BIANCHI, Álvaro. O Retorno A Gramsci
BIANCHI, Álvaro. O Retorno A Gramsci
BIANCHI, Álvaro. O Retorno A Gramsci
Retorno a Gramsci: para uma crtica das teorias contemporneas da sociedade civil
Resumo: As ltimas dcadas do sculo XX presenciaram a emergncia de novos movimentos sociais e de um renovado associativismo. A anlise desse processo tem motivado interpretaes que, em grande medida tem convergido para a idia de uma revitalizao da sociedade civil, o que provocou uma revalorizao da capacidade explicativa de tal conceito. Tornou-se, assim, cada vez mais comum a referncia a uma sociedade civil organizada, capaz de opor-se tanto ao Estado como ao mercado. A partir de uma recuperao do conceito de sociedade civil, tal qual aparece na obra de Antonio Gramsci, procuraremos demonstrar a artificialidade dessa separao entre as trs esferas e a necessidade de construir um conceito de Estado, que unificando sociedade poltica e sociedade civil, seja capaz de ir alm da dicotomia Estado/mercado.
As ltimas dcadas do sculo XX presenciaram a emergncia de novos movimentos sociais e de um renovado associativismo. Vinculado ao vigoroso ascenso dos movimentos sociais no final da dcada de 1960, luta pela expanso dos direitos fundamentais e afirmao da identidade de atores sociais at ento marginalizados, esse processo renovou as formas tradicionais de participao poltica introduzindo novas tticas de mobilizao popular e novas formas organizativas. Os contextos nacionais do surgimento desses novos movimentos e organizaes certamente so por demais variados. Nos Estados Unidos ele esteve associado principalmente mobilizao contra a guerra do Vietn, afirmao da identidade de negros e mulheres e expanso de seus direitos. Na Europa Ocidental as energias liberadas pelas manifestaes estudantis de 1968 e pelas mobilizaes operrias alimentaram processo semelhante. No Leste europeu e na Amrica Latina, a luta contra regimes polticos autoritrios forneceu o contexto no qual esses movimentos surgiram. De maneira genrica, podemos apontar trs processos que se desenvolveram a partir do final dos anos 1960 e formataram o contexto no qual esses novos movimentos e organizaes tiveram lugar: 1. Crise/Crtica das formas tradicionais de organizao poltica consubstanciadas nos partidos comunistas e social-democratas e nos sindicatos tradicionais. 2. Crise/Crtica do Estado de bem-estar social e do seu potencial de controle e passivizao das classes subalternas. 3. Crise/Crtica dos regimes antidemocrticos da Amrica Latina e do Leste europeu. Tais processos, combinados de maneira desigual, deram origem a formas de associao e participao poltica que, rompendo com antigas instituies inauguraram um novo ciclo de organizao popular, introduzindo prticas sociais inovadoras, criando novos espaos de participao social, reinventando a solidariedade e produzindo formas originais de organizao social e poltica.1 A anlise desse processo tem motivado um grande nmero de interpretaes que, em grande medida tem convergido para a idia de uma revitalizao da sociedade civil, o que provocou uma revalorizao da capacidade explicativa de tal conceito. Tomando como ponto de partida Hegel, Marx e Gramsci, e distanciando-se desse referencial, tornou-se cada vez mais comum a referncia a uma sociedade civil organizada, capaz de opor-se tanto ao do Estado como do mercado.
Diferentes verses para a revalorizao do conceito de sociedade civil podem ser encontradas em Cohen e Arato (2000, p. 53-112) e Keane (1988, 1-30).
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3 Se o ponto de partida a negao das teorias de Hegel-Marx-Gramsci, o referencial conceitual que deu base a grande nmero de teorias da sociedade civil a teoria do agir comunicativo de Jrgen Habermas (1987). Identificando uma oposio entre o mundo da vida, por um lado, e a poltica e o mercado, por outro, Habermas teria identificado nesse mundo da vida o lugar no qual se realizariam a relao intersubjetiva dos cidados, a participao, a solidariedade e os potenciais emancipatrios da sociedade. Lembremos que para Habermas a racionalidade dimenso intrnseca modernidade. Mas, alerta ele, possvel identificar, duas possibilidades da racionalidade. A primeira delas diz respeito orientao das relaes dos homens com o mundo dos objetos e tem um carter instrumental ordenando a lgica do poder, prpria do subsistema administrativo, e a lgica do lucro, prpria do subsistema econmico. A segunda possibilidade remete ao mudo da vida, s relaes interpessoais e interao, aqui a racionalidade tem um carter comunicativo, prprio da participao, da opinio pblica e da famlia. Analisando as experincias dos novos movimentos sociais e inspirando-se no Habermas de Teoria do agir comunicativo, Jean Cohen e Andrew Arato (2000) avanam uma formulao na qual a sociedade civil encontra-se no nvel institucional do mundo da vida.2 A sociedade civil , assim, entendida como uma esfera de interao social entre a economia e o Estado, composta em primeiro lugar pela esfera ntima (particularmente a famlia), a esfera das associaes (particularmente as associaes voluntrias), os movimentos sociais e as formas de comunicao pblica. (Cohen e Arato, 2000, p. 8.) Temos ento um conceito de sociedade civil que incluiria todas as instituies e formas associativas que requerem a interao comunicativa para sua reproduo e que dependem principalmente dos processos de integrao social para coordenar a ao dentro de suas fronteiras. (Cohen e Arato, 2000, p. 483). Criada atravs de formas de automobilizao e auto-organizao, a sociedade civil moderna encontraria sua estabilidade institucionalizando-se e generalizado-se atravs de leis e direitos que permitiriam a reproduo cultural (liberdades de pensamento, imprensa, comunicao e expresso); a integrao social (liberdade de associao e reunio); e socializao (proteo vida privada, intimidade e inviolabilidade da pessoa). Muito embora o Estado seja agncia de legalizao desses direitos, eles nasceram externamente a ele sob a forma de demandas das esferas pblica e privada do mundo da vida. Os direitos fundamentais seriam, assim, o principio organizador de uma sociedade civil moderna. (Cohen e Arato, 2000, p. 495) Neste desenho societal, tanto a sociedade poltica como a econmica surgiriam, em grande medida da sociedade civil e funcionariam como canais mediadores de controle e influncia sobre os subsistemas. Tais canais de mediao, preciso destacar, no se encontrariam completamente submetidos razo comunicativa prpria da sociedade civil. Os atores da sociedade poltica e da sociedade econmica permaneceriam orientados por uma racionalidade instrumental prpria dos negcios pblicos e privados, do estado e do mercado. Mas a sua prpria existncia retiraria dos subsistemas a autonomia plena e permitiria uma atuao da sociedade civil mais eficaz, assumindo um carter ofensivo. Assim como em Habermas, a sociedade civil aparece aqui como independente do Estado e do mercado. Cohen e Arato identificam nela um terceiro setor, um domnio autnomo capaz de constituir-se em locus da expanso autolimitada da democracia. Autolimitada porque, tendo por objetivo no a ruptura com o mercado e o Estado e sim
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Para a relao das formulaes de Cohen e Arato com a teoria habermasiana do agir comunicativo, ver Avritzer (1993).
4 a compatibilizao entre a razo instrumental e a razo comunicativa, tal percepo da sociedade civil afasta a idia de transformao revolucionria, tal qual Habermas o fez ao advogar a autolimitao da prxis democrtico radical (Habermas, 1997). descartada, assim, a possibilidade de transformao radical e total da sociedade, considerada como improvvel e indesejvel. A utopia comunicativa da sociedade civil, partilhada por Habermas, Cohen e Arato ameaada pela revoluo, apesar de suas prprias origens revolucionrias (Cohen e Arato, 2000, p. 507). A ruptura revolucionria constituiria um perigo para a democracia na medida em que conspiraria contra a institucionalizao duradoura de um poder autolimitado por direitos necessrios para equilibrar as foras polticas em presena. tomando como ponto de partida as definies de Habermas, Cohen e Arato que um grande nmero de pesquisadores tem pensado a sociedade civil em oposio ao Estado e ao mercado (Vieira, 2000, p. 63). A idia de um domnio paralelo e contraposto s estruturas alimentadas pelos meios do poder e do dinheiro tem sustentado as modernas noes de terceiro setor e organizaes no-governamentais. Tais teorias identificam as organizaes da sociedade civil como instituies autolimitadas de controle do Estado e do mercado. Mas acrescentam uma nova dimenso, presente com maior intensidade a partir da dcada de 1980: as associaes da sociedade civil como produtoras de bens e servios sociais. Essa dimenso tornou-se mais marcante com a reforma neoliberal do Estado e sua crescente incapacidade ou indisposio deste para prover comunidades carentes de bens e servios considerados indispensveis. A emergncia de uma dimenso produtiva na sociedade civil tem sustentado as teorias do setor no lucrativo (Salamon et alli, 1999; Salamon e Anheier, 1997); do terceiro setor (Laville, 2000; Nyssens, 2000) ou setor pblico no-estatal (Bresser Pereira e Cunill Grau, 1991; Bresser Pereira, 1996). Nessas teorias, identificada a possibilidade de uma esfera que, definindo-se como pblica porque voltada ao interesse geral, coloca-se margem do Estado, retirando sua fora da sociedade civil. esta a esfera dos novos movimentos sociais e das Organizaes No-Governamentais (ONGs) que, ocupando espaos que o Estado no pode ou no quer preencher, produzem bens e servios de interesse coletivo. A incorporao por alguns movimentos sociais e organizaes nogovernamentais de atividades produtivas orientadas, muitas vezes, pela lgica do mercado e amparadas na ao estatal, explicita trs grandes dificuldades tericas do modelo at ento apresentado. 1. O estabelecimentos de ntidas fronteiras entre Estado, mercado e sociedade civil e a afirmao de uma contraposio entre esta ltima e os subsistemas administrativo e econmico, impede a compreenso da interpenetrao dessas trs esferas no mundo contemporneo. 2. A afirmao de uma sociedade civil homognea e portadora dos impulsos positivos para a renovao democrtica da sociedade deixa escapar os conflitos e antagonismo existentes no interior dessa sociedade civil. 3. Definida a sociedade civil como mola democrtica da sociedade e no como lugar do conflito poltico e ideolgico, seu projeto utpico aparece como a utopia que a atual relao de foras na sociedade civil permitira realizar, da seu carter autolimitado ser, precisamente, a limitao da ordem atual. Um retorno teoria gramsciana do Estado pode servir como ponto de partida para uma crtica radical das teorias apresentadas e a formulao de um conceito de sociedade civil capaz de dar conta dos conflitos sociais realmente existentes.
5 Sigamos ento Gramsci e passemos anlise do Estado, superestrutura complexa. Nosso ponto de partida ser uma definio de Estado que permita estabelecer a relao existente entre essa superestrutura complexa e a estrutura social. Para Gramsci, o Estado no concebvel mais que como forma concreta de um determinado mundo econmico, de um determinado sistema de produo (Gramsci, 1977, p. 13591360). O Estado , assim, a expresso, no terreno das superestrutura, de uma determinada forma de organizao social da produo. As relaes entre Estado capitalista e o mundo econmico (relaes entre superestrutura e estrutura) no podem ser determinadas de maneira fcil sob a forma de um simples esquema. Para entend-las preciso ter em mente que esses dois conjuntos formam uma totalidade que possui, em seu interior, diversas temporalidades.3 O desenvolvimento destes conjuntos encontra-se intimamente vinculado e marcado por influncias, aes e reaes recprocas, pelas lutas que protagonizam as classes em presena e as formas superestruturais destas no terreno nacional e internacional. Reconhecer esses vnculos no implica em admitir que transformaes no mundo econmico provoquem uma reao imediata a modificar as forma superestruturais, ou vice-versa. Um certo descompasso entre as mudanas ocorridas nesses conjuntos , at mesmo, previsvel, muito embora exista uma tendncia adequao de um a outro. Esta tendncia no , seno, a busca de uma otimizao das condies de produo e reproduo das relaes sociais capitalistas atravs da unidade econmica e poltica da classe dominante, unidade que se processa no Estado. Desta forma o Estado concebido como organismo prprio de um grupo, destinado a criar as condies favorveis mxima expanso do prprio grupo (Gramsci, 1977, p. 1584). Mas ateno, essa expanso para ser eficazmente levada a cabo, no pode aparecer como a realizao dos interesses exclusivos dos grupos diretamente beneficiados. Ela deve apresentar-se como uma expanso universal expresso de toda a sociedade , atravs da incorporao vida estatal das reivindicaes e interesses dos grupos subalternos, subtraindo-os de sua lgica prpria e enquadrando-os na ordem vigente. Incorporao essa que o resultado contraditrio de lutas permanentes e da formao de equilbrios instveis e de arranjos de fora entre as classes. Processo limitado pelas necessidades de reproduo da prpria ordem e que se restringe, portanto, ao nvel das reivindicaes econmico-corporativas. Fica claro que a definio de Estado at aqui esboada procura evitar uma concepo que o reduz ao aparelho coercitivo. A construo do consenso tambm encontra lugar nesse Estado. O Estado tem, dessa maneira, um carter dual, meio homem, meio animal, como o Centauro maquiaveliano.4 Chegamos ao ponto da exposio no qual se faz necessrio precisar os contornos do Estado. O Estado , aqui, entendido em seu sentido orgnico e mais amplo como o conjunto formado pela sociedade poltica e sociedade civil, ou para retomar uma frmula j clssica, Estado = sociedade poltica + sociedade civil, ou seja, hegemonia encouraada de coero. (Gramsci, 1977, p. 763-764.) Tomemos estes dois termos chaves: sociedade poltica e sociedade civil. O conceito de sociedade poltica est claro no texto gramsciano. Trata-se do Estado no sentido restrito, ou seja, o aparelho governamental encarregado da administrao direta
Este desencontro dos tempos das superestruturas e das estruturas constitui a maior dificuldade enfrentada pelas teorias instrumentalistas do Estado que, definindo-o como mero reflexo do mundo econmico, no conseguem explicar as transies ao capitalismo nas quais a transformao do Estado se antecipa plena transformao do mundo econmico. Ver a esse respeito os comentrios de Saes, 1994, p. 20. 4 Ver, por exemplo, Gramsci, 1977, p. 1576.
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6 e do exerccio legal da coero sobre aqueles que no consentem nem ativa nem passivamente. Gramsci no perde, em momento nenhum, esta dimenso do Estado, ou seja, no perde de vista sua dimenso coercitiva, muito embora no reduza o Estado a ela. Mais complicado o conceito de sociedade civil. Seja porque no texto gramsciano ele tem contornos bastante imprecisos; seja, porque no existe apenas uma definio para o termo; seja porque na linguagem poltica contempornea a expresso sociedade civil foi incorporada fazendo, muitas vezes, referncias ao prprio Gramsci, embora com um sentido diferente; seja por tudo isso, a confuso grande.5 Responsvel por parte considervel dessa confuso a interpretao cannica de Norberto Bobbio (1999) do conceito de sociedade civil em Gramsci.6 Identificando uma dicotomia entre sociedade civil e Estado no pensamento gramsciano, Bobbio afirmou que Gramsci afastou-se da acepo marxiana do primeiro termo. Enquanto para Marx o momento da sociedade civil coincidiria com a base material da sociedade, a infraestrutura, para o marxista italiano a sociedade civil no pertence ao momento da estrutura, mas ao da superestrutura, afirma Bobbio. (Idem, p. 54).7 Para sustentar sua tese, Bobbio recorre s notas de Gramsci sobre os intelectuais, particularmente passagem onde se l: possvel, por enquanto, estabelecer dois grandes planos superestruturais, o que se pode chamar de sociedade civil, ou seja, do conjunto de organismos vulgarmente chamados privados e o da sociedade poltica ou Estado e que correspondem funo de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e a de domnio direto ou de mando que se expressa no Estado e no governo jurdico. (Gramsci, 1977, p. 1518 e Bobbio, 1999, p. 55) Tal , sem dvida, a acepo mais freqente que o termo sociedade civil encontra nos Cadernos do crcere. Nessa acepo, a sociedade civil, entendida como o conjunto de organismos vulgarmente chamados privados (Idem). A lista de tais organismos grande, mas conhecida: igrejas, escolas, associaes privadas, sindicatos, partidos e imprensa, so alguns deles. A funo desses organismos articular o consenso das grandes massas e a adeso destas orientao social impressa pelos grupos dominantes. So eles os que definem o contedo tico do Estado, nas palavras de Grasmci. (Gramsci, 1977, p. 703.) No demais alertar, entretanto, que este conjunto de organismos no socialmente indiferenciado. Os cortes classistas e as lutas entre os diferentes grupos sociais atravessam esse conjunto de organismos. Este alerta se justifica na medida em que, no vocabulrio poltico hodierno, um conceito tocquevilliano de sociedade civil tornou-se preponderante. Neste conceito, sociedade civil passou a significar um conjunto de associaes situadas fora da esfera estatal, indiferenciadas e potencialmente progressistas, agentes da transformao social e portadoras de interesses universais no contraditrios. Nunca demais lembrar que alm do Movimento dos Sem Terra (MST), a Unio Democrtica Ruralista (UDR) e a Sociedaed Rural Brasileira (SRB) fazem parte, tambm, dessa sociedade civil. Percebida no como um todo indiferenciado, mas
Vrios so os autores que identificaram o uso variado e muitas vezes indiscriminado do conceito de sociedade civil. Destacamos dois artigos a respeito: Costa, 1997 e Foley e Edwards, 1996. 6 constrangedoramente elevado, no Brasil, o nmero de autores que faz referncia a teoria da sociedade civil de Gramsci sem cita-lo diretamente. 7 A acepo de sociedade civil em Karl Marx pode ser localizada no conhecido Prefcio Contribuio crtica da economia poltica (Marx,, s.d). Para a evoluo do conceito de sociedade civil em Marx ver Hunt (1987).
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7 como um conjunto marcado pelos profundos antagonismos classistas, a sociedade civil perde seu vu ilusrio. No se trata apenas da distribuio desigual de recursos comunicativos que impediriam o livre acesso a uma esfera pblica, trata-se, tambm, da defesa de desenhos societrios antagnicos. Ao invs do local da universalizao de interesses particularistas ela passa a ser vista como um espao da luta de classes, da afirmao de projetos antagnicos e, portanto, da construo de uma utopia nolimitada. 8 Este, entretanto, parece no ser o nico significado que Gramsci atribui ao termo sociedade civil. Vejamos, por exemplo, uma passagem do texto Alguns aspectos tericos e prticos sobre o economicismo presente no Caderno 13: A formulao do movimento da livre troca baseia-se num erro terico do qual no difcil identificar a origem prtica: a distino entre sociedade poltica e sociedade civil, que de distino metdica se transforma e apresentada como distino orgnica. Assim, afirma-se que a atividade econmica prpria da sociedade civil e que o Estado no deve intervir em sua regulamentao. Mas, como na realidade factual sociedade civil e Estado se identificam, deve-se considerar que tambm o liberalismo uma regulamentao de carter estatal, introduzida e mantida por caminhos legislativos e coercitivos: um fato de vontade consciente dos prprios fins, e no a expresso espontnea, automtica, do fato econmico. (Gramsci, 1977, p. 1589.) Gramsci parece aqui retomar o conceito de sociedade civil em Marx e Engels, o que no percebido por Bobbio, mais preocupado em afirmar a supremacia das superestruturas.9 A sociedade civil seria o locus da atividade econmica propriamente dita; o terreno dos interesses materiais imediatos, da propriedade privada; a sociedade econmica burguesa; ou aquilo que hoje se chamaria, o mundo dos negcios. A apropriao de uma definio marxiana do conceito admitida pelo prprio Gramsci: preciso distinguir a sociedade civil tal como entendida por Hegel e no sentido em que freqentemente (spesso) emprega-se nestas notas (ou seja, no sentido de hegemonia poltica e cultural de um grupo social sobre a sociedade inteira, como contedo tico do Estado) do sentido que lhe do os catlicos, para os quais a sociedade civil , pelo contrario, a sociedade poltica ou o Estado em confronto com a sociedade familiar e a Igreja. (Gramsci, 1977, 703) Estes dois sentidos so utilizados de modos diferentes por Gramsci. No primeiro, a sociedade civil est associada s formas de exerccio e afirmao da supremacia de uma classe sobre o conjunto da sociedade. Faz parte de um programa de pesquisa que visa esclarecer no s os processos de revoluo burguesa e de fundao de um novo Estado, como a longevidade e fortaleza das instituies polticas do Ocidente capitalista e a possibilidade de instaurao de uma nova ordem social e poltica. No segundo sentido, freqentemente apresentado entre aspas, destaca-se a capacidade de iniciativa econmica que o Estado possui no capitalismo contemporneo. Entretanto, o que aqui cabe ressaltar que a sociedade civil num sentido conjunto de organismos privados responsveis pela articulao do consenso como no outro locus da atividade econmica forma um todo indissolvel com a sociedade poltica. Ou seja, sociedade poltica e sociedade civil formam dois planos superpostos
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Ver a esse respeito Dias, 1997, pp. 66-68. Sobre os dois sentidos do termo sociedade civil em Gramsci, ver Texier (1988).
8 que s podem ser separados com fins meramente analticos. A unidade orgnica entre sociedade poltica e sociedade civil vale para os dois sentidos do termo. Bibliografia AVRITZER, Leonardo. Alm da dicotomia Estado/mercado. Habermas, Cohen e Arato. Novos Estudos Cebrap, So Paulo, n. 36, p. 213-222, jul, 1993. BOBBIO, Norberto. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos e CUNILL GRAU, Nuria. O pblico no-estatal na reforma do Estado. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1999. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Crise econmica e reforma do Estado no Brasil. Para uma nova interpretao da Amrica Latina. So Paulo: 34, 1996. COHEN, Jean e ARATO, Andrew. Sociedad civil y teora poltica. Mxico D.F.: Fondo de Cultura Econmica, 2000. COSTA, Srgio. Categoria analtica ou passe-partout poltico-normativo: notas bibliogrficas sobre o conceito de sociedade civil. BIB Revista Brasileira de Informao Bibliogrfica em Cincias Sociais, So Paulo, n. 43, p. 3-25, 1997. DIAS, Edmundo Fernandes. A liberdade (im)possvel na ordem do capital. Reestruturao produtiva e passivizao. Campinas, IFCH/Unicamp, 1997. Textos didticos, n. 29. EHRENBERG, John. Civil society: the critical history of an idea. Nova York: New York Unievrsity Press, 1999. FOLEY, Michael W. e EDWARDS, Bob. The paradox of civil society. Journal of Democracy, v. 7, n. 3, p. 38-52, 1996. HABERMAS, Jrgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.2. HABERMAS, Jrgen. Thorie de lagir communicationnel. Paris: Fayard, 1987. HUNT, Geoffrey. The development of the concept of civil society in Marx. History of Political Thought, v. VIII, n. 2, 1987. KEANE, John. Democracy and civil society. Londres: Verso, 1988. LAVILLE, Jean-Louis. Le tier secteur. Un object pour la sociologie conomique. Sociologia du Travail, v. 42, n. 4, p. 531-550, oct.-dec. 2000. MARX, Karl. Prefcio Contribuio crtica da economia poltica. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. So Paulo: Alfa-mega, s.d., v.1. SAES, Dcio. Estado e democracia: ensaios tericos. Campinas, IFCH/Unicamp, 1994, Coleo Trajetria, 1, SALAMON, Lester M. and ANHEIER, Helmut K.. Defining the nonprofit sector: a cross-national analysis. Manchester: Manchester University Press, 1997. SALAMON, Lester M. et alli. Global civil society: dimensions of nonproft sectors. Baltimore: The John Hopkins Comparative Nonprofit Sectors Project, 1999. TEXIER, Jacques. Significati di societ civile in Gramsci. Critica Marxista, Roma, a. 26, n. 5, p. 5-35, set. ott. 1988. VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalizao. Record: Rio de Janeiro, 2000.