V. 1, n. 1, Uberlândia: 2011. ISSN: 2317-8310
FERREIRA GULLAR E A DEFINIÇÃO DA FUNÇÃO DOS
INTELECTUAIS
Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira*
Resumo: O presente trabalho visa compreender a definição da função social dos intelectuais
no Brasil no início da década de 1960 formulada pelo poeta Ferreira Gullar. Para tal,
analisaremos como fonte o ensaio “Cultura Posta em Questão”, escrito por Gullar em 1963,
no interior de suas experiências como membro do CPC – Centro Popular de Cultura. O ensaio
em questão objetiva teorizar acerca da necessidade da arte na luta política e ideológica,
mostrando que as vanguardas artísticas do período, em suas experiências radicais de
formalismo e subjetividade, levam à morte cultural da arte. É a partir disso que Gullar define
a função do intelectual na sociedade brasileira do período. Para o autor, o intelectual deve
retomar a sua função política e social, colocando-se ao lado do povo, produzindo arte em
consonância com este, no intuito de obter a conscientização das massas acerca de seu papel
revolucionário.
Palavras-chave: Ferreira Gullar. Cultura Posta em Questão. Intelectuais.
Esse trabalho visa compreender a definição da função dos intelectuais na sociedade
brasileira formulada pelo poeta, tradutor, dramaturgo e ensaísta maranhense Ferreira Gullar a
partir da obra “Cultura Posta em Questão”, escrita em 1963, no interior das experiências do
autor na presidência do CPC, função que desempenhava desde 1962. A partir disso,
poderemos perceber a historicidade, bem como a própria leitura da história, de Gullar e de sua
respectiva obra, uma vez que esta insere os intelectuais na discussão em torno do seu próprio
tempo histórico, criando imagens de grupos distintos de intelectuais em torno de sua inserção
ou afastamento político nas obras de arte, imagens estas que se constroem a partir de uma
determinada leitura da história e da história da arte, de modo imbricado. Deste modo, uma
discussão que articule a trajetória poética e o contexto histórico e político do Brasil se faz
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Acadêmico do VI período do curso de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e
bolsista de Iniciação Científica pela FAPEMIG.
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necessária, pois é a partir desse ponto que podemos compreender a resposta de Gullar a
função social dos intelectuais e da própria arte.
A morte e a mudança são duas constantes no que se refere à vida e a obra de Ferreira
Gullar; em um curto período temporal Gullar é capaz de abandonar inteiramente um projeto
poético, ou mesmo político, para engajar-se em outro, não havendo, portanto um projeto préestabelecido no horizonte deste autor, o que já é explícito em um dos poemas de sua primeira
obra, A Luta Corporal, de 1954: “Nada vos oferto/além dessas mortes/de que me
alimento/Caminhos não há/Mas os pés na grama/os inventarão... (GULLAR, 2010:6)
Nesse sentido, o autor inicia sua poesia com versos parnasianos, afastado da tônica
modernista de 1922, redigindo um livro em 1949, que é excluído de sua bibliografia em
virtude de sua imaturidade. No contato com o modernismo e com as vanguardas, Gullar
escreve a A Luta Corporal, promovendo uma experiência de desintegração da linguagem.
Com esse livro, chama a atenção do grupo Concretista de São Paulo, Haroldo e Augusto de
Campos e Décio Pignatari, adentrando ao grupo, rompendo com os paulistanos anos depois
em torno de divergências teóricas e poéticas. Assim, Gullar, em conjunto com outros
intelectuais como Lygia Clark e Hélio Oiticica, cria o movimento Neoconcreto, redigindo seu
manifesto em 1959. Em 1960, a ida a Brasília para assumir a função de diretor da Fundação
Cultural do Distrito Federal, o autor toma contato com outra realidade brasileira, percebendo
que até então, não havia sido brasileiro:
Descubro que aquela poesia que eu estava fazendo não tinha nada a ver com
o Brasil, era desligada de tudo. Eu conhecia Rimbaud, Mallarmé, Eliot,
Pound e ignorava o meu país,a literatura brasileira. Disse pra mim mesmo:
vou virar brasileiro! Abandonei tudo, minha poesia mudou...Comecei a virar
brasileiro. (GULLAR apud CAMENIETZKI, 2006: 63)
É nesse momento que Gullar abandona as vanguardas artísticas que participara,
produzindo um novo tipo de poesia, em boa medida, antagônico aos anteriores. Cultura Posta
em Questão exibe teorizações do autor em relação a esse rompimento e a conseqüente
inserção da política em sua arte, buscando legitimá-la. É, portanto, nesse sentido que Ferreira
Gullar propõe a função dos intelectuais na sociedade brasileira do período, propondo um
modo de fazer artístico próprio a estes: a cultura popular. A partir dessa definição, Gullar
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termina por criar uma imagem de dois grupos de intelectuais: àqueles comprometidos, que
refletem acerca dos problemas da realidade brasileira, e os descomprometidos, que se fecham
em uma radicalização do individualismo e da subjetividade, produzindo obras puramente
formalistas.
Em sua proposição de cultura popular, Gullar retoma a conceituação do primeiro
presidente do CPC – Centro Popular de Cultura – Carlos Estavam Martins, sociólogo do ISEB
– Instituto Superior de Estudos Brasileiros – e membro do PCB – Partido Comunista
Brasileiro, como aponta Daniel Pécaut (1990). Assim, para Gullar, “a cultura popular é, em
suma, a tomada de consciência da realidade brasileira (...) Cultura popular é, portanto, antes
de mais nada, consciência revolucionária” (GULLAR, 2006:23)
Essa consciência da realidade brasileira determina o caráter nacionalista da cultura
popular, uma vez que ao refletir sobre o Brasil o artista desvenda os interesses classistas e
estrangeiros presentes nas produções artísticas brasileiras. Logo, o artista ao interpretar o país
deve agir no país, para o povo e com o povo, buscando traduzir-lhe a luta de classes e os
avanços do imperialismo, criando no povo a consciência de sua função revolucionária.
Nesse sentido, a arte e o artista só cumprem sua função social na medida em que
serve à conscientização do público, adaptando a obra a este, ampliando, assim, o público para
o qual a mensagem artística e política é enviada, garantindo a comunicação. Para Gullar, não
há um rebaixamento na qualidade artística da obra de arte produzida nos moldes da cultura
popular, pois esta representa uma nova visão de mundo articulada com os interesses e hábitos
lingüísticos usuais ao povo. “O que se chama hoje de arte participante (grifo do autor) não é
nada mais que o reencontro da arte com a legitimidade cultural” (GULLAR, 2006:46)
Assim, Gullar percebe um enraizamento social da arte, de modo que todo produto
artístico é ideológico. Deste modo, o artista brasileiro, a partir do movimento de interpretação
crítica da realidade brasileira, produz arte genuinamente brasileira, ao compreender que os
processos históricos que originaram determinados movimentos artísticos na Europa, não são
os mesmos que no Brasil, de modo que esse tipo de arte deve atender às demandas históricas
do país. Todavia, isso não significa, segundo o autor, que haja um isolacionismo cultural. O
contato com outras artes estrangeiras é benéfico, com a condição da existência de um senso
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crítico que não leve o artista brasileiro à cópia dos modelos europeus. O mesmo é válido para
o artista, que também é gerado pelo movimento contraditório da história, devendo produzir
sua arte de acordo com tais contradições.
Em suma, essa é a imagem construída daquilo que Gullar nomeia por intelectual
comprometido, ou mesmo intelectuais jovens. Em contraposição dialética a estes, estão os
descomprometidos, ou os intelectuais maduros. Para o autor, esse último tipo de intelectual,
em suas produções artísticas, conduziria a arte à sua morte cultural, isto é, à sua
incomunicabilidade: “a evolução natural (grifo nosso) da poesia que se funda no alheamento
aos problemas concretos é para a sua própria destruição” (GULLAR, 2006:122)
É interessante notar que essa tese central de Cultura Posta em Questão, parte da
própria experiência do autor enquanto poeta de vanguarda, o que, em boa medida, justifica a
articulação das experiências poéticas de Gullar com o contexto histórico do período. Há um
capítulo do ensaio chamado Em busca da realidade, no qual o autor empreende uma
autoanálise do livro A Luta Corporal, legitimando a tese central do ensaio. Tal legitimidade
ocorre no momento em que Gullar, na radicalização da experiência de desintegração da
linguagem, consegue encontrar apenas o silêncio e o descolamento social do poeta:
Eis por que – e é isto que aprendi na minha própria luta com a poesia –
nenhuma possibilidade há de escaparmos às contradições que nos arrastam
inapelavelmente para o silêncio, se não rompermos com essa concepção
poética geral que concebe o poeta como um alienado social. A rejeição da
linguagem conceitual é a rejeição de pensar o mundo. (GULLAR, 2006:154)
É, pois, a partir desse raciocínio que estabelece o poeta, ou o artista, como um
alienado social que o autor caracteriza os intelectuais descomprometidos. Estes, em sua
grande parte, são pertencentes a movimentos que o autor considera como formalistas ou de
vanguarda, que praticam a arte pela arte, descolando-se da realidade. No Brasil, esse processo
ocorre na imitação dos modelos europeus pelos artistas brasileiros, que são encarados no
estrangeiro como bons ou maus alunos, ou reprodutores, desses modelos.
Esse tipo de arte, na concepção de Gullar, é internacionalista e pretende unificar os
padrões de arte pelo mundo, resultado da política imperialista e da mundialização, que
termina por apagar os problemas políticos e econômicos presentes na arte. Desse modo, o
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processo de produção da arte brasileira é interrompido por esse contato acrítico com a arte
estrangeira.
Dentro dessa categoria estão os autores da geração de 45 do modernismo brasileiro e,
sobretudo, o movimento concretista. De acordo com Gullar, o movimento concretista é da
caráter idealista e meramente retórico, se apresentando em um plano ideal, alheio a realidade
e inserido em uma aristocracia espiritual que se comunica com um minoria, ou mesmo com
ninguém.
Contudo, por mais que creiam e se representem enquanto intelectuais autônomos e
alheios à sociedade e às concepções ideológicas, na visão de Gullar, tais intelectuais carregam
também uma ideologia e se posicionam dentro da sociedade, escolhendo abandoná-la em
detrimento de um mercado estabelecido para as obras de vanguarda, de modo que quando
mais radical for a obra, maiores chances de encontro de um mercado valioso para tal obra.
Nesses moldes, a obra de arte encontra sua total monetarização e perde seu caráter estético e
de fruição, pois aqueles que a fruem, o fazem a partir de relações mercantis, até mesmo pelo
fato que a obra, em seu estado de radicalização subjetiva, não pode ser compreendida por
ninguém senão o artista.
Assim, a função social da obra de arte e do artista se definem de modo antagônico ao
modelo de cultura popular; em vez da predominância do conteúdo em relação a forma, na
análise de Gullar, os intelectuais descomprometidos preconizam a forma ao conteúdo, de
modo que a arte cumpre sua função a medida em que exprime as necessidades estéticas da
sociedade.
É em torno dessas características que se pauta a crítica de arte em seus julgamentos.
Na concepção de Gullar, o estatuto da obra de arte depende do outro, no caso, em boa medida,
da crítica, com seus conjuntos de regras e valores que permitem determinar aquilo que deve
ou não ser considerado como arte. Nessa visão, o modelo de cultura popular é totalmente
deslegitimado enquanto obra de arte, em virtude dos elementos antagônicos já expostos
acima.
Portanto, há uma luta entre esses dois tipos de intelectuais que, em última análise, se
dá em torno do próprio estatuto da arte, dos artistas e dos intelectuais na sociedade brasileira,
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em torno da definição da função desses elementos. Nesse sentido, é importante notarmos que
ambas as categoriais de intelectuais formuladas por Gullar são construídas a partir de uma
determinada leitura histórica; ambos emergem a partir das contradições da sociedade.
Em uma retrospectiva histórica que aborda a arte desde os seus primeiros tempos,
Gullar constata que o artista sempre esteve ligado à sociedade, sobretudo às classes
dominantes, devendo representá-las. A modernidade capitalista cria o artista marginal,
individualista, que rompe com as representações das classes dominantes para representar
aquilo que deseja. Esse processo é radicalizado ao longo do século XX, gerando os
intelectuais descomprometidos e a internacionalização da arte, o que ocorre em conexão com
o imperialismo que avança levando seus padrões de sociedade às nações subdesenvolvidas.
O projeto de cultura popular é, nessa perspectiva, dialeticamente oposto a este,
surgindo a partir do mesmo processo histórico. Enquanto avança o projeto imperialista, os
intelectuais comprometidos lhe fazem oposição, crendo representar a parcela progressista das
forças presentes no jogo político do período, estando conectadas de modo orgânico a estas,
estabelecendo um projeto de revolução brasileira no intuito do romper com o
subdesenvolvimento no Brasil.
Essa leitura do real, da história e esse projeto de sociedade para o Brasil é
compartilhado não somente pelos membros do CPC. É, na verdade, uma formulação que se dá
a partir das reflexões estabelecidas em institutos acadêmicos, como o ISEB, e em partidos
como o PCB. A partir disso, Daniel Pécaut (1990), aponta para o surgimento de uma
linguagem política nacional-popular comum que é manuseada por diversos grupos, de acordo
com seus interesses.
Já no discurso dos intelectuais pertencentes ao ISEB estava presente a noção dos
intelectuais como atores centrais no processo de ruptura com o subdesenvolvimento no Brasil,
uma vez que estes poderiam levar a consciência ao povo, fazendo com que este assuma seu
papel revolucionário na sociedade brasileira. Ademais, há um delineamento de imagens dos
inimigos externos e internos, os latifundiários e a burguesia entreguista que se encontra
interligada com as forças do imperialismo.
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A imagem de Brasil construída a partir da Declaração de Março de 1958, de acordo
com Raimundo Santos (2009), se fundamenta em uma leitura histórica dos comunistas que
compreende o desenvolvimento do capitalismo no Brasil a partir da década de 1930. Para o
PCB, as forças do capitalismo no país seriam forças progressistas que, no entanto, não
conseguiram extinguir o subdesenvolvimento em virtude de conservarem aspectos retrógrados
no país, a exemplo dos latifundiários. A partir disso, o Brasil lhes aparece como ainda
semicolonial e semifeudal, em razão de suas relações de dependência tanto do latifúndio,
internamente, quanto do imperialismo, externamente.
Portanto, há uma cultura política em Ferreira Gullar, no sentido apontado por Pécaut
(1990), de adesão a uma sociabilidade política em comum. Nessa adesão ao projeto, Gullar se
insere nas forças do jogo político, que em 1963, se encontravam polarizadas entre os projetos
nacional-desenvolvimentista, portado pelo PTB de Jango e apoiado pelos grupos de esquerda,
e o liberal-conservador, portado pela UDN e apoiado pelos grupos de direita, em um
momento em que a própria República e a democracia passavam por crises ameaçadoras, como
aponta Jorge Ferreira (2010).
A partir disso, podemos apontar que as formulações teóricas de Ferreira Gullar
representam, no terreno da arte e da cultura, a própria polarização do debate político no
Brasil, identificando dois projetos antagônicos em disputa. Nesse sentido, Gullar fundamenta
sua definição da função dos intelectuais a partir de uma leitura histórica, bem como de sua
inserção como ator histórico nos movimentos tanto artísticos, quanto políticos do país,
movendo, para tal, uma série de referências gestadas no interior de outros grupos de
intelectuais, de modo que ao aderir a essa sociabilidade política, o autor termina por organizálas e divulgá-las, buscando a hegemonia de seu projeto.
Portanto, analisamos aqui como Gullar constrói seu discurso acerca da função dos
intelectuais no sociedade brasileira, nos anos imediatamente anteriores ao Golpe Militar de
1964, articulando a trajetória poética do autor com os projetos políticos vigentes à época, bem
como ao seu debate político, buscando historicizar todas essas questões, exibindo um Ferreira
Gullar inteiramente diverso do atual.
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Referências Bibliográficas
CAMENIETZKI, Eleonora Ziller. Poesia e política: a trajetória de Ferreira Gullar. Rio de
Janeiro, Revan, 2006
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de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 4ª Edição, 2010.
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GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. RJ: Editora José Olympio, 19ª Edição, Rio de Janeiro,
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PÉCAUT, Daniel. Os Intelectuais e a Política no Brasil: Entre o Povo e a Nação. Tradução:
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RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da
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SANTOS, Raimundo. A Importância da Tradição Pecebista. Brasília: Fundação Astrojildo
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