Não sou daqueles que encontra nos portugueses qualquer género de excecionalismo. Claro que somos como todos os outros povos moldados pela nossa história, localização geográfica, riquezas ou pobrezas do nosso território e mais umas dezenas de et cetera. No entanto, não encontro, por exemplo, no meu povo características inatas ou históricas que o levem a apreciar mais a autoridade ou um salvador do que qualquer outro. Não há povo que em determinadas circunstâncias não tenha sentido o apelo por figuras de autoridade ou que tenha visto num qualquer indivíduo o prometido. O Sérgio Godinho tem razão: só neste país é que se diz só neste país.
No mesmo sentido, as circunstâncias não acontecem no vazio. Há sempre um conjunto de fatores que as propiciam. No entanto, há sempre um fator mais decisivo do que os outros. Tomemos o caso do almirante Gouveia e Melo.
Antes de ser designado responsável pelo plano de vacinação do Covid-19, ninguém sabia quem era o homem. Pergunte-se a qualquer cidadão quem é o chefe do Estado-Maior de qualquer ramo das Forças Armadas e a resposta será na sua esmagadoríssima maioria um “não faço ideia”. É, aliás, saudável que assim seja. Aos responsáveis pela defesa do País exige-se recato e discrição, são servidores públicos com tarefas delicadas, que têm de estar absolutamente afastados de qualquer tipo de jogo, seja político, mediático ou qualquer outro.
Com a campanha de vacinação tornou-se conhecido. Claro que conduziu bem o processo, mas convém lembrar que, num país onde a população acredita nas vacinas e o esquema regular da sua aplicação é dos melhores da Europa, era previsível que corresse bem.
A partir daí nunca mais saiu dos escaparates. O almirante não perdeu uma única oportunidade para se tornar popular e teve a ajuda de muita gente (a quantidade de entrevistas foi inacreditável), mas ficou claro que a dado momento se montou uma boa operação de promoção.
Desde o fim da pandemia, não houve semana sem notícias sobre os mais variados feitos de Gouveia e Melo (alguém se lembra de um chefe de Estado de Armada ser elogiado por apreensões de droga?), entrevistas, análises das suas características pessoais e um nunca acabar de encómios. Digamos que aquela conversa de que tinha uma missão (a vacinação) e que depois regressaria ao quartel não resistiu ao tempo.
Resumindo, a construção da imagem do almirante nada teve de fortuito, e tanto aqui como na Cochinchina, se se vender bem a imagem de alguém como eficiente, austero, probo e com capacidade de liderar, temos candidato a qualquer cargo político. E, claro, a campanha foi avançando sem que durante muito tempo ninguém questionasse um militar usar o cargo para se autopromover, sem debater o tal papel discreto que um membro das Forças Armadas tem de ter ou a evidente sobrevalorização do comum desempenho de um cargo militar.
Há, no entanto, o tal fator decisivo para a popularidade do almirante: não ser político. E o facto de isto ser o que faz a diferença não pode ser assacado nem ao almirante – apesar de se aproveitar dela. Também não há característica nenhuma tipicamente portuguesa contra os políticos, foi sim algo que teve o contributo de muita gente e que se foi edificando ao longo dos anos.
Há muitos responsáveis por a mais nobre atividade que há numa comunidade ter caído em desgraça. Sim, não há nada mais importante numa comunidade do que as pessoas que são responsáveis pelo bem comum.
Os primeiros a contribuir para o desprestígio da classe foram os próprios políticos.
Chegaria lembrar que o político que mais eleições venceu no Portugal democrático continua a renegar essa qualidade. A afirmação constante de Cavaco Silva deste contrassenso é uma excelente contribuição para todos os populismos. Mas há mais.
A forma como os próprios desmereceram a carreira, promovendo salários baixos para cargos fundamentais de interesse público, levou ao afastamento de muita gente de qualidade, mas é sobretudo atentatória à responsabilidade da tarefa. Depois, através duma insana quantidade de incompatibilidades, fez-se com que praticamente só seja possível à gente das Jotas e a professores aceder à carreira política, nomeadamente ser deputado. Pior, ir para ministro de um setor que se conhece representa sobretudo não se poder regressar durante muito tempo à carreira que se tinha.
Tudo isto foi feito pelos próprios políticos, mas sob o aplauso dos cidadãos. Sim, nós também temos feito a nossa parte, e de que maneira. Ajudamos a que seja impossível para uma pessoa que queira preservar o seu bom nome e a sua honra fazer um percurso político, ajudando os pasquins que têm como modelo de negócio difamar e insultar; fazemos generalizações sobre “os políticos”, confundindo o trigo com o joio; olhamos com nojo os partidos e associações cívicas, deixando-as entregues a quem se quer aproveitar delas e não as usar para o bem comum.
Queremos alguém por não ser político diz muito do nosso amor pela democracia. Mas diz sobretudo muito sobre aquilo que fizemos para desprestigiar quem é essencial para o seu funcionamento. Gouveia e Melo agradece.
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