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Os campos de realocamento estadunidenses:
uma narrativa através do mangá They Called Us
Enemy, de George Takei
U.S. Relocation Camps: A Narrative through the
Manga They Called Us Enemy, by George Takei
Antonio Augusto Zanoni1
Resumo: Através desse trabalho, anseia-se antes de mais nada, rememorar. Ao
mesmo tempo, busca-se narrar uma já então narrativa – a de George Takei – a
partir de uma experiência de tempo que não pertence necessariamente ao
sujeito contemporâneo comum, mas que ainda assombra os vivos, visto que o
passado não trabalhado se torna memória difícil, por vezes traumática, e que
não cessa de atormentar o presente. Assim, através do mangá They called us
Enemy de George Takei, vivenciaremos com o autor suas experiências acerca da
Segunda Guerra Mundial fora do campo de batalha, lançando mão de conceitos
presentes nas humanidades, ao passo que procuraremos nos manter na linha
de um leitor comum, com a intenção de consumir a narrativa do modo como ela
foi planejada, issto é, a de um relato de vivências difíceis, e que serve como
alerta para as fantasmagorias do mundo contemporâneo.
Palavras-Chave: George Takei. Mangá. Campo de Realocamento.
Abstract: Through this work, it is yearned, first of all, to remember. At the
same time, an attempt is made to narrate an already existing narrative – that of
George Takei – based on an experience of time that does not necessarily belong
to the common contemporary subject, but which still haunts the living, since
the past that has not been worked on becomes difficult memory, at times
traumatic, and which never ceases to torment the present. Thus, through the
manga They called us Enemy by George Takei, we will live with the author his
experiences about the Second World War outside the battlefield, making use of
concepts present in the humanities, while we will try to keep ourselves in line
with a common reader, with the intention of consuming the narrative the way it
was planned, that is, an account of difficult experiences, and which serves as an
alert to the phantasmagorias of the contemporary world.
Keywords: George Takei. Manga. Relocation Center.
1
Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo. E-mail:
[email protected].
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Introdução
O mangá contemporâneo – do século XX em diante – é um objeto de
múltiplas possibilidades. Tentar exemplificar seus usos e possibilidades
se faz não só desnecessário, quanto uma atividade infrutífera, visto que
as narrativas criadas pelos humanos variam de acordo com as
constelações que os mesmos conseguem produzir no seu tempo e
espaço.
Dessa forma, pretendo não tomar muito tempo nesse início, do
mesmo modo que não irei me aprofundar em questões filosófico-morais
a partir do meu contexto. Assim, intenciono ser, por um lado, um
apresentador da história de George Takei e de sua narrativa que por si
só já apresenta discussões morais e éticas produzidas pelo autor em seu
contexto. Por outro lado, objetivo me apropriar de sua narrativa para
evidenciar e discutir algumas questões de carácter históricomnemônico, isso é, de como a memória se apropria da história e a
modifica.
Para tal empreitada, uso como fonte primária e base, o mangá They
called us enemy, de George Takei, na sua primeira versão lançada
(2019), no original em inglês – apesar de que já existe uma versão em
português, lançada posteriormente a data de início das pesquisas com
essa fonte.
Para a discussão, conversarei com vários autores que discutem o
mangá, como Sonia Luyten, Roman Rosenbaum e Yasuko Claremont,
assim como autores que nos são valiosos para com a questão da
memória, como Jacques Le Goff, Paul Ricœur e Pierre Ansart. Todavia,
como a minha discussão não diretamente ligada em explicar os
conceitos propostos, mas usá-los diretamente para com a narrativa de
Takei, faz-se importante salientar que os mesmos não serão chamados
ao texto, mas faço uso de suas visões para enriquecer minha discussão.
Assim sendo, com a intenção de entender essa fronteira entre
identidades, nacionalidades, costumes e outros encontros entre os
humanos, me utilizo de Walker (2017), que busca fazer uma história
concisa do Japão, não deixando de lado o levantamento de questões
essenciais, como a hibridização cultural, que também estará presente
em Canclini (2015) e Clifford (1986). Nesse interím, ainda se faz
necesário entender, nem que de forma breve, a ideia de imigrante que
envolve nosso tema, e a legitimidade legal de pertencimento a uma
nação como a dos EUA, discussões presentes em Shacar et. Al. (2017) e
Feere (2010). Por fim, Walter Benjamin (1987) nos auxiliará com a
questão do passado, e como o mesmo está ligado ao presente a partir da
construção de diferentes narrativas pelos diferentes sujeitos da história.
Optei por produzir o trabalho de forma sequencial, visto que o
mangá do autor não apresenta subpartes. Desse modo, para não
interromper a própria narrativa de Takei, e tratá-la de forma igualitária,
optei por discutir os mais diferentes assuntos conforme o próprio autor
os abordava.
Antes de mais nada, precisa-se ter em mente que o pai de George
Takei era um japonês que cresceu nos EUA; sua mãe era estadunidense,
assim como o próprio George e seus irmãos. Sendo japoneses ou
descendentes, a cultura japonesa se mantinha forte nas comunidades e
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nos hábitos do cotidiano de todos aqueles que detinham essa
ancestralidade. James Clifford (1986, p. 313) pensa que considerar
o mundo inteiro como uma terra estrangeira’ possibilita uma
originalidade na visão. A maioria das pessoas é consciente sobretudo de
uma cultura, de um ambiente, de um lar; os exilados são conscientes de
pelo menos dois, e essa pluralidade de visão dá lugar a uma consciência
[sic] que – para utilizar uma expressão da música – é contrapontística...
Para um exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo
ambiente ocorrem inevitavelmente em contraste com uma lembrança de
coisas em outro ambiente. Desse modo, tanto o novo ambiente como o
anterior são vívidos, reais, e se dão juntos em um contraponto.
Mesmo que Takei, sua família, os japoneses imigrados ou
descendentes não sejam considerados exilados, a ideia de Clifford nos é
muito útil. Os grupos nipônicos nos Estados Unidos, de uma maneira
geral, sempre mantiveram ligações fortes com o seu antigo país, tanto
pelas práticas culturais, quanto também através de ritos religiosos e a
própria língua – que não deixam de ser elementos culturais. É
importante antes de seguirmos com a análise do mangá, entender que
os descendentes de nipônicos eram já estadunidenses, pois nasceram
em território dos Estados Unidos, como defende a emenda XIV, de 1868,
da constituição dos EUA (FEERE, 2010). Se por um lado para ser
considerado japonês o indivíduo precisa ter um laço de
consanguinidade, em muitos países “ocidentais”, nascer no seu
território o faz ser cidadão daquele local. É claro que dependendo de
diversos fatores, o processo de naturalização por parte de um imigrante
era mais complexo, ou ainda, impossível de acontecer (SHACHAR et al.,
2017)
Todavia, pela maneira como as comunidades nipônicas foram se
desenvolvendo nesse e em outros países, isto é, uma comunidade que se
ajuda internamente, e se isola do outro2, acabam por criar em si mesmas
uma barreira que, por vezes, os impede de se inserir na sociedade local.
Mais profundamente ainda, Max Weber argumenta que enquanto a
filosofia e visão de mundo ocidental busca ajustar o mundo as
necessidades humanas, o mundo asiático, de influência confucionista e
budista, busca ajustar o humano ao seu meio. Essa “comunidade
imaginária” criada na modernidade por currículos escolares, feriados e
museus não se aplicam diretamente ao japonês e seus descendentes,
que vivem na tradição milenar de pertencimento a uma comunidade
ligada pelo sangue, pela mitologia, pela família imperial. Isso no entanto,
não os torna menos estadunidenses que outros sujeitos, descendentes
de outros povos que chegaram apenas a um ou dois séculos antes. A
experiência de viver no hibridismo, se reinventar e se identificar com
novos ou antigos grupos faz parte da experiência humana (WALKER,
2017).
Assim, os descendentes de japoneses são estadunidenses que
contém hábitos e costumes tipicamente japoneses. Esses indivíduos
japoneses-americanos (da mesma forma que Takei vai se identificar,
assim como outros que se encontram na mesma situação que ele) são,
2 Entende-se o outro como um sujeito ou comunidade que apresenta características distintas de um outro indivíduo ou grupo.
Essas características são em geral arbitrárias e dadas por questões históricas que variam no tempo e espaço, assim como na
própria especificidade dos agentes envolvidos.
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portanto, o encontro entre as fronteiras geográficas e culturais, dos
insiders e os outsiders e que por não terem um lugar de pertencimento
similar ao construído no imaginário coletivo – de forma intencional ou
não – pelos demais sujeitos do estado nação em que se encontram, vão
ser excluído, colocados a margem da história3.
Deste modo, estudar esses encontros híbridos que se formam a
partir dos eventos da Segunda Guerra Mundial, através do mangá de
Takei, é uma forma de observar não apenas as divergências de
diferentes formas de entender o mundo, mas também as manifestações
de conflitos não resolvidos e os caminhos oblíquos que tomam
(CANCLINI, 2015). Por conseguinte, poderemos notar nas páginas da
obra de Takei as disputas discursivas e relações de poder entre
diferentes ideologias e modos de ver o mundo, que no embate reforçamse em si mesmas ou abrem-se a novas possibilidades.
Mesmo que Takei tenha nascido em território estadunidense, seu
fenótipo apresentava as características do inimigo e era tratado como
tal. Nesse caso, as comunidades nipônicas foram realocadas para regiões
específicas, sem saber ao certo suas localizações, geralmente longe da
costa oeste dos EUA, que é banhada pelo Oceano Pacífico e que na
narrativa do governo do país, facilitaria espiões de fugirem dada a
proximidade da costa. O discurso de exclusão ocorre através da
produção de um imaginário e de uma narrativa, que tem a intenção de
permitir uma exclusão, mais do que cultural, fisionômica. O mesmo não
ocorre de forma semelhante com indivíduos descendentes de italianos
ou alemães por exemplo, pois esses, pelo menos fenotipicamente, não
continham traços do inimigo ou eram mais leves4. Como a própria
publicação da Biblioteca do Congresso deixa claro,
Essa prisão em larga escala de cidadãos americanos apenas com base em
sua ascendência foi recebida com aprovação quase universal pela
população não nipo-americana e foi aceita em grande parte sem
questionamentos. Nenhuma explicação séria foi oferecida sobre por que
nenhum internamento em larga escala de alemães ou ítalo-americanos
ocorreu, ou por que o internamento de pessoas de ascendência japonesa
era necessário no continente, mas não no Havaí, onde a grande população
nipo-havaiana foi em grande parte incólume. O exército nunca foi
obrigado a provar que os americanos internados nos campos
representavam qualquer ameaça militar, ou que as realocações de alguma
forma tornavam a nação mais segura contra ataques; sua ascendência era
considerada evidência suficiente. Nenhum nipo-americano foi condenado
por qualquer ato de sabotagem durante a Segunda Guerra Mundial5.
3 É possível ler uma matéria no site da Biblioteca do Congresso dos EUA que reforça tal afirmação. A mesma se encontra
disponível no site https://www.loc.gov/classroom-materials/immigration/japanese/the-us-mainland-growth-andresistance/. Acesso em 11 de novembro de 2022.
4 É importante, no entanto, salientar que houve repressão para com grupos ítalo-americanos e germano-americano, que
apesar de seu fenótipo não ser tão distinto de outros habitantes dos EUA, detinham sobrenomes e práticas culturais que
também os tornavam distintos. No site supracitado na nota de rodapé 2, encontram-se outras matérias acerca dos diversos
grupos de imigrantes que participaram do processo histórico de formação dos EUA, incluindo-se aqui, os italianos, alemães e
os próprio japoneses.
5 This large-scale imprisonment of U.S. citizens solely on the basis of their ancestry was met with almost universal approval
by the non-Japanese-American population, and was accepted largely without question. No serious explanations were offered
as to why no large-scale internment of German or Italian Americans ever took place, or why internment of people of Japanese
descent was necessary on the mainland but not in Hawaii, where the large Japanese-Hawaiian population went largely
unmolested. The army was never required to prove that the Americans interned in the camps posed any military threat, or
that the relocations in any way made the nation safer from attack; their ancestry was considered evidence enough. No
Japanese American was ever convicted of any act of sabotage during World War II.
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De fato, é pela aparência distinta da dos brancos, e pela
manutenção de costumes tradicionais, que os descendentes de
japoneses, ou mesmo os migrados nipônicos, se encontram em um outro
espaço na sociedade estadunidense que não o mesmo de outros grupos
lá presentes. Esse espaço é um campo de disputa que engloba as mais
diversas áreas como poderemos ver nas páginas do mangá de Takei.
Por fim, antes de iniciarmos de fato a análise das páginas do mangá
They called us enemy, alguns outros aspectos devem ser evidenciados.
Primeiramente, Takei não vai criar esse mangá sozinho. Ele vai ter ajuda
de três outras pessoas6, tanto na formação narrativa, quanto e
principalmente na arte. Em segundo lugar, o mangá de Takei é
produzido a partir de suas memórias que foram expostas previamente
em uma palestra da série de conferências TED, em 20147. Seu mangá de
caráter biográfico vai mesclar diversas temporalidades, mesmo que em
grande maioria, a principal delas se retém a suas experiências quanto
uma criança de 4 a 7 anos. Um terceiro ponto é que Takei se tornou
famoso nos EUA após se tornar um dos personagens principais de uma
grande série de televisão chamada Star Trek. Essa notoriedade, como
afirma Takei em seu mangá, vai possibilitar a ele uma maior
visualização nas lutas por igualdade e justiça social, assim como nas
causas LGBTQI+. Não menos importante, antes de avançarmos, é notar
que Takei vai, assim como Mizuki, produzir um mangá com clareza,
expondo de forma simples e direta suas memórias. As intenções dos
dois autores se convertem, portanto, no caráter técnico do mangá, ou
seja, sua reprodutibilidade e alcance das massas.
As memórias de George Takei
O mangá de Takei é iniciado no dia em que seu pai acorda seu
irmão, manda-os se vestirem e ficarem prontos. Em umas das primeiras
páginas (figura 1), apresentam-nos uma cena simples, mas ao mesmo
tempo penetrante: sua mãe, ao fechar a porta da casa onde moravam, se
encontra segurando a irmã de Takei, uma mala de mão pesada e em seus
olhos, escorrem lágrimas que vão até suas bochechas. A fala que Takei
exprime, como um narrador de sua própria história, se apresenta
característica a um trabalho de memória: “Eu nunca estarei apto a
esquecer aquela cena... ela está queimada em minha memória8” (TAKEI,
2019, p. 8-9).
São elas, Justin Eisinger, Steven Scott e Harmony Becker.
É possível acessá-la pelo link: https://www.ted.com/talks/george_takei_why_i_love_a_country_that_once_betrayed_me#t6679. Acesso em 30 de junho de 2021.
8 I will never be able to forget that scene… it is burned into my memory.
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Figura 1 – A mãe de da família Takei se encontra desolada com a quebra da sua
realidade.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf
Productions.
A partir desse ponto, retorna alguns anos, contando um pouco
sobre seus pais, como se conheceram, o casamento e outros aspectos.
Comenta também que decidiram se estabelecer em Los Angeles. Seu pai
tinha nascido no Japão e morava nos EUA desde a adolescência; apesar
disso, até os eventos da Segunda Guerra Mundial, não tinha conseguido
se tornar cidadão estadunidense. Já a mãe de Takei tinha nascido em
território estadunidense. O casal tinha uma lavanderia de roupas e
conseguia tirar bons lucros. A família de Takei era composta, além de
seus pais e ele, por um irmão e irmã mais novos. Em geral, tinham uma
vida feliz e estável.
No entanto, no domingo de 07 de dezembro de 1941, Takei nos
conta que tudo começa a mudar. Com o ataque do Império Japonês a
Pearl Harbor, uma forte campanha anti-nipônica é posta em prática no
solo dos EUA. A partir desse dia, todo cidadão adulto japonês passa a ser
considerado, como presente nos documentos, um inimigo alienígena e
deve seguir regras estritas. Políticos defendem que os japoneses em solo
estadunidense devam ser tratados como inimigos da nação. A população
branca local inicia uma série de ataques a bens e lojas nipônicas. A
exclusão de determinados locais e a presença de olhares diferentes se
faz presente no cotidiano de todos que eram considerados japoneses ou
descendentes. Apenas um dia depois, em 08 de dezembro de 1941, os
EUA declaram guerra ao Japão e poucos meses depois, a Ordem
Executiva 9066 passa a vigorar. Essa ordem diz que certos locais são
considerados áreas militares. Com isso, os grupos humanos que viviam
nesses locais foram despejados e enviados para diversos locais distintos.
Apesar da ordem nunca se utilizar das palavras japoneses ou campos,
estava escrito na mesma que aos excluídos dessas áreas, seriam
providenciados “transporte, alimento, abrigo e outras acomodações”
(TAKEI, 2019, p. 22). Assim, em dez dias, toda a costa Oeste dos EUA foi
declarada como área militar, mas apenas certa parte da população foi
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realocada. Todos os bens conquistados até então, se não fossem
vendidos até a data da realocação, seriam tomados para o governo, sem
direito a ressarcimento. A população japonesa passou a vender
produtos e bens a valores irrisórios, suas contas bancárias foram
congeladas, houve repressão de movimento (só podiam se locomover 8
quilômetros a partir de suas residências), toque de recolher das 20
horas da noite até as 06 horas da manhã e aqueles que cultivavam
comida, se não mantivessem a produção, seriam considerados
sabotadores de período de guerra.
Após uma viagem desconfortável de ônibus, Takei e sua família
chegam, na primavera de 1942, numa antiga pista de corrida de cavalos,
sua primeira das três “moradias” durante a duração do conflito. Lá, cada
família ficou em um estábulo fedendo a estrume. Para Takei e seu irmão,
era como uma aventura. Para os adultos, essa situação era “um golpe
devastador” pois eles tinham trabalhado duro para conquistarem suas
casas e veículos, e agora se encontravam em um estábulo pequeno,
fedido. “Foi uma experiência degradante, humilhante e dolorosa”.
(TAKEI, 2019, p. 32).
Apesar das dificuldades, vemos na narrativa que as coisas começam
a se arrumar. As crianças começam a estudar, as pessoas produzem
alimento em pequenas hortas, os novos moradores foram bem
recebidos pela comunidade e auxiliados. Nisso, Takei corta sua fala da
busca por uma normalidade para a necessidade de se mudar
novamente. Agora, após alguns meses, as pessoas iriam ser direcionadas
a um novo lugar definitivo. A viajem que duraria quatro dias de trem
marca a memória de Takei de várias formas, mesmo ele sendo tão
jovem. Todos recebem bilhetes que deveriam ficar presos a eles o tempo
todo. Para as crianças, como afirma Takei, parecia apenas a passagem do
trem. Já os adultos entendiam que estavam sendo tratados igual gado ou
a criminosos, pois, além da marcação, soldados armados se faziam
presentes em todo o momento.
Quando o trem chegava nas estações, as pessoas de dentro do trem
deviam fechar as cortinas, para evitar que todos do lado de foram
vissem o que estava acontecendo, além dos próprios nipônicos evitarem
saber para onde iam. Umas das cenas mais pungentes da viajem, é
quando o trem para em uma região desértica e um passageiro fala “Eles
vão nos matar aqui, não vão?” (TAKEI, 2019, p. 42). No entanto, a parada
do trem era para realização de atividades físicas por parte dos
passageiros. Mesmo assim, a fala do passageiro demonstra o medo e a
tensão que estava transcorrendo naquele momento de incertezas.
Por conseguinte, Takei não deixa as considerações finais para o
final de sua narrativa, isto é, à medida que alguma questão importante
para si é abordada, a temporalidade do mangá se altera, trazendo-nos
para o presente. Dessa forma, logo após a parada de trem, ele lembra da
sua figura paterna protegendo a toda sua família e como seu pai desde
sempre tentou o explicar a aconselhar sobre as mais diferentes
questões. Na imagem abaixo (figura 2), podemos notar que Takei faz
questão de reascender a presença do seu pai através de suas memórias
e, como observaremos no decorrer do mangá, vai dividir o papel de
personagem principal com ele em grande parte da obra.
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Figura 2 – Takei em uma entrevista em 2017, na antiga casa de Freanklin Delano Roosevelt, presidente dos EUA que
possibilitou e assinou muitas das leis e normas que levariam os japoneses a serem tratados como inimigos e
indigentes. Na entrevista, fala de seu pai, como um japonês-americano que acreditava na democracia, mesmo ela
tendo falhas. Observa-se nessa figura, que o pai de Takei entende a democracia analogamente a uma pessoa, isto é,
que pode vir a ter ideias maravilhosas, mas sendo os humanos seres falhos, podem também cometer erros terríveis.
Ele se referia claramente aos atos cometidos por parte dos estadunidenses para com os nipônicos os descendentes
dos mesmos. De forma mais profunda, a própria guerra.
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Na página 50 do mangá, Takei vai mostrar a diferença do mundo
das crianças e dos adultos. Por um lado, vemos o mundo das crianças da
família Takei aproveitando uma aventura, com guloseimas, histórias e
novos ambientes; por outro, Takei vai ressaltar a obsessiva preocupação
de sua mãe e a melancolia de seu pai. Takei vai então descrever seu
entendimento para com o conceito de memória que, a seu ver,
A memória é uma guardiã astuta do passado ... geralmente confiável, mas
às vezes, enganosa. As memórias da infância são especialmente
escorregadias. Doces e tão cheias de alegria, muitas vezes podem ser uma
entrega errada da verdade. Para uma criança, essa doçura fora do
contexto e intensamente subjetiva permanece para sempre real (TAKEI,
2019, p. 50-51).
A citação acima, no entanto, não se faz completa sem o sentido
estético do desenho. Como podemos observar nas imagens abaixo
(figura 3 e 4), Takei escreve o seu entendimento de memória enquanto
significa ele através da brincadeira pelo trem que os levava até o campo
de realocamento. Esse local dá um sentido alegre através do ato de
brincar, mas, ao mesmo tempo, o meio de transporte em que se
encontram está intrinsecamente ligado ao engano da diversão, da
“aventura” que estavam tendo, e que apenas mais tarde Takei estaria
apto a entender todo o simbolismo por detrás das mais diferentes
situações experienciadas por ele, sua família e milhares de outros
sujeitos.
Figura 3 – A diferença do “mundo adulto” e o “mundo das crianças”.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf
Productions.
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Figura 4 – Entre brincadeiras e repressão, para as crianças, esse momento é uma grande aventura.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions.
Após alguns dias de viagem, Takei e outros japoneses/japonesesamericanos chegam ao campo Rohwer, localizado na costa leste dos
EUA. A intenção era dificultar o contato com a costa oeste
estadunidense, pois esta se encontrava mais próxima ao Japão e
facilitaria uma possível fuga de um espião (figura 5) como mencionado
anteriormente. A família de Takei foi obrigada, portanto, a atravessar
todos os EUA, pois eles residiam na região da costa oeste dos EUA. Além
do mais, o campo Rohwer tinha 33 blocos, e em cada bloco deveria
haver 250 pessoas. No seu máximo, esse local abrigou chegar de 8.500
japoneses-americanos.
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Figura 5 – Mapa da área de exclusão, dos campos de realocamento, de isolamento,
dos campos temporários, departamentos de justiça do exército dos EUA ou outras
instalações e instalações não utilizadas.
Fonte: Imagem de domínio público. Disponível em:
https://www.wikiwand.com/pt/Campos_de_concentra%C3%A7%C3%A3o_nos_Es
tados_Unidos. Acesso em: 05 de julho de 2021.
Já na chegada, enquanto o pai da família encontrava as
acomodações designadas a eles, outras crianças vêm falar com George e
seu irmão. A conversa entre eles é que esse é o único local seguro, pois
fora dos arames farpados há dinossauros. Apenas quando com mais
idade, o significado real das cercas foi decifrado por George: seu objetivo
não era manter os “dinossauros fora”, mas sim impedir a fuga de
prisioneiros.
Com apenas um cômodo, as instalações contavam apenas com um
fogão a lenha. Não havia camas, banheiros ou cozinha, além de ser um
local extremamente quente. As pessoas deveriam dormir em camas do
exército, comer e utilizar banheiros coletivos. Isso, como veremos
adiante, vai se tornar um incômodo a muitas pessoas que passaram a
morar nesse local e a realizar pequenas insurreições, pois além da
liberdade, foram-lhe tiradas a privacidade.
Considero, no entanto, as figuras 6, 7 e 8 a seguir as mais notáveis
da obra de Takei. Essas, ao contrário de muitas, não são explicadas pelo
autor, deixando para a interpretação do leitor. Ao mesmo tempo, elas
nos são oportunas por algumas razões: 1) São imagens que apresentam
resistência por parte da mãe de Takei; 2) Observamos um ponto de
ancoragem do passado com o presente, com a intenção da mãe de Takei
manter uma identidade quanto mãe e responsável pelos filhos através
da máquina de costura; 3) Os comentários do pai e a risada de todos ali
– mas principalmente dos adultos – como forma de aliviar a pressão que
haviam sentido desde seu mandato de despejo, assim como forma de
reação a uma ordem – de não levar máquinas – dada pelos militares, que
assumiram de certo modo, se não a figura de um inimigo, a de sujeitos
hostis. Ainda nesse último ponto, as crianças que riem no último quadro,
riem mais pela felicidade dos pais do que por entenderem o significado
real do trazer algo proibido a esse novo local. Essas três imagens
mostram a não passividade desses sujeitos para com o contexto imposto
a eles.
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Figura 6 – A máquina de costura.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf
Productions.
Figura 7 – Momento de “tensão”.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf
Productions.
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Figura 8 – A disrupção causada pela mãe da família Takei ao trazer a máquina de
costura.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf
Productions.
A narração de Takei vai nos mostrar nas próximas páginas como
sua mãe se encontrou triste a partir da perda de identidade causada
pela nova forma de viver nos campos realocamento. Mesmo que ela
tenha de deixar a acomodação de sua família confortável e possa ainda
realizar algumas das tarefas domésticas de antes das alterações do
cotidiano causadas pela guerra, Takei vai deixar claro que a falta de
cozinhar não era um alívio para ela, mas sim mais uma das perdas
causadas por esse novo cotidiano. Apesar de Takei estar usando o
exemplo de sua mãe e família, podemos expandi-lo a outras também. O
campo de realocamento passa a ser apenas um nome social aceitável
para que determinadas pessoas possam ser encarceradas. A perda de
liberdade e identidade vai prevalecer em prol ao “bem comum” dos EUA,
que não confiam em seu próprio povo.
Nas páginas que se seguem, o pai de George Takei vai ganhando
cada vez mais papel central na narrativa, pois ganha também
notoriedade no local onde os japoneses-americanos se encontravam
encarcerados. Seu pai se tornaria um dos líderes da comunidade ali
presente pois, com seus 39 anos de idade e fluência tanto no japonês
quanto no inglês, conseguia conversar com pessoas de diferentes faixas
etárias a partir de diferentes idiomas. Ele vai levar as preocupações e
desconfortos das pessoas que moram ali aos responsáveis pelo campo,
em busca de melhorias para as pessoas que, mesmo não querendo,
entendiam que era melhor formar um ambiente agradável e possível de
se viver, do que praticar atos violentos, que gerariam reações também
violentas por parte dos militares; por fim, conflitos violentos levariam a
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legitimar a narrativa estadunidense de encarceramento dos japonesesamericanos e isso era algo que a grande maioria dos encarcerados
compreendia não poder acontecer.
Nas páginas que se seguem, Takei vai contar diversos episódios de
sua infância nos campos de realocamento como confusões em que se
metera, brincadeiras, festas, e a primeira vez que pôde ver neve. Sua
narrativa vai ganhar novamente tons mais escuros a partir de janeiro de
1943, quando as narrativas de alguns políticos estadunidenses vão
continuar a reforçar um imaginário de desconfiança para com os
japoneses-americanos. Por outro lado, é evidenciado pelo autor que os
EUA passam a necessitar de soldados para lutar na guerra e, dessa
forma, produzem um “questionário de lealdade”, no qual os japonesesamericanos deveriam responder. Até o momento, soldados japonesesamericanos que já estivessem no exército foram desarmados e
colocados na prisão. O exército dos EUA não aceitava até 1943, que
japoneses-americanos participassem das forças armadas. A partir desse
questionário, a intenção era de separar aqueles que eram leais aos EUA
e os que poderiam ser potenciais inimigos. Takei vai reforçar na página
114 do seu mangá (figura 9), que em duas questões em particular
incomodavam os japoneses-americanos. A questão 27, que perguntava
se “você está disposto a servir as forças armadas dos EUA em combate
em qualquer local que fosse designado?” E a questão 28, questionando
se “você iria jurar fidelidade incondicional aos Estados Unidos da
América e fielmente defender o país de qualquer ataque por forças
externas ou internas e renegar toda ou qualquer obediência ao
imperador japonês ou governo externo”. Entre as mais diversas
respostas, aqueles que responderam negativamente – como os pais de
Takei – passaram a ser conhecidos como os “no, no”, e passaram a sofrer
de ainda maiores dificuldades como veremos na figura 10 e em
situações a diante. Takei, nesse contexto, vai nos mostrar na figura 11,
os motivos pelos quais seus pais não puderam responder sim nas
questões supracitadas.
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Figura 9 – Todos com idade acima de 17 anos deveriam preencher o formulário. As perguntas, além das questões 27 e
28 supracitadas, envolviam ficha criminal, partes no Japão, participação em organizações, investimentos externos e,
inclusive, hábitos de leitura de revistas.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions.
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Figura 10 – Os pais de Takei, vendo que era ultrajante o teor das perguntas e o que elas requisitavam, optaram por
votar não. A pergunta 27 pedia que eles se esforçassem por um país que os colocara atrás de arames farpados e os
tratara como criminosos. A questão 28, uma falsa premissa que todos eles tinham uma fidelidade racial ao
imperador. Independente de responder sim ou não, esse questionário justificaria legalmente a prisão dos japonesesamericanos e legitimava o tratamento que estavam recebendo.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions.
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Figura 11 – Os pais de Takei escolheram por não as questões 27 e 28. Os motivos por detrás dessa escolha são muitos.
Seu pai nasceu no Japão e nunca pode se inscrever para ser um cidadão estadunidense. Aceitar a questão 27 era
aceitar lutar por um país que o rejeitou quanto cidadão e o tornou prisioneiro por questões étnicas. Tinha 40 anos e
era pai de três crianças. A questão 28 pedia-lhe para relegar de sua ancestralidade, memórias e local de nascimento
por um país que não o queria. Responder sim lhe transformaria em um apátrida. Já para a mãe de Takei, a questão 27
era um absurdo. Mas o real problema se encontrava na questão 28. Ela era uma cidadã estadunidense, assim como
seus filhos. Casada com um homem que era tido como inimigo e rejeitado pelo país que tinha tirado tudo que tinham
conquistado, os colocando atrás das grandes em um pântano. Agora, era pedido a ela colocar sua família em segundo
lugar por um país que os tinham rejeitado.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions.
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Mas, mesmo com tudo, alguns japoneses-americanos foram aceitos
no exército. Takei conta-nos nessa parte de seu mangá, sobre a
regimento de combate 442, formado exclusivamente por pessoas
ligadas etnicamente ao Japão e que foram essenciais para o sucesso em
algumas missões no teatro de guerra europeu. Takei vai nos mostrar
que em 1946, o governo estadunidense vai condecorar vários dos
membros desse regimento com a Medalha de Serviço Distinta, a segunda
maior honra que poderia se ganhar. Em 2000, o congresso
estadunidense aumentou o nível e reconheceu outros japonesesamericanos que lutaram na guerra, dando-lhes a Medalha de Honra do
Congresso. Mas Takei vai além, mostrando-nos que não apenas aqueles
que lutaram no campo de batalha são heróis, mas aqueles que
suportaram a vida sendo tratados como inimigos, ou aqueles que se
rebelaram contra as injustiças nos próprios campos de realocamento
são também heróis, pois suportaram fardos imensos quando o próprio
país dessas pessoas os rejeitara.
Como a família de Takei era uma “no, no” (em relação às questões
27 e 28), eles foram enviados a um novo campo de realocamento
(campo Tule Lake), em 1944. Esse local era mais fortemente guardado,
contendo inclusive tanques de guerra e três linhas de arame farpado
separando-lhes do exterior. Takei comenta que lembra que esse local
tinha dois cômodos, no entanto, o espaço total era praticamente igual a
de sua outra “moradia”. Recorda-se também de sua mãe descontente
com o local em que ficaram – próximos ao refeitório, que era muito
barulhento – e que seu pai assumira ali também papel de líder da
comunidade. Suas memórias passam a ser descritas mais rapidamente,
onde nos apresenta vários eventos que aconteceram com ele e sua
família nesse novo local, como as sessões de cinema, descontentamento
por parte dos moradores do local e revoltas internas. Vai também
misturar suas memórias de infância com as de sua adolescência, quando
perguntava – muitas vezes revoltosamente – ao seu pai sobre situações
de quando estavam presos nos campos e os motivos do mesmo (e de
muitos outros) a não se rebelarem contra os soldados (figura 12). O
jovem George não conseguia entender o peso do trauma que estava
posto nas memórias na geração de seu pai, por estarem sendo culpados
e punidos por algo que eles não haviam cometido (figura 13). George
Takei vai possuir, mais do que traumas, memórias difíceis. Sua inocência
quando criança o privou de situações que seus pais vivenciaram. Mas a
linha entre memórias difíceis ou memórias traumáticas para nós, nesse
contexto específico, nos escapa. A intenção não vai ser medir o nível de
tristeza e infelicidade de cada sujeito, mas sim que cada indivíduo, do
seu modo, sofreu em maior ou menor grau essas experiências negativas.
Assim, muito da memória traumática/difícil de George Takei não é
diretamente sua, mas se constitui de uma pós-memória que obtém de
seus pais e que compartilha pelo laço de afeto com os mesmos.
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Figura 12 – George Takei na sua adolescência tenta buscar respostas de seu pai para as injustiças de sua infância. Na
página anterior, o pai de George pergunta o que ele teria feito. George diz que iria se organizar com amigos,
protestar, entre outras ações para lutar contra tamanhas injustiças. O pai de George replica dizendo que achava que
era isso que seu filho falaria e adiciona: Eu tinha que pensar na minha família. George num acesso de fúria grita com
seu pai, dizendo-lhe que ele havia os levado como ovelhas para um matadouro, dentro de uma prisão de arames
farpados. O pai de Takei, cabisbaixo e triste pondera e afirma: você pode estar certo. No entanto, a partir da fala de
George Takei de 2019, já idoso, podemos notar que ele sente um pesar para com a forma que gritou com seu pai e
lidou com a situação. As falas do último quadro a direita reforçam a ferida que Takei sente para com seu pai, isso é,
de um menino que, a partir de uma franqueza arrogante, não entende “um homem que conheceu a angústia
daqueles anos sombrios de internamento mais intensamente do que aquele menino jamais poderia entender”.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions.
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Figura 13 – Takei, falando sobre as experiências no campo de realocamento, expõem de forma aberta sobre a
questão do trauma e da ausência da fala. Nos quadros, podemos ler a seguinte mensagem: “Anos depois, o trauma
daquelas experiências continua a me assombrar. A maioria dos japoneses-americanos da geração de meus pais não
gostava de falar sobre o internamento com seus filhos”. E continua no quadro abaixo: “Tal como acontece com
muitas experiências traumáticas, eles estavam angustiados com suas memórias e assombrados pela vergonha por
algo que realmente não foi culpa deles”. E nos elucida que “A vergonha é algo cruel. Deveria recair sobre os
perpetradores, mas eles não carregam desta forma que as vítimas o fazem.”
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Em meados de 1944, foi dado direito político aos japonesesamericanos de desistir do direito de ser cidadão estadunidense. Agora,
poderiam ser oficialmente inimigos, como já estavam sendo tratados
(TAKEI, 2019, p. 148). As revoltas no campo de realocamento onde se
encontrava a família de Takei aumentaram. No entanto, escutam-se
notícias de que Hiroshima e Nagasaki haviam sido bombardeadas por
uma nova arma. A mãe de Takei que tinha seus pais e outros familiares
no Japão começa a chorar ao saber disso. Takei descreve a chegada das
informações, comentando que o silêncio tomou lugar das revoltas e que
grandes mudanças estavam no horizonte. Com a chegada da notícia da
rendição do Japão, alguns moradores não acreditaram. De fato, o futuro
que Takei consegue mostrar ao leitor é o de incerteza. O que seria dele,
da sua família e das muitas outras? Entre eventos adversos, Takei e sua
família decidem por fim, retornar a Los Angeles.
Apesar de retornarem à cidade em que passaram a maior parte da
sua vida, essa não seria mais a mesma. Não mais tinham sua casa.
Passaram a morar em um prédio com desempregados, bêbados e outras
parcelas excluídas da sociedade. Nessas mesmas páginas, um bêbado
vomita em frente a Takei e seus irmãos, e sua irmãzinha agora já
crescida fala: “Mamãe, vamos de volta para casa”, se referindo ao campo
de realocamento. Essa fala inocente nos diz muito. Em primeiro lugar,
que as crianças menores tinham transformado os campos de
realocamento em seus lares; suas primeiras memórias foram formadas
nesses locais. Em segundo lugar, que, ao expressar desse modo seus
sentimentos, a irmã de George mostra-nos que se sentia melhor nos
campos de realocamento do que em Los Angeles. Em um sentido
restrito, para a pequena criança irmã de Takei, a prisão era melhor que a
“liberdade9” (figura 14).
Essa é uma questão complexa, pois ela com sua tenra idade e tendo crescido nos campos de realocamento, não tem um
conceito de liberdade da mesma forma que outros sujeitos que, apesar de suas diferenças, compreendem essa como a
possibilidade de ir e vir. Reitero que essa é uma questão complexa, para não dizer sem resposta.
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Figura 14 – A família Takei teve que recomeçar a conquistar seu lugar no lado de
fora do arame farpado. Sem dinheiro e com o imaginário coletivo de exclusão e
preconceito para com os sujeitos com características faciais nipônicas, os
japoneses americanos no geral encontraram imensa dificuldade. George vai ainda
falar de como seu pai conseguiu rapidamente um emprego e um novo e bom lugar
para morar, passando apenas alguns poucos meses nesse local desagradável (com
bêbados e drogados), e que o etos de coletividade não havia sido quebrado por
toda essa experiência, considerando que seu pai auxiliou muitas outras famílias
americanas-japonesas, a encontrar um meio de sobreviver no pós-guerra.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf
Productions.
Mais à frente da narrativa, quando a família Takei já se encontrava
em uma outra moradia, a mãe de Takei recebe uma primeira carta,
dizendo que seus pais haviam se salvado do bombardeio de Hiroshima.
No entanto, em um segundo momento, outra carta chega, falando que
sua irmã e sobrinhos haviam morrido na queda da bomba e seus corpos
haviam sido encontrados no riacho10. George vai se lembrar adiante, dos
dias de escola, quando na quarta série, sua professora tratava-o ainda
como um inimigo. Ele exemplifica no mangá sobre isso, e lembra-se
especificamente de certo dia que sua professora fala com tom de
escárnio, “That little Jap boy11”. Ele nos narra que essa frase cortou-lhe
como uma faca, pois “essa palavra dolorosa rasgou uma ferida cheia de
Partindo das referências do mangá Gen pés-descalços, de Keiji Nakazawa, vimos que as peles dos corpos das pessoas, pelo
efeito da bomba, derretiam. O mesmo vem a ser aplicado no texto de Takei. Nesse sentido, observamos que a agonia que os
sujeitos estavam sofrendo logo após a queda da bomba fizeram eles buscar na água uma forma de refrescar o corpo.
11 Uma tradução literal da frase seria: Aquele pequeno garoto japonês. No entanto, não apenas pela estética do mangá, onde
observamos que a professora fala isso com uma cara de nojo, mas principalmente pela atribuição do termo “jap”, entendemos
que a professora de fato tinha Takei como um estranho e inimigo. O termo “Jap” foi utilizado principalmente pelos soldados
que lutaram com os japoneses para se referir aos seus inimigos durante a guerra. Takei não se via como japonês; ele era tão
estadunidense quanto a professora. Para Takei, a professora vai utilizar dessa palavra com tom de desprezo, pois acredita
que ela tenha perdido o marido ou filho no teatro de guerra do pacífico e via nele a face do inimigo. De certo modo, adiciona
Takei, ele pensava na época de criança que merecia ser tratado dessa forma, pois havia estado num campo de realocamento,
preso, apesar de não compreender o motivo pelo qual haviam feito isso a ele e a tantos outros.
10
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vergonha” (TAKEI, 2019, p.171). Observamos nessas páginas, que Takei
mesmo jovem já havia percebido e aprendido o conceito de desprezo.
Esse desprezo que ele vivera nos campos de realocamento havia sido
novamente trazido para o seu cotidiano a partir da fala de sua
professora, causando-lhe novamente sofrimento. Não podemos deixar
de evidenciar: a memória de um evento é sempre uma vivência do
mesmo, mesmo que de forma distinta. Não apenas para Takei, mas
também para todos os japoneses-americanos que viveram por volta de
quatro anos nos campos de realocamento, cheiros, sons, filmes e outros
eventos quaisquer, são sempre possibilitadores de reviver memórias do
cárcere.
Takei vai em suas últimas 27 páginas, concluir sua narrativa
misturando várias temporalidades. As imagens passam a ser mais
ilustrativas da sua fala do que narrativas por si mesmas. Ele começa
contando de sua juventude e das possibilidades na carreira de ator,
como se tornou famoso, assim como outras pessoas famosas que veio a
conhecer, como Martin Luther King, personagem que o auxiliou a
entender melhor a democracia que seu pai havia lhe falado. Nessa
mesma linha, se encontrou com a esposa do ex-presidente Roosevelt e
se sentiu muito feliz. George vai nos contar nas páginas à frente, que
naquele dia seu pai se encontrava “doente” e não pôde se encontrar
também com a Sra. Roosevelt. Apenas tempos mais tarde é que George
percebeu que seu pai não se sentiu mal aquele dia; ele, na verdade, não
queria cumprimentar a mulher do homem que encarcerou sua família.
Mas, para George Takei, a coisa mais importante de se tornar famoso
não era de fato o dinheiro ou fama, mas a notoriedade que lhe foi dada e
na qual ele focou em evidenciar causas sociais que precisavam de
atenção.
Apenas em 1988, com o presidente Ronald Reagan, é que os EUA de
fato se desculparam com as famílias japonesas-americanas, e lhes deram
20 mil dólares a cada um dos ainda sobreviventes dos campos de
realocamento, sendo que dos 120 mil encarcerados, ainda 60 mil
estavam vivos. No discurso do presidente, ele ressalta que o que foi feito
estava errado e que valor nenhum cobre as ações efetuadas pelo
governo estadunidense; também reafirma o compromisso dos EUA para
formar uma nação de justiça igualitária a partir de leis. Apenas em 1991
é que Takei receberia sua carta de desculpas com o valor, que doaria
para o museu nacional japonês-americano. No entanto, George narra
essa cena enquanto a imagem mostra-o com um semblante triste. Sua
tristeza vai ser explicada por ele mesmo, mais adiante na história, pela
lembrança de seu pai.
O pai de Takei já havia falecido anos antes, em 1979. Até então,
nem uma fala do estado democrático que seu pai tanto confiava havia se
manifestado. Entendo que o que machuca a memória de Takei nesse
caso, é a impossibilidade do seu pai – como uma figura heroica – não ter
tido justiça que ele tanto pregava. Mas seu pai havia-lhe ensinado que
“as rodas da democracia giram lentamente12”. Como vimos no começo
da análise do mangá de Takei, ele se dirigia para dar uma entrevista na
antiga casa de Roosevelt. Completando suas falas finais da entrevista,
12
The wheels of democracy turn slowly.
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Takei vai reafirmar seu compromisso e sua admiração para com a
democracia: “Enquanto estava vindo para cá hoje, pensei comigo
mesmo: Estou indo para a casa do homem que me prendeu. Isso só
poderia acontecer na América13” (TAKEI, 2019, p. 194). Ele lembrou das
falas de seu pai, quando Takei era ainda adolescente, de que, entre todas
as formas de governo, a democracia é a melhor e que mesmo sofrendo
em demasia pelos anos que os eventos das guerras refletiram na vida de
todos. Roosevelt era um ser humano e, da mesma forma que foi incrível
reerguendo os EUA após a crise e 1929, cometeu um enorme erro ao
aprisionar os japoneses-americanos.
Na sua estética, o mangá parece acelerar, e ganha um ar cada vez
mais político. Os quadros remetem menos as memórias e passam a ser
mais utilizados para a construção de uma narrativa do tempo presente
de Takei, que se utiliza de toda a construção de seu discurso até o
momento para legitimar suas próximas falas. O autor vai mencionar que
as convicções democráticas que tanto seu pai quanto ele próprio
acreditam, se mantêm firmes, mas que na atualidade essa democracia
passa mais uma vez pela crise nas mãos de Donald Trump e suas
medidas de exclusão étnica. Como vemos na figura 15, o quadro de cima
está em embate com o quadro de baixo através da narrativa de Obama
de 2008, que objetiva retomar em seu discurso os ancestrais dos EUA,
pois esses planejaram – pelo menos teoricamente – um país livre. No
quadro abaixo, vemos crianças e jovens com pele morena,
representando os mexicanos presos e as crianças que se perderam dos
seus pais, por conta das políticas adotadas por Trump em 2018. Nas
páginas que se seguem, Takei aumenta seu escopo de exemplos, nos
trazendo o preconceito para com os muçulmanos e as dificuldades e
proibições de acesso deles aos EUA. Ele vai finalizar seu mangá
agradecendo seu pai, pois praticamente tudo que ele conquistou foi
graças a ele e, nas duas páginas de epílogo, se direciona ao cemitério
memorial do campo de realocamento Rohwer. Lá, em silêncio,
juntamente com seu marido, cita-nos outra fala do presidente Barack
Obama, que diz: “A justiça nasce do reconhecimento de nós mesmos uns
nos outros14…” e continua afirmando “… Que a história não pode ser
uma espada para justificar a injustiça ou um escudo contra o progresso...
que minha liberdade depende de você também ser livre..., mas deve ser
um manual de como evitar a repetição dos erros do passado15” (TAKEI,
2019, p. 203).
Observa-se aqui, que mesmo após sofrer em demasia pela guerra, pelo exemplo de seu pai e de outras figuras que
admirava, o discurso democrático e patriótico estadunidense se internalizou em George Takei. Reforço que ele não afirma
que as diferentes formas de democracia são boas, mas vê a “democracia americana”, se referindo exclusivamente aos EUA
quanto a melhor.
14 Justice grows out of recognition of ourselves in each other.
15 That history can´t be a sword to justify injustice or a shield against progress... that my liberty depends on you being free,
too... but must be a manual for how to avoid repeating the mistakes of the past.
13
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Figura 15 – Barack Obama em 2008, contra o governo de Donald Trump em 2018.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions.
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Considerações finais
Takei consegue chegar ao seu público cumprindo com seu objetivo,
que é o de criar uma narrativa que possibilita um olhar mais empático
dos sujeitos para com seus semelhantes. Sua obra vai, pontualmente,
demonstrar que o cidadão comum é o que mais sofre com as mazelas do
preconceito e da desigualdade, muitas vezes produzidas por sujeitos em
posições de poder que possibilitam a legitimação de seus atos
pitorescos.
Sua narrativa vai proporcionar aquilo que o governo japonês e
estadunidense – entre outros – vão evitar após a Segunda Guerra
Mundial: o de contar a história dos de baixo, dos indivíduos que
sofreram mais com os efeitos desse período, seja em carne, osso ou
espírito. Seu mangá é uma narrativa de resistência, de forma a auxiliar a
democracia que seu pai defendia através da exposição do preconceito e
da necessidade de uma luta pela inclusão.
Entendemos que o mangá de Takei, mais do que uma biografia, é
um relato de superação que serve de exemplo a muitos outros sujeitos
que até então não sabem como lidar com memórias traumáticas. Mas
mais do que isso, é um ato político de contestar as fantasmagorias
produzidas pelo passado, e possibilitar uma nova visão da
contemporaneidade aos sujeitos, quando compara medidas atuais com
as do passado.
Takei e todos aqueles que o auxiliaram a produzir esse mangá
cumprem portanto o papel do Anjo da História – deveras com mais
eficiência – que Walter Benjamin (1987) em sua nona tese sobre os
conceitos de história esforça-se em evidenciar, isto é, que o progresso
busca entulhar os escombros do passado, fazendo com que os
fragmentos e os mortos fiquem soterrados sob os escombros do tempo.
Mas enquanto o Anjo da História, mesmo vendo essa tempestade
acumular entulhos, não consegue detê-la, Takei e seus companheiros
cumprem um papel melhor que o do próprio Anjo da História, pois
enquanto o mesmo fora levado pela tempestade, Takei conseguira frear
e recolher alguns dos fragmentos que seriam enterrados pela
tempestade, mesmo que de forma pontual e expô-los ao público.
Aqui, acredito eu, é onde encontra-se o trabalho do historiador
para com a memória: o de produzir uma colcha de retalhos com suas
narrativas que buscam dar vozes aos mortos e esquecidos, contribuindo
com a desaceleração do vento que sopra do paraíso citado por Benjamin
(1987). Essa colcha de retalhos encontra-se ainda em seu começo, com
muitos furos e espaços abertos, mas que de forma coletiva, empática e
não excludente, aceita as mais diferentes formas, cores e tecidos,
analogamente a maneira que Takei entende os seres humanos em sua
exímia narrativa.
Referências
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. 3. ed. [S. L.]: Brasiliense, 1987.
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2015.
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CLIFFORD, James; MARCUS, George (ed.). Writing culture: The poetics and politics of
ethnography. California: University of California Press, 1986.
FEERE, Jon. Birthright Citizenship in the United States. Center for Immigration Studies,
2010.
SHACHAR, Ayelet et al. (Ed.). The Oxford handbook of citizenship. Oxford University
Press, 2017.
TAKEI, George. They called us enemy. Georgia: Top Shelf Productions, 2019. ISBN 978-160309-450-4.
WALKER, Brett L. História concisa do Japão. São Paulo: Edipro, 2017.
Artigo enviado em: 6/6/2022. Aprovado em: 30/11/2022.
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