Numéro 22 – Automne 2022
A sexualidade de Mário:
menos velocidade, mais paciência
César Braga-Pinto
Northwestern University
Resumo: Com a recente publicação da íntegra
da “Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira de 7 de abril de 1928”, o assunto da suposta homossexualidade de Mário de Andrade,
censurado durante décadas e, segundo alguns,
reprimido ou sublimado pelo próprio escritor, já
não pode ser ignorado nem pelos críticos nem
pelos biógrafos. O artigo argumenta que, se há
violência na longa exclusão a qualquer menção
à homossexualidade na obra e na biografia do
poeta, não é menor a violência contida no impulso de “tirar o autor do armário”. E se há opacidade e elipses em seu discurso sobre o sexo e
a sexualidade, não é por recalque, pudor ou moralidade cristã, mas, ao contrário, é resultado de
uma estratégia de resistência ao olhar médicojurídico e normalizador que dá nome às dissidências para tão logo puni-las. Propõe-se rastrear o uso da palavra “paciência” em sua obra
(assim como em sua recepção), para melhor se
compreender o sentido e o efeito do armário
cuidadosamente elaborado pelo escritor.
Palavras-chave: Mário de Andrade, sexualidade, armário, segredo, paciência.
Résumé : Avec la récente publication de
l’intégralité de la « Lettre de Mário de Andrade
à Manuel Bandeira du 7 avril 1928 », le sujet
de l’homosexualité présumée de Mário de Andrade, censurée pendant des décennies et, selon
certains, réprimée ou sublimée par l’écrivain
lui-même, ne peut plus être ignoré ni par les
critiques ni par ses biographes. Nous soutenons
que, s’il y a de la violence dans la longue exclusion de toute mention à l’homosexualité dans
l’œuvre et dans la biographie du poète, la violence contenue dans le désir de « sortir l’auteur
du placard » ne l’est pas moins. Si opacité et ellipses il y a dans son discours sur le sexe et la
sexualité, ce n’est pas à cause du refoulement,
de la pudeur ou de la morale chrétienne. Il s’agit
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au contraire du résultat d’une stratégie de résistance à la perspective médico-légale et normalisatrice qui nomme les dissidences, puis les
punit. Nous nous proposons, dans cet article, de
retracer l’usage du mot « patience » dans son
œuvre (ainsi que dans sa réception), afin de
mieux comprendre le sens et l’effet du placard
soigneusement élaboré par l’écrivain.
Mots-clés : Mário de Andrade, sexualité, placard, secret, patience.
Abstract: With the recent publication of the
unedited version of the “Letter from Mário de
Andrade to Manuel Bandeira of April 7, 1928”,
the topic of Mário de Andrade’s alleged homosexuality, censored for decades and, according
to some, repressed or sublimated by the writer
himself, can no longer be ignored either by critics or biographers. This article argues that, if
there is violence in the exclusion of any mention of homosexuality in the poet’s work and
biography, the violence contained in the impulse to “take the author out of the closet” is
no less violent. And if there is opacity and ellipses in his discourse on sex and sexuality, it
is not because of repression, modesty, or Christian morality, but, on the contrary, it is the result of a strategy of resistance to the medicallegal and normalizing perspective that names
the dissidences in order to punish them. I propose to trace the use of the word “patience” in
his work (as well as in its reception), to better
understand the meaning and effect of the closet
that was carefully elaborated by the writer.
Key words: Mário de Andrade, sexuality,
closet, secret, patience.
Abro este ensaio com um reparo, seguido de uma citação: Eu, César Braga-Pinto, não
sou homossexual. Quer dizer: não todo dia; não toda hora; não com todo mundo; e certamente não
em todo lugar. Às vezes, chego a me perguntar: será que sou, será que não sou? Mas quando, por
hostilidade ou por simpatia, alguém aponta e afirma que sou gay … eu não desminto.
A afirmação final, como se terá notado, é uma paráfrase de um trecho da hoje famosa
“Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira de 7 de abril de 1928”, censurada durante décadas
e divulgada na íntegra apenas em 201 : “Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de
mim, e não desminto 1 ”. Na ocasião, a revelação do “segredo” supostamente contido naquela carta
foi celebrada por uns, e julgada sem importância por outros. Por minha vez, o que me interessa
é justapor esses comentários de jornalistas e críticos (ou, na expressão do próprio Mário, essas
“conversas sociais”, ou “o que se fala de mim”) à maneira oblíqua pela qual o próprio escritor se
revela ou se declara ao amigo. Tal declaração apoia-se, sugiro, em uma curiosa figura de linguagem
que, em retórica, denomina-se litotes e que, arrisco dizer, é uma das configurações do armário na
versão mariodeandradeana. Ao contrário do eufemismo (cuja intenção é quase sempre atenuar a
violência da linguagem, como em “fulano é gay”) ou da perífrase (que afirma uma coisa negando o
1 . “Carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira de 7 de abril de 1928”, Rio de Janeiro, Fundação Casa
de Rui Barbosa, publicada com transcrição e notas de Jorge Vergara, 201 . 9 de fevereiro de 2022.
www.researchgate.net/publication/30 02 89_Carta_de_Mario_de_Andrade_a_Manuel_Bandeira_de_7
_de_abril_de_1928.
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seu contrário, por exemplo: “eu não sou heterossexual” para dizer “eu sou homossexual”), utilizase a litotes quando, seja por ironia, modéstia ou pudor, alguém parece dizer menos do que estaria
pensando, ou menos do que seria de bom tom, para, no entanto, enfatizar e demonstrar sua convicção sobre um determinado assunto — no caso, uma acusação. Assim, ao esvaziar a importância e o
significado do segredo, do crime, ou do pecado, o “eu não desminto” evita a vulgaridade e a violência
de uma confissão. Minha hipótese é que, se na obra ou na biografia de Mário de Andrade há de
fato um “armário” onde se esconderia seu desejo secreto e sua sexualidade reprimida, esse armário
lhe terá sido tão imposto quanto cuidadosamente, estrategicamente construído por ele mesmo: na
forma simples, elegante e recatada de uma litotes.
Quando Gênese Andrade e Jorge Schwartz me convidaram para participar do monumental volume Modernismos 1922-2022, confesso que hesitei, já que não me considero propriamente
um especialista em modernismos; no entanto, não pude recusar, e acabei escrevendo um texto, não
sobre o objeto da efeméride, que na verdade me interessa menos, mas sobre a obra e, ao mesmo
tempo, a figura de Mário de Andrade, conforme construída por ele mesmo e, sobretudo, pelos
outros 2 . Na ocasião da “live 3 ” de lançamento do livro, logo que comecei a resumir o conteúdo do
ensaio, ironicamente intitulado “A sexualidade de Mário de Andrade: a prova dos nove”, alguém
escreveu um comentário no chat parabenizando-me por ter finalmente tirado o poeta modernista
do armário. Previsível que fosse, o comentário me pegou de surpresa. Quando, dias depois, mais
alguns colegas me escreveram, muito generosamente, elogiando o ensaio, alguns deles repisando na
questão do armário, cogitei se por acaso (para citar novamente Mário) eu não havia sido “transcompreendido 4 ”. Pois acontece que, se não me falha a memória, em nenhum momento o texto afirma
que Mário era (ou não era) homossexual. Como disse, a intenção do subtítulo, “a prova dos nove”,
era puramente irônica. Eu quis não só fazer uma brincadeira com o “a alegria é a prova dos nove”,
do celebrado “Manifesto Antropófago” de Oswald, mas também aludir à complexa aritmética identitária de Mário (suas somas, suas multiplicações, suas subtrações), e mesmo àquilo que eu chamaria
de “as operações da alegria e da tristeza” em sua obra. O que me interessava era antes de mais nada
questionar, com Mário: quando se trata de sexualidades, e especialmente de homossexualidades, de
que vale a prova, ou se há de fato alguma prova, o que a prova de fato prova?
Permito-me então retomar aqui o assunto daquele ensaio. Primeiro, eu me referia,
brevemente, aos insultos de que Mário deve ter sido vítima, insultos por vezes impressos, mas
também, sabe-se lá quantas vezes, lançados verbalmente, seja em sua presença ou em sua ausência.
Em seguida, propus uma revisão da fortuna crítica mais influente, em particular a que se debruçou
sobre sua obra poética, na qual, justificadamente ou não, a identificação entre autor e obra, entre
“eu lírico” e “eu empírico”, tem criado problemas metodológicos, muitas vezes incômodos. O que
eu quis mostrar é como essa tradição crítica (e nunca é demais enfatizar que todos os críticos a que
me referi são críticos pelos quais tenho a maior admiração) tem abordado o “x” da sexualidade de
Mário, às vezes com cuidado, às vezes com constrangimento, outras com dissimulação e, não raro,
em gestos de desqualificação ou obliteração. Mais recentemente, sobretudo desde que a tal carta
2 . bRaga-pinto, César, “A sexualidade de Mário de Andrade: a prova dos nove”, in Gênese de Andrade
(org.). Modernismos: 1922-2022, São Paulo, Companhia das Letras, 2022, p. 07- 4 .
3 . “Jornada Virtual Modernismos”, mesa 2, Representatividades. Mediadora: Gênese Andrade. Youtube,
Canal Companhia das Letras. 9 de fevereiro de 2022. youtu.be/z3cP9lJAo6o.
4 . andRade, Mário, “A propósito de Amar, verbo intransitivo”, Diário Nacional, São Paulo, 4 dez. 1927, p. 9.
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veio a público (mas em geral lida muito desatentamente), nota-se também um certo impulso ou
desejo de exposição, ou como se diz vulgarmente, de tirar o poeta do armário e logo de se afirmar,
sem receio e sem preconceito, sua dita homossexualidade. Eu diria então que foram dois os principais movimentos da crítica e do jornalismo diante do suposto “segredo” de Mário: (1) esvaziamento
(a homossexualidade, que seria real, é universalizada e traduzida em simplesmente “sexualidade”
e, logo, considerada desimportante); e (2) deslocamento (a homossexualidade é reinterpretada enquanto bissexualidade, pansexualidade, assexualidade, amor platônico, dionisíaco, polimorfismo
sexual, sexualidade polivalente, amor pelo todo etc.). Assim, ao longo dessa longa tradição crítica,
tanto o segredo do poeta quanto a possibilidade de revelação desse segredo são organizados segundo
identidades e condutas, distribuídas ao longo de um extenso espectro que, meio de brincadeira, eu
resumi mais ou menos da seguinte maneira: Mário não é; Mário parece, mas não é; Mário não sabe
que é, mas sabe — ou não sabe? — que parece; Mário sabe que é ou sabe que parece, mas finge que
não sabe, ou não quer saber, ou seja, reprime, sublima ou renuncia; Mário — parece que sabe que
é, mas — parece que não quer que outros o saibam; Mário é e sabe, mas não quer que todo mundo
saiba — e por isso cala; Mário é, mas não faz; Mário talvez faça, mas isso não quer dizer que ele seja.
E por aí vai 5 .
Em suma, ao longo dos anos, o que se nota é um mesmo desejo de controle sobre o
segredo da sexualidade de Mário ou, usando a linguagem foucauldiana, a “verdade de seu desejo 6 ”.
Assim, se é certo que há violência na longa exclusão de qualquer menção à homossexualidade na
obra e biografia de Mário de Andrade, não é menor a violência contida na exposição, ou, se quisermos, no impulso de tirar o autor do armário; ou ainda, no que, naquela carta, Mário chama de
“socialização absolutamente desprezível de uma verdade inicial”. Por isso, mesmo não compartilhando da interpretação reconhecidamente, mas “necessariamente apressada” que Silviano Santiago
dá aos personagens de O cortiço, de Aluísio de Azevedo, ou sua proposta de uma homossexualidade
astuciosa ou malandra como antídoto à homofobia, acho que Mário não discordaria de uma de
suas proposições: “A grosseria e a violência linguísticas, responsáveis pela configuração do espaço
homossexual como o da marginalidade, é obra única e exclusiva dos heterossexuais 7 ”. Ou seja, seria
muito mais valioso escutar o que o próprio Mário tem a dizer, aliás muito lucidamente, sobre o que
ele chama de enorme “ridículo dos socializadores de sua vida social”:
Note as incongruências e contradições em que caem: o caso da ‘Maria’ [e Mário
sempre põe o nome da fulana entre aspas] não é típico? Me dão todos os vícios
que por ignorância ou por interesse de intriga, são por eles considerados ridículos
e no entanto assim que fiz duma realidade penosa a ‘Maria’, não teve nenhum que
não [sic] caçoasse falando que aquilo era idealização para desencaminhar os que
me acreditavam nem sei o quê, mas todos, falaram que era fulana de tal 8 .
5 . bRaga-pinto, César, op. cit., p. 32.
6 . foucault, Michel, “De l’amitié comme mode de vie”, Gai Pied, no 2 , avril 1981, p. 38-39. 9 de fevereiro
de 2022. www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault. Disponível em português em tradução de Wanderson Flor
do Nascimento.
7 . santiago, Silviano, “O homossexual astucioso: primeiras — e necessariamente apressadas — impressões”, O cosmopolitismo do pobre, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2004, p. 202.
8 . andRade, Mário, “Carta”, op. cit., s. p.
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Ou seja, acusam-no de homossexualidade enrustida ao mesmo tempo em que apontam
para o suposto objeto de sua paixão heterossexual.
A revisão da fortuna crítica (que, sugiro, esteve quase sempre contaminada pela chamada “intriga social”) é com certeza um primeiro passo para que possamos interromper uma tradição cuja perspectiva está limitada pelo que se poderia denominar homofobia e, também, racismo
estruturais. Mas ela não é o suficiente. Outra estratégia a que procuro recorrer é a de dissociar Mário de Andrade do contexto modernista, para então buscar na obra do escritor outras genealogias,
outras intertextualidades e outros interlocutores, tais como Raul Pompeia, João do Rio, Oscar Wilde
e os poetas românticos; ou ainda, por oposição, a tradição Naturalista e cientifista na literatura.
Quando alguns meses mais tarde o crítico Ivan Marques me convidou para participar
de seu dossiê “Modernismo: 100 anos”, da Santa Barbara Portuguese Studies, vi uma oportunidade de
corrigir qualquer mal-entendido ou, talvez, expandir meu argumento, com um ensaio cujo título,
espero, não deixará dúvidas: “A sexualidade de Mário de Andrade: ninguém o saberá jamais 9 ”.
A partir de uma releitura do romance Amar verbo intransitivo — aliás, publicado pouco antes da
dita carta — procuro explorar duas questões: primeiramente, o chamado freudianismo de Mário;
depois, a maneira pela qual o romance discute a própria noção de segredo. Quanto ao freudianismo,
eu diria simplesmente que a psicanálise de Mário é uma psicanálise irônica, ou, como críticos da
época denominaram, um “subfreudismo delirante 10 ”, um “freudismo abstruso 11 ” ou uma “sátira do
freudismo 12 ”.
Um exemplo, talvez controverso, da psicanálise na versão de Mário de Andrade: a
palavra “sequestro”, tão frequentemente utilizada por ele, nem sempre (ouso mesmo dizer que quase
nunca) poderá ser traduzida como “recalque”, “denegação”, “repressão” ou “sublimação”; e mesmo
se ocasionalmente o próprio Mário sugere que o termo é uma tradução do francês “refoulement 13 ”,
em geral seu sentido é deslocado, expandido, e eu diria até virado do avesso.
Ainda não tive a oportunidade de conferir se a palavra já aparecia no original de 1927,
mas ela aparece mais de uma vez na versão revisada de 1944 na forma “sentimentos sequestrados”,
associada ao “subconsciente”. Em todo caso, proponho que a palavra “sequestro”, no romance, e
talvez em todo o pensamento de Mário, está intimamente relacionada com a de “segredo”. Chamo
a atenção para uma passagem fundamental do livro, a que Prudente de Moraes Neto muito sugestivamente já chamara a do “sequestro da palavra ‘segredo’ 14 ”. Trata-se do momento em que entre
Carlos e Fräulein se esconde uma palavra, palavra que se anuncia apenas na forma de uma rasura.
É Fräulein quem diz: “Nós hoje encontramos uma palavra na lição…Sabemos como é em português,
porém não há meios de lembrar. Parece incrível, palavra tão comum … E nem eu nem Carlos! 15 ”. Ao
9 . bRaga-pinto, César, “A sexualidade de Mário de Andrade: ninguém o saberá jamais”, Santa Bárbara
Portuguese Studies, 2nd Ser., Vol. 10, p. 1 7-183.
10 . athayde, Tristão de, “Romancistas ao sul”, O Jornal, Rio de Janeiro, 9 de outubro de1927, s. p.
11 . gRieco, Agrippino, “Um grande romancista”, O Jornal, Rio de Janeiro, 28 de março de 1929, s. p.
12 . athayde, Tristão de, “Os Andrades”, O Jornal, Rio de Janeiro, de fevereiro de 1928, s. p.
13 . V., por exemplo, andRade, Mário de, “A dona ausente”, Atlântico. Revista Luso-Brasileira, Lisboa, Secretariado da Propaganda Nacional; Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa e Propaganda, no 3, 1943,
p. 9, e “Roupas freudianas/Fortaleza, -vii-27/Fotografiarefoulenta/Refoulement/Sol l diaf. l”. Fotografia
de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
14 . neto, Prudente de Moraes, “Uma questão de gramática: Amar verbo intransitivo”, O Jornal, Rio de
Janeiro, 6 de julho de 1927, p. 4.
15 . andRade, Mário, Amar, verbo intransitivo: idílio, São Paulo, Martins Fontes, 1972, p. 112.
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invés de procurar o significado no dicionário, os dois procuram a tradução da palavra rasurada na
memória ou, se quisermos, no inconsciente. O caso do esquecimento da palavra alemã que se recusa
a traduzir-se ao português causa uma estranha inquietação no jovem estudante, que resiste, mas
finalmente a revela à irmã: trata-se de Geheimnis. Fräulein por fim parece lembrar-se da tradução
em português, mas por algum motivo não consegue pronunciá-la: “Por que razão? Estranho… Nota
que a boca, a língua se amoldam pra rasgar as consoantes da palavra e uma coisa qualquer proíbe 16 .”
Finalmente, lembrando-se da tradução, juntos, pronunciam-na: “É segredo! […] E ambos têm uma
desilusão, palavra tão sem significância 17 ”.
Se o que está sequestrado é o “segredo”, ou melhor, a palavra segredo — mas se “segredo” não tem significado ou é “in-significante” — então o próprio sequestro deixa de ter a importância dada ao recalque ou à proibição a que o texto alude. Ao contrário de recalque, o termo
“sequestro”, conforme utilizado por Mário, tem a vantagem de estabelecer um tempo e um espaço de
indefinição entre a ausência e a presença, nem dentro nem fora (digamos, do armário); é uma espécie
de retiro ou quarentena, forçada ou voluntária, em que o assunto secreto é ao mesmo tempo visível
e invisível, familiar e estranho, evocado e postergado, talvez incômodo, mas sem ser exatamente
desagradável. Assim também, na carta a Bandeira, ao aludir a sua tão falada (homo)sexualidade,
Mário parece sugerir que se “sequestro” é sinônimo de “censura”, “não tenho nenhum sequestro
não”; mas isso não quer dizer nada, não tem qualquer significância, pois “[o]s sequestros num caso
como este onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento
decisivo, os sequestros são impossíveis 18 ”.
Assim se resume a “psicanálise poético-irônica” inventada por Mário: “Minha vingança
é que Freud não pode ter sensações de tantãs no fundo do mato. Nem pode sentir índios pesados,
com dinamismos de ritual, dentro das gâmbias. Aliás nem Fräulein. Por isso é que falando de
Carlos fui poeta, inventei 19 ”. Ao deslocar a autoridade de Freud de seu eixo científico para o da
poesia, Mário é coerente com sua constante desconfiança em relação à ciência, sobretudo quando
se trata de sexualidades. De fato, mais de uma vez Mário mostrou-se avesso ao tratamento explícito
da sexualidade característica da vertente naturalista da literatura. Ao se referir a Carlos e suas “preferências brasileiras”, por exemplo, o narrador resiste à tentação de uma exposição vulgar daquela
literatura de teor psicopatológico ou pornográfico que ainda circulava nos meados da década de 20:
“Se eu contasse tudo, a verdade, mesmo dosada, viria catalogar este idílio entre os descaramentos
naturalistas, isso é impossível, não quero 20 ”. Por outro lado, o trecho da carta enviada a Bandeira
deixa bem claro que, segundo Mário, o armário não é exclusivo das sexualidades dissidentes, já que
“em toda vida tem duas vidas, a social e a particular 21 ”.
Eu diria que tal “absoluta discrição social” é o nome que Mário dá ao seu próprio armário, assim como todos os outros “móveis secretos, ambições desprezíveis, imorais, antissociais
e cabotinismos em geral, principalmente esse terrível e deformador de agradar aos outros […] a
16 .
17 .
18 .
19 .
20 .
21 .
52
Ibid., p. 117.
Ibid., p. 118.
andRade, Mário, “Carta”, op. cit., s. p.
andRade, Mário, Amar, verbo intransitivo, op. cit., p. 1 4.
Ibid., p. 1 1.
andRade, Mário de, “Carta”, op. cit., s. p.
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origem primeira de todos os nossos gestos de sociedade 22 ”. De modo que, se há opacidade, elipses
e, insisto, litotes em seu discurso sobre o sexo e a sexualidade, não é por recalque, pudor ou moralidade cristã, mas, ao contrário, é resultado de uma estratégia consciente de resistência ao olhar
médico-jurídico e normalizador que dá nome às dissidências para tão logo puni-las. Cito mais uma
vez a carta: “[…] que um indivíduo estudioso e observador como eu há-de estar bem inteirado dos
assuntos, há-de tê-lo bem catalogado e especificado, há-de ter tudo normalizado em si, se é que
posso me servir de ‘normalizar’ nesse caso 23 ”.
Não há dúvida que Mário conhecia muito bem toda a literatura e a ciência do sexo
produzida ou divulgada a partir da virada do século. Com efeito, será mera coincidência que o autor tenha nomeado o personagem de um conto repleto de homoerotismo como “Túmulo, túmulo,
túmulo” (escrito entre 1923 e 1926), com o sobrenome de um dos mais famosos sexólogos da virada
do século — mesmo que suas duas obras mais conhecidas, O instinto sexual e A inversão sexual 24 ,
tenham sido publicados no Brasil apenas em 1933? Como se sabe, Havelock Ellis é considerado um
dos primeiros pensadores que estudaram a homossexualidade, sem, contudo, impor-lhe o estigma
da imoralidade, da doença e do crime; aliás, o sexólogo rejeita a paternidade do termo “homossexual” que por vezes lhe é atribuída, palavra que considera “barbaramente híbrida 25 ”.
“Túmulo, túmulo, túmulo” abre com uma quase definição de um termo muito recorrente
em toda a obra de Mário de Andrade: “paciência”, palavra cuja importância já foi intuída no título
do livro de Victor Knoll, Paciente arlequinada, de 197 26 . Naquele “caso triste”, como o narrador
denomina a história, o significado de paciência (com seus limites) está explicitamente associado
a vontade, ânimo, perseverança, e se opõe a “covardia”: “Eu sempre falo que a gente deve ser
enérgico, nunca desanimar, que se entregar é covardia, porém quando a coisa desanda mesmo não
tem vontade, não tem paciência que faça desgraça parar 27 ”.
Na introdução de sua recente e belíssima Antologia erótica, Eliane Robert Moraes confirma a centralidade desta que ela chama uma “palavra-chave”, palavra que aparece brevemente no
esboço de prefácio a Macunaíma, [“uma paciência (muito) piedosa 28 ”] e que ocupa o título e toda
a toda matéria do conto “Frederico Paciência”: “aliás, uma composição que deve ter demandado
grande paciência de seu criador, pois dela se ocupou durante dezoito anos 29 ”. Aqui, é, em minha
opinião, onde a crítica especializada melhor se aproxima de uma leitura em que a sexualidade e o
desejo de Mário (ou em Mário) já não são objeto de escrutínio de um olhar inquiridor ou científico.
22 . andRade, Mário de “Do cabotinismo”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 23 de julho de 1939. Reproduzido
em O empalhador de passarinho, São Paulo, Martins, 1946, p. 77-81.
23 . andRade, Mário, “Carta”, op. cit., s. p.
24 . havelocK, Ellis, O instinto sexual e A inversão sexual, trad. Alvaro Eston, São Paulo, Companhia editora
nacional, 1933.
25 . “‘Homosexual’ is a barbarously hybrid word, and I claim no responsibility for it. It is, however, convenient, and now widely used. ‘Homogenic’ has been suggested as a substitute”. havelocK, Ellis, Sexual
Inversion, London, Wilson and Macmilan, 1897, p. 1.
26 . Knoll, Victor, Paciente arlequianda, São Paulo, HUCITEC, 197 .
27 . andRade, Mário, “Túmulo, túmulo, túmulo”, Contos de Belazarte, São Paulo, Martins Fontes, Belo Horizonte, Itatiaia, p. 88.
28 . De maneira parecida, no poema “Momento”, datado de 16 de setembro de 1928, Mário escreve “Piedade
paciente”. andRade, Mário, Remate de Males, Poesias completas, 1a ed., São Paulo, Livraria Martins
Editora, 19 , vol. ii, p. 288.
29 . moRaes, Eliane Robert, “Apresentação: o dito pelo não dito”, andRade, Mário, São Paulo, Ubu, 2022,
p. 26.
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Ao contrário, desvia-se o olhar para o que que interessa [ou pelo menos o que me interessa] ou seja,
aquilo que hoje chamamos de a experiência do armário, e que o narrador do conto por sua vez chama
de “paciência”: palavra que queima, que produz confusão e, sobretudo, causa mal-estar, sofrimento
e dor. Palavra confusa, cujos termos correlatos, enumerados pelo narrador, incluem “caçoada”,
“alegoria” e “assombração insatisfeita”. Apenas não sei se eu iria tão longe em dizer, com Eliane
Robert Moraes, que no final do conto o narrador “desempaca” textualmente o que anteriormente
estaria “emperrado”, movimento que em termos pessoais o homem não teria conseguido fazer, isto
é, a “superação dos apuros que o escritor enfrentou a vida toda por ser homossexual 30 ”. Primeiro
porque, em minha leitura, que leva em conta a recepção, a circulação e as “conversas sociais”, tal
separação entre autor e obra não é tão nítida. Segundo, porque acredito que aquela conclusão corre
o risco de levar-nos de volta ao campo do diagnóstico, da patologia e do crime, da caracterização
do escritor como homossexual mal resolvido, o que provavelmente o deixaria constrangido, talvez
mesmo indignado. Lembre-se que ainda em meados da década de 1930, discutia-se a criminalização
da homossexualidade, e o artigo 2 8 do capítulo “Homossexualismo” do projeto de lei da Comissão
Legislativa, propunha: “Os atos libidinosos, entre indivíduos do sexo masculino, serão reprimidos
quando causarem escândalo público, impondo-se a ambos os participantes detenção até de um
ano. Punir-se-á somente o sujeito ativo 31 ”. Por suposto, em geral quem não sabe ter paciência
nem tolerância são os “soldados da polícia” que, em outro conto de Belazarte (“Caim, Caim, Caim”,
1926), respondem às súplicas da população que saía em defesa do desespero da mãe diante do filho
morto, com violência física e linguística: “Que paciência nem Mané paciência! em vez, davam cada
empurrão na pobre 32 ”.
Enfim, valeria a pena rastrear mais longamente o uso da palavra “paciência”, assim
como sua relação com as dissidências, e a dissidência sexual em particular, em toda sua poesia,
ficção, narrativas de viagens, epistolografia, assim como na recepção de sua obra, para melhor
compreendermos o sentido e o efeito desse armário tão cuidadosamente elaborado por Mário de
Andrade. Limito-me apenas a esboçar uma hipótese. Carregada de sentido religioso, a palavra
paciência parece ser o outro lado da tolerância. Em carta a Carlos Drummond de Andrade, Mário
explica-lhe o uso do termo, associando-o com a dinâmica da tristeza e da alegria a que me referi no
início desse ensaio. Ao aconselhar o amigo, Mário sugere que, para se alcançar a felicidade, mais
especificamente, a “felicidade dos hipersensíveis”, é necessária a “coragem de si mesmo”, “sem se
amolar com o que disse fulano e sem pensar no que fulano dirá 33 ”. E esclarece o verso “A própria dor
é uma felicidade”, de seu Losango Cáqui, explicando que “a dor é uma compreensão normalizante
da vida”:
Sim, porque o homem comum chamará de criancice […] de eu não cultivar uma
dor que me afeta nem que seja morte de mãe ou de amada, de eu ficar contente
com qualquer coisa, de eu condescender e me vergar sempre. Vergar é modo de
30 .
31 .
32 .
33 .
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Ibid., p. 32.
RibeiRo, Leonídio, “Homossexualismo e endocrinologia”, Revista Brasileira, no 8, mai-jun., 193 , p. 166.
“Caim, Caim, Caim”, Contos de Belazarte, op. cit., p. 8
andRade, Carlos Drummond de Andrade, A lição do amigo: Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, São Paulo, Companhia das Letras, 201 , p. 67.
César Braga-Pinto — © cc by-nc-nd 4.0
Numéro 22 – Automne 2022
dizer, vergar que é uma infinita paciência com tudo, uma crendice maravilhosa
que aceita castigos de são Nicolau, que tem medo de assombrações 34 .
Tal resignação ou conformismo estratégico de Mário, a determinação de ser feliz apesar
das adversidades, da violência e, quiçá, do preconceito sofrido ou imaginado (as assombrações), sem
no entanto abdicar da necessária “coragem de si mesmo”, não excluem a utopia de uma felicidade
plena, ou mesmo o desejo de uma identidade legível, desejo postergado e ao mesmo tempo usufruído
no discurso e no exercício da coragem enquanto paciência: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta/ Mas um dia afinal eu toparei comigo/ Tenhamos paciência… 35 ”. Contudo, o tempo presente
se impõe enquanto uma prática de uma felicidade imediata, corpórea: “Quem foi que disse que disse
que não vivo satisfeito? / Eu danço! […] Eu danço… Não sei mais chorar! 36 ”. Ou, na formulação
certeira do já referido Victor Knoll:
Dor e felicidade: do lado da dor, o Arlequim dilacerado, fragmentado, retalhado
em sua existência, escapando de seu limite; do lado da felicidade, o trabalho programado e a construção de um destino. O poeta costura a casca do Jaboti. Mas,
para construir esse destino o poeta explora as ruas da cidade arlequinal — sua
inspiração. E caminha pela cidade sequestrando e realizando o amor, dividido
e reencontrando a unidade, exercendo a paciência e a preguiça elevada. Uma
Paciente Arlequinada 37 .
O que o crítico chama de “casca do Jaboti”, poderíamos chamar de “armário”. Mas se
a “paciência” e a “preguiça”, recorrentes em toda a obra de Mário, ocorrem no sentido de “não
posso (ou não quero) fazer nada”, elas indicam também um gesto de recusa às exigências do outro
(heterossexual), a quem se diz, um pouco como na citação de Silviano: “ora, paciência!”; ou, “isso
é problema seu”. Trata-se de uma forma de resignação, contudo, não de uma resignação passiva,
mas sim irônica. Geralmente seguida por um silêncio, “paciência!” funciona também como uma
resposta política e poética a uma tentativa de silenciamento que a precede. Ela pode ser lida como
uma resposta muito pessoal que Mário oferece à marginalização dos sujeitos e corpos dissidentes,
enunciada já no seu “Prefácio Interessantíssimo”: “Canto da minha maneira. Que me importa se
não me entendem? Não tenho forças bastantes para me universalizar? Paciência 38 ”. Enfim, talvez “paciência” não seja nada mais do que uma forma de dizer, muito categoricamente: “eu não
desminto”.
Em suma, ao me recusar a participar de qualquer esforço de se decifrar a sexualidade
de Mário (e a minha), a questão que coloco é também hermenêutica. Ou seja, trata-se de buscar
práticas de leitura e interpretação alternativas que renunciem ao desejo de resgatar a verdade, de
decifrar o enigma, de revelar o segredo da vida e da obra de um escritor. Proponho ao contrário
uma leitura mais epidérmica e, ao mesmo tempo, mais criativa, pois é pelo arrepio da pele e pelo
34 . Ibid., p. 68.
35 . andRade, Mário de “Eu sou trezentos” (1929), Remate de Males, Poesias completas, Edição crítica de Diléia
Zanotto Manfio, Belo Horizonte, Villa Rica, 1993, p. 211.
36 . andRade, Mário de, “Danças” (1924), Remate de Males, op. cit., p. 216.
37 . Knoll, Victor, “Paciente Arlequinada”, op. cit., p. 136.
38 . andRade, Mário, “Prefácio Interessantíssimo”, Poesias completas, op. cit., p. 7 .
A sexualidade de Mário: menos velocidade, mais paciência
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Iberic@l, Revue d’études ibériques et ibéro-américaines
aguçar da imaginação que passa o erotismo. Assim, não me interessa compreender o erotismo, ou
a sexualidade de, ou mesmo em Mário; nem tornar o desejo de Mário, e muito menos o objeto do
desejo de Mário, em objeto de investigação ou militância. O que não quer dizer que Mário e seus
desejos, sexuais ou não, fiquem relegados à invisibilidade, e que sua subjetividade não possa ser universalizada, como bem demonstra o “Mário Longínquo”, poema de um poeta muito heterossexual
como Carlos Drummond de Andrade:
Mário arco-íris, mas tão exato
Na modenatura de suas cores e dores,
Que captamos a só imagem de alegria
E azul disciplinado,
Lá onde, surdamente,
Turvação, paciência e angústia se mesclaram.
[…]
Vejo-te livre, respirando
A fina luz do dia universal 39
39 . andRade, Carlos Drummond, “Mário Longínquo”, Poesia completa, Nova Aguilar, 2002, p. 480.
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