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Tradições de conhecimento

Educação e Fronteiras

Este ensaio parte de estudos que investigaram modos de vida e pensamentos comuns produzidos por habitantes de comunidades de áreas rurais. Para a reflexão proposta problematiza-se os critérios de categorização das populações rurais enquanto populações tradicionais, objetivando discutir a noção de conhecimento tradicional e sua associação à semelhante noção de população tradicional. Metodologicamente utilizou-se referenciais teóricos a fim de conformar uma noção de conhecimento social que tenha por base a experiência humana enquanto meio expressivo de comunicação. Conclui-se pela dificuldade de conceituar o objeto de investigação “conhecimento tradicional” associado a grupos sociais específicos que seriam seus produtores, as denominadas populações tradicionais. E aponta-se para uma inflexão na noção de tradição voltada à ideia de produção contemporânea de significados por meio de uso de símbolos, isto, como sistema fundamental de compreensão da vida para seus usuários.

TRADIÇÕES DE CONHECIMENTO: NOTAS SOBRE OS FUNDAMENTOS DA COMUNICAÇÃO HUMANA TRADICIONES DE CONOCIMIENTO: NOTAS SOBRE LOS FUNDAMENTOS DE LA COMUNICACIÓN HUMANA TRADITIONS OF KNOWLEDGE: NOTES ON THE FOUNDATIONS OF HUMAN COMMUNICATION Evanildo Moraes ESTUMANO e-mail: [email protected] José BITTENCOURT DA SILVA e-mail: [email protected] Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO e-mail: [email protected] Como referenciar este artigo: ESTUMANO, E. M.; BITTENCOURT DA SILVA, J.; FURTADO, L. F. G. Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana. Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. e-ISSN: 2237-258X. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 | Submetido em: 11/12/2022 | Revisões requeridas em: 16/01/2022 | Aprovado em: 20/02/2022 | Publicado em: 10/03/2022 Editor: Profa. Dra. Alessandra Cristina Furtado Editor Adjunto Executivo: Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 1 Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana RESUMO: Este ensaio parte de estudos que investigaram modos de vida e pensamentos comuns produzidos por habitantes de comunidades de áreas rurais. Para a reflexão proposta problematiza-se os critérios de categorização das populações rurais enquanto populações tradicionais, objetivando discutir a noção de conhecimento tradicional e sua associação à semelhante noção de população tradicional. Metodologicamente utilizou-se referenciais teóricos a fim de conformar uma noção de conhecimento social que tenha por base a experiência humana enquanto meio expressivo de comunicação. Conclui-se pela dificuldade de conceituar o objeto de investigação “conhecimento tradicional” associado a grupos sociais específicos que seriam seus produtores, as denominadas populações tradicionais. E aponta-se para uma inflexão na noção de tradição voltada à ideia de produção contemporânea de significados por meio de uso de símbolos, isto, como sistema fundamental de compreensão da vida para seus usuários. PALAVRAS-CHAVE: Senso comum. Tradição. Comunicação humana. RESUMEN: Este ensaio parte de los estudios que investigaron modos de vida y pensamientos comunes producidos por habitantes de comunidades de áreas rurales. Para la refleción propuesta se problematiza los criterios de categorización de las poblaciones rurales como poblaciones tradicionales, con el objetivo de discutir la noción de conocimiento tradicional y su asociacón a la semejante noción de la población tradicional. Metodologicamente se utilizaron referenciales teóricos a fin de conformar una noción de conocimiento social de base en la experiencia humana como médio expresivo de comunicación. Se concluye por la complejidad conceptual y metodológica de precisar el objeto de investigación “Conocimiento tradicional” asociado a grupos sociales específicos que serían sus productores y por lo tanto, se denominan poblaciones tradicionales. Y se apunta a uma infleción en la noción de tradición volcada a la ideia de producción contemporánea de significados por médio de uso de símbolos, esto que, como sistema fundamental de comprensión de la vida para seus usuários. PALABRAS CLAVE: Sentido común. Tradición. Comunicación humana. ABSTRACT: This essay is part of studies that have investigated ways of living and of common thoughts produced by inhabitants of rural communities. For the accomplishment of the research, we problematize the criteria of categorization of rural populations, as traditional populations, with the objective of discussing the notion of traditional knowledge and its association with the similar notion of traditional population. Methodologically, we use the theoretical frameworks to confirm a notion of social knowledge that has support in human experience as a means of expressing communication. We conclude that by the difficulty of conceptualize the object of research “traditional knowledge” associated with specific social groups that would be their producers (the so-called traditional populations) cannot be defined theoretically. Thus, we point to an inflection in the notion of tradition focused on the idea of contemporary production of meanings using symbols, that is, as a fundamental system of understanding life for its users. KEYWORDS: Common sense. Tradition. Human communication. Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 2 Evanildo Moraes ESTUMANO; José BITTENCOURT DA SILVA e Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO Introdução Essa discussão a respeito da experiência comum teve origem em estudos teóricos e em pesquisas antropológicas, sociológicas e educacionais junto a comunidades rurais, particularmente, na Amazônia Brasileira.1 De fato, a inquietude com as questões teóricas que circundam a temática se deu após o cotejamento de referenciais conceituais com dados de campo, o que fomentou uma profícua circularidade, traduzida em idas e vindas entre os dados produzidos em terreno e as noções conformadas em teorias. Para o propósito deste texto, especificamente, a discussão centra-se nas noções relativas à ideia de conhecimento, problematizando a maneira pela se apresentam elaboradas e, a consequente aplicação às investigações sobre populações rurais na atualidade. O foco deste ensaio é, portanto, a apreciação do termo “conhecimento tradicional” como vem sendo exposto no âmbito das ciências sociais e humanas, a fim de problematizar seu entendimento familiar, endossando a argumentação em favor de uma análise simbólica nos estudos sobre a ação social. Hoje não há nada mais evidente para os que notam as populações tradicionais, ou de modo geral os aglomerados humanos das regiões rurais (assim denominados em contraste com os centros urbanos), que o fato de que essa gente detém um conhecimento específico, que se torna o traço distintivo de seu modo de vida – o assim chamado conhecimento tradicional. O que, de antemão, poderia se caracterizar como a defesa “[...] da romântica e inepta apologia do ‘saber prático’ de segmentos da população – grosseiro viés que anda a permear certas formulações que tem livre curso entre os assistentes sociais (e não só)” (NETTO; CARVALHO, 2012, p. 72). Contudo, os argumentos seguintes passam distante da adoção de uma perspectiva maniqueísta em relação aos termos tradicional e moderno, ou tradicional e científico, ou outro contraste possível. A intenção não é substituir, ou abandonar, qualquer noção pelo simples fato de deixar à margem, pois este tipo de procedimento não concorre para a apresentação de argumentos sólidos em torno do objeto de qualquer investigação. Antes o objetivo é demonstrar sua inadequação ou sua adequação em outros termos para a análise da vida cotidiana. Ponderação, neste sentido, também foi feita por Spencer ao tratar do conceito de sociedade (SPENCER apud INGOLD, 1996, p. 66). Ainda a respeito de exercícios de revisão Parte do material bibliográfico foi levantado com apoio financeiro da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior do Ministério da Educação (CAPES/MEC) por meio do financiamento de bolsa de estágio doutoral na modalidade Doutorado Sanduíche, a um dos autores, na Universidade de Lisboa, em Portugal. 1 Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 3 Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana terminológica é importante a observação de Wolf de que não sendo suficiente inventar ou importar palavras novas, a revisão periódica de nosso estoque de ideias “deve ser uma avaliação crítica do modo como formulamos e respondemos questões e das limitações que podemos trazer para esta tarefa” (WOLF apud FELDMAN-BIANCO; RIBEIRO, 2003, p. 308). “Conhecimento teórico” e “conhecimento prático” Para o propósito seguinte empreende-se uma discussão epistemológica a respeito de o conhecimento, o qual repousa em uma problemática mais ampla da qual ao longo do tempo se ocuparam vários estudiosos, como os filósofos, os sociólogos, os antropólogos, os psicólogos e, recentemente, os biólogos.2 Trata-se da relação do homem com o mundo, ou precisamente, do lugar que as coisas ocupam em uma dupla relação: delas próprias com os valores de uma dada ordem cultural e, ao mesmo tempo, mediando as relações intersubjetivas entre pessoas, até mesmo de outro modo, entre humanos e entre humanos e não humanos. O fenômeno do conhecimento humano expresso, no âmbito das ciências sociais e humanas, por termos, entre outros, como ‘humanização da natureza’ ou ‘processo de simbolização da realidade objetiva’ tem sido exposto em diferentes abordagens, que comumente se traduzem no entendimento de que há uma ordem de transformação na qual se postula um fato, que se origina de uma coisa em si3 e a transcende, produzindo uma realizada de outro nível, diferenciada da primeira em grau e em qualidade. Tal exercício explicativo se utiliza de termos dicotômicos para classificar a suposta relação entre o humano e o inumano, a despeito da variação terminológica encontrada nas expressões como as que se destacam a seguir: natureza versus cultura; pensamento pragmático versus pensamento reflexivo; racionalidade prática versus racionalidade teórica; pensamento selvagem versus pensamento conceitual; ciência do concreto versus ciência das propriedades intrínsecas; pensamento primitivo utilitário versus pensamento lógico; pensamento do senso comum versus conhecimento científico. Essa maneira de abordar o problema do conhecimento humano ou da constituição de um mundo especificamente humano, tendo por base grupamentos virtualmente distintos, é afeto Nos campos da Antropologia Biológica e da Biologia consultar The cognitive animal: empirical and theoretical perspective on animal cognition (2002) e as peculiares teses de Maturana (2001), respectivamente. 3 O conceito iluminista de coisa-em-si, objetiva circunscrever os limites do conhecimento humano naquilo que resultaria da intuição sensível ou do intelecto puro. Por sua vez, a filosofia contemporânea entende que o conhecimento é demarcado pelo alcance dos métodos que presidem sua validade; “portanto, já não precisa da iluminista ‘C.-em-si’ para impor moderação as pretensões cognitivas do homem” (cf. ABBAGNANO, 2000, p. 153 - entrada: Coisa-em si.). 2 Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 4 Evanildo Moraes ESTUMANO; José BITTENCOURT DA SILVA e Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO — por exemplo, na fase clássica da antropologia, além das retomadas atuais — ao conjunto de abordagens de outros temas, como regista Viveiro de Castro em sua crítica ligada à noção de sociedade: O esquema de maior produtividade no pensamento ocidental, entretanto, foi o dicotômico [em contraste com a tripartição], que se presta melhor a descontinuidades fortes. Traduzindo a polaridade conceitual entre universitas e societas em termos de uma oposição real, as dicotomias tipológicas destacam aspectos variados de um contraste em última análise redutível a ‘Nós’ versus os ‘Outros’, constituindo o núcleo de teorias do Grande Divisor que singularizam o ocidente moderno frente às demais sociedades humanas. Entre as dicotomias mais famosas — todas contendo alguma referência aos pares primitivo/civilizado ou tradicional/moderno — podemos enumerar: parentesco/território (Morgan); status/contrato (Maine); solidariedade mecânica/orgânica (Durkheim); comunidade/sociedade (Tonnies); sociedades simples/complexas (Spencer); dom/mercadoria ou dom/contrato (Mauss); tradicional/racional (Weber); holismo/individualismo (Dumont); história fria/quente, pensamento selvagem/domesticado (Lévi-Strauss) (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 307).4 Percebe-se que o legado epistemológico é preponderantemente dicotômico, o que, por sua vez, influencia a maneira de abordar e de construir de formas qualitativas esses sistemas cognitivos, como modelos de conhecimento da realidade. Tomando, especificamente, o par primitivo/civilizado, o trabalho de Durkheim e Mauss (apud MAUSS, 2001, p. 450-451), por exemplo, promovem considerável crítica àquela dicotomia, defendendo, a respeito das classificações primitivas nas sociedades não ocidentais, visto que “estes sistemas, exatamente como os da ciência, têm uma finalidade especulativa. Têm como objeto, não facilitar a ação, mas fazer compreender, tornar inteligíveis as relações existentes entre os seres”. Tal preocupação com os modos de conhecimento e suas categorias operacionais permitiu o desenvolvimento de linhas de estudos que buscaram distinguir ou aproximar formas estranhas de pensamento ao pensamento ocidental. Na esteira desse empreendimento, Burke (2003, p. 78) registra que: [...] de Durkheim em diante os antropólogos desenvolveram uma tradição de levar a sério as categorias ou classificações de outras pessoas, investigando seus contextos sociais. A tradição incluiu estudos clássicos como O pensamento chinês (1934), de Marcel Granet, e O pensamento selvagem (1962), de Claude Lévi-Strauss. Granet, por exemplo, apresentou as categorias chinesas de yin e yang como exemplos de pensamento concreto ou pré-lógico. Lévi-Strauss rejeitou a ideia do pré-lógico, mas também ele destacou as Além de outras dicotomias como “[…] O pré-tecnológico vs. tecnológico de Gell (1992); o pré-letrado/letrado de Goody (1997); [...] e o pré-capitalista/capitalista de Marx (1965 [1857-58])” (RAPPORT; OVERING, 2003, p. 337). 4 Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 5 Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana categorias concretas dos chamados povos primitivos, como os índios americanos, que fazem uma distinção análoga ao nosso contraste entre “natureza” e “cultura” com as categorias do “cru” e do “cozido”. No âmbito das ciências sociais, o combate a certa visão intelectualista na interpretação da atividade humana no mundo se direciona ao pressuposto de que a ação social não é estritamente um ato de conhecer e, por sua vez, aquela mesma ação não se faz conhecer por um único tipo de procedimento cognitivo. Sobre o primeiro ângulo, seguimos o comentário de Bourdieu: As discussões que se desenvolveram tanto entre os etnólogos (etnociência) como entre os sociólogos (etnometodologia) em torno dos sistemas de classificação têm em comum esquecer que esses instrumentos de conhecimento desempenham como tais funções que não são de puro conhecimento. [...] As taxionomias práticas, instrumentos de conhecimento e de comunicação que são a condição da constituição do sentido e do consenso sobre o sentido, não exercem sua eficácia estruturante a não ser que eles mesmas sejam estruturadas. O que não significa que sejam passíveis de uma análise estritamente interna (“estrutural”, “componencial” ou outra) que, ao arrancá-las artificialmente às suas condições de produção e utilização, impede-se de compreender suas funções sociais (BOURDIEU, 2009, p. 157). Simmel colabora no segundo ângulo desta discussão, com o mesmo tipo de observação de Bourdieu mencionada acima, mostrando o lado inverso, como crítica a certo modo de pensamento, o do conhecimento dedutivo. O autor pontua que [a] precisão da lógica nunca provará, por si, a existência das coisas; esta é um fato, que se admite como dado, mas que nunca pode ser concebido com a absoluta necessidade que aquela aspiração de segurança exige. Será sempre um dos mais notáveis acontecimentos da história do espírito a maneira como essa necessidade de segurança e certeza absolutas — que não provém de simples interesses de conhecimento, mas da relação total do homem com o mundo — procura aqui satisfazer-se por meio do simples conhecimento; essa profunda incongruência vinga-se, por assim dizer, tornando cega para o erro e a vacuidade dessa dedução lógica a força de tal anseio (SIMMEL, 1970, p. 53, grifo nosso). É perceptível que a oposição estabelecida entre os modos de conhecimento da ciência ocidental e os demais modos procura sustentar-se na maneira pela qual as distinções dos objetos e de suas características empíricas se efetuam. Este é um aspecto compreensível. Porém, não se sustenta a ideia de que as distinções existentes entre os modos de conhecer o mundo se diferenciam entre um empirismo pragmático — centrado na funcionalidade de uso prático – e, um esquema reflexivo — que busca o conceito. A despeito disso é esclarecedora esta proposição de Sahlins: Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 6 Evanildo Moraes ESTUMANO; José BITTENCOURT DA SILVA e Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO A grande diferença entre esse tipo de epistemologia sensorial e o realismo objetivo imaginado pela ciência ocidental [...] é que a primeira, a chamada taxionomia folk, está completamente embutida na e mediada pela ordem cultural local, enquanto a segunda finge ser determinada pelas coisas em si e por si mesmas. [...] Em resumo, as criaturas estão encerradas numa cosmologia total da qual é possível abstraí-la enquanto coisas-em-si apenas à custa de suas identidades sociais (Ellen, 1986: 101). O empirismo do pensée sauvage consiste mais exatamente na discriminação das criaturas e traços da natureza de acordo com os valores humanos de suas características objetivas (cf. Feld, 1982) (SAHLINS, 2001, p. 180). Como nota Cassirer (2011) no processo de formação conceitual dos campos da filosofia como no da ciência moderna, essas áreas do conhecimento dispensaram tratamento algo semelhante à visão de mundo da “experiência comum”, traduzidos, às respectivas épocas, pela língua e pelo mito. Haja vista que o “conhecimento filosófico precisa primeiramente se libertar da pressão da língua e do mito; precisa, por assim dizer, eliminar essas testemunhas da pobreza humana antes de poder elevar-se ao puro éter do pensamento” (CASSIRER, 2011, p. 35). Para o autor o ato exposto por essa separação marca a ocasião do despontar da filosofia, assim como “o ponto de partida da investigação empírica e da determinação matemática da natureza. [...] E assim como o conhecimento científico da natureza empreende uma batalha com os conceitos míticos, também o faz em relação aos conceitos linguísticos” (CASSIRER, 2011, p. 35-36). A tentativa de superação daquelas dicotomias é realizada em esforços de autores que primaram pelo estudo do simbolismo e dos efeitos da cultura na vida prática. Segundo os teóricos dessa linha de pensamento, a perspectiva simbólica contribui para a superação de interpretações dicotômicas, como registra Langer (1951) ao dizer que na noção de simbolização — mística, prática, ou matemática, etc. — reside a nova concepção de “mentalidade”, que ilumina questões de vida e consciência, em vez de obscurecê-las, como fizeram os “métodos científicos” tradicionais. Parafraseando o dito popular que assegura que “as coisas mais importantes da vida não são coisas”, digamos também que no âmbito da ciência da cultura, do universo humano, uma coisa jamais é uma coisa: será sempre um espírito bom ou mal; um vento de presságio; uma natureza intocada; um presente; um aceno de esperança; uma possibilidade de continuar a existência por meio de um novo ser; um parente ou um estranho; um corpo novo ou velho, ou mesmo nem isso, e etc. Trata-se, enfim, de um tipo de cognição — em sentido lato — que aborda abstrações, idealizações, generalizações e formalizações de diferentes ordens, que tipificam as experiências a fim de percorrer os caminhos do mundo. Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 7 Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana De fato, nenhuma ação que seja demasiadamente incompreensível aos contemporâneos de um mesmo grupamento pode caber na descrição sociológica, uma vez que o objeto que o cientista interpreta é a ação social, uma ação significativa, em primeiro nível, para o próprio sujeito, no contexto (WAGNER, 2010) por ele produzido a partir dos sistemas simbólicos. Além disso, é improvável que as manifestações da vida psíquica (percepções, pensamentos, sentimentos, atos de vontade, etc.) sejam unificados em todos os indivíduos. Entretanto, “a semelhança dos indivíduos é a condição para que se dê uma ‘comunidade’ (Gemeinsamkeit) de seu conteúdo vital” (DILTHEY, 1949, p. 57). Sem dúvida, um sistema cultural é uma comunidade de sentido e não uma comunidade de regras morais indubitáveis e muito menos é um grupamento de pessoas, ainda que seja somente por meio destes (pessoas agindo a partir de regras morais) que se possa apreender àquele (ou àqueles sistemas de significação). Essa mesma compreensão, concernente à crítica conceitual da rigidez das instituições sociais, havia sido exposta por Mary Douglas ao tratar das ideias de pureza e perigo, que parece poder ser ampliada para conjuntos de ideias que estejam no raio de ação de outros sistemas culturais. Pondera Douglas: O nativo de qualquer cultura, naturalmente, julga-se recebedor passivo de suas ideias de poder e perigo no universo, descontando quaisquer modificações menores com as quais ele próprio pudesse ter contribuído. [...] O antropólogo cai no mesmo engano se pensar uma cultura que esteja estudando como padrão de valores estabelecidos há muito tempo (DOUGLAS, 2012, p. 16). Nota-se que é no processo de construção de estruturas significativas dentro de tempos e lugares antropológicos que o sujeito avalia as respostas obtidas por seu comportamento. Isto é, dentro de valores de seu grupo social, os quais modificam os padrões culturais por meio de novos significados incorporados historicamente, resultado de ações atribuidoras de significados sociais e simbólicos, emergentes das interações dos indivíduos. Importa, finalmente, dar atenção ao uso estratégico que os atores fazem da interpretação e utilização dos conhecimentos socialmente legitimados no plano das ideias — script que não escreveram, mas que terão que representar de alguma forma em sua cotidianidade; fato que reforça a seguinte assertiva de Marcel Mauss (2003, p. 371): “É evidente, sobretudo para nós, que nunca houve ser humano que não tenha tido o senso, não apenas de seu corpo, mas também de sua individualidade espiritual e corporal ao mesmo tempo”. Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 8 Evanildo Moraes ESTUMANO; José BITTENCOURT DA SILVA e Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO Estruturas de significados da comunicação por símbolos A partir dos avanços teóricos proporcionados por investigações sobre as realidades sociais e históricas como os mencionados anteriormente, torna-se possível extrair algumas implicações a fim de corroborar o debate no que se refere à crítica ao termo conhecimento tradicional para que possam ser úteis ao estudo da vida cotidiana e, dentro desta, de ações laborais, educacionais, políticas, religiosas etc. Sobre o aspecto da construção do objeto de pesquisa é lúcida a recomendação de Pires quando argumenta que essa pré-construção social do objeto pode se constituir em uma espécie de entrave epistemológico ante a nossa maneira de “apreendê-lo cientificamente, pois ela orienta nosso modo de vê-lo e concebê-lo. Em suma, a aparência que a sociedade assume, sobretudo quando é representada por práticas institucionais, deve ser questionada pelo analista” (PIRES apud POUPART, 2012, p. 59). Logo, nenhum termo é interditado ao cientista social desde que tenha a clareza que o objeto a que se atém, em muitos casos, é recortado ou construído pelas próprias instituições sociais, dando-lhe o tratamento adequado, como o autor acima exemplifica a respeito do estudo do crime e, aqui exemplifica-se com a noção conhecimento tradicional. Um aspecto a ser observado é o de que a dicotomia entre tradição e modernidade se cristalizou para além de uma época como uma forma de estar no mundo em qualquer tempo e lugar; de modo que este processo substanciou a modernidade no que ela remete à tradição como sendo o passado ou como um “veio de tempo” estagnado dentro do presente. No contexto deste contraste quando se pensa em um saber tradicional, acede à mente a possibilidade de descrever ou enumerar, para uma determinada população, um conjunto finito de conhecimentos e técnicas, o paradigma dos significados das palavras no dicionário, que seria o estoque de saber atualizado nas práticas cotidianas. Do outro lado, ao se falar em conhecimento moderno é destacado seu caráter criador: o das invenções e descobertas, principalmente, do homem de ciência. Acerca disto refere-se, inicialmente, o fato de que não pode existir nenhum sistema de conhecimento — conjunto de ideias e de procedimentos legitimados pelo pensamento comum — que não seja tradicional, que não esteja em uso (tradição) por um conjunto de pessoas em um determinado lugar e por um determinado tempo; visto que, não pode existir nenhum conhecimento comum que não seja tradicional e não esteja em operação. De modo que em lugar do termo tradição, como observada em toda ordem de predicativo em que é invocado como Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 9 Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana sujeito ou como objeto (tradição cultural; cultura tradicional), será mais adequado empregar a noção de cultura como sistema de significados (GEERTZ, 1989). Vejamos, em linhas gerais, o entendimento convencional sobre o que seja “tradição” e seu derivado, o “conhecimento tradicional” para, então, realizarmos a aplicação do termo tradição somente no sentido de padrão dominante, com interesse de eliminar mal-entendidos e de produzir e comunicar algum conhecimento adequado, tendo em conta que o comportamento humano opera no domínio de regras culturais, que se orienta, em última instância, por padrões predominantes de pensamento (BOAS, 2010). Neste ponto são, de fato, adequadas as recomendações extraídas do empreendimento de Foucault, quando realiza uma história dos conhecimentos sobre a forma de lidar com os problemas teóricos: Há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade. Elas, sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa; mas sua função é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa a dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade, o gênio, a decisão própria dos indivíduos [...] (FOUCAULT, 2008, p. 23-24). As nascentes ciências sociais do século XVIII não passaram incólumes ao conjunto de percepções sobre a mudança social ao longo da história. Nesse campo, as sociedades não europeias foram irremediavelmente distinguidas de suas contemporâneas europeias, tanto no plano dos ideais (concebidas como arcaicas) quanto no plano da história, que, por um “passe de mágica científica”, foram denominadas estáticas, como se estagnassem no tempo. Fato que não somente diferenciava os povos entre nós (ocidentais modernos) e eles (não ocidentais arcaicos), todavia entre os próprios ocidentais, os modernos (citadinos) e os ditos não modernos (das áreas rurais). Como a antropologia social buscava entender como o homem chegou a se tornar o que é ou mais especificamente como “nós” ocidentais chegamos a tornarmo-nos o que somos, não fez adiar a ideia de que seus teóricos enxergassem nas populações que possuíam modos de vida diferentes do seu, uma idade anterior da evolução da mente e da sociedade humana. A lógica das hipóteses era bastante simples e eficaz: as sociedades arcaicas, que operavam ideias e Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 10 Evanildo Moraes ESTUMANO; José BITTENCOURT DA SILVA e Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO formas de organização social em desuso na atualidade em que viviam os intelectuais, faria recordar os longos estágios pelos quais a humanidade teria passado rumo à civilização.5 A própria idade moderna, contudo, foi vítima do pressuposto de que a mudança social e intelectual em curso era irreversível rumo ao progresso humano. Por seu turno, se a mudança haveria de ser contínua, até mesmo as ideias modernas haveriam de mudar, visto que os contemporâneos da própria modernidade não se identificavam mais com as gerações anteriores, reivindicando para si o título de pós-modernos. Apesar da superação cronológica da Idade Moderna, que deu início à Idade Contemporânea, seus ideais ressoaram até a próxima idade. O discurso contemporâneo não foi capaz de criar algo tão poderosamente dicotômico e contrastante, deste modo, um porto-seguro, comparado ao que se avalia entre o antigo e o moderno. Os próprios conceitos que se insinuam na contemporaneidade o fazem aludindo ao moderno: o discurso pós-moderno. Assim, o pós-modernismo surgiu como uma atitude, como uma forma indeterminada sem conteúdo determinado, bastando afastar-se do que seria moderno e, até mesmo, recombinar o que existia de moderno em outra perspectiva. Aos poucos, a colagem tornou-se uma marca da pós-modernidade. De fato, “o movimento pós-moderno iniciado nos finais da década de 1970, princípios da de 1980, não representa nada de inovador, ao contrário da ‘revolução científica’ iniciada durante o Renascimento” (BATALHA, 1998, p. 332). Ser pós-moderno levou a uma operação engenhosa. Primeiro seria preciso separar o antigo do moderno e depois recombinar os elementos modernos em qualquer direção, menos no sentido que se identificasse com o antigo, com isto temos a perenidade dos opostos hierárquicos antigos e modernos. A despeito dos avanços no conhecimento antropológico, que por certo refutaram essas ideias etnocêntricas, perdurou a visão diferenciada sobre o modo de vida de populações em maior ou menor grau: as que reproduziam seus valores exclusivamente pela oralidade (os tradicionais) e os que perpetuavam seus ideais por meio da escrita (os modernos). Essa separação não se fez sem problemas. Quando os cientistas sociais passaram a estudar suas próprias sociedades essa dicotomia foi simplesmente reproduzida: as sociedades rurais viveriam na tradição (oral) e os urbanos na modernidade (escrita). Um dos expoentes das chamadas teorias evolucionistas em Antropologia é Lewis Henry Morgan o qual expõe na obra Sociedade Antiga (CASTRO, 2005) a teoria dos períodos étnicos, que seriam estágios ascendentes (selvageria, barbárie e civilização) pelos quais os povos passaram (ou passariam) em seu desenvolvimento natural. 5 Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 11 Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana Mais de um século se passou desde os primeiros escritos científicos das ciências do homem e da sociedade, mas as insuficiências do emprego da palavra tradição e modernidade continuam a nos desviar de caminhos mais sólidos de compreensão da vida social. Ao longo do século XX os polos tradicionais e modernos passaram por um período de equivalência. As influências do debate político proposto pelo multiculturalismo certamente se fizeram sentir a respeito de a identificação das diferenças culturais, nomeadamente as intranacionais, postulando que todas as culturas são epistemologicamente e antropologicamente equivalentes. Nas décadas finais do último século e nas iniciais deste século, o par tradicionalmoderno chegou a sua completa inversão, ou seja, à valorização do tradicional — entendido como estando ligado a valores básicos de convivência (solidariedade, amor ao próximo, parentesco) e, sobretudo um modo de vida autossustentado em oposição ao moderno — visto como individualista, consumista, dominador e depredador da natureza. Novamente, outro discurso político está na base desta modificação, trata-se do ecologismo (DIEGUES, 2008) que apregoa que no estilo de vida das populações “tradicionais” prevalece o modelo seguro para a preservação da natureza e manutenção da vida no Planeta. É interessante mostrar que, como uma espécie de “retorno às origens”, é uma tendência que surgiu durante a “metade do século passado [XIX] nos escritos dos representantes da escola indianista da nossa literatura e atinge seu apogeu nos romances de José de Alencar, nos quais se valorizam nossas raízes culturais: o índio, a vida rural, etc.” (OLIVEN, 1999, p. 411). No entanto, percebe-se que os principais valores colocados em xeque, paralelamente ao debate conservacionista e preservacionista, é o grande valor oriundo e não realizado da ciência moderna: o progresso da civilização por meio do conhecimento científico. Recorre-se neste aspecto do discurso, evidentemente, ao primitivismo como outra possibilidade do progresso (KUPPER, 1988). Parece não haver solução para o problema de compreender se o “conhecimento tradicional” é bom ou ruim a não ser situá-lo em uma bifurcação cujos caminhos se intercruzam logo adiante, como ilustra o texto de Darcy Ribeiro (1995) a respeito da sabedoria dos caboclos da Amazônia: A característica básica dessa variante [sociocultural da sociedade nacional] é o primitivismo de sua tecnologia adaptativa, essencialmente indígena, conservada e transmitida, através de séculos, sem alterações substanciais. E, a inadequação desse modo de ação sobre a natureza para prover condições de vida satisfatórias e um mínimo de integração nas modernas sociedades de consumo [...] (RIBEIRO, 1995, p. 310). Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 12 Evanildo Moraes ESTUMANO; José BITTENCOURT DA SILVA e Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO Taylor, por sua vez, distingue dois modos de entender o surgimento da modernidade que provocam efeitos diferentes sobre o que faz a nossa sociedade contemporânea diferente dos seus antepassados, os quais denominou de perspectiva cultural e perspectiva acultural: Em outras palavras, podemos pensar a diferença como uma diferença entre civilizações, cada uma com sua própria cultura. Ou, alternativamente, podemos ver a mudança de séculos anteriores aos dias de hoje como envolvendo algo como “desenvolvimento”, como o desaparecimento de uma sociedade “tradicional” e a ascensão do “moderno”.6 E nesta perspectiva, que parece ser a dominante, as coisas parecem bem diferentes (TAYLOR, 2001, p. 1). Seguindo essa classificação poderíamos dizer que no debate atual, em torno do conhecimento tradicional, a perspectiva dominante (ou a acultural) se confunde com a perspectiva cultural produzindo um efeito ainda mais nefasto. A mudança, antes vista como uma perda de crença, de verdades perenes, de leituras negativas da realidade rumo ao progresso da razão (perspectiva acultural) se mescla à perspectiva cultural, tomando a diferença entre culturas, a fim de manter inviolados os valores tradicionais, agora positivados, para o melhoramento da sociedade global. Mariza Peirano, por sua vez, recupera esta discussão, avaliando que sugestão evolucionista implícita no par ‘sociedade simples versus sociedade complexa’ tem suas raízes na teoria da modernização, desenvolvida a partir dos anos 1950. “Nesta concepção, ser moderno significa ser complexo, a complexidade aqui se referindo principalmente aos aspectos da organização social” (PEIRANO, 1992, p. 114). Por seu turno a eliminação dos elementos tradicionais levaria à complexidade, todavia, para Peirano (1992, p. 115), “neste caso, é preciso saber o que se entende por ‘tradição’, ou por ‘tradicional’. Quando esses conceitos são indistintamente impostos a grupos sociais que passaram pelos mais variados processos de desenvolvimento histórico, sua fragilidade se torna aparente”. A fim de responder à própria indagação sobre o que seja “tradição”, Peirano endossa a tese da a-historicidade do termo, fundamentando-se em Tambiah (1972, p. 55 apud PEIRANO, 1992, p. 115): [...] O termo é usado, especialmente, em um sentido “a-histórico” e denota algum tipo de herança coletiva que supostamente foi transmitida de forma pouco modificada. Concebendo a tradição desta forma, dois pontos ficam Para Dumont (2000) nas sociedades modernas a ideologia valoriza o indivíduo e negligencia ou subordina a totalidade social (individualismo); nas formações sociais precedentes, inversamente, o conjunto de ideias e valores comuns valoriza a totalidade social e negligencia ou subordina o indivíduo humano (holismo). Nestes termos, o autor considera a configuração moderna como resultante da quebra da relação de valor entre elemento e todo. 6 Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 13 Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana esquecidos: um que o passado foi, talvez, tão aberto e tão dinâmico aos atores daquele tempo como a nossa época parece a nós mesmos; outro, que as normas, regras e orientações do passado não foram necessariamente tão consistentes, unificadas e coerentes como tendemos a imaginar. Segue-se a conclusão da autora: Em suma, Tambiah mostra que, fixando-se em um dos polos de uma dicotomia analítica, pode-se facilmente imaginar graus de coerência inexistentes e idealizar graus de integração social maiores que aqueles realmente encontrados em sociedades do polo oposto. Tal como o indivíduo que idealiza o passado como sempre melhor que o presente, o antropólogo seria susceptível de cair na mesma armadilhar, idealizando a “tradição”, ou mesmo a “sociedade simples” (PEIRANO, 1992, p. 115). Proposições mais flexíveis sugerem, especificamente a respeito do Brasil em relação ao mundo global, que se procure não a modernidade em si – ou seja, a realidade social e cultural produzida pela consciência da transitoriedade do novo e do atual –, como foi idealizada, mas pelas possíveis formas que ela assume no interior da vida grupal. “Minha proposta é a de que a questão da modernidade no Brasil fica melhor compreendida quando investigamos o modo como o moderno e os signos da modernidade são incorporados pelo popular. Nessa mediação, é que se pode observar as dificuldades da modernidade” (MARTINS, 2010, p. 29). Elaboração anterior de Oliven (1998) sobre a modernidade concernente à história do País, aponta a centralidade desta temática no pensamento intelectual brasileiro: “O tema da modernidade é uma constante no Brasil e tem ocupado nossa intelectualidade em diferentes épocas. Trata-se de saber como estamos em relação ao ‘mundo adiantado’, primeiro a Europa, mais tarde os Estados Unidos” (OLIVEN, 1998, p. 409). Nesta exposição sobre as palavras tradição e modernidade e suas relações, uma observação é evidente: referidas palavras apesar de transitarem no meio científico são, em sua maioria, juízos de valor, cujos sentidos se associam aos acontecimentos sociopolíticos. Para que a noção de tradição venha a ter alguma utilidade ao estudo do modo de vida das populações em áreas diversas, precisamos afastá-la das ideias apresentadas anteriormente ao mesmo tempo em que desvencilhá-la do seu oposto (a palavra modernidade); significa limitá-la ao sentido de um padrão de significados que se reproduz por meio da linguagem cotidiana. Assim, argumenta-se que a “tradição” é melhor interpretada como um sistema dinâmico de comunicação simbólica do que como um conjunto fixo de valores transportados de forma inalterado entre gerações de pessoas ao longo do tempo, como se estas pessoas fossem seus receptáculos ao invés de seus produtores. Possivelmente, a única maneira de estagnar a tradição Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 14 Evanildo Moraes ESTUMANO; José BITTENCOURT DA SILVA e Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO no passado, melhor dizendo, em um ponto no tempo, talvez seja a extinção do padrão de comunicação entre seus agentes, como acontece no caso das línguas mortas. Conclusão O conhecimento ou a constituição de um mundo humano ou o processo de significação do homem no mundo se diferencia nos recortes teóricos apresentados, indo desde uma ação de base intelectual, passando por um processo interpretativo até uma dinâmica sociocultural que demarca a diferenciação dos grupos sociais pelas ênfases com que atribuem valor a certas dimensões da vida. Neste quadro, sustenta-se que a apreciação do termo “conhecimento tradicional”, possibilita sua crítica e endossa a argumentação em favor de uma análise simbólica nos estudos sobre o comportamento social e, em consequência, sobre todos os vestígios de ação que permitam registrar a construção da humanidade do homem. De fato, quando se trata da ação e da compreensão do mundo percebe-se que o reconhecimento das coisas que constituem o universo humano não é puro conhecimento, ainda que possamos identificar uma dimensão cognitiva na experiência. A vida dos grupos investigados se constitui como construção social e simbólica, sendo feita e refeita de acordo com as circunstâncias temporais e locais que denotam possibilidades de realização de sua humanidade, uma vez que confrontado às características do meio ambiente com as condições técnicas e econômicas até então alcançadas, o espírito não permanece passivo. Neste sentido, para além da concepção estrita de um homo technicus, postula-se as ações sociais como relações sistêmicas significativas, isto é, como formas de humanamente levar a cabo o projeto cultural no conjunto das dimensões culturais da vida. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BATALHA, Luís. Emics/Etics revisitado: “nativo” e “antropólogo” lutam pela última palavra. Etnográfica. v. 2, n. 2, p. 319-343, 1998. BEKOFF, Marc; ALLEN, Colin; BURGHARDT, Gordon M. (Ed.). The cognitive animal: empirical and theoretical perspective on animal cognition. 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DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 17 Tradições de conhecimento: Notas sobre os fundamentos da comunicação humana Sobre os autores Evanildo Moraes ESTUMANO Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém – PA – Brasil. Professor do Instituto de Ciências da Educação. Doutorado em Ciências Sociais (UFPA). José BITTENCOURT DA SILVA Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém – PA – Brasil. Professor do Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação Básica da Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutor em Ciências Ambientais (NAEA). Lourdes de Fátima Gonçalves FURTADO Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém – PA – Brasil. Pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG-MCTIC). Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará. Doutora em Ciências Sociais (Antropologia Social) (USP). Processamento e edição: Editora Ibero-Americana de Educação. Revisão, formatação, normalização e tradução. Rev. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 12, n. 00, e023007, 2022. DOI: https://doi.org/10.30612/eduf.v12i00.9701 e-ISSN:2237-258X 18