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Para além do Brasil

Projeto História : Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História

Pensar a independência do Brasil no sentido plural: independências é verificar as nuances, as diferentes inserções das diferentes regiões nesse processo. Partindo desse pressuposto, neste texto procuramos mostrar de maneira simplificada como se deu a independência na região da Comarca do Alto Rio Negro, que atualmente corresponde ao estado do Amazonas, que à época era subordinada à Província do Pará. Muitos fatores diferenciam o processo de adesão da região ao império de D. Pedro, esses fatos mostram a singularidade da região e sua história construída. Há uma série de acontecimentos, intrigas, e gentes que mostram as particularidades da região, algumas das quais apresentamos neste artigo.     

ARTIGO PARA ALÉM DO BRASIL: A COMARCA DO ALTO RIO NEGRO (AMAZONAS) NA INDEPENDÊNCIA, E SUA INSERÇÃO NO IMPÉRIO 1822-1828 BRUNO MIRANDA BRAGA Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –PUC-SP. Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas UFAM. Historiador e Geógrafo. Pesquisador do Núcleo de Estudos em História Social da Cidade –NEHSC. Atualmente sou bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7000-2456. YVONE AVELINO DIAS Professora Titular no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora em História Econômica e Mestra em História Social, ambos títulos obtidos na Universidade de São Paulo –USP. Coordena o Núcleo de Estudos de História Social da Cidade -NEHSC -da PUC-SP. E-mail: [email protected]. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6786-0572 RESUMO: Pensar a independência do Brasil no sentido plural: independências é verificar as nuances, as diferentes inserções das diferentes regiões nesse processo. Partindo desse pressuposto, neste texto procuramos mostrar de maneira simplificada como se deu a independência na região da Comarca do Alto Rio Negro, que atualmente corresponde ao estado do Amazonas, que à época era subordinada à Província do Pará. Muitos fatores diferenciam o processo de adesão da região ao império de D. Pedro, esses fatos mostram a singularidade da região e sua história construída. Há uma série de acontecimentos, intrigas, e gentes que mostram as particularidades da região, algumas das quais apresentamos neste artigo. PALAVRAS-CHAVE: Independências, Amazonas, Brasil, Pará. Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 42 BEYOND BRAZIL: THE DISTRICT OF UPPER RIO NEGRO (AMAZONAS) IN INDEPENDENCE, AND ITS INSERTION IN THE EMPIRE 1822-1828 ABSTRACT: To think about brazil's independence in the plural sense: independence is to verify the nuances, the different insertions of the different regions in this process. Based on this assumption, in this text we try to show in a simplified way how independence occurred in the region of the District of upper Rio Negro, which currently corresponds to the state of Amazonas, which at the time was subordinate to the Province of Pará. Many factors differentiate the process of the region's adhering to the Empire of D. Pedro, these facts show the uniqueness of the region and its built history. There are a number of events, intrigues, and people that show the particularities of the region, some of which we present in this article. KEYWORDS: Independences, Amazonas, Brazil, Pará. Recebido em: 18/04/2022 Aprovado em: 01/08/2022 DOI: http://dx.doi.org/10.23925/2176-2767.2022v74p42-66 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 43 1. A CAPITANIA DE SÃO JOSÉ DO RIO NEGRO UMA BREVE HISTÓRIA ANTES DE 1822 Vamos voltar um pouquinho no tempo a fim de elucidar os fatos de como estava a Região do atual estado do Amazonas nos tempos da Independência. Foi numa manhã ensolarada que Francisco Xavier de Mendonça Furtado, recebeu uma carta de D. José I, a famosa Carta Régia de 3 de março de 1755 que o designava a criação da Capitania de São José do Rio Negro, naquele momento, Mendonça Furado estava unido ao Pará e ao Maranhão, governando como colônia portuguesa, diferente, se comparada ao Brasil. Segundo o historiador Mário Ypiranga Monteiro (2002. p. 123), o espírito de Mendonça Furtado era patriótico, e de eficaz administrador público, mantendo salvos os interesses da colônia. Inicialmente a Capitania fez sua capital na aldeia de São José do Javari, no alto curso do Rio Solimões,1 a posteriori sua capital passou a ser na aldeia de Mariuá. Entretanto, como tudo naqueles tempos na Amazônia, o tempo, tinha uma constância peculiar, e mesmo sendo designado em 1755, Mendonça Furtado somente instalou a capitania formalmente em 1758, quando regressou ao Rio Negro. Sua primeira ação foi nomear Joaquim de Melo e Póvoas, coronel de infantaria, como governador da Capitania. Havia um cuidado em salvaguardar o território português mais distante de Lisboa, Melo e Póvoas sabia disso, e em seu mandato (1758-1760) procurou intensificar assim a região. Durante a administração de Melo e Póvoas, os aldeamentos missionário remanescentes, foram tornados vilas e lugares com nomes aportuguesados. A então Mariuá passou a ser Villa de Barcellos. A tabela seguinte mostra os períodos e os governadores da Capitania: Esse fato faz com que encontremos em alguns documentos a nomenclatura de Capitania São José do Javari. Quando a sede passa a ser na Aldeia de Mariuá, no curso médio do Rio Negro, seu nome volta a ser mencionado como originalmente foi: São José do Rio Negro. 1 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 44 Tabela 01: Governadores da Capitania de São José do Rio Negro Governadores Joaquim de Melo e Póvoas Gabriel de Souza Filgueiras Nuno de Ataíde Verno Valério Corrêa Botelho de Andrade Joaquim Tinoco Valente Juntas Governativas Manuel da Gama Lobo d’Almada Período 1758-1760 1760-1761 1761 interino 1761-1763 1763- 1779 Foram oito sucessivas juntas. 1788-1799 Fonte: Elaborada pelos autores a partir do indicado por Francisco Jorge dos Santos, 2010. A Capitania tinha uma população razoável, em três censos realizados entre 1790-1796, vê-se um progressivo crescimento em termos demográficos e estruturais também. O historiador Arthur C. Ferreira Reis (1940), apontou que em 1790, o censo apontou 1.176 brancos e descendentes, 11.320 indígenas aldeados, 468 negros escravizados que somaram a população de 12.964, que habitavam 1.325 fogos. No seguinte censo, realizado em 1793, os brancos e seus descendentes somaram 1.365, os indígenas aldeados 11.789, os negros escravizados 574, totalizando 13.728 habitantes distribuídos em 1.635 fogos. Por fim, Reis apontou que no censo do ano de 1796, os brancos e seus descendentes somaram 1.485, os indígenas aldeados 12.154, negros escravizados 492, somando uma população geral de 14.232 habitantes que estavam em 1.644 fogos. Foi a 10 de maio de 1758 que Mendonça Furtado designou os limites da Capitania sendo ao sul essa fazia divisa com a Capitania do Mato Grosso, divididas pelo Rio Madeira e tendo como marco a grande cachoeira de São João ou Araguai. À leste era vizinha da Capitania do Grão-Pará, separadas pelo Rio Nhamundá e pelo rio Rio Amazonas. (LOUREIRO, 1978) “Em 29 de março de 1808 a sede da capitania muda para o Lugar da Barra do Rio Negro. Em 10 de maio de 1758 Mendonça Furtado delimitou a capitania, O motivo oficial para a fundação da nova capitania era a conservação da paz e da boa ordem. (GALVÃO RAMALHO, s/d)” Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 45 As décadas finais do setecentos marca uma relativa e progressiva tensão entre as coroas portuguesa e espanhola pela posse da Amazônia. Mais do que antes, o estabelecimento de atributos para demarcar, guardas e defender as fronteiras se intensificou, e, o mapeamento da Capitania de São José do Rio Negro tornou-se uma das prioridades da coroa portuguesa. Um dos acontecimentos marcantes destes anos finais do século XVIII foi a famosa Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, realizada pelo naturalista baiano Alexandre Rodrigues Ferreira a pedido e nomeação da rainha D. Maria I entre os anos 1783-1793. Sem dúvidas, uma historiografia mais especializada no tema afirma que sem a viagem de Alexandre Rodrigues, o conhecimento sobre a Amazônia setecentista, suas gentes, culturas, fauna e flora não teriam sido conhecidos por nós hoje. Sendo assim, foi com essa expedição que se formou um pensamento social da e na Amazônia. (LEITE e LEITE, 2010) Figura 01: Carta Geografica das viages feitas nas Capitanias do R. Negro e Mato Grosso desde o año de 1780 até o de 1789 para servirem de baze à demarcação dos lemites das ditas Cap.tas a respeito dos dominios hespanhoes a elas contiguos. Pelo Dr. em Matemática Joze Joaquim Victorio da Costa. Fonte: Biblioteca Digital Luso-Brasileira Disponível em: https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/20.500.12156.3/40068 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 46 O interesse em salvaguardar o território da colônia longe e impenetrável contra os espanhóis era latente. O empenho da elite política em manter suas benesses e sua proximidade com a corte de D. José I, e de sua sucessora, D. Maria I, parecia indicar autonomia junto a sede do Estado do Grão-Pará e Maranhão. A capitania mesmo sendo “independente”, autônoma, ainda era subordinada ao Grão-Pará e Maranhão. O locus da colonização no Rio Negro nos anos finais do setecentos fica claro com a composição da carta acima, produzida pelo doutor em Matemática Joze Joaquim Victorio da Costa. A carta topográfica apresenta os elementos centrais e os estudos técnicos das 3ª e 4ª “partidas portuguesas de demarcação de limites do Tratado de Santo Idelfonso, de 1870 a 1879”. (GARCIA, 2010. p. 50) Interessante que o elaborador da carta designou a Barra2 como Fortaleza. Isso destaca que naqueles anos a região ainda não representava grande centro de político, sendo ainda relegada a Vila de Barcelos, localidade mais importante naquele momento. Para elaborar essa cartografia da Capitania, o responsável indubitavelmente contou com a ajuda de indígenas da região e de outros estudiosos. O mapa evidencia especificamente um trajeto que partiu pelo rio Madeira e sua bacia: Mamoré, Guaporé, Paraguai, Cuiabá, Jauru e outros, e, no percurso do Japurá ao Rio Negro subindo até o Orenoco. É possível vermos ainda a seguintes composições espacial da Capitania do Rio Negro: Tabela 02: Composição e organização espacial da Capitania de São José do Rio Negro. Região/ rio Rio Madeira Médio Amazonas Rio Urubu Rio Negro Lugares, vilas, Forte e povoados Vila de Borba; Manicoré Vila de Serpa; Maués Vila de Silves Airão, vila de Moura; Carvoeiro; Poiares; vila de Barcelos; Moreira; vila de Tomar; Lamalonga; Santa A Fortaleza de São José da Barra foi erguida nos anos 1669. Ao seu redor, criou-se um lugarejo, um povoado, uma Vila, e ano mais tarde, uma cidade com a denominação de Cidade da Barra, que a partir de 1848 passou a denominar-se cidade de Manáos. 2 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 47 Rio Branco Rio Japurá Rio Solimões Isabel; São João Nepomuceno; Nossa Senhora do Loreta; Nossa Senhora de Caldas; Santo Antônio; São Pedro; São Bernardo de Camanáos; Forte de São Gabriel; Santana; São Felipe; Nossa Senhora da Guia; São Marcelino; Santo Antônio (boca do rio Mariá); Forte de São José de Marabitanas; Fortaleza da Barra Nossa Senhora do Monte do Carmo; Santa Maria; Conceição; São Felipe; São Martinho; Forte de São Joaquim. Maripi (Imapiri); Macapiri. Manacapuru; Alvelos; vila de Ega; Nogueira; Alvarães; Fonte Boa; Maturá; Castro d’Avelãs; vila de São Paulo de Olivença, vila de São José do Javari; Tabatinga. Fonte: Elaborada pelos autores a partir do proposto por Etelvina Garcia, 2010. Ao adentrar o século XIX, a Capitania se encontrava, de acordo com a historiografia celebrativa, oficial, em decadência. Seus lugares, suas vilas estavam em abandono por diferentes razões. A transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, e sua instalação em 1808, causaram enormes tensões entre as duas colônias portuguesas: No Grão-Pará, agitavam-se questões políticas. As ideias liberais, infiltradas desde 1809 com o trânsito de militares entre Belém e Caiena (invadida pelas forças de D. João VI), ganhava densidade sob a influência de Filipe Patroni, jovem paraense que estudava direito em Coimbra e abraçava os ideais da Revolução Constitucionalista do Porto, que em 24 de agosto de 1820 derrubara o absolutismo em Portugal. (GARCIA, 2010. p. 52) Tudo para o Brasil no início do oitocentos parecia fluir e caminhar. Com a instalação da Corte em 1808 no Rio de Janeiro e a elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves em 18 de dezembro de 1815, a antiga colônia se aproximava um tanto que auspiciosa da sua independência política, e a Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 48 instalação de uma monarquia constitucional. Nesse mundo de novidades e alterações, a pergunta é: o que aconteceria com o Grão-Pará e Rio Negro? A Amazônia continuava sua secular “tradição de obediência” e relações estritamente com a Europa, a localização geográfica de Belém, na foz do rio Amazonas lhe rendeu importância estratégica nas negociações, comunicações e alianças diretamente com Lisboa. “O Rio, de fato, tornara-se o centro da monarquia; mas ao Grão-Pará, a maior brevidade das comunicações com a Europa, devido à dificuldade de veleja para o Sul, impusera logo em 1809 o reatamento com Lisboa”. (HOLANDA, 2003. p. 152.) Com todos os episódios que antecederam a Independência, o GrãoPará permaneceu por certo tempo não aderindo ao Império Brasileiro, e, mantendo-se estritamente com Lisboa, que passava por um furor a partir da Revolução do Porto, que entre outras exigiu que Dom João VI regressasse a Lisboa. Proclamada a Independência do Brasil, as províncias do Grão-Pará, Maranhão, Cisplatina, Piauí, Bahia, não aceitaram a autoridade do imperador, permanecendo por mais tempo, o Grão-Pará especialmente sobre uma recusa diante da novidade política proposta. Mas isso, aconteceria. 2. A INDEPENDÊNCIA NA DEPENDÊNCIA: A COMARCA DO RIO NEGRO Domingo, parecia ser mais uma manhã normal no pequeno Lugar da Barra do Rio Negro, singelo povoado da Comarca do Alto Amazonas. O leiteiro entregava seus produtos, a maioria da população preparava sua roupa “domingueira” para ir à missa matinal, escravizados preparavam o café da manhã, indígenas em suas malocas viam suas roças e ouviam o cantar de pássaros. Tudo parecia bem. De repente, alguém anunciou: “Somos um império independente. Vida longa ao Imperador Dom Pedro!” Uns comemoravam, outros se olhavam sem entender, outros ainda continuavam suas atividades, sem se motivar a tal notícia dada. Um grupo de autoridades locais se reuniu no Largo da Trincheira e declarou apoio aderindo a “Província do Rio Negro”3 ao Império nascente. 3 O Decreto de 29 de setembro de 1821, das Cortes de Portugal, havia transformado as Capitanias em Províncias governadas por Juntas Provisórias. Nesse contexto, existiu, de fato, a Província do Rio Negro, todavia, sua existência foi efêmera dada a adesão do Grão-Pará ao Brasil, e, a Constituição de 1824, que manteve o Rio Negro como comarca. Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 49 Esse grupo jactava-se que pela novidade seriam membro de uma nova unidade provincial, coisa que só ocorreu anos depois. A solenidade de juramente e obediência ao Imperador aconteceu naquele domingo as nove horas, prestaram seu juramento os vereadores da Câmara de Serpa, que estava instalada no Lugar da Barra, a junta governativa e outras autoridades que por ali se encontravam. E foi possivelmente assim, naquele 09 de novembro de 1823 que a notícia da Proclamação da Independência do Brasil chegara a Barra do Rio Negro. Vale a pena atentar que o ato se deu em 07 de setembro de 1822, e o povoado da Barra, somente soube um ano e um mês depois. Tudo para a Amazônia no primeiro quartel do século XIX demorava a chegar, demorava a acontecer. O tempo, o ritmo, a constância eram outras... a política era a mesma. O governo do Pará aderiu a Independência do Brasil somente em 15 de agosto de 1823, sendo o último Estado a aderir tal ato. Em 18 de agosto, três dias após a formal adesão, o grande estado do Grão-Pará e Rio Negro, foi extinto e, a Capitania do Grão-Pará foi elevada a Província. Com relação à política e ao partidarismo no Rio Negro, nas proximidades da Independência do Brasil, era constituída por um “partido intransigente, composto por brasileiros natos, que procuram espalhar a cizânia entre os moradores europeus” (MIRANDA, 2021. p. 37) Nesse sentido, foram os moderados que expulsaram, fizeram sumir a ideia da regência de nomear a Província no Amazonas. Houve, de acordo com Bertino de Miranda (2021. p. 37) um impedimento por parte de procuradores do Rio Negro que impediu que os emissários de D. Pedro subissem ao Amazonas e fizessem “prosélitos em Manáos”.4 As ideias desses emissários eram publicadas em forma de artigos nos jornais com forte propaganda a um governo autônomo no Brasil. Alguns desses jornais acabavam chegando a Barra do Rio Negro, “obtidos por moradores que costumam empreender excursões periódicas a Cabe deixar claro que o autor é um memorialista da cidade de Manaus, e teria, segundo indícios residido na mesma a partir do ano de 1884, quando migrou para o Amazonas, vindo do Pará. O tom ufanista em sua narrativa parte de uma descrição que não se enquadra nas atuais escolas e estilos historiográficos que prezam a crítica documental, e o estabelecimento de uma narrativa-problema. Destacamos também que o nome Manáos para a primeira parte do oitocentos é “fora do contexto”, apenas citamos ipsis literis a referência destacada. Naquele momento, a região onde Manaus será instalada se chamava Barra do Rio Negro, e, possivelmente ainda existiam alguns elementos da Fortaleza erigida no século XVII. 4 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 50 Belém, foco donde irradia tudo a cidade que dá tom, na época, à vida social provinciana.” (MIRANDA, 2021. p. 37) É importante destacar que a época da Independência do Brasil, em 1822, a região que hoje conhecemos como Amazônia Brasileira ainda formava uma unidade administrativa ligada diretamente a Coroa Portuguesa, e pouco tinha a ver com o Brasil. O Brasil era uma coisa, a Amazônia outra. Havia assim duas colônias portuguesas na América: o Brasil, e a outra denominada Estado do Grão-Pará e Rio Negro, que era formada pelas capitanias do Pará e a do Rio Negro, sendo a primeira a “principal”, sede, e a segunda subordinada, agregada a primeira. A capitania do Rio Negro fora criada em 1755, no reinado de D. José I, constituindo como apontam especialistas no período a “mais remota do atual Estado do Amazonas”.5 Logo, o episódio do 07 de setembro de 1822, marca a independência do Brasil, não necessariamente do Grão-Pará e Rio Negro que continuou dependente da Coroa Portuguesa e a ela ligado. Somente em no dia 15 de agosto de 1823, reiteramos, a Amazônia foi incorporada ao Brasil, quando no comando do capitão inglês John Greenfell, tropas militares pela força de armas alocaram, anexaram o Estado do Grão-Pará e Rio Negro ao Brasil, o episódio ficou conhecido como “o blefe”, pois: Eis que no dia 10 de agosto de 1823, chega a Belém o brigue de guerra Maranhão, capitaneado pelo aventureiro John Pascoe Greenfell. À junta, ele diz que o Maranhão é a nau capitânia de uma esquadra comandada por Lord Cochrane alugado por D. Pedro I para organizar o Império. [...] Greenfell naturalmente blefava. Ele vinha só. Não tinha esquadra nenhuma a apoiá-lo. Jogou com a sorte e com a estupidez dos portugueses que se agarravam à província. (CHIAVENATO, 1984. p. p. 24, 26) Com a instalação do Brasil independente, e a extinção do Estado do Grão-Pará e Rio Negro, e sua anexação ao Império, pouca coisa inicialmente mudou para a região do atual estado do Amazonas. Dois momentos marcaram essa incorporação: o primeiro foi no campo legal, legislativo que desde tempos coloniais exigia uma unidade política e territorial para as colônias portuguesas; já o segundo se deu como apontamos acima pelas 5 Especialistas como os historiadores Francisco Jorge dos Santos, Patrícia Maria Alves-Melo. Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 51 armas e força da estrutura, mesmo que inventada de guerra, que culminou com a formação territorial do Brasil, com a Amazônia integrando-o. Dada a adesão ao Império do Brasil, a Capitania do Rio Negro insistiu, entre 1823 e 1843, pela sua emancipação da Província do Grão-Pará. Para os deputados da Assembleia Legislativa, o custo que teria a criação da nova província não era vantajoso para o Império. Somente quando os interesses pela navegação a vapor do rio Amazonas motivaram comerciantes situados em Belém a solicitar a abertura de uma companhia de comércio ao Império, é que a câmara decidiu pela aprovação da criação da nova província, em 1843. Mas o projeto ficou retido no Senado por sete anos e somente em 1850 seu pleito foi atendido pelo Império. A decisão tomada no Senado seguiu de uma forte discussão acerca dos interesses das nações vizinhas e das pretensões de livre navegação dos rios amazônicos pelas nações capitalistas Atlânticas, em especial os Estados Unidos da América. (AMARAL, 2018. p. 26) Nos meses finais de 1823, foram criadas as Províncias do Pará e do Rio Negro, todavia, a Constituição de 1824 reconheceu somente a capitania do Pará como Província, tendo seu presidente sido nomeado pela carta do Imperador. Ao Rio Negro, restou manter-se ligado ao Pará, agora na condição de Comarca do Rio Negro.6 A elite da Comarca que tanto almejava ser província separada do Pará, ainda não tinha alçado tal posição, fato que gerou algumas decepções nos representantes políticos de então. “Ainda se acreditava que a região era um grande deserto e que o custo da sua criação seria alto demais, já que era considerada improdutiva para o padrão agrário da economia brasileira.” (AMARAL, 2018. p. 26), porém, a elevação a categoria de província foi segundo aponta Josali Amaral uma decisão necessária, pois envolvia questões da soberania brasileira, entretanto, esse fato, tardou a acontecer e a concretizar o ensejo daqueles amazonenses. 1822 A Independência não transformou o Rio Negro em Província 1824 a Constituição jurada, manteve as Provincias como estavam, e o Rio Negro continuou como Comarca. Decepcções do Amazonas para com o Império Quando a Província foi instalada em 1850, a Comarca era denominada de Comarca do Alto Amazonas, sendo que de 1824-1833 aproximadamente, denominava-se Comarca do Rio Negro. 6 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 52 O sonho dourado daqueles que exerciam a política na Comarca do Amazonas era que esta também se tornasse província, mas, isso não aconteceu frustrando e irritando muitos membros daquele poder político. Nesse sentido, o decreto imperial que extinguiu as juntas governativas nomeando presidentes provinciais exclui o Rio Negro, o que irritou, decepcionou os responsáveis pela Comarca, marcando a “primeira decepção amazonense” com o império. Com a sansão da Constituição de 1824 a segunda decepção veio. A Constituição ao dividir o território do Império manteve as províncias conforme se encontravam, sem alterar nada, o Rio Negro não fez parte dessa reconfiguração, permanecendo como subordinado ao Pará, que dividiu sua Província em Comarcas. Quando da outorga da Constituição do Império do Brasil, em 25 de março de 1824, o Rio Negro, portanto, já não era mais província de fato no Império português. Crê-se que as autoridades locais não soubessem desse ocorrido, ou, tentaram dentro de suas possibilidades barganhar pela sua ratificação. A Carta brasileira não cita nominalmente as unidades provinciais do território brasileiro, diferentemente do Projeto de Constituição de 1823. (FREIRAS, 2010. p. 82) A historiografia celebrativa do Amazonas,7 aponta com certa angústia, indignação essa não “elevação” da Comarca ao status de Província, e, que a política imperial “havia falhado” com o Amazonas, o legando a posição de Comarca mesmo diante de tantas amostras de sua autonomia. Uma tentativa frustrada de instalar a Província foi dada em 1824, como citamos acima, mas quando se iniciou o envio dos presidentes de província, o Rio Negro não recebeu o seu, e, o Amazonas permaneceu sob o domínio paraense, frustrando as elites políticas locais. Exclusões e decepções deixadas a parte, a Junta Governativa do Rio Negro, bem como a Câmara de Barcelos, juraram seriamente a Constituição Política do Império do Brasil no domingo, 6 de fevereiro de 1825, no singelo templo da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. O ato de adesão, Entendemos como historiografia celebrativa aqueles narradores que partem de uma oficialidade; é assim algo no mesmo sentido que o historiador Peter Burke denominou de “história tradicional”, que os historiadores partem de ideias grandiosas, de grandes feitos e celebrações. Esses autores como Arthur Cezar Ferreira Reis, Manoel Anísio Jobim, Joaquim Leovegildo de Souza Coelho, Aprígio Martins de Menezes, Antonio Monteiro de Souza, Márcio Souza, e outros partem de uma visão do acontecimento enquanto verdade, deixando de problematizar tais evidências. 7 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 53 cívico, muito possivelmente não fazia superar as frustações e almejos daqueles amazonenses. Também não solucionou os problemas e as dificuldades político-administrativas que a região detinha. Na Barra apenas residiam o Ouvidor e o Comandante das Armas. A Câmara de Serpa transportando-se à Barra, prestou juramento solene de obediência ao Imperador. Proclamada a Independência do Brasil, o Decreto de 20 de outubro de 1823 abolia as juntas governativas. O govêrno nomeava, para as províncias, presidentes com Conselhos eletivos. Nas nomeações não foi contemplado o Rio Negro, que continuou até o ano de 1825 com a sua Junta provisória. (JOBIM, 1957. p. 142) Pela leitura da documentação, é sensível esse desapontamento por parte da elite política da região que almejava, naturalmente, postos públicos com maior esplendor e regalias que a proximidade com S. Majestade garantiam. O sentimento de dependência política e subordinação ao Pará parecia afrontar aqueles homens que acreditavam na independência libertária, a viam como uma mobilização. Desse modo, independência era palavra de mobilização que se contrapunha à “escravidão política”, situação própria ao absolutismo, assinalando o momento em que por consentimento voluntário os homens livres uniram-se para instaurar a sociedade civil, concentrando em suas mãos o poder soberano de elaborar as leis e de escolher as autoridades a quem caberia executá-las. [...] (OLIVEIRA, 2014. p. 19) Nesse sentido, embora o jogo de interesses econômicos, o trampolim político e as posições privilegiadas que erma almejo dos políticos da Comarca, que só seriam alcançados com a instalação da Província. Dentro de todo o jogo político, a permanência na condição de dependente feria os brios daqueles homens que mesmo derrotados naqueles anos iniciais do império, tentariam até conseguir elevar o Amazonas ao status de província,8 o processo foi logo. O que compunha territorialmente a Comarca do Rio Negro? Mesmo com a mudança, anexação ao Brasil e permanência como relegada ao Pará, a região se manteve como o foi desde antes, desde os tempos de Capitania de Esse feito apenas se deu em 05 de setembro de 1850, quando a Comarca do Alto Amazonas foi elevada a categoria de Província. o feito foi enormemente celebrado naquele 1850, e, ainda hoje é considerada data celebrativa no Estado, sendo um feriado local. 8 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 54 São José do Rio Negro. “Extinguio-se o predicamento de Capitania, rebaixando para o de Comarca, por ocasião da distribuição do território para determinação da Representação Nacional em 1823.” (DICCIONARIO TOPOGRAPHICO, HISTORICO, DESCRIPTIVO, 1852. p. 83) A Comarca possuía uma singela população fixa, atividades comerciais modestas e uma vida cultural dentro de certa simplicidade. O então Lugar da Barra, entorno da atual capital, Manaus, não tinha em 1823 segundo Anísio Jobim nenhuma influência nos meios políticos. A hegemonia administrativa pertencia a Barcelos. Com o decorrer do tempo derivou para Serpa, que liderava as outras vilas e povoados. Os moradores do lugar da Barra iam a Itacoatiana impetrar licença para comerciar, para a apanha das drogas do sertão, para requererem terras, para pescar e para outros fins. A Câmara Municipal tomava conhecimento dos pedidos e deferia-os, ou não. Serpa tinha na Barra um representante, o Juiz de julgados, que informava tôdas as ocorrências, exercia a polícia urbana e suburbana e dava pareceres sôbre as cartas de data. “Em alguns casos”, escreve Bertino Miranda, “e quando a parte era desafeta dos vereadores, tinha de falar a residência dos funcionários”. (JOBIM, 1957. p. 142) De fato, Barcelos vinha desde o século XVIII sendo um importante centro de decisões e corporações políticas na região do Rio Negro, como sede da Capitania, e a posteriori sede da Comarca, a vila estava sendo constantemente palco de acontecimentos. A Comarca parecia crescer na primeira metade do XIX, e requerer seu lugar de destaque no império. Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 55 Figura 02: Prospecto da Vila de Barcelos, antigamente Aldeia de Mariuá, criada capital da capitania de S. José do Rio Negro, pelo Ilmº e Exmº Sr. Francisco Xavier de Mendonça Furtado, por provisão de 6 de maio de 1758... Autor: José Joaquim Freire Expedição científica Alexandre Rodrigues Ferreira, 1784. Fonte: Acervo: Biblioteca Nacional (Brasil) Disponível em: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/17587/prospectoda-vila-de-barcelos-antigamente-aldeia-de-mariua-criada-capital-da-capitaniade-s-jose-do-rio-negro-pelo-ilm-e-exm. A imagem acima, extraída do relato da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, mostra a Vila de Barcelos aos anos finais do século XVIII. Estão as vistas no prospecto a grandeza da vila, se comparada a outras localidades do Amazonas naquele período: uma arquitetura mais rebuscada, prédios em alvenaria, grandes especificamente os localizados ao lado esquerdo da cena, contrastando com as malocas e casinhas do lado direito. Vemos também um intenso movimento de chegada de embarcações. A vida parecia ser movimentada. Esse movimento essa representação somente aumentou nas primeiras décadas do oitocentos, uma vez que por duas vezes sediou as ações políticas do Rio Negro. Barcelos era a localidade mais disputada e mais habitada por portugueses que se estabeleciam no Rio Negro. Porém, a Barra tinha maior acessibilidade para quem vinha de fora. O deslocamento da Barra até Barcelos, era incômodo a muitos, e aos poucos, a Barra começa a ser palco de transferências de acontecimentos políticos. Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 56 Em 1821, a Câmara de Serpa vem realizar, na Barra, as sessões de 7 a 17 de março. Regressa a 4 de abril, e, a 22 do mesmo mês, recebe o juramento à Constituição portuguesa, seguindo obediência a El-Rei, D. João VI, e á Junta Geral do Pará. A junta provisória do Rio Negro instalase na Barra. [...] A 1º de julho de 1822, volta a câmara à Barra, e, no dia seguinte, reúne-se extraordinariamente na antiga Igreja Matriz, para jurar, também à Constituição [...] (MIRANDA, 2021. p. 34) Após o juramento ocorrido no Lugar da Barra no dia 06 de fevereiro de 1825, as divergências políticas começaram a aparecer com mais intensidade, começaram a se delinear partidários e opositores que agitaram as estruturas políticas do Rio Negro. Naquele momento, era a principal autoridade judiciária local o ouvidor Domingos Ramos Ferreira, que se utilizando-se do cargo, se proclamou chefe do governo, alegando que a legitimidade da junta provisória eleita em novembro de 1823,9 foi extinta pelo fato de o império não reconhecer a Província. “A junta provisória de governo resistiu – e não abdicou o poder.” (GARCIA, 2010. p. 55) Naquele momento, essa dualidade dentro do governo da Comarca gerou uma crise política na região. José Félix Pereira Burgos, então presidente do Pará teve de intervir dissolvendo a junta provisória e, dispondo as obrigações do governo da seguinte forma: a administração da justiça coube ao ouvidor Domingos Ramos Ferreira; o comando das armas ao coronel Hilário Pedro Gurjão; no tocante as funções executivas, confiou a Câmara de Barcelos que no dia 03 de dezembro de 1825, foi mudada para o Lugar da Barra, passando a ser Câmara Governativa, permanecendo em Barcelos apenas o juiz ordinário. Em ofício de 23 de julho de 1825, Pereira Burgos comunicou sua decisão ao Império e propôs a subordinação da Antiga Capitania de São José do Rio Negro á Província do Pará. O Aviso nº. 233, de 08 de outubro de 1825, da Secretaria de Negócios do Império, referendou a dissolução da junta governativa e todas as decisões de Pereira Burgos. Além de haver negado o seu reconhecimento à Província do Rio Negro, o Império do Brasil declarava-a, agora, oficialmente subordinada ao Pará. (GARCIA, 2010. p. 55) O Rio Negro estava então tecnicamente como estivera durante todo o período colonial; a elite que jactava ver a região livre, “andando com as Convencionou-se denomina-la de “Junta da Independência”, era composta por: Bonifácio João de Azevedo, Raimundo Barroso de Bastos, Plácido Moreira de Carvalho, Luiz Ferreira da Cunha e João da Silva Cunha. 9 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 57 próprias pernas”, se viu com a instalação da monarquia brasileira em condição de subordinada ao Pará, o que agregou uma rixa entre as elites políticas das duas regiões.10 Se olharmos atentamente a documentação da Amazônia entre os anos finais do setecentos e os iniciais do oitocentos é latente uma dependência de ambas. O Pará dependia do Amazonas e vice-versa. Com as imposições dadas e impostas ao Rio Negro, entre 1826-1828 a Câmara entrou em discordância com o capitão Hilário Gurjão. O conflito delineava-se para uma rebelião, ou mais, uma onda de contrariedade aos acontecimentos da independência. O embate entre a câmara legislativa municipal e o executivo tomou uma dimensão maior no momento em que se soube que Dom Romualdo Antonio de Seixas, que em 1826 era deputado pelo Pará no parlamento imperial, se posicionou favorável a autonomia do Rio Negro, e mesmo que o poder central não lhe atendeu, manteve-se como uma espécie de incentivador, porta-voz dos projetos autonomistas da Comarca. Hilário Gurjão aos poucos foi perdendo sua autoridade, até que em 1828 foi substituído por Joaquim Filipe dos Reis. No Lugar da Barra, a distribuição de poderes modelada por Pereira Burgos gerou constantes disputas e atritos entre a Câmara Governativa e o comandante militar. Em 1828, o Barão de Bagé, sucessor de Pereira Burgos, mandou a Camâra retornar a Barcelos e exonerou o comandante Hilário de Gurjão, colocando em seu lugar Joaquim Filipe dos Reis, um militar declaradamente contrário às aspirações do Rio Negro. (GARCIA, 2010. p. 55) O barão de Bagé era “favorável a autonomia do Rio Negro” (LIMA, 1978), porém, Joaquim Filipe não o era, com sua nomeação, a situação da Comarca do Rio Negro, e seu ensejo em se tornar província autônoma parecia ruir de uma vez. O coronel manteve uma postura rígida e procurou representar os ideais lusitanos e monárquicos do Brasil com quem se alinhava cada vez mais e via, possivelmente, na vontade de instalação de uma província, uma forma de romper com os ideais do imperador. Essa rixa política se tornou uma permanência histórica que chega até nossos dias. Há diferentes jargões e exemplos que apresentam essa “histórica” rixa entre Pará e Amazonas. Com o andar do século XIX, a elite política do Amazonas quando finalmente conseguiu elevar a região ao status de Província, fez de tudo para tentar se destacar se comparada ao Pará. O próprio embelezamento da cidade de Manaus durante a belle époque, foi, uma forma de superar o embelezamento de Belém, e naqueles anos dos negócios da borracha, atrair mais capital estrangeiro. 10 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 58 E a Comarca continuava essa luta pela sua autonomia, e elevação de seu status. Entre os anos 1828-1833, uma forte onda autonomista deu-se na região do Rio Negro, eclodindo inclusive, um Movimento Autonomista em 1832 estourado na Barra do Rio Negro. Tal acontecimento, de início nada tinha de ligação com as aspirações autonomistas, mas paulatinamente foi incorporado à pauta, o episódio culminou com a morte do coronel Filipe dos Reis pela soldadesca que tinha se rebelado contra o governo provincial por ausência de pagamentos de seus salários, e, o coronel ao tentar impor a ordem foi morto. Com isso, o poder executivo provincial do Pará deixava de ser representado no Rio Negro, esse episódio abriu assim caminhos para a elite política amazonense que visava a autonomia se estabelecer em cargos públicos, administrativos seguindo para seu grande projeto que era a Província do Amazonas se oficializar. 3. MATA, PRODUTOS E INDÍGENAS: AS POSSES DA COMARCA Fora as aspirações políticas, as sociabilidades, as culturas e o trabalho no Rio Negro, na Comarca, eram condensados por uma constância que fazia da região uma intensa produtora de gêneros, bens e homens. Desde os tempos da Capitania do Rio Negro, a região de acordo com o historiador Carlos Augusto Bastos, foi também palco de políticas que visavam diferenciar, apostar novidades na economia, com o objetivo de conferir àquela região a “independência econômica e fiscal com relação à Capitania do Pará.” A exploração dos gêneros oriundos da floresta, como o cacau selvagem, o breu, a salsa a piaçava, os óleos, continuava ocupando, segundo o referido autor, um lugar central na economia local. Em concomitância a isso, havia uma singela agricultura, praticada majoritariamente nas terras indígenas, o que era “imprescindível para o abastecimento do mercado interno.” (BASTOS, 2013. pp. 66-67). Contudo, em fins do XVIII, incentivou-se igualmente a produção agrícola, a qual consistia principalmente em lavouras de cacau, anil, algodão, café, maniva e arroz. No caso da maniva, sua produção era particularmente incentivada tendo em vista sua utilização na produção de farinha, gênero essencial no abastecimento dos povoados do Estado do Grão-Pará e Rio Negro. A rizicultura, por sua vez, foi realizada no rio Branco, onde os pastos naturais serviram também para a criação de gados vacum e cavalar. (BASTOS, 2013. p. 67). Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 59 Pensar a região do Rio Negro a época da independência é vislumbrar uma região que era regida por uma temporalidade, um ritmo, uma constância peculiar: ora, a Comarca era como um todo “diferente” das demais localidade do império nascente.11 Nesse sentido: As informações para este início de século tratam de uma Comarca de população rarefeita, distribuída em modestos núcleos urbanos habitados majoritariamente por índios, com um pequeno número de moradores brancos, vivendo dos resultados de uma agricultura de alimentos, do cultivo e comercialização de seus tabacaes, cafezaes e cacoaes e de da extração de outros produtos naturais da região. São enviados para a praça do Pará, os resultados das produções das feitorias de fabricação de manteiga que serve de alimento e óleo para iluminação, de azeite e mixirica de peixe-boi e das salgas de peixes. (MELO, 2014. p. 11). (Os grifos são da autora) A civilização era modesta, a historiadora Patrícia Melo, acima citada nos transporta a uma imagem na qual a Comarca em sua singeleza era ativa, produtiva e ainda detinha elementos de um pequeno comércio. Os núcleos urbanos pequenos em suas realidades amazônicas com suas gentes, cores cheiros e sabores. Os habitantes eram majoritariamente indígenas, sendo a população de brancos, minoria, de fato, como apontamos anteriormente, a Capitania tinha uma população razoável, e, a Comarca seguia a mesma tendência, na qual a população indígena crescia na região, contrariando as políticas assimilacionista e civilizatórias implementadas quer fosse pelas Ordens religiosas, quer fosso pela política de aportuguesamento do Marquês de Pombal. Além destas indústrias, os habitantes ocupam-se também de suas roças de mandioca, feijão e milho e de extrair das matas, os cravos, a salsaparrilha, o cacau silvestre, o óleo de copaíba, entre outros produtos. Criam galinhas, às vezes um pequeno rebanho de gado, alguns porcos e, em quase todas as casas, existe um pequeno “curral” de tartarugas. (MELO, 2014. p. 11) Há consenso entre os pesquisadores do período sobre a formação territorial do Brasil no que tange as especificidades daquilo que hoje chamamos de Norte, e extremo norte do Brasil. A principal diferença era sem dúvidas a enorme presença de verde, da floresta amazônica e de tudo que ela guardava: rios, frutos, animais e gentes. Logo, pensar o Amazonas no início do século XIX, é pensar um lugar visto e apontado como diferente, exótico, e que dependia de outrem. 11 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 60 Havia uma produção. Havia um ritmo, havia até uma pequena venda e sistema de importação. Como a Comarca era ligada à Província do Pará, era para que partiam grande parte dos gêneros produzidos, o que de certo irritava àqueles homens que deviam reportar suas produções ao poder provincial localizado noutra cidade, localidade. Interessante pensar o ritmo da vida: criação agropastoril, simplicidade, uma vida sem muitos enlevos, mas uma vida feliz, “livre”, diríamos. Essa exportação de gêneros ao Pará, existia desde muitos tempos, para o ano de 1819 temos os seguintes números da produção do Rio Negro que naquele ano ainda era Capitania. Tabela 03: Exportações de gêneros da Capitania de São José do Rio Negro para Belém em 1819 (em réis $). Produto Tabaco Salsaparrilha Café Cravo fino Cacau Peixe Manteiga de tartaruga Mixira Copaíba Piaçava Anil Quina Breu Estopa da terra Carajiru Castanha Algodão em caroço Redes de palha (maqueiras) TOTAL Unidade arroba arroba arroba arroba arroba arroba pote Quantidade 5.045 3.512 5.936 1.948 1.800 10.425 8.034 Preço 8$000 9$000 3$200 6$400 1$600 1$280 3$200 Preço Total 40:360$000 31:608$000 18:995$200 12:467$200 2:800$000 13:344$000 25:737$600 pote pote polegada arroba arroba arroba arroba 11 17 733 10 350 18 128 2$000 3$000 3$000 3$200 64$000 $800 $500 22$000 51$000 2:199$000 32 22:400$000 64$800 64$000 arroba alqueire arroba 5 166 190 32$200 $200 $800 192$000 32$000 152$000 1 220 $320 7$400 170:959$000 Fonte: Elaborado pelos autores a partir das informações dada pelo cônego André Fernandes de Sousa, 1870.12 NOTICIAS Geograficas da capitania do Rio Negro no grande Rio Amazonas, exornadas com varias noticias historicas do paiz, do seu governo civil e politico, e de outras cousas dignas de attenção, pelo conego André Fernandes de Sousa. Revista Trimensal de Historia e Geograpiha 12 Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 61 A tabela apresenta em números os produtos da região da Capitania, que permaneceram sendo os da Comarca. Eram produtos regionais, vê-se a permanência na produção e comercialização das ditas “drogas do sertão”, as especiarias da Amazônia. Consideramos que na região essa produção estava longe de ser algo montado, formalizado e rigidamente regido. Mas, por se tratar da Amazônia, era uma forma diferente de se fazer, o regime não era o da plantation, como nunca o foi mesmo no período inicial da colonização. O sistema era como apontou o historiador Francisco Jorge dos Santos, uma “grande lavoura”, e nesse meio, o trabalho indígena era dominante, uma vez que esses eram a maioria da população. As políticas de imposição da catequese dos indígenas ainda não tinham se tornado um “peso” na região, os aldeamentos portugueses pouco resistiam as ações do tempo, e o império instaurado, não havia proposto para os primeiros anos uma política de trato com os indígenas.13 Havia também, não podemos esquecer os negros, que eram inseridos nesses trabalhos impostos, e, contribuíam para a formação econômica e política da região. Para os anos finais da década de 1830, já “passado” o furor da década anterior, o coronel Francisco Ricardo Zany14 enviou um memorial descritivo a D. Pedro I na qual apontou que para a Comarca do Rio Negro naqueles anos uma população composta por aproximadamente 15 a 16 mil habitantes, nos quais havia entorno de 600 brancos, 400 pretos, e 3.000 mamelucos, sem contar os indígenas nos aldeamentos que não foram contabilizados, e os “índios selvagens” que se arrolavam entorno de 200.000 almas. Possivelmente, havia muito mais indígenas dado o vasto território da hileia amazônica, ainda em construção.se comparado ao censo demográfico do ano [sic.] ou Jornal do Instituto Historico e Gegraphico Brasileiro. Tomo X. segunda edição. Rio de Janeiro: Typ. de João Ignacio da Silva, 1870. Disponível em: https://www.ihgb.org.br/publicacoes/revistaihgb/itemlist/filter.html?category=9&moduleId=147&start=460 13 Somente no governo de D. Pedro II, no ano de 1845 é que se publicara o Decreto nº 426 de 24 de julho de 1845, conhecido como Regulamento das missões da Catequese e Civilização dos índios que ditou como 14 Italiano de nascença, radicou-se na Amazônia desde muito cedo. Foi um importante coronel militar que atuou na Comarca durante a primeira parte do oitocentos. Temos a informação que na época que Von Martius, o naturalista alemão esteve no Rio Japurá, ele atuava como capitão e o acompanhou como uma autoridade militar da fronteira. Segundo a informações, era um homem ilustre, das letras, viajado, respeitado na sociedade amazônica. Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 62 de 1796, que apontamos anteriormente, vemos que o crescimento dos habitantes foi modesto, pequeno dado que no ano de 1796 a população da Capitania somava 14.232 habitantes. Devido à situação das lavouras, aos problemas do comércio em relação ao escoamento da produção e à decadência das pequenas indústrias algumas povoações já haviam desaparecido, e muitas outras caminhavam para isto. Não havia em toda a região mestres de ofícios e nem ao menos um mestre das primeiras letras, existindo apenas alguns índios que malmente sabem fazer canoas. (Do Memorial de Francisco Ricardo Zany, apud LIMA, 1975. p. 18) Francisco Ricardo Zany, conhecendo bem a região propôs ao imperador diferentes soluções para os problemas sociais, econômicos e políticos da Comarca. Uma das soluções seria a criação de um governo em separado do Pará. Mas essa é uma outra história! CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensar a história da Independência do Brasil e suas aspirações, emoções, e trama além do eixo da Corte, ainda é uma tarefa cara ao historiador. Pensar a Amazônia enquanto unidade, enquanto colônia independente do Brasil, requer rever os clássicos historiográficos brasileiros e inserir essa porção de terra, mata, e gente no contexto. Diante disso, é alutar considerar a independência como processo no plural: independências, uma vez o episódio do 07 de setembro de 1822, cujo 200 anos rememoramos, não foi fato pleno, completo a todo o território do que hoje é o Brasil. Nesse sentido, trabalhamos neste texto com aquilo que podemos: as poucas fontes primárias preservadas, os poucos trabalhos publicados. Outrossim, esse texto conseguiu ser escrito mostrando detalhes, nuances de como a região do Rio Negro, Amazonas vivenciou o processo de emancipação portuguesa e inserção no novo império. Destacamos que as relações entre a Corte no Rio de Janeiro e a Comarca do Amazonas eram mínimas, uma vez que a sede provincial era Belém, e de lá tudo emanava as regiões submetidas. Assim, ao Amazonas coube até 1850 uma posição “menor”, de dependência e subordinação ao Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 63 Pará, o que desagradou e muito a elite política do Rio Negro que desde antes almejava ser uma Província e “caminhar com as próprias pernas”. O espaço temporal deste artigo 1822-1828 coincide com os momentos culminantes de uma implementação da política da Independência na Comarca, vemos nesse trajeto, diferentes motivações, insurreições, confrontos e discussões que sempre tendiam a defender a mesma coisa: tornar o Rio Negro uma província independente do Pará. Foi nesse espaço de tempo que se construiu uma ideia de agregamento, adesão da região, ao Brasil, não que tenha tardado em 1828, afinal a partir dos anos 1833, com a Comarca do Alto Amazonas, novas ou antigas intrigas, decisões e oportunidades foram acontecendo, especialmente com a acunha de Manaus como sede da Comarca, e todos os eventos motivados pela Cabanagem. Foi-nos preciso assim ir, um pouco antes, e além-depois, como se faz necessário ao entendimento historiográfico. Quem eram as pessoas que organizavam, trabalhavam, e produziam na Comarca? Bem, eram um misto de gente, onde predominavam desde sempre homens e mulheres indígenas. A consenso que a maioria da população amazonense naquele quartel do XIX eram indígenas que realizavam os trabalhos extrativos e da coleta das drogas do sertão e das especiarias que a Floresta provinha. Vale destacar que havia também uma singela produção agropastoril que combinava com uma forte e viva atividade exportadora até a sede Belém. Havia também negros, africanos e oriundos de outros locais especialmente do nordeste brasileiro que atuavam nas casas da elite, nas pequenas plantações e nas atividades cotidianas de limpeza, lavagens de roupas, cozinha e outras. Por fim, havia uma parcela de brancos, não indígenas e não negros que dispunham de certo prestígio social pelo status de sua cor, e da sua origem, majoritariamente portugueses, comerciantes, que se estabeleciam na região. Depois do período estabelecido entre 1824-1833, cronologicamente a Comarca do Rio Negro se tornou Comarca do Alto Amazonas dado artigo 3º do Código do Processo Criminal do Império que impunha as províncias realizar uma divisão interna administrativo-judiciária, na qual o Conselho Provincial do Pará, reunido entre 10 e 17 de maio de 1833, dividiu a Província Projeto História, São Paulo, v. 74, pp.42 - 66, Mai.-Ago., 2022 64 do Pará em 3 três comarcas, sendo: Grão-Pará, Baixo Amazonas e Alto Amazonas, iniciando um novo momento na região do atual Amazonas. REFERÊNCIAS AMARAL, J. do. Nos confins do Império: ocupação da Amazônia Ocidental, fronteiras, navegação e comércio (1822-1870). Doutorado em História. UFPE, Recife, 2018. BASTOS, C. A. de C. No Limiar dos Impérios: projetos, circulações e experiências na fronteira entre a Capitania do Rio Negro e a Província de Maynas (c. 1780-c.1820). Doutorado em História Social, FFLCH-USP, São Paulo, 2013. CHIAVENATO, J. J. 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