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Economia Circular

2022, Economia circular

Este capítulo apresenta o conceito de economia circular, sublinhando a sua ligação com o Direito do Ambiente e vincando a relevância dos instrumentos comportamentais para a sua compreensão. De seguida, entrecruzando políticas ambientais e Direito, são apresentadas as principais alterações legislativas em discussão, num exercício prospetivo baseado no recente e ainda incompleto pacote legislativo para a transição para a economia circular. Além de serem identificados brevemente alguns instrumentos transversais relevantes, são analisados em detalhe os nódulos problemáticos relativos à conceção ecológica e à produção circular, ao consumo, e à gestão de resíduos, com ênfase no tópico da reintrodução no mercado e a sua relação com o regime de substâncias químicas, especificando-se ainda algumas cadeias de valor em especial.

FICHA TÉCNICA Título Tratado de Direito do Ambiente. Volume II Edição Carla Amado Gomes e Heloísa Oliveira Revisão Inês Pedreiro Gomes Design gráfico Jason Simões Publicação CIDP - Centro de Investigação de Direito Público ICJP - Instituto de Ciências Jurídico-Políticas Alameda da Universidade, 1649-014 Lisboa ISBN 978-989-8722-60-7 Ano Novembro / 2022 TRATADO DE DIREITO DO AMBIENTE ÍNDICE DO VOLUME II Índice .04 Índice dos capítulos .06 Lista de autores .13 Mensagem das editoras .14 Listagem de abreviaturas .16 I. Alterações climáticas .30 Armando Rocha II. Economia circular .114 Heloísa Oliveira . Raquel Franco III. Direito da biodiversidade .169 Rui Tavares Lanceiro IV. Direito dos recursos hídricos .236 Ana Raquel Gonçalves Moniz V. Direito do ambiente marinho .316 Armando Rocha . Maria Pena Ermida VI. Normas de proteção do solo .375 Heloísa Oliveira . António Duarte de Almeida 4 TRATADO DE DIREITO DO AMBIENTE VII. Direito do subsolo .406 Carla Amado Gomes VIII. Direito da qualidade do ar .447 José Duarte Coimbra Listagem de atos de Direito Internacional .481 Listagem de atos de Direito da União Europeia .501 Listagem de atos normativos nacionais .533 Listagem de jurisprudência nacional .554 5 II. ECONOMIA CIRCULAR II. ECONOMIA CIRCULAR Heloísa Oliveira . Raquel Franco Sumário: Este capítulo apresenta o conceito de economia circular, sublinhando a sua ligação com o Direito do Ambiente e vincando a relevância dos instrumentos comportamentais para a sua compreensão. De seguida, entrecruzando políticas ambientais e Direito, são apresentadas as principais alterações legislativas em discussão, num exercício prospetivo baseado no recente e ainda incompleto pacote legislativo para a transição para a economia circular. Além de serem identificados brevemente alguns instrumentos transversais relevantes, são analisados em detalhe os nódulos problemáticos relativos à conceção ecológica e à produção circular, ao consumo, e à gestão de resíduos, com ênfase no tópico da reintrodução no mercado e a sua relação com o regime de substâncias químicas, especificando-se ainda algumas cadeias de valor em especial. Palavras-chave: circularidade; economia comportamental; sustentável; produção sustentável; REACH; políticas ambientais. consumo Abstract: This chapter presents an overview of the concept of circular economy, highlighting its link with environmental law and emphasizing the relevance of behavioral instruments for its understanding. By intersecting environmental policies and the law, we then present the main legislative proposals currently under discussion, in a prospective exercise based on a recent and still incomplete legislative package dedicated to the transition to a circular economy. In addition to briefly identifying some relevant cross-cutting instruments, we analyze in detail some problematic issues concerning ecological design and circular production, consumption, and waste management, with an emphasis on the topic of reintroduction into the market and chemicals law, also specifying some value chains in particular. Keywords: circularity; behavioral economics; sustainable consumption; sustainable production; REACH; environmental policies. 114 II. ECONOMIA CIRCULAR ÍNDICE 1. Economia circular e Direito .116 1.1. Um conceito para modelar o ordenamento jurídico .116 1.2. Economia circular e princípios de Direito do Ambiente .121 1.3. Políticas públicas para a circularidade .122 2. Instrumentos comportamentais e economia circular .126 2.1. Questões iniciais .126 2.2. O contributo da behavioral economics .129 2.3. A análise custo-benefício em matéria ambiental: a relevância da intertemporalidade .132 2.4. Comportamento humano e economia circular .134 2.5. O gap intenção-ação e a insuficiência da simples informação .139 2.6. Nudging: evidência em matéria ambiental e na alteração para o paradigma da circularidade .142 3. Um sistema legal para a circularidade .147 3.1. Produtos e processos produtivos .150 3.2. Consumo .154 3.2.1. Direitos do consumidor .155 3.2.2. O papel do consumidor público .158 3.3. Resíduos e químicos .160 3.4. Algumas cadeias de valor .163 4. Observações finais .166 115 II. ECONOMIA CIRCULAR 1. Economia circular e Direito 1.1. Um conceito para modelar o ordenamento jurídico A economia circular é preconizada como um modelo socioeconómico cuja finalidade é a eliminação do desperdício através do aumento da eficiência na utilização dos recursos em todas as fases do processo produtivo – desde a conceção do produto às fases em que se desenrola o respetivo próprio processo produtivo, começando pela extração inicial de recursos, passando pela produção, pela venda ao cliente e acompanhamento pós-venda e até ao fim da vida do produto, com a desejável reincorporação dos respetivos componentes num novo bem através de um novo processo produtivo1. A perspetiva circular é definida frequentemente por oposição ao modelo económico linear – resumido como a take, make, waste approach, por vezes também referida como take, make, replace –, no qual, à partida, os produtos e os processos produtivos são desenhados de uma forma que não permite o aproveitamento integral do valor económico dos recursos naturais utilizados, incentivando até ciclos de vida curtos, com ou sem reciclabilidade, mas sempre com elevada produção de resíduos. Figura 1: Evolução de uma economia linear para uma economia circular. Fonte: Salleh, et al. Recycling food, agricultural, and industrial wastes as pore-forming agents for sustainable porous ceramic production: A review. Journal of Cleaner Production. 2021, 306, p. 127264. Apesar de as primeiras aproximações consequentes ao conceito datarem do início da década de 19902, apenas em 2014, com o 7.º Programa de Ação em 1 H. OLIVEIRA. Circular economy: from economic concept to legal means for sustainable development. E-Publica. Revista Eletrónica de Direito Público. 2020, VII(2), pp. 73-93; Ellen MacArthur Foundation. Towards the circular economy. 2013. Disponível aqui. 2 K. Winans, A. Kendall e H. Deng. The history and current applications of the circular economy concept. Renewable and Sustainable Energy Reviews. 2017, 68, pp. 825-833. 116 II. ECONOMIA CIRCULAR matéria de Ambiente (2014-2020)3, emergiu nas políticas públicas ambientais europeias, apresentando-se hoje como incontornável para a compreensão do Direito do Ambiente. O 8.º Programa de Ação (2022-2030)4 identifica como objetivo “acelerar a transição ecológica para uma economia circular, com impacto neutro no clima, sustentável, sem substâncias tóxicas, eficiente na utilização dos recursos, baseada em energias renováveis, resiliente e competitiva, de uma forma justa, equitativa e inclusiva, e proteger, restaurar e melhorar a qualidade do ambiente, através nomeadamente de ações que travem e revertam a perda da biodiversidade” (n.º 1 do artigo 1.º). A propósito da fixação de critérios para a qualificação de certos investimentos como ambientalmente sustentáveis, um Regulamento da União Europeia, de 2020, providenciou a primeira definição legal de economia circular. Muito em linha com o conceito consensualmente utilizado por organizações nãogovernamentais e investigadores, economia circular é definida como “um sistema económico pelo qual o valor dos produtos, materiais e outros recursos na economia é mantido pelo prazo máximo possível, melhorando a eficiência da sua utilização durante a produção e o consumo, reduzindo assim o impacto ambiental dessa utilização e minimizando os resíduos e a libertação de substâncias perigosas em todas as fases do ciclo de vida, nomeadamente através da aplicação da hierarquia dos resíduos”5. A atratividade do modelo circular é facilmente explicável por se apresentar como um meio integrado para atingir a sustentabilidade, num contexto em que a sobre-exploração de recursos naturais está, consabidamente, na origem dos problemas ambientais. Na base do conceito de economia circular está a ideia de sistema – as definições mais frequentes utilizam-na com qualificativos como económico, industrial e socioeconómico6. A ideia de sistema, entendido em geral como um grupo de itens que são interdependentes e formam um 3 Decisão n.º 1386/2013/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de novembro de 2013, relativa a um programa geral de ação da União para 2020 em matéria de ambiente. Viver bem, dentro dos limites do nosso planeta. 4 Decisão (UE) 2022/591 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de abril de 2022, relativa a um programa geral de ação da União para 2030 em matéria de ambiente. 5 Cfr. n.º 9 do artigo 2.º do Regulamento (UE) 2020/852 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de junho de 2020, relativo ao estabelecimento de um regime para a promoção do investimento sustentável. 6 H. Desing, et al. A circular economy within the planetary boundaries: towards a resource-based, systemic approach. Resources, Conservation and Recycling. 2020, 155. 117 II. ECONOMIA CIRCULAR todo unificado7, permite antever que as suas ramificações são multinível, tanto podendo ser entendidas e incorporadas numa perspetiva micro (focada no produto ou num processo produtivo), meso (integração de sistemas regionais e industriais) e macro (no contexto nacional, europeu, global)8. Cada uma destas dimensões é atualmente regulada pelo Direito também de forma multinível (internacional, europeu e regional), estando esta classificação presente nas estratégias de transição9. A transição para a economia circular implica alterações ao longo de todo o processo produtivo, em todos os processos produtivos, e durante todo o ciclo de vida dos bens. Apesar de frequentemente associada à área do Direito dos Resíduos, a circularidade não é suscetível de ser implementada apenas através da regulação do fim de vida dos produtos. Pelo contrário, a regulação com incidência na fase preliminar de conceção de um produto e no respetivo processo de produção é que torna possível uma gestão de resíduos que leve à redução do desperdício. O atual modelo vertido no Direito dos Resíduos, cuja epítome é a expressão from cradle-to-grave, contrapõe-se a um outro baseado no axioma de que os recursos devem ser reintegrados na economia (from cradle-to-cradle), diminuindo assim a necessidade de nova extração. Figura 2: Alguns processos e meios necessários à circularidade da economia, divididos entre nutrientes biológicos e nutrientes tecnológicos. Fonte: Ellen MacArthur Foundation. Towards the Circular Economy. 2013, p. 24. Disponível aqui. 7 Sistema, in Dicionários Porto Editora Infopédia. Disponível aqui. 8 J. Kirchherr, D. Reike e M. Hekkert. Conceptualizing the circular economy: an analysis of 114 definitions. Resources, Conservation and Recycling. 2017, 127, p. 223. 9 Cfr., por exemplo, a classificação de ações (ponto 3) do Plano de Ação para a Economia Circular, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 190-A/2017. 118 II. ECONOMIA CIRCULAR Consequentemente, a regulação numa economia circular incide primeiramente sobre todo o ciclo de vida até à fase de introdução no mercado e aquisição, na qual já intervém o consumidor final do produto, seguindo-se a regulação da fase de utilização, visando garantir a reintrodução do recurso na economia, mas também ciclos de vida longos. É ao abrigo deste objetivo que se multiplicam as iniciativas legislativas que banem certos produtos de utilização única10 e práticas de obsolescência planeada11. O movimento de reforma legislativa tem também procurado atingir o objetivo de aumentar o ciclo de vida do produto através da reconfiguração da relação jurídica entre produtor e consumidor. Muitas das propostas associadas à revisão do modelo de gestão de resíduos 3R – reduzir (o consumo), reutilizar (o produto), reciclar (o resíduo) – passam precisamente pela incorporação de formas de redução de consumo e desperdício que beneficiam de forma direta o consumidor, criando novos deveres para o produtor, como o de assegurar a reparação do bem ou a substituição das suas partes. Um dos instrumentos novos neste contexto passa pela disponibilização de informação ao consumidor quanto ao ciclo de vida do produto e seus impactos ambientais12, proliferando também iniciativas relativas à implementação de rótulos ecológicos13. Além de um agente informado e influente, o consumidor ideal numa economia circular é um agente responsável pelo fim de vida do produto, não desempenhando apenas o papel de alvo da cadeia produtiva, mas também o de início da cadeia produtiva reversa14. Torna-se, então, evidente um dos objetivos do trabalho conjunto entre ciência económica e ciência jurídica em matéria de 10 Cfr., por exemplo, a Lei n.º 76/2019, de 2 de setembro, que proibiu a utilização e disponibilização de louça de plástico de utilização única nas atividades do setor da restauração e/ou bebidas e no comércio a retalho. 11 Cfr., por exemplo, em França, a Lei n.º 2015-992, de 17 de agosto de 2015, através da qual a obsolescência planeada, definida enquanto conjunto de técnicas através das quais o produto tem o seu ciclo de vida intencionalmente reduzido como forma de aumentar o consumo de produtos de substituição, passou a ser crime. 12 Cfr., por exemplo, UE. Comissão Europeia. Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho apresentada a 30 de março de 2022 no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação. COM (2022) 143 final. 13 Cfr., por exemplo, UE. Comissão Europeia. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho apresentada a 30 de março de 2022 que estabelece um quadro para definir os requisitos de conceção ecológica dos produtos sustentáveis. COM (2022) 142 final. 14 E. Maitre-Ekern e C. Dalhammar. Towards a hierarchy of consumption behaviour in the circular economy. Maastricht Journal of European and Comparative Law. 2019, 26(3), p. 395. 119 II. ECONOMIA CIRCULAR economia circular: criar condições para o funcionamento eficiente de mercados secundários capazes de fazer a ligação entre o consumidor (no momento em que se desfaz do produto, que assim adquire o estatuto de resíduo) e o operador que tenha interesse no resíduo para a sua integração num novo processo produtivo. Apesar de a circularidade ser um objetivo com a pretensão de modelar estruturalmente todo o sistema económico, há produtos e cadeias de produção que são objeto de regimes específicos por serem politicamente prioritárias em função do seu impacto ambiental. Este pode resultar de diversos fatores, como o uso intensivo de recursos, o nível elevado de consumo ou a dependência de recursos não-renováveis. Essas áreas são, já hoje, tipicamente sujeitas a regimes jurídicos próprios, sendo exemplos paradigmáticos os das embalagens, dos equipamentos elétricos e eletrónicos, da construção ou das baterias. Outras áreas permanecem ainda sem regulação pelo Direito do Ambiente, prevendose, no entanto, e atendendo ao seu impacto acumulado, que o venham a ser a breve prazo, como é o caso do setor têxtil15. A previsível incorporação de soluções circulares no ordenamento jurídico terá efeitos estruturais em várias áreas do Direito, muitas das quais praticamente arredadas – até hoje – das finalidades da proteção ambiental. A transição, além de se referir a todos os setores e níveis de regulação, envolve também todos os sujeitos económicos, públicos e privados. Muitas das propostas avançadas apresentam-se como disruptivas em relação ao regime jurídico vigente, nomeadamente quanto à contratação pública e propriedade intelectual. A procura do equilíbrio entre, por um lado, o estímulo ao funcionamento do mercado, através de instrumentos de incentivo à inovação e à transição, e, por outro lado, a regulação jurídica do tipo command-and-control, é um dos aspetos centrais do estudo da economia circular numa perspetiva jurídica. Acrescente-se ainda que parte significativa das propostas em discussão têm o seu foco no papel do consumidor e no incentivo de escolhas capazes de modelar o funcionamento do mercado a favor da sustentabilidade ambiental. Por esse motivo, é especialmente útil a consideração dos instrumentos comportamentais avançados pela teoria económica, que se explanam no ponto 2. A unidade desta nova área é conferida apenas pelos seus objetivos específicos para atingir a finalidade geral de desenvolvimento sustentável e gestão racional 15 Os Países Baixos, por exemplo, já notificaram a Comissão Europeia de um projeto que alarga a responsabilidade alargada do produtor ao setor têxtil. De acordo com o projeto, o produtor passará a ser responsável pela reciclagem e preparação para reutilização dos produtos introduzidos no mercado neerlandês, o que implica a criação e financiamento de um sistema de gestão destes resíduos, à semelhança do que já acontece hoje na área das embalagens, por exemplo. A notificação encontra-se disponível aqui. 120 II. ECONOMIA CIRCULAR de recursos. Estes objetivos específicos16 podem ser decompostos para cada fase do processo produtivo, como a eliminação de produtos com ciclos de vidas curtos17 (com ou sem obsolescência planeada)18, a garantia de direitos associados ao prolongamento da sua utilização (reparação, upgrade, substituição de partes), a multifuncionalidade dos produtos, a reutilização de componentes e a devolução de nutrientes ao meio, a redução da perda de valor através de downcycling, ou a incorporação de materiais reciclados em produtos novos. A miríade de instrumentos jurídicos relevantes em matéria de circularidade, com origem em variadas áreas do Direito, torna a sua compreensão transversal tão difícil quanto fundamental numa perspetiva prospetiva do Direito do Ambiente no século XXI. Apesar disso, apenas muito recentemente os juristas começaram a estudar o tema da economia circular enquanto uma questão jurídica19. 1.2. Economia circular e princípios de Direito do Ambiente O desenvolvimento sustentável pode ser considerado a finalidade geral de todo o Direito do Ambiente20. Tendo até hoje uma natureza jurídica controvertida enquanto princípio jurídico no Direito Internacional, o desenvolvimento sustentável, surgido no Direito Internacional nos anos 1970, está atualmente consagrado no direito originário da União Europeia, na CRP e na LBA. Pelo menos dois corolários são geralmente retirados do princípio do desenvolvimento sustentável: a consideração integrada dos impactos sociais, económicos e ambientais em todos os setores; e o dever de gestão racional de 16 Y. Kalmykova, M. Sadagopan e L. Rosado. Circular economy: from review of theories and practices to development of implementation tools. Resources, Conservation and Recycling. 2018, 135, pp. 190-201. 17 L. Milios. Advancing to a circular economy: three essential ingredients for a comprehensive policy mix. Sustainability Science. 2018, 13(3), p. 869. 18 E. Maitre-Ekern e C. Dalhammar. Regulating planned obsolescence: a review of legal approaches to increase product durability and reparability in Europe. REC&IEL. 2016, 25(3), p. 379. 19 Mesmo numa pesquisa aturada, o primeiro texto que se encontra que trata o tema de forma estrutural, e não apenas enquanto apontamentos a regimes jurídicos dispersos, data de 2017. Cfr. C. Backes. Law for a circular economy. Eleven Publishing, 2017; seguido de uma tese de doutoramento, em 2017, cfr. T. J. Römph. The legal transition towards a circular economy. KU Leuven, Universidade de Hasselt, 2018. 20 Sobre este princípio em detalhe no Volume I deste Tratado, cfr., com abundante bibliografia, H. Oliveira. Princípios de Direito Do Ambiente. In C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de Direito do Ambiente. I. 2.a ed. CIDP/ICJP. 2022. Disponível aqui. 121 II. ECONOMIA CIRCULAR recursos naturais, em regra avaliado pela possibilidade do seu aproveitamento pelas gerações futuras. Conforme dito no Volume I deste Tratado, “[e]m comum a estas duas dimensões – gestão racional e integração – está a superação de um modelo de desenvolvimento económico e social assente na sobre-exploração de recursos naturais e na degradação ambiental, através de uma visão compreensiva que supere uma perspetiva sectorial e de curto prazo. Poderá ser assim delimitado o conteúdo do dever dos Estados ao abrigo do princípio do desenvolvimento sustentável”21. Uma política de transição para a economia circular desenha-se, de forma evidente, como um meio para atingir o desenvolvimento sustentável e cumprir os deveres ambientais do Estado e da União Europeia. Por um lado, a sua intrínseca transversalidade força a integração de políticas setoriais de forma consequente e estrutural através de um enfoque que não se limita a fontes de emissões, considerando antes a sobrecarga ambiental das atividades humanas como um todo em relação a todos os recursos naturais. Ou seja, além da sobreexploração de recursos conforme entendida no século XX – a degradação ambiental de recursos renováveis como a água e o ar por poluição –, a economia circular considera todas as formas de utilização dos recursos naturais renováveis e não-renováveis, pretendendo obter a sua máxima eficiência. Por outro lado, o dever de gestão racional de recursos obriga o Estado à adoção de medidas que combatam a sobre-exploração; o combate à sobre-exploração é, precisamente, a finalidade da economia circular, visando fazê-lo através da criação de um sistema que permita dissociar o desenvolvimento económico da contínua extração de novas matérias-primas22. 1.3. Políticas públicas para a circularidade Por força da sua natureza disruptiva e do nível de prioridade que assume na atualidade, o Direito é um dos instrumentos utilizados na transição para 21 H. Oliveira, cit. nota 20, p. 101. 22 Esta expressão, cuja origem não nos foi possível determinar, faz hoje parte do jargão da economia circular, certamente por esta ter a virtualidade de permitir a ação em relação à sobreexploração de recursos, evitando, simultaneamente, uma discussão sobre a eventual necessidade de diminuir os níveis de crescimento económico. Para citar apenas as estratégias mais recentes, cfr. UE. Comissão Europeia. Ponto 1 da Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 11 de março de 2020. Um Novo Plano de Ação para a Economia Circular. COM (2020) 98 final; e o segundo parágrafo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 190-A/2017, que aprovou o Plano de Ação para a Economia Circular. 122 II. ECONOMIA CIRCULAR a circularidade. Não sendo possível atingir os objetivos propostos sem a intervenção do Direito, tão pouco se consegue compreender cabalmente o enquadramento jurídico sem ter uma breve noção das políticas públicas para a circularidade e dos vários instrumentos a que recorrem. É sabido, por exemplo, que não dispomos ainda da tecnologia necessária à exequibilidade de algumas das medidas a implementar no futuro – e, nesses casos, os instrumentos são por ora essencialmente financeiros, sobretudo no apoio à inovação científica e social23. Por esse motivo, a secção 3. fará sempre menção, em paralelo às questões jurídicas que se suscitam para cada tema, aos contornos relevantes das políticas europeias e nacionais; e nesta subseção 1.3. será feito apenas um enquadramento transversal. A primeira estratégia, a nível europeu24, nesta área, foi explicitada em 2015, numa Comunicação elucidativamente intitulada “Fechar o ciclo – plano de ação da UE para a economia circular”25. Além de fazer uma introdução ao conceito de economia circular, a Comissão desenvolveu algumas áreas que estão sempre associadas à transição para a circularidade: a conceção de produtos e de processos produtivos, o consumo sustentável e a gestão de resíduos, sendo identificados como prioritários os setores do plástico, desperdício alimentar, matérias-primas críticas, construção e demolição, biomassa e produtos de base biológica. Tendo sido apresentados alguns objetivos, a Comissão procedeu também à monitorização da sua implementação26. A relevância deste plano consiste em ter sido a rampa de lançamento para uma atividade europeia crescentemente intensa, tendo dado origem, nos anos imediatamente subsequentes, a novas e mais completas políticas públicas europeias para a circularidade, transversal e sectorialmente. 23 X. Vence e A. Pereira. Eco-Innovation and circular business models as drivers for a circular economy. Contaduría y Administración. 2019, 64(1), p. 6. Para um resumo, cfr. H. Oliveira, cit. nota 1, pp. 82 e 83. 24 Para uma revisão completa das políticas europeias para a circularidade, cfr. M. C. Friant, et al. Analysing European Union circular economy policies: words versus actions. Sustainable Production and Consumption. 2021, 27, p. 337. 25 UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 2 de dezembro de 2015. Fechar o ciclo: plano de ação da UE para a economia circular. COM (2015) 614 final. 26 UE. Comissão Europeia. Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 26 de janeiro de 2017, sobre a aplicação do Plano de Ação para a Economia Circular. COM (2017) 33 final. 123 II. ECONOMIA CIRCULAR O Pacto Ecológico Europeu, lançado no final de 201927, integrou, a par da neutralidade carbónica e da recuperação de biodiversidade, o objetivo central de alcançar uma economia circular, anunciando desde logo a apresentação de um novo plano de ação transetorial. A secção dedicada à indústria aparece intrinsecamente ligada à transição para a economia circular, comprometendose a Comissão com uma Estratégia Industrial para a economia circular e limpa, além de propor iniciativas para estimular os mercados-piloto para produtos circulares28. Neste momento, ao nível das políticas europeias, é imprescindível considerar o novo Plano de Ação para a Economia Circular, de 202029, o quadro de controlo da economia circular, de 201830 – apesar de a Comissão estar a preparar a apresentação de uma proposta de revisão31 –, a Estratégia para os Plásticos, de 201832, e a Estratégia para os Têxteis, de 202233. Várias outras estratégias setoriais estão em desenvolvimento, com consequentes atos legislativos, como a dedicada aos plásticos de base biológica, biodegradáveis e compostáveis34, à conceção e rotulagem ecológica35 e aos microplásticos36. Por força da transversalidade do tema, as estratégias e políticas para a 27 UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 11 de dezembro de 2019. Pacto Ecológico Europeu. COM (2019) 640 final. 28 Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 27, anexo que incorpora um roteiro com as ações principais. 29 UE. Comissão Europeia, cit. nota 22. 30 UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 16 de janeiro de 2018, sobre um quadro de controlo da economia circular. COM (2018) 29 final. 31 Documentação sobre a revisão disponível aqui. 32 UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 16 de janeiro de 2018. Uma Estratégia Europeia para os Plásticos na Economia Circular. COM (2018) 28 final. 33 UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 30 de março de 2022. Estratégia da UE em prol da Sustentabilidade e Circularidade dos Têxteis. COM (2022) 141 final. 34 Documentação sobre a iniciativa disponível aqui. 35 Documentação sobre o programa da Comissão disponível aqui. 36 Informação sobre a iniciativa disponível aqui. 124 II. ECONOMIA CIRCULAR economia circular entrecruzam-se com várias outras, mas caberá destacar aqui quatro áreas de especial interdependência. Em primeiro lugar, a reincorporação de produtos em término do ciclo de vida, visada numa economia circular, só poderá ser assegurada se for possível garantir a segurança dos produtos. Conforme explicado na Estratégia para a Sustentabilidade dos Produtos Químicos, aprovada em 2020, “[n]uma economia circular limpa, é essencial impulsionar a produção e a aceitação de matérias-primas secundárias e assegurar que tanto os materiais como os produtos primários e secundários são sempre seguros”37. Um segundo conjunto de atos de planeamento relevantes incide sobre a diminuição da poluição e da exploração de recursos. Desde logo, além de o próprio Pacto Ecológico Europeu associar a neutralidade climática à economia circular, o Plano de Ação expressamente identifica a “circularidade como pré-requisito da neutralidade climática”38. A acrescer à redução de emissões de GEE, a eliminação do carbono da atmosfera através da sua utilização em atividades regenerativas é uma das formas de fomentar a circularidade do carbono. Por outro lado, a desaceleração da exploração de recursos preconizada pelo modelo circular é essencial para a Estratégia de Biodiversidade, de 202039, nomeadamente para efeitos de ação restaurativa. Conforme reconhecido recentemente pela Comissão na sua proposta de Regulamento relativo à restauração da natureza, “[a]s medidas políticas no âmbito de outras estratégias ambientais, tais como o Plano de ação para a economia circular para uma Europa mais limpa e competitiva e o Plano de ação de poluição zero no ar, na água e no solo, ajudarão a aliviar a pressão sobre os ecossistemas mediante a redução de várias formas de poluição”. Finalmente, a política europeia para atingir uma poluição zero no ar, na água e no solo, objetivo proclamado no respetivo de Plano de Ação em 2021, explicita a sinergia com a transição para a economia circular, nomeadamente no caso de poluição causada pela produção e pelo consumo. Por exemplo, serão cruciais para a redução da poluição “a simbiose industrial e as cadeias de abastecimento circulares através das quais os resíduos ou subprodutos de 37 UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 14 de outubro de 2020. Estratégia para a sustentabilidade dos produtos químicos rumo a um ambiente sem substância tóxicas. COM (2020) 667 final, p. 6. 38 UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, pp. 17 e 18. 39 UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 20 de maio de 2020. Estratégia de Biodiversidade da UE para 2030. Trazer a natureza de volta às nossas vidas. COM (2020) 380 final. 125 II. ECONOMIA CIRCULAR uma indústria ou das pequenas e médias empresas se tornam matérias-primas para outras”40. A nível nacional, o Plano de Ação para a Economia Circular41, de 2017, apresenta a fundamentação da estratégia, relacionando-a com o seu enquadramento europeu e com outras políticas, definindo um conjunto de ações relativamente às quais identifica objetivos, setores-chave e entidades a envolver na sua implementação. Estas ações são classificadas em função da sua natureza macro (e.g., desenho de produtos, ou desperdício alimentar), meso ou setorial (sendo detalhados o setor da construção e o instrumento da contratação pública) e micro ou regional (sendo detalhada a estratégia para as ZER). Embora com maior detalhe, a estratégia nacional está, naturalmente, em linha com as estratégias europeias. Espera-se que, com esta brevíssima resenha do mapa de cruzamento de estratégias e políticas ambientais, tenha sido possível ilustrar a forma como a economia circular é um conceito para modelar grande parte do ordenamento jurídico nos próximos anos. Conforme se procurará demonstrar, todas estas políticas desaguam em alterações legislativas nas mais variadas áreas do Direito do Ambiente – mas também em áreas do Direito que, até agora, se encontravam apenas marginalmente com ele relacionadas. 2. Instrumentos comportamentais e economia circular 2.1. Questões iniciais A abordagem mais imediatista à questão ambiental ofusca frequentemente aquilo que está na origem de todos os problemas ambientais: são questões de gestão de recursos e, como tal, estão ancoradas numa escolha inicial, por seu turno ancorada numa escala de prioridades, por seu turno ancorada numa escala de valores, hábitos, normas sociais. Lançar luz sobre essa escolha inicial – e sobre os comportamentos humanos que a suportam – é uma tarefa essencial antes de se prosseguir com decisões, caminhos e soluções que visam, em grande medida, precisamente a mudança de comportamentos. Por um lado 40 UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 12 de maio de 2021. Caminho para um planeta saudável para todos. Plano de ação da UE: “Rumo à poluição zero no ar, na água e no solo”. COM (2021) 400 final, p. 12. 41 Resolução do Conselho de Ministros n.º 190-A/2017, alterada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 108/2019. 126 II. ECONOMIA CIRCULAR sendo a ciência económica por excelência a ciência da escolha, é a ela que recorreremos para nos auxiliar na tarefa de elucidação desses pressupostos comportamentais. Por outro lado, sendo possivelmente a ciência que mais desempoeiradamente olha para a realidade social, procuraremos nela também uma maior objetividade da análise. Ao longo do caminho de evolução da espécie humana, os seus membros foram retirando do meio ambiente os recursos necessários à sua sobrevivência: o ser humano precisa de água e de alimento, de calor e de abrigo e de se proteger de ameaças de variada natureza. À medida a que a espécie foi progredindo, em número e em conhecimento, desenvolveram-se inúmeras derivações dessas necessidades iniciais e, com elas, foi prosseguindo o caminho de exploração, desbravamento e utilização dos recursos do planeta. Sendo certo que a preservação plena dos recursos do planeta só teria sido possível à custa da sobrevivência dos indivíduos que compõem a espécie humana, ou pelo menos de grande parte deles, também é certo que, sem um nível equilibrado de preservação dos recursos ambientais, a espécie humana arrisca a sua sobrevivência. Dito isto, torna-se também evidente que todos os problemas de gestão de recursos ambientais com que nos defrontamos são, antes de mais, consequência de decisões humanas e têm a sua origem em comportamentos humanos. Há uma escolha por detrás deles. É essa escolha que deve ser reavaliada: em que medida podem os conciliar as conquistas que alcançamos para a existência humana com a preservação do planeta que habitamos? A ciência económica tem ajudado a descrever a natureza da relação entre a humanidade e o ambiente através de vários instrumentos, sendo um deles a noção de externalidade. A ideia costuma ser enunciada de forma simples: a produção de bens e serviços não se faz de forma isolada, antes ocorre num contexto relacional, com agentes económicos que produzem, ao lado de outros agentes que consomem, e na presença, ainda, de outros agentes que não integram a relação económica. Desse contexto relacional emanam caraterísticas que tornam impossível que a produção ocorra sem efeitos secundários: a proximidade e a interdependência têm como consequência a produção de custos em esferas alheias às da produção – esferas essas que, por não terem uma relação de mercado com aquela, não trocam os custos que lhes são impostos por benefícios que os possam compensar. Porque os custos são repercutidos fora do mercado, não são integrados no respetivo preço: quem os sofre não é ressarcido e quem os inflige não tem qualquer incentivo a reduzir ou a parar a sua produção42. Esta ideia simples ajuda-nos a perceber porque 42 Cfr. F. Araújo. Introdução à Economia. II. 4.ª ed. Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 282-290. 127 II. ECONOMIA CIRCULAR é que a sobreprodução de danos ambientais ocorre e porque é que não tem tendência a parar por si. Além desta apresentação mais simplificada, a ideia de externalidade contém em si uma outra dimensão, frequentemente menos explorada, mas que foi notavelmente evidenciada por Ronald Coase ao clarificar que “a abordagem tradicional tende a obscurecer a natureza da escolha que há a fazer. Pensase habitualmente na questão em termos de ser A a provocar danos em B, concentrando-se a decisão na forma de limitar A. Mas isto está errado, já que estamos a lidar com um problema que tem natureza recíproca. Para evitarmos os danos a B, provocaríamos danos em A. […] O problema é o de se evitar a maior das lesões”43. A natureza da relação da humanidade com o ambiente natural também pode ser vista desta perspetiva – uma perspetiva que, habitualmente, não se vê suficientemente sublinhada. A realidade é que essa relação é dual, é recíproca: as atividades humanas produziram alterações no meio ambiente, muitas das quais resultam de atividades que visaram evitar danos para a espécie humana que seriam provocados por elementos “naturais” – as formas de proteção contra a doença, ou contra o frio e o calor excessivos, são disso exemplo44. Estas alterações ambientais produzem agora danos na espécie humana, nomeadamente através de doenças ambientais, convocando a necessidade de adaptação até que o equilíbrio seja restaurado para vantagem dos dois lados. Este ciclo adaptativo, em que alterações no meio natural (provocadas pela espécie humana) espoletam alterações na vida humana (provocadas pelo meio natural) está na base do paradigma da adaptação, uma perspetiva que realça a importância das estratégias de adaptação por parte dos atores ambientais enquanto parte de um ciclo de ação e reação entre o Homem e o ambiente natural45. 43 R. Coase. The Problem of Social Cost. The Journal of Law and Economics. 1960, III, p. 2 (tradução das autoras). 44 A natureza ambivalente da relação entre a Humanidade e o ambiente natural foi capturada e espelhada por Edward O. Wilson em toda a sua obra, destacando-se aqui E. O. Wilson. Biofilia. El Amor a la Naturaleza o Aquello que Nos Hace Humanos. Madrid: 2021, p. 26 (tradução de T. de Guevara). Raymond Murphy propõe que o conceito de elasticidade seja aplicado à relação Homem-meio ambiente também pela capacidade que o primeiro tem tido de esticar o segundo para dele retirar recursos, mas por outras duas razões: a existência de breaking points e o efeito de recoil ou kickback (o efeito de recuo depois de um disparo). Cfr. R. Murphy. Rationality & Nature: A Sociological Inquiry into a Changing Relationship. Oxford: Westview Press, 1994, pp. 23-25. 45 Cfr. S. N. Seo. The behavioral economics of climate change. Adaptation Behaviors, Global Public Goods, Breakthrough Technologies, and Policy-Making. Londres: Academic Press, 2017, p. 188. 128 II. ECONOMIA CIRCULAR 2.2. O contributo da behavioral economics A economia circular pressupõe uma alteração do atual paradigma de consumo e de produção através da qual se pretende reequilibrar a relação entre a Humanidade e o meio natural. Nesse novo ponto de equilíbrio, preservarse-iam as conquistas que permitem a sobrevivência da espécie humana, mas o consumo e a produção far-se-iam de uma forma sustentável, isto é, sem esgotamento de recursos, nomeadamente através da implementação de novos padrões de consumo e de produção. A alteração de um modelo de economia linear para um modelo de economia circular depende de um conjunto de mudanças comportamentais da parte dos agentes que intervêm no circuito económico. Justamente porque assim é, o sucesso do modelo não pode dispensar um exame adequado dos pressupostos comportamentais desses mesmos agentes. De outro modo, a ideia pode até ser teoricamente perfeita, mas carecerá dos alicerces que permitem que se concretize além da pura abstração. Além do conceito de externalidade, a ciência económica dispõe de várias outras ferramentas explicativas aplicáveis ao problema ambiental: o conceito de bem público46 – aquele que, pelas suas caraterísticas de não exclusividade e de não rivalidade repele a iniciativa privada e, geralmente, convoca o Estado e a necessidade de despesa pública para se evitar a tragédia dos baldios47 – auxiliado pelo conceito de bem público global48 – aquele bem que, estando disponível para todos no planeta, não interessa a nenhum país individualmente proteger pois essa pequena contribuição individual não faria qualquer diferença a um nível agregado; a ideia do equilíbrio de Nash49, que ajuda a perceber porque é que não tem sido possível atingir um equilíbrio nas negociações 46 Cfr. A. Tavoni, et al. Inequality, communication, and the avoidance of disastrous climate change in a public goods game. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. 2011, 108(29), pp. 11825-11829. In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics of Environmental Policy. Behavioral and Political Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, p. 193. 47 Cfr. G. Hardin. The tragedy of the commons. Science. 1968, 162, pp. 1243-1248. 48 Cfr. W. Nordhaus. How fast should we graze the global commons? American Economic Review. 1982, 72, pp. 242-246; Cfr. W. Nordhaus. The architecture of climate economics: designing a global agreement on global warming. Bulletin of Atomic Scientists. 2011, 67, pp. 9-18; W. Nordhaus e Z. Yang. A regional dynamic general-equilibrium model of alternative climate-change strategies. American Economic Review. 1996, 86(4), pp. 741-765. 49 J. Nash. Equilibrium points in n-person games. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. 1950, 36, pp. 48 e 49. 129 II. ECONOMIA CIRCULAR internacionais sobre conservação ambiental – os países confrontam-se com realidades muito diferenciadas em diversos aspetos com relevo para a definição do seu comportamento a nível ambiental, tais como o grau de impacto da degradação ambiental, os recursos ambientais de que dispõem, o número e tipo de poluidores e de vítimas ambientais entre os seus membros, o nível de desenvolvimento económico, o tecido cultural, a história do país – sendo que esta heterogeneidade implica a presença de incentivos muito distintos no âmbito de uma negociação internacional, o que dificulta a formação de um equilíbrio de Nash50. Mas para além de instrumentos mais tradicionais – isto é, que já fazem parte da linguagem habitual da economia e que já são conhecidos de outras áreas precisamente em virtude dessa maior divulgação –, a ciência económica dispõe hoje no seu portfolio de instrumentos, porventura menos conhecidos, mas incontornavelmente relevantes para a questão de que aqui se trata. São eles os instrumentos daquela área da ciência económica que é hoje identificada pela expressão cupular de “economia comportamental”, em que se reúnem diversos contributos para o estudo do comportamento humano que têm permitido o aprofundamento do realismo nos pressupostos comportamentais da própria ciência económica, mas cujo alcance é extensível a muitas outras áreas de conhecimento e de prática, nomeadamente à questão ambiental e, no que agora concretamente nos interessa, à política de transição para a economia circular. Com efeito, a passagem de um modelo de economia linear para um modelo de economia circular depende largamente do estímulo a alterações comportamentais dos microagentes ambientais, isto é, dos cidadãos e das empresas. Sendo deles que depende, por um lado, em última análise, a adoção de métodos de produção, distribuição, transporte e armazenagem, bem como de hábitos de consumo, que produzam uma alteração significativa na relação entre a espécie humana e o ambiente natural, uma parte significativa da estratégia ambiental passa necessariamente pela alteração de comportamentos. Por outro lado, esta alteração é extraordinariamente exigente: não se trata apenas de algumas micromudanças, mas sim de alterações de estilos de vida, de valores, de normas sociais, no fundo, de um redefinir de prioridades na relação entre o indivíduo e o mundo que conduza à alteração consistente de escolhas no momento de produzir, de consumir e de deitar fora. No contexto da economia comportamental, o maior detalhe com que se olha 50 S. N. Seo. What eludes global agreements on climate change? Economic Affairs. 2012, 32, pp. 73-79. 130 II. ECONOMIA CIRCULAR para o comportamento humano – face à teoria económica mais convencional – tem permitido identificar traços comportamentais com impacto significativo na definição de padrões comportamentais mais globais, assim dando lugar a modelos de atuação dos agentes apoiados em substratos mais realistas. A própria ideia do que é o comportamento humano quando o humano assume as vestes de agente económico (isto é, quando se vê confrontado com escolhas criadas pela escassez de recursos face a necessidades ilimitadas) foi revolucionada pela informação reunida no âmbito da economia comportamental. Com efeito, ao invés da adoção tout court do modelo de agente perfeitamente racional – um modelo essencialmente dedutivista, formalista, estilizado, em que se assume sem se provar que o agente é sempre racional, egoísta e maximizador, exibindo sempre preferências estáveis – admite-se agora: que o agente económico nem sempre corresponde a esse modelo de homo oeconomicus; que o seu processo de decisão contém enviesamentos, usa preconceitos; que trata a informação de uma forma simplificada e nem sempre rigorosa; que as escolhas que faz não são estáveis porque são influenciadas por fatores que produzem alguma aleatoriedade; e que são todos esses fatores que, apesar de aparentemente o impedirem de atingir o comportamento maximizador, lhe permitem agir, com “ignorância racional”51, no sentido da satisfação das suas preferências. Tal não implica, a nosso ver, o abandono do pressuposto comportamental de base da teoria económica – a racionalidade do agente –, mas implica a sua reformulação. Não sendo este o local próprio para um maior aprofundamento da temática, dir-se-á apenas que o pressuposto da racionalidade humana não beneficia da aproximação, por tanto tempo ensaiada, a modelos de perfeição robótica ou mecanizada, que não correspondem à realidade do comportamento humano e que, na verdade, ficam aquém dos instrumentos cognitivos com que a evolução foi dotando o ser humano. Num primeiro momento, a identificação de “desvios” aos parâmetros tradicionais da racionalidade humana levou à qualificação desses comportamentos como irracionalidades ou limitações à racionalidade, mas o tempo já permitiu a construção de teorias que recuperam o pressuposto da racionalidade reconstruindo-o à luz do novo adquirido comportamental52. No fundo, o que resulta destas novas reconstruções teóricas, apesar da sua diversidade, é que a racionalidade humana beneficia desses desvios ao modelo convencional porque eles são sinal da sua adaptação ao 51 F. Araújo, cit. nota 42, p. 63. 52 Embora sejam vários os contributos para essa reformulação do conceito de racionalidade, remetemos aqui para a obra coletiva de P. M. Todd, G. Gigerenzer e ABC Research Group. Ecological rationality: Intelligence in the world. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 3. 131 II. ECONOMIA CIRCULAR meio ambiente, sendo heranças comportamentais da evolução a que a espécie foi sendo submetida ao longo de milhões de anos. Tudo somado e dividido, não andamos longe das intuições iniciais de Adam Smith53. Dito isto, importa agora analisar em que medida é que esta perspetiva comportamental pode lançar luz sobre comportamentos generalizados com impacto na questão ambiental. 2.3. A análise custo-benefício em matéria ambiental: a relevância da intertemporalidade O indivíduo que decide livremente recorre, para fazer as suas escolhas, a uma ponderação de custos e benefícios. O seu incentivo para agir advém da sensação de que o benefício total de uma ação excede o seu custo total – o que lhe confere uma motivação para a adoção da conduta. Deste modo, se for possível alterar custos e/ou benefícios de uma dada conduta, será possível condicioná-la sem mexer com a liberdade individual. Mas que custos e benefícios serão esses? O problema da conservação ambiental é um caso clássico de escolhas intertemporais. O consumo atual implica degradação ambiental, mas os efeitos negativos desta degradação são cumulativos e operam de forma gradual e temporalmente desfasada do consumo. Este desfasamento leva a que esse efeito negativo (futuro) seja menos valorizado do que o efeito positivo (presente) do consumo porque o ser humano está geneticamente predisposto a atender mais às suas necessidades atuais do que futuras, preocupando-se mais com a satisfação imediata de necessidades do que com a gestão de problemas futuros54. Este é um ponto importante: qualquer intervenção que pretenda alterar padrões de comportamento dos agentes económicos levando-os a valorizar mais problemas futuros do que consumos atuais e que ignore este facto essencial será votada ao insucesso. Será sempre necessário integrar o facto de a capacidade de autocontrolo do ser humano neste tipo de decisões que implicam análises custo-benefício com impacto intertemporal ser muito limitada55. Com efeito, a literatura demonstra que considerações de longo prazo são 53 N. Ashraf, C. Camerer e G. Lowenstein. Adam Smith, behavioral economist. JEcP. 2005, 19, pp. 131-145. 54 Cfr. E. O. Wilson, cit. nota 44, p. 193. 55 C. Hepburn, S. Duncan e A. Papachristodoulou. Behavioural economics, hyperbolic discounting and environmental policy. In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics of Environmental Policy: Behavioral and Political Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2010, pp. 292-293. 132 II. ECONOMIA CIRCULAR tendencialmente ofuscadas pela necessidade de atender à gestão quotidiana, sendo exigido um considerável esforço de autocontrolo para provocar o desvio de foco do momento presente para o momento futuro e, assim, se conseguir que o agente tome decisões em que a preferência pelo futuro se sobrepõe ao presente. Quanto maior for o cognitive load do agente, isto é, e de uma forma simples, a percentagem de recursos cognitivos que está a ser utilizada em tarefas presentes, pior é o cenário: a parte de nós que é responsável por planear o futuro está ocupada e não presta atenção a problemas de longo prazo56. Para além desse particular problema de gestão intertemporal de prioridades, a adoção de comportamentos individuais pró-ambientais depende ainda de vários fatores – alguns intrínsecos, como o quadro de valores adotado pelo indivíduo, outros extrínsecos, como as normas sociais em vigor no contexto sociocultural do indivíduo – e só o conhecimento adequado de todos eles pode permitir o ajustamento das políticas públicas e a sua eficácia na gestão dos problemas de gestão económica. Enquanto os incentivos económicos alteram essencialmente custos e benefícios financeiros dos comportamentos individuais, há diversos fatores não financeiros que também alteram o quadro dos custos e benefícios, nomeadamente o quadro de valores individuais de um sujeito, aquilo que mais valoriza, as suas prioridades, e, a um outro nível, as normas sociais, isto é, os padrões comportamentais maioritários da comunidade em que o indivíduo se insere57. Em termos económicos, isto significa que a utilidade que um indivíduo retira de um comportamento depende de vários fatores, podendo um deles ser, por exemplo, o efeito de warm-glow: aquele sentimento de virtuosidade que se sente pela adoção de um comportamento que se entende ser positivo em algum sentido58. Em contraponto, a culpa que pode ser sentida pela adoção de comportamentos de desconformidade com as normas sociais é um custo associado a determinado comportamento (uma espécie de culpa ambiental)59. 56 Cfr. K. A. Brekke e O. Johansson-Stenman. The behavioural economics of climate change. In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics of Environmental Policy: Behavioral and Political Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2008, p. 254. 57 R. Bénabou e J. Tirole. Intrinsic and extrinsic motivation. Review of Economic Studies. 2003, 70(3), pp. 489-510. 58 Em matéria ambiental, o warm-glow funciona como reforço emocional do comportamento considerado virtuoso, contribuindo para a sua repetição. Cfr. Hartmann, et al. Warm glow vs. altruistic values: how important is intrinsic emotional reward in proenvironmental behavior? Journal of Environmental Psychology. 2017, 52, pp. 43-55. 59 Cfr. W. Viscusi. Promoting recycling: private values, social norms, and economic incentives. In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics of Environmental Policy: Behavioral and Political 133 II. ECONOMIA CIRCULAR A chamada de atenção para a relevância de valores individuais e sociais enquanto determinantes do comportamento humano vem, aliás, dar voz à intuição inicial de Adam Smith de que, porque o agente económico, que é um ser humano, se move num contexto social, fatores como a aprovação social e o estatuto entre os pares são fatores relevantes para a motivação das suas ações (e omissões). Só atendendo a estes aspetos se poderá contrariar a tendência de desvalorização do futuro que é parte do padrão comportamental do agente económico. Perceber que fatores são preponderantes, isto é, que fatores são considerados motivações para a ação e que fatores são considerados inibidores da ação é a chave para se conseguir contrariar essa tendência. 2.4. Comportamento humano e economia circular As alterações comportamentais necessárias para implementar a circularidade são multiformes e aplicam-se quer do lado da produção, quer do lado do consumo. Deste lado, é necessário perceber por que razões podem os consumidores estar dispostos a adotar perfis de consumo mais sustentáveis – por exemplo, ao nível da reciclagem e da reutilização, da reparação de objetos e, em geral, de comportamentos que traduzam uma atitude de utilizador a longo prazo –, aproximando as suas atitudes práticas de intenções e proclamações pró-ambientais frequentemente não efetivadas60. A esse respeito – e sem prejuízo de um maior desenvolvimento mais à frente – importa, para já, dizer que, por um lado, uma parte significativa das políticas públicas de incentivo à participação do consumidor na economia circular é ainda baseada no paradigma da simples comunicação de informação – “simples” porque frequentemente lhe falta o acompanhamento necessário para produzir alguma alteração no comportamento do destinatário. Por exemplo, na União Europeia, tendo em vista o reforço da participação dos consumidores na economia circular, enfatiza-se a necessidade de levar ao consumidor informação viável e pertinente sobre os produtos, incluindo no que se refere à sua vida útil, aos serviços de reparação e de substituição de peças, bem como a de o proteger contra o chamado branqueamento ecológico (greenwashing) através da aplicação de requisitos mínimos para os rótulos e logótipos61. Por Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2010, pp. 195 e 196. 60 Cfr., entre outros, R. S. Atlason, D. Giacalone e K. Parajuly. Product design in the circular economy: users’ perception of end-of-life scenarios for electrical and electronic appliances. Journal of Cleaner Production. 2017, 168, pp. 1059-1069. 61 Cfr. o Plano de Ação para a Economia Circular, de 2020, da Comissão Europeia, p. 6. Disponível aqui 134 II. ECONOMIA CIRCULAR outro lado, pondera-se a introdução na malha jurídica de novos direitos do consumidor, como o direito a peças sobressalentes, o direito à reparação, o direito à atualização e a extensão do direito à garantia. Ambas as propostas pressupõem, contudo, um passo prévio: o da vontade do consumidor de alterar o seu perfil de consumo, passando a adotar práticas que se coadunem com a matriz da circularidade. Todavia, a integração de variáveis relativas aos incentivos do consumidor – às suas motivações – como o papel da educação, das normas sociais, de padrões morais, enfim, do enquadramento cultural e institucional do consumidor, não são alvo de atenção suficiente62. Aliás, dois instrumentos fundamentais da política da União Europeia nesta área – as Diretivas REEE63 e Ecodesign64 – nem sequer incluem os utilizadores finais nos seus âmbitos, quando o seu papel é fundamental quer na fase da aquisição (onde se escolhe o tipo de produto que vai ser adquirido de entre as várias opções disponíveis, nomeadamente em função de caraterísticas como preço e durabilidade, as quais frequentemente se encontram em conflito), quer na fase da utilização (como é que o utilizador se comporta quando o produto avaria, por exemplo), quer na etapa final do produto em que este chega ao fim da sua vida útil e tem de ser desmantelado e reciclado65. As opções do consumidor nestas várias fases da vida de um produto são fundamentais para o sucesso das estratégias implicadas na economia circular, quer porque são elas que orientam o produtor no sentido de produzir bens que correspondam às preferências de consumo reveladas no ato de escolha, quer porque é o consumidor que poderá optar pela reparação e reutilização do produto ou pela sua substituição por um novo – tendo por isso de ser convencido de que o melhor comportamento é o primeiro –, quer porque a sua participação no destino final do bem, quando já nenhuma funcionalidade dele se puder extrair, é também incontornável. 62 J. Camacho-Otero, C. Boks e I. Pettersen. Consumption in the circular economy: a literature review. Sustainability. 2018, 10, p. 2758; J. Kirchherr, D. Reike e M. Hekkert, cit. nota 8, pp. 221-232; P. Repo, et al. Lack of congruence between european citizen perspectives and policies on circular economy. European Journal of Sustainable Development. 2018, 7, pp. 249-264. 63 Diretiva 2012/19/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativa aos resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos (REEE), disponível aqui. 64 Diretiva 2009/125/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, relativa à criação de um quadro para definir os requisitos de conceção ecológica dos produtos relacionados com o consumo de energia, disponível aqui. 65 S. Otto, et al. The economy of E-waste collection at the individual level: a practice oriented approach of categorizing determinants of E-waste collection into behavioral costs and motivation. Journal of Cleaner Production. 2018, 204, pp. 33-40. 135 II. ECONOMIA CIRCULAR Na vertente da produção, será necessário que o processo produtivo passe a ser pensado de uma forma circular logo no momento da conceção dos produtos, aumentando assim o respetivo potencial de vida útil através da promoção de princípios de eficiência energética, de durabilidade, de reparabilidade e de possibilidade de atualização, manutenção, reutilização e reciclagem. Esse fator – isto é, o tratamento que os produtos usados recebem por forma a que deles sejam retirados os materiais que ainda podem ser utilizados como recursos para outros produtos – é importante, mas não é o único a merecer alteração. O próprio design do produto tem de ser pensado para permitir a extração de materiais (os designados materiais circulares) cujas propriedades permitam incluí-lo de novo, com valor, no circuito produtivo – design-for-EoL (design for end of life). Contudo, a evidência empírica mostra existir ainda pouca correspondência entre a importância desse passo e a sua concretização66. As alterações necessárias para se passar do atual paradigma de fim de vida para o paradigma da economia circular são particularmente exigentes no setor da gestão de resíduos. Com efeito, prevê-se que a produção anual de resíduos aumente 70% até 205067, sendo que, atualmente, no contexto já de certa forma evoluído das economias europeias, estima-se, por exemplo, que menos de 40% do e-waste (resultante de produtos elétricos e eletrónicos e, por isso, com uma dimensão muito relevante no cômputo global da produção residual) seja recolhido pelos canais oficiais e reciclado de acordo com as normas aplicáveis, o que significa que o restante poderá não respeitar qualquer norma ambiental aplicável aos mesmos resíduos68. É necessário minimizar a noção de “lixo”, isto é, daqueles elementos que já não podem voltar a integrar o processo produtivo por já não apresentarem 66 K. Parajuly, et al. End-of-life resource recovery from emerging electronic products. A case study of robotic vacuum cleaners. Journal of Cleaner Production. 2016, 137, pp. 652-666; H. M. Lee, et al. A framework for assessing product End-Of-Life performance: reviewing the state of the art and proposing an innovative approach using an End-of-Life Index. Journal of Cleaner Production. 2014, 66, pp. 355-371; D. Coughlan, C. Fitzpatrick e M. McMahon. Repurposing end of life notebook computers from consumer WEEE as thin client computers: a hybrid end of life strategy for the circular economy in electronics. Journal of Cleaner Production. 2018, 192, pp. 809-820; K. Parajuly e H. Wenzel. Potential for circular economy in household WEEE management. Journal of Cleaner Production. 2017, 151, pp. 272-285. 67 Banco Mundial. What a Waste 2.0: A Global Snapshot of Solid Waste Management to 2050 (Que desperdício 2.0: Uma panorâmica mundial da gestão de resíduos sólidos até 2050). 2018. Só na União Europeia, a produção anual de resíduos provenientes de todas as atividades económicas está contabilizada em 2,5 mil milhões de toneladas, ou seja, 5 toneladas per capita por ano, produzindo cada cidadão, em média, quase meia tonelada de resíduos urbanos. 68 Dados do Eurostat disponíveis aqui. 136 II. ECONOMIA CIRCULAR qualquer mais-valia, seja considerando-os como um todo, seja considerandoos parcialmente. Isto implica alterações profundas: quer do ponto de vista da criação de mercados onde seja possível trocar elementos que atualmente são desperdiçados; quer do ponto de vista da produção, nomeadamente alterando o atual paradigma de baixo custo e rápida obsolescência para um paradigma de sustentabilidade que permita a produção de bens com base em elementos reciclados e que percecione a maior durabilidade com uma característica fundamental do bem que é produzido69; quer do ponto de vista do marketing, através da sua capacidade para tornar atrativas estas alterações de paradigma; quer, finalmente, do ponto de vista da assistência ao cliente, colocando ao seu dispor formas de manutenção dos produtos por maiores períodos de tempo e reintroduzindo uma lógica de responsabilidade pelo produto que se estende além do momento da venda para acompanhar o produto por toda a sua vida70. A introdução do princípio da regeneração no modelo económico deve, enfim, estender-se também à questão energética, já que o atual modelo, fortemente baseado na extração de recursos naturais, é profundamente dependente de uma utilização massiva de energia baseada em combustíveis fósseis71. Pelo contrário, o modelo da economia circular pretende basear-se em recursos energéticos renováveis e com produção e consumo de energia de baixo carbono ou zero carbono72. Claro que esta produção não é isenta de problemas, nomeadamente os que se relacionam com o tipo de materiais necessários para a produção de energia limpa (exemplo do lítio, do cobalto, da grafite, do vanádio e do índio) e com a sua localização, o que confere uma dimensão também geopolítica à transição energética necessária para dar cumprimento ao programa da economia circular – mais uma dimensão a concorrer para a dificuldade de implementação do modelo. A relevância de todas estas condutas torna notória a necessidade de intervenção junto das motivações individuais do comportamento do consumidor de uma forma duradoura, sendo certo que alterações de incentivos económicos e imposições normativas não serão suficientes para se conseguir 69 Também ao nível da conceção dos dispositivos, idealmente norteada pelos princípios de eficiência energética, da durabilidade, da reparabilidade e da possibilidade de atualização, manutenção, reutilização e reciclagem. 70 J. W. Bolderdijk, et al. Comparing the effectiveness of monetary versus moral motives in environmental campaigning. Nature Climate Change. 2012, 3, pp. 413-416. 71 H. Allcott e S. Mullainathan. Behavior and energy policy. Science. 2010, 327, pp. 1204-1205. 72 Banco Mundial. Relatório do Banco Mundial. 2020. Disponível aqui. 137 II. ECONOMIA CIRCULAR transpor o atual modelo linear de consumo e produção para um modelo circular73. 2.5. O gap intenção-ação e a insuficiência da simples informação Uma das constatações mais comuns em matéria ambiental é a de que as proclamações dos consumidores não têm correspondência nas suas atitudes práticas. Em respostas a inquéritos, os consumidores são capazes de revelar consciência ambiental, de perceber a relevância do uso sustentável de recursos e de compreender como as suas decisões individuais de consumo, por exemplo, em matéria de reutilização e reciclagem, ou na opção entre aquisição e leasing, são relevantes para a alteração do modelo económico atual; todavia, na prática, não é observável o efeito de tais comportamentos, pelo menos na dimensão que deveria resultar das preferências proclamadas pelos consumidores74. Este gap entre a intenção e a realidade observada é relevante quer na fase de aquisição (por exemplo, escolher entre um leasing ou uma compra; entre um bem em segunda mão ou um novo); quer durante a utilização do bem (por exemplo, quando o consumidor decide se manda reparar um bem que se avariou ou se o troca por um novo); quer na fase de fim de vida de um bem (quando tem de decidir se procura o canal adequado para a reciclagem do bem ou se o dispensa no lixo comum). A identificação deste gap permite concluir que a simples literacia ambiental não é sinónimo de prática ambiental adequada e que o conhecimento nem sempre leva à ação. Assumir o contrário é um erro de análise do comportamento humano que, contudo, é frequentemente cometido em matéria de políticas públicas: o de que a informação declarativa é, de per se, uma motivação suficiente para a ação. Não é. Dizer isto não significa dizer que as pessoas não devem ser informadas, nomeadamente em matéria ambiental. Mas significa que (i) a forma como se leva a informação até às pessoas é relevante (umas formas 73 C. Cherry, et al. Public acceptance of resource-efficiency strategies to mitigate climate change. Nature Climate Change. 2018, 8, pp. 1007-1012; V. Weelden, R. Mugge e C. Bakker. Paving the way towards circular consumption: exploring consumer acceptance of refurbished mobile phones in the Dutch market. Journal of Cleaner Production. 2016, 113, pp. 743-754; S. V. der Linden. Warm glow is associated with low - but not high-cost sustainable behavior. Nature Sustainability. 2018, 1, pp. 28-30; R. M. Turaga, R. B. Howarth e M. E. Borsuk. Pro-environmental behavior. Annals of New York Academy of Sciences. 2010, 1185, pp. 211-224. 74 A. Cerull et al. Behavioural study on consumers engagement in the circular economy. European Commission, 2018. Disponível aqui. 138 II. ECONOMIA CIRCULAR serão mais eficazes que outras para garantir que a informação é apreendida pelo seu destinatário)75 e (ii) enquanto forma de alteração comportamental, simplesmente levar informação até às pessoas não é suficiente76. Assim sendo, é necessário associar à informação que é prestada o conhecimento acerca dos outros, de como se comportam, de que opiniões têm, a informação sobre a prática envolvida, incluindo os respetivos custos, financeiros, burocráticos, temporais e outros; ou seja, o conhecimento sobre o que está implicado na alteração de comportamentos, sobre os benefícios que poderá ter e sobre como minorar os custos nela envolvidos. Para que as políticas públicas em matéria ambiental possam ter sucesso, é necessário também que sejam computados – e devidamente ponderados – os eventuais obstáculos, entraves e fricções à obtenção do comportamento desejado77. A maior ou menor sensibilidade dos consumidores à informação acerca do respeito por valores ambientais também difere consoante o produto que estão a consumir – uma ética mais exigente pode ser aplicada a determinados produtos, enquanto noutros a atitude do consumidor ignora mais facilmente aspetos de proteção ambiental78 – o que pode relacionar-se, nomeadamente com o maior ou menor hábito na compra dos produtos. Por exemplo, um tipo 75 Cfr. D. Kahneman e A. Tversky. Prospect theory: an analyis of decision under risk. Econometrica. 1979, 47(2), pp. 263-291. 76 D. Pichert e K. V. Katsikopoulos. Green defaults: information presentation and proenvironmental behaviour. Journal of Environmental Psychology. 2008, 28, pp. 63-73; P. W. Schultz. Knowledge, information, and household recycling: examining the knowledge-deficit model of behavior change. In T. Dietz e P. C. Stern, ed. New tools for environmental protection: education, information, and voluntary measures. Washington, D.C.: National Academy Press, 2002, pp. 67-82; A. Spence e N. Pidgeon. Framing and communicating climate change: the effects of distance and outcome frame manipulations. Global Environmental Change. 2010, 20, pp. 656-667; H. J. Staats, A. P. Wit e C. Y. H. Midden. Communicating the greenhouse effect to the public: evaluation of a mass media campaign from a social dilemma perspective. Journal of Environmental Management. 1996, 45, pp. 189-203; P. C. Stern. Information, incentives and proenvironmental consumer behavior. Journal of Consumer Policy. 1999, 22, pp. 461-478. 77 Cfr. C. R. Sunstein. Behavioural economics, consumption and environmental protection. In L. A. Reisch e J. Thøgersen, ed. Handbook of Research on Sustainable Consumption. Edward Elgar, 2015, pp. Cheltenham: Edward Elgar, pp. 313-327; E. Frisk, Larson e L. Kelli. Educating for Sustainability: Competencies & Practices for Transformative Action. Journal of Sustainability Education. 2011, 2, pp. 1-20; C. Knussen e F. Yule. “I’m not in the habit of recycling”: the role of habitual behavior in the disposal of household waste. Environment and Behavior. 2008, 40, pp. 683702; D. McKenzie-Mohr. Promoting sustainable behavior: an introduction to community-based social marketing. Journal of Social Issues. 2000, 56, pp. 543-554. 78 P. Wheale e D. Hinton. Ethical consumers in search of markets. Business Strategy and the Environment. 2007, 16, pp. 302-315. 139 II. ECONOMIA CIRCULAR de produto que o consumidor compra habitualmente pode ser sujeito a um escrutínio ambiental maior do que um tipo de produto que é comprado menos vezes, o que pode até resultar de uma análise errada do consumidor de que o consumo habitual tem necessariamente maior impacto ambiental quando nem sempre é assim. No contexto da economia circular, a necessidade de alteração do comportamento dos consumidores no sentido de fazerem compras verdes, de aceitarem produtos mais duradouros ou de adotarem estratégias de reparação e reutilização implica alterações em elementos extrínsecos que passam em grande medida pela facilitação do contexto, por exemplo, garantindo a maior proximidade de centros de reciclagem, a facilitação dos processos de renovação de produtos e de substituição de peças. Por outro lado, a evidência mostra que são também incontornáveis as alterações em elementos internos – os tais motivadores de conduta –, como valores internos e normas sociais79. Por exemplo, as normas morais consubstanciam motivações para agir na medida em que o seu cumprimento provoque uma sensação positiva no indivíduo – a sensação agradável que advém do sentimento de dever cumprido. Também as normas sociais podem funcionar como potenciadores da ação, sobretudo através da vergonha sentida pela não adesão ao comportamento mais ético80, o estigma social a que é votado o incumpridor81. Contudo, também as normas sociais variam consoante o contexto, sendo um produto da cultura, da economia, da geografia, do local onde se desenvolvem, pelo que, nomeadamente em matéria ambiental, podem também funcionar em sentido contrário ao caminho de evolução que se pretende implementar se não houver uma educação ambiental que as contrarie82. Em geral, há evidência de que os motivadores intrínsecos – conhecimento adquirido por educação ou 79 E. van Weelden, R. Mugge e C. Bakker. Paving the way towards circular consumption: exploring consumer acceptance of refurbished mobile phones in the Dutch market. Journal of Cleaner Production. 2016, 113, pp. 743-754. 80 S. Otto, et al. The economy of E-waste collection at the individual level: a practice oriented approach of categorizing determinants of E-waste collection into behavioral costs and motivation. Journal of Cleaner Production. 2018, 204, pp. 33-40. 81 C. Thomas e V. Sharp. Understanding the normalisation of recycling behaviour and its implications for other pro-environmental behaviours: a review of social norms and recycling. Resources, Conservation and Recycling. 2013, 79, pp. 11-20. 82 J.-D. M. Saphores, O. A. Ogunseitan e A. Shapiro. Willingness to engage in a proenvironmental behavior: an analysis of e-waste recycling based on a national survey of U.S. Households. Resources, Conservation and Recycling. 2012, 60, pp. 49-63. 140 II. ECONOMIA CIRCULAR de forma autodidata, motivação, crenças, hábitos, valores, atitudes, intenções e outras variáveis psicológicas internas – têm efeitos mais sólidos e prolongados do que incentivos externos, nomeadamente materiais83. A consideração destas variáveis internas enquanto motivadores para a ação tem, aliás, levado a que, além do Direito como instrumento de alteração de incentivos (associando custos e benefícios a comportamentos) e, em alguma medida, como instrumento de expressão e conformação de valores sociais84, também a educação e o marketing, em particular o marketing social – entendido como a aplicação de técnicas de marketing como forma de influência sobre o comportamento humano com vista ao aumento do bem-estar social85 – sejam valorizados como promotores das mencionadas variáveis internas ou intrínsecas. A alteração para o paradigma da economia circular não se resolverá com a adoção de estratégias de green marketing, que ademais suscita conhecidos problemas de greenwashing, mas elas poderão auxiliar na alteração de hábitos do consumidor encorajando a adoção de comportamentos circulares86. À medida a que a panóplia de ferramentas de intervenção sobre o comportamento humano aumenta e se diversifica, aumenta também a possibilidade de fazer corresponder a cada problema um tipo de solução mais adequado - no sentido de mais adaptado ao tipo de mecanismos que pode provocar a mudança comportamental desejada. Para isso é preciso perceber em que medida é que os sistemas de decisão colaboram para a produção do 83 R. Davis, et al. Theories of behaviour and behaviour change across the social and behavioural sciences: a scoping review. Health Psychology Review. 2015, 9, pp. 323-344; W. Bolderdijk, et al. Comparing the effectiveness of monetary versus moral motives in environmental campaigning. Nature Climate Change. 2012, 3, pp. 413-416; S. van der Linden. Warm glow is associated with low- but not high-cost sustainable behavior. Nature Sustainability. 2018, 1, pp. 28-30; P. C. Stern. New environmental theories: toward a coherent theory of environmentally significant behavior. Journal of Social Issues. 2000, 56, pp. 407-424; P. de Pelsmacker, L. Driesen e G. Rayp. Do consumers care about ethics? Willingness to pay for fair-trade coffee. Journal of Consumer Affairs. 2005, 39, pp. 363-385. 84 É importante não negligenciar a função expressiva do Direito, isto é, a sua capacidade, mesmo sem a associação à coercibilidade, de veicular sentidos de dever ser, criando ou validando normas sociais. Cfr. C. R. Sunstein. On the Expressive Function of Law. University of Pennsylvania Law Review. 1996, 144, pp. 2021 e ss. 85 G. Salazar, M. Mills e D. Verissimo. Qualitative impact evaluation of a social marketing campaign for conservation. Conservation Biology. 2019, 33, p. 640; D. McKenzie-Mohr. Promoting sustainable behavior: an introduction to community-based social marketing. Journal of Social Issues. 2000, 56, p. 546; T. Haldeman e J. W. Turner. Implementing a community-based social marketing program to increase recycling. Social Marketing Quarterly. 2009, 15, pp. 114-127. 86 T. Wastling, F. Charnley e M. Moreno. Design for circular behaviour: considering users in a circular economy. Sustainability. 2018, 10, p. 1743. 141 II. ECONOMIA CIRCULAR comportamento em causa – em concreto, qual dos dois sistemas de decisão utilizados pelo cérebro humano, um mais automático, outro mais deliberativo, é preponderante na criação do comportamento, na realização da escolha – mas também que tipo de heurísticas, pré-conceitos, tendências, são relevantes para a produção desse comportamento87. Impõe-se perceber a importância do contexto para a decisão, a relevância concreta das variáveis intrínsecas e extrínsecas. A complexidade das determinantes do comportamento humano é demasiado grande para que apenas um tipo de técnica seja usado para conseguir promover todos os tipos de alteração comportamental. Um exemplo de como as intervenções podem não funcionar quando não têm em conta as variáveis comportamentais adequadas é o dos rótulos relativos à eficiência energética utilizados na União Europeia. Ao fazer-se uma alteração de escala de “A” a “G” para de “A+++” a “D” os consumidores deixaram de reagir de forma tão significativa ao rótulo e, por esse motivo, deixaram de escolher os produtos energeticamente mais eficientes88. No caso, a ignorância sobre o impacto dos framing effects89 levou a uma diminuição da compra de produtos energeticamente mais eficientes – um bom exemplo do que é um mau exemplo90. A posição mais equilibrada será admitir que cada técnica se revelará mais apta em determinadas condições e menos apta noutras, ou seja, que cada uma será context-specific. 2.6. Nudging: evidência em matéria ambiental e na alteração para o paradigma da circularidade Uma das técnicas de alteração comportamental mais discutidas, estudadas 87 Sobre os dois tipos de processos de decisão, cfr. D. Kahneman. Pensar, Depressa e Devagar. Lisboa: Temas e Debates, 2012, pp. 29-54. 88 F. Ölander e J. Thøgersen. Informing versus nudging in environmental policy. Journal of Consumer Policy. 2014, 37, pp. 341-356; S. L. Heinzle, e R. Wüstenhagen. Dynamic adjustment of eco-labeling schemes and consumer choice-the revision of the EU energy label as a missed opportunity? Business Strategy and the Environment. 2012, 21, pp. 60-70. 89 Isto é, da relevância da forma como a informação é veiculada ao seu destinatário (mais do que da informação em si) para a escolha que este acaba por fazer. Os framing effects decorrem da mais ampla prospect theory, desenvolvida por Kahneman e Tversky na década de 70 do séc. XX. Cfr. D. Kahneman e A. Tversky. Prospect theory. An analysis of decision under risk. Econometrica. 1979, 47(2), pp. 263-291. 90 C. Schubert. Green nudges: do they work? Are they ethical? Ecological Economics. 2017, 132, pp. 329-342. 142 II. ECONOMIA CIRCULAR e até mesmo implementadas neste momento é o nudging91. Embora não seja uma técnica nova, ganhou uma dimensão renovada depois da concetualização empreendida por Thaler e Sunstein92 e, não sendo panaceia para todos os problemas ambientais, há algumas experiências de nudging com interesse no contexto da economia circular. A ideia fundamental do nudging é a de que, conhecendo-se os motivadores e os inibidores do comportamento humano sobre o qual se pretende intervir, será possível alterá-lo no sentido pretendido através de alterações subtis na chamada “arquitetura da escolha”, isto é, no contexto em que a decisão tem lugar e em que a escolha é feita. Estas alterações não obrigam o sujeito a uma escolha determinada – ele conserva sempre a sua liberdade de ação, podendo optar por outro caminho – mas, tirando partido de variáveis comportamentais previamente identificadas, influenciam-no no sentido da escolha que se entende servir melhor o seu bem-estar. Casos tipicamente apontados são os casos das “escolhas por defeito” em que, tirando partido da tendência para a inércia, se elege como escolha por defeito em determinado contexto aquela que se entende ser mais adequada, embora dando-se liberdade ao sujeito para não aceitar, fazendo então a sua própria escolha93. A âncora político-filosófica do nudge é o “libertarian paternalism”94, uma visão de acordo com a qual a tarefa do decisor público não passa pela proibição ou imposição de comportamentos, mas sim pela alteração dos contextos de escolha através de mecanismos que tiram partido do acervo de conhecimento acerca do comportamento humano. Desta forma, os sujeitos são influenciados, de forma predominantemente inconsciente, a adotar decisões que o decisor público entendeu que lhes trariam maior benefício. Contudo, os agentes são livres de escolher um caminho alternativo, razão pela qual a perspetiva é entendida como libertária – no sentido em que permanece intata a autonomia do indivíduo em escolher o seu caminho. Em matéria ambiental, o nudging, que, geralmente, tem a vantagem de 91 Cfr. M. Santos Silva. Nudging and Other Behaviourally Based Policies as Enablers for Environmental Sustainability. Laws. 2022, 11(1), p. 9. 92 R. H. Thaler e C. R. Sunstein. Nudge. Improving decisions about health, wealth and happiness. Londres: Penguin, 2008, pp. 1-14. 93 I. Dinner, et al. Partitioning default effects: why people choose not to choose. Journal of Experimental Psychology Applied. 2011, 17, pp. 332-341. 94 R. H. Thaler e C. R. Sunstein. Libertarian paternalism is not an oxymoron. University of Chicago Law Review. 2003, 70, pp. 1159 e ss. 143 II. ECONOMIA CIRCULAR apresentar baixos custos de implementação95, passa sobretudo por alterações que facilitem a vida das pessoas: simplificar, diminuir a fricção, tornar mais linear um determinado comportamento é, muitas vezes, tudo o que é preciso para que ele comece a ser adotado96. Muitas vezes o nudge está apenas na forma como a informação é apresentada, chamando a atenção para aspetos que já são importantes para o consumidor e de que este é lembrado através desse “lembrete”, mais ou menos subtil. O nudge não funciona sozinho: ele existe para lembrar o consumidor de algo que já é importante, que já consta do respetivo quadro valorativo. Por isso mesmo, a maior ou menor eficácia de nudges destinados à poupança energética depende da ideologia individual97. Outras vezes, o nudge é construído de forma a tirar partido das normas sociais e da moral individual: mostrar aos consumidores como é o seu comportamento em comparação com o dos outros (por exemplo, quanta energia gastou, ou quando água gastou, em comparação com os vizinhos)98 ou mostrar que empresas são mais amigas do ambiente e quais o prejudicam mais (divulgando publicamente esses resultados 95 E. Gsottbauer e J. C. van den Bergh. Environmental policy theory given bounded rationality and other-regarding preferences. Environmental & Resource Economics. 2010, 49, pp. 263-304. 96 K. Momsen e T. Stoerk. From intention to action: Can nudges help consumers to choose renewable energy? Energy Policy. 2014,74, pp. 376-382; N. Rivers, et al. Using nudges to reduce waste? The case of Toronto’s plastic bag levy. Journal of Environmental Management. 2017, 188, pp. 153-162; F. Ebeling e S. Lotz. Domestic uptake of green energy promoted by opt-out tariffs. Nature Climate Change. 2015, 5, p. 868. 97 Por exemplo, um estudo realizado com uma amostra de pessoas nos Estados Unidos chegou à conclusão de que liberais estão mais dispostos a adotar medidas de conservação ambiental enquanto os mais conservadores resistem mais a alterações comportamentais nesse sentido. D. L. Costa e M. E. Kahn. Energy Conservation «Nudges» and Environmentalist Ideology: Evidence from a Randomized Residential Electricity Field Experiment. In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics of Environmental Policy. Behavioral and Political Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2013, p. 219. 98 Em matéria de economia circular, foi testado um nudge que informava as pessoas que estavam a escolher um produto que a maioria dos consumidores daquele bem tinha optado pela alternativa mais duradoura e mais facilmente reparável. Essa informação, divulgada de forma direta e simples no momento da compra, teve efeitos positivos sobre o ato de escolha subsequente, “guiando” os indivíduos no sentido da compra mais “verde”. Cfr. C. Harms, et al. Behavioural study on consumers’ engagement in the circular economy. European Commission, 2018, p. 169, disponível aqui. Noutro estudo, foram aplicados, com algum efeito positivo, nudges destinados a promover o leasing, a reparação e a utilização de telemóveis mais verdes. Cfr. A. Stefansdotter, et al. Nudging for sustainable consumption of electronics products (in Swedish). Nordic Council of Ministers. 2016, p. 18, disponível aqui. Num terceiro estudo, concluiu-se que a inserção, nos produtos, de rótulos com a indicação do tempo de vida respetivo, desde que objeto de design adequado, pode influenciar positivamente a decisão de compra. Cfr. UE. Comité Económico e Social. The Influence of Lifespan Labelling on Consumers. 2016, pp. 4 e 5, disponível aqui. 144 II. ECONOMIA CIRCULAR para que a imagem das piores fique associada a essa má reputação)99. Embora possam ajudar a promover comportamentos mais sustentáveis, quer chamando a atenção de consumidores que já estão dispostos a consumir de forma mais sustentável e precisam apenas de informação tratada para o poderem fazer, quer facilitando comportamentos mais verdes ou eliminando fricções, os nudges são insuficientes para a profundidade da alteração comportamental de que um modelo económico circular necessita. Sendo a própria atitude de consumo que está em causa, é necessário que o consumidor altere a sua escolha inicial entre o tipo de consumo que quer ter e o tipo de prejuízo ambiental que está disposto a provocar, o que implica decidir quanto é que está disposto a prescindir do seu atual modelo de consumo para promover uma forma de consumo que, sendo menos onerosa para o ambiente, pelo menos num momento inicial lhe vai parecer mais onerosa pessoalmente (porque implica uma alteração de comportamento, o que implica vencer a inércia do status quo). Consumir menos e consumir produtos com maior durabilidade implica uma alteração face ao paradigma atualmente dominante e o consumidor que é constantemente seduzido pelo consumo, sobretudo por consumo barato e facilmente descartável, dificilmente conseguirá alterar a sua atitude de consumo de uma forma global, isto é, de uma forma que vá além de alguns consumos mais frequentes e em que a exposição a alternativas mais pró-ambientais seja maior e em que os custos dessa alteração de consumo sejam menores. As decisões de consumo não são escolhas isoladas das demais decisões do indivíduo, sendo impactadas por redes de infraestruturas e uma malha contextual complexa. Por conseguinte, alterações que visam diretamente a alteração do hábito de consumo, nomeadamente facilitando a adoção de comportamentos que permitam implementar a circularidade, mas num contexto que se mantém idêntico, isto é, que conserva as caraterísticas de uma economia linear e não circular, nomeadamente ao nível fundamental da publicidade e marketing, terão um alcance muito mais reduzido do que aquelas que se destinam a indivíduos cujo contexto já propicia a adoção de comportamentos que se 99 R. Thaler e C. Sunstein. Nudge. The final edition. London: Penguin, 2021, pp. 303-304; H. Allcott. Social norms and energy conservation. Journal of Public Economy. 2011, 95, pp. 10821095; A. Biel e J. Thøgersen. Activation of social norms in social dilemmas: a review of the evidence and reflections on the implications for environmental behaviour. Journal of Economic Psychology. 2007, 28, pp. 93-112; R. B. Cialdini, et al. Managing social norms for persuasive impact. Social Influence. 2006, 1, pp. 3-15; N. J. Goldstein, R. B. Cialdini e V. Griskevicius. A room with a viewpoint: using social norms to motivate environmental conservation in hotels. Journal of Consumer Research. 2008, 35, pp. 472-481. 145 II. ECONOMIA CIRCULAR inserem num determinado modelo de vida100. Se o ambiente for favorável à adoção do comportamento, a probabilidade de ele se concretizar, naturalmente, aumenta101. Um consumidor exposto a uma diversidade maior de produtos duradouros, mais facilmente os comprará, assim como desmantelar produtos em fim de vida será mais fácil se houver uma standardização do design de fim de vida dos produtos. Esta é também uma lição importante da behavioral economics, que resulta precisamente da valorização do contexto da decisão, da “arquitetura da decisão” no seu conjunto. Em conclusão, a identificação e análise dos fatores comportamentais com influência no comportamento dos agentes económicos, quer do lado da procura, quer do lado da oferta, apresenta benefícios claros para a construção de políticas públicas, nomeadamente no domínio da economia circular. A implementação de um modelo económico circular, em substituição do atual modelo linear, implica uma transformação substancial nos comportamentos típicos dos agentes económicos, sendo, portanto, um imperativo quer de eficiência, quer de eficácia, o conhecimento dos mecanismos comportamentais que, previsivelmente, condicionarão o sucesso das políticas públicas a implementar nessa área. Esse conhecimento permite que se estabeleça uma relação mais clara entre os objetivos da política pública a implementar e os comportamentos dos agentes económicos que são destinatários da intervenção, o que, por sua vez, torna possível uma seleção mais eficaz dos instrumentos de que se serve a intervenção, bem como a adaptação do respetivo conteúdo aos objetivos visados, com potenciais ganhos em termos de sucesso da política pública. 100 Algumas marcas já começaram a implementar modelos de leasing de produtos em segmentos de consumo onde a utilização desse modelo ainda é marginal. À medida a que se for normalizando o conceito, a probabilidade de os agentes optarem pelo leasing em vez da compra tenderá a aumentar. Cfr. W. R. Stahel. The performance economy. 2.ª ed. UK: Palgrave Macmillan, 2010, p. 122. 101 No contexto inserem-se desde o tipo de tecnologias a que habitualmente recorremos à cultura dominante em termos de valores, hábitos, normas sociais. Alguns sinais de que a atitude de consumo pode estar a alterar-se, pelo menos nas gerações mais jovens, são a mudança de paradigma de consumo em alguns bens mais dispendiosos e que costumavam ser exibidos como sinal de estatuto social, como casas e carros, em que assistimos a uma crescente preferência pela utilização do serviço em vez da compra do bem (exemplo da Zipcar ou da AirBnb), algo que foi tornado possível pela disponibilização de tecnologias que permitem a dinamização deste tipo de mercados. Cfr. Disponível aqui. 146 II. ECONOMIA CIRCULAR 3. Um sistema legal para a circularidade Abordado o conceito de economia circular, incluindo o seu fundamento teórico na ciência económica e a forma como tem sido recebido no âmbito de várias políticas públicas, caberá agora explicitar de que forma tem sido, e se prevê que venha a ser, a breve trecho, incorporado no ordenamento jurídico. Por força da abrangência do conceito, é já hoje evidente que um sistema legal para a circularidade não se bastará com pontuais alterações em regimes jurídicos existentes, e, ademais, não se limitará sequer àqueles que atualmente incidem sobre as áreas de atividade tradicionalmente reguladas pelo Direito do Ambiente. Caberá agora, portanto, identificar e analisar estas áreas. A título preliminar, contudo, importa fazer uma observação genérica quanto à importância dos instrumentos de natureza económica relativos ao desempenho ambiental na temática da economia circular102. Não será surpreendente que, para uma mudança estrutural a nível económico, estes instrumentos sejam particularmente relevantes103. Vários dos regimes que seguidamente abordaremos, como o do rótulo ecológico, o da contratação pública sustentável, ou o dos direitos do consumidor, são incentivos – ainda que alguns mais robustos e restritivos do que outros – destinados à reconfiguração dos processos produtivos, ou seja, da oferta, através de mudanças no consumo, ou seja, na procura. Potencialmente associados a estes regimes estão outros, transversais a qualquer setor de atividade. É o caso dos instrumentos tributários ambientais – através de, por exemplo, benefícios fiscais, incorporação de componentes ambientais em cálculos de imposto, agravamentos tributários por razões ambientais104 –, que poderão ser utilizados para incentivar (positiva ou 102 Uma definição, com vários exemplos, destes tipos de instrumentos das políticas ambientais pode ser encontrada nos artigos 17.º e 20.º da LBA. 103 Encontram-se já perspetivas muitas críticas do que se considera ser o excessivo enfoque em instrumentos de natureza económica. A. N. López. Intervención pública y límites del mercado en la transición a la economia circular. In A. N. López, et al. Redondear La Economía Circular. Del Discurso Oficial a Las Políticas Necesarias. Arazandi/Civitas, 2021, pp. 97-132. 104 J. Freitas da Rocha. Instrumentos Tributários. In C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de Direito do Ambiente. I. CIDP/ICJP. 2021, pp. 384-396. Especificamente sobre instrumentos tributários no âmbito da economia circular. X. Vence e S. López Pérez. Taxation for a Circular Economy: New Instruments, Reforms, and Architectural Changes in the Fiscal System. Sustainability. 2021, 13(8), pp. 1-21. 147 II. ECONOMIA CIRCULAR negativamente) a reconfiguração do modelo económico105. De igual modo, os instrumentos vocacionados para alterações de práticas ao nível da gestão societária incidem indiferentemente sobre qualquer setor, como é o caso do dever de inclusão, no relatório de gestão, de informações relativas à evolução, desempenho e impacto da atividade empresarial no que que toca a questões ambientais106. Atendendo à necessidade de inovação – tecnológica, científica e económica – um terceiro conjunto de instrumentos transversais particularmente relevantes são os relativos ao financiamento das atividades económicas. Além da valoração de objetivos de ecoinovação107 nos seus programas gerais, o Programa LIFE da União Europeia, especificamente dedicado a projetos na área ambiental, compreende quatro áreas de financiamento, no período 2021-2027, sendo uma delas a economia circular e qualidade de vida108. Mas, além de fundos públicos, a orientação de produtos financeiros privados para projetos ambientalmente sustentáveis – como os green bonds109 – implica o combate a práticas comerciais desleais (e ambientalmente contraproducentes) de comercialização com alegações falsas de sustentabilidade (conhecidas como greenwashing). Para “eliminar entraves ao funcionamento do mercado interno no que diz respeito à angariação de financiamento para projetos de sustentabilidade”, a União Europeia procedeu à especificação dos critérios para 105 Cfr. um estudo da implementação, em 2018, de um sistema de taxas com o objetivo de aumentar os custos de utilização de aterros e de incineração em comparação com os custos da reciclagem. S. -W. Rhee. Circular Economy of Municipal Solid Waste (MSW) in Korea. In S. K. Ghosh, ed. Circular Economy: Global Perspective. Springer. 2020, pp. 326-328. 106 Introduzidas pela Diretiva 2014/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2014, que altera a Diretiva 2013/34/UE no que se refere à divulgação de informações não financeiras e de informações sobre a diversidade por parte de certas grandes empresas e grupos. 107 O Plano de Ação sobre eco-inovação, ainda em implementação, foi criado em 2011. Cfr. UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 15 de dezembro de 2011. COM (2011) 899 final. 108 Regulamento (UE) n.º 2021/783 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2021, que estabelece um Programa para o Ambiente e a Ação Climática (LIFE). 109 Os green bonds não são, estruturalmente, instrumentos de investimentos diversos daqueles que não são dedicados à sustentabilidade. Contudo, o investimento é funcionalizado a projetos dedicados à sustentabilidade e, em regra, o investidor não fica exposto ao risco do projeto específico que é financiado. Mais detalhadamente, cfr. A. Maltais e B. Nykvist. Understanding the Role of Green Bonds in Advancing Sustainability. Journal of Sustainable Finance & Investment. 2020, pp. 1-20. 148 II. ECONOMIA CIRCULAR a qualificação de uma atividade como sustentável, através do Regulamento Taxonomia110. Concretamente, são definidas como dando um “contributo substancial para a transição para a economia circular”, designadamente, a utilização mais eficiente de recursos naturais na produção, reduzindo a utilização de matérias-primas primárias e aumentando a utilização de subprodutos e de matérias-primas secundárias, o aumento da reciclabilidade, durabilidade, reparabilidade, reutilização e atualização de produtos; o prolongamento da utilização de produtos; ou a prevenção da produção de resíduos111. Prevêse, ainda, o reforço substantivo da inclusão de critérios de sustentabilidade na gestão societária, atendendo à Proposta de Diretiva relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade112. Deve ainda ser explicitado que a já referida ligação entre o tema da economia circular e o das alterações climáticas está espelhada na LBC. De facto, apesar de não haver uma lei portuguesa ou europeia que estabeleça as bases da política para a circularidade, a LBC refere-se várias vezes à promoção da economia circular. Além de, em geral, uma diminuição na extração de recursos ser útil aos objetivos de mitigação, o elo principal está na poupança energética que um modelo circular deverá acarretar. Por esse motivo, a eficiência energética na utilização de recursos no âmbito de uma economia circular é desde logo eleita como um objetivo também da política do clima113, sendo também especialmente destacada a importância da política de transportes114. Mas é a propósito da política de materiais e de consumo que o tema é desenvolvido, sendo elencados alguns dos instrumentos jurídicos que abordaremos de seguida, como a conceção ecológica ou a reparação e substituição de partes115. 110 Regulamento (UE), cit. nota 5. 111 Cfr. Regulamento (UE), cit. nota 5, n.º 1 do artigo 17.º. 112 UE. Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de responsabilidade e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937, de 23 de fevereiro de 2022. COM (2022) 71 final. Propõe a definição das “obrigações das empresas em matéria de efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos e no ambiente, no que diz respeito às suas próprias operações, às operações das suas filiais e às operações da cadeia de valor realizadas por entidades com as quais a empresa tenha uma relação empresarial estabelecida”. 113 Cfr. alínea e) do artigo 3.º. 114 Cfr. artigo 47.º e n.º 2 do artigo 51.º. 115 Cfr. artigo 51.º. 149 II. ECONOMIA CIRCULAR A transversalidade do conceito de economia circular obriga-nos, agora, à escolha de alguns instrumentos jurídicos enquanto objeto de estudo. Serão uma amostra do que é e será, previsivelmente, um sistema legal funcionalizado à circularidade, dando prioridade, naturalmente, àqueles que de forma mais intensa, estrutural e atual são relevantes na transição, como é o caso da regulação de produtos e de processos produtivos, do consumo, da gestão de resíduos e das substâncias químicas. Seguidamente, trataremos de algumas cadeias de valor que, pela escassez de recursos ou pela elevada contribuição para a sobre-exploração, têm sido prioritárias na transição. 3.1. Produtos e processos produtivos Atualmente, o enquadramento legal da conceção de produtos e respetivos processos produtivos está funcionalizado, quase exclusivamente, à proteção da saúde humana, através de regimes jurídicos relativos à utilização de substâncias químicas. Sabendo-se que o impacto ambiental de um produto é definido quase inteiramente na fase da sua conceção116, a promoção do ecodesign ou conceção ecológica transformou-se numa prioridade regulatória117. O Direito da União Europeia já contém normas especificamente funcionalizadas à conceção ecológica. É o caso do regime do rótulo ecológico118 e da Diretiva Ecodesign119. Contudo, por um lado, qualquer um destes regimes inclui elementos relativos à circularidade, mas não é específico para atingir este objetivo, e, portanto, revelam-se insuficientes ao nível dos critérios. Por outro lado, e mais relevantemente, o primeiro é um instrumento de natureza voluntária e destinado, em suma, a certificar as melhores práticas ambientais, 116 UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 3. 117 Desenvolvidamente sobre o tema, cfr. B. Puentes Cociña. Ecodiseño de productos para la economía circular: durabilidad, reparación y reutilización. In A. Nogueira López, et al., ed. Redondear la economía circular. Del discurso oficial a las políticas necesarias. Arazandi/Civitas. 2021, pp. 133-161. 118 Regulamento (CE) n.º 66/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2009, relativo a um sistema de rótulo ecológico da UE. Sobre este sistema, cfr. H. C. Leong. Instrumentos (de promoção e gestão) do desempenho ambiental. In C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de Direito Do Ambiente. I. CIDP/ICJP. 2021, pp. 346-353. Disponível aqui. 119 Diretiva 2009/125/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, relativa à criação de um quadro para definir os requisitos de conceção ecológica dos produtos relacionados com o consumo de energia. 150 II. ECONOMIA CIRCULAR estando limitado a produtos que correspondem a um nicho do mercado; o segundo, apesar de instituir um rótulo obrigatório, incide exclusivamente sobre o consumo de energia. Por estes motivos, a Comissão Europeia anunciou, logo em 2020, a intenção de rever a Diretiva Ecodesign, prevendo o seu alargamento a mais áreas120. A proposta não foi inovadora, na medida em que as virtualidades da Diretiva Ecodesign na área da circularidade são, há já algum tempo, objeto de estudo na Europa121. Até ao momento, essa intenção concretizou-se numa Proposta de Regulamento122 que, revogando a atual Diretiva Ecodesign, propõe: (i) A definição de um conjunto de requisitos de conceção ecológica para a colocação de produtos no mercado interno, relativos a durabilidade, possibilidade de reutilização, atualização, reparação, manutenção, renovação, presença de certas substâncias, inclusão de produtos reciclados, eficiência na utilização de recursos, reciclabilidade, pegada carbónica e ambiental, e previsão de geração de resíduos. Prevê-se também a implementação de um sistema de verificação do cumprimento através de testes e cálculos, e ainda que a Comissão definirá os critérios, mediante ato delegado, por categorias de produtos; (ii) A criação de um passaporte digital a incluir um conjunto de informações específicas relativas a um determinado produto. Esta medida inclui um dever, imposto ao produtor ou ao importador, de prestação de um conjunto alargado de informações quanto ao impacto ambiental do produto e respetiva embalagem; (iii) A definição de um conjunto de regras destinadas a prevenir a destruição de bens não vendidos, incluindo a admissibilidade de proibição de destruição quando se conclua que certo grupo de produtos tem um impacto ambiental significativo; A criação de mecanismos de transmissão simples de informação ao consumidor, em termos a definir pelos Estados-Membros. Uma das vias enunciadas é a da criação de rótulos ecológicos. (iv) Esta proposta utiliza assim, de forma complementar, dois instrumentos de natureza bastante diversa. Por um lado, são impostos standards mínimos 120 UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 4. 121 C. Dalhammar, et al. Addressing resource efficiency through the Ecodesign Directive: A review of opportunities and barriers. TemaNord. Nordic Council of Ministers. 2014. 122 UE. Comissão Europeia, cit. nota 13. 151 II. ECONOMIA CIRCULAR de eficiência na utilização de recursos naturais, sem os quais o produtor ou importador estão impedidos de colocar certo produto no mercado, numa abordagem proibitiva de command-and-control. Por outro lado, a disponibilização de informação ao consumidor, com preocupações de simplicidade e acessibilidade, adiciona um instrumento que, embora possivelmente obrigatório, visa melhorar o desempenho ambiental através do funcionamento normal de adaptação da oferta às exigências da procura – sem esquecer aqui tudo o que se disse supra quanto à insuficiência da informação como instrumento de alteração do padrão da procura123. A demonstração da relevância de uma identidade corporativa ambientalmente responsável na modelação do comportamento das empresas é evidenciada pelo facto de se ter tornado também prioritário o combate às alegações infundadas de sustentabilidade124. Embora todas as alterações ao nível do produto tenham impacto no processo produtivo, a Comissão Europeia tem também avançado com propostas especificamente direcionadas à alteração de processos produtivos, em linha com o previsto no novo Plano de Ação125. A proposta de revisão da Diretiva Emissões Industriais126 tem um objetivo amplo de “estimular uma profunda transformação do setor agroindustrial rumo à poluição zero mediante a utilização de tecnologias revolucionárias, contribuindo assim para os objetivos do Pacto Ecológico Europeu de alcançar a neutralidade carbónica, uma maior eficiência energética, um ambiente não tóxico e uma economia circular”127. Todavia, procede a alterações cirúrgicas, mas transversais e estruturais, com o objetivo específico de aumentar a eficiência na utilização de recursos nos setores da energia, da água e dos resíduos. Assim, abundam ao longo da Proposta as menções a, essencialmente, dois aspetos: a 123 Sobre a complementaridade entre estes instrumentos, cfr. H. C. Leong, cit. nota 118, pp. 313-315. 124 Cfr. infra ponto 3.2.1. 125 Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 6. 126 Diretiva 2010/75/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, relativa às emissões industriais (prevenção e controlo integrados da poluição). 127 Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva 2010/75/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, relativa às emissões industriais (prevenção e controlo integrados da poluição) e a Diretiva 1999/31/CE do Conselho, de 26 de abril de 1999, relativa à deposição de resíduos em aterros, de 5 de abril de 2022. COM (2022) 156 final, p. 4. Em linha com esta proposta, foi também apresentada uma Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à comunicação de dados ambientais de instalações industriais e à criação de um Portal das Emissões Industriais, de 5 de abril de 2022. COM (2022) 157 final. 152 II. ECONOMIA CIRCULAR reutilização de águas industriais e o aumento da eficiência energética. A alteração legislativa mais relevante que se propõe para este fim incide sobre a previsão de que as licenças ambientais128 deverão passar a fixar, sempre que possível, além dos já estabelecidos valores-limite de emissões, valores-limite de desempenho ambiental obrigatórios para os níveis de consumo e de eficiência na utilização de recursos, incluindo água, energia e materiais reciclados, baseados nos níveis de desempenho ambiental associados às melhores técnicas disponíveis129. Em articulação com as demais alterações, e num capítulo denominado Promover a Inovação, propõe-se também que os Estados-Membros exijam aos operadores que incluam o plano de transformação dos respetivos sistemas de gestão ambiental a fim de contribuir para a emergência de uma economia sustentável, limpa, circular e com impacto neutro no clima130. Um último aspeto que deve ser frisado no que toca à reconfiguração dos produtos e respetivos processos produtivos na transição para a economia circular é a servitização. A servitização pode ser definida, amplamente, como a conversão de modelos de negócio de venda de bens em modelos de oferta de serviços131, com enfoque num amplo e permanente acesso ao bem pretendido, e é vista como um meio para intensificar a utilização dos produtos, prolongando a sua vida útil (ao desincentivar ciclos de vida curtos e obsolescência planeada) e aumentando a eficiência na utilização de recursos, num contexto de economia de partilha ou colaborativa (sharing ou collaborative economy)132. Há já alguns exemplos estabelecidos no mercado, sobretudo ao nível empresarial, em que a compra de materiais foi substituída pelo aluguer, 128 Sobre o regime do licenciamento ambiental, cfr. R. T. Lanceiro. Instrumentos Preventivos. In C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de Direito do Ambiente. I. 2.a ed. CIDP/ICJP. 2022, pp. 32-77. Disponível aqui. 129 Tal conclusão resulta da análise, nomeadamente, das propostas de alteração dos artigos 5.º, 14.º e 15.º. 130 Cfr. proposta de aditamento de artigo 27.º-D. 131 J. Hojnik. Ecological modernization through servitization: EU regulatory support for sustainable product-service systems. REC&IEL. 2018, 27(2), p. 163. 132 Definida pela Comissão Europeia como “modelos empresariais no âmbito dos quais as atividades são facilitadas por plataformas colaborativas que criam um mercado aberto para a utilização temporária de bens ou serviços, muitas vezes prestados por particulares”. Cfr. UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 2 de junho de 2016. Uma Agenda Europeia para a Economia Colaborativa. COM (2016) 356 final, p. 3. Cfr. a meta-análise de definições feita por M. Hossain. Sharing Economy: A Comprehensive Literature Review. International Journal of Hospitality Management. 2020, 87(102470). 153 II. ECONOMIA CIRCULAR com deveres de manutenção associados (e.g., carros, impressoras, sistemas de ar condicionado, maquinaria pesada, iluminação), incluindo em setores com elevado impacto (como o setor automóvel ou hospitalar), mas também em contextos potencialmente relevantes para qualquer pessoa, como a contratação de serviços de acesso a plataformas (e.g., streaming de música, de filmes ou séries, ou praticamente todas as aplicações para computadores e telemóveis) ou de armazenagem digital (e.g., drives, ao invés da compra de servidores ou computadores). Apesar de referido expressamente pela Comissão no novo Plano de Ação133, o incentivo a modelos de negócios de produto como um serviço ainda não foi objeto de qualquer proposta de ato jurídico. Em todo o caso, e atendendo ao facto de, por si só, o mercado estar a operar rapidamente esta conversão, possivelmente a regulação deste tipo de serviços limitar-se-á a regimes de garantia de acesso não-discriminatório e ao robustecimento de direitos dos consumidores134, ou mesmo apenas à emissão de documentos de orientação sobre a interpretação e aplicação de normas gerais a este tipo de serviço135. 3.2. Consumo A modelação de processos produtivos através do consumo recorre, principalmente, a instrumentos relativos ao desempenho ambiental. A Comissão define, como segunda linha no seu plano de ação, a capacitação da posição de consumidores privados e públicos136. Será relevante distinguir duas dimensões: a do consumidor individual, em que assume protagonismo a previsão de aditamentos significativos ao rol de direitos dos consumidores; e a do consumidor público, que, atendendo à sua dimensão, é capaz de fornecer um incentivo significativo à conversão da produção a modelos circulares. 133 UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 4, quando se refere a «[i]ncentivar o modelo de negócio “produto como um serviço” ou outros modelos em que os produtores mantêm a propriedade dos produtos ou a responsabilidade pelo desempenho dos mesmos ao longo do ciclo de vida». 134 Alguns exemplos de questões que carecem de regulação podem ser encontrados em V. Mak e E. Terryn. Circular Economy and Consumer Protection: The Consumer as a Citizen and the Limits of Empowerment Through Consumer Law. Journal of Consumer Policy. 2020, 43, 1, pp. 227-248. 135 J. Hojnik cit. nota 131, 168. 136 UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 5. 154 II. ECONOMIA CIRCULAR 3.2.1. Direitos do consumidor A revisão do regime de direitos do consumidor antevê-se com dois pilares: a atribuição de novos direitos aos consumidores; e o controlo de práticas desleais, como o greenwashing e a obsolescência planeada. A Comissão já iniciou o procedimento ou já apresentou propostas nestas matérias. A título preliminar, contudo, importa fazer notar a aproximação que se regista, por via da transição para a economia circular, entre o direito do consumidor e o direito dos resíduos. O fundamento para vários dos novos direitos que, previsivelmente, serão consagrados, pode ser o princípio da responsabilidade alargada do produtor137. A internalização dos custos ambientais da produção – iniciada pelo princípio do poluidor-pagador138 – deixará de se referir apenas às operações atualmente reguladas pelo direito dos resíduos, focadas na gestão após a disposição pelo detentor do produto (reciclagem, outros tipos de valorização, eliminação), passando a abranger outras operações a montante, a serem incorporadas no ordenamento enquanto direitos dos consumidores. Figura 3: Operações de retenção de valor de produtos e componentes. Fonte: P. Morseletto. Targets for a Circular Economy. Resources, Conservation and Recycling. 2020, 153, p. 104553 137 C. Dalhammar. Extended Producer Responsability. In L. Krämer, et al., ed. Principles of Environmental Law. VI. Elgar Encyclopedia of Environmental Law, Edward Elgar Publishing, 2018, p. 211. 138 Sobre o princípio do poluidor-pagador e sua relação com o princípio da responsabilidade alargada do produtor, cfr. H. Oliveira, cit. nota 20, pp. 115-120. 155 II. ECONOMIA CIRCULAR Em termos de propostas legislativas, a Comissão Europeia já fez decorrer, no início de 2022, a consulta pública de uma intenção de apresentação de uma proposta legislativa com o objetivo de garantir aos consumidores informações claras e facilmente acessíveis sobre a durabilidade dos produtos e a possibilidade de reparação e de atualização (updates)139. Foram apresentados os seguintes objetivos regulatórios140: (i) Incentivo à reparação como primeira opção, com custos inferiores à aquisição de um novo produto; (ii) Reinício do período de garantia após a reparação e extensão da garantia geral; (iii) Promoção de bens renovados e em segunda mão através da atribuição de garantias; (iv) Atribuição de um direito à reparação com preços razoáveis. Também relativa à capacitação do consumidor enquanto agente de mercado, mas recorrendo a instrumentos significativamente diversos, a Proposta de Diretiva relativa ao ecobranqueamento e à obsolescência planeada141 assenta na imposição de deveres alargados de informação, por um lado, e na proibição de certas práticas, por outro laado. No que toca a práticas comerciais desleais142, propõe-se o aditamento de dez novas práticas ao rol já existente, como, por exemplo, fazer alegações genéricas de sustentabilidade sem demonstração de fundamento, exibir um rótulo de sustentabilidade não certificado ou legalmente estabelecido, apresentar requisitos legalmente exigidos como uma característica distintiva do produto, ou não informar o consumidor de que uma atualização terá impacto negativo na utilização do bem, ou de que o produto tem uma característica que irá limitar a sua durabilidade. É central, neste 139 Além da Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, poderá eventualmente estar abrangida a Diretiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens. Foi já evidenciado que esta última, apesar de 2019, não está alinhada com os objetivos do novo Plano de Ação para a Economia Circular. Cfr. M. García Goldar. The Inadequate Approach of Directive (UE) 2019/771 towards the Circular Economy. Maastricht Journal of European and Comparative Law. 2021, pp. 9-24. 140 A informação completa quanto à consulta pública, incluindo um relatório com o resultado, encontra-se disponível aqui. 141 UE. Comissão Europeia, cit. nota 12. 142 Reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno. 156 II. ECONOMIA CIRCULAR contexto, uma amplíssima definição de alegação ambiental enquanto “qualquer mensagem ou representação que não seja obrigatória por força do Direito da União ou do Direito nacional, incluindo uma representação textual, pictórica, gráfica ou simbólica, sob qualquer forma, incluindo rótulos, marcas comerciais, nomes de empresas ou nomes de produtos, no contexto de uma comunicação comercial, que declare ou implique que um produto ou profissional tem um impacto positivo ou nulo no ambiente ou é menos nocivo para o ambiente do que outros produtos ou profissionais, respetivamente, ou que melhorou o seu impacto ao longo do tempo”143. Além da proibição de certas práticas, a Comissão propõe também a alteração do regime da informação pré-contratual144, aditando seis elementos adicionais a facultar aos consumidores, relativos, por exemplo, à garantia comercial de durabilidade, à possibilidade de atualizações (no caso de softwares), ou à reparabilidade. Serão instituídos, por esta via, novos direitos informacionais dos consumidores, com os correspetivos deveres da parte de produtores e vendedores. Os instrumentos jurídicos baseados em informação, aliás, parecem constituir a via preferencial para ação nas políticas para a circularidade, como se verá também em matéria de Direito dos Resíduos. Ao nível nacional, alguns Estados-Membros já incluíram obrigações legais mais específicas quanto a certos produtos, como é o caso do índice de reparabilidade de produtos eletrónicos em França145, ou instituíram políticas de incentivo, como é o mecanismo austríaco de comparticipação de 50% do valor de reparação de produtos elétricos e eletrónicos através de um voucher146. Em suma, a transição para a economia circular irá, previsivelmente, implicar uma transformação funcional no Direito dos Consumidores, que deixará de ser uma área do Direito vocacionada exclusivamente para a regulação de uma relação contratual, protegendo os interesses económicos das partes (nomeadamente, da parte mais fraca na relação contratual), passando também a ser um instrumento central de proteção ambiental147. Contudo, os 143 Cfr. n.º 1 do artigo 1.º da Proposta de Diretiva, cit. nota 12. 144 Contido atualmente na Diretiva 2011/83/UE. 145 Cfr. informação completa, com os vários atos aprovados, disponível aqui. 146 A informação sobre a iniciativa encontra-se disponível aqui. 147 Para uma análise desenvolvida do ordenamento jurídico vigente, a forma como acomoda, ou não, os objetivos da economia circular, e conjunto de propostas, cfr. E. Terryn. A right to repair? Towards sustainable remedies in consumer law. European Review of Private Law. 2019, 27(4), pp. 851-873. 157 II. ECONOMIA CIRCULAR instrumentos de capacitação de consumidores são geralmente considerados insuficientes, não podendo obnubilar a necessidade de complemento por outras medidas de incentivo, como as de natureza fiscal, e de medidas de natureza proibitiva para certos produtos148. 3.2.2. O papel do consumidor público Ao contrário do que sucede com o Direito dos Consumidores, a utilização do Direito da Contratação Pública para objetivos ambientais não constitui qualquer novidade no ordenamento jurídico europeu ou português149. A utilização de critérios ambientais depara-se com limites e obstáculos associados ao princípio da concorrência150 – central no Direito da Contratação Pública. Tendo a admissibilidade da utilização destes critérios sido há muito sancionada pelo TJUE151, a eficácia em geral da contratação pública sustentável é questionada152, e algumas questões jurídicas relevantes para a eficiência na 148 V. Mak e E. Terryn. cit. nota 134. 149 Com origem na Comunicação interpretativa da Comissão Europeia sobre o direito comunitário aplicável aos contratos públicos e as possibilidades de integrar considerações ambientais nos contratos públicos, de 4 de junho. COM (2001) 274 final. Para uma análise resumida das principais questões, com indicações bibliográficas, cfr. H. C. Leong. Instrumentos contratuais. In C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de Direito do Ambiente. I. 2.a ed. CIDP/ICJP, 2022, disponível aqui. Especificamente sobre contratação pública circular, cfr. R. Carvalho. Da contratação pública sustentável à contratação pública circular: o objeto da procura e o modelo de gestão. In M. A. Raimundo, ed. Concorrência e sustentabilidade: dois desafios para a contratação pública: Actas Das II Jornadas de Direito Dos Contratos Públicos (30 de Setembro a 2 de Outubro de 2020, FDUL). AAFDL, 2021. 150 Por esse mesmo motivo, o Direito da Concorrência é também visto como uma área problemática na transição para a economia circular. Sobre este problema, cfr. A. Gerbrandy. Solving a sustainability-deficit in European Competition Law. World Competition. 2017, 40(4), pp. 539-562. 151 Acórdão do TJUE de 7 de setembro de 2002, Concordia Bus, Processo n.º C-513/99, relativo à tomada em consideração de questões ambientais como critério de adjudicação. 152 K. -M. Halonen. Is Public Procurement Fit for Reaching Sustainability Goals? A Law and Economics Approach to Green Public Procurement. Maastricht Journal of European and Comparative Law. 2021, 28(4), pp. 535-555. A Comissão publicitou um estudo realizado em 2006 sobre os obstáculos reportados pela administração pública à utilização da contratação pública sustentável, sendo destacadas a falta de apoio político, a perceção de que produtos sustentáveis são mais caros, a falta de apoio jurídico na aplicação de critérios, a falta de instrumentos de informação, a falta de formação e de cooperação entre entidades, e a ausência de critérios adequados para certos produtos e serviços. Cfr. M. Bouwer, et al. Green public procurement in Europe 2006: Conclusions and recommendations. Virage Milieu & Management, 2006. 158 II. ECONOMIA CIRCULAR utilização de recursos permanecem, como é o caso das preferências locais153. Apesar destes obstáculos e limitações, a Comissão Europeia publicou, em 2017, um conjunto de orientações e experiências de utilização de critérios circulares no regime vigente de contratação pública154. Possivelmente de forma mais consequente, a Proposta de Regulamento sobre Ecodesign prevê que, por ato delegado, a Comissão possa aprovar requisitos de conceção ecológica a aplicar pelas entidades adjudicantes em procedimentos de contratação pública, sob a forma de “especificações técnicas obrigatórias, critérios de seleção, critérios de adjudicação, cláusulas de execução dos contratos ou metas”155. Neste contexto, os tradicionais critérios de adjudicação relativos ao preço da aquisição do produto ou serviço perdem relevância em face de critérios mais representativos e que se refiram a todo o ciclo de vida do produto. A utilização do critério do ciclo de vida obriga a administração a ter em conta na aquisição todos os custos decorrentes da utilização do produto, tornando evidentes e quantificáveis os benefícios económicos de produtos que tenham ciclos de vida mais longos e que sejam mais eficientes na utilização de recursos. Por exemplo, considerando todos os custos do ciclo de vida, poderá ser mais barato um produto que seja reparável, que permita a substituição de partes, que consuma menos energia e água, ou que tenha custos de manutenção inferiores. Poderão assim ser tidos em conta custos ambientais e custos económico-financeiros até então desconsiderados, abordando, de uma assentada, ineficiências de diversa natureza156. Contudo, há outros meios relevantes na circularização através da contratação pública, como o enfoque na qualidade, a servitização157 e a procura de novos produtos e sistemas158. 153 D. M. Fernandes. Preferências locais na contratação pública. Almedina, 2021. 154 Cfr. UE. Comissão Europeia. Public Procurement for a Circular Economy. Good practice and guidance. Disponível aqui. 155 Cfr., UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, artigo 58.º. 156 Desenvolvidamente sobre a utilização deste critério ao nível dos Estados-Membros e jurisprudência relevante do TJUE, cfr. B. Hofbauer, A Tisch e H. Schreiber. Study on the implementation of life cycle assessment and environmental footprint methods in the context of public procurement: Final Report. European Commission, Directorate-General for Environment, 2021. 157 Cfr. supra 3.1. 158 K. Alhola, et al. Exploiting the Potential of Public Procurement: Opportunities for Circular Economy. Journal of Industrial Ecology. 2019, 23(1), pp. 101-104. 159 II. ECONOMIA CIRCULAR 3.3. Resíduos e químicos Apesar de os objetivos inovatórios da transição para a economia circular incidirem sobretudo sobre fases a montante no ciclo de vida do produto, fechar o círculo no processo produtivo passa, necessariamente, por alterações que permitam a reintegração dos componentes e produtos primários na economia. Essa fase ocorre já depois de o detentor do produto dele se ter desfeito, o que implica a passagem do produto para o estatuto de resíduo. O Direito dos Resíduos será também, previsivelmente, uma área na qual será necessária alguma adaptação. Contudo, ao contrário das restantes áreas, não se prevê que essa alteração seja disruptiva ou estrutural, antevendo-se antes o reforço e a melhoria. De facto, o enquadramento legal atual já prevê uma hierarquia na gestão de resíduos159, cujos níveis cimeiros são ocupados pela prevenção e pela reutilização, embora sem consequências relevantes (em termos jurídicos, e na prática)160, bem como o já referido princípio da responsabilidade alargada do produtor. Simultaneamente, grande parte das adaptações necessárias incidem sobre determinadas cadeias de valor prioritárias161, e não sobre normas gerais de gestão de resíduos162. De facto, o Direito dos Resíduos está hoje vocacionado sobretudo para a reciclagem e para a valorização de determinadas categorias de resíduos, que são objeto de regulação especial. Ainda assim, há um tópico crucial a desenvolver futuramente, de que depende o funcionamento dos mercados de produtos secundários, e, portanto, a reintrodução de matérias no mercado: o cruzamento entre o Direito dos Resíduos e o regime das substâncias químicas. O Direito das Substâncias Químicas ao nível da União Europeia refere-se, 159 Veja-se o artigo 7.º constante do RGGR (Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, que transpõe a Diretiva Quadro dos Resíduos, revista em 2018). Sobre a ligação umbilical da economia circular ao Direito dos Resíduos através da hierarquia de gestão, cfr. J. F. Alenza García. Da dimensión jurídica del paradigma de la economía circular. In A. Nogueira López, et al., ed. Redondear la economía circular: del discurso oficial a las políticas necesarias. Arazandi/Civitas. 2021, pp. 65-95. 160 K. Pouikli. Concretising the role of extended producer responsibility in European Union Waste Law and Policy through the lens of the circular economy. ERA Forum. 2020, 20, pp. 491-508. 161 Cfr. infra 3.4. 162 Embora alguns aspetos do regime geral possam carecer de alterações, de forma a permitir um aproveitamento ótimo de recursos. É o caso da mineração de aterros, cfr. T. J. Römph. Terminological Challenges to the Incorporation of Landfill Mining in EU Waste Law in View of the Circular Economy. EEELR. 2016, 25(4), pp. 106-119. 160 II. ECONOMIA CIRCULAR essencialmente, ao conjunto das normas resultantes do Regulamento REACH163 (um acrónimo para Registration, Evaluation, Authorization and Restriction of Chemicals) e do Regulamento CLP164 (acrónimo para classificação, rotulagem e embalagem, referindo-se a substâncias e misturas). No contexto da economia circular, interessa, em especial, o estatuto das substâncias que, ao abrigo deste regime, são consideradas preocupantes pelo seu potencial impacto na saúde humana e no ambiente; e a forma como a sua inerente perigosidade é um obstáculo à reintegração na economia de produtos que as integrem. Este é um dos motivos pelos quais o setor privado poderá ver na transição para a economia circular, simultaneamente, uma oportunidade, uma vez que cria necessidades de novos modelos de negócio, e um risco, dado que surgirão novos deveres legais associados à recuperação de materiais, como o rastreio e a remoção de substâncias perigosas. A importância da matéria é logo denunciada pelo facto de a Proposta de Regulamento sobre Ecodesign propor, como requisito de conceção ecológica, a rastreabilidade de substâncias que suscitam preocupação165. O regime de resíduos e o regime das substâncias químicas são, atualmente, estanques no Direito da União Europeia166. Os materiais que sejam considerados resíduos estão regulados pela Diretiva Quadro de Gestão de Resíduos; e os que não sejam resíduos são regulados (além de todos os outros regimes setoriais eventualmente existentes) pelo regime de substâncias químicas, ou seja, os referidos Regulamentos REACH e CLP. Contudo, ao contrário do que sucede com o Direito dos Resíduos, o regime de substâncias químicas não foi desenhado com preocupações de circularidade – estando, sobretudo, focado na proteção da saúde humana –, suscitando, assim, problemas resultantes do fracionamento entre três conjuntos de regimes legais (produtos, resíduos e substâncias químicas)167: 163 Regulamento (CE) n.º 1907/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro de 2006, relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas (REACH). 164 Regulamento (CE) n.º 1272/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativo à classificação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas. 165 Cfr., UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, n.º 5 do artigo 7.º da Proposta. 166 Ainda assim, surgem áreas cinzentas que suscitam dúvidas de interpretação. Cfr. J. Alaranta e T. Turunen. Drawing a line between european waste and chemicals regulation. REC&IEL. 2017, 26(2), pp. 163-173. 167 Mais em detalhe sobre este assunto, J. Alaranta e T. Turunen. How to Reach a Safe Circular Economy? Perspectives on reconciling the waste, product and chemicals regulation. JEL. 2021, 33(1), pp. 113-136. 161 II. ECONOMIA CIRCULAR Desde logo, os objetivos entre as diferentes políticas podem colidir, com consequências relevantes. Os objetivos imediatos de proteção da saúde humana contra substâncias perigosas colidem com os objetivos de reintrodução de componentes e produtos na economia, e daqui resultam obstáculos regulatórios à circularidade advenientes da regulação de produtos químicos; (i) Em segundo lugar, os critérios para classificação de perigosidade são diferentes em cada regime legal, o que suscita problemas de incerteza jurídica; (ii) Finalmente, a rastreabilidade de substâncias nas suas diferentes fases – enquanto parte de um produto primário, enquanto resíduo, e finalmente enquanto parte um produto secundário – é essencial, mas, simultaneamente, dificultada pela existência de regimes legais não articulados e com critérios e conceitos díspares168. (iii) Daqui resulta insegurança jurídica, falta de informação e falta de confiança em produtos secundários; e isso representa um sério obstáculo à circularidade, impedindo a reentrada de componentes no círculo produtivo. Todas estas dificuldades são reconhecidas pela Comissão Europeia como cruciais. No novo Plano de Ação169, a Comissão associa a circularidade a um ambiente livre de substâncias tóxicas, focando a política ambiental na necessidade de os produtos serem desenhados de forma a garantir a sua segurança, assim permitindo a sua circularidade. Ainda assim, a permanência de substâncias tóxicas, nem que seja em produtos secundários, é uma inevitabilidade, pelo que será necessário criar condições que permitam inovação tecnológica (tornando a triagem de resíduos e a separação de substâncias eficaz, eficiente, e sustentável de um ponto de vista económico-financeiro), a uniformização de sistemas de rastreabilidade no mercado interno, e uma melhoria na classificação de substâncias e resíduos. Além destas condições, a Comissão prevê, também, como condição para o funcionamento de mercados de produtos secundários, a imposição de restrições a substâncias que suscitam elevada preocupação. Está prevista para o início de 2023 a apresentação de uma proposta legislativa que altere o Regulamento REACH e incorpore várias destas alterações, consensualmente necessárias e preconizadas, tendo já decorrido 168 Isso mesmo resulta, já atualmente, da jurisprudência do TJUE sobre o conceito de resíduo e o estatuto de fim de resíduo. Em detalhe, cfr. J. Alaranta e T. Turunen. The Role of the CJEU in Shaping the Future of the Circular Economy. EEELR. 2021, 2. 169 Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, pp. 13-14. 162 II. ECONOMIA CIRCULAR a fase de consulta pública quanto à iniciativa170. A nova Estratégia para os Produtos Químicos171 também enfatiza a conceção ecológica, com base em substâncias não tóxicas, como solução primacial no suporte à transição para a economia circular, preconizando-se a adoção de critérios para a qualificação de produtos químicos seguros e sustentáveis desde a conceção, a criação de uma rede de apoio à segurança e sustentabilidade, incluindo ao nível do financiamento, e a minimização na utilização de substâncias que suscitam preocupação, assegurando disponibilidade de informação sobre a composição química e sua utilização. 3.4. Algumas cadeias de valor Tudo o que ficou dito até agora é referente a regimes gerais. Contudo, a vastidão de produtos e processos produtivos não poderia abdicar de estratégias e regimes adaptados aos problemas específicos de cada setor. Por esse motivo, tanto politicamente – através de planos e programas – como juridicamente – através de regimes legais –, os atos funcionalizados à transição para a economia circular listam sempre um conjunto de cadeias de valores consideradas particularmente relevantes. Os critérios para essa seleção são essencialmente dois: elevado impacto ambiental (seja através da poluição causada, seja pela utilização intensiva de recursos primários) e utilização de recursos nãorenováveis. Apresentam-se de seguida alguns regimes e estratégicas setoriais. Uma das cadeias de valor mais amplamente discutida é a do setor dos produtos elétricos e eletrónicos, atendendo à sua dependência de matériasprimas escassas, ao seu uso generalizado, e aos problemas específicos que suscita (e.g., update, acessórios e obsolescência planeada). O novo Plano de Ação, além de sublinhar a especial importância deste setor na regulação da conceção ecológica, anuncia que esta é uma cadeia de valor prioritária na implementação de um direito à reparação e para a regulação a favor da universalidade de acessórios (e.g., carregadores). Faz-se ainda notar a ineficiência do atual sistema de recolha de resíduos elétricos e eletrónicos, bem como a aplicação de normas sobre produtos químicos a substâncias incorporadas nestes produtos172. Esteve já em consulta pública o anteprojeto de requisitos de conceção ecológica para 170 O procedimento de consulta pública encontra-se disponível aqui. 171 UE. Comissão Europeia, cit. nota 38. 172 Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, p. 7. 163 II. ECONOMIA CIRCULAR telemóveis, telefones sem fios e tablets173. Em grande medida por motivos semelhantes, também o setor de baterias e veículos merece especial atenção regulatória. Está, neste momento, em processo legislativo ordinário, uma Proposta de Regulamento relativo às baterias e respetivos resíduos174 com o objetivo, entre outros, de conferir segurança ao funcionamento de um mercado secundário de baterias, que atualmente não existe. Justifica-se, assim, a necessidade de proceder a uma maior harmonização de regras no espaço comunitário quanto ao produto e à gestão de resíduos de baterias. O setor das embalagens é, também, um setor especial por força da elevada quantidade de resíduos produzidos e da sua associação ao plástico. Os objetivos de redução da qualidade de embalagens através da fixação de metas de reutilização e reciclagem não são novidade neste setor, pelo que o enfoque será, previsivelmente, sobretudo em termos de conceção ecológica, através da restrição nos tipos de materiais e compostos de materiais a utilizar. A Comissão também já procedeu à consulta pública inicial tendo em vista a adoção de um ato legislativo de revisão dos requisitos para embalagens e de outras medidas destinadas a reduzir os resíduos de embalagens175. O setor do plástico, atendendo ao elevado nível de poluição causada e riscos para o ambiente e saúde, já é o foco de uma Estratégia Europeia para os Plásticos desde 2018 e mereceu a adoção de atos isolados nos níveis europeus e nacionais. Também aqui os objetivos são de melhoria na conceção dos produtos e de recolha seletiva e triagem de modo a permitir a reciclagem e o desenvolvimento do mercado de plástico reciclado. Contudo, além de também se pretender prevenir a poluição ambiental por resíduos de plástico, preconiza-se a criação de um quadro regulamentar claro para os plásticos com propriedades biodegradáveis e para lidar com o problema dos microplásticos. Neste contexto, são de mencionar a Diretiva 2019/904176, transposta para o Direito nacional pelo Decreto-Lei n.º 78/2021, de 24 de setembro. Estes regimes não constituem 173 O anteprojeto e informação sobre a consulta pública encontram-se disponíveis aqui. 174 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo às baterias e respetivos resíduos, que revoga a Diretiva 2006/66/CE e altera o Regulamento (UE) 2019/1020, de 10 de dezembro de 2020. COM (2020) 798 final. O procedimento legislativo encontra-se disponível aqui. 175 Informação sobre a consulta pública encontra-se disponível aqui. 176 Diretiva (UE) 2019/904, relativa à redução do impacto de determinados produtos de plástico no ambiente, e que altera as regras relativas aos produtos de plástico nos pontos de venda de pão, frutas e legumes. 164 II. ECONOMIA CIRCULAR uma regulação transversal da utilização do plástico, mas antes uma regulação de certos plásticos e utilizações do plástico, cuja regulamentação se afigurou prioritária e razoavelmente simples, por exemplo, através da simples proibição de colocação no mercado de certos produtos de plástico de utilização única ou com certa composição. A Comissão prevê a adoção a breve trecho de legislação sobre plásticos de base biológica, biodegradáveis e compostáveis177 e sobre poluição por microplásticos178. Também o setor dos plásticos coloca prementes questões em termos de articulação com o Direito das Substâncias Químicas179. O setor têxtil tem sido objeto de especial atenção por força do elevado consumo de matérias-primas e água, sendo o quinto setor em termos de responsabilidade por emissões de GEE180. A indústria da moda é, assim, um setor prioritário em termos de requisitos para conceção ecológica, servitização, e melhoria de serviços de triagem e reciclagem181. A Comissão adotou uma estratégia só para o setor têxtil que prevê, entre outras medidas gerais (como a imposição de requisitos de conceção ecológica e o combate ao greenwashing), a introdução do princípio da responsabilidade alargada do produtor no setor182. Um outro aspeto específico desta área – mas comum a outras, como a área alimentar – é o combate à destruição de bens não vendidos, aspeto incluído na proposta de Regulamento Ecodesign. A construção é uma área com elevado consumo de matérias-primas primárias e elevada produção de resíduos183, visando-se, no novo Plano de Ação, o reforço da sustentabilidade dos produtos de construção e a melhoria de durabilidade e adaptabilidade do edificado. Com estes fundamentos, a Comissão apresentou uma Proposta de Regulamento que reforça a sustentabilidade nos produtos de construção, e prevê, por exemplo, a possibilidade de instituição de 177 Informação sobre a consulta pública inicial já feita encontra-se disponível aqui. 178 Informação sobre a consulta pública inicial já feita encontra-se disponível aqui. 179 T. J. Römph e G. Van Calster. REACH in a circular economy: the obstacles for plastics recyclers and regulators. REC&IEL. 2018, 27(3), pp. 267-277. 180 Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, p. 10. 181 Mais desenvolvidamente, cfr. V. Jacometti. Circular Economy and Waste in the Fashion Industry. Laws. 2019, 8(4), pp. 27. 182 Cit. nota 34. 183 Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, p. 11. 165 II. ECONOMIA CIRCULAR sistemas obrigatórios de consideração e retoma184. Também se prevê um reforço da rastreabilidade dos produtos – um nódulo reconhecidamente problemático no setor185. 4. Observações finais Escrever sobre economia circular em 2022 é um exercício prospetivo numa era que aparenta ser de mudança no Direito do Ambiente. O desenvolvimento de instrumentos de Direito do Ambiente ao longo das últimas décadas – como é o caso dos instrumentos de licenciamento e de avaliação, ao abrigo dos princípios da prevenção e do poluidor-pagador – levou à criação de figurinos procedimentais e conceptuais razoavelmente estruturados e amplamente consensuais em grande parte do mundo. Mas os últimos anos, devido às duas transições ambicionadas no início de milénio – para a neutralidade e para a economia circular –, revelaram uma nova face do Direito do Ambiente. Essa nova face recorre sobretudo a instrumentos de natureza económica e de desempenho ambiental, qualificando o consumidor enquanto agente decisivo num mercado global e em acelerada evolução, e elegendo a informação ambiental como denominador comum a todas as políticas e regimes com finalidades de sustentabilidade ambiental. Em vésperas da adoção de um conjunto alargado de atos legislativos com o objetivo de modelar o sistema socioeconómico em direção à circularidade, antevê-se para breve um ordenamento jurídico-ambiental europeu marcado pela efetivação da transversalidade na ciência jurídica e interdisciplinariedade – características do Direito do Ambiente enquanto área com autonomia –, em obediência ao princípio da integração e em busca da demonstração de eficácia na adoção de novas políticas e soluções legais. Novas áreas do Direito passam a estar também funcionalizadas à proteção ambiental – como é o caso do Direito Societário, do Direito Financeiro, ou do Direito do Consumidor –, enquanto regimes já existentes são alterados, num exercício de reconfiguração do ângulo de análise – como é o caso do Direito das Substâncias Químicas. Mas também 184 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que que estabelece condições harmonizadas para a comercialização dos produtos de construção, que altera o Regulamento (UE) 2019/1020 e que revoga o Regulamento (UE) n.º 305/2011, de 30 de março de 2022. COM (2022) 144 final. 185 Sobre a experiência de rastreabilidade no setor na Flandres com recurso à tecnologia blockchain, cfr. J. Voorter e C. Koolen. The traceability of construction and demolition waste in Flanders via blockchain technology: a match made in heaven? JEEPL. 2021, 18(4), pp. 347-369. 166 II. ECONOMIA CIRCULAR certos conjuntos normativos ambientais, já implementados e bem sedimentados na prática jurídica, se robustecem – como é o caso do licenciamento ambiental, do Direito dos Resíduos, do ecodesign ou da rotulagem ecológica. Só num exercício retrospetivo se poderá vir a concluir se todas estas alterações representarão, de facto, um novo marco na evolução do Direito do Ambiente. Sugestões de Leitura J. Alaranta e T. Turunen. How to reach a safe circular economy? Perspectives on reconciling the waste, product and chemicals regulation. JEL. 2021, 33(1), pp. 113-136. F. Araújo. Introdução à Economia. II. 4.ª ed. Lisboa: AAFDL, 2022. C. Backes. Law for a circular economy. Eleven Publishing, 2017. J. Hojnik. Ecological modernization through servitization: EU regulatory support for sustainable product-service systems. REC&IEL. 2018, 27(2), pp. 162-175. A. N. López e X. V. Deza, ed. Redondear la economía circular. Del discurso oficial a las políticas necesarias. Arazandi/Civitas, 2021. E. Maitre-Ekern e C. Dalhammar. Towards a hierarchy of consumption behaviour in the circular economy. Maastricht Journal of European and Comparative Law. 2019, 26(3), pp. 394-420. 167 II. ECONOMIA CIRCULAR V. Mak e E. Terryn. Circular economy and consumer protection: the consumer as a citizen and the limits of empowerment through consumer law. Journal of Consumer Policy. 2020, 43(1), pp. 227-248. H. Oliveira. Circular economy: from economic concept to legal means for sustainable development. E-Publica. Revista Eletrónica de Direito Público. 2020, VII(2), pp. 73-93. R. Thaler e C. Sunstein. Nudge. The final edition. London: Penguin, 2021. T. Sterner e J. Coria, ed. The economics of environmental policy. Behavioral and political dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2016. 168