FICHA TÉCNICA
Título
Tratado de Direito do Ambiente. Volume II
Edição
Carla Amado Gomes e Heloísa Oliveira
Revisão
Inês Pedreiro Gomes
Design gráfico
Jason Simões
Publicação
CIDP - Centro de Investigação de Direito Público
ICJP - Instituto de Ciências Jurídico-Políticas
Alameda da Universidade, 1649-014 Lisboa
ISBN
978-989-8722-60-7
Ano
Novembro / 2022
TRATADO DE DIREITO DO AMBIENTE
ÍNDICE DO VOLUME II
Índice
.04
Índice dos capítulos
.06
Lista de autores
.13
Mensagem das editoras
.14
Listagem de abreviaturas
.16
I. Alterações climáticas
.30
Armando Rocha
II. Economia circular
.114
Heloísa Oliveira . Raquel Franco
III. Direito da biodiversidade
.169
Rui Tavares Lanceiro
IV. Direito dos recursos hídricos
.236
Ana Raquel Gonçalves Moniz
V. Direito do ambiente marinho
.316
Armando Rocha . Maria Pena Ermida
VI. Normas de proteção do solo
.375
Heloísa Oliveira . António Duarte de Almeida
4
TRATADO DE DIREITO DO AMBIENTE
VII. Direito do subsolo
.406
Carla Amado Gomes
VIII. Direito da qualidade do ar
.447
José Duarte Coimbra
Listagem de atos de Direito Internacional
.481
Listagem de atos de Direito da União Europeia
.501
Listagem de atos normativos nacionais
.533
Listagem de jurisprudência nacional
.554
5
II. ECONOMIA CIRCULAR
II.
ECONOMIA CIRCULAR
Heloísa Oliveira . Raquel Franco
Sumário: Este capítulo apresenta o conceito de economia circular, sublinhando a
sua ligação com o Direito do Ambiente e vincando a relevância dos instrumentos
comportamentais para a sua compreensão. De seguida, entrecruzando políticas
ambientais e Direito, são apresentadas as principais alterações legislativas em
discussão, num exercício prospetivo baseado no recente e ainda incompleto
pacote legislativo para a transição para a economia circular. Além de serem
identificados brevemente alguns instrumentos transversais relevantes, são
analisados em detalhe os nódulos problemáticos relativos à conceção ecológica
e à produção circular, ao consumo, e à gestão de resíduos, com ênfase no tópico
da reintrodução no mercado e a sua relação com o regime de substâncias
químicas, especificando-se ainda algumas cadeias de valor em especial.
Palavras-chave: circularidade; economia comportamental;
sustentável; produção sustentável; REACH; políticas ambientais.
consumo
Abstract: This chapter presents an overview of the concept of circular economy,
highlighting its link with environmental law and emphasizing the relevance of
behavioral instruments for its understanding. By intersecting environmental
policies and the law, we then present the main legislative proposals currently
under discussion, in a prospective exercise based on a recent and still incomplete
legislative package dedicated to the transition to a circular economy. In addition
to briefly identifying some relevant cross-cutting instruments, we analyze
in detail some problematic issues concerning ecological design and circular
production, consumption, and waste management, with an emphasis on the
topic of reintroduction into the market and chemicals law, also specifying some
value chains in particular.
Keywords: circularity; behavioral economics; sustainable consumption;
sustainable production; REACH; environmental policies.
114
II. ECONOMIA CIRCULAR
ÍNDICE
1. Economia circular e Direito
.116
1.1. Um conceito para modelar o ordenamento jurídico
.116
1.2. Economia circular e princípios de Direito do Ambiente
.121
1.3. Políticas públicas para a circularidade
.122
2. Instrumentos comportamentais e economia circular
.126
2.1. Questões iniciais
.126
2.2. O contributo da behavioral economics
.129
2.3. A análise custo-benefício em matéria ambiental: a relevância
da intertemporalidade
.132
2.4. Comportamento humano e economia circular
.134
2.5. O gap intenção-ação e a insuficiência da simples informação
.139
2.6. Nudging: evidência em matéria ambiental e na alteração para
o paradigma da circularidade
.142
3. Um sistema legal para a circularidade
.147
3.1. Produtos e processos produtivos
.150
3.2. Consumo
.154
3.2.1. Direitos do consumidor
.155
3.2.2. O papel do consumidor público
.158
3.3. Resíduos e químicos
.160
3.4. Algumas cadeias de valor
.163
4. Observações finais
.166
115
II. ECONOMIA CIRCULAR
1. Economia circular e Direito
1.1. Um conceito para modelar o ordenamento jurídico
A economia circular é preconizada como um modelo socioeconómico
cuja finalidade é a eliminação do desperdício através do aumento da eficiência
na utilização dos recursos em todas as fases do processo produtivo – desde a
conceção do produto às fases em que se desenrola o respetivo próprio processo
produtivo, começando pela extração inicial de recursos, passando pela produção,
pela venda ao cliente e acompanhamento pós-venda e até ao fim da vida do
produto, com a desejável reincorporação dos respetivos componentes num novo
bem através de um novo processo produtivo1. A perspetiva circular é definida
frequentemente por oposição ao modelo económico linear – resumido como a
take, make, waste approach, por vezes também referida como take, make, replace
–, no qual, à partida, os produtos e os processos produtivos são desenhados de
uma forma que não permite o aproveitamento integral do valor económico dos
recursos naturais utilizados, incentivando até ciclos de vida curtos, com ou sem
reciclabilidade, mas sempre com elevada produção de resíduos.
Figura 1: Evolução de uma economia linear para uma economia circular. Fonte: Salleh, et
al. Recycling food, agricultural, and industrial wastes as pore-forming agents for sustainable
porous ceramic production: A review. Journal of Cleaner Production. 2021, 306, p. 127264.
Apesar de as primeiras aproximações consequentes ao conceito datarem do
início da década de 19902, apenas em 2014, com o 7.º Programa de Ação em
1
H. OLIVEIRA. Circular economy: from economic concept to legal means for sustainable
development. E-Publica. Revista Eletrónica de Direito Público. 2020, VII(2), pp. 73-93; Ellen
MacArthur Foundation. Towards the circular economy. 2013. Disponível aqui.
2
K. Winans, A. Kendall e H. Deng. The history and current applications of the circular economy
concept. Renewable and Sustainable Energy Reviews. 2017, 68, pp. 825-833.
116
II. ECONOMIA CIRCULAR
matéria de Ambiente (2014-2020)3, emergiu nas políticas públicas ambientais
europeias, apresentando-se hoje como incontornável para a compreensão
do Direito do Ambiente. O 8.º Programa de Ação (2022-2030)4 identifica
como objetivo “acelerar a transição ecológica para uma economia circular,
com impacto neutro no clima, sustentável, sem substâncias tóxicas, eficiente
na utilização dos recursos, baseada em energias renováveis, resiliente e
competitiva, de uma forma justa, equitativa e inclusiva, e proteger, restaurar e
melhorar a qualidade do ambiente, através nomeadamente de ações que travem
e revertam a perda da biodiversidade” (n.º 1 do artigo 1.º).
A propósito da fixação de critérios para a qualificação de certos investimentos
como ambientalmente sustentáveis, um Regulamento da União Europeia, de
2020, providenciou a primeira definição legal de economia circular. Muito
em linha com o conceito consensualmente utilizado por organizações nãogovernamentais e investigadores, economia circular é definida como “um
sistema económico pelo qual o valor dos produtos, materiais e outros recursos
na economia é mantido pelo prazo máximo possível, melhorando a eficiência
da sua utilização durante a produção e o consumo, reduzindo assim o impacto
ambiental dessa utilização e minimizando os resíduos e a libertação de
substâncias perigosas em todas as fases do ciclo de vida, nomeadamente através
da aplicação da hierarquia dos resíduos”5.
A atratividade do modelo circular é facilmente explicável por se apresentar
como um meio integrado para atingir a sustentabilidade, num contexto em
que a sobre-exploração de recursos naturais está, consabidamente, na origem
dos problemas ambientais. Na base do conceito de economia circular está a
ideia de sistema – as definições mais frequentes utilizam-na com qualificativos
como económico, industrial e socioeconómico6. A ideia de sistema, entendido
em geral como um grupo de itens que são interdependentes e formam um
3
Decisão n.º 1386/2013/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de novembro de 2013,
relativa a um programa geral de ação da União para 2020 em matéria de ambiente. Viver bem,
dentro dos limites do nosso planeta.
4
Decisão (UE) 2022/591 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de abril de 2022, relativa a
um programa geral de ação da União para 2030 em matéria de ambiente.
5
Cfr. n.º 9 do artigo 2.º do Regulamento (UE) 2020/852 do Parlamento Europeu e do Conselho, de
18 de junho de 2020, relativo ao estabelecimento de um regime para a promoção do investimento
sustentável.
6
H. Desing, et al. A circular economy within the planetary boundaries: towards a resource-based,
systemic approach. Resources, Conservation and Recycling. 2020, 155.
117
II. ECONOMIA CIRCULAR
todo unificado7, permite antever que as suas ramificações são multinível, tanto
podendo ser entendidas e incorporadas numa perspetiva micro (focada no
produto ou num processo produtivo), meso (integração de sistemas regionais e
industriais) e macro (no contexto nacional, europeu, global)8. Cada uma destas
dimensões é atualmente regulada pelo Direito também de forma multinível
(internacional, europeu e regional), estando esta classificação presente nas
estratégias de transição9.
A transição para a economia circular implica alterações ao longo de todo
o processo produtivo, em todos os processos produtivos, e durante todo o
ciclo de vida dos bens. Apesar de frequentemente associada à área do Direito
dos Resíduos, a circularidade não é suscetível de ser implementada apenas
através da regulação do fim de vida dos produtos. Pelo contrário, a regulação
com incidência na fase preliminar de conceção de um produto e no respetivo
processo de produção é que torna possível uma gestão de resíduos que leve à
redução do desperdício. O atual modelo vertido no Direito dos Resíduos, cuja
epítome é a expressão from cradle-to-grave, contrapõe-se a um outro baseado
no axioma de que os recursos devem ser reintegrados na economia (from
cradle-to-cradle), diminuindo assim a necessidade de nova extração.
Figura 2: Alguns processos e meios necessários à circularidade da economia, divididos entre
nutrientes biológicos e nutrientes tecnológicos. Fonte: Ellen MacArthur Foundation.
Towards the Circular Economy. 2013, p. 24. Disponível aqui.
7
Sistema, in Dicionários Porto Editora Infopédia. Disponível aqui.
8
J. Kirchherr, D. Reike e M. Hekkert. Conceptualizing the circular economy: an analysis of 114
definitions. Resources, Conservation and Recycling. 2017, 127, p. 223.
9
Cfr., por exemplo, a classificação de ações (ponto 3) do Plano de Ação para a Economia Circular,
aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 190-A/2017.
118
II. ECONOMIA CIRCULAR
Consequentemente, a regulação numa economia circular incide
primeiramente sobre todo o ciclo de vida até à fase de introdução no mercado
e aquisição, na qual já intervém o consumidor final do produto, seguindo-se
a regulação da fase de utilização, visando garantir a reintrodução do recurso
na economia, mas também ciclos de vida longos. É ao abrigo deste objetivo
que se multiplicam as iniciativas legislativas que banem certos produtos de
utilização única10 e práticas de obsolescência planeada11. O movimento de
reforma legislativa tem também procurado atingir o objetivo de aumentar o
ciclo de vida do produto através da reconfiguração da relação jurídica entre
produtor e consumidor. Muitas das propostas associadas à revisão do modelo
de gestão de resíduos 3R – reduzir (o consumo), reutilizar (o produto), reciclar
(o resíduo) – passam precisamente pela incorporação de formas de redução de
consumo e desperdício que beneficiam de forma direta o consumidor, criando
novos deveres para o produtor, como o de assegurar a reparação do bem ou a
substituição das suas partes. Um dos instrumentos novos neste contexto passa
pela disponibilização de informação ao consumidor quanto ao ciclo de vida do
produto e seus impactos ambientais12, proliferando também iniciativas relativas
à implementação de rótulos ecológicos13.
Além de um agente informado e influente, o consumidor ideal numa
economia circular é um agente responsável pelo fim de vida do produto, não
desempenhando apenas o papel de alvo da cadeia produtiva, mas também o de
início da cadeia produtiva reversa14. Torna-se, então, evidente um dos objetivos
do trabalho conjunto entre ciência económica e ciência jurídica em matéria de
10
Cfr., por exemplo, a Lei n.º 76/2019, de 2 de setembro, que proibiu a utilização e disponibilização
de louça de plástico de utilização única nas atividades do setor da restauração e/ou bebidas e no
comércio a retalho.
11
Cfr., por exemplo, em França, a Lei n.º 2015-992, de 17 de agosto de 2015, através da qual a
obsolescência planeada, definida enquanto conjunto de técnicas através das quais o produto tem o
seu ciclo de vida intencionalmente reduzido como forma de aumentar o consumo de produtos de
substituição, passou a ser crime.
12
Cfr., por exemplo, UE. Comissão Europeia. Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do
Conselho apresentada a 30 de março de 2022 no que diz respeito à capacitação dos consumidores
para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor
informação. COM (2022) 143 final.
13
Cfr., por exemplo, UE. Comissão Europeia. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu
e do Conselho apresentada a 30 de março de 2022 que estabelece um quadro para definir os
requisitos de conceção ecológica dos produtos sustentáveis. COM (2022) 142 final.
14
E. Maitre-Ekern e C. Dalhammar. Towards a hierarchy of consumption behaviour in the
circular economy. Maastricht Journal of European and Comparative Law. 2019, 26(3), p. 395.
119
II. ECONOMIA CIRCULAR
economia circular: criar condições para o funcionamento eficiente de mercados
secundários capazes de fazer a ligação entre o consumidor (no momento em que
se desfaz do produto, que assim adquire o estatuto de resíduo) e o operador que
tenha interesse no resíduo para a sua integração num novo processo produtivo.
Apesar de a circularidade ser um objetivo com a pretensão de modelar
estruturalmente todo o sistema económico, há produtos e cadeias de produção
que são objeto de regimes específicos por serem politicamente prioritárias em
função do seu impacto ambiental. Este pode resultar de diversos fatores, como
o uso intensivo de recursos, o nível elevado de consumo ou a dependência de
recursos não-renováveis. Essas áreas são, já hoje, tipicamente sujeitas a regimes
jurídicos próprios, sendo exemplos paradigmáticos os das embalagens, dos
equipamentos elétricos e eletrónicos, da construção ou das baterias. Outras
áreas permanecem ainda sem regulação pelo Direito do Ambiente, prevendose, no entanto, e atendendo ao seu impacto acumulado, que o venham a ser a
breve prazo, como é o caso do setor têxtil15.
A previsível incorporação de soluções circulares no ordenamento jurídico
terá efeitos estruturais em várias áreas do Direito, muitas das quais praticamente
arredadas – até hoje – das finalidades da proteção ambiental. A transição, além
de se referir a todos os setores e níveis de regulação, envolve também todos
os sujeitos económicos, públicos e privados. Muitas das propostas avançadas
apresentam-se como disruptivas em relação ao regime jurídico vigente,
nomeadamente quanto à contratação pública e propriedade intelectual. A
procura do equilíbrio entre, por um lado, o estímulo ao funcionamento do
mercado, através de instrumentos de incentivo à inovação e à transição, e,
por outro lado, a regulação jurídica do tipo command-and-control, é um dos
aspetos centrais do estudo da economia circular numa perspetiva jurídica.
Acrescente-se ainda que parte significativa das propostas em discussão têm o
seu foco no papel do consumidor e no incentivo de escolhas capazes de modelar
o funcionamento do mercado a favor da sustentabilidade ambiental. Por esse
motivo, é especialmente útil a consideração dos instrumentos comportamentais
avançados pela teoria económica, que se explanam no ponto 2.
A unidade desta nova área é conferida apenas pelos seus objetivos específicos
para atingir a finalidade geral de desenvolvimento sustentável e gestão racional
15
Os Países Baixos, por exemplo, já notificaram a Comissão Europeia de um projeto que alarga
a responsabilidade alargada do produtor ao setor têxtil. De acordo com o projeto, o produtor
passará a ser responsável pela reciclagem e preparação para reutilização dos produtos introduzidos
no mercado neerlandês, o que implica a criação e financiamento de um sistema de gestão destes
resíduos, à semelhança do que já acontece hoje na área das embalagens, por exemplo. A notificação
encontra-se disponível aqui.
120
II. ECONOMIA CIRCULAR
de recursos. Estes objetivos específicos16 podem ser decompostos para cada
fase do processo produtivo, como a eliminação de produtos com ciclos de
vidas curtos17 (com ou sem obsolescência planeada)18, a garantia de direitos
associados ao prolongamento da sua utilização (reparação, upgrade, substituição
de partes), a multifuncionalidade dos produtos, a reutilização de componentes
e a devolução de nutrientes ao meio, a redução da perda de valor através de
downcycling, ou a incorporação de materiais reciclados em produtos novos. A
miríade de instrumentos jurídicos relevantes em matéria de circularidade, com
origem em variadas áreas do Direito, torna a sua compreensão transversal tão
difícil quanto fundamental numa perspetiva prospetiva do Direito do Ambiente
no século XXI. Apesar disso, apenas muito recentemente os juristas começaram
a estudar o tema da economia circular enquanto uma questão jurídica19.
1.2. Economia circular e princípios de Direito do Ambiente
O desenvolvimento sustentável pode ser considerado a finalidade geral
de todo o Direito do Ambiente20. Tendo até hoje uma natureza jurídica
controvertida enquanto princípio jurídico no Direito Internacional, o
desenvolvimento sustentável, surgido no Direito Internacional nos anos 1970,
está atualmente consagrado no direito originário da União Europeia, na CRP
e na LBA. Pelo menos dois corolários são geralmente retirados do princípio do
desenvolvimento sustentável: a consideração integrada dos impactos sociais,
económicos e ambientais em todos os setores; e o dever de gestão racional de
16
Y. Kalmykova, M. Sadagopan e L. Rosado. Circular economy: from review of theories and
practices to development of implementation tools. Resources, Conservation and Recycling. 2018,
135, pp. 190-201.
17
L. Milios. Advancing to a circular economy: three essential ingredients for a comprehensive
policy mix. Sustainability Science. 2018, 13(3), p. 869.
18
E. Maitre-Ekern e C. Dalhammar. Regulating planned obsolescence: a review of legal
approaches to increase product durability and reparability in Europe. REC&IEL. 2016, 25(3), p. 379.
19
Mesmo numa pesquisa aturada, o primeiro texto que se encontra que trata o tema de forma
estrutural, e não apenas enquanto apontamentos a regimes jurídicos dispersos, data de 2017. Cfr.
C. Backes. Law for a circular economy. Eleven Publishing, 2017; seguido de uma tese de
doutoramento, em 2017, cfr. T. J. Römph. The legal transition towards a circular economy. KU
Leuven, Universidade de Hasselt, 2018.
20
Sobre este princípio em detalhe no Volume I deste Tratado, cfr., com abundante bibliografia,
H. Oliveira. Princípios de Direito Do Ambiente. In C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de
Direito do Ambiente. I. 2.a ed. CIDP/ICJP. 2022. Disponível aqui.
121
II. ECONOMIA CIRCULAR
recursos naturais, em regra avaliado pela possibilidade do seu aproveitamento
pelas gerações futuras. Conforme dito no Volume I deste Tratado, “[e]m comum
a estas duas dimensões – gestão racional e integração – está a superação de um
modelo de desenvolvimento económico e social assente na sobre-exploração
de recursos naturais e na degradação ambiental, através de uma visão
compreensiva que supere uma perspetiva sectorial e de curto prazo. Poderá ser
assim delimitado o conteúdo do dever dos Estados ao abrigo do princípio do
desenvolvimento sustentável”21.
Uma política de transição para a economia circular desenha-se, de forma
evidente, como um meio para atingir o desenvolvimento sustentável e cumprir
os deveres ambientais do Estado e da União Europeia. Por um lado, a sua
intrínseca transversalidade força a integração de políticas setoriais de forma
consequente e estrutural através de um enfoque que não se limita a fontes de
emissões, considerando antes a sobrecarga ambiental das atividades humanas
como um todo em relação a todos os recursos naturais. Ou seja, além da sobreexploração de recursos conforme entendida no século XX – a degradação
ambiental de recursos renováveis como a água e o ar por poluição –, a
economia circular considera todas as formas de utilização dos recursos naturais
renováveis e não-renováveis, pretendendo obter a sua máxima eficiência. Por
outro lado, o dever de gestão racional de recursos obriga o Estado à adoção
de medidas que combatam a sobre-exploração; o combate à sobre-exploração
é, precisamente, a finalidade da economia circular, visando fazê-lo através da
criação de um sistema que permita dissociar o desenvolvimento económico da
contínua extração de novas matérias-primas22.
1.3. Políticas públicas para a circularidade
Por força da sua natureza disruptiva e do nível de prioridade que assume
na atualidade, o Direito é um dos instrumentos utilizados na transição para
21
H. Oliveira, cit. nota 20, p. 101.
22
Esta expressão, cuja origem não nos foi possível determinar, faz hoje parte do jargão da
economia circular, certamente por esta ter a virtualidade de permitir a ação em relação à sobreexploração de recursos, evitando, simultaneamente, uma discussão sobre a eventual necessidade
de diminuir os níveis de crescimento económico. Para citar apenas as estratégias mais recentes,
cfr. UE. Comissão Europeia. Ponto 1 da Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu,
ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 11 de março
de 2020. Um Novo Plano de Ação para a Economia Circular. COM (2020) 98 final; e o segundo
parágrafo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 190-A/2017, que aprovou o Plano de Ação
para a Economia Circular.
122
II. ECONOMIA CIRCULAR
a circularidade. Não sendo possível atingir os objetivos propostos sem a
intervenção do Direito, tão pouco se consegue compreender cabalmente o
enquadramento jurídico sem ter uma breve noção das políticas públicas para a
circularidade e dos vários instrumentos a que recorrem. É sabido, por exemplo,
que não dispomos ainda da tecnologia necessária à exequibilidade de algumas
das medidas a implementar no futuro – e, nesses casos, os instrumentos são
por ora essencialmente financeiros, sobretudo no apoio à inovação científica
e social23. Por esse motivo, a secção 3. fará sempre menção, em paralelo às
questões jurídicas que se suscitam para cada tema, aos contornos relevantes
das políticas europeias e nacionais; e nesta subseção 1.3. será feito apenas um
enquadramento transversal.
A primeira estratégia, a nível europeu24, nesta área, foi explicitada em 2015,
numa Comunicação elucidativamente intitulada “Fechar o ciclo – plano de
ação da UE para a economia circular”25. Além de fazer uma introdução ao
conceito de economia circular, a Comissão desenvolveu algumas áreas que estão
sempre associadas à transição para a circularidade: a conceção de produtos e
de processos produtivos, o consumo sustentável e a gestão de resíduos, sendo
identificados como prioritários os setores do plástico, desperdício alimentar,
matérias-primas críticas, construção e demolição, biomassa e produtos
de base biológica. Tendo sido apresentados alguns objetivos, a Comissão
procedeu também à monitorização da sua implementação26. A relevância
deste plano consiste em ter sido a rampa de lançamento para uma atividade
europeia crescentemente intensa, tendo dado origem, nos anos imediatamente
subsequentes, a novas e mais completas políticas públicas europeias para a
circularidade, transversal e sectorialmente.
23
X. Vence e A. Pereira. Eco-Innovation and circular business models as drivers for a circular
economy. Contaduría y Administración. 2019, 64(1), p. 6. Para um resumo, cfr. H. Oliveira, cit.
nota 1, pp. 82 e 83.
24
Para uma revisão completa das políticas europeias para a circularidade, cfr. M. C. Friant, et al.
Analysing European Union circular economy policies: words versus actions. Sustainable Production
and Consumption. 2021, 27, p. 337.
25
UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 2 de dezembro de 2015. Fechar o
ciclo: plano de ação da UE para a economia circular. COM (2015) 614 final.
26
UE. Comissão Europeia. Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité
Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 26 de janeiro de 2017, sobre a aplicação
do Plano de Ação para a Economia Circular. COM (2017) 33 final.
123
II. ECONOMIA CIRCULAR
O Pacto Ecológico Europeu, lançado no final de 201927, integrou, a par da
neutralidade carbónica e da recuperação de biodiversidade, o objetivo central
de alcançar uma economia circular, anunciando desde logo a apresentação de
um novo plano de ação transetorial. A secção dedicada à indústria aparece
intrinsecamente ligada à transição para a economia circular, comprometendose a Comissão com uma Estratégia Industrial para a economia circular e
limpa, além de propor iniciativas para estimular os mercados-piloto para
produtos circulares28.
Neste momento, ao nível das políticas europeias, é imprescindível
considerar o novo Plano de Ação para a Economia Circular, de 202029, o
quadro de controlo da economia circular, de 201830 – apesar de a Comissão
estar a preparar a apresentação de uma proposta de revisão31 –, a Estratégia
para os Plásticos, de 201832, e a Estratégia para os Têxteis, de 202233. Várias
outras estratégias setoriais estão em desenvolvimento, com consequentes atos
legislativos, como a dedicada aos plásticos de base biológica, biodegradáveis e
compostáveis34, à conceção e rotulagem ecológica35 e aos microplásticos36.
Por força da transversalidade do tema, as estratégias e políticas para a
27
UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 11 de dezembro de 2019. Pacto
Ecológico Europeu. COM (2019) 640 final.
28
Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 27, anexo que incorpora um roteiro com as ações principais.
29
UE. Comissão Europeia, cit. nota 22.
30
UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 16 de janeiro de 2018, sobre um
quadro de controlo da economia circular. COM (2018) 29 final.
31
Documentação sobre a revisão disponível aqui.
32
UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 16 de janeiro de 2018. Uma
Estratégia Europeia para os Plásticos na Economia Circular. COM (2018) 28 final.
33
UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 30 de março de 2022. Estratégia
da UE em prol da Sustentabilidade e Circularidade dos Têxteis. COM (2022) 141 final.
34
Documentação sobre a iniciativa disponível aqui.
35
Documentação sobre o programa da Comissão disponível aqui.
36
Informação sobre a iniciativa disponível aqui.
124
II. ECONOMIA CIRCULAR
economia circular entrecruzam-se com várias outras, mas caberá destacar aqui
quatro áreas de especial interdependência. Em primeiro lugar, a reincorporação
de produtos em término do ciclo de vida, visada numa economia circular,
só poderá ser assegurada se for possível garantir a segurança dos produtos.
Conforme explicado na Estratégia para a Sustentabilidade dos Produtos
Químicos, aprovada em 2020, “[n]uma economia circular limpa, é essencial
impulsionar a produção e a aceitação de matérias-primas secundárias e
assegurar que tanto os materiais como os produtos primários e secundários são
sempre seguros”37.
Um segundo conjunto de atos de planeamento relevantes incide sobre a
diminuição da poluição e da exploração de recursos. Desde logo, além de o
próprio Pacto Ecológico Europeu associar a neutralidade climática à economia
circular, o Plano de Ação expressamente identifica a “circularidade como
pré-requisito da neutralidade climática”38. A acrescer à redução de emissões
de GEE, a eliminação do carbono da atmosfera através da sua utilização em
atividades regenerativas é uma das formas de fomentar a circularidade do
carbono. Por outro lado, a desaceleração da exploração de recursos preconizada
pelo modelo circular é essencial para a Estratégia de Biodiversidade, de 202039,
nomeadamente para efeitos de ação restaurativa. Conforme reconhecido
recentemente pela Comissão na sua proposta de Regulamento relativo à
restauração da natureza, “[a]s medidas políticas no âmbito de outras estratégias
ambientais, tais como o Plano de ação para a economia circular para uma
Europa mais limpa e competitiva e o Plano de ação de poluição zero no ar, na
água e no solo, ajudarão a aliviar a pressão sobre os ecossistemas mediante a
redução de várias formas de poluição”.
Finalmente, a política europeia para atingir uma poluição zero no ar, na
água e no solo, objetivo proclamado no respetivo de Plano de Ação em 2021,
explicita a sinergia com a transição para a economia circular, nomeadamente
no caso de poluição causada pela produção e pelo consumo. Por exemplo,
serão cruciais para a redução da poluição “a simbiose industrial e as cadeias
de abastecimento circulares através das quais os resíduos ou subprodutos de
37
UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 14 de outubro de 2020. Estratégia
para a sustentabilidade dos produtos químicos rumo a um ambiente sem substância tóxicas. COM
(2020) 667 final, p. 6.
38
UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, pp. 17 e 18.
39
UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 20 de maio de 2020. Estratégia de
Biodiversidade da UE para 2030. Trazer a natureza de volta às nossas vidas. COM (2020) 380 final.
125
II. ECONOMIA CIRCULAR
uma indústria ou das pequenas e médias empresas se tornam matérias-primas
para outras”40.
A nível nacional, o Plano de Ação para a Economia Circular41, de
2017, apresenta a fundamentação da estratégia, relacionando-a com o seu
enquadramento europeu e com outras políticas, definindo um conjunto de
ações relativamente às quais identifica objetivos, setores-chave e entidades a
envolver na sua implementação. Estas ações são classificadas em função da
sua natureza macro (e.g., desenho de produtos, ou desperdício alimentar),
meso ou setorial (sendo detalhados o setor da construção e o instrumento da
contratação pública) e micro ou regional (sendo detalhada a estratégia para as
ZER). Embora com maior detalhe, a estratégia nacional está, naturalmente, em
linha com as estratégias europeias.
Espera-se que, com esta brevíssima resenha do mapa de cruzamento de
estratégias e políticas ambientais, tenha sido possível ilustrar a forma como a
economia circular é um conceito para modelar grande parte do ordenamento
jurídico nos próximos anos. Conforme se procurará demonstrar, todas estas
políticas desaguam em alterações legislativas nas mais variadas áreas do Direito
do Ambiente – mas também em áreas do Direito que, até agora, se encontravam
apenas marginalmente com ele relacionadas.
2. Instrumentos comportamentais e economia circular
2.1. Questões iniciais
A abordagem mais imediatista à questão ambiental ofusca frequentemente
aquilo que está na origem de todos os problemas ambientais: são questões de
gestão de recursos e, como tal, estão ancoradas numa escolha inicial, por seu
turno ancorada numa escala de prioridades, por seu turno ancorada numa
escala de valores, hábitos, normas sociais. Lançar luz sobre essa escolha inicial
– e sobre os comportamentos humanos que a suportam – é uma tarefa essencial
antes de se prosseguir com decisões, caminhos e soluções que visam, em
grande medida, precisamente a mudança de comportamentos. Por um lado
40
UE. Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 12 de maio de 2021. Caminho
para um planeta saudável para todos. Plano de ação da UE: “Rumo à poluição zero no ar, na água e
no solo”. COM (2021) 400 final, p. 12.
41
Resolução do Conselho de Ministros n.º 190-A/2017, alterada pela Resolução do Conselho de
Ministros n.º 108/2019.
126
II. ECONOMIA CIRCULAR
sendo a ciência económica por excelência a ciência da escolha, é a ela que
recorreremos para nos auxiliar na tarefa de elucidação desses pressupostos
comportamentais. Por outro lado, sendo possivelmente a ciência que mais
desempoeiradamente olha para a realidade social, procuraremos nela
também uma maior objetividade da análise.
Ao longo do caminho de evolução da espécie humana, os seus membros
foram retirando do meio ambiente os recursos necessários à sua sobrevivência:
o ser humano precisa de água e de alimento, de calor e de abrigo e de se
proteger de ameaças de variada natureza. À medida a que a espécie foi
progredindo, em número e em conhecimento, desenvolveram-se inúmeras
derivações dessas necessidades iniciais e, com elas, foi prosseguindo o caminho
de exploração, desbravamento e utilização dos recursos do planeta. Sendo certo
que a preservação plena dos recursos do planeta só teria sido possível à custa
da sobrevivência dos indivíduos que compõem a espécie humana, ou pelo
menos de grande parte deles, também é certo que, sem um nível equilibrado
de preservação dos recursos ambientais, a espécie humana arrisca a sua
sobrevivência.
Dito isto, torna-se também evidente que todos os problemas de gestão de
recursos ambientais com que nos defrontamos são, antes de mais, consequência
de decisões humanas e têm a sua origem em comportamentos humanos. Há
uma escolha por detrás deles. É essa escolha que deve ser reavaliada: em que
medida podem os conciliar as conquistas que alcançamos para a existência
humana com a preservação do planeta que habitamos?
A ciência económica tem ajudado a descrever a natureza da relação entre
a humanidade e o ambiente através de vários instrumentos, sendo um deles
a noção de externalidade. A ideia costuma ser enunciada de forma simples:
a produção de bens e serviços não se faz de forma isolada, antes ocorre
num contexto relacional, com agentes económicos que produzem, ao lado
de outros agentes que consomem, e na presença, ainda, de outros agentes
que não integram a relação económica. Desse contexto relacional emanam
caraterísticas que tornam impossível que a produção ocorra sem efeitos
secundários: a proximidade e a interdependência têm como consequência a
produção de custos em esferas alheias às da produção – esferas essas que, por
não terem uma relação de mercado com aquela, não trocam os custos que lhes
são impostos por benefícios que os possam compensar. Porque os custos são
repercutidos fora do mercado, não são integrados no respetivo preço: quem os
sofre não é ressarcido e quem os inflige não tem qualquer incentivo a reduzir
ou a parar a sua produção42. Esta ideia simples ajuda-nos a perceber porque
42
Cfr. F. Araújo. Introdução à Economia. II. 4.ª ed. Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 282-290.
127
II. ECONOMIA CIRCULAR
é que a sobreprodução de danos ambientais ocorre e porque é que não tem
tendência a parar por si.
Além desta apresentação mais simplificada, a ideia de externalidade contém
em si uma outra dimensão, frequentemente menos explorada, mas que foi
notavelmente evidenciada por Ronald Coase ao clarificar que “a abordagem
tradicional tende a obscurecer a natureza da escolha que há a fazer. Pensase habitualmente na questão em termos de ser A a provocar danos em B,
concentrando-se a decisão na forma de limitar A. Mas isto está errado, já que
estamos a lidar com um problema que tem natureza recíproca. Para evitarmos
os danos a B, provocaríamos danos em A. […] O problema é o de se evitar a
maior das lesões”43.
A natureza da relação da humanidade com o ambiente natural também
pode ser vista desta perspetiva – uma perspetiva que, habitualmente, não se vê
suficientemente sublinhada. A realidade é que essa relação é dual, é recíproca:
as atividades humanas produziram alterações no meio ambiente, muitas das
quais resultam de atividades que visaram evitar danos para a espécie humana
que seriam provocados por elementos “naturais” – as formas de proteção
contra a doença, ou contra o frio e o calor excessivos, são disso exemplo44.
Estas alterações ambientais produzem agora danos na espécie humana,
nomeadamente através de doenças ambientais, convocando a necessidade de
adaptação até que o equilíbrio seja restaurado para vantagem dos dois lados.
Este ciclo adaptativo, em que alterações no meio natural (provocadas pela
espécie humana) espoletam alterações na vida humana (provocadas pelo
meio natural) está na base do paradigma da adaptação, uma perspetiva
que realça a importância das estratégias de adaptação por parte dos atores
ambientais enquanto parte de um ciclo de ação e reação entre o Homem e o
ambiente natural45.
43
R. Coase. The Problem of Social Cost. The Journal of Law and Economics. 1960, III, p. 2
(tradução das autoras).
44
A natureza ambivalente da relação entre a Humanidade e o ambiente natural foi capturada e
espelhada por Edward O. Wilson em toda a sua obra, destacando-se aqui E. O. Wilson. Biofilia.
El Amor a la Naturaleza o Aquello que Nos Hace Humanos. Madrid: 2021, p. 26 (tradução de T.
de Guevara). Raymond Murphy propõe que o conceito de elasticidade seja aplicado à relação
Homem-meio ambiente também pela capacidade que o primeiro tem tido de esticar o segundo
para dele retirar recursos, mas por outras duas razões: a existência de breaking points e o efeito de
recoil ou kickback (o efeito de recuo depois de um disparo). Cfr. R. Murphy. Rationality & Nature:
A Sociological Inquiry into a Changing Relationship. Oxford: Westview Press, 1994, pp. 23-25.
45
Cfr. S. N. Seo. The behavioral economics of climate change. Adaptation Behaviors, Global Public
Goods, Breakthrough Technologies, and Policy-Making. Londres: Academic Press, 2017, p. 188.
128
II. ECONOMIA CIRCULAR
2.2. O contributo da behavioral economics
A economia circular pressupõe uma alteração do atual paradigma de
consumo e de produção através da qual se pretende reequilibrar a relação entre
a Humanidade e o meio natural. Nesse novo ponto de equilíbrio, preservarse-iam as conquistas que permitem a sobrevivência da espécie humana, mas
o consumo e a produção far-se-iam de uma forma sustentável, isto é, sem
esgotamento de recursos, nomeadamente através da implementação de novos
padrões de consumo e de produção.
A alteração de um modelo de economia linear para um modelo de
economia circular depende de um conjunto de mudanças comportamentais
da parte dos agentes que intervêm no circuito económico. Justamente porque
assim é, o sucesso do modelo não pode dispensar um exame adequado dos
pressupostos comportamentais desses mesmos agentes. De outro modo, a ideia
pode até ser teoricamente perfeita, mas carecerá dos alicerces que permitem
que se concretize além da pura abstração.
Além do conceito de externalidade, a ciência económica dispõe de várias
outras ferramentas explicativas aplicáveis ao problema ambiental: o conceito
de bem público46 – aquele que, pelas suas caraterísticas de não exclusividade
e de não rivalidade repele a iniciativa privada e, geralmente, convoca o Estado
e a necessidade de despesa pública para se evitar a tragédia dos baldios47 –
auxiliado pelo conceito de bem público global48 – aquele bem que, estando
disponível para todos no planeta, não interessa a nenhum país individualmente
proteger pois essa pequena contribuição individual não faria qualquer diferença
a um nível agregado; a ideia do equilíbrio de Nash49, que ajuda a perceber
porque é que não tem sido possível atingir um equilíbrio nas negociações
46
Cfr. A. Tavoni, et al. Inequality, communication, and the avoidance of disastrous climate
change in a public goods game. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United
States of America. 2011, 108(29), pp. 11825-11829. In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics
of Environmental Policy. Behavioral and Political Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, p. 193.
47
Cfr. G. Hardin. The tragedy of the commons. Science. 1968, 162, pp. 1243-1248.
48
Cfr. W. Nordhaus. How fast should we graze the global commons? American Economic Review.
1982, 72, pp. 242-246; Cfr. W. Nordhaus. The architecture of climate economics: designing a global
agreement on global warming. Bulletin of Atomic Scientists. 2011, 67, pp. 9-18; W. Nordhaus e
Z. Yang. A regional dynamic general-equilibrium model of alternative climate-change strategies.
American Economic Review. 1996, 86(4), pp. 741-765.
49
J. Nash. Equilibrium points in n-person games. Proceedings of the National Academy of Sciences
of the United States of America. 1950, 36, pp. 48 e 49.
129
II. ECONOMIA CIRCULAR
internacionais sobre conservação ambiental – os países confrontam-se com
realidades muito diferenciadas em diversos aspetos com relevo para a definição
do seu comportamento a nível ambiental, tais como o grau de impacto da
degradação ambiental, os recursos ambientais de que dispõem, o número
e tipo de poluidores e de vítimas ambientais entre os seus membros, o nível
de desenvolvimento económico, o tecido cultural, a história do país – sendo
que esta heterogeneidade implica a presença de incentivos muito distintos no
âmbito de uma negociação internacional, o que dificulta a formação de um
equilíbrio de Nash50.
Mas para além de instrumentos mais tradicionais – isto é, que já fazem
parte da linguagem habitual da economia e que já são conhecidos de outras
áreas precisamente em virtude dessa maior divulgação –, a ciência económica
dispõe hoje no seu portfolio de instrumentos, porventura menos conhecidos,
mas incontornavelmente relevantes para a questão de que aqui se trata. São eles
os instrumentos daquela área da ciência económica que é hoje identificada pela
expressão cupular de “economia comportamental”, em que se reúnem diversos
contributos para o estudo do comportamento humano que têm permitido o
aprofundamento do realismo nos pressupostos comportamentais da própria
ciência económica, mas cujo alcance é extensível a muitas outras áreas de
conhecimento e de prática, nomeadamente à questão ambiental e, no que
agora concretamente nos interessa, à política de transição para a economia
circular.
Com efeito, a passagem de um modelo de economia linear para um
modelo de economia circular depende largamente do estímulo a alterações
comportamentais dos microagentes ambientais, isto é, dos cidadãos e das
empresas. Sendo deles que depende, por um lado, em última análise, a adoção
de métodos de produção, distribuição, transporte e armazenagem, bem como
de hábitos de consumo, que produzam uma alteração significativa na relação
entre a espécie humana e o ambiente natural, uma parte significativa da
estratégia ambiental passa necessariamente pela alteração de comportamentos.
Por outro lado, esta alteração é extraordinariamente exigente: não se trata
apenas de algumas micromudanças, mas sim de alterações de estilos de vida, de
valores, de normas sociais, no fundo, de um redefinir de prioridades na relação
entre o indivíduo e o mundo que conduza à alteração consistente de escolhas
no momento de produzir, de consumir e de deitar fora.
No contexto da economia comportamental, o maior detalhe com que se olha
50
S. N. Seo. What eludes global agreements on climate change? Economic Affairs. 2012, 32, pp. 73-79.
130
II. ECONOMIA CIRCULAR
para o comportamento humano – face à teoria económica mais convencional
– tem permitido identificar traços comportamentais com impacto significativo
na definição de padrões comportamentais mais globais, assim dando lugar a
modelos de atuação dos agentes apoiados em substratos mais realistas. A própria
ideia do que é o comportamento humano quando o humano assume as vestes
de agente económico (isto é, quando se vê confrontado com escolhas criadas
pela escassez de recursos face a necessidades ilimitadas) foi revolucionada pela
informação reunida no âmbito da economia comportamental.
Com efeito, ao invés da adoção tout court do modelo de agente perfeitamente
racional – um modelo essencialmente dedutivista, formalista, estilizado, em que
se assume sem se provar que o agente é sempre racional, egoísta e maximizador,
exibindo sempre preferências estáveis – admite-se agora: que o agente
económico nem sempre corresponde a esse modelo de homo oeconomicus; que
o seu processo de decisão contém enviesamentos, usa preconceitos; que trata a
informação de uma forma simplificada e nem sempre rigorosa; que as escolhas
que faz não são estáveis porque são influenciadas por fatores que produzem
alguma aleatoriedade; e que são todos esses fatores que, apesar de aparentemente
o impedirem de atingir o comportamento maximizador, lhe permitem agir, com
“ignorância racional”51, no sentido da satisfação das suas preferências.
Tal não implica, a nosso ver, o abandono do pressuposto comportamental
de base da teoria económica – a racionalidade do agente –, mas implica a sua
reformulação. Não sendo este o local próprio para um maior aprofundamento
da temática, dir-se-á apenas que o pressuposto da racionalidade humana não
beneficia da aproximação, por tanto tempo ensaiada, a modelos de perfeição
robótica ou mecanizada, que não correspondem à realidade do comportamento
humano e que, na verdade, ficam aquém dos instrumentos cognitivos com que
a evolução foi dotando o ser humano. Num primeiro momento, a identificação
de “desvios” aos parâmetros tradicionais da racionalidade humana levou à
qualificação desses comportamentos como irracionalidades ou limitações à
racionalidade, mas o tempo já permitiu a construção de teorias que recuperam
o pressuposto da racionalidade reconstruindo-o à luz do novo adquirido
comportamental52. No fundo, o que resulta destas novas reconstruções teóricas,
apesar da sua diversidade, é que a racionalidade humana beneficia desses
desvios ao modelo convencional porque eles são sinal da sua adaptação ao
51
F. Araújo, cit. nota 42, p. 63.
52
Embora sejam vários os contributos para essa reformulação do conceito de racionalidade,
remetemos aqui para a obra coletiva de P. M. Todd, G. Gigerenzer e ABC Research Group.
Ecological rationality: Intelligence in the world. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 3.
131
II. ECONOMIA CIRCULAR
meio ambiente, sendo heranças comportamentais da evolução a que a espécie
foi sendo submetida ao longo de milhões de anos. Tudo somado e dividido, não
andamos longe das intuições iniciais de Adam Smith53.
Dito isto, importa agora analisar em que medida é que esta perspetiva
comportamental pode lançar luz sobre comportamentos generalizados com
impacto na questão ambiental.
2.3. A análise custo-benefício em matéria ambiental:
a relevância da intertemporalidade
O indivíduo que decide livremente recorre, para fazer as suas escolhas, a
uma ponderação de custos e benefícios. O seu incentivo para agir advém da
sensação de que o benefício total de uma ação excede o seu custo total – o que lhe
confere uma motivação para a adoção da conduta. Deste modo, se for possível
alterar custos e/ou benefícios de uma dada conduta, será possível condicioná-la
sem mexer com a liberdade individual. Mas que custos e benefícios serão esses?
O problema da conservação ambiental é um caso clássico de escolhas
intertemporais. O consumo atual implica degradação ambiental, mas os efeitos
negativos desta degradação são cumulativos e operam de forma gradual e
temporalmente desfasada do consumo. Este desfasamento leva a que esse efeito
negativo (futuro) seja menos valorizado do que o efeito positivo (presente)
do consumo porque o ser humano está geneticamente predisposto a atender
mais às suas necessidades atuais do que futuras, preocupando-se mais com a
satisfação imediata de necessidades do que com a gestão de problemas futuros54.
Este é um ponto importante: qualquer intervenção que pretenda alterar padrões
de comportamento dos agentes económicos levando-os a valorizar mais
problemas futuros do que consumos atuais e que ignore este facto essencial será
votada ao insucesso. Será sempre necessário integrar o facto de a capacidade
de autocontrolo do ser humano neste tipo de decisões que implicam análises
custo-benefício com impacto intertemporal ser muito limitada55.
Com efeito, a literatura demonstra que considerações de longo prazo são
53
N. Ashraf, C. Camerer e G. Lowenstein. Adam Smith, behavioral economist. JEcP. 2005, 19, pp. 131-145.
54
Cfr. E. O. Wilson, cit. nota 44, p. 193.
55
C. Hepburn, S. Duncan e A. Papachristodoulou. Behavioural economics, hyperbolic
discounting and environmental policy. In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics of Environmental
Policy: Behavioral and Political Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2010, pp. 292-293.
132
II. ECONOMIA CIRCULAR
tendencialmente ofuscadas pela necessidade de atender à gestão quotidiana,
sendo exigido um considerável esforço de autocontrolo para provocar o desvio
de foco do momento presente para o momento futuro e, assim, se conseguir
que o agente tome decisões em que a preferência pelo futuro se sobrepõe ao
presente. Quanto maior for o cognitive load do agente, isto é, e de uma forma
simples, a percentagem de recursos cognitivos que está a ser utilizada em
tarefas presentes, pior é o cenário: a parte de nós que é responsável por planear
o futuro está ocupada e não presta atenção a problemas de longo prazo56.
Para além desse particular problema de gestão intertemporal de prioridades,
a adoção de comportamentos individuais pró-ambientais depende ainda de
vários fatores – alguns intrínsecos, como o quadro de valores adotado pelo
indivíduo, outros extrínsecos, como as normas sociais em vigor no contexto
sociocultural do indivíduo – e só o conhecimento adequado de todos eles
pode permitir o ajustamento das políticas públicas e a sua eficácia na gestão
dos problemas de gestão económica. Enquanto os incentivos económicos
alteram essencialmente custos e benefícios financeiros dos comportamentos
individuais, há diversos fatores não financeiros que também alteram o quadro
dos custos e benefícios, nomeadamente o quadro de valores individuais de um
sujeito, aquilo que mais valoriza, as suas prioridades, e, a um outro nível, as
normas sociais, isto é, os padrões comportamentais maioritários da comunidade
em que o indivíduo se insere57. Em termos económicos, isto significa que a
utilidade que um indivíduo retira de um comportamento depende de vários
fatores, podendo um deles ser, por exemplo, o efeito de warm-glow: aquele
sentimento de virtuosidade que se sente pela adoção de um comportamento
que se entende ser positivo em algum sentido58.
Em contraponto, a culpa que pode ser sentida pela adoção de
comportamentos de desconformidade com as normas sociais é um custo
associado a determinado comportamento (uma espécie de culpa ambiental)59.
56
Cfr. K. A. Brekke e O. Johansson-Stenman. The behavioural economics of climate change.
In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics of Environmental Policy: Behavioral and Political
Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2008, p. 254.
57
R. Bénabou e J. Tirole. Intrinsic and extrinsic motivation. Review of Economic Studies. 2003,
70(3), pp. 489-510.
58
Em matéria ambiental, o warm-glow funciona como reforço emocional do comportamento
considerado virtuoso, contribuindo para a sua repetição. Cfr. Hartmann, et al. Warm glow vs.
altruistic values: how important is intrinsic emotional reward in proenvironmental behavior?
Journal of Environmental Psychology. 2017, 52, pp. 43-55.
59
Cfr. W. Viscusi. Promoting recycling: private values, social norms, and economic incentives.
In T. Sterner e J. Coria, ed. The Economics of Environmental Policy: Behavioral and Political
133
II. ECONOMIA CIRCULAR
A chamada de atenção para a relevância de valores individuais e sociais
enquanto determinantes do comportamento humano vem, aliás, dar voz à
intuição inicial de Adam Smith de que, porque o agente económico, que é um
ser humano, se move num contexto social, fatores como a aprovação social e o
estatuto entre os pares são fatores relevantes para a motivação das suas ações
(e omissões). Só atendendo a estes aspetos se poderá contrariar a tendência
de desvalorização do futuro que é parte do padrão comportamental do agente
económico. Perceber que fatores são preponderantes, isto é, que fatores são
considerados motivações para a ação e que fatores são considerados inibidores
da ação é a chave para se conseguir contrariar essa tendência.
2.4. Comportamento humano e economia circular
As alterações comportamentais necessárias para implementar a
circularidade são multiformes e aplicam-se quer do lado da produção, quer do
lado do consumo. Deste lado, é necessário perceber por que razões podem os
consumidores estar dispostos a adotar perfis de consumo mais sustentáveis –
por exemplo, ao nível da reciclagem e da reutilização, da reparação de objetos e,
em geral, de comportamentos que traduzam uma atitude de utilizador a longo
prazo –, aproximando as suas atitudes práticas de intenções e proclamações
pró-ambientais frequentemente não efetivadas60.
A esse respeito – e sem prejuízo de um maior desenvolvimento mais à frente
– importa, para já, dizer que, por um lado, uma parte significativa das políticas
públicas de incentivo à participação do consumidor na economia circular
é ainda baseada no paradigma da simples comunicação de informação –
“simples” porque frequentemente lhe falta o acompanhamento necessário para
produzir alguma alteração no comportamento do destinatário. Por exemplo,
na União Europeia, tendo em vista o reforço da participação dos consumidores
na economia circular, enfatiza-se a necessidade de levar ao consumidor
informação viável e pertinente sobre os produtos, incluindo no que se refere à
sua vida útil, aos serviços de reparação e de substituição de peças, bem como
a de o proteger contra o chamado branqueamento ecológico (greenwashing)
através da aplicação de requisitos mínimos para os rótulos e logótipos61. Por
Dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2010, pp. 195 e 196.
60
Cfr., entre outros, R. S. Atlason, D. Giacalone e K. Parajuly. Product design in the circular
economy: users’ perception of end-of-life scenarios for electrical and electronic appliances. Journal
of Cleaner Production. 2017, 168, pp. 1059-1069.
61
Cfr. o Plano de Ação para a Economia Circular, de 2020, da Comissão Europeia, p. 6. Disponível aqui
134
II. ECONOMIA CIRCULAR
outro lado, pondera-se a introdução na malha jurídica de novos direitos do
consumidor, como o direito a peças sobressalentes, o direito à reparação, o
direito à atualização e a extensão do direito à garantia.
Ambas as propostas pressupõem, contudo, um passo prévio: o da vontade do
consumidor de alterar o seu perfil de consumo, passando a adotar práticas que
se coadunem com a matriz da circularidade. Todavia, a integração de variáveis
relativas aos incentivos do consumidor – às suas motivações – como o papel da
educação, das normas sociais, de padrões morais, enfim, do enquadramento
cultural e institucional do consumidor, não são alvo de atenção suficiente62.
Aliás, dois instrumentos fundamentais da política da União Europeia nesta
área – as Diretivas REEE63 e Ecodesign64 – nem sequer incluem os utilizadores
finais nos seus âmbitos, quando o seu papel é fundamental quer na fase da
aquisição (onde se escolhe o tipo de produto que vai ser adquirido de entre as
várias opções disponíveis, nomeadamente em função de caraterísticas como
preço e durabilidade, as quais frequentemente se encontram em conflito), quer
na fase da utilização (como é que o utilizador se comporta quando o produto
avaria, por exemplo), quer na etapa final do produto em que este chega ao fim
da sua vida útil e tem de ser desmantelado e reciclado65.
As opções do consumidor nestas várias fases da vida de um produto são
fundamentais para o sucesso das estratégias implicadas na economia circular,
quer porque são elas que orientam o produtor no sentido de produzir bens
que correspondam às preferências de consumo reveladas no ato de escolha,
quer porque é o consumidor que poderá optar pela reparação e reutilização
do produto ou pela sua substituição por um novo – tendo por isso de ser
convencido de que o melhor comportamento é o primeiro –, quer porque a sua
participação no destino final do bem, quando já nenhuma funcionalidade dele
se puder extrair, é também incontornável.
62
J. Camacho-Otero, C. Boks e I. Pettersen. Consumption in the circular economy: a literature
review. Sustainability. 2018, 10, p. 2758; J. Kirchherr, D. Reike e M. Hekkert, cit. nota 8, pp.
221-232; P. Repo, et al. Lack of congruence between european citizen perspectives and policies on
circular economy. European Journal of Sustainable Development. 2018, 7, pp. 249-264.
63
Diretiva 2012/19/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativa aos
resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos (REEE), disponível aqui.
64
Diretiva 2009/125/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, relativa
à criação de um quadro para definir os requisitos de conceção ecológica dos produtos relacionados
com o consumo de energia, disponível aqui.
65
S. Otto, et al. The economy of E-waste collection at the individual level: a practice oriented
approach of categorizing determinants of E-waste collection into behavioral costs and motivation.
Journal of Cleaner Production. 2018, 204, pp. 33-40.
135
II. ECONOMIA CIRCULAR
Na vertente da produção, será necessário que o processo produtivo passe a
ser pensado de uma forma circular logo no momento da conceção dos produtos,
aumentando assim o respetivo potencial de vida útil através da promoção de
princípios de eficiência energética, de durabilidade, de reparabilidade e de
possibilidade de atualização, manutenção, reutilização e reciclagem. Esse fator
– isto é, o tratamento que os produtos usados recebem por forma a que deles
sejam retirados os materiais que ainda podem ser utilizados como recursos
para outros produtos – é importante, mas não é o único a merecer alteração.
O próprio design do produto tem de ser pensado para permitir a extração de
materiais (os designados materiais circulares) cujas propriedades permitam
incluí-lo de novo, com valor, no circuito produtivo – design-for-EoL (design
for end of life). Contudo, a evidência empírica mostra existir ainda pouca
correspondência entre a importância desse passo e a sua concretização66.
As alterações necessárias para se passar do atual paradigma de fim de vida
para o paradigma da economia circular são particularmente exigentes no setor
da gestão de resíduos. Com efeito, prevê-se que a produção anual de resíduos
aumente 70% até 205067, sendo que, atualmente, no contexto já de certa forma
evoluído das economias europeias, estima-se, por exemplo, que menos de
40% do e-waste (resultante de produtos elétricos e eletrónicos e, por isso, com
uma dimensão muito relevante no cômputo global da produção residual) seja
recolhido pelos canais oficiais e reciclado de acordo com as normas aplicáveis,
o que significa que o restante poderá não respeitar qualquer norma ambiental
aplicável aos mesmos resíduos68.
É necessário minimizar a noção de “lixo”, isto é, daqueles elementos que
já não podem voltar a integrar o processo produtivo por já não apresentarem
66
K. Parajuly, et al. End-of-life resource recovery from emerging electronic products. A case study
of robotic vacuum cleaners. Journal of Cleaner Production. 2016, 137, pp. 652-666; H. M. Lee, et
al. A framework for assessing product End-Of-Life performance: reviewing the state of the art
and proposing an innovative approach using an End-of-Life Index. Journal of Cleaner Production.
2014, 66, pp. 355-371; D. Coughlan, C. Fitzpatrick e M. McMahon. Repurposing end of life
notebook computers from consumer WEEE as thin client computers: a hybrid end of life strategy
for the circular economy in electronics. Journal of Cleaner Production. 2018, 192, pp. 809-820;
K. Parajuly e H. Wenzel. Potential for circular economy in household WEEE management.
Journal of Cleaner Production. 2017, 151, pp. 272-285.
67
Banco Mundial. What a Waste 2.0: A Global Snapshot of Solid Waste Management to 2050
(Que desperdício 2.0: Uma panorâmica mundial da gestão de resíduos sólidos até 2050). 2018. Só na
União Europeia, a produção anual de resíduos provenientes de todas as atividades económicas está
contabilizada em 2,5 mil milhões de toneladas, ou seja, 5 toneladas per capita por ano, produzindo
cada cidadão, em média, quase meia tonelada de resíduos urbanos.
68
Dados do Eurostat disponíveis aqui.
136
II. ECONOMIA CIRCULAR
qualquer mais-valia, seja considerando-os como um todo, seja considerandoos parcialmente. Isto implica alterações profundas: quer do ponto de vista da
criação de mercados onde seja possível trocar elementos que atualmente são
desperdiçados; quer do ponto de vista da produção, nomeadamente alterando
o atual paradigma de baixo custo e rápida obsolescência para um paradigma
de sustentabilidade que permita a produção de bens com base em elementos
reciclados e que percecione a maior durabilidade com uma característica
fundamental do bem que é produzido69; quer do ponto de vista do marketing,
através da sua capacidade para tornar atrativas estas alterações de paradigma;
quer, finalmente, do ponto de vista da assistência ao cliente, colocando ao seu
dispor formas de manutenção dos produtos por maiores períodos de tempo e
reintroduzindo uma lógica de responsabilidade pelo produto que se estende
além do momento da venda para acompanhar o produto por toda a sua vida70.
A introdução do princípio da regeneração no modelo económico deve,
enfim, estender-se também à questão energética, já que o atual modelo,
fortemente baseado na extração de recursos naturais, é profundamente
dependente de uma utilização massiva de energia baseada em combustíveis
fósseis71. Pelo contrário, o modelo da economia circular pretende basear-se em
recursos energéticos renováveis e com produção e consumo de energia de baixo
carbono ou zero carbono72. Claro que esta produção não é isenta de problemas,
nomeadamente os que se relacionam com o tipo de materiais necessários
para a produção de energia limpa (exemplo do lítio, do cobalto, da grafite,
do vanádio e do índio) e com a sua localização, o que confere uma dimensão
também geopolítica à transição energética necessária para dar cumprimento
ao programa da economia circular – mais uma dimensão a concorrer para a
dificuldade de implementação do modelo.
A relevância de todas estas condutas torna notória a necessidade de
intervenção junto das motivações individuais do comportamento do
consumidor de uma forma duradoura, sendo certo que alterações de incentivos
económicos e imposições normativas não serão suficientes para se conseguir
69
Também ao nível da conceção dos dispositivos, idealmente norteada pelos princípios de eficiência
energética, da durabilidade, da reparabilidade e da possibilidade de atualização, manutenção,
reutilização e reciclagem.
70
J. W. Bolderdijk, et al. Comparing the effectiveness of monetary versus moral motives in
environmental campaigning. Nature Climate Change. 2012, 3, pp. 413-416.
71
H. Allcott e S. Mullainathan. Behavior and energy policy. Science. 2010, 327, pp. 1204-1205.
72
Banco Mundial. Relatório do Banco Mundial. 2020. Disponível aqui.
137
II. ECONOMIA CIRCULAR
transpor o atual modelo linear de consumo e produção para um modelo
circular73.
2.5. O gap intenção-ação e a insuficiência da simples informação
Uma das constatações mais comuns em matéria ambiental é a de que as
proclamações dos consumidores não têm correspondência nas suas atitudes
práticas. Em respostas a inquéritos, os consumidores são capazes de revelar
consciência ambiental, de perceber a relevância do uso sustentável de recursos
e de compreender como as suas decisões individuais de consumo, por exemplo,
em matéria de reutilização e reciclagem, ou na opção entre aquisição e leasing,
são relevantes para a alteração do modelo económico atual; todavia, na prática,
não é observável o efeito de tais comportamentos, pelo menos na dimensão que
deveria resultar das preferências proclamadas pelos consumidores74.
Este gap entre a intenção e a realidade observada é relevante quer na fase
de aquisição (por exemplo, escolher entre um leasing ou uma compra; entre
um bem em segunda mão ou um novo); quer durante a utilização do bem
(por exemplo, quando o consumidor decide se manda reparar um bem que
se avariou ou se o troca por um novo); quer na fase de fim de vida de um bem
(quando tem de decidir se procura o canal adequado para a reciclagem do bem
ou se o dispensa no lixo comum).
A identificação deste gap permite concluir que a simples literacia ambiental
não é sinónimo de prática ambiental adequada e que o conhecimento nem
sempre leva à ação. Assumir o contrário é um erro de análise do comportamento
humano que, contudo, é frequentemente cometido em matéria de políticas
públicas: o de que a informação declarativa é, de per se, uma motivação suficiente
para a ação. Não é. Dizer isto não significa dizer que as pessoas não devem
ser informadas, nomeadamente em matéria ambiental. Mas significa que (i)
a forma como se leva a informação até às pessoas é relevante (umas formas
73
C. Cherry, et al. Public acceptance of resource-efficiency strategies to mitigate climate change.
Nature Climate Change. 2018, 8, pp. 1007-1012; V. Weelden, R. Mugge e C. Bakker. Paving the
way towards circular consumption: exploring consumer acceptance of refurbished mobile phones
in the Dutch market. Journal of Cleaner Production. 2016, 113, pp. 743-754; S. V. der Linden.
Warm glow is associated with low - but not high-cost sustainable behavior. Nature Sustainability.
2018, 1, pp. 28-30; R. M. Turaga, R. B. Howarth e M. E. Borsuk. Pro-environmental behavior.
Annals of New York Academy of Sciences. 2010, 1185, pp. 211-224.
74
A. Cerull et al. Behavioural study on consumers engagement in the circular economy.
European Commission, 2018. Disponível aqui.
138
II. ECONOMIA CIRCULAR
serão mais eficazes que outras para garantir que a informação é apreendida
pelo seu destinatário)75 e (ii) enquanto forma de alteração comportamental,
simplesmente levar informação até às pessoas não é suficiente76.
Assim sendo, é necessário associar à informação que é prestada o
conhecimento acerca dos outros, de como se comportam, de que opiniões
têm, a informação sobre a prática envolvida, incluindo os respetivos custos,
financeiros, burocráticos, temporais e outros; ou seja, o conhecimento sobre o
que está implicado na alteração de comportamentos, sobre os benefícios que
poderá ter e sobre como minorar os custos nela envolvidos. Para que as políticas
públicas em matéria ambiental possam ter sucesso, é necessário também que
sejam computados – e devidamente ponderados – os eventuais obstáculos,
entraves e fricções à obtenção do comportamento desejado77.
A maior ou menor sensibilidade dos consumidores à informação acerca
do respeito por valores ambientais também difere consoante o produto que
estão a consumir – uma ética mais exigente pode ser aplicada a determinados
produtos, enquanto noutros a atitude do consumidor ignora mais facilmente
aspetos de proteção ambiental78 – o que pode relacionar-se, nomeadamente
com o maior ou menor hábito na compra dos produtos. Por exemplo, um tipo
75
Cfr. D. Kahneman e A. Tversky. Prospect theory: an analyis of decision under risk.
Econometrica. 1979, 47(2), pp. 263-291.
76
D. Pichert e K. V. Katsikopoulos. Green defaults: information presentation and proenvironmental behaviour. Journal of Environmental Psychology. 2008, 28, pp. 63-73; P. W. Schultz.
Knowledge, information, and household recycling: examining the knowledge-deficit model of
behavior change. In T. Dietz e P. C. Stern, ed. New tools for environmental protection: education,
information, and voluntary measures. Washington, D.C.: National Academy Press, 2002, pp. 67-82;
A. Spence e N. Pidgeon. Framing and communicating climate change: the effects of distance and
outcome frame manipulations. Global Environmental Change. 2010, 20, pp. 656-667; H. J. Staats,
A. P. Wit e C. Y. H. Midden. Communicating the greenhouse effect to the public: evaluation of a
mass media campaign from a social dilemma perspective. Journal of Environmental Management.
1996, 45, pp. 189-203; P. C. Stern. Information, incentives and proenvironmental consumer
behavior. Journal of Consumer Policy. 1999, 22, pp. 461-478.
77
Cfr. C. R. Sunstein. Behavioural economics, consumption and environmental protection. In
L. A. Reisch e J. Thøgersen, ed. Handbook of Research on Sustainable Consumption. Edward
Elgar, 2015, pp. Cheltenham: Edward Elgar, pp. 313-327; E. Frisk, Larson e L. Kelli. Educating
for Sustainability: Competencies & Practices for Transformative Action. Journal of Sustainability
Education. 2011, 2, pp. 1-20; C. Knussen e F. Yule. “I’m not in the habit of recycling”: the role of
habitual behavior in the disposal of household waste. Environment and Behavior. 2008, 40, pp. 683702; D. McKenzie-Mohr. Promoting sustainable behavior: an introduction to community-based
social marketing. Journal of Social Issues. 2000, 56, pp. 543-554.
78
P. Wheale e D. Hinton. Ethical consumers in search of markets. Business Strategy and the
Environment. 2007, 16, pp. 302-315.
139
II. ECONOMIA CIRCULAR
de produto que o consumidor compra habitualmente pode ser sujeito a um
escrutínio ambiental maior do que um tipo de produto que é comprado menos
vezes, o que pode até resultar de uma análise errada do consumidor de que o
consumo habitual tem necessariamente maior impacto ambiental quando nem
sempre é assim.
No contexto da economia circular, a necessidade de alteração do
comportamento dos consumidores no sentido de fazerem compras verdes, de
aceitarem produtos mais duradouros ou de adotarem estratégias de reparação
e reutilização implica alterações em elementos extrínsecos que passam em
grande medida pela facilitação do contexto, por exemplo, garantindo a maior
proximidade de centros de reciclagem, a facilitação dos processos de renovação
de produtos e de substituição de peças. Por outro lado, a evidência mostra
que são também incontornáveis as alterações em elementos internos – os
tais motivadores de conduta –, como valores internos e normas sociais79. Por
exemplo, as normas morais consubstanciam motivações para agir na medida
em que o seu cumprimento provoque uma sensação positiva no indivíduo –
a sensação agradável que advém do sentimento de dever cumprido. Também
as normas sociais podem funcionar como potenciadores da ação, sobretudo
através da vergonha sentida pela não adesão ao comportamento mais ético80, o
estigma social a que é votado o incumpridor81.
Contudo, também as normas sociais variam consoante o contexto, sendo um
produto da cultura, da economia, da geografia, do local onde se desenvolvem,
pelo que, nomeadamente em matéria ambiental, podem também funcionar em
sentido contrário ao caminho de evolução que se pretende implementar se não
houver uma educação ambiental que as contrarie82. Em geral, há evidência de
que os motivadores intrínsecos – conhecimento adquirido por educação ou
79
E. van Weelden, R. Mugge e C. Bakker. Paving the way towards circular consumption:
exploring consumer acceptance of refurbished mobile phones in the Dutch market. Journal of
Cleaner Production. 2016, 113, pp. 743-754.
80
S. Otto, et al. The economy of E-waste collection at the individual level: a practice oriented
approach of categorizing determinants of E-waste collection into behavioral costs and motivation.
Journal of Cleaner Production. 2018, 204, pp. 33-40.
81
C. Thomas e V. Sharp. Understanding the normalisation of recycling behaviour and its
implications for other pro-environmental behaviours: a review of social norms and recycling.
Resources, Conservation and Recycling. 2013, 79, pp. 11-20.
82
J.-D. M. Saphores, O. A. Ogunseitan e A. Shapiro. Willingness to engage in a proenvironmental behavior: an analysis of e-waste recycling based on a national survey of U.S.
Households. Resources, Conservation and Recycling. 2012, 60, pp. 49-63.
140
II. ECONOMIA CIRCULAR
de forma autodidata, motivação, crenças, hábitos, valores, atitudes, intenções e
outras variáveis psicológicas internas – têm efeitos mais sólidos e prolongados
do que incentivos externos, nomeadamente materiais83.
A consideração destas variáveis internas enquanto motivadores para a ação
tem, aliás, levado a que, além do Direito como instrumento de alteração de
incentivos (associando custos e benefícios a comportamentos) e, em alguma
medida, como instrumento de expressão e conformação de valores sociais84,
também a educação e o marketing, em particular o marketing social – entendido
como a aplicação de técnicas de marketing como forma de influência sobre
o comportamento humano com vista ao aumento do bem-estar social85 –
sejam valorizados como promotores das mencionadas variáveis internas ou
intrínsecas. A alteração para o paradigma da economia circular não se resolverá
com a adoção de estratégias de green marketing, que ademais suscita conhecidos
problemas de greenwashing, mas elas poderão auxiliar na alteração de hábitos
do consumidor encorajando a adoção de comportamentos circulares86.
À medida a que a panóplia de ferramentas de intervenção sobre o
comportamento humano aumenta e se diversifica, aumenta também a
possibilidade de fazer corresponder a cada problema um tipo de solução mais
adequado - no sentido de mais adaptado ao tipo de mecanismos que pode
provocar a mudança comportamental desejada. Para isso é preciso perceber
em que medida é que os sistemas de decisão colaboram para a produção do
83
R. Davis, et al. Theories of behaviour and behaviour change across the social and behavioural
sciences: a scoping review. Health Psychology Review. 2015, 9, pp. 323-344; W. Bolderdijk, et al.
Comparing the effectiveness of monetary versus moral motives in environmental campaigning.
Nature Climate Change. 2012, 3, pp. 413-416; S. van der Linden. Warm glow is associated with
low- but not high-cost sustainable behavior. Nature Sustainability. 2018, 1, pp. 28-30; P. C. Stern.
New environmental theories: toward a coherent theory of environmentally significant behavior.
Journal of Social Issues. 2000, 56, pp. 407-424; P. de Pelsmacker, L. Driesen e G. Rayp. Do
consumers care about ethics? Willingness to pay for fair-trade coffee. Journal of Consumer Affairs.
2005, 39, pp. 363-385.
84
É importante não negligenciar a função expressiva do Direito, isto é, a sua capacidade, mesmo
sem a associação à coercibilidade, de veicular sentidos de dever ser, criando ou validando normas
sociais. Cfr. C. R. Sunstein. On the Expressive Function of Law. University of Pennsylvania Law
Review. 1996, 144, pp. 2021 e ss.
85
G. Salazar, M. Mills e D. Verissimo. Qualitative impact evaluation of a social marketing
campaign for conservation. Conservation Biology. 2019, 33, p. 640; D. McKenzie-Mohr.
Promoting sustainable behavior: an introduction to community-based social marketing. Journal
of Social Issues. 2000, 56, p. 546; T. Haldeman e J. W. Turner. Implementing a community-based
social marketing program to increase recycling. Social Marketing Quarterly. 2009, 15, pp. 114-127.
86
T. Wastling, F. Charnley e M. Moreno. Design for circular behaviour: considering users in a
circular economy. Sustainability. 2018, 10, p. 1743.
141
II. ECONOMIA CIRCULAR
comportamento em causa – em concreto, qual dos dois sistemas de decisão
utilizados pelo cérebro humano, um mais automático, outro mais deliberativo,
é preponderante na criação do comportamento, na realização da escolha –
mas também que tipo de heurísticas, pré-conceitos, tendências, são relevantes
para a produção desse comportamento87. Impõe-se perceber a importância
do contexto para a decisão, a relevância concreta das variáveis intrínsecas e
extrínsecas. A complexidade das determinantes do comportamento humano
é demasiado grande para que apenas um tipo de técnica seja usado para
conseguir promover todos os tipos de alteração comportamental. Um exemplo
de como as intervenções podem não funcionar quando não têm em conta as
variáveis comportamentais adequadas é o dos rótulos relativos à eficiência
energética utilizados na União Europeia. Ao fazer-se uma alteração de escala
de “A” a “G” para de “A+++” a “D” os consumidores deixaram de reagir de
forma tão significativa ao rótulo e, por esse motivo, deixaram de escolher os
produtos energeticamente mais eficientes88. No caso, a ignorância sobre o
impacto dos framing effects89 levou a uma diminuição da compra de produtos
energeticamente mais eficientes – um bom exemplo do que é um mau exemplo90.
A posição mais equilibrada será admitir que cada técnica se revelará mais apta
em determinadas condições e menos apta noutras, ou seja, que cada uma será
context-specific.
2.6. Nudging: evidência em matéria ambiental
e na alteração para o paradigma da circularidade
Uma das técnicas de alteração comportamental mais discutidas, estudadas
87
Sobre os dois tipos de processos de decisão, cfr. D. Kahneman. Pensar, Depressa e Devagar.
Lisboa: Temas e Debates, 2012, pp. 29-54.
88
F. Ölander e J. Thøgersen. Informing versus nudging in environmental policy. Journal of
Consumer Policy. 2014, 37, pp. 341-356; S. L. Heinzle, e R. Wüstenhagen. Dynamic adjustment
of eco-labeling schemes and consumer choice-the revision of the EU energy label as a missed
opportunity? Business Strategy and the Environment. 2012, 21, pp. 60-70.
89
Isto é, da relevância da forma como a informação é veiculada ao seu destinatário (mais do que
da informação em si) para a escolha que este acaba por fazer. Os framing effects decorrem da mais
ampla prospect theory, desenvolvida por Kahneman e Tversky na década de 70 do séc. XX. Cfr.
D. Kahneman e A. Tversky. Prospect theory. An analysis of decision under risk. Econometrica.
1979, 47(2), pp. 263-291.
90
C. Schubert. Green nudges: do they work? Are they ethical? Ecological Economics. 2017, 132,
pp. 329-342.
142
II. ECONOMIA CIRCULAR
e até mesmo implementadas neste momento é o nudging91. Embora não seja
uma técnica nova, ganhou uma dimensão renovada depois da concetualização
empreendida por Thaler e Sunstein92 e, não sendo panaceia para todos os
problemas ambientais, há algumas experiências de nudging com interesse no
contexto da economia circular.
A ideia fundamental do nudging é a de que, conhecendo-se os motivadores
e os inibidores do comportamento humano sobre o qual se pretende intervir,
será possível alterá-lo no sentido pretendido através de alterações subtis na
chamada “arquitetura da escolha”, isto é, no contexto em que a decisão tem
lugar e em que a escolha é feita. Estas alterações não obrigam o sujeito a uma
escolha determinada – ele conserva sempre a sua liberdade de ação, podendo
optar por outro caminho – mas, tirando partido de variáveis comportamentais
previamente identificadas, influenciam-no no sentido da escolha que se
entende servir melhor o seu bem-estar. Casos tipicamente apontados são os
casos das “escolhas por defeito” em que, tirando partido da tendência para a
inércia, se elege como escolha por defeito em determinado contexto aquela que
se entende ser mais adequada, embora dando-se liberdade ao sujeito para não
aceitar, fazendo então a sua própria escolha93.
A âncora político-filosófica do nudge é o “libertarian paternalism”94, uma
visão de acordo com a qual a tarefa do decisor público não passa pela proibição
ou imposição de comportamentos, mas sim pela alteração dos contextos de
escolha através de mecanismos que tiram partido do acervo de conhecimento
acerca do comportamento humano. Desta forma, os sujeitos são influenciados,
de forma predominantemente inconsciente, a adotar decisões que o decisor
público entendeu que lhes trariam maior benefício. Contudo, os agentes são
livres de escolher um caminho alternativo, razão pela qual a perspetiva é
entendida como libertária – no sentido em que permanece intata a autonomia
do indivíduo em escolher o seu caminho.
Em matéria ambiental, o nudging, que, geralmente, tem a vantagem de
91
Cfr. M. Santos Silva. Nudging and Other Behaviourally Based Policies as Enablers for
Environmental Sustainability. Laws. 2022, 11(1), p. 9.
92
R. H. Thaler e C. R. Sunstein. Nudge. Improving decisions about health, wealth and happiness.
Londres: Penguin, 2008, pp. 1-14.
93
I. Dinner, et al. Partitioning default effects: why people choose not to choose. Journal of
Experimental Psychology Applied. 2011, 17, pp. 332-341.
94
R. H. Thaler e C. R. Sunstein. Libertarian paternalism is not an oxymoron. University of
Chicago Law Review. 2003, 70, pp. 1159 e ss.
143
II. ECONOMIA CIRCULAR
apresentar baixos custos de implementação95, passa sobretudo por alterações
que facilitem a vida das pessoas: simplificar, diminuir a fricção, tornar mais
linear um determinado comportamento é, muitas vezes, tudo o que é preciso
para que ele comece a ser adotado96. Muitas vezes o nudge está apenas na forma
como a informação é apresentada, chamando a atenção para aspetos que já são
importantes para o consumidor e de que este é lembrado através desse “lembrete”,
mais ou menos subtil. O nudge não funciona sozinho: ele existe para lembrar
o consumidor de algo que já é importante, que já consta do respetivo quadro
valorativo. Por isso mesmo, a maior ou menor eficácia de nudges destinados à
poupança energética depende da ideologia individual97. Outras vezes, o nudge
é construído de forma a tirar partido das normas sociais e da moral individual:
mostrar aos consumidores como é o seu comportamento em comparação com
o dos outros (por exemplo, quanta energia gastou, ou quando água gastou, em
comparação com os vizinhos)98 ou mostrar que empresas são mais amigas do
ambiente e quais o prejudicam mais (divulgando publicamente esses resultados
95
E. Gsottbauer e J. C. van den Bergh. Environmental policy theory given bounded rationality
and other-regarding preferences. Environmental & Resource Economics. 2010, 49, pp. 263-304.
96
K. Momsen e T. Stoerk. From intention to action: Can nudges help consumers to choose
renewable energy? Energy Policy. 2014,74, pp. 376-382; N. Rivers, et al. Using nudges to reduce
waste? The case of Toronto’s plastic bag levy. Journal of Environmental Management. 2017, 188,
pp. 153-162; F. Ebeling e S. Lotz. Domestic uptake of green energy promoted by opt-out tariffs.
Nature Climate Change. 2015, 5, p. 868.
97
Por exemplo, um estudo realizado com uma amostra de pessoas nos Estados Unidos chegou
à conclusão de que liberais estão mais dispostos a adotar medidas de conservação ambiental
enquanto os mais conservadores resistem mais a alterações comportamentais nesse sentido. D. L.
Costa e M. E. Kahn. Energy Conservation «Nudges» and Environmentalist Ideology: Evidence
from a Randomized Residential Electricity Field Experiment. In T. Sterner e J. Coria, ed. The
Economics of Environmental Policy. Behavioral and Political Dimensions. Cheltenham: Edward
Elgar, 2013, p. 219.
98
Em matéria de economia circular, foi testado um nudge que informava as pessoas que estavam a
escolher um produto que a maioria dos consumidores daquele bem tinha optado pela alternativa
mais duradoura e mais facilmente reparável. Essa informação, divulgada de forma direta e simples
no momento da compra, teve efeitos positivos sobre o ato de escolha subsequente, “guiando”
os indivíduos no sentido da compra mais “verde”. Cfr. C. Harms, et al. Behavioural study on
consumers’ engagement in the circular economy. European Commission, 2018, p. 169, disponível
aqui. Noutro estudo, foram aplicados, com algum efeito positivo, nudges destinados a promover o
leasing, a reparação e a utilização de telemóveis mais verdes. Cfr. A. Stefansdotter, et al. Nudging
for sustainable consumption of electronics products (in Swedish). Nordic Council of Ministers.
2016, p. 18, disponível aqui. Num terceiro estudo, concluiu-se que a inserção, nos produtos, de
rótulos com a indicação do tempo de vida respetivo, desde que objeto de design adequado,
pode influenciar positivamente a decisão de compra. Cfr. UE. Comité Económico e Social. The
Influence of Lifespan Labelling on Consumers. 2016, pp. 4 e 5, disponível aqui.
144
II. ECONOMIA CIRCULAR
para que a imagem das piores fique associada a essa má reputação)99.
Embora possam ajudar a promover comportamentos mais sustentáveis,
quer chamando a atenção de consumidores que já estão dispostos a consumir
de forma mais sustentável e precisam apenas de informação tratada para o
poderem fazer, quer facilitando comportamentos mais verdes ou eliminando
fricções, os nudges são insuficientes para a profundidade da alteração
comportamental de que um modelo económico circular necessita. Sendo a
própria atitude de consumo que está em causa, é necessário que o consumidor
altere a sua escolha inicial entre o tipo de consumo que quer ter e o tipo de
prejuízo ambiental que está disposto a provocar, o que implica decidir quanto é
que está disposto a prescindir do seu atual modelo de consumo para promover
uma forma de consumo que, sendo menos onerosa para o ambiente, pelo
menos num momento inicial lhe vai parecer mais onerosa pessoalmente
(porque implica uma alteração de comportamento, o que implica vencer
a inércia do status quo). Consumir menos e consumir produtos com maior
durabilidade implica uma alteração face ao paradigma atualmente dominante
e o consumidor que é constantemente seduzido pelo consumo, sobretudo por
consumo barato e facilmente descartável, dificilmente conseguirá alterar a sua
atitude de consumo de uma forma global, isto é, de uma forma que vá além
de alguns consumos mais frequentes e em que a exposição a alternativas mais
pró-ambientais seja maior e em que os custos dessa alteração de consumo
sejam menores. As decisões de consumo não são escolhas isoladas das demais
decisões do indivíduo, sendo impactadas por redes de infraestruturas e uma
malha contextual complexa.
Por conseguinte, alterações que visam diretamente a alteração do hábito
de consumo, nomeadamente facilitando a adoção de comportamentos que
permitam implementar a circularidade, mas num contexto que se mantém
idêntico, isto é, que conserva as caraterísticas de uma economia linear e não
circular, nomeadamente ao nível fundamental da publicidade e marketing,
terão um alcance muito mais reduzido do que aquelas que se destinam a
indivíduos cujo contexto já propicia a adoção de comportamentos que se
99
R. Thaler e C. Sunstein. Nudge. The final edition. London: Penguin, 2021, pp. 303-304; H.
Allcott. Social norms and energy conservation. Journal of Public Economy. 2011, 95, pp. 10821095; A. Biel e J. Thøgersen. Activation of social norms in social dilemmas: a review of the
evidence and reflections on the implications for environmental behaviour. Journal of Economic
Psychology. 2007, 28, pp. 93-112; R. B. Cialdini, et al. Managing social norms for persuasive
impact. Social Influence. 2006, 1, pp. 3-15; N. J. Goldstein, R. B. Cialdini e V. Griskevicius.
A room with a viewpoint: using social norms to motivate environmental conservation in
hotels. Journal of Consumer Research. 2008, 35, pp. 472-481.
145
II. ECONOMIA CIRCULAR
inserem num determinado modelo de vida100. Se o ambiente for favorável à
adoção do comportamento, a probabilidade de ele se concretizar, naturalmente,
aumenta101. Um consumidor exposto a uma diversidade maior de produtos
duradouros, mais facilmente os comprará, assim como desmantelar produtos
em fim de vida será mais fácil se houver uma standardização do design de
fim de vida dos produtos. Esta é também uma lição importante da behavioral
economics, que resulta precisamente da valorização do contexto da decisão, da
“arquitetura da decisão” no seu conjunto.
Em conclusão, a identificação e análise dos fatores comportamentais
com influência no comportamento dos agentes económicos, quer do lado da
procura, quer do lado da oferta, apresenta benefícios claros para a construção
de políticas públicas, nomeadamente no domínio da economia circular.
A implementação de um modelo económico circular, em substituição
do atual modelo linear, implica uma transformação substancial nos
comportamentos típicos dos agentes económicos, sendo, portanto, um
imperativo quer de eficiência, quer de eficácia, o conhecimento dos mecanismos
comportamentais que, previsivelmente, condicionarão o sucesso das políticas
públicas a implementar nessa área.
Esse conhecimento permite que se estabeleça uma relação mais clara
entre os objetivos da política pública a implementar e os comportamentos
dos agentes económicos que são destinatários da intervenção, o que, por sua
vez, torna possível uma seleção mais eficaz dos instrumentos de que se serve
a intervenção, bem como a adaptação do respetivo conteúdo aos objetivos
visados, com potenciais ganhos em termos de sucesso da política pública.
100
Algumas marcas já começaram a implementar modelos de leasing de produtos em segmentos de
consumo onde a utilização desse modelo ainda é marginal. À medida a que se for normalizando o
conceito, a probabilidade de os agentes optarem pelo leasing em vez da compra tenderá a aumentar.
Cfr. W. R. Stahel. The performance economy. 2.ª ed. UK: Palgrave Macmillan, 2010, p. 122.
101
No contexto inserem-se desde o tipo de tecnologias a que habitualmente recorremos à
cultura dominante em termos de valores, hábitos, normas sociais. Alguns sinais de que a atitude
de consumo pode estar a alterar-se, pelo menos nas gerações mais jovens, são a mudança de
paradigma de consumo em alguns bens mais dispendiosos e que costumavam ser exibidos como
sinal de estatuto social, como casas e carros, em que assistimos a uma crescente preferência pela
utilização do serviço em vez da compra do bem (exemplo da Zipcar ou da AirBnb), algo que foi
tornado possível pela disponibilização de tecnologias que permitem a dinamização deste tipo de
mercados. Cfr. Disponível aqui.
146
II. ECONOMIA CIRCULAR
3. Um sistema legal para a circularidade
Abordado o conceito de economia circular, incluindo o seu fundamento
teórico na ciência económica e a forma como tem sido recebido no âmbito de
várias políticas públicas, caberá agora explicitar de que forma tem sido, e se
prevê que venha a ser, a breve trecho, incorporado no ordenamento jurídico.
Por força da abrangência do conceito, é já hoje evidente que um sistema
legal para a circularidade não se bastará com pontuais alterações em regimes
jurídicos existentes, e, ademais, não se limitará sequer àqueles que atualmente
incidem sobre as áreas de atividade tradicionalmente reguladas pelo Direito do
Ambiente. Caberá agora, portanto, identificar e analisar estas áreas.
A título preliminar, contudo, importa fazer uma observação genérica
quanto à importância dos instrumentos de natureza económica relativos
ao desempenho ambiental na temática da economia circular102. Não será
surpreendente que, para uma mudança estrutural a nível económico, estes
instrumentos sejam particularmente relevantes103. Vários dos regimes que
seguidamente abordaremos, como o do rótulo ecológico, o da contratação
pública sustentável, ou o dos direitos do consumidor, são incentivos – ainda que
alguns mais robustos e restritivos do que outros – destinados à reconfiguração
dos processos produtivos, ou seja, da oferta, através de mudanças no consumo,
ou seja, na procura.
Potencialmente associados a estes regimes estão outros, transversais a
qualquer setor de atividade. É o caso dos instrumentos tributários ambientais
– através de, por exemplo, benefícios fiscais, incorporação de componentes
ambientais em cálculos de imposto, agravamentos tributários por razões
ambientais104 –, que poderão ser utilizados para incentivar (positiva ou
102
Uma definição, com vários exemplos, destes tipos de instrumentos das políticas ambientais
pode ser encontrada nos artigos 17.º e 20.º da LBA.
103
Encontram-se já perspetivas muitas críticas do que se considera ser o excessivo enfoque em
instrumentos de natureza económica. A. N. López. Intervención pública y límites del mercado en
la transición a la economia circular. In A. N. López, et al. Redondear La Economía Circular. Del
Discurso Oficial a Las Políticas Necesarias. Arazandi/Civitas, 2021, pp. 97-132.
104
J. Freitas da Rocha. Instrumentos Tributários. In C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de
Direito do Ambiente. I. CIDP/ICJP. 2021, pp. 384-396. Especificamente sobre instrumentos
tributários no âmbito da economia circular. X. Vence e S. López Pérez. Taxation for a Circular
Economy: New Instruments, Reforms, and Architectural Changes in the Fiscal System.
Sustainability. 2021, 13(8), pp. 1-21.
147
II. ECONOMIA CIRCULAR
negativamente) a reconfiguração do modelo económico105. De igual modo,
os instrumentos vocacionados para alterações de práticas ao nível da gestão
societária incidem indiferentemente sobre qualquer setor, como é o caso do
dever de inclusão, no relatório de gestão, de informações relativas à evolução,
desempenho e impacto da atividade empresarial no que que toca a questões
ambientais106.
Atendendo à necessidade de inovação – tecnológica, científica e económica
– um terceiro conjunto de instrumentos transversais particularmente relevantes
são os relativos ao financiamento das atividades económicas. Além da valoração
de objetivos de ecoinovação107 nos seus programas gerais, o Programa LIFE
da União Europeia, especificamente dedicado a projetos na área ambiental,
compreende quatro áreas de financiamento, no período 2021-2027, sendo uma
delas a economia circular e qualidade de vida108.
Mas, além de fundos públicos, a orientação de produtos financeiros privados
para projetos ambientalmente sustentáveis – como os green bonds109 – implica o
combate a práticas comerciais desleais (e ambientalmente contraproducentes)
de comercialização com alegações falsas de sustentabilidade (conhecidas
como greenwashing). Para “eliminar entraves ao funcionamento do mercado
interno no que diz respeito à angariação de financiamento para projetos de
sustentabilidade”, a União Europeia procedeu à especificação dos critérios para
105
Cfr. um estudo da implementação, em 2018, de um sistema de taxas com o objetivo de aumentar
os custos de utilização de aterros e de incineração em comparação com os custos da reciclagem.
S. -W. Rhee. Circular Economy of Municipal Solid Waste (MSW) in Korea. In S. K. Ghosh, ed.
Circular Economy: Global Perspective. Springer. 2020, pp. 326-328.
106
Introduzidas pela Diretiva 2014/95/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro
de 2014, que altera a Diretiva 2013/34/UE no que se refere à divulgação de informações não
financeiras e de informações sobre a diversidade por parte de certas grandes empresas e grupos.
107
O Plano de Ação sobre eco-inovação, ainda em implementação, foi criado em 2011. Cfr. UE.
Comissão Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité
Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 15 de dezembro de 2011. COM (2011)
899 final.
108
Regulamento (UE) n.º 2021/783 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2021,
que estabelece um Programa para o Ambiente e a Ação Climática (LIFE).
109
Os green bonds não são, estruturalmente, instrumentos de investimentos diversos daqueles
que não são dedicados à sustentabilidade. Contudo, o investimento é funcionalizado a projetos
dedicados à sustentabilidade e, em regra, o investidor não fica exposto ao risco do projeto
específico que é financiado. Mais detalhadamente, cfr. A. Maltais e B. Nykvist. Understanding
the Role of Green Bonds in Advancing Sustainability. Journal of Sustainable Finance & Investment.
2020, pp. 1-20.
148
II. ECONOMIA CIRCULAR
a qualificação de uma atividade como sustentável, através do Regulamento
Taxonomia110. Concretamente, são definidas como dando um “contributo
substancial para a transição para a economia circular”, designadamente, a
utilização mais eficiente de recursos naturais na produção, reduzindo a utilização
de matérias-primas primárias e aumentando a utilização de subprodutos e
de matérias-primas secundárias, o aumento da reciclabilidade, durabilidade,
reparabilidade, reutilização e atualização de produtos; o prolongamento da
utilização de produtos; ou a prevenção da produção de resíduos111. Prevêse, ainda, o reforço substantivo da inclusão de critérios de sustentabilidade
na gestão societária, atendendo à Proposta de Diretiva relativa ao dever de
diligência das empresas em matéria de sustentabilidade112.
Deve ainda ser explicitado que a já referida ligação entre o tema da economia
circular e o das alterações climáticas está espelhada na LBC. De facto, apesar de
não haver uma lei portuguesa ou europeia que estabeleça as bases da política
para a circularidade, a LBC refere-se várias vezes à promoção da economia
circular. Além de, em geral, uma diminuição na extração de recursos ser útil
aos objetivos de mitigação, o elo principal está na poupança energética que
um modelo circular deverá acarretar. Por esse motivo, a eficiência energética
na utilização de recursos no âmbito de uma economia circular é desde logo
eleita como um objetivo também da política do clima113, sendo também
especialmente destacada a importância da política de transportes114. Mas é a
propósito da política de materiais e de consumo que o tema é desenvolvido,
sendo elencados alguns dos instrumentos jurídicos que abordaremos de
seguida, como a conceção ecológica ou a reparação e substituição de partes115.
110
Regulamento (UE), cit. nota 5.
111
Cfr. Regulamento (UE), cit. nota 5, n.º 1 do artigo 17.º.
112
UE. Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao dever de
diligência das empresas em matéria de responsabilidade e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937,
de 23 de fevereiro de 2022. COM (2022) 71 final. Propõe a definição das “obrigações das
empresas em matéria de efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos e no
ambiente, no que diz respeito às suas próprias operações, às operações das suas filiais e às
operações da cadeia de valor realizadas por entidades com as quais a empresa tenha uma
relação empresarial estabelecida”.
113
Cfr. alínea e) do artigo 3.º.
114
Cfr. artigo 47.º e n.º 2 do artigo 51.º.
115
Cfr. artigo 51.º.
149
II. ECONOMIA CIRCULAR
A transversalidade do conceito de economia circular obriga-nos, agora,
à escolha de alguns instrumentos jurídicos enquanto objeto de estudo. Serão
uma amostra do que é e será, previsivelmente, um sistema legal funcionalizado
à circularidade, dando prioridade, naturalmente, àqueles que de forma mais
intensa, estrutural e atual são relevantes na transição, como é o caso da
regulação de produtos e de processos produtivos, do consumo, da gestão de
resíduos e das substâncias químicas. Seguidamente, trataremos de algumas
cadeias de valor que, pela escassez de recursos ou pela elevada contribuição
para a sobre-exploração, têm sido prioritárias na transição.
3.1. Produtos e processos produtivos
Atualmente, o enquadramento legal da conceção de produtos e respetivos
processos produtivos está funcionalizado, quase exclusivamente, à proteção da
saúde humana, através de regimes jurídicos relativos à utilização de substâncias
químicas. Sabendo-se que o impacto ambiental de um produto é definido
quase inteiramente na fase da sua conceção116, a promoção do ecodesign ou
conceção ecológica transformou-se numa prioridade regulatória117. O Direito
da União Europeia já contém normas especificamente funcionalizadas à
conceção ecológica. É o caso do regime do rótulo ecológico118 e da Diretiva
Ecodesign119. Contudo, por um lado, qualquer um destes regimes inclui
elementos relativos à circularidade, mas não é específico para atingir este
objetivo, e, portanto, revelam-se insuficientes ao nível dos critérios. Por
outro lado, e mais relevantemente, o primeiro é um instrumento de natureza
voluntária e destinado, em suma, a certificar as melhores práticas ambientais,
116
UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 3.
117
Desenvolvidamente sobre o tema, cfr. B. Puentes Cociña. Ecodiseño de productos para la
economía circular: durabilidad, reparación y reutilización. In A. Nogueira López, et al., ed.
Redondear la economía circular. Del discurso oficial a las políticas necesarias. Arazandi/Civitas.
2021, pp. 133-161.
118
Regulamento (CE) n.º 66/2010 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro
de 2009, relativo a um sistema de rótulo ecológico da UE. Sobre este sistema, cfr.
H. C. Leong. Instrumentos (de promoção e gestão) do desempenho ambiental. In C.
Amado Gomes, et al., ed. Tratado de Direito Do Ambiente. I. CIDP/ICJP. 2021, pp. 346-353.
Disponível aqui.
119
Diretiva 2009/125/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de outubro de 2009, relativa
à criação de um quadro para definir os requisitos de conceção ecológica dos produtos relacionados
com o consumo de energia.
150
II. ECONOMIA CIRCULAR
estando limitado a produtos que correspondem a um nicho do mercado; o
segundo, apesar de instituir um rótulo obrigatório, incide exclusivamente sobre
o consumo de energia.
Por estes motivos, a Comissão Europeia anunciou, logo em 2020, a intenção
de rever a Diretiva Ecodesign, prevendo o seu alargamento a mais áreas120. A
proposta não foi inovadora, na medida em que as virtualidades da Diretiva
Ecodesign na área da circularidade são, há já algum tempo, objeto de estudo na
Europa121. Até ao momento, essa intenção concretizou-se numa Proposta de
Regulamento122 que, revogando a atual Diretiva Ecodesign, propõe:
(i) A definição de um conjunto de requisitos de conceção ecológica para
a colocação de produtos no mercado interno, relativos a durabilidade,
possibilidade de reutilização, atualização, reparação, manutenção,
renovação, presença de certas substâncias, inclusão de produtos reciclados,
eficiência na utilização de recursos, reciclabilidade, pegada carbónica
e ambiental, e previsão de geração de resíduos. Prevê-se também a
implementação de um sistema de verificação do cumprimento através de
testes e cálculos, e ainda que a Comissão definirá os critérios, mediante ato
delegado, por categorias de produtos;
(ii) A criação de um passaporte digital a incluir um conjunto de
informações específicas relativas a um determinado produto. Esta medida
inclui um dever, imposto ao produtor ou ao importador, de prestação de
um conjunto alargado de informações quanto ao impacto ambiental do
produto e respetiva embalagem;
(iii) A definição de um conjunto de regras destinadas a prevenir a
destruição de bens não vendidos, incluindo a admissibilidade de proibição
de destruição quando se conclua que certo grupo de produtos tem um
impacto ambiental significativo;
A criação de mecanismos de transmissão simples de informação ao
consumidor, em termos a definir pelos Estados-Membros. Uma das vias
enunciadas é a da criação de rótulos ecológicos.
(iv)
Esta proposta utiliza assim, de forma complementar, dois instrumentos
de natureza bastante diversa. Por um lado, são impostos standards mínimos
120
UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 4.
121
C. Dalhammar, et al. Addressing resource efficiency through the Ecodesign Directive: A
review of opportunities and barriers. TemaNord. Nordic Council of Ministers. 2014.
122
UE. Comissão Europeia, cit. nota 13.
151
II. ECONOMIA CIRCULAR
de eficiência na utilização de recursos naturais, sem os quais o produtor
ou importador estão impedidos de colocar certo produto no mercado,
numa abordagem proibitiva de command-and-control. Por outro lado, a
disponibilização de informação ao consumidor, com preocupações de
simplicidade e acessibilidade, adiciona um instrumento que, embora
possivelmente obrigatório, visa melhorar o desempenho ambiental através do
funcionamento normal de adaptação da oferta às exigências da procura – sem
esquecer aqui tudo o que se disse supra quanto à insuficiência da informação
como instrumento de alteração do padrão da procura123. A demonstração
da relevância de uma identidade corporativa ambientalmente responsável
na modelação do comportamento das empresas é evidenciada pelo facto
de se ter tornado também prioritário o combate às alegações infundadas de
sustentabilidade124.
Embora todas as alterações ao nível do produto tenham impacto no
processo produtivo, a Comissão Europeia tem também avançado com
propostas especificamente direcionadas à alteração de processos produtivos,
em linha com o previsto no novo Plano de Ação125.
A proposta de revisão da Diretiva Emissões Industriais126 tem um objetivo
amplo de “estimular uma profunda transformação do setor agroindustrial
rumo à poluição zero mediante a utilização de tecnologias revolucionárias,
contribuindo assim para os objetivos do Pacto Ecológico Europeu de alcançar
a neutralidade carbónica, uma maior eficiência energética, um ambiente não
tóxico e uma economia circular”127. Todavia, procede a alterações cirúrgicas,
mas transversais e estruturais, com o objetivo específico de aumentar a eficiência
na utilização de recursos nos setores da energia, da água e dos resíduos. Assim,
abundam ao longo da Proposta as menções a, essencialmente, dois aspetos: a
123
Sobre a complementaridade entre estes instrumentos, cfr. H. C. Leong, cit. nota 118, pp. 313-315.
124
Cfr. infra ponto 3.2.1.
125
Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 6.
126
Diretiva 2010/75/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010,
relativa às emissões industriais (prevenção e controlo integrados da poluição).
127
Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva 2010/75/UE
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, relativa às emissões industriais
(prevenção e controlo integrados da poluição) e a Diretiva 1999/31/CE do Conselho, de 26 de abril
de 1999, relativa à deposição de resíduos em aterros, de 5 de abril de 2022. COM (2022) 156 final, p. 4.
Em linha com esta proposta, foi também apresentada uma Proposta de Regulamento do Parlamento
Europeu e do Conselho relativo à comunicação de dados ambientais de instalações industriais e à
criação de um Portal das Emissões Industriais, de 5 de abril de 2022. COM (2022) 157 final.
152
II. ECONOMIA CIRCULAR
reutilização de águas industriais e o aumento da eficiência energética. A alteração
legislativa mais relevante que se propõe para este fim incide sobre a previsão de
que as licenças ambientais128 deverão passar a fixar, sempre que possível, além
dos já estabelecidos valores-limite de emissões, valores-limite de desempenho
ambiental obrigatórios para os níveis de consumo e de eficiência na utilização
de recursos, incluindo água, energia e materiais reciclados, baseados nos níveis
de desempenho ambiental associados às melhores técnicas disponíveis129. Em
articulação com as demais alterações, e num capítulo denominado Promover a
Inovação, propõe-se também que os Estados-Membros exijam aos operadores
que incluam o plano de transformação dos respetivos sistemas de gestão
ambiental a fim de contribuir para a emergência de uma economia sustentável,
limpa, circular e com impacto neutro no clima130.
Um último aspeto que deve ser frisado no que toca à reconfiguração dos
produtos e respetivos processos produtivos na transição para a economia
circular é a servitização. A servitização pode ser definida, amplamente, como
a conversão de modelos de negócio de venda de bens em modelos de oferta de
serviços131, com enfoque num amplo e permanente acesso ao bem pretendido, e
é vista como um meio para intensificar a utilização dos produtos, prolongando
a sua vida útil (ao desincentivar ciclos de vida curtos e obsolescência planeada)
e aumentando a eficiência na utilização de recursos, num contexto de economia
de partilha ou colaborativa (sharing ou collaborative economy)132.
Há já alguns exemplos estabelecidos no mercado, sobretudo ao nível
empresarial, em que a compra de materiais foi substituída pelo aluguer,
128
Sobre o regime do licenciamento ambiental, cfr. R. T. Lanceiro. Instrumentos Preventivos. In
C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de Direito do Ambiente. I. 2.a ed. CIDP/ICJP. 2022, pp. 32-77.
Disponível aqui.
129
Tal conclusão resulta da análise, nomeadamente, das propostas de alteração dos artigos 5.º, 14.º e 15.º.
130
Cfr. proposta de aditamento de artigo 27.º-D.
131
J. Hojnik. Ecological modernization through servitization: EU regulatory support for
sustainable product-service systems. REC&IEL. 2018, 27(2), p. 163.
132
Definida pela Comissão Europeia como “modelos empresariais no âmbito dos quais as atividades
são facilitadas por plataformas colaborativas que criam um mercado aberto para a utilização
temporária de bens ou serviços, muitas vezes prestados por particulares”. Cfr. UE. Comissão
Europeia. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico
e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 2 de junho de 2016. Uma Agenda Europeia para a
Economia Colaborativa. COM (2016) 356 final, p. 3. Cfr. a meta-análise de definições feita por
M. Hossain. Sharing Economy: A Comprehensive Literature Review. International Journal of
Hospitality Management. 2020, 87(102470).
153
II. ECONOMIA CIRCULAR
com deveres de manutenção associados (e.g., carros, impressoras, sistemas
de ar condicionado, maquinaria pesada, iluminação), incluindo em setores
com elevado impacto (como o setor automóvel ou hospitalar), mas também
em contextos potencialmente relevantes para qualquer pessoa, como a
contratação de serviços de acesso a plataformas (e.g., streaming de música,
de filmes ou séries, ou praticamente todas as aplicações para computadores
e telemóveis) ou de armazenagem digital (e.g., drives, ao invés da compra
de servidores ou computadores). Apesar de referido expressamente pela
Comissão no novo Plano de Ação133, o incentivo a modelos de negócios de
produto como um serviço ainda não foi objeto de qualquer proposta de ato
jurídico. Em todo o caso, e atendendo ao facto de, por si só, o mercado estar
a operar rapidamente esta conversão, possivelmente a regulação deste tipo de
serviços limitar-se-á a regimes de garantia de acesso não-discriminatório e ao
robustecimento de direitos dos consumidores134, ou mesmo apenas à emissão
de documentos de orientação sobre a interpretação e aplicação de normas
gerais a este tipo de serviço135.
3.2. Consumo
A modelação de processos produtivos através do consumo recorre,
principalmente, a instrumentos relativos ao desempenho ambiental. A
Comissão define, como segunda linha no seu plano de ação, a capacitação
da posição de consumidores privados e públicos136. Será relevante distinguir
duas dimensões: a do consumidor individual, em que assume protagonismo a
previsão de aditamentos significativos ao rol de direitos dos consumidores; e a
do consumidor público, que, atendendo à sua dimensão, é capaz de fornecer
um incentivo significativo à conversão da produção a modelos circulares.
133
UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 4, quando se refere a «[i]ncentivar o modelo de negócio
“produto como um serviço” ou outros modelos em que os produtores mantêm a propriedade dos
produtos ou a responsabilidade pelo desempenho dos mesmos ao longo do ciclo de vida».
134
Alguns exemplos de questões que carecem de regulação podem ser encontrados em
V. Mak e E. Terryn. Circular Economy and Consumer Protection: The Consumer as a Citizen
and the Limits of Empowerment Through Consumer Law. Journal of Consumer Policy. 2020, 43,
1, pp. 227-248.
135
J. Hojnik cit. nota 131, 168.
136
UE. Comissão Europeia, cit. nota 22, p. 5.
154
II. ECONOMIA CIRCULAR
3.2.1. Direitos do consumidor
A revisão do regime de direitos do consumidor antevê-se com dois pilares: a
atribuição de novos direitos aos consumidores; e o controlo de práticas desleais,
como o greenwashing e a obsolescência planeada. A Comissão já iniciou o
procedimento ou já apresentou propostas nestas matérias. A título preliminar,
contudo, importa fazer notar a aproximação que se regista, por via da transição
para a economia circular, entre o direito do consumidor e o direito dos resíduos.
O fundamento para vários dos novos direitos que, previsivelmente, serão
consagrados, pode ser o princípio da responsabilidade alargada do produtor137.
A internalização dos custos ambientais da produção – iniciada pelo princípio
do poluidor-pagador138 – deixará de se referir apenas às operações atualmente
reguladas pelo direito dos resíduos, focadas na gestão após a disposição pelo
detentor do produto (reciclagem, outros tipos de valorização, eliminação),
passando a abranger outras operações a montante, a serem incorporadas no
ordenamento enquanto direitos dos consumidores.
Figura 3: Operações de retenção de valor de produtos e componentes. Fonte: P. Morseletto.
Targets for a Circular Economy. Resources, Conservation and Recycling. 2020, 153, p. 104553
137
C. Dalhammar. Extended Producer Responsability. In L. Krämer, et al., ed. Principles of Environmental
Law. VI. Elgar Encyclopedia of Environmental Law, Edward Elgar Publishing, 2018, p. 211.
138
Sobre o princípio do poluidor-pagador e sua relação com o princípio da responsabilidade
alargada do produtor, cfr. H. Oliveira, cit. nota 20, pp. 115-120.
155
II. ECONOMIA CIRCULAR
Em termos de propostas legislativas, a Comissão Europeia já fez decorrer,
no início de 2022, a consulta pública de uma intenção de apresentação de uma
proposta legislativa com o objetivo de garantir aos consumidores informações
claras e facilmente acessíveis sobre a durabilidade dos produtos e a possibilidade
de reparação e de atualização (updates)139. Foram apresentados os seguintes
objetivos regulatórios140:
(i) Incentivo à reparação como primeira opção, com custos inferiores à
aquisição de um novo produto;
(ii) Reinício do período de garantia após a reparação e extensão da garantia
geral;
(iii) Promoção de bens renovados e em segunda mão através da atribuição
de garantias;
(iv) Atribuição de um direito à reparação com preços razoáveis.
Também relativa à capacitação do consumidor enquanto agente de mercado,
mas recorrendo a instrumentos significativamente diversos, a Proposta de
Diretiva relativa ao ecobranqueamento e à obsolescência planeada141 assenta na
imposição de deveres alargados de informação, por um lado, e na proibição de
certas práticas, por outro laado. No que toca a práticas comerciais desleais142,
propõe-se o aditamento de dez novas práticas ao rol já existente, como, por
exemplo, fazer alegações genéricas de sustentabilidade sem demonstração
de fundamento, exibir um rótulo de sustentabilidade não certificado ou
legalmente estabelecido, apresentar requisitos legalmente exigidos como uma
característica distintiva do produto, ou não informar o consumidor de que uma
atualização terá impacto negativo na utilização do bem, ou de que o produto
tem uma característica que irá limitar a sua durabilidade. É central, neste
139
Além da Diretiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011,
relativa aos direitos dos consumidores, poderá eventualmente estar abrangida a Diretiva (UE)
2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, relativa a certos aspetos
dos contratos de compra e venda de bens. Foi já evidenciado que esta última, apesar de 2019, não
está alinhada com os objetivos do novo Plano de Ação para a Economia Circular. Cfr. M. García
Goldar. The Inadequate Approach of Directive (UE) 2019/771 towards the Circular Economy.
Maastricht Journal of European and Comparative Law. 2021, pp. 9-24.
140
A informação completa quanto à consulta pública, incluindo um relatório com o resultado,
encontra-se disponível aqui.
141
UE. Comissão Europeia, cit. nota 12.
142
Reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio
de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado
interno.
156
II. ECONOMIA CIRCULAR
contexto, uma amplíssima definição de alegação ambiental enquanto “qualquer
mensagem ou representação que não seja obrigatória por força do Direito da
União ou do Direito nacional, incluindo uma representação textual, pictórica,
gráfica ou simbólica, sob qualquer forma, incluindo rótulos, marcas comerciais,
nomes de empresas ou nomes de produtos, no contexto de uma comunicação
comercial, que declare ou implique que um produto ou profissional tem um
impacto positivo ou nulo no ambiente ou é menos nocivo para o ambiente do
que outros produtos ou profissionais, respetivamente, ou que melhorou o seu
impacto ao longo do tempo”143.
Além da proibição de certas práticas, a Comissão propõe também a alteração
do regime da informação pré-contratual144, aditando seis elementos adicionais
a facultar aos consumidores, relativos, por exemplo, à garantia comercial
de durabilidade, à possibilidade de atualizações (no caso de softwares), ou à
reparabilidade. Serão instituídos, por esta via, novos direitos informacionais
dos consumidores, com os correspetivos deveres da parte de produtores e
vendedores. Os instrumentos jurídicos baseados em informação, aliás, parecem
constituir a via preferencial para ação nas políticas para a circularidade, como
se verá também em matéria de Direito dos Resíduos.
Ao nível nacional, alguns Estados-Membros já incluíram obrigações
legais mais específicas quanto a certos produtos, como é o caso do índice de
reparabilidade de produtos eletrónicos em França145, ou instituíram políticas
de incentivo, como é o mecanismo austríaco de comparticipação de 50% do
valor de reparação de produtos elétricos e eletrónicos através de um voucher146.
Em suma, a transição para a economia circular irá, previsivelmente,
implicar uma transformação funcional no Direito dos Consumidores, que
deixará de ser uma área do Direito vocacionada exclusivamente para a
regulação de uma relação contratual, protegendo os interesses económicos das
partes (nomeadamente, da parte mais fraca na relação contratual), passando
também a ser um instrumento central de proteção ambiental147. Contudo, os
143
Cfr. n.º 1 do artigo 1.º da Proposta de Diretiva, cit. nota 12.
144
Contido atualmente na Diretiva 2011/83/UE.
145
Cfr. informação completa, com os vários atos aprovados, disponível aqui.
146
A informação sobre a iniciativa encontra-se disponível aqui.
147
Para uma análise desenvolvida do ordenamento jurídico vigente, a forma como acomoda, ou
não, os objetivos da economia circular, e conjunto de propostas, cfr. E. Terryn. A right to repair?
Towards sustainable remedies in consumer law. European Review of Private Law. 2019, 27(4),
pp. 851-873.
157
II. ECONOMIA CIRCULAR
instrumentos de capacitação de consumidores são geralmente considerados
insuficientes, não podendo obnubilar a necessidade de complemento por outras
medidas de incentivo, como as de natureza fiscal, e de medidas de natureza
proibitiva para certos produtos148.
3.2.2. O papel do consumidor público
Ao contrário do que sucede com o Direito dos Consumidores, a utilização
do Direito da Contratação Pública para objetivos ambientais não constitui
qualquer novidade no ordenamento jurídico europeu ou português149.
A utilização de critérios ambientais depara-se com limites e obstáculos
associados ao princípio da concorrência150 – central no Direito da Contratação
Pública. Tendo a admissibilidade da utilização destes critérios sido há muito
sancionada pelo TJUE151, a eficácia em geral da contratação pública sustentável
é questionada152, e algumas questões jurídicas relevantes para a eficiência na
148
V. Mak e E. Terryn. cit. nota 134.
149
Com origem na Comunicação interpretativa da Comissão Europeia sobre o direito
comunitário aplicável aos contratos públicos e as possibilidades de integrar considerações
ambientais nos contratos públicos, de 4 de junho. COM (2001) 274 final. Para uma análise
resumida das principais questões, com indicações bibliográficas, cfr. H. C. Leong. Instrumentos
contratuais. In C. Amado Gomes, et al., ed. Tratado de Direito do Ambiente. I. 2.a ed.
CIDP/ICJP, 2022, disponível aqui. Especificamente sobre contratação pública circular, cfr.
R. Carvalho. Da contratação pública sustentável à contratação pública circular: o objeto da
procura e o modelo de gestão. In M. A. Raimundo, ed. Concorrência e sustentabilidade: dois
desafios para a contratação pública: Actas Das II Jornadas de Direito Dos Contratos Públicos (30 de
Setembro a 2 de Outubro de 2020, FDUL). AAFDL, 2021.
150
Por esse mesmo motivo, o Direito da Concorrência é também visto como uma área problemática
na transição para a economia circular. Sobre este problema, cfr. A. Gerbrandy. Solving a
sustainability-deficit in European Competition Law. World Competition. 2017, 40(4), pp. 539-562.
151
Acórdão do TJUE de 7 de setembro de 2002, Concordia Bus, Processo n.º C-513/99, relativo à
tomada em consideração de questões ambientais como critério de adjudicação.
152
K. -M. Halonen. Is Public Procurement Fit for Reaching Sustainability Goals? A Law and
Economics Approach to Green Public Procurement. Maastricht Journal of European and
Comparative Law. 2021, 28(4), pp. 535-555. A Comissão publicitou um estudo realizado em 2006
sobre os obstáculos reportados pela administração pública à utilização da contratação pública
sustentável, sendo destacadas a falta de apoio político, a perceção de que produtos sustentáveis são
mais caros, a falta de apoio jurídico na aplicação de critérios, a falta de instrumentos de informação,
a falta de formação e de cooperação entre entidades, e a ausência de critérios adequados para certos
produtos e serviços. Cfr. M. Bouwer, et al. Green public procurement in Europe 2006: Conclusions
and recommendations. Virage Milieu & Management, 2006.
158
II. ECONOMIA CIRCULAR
utilização de recursos permanecem, como é o caso das preferências locais153.
Apesar destes obstáculos e limitações, a Comissão Europeia publicou, em
2017, um conjunto de orientações e experiências de utilização de critérios
circulares no regime vigente de contratação pública154. Possivelmente de forma
mais consequente, a Proposta de Regulamento sobre Ecodesign prevê que, por
ato delegado, a Comissão possa aprovar requisitos de conceção ecológica a
aplicar pelas entidades adjudicantes em procedimentos de contratação pública,
sob a forma de “especificações técnicas obrigatórias, critérios de seleção,
critérios de adjudicação, cláusulas de execução dos contratos ou metas”155.
Neste contexto, os tradicionais critérios de adjudicação relativos ao preço
da aquisição do produto ou serviço perdem relevância em face de critérios mais
representativos e que se refiram a todo o ciclo de vida do produto. A utilização
do critério do ciclo de vida obriga a administração a ter em conta na aquisição
todos os custos decorrentes da utilização do produto, tornando evidentes e
quantificáveis os benefícios económicos de produtos que tenham ciclos de vida
mais longos e que sejam mais eficientes na utilização de recursos. Por exemplo,
considerando todos os custos do ciclo de vida, poderá ser mais barato um
produto que seja reparável, que permita a substituição de partes, que consuma
menos energia e água, ou que tenha custos de manutenção inferiores. Poderão
assim ser tidos em conta custos ambientais e custos económico-financeiros até
então desconsiderados, abordando, de uma assentada, ineficiências de diversa
natureza156. Contudo, há outros meios relevantes na circularização através da
contratação pública, como o enfoque na qualidade, a servitização157 e a procura
de novos produtos e sistemas158.
153
D. M. Fernandes. Preferências locais na contratação pública. Almedina, 2021.
154
Cfr. UE. Comissão Europeia. Public Procurement for a Circular Economy. Good practice and
guidance. Disponível aqui.
155
Cfr., UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, artigo 58.º.
156
Desenvolvidamente sobre a utilização deste critério ao nível dos Estados-Membros
e jurisprudência relevante do TJUE, cfr. B. Hofbauer, A Tisch e H. Schreiber. Study
on the implementation of life cycle assessment and environmental footprint methods in the
context of public procurement: Final Report. European Commission, Directorate-General for
Environment, 2021.
157
Cfr. supra 3.1.
158
K. Alhola, et al. Exploiting the Potential of Public Procurement: Opportunities for Circular
Economy. Journal of Industrial Ecology. 2019, 23(1), pp. 101-104.
159
II. ECONOMIA CIRCULAR
3.3. Resíduos e químicos
Apesar de os objetivos inovatórios da transição para a economia circular
incidirem sobretudo sobre fases a montante no ciclo de vida do produto, fechar
o círculo no processo produtivo passa, necessariamente, por alterações que
permitam a reintegração dos componentes e produtos primários na economia.
Essa fase ocorre já depois de o detentor do produto dele se ter desfeito, o que
implica a passagem do produto para o estatuto de resíduo. O Direito dos
Resíduos será também, previsivelmente, uma área na qual será necessária
alguma adaptação. Contudo, ao contrário das restantes áreas, não se prevê que
essa alteração seja disruptiva ou estrutural, antevendo-se antes o reforço e a
melhoria. De facto, o enquadramento legal atual já prevê uma hierarquia na
gestão de resíduos159, cujos níveis cimeiros são ocupados pela prevenção e pela
reutilização, embora sem consequências relevantes (em termos jurídicos, e na
prática)160, bem como o já referido princípio da responsabilidade alargada do
produtor. Simultaneamente, grande parte das adaptações necessárias incidem
sobre determinadas cadeias de valor prioritárias161, e não sobre normas gerais
de gestão de resíduos162. De facto, o Direito dos Resíduos está hoje vocacionado
sobretudo para a reciclagem e para a valorização de determinadas categorias de
resíduos, que são objeto de regulação especial.
Ainda assim, há um tópico crucial a desenvolver futuramente, de que
depende o funcionamento dos mercados de produtos secundários, e, portanto,
a reintrodução de matérias no mercado: o cruzamento entre o Direito dos
Resíduos e o regime das substâncias químicas.
O Direito das Substâncias Químicas ao nível da União Europeia refere-se,
159
Veja-se o artigo 7.º constante do RGGR (Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, que
transpõe a Diretiva Quadro dos Resíduos, revista em 2018). Sobre a ligação umbilical da economia
circular ao Direito dos Resíduos através da hierarquia de gestão, cfr. J. F. Alenza García. Da
dimensión jurídica del paradigma de la economía circular. In A. Nogueira López, et al., ed.
Redondear la economía circular: del discurso oficial a las políticas necesarias. Arazandi/Civitas.
2021, pp. 65-95.
160
K. Pouikli. Concretising the role of extended producer responsibility in European Union Waste
Law and Policy through the lens of the circular economy. ERA Forum. 2020, 20, pp. 491-508.
161
Cfr. infra 3.4.
162
Embora alguns aspetos do regime geral possam carecer de alterações, de forma a permitir
um aproveitamento ótimo de recursos. É o caso da mineração de aterros, cfr. T. J. Römph.
Terminological Challenges to the Incorporation of Landfill Mining in EU Waste Law in View of
the Circular Economy. EEELR. 2016, 25(4), pp. 106-119.
160
II. ECONOMIA CIRCULAR
essencialmente, ao conjunto das normas resultantes do Regulamento REACH163
(um acrónimo para Registration, Evaluation, Authorization and Restriction of
Chemicals) e do Regulamento CLP164 (acrónimo para classificação, rotulagem e
embalagem, referindo-se a substâncias e misturas). No contexto da economia
circular, interessa, em especial, o estatuto das substâncias que, ao abrigo
deste regime, são consideradas preocupantes pelo seu potencial impacto na
saúde humana e no ambiente; e a forma como a sua inerente perigosidade é
um obstáculo à reintegração na economia de produtos que as integrem. Este
é um dos motivos pelos quais o setor privado poderá ver na transição para
a economia circular, simultaneamente, uma oportunidade, uma vez que cria
necessidades de novos modelos de negócio, e um risco, dado que surgirão
novos deveres legais associados à recuperação de materiais, como o rastreio
e a remoção de substâncias perigosas. A importância da matéria é logo
denunciada pelo facto de a Proposta de Regulamento sobre Ecodesign propor,
como requisito de conceção ecológica, a rastreabilidade de substâncias que
suscitam preocupação165.
O regime de resíduos e o regime das substâncias químicas são, atualmente,
estanques no Direito da União Europeia166. Os materiais que sejam considerados
resíduos estão regulados pela Diretiva Quadro de Gestão de Resíduos; e
os que não sejam resíduos são regulados (além de todos os outros regimes
setoriais eventualmente existentes) pelo regime de substâncias químicas, ou
seja, os referidos Regulamentos REACH e CLP. Contudo, ao contrário do que
sucede com o Direito dos Resíduos, o regime de substâncias químicas não foi
desenhado com preocupações de circularidade – estando, sobretudo, focado
na proteção da saúde humana –, suscitando, assim, problemas resultantes do
fracionamento entre três conjuntos de regimes legais (produtos, resíduos e
substâncias químicas)167:
163
Regulamento (CE) n.º 1907/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro
de 2006, relativo ao registo, avaliação, autorização e restrição de substâncias químicas (REACH).
164
Regulamento (CE) n.º 1272/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de
2008, relativo à classificação, rotulagem e embalagem de substâncias e misturas.
165
Cfr., UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, n.º 5 do artigo 7.º da Proposta.
166
Ainda assim, surgem áreas cinzentas que suscitam dúvidas de interpretação. Cfr. J. Alaranta
e T. Turunen. Drawing a line between european waste and chemicals regulation. REC&IEL. 2017,
26(2), pp. 163-173.
167
Mais em detalhe sobre este assunto, J. Alaranta e T. Turunen. How to Reach a Safe Circular
Economy? Perspectives on reconciling the waste, product and chemicals regulation. JEL. 2021,
33(1), pp. 113-136.
161
II. ECONOMIA CIRCULAR
Desde logo, os objetivos entre as diferentes políticas podem colidir,
com consequências relevantes. Os objetivos imediatos de proteção da
saúde humana contra substâncias perigosas colidem com os objetivos de
reintrodução de componentes e produtos na economia, e daqui resultam
obstáculos regulatórios à circularidade advenientes da regulação de
produtos químicos;
(i)
Em segundo lugar, os critérios para classificação de perigosidade são
diferentes em cada regime legal, o que suscita problemas de incerteza
jurídica;
(ii)
Finalmente, a rastreabilidade de substâncias nas suas diferentes
fases – enquanto parte de um produto primário, enquanto resíduo, e
finalmente enquanto parte um produto secundário – é essencial, mas,
simultaneamente, dificultada pela existência de regimes legais não
articulados e com critérios e conceitos díspares168.
(iii)
Daqui resulta insegurança jurídica, falta de informação e falta de confiança
em produtos secundários; e isso representa um sério obstáculo à circularidade,
impedindo a reentrada de componentes no círculo produtivo. Todas estas
dificuldades são reconhecidas pela Comissão Europeia como cruciais. No novo
Plano de Ação169, a Comissão associa a circularidade a um ambiente livre de
substâncias tóxicas, focando a política ambiental na necessidade de os produtos
serem desenhados de forma a garantir a sua segurança, assim permitindo a sua
circularidade. Ainda assim, a permanência de substâncias tóxicas, nem que seja
em produtos secundários, é uma inevitabilidade, pelo que será necessário criar
condições que permitam inovação tecnológica (tornando a triagem de resíduos
e a separação de substâncias eficaz, eficiente, e sustentável de um ponto de vista
económico-financeiro), a uniformização de sistemas de rastreabilidade no
mercado interno, e uma melhoria na classificação de substâncias e resíduos.
Além destas condições, a Comissão prevê, também, como condição para
o funcionamento de mercados de produtos secundários, a imposição de
restrições a substâncias que suscitam elevada preocupação.
Está prevista para o início de 2023 a apresentação de uma proposta
legislativa que altere o Regulamento REACH e incorpore várias destas
alterações, consensualmente necessárias e preconizadas, tendo já decorrido
168
Isso mesmo resulta, já atualmente, da jurisprudência do TJUE sobre o conceito de resíduo e o
estatuto de fim de resíduo. Em detalhe, cfr. J. Alaranta e T. Turunen. The Role of the CJEU in
Shaping the Future of the Circular Economy. EEELR. 2021, 2.
169
Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, pp. 13-14.
162
II. ECONOMIA CIRCULAR
a fase de consulta pública quanto à iniciativa170. A nova Estratégia para os
Produtos Químicos171 também enfatiza a conceção ecológica, com base em
substâncias não tóxicas, como solução primacial no suporte à transição para
a economia circular, preconizando-se a adoção de critérios para a qualificação
de produtos químicos seguros e sustentáveis desde a conceção, a criação
de uma rede de apoio à segurança e sustentabilidade, incluindo ao nível do
financiamento, e a minimização na utilização de substâncias que suscitam
preocupação, assegurando disponibilidade de informação sobre a composição
química e sua utilização.
3.4. Algumas cadeias de valor
Tudo o que ficou dito até agora é referente a regimes gerais. Contudo, a
vastidão de produtos e processos produtivos não poderia abdicar de estratégias
e regimes adaptados aos problemas específicos de cada setor. Por esse motivo,
tanto politicamente – através de planos e programas – como juridicamente –
através de regimes legais –, os atos funcionalizados à transição para a economia
circular listam sempre um conjunto de cadeias de valores consideradas
particularmente relevantes. Os critérios para essa seleção são essencialmente
dois: elevado impacto ambiental (seja através da poluição causada, seja pela
utilização intensiva de recursos primários) e utilização de recursos nãorenováveis. Apresentam-se de seguida alguns regimes e estratégicas setoriais.
Uma das cadeias de valor mais amplamente discutida é a do setor dos
produtos elétricos e eletrónicos, atendendo à sua dependência de matériasprimas escassas, ao seu uso generalizado, e aos problemas específicos que suscita
(e.g., update, acessórios e obsolescência planeada). O novo Plano de Ação,
além de sublinhar a especial importância deste setor na regulação da conceção
ecológica, anuncia que esta é uma cadeia de valor prioritária na implementação
de um direito à reparação e para a regulação a favor da universalidade de
acessórios (e.g., carregadores). Faz-se ainda notar a ineficiência do atual sistema
de recolha de resíduos elétricos e eletrónicos, bem como a aplicação de normas
sobre produtos químicos a substâncias incorporadas nestes produtos172. Esteve
já em consulta pública o anteprojeto de requisitos de conceção ecológica para
170
O procedimento de consulta pública encontra-se disponível aqui.
171
UE. Comissão Europeia, cit. nota 38.
172
Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, p. 7.
163
II. ECONOMIA CIRCULAR
telemóveis, telefones sem fios e tablets173.
Em grande medida por motivos semelhantes, também o setor de baterias e
veículos merece especial atenção regulatória. Está, neste momento, em processo
legislativo ordinário, uma Proposta de Regulamento relativo às baterias e
respetivos resíduos174 com o objetivo, entre outros, de conferir segurança ao
funcionamento de um mercado secundário de baterias, que atualmente não
existe. Justifica-se, assim, a necessidade de proceder a uma maior harmonização
de regras no espaço comunitário quanto ao produto e à gestão de resíduos de
baterias.
O setor das embalagens é, também, um setor especial por força da elevada
quantidade de resíduos produzidos e da sua associação ao plástico. Os
objetivos de redução da qualidade de embalagens através da fixação de metas
de reutilização e reciclagem não são novidade neste setor, pelo que o enfoque
será, previsivelmente, sobretudo em termos de conceção ecológica, através da
restrição nos tipos de materiais e compostos de materiais a utilizar. A Comissão
também já procedeu à consulta pública inicial tendo em vista a adoção de um
ato legislativo de revisão dos requisitos para embalagens e de outras medidas
destinadas a reduzir os resíduos de embalagens175.
O setor do plástico, atendendo ao elevado nível de poluição causada e
riscos para o ambiente e saúde, já é o foco de uma Estratégia Europeia para os
Plásticos desde 2018 e mereceu a adoção de atos isolados nos níveis europeus
e nacionais. Também aqui os objetivos são de melhoria na conceção dos
produtos e de recolha seletiva e triagem de modo a permitir a reciclagem e o
desenvolvimento do mercado de plástico reciclado. Contudo, além de também
se pretender prevenir a poluição ambiental por resíduos de plástico, preconiza-se
a criação de um quadro regulamentar claro para os plásticos com propriedades
biodegradáveis e para lidar com o problema dos microplásticos. Neste contexto,
são de mencionar a Diretiva 2019/904176, transposta para o Direito nacional
pelo Decreto-Lei n.º 78/2021, de 24 de setembro. Estes regimes não constituem
173
O anteprojeto e informação sobre a consulta pública encontram-se disponíveis aqui.
174
Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo às baterias e respetivos
resíduos, que revoga a Diretiva 2006/66/CE e altera o Regulamento (UE) 2019/1020, de 10 de
dezembro de 2020. COM (2020) 798 final. O procedimento legislativo encontra-se disponível aqui.
175
Informação sobre a consulta pública encontra-se disponível aqui.
176
Diretiva (UE) 2019/904, relativa à redução do impacto de determinados produtos de plástico
no ambiente, e que altera as regras relativas aos produtos de plástico nos pontos de venda de pão,
frutas e legumes.
164
II. ECONOMIA CIRCULAR
uma regulação transversal da utilização do plástico, mas antes uma regulação
de certos plásticos e utilizações do plástico, cuja regulamentação se afigurou
prioritária e razoavelmente simples, por exemplo, através da simples proibição
de colocação no mercado de certos produtos de plástico de utilização única ou
com certa composição. A Comissão prevê a adoção a breve trecho de legislação
sobre plásticos de base biológica, biodegradáveis e compostáveis177 e sobre
poluição por microplásticos178. Também o setor dos plásticos coloca prementes
questões em termos de articulação com o Direito das Substâncias Químicas179.
O setor têxtil tem sido objeto de especial atenção por força do elevado
consumo de matérias-primas e água, sendo o quinto setor em termos de
responsabilidade por emissões de GEE180. A indústria da moda é, assim, um
setor prioritário em termos de requisitos para conceção ecológica, servitização,
e melhoria de serviços de triagem e reciclagem181. A Comissão adotou uma
estratégia só para o setor têxtil que prevê, entre outras medidas gerais (como a
imposição de requisitos de conceção ecológica e o combate ao greenwashing), a
introdução do princípio da responsabilidade alargada do produtor no setor182.
Um outro aspeto específico desta área – mas comum a outras, como a área
alimentar – é o combate à destruição de bens não vendidos, aspeto incluído na
proposta de Regulamento Ecodesign.
A construção é uma área com elevado consumo de matérias-primas
primárias e elevada produção de resíduos183, visando-se, no novo Plano de
Ação, o reforço da sustentabilidade dos produtos de construção e a melhoria de
durabilidade e adaptabilidade do edificado. Com estes fundamentos, a Comissão
apresentou uma Proposta de Regulamento que reforça a sustentabilidade nos
produtos de construção, e prevê, por exemplo, a possibilidade de instituição de
177
Informação sobre a consulta pública inicial já feita encontra-se disponível aqui.
178
Informação sobre a consulta pública inicial já feita encontra-se disponível aqui.
179
T. J. Römph e G. Van Calster. REACH in a circular economy: the obstacles for plastics
recyclers and regulators. REC&IEL. 2018, 27(3), pp. 267-277.
180
Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, p. 10.
181
Mais desenvolvidamente, cfr. V. Jacometti. Circular Economy and Waste in the Fashion
Industry. Laws. 2019, 8(4), pp. 27.
182
Cit. nota 34.
183
Cfr. UE. Comissão Europeia, cit. nota 13, p. 11.
165
II. ECONOMIA CIRCULAR
sistemas obrigatórios de consideração e retoma184. Também se prevê um reforço
da rastreabilidade dos produtos – um nódulo reconhecidamente problemático
no setor185.
4. Observações finais
Escrever sobre economia circular em 2022 é um exercício prospetivo numa
era que aparenta ser de mudança no Direito do Ambiente. O desenvolvimento
de instrumentos de Direito do Ambiente ao longo das últimas décadas – como
é o caso dos instrumentos de licenciamento e de avaliação, ao abrigo dos
princípios da prevenção e do poluidor-pagador – levou à criação de figurinos
procedimentais e conceptuais razoavelmente estruturados e amplamente
consensuais em grande parte do mundo. Mas os últimos anos, devido às duas
transições ambicionadas no início de milénio – para a neutralidade e para a
economia circular –, revelaram uma nova face do Direito do Ambiente. Essa
nova face recorre sobretudo a instrumentos de natureza económica e de
desempenho ambiental, qualificando o consumidor enquanto agente decisivo
num mercado global e em acelerada evolução, e elegendo a informação
ambiental como denominador comum a todas as políticas e regimes com
finalidades de sustentabilidade ambiental.
Em vésperas da adoção de um conjunto alargado de atos legislativos com
o objetivo de modelar o sistema socioeconómico em direção à circularidade,
antevê-se para breve um ordenamento jurídico-ambiental europeu marcado
pela efetivação da transversalidade na ciência jurídica e interdisciplinariedade
– características do Direito do Ambiente enquanto área com autonomia –, em
obediência ao princípio da integração e em busca da demonstração de eficácia
na adoção de novas políticas e soluções legais. Novas áreas do Direito passam a
estar também funcionalizadas à proteção ambiental – como é o caso do Direito
Societário, do Direito Financeiro, ou do Direito do Consumidor –, enquanto
regimes já existentes são alterados, num exercício de reconfiguração do ângulo
de análise – como é o caso do Direito das Substâncias Químicas. Mas também
184
Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que que estabelece condições
harmonizadas para a comercialização dos produtos de construção, que altera o Regulamento (UE)
2019/1020 e que revoga o Regulamento (UE) n.º 305/2011, de 30 de março de 2022. COM (2022)
144 final.
185
Sobre a experiência de rastreabilidade no setor na Flandres com recurso à tecnologia blockchain,
cfr. J. Voorter e C. Koolen. The traceability of construction and demolition waste in Flanders via
blockchain technology: a match made in heaven? JEEPL. 2021, 18(4), pp. 347-369.
166
II. ECONOMIA CIRCULAR
certos conjuntos normativos ambientais, já implementados e bem sedimentados
na prática jurídica, se robustecem – como é o caso do licenciamento ambiental,
do Direito dos Resíduos, do ecodesign ou da rotulagem ecológica.
Só num exercício retrospetivo se poderá vir a concluir se todas estas
alterações representarão, de facto, um novo marco na evolução do Direito
do Ambiente.
Sugestões de Leitura
J. Alaranta e T. Turunen. How to reach a safe circular economy?
Perspectives on reconciling the waste, product and chemicals regulation.
JEL. 2021, 33(1), pp. 113-136.
F. Araújo. Introdução à Economia. II. 4.ª ed. Lisboa: AAFDL, 2022.
C. Backes. Law for a circular economy. Eleven Publishing, 2017.
J. Hojnik. Ecological modernization through servitization: EU regulatory
support for sustainable product-service systems. REC&IEL. 2018, 27(2),
pp. 162-175.
A. N. López e X. V. Deza, ed. Redondear la economía circular. Del discurso
oficial a las políticas necesarias. Arazandi/Civitas, 2021.
E. Maitre-Ekern e C. Dalhammar. Towards a hierarchy of consumption
behaviour in the circular economy. Maastricht Journal of European and
Comparative Law. 2019, 26(3), pp. 394-420.
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II. ECONOMIA CIRCULAR
V. Mak e E. Terryn. Circular economy and consumer protection: the
consumer as a citizen and the limits of empowerment through consumer
law. Journal of Consumer Policy. 2020, 43(1), pp. 227-248.
H. Oliveira. Circular economy: from economic concept to legal means
for sustainable development. E-Publica. Revista Eletrónica de Direito
Público. 2020, VII(2), pp. 73-93.
R. Thaler e C. Sunstein. Nudge. The final edition. London: Penguin, 2021.
T. Sterner e J. Coria, ed. The economics of environmental policy.
Behavioral and political dimensions. Cheltenham: Edward Elgar, 2016.
168