Fica a sua arte e inteligência, o seu irresistível sentido de humor, que marcaram gerações. Que eu saiba, pelo menos duas. Estas figuras redondinhas a ganhar vida em cenários tão diversos, com humor por vezes subtil. Conheci-o a partir dos fascículos do Tintim, dos meus dois irmãos mais velhos. Adeus, querido Mordillo.
Não se deixem enganar pelas riscas cor-de-rosa. Os dias são (d)escritos com todas as cores.
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domingo, 30 de junho de 2019
sexta-feira, 26 de outubro de 2018
Trabalho e uma cabana
Temos demasiadas distracções, no momento em que nos sentamos para trabalhar. Escritores como o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, com a sua minúscula cabana (era mais um barracão) de base rotativa, à caça da luz natural, ou Henry David Thoreau, no seu longo e espartano retiro, a fim de se isolar da civilização, é que sabiam: quando é para trabalhar, nada como reduzir ao mínimo as ferramentas, de modo a que o autor seja ele e o seu pensamento, rodeado de solidão e silêncio. Apenas os sons bem-vindos da natureza.
Também Mark Twin se isolava, mas com maior luxo. Numa carta a um amigo seu, William Dean Howells, datada de 1874, o autor de Huckleberry Finn descreveu a sua "cabana" deste modo: é o mais charmoso estúdio que se possa imaginar. octagonal, com telhado em bico, cada uma das faces cobertas por uma janela generosa ... instalado em completo isolamento no topo de uma elevação, que preside a léguas de vale e cidade e serras ao fundo, com distantes morros azuis (...) É um ninho acolhedor e tem espaço suficiente para um sofá, mesa e três ou quatro cadeiras. E quando as tempestades varrem o vale remoto e os raios piscam entre as colinas e além, e a chuva atinge o tecto sobre a minha cabeça? Imagine a sua sumptuosidade.
Com ou sem barracão, cabana ou chalet, importa cortar com os fios que nos prendem ao mundo, para que possamos reencontrar uma qualquer verdade em nós, buscar um pensamento puro. Quem poderá descobrir o rumo de uma história, cumprir a angústia de uma personagem ou seguir os labirintos de uma ideia, se tão facilmente permitimos que os dedos saltem para o mural do facebook, o dicionário de sinónimos online, a caixa de correio eletrónico ou os ruídos da casa, com vizinhos, familiares, telefones, cães, noticiários, anúncios, campainhas...? Cada vez nos é mais difícil estar por inteiro, como se a mente fragmentada fosse agora peça de cristal em pedaços, jamais tornando a ser una. Quantas cicatrizes e remendos haverá, na transparência do que vamos construindo?
George Bernard Shaw na sua cabana, instalada na sua casa em Hertfordshire, com plataforma rotativa. Aqui trabalhou nos últimos 20 anos da sua vida. |
Garagem convertida de Dylan Thomas, País de Gales. |
Retiro de Virginia Woolf, instalado no jardim da sua casa, no East Sussex. |
Retiro de Mark Twain |
quarta-feira, 23 de maio de 2018
Pomar e Roth
O mundo das artes ficou mais pobre, nestes últimos dias. O nosso Júlio Pomar deixa-nos aos 92 anos de idade, depois de uma vida cumprida. Fica o seu trabalho, para privilégio nosso.
A literatura americana perde um escritor forte e polémico, autor dos livros O Animal Moribundo e O Complexo de Portnoy, ou A Pastoral Americana, sendo mais conhecido pela obra A Mancha Humana, na célebre adaptação ao cinema, com as interpretações magistrais de Nicole Kidman e Antony Hopkins. É triste nunca ter ganhado o Nobel, embora fosse um dos eternos candidatos.
A literatura americana perde um escritor forte e polémico, autor dos livros O Animal Moribundo e O Complexo de Portnoy, ou A Pastoral Americana, sendo mais conhecido pela obra A Mancha Humana, na célebre adaptação ao cinema, com as interpretações magistrais de Nicole Kidman e Antony Hopkins. É triste nunca ter ganhado o Nobel, embora fosse um dos eternos candidatos.
segunda-feira, 2 de abril de 2018
Elena Ferrante
Ilustração: Andrea Ucini, para The Guardian. |
Leiam estas declarações de Elena Ferrante. bastante certeiras e divertidas, na forma como ela se explica em relação ao uso do ponto de exclamação.
Itry never to raise my voice. Enthusiasm, anger, even pain I try to express with restraint, tending towards self-mockery. And I admire those who maintain a calm demeanour during an argument, who try to give cautious hints that we should lower our voices, who reply to frantic questions – “Is it true it really happened like that? Is it true?” – simply with a yes or no, without exclamation marks.
Mainly, this is because I’m afraid of excesses – mine and others’. Sometimes people make fun of me. They say: “You want a world without outbursts of joy, suffering, anger, hatred?” Yes, I want precisely that, I answer. I would like it if, on the entire planet, there were no longer any reason to shout, especially with pain. I like low tones, polite enthusiasm, courteous complaints.
But as the world isn’t going in that direction, I make an effort, at least in the artificial universe that is delineated by writing, never to exaggerate with an exclamation mark. Of all the punctuation marks, it’s the one I like the least. It suggests a commander’s staff, a pretentious obelisk, a phallic display. An exclamation should be easily understood by reading; there’s no need to insist with that mark at the end as well. But I have to say that it’s not simple these days.
Writers are lavish with exclamation marks. In text messages, in WhatsApp chats, in emails, I’ve counted up to five in a row. How much exclaiming the phony innovators of political communication engage in, the blowhards in power, young and old, who tweet nonstop every day. Sometimes I think that exclamation marks are a sign not of emotional exuberance but of aridity, of a lack of trust in written communication. I’m careful not to resort to exclamation marks in my books, but I’ve discovered in some of the translations an unexpected profusion of them, as if the translator had found my page sentimentally bare and devoted himself to the task of reforestation.
It’s likely that my sentences sound detached; I don’t rule that out. And it’s likely that, where the tone for some reason is impassioned, the reader feels happier if he gets to the end of a sentence and finds the signal that authorises him to be impassioned. But I still think that “I hate you” has a power, an emotional honesty, that “I hate you!!!” does not.
At least in writing we should avoid acting like the fanatical world leaders who threaten, bargain, make deals, and then exult when they win, fortifying their speeches with the profile of a nuclear missile at the end of every wretched sentence.»
• Translated by Ann Goldstein, entrevista retirada do The Guardian.
domingo, 20 de novembro de 2016
Camus em tempo de chuva
(Albert Camus, in "A Morte Feliz", p.54, obra póstuma, a partir de manuscritos e notas que antecederam "O estrangeiro").
segunda-feira, 3 de outubro de 2016
Afonso Cruz
Como Afonso Cruz é o vencedor do Prémio Fernando Namora, no valor de 15 mil euros, aqui fica uma entrevista dada quando o livro «Flores» saiu, para que fiquemos a conhecê-lo um pouco melhor.
Flores é uma tentativa de passar ao próximo nível? Chegar ao público só com palavras?
Inicialmente era para ter fotografias. Mas depois achei que não era muito pertinente e acabei por abandonar a ideia. E também porque às vezes me sinto aborrecido com as coisas que faço, quero mudar, quero fazer uma coisa diferente e, neste caso, quis experimentar sem bonecos [risos]. O livro conta a história de um homem que perde as suas memórias afetivas, aquelas que são mais caras. Tem um vizinho jornalista que decide recuperar essas memórias, entrevistando as pessoas que tiveram contacto com ele. E tenta reconstruir-lhe a memória de uma maneira artificial mas de modo a que ele tenha algum passado. São duas personagens um pouco antagónicas: a personagem que perdeu a memória, apesar de tudo, tem uma relação muito forte com a tragédia, com a injustiça social, com os grandes valores. Ao passo que o narrador, esta pessoa que irá recuperar a memória do outro, vive mais ou menos anestesiada na sua rotina e, apesar de ter a memória intacta fisicamente, a verdade é que há muitas coisas que funcionam como se não se lembrasse, como se não existissem, porque são invisíveis para ele. Não tem qualquer relação com elas. É um pouco o que nos acontece no Facebook dois ou três minutos depois de uma notícia aparecer. Vemos, vamos às nossas vidas, já acabou o tempo da indignação. Conservamos poucas memórias? Temos esta dessensibilização em relação às coisas que nos afetam diariamente e à injustiça diária. Vamos ganhando uma capa que vai tornando algumas pessoas invisíveis. Esse é um problema. Este constante trabalho da memória é essencial, voltar a recordar determinadas coisas é imprescindível. Não quer dizer que funcione. É também essa uma parte do papel do escritor: portador de memória? É um assunto polémico. Há muitos escritores para quem o único dever que têm é o da liberdade. Precisam de ser sinceros apenas com aquilo que são e, se sentem necessidade de ter um papel social nos seus livros, fazem-no. Estive num evento sui generis na Hungria, fechado ao público, só para escritores. Metade de nós seria provavelmente da Europa Ocidental e a outra metade da Central e de Leste. A maior parte dos da Europa Central e Ocidental defendia a liberdade criativa, o que talvez tenha a ver com a sua história: mais anos em liberdade, em regimes mais livres. Os de Leste, pelo contrário, sentiam uma motivação social mais forte, confessavam-se obrigados, de certa maneira, a ter um papel interventivo na sociedade enquanto escritores. Porque, enquanto cidadãos, toda a gente concorda que devem ter o seu papel. Pessoalmente, acho que as duas coisas são corretas. Um escritor deve ser honesto. No entanto, também acho que um escritor não é só um cidadão como os outros. Não é que seja melhor ou pior, mas tem mais responsabilidade do que a maior parte dos outros cidadãos. Tem uma arma, uma ferramenta que o faz chegar a mais pessoas. Muito mais alcance. E tem de tomar consciência disso. Pode não usar, mas é uma pena que tenha essa arma e não a use. É um faz-tudo: escritor, ilustrador, músico, cineasta. Isto é uma tentativa de chegar a toda a gente, seja de que maneira for? Não, não é uma tentativa porque nunca planeei a maior parte das coisas que fiz ou que faço. Quando era criança queria fazer banda desenhada e eu nunca fiz banda desenhada na vida. Ainda. Não quer dizer que não venha a fazer, tenho muita vontade de um dia experimentar. Mas nunca pensei em fazer nada destas coisas, não era uma ambição de criança. Surgiram de uma maneira mais ou menos circunstancial: gostava muito de música e quis aprender a tocar um instrumento apesar de nunca ter sido incentivado a fazê-lo. Pelo contrário… Sempre me disseram que era duro de ouvido, que não tinha jeito. Mas insisti, comprei uma guitarra, estraguei muitos discos a tentar imitar os guitarristas de quem gostava. Fui aprendendo. Mais tarde, comecei a trabalhar em animação porque quis comprar uma mota. Os meus pais não me davam dinheiro, eu decidi procurar um emprego e foi o primeiro que apareceu. Depois comecei a gostar muito de animação, dediquei-me imenso e acabei por esquecer a mota. Acabou por se tornar uma carreira que nunca tinha pensado para mim. Tenho e sempre tive uma grande curiosidade – que tem a ver também com independência: se eu gosto muito de uma coisa, quero saber como se faz. Se eu quero compreender o Homem, quero saber como ele é por dentro, sem os acessórios todos. Eu gosto de beber cerveja, quero saber como se faz. Gosto de pão, quero aprender a fazer. Tenho essa vontade de desmontar e ver as entranhas para saber como funciona. “Voltar a recordar determinadas coisas é imprescindível.” Começou a escrever por gostar de ler. Nesse caso há acaso?
Estava numa agência de publicidade, tinham-me convidado para redator e, pela primeira vez, estava a trabalhar com palavras e não com imagens: era uma novidade para mim. No tempo livre, porque tinha algum, comecei a escrever para um blogue privado onde só chateava os amigos. Percebi que tinha uma quantidade razoável de textos que talvez pudessem dar um livro. Tinha reunido esses textos sob um conceito, uma Enciclopédia da Estória Universal fictícia. Na altura, enviei para a Bertrand e tive a sorte de a editora, a Lúcia, ter gostado muito dos textos e os ter querido publicar. Se calhar, se ela não quisesse, eu não seria escritor. Nessa altura procurou escrever mais histórias e passou a pensar em projetos mais estruturados?
A partir daí senti que era capaz e que gostava muito de escrever. A escrita passou a fazer parte da minha vida. Então não estranhou ver o seu nome em capas de livros e em montras de livrarias.
Foi estranho o suficiente. Lembro-me de estar muito nervoso quando o meu primeiro livro foi publicado. Nessa altura vivia no Magoito, junto à praia, numa casa provisória, e senti necessidade de caminhar, de gastar aquela adrenalina. Era um acontecimento, uma coisa estranhíssima na minha vida. Alguma vez tinha pensado que podia ser escritor? Nunca pensei em ser escritor. Mas creio que o grande combustível, a grande matéria-prima para depois escrever, foi gostar muito de ler, ter lido bastante durante toda a minha vida e ter tido um contacto frequente com os livros. Leio diariamente desde que me lembro de ser gente. E hoje sinto-me quase incapaz de escrever se não ler. Ler faz parte da rotina de escrita? Normalmente, antes de começar a escrever, passo umas horas a ler. Depois paro e, mais à noite, quando os meus filhos estão a dormir e tenho mais silêncio, posso concentrar-me totalmente no que estou a fazer, e então escrevo. Mas essa nutrição diária de leitura é para mim essencial para depois conseguir escrever. E até ter ideias. Se bem que as ideias hoje surgem em qualquer circunstância. Mas também quando estamos a ler. Mudou-se para o Alentejo há quatro anos. Foi à procura de novas ideias? A certa altura, ou se calhar desde sempre, imaginava que seria feliz vivendo no campo. Quando tive oportunidade de trabalhar fora de Lisboa, decidi comprar um monte alentejano que também me permitiria reduzir em muito o meu orçamento. A verdade é que, inicialmente, eu nem sequer estava a pensar no Alentejo: pensei em estar fora de Lisboa. O Alentejo tem essa coisa de ser tudo mais harmonioso, mais uniforme. É muito reconhecível. Eu percebi que o interior era muito mais barato que o litoral e acabei por comprar especificamente ali por isso. Portanto, estou a hora e meia de Lisboa. “Sinto-me quase incapaz de escrever se não ler” Escrever implica esse recolhimento, essa distância? Não creio que haja esse quesito, eu gosto de algum silêncio mas isso é possível em qualquer lugar. Agora, como viajo muito, estou muito habituado a escrever em aviões. Não creio que seja uma necessidade. Por vezes chega a ser contraproducente quando pensamos assim, porque tantas vezes na nossa vida não fazemos as coisas porque estamos à espera das circunstâncias ideais para o fazer. Não preciso de ter vacas a passarem à minha janela para escrever um livro. E também não me inspira mais nem menos, nem faz de ninguém génio, ver ou viver com galinhas. Viver longe da cidade não é propriamente uma mais-valia. Só no sentido de que me sinto feliz no campo. E se estivermos num lugar onde nos sentimos bem, talvez consigamos ser mais produtivos. O que eu acho essencial para as pessoas escreverem é escreverem. Parece uma coisa óbvia mas não é assim tanto, porque muitas vezes vamos adiando, à espera desse momento perfeito que nunca teremos. O tempo para escrever exige uma disciplina? Tem alguma rotina? Algumas, mas quebro-as com muita frequência. Normalmente dedico as manhãs a fazer telefonemas e a responder a e-mails – aquilo a que chamo secretariado. À tarde leio e à noite escrevo, porque consigo ter um maior isolamento. Até muito tarde? Depende de como me sinto, de como as coisas estão a fluir, por um lado. Por outro, depende dos prazos: se por acaso tiver de escrever, tenho mesmo de ficar até muito tarde para entregar. Pode ser até às duas, três, quatro da manhã. E isso compromete a sua manhã de secretariado? Não, porque acordo cedo, quando os meus filhos acordam. Depois, à tarde, se for possível, durmo uma sesta para repor parte do sono. Se puder dormir uma power nap de pelo menos meia hora, sabe-me bem. Escreve à mão ou ao computador? Ao computador. Inicialmente tinha sempre um bloco comigo onde anotava quase tudo, a caneta. Aos poucos fui-me habituando a um iPod, escrevi o primeiro esboço de Jesus Cristo Bebia Cerveja todo nesse iPod. Este último romance escrevi-o no iPad. Passo muito tempo a viajar e dá-me muito mais jeito porque, quando escrevo as notas no telefone, ficam acessíveis logo no computador e consigo organizá-las muito mais facilmente. Ajuda-me a estruturar o romance. Lê o que escreve no mesmo dia ou só no dia seguinte? Leio sempre o que escrevo, releio, releio e releio. É um trabalho exaustivo e diário. E até quando tenho de interromper um livro para fazer uma crónica, uma ilustração, o que for, de repente saio de dentro desse livro e demoro tempo a voltar, já não tenho as coisas tão frescas na memória. Quando regresso tenho de ler, reler e voltar a entrar na história, imbuir-me das personagens, voltar a ensopar-me nas suas ideias. Qual seria o auge da sua carreira enquanto escritor? Espero nunca chegar lá. Acho que a nossa vida deve ser tomada como um desafio, tentamos fazer melhor e ser mais competentes, mais capazes. A necessidade de escrever implica uma superação. Não tenho essa ideia profissional de começar a escrever às oito e acabar às cinco e só estou a escrever para viver. Não é isso. Escrevo por paixão e há sempre essa superação evidente nas coisas que quero fazer. Não quer dizer que faça sempre melhor, isso cabe aos críticos decidirem. Mas que tento, tento. E é isso que me motiva a fazer.
(Entrevista de Mariana de Araújo Barbosa a Afonso Cruz, revista Estante, 27 Outubro 2015)
Flores é uma tentativa de passar ao próximo nível? Chegar ao público só com palavras?
Inicialmente era para ter fotografias. Mas depois achei que não era muito pertinente e acabei por abandonar a ideia. E também porque às vezes me sinto aborrecido com as coisas que faço, quero mudar, quero fazer uma coisa diferente e, neste caso, quis experimentar sem bonecos [risos]. O livro conta a história de um homem que perde as suas memórias afetivas, aquelas que são mais caras. Tem um vizinho jornalista que decide recuperar essas memórias, entrevistando as pessoas que tiveram contacto com ele. E tenta reconstruir-lhe a memória de uma maneira artificial mas de modo a que ele tenha algum passado. São duas personagens um pouco antagónicas: a personagem que perdeu a memória, apesar de tudo, tem uma relação muito forte com a tragédia, com a injustiça social, com os grandes valores. Ao passo que o narrador, esta pessoa que irá recuperar a memória do outro, vive mais ou menos anestesiada na sua rotina e, apesar de ter a memória intacta fisicamente, a verdade é que há muitas coisas que funcionam como se não se lembrasse, como se não existissem, porque são invisíveis para ele. Não tem qualquer relação com elas. É um pouco o que nos acontece no Facebook dois ou três minutos depois de uma notícia aparecer. Vemos, vamos às nossas vidas, já acabou o tempo da indignação. Conservamos poucas memórias? Temos esta dessensibilização em relação às coisas que nos afetam diariamente e à injustiça diária. Vamos ganhando uma capa que vai tornando algumas pessoas invisíveis. Esse é um problema. Este constante trabalho da memória é essencial, voltar a recordar determinadas coisas é imprescindível. Não quer dizer que funcione. É também essa uma parte do papel do escritor: portador de memória? É um assunto polémico. Há muitos escritores para quem o único dever que têm é o da liberdade. Precisam de ser sinceros apenas com aquilo que são e, se sentem necessidade de ter um papel social nos seus livros, fazem-no. Estive num evento sui generis na Hungria, fechado ao público, só para escritores. Metade de nós seria provavelmente da Europa Ocidental e a outra metade da Central e de Leste. A maior parte dos da Europa Central e Ocidental defendia a liberdade criativa, o que talvez tenha a ver com a sua história: mais anos em liberdade, em regimes mais livres. Os de Leste, pelo contrário, sentiam uma motivação social mais forte, confessavam-se obrigados, de certa maneira, a ter um papel interventivo na sociedade enquanto escritores. Porque, enquanto cidadãos, toda a gente concorda que devem ter o seu papel. Pessoalmente, acho que as duas coisas são corretas. Um escritor deve ser honesto. No entanto, também acho que um escritor não é só um cidadão como os outros. Não é que seja melhor ou pior, mas tem mais responsabilidade do que a maior parte dos outros cidadãos. Tem uma arma, uma ferramenta que o faz chegar a mais pessoas. Muito mais alcance. E tem de tomar consciência disso. Pode não usar, mas é uma pena que tenha essa arma e não a use. É um faz-tudo: escritor, ilustrador, músico, cineasta. Isto é uma tentativa de chegar a toda a gente, seja de que maneira for? Não, não é uma tentativa porque nunca planeei a maior parte das coisas que fiz ou que faço. Quando era criança queria fazer banda desenhada e eu nunca fiz banda desenhada na vida. Ainda. Não quer dizer que não venha a fazer, tenho muita vontade de um dia experimentar. Mas nunca pensei em fazer nada destas coisas, não era uma ambição de criança. Surgiram de uma maneira mais ou menos circunstancial: gostava muito de música e quis aprender a tocar um instrumento apesar de nunca ter sido incentivado a fazê-lo. Pelo contrário… Sempre me disseram que era duro de ouvido, que não tinha jeito. Mas insisti, comprei uma guitarra, estraguei muitos discos a tentar imitar os guitarristas de quem gostava. Fui aprendendo. Mais tarde, comecei a trabalhar em animação porque quis comprar uma mota. Os meus pais não me davam dinheiro, eu decidi procurar um emprego e foi o primeiro que apareceu. Depois comecei a gostar muito de animação, dediquei-me imenso e acabei por esquecer a mota. Acabou por se tornar uma carreira que nunca tinha pensado para mim. Tenho e sempre tive uma grande curiosidade – que tem a ver também com independência: se eu gosto muito de uma coisa, quero saber como se faz. Se eu quero compreender o Homem, quero saber como ele é por dentro, sem os acessórios todos. Eu gosto de beber cerveja, quero saber como se faz. Gosto de pão, quero aprender a fazer. Tenho essa vontade de desmontar e ver as entranhas para saber como funciona. “Voltar a recordar determinadas coisas é imprescindível.” Começou a escrever por gostar de ler. Nesse caso há acaso?
Estava numa agência de publicidade, tinham-me convidado para redator e, pela primeira vez, estava a trabalhar com palavras e não com imagens: era uma novidade para mim. No tempo livre, porque tinha algum, comecei a escrever para um blogue privado onde só chateava os amigos. Percebi que tinha uma quantidade razoável de textos que talvez pudessem dar um livro. Tinha reunido esses textos sob um conceito, uma Enciclopédia da Estória Universal fictícia. Na altura, enviei para a Bertrand e tive a sorte de a editora, a Lúcia, ter gostado muito dos textos e os ter querido publicar. Se calhar, se ela não quisesse, eu não seria escritor. Nessa altura procurou escrever mais histórias e passou a pensar em projetos mais estruturados?
A partir daí senti que era capaz e que gostava muito de escrever. A escrita passou a fazer parte da minha vida. Então não estranhou ver o seu nome em capas de livros e em montras de livrarias.
Foi estranho o suficiente. Lembro-me de estar muito nervoso quando o meu primeiro livro foi publicado. Nessa altura vivia no Magoito, junto à praia, numa casa provisória, e senti necessidade de caminhar, de gastar aquela adrenalina. Era um acontecimento, uma coisa estranhíssima na minha vida. Alguma vez tinha pensado que podia ser escritor? Nunca pensei em ser escritor. Mas creio que o grande combustível, a grande matéria-prima para depois escrever, foi gostar muito de ler, ter lido bastante durante toda a minha vida e ter tido um contacto frequente com os livros. Leio diariamente desde que me lembro de ser gente. E hoje sinto-me quase incapaz de escrever se não ler. Ler faz parte da rotina de escrita? Normalmente, antes de começar a escrever, passo umas horas a ler. Depois paro e, mais à noite, quando os meus filhos estão a dormir e tenho mais silêncio, posso concentrar-me totalmente no que estou a fazer, e então escrevo. Mas essa nutrição diária de leitura é para mim essencial para depois conseguir escrever. E até ter ideias. Se bem que as ideias hoje surgem em qualquer circunstância. Mas também quando estamos a ler. Mudou-se para o Alentejo há quatro anos. Foi à procura de novas ideias? A certa altura, ou se calhar desde sempre, imaginava que seria feliz vivendo no campo. Quando tive oportunidade de trabalhar fora de Lisboa, decidi comprar um monte alentejano que também me permitiria reduzir em muito o meu orçamento. A verdade é que, inicialmente, eu nem sequer estava a pensar no Alentejo: pensei em estar fora de Lisboa. O Alentejo tem essa coisa de ser tudo mais harmonioso, mais uniforme. É muito reconhecível. Eu percebi que o interior era muito mais barato que o litoral e acabei por comprar especificamente ali por isso. Portanto, estou a hora e meia de Lisboa. “Sinto-me quase incapaz de escrever se não ler” Escrever implica esse recolhimento, essa distância? Não creio que haja esse quesito, eu gosto de algum silêncio mas isso é possível em qualquer lugar. Agora, como viajo muito, estou muito habituado a escrever em aviões. Não creio que seja uma necessidade. Por vezes chega a ser contraproducente quando pensamos assim, porque tantas vezes na nossa vida não fazemos as coisas porque estamos à espera das circunstâncias ideais para o fazer. Não preciso de ter vacas a passarem à minha janela para escrever um livro. E também não me inspira mais nem menos, nem faz de ninguém génio, ver ou viver com galinhas. Viver longe da cidade não é propriamente uma mais-valia. Só no sentido de que me sinto feliz no campo. E se estivermos num lugar onde nos sentimos bem, talvez consigamos ser mais produtivos. O que eu acho essencial para as pessoas escreverem é escreverem. Parece uma coisa óbvia mas não é assim tanto, porque muitas vezes vamos adiando, à espera desse momento perfeito que nunca teremos. O tempo para escrever exige uma disciplina? Tem alguma rotina? Algumas, mas quebro-as com muita frequência. Normalmente dedico as manhãs a fazer telefonemas e a responder a e-mails – aquilo a que chamo secretariado. À tarde leio e à noite escrevo, porque consigo ter um maior isolamento. Até muito tarde? Depende de como me sinto, de como as coisas estão a fluir, por um lado. Por outro, depende dos prazos: se por acaso tiver de escrever, tenho mesmo de ficar até muito tarde para entregar. Pode ser até às duas, três, quatro da manhã. E isso compromete a sua manhã de secretariado? Não, porque acordo cedo, quando os meus filhos acordam. Depois, à tarde, se for possível, durmo uma sesta para repor parte do sono. Se puder dormir uma power nap de pelo menos meia hora, sabe-me bem. Escreve à mão ou ao computador? Ao computador. Inicialmente tinha sempre um bloco comigo onde anotava quase tudo, a caneta. Aos poucos fui-me habituando a um iPod, escrevi o primeiro esboço de Jesus Cristo Bebia Cerveja todo nesse iPod. Este último romance escrevi-o no iPad. Passo muito tempo a viajar e dá-me muito mais jeito porque, quando escrevo as notas no telefone, ficam acessíveis logo no computador e consigo organizá-las muito mais facilmente. Ajuda-me a estruturar o romance. Lê o que escreve no mesmo dia ou só no dia seguinte? Leio sempre o que escrevo, releio, releio e releio. É um trabalho exaustivo e diário. E até quando tenho de interromper um livro para fazer uma crónica, uma ilustração, o que for, de repente saio de dentro desse livro e demoro tempo a voltar, já não tenho as coisas tão frescas na memória. Quando regresso tenho de ler, reler e voltar a entrar na história, imbuir-me das personagens, voltar a ensopar-me nas suas ideias. Qual seria o auge da sua carreira enquanto escritor? Espero nunca chegar lá. Acho que a nossa vida deve ser tomada como um desafio, tentamos fazer melhor e ser mais competentes, mais capazes. A necessidade de escrever implica uma superação. Não tenho essa ideia profissional de começar a escrever às oito e acabar às cinco e só estou a escrever para viver. Não é isso. Escrevo por paixão e há sempre essa superação evidente nas coisas que quero fazer. Não quer dizer que faça sempre melhor, isso cabe aos críticos decidirem. Mas que tento, tento. E é isso que me motiva a fazer.
(Entrevista de Mariana de Araújo Barbosa a Afonso Cruz, revista Estante, 27 Outubro 2015)
sexta-feira, 23 de setembro de 2016
Cristina Carvalho
O carteiro veio entregar-nos hoje dois exemplares do novo livro de Cristina Carvalho, cujas fotografias são do Nanã.
Prós: a edição é um mimo, um pequeno livro que decerto irá parar ao PNL, pois tem todos os ingredientes para se recomendar aos jovens leitores, que devem conhecer o que a Tapada de Mafra tem para oferecer.
Contra: conhecendo eu as fotografias originais (por razões óbvias, já que o Nanã Sousa Dias é o meu marido), é lamentável que algumas delas tenham perdido grande parte da qualidade, ficando demasiado escuras, comprometendo a definição e os pormenores presentes na versão original, em especial a da autora, no fim (demasiado escura) e a da lua cheia, que tinha um céu de estrelas maravilhoso, e em cuja impressão se vê apenas a lua...em fundo negro.
Além das fotografias tiradas pelo Nanã e as bonitas ilustrações de Teodora Boneva, em desenho científico, traz no fim, depois dos Agradecimentos, sete páginas preparadas para desenho e notas, no âmbito de uma visita à Tapada. Muitos parabéns à Cristina e à Sextante por este livro.
Prós: a edição é um mimo, um pequeno livro que decerto irá parar ao PNL, pois tem todos os ingredientes para se recomendar aos jovens leitores, que devem conhecer o que a Tapada de Mafra tem para oferecer.
Contra: conhecendo eu as fotografias originais (por razões óbvias, já que o Nanã Sousa Dias é o meu marido), é lamentável que algumas delas tenham perdido grande parte da qualidade, ficando demasiado escuras, comprometendo a definição e os pormenores presentes na versão original, em especial a da autora, no fim (demasiado escura) e a da lua cheia, que tinha um céu de estrelas maravilhoso, e em cuja impressão se vê apenas a lua...em fundo negro.
Além das fotografias tiradas pelo Nanã e as bonitas ilustrações de Teodora Boneva, em desenho científico, traz no fim, depois dos Agradecimentos, sete páginas preparadas para desenho e notas, no âmbito de uma visita à Tapada. Muitos parabéns à Cristina e à Sextante por este livro.
Conheça a obra aqui |
sábado, 17 de setembro de 2016
Felicidade
Em 2005 perguntei a uma grande amiga qual seria considerado o melhor livro de auto-ajuda: queria oferecê-lo a uma pessoa especial que estava muito em baixo na altura. Comprei-o, li-o num instante (é pequenino, um pequeno mimo) e regressei à livraria para comprar mais uns quantos exemplares, que ofereci (custava apenas 5 euros, a minha felicidade começou logo ali).
Aqui está ele: "Heitor ou a procura da felicidade", de François Lelord (2002), ele próprio psiquiatra, tal como o seu protagonista.
Não posso deixar de pensar que o livro saído em 2006 de Elisabeth Gilbert, "Comer, Orar, Amar" foi, sem dúvida, inspirado neste; quanto mais não seja a decisão da autora de partir em viagem em busca do seu próprio equilíbrio, já que é também bastante autobiográfico. No entanto, este é muito menos conhecido e é o genuíno. A edição está esgotada, infelizmente. Entretanto a Lua de Papel (Grupo Leya) reeditou-o em 2011...e custa agora 13.50.
Aqui está ele: "Heitor ou a procura da felicidade", de François Lelord (2002), ele próprio psiquiatra, tal como o seu protagonista.
No site da Wook |
Esta noite vi na box (Cinemundo, passou na 4ª feira) a adaptação ao cinema. Vale a pena ver. Um filme divertido, que nos inspira ternura e...nos inspira.
Aqui fica o trailer
segunda-feira, 15 de agosto de 2016
Escritor-fantasma
E se alguém lhe disser que Alexandre Dumas (pai) não foi o único autor das obras «A Rainha Margot», «Os Três Mosqueteiros» ou »O Conde de Monte Cristo»?
E se alguém lhe disser que Alexandre Dumas (pai) não foi o único autor de obras como "A Rainha Margot", "Os Três Mosqueteiros" ou "O Conde de Monte Cristo"?
Existiu um homem por detrás de uma grande parte do legado literário deste autor célebre: um homem apagado (ao contrário do caráter forte e cativante de Alexandre) que ajudou Dumas no enredo, no esboço de diálogos e na construção de personagens. Esse homem chamava-se Auguste Maquet. A pedido da editora de Dumas, Auguste abdicou do seu nome nas peças de teatro e romances nos quais colaborou, em troca de somas avultadas de dinheiro. A verdade soube-se após a leitura do testamento de Auguste, que aí revelou o seu segredo. O filme O Outro Dumas (2010), protagonizado por Gerard Depardieu (Dumas) e Benoît Poelvoorde (Maquet) conta parte da vida do assistente/escritor e da sua relação com Alexandre Dumas, que durou 18 anos.
Para saber mais acerca de Auguste Maquet, clique no nome.
E se alguém lhe disser que Alexandre Dumas (pai) não foi o único autor de obras como "A Rainha Margot", "Os Três Mosqueteiros" ou "O Conde de Monte Cristo"?
Existiu um homem por detrás de uma grande parte do legado literário deste autor célebre: um homem apagado (ao contrário do caráter forte e cativante de Alexandre) que ajudou Dumas no enredo, no esboço de diálogos e na construção de personagens. Esse homem chamava-se Auguste Maquet. A pedido da editora de Dumas, Auguste abdicou do seu nome nas peças de teatro e romances nos quais colaborou, em troca de somas avultadas de dinheiro. A verdade soube-se após a leitura do testamento de Auguste, que aí revelou o seu segredo. O filme O Outro Dumas (2010), protagonizado por Gerard Depardieu (Dumas) e Benoît Poelvoorde (Maquet) conta parte da vida do assistente/escritor e da sua relação com Alexandre Dumas, que durou 18 anos.
Para saber mais acerca de Auguste Maquet, clique no nome.
quinta-feira, 16 de junho de 2016
James Joyce
Hoje é BLOOMSDAY!
Que forma maravilhosa de celebrar e homenagear um conterrâneo! Soube hoje da existência desta curiosa efeméride irlandesa. Obrigada, Luís!
1904 - James Joyce publica Ulisses.
Que forma maravilhosa de celebrar e homenagear um conterrâneo! Soube hoje da existência desta curiosa efeméride irlandesa. Obrigada, Luís!
1904 - James Joyce publica Ulisses.
domingo, 28 de fevereiro de 2016
Autoria
Efígie de César (s/d) |
O poema "Muere Lentamente", atribuído por engano a Pablo Neruda, circula há anos na Internet sem que nada nem ninguém seja capaz de deter a bola de neve, ao ponto de, em Espanha, muitas pessoas terem recebido esses versos como votos online de um feliz Ano Novo: "Morre lentamente quem não viaja, Quem não lê, Quem não ouve música, Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito, Repetindo todos os dias o mesmo trajeto..."
Assim começa o poema que não se chama Morre Lentamente, mas A Morte Devagar, e não é do poeta chileno como assegurou a Fundação Pablo Neruda, mas da escritora e poeta brasileira. MARTHA MEDEIROS. Não é "Muere Lentamente" o único "falso Neruda" que encontram os internautas. Também costumam atribuir ao autor do Canto Geral os poemas "Queda Prohibido" (que é de Alfredo Cuervo, escritor e jornalista espanhol), e "Nunca Te Quejes", autor desconhecido para a Fundação Pablo Neruda.
Este é um dos problemas do uso indiscriminado e ingénuo da Internet: uma ferramenta maravilhosa de informação, mas também uma terrível fonte de desinformação, quando utilizada sem reservas.
Outro boato que circula há cerca de um ano é o de que o texto "A Geração à Rasca - Por Nossa Culpa" foi escrito por Mia Couto: não é verdade. Para confirmarem o rumor, aqui fica o link do texto original, no blog ASSOBIO REBELDE
terça-feira, 27 de outubro de 2015
Condessa de Ségur
Reencontrei um livro que fez parte da minha infância e, que me lembre, tem a particularidade de ter sido o único, na época, a provocar-me pesadelos. Foi com um sorriso e muita emoção que tornei a percorrer a memória desse tempo, dessas histórias e, em especial, das ilustrações que magicamente têm o condão de nos transportar. Ao olhar para estas ilustrações, sou criança outra vez.
domingo, 25 de outubro de 2015
Beatrix Potter
Há universos infantis maravilhosos. Um dos meus preferidos, no que diz respeito a ilustração, é o de Beatrix Potter. Apesar de ter visto as suas histórias e desenhos recusados pelas editoras sessenta e nove vezes (é verdade, só à septuagésima tentativa é que uma editora disse "sim"), teve sucesso imediato e tornou-se na autora de livros infantis mais vendida de sempre! (moral: se acreditam no vosso valor e no vosso sonho, não desistam). Depois de um enorme desgosto amoroso, com a morte do seu noivo e editor, em 1905, usando parte dos primeiros royalties que obteve com a venda dos seus livros, comprou a propriedade Hill Top, no Lake District. A vida campestre tinha muito mais a ver consigo do que a vida social, na cidade; por isso Beatrix tentou ultrapassar o seu desgosto e saiu, enfim, da casa de seus pais, apesar de ainda solteira, mudando-se definitivamente para Hill Top, na Escócia (e que pode ser visitada como casa-museu). Ao longo dos anos, foi comprando em leilão e mantendo as quintas adjacentes, para que estas fossem preservadas e cultivadas, ao invés de aparceladas e vendidas para construção.
No final da sua vida, Beatrix Potter deixou à National Trust 4 mil acres de terras e 15 propriedades, com paisagens e lagos belíssimos, e uma flora e fauna que fizeram parte de muitas das suas histórias.
Em 2006 a sua vida foi adaptada ao cinema, com o filme «O mundo encantado de Beatrix Potter» («Miss Potter»).
Esta grande mulher esteve-se nas tintas para as convenções da sua época e fez muito pela conservação da paisagem, da agricultura e dos trabalhadores que cultivavam as terras da região. Foi também cientista e dedicou-se, nomeadamente, ao estudo dos fungos (ex: cogumelos), se bem que seja célebre pelas suas ilustrações. Aqui ficam algumas que, na época, foram verdadeiramente revolucionárias. Animais da quinta com roupinhas :-) e desenhados com todo o rigor científico.
No final da sua vida, Beatrix Potter deixou à National Trust 4 mil acres de terras e 15 propriedades, com paisagens e lagos belíssimos, e uma flora e fauna que fizeram parte de muitas das suas histórias.
Em 2006 a sua vida foi adaptada ao cinema, com o filme «O mundo encantado de Beatrix Potter» («Miss Potter»).
Esta grande mulher esteve-se nas tintas para as convenções da sua época e fez muito pela conservação da paisagem, da agricultura e dos trabalhadores que cultivavam as terras da região. Foi também cientista e dedicou-se, nomeadamente, ao estudo dos fungos (ex: cogumelos), se bem que seja célebre pelas suas ilustrações. Aqui ficam algumas que, na época, foram verdadeiramente revolucionárias. Animais da quinta com roupinhas :-) e desenhados com todo o rigor científico.
segunda-feira, 12 de outubro de 2015
Tardes em naftalina
De Raquel Serejo Martins
My Old Home, © Ana Cristina Dias |
«O calor insuportável, o acordar antes do despertador, a noite feita de um sono solto, intermitente, o sol já inflamado, o céu vazio de nuvens, de pássaros, o vidro da janela morno, quase quente, os pés descalços pelo chão do quarto, pelo mosaico da casa-de-banho, o seu rosto no espelho, os olhos lembram berlindes.
Oferece-se um sorriso, o sorriso matinal possível, breve e azul, o cabelo despenteado lembra-lhe sempre as mesmas palavras da mãe, passa um pente por esse cabelo.
Precisa de água como um peixe precisa de água, desesperadamente.
O banho da manhã incapaz de arrefecer o corpo, de levar pelo ralo, o calor dos lençóis colado ao calor do corpo.
De olhos fechados, tenta esquecer a noite debaixo do chuveiro, afogar o cansaço.
Esquece o presente e em consequência chega tarde ao trabalho.
Não se esquece da garrafa de água, o calor obriga-a a circular pela cidade sempre com uma garrafa de água, como se a garrafa de água uma garrafa de oxigénio, como se o seu corpo dentro de um fato de mergulho.
A viagem para o trabalho uma epopeia.
Epopeia nenhuma, nem furos nos pneus, nem falhas nos travões, igual, igual o caminho, talvez mais rápida.
Na rádio ouve notícias de cidades a norte submersas em água por causa de chuvas diluvianas. O mundo em desequilíbrio perfeito.
Com dificuldade arruma as mãos no volante, os olhos na estrada.
As ruas quase vazias. Os semáforos numa sincronia rubra a obrigar os carros a parar.
Procura e encontra um espaço para estacionar sob a sombra de uma árvore.
Um jacarandá, uma sombra azul e parca.
O asfalto sem a habitual dureza a prender-lhe os saltos dos sapatos, os passos, quase a vontade.
Custa-lhe caminhar. No corpo um peso para lá do peso do corpo. Abraça-se, precisa verificar, o fato de linho, leve, não de borracha.
Custa-lhe respirar. O ar insuportável, irrespirável.
Senta-se à secretária, vinte minutos depois da hora em que era suposto sentar-se à secretária.
A secretária como se um boião de aquário.
Na secretária um pisa-papéis em bronze em forma de peixe.
A manhã passa, sem languidez, análises, pesquisas, contas, quadros, mapas, faxes, telefonemas, uma bica sem açúcar, e-mails, processos, relatórios.
Depois a tarde, as horas rubras da tarde, do calor maior, o silêncio sob a ausência de silêncio, as palavras em voz baixa, melodias vagas de rádios, deslizar de cadeiras, dedos sobre teclas e botões, cabeças a pensar, sem tempo para divagações, apenas conclusões.
Do ponto de vista das lâmpadas presas ao tecto lembram os membros de uma orquestra a afinar os instrumentos, a azáfama da tarde, formigas no lufa-lufa do carreiro, ninguém em sentido contrário, a cidade um formigueiro, indiferente ao papa-formigas.
A tarde, passa como a manhã, sentada à secretária.
Sentou-se pontualmente à secretária.
As horas do dia indistinguíveis.
No escritório uma temperatura de frigorífico garantida por um aparelho de ar condicionado com dez anos de garantia.
A tarde passa entre análises, pesquisas, contas, quadros, mapas, faxes, telefonemas, mais uma bica sem açúcar, e-mails, processos, relatórios.
Até que uma assinatura no fim de uma página, a faz reparar na data, transforma o dia, de abstracto a concreto, um dia de Julho.
Uma tarde de Julho.
Julho quase no fim. Mês de pêssegos e alperces.
E fecha os olhos, cinco segundos, o tempo de um respirar, uma tarde inteira dentro de cinco segundos, imagina-se na casa dos avós, o corredor sem fim, um labirinto em linha recta, dezoito metros de corredor onde tudo podia acontecer, ela a pedalar um triciclo pelo corredor, a alegria dos pés fora do chão, os riscos paralelos de três rodas no soalho.
E no corredor um armário, O armário do corredor, quatro portas, quatro chaves de ferro forjado, a pega em forma de coração, um gigante, como se um mostrengo a atormentar o tormentoso Cabo.
Um armário como se um castelo fechado a quatro chaves, na torre de vigia, num sono vigilante, o gato da casa, a prestar vassalagem unicamente a si próprio, desinteressado do trânsito do corredor.
Demorou a conquistar o armário.
Demorou quatro dias a abrir as quatro portas.
Dentro do armário encontrou roupas da avó, o vestido de casamento, dois vestidos de festa, vestidos de noite, escuros como a noite, talvez para que os corpos se confundam com a noite, vestidos decotados nas costas, polvilhados a lantejoulas, um brilho falso de estrelas.
Não consegue imaginar a avó de lantejoulas.
A avó sempre de avental, branco, alvo, imaculado, se um ramo de rosas brancas e um véu, lembraria uma noiva feliz no cume de um bolo de amêndoa e ovos.
A avó de avental à hora do chá, sempre chá preto com dois gomos de limão, acompanhado com uma cigarrilha que fumava numa elegância plácida.
A avó dizia It’s tea time e com pontualidade britânica preparava o chá.
Nunca percebeu se a avó falava a língua de Virgínia Woolf e de Mrs. Dalloway, ou se sabia apenas frases feitas, palavras soltas.
Há coisas que nunca teve coragem de perguntar.
Lembra-se, sempre que a avó a repreendia, o que acontecia com uma frequência mais do que suficiente e que a insatisfazia bastante, que começava os reproches não pelo seu nome próprio, em riste e completo, Sara Luísa, como sempre faziam os pais, mas com o prefixoyoung lady, que em pequena a reduzia à sua condição de ignorante.
Depois cresceu, ficou maior do que a avó, também começou a fumar, as mesmas cigarrilhas amargas, que quem sai aos seus não é de Genebra.
Lembra-se de um tempo, ridículo e breve, em que se sentiu uma big woman, em que pensou que o tamanho era medida suficiente para descurar as consequências das suas acções e omissões.
Depois cresceu mais, os outros dizem que cresceu, dizem que ficou comedida nos gestos e nas palavras.
Não nos pensamentos.
Nos pensamentos não permite que a incomodem.
Em consequência mente. Mente sem pudor sempre que é preciso. Protege-se.
Empenha-se em cultivar pensamentos esdrúxulos, difíceis de medrar, adubados a palavras de poetas assassinados, regados a água de chuva, gosta de andar à chuva, mesmo em dias de Inverno, a água canalizada de chuveiro, que mais não pode fazer quando não chove, a copos de whiskey, que em simultâneo a preservam de constipações e lhe desafinam o fígado.
Dentro do armário lençóis de linho, cobertores de lã e um cheiro a naftalina misturado com alfazema, sabão azul e sol de Verão, um cheiro, também somos feitos de cheiros, que desde então procura, sem nunca encontrar, sempre que abre a porta de um qualquer armário.
Dentro do armário o seu corpo.
Dentro do armário um barulho de búzios.
Dentro do armário uma gaivota e uma cegonha, o ninho da cegonha, a torre da igreja onde a cegonha fez o ninho, a igreja, os sinos a tocar, uma procissão, uma banda e um maestro com pinta de pirata disfarçado de almirante.
Dentro do armário um piano de cauda, dois pinguins, um tigre, uma girafa azul, um índio e dois cowboys, dois pares de patins, uma princesa, sete anões, um lobo mau, três peixes-voadores, um bando de andorinhas, um espantalho, um balão de ar, uma baleia, uma fada madrinha, um submarino, uma costureira perita, um polícia sinaleiro, um carro de bombeiros, um pião, uma amiga imaginária com um vestido vermelho igual ao seu, a quem contava todos segredos, que não gostava de sopa, agora gosta, de dormir sesta, que sabia escrever o seu nome com todas as letras, contar até 38, que já perdeu quatro dentes, quase uma mão cheia de dentes. Cuidado que morde!
Dentro do armário corridas em patins, as duas de mãos dadas, impossível cair, magoar os joelhos, partir o nariz.
Dentro do armário podiam apanhar um avião para Paris.
Viste a Sara?
Onde é que está a Sara?
Escondia-se do mundo.
Escondia-se pelo gosto simples de se esconder, de desaparecer.
Um dia abriram uma porta, abriram todas as portas, uma a uma à vez.
O seu corpo sem respirar dentro do armário, o seu corpo a girar como a chave girava na fechadura da porta. O seu coração no peito entre o tamanho de um botão e de uma baleia.
Dentro do armário não está!
Divertia-se com a preocupação das vozes, dos passos em volta à sua procura.
Mas onde é que se enfiou a Sara?
No buraco de uma agulha!
Sara!
Sara!
E não sabe dizer quantas vezes deu por si, em casa de estranhos, uma vez num museu, um castelo mobilado a preceito, a enfiar sorrateiramente o nariz porta dentro de armários com mesmo um aspecto suspeito, mas vestidos de noiva, nem lençóis de linho, nem cobertores de lã.
O vigilante com o dedo indicador a tocar-lhe no ombro, uma insistência de campainha de prédio de dezoito andares, um labirinto em linha recta onde tudo podia acontecer.
Ela a desfazer-se num sorriso sinónimo de pedido de desculpa pelo seu comportamento atrevido, ela de olhos no chão, nos atacadores dos sapatos, à espera de uma repreensão que invariavelmente começaria com as palavras young lady… enquanto reprime a vontade de o interromper com a pergunta: Desculpe, por ventura sabe onde é que está a Sara?»
(Roubei aqui)
quarta-feira, 3 de junho de 2015
João Aguiar
Faz hoje cinco anos que perdemos o jornalista e escritor João Aguiar, que anda tão esquecido. O seu nome está normalmente associado ao romance histórico "A voz dos deuses" (que já vai em quase 30 edições), cujo protagonista é Viriato, o bravo lusitano. Acontece que, além dessa obra, escreveu muitas outras. Do que li, as minhas preferências vão para "O Navegador Solitário" e "Diálogo das Compensadas". Prolífico, dono de um excelente sentido de humor, de imaginação, domínio da palava escrita e rigor histórico, foi também autor de uma considerável obra dedicada aos leitores mais jovens, sendo a colecção mais conhecida O Bando dos Quatro.
Tive o privilégio de me corresponder com ele nos últimos anos da sua vida. João Aguiar foi de uma extrema simpatia: inclusive, enviou-me, com dedicatória, dois livros seus, "O Priorado do Cifrão", sátira escrita no âmbito da febre originada pelo famoso bestseller de Dan Brown, e "O Tigre Sentado", que quase não teve distribuição em Portugal mas em Macau. O autor d' "Os Comedores de Pérolas" morreu demasiado cedo, aos 67 anos, e foi impedido de nos presentear com outros livros que não foi a tempo de escrever.
E por falar nisso, já é tempo de reeditarem alguns dos seus livros, não? A 9ª edição do Navegador Solitário está esgotada e é, sem dúvida, um dos melhores que escreveu. Os Comedores de Pérolas foi reeditado em 2013, com uma capa bem mais apelativa do que as anteriores. Deixou, para todas as idades, dos 10 aos 100, 33 livros. É obra. Não o esqueçamos, por favor.
Dedico este post ao Nanã.
Tive o privilégio de me corresponder com ele nos últimos anos da sua vida. João Aguiar foi de uma extrema simpatia: inclusive, enviou-me, com dedicatória, dois livros seus, "O Priorado do Cifrão", sátira escrita no âmbito da febre originada pelo famoso bestseller de Dan Brown, e "O Tigre Sentado", que quase não teve distribuição em Portugal mas em Macau. O autor d' "Os Comedores de Pérolas" morreu demasiado cedo, aos 67 anos, e foi impedido de nos presentear com outros livros que não foi a tempo de escrever.
E por falar nisso, já é tempo de reeditarem alguns dos seus livros, não? A 9ª edição do Navegador Solitário está esgotada e é, sem dúvida, um dos melhores que escreveu. Os Comedores de Pérolas foi reeditado em 2013, com uma capa bem mais apelativa do que as anteriores. Deixou, para todas as idades, dos 10 aos 100, 33 livros. É obra. Não o esqueçamos, por favor.
Dedico este post ao Nanã.
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