REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO (v. 23, 2023)
ARTIGO ORIGINAL
JOSEPH JACOTOT
NO
BRASIL:
ecos pedagógicos de um ressoar político
Joseph Jacotot in Brazil: pedagogical echoes of a political resound
Joseph Jacotot en Brasil: ecos pedagógicos de un ressoar político
SUZANA LOPES DE ALBUQUERQUE1*, WALTER OMAR KOHAN2
1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Goiânia, GO, Brasil. 2Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.*Autora para correspondência. E-mail:
[email protected].
Resumo: O artigo propõe uma leitura do projeto político e educacional da Filosofia Panecástica
desenvolvida por Joseph Jacotot (1770-1840), fundamentado na máxima ‘tudo está em tudo’, para
tratar da emancipação intelectual, em contraposição à onipresença do poder e do olhar vigilante
do mestre sobre o aluno do Panoptismo. A partir da análise de fontes históricas do Império
brasileiro, como a imprensa periódica oitocentista, o texto visa apresentar as rupturas do
pensamento pedagógico de Jacotot perante a lógica institucionalizada da desigualdade das
inteligências nos ritos da instrução escolarizada. Para isso, tem como foco a introdução da
Filosofia Panecástica no Império brasileiro, trazendo visibilidade aos ecos que ressoam como
fundo, por exemplo, na pedagogia da dialogicidade de Paulo Freire.
Palavras-chave: Panecástica; Joseph Jacotot; Paulo Freire.
Abstract: This article proposes a reading of the political and educational project of the Panecastic
Philosophy developed by Joseph Jacotot (1770-1840), based on the maxim ‘everything is in
everything’, to address the intellectual emancipation, in opposition to the omnipresence of power
and the watchful eye of the master over the student of Panoptism. Based on the analysis of historical
sources of the Brazilian Empire, such as the 19th century periodical press, the text aims at presenting
the ruptures of Jacotot's pedagogical thought before the institutionalized logic of the inequality of
intelligences in the rites of school instruction. To do so, it focuses on the introduction of the
Panecastic Philosophy in the Brazilian Empire, bringing visibility to the echoes that resonate as
background, for example, in Paulo Freire's pedagogy of dialogicity.
Keywords: Panecastic; Joseph Jacotot; Paulo Freire.
Resumen: El artículo propone una lectura del proyecto político y educativo de la Filosofía
Panecástica desarrollada por Joseph Jacotot (1770-1840), basada en la máxima ‘todo está en todo’,
para abordar la emancipación intelectual, en contraste con la omnipresencia del poder y la mirada
vigilante del maestro sobre el alumno del panoptismo. A partir del análisis de fuentes históricas
del Imperio brasileño, como la prensa periódica del siglo XIX, el texto pretende presentar las
rupturas del pensamiento pedagógico de Jacotot ante la lógica institucionalizada de la desigualdad
de las inteligencias en los ritos de instrucción escolar. Para ello, se centra en la introducción de la
Filosofía Panecástica en el Imperio Brasileño, dando visibilidad a los ecos que resuenan como
fondo, por ejemplo, en la pedagogía de la dialogicidad de Paulo Freire.
Palabras clave: Panecastica; Joseph Jacotot; Paulo Freire.
https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e281
e-ISSN: 2238-0094
Joseph Jacotot no Brasil: ecos pedagógicos de um ressoar político
I NTRODUÇÃO
As rupturas provocadas pelo encontro com a aventura intelectual de Joseph
Jacotot afetam diversos pensamentos filosóficos, educacionais, políticos e históricos.
Essa aventura, na leitura de Jacques Rancière, aprofunda os caminhos de um
pensamento que não deixa as coisas do mesmo jeito que as encontrou. O presente artigo
analisará fontes históricas referentes à circulação das ideias pedagógicas de Jacotot no
território brasileiro em diálogo com escritos do filósofo francês Rancière, que tem
oferecido uma leitura potente de Jocotot, constituindo, assim, um jogo de autorias que,
a semelhança da dupla Sócrates-Platão, concebem um novo autor, um par, uma dupla,
personagem conceitual singular resultante da junção desses nomes (Rancière-Jacotot).
Jacotot nasceu em Dijon na França (1770-1840), sendo “[...] considerado um
revolucionário questionador dos resultados da Revolução Francesa e instituições de
sua época como movimentos que não trouxeram meios para atingir a liberdade e a
emancipação do homem, inclusive no campo intelectual” (Albuquerque, 2019, p. 167).
Pensar com Jacotot, partícipe e ao mesmo tempo questionador do movimento
das Luzes, permite problematizar a forma como estas inventaram um certo conceito
de infância e, com ela, um discurso sobre a liberdade, a igualdade e a cidadania;
possibilita, também, colocar em questão o movimento que cria um futuro como
promessa e o vincula a uma identidade escolarizada e disciplinada em seus espaços,
racionalizados em cerca, quadriculamento, localização funcional e fila.
Assim, o presente escrito visa apresentar as rupturas presentes no pensamento
pedagógico de Jacotot com a lógica institucionalizada da desigualdade das inteligências
nos ritos da instrução escolarizada, a partir da atuação de alguns ‘homens do progresso’ 1
que entenderam e adotaram uma proposta de escola segregadora e excludente. Com
esse objetivo, a imprensa periódica oitocentista será uma fonte privilegiada para
analisar a circulação das ideias de Jacotot no Império brasileiro.
Na mesma direção da crítica de Jacotot à instituição pedagógica, comentada por
Rancière, encontram-se as críticas tecidas por Foucault ao poder disciplinar (1987).
Nesse sentido, o modelo da escola mútua, com a presença de um professor ordenando
as decúrias no século XIX, esboça a forma como a disciplina escolar, em sua técnica de
poder e objeto do saber, “[...] constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios;
enfim, para realizar a combinação das forças, organiza táticas” (Foucault, 1987, p.
150). A formação e o disciplinamento da infância que ocorria em outros meios e
metodologias, os quais eram individuais e realizados em diferentes tempos,
1
A expressão é de Rancière e destina-se aos homens que traduziram “[...] igualdade por progresso e
emancipação dos pais de famílias pobres por instrução do povo” (Rancière, 2015, p. 161), os quais
conduziram o processo ao embrutecimento. Recusamos as implicações sexistas da expressão.
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racionalizaram-se pela escola moderna a partir de uma ordenação simultânea,
graduada, regulada e fiscalizada pelo jogo de ininterruptos olhares calculados.
Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos
os escolares de todas as classes, de maneira que todos os da mesma
classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os
escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos
mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem
das lições avançando para o meio da sala... Cada um dos alunos terá
seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e
o consentimento do inspetor das escolas (Foucault, 1987, p. 135).
Dessa forma, a infância que nasce dessas luzes encontra seu destino traçado nos
instrumentos próprios do exercício do poder disciplinar: a vigilância hierarquizada, a
sanção normalizadora e o exame, em uma espécie de passagem de conhecimento que,
através da imposição da lógica da razão explicadora, liga o aluno ao mestre
transmissor, em um processo ‘embrutecedor’ (Rancière, 2015). Tal processo de
embrutecimento aniquila o princípio da igualdade das inteligências e reproduz a
lógica da desigualdade, sujeitando a inteligência do discípulo à do mestre.
Ela se torna embrutecedora quando liga uma inteligência a uma
outra inteligência. No ato de ensinar e de aprender, há duas
vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua
coincidência. Na situação experimental criada por Jacotot, o aluno
estava ligado a uma vontade, a de Jacotot, e a uma inteligência, a do
livro, inteiramente distintas. Chamar-se-á emancipação à diferença
conhecida e mantida entre as duas relações, o ato de uma
inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a
vontade obedeça a uma outra vontade (Rancière, 2015, p. 32-33).
Dessa forma, Rancière-Jacotot permitem problematizar o campo da educação
institucionalizada e desnudar a face embrutecedora da escola moderna em suas
funções disciplinadora, modeladora, normatizadora e “[...] reguladora da cultura
letrada” (Boto, 2012, p. 50); em outras palavras, quando Jacotot-Rancière afirmam que
a escola moderna é ‘embrutecedora’, estão complementando a descrição de Foucault,
segundo a qual o espetáculo do suplício dos condenados na Idade Clássica cedeu
espaço a uma disciplinarização e fabricação de corpos dóceis em uma anátomopolítica que perpassa a instituição escola e está fundamentada na necessidade de
transmissão de saberes e, sobretudo, no exercício de um poder subjetivante, isto é,
que produz determinado tipo de sujeitos.
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A leitura foucaultiana dessa escola moderna racionalizadora está inspirada no
Panoptismo e sua máxima da onipresença do poder: ele está em todas as partes e vem
de todas as partes. O poder se exerce sempre a partir de inúmeros pontos e, em uma
simultaneidade de ensino e fazeres pedagógicos, “[...] a sala de aula forma um grande
quadro único; com entradas múltiplas, sob o olhar cuidadosamente 'classificador' do
professor” (Foucault, 1987, p. 135).
Como contraponto da onipresença do olhar vigilante do mestre sobre o aluno
proposto pelo Panoptismo, pode-se situar o Ensino Universal de Jacotot que,
fundamentado em sua Filosofia Panecástica com a máxima ‘Tudo está em tudo’, evoca
o princípio da emancipação intelectual do discípulo: a filosofia de Jacotot afirma que
aqueles dispositivos subjetivantes da escola moderna são incompatíveis com a
emancipação intelectual.
DO PANÓPTICO À PANECÁSTICA: A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL NO ENSINO
UNIVERSAL DE JACOTOT
No modelo do Panóptico estudado por Foucault (1987), comparece o princípio da
hierarquia e da superioridade de um mestre que está, em todo o tempo, racionalmente
arquitetando, direcionando e conduzindo o aluno de forma passiva no processo,
reinando a vigilância e o controle, com todos os corpos simultaneamente sendo
adestrados. Ao contrário, o Ensino Universal de Jacotot (1832) evoca um mestre
ignorante que subverte o mito da pedagogia e da “[...] parábola de um mundo dividido
em espíritos sábios e espíritos ignorantes, espíritos maduros e imaturos, capazes e
incapazes, inteligentes e bobos” (Rancière, 2015, p. 20) e que potencializa a máxima de
ensinar o que se ignora, “[...] onde o saber do ignorante e a ignorância do mestre, agindo,
fazem a demonstração dos poderes da igualdade intelectual” (Rancière, 2015, p. 43).
Na contramão de uma superioridade, afirma a igualdade das inteligências como
princípio de um processo que potencializa o aluno e o mestre; o mestre ignorante de
Rancière-Jacotot é ignorante porque ignora (desconhece) o que o aluno aprende e
porque ignora (desobedece) os dispositivos embrutecedores (disciplinadores) da razão
explicadora na instituição escolar. Para isso, é necessário romper o círculo do
embrutecimento, vencer-se ao que estão fazendo de nós mesmos, improvisar e falar,
começar e terminar por si próprio.
Tratava-se de exercício essencial do Ensino Universal: aprender a
falar sobre todos os assuntos, à queima-roupa, com um começo, um
desenvolvimento e um fim. Aprender a improvisar era, antes de
qualquer outra coisa, aprender a vencer a si próprio, a vencer esse
orgulho que se disfarça de humildade para declarar sua
incapacidade de falar diante de outrem – isso é, a recusa de
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submeter-se a seu julgamento. Era, em seguida, aprender a começar
e a terminar, a fazer por si mesmo um todo, a aprisionar a língua em
um círculo (Rancière, 2015, p. 68).
A máxima ‘tudo está em tudo’ contida no Ensino Universal refere-se ao ato de
aprender algo e relacionar a esse saber todo o resto, partindo do princípio da igualdade
das inteligências.
Se você cair na mão de um aluno da escola de direito de Paris, e se
este aluno da escola de direito de Paris pede para você dar o nosso
método, aplicado ao estudo da lei, comece com estes termos: Jovem!
É necessário aprender algo e relacionar todo o resto, deste princípio:
todos os homens têm uma inteligência igual (Jacotot, 1852, p. 8).
Se o panóptico de Bentham 2 supõe uma hierarquia e desigualdade radical (um
sobre todos e todos debaixo de um), o Ensino Universal supõe a horizontalidade de um
mestre que cuida da aplicação da vontade de todos, mas que deixa livre a inteligência
de cada um para que ela determine seu próprio caminho.
A partir da máxima proposta pelo Ensino Universal de Jacotot, Rancière (2015)
critica as discussões limitadas à forma de ensinar que, sob o nome de discussões
metodológicas, evitam as discussões em torno das condições políticas e os sentidos do
ato de educar; dessa forma, não problematizam a lógica da desigualdade na educação,
mesmo aqueles discursos considerados progressistas que dizem almejar a igualdade
através das práticas educacionais, mas acabam legitimando a desigualdade da qual
partem, levando, assim, os seres humanos ao seu embrutecimento. Há, em Jacotot e
Rancière, uma denúncia do predomínio e da extensão a todo o corpo social de uma
‘anatomia política’ que, baseada no poder disciplinar, estende-se das instituições de
reclusão, de forma difusa, múltipla e polivalente, atravessando a sociedade sem
lacunas nem interrupção.
O ato de confrontar o poder disciplinar passa pela afirmação da emancipação
intelectual. Ao defender que o emancipador “[...] não é alguém que vai ao encontro
das pessoas para emancipá-las [...]”, pressupondo um processo de vontade individual,
em que “[...] alguém quer passar” (Rancière, 2003 apud Vermeren, Cornu, &
Benvenuto, 2003, p. 196), Rancière defende a emancipação proposta por Jacotot
perpassando uma relação individual, uma vez que “[...] o argumento de Jacotot é que
sempre é possível se emancipar sozinho; que, de fato, só nos emancipamos sozinhos”.
2
Nas notas de seu capítulo ‘Panoptismo’, Foucault referencia as pesquisas históricas realizadas em arquivos que
possibilitaram conhecer o modelo criado por J. Bentham, como Panopticon versus New South Wales. Works,
ed. Bowring. t. IV, p. 177. “Se Bentham deu destaque ao exemplo da penitenciária, é porque esta tem funções
múltiplas para exercer (vigilância, controle automático, confinamento, solidão, trabalho forçado, instrução)”
(Foucault, 1987, p. 257).
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A relação do ignorante com o mestre emancipador é o que chamo
de uma relação ‘individual’. Por certo, ela é ainda uma relação
social, mas é uma relação que interrompe uma certa forma lógica
social, uma certa forma de aplicação do funcionamento das
inteligências [...]. Há um tipo de relações, que denomino
individuais, que concernem a todos os indivíduos e que instauram
uma relação igualitária (Rancière, 2003 apud Vermeren, Cornu, &
Benvenuto, 2003, p. 197, grifo do autor).
Assim, afastado de um método para a conscientização social, Jacotot se dirige a
indivíduos e afirma que a confiança ou fé na igualdade não é uma verdade
epistemológica, mas um princípio político: trata-se de uma decisão puramente
individual, impossível de ser institucionalizada. Raisky (2012) apresenta o contexto
político que conduziu Jacotot ao exílio em Louvain: um revolucionário que, com o
retorno ao poder do Império dos Bourbons na França, precisa deixar o país e encontra
acolhida numa universidade estrangeira; é um momento em que os intelectuais de um
modo geral desacreditam da eficácia do engajamento político, voltando-se para a “[...]
base da sociedade: a família” (Raisky, 2012, p. 116).
Esse contexto do exílio o conduziu a um problema no ensino da língua e da
literatura, uma vez que desconhecia a língua flamenga. Nessa aventura intelectual, o
“[...] método do acaso” (Rancière, 2015, p. 25), praticado com sucesso pelos estudantes
flamengos, revelava a potência do Ensino Universal de aprender algo e relacionar a
esse saber todo o resto, partindo do princípio da igualdade das inteligências.
Raisky (2012) apresenta um paradoxo em relação à finalidade da pedagogia
também presente na proposta de Jacotot: ao mesmo tempo que deve estar a serviço da
emancipação intelectual, urge preparar os alunos para desempenhar um papel social
e, também, para ocupar um espaço dentro da ordem econômica e política, condição
existencial do ser humano que habita uma comunidade.
Esse paradoxo suscita várias questões: qual o impacto da emancipação
intelectual de Jacotot no campo social? Como essa perspectiva comparece nos
periódicos oitocentistas brasileiros? Ela ajudaria a pensar nos dilemas da educação
brasileira contemporânea? De que forma? É possível estabelecer um diálogo entre as
ideias de Rancière Jacotot e as de Paulo Freire?
Uma primeira resposta à questão inicial vem do próprio Rancière-Jacotot. Certo
que “[...] se a emancipação intelectual não tem visada social, a emancipação social
sempre funcionou, quanto a ela, a partir da emancipação intelectual”. Isso significa
que “[...] a emancipação intelectual é vista como vetor de movimentos de emancipação
política que rompe com uma lógica social, uma lógica de instituição” (Rancière, 2003,
p. 199). Porém essa dimensão social não impede Rancière de estabelecer, nessa mesma
entrevista (Rancière, 2003), claras diferenças entre Jacotot e os que, como Paulo
Freire, defendem o caráter social e político da emancipação. Para Rancière,
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diferentemente da busca em Freire por “[...] organizar os pobres em coletividade [...]”,
o pensamento de Jacotot não é um pensamento de ‘conscientização’ e se dirige a
indivíduos (Vermeren, Cornu, & Benvenuto, 2003, p. 198), visando a um processo de
emancipação estritamente intelectual, mesmo que, indiretamente, essa emancipação
individual reflita ou ecoe nos movimentos sociais emancipatórios.
A EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL DE JACOTOT NO BRASIL DO SÉCULO XIX
Quando e como foi a introdução das ideias de Jacotot no Brasil? Para responder
a essa pergunta, na escrita da presente seção, a imprensa periódica oitocentista
tornou-se uma fonte principal para analisar a circulação das ideias de Jacotot no
Império brasileiro. O Ensino Universal de Jacotot, fundamentado em sua Filosofia
Panecástica, foi introduzido no Brasil pela via da imprensa de periódicos com viés
progressivista 3, como A Sciência 4. A ruptura que esse periódico propunha no campo da
instrução, medicina e, consequentemente, na arena social, apresentava uma
possibilidade de emancipação intelectual “[...] como vetor de movimentos de
emancipação política que rompe com uma lógica social, uma lógica de instituição”
(Rancière, 2003, p. 199).
Doutor Mure (1809-1858) foi um dos anunciadores da Filosofia Panecástica de
Jacotot e um dos fundadores do periódico A Sciência, que encontrou seguidores no solo
brasileiro. O Jornal do Commercio do Rio de Janeiro de 1840 registrou um convite para
os interessados em conhecer essa filosofia proposta por Jacotot.
Quando morrem os homens ilustres que se conhece quanto valem.
Assim aconteceu com Jacotot, que, depois de uma vida toda
consagrada ao trabalho e à beneficência, acaba de morrer com
admirável coragem e presença de espírito. ‘Sou o princípio da
vontade na humanidade, disse-nos em seus últimos momentos;
mas vós, que agora sois emancipados, podeis tudo o que eu podia, e
deveis fazê-lo’. Animado por essas palavras, e achando-me
3
Jacotot dirigiu críticas aos progressivistas, que estavam preocupados com os ‘meios’ para tornar o ensino
alegre, rápido e aprazível sem, porém, tocar na estrutura de uma escola segregadora.
4
O periódico A Sciencia circulou durante os anos de 1847 e 1848, com o intuito de divulgar a homeopatia
à elite intelectual do Rio de Janeiro, capital do Império. A Sciencia tinha por objetivo apresentar e defender
a homeopatia perante a elite brasileira, pois, de acordo com os autores, esta moderna forma de medicação
resumia toda a inovação científica. Embasada na ciência, na razão e na religião, foi impressa em julho de
1847 a primeira edição do periódico, tornando-se claramente perceptível a compreensão idealizada e
fabulosa que os médicos homeopatas brasileiros tinham de si, como pesquisadores desbravadores da
‘verdadeira’ ciência médica. Em sua primeira edição, impressa em julho de 1847, o título na capa do
periódico era A Sciencia, seguido pelo subtítulo Revista Synthetica dos Conhecimentos Humanos, contudo,
nas 24 edições impressas posteriormente, os autores utilizam como nome para a revista apenas Sciencia
(Albuquerque, 2019, p. 161).
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Joseph Jacotot no Brasil: ecos pedagógicos de um ressoar político
encarregado pela Sociedade de Emancipação Intelectual de Paris de
ajudar nesta corte os esforços dos amigos do ensino universal, rogo
a todos aqueles que nele se interessam, e que até hoje não me são
conhecidos, queiram vir entender-se comigo sobre os métodos que
se deve lançar mão para conseguir-se a propagação dos princípios
panecásticos, dirijam-se ao hotel da Europa (Jornal do Commercio
do Rio de Janeiro, 1840a, p. 4, grifo do autor).
Em matéria registrada no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, no ano de 1840,
pode-se observar o paradoxo citado por Raisky (2012), no qual, em que pese a
educação ter uma visada de emancipação intelectual, há também uma busca pela
preparação de mão de obra para desempenhar um papel social, ocupar um espaço
dentro da ordem econômica e política, adotando um viés tecnicista e restritivo de
ensinar artes e ofícios técnicos em curto espaço de tempo, não para formar “[...] sábios,
mas sim obreiros e executores” (Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1840b, p. 2).
Dessa forma, há um reducionismo da proposta da emancipação intelectual afirmada
por Jacotot a uma mera técnica a partir da introdução de conteúdos úteis ao
desenvolvimento da organização industrial e das bases morais.
Assim, para o futuro cada uma das funções de nossa ordem social
será preenchida por quem for capaz de desempenhá-la. Não
teremos como hoje médicos que a natureza destinou para
sapateiros, e pedreiros que poderiam ter sido Raphaeis. O benéfico
método Jacotot, pelo qual qualquer ignorante pode sem custo
ensinar aquele que não sabe, achará aqui sua mais bela aplicação
(Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, 1840b, p. 2).
Outros periódicos oitocentistas demonstram que nem todas as propostas de
emancipação intelectual de Jacotot circularam em periódicos brasileiros com uma
possibilidade de desdobramento para a emancipação política e social. O
desencantamento de Jacotot com a emancipação política e social descrita por Raisky
(2012) que culminou em um projeto voltado para a família encontrou em empregadores
progressivistas um saber acessível aos desiguais, “[...] confirmando, desta forma, a
desigualdade presente, em nome da igualdade futura” (Rancière, 2015, p.13).
Ao estabelecer relações entre emancipação intelectual e social, o presente
escrito visa trazer as rupturas presentes no pensamento pedagógico de Jacotot com a
lógica institucionalizada da desigualdade das inteligências nos ritos da instrução
escolarizada, a partir da atuação de alguns ‘homens do progresso’ que entenderam e
adotaram sua proposta, sendo homens
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[...] que caminham, que não se preocupam com a classe social
daquele que afirmou alguma coisa, mas vão conferir por si próprios
se a coisa é verdadeira; viajantes que percorrem toda a Europa em
busca de todos os procedimentos, métodos ou instituições, dignos
de serem imitados; que, ao escutar falar de alguma experiência
nova, aqui ou acolá, se deslocam, vão observar os fatos, buscam
reproduzir as experiências; que não veem porque se passaria seis
anos aprendendo algo, se está provado que se pode aprendê-lo em
dois; que pensam, sobretudo, que saber não é nada em si e que fazer
é tudo, que as ciências não são feitas para serem explicadas, mas
para produzir descobertas novas e invenções úteis; que, portanto,
ao escutar falar de invenções aproveitáveis, não se contentam em
louvá-las ou em comentá-las, mas oferecem, se possível, sua fábrica
ou sua terra, suas capitais ou sua devoção para ‘testá-la’ (Rancière,
2015, p. 152, grifo do autor).
A ÓTICA DOS ‘HOMENS DO PROGRESSO’
O periódico oitocentista brasileiro O Auxiliador da Indústria Nacional: ou
Coleção de Memórias e Notícias Interessantes (RJ) circulou matérias sobre a
emancipação intelectual de Jacotot. Dentre as matérias do ano de 1839, a contida no
sétimo volume apresenta uma notícia sobre a história do químico e tintureiro Jean
Antoine Beauvisage (1876-1836) na coluna de ‘homens úteis’. Rancière apresentou
esse tintureiro ao lado dos ‘homens de progresso’.
Em Paris, um fabricante mais modesto, o tintureiro Beauvisage,
ouviu falar do método. Operário, fez-se sozinho e quis estender
seus negócios, fundando uma nova fábrica da região de Somme. Mas
ele não queria se separar de seus irmãos de origem. Republicano e
membro da Maçonaria, sonhou transformar seus operários em
associados (Rancière, 2015, p. 154).
Segundo consta na matéria do periódico O Auxiliador da Indústria Nacional
(1839), Beauvisage nasceu em Paris em 1876 e com a idade de 18 anos tornou-se oficial
tintureiro, sabendo apenas ler, escrever e contar. A matéria descreve a forma como o
jovem operário, ‘obreiro inteligente’, conseguiu em Reims “[...] embelezar alguns
tecidos dessa célebre fábrica, sempre meditando melhoramentos ou
aperfeiçoamentos” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 461).
A partir de experimentos nas fábricas, o químico e tintureiro conseguiu ganhar
prêmios, montou seu estabelecimento e, em 1823, na volta de uma viagem que fez à
Inglaterra, aplicou aperfeiçoamentos “[...] que mais tinha adivinhado do que
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aprendido entre esses habilidosos vizinhos da França” (O Auxiliador da Indústria
Nacional, 1839, p. 463).
Com o auxílio de seus três filhos e de seu irmão em todos os processos, criou,
em 1834, a tinturaria na aldeia de Daours, seguindo carreira de “[...] obreiro e de chefe
de indústria [...]”, sendo descrito como “[...] um pai para seus numerosos operários”,
já que os tratavam “com semelhantes sentimentos com a bondade natural e o espírito
de equidade que o caracterizavam” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 464).
A partir de seu desejo de aperfeiçoamento e melhoramento, acamado da doença
de cólera e conhecedor da classe dos operários, já que “[...] tinha visto de perto a
ignorância, a devassidão, a intemperança de tantas criaturas humanas abandonadas
sem guia aos impulsos desordenados; tinha visto a profunda miséria e as lágrimas das
pobres mães e de seus filhinhos, abandonados durante os grosseiros regozijos de um
pais desvairado” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 464), fez uma promessa
de alguma boa obra entre seus operários.
Recuperado, procurou auxílio de seu amigo Ratier para cumprir a promessa de
“[...] elevar o espírito de seus operários por meio da instrução e distraí-los com auxílio
da ciência” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 464). A partir do Ensino
Universal de Jacotot, instruíram aqueles operários nos cursos de leitura, de escrita, do
cálculo, de francês, alemão, música vocal, equiparando vastas salas e organizando
ginásios que eles recreavam.
M. Beauvisage multiplicava as rezas, as advertências, os sábios
conselhos; animava economia com pequenos prêmios, explicava o
sistema das caixas econômicas e resolvia frequentes vezes alguns
ouvintes a entrarem para elas por meio de diminutos donativos
feitos a propósito; conferia prêmios, que o magistrado de Paris M.
Rambuteau vinha dar com sagaz solenidade (O Auxiliador da
indústria nacional, 1839, p. 465).
Ao responder sobre o retorno que tal filantropia causava a Beauvisage, ele
explicitou o uso da proposta de emancipação intelectual jacotista a serviço de um melhor
rendimento dos operários que permaneciam trabalhando nas oficinas até na segundafeira do feriado do entrudo5 em momentos de participação em agitações em praça pública.
5
O Entrudo, do latim introitu (introdução), é sinônimo de carnaval e, no Brasil, também designa uma
antiga brincadeira carnavalesca, trazida pelos colonizadores portugueses, no século XVI. [...] O
Entrudo acontecia nos três dias anteriores à Quarta-feira de Cinzas. Fonte:
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=26
2%3Aentrudo&catid=40%3Aletra-e&Itemid=1.
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Albuquerque, S. L., & Kohan, W. O.
Eis o que ganho: em lugar de operários negligentes, malgeitosos ou
malévolos, consegui ter colaboradores zelosos, inteligentes e
conscienciosos. Ganhei o ter sempre o pessoal das minhas oficinas
no seu estado completo, a despeito das segundas feiras, do entrudo,
e das agitações da praça pública (O Auxiliador da Indústria
Nacional, 1839, p. 466).
Tem-se aqui um exemplo de apropriação claramente conservadora do Ensino
Universal de Jacotot. Com efeito, a proposta de emancipação intelectual foi apresentada
nessa matéria sob o prisma da produtividade da indústria, já que “[...] utilizando-os nos
trabalhos da indústria, instrui-los-emos em seus métodos” (Jornal do Commercio do
Rio de Janeiro, 1840b, p. 2). A adequação da proposta de Jacotot para um
quadriculamento e melhor rendimento do trabalhador em seus postos de trabalho foi
uma apropriação politicamente elitista e conservadora de sua proposta emancipatória.
Jacotot foi incorporado pela ótica de Beauvisage a partir da prática de emulação,
a serviço do aperfeiçoamento dos trabalhadores em um processo de formação para a
racionalização e economia de recursos, já que os “[...] empregados com prudência e
justiça, tornam insensivelmente todo o mundo laborioso, diligente, e rendem em fim
mais do que custam” (O Auxiliador da Indústria Nacional, 1839, p. 466). A máxima dos
homens de progresso era aperfeiçoar a instrução que era “[...] antes de tudo o
aperfeiçoamento das coleiras, ou antes, o aperfeiçoamento da representação da
utilidade das coleiras” (Rancière, 2015, p. 168).
O final dessa história é apresentado por Rancière:
Esse sonho chocou-se, infelizmente, com uma realidade menos
inspiradora. Em sua fábrica, como em todas as outras, os operários
se invejavam entre si e só se punham de acordo quando se tratava e
ir contra o patrão. Ele queria lhes fornecer uma instrução que
destruísse neles o velho homem e permitisse a realização de seu
ideal. Para tanto, se dirigiu aos irmãos Ratier, discípulos fervorosos
do método, que pregavam a emancipação todos os domingos, na
feira de tecidos (Rancière, 2015, p. 154).
Se a emancipação intelectual proposta por Jacotot pode ser vista como vetor de
movimentos de emancipação política que rompem com uma lógica social e uma lógica
de instituição, as fontes periódicas oitocentistas brasileiras revelam que tal
possibilidade não é uma via de mão única ou pelo menos não foi efetivada aqui no Brasil.
O paradoxo das apropriações de Jacotot comparece em uma mesma matéria que
apresenta as tentativas de emancipação limitadas à capacidade intelectual pela via
progressivista da racionalização dos ofícios e dos saberes dos trabalhadores pelos
homens do progresso; tudo isso na contramão de uma ruptura social anunciada pela
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Joseph Jacotot no Brasil: ecos pedagógicos de um ressoar político
tentativa de florescimento da primeira colônia societária no Brasil sob os moldes do
falanstério, possibilitando, além da emancipação intelectual, uma emancipação social.
Na matéria assinada pelo Dr. Mure no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro
(1840), observa-se uma busca pragmática pela preparação de mão de obra “[...] não
para formar sábios, mas sim obreiros e executores” (Jornal do Commercio do Rio de
Janeiro, 1840b, p. 2), juntamente com a possibilidade de aprovar um falanstério no
Brasil como forma de organização societária,
Ah! Possamos em breve ver erguer-se e florescer a primeira colônia
societária! a fama da venturosa existência que aí vivermos
exercitará todas as atenções, e o contágio de nosso exemplo
chamará em breve em redor de nós inúmeros imitadores. As artes e
a poesia, frutos da ventura social, brotarão em breve no meio de
nós; a associação tornará fáceis todas as grandes empresas,
extinguirá toda a discórdia e dirigirá para a produção as forças que
hoje se destroem pelo choque dos interesses (Jornal do Commercio
do Rio de Janeiro, 1840b, p. 2).
Nesse sentido, Crislaine Cruz (2018) apresenta as tentativas do doutor Mure,
um dos anunciadores da Filosofia Panecástica de Jacotot e um dos fundadores do
periódico A Sciência, de criar um falanstério no Brasil da seguinte forma
Mure chegou ao Brasil carregado de muitos sonhos e planos.
Primeiro tinha o intuito de criar um falanstério nos moldes do
socialismo utópico proposto por Charles Fourier e, por isso
conseguiu difundir no país, ideais de cunho social e igualitário,
sendo citado em trabalhos que tratam sobre os primórdios do
socialismo no Brasil (Gallo, 2013; Gutler, 1994). Segundo, Mure
também propagou a homeopatia no Brasil, sendo considerado na
historiografia como um de seus maiores precursores no país
(Sollero, et al. 2004; Silveira, 1997). Esse mesmo Benoît Mure foi
divulgador das ideias acasteladas por Jean-Joseph Jacotot em
território brasileiro; teria aplicado, inclusive, o Método de Jacotot
no ensino da homeopatia (Instituto Panecástico..., 2016, p. 1). Por
isso, nossa atenção se volta para a figura cativante e entusiasta
desse intelectual (Cruz, 2018, p. 17).
Embora comparecesse como possibilidade uma nova organização societária,
observa-se, nessas fontes, uma apropriação de Jacotot por parte dos progressivistas,
fundamentada em uma emancipação individual esvaída de qualquer repercussão
política ou social; colocada, ao contrário, a serviço de uma razão técnica:
aprimoramentos profissionais, lucros e melhor exercício do ofício a partir de maior
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envolvimento em número de horas trabalhadas, em uma total dependência do
operário pelo homem do progresso.
O progressivismo é a forma moderna desse poder, purificada de toda
mistura com as formas materiais de autoridade tradicional: os
progressivistas não têm outro poder senão a ignorância, a
incapacidade do povo, que embasa seu sacerdócio. Como, sem abrir
o abismo sob seus pés, diriam aos homens do povo que não precisam
recorrer a eles para serem homens livres e instruídos acerca de tudo
que convém à sua dignidade? (Rancière, 2015, p. 178).
Assim, na melhor das hipóteses, a emancipação intelectual de Jacotot
compareceu em alguns periódicos brasileiros no século XIX apresentando o paradoxo
de uma proposta de emancipação intelectual sob ritos de uma instrução dirigida por
homens do progresso.
O ENSINO UNIVERSAL QUE ATRAVESSA A REPÚBLICA E CHEGA ATÉ NÓS
A emancipação intelectual proposta por Jacotot adentrou os periódicos que
circularam a República brasileira. Além do anúncio da obra Ensino universal para venda
aos leitores da Gazeta da Tarde (1890, p. 3), vários jornais noticiaram essa obra de Jacotot.
A Revista Pedagógica do Rio de Janeiro, editada no ano de 1890, conceituou, na
matéria intitulada ‘O ensino da leitura analítica’, o pressuposto da Panecástica de
Jacotot de que ‘tudo está em tudo’ para justificar a perspectiva do ensino da leitura e
escrita partindo da totalidade da sentença, e não de letras e sons isolados.
A forma paradoxal, que é a enunciação dos seus princípios, deu o
ilustre Jacotot, não pode prejudicar a verdade, que encerram. Tout
est dans tout tem uma interpretação moderna, que este livro
justifica. A leitura, isto é, a compreensão e o uso da linguagem
escrita, tem por ponto de partida, não a letra, não a palavra, com
que a criança não fala, mas a sentença, veículo o seu e do alheio
pensamento (Revista Pedagógica, 1890, p. 79).
A defesa pela máxima do ensino analítico em contraposição ao método sintético
de ensino de leitura e de escrita foi veiculada em diversas fontes associando-a à
máxima de Jacotot. Há uma preferência em algumas matérias pelos programas para a
primeira infância sob a base do ensino analítico, “[...] como guia seguro para o
professor ainda sem ideias definidas sobre o ensino”. “Nenhum país fez ainda
programa assim? Pois façamo-los para os pequeninos, aplicando-lhes a eles o que
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Jacotot já há mais de cem anos aconselhara: que, em matéria de educação, tudo está
em tudo” (O Dia, 1914, p. 1).
Segundo Aguayo (1959), Jacotot seria o criador do método analítico para o ensino
da leitura através de seu Ensino Universal apresentado na obra Língua materna, publicada
em 1822, já que partia do princípio da totalidade de um texto como pontapé inicial no
processo de alfabetização, rumo à matriz de um método global. Para além de marchas
metodológicas de matrizes sintéticas ou analíticas, a filosofia de Jacotot, porém,
encontrava no princípio da igualdade das inteligências o seu axioma fundamental.
Ao criticar métodos que alteravam os ‘meios escolhidos para tornar
sábio o ignorante: métodos duros ou suaves, tradicionais ou
modernos, passivos ou ativos, mas cujo rendimento se pode
comparar’ (Rancière, 2015, p. 32), sem partir da concepção de
igualdade entre todos os homens, Jacotot denunciou uma
concepção de uma criança passiva, civilizada e, em suas palavras,
embrutecida (Albuquerque, 2019, p. 170, grifo do autor).
A filosofia Panecástica encontrou resistência em solo brasileiro. Nem todas as
matérias apresentadas nos periódicos faziam a defesa da proposta de Jacotot. Assim
como já tivera sido tratado nos periódicos oitocentistas como aforismo, sua máxima
‘tudo está em tudo’ apareceu desacreditada, bem como sua proposição de ensinar
aquilo que se desconhece.
té então acreditava-se geralmente que para exercer as funções do
magistério não se necessitava de nenhum preparo especial, indo
mesmo alguns ao extremo de adotar o paradoxal aforismo de
Jacotot - que todo homem pode ensinar, até mesmo aquilo que não
sabe (Gazeta de Petrópolis, 1898, p. 2).
Essa crítica está direcionada ao princípio de Jacotot de que ‘pode-se ensinar aquilo
que se desconhece’, a partir do princípio de aprender uma coisa e a ela referir todo o resto.
Proclamou então o Sr. Jacotot esta máxima — ‘quem quer pode’ —,
como meio de suceder em todo o trabalho intelectual, máxima esta
posta em prática por todos aqueles que querem neste mundo
efetuar coisas grandes; máxima que, quando faz as vezes de uma
mola escondida, fez que, em todos os casos, inspira aos alunos uma
justa confiança em si, e os anima para perseverar afim de colherem
o fructo de seus trabalhos. Do sucesso que sempre tinha coroado as
suas tentativas, concluiu o Sr. Jacotot — ‘que Deus criou a alma
humana capaz de instruir-se a si mesma, e sem o concurso de
mestres e explicadores’. Enunciou ainda o Sr. Jacotot outros
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princípios: ‘Aprender ou saber alguma coisa, e a ela referir todo o
resto’. — ‘Tudo se acha em qualquer coisa’. — ‘Todas as
Inteligências são iguais’. — ‘Pode-se ensinar aquilo que se
ignora’.— Isto quer dizer simplesmente que quem quiser, seja quem
for, pode tendo confiança em si e vontade, verificar se uma outra
pessoa sabe o que tem aprendido (A Sciencia, 1848, grifo do autor).
Há uma permanência nas apropriações de Jacotot de um princípio que, há quase
duzentos anos, extrapola os limites de imposição do saber em doses fragmentadas da parte
de um mestre transmissor de conhecimentos, que já fora propagandeado no Império e que
aparece em periódicos no início da República anunciado como há “[...] mais de cem anos
aconselhara: que, em matéria de educação, tudo está em tudo” (O Dia, 1914, p. 1).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ideias do Ensino Universal e da Filosofia Panecástica de Jacotot ressoam
como fundo, por exemplo, na pedagogia da dialogicidade de Paulo Freire. A subversão
da lógica transmissora de saberes de uma educação bancária e a abertura para a
possibilidade de um ‘tudo está em tudo’ que permita explorar o caráter relacional de
qualquer sujeito abrem as portas para a afirmação do princípio da igualdade das
inteligências. O próprio Jacques Rancière coloca Paulo Freire em certo modo do
mesmo lado de Jacotot, os quais são confrontados diante do lema positivista
pedagógico de ‘Ordem e Progresso’, os dois na busca de interromper a pretensa
harmonia entre a ordem do saber e a ordem social (Rancière, 2003). Contudo também
manifesta as claras diferenças: nada mais afastado de Jacotot do que um método para
a ‘conscientização’ social como o de Paulo Freire. Jacotot afirma que a igualdade é
uma decisão puramente individual, impossível de ser institucionalizada.
Isso significa que, na sua perspectiva crítica da ordem política e social, Paulo
Freire e Joseph Jacotot compartilhavam certos princípios e sentidos e, principalmente,
eram muito rigorosos com o impacto político na constituição subjetiva dos processos
educativos dominantes nas ordens sociais em seus respectivos contextos. Porém,
quanto a suas perspectivas especificamente pedagógicas, distâncias muito grandes os
separavam, notadamente, no alcance emancipatório da prática educacional e em
ideias como a conscientização, pilar da perspectiva freireana, que confronta a ideia
jacototiana de que o trabalho emancipador recai apenas sobre a vontade do outro e
não sobre sua inteligência, e que ele apenas pode ser realizado de indivíduo a
indivíduo (cf. Rancière, 2003; Kohan, 2019).
Eis, talvez, o ponto de inflexão e que tem possibilitado apropriações
conservadoras do Ensino Universal de Jacotot no Brasil: ele não afirma nenhum tipo
de conexão ou relação específica entre as práticas educacionais e a (des)ordem social;
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Joseph Jacotot no Brasil: ecos pedagógicos de um ressoar político
ao contrário, a emancipação não pode ser institucionalizada e, mais ainda, o ensino
universal só pode ser transmitido em forma individual, quase que exigindo a
suspensão de qualquer ordem social. Claro que, como o próprio Rancière afirma,
embora a emancipação intelectual não se dê no campo social, uma emancipação social
que se preze exige uma emancipação individual. Nesse sentido, mesmo com toda a
distância que há entre eles, a emancipação proposta por Jacotot aproxima-se em certa
medida do utopismo de Paulo Freire: “[...] no processo de emancipação intelectual
como vetor de movimentos de emancipação política que rompem com uma lógica
social, uma lógica de instituição” (Vermeren, Cornu, & Benvenuto, 2003, p. 199). Essa
aproximação entre Freire e Jacotot diz também respeito a uma certa relação com o
método: embora ambos afirmem um método, ele está subordinado aos sentidos, e o
método acaba sendo o de cada quem na sua forma específica de apropriação metódica.
Também comporta uma forma de afirmar as figuras do estrangeiro e do errante a partir
das quais eles têm pensado e afirmado suas vidas pedagógicas (Kohan, 2019).
As apropriações da Filosofia Panecástica de Jacotot no Brasil compareceram em
nossos estudos em inúmeras fontes históricas como jornais, revistas pedagógicas e
teses médicas. Há de se considerar que as leituras conservadoras de J. Jacotot o
instrumentalizam e, nesse sentido, o empobrecem: o criador do Ensino Universal não
defende ipso facto a ignorância apenas como ausência de saber, mas, sobretudo, como
princípio político que desconhece, desobedece, recusa – e em tal sentido ignora – a
desigualdade em que se baseia toda instituição pedagógica. Assim, ao tomar pela letra
a afirmação de que qualquer professor pode ensinar aquilo que não sabe, tira-se a força
política da ignorância sustentada pela filosofia Panecástica. Uma apropriação liberal
e conservadora poderia também ser feita pelos atuais defensores de propostas como
‘Escola sem Partido’ que odeiam a educação pública e visam ao seu desmonte.
Contudo, se alguns poderiam tirar proveito do Ensino Universal, são justamente
os pobres, os que não apenas não podem pagar pela sua educação, como também têm
ouvido, durante toda a sua vida, acerca de sua suposta incapacidade. A partir do
Ensino Universal, eles se livrariam de duas problemáticas ao mesmo tempo: da
privatização da sua educação e do preconceito sobre sua capacidade. Já E. J.
Ackermann, outro dos introdutores de Jacotot no Brasil, destacava que o Ensino
Universal não só podia reduzir o tempo de instrução, mas também tinha um notável
valor político por ser o método dos pobres, “[...] o que há de gravar o nome de Jacotot
no coração de todos os verdadeiros amigos da humanidade” (A Sciencia, 1848, p. 195).
Eis que chegamos ao cerne da questão e, sensíveis a uma pedagogia da pergunta
(Freire & Faundez, 2011), preferimos terminar o presente trabalho com algumas
perguntas que se desprendem das análises aqui realizadas sobre a apropriação das
ideias de Jacotot no Brasil: quem são os verdadeiros amigos da humanidade? Ou, em
outras palavras, qual humanidade almeja-se quando se afirma uma prática ou política
educacional ou se defende ou ataca uma teoria educacional como o Ensino Universal?
Ou de qual humanidade se quer ser amigo? De uma humanidade racista, colonizadora,
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machista, misógina, excludente, assassina, castradora, que cuida do capital mais que
da vida como a que tem tomado conta do Brasil e hoje se mostra mais ameaçadora do
que nunca no atual cenário político brasileiro? Ou de uma humanidade em que, para
dizê-lo com palavras de Paulo Freire, seja menos difícil amar? Amigo de qual
humanidade importa fazer amigo Joseph Jacotot e o seu Ensino Universal?
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SUZANA LOPES DE ALBUQUERQUE: Graduada em
Pedagogia pela UFG (2006), Mestre em Educação pela
UFAL (2013), Doutora em Educação pela USP (2019) e
Pós Doutora em Educação pela UERJ (2022).
Professora da área de Educação no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, no câmpus
Goiânia Oeste e docente no Programa de Mestrado em
Educação do IFG no câmpus Goiânia. É líder do Grupo
de Estudos e Pesquisas Panecástica - Homem,
Trabalho e Educação Profissional Tecnológica.
E-mail:
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-2001-5942
WALTER OMAR KOHAN: professor titular da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pesquisador
1C do CNPq e Cientista de Nosso Estado (FAPERJ).
Pós-doutor pelas Universidades de Paris 8 (Francia) e
British Columbia (Canada). Seus trabalhos estão
publicados em castelhano, italiano, inglês, português,
francês, húngaro, russo e finlandês. Livros recentes
em português: Uma viagem de sonhos impossíveis
(Autêntica, 2023); Paulo Freire: um menino de 100
anos (NEFI, 2021), Paulo Freire, mais do que nunca
(Vestígio, 2019).
E-mail:
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-2263-9732
Editor-associado responsável:
Raquel Discini de Campos (UFU)
E-mail:
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https://orcid.org/0000-0001-5031-3054
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Como citar este artigo:
Albuquerque, S. L., & Kohan, W. O. Joseph Jacotot
no Brasil: ecos pedagógicos de um ressoar político.
Revista Brasileira de História da Educação, 23. DOI:
https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e281
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História da Educação (SBHE) e do Programa
Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho
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Este artigo é publicado na modalidade Acesso
Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição
4.0 (CC-BY 4).
Recebido em: 23.06.2022
Aprovado em: 16.01.2023
Publicado em: 09.06.2023
Rev. Bras. Hist. Educ., 23, e281, 2023
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