Romance Das Ilhas Encantadas
Romance Das Ilhas Encantadas
Romance Das Ilhas Encantadas
2 Como as ilhas foram encantadas Em tempos que j l vo, um bispo nigromante encantou as ilhas do grande mar Oceano. E ningum mais desde essa hora conseguiu saber ao certo onde ficavam. Porque ora sabereis antes do tal encantamento, ainda que rara vela se afoitasse ao largo, jamais as ilhas se furtavam ao olhar dos homens e, de longe em longe, um ou outro navegante as avistava. Sabia-se at que S. Brando, um Santo navegante, embarcara na Irlanda com 75 monges, que um vento misterioso inchara as velas do navio, e em meio de cantos e msicas de anjos, o levara a uma dessas ilhas, na qual ficava o Paraso. Mais tarde, quando os moiros conquistaram aos cristos as terras que hoje compem a Espanha e Portugal, sete bispos embarcaram no Porto com os seus fiis e, navegando para Ocidente durante longo tempo, conseguiram abordar tambm algumas dessas ilhas. Mas, chegados ali, os bispos queimaram os navios, as velas e tudo o que era indispensvel navegao ao largo, para que a sua gente no pensasse mais em regressar. Foi ento que o bispo do Porto, aquele que era nigromante, isto , que conhecia as artes mgicas, encantou as ilhas para que ningum mais as abordasse, enquanto os cristos no tivessem
reconquistado aos moiros todas as suas terras. S assim se julgaram seguros de que os seus inimigos os no fossem ali mesmo perseguir. Depois disto, numa daquelas ilhas, cada bispo com a sua gente construiu uma cidade e por esse motivo lhe chamaram a Ilha das Sete Cidades. E durante alguns sculos os homens no puderam visitar as ilhas do Oceano. Os moiros, esses, diziam que para Ocidente, havia no mar tamanha escurido, que era impossvel seguir para diante. Alm disso, das entranhas da gua cor de pez saam bastas vezes monstros espantosos - drages e serpentes enormes que ao escancararem a goela desmedida, exalavam um hlito por tal modo ftido e pestfero, que de pronto matavam a quantos por m ventura o respiravam, e outras vezes com as suas terrveis queixadas partiam os navios pelo meio. Por isso rabes e moiros chamavam Mar Tenebroso ao Oceano. E os marinheiros seguiam com os navios ao longo da costa, de porto a porto, sem se aventurarem ao mar largo, com receio das trevas e dos monstros. S os cristos sabiam que nalgumas dessas ilhas do Oceano reinava uma constante Primavera: as rvores estavam sempre cobertas de flores e frutos saborosos; e as aves enchiam de cantos as florestas. Outras ostentavam cidades to maravilhosas, de tantos palcios e riquezas, que era de oiro mesmo o p do cho. E os marinheiros que alguma tempestade havia surpreendido e atirado dias e noites sem parar para a infinidade do mar largo, se acaso podiam regressar sua terra contavam sempre histrias de pasmar. s vezes diziam eles avistavam as ilhas de bordo dos navios. Ao passo que se aproximavam delas, os montes, as baas, os bosques e os belos edifcios, que eles contemplavam com assombro, 3 cresciam a seus olhos pouco a pouco. Chegavam a ver as agulhas das torres e os ramos das rvores mais altas reflectidas nas guas remansosas, a aspirar o perfume das rvores em flor que se espalhava ao largo, e a ouvir os sinos repicar ao longe. Mas, quando deitavam os batis ao mar para saltar em terra, um vento irresistvel os atirava em direco contrria, um cerrado nevoeiro se interpunha ou a ilha se sumia e apagava no ar como um pouco de fumo. Acontecia at s vezes que sobre o mar de sbito deserto os marinheiros espantados sentiam mais de perto o sopro rescendente dos aromas da terra, ouviam mais ao p os sinos tocando alegremente e vozes, gritos, gargalhadas, como se a ilha mais os habitantes corressem junto deles, tornados invisveis. Assim, com palavras de espanto, eles contavam a viso maravilhosa das ilhas que tinham entrevisto. E logo os outros homens ardiam no desejo de as ver e visitar. Muitos partiam, mas quando, guiados por informaes, tentavam encontr-las, jamais davam com elas. Chamaram-lhes as Ilhas perdidas. S as mulheres marinhas (ou, por outro nome, as ondinas), que eram filhas do mar e conheciam todos os segredos do Oceano, lhes sabiam o paradeiro certo. Prendera-as ao encantamento das ilhas o bispo nigromante com as suas artes mgicas. E eram elas que desviavam os navios, quando estavam prestes a abordar as ilhas, que espalhavam no mar os nevoeiros para as esconder e as tornavam invisveis aos olhos dos marinheiros assombrados. Em boa verdade, o encanto das ilhas encantadas s poderia quebrar-se inteiramente, conforme o desejo do bispo, quando os moiros fossem expulsos de toda a terra de cristos na Espanha.
Mas, se, at l, algum homem da terra conseguisse casar com uma das tais mulheres marinhas, os seus filhos por herana materna poderiam desencantar algumas das ilhas encantadas. A caada de Dom Froiaz Ora mais tarde, quando o senhor rei D. Afonso Henriques andava conquistando aos moiros as boas terras portuguesas, houve certo fidalgo, chamado Dom Joo Froiaz, que habitava no Minho um formoso castelo para as bandas do Mar. Era o fidalgo grande amante de caadas e correrias pelas selvas. E quanta vez tendo partido para a caa antes do amanhecer, s noite feita regressava ao palcio! Uma bela manh Dom Joo Froiaz, ainda o Sol se no erguera, partiu com os seus monteiros a caar. Encaminhara-se o fidalgo para a beira-mar a urna cerrada selva s dele conhecida e onde, num apertado vale entre dois montes, se despenhava uma ribeira fria. Mais que urna vez, dobrada a encosta dum ou doutro lado com cautela, conseguira apanhar de surpresa veado ou cora, que viera matar a sede s guas frescas. O sol nascera enfim. Luzia ao longe o mar. Mas no fundo dos vales que iam dar costa, grandes rolos de nvoa desprendiam se a custo e pouco a pouco dos braos verdes do arvoredo. Duas boas horas correra o cavaleiro pela brenha orvalhada e nem sombra de caa aparecera. Dom .Joo Froiaz lembrou-se ento de ir quela garganta entre os dois montes, por onde as guas desciam at unir-se ao mar. certo, pensava ele, que s tarde usavam os veados, quando fatigados das corridas ou dos dias mais quentes, ir l matar a sede. Mas, pois, at quela hora, por onde andara a caa no surgira, resolveu-se a procur-la nas abas da ribeira. Mais devagar! Calai os ces! Tende-vos na descida! dizia o cavaleiro para os homens, mal 4 ouviu no silncio da selva chalrar as guas que iam de pedra em pedra. Talvez que na margem da ribeira esteja bebendo algum veado! Cautelosos e apoiando-se aos troncos, os homens desciam pela encosta. Mas apenas se ouvia mais esperta e fresca a voz das guas ou ramo solto que tombava. J o cavaleiro e os seus homens, tendo chegado junto beira-mar, desanimavam, Mas eis que um deles, o que ia frente, estaca, e voltando atrs transtornado pelo espanto, exclama com voz surda: Chus! Calai-vos! Senhor; estranha caa tendes! L no fundo, a trinta passos do mar, que no mais, via-se, de meio corpo na ribeira, que ali se misturava com as guas salgadas, e a cabea sobre as plantas da margem, uma mulher deitada. Era uma mulher marinha, uma filha do Mar, que dormindo se esquecera no sossego doce da manh. J Dom Froiaz caladamente erguera o brao, dando sinal aos homens para fazerem alto. Depois deitou-se do cavalo abaixo. E, p ante p, com as maiores cautelas, dirigiu-se ao lugar onde a mulher marinha adormecera. Eis que, a meio caminho, um ramo estalou sob os seus ps. A mulher acordou; olhou volta; e mal que viu o cavaleiro levantou-se de salto e abalou de corrida em direco ao mar. Mas as mulheres marinhas correm melhor nas ondas do que sobre o cho. E Dom Froiaz, mais ligeiro que os gamos da mata, foi-lhe no encalo e j quando ela molhava os ps nas ondas conseguiu deitar-lhe os braos e arrast-la consigo para terra. De cabeleira solta e mal coberta com o seu vestido de algas, a filha do Mar esbracejava inutilmente entre as possantes mos de Dom Froiaz.
Mas - coisa estranha! - nem palavra de queixa se lhe ouvia! Por fim deixara de lutar. Contentes, os monteiros riam. Dom Froiaz subiu para o cavalo, e, com o auxilio dos seus Homens, ergueu-a sobre a sela. E, sem tardar, maravilhado e satisfeito com to nova caa, abalou direito a seu castelo. Como D. Marinha se fez humana Passado tempo, Dom Froiaz casou com a filha do Mar, depois que esta se baptizou com o nome de Marinha. E com receio de que algum dia a vencesse a tentao do Mar e ela fugisse, levou-a o cavaleiro para longe, para certo desvo, escondido na serra, onde tinha outro castelo. Mas D. Marinha, em seu palcio, ainda que o marido a rodeasse de cuidados, tinha dias em que os olhos se lhe tornavam dum verde muito escuro como as guas do Oceano, quando se aproxima a tempestade. E ento dava suspiros fundos. Eram saudades que sentia do Mar. Em tais ocasies s parecia ter algum alivio passando horas inteiras nos pinhais que rodeavam o castelo. que os pinhais, quando por cima deles passa o vento, so como os bzios: escutase l dentro a voz do Mar. Mas fora dos suspiros que soltava em tais momentos, nem uma palavra se lhe ouvira. E debalde Dom Joo Froiaz tentara todos os meios para que falasse. No entretanto o casal j tinha filhos. E a um mais que aos outros se afeioou D. Marinha, talvez 5 porque era de gnio inquieto e bravo, e assim mais parecido com seu av - o Oceano. Tantos extremos no deixaram de ser considerados pelo cavaleiro. E, no desejo de a ouvir falar, imaginou um novo ardil com que a fizesse destravar a lngua. Mandou acender em seus paos uma grande fogueira. E, quando a me vinha de fora, trazendo ao colo aquele filho que mais que tudo amava, o cavaleiro, fingindo grande clera, correu direito a ela, e arrancando-lho por fora virou-se para o fogo, com o jeito arrebatado de quem o quer arremessar ao lume. E um espantoso caso se viu naquela hora. D. Marinha ergueu os braos, correu, levou as mos ao peito e, no esforo terrvel de salvar o filho, soltou um grande e rouco brado, como se fora dalgum monstro marinho. Depois deu outro brado mais claro e outro ainda, at que se lhe ouviram, cortadas de aflio, as primeiras palavras: Ai! o meu filho! Dom Froiaz, cheio de alegria, ps-lhe o filho ao colo, e animandoa com palavras carinhosas, logo lhe disse como tudo fora amor e fingimento para que a fala lhe nascesse. E, desde ento, at ao fim da sua vida falou D. Marinha.
A infncia dos Marinhos Quebrara-se enfim o encanto da mulher marinha. Desde que, pela primeira vez, por amor de me se lhe soltara a lngua, tomouse inteiramente humana. Mas mal perdera um, logo ficara para sempre presa a outro encanto, que tanto Dom Froiaz como D. Marinha mais do que nunca se sentiram encantados um do outro.
De sorte que, tendo ela vencido a pouco e pouco a tentao das guas, o cavaleiro resolveu-se enfim a regressar ao seu castelo beira-mar. E quantas vezes, depois que ali chegou, olhando as ondas, D. Marinha, perturbada at o fundo da alma, sentiu desejos de partir de novo! Mas logo o amor de me e de mulher vencia a dura tentao. Um dia, to segura de si mesmo se sentiu que se voltou de novo para o Mar. Na praia, Dom Joo Froiaz via-a com pasmo boiar, correr, sumir-se, aparecer, cortando as ondas com ligeireza incrvel. E um momento que a viu afastar-se da praia e de arrancada entrar pelo mar dentro, corno o barco que soltou a vela e abala para o largo, sofreu o cavaleiro inquietaes mortais, no receio de que ela fugisse. Mas dentro em pouco D. Marinha regressava. O encanto fora vencido para sempre. E, desde ento, quando vinham do castelo at a beira-mar, e que D. Marinha brincava sobre as ondas, no mais o cavaleiro sentiu receio ou dvida. E comeou para seus filhos uma vida de encanto e maravilha Manhs, tardes inteiras, os pequenos Marinhos se ficavam na praia. Uma atraco irresistvel os prendia s guas. Entravam pelas grutas e cavernas que se abrem nas costas escamadas E os mais velhos eram como golfinhos a nadar. E o mar que os conhecia, todos os dias com cuidados de Av, arrancava do fundo coisas maravilhosas para divertir os seus netinhos Hoje eram bzios enormes, que eles a muito custo conseguiam arrastar e levar para o castelo. Amanh as varias conchas de moluscos, de finas cores e feitios estranhos: aquelas que tm o nome e a forma duma harpa; as que imitam a mitra que os bispos trazem na cabea e como tal so nomeadas; o fuso longo, que lembra um fuso de fiar: O bzio turriculado, chamado assim por ter a forma duma torre; e o murex de espinha fina, todo eriado de agulhas delicadas. Outras vezes, onda a onda, vinham ter praia as espcies mais raras de vieiras, desde as pequeninas que mal se vem sobre a areia, at aquelas que lembram grandes leques, de varetas abertas, e que so cor de sangue, cor-de-rosa, cor de oiro e mel. Chamavam-lhes So Tiagos nesse tempo e ainda hoje em algumas povoaes martimas do Norte, porque os romeiros quando partiam nas peregrinaes a S. Tiago de Compostela na Galiza, as levavam como distintivo no chapu. No faltavam tambm aquelas lindas conchas redondas e estriadas a que chamam patelas, quase sempre de cor verde e muitas vezes estreladas. E to-pouco os ramos finos de coral vermelho, as estrelas do mar de vrias cores movendo os grandes braos, as madreprolas, os ourios e os coraes da ndia. E at, de quando em quando, o Mar tirava das entranhas as jias mais belas que possui e vinham ter praia, presas ainda concha, prolas enormes, redondas e macias, como lgrimas de luar e cu amanhecente. Ora um dia sucedeu que Dom Froiaz viera sozinho com seus filhos para a praia; e um deles, o mais mocinho, que mal se erguia ainda sobre as pernas, conseguiu, por descuido do pai, trepar a um recife, que entrava pelo mar, e seguir por ele at a ponta. De sbito veio uma onda que o levou e, depois de o prender naquele redemoinho em que elas se desfazem, atirou o menino para o largo. Na praia Dom Froiaz corria como louco, bradando de aflio e entrava j vestido pelas guas, posto que nadar no soubesse, quando o Mar como por encanto sossegou e alevantou-se em todo ele uma onda enorme, que corria para a terra e sobre a qual a criana sem temor boiava.
E, na crista da onda que o sustinha com delicadeza carinhosa, Dom Froiaz com grande espanto viu as mos do Av-Oceano erguer, inclinar e depor na areia o pequeno Marinho com to suave jeito corno as mes, quando deitam um filho adormecido sobre o bero.
A adolescncia dos Marinhos Nesse tempo a costa Portuguesa era mais retalhada do que hoje pelo Mar. Os rios, como o Lima, o Douro, o Vouga, o Mondego, o Tejo, e a ribeira de Portimo tinham esturios mais profundos, por onde o Mar entrava, carregado de peixes, de sal e maresia, at o interior das terras. Onde fervilha hoje a populao de pescadores da Nazar, o Mar cobria a praia. S o promontrio do Stio avanava o agudo espigo sobre o abismo, mais profundo naquele tempo. Foi mais tarde que a Virgem salvou a vida de D. Fuas Roupinho, primeiro almirante de Portugal, que era do sangue dos Marinhos, suspendendo no ar e sobre as guas as patas dianteiras do cavalo em que montava. Mais ao Sul, onde hoje se arredonda como um anel a concha de So Martinho, um grande golfo entrava pela terra dentro at Alfeizero, povoada por mouros. Mais adiante, A Lagoa de bidos invadia tambm a terra profundamente at a povoao que tomou aquele nome dos romanos. A poro de costa, onde hoje assenta Peniche e o Cabo Carvoeiro, formava ilha. Eram mais profundas as furnas do Cabo e mais alterosos e fantsticos os seus penhascos. Na Berlenga, maior que hoje e que mergulhava no Mar, translcida como uma safira, havia um castelo e um palcio rabes maravilhosos. Os Normandos, que ainda desciam dos pases do Norte nos seus grandes barcos, com proa e popa em meia-lua, como as xvegas e os saveiros de hoje, penetravam nos esturios dos rios, ora em som de comrcio, ora em guerra de piratas. As vezes, a meio do combate, abandonavam alguns dos barcos mais pequenos nos recantos solitrios da costa. E os Marinhos, que j eram rapazes, se acontecia encontrar um desses barcos Normandos, entravam neles, tomavam os remos ou iavam a vela e visitavam as baas, os promontrios, as lagoas e as ilhas, ao longo da costa. Viram no Mar boiar, como grandes jangadas prestes a naufragar, as mantas de sargao, cor verde-amarelo de azeitona. E acostumaram-se a conhecer as aves que vivem nos terrenos hmidos junto das lagoas, altas de perna e longas de pescoo as cegonhas, as garas e as abibes; as que se escondem entre os canaviais, os funchos e as ervas altas, beira dos pntanos e nadam tanto como voam -- os mergulhes, os patos bravos e as galinhas de gua; os pssaros mais velozes, que vivem correndo em bandos na vasa das mars os maaricos, as tarambolas e os borrelhos, to rpidos que alguns se chamam curre-curres; os que vivem nos rochedos junto da costa, negros como eles as andorinhas do mar e os corvos marinhos; as gaivinas e gaivotas que voam sobre as ondas, com grandes asas lentas, mas entram muito pela terra dentro; ou as que vivem no mar e raras vezes aparecem na costa, como as almas-de-mestre, os calcamares e as pardelas. Se acontecia visitarem os esturios dos rios mais distantes, para o Sul, viam com pasmo as mais belas e extraordinrias entre as aves da beira de gua os flamingos. Brancos de neve, com as asas rosadas por baixo e mais ligeiramente por cima, pernas altssimas e finas, pescoo longo e extremamente mvel, quando largavam para longe davam a singularssima impresso de que passava no ar um voo de labaredas. E quando voltavam ao castelo, j tarde e em noites de luar, viam s vezes cruzar no cu os bandos de aves migradouras que partiam para os pases distantes. E, mais que todos, os maravilhava o voo dos patos bravos, negros e formados em V, desenhado a nanquim sobre a neve da lua.
O encanto de desencantar as ilhas O certo que todos os filhos de Dom Froiaz e de D. Marinha, quanto mais cresciam, mais neles se mostrava que eram netos do Mar. J de pequenos (dizia o povo que habitava perto do castelo), pelos longos seres de Inverno, os Marinhos punham o ouvido escuta nos grandes bzios que tinham da praia acarretado e escutavam as histrias que o Mar, para entret-los, de l de dentro lhes contava. Em dias de tempestade, quando as guas rugiam, viamnos muitas vezes descer costa e iam to perto delas que outros afirmavam que o Mar os conhecia e as ondas lhes falavam. Fosse l como fosse, ningum, como os Marinhos, conhecia os segredos do Oceano. Em terra alguma, fora possvel encontrar quem sobre as ondas guiasse com mais destreza e a salvo, numa longa derrota, a vela duma barca. E em breve tanta fama ganharam que eram tidos e havidos pelos melhores mareantes do seu tempo. Ora um dos Marinhos, o mais novo, a quem chamavam o Machico, ouvira muitas vezes falar das ilhas encantadas e muitos marinheiros lhe contavam que as tinham conseguido ver mas jamais abordar. E o Marinho, tendo sabido que as ilhas eram to formosas que numa delas encontrara S. Brando o Paraso, concebeu dentro de si um ardente desejo de ir busca delas. E havendo carregado a sua boa barca de mantimentos e de aparelhos necessrios, o Machico partiu. Mais no seriam andados que quatro ou cinco dias, quando, depois de ter seguido em certa volta que lhe haviam ensinado, uma bela manh, ele e os seus homens viram no horizonte nuvens ou 8 nvoas que pousavam sobre o mar, sinal certo de alguma ilha ou terra prxima. Cheio de alvoroo, o Machico seguiu naquela direco. E ao passo que se aproximava, vinham aos seus ouvidos estrondos furiosos, como se penhas ou cataratas invisveis cassem sobre o mar ou as ondas se atirassem com mpeto de encontro a alguma escarpa alcantilada. Mas a nvoa sua frente tornara-se to densa que era impossvel lobrigar sequer a ponta duma rocha. E agora que a barca estava perto, ouviam-se distintamente tantos e to violentos baques e ribombos que os marinheiros do Machico, plidos de espanto, faziam o sinal da cruz, e j uns para os outros murmuravam que ali era a entrada do Inferno. E tamanho temor entrou com eles que uma gritaram para o capito: Senhor, faamos vela para Portugal, ou nos vamos perder todos! Mas o Machico bradou-lhes com palavras de valoroso incitamento: Avante! No temais! So as ondas a bater na costa. Estamos quase vista dalguma das ilhas encantadas! De sbito a nvoa comeou a descerrar-se como se invisveis mos apartassem uma cortina para os lados. E viu-se um espectculo to belo que pelos marinheiros passou um calafrio e alguns ajoelharam de pasmo sobre as tbuas da barca. sua frente alevantavam-se rochas alterosas a prumo sobre as ondas; selvas de rvores frondosssimas vinham de escarpa a baixo at a gua; e para alm cerros de macia curva desdobravam-se a perder de vista! Era uma das ilhas encantadas que se erguia para o Cu, corno um altar de serras e arvoredos entornando ondas de cantos, de cores e de perfumes sobre o Mar! O Machico mais os seus mareantes cuidaram logo de saltar em terra. Estavam numa ilha onde o ar era morno e suavssimo. To cerradas se estendiam as florestas sobre a ilha, que s a muito custo conseguiam romper por dentro delas. Das rvores pendiam flores de infinitas qualidades. E dentro em pouco aqueles homens saciavam a fome na polpa saborosa de frutos nunca vistos.
E em tudo sua volta, desde os alcantis de rocha viva, que semelhavam monstros, palcios ou torres e pontes levadias de castelos, erguidos sobre a beira-mar, at aos recantos das florestas virgens, to rescendentes e viosas, como enormes cavernas de ramos e de flores, eles no se cansavam de pr olhos dilatados de espanto. Mas o que mais assombro lhes causou foi ver que quantos animais habitavam a ilha no mostravam o menor receio daqueles novos habitantes. As focas, nunca por eles vistas, e s quais puseram o nome de lobos marinhos, com que por muito tempo se chamaram, deixavam-se ficar, se eles se aproximavam, como se nada tivessem que temer. E as aves, essas, cheias de confiana, deixavam-se colher e vinham poisar-lhes sobre as mos ou cantar-lhes sobre os ombros. Era tamanho o esplendor da ilha, a suavidade dos ares e a inocncia natural dos bichos, que o Machico se convenceu Ter aportado quele mesmo lugar do Paraso, a que outrora S. Brando com os seus monges conseguira abordar. E porque a terra era toda coberta de florestas, como ele nunca vira, chamou-lhe a ilha da Madeira.
O Infante Navegador e os Marinhos Mais tarde, um filho de D. Joo I, o qual se chamou o Infante D. Henrique, e a quem, quando era moo, o Machico j muito velhinho contara a histria da ilha que ele achara, ps na sua vontade descobrir as outras ilhas encantadas, que havia no grande mar Oceano. E tendo reunido os melhores astrlogos que havia nas Espanhas, os quais conheciam tambm as artes mgicas e entendiam o futuro pelo movimento das estrelas, conseguiu saber o segredo das ilhas encantadas e o modo de as desencantar. J neste tempo eram muitos os Marinhos e, por serem descendentes do Oceano, tinham aprendido a guiar-se, de dia ou de noite, ao largo, pela posio do Sol e das estrelas. Sabiam, como ningum, aproveitar ou evitar as correntes do Mar e estender a cada vento as velas para andar sobre as guas. E como ento, alm das gals, os navios de guerra desse tempo, as naus que empregavam no comrcio e nas viagens eram pesadas embarcaes com a vela redonda, construram eles navios mais ligeiros, aos quais chamaram caravelas e ao contrrio das naus tinham as velas inclinadas e esguias como asas de gaivotas. Os Marinhos tinham-se tomado assim os melhores marinheiros que havia em todo o Mundo. O Infante D. Henrique ento fundou uma vila no Cabo de S. Vicente, que est no extremo sul de Portugal e juntou ai os Marinhos mais marinheiros que havia em todo o Reino. Depois de juntos, aprenderam uns com os outros e com os astrlogos do Infante e tomaram-se invencveis na arte de domar as ondas. E da costa algarvia partiram nas suas caravelas a descobrir os segredos das terras e dos mares. Ora uma das caravelas do Infante, tendo partido para o Ocidente e navegando muitos dias sem parar, conseguiu, no obstante os ventos que se opunham e os nevoeiros que lhes escondiam o caminho, aportar a outra das ilhas encantadas e, por sinal, a que fora chamada, em memria dos sete bispos e das cidades que fundaram a ilha das Sete Cidades. Muito se espantaram os marinheiros portugueses dando com uma ilha povoada e ao desembarcar numa bela cidade cheia de palcios e riquezas. E no menos pasmavam os habitantes dessas ilhas ao ver pela primeira vez, passados alguns sculos, outros homens aportar sua terra. No cansavam de se admirarem uns aos outros. E os da ilha, para conhecer se eram cristos os navegantes, cuidaram de conduzir alguns a uma igreja. E quando viram que tambm eles rezavam e 9
adoravam a Cruz, deram grandes mostras de alegria e pediram-lhes que no partissem enquanto no viesse o senhor daquela terra que se tinha ausentado, mas que por certo folgaria de v-los e fazerlhes honras e presentes. Mas o capito e os marinheiros da caravela temeram-se que os habitantes da ilha para conservar o seu mistrio os prendessem e lhes queimassem o navio. E, dando s velas sem demora, partiram para Portugal e foram-se contar o seu descobrimento a D. Henrique, o qual ficou deveras satisfeito e muito mais, depois de ver que parte da areia colhida pelos marinheiros nessa ilha era de oiro fino. Alvoroado com to boas novas, o Infante encomendou-lhes muito que voltassem l, prometendolhes armar outros navios com mais gente, para visitarem a ilha sem temor e trazer dela mais certa informao. Eles assim fizeram e acompanhados de outras caravelas dirigiram-se ilha. Mas, quando ali chegaram e a abordaram, por mais que procurassem j no havia nem cidade, nem palcios, nem igreja, nem homens! S a ilha ali permanecia formosa como sempre; e no lugar onde outrora tinham sido as cidades no extremo ocidental, por mais oculto aos navegantes, havia agora apenas, entre as altas montanhas, um abismo enorme e ao fundo um grande lago! E os Marinhos continuaram a descobrir e a desencantar as ilhas. E ainda hoje naquela ilha, que se chama agora S. Miguel, existe esse lugar maravilhoso e com aquele antigo nome as Sete Cidades. O grande abismo, que parece uma enorme cratera de vulco, rodeia-se a toda a volta duma cinta de cerros, que medem quase 900 metros de altitude. As suas abas esto revestidas, de alto a baixo, duma vegetao riqussima. E l no fundo os olhos contemplam com assombro uma lagoa de alguns quilmetros de extenso, metade azul, metade verde, e em parte coalhada com as folhas e as flores dos nenfares. Afirmam aqueles, que algum dia viram l do alto esse espectculo e desceram depois pelos carreiros at o lago, que no h em todo o Mundo to maravilhoso panorama. E bem se mostra por aquela estranha formosura que foram noutro tempo ali as Ilhas Encantadas. Tambm na outra ilha, a da Madeira, h um lugar a que chamam o Machco, do nome do seu descobridor, e Outro Cmara de Lobos, pelo grande nmero de lobos marinhos que ali viviam; e ainda hoje nessa ilha reina uma Primavera eterna, como no tempo em que S. Brando a visitou. E por fim, meus amigos, vos direi: Marinhos, foram tambm Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Pedro lvares Cabral e os irmos Corte-Reais que conseguiram arrancar aos mares os seus maiores segredos. Mas, s quando os cristos conquistaram o reino de Granada, ltima parte das Espanhas, que estava em mos de moiros, ento de todo se desencantaram as terras, as ilhas e os mares, que, havia tantos sculos, estavam escondidas no grande mar Oceano. 1 0
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