Venho tentar reanimar-te - apenas tentar, como quem me obriga. Dar-te sangue novo, se é que ainda me correm palavras nas veias. Nada sinto na minha pena. Nem sequer um lamento, nem tampouco a faísca de uma invenção. A escrita ficou para os outros. Resta a sensação de me ter transformado nalguma coisa técnica. Clínica. Sou cirurgiã de frases. A inspiração e o dom do faz-de-conta andam anestesiados, perderam o sentido, sofreram um desmaio geral, talvez vitalício. Poderia jurar que jamais escreverei um livro. Um texto, sequer, que me pertença. Nada vejo no meu futuro, que me sirva de coração, ainda que transplantado. Ainda que artificial. Sim, ando sem consciência. Ou talvez o inverso, inteiramente sem inconsciência. Sou máquina munida de braços compostos de uma qualquer fibra, capaz de executar recortes e esbater cicatrizes que não são as minhas. E enquanto me vou solidificando numa cura modesta do que me é estranho, sou um paciente com uma grave doença, a pior de todas, sem cura: a falta de alento - ou talento - para se curar do que talvez nem seja doença, apenas juízo. A minha pena permanece adormecida? Pois que durma, mesmo um sono eterno. Sem pena minha.