel em
Direito pela UFV. Advogado. Membro do IPDMS (Instituto de Pesquisa,
Direitos e Movimentos Sociais) e do Grupo de Pesquisa de “O Direito Achado
na Rua” e líder do Grupo de Pesquisa "Crítica Jurídica Contemporânea".
ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-0069-9221
.
Email:
[email protected]
2 Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Estágios de Pós-Doutorado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS) e Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Professor Associado 2 da Faculdade de Direito e do Programa
de Pós-graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Coordenador do Grupo de Extensão e Pesquisa Crítica do
Direito no Capitalismo (CriDiCa-UFF). Editor-chefe da Revista Culturas
Jurídicas
(https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas).
ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-3923-195X.
6
SUMÁRIO
EIXO I
A CRÍTICA MARXISTA AO DIREITO E ELEMENTOS DO
DEBATE DESCOLONIAL
FORMA JURÍDICA E SOCIALISMO: UM OLHAR
PACHUKANIANO
13
Gladstone Leonel Júnior
Josué Alves Gouvêa Filho
DIREITO ENTRE TÁTICA E ESTRATÉGIA:
CONTRIBUIÇÕES DE LÊNIN PARA UMA CRÍTICA
MARXISTA AO DIREITO
39
Ricardo Prestes Pazello
Pedro Pompeo Pistelli Ferreira
NOTAS SOBRE O IMPERIALISMO CONTEMPORÂNEO
85
Juliane Furno
FASCISMO E AUTORITARISMO, SEUS USOS PARA
PENSAR O BRASIL
119
Matheus Guarino Sant’Anna Lima de Almeida
AS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO SOB A
ÓTICA DA TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA
Júlio César Moreira de Jesus
Mara Rúbia Mendes dos Santos Fernandes
155
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
A MIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE MÃO DE OBRA
VALADARENSE PARA OS EUA
E A PANDEMIA DA COVID-19
181
Críscila Cristina Ramos
Vitor Fraga Cunha
COLONIALIDADE E RACISMO RELIGIOSO:
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA COMO TERRORISMO E O
ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
215
Kelda Sofia da Costa Santos Caires Rocha
Fernando Luis de Assis Oliveira Barbosa
POR UM CONSTITUCIONALISMO AMEFRICANO:
PENSAR O NOSSO TEMPO DESDE UMA PERSPECTIVA
ANTIRRACISTA
257
Vanessa Santos do Canto
EIXO II
O DIREITO DIANTE DA CRÍTICA MARXIANA
EXERCÍCIO PROFISSIONAL CRÍTICO DA DEFENSORIA
PÚBLICA E MAGISTRATURA? PERSPECTIVAS E
POSSIBILIDADES A PARTIR DO MÉTODO DE MARX
287
Davi Rafael Silva Veras
Josué de Matos Ferreira
PARA ALÉM DE PACHUKANIS: UM ESTUDO DE COMO O
DIREITO DISTRIBUI O MAIS-VALOR DO CAPITAL
PORTADOR DE JUROS
Vitor Fraga da Cunha
8
321
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
DA ACUMULAÇÃO ORIGINÁRIA DO CAPITAL À
FEMINIZAÇÃO DA POBREZA: UM OLHAR SOBRE AS
MULHERES E MENINAS MIGRANTES E REFUGIADAS
AMBIENTAIS
355
Aline Gomes Mendes
Christiana Sophia de Oliveira Alves
“FETICHISMO DO PEIXE LIMPO”:
O CASO DAS MULHERES TRABALHADORAS DA PESCA
ARTESANAL
395
Isabelle de Azeredo Silva
Paula Andressa Fernandes Benette
ENTRE TENSÕES E ILUSÕES NA PROMOCÃO DE
CIDADANIA:
REFLEXÕES SOCIOJURÍDICAS A PARTIR DA REALIDADE
DOS CATADORES DE RESÍDUOS NO BRASIL
421
Dieric Guimarães Cavalcante
Anna Carolina Cunha Pinto
TEORIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL E TECNOLOGIA:
TRABALHO REPRODUTIVO E A CRÍTICA AO
SOLUCIONISMO TECNOLIBERAL
461
Daniela Medeiros Depetris
Otávio Henrique Simiano do Bomfim
9
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
10
EIXO I
A Crítica Marxista ao direito e
elementos do debate descolonial
FORMA JURÍDICA E SOCIALISMO: UM
OLHAR PACHUKANIANO
Gladstone Leonel Júnior1
Josué Alves Gouvêa Filho2
Introdução
A análise de determinado objeto da ciência social
que esteja ancorada no materialismo-histórico requer uma
abordagem desse objeto “não como a representação caótica
de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas
determinações e relações” (MARX, 2011a). Esse cuidado é
necessário para o cientista que deseja desenvolver uma
teoria correta, verdadeiramente científica, sobre esse
objeto. Se Karl Marx foi quem melhor elaborou
teoricamente a crítica da economia-política, quem melhor
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional e da
Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Doutor
em Direitos Humanos e Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)
com estágio doutoral na Universitat de València, Espanha. Mestre em Direito
pela UNESP. Especialista em Sociologia Política pela UFPR. Bacharel em
Direito pela UFV. Advogado. Membro do IPDMS (Instituto de Pesquisa,
Direitos e Movimentos Sociais) e do Grupo de Pesquisa de “O Direito Achado
na Rua” e líder do Grupo de Pesquisa "Crítica Jurídica Contemporânea".
ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-0069-9221
.
Email:
[email protected]
2 Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense
(PPGDC-UFF). Pesquisador no Grupo de Pesquisa Crítica Jurídica
Contemporânea da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense
(UFF).
ORCID: https://orcid.org/0009-0006-1448-0318.
Email:
[email protected].
Currículo
Lattes: https://lattes.cnpq.br/2981531797387093.
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
teorizou sobre a forma do direito foi o jurista soviético
Evguiéni Pachukanis.
Seu livro A teoria do direito e o marxismo, de 1924,
lançou os fundamentos da teoria do direito de Pachukanis,
que foi sendo atualizada e modificada no decorrer dos anos
por causa de três fatores principais. Em primeiro lugar,
Pachukanis algumas vezes percebeu a necessidade de
aprimorar sua teoria a partir das críticas feitas por
estudiosos de suas obras. Além disso, a exigência por
alteração se deu por força do próprio decorrer da história,
que veio de encontro a elementos da construção teórica
anteriormente desenvolvida, o que demandou de
Pachukanis um esforço para adequar sua teoria à realidade
concreta. Outro fator de grande relevância para que o jurista
soviético viesse a fazer autocríticas em relação ao seu
trabalho foi a perseguição empreendida pelo Partido
Comunista da União Soviética (PCUS) contra estudiosos
que não seguiam a linha oficial do partido, perseguição essa
que redundou na morte do jurista soviético em 1937.
Os aportes teóricos de Pachukanis são fundamentais
para o estudo do direito em geral, mas possuem especial
relevância para analisar a forma jurídica existente em
sociedades socialistas. Uma vez que seu fazer científico se
deu em um contexto de construção da experiência socialista
soviética, sua obra possui muitas indicações de como ler o
desenvolvimento do direito no socialismo, sua relação com
o Estado proletário e o papel do direito na construção
revolucionária.
14
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
O objetivo deste trabalho é fazer uma análise da
teoria do direito desenvolvida por Pachukanis,
considerando seus principais elementos, para em seguida
contrapô-la à corrente teórica jurídica marxista inaugurada
por Márcio Bilharinho Naves, grande estudioso e principal
expositor da doutrina pachukaniana no Brasil.
Para a elaboração deste trabalho, adota-se como
referencial teórico-metodológico o materialismo-histórico
(MARX, 2011b), utilizando-se pesquisa de perfil teóriconormativo, com abordagem qualitativa e interdisciplinar,
relativamente às esferas do direito e da economia-política,
com raciocínio indutivo. A técnica de pesquisa utilizada é
a revisão bibliográfica. Utilizam-se como fontes de
pesquisa artigos e livros teóricos.
1. A Teoria do Direito de Pachukanis e o Socialismo
Apoiando-se no materialismo-histórico e nos
escritos marxianos, Pachukanis identifica no princípio da
troca de equivalentes a condição fundamental de existência
da forma jurídica, revelando a correlação intrínseca entre
forma jurídica e a forma mercadoria (PACHUKANIS,
2017, p. 85). Marx já havia ressaltado que “O direito, por
sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão
igual de medida” (MARX, 2012, p. 31), justamente pelo
fato da superestrutura jurídica obedecer ao mesmo
15
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
princípio 3 que informa a troca entre mercadorias
equivalentes. Pachukanis percebe no modo de produção
capitalista a estrutura a partir da qual o direito se
desenvolve plenamente, identificando, assim, a natureza
burguesa do direito.
Rompendo com a Escola normativista, que entende
o direito como produto da norma posta por um poder
coercitivo externo, Pachukanis descobre que a relação
jurídica é gerada “pelas relações materiais de produção
existentes entre os homens” (PACHUKANIS, 2017, p.
123), de modo que está na relação social, sobretudo na
troca, o fundamento do direito, e não na norma jurídica4. A
troca mercantil se expressa juridicamente na forma de
contrato entre possuidores de mercadoria que se
apresentam no mercado como sujeitos de direito sobre os
quais recaem os princípios da igualdade, da liberdade e da
autonomia.
O desenvolvimento da economia mercantilcapitalista provoca o surgimento, a consolidação e a
universalização da propriedade privada, que se realiza
como direito no ato da alienação, da troca, em que o objeto,
o produto do trabalho, constitui-se como mercadoria. É no
3 Trata-se do princípio segundo o qual, nas palavras de Marx, “uma quantidade
de trabalho em uma forma é trocada por uma quantidade igual de trabalho em
outra forma” (MARX, 2012, p. 31).
4 Para sustentar que a norma imposta pela autoridade Estatal não é o elemento
fundante da superestrutura jurídica, e sim a relação social baseada na troca,
Pachukanis recorre a Marx para ressaltar que o Estado se desenvolve quando
reunidas determinadas relações de produção, sendo a superestrutura política um
elemento derivado da sociedade civil. Ou seja, não é o Estado que mantém a
coesão da sociedade burguesa, senão o contrário, a sociedade civil mantém o
Estado (PACHUKANIS, 2017, p. 117).
16
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
ato da troca que o possuidor da coisa se apresenta como
sujeito de direito. Assim se dá a realização da forma
jurídica como produto do desenvolvimento do modo de
produção capitalista. Marx, no livro I d’O capital, descreve
a correlação existente entre a relação jurídica e o processo
de troca entre possuidores de mercadoria:
As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e
trocar-se umas pelas outras. Elas são coisas e, por isso, não
podem impor resistência ao homem. (...) Para relacionar
essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus
guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros
como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de
modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia
e alienar sua própria mercadoria em concordância com a
vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade
comum a ambos. Têm, portanto, de se reconhecer
mutuamente como proprietários privados. Essa relação
jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente
desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se
reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação
jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica
(MARX, 2017, p. 159).
Ainda, ao considerar que a relação jurídica decorre
do processo de troca de mercadorias, Pachukanis conclui
que a essência da forma jurídica está no direito privado, que
“os traços fundamentais do direito privado burguês são, ao
mesmo tempo, os traços mais característicos e
determinantes da superestrutura jurídica em geral”
(PACHUKANIS, 2017, p. 59). O direito público apenas
reflete na esfera pública a lógica do direito privado de
contraposição de interesses particulares isolados das forças
políticas em disputa entre si existentes no seio do aparato
estatal. Pachukanis (2017, p. 132-133) cita o exemplo das
lutas entre grupos representados no Poder Legislativo e
17
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
grupos representados no Poder Executivo, lutas entre as
câmaras legislativas, entre outros. Além disso, o direito
público pode exprimir atos políticos que, em decorrência
do universalismo da forma jurídica, passaram a ser dotados
de qualidades jurídicas5 (PACHUKANIS, 2017, p. 121).
O problema entre direito privado e direito público é
expressão do problema entre direito subjetivo e direito
objetivo, ou seja, da questão da correlação entre a
superestrutura jurídica e a superestrutura política. A
concepção normativista do direito compreende que a norma
objetiva gera a obrigação subjetiva que lhe é
correspondente (PACHUKANIS, 2017, p. 130). Indo na
direção oposta, Pachukanis compreende o direito subjetivo
como primário, pois se baseia no interesse existente
independentemente de disposição autoritária externa. De
acordo com sua visão, o jurídico não pode ser reduzido à
característica da coercitividade externa estatal organizada,
sugerindo existir até certa relação de antagonismo entre
direito e Estado ao afirmar que “quanto mais
consequentemente for introduzido o princípio de
regulamentação autoritária, que exclui qualquer indício de
vontade isolada e autônoma, menor será o terreno para a
aplicação da categoria do direito” (PACHUKANIS, 2017,
p. 129).
Mesmo assim, Pachukanis (2017, p. 119-120) se
preocupa em ressaltar que a norma e o poder do Estado
atuam como intermediários entre a relação de produção e a
5
"As exigências 'jurídicas' que partem dos órgãos do poder público, exigências
por detrás das quais não está nenhum interesse privado, nada mais são que a
estilização jurídica dos fatos da vida política" (PACHUKANIS, 2017, p. 195).
18
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
relação jurídica. Relembra, ainda, a afirmação de Lênin
(2017, p. 124) de que o direito burguês pressupõe um
Estado burguês que seja capaz de obrigar o cumprimento
da norma. Pachukanis (2017, p. 115) nega que a norma gera
a relação social nela prescrita, mas compreende o papel do
Estado e da norma de assegurar, garantir a relação.
Um ponto importante se refere à questão do direito
no socialismo, ou seja, o período de transição ao
comunismo. No campo do trabalho, Marx já havia
constatado que apenas numa fase superior da sociedade
comunista seria possível superar o “estreito horizonte
jurídico burguês”, já que na primeira fase do comunismo
(socialismo) o trabalhador receberia da sociedade uma
quantia de meios de consumo equivalente ao seu trabalho,
prevalecendo, assim, o princípio da equivalência e,
consequentemente, a lógica jurídica. Portanto, o direito
haveria de persistir durante o socialismo (MARX, 2012, p.
30-32).
Pachukanis (2017, p. 160-161), por sua vez, em
sintonia com o que Marx escrevera, sustenta que a forma
jurídica permaneceria no período de transição enquanto
durasse “a troca mercantil e nexo mercantil das economias
isoladas”, no caso dos setores econômicos em que ainda
existia a propriedade privada e das empresas estatais que se
constituíam em unidades autônomas, cujas relações entre si
se operam pela troca mercantil. Para ele, a relação jurídica
entre as empresas estatais seria findada pela “vitória
definitiva da economia planificada”, dando lugar a uma
19
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
“relação técnica e racional umas com as outras”6. Assim se
daria, portanto, o definhamento e morte do direito
(PACHUKANIS, 2017, p. 166).
Além disso, o jurista soviético critica, em A teoria
geral do direito e o marxismo, a concepção de um direito
proletário, que, para ele, proclamaria a imortalidade da
forma jurídica, por retirá-la da história ao sugerir a
possibilidade de sua constante renovação. Pachukanis faz
um paralelo entre o direito e categorias econômicas como
valor, capital e lucro, que não haveriam de existir no
socialismo como novas categorias proletárias. Para ele, o
desaparecimento do direito burguês redundaria no
desaparecimento da forma jurídica em geral
(PACHUKANIS, 2017, p. 83).
Por volta dos anos de 1930, Pachukanis teve que
rever alguns pontos de sua teoria para que se adequasse à
nova realidade econômica e política na União Soviética
(URSS7) inaugurada em 1929 pelos Planos Quinquenais,
visto que sua tese ia de encontro ao esforço soviético de
fortalecer o Estado, e consequentemente a lei, tida como
seu acessório (BIERNE; SHARLET, 1979).
A partir desse período, Pachukanis (2004a) passou
a enfatizar a identificação do direito mais com as relações
6 Para Pachukanis (2017, p. 106) a regulamentação jurídica tem como premissa
fundamental a oposição entre interesses privados isolados, enquanto a
regulamentação técnica tem por premissa a unidade de interesses. Ele
exemplifica essa separação citando as normas de responsabilidade sobre
ferrovias, que presumem a contraposição de interesses privados isolados, e as
normas técnicas de tráfego ferroviário, que presumem um único objetivo, como
a obtenção da capacidade máxima de transporte.
7 União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
20
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
de produção do que com as relações de mercado e passou a
conferir maior importância ao elemento da coerção de
classe existente na forma jurídica. Ainda, reclamou uma
leitura do direito que leva em consideração a unidade entre
forma e conteúdo: “A superestrutura jurídica compreende
não apenas a totalidade das normas e ações das agências,
mas a unidade desse lado formal e seu conteúdo, isto é, das
relações sociais que o direito reflete e ao mesmo tempo
sanciona, formaliza e modifica.” (PACHUKANIS, 2004a,
tradução nossa). Essa relativa mudança analítica do autor
revela certa concessão ao normativismo, ainda que sequer
tenha se aproximado das teorias normativistas burguesas do
direito, tratando-se apenas numa mudança de ênfase, que
antes recaía quase que totalmente na relação de troca
mercantil, e a partir de então a norma e o direito positivo
passam a ter maior importância na delimitação da forma
jurídica.
Pachukanis (2004b) passou a enfatizar o caráter
instrumental do direito, que poderia ser exercido como
arma na construção de uma sociedade socialista sem
classes, uma vez que seria forma política do Estado para a
organização da produção socialista e do comércio
soviético.
Ressalta que, tendo sido amplamente superada a
exploração, tendo a sociedade soviética cessado quase
totalmente a existência da propriedade privada dos meios
21
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
de produção8, a remuneração do trabalho não mais se dava
pela venda da força de trabalho como mercadoria, mas pelo
princípio socialista da remuneração conforme o trabalho.
Apesar disso, restava preservado o direito “burguês” (entre
aspas) na URSS, uma vez que, remetendo ao que escrevera
Marx na Crítica do Programa de Gotha, uma igual medida
era aplicada a pessoas desiguais e a relações desiguais,
preservando-se, assim, a desigualdade, questão essa que
apenas seria superada no comunismo avançado
(PACHUKANIS, 2004b).
A norma jurídica passou a ter maior significância na
teoria do direito de Pachukanis, que a entendeu como
necessária à organização contábil para a supervisão do
trabalho e consumo, já que, sendo públicos os meios de
produção, a distribuição dos meios de consumo produzidos
se dava de acordo com a quantidade e qualidade do trabalho
na sociedade soviética (PACHUKANIS, 2021).
A autocrítica de Pachukanis também se deu em
relação à questão do definhamento do direito no socialismo,
que não ocorreu como havia teorizado anteriormente. Em
vez disso, afirma que o direito na URSS “espelhou relações
socialistas uniformes de produção” (PACHUKANIS,
2021). Reviu também sua posição de que o direito não
poderia adquirir um caráter proletário, socialista. Seguindo
8
Estão entre os resultados produzidos pelos primeiros Planos Quinquenais
adotados na URSS a eliminação da burguesia urbana (REIS FILHO, 1983, p.
36-37) e a quase total coletivização do campo: nos fins de 1935 atingiu-se a
marca de 98% dos camponeses coletivizados (REIS FILHO, 2003, p. 88). Esses
dados revelam que, por volta das décadas de 1930 e 1940, a União Soviética
eliminou de seu território a propriedade privada e, por conseguinte, a
exploração da força de trabalho.
22
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
a linha oficial do PCUS, declarou que o direito soviético
era dotado de uma “essência socialista enquanto Direito do
Estado proletário” (PACHUKANIS, 2021).
Cumpre ressaltar que Pachukanis jamais abandonou
todo o fundamento de sua teoria, tendo senão adaptado os
elementos teóricos supracitados à linha normativista oficial
do Partido Comunista da União Soviética – que objetivava
o fortalecimento do Estado – e à própria realidade dos fatos,
que não havia confirmado, por exemplo, a conclusão a que
chegara a respeito do definhamento do direito quando da
“vitória definitiva da economia planificada”9. Tanto que em
1936, em um de seus últimos escritos, Pachukanis relaciona
algumas premissas estabelecidas em A teoria geral do
direito e o marxismo com novos elementos que passaram a
ser considerados:
A teoria da “natureza burguesa” de todo Direito
persistentemente confundiu coisas diferentes como a
coexistência da iniciativa privada e a prestação de contas
de empresas socialistas, troca capitalista e troca por
cooperativas e agências do Estado proletário, a troca
equivalente de mercadorias de acordo com o valor e o
princípio socialista de distribuição conforme o trabalho.
(PACHUKANIS, 2021).
Assim se completa a teoria do direito de
Pachukanis, reputada a mais avançada do campo marxista
9 Defende-se que de fato ocorreu na União Soviética, na década de 1930, a
“vitória definitiva da economia planificada”, não no sentido de perpetuidade do
socialismo ou da planificação no país, que não aconteceu, mas para dizer que
se consolidou uma política ancorada no amplo planejamento da economia pelo
Estado, estruturada sobre os Planos Quinquenais, em substituição à Nova
Política Econômica (NEP) que havia sido instituída por Lênin em 1921. Os
Planos Quinquenais organizaram a economia da URSS até seu fim, em 1991.
23
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
e que continua sendo pedra angular entre aqueles que se
propõem a analisar a forma jurídica com rigor científico a
partir do materialismo-histórico. Passa-se, assim, a tratar da
principal corrente teórica que recebeu a teoria
pachukaniana no Brasil e que figura como uma das mais
importantes linhas teóricas da crítica jurídica marxista do
país.
2. Teoria da Transição, Teoria do Direito e sua relação
entre si
Um fator de enorme relevância que se deve
considerar ao se adotar uma teoria desenvolvida a partir do
materialismo-histórico é que seus pressupostos serão, no
seu devido tempo, testados pela realidade concreta.
Diversamente do que ocorre com a maioria das teorias
idealistas burguesas, cujas premissas fundamentais muitas
vezes são apriorísticas e, portanto, não podem ser testadas
na prática, podendo apenas ser contestadas por outras
teorias, as doutrinas que utilizam o método marxista serão
inevitavelmente postas à prova pelo desenrolar dos
acontecimentos.
Assim se deu com a teoria do direito de Pachukanis.
Embora a pressão exercida pelo Partido Comunista da
União Soviética tenha sido fator fundamental para o
advento das autocríticas feitas pelo jurista soviético e de sua
aproximação à linha oficial do Partido, é fato que, conforme
já foi colocado, a realidade concreta não confirmou a
“previsão” de que o direito definharia e morreria com a
24
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
vitória da planificação da economia soviética. Na verdade,
o direito não apenas não definhou, como a codificação e
normatização das relações sociais na União Soviética
avançou em acordo com as novas relações socialistas de
produção10 (PACHUKANIS, 2021).
Portanto, o pensador que vier a analisar a teoria
desenvolvida por Pachukanis considerando apenas seus
trabalhos produzidos nos anos de 1920, sobretudo em A
teoria geral do direito e o marxismo, contrapondo-a ao fato
de que a forma jurídica não definhou com a planificação da
economia da URSS, deverá adotar uma das seguintes
posturas: (i) negar a teoria de Pachukanis por completo; (ii)
seguir o caminho do próprio Pachukanis para corrigir os
elementos teóricos que se comprovaram incorretos,
adequando a construção teórica à realidade concreta; ou
(iii) entender como correta a teoria pachukaniana
incompleta 11 e compreender que a União Soviética não
seguiu o caminho do socialismo e, por esse motivo, o
direito se manteve e se desenvolveu no país (ou, invertendo
os fatores, entender que a URSS desviou-se do socialismo,
de modo que as diferenças existentes entre a realidade
soviética e a teoria incompleta de Pachukanis não
comprometem sua validade teórica).
10 “Após a vitória do socialismo e a liquidação da estrutura pluralista da
economia, o Direito não começou a definhar, em vez disto, este foi o período
em que o conteúdo do Direito socialista soviético – tanto na cidade quanto no
campo – espelhou relações socialistas uniformes de produção”
(PACHUKANIS, 2021).
11 Por “teoria pachukaniana incompleta” leia-se a teoria sem as modificações
efetuadas por Pachukanis no decorrer da década de 1930.
25
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
Muitos dos juristas brasileiros que reivindicam a
teoria do direito de Pachukanis seguiram o terceiro
caminho, o de negar que a experiência soviética seria
verdadeiramente socialista (ou pelo menos considerando-a
como um socialismo degenerado), muitas vezes acusando a
URSS de ser um caso de “capitalismo de Estado”.
Esses juristas têm em Márcio Bilharinho Naves seu
principal nome, sendo grande divulgador da obra e da teoria
de Pachukanis no Brasil. Ricardo Prestes Pazello – que se
propôs a fazer um balanço da presença do marxismo entre
os estudiosos brasileiros da área do direito –, ao tratar do
“reflorescimento do marxismo no campo jurídico
brasileiro”, ressalta que a obra de Naves “inaugura uma das
mais importantes tendências do estudo de marxismo e
direito no Brasil: o aprofundamento na leitura da obra do
jurista soviético Evguiéni Pachukanis” (PAZELLO, 2021,
p. 73).
Assim, em razão de seu pioneirismo e de sua
reconhecida importância na produção científica jurídica
brasileira no que diz respeito à teoria de Pachukanis, tendo
influenciado toda uma Escola do pensamento jurídico
crítico no Brasil (PAZELLO, 2021, p. 74), passar-se-á,
então, a dialogar com a concepção de Márcio Bilharinho
Naves acerca do socialismo, para então analisar o problema
da superestrutura jurídica no socialismo.
Naves (2005, p. 57-58), ao examinar o processo
revolucionário soviético, critica a concepção de que a
União Soviética teria sido um país socialista “apenas”
porque “o Estado passou a ser o proprietário dos meios de
26
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
produção”, avaliando tal fator como algo restrito à esfera
jurídica, “uma simples transferência da titularidade dos
meios de produção da burguesia privada para o Estado”.
Para ele, a transformação da sociedade burguesa e a
supressão das relações de produção capitalistas devem se
dar não apenas pela estatização dos principais meios de
produção, mas pela superação da divisão entre o trabalho
manual e o trabalho intelectual e entre as tarefas de direção
e as tarefas de execução, o que poria fim ao processo de
valorização e à separação do trabalhador dos meios de
produção (NAVES, 2005, p. 57-60).
Além disso, ressalta que o exercício do poder
político pela classe trabalhadora não ocorre por meio do
controle do Estado pelo partido operário apenas, mas pela
“revolucionarização” do aparato estatal. O Estado deveria
relativamente se enfraquecer e as organizações de massas
se fortalecer através da operação de transformações que
afetassem particularmente o núcleo repressivo e
burocrático estatal, como a substituição das forças armadas
pelas massas em armas e o controle permanente das massas
sobre os quadros burocráticos (NAVES, 2005, p. 59).
Ainda que originada de uma revolução social,
determinada experiência política se encontraria no marco
de um “capitalismo de Estado”, e não do socialismo, caso
se limitasse a realizar a estatização dos meios de produção
sem promover a superação da divisão entre trabalho manual
e trabalho intelectual e da divisão entre as tarefas de direção
e as tarefas de execução, bem como se deixasse de realizar
uma “revolucionarização” do Estado a partir de um drástico
27
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
processo de desburocratização. Seria esse “capitalismo de
Estado”, portanto, um terreno fértil para a reconstituição do
tecido jurídico, forma social apenas existente (em seu pleno
desenvolvimento) em sociabilidades nas quais ocorrem a
circulação mercantil e a valorização do valor (NAVES,
2000, p. 167).
Assim, verifica-se que a concepção de direito que o
relaciona tão somente à circulação mercantil e a concepção
de socialismo como sendo a imediata (ainda que parcial)
desintegração do Estado aliada à desorganização das
relações hierárquicas de produção se mostram compatíveis
entre si; essas concepções – ambas incorretas, como poderse-á verificar – se suportam mutuamente 12 . O inverso
também é verdadeiro: uma compreensão bem construída do
que é socialismo pode contribuir para o desenvolvimento
de uma adequada teoria do direito e vice-versa; e ambas
conduzem a uma boa prática revolucionária.
Alguns problemas devem ser apontados em relação
à concepção de socialismo apresentadapor Márcio
Bilharinho Naves. Talvez o mais patente deles seja
diminuir a relevância das condições históricas em que se dá
o processo de transição ao comunismo. No caso da nascente
União Soviética, embora admita a extrema gravidade de sua
12
Naves também compreende que determinada concepção de socialismo
corrobora determinada concepção do direito, de modo que a teoria da transição
socialista e a teoria do direito podem se influenciar mutuamente. Veja-se:
“Pachukanis modifica a sua concepção do direito por força, substancialmente,
das contradições internas de seu pensamento, que o tornam extremamente
vulnerável quando o ‘socialismo’ parece ter triunfado ao mesmo tempo em que
a exigência do direito remanesce, e ele não pode encontrar em sua teoria os
elementos para explicar esse paradoxo!” (NAVES, 2000, p. 149).
28
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
situação conjuntural (NAVES, 2005, p. 60), Naves parece
não levar em consideração que os problemas
historicamente colocados – como o fato da Rússia ter sido
um país de notório atraso econômico – e os problemas
colocados pelo imperialismo – como invasões, guerras,
sabotagens,
bloqueios
comerciais,
incitação
à
contrarrevolução por meio de propaganda etc. –
ameaçavam a própria existência da experiência
revolucionária e só poderiam ser enfrentados com o
fortalecimento dos instrumentos políticos conquistados
pela classe trabalhadora, sem negá-los por terem natureza
burguesa13.
Tendo em vista que todas as revoluções socialistas
sofreram e sofrem desses mesmos problemas – atraso
econômico e sabotagem imperialista – a luta pela
sobrevivência com todos os meios existentes torna-se
necessidade histórica. De um ponto de vista dialético, o
Estado, a burocratização, o direito e até o mercado, quando
reunidas determinadas condições históricas, são utilizados
no sentido de possibilitar a continuidade de determinada
experiência revolucionária.
Outro problema existente na concepção de
socialismo de Márcio Bilharinho Naves está em reclamar a
imediata extinção da divisão entre o trabalho manual e o
13 “A eliminação das classes não é alcançada pela supressão da luta de classes,
mas pela sua intensificação. O definhamento do Estado não acontecerá se
enfraquecendo a autoridade estatal mas através de sua máxima consolidação.
Isto é vital se nos colocamos para destruir o restante das classes moribundas e
organizar a defesa contra um cerco capitalista o qual está longe de ser
eliminado, e não o será tão cedo” (STÁLIN, 1933 apud PACHUKANIS, 2021).
29
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
trabalho intelectual e entre as tarefas de direção e as tarefas
de execução no socialismo, sem considerar as condições
históricas para tanto. Engels, ao polemizar com socialistas
de sua época, já tratava da necessidade de superar
historicamente “o princípio da autoridade” no processo
produtivo, buscando observar se as “condições da
sociedade” lhes permitiriam “dar à vida um outro estado
social no qual essa autoridade não [tivesse] mais razão de
existir e onde, por conseguinte, [devesse] desaparecer”
(ENGELS, 2003).
Engels ressalta que mesmo em uma hipotética
sociedade socialista, os trabalhadores estariam submetidos
à autoridade das máquinas industriais, bem como todos
teriam que se submeter à autoridade de um único delegado
para decidir sobre as formas de produção coletiva, de modo
que, ainda que o delegado tivesse sido eleito pelo voto da
maioria, a vontade individual estaria subordinada à vontade
da maioria. “Querer abolir a autoridade na grande indústria,
é querer abolir a própria indústria” (ENGELS, 2003).
Lênin, já no exercício da função de liderança
política da Rússia socialista, também se preocupa em tratar
necessidade de submissão do trabalho à autoridade
planificadora da produção: “O socialismo é inconcebível
sem a grande técnica capitalista construída segundo a
última palavra da ciência moderna, sem uma organização
estatal planificada que submeta dezenas de milhões de
pessoas à mais rigorosa observância de uma norma única
na produção e na distribuição dos produtos” (LÊNIN, 1918
apud LÊNIN, 2012).
30
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
Ainda, pode-se vislumbrar um problema mais geral
na concepção de socialismo de Naves (e que reflete a
questão tratada imediatamente acima): a desconsideração
da necessidade de se desenvolver as forças produtivas a fim
de se atingir um novo modo de produção. A revolução não
se dá simplesmente por uma desorganização das relações
capitalistas de produção, mas por sua superação em nível
de produtividade do trabalho. Marx atentou para o fato de
que “uma sociedade jamais desaparece antes que estejam
desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter,
e as relações de produção novas e superiores não tomam
jamais seu lugar antes que as condições materiais de
existência dessas relações tenham sido incubadas no
próprio seio da velha sociedade” (MARX, 2008, p. 48).
Em outra oportunidade, Marx indica como caminho
ao comunismo avançado o crescimento das forças
produtivas para se alcançar a abundância produtiva das
fontes de riqueza coletiva, atentando para o fato de que até
que se atinja esse objetivo haverá distorções na sociedade
de transição (MARX, 2012, p. 31-32).
No mesmo sentido, Engels ressalta que as
transformações sociais e revoluções nas relações de
propriedade 14 são consequência da criação de novas e
superiores forças produtivas (ENGELS, 2013). Assevera,
ainda, que “não se podem fazer aumentar de um só golpe
as forças produtivas” e que a revolução do proletariado é
Por “relações de propriedade” leia-se relações de produção, considerando
que “relações de propriedade” não é mais que a “expressão jurídica” das
relações de produção (MARX, 2008, p. 47).
14
31
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
um processo que lentamente poderá transformar a
sociedade da qual irrompeu (ENGELS, 2013).
Tratando agora do tema do burocratismo e da
separação das massas do aparato estatal, é preciso que se
observe as contribuições de Lênin em relação ao exercício
do poder político pela classe trabalhadora. Sem se deixar
cair em um desvio vanguardista, deve-se levar em conta que
o processo revolucionário demanda uma vanguarda do
proletariado que se ocupe diretamente das atividades
políticas na ditadura proletária e que seja capaz de defender
a revolução socialista contra a ameaça da contrarrevolução.
O afastamento da vanguarda revolucionária em
relação às massas acarreta o burocratismo. Porém, é preciso
que se verifique em cada caso quais são “as raízes
econômicas do burocratismo”, para que esse problema seja
adequadamente resolvido. Essas raízes econômicas podem
ser o baixo desenvolvimento das forças produtivas, a falta
de instrução da população, o analfabetismo, a miséria, a
dispersão da população etc. (LÊNIN, 2012). Portanto, a
vitória da organização das massas sobre o burocratismo não
ocorrerá com uma simples decisão política, ela precisa ser
conquistada no seio da luta de classes, por meio do
desenvolvimento das forças produtivas, do avanço
tecnológico e da educação das massas.
Essas considerações de Marx, Engels e Lênin,
aprovadas no teste implacável da história, deveriam afastar
qualquer concepção imediatista de definhamento do Estado
e do direito no socialismo, que enxerga restauração
32
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
capitalista em toda experiência que tem que lidar com as
acentuadas contradições do período de transição.
Em suma, para que se desenvolva uma concepção
correta de socialismo, deve-se levar em consideração estes
elementos: a necessidade de sobrevivência da experiência
revolucionária diante das ameaças do imperialismo; a
necessidade da autoridade no processo produtivo até que
seja historicamente superada; o desenvolvimento das forças
produtivas como condição para a superação do capitalismo;
o reconhecimento da necessidade de se ter uma vanguarda
revolucionária ocupada com a defesa da revolução e o
reconhecimento da necessidade de um correto
embasamento político e econômico da luta contra o
burocratismo.
A correta compreensão do socialismo proporciona
o entendimento de que as experiências revolucionárias
como, por exemplo, da antiga União Soviética, da China,
de Cuba etc. foram e são efetivamente experiências
socialistas. Tendo-se alcançado esse entendimento, deve-se
refletir sobre o porquê do elemento jurídico ter perseverado
no socialismo, mesmo nos casos em que se avançou na
planificação da economia e se superou a propriedade
privada dos meios de produção e a exploração, a despeito
do que havia teorizado Pachukanis na década de 1920. Tal
reflexão deve levar à conclusão de que os fundamentos das
modificações teóricas de que Pachukanis se ocupou no
decorrer da década de 1930 estão corretos no que se refere
ao desenvolvimento do direito no socialismo.
33
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
Feitas essas considerações, pode-se perceber na
totalidade da obra de Pachukanis, incluindo seus escritos da
década de 1930, a melhor formulação da teoria do direito,
a qual, por um lado, utiliza a base do que foi teorizado n’A
teoria geral do direito e o marxismo, qual seja, a
identificação da forma jurídica nas relações de produção e
no princípio da equivalência, que se relaciona com o
princípio do "igual direito", e por outro lado compreende o
papel do Estado e da norma que atinge a relação social,
podendo modificá-la e regulá-la, bem como concebe o
papel do direito como instrumento do Estado proletário na
construção do socialismo.
Conclusão
A análise adequada da forma jurídica no socialismo
exige um esforço teórico que, por um lado, não dê espaço à
ideologia jurídica, e, por outro, não permita uma leitura
engessada do direito, ainda que fundamentada em bases
gerais corretas.
A teoria do direito de Pachukanis não à toa é
considerada, por grande parte dos juristas do campo do
marxismo, a que melhor explicou a forma jurídica em sua
materialidade, ao perceber nas relações de produção e de
circulação das mercadorias e dos bens de consumo o
fundamento do direito. Deve-se levar em consideração,
porém, que as alterações teóricas operadas pelo jurista
soviético ocorreram por motivos históricos, quer dizer, a
34
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
própria realidade apontou os limites existentes na teoria e,
assim, demandou sua parcial reformulação.
Todavia, como se pôde constatar, a recepção recente
da doutrina de Pachukanis no Brasil ocorreu por um viés
que bate de frente com o marxismo-leninismo, a própria
base metodológica e epistemológica na qual o jurista
sovético se apoiava ao desenvolver seu estudo15. Observouse que a corrente teórica que liderou essa recepção da obra
pachukaniana faz uma leitura desviante do direito, pois
nega as mudanças teóricas operadas pelo jurista soviético
que foram impostas pela própria realidade. Além disso, essa
corrente mostra com clareza seus limites ao debater sobre o
caráter socialista da União Soviética, uma vez que nega o
fato amplamente reconhecido de que o país representava
uma experiência socialista, caracterizando-o como um
“capitalismo de Estado”.
Ambos os equívocos acabam se favorecendo
mutuamente, de modo que a análise incorreta do socialismo
pode corroborar a análise incorreta do direito e vice-versa.
Ao examinar a superestrutura jurídica de um país socialista,
deve-se cuidar para não incorrer nesses erros; deve-se
observar a realidade tal como é, sem se deixar pautar por
convenientes apriorismos.
Qualquer leitura pretensamente marxista que, ao
analisar determinada experiência socialista, encara na
existência de “direito burguês” a negação do caráter
Isso é admitido por Naves quando afirma que a “relação que Pachukanis
estabelece entre o socialismo e o direito (...) [é] limitada pela problemática
marxista da Terceira Internacional” (NAVES, 2000, p. 170).
15
35
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
socialista dessa experiência padece de materialismo, uma
vez que observa a realidade a partir de elementos
apriorísticos, como “o definhamento do direito”, sem
considerar o processo que poderá conduzir a sociedade em
questão ao alcance das condições materiais que permitirão
a superação da forma jurídica e de todas as formas
burguesas.
Portanto, verifica-se que a teoria do direito de
Pachukanis em sua totalidade, quer dizer, a teoria que inclui
os elementos de autocrítica, notadamente as mudanças de
ênfase em relação ao papel da norma e do Estado na
determinação da superestrutura jurídica, representa a
construção teórica mais avançada do direito, se comparada
à leitura da doutrina pachukaninana que despreza as
modificações empreendidas durante a década de 1930. Esse
fato se torna ainda mais notório ao se analisar o
desenvolvimento do direito no socialismo e seu papel na
construção revolucionária.
Referências Bibliográficas
BIERNE, Piers; SHARLET, Robert. Introduction to Pashukanis.
Marxists’
Internet
Archive,
1979.
Disponível
em:
<https://www.marxists.org/archive/pashukanis/biog/biogintro.htm>.
Acesso em: 20 jan. 2023.
ENGELS, Friedrich. Sobre a autoridade. Marxists’ Internet Archive,
2003.
Disponível
em:
<https://www.marxists.org/portugues/marx/1873/03/autoridadept.htm>. Acesso em: 20 jan. 2023.
36
Gladstone Leonel Jr.
Enzo Bello (orgs.)
ENGELS, Friedrich. Princípios Básicos do Comunismo e outros
textos. São João del Rei: Estudos Vermelhos, 2013.
LÊNIN, Vladímir Ilitch. Sobre o Imposto em Espécie: O Significado
da Nova Política e as Suas Condições. Marxists’ Internet Archive,
2012.
Disponível
em:
<https://www.marxists.org/portugues/lenin/1921/04/21.htm>. Acesso
em: 20 jan. 2023.
LÊNIN, Vladímir Ilitch. O Estado e a Revolução: doutrina do
marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na Revolução. 1.
ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2008.
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858:
esboços da crítica da economia política. 1. ed. São Paulo: Boitempo,
2011a.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2011b.
MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2012.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 2 ed. São Paulo:
Boitempo, 2017.
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre
Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2000.
NAVES, Márcio Bilharinho. Stalinismo e capitalismo. In: NAVES: M.
B. (Org.). Análise marxista e sociedade de transição. Campinas:
IFCH/Universidade Estadual de Campinas, 2005.
37
DIREITO E MARXISMO
Críticas contemporâneas
PACHUKANIS, Evguiéni. A teoria geral do direito e o marxismo e
ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.
PACHUKANIS, Evguiéni. The Marxist Theory of State and Law.
Marxists’
Internet
Archive,
2004a.
Disponível
em:
<https://www.marxists.org/archive/pashukanis/1932/xx/state.htm>.
Acesso em: 20 jan. 2023.
PACHUKANIS, Evguiéni. A Course on Soviet Economic Law.
Marxists’
Internet
Archive,
2004b.
Disponível
em:
<https://www.marxists.org/archive/pashukanis/1935/xx/sovlaw.htm#f
29>. Acesso em: 20 jan. 2023.
PACHUKANIS, Evguiéni. Estado e Direito sob o Socialismo.
LavraPalavra,
2021.
Disponível
em:
<https://lavrapalavra.com/2021/11/16/estado-e-direito-sob-osocialismo/>. Acesso em: 20 jan. 2023.
PAZELLO, Ricardo Prestes. Jardim suspenso entre dois céus: um
ensaio sobre o estado da arte da relação entre marxismo e direito no
Brasil, hoje. Revista Culturas Jurídicas, Vol. 8, Núm. 20, mai./ago.,
2021.
Disponível
em:
<https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/51564/30434>
. Acesso em: 20 jan. 2023.
REIS FILHO, Daniel Aarão. URSS: O socialismo real (1921-1964).
São Paulo: Brasiliense, 1983.
REIS FILHO, Daniel Aarão. As Revoluções Russas e o Socialismo
Soviético. São Paulo: Editoria Unesp, 2003.
38