TRADIÇÕES DE CONHECIMENTO: NOTAS SOBRE OS FUNDAMENTOS DA
COMUNICAÇÃO HUMANA
TRADICIONES DE CONOCIMIENTO: NOTAS SOBRE LOS FUNDAMENTOS DE LA
COMUNICACIÓN HUMANA
TRADITIONS OF KNOWLEDGE: NOTES ON THE FOUNDATIONS OF HUMAN
COMMUNICATION
Evanildo Moraes ESTUMANO
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José BITTENCOURT DA SILVA
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Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO
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Como referenciar este artigo:
ESTUMANO, E. M.; BITTENCOURT DA SILVA, J.; FURTADO,
L. F. G. Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos
da comunicação humana. Rev. Educação e Fronteiras, Dourados,
v. 12, n. 00, e023007, 2022. e-ISSN: 2237-258X. DOI:
https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701
| Submetido em: 11/12/2022
| Revisões requeridas em: 16/01/2022
| Aprovado em: 20/02/2022
| Publicado em: 10/03/2022
Editor: Profa. Dra. Alessandra Cristina Furtado
Editor Adjunto Executivo: Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz
Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022.
DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701
e-ISSN:2237-258X
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Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana
RESUMO: Este ensaio parte de estudos que investigaram modos de vida e pensamentos
comuns produzidos por habitantes de comunidades de áreas rurais. Para a reflexão proposta
problematiza-se os critérios de categorização das populações rurais enquanto populações
tradicionais, objetivando discutir a noção de conhecimento tradicional e sua associação à
semelhante noção de população tradicional. Metodologicamente utilizou-se referenciais
teóricos a fim de conformar uma noção de conhecimento social que tenha por base a experiência
humana enquanto meio expressivo de comunicação. Conclui-se pela dificuldade de conceituar
o objeto de investigação “conhecimento tradicional” associado a grupos sociais específicos que
seriam seus produtores, as denominadas populações tradicionais. E aponta-se para uma inflexão
na noção de tradição voltada à ideia de produção contemporânea de significados por meio de
uso de símbolos, isto, como sistema fundamental de compreensão da vida para seus usuários.
PALAVRAS-CHAVE: Senso comum. Tradição. Comunicação humana.
RESUMEN: Este ensaio parte de los estudios que investigaron modos de vida y pensamientos
comunes producidos por habitantes de comunidades de áreas rurales. Para la refleción
propuesta se problematiza los criterios de categorización de las poblaciones rurales como
poblaciones tradicionales, con el objetivo de discutir la noción de conocimiento tradicional y
su asociacón a la semejante noción de la población tradicional. Metodologicamente se
utilizaron referenciales teóricos a fin de conformar una noción de conocimiento social de base
en la experiencia humana como médio expresivo de comunicación. Se concluye por la
complejidad conceptual y metodológica de precisar el objeto de investigación “Conocimiento
tradicional” asociado a grupos sociales específicos que serían sus productores y por lo tanto,
se denominan poblaciones tradicionales. Y se apunta a uma infleción en la noción de tradición
volcada a la ideia de producción contemporánea de significados por médio de uso de símbolos,
esto que, como sistema fundamental de comprensión de la vida para seus usuários.
PALABRAS CLAVE: Sentido común. Tradición. Comunicación humana.
ABSTRACT: This essay is part of studies that have investigated ways of living and of common
thoughts produced by inhabitants of rural communities. For the accomplishment of the
research, we problematize the criteria of categorization of rural populations, as traditional
populations, with the objective of discussing the notion of traditional knowledge and its
association with the similar notion of traditional population. Methodologically, we use the
theoretical frameworks to confirm a notion of social knowledge that has support in human
experience as a means of expressing communication. We conclude that by the difficulty of
conceptualize the object of research “traditional knowledge” associated with specific social
groups that would be their producers (the so-called traditional populations) cannot be defined
theoretically. Thus, we point to an inflection in the notion of tradition focused on the idea of
contemporary production of meanings using symbols, that is, as a fundamental system of
understanding life for its users.
KEYWORDS: Common sense. Tradition. Human communication.
Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022.
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Evanildo Moraes ESTUMANO; José BITTENCOURT DA SILVA e Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO
Introdução
Essa discussão a respeito da experiência comum teve origem em estudos teóricos e em
pesquisas antropológicas, sociológicas e educacionais junto a comunidades rurais,
particularmente, na Amazônia Brasileira.1 De fato, a inquietude com as questões teóricas que
circundam a temática se deu após o cotejamento de referenciais conceituais com dados de
campo, o que fomentou uma profícua circularidade, traduzida em idas e vindas entre os dados
produzidos em terreno e as noções conformadas em teorias. Para o propósito deste texto,
especificamente, a discussão centra-se nas noções relativas à ideia de conhecimento,
problematizando a maneira pela se apresentam elaboradas e, a consequente aplicação às
investigações sobre populações rurais na atualidade.
O foco deste ensaio é, portanto, a apreciação do termo “conhecimento tradicional” como
vem sendo exposto no âmbito das ciências sociais e humanas, a fim de problematizar seu
entendimento familiar, endossando a argumentação em favor de uma análise simbólica nos
estudos sobre a ação social.
Hoje não há nada mais evidente para os que notam as populações tradicionais, ou de
modo geral os aglomerados humanos das regiões rurais (assim denominados em contraste com
os centros urbanos), que o fato de que essa gente detém um conhecimento específico, que se
torna o traço distintivo de seu modo de vida – o assim chamado conhecimento tradicional. O
que, de antemão, poderia se caracterizar como a defesa “[...] da romântica e inepta apologia do
‘saber prático’ de segmentos da população – grosseiro viés que anda a permear certas
formulações que tem livre curso entre os assistentes sociais (e não só)” (NETTO; CARVALHO,
2012, p. 72).
Contudo, os argumentos seguintes passam distante da adoção de uma perspectiva
maniqueísta em relação aos termos tradicional e moderno, ou tradicional e científico, ou outro
contraste possível. A intenção não é substituir, ou abandonar, qualquer noção pelo simples fato
de deixar à margem, pois este tipo de procedimento não concorre para a apresentação de
argumentos sólidos em torno do objeto de qualquer investigação. Antes o objetivo é demonstrar
sua inadequação ou sua adequação em outros termos para a análise da vida cotidiana.
Ponderação, neste sentido, também foi feita por Spencer ao tratar do conceito de
sociedade (SPENCER apud INGOLD, 1996, p. 66). Ainda a respeito de exercícios de revisão
Parte do material bibliográfico foi levantado com apoio financeiro da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Ensino Superior do Ministério da Educação (CAPES/MEC) por meio do financiamento de bolsa de estágio
doutoral na modalidade Doutorado Sanduíche, a um dos autores, na Universidade de Lisboa, em Portugal.
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terminológica é importante a observação de Wolf de que não sendo suficiente inventar ou
importar palavras novas, a revisão periódica de nosso estoque de ideias “deve ser uma avaliação
crítica do modo como formulamos e respondemos questões e das limitações que podemos trazer
para esta tarefa” (WOLF apud FELDMAN-BIANCO; RIBEIRO, 2003, p. 308).
“Conhecimento teórico” e “conhecimento prático”
Para o propósito seguinte empreende-se uma discussão epistemológica a respeito de o
conhecimento, o qual repousa em uma problemática mais ampla da qual ao longo do tempo se
ocuparam vários estudiosos, como os filósofos, os sociólogos, os antropólogos, os psicólogos
e, recentemente, os biólogos.2 Trata-se da relação do homem com o mundo, ou precisamente,
do lugar que as coisas ocupam em uma dupla relação: delas próprias com os valores de uma
dada ordem cultural e, ao mesmo tempo, mediando as relações intersubjetivas entre pessoas,
até mesmo de outro modo, entre humanos e entre humanos e não humanos.
O fenômeno do conhecimento humano expresso, no âmbito das ciências sociais e
humanas, por termos, entre outros, como ‘humanização da natureza’ ou ‘processo de
simbolização da realidade objetiva’ tem sido exposto em diferentes abordagens, que
comumente se traduzem no entendimento de que há uma ordem de transformação na qual se
postula um fato, que se origina de uma coisa em si3 e a transcende, produzindo uma realizada
de outro nível, diferenciada da primeira em grau e em qualidade.
Tal exercício explicativo se utiliza de termos dicotômicos para classificar a suposta
relação entre o humano e o inumano, a despeito da variação terminológica encontrada nas
expressões como as que se destacam a seguir: natureza versus cultura; pensamento pragmático
versus pensamento reflexivo; racionalidade prática versus racionalidade teórica; pensamento
selvagem versus pensamento conceitual; ciência do concreto versus ciência das propriedades
intrínsecas; pensamento primitivo utilitário versus pensamento lógico; pensamento do senso
comum versus conhecimento científico.
Essa maneira de abordar o problema do conhecimento humano ou da constituição de
um mundo especificamente humano, tendo por base grupamentos virtualmente distintos, é afeto
Nos campos da Antropologia Biológica e da Biologia consultar The cognitive animal: empirical and theoretical
perspective on animal cognition (2002) e as peculiares teses de Maturana (2001), respectivamente.
3
O conceito iluminista de coisa-em-si, objetiva circunscrever os limites do conhecimento humano naquilo que
resultaria da intuição sensível ou do intelecto puro. Por sua vez, a filosofia contemporânea entende que o
conhecimento é demarcado pelo alcance dos métodos que presidem sua validade; “portanto, já não precisa da
iluminista ‘C.-em-si’ para impor moderação as pretensões cognitivas do homem” (cf. ABBAGNANO, 2000, p.
153 - entrada: Coisa-em si.).
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— por exemplo, na fase clássica da antropologia, além das retomadas atuais — ao conjunto de
abordagens de outros temas, como regista Viveiro de Castro em sua crítica ligada à noção de
sociedade:
O esquema de maior produtividade no pensamento ocidental, entretanto, foi o
dicotômico [em contraste com a tripartição], que se presta melhor a
descontinuidades fortes. Traduzindo a polaridade conceitual entre universitas
e societas em termos de uma oposição real, as dicotomias tipológicas
destacam aspectos variados de um contraste em última análise redutível a
‘Nós’ versus os ‘Outros’, constituindo o núcleo de teorias do Grande Divisor
que singularizam o ocidente moderno frente às demais sociedades humanas.
Entre as dicotomias mais famosas — todas contendo alguma referência aos
pares primitivo/civilizado ou tradicional/moderno — podemos enumerar:
parentesco/território (Morgan); status/contrato (Maine); solidariedade
mecânica/orgânica (Durkheim); comunidade/sociedade (Tonnies); sociedades
simples/complexas (Spencer); dom/mercadoria ou dom/contrato (Mauss);
tradicional/racional (Weber); holismo/individualismo (Dumont); história
fria/quente, pensamento selvagem/domesticado (Lévi-Strauss) (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002, p. 307).4
Percebe-se que o legado epistemológico é preponderantemente dicotômico, o que, por
sua vez, influencia a maneira de abordar e de construir de formas qualitativas esses sistemas
cognitivos, como modelos de conhecimento da realidade.
Tomando, especificamente, o par primitivo/civilizado, o trabalho de Durkheim e Mauss
(apud MAUSS, 2001, p. 450-451), por exemplo, promovem considerável crítica àquela
dicotomia, defendendo, a respeito das classificações primitivas nas sociedades não ocidentais,
visto que “estes sistemas, exatamente como os da ciência, têm uma finalidade especulativa.
Têm como objeto, não facilitar a ação, mas fazer compreender, tornar inteligíveis as relações
existentes entre os seres”. Tal preocupação com os modos de conhecimento e suas categorias
operacionais permitiu o desenvolvimento de linhas de estudos que buscaram distinguir ou
aproximar formas estranhas de pensamento ao pensamento ocidental. Na esteira desse
empreendimento, Burke (2003, p. 78) registra que:
[...] de Durkheim em diante os antropólogos desenvolveram uma tradição de
levar a sério as categorias ou classificações de outras pessoas, investigando
seus contextos sociais. A tradição incluiu estudos clássicos como O
pensamento chinês (1934), de Marcel Granet, e O pensamento selvagem
(1962), de Claude Lévi-Strauss. Granet, por exemplo, apresentou as categorias
chinesas de yin e yang como exemplos de pensamento concreto ou pré-lógico.
Lévi-Strauss rejeitou a ideia do pré-lógico, mas também ele destacou as
Além de outras dicotomias como “[…] O pré-tecnológico vs. tecnológico de Gell (1992); o pré-letrado/letrado
de Goody (1997); [...] e o pré-capitalista/capitalista de Marx (1965 [1857-58])” (RAPPORT; OVERING, 2003, p.
337).
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categorias concretas dos chamados povos primitivos, como os índios
americanos, que fazem uma distinção análoga ao nosso contraste entre
“natureza” e “cultura” com as categorias do “cru” e do “cozido”.
No âmbito das ciências sociais, o combate a certa visão intelectualista na interpretação
da atividade humana no mundo se direciona ao pressuposto de que a ação social não é
estritamente um ato de conhecer e, por sua vez, aquela mesma ação não se faz conhecer por um
único tipo de procedimento cognitivo. Sobre o primeiro ângulo, seguimos o comentário de
Bourdieu:
As discussões que se desenvolveram tanto entre os etnólogos (etnociência)
como entre os sociólogos (etnometodologia) em torno dos sistemas de
classificação têm em comum esquecer que esses instrumentos de
conhecimento desempenham como tais funções que não são de puro
conhecimento. [...] As taxionomias práticas, instrumentos de conhecimento e
de comunicação que são a condição da constituição do sentido e do consenso
sobre o sentido, não exercem sua eficácia estruturante a não ser que eles
mesmas sejam estruturadas. O que não significa que sejam passíveis de uma
análise estritamente interna (“estrutural”, “componencial” ou outra) que, ao
arrancá-las artificialmente às suas condições de produção e utilização,
impede-se de compreender suas funções sociais (BOURDIEU, 2009, p. 157).
Simmel colabora no segundo ângulo desta discussão, com o mesmo tipo de observação
de Bourdieu mencionada acima, mostrando o lado inverso, como crítica a certo modo de
pensamento, o do conhecimento dedutivo. O autor pontua que
[a] precisão da lógica nunca provará, por si, a existência das coisas; esta é um
fato, que se admite como dado, mas que nunca pode ser concebido com a
absoluta necessidade que aquela aspiração de segurança exige. Será sempre
um dos mais notáveis acontecimentos da história do espírito a maneira como
essa necessidade de segurança e certeza absolutas — que não provém de
simples interesses de conhecimento, mas da relação total do homem com
o mundo — procura aqui satisfazer-se por meio do simples conhecimento;
essa profunda incongruência vinga-se, por assim dizer, tornando cega para o
erro e a vacuidade dessa dedução lógica a força de tal anseio (SIMMEL, 1970,
p. 53, grifo nosso).
É perceptível que a oposição estabelecida entre os modos de conhecimento da ciência
ocidental e os demais modos procura sustentar-se na maneira pela qual as distinções dos objetos
e de suas características empíricas se efetuam. Este é um aspecto compreensível. Porém, não se
sustenta a ideia de que as distinções existentes entre os modos de conhecer o mundo se
diferenciam entre um empirismo pragmático — centrado na funcionalidade de uso prático – e,
um esquema reflexivo — que busca o conceito. A despeito disso é esclarecedora esta
proposição de Sahlins:
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A grande diferença entre esse tipo de epistemologia sensorial e o realismo
objetivo imaginado pela ciência ocidental [...] é que a primeira, a chamada
taxionomia folk, está completamente embutida na e mediada pela ordem
cultural local, enquanto a segunda finge ser determinada pelas coisas em si e
por si mesmas. [...] Em resumo, as criaturas estão encerradas numa
cosmologia total da qual é possível abstraí-la enquanto coisas-em-si apenas à
custa de suas identidades sociais (Ellen, 1986: 101). O empirismo do pensée
sauvage consiste mais exatamente na discriminação das criaturas e traços da
natureza de acordo com os valores humanos de suas características objetivas
(cf. Feld, 1982) (SAHLINS, 2001, p. 180).
Como nota Cassirer (2011) no processo de formação conceitual dos campos da filosofia
como no da ciência moderna, essas áreas do conhecimento dispensaram tratamento algo
semelhante à visão de mundo da “experiência comum”, traduzidos, às respectivas épocas, pela
língua e pelo mito. Haja vista que o “conhecimento filosófico precisa primeiramente se libertar
da pressão da língua e do mito; precisa, por assim dizer, eliminar essas testemunhas da pobreza
humana antes de poder elevar-se ao puro éter do pensamento” (CASSIRER, 2011, p. 35). Para
o autor o ato exposto por essa separação marca a ocasião do despontar da filosofia, assim como
“o ponto de partida da investigação empírica e da determinação matemática da natureza. [...] E
assim como o conhecimento científico da natureza empreende uma batalha com os conceitos
míticos, também o faz em relação aos conceitos linguísticos” (CASSIRER, 2011, p. 35-36).
A tentativa de superação daquelas dicotomias é realizada em esforços de autores que
primaram pelo estudo do simbolismo e dos efeitos da cultura na vida prática. Segundo os
teóricos dessa linha de pensamento, a perspectiva simbólica contribui para a superação de
interpretações dicotômicas, como registra Langer (1951) ao dizer que na noção de simbolização
— mística, prática, ou matemática, etc. — reside a nova concepção de “mentalidade”, que
ilumina questões de vida e consciência, em vez de obscurecê-las, como fizeram os “métodos
científicos” tradicionais.
Parafraseando o dito popular que assegura que “as coisas mais importantes da vida não
são coisas”, digamos também que no âmbito da ciência da cultura, do universo humano, uma
coisa jamais é uma coisa: será sempre um espírito bom ou mal; um vento de presságio; uma
natureza intocada; um presente; um aceno de esperança; uma possibilidade de continuar a
existência por meio de um novo ser; um parente ou um estranho; um corpo novo ou velho, ou
mesmo nem isso, e etc. Trata-se, enfim, de um tipo de cognição — em sentido lato — que
aborda abstrações, idealizações, generalizações e formalizações de diferentes ordens, que
tipificam as experiências a fim de percorrer os caminhos do mundo.
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De fato, nenhuma ação que seja demasiadamente incompreensível aos contemporâneos
de um mesmo grupamento pode caber na descrição sociológica, uma vez que o objeto que o
cientista interpreta é a ação social, uma ação significativa, em primeiro nível, para o próprio
sujeito, no contexto (WAGNER, 2010) por ele produzido a partir dos sistemas simbólicos.
Além disso, é improvável que as manifestações da vida psíquica (percepções,
pensamentos, sentimentos, atos de vontade, etc.) sejam unificados em todos os indivíduos.
Entretanto, “a semelhança dos indivíduos é a condição para que se dê uma ‘comunidade’
(Gemeinsamkeit) de seu conteúdo vital” (DILTHEY, 1949, p. 57). Sem dúvida, um sistema
cultural é uma comunidade de sentido e não uma comunidade de regras morais indubitáveis e
muito menos é um grupamento de pessoas, ainda que seja somente por meio destes (pessoas
agindo a partir de regras morais) que se possa apreender àquele (ou àqueles sistemas de
significação).
Essa mesma compreensão, concernente à crítica conceitual da rigidez das instituições
sociais, havia sido exposta por Mary Douglas ao tratar das ideias de pureza e perigo, que parece
poder ser ampliada para conjuntos de ideias que estejam no raio de ação de outros sistemas
culturais. Pondera Douglas:
O nativo de qualquer cultura, naturalmente, julga-se recebedor passivo de suas
ideias de poder e perigo no universo, descontando quaisquer modificações
menores com as quais ele próprio pudesse ter contribuído. [...] O antropólogo
cai no mesmo engano se pensar uma cultura que esteja estudando como padrão
de valores estabelecidos há muito tempo (DOUGLAS, 2012, p. 16).
Nota-se que é no processo de construção de estruturas significativas dentro de tempos e
lugares antropológicos que o sujeito avalia as respostas obtidas por seu comportamento. Isto é,
dentro de valores de seu grupo social, os quais modificam os padrões culturais por meio de
novos significados incorporados historicamente, resultado de ações atribuidoras de significados
sociais e simbólicos, emergentes das interações dos indivíduos.
Importa, finalmente, dar atenção ao uso estratégico que os atores fazem da interpretação
e utilização dos conhecimentos socialmente legitimados no plano das ideias — script que não
escreveram, mas que terão que representar de alguma forma em sua cotidianidade; fato que
reforça a seguinte assertiva de Marcel Mauss (2003, p. 371): “É evidente, sobretudo para nós,
que nunca houve ser humano que não tenha tido o senso, não apenas de seu corpo, mas também
de sua individualidade espiritual e corporal ao mesmo tempo”.
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Estruturas de significados da comunicação por símbolos
A partir dos avanços teóricos proporcionados por investigações sobre as realidades
sociais e históricas como os mencionados anteriormente, torna-se possível extrair algumas
implicações a fim de corroborar o debate no que se refere à crítica ao termo conhecimento
tradicional para que possam ser úteis ao estudo da vida cotidiana e, dentro desta, de ações
laborais, educacionais, políticas, religiosas etc.
Sobre o aspecto da construção do objeto de pesquisa é lúcida a recomendação de Pires
quando argumenta que essa pré-construção social do objeto pode se constituir em uma espécie
de entrave epistemológico ante a nossa maneira de “apreendê-lo cientificamente, pois ela
orienta nosso modo de vê-lo e concebê-lo. Em suma, a aparência que a sociedade assume,
sobretudo quando é representada por práticas institucionais, deve ser questionada pelo analista”
(PIRES apud POUPART, 2012, p. 59).
Logo, nenhum termo é interditado ao cientista social desde que tenha a clareza que o
objeto a que se atém, em muitos casos, é recortado ou construído pelas próprias instituições
sociais, dando-lhe o tratamento adequado, como o autor acima exemplifica a respeito do estudo
do crime e, aqui exemplifica-se com a noção conhecimento tradicional.
Um aspecto a ser observado é o de que a dicotomia entre tradição e modernidade se
cristalizou para além de uma época como uma forma de estar no mundo em qualquer tempo e
lugar; de modo que este processo substanciou a modernidade no que ela remete à tradição como
sendo o passado ou como um “veio de tempo” estagnado dentro do presente.
No contexto deste contraste quando se pensa em um saber tradicional, acede à mente a
possibilidade de descrever ou enumerar, para uma determinada população, um conjunto finito
de conhecimentos e técnicas, o paradigma dos significados das palavras no dicionário, que seria
o estoque de saber atualizado nas práticas cotidianas. Do outro lado, ao se falar em
conhecimento moderno é destacado seu caráter criador: o das invenções e descobertas,
principalmente, do homem de ciência.
Acerca disto refere-se, inicialmente, o fato de que não pode existir nenhum sistema de
conhecimento — conjunto de ideias e de procedimentos legitimados pelo pensamento comum
— que não seja tradicional, que não esteja em uso (tradição) por um conjunto de pessoas em
um determinado lugar e por um determinado tempo; visto que, não pode existir nenhum
conhecimento comum que não seja tradicional e não esteja em operação. De modo que em lugar
do termo tradição, como observada em toda ordem de predicativo em que é invocado como
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sujeito ou como objeto (tradição cultural; cultura tradicional), será mais adequado empregar a
noção de cultura como sistema de significados (GEERTZ, 1989).
Vejamos, em linhas gerais, o entendimento convencional sobre o que seja “tradição” e
seu derivado, o “conhecimento tradicional” para, então, realizarmos a aplicação do termo
tradição somente no sentido de padrão dominante, com interesse de eliminar mal-entendidos e
de produzir e comunicar algum conhecimento adequado, tendo em conta que o comportamento
humano opera no domínio de regras culturais, que se orienta, em última instância, por padrões
predominantes de pensamento (BOAS, 2010).
Neste ponto são, de fato, adequadas as recomendações extraídas do empreendimento de
Foucault, quando realiza uma história dos conhecimentos sobre a forma de lidar com os
problemas teóricos:
Há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de
todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da
continuidade. Elas, sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante
rigorosa; mas sua função é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa a dar
uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos, ao mesmo
tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a
dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença
característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na
atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas
sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade,
o gênio, a decisão própria dos indivíduos [...] (FOUCAULT, 2008, p. 23-24).
As nascentes ciências sociais do século XVIII não passaram incólumes ao conjunto de
percepções sobre a mudança social ao longo da história. Nesse campo, as sociedades não
europeias foram irremediavelmente distinguidas de suas contemporâneas europeias, tanto no
plano dos ideais (concebidas como arcaicas) quanto no plano da história, que, por um “passe
de mágica científica”, foram denominadas estáticas, como se estagnassem no tempo. Fato que
não somente diferenciava os povos entre nós (ocidentais modernos) e eles (não ocidentais
arcaicos), todavia entre os próprios ocidentais, os modernos (citadinos) e os ditos não modernos
(das áreas rurais).
Como a antropologia social buscava entender como o homem chegou a se tornar o que
é ou mais especificamente como “nós” ocidentais chegamos a tornarmo-nos o que somos, não
fez adiar a ideia de que seus teóricos enxergassem nas populações que possuíam modos de vida
diferentes do seu, uma idade anterior da evolução da mente e da sociedade humana. A lógica
das hipóteses era bastante simples e eficaz: as sociedades arcaicas, que operavam ideias e
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formas de organização social em desuso na atualidade em que viviam os intelectuais, faria
recordar os longos estágios pelos quais a humanidade teria passado rumo à civilização.5
A própria idade moderna, contudo, foi vítima do pressuposto de que a mudança social
e intelectual em curso era irreversível rumo ao progresso humano. Por seu turno, se a mudança
haveria de ser contínua, até mesmo as ideias modernas haveriam de mudar, visto que os
contemporâneos da própria modernidade não se identificavam mais com as gerações anteriores,
reivindicando para si o título de pós-modernos.
Apesar da superação cronológica da Idade Moderna, que deu início à Idade
Contemporânea, seus ideais ressoaram até a próxima idade. O discurso contemporâneo não foi
capaz de criar algo tão poderosamente dicotômico e contrastante, deste modo, um porto-seguro,
comparado ao que se avalia entre o antigo e o moderno. Os próprios conceitos que se insinuam
na contemporaneidade o fazem aludindo ao moderno: o discurso pós-moderno.
Assim, o pós-modernismo surgiu como uma atitude, como uma forma indeterminada
sem conteúdo determinado, bastando afastar-se do que seria moderno e, até mesmo, recombinar
o que existia de moderno em outra perspectiva. Aos poucos, a colagem tornou-se uma marca
da pós-modernidade. De fato, “o movimento pós-moderno iniciado nos finais da década de
1970, princípios da de 1980, não representa nada de inovador, ao contrário da ‘revolução
científica’ iniciada durante o Renascimento” (BATALHA, 1998, p. 332).
Ser pós-moderno levou a uma operação engenhosa. Primeiro seria preciso separar o
antigo do moderno e depois recombinar os elementos modernos em qualquer direção, menos
no sentido que se identificasse com o antigo, com isto temos a perenidade dos opostos
hierárquicos antigos e modernos.
A despeito dos avanços no conhecimento antropológico, que por certo refutaram essas
ideias etnocêntricas, perdurou a visão diferenciada sobre o modo de vida de populações em
maior ou menor grau: as que reproduziam seus valores exclusivamente pela oralidade (os
tradicionais) e os que perpetuavam seus ideais por meio da escrita (os modernos). Essa
separação não se fez sem problemas. Quando os cientistas sociais passaram a estudar suas
próprias sociedades essa dicotomia foi simplesmente reproduzida: as sociedades rurais
viveriam na tradição (oral) e os urbanos na modernidade (escrita).
Um dos expoentes das chamadas teorias evolucionistas em Antropologia é Lewis Henry Morgan o qual expõe
na obra Sociedade Antiga (CASTRO, 2005) a teoria dos períodos étnicos, que seriam estágios ascendentes
(selvageria, barbárie e civilização) pelos quais os povos passaram (ou passariam) em seu desenvolvimento natural.
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Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana
Mais de um século se passou desde os primeiros escritos científicos das ciências do
homem e da sociedade, mas as insuficiências do emprego da palavra tradição e modernidade
continuam a nos desviar de caminhos mais sólidos de compreensão da vida social. Ao longo do
século XX os polos tradicionais e modernos passaram por um período de equivalência. As
influências do debate político proposto pelo multiculturalismo certamente se fizeram sentir a
respeito de a identificação das diferenças culturais, nomeadamente as intranacionais,
postulando que todas as culturas são epistemologicamente e antropologicamente equivalentes.
Nas décadas finais do último século e nas iniciais deste século, o par tradicionalmoderno chegou a sua completa inversão, ou seja, à valorização do tradicional — entendido
como estando ligado a valores básicos de convivência (solidariedade, amor ao próximo,
parentesco) e, sobretudo um modo de vida autossustentado em oposição ao moderno — visto
como individualista, consumista, dominador e depredador da natureza.
Novamente, outro discurso político está na base desta modificação, trata-se do
ecologismo (DIEGUES, 2008) que apregoa que no estilo de vida das populações “tradicionais”
prevalece o modelo seguro para a preservação da natureza e manutenção da vida no Planeta. É
interessante mostrar que, como uma espécie de “retorno às origens”, é uma tendência que surgiu
durante a “metade do século passado [XIX] nos escritos dos representantes da escola indianista
da nossa literatura e atinge seu apogeu nos romances de José de Alencar, nos quais se valorizam
nossas raízes culturais: o índio, a vida rural, etc.” (OLIVEN, 1999, p. 411).
No entanto, percebe-se que os principais valores colocados em xeque, paralelamente ao
debate conservacionista e preservacionista, é o grande valor oriundo e não realizado da ciência
moderna: o progresso da civilização por meio do conhecimento científico. Recorre-se neste
aspecto do discurso, evidentemente, ao primitivismo como outra possibilidade do progresso
(KUPPER, 1988).
Parece não haver solução para o problema de compreender se o “conhecimento
tradicional” é bom ou ruim a não ser situá-lo em uma bifurcação cujos caminhos se intercruzam
logo adiante, como ilustra o texto de Darcy Ribeiro (1995) a respeito da sabedoria dos caboclos
da Amazônia:
A característica básica dessa variante [sociocultural da sociedade nacional] é
o primitivismo de sua tecnologia adaptativa, essencialmente indígena,
conservada e transmitida, através de séculos, sem alterações substanciais. E, a
inadequação desse modo de ação sobre a natureza para prover condições de
vida satisfatórias e um mínimo de integração nas modernas sociedades de
consumo [...] (RIBEIRO, 1995, p. 310).
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Taylor, por sua vez, distingue dois modos de entender o surgimento da modernidade
que provocam efeitos diferentes sobre o que faz a nossa sociedade contemporânea diferente dos
seus antepassados, os quais denominou de perspectiva cultural e perspectiva acultural:
Em outras palavras, podemos pensar a diferença como uma diferença entre
civilizações, cada uma com sua própria cultura. Ou, alternativamente,
podemos ver a mudança de séculos anteriores aos dias de hoje como
envolvendo algo como “desenvolvimento”, como o desaparecimento de uma
sociedade “tradicional” e a ascensão do “moderno”.6 E nesta perspectiva, que
parece ser a dominante, as coisas parecem bem diferentes (TAYLOR, 2001,
p. 1).
Seguindo essa classificação poderíamos dizer que no debate atual, em torno do
conhecimento tradicional, a perspectiva dominante (ou a acultural) se confunde com a
perspectiva cultural produzindo um efeito ainda mais nefasto. A mudança, antes vista como
uma perda de crença, de verdades perenes, de leituras negativas da realidade rumo ao progresso
da razão (perspectiva acultural) se mescla à perspectiva cultural, tomando a diferença entre
culturas, a fim de manter inviolados os valores tradicionais, agora positivados, para o
melhoramento da sociedade global.
Mariza Peirano, por sua vez, recupera esta discussão, avaliando que sugestão
evolucionista implícita no par ‘sociedade simples versus sociedade complexa’ tem suas raízes
na teoria da modernização, desenvolvida a partir dos anos 1950. “Nesta concepção, ser moderno
significa ser complexo, a complexidade aqui se referindo principalmente aos aspectos da
organização social” (PEIRANO, 1992, p. 114). Por seu turno a eliminação dos elementos
tradicionais levaria à complexidade, todavia, para Peirano (1992, p. 115), “neste caso, é preciso
saber o que se entende por ‘tradição’, ou por ‘tradicional’. Quando esses conceitos são
indistintamente impostos a grupos sociais que passaram pelos mais variados processos de
desenvolvimento histórico, sua fragilidade se torna aparente”.
A fim de responder à própria indagação sobre o que seja “tradição”, Peirano endossa a
tese da a-historicidade do termo, fundamentando-se em Tambiah (1972, p. 55 apud PEIRANO,
1992, p. 115):
[...] O termo é usado, especialmente, em um sentido “a-histórico” e denota
algum tipo de herança coletiva que supostamente foi transmitida de forma
pouco modificada. Concebendo a tradição desta forma, dois pontos ficam
Para Dumont (2000) nas sociedades modernas a ideologia valoriza o indivíduo e negligencia ou subordina a
totalidade social (individualismo); nas formações sociais precedentes, inversamente, o conjunto de ideias e valores
comuns valoriza a totalidade social e negligencia ou subordina o indivíduo humano (holismo). Nestes termos, o
autor considera a configuração moderna como resultante da quebra da relação de valor entre elemento e todo.
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esquecidos: um que o passado foi, talvez, tão aberto e tão dinâmico aos atores
daquele tempo como a nossa época parece a nós mesmos; outro, que as
normas, regras e orientações do passado não foram necessariamente tão
consistentes, unificadas e coerentes como tendemos a imaginar.
Segue-se a conclusão da autora:
Em suma, Tambiah mostra que, fixando-se em um dos polos de uma dicotomia
analítica, pode-se facilmente imaginar graus de coerência inexistentes e
idealizar graus de integração social maiores que aqueles realmente
encontrados em sociedades do polo oposto. Tal como o indivíduo que idealiza
o passado como sempre melhor que o presente, o antropólogo seria susceptível
de cair na mesma armadilhar, idealizando a “tradição”, ou mesmo a
“sociedade simples” (PEIRANO, 1992, p. 115).
Proposições mais flexíveis sugerem, especificamente a respeito do Brasil em relação ao
mundo global, que se procure não a modernidade em si – ou seja, a realidade social e cultural
produzida pela consciência da transitoriedade do novo e do atual –, como foi idealizada, mas
pelas possíveis formas que ela assume no interior da vida grupal. “Minha proposta é a de que a
questão da modernidade no Brasil fica melhor compreendida quando investigamos o modo
como o moderno e os signos da modernidade são incorporados pelo popular. Nessa mediação,
é que se pode observar as dificuldades da modernidade” (MARTINS, 2010, p. 29).
Elaboração anterior de Oliven (1998) sobre a modernidade concernente à história do
País, aponta a centralidade desta temática no pensamento intelectual brasileiro: “O tema da
modernidade é uma constante no Brasil e tem ocupado nossa intelectualidade em diferentes
épocas. Trata-se de saber como estamos em relação ao ‘mundo adiantado’, primeiro a Europa,
mais tarde os Estados Unidos” (OLIVEN, 1998, p. 409).
Nesta exposição sobre as palavras tradição e modernidade e suas relações, uma
observação é evidente: referidas palavras apesar de transitarem no meio científico são, em sua
maioria, juízos de valor, cujos sentidos se associam aos acontecimentos sociopolíticos. Para
que a noção de tradição venha a ter alguma utilidade ao estudo do modo de vida das populações
em áreas diversas, precisamos afastá-la das ideias apresentadas anteriormente ao mesmo tempo
em que desvencilhá-la do seu oposto (a palavra modernidade); significa limitá-la ao sentido de
um padrão de significados que se reproduz por meio da linguagem cotidiana.
Assim, argumenta-se que a “tradição” é melhor interpretada como um sistema dinâmico
de comunicação simbólica do que como um conjunto fixo de valores transportados de forma
inalterado entre gerações de pessoas ao longo do tempo, como se estas pessoas fossem seus
receptáculos ao invés de seus produtores. Possivelmente, a única maneira de estagnar a tradição
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no passado, melhor dizendo, em um ponto no tempo, talvez seja a extinção do padrão de
comunicação entre seus agentes, como acontece no caso das línguas mortas.
Conclusão
O conhecimento ou a constituição de um mundo humano ou o processo de significação
do homem no mundo se diferencia nos recortes teóricos apresentados, indo desde uma ação de
base intelectual, passando por um processo interpretativo até uma dinâmica sociocultural que
demarca a diferenciação dos grupos sociais pelas ênfases com que atribuem valor a certas
dimensões da vida.
Neste quadro, sustenta-se que a apreciação do termo “conhecimento tradicional”,
possibilita sua crítica e endossa a argumentação em favor de uma análise simbólica nos estudos
sobre o comportamento social e, em consequência, sobre todos os vestígios de ação que
permitam registrar a construção da humanidade do homem. De fato, quando se trata da ação e
da compreensão do mundo percebe-se que o reconhecimento das coisas que constituem o
universo humano não é puro conhecimento, ainda que possamos identificar uma dimensão
cognitiva na experiência.
A vida dos grupos investigados se constitui como construção social e simbólica, sendo
feita e refeita de acordo com as circunstâncias temporais e locais que denotam possibilidades
de realização de sua humanidade, uma vez que confrontado às características do meio ambiente
com as condições técnicas e econômicas até então alcançadas, o espírito não permanece
passivo. Neste sentido, para além da concepção estrita de um homo technicus, postula-se as
ações sociais como relações sistêmicas significativas, isto é, como formas de humanamente
levar a cabo o projeto cultural no conjunto das dimensões culturais da vida.
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Sobre os autores
Evanildo Moraes ESTUMANO
Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém – PA – Brasil. Professor do Instituto de
Ciências da Educação. Doutorado em Ciências Sociais (UFPA).
José BITTENCOURT DA SILVA
Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém – PA – Brasil. Professor do Núcleo de Estudos
Transdisciplinares em Educação Básica da Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em
Ciências Ambientais (NAEA).
Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO
Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém – PA – Brasil. Pesquisadora do Museu Paraense
Emílio Goeldi (MPEG-MCTIC). Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia da Universidade Federal do Pará. Doutora em Ciências Sociais (Antropologia
Social) (USP).
Processamento e edição: Editora Ibero-Americana de Educação.
Revisão, formatação, normalização e tradução.
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