Língua panará
Panará | ||
---|---|---|
Falado(a) em: | Mato Grosso e sul do Pará | |
Total de falantes: | 380 | |
Família: | Tronco Macro-Jê Família Jê Subfamília Jê Setentrional Panará | |
Códigos de língua | ||
ISO 639-1: | --
| |
ISO 639-2: | -- | |
ISO 639-3: | kre
| |
O Panará (kre = código ISO 639-3 correspondente),[1] também denominado Krenhakarore, Krenakore, Krenakarore e Kreen-akarore,[2][3] é uma língua indígena do Brasil atualmente falada nos estados do Mato Grosso e sul do Pará, mais precisamente na Terra Indígena Panará (Guarantã do Norte em MT e Altamira PA), que se encontra nos entornos do Rio Peixoto de Azevedo e nascente do Rio Iriri.[4][5]
Atualmente, a língua possui 380 falantes de uma população étnica de 540.[1] Segundo esses números, o Panará se encontra em situação vulnerável, ou seja, a maioria das crianças fala a língua, porém isso pode estar restrito a determinados ambientes.[3] De acordo com outra escala, a Escala de Ameaça Aglomerada (Agglomerated Endangerment Scale - AES), ela está na categoria de mutação (shifting), que é quando a geração em idade fértil possui conhecimento suficiente na língua para usar entre si, mas não transmite às suas crianças.[5][6][7] É devido a isso que oficinas e estudos vêm sendo feitos com professores locais para padronizar a gramática da língua e impedi-la de cair em desuso.
O nome ‘Panará’, auto-denominação da própria comunidade, significa ‘gente’ nessa língua - algo provavelmente derivado das palavras 'panariá' (indígena) e 'puará' (homem).[4][8] Suas outras nomenclaturas comuns derivam de atribuições dos Kayapó ao povo Panará, que significam “cabeça cortada redonda”.[8] Isso se relaciona ao modelo tradicional de corte de cabelo deles, o qual é um elemento fenotípico de extremo valor na cultura dos Panará. Seu corte se associa a um determinado status social.
Classificação
[editar | editar código-fonte]A língua pertence ao tronco linguístico Macro-Jê, um dos principais troncos das línguas indígenas brasileiras. Pertence ainda à família Jê e subfamília Jê Setentrional[2] junto com línguas como Apinayé, Kayapó, Suyá e as línguas Timbira.[5][9][10]
Há muitos indícios de que a língua surgiu como uma variante do Kayapó do Sul, observados majoritariamente na ortografia e fonética semelhantes.[8]
Português | Kayapó | Panará |
---|---|---|
boca | çakuá | sakwa |
braço | ipá | hì’pá |
cabelo | kin | hì’kì |
canela | ité | itá |
caolho | intónó | intono |
cotovelo | pakuçú | pakusú |
dente | suá | sua |
língua | çuntót | sutóti |
mão | cykiá | sikya |
nariz | çâkré | sakre |
nuca | impút | imputi |
olhos | intó | into |
Fonologia
[editar | editar código-fonte]O Panará possui um extenso inventário fonético no qual predominam vogais em relação às consoantes.[10][11][12]
Consoantes
[editar | editar código-fonte]As consoantes do Panará são muito semelhantes às do português, com exceção dos fonemas padronizados /ɲ/ e /ŋ/ e dos fonemas de mais de um ponto de articulação. É importante notar também que, no Panará, quando consoantes nasais precedem uma vogal oral, ou uma consoante aproximante, elas são pós-oralizadas e desvozeadas. Além disso, a fricativa glotal [</>h] não é considerada mais fonêmica, sendo distribuída na ortografia de acordo com a prosódia.
Bilabial | Labiovelar | Alveolar | Palatal | Velar | |
---|---|---|---|---|---|
Oclusiva | p | t | k | ||
Nasal | m | n | ɲ | ŋ | |
Vibrante | r | ||||
Fricativa | s | ||||
Aproximante | w | j |
Bilabial | Alveolar | Velar | |
---|---|---|---|
Geminada oclusiva | p͡p | t͡t | k͡k |
Geminada nasal | m͡m | n͡n | |
Geminada fricativa | s͡s |
Vogais
[editar | editar código-fonte]Nessa língua, as vogais podem ser divididas entre orais e nasais, curtas e longas. A nasalidade, de modo igual ao da língua portuguesa, é indicada pelo sinal diacrítico da tilde (ou til). Já a distinção entre curtas e longas ocorre pelo suprassegmento longo [ː], indicado por dois pontos triangulares.
As vogais /oː, ɔː, õː, eː, ẽː/ são foneticamente compreendidas com ditongação, respectivamente como [ow, ɔw, õw̃, ej, ẽj̃ ]. Exemplo: /poː/ [pow] (chegar)
Ademais, na língua ocorre também a redução de vogais abertas: a vogal /a/ pode ser reduzida a [ɐ] ou [ə] em sílabas átonas.
oral | nasal | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Anterior | Central | Posterior | Anterior | Central | Posterior | ||
Fechada | arredondada | u , uː | ũ , ũː | ||||
não-arredondada | i , iː | ɯ , ɯː | ĩ , ĩː | ɯ̃ , ɯ̃ː | |||
Semifechada | arredondada | o , oː | õ , õː | ||||
não-arredondada | e , eː | ẽ , ẽː | |||||
Média | - | ə , əː | ə̃ , ə̃ː | ||||
Semiaberta | arredondada | ɔ , ɔː | |||||
não-arredondada | ɛ , ɛː | ||||||
Aberta | não-arredondada | a , aː |
Epêntese
[editar | editar código-fonte]A epêntese está presente em muitas palavras que iniciam ou terminam com [i] no Panará. O [i] final epentético só ocorre em palavras com codas oclusivas → /tɛp/ → [ˈtɛːpi] ‘peixe’. Já o [i] inicial epentético pode ser obrigatório, opcional ou antigramatical em dependência da raiz da palavra. A tabela a seguir indica o uso deste, em que [T] se refere a uma consoante oclusiva, [CC] se refere a uma consoante geminada e [NT] a uma consoante nasal em caso de pós-oralização, como [m͡p, n͡t, n͡s, ŋ͡k]:[12]
[i] inicial em | Raíz com inicial [T] | Raíz com inicial [CC] | Raíz com inicial [NT] |
---|---|---|---|
monossílaba | opcional | obrigatório | obrigatório |
polissílaba | antigramatical | opcional | opcional |
Monossílaba [T] | /tu/ → [tu ~ iˈtu] ‘barriga’ |
Monossílaba [CC] | /kkjɯt/ → [ikˈkjɯːti] ‘anta’ |
Polissílaba [CC] | /ppẽkə/ → [pẽˈkə ~ ippẽˈkə] ‘roupas’ |
Monossílaba [NT] | /ŋo/ → [iŋˈko] ‘água’ |
Polissílaba [NT] | /nɔpə̃ː/ → [tɔˈpə̃ː ~ intɔˈpə̃ː] ‘pequeno buraco’ |
Escrita
[editar | editar código-fonte]A ortografia para o Panará tem sido desenvolvida nos últimos 20 anos pela própria comunidade - em especial pelos Panará formados como professores que trabalham nas escolas locais - com o auxílio de workshops de alfabetização propostos tanto por organizações não-governamentais quanto pelo governo brasileiro.[10] Eles utilizam o alfabeto latino, porém as letras b, c, d, f, g, l, q, v, x e z não são empregadas. A letra y é considerada uma vogal, e possui pronúncia diferente da consoante y no português.
Uma outra distinção significativa entre a língua portuguesa e o Panará é que os fonemas nasais no último são grafados com o sinal diacrítico tilde, e não possuem a alternativa de serem seguidos por consoantes nasais. Exemplo: [ĩ] que é grafado como ‘ĩ’ no Panará, mas é representada por ‘im’ ou ‘in’ no português.
O tamanho das vogais é fonêmico, assim como sua nasalização, e é representado pelo dígrafo da vogal. Quanto às consoantes, a pós-oralização nasal é representada por um dígrafo, nasais codais são representadas por n, e geminadas - antes representadas por uma pausa glotal - são agora representadas por um dígrafo. Por último, nas combinações fonéticas [m͡p, n͡t, n͡s, ŋ͡k], as consoantes nasais são representadas pela letra n.[11]
[i] = i | [ɯ] = y | [u] = u | [ĩ] = ĩ | [ɯ̃] = ỹ | [ũ] = ũ |
[iː] = ii | [ɯː] = yy | [uː] = uu | [ĩː] = ĩĩ | [ɯ̃ː] = ỹỹ | [ũː] = ũũ |
[e] = ê | [ə] = â | [o] = ô | [ẽ] = ẽ | [ə̃] = ã | [õ] = õ |
[eː] = êê | [əː] = ââ | [oː] = ôô | [ẽː] = ẽẽ | [ə̃ː] = ãã | [õː] = õõ |
[ɛ] = e | [a] = a | [ɔ] = o | |||
[ɛː] = ee | [aː] = aa | [ɔː] = oo |
[p] = p | [t] = t | [s] = s | [k] = k |
[pp] = pp | [tt] = tt | [ss~ts] = ss | [kk] = kk |
[m] = m | [n] = n | [ɲ] = n | [ŋ] = n |
[w] = w | [r] = r | [j] = j |
Morfossintaxe
[editar | editar código-fonte]Nomes
[editar | editar código-fonte]Pronomes pessoais
[editar | editar código-fonte]No Panará, os pronomes pessoais podem ser divididos entre pronomes pessoais livres e pronomes pessoais clíticos. Os pronomes pessoais livres apresentam uma base única para o singular, à qual se agregam sufixos para formar o dual, o plural e o paucal (este apenas na terceira pessoa).[10]
O panará é uma língua dativa e instrumental-comitativa, ou seja, também difere casos de quem se beneficia/ prejudica com a ação e o instrumento ou companhia de quem executou a ação. Enquanto ações direcionadas no português são dadas por verbos pronominais, sem distinção de casos, e a partícula ‘com’ no português indica tanto instrumento como companhia, nessa língua o pronome já indica cada situação.
Exemplo de benefactivo:
kamerã ø -kari -ra -kyẽ -sõ -ri kan ĩkieti ĩkyẽ mã vocês.ERG REAL.TR 2PL.ERG 3SG.PL 1.DAT dar PERF cesta.ABS muita eu BEN ‘vocês me deram muitas cestas’
‘eu’, no caso, é benefactivo pois se beneficia com a ação. No português, é representado por ‘me’ para indicar direcionamento da ação, para quem foi feita, sem nenhum juízo de valor, pois não é uma língua dativa.
Os pronomes se diferem então no caso *absolutivo-ergativo, dativo (benefactivo-malefactivo; quem se beneficia/prejudica com a ação) e instrumental-comitativo (instrumental se refere a instrumento ou meio pelo qual o sujeito realiza a ação, comitativo se refere à companhia com a qual o sujeito exerceu a ação). Com exceção do caso absolutivo, que é não-marcado, os outros casos são seguidos de posposições,[13] as quais indicam sua função. Pronomes livres não podem ocupar a posição de objeto indireto locativo.
Número | Pessoa | ABS | PTB | ERG | PTB | BEN | MAL | ICOM | COM | ABS/ERG |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Singular | 1a | ĩkyẽ | Me | ĩkyẽ hẽ | Eu | ĩkyẽ mã | ĩkyẽ pe | ĩkyẽ how | ĩkyẽ kõ | - |
2a | ka | Te | ka hẽ | Tu | ka mã | ka pe | ka how | ka kõ | - | |
3a | mara | Se | mara hẽ | Ele | mara mã | mara pe | mara how | mara kõ | - | |
Plural | 1a | ĩkyẽmera | Nos | ĩkyẽmerã** | Nós | ĩkyẽmerã | ĩkyẽmera pe | ĩkyẽmera how | ĩkyẽmera kõ | mĩ, pa*** |
2a | kamera | Vos | kamerã | Vós | kamerã | kamera pe | kamera how | kamera kõ | - | |
3a | maramera | Se | maramerã | Eles | maramerã | maramera pe | maramera how | maramera kõ | - | |
Dual | 1a | ĩkyẽra | - | ĩkyẽrã | - | ĩkyẽrã | ĩkyẽra pe | ĩkyẽra how | ĩkyẽra kõ | - |
2a | kara | - | karã | - | karã | kara pe | kara how | kara kõ | - | |
3a | marara | - | mararã | - | mararã | marara pe | marara how | marara kõ | - | |
Paucal | 3a | marapyyra | - | marapyyrã | - | marapyyrã | marapyyra pe | marapyyra how | marapyyra kõ | - |
No alinhamento absolutivo-ergativo, o sujeito da intransitiva declina da mesma forma que o objeto direto (absolutivo) e o sujeito da transitiva declina sozinho (ergativo). Como esse alinhamento difere do da língua portuguesa, foi feita uma adaptação da tradução para seguir o padrão.
Nos casos ergativo e benefactivo não-singular há a nasalização da última vogal do pronome ao invés da posposição.
Ambos aparecem com função de sujeito de verbo transitivo ou intransitivo; pa é derivado do homônimo ‘gente’ e pode se referir a ‘ele(s)’, já mĩ majoritariamente ocorre como exortativo (estimulante).
Os pronomes clíticos, por sua vez, possuem uma distribuição divergente da dos pronomes livres. Predominantemente, ocorrem de modo individual (sem a presença de nomes ou pronomes livres), como argumento do verbo; todavia, podem também co-ocorrer com os pronomes livres, com função anafórica. É argumentado que possam ser tratados como clíticos de co-referência aos argumentos nucleares (sujeito, objeto direto e objeto indireto), pois possuem um comportamento muitas vezes ambíguo como argumento pronominal vs. marcador de concordância.[10]
Existem quatro formas de clíticos pronominais, que ocorrem sempre à esquerda da raiz do verbo, podendo ser co-referentes nos seguintes casos:
- Absolutivo, para o sujeito da intransitiva no modo realis, o objeto direto da transitiva, o benefactivo, o malefactivo, o instrumental-comitativo, o comitativo e o inessivo;
- Ergativo, para o sujeito da transitiva no modo realis;
- Nominativo, para sujeito de verbo transitivo e intransitivo no modo irrealis;
- Dativo, como alternativa, para o benefactivo e comitativo.
Número | Pessoa | Absolutivo | Nominativo | Ergativo | Dativo |
---|---|---|---|---|---|
Singular | 1a | ra | ∅ | ri ~ re | kyẽ |
2a | a ~ ha | ti(a) | ka | kã | |
3a | ∅ | ti | ti | mã | |
Plural e paucal | 1a | ra, pa, mĩ | timĩ | ne ~ re | kyẽ |
2a | ri(a) | tiri(a) | kari(a) | kã | |
3a | ra | ∅ | ne ~ re | mã | |
Dual | 1a | ramẽ | mẽ | rimẽ ~ reme | mẽ |
2a | amẽ | timẽ | kamẽ | kamẽ | |
3a | mẽ | timẽ | timẽ | mẽ |
Flexão de número
[editar | editar código-fonte]Nomes que se referem a coisas animadas no Panará admitem flexão de número dual, plural e paucal (indica um grupo pequeno, de 3 a 10 componentes). Coisas inanimadas geralmente são seguidas de numerais. Enquanto o singular é não-marcado, a flexão das demais formas se manifesta nos pronomes independentes e nos proclíticos e prefixos juntos ao verbo.
Exemplo de prefixo verbal:
kamerã ø -kari -ra -kyẽ -sõ -ri kan ĩkieti ĩkyẽ mã vocês.ERG REAL.TR 2PL.ERG 3SG.PL 1.DAT dar PERF cesta.ABS muita eu BEN ‘vocês me deram muitas cestas’
Os sufixos obrigatórios aos pronomes livres de número dual -ra ou -na, de número plural -mɛra ou -mera, são opcionais nos nomes. O paucal -pyyra só se anexa aos pronomes livres ou demonstrativos.
Exemplos:
Ioti hẽ ø -ti -ku -ri soti -mera Sucuri ERG REAL.TR 3SG.ERG comer PERF bicho PL.ABS ‘a sucuri come bichos’
mara -rã ĩpy -rã kâ -ri ĩkua ele DU.ERG homem DU.ERG cortar PERF buriti.ABS ‘aqueles dois homens cortaram buriti’
pãpã yâ -ra -pan koa rin kiõpe mẽ pâsina mẽ kitakriti mẽ ia -pyyra todos.ABS REAL.INTR 3SG.ABS viver casa LOC Kiompê e Pâsina e Kitakriti e este PAU ‘Kiompê, Pâsina e Kitakriti, estes vivem na mesma casa.’
Relação de posse
[editar | editar código-fonte]As relações de posse no Panará estabelecem uma distinção de forma e sentido entre a posse alienável, ou seja, quando o item possuído se liga ao possuidor de maneira efêmera, e posse inalienável, que é quando o item possuído se liga ao possuidor de forma necessária. Para além dessa distinção, distingue-se também a posse inerente da não-inerente para os nomes. Tal relação pode ser expressa de três formas: por meio de nomes, por justaposição e por orações possessivas. Na língua, nem todos os nomes podem ser gramaticalmente possuídos - de exemplo, nomes próprios e elementos da natureza (terra, rios, cachoeira, céu, etc.).[10][14]
Sintagmas nominais possessivos
[editar | editar código-fonte]Nos sintagmas nominais possessivos indicativos de posse inalienável, os nomes que se referem ao possuidor e ao possuído se encontram justapostos, com núcleo (possuído) à direita.[15] Casos de parte em relação a um todo incluem-se aqui:
kukre nãpe casa parede ‘a parede da casa.’
Quando se trata de posse alienável, a posse é expressa por meio de nomes cujo sentido remete à função de indicar propriedade.
a) O nome -õ, precedido pelos sufixos relacionais s- e y- que marcam, respectivamente, não-contiguidade (RNC) e contiguidade (RC) com o nome referente ao possuidor. Yõ ocorre sempre à direita imediata do possuidor; sõ ocorre como aposto, precedendo o possuído na função de complemento ou adjunto adverbial:
teseya y-õ puu Teseya RC-posse roça ‘a roça de Teseya’
maira hẽ ∅ -ti -s -ãpũ s-õ koa Maíra ERG REAL.TR 3SG.ERG 3SG.ABS ver RNC-posse casa.ABS ‘Maíra conhece sua própria casa.’
Sõ também pode ser seguido por sakiama, que denota 'próprio, mesmo’, um nominal resumptivo do possuidor.
b) O nome -ĩ é, da mesma maneira, marcado pelos prefixos relacionais s- e y-. A forma yĩ ocorre apenas entre o possuído e o possuidor, já a forma sĩ ocorre nos mesmos contextos que sõ, com exceção da co-ocorrência com pronome resumptivo sakiama.
uãhã ĩkyẽmera y-ĩ koa tã Lá 1PL.ABS RC-posse casa ALA ‘lá para a nossa casa’
c) O nome kia é usado principalmente, mesmo que não exclusivamente, para denotar a posse de bens conhecidos e/ou adquiridos a partir do contato com o homem “branco”. Ele ocorre imediatamente à direita do possuidor.
pia ĩkyẽmera kia sase Esta 1PL.ABS posse rede ‘Esta é nossa rede.’
Predicados possessivos
[editar | editar código-fonte]As mesmas formas de sintagmas nominais que se referem à posse inalienável podem ser interpretadas como predicados[15]:
kiõpe rãpiâ Kiompê mãe ‘Kiompê tem mãe.’
No entanto, nomes de elementos possuídos que admitem prefixos relacionais, quando apresentam o prefixo s-, admitem de modo único a interpretação predicativa. Nessa situação, o sintagma nominal que se refere ao possuído forma o núcleo do predicado, em que o sintagma nominal referente ao possuidor é o sujeito.
ĩkyẽ s-asĩ Eu RNC-nariz ‘Eu tenho nariz.’
Nas construções de posse alienável, quando o nominal de posse -õ é marcado pelo relacional s- a interpretação é unicamente predicativa também. Nesse caso, sõ que constitui o núcleo do predicado, seguido pelo possuído, em que o possuidor é o sujeito
Posse inerente
[editar | editar código-fonte]Este caso de distinção se dá entre nomes que se referem a bens obrigatoriamente possuídos e não-obrigatoriamente possuídos. Os nomes referentes a bens inerentes são marcados pelos prefixos s-, ĩ- e ∅, os quais fazem referência a um possuidor, e os não-inerentes são não-marcados.[15]
s-õpã ‘o pai dele’
ĩtõ ‘o irmão dele’
∅-ĩpa ‘o fígado dele’
Verbo
[editar | editar código-fonte]Tempo, aspecto, modo e evidencialidade
[editar | editar código-fonte]O verbo é, segundo a tese de Dourado (2001),[10] “o constituinte mais complexo da gramática da língua Panará, com características polissintéticas”. O tempo, aspecto, modo e evidencialidade verbal na língua são percebidos pelo uso de partículas distintas entre si: o modo é marcado por clíticos na primeira posição à esquerda do verbo (exceto o imperativo, que apresenta duas partículas descontínuas), o aspecto é evidenciado pela forma verbal, o tempo é codificado por advérbios indicadores de temporalidade, e a evidencialidade é definida por partículas evidenciativas.[11]
O modo no Panará, orientado para o falante, demonstra em que grau este deseja assegurar ou não a verdade do que propõe. Tenta distinguir, basicamente, o que é fato ou não-fato. Existem, assim, três modos: realis, irrealis, e imperativo. O modo realis, que distingue eventos como ocorrendo no mundo real e é associado aos tempos verbais equivalentes ao presente habitual, ao presente progressivo e ao passado, é marcado pelo clítico yâ ( [ɯə], na denominação fonética atual, ou [yɨ], na denominação antiga) para verbos intransitivos e não-marcado para verbos transitivos. Já o modo irrealis, que distingue eventos como não ocorrendo no mundo real e é associado ao tempo futuro, é marcado por ka (tanto para verbos transitivos como intransitivos). O imperativo constitui exceção dos demais, pois sua função não é oferecer um grau de asserção. Quando se trata nesse de um verbo intransitivo, este pode ser não marcado ou marcado por duas partículas descontínuas, uma antes e outra depois do verbo: kua...hã para denotar o imperativo afirmativo, ha...sã para o imperativo negativo. Quando se fala em um verbo transitivo, o imperativo é marcado pelo clítico referente ao modo irrealis no lugar de kua e ha.
Verbos/modos | Realis | Irrealis | Imperativo + | Imperativo - |
---|---|---|---|---|
Transitivos | ∅ | ka | ka...hã | ka...sã |
Intransitivos | yâ | ka | ∅ ou kua...hã | ∅ ou ha...sã |
Em Panará existe uma classe de verbos que ocorrem ora com uma forma breve, ora com uma forma longa (sem ou com uma sílaba final). Essa oposição, conforme é observado na vasta maioria dos dados, denuncia o aspecto verbal, de maneira que a forma longa se refere ao aspecto perfectivo, no qual a ação é vista por inteiro ou como concluída, e a forma breve se refere ao aspecto imperfectivo, no qual a ação é vista parcialmente ou como algo em andamento, não concluído. Nessa classe, a forma longa do verbo, os sufixos -ri ~ -ni ~ -ti, ou a reduplicação da última sílaba, marcam o aspecto perfectivo, e na forma breve, o morfema zero marca o aspecto imperfectivo. De modo geral, o passado e o presente habitual são predominantemente definidos pelo aspecto perfectivo, enquanto o imperfectivo define principalmente o futuro, o presente progressivo e os verbos em orações interrogativas.
O tempo é marcado por três níveis básicos de advérbios que indicam relação temporal: ian ‘passado, ontem’, kowmã ‘presente, hoje, agora’ e pykowmã ‘futuro, amanhã’. Há outros além destes, porém são menos comuns.
Quanto à evidencialidade, existem, no Panará, ao menos cinco formas livres indicativas desta, que se referem à atitude do falante com relação à veracidade da informação contida na oração. São de três tipos diferentes: (1) três formas se referem ao não-comprometimento do falante com a verdade da afirmação; (2) uma forma aponta para a fidelidade da informação em relação à sua fonte; (3) e uma outra forma indica que a informação foi frustrada.
(1) Evidenciais ĩnɛ ~ inẽ, kypy e tapia, traduzidos livremente como ‘talvez, parecer, achar’. ĩnɛ ~ inẽ - sempre no início da oração; ocorrências: sozinho, só com kypy, só com tapia ou com ambos. kypy - ocupa a posição entre o sujeito e o verbo da oração; ocorrências: com inẽ, ou simultaneamente com este e tapia. Tapia - posicionado depois do verbo; ocorrências: não ocorre apenas com kypy.
inẽ adriana ka -ti -po tapia pykowmã EVD Adriana IRR 3SG.NOM chegar EVD amanhã ‘parece que Adriana vai chegar amanhã.’
(2) Evidencial tiãni ~ tiãri, que se trata do evidencial reportivo (informação do discurso será reproduzida exatamente como foi contada). Ocorre sempre após o último verbo da sentença e é muito encontrado no início de narrativas para atrair a atenção do ouvinte, por mostrar que o que se vai narrar merece ser contado.
∅ -ti -ĩpa -sã -ri tiãni ĩpe amã REAL.TR 3SG.ERG fígado doer PERF EVD INTSF LOC ‘ela estava com muita dor no fígado.’
(3) Evidencial akua ~ rãkua, que ocorre também em posição pós-verbal, indica frustração ou contrariedade à expectativa contida na proposição.
prete hẽ ∅ -ne -se -sũũ rãkua Jaburu ERG REAL.TR 3PL.ERG AUX dizer EVD ‘os jaburus negaram (que haviam roubado o fogo do urubu).’
Ordem da frase e alinhamento
[editar | editar código-fonte]A ordem frasal, ou ordem dos constituintes, na língua Panará é predominantemente (cerca de 90% dos dados obtidos sobre orações simples independentes e neutras) SVO (sujeito-verbo-objeto), contra 10% dos dados na ordem SOV (sujeito-objeto-verbo) para orações com verbo transitivo. Para orações com verbos intransitivos, predominam (75% dos dados) orações na ordem SV, contra 25% na ordem VS.
Quanto ao alinhamento, o modo em Panará se relaciona ao sistema de caso no que diz respeito à marcação de pessoa no verbo. Utiliza o sistema ergativo/absolutivo na organização das relações argumentos/verbo no modo realis, e o sistema nominativo/acusativo no modo irrealis. Isso ocorre uma vez que dados sugerem haver no Panará uma dissociação entre propriedades de codificação expressa, como marcação de caso, concordância e ordem de constituintes, e propriedades de comportamento e controle das relações gramaticais - as primeiras seguem o padrão ergativo-absolutivo, enquanto as últimas seguem o padrão nominativo-acusativo. Por causa disso, morfologicamente se diz que a língua possui um alinhamento ergativo-absolutivo superficial (ou ergatividade superficial), predominando sintaticamente o nominativo-acusativo.[10][16]
Frases comparativas
[editar | editar código-fonte]O Panará expressa comparação através de construções sintaticamente distintas: a justaposição de orações (com ou sem o apagamento do verbo da segunda oração) ou de sintagmas nominais, que é a mais usual, ou a comparação de um sintagma nominal inicial com um padrão demarcado.[10]
A qualidade comparada pode ser expressa por um adjetivo ou por um predicado intransitivo, cujo núcleo deve ser o próprio adjetivo. Os adjetivos expressam as qualidades dos elementos em questão comparadas quanto à superioridade ou inferioridade. Se a comparação for de igualdade, apenas uma qualidade é expressa e a conjunção associativa (ASS) mẽ ‘também’ vai seguir o segundo elemento da comparação.[10]
Exemplos:
piũtuara ĩkieti yâ -ra -po piãtuara rõpiõ moças.ABS muitas REAL.INTR 3PL.ABS chegar rapazes poucos ‘chegaram mais moças do que rapazes.’
piũtuara ĩkieti yâ -ra -po piãtuara mẽ moças.ABS muitas REAL.INTR 3PL.ABS chegar rapazes ASS ‘chegaram tantas moças quanto rapazes.’
As construções comparativas gramaticalizadas, que são as do segundo caso, apresentam o marcador de comparação (MCOM) hotosakre, o qual pode ocorrer depois do adjetivo ou sintagma nominal que expressa o padrão da comparação.
Exemplos:
ĩ-te piâ hotosakre ĩ-pa RNC-perna grande MCOM RNC-braço ‘a perna é maior do que o braço.’
ia kiãrãpe kĩ hotosakre uã Este cocar bonito MCOM aquele ‘Este cocar é tão bonito quanto aquele.’
Já o superlativo é expresso por meio de advérbios intensificadores que seguem ou precedem o adjetivo.
Exemplo:
nãpein nãsisi ĩpe mel doce INTSF ‘o mel é muito doce.’
Vocabulário
[editar | editar código-fonte]Numeração
[editar | editar código-fonte]O sistema de numeração da língua Panará é bem simples: consiste em quatro itens que não são exclusivamente numerais cardinais, e podem funcionar como multiplicativos, determinantes e quantificadores.[10][11]
pyti | pyti-ra | nõpjõ ~ nõpiõ | inkjêti ~ ĩkieti |
---|---|---|---|
‘um’, ‘uma vez’ | ‘dois’, ‘duas vezes’, ‘uns’ | ‘três ou quatro’, ‘alguns’, ‘poucos’ | ‘cinco’, ‘mais de quatro’, ‘muitos’ |
Referências
- ↑ a b «Panará». Ethnologue (em inglês). Consultado em 25 de abril de 2021
- ↑ a b «Glottolog 4.3 - Panará». glottolog.org. Consultado em 25 de abril de 2021
- ↑ a b Moseley, Christopher (ed.). 2010. Atlas of the World’s Languages in Danger, 3rd edn. Paris, UNESCO Publishing. Online version: http://www.unesco.org/culture/en/endangeredlanguages/atlas
- ↑ a b Rocha, Ana Flávia (março de 2003). «A defesa dos direitos socioambientais no Judicário» (PDF). Instituto Socioambiental. Consultado em 25 de abril de 2021
- ↑ a b c «Panará - Povos Indígenas no Brasil». pib.socioambiental.org. Consultado em 26 de abril de 2021
- ↑ Hammarström, Harald; et al. «Simultaneous Visualization of Language Endangerment and Language Description». University of Hawaii's Press. Language Documentation & Conservation: https://scholarspace.manoa.hawaii.edu/bitstream/10125/24792/1/hammarstrom_et_al.pdf
- ↑ «Glottolog 4.3 - GlottoScope». glottolog.org. Consultado em 25 de abril de 2021
- ↑ a b c d GIRALDIN, Odair (1997). Cayapó e Panará : Luta e sobrevivência de um povo jê no Brasil central. Campinas: Editora da Unicamp. 184 páginas
- ↑ Nikulin, Andrey (2020). «Proto-Macro-Jê: um estudo reconstrutivo». UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA. Biblioteca Digital Curt Nimuendajú: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Anikulin-2020/Nikulin_2020_Proto-Macro-Je.pdf
- ↑ a b c d e f g h i j k DOURADO, Luciana Gonçalves. Aspectos morfossintaticos da Lingua Panara (Je). 2001. 240p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP. Disponível em: <<>http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/269111</>>. Acesso em: 25 de abril de 2021.
- ↑ a b c d Bardagil-Mas, Bernat (20 de setembro de 2018). «Case and agreement in Panará» (PDF). University of Groningen. Consultado em 18 de abril de 2021
- ↑ a b Lapierre, Myriam. «Word-initial [i] epenthesis in Panãra» (em inglês). Consultado em 25 de abril de 2021
- ↑ Dourado, Luciana. «Construções Aplicativas em Panará». PUC-SP. DELTA
- ↑ Dourado, Luciana Gonçalves. 2002. “A expressão de posse em Panará.” In Línguas Indígenas Brasileiras: Fonologia, Gramática e História, Atas Do I Encontro Internacional Do Grupo de Trabalho Sobre Línguas Indígenas Da ANPOLL, editado por Ana Suelly Arruda Câmara Cabral and Aryon Dall’Igna Rodrigues, 1:98–103. Belém: EDUFPA.
- ↑ a b c Seki, Lucy. «Classificadores de nomes em Panará». Editora da Unicamp. Línguística Indígena e Educação na América Latina: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Adourado-1993-classificadores/Dourado_1993_ClassificadoresNomesPanara.pdf
- ↑ Dourado, Luciana. «Ergatividade em Panará» (PDF). LALI-LIV-UnB. Consultado em 25 de abril de 2021
Notas
- ↑ Símbolos à direita da célula são vozeados, os à esquerda não são.
- ↑ Nos casos opcionais, estão indicadas ambas as formas.
- ↑ Legenda: ABS é absolutivo; ERG é ergativo; BEN é benefactivo; MAL é malefactivo; ICOM é instrumental-comitativo; COM é comitativo; PTB é tradução para o português brasileiro
- ↑ Legenda: REAL é modo realis; IRR é modo irrealis; TR é transitivo; INTR é intransitivo; SG é singular; DU é dual; PL é plural; PAU é paucal; NOM é nominativo; ALA é alativo; LOC é locativo; INTSF é intensificador; PERF é aspecto perfectivo; IMPERF é aspecto imperfectivo