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Campos De Realocamento Estadunidenses

Revista Memorare

Esse trabalho surge do recorte de uma dissertação de mestrado, que, entre outras coisas, anseia através dos mangás, não deixar as memórias dos sujeitos de outrora sejam esquecidas e soterradas sobre os escombros do tempo. Mais especificamente, nesse trabalho buscar-se-á narrar uma já então narrativa – a de Takei – a partir de uma experiência de tempo que não mais pertence ao sujeito contemporâneo comum, mas que ainda assombra os vivos, visto que o passado não trabalhado se torna memória difícil, por vezes traumática, e que não cessa de atormentar o presente. Dessa maneira, através do mangá They called us Enemy (Primeira Edição do ano de 2019), de George Takei, iremos observar e vivenciar com o autor, suas experiências acerca da Segunda Guerra Mundial fora do campo de batalha. Para isso, iremos variar entre leitor atento e historiador, lançando mão de conceitos presentes nas humanidades, ao passo que tentamos nos manter na linha de um leitor comum, com a intenção de consumir a narrat...

75 Os campos de realocamento estadunidenses: uma narrativa através do mangá They Called Us Enemy, de George Takei U.S. Relocation Camps: A Narrative through the Manga They Called Us Enemy, by George Takei Antonio Augusto Zanoni1 Resumo: Através desse trabalho, anseia-se antes de mais nada, rememorar. Ao mesmo tempo, busca-se narrar uma já então narrativa – a de George Takei – a partir de uma experiência de tempo que não pertence necessariamente ao sujeito contemporâneo comum, mas que ainda assombra os vivos, visto que o passado não trabalhado se torna memória difícil, por vezes traumática, e que não cessa de atormentar o presente. Assim, através do mangá They called us Enemy de George Takei, vivenciaremos com o autor suas experiências acerca da Segunda Guerra Mundial fora do campo de batalha, lançando mão de conceitos presentes nas humanidades, ao passo que procuraremos nos manter na linha de um leitor comum, com a intenção de consumir a narrativa do modo como ela foi planejada, issto é, a de um relato de vivências difíceis, e que serve como alerta para as fantasmagorias do mundo contemporâneo. Palavras-Chave: George Takei. Mangá. Campo de Realocamento. Abstract: Through this work, it is yearned, first of all, to remember. At the same time, an attempt is made to narrate an already existing narrative – that of George Takei – based on an experience of time that does not necessarily belong to the common contemporary subject, but which still haunts the living, since the past that has not been worked on becomes difficult memory, at times traumatic, and which never ceases to torment the present. Thus, through the manga They called us Enemy by George Takei, we will live with the author his experiences about the Second World War outside the battlefield, making use of concepts present in the humanities, while we will try to keep ourselves in line with a common reader, with the intention of consuming the narrative the way it was planned, that is, an account of difficult experiences, and which serves as an alert to the phantasmagorias of the contemporary world. Keywords: George Takei. Manga. Relocation Center. 1 Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo. E-mail: [email protected]. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 76 Introdução O mangá contemporâneo – do século XX em diante – é um objeto de múltiplas possibilidades. Tentar exemplificar seus usos e possibilidades se faz não só desnecessário, quanto uma atividade infrutífera, visto que as narrativas criadas pelos humanos variam de acordo com as constelações que os mesmos conseguem produzir no seu tempo e espaço. Dessa forma, pretendo não tomar muito tempo nesse início, do mesmo modo que não irei me aprofundar em questões filosófico-morais a partir do meu contexto. Assim, intenciono ser, por um lado, um apresentador da história de George Takei e de sua narrativa que por si só já apresenta discussões morais e éticas produzidas pelo autor em seu contexto. Por outro lado, objetivo me apropriar de sua narrativa para evidenciar e discutir algumas questões de carácter históricomnemônico, isso é, de como a memória se apropria da história e a modifica. Para tal empreitada, uso como fonte primária e base, o mangá They called us enemy, de George Takei, na sua primeira versão lançada (2019), no original em inglês – apesar de que já existe uma versão em português, lançada posteriormente a data de início das pesquisas com essa fonte. Para a discussão, conversarei com vários autores que discutem o mangá, como Sonia Luyten, Roman Rosenbaum e Yasuko Claremont, assim como autores que nos são valiosos para com a questão da memória, como Jacques Le Goff, Paul Ricœur e Pierre Ansart. Todavia, como a minha discussão não diretamente ligada em explicar os conceitos propostos, mas usá-los diretamente para com a narrativa de Takei, faz-se importante salientar que os mesmos não serão chamados ao texto, mas faço uso de suas visões para enriquecer minha discussão. Assim sendo, com a intenção de entender essa fronteira entre identidades, nacionalidades, costumes e outros encontros entre os humanos, me utilizo de Walker (2017), que busca fazer uma história concisa do Japão, não deixando de lado o levantamento de questões essenciais, como a hibridização cultural, que também estará presente em Canclini (2015) e Clifford (1986). Nesse interím, ainda se faz necesário entender, nem que de forma breve, a ideia de imigrante que envolve nosso tema, e a legitimidade legal de pertencimento a uma nação como a dos EUA, discussões presentes em Shacar et. Al. (2017) e Feere (2010). Por fim, Walter Benjamin (1987) nos auxiliará com a questão do passado, e como o mesmo está ligado ao presente a partir da construção de diferentes narrativas pelos diferentes sujeitos da história. Optei por produzir o trabalho de forma sequencial, visto que o mangá do autor não apresenta subpartes. Desse modo, para não interromper a própria narrativa de Takei, e tratá-la de forma igualitária, optei por discutir os mais diferentes assuntos conforme o próprio autor os abordava. Antes de mais nada, precisa-se ter em mente que o pai de George Takei era um japonês que cresceu nos EUA; sua mãe era estadunidense, assim como o próprio George e seus irmãos. Sendo japoneses ou descendentes, a cultura japonesa se mantinha forte nas comunidades e Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 77 nos hábitos do cotidiano de todos aqueles que detinham essa ancestralidade. James Clifford (1986, p. 313) pensa que considerar o mundo inteiro como uma terra estrangeira’ possibilita uma originalidade na visão. A maioria das pessoas é consciente sobretudo de uma cultura, de um ambiente, de um lar; os exilados são conscientes de pelo menos dois, e essa pluralidade de visão dá lugar a uma consciência [sic] que – para utilizar uma expressão da música – é contrapontística... Para um exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente em contraste com uma lembrança de coisas em outro ambiente. Desse modo, tanto o novo ambiente como o anterior são vívidos, reais, e se dão juntos em um contraponto. Mesmo que Takei, sua família, os japoneses imigrados ou descendentes não sejam considerados exilados, a ideia de Clifford nos é muito útil. Os grupos nipônicos nos Estados Unidos, de uma maneira geral, sempre mantiveram ligações fortes com o seu antigo país, tanto pelas práticas culturais, quanto também através de ritos religiosos e a própria língua – que não deixam de ser elementos culturais. É importante antes de seguirmos com a análise do mangá, entender que os descendentes de nipônicos eram já estadunidenses, pois nasceram em território dos Estados Unidos, como defende a emenda XIV, de 1868, da constituição dos EUA (FEERE, 2010). Se por um lado para ser considerado japonês o indivíduo precisa ter um laço de consanguinidade, em muitos países “ocidentais”, nascer no seu território o faz ser cidadão daquele local. É claro que dependendo de diversos fatores, o processo de naturalização por parte de um imigrante era mais complexo, ou ainda, impossível de acontecer (SHACHAR et al., 2017) Todavia, pela maneira como as comunidades nipônicas foram se desenvolvendo nesse e em outros países, isto é, uma comunidade que se ajuda internamente, e se isola do outro2, acabam por criar em si mesmas uma barreira que, por vezes, os impede de se inserir na sociedade local. Mais profundamente ainda, Max Weber argumenta que enquanto a filosofia e visão de mundo ocidental busca ajustar o mundo as necessidades humanas, o mundo asiático, de influência confucionista e budista, busca ajustar o humano ao seu meio. Essa “comunidade imaginária” criada na modernidade por currículos escolares, feriados e museus não se aplicam diretamente ao japonês e seus descendentes, que vivem na tradição milenar de pertencimento a uma comunidade ligada pelo sangue, pela mitologia, pela família imperial. Isso no entanto, não os torna menos estadunidenses que outros sujeitos, descendentes de outros povos que chegaram apenas a um ou dois séculos antes. A experiência de viver no hibridismo, se reinventar e se identificar com novos ou antigos grupos faz parte da experiência humana (WALKER, 2017). Assim, os descendentes de japoneses são estadunidenses que contém hábitos e costumes tipicamente japoneses. Esses indivíduos japoneses-americanos (da mesma forma que Takei vai se identificar, assim como outros que se encontram na mesma situação que ele) são, 2 Entende-se o outro como um sujeito ou comunidade que apresenta características distintas de um outro indivíduo ou grupo. Essas características são em geral arbitrárias e dadas por questões históricas que variam no tempo e espaço, assim como na própria especificidade dos agentes envolvidos. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 78 portanto, o encontro entre as fronteiras geográficas e culturais, dos insiders e os outsiders e que por não terem um lugar de pertencimento similar ao construído no imaginário coletivo – de forma intencional ou não – pelos demais sujeitos do estado nação em que se encontram, vão ser excluído, colocados a margem da história3. Deste modo, estudar esses encontros híbridos que se formam a partir dos eventos da Segunda Guerra Mundial, através do mangá de Takei, é uma forma de observar não apenas as divergências de diferentes formas de entender o mundo, mas também as manifestações de conflitos não resolvidos e os caminhos oblíquos que tomam (CANCLINI, 2015). Por conseguinte, poderemos notar nas páginas da obra de Takei as disputas discursivas e relações de poder entre diferentes ideologias e modos de ver o mundo, que no embate reforçamse em si mesmas ou abrem-se a novas possibilidades. Mesmo que Takei tenha nascido em território estadunidense, seu fenótipo apresentava as características do inimigo e era tratado como tal. Nesse caso, as comunidades nipônicas foram realocadas para regiões específicas, sem saber ao certo suas localizações, geralmente longe da costa oeste dos EUA, que é banhada pelo Oceano Pacífico e que na narrativa do governo do país, facilitaria espiões de fugirem dada a proximidade da costa. O discurso de exclusão ocorre através da produção de um imaginário e de uma narrativa, que tem a intenção de permitir uma exclusão, mais do que cultural, fisionômica. O mesmo não ocorre de forma semelhante com indivíduos descendentes de italianos ou alemães por exemplo, pois esses, pelo menos fenotipicamente, não continham traços do inimigo ou eram mais leves4. Como a própria publicação da Biblioteca do Congresso deixa claro, Essa prisão em larga escala de cidadãos americanos apenas com base em sua ascendência foi recebida com aprovação quase universal pela população não nipo-americana e foi aceita em grande parte sem questionamentos. Nenhuma explicação séria foi oferecida sobre por que nenhum internamento em larga escala de alemães ou ítalo-americanos ocorreu, ou por que o internamento de pessoas de ascendência japonesa era necessário no continente, mas não no Havaí, onde a grande população nipo-havaiana foi em grande parte incólume. O exército nunca foi obrigado a provar que os americanos internados nos campos representavam qualquer ameaça militar, ou que as realocações de alguma forma tornavam a nação mais segura contra ataques; sua ascendência era considerada evidência suficiente. Nenhum nipo-americano foi condenado por qualquer ato de sabotagem durante a Segunda Guerra Mundial5. 3 É possível ler uma matéria no site da Biblioteca do Congresso dos EUA que reforça tal afirmação. A mesma se encontra disponível no site https://www.loc.gov/classroom-materials/immigration/japanese/the-us-mainland-growth-andresistance/. Acesso em 11 de novembro de 2022. 4 É importante, no entanto, salientar que houve repressão para com grupos ítalo-americanos e germano-americano, que apesar de seu fenótipo não ser tão distinto de outros habitantes dos EUA, detinham sobrenomes e práticas culturais que também os tornavam distintos. No site supracitado na nota de rodapé 2, encontram-se outras matérias acerca dos diversos grupos de imigrantes que participaram do processo histórico de formação dos EUA, incluindo-se aqui, os italianos, alemães e os próprio japoneses. 5 This large-scale imprisonment of U.S. citizens solely on the basis of their ancestry was met with almost universal approval by the non-Japanese-American population, and was accepted largely without question. No serious explanations were offered as to why no large-scale internment of German or Italian Americans ever took place, or why internment of people of Japanese descent was necessary on the mainland but not in Hawaii, where the large Japanese-Hawaiian population went largely unmolested. The army was never required to prove that the Americans interned in the camps posed any military threat, or that the relocations in any way made the nation safer from attack; their ancestry was considered evidence enough. No Japanese American was ever convicted of any act of sabotage during World War II. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 79 De fato, é pela aparência distinta da dos brancos, e pela manutenção de costumes tradicionais, que os descendentes de japoneses, ou mesmo os migrados nipônicos, se encontram em um outro espaço na sociedade estadunidense que não o mesmo de outros grupos lá presentes. Esse espaço é um campo de disputa que engloba as mais diversas áreas como poderemos ver nas páginas do mangá de Takei. Por fim, antes de iniciarmos de fato a análise das páginas do mangá They called us enemy, alguns outros aspectos devem ser evidenciados. Primeiramente, Takei não vai criar esse mangá sozinho. Ele vai ter ajuda de três outras pessoas6, tanto na formação narrativa, quanto e principalmente na arte. Em segundo lugar, o mangá de Takei é produzido a partir de suas memórias que foram expostas previamente em uma palestra da série de conferências TED, em 20147. Seu mangá de caráter biográfico vai mesclar diversas temporalidades, mesmo que em grande maioria, a principal delas se retém a suas experiências quanto uma criança de 4 a 7 anos. Um terceiro ponto é que Takei se tornou famoso nos EUA após se tornar um dos personagens principais de uma grande série de televisão chamada Star Trek. Essa notoriedade, como afirma Takei em seu mangá, vai possibilitar a ele uma maior visualização nas lutas por igualdade e justiça social, assim como nas causas LGBTQI+. Não menos importante, antes de avançarmos, é notar que Takei vai, assim como Mizuki, produzir um mangá com clareza, expondo de forma simples e direta suas memórias. As intenções dos dois autores se convertem, portanto, no caráter técnico do mangá, ou seja, sua reprodutibilidade e alcance das massas. As memórias de George Takei O mangá de Takei é iniciado no dia em que seu pai acorda seu irmão, manda-os se vestirem e ficarem prontos. Em umas das primeiras páginas (figura 1), apresentam-nos uma cena simples, mas ao mesmo tempo penetrante: sua mãe, ao fechar a porta da casa onde moravam, se encontra segurando a irmã de Takei, uma mala de mão pesada e em seus olhos, escorrem lágrimas que vão até suas bochechas. A fala que Takei exprime, como um narrador de sua própria história, se apresenta característica a um trabalho de memória: “Eu nunca estarei apto a esquecer aquela cena... ela está queimada em minha memória8” (TAKEI, 2019, p. 8-9). São elas, Justin Eisinger, Steven Scott e Harmony Becker. É possível acessá-la pelo link: https://www.ted.com/talks/george_takei_why_i_love_a_country_that_once_betrayed_me#t6679. Acesso em 30 de junho de 2021. 8 I will never be able to forget that scene… it is burned into my memory. 6 7 Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 80 Figura 1 – A mãe de da família Takei se encontra desolada com a quebra da sua realidade. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. A partir desse ponto, retorna alguns anos, contando um pouco sobre seus pais, como se conheceram, o casamento e outros aspectos. Comenta também que decidiram se estabelecer em Los Angeles. Seu pai tinha nascido no Japão e morava nos EUA desde a adolescência; apesar disso, até os eventos da Segunda Guerra Mundial, não tinha conseguido se tornar cidadão estadunidense. Já a mãe de Takei tinha nascido em território estadunidense. O casal tinha uma lavanderia de roupas e conseguia tirar bons lucros. A família de Takei era composta, além de seus pais e ele, por um irmão e irmã mais novos. Em geral, tinham uma vida feliz e estável. No entanto, no domingo de 07 de dezembro de 1941, Takei nos conta que tudo começa a mudar. Com o ataque do Império Japonês a Pearl Harbor, uma forte campanha anti-nipônica é posta em prática no solo dos EUA. A partir desse dia, todo cidadão adulto japonês passa a ser considerado, como presente nos documentos, um inimigo alienígena e deve seguir regras estritas. Políticos defendem que os japoneses em solo estadunidense devam ser tratados como inimigos da nação. A população branca local inicia uma série de ataques a bens e lojas nipônicas. A exclusão de determinados locais e a presença de olhares diferentes se faz presente no cotidiano de todos que eram considerados japoneses ou descendentes. Apenas um dia depois, em 08 de dezembro de 1941, os EUA declaram guerra ao Japão e poucos meses depois, a Ordem Executiva 9066 passa a vigorar. Essa ordem diz que certos locais são considerados áreas militares. Com isso, os grupos humanos que viviam nesses locais foram despejados e enviados para diversos locais distintos. Apesar da ordem nunca se utilizar das palavras japoneses ou campos, estava escrito na mesma que aos excluídos dessas áreas, seriam providenciados “transporte, alimento, abrigo e outras acomodações” (TAKEI, 2019, p. 22). Assim, em dez dias, toda a costa Oeste dos EUA foi declarada como área militar, mas apenas certa parte da população foi Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 81 realocada. Todos os bens conquistados até então, se não fossem vendidos até a data da realocação, seriam tomados para o governo, sem direito a ressarcimento. A população japonesa passou a vender produtos e bens a valores irrisórios, suas contas bancárias foram congeladas, houve repressão de movimento (só podiam se locomover 8 quilômetros a partir de suas residências), toque de recolher das 20 horas da noite até as 06 horas da manhã e aqueles que cultivavam comida, se não mantivessem a produção, seriam considerados sabotadores de período de guerra. Após uma viagem desconfortável de ônibus, Takei e sua família chegam, na primavera de 1942, numa antiga pista de corrida de cavalos, sua primeira das três “moradias” durante a duração do conflito. Lá, cada família ficou em um estábulo fedendo a estrume. Para Takei e seu irmão, era como uma aventura. Para os adultos, essa situação era “um golpe devastador” pois eles tinham trabalhado duro para conquistarem suas casas e veículos, e agora se encontravam em um estábulo pequeno, fedido. “Foi uma experiência degradante, humilhante e dolorosa”. (TAKEI, 2019, p. 32). Apesar das dificuldades, vemos na narrativa que as coisas começam a se arrumar. As crianças começam a estudar, as pessoas produzem alimento em pequenas hortas, os novos moradores foram bem recebidos pela comunidade e auxiliados. Nisso, Takei corta sua fala da busca por uma normalidade para a necessidade de se mudar novamente. Agora, após alguns meses, as pessoas iriam ser direcionadas a um novo lugar definitivo. A viajem que duraria quatro dias de trem marca a memória de Takei de várias formas, mesmo ele sendo tão jovem. Todos recebem bilhetes que deveriam ficar presos a eles o tempo todo. Para as crianças, como afirma Takei, parecia apenas a passagem do trem. Já os adultos entendiam que estavam sendo tratados igual gado ou a criminosos, pois, além da marcação, soldados armados se faziam presentes em todo o momento. Quando o trem chegava nas estações, as pessoas de dentro do trem deviam fechar as cortinas, para evitar que todos do lado de foram vissem o que estava acontecendo, além dos próprios nipônicos evitarem saber para onde iam. Umas das cenas mais pungentes da viajem, é quando o trem para em uma região desértica e um passageiro fala “Eles vão nos matar aqui, não vão?” (TAKEI, 2019, p. 42). No entanto, a parada do trem era para realização de atividades físicas por parte dos passageiros. Mesmo assim, a fala do passageiro demonstra o medo e a tensão que estava transcorrendo naquele momento de incertezas. Por conseguinte, Takei não deixa as considerações finais para o final de sua narrativa, isto é, à medida que alguma questão importante para si é abordada, a temporalidade do mangá se altera, trazendo-nos para o presente. Dessa forma, logo após a parada de trem, ele lembra da sua figura paterna protegendo a toda sua família e como seu pai desde sempre tentou o explicar a aconselhar sobre as mais diferentes questões. Na imagem abaixo (figura 2), podemos notar que Takei faz questão de reascender a presença do seu pai através de suas memórias e, como observaremos no decorrer do mangá, vai dividir o papel de personagem principal com ele em grande parte da obra. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 82 Figura 2 – Takei em uma entrevista em 2017, na antiga casa de Freanklin Delano Roosevelt, presidente dos EUA que possibilitou e assinou muitas das leis e normas que levariam os japoneses a serem tratados como inimigos e indigentes. Na entrevista, fala de seu pai, como um japonês-americano que acreditava na democracia, mesmo ela tendo falhas. Observa-se nessa figura, que o pai de Takei entende a democracia analogamente a uma pessoa, isto é, que pode vir a ter ideias maravilhosas, mas sendo os humanos seres falhos, podem também cometer erros terríveis. Ele se referia claramente aos atos cometidos por parte dos estadunidenses para com os nipônicos os descendentes dos mesmos. De forma mais profunda, a própria guerra. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 83 Na página 50 do mangá, Takei vai mostrar a diferença do mundo das crianças e dos adultos. Por um lado, vemos o mundo das crianças da família Takei aproveitando uma aventura, com guloseimas, histórias e novos ambientes; por outro, Takei vai ressaltar a obsessiva preocupação de sua mãe e a melancolia de seu pai. Takei vai então descrever seu entendimento para com o conceito de memória que, a seu ver, A memória é uma guardiã astuta do passado ... geralmente confiável, mas às vezes, enganosa. As memórias da infância são especialmente escorregadias. Doces e tão cheias de alegria, muitas vezes podem ser uma entrega errada da verdade. Para uma criança, essa doçura fora do contexto e intensamente subjetiva permanece para sempre real (TAKEI, 2019, p. 50-51). A citação acima, no entanto, não se faz completa sem o sentido estético do desenho. Como podemos observar nas imagens abaixo (figura 3 e 4), Takei escreve o seu entendimento de memória enquanto significa ele através da brincadeira pelo trem que os levava até o campo de realocamento. Esse local dá um sentido alegre através do ato de brincar, mas, ao mesmo tempo, o meio de transporte em que se encontram está intrinsecamente ligado ao engano da diversão, da “aventura” que estavam tendo, e que apenas mais tarde Takei estaria apto a entender todo o simbolismo por detrás das mais diferentes situações experienciadas por ele, sua família e milhares de outros sujeitos. Figura 3 – A diferença do “mundo adulto” e o “mundo das crianças”. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 84 Figura 4 – Entre brincadeiras e repressão, para as crianças, esse momento é uma grande aventura. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Após alguns dias de viagem, Takei e outros japoneses/japonesesamericanos chegam ao campo Rohwer, localizado na costa leste dos EUA. A intenção era dificultar o contato com a costa oeste estadunidense, pois esta se encontrava mais próxima ao Japão e facilitaria uma possível fuga de um espião (figura 5) como mencionado anteriormente. A família de Takei foi obrigada, portanto, a atravessar todos os EUA, pois eles residiam na região da costa oeste dos EUA. Além do mais, o campo Rohwer tinha 33 blocos, e em cada bloco deveria haver 250 pessoas. No seu máximo, esse local abrigou chegar de 8.500 japoneses-americanos. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 85 Figura 5 – Mapa da área de exclusão, dos campos de realocamento, de isolamento, dos campos temporários, departamentos de justiça do exército dos EUA ou outras instalações e instalações não utilizadas. Fonte: Imagem de domínio público. Disponível em: https://www.wikiwand.com/pt/Campos_de_concentra%C3%A7%C3%A3o_nos_Es tados_Unidos. Acesso em: 05 de julho de 2021. Já na chegada, enquanto o pai da família encontrava as acomodações designadas a eles, outras crianças vêm falar com George e seu irmão. A conversa entre eles é que esse é o único local seguro, pois fora dos arames farpados há dinossauros. Apenas quando com mais idade, o significado real das cercas foi decifrado por George: seu objetivo não era manter os “dinossauros fora”, mas sim impedir a fuga de prisioneiros. Com apenas um cômodo, as instalações contavam apenas com um fogão a lenha. Não havia camas, banheiros ou cozinha, além de ser um local extremamente quente. As pessoas deveriam dormir em camas do exército, comer e utilizar banheiros coletivos. Isso, como veremos adiante, vai se tornar um incômodo a muitas pessoas que passaram a morar nesse local e a realizar pequenas insurreições, pois além da liberdade, foram-lhe tiradas a privacidade. Considero, no entanto, as figuras 6, 7 e 8 a seguir as mais notáveis da obra de Takei. Essas, ao contrário de muitas, não são explicadas pelo autor, deixando para a interpretação do leitor. Ao mesmo tempo, elas nos são oportunas por algumas razões: 1) São imagens que apresentam resistência por parte da mãe de Takei; 2) Observamos um ponto de ancoragem do passado com o presente, com a intenção da mãe de Takei manter uma identidade quanto mãe e responsável pelos filhos através da máquina de costura; 3) Os comentários do pai e a risada de todos ali – mas principalmente dos adultos – como forma de aliviar a pressão que haviam sentido desde seu mandato de despejo, assim como forma de reação a uma ordem – de não levar máquinas – dada pelos militares, que assumiram de certo modo, se não a figura de um inimigo, a de sujeitos hostis. Ainda nesse último ponto, as crianças que riem no último quadro, riem mais pela felicidade dos pais do que por entenderem o significado real do trazer algo proibido a esse novo local. Essas três imagens mostram a não passividade desses sujeitos para com o contexto imposto a eles. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 86 Figura 6 – A máquina de costura. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Figura 7 – Momento de “tensão”. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 87 Figura 8 – A disrupção causada pela mãe da família Takei ao trazer a máquina de costura. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. A narração de Takei vai nos mostrar nas próximas páginas como sua mãe se encontrou triste a partir da perda de identidade causada pela nova forma de viver nos campos realocamento. Mesmo que ela tenha de deixar a acomodação de sua família confortável e possa ainda realizar algumas das tarefas domésticas de antes das alterações do cotidiano causadas pela guerra, Takei vai deixar claro que a falta de cozinhar não era um alívio para ela, mas sim mais uma das perdas causadas por esse novo cotidiano. Apesar de Takei estar usando o exemplo de sua mãe e família, podemos expandi-lo a outras também. O campo de realocamento passa a ser apenas um nome social aceitável para que determinadas pessoas possam ser encarceradas. A perda de liberdade e identidade vai prevalecer em prol ao “bem comum” dos EUA, que não confiam em seu próprio povo. Nas páginas que se seguem, o pai de George Takei vai ganhando cada vez mais papel central na narrativa, pois ganha também notoriedade no local onde os japoneses-americanos se encontravam encarcerados. Seu pai se tornaria um dos líderes da comunidade ali presente pois, com seus 39 anos de idade e fluência tanto no japonês quanto no inglês, conseguia conversar com pessoas de diferentes faixas etárias a partir de diferentes idiomas. Ele vai levar as preocupações e desconfortos das pessoas que moram ali aos responsáveis pelo campo, em busca de melhorias para as pessoas que, mesmo não querendo, entendiam que era melhor formar um ambiente agradável e possível de se viver, do que praticar atos violentos, que gerariam reações também violentas por parte dos militares; por fim, conflitos violentos levariam a Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 88 legitimar a narrativa estadunidense de encarceramento dos japonesesamericanos e isso era algo que a grande maioria dos encarcerados compreendia não poder acontecer. Nas páginas que se seguem, Takei vai contar diversos episódios de sua infância nos campos de realocamento como confusões em que se metera, brincadeiras, festas, e a primeira vez que pôde ver neve. Sua narrativa vai ganhar novamente tons mais escuros a partir de janeiro de 1943, quando as narrativas de alguns políticos estadunidenses vão continuar a reforçar um imaginário de desconfiança para com os japoneses-americanos. Por outro lado, é evidenciado pelo autor que os EUA passam a necessitar de soldados para lutar na guerra e, dessa forma, produzem um “questionário de lealdade”, no qual os japonesesamericanos deveriam responder. Até o momento, soldados japonesesamericanos que já estivessem no exército foram desarmados e colocados na prisão. O exército dos EUA não aceitava até 1943, que japoneses-americanos participassem das forças armadas. A partir desse questionário, a intenção era de separar aqueles que eram leais aos EUA e os que poderiam ser potenciais inimigos. Takei vai reforçar na página 114 do seu mangá (figura 9), que em duas questões em particular incomodavam os japoneses-americanos. A questão 27, que perguntava se “você está disposto a servir as forças armadas dos EUA em combate em qualquer local que fosse designado?” E a questão 28, questionando se “você iria jurar fidelidade incondicional aos Estados Unidos da América e fielmente defender o país de qualquer ataque por forças externas ou internas e renegar toda ou qualquer obediência ao imperador japonês ou governo externo”. Entre as mais diversas respostas, aqueles que responderam negativamente – como os pais de Takei – passaram a ser conhecidos como os “no, no”, e passaram a sofrer de ainda maiores dificuldades como veremos na figura 10 e em situações a diante. Takei, nesse contexto, vai nos mostrar na figura 11, os motivos pelos quais seus pais não puderam responder sim nas questões supracitadas. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 89 Figura 9 – Todos com idade acima de 17 anos deveriam preencher o formulário. As perguntas, além das questões 27 e 28 supracitadas, envolviam ficha criminal, partes no Japão, participação em organizações, investimentos externos e, inclusive, hábitos de leitura de revistas. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 90 Figura 10 – Os pais de Takei, vendo que era ultrajante o teor das perguntas e o que elas requisitavam, optaram por votar não. A pergunta 27 pedia que eles se esforçassem por um país que os colocara atrás de arames farpados e os tratara como criminosos. A questão 28, uma falsa premissa que todos eles tinham uma fidelidade racial ao imperador. Independente de responder sim ou não, esse questionário justificaria legalmente a prisão dos japonesesamericanos e legitimava o tratamento que estavam recebendo. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 91 Figura 11 – Os pais de Takei escolheram por não as questões 27 e 28. Os motivos por detrás dessa escolha são muitos. Seu pai nasceu no Japão e nunca pode se inscrever para ser um cidadão estadunidense. Aceitar a questão 27 era aceitar lutar por um país que o rejeitou quanto cidadão e o tornou prisioneiro por questões étnicas. Tinha 40 anos e era pai de três crianças. A questão 28 pedia-lhe para relegar de sua ancestralidade, memórias e local de nascimento por um país que não o queria. Responder sim lhe transformaria em um apátrida. Já para a mãe de Takei, a questão 27 era um absurdo. Mas o real problema se encontrava na questão 28. Ela era uma cidadã estadunidense, assim como seus filhos. Casada com um homem que era tido como inimigo e rejeitado pelo país que tinha tirado tudo que tinham conquistado, os colocando atrás das grandes em um pântano. Agora, era pedido a ela colocar sua família em segundo lugar por um país que os tinham rejeitado. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 92 Mas, mesmo com tudo, alguns japoneses-americanos foram aceitos no exército. Takei conta-nos nessa parte de seu mangá, sobre a regimento de combate 442, formado exclusivamente por pessoas ligadas etnicamente ao Japão e que foram essenciais para o sucesso em algumas missões no teatro de guerra europeu. Takei vai nos mostrar que em 1946, o governo estadunidense vai condecorar vários dos membros desse regimento com a Medalha de Serviço Distinta, a segunda maior honra que poderia se ganhar. Em 2000, o congresso estadunidense aumentou o nível e reconheceu outros japonesesamericanos que lutaram na guerra, dando-lhes a Medalha de Honra do Congresso. Mas Takei vai além, mostrando-nos que não apenas aqueles que lutaram no campo de batalha são heróis, mas aqueles que suportaram a vida sendo tratados como inimigos, ou aqueles que se rebelaram contra as injustiças nos próprios campos de realocamento são também heróis, pois suportaram fardos imensos quando o próprio país dessas pessoas os rejeitara. Como a família de Takei era uma “no, no” (em relação às questões 27 e 28), eles foram enviados a um novo campo de realocamento (campo Tule Lake), em 1944. Esse local era mais fortemente guardado, contendo inclusive tanques de guerra e três linhas de arame farpado separando-lhes do exterior. Takei comenta que lembra que esse local tinha dois cômodos, no entanto, o espaço total era praticamente igual a de sua outra “moradia”. Recorda-se também de sua mãe descontente com o local em que ficaram – próximos ao refeitório, que era muito barulhento – e que seu pai assumira ali também papel de líder da comunidade. Suas memórias passam a ser descritas mais rapidamente, onde nos apresenta vários eventos que aconteceram com ele e sua família nesse novo local, como as sessões de cinema, descontentamento por parte dos moradores do local e revoltas internas. Vai também misturar suas memórias de infância com as de sua adolescência, quando perguntava – muitas vezes revoltosamente – ao seu pai sobre situações de quando estavam presos nos campos e os motivos do mesmo (e de muitos outros) a não se rebelarem contra os soldados (figura 12). O jovem George não conseguia entender o peso do trauma que estava posto nas memórias na geração de seu pai, por estarem sendo culpados e punidos por algo que eles não haviam cometido (figura 13). George Takei vai possuir, mais do que traumas, memórias difíceis. Sua inocência quando criança o privou de situações que seus pais vivenciaram. Mas a linha entre memórias difíceis ou memórias traumáticas para nós, nesse contexto específico, nos escapa. A intenção não vai ser medir o nível de tristeza e infelicidade de cada sujeito, mas sim que cada indivíduo, do seu modo, sofreu em maior ou menor grau essas experiências negativas. Assim, muito da memória traumática/difícil de George Takei não é diretamente sua, mas se constitui de uma pós-memória que obtém de seus pais e que compartilha pelo laço de afeto com os mesmos. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 93 Figura 12 – George Takei na sua adolescência tenta buscar respostas de seu pai para as injustiças de sua infância. Na página anterior, o pai de George pergunta o que ele teria feito. George diz que iria se organizar com amigos, protestar, entre outras ações para lutar contra tamanhas injustiças. O pai de George replica dizendo que achava que era isso que seu filho falaria e adiciona: Eu tinha que pensar na minha família. George num acesso de fúria grita com seu pai, dizendo-lhe que ele havia os levado como ovelhas para um matadouro, dentro de uma prisão de arames farpados. O pai de Takei, cabisbaixo e triste pondera e afirma: você pode estar certo. No entanto, a partir da fala de George Takei de 2019, já idoso, podemos notar que ele sente um pesar para com a forma que gritou com seu pai e lidou com a situação. As falas do último quadro a direita reforçam a ferida que Takei sente para com seu pai, isso é, de um menino que, a partir de uma franqueza arrogante, não entende “um homem que conheceu a angústia daqueles anos sombrios de internamento mais intensamente do que aquele menino jamais poderia entender”. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 94 Figura 13 – Takei, falando sobre as experiências no campo de realocamento, expõem de forma aberta sobre a questão do trauma e da ausência da fala. Nos quadros, podemos ler a seguinte mensagem: “Anos depois, o trauma daquelas experiências continua a me assombrar. A maioria dos japoneses-americanos da geração de meus pais não gostava de falar sobre o internamento com seus filhos”. E continua no quadro abaixo: “Tal como acontece com muitas experiências traumáticas, eles estavam angustiados com suas memórias e assombrados pela vergonha por algo que realmente não foi culpa deles”. E nos elucida que “A vergonha é algo cruel. Deveria recair sobre os perpetradores, mas eles não carregam desta forma que as vítimas o fazem.” Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 95 Em meados de 1944, foi dado direito político aos japonesesamericanos de desistir do direito de ser cidadão estadunidense. Agora, poderiam ser oficialmente inimigos, como já estavam sendo tratados (TAKEI, 2019, p. 148). As revoltas no campo de realocamento onde se encontrava a família de Takei aumentaram. No entanto, escutam-se notícias de que Hiroshima e Nagasaki haviam sido bombardeadas por uma nova arma. A mãe de Takei que tinha seus pais e outros familiares no Japão começa a chorar ao saber disso. Takei descreve a chegada das informações, comentando que o silêncio tomou lugar das revoltas e que grandes mudanças estavam no horizonte. Com a chegada da notícia da rendição do Japão, alguns moradores não acreditaram. De fato, o futuro que Takei consegue mostrar ao leitor é o de incerteza. O que seria dele, da sua família e das muitas outras? Entre eventos adversos, Takei e sua família decidem por fim, retornar a Los Angeles. Apesar de retornarem à cidade em que passaram a maior parte da sua vida, essa não seria mais a mesma. Não mais tinham sua casa. Passaram a morar em um prédio com desempregados, bêbados e outras parcelas excluídas da sociedade. Nessas mesmas páginas, um bêbado vomita em frente a Takei e seus irmãos, e sua irmãzinha agora já crescida fala: “Mamãe, vamos de volta para casa”, se referindo ao campo de realocamento. Essa fala inocente nos diz muito. Em primeiro lugar, que as crianças menores tinham transformado os campos de realocamento em seus lares; suas primeiras memórias foram formadas nesses locais. Em segundo lugar, que, ao expressar desse modo seus sentimentos, a irmã de George mostra-nos que se sentia melhor nos campos de realocamento do que em Los Angeles. Em um sentido restrito, para a pequena criança irmã de Takei, a prisão era melhor que a “liberdade9” (figura 14). Essa é uma questão complexa, pois ela com sua tenra idade e tendo crescido nos campos de realocamento, não tem um conceito de liberdade da mesma forma que outros sujeitos que, apesar de suas diferenças, compreendem essa como a possibilidade de ir e vir. Reitero que essa é uma questão complexa, para não dizer sem resposta. 9 Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 96 Figura 14 – A família Takei teve que recomeçar a conquistar seu lugar no lado de fora do arame farpado. Sem dinheiro e com o imaginário coletivo de exclusão e preconceito para com os sujeitos com características faciais nipônicas, os japoneses americanos no geral encontraram imensa dificuldade. George vai ainda falar de como seu pai conseguiu rapidamente um emprego e um novo e bom lugar para morar, passando apenas alguns poucos meses nesse local desagradável (com bêbados e drogados), e que o etos de coletividade não havia sido quebrado por toda essa experiência, considerando que seu pai auxiliou muitas outras famílias americanas-japonesas, a encontrar um meio de sobreviver no pós-guerra. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Mais à frente da narrativa, quando a família Takei já se encontrava em uma outra moradia, a mãe de Takei recebe uma primeira carta, dizendo que seus pais haviam se salvado do bombardeio de Hiroshima. No entanto, em um segundo momento, outra carta chega, falando que sua irmã e sobrinhos haviam morrido na queda da bomba e seus corpos haviam sido encontrados no riacho10. George vai se lembrar adiante, dos dias de escola, quando na quarta série, sua professora tratava-o ainda como um inimigo. Ele exemplifica no mangá sobre isso, e lembra-se especificamente de certo dia que sua professora fala com tom de escárnio, “That little Jap boy11”. Ele nos narra que essa frase cortou-lhe como uma faca, pois “essa palavra dolorosa rasgou uma ferida cheia de Partindo das referências do mangá Gen pés-descalços, de Keiji Nakazawa, vimos que as peles dos corpos das pessoas, pelo efeito da bomba, derretiam. O mesmo vem a ser aplicado no texto de Takei. Nesse sentido, observamos que a agonia que os sujeitos estavam sofrendo logo após a queda da bomba fizeram eles buscar na água uma forma de refrescar o corpo. 11 Uma tradução literal da frase seria: Aquele pequeno garoto japonês. No entanto, não apenas pela estética do mangá, onde observamos que a professora fala isso com uma cara de nojo, mas principalmente pela atribuição do termo “jap”, entendemos que a professora de fato tinha Takei como um estranho e inimigo. O termo “Jap” foi utilizado principalmente pelos soldados que lutaram com os japoneses para se referir aos seus inimigos durante a guerra. Takei não se via como japonês; ele era tão estadunidense quanto a professora. Para Takei, a professora vai utilizar dessa palavra com tom de desprezo, pois acredita que ela tenha perdido o marido ou filho no teatro de guerra do pacífico e via nele a face do inimigo. De certo modo, adiciona Takei, ele pensava na época de criança que merecia ser tratado dessa forma, pois havia estado num campo de realocamento, preso, apesar de não compreender o motivo pelo qual haviam feito isso a ele e a tantos outros. 10 Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 97 vergonha” (TAKEI, 2019, p.171). Observamos nessas páginas, que Takei mesmo jovem já havia percebido e aprendido o conceito de desprezo. Esse desprezo que ele vivera nos campos de realocamento havia sido novamente trazido para o seu cotidiano a partir da fala de sua professora, causando-lhe novamente sofrimento. Não podemos deixar de evidenciar: a memória de um evento é sempre uma vivência do mesmo, mesmo que de forma distinta. Não apenas para Takei, mas também para todos os japoneses-americanos que viveram por volta de quatro anos nos campos de realocamento, cheiros, sons, filmes e outros eventos quaisquer, são sempre possibilitadores de reviver memórias do cárcere. Takei vai em suas últimas 27 páginas, concluir sua narrativa misturando várias temporalidades. As imagens passam a ser mais ilustrativas da sua fala do que narrativas por si mesmas. Ele começa contando de sua juventude e das possibilidades na carreira de ator, como se tornou famoso, assim como outras pessoas famosas que veio a conhecer, como Martin Luther King, personagem que o auxiliou a entender melhor a democracia que seu pai havia lhe falado. Nessa mesma linha, se encontrou com a esposa do ex-presidente Roosevelt e se sentiu muito feliz. George vai nos contar nas páginas à frente, que naquele dia seu pai se encontrava “doente” e não pôde se encontrar também com a Sra. Roosevelt. Apenas tempos mais tarde é que George percebeu que seu pai não se sentiu mal aquele dia; ele, na verdade, não queria cumprimentar a mulher do homem que encarcerou sua família. Mas, para George Takei, a coisa mais importante de se tornar famoso não era de fato o dinheiro ou fama, mas a notoriedade que lhe foi dada e na qual ele focou em evidenciar causas sociais que precisavam de atenção. Apenas em 1988, com o presidente Ronald Reagan, é que os EUA de fato se desculparam com as famílias japonesas-americanas, e lhes deram 20 mil dólares a cada um dos ainda sobreviventes dos campos de realocamento, sendo que dos 120 mil encarcerados, ainda 60 mil estavam vivos. No discurso do presidente, ele ressalta que o que foi feito estava errado e que valor nenhum cobre as ações efetuadas pelo governo estadunidense; também reafirma o compromisso dos EUA para formar uma nação de justiça igualitária a partir de leis. Apenas em 1991 é que Takei receberia sua carta de desculpas com o valor, que doaria para o museu nacional japonês-americano. No entanto, George narra essa cena enquanto a imagem mostra-o com um semblante triste. Sua tristeza vai ser explicada por ele mesmo, mais adiante na história, pela lembrança de seu pai. O pai de Takei já havia falecido anos antes, em 1979. Até então, nem uma fala do estado democrático que seu pai tanto confiava havia se manifestado. Entendo que o que machuca a memória de Takei nesse caso, é a impossibilidade do seu pai – como uma figura heroica – não ter tido justiça que ele tanto pregava. Mas seu pai havia-lhe ensinado que “as rodas da democracia giram lentamente12”. Como vimos no começo da análise do mangá de Takei, ele se dirigia para dar uma entrevista na antiga casa de Roosevelt. Completando suas falas finais da entrevista, 12 The wheels of democracy turn slowly. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 98 Takei vai reafirmar seu compromisso e sua admiração para com a democracia: “Enquanto estava vindo para cá hoje, pensei comigo mesmo: Estou indo para a casa do homem que me prendeu. Isso só poderia acontecer na América13” (TAKEI, 2019, p. 194). Ele lembrou das falas de seu pai, quando Takei era ainda adolescente, de que, entre todas as formas de governo, a democracia é a melhor e que mesmo sofrendo em demasia pelos anos que os eventos das guerras refletiram na vida de todos. Roosevelt era um ser humano e, da mesma forma que foi incrível reerguendo os EUA após a crise e 1929, cometeu um enorme erro ao aprisionar os japoneses-americanos. Na sua estética, o mangá parece acelerar, e ganha um ar cada vez mais político. Os quadros remetem menos as memórias e passam a ser mais utilizados para a construção de uma narrativa do tempo presente de Takei, que se utiliza de toda a construção de seu discurso até o momento para legitimar suas próximas falas. O autor vai mencionar que as convicções democráticas que tanto seu pai quanto ele próprio acreditam, se mantêm firmes, mas que na atualidade essa democracia passa mais uma vez pela crise nas mãos de Donald Trump e suas medidas de exclusão étnica. Como vemos na figura 15, o quadro de cima está em embate com o quadro de baixo através da narrativa de Obama de 2008, que objetiva retomar em seu discurso os ancestrais dos EUA, pois esses planejaram – pelo menos teoricamente – um país livre. No quadro abaixo, vemos crianças e jovens com pele morena, representando os mexicanos presos e as crianças que se perderam dos seus pais, por conta das políticas adotadas por Trump em 2018. Nas páginas que se seguem, Takei aumenta seu escopo de exemplos, nos trazendo o preconceito para com os muçulmanos e as dificuldades e proibições de acesso deles aos EUA. Ele vai finalizar seu mangá agradecendo seu pai, pois praticamente tudo que ele conquistou foi graças a ele e, nas duas páginas de epílogo, se direciona ao cemitério memorial do campo de realocamento Rohwer. Lá, em silêncio, juntamente com seu marido, cita-nos outra fala do presidente Barack Obama, que diz: “A justiça nasce do reconhecimento de nós mesmos uns nos outros14…” e continua afirmando “… Que a história não pode ser uma espada para justificar a injustiça ou um escudo contra o progresso... que minha liberdade depende de você também ser livre..., mas deve ser um manual de como evitar a repetição dos erros do passado15” (TAKEI, 2019, p. 203). Observa-se aqui, que mesmo após sofrer em demasia pela guerra, pelo exemplo de seu pai e de outras figuras que admirava, o discurso democrático e patriótico estadunidense se internalizou em George Takei. Reforço que ele não afirma que as diferentes formas de democracia são boas, mas vê a “democracia americana”, se referindo exclusivamente aos EUA quanto a melhor. 14 Justice grows out of recognition of ourselves in each other. 15 That history can´t be a sword to justify injustice or a shield against progress... that my liberty depends on you being free, too... but must be a manual for how to avoid repeating the mistakes of the past. 13 Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 99 Figura 15 – Barack Obama em 2008, contra o governo de Donald Trump em 2018. Fonte: Arquivo pessoal. Mangá They called us enemy. Editora Top Shelf Productions. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 100 Considerações finais Takei consegue chegar ao seu público cumprindo com seu objetivo, que é o de criar uma narrativa que possibilita um olhar mais empático dos sujeitos para com seus semelhantes. Sua obra vai, pontualmente, demonstrar que o cidadão comum é o que mais sofre com as mazelas do preconceito e da desigualdade, muitas vezes produzidas por sujeitos em posições de poder que possibilitam a legitimação de seus atos pitorescos. Sua narrativa vai proporcionar aquilo que o governo japonês e estadunidense – entre outros – vão evitar após a Segunda Guerra Mundial: o de contar a história dos de baixo, dos indivíduos que sofreram mais com os efeitos desse período, seja em carne, osso ou espírito. Seu mangá é uma narrativa de resistência, de forma a auxiliar a democracia que seu pai defendia através da exposição do preconceito e da necessidade de uma luta pela inclusão. Entendemos que o mangá de Takei, mais do que uma biografia, é um relato de superação que serve de exemplo a muitos outros sujeitos que até então não sabem como lidar com memórias traumáticas. Mas mais do que isso, é um ato político de contestar as fantasmagorias produzidas pelo passado, e possibilitar uma nova visão da contemporaneidade aos sujeitos, quando compara medidas atuais com as do passado. Takei e todos aqueles que o auxiliaram a produzir esse mangá cumprem portanto o papel do Anjo da História – deveras com mais eficiência – que Walter Benjamin (1987) em sua nona tese sobre os conceitos de história esforça-se em evidenciar, isto é, que o progresso busca entulhar os escombros do passado, fazendo com que os fragmentos e os mortos fiquem soterrados sob os escombros do tempo. Mas enquanto o Anjo da História, mesmo vendo essa tempestade acumular entulhos, não consegue detê-la, Takei e seus companheiros cumprem um papel melhor que o do próprio Anjo da História, pois enquanto o mesmo fora levado pela tempestade, Takei conseguira frear e recolher alguns dos fragmentos que seriam enterrados pela tempestade, mesmo que de forma pontual e expô-los ao público. Aqui, acredito eu, é onde encontra-se o trabalho do historiador para com a memória: o de produzir uma colcha de retalhos com suas narrativas que buscam dar vozes aos mortos e esquecidos, contribuindo com a desaceleração do vento que sopra do paraíso citado por Benjamin (1987). Essa colcha de retalhos encontra-se ainda em seu começo, com muitos furos e espaços abertos, mas que de forma coletiva, empática e não excludente, aceita as mais diferentes formas, cores e tecidos, analogamente a maneira que Takei entende os seres humanos em sua exímia narrativa. Referências BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 3. ed. [S. L.]: Brasiliense, 1987. CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 2015. Memorare, Tubarão, v. 9, n. 1, jan./jun. 2022. ISSN: 2358-0593 101 CLIFFORD, James; MARCUS, George (ed.). Writing culture: The poetics and politics of ethnography. California: University of California Press, 1986. FEERE, Jon. 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