Machado de Assis - Viver

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Viver!, Machado de Assis Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de So Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: Ncleo de Pesquisas em Informtica, Literatura e Lingstica (http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html) Este material pode ser redistribudo livremente, desde que no seja alterado, e que as informaes acima sejam mantidas. Para maiores informaes, escreva para <[email protected]>. Estamos em busca de patrocinadores e voluntrios para nos ajudar a manter este projeto. Se voc quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <[email protected]> e saiba como isso possvel.

Viver!

Fim dos tempos. Ahasverus, sentado em uma rocha, fita longamente o horizonte, onde passam duas guias cruzando-se. Medita, depois sonha. Vai declinando o dia. Ahasverus. Chego clusula dos tempos; este o limiar da eternidade. A terra est deserta; nenhum outro homem respira o ar da vida. Sou o ltimo; posso morrer. Morrer! Deliciosa idia! Sculos de sculos vivi, cansado, mortificado, andando sempre, mas ei-los que acabam e vou morrer com eles. Velha natureza, adeus! Cu azul, imenso cu for aberto para que desam os espritos da vida nova, terra inimiga, que me no comeste os ossos, adeus! O errante no errar mais. Deus me perdoar, se quiser, mas a morte consolame. Aquela montanha spera como a minha dor; aquelas guias, que ali passam, devem ser famintas como o meu desespero. Morrereis tambm,

guias divinas? Prometeu. Certo que os homens acabaram; a terra est nua deles. Ahasverus. Ouo ainda uma voz... Voz de homem? Cus implacveis, no sou ento o ltimo? Ei-lo que se aproxima... Quem s tu? H em teus grandes olhos alguma cousa parecida com a luz misteriosa dos arcanjos de Israel; no s homem... Prometeu. No. Ahasverus. Raa divina? Prometeu. Tu o disseste. Ahasverus. No te conheo; mas que importa que te no conhea? No s homem; posso ento morrer; pois sou o ltimo, e fecho a porta da vida. Prometeu. A vida, como a antiga Tebas, tem cem portas. Fechas uma, outras se abriro. s o ltimo da tua espcie? Vir outra espcie melhor, no feita do mesmo barro, mas da mesma luz. Sim, homem derradeiro, toda a plebe dos espritos perecer para sempre; a flor deles que voltar terra para reger as coisas. Os tempos sero retificados. O mal acabar; os ventos no espalharo mais nem os germes da morte, nem o clamor dos oprimidos, mas to somente a cantiga do amor perene e a bno da universal justia... Ahasverus. Que importa espcie que vai morrer comigo toda essa delcia pstuma? Cr-me, tu que s imortal, para os ossos que apodrecem na terra as prpuras de Sidnia no valem nada. O que tu me contas ainda melhor que o sonho de Campanella. Na cidade deste havia delitos e enfermidades; a tua exclui todas as leses morais e fsicas. O Senhor te oua! Mas deixa-me ir morrer. Prometeu. Vai, vai. Que pressa tens em acabar os teus dias? Ahasverus. A pressa de um homem que tem vivido milheiros de anos. Sim, milheiros de anos. Homens que apenas respiraram por dezenas deles, inventaram um sentimento de enfado, tedium vitae, que eles nunca puderam conhecer, ao menos em toda a sua implacvel e vasta realidade, porque preciso haver calcado, como eu, todas as geraes e todas as runas, para experimentar esse profundo fastio da existncia. Prometeu. Milheiros de anos? Ahasverus. Meu nome Ahasverus: vivia em Jerusalm, ao tempo em que iam crucificar Jesus Cristo. Quando ele passou pela minha porta, afrouxou ao peso do madeiro que levava aos ombros, e eu empurrei-o, bradando-lhe que no parasse, que no descansasse, que fosse andando at colina, onde tinha de ser crucificado... Ento uma voz anunciou-me do cu que eu andaria sempre, continuamente, at o fim dos tempos. Tal a minha culpa; no tive piedade para com aquele que ia morrer. No sei mesmo como isto foi. Os fariseus diziam que o filho de Maria vinha destruir a lei, e que era preciso mat-lo; eu, pobre ignorante, quis realar o meu zelo e da a ao daquele dia. Que de vezes vi isto mesmo, depois, atravessando os tempos e as cidades! Onde quer que o zelo penetrou numa alma subalterna, fez-se cruel ou ridculo. Foi a minha culpa irremissvel. Prometeu. Grave culpa, em verdade, mas a pena foi benvola. Os outros homens leram da vida um captulo, tu leste o livro inteiro. Que sabe um

captulo de outro captulo? Nada; mas o que os leu a todos, liga-os e conclui. H pginas melanclicas? H outras joviais e felizes. convulso trgica precede a do riso, a vida brota da morte, cegonhas e andorinhas trocam de clima, sem jamais abandon-lo inteiramente; assim que tudo se concerta e restitui. Tu viste isso, no dez vezes, no mil vezes, mas todas as vezes; viste a magnificncia da terra curando a aflio da alma, e a alegria da alma suprindo desolao das cousas; dana alternada da natureza, que d a mo esquerda a J e a direita a Sardanapalo. Ahasverus. Que sabes tu da minha vida? Nada; ignoras a vida humana. Prometeu. Ignoro a vida humana? Deixa-me rir! Eia, homem perptuo, explica-te. Conta-me tudo; saste de Jerusalm... Ahasverus. Sa de Jerusalm. Comecei a peregrinao dos tempos. Ia a toda parte, qualquer que fosse a raa, o culto ou a lngua; sis e neves, povos brbaros e cultos, ilhas, continentes, onde quer que respirasse um homem a respirei eu. Nunca mais trabalhei. Trabalho refgio, e no tive esse refgio. Cada manh achava comigo a moeda do dia... Vede; c est a ltima. Ide, que j no sois precisa (atira a moeda ao longe). No trabalhava, andava apenas, sempre, sempre, sempre, um dia e outro dia, um ano e outro ano, e todos os anos, e todos os sculos. A eterna justia soube o que fez: somou a eternidade com a ociosidade. As geraes legavam-me umas s outras. As lnguas que morriam ficavam com o meu nome embutido na ossada. Com o volver dos tempos, esquecia-se tudo; os heris dissipavam-se em mitos, na penumbra, ao longe; e a histria ia caindo aos pedaos, no lhe ficando mais que duas ou trs feies vagas e remotas. E eu via-as de um modo e de outro modo. Falaste em captulo? Os que se foram, nascena dos imprios, levaram a impresso da perpetuidade deles; os que expiraram quando eles decaam, enterraram-se com a esperana da recomposio; mas sabes tu o que ver as mesmas cousas, sem parar, a mesma alternativa de prosperidade e desolao, desolao e prosperidade, eternas exquias e eternas aleluias, auroras sobre auroras, ocasos sobre ocasos? Prometeu. Mas no padeceste, creio; alguma cousa no padecer nada. Ahasverus. Sim, mas vi padecer os outros homens, e para o fim o espetculo da alegria dava-me a mesma sensao que os discursos de um doido. Fatalidades do sangue e da carne, conflitos sem fim, tudo vi passar a meus olhos, a ponto que a noite me fez perder o gosto ao dia, e acabo no distinguindo as flores das urzes. Tudo se me confunde na retina enfarada. Prometeu. Pessoalmente no te doeu nada; e eu que padeci por tempos inmeros o efeito da clera divina? Ahasverus. Tu? Prometeu. Prometeu o meu nome. Ahasverus. Tu Prometeu? Prometeu. E qual foi o meu crime? Fiz de lodo e gua os primeiros homens, e depois, compadecido, roubei para eles o fogo do cu. Tal foi o meu crime. Jpiter, que ento regia o Olimpo, condenou-me ao mais cruel suplcio. Anda, sobe comigo a este rochedo. Ahasverus. Contas-me uma fbula. Conheo esse sonho helnico.

Prometeu. Velho incrdulo! Anda ver as prprias correntes que me agrilhoaram; foi uma pena excessiva para nenhuma culpa; mas a divindade orgulhosa e terrvel... Chegamos, olha, aqui esto elas... Ahasverus. O tempo que tudo ri no as quis ento? Prometeu. Eram de mo divina; fabricou-as Vulcano. Dois emissrios do cu vieram atar-me ao rochedo, e uma guia, como aquela que l corta o horizonte, comia-me o fgado, sem consumi-lo nunca. Durou isto tempos que no contei. No, no podes imaginar este suplcio... Ahasverus. No me iludes? Tu Prometeu? No foi ento um sonho da imaginao antiga? Prometeu. Olha bem para mim, palpa estas mos. V se existo. Ahasverus. Moiss mentiu-me. Tu Prometeu, criador dos primeiros homens? Prometeu. Foi o meu crime. Ahasverus. Sim, foi o teu crime, artfice do inferno; foi o teu crime inexpivel. Aqui devias ter ficado por todos os tempos, agrilhoado e devorado, tu, origem dos males que me afligiram. Careci de piedade, certo; mas tu, que me trouxeste existncia, divindade perversa, foste a causa original de tudo. Prometeu. A morte prxima obscurece-te a razo. Ahasverus. Sim, s tu mesmo, tens a fronte olmpica, forte e belo tito: s tu mesmo... So estas as cadeias? No vejo o sinal das tuas lgrimas. Prometeu. Chorei-as pela tua raa. Ahasverus. Ela chorou muito mais por tua culpa. Prometeu. Ouve, ltimo homem, ltimo ingrato! Ahasverus. Para que quero eu palavras tuas? Quero os teus gemidos, divindade perversa. Aqui esto as cadeias. V como as levanto nas mos; ouve o tinir dos ferros... Quem te desagrilhoou outrora? Prometeu. Hrcules. Ahasverus. Hrcules... V se ele te presta igual servio, agora que vais ser novamente agrilhoado. Prometeu. Deliras. Ahasverus. O cu deu-te o primeiro castigo; agora a terra vai dar-te o segundo e derradeiro. Nem Hrcules poder mais romper estes ferros. Olha como os agito no ar, maneira de plumas; que eu represento a fora dos desesperos milenrios. Toda a humanidade est em mim. Antes de cair no abismo, escreverei nesta pedra o epitfio de um mundo. Chamarei a guia, e ela vir; dir-lhe-ei que o derradeiro homem, ao partir da vida, deixa-lhe um regalo de deuses. Prometeu. Pobre ignorante, que rejeitas um trono! No, no podes mesmo rejeit-lo. Ahasverus. s tu agora que deliras. Eia, prostra-te, deixa-me ligar-te os braos. Assim, bem, no resistirs mais; arqueja para a. Agora as pernas... Prometeu. Acaba, acaba. So as paixes da terra que se voltam contra mim; mas eu, que no sou homem, no conheo a ingratido. No arrancars uma letra ao teu destino, ele se cumprir inteiro. Tu mesmo sers o novo Hrcules. Eu, que anunciei a glria do outro, anuncio a tua; e no sers

menos generoso que ele. Ahasverus. Deliras tu? Prometeu. A verdade ignota aos homens o delrio de quem a anuncia. Anda, acaba. Ahasverus. A glria no paga nada, e extingue-se. Prometeu. Esta no se extinguir. Acaba, acaba; ensina ao bico adunco da guia como me h de devorar a entranha; mas escuta... No, no escutes nada; no podes entender-me. Ahasverus. Fala, fala. Prometeu. O mundo passageiro no pode entender o mundo eterno; mas tu sers o elo entre ambos. Ahasverus. Dize tudo. Prometeu. No digo nada; anda, aperta bem estes pulsos, para que eu no fuja, para que me aches aqui tua volta. Que te diga tudo? J te disse que uma raa nova povoar a terra, feita dos melhores espritos da raa extinta; a multido dos outros perecer. Nobre famlia, lcida e poderosa, ser perfeita comunho do divino com o humano. Outros sero os tempos, mas entre eles e estes um elo preciso, e esse elo s tu. Ahasverus. Eu? Prometeu. Tu mesmo, tu eleito, tu, rei. Sim, Ahasverus, tu sers rei. O errante pousar. O desprezado dos homens governar os homens. Ahasverus. Tito artificioso, iludes-me... Rei, eu? Prometeu. Tu rei. Que outro seria? O mundo novo precisa de uma tradio do mundo velho, e ningum pode falar de um a outro como tu. Assim no haver interrupo entre as duas humanidades. O perfeito proceder do imperfeito, e a tua boca dir-lhe- as suas origens. Contars aos novos homens todo o bem e todo o mal antigo. Revivers assim como a rvore a que cortaram as folhas secas, e conserva to-somente as viosas; mas aqui o vio eterno. Ahasverus. Viso luminosa! Eu mesmo? Prometeu. Tu mesmo. Ahasverus. Estes olhos... estas mos... vida nova e melhor... Viso excelsa! Tito, justo. Justa foi a pena; mas igualmente justa a remisso gloriosa do meu pecado. Viverei eu? eu mesmo? Vida nova e melhor? No, tu mofas de mim. Prometeu. Bem, deixa-me, voltars um dia, quando este imenso cu for aberto para que desam os espritos da vida nova. Aqui me achars tranqilo. Vai. Ahasverus. Saudarei outra vez o sol? Prometeu. Esse mesmo que ora vai a cair. Sol amigo, olho dos tempos, nunca mais se fechar a tua plpebra. Fita-o, se podes. Ahasverus. No posso. Prometeu. Pod-lo-s depois quando as condies da vida houverem mudado. Ento a tua retina fitar o sol sem perigo, porque no homem futuro ficar concentrado tudo o que h melhor na natureza, enrgico ou sutil, cintilante ou puro. Ahasverus. Jura que me no mentes.

Prometeu. Vers se minto. Ahasverus. Fala, fala mais, conta-me tudo. Prometeu. A descrio da vida no vale a sensao da vida; t-la-s prodigiosa. O seio de Abrao das tuas velhas Escrituras no seno esse mundo ulterior e perfeito. L vers David e os profetas. L contars gente estupefata no s as grandes aes do mundo extinto, como tambm os males que ela no h de conhecer, leso ou velhice, dolo, egosmo, hipocrisia, a aborrecida vaidade, a inopinvel toleima e o resto. A alma ter, como a terra, uma tnica incorruptvel. Ahasverus. Verei ainda este imenso cu azul! Prometeu. Olha como belo. Ahasverus. Belo e sereno como a eterna justia. Cu magnfico, melhor que as tendas de Cedar, ver-te-ei ainda e sempre; tu recolhers os meus pensamentos, como outrora; tu me dars os dias claros e as noites amigas... Prometeu. Auroras sobre auroras. Ahasverus. Eia, fala, fala mais. Conta-me tudo. Deixa-me desatar-te estas cadeias... Prometeu. Desata-as, Hrcules novo, homem derradeiro de um mundo, que vs ser o primeiro de outro. o teu destino; nem tu nem eu, ningum poder mud-lo. s mais ainda que o teu Moiss. Do alto do Nebo, viu ele, prestes a morrer, toda a terra de Jeric, que ia pertencer sua posteridade; e o Senhor lhe disse: "Tu a viste com teus olhos, e no passars a ela." Tu passars a ela, Ahasverus; tu habitars Jeric. Ahasverus. Pe a mo sobre a minha cabea, olha bem para mim; incuteme a tua realidade e a tua predio; deixa-me sentir um pouco da vida nova e plena... Rei disseste? Prometeu. Rei eleito de uma raa eleita. Ahasverus. No demais para resgatar o profundo desprezo em que vivi. Onde uma vida cuspiu lama, outra vida por uma aurola. Anda, fala mais... fala mais... (Continua sonhando. As duas guias aproximam-se.) Uma guia. Ai, ai, ai deste ltimo homem, est morrendo e ainda sonha com a vida. A outra. Nem ele a odiou tanto, seno porque a amava muito.

FIM

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