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Língua panará

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Panará
Falado(a) em: Mato Grosso e sul do Pará
Total de falantes: 380
Família: Tronco Macro-Jê
 Família Jê
  Subfamília Jê Setentrional
   Panará
Códigos de língua
ISO 639-1: --
ISO 639-2: --
ISO 639-3: kre
Mapa Terra Indígena Panará, ISA

O Panará (kre = código ISO 639-3 correspondente),[1] também denominado Krenhakarore, Krenakore, Krenakarore e Kreen-akarore,[2][3] é uma língua indígena do Brasil atualmente falada nos estados do Mato Grosso e sul do Pará, mais precisamente na Terra Indígena Panará (Guarantã do Norte em MT e Altamira PA), que se encontra nos entornos do Rio Peixoto de Azevedo e nascente do Rio Iriri.[4][5]

Atualmente, a língua possui 380 falantes de uma população étnica de 540.[1] Segundo esses números, o Panará se encontra em situação vulnerável, ou seja, a maioria das crianças fala a língua, porém isso pode estar restrito a determinados ambientes.[3] De acordo com outra escala, a Escala de Ameaça Aglomerada (Agglomerated Endangerment Scale - AES), ela está na categoria de mutação (shifting), que é quando a geração em idade fértil possui conhecimento suficiente na língua para usar entre si, mas não transmite às suas crianças.[5][6][7] É devido a isso que oficinas e estudos vêm sendo feitos com professores locais para padronizar a gramática da língua e impedi-la de cair em desuso.

Crianças Panará brincando

O nome ‘Panará’, auto-denominação da própria comunidade, significa ‘gente’ nessa língua - algo provavelmente derivado das palavras 'panariá' (indígena) e 'puará' (homem).[4][8] Suas outras nomenclaturas comuns derivam de atribuições dos Kayapó ao povo Panará, que significam “cabeça cortada redonda”.[8] Isso se relaciona ao modelo tradicional de corte de cabelo deles, o qual é um elemento fenotípico de extremo valor na cultura dos Panará. Seu corte se associa a um determinado status social.

Classificação

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A língua pertence ao tronco linguístico Macro-Jê, um dos principais troncos das línguas indígenas brasileiras. Pertence ainda à família Jê e subfamília Jê Setentrional[2] junto com línguas como Apinayé, Kayapó, Suyá e as línguas Timbira.[5][9][10]

Diagrama representativo da classificação da língua Panará

Há muitos indícios de que a língua surgiu como uma variante do Kayapó do Sul, observados majoritariamente na ortografia e fonética semelhantes.[8]

Kayapó vs. Panará[8]
Português Kayapó Panará
boca çakuá sakwa
braço ipá hì’pá
cabelo kin hì’kì
canela ité itá
caolho intónó intono
cotovelo pakuçú pakusú
dente suá sua
língua çuntót sutóti
mão cykiá sikya
nariz çâkré sakre
nuca impút imputi
olhos intó into

O Panará possui um extenso inventário fonético no qual predominam vogais em relação às consoantes.[10][11][12]

As consoantes do Panará são muito semelhantes às do português, com exceção dos fonemas padronizados /ɲ/ e / e dos fonemas de mais de um ponto de articulação. É importante notar também que, no Panará, quando consoantes nasais precedem uma vogal oral, ou uma consoante aproximante, elas são pós-oralizadas e desvozeadas. Além disso, a fricativa glotal [</>h] não é considerada mais fonêmica, sendo distribuída na ortografia de acordo com a prosódia.

Consoantes com um ponto de articulação (em IPA)
Bilabial Labiovelar Alveolar Palatal Velar
Oclusiva p t k
Nasal m n ɲ ŋ
Vibrante r
Fricativa s
Aproximante w j

[nota 1]

Consoantes com mais de um ponto de articulação
Bilabial Alveolar Velar
Geminada oclusiva p͡p t͡t k͡k
Geminada nasal m͡m n͡n
Geminada fricativa s͡s

Nessa língua, as vogais podem ser divididas entre orais e nasais, curtas e longas. A nasalidade, de modo igual ao da língua portuguesa, é indicada pelo sinal diacrítico da tilde (ou til). Já a distinção entre curtas e longas ocorre pelo suprassegmento longo [ː], indicado por dois pontos triangulares.

As vogais /oː, ɔː, õː, eː, ẽː/ são foneticamente compreendidas com ditongação, respectivamente como [ow, ɔw, õw̃, ej, ẽj̃ ]. Exemplo: /poː/ [pow] (chegar)

Ademais, na língua ocorre também a redução de vogais abertas: a vogal /a/ pode ser reduzida a [ɐ] ou [ə] em sílabas átonas.

Vogais (curtas e longas) do Panará
oral nasal
Anterior Central Posterior Anterior Central Posterior
Fechada arredondada u , uː ũ , ũː
não-arredondada i , iː ɯ , ɯː ĩ , ĩː ɯ̃ , ɯ̃ː
Semifechada arredondada o , oː õ , õː
não-arredondada e , eː ẽ , ẽː
Média - ə , əː ə̃ , ə̃ː
Semiaberta arredondada ɔ , ɔː
não-arredondada ɛ , ɛː
Aberta não-arredondada a , aː

A epêntese está presente em muitas palavras que iniciam ou terminam com [i] no Panará. O [i] final epentético só ocorre em palavras com codas oclusivas → /tɛp/ → [ˈtɛːpi] ‘peixe’. Já o [i] inicial epentético pode ser obrigatório, opcional ou antigramatical em dependência da raiz da palavra. A tabela a seguir indica o uso deste, em que [T] se refere a uma consoante oclusiva, [CC] se refere a uma consoante geminada e [NT] a uma consoante nasal em caso de pós-oralização, como [m͡p, n͡t, n͡s, ŋ͡k]:[12]

Tabela de epêntese de Lapierre
[i] inicial em Raíz com inicial [T] Raíz com inicial [CC] Raíz com inicial [NT]
monossílaba opcional obrigatório obrigatório
polissílaba antigramatical opcional opcional
Exemplos para cada instância gramatical:
Monossílaba [T] /tu/ → [tu ~ iˈtu] ‘barriga’
Monossílaba [CC] /kkjɯt/ → [ikˈkjɯːti] ‘anta’
Polissílaba [CC] /ppẽkə/ → [pẽˈkə ~ ippẽˈkə] ‘roupas’
Monossílaba [NT] /ŋo/ → [iŋˈko] ‘água’
Polissílaba [NT] /nɔpə̃ː/ → [tɔˈpə̃ː ~ intɔˈpə̃ː] ‘pequeno buraco’

[nota 2]

A ortografia para o Panará tem sido desenvolvida nos últimos 20 anos pela própria comunidade - em especial pelos Panará formados como professores que trabalham nas escolas locais - com o auxílio de workshops de alfabetização propostos tanto por organizações não-governamentais quanto pelo governo brasileiro.[10] Eles utilizam o alfabeto latino, porém as letras b, c, d, f, g, l, q, v, x e z não são empregadas. A letra y é considerada uma vogal, e possui pronúncia diferente da consoante y no português.

Uma outra distinção significativa entre a língua portuguesa e o Panará é que os fonemas nasais no último são grafados com o sinal diacrítico tilde, e não possuem a alternativa de serem seguidos por consoantes nasais. Exemplo: [ĩ] que é grafado como ‘ĩ’ no Panará, mas é representada por ‘im’ ou ‘in’ no português.

O tamanho das vogais é fonêmico, assim como sua nasalização, e é representado pelo dígrafo da vogal. Quanto às consoantes, a pós-oralização nasal é representada por um dígrafo, nasais codais são representadas por n, e geminadas - antes representadas por uma pausa glotal - são agora representadas por um dígrafo. Por último, nas combinações fonéticas [m͡p, n͡t, n͡s, ŋ͡k], as consoantes nasais são representadas pela letra n.[11]

Ortografia das vogais
[i] = i [ɯ] = y [u] = u [ĩ] = ĩ [ɯ̃] = ỹ [ũ] = ũ
[iː] = ii [ɯː] = yy [uː] = uu [ĩː] = ĩĩ [ɯ̃ː] = ỹỹ [ũː] = ũũ
[e] = ê [ə] = â [o] = ô [ẽ] = ẽ [ə̃] = ã [õ] = õ
[eː] = êê [əː] = ââ [oː] = ôô [ẽː] = ẽẽ [ə̃ː] = ãã [õː] = õõ
[ɛ] = e [a] = a [ɔ] = o
[ɛː] = ee [aː] = aa [ɔː] = oo
Ortografia das consoantes
[p] = p [t] = t [s] = s [k] = k
[pp] = pp [tt] = tt [ss~ts] = ss [kk] = kk
[m] = m [n] = n [ɲ] = n [ŋ] = n
[w] = w [r] = r [j] = j

Morfossintaxe

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Pronomes pessoais

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No Panará, os pronomes pessoais podem ser divididos entre pronomes pessoais livres e pronomes pessoais clíticos. Os pronomes pessoais livres apresentam uma base única para o singular, à qual se agregam sufixos para formar o dual, o plural e o paucal (este apenas na terceira pessoa).[10]

O panará é uma língua dativa e instrumental-comitativa, ou seja, também difere casos de quem se beneficia/ prejudica com a ação e o instrumento ou companhia de quem executou a ação. Enquanto ações direcionadas no português são dadas por verbos pronominais, sem distinção de casos, e a partícula ‘com’ no português indica tanto instrumento como companhia, nessa língua o pronome já indica cada situação.

Exemplo de benefactivo:

kamerã ø -kari -ra -kyẽ -sõ -ri kan ĩkieti ĩkyẽ
vocês.ERG REAL.TR 2PL.ERG 3SG.PL 1.DAT dar PERF cesta.ABS muita eu BEN
‘vocês me deram muitas cestas’

‘eu’, no caso, é benefactivo pois se beneficia com a ação. No português, é representado por ‘me’ para indicar direcionamento da ação, para quem foi feita, sem nenhum juízo de valor, pois não é uma língua dativa.

Os pronomes se diferem então no caso *absolutivo-ergativo, dativo (benefactivo-malefactivo; quem se beneficia/prejudica com a ação) e instrumental-comitativo (instrumental se refere a instrumento ou meio pelo qual o sujeito realiza a ação, comitativo se refere à companhia com a qual o sujeito exerceu a ação). Com exceção do caso absolutivo, que é não-marcado, os outros casos são seguidos de posposições,[13] as quais indicam sua função. Pronomes livres não podem ocupar a posição de objeto indireto locativo.

Tabela pronominal livre
Número Pessoa ABS PTB ERG PTB BEN MAL ICOM COM ABS/ERG
Singular 1a ĩkyẽ Me ĩkyẽ hẽ Eu ĩkyẽ mã ĩkyẽ pe ĩkyẽ how ĩkyẽ kõ -
2a ka Te ka hẽ Tu ka mã ka pe ka how ka kõ -
3a mara Se mara hẽ Ele mara mã mara pe mara how mara kõ -
Plural 1a ĩkyẽmera Nos ĩkyẽmerã** Nós ĩkyẽmerã ĩkyẽmera pe ĩkyẽmera how ĩkyẽmera kõ mĩ, pa***
2a kamera Vos kamerã Vós kamerã kamera pe kamera how kamera kõ -
3a maramera Se maramerã Eles maramerã maramera pe maramera how maramera kõ -
Dual 1a ĩkyẽra - ĩkyẽrã - ĩkyẽrã ĩkyẽra pe ĩkyẽra how ĩkyẽra kõ -
2a kara - karã - karã kara pe kara how kara kõ -
3a marara - mararã - mararã marara pe marara how marara kõ -
Paucal 3a marapyyra - marapyyrã - marapyyrã marapyyra pe marapyyra how marapyyra kõ -

[nota 3]

No alinhamento absolutivo-ergativo, o sujeito da intransitiva declina da mesma forma que o objeto direto (absolutivo) e o sujeito da transitiva declina sozinho (ergativo). Como esse alinhamento difere do da língua portuguesa, foi feita uma adaptação da tradução para seguir o padrão.

Nos casos ergativo e benefactivo não-singular há a nasalização da última vogal do pronome ao invés da posposição.

Ambos aparecem com função de sujeito de verbo transitivo ou intransitivo; pa é derivado do homônimo ‘gente’ e pode se referir a ‘ele(s)’, já majoritariamente ocorre como exortativo (estimulante).

Os pronomes clíticos, por sua vez, possuem uma distribuição divergente da dos pronomes livres. Predominantemente, ocorrem de modo individual (sem a presença de nomes ou pronomes livres), como argumento do verbo; todavia, podem também co-ocorrer com os pronomes livres, com função anafórica. É argumentado que possam ser tratados como clíticos de co-referência aos argumentos nucleares (sujeito, objeto direto e objeto indireto), pois possuem um comportamento muitas vezes ambíguo como argumento pronominal vs. marcador de concordância.[10]

Existem quatro formas de clíticos pronominais, que ocorrem sempre à esquerda da raiz do verbo, podendo ser co-referentes nos seguintes casos:

  1. Absolutivo, para o sujeito da intransitiva no modo realis, o objeto direto da transitiva, o benefactivo, o malefactivo, o instrumental-comitativo, o comitativo e o inessivo;
  2. Ergativo, para o sujeito da transitiva no modo realis;
  3. Nominativo, para sujeito de verbo transitivo e intransitivo no modo irrealis;
  4. Dativo, como alternativa, para o benefactivo e comitativo.
Tabela pronominal clítica
Número Pessoa Absolutivo Nominativo Ergativo Dativo
Singular 1a ra ri ~ re kyẽ
2a a ~ ha ti(a) ka
3a ti ti
Plural e paucal 1a ra, pa, mĩ timĩ ne ~ re kyẽ
2a ri(a) tiri(a) kari(a)
3a ra ne ~ re
Dual 1a ramẽ mẽ rimẽ ~ reme mẽ
2a amẽ timẽ kamẽ kamẽ
3a mẽ timẽ timẽ mẽ

Flexão de número

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Nomes que se referem a coisas animadas no Panará admitem flexão de número dual, plural e paucal (indica um grupo pequeno, de 3 a 10 componentes). Coisas inanimadas geralmente são seguidas de numerais. Enquanto o singular é não-marcado, a flexão das demais formas se manifesta nos pronomes independentes e nos proclíticos e prefixos juntos ao verbo.

Exemplo de prefixo verbal:

kamerã ø -kari -ra -kyẽ -sõ -ri kan ĩkieti ĩkyẽ
vocês.ERG REAL.TR 2PL.ERG 3SG.PL 1.DAT dar PERF cesta.ABS muita eu BEN
‘vocês me deram muitas cestas’

Os sufixos obrigatórios aos pronomes livres de número dual -ra ou -na, de número plural -mɛra ou -mera, são opcionais nos nomes. O paucal -pyyra só se anexa aos pronomes livres ou demonstrativos.

Exemplos:

Ioti hẽ ø -ti -ku -ri soti -mera
Sucuri ERG REAL.TR 3SG.ERG comer PERF bicho PL.ABS
‘a sucuri come bichos’
mara -rã ĩpy -rã -ri ĩkua
ele DU.ERG homem DU.ERG cortar PERF buriti.ABS
‘aqueles dois homens cortaram buriti’
pãpã -ra -pan koa rin kiõpe mẽ pâsina mẽ kitakriti mẽ ia -pyyra
todos.ABS REAL.INTR 3SG.ABS viver casa LOC Kiompê e Pâsina e Kitakriti e este PAU
‘Kiompê, Pâsina e Kitakriti, estes vivem na mesma casa.’
[nota 4]

Relação de posse

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As relações de posse no Panará estabelecem uma distinção de forma e sentido entre a posse alienável, ou seja, quando o item possuído se liga ao possuidor de maneira efêmera, e posse inalienável, que é quando o item possuído se liga ao possuidor de forma necessária. Para além dessa distinção, distingue-se também a posse inerente da não-inerente para os nomes. Tal relação pode ser expressa de três formas: por meio de nomes, por justaposição e por orações possessivas. Na língua, nem todos os nomes podem ser gramaticalmente possuídos - de exemplo, nomes próprios e elementos da natureza (terra, rios, cachoeira, céu, etc.).[10][14]

Sintagmas nominais possessivos
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Nos sintagmas nominais possessivos indicativos de posse inalienável, os nomes que se referem ao possuidor e ao possuído se encontram justapostos, com núcleo (possuído) à direita.[15] Casos de parte em relação a um todo incluem-se aqui:

kukre nãpe
casa parede
‘a parede da casa.’

Quando se trata de posse alienável, a posse é expressa por meio de nomes cujo sentido remete à função de indicar propriedade.

a) O nome , precedido pelos sufixos relacionais s- e y- que marcam, respectivamente, não-contiguidade (RNC) e contiguidade (RC) com o nome referente ao possuidor. ocorre sempre à direita imediata do possuidor; sõ ocorre como aposto, precedendo o possuído na função de complemento ou adjunto adverbial:

teseya y-õ puu
Teseya RC-posse roça
‘a roça de Teseya’
maira hẽ -ti -s -ãpũ s-õ koa
Maíra ERG REAL.TR 3SG.ERG 3SG.ABS ver RNC-posse casa.ABS
‘Maíra conhece sua própria casa.’

também pode ser seguido por sakiama, que denota 'próprio, mesmo’, um nominal resumptivo do possuidor.

b) O nome é, da mesma maneira, marcado pelos prefixos relacionais s- e y-. A forma ocorre apenas entre o possuído e o possuidor, já a forma ocorre nos mesmos contextos que , com exceção da co-ocorrência com pronome resumptivo sakiama.

uãhã ĩkyẽmera y-ĩ koa
1PL.ABS RC-posse casa ALA
‘lá para a nossa casa’

c) O nome kia é usado principalmente, mesmo que não exclusivamente, para denotar a posse de bens conhecidos e/ou adquiridos a partir do contato com o homem “branco”. Ele ocorre imediatamente à direita do possuidor.

pia ĩkyẽmera kia sase
Esta 1PL.ABS posse rede
‘Esta é nossa rede.’
Predicados possessivos
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As mesmas formas de sintagmas nominais que se referem à posse inalienável podem ser interpretadas como predicados[15]:

kiõpe rãpiâ
Kiompê mãe
‘Kiompê tem mãe.’

No entanto, nomes de elementos possuídos que admitem prefixos relacionais, quando apresentam o prefixo s-, admitem de modo único a interpretação predicativa. Nessa situação, o sintagma nominal que se refere ao possuído forma o núcleo do predicado, em que o sintagma nominal referente ao possuidor é o sujeito.

ĩkyẽ s-asĩ
Eu RNC-nariz
‘Eu tenho nariz.’

Nas construções de posse alienável, quando o nominal de posse  é marcado pelo relacional s- a interpretação é unicamente predicativa também. Nesse caso, que constitui o núcleo do predicado, seguido pelo possuído, em que o possuidor é o sujeito

Posse inerente
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Este caso de distinção se dá entre nomes que se referem a bens obrigatoriamente possuídos e não-obrigatoriamente possuídos. Os nomes referentes a bens inerentes são marcados pelos prefixos s-, ĩ- e , os quais fazem referência a um possuidor, e os não-inerentes são não-marcados.[15]

s-õpã
‘o pai dele’
ĩtõ
‘o irmão dele’
∅-ĩpa
‘o fígado dele’

Tempo, aspecto, modo e evidencialidade

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O verbo é, segundo a tese de Dourado (2001),[10] “o constituinte mais complexo da gramática da língua Panará, com características polissintéticas”. O tempo, aspecto, modo e evidencialidade verbal na língua são percebidos pelo uso de partículas distintas entre si: o modo é marcado por clíticos na primeira posição à esquerda do verbo (exceto o imperativo, que apresenta duas partículas descontínuas), o aspecto é evidenciado pela forma verbal, o tempo é codificado por advérbios indicadores de temporalidade, e a evidencialidade é definida por partículas evidenciativas.[11]

O modo no Panará, orientado para o falante, demonstra em que grau este deseja assegurar ou não a verdade do que propõe. Tenta distinguir, basicamente, o que é fato ou não-fato. Existem, assim, três modos: realis, irrealis, e imperativo. O modo realis, que distingue eventos como ocorrendo no mundo real e é associado aos tempos verbais equivalentes ao presente habitual, ao presente progressivo e ao passado, é marcado pelo clítico ( [ɯə], na denominação fonética atual, ou [yɨ], na denominação antiga) para verbos intransitivos e não-marcado para verbos transitivos. Já o modo irrealis, que distingue eventos como não ocorrendo no mundo real e é associado ao tempo futuro, é marcado por ka (tanto para verbos transitivos como intransitivos). O imperativo constitui exceção dos demais, pois sua função não é oferecer um grau de asserção. Quando se trata nesse de um verbo intransitivo, este pode ser não marcado ou marcado por duas partículas descontínuas, uma antes e outra depois do verbo: kua...hã para denotar o imperativo afirmativo, ha...sã para o imperativo negativo. Quando se fala em um verbo transitivo, o imperativo é marcado pelo clítico referente ao modo irrealis no lugar de kua e ha.

Verbos/modos Realis Irrealis Imperativo + Imperativo -
Transitivos ka ka...hã ka...sã
Intransitivos ka ∅ ou kua...hã ∅ ou ha...sã

Em Panará existe uma classe de verbos que ocorrem ora com uma forma breve, ora com uma forma longa (sem ou com uma sílaba final). Essa oposição, conforme é observado na vasta maioria dos dados, denuncia o aspecto verbal, de maneira que a forma longa se refere ao aspecto perfectivo, no qual a ação é vista por inteiro ou como concluída,  e a forma breve se refere ao aspecto imperfectivo, no qual a ação é vista parcialmente ou como algo em andamento, não concluído. Nessa classe, a forma longa do verbo, os sufixos -ri ~ -ni ~ -ti, ou a reduplicação da última sílaba, marcam o aspecto perfectivo, e na forma breve, o morfema zero marca o aspecto imperfectivo. De modo geral, o passado e o presente habitual são predominantemente definidos pelo aspecto perfectivo, enquanto o imperfectivo define principalmente o futuro, o presente progressivo e os verbos em orações interrogativas.

O tempo é marcado por três níveis básicos de advérbios que indicam relação temporal: ian ‘passado, ontem’, kowmã ‘presente, hoje, agora’ e pykowmã ‘futuro, amanhã’. Há outros além destes, porém são menos comuns.

Quanto à evidencialidade, existem, no Panará, ao menos cinco formas livres indicativas desta, que se referem à atitude do falante com relação à veracidade da informação contida na oração. São de três tipos diferentes: (1) três formas se referem ao não-comprometimento do falante com a verdade da afirmação; (2) uma forma aponta para a fidelidade da informação em relação à sua fonte; (3) e uma outra forma indica que a informação foi frustrada.

(1) Evidenciais ĩnɛ ~ inẽ, kypy e tapia, traduzidos livremente como ‘talvez, parecer, achar’.  ĩnɛ ~ inẽ - sempre no início da oração; ocorrências: sozinho, só com kypy, só com tapia ou com ambos. kypy - ocupa a posição entre o sujeito e o verbo da oração; ocorrências: com inẽ, ou simultaneamente com este e tapia. Tapia - posicionado depois do verbo; ocorrências: não ocorre apenas com kypy.

inẽ adriana ka -ti -po tapia pykowmã
EVD Adriana IRR 3SG.NOM chegar EVD amanhã
‘parece que Adriana vai chegar amanhã.’

(2) Evidencial tiãni ~ tiãri, que se trata do evidencial reportivo (informação do discurso será reproduzida exatamente como foi contada). Ocorre sempre após o último verbo da sentença e é muito encontrado no início de narrativas para atrair a atenção do ouvinte, por mostrar que o que se vai narrar merece ser contado.

-ti -ĩpa -sã -ri tiãni ĩpe amã
REAL.TR 3SG.ERG fígado doer PERF EVD INTSF LOC
‘ela estava com muita dor no fígado.’

(3) Evidencial akua ~ rãkua, que ocorre também em posição pós-verbal, indica frustração ou contrariedade à expectativa contida na proposição.

prete hẽ -ne -se -sũũ rãkua
Jaburu ERG REAL.TR 3PL.ERG AUX dizer EVD
‘os jaburus negaram (que haviam roubado o fogo do urubu).’

Ordem da frase e alinhamento

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A ordem frasal, ou ordem dos constituintes, na língua Panará é predominantemente (cerca de 90% dos dados obtidos sobre orações simples independentes e neutras) SVO (sujeito-verbo-objeto), contra 10% dos dados na ordem SOV (sujeito-objeto-verbo) para orações com verbo transitivo. Para orações com verbos intransitivos, predominam (75% dos dados) orações na ordem SV, contra 25% na ordem VS.

Quanto ao alinhamento, o modo em Panará se relaciona ao sistema de caso no que diz respeito à  marcação de pessoa no verbo. Utiliza o sistema ergativo/absolutivo na organização das relações argumentos/verbo  no modo realis, e o sistema nominativo/acusativo no modo irrealis. Isso ocorre uma vez que dados sugerem haver no Panará uma dissociação entre propriedades de codificação expressa, como marcação de caso, concordância e ordem de constituintes, e propriedades de comportamento e controle das relações gramaticais - as primeiras seguem o padrão ergativo-absolutivo, enquanto as últimas seguem o padrão nominativo-acusativo. Por causa disso, morfologicamente se diz que a língua possui um alinhamento ergativo-absolutivo superficial (ou ergatividade superficial), predominando sintaticamente o nominativo-acusativo.[10][16]

Frases comparativas

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O Panará expressa comparação através de construções sintaticamente distintas: a justaposição de orações (com ou sem o apagamento do verbo da segunda oração) ou de sintagmas nominais, que é a mais usual, ou a comparação de um sintagma nominal inicial com um padrão demarcado.[10]

A qualidade comparada pode ser expressa por um adjetivo ou por um predicado intransitivo, cujo núcleo deve ser o próprio adjetivo. Os adjetivos expressam as qualidades dos elementos em questão comparadas quanto à superioridade ou inferioridade. Se a comparação for de igualdade, apenas uma qualidade é expressa e a conjunção associativa (ASS) mẽ ‘também’ vai seguir o segundo elemento da comparação.[10]

Exemplos:

piũtuara ĩkieti -ra -po piãtuara rõpiõ
moças.ABS muitas REAL.INTR 3PL.ABS chegar rapazes poucos
‘chegaram mais moças do que rapazes.’
piũtuara ĩkieti -ra -po piãtuara mẽ
moças.ABS muitas REAL.INTR 3PL.ABS chegar rapazes ASS
‘chegaram tantas moças quanto rapazes.’

As construções comparativas gramaticalizadas, que são as do segundo caso, apresentam o marcador de comparação (MCOM) hotosakre, o qual pode ocorrer depois do adjetivo ou sintagma nominal que expressa o padrão da comparação.

Exemplos:

ĩ-te piâ hotosakre ĩ-pa
RNC-perna grande MCOM RNC-braço
‘a perna é maior do que o braço.’
ia kiãrãpe hotosakre
Este cocar bonito MCOM aquele
‘Este cocar é tão bonito quanto aquele.’

Já o superlativo é expresso por meio de advérbios intensificadores que seguem ou precedem o adjetivo.

Exemplo:

nãpein nãsisi ĩpe
mel doce INTSF
‘o mel é muito doce.’

O sistema de numeração da língua Panará é bem simples: consiste em quatro itens que não são exclusivamente numerais cardinais, e podem funcionar como multiplicativos, determinantes e quantificadores.[10][11]

pyti pyti-ra nõpjõ ~ nõpiõ inkjêti ~  ĩkieti
‘um’, ‘uma vez’ ‘dois’, ‘duas vezes’, ‘uns’ ‘três ou quatro’, ‘alguns’, ‘poucos’ ‘cinco’, ‘mais de quatro’, ‘muitos’

Referências

  1. a b «Panará». Ethnologue (em inglês). Consultado em 25 de abril de 2021 
  2. a b «Glottolog 4.3 - Panará». glottolog.org. Consultado em 25 de abril de 2021 
  3. a b Moseley, Christopher (ed.). 2010. Atlas of the World’s Languages in Danger, 3rd edn. Paris, UNESCO Publishing. Online version: http://www.unesco.org/culture/en/endangeredlanguages/atlas
  4. a b Rocha, Ana Flávia (março de 2003). «A defesa dos direitos socioambientais no Judicário» (PDF). Instituto Socioambiental. Consultado em 25 de abril de 2021 
  5. a b c «Panará - Povos Indígenas no Brasil». pib.socioambiental.org. Consultado em 26 de abril de 2021 
  6. Hammarström, Harald; et al. «Simultaneous Visualization of Language Endangerment and Language Description». University of Hawaii's Press. Language Documentation & Conservation: https://scholarspace.manoa.hawaii.edu/bitstream/10125/24792/1/hammarstrom_et_al.pdf 
  7. «Glottolog 4.3 - GlottoScope». glottolog.org. Consultado em 25 de abril de 2021 
  8. a b c d GIRALDIN, Odair (1997). Cayapó e Panará : Luta e sobrevivência de um povo jê no Brasil central. Campinas: Editora da Unicamp. 184 páginas 
  9. Nikulin, Andrey (2020). «Proto-Macro-Jê: um estudo reconstrutivo». UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA. Biblioteca Digital Curt Nimuendajú: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Anikulin-2020/Nikulin_2020_Proto-Macro-Je.pdf 
  10. a b c d e f g h i j k DOURADO, Luciana Gonçalves. Aspectos morfossintaticos da Lingua Panara (Je). 2001. 240p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP. Disponível em: <<>http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/269111</>>. Acesso em: 25 de abril de 2021.
  11. a b c d Bardagil-Mas, Bernat (20 de setembro de 2018). «Case and agreement in Panará» (PDF). University of Groningen. Consultado em 18 de abril de 2021 
  12. a b Lapierre, Myriam. «Word-initial [i] epenthesis in Panãra» (em inglês). Consultado em 25 de abril de 2021 
  13. Dourado, Luciana. «Construções Aplicativas em Panará». PUC-SP. DELTA 
  14. Dourado, Luciana Gonçalves. 2002. “A expressão de posse em Panará.” In Línguas Indígenas Brasileiras: Fonologia, Gramática e História, Atas Do I Encontro Internacional Do Grupo de Trabalho Sobre Línguas Indígenas Da ANPOLL, editado por Ana Suelly Arruda Câmara Cabral and Aryon Dall’Igna Rodrigues, 1:98–103. Belém: EDUFPA.
  15. a b c Seki, Lucy. «Classificadores de nomes em Panará». Editora da Unicamp. Línguística Indígena e Educação na América Latina: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Adourado-1993-classificadores/Dourado_1993_ClassificadoresNomesPanara.pdf 
  16. Dourado, Luciana. «Ergatividade em Panará» (PDF). LALI-LIV-UnB. Consultado em 25 de abril de 2021 

Notas

  1. Símbolos à direita da célula são vozeados, os à esquerda não são.
  2. Nos casos opcionais, estão indicadas ambas as formas.
  3. Legenda: ABS é absolutivo; ERG é ergativo; BEN é benefactivo; MAL é malefactivo; ICOM é instrumental-comitativo; COM é comitativo; PTB é tradução para o português brasileiro
  4. Legenda: REAL é modo realis; IRR é modo irrealis; TR é transitivo; INTR é intransitivo; SG é singular; DU é dual; PL é plural; PAU é paucal; NOM é nominativo; ALA é alativo; LOC é locativo; INTSF é intensificador; PERF é aspecto perfectivo; IMPERF é aspecto imperfectivo