raa-n-16-mar-1989

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cadernos

CANUDO MEN3ES

A francofonia nas relações França-África


Sistema eleitoral e partidos no Japão
O negro na literatura e literatura negra
Duas análises sobre teatro negro
Escravidão: as transações de compra e venda
Repressão aos capoeiras no século XIX
Cidadania, criminalidade e trabalho livre
Revisitando a “democracia racial”
Blocos afro na imprensa baiana
Miscigenação racial no Brasil

. 16
Desigualdades raciais e a família

estudos
AFROASIÁUCOS

.*^s
N® 16-Março de 1989 ,ssn 0,0,-546«

* toí ^ Centro de Es‘ud°s Afro-Asiátlcos - CEAA


onjunto Universitário Cândido Mendes

Diretor
Cândido Mendes

Editor
José Maria Nunes Pereira

Conselho Editorial
Candido Mendes, Carlos A. Hasenbalo r-
-Mariana'6''3’ JUareZ P'nheir° ^^o. Luiz Claudio í ^7' JaCqUeS d'Adesky-José Maria
YvonnX T Ga'Vâ°’ ^ Maria Santos Go'pot' e'S°n d° Valle Silva- OIMa
Yvonne Maggie anloa Gomes, Tereza Cristina Nascimento Araujo e

Conselho Consultivo
Beatriz Góis Dantas, Carlos Moreira Henri
Moura, Eduardo J. Barros, Fernando A. Albuquero^M0’ C,imêr'° J°aquim Ferreira, Clóvis
Joao José Reis, Joel Rufino dos Santos, Juana Elbei ^“e °’ J°ão Baptista Borges Pereira,
nanga, Manuela Carneiro da Cunha, Maria Beatrix n S ant°S’ Júlio Braga. Kabengele Mu-
Octávio lanni, Roberto Motta e Robert W. Slenes aSC,mento’ Marisa Corrêa, Milton Santos,

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20011 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil * 622 ~ Ramal 59

Estudos Afro-Asiátlcos tem o apoio da Fundação Ford

4
\

A francofonia no quadro das relações França-África 7


Hélène Monteiro
Discute a importância da francofonia na reprodução das desigualdades no âmbito das rela­
ções França-Afnca e evidence sua inserção num conjunto mais amplo de interesses na cena
internacional.

Imigração japonesa no Brasil - 80 anos i6


Katsunori Wakisaka
Esboça a trajetória dos imigrantes japoneses p ■ . „ .. . . -___
quando chegaram ao País os primeiros imigrantes e conciu^^^ 00 raS' deS^e 9(?’
na sociedade brasileira se encontra ^ curso de ^ ^^ '“^

A Fundação Japão no Brasil 25


Pesquisadores do CEAA entrevistaram 0 diretor Ha f
tivos dessa instituição e suas linhas de atuação no Pals ^^ JaP§° ^ BraSÍ’ ^^ °S ^

XS "■“' "^ ’ “a«“ ~ ^ (»'•») »


Resume as principais características do sistema ..
uma relação entre os sistemas eleitoral e partídário ' ™ ^ d° ^^ ^^
dos políticos, encerrando com uma critica a certas X , X” ^ P
H cerras abordagens tradicionais desse tema.

Luiz Gama: uma trajetória além do seu tempo 59


Luiz Silva (Cuti)
Traça a trajetória de um dos primeiros vultos do abolicionismo, sublinhando o caráter de sua
luta de negro no plano social e ideológico; considera Luiz Gama precursor da negritude.

Estereótipos de negro na literatura brasileira: sistema e motivação histórica 70


Beto Mussa T
Ao analisar os estereótipos do negro na literatura brasileira desde o século XIX, desvela que
sob eles se percebe que os negros possuíam forte identidade cultural e potencial de ação po-
ca, viabilizando suas estratégias sociais e suas próprias formas de representação do mun­
do e de reversão simbólica da realidade adversa.
A pioneira maranhense Maria Firmina dos Reis 91
Luiza Lobo
Revela o papel da escritora maranhense Maria Firmina dos Reis, autora do primeiro romance
brasileiro sobre tema abolicionista, como um exemplo fundamental para a reescrita da literatu­
ra brasileira a partir da reintegração dos valores intelectuais negros, e salienta a defesa ideo­
lógica que fez do grupo étnico já no século XIX.

Uma perspectiva de análise para o teatro negro americano 103


Sandra L Richards
O artigo propõe quatro concertos de análise para o teatro negro americano e se concentra
nos dois primeiros: o da máscara e o do sentido de uma dupla consciência, advindo daí uma
identidade fraturada (americana e africana).

Identidade e ruptuid no teatro do negro 112


Leda Maria Martins
Apresenta uma reflexão sobre a questão da identidade da persona negra no teatro do Brasil e
dos Estados Unidos e focaliza a ruptura provocada pelo teatro do negro no tratamento ficcio­
nal do negro na dramaturgia dos dois países.

Negócios da escravidão: os negros e as transações de compra e venda 118


Sidney Chalhoub
Analisa as percepções e as atitudes dos escravos diante das situações de transferência de
propriedade, especialmente os negros vindos das províncias do norte. Estes contribuíram
consideravelmente para o aumento da resistência à escravidão.

O “saudável terror”: repressão policial aos capoeiras e resistência dos escravos


no Rio de Janeiro no século XIX 129
Thomas H. Holloway
Apresenta os resultados preliminares de um projeto de pesquisa em curso sobre a polícia e a
sociedade do Rio de Janeiro no século XIX. Entre as numerosas razões específicas invoca­
das para a repressão aos escravos estava a prática da capoeira.

O “cidadão-criminoso”: o engendramento da igualdade entre homens livres e


escravos no Brasil durante o Segundo Reinado 141
Isabel Andrade Marson
Retoma o processo de constituição da imagem de cidadania e Igualdade entre homens livres
e escravos que vigorou após a abolição, analisando o embate partidário entre liberais (praiei­
ros) e conservadores (guabirus) em Pernambuco (1844-1852), desembocando na Revolução
Praieira.

Revisitando a “democracia racial”: raça e identidade nacional no pensamento


brasileiro 157
Denise Ferreira da Silva
Procura demonstrar como as discussões acerca do negro e das relações raciais no Brasil
vinculam-se à questão mais abrangente da nacionalidade e quais as implicações desse fato
para a compreensão do que chamamos ideologia racial brasileira.

Impressões da festa: blocos afro sob o olhar da imprensa baiana 171


OKvia Maria dos Santos Gomes
Analisa o modo como os blocos afro foram descritos pela imprensa baiana durante o carnaval
dos anos de 1970. Iníciaimente chamados de racistas, a imprensa passou depois a asso­
ciá-los ao pluralismo cultural de Salvador, onde uma população negra e pobre pode dançar
ordeiramente.

Notas sobre miscigenação racial no Brasil


Caríos A. Hasenbalg, Nelson do Valle Silva e Luiz Cláudio Bar !
Analisa a composição
na combinação racial
entre os da população
grupos brasileira
raciais, com bas ’ Pr°Curando perceber qual é a tendência
conclusões está a de que os filhos de casais ex Uma amosíra da PNAD-82. Entre as
que a mãe é mais clara que o pai, e que os indivtd^03 Sâ° maís numerosos no caso em
a do pai, bem como aquela que aponta qUe o tendem a se9uír a cor da mãe mais que
damente no futuro próximo. y upo Pardo é o que deverá crescer mais rapi-

As desigualdades raciais em dois tipos dP t


Moema de Poli Teixeira Pacheco ’amilia jgg

Enfoca, com dados do Censo Demográfico d


giões do Brasil (Nordeste e Sudeste), com aOn^?’ fam"ias brancas e negras, em d“® ro­
que associam a melhoria das condições de vida d ® d® verificar a procedência das teses
ve!" de estrutura familiar em meios de maior de« P°pu,aÇã° negra com um tipo mais "estâ-
envolvimento econômico.

Notícias do CEAA
A FRAMCOFOMIA
MO QUADRO DAS
RELAÇÕES
FRAMCA-ÁFRICA

*
Hélène Monteiro

* Mestranda em Sociologia no Instituto de


Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e pes-
Quisadora do CEA A.

^^osAfro-Asiáticos n^ 16,1989
Introdução
Na hierarquia entre os Estados, enquanto
atores na cena internacional, a França desem­
penha papel secundário se comparada às duas
potências mundiais - União Soviética e Esta­
dos Unidos. Apesar de suas pretensões de ex­
pandir sua influência por todo o mundo, o Es­
tado francês, devido a seus limites, se vê obri­
gado a restringir sua atuação a um setor parti­
cular das relações internacionais. Três fatores
garantem a esse ator estatal sua capacidade de
intervir na esfera internacional: a condição de
Estado nuclear, o fato de ser membro perma­
nente do Conselho de Segurança da ONU e o
status de Estado com interesses mundiais.1
Mesmo sendo importante pólo de irradia­
ção cultural, a capacidade militar e o poder
econômico do Estado francês não são sufi­
cientemente fortes para permitir-lhe competir
em todos os setores da atividade internacional
com as duas superpotências. Assim, analisando
mais detalhadamente os referidos “interesses
mundiais”, verifica-se que, sem o continente
africano, área historicamente privilegiada da
influencia francesa, essa antiga potência colo­
nial estaria praticamente reduzida à dimensão
européia, ou seja, a uma potência regional.
A manutenção de relações privilegiadas
com a África confere especificidade ao papel
da França no palco internacional. Como assi­
nala Pascal Chaigncau, “não seria demais lem­
brar, com efeito, que é a sua influência ao sul
do Saara que permite ainda à França conservar
o seu estatuto de grande potência ’.3
Dividida entre os projetos mais modestos
da integração européia (o que implicaria ceder
o terreno africano a outras potências) c o de­
sejo de se afirmar intcrnacionalmcnte, a ten
dência da política externa francesa tem sido a
de se definir nitidamente no sentido da manu­
tenção dos seus interesses na África. Para
Pierre Viaud, a França, enquanto media po­
tência, se pretende manter ou desenvolver uma
política internacional-verdadeiramente sigm 1
cativa, deve antes de mais nada garantir o
controle dos ou a influência nos países onde
nenhum outro Estado pode exercê-los cia

7
do Estado-Maior dos Exércitos (1975-80).12
econômicos e políticos explicam a continuida­ tória ligados ao carvão foram c et*v Para Guy Méry, as posições no ultramar de­
mesma maneira. Para compensar sua incapaci­
de das relações França-África. suspensos, mas que as compras es’rat^ * (o vem ser protegidas na medida em que são de-
dade de espalhar alguma influência sobre todas
A África tem uma importância económica urânio continuaram. Por outro la o, en terminantes na definição do papel da França
as partes do globo como uma superpotência, a
essencial para a França enquanto fonte de as condenações verbais à política ° ^ internacionalmente. Em relação às antigas co­
França deve procurar preservar um controle
matérias-primas, mercado para seus produtos se intensificavam, contraditoriamen e q lônias da África Negra, ele preconiza a im­
exclusivo numa região precisa. Segundo
manufaturados, sua tecnologia c a alocação Primeiro-ministro Alexandre Dun^ cjro je plantação de uma política de “acompanha­
Viaud, a manutenção da influência nos Esta­
dos seus capitais, bem como para a implanta­ seu homólogo sul-afncano Cn\ítica externa mento” e não a substituição dos dirigentes lo­
dos da África francófona esteve diretamente
ção de suas empresas. Ela garante, também, à 1985. A grande in°wnÇa°/%^ cais, tendo em conta os meios limitados da
ligada à necessidade de “irradiação” da Fran­
França, a segurança dos aprovisionamentos cm francesa foi sua política tc i - África França, tanto mais eficaz se desenvolvida num
ça.4 Reforçando a concepção de Viaud, Pascal
matérias-primas estratégicas e balanças co­ do no plano econômico, n°s P Moçambi- ambiente de confiança recíproca. Quanto à
Chaigneau afirma que é precisamente essa es­
Austral (principalmcntc ng 1 com as dimensão estratégica das relações com a Áfri­
pecificidade de potência pós-colonial que per­ mercial c de pagamento favoráveis nas suas
trocas com o continente africano. Além disso, ca em geral, Méry acredita que elas precisa­
deu a Indochina mas soube preservar sua di­ ......... ............... ...............................................................
o mecanismo da Zona do Franco, implantado riam ser resgatadas, nomeadamente com os
mensão africana que faz da França um Estado
atípico no concerto das relações internacionais em 1962, proporciona à França um papel de­ países da África Austral, em relação aos quais
deste fim de século. Nessa mesma linha de ra­ patamar mc"°s^ Guiné-Bissau c Cabo certas tomadas de posições políticas ou ideoló
terminante na definição da política monetária c
ciocínio, Jean-Pierre Benoît sustenta que o çambique, Botswana, gicas chegaram a vedar os próprios interesses
bancária das suas antigas colônias na África.
fato de a França conservar relações privilegia­ Todas as transações internacionais dos países Verde.9 franceses.
Para José Maria N. Pereira, Marcadas pela desigualdade, as relações
das com a África Negra francófona e manter da Zona do Franco efetuam-sc através do
“a Inglaterra, que já foi a potência colonial franco-africanas traduzem-se por uma intensa
sobre ela sua influência constitui uma contri­ Tesouro francês.6 Os esforços desenvolvidos
número um da África, não conservou, cooperação nos planos técnico, econômico
buição inestimável a seu status de potência pela França junto às instituições internacionais
anesar da Conunonwealth, laços tao íntimos financeiro, militar, político c cultural. A ma
mundial. Segundo esse autor, nem o Reino e européias no sentido da concessão de ajuda
com as suas antigas colonias como a Fran­ nutenção da hegemonia da França, principa
Unido, por falta de solidariedade em relação à financeira aos países africanos membros da
África, nem os Estados Unidos ou até os paí­ ca O número de países africanos da Com- mente na África subsaariana, possui mecanis­
Zona do Franco tiveram uma repercussão po­
molWcahh é de 14, contra mais de duas de­ mos próprios. Analisar esses mecanismos, en
ses socialistas têm igual influência nesse conti­ sitiva na última reunião dos ministros da Eco­
zenas de Estados que participam dos Som- fatizando as dimensões histórica c cu tur
nente; esta, portanto, deve ser defendida a nomia e das Finanças dos países da Zona do ' e tem acordos, inclusive militares, com como fatores decisivos na reprodução
qualquer preço. Reforçar e melhorar a política Franco, realizada em 26 de março de 1988, cm França É preciso, contudo, levar cm mesmos, é a proposta deste artigo. Nesse s
de cooperação com a África francófona deve Bangui.7 • iXrão que os interesses britânicos tido, a francofonia detém particular re evan
ser o fundamento da política internacional No entanto, após ter conhecido o auge em
estão mais concentrados em outras partes na definição das relações França-África.
francesa.5 1984, o comércio franco-africano caiu muito
Dentro desse quadro, é possível entender do Terceiro Mundo, como na índia e no
em 1986, queda essa que se confirmou em
por que, após o curto período da experiência Caribe, por exemplo”’0
1987, segundo as últimas estatísticas. A con­ A francofonia nas relações
socialista, fundamentada na solidariedade com entretanto, a partir de 1986,
tração das vendas francesas é uma das conse- França-África
os povos do Terceiro Mundo para a implanta­ Observa- >^ cmprcsários britânicos cm
qüências da crise financeira e econômica que a
ção de uma nova ordem econômica, a política uma oíensiva francófona. O governo britâ- O que mais caracteriza a política da França
África atravessa. Segundo Jacques Gautrand,
da França de François Mitterand em relação à direçao a A cssc crescente pela África
essa queda das vendas francesas é preocupante em relação à África (essenciahnente,
Africa retomou os rumos tradicionais — a ve­ devido ao lugar privilegiado da África no co­ nico demons COmo no econômico. A ex-colônias) é a continuidade na mudança.
tanto no plano ^ “Ano da África Fran-
lha política inaugurada pelo general De Gaulle Durante o período colonial, a estratégiat das_
mércio externo do Hexagone. De fato, até
e implantada e fortificada pelos governos de operaçao d«» muitos efeitos por ter coin-
1986, o continente constituía o segundo cliente similação garantiu a constituição e u
Georges • Pompidou e Valéry Giscard cófona nao fricana e devido ao esforço
da França depois da Comunidade Econômica zida elite. De fato, a França conseg
D Estaing, respectivamente. Uma herança que cidido com a ens ^ sentido de defen- por para as colônias os valores fundai
Européia - CEE.8 desenvolvido pela
o governo socialista de Mitterrand, tendo em A política levada adiante pelo governo so­ da Revolução Francesa - “überdade ^da
der suas ClMsr«J' G^a ^traté^co-mflitar, o
vista o peso dos laços históricos e dos interes­ cialista francês pretendeu ser inovadora. Efe­
Do P°"° peia África (principal- de, fraternidade” expandindo um _
ses pohtico-estratégicos, mais tem administra­ tivamente, a França foi a primeira a aplicar — tnteresse da Fr“nÇ Pias) é confirmado pelo ção posiüva da sua política na fa_
do que inovado. Parecia que, com esse último em janeiro de 1986 - as medidas aprovadas em mente as ® «; »^ ’ foi suces. sora dos direitos humanos e a i
governo, a política francesa na África sofreria setembro de 1985 pela CEE contra a África
general de exército Guy y 4 . , ciai, justificava-se a transposição dos seu^ *
uma reformulação - e houve de fato algumas do Sul. Mas, além de tardia, essa medida pre­ sivamente chefe do Estado-Maior partícula
tentativas nesse sentido. Na realidade, porém, lores culturais para as colonias
cisa ser analisada mais detalhadamente. Sabe­ do presidente da República (1974-75) e chefe
nada mudou. A persistência dos interesses 9
mos, por exemplo, que os contratos com Pre-
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
8 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
colonização. De outro lado, ancorada no mé­
promoção cultural, social e administrativa, o
todo de “dividir para reinar”, a balcanização
que permitiu a implantação, em todos os ter­
das duas entidades federais, a África Ocidental
ritórios, de administrações e de elites locais.14
Francesa - AOF e a África Equatorial Fran­
De outro lado, analisando a dimensão estraté­
cesa - AEF, visava impedir, a qualquer preço,
gica das relações culturais internacionais, Mô-
a realização da unidade africana. A constitui­
nica Hertz assinala que a difusão de sistemas
ção da elite se efetuou essencialmente ao nível
de valores apresenta ainda uma face econômi­
dessas duas entidades federais, através da con­
ca, interligando-se à criação e reprodução de
cessão da cidadania francesa a um número re­
mercados. A autora concede particular aten­
duzido de africanos. Estes, profundamente
ção à relevância dos projetos culturais na
imbuídos da cultura francesa, vão tentar tri­
constituição da ordem econômica internacio­
lhar a independência no quadro da Constitui­
nal, bem como à dimensão cultural de progra­
ção. A eficácia da política assimilativa fran­
mas em questões como a do desenvolvimento
cesa pode ser ilustrada pela definição de colo-
econômico. Para Mônica Hertz,
n^Çao apresentada por um dos intelectuais
t6f°S(responsáveis Pela elaboração de rela- o mercado de bens simbólicos internacio­
nos tratando da presença francesa na África nal pode ser observado a partir de alguns
apresentados na Conferência Africana Fran­ ângulos propostos por Pierre Bourdieu,
cesa de Brazzaville, realizada em 1944: particularmente porque os bens culturais,
como afirmei anteriormente, são um re­
él o dC T13 humano’ [colonização
curso de poder”.15
o eaiiilíiT ° qU!d ° homem visa estabelecer
o equilíbrio vital entre todos os grupos O papel dos intelectuais enquanto media­
formando a humanidade.”13 dores do consenso deve ser destacado. En­
A partir da Constituição de 1946 nassa a quanto as ideologias legitimam a dominação de
haver representantes eieitos da África CoL cima para baixo”, uma elite mediadora a le­
gítima “de baixo para cima”. De fato, a partir
nunca TcTntece“ a^T'0 °
da metodologia proposta por Pierre Bourdieu
ta rzssões na Áwc’“*0^ para a análise dos modos de dominação, é
possível interpretar a assimetria da interação,
no âmbito da cena internacional, entre a Fran­
ça e suas ex-colônias da África Negra. A re­
Sida^pS^ FTAf™ conversão do capital econômico em capital
simbólico tal como formulada pelo autor per­
permitia aos territôn^X ^^
mite apreender toda a articulação entre o cul­
independência SenL S °ptarem P613
-^(menos^tT^ tural e o econômico16 e a reprodução das rela­
ções França-África.
çao parece uma conseqüênci 8 u ’3 COOpera’ Dentro desse quadro, é possível entender
a fase de acesso à soS» ' Ugando
que os novos acordos concluídos anos depois
dos de cooperação a FZ H“'0"*1 a°S acor’ da independência entre a França e suas antigas
cionalizar o seu domínio poS“^“5“1“’ colônias constituem, na sua grande maioria,
cultural e manter os Estado °f’ eCOnomicoe uma simples revisão dos anteriores e não
dependência quase total Se e H“™8 "r™ questionam de modo algum a hegemonia fran­
e ao Oriente Médio “ á^^
cesa nesses países.
zona relativamente tran - em Sldo uma _ A francofonia é a pedra angular das rela­
francesa. Segundo Ja^H™?ahe8emOnÍa
ções culturais. A idéia de dar conteúdo e for­
deve à política diferente Z'"8“'Isso se ma à comunidade formada por países que
África Negra, baseada no d adÍante na usam de modo diverso uma língua comum é
^eada no desenvolvimento da
antiga. Ela parte do postulado de que a prática
10
Estudos Afro-Asiáticos n^ 16, 1989
de uma mesma língua, fenômeno ele mesmo Na segunda metade do século XX, a França
resultante de laços históricos complexos, estabeleceu três tipos de relações jurídicas com
acarreta uma solidariedade particular e pro­ as suas colônias: o Império, a União Francesa
veitosa às diferentes partes. O projeto de or­ e a Comunidade Franco-Africana, fundamen­
ganização do espaço francófono, ou seja, a tados, por sua vez, nos princípios jurídicos de
emergência do conceito de francofonia, visan­ “presença” e “intervenção”. Após a indepen­
do à implantação de uma cooperação original, dência das suas ex-colônias, a legitimação da
foi, em larga medida, contemporâneo das mu­ hegemonia francesa na África subsaariana tra­
tações político-institucionais ocorridas por duz-se pela elaboração e apresentação da
volta dos anos 60: de um lado, a independência doutrina da francofonia pelos dirigentes afri­
das antigas colônias francesas da África subs- canos.20 Em 25 de março de 1960, em Bangui,
sariana; de outro, a reestruturação nacional o presidente Léopold-Sédar Senghor, no seu
das comunidades de língua francesa minoritá­ discurso de abertura da Conferência dos
rias no seio de certos Estados ocidentais e de­ Chefes de Estados e de Governos da União
sejosas de uma afirmação geopolítica, lingüís- Africana e Malgache - UAM, afirmava a ne­
tica e cultural.17 cessidade dos Estados africanos de língua ofi­
Uma diversidade de países participam da
cial francesa organizarem conjuntamente as
francofonia com maior ou menor intensidade.
suas relações com a França, propondo ao ge­
Entre outros, o Canadá, Quebec, Haiti, Argé­
neral De Gaulle uma conferência de chefes de
lia, Tunísia, os países da África subsaariana, o
Estados para viabilizar o projeto. Em setembro
Zaire, Ruanda e Burundi (que tiveram coloni­
de 1961, a criação da União Africana e Mal­
zação belga), as Comores, a Ilha Maurício, as
gache foi a primeira manifestação espontânea
Seychells, o Líbano, a Síria (onde o inglês
da francofonia. Dissolvida em março de 1964,
praticamente substituiu o francês), as antigas
foi transformada em união de caráter econô­
feitorias da índia, o Vietnam, o Camboja, o
mico - UAMCE -, para levar em consideração
Laos e as ilhas da América Central. A esses
a existência da Organização da Unidade Afri­
países juntaram-se, mais recentemente, algu­ cana - OUA, criada em 23 de maio de 1963,
mas antigas colônias portuguesas e inglesas.
em Adis-Abeba, por 30 países africanos. Mas,
Xavier Deniau identifica, entretanto, duas
para manter a sua coesão, o grupo francófono
zonas geográficas férteis em iniciativas fran-
resolveu criar nova organização, a Organiza­
cófonas fora da Europa: Quebec e África.18
ção Comum Africana e Malgache — OCAM,
Um relatório das organizações e associa­
cuja Carta foi assinada em Tananarive, em se­
ções francófonas publicado pela Documenta­
tembro de 1966, e se constituiria num marco
ção Francesa em 1984 registrou mais de 200
importante no desenvolvimento da francofo­
organismos internacionais de cooperação fran-
nia. Esta influenciou a criação da Agência de
cófona multilateral ou bilateral.19
Cooperação Cultural e Técnica — ACCT, ins­
A francofonia teria um duplo objetivo: de
tituição intergovernamental, em março de
um lado, a busca dc laços de. cooperação mais
1970, durante a segunda Conferência de
estreitos e eficazes na luta contra o subdesen­
Niamey.
volvimento — prioridade dos países africanos;
de outro lado, a vontade de cooperar de modo O ano de 1986 foi um ano decisivo para
intenso, preservando as suas áreas de influên­ a francofonia. Menos de dois meses depois da
cia e a sua hegemonia para a França. Convém Conferência Geral da ACCT, realizada em de­
assinalar o papel da iniciativa privada, traduzi­ zembro de 1985, em Dakar, Senegal, foi con­
do pela criação de associações nacionais e in­ vocada em Paris a XII Cimeira [reunião de
ternacionais em vários domínios, acompa­ cúpula] dos Chefes de Estados e de Governos
nhando ou antecipando o avanço dos poderes Tendo em Comum o Uso do Francês (Versa­
públicos. lhes, 17.2.86). Nessa reunião de cúpula, um
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 11
delegado do Quebec lembrou que a luta é de Gauile, essa política visa fazer da França uma
resistência à influência do inglês:
potência intermediária de significativa impor­
“Não se esqueçam que 90% dos bancos de tância. Permite ao país fugir da hegemonia das
dados são em inglês e apenas 10% em fran­ grandes potências e oferece aos países africa­
cês, além de existirem sete milhões de fran- nos e do Terceiro Mundo uma alternativa no
cófonos num meio de 250 milhões de an- sentido do não-alinhamento. Convém assina­
glófonos.”21 lar, porém, que a França aparece também co­
Para os países pobres - a maioria - a fran- mo defensora da Aliança Atlântica da Europa;
cofonia representa uma esperança de desen­ ela não apenas protege os seus interesses di­
volvimento após o fim do sonho dos anos 70: a retos como participa de uma rede mais ampla
de relações de dominação econômica e políti­
cooperação Norte-Sul e o insucesso das gran­
des conferências internacionais. co-estratégica. Nesse sentido, o projeto da
Uma das conseqüências dessa conferência francofonia possui particular relevância. An­
dos Chefes de Estado e de Governos foi a re­ corada numa herança histórico-cultural, a
definição das instâncias competentes em ma­ francofonia hoje transcende o espaço da Áfri­
téria de francofonia. Assim, é registrada a ca subsaariana para englobar um número con­
criação, na França, de um secretariado de Es­ siderável de países. A África oferece à França
tado encarregado da francofonia junto ao uma base para o desenvolvimento de relações
primeiro-ministro. com países africanos fora da sua esfera de in­
Se no que tange aos temas mais gerais não fluencia (vide o alargamento das participações
se registram grandes inovações, antes e depois nas conferências). A dimensão cultural é es­
da subida dos socialistas ao poder na França, sencial na política exterior francesa e, cm se
verifica-se, entretanto, um aumento significa­ tratando de países como o Brasil, por exemplo,
tivo da participação dos países africanos nas suas relações são fortemente marcadas por
conferências a partir de 1982. Trinta e sete ela.22 Não é por acaso que a primeira iniciati­
Estados são convidados em média, a partir de va visando à divulgação e à irradiação cultural
1982, contra 24 entre 1981 e 1982. Desde a francesa - a criação da Aliança Francesa —
Guiné-Conakry, que se aproximou da ex- data do século passado. Essa irradiação per­
metrópole em 1983, as Seychells, o Congo, passa todas as demais relações no âmbito in­
que não se fez mais representar pelo ministro ternacional e encontra a sua expressão mais
das Relações Exteriores mas pelo próprio elaborada no projeto da francofonia.
chefe de Estado, e os países da Linha de Sem dúvida, o consenso que sustenta as
Frente (Angola, Moçambique, Botswana, relações França-África é essencial para expli­
Tanzânia, Zâmbia, Zimbabwe), até o gigante car sua existência e permanência. O interesse
anglófono - a Nigéria - e a África do Norte das elites africanas em preservar relações de
(Egito, Sudão, Tunísia, exceto o Marrocos). tipo neocolonial é, no caso, determinante.
As conferências permitem à França mani­
Embora admitindo o alargamento do cír­
festar uma presençà predominante e amigável
culo da “família francófona” - para usar a
no seio de um continente bastante visado e à
terminologia do ex-presidente francês Geor-
África, garantir uma cooperação privilegiada
ges Pompidou -, os dirigentes das antigas co­
em vários níveis. lônias francesas na África demonstram preo­
A França, que perdeu boa parte do seu
cupação constante com a preservação da sua
prestígio internacional após as guerras colo­
especificidade. Esta foi reiterada ainda recen­
niais da Indochina e da Argélia, procura cada
temente, durante a sessão de abertura da XIV
vez mais afirmar-se enquanto “média potên­ Cimeira Franco-Africana de Antibes, entre 10
cia”, graças ao campo de ação do espaço geo-
e 12 de dezembro de 1987.23 Com efeito, os
político africano. Inaugurada pelo general De
africanos de expressão francesa reivindicam
12
Estudos Afro-Asiáticosn^ 16,1989
um passado histórico e uma língua comuns cofonia no seu projeto original, e ainda hoje
para justificar a manutenção de relações pri­
retomado) permite justificar a opção pela con­
vilegiadas com a ex-metrópole. tinuidade das relações França-África. As desi­
Na realidade, quando se considera a XIV gualdades dentro do contexto nacional como
Cimeira de Antibes, verifica-se sua distância nas relações entre a França e as suas antigas
do projeto humanista de Léopold Sédar colônias não são abordadas. Sem dúvida, a
Senghor,24 fundamentado numa cultura reifi- questão cultural detém grande relevância no
cada. Nessa conferência, as questões econô­ projeto da francofonia. Mas é preciso consi­
micas tiveram ampla primazia. Entretanto, os derá-la à luz dos interesses econômicos e polí­
recursos, tanto do passado quanto da cultura, ticos aos quais está articulada.
são ainda utilizados para reproduzir as rela­
ções do período colonial. Como afirma Yvcs
Benot, há dificuldade de tratar em profundi­ Conclusão
dade a questão crucial da ajuda externa e dos
investimentos privados capitalistas na O conceito de cultura foi, e ainda é, um
África.25 conceito-chave na compreensão das mudanças
e continuidade no âmbito das relações França-
Após a independência das antigas colônias
África. A sua utilização de um modo absoluto
francesas, a cultura passa a ocupar papel cen­
pelas partes envolvidas sem dúvida encobre
tral na explicação e resolução dos conflitos
toda sua complexidade real. Com efeito, é in­
reais ou potenciais. Deslocado dos contextos
dispensável estabelecer a articulação da di­
históricos c sócio-econômicos objetivos, o
mensão cultural com os demais níveis do so­
conceito de cultura é interpretado da mesma
cial, levando-se em conta todo o peso dos la­
maneira em relação à francofonia, à negritude
ços históricos.27
ou à autenticidade. Trata-se de uma concepção
Apresentada como um projeto cultural, a
de cultura que visa harmonizar as relações
francofonia assume, na realidade, formas va­
tanto no âmbito nacional quanto internacional.
riadas na cena internacional. A assimetria das
As duas heranças marcantes da África relações entre a França e os países africanos,
subsaariana, a pré-colonial e a colonial, são re- no bojo da qual surge a francofonia, é preser­
elaboradas pelas elites dirigentes em torno da vada pela eficácia de uma rede silenciosa e
cultura numa continuidade histórica. Como extremamente dinâmica que a vontade dos
assinala Alain Bockel, depois da independên­ agentes alimenta de modo permanente. Não é
cia, o grande problema da maioria dos diri­
por acaso que os dirigentes franceses, longe de
gentes africanos consiste em conciliar as con­
reivindicarem a presidência dos organismos
tribuições pré-colonial e européia.26
francófonos, preferem manter uma atitude
A opção por operar com uma determinada discreta, apresentando-se como mediadores. A
concepção de cultura reflete a própria ambi- intensidade e complexidade das iniciativas
güidade das elites no seu papel de intermediá­ francófonas em diversos níveis garantem o
rias entre as duas realidades sociais. Assim, êxito do projeto. É indiscutível que o consenso
ora mergulham na mais profunda tradição, entre africanos e franceses fundamenta toda a
numa perspectiva quase essencialista (negritu­ negociação que rege a interação ao nível das
de, por exemplo), ora exaltam a cultura fran­ relações internacionais. A cooperação interna­
cesa (no caso, a das ex-colônias da França), cional, amplamente solicitada pelos países afri­
sem que o seu próprio papel social seja ques­ canos, não é discutida em seus fundamentos.
tionado. Em termos nacionais, há uma homo­ As relações França-África, pela sua natureza
geneização social pela cultura negra, africana desigual, refletem a profunda dificuldade dos
ou autêntica, enquanto no âmbito internacio­ países africanos de elaborar um projeto co­
nal a cultura francesa (o fundamento da fran­ mum de construção da sua autonomia.
Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989 13
NOTAS

1 Marcel Merle, Sociologia das relações internacionais, Brasília, Ed. daUnB, 1981.
2 Pascal Chaigneau, “Afrique: de l’affectif au rationnel”, in François Joyaux et Patrick Wajsman, Pour une
nouvelle politique étrangère, Paris, Hachette, 1986.
3 Idem.
4 Pierre Viaud, “La politique militaire française et la sécurité africaine”, Marchés Tropicaux, 4.10.1985.
5 Jean-Pierre Benoît, Indispensable Afrique, Paris, Hachette, 1986.
6 A França desempenha um papel central no reforço dos meios financeiros que podem ser mobilizados pelas
grandes organizações internacionais. Ver “L’aide de la France aux pays d’Afrique Subsaharicnne”, Les Notes
Bleues, 24 de abril a l9 de maio de 1988.

7 “Réunion des Ministres des Finances de la Zone Franc”, Les Notes Bleues, 24 de abril a 1 - de maio de 1988.
8 Jacques Gautrand, “Le désarroi des patrons Français”, Jeune Afrique Economie, março de 1988.
9 “Chirac’s strategy”, West Africa, 19.5.1986.

10 José Maria Nunes Pereira, “Relações França-África: neocolonialismo e cooperação”, Estudos Afro-
Asiáticos, n- 13, março, 1987.

11 Charles Hargrove, “Grande-Bretagne: conquérir des chasses gardées”. Jeune Afrique Economie, n9 104, ja­
neiro de 1988.
12 Guy Méry, Les conditions de notre sécurité”, in François Jayaux et Patrick Wajsman, Pour une
nouvelle. . ., op. cit.
13 Joseph Ki-Zerbo, Histoire de JAfrique Noire, Paris, Hatier, 1972.
14 Jacques Huntzinger, Introduction aux relations internationales, Paris, Ed du Seuil, 1987.
15 Mônica Hertz, “A dimensão cultural das relações internacionais: proposta teórico-metodológica” (trabalho
apresentado no Grupo de Trabalho Relações Internacionais e Política Externa, no XI Encontro Anual da Anpocs,
Aguas de São Pedro, SP, 1987, p. 23.
16 Pierre Bourdieu, Le sens pratique, Paris, Ed. Minuit, 1980.
17 Christine Desouches, Francophonie: du sommet de Paris au sommet de Québec”, Géopolitique Africaine,
n9 2, dezembro de 1986, Bruxelas-Paris.
18 Xavier Deniau, “La francophonie”, Que Sais-Je, PUF, Paris, 1983.
19 Louis Sabourin, “Le Premier Secrétariat d’Etat à la francophonie”, Géopolitique Africaine, n9 2, dezembro
de 1986, Bruxelas.
20 Xavier Deniau, “La francophonie. . .”, op. cit., mostra como mudou a estratégia da política francesa na
África com a implantação dos diversos organismos francófonos.
21 Jeune Afrique Economie, n9 106, março de 1988.
72 Bernard Dorin, “Brésil: quand les ambassades francophones agissent de concert”, Géopolitique Africaine,
n= 2, dezembro de 1986, Bruxelas.
Marc Aicardi de Saint Paul, “Le XIV e Sommet Franco-Africain, Antibes, 10-12 Décembre 1987”, Afrique
Contemporaine, n= M5, P trimestre de 1988, p. 55.
24 Léopold-Sédar Senghor, Liberté 3 - Négritude et Civilisation de f Universel, Paris, Ed. du Seuil, 1977, P. 80-
’02-
Yves Benot, Indépendances africaines-ideologies et réalités, Tomo I, Paris, Maspero, 1975.
Estudos Afro-Asiâticos n- 16, 1989
14
26 Alain Bockel e P.F. Gonidec, L'Etat africain - evolution - fédéralisme - centralisation et decentralisation,
Paris, Librairie Générale de Droit et Juriprudence, 1984, p. 116.
27 Yves Benot, Ideologias das independências Africanas, vol. 2, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1981,
p.152-65.

SUMMARY

The Importance of French Language Usage in the Context of French-African Relations

This article discusses the importance of the use of - The African leaders’ desire to maintain prive-
the French language in the reproduction of unequal ledged relations with the ex-metropolis. In this sense,
French-African relations. the fact that the francophonie project was initially
The author attempts to demonstrate the imposition proposed by Africans soon after independence is ex­
of the use of the French language within a wider con­ tremely significant.
text of international interests by concentrating on the - France’s interest in maintaining and expanding
articulation of cultural, economic and political di­ her influence in Africa.
mensions. - Both African and French initiatives toward the
Thus, three important factors guaranteed establishment of a increasingly complex and dynamic
the success and efficiency of the project: network of francophonie institutions.

RÉSUMÉ

La Francophonie dans Ie Cadre des Relations Franco-Africaines

Cet article a pour but de soulever un débat sur — la volonté des dirigeants africains de préserver
l’importance du rôle joué par la francophnie dans la des rapports privilégiés avec l’ex-métropole. Il est
reproduction des inégalités au sein des relations fran­ significatif à ce sujet de constater que le projet de
co-africaines. francophonie a été formulé et présenté, immédiate­
A partir d’une idée centrale - il existe une articu­ ment après l’indépendance, sur l’initiative des afri­
lation entre les dimensions culturelle, économique et cains;
politico-stratégique - l’auteur cherche à mettre en - l’intérêt qu’a la France de conserver et d’étendre
évidence l’insertion de la francophonie dans un vaste son influence en Afrique;
ensemble d’intérêts situés sur la scène internationale. - l’implantation, sur l’initiative d’africains et de
Trois facteurs garantissent la succès et l’efficacité français, d’un réseau de plus en plus complexe et dy­
d’un tel projet: namique d’organismes francophones.

Estudos Afro ~Asiáticos n- 16, 1989 15


Na prática, a imigração japonesa foi a única nalidades que chegavam ao País nessa fase.
IIMÍGRACÃO No dia 18 de junho de 1988, a comunidade
dc descendentes de imigrantes japoneses no
que sofreu o impacto da restrição, porque ela Rocro Kowyama, em sua História dos 40 anos

JAPONESA NO Brasil comemorou os oitenta anos da chegada


era mais recente - havia decorrido apenas 26
anos desde que se iniciara - e estava exata­
de imigração japonesa, menciona, na página
426, que o número de imigrantes japoneses
BRASíL — 80 ANOS* do Kasato-Maru, o navio que trouxe ao Brasil
oitocentos japoneses (781 imigrantes sob con­
mente na fase mais intensa de vinda de imi­ admitidos no País no ano de 1934 superou em
grantes para o Brasil. As outras imigrações mais dc cinco mil o total dos imigrantes italia­
trato, dez imigrantes espontâneos c outros
quantitativamente expressivas, como a portu­ nos, portugueses, espanhóis e alemães no
passageiros).1 Desde então, vieram para o
guesa, italiana, espanhola e alemã, de tradição mesmo ano.
Katsunori Wakisaka* Brasil 256.125 imigrantes japoneses (dados
e história mais antigas, não foram afetadas Procedendo-se ao cálculo, os 2% do total
referentes a dezembro dc 1986), conforme se
pelo dispositivo restritivo, porquanto os 2% do de imigrantes entrados no País nos últimos 25
pode verificar nas tabelas 1 e 2.
total dos últimos cinqüenta anos eram supe­ anos — a história da imigração japonesa no
riores ao número de imigrantes dessas nacio­ Brasil não ia alem - não alcançavam três mil.
TABELA 1

Imigrantes japoneses no Brasil


TABELA 2
(Período anterior à 1 - Guerra)
Imigrantes japoneses no Brasil
PERÍODO N? DE
(Período posterior à 2- Guerra)
IMIGRANTES

ANO N? DE IMIGRANTES ANO N? DE IMIGRANTES


1908-12 4.672
13-17 14.767 1952 54 1970 454
18.22 12.394 53 1.480 71 456
23-27 24.967 54 3.524 72 557
28-32 56.976 55 2.657 73 383
33-37 65.685 56 4.370 74 297
38-41 6.811 57 5.172 75 299
58 6.312 76 353
Total 186.272 59 7.041 77 283
60 6.832 78 298
Fonte: Tabela elaborada a partir dos dados constantes 61 5.146 79 230
de Teiiti Suzuki, The japanese immigrant in Brazil,
UniversityofTokyoPress, Tóquio, 1969, p.172.2 62 1.830 80 188
63 1.230 81 161
Como se pode notar na tabela 1, a imigra­ 64 751 82 61
ção japonesa no Brasil se concentra maciça­ 65 531 83 84
mente no período dc 1928 a 1937. É impor­ 66 785 84 60
tante examinar-se mais detalhadamente os 67 638 85 45
números referentes a esse período, constantes 68 442 1986 51
da tabela 3: 69 434
A tendência crescente, como se vê, sofre
brusca e acentuada queda a partir do ano de Total 53.489 *
1935, como conseqüência imediata do disposi­ [69.853]**
tivo constitucional de 1934 que limitava a en­
trada de imigrantes de cada nacionalidade a Fonte: Dados de dezembro de 1986. Tabela elaborada a partir do Relatório estatístico de emigração, Japan Inter­
2% do total de imigrantes da respectiva nacio­ national Cooperation Agency - JICA, setembro de 1987.3
* Diretor-Secretário do Centro de Estudos nalidade admitido no País durante os últimos * Número de imigrantes cujas viagens foram substituídas pela JICA.
** Número de imigrantes acima acrescido do número de imigrantes que vieram para o Brasil por iniciativa própría.
Nipo-Brasileiros, São Paulo. cinqüenta anos.4

16 Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asidticos n-16, 1989 ^7


TABELA 3 se verifica sensível diminuição em comparação
com o ano precedente. A partir daí a expres­
Imigrantes japoneses no Brasil são numérica da imigração japonesa no Brasil
(1928 a 1937) apresenta uma constante regressão, chegando-
se à quase insignificância nos dias de hoje.
Com o País em ruínas em conseqüência da
ANO N? DE guerra, após a rendição incondicional diante
IMIGRANTES das Forças Aliadas, o Japão no pós-guerra fica
às voltas com uma terrível inflação. Aos Esta­
1928 12.002
dos Unidos, estando em confronto, em todas
29 15.597
as partes do mundo, com a União Soviética,
30 13.741 interessava contar, no futuro, também com o
31 5.565 Japão como aliado. E decidiram colocar ordem
32 15.092
na economia japonesa. Um banqueiro ameri­
33 23.299 cano de Detroit, Joseph M. Dodge, chefiou
34 22.960 uma missão espccialmente designada pelo pre­
35 5.745 sidente Truman e após estudos sugeriu a ado­
36 5.357 ção de diretrizes que ficaram sendo conhecidas
37 4.675 como Dodge’s Line, que consistia essencial-
mente no seguinte: 1) equilíbrio orçamentário;
Fonte: Teiiti Suzuki: The japanese immigrant in Brazil, 2) corte de subsídios; 3) proibição de emissão
p. 283. de título governamental (estancamento do au­
mento de crédito).5 Isso no ano de 1949. Era a
deflação, a recessão.
Após a interrupção de mais de dez anos im­ Eclodiu a guerra da Coréia em junho de
posta pela 2- Guerra Mundial, a imigração ja­ 1950. Os preços dos materiais estratégicos se
ponesa no Brasil foi reiniciada no ano de 1953 elevaram e o Japão se tornou base logística das
(a tabela 2 indica o ano de 1952. Isso se deve operações militares dos Estados Unidos. As
ao fato de os dados registrados pela JICA se encomendas especiais das forças norte-ameri­
referir à data de partida do Japão). Tomoo canas e os dispêndios feitos pelos militares e
Handa, no citado livro registra: suas famílias foram grandes, como se pode
notar na tabela 4:
“Já foi dito que o maior acontecimento
Com essa alavancagem, começa a recupe­
para a colônia japonesa do pós-guerra foi o
ração da economia japonesa. No período de
reinicio da imigração. Parecia, realmente, a
1954-1956, com a maré da boa conjuntura in­
chegada da primavera após longo inverno,
centivam-se os grandes investimentos, princi-
trazendo um alegre sentimento de novidade
palmente nos setores de indústria pesada e pe­
para a colônia, que se encontrava em fase
troquímica, e que têm o seu boom em 1960,
de estagnação.” (p. 769)
quando o primeiro-ministro Ikeda anuncia o
Essa primeira leva de imigrantes do pós- seu plano de duplicação do GNP em dez anos.
guerra, contando ao todo 54 pessoas, chegou Esse plano implicaria o crescimento anual mé­
ao porto do Rio de Janeiro no dia 11 de feve­ dio de 7,2%. Aliás, o plano alardeava o cres­
reiro de 1953 e foi destinada à região amazô­ cimento de 9% ao ano nos primeiros três anos.
nica para trabalhar na cultura de juta. A demanda de mão-de-obra era grande e a
A partir desse ano a imigração japonesa no população rural diminuía. Refletindo a situa­
País cresce e durante o período de 1953-1963 ção sócio-econômica refluía a onda emigrató-
se mantém num nível significativo. Já em 1962 ria do pós-guerra no Japão. Coincidia também

18 Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989


com a evolução das condições sociais e eco­ cada de 30 regulamentando, inclusive, a quali­
nômicas do Brasil. ficação dos imigrantes-agricultores.
A expansão demográfica e o desenvolvi­ Como evoluiu essa população de imigrantes
mento industrial brasileiros exigiam mudanças japoneses e seus descendentes em terras bra­
nos critérios de admissão de imigrantes. Mais sileiras?
gente tecnicamente qualificada e não meros A comunidade de origem japonesa no Bra­
trabalhadores agrícolas. Aliás, essa preocupa­ sil, por ocasião do 50- aniversário, em 1958,
ção com a qualificação e com a não-concor­ realizou um levantamento censitário, regis-
rência com os trabalhadores do País estava trando-se, então, uma população de 430.135
presente no pensamento dos governantes bra­ pessoas, japonesas e seus descendentes resi­
sileiros. Rocro Kowyama registra6 as medidas dentes no País, conforme se pode notar na ta­
do governo de Getúlio Vargas no início da dé­ bela 5:7

TABELA 4

Comércio exterior e produção do Japão (1949-1954)

Em milhões de dólares

1949 1950 1951 1952 1953 1954

Exportação 510 820 1.355 1.273 1.275 1.629


Demanda especial — 592* 824 809 597
Importação 905 975 1.995 2.028 2.410 2.399
Prod. ind. e mineral
(índice) 100 123 169 181 221 240

Fonte: Takafusa Nakamura: Showa keizaishi (História econômica da era Showa), p. 203.

TABELA 5

População - Distribuição por estado

Total 430.135 100%


São Paulo 325.520 75,68
Paraná 78.097 18,16
Mato Grosso 8.886 2,06
Goiás 1.793 0,42
Minas Gerais 2.878 0,67
Rio de Janeiro - Guanabara 5.803 1,35
Região Amazônica 5.488 1,27
Nordeste 202 0,05
Bahia, Espírito Santo 308 0,07
Sul 994 0,23
Sem referência 166 0,04

Fonte: Teiiti Suzuki: The japanese immigrant in Brazil, p. 33.


Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 19
Em maio de 1988, o Centro de Estudos 9, “entende-se como descendente de japonês,
Nipo-Brasileiros, de São Paulo, publicou o entrados no Brasil se expandiu e seus descen­ tanto, vieram dispostos a suportar toda
o japonês e seus descendentes, retroceden­
resultado de pesquisa populacional de japone­ dentes são estimados hoje em dia em 1.160 mil sorte de sacrifícios.”
do-se no tempo até 1908”. Por essa definição,
ses e descendentes residentes no Brasil. Pes­ pessoas. Aumento significativo diante das
residente no Brasil com pelo menos um(a) ja- E, continuando, indica como importante
quisa por amostragem conduzida em todo o 430.135 registradas no levantamento de há
ponês(a) entre os seus antepassados que viera marco da modificação definitiva da atitude dos
território nacional foi realizada em junho de trinta anos. Constata-se, ao lado do aumento
ou imigrara para o Brasil nos últimos oitenta imigrantes japoneses a derrota do Japão na 2-
1987 e indicou a população estimada cm 1.168 numérico, acentuada expansão geográfica
anos é considerado como “descendente”. O Guerra Mundial:
mil, com limites de erro de ±22 mil (tabela 6). dessa população em todo o território nacional.
Censo de 1958 (tabela 5), apesar da proposta
Isso se reflete, inclusive, na diminuição relati­ “Àquela altura [período que se sucedeu ao
Detalhando-se a população da região de “incluir toda população de imigrantes japo­
Sudeste, mais numerosa, se tem a seguinte va dos residentes nos Estados de São Paulo e fim da guerra], o imigrante japonês come­
neses e seus descendentes”, conforme é indi­
situação: do Paraná - de 75,68% e 18,16% do total da çou a perceber que a sua presença no País
cada na página 3 da citada obra, pela natureza
Antes de qualquer tentativa de comparação população em 1958, respectivamente, passam não seria temporária, e sim definitiva. A
do trabalho - levantamento censitário calcado
a 70,8% e 11,8% nas estimativas de 1987. partir dessa constatação, passaram a mudar
entre os números das tabelas 5, 6 e 7, é ne­ preponderantemente no esforço cooperativo
Imigrantes que vieram, nem todos e nem sem­ o seu comportamento em função dessa no­
cessário uma observação sobre a definição de da comunidade de origem japonesa —, pode
pre, decididos a permanecer definitivamente va maneira de pensar.”10
“japoneses e seus descendentes”. Na pesquisa não ter a mesma abrangência da definição
no País. Ilustra o fato a narrativa de Rocro
levada a efeito pelo Centro de Estudos Nipo- acima. Efetivamente, essa mudança de atitude, im­
Kowyama, ele também passageiro do Kasato-
Brasileiros, segundo consta de nota na página O total de 256.125 imigrantes japoneses posta pela realidade, foi de capital importância
Maru, sobre a disposição dos imigrantes vin­
dos nessa embarcação em regressar, dentro de nos rumos da comunidade de origem japonesa
TABELA 6 poucos anos, após conseguir alguma economia no Brasil. Ela teve influência no direciona­
com o trabalho nas fazendas de café.9 mento de suas atividades econômicas, na edu­
População segundo a região8 A professora Arlinda Rocha Nogueira, do cação de seus filhos.
Instituto de Estudos Brasileiros da USP, numa
recente conferência, alude a esse aspecto da
Norte 33.000 2,9%
imigração japonesa:
Nordeste 28.000 2,5%
Sudeste 915.000 78,3% “O japonês trazia consigo, ao desembarcar, A seguir são examinados alguns aspectos
Sul 142.000 12,2% o sonho de uma permanência apenas tem­ da situação da comunidade de imigrantes japo­
49.000 4,2% porária no Brasil, o tempo suficiente para neses à luz das pesquisas realizadas pelo Cen­
Centro-Oeste
se enriquecer e retornar ao seu país. Para tro de Estudos Nipo-Brasileiros:
Total 1.168.000 100,0%

TABELA 8

TABELA 7 População segundo a idade

População da região Sudeste


IDADE POPULAÇÃO %

São Paulo 290.000 24,8% 0-15 389.000 33,3


Grande São Paulo 156.000 13,3% 16-30 253.000 21,7
(Exceto São Paulo) 31 -45 228.000 19,5
Est. de São Paulo 382.000 32,7% 46-60 158.000 13,6
(Exc. SP e GSP) Acima 61 97.000 8,3
RJ, ES, MG 87.000 7,5% S/Inform. 42.000 3,6
Sudeste 915.000 78,3% Total 1.168.000 100,0

~ de Estudos Nipo-Brasileiros: "Pesquisa da população de descendentes de japoneses residentes no


F°n'r So Paulo, junho de 1988, p. 15. Fonte: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros: "Pesquisa da população de descendentes de japoneses residentes no
Brasil > Brasil", p. 13.
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989
20
Os dados de 1958 (Teiiti Suzuki: op. cit.) O cotejo dos percentuais serve para mos­
foram os seguintes: trar a tendência nítida de deslocamento dessa
população para a zona urbana. Deve-se notar,
0-14 anos 40,4%
todavia, que a divisão em zonas urbana ou ru­
15 - 59 anos 54,1%
ral não obedece rigorosamente aos mesmos
Acima de 60 anos 5,4%
critérios. Na pesquisa do Centro, como as
(Fonte: Censo de 1958, p. 37.)
amostras do “setor censitário” foram forneci­
Apesar da não perfeita coincidência das di­ das pelo IBGE, foi obedecido rigorosamente o
visões de faixas de idade, pode-se notar que a critério adotado por esse órgão oficial, o que
comunidade de descendentes de japoneses está não aconteceu no Censo de 1958, pois que se
com a composição etária deslocada para cima adotou critério próprio conforme nota expli­
em comparação com os dados de há trinta cativa à p. 275. Quanto ao processo de misci­
anos. genação, a tabela 10 é bastante ilustrativa;'
Por sua vez, a distribuição dos imigrantes Os dados de Censo de 1958 são indisponí­
segundo a localização de residência é mostrada veis, porquanto ele faz menção, apenas, a fi­
na tabela 9. lhos que moram com casais interétnicos.
Já o Censo de 1958 indicou os seguintes O grau de japonidade do indivíduo é ex­
dados correspondentes: presso pela média do grau de japonidade do
Urbana 44,9% pai e da mãe. O grau de japonidade do japonês
Rural 55,1% é 1, e o de não descendente de japonês é igual
(Fonte: Censo de 1958. p. 36.) a 0 (zero), segundo a definição contida na pes-

TABELA 9

População segundo a localização urbana ou rural

LOCALIZAÇÃO POPULAÇÃO %

Urbana 1.042.000 89,2


Rural 127.000 10,8

Fonte: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, op. cit., p. 17.

TABELA 10

População segundo o grau de japonidade

GRAU DE JAPONIDADE POPULAÇÃO %

1 840.000 71,9
1/2 - menor que 1 271.000 23,2
Menor do que 1 /2 36.000 3,1
Sem informação 22.000 1,8

Fonte: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros: "Pesquisa da população de descendentes de japoneses residentes no


Brasil", p. 18.

22 Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989


quisa do Centro. [Um filho de casal de japo­ sio realizado em 1978, em São Paulo, que ja­
neses tem grau de japonidade (1 + l)/2 = 1; poneses e seus descendentes participavam, no
um filho de casal de japonês(a) e não descen­ Brasil, com a sua vida, com seu trabalho, do
dente tem grau de japonidade (1 + 0)/2 = processo de construção de uma nova civiliza­
1/2; etc., comportando, pois, várias combina­ ção no Novo Mundo. Dizia ele que os japone­
ções]. ses e seus descendentes estavam tendo esse
Quanto ao aspecto do casamento interétni- privilégio de participar, juntamente com des­
co de japoneses e seus descendentes, os dados cendentes de outras raças, de um processo
preliminares da pesquisa do Centro se apre­ único.
Os dados apresentados acima indicam a
sentam da seguinte forma:
progressão do processo de integração dessa
Descendente Descendente comunidade na sociedade brasileira. A difusão
x x da população de origem japonesa em todo o
Descendente Não-descendente território nacional, os índices de casamentos
54,1% 45,9% interétnicos cada vez mais elevados e o avanço
Os dados do Censo de 1958, por serem do grau de miscegenação são indícios seguros
parciais, não servem para comparação neste dessa integração.
Estando em curso pesquisas sócio-econô-
item.
Transcorridos oitenta anos desde a vinda da micas junto às unidades domésticas registradas
primeira leva de imigrantes japoneses para o no levantamento populacional de julho de
Brasil, os japoneses e seus descendentes já são 1987 - realizadas pelo Centro de Estudos
estimados em 1.160 mil pessoas. São oitenta Nipo-Brasileiros -, certamente se terá um
anos vividos, participando de uma história, da perfil melhor definido dessa comunidade den­
história do Brasil. Disse o professor Tadao tro da sociedade brasileira quando os dados
Umezawa, diretor do Museu Nacional de dessas pesquisas forem tabulados, interpreta­
Enologia, do Japão, por ocasião de um simpó­ dos, inferidos.

NOTAS

1 Tomoo Handa, O imigrante japonês. São Paulo, T.A. Queiroz-Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987, p.
4 . De acordo com o registro de Kowyamam “Imin yonjunenshi” (História dos 40 anos de imigração japonesa), S.
Paulo, 1949, p. 37, antes da chegada do Kasato-Maru já sc encontravam na cidade de São Paulo e no município de
Macaé (RJ) dezenove japoneses.
2 Teiiti Suzuki, The japanese immigrant in Brazil. Tóquio, University of Tokio Press, 1969.
3 Japan International Cooperation Agency - J1CA: “Kaigai ijú Tôokei” (Relatório estatístico de emigração),
Tóquio, setembro de 1987.
4 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934.
Art. 121 - (■ . •)
§ 6? - A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia da
integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente
imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento sobre o número total
dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos cinquenta anos.
§ 7- — É vedada a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da União, devendo
a lei regular a seleção, localização e assimilação do alienígena.
5 Takafusa Nakamura, Showa keizaishi (História econômica da era Showa), Iwanami Shoten, Tóquio, 1986,
p. 196-7.

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 23


6 Rocro Kowyama, “Imin yonjúnenshi” (História dos 40 anos de imigração japonesa), São Paulo, 1949,
p. 426.
7 Tciiti Suzuki, op. cit., p. 33.
8 Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, “Pesquisa da população de descendentes de japoneses residentes no Bra­
sil”, São Paulo, junho dc 1988, p. 15.
9 Rocro Kowyama, op cit., p. 27
10 Arlinda Rocha Nogueira, Conferência proferida na Faculdade de Medicina da USP, intitulada “A Segunda
Guerra Mundial como marco na imigração japonesa”, in Diário Nippak, de 2 de junho de 1988.

SUMMARY

80 Years of Japonese Immigration to Brazil

This study outlines the trajectory of Japanese im­ ted tendency toward residence in urban centers, and
migrants and their descendants in Brazil since the first shows an age break-down of 33.3% from 0 to 15
groups arrived in 1908. The 256,125 Japanese immi­ years on one end, and on the other, 8.3% above 61
grants who came to Brazil inthc period covering 1908 years of age. Racial intcr-misture has reached an in­
to December 1986, today represent a population of dex of 26.3%, while inter-cthnic marriages between
1,168,000. These Japanese and their descendants are descendants and non descendants represent 45.9% of
spread throughout almost all of the country, but are the total number of unions within the community.
most highly concentrated in the states of São Paulo Given this data, the study concludes that the Japa­
and Paraná.
nese and their descendants arc going through a rapid
The Japanese community has shown an accentua- process of integration into Brazilian society.

RÉSUMÉ

L’Immigration Japonaise au Brésil a 80 Ans

Ce travail présente une ébauche dc la trajectoire accentuée à résider dans les zones urbaines. 33,3%
que les immigrants japonais et leurs descendants ont de ses membres ont entre 0 et 15 ans tandis que 8,3%
suivie au Brésil depuis 1806, époque où les premiers ont plus de 61 ans. Le taux de miscigénation s’élève à
d’entre eux y arrivèrent. Entre 1808 et 1986 débar­ 26,3% mais les mariages inter-ethniques (entre des­
quèrent 256.125 nippons qui, avec leurs descendants, cendants et non descendants) touche 45,9% du total
constituent aujourd'hui une colonie de 1.168.000 des couples.
personnes. Ils se répartissent pratiquement sur tout le Pour toutes ces raisons, cette étude conclut que le
territoire national mais se concentrent surtout dans les processus d’intégration des japonais et de leurs des­
états de São Paulo et du Paraná. cendants au sein dc la société brésilienne progresse de
La colonie japonaise présente une tendance façon accélérée.

24 Estudos Afro-Asiâticos n- 16, 1989


CEA A - Gostaríamos que o senhor apresen­
A FUNDAÇÃO JAPÃO tasse, inicialmente, uma visão global da Fun­
NO BRASIL* dação Japão, destacando seus princípios, ob­
jetivos e atividades.
O Kokusai Koryu Kikin - Fundação Japão
foi estabelecido por lei em outubro de 1972.
Os seus princípios e objetivos estão expressos
no artigo 1 - da Lei da Fundação Japão, que,
em síntese, afirma que o propósito da entidade
é proporcionar às outras nações um conheci­
mento mais profundo sobre o Japão, bem co­
mo contribuir para o entendimento mútuo e o
progresso da cultura mundial através da ex­
pansão do intercâmbio cultural. Para alcançar
essas metas, a Fundação mantém as seguintes
principais atividades: (1) convidar pessoas para
conhecer o Japão e enviar japoneses ao exte­
rior com o propósito de efetuar o intercâmbio
cultural internacional; (2) assistir e apoiar a
difusão de estudos japoneses no exterior, pro­
videnciando ajuda às universidades e organiza­
ções que se dedicam à pesquisa sobre o Japão;
(3) promover o conhecimento do idioma japo­
nês no estrangeiro através do treinamento de
especialistas em língua japonesa; (4) patroci­
nar, apoiar e auspiciar eventos de intercâmbio
cultural internacional tais como exposições,
representações cênicas, seminários etc. Além
dessas atividades principais, a Fundação pro­
move também o intercâmbio de programas de
televisão e o empréstimo de longas e curtas -
metragens, bem como subsidia publicações so­
bre estudos japoneses. Em termos gerais, se­
riam essas as atividades desenvolvidas pela
Fundação.
CEA A - Quando a Fundação Japão iniciou
suas atividades no Brasil? Como vem se desen­
volvendo o relacionamento da Fundação Ja­
pão com as universidades e centros de pesqui­
sas brasileiros? Quais têm sido suas principais
atividades e realizações?
* Entrevista concedida pelo Diretor-Repre­
sentante da Fundação Japão, Masakatsu A Fundação iniciou suas atividades no
Unemya, a Juarez Coqueiro e José Maria Nu­ Brasil em 1975, concentrando sua atuação
nes Pereira, do CEA A, alusiva aos 80 Anos de principalmente em São Paulo. Por essa razão,
Comemoração da Imigração Japonesa no a USP é a universidade brasileira que tem re­
cebido mais apoio da Fundação, tanto para
Brasil.
25
Estudos Afro-Asiâticos n-16,1989
seus cursos de língua japonesa como para seus CEAA - Há muita diferença entre as ativida­
programas de pesquisa em literatura e estudos des da Fundação Japão e as atividades do se­
japoneses em geral. A USP inclusive recebeu tor cultural das embaixadas e consulados?
da Fundação a subvenção de 150 milhões de De um modo geral, tanto as embaixadas
ienes para a construção da Casa de Cultura quanto os consulados desenvolvem atividades
Japonesa. Como o Brasil é muito grande, a culturais, mas estas são aí muito limitadas. É
Fundação não pode atender a todas as univer­ na Fundação que se concentram essas ativida­
sidades. Contudo, tem dado apoio a outras des. Não há uma orientação que se possa defi­
universidades como as Universidades Federais nir como sendo a orientação de trabalho da
da Bahia, do Rio Grande do Sul, do Pará e do Fundação. Mas eu, em particular, numa visão
Rio de Janeiro, trazendo professores visitantes própria, como representante da Fundação Ja­
e financiando pesquisas. Em relação às ativi­ pão aqui no Brasil, acho que ela teria de ser
dades estritamente culturais, a Fundação, nos uma instituição que apresentasse a cultura ja­
últimos anos, tem promovido alguns eventos ponesa de uma forma ampla, e não só de for­
importantes, como a apresentação do teatro ma parcial. Não apenas os aspectos políticos e
Kabuki, do performer Kazuo Ohono e a re­ econômicos bem-sucedidos, mas a realidade
cente mostra do Novo Cinema Japonês, que japonesa em sua totalidade. Nesse sentido, tal­
despertou muita polêmica e interesse por parte vez a Fundação Japão deferencie-se um pouco
do público. Quanto às suas publicações, com o das embaixadas e consulados, porque estes têm
objetivo de viabilizar os estudos japoneses e como objetivo principal o relacionamento di­
atender às necessidades dos estudiosos, a Fun­ plomático e econômico. Eles se preocupam em
dação iniciou em 1984 a publicação de uma mostrar sobretudo o desenvolvimento econô­
série de pesquisas que fornecem informações e mico. Já a Fundação, embora tenha também
dados bibliográficos sobre livros e revistas, esse interesse, preocupa-se em apresentar o
tanto nacionais e estrangeiros, especializados Japão em sua totalidade. Tanto as embaixadas
em assuntos japoneses que podem ser encon­ como os consulados, por exemplo, justamente
trados em bibliotecas de São Paulo. Esta série por causa de sua própria atividade e função,
intitula-se Subsídios para os Estudos Japone­ procuram apresentar o lado positivo, o lado
ses. Por outro lado, a Fundação tem subsidiado bonito do Japão. A Fundação, talvez por não
a publicação de livros e matérias de referência representar o governo japonês em si, embora
sobre o Japão e a imigração japonesa no Brasil dependa dele, tem uma linha de atividade di­
produzidos por outras instituições e pesquisa­ ferente desses outros órgãos. Por isso, e aqui
dores. estou expressando um ponto de vista pessoal,
acho que divulgar o Japão no exterior não sig­
CE A A - No exterior, em que países e cidades nifica mostrar só o lado positivo, o lado boni­
existem sucursais da Fundação Japão? to, mas também o lado problemático. Agindo
assim, penso que talvez seja possível haver um
Como a Fundação só tem 16 anos, o seu
verdadeiro intercâmbio cultural. E não basta
orçamento (cerca de 5 bilhões de ienes) e o
só mostrar o Japão no exterior, e inclusive no
pequeno número de funcionários limitam a ex­
Brasil, como um país que obteve um grande
pansão de suas atividades internacionais. No
desenvolvimento econômico. Eu, inclusive, no
momento a Fundação Japão mantém repre­
ano passado, promovi um festival do novo ci­
sentação permanente em Roma, Colônia, Bang- nema japonês em São Paulo, Curitiba, Brasília
kok, Washington, D.C., Nova Iorque, Los e Rio de Janeiro para o qual foram seleciona­
Angeles, São Paulo, Londres, Paris, México e dos filmes de diretores japoneses jovens.
Camberra. Onde não há escritórios da Funda­ Muitos desses filmes revelaram muitas coisas
ção Japão, o intercâmbio cultural é realizado negativas do país, problemas sociais como a
através de embaixadas e consulados. questão da criminalidade no Japão, que talvez

26 Estudos Afro-Asiáticos rP 16, 1989


essa meta comum, para se voltar à predomi­
tenham chocado alguns setores desses órgãos
nância dos uniformes valores tradicionais.
do governo japonês. Contudo, eu entendo que,
Mas, pessoalmente, acho que no Japão de hoje
revelando esse lado verdadeiro do Japão, con­
isto é muito difícil. Justamente por trabalhar
tribuí para que haja um verdadeiro intercâm­
com a área cultural, fica muito difícil para mim
bio cultural. Embora seja esse um pensamento
especificar o que é o Japão de hoje, tendo em
particular, ao apresentar também esse lado ne­
vista a grande diversidade cultural atualmente
gativo do Japão, venho recebendo o apoio da
existente. É natural que com essa expansão
comunidade japonesa aqui no Brasil. O que
mostra que não é só uma coisa pessoal, mas e internacionalização o Japão perca um pouco
que existe também uma demanda nesse as­ sua antiga identidade. No entanto, acredito
pecto por parte da comunidade japonesa. Do que, no momento em que esse período de dú­
ponto de vista sentimental, é lógico que gosta­ vidas for superado, a cultura e as artes do Ja­
ria de dar a conhecer apenas o lado bonito do pão poderão contribuir de maneira significati­
Japão. Mas, analisando as coisas de maneira va para o mundo.
objetiva, acho que se deve apresentar esse lado
feio que algumas pessoas gostariam de CEA A - A expressão da comunidade japonesa
no Brasil, o nível de investimento em áreas-
esconder.
chave da economia brasileira e o comércio bi­
CEA A - Está ocorrendo atualmente no Japão lateral fazem do Brasil um parceiro privilegia­
um grande debate envolvendo políticos, erudi­ do do Japão? A atual situação política e a cri­
tos e jornalistas sobre o resgate da identidade se econômica do Brasil têm afetado de alguma
japonesa, que se acredita estar se perdendo em maneira as relações e os laços de cooperação
meio à avassaladora ocidentalização. Esse de­ entre os dois países?
bate é responsável por centenas de livros e Eu não sou a pessoa adequada para falar
milhares de artigos e programas de televisão e
das relações Brasil-Japão, por não ser um te­
de rádio aparecidos ultimamente. O senhor
ma de minha área. Em termos gerais, politica-
acredita que esse movimento representa o sur­ mente^s relações estão indo bem. Mas, a nível
gimento de um novo sentimento nacionalista ou
econômico, devido ao grande desenvolvimento
o questionamento mais profundo do processo
do Japão e à crise brasileira, as relações tor-
de modernização do Japão? naram-se um pouco difíceis. Espero que o
Eu penso que o Japão, até pouco tempo, Brasil encontre a solução para a sua crise e
vinha vivendo como uma nação uniforme. consiga se desenvolver economicamente, para
haver uma ligação bem mais forte do que há
Parecia que todo o povo japonês tinha um ob­
hoje, para haver um maior equilíbrio nas rela­
jetivo comum, uma meta única. Com a moder­
ções. Tenho informações de que empresas ja­
nização, o Japão está deixando de viver em
ponesas que se instalaram no Brasil estão fe­
grupo e as pessoas estão se preocupando mais
chando justamente por causa da política brasi­
com sua individualidade, com seu interesse
leira de restrição ao capital externo. Gostana
pessoal. Então, as formas de expressão estão
que a abertura ao capital externo voltasse co­
começando a ficar mais diversificadas. O
mo nos anos 70, na época do “milagre brasi­
Japão-nação se expressa em cada indivíduo.
leiro”. Agora, expressando um ponto de vista
Durante a época em que o Japão se isolou do
muito pessoal em relação à situação política
mundo e mesmo depois da Restauração Meiji,
brasileira, não quero dizer que o sistema polí­
parecia que todo o país tinha uma meta co­ tico brasileiro seja ruim, mas dá a impressão de
mum. Mas, com a modernização e a crescente
que o governo é feito só para ricos. Acho que
internacionalização, ele está começando a per­
se o governo não olhar para o país como um
der essa característica. Pode ser que haja uma
todo, e não apenas para os ricos, não há solu-
vontade e um esforço grande para se resgatar

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989


ção. Conseqüentemente, essa forma de gover­ CEA A - No que se refere a estudos e pesqui­
no tem também seus reflexos na economia. Os sas, existe por parte dos acadêmicos e intelec­
governantes do Brasil deveriam governar o tuais japoneses um grande interesse pelo Bra­
país não só para os ricos, mas pensando num sil? O senhor poderia citar universidades e ti­
todo social. É por essa razão que os imigrantes
pos de estudos que são desenvolvidos no Japão
que chegaram aqui em São Paulo, para sobre­ sobre o Brasil?
viver, vivem em favelas, passam fome e aca­
Em geral os estudos e pesquisas sobre o
bam entrando para a criminalidade. Em lugar
Brasil ainda são muito limitados no Japão. A
de uma burguesia vivendo luxuosamente e
Universidade de Sofia é, por enquanto, a única
uma população muito pobre, deveria haver
universidade que se dedica a esses estudos.
uma maior distribuição de renda.
Agora, por outro lado, existem muitas pessoas
que individualmente se interessam pelo Brasil,
CEA A - Qual a sua avaliação sobre o inter­ mas não do ponto de vista acadêmico. Inclusi­
câmbio cultural Japão-Brasil? ve, no Japão, há uma palavra para designar
essas pessoas: Bura-Kichi. Bura quer dizer
Atualmente o intercâmbio cultural é feito Brasil e Kichi significa louco. Daí o nome
quase exclusivamente pela Fundação. Não há Bura-Kichi - louco pelo Brasil. Elas se inte­
outras instituições realizando esse tipo de ati­ ressam pelo Brasil por terem a idéia de que o
vidade. E lamentamos que, no Brasil, esse in­ Brasil é um país superaberto, tranqüilo etc.
tercâmbio esteja limitado só a ela. O intercâm­ Daí terem curiosidade de conhecer e saber so­
bio cultural é algo que não se realiza a curto bre o Brasil. De uma forma geral, as informa­
prazo, mas em cem ou duzentos anos. Então, ções sobre o Brasil são muito poucas. O que o
se pensarmos dessa forma, a tendência é au­ japonês gcralmente conhece do país é o Car­
mentar cada vez mais, e logicamente começa­ naval, a música e a Amazônia. Sc houvesse
rão a surgir outras instituições preocupadas mais informações, certamente haveria mais
em realizar o intercâmbio cultural. estudiosos e pesquisadores interessados em
Acredito que em todos esses anos de atua­ outros assuntos brasileiros.
ção da Fundação Japão aqui no Brasil esse in­ E importante também assinalar que há
tercâmbio cultural ampliou-se de certo modo. muitas pessoas que têm um interesse senti­
Nota-se que está aumentando o interesse pelo mental pelo Brasil, devido à presença da colô­
Japão. Muitas pessoas estão manifestando o nia japonesa. Elas se interessam pelo Brasil
desejo de entender melhor o país. Penso que porque acham que aqui, no meio da colônia ja­
no futuro o intercâmbio cultural deve estar ponesa, podem encontrar pessoas que vieram
orientado no sentido não só de trazer as coisas do Japão c mantiveram a sua cultura tradicio­
do Japão para o Brasil, mas também de levar nal. Como a colônia japonesa se manteve de
as coisas do Brasil para o Japão. O intercâm­ certa maneira fechada, elas acreditam que,
bio cultural não é unilateral. Entendo a situa­ vindo para o Brasil, podem encontrar o Japão
ção econômica do Brasil e, é lógico, intercâm­ antigo. O interesse é muito mais pela colônia
bio cultural custa dinheiro. Mas acontece que, do que pelo Brasil em si.
quando somos procurados para realizar algu­
ma atividade cultural, pede-se sempre que o CEA A — Gostaríamos que o senhor falasse,
Japão a financie totalmente. Se, ao apresenta­ agora, sobre a participação da Fundação Ja­
rem o projeto, as pessoas arcassem com pelo pão nas atividades comemorativas dos 80 anos
menos 20 ou 30% dos custos, talvez fosse mais de imigração japonesa.
fácil O ideal seria que o Ministério da Cultura Evidentemente a Fundação Japão está co­
do Brasil também se preocupasse com esse memorando esses 80 anos. Nossa posição foi
intercâmbio cultural. justamente a de aproveitar essas comemora-

28 Estudos Afro-Asiáticos n? J6, 1989


çõcs para tentar mostrar ao povo brasileiro o 80 anos de imigração japonesa, destaca o papel
que é realmente o Japão. Para tanto, nossa da Fundação, acentuando que os descendentes
participação principal consistiu em trazer o se preocuparam muito com as festividades em
grupo folclórico Kodo (tambores) e promover si, enquanto a Fundação se preocupou em tra­
a mostra Os Grandes Momentos do Cinema zer grupos e promover eventos representati­
Japonês, a Exposição Coletiva de Cerâmica e vos da cultura japonesa. Esse comentário do
uma apresentação de música erudita moderna. jornal é motivo de muita honra para nós, por­
A Fundação trouxe também especialistas japo­ que é um reconhecimento de que a Fundação
neses para participarem do Simpósio Interna­ está preocupada em mostrar o bom relaciona­
cional das Relações Nipo-Brasileiras, onde se mento existente entre o Brasil e o Japão e não
discutiu as relações políticas e econômicas en­ principalmente com a colônia japonesa. Isso
tre os dois países. Além disso, deu seu apoio a tem um grande significado porque vemos que
mais de dez outros eventos. Um dos quatro um jornal da própria colônia está valorizando
jornais publicados pela colônia japonesa, o Shti esse nosso trabalho e a participação da Funda­
Kan Jihô, comentando as comemorações dos ção nos 80 anos de imigração japonesa.

Estudos Afro-Asidticos n? 16,1989 29


SISTEMA ELEITORAL, 1. A nova realidade constitucional
e o sistema eleitoral
PARTIDOS POLÍTICOS
E ELEIÇÕES NO JAPÃO Inexiste na bibliografia brasileira qualquer
estudo dedicado ao sistema eleitoral e às elei­
(1945-1'986) ções no Japão. Assim, o objetivo do presente
artigo é fornecer um conjunto de elementos
indispensáveis para considerações mais apro­
fundadas sobre o tema.
Braz José de Araújo* O sistema eleitoral japonês contemporâneo
teve seus princípios básicos delineados em
1945 e estabelecidos pela Constituição de
1946. A Consolidação das Leis Eleitorais de
1950 engloba a legislação fundamental relativa
às eleições de âmbito nacional e local em vigor
nos dias atuais. De acordo com a Constituição
do Japão, estão garantidos os princípios do
sufrágio universal, direto e secreto, e, pela
primeira vez na história japonesa, estendido às
mulheres. A tradição eleitoral japonesa era
baseada no voto censitário até 1925, quando se
estabelece o sufrágio universal masculino para
os maiores de 25 anos. Em 1945 o direito de
voto é fixado para os maiores de 20 anos, am­
pliando-se significativamente o eleitorado no
país.
O Japão está dividido em distritos eleito­
rais. A maioria deles elege um representante
para a Câmara de Representantes, embora em
alguns sejam eleitos mais de dois representan­
tes. Essa Câmara, que em 1947 era composta
de 466 representantes, tem atualmente 512.
Na medida em que a Constituição estabele­
ce também o sistema parlamentarista bicame-
ral, a antiga Câmara Alta da época Meiji é
substituída pela Câmara de Chanceleres, uma
espécie de Senado se aludimos à tradição
norte-americana. A primeira lei referente às
eleições para essa Câmara foi aprovada em
1947, antes mesmo da entrada em vigor da
professor de Ciê^0™0^^ nova Constituição.
De acordo com essa lei, o número total de
Editor. O texto original apresentado membros da Câmara de Chanceleres é fixado
Nota do - ^^a o sistema americano de cita-
em 250, sendo eleitos 150 com base nos dis­
pelo autorcodificado após consulta ao pró-
tritos correspondentes das prefeituras (estas
ções, que r alidade de uniformizar as nor- substituem as antigas províncias e correspon­
deriam mais ou menos aos estados das repúbli-

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989


30
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES - UCAM
„ Biblioteca
cas federativas) e eleitc^cem^geR^ sjstÇfflPós - Graduação da respectiva prefeitura
.MOfefemà — meate^j-í
proporcional a nível nacional. Tal lei foi con­ (como agora, no Brasil, elegemos o governa­
solidada em 1958 e modificada em 1982, dor de estado), os prefeitos das cidades e vilas
quando se estabelece o sistema atual, que com­ e os membros das respectivas assembléias
bina representação proporcional a nível nacio­ (assembléias prefeiturais, de cidades, de vilas).
nal com representação distrital, localizada nas Deve-se destacar que, na tradição japonesa,
prefeituras. Em outras palavras, um sistema existe uma diferenciação para algumas regiões,
distrital misto, conforme a designação usual no como Tóquio, Quioto, Osaka etc., as quais
Brasil. tem, cada uma delas, Executivo e Legislativo
No âmbito local, o sistema eleitoral japonês próprios. Assim, normalmcnte, um eleitor po­
é relativamente simples: o eleitor elege dircta- de participar das seguintes eleições:
TABELA 1

Evolução do eleitorado no Japão

ANO N? ELEITORES POPULAÇÃO


(mil) (%)

1890 450 1,1


1902 980 2,2
1920 3.070 5,5
1928 12.410 20,0
1946 36.880 48,7
1983 84.253 70,5
1986 86.427 71,0

Fontes: Jichi Sogo Center, Election System in Japan, Tóquio, 1986, e Japan Statistical Yearbook, 1987.

TABELA 2

Tipos de cargos preenchidos por voto

TIPOS DE CARGOS N?DE CARGOS

Membros da Câmara de Representantes 512


Membros da Câmara de Chanceleres 252
Governadores de Prefeituras 47
Membros das Assembléias Prefeiturais 2.898
Prefeitos de Cidades 651
Membros das Assembléias de Cidades 20.160
Prefeitos de Vilas 2.604
Membros das Assembléias de Vilas 46.580
Governadores de Regiões Especiais 23
Membros das Assembléias das Regiões Especiais 1.073

Fonte: Jichi Sogo Center, Election System..., op. eit

Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989 31


TABELA 3

Tipos de eleições e razões das eleições

CARGOS ESPECÍFICOS
TIPOS DE ELEIÇÕES
FIM DO MANDATO DISSOLUÇÃO

Legislativos
Membros da Câmara de Representantes
eleições gerais eleições gerais
Membros da Câmara de Chanceleres
(representação proporcional)
eleições ordinárias —
Membros da Câmara de Chanceleres
(representação distrital)
eleições ordinárias
Membros das Assembléias Prefeiturais
eleições gerais eleições gerais
Membros de Assembléias de Cidades e Vilas
eleições gerais eleições gerais

Executivos
Governadores de Prefeituras
eleições diretas —
Prefeitos de Cidades e Vilas
eleições diretas

Como o tipo de eleição depende de sua


Elegibilidade
causa, por exemplo, se é decorrência do fim da
duração do mandato ou de dissolução da Die­
Exige-se a idade dc 25 anos para se tornar
ta, as datas para os pleitos estão assim estabe­
membro da Dieta e demais assembléias. Exigc-
lecidas:
sc a idade de 30 anos para membros da
- dentro de 30 dias antes da expiração do Câmara de Chanceleres, governadores e
mandato: se a Dieta estiver em sessão dentro prefeitos.
dos 60 dias antes do fim do mandato, as elei­
ções devem ser realizadas após o 31- dia c an­
tes do 35- dia da data do término do mandato; As eleições distritais
- no caso de dissolução, dentro de 40 dias
da data de dissolução. a) Dieta

De acordo com a lei, 38 prefeituras são di­


O Direito de voto
vididas em dois ou mais distritos e as dez res­
tantes correspondem cada uma a um distrito.
Adquire-se o direito de voto quando se Assim, existem 130 distritos eleitorais, in­
atinge a idade de 20 anos. No caso das eleições cluindo-se um distrito com um cargo (distrito
locais, exige-se a residência no local por três do Arquipélago de Amami).
meses consecutivos. No caso das eleições a ní­ Quarenta e sete distritos elegem, cada um,
vel das prefeituras (governador e assembléias), três deputados; 41 distritos elegem, cada um,
o cidadão pode votar mantendo sua residência quatro deputados e outros 41 distritos elegem,
em municipalidades nos limites da respectiva cada um, cinco deputados, perfazendo os 511
prefeitura. membros da Dieta até as eleições de 1983.

32 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


b) Câmara de Chanceleres forma de democracia, o Japão assiste a uma
exagerada proliferação de “partidos políticos”.
Essa Câmara é atualmente composta de 252 Seu número chegou a 267 nas eleições de
1945-46, revelando que, na retomada da vida
membros, dos quais cem são eleitos através de
sistema proporcional a nível nacional e 152 democrática, muitos partidos emergem como
instrumentos pessoais de alguns políticos ou
pelos distritos eleitorais das prefeituras, de
apenas existem em localidades bem delimitadas
acordo com a sua população. Assim, existem
Embora o número de partidos no Brasil tenha
26 prefeituras com um cargo, 15 com dois
sido bem menor, tanto em 1945 como após
cargos, quatro com três cargos e duas com
1983, tal situação não deixa de expressar uma
quatro cargos. das faces de debilidade da representação polí­
tica nesses momentos de transição.
c) Assembléias locais
Como parece ser normal, aos poucos as
próprias eleições vão simplificando o quadro
Tanto ao nível das assembléias de prefei­
partidário. O ano de 1955 é um momento im­
turas como das assembléias de cidades e vilas
portante na definição do atual sistema parti­
vigora o sistema distrital nos respectivos limi­
dário japonês. Reestruturam-se os partidos
tes. Para as assembléias de prefeituras o nú­
(vejam-se as figuras das origens dos partidos
mero de representantes é no mínimo 40 e no políticos japoneses adiante) e dois deles, o
máximo 120, à exceção da de Tóquio, região Partido Liberal Democrático - PLD c o Parti­
especial, cuja assembléia é composta de 130
do Socialista do Japão - PSJ, praticamente
membros. Para as assembléias de cidades e vi­ monopolizam a representação política nas elei­
las o número de representantes varia de 12 a ções de 1958. Esses dois partidos elegem 453
cem. Nas regiões especiais, como a região dos 455 deputados eleitos por partidos políti­
metropolitana de Tóquio, o limite das assem­
cos, excetuando-se os independentes.
bléias locais é de 60 membros.1
No entanto, esse sistema bipartidário dura
pouco, pois as disputas internas no PSJ vão
acarretar a cisão de 1960, quando 40
2. Sistema partidário e eleitorado deputados mais à direita no partido criam o
Partido Socialista Democrático - PSD. Por
Dentro de uma perspectiva comparativa
outro lado, o Partido Comunista Japonês —
com o Brasil, a vida política japonesa do ime­
PCJ, partido que tem a mais longa trajetória
diato pós-guerra apresenta algumas caracte­
na vida política do país e que em 1960 tinha
rísticas interessantes, pois marcam o momento
apenas três representantes na Dieta, também
da transição do militarismo para um modelo de
cresce por essa época, chegando a eleger 38
democracia à ocidental. Duas delas merecem
deputados nas eleições de 1972.
destaque. Em primeiro lugar, a derrota na
Em 1964, a organização Soka Gakkai, da
guerra acarreta o surgimento de novas lide­
seita budista Nichiren Shoshu, forma seu pió-
ranças. Quase todos os membros da Dieta de
antes de 1945 foram expurgados da política prio partido, o Komci-to (Partido do Governo
Transparente ou Partido do Governo Justo).
pelos ocupantes norte-americanos (muitos
Como se pode perceber pela Tabela 4, o Ko-
voltarão ao cenário após 1952), de tal maneira
mei-to não cessa de crescer no cenário político
que as primeiras eleições após a guerra ex­
pressam uma renovação quase total na com­ japonês.
posição da Dieta (apenas 19% dos eleitos ti­ Assim, de um sistema bipartidário, ou, co­
mo prefeririam alguns analistas norte-
nham participado de Dietas anteriores).
americanos, de um “sistema de um partido c
Em segundo lugar, tal como em países que
meio”,2 tende-sc, a partir da década de 1970, a
hoje transitam do militarismo para alguma
33
Estudos Afro~Asiáticos n- 16,1989
um sistema multipartidário3 com nítida maio­
ria conservadora, através, sobretudo, da força Nesse quadro, uma questão de perspectiva
eleitoral do PLD. Por isso Nobutaka Ike o de­ é freqüentemente discutida pelos especialistas:
nomina de “sistema com um partido domi­ até que ponto seria possível, a médio prazo,
nante”, semelhante ao mexicano, com a domi­ um governo de oposição ou uma coalizão de
nação do Partido Revolucionário Institucional alguns partidos da oposição com setores do
- PRI, ou mesmo ao brasileiro, na época da PLD para provocar uma alternância de gover­
antiga Arena. no no Japão? Ora, apesar dos desejos de mui­
No entanto, se nos baseamos em Sartori,'4 o tos e mesmo de boa parte da opinião pública
sistema partidário japonês seria classificado japonesa, tal hipótese não me parece visível no
como predominante, pois nele se verifica si­ cenário político japonês atual. Isso porque uma
multaneamente o pluralismo partidário e a aliança PSJ-PCJ tem limitada base de apoio
dominação de um partido. Como sugere Hre- entre os socialistas, não faz parte da estratégia
benar, o sistema japonês seria um “sistema política destes, sem falar de sua limitada base
partidário predominante definitivo”, dado que, de apoio popular no quadro atual. Uma aliança
dos socialistas, Komei-to e facções do PLD
entre todas as democracias de países capitalis­
tas avançados, a japonesa é a única em que um tem sido a hipótese mais cogitada e, talvez,
único partido governa ininterruptamente desde mais visível. No entanto, se é verdade que o
a década de 1950.5 PSJ, o PSD e o Komei-to poderiam tentar
melhores performances eleitorais em 1990, in­
Alguns problemas internos no PLD acar­
cluindo-se inclusive a possibilidade de candi­
retam, em 1976, a criação do Novo Clube Li­
datos comuns em alguns distritos, parece pou­
beral - NCL, que em diversas eleições sub-
co provável um desentendimento catastrófico
seqüentes incentiva a formação de pequenos
partidos para suas disputas eleitorais. Essa ci­ entre as facções do PLD a ponto de ameaçar o
predomínio desse partido no cenário político
são, no entanto, parece estar agora terminada,
japonês, mantido desde 1955.
após a decisão do NCL de voltar ao PLD
(agosto de 1986). Dessa maneira, pode-se di­ Portanto, tudo indica que a alternância do
zer que as tendências ideológicas mais expres­ poder no Japão continuará se realizando no
interior do próprio PLD, no jogo complexo
sivas no mundo contemporâneo manifestam-se
também no Japão, particularizadas, evidente- entre suas difèrentes facções. Uma citação de
mente, pelos traços culturais próprios do país: Raymond Aron, tomada de Hrebenar, pode
ser oportuna para reflexões:
conservadorismo.........................sobretudo PLD
centrismo conservador.........................Komci-to “Nenhum outro povo parece ser tão homo­
social-democracia........................... PSJ e PSD gêneo; em nenhum lugar o controle social é
socialismo.......................................... e PSJ tão efetivo, onipresente, brandamente pe­
remptório. Alguns observadores podem di­
Tal divisão, no entanto, é simplificadora, zer que a continuidade do partido no poder
está apoiada em uma base disciplinada, em
^^ 1euns especialistas
o Komci-to discutem
c o PSD muito para
não acabam sen-
um estilo que os ocidentais considerariam
SabCr Tdos conservadores, apesar da retórica
incompatível com sua filosofia individua­
d° Par * ou social-democrata; por outro lado,
lista. O Japão democratizado não se tornou
centrista para sabcr qual partido es-
individualista. Vamos assim deixar o Japão
discute- cSqUcrda: se seria uma ala minori­ de lado e, meramente, notar que há um país
tária nl£USpsJ oU o PCJ, este considerado por
- e talvez apenas um - que demonstra,
tária do primeira manifestação do
contra a maré de opinião em voga, que um
muitos co. nos pafses capitalistas partido político pode resistir ao desgaste do
“eurocomunismo
governo e que um regime democrático sem
avançados- alternância nem sempre degenera.”6

34 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


Essa perspectiva de continuidade do pre­ de seus membros são atitudes tradicionais dos
domínio do PLD se confirma também pelas japoneses, as quais fortalecem o sistema de re­
diversas pesquisas de opinião, nas quais o
comendação (subsensei), os sentimentos de
principal partido de oposição, o PSJ, ou a
obrigação (giri), a consciência local (jimoto) e
oposição em seu conjunto aparecem de ma­
as organizações dc apoio a candidatos (koen-
neira predominante negativa. Assim, enquanto
kai)."
a maioria de japoneses tiver essa imagem ne­
3. A participação política está baseada nos
gativa do PSJ (incompetência, radicalismo,
padrões culturais prescritos de rclaçõcs pes­
inatividade, dependência), é pouco provável
soais dc gratidão entre os indivíduos e seus
qualquer alternância em favor da oposição.
superiores.”
Finalmente, é importante destacar que a 4. A concepção dc participação política no
cooptação vem ocupando lugar de destaque no Japão está amplamcntc limitada ao voto.’2
cenário japonês: o NCL foi absorvido pelo 5. Existe uma expressiva falta dc confiança
PLD em agosto de 1986 e desde 1985 existem nos políticos.'3
negociações entre o PLD e o PSD para inclu­ 6. A real batalha eleitoral se dá mais entre
são deste último em futuros gabinetes. Embora os candidatos das diversas facções do PLD do
Hrebenar sugira uma “era de coalizão”, talvez que entre o PLD e os partidos de oposição.14
peja melhor sugerir uma nova era de coopta­ 7. O eleitor destaca mais o candidato do
ção dos setores mais conservadores da opo­ que o partido ou programa, salvo has eleições
sição japonesa pelas facções dominantes do para a Câmara dc Chanceleres.15
PLD. 8. O eleitorado japonês c csscncialmcntc
Por outro lado, o próprio comportamento conservador, no sentido dc que c resistente à
dos eleitores parece indicar a continuidade do mudança.16
predomínio conservador. De acordo com Ku- Em pesquisa de opinião promovida pelo
roda7 o ato de votar, para muitos japoneses, Mainichi Shimbum, um dos principais órgãos
não é tanto uma atividade política, mas parte da grande imprensa japonesa, cm dezembro dc
de um comportamento social geral. Apesar das 1980, à questão: “Você está satisfeito com sua
diversas campanhas cívicas contra o absten- vida atual?”, 73% dos entrevistados respon­
cionismo eleitoral, observa-se uma tendência deram afirmativamente; 18% responderam ne­
de seu aumento no Japão. Hrebenar explica gativamente, enquanto 8% deram outras res­
essa realidade pela pouca representatividade postas ou não responderam. 73% se designam
dos pleitos, tanto para os cargos executivos “conservadores”, enquanto 22% se conside­
como para a Dieta.8 ram “reformistas”.17 Tal perspectiva está
O comportamento eleitoral recente dos ja­ presente tanto no meio rural como no meio
urbano. Aliás, é bom observar, o Japão con­
poneses tem sido estudado por Flanagan, Ri-
chardson e o próprio Hrebenar, entre outros temporâneo pode ser visto como uma extensão
cada vez maior da urbanidade. Entre Tóquio e
investigadores ocidentais. Vejamos uma sín­
Osaka ou entre Tóquio e outras grandes cida­
tese de conclusões mais persistentes de alguns
des o que se atravessa é uma continuidade ur­
pesquisadores.
bana a 220 km/hora!
1. No Japão, o ato de votar é um ato passi­
O predomínio conservador, através sobre­
vo, enquadrando-se no padrão tradicional ja­
ponês de evitar tanto quanto possível a ação tudo do PLD, manifesta-se, como se vê na
política.9 Tabela 4, tanto nas zonas rurais como nas ci­
dades ou grandes centros metropolitanos. Por
2. A persistência de ligações pessoais, o
outro lado, a tendência do voto dos jovens
significado do grupo na vida individual e a ca­
após 1979 é também de preferir majoritaria-
pacidade do grupo para forçar o conformismo
menteo PLD.'8
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
35
seja como resultante de um acordo entre eles, 2-o Komei-to e o PSD não têm sido
TABELA 4
seja pela vontade de um líder forte, como foi o prejudicados pelo sistema; e
Deputados eleitos pelo PLD e PSJ por tipo de distrito caso de De Gaulle na França. No Japão, já em 3-o PCJ é o maior prejudicado.
(1976-1983) 1925, se realizara um acordo entre os três
Assim, dentro da correlação de forças que
maiores partidos da época (Seyukai, Kenseikai
tem existido na política japonesa do pós-
c Kokuminto), estabelecendo o sistema de dis­
TIPOS DE DISTRITOS 1976 1979 1980 1983 CARGOS % DE VOTOS guerra, tal sistema contribui para a manuten­
tritos médios. Tal sistema vigora desde então
PLD PSJ PLD PSJ PLD PSJ PLD PSJ PLD PSJ ção do status quo e discrimina os eleitores de
no país, salvo nas eleições de 1945, que se­
esquerda, tendencialmente concentrados nas
guiram o padrão da representação múltipla.
Grandes cidades 37 23 32 22 41 21 35 23 123 29 16 regiões mais populosas. As dificuldades
Notar também que, em si, esse sistema de dis­
Cidades médias 43 27 45 21 50 20 42 25 95 44 21 maiores para o PCJ também se manifestam nas
tritos médios não é muito original, pois existiu
Vilas 54 23 55 19 63 19 53 21 102 51 19 eleições para a Câmara de Chanceleres, como
em muitos países no decorrer do século XIX,
Semi-Rurais 52 27 51 22 55 25 52 22 88 56 22 se pode perceber pelos dados da Tabela 6.
inclusive no Brasil imperial.
Rurais 63 23 65 23 75 22 68 21 103 61 20 Quando se compara os resultados do Ko­
Totais 249 123 248 107 284 107 250 112 511 46 20 mei-to e do PCJ é que se pode entender um
a) A magnitude do Distrito
detalhe das eleições japonesas. O PCJ apre­
Fonte: R.J. Hrebenar, org., The Japanese Party. . ., oo. cit., p. 23. senta candidatos em 129 dos 130 distritos do
Como já foi indicado, nas eleições para a
país, enquanto o Komei-to os apresenta em
Câmara de Representantes o país é dividido
distritos selecionados (59 nas eleições de
em distritos, que elegem de um a cinco
3. Sistema eleitoral e partidos da desigualdade do peso do eleitor, maior ou 1983). Portanto, o PCJ tem sua votação distri­
deputados. Tal sistema tem acarretado as se­
menor segundo o distrito. Como se pode per­ buída em todo o país, enquanto os votos para o
guintes conseqüências:
A análise do impacto do sistema eleitoral ceber, não existiria tanta originalidade no caso Komei-to estão concentrados em alguns
1 - os partidos maiores são beneficiados
sobre os partidos e o sistema partidário é japonês, pois tal problema também existe no distritos.
pois elegem proporcionalmente mais
muito comum na ciência política contemporâ­ Brasil, se consideramos cada estado como um
deputados do que a proporção de votos rece­ Torna-se também importante, em tal siste­
nea. No Brasil, esse fenômeno foi pioneira­ distrito.
bida; ma, calcular bem o número de candidatos por
mente estudado pelos cientistas políticos que A dimensão do eleitorado do estado afeta
publicavam na Revista Brasileira de Estudos os partidos e o sistema partidário, acarretando,
TABELA 5
Políticos, como Orlando M. de Carvalho, também, a super-representação de alguns es­
Nelson Saldanha, Olivciros F. Ferreira e, mais tados e sub-representações de outros. Em ou­ Eleitos por partido e magnitude dos Distritos - Câmara de Representantes
recentemente, por Bolivar Lamounier, Wan- tras palavras, fica estabelecida uma discrimi­ (Eleições de 1983)
derley G. dos Santos c outros. Tal preocupa­ nação entre os eleitores, uns com maior peso
ção está também muito presente em diversos do que outros, o que contraria o princípio
estudos de japonólogos. constitucional moderno de igualdade entre os PARTIDOS REPRESENTANTES ELEITOS % DOS ELEITOS POR ELEITOS
Com efeito, tem sido freqüentemente ob­ NOS DISTRITOS DISTRITO TOTAL %
cidadãos.
3REP. 4REP. 5REP. 3REP. 4REP. 5REP.
servado que o sistema eleitoral japonês, tam­ Então, onde estaria a originalidade japone­
bém ele, expressaria uma das dimensões da sa? Segundo Hrebenar, o sistema dos distritos
PLD* 76 80 93 53,9 48,7 45,3 250 48,9
originalidade japonesa. Como escreve Hrebe­ médios seria a expressão dessa originalidade
PSJ 31 48 73 21,9 23,1 20,9 112 21,9
nar, “original em muitos aspectos entre os japonesa. Ora, é sabido que encontramos em
Komei-to 15 13 30 10,6 7,9 14,6 58 11,3
sistemas eleitorais de nações democráticas, as diferentes países o sistema distrital simples
PDS 6 14 18 4,2 8,5 8,7 38 7,4
leis eleitorais do Japão tiveram um significati­ (um representante para cada distrito) e o sis­
vo impacto no sistema partidário da nação no PCJ 4 8 14 2,8 4,8 6,8 26 5,0
tema distrital múltiplo, semelhante à regra
pós-guerra”.19 NCL 4 3 1 2,8 1,8 0,5 8 1,5
brasileira de eleições proporcionais, pela qual
Na realidade, esses impactos, em si c no FDS 0 2 1 0,0 1,2 0,5 3 0,5
os eleitores de cada estado elegem múltiplos
geral, não são tão originais, pois se manifestam representantes para a Câmara dos Deputados. Indep. 5 6 5 2,8 3,6 2,4 16 3,1
em países como a França, Itália e Inglaterra, Sabemos também que todo o problema reside Totais 141 164 205 511
entre outros. Destaquemos, inicialmente, dois na lei que regula a questão.
aspectos significativos dessa discussão: o im­ E interessante notar que essas leis sempre Fonte: R.J. Hrebenar, org., The Japanese Party. . ., op. cit, p. 35.
pacto da magnitude do distrito e o problema correspondem à vontade dos partidos maiores, ' O distrito com apenas urr eleito foi ganho pelo PLD em 1983.

Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 37


36 Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989
partido. Tal constatação é válida sobretudo aplicação claros, sem possíveis interpretações
para o PLD e o PSJ. Se o cálculo for mal fei­ dúbias, verifica-se uma resistência do PLD em
to, o número de votos do partido pode ser aceitar uma distribuição mais democrática, que
majoritário, mas a posição de cada candidato certamente o prejudicaria. Preferiu-se au­
minoritária em relação a candidatos dos outros mentar o número de membros da Câmara de
partidos. Observe-se que não existe o sistema Representantes (em 1964 acrescentaram-se
de sublegendas, tal como no Brasil até recen­ mais 19 membros, em 1976 mais 20 e em 1986
temente. Por essa razão, o número de candi­ mais um, chegando-se aos 512 deputados
datos nas eleições japonesas é relativamente atuais).
pequeno comparado com países como o Brasil A conseqüência é clara: o peso do eleitor de
(cf. Tabela 7). certos distritos chega a ser quase cinco vezes
maior do que o do eleitor de outros, como se
pode ver na Tabela 8, que exemplifica a ques­
b) A desigualdade do peso do eleitor tão com os cinco distritos mais sub-represen-
tados e os cinco mais super-representados do
As migrações internas e a urbanização país.
crescente criam realidades novas para os sis­ Tal realidade prejudica todos os partidos à
temas eleitorais muito rígidos. O aumento da exceção do PLD, pois todos eles tendem a ter
população urbana e a diminuição relativa expressão eleitoral maior nas cidades maiores.
da população rural deveriam acarretar, perio­ Os estudos realizados indicam, no entanto, que
dicamente, mudanças na representação dos os partidos mais prejudicados são o PCJ e o
distritos. Teoricamente, esse seria o caso do Komei-to. A Corte Suprema já declarou a in-
Japão. A lei eleitoral estabelece que a cada constitucionalidade desse sistema. Permanece,
cinco anos deveria haver um ajustamento do portanto, um choque formal entre a Corte Su­
número de representantes de cada distrito. prema e o Legislativo-Executivo, sob controle
Como essa lei não deixa os mecanismos de sua do PLD. No fundo da questão está o seguinte:

TABELA 6

Câmara de Chanceleres
(Eleições de julho de 1986)

VOTOS VOTOS
PARTIDOS PROPORCIONAIS DISTRITAIS
ELEITOS % VOTOS ELEITOS % VOTOS

PLD 22 38,6 50 45,1


9 17,2 11 21,5
PSJ
7 13,0 3 4,4
Komei-to
3 6,9 2 4,6
PSD
5 9,5 4 11,4
PCJ
1 2,4
NCL
independentes 6 10,4
3 12,5 2,6
Menores 50 76
100,0 100,0
Totais
Statistical Yearbook 1987, p. 706.
Fonte:
Estudos Afro-Asiáticos ri^ 16, 1989
38
o problema é questão interna fundamental no beneficiado seria provavelmente o PCJ.20
PLD, pois o atendimento às decisões da Corte Concordando com Hrebenar, pode-se sugerir
Suprema implicaria uma mudança na relação que o PLD deve chegar a conclusões sobre a
de forças entre suas diferentes facções. Assim, questão proximamente. Não sei se é “por­
o problema não é apenas do partido, mas tam­ que sua maioria pura é improvável de conti­
bém de cada facção. nuar por mais tempo”.21 Talvez seja muito in-
Não será simples encontrar uma saída para confortável para a ética da dignidade nacional
o que tem sido um impasse na representação japonesa esse desrespeito sutil à Corte Supre­
democrática no Japão, porque também o maior ma do país.

TABELA 7

Câmara de Representantes
(Número de candidatos por partido)

PARTIDOS 1976 1979 1980 1983

PLD 320 322 310 339


PSJ 162 157 149 144
PCJ 128 128 129 129
Komei-to 84 64 64 59
PSD 51 53 50 54
NCL 25 31 25 17
FSU — 7 5 4
Menores 17 33 42 18
Independentes 112 96 61 84
Totais 899 891 835 848

Fonte: Ministério do Interior, in R.J. Hrebenar, org. The Japanese Party... op. cit, p. 36.

TABELA 8

Desigualdade do peso do eleitor

DISTRITOS DEPUTADOS VOTOS


SUB-REPRESENTADOS SUPER-REPRESENTADOS NA DIETA P/DEPUTADO A/B
(A) (B) (A) (B) (A) (B)

Chiba(4) Hyogo(5) 3 3 549.501 111.930 4,91


Kanagawa(3) Kagoshima(3) 3 3 504.851 116.920 4,32
Saitama(2) Ehime(3) 3 3 497.140 123.965 4,01
Tóquio(11) lshikawa(2) 4 3 454.458 124.404 3,65
Saitama(4) Akita(2) 3 4 451.294 128.564 3,51

Fonte: R.J. Hrebenar, org., The Japanese Party..., op. cit., p. 40.

Estudos Afro-Asidticos n-16,1989 39


FIGURA 1
Evolução de sistema partidário conservador no Japão 4. Partidos políticos por numerosas razões. A economia japo­
nesa estava ainda em um período de recu­
Partido Liberal 4.1. Partido Liberal Democrático —
Partido Progressivo peração e as lideranças empresariais esta­
do Japão Partido Cooperativo PLD
(nov. 1945) do Japão vam fortemente unidas em seu objetivo de
(nov. 1945) do Japão
(dez. 1945) atingir altas taxas de crescimento econômi­
a) As origens do PLD co. Para implementar esse objetivo, o em­
presariado procurou primeiro estabelecer a
Partido Democrático Com o fim da guerra e a derrota do milita­
Partido Cooperativo estabilidade política como uma condição
(março 1947) rismo japonês, em 1945, abre-se o espaço para
do Povo _ essencial para a manutenção do cresci­
Partido Democrático
(março 1947)_ ] a reorganização da vida política e partidária no
Liberal mento econômico.”23
(março 1948) Partido da Brisa Verde Japão. A experiência do país mostra que fo­
(março 1947) ram necessários dez anos para que o sistema O segundo fator é o avanço das forças pro­
partidário japonês adquirisse a feição desejada gressistas no cenário político japonês. Com
Pacção Coalização efeito, após a assinatura do Tratado de Paz em
Facção Oposição pelas forças estruturalmente hegemônicas.
Democrática
Democrática Com efeito, entre 1945 e 1955, como se pode 1951, o Japão recupera sua autonomia como
(março 1948)
(março 1949) nação independente, iniciando-se nova fase na
perceber pela Figura 1, tendências mais con­
servadoras e aquelas com tradição no libera­ vida social e política japonesa. Nesse contexto,
Partido Liberal lismo estavam divididas em diversos partidos o Tratado de Segurança com os Estados
(março 1950) Partido Democrático Unidos tende a polarizar as forças em presen­
Novo Clube políticos.
do Povo ça: de um lado, os conservadores, que o
Político Sucediam-se divisões, rearticulações e cri­
(abril 1950) (set 1951) apóiam; de outro, os socialistas, que, mesmo
ses, pouco compatíveis com a estabilidade de
divididos, o criticam. Dessa polarização resulta
Facção Hatoyama um sistema parlamentarista e com a estabilida­
do Partido Liberal de política necessária à estratégia de desenvol­ o paulatino crescimento das forças socialistas.
(março 1953) Nas eleições de 1952 os socialistas conseguem
vimento econômico acelerado do país.
eleger 111 deputados, ou seja, 23,8% do total.
Dentro dessa ótica, as divisões partidárias
Partido Liberal dos setores conservadores e liberais, econômi­ Em novas eleições, em 1953, os socialistas ele­
Partido Progressivo
do Novo Japão ca e politicamente hegemônicos, criam pers­ gem 138 deputados, chegando a 29,6% da
(fev. 1952)
(nov. 1953)
pectivas de instabilidade maiores, ainda mais Câmara de Representantes. Nas eleições de
levando-se em consideração o crescimento 1955, somando-se a representação dos socia­
eleitoral dos socialistas. Assim, cm novembro listas, comunistas e outros partidos progres­
de 1955, assistir-se-á à fusão partidária de to­ sistas, atingia-se o número de 162 deputados,
das essas correntes, surgindo então o PLD. cerca de 34% do total.
Partido Democrático
do Japão Apesar da conhecida relevância do regime Esse crescimento aponta para os socialistas
(nov. 1954) parlamentarista para o fortalecimento dos a perspectiva de chegar ao poder em aliança
partidos, os analistas apontam dois fatores com outras forças. Daí o esforço visando à
mais importantes para entender o surgimento reunificação partidária dos socialistas e ao
do PLD. Em primeiro lugar, a percepção, pe­ surgimento do PSJ em outubro de 1955. Cer­
Novo Clube Liberal
(1976) los grandes grupos econômicos japoneses, da tamente, essa decisão dos socialistas apressa a
Partido Liberal Democrático necessidade de um partido mais coeso, capaz reunificação conservadora, que se realiza um
(nov. 1955) de dar uma direção mais consistente à vida po­ mês depois, criando-se o PLD.
1986 (dissolvido)
lítica do país. Existe, portanto, necessidade
Komei-to econômica da estabilidade política,22 e as
dissolvido em b) As facções do PLD
(nov. 1964) 1965 pressões dos poderosos grupos financeiros
NGL
(zaikai) tornam-se decisivas para o surgimento
de um partido para realizar tal objetivo: Em suas origens, o PLD é muito mais uma
Komel-to frente partidária conservadora do que pro­
Fonte: P-J- Hrebenar, org., The Japanese Party. . ., Op. CiL “A influência política do zaikai durante os priamente um partido político. Agregando in­
anos 1950 era mesmo maior do que hoje
40 teresses divergentes c com rivalidades antigas
Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989
Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989 41
no cenário japonês, desenvolver-se-á como interessante, pois ilustra o enraizamento pro­
partido de facções organizadas. O facciona- fundo da continuidade conservadora na políti­
lismo é, assim, um traço imanente do PLD, ca japonesa.
pois as facções não apenas expressam origens
históricas diferenciadas como também canali­ Outro aspecto interessante a ser observado
zam padrões específicos de fidelidade pessoal, é a força da facção Tanaka, que vem desem­
aspecto muito significativo quando se analisa o penhando um papel central na política japone-
Japão. nesa nos últimos 20 anos. As facções Tanaka,
Seja uma “aliança de facções”, seja um Suzuki e Nakasone dominam o PLD e, em
“partido composto de diversos partidos”,24 o conseqüência, o governo japonês e por isso são
entendimento do PLD passa por suas diferen­ designadas shuryu-ha, ou seja, “facções domi­
tes facções e pelas relações entre elas na dinâ­ nantes”. Existe uma espécie de “oposição” às
mica interna do partido e no cenário da políti­ facções dominantes (han-shuryu-ha) e àquelas
ca japonesa. facções que, embora não pertençam ao grupo
Existem atualmente cinco facções princi­ dominante, também não são da “oposição” (hi-
pais no PLD. A “genealogia” das facções é shuryu-ha).

TABELA 9
Origens das facções do PLD

PERÍODO GABINETE FACÇÔES ALIANÇAS


PRINCIPAIS

1946-1947 Yoshida Yoshida


1947-1948 Katayama (socialista) —
1948-1954 Yoshida Yoshida
1954-1956 Hatoyama Hatoyama
1956-1957 Ishibashi Hatoyama
(Ishibashi)
1957-1960 Kishi Kishi Sato+Kono
+ Ono
1960-1964 Ikeda Ikeda Ikeda + Sato + Kishi
(Yoshida)
1964-1972 Sato Sato Fukuda
(Kishi) + Tanaka + Ohira
+ Nakasone + Miki
1972-1976 Tanaka Tanaka
1976-1978 Miki Miki
1978-1980 Ohira Ohira (Ikeda)
1980-1983 Suzuki Suzuki (Ikeda) + Tanaka
1983-1987 Nakasone Nakasone + Tanaka
1987 Takeshita Takeshita
(Tanaka) + Nakasone

Fontes: R.A. Scalapino eJ. Masumi, Parties and Politics. . ., op. cit., A. W. Burks, The Government of Japan, Nova
lorque, Thomas Y. Crowell, 1964; e N. Tomita et. alii, “The Liberal Democratic Party. . .”, op. cit.

42 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


Resumindo, as cinco facções atuais tiveram ficulta o surgimento de lideranças ou poder
as seguintes lideranças sucessivas:25 autocrático.
d) O faccionalismo limita, no entanto, o
Suzuki........................... Yoshida-Ikeda-Maeo-
pluralismo interno, tornando-o cada vez mais
[-Ohira-Suzuki
limitado e contribuindo para o predomínio
Tanaka. . Yoshida-Sato-Tanaka-Takeshita
burocrático.
Fukuda ................................... Kishi-Fukuda
Nakasone................................... Kono-Nakasone A política do PLD e sua realidade interna
Komoto .................................... Miki-Komoto manifestam-se nas orientações do governo ja­
ponês. O partido sofre os impactos das crises c
Claro que o faccionalismo consolidado en­ os benefícios dos sucessos do governo. Como
gendra uma série de conseqüências. Estudiosos ilustra a Tabela 10, o PLD tem grande respal­
como Hrebenar e Tomita destacam entre elas do do eleitorado japonês.
as seguintes:
No entanto, como se percebe, esse apoio
a) O faccionalismo contribui para o atraso
eleitoral diminui paulatinamcntc entre 1958 e
da política conservadora e para o alto grau de
1976, período cm que os escândalos envolven­
corrupção existente na política japonesa. As
do a figura do primeiro-ministro c líder da
disputas entre as facções exigem dinheiro e daí
principal facção do PLD, Tanaka, levam o
o grande envolvimento delas com o big
partido ao seu mais baixo desempenho eleito­
business.
ral (41,8%) desde sua criação.
b) O faccionalismo impede a modernização
do partido. Nas últimas quatro eleições para a Câmara
c) O faccionalismo significa, no fundo, de Representantes o PLD recuperou-se de
multipartidarismo. Em muitos casos o debate maneira visível, atingindo inclusive o recorde
entre as facções pode facilitar o encontro de de 300 deputados eleitos c obtendo o apoio de
melhores soluções. Esse pluralismo interno di­ quase 50% dos votantes. Vale destacar de no-

TABELA 10

Força eleitoral do PLD na Câmara de Representantes


(1958-1986)

ELEIÇÕES/DATA VOTANTES VOTOS PLD DEPUTADOS TOTAL TOTAL DE


% % ELEITOS % DEPUTADOS

5 maio 1958 77,0 57,8 287 61,4 467


11 nov. 1960 73,5 57,5 296 63,3 467
11 nov.1963 71,1 54,6 283 58,1 467
1 jan. 1967 73,9 48,8 277 56,9 486
12dez. 1969 68,5 47,6 288 59,2 486
12dez. 1972 71,7 46,9 271 55,1 491
12dez. 1976 73,4 41,8 249 48,7 511
10 out. 1979 68,0 44,8 248 48,5 511
6 jun. 1980 74,5 47,9 284 55,5 511
12 dez.1983 67,9 45,8 250 48,9 511
7jul. 1986 71,4 49,4 300 58,5 512

Fonte: Japan Statistical Yearbook 1980e 1987.

Estudos Afro-Asiâticos n-16,1989 43


vo que o sistema eleitoral japonês beneficia o
PLD, garantindo-lhe um número relativo de agressiva mas com grande capacidade de or­
deputados superior à proporção dos votos ob­ ganização. O movimento cresce e começa a
chamar a atenção na política japonesa quando
tidos. O que contribui também para evidenciar
um número crescente dc candidatos procura
uma dimensão da estabilidade do controle
apoio dos seguidores de Toda.
conservador sobre o sistema político e a socie­
dade japonesa. Após sua morte em 1958, Toda é sucedido
por Daisaku Ikeda, então com 32 anos, que
introduz a energia c a juventude de sua idade
4.2. Kornei-to. Partido Komei (Partido no conjunto da organização. Por volta de 1968
do Governo Transparente)26 a Soka Gakkai afirma ter 15 milhões de mem­
bros ou cerca de seis milhões de unidades fa­
Dentro do universo religioso japonês, a miliares apenas no Japão.
seita budista Nichircn Shoshu (seita ortodoxa Tendo cm vista seus princípios e preocupa­
dc Nichircn) caractcriza-se, desde sua funda­ ções envolvendo toda a sociedade c, sobretu­
ção, por uma militância explícita. A seita con- do, o objetivo de construir um Estado sob os
sidera-se a representante do verdadeiro bu­ princípios do budismo, é inevitável o envolvi­
dismo, que, segundo *ela, teria sido distorcido
mento da Soka Gakkai com a política partidá­
com o tempo. Sua função é, portanto, restau- ria. Desde 1955, muitos de seus membros já se
rá-Io cm sua plenitude, dando-lhe os meios elegem para assembléias locais c prefeiturais c
para esclarecer todos os homens na terra.
posteriormente cm outros níveis. Em 1964 a
Assim, desde suas origens, a Nichircn
Soka Gakkai afirma ter 15 representantes na
Shoshu scnte-sc na obrigação de salvar o povo
Câmara de Chanceleres, 55 cm assembléias
japonês de filosofias e ensinamentos errados,
metropolitanas ou prefeiturais, 113 cm assem­
que acabariam destruindo a própria nação.
bléias de cidades c 188 cm assembléias de
Aqui torna-se visível um dos aspectos do seu
vilas.
lado nacionalista: como acredita que o futuro c
Como o artigo 20- da Constituição estabe­
a própria salvação dependem dc seu trabalho,
lece que “nenhuma organização religiosa (. . )
a Nichiren Shoshu lança-sc cm práticas agres­
exercitará qualquer autoridade política”, tor­
sivas dc proselitismo c campanhas dc conver­
são. Articulando bastante para que os dife­ na-se necessário um outro tipo de organização
para a atividade explicitamente política da
rentes governos aceitassem seus ensinamentos,
Soka Gakkai. Em 17 de novembro de 1964 é
seus líderes foram quase sempre perseguidos e
criado o Partido Komei - Partido do Governo
colocados nas prisões. Nichiren morreu em
Transparente, o braço político-partidário da
1282, estabelecendo-se, pouco depois, uma li­ Soka Gakkai.27
nha sucessória de autoridade entre seus segui­
A esse partido caberia, então, a função de
dores que se mantém até hoje.
procurar a “democracia budista”, definida
Na década de 1930, os seguidores de Ni­
como a combinação de bem-estar social c feli­
chiren, liderados por Makiguchi e Toda, fun­ cidade individual.28 Tal democracia seria uma
dam a atual Soka Gakkai - Sociedade Acadê­ forma de socialismo ou nco-socialismo, no
mica para a Criação de Valores. Ambos os lí­
qual o Estado teria um papel fundamental.
deres são colocados na prisão pelo regime mi­
litar japonês em 1943. Makiguchi morre de O Partido Komei vem crescendo significa­
tivamente nos últimos anos e desempenha pa­
desnutrição na cadeia em 1944 e é sucedido
pel não negligenciável na política japonesa. Em
por Toda, libertado no ano seguinte.
um sentido geral assume posições pendulares,
Em 1951, pode-se dizer que o movimento
ora pelo lado conservador, ora pelo lado do
está formalmente reconstruído, sob a condu­
progressisme. Aspecto interessante para um
ção de Josei Toda, liderança autoritária e
movimento religioso de cunho político é a de-
44
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
claração conjunta da Soka Gakkai e do PCJ
povo, mas ao mesmo tempo mantendo suas
feita em 1974 e que transcrevemos abaixo: respectivas crenças e métodos, irão, cada
“No início de outubro de 1974, Koichiro uma a sua maneira, trabalhar para a elimi­
Ueda - representante do PCJ - e Isao No- nação das injustiças sociais e para a realiza­
zaki - representante da Soka Gakkai - ção de um bem-estar crescente para o
mantiveram uma série de discussões nas povo.
quais trocaram amplas e francas opiniões 5. Ambas as organizações, sustentando suas
relativas à natureza e princípios de suas respectivas crenças c métodos, irão fazer o
respectivas organizações, suas atividades melhor de seu esforço para a etema paz no
presentes e perspectivas no futuro e sobre a mundo. Em particular, as duas organiza­
situação interna e externa. ções, cada uma a sua maneira, trabalharão
Como resultado, Ueda e Nozaki, agindo em para a completa abolição das armas nu­
nome de suas respectivas organizações, cleares, que constituem uma ameaça básica
concordam com a premissa de que a Soka à existência humana.
Gakkai e o PCJ, reconhecendo terem na­ 6. Ambas as organizações reconhecem que
tureza e princípios independentes e as di­ no presente há uma tendência no Japão
ferenças dos pontos de vista de cada uma, para um novo fascismo e, cada uma a sua
seguirão uma política de mútua não-inter­ maneira, irão trabalhar com sabedoria e
ferência. inteligência disponível para prevenir que
Com essa premissa, para o bem do futuro essa tendência se desenvolva para um está­
gio crítico. Ao mesmo tempo, opor-se-ão
do Japão e acima de tudo para o bem do
definitivamente e se protegerão contra
povo do Japão, chegaram a um acordo so­
bre os pontos abaixo: qualquer tentativa fascista de pôr em xeque
1. O PCJ e a Soka Gakkai têm ambos or­ os direitos democráticos e os direitos hu­
ganizações, movimentos e princípios inde­ manos fundamentais, assim como contra o
pendentes. Com o objetivo de estabelecer ataque fascista sobre a liberdade política
e religiosa.
uma relação mutuamente confiável, res­
7. O prazo deste acordo será de dez anos,
peitando a independência de cada um, farão
efetivo da data de sua assinatura. Após dez
o melhor para chegar a uma compreensão
mútua. anos, as duas organizações, tendo revisto as
2. 0 PCJ sustentará incondicionalmente, condições de época, irão deliberar e se
sob qualquer sistema governamental, a li­ consultar sobre a possibilidade de um novo
berdade de religião, incluindo a liberdade acordo para avançar nas suas relações
de propagar o ensinamento religioso. A mútuas.
Soka Gakkai não olhará com inimizade o É difícil avaliar o resultado prático dessa
socialismo científico ou o comunismo. declaração, sobretudo ao nível das relações
3. Ambas as organizações, observando boa
entre o Partido Komei e o PCJ, visto que des­
vontade recíproca, concordam em se abster de sua fundação o Komei se tomara duramente
de difamação ou calúnias mútuas em todos
anticomunista. No entanto, ela é útil para se
os assuntos, inclusive questões de posições
captar um dos estilos da Soka Gakkai, o de
políticas, e honrar ao máximo o princípio
visar à aproximação com forças de esquerda,
da negociação nas disputas. Todas as
embora tal política, ao nível do Partido Komei,
questões que surgirem entre as duas orga­ dirija-se principalmente para o PSJ e o PSD.
nizações e movimentos serão resolvidas por
A aliança com estes seria uma tentativa de al­
discussões.
ternância ao PLD no poder. Tudo indica que é
4. Ambas as organizações, enquanto tra­
pouco provável o sucesso dessas articulações
balhando perpetuamente pelo bem-estar do
em futuro próximo.
Estudos Afro-Asiáticos n2 16,1989
45
TABELA 11

Força eleitoral do partido Komei na Câmara de Representantes


(1967-1987)
ELEIÇÕES/DATA VOTANTES VOTOS KOMEI DEPUTADOS TOTAL TOTAL DE
% % ELEITOS % DEPUTADOS

1 jan. 1967 73,9 5,4 25 5,1 486


12 dez. 1969 68,5 10,9 47 9,6 486
12 dez. 1972 71,7 8,5 29 5,9 491
12 dez. 1976 73,4 10,9 55 10,7 511
10out. 1979 68,0 9,8 57 11,1 511
6 jun. 1980 74,5 9,0 33 6,4 511
12 dez. 1983 67,9 10,1 59 11,5 511
7 jul. 1986 71,4 9,4 56 10,9 512

Fonte: Japan Statistical Yearbook 1980 e 1987

Os resultados das eleições de junho de 1980 mei ocupa um lugar de destaque na política ja­
indicam uma expressiva queda do Komei, re­ ponesa. Mas contra ele continuam a pesar
sultante dos escândalos que envolvem a Soka fortes suspeitas de tendências autocráticas e
Gakkai, particularmentc em 1979 e início de direitistas.
1989.30 Mas, após esse incidente, o partido vai
recuperar os melhores resultados das eleições
anteriores, tanto em 1983 como em 1986. 4.3. Partido Socialista do Japão — PSJ
Nesse ano, confirma-se sua posição como for­
ça expressiva no cenário da política japonesa: No Japão, país cuja cultura tornava até as
57 representantes na Câmara de Represen­ idéias liberais chocantes, quando não subversi­
tantes, 25 na Câmara de Chanceleres, 217 vas, o movimento partidário socialista vai sur­
membros de Assembléias Prcfeiturais, gir como movimento ainda mais profunda­
180 membros de Assembléias de Regiões Es­ mente estranho à sociedade e encontrará
peciais, 1.870 membros de Assembléias de Ci­ enormes dificuldades para existir enquanto or­
dades e 1.171 membros de Assembléias de ganização partidária.
Vilas; ou seja, 3.521 eleitos.31 Os socialistas japoneses sofrem também as
O Partido Komei tem o apoio de um elei­ conseqüências das divisões internacionais do
movimento socialista, desde o início do século.
torado predominantemente constituído de
Também é um fato que a situação interna do
operários (25,4%), empregados de empresas
(21 4%). comerciários (17,4%) e autônomos país impõe aos socialistas japoneses um isola­
(15 8%). Com uma imagem de fanatismo nas mento maior do contexto internacional. Essas
sua^ origens, ainda é visto por muitos como dificuldades acentuam-se com o fortaleci­
mento do militarismo no Japão a partir dos
um perigo (‘‘militarista’’, “fascistizantc”, “ul-
anos 20, condenando as diferentes facções so­
tranacionalista )•
cialistas à política clandestina.
Pregando um “socialismo humanitarista”, A reorganização aberta dos socialistas efe­
verno de coalizão sem os comunistas tiva-se em novembro de 1945, com a junção
Um ^.hstituir o PLD no poder e uma posição
de três grupos: direita (Shamin-Kei), centro
* segurança' ° Par,ido Ko- (Nichiro-Kei) e esquerda (Rono-Kei). Todos

46 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


eles são originários das primeiras divisões en­ partidárias comunistas, como, por exemplo, as
tre socialistas no decorrer da década de 1920. discussões “partido de classe versus partido de
Esses grupos diferenciam-se em vários as­ massas”, luta parlamentar ou extraparlamen-
pectos, mas suas divergências em relação ao tar, e a questão da “autonomia do marxismo
movimento sindical são muito claras: a tendên­ japonês”. Este aspecto está presente nas tradi­
cia de direita prega uma cooperação entre tra­ ções da chamada Escola Rono, a qual, desde
balho e capital, em oposição à de esquerda, 1930, sempre rejeitou qualquer controle do
que pretende uma política de conquista através movimento comunista internacional sobre o
do fortalecimento do sindicalismo. movimento socialista no Japão.33
Renascendo estreitamente ligado ao movi­ Contudo, de fato, a marca inicial dos socia­
mento sindical, o PSJ vai obter expressiva listas japoneses esteve ligada à paz: defesa de
votação no pós-guerra: elege 92 deputados em uma Constituição pela paz (ver artigo 9- da
abril de 1946 (17,8%), despontando como a Constituição japonesa) e luta contra o Tratado
terceira força partidária do país. Exercerá o de Segurança com os Estados Unidos. Essas
governo por um curto período (junto de 1947 questões ocupam um lugar fundamental no
a fevereiro de 1948), durante o Gabinete Ka- conjunto das lutas da esquerda japonesa até os
tayama, com o apoio de pequenos partidos. dias de hoje.
Se as divisões no campo conservador faci­ Ressalte-se, também, um aspecto pouco
litam sua única ascensão ao poder Executivo, comum no interior do movimento socialista:
suas divisões internas tornam inviável sua existe no PSJ uma corrente interna pró-sovié­
permanência no poder. As divergências inter­ tica, a Shakaishttgi Kyokai (Aliança pelo
nas são mais profundas em relação à questão Socialismo).
externa: a esquerda fará feroz oposição aos
Após a reunificação partidária dos socia­
princípios do Tratado de Paz (1952), propondo
listas em 1955, em seguida a um período de
o neutralismo e opondo-se ao rearmamento do
crescimento eleitoral das diversas correntes,
Japão, e a direita adotará uma posição mais
aparecerão condições para uma política de
conciliadora, sobretudo em função de seu anti­
confronto do PSJ com o governo. A partir de
comunismo ativo, naquela fase do conflito da
1957 (governo Kishi) os socialistas organizam
Coréia. Em um cenário de inflação, de imposi­
protestos maciços contra a política oficial,
ções políticas norte-americanas e de tentativas
culminando com o cancelamento da visita de
frustradas de nacionalização das minas de car­
Eisenhower ao Japão em 1960 e a renúncia de
vão, os conflitos internos acentuam-se.
Kishi.
A Figura 2 ilustra a complexidade do qua­
Diversos fatores indicam uma esquerdiza-
dro interno do PSJ e a Figura 3, as diferentes
ção na política do PSJ, também acompanhada
crises do partido no contexto mais amplo da de uma diminuição de votos a nível local e na­
esquerda japonesa. cional. Essa situação culmina com uma pro­
Fato marcante da vida do PSJ é sua estreita funda crise partidária interna que leva à cria­
dependência da Central Sindical Sohyo, criada ção do PSD (que será tratada mais adiante) e
em 1950, e que nos anos seguintes vai fortale­ até ao assassinato do secretário-geral do parti­
cer a esquerda do partido. A partir dos anos do, Asanuma Inejiro. Segue-se um período de
60 aumenta a dependência eleitoral do PSJ em mais moderação. A partir da segunda metade
relação à Sohyo e inverte-se a situação inicial: dos anos 60 criam-se novamente condições
os candidatos apoiados pela Sohyo fortalecem para uma política mais radical do PSJ, possibi­
sobretudo as posições de centro e de direita do litadas pela Guerra do Vietnã, o movimento
partido.
estudantil, a ocupação americana de Okinawa
Interessante notar que alguns debates in­ e a renovação do Tratado Segurança cm 1970.
ternos do PSJ são mais comuns às tendências Aqui, novamente, pode-se observar um declí-
Estudos Afro-Asiáticos n-16, 1989 47
FIGURA 2

Evolução das facções do PSJ

1926 Ronoto Nihon Ronoto Shakai Minshuto

1945 Nihon Shakaito


Satisukikai Kawakami-ha Nishio-ha

1951 Nihon Shakaito Nihon Shakaito


(divisão) (esquerda) (direita)
Suzuki-ha Wada-ha Kawakami-ha Nishio-ha

Nihon Shakaito
(unificação)

1960

1964

1970

1982

1985 Shakaishugi Kyokai Shinsei Kenkyukai Seikenkoso Kenkyukai

Sangatsukal

(Anti-Ishibashi) (Ishibashi Alliance)

Fonte: R.J. Hrebenar, org., The Japanese Party..., op. cit, p. 104.

48 Estudos Afro-Asidticos n-16,1989


FIGURA 3

Evolução do sistema partidário da esquerda no Japão

Partido Comunista Partido Socialista do Japão


do Japão (nov. 1945)
(out 1945)

Partido dos Agricultores


(março 1947)


Partido Trabalhista e Partido Socialista Reformador Novo Partido dos Agricultores
dos Agricultores (jan. 1948) (nov. 1948)
(dez. 1948)

Partido Cooperativo dos


Agricultores (dez. 1949)

Partido Socialista Democrático


---------- (fev. 1951) -----------

Partido Socialista Partido Socialista Partido Cooperativo


Facção ds Esquerda Facção de Direita 0ulho1952)
(out. 1951) (out. 1951)

Partido Socialista do Japão


(out. 1955)

Partido Socialista
Democrático
(jan. 1960)
Liga Socialista de
Cidadãos
(1977)

Federação Social-Democrática
(1978)

PCJ FSD PSJ PSD


Estudos Afro-Asiáticosn?16,1989 49
nio eleitoral dos socialistas. Três fatores con­
o PSJ procura uma nova imagem, mais mode­
tribuem para entender melhor esse declínio: a TABELA 13
rada e moderna, e certamente continuará sen­
criação do PSD, a criação do partido Komei e
do força expressiva na política japonesa. No
o ressurgimento dos comunistas no cenário Membros do PSJ em cargos eletivos
ano 1987, assim se resumiam os principais
eleitoral, todos disputando o eleitorado do (1986)
pontos do programa de lutas do partido:
PSJ.
1. oposição ao virtual aumento dos impos­
A força eleitoral do PSJ diminui também Câmara de Representantes
tos e luta pela democratização do sistema tri­
ao nível local, sobretudo nas grandes cidades. 87
butário; Câmara de Chanceleres
Nos anos 70 pode-se notar uma estabilização 41
2. expansão da demanda interna e defesa do Dieta
da sua força eleitoral. Porém, as eleições de 128
emprego;
1986 marcarão acentuado declínio do partido. 3. luta pelo maior bem-estar com base nas Governadores de Prefeituras
Assim, nesta década de 1980, verifica-se 0
demandas locais; Membros de Assembléias Prefeiturais
uma simpatia maior do eleitorado pelas posi­ 382
4. por maiores desenvolvimentos da eco­ Membros de Assembléias de Regiões Especiais
ções conservadoras, perdendo o PSJ impor­ nomia política; 103
tantes posições locais. A partir de 1985, sob 5. promoção de relações de coexistência, Membros de Assembléias de Cidades
a liderança de Ishibashi, o partido inicia nova solidariedade e paz com povos asiáticos e do 1.919
Membros de Assembléias de Vilas
fase moderada, procurando uma estratégia mundo; 974
para participar do poder. Internamente, rea­ 6. desarmamento, diminuição das tensões e Total
parecem os conflitos com a tendência da es­ consolidação da paz; 3.506
querda em torno da reforma da plataforma do 7. lutas de massa pelo fim do Tratado de
partido, cuja tônica de esquerda começa a ser Fonle: Japan Statistical Yearbook, 1987.
Segurança e a remoção das bases militares e
mudada desde o Congresso de 1986.
contra as Forças de Autodefesa;
Sob a liderança atualmente de uma mulher, 4.4. Partido Socialista Democrático —
8. lutas de massa contra usinas nucleares e
Takako Doi, fato inédito na política japonesa, ses, criada em 1964, para congregar sobretudo
pela proibição de armas nucleares.34 PSD
trabalhadores do setor privado, constituir-se-á
na fonte básica de apoio do PSD. Diz-se mes­
TABELA 12 Já foram anteriormente mencionadas algu­
mo no Japão que o PSD é o braço político da
mas divergências no interior do movimento Domei e que a própria existência do partido
Força eleitoral do PSJ na Câmara de Representantes socialista japonês - basicamente, a polarização
depende desde o início dessa corrente do mo­
entre direita e esquerda. Em 1955, como se vimento sindical.35
ELEIÇÕES VOTO PSJ viu, há uma unificação partidária dos socialis­
DEPUTADOS TOTAL TOTAL DE
ANO % tas; em 1958 os socialistas concorrem em uma
ELEITOS % DEPUTADOS As campanhas eleitorais do PSD são feitas
só legenda nas diferentes eleições. Esse esfor­ pelos ativistas sindicais da Domei. Esse fato
1955 15,3 89 ço de unificação partidária vai durar pouco.
19,0 467 vincula excessivamente o partido ao sindica­
1958* 32,5 166 No final de 1959 a crise é evidente, acarretan­
35,5 467 lismo e restringe seus apoios eleitorais. De to­
1960 27,6 145 do o afastamento de duas correntes: a primei­
31,0 467 da maneira, como se pode notar pela Tabela
1963 29,0 144 ra, liderada por Nishio Suehiro (grupo Sha-
30,8 467 12, o PSD tem posição eleitoral relativamcnte
1967 27,9 140 min), representando facção mais à direita,
28,8 486 estável nas três décadas de sua existência, em­
1969 21,5 90 existente desde antes da guerra e que em de­
18,5 486 bora o sistema distrital majoritário faça variar
1972 21,9 118 terminado momento organizou o Partido So­
24,0 491 significativamente o número de deputados
1976 20,7 123 cialista do Povo; a segunda, a facção Nichiro eleitos.
24,0 511
1979 19,8 107 (do antigo Partido Operário e Componês do
20,9 511
1980 19,3 107 Japão). As pesquisas de Hrebcnar constatam que
20,9 511
1983 19,5 Esses dois grupos irão criar o Partido So­ também os candidatos do PSD recebem apoio
112 21,9 511
1986 17,2 85 cialista Democrático (Minshu-Shakaito) em de organizações religiosas como a Risho Ko-
16,6 512
janeiro de 1960, atraindo 40 deputados. A ci­ seikai (4,7 milhões de membros), Seicho-no-ie
Fonte: Japan Statistical Yearbook, 1980e 1987 são se manifesta também no movimento sindi­ (3,1 milhões de membros), Reiyu-Kai (2,7
* Soma dos votos do PSJ e do PSD. cal. O que seria a Domei, a segunda mais ex­ milhões) e “Perfeita Liberdade” (2,6 mi­
pressiva das quatro centrais sindicais japone- lhões).36
Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 51
TABELA 14

Força eleitoral do PSD na Câmara de Representantes

ANO %VOTOS DEPUTADOS


ELEITOS

1960 8,8 17
1963 7,4 23
1967 7,4 30
1969 7,7 31
1972 7,0 19
1976 6,3 25
1979 6,8 36
1980 6,6 32
1983 7,3 39
1986 6,4 26

Fonte: Japan Statistical Yearbook, 1987.

Doutrinariamente, o PSD aproxima-se das g) limitação das Forças de Autodefesa à


tendências sociais-democratas mais moderadas defesa sob estrito controle civil.
ou, se for preferido, das mais conservadoras.
Desde 1979 vem se aproximando do partido
Kornei e nos últimos tempos há uma aproxi­ 4.5 Partido Comunista Japonês — PCJ
mação do PSD com facções do PLD. (Nihon Kyosanto)
Assim, apesar de suas limitações, o PSD
é indispensável a qualquer tentativa de alter­ A origem do movimento comunista no Ja­
nância ao PLD no poder. Por outro lado, pode pão é semelhante à de outros países. A criação
também caminhar para um governo de “coali­ do PCJ se dá em julho de 1922, como parte do
zão” com o PLD. No presente, não se tem esforço bolchevique para a criação de PCs,
clareza de seu caminho futuro. com uma presença marcante de intelectuais.
Sua plataforma volta-se principalmente Seus integrantes sofrem forte repressão e têm
para as seguintes questões: uma experiência inicial de vida partidária to­
a) moralização da política japonesa, elimi­ talmente clandestina.
nando aspectos institucionais que favorecem a Vivendo as dificuldades decorrentes da
corrupção; falta de compreensão da Internacional, ado­
b) correção das desigualdades nas repre­ tando uma linha ultra-esquerdista e atuando
sentações dos distritos; _ em uma sociedade dominada pelo militarismo e
. descentralização das decisões e raciona- pela aliança anti-Komintern, os comunistas ja­
üzaçâo da máquina administrativa; poneses só despontarão na superfície da socie­
plano principal de bem-estar e garantia dade após a guerra.
da neutralidade da educação, No início de dezembro de 1945 realiza-se o
) aumento da energia atômica com acordo 45 Congresso do PCJ e, logo em seguida, em
fevereiro de 1946, o 5- Congresso, com a
da ^ÍfesTdo Tratado de Segurança com os
presença de Sanzo Nosaka, que desempenhará
Estados Unidos; papel importante nesse momento. O partido
Estudos Afro-Asidticos rP 16, 1989
52
adota uma postura moderada, visando fortale­ O PCJ levará mais de dez anos para recu­
cer sua presença no cenário japonês do pós- perar um pouco sua representação na Dieta,
guerra, e passará de cinco deputados eleitos sob a liderança de Kenji Miyamoto, figura
em 1946 (quatro em 1947) para 35 deputados marcante na vida do partido desde então.
nas eleições de 1949, ou seja, 9,7% dos votos.
A perda de credibilidade dos socialistas após o Não deixa de ser interessante notar que,
gabinete Katayama também explica esse su­ sob a mesma liderança, o PCJ trilhará, desde
cesso eleitoral. então, caminhos muito diferentes. Do ultra-
Logo em seguida, no entanto, o PCJ será esquerdismo vindo de fora, durante a guerra
pressionado a abandonar sua posição para da Coréia, passa-se a viver os efeitos do XX
adotar uma linha novamente ultra-esquerdista. Congresso do Partido Comunista da União
As pressões de Stálin em função do conflito Soviética - PCUS. Nessa dinâmica, o PCJ
iminente na Coréia explicam a nova orienta­ adotará posições mais próximas aos chineses,
ção, que levará o PCJ ao isolamento e até à sobretudo durante o 8- Congresso, em julho
clandestinidade. Não se deve esquecer de que de 1961. Naquele contexto, isso significava
nesse momento o Japão está ainda ocupado recusar o chamado “policentrismo” de To-
pelos norte-americanos e que o conflito da gliatti e a “coexistência pacífica” dos soviéti­
Coréia vai marcar o início da retomada da cos, e, curiosamente, recuperar a tradição da
economia japonesa no pós-guerra. política de Nosaka, através da defesa de uma

TABELA 15

Força eleitoral do PCJ na Câmara de Representantes


(1946-1986)

ANO VOTOS DEPUTADOS TOTAL


ELEITOS %

1946 3.8 5 1,o


1947 3,7 4 0,8
1949 9,7 35 7,5
1952 2,6 — —
1953 2,0 1 0,2
1955 2,0 2 0,4
1958 2,6 1 0,2
1960 2.9 3 0,6
1963 4.0 5 1,0
1967 4,8 5 1,0
1969 6,8 14 2,8
1972 10.5 38 7,7
1976 10,4 17 3,3
1979 10,4 39 7,6
1980 9,8 29 5,6
1983 9,3 27 5,2
1986 8,8 27 5,2

Fonte: Japan Statistical Yearbook, 1980 e 1987.


Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 53
frente nacional democrática, revalorizando-se não se beneficiam do sistema eleitoral. Muito
a luta parlamentar e a Dieta. ao contrário. Mesmo assim, entram na década
Curiosamente, também, o PCJ havia reco­ de 80 com posição sólida ao nível da Dieta e
nhecido em 1960 a liderança da URSS no ampliam sua representação ao nível local, co­
campo do socialismo. Obviamente, essa síntese mo se pode perceber pela Tabela 16.
das posições do partido é suficiente para ilus­
trar as crises e disputas internas que levam o Ao nível global, pode-se dizer que o PCJ,
PCJ a uma nova fase. Trata-se de um período com 500 mil membros, é um dos partidos mais
(1961-68) em que o PCJ caminha para a rejei­ bem organizados no país e está implantado na
ção dos modelos chinês e soviético. Tal orien­ vida política japonesa. Conforme indicam os
tação consolida-se nos Congressos de 1964 e dados da tabela 17, o PCJ tinha 3.611 repre­
1966, sob a liderança de Miyamoto. Em 1964 sentantes eleitos ao nível de assembléias locais.
os comunistas japoneses não se alinham com Segundo os dados do partido,38 esse número
os soviéticos na questão nuclear, apoiando a se eleva a 3.824 eleitos em 1987. O atual pro­
posição chinesa; após 1966 rejeitarão as pro­ grama do PCJ, elaborado em 1961 e com
postas chinesas de uma frente anti-soviética. emendas de 1985, resume os principais mo­
Após a invasão da Tchecoslováquia, as po­ mentos da vida de um partido comunista con­
sições do PCJ tornam-se mais claramente au­ siderado por alguns observadores ocidentais
tônomas em relação ao quadro do movimento como o mais sólido e poderoso do mundo ca­
comunista internacional. Note-se que a partir pitalista. Seu último congresso, o 189, realiza­
dessa época é bem nítida a recuperação elei­ do no final de novembro de 1987, confirma as
toral dos comunistas japoneses. linhas básicas de atuação do PCJ:
Durante a década de 70 o PCJ parece
1. Luta pela redução e eliminação das ar­
consolidar uma posição na política japonesa,
mas nucleares;
posição que é bastante subestimada por auto­
res como Berton.37 Com efeito, os comunistas 2. Necessidade de restrições democráticas
japoneses, como foi mostrado anteriormente, aos grandes grupos econômicos;

TABELA 16

Número de eleitos por partido - Eleições locais simultâneas


(1987/1983)*

PARTIDO PREFEITURAS DEZ OUTRAS ARS“ CIDADES TOTAL


MAIORES CIDADES TÓQUIO E VILAS
CIDADES

PCJ 121 (4- 33) 80(4- 6) 972 (4-46) 167(4- 8) 831 (4-55) 2.171 (4-14Q)
PLD 1.382 C-105) 204 (-28) 1.380 (-59) 440 (-37) 198 (-65) 3.604 (294)
PSJ 443 (+ 71) 126(4-14) 1.163 (-56) 115(4- 9) 454 (-51) 2.301 (-13)
Komei 186(+ 4) 128(4- 6) 1.200(4-51) 207(4-21) 580 (-29) 2.301 (4- 53)
104(4- 4) 71 (+ 2) 404 (-25) 49 (- 5) 45 (- 2) 673 (- 22)
PSD

ixnan Press Service, Japonese Polilics and the Communist Party, Tóquio, 1987.
Fonle: J Pd rênleses indica mudança em relação a 1983.
AF& Assemblies das Administrações Regionais de Tóquio.
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
54
TABELA 17

Membros do PCJ em cargos eletivos


(1986)

Câmara de Representantes 27
Câmara de Chanceleres 16
Membros de Assembléias Prefeiturais 108
Membros de Assembléias de Regiões Especiais 153
Membros de Assembléias de Cidades 1.599
Membros de Assembléias de Vilas 1.751

Total 3.654

Fonte: Japan Statistical Yearbook, 1987

TABELA 18

Câmara de Representantes - Eleições de 1986

DEPUTADOS ELEITOS VOTOS 1986 VOTOS 1983


ELEITOS 1983 % %

PLD 3000*** 250 29,875.496 (49,4%) 25.982.785 (45,8%)


PSJ 86 111 10.412.583(17,2%) 11.065.082 (19,5%)
Komei 57* 59* 5.701.277 ( 9,4%) 5.745.751 (10,1%)
PCL 27* 27* 5.426.968 ( 9,0%) 5.439.480 ( 9,6%)**
PSD 26 37 3.895.857 ( 6,4%) 4.129.907 ( 7,3%)
NCL 6 8 1.114.800 ( 1,8%) 1.341.584 ( 2,4%)
PSDU 4 3 499.670 ( 0,8%) 381.045 ( 0,7%)
Outros 0 0 120.627 ( 0,2%) 62.323 ( 0,1%)
Ind. 6*** 5 3.401.320 ( 4,6%) 2.631.740 ( 4,6%)
(Vagos) 11

Total 512 511 60.448.589(100%) 56.779.700 (100 %)

Fonte: Japan Press Service, Japanese Politics..., op. cit.


' Inclui um deputado independente que forma grupo parlamentar com o partido.
“ Inclui votos de dois candidatos independentes que formam grupo parlamentar com o partido.
"' Quatro independentes juntaram-se ao PLD, elevando para 304 o número de deputados desse partido.

Estudos Afro-Asidticos n-16,1989 55


3. Melhoria das condições de vida nas
sociedade japonesa, conforme se pode ver pela
cidades;
Tabela 18. Mas aí também se pode ver que
4. Política mais favorável aos autônomos e
a soma dos votos do PSJ, PSD, Partido Komei
agricultores;
e PCJ supera os votos do PLD, ainda que o
5. Construção de um grande partido em
sistema eleitoral garanta o amplo predomínio
número e qualidade:
conservador. Esse aspecto, aliás, chama a
6. Construção de uma frente política
atenção para os limites de uma visão uniforme
progressista;
do conservadorismo japonês. A estabilidade
7. Luta nacional contra a política tributária
institucional e política do Japão, dirigido pelo
e o aumento dc impostos.39
mesmo partido há mais de 30 anos, e seu su­
cesso económico-financeiro inquestionável
Considerações finais não podem esconder um desgaste do conser­
Este quadro bastante sintetizado do sistema vadorismo. Essa questão vem sendo pesquisa­
eleitoral, dos partidos e das eleições no Japão da e é grande a sua complexidade metodológi­
após a Segunda Guerra Mundial é suficiente ca, tanto para pesquisadores japoneses como
para ilustrar como a forma e certos mecanis­ para pesquisadores ocidentais.
mos do modelo democrático à ocidental fun­
Quais seriam, então, as especificidades da
cionam no Japão. Portanto, é mais um exem­
sociedade japonesa? Essa pergunta nos remete
plo a comprovar que as sociedades orientais
à discussão atualíssima sobre a especificidade,
não são herméticas a princípios e formas rela­
cionadas com a modernidade ocidental. a originalidade (uniqueness) japonesa. Tendo
E bem verdade que as eleições de 1986 em vista a relevância metodológica desse tema
confirmam o predomínio conservador sobre a e sua complexidade, ele será tratado em outro
artigo.

NOTAS

1 Jichi Sogo Center, Election system in Japan, Tóquio, 1986.


Press 1962Ca’aP*n° C ^ ^aSUm'’ ?arties and politics in contemporary Japan, Berkeley, University of California

3 Nobutaka Ike, Japanese politics: patron-client democracy. Nova Iorque, Alfred Knopf, 1972.
^^^' ^or*' forties and party systems: a framework for analysis, Cambridge, Cambridge University Press,

5 Ronald J. Hrebenar, org., The Japanese party system. From one-party ride e to coalizion government,
Boulder, Westview Press, 1986:7,

6 Conferência de Raymond Aron realizada na London School of Economics and Political Science, em 27 de
outubro de 1981.7« Hrebenar, op. dt. p.9.

7 Y. Kuroda, Rede town, Japan: a study in community power structure and political change Honolulu, Univer­
sity of Hawaii Press, 1974.

8 R.J. Hrebenar, org., The Japanese party. . ., op. cit.


9 A.D. Shupe, “Social participation and voting turnout: the case of Japan”, Comparative Political Studies, vol.
12, n. 2, juiho, 1979.

10 Scott C. Flanagan, "Voting behavior in Japan”, Comparative Political Studies, vol. 1, n. 3, outubro, 1968, p.
396-411; B.M. Richardsone S.C. Flanagan, "Political disaffection and political stability”, in R. T. Jannuzzi, ed..
Comparative SocialReserarch, Greenwich, JAI Press, 1980, p. 19-27.

56 Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989


11 Joji Watanuki, Politics in postwar Japanese society, Tóquio, University of Tokyo Press, 1977.
12 D. Kazama e T. Akiyama, “Japanese value orientation: persistence and change”. Studies of Broadcasting,
n. 16,1980.
13 R. J. Hrebcnar, org.. The Japanese party. . ., op. cit.
14 Idem e diversos outros autores.
15 Idem e B.M. Richardson, “Party loyalties and party saliency in Japan” .Comparative Political Studies vol. 8,
n. I,abril, 1975:42.
16 R. J. H rebenar, org., The Japanese party. . .,op. cit.
17 Idem, p. 22.
18 S. Oyama e M. Hirose, “Nonpartisans and youth turn to the LPD”, Japan Echo, vol. 7, n. 4,1980, p. 18-37.
19 R. J- Hrebenar, org., The Japanese party. . ., op. cit., p. 32.
20 Idem, p. 47. Cf. M. K. Blaker, ed., Japan at the polls: the house of councillors election of1974, Washington,
American Enterprise Institute, 1976.
21 R. J- Hrebenar, org.. The Japanese party. . ., op. cit., p. 48.
22 N. Tomita et alii, “The liberal democratic party: the ruling party of Japan”, in R. J. Hrebenar, org., The
Japanese party. . ., op. cit., p. 237-8.
23 Idem,p. 238-9.
24 Idem, p. 248.
25 Idem, p. 253.
26 As palavras “transparente” e “límpido" são usadas largamente no contexto da política japonesa desde a
segunda metade da década de 1960. Segundo alguns, aí estariam as origens da moda da palavra transparência
nesta segunda metade da década de 1980.
27 Arvin Palmer, Boudhist politics: Japan's clean government party, The Hague, Martinus Nishoft, 1971,
p.2-14.
28 Idem, p. 58.
29 Aloysius Chang, “The enigmatic decade: Komeito’s party building efforts, 1964-1975” (2s Parte), Asia
Quarterly, n. 4, 1976, p. 275-6.
30 R.J. Hrebenar, org., The Japanese party. . ., op. cit.,p. 144-56.
31 Japan Statistical Yearbook 1987.
32 R.J. Hrebenar, org., The Japanese party. . ., op. cit., p. 150 e 168.
33 J. A. A. Stockwih, “The Japan socialist party: a politics of permanent opposition”, in R.J. Hrebenar, org, The
Japanese party. . ., op. cit., p. 90.
34 Action Program of the Socialist Party of Japan, 1987.
35 R.J. Hrebenar, org., The Japanese party. . ., op. cit., p. 183-5.
36 Idem, p. 207.
37 Peter Berton "The Japan communist party: the ‘lovable’ party” in Hrebenar et alii, op. cit.’- 116-144.
38 Japan Press Service, Japanese politics and the communist party, Tóquio, 1987.
39 Idem.

Estudos Afro-Asiáticos ri? 16,1989 57


SUMMARY

The Electoral System, Political Parties and Elections in Japan (1945-1986)

This article outlines the basic characteristics of the portance of the voter, both of which are issues which
post-war Japanese electoral system, and then follows illucidate special advantages for the PLD.
up with an analysis of the relationship between the
This is followed by a succinct analysis of the most
electoral and the party systems. It points out that cer­
tain characteristics of Japanese politics can be un­ important Japanese political parties, pointing out per­
tinent historical factors for each and their reactive in­
derstood by looking at the norms of the electoral sys­
tem, and in particular, at the enormous strength of the fluence in the “Dicta” as well as in other institucio-
government party PLD. nalized legislative and executive dimensions.
It is worthwhile to point out certain connections By pointing out certain specific aspects of Japa­
between the electorate and the political party system nese politics, the author criticizes analytical approa­
in order to better understand the relations between the ches which emphasize them as something “unique”,
electoral system and the parties. The analysis gives and promises further articles dealing with this impor­
particular emphasis to the size of districts and the im­ tant methodological question.

RÉSUMÉ

Système Électoral, Partis Politiques et Élections au Japon (1945-1986)

Cet article présente au lecteur un résumé des prin­ l’inégalité du poids des électeurs comme des faits
cipales caractéristiques du système électoral japonais pouvant élucider des avantages spéciaux obtenus par
après la guerre. Il établit ensuite un rapport entre le le PLD.
système électoral et le système des partis. Il montre Puis l’article traite brièvement des principaux
comment certaines caractéristiques de la politique ja­ partis politiques japonais, citant des faits appartenant
ponaise s’expliquent par les règles du système électo­ à l’histoire de chacun d’eux et montrant leur poids re­
ral et, en particulier, par la force prédominante du latif au sein du Parlement ainsi que leurs autres di­
parti gouvernemental, le PLD. mensions institutionnelles, législatives et exécutives.
Il faut préciser quelques uns des rapports existants Tout en signalant certaines caractéristiques pro­
entre l’électorat et le système des partis si on veut cla­ pres à la politique japonaise, l’auteur critique ceux qui
rifier les relations qui se sont établies entre le système voient là des particularités uniques et promet un autre
électoral et les partis. L’auteur souligne en particulier article pour traiter de cette importante question mé­
la taille importante des circonscriptions électorales et thodologique.

58 Estudos Afro-Asiâticos n- 16, J 989


O conhecido de poucos, da maioria lembra­
LUIZ GAMA: UMA do no contexto do quase-mito, Luiz Gama, o
TRAJETÓRIA ALÉM abolicionista, traz em sua legenda vários as­
pectos importantes que o colocam em posições
DO SEU TEMPO precursoras. Republicano, fundador de jornais
satíricos, abolicionista de primeira água, advo­
gado autodidata...
À luz da busca de identidade racial e cons­
Luiz Si/va (Cuti)* trução da mesma, o filho de Luiza Mahin não
ficou devendo nada a outras atividades de sua
vida difícil, porém digna.
Poeta de apenas uma obra, Primeiras trovas
burlescas de Getulino, em pleno regime escra­
vista queria-se negro em seus poemas, além de
buscar referenciais étnicos e culturais e de sua
gente, de sua procedência (do lado materno)
africana.
Aviltado no mais íntimo de sua sensibilida­
de, este homem constituiu-se a seu tempo num
prodígio de auto-cstima. Sua biografia, de
forte consistência histórica, apesar das poucas
referências à sua vida íntima, inclusive desen­
contradas, é um dos exemplos mais vivos para
a compreensão da busca de afirmação humana
que o negro brasileiro vem realizando até hoje,
com muito esforço e muitos percalços.
No que se pode ter conhecimento da vida
de Luiz Gama, no princípio, na sua formação
e, por fim, na sua fase adulta, ficaram já com­
provados, pelos biógrafos, os seguintes fatos:
Luiz Gama foi filho de Luiza Mahin, africana
altiva e revolucionária, com fidalgo brasileiro
(de quem o filho negou à posteridade a revela­
ção do nome). Aos dez anos de idade Luiz
Gama é vendido, pelo próprio pai, como es­
cravo. Da Bahia segue para o Rio de Janeiro e
em seguida para Santos, de onde viaja a pé,
com outros escravos, até Campinas. Rejeitado
pelos compradores de escravos, tendo em vista
a desconfiança que havia na época quanto aos
escravos baianos, tidos como rebeldes, acaba
por retornar a São Paulo, onde fica a serviço
do alferes que tentara comercializá-lo. Aí
permaneceu até a idade de dezoito anos, quan­
do então, após ter aprendido a ler com o estu­
dante Antônio Rodrigues do Prado Júnior, fo­
ge e vai “assentar praça”, chegando a cabo
* Poeta e ficcionista. Membro do grupo Qui-
graduado. É preso por um período de 39 dias,
lombhoje.
59
Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989
a jornais, carta a seu filho, a Lúcio de Men­
por ter respondido a uma ofensa de um supe­
rior hierárquico. Dá baixa e, depois de dois donça e ao jornalista Ferreira de Menezes, e
anos, consegue ser nomeado amanuense da outros textos, iluminam, com os testemunhos
Secretaria de Polícia, posto que ocupa pelo de pessoas de seu tempo, a figura de um gi­
gante em coragem e, sobretudo, dignidade.
período de doze anos.
Acrescentemos, sem dúvida, o seu livro de
Abolicionista desde a década de 1850,
conseguiu com sua atividade de advogado versos já citado.
À luz de nosso tempo, quando o Brasil
(sem diploma acadêmico) a alforria de mais de
atingiu o centenário da Lei Áurea, e os seus
quinhentos escravizados. Poeta satírico, atacou
cidadãos negros saíram às ruas para refletir e
a hipocrisia da classe dominante da época, bem
protestar contra a discriminação racial ainda
como criticou os costumes em voga. Filiou-se
reinante, é possível percebermos mais nitida­
ao Partido Liberal, após ter sido demitido do
mente a importância de Luiz Gama como um
emprego “a bem do serviço público”, num
precursor daquilo que hoje se denomina
autêntico revanchismo levado á efeito pelo
“Consciência Negra” e que tem seu dia nacio­
Partido Conservador. Participou da fundação
nal a 20 de novembro, data da morte do líder
do Partido Republicano, mas desiludiu-se. A
máximo do Quilombo dos Palmares (1600 a
agremiação admitia escravocratas em suas
hostes e não propugnava pela abolição ime­ 1695), Zumbi.
A visão dominante da questão racial brasi­
diata da escravização, como ele pretendia. Fa­
leira costuma remeter a imagem do negro,
leceu de diabetes em São Paulo, onde foi en­
tanto verbal quanto visualmente, às senzalas,
terrado, em 24 de agosto de 1882 (seis anos
antes da Lei Áurea). Nasceu na cidade de Sal­ ao tronco, ao eito. Aqueles vultos nacionais
que se quiseram negros, de forma conflitiva ou
vador em 21 de junho de 1830. E não morreu
não, ou até mesmo camufiadamente, o dis­
mais. Nem pode.
curso isola, aprisionando seu papel a uma aná­
As referências a Luiz Gama, enaltecen­
lise passadista. O passado aprisiona-os. Quan­
do-lhe o valor indiscutível - apesar da escas­
do é feita a relação com o presente, toma-se 3
sez dos documentos, que certamente eleva­
devida precaução de obsbranquecer “aquele
riam-no mais alto, mesmo porque, no que se
foi possível apreciar de sua personalidade, um traço” naquilo que deixaram. Ainda a expres­
são “apagar a mancha negra da história” re­
dos seus traços marcantes era a modéstia -,
presenta uma forma de pensar em plena evi­
são referências que reservam-lhe apenas o
dência, pois é o reflexo da psique culpada do
contexto de sua época. Sua produção intelec­
branco brasileiro em face do passado escra­
tual, tendo sido mais intensa como advogado,
vista. E funciona no sentido de exclusão do
nos tribunais, careceram de registro escrito.
negro. A desmelanização que se pretendeu e
Seu biógrafo, Sud Mennucci, assim comenta
ainda pretende, com a promoção ideológica da
tal fato: miscigenação, atinge a cultura e a história da
“Suas palavras voaram. Recompensa inte­ descendência africana no Brasil. O afirmar-se
lectual, se a teve, foi ter persuadido os juí­ negro de Luiz Gama não teve, portanto, rele­
zes de fato a libertarem o réu. É essa, infe­
vância para os homens que o estudaram, no
lizmente, a posição de Luiz Gama na maio­ sentido de um contraponto necessário contra a
ria de seus processos forenses. E é isso, que
ideologia racista.
se lhe dá fama de grande orador, não con­ Contudo, um dos pontos de partida para
segue fundamentá-la para os contemporâ­ esta reflexão está intimamente ligado à bio­
neos...”1 grafia de Luiz Gama. Aos sete anos de idade
Embora estejamos diante de um quase-va­ (1837) separa-se de sua mãe, para sempre,
apesar de tê-la procurado, em vão, posterior­
zio sobre a informação de seus discursos, os
mente. Luiza Mahin havia fugido para o Rio
escritos deixados através de suas contnbuiçoes
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
60
volvida pelo “Precursor do Abolicionismo”.
de Janeiro, com a repressão à Sabinada, na
Ainda que num trecho de sua carta a Lúcio de
qual esteve envolvida com o pai de Luiz Ga­
Mendonça diga ter sido seu pai “extremoso”
ma. Na carta que escreveu a Lúcio de Men­
consigo, o que levou Sud Mennucci a um es­
donça pode-se ler o testemunho de seu apego
forço para compreender as razões do ato in­
à imagem materna, quando ríarra sua prisão na
fame cometido pelo genitor, a infâmia perma­
época em que era militar:
nece. A rejeição do pai só forneceu a Luiz
“Passava os dias lendo e, às noites, sofria
de insônias: e, de contínuo, tinha diante dos Gama uma saída digna: a mãe.
olhos a imagem de minha querida mãe. O conceber-se negro para si mesmo e para
Uma noite, eram mais de duas horas, eu o mundo não aportou para a sua poesia ou
dormitava: e, em sonho vi que a levavam para seus outros textos traços de angústia que
presa. Pareceu-me ouvi-la distintamente caracterizassem o conflito da aceitação íntima
que chamava por mim.”2 de uma identificação africana. Considerado no
contexto social de então, em pleno clima má­
Esta carência da presença materna, aliada à
ximo da degradação humana de seus iguais,
imagem que dela reproduz: torna-se ímpar a sua disposição interior. A
“Sou filho natural de uma negra, africana presença da imagem de sua mãe foi funda­
livre, da Costa da Mina (Nagô de Nação), mental para isso, como da mesma forma se
de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre realizou com outro escritor negro, Cruz e
recursou o batismo e a doutrina cristã. Sousa. Para este, entretanto, mãe e pai, escra­
Minha mãe era baixa de estatura, magra, vos alforriados, não lhe forneceram o exemplo
bonita, a cor era de um preto retinto e sem revolucionário, além do que fora alfabetizado
lustro, tinha os dentes alvíssimos como a por uma senhora branca, sinhazinha, na infân­
neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e cia. Daí que a negritude do “Cisne Negro” te­
nha sido a partir de um conflito, eivado de an­
vingativa.
Dava-se ao comércio - era quitandeira, gústia, a que só o Simbolismo poderia fornecer
muito laboriosa, e mais de uma vez, na guarida.
Baía, foi presa como suspeita de envol­ Ao contrário, Luiz Gama, embora tenha
ver-se em planos de insurreições de escra­ publicado seu livro em plena vigência do Ro­
vos, que não tiveram efeito.”3 mantismo, com esse estilo de época pouco se
Esta carência, tomada à luz da busca de li­ identificou. Sua opção maior foi pela vertente
bertação para o seu povo, configura-se no satírica. Com relação ao humor, o Romantis­
plano psicológico à caminhada de Luiz Gama à mo tinha oferecido o exemplo de Martins Pena
sua matriz não apenas afetiva, mas também de no teatro. Este autor, entretanto, dirigiu sua
orgulho racial, à sua volta às raízes através da crítica aos representantes da sociedade inte-
continuidade da luta necessária contra o regi­ riorana e aos estratos da camada social pobre,
me escravista. Seu acervo de memória e refe­ incluindo os escravos. A poesia de Luiz Gama
rencial de saber infantil incluía, certamente, atuou em consonância com seus anseios políti­
uma íntima relação entre sua mãe e as insur­ cos e ideológicos e apontou para uma ruptura
reições baianas ocorridas antes, durante e de­ necessária: Abolição/República, e para tanto
pois da separação entre ambos. ridicularizou Escravatura/Monarquia. E no
Afeto e exemplo revolucionário sendo alia­ plano da sua consciência de raça, contestou o
dos ao lado materno (negro) e à ignomínia do Embranquecimento e valorizou o Ser Negro.
lado paterno (branco), num contexto onde este
A ausência de sistematização dos valores
último acabou por se aliar ao significado de
africanos e a necessidade de instruir-se através
repressão, violência e poder, constituem a
da visão de mundo eurocêntrica (única opção
plataforma psíquica para a consciência desen­
61
Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989
na época e ainda hoje, em certa medida) não “Eu canto aos Palmares
impediu que na sua poesia os signos da tradi­ sem inveja de Virgílio, de Homero
ção oral estivessem presentes, bem como os e de Camões
valores europeus sofressem uma inversão sa­ porque o meu canto
tírica, índice da não sujeição completa ao códi­ é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!” 8
go de empréstimo. A imagem da “musa”, cara
aos românticos, é assim trabalhada no poema Apesar desses indícios épicos na poesia de
“Glutões”: Luiz Gama - o que nos aponta a tendência à
reescritura da história —, é preciso considerar o
“Oh, tu, quadrada Musa empavesada
que de fato ele desenvolveu: poesia satírica.
Soberana rainha da papança
Borrachuda matrona insaciável Também não se pode desprezar sua pequena
produção romântica. Afinal “a postura satírica
Que tens o corpo pingue e larga pança;”* guarda o seu contrário: a sátira esconde um
temperamento hipersensível que se indigna
E ainda no poema “Lá vai verso” faz sua
contra tudo que ofende as razões da sensibili­
invocação, adaptando o símbolo às suas ne­
dade e que a defende sob o escudo da sátira;
cessidades de valorização da origem:
no interior do satírico há sempre uma sensibi­
“Oh! Musa da Guiné, cor de azeviche, lidade aguda que prefere a ofensiva ao reco­
Estátua de granito denegrido lhimento para evitar ressentir-se com o meio
Ante quem o Leão se põe rendido, ambiente, ou que, malferida, se volta implaca­
Despido do furor de atroz braveza; velmente contra o agressor”.’
Empresta-me o cabaço durucungo, Num dos exemplos em que Luiz Gama ex­
Ensina-me a brandir tua marimba, travasa seu lirismo, retoma a imagem da mãe,
As vias me conduz d’alta grandeza.”6
idealizando-a nestes termos:

Este trecho acima traz-nos uma dimensão “Era mui bela e formosa
que talvez Luiz Gama tenha sonhado para a Era a mais linda pretinha,
sua poesia. Nele podemos observar a recupe­ Da adusta Líbia rainha,
ração simbólica através da invocação, um re­ Os braços torneados que alucinam,
curso próprio da poesia épica. É provável que, Quando os move perluxa com langor,
não fossem as limitações de sua atividade lite­ A boca é roxo lírio abrindo a medo,
rária em face da urgência de sua luta pelo fim dos lábios se destila o grato olor.
do cativeiro, como bem o demonstra Sud
E no Brasil pobre escrava!
Mennucci,® certamente teria recorrido a este Oh, que saudades que eu tenho
gênero tão tentador, pelas possibilidades his­ Dos seus mimosos carinhos,
tóricas da secular saga da diáspora africana. Quando c’os tenros fílhinhos
Ainda no mesmo texto, a nível da propositura, Ela sorrindo brincava.
outro recurso tradicional da epopéia, diz:

“Quero a glória abater de antigos vates, Escuro e ledo semblante


Do tempo dos heróis armipotentes; De encantos sorria a fronte,
Os Homeros, Camões - aurifulgentes.”7 - Baça nuvem no horizonte
Das ondas surgindo à flor;
E, apesar da seqüência satírica em que se Tinha o coração de santa,
desenvolve o poema, deixa entrever o mesmo Era seu peito de Arcanjo,
relampejo com que Solano Trindade (poeta Mais pura n’alma que um Anjo,
dos novos tempos) inicia o seu “Canto dos Aos pés de seu Criador.

Palmares”:
Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989
62
O colo de veludo Vénus bela
Se a sátira servia como arma de luta contra
Trocara pelo seu, de inveja morta;
os que o oprimiam e a seu povo, não era apro­
Da cintura nos quebros há luxúria
priada para a valorização de sua gente quando
esta se constituía tema central do texto. Neste que a filha de Cyneras não suporta.
aspecto, as malhas românticas de seu tempo A cabeça envolvida em núbia trunfa,
acolhiam-no na idealização. Os seios são dous globos a saltar;
Os poemas em que Luiz Gama traz à tona a A voz traduz lascívia que arrebata,
figura da mulher negra seguem a via românti­ - É cousa de sentir, não de contar.
ca. Assim é “Cativa”, onde dirige palavras de Quando abrisa veloz, por entre anágoas,
amor a uma mulher escravizada: Espaneja as cambraias escondidas
Deixando ver aos olhos cobiçosos
As lisas pernas de ébano luzidias,
“As madeixas crespas negras
Sobre o seio lhe pendiam, Santo embora, o mortal que a
Onde os castos pomos de ouro > [encontra pára;
Amorosos se escondiam Da cabeça lhe foge o beato siso;
Tinha o colo acetinado Nervosa comoção as bragas rompe-lhe
- Era o corpo uma pintura E fica como Adão no Paraíso.
E no peito palpitante Meus amores são lindos, cor da noite
Um sacrário de temura Recamada de estrelas rutilantes;
São formosa creoula, ou Téthis negra,
Não te afastes, lhe suplico Tem por olhos dous astros cintilantes.
És do meu peito rainha; Ao ver no chão tocar seus pés mimosos,
Não te afastes, neste peito Calçando de cetim alvas chinelas,
Tens um trono mulatinha!...”1' Quisera ser a terra em que ela pisa,
Também em “Meus amores” está presente Torná-las em colher, comer com elas,
a expressão romântica dos sentimentos aliada a São minguados os séculos para amá-la.
certa sensualidade na descrição feminina. Em­ De gigante a estrutura não bastara,
bora seja longo, é importante que o mesmo De Marte o coração, alma de Jove,
seja citado na íntegra, pois que tem encontrado Que um seu lascivo olhar tudo prostrara.
pouca guarida no que se publicou de Luiz Ga­ Se a sorte caprichosa em vento, ao menos,
Me quisesse tornar, depois de morto;
ma:
Em bojuda fragata o corpo dela,
“Meus amores” As saias em belame, a tumba em porto,
Como os Euros, zunindo dentre os mástros,
Pretidão de amor.
Eu quisera açoitar-lhe o pavilhão:
Tão leda a figura
O velacho bolsar, bramir na proa,
Que a neve lhe jura
Pela popa rojar, feito um tufão.
Que mudara de cor.
(Camões - "Endeixas”) Dar cultos à beleza, amor aos peitos,
Sem vida que transponha a eternidade,
Meus amores são lindos, cor da noite
Bem mostra que a sandice estava em voga,
Recamada de estrelas rutilantes;
Quando Uranus gerou a humanidade.
São formosa creoula, ou Tethis negra
Tem por olhos dous astros cintilantes. Mas já que do fado iníquo não consente,
Que amor, além da campa, faça vasa,
Em rubentes granadas embutidas
Ornemos de Cupido as santas aras,
Tem por dentes as pérolas mimosas,
Tu feita em fogareiro, eu feito
Gotas de orvalho que o inverno gela [em brasas.12
Nas breves pétalas de carmínea rosa.
63
Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989
kA caracterização do texto não deixa dúvi­ bretudo ao nível da relação homem-mulher.
das quanto à mulher referida. Trata-se da Referindo-se a si mesmo como poeta, escreve
mulher negra. O poema foi publicado no jornal num outro poema:
satírico Diabo Coxo em 1865. Neste momento
“Mordendo na sola
da história do país, em que as escravas eram
Empunho o martelo
vítimas das mais insondáveis violências sexuais
Não queiras com brancas
praticadas pelos seus senhores brancos, é sin­
Meter-te a tareio.
gular que Luiz Gama dedique sua afetividade e
possibilidades poéticas naquela direção. O Que o branco é mordaz
amor, um dos valores centrais do Romantismo, Tem sangue azulado
estava vedado ao escravo, considerado objeto Se boles com ele
do homem branco. Recuperar este valor, asso­ Estás embirado....”1 6
ciado à visão realista que lhe é própria, foi a Mesmo com essa consciência explicitada,
realização do nosso “Getulino” (pseudônimo
além do fato de que tanto em “Junto à está­
com que assina o texto). As duas últimas es­
tua” quanto em “Laura” ter finalizado atri­
trofes revelam-nos o quanto o poeta tinha os
buindo às suas musas as categorias de “Gelada
“pés no chão” para não se perder em plato­
estátua de grosseiro mármore!...” e “...uma
nismos. Reconhece o limite humano do amor
estátua - exemplo de beleza/E como ela de
(entre homem e mulher), propondo que a ama­
mármor tinha o peito!”, o que dá um verda­
da seja ’’feita em fogareiro” e ele “feito em
deiro contraponto com o último verso de
brasas”. Além disso, ao comparar sua “Téthis
“Meus amores” (“Tu feita em fogareiro, eu
Negra” e “Vénus”, a esta vai atribuir a “inve­
feito em brasas”), mesmo assim não faltou a
ja” do colo da outra e a incapacidade de su­
incompreensão dos críticos, ou melhor, a rea­
portar a “luxúria” nos requebros da outra.
ção tão evidente do revanchismo branco que, a
Aqui, sutilmente, o poeta contrapõe estética e
seu tempo, Luiz Gama teve que enfrentar com
sensualidade da mulher negra e branca, privi­
muita coragem.
legiando a primeira.
Roger Bastide vê, nos primeiros versos de
Luiz Gama produziu dois poemas em que
“Meus amores”, a permanência de complexo
tece louvores à mulher branca: “Junto à está­ de inferioridade, “um acento de despeito mais
tua” e “Laura”. Seu tom sensual não se repri­ ou menos dissimulado, neste impulso para di­
me ante as virgens de “nevado” ou “níveo rigir-se a outros amores depois do fracasso do
colo”, de “cabelos louros” ou “em ondas de primeiro”.10 David Brookshaw, baseando-se
ouro”: no argumento de que “para o escritor negro, a
extensão de seu condicionamento à idéia de
Curvando o seio de alabastro fino, branco positivo e preto negativo é uma medida
Mimosa imprime nos meus lábios negros de sua dependência dos precedentes brancos
Gostoso beijo de volúpia ardente!”13 literários e culturais que continuam a escravi­
zá-lo...”, insiste que Luiz Gama “também de­
monstrou sua fascinação pela beleza loura,
Dá-me em teu peito
aristocrática”.17
De amor gozar;
Pode-se censurar Camões no poema, que
Um volver d’olhos,
teve um trecho utilizado como epígrafe ao
Um beijo apenas
poema “Meus amores”, em que diz: “Presença
Entre as verbenas
serena/que a tormenta amansa;/nela enfim
Do teu pomar.”14
descansa/toda a minha pena”, por se tratar de
Mas Gama tinha plena consciência das li­ uma “Pretidão de amor”?10 Ou Manuel Ban­
mitações que o branco impunha ao negro, so­ deira com sua “Irene preta/Irene boa/Irene

Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989


64
sempre de bom-humor...”? Ou ainda Jorge de escritores negros Luiz Gama, Cruz e Sousa e
Lima com o seu "Nega Fulô”? outros não faltaram as censuras de críticos
Sabemos que a sexualidade sempre repre­ brancos aos poemas em que se dirigem à mu­
sentou papel importante nas fantasias racistas, lher branca. Essa atitude, no entanto, parece
tendo em vista a sua componente histórica. Ao irradiar-se para além da sexualidade. Atinge o
estudar o racismo americano. James M. Jones, próprio amor do negro para com seus iguais.
argumentando sobre a relação sexual no tempo O principal traço do escravismo, em seu
da escravidão, acrescenta: profundo processo de desumanização e exter­
“Essa relação entre homens brancos e mu­ mínio do negro africano e brasileiro, foi tirar
lheres negras não desapareceu com os sé­ deste contingente a autoconsideração en­
culos, pois as leis de descendência durante a quanto indivíduos e grupo, fazendo com que
escravidão sempre favoreciam a libertina­ cultivasse o autodesprezo e ódio. Portanto,
gem do homem branco com relação à mu­ quando Luiz Gama volta-se para os “seus”
lher negra.” amores, faz o caminho de quem percebeu a
profunda destruição do ego de seu povo e
E continua em nota de rodapé:
parte para reconstruí-lo.21 E foi longe no
“Para isso, durante a escravidão, foram pouco que produziu em termos literários.
aprovadas leis que faziam com que, em Chegou mesmo a se antecipar no tempo.
qualquer união birracial, o filho tivesse a Anunciou a interpretação sartreana da Negri­
raça de sua mãe. Consequentemente, um tude, quando se auto-intitula:
homem branco poderia ter tantos filhos
quantos quisesse com mulheres negras, sem
Quero que o mundo me encarando veja,
‘contaminar’ a raça branca. Essa interpreta­
Um retumbante Orfeu da Carapinha.”2 2
ção especial também pode ser vista como
uma razão para a grande violência quanto a O filósofo francês, no prefácio à primeira
relações entre homem negro e mulher antologia de poetas da Negritude, lançada em
branca. Para garantir a expressão sexual 1948, salienta:
com as mulheres negras, o homem branco
“E chamarei de ‘órfica’ tal poesia porque
precisava negar à mulher branca qualquer
esta incansável descida do negro dentro de
contato sexual inter-racial.”20
si mesmo me lembra Orfeu indo reclamar
Em que pese o autor referir-se à realidade Eurídice a Plutão.”23
norte-americana, a situação no Brasil não era
A referência à mitologia greco-latina é
diferente. Se não havia leis como aquela cita­
abundante na poesia de Luiz Gama. A analogia
da, havia os costumes que a elas igualavam. A
com Orfeu certamente lhe foi possível fazer
atitude do pai de Luiz Gama não foi a única.
com tranqüilidade, ao perceber, em si mesmo e
Quando o artista negro recebe a pecha de no mundo, as dificuldades para recupe-
“complexado”, por dirigir-se de forma amo­ rar/conquistar o sentido de humanidade perdi­
rosa e/ou sensual à mulher branca, estamos do com a escravidão. Ele, que fora livre até os
diante daquilo que Guerreiro Ramos chamou dez anos de idade e depois lançado no cati­
de “patologia do branco brasileiro”. Incluída veiro, operou em sua trajetória a façanha. Suas
nesta manifestação, estaria a defesa, incons­ referências à África, embora limitadas pelo
ciente até, que o branco faz de sua mulher pouco conhecimento do continente naqueles
contra a investida do negro. tempos, não deixaram de ser para si referen­
Ora, reservar aos poetas limitações epidér­ ciais positivos. Sua mãe, no poema que lhe di­
micas ou raciais às motivações de sua arte só rige, era “Da adusta Líbia rainha”; a musa da,
pode ser uma atitude intelectual racista. Aos “Guiné”; usa o termo um “pretinho da Costa”;

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 65


ao falar dos que negam sua origem, diz: “Em exclusão existente na sociedade, a sátira de
Guiné tem parentes enterrados...” Luiz Gama se endereçava ao branco (minis­
Contudo, como já foi assinalado, as Primei­ tros, deputados, fidalgos, donzelas...), não dei­
ras trovas burlescas de Getulino se caracteri­ xa, em certos momentos de ser direta ao diri­
zam sobretudo pela sátira. Mesmo nesse as­ gir-se a essa dimensão racial “branco”. Dis­
pecto, a abundância de referencias de origem é correndo sobre a sua própria figura, argu­
outra das características típicas do gênero épi­ menta:
co. É preciso lembrar que, enquanto os ro­
“Desculpa, meu amigo
mânticos estavam voltados para o índio como
figura mítica da nossa ancestralidade brasileira Eu nada te posso dar;
Na terra que rege o branco
(Gonçalves Dias, José de Alencar etc.), Luiz
Nos privam té de pensar”.20
Gama lutava para colocar-se no pódio de uma
dignidade da qual tinha sido despojado (no E são inúmeras as direções de suas setas
plano mítico) e impedido no plano real. Aí se críticas. Os mulatos que negam suas origens
situa o sentido de seu trabalho contra o dis­ são “alvos” prediletos. Aliás, na referência la­
curso dominante da época. Propugnou pela cônica que faz da figura paterna, não deixa de
autovalorização racial, embora não tenha se espelhar seu posicionamento quanto à realida­
detido com insistência narcísica neste ponto. de étnica do País:
Tinha a compreensão de que a luta de reden­
“Meu pai, não ouso afirmar que fosse
ção tinha seu centro nevrálgico no plano polí­
tico e ideológico e sua base no econômico. branco, porque tais afirmativas neste país,
constituem grave perigo perante a verdade,
Este dado já se encontrava em seus poemas.
no que concerne à melindrosa presunção
A reavaliação de seu trabalho tem tido
das cores humanas.”2 7
avanços na fase atual dos estudos sobre a lite­
ratura negra contemporânea. No entrecruzamento biológico, a hipocrisia
racista, até hoje presente na mentalidade bra­
“Já Antônio Cândido, embora sem preten­
sileira, só mereceu de Luiz Gama o relho do
der uma análise sistemática deste assunto,
ridículo:
aponta o fator que é a condição essencial a
conferir uma especificidade à literatura dita “Se nobres desta terra empanturrados,
negra: a transgressão. Luiz Gama seria o Em Guiné têm parentes enterrados;
primeiro escritor que, ainda no período es­ E, cedendo à prosápia, ou duros vícios;
cravista, teria transitado na contramão, isto Esquecendo os negrinhos seus patrícios;
é, teria representado o momento de inver­ Se mulatos de cor esbranquiçada,
são em que o negro passa a fazer troça do Já se julgam de origem refinada,
branco.”24 E curvos à mania que domina
Nesta linha de “fazer troça do branco” si­ Desprezam a vovó que é preta mina
tua-se, indiretamente, o sentido de sua auto- Não te espantes, ó Leitor da novidade,
afirmação: Pois tudo no Brasil é raridade!”28

“Só corta com vontade nos malandros A rejeição do outro, um dos traços do ra­
cismo ao nível afetivo, nas Trovas é metida no
Que fazem da Nação seu Montepio;
pelourinho. Como acentua Massaud Moisés
No remisso empregado, sacripanta,
acerca da sátira: “... o ataque é a sua marca in­
No lorpa, no peralta, no vadio.”2 0
delével, a insatisfação perante o estabelecido, a
Dessas categorias sociais os escravos esta­ sua mola básica.”28 Luiz Gama teve uma tra­
vam totalmente excluídos, sem nenhum direito jetória de insatisfação, sem contudo fazer
à cidadania. Se, entretanto, nessa época, pela apelo ao cultivo da angústia, resultado muito

66 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


comum ao negro aculturado, dada a ambiva­ num balaio só. Seu poder de humanização sa­
lência sócio-cultural que experimenta. Seu tírica talvez tenha sido o responsável pela sua
pioneirismo na luta direta contra o escravismo permanência no tempo. “Ser bode” seria pró­
não lhe garantiu ver assinada a Lei Áurea, o prio da condição humana: ter casco, pêlo, dar
que talvez o tivesse decepcionado também coice, dispor de chifres e tudo o mais que po­
como ocorreu com a criação do Partido Repu­ demos imaginar de bodístico ou bodesco.
blicano. Quanto ao “Serei Conde, Marquês e De­
Há poemas como “Quem sou eu”, popu­ putado”, é uma crítica direta ao apadrinha­
larmente conhecido como “Bodarrada”, e mento político, presente nos diversos escalões
também o “Serei Conde, Marquês e Deputa­ dos governos até hoje, e nos lembra aquela fi­
do” que tornaram-se antológicos. No primei­ gura esdrúxula do político biônico instituída
ro, o autor, defendendo-se contra a discrimi­ pela ditadura militar de 64. Um homem sim­
nação que o atingia, através da alcunha “bo­ ples procura seu burro. Alguém, por galhofa,
de”,30 rebate de forma estrondosa, com uma diz ter sido o animal preso por um ministro
jocosidade surpreendente, da qual não se vê li­ que o transformou em barão. A essa notícia
vre nem a divindade. Após arrolar seu propó­ responde “tabaréu”:
sito de denúncia e crítica, categoriza os “bo­
des”: “Bodes negros, bodes brancos/.../Bodes “Se me pilha o Ministro, neste estado,
ricos, bodes pobres/.../Deputados, senado­ Serei Conde, Marquês e Deputado!...”3 2
res/.../Frades, bispos, cardeais/.../Guardas,
cabos, furriéis/.../Brigadeiros, coronéis/Ruti- A atualidade de Luiz Gama é inegável. O
lantes generais...” e muitos outros. Em segui­ exemplo disso está na coragem do homem e na
da, Luiz Gama arremata: lucidez do intelectual, além de que permane­
cem na vida social as razões de seu ataque sa­
“Pois sc todos tem rabicho
tírico e sua vontade manifesta de uma recons­
Para que tanto capricho? trução do orgulho racial, passo importante
Haja paz haja alegria, para a democratização das relações entre os
Folgue c brinque a bodaria; brasileiros. O que se perdeu em seu trabalho
Cesse pois a matinada poético não foi o essencial. Os maus políticos,
Porque tudo é bodarrada!”31 a discriminação racial e a exploração do tra­
Longo e abrangente, “Quem sou eu” colo­ balho de hoje continuam aptos às vergastadas
ca todas as categorias sociais c metafísicas de sua poesia.

NOTAS

1 Sud Mennucci, O precursor do abolicionismo. São Paulo, Nacional, 1938, p. 163.


2 Luiz Gonzaga Pinto da Gama, “Carta a Lúcio de Mendonça”, in Sud Mennucci, op. cit., p. 24.

3 . Idem, p 20.
4 “Os glutões”, in J Romão da Silva, Luís Gama e suas poesias satíricas Rio de Janeiro, Casado Es­
tudante do Brasil, 1954, p. 175.
5 . “Lá vai verso”, idem p. 113.
6 Sud Mennucci, op. cit., p. 105: "O seu repentino e definitivo abandono do campo da literatura, parece-me um
caso de renúncia voluntária c propositada. A vida exigia dele bem maiores provas da capacidade e de valor. E a li­
berdade dos negros, sujeitos à tirania dura c feroz da servidão corporal, acabou por se transformar, em pouco
tempo, na sua máxima, na sua invencível paixão, alvo e razão justificativa de sua existência.”

Estudos Afro-Asiáticos ri- 16, 1989 61


7 Luiz Gonzaga Pinto da Gama, “Lá vai verso”, in J. ROmäo da Silva, op. cit.,p. 114.
8 Solano Trindade, Cantares ao meu povo São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 23.
9 Massaud Moisés, Dicionário de termos literários. São Paulo, Cultrix, 1982, p 470
10 Luiz Gonzaga Pinto da Gama, “Minha mãe", in J. Romäo da Silva, op. cit..p 218-20.
11 “Cativa”, idem, p 206-7
12 - “Meus amores”, in jornal Diabo Coxo, n? 7, de 3.9 1965, p 7
13 - “Junto à estátua”, in J Romão da Silva, op cit., p 115
14 . “Laura”, idem, p 199
15 . “No álbum”, idem, p 129
16 Roger Basúde, Estudos afro-brasileiros. São Paulo, Perspectiva, 1973, p. 37
17 David Brookshaw.lfocttá cor no SreromrobraÄm Porto Alegre, Mercado Aberto. 1983.p 22
18 Luís Vaz de Camões, Poesia lírica Lisboa, Ulisseia, 1984 p 61
19 Manuel Bandeira, Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro. Tecnoprint, s.d , p. 57.
20 James M. Jones, Racismo e preconceito. São Paulo, Edgard Blücher/USP, 1973, p 138
21 Luiz Gama casou-se com uma mulher neera e
um filho. Claud,na Fortunato Sampaio, de Campiinas, com a qual teve

22 Luiz Gonzaga Pinto da Gama, “Lâ vai wren” • r r.


vai verso , in J. ROmäo da Silva, op. cit., p. 114.
23 Jean-Paul Sartre, “Orphée noir”, n L. Sédar Sen
gâche de languefrançaise. Paris, PUF, 1972, p. x VII g °r£‘^’ Anlholo8,e de la nouvelle poésie nègre et mal-

24 Zilá Bemd, Negritude e literatura na América f . a.


^ncacatma Porto Alegre, Mercado Aberto, 1987, p 17.
25 Luiz Gonzaga Pinto da Gama, “protase", in J. Româo da si|va op ^ p ,) 2
26 . “No álbum”, idem, p. 130.

27 ------- . ■•Carta a Lúcio de Mendonça". í„ Sud. Mennucci, op. ei,., p. 21.


28 ------- •■Sortimento de gorras", i„ 1. Romao ^„^

29 Massaud Moisés, op. cit., p. 470.

30 Uma forma de estigmatizá-lo pela cor e seu asDectn , -


maçom e, na época, terem associado o símbolo do bode àquela organí^çáo“ “° fa‘° de L“ÍZ Gama '" Sido

31 Luiz Gonzaga Pinto da Gama, “Quem sou eu?” i J


m J Komao da Silva, op. cit., p 190-4
32 . “Sérei conde, marquês e deputado” in I
------- r tmJ Romao da Silva, op. cit., p. 174-5.

SUMMARY

Luiz Gama: A Man Before his Time

Luiz Gama (1830-1882) was one of the key figu.


was born and lived free until ten years of age, he was
abolitionist struggle against the slave regime
then sold by his own father and spent the following
«entury Brazil; his was a personal history in- eight years as a slave.
m I9? linked to the saga of his people. Although he
An accute critic of society, Gama was the first sa-

Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


68
tirical black Brazilian poet. Among other things, his
cultural identity are still part of Brazilian society. His
poetry pointed out that the long-standing ideology of
poetry in the romantic style reveals a subject molded
"whitening” was in fact a rejection of the idea of a ra­ by black self-esteem, by the struggle for collective
cially mixed society and was founded on the racial
affirmation, and an anti-racist position. In this res­
discrimination and economic exploitation of the
Afro-Brazilian population. pect, too, it has present-day implications. In 1859, the
author published a collection of his verse in Primeiras
This son of African revolutionary Luiza Mahin Trovas Buriescas de Getulio.
was of Bahian origin, but it was in São Paulo that he
developed his activities as a lawyer and defender of
Luiz Gama’s "Orfeu da Carapinha” was also a
liberation and freedom. The timliness and current re­ forerunner of the Sartrean metaphor used in the Ne-
cognition of his satirical works reflect the fact that fa- gritud movement, and his Trovas introduced the Afri­
voritist politics and the rejection of black ethnic and
can line within present day Brazilian literature.

RÉSUMÉ

Luiz Gama: Une Trajectoire d’Avant Garde

Luiz Gama (1830-1882), l’une des plus impor­ c’est à São Paulo qu’il a exercé ses activités d’avocat
tantes figures de l’abolitionnisme, constitua, au sein et de tribun de la cause abolitionniste. L’actualité de
du contexte brésilien du siècle dernier, un exemple
son oeuvre satyrique vient du fait qu’aujourd’hui en­
unique dans la lutte contre le régime esclavagiste aussi
core au Brésil se perpétuent la politique du favoritis­
bien sur le plan social que sur le plan économique. La
me et le refus de l’identité ethnique ou culturelle. Sa
trajectoire de son existence est intimement liée à la sa­
poésie romantique révèle une subjectivité marquée
ga de son peuple. Ce précurseur fut esclave pendant par l’amour-propre face à sa condition de noir. Elle
environ 8 ans bien qu’étant né libre et ayant vécu dans constitue une intention d’affirmation collective et une
cette condition jusqu’à l’âge de 10 ans, quand il fut prise de position anti-raciste. Là aussi il existe une
vendu par son propre père.
correspondance avec l’actualité brésilienne. Cet écri­
Critique féroce de la société, Gama est le premier vain abolitionniste a publié en 1859 un recueil de vers
poète satyrique noir du Brésil. Sa poésie révèle, entre intitulé: "Premiers Poèmes Burlesques de Getulino*’.
autres, l’idéologie du blanchissement qui, comme on
le voit n’était pas récente au Brésil et révélait à quel Luiz Gama s’était donné un surnom: “L’Orfée aux
point la société se refusait à tout mélange racial, em­ cheveux crépus”: il s’est anticipé à la métaphore sar­
ployant pour cela la discrimination et l’exploitation trienne dans l’approche que celleci fait du mouvement
économique des noirs brésiliens.
de la négritude. Par ses "Poèmes”, il s’est également
Fils de Luiza Mahin - une africaine révolu­ montré un précurseur du courant afro de la littérature
tionnaire —, Luiz Gama était originaire de Bahia. Mais brésilienne actuelle.

Estudos Afro-Asûfticos n? 16,198$


69
"Sempre lutar pelas coisas em
ESTEREÓTIPOS DE (fite se acredita."
(Leomida do Candeia e Morti­
NEGRO NA nho da Vila)
LITERATURA Os poucos ensaios que se dedicaram ao es­
BRASILEIRA: tudo do negro na literatura brasileira têm-se
limitado a estabelecer sua presença em função
SISTEMA E dos diferentes estereótipos criados ao longo da
MOTIVAÇÃO nossa história literária. Tais estudos diferem
apenas quanto à abordagem do tema, uns sen­
HISTÓRICA* do quase que meramente estatísticos, os mais
modernos investigando as razões sociológicas
dessas estereotipações.
Para não cairmos na redundância estéril e
Beto Mussa** por entendermos que os ensaios anteriores
efetivamente cumprem seus objetivos, tenta­
remos um modesto passo à frente, sistemati­
zando o que foi feito e procurando identificar
nos estereótipos encontrados a sua motivação
histórica. Em outras palavras, trata-se de dar
voz ao reverso da medalha, de ler através dos
textos, desvendando a verdade que neles foi
sufocada. Se não existe uma verdade absoluta,
pode existir uma verdade fecundante; nosso
propósito é ao menos lançar uma semente.

Uma literatura antropofágica

Um dos problemas mais antigos para os


estudiosos da nossa literatura tem sido a deli­
mitação do próprio conceito de literatura bra­
sileira. De um modo geral, a tendência é esta­
belecer um limite quase rígido entre o que po­
deria ser definido como “literatura no Brasil”
e literatura brasileira propriamente dita. Nessa
dicotomia, Romantismo e Modernismo alter­
nam o título de divisor de águas da literatura
autóctone: o primeiro por nacionalizar os te­
mas; o segundo, a língua.
. é uma reformulação da mono- O interessante é que praticamente não há
* E?e Representação do negro na literatura discordância quanto à divisão periodológica;
grafia ^P1 „meira colocada no Concurso de há, sim, uma preocupação com o “típico”, com
brasileira”» P^ Faculdade de Letras da UFRJ. o “autêntico”, preocupação essa que está liga­
Monogr» Mestrado em Letras da da à idéia de que a expressão literária deve ser

** Aluno d« expressão da nacionalidade.


Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
UFRJ-
70
particularmente na produção literária que se
Esse debate, portanto, está inserido num
dá em meio a tais processos, a formação de
outro muito maior, que gira em torno do con­
ceito de cultura brasileira e da identidade ou signos híbridos, dentre os quais os estereótipos
se destacam, é o fenômeno mais característico,
“caráter” nacional. senão fundamental.
Raciocinando especificamente em termos
de literatura brasileira, a grande saída parece A literatura brasileira que se desenvolve a
ser estudá-la enquanto processo histórico, co­ partir da Carta é profundamente marcada por
mo entidade dinâmica e não estática, que pu­ esse hibridismo. A fixação gradativa do ho­
desse ser plenamente definida ou valorada. O mem português no espaço brasileiro não per­
conceito - é óbvio - deve emergir da observa­ mite, pelo menos de imediato, uma compre­
ção dos aspectos fundamentais da nossa histó­ ensão da realidade local, ou seja, a decodifica-
ção correta dos signos americanos; antes, ele
ria literária.
Tomaremos, para início da nossa reflexão, intervém nesses signos, substituindo os signifi­
a Carta de Pero Vaz de Caminha, uma vez cados originais pelos europeus. Dessa forma, a
que, não entrando no mérito da sua “autentici­ literatura jesuítica interpreta o indígena se­
dade”, é de fato o primeiro texto escrito no gundo os textos bíblicos, como no Diálogo so­
bre a conversão do gentio, do padre Manuel da
e sobre o Brasil.
Uma das passagens mais curiosas da Carta Nóbrega. A literatura de propaganda de Gan-
é aquela em que Caminha, referindo-se à nu­ davo também vê os índios à luz dos códigos
dez de uma índia, faz um jogo semântico com morais cristãos; Bento Teixeira e Gregório de
a palavra “vergonha”.1 O fato de a índia estar Matos os consideram selvagens e primitivos.
Silva Alvarenga transfere o locus amoenus
com as vergonhas à mostra significa, para o
europeu para o espaço das mangueiras e ca­
português, ausência de pudor, falta de vergo­
jueiros do Brasil; Cláudio Manuel da Costa, na
nha.Em verdade, o que Caminha faz é uma in­ “Fábula do Ribeirão do Carmo”, dá um exem­
terpretação européia de um costume amerín­ plo dos mais bem acabados de como todo o
universo simbólico e mítico, toda a concepção
dio, que não tem, evidentemente, o valor que
lhe é atribuído. Em termos lingüísticos, tra­ de mundo da civilização européia vem-se rea­
lizar artisticamente no espaço brasileiro, unida
ta-se de unir um significado europeu (no caso,
despudor) a um significante ameríndio (nudez a elementos desse espaço. Santa Rita Durão e
Basílio da Gama fazem o mesmo, dando ao ín­
feminina) por analogia a um significante euro­
dio uma ética de herói cristão. Continua-se,
peu que possui aquele significado.
portanto, o processo de formação de signos
Se falamos em significantes ameríndios e
híbridos, pelo menos no âmbito da cultura li­
significados europeus, temos, portanto, a for­
mação de signos híbridos, produtos de civiliza­ terária.
O advento do Romantismo colocou em
ções diferentes, com “linguagens” também
primeiro plano a discussão em torno do que
diferentes, que travavam contato em caráter
seria o nacional. Apesar do novo contexto, a
inaugural. Outros desses signos híbridos abun­
literatura brasileira prossegue híbrida, e o In-
dam na Carta (e provavelmente abundaram
dianismo é seu sintoma. Se em Iracema, de
nas conversas de índios sobre portugueses),
José de Alencar, temos linguagem, persona­
tais como a preguiça, a ingenuidade, a recepti-
gens e espaço “nacionais”, ou pelo menos em
vidade do índio à fé cristã. nacionalização, os valores simbólicos que or­
Ora, não é difícil perceber que são exata­
denam a narrativa são herdados da cultura
mente estes os estereótipos de índios mais di­
européia. O mesmo se pode dizer dos poemas
fundidos na literatura brasileira e na nossa tra­
dição oral. Podemos arriscar a conclusão de indianistas de Gonçalves Dias.
Do fim da era romântica ao início da mo­
que, nos processos de interpenetração de cul­
dernista, os significantes deixaram de ser
turas ou relacionamento intercultural, mais
71
EstudosAfro-Asiáticos n? 16,1989
Sendo o Modernismo o primeiro movi­
ameríndios para traduzirem locais e situações
mento estético que reconheceu, no nível dos
concretas da vida brasileira e os significados
programas, o caráter híbrido da nossa cultura
passaram a ser importados do emergente pen­
— criando o conceito de antropofagia — e uma
samento naturalista da Europa. Manteve-se,
vez que se constata que esse hibridismo é uma
entretanto, a natureza híbrida dos signos lite­
coluna vertebral da nossa história literária, po­
rários.
demos adotar a terminologia modernista para
O Modernismo retoma a discussão enceta­ propor um conceito de literatura no Brasil: o
da pelo Romantismo e introduz um conceito que define a literatura brasileira é seu caráter
fundamental na nossa literatura, a saber, o de
antropofágico.
antropofagia.
Com efeito, é eminentemente antropófaga
Oswald de Andrade, em seu “Manifesto
essa literatura que “digere” os significados
antropófago”, entende por antropofagia, entre
nativos, dando aos seus significantes um sig­
outras coisas, a capacidade brasileira de “di­
nificado “estrangeiro”, criando signos híbridos
gerir” a Europa sem se deixar catequisar, de
transformar o tabu em tótem, de absorver o e multiplicando estereótipos.
que vem de fora. Se traduzirmos esse conceito Chegamos ao ponto em que é necessário
para a terminologia que estamos privilegiando, perguntar como se situa o negro no panorama
a antropofagia é a atribuição de significados traçado acima. Apesar de ter entrado na lite­
nativos (no caso, tupis) a significantes euro­ ratura mais tardia e lentamente que o índio, o
peus, que perderiam seus significados de ori­ negro teve o mesmo destino. Como aquele, foi
gem (a transformação do tabu em tótem, por por muitas vezes mera variante humana do es­
exemplo). paço físico. Seus signos também foram des-
construídos, seus significados devorados, e
Porém, o programa modernista não se
a seus significantes foram anexados valores
consubstanciou na prática literária. O que
estranhos. O homem de tradição literária eu­
houve foi exatamente o inverso desse proces­
ropéia também criou signos híbridos em rela­
so, mantendo-se intacta a tradição já formada
ção ao negro, e dentre eles os estereótipos são
de criação de signos híbridos. O Macunafma,
de Mário de Andrade, para ficarmos com um maioria. Dessa forma, o negro foi “represen­
exemplo clássico, que recupera os mitos da tado” na literatura brasileira, assim como tem
sensualidade e da preguiça indígenas, já pre­ sido o índio.
sentes em Caminha, ainda é organizado inter­
Por representação, portanto, entendemos o
namente por valores simbólicos europeus, di­
processo antropofágico de formação de signos
ferentes, é claro, dos existentes nos séculos híbridos e conseqüente estereotipação. É im­
anteriores, mas europeus. portante destacar que, segundo essa perspecti­
Ocorre aqui o fenômeno da conotação. Em va, somente representa o negro um autor não
síntese, entendemos por conotação na litera­ negro, ou seja, branco ou qualquer outro que,
tura brasileira o aproveitamento de um este­ a despeito de ascendência africana, não assuma
reótipo tradicional que passa a ter valor positi­ tal ascendência. Exemplificando, Machado de
vo. Assim, se a índia era despudorada por an­ Assis pode representar o negro; Lima Barreto,
dar nua, seu despudor agora tem uma conota­ não.
ção positiva; é “bom”, não mais “ruim”; é Começamos propriamente nosso raciocínio
“bonito”, não “feio”. partindo do princípio de que a antropofágica
literatura brasileira produz estereótipos atra­
Verificamos, portanto, que o aspecto fun­
vés de signos híbridos em que se anulam os
damental da formação literária do Brasil é o
hibridismo de seus signos. significados originais.
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
72
maior parte dos textos, esses estereótipos vêm
A denotação do negro ou estereótipos em sintagmas curtos, tais como “expressão
primários bestial”, “catinga africana”, “dialetos da inde­
Apesar da pouca atenção que o negro me­ cência”, respectivamente encontrados em Til,
receu dos escritores brasileiros do período de José de Alencar; Rei negro, de Coelho Ne­
colonial, sua presença na literatura pode ser to; e Um passeio pela cidade do Rio de Janei­
datada já no século XVII, notadamente em ro, de Joaquim Manoel de Macedo.2
Vieira e Gregório de Matos, quando começa a Esses estereótipos físicos são, em certa me­
se fixar de forma lenta e ocasional. Não é le­ dida, muito frágeis e não se sustentam sozi­
gítimo, portanto, falarmos em representação nhos. Em verdade, só surgem como reforço
numa circunstância meramente esporádica e, necessário à fixação de outros estereótipos,
exatamente porque o estabelecimento destes
não obstante se possa identificar caracteres
exige um distanciamento que a repugnância
que mais tarde constituirão estereótipos, estes
apenas se consolidam no século XIX, quando sensorial ajuda a manter. Falamos dos estereó­
ocorre a repetição sistemática desses caracte­ tipos antropológicos.
Com efeito, a maior necessidade ideológica
res, fato indispensável para que os estereótipos
do sistema escravista era justificar a captura
se configurem como tais. de homens por uma sociedade edificada em
Nesse momento, o negro é denotado, lite­
princípios cristãos. Desde o início da atividade
rariamente falando, pois passa a assumir sig­
negreira, foi sentenciada a inferioridade do
nificados usuais, não questionados, instituídos
negro em relação ao europeu. Por não ser
arbitrariamente no processo de produção e re­
cristão, por não ter uma civilização que ao
cepção da literatura. menos se aproximasse do modelo da Europa
Podemos distinguir, de imediato, três clas­
ses de estereotipia: a étnica, responsável pelos (caso dos árabes, por exemplo), o negro era
considerado um selvagem, pratícamente um
estereótipos físicos, característicos da raça
negra; a antropológica, que faz julgamentos de animal. Essa concepção etnocêntrica percorre
a história brasileira até chegar ao século XIX,
valor sobre a forma de ser do negro, ou seja,
época da configuração literária dos estereóti­
sobre seu sistema cultural, o que também con­
pos, com uma força tremenda, arraigada que
duz a estereótipos morais; e a sociológica, mais
estava na cultura ocidental como forma única
complexa e mais violenta, que estabelece pa­
de manter a coerência ética do escravismo
drões essenciais de comportamento do negro
em relação ao branco, valorando-os em cristão.
Partindo do princípio de que o negro era
“bons” e “maus”. inferior, qualquer manifestação cultural desse
Os estereótipos étnicos baseiam-se na per­
negro era “desvalorizada”. Assim surgem os
cepção sensorial do negro pelo branco. Dessa
estereótipos da superstição, da aptidão apenas
maneira, o negro é feio (visão), fedorento (ol­
ao trabalho braçal, da burrice, da infantilidade,
fato) e sua voz, seu canto, enfim, sua forma de
da boçalidade, da ridicularidade etc.
expressão oral é grosseira e escandalosa (audi­
O romance A carne, de Júlio Ribeiro, é um
ção). Não surgem aqui estereótipos do paladar
excelente exemplo: a personagem negra Jo-
e do.tato - é óbvio - porque pressupõem um quim Cambinda, além de caracterizada fisica­
contato físico absolutamente inadmissível.
mente nos moldes que apontamos, resume na
Os textos que descrevem as senzalas, ou
sua condição de “feiticeiro” a inferioridade do
quaisquer outros agrupamentos negros, são
homem africano. As práticas rituais da religião
férteis nesses estereótipos, como se a percep­ negra são pintadas com tintas satânicas, o ofi­
ção coletiva do negro acentuasse a repugnân­
ciante tratado como verdadeiro príncipe do
cia, o que se percebe em O cortiço, de Aluísio
Inferno, e os demais circunstantes como bo­
Azevedo; em Maleita, de Lúcio Cardoso; e em çais incorrigíveis, simples bonecos manipula-
A carne, de Júlio Ribeiro. Entretanto, na
73
Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989
dos pelas mãos não de um explorador inteli­ inferioridade moral (fator antropológico).
gente, mas de um débil mental similar. O batu­ Trata-se de A escrava Isaura, de Bernardo
que dos escravos perpassa o mesmo clima de­ Guimarães.
moníaco: o canto grosseiro e monótono, as O que de saída chama a atenção no roman­
contrações lúbricas e animalescas dos corpos - ce é o fato de Isaura ser uma escrava de traços
nada merece o estatuto de arte. O próprio uso brancos. Mesmo que o leitor, após as explica­
peculiar da língua portuguesa feito pelos ne­ ções do fenômeno, aceite como verossímil a
gros é considerado uma inaptidão dos mesmos fisionomia da protagonista, não deixará de le­
à linguagem culta, uma demonstração de estu­ var do texto duas mensagens: a de que um
pidez. corpo belo corresponde a uma alma bela (o
Tudo isso revela uma visão distanciada e
que já fora sentenciado por toda a poesia do
negativamente predisposta do espaço antro­
Romantismo) e de que a um corpo belo cor­
pológico africano. O autor que representa o
responde um corpo branco. Portanto, a um
negro não se dá o trabalho de apreender sua
corpo branco corresponderá uma alma bela e,
hierarquia simbólica, seu universo de valores;
conseqüentemente, a um corpo negro corres­
pelo contrário, coloca-se comodamente numa
ponde uma alma feia.
posição de superioridade e atribui significados
Esse par de sentenças é plenamente ratifi­
de sua própria cultura àquelas manifestações,
cado na narrativa, uma vez que à beleza bran­
ou seja, cria estereótipos.
ca e pura de Isaura opõem-se a feiúra e a mal­
O romance (9 tronco do ipê, de José de
Alencar, possui um “feiticeiro” bem similar ao dade da escravaria negra da fazenda, que tem
de A came', Terras do sem fim, de Jorge Ama­ como representante a personagem Rosa. A
antinomia Isaura-Rosa efetivamente sintetiza
do, também. Nesse, a personagem Damião,
as equações semânticas apontadas, que esta­
como a personagem Benedito, de Alencar, são
belecem a relação de interdependência entre
caracterizados como rudes, apresentam-se
configuração étnica e estado antropológico.
como que infantilizados, uns verdadeiros tro­
gloditas. Em suma, são homens num estágio Entretanto, como ficou dito, foi a estética
naturalista que deu estatuto de verdade cientí­
inferior de civilização, de pouca inteligência,
fica ao estereótipo da inferioridade racial. Ei­
incapazes de adaptação a formas superiores de
cultura. Esse estereótipo do negro como ali­ vados daquelas teorias estão, por exemplo. Os
mária infantil e boçal é também antropológico, sertões, de Euclides da Cunha; O presidente
negro', de Monteiro Lobato; e Canaã, de Gra­
uma vez resultante de interpretação equivoca­
da da cultura negra. ça Aranha. Este apresenta uma excepcional
Um detalhe que não pode ser negligenciado alegoria do que supõe ser a trajetória étnica do
é que os estereótipos étnicos e antropológicos Brasil, representativa do ideal ariano da inteli­
geralmente vêm associados. As teorias raciais gência nacional, na qual não se furta um sen­
que dominaram o pensamento brasileiro dos timento de intenso otimismo pela condenação
fins do século XIX até quase o meio do atual, cientificamente comprovada da raça negra ao
consolidaram esse aspecto, o que facilmente se desaparecimento, à absorção pela raça a ela
entende pelo caráter determinista dessas dou­ superior. Eis a passagem a que nos referimos:
trinas. Para a ciência do período, a posição na “Durante algum tempo ninguém se moveu
hierarquia étnica de cada tipo biológico deli­ e a música prosseguia solitária nos seus lar­
mitava seu alcance cultural. O europeu era o gos e chorosos compassos. Mas, de repente,
civilizado; o negro era o primitivo. O mulato, como um fauno antigo, Joca pulou na sala
nem tanto, nem tão pouco. Quanto à moral, a (...) o mulato transportava-se para longe
gradação é a mesma. de si (...) espraiando-se na velha dança da
Um texto romântico já nos mostra como raça (...).
funciona a relação cor negra (fator étnico) - Joca procurou um par, uma mulher (...)
74 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
ninguém veio (...) e o último intérprete das mâncito pode ser o do já referido Benedito em
O tronco do ipê, de Alencar, um cão fiel para
danças nacionais foi cedendo o terreno aos
o sinhozinho Mário; ou a tia Joaquina em A
vencedores, enquanto outra música, outra
dança, invadia o cenário. Era a valsa alemã, escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, te­
mente a Deus e muito resignada no cativeiro
clara, larga, fluente cmo um rio.”3
que o Diabo inventou. A Bertoleza em O cor­
É evidente no texto a idéia de que a infe­
tiço, de Aluísio Azevedo, representa o mesmo
rioridade étnica do negro não resistiria ao im­
estereótipo na estética naturalista, com seu
pacto civilizador do europeu, o que se daria
bestial servilismo e submissão aos caprichos de
pela irrestrita preferência das mulheres aos
João Romão. E ainda o temos através da per­
brancos, condenando negros e mulatos à ex­
sonagem Libânia de A menina morta, de Cor-
tinção física e cultural - exatamente o que nélio Pena, que rasga a própria carta de alfor­
preconizavam os pensadores arianistas.
ria num extremo de devoção à sinhazinha.
Entretanto, a despeito da violência que os
O estereótipo do selvagem tem seu embrião
estereótipos étnicos e antropológicos possuem,
na poesia satírica de Gregório de matos e che­
são os estereótipos sociológicos que desempe­
ga ao Romantismo com vários exemplos, entre
nham com maior eficácia o papel de coerção
os quais o Cabeleira do romance homônimo de
do negro e educação da sociedade em seus
Franklin Távora e, como vimos, a Rosa de A
fundamentos racistas. escrava Isaura - ambos muito perversos. O
São eles de dois tipos básicos: o estereótipo
Naturalismo foi pródigo nessa estereotipação,
do pai-joão, que corresponde ao escravo fiel,
talvez pela teórica igualdade que a Abolição
ao negro trabalhador e incansável, muito ami­
criara. Assim, temos no Rei negro, de Coelho
go do senhor, muito agradecido ao branco,
Neto, a personagem Macambira transformada
totalmente resignado em seu cruel sofrimento,
em verdadeiro monstro após contatos místicos
um amigo da sociedade; e o selvagem, que re­
presenta o negro pérfido, bárbaro, sanguiná­ com seus ancestrais africanos; e no Bom-
rio, pronto para o ataque mortal, criminoso, crioulo, de Adolfo Caminha, a personagem
quilombola, fujão, feiticeiro, vagabundo, ca­ Aleixo sofrendo com os violentos arroubos
chaceiro, de uma sexualidade animalesca, de viris do negro Amaro. Isso para não citarmos
a extensa e prolífera obra de Monteiro Lobato,
uma virilidade violenta, um perigo para a so­
o menos sutil de todos os racistas.
ciedade. Se o estereótipo do selvagem conhece o
É de fundamental importância perceber que
há uma relação de excludência entre os dois ti­ apogeu no Naturalismo, praticamente some
pos: um pai-joão não pode ser um selvagem, e após o período modernista, pelo menos en­
vice-versa. Essa não-implicação necessária é quanto denotação do negro. Seu processo de
que define a natureza sociológica dos estereó­ transformação na literatura está ligado a fe­
tipos, uma vez que correspondem a valorações nômenos que estudaremos adiante.
Há ainda dois aspectos relativos à fixação
de modelos relacionais primários entre branco
dos estereótipos primários que merecem men­
e negro. Se este está submetido àquele, é o
ção. O primeiro vem solucionar uma contradi­
pai-joão; se não, é o selvagem. Ao negro, em
ção entre os estereótipos étnico-antropológi­
suma, era lançado o grito “Dependência ou
Morte”, sendo seu estereótipo fixado confor­ cos e o do pai-joão. Com efeito, uma vez ca­
racterizado o negro como repugnante e infe­
me a opção feita.
rior, ficava difícil aceitá-lo no seio da família,
O estereótipo do pai-joão já surge embrio­
seria impossível crer num negro “bom-cará­
nariamente no Sermão XXVIII da série Maria
ter”. Por outro lado, o estereótipo do pai-joão
Rosa Mística, de Antônio Vieira, no qual o
sofrimento negro é comparado ao de Cristo e era o mais desejado entre todos. Criou-se, en­
tão, o conceito de que o negro evolui quando
há nítida exaltação de uma atitude resignada
em contato com o branco, mesmo sem o alcan-
por parte dos escravos. Um bom exemplo ro-
75
Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989
çar. Ficava, dessa forma, resolvido o proble­
uma relativa ao comportamento que desejamos
ma, e uma aproximação com aquele ser vil po­
no ser estereotipado, outra que “pune” a
dia ser encetada, dependente de certas condi­
transgressão do mesmo. Exemplificando, se o
ções.
mulato não se contenta com sua posição de
Em contrapartida, para que o caráter noci­
inferioridade na hierarquia social (comporta­
vo da raça não ficasse esquecido, desenvol­
mento desejado) é por pura ousadia, por ab­
veu-se o conceito de que o branco degenera-
soluto atrevimento (punição moral).
se quando exposto à ação degradante do meio Em verdade, os mulatos (ou negros que se
negro.
comportem como tais) possuem estereótipos
No Rei negro, Coelho Neto nos fornece
secundários, pois funcionam como justificativa
simultaneamente as duas concepções: tanto a
à não-observância dos primários. Dessa for­
personagem Julinho é explicada em sua baixe­
ma, como ficou dito, temos o estereótipo do
za moral por ter-se criado próximo à senzala,
mulato abusado e atrevido, que compensa o do
quanto a escrava Lúcia tem sua boa fndole pai-joão; o do pretenso, vaidoso e ambicioso
atribuída à salutar educação entre os brancos.
(ou não resignado); do traidor (ou não-fiel); do
Fica, portanto, estabelecido esse hábil meca­
manhoso e esperto (ou não-imbecil); do pre­
nismo regulador dos contatos entre branco e
guiçoso (ou não-trabalhador); o da mulata bo­
negro.
nita, sensual e permissiva que vem em socorro
O outro aspecto de menção importante diz
da libido do homem branco anteriormente
respeito aos estereótipos de mulatos. Não te­
mos até então tomado o cuidado de distinguir censurada pelos estereótipos étnicos da repug­
nância etc.
mulatos e negros; de certa forma, não são
Toda vez que um negro (e a partir de então
muitas as diferenças, pois, ao menos do ponto
assim denominaremos todos os não-brancos)
de vista social, ambos são discriminados. Além
alcança a “zona de aproximação”, deixando de
disso, não é possível delimitar com algum rigor
enquadrar-se em um dos dois estereótipos
o conceito de mulato no Brasil, não só por ser
primários, assume as caracterizações secundá­
a “categoria étnica” majoritária, como por ha­
rias que praticamente podemos reunir sob o
ver subdivisões sensíveis nesse grupo, com
nome de estereótipo domalandro.
mulatos bem próximos ao que chamamos Um excepcional exemplo de negro malan­
brancos etc. dro é o da personagem Pedro da peça O de­
Entretanto, não podemos deixar de reco­
mônio familiar, de Alencar: nem resignado,
nhecer que, ao menos no nível dos estereóti­
nem estúpido, agindo através de intrigas na
pos, os mulatos diferem dos negros. E a razão ânsia de ascensão social. O mesmo se dá com o
é simples: à época em que os estereótipos se
moleque Bruno de A menina morta, de Corné-
definem, ainda vivíamos a escravidão. Nesse lio Pena. Os negros do conto “O espelho” em
momento há uma diferença sensível entre mu­ Papéis avulsos, de Machado de Assis, são ma­
lato e negro - o primeiro é em geral livre, o nhosos e traidores. A protagonista de O tesou­
último não. Portanto, a possibilidade de as­
ro de Chica da Silva, de Antônio Callado, do­
censão do mestiço era fato, daí serem temidos.' mina os brancos pela sensualidade permissiva;
Já Gregório de Matos lhes dá o estigma de e o mesmo acontece com a Rita Baiana, de O
“ousados”,4 numa caracterização que se tor­ cortiço. Todos são estereótipos de malandros,
nará estereotípica, donde se conclui que o a face transgressora dos estereótipos primá­
mulato ocupa indevidamente uma posição ou rios.
tem atitudes não-atinentes à sua “origem”. Verificamos, portanto, que a denotação do
Os mestiços estão, portanto, no que pode­ negro, a sua configuração híbrida e estereoti­
mos chamar de “zona de aproximação”, e toda pada enquanto signo literário baseia-se fun­
sua estereotipía daí decorre. David Brookshaw . damentalmente na necessidade de inspirar ao
lembra que todo o estereótipo tem duas faces6 branco ou terror ou piedade, o que correspon-
76
Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989
de, respectivamente, aos estereótipos do sel­ É de extrema importância entendermos o
vagem e do pai-joão. Os estereótipos antro­ processo de conotação no seu aspecto de ma­
pológicos, que inspiram desprezo, e os étnicos, nutenção do signo denotado para a compre­
que suscitam repugnância, são apenas o sus­ ensão da transformação histórica por que
tentáculo dos sociológicos. Os estereótipos re­ passam os estereótipos de negro.
guladores das relações interraciais e a forma­ Enquanto a economia escravista manteve
ção secundária do tipo malandro completam o sua estabilidade, não tínhamos propriamente
complexo sistema que define o negro em fun­ estereótipos de negro, pelo menos literaria­
ção do seu comportamento ante o branco. mente falando, mas caracterizações não siste­
Sobre essa base sólida evolui o significado máticas, embriões desses estereótipos, até por­
europeu do significante negro; são estas as que a presença negra no texto literário era
fundas raízes da sociedade violentamente ra­ ocasional. Com a crise do escravismo, para a
cista em que ainda vivemos. qual podemos fixar o ano de 1850 como marco
de referência — data da Lei Eusébio de Quei­
A conotação do negro ou a simpatia roz -, observa-se a institucionalização dos es­
estereotipada tereótipos de negro; donde se conclui que é
A lingüfstica estrutural define conotação quando o sistema entra em crise, quando a es­
trutura social se modifica, que surge a necessi­
como processo de significação em que o plano
da expressão (significante) é já um sistema de dade de regular energicamente as relações ra­
ciais, como ficou dito anteriormente; ainda
significação ou signo. Em outras palavras, co­
mais quando a estratificação da sociedade
notar é transformar um signo denotativo em
brasileira desejava conservar o critério racial.
significante ao qual se agrega um significado,
produzindo-se, então, um novo signo (conota­ Após a consolidação do sistema capitalista,
do), conforme o diagrama abaixo; o que ocorre ao fim da segunda década do
nosso século, a hierarquia social está nova­
signo conotativo .... significante/significado mente ajustada, com os negros mantidos nos
signo denotativo .... significante/significado graus inferiores. Se as teorias raciais e os es­
Daí ser o processo conotativo uma super­ tereótipos literários (que se estendem ao senso,
posição de significados que necessariamente comum) contribuíram para esse novo estado
conserva a denotação. Podemos afirmar que o de coisas, é certo que o não fizeram sem serem
signo denotativo é englobado pelo conotativo, agressivos e deprimentes. Portanto, não sendo
mas não desaparece. É esse aspecto o que mais mais necessárias as rígidas formas de classifi­
nos interessa. cação do comportamento do negro, era até
Aludimos ao processo de conotação da li­ perigoso sustentá-las como tal.
teratura brasileira como aproveitamento de um Agora que o negro ocupava uma posição
estereótipo tradicional com valor positivo. No inferior mas devia cultivar esperanças de as­
caso do significante “índia nua’’, cujo signifi­ censão - caráter fundamental da sociedade ca­
cado em Caminha era “sem-vergonha”, temos pitalista -, era vital abrandar seus estereóti­
conotação quando Mário de Andrade constrói pos, chamá-lo a um convívio ameno com o
o signo “índia nua sem-vergonha é bonito” ou branco, fazê-lo crer na absoluta igualdade de
“índia nua sem-vergonha é brasileiro”, ou ain­ condições, sem, no entanto, ceder terreno ao
da “índia nua sem-vergonha é inocente”. Em seu avanço.
todos os exemplos, o signo “índia nua é sem- O evidente racismo presente nos estereóti­
vergonha”, criado por Caminha, permanece; pos fixados na literatura do século XIX foi
como permaneceu no “índio é selvagem va­ substituído por um movimento de crescente
lente”, de Gonçalves Dias, ou “índio é selva­ simpatia em relação ao negro; simpatia essa
gem”, de Gandavo. que, no entanto, não alterou a base dos este-

Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989 77


reótipos anteriores, uma vez que resultou ape­ simplória, uma alienação completa ante as do­
nas da conotação destes. res do mundo, o que resume sua vida à bebe­
Uma simpatia diluída, estereotipada segun­ deira e à cantoria. O Curió de Os velhos mari­
do os velhos conceitos, domina a partir de en­ nheiros, de Jorge Amado, é quase cópia do
tão a produção literária do Brasil, coincidindo Passarinho de Fogo Morto, de José Lins do
com a afirmação do Modernismo. Rego.
Dessa forma, aos estereótipos do negro Em suma, a conotação da pureza aos este­
infantil, imbecil, inferior e mais propriamente reótipos que antes inspiravam desprezo e pie­
ao do pai-joão uniu-se a qualidade da pureza. dade vem transformar esses sentimentos em
Era o estereótipo do negro-criança, do es­ admiração e produzir um certo conforto pela
cravo bonzinho e contente, espécime precur­ falsa suposição de que o negro não sofrera
sora do “operário-padrão”; o negro era um tanto assim, ou não se importava muito com o
bem-aventurado, pois, apesar de inferior na sofrimento.
cultura e na inteligência, apesar de consumido Os estereótipos do selvagem, do negro
por um trabalho brutal, gozava da felicidade mau, feiticeiro, animalescamente viril, esses
de ser simples, de estar eternamente de bem eminentemente agressivos porque se dispu­
com a vida. No “Pai João” dos Poemas, de nham a aterrorizar a sociedade, também foram
Jorge de Lima, o estereótipo já aparece com diluídos por um tratamento simpático. O negro
alguma nitidez; mas é em Poemas negros que terrível de outrora transformou-se apenas
se reproduz com freqücncia essa imagem, co­ num ser exótico e sensual.
O Macunaíma, de Mário de Andrade, nos
mo no “Poema da encantação”, em “Quichibi
sereia negra” e principalmentc cm “Olá ne­ dá um excelente exemplo com o capítulo “Ma­
gro”: cumba”. A denominação de “feitiçaria” para a
religião negro-africana, a presença de um
“Negro, ó antigo proletário sem perdão,
“diabo” em meio ao ritual, a narração de cenas
proletário, bom,
de violência, de sensualidade animalesca, com
proletário bom!
a presença de sintagmas como “a espuminha
Blues,
rolou dos beiços desmanchados”,7 a descrição
Jazzes,
de um feitiço destinado ao mal de outrem (no
Songs,
caso, o gigante Piaimã) — tudo poderia ser
Lundus...
muito bem aproveitado em qualquer romance
Apanhavas com vontade de cantar,
naturalista. A caracterização é essencialmente
Choravas com vontade de sorrir,
a mesma; muda o valor, agora positivo-, muda o
Com vontade de fazer mandinga para o
interesse, que é pelo exótico. Manuel Bandeira
[branco ficar bom.”8
não faz diferente em “Macumba de Pai Zusé”,
Em Juca mulato, de Menotti dei Picchia, de Libertinagem.
não encontramos a mesma agressividade na O destaque do caráter exótico da cultura
descrição da derrota do mulato para o branco negra também está presente cm Tenda dos
como no Canaã, de Graça Aranha; o protago­ milagres, de Jorge Amado, no que se refere
nista é cercado de simpatia, descrito como um à religião dos Orixás. Ressalte-se ainda nesse
ser da natureza, e o fracasso de seu amor pela texto a extraordinária virilidade da persona­
patroa é no fim um estímulo para que se con­ gem Pedro Archanjo, exemplo formidável de
serve na pureza e castidade da sua condição. como o estereótipo do negro animal foi visto
Outro exemplo de negro infantil conotado com simpatia. Esse aspecto, inclusive, será o
como puro é a personagem Passarinho, que preferido a partir do Modernismo para cono­
aparece em alguns romances de José Lins do tar o negro, talvez por funcionar como uma
Rego. E principalmente em Fogo morio que se espécie de compensação para sua pouca inteli­
pode notar nessa personagem uma serenidade gência.

78 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


mento, mas a exaltação de suas riquezas, ob­
O romance Ganga-Zumba, de João Felício
viamente conquistas da sexualidade negra, o
dos Santos, é outro exemplo da conotação do
que se percebe pela insistente menção ao des­
negro selvagem. Apesar da proposta de res­
gatar o passado heróico do escravo, o texto peito das mulheres brancas.
Uma interessante síntese dos estereótipos
apresenta fragmentos como este:
simpáticos do negro puro e do malandro está
“Aplaudindo aos urros, ganindo lubricida­ presente no Orfeu da Conceição, de Vinícius
de, o povo estoura de gozo e já vai recome­ de Moraes. O protagonista é um poeta de fa­
çar no consumo despropositado de aluá e vela, de alma terna e inspiração divina, que vi­
fumo (...).”” ve de sua arte e para o amor de Eurídice. O
Fica claro, portanto, que o estereótipo não que faz com que a figura de Orfeu seja um
se altera; troca-se apenas o sentimento de estereótipo conotado é, além da menção de
terror pelos de curiosidade e admiração. que toda a cidade curva-se à favela em virtude
Os estereótipos que também recebem um de sua voz sublime, a contraposição do prota­
extraordinário tratamento conotativo são os gonista ao estereótipo do negro selvagem,
que normalmente se atribuíam aos mulatos e presente no texto em estado natural, notada-
que caracterizamos de um modo geral como o mente quando da descrição do Carnaval como
uma festa demoníaca, o que reforça a simpatia
de negro malandro. Se esse estereótipo pro­
pela suavidade do negro malandro que é Or­
curava julgar o comportamento do negro que
chegava a uma “zona de aproximação”, amea­ feu.
O estereótipo do malandro, portanto, atra­
çando a hierarquia social, a estratégia da sim­
vés da simpatia, deixa de ser um sintoma de
patia vai exaltar esse malandro, coroando sua
mau caráter e passa a ser valorizado como es­
“esperteza” e insistindo no fato de que ele
tratégia muito inteligente do negro, que assim
sempre tirou vantagens das situações adversas.
Em Os pastores da noite, de Jorge Amado, soube vencer a opressão.
Da mesma forma que, quando o negro era
temos uma abundância de personagens malan­ denotado, surgiram estereótipos que regula­
dras, muito satisfeitas por ganharem a vida vam as relações inter-raciais, paralelamente
através de expedientes, à custa dos “otários”,
à sua conotação surge um estereótipo que re-
sem esforço e à margem do sistema. Um clima classifica essas relações, que pode ser sinteti­
de imensa simpatia, uma verdadeira glorifica­ zado através do modelo relacional estabelecido
ção da vadiagem vem garantir a mensagem de
pelo par mãe-preta/sinhozinho.
que, apesar da opressão, o negro consegue ter A mãe-preta é a figura amorosa e resigna­
boa vida e que o “prejuízo” que ele pode dar à da que alimenta o sinhozinho com o sacrifício
sociedade é modesto, uma vez que ele não
do seu próprio filho; e o beneficiário, que em
tenta modificar suas estruturas. princípio não tem consciência do dano que
Pedro Mico, de Antônio Callado, é outro
causa, quando cresce revela-se grato e reco­
texto de glorificação do estereótipo do malan­
nhecido, cultivando uma devoção perene à
dro. Aqui ainda há um detalhe ao menos cu­
ama de sua infância, devoção essa que funcio­
rioso: a personagem Pedro Mico age em de­
fesa própria exatamente segundo os padrões na como penitência às suas faltas.
É evidente que a mãe-preta é uma das for­
estereotipados da malandragem, e é uma mu­
mas do estereótipo primário do pai-joão. O
lher branca, sua companheira, quem lhe dá a
que nos leva a destacá-la é que através dessa
consciência política de suas atitudes.
recuperação tem-se a metáfora da própria
A Chica da- Silva do Romanceiro da Incon­
história das relações raciais brasileiras, na
fidência, de Cecília Meireles, reproduz o anti­
versão - é óbvio - do sinhozinho. O branco
go estereótipo da negra sensual e permissiva
não esteve apenas inconsciente de sua malda­
que obtém favores, também de forma conota­
de, mas, uma vez desperto, arrependeu-se e
da. Não há repreensão pelo seu comporta­
79
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
socialmente, perpetuam-se os estereótipos de
“intervenção”, sem juízos de valor. T negro, uma vez que os diversos personagens
reconheceu a contribuição do negro para o seu dem aos estereótipos desejados. O tratamento
simpático tem por objetivo sentir-se o negr° fundamento da atitude neutra ou diston e ser- reproduzem sentimentos estereotipados, como
crescimento. Considera-se culpado e pede O conto “Dão-lalalão”, de Noites do se estranheza, ternura cruel, horror, desejo de
desculpas, ou melhor, acirra as relações, de­ compensado das injustiças históricas e assim
tão, de Guimarães Rosa, tem na Pers°n^ posse, êxtase ante o exótico, incompreensão
pois as abranda; soluciona, enfim, o problema ocupar sua posição na hierarquia social, pois J
Iládio um estereótipo conotativo secun além da idéia de uma África bárbara e de
histórico da escravidão. está reconhecida sua efetiva participação (co
negro. Com efeito, Soropita teme incisiva- pensamentos do tipo “a desgraça nao tem b-
Os Poemas negros, de Jorge de Lima, são mo adoçante do Brasil) na mesma sociedade.
novamente uma obra fértil nesse estereótipo, mente que Iládio tenha possuído ou
A outra forma, portanto, corresponde aos mÍ Os’estereótipos conotativos secundários
como em “Ancila negra”, por exemplo, ou em possuir sua mulher. A retoma da os es
estereótipos conotativos secundários, Que por sua natureza “isenta”, por sua posição de
pos étnicos primários, que desaparecem ”
“Olá negro”, onde a exclamação que dá título transgridem a conformação e ameaçam a or
ao poema é a consagração de um convívio notação de tipo simpático, como a asso “neutralidade”, exercem seu mecanJ^°
dem estabelecida. Como não é mais possive coerção através de uma violência simbóhca,
fraterno. Raul Bopp também o reproduz em de Iládio ao mau cheiro, reforçam a c
um retrocesso, voltando-se a caracterizar o
ração do preto como animalescamen que não só torna difícü sua identificação a
“Escravo”: negro agressivamente, a solução secundária
Entretanto, não é o narrador quem opm , porque é uma forma complexa de sedimen
criar o distanciamento, passando a encará-o
“Negro chegou em lotes de seres um distanciamento, uma neutralida e, q ção histórica de signos estereotipados como
sob uma ótica imparcial, numa falsa impressão
[sub-humanos dá pela focalização da narrativa. Dessa o , também aumenta sua eficiência, ai
amarrados em coleiras de ferro de neutralidade. as opiniões estereotipadas são repro u tanta dificuldade em admiti-los, pnn
O aspecto principal dos textos produzi os
(...) consenso social, o que atesta, inc us mente em textos canonizados, como é o caso
segundo essa postura é a mera ratificação d°s
Trabalhou de sol a sol nas lavouras “verossimilhança” do texto. ojmnatia dos nossos exemplos. Entretanto, f esta a 1
preconceitos circulantes na esfera socia - O negro Iládio não é tratado ^m simpatia,
(...) ma de estereotipação do momento er
Dessa maneira, confirmam todos os estere ti
Adoçou desse jeito a alma do Brasil”.9 sua virilidade não é exaltada; tam m vivemos, herdeiros que somos de uma
pos sem recair na depreciação do negro e sem
agredido, caracterizado como selvagem, antropofágica, formadora por exce enc
E transparente nesse texto o reconheci­ pressupor uma relação agradável.
estereótipo da sexualidade brutal ain a
mento da contribuição do negro à cultura eu­ Essa postura “isenta” é extremamente e signos híbridos. . _ , petereóti-
dura, a despeito da isenção. , . é or- Prometemos a sistematização d
ropéia, adoçada que foi por este apesar da neficiada pelo caráter metonímico da arte p s Ó Anjo negro, de Nélson R«00?1165’ ° pos de negro na literatura brasileira, e acr
brutalidade do trabalho escravo. O Martim Ce- moderna, contexto estético em que a nova es
ganizado simbolicamente pelo prine pi
rerê, de Cassiano Ricardo, que não se limita ao tereotipia surge, e pela complexidade que atin tamos tê-la cumprida. estc_
o branco é pureza e o negro é peca o. Sinteticamente, observamos subdividem
negro, celebra, entretanto, o encontro feliz giu a focalização da narrativa. da exacerbação do recalque de ser n ’ reótipos denotativos primários s . •
entre as três raças brasileiras, onde coube ao Para darmos um exemplo que ainda nao em étnicos, antropológicos e “ctológicos,
personagem Ismael esconde-se do mun
negro trazer a noite e embalar as crianças, co­ corresponde ao estereótipo de que tratamos, não ser visto chegando, inclusive, a funcionando aqueles apenas c°m . numa
mo fica evidente no poema “Mãe Preta”. mas que é útil para definir o que entendemos própria filha. Virgínia, a esposa branca , destes últimos, que se resumem a ,
Dessa forma, o branco não mais se dege­ por distanciamento ou neutralidade, tomemos relação de excludência: o selvagem e o p
mael, tem nojo do marido - num mo e
nera quando em contato com o negro, mas fica a passagem das Memórias póstumas de Br s bido de relacionamento bem comum em Os estereótipos denotativos secundári ,
doce, terno, menos rude do que era quando Cubas, de Machado de Assis,10 em que o son Rodrigues -, o que vem confirmar qu a
capturou esse mesmo negro, que, no entanto, memorialista encontra seu ex-moleque Pru reguladores do que transgridem os pnm ,
negro, na organização simbólica do tex ,
continua apenas contribuindo com uma parcela dêncio a chicotear outro negro. , podem ser resumidos no estereótipo o m
abjeção por excelência. Anjo negro, por ’
de sua cultura. Segundo a tônica pessimista da ironia igualmente de forma isenta, reproduz hiper droEstereótipos denotativos primários ^P
Todos os estereótipos que até o momento chadiana, a mensagem que o capítulo cont m licamente os estereótipos da inferiorida e
não é absolutamente a de que o negro ó v , ciam o negro; os secundários os recriminai
descrevemos são formas conotadas. Há, po­ Outro exemplo curioso é o do con o
mas a de que a alma humana é egoísta e mes Ambos, porém, o que é característica e ° a
rém, uma outra forma de conotação que não se menor mulher do mundo” de Laços de, am '
quinha. Ora, o fato de Machado de Assis denotação, têm por efeito o aciriamento
deve a uma postura simpática para com o ne­ de Clarice Lispector. Observa-se de ime
gro, mas sim a um distanciamento suposta­ ter-se valido de negros para alegorizar esse relações raciais. . x
que o ser humano dito o menor do mu
conceito tem por objetivo reforçá-lo, uma vez Os estereótipos conotativos pnm ’
mente imparcial. igualmente menor no tamanho (trata
que negros ocupam o termo mínimo da esc a valoram positivamente os denotativos, em
Quando estudamos o estereótipo do negro uma pigméia), no sexo (é mulher) e na Ç
social, seria de supô-los solidários. Toma se para com o negro uma postura de simpatia.
malandro, caractcrizamo-lo como secundário pois é negra e africana. O efeito que a r®ve
um dado do “real” para se construir uma e os conotativos secundários são formas c istan
exatamente porque correspondia à entrada ção da existência da pigméia provoca é devi
goria (a possibilidade de um oprimido oprimir ciadas de tratamento. Os estereótipos conota
desse negro numa “zona de aproximação”, ao fato de reunir tudo o que há de “menor na
outro); consecutivamente ratifica-se, por g® tivos têm por efeito o abrandamento das re a
transgredindo a estcreotipia primária. Os es­ caracterização de um ser humano. Dessa tor-
neralização, esse mesmo dado (a humanida e ções raciais.
tereótipos da conotação até agora apontados ma distanciada, mera percepção do que oco
auto-oprime-se indistintamente) — tudo sem 81
estão num plano primário; ou seja, correspon-
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989
80
A renotação do negro ou em busca estereótipos interculturais, que formam signos
da verdade híbridos.
No caso brasileiro, era inevitável o surgi­
Quando nos propusemos investigar a moti­
mento de estereótipos interculturais, uma vez
vação histórica dos estereótipos de negro, re­
que culturas distintas encontravam-se em ca­
feríamo-nos aos aspectos da sua história que
ráter inaugural. Entretanto, a convivência num
permitiram a criação dos mesmos. A motiva­
mesmo espaço possibilitaria, ao menos teori­
ção histórica dos não-negros, ou seja, as ra­
camente, uma gradativa interpenetração dos
zões que os levaram a estereotipar os negros -
códigos de símbolos e valores e consequente
o que não é obviamente atitude deliberada,
compreensão das diferentes “linguagens”, a
mas embutida no complexo processo trans-
exemplo do que houve entre as diversas cul­
formacional da sociedade — já foram sugeridas
turas africanas aqui desembarcadas. Tal fenô­
acima e apontadas em trabalhos anteriores ao
meno, devidamente auxiliado por fatores so­
nosso.
ciais, levaria à extinção dos estereótipos de
O compromisso de restituir ao Brasil a
negro.
história negra, a tarefa de reescrevê-la tendo
Observamos, porém, ao menos no que tan­
por base uma fonte híbrida como a nossa —
ge aos negros, que não só foram criados este­
produto de uma interpretação extra-semiótica
reótipos sociológicos, que se desenvolveram
de um significante — é pelo menos muito com­
ao longo da história, como também estereóti­
plexa, quando não impossível; daí estarmos
pos antropológicos foram criados e mantidos
mais para hipóteses do que para teses.
pelos processos que já identificamos; ou seja,
Um estereótipo, entretanto, jamais é uma
não houve a formação de uma sociedade onde
invenção, nunca é totalmente arbitrário. Vale
raça não fosse categoria antropológica.
lembrar que o estereótipo enquanto signo hí­ Poderíamos ser levados a pensar que os
brido, como o conceituamos, conserva intacto estereótipos sociológicos são intraculturais,
° significante original, o que equivale a dizer que apenas caracterizam o negro em virtude
que os signifícantes negros são históricos, de sua posição social, criando o tipo social do
possuem significados que até podemos desco­ negro, como há o do padre ou o da comadre.
nhecer, mas que de fato existem. Caminha não Entretanto, a permanência dos estereótipos
inventou a nudez das índias, apenas a inter­
antropológicos (unidos aos étnicos), que, como
pretou fora de seu contexto cultural; o mesmo ficou dito, são uma espécie de suporte dos so­
ocorreu com os autores que representaram o ciológicos, revela a natureza intercultural da
negro - isso significa que a formulação de hi­ estereotipia negra na literatura brasileira.
póteses não é inválida e deve ser tentada, des­ Podemos, portanto, chegar a duas conclu­
de que conheçamos os mecanismos de este- sões que irão nortear nossas hipóteses de lei­
reotipação, tarefa que imaginamos ter cumpri­ tura dos estereótipos: a primeira é que, se o
do. negro foi estereotipado sociologicamente, e se
Antes, porém, é preciso distinguir dois pro­ esse tipo de estereotipia visava sua coerção
cessos de formação de estereótipos: o primeiro para manter uma hierarquia baseada no crité­
é o que se dá num mesmo contexto cultural e rio racial, esse negro esteve em todos os mo­
caracteriza apenas tipos sociais desse contexto, mentos tentando destruir essa hierarquia. A
como observamos em Gil Vicente ou Manuel permanência dos estereótipos implica uma re­
Antônio de Almeida, e que não se constitui sistência etnossociológica.
por hibridismo de signos, mas pelo que conhe­ A segunda conclusão, semelhante à pri­
cemos comumente por tipificação — são este­ meira e mais importante, é que o negro mante­
reótipos intraculturais. O segundo diz respeito ve, pelo menos em grau considerável, uma
aos estereótipos que uma dada cultura cria em identidade cultural, uma vez que os estereóti­
relação à outra — como fez Caminha. São os pos antropológicos também foram conserva-
82 Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989
dos - identidade essa que também é uma for­ biliza a identidade cultural — para uma poste­
ma de resistência. rior agressão. Adotamos, inclusive, o termo
Buscar a verdade histórica através dos es­ “quilombola” por terem sido os quilombos
tereótipos de negro na literatura é, em suma, formas de resistência política que passavam
buscar suas formas de resistência, que se ma­ por esses dois estágios, como podemos verifi­
nifestam sociologicamente, mas cujas origens car no exemplo clássico de Palmares. Entre­
são culturais. tanto, a ação quilombola, como a estamos de­
Os estereótipos antropológicos de imediato finindo, não se dá exclusivamente sob a forma
chamam a atenção pela sua aparente inutilida­ de fuga e constituição de quilombo; qualquer
de. Com efeito, se a sociedade hierarquizada espécie de ação agressiva que tenha por base
segundo critérios raciais possuía um mecanis­ uma afirmação de identidade é ação quilom­
mo bem estruturado de estereotipação socio­ bola, tornando-se, portanto, uma ameaça à
lógica, incluindo aqui as formas secundárias, hierarquia social.
qual a necessidade de se manterem estereóti­ Vimos, porém, que os estereótipos socioló­
pos antropológicos? Se já se tinham caracteres gicos são de dois tipos básicos; portanto, na
que inspiravam terror, suspeita e piedade, por mesma medida em que o estereótipo do selva­
que a insistência em inspirar desprezo pelo gem contrapõe-se ao do pai-joão, a estratégia
éthos negro quando isolado em seu próprio quilombola possui uma correspondente que a
ambiente? Em suma, por que os estereótipos nega - e que só pode ser a atitude passiva,
antropológicos foram fortes alicerces para a submissa, a rejeição da atuação política. Ora,
construção dos sociológicos? tal atitude é similar ao estereótipo do pai-joão,
A única hipótese que nos parece plausível é o que nos poderia levar a concluir pela veraci­
a de que o negro antropologicamente organi­ dade histórica do mesmo. Há, entretanto, uma
zado, com um perfil cultural nítido, criava um diferença fundamental.
potencial efetivo de ação sociológica, ou seja, Enquanto o negro pai-joão é submisso por­
a identidade negra era um mecanismo de atua­ que resignado e grato à proteção senhorial,
ção política. Podemos ainda suspeitar, pelo o renotado que nega a estratégia quilombola é
fato de tais estereótipos serem justificados o negro traidor, o capitão-do-mato - não re­
com o conceito de inferioridade da África na signado, mas oportunista, acreditando ser mais
escala civilizacional, que essa identidade negra fácil unir-se ao forte que articular-se politi­
embasava-se numa filosofia radicalista, isto é, camente. São esses, evidentemente, os negros
numa concepção tradicionalista de mundo, na que têm seu relacionamento interracial con­
manutenção das “raízes” (daí o termo) de sua ceituado positivamente através do estereótipo
civilização. E de fato, grande parte dos este­ sociológico do pai-joão.
reótipos antropológicos decorre de práticas É evidente que não incluímos a atitude do
culturais de manifesta origem africana, como negro traidor como estratégia social de resis­
vimos em A carne, de Júlio Ribeiro, ou no Ca- tência, até porque a cooptação é uma forma
naã, de Graça Aranha, para ficarmos com os individual de enfrentar os problemas sociais da
exemplos dados. discriminação. Mesmo assim, poderíamos ser
A atuação política primária sedimentada levados a superestimar a cooptação como ati­
sobre essa identidade negra, que irá corres­ tude histórica, já que representa o oposto da
ponder ao estereótipo sociológico do negro atitude quilombola, o que seria um grave erro.
selvagem, é o que podemos conceituar como E as razões são simples: em primeiro lugar, o
estratégia quilombola. Essa estratégia consiste, estereótipo do pai-joão é quantitativamente
num primeiro estágio, em o negro isolar-se da inferior ao do selvagem já no período românti­
sociedade instituída — motivo pelo qual se via­ co - fato significativo, uma vez que o Roman-

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 83


tismo é essencialmente idealizador do objeto forma secundária (ou alternativa) é que se lan­
literário, notadamente no que respeita à temá­ ça mão da estratégia da infiltração (e não é
tica. casual que a esta correspondem estereótipos
Ora, nessa perspectiva, o pai-joão deveria secundários). Daí caracterizarmos esse malan­
ter a preferência; se não a teve, é de se con­ dro como radical, pois sua configuração ba-
cluir que a atitude negra que corresponde ao seia-se no conceito de identidade negra, por
estereótipo do selvagem era mais marcante. sua vez fundada numa filosofia tradicionalista.
Isso fica ainda mais evidente no advento do Não temos, portanto, negros safados e indivi­
Naturalismo, quando o pai-joão praticamente dualistas, mas uma forma culturalmente arti­
desaparece. Conhecendo a poética naturalista, culada de atuação social. Malandros são os que
que preconiza uma fidelidade científica ao não puderam ser quilombolas; mas ambos são,
real, não se tem dúvida quanto à primazia da antes de tudo, negros.
estratégia quilombola - forma coletiva de re­ Nos estereótipos conotativos primários po­
sistência - sobre a cooptação, ato individual e demos notar dois aspectos que ratificam nos­
sociologicamente estéril. sas suspeitas: o primeiro é o surgimento do
O outro fato que ratifica a conclusão acima estereótipo do negro exótico, unicamente pos­
é o de que o negro traidor não se caracteriza sível porque o escritor estava diante de uma
unicamente por uma atitude social. Cultural­ ordem cultural que não conhecia — o que con­
mente também é “traidor”, pois abandona suas firma o caráter intercultural dos estereótipos e
tradições, deixa de seguir a orientação radica- a existência da identidade negra enquanto or­
lista, incorporando os códigos da cultura euro­ ganização antropológica. O segundo aspecto é
péia. Lembremos que um dos estereótipos re­ a manutenção de dois estereótipos que corres­
guladores das relações interraciais afirmava pondem às estratégias por nós sugeridas: o do
que o negro “evoluía” quando em contato com negro sensual e o do esperto. Com efeito, se o
o branco, ou seja, o ato da cooptação implica­ negro sensual é uma diluição conotativa do
va rejeição dos valores negros e absorção dos estereótipo do selvagem, sua renotação man­
europeus. tém-se idêntica à da sua matriz, ou seja, cor­
O estereótipo denotativo secundário do responde à estratégia quilombola. Isso fica um
malandro também oculta uma estratégia histó­ tanto mais claro quando percebemos que a es-
rica alternativa do negro. Se esse negro não tereotipação do negro como animalescamente
era quilombola, nem capitão-do-mato, seu viril é uma metáfora da ameaça que representa
mecanismo de atuação social não se dava nem à hierarquia social.
pela cooptação plena, nem pela agressão O estereótipo conotativo do esperto é ainda
frontal; portanto, deveria agir nos. interstícios um estereótipo de malandro; não mais safado,
do sistema, utilizar as próprias leis que regiam porém um tipo muito simpático que tira pro­
a hierarquia para destruí-la - tal atitude pode veito das adversidades. Sua renotação, por­
ser chamada de estratégia da infiltração, e ao tanto, vai corresponder ao que caracterizamos
estereótipo do malandro, caracterizado como como malandro radical, cuja atuação social se
safado, podemos contrapor um outro tipo de dá através da estratégia da infiltração.
malandro - o malandro radical. A sutileza po­ Entretanto, o aspecto mais importante dos
de parecer desprezível mas é importantíssima. estereótipos conotativos é o fato de represen­
Com efeito, reconstituindo o mecanismo de tarem uma atitude simpática em relação ao ne­
atuação política do negro, observamos que, em gro, veiculando a idéia de que este é feliz. Se,
primeiro plano, temos a solidificação de uma como ficou dito, nenhum estereótipo é total­
identidade cultural, a que se segue uma ação mente arbitrário, há algum aspecto da cultura
social segundo a estratégia quilombola. Como negra que possibilita tal interpretação. Esse
84 Estudos Afro-Asüíticos n- 16, 1989
aspecto é o que chamamos poder de metamor­ mais está dissociada da ação política. O este­
fose. reótipo conotativo do negro feliz descaracteri­
Como temos frisado, identidade cultural e zou, folclorizando, um dado histórico-existen­
estratégias sociais são formas de resistência cial do mecanismo de resistência.
negra a formas correspondentes de coerção, Os estereótipos conotativos secundários
que, como ficou claro, têm um alto grau de não criam, em verdade, nenhuma forma nova,
violência. Suportar a opressão e criar meios de mas se caracterizam por reproduzirem de ma­
combatê-la, isso os negros têm feito através neira aparentemente isenta os estereótipos
do mecanismo por nós esboçado. Contudo, anteriormente fixados. Isso significa que a es-
esse mecanismo não elimina a violência, ou, tereotipação conotativa secundária age sobre
não sendo possível eliminá-la, nem ao menos um mecanismo já estabelecido com intuito de
reduz seu impacto psicológico. manter a força de coerção sobre o negro. A
O poder de metamorfose, característica única hipótese de renotação que nos parece
plausível é a de que, uma vez montado o me­
definidora da cultura negro-brasileira, é o me­
canismo de opressão, temos também constituí­
canismo auxiliar utilizado na absorção e redu­
do o de resistência, e o distanciamento típico
ção do impacto psicológico decorrente das cir­
da conotação secundária revela a consolidação
cunstâncias históricas, e fundamenta-se num
definitiva do mecanismo de resistência e de
princípio filosófico africano conhecido como
seu potencial de desestabilização da hierarquia.
vitalismo. Sinteticamente, podemos destacar
como um dos aspectos fulcrais do vitalismo Temos, portanto, formulada a nossa hipó­
a idéia de que um indivíduo está tanto mais tese de leitura dos estereótipos de negro da li­
qualificado espiritualmente, tanto mais apto a teratura brasileira. Na construção de uma
enfrentar a vida quanto mais harmônica for identidade negra, fundada numa filosofia radi-
sua relação com a natureza. Assim, viver bem, calista, de que resultam os estereótipos deno-
alegre e intensamente é postura indispensável tativos primários de tipo antropológico, firma-
para a plenitude de integração na própria vida, se a base para o estabelecimento das estraté­
para a própria realização existencial. gias sociais: a quilombola - que consiste numa
agressão frontal -, de que resultam os este­
Toda sociedade humana, de maneira mais
reótipos denotativos primários de tipo socioló­
ou menos homogênea, estabelece um modelo
gico (lembrando que há um segundo tipo res­
basilar de comportamento, espécie de perso­ peitante à cooptação, portanto, à não-resistên­
nalidade ideal, que o indivíduo deve ao menos cia); e a da infiltração, de que resultam os es­
“dramatizar”. Para um oriental, por exemplo,
tereótipos denotativos secundários.
pode ser muito importante demonstrar desin­
teresse pelas coisas mundanas; para um africa­ O poder de metamorfose, que dá origem à
no, é forçoso revelar a posse da “força vital”, conotação primária do negro, vem-se unir a
esse mecanismo para garantir o grau mínimo
que implica o comportamento “efusivo”.
de equilíbrio psicológico indispensável à re­
Dessa forma, o negro brasileiro viu-se im­
sistência, com o qual, mesmo, se afirma e
pelido a transformar a realidade adversa, ao passa a ameaçar efetivamente a hierarquia so­
menos simbolicamente, pois era necessário um cial, de que decorre a conotação secundária.
“bem-estar” existencial antes de sua investida
política, enquanto não revertesse a situação Esperamos, assim, ter renotado o negro. Só
o estudo do seu próprio discurso nos permitirá
social. A “felicidade” do negro revela seu po­
der de metamorfose - poder simbólico de confirmar as hipóteses aqui formuladas. A se­
transformar o real -, sua capacidade de absor­ mente ao menos está lançada. Ainda há, con­
ver a pressão psicológica, que, entretanto, ja- tudo, uma imensa história a ser escrita.
85
Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989
Por uma literatura antropogênica o estereótipo do negro imbecil que passou a
negro feliz e que entendemos como criador de
O problema da estereotipação, em relação a um mecanismo de defesa psicológica; o antigo
qualquer grupo e no interior de qualquer so­ estereótipo do negro selvagem pôde ser lido
ciedade, envolve um grande número de fatores como negro sensual mas também como arti­
de ordem diversa, o que torna todo estereótipo culado socialmente; o malandro foi de início
um signo altamente complexo. Quando con­ safado, depois esperto, até o renotarmos como
ceituamos os estereótipos de negro como sig­ radical.
nos híbridos, cujo significado é europeu e ape­
A grande diferença entre essas leituras de
nas o significante se mantém, estávamos
um mesmo fato, ou seja, de um mesmo signifi­
criando apenas um modelo teórico; não que
cante, é que as primeiras são híbridas, antro -
seja falso, mas não tão simples. Sua única
pofágicas e estereotipadas; as últimas, lançadas
vantagem, que justifica nossa adoção, é o fato
por nós como hipóteses, tentam reconstituir a
de que a questão colocada nesses termos eluci­
verdade histórica, ou melhor, tentam ler os
da a essência do problema que lhe dá origem.
significados originais. Nesse sentido, não mais
Como vimos, o que faz um estereótipo ser se trata de estereótipos; e não derivam de um
um estereótipo de negro é a presença dé um processo antropofágico, mas antropogênico.
significante negro, ao qual atribui-se um sig­ A literatura brasileira possui, igualmente,
nificado não-negro. Vimos também que esse tentativas antropogênicas em relação ao negro,
processo de formação de signos literários formuladas por autores não-negros, o que já
corresponde ao conceito de antropofagia indica uma percepção do problema dos este­
consubstanciado na poética modernista (apesar reótipos. Alguns poemas de Os escravos, de
de ter sido o inverso da formulação teórica) e Castro Alves, e primordialmente A cachoeira
que tal não fora criação do Modernismo, mas de Paulo Afonso, revertem em grau considerá­
percorrera e singularizara a própria história vel a representação comum do negro; O feiti­
literária do Brasil. ceiro, de Xavier Marques, tenta realizar essa
mesma renotação. Exemplos mais recentes são
Ora, os estereótipos de negro, sejam deno-
O moleque Ricardo, de José Lins do Rego; A
tativos ou conotativos, decorrem de uma inca­
casa da água, de Antônio Olinto; Os tambores
pacidade de decodificação da cultura e da
de São Luís, de Josué Montello; e Viva o povo
história social do negro. Há, portanto, um di­
brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro — todos in­
lema semântico no Brasil: não se conhece o
vestigam os significados históricos, todos pro­
signo negro, ignora-se sua complexidade, des-
curam a integridade do signo negro. Nem
constrói-se seu significado — daí surgirem os
sempre são perfeitos; mas representam, no mí­
estereótipos e a literatura antropofágica.
nimo, uma tentativa importante.
Nossa proposta de renotação baseou-se Somente o conhecimento da história e dos
também nos significantes. Procuramos encon­ valores civilizacionais negro-africanos permi­
trar no mesmo fato que originava um estereó­ tirá ao Brasil solucionar seu dilema semântico.
tipo um outro significado possível. Se obser­ Toda cultura possui uma poética que a inscre­
varmos com atenção, podemos perceber que a ve no tempo e no espaço. A cultura brasileira
mudança é apenas de valor. Uma dada atitude necessita de uma poética que escreva a nossa
negra pôde ser interpretada num certo mo­ história; em outras palavras, precisamos for­
mento histórico como inferioridade civiliza- mar uma identidade nacional, estabelecer um
cional, posteriormente como excentricidade e espaço antropológico onde cada significante
depois como configuração de uma forte iden­ tenha um único significado, onde a verdade de
tidade cultural. Na mesma progressão, tivemos um seja a história de todos.

86 Estudos Afro-Asiâticos n- 16,1989


NOTAS

1 Caminha, P V. (1977: 93)

2 Bastide (1983: 122).

3 Aranha (1968: 136-137)

4 Matos (1981: 45)

5 Brookshaw (1983: 9-10).

6 Lima (1980: 180)

7 Andrade, M. (s d : 78)

8 Santos(s d : 201)

9 Bopp (1984: 119-120)

10 Assis(1986: v. 1.581-582)

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88 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


SUMMARY

Negro Stereotypes in Brazilian Literature: The System


and its Historical Motivations

An historical observation of Brazilian literature action in the case of Blacks, and even more so of Mu-
shows that one of its most long-standing traits has be­ lattoes, who were moving socially closer to Whites;
en the ability to create hybrid symbols, by undermi­ the resulting stereotypes being behing the ideas that
ning original amerindic connotations and by combi­ Blacks are morally inferior, rude, vain, dishonest,
ning native cultural models with European interpre­ criminal, disloyal, and so on.
tations; the results being a representation of native With the stablization of the new economic system
culture through European cultural perspectives. and the continuing structural use of racial criteria as a
By verifying that these hybrid symbols correspond basis for social stratification, the literary representa­
exactly to the commonly perpetuated stereotypes of tion of Blacks underwent a change. However, instead
the Indian in Brazilian society, the article hypothezes of reversing stereotyped characterizations, it mearly
that Black stereotypes have a correspondingly similar modified them into new hybrid symbols with a more
structure, based on their own specific historical gene­ positive connotation.
This connotation promoted sympathy for Blacks,
sis. changing their image from stupid to pure, from pri­
Black stereotypes in Brazilian literature first ap­
peared in the middle of the 19th century, thus coensi- mitive to exotic, from amoral to clever. Serving the
ding with the decline of slavery and the establishment historical need to diminish racial conflicts, this new
of salaried labor, in which Blacks enjoyed theoretical connotation nevertheless contained elements to deal
equality with Whites. The literary characterization of with Blacks who crossed the line of “niceness”. These
Blacks was put into operation in this period, or better, were once again classified according to previous ste­
it was during this time that a hybrid of stereotyped reotypes, but from a distance, as if the writer were

black symbols was formed. writing from a neutral perspective.


These primary and secondary mecanisms of clas­
In accordance to historical necesity, these ste­
sification and connotation, systematically cover all
reotyped characterizations served to aggravate racial
relations and manifested themselves primarily on the stereotypes of Blacks in Brazilian literature.
Keeping in mind that stereotypes are not arbitrary
three levels: ethnic, anthropological and sociological.
inventions, which would counteract their efficiency,
Ethnic stereotypes produced a negative valuing of
we must search for the historical origins of diminuitie
the black aesthetic and were responsible for the no­
representations of Blacks. It is these hidden meanings
tions that Blacks are ugly, smelly and use foul langua­
ge. Anthropologists, concerned with observing Blacks which are the true motivations for racial stereotyping.
Beyond the stereotypes, Blacks are revealed as a
outside of their own environment, characterized the
black “ethnos” as inferior when compared with the group with a strong cultural identity founded on a tra­
ditionalist philosophy, with an anthropological orga-
european, thus perpetuating the concept of African
Beyond the stereotypes, Blacks are revealed as a
civilization as primitive. Sociologists, establishing
group with a strong cultural identity founded on a tra­
basic models of race relations, classified Blacks either
ditionalist philosophy, with an anthropological orga­
as savages when not submissive, or as imbecils when
nization for potentially strong political action, wor­
resigned to their lot. king toward the realization of their own social strate­
Parallel to these depreciative stereotypes, a second
gies and forms of representation in order to bring
characterization was developed to punish Blacks who
about a symbolic turnover of their adverse reality.
did not fit into the proposed scheme. It was put into

RÉSUMÉ

Les Stéréotypes Concernant les Noirs dans la Littérature Brésilienne:


Leur Système et leurs Raisons Historiques

dès ses débuts - est sa capacité de créer des signes hy­


Quand on observe le développment historique de
la littérature brésilienne, on constate que l’une de ses brides par la destruction des signifiés amérindiens et
par l’union des signifiants qui les modelaient à l’ori-
caractéristiques les plus notables — elle se manifeste
89
Estudos Afro-Asiâticos n- 16,1989
gine avec des signifiés européens, fruits de l’interpré­ qui se rapprochent socialement des blancs. Les sté­
tation qui a été faite des cultures autochtones à partir réotypes qui en découlent sont responsables de con­
de modèles culturels originaires d’Europe. ceptions selon lesquelles le noir est moralement infé­
Constant que ces signes hybrides correspondent rieur, osé, vaniteux, faux, valeur, traître, etc.
exactement aux stéréotypes sur l’indien qui se perpé­ Quand le nouveau système économique se stabilise
tuent dans le sens commun de la société brésilienne, et que la société conserve toutefois des critères raciaux
l’auteur de cet article émet une hypothèse initiale: les pour définir une hiérarchie de ses membres, la repré­
stéréotypes concernant le noir ont la même structure, sentation littéraire du noir se modifie. Mais au lieu
bien que celle-ci soit évidemment conditionnés par le d’abolir les stéréotypes dénotatifs, elle les transforme
moment historique spécifique où elle a été engendrée. seulement en signifiants qui, alliés à un signifié posi­
Les stéréotypes concernant le noir apparaissant en tif, formeront de nouveaux signes hybrides, simples
littérature à partir de la deuxième moitié du XIXe siè­ connotations des premiers.
cle. Ils coincident donc avec le processus d’extinction La connotation provoque un sentiment de sympa­
du travail esclave et l’augmentation du salariat qui thie envers le noir: de “suffisant” il devient “pur”, de
plaçait théoriquement les noirs sur un pied d’égalité “primitif’ il se change en “exotique”, il n’est plus
avec les blancs. C’est à cette époque que s’effectue la “amoral”, il est “malin”. Répondant à une nécessité
dénotation littéraire, c’est à dire, la formation hybride historique, celle d’améniser les relations raciales, la
de signes stéréotypés concernant le noir. connotation possède aussi un mécanisme secondaire
Conformément à ce qu’imposait la nécessité his­ pour les noirs qui transgressent la classification
torique, les stéréotypes dénotatifs eurent pour effet “sympathique”. Ces stéréotypes reprennent cette
d’aggraver les relations raciales. Ils se situaient essen­ connotation mais avec une certaine distance, comme
tiellement à trois niveaux: ethnique, anthropologique si l’écrivain ne s’impliquait pas dans cette représenta­
et sociologique. tion soi-disant neutre.
La dénotation et la connotation avec leurs méca­
Les stéréotypes ethniques confèrent au noir une
nismes primaire et secondaire incluent systématique­
valeur négative en se basant sur des impressions sen­
sitives: c’est ainsi que se développent des conceptions ment la totalité des stéréotypes concernant le noir fi­
xés par la littérature brésilienne.
selon lesquelles de noir est laid, sent mauvais ou a un
largage grossier. Les stéréotypes anthropologiques L’auteur s’est donc mis à la recherche des signes
dé-construits. Il s’est pour cela basé sur le principe
cherchent à observer le noir isolé dans son propre es­
suivant: un stéréotype ne peut, sous peine de perdre
pace et caractérisent f ethos noir comme étant infé­
son efficacité, être arbitraire et sur une évidence: les
rieur à l’européen. De là vient la conception selon la­
signifiants noirs sont historiques. Ce sont ces signifiés
quelle la civilisation africaine est primitive. Les sté­
perdus qui constituent la véritable raison d’être des
réotypes sociologiques, finalement, établissent des
stéréotypes.
modèles de base concernant les relations raciales et
On peut alors découvrir que derrière les stéréoty­
classent les noirs dans la catégorie des sauvages quand
ils sont rebelles et dans celle des débiles quand ils sont pes se trouve le fait que les noirs avaient une forte
soumis. identité culturelle enracinée dans une philosophie tra­
ditionnelle. Cette organisation anthropologique con­
Parallèlement à ces stéréotypes dépréciatifs, la dé­ tenait une action politique en potentiel et celle-ci
notation a développé un mécanisme secondaire visant permettait la mise en pratique de leurs stratégies so­
à punir le noir qui ne peut être classé dans les schémas ciales, de leurs propres représentations du monde et
prévus. C’est le cas des noirs et, surtout, des mulâtres d’une reversion symbolique de la réalité adverse.

90 Estudos Afro-Asidticos rP 16, 1989


Introdução
A PIONEIRA
MARANHENSE O tema da Abolição tem sido crescente­
mente negado pelos escritores negros da atua­
MARIA FIRMINA lidade, que o associam à história dos vence­
dores, à história oficial veiculada nas escolas,
DOS REIS* que tem como símbolo a figura paternalista da
Princesa Isabel outorgando a “liberdade” aos
escravos com pena dourada. Tal postura leva a
que se esqueça o aspecto de pressão social
Luiza Lobo**
exercido pelas rebeliões de escravos, o fenô­
meno do quilombismo e o papel de abolicio­
nistas como Joaquim Nabuco, José do Patro­
cínio, Luiz Gama, Joaquim Serra, Castro Al­
ves e outros.

Até há bem pouco, a bibliografia existente


sobre o negro restringia-se quase exclusiva­
mente a obras de história e sociologia. Além
do estudo pioneiro de Roger Bastide, apenas
os brasilianistas voltavam-se para a literatura
negra: Raymond Sayers, Gregory Rabassa e,
mais recentemente, David Brookshaw e David
Haberly. Entre os estudiosos brasileiros desta-
cam-se Sérgio Milliet, Domínio Proença Filho,
Zilá Bernd e, ultimamente, as pesquisadoras
Benedita Gouveia Damasceno e Heloísa Toller
Gomes. O negro no Modernismo brasileiro, da
primeira, e O negro e o Romantismo brasileiro,
da segunda, são obras que buscam indagar das
mudanças advindas com a Abolição a partir de
perspectiva cultural, ideológica e literária.

Um dos aspectos primordiais que a meu ver


define a literatura negra, muito embora não
seja um elemento norteador, em geral, dos es­
tudos sobre o assunto, é o fato de a literatura
negra do Brasil - ou afro-brasileira - ter sur­
gido quando o negro passa de objeto a sujeito
dessa literatura e cria a sua própria história;
* Trabalho apresentado, em versão resumida, quando o negro, visto geralmente de forma
na IV Jornada de Estudos Americanos da estereotipada, deixa de ser tema para autores
Associação Brasileira de Estudos Americanos, brancos para criar a sua própria escritura, no
25-27 de maio de 1988, Mariana (MG). sentido de Derrida: a sua própria visão de
** Doutora em Literatura Comparada pela mundo. Só pode ser considerada literatura ne­
Universidade de Carolina do Sul, EUA, e gra, portanto, a escrita de africanos e seus
descendentes que assumem ideologicamente
Professora-Adjunta da Faculdade de Letras da
a identidade de negros.
UFRJ.
Estudos Ajro-Asiâticos n- 16,1989 91
O critério acima apontado pode parecer Em 1859 publicava-se, em São Luís, sob o
extrínseco e anterior ao próprio texto, por pseudônimo de “Uma Maranhense”, o roman­
partir de premissas políticas e não literárias, ce Úrsula3. A crítica veio a estabelecê-lo co­
isto é, independentes de uma avaliação da re­ mo o primeiro romance escrito por mulher e o
presentação textual, da enunciação ou mesmo primeiro romance abolicionista publicado no
da qualidade estética do texto em si. Contudo, Brasil. Sua autora, Maria Firmina dos Reis,
a verdade é que, quando se trata de uma lite­ nasceu a 11 de outubro de 1825, em São Luís
ratura emergente - e incluo aí a literatura fe­ do Maranhão, e faleceu a 11 de novembro de
minina, que tem muito em comum com a pro­ 1917, já cega e pobre, em Guimarães, municí­
dução dos negros -, o que se privilegia é a sua pio dè Viamão. Mulata e bastarda - foi regis­
oportunidade e não a sua qualidade. O critério trada por João Pedro Esteves -, foi a primeira
estético, portanto, tem de ser posterior à pró­ professora concursada do Maranhão. A autora
pria afirmação da literatura negra - um fenô­ era parente do escritor Sotero dos Reis por
meno que se tem mostrado efetivo e numeri­ parte da mãe, Leonor Felipe dos Reis. Muda­
camente simbólico a partir da década de 70, ra-se para Guimarães aos cinco anos de idade,
mas cujas bases na literatura brasileira datam e ai viveu com a avó, a mãe e suas “duas ami­
do século XVIII. gas”, a prima Balduína e a irmã Amália Au­
Domingos Caldas Barbosa, mulato baiano, gusta dos Reis.
obteve grande êxito em Lisboa com poemas de Professora desde 1847, após vencer con­
espírito arcádico, mas popularizou-se pelas curso disputando com duas outras candidatas,
modinhas e cantigas reunidas em 1798 no vo­ lecionou em Guimarães até aposentar-se, em
lume Viola de Loreno. Segundo Josué Mon-
1881. Mesmo então, continuou a lecionar no
tello, Trajano Galvão foi o primeiro autor (era município de Maçarico, a poucos quilômetros
branco) a mencionar o negro como persona­ dali, para filhos de lavradores e fazendeiros.4
gem, nos poemas “A Crioula” (1853) e “O No dia de sua posse — segundo depoimento de
Calhambola” (1854), “este último bem mais uma filha de criação, Nhazinha Goulart -,
crítico que o primeiro”.1 Ambos foram publi­ apesar de a mãe e os próprios escravos da tia
cados no livro Sertanejas apenas em 1898. Henriqueta, de São Luís, insistirem para ela ir
Contudo, foi sem dúvida em “Bodarradas” —
à cerimônia de palanquim, Maria Firmina
nome pelo qual se popularizou o poema afirmou: “Negro não é animal para se andar
“Quem sou eu?”, de Luiz Gama, publicado em montado nele.”5
Primeiras trovas burlescas de Getulino (1859)
A biografia de Maria Firmina é aos poucos
— que pela primeira vez um autor assumiu ex­
retirada da obscuridade pelos pesquisadores
plicitamente a identidade de sua raça. Empre­
José Nascimento Morais Filho e Horácio de
gando os mesmos processos retóricos de Gre-
Almeida. Em 1962, este comprou um lote de
gório de Matos, o poeta baiano acentua, nesse
livros usados, entre os quais estava Úrsula.
poema, os aspectos negativos e estereotipados
Depois de garimpar a identidade do pseudôni­
da sua raça, numa experiência de choque. Mas
mo Uma Maranhense” no Dicionário por
aqui, ideologicamente, a identificação do autor
Estados da Federação, de Otávio Torres, e de
com essas características negativas provoca
coletar mais dados sobre a autora no Dicioná­
uma reversão de expectativa, transformando-
rio biográfico brasileiro, de Sacramento Blake,
as em positivas:
conforme nos informa no prefácio à edição
“Se negro sou, ou sou bode, fac-similar do romance que preparou em
pouco importa. O que isto pode? 1975® e nos Anais do Cenáculo, Horácio de
Bodes há de toda a casta, Almeida concluiu que Maria Firmina foi a
pois que a espécie é muito vasta. .. primeira romancista de sexo feminino do Bra­
Há cinzentos, há rajados (. . .)”2 sil, uma vez que Nísia Floresta publicara ape-

92 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


nas tradução, em 1859, e obra ensaística, em Penetrar na literatura maranhense do sé­
1860, e que Teresa Margarida da Silva e Orta, culo XIX é a um só tempo um desafio e um
autora de Aventuras de Diófanes (1752), ape­ mergulho gratificante num dos momentos mais
sar de nascida no Brasil, era filha de pais por­ ricos da história da literatura brasileira, que
tugueses e partiu com eles para Portugal aos tem um dos seus eixos polarizadores na cidade
cinco anos sem aqui mais retornar. de São Luís.

A terceira edição do romance, publicada


Maria Firmina e o tema do
por ocasião do Centenário da Abolição pelo
Instituto Nacional do Livro e a Editora Pre­
escravo negro
sença, lastimavelmente não apresenta a última
Maria Firmina dos Reis (1825-1917) é pra­
linha do capítulo IX (p. 79), exatamente como
ticamente contemporânea de Sousândrade,
na edição fac-similar de 1975. O raríssimo
pseudônimo de Joaquim de Sousa Andrade
exemplar de 1859 encontrado por Horácio de
(1832-1902), mas demonstra uma postura
Almeida - livro já considerado raridade bi­
muito diversa com relação ao escravo, tanto
bliográfica por Jerônimos de Viveiros na críti­
em sua vida quanto em sua obra. Sousândrade
ca “Quadros da vida maranhense”, para o Jor­
vendeu seus escravos para viajar a Paris e ou­
nal do Dia, em 1963 - foi pelo mesmo doado
tras cidades da Europa e da África, em 1856,
ao governador do Maranhão Nunes Freire, por
sem nunca tê-los defendido em sua obra poéti­
ocasião dos festejos do sesquicentenário do
nascimento da autora. A viúva do governador ca: O guesa e Harpas selvagens trazem apenas
referências veladas a Dula, Leda e Dulaleda —
não sabe onde o livro se encontra atualmente.
escravas com quem teve relações e filhos ile­
gítimos.9 Maria Firmina, por sua vez, não só
O historiador José Nascimento Morais Fi­
defendeu o escravo em diversas ocasiões de
lho descobriu a existência de Maria Firmina
sua vida como também o fez na sua obra poé­
dos Reis nos porões da Biblioteca Pública Be­
tica, no conto “A escrava” e em Úrsula.
nedito Leite, em São Luís, ao compulsar ve­
O conto “A escrava” é posterior a As víti­
lhos jornais, em 1973. Após profunda pesquisa
de campo, inclusive junto a dois dentre os vá­ mas algozes (1869), de Joaquim Manoel de
rios filhos de criação da escritora - Leude Macedo, A escrava Isaura (1875), de Bernar­
do Guimarães, e O mulato (1881), de Aluísio
Guimarães e Nhazinha Goulart —, decidiu pu­
blicar as obras da maranhense, reunidas em Azevedo; foi publicado poucos meses antes da
Maria Firmina - fragmentos de uma vida.7 Abolição, em novembro de 1887.10 Nele a
autora emprega o mesmo recurso narrativo
Essa obra contém diversos hinos, um bum­ utilizado em Úrsula e “Gupeva”: a narrativa
ba-meu-boi, uma música - Firmina era tam­ dentro da narrativa. Segundo Barthes, na aná­
bém folclorista e compositora - para um poe­ lise da novela Sarrasine, esse recurso visa
ma inédito de Gonçalves Dias (poema que, se­ atingir maior grau de verossimilhança psicoló­
gundo a lenda, chega às costas do Maranhão gica, criando um elo entre o narrador da se­
numa garrafa), charadas, enigmas, inúmeros gunda estória e o leitor da narrativa.
poemas publicados em jornais do Maranhão, O conto tem início num salão onde se dis­
os contos “Gupeva” (indianista) e “A escrava” cute sobre o “elemento servil”. Uma senhora
e, o que é de fundamental importância para a assumidamente abolicionista passa a relatar
história literária, provavelmente o primeiro como chegou a defender dois escravos, mãe e
diário escrito por mulher já publicado no Bra­ filho, contra o seu senhor:
sil, intitulado “Álbum”. Finalmente, em 1976,
Nascimento Morais edita pela segunda vez o “- Admira-me, disse uma senhora de sen­
livro de poemas Cantos à beira-marJ timentos sinceramente abolicionistas: faz-

Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 93


me até pasmar como se possa sentir e ex­ para compar a carta de alforria de Gabriel. No
pressar sentimentos escravocratas no pre­ entanto, analfabeto, fora enganado pelo se­
sente século, no século dezenove! A moral nhor. Tantos sofrimentos morais e físicos
religiosa e a moral cívica aí se erguem e abatem mãe Joana, mas Gabriel é alforriado.
falam bem alto, esmagando a hidra que en­ Por ocasião do 13 de Maio de 1888, Maria
venena a família no mais sagrado santuário Firmina compôs o “Hino à libertação dos es­
seu, e desmoraliza, e avilta a nação inteira!” cravos”, que passou a ser cantado nas escolas
Após mencionar o sacrifício cristão do maranhenses:
Homem-Deus pela humanidade, continua a
“Salve Pátria do Progresso!
senhora:
Salve! Salve Deus e Igualdade!
“— Por qualquer modo que encaremos a es­ Salve! Salve o sol que raiou hoje,
cravidão, ela é, e será sempre, um grande Difundindo a Liberdade!
mal. Dela a decadência do comércio; por­ Quebrou-se enfim a cadeia
que o comércio e a lavoura caminham de Da nefanda Escravidão!
mãos dadas, e o escravo não pode fazer Aqueles que antes oprimias,
florescer a lavoura; porque seu trabalho Hoje terás como irmão!”12
é forçado. Ele não tem futuro; o seu traba­
lho não é indenizado; ainda dela nos vem o Em Cantos à beira-mar há diversos trechos
opróbrio, a vergonha, porque de fronte al­ que se referem, quer explícita, quer metafori­
tiva e desassombrada não podemos encarar camente, ao escravo. Exemplo é “Minha ter­
as nações livres; por isso que o estigma da ra”, oferecido a Francisco Sotero dos Reis,
escravidão, pelo cruzamento das raças, es­ com epígrafe de Gonçalves Dias:
tampa-se na fronte de todos nós. Embalde
“Princesa do oceano! a fronte alçaste
procurará um dentre nós convencer ao es­
Por tantos séculos abatida, e triste. . .
trangeiro que em suas veias não gira uma
só gota de sangue escravo (...) Um eco aqui repercutir-se - ouviste,
E depois, o caráter que nos imprime, e nos E as vis algemas sob os pés quebraste!
envergonha! Quebraste os ferros - que o Brasil não
O escravo é olhado por todos como vítima [sofre.
- e o é. Sequer um dia ser escravo, - não.
O senhor, que papel representa na opinião És livre, és grande! Tão sublime ação
social? Quem fez jamais - e tanto assim de
O senhor é o verdugo - e esta qualificação [chofre?!. . .”13
é hedionda.”11
No poema “Vai-te”, como em tantos ou­
A discussão leva a senhora a relatar como
pôde obter a libertação do escravo foragido, tros em que enaltece a glória dos combatentes
da Guerra do Paraguai (1864-1870), Maria
Gabriel, embora sua mãe, Joana, tivesse mor­
Firmina dirige-se metaforicamente aos para­
rido louca e exaurida por excessivos padeci­
guaios como “míseros escravos”, sob o “gri­
mentos impostos por um feitor, muito elogiado lhão” do ditador Solano López, que seriam
pelo patrão, que - por ironia da autora - era “libertados” pelos brasileiros:
mulato, portanto, um traidor de sua raça. Mas
a verdadeira heroína do conto “A escrava” é “Dize que a povos escravos
mãe Joana, e não a senhora branca da elite. Vais levar com lealdade
Dois filhos gêmeos de Joana haviam sido ven­ Não ferros, mas liberdade,
didos como escravos e levados para o Rio, e Progresso - não opressão.
seu marido, já morto, trabalhara toda a vida V ais quebrar as vis cadeias,
94
Estudos Afro-Asiáticos n^ 16, 1989
As algemas de seus pulsos. ela. O desfecho da trama é a morte de Tancre­
De amor em doces impulsos, do e a loucura de Úrsula, o que leva o tio a
Vais dizer-lhe(s): És meu irmão!”14
converter-se a padre. Esse triângulo amoroso
Num poema que revela a grande cultura da tem outro como paralelo: o pai de Tancredo,
também malvado, se apaixona e se casa com a
escritora - pois mostra seu conhecimento da
Escola Mineira -, intitulado “Dirceu”, e que noiva que o filho ia desposar. Esse evento é
narrado em flash-back por Tancredo a Úrsula
leva o subtítulo “À memória do infeliz poeta
Tomás Antônio Gonzaga”, Maria Firmina ex­ quando este a conhece, após um acidente a ca­
valo. Ele é levado até a casa onde Úrsula vive
clama:
com sua mãe doente pelo escravo delas, Túlio.
“Dirceu! teu nome na brasília história Os personagens negros são todos secundários,
É grata estrela de fulgor sem fim.” mas bastante importantes na narrativa.

E, nas estrofes seguintes: Para Charles Martin, prefaciador da atual


edição de Úrsula, o romance apresenta como
“Qual teu crime, oh! trovador?
grande originalidade o fato de comparar o es­
É crime acaso o amor,
cravo Túlio ao senhor Tancredo em pé de
Qu’a sua pátria o filho dá?
igualdade, o que raramente acontece num ro­
Foi já crime em alguma idade,
mance do século XIX. Outra figura impres­
Amar a sã liberdade!
sionante, segundo o prefaciador, é a velha es­
Dirceu! teu crime onde está?
crava mãe Susana. Cenas marcantes são a sua
captura na África; a separação dos filhos
- Rebombe embora o canhão, quando deixa seu trabalho na roça e é levada
Quebre-se a vil servidão, para o navio negreiro sem poder vê-los; a via­
Seja livre o meu país! gem e o desespero existencial no Brasil, que
Nossos pais foram uns bravos; quase a levam à loucura (narrativa em Jlash-
Nós não seremos escravos, back, no capítulo IX). O negro Antero tem
Vis escravos nesta idade; como função (cap. XVIII) impedir Túlio de
Rompa-se o jugo opressor: avisar os noivos sobre os planos do tio de Úr­
Eia! avante, e sem temor sula, que desejava seqüestrá-la na porta da
Plantemos a liberdade.” igreja. Ele tem vivas reminiscências ritualísti-
cas da África, por exemplo, quando compara a
Para concluir, a poeta relaciona a liberdade cachaça maranhense - tiquira - com as bebidas
pela Independência à servidão escravocrata: de que se utilizava lá.

Mãe Susana, de Úrsula, assemelha-se a


“Brumas as noites na africana plaga mãe Joana de “A escrava”, no sentido de nos
Mais te envenena de saudade a dor. ..
transmitir a impressão de se tratarem de pes­
Secam teus prantos o palor da morte,
soa que Maria Firmina realmente conheceu.
A morte gela no teu peito o amor.. .”15
Ambas apresentam os mesmos traços de lou­
cura devido ao sofrimento, só que mãe Susana
Úrsula (1859), romance folhetinesco e ul­
recebe um tratamento épico por parte da au­
tra-romântico, muito deve a Bernardin de tora. Um pouco como em A cabana de Pai
Saint-Pierre, cujo Paulo e Virgínia a autora
Tomás, ela termina como heroína, caminhando
cita no início do capítulo XIII. O livro focaliza
pela estrada a recitar salmos, recusando-se
o amor impossível de dois jovens brancos, a fugir e enfrentando a morte ordenada pelo
Tancredo e Úrsula, impedidos de se casarem tio de Úrsula, que acusa a escrava de tentar
pelo perverso tio desta, que se apaixona por proteger os noivos.
Estudos Afi-o-Asidtícos n-16,1989
95
O Lirismo ultra-romântico de mina — fragmentos de uma vida, são datadas de
Maria Firmina Guimarães, entre os anos de 1853 (9 de janei­
ro) e 1903 (l9 de abril); portanto, entre os 28 e
Maria Firmina é, evidentemente, uma poeta os 78 anos da autora, momento em que prova­
ultra-romântica, produto do mal-du-siècle, velmente perdeu a visão e abandonou a escrita
como Lamartine, Álvares de Azevedo, Gon­ do diário, até a sua morte, aos 92. Pela forma
çalves Dias e Garrett. No poema “Dedicação, como ele se apresenta - breves notícias e sal­
tributo de amizade”, publicado em A Verda­ tos de quatro, por vezes mais anos —, é ques­
deira Marmota™, a autora cita Byron, embora tionável que parte dos originais tenha sido
em francês: “Je t’aime! Je t’aime! Oh, ma vie.” roubada de um baú pertencente ao Sr. Leude
Cantos à beira-mar, além dos poemas con- Guimarães, numa pensão em São Luís, con­
doreiros sob a influência de Castro Alves que forme seu depoimento a Nascimento Morais
enaltecem os voluntários da Pátria, apresenta Filho.20 Na verdade — é apenas uma hipótese,
uma faceta ultra-romântica muito acentuada. pois não tive os manuscritos nas mãos —, o
Os modelos literários de Maria Firmina são “Álbum” parece apresentar continuidade na
principalmente Gonçalves Dias - citado em
descontinuidade. Além disso, tudo indica que o
diversas epígrafes e dedicatórias de poemas17
diário está publicado fora da ordem cronológi­
— e Álvares de Azevedo. Há diversas dedica­
ca correta, conforme demonstrarei, pois as
tórias também a figuras maranhenses, como
datas avançam e retrocedem na edição de Ma­
seu parente Francisco Sotero dos Reis (p. 5), ria Firmina (p. 159-65).
Gentil Homem de Almeida Braga (p. 95) e o
De qualquer modo, o “Álbum” vale como
escritor Ovídio da Gama Lobo (“Hosana!”, p.
depoimento único ao apresentar a visão íntima
149). Outras epígrafes e citações revelam a
de uma mulher brasileira do século XIX, e por
extrema cultura dessa mulher que morava no
conter trechos que representam uma verda­
interior do Maranhão no século XIX, como as
deira autobiografia, como o intitulado “Resu­
presentes no poema “Dirceu”, dedicado a To­
mo de minha vida” (junho 1863).
más Antônio Gonzaga (p. 37); .em outro diri­ O “Álbum” se reveste de constantes lamú­
gido a Alexandre Herculano (este de Almana­
rias, compensadas por um profundo senso de
que de Lembranças Brasileiras'8), e ainda na­
religiosidade. São constantes as referências à
quele dirigido a Calderón, através do título “A
“mão de Deus”, ao fatalismo da vontade divi­
vida é sonho” - dedicado a seu amado, Rai­
na. Esse espírito de conformismo diante das
mundo Marcos Cordeiro (p. 195). freqüentes mortes das crianças que adota, o
“Gupeva, romance brasiliense”,19 na ver­ fracasso amoroso, a morte de parentes e a
dade é um conto indianista. Tendo inspiração
partida de entes queridos que viajam de Gui­
provavelmente em Atala e René, de Chateau­
marães, ao longo de sua vida, revelam, na sua
briand, e em O guarani, de Alencar, este de
pessoa, o mesmo espírito de reclusão que leva
1856-57, Firmina segue o esquema folhetines­
a personagem Ursula a abrigar-se num con­
co de interditos amorosos - no caso, o amor
vento, após a morte da mãe, enquanto espera­
impossível de um nobre francês por uma índia,
va casar-se com Tancredo. As causas dessa
os quais descobrem ser, no desfecho da estó­
melancolia marcam a sua existência e o seu es­
ria, meio-irmãos.
tilo, típico do mal-su-siècle.

O “Álbum” em surdina Uma lágrima sobre um túmulo

As 30 páginas do “Álbum” de Maria Fir­ O segundo registro no diário tem este título
mina que chegaram até nós, publicadas por (20.5.1853, aos 28 anos). Numa cena que des­
José Nascimento Morais Filho em Maria Fir- creve a natureza ao gosto de Chateaubriand e
96 Estudos Afro-Asiáticos n-16, 1989
Alencar, Maria Firmina lastima o falecimento das por Flaubert em Un coeur simple e Autran
da mãe e recorre a Deus. Entre as incontáveis Dourado em Urna vida em segredo expressam
mortes relatadas no diário - de crianças, ami­ o interior de vidas de mulheres que esbarram
gas, da avó, da mãe - e as partidas para Belém tragicamente no silêncio da ausência, levadas
e São Luís, Maria Firmina cita Garrett, de pela impossibilidade de expressão, e cujo único
quem toma a expressão mais usual no seu diá­ desfecho possível é a morte. Como a saída es­
rio: “campa” (10.8.1858). Felizmente, alguns colhida, na modernidade, por Virgínia Woolf,
nascimentos, primeiros passos e primeiros Sylvia Plath, Ana Cristina César, e muitas ve­
cortes de cabelo, sorrisos e algaravias dos fi­ zes vividas através de doenças psicossomáticas
lhos de criação interrompem essa tônica. fatais, como em Isak Dinensen e Clarice
A 2 de fevereiro de 1861, aos 36 anos, a Lispector.
escritora muda-se para uma casa noval mas
seu estado de espírito não melhora: “Resumo de minha vida”

“Desde o dia 26 de dezembro [1860] aca­


Com esse título, Maria Firmina insere, no
brunha-me a mesma melancolia, ou cada
total de 30 páginas de seu “Álbum”, em junho
vez ocultava mais (sic), e cresce e duplica
de 1863, essas três páginas que representam
de amargor. Há no fundo da minha alma o
uma verdadeira autobiografia. Nelas, enfatiza
que quer que seja que derramando-se por
as descrições da natureza e as metáforas sen­
todo o meu corpo, entorpece-me os mem­
timentais, enquanto se adapta à definição de
bros, e curva-me a fronte para o sepul­
mulher de Walter Patmore: “the angel in the
cro. . . Sepulcro... Sepulcro... (...)
house”. Rememora a amizade pela irmã e a
amo-te, oh! sepulcro; porque em ti se [?]
prima, na infância (parte I), e, como todo ro­
esquecimento e repouso” (p. 152-3).
mântico, lastima o fim da infância e o esque­
Logo depois, a 5 de janeiro de 1861, ela cimento rápido dos sonhos da adolescência,
afirma: enquanto refere-se a si mesma no masculino
(parte II).
“Será o derradeiro [dia] de minha vida!!
Na última parte (III), caracteriza o mundo
Meu Deus, eu estou resignada. Bendito se­
como “esse espelho impassível; cruel (.. .) [ao]
jais; por que me enviais o sofrimento!”
desfazer as nossas mais gratas, mais lisonjeiras
Portanto, imagina o suicídio, mas exclama: esperanças!... (p. 155). Com o “coração ou-
trora tão ardente” agora envolto em gelo, vê o
“Não. Tentar contra os meus dias seria um
amor como força contraditória, que abre ao
crime contra Deus, e contra a sociedade;
homem “a senda do prazer e da vida” e tam­
mas almejo a morte” (2.2.1861, p. 153).
bém “cerra sobre ele a lousa da sepultura”.
Tal estado de espírito se prolonga até 26 de Após descrever a natureza, conclui que ama a
fevereiro: Deus mas “ainda assim não [é] feliz”, pois se­
gue-a um amor indefinível desde a infância,
“Campa!. . . campa, eu te saúdo” (p. 153).
“que só poderá encontrar satisfação na sepul­
Nesse impressionante depoimento, revela­ tura” (idem). Tal imagem corresponde à idéia
dor de uma verdadeira história das mentalida­ de luto com que Freud define a tristeza da
des, vê-se o mesmo tom de lamento, embora perda em Luto e melancolia. Viveria Maria
mais ameno e controlado, presente na ficção Firmina, inconscientemente, a mesma sensação
feminina dos anos 1970: Hilda Hilst, Judith de recusa social, tão vívida e preconceituosa,
Grossmann, Rachel Jardim, Patrícia Bins, Lya que se percebe nas páginas de O mula­
Luft. O tema de Inventário das cinzas, de Ra­ to (1881), de Aluísio Azevedo, e que levou
chel Jardim, é o suicídio.21 Biografias retrata­ Gonçalves Dias à mesma decepção vivencial?
Estudos Afro-Asiâticos n? 16, 1989 97
Uma saudade Baudelaire, no qual o poeta perde sua aura ao
atravessar a rua, Maria Firmina sequer possui
Aqui se iniciam os erros de paginação da uma estrela para perder:
edição de Maria Firmina (p. 159). A referência
“Esta estrela que me emprestaram é bela,
sobre o corte de cabelo da “menina Sinhá”, a 9
poética e merencória como a lua; mas não é
de janeiro de 1874, naquela página, está deslo­
minha - a minha caiu há muito, e se sumiu
cada: deveria aparecer várias páginas depois.
no nada!. . .” (idem).
Na verdade, o trecho de 31 de janeiro de 1869,
dirigido “ao Senhor Raimundo Marcos Cor­ Sem local e data, segue-se a descrição do
deiro”, explica todos os sentimentos que Maria “olhar beatífico” de uma donzela que enlou­
Firmina, agora com 44 anos, pressente mas queceu de dor e um “Souvenir”, trecho dirigi­
não ousa chamar de amor, os quais a levaram do a Isidoro, outra criança que morre (maio de
quase ao suicídio: 1872, p. 166-7).

“Dou-vos aqui, Senhor, o lugar que mere­


ceis. Aqui neste livro íntimo, onde só tenho Biografia
estampado os nomes sacros que mais he?
amado no mundo (. . .) aqui estais vós.” Dando prosseguimento a sua autobiografia,
afirma a escritora:
Deseja-lhe felicidades, despede-se e reco­
lhe-se: “O álbum é o livro da alma; é nele que es­
tampamos os nossos mais íntimos senti­
“Que me resta pois? Um coração vazio de
mentos, os nossos mais extremosos afetos;
amor (...) para mim passou já essa quadra
assim como as mais pungentes dores de
da vida, toda cheia de ilusões floridas, e de
nossos corações.”
esperanças mais ou menos enganadoras”
(p. 160). Aos 47 anos, Maria Firmina se identifica
com o amigo Teodoro José da Silva Bessa,
Um poema assinado por Raimundo Marcos
que, já doente, volta às praias do Cumã para
Cordeiro, intitulado “Uma Saudade - No Ál­
rever a amada. Ela deseja a esta moça a felici­
bum da Exma. D. Maria Firmina dos Reis”,
dade que ela própria nunca terá dizendo: “eu
revela toda a reverência respeitosa por alguém
também amo como irmã” (15.11.1872, p. 168).
cujo amor seria impossível, quer pela classe
social, quer pela raça, quer pela idade: um
amor “saudoso. .. triste como /Dum filho a '‘O que é a vida?”
separação”. Nele Raimundo vê (apenas) a Com este título, Maria Firmina prossegue,
“prova de amizade”. E tudo indica, páginas em 15 de junho de 1873, as páginas de “Re­
adiante, que seu amado faz um belo casamento
sumo da minha vida”, exposto dez anos antes
com a jovem branca Matilde.
- o que comprova o erro de paginação de Ma­
ria Finnina. Compara a vida ao luxo, a um sa­
A perda da aura lão dourado, a um rosto de olhos luzentes e
cheios de amor.
Lê-se, à p. 165 (2.2.1872), que deveria se “Será talvez tudo isso - conclui — mas eu
seguir à p. 159 (outro erro de paginação desta nunca vivi; ou se vivi, compreendi a vida
edição do “Álbum”): “Eu nunca tive a louca
por outros desvios, por outras sendas, por
pretensão de possuir no céu uma só estrela.” onde nem todos passam. Penso e sinto: meu
Deus, afirma Firmina, dotou-a da melancolia e sentir e meu pensar não os compreende
da palidez da lua. Mas ela continua a invejar a ninguém; porque também a ninguém os re­
estrela. Ao contrário do famoso trecho de velo” (p. 161-2).
98 Estudos Afro-Asiátícos rt° 16,1989
A perda do homem amado a faz repetir: lidade de expressão de seus sentimentos sobre
a vida. A Maria Firmina que continua escre­
“A vida para mim está nas lágrimas. (. . .) vendo após 1877 apresenta um mero necroló­
Lágrimas! Lágrimas. Elas despontam cris­ gio de partidas e de mortes de parentes e ami­
talinas, e brancas no berço do recém-nasci­ gos. Ela sequer sofre. As entradas finais no
do. (. . .) Eu amo as lágrimas (. . .).” diário mostram alguns descalabros cronológi­
Lágrimas que a acompanham desde a in­ cos e se espaçam cada vez mais: uma frase por
fância: “(através] ‘da minha longa peregrina­ ano, e os anos de parcas anotações que se es­
ção’, [que] vinham dos olhos do seio: (. . .) fiz paçam, em 1879, 1883, 1887, 1891, 1892,
das lágrimas um sacerdócio - é quando conhe­ 1894, 1895, 1896, 1898, 1899, 1902; uma en­
ci então que a vida está nas lágrimas (. . .)” trada em 1910 é visivelmente erro de impres­
são. O “Álbum” interrompe-se a 3 de março
(idem, p. 162).
de 1903, com “Lágrimas da velhice”:

Lágrimas num baile “Oh! essa lágrima vertida na solidão, es­


condida a todos; porque [a] ninguém como­
ve - como a lousa de um sepulcro - árida
Após um baile onde a dor da moça que se
separa do cavalheiro bem pode scr a dela, e da como um deserto - triste e lúgubre como o
despedida de um amigo (16 c 17 de junho de som de um sino gemendo um morto que
1873), Maria Firmina separa-se altruistica- a terra vai fazer desaparecer para sem­
pre!. . . Oh! essa lágrima. . . essa lágrima é o
mente de Raimundo M. C. (não M. L., como
está impresso cm Maria Firmina, p. 163-4, dia transunto (.. .)”2Z
27 de junho de 1873), pois este se casa com Interrompido nessas palavras, o diário traz
Matilde. “Simpatia é quase amor” - é uma ci­ em seguida um poema de Oton F. Sá à “ma-
tação do amigo C. Abreu (não o poeta); ela maia” M. F. dos Reis, a 20 de novembro de
lhes deseja felicidade “desde a juventude” — 1903, tendo ela 78 anos, onde ele informa ter
num amor maternal? retornado do Pará a São Luís a 11 de setembro
Ao dedicar seu álbum à memória de Vi­ daquele ano.
cente Cabral, a 5 de janeiro de 1874, Maria A autora, muito provavelmente, estava ce­
Firmina imagina: ga-
“Mas, se o meu álbum, em algun dia, depois
de minha morte, puder merecer a atenção
de alguém, ele levará à posteridade o nome Conclusão
de uma pessoa estimável como era Vicente
Cabral” (p. 164). Como Sousândrade, Maria Firmina dos
Reis viveu deslocada do eixo de poder da
Aí cessam os erros de paginação do
Corte; mas, ao contrário daquele, viajante e
“Álbum”. habitante da capital da província e de grandes
centros urbanos do exterior, como Paris, San­
Recordação e lágrima tiago e Nova Iorque, além do Rio, ela não her­
dou terras nem escravos. Passou a vida em
Após o fundo golpe amoroso, magoada e Guimarães, com poucas passagens por São
abandonada, essa mulher de 51 anos permane­ Luís. Um notável exemplo de abnegação e
ce nesse estado de espírito por mais seis meses, força de vontade de quem, vivendo na peque­
até 13 de junho de 1876. Toda essa experiên­ na vila de Guimarães, no interior maranhense,
cia de abandono - cultural, pessoal, profissio­ dedicou-se à criação literária por meio da ár­
nal — secam, aparentemente, qualquer possibi­ dua profissão de professora pública primária.

Estudos AJro-Asidticos n° 16, 1989 99


NOTAS

1 Josué Montello, “A primeira romancista brasileira”, Jornal do Brasil, 11.5.1975, p. 5.

2 Luís Gama, “Quem sou eu”, in Heloísa Toller Gomes, O negro e o Romantismo brasileiro, São Paulo, Atual,
1988.

3 Maria Firmina dos Reis, Ursula, São Luís, Typographia do Progresso, 1859, 199 p.; republicado em 1988
pela Editora Presença e o Instituto Nacional do Livro, atualizado por Luiza Lobo e com prefácio de Charles Mar­
tin.

4 José Nascimento Morais Filho, Maria Firmina — fragmentos de uma vida, São Luís, Governo do Estado do
Maranhão, 1975.

5 Idem, p. 211.

6 Horácio de Almeida, “Prefácio”, in Maria Firmina dos Reis, Ursula, edição fac-similar, Rio de Janeiro,
Olímpica, 1975.
7 Op. cit.
8 Maria Firmina dos Reis, Cantos à beira-mar, São Luís, Typographia do Paiz, 1871, 208 p.; republicado em
1976, pela Editora Granada, Rio de Janeiro, com prefácio de Jose Nascimento Morais Filho.

9 Ver Luiza Lobo, Tradição e ruptura: 'O Guesa', de Sousãndrade, São Luís, Sioge, \919, e Épica e moderni­
dade em Sousândrade, Rio de Janeiro/São Paulo, Presença/Edusp, 1986.
10 Maria Firmina dos Reis, “A escrava”, Revista Maranhense, ano I, n. 3, novembro de 1887; republicado em
José Nascimento Morais Filho, Maria Firmina. . ., op. cit., p. 124.

11 José Nascimento Morais Filho, Maria Firmina. . ., op. cit.,p. 124-33.


12 Idem,p. 188.
13 Maria Firmina dos Reis, Cantosà beira-mar, l* ed., op. cit., p. 5.
14 Idem, p. 55.
15 Idem, p. 37-40.
16 Incluído em José Nascimento Morais Filho, Maria Firmina. . ., op. cit., p. 51. O poema foi escrito a 20 de
wtpmhrn Ha 1 RA 1

17 Páginas 5, 95 e 137 da edição de 1976.

18 São Luís, ano III, janeiro de 1869; republicado em José Nascimento Morais Filho, Maria Firmina. . ., op-
cit-,p. 76.
19 Escrito em 1861 e republicado em José Nascimento Morais Filho, Maria Firmina. . ., op. cit., p. 102-34.

20 Idem, p. 213.

21 Ver Luiza Lobo, “Dez anos de literatura feminina brasileira”. Letras de Hoje, vol. 21, n. 4, Porto Alegre,
PUC-RS, dezembro de 1986, p. 107-25, e “Women writers in Brazil today”. World Literature Today, vol. 61, n.
1, Oklahoma, The University of Oklahoma, inverno de 1987, p. 49-54.

22 “Lágrimas de velhice” foi encontrado por Nascimento Morais Filho, escrito em papel almaço. Não se sabe
se fazia ou não parte do “Álbum”. Ver José Nascimento Morais Filho, Maria Firmina. . ., op. cit., p. 252.

100 Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989


SUMMARY

The Pionner from Maranhao: Maria Firmina dos Reis

A reexamination of the abolitionist period of Bra­ re (1871) are also of a patriotic nature, but were mo­
zilian literature must certainly call attention to the deled after the ultra-romanticism style of the “mal-
contributions of Maranhense writer, Maria Firmina du-siécle”, typical of authors such as Gonçalves Dias,
Álvares de Azevedo, Gentil Homem de Almeida Bra­
dos Reis.
Her novel Ursula, published in São Luiz do Mara­ ga, her relative SOtero dos Reis, but also of Byron and
nhão in 1859, was the first to be written by a woman Lamartine, not to mention Tomás Antônio Gonzaga.
and was also the first in Brazil to deal with abolition. The article presents a study of excerpts from “The
Born in São Luís into a poor racially-mixed family of Slave” and Ursula, as well as poems from Songs at
bastard parentage, Maria Firmina dos Reis the Seashore which deal with the question of black
(1825-1917) spent her life from five years on with her slavery. A parallel is drawn between Ursula and Uncle
family in Vila de Guimarães in the continental muni­ Tom’s Cabin by Harriet Beecher Stowe - which had
already been published in Portuguese in 1853 - using
cipality of Viamão, and became the first primary tea­
cher to be confirmed by public examination in the Charles Martin’s introduction to the recently repu­
blished editions of Úrsula by Editor Presença - INL,
state of Maranhão.
Horácio de Almeida of Paraiba was responsible in the Resgate Collection edited by Prof. Luiza Lobo.
for the discovery of the novel and conducted the first One of the most impressive documnts by Maria
Firmina dos Reis - and hence of the history of the
research into the life of its author. These efforts were
19th century Brazilian mentality - is her “Album”,
continued by the historian José Nascimento Morais
probably the first diary by a Brazilian authoress, in
Filho of Maranhão, who gathered together a great
which she contemplates suicide in her own distinct
deal of authentic biographic data along with recooped
original manuscripts in his book Maria Firmina - open and confessional style.
This article looks to Maria Firmina dos Reis as
Fragments of a Life (1975). Among others, the book
a fundamental example of the need to reexamine Bra­
includes the short stories “The Slave” and "Gupeva’,
zilian literature using black intellectual values as a
poems published in the Maranhense press, along with
starting point; hers is an example of self-sacrifice and
the Charades, Enigmas, musical folk compositions
ieological defense of her ethnic group and of her ama­
and patriotic hymns dedicated to the slaves and to the
zing 19th century Brazil - in contrast, for example, to
“Patriotic Volunteers” who returned to Maranhão
her Maranhense contemporary Joaquim de Sousan-
from the war with Paraguay (1870-1871). Many
poems from her second book Songs at the Seasho- drade.

RÉSUMÉ

Maria Firmina dos Reis, Pionnière du Maranhao

de Almeida, qui localisa de premier l’oeuvre de Maria


La révision de la période abolitionniste de la lit­
Firmina sur laquelle il fit une recherche initiale. Il fut
térature brésilienne ne peut ignorer l’existance de
suivi par un historien du Maranhão, José Nascimento
Maria Firmina dos Reis, écrivain du Maranhão.
Morais Filho qui présenta, preuves à l’appui, un grand
Son roman, Ursula, publié à São Lufs du Mara­
nombre de données biographiques. Il redécouvrit
nhão en 1859, fut le premier à être écrit par une fem­
me au Brésil. C’est aussi le premier à y traiter du thè­ aussi plusieurs originaux qu’il publia dans son oeuvre:
me de l’abolition de l’esclavage. Maria Firmina dos Maria Firmina - Fragments d une vie (1975). Parmi
ceux-ci se trouvent des contes: “L’esclave” et “Gu­
Resis (1825-1917) était mulâtre, bâtarde et pauvre.
peva”, des poèmes qui furent publiés dans la pesse du
Elle fut la première femme à être reçue au concours
d’instituteurs de l’état du Maranhão. Née à São Lufs, Maranhão, des pèces intitulées Charades, Enigmes,
elle vécut à partir de l’âge de cinq ans avec sa famille à des musiques folkloriques ainsi que des hymnes pa­
la “Vila de Guimarães” (commune de Viamão) sur le triotiques destinés aux esclaves et aux Volontaires de
continent. la Patrie qui rentraient au Maranhão après la guerre du
C’est un auteur originaire de la Paraíba, Horácio Paraguay (1870-1871). Beaucoup de poèmes du deu-

101
Estudos Afro-Asiâticos n-16,1989
xième livre de Firmina: Chants au Bord de la
L’un des documents les plus impressionnants de
Mer (1871) traitent aussi de thèmes patriotiques mais Maria Firmina dos Reis — et, par conséquent, de
ce qui y prédomine, c’est l’ultra-romantisme typique
l’histoire des mentalités au Brésil au XIX è siècle est
du Mal-du-Siécle, propre à æs modèles littéraires,
son ’’Album”. C’est, très probablement le premier
dont les principaux étaient Gonçalves Dias, Álvares
journal écrit par une femme brésilienne. Dans son st­
de Azevedo, Gentil Homem de Almeida Braga, So-
yle dépouillé et confidentiel elle entrevoit le suicide
tero dos Reis (qui était son parent), Byron, Lamartine
et Tomás Antônio Gonzaga. dans cette oeuvre qui compte seulement 30 pages.
L’article étudie das passages de "L'esclave” et de
"Ûrsula” ainsi que des poèmes de "Chants au Bord de L’auteur de cet article considère que Maria Firmi­
la Mer” qui traitent des problèmes de l’esclave noir. II na dos Reis constitue un exemple fondamental pour
établit des parallèles entre Ursula et La Cabane de ceux qui se proposent de récrire la litterâture brési­
F Oncle Tom de Harriet Beecher Stow (publié en por­ lienne en y réintégrant les valeurs intellectuelles noi­
tugais dès 1853) à partir de l’introduction que Charles
res. Elle représente un exemple admirable d’abnéga­
Martin feit à la réédition de Ursula récemment publiée
tion, de défense idéologique de son groupe ethnique et
par Les Editions Presençu - INL dans la collection
de son pays au XIX è siècle. Elle diffère en cela de son
Resgate qui est coordonnée par Mme le professeur
Lufza Lobo. entemporain du Maranhao Joaquim de Sousa Andrade
(Sousândrade.

102
Estudos Afro-Asiâticos n? 16, 1989
UMA PERSPECTIVA Se me pedissem para apontar alguns con­
ceitos capazes de fornecer uma perspectiva de
DE ANÁLISE PARA O análise apropriada na avaliação do teatro ne­
gro americano, eu indicaria quatro textos. Es­
TEATRO NEGRO tes foram extraídos da obra do poeta afro-
AMERICANO* americano Paul Laurence Dunbar, do intelec­
tual ativista W.E.B. DuBois, da ex-escrava e
abolicionista Soujourner Truth e do psiquiatra
Frantz Fanon, da Martinica. Dos quatro, ape­
Sandra L. Richards** nas um dos textos trata especificamente dos
desafios da criação artística. Contudo, todos
eles apontam para direções conceituais básicas
no desenvolvimento da cultura negra na Amé­
rica do Norte.

A escolha desses textos não ignora a con­


tribuição de grande parte da teoria pós-
moderna. Mais apropriadamente, reflete meu
argumento de que a crítica a essa cultura deve
em primeiro lugar examinar as experiências
e tradições dos negros americanos, com a in­
tenção de lhes restituir um objeto de análise
rejeitado pela prática e teoria ocidentais. Ao
fazê-lo, iremos descobrir tanto pontos de con­
vergência como de influência entre as artes
afro-americanas e curo-americanas. Igual-
mente importante, ao assumir essa perspectiva
teremos melhores condições dc identificar os
mecanismos através dos quais as teorias pós-
modemas mantêm a posição marginalizada dos
afro-americanos c entender até que ponto, nas
palavras do poeta-ativista Audrc Lorde, o uso
“das ferramentas do dono nunca destruirá a
casa do dono".’
Esses textos afro-amcricanos sugerem
formas de arte que buscam conciliar a dialética
existente entre uma autopcrccpção negativa c
publicamente reforçada c uma identidade po­
sitiva ao nível privado; que, conscientemente,
vinculam libertação c autodeterminação à arti­
* Versão preliminar deste trabalho foi apre­ culação dc uma cultura autentica; c, apesar de
sentada na IV Jornada de Estudos Americanos relegadas à marginalidade estética c social, se
da Associação Brasileira de Estudos America­ percebem enquanto constitutivas dc uma cul­
nos, 25-27 de maio de 1988, Mariana (MG). tura nova c dinâmica. Os textos;
** Professora de Teatro e Diretora do Comitê “Nós usamos a máscara que sorri c mente,
de Arte Dramática Negra na Stanford Uni­
Ela esconde nossas faces c oculta nossos
versity.
[olhos -
Estudos Afro‘Asiáticos n-16,1989
103
Esta a dívida que pagamos à perfídia “A adesão à cultura negra africana e à uni­
(humana; dade cultural da África surgiu em primeiro
Sorrimos com os corações lacerados e em lugar como um sustentáculo incondicional à
[sangue, luta dos indivíduos pela liberdade. Ninguém
a boca com uma miríade de sutilezas. pode efetivamente desejar a difusão da
Por que o mundo ficaria ciente de tudo, cultura africana se não dá seu apoio con­
A contar todas as nossas lágrimas e creto à criação das condições necessárias
[lamentos? para a existência dessa cultura - em outras
Não, deixa que nos vejam apenas enquanto palavras, para a libertação de todo o conti­
Usamos a máscara.” nente.
(Paul Laurence Dunbar)2 Digo novamente que nenhum discurso ou
proclamação relativa à cultura nos demo­
Não, deixa que nos vejam apenas enquanto
verá de nossas tarefas fundamentais: a li­
Usamos a máscara.”
bertação do território nacional; uma luta
(Paul Laurence Dunbar)2
permanente contra o colonialismo em suas
“É uma situação peculiar, esta consciência
novas formas; (. . .)”
dupla, esta sensação de sempre se estar (Frantz Fanon)5
olhando para si próprio através dos olhos
de outros, de se julgar a própria alma pela Ao apresentar esse sucinto panorama de
medida do mundo que observa tudo com mais de 140 anos de produção literária teatral,
complacência divertida e piedade (...) concentro-me no conceito de máscara de
“Ao incorporar-se, ele [o negro], não de­ Dunbar e nos pronunciamentos de DuBois re­
seja perder nenhum dos seus eus antigos. lativos à dupla consciência. Acredito que,
Ele não africanizaria a América, pois a nessa saga de opressão, astúcia, confronto e
América tem muito a ensinar ao mundo e à afirmação cultural, os leitores reconhecerão
África. Ele não alvejaria sua alma negra em reflexos da experiência afro-brasileira.
uma torrente de americanismo branco, pois
sabe que o sangue negro tem uma mensa­
gem para o mundo. Apenas deseja que seja Nós usamos a máscara
possível para o homem ser tanto um negro
como um americano, sem ser amaldiçoado e Em 1895, Paul Laurence Dunbar, que viria
cuspido por seus companheiros, sem que as a se tornar o primeiro poeta da América Negra
portas da Oportunidade sejam fechadas ru­ nacionalmente conhecido, escreveu as linhas:
demente em sua cara.” “Nós usamos a máscara que sorri e mente” -
(E.E.B. DuBois)3 uma representação literária de uma postura
“Aqueles homens ali dizem que as mulheres
que fora essencial à sobrevivência dos escra­
devem ser ajudadas para subir nas carrua­
vos africanos no Novo Mundo. Na ideologia
gens, erguidas para passar por cima das racista dos proprietários de terras norte-ame­
valas e colocadas nos melhores lugares em ricanos, os negros eram a própria negação de
toda parte. Ninguém nunca me ajuda a su­ tudo o que constituía humanidade e cultura.
bir nas carruagens ou a pular as poças de Eram estúpidos, irresponsáveis, libidinosos,
lama, ou me oferece qualquer lugar melhor! alternadamente infantis ou criaturas bárbaras,
E não serei eu uma mulher? (...) Eu tive a serem exploradas segundo as necessidades de
13 filhos e vi a maioria deles ser vendida lucro econômico e prazer sexual de seus se­
como escravos - e quando gritei meu de­ nhores. Para sobreviverem à exploração —
sespero de mãe, ninguém me ouviu, senão primeiro do sistema escravista e depois, mais
Jesus! E não serei eu uma mulher?” tarde, da semi-servidão no Sul e da industriali­
(Sojourner Truth)4 zação no Norte -, os negros americanos fre-
104 Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989
qüentemente enterravam seus sentimentos e Oeste, onde o contato com negros era raro,
literalmente adotaram a máscara negra, tor­ esse tipo de espetáculo tornou-se um veículo
nando-se dóceis, devotados, sem inteligência, através do qual a jovem nação p<: dia enfrentar
ininteligíveis ou o que quer que seus senhores o ritmo acelerado da urbanização. Ou seja, os
jovens recém-chegados das fazendas podiam
ordenassem.
Por volta de meados do século XIX, essa rir da confusão dos negros no palco, enquanto
máscara sorridente tornou-se o fundamento aprendiam sobre os aspectos complexos da ci­
básico do primeiro teatro nativo da América. dade. Podiam satisfazer seus anseios por uma
Segundo a história do teatro registrada pelos ordem social mais estável através da participa­
homens brancos dominantes, as sementes da ção vicária nos prazeres do lar, representados
tradição do minstrel show foram plantadas ao pela plantação, com seu proprietário benevo­
lente e a mulher, os criados mais antigos e fiéis
final dos anos vinte da década passada, quando
e a dedicada comunidade da extensa família e
Thomas D. Rice, um ator jovem e branco,
observou um negro velho e disforme a execu­ os amigos.
Embora outros grupos étnicos como os ir­
tar uma dança exótica e a cantar:
landeses ou os alemães também fossem retra­
“Rodopie c dê uma pirueta e faça assim; tados de maneira cômica no minstrel show,
Cada vez que rodopio, eu pulo à Jim com a crescente mobilidade social sua imagem
[Crow.”6 de palco tornou-se mais suave. Apenas a ima­
gem do homem negro permaneceu fixa, pois
Dizem que Rice se apropriou não somente
funcionava como um marco bastante evidente
da dança e da música do homem, mas até
do vácuo social intransponível a separar os
mesmo de suas roupas. Usando uma pintura de
brancos dos negros, considerados perpétuas
rolha queimada que grotescamente apagava
crianças — e cujo trabalho árduo e astúcia po­
cm seu rosto todos os traços característicos,
deriam um dia catapultá-los, tal como Horatio
Rice apresentou-se com sucesso como um
Alger, rumo ao dinheiro e ao sucesso. Cerca
“ator característico etíope”, cuja interpretação
de 40 anos iriam decorrer antes que homens
baseava-se em uma observação rigorosa dos
negros fossem admitidos nesse tipo de espetá­
estilos de vida dos negros.
culo. Lá encontraram a abominável máscara de
A partir dos pequenos esquetes cômicos
sorriso arreganhado e tiveram de se conformar
que retratavam um ridículo personagem negro,
aos padrões estabelecidos por Thomas Jump
o espetáculo de variedade evoluiu para uma
forma elaborada que envolvia Uma troupe de Jim Crow Rice e outros.
pelo menos dez homens brancos, nove dos Mas o signo do negro sorridente dos palcos
quais tinham o rosto pintado de preto. Usavam também incorporou um outro referente que
um dialeto negro bizarro que transformava a tendia a subverter a ideologia dominante. Ao
língua inglesa em absurdo total e revelavam decodificar o significado oficial ou dominante,
sua vasta ignorância do mundo na tentativa de começamos a captar aspectos da criatividade e
fazer troça do digno interlocutor verbalmente autonomia negra; começamos a perceber, co­
bem-articulado, que não se pintava do preto e mo assegura Fanon, os meios variados pelos
atuava como mestre de cerimônias. Mais espe- quais nossos ancestrais historicamente resisti­
cificamente, contavam piadas, improvisavam ram à escravidão e ao colonialismo com as ar­
esquetes cômicos relativos a diversas situações mas de que pudessem dispor.
domésticas, ofereciam números especiais como A história não-oficial do minstrel show tem
baladas românticas e dançavam de maneira sua origem nos escravos negros que criaram
que desafiava os padrões do decoro público. seu próprio entretenimento através do canto e
Uma forma de entretenimento extrema­ da dança, das pequenas histórias e da zombaria
mente popular sobretudo no Norte e no Meio às pretensões culturais de seus senhores. Da

Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989 105


perspectiva desses escravos silenciosos, Tho- protagonista vis-à-vis diversas comunidades e
mas Rice e outros intérpretes brancos não para situar o trabalho em um sistema de re­
produziam um reflexo autêntico da vida dos presentações que envolve figuras sagradas
negros; contrariamente, ao “pular à Jim como Esu e Legba, da África, os animais se­
Crow”, eles estavam não intencionalmente culares Anancy e The Hare - africanos e cari-
criando uma paródia daquilo que já era em benhos - e os humanos-espíritos High John, O
parte uma paródia da cultura das plantações Conquistador, e os africanos voadores da
brancas. América do Norte e do Sul. No caso, podem
ser apontados dois exemplos da história passa­
Além do mais, embora esses atores brancos
da do teatro americano negro.
denegrissem seus modelos e fossem incapazes
Um desses impostores é Cato, o protago­
de entender as implicações da forma, na ver­
nista central na peça de William Wells Brown,
dade criaram um teatro americano popular
The escape; or, A leap tofreedom* Apresen­
com base em valores de desempenho africa­
tada em 1858 como parte do movimento aboli­
nos. A crítica Eleanor Traylor argumenta:
cionista contra a escravidão, The escape. . . é
“Eles ‘apropriaram-se’ das características geralmente vista como a primeira peça teatral
da máscara mas não do significado da más­ escrita por um americano negro. Cato é o bu­
cara. Além disso, eles observavam um de­ fão negro estereotipado que diz asneiras e usa
sempenho que não dependia de um texto palavras polissílabas, imitando aquilo que su­
estático. O que viam era um desempenho põe ser o refinamento branco. Em contradição
extático orientado por um texto fluido (...) com o personagem, porém, também canta mú­
Ademais, eles percebiam que, para ser sicas de protesto contra a escravidão e revela
‘bem-feita’, uma peça não precisa necessa­ um astucioso instinto de autopreservação que
riamente desenvolver personagens, enredo admite pouco altruísmo no trato com seus
ou tema em um diálogo ‘lógico’. Os espec­ companheiros escravos. Acompanha seu se­
tadores observavam uma forma elástica: nhor em uma missão para capturar escravos
suficientemente livre para admitir o ines­ fugidos, o tempo todo obedecendo-lhe as or­
perado, contudo rígida o suficiente para dens e semeando a confusão com sua tolice.
demandar e alcançar uma coerência abso­ Mas no momento do clímax, quando os outros
luta. Eles observavam uma forma teatral escravos estão às portas da liberdade, Cato
que, em essência, era coral e improvisada arranca a máscara sorridente, ajuda os fugiti­
(...) Finalmente, eles observavam música e vos e dá seu próprio salto para a liberdade.
dança; eles escutavam a linguagem como Similarmente, a história do grupo come­
um dialeto.”7 diante Williams e Walker, que na virada do sé­
A fluidez de estrutura e caráter descrita culo XX distinguiu-se por ganhar mais di­
por Traylor certamente seria utilizada de for­ nheiro que o presidente dos Estados Unidos,
ma mais consistente pelos próprios teatrólogos revela um padrão de signos contraditórios.9
negros. Eles obedeciam ao estereótipo do momento —
Assim, nos textos dos autores negros, por de fato, Bert Williams, um caribenho de pele
trás do significado oficial da máscara do me­ clara, teve de aprender um dialeto ttegro e es­
nestrel, ocultava-se o impostor que, como curecer a pele para obter a aceitação do públi­
afirma Dunbar, “sorri e mente”, desse modo co. Contudo, seus textos incluíram alusões su­
manipulando signos múltiplos identificáveis tis a determinados temas tabus como o amor
segundo a perspectiva sócio-política de cada romântico, o fascínio sexual, o sucesso dos ne­
um. Ao enfocar os significados da máscara, gros do Norte e um passado africano heróico.
isto é, as instâncias do fenômeno da impostura, Além disso, ao usar a música e a dança do
a crítica tem a seu dispor um instrumento de ragtime, Williams e Walker, bem como outros
análise para avaliar o potencial subversivo do atores negros do início do século XX, deram

106 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


os artistas do teatro negro americano de nos­
uma contribuição substancial ao musical ame­
sos dias, no sentido de que seu uso do ritmo,
ricano, de modo ainda não adequadamente
da música, do movimento, do espetáculo e da
avaliado até hoje. linguagem simbólica, para criar e transmitir
uma energia que mantém unida a comunidade,
Dupla consciência representa um feito notável virtualmente não
igualado por qualquer outro aspecto da cultu­
Escritos em 1903, os comentários de ra. Nesse quadro de dupla consciência, preten­
W.E.B. DuBois relativos à consciência dupla do enfocar uma peça teatral que é fundamental
ou dividida dos negros enquanto americanos e e que se situa em posição intermediária, incor­
africanos funcionam tanto como uma análise porando tanto valores americanos como afri­
descritiva quanto profética. Enquanto descri­ canos.
ção, identificam uma esquizofrenia cultural na A peça é Raisin in the sun, de autoria de
qual o indivíduo negro, que percebe sua pró­ Lorraine Hansberry, que ao estrear em 1959
também significou a primeira vez que a voz de
pria humanidade sob ataque, esforça-se para
se tornar branco através da aquisição e imita­ uma mulher negra foi ouvida na Broadway, o
ção da cultura européia. No contexto america­ próprio centro do establishment teatral ameri­
no em particular, tal anseio está destinado ao cano. A peça é significativa também porque
fracasso, já que, apesar da retórica das opor­ estimulou a emergência de um segundo renas­
cimento cultural, de maior militância, conheci­
tunidades iguais, o racismo continua a funcio­
do como o Movimento das Artes Negras, da
nar em todos os níveis de classe.
Mas as afirmativas de DuBois também década de 60 e início dos anos 70.
O americanismo de Raisin in the sun poderá
propõem uma identidade do novo mundo na
talvez ser melhor percebido através de uma
qual se fundem a África c a Europa. Para ele,
comparação com a peça encenada durante a
que ensinava no Sul rural na virada do século,
Depressão, Ayvake and sing, de autoria de
a cultura folclórica dos negros, mal saída da
Clifford Odcts, peça essa que ajudou a afirmar
escravidão há uma geração, fornecia um mar­
a reputação de um dos mais influentes teatros
co de africanidade. Destacando-se naquela
cultura, a religião, apesar das narrativas cristãs da América.”
Estilisticamente, as duas peças têm em co­
e do simbolismo, retinha determinados ele­
mum a aparente preferência americana pelo
mentos africanos como o ritmo, manifestado
gênero realista, no qual tanto a representação
tanto na música quanto na fala; a possessão do
da experiência como a resposta do público ao
espírito ou a busca de união com os ancestrais,
que se passa no palco são cuidadosamente
bem como com as forças cósmicas; e a centra-
controladas pela moldura pictórica do proscê­
lidade do pregador-sacerdote, que, com sua nio. O mundo do palco é uma réplica identifi­
estatura moral e consumadas habilidades lin­
cável do mundo fora do palco; está previsto
guísticas, ajudava a resolver os árduos desafios
para funcionar segundo um modelo racional de
do mundo material c a preparar sua congrega­ causa e efeito, que os personagens gradual­
ção na transição para o sobrenatural. Bloquea­
mente descobrem enquanto o público observa
das as avenidas para a recuperação econômica
de maneira polida, sem qualquer participação.
e política ao final do século XIX e início do
Paralela à crença na racionalidade situa-se
XX, a arte ou os sistemas de auto-representa-
uma quase inquebrantável fé na possibilidade
Ção simbólica funcionaram para DuBois como
do progresso social. Contudo, os desafios de
um instrumento importante pelo qual os ne­
forjar uma identidade que conduza ao pro­
gros poderiam desenvolver um sentido de suas
gresso não se localizam nas grandes arenas das
potencialidades?0 relações sociais, presentes por exemplo no lo­
Sua intuição rclativa à Igreja enquanto uma
ca] de trabalho; ao contrário, situam-se no
matriz da cultura negra permanece válida para
107
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
crisol íntimo dos assuntos familiares. Conse- Mamãe Younger percebe que seus filhos
qüentemente, a formulação de um problema - dirigem-se para caminhos que ela não compre­
bem como os contornos das soluções possíveis ende nem pode aprovar. Ao humanismo de
— está colocada ao nível do indivíduo e não em Beneatha e à desesperada defesa da auto-sufi­
termos programáticos ou políticos. ciência econômica, acima de todos os outros
No que se refere ao conteúdo, tanto Awake valores, que caracteriza seu filho Walter, ela
and sing, de Clifford Odets, como Raisin in opõe o argumento de que a sacralidade da vida
the sun, <fe Lorraine Hansberry, focalizam fa­ — tal como exemplificada na fc cm Deus — e o
mílias da classe trabalhadora à beira de um desejo de liberdade são as bases da cultura ne­
colapso iminente em um superpovoado pano­ gra. Finalmente ela cede e dá a Walter o di­
rama urbano de pressão econômica e sonhos nheiro para investir na loja de bebidas, não
frustrados. Ambas centralizam-se em famílias porque concorde com o seu materialismo, mas
dominadas por mulheres que funcionam como porque compreende que continuar recusando
forças conservadoras a moderar o idealismo de significa negar a Walter a chance de se tornar
seus filhos adultos - particularmente os ho­ um homem nos termos que ele valoriza e que a
mens. E as duas peças sobrepõem a coragem sociedade branca respeita; significa destruir a
moral ao materialismo que o resto da socieda­ unidade familiar. Ao ajudar o filho a concreti­
de virtualmente encara como o novo deus. zar seu desejo, ela também parece estar cum­
Assim como em Awake and sing, o dinheiro prindo as aspirações de seu falecido marido,
de uma apólice de seguro de vida é o meca­ que aparentemente considerava o potencial re­
nismo pelo qual os sonhos podem aparente­ presentado pelos filhos como a única consola­
mente se realizar na peça de Hansberry. Cada ção para a opressão na América.
membro da família alimenta um sonho que o Mas Walter Lee é enganado por um de seus
coloca em conflito com os outros. Mamãe sócios e perde sua parte no negócio, bem como
Younger quer usar o dinheiro do seguro de o dinheiro reservado para a educação de Be­
seu falecido marido para tirar a família do neatha. A resposta da mãe aos novos aconte­
confinamento de um apertado apartamento cimentos é significativa, pois revela um modo
onde moram em Chicago. O filho adulto, de ser que W.E.B. DuBois identificara anos
Walter Lee, alimenta a fantasia de abandonar antes como originado em uma matriz africana.
seu emprego de motorista particular e investir Nesse momento de sério desapontamento, a
em uma loja de bebidas. A filha Benethea es­ mãe recorda, lenta e repetitivamente, a ima­
pera que o dinheiro lhe permita freqüentar a gem de seu marido, que trabalhara até a morte
escola de medicina. na busca do sustento para a família. Ela apela a
O que está em questão é algo mais do que Deus e é então quase reduzida a uma cantilena
os sonhos individuais: enquanto na peça de monossilábica. É possível imaginar o desem­
Odets uma imaginação limitada funciona como penho da atriz, a fazer movimento em círculo,
o principal impedimento para a (re)construção possivelmente arrastando os pés, gestos repe­
de um ego satisfatório, na obra de Hansberry tidos, linguagem e expressões guturais pro­
todos os três Youngers devem lutar contra o nunciadas ritmicamente, como para significar
peso da História na tentativa de forjar um fu­ um indivíduo lutando para dirigir suas próprias
turo. Uma apreensão de tempo quase ontoló­ energias e as forças sobrenaturais no sentido
gica - especificamente expressa como o desa­ de impedir o colapso de um mundo como até
fio de moldar uma coerência operacional a então concebera.
partir do legado rural do escravo africano - e Numa tentativa desesperada de se redimir,
o modo estrutural com o qual se enfrenta tal recuperando o dinheiro reservado para Be­
dilema situam a peça de Hansberry em um neatha, Walter resolve aceitar uma oferta de
quadro de cunho africano. compra feita por uma associação de proprie-
108 Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989
tários de imóveis que pretende impedir a famí­ contrando potencialidade feminina e divindade
lia de se mudar para um bairro de brancos on­ em meio à alienação e ao lixo.12 A obra dra­
de sua mãe comprara uma casa. Novamente se mática de Shange desenvolve-se de tal forma
coloca a idéia da continuidade com o passado, que o instinto de voar e a evidente transcen­
pois Waltcr deve decidir os termos nos quais dência na manipulação da dança, da música e
ele é de fato filho de seu pai (e digno do no­ da poesia tornam-se estreitamente vinculados
me). a uma determinação de luta contra forças de­
Dc novo, a encenação da crise tem ôm sumanas como o racismo, o colonialismo e
cunho africano, concretizando-sc cm palavras o imperialismo.13
ritmadas calculadas para dar forma às emoções
dc todos os presentes e romper os limites entre Certamente o território definido pelos con­
os vivos e os mortos. Inicialmente, Walter ta­ ceitos de máscara, dupla consciência, feminis­
teia em busca de uma ação apropriada. Seus mo e lutas de libertação é extensivo e conduz a
modos fazem lembrar, em essência, o canto de uma ampla variedade de esforços criativos no
oração africano, pois ele recita - embora he­ teatro negro americano. A desafiadora réplica
sitante - a história da família enquanto con­ de Sojourner Truth, Não serei eu uma mu­
texto e pretexto para a ação iminente. Presu­ lher?, apresentada em uma convenção de di­
mivelmente reunindo forças, Walter então in­ reitos da mulher em 1851, chama a atenção
voca especificamente a memória do pai, recor­ para a existência de uma realidade feminina
dando um episódio em que este quase matara negra que tem sido duplamente silenciada pelo
um homem que o desrespeitara. Em seguida, racismo e o patriarcalismo e enseja a articula­
tomando consciência do futuro, Walter intro­
ção de construções de gênero que promovam a
duz seu filho como a sexta geração de negros
justiça social. A análise de DuBois ainda cons­
que contribuiu para a construção da América.
titui um grande desafio, pois que investiga
Ao mencionar, assim, a sua linhagem, ele rea­
aqueles elementos que tornam característica a
firma sua humanidade básica. Aprende que a
cultura africana, que nos aliam aos outros
humanidade ou dignidade não é medida por
dentro da Diáspora africana e que tornam in­
indicadores externos como uma alta posição
dispensável uma reavaliação da definição de
social ou aquisições materiais mas, ao invés,
cultura nas Américas. Ao empreendermos
por um sentido de integridade pessoalmente
aquilo que é, de certa forma, uma arqueologia
definido, consistente com os valores morais
cultural, os comentários de Fanon relativos à
derivados do passado ancestral de cada um.
necessidade de sustentar a luta dos povos pela
liberdade operam como uma retificação contra
o que poderia de outro modo constituir um
romantismo obscuro que fossiliza os indiví­
Conclusões duos negros em uma região exótica e sem his­
tória. Ele argumenta:
Caso fosse analisar neste ensaio os demais
textos de autoria de Sojourner Truth e Frantz
Fanon relacionados ao feminismo negro e às “Nunca haverá uma coisa tal como cultura
atuais lutas de libertação, eu citaria as peças de negra, porque não existe um único político
Ntozake Shange como exemplos de aspectos que sente ter a vocação de promover uma
significativos de todos os quatro elementos da república negra. O problema consiste em
perspectiva de análise proposta. Shange não chegar a conhecer o lugar que esses ho­
somente retoma literalmente a máscara do me- mens pretendem dar a seu povo, o tipo de
nestral na peça de 1979, Spell n.7, como tam­ relações sociais que eles decidam organizar
bém disseca as relações homem-mulher, en­ e a concepção que têm sobre o futuro da

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 109


humanidade. É isto que conta; tudo mais é tas. Uma cultura de cunho africano c uma das
mistificação, nada significando.”14 maneiras pelas quais nós, filhos das Américas,
qualquer que seja nossa composição étnica es­
Libertação, dignidade humana, liberdade de pecífica, continuaremos a lutar, a fim de con­
lutar pelo próprio potencial - são estas as mc- cretizar aquelas aspirações.

NOTAS

1 Audre Lorde, “The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s Monse”, in Sister Outsider: Essays and
Speeches, Trumansburg, NY, The Crossing Press, 1984, p. 112. Ver, também, Nancy Hartsock, “Rethinking
Modernism: Minority vs. Majority Theories”, Cultural Critique, n.l, outono, 1987, p. 187-206. Sou grata ao
Professor Serge Bellei, da UFSC, cujas perguntas me alertaram para a necessidade de tornar explícita minha posi­
ção no que se refere à questão das teorias literárias pós-modernas e do Terceiro Mundo.

2 Paul Laurence Dunbar, “We Wear the Mask”, in Richard Barksdale c Kencth Kinnamon, cds., Black Writers
of America: A Comprehensive Anthology, Nova lorque, The Macmillan Company, 1972, p. 352 (primeira edição
em 1895).
3 W.E-B. DuBois, The Souls of Black Folk, Greenwich, Conn., Fawcct Publications, Inc., 1961, pp. 16-17
(primeira edição em 1903).

4 Sojourner Truth, “And Ain’t I a Woman?”, in Bert James Locwcnbcrg c Ruth Bogin, cds., Black Women in
Nineteenth Century American Life, University Park, Pennsylvania State University Press, 1976, p. 235 (primeira
edição em 1881).
5 Frantz Fanon, The Wretched of the Earth (trad. Constance Farrington), Nova lorque. Grove Press, Inc., 1968.
p. 235.
6 Robert C. Toll, Blacking Up: The Minstrel Show in Nineteenth Century America, Nova lorque, Oxford Uni­
versity Press, 1974, p. 28.

7 Eleanor W. Traylor, “Two Afro-American Contributions to Dramatic Form”, in Errol Hill, cd., The Theater
o/B/aa/^”cfl^I,Eng!eW^ Prentice-Hall, Inc., 1980, p. 51.

g William Wells Brown, “The Escape; or, A Leap for Freedom”, in James V. Hatch, cd.. Black Theater,
c A • Forty-Five Plays by Black Americans, 1847-1974, Nova lorque. The Free Press Macmillan Publishing
CO .IÍ-, >”4. PP- 30-58.

Ver Sandra L. Richards, “Bert Williams: The Man and the Mask”, Mime, Mask and Marionette, vol. 1, n. 1,
primavera, 1978, PP-7-24.

e Stuckey, Slave Culture: Nationalist Theory and the Foundations of Black America, Nova lorque,
£foX^P"^

Group Theatre produziu a maioria das peças de Clifford Odets durante a década de 30. Entre seus associa-
'* • famosos estavam Stella Adler, Harold Clurman, Cheryl Crawford, Elia Kazan e Lee Strasberg, que mais
dos ^^ juas das principais escolas de arte dramática nos Estados Unidos.
tarde funuou
zake Shange, For Colored Girls Who Have Considered Suicide When the Rainbow is Enuf, Nova lorque,
Macmillan p“blishin^

ake Shange, From Okra to Greens/A Different Kinda Love Story, St. Paul, Coffee House Press, 1984.
13 ^^z^ eaIKlra L. Richards, “Conflicting Impulses in the Plays of Ntozake Shange”, Black American Lite-
Ver também ? n 2, verão, 1983, p. 73-8.
rature Forum,
F Fanon, The Wretched of the Earth. . ., op. cit., p. 234-5.

Estudos Afro-Asidticos n-16,1989


110
SUMMARY

Towards an Analytic Framework for Black American Drame

Working within the traditions of Black American nialism and neo-colonialism.


culture, this paper proposes four concepts for use in The essay then proceeds to concentrate on the first
analyzing Black American drama. They arc: 1) the two concepts, the development of minstrelsy and Es­
mask which allows its wearer to function as a trickster cape, or a Leap to Freedom (1858), generally consi­
figure in relation to the larger society; 2) the sense of dered the first play written by a Black American, are
doublc-consciosncss or fractured identity as both an illustrative of the mask, while Lorraine Hansberry’s
American and an African; 3) die unique vantage point 1959 Raisin in rhe Sun indicates an affinity to both
of Black women, gained from their position in a ra­ American realism and aspects of African theatre. Nto-
cist, patriarchal society; 4) the necessary link between zakc Shange’s Sped 7 (1979) is mentioned briefly as
Black cultural expression and struggles against colo­ an example of the last two concepts.

RÉSUMÉ

A la Recherche d’un Cadre Analytique pour le Drame Américain Noir

Situé dans la tradition de la culture noire améri­ ture noire et le combat contre colonialisme ou le néo­
caine, cet article propose quatre concepts d’analyse colonialisme.
pour le drame américain noir: L’essai se concentre ensuite sur les deux premiers
concepts. Le développement du chant populaire et Es-
1) Le masque qui permet à son utilisateur déjouer cape, or a Leap to Freedorn (1858), qui est générale­
un double rôle vis à vis du reste de la société. ment considérée comme la première pièce écrite par
2) Le sens d’uns double conscience ou d’une iden­ un noir américain, constituent des illustrations du
tité fracturée (américaine et africaine); masque tandis que la pièce de Lorraine llansbcrry:
3) Le seul avantage pour les femmes noires, obte­ Raisin in the Sun (1959) indique une affinité avec le
nu de leur position au sein d’une société raciste et pa­ réalisme américain et aussi avec certains aspects du
triarcale. thétre africain. Spell 7 (1979) de Ntozake Shange est
4) Le lien nécessaire entre l’expression de la cul­ cité comme exemple des deux derniers concepts.

Escudos Afro-Asidticos n? 16,1989 111


IDENTIDADE E Focalizando a tarefa do teórico da litera­
tura comparada, Armand Nivelle afirma que
RUPTURA NO para tal estudioso não importa tanto aclarar
um fenômeno nacional, mas sim examinar sua
TEATRO DO posição em um movimento mais amplo c sobre
NEGRO* tal base “colocarlo dentro de este marco de
referencia en un lugar diferenciado y determi­
nar su función histórica y, teórica en esta tota-
lidad”.1
Leda Maria Martins** Esta afirmação de Nivelle sintetiza a minha
intenção de estudar a problemática de constru­
ção da identidade nos limites de um marco de
referência, o Teatro do Negro, que desempe­
nha uma função estética e ideológica singular
no contexto teatral do Brasil c dos Estados
Unidos. O lugar de referência é diferenciado:
a cena teatral do negro, e o foco também par­
ticular - a questão da identidade. Lugar e fo­
co, entretanto, não se distanciam de outras
questões complexas: a formação do sujeito, as
identificações, a alteridade e o descentramcn-
to, no conhecimento das quais cruzam-se, ne­
cessariamente, noções do universal e do parti­
cular, da semelhança e, sobretudo, da diferen­
ça.
A expressão Teatro do Negro é aqui utili­
zada para identificar certo tipo de peças, as
que têm o negro como macrossigno cênico e
cujos autores tentam problematizar a sua pre­
sença em cena como vetor de tensões. Assim
tomada, a expressão nos remete a uma produ­
ção singular no universo das convenções tea­
trais pela própria elaboração dessa macroima-
gem cênica pela construção de um significante
que, através da operação dos vários signos
dramáticos, desenvolve questões ligadas ao
preconceito racial, à formação da identidade
do negro e à veiculação e/ou dcssacralização
dos estereótipos, buscando soluções que ten­
tam romper com o modelo tradicional de fic-
* Trabalho apresentado na IV Jornada de Es­ cionalização do negro.
tudos Americanos da Associação Brasileira de Estarei, portanto, nesta reflexão, privile­
Estudos Americanos, 25-27 de maio de 1988, giando o que singulariza essa produção, o seu
Mariana (MG). estatuto de diferença, acompanhando a meta­
morfose cênica que aí se opera, onde se fabula
** Professora de Teoria Literária da Universi­ o problema da descoberta e reconhecimento
dade Federal de Ouro Preto. do Eu e do Outro.
112 Estudos Afro-Asiâticos n- 16, 1989

4.
Nessa dialética, a encenação apóia-se fre- gro é o Outro diferente, sendo a diferença aí
qüentemente na tensão que emerge das rela­ traduzida pelos estereótipos negativos que o
ções inter-raciais, privilegiando a problemática identificam. As peças figuram a personagem
de formação da identidade do negro criada negra como um signo cujo poder de signifi-
pela identificação ou negação de uma imago cância reduz-se ao paradigma. Em O demônio
elaborada pelo imaginário do branco. familiar, de José de Alencar, por exemplo, po­
demos apontar alguns atributos colados à
Na apresentação de sua peça Os negros,
personagem Pedro: réptil venenoso, presença
Jean Genet declara:
maléfica, ladrão, mentiroso, fofoqueiro, ladi­
“Numa noite um ator pediu-me que escre­ no, cínico ambicioso, ingrato etc. Uma fala da
vesse uma peça para um elenco todo negro. personagem branca Eduardo é talvez mais ex­
Mas o que é exatamente um negro? Em pressiva:
primeiro lugar, qual a sua cor?”2
Eduardo: “Já soube de tudo, uma maligni­
Essa provocação de Genet suscita uma sé­ dade de Pedro. É a conseqüência
rie de indagações quanto ao sentido dos signos de abrigarmos em nosso seio es­
negro e branco na definição de diferenças ra­ ses répteis venenosos. Quando
ciais. Na cena social, como na cena teatral, ne­ menos esperamos nos mordem o
gro e branco não seriam máscaras às quais co­ coração.”4
lamos significados convencionais? Assim, sa­
ber o que é um negro não seria decodificar a Mesmo quando tentam figurar a persona­
máscara que o torna negro? Construir um gem menos pejorativamente, os teatrólogos
drama negro não seria, como faz Genet em sua caem no laço dos estereótipos, ressaltando
peça, sobrepor máscaras? Ao se perguntar o então o grau de embranquecimento cultural
que é um negro, Genet nos questiona também: das personagens que assimilaram valores con­
siderados exclusivos da raça branca. É o caso
como identificamos um negro? como o negro
se identifica? qual a sua identidade? de assinalarmos o mito do pai-joão, do negro
submisso e dócil, que transparece em peças
Segundo André Green, “la identidad está
como O escravo fiel, de Carlos Antônio Cor­
ligada a la noción de permanência, de mante-
deiro; O cego, de Joaquim Manuel de Macedo;
nimiento de puntos de referencia fijos, cons­
Mãe, de Alencar; e Liberato, de Arthur Aze­
tantes, que escapam a los câmbios que pueden
afectar al sujeito e ao objeto en el curso dei vedo, por exemplo.
tiempo”.9 Na manipulação dos estereótipos, o teatro
brasileiro apóia-se num argumento de autori­
No teatro brasileiro, até as primeiras déca­
dade que estabelece, a priori, um valor negati­
das do século XX, o retrato do negro gera-se
vo para a raça negra, símbolo de inferioridade.
de uma matriz: o branco e a ideologia do em-
A experiência da alteridade, no caso, reduz-se
branquecimento. Não apenas por serem bran­
à negação da diferença e a criação cênica dessa
cos os autores, mas por seu centramento numa
visão de mundo antropocêntrica em que o imago compactua com os valores de uma so­
Outro (no caso, o negro) só é reconhecível a ciedade racista. Numa relação especular com o
partir de uma comparação projetada de um Eu imaginário social, o teatro veicula o fetiche da
brancura e de uma ideologia racial assimilacio-
(branco) que se encena sujeito universal, uno e
absoluto. nista.
No palco brasileiro, e freqüentemente no Segundo Jurandir Freire Costa, na socieda­
americano, o negro é identificado sob pontos de brasileira, a formação da identidade do su­
de referência fixos, numa rede semiótica que jeito negro dá-se “através da internalização
veicula o fetiche da brancura. Em cena, o ne­ compulsória e brutal de um Ideal de Ego bran-
113
Estudos Afro-Asidticos n-16,1989
co”, sendo que o “modelo de identificação
ral, o discurso senhorial, sinal característico,
normativo-estruturante com o qual ele se de­
segundo Albert Memmi, da “despersonaliza -
fronta é o de um “fetiche”: o fetiche do bran­
ção do dominado”. Esse “jamais é caracteriza­
co, da brancura”. O autor acrescenta:
do de maneira diferencial: só tem direito ao
“O fetichismo em que se acentua a ideolo­ afogamento no coletivo anônimo”.7 O teatro
gia racial faz do predicado branco, da bran­ não causa assim nenhum estranhamento no es­
cura ‘o sujeito universal e essencial’, e do pectador, que se defronta com paradigmas
sujeito branco um predicado contingente e perfeitamente reconhecíveis e familiares.
particular”.6 No Brasil e nos Estados Unidos, o Teatro
do Negro, que emerge principalmente na se­
O teatro do Brasil até o século XIX repete
gunda metade do século XX, confronta a pla­
a sintaxe que estrutura esse modelo social, não téia com uma mudança de dicção fundamental.
produzindo modificação na função das inva­ No Brasil, em 1944, Abdias do Nascimento
riantes: a personagem branca vê-se como su­ idealiza o Teatro Experimental do Negro
perior e ao negro como inferior. A persona (TEN), que, até o final da década de 60, revi­
negra introjeta essa categorização e também
taliza a cena teatral brasileira. Nos Estados
repete o modelo em simulacro. Branco e ne­ Unidos, o Teatro Revolucionário do Negro, de
gro, nessa estrutura binária, tornam-se signos Imamu Amiri Baraka (LeRoi Jones), atua os­
polares e antagônicos. O signo tem assim
tensivamente na redefinição da problemática
abafado o seu caráter indiciai e torna-se sím­
do negro elaborada pelo teatro.
bolo. E lei, norma, paradigma.
Ainda que inserido formalmente na tradi­
Reforçando o fetiche da brancura e veicu­
ção teatral do Ocidente, cujas convenções são
lando os paradigmas sociais ligados a noções
reconhecíveis e reconhecidas desde Aristóte­
de raça e cor, a construção das personagens
les, o Teatro do Negro opera uma mudança
ancora-se numa ilusória noção de sujeito: no
muitas vezes radical no movimento cênico do
proscênio, a máscara branca como espelho do
signo negro. Essa ruptura provoca certo des-
bem e do belo; na periferia da cena, a máscara
centramento, deslocando o papel da persona
negra, uma caricatura da branca, um pastiche
negra e a função de sua fala, agora investida
onde se desenha o mal e o feio.
de uma atitude enunciadora que prima pela
No processo de enunciação, a fala do negro desmitificação de modelos sacralizados pela
e sobre o negro produz-se num lugar fora de tradição teatral.
si mesmo, num outro lugar, no discurso do Na peça Dutchman, de Baraka, por exem­
branco, senhor de um saber que se quer abso­ plo, encenar a problemática da identidade do
luto. A fala do negro nesse teatro nunca é sua sujeito negro é dramatizar o discurso da nega­
voz e menos ainda seu discurso. O texto dra­ ção. Deslocando-se da função de sujeito enun­
mático enuncia e pereniza o paradigma do ne­ ciado, a personagem negra apossa-se da enun­
gro objeto. Segundo Flora Süssekind, a perso­ ciação do discurso, desrealizando sua constru­
nagem negra, no teatro do século XIX, fun­ ção estereotipada. A desconstrução do mito
ciona “quase como um elemento do cenário, negro realiza-se nessa peça pela ironia cres­
como alguém que entra e sai, responde no que cente nas falas do negro, que ridiculariza as
se lhe é perguntado, e obedece às ordens rece­ metáforas e símbolos com que tentam rotu­
bidas. Rouba-se-lhe assim a possibilidade de lá-lo, desmontando-os em sua natureza de
ao menos, ficcionalmente, comportar-se como construção imaginária, de convenção ideológi­
sujeito dc suas ações”.0 ca.
Nesse panorama, a cena teatral para a per­ Cônscio do jogo da enunciação que mantém

sonagem negra é o lugar dc um discurso plu- com sua antagonista branca, o protagonista
Clay emite suas falas como uma réplica que
114
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989

■1
devolve à personagem branca um significante Emanuel: “(...) Ainda apontam suas armas
vazio. O significante, em muitos momentos da inúteis(...) [sorri]. Não sabem que
peça, flutua sem ancorar-se no significado, recuperei meu tom de voz (...) ig­
que foi barrado, interditado. O sentido este­ noram que reencontrei minhas
reotipado desliza assim sem encontrar refe­ próprias palavras no meu Exu
rente. Através da ironia, a personagem negra que resgatei.”0
apossa-se do discurso do outro, não para in- Esse “tom de voz” é o que enuncia, ao ní­
trojetá-lo, assimilá-lo, mas para desrealizá-lo, vel do discurso, a nova dicção da personagem
devolvendo-o ao seu emissor desvestido do e do próprio Teatro do Negro.
seu sentido original, num efeito bumerangue:
Em Anjo negro, Nélson Rodrigues joga
Clay: Are you going to the party with me com o caráter convencional dos signos, cho­
Lula? cando a platéia com a flutuação semântica das
Lula: (Bored and not even looking) cores negra e branca. O sentido deixa de ser
I don’t even know you. um pré-dado fixo, absoluto, sendo construído
Clay: You said you know my type de acordo com a oscilação e capacidade de
Lula: (Strangelly irritated) percepção e de apreensão da realidade por
Don’t get smart with me, Buster. parte das personagens. A oscilação cênica dos
I know you like the palm of my hand. macrossignos negro e branco desmascara a
Clay: The one you eat the apples with?8 ilusão dos paradigmas (mostrando-os como
ilusão mesmo) e desfaz a visão maniqueísta,
Manipulando o caráter convencional e ar­
que vê na brancura o signo do bem e na ne­
bitrário do símbolo, o autor provoca ora uma
grura o signo do mal.
hesitação no conteúdo semântico ancorado aos
signos negro e branco, ora inverte esse mesmo Na alegoria da peça, a noção de negativo e
sentido, deslocando para os signos da brancura positivo desloca-se dinamicamente entre os
os atributos pejorativos. protagonistas, Virgínia e Ismael, não se fixan­
Esse descentramento no nível da linguagem do em nenhum dos dois. O significado ancora-
possibilita uma reorganização dos significantes se principalmente na relação que os une e no
dramáticos que constroem a persona negra. contexto que os constitui. Assim, qualquer
Na medida em que reconhece o poder de significado anteriormente preso às cores negra
construção e desconstrução da linguagem, a e branca torna-se ilusório, na medida em que a
personagem negra recusa referendar um dis­ criação de sentido e sua veiculação, na peça,
curso que quer constituí-lo à sua revelia, alie­ não se desvinculam da inscrição do desejo.
nando-o do seu desejo. Em algumas de suas melhores realizações, o
Em Sortilégio, de Abdias do Nascimento, à Teatro do Negro, no Brasil e nos Estados
recusa do estereótipo e da identidade forjada Unidos, opera uma ruptura, provocando um
no assimilacionismo segue-se a eleição de nova rico estrago nas convenções cênicas tradicio­
imago de identificação para a personagem, nais. Na desconstrução da metáfora da bran­
centrada na herança africana. A recuperação, cura como modelo obrigatório de identificação
a aprendizagem de uma memória cultural, an­ do negro, esse teatro realiza o que Deleuze e
tes abafada pela amnésia da assimilação, pro­ Guattari denominaram de “literatura menor”,
cessa-se no personagem Emanuel não apenas que “não é a de uma língua menor, mas antes o
pela reincorporação do substrato mítico- que uma minoria faz em uma língua maior”,
religioso mas, fundamentalmente, pela emissão sendo “a língua aí modificada por um forte
de um discurso que revela, na natureza da coeficiente de desterritorialização”.10
enunciação, o ritual de reconstrução da pró­ Via discurso cênico, o Teatro do Negro
pria personagem, ao longo da peça. provoca esse descentramento e postula uma
Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 115
nova sintaxe na fabulação do negro, critica-
sujeitos. Sua singularidade está, assim, em en­
mente diferenciada de produções anteriores. A
cenar a identidade enquanto um discurso, uma
desconstrução do modelo plasmado na supre­
linguagem que, em sua articulação, na relação
macia da brancura adquire assim uma função da rede de significantes, cria seus próprios
política em termos de uma coletividade: a mi­
significados. Nesse sentido, negro e branco
noria negra. “Toda literatura menor é políti­
sao máscaras, convenções, efeitos de lingua­
ca”, segundo Deleuze e Guattari. “Tudo nela gem.
tem„Um car^ter político-coletivo de reconstru­ _ Dessa forma, no Teatro do Negro o sujeito
ção” e de “enunciação coletiva”.’1
não existe fora de um contexto e de um pro­
Essa função política revela-se uma marca
cesso de construção. O sujeito negro só se tor­
distintiva, não apenas nas peças, como também
na possível como elaboração em relação a ou­
nos textos teóricos dos ideólogos do Teatro do
tros sujeitos, logo sua identidade é sempre
Negro, que fazem do teatro um veículo de
rearticulada também em processo, no jogo da
disseminação de uma contra-ideologia, pro­
enunciação. Construir, portanto, uma identi­
movendo uma fenda estrutural na história de
dade negra, quer para a personagem, quer para
nccionalização dramática do negro.
Ao publicar a primeira antologia de peças o teatro, é elaborar, inventar, um novo dis­
do Teatro Experimental do Negro no Brasil, curso, com novos centros de referência.
O Teatro do Negro encena, portanto, um
Tfm961’ A^dias do Nascimento apontava o
sujeito em processo, cuja identidade não é pa­
■^°mO Um ins^mento no processo da
consciência negra”, por via do qual recusa- radigmática mas de contornos deslizantes. As­
va-se a “assimilação cultural, a miscigenação sim o reconhecimento de ser negro e de uma
possível ou impossível individualidade advém
jSdlda’ a humilhação, a miséria e a servi-
imamu Amiri Baraka, nos Estados também do reconhecimento do Outro, do dis-
m os, define o seu Teatro Revolucionário curso-outro que se quer desconstruir.
como um teatro político, que deve acusar e A experiência de ser negro, ou de tornar-se
atacar tudo o que merece ser atacado. Para n^ro’ encenada por esse teatro, exige a expe­
riência da alteridade como valor. Nesse drama,
esse autor o Teatro do Negro deve ser:
o Teatro do Negro encena o que a psicanálise
A weapon to help the slaughter of these e a antropologia há muito também nos repe­
dimwitted fatbellied white guys who some- tem: o conhecimento do Eu e a formação da
how believe that the rest of the world is identidade passam necessariamente pela des­
here for them to slobber on.’”3 coberta do Outro e pelo reconhecimento da
alteridade. Se o palco do século XIX encenava
Nessa tentativa de usar o palco como vetor
a ilusão de um sujeito branco absoluto, agente
de modificação da cena teatral e do imaginário
e senhor de todos os destinos, e de um sujeito
social, o Teatro do Negro, em suas mais ricas
negro grotesco e caricatural, o Teatro do Ne­
realizações, encena toda a problemática da
gro desmascara essas convicções, mostrando -
constituição do sujeito, rearticulando as no­
ções e critérios de valor colados aos signos ne­ as como na verdade são: máscaras e modelos
que podem ser remodelados e, principalmente,
gro e branco. Numa atitude dialética, que
substituídos. Nesse teatro, fazer deslizar o sig­
rompe com a noção de sujeito absoluto e de
nificado estereotipado é construir um discurso
substantivação das diferenças, esse teatro re­
que prima pelo deslocamento dos enunciados
conhece o caráter de construção e de encena­
pré-estabelecidos e pela, eleição de uma enun­
ção que subjaz à formação da identidade dos
ciação desmitificadora.

116
Estudos Affo-Asiáticos n-16,1989
NOTAS

1 Armand Nivelle, “Para qué sirve la literatura comparada’’, in'. Manfred Schmeling, org.,Teoria y praxis de la
literatura comparada. Barcelona, Ed. Alfa, 1984, p. 208-209
2 Jean Genet, The bracks: a clown show. Nova Iorque, Grove Press, 1977, p. 3. (A tradução do trecho citado é
da autora do artigo.)

3 André Green, “Atomo de parentesco y relaciones edipicas”, in: Claude Lévi-Strauss, org., La identidad, se­
minário. Barcelona, Ed. Petrel, 1981, p. 88.

4 José de Alencar, O demónio familiar, in:_Obras completas Rio de Janeiro, Ed. José Aguilar, 1960,
p.101-102.

5 Jurandir Freire Costa, "Da cor ao corpo: a violência do racismo” (prefácio), in: Neuza Santos Souza, Tornar-
se negro. Rio de Janeiro, Graal, 1983, p. 3-4.
6 Flora Süssekind, O negro como arlequim. Rio de Janeiro, Achiamé-Socii, 1982, p. 19.

7 Albert Memmi, Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. 2? ed., Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1977, p. 69.

8 Imamu Amiri Baraka, Dutchman, in: Selected plays and prose. Nova Iorque, William Morrow and
Co., 1979, p. 31-32.

9 Abdias do Nascimento, Sortilégio II 2!ed., Rio de Janeiro, PazeTerra, 1979, p. 133.

10 G. Deleuze e F. Guattari, Kafka;por uma literatura menor. Rio de Janeiro, Imago, 1977, p. 25.

11 Idem, p 27.
12 Abdias do Nascimento, prefácio, in:et alii. Dramas para negros e prólogo para brancos. Rio de Ja­
neiro, TEN, 1961, p. 32.

13 Baraka, op. cit., p 130-131.

SUMMARY

Identity and Breakthrough in Black Theater

This article offers a brief analysis of the identity cuses on the breakthrough which resulted from the
of the black “persona” in Brazilian and American new fictional representation of Blacks in Black Thea­
theater. Utilizing a comparative approach, the text fo­ ter productions in both countries.

RÉSUMÉ

Identité et Rupture dans le Théâtre de la Négritude

Ce travail présente une brève réflexion sur la de la négritude dans le traitement que la fiction donne
question de l’identité de la “persona” noire du théâtre à l’élément noir au sein de la dramaturgie de ces deux
brésilien et américain. Par une analyse contrastive, le pays.
texte met en relief la rupture provoquée par 1 théâtre

Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989 117


NEGÓCIOS DA 1. À guisa de introdução: Carlota,
a imprestável
ESCRAVIDÃO: OS
Em abril de 1881, Manoel Talhão começa
NEGROS E AS uma ação cível contra Manoel Vianna com o
TRANSAÇÕES DE objetivo de anular a compra que havia feito de

COMPRA E VENDA* uma escrava de nome Carlota, preta, africana,


com 50 anos de idade, c que lhe havia custado
quinhentos mil-réis.1 Talhão estava arrepen­
dido do negócio que fizera, já que Carlota
Sidney Chalhoub** “declara que é livre, e que não serve a
pessoa alguma, nem é possível fazê-la
prestar serviços, porque recusa-se a isso, e
foge constantemente, o que a torna im­
prestável”.

Talhão alega ainda que Vianna, o réu e


vendedor da escrava, sabia que a preta estava
se comportando dessa forma e nada fizera
para convencê-la da legitimidade da transação
que lhe dera um novo senhor. Apesar do pa­
gamento dos quinhentos mil-réis já ter sido
efetuado, a escritura de venda ainda não havia
sido passada, o que permite a Talhão tentar
anular a compra, com a devolução da escrava
ao antigo dono e a restituição do dinheiro pa­
go. O comprador decepcionado venceu na Ia
Vara Cível da Corte, mas o réu recorreu ao
Tribunal da Relação, sendo que o resultado do
recurso não consta dos autos.
O réu Vianna, afinal, tinha o que alegar em
sua defesa. Ele argumentou que a escritura de
venda não havia sido feita devido ao pedido do
próprio comprador, que desejava primeiro sa­
ber se a preta lhe servia. Isto é, Talhão efetuou
o pagamento e exigiu apenas o recibo; ele es­
tava decidido a ficar com a preta por uns tem­
pos, mas se esta não lhe servisse seria passada
a outra pessoa. A escritura de venda não fora
feita para evitar despesas com o imposto de
transferência da propriedade escrava, isto caso
* Trabalho apresentado na IV Jornada de Es­ Talhão não ficasse satisfeito com Carlota e de­
tudos Americanos da Associação Brasileira de cidisse revendê-la. Vianna afirma ainda que
Estudos Americanos, 25-27 de maio de 1988, Carlota não tinha o hábito de fugir e que agira
Mariana (MG). assim devido aos castigos que recebia do novo
senhor. Restam, finalmente, as razões da pró­
*♦ Professor do Departamento de História da pria preta velha, que dizia que um senhor an­
Unicamp. terior a esses dois lhe havia deixado forra e
118
Estudos Ajro-Asiáticos n- 16, 1989
por isso ela era livre e não servia a mais nin­ sugere que, na cidade do Rio de Janeiro, pelo
guém, vivendo aos gritos dentro de casa e fu­ menos nas últimas décadas da escravidão, os
gida sempre que possível. escravos procuravam muitas vezes intervir nas
Há muitos caminhos que podemos seguir se transações de compra e venda no sentido de
quisermos tentar uma análise exaustiva do não servir a senhores que os desagradassem ou
caso dessa escrava que se fez imprestável. No em locais para onde não desejassem ir. A re­
entanto, vamos nos preocupar aqui apenas clamação de Talhão de que o réu Vianna, sa­
com dois aspectos interligados que o caso nos bendo das atitudes de Carlota, “nunca procu­
sugere. Primeiro, há o problema das percep­ rou convencer a dita preta da legitimidade do
ções e das atitudes dos escravos diante da si­ seu domínio” é bastante significativa. Carlota
tuação da transferência de sua propriedade de era uma propriedade sui generis, que precisava
um senhor para outro. Aparentemente, o pro­ ser convencida de sua transferência.
blema do mercado interno de escravos na se­ O outro aspecto instigado pela história de
gunda metade do século XIX é apenas uma Carlota - que, como vimos, se dizia liberta — é
questão de números, possível de ser apreendi­ tentar compreender as concepções e expecta­
da a partir da regrinha mágica da oferta e da tivas dos negros escravos em relação à alfor­
procura. Os escravos iam e vinham como tes­ ria. A partir da década de 1870, e principal­
temunham as escrituras e ao talante de senho­ mente na de 1880, a esperança de alforria au­
res mais ou menos racionais porque mais ou mentou continuamente para os escravos da ci­
menos iluminados por uma tal lógica capita­ dade do Rio e tal possibilidade passou a ser
lista ou lógica de mercado. Não acho necessá­ sem dúvida algo de essencial nos planos de vi­
rio retomar neste contexto as sólidas críticas já da dos negros cativos.3 São vários os exem­
feitas aos debates historiográficos a respeito plos de escravos, algumas vezes casais, que se
dos diferentes graus de racionalidade capita­ auxiliam e buscam solidariedades no sentido de
lista do qual estariam supostamente imbuídos constituir um pecúlio que lhes permitisse com­
senhores de escravos em várias regiões do prar sua liberdade a seus senhores. Também se
País. Robert Slenes já mostrou que a história toma cada vez mais freqüente que senhores
do mercado de escravos não se entende apenas concedam alforrias, talvez devido à desvalori­
a partir de cálculos econômicos, mas que tal zação da propriedade escrava (principalmente
história também compreende o problema das na década de 1880), ou talvez devido à in­
percepções dos senhores a respeito da estabili­ fluência da propaganda abolicionista. Não im­
dade futura da escravidão e de suas estratégias porta se por esses ou por outros motivos, o
e apostas políticas em momentos e situações fato é que nessas últimas duas décadas da es­
específicas.2 cravidão a possibilidade da liberdade fazia
O que o caso Carlota (A Imprestável) su­ parte, mais do que nunca, do horizonte dos
gere, porém, é que o quadro pode ficar ainda negros da Corte. É importante, por conse­
mais complicado. Há questões políticas “mi­ guinte, tentar compreender - e mesmo que
núsculas” também a considerar nas situações isso só seja feito aqui de forma bastante indi­
de compra e venda de escravos. Carlota arrui­ cativa e fragmentária - qual o significado da
na a transação entre Talhão e Vianna porque
liberdade para os negros.
não se conforma com ela e não se deixa con­
vencer de sua legitimidade. O primeiro objeti­
2. José Moreira Velludo, comerciante
vo deste pequeno artigo é construir o cenário
que nos permitirá entender as atitudes e per­
de escravos
cepções de Carlota no episódio, diluindo sua Os arquivos judiciários - e mais especifi-
dimensão individual e colocando as ações da camente os processos cíveis e criminais - nos
negra numa rede mais ampla de valores e sig­ permitiram reconstituir alguns momentos vi­
nificações. Ou seja, a documentação analisada brantes da vida de um comerciante dc escra-
Estudos Afro-Asiàticos n-16,1989 119
vos, o português José Moreira Velludo, que sem aproximadamente os mesmos pagos na
tinha quarenta e tantos anos no início da déca­ compra desses cativos, ainda assim a sociedade
da de 1870, quando o encontramos pela pri­ obteria um lucro superior a cinco contos de
meira vez. As várias situações nas quais apare­ réis, sujeitos ainda a despesas diversas.
ce Velludo talvez nos esclareçam alguns pon­ Mas Queiroz e Velludo jamais conseguiram
tos das negociações de escravos realizadas se entender sobre as contas da sociedade.
através de casas de comissões. Em maio de 1871, exatamente um ano após
Francisco Queiroz, português, casado, cai­ o início da aventura, Queiroz entra com uma
xeiro, de 43 anos, foi procurado em abril de ação na 2S Vara Comercial alegando que Vel­
1870 por um tal Bustamante, que em nome de ludo estava “de posse de todas as quantias” e
Velludo lhe propôs uma sociedade para a ven­ não queria “dar ao Suppe a parte que toca
da de um lote de vinte e tantos escravos em nessa sociedade”. Ele pede ainda que os livros
municípios da Província do Rio e de Minas de Velludo sejam examinados por peritos.
Gerais.4 Queiroz se interessou pelo negócio e Nos meses seguintes, os dois homens fazem
alguns dias depois foi acertar os detalhes com e refazem seus cálculos com uma profusão de
Velludo na Rua dos Ourives, ns 221, onde fi­ minúcias e de truques que só é possível se­
cava o escritório do comerciante. A proposta gui-los com muita atenção e paciência. Quei­
era para que Queiroz viajasse com os escravos
roz achava que Velludo lhe tinha de pagar um
e realizasse as vendas nos municípios de serra
conto e quatrocentos e vinte mil-réis, en­
acima, ficando Velludo encarregado de forne­
quanto Velludo descobria a seu favor um saldo
cer todo o equipamento para a viagem e de in­
de um conto e cento e vinte mil-réis.
vestir o capital necessário para a compra dos
Vários fatores explicam essas diferenças
escravos que comporiam o lote. Os lucros ou
nos cálculos dos dois homens: um escravo que
perdas seriam divididos meio a meio.
Queiroz dava como vendido, Velludo alegava
Queiroz inicia sua aventura em maio de
que fora devolvido pelo comprador porque ele
1870, conduzindo 24 escravos no valor total se achava doente; Velludo não conseguiu re­
de trinta e cinco contos e setecentos mil-réis. ceber um vale de um conto e novecentos
Seguem com o viajante três animais, duas mil-réis dado pelo comprador de uma preta do
bestas e um macho, além de tudo o mais para a lote, comprador este que acabou aparecendo
viagem, como duas mudas de roupa para os na Corte conduzindo a dita preta e informando
negros, mantas, carapuças, camisas de baeta, que a rejeitava por ter sido iludido na compra;
esteiras, um caldeirão, canecas, pratos, café,
havia também divergências sobre os preços de
açúcar, um vidro de pronto alívio etc. Nas
Leopoldina e Antônia, escravas devolvidas por
contas de viagem do réu consta o pagamento Queiroz; e, finalmente, um escravo que Quei­
de salários a apenas um empregado, aparecen­ roz dava como devolvido, Velludo afirmava
do também algumas entradas de despesas com que estava era fugido. Os meandros da ques­
ajudantes ocasionais. tão incluíam ainda outros exemplos de escra­
Pela correspondência de Velludo, sabe-se vos que não satisfazem seus compradores e
que Queiroz estava no caminho de volta, com são devolvidos, para serem vendidos nova­
quase todos os escravos vendidos, em agosto mente logo adiante, e verdadeiras pechinchas a
de 1870. Ao todo foram vendidos vinte cati­ respeito do preço de cangalhas, bestas e miu­
vos, no valor de trinta e cinco contos e tre­ dezas que haviam sido utilizadas na viagem.
zentos e trinta mil-réis, sendo que os negros É óbvio que um negociante próspero como
restantes foram devolvidos a Velludo. Velludo sai sem muitos arranhões de uma
À primeira vista, a operação dera um lucro questão como essa. O juiz declarou improce­
razoável, pois com a venda dos últimos escra­ dentes as razões de Queiroz, apesar das irre­
vos na casa de comissões de Velludo, e mesmo gularidades que os peritos constataram nos li­
que os preços obtidos em tais transações fos­ vros do dpno da casa de comissões. E mesmo

120 Estudos Afro‘Asiáticos n-16,1989


que essa operação não tenha dado o lucro es­ cípios de serra acima dois anos antes. No dia
perado, os depoimentos das testemunhas nos 18 de março de 1872, o Jornal do Conunercio
autos fazem referências a outros empreendi­ noticiava na primeira página a ocorrência de
mentos semelhantes de Velludo na mesma um “grave atentado”. Mais de vinte escravos
época. Essas operações deviam ser vantajosas vindos do Norte para serem vendidos “por
na maioria das vezes, pois em 1878 ainda en­ conta de seus senhores” haviam agredido José
contramos Velludo no mesmo ramo de negó­ Moreira Velludo em sua casa de comissões na
cios e aparentemente na mesma prosperidade. tarde anterior. O jornal afirma que os escravos
Nesta época ele dividia uma casa de comissões queriam assassinar o negociante e só não con­
com João Barbosa na Rua da Prainha, n2 104. seguiram seu intento devido à intervenção de
Barbosa ficou em apuros para pagar uma letra um empregado do mesmo, de nome Justo.
no valor de 12 contos de réis, protestada por Ainda segundo o jornal, o comerciante havia
Manoel Guimarães. Velludo, então, fez uma ajustado a venda de vários desses cativos para
“transação” com Guimarães e este desistiu da o interior e, talvez porque eles não desejassem
ação judicial, e uma das testemunhas afirma ter este destino, combinaram e executaram a
que Velludo ficara com a casa de comissões da agressão. Velludo ficara gravemente ferido,
mas até aquele momento não corria perigo de
Rua da Prainha só para si.B
A leitura desses processos comerciais, com vida. O subdelegado de Santa Rita teve de pe­
dir o auxílio de uma força de fuzileiros navais
os escravos aparecendo sempre como custos
ou lucros, valendo tantos contos de réis e nada para cercar a casa da Rua dos Ourives e con­
mais, nos mostram a face mais cruenta das duzir para a prisão 29 escravos.
transações de compra e venda de escravos. O processo criminal que se seguiu ao aten­
tado nos permite penetrar nà casa de negócios
A lógica do lucro parece aqui impenetrável a
de Velludo a partir de ângulos bastante dis­
qualquer outra lógica e os nomes dos escravos
tintos daqueles possibilitados pela análise das
são nesses manuscritos como que simples
apêndices de seus preços. Mas esses papéis ações de cunho comercial.® Constam dos autos
os depoimentos de não menos do que 24 es­
também nos informam, e isto somente porque
cravos. Um dos depoentes é o crioulo Cons-
tais informações interferem diretamente nos
tâncio, escravo de Guilherme Teles Ribeiro,
cálculos dos débitos e haveres de cada um, que
há escravos que fogem e que decepcionam natural da Província do Rio, de 22 anos pre­
sumíveis, solteiro, analfabeto, carroceiro, e
seus compradores, provocando assim a anula­
ção de várias negociações. Essas e outras in­ filho de Silvestre e de Isabel. Ele dá sua versão
formações registradas a contragosto nos per­ dos fatos com detalhes:
mitem entrar no mundo de Velludo pela porta “que há cinco meses está em casa de José
dos fundos. Moreira Velludo para ser vendido e que lo­
go que aí chegou os outros escravos come­
3. Bonifácio e seus companheiros, çaram a falar que era preciso darem panca­
os embrutecidos das em Velludo porque era muito mau e
que só assim sairiam do poder dele; que
Velludo teve motivos para ficar contente ontem Bonifácio crioulo convidou ao in­
em 27 de maio de 1872, quando o juiz da 25 terrogado para unir-se a ele e a outros
Vara Comercial considerou a ação movida por companheiros para matarem a Velludo e
Queiroz “improcedente e não provada”. Por o interrogado concordou; isso devia ter lu­
essa ocasião, porém, Velludo já tinha passado gar na hora em que Velludo descesse para
por apuros maiores na mesma casa da Rua dos curar o preto Thomé; que hoje à tarde es­
Ourives, n2 221, onde tinha seu negócio na tando Velludo curando tal preto, seguiu
época e de onde partira Queiroz para os muni­ para o lugar em que ele estava o preto Bo-
121
Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989
nifácio e estando o interrogado no quintal do ataque e a primeira pancada. Parece tam­ mesmo senhor. Essa circunstância talvez ajude Velludo age rápido: no dia 15 de abril, por­
ouviu barulho de bordoadas e gritos de bém ter havido o cuidado de não deixar que a explicar o entrosamento e o sigilo consegui­ tanto quase um mês após a agressão, ele entra
Velludo então para lá correu e viu Velludo escravos suspeitos de lealdade a Velludo des­ dos no movimento. Além disso, é possível que com uma petição na qual explica que “dois ou
caído no chão e muitos dos acusados dan­ confiassem de que algo estava para acontecer: existissem laços de solidariedade ou parentes­ três escravos” lhe haviam ferido levemente
do-lhe bordoadas, entre os quais o preto Thomé, por exemplo, escravo da vítima, diz co entre esses negros que os motivassem à e solicita um exame de sanidade para compro­
Marcos que dava com uma palmatória dan­ que “não sabia se tinham se combinado os ação. var sua afirmação; os médicos fizeram um no­
do-lhe pela cabeça e pelo corpo; então ser­ pretos para fazerem mal a seu senhor, pois que Seja qual for o sentido de comunidade que vo exame e concluíram que os ferimentos ha­
vindo-se o interrogado de um pau curto se soubesse o teria prevenido”; e Jacinto, um esses escravos tenham experimentado entre si, viam sido graves mesmo, sendo que a vítima
que consigo levava deu em Velludo duas dos acusados, tenta se livrar da situação dizen­ o fato é que reagiram contra uma situação na ainda necessitava de uns dez dias para ficar re­
cacetadas no pescoço e nessa ocasião inter­ do que não sabia que os pretos tentariam ma­ qual não lhes fora deixado qualquer espaço de cuperado.
vindo o caixeiro a favor de Velludo, deu- tar Velludo, “porque se soubesse teria contado manobra. Esse pode ser o ponto fundamental De qualquer forma, o juiz de direito en­
lhe o interrogado duas cacetadas e depois carregado da pronúncia achou que a lei de 10
ao preto Thomé para este contar ao senhor”. nesse contexto. Como veremos ainda em ou­
fugiu para o quintal onde foi preso.” tros exemplos, era comum que os escravos de junho de 1835 não era aplicável, classificou
Tanta precisão e competência na concepção
e execução do plano é acompanhada de justifi­ realizassem alguma forma de pressão sobre o crime como ofensas físicas graves e não co­
O relato de Constâncio impressiona pri­ mo tentativa de morte, e julgou procedente a
cativas igualmente consistentes. seus senhores no momento crucial de sua ven­
meiramente pela minúcia com que o plano de denúncia apenas contra sete dos vinte acusa­
Como vimos, para Constâncio o negociante da. Essas pressões poderiam ter formas e in­
ataque a Velludo foi concebido e executado. dos. Velludo ficou contente e dias depois en­
era “muito mau” e era preciso “sair do poder tensidades diferentes dependendo de cada si­
Tudo foi pensado com bastante antecedência e trou com uma petição solicitando alvará de
dele”, enquanto Philomeno queria participar tuação específica. É provável, contudo, que tal
envolvia um grande número de escravos; ape­ da combinação porque “já havia apanhado”. soltura para os réus que não haviam sido pro­
espaço de manobra fosse reduzido quase à nu­
sar disso, o sigilo pôde ser mantido e o comer­ No entanto, Bonifácio c seus companheiros nunciados. Pelo menos a maior parte do capital
lidade quando o senhor encarregava um co­
ciante foi surpreendido com a agressão. já não corria mais perigo.
não queriam apenas se livrar do dono da casa merciante de escravos de realizar a venda. No
Estamos aqui muito longe daqueles escra­ de comissões. O mesmo Philomeno explica caso em questão, os escravos haviam chegado A estratégia do advogado de defesa para
vos aparentemente sem vontade ou incapazes “que o plano de matar Velludo era para hão da Bahia e de outras províncias do Norte para conseguir esse resultado foi simples: por um
de qualquer ação autonômica que os manus­ serem vendidos para uma fazenda de café para serem vendidos por um negociante próspero lado, houve uma certa orquestração dos de­
critos de natureza comercial tentam inventar. onde estavam destinados a ir por terem sido da Corte. Estava criada uma situação, portan­ poimentos do sumário, onde negociantes vizi­
Há ainda sutilezas no plano que não aparecem escolhidos por um Bastos negociante de escra­ to, sobre a qual os negros pareciam não ter nhos de Velludo e mais o caixeiro e o guar­
no depoimento de Constâncio. vos”. Vários dos acusados alegam que era a qualquer controle c isso explica de certa forma da-livros deste declararam unanimemente que
Estava combinado que alguns escravos que ida iminente para a fazenda de café que lhes o radicalismo do remédio utilizado contra não podiam dizer “quais foram os pretos entre
ficariam no quintal iriam derrubar um muro motivara a agir. Parece, na verdade, que o Velludo. os acusados que tomaram parte no conflito”;
para provocar a repreensão de Velludo e jus­ atentado contra Velludo havia sido o último Antes de elaborar um pouco mais estas in­ por outro lado, houve a tentativa previsível de
tificar o início da pancadaria. Esse muro der­ recurso disponível a esses homens para in­ terpretações, é preciso concluir essa história destituir esses negros escravos de quaisquer
rubado iria servir também para a fuga em di­ fluenciarem o rumo que tomariam suas vidas de Bonifácio e seus companheiros. resquícios de consciência ou racionalidade. O
reção à subdelegacia após o episódio, sendo dali por diante. Velludo era uma velha raposa e é claro que advogado de defesa argumentou que
que pelo menos o crioulo Gonçalo tem a sur­ Um exame da lista dos vinte escravos que ele não se deu por derrotado, apesar da bela
“milita cm seu favor mais de uma circuns­
preendente esperança de alcançar a liberdade acabam sendo incriminados pelo relatório do surra que lhe foi imposta. E nos deparamos,
tância, e especialmente o embrutecimento
assentando praça. delegado revela que treze deles eram baianos e então, com cenas à primeira vista surpreen­
de seus espíritos e falta absoluta de educa­
Não fica bem claro nos depoimentos se o haviam chegado do Norte há poucas semanas dentes: o negociante ficou com várias contu­
ção; - males que são provenientes de sua
muro afinal foi ou não para o chão, porém sa­ para serem vendidos. Nota-se também que sões na cabeça e pelo corpo, sendo seus feri­
forçada condição de escravos, e que, em­
bemos que os negros “meteram a lenha” na entre esses baianos três eram de propriedade mentos considerados graves pelos médicos; no botando-lhes a consciência do mérito e do
vítima na ocasião prevista e com os instru­ de Francisco Camões — entre eles o crioulo entanto, é o próprio Velludo quem contrata demérito, lhes diminui consideravelmente a
mentos guardados especialmente para o even­ Bonifácio, que tomou a iniciativa do ataque —, um advogado para defender seus agressores. responsabilidade moral e a imputabilidade”.
to: tudo aconteceu quando após o jantar Vel­ outros três eram escravos de José Leone, mais Na denúncia, em 2 de abril de 1872, o pro­
ludo foi fazer curativos na perna de seu escra­ três eram escravos de Emiliano Moreira, e ha­ motor público havia enquadrado os escravos A estratégia da defesa ainda conseguiu sal­
vo Thomé, e a maioria dos escravos usou as via ainda dois que pertenciam a Vicente Faria. na lei de 10 de junho de 1835, o que os torna­ var mais alguns mil-réis de Velludo no júri
achas de lenha que traziam escondidas debaixo Ou seja, o mínimo que é lícito imaginar é va sujeitos à pena de morte caso fossem con­ popular, pois dos sete escravos que foram a
das tarimbas pelo menos desde aquela manhã. que esse lote de negros continha dentro dele denados no júri popular. Isto é, havia um risco julgamento dois foram absolvidos. Bonifácio,
Segundo vários depoimentos, o crioulo pequenos grupos de cativos que já se conhe­ de perda total para o dono da casa de comis­ Luís, Marcos, Constâncio e João de Deus fo­
baiano Bonifácio se encarregou de dar o sinal ciam há tempos por terem sido propriedade do sões. Muitos contos de réis estavam em jogo e ram condenados a “100 açoites, trazendo de-

Estudos Afio-Asiáticos n? 16, 1989 Estudos Afro-Asidticos n-16,1989 123


122
pois de os sofrer um ferro ao pescoço por seis por Ceres, que os conduziria para São Ma-
meses”. theus. Os dois escravos teriam sido comprados
O crioulo Bonifácio, um desses escravos de pelo Desembargador Berenguer na referida
“espírito embrutecido”, como julgava o advo­ casa de comissões, mas ambos “manifestaram
gado de defesa, admite abertamente no júri repugnância em seguir para o seu novo desti­
que deu as pancadas na vítima, utilizando para no”. Apesar da insistência e das pressões de
isso uma acha de lenha. Ele explica que deu as Oliveira, os dois pretos colocaram as latas com
pancadas porque Velludo “estava para lhe pe­ seus pertences no chão e ficaram parados,
gar”. Numa última tentativa de livrar seus reafirmando que para São Matheus eles não
companheiros dos ferros e açoites que estavam iriam. Oliveira então conversara com o cai­
fatalmente por vir, Bonifácio declara ainda xeiro de Velludo sobre a possibilidade de dei­
que as bordoadas foram dadas “por ele só, e xar os escravos na casa de comissões até que
que não viu mais ninguém dar”. arranjasse guardas que os pudessem conduzir
Dias depois, Velludo pede a soltura dos e, então, foi ao sobrado para consultar Vellu-
dois escravos absolvidos, anexando os docu­ do. Oliveira desceu do sobrado mais resoluto e
mentos que provavam que os ditos escravos declarou aos escravos “que se não fossem por
lhe haviam sido consignados para serem ven­ bem, haviam de ir à força”. No momento se­
didos. guinte, Carlos pulou sobre Oliveira e cra­
Em 30 de dezembro de 1877, José Moreira vou-lhe uma faca no coração, matando-o na
Velludo aparece novamente na primeira pági­ hora. Cyriaco estava armado com um canivete,
na dos jornais cariocas.7 A Gazeta de Notícias, porém não participou da agressão.
sob o título de “Horrível Assassinato”, come­ Não há grandes divergências entre a Ga­
ça assim a notícia de um crime ocorrido na zeta, o Jornal do Commercio e os depoimentos
véspera: que constam do processo criminal quanto ao
“Já não é somente nas roças e nos sertões resumo das ações que resultaram no assassi­
que os escravos cometem os crimes mais nato de Oliveira. Pelo processo criminal, sa­
atrozes. bemos que Carlos morreu de sífilis na Casa de
Esta cidade foi ontem sobressaltada pela Detenção em maio de 1878, antes de ir a jul­
notícia de uma horrorosa cena de sangue, gamento no Tribunal do Júri.8 Já o preto
que é mais uma página negra nos anais da Cyriaco, baiano, de 43 anos, solteiro, analfa­
escravidão.” beto, oficial de pedreiro, dá ao júri sua versão
detalhada para todo o episódio:
Essa “página negra” fora escrita na casa de
comissões da Rua da Prainha, n- 104, exata­ “Tendo o seu senhor o feito aprender o
mente aquela que aparece na ação comercial ofício de pedreiro e nunca tendo ele inter­
de 1878 como pertencente a Barbosa e a Vel­ rogado trabalhado com enxada não enten­
ludo e que o último passaria a ter só para si dendo de serviços da roça contudo seu se­
meses depois. nhor o mandou para a fazenda e ele inter­
A forma como a notícia da ocorrência é rogado tendo ido lá esteve oito meses, e
introduzida na Gazeta sugere um aumento da deu-se muito mal de saúde pelo que pediu a
sensibilidade da opinião pública para questões seu senhor que o mandasse de novo para a
relacionadas com a escravidão. Consta do re­ Corte, ... onde foi mandado à casa de um
lato que na manhã do dia anterior o português pretendente para depois de este revistar
Antônio Oliveira, caixeiro de um estabeleci­ seus serviços, comprá-lo; mas sucedeu que
mento comercial, se dirigira à casa de comis­ aquele pretendente a comprá-lo o achasse
sões da Rua da Prainha porque estava encar­ enfermo, e por isso deixou de comprá-lo,
regado de acompanhar dois escravos irmãos, em conseqüência do que seu senhor de no­
de nomes Carlos e Cyriaco, até a bordo do va­ vo ordenou que ele e seu irmão fossem de-
124 Estudos Afro-Asidticos n-16,1989
volvidos à fazenda em São Matheus. Então Daí decorre que, assim como Bonifácio e
ele interrogado sabendo dessa resolução seus companheiros, Carlos e Cyriaco utiliza­
declarou ao agente da Casa de Comissões ram um último recurso disponível quando to­
que não podia voltar para a roça, e nesse das as outras brechas possíveis de influências
caso precisava ir à polícia fazer a declara­ sobre seus destinos se lhes mostraram fecha­
ção dos motivos que o impediam a seguir das. Eles preferiram enfrentar a polícia e a
aquele destino, e, não obstante essa decla­ Justiça do que serem obrigados a servir a se­
ração, ... teve ordem bem como seu faleci­ nhores que os desagradassem, ou em locais
do irmão Carlos, de, embarcarem imedia­ para onde não desejassem ir.
tamente para São Matheus.” Cyriaco pode ter se arrependido da escolha.
Ele foi julgado em outubro de 1878 e conde­
Apesar de filtrada de certa forma pelo in­
nado a “50 açoites e a conduzir ao pescoço um
terrogatório do juiz, transparecem pontos es­
ferro por espaço de um mês”. O curador do
senciais nessa fala de Cyriaco.
réu, porém, recorreu e ele foi a novo julga­
Em primeiro lugar, vemos que o escravo, mento em outubro de 1879. Cyriaco foi então
argumentando com suas habilidades específi­ condenado a vinte anos de galés, pena que de­
cas de trabalho e motivos de saúde, negocia pois foi convertida a vinte anos de prisão com
com seu senhor sua volta para a cidade, tendo trabalho. O juiz explicou que a condição de es­
sido atendido por este, que tenta arrumar um cravo do réu não havia sido provada nos autos
comprador para o preto na Corte. Em segun­ porque o senhor não anexara a matrícula espe­
do, aparece aqui uma prática que é menciona­ cial e nem acompanhara a defesa, logo o acu­
da em outros processos cíveis e criminais do sado não podia receber uma sentença de açoi­
período; ou seja, o escravo é enviado para um tes. Ou seja, “protegido” pela lei de 28 de se­
possível comprador para passar por um perío­ tembro de 1871, Cyriaco foi tido como aban­
do de teste. Apesar de, numa leitura mais ime­ donado pelo seu senhor e declarado liberto.
diata, tal prática aparecer como uma espécie Devido a esta “proteção”, o negro foi conde­
de garantia ou de defesa dos interesses do nado a amargar vinte anos de prisão, ao invés
comprador, é fácil perceber que, devido às de cinqüenta açoites e um mês de ferro no
particularidades da “mercadoria” negociada, pescoço. Nesses cálculos jurídicos da punição,
esta poderia conscientemente apresentar-se portanto, a liberdade ficou cara demais para
como “defeituosa”, caso não tivesse interesse Cyriaco.
em ficar com o novo senhor. Mesmo que fi­ A história de Cyriaco ainda não é o último
quemos na dúvida se Cyriaco procedeu dessa registro que temos de José Moreira Velludo.
fotma em relação ao senhor da Corte que aca­ No dia seguinte ao assassinato de Oliveira,
bou por rejeitá-lo, já vimos bem que os “de­ o Jornal do Commercio noticia, sob o título de
feitos” conscientes de Cario ta levaram dois “Insubordinação”, que Vicente, escravo do
senhores a brigar na Justiça, e sabemos tam­ major Thimóteo Espínola, havia se revoltado
bém que transações posteriormente anuladas na casa de comissões da Rua da Prainha, ne
por compradores insatisfeitos estavam na ori­ 104, e fora recolhido ao xadrez da polícia. Vi­
gem das diferenças nas contas da sociedade cente tinha consigo uma faca de ponta e era ti­
entre Velludo e Queiroz. do como companheiro de Carlos e Cyriaco.
Enfim, o que de um ponto de vista parece Mas vamos deixar Velludo por agora (se qui­
uma garantia ao “consumidor”, de outra pers­ sermos, podemos encontrá-lo em outros lu­
pectiva pode ser entendido como um direito gares).
conquistado pelos escravos a um espaço de A densidade dos casos relatados sugere que
manobra ou de pressão no momento de sua as transações de compra e venda de escravos
venda. envolvem aspectos que vão muito além da ló-

EstudosAfro-Asiâticosn? 16,1989 125


gica do mercado ou da racionalidade econômi­
excludente e hierarquizadora. A má sorte de
ca do senhor. As percepções e as atitudes dos
Cyriaco foi que a sua libertação ocorreu como
negros também pesavam na balança e precisa­ resultado de sonhos ou projetos políticos que
vam ser contempladas de alguma forma. E di­ não eram os seus.
fícil, senão impossível, imaginar que tipo de
Mas não foi assim sempre e em todos os
influência histórias particulares como as de
casos. Não era possível colocar todos os li­
Carlota, Bonifácio, Cyriaco e muitas outras
bertos no xadrez e nem tampouco enviá-los de
semelhantes podem ter quando nos debruça­
volta para a África, por mais que tenham sido
mos sobre os dados agregados ou estatísticos a
esses os desejos ocultos de muitos senhores. E,
respeito do tráfico interno de escravos.9 Esses
pelo menos na experiência histórica da cidade
dados agregados são sempre mais transparen­
do Rio, também não foi possível transformar
tes a partir de uma lógica econômica. Não im­
esses negros uniformemente em trouxas, isto
pressiona que seja assim porque, como obser­
é, em trabalhadores assalariados, disciplinados
vamos nos movimentos de Velludo, a lógica
explícita do poder é a lógica econômica na es­ e submissos, e, apesar disso ou por causa disso,
pobres ou miseráveis.
cravidão do século XIX.
A liberdade pode ter representado para os
Acontece que, obviamente, decisões eco­ negros, em primeiro lugar, a esperança de au­
nômicas são tomadas não só a partir de consi­
tonomia de movimento. Não a liberdade de ir e
derações ditas econômicas. Cada história como
vir de acordo com a oferta de empregos e o
a de Bonifácio ou de Cyriaco vale muito mais
valor dos salários, porém a autonomia de es­
do que uma história. Elas têm uma densidade
colher a quem servir ou de escolher não servir
que extrapola em muito as idiossincrasias indi­ a ninguém. Carlota, por exemplo, declara que
viduais e que acabam criando cenários abso­
é livre, e define a palavra: “não serve a pessoa
lutamente instituintes do futuro desta socieda­
alguma”. Esse sentido conferido à liberdade
de. E uma ironia e ao mesmo tempo uma re­
foi lavrado na incerteza e nas angústias vividas
velação que o advogado de defesa de Cyriaco
pelos escravos cada vez que tinham de se su­
tenha justificado seus atos afirmando que ele
jeitar a uma transação de compra e venda, e
era um “preto, escravo sem consciência de si”
nos seus esforços no sentido de influenciar tais
e que, meses depois, tendo Cyriaco se trans­ transações. É claro que muitos leram tais sen­
formado num liberto, ele tenha de enfrentar
tidos como evidência de que os negros eram
uma punição infinitamente mais rigorosa pelo
vadios por natureza, sendo que essa ânsia de
crime que cometera do que aquela a que esta­
autonomia não passava de rejeição ao trabalho.
ria sujeito se continuasse a ser escravo. O me­
Não foi possível transformar a cidade a partir
do político inconfessável do presente está aqui
da lógica do mercado e da disciplina de traba­
modelando a incerteza do futuro: o fim da es­
lho, e a República atacou a cidade negra por
cravidão só poderia ser acompanhado pela in­
via da intolerância e da repressão. Mas os cor­
venção de uma racionalidade que, apesar de
tiços transformaram-se em favelas e os escra­
diferente da anterior, seria tão essencialmente
vos ganhadores, em ambulantes.10

NOTAS

1 Manoel da Costa Talhão Jr. (autor) e Manoel Affonso da Silva Vianna (réu). Libelo cível, n2 /.871, caixa
1-725, galeria a, Arquivo Nacional (AN)

2 Robert Slenes, “Grandeza ou Decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio
de Janeiro, 1850-1888”, ín Iraci del flero da Costa, org.. Brasil: História Econômica e Demográfica São Paulo,
Instituto de Pesquisas Econômicas (USP), 1986

126
Estudos AJro-Asiáticos n? 16, 1989
3 Segundo Robert Slenes, os negros da cidade do Rio nas últimas décadas da escravidão sempre tiveram uma
chance mais do que razoável de conseguir a liberdade: nada menos do que 36,1% da população escrava da matrí­
cula de 1872-1873 receberam a liberdade até a matrícula de 1886-1887. Esses 36,1 % são impressionantes se con­
siderarmos que a percentagem de negros alforriados no mesmo período na província de São Paulo fo' de 11%, na
província do Rio de 7,8%, na província de Minas de 5,6%. Ver Robert W. Slenes, “The Demography and Eco­
nomics of Brazilian Slavery: 1850-1888”. Tese de doutorado, Universidade de Stanford, 1976, p. 495, 501,
504,542.

4 Francisco Duarte de Souza Queiroz (autor) e José Moreira Velludo (réu). Ação ordinária, n- 266, caixa 1.521,
galeria n, AN.

5 Há três autos cíveis sobre o caso, com José Moreira Velludo c João Joaquim Barbosa como réus, sendo o autor
Manoel josé de Freitas Guimarães: a) Processo de ação de dez dias, maço 325, n- 7.323; b) Ação de Embargo, ma­
ço 302, n9 6.850; c) Execução, maço 330, n- 7.652.

6 Bonifácio e outros escravos, maço n- 2, Arquivo do Primeiro Tribunal do Júri da Cidade do Rio de Janeiro
(APTJ).
7 Gazeta de Notícias, em 30.12.1877, p. 1, e Jornal do Commercio, em 30 e 31.12.1877, em ambos os dias na
primeira página.

8 Cyriaco, Liberto, maço 186, n9 2.125, galeria c, AN.

9 Para outros casos semelhantes, ver: a) João, escravo, n9 828, maço 110, galeria c (AN): João deu uma facada
no dono da casa de comissões onde se encontrava para ser vendido e uma das explicações é que ele não queria ser
vendido para Cantagalo; b) Antônio, escravo, maço 16, APTJ: Antônio, que era padeiro, se portava mal, segundo
seu senhor, c foi conduzido a uma casa de comissões para ser vendido. O preto fugiu porque não concordava com
isso, brigando com guardas na fuga; c) Bráulio, escravo, maço n9 3, APTJ: Bráulio fugiu de seu senhor que o pu­
sera no tronco porque ele pedira para ser vendido. O escravo consegue viver como livre durante seis meses, mas é
preso ao tentar retornar à Bahia, sua terra natal; d) Francclina, escrava, maço n- 4, APTJ: a escrava teria envene­
nado sua senhora, que a maltratava muito. Antes Francelina já havia pedido para ser vendida, mas a senhora lhe
negara, apesar da concordância do senhor; e) Joaquim Africano, maço n9 8, APTJ: Joaquim teria agredido seu se­
nhor, José Mattos, ex-escravo de Perdigão Malheiros, talvez por causa de dinheiro que este lhe tirara. Joaquim diz
que foi comprado por José Mattos contra a sua vontade; f) Josefa, escrava, caixa 3.696, n9 14.198, AM Josefa tenta
obter a liberdade alegando que sua senhora lhe obrigava a levar vida de prostituta. Antes a escrava estivera em ex­
periência na casa de uma senhora, que acabou não consumando a compra por achar que Josefa estava doente; g) o
preto Pompeu, autor, João de Araújo Rangel, réu; libelo cível, n9 2.665, maço 923, galeria a, AN: Pompcu tenta
convencer a seu senhor a vendê-lo a alguém que lhe utilizasse no serviço de cocheiro. Esta lista de casos poderia
ser bem mais longa. Sobra a importância destes casos particulares na interpretação de dados agregados ou estatís­
ticos, basta lembrar o livro recente de Célia Azevedo, que mostrou que o tema do “negro mau vindo do norte”
preocupou bastante os fazendeiros do sudeste na década de 1870. Significativamente, o tráfico interno de escravos
virtualmcnte cessou logo no início da década de 1880 Ver Célia Marinho de Azevedo, Onda negra, medo branco:
o negro no imagindrio das elites, séculoXIX Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
10 O tom geral deste pequeno artigo e os comentários finais sobre o sentido da liberdade para os negros tiveram
origem nas discussões c leituras do seminário ministrado pela professora Rebecca Scott, da Universidade de Mi­
chigan, ao animado grupo de estudos de escravidão da Unicamp, em 1986. O que possa haver de interessante neste
texto deve-se também às “provocações” de Robert Slenes, Peter Eisenberg e Silvia Lara. Entre as leituras rele­
vantes neste contexto, destaco: a) F olds, Barbara J., Slavery and Freedom on the Middle Ground: Maryland during
the Nineteenth Century. Londres e New Haven, Yale University Press; b) Foner, Eric, Nothing but Freedom:
Emancipation and its Legacy. Baton Rouge e Londres, Louisiana State University Press, 1983; c) Foner, Eric,
The Meaning of Freedom”, in Radical History Review, n9 39, setembro de 1987, p. 92 a 114; d) Berlin, L, Fields,
Barbara, Glymph, T., Reidy, J., c Rowland, L.S., Freedom: A Documentary History of Emancipation: 1861-1867.
Série I, volume I, “The Destruction of Slavery”, Londres, Nova Iorque, Cambridge University Press; e) Lit-
wack, Leon, Been in the Storm So Long: The Aftermath of Slavery. Nova Iorque Random House, 1979; f) Rose,
Willie Lee, “Jubilee and Beyond: What was freedom?”, in Sansing, David, ed.. What Was Freedom's Price? Uni­
versity Press of Mississipi, 1978; g) Scott, Rebecca J., Slave Emancipation in Cuba: The Transition to Free Labor,
1860-1899" Princeton, Princeton University Press. 1985; K) Scott, Rebecca J., “Comparing Emancipations: are-
view essay”, in Journal of Social History, n9 20, primavera de 1987, p. 565 a 583

Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989 127


SUMMARY
The Business of Slavery: Black Perception of Buying and Selling Transactions

The goal of this article is to analyze the percep­ exchange of merchandise. The Blacks had their own
tions and attitudes of slaves whose ownership was ideas of what was fair, or at least tolerable captivity:
being transferred. The intensification of internal slave their emotional relationships had to be in some way
traffic in the 1870’s not only solved the problem of considered; punishments had to be moderate and ap­
increased demand for labor in the coffee-producing
plied only when justly deserved; there were more or
regions of southern Brazil; it also did much to stimu­
less established ways for Blacks to show their prefe­
late the slave owners’ obsessive worry about “Bad
rences at the decisive moment of the sale. The internal
Blacks from the North”. In other words, the massive
slave traffic moved thousands of slaves who had been
transfer of Blacks from the northern provinces consi­
forcably uprooted from their original homes, their
derably strengthened resistence to slavery among sla­
families and their accustomed occupations the Sou­
ves in the South. Renewed resistance amony slaves
theast. Many of these Blacks reacted with violence
was mainly due to the accute perception on the part of against their new owners, by attacking the owners of
newly transferred slaves of having been victims of brokerage houses, by picking fights and creating di­
injustice, of not having had even their most long­
sorder which would block their transfer to the coffee
standing rights respected by their owners. plantations, or by escaping and trying to return to
their original provinces. These “Bad Blacks from the
This suggests that the slav perspective of slavery
changed the transaction of buying and selling into North” explained their attitudes and motives in detail
in their questioning by court judges in civil and cri­
something much more complex than just the simple
minal trials.

RÉSUMÉ
Les Négoces de l’Esclavage: Les Noirs et les Transactions d’Achat et de Vente

L’objectif de cet article est d’analyser les percep­


tions et les attitudes des esclaves lors des transactions qu’un simple échange de marché. Les noirs avaient
qui marquaient le transfert de leur propriété. L'aug­ leurs propres opinions sur ce qui, à leurs yeux, cons­
tituait une captivité juste ou, pour le moins tolérable:
mentation de la traite des esclaves au cours des années
ils voulaient que, d’une façon ou d’une autre leurs re­
70 du siècle dernier a permi de résourdre les problè­
lations affectives scient prises en compte, les puni­
mes de manque de main d’oeuvre dans les régions ca-
tions devaient être modérées et appliquées pour des
féières du sud du Brésil. Mais c’est de cette phase que
vient l’obsession des maitrès face au thème du “mau­ causes justes. Il existait en outre des moyens plus ou
moins établis pour un noir de manifester ses préféren­
vais noir venu du nord”. Cela montre que l’importa­
ces au moment décisif de la vente. Or la traite interne
tion massive de noirs en provenance des provinces du
précipita vers les régions du sud-est des milliers d’es­
nord a fait croitre considérablement la résistance des
claves qui se virent du jour au lendemain arrachés à
esclaves à l’esclavage dans les provinces du sud-est.
leurs lieux d’origine, à leurs familles, au travail au­
Les raisons de cette résistance accrue résidaient quel ils étaient habitués. Beaucoup d’entre eux réagi­
dans le fait que les noirs importés se redaiant profon­ rent en agressant leurs nouveaux mai très, en attaquant
dément compte des injustices dont ils étaient victimes les propriétaires des maisons de commission, en pro­
et du fait que leurs maitrès n’avaient pas respecté cer­ vocant des bagarres ou des désordres pour ne pas aller
tains droits que la coutûme leur accordait. dans les fermes de café et même en s’enfuyant pour
essayer de rejoindre leurs provinces d’origine. Lors
En d’autres mots, la vision que les esclaves avaient
des interrogatoires en Correctionnelle ou en cour
de l’esclavage transformait toute transaction d’achat et
d Assises, ces “mauvais noirs venus du nord” expli­
de vente de noirs en une situation bien plus complexe
quaient en détail leurs attitudes et leurs motifs.

128
EstudosAfro-Asidticosn- 16, 1989
O "SAUDÁVEL Este trabalho apresenta alguns resultados
preliminares de uma pesquisa, ainda em anda­
TERROR": mento, sobre as relações entre o sistema poli­
REPRESSÃO POLICIAL cial do Rio de Janeiro e a sociedade urbana no
período do Império. Uma das bases metodoló­
AOS CAPOEIRAS E gicas da pesquisa maior resume-se na frase de
João José Reis, que, ao pesquisar o levante dos
RESISTÊNCIA DOS malês em 1835 na Bahia, concluiu que “a his­
ESCRAVOS NO RIO tória dos dominados vem à tona pela pena dos
escrivães de polícia”.1 A documentação exis­
DE JANEIRO NO tente nos arquivos da polícia brasileira, desde
SÉCULO XIX* o estabelecimento do sistema em moldes buro­
cráticos nos anos 30 do século passado, cons­
titui uma rica fonte para se conhecer vários
aspectos da vida das camadas baixas da socie­
Thomas H. Holloway*^ dade urbana, inclusive a dos escravos. Isso é
particularmente verdade no caso do Rio de Ja­
neiro, onde o chefe de polícia e o comandante
da Polícia Militar desde o começo foram su­
bordinados diretamente ao ministro da Justiça
do Império.2
Mas essas documentação, embora possa
abrir para a visão de hoje uma espécie de ja­
nela para o passado dos grupos em geral sem
voz definida nas fontes históricas tradicionais,
também apresenta tropeços metodológicos a
serem assinalados.
Em primeiro lugar, a polícia atuava no do­
mínio público - o que o antropólogo Robto da
Matta resume como o mundo “da rua”.3 Isso
implica que a vida particular, “da casa”, seja
nas dependências das oficinas e sobrados, seja
nos mocambos e cortiços das classes proletá­
rias, em geral escapava da vigilância da polícia
e continua de acesso difícil para nós hoje.
Em segundo lugar, a polícia normalmente
só tomava conta do comportamento definido
no Código Criminal, nas posturas municipais,
no regulamento policial e na mente do próprio
agente policial como “não aceitável”.
* Uma versão preliminar deste artigo foi Convém lembrar que esses “procedimen­
apresentada na IV Jornada de Estudos Ameri­ tos”, como diziam na época, compõem uma
canos da Associação Brasileira de Estudos fração pequena do comportamento social co­
Americanos, 25-27 de maio de 1988, Mariana mo um todo. É fácil demais, baseando uma
(MG). pesquisa na documentão policial, chegar à
** Professor de História da Universidade conclusão de que “muitos”, ou “a grande
Cornell, Nova Iorque. maioria”, ou “todos”, dos grupos estudados,
Estudos Afro-Asidticos rí? 16,1989 129
praticavam as várias infrações à norma permi­ ao nível das atividades policiais, ou seja, dis­
tida e, conseqüentemente, caíram nas malhas pensando as formalidades de processo judicial.
da vigilância. Deixando por um momento a Por outro lado, as muitas tentativas de re­
linguagem da objetividade acadêmica, pode­ primir os capoeiras dão uma idéia da persis­
mos dizer que as pessoas “boas”, via de regra, tência do fenômeno e sugerem a importância
não tinham muito a temer. As “más”, por outo da capoeiragem como contestação ao sistema
lado, podiam esperar o pior. Claro que a pró­ de controle social dentro do submundo dos es­
pria definição do “mal”, como também as me­ cravos e seus aliados nas camadas baixas da
didas para o reprimir, mudam no espaço e no sociedade urbana. Tanto as atividades das
tempo, e a polícia tem um papel central nessa maltas organizadas como a técnica de luta em
tarefa. si fazem da capoeira (um termo que ia muito
Para não prolongar estas considerações além da prática do balé de artes marciais asso­
preliminares, diria que começamos a recupe­ ciado hoje em dia com a palavra) o mais per­
rar, através dessa documentação não propria- sistente e talvez o mais bem-sucedido esforço
menta a “vida” dos escravos e outros grupos para estabelecer e defender um espaço social
afetados, mas antes o funcionamento das ins­ por parte dos negros urbanos.® Percorrer o
tituições colocadas na primeira linha da guerra trilho das tentativas de restringir a capoeira­
social travada entre a classe dominante, que gem ao longo do Império nos dará a oportuni­
criou o sistema, e as classes a serem domina­
dade de relancear vários outros aspectos da
das, nos campos de batalha que vinham a ser
relação entre polícia e escravos no período em
as ruas, praças e outros lugares públicos da que as instituições do Estado vêm reforçar, e
capital do Império.4 Na tentativa de dar várias
em certa medida substituir, o domínio tradi­
amostras representativas das informações dis­ cional dos donos sobre sua propriedade huma­
poníveis na documentação policial, não pode­ na.
rei demorar muito no contexto mais amplo, Em 1820, o castigo comum de um escravo
nem na interpretação e análise dos exemplos. preso devido à capoeira era de trezentos açoi­
Um estudo adequado desses e de outros traços tes e prisão de três meses, pena que sofreram
da “pena do escrivão de polícia” só será possí­ Bernardo, da nação mina, e Estanislao, criou­
vel no âmbito de um estudo mais aprofundado. lo.
• “Ao primeiro se achou um saquinho com
Entre os muito motivos específicos de re­ uma navalha de barba e um sovelão de pau,
pressão aos escravos, um dos mais comuns e e na ação de ser preso, pretendeu opor-se à
mais sérios era o de praticar capoeira. Apesar patrulha, chamando o seu companheiro (...)
de “praticar capoeira” não constar da lista e depois foram cercados de capoeiras, que
“tradicional” de crimes e não aparecer no Có­ atiraram muitas pedradas.”8
digo Criminal de 1830 nem no Código das Uma portaria de novembro de 1821, criti­
Posturas Municipais da cidade do Rio de 1838, cando a proliferação dos capoeiras, “que estão
'as autoridades policiais emitiram uma série de perpetrando mortes e ferimentos”, afirmava
restrições do intuito de acabar ou pelo menos que os castigos de açoites eram “os únicos que
reduzir a incidência de um fenômeno consi­ os atemoriza e aterra”, e ordenava a Guarda
derado nefasto e perigoso, uma ameaça cons­ Real da Corte, antecessora da Polícia Militar
tante à tão procurada tranqüilidade pública. de hoje, a administrar castigos corporais “logo
Essas medidas, e os comentários que as acom­ que os pretos forem presos em desordem, ou
panham, mostram, por um lado, que o sistema com alguma faca ou com instrumento suspei­
policial encarava a capoeiragem como um pro­ toso”.7 Essa ordem foi confirmada em porta­
blema de comportamento inadmissível, a ser ria de dezembro de 1823 - e em março de
restringido e castigado na medida do possível 1826 o intendente de polícia da Corte mandou

130 Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989


que todo escravo preso por capoeira sofresse truções ao ministro da Justiça, com o seguinte
sumariamente cem açoites, sendo depois man­ prefácio:
dado ao Calabouço, a cadeia para escravos no “Os capoeiras, que sempre mereceram aqui
morro do Castelo.8 a maior vigilância da Polícia, hoje infestam
Essa prática de delegar às patrulhas poli­ as ruas da cidade de um modo sobrema­
ciais o direito de castigar com açoites no ato neira escandaloso, e não será fácil evitar as
da prisão continua até a promulgação do Có­ funestas conseqüências que daí resultam,
digo Criminal do Império, em fins de 1830, enquanto a Polícia a respeito dos escravos
que condiciona a aplicação de açoites nos es­ não for como antigamente autorizada a fa­
cravos a uma ordem escrita de uma autoridade zer castigar, sem mais formalidade de pro­
criminal ou policial, ou seja, depois de um pro­ cesso, aqueles que forem apanhados em
cesso judicial, sumário que fosse. Essas mu­ flagrante, ainda contra vontade dos senho­
danças foram especificadas em aviso de outu­ res, que a experiência tem mostrado serem
bro de 1831, em que Diogo Antônio Feijó, pela maior parte os primeiros a quererem
como ministro da Justiça logo depois da abdi­ deculpar o mau procedimento dos escravos.
cação de Dom Pedro I, emitiu várias restrições A petulância destes [capoeiras] tem chega­
legais à disciplina “particular”, mandando do ao ponto de apedrejar-se no Campo de
também que o castigo correncional no Cala­ Honra [hoje Campo de Santana] com ma­
bouço à requisição do dono não devia exceder nifesto perigo aos pacíficos cidadãos que
cinqüenta açoites, “visto que mais de 50 deve por ali passavam.”
entender-se excesso de correção e por isso O ministro Aureliano de Sousa de Oliveira
mesmo proibido pela lei”.® Coutinho respondeu que a polícia devia obser­
No mesmo período da implantação de uma var “o que se tem praticado até aqui”, ou seja,
legislação mais “moderna”, no entanto, os ca­ agir dentro das restrições impostas pelo Códi­
poeiras não cederam. Em novembro de 1832, go Criminal e os avisos emitidos por Feijó.11
o intendente fez comunicado ao comandante No entanto, o problema permaneceu, como
da Polícia Militar advertindo que “os pretos demonstra um pedido de 1836 do juiz de Paz
capoeiras e outros indivíduos de semelhante da freguesia de Santana ao comandante da Po­
ordem costumam trazer sovelões e outros ins­ lícia Militar, no sentido de reforçar as patru­
trumentos desta natureza ocultos dentro de lhas do mesmo Campo de Honra, onde “os ca­
marimbas, de pedaços de cana de açúcar, e no poeiras têm-se apresentado (...) armados de
cabo de chicotinhos pretos feitos no país”. In­ ferros e praticado desordens e atentados”. O
sistiu que as rondas praticassem “a maior vi­ chefe de polícia ordenou que “de quando em
gilância, e examinassem escrupulosamente tais quando desse sobre os ditos capoeiras, logo
indivíduos, prendendo-os no caso de achada que tivesse notícia de que se achavam reuni­
dos referidos instrumentos, para serem puni­ dos”.1 *
dos na conformidade das leis”.10 Um incidente no final do mesmo ano ilustra
Eusébio de Queiroz, mais conhecido como vários aspectos da relação entre polícia, escra­
o autor das medidas que acabaram com o trá­ vo e dono de escravo. Na manhã de 29 de de­
fico de contrabando de africanos depois de zembro de 1836, o juiz de Paz do 22 distrito da
freguesia do Sacramento chamou dois médicos
1850, quando ministro da Justiça, passou os
primeiros anos de sua carreira administrativa e para a casa de Jacomo Rombo, na Rua Conde
política como chefe de polícia do Rio, de 1833 [atual Visconde de Rio Branco] para examinar
a 1844, um período, aliás, decisivo na forma­ os ferimentos no escravo Graciano, da nação
ção do sistema policial da nova nação. Em ju­ mina, “o qual fora amarrado e surrado em a
nho de 1833, inconformado com as restrições mesma casa”. A descrição clínica no auto de
das novas leis, Eusébio de Queiroz pediu ins­ corpo de delito dá para causar nojo, e basta
131
Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989
mencionar as “contusões profundas nas re­ que o “prejuízo” mencionado é o econômico pouco mais de um ano, e tendo ainda há embora mais fria, das estatísticas produzidas
giões glúteas”, acompanhadas de “grande in­ que sofreria o proprietário, e não o físico so­ menos de um mês acontecido nesta cidade o pelo sistema policial e carcerário traz um con­
flamação e dor vivíssima”, causadas “por fre­ frido pela vítima. De Graciano, nenhum de­ escândalo, atroz e desumano assassínio de texto para melhor enquadrar os exemplos es­
quentes pancadas de um instrumento contun­ poimento além de sua condição. dois infelizes caixeiros, sacrificados pelos pecíficos.
dente”, sem nos deter muito com as escoria­ A resolução desse caso de espancamento bárbaros africanos, que desgraçadamente Entre as relíquias da época da escravidão
ções nas coxas, antebraços e mãos. Os médicos brutal do capoeira que queria “tirar as teimas se vão multiplicando entre nós, e que nada que devem chocar o leitor moderno, cabe o li­
concluiram que os ferimentos eram “de bas­ dos brancos” nos traz também a perspectiva poderá conter senão o saudável terror”.13 vro de recibo do pagamento cobrado pelo Es­
tante gravidade (...) sendo por isso de longo do representante local do poder de polícia e tado pelo serviço de castigo disciplinar, em
Em abril de 1845 o chefe de polícia propôs, 1826. Um total de 1.786 escravos, entre eles
curativo”. defensor das normas legais em vigor. Reme­
e o ministro da Justiça aprovou, uma nova po­ 262 mulheres, foram assim açoitados no Cala­
O juiz de paz fez um interrogatório formal tendo os autos e interrogatórios ao ministro da
lítica para lidar com os capoeiras, justificada
a Rombo, começando com o “motivo que o Justiça, o juiz de PazLuiz da Costa Franco e bouço durante o ano, uma média de quase cin­
assim:
obrigou a castigar o dito seu escravo tão ri­ Almeida reiterou que “o escravo de que se co por dia. A grande maioria sofreu duzentos
gorosamente”. A resposta pinta, da perspecti­ trata é de má conduta, propenso à fuga e ao “Havendo nestes últimos dias os capoeiras açoites, pagos no valor de 160 réis por cem
va da classe senhorial, o retrato de um homem furto”. Não encontrando nas leis restritivas desenvolvido um atrevimento que chega ao açoites, enquanto alguns escaparam com cin­
no mínimo inconformado com a condição de dos anos anteriores “artigo algum que fixe o último ponto, até cometendo alguns feri­ quenta açoites e alguns outros sofreram até
escravo, que o dono sentiu a necessidade de poder discricionário dos senhores na correção mentos, e convindo a bem do sossego pú­ quatrocentos.16 Como vimos, Feijó emitiu
“dobrar” e dominar: de seus escravos”, o juiz se limitou a obrigar blico refrear tal audácia, oficiei hoje aos várias restrições legais aos castigos, inclusive
Rombo a assinar um termo de obrigação pro­ Subdelegados da cidade para que todos os os administrados pelo governo no Calabouço.
“Respondeu que não tendo ele, perguntado,
metendo “a não tirar [Graciano] de casa en­ escravos presos por esse motivo fossem Em seu relatório anual para 1831, Feijó pôde
o costume de castigar seus escravos, como
podem informar os vizinhos, porém sendo quanto se achar doente, assim como, logo que remetidos à Casa de Correção, para serem declarar que
o preto Graciano, que fora castigado, de o escravo tiver qualquer acidente, dar parte castigados com 100 açoites. Oficiei igual- “está banido o abuso vergonhoso de man­
terrível condição, de maneira tal que estan­ em Juízo, nem o dispor, sem que sejão passa­ mente ao Administrador da dita Casa para darem os senhores aos escravos enterra-
do em seu poder havia somente seis meses, dos os trinta dias, findos os quais se proceder a que, além desse castigo, fossem eles em­ rem-se [no Calabouço] por meses e anos; e
ja havendo três vezes que tem fugido, não o exame de sanidade”. E só. pregados nos trabalhos por um mês, a ver de serem açoitados desumanamente por or­
tendo nunca castigado; que além disso era No mesmo ofício, o juiz fez comentários se com esta providência se consegue cha­ dem da mesma autoridade, que mais devia
muito capoeira, e costumava ter sempre fa­ mais amplos que mostram os imperativos da má-los à ordem.”14 proteger a estes desgraçados. Nem mais de
ca, como por duas vezes lhe foi tomada, em estutura de controle social, e que poucas vezes um mês poderão ser ali retidos ao arbítrio
Em agosto do mesmo ano, porém, prova­
uma querendo atacar o seu caixeiro Sebas­ chegam à tona das fórmulas burocráticas e ro­ dos senhores, nem maior castigo que o de
velmente depois de reclamações dos proprie­
tião José Gonçalves Pereira e em outra, tineiras da documentação. Pedindo ao ministro 50 açoites serão dados por ordem dos
tários privados dos serviços dos escravos
estando bêbado, foi lhe achada uma faca de aprovação de seu “procedimento” no caso, e mesmos. O governo julgou que a autorida­
presos por capoeira, essa portaria foi mudada
ponta no seio. Também dizia algumas vezes lembrando as revoltas de escravos em Salva­ de dos senhores, restrita a faltas, não devia
no sentido de aumentar o número de açoites
que havia de tirar as teimas dos brancos, dor da Bahia e Minas Gerais em 1835 e a estender-se à punição de crimes reservada
para 150, e eliminar a sentença adicional de
tendo igualmente o vício de furtar o que ameaça de uma sublevação em Niterói e Rio à Justiça. Os escravos são homens, e as
um mês de prisão com trabalhos. Um inspetor
podia apanhar, que cansado de tantas tra­ de Janeiro em janeiro de 1836, Almeida se Leis os compreendem.”17
do sistema carcerário notou, em outubro de
vessuras, o mandara castigar com um chi- achou na necessidade de
1852, que essa última ordem continuava em O Estado em formação, com essas e outras
te.” “ponderar na qualidade de Juiz Policial vigor, e “atualmente prende-se um escravo medidas relacionadas, entrou cada vez mais
Perguntado “se não sabia que lei vedava quão perigoso é, nas delicadíssimas cir­ por capoeira, e sem mais formalidade alguma é nas relações senhor-escravo, reformando para
dos senhores castigarem em suas casas os seus cunstâncias em que nos achamos, instituí­ remetido à Casa de Correção, onde imediata­ preservar um sistema considerado assim mais
escravos com rigorosos castigos, sendo estes rem-se por tais motivos, visitas e pesquisas mente sofre os 150 açoites”, castigo que o “humano”. A aparente compaixão de Feijó
6 concedidos por ordem de autoridades com- domésticas, sendo ainda recentes, além dos próprio inspetor, o juiz de Direito da l5 Vara nesse trecho célebre deve ser entendida, po­
S tentes, e conforme seus delitos”, Rombo mais horrorosos acontecimentos da Bahia, rém, no contexto da manutenção de um siste­
Criminal do Rio, considerou excessiva.15
íu outra resposta ilustrativa: “(...) nunca se ma, uma cultura, que podia considerar o es­
e Minas Gerais, tendo-se com o maior es­ Os incidentes individuais, que se multipli­
dia supor que o castigo dado ao seu escravo cândalo multiplicados os assassínios das cam através das décadas, por mais que nos cravo como um ser humano, e ao mesmo tem­
P° nara causar-lhe morte, ou alterar-lhe pessoas livres, perpetrados pelos africanos dêem detalhes sugestivos e personalizem o po regular técnicas brutais de repressão e
fOSSeúde pof quanto QuaI4uer Prejuízo que manter o próprio cativeiro. Ser “homem” não
escravos; estando ainda fresca a lembrança desumano com nomes e descrições pessoais,
h nreU sobre ele, perguntado, recairia”. Sem do estado de terror em que se pôs esta dificilmente dão uma idéia da escala quantita­ era inconsistente com ser amarrado, açoitado,
. _ carcasmos supérfluos, devemos supor mesma Província, e a própria capital há tiva do fenômeno. A visão mais abrangente, jogado nas masmorras do Calabouço, ter fer-
cair em s«uv
Estitdos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asiâticos n? 16,1989 133
132
ros pesados prendidos no pescoço e pernas, de 33; e oito receberam palmatoadas, na média TABELA 2 seu estabelecimento em 1866, e vários outros
e tudo o mais. de 54 por pessoa. O item maior é capoeira,
Com as restrições legais, e a implantação de oficiais do sistema policial e judicial.
com quase 25%. Dos 81 capoeiras, 66, ou Prisões feitas pela Polícia Militar da Corte
um sistema policial mais eficiente na década de Os jornais da cidade freqüentemente cons­
81,5%, foram açoitados, na média de 81 açoi­ durante doze meses entre 1845 e 1871
1830, a taxa de castigos “a pedido” caiu signi- tatavam a atividade dos capoeiras, como
tes por pessoa: e dois receberam palmatoadas, (Motivos mais freqüentes)
fi^ativamente. A Tabela 1 classifica todas as exemplificada nesta nota do Correio Mercantil
na média de 42 cada.
329 prisões no Calabouço no período de junho de 1855:
Esses dois motivos, juntos com a função do
1857 a maio 1858, um ano que podemos tomar MOTIVO NÚMERO % DO
Calabouço de servir como depósito de escra­ “Pelas 5 horas da tarde de ontem passou
TOTAL
como representativo do período posterior ao vos espólios de herança, vendidos e esperando um magote de capoeiras em correria pela
conjunto de reformas da década de 1830.18 a entrega ao novo dono etc., somam mais de Desordem 153 16,7 rua da Guarda Velha [atual 13 de Maio].
58% do total. Os outros motivos, no entanto, Embriaguez 114 12,4 Um deles, que dizem ser bombeiro do de­
indicam mais a função do Calabouço do que o Espancamento 59 6,4 pósito da Carioca, atirou para dentro da ta­
TABELA 1 Suspeito
nível de criminalidade entre os escravos. Em 46 5,0 verna n9 23 um limatão aguçado que se foi
geral, os escravos presos por delitos “comuns” Dormir na rua 45 4,9 espetar no anteparo do balcão, escapando
Calabouço do Rio d** janeiro, 1857-58:
foram mandados às outras cadeias da cidade, Capoeira 44 4,8 por algumas linhas de ferir o caixeiro da
Motivos das Prisões (n=329)
junto com os presos livres. Insultos 35 3,8 mesma taverna.”20
O Calabouço é as vezes descrito como “ca­ Vagar fora de horas 35 3,8
MOTIVO NÚMERO % deia para escravos fugidos”, mas, pelo menos Furto Esta nota, como outros documentos nos ar­
34 3,7
quivos policiais, confirma que a capoeiragem
nessa amostra, os fugidos não chegam a 10% Suspeito de fugido 33 3,6
Capoeira 81 dos presos com motivo de prisão conhecido. era atividade comum para muitas pessoas li­
24,6 Uso de armas de defesa 29 3,2
Ser castigado 69 Quanto aos castigos, 129 dos 329 receberam vres, embora a maioria dos envolvidos fossem
21,0 Fugido 27 2,9
Ficar em depósito cativos. Em ofício ao ministro da Justiça de
41 12,5 açoites, na média de 73 por pessoa; 65 rece­ Imoralidades 26 2,8 janeiro de 1859, antecipando a comemoração
Fugido 28 8,5 beram vergalhadas, na média de 32; e 16 rece­ Vadiagem 20 2,2 da festa de São Sebastião, patrono da cidade, o
Fora de horas 25 7,6 beram palmatoadas, na média de 51. Do total
Averiguações 19 2,1 chefe de polícia tomou uma das poucas medi­
Desordem 14 de 329 presos, cem não sofreram castigo cor­
4,3 Ferimentos 17 1,9
Furto poral, inclusive os 41 em depósito. Vinte e das disponíveis para limitar o número de ca­
12 3,6 Suspeito de furto 15
cinco dos 329 eram mulheres. 1,6 poeira nas ruas:
Uso de armas de defesa 7 2,1
Uma amostra mais ampla do funciona­ Pertencer à malta de
Insultos 7 2,1 “Costumando os capoeiras aproveitar os
mento do sistema policial, de todas as pessoas capoeiras 14 1,5
Averiguações 6 1,8 dias festivos para fazerem suas correrias,
de todas as condições com prisão registrada na
Embriaguez 4 1,2 perpetrando crimes e pondo em alarme os
Secretaria de Polícia da Corte durante o ano Fonte: AN, IJ6, 179-238 (Polícia Militar, Ofícios do
Entrar em casa alheia 3 0,9 cidadãos pacíficos, e sendo inquestionável
de 1850, confirma que a capoeira superava por Comandante, 1831-1874).
Desobediência 2 0,6 que entre eles figura não pequeno número
muito os motivos de prisão ligados mais dire­
Espancamento 1 0,3 de soldados de P linha a paisana, rogo a V.
tamente à condição de escravo. Do total de 917 prisões feitas pela Polícia Militar nos doze
Insubordinação 1 0,3 1.676 presos, 530 (32%) eram escravos. So­ Ex- se digne entender-se com o Sr. Minis­
meses para os quais temos as partes. Com a
Jogos ilícitos 1 0,3 mente 765 dos 1.676 tinham o motivo da pri­ tro da Guerra a respeito, e conseguir dele
missão essencial de polícia ostensiva e repres­
Nada consta 27 8,2 são anotado no livro de registro, mas entre que se não permita amanhã [festa de São
siva, patrulhas da Polícia Militar rondavam a
eles figuram 35 escravos presos por terem fu­ Sebastião] a saída dos soldados que não es­
cidade de noite, a pé ou montadas, e se desta­
Fonte: AN, IV7, 2 (Calabouço, 1852-1858). gido ou suspeito de terem fugido, contra 69 tiverem de serviço, dos respectivos quar­
cavam em postos policiais durante o dia. As
por capoeira.18 téis.”21
prisões mais freqüentes são por motivos de
Outra amostra quantitativa vem dos rela­ ordem pública, entre os quais as prisões por
Sem querer repetir o que se vê, convém sa­ Sem ou com a participação dos soldados
tórios mensais de prisões feitas pela Polícia praticar capoeira e pertencer a uma malta de
lientar que somente 21% do total são de pri­ fora de serviço, o problema de capoeiragem
Militar. Foram recuperados dos arquivos os capoeiras, juntas, somam 58, ou 6,3% do total.
sões para “ser castigado” a pedido do dono. durante a festa de São Sebastião permaneceu.
relatórios para doze meses, o primeiro relativo Essas estatísticas, no entanto, devem ser con­
Dos 69 escravos castigados a pedido (compa­ Em janeiro de 1865, o chefe de polícia reco­
a novembro de 1845 e o último a abril de sideradas em relação às outras ações da Polícia
rados com quase 1.800 em 1826, 31 anos an­ mendou ao comandante da Polícia Militar “to­
1871. Os motivos mais freqüentes aparecem Militar, e não como o universo das prisões por
tes), 29 sofreram açoites, na média de 63 por da vigilância sobre os capoeiras, no intuito de
na Tabela 2, em ordem descendente. As 765 capoeira. Outras prisões foram feitas por pe­
pessoa; 23 receberam vergalhadas, na média prisões mostradas compõem 83,4% do total de reprimir suas costumadas correrias em tais
destres, efetivos da Guarda Urbana depois de ocasiões.”22
134
Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989
135
cio de Sá que deviam rondar da meia-noite
Até a Guarda Nacional, às vezes conside­
rada o reduto dos proprietários brancos, foi para o dia”.26
acusada de abrigar nas suas fileiras capoeiras Dezessete anos depois, em agosto de 1887,
notórios. Em fevereiro de 1859, o chefe de a situação continuava num plano semelhante,
polfcia pediu que Felisberto do Amaral fosse como indica o caso de Argemiro Pereira de
dispensado da Guarda Nacional para assentar Araujo Cortez, alferes da Polícia Militar, inte­
praça no Exército, porque grante “do grupo de conhecidos e incorregí-
veis capoeiras que (...) fez praticar tropelias
“é muito perigoso, e reconhecido como na praça da Constituição [atual Tiradentes]”.
chefe dos capoeiras que se reúnem na Fre­ Esse caso, noticiado no Jornal do Commercio,
guesia de Santa Rita, sendo ele o próprio lembra outro ocorrido na Rua do Senhor dos
que, por ocasião de ser perseguida uma Passos, em que o mesmo alferes “espancou a
malta de capoeiras naquele lugar, arre­ um indivíduo, andando depois por botequins e
messou um tijolo sobre o pedestre Lúcio tavernas em companhia dos referidos capoei­
Feliciano da Costa, o- ^ ficou ferido na ca­ ras e desordeiros”. Por essas infrações do re­
beça”.23 gulamento, que davam “o mais deplorável

Uma década depois, o ministro da Justiça exemplo de indisciplina (..) fazendo compa­
aprovou o recrutamento para o Exército de nhia a indivíduos de péssima condição com os
quais se igualou na prática de atos indecoro­
quatro homens que
sos”, o oficial foi repreendido severamente na
não obstante pertencerem à Guarda Na­ Ordem do Dia e preso por quinze dias na ca­
cional, foram presos por fazerem parte do deia interna do Estado Maior, na Rua Evaristo
grupo de capoeiras que na noite de 29 de de Veiga.27
agosto de 1869 praticou distúrbios no Lar­
go da Lapa”.24

O recrutamento forçado para o serviço mi­ À guisa de conclusão, além dos pontos de
litar, prática que aumentou durante a guerra interpretação já mencionados, podemos reite­
de Paraguai, era usado através do Império rar que a capoeira persistiu através do Impé­
para “limpar” as ruas da cidade dos elementos rio, apesar das muitas tentativas de repressão.
indesejáveis em geral, inclusive os capoeiras. Essas medidas iam do castigo individual de
Negando as denúncias de um jornal de que po­ açoites e prisão às eventuais investidas organi­
liciais encarregados do recrutamento invadi­
zadas para conter o fenômeno e prender os
ram uma igreja na véspera de Natal de 1871 à
participantes. A capoeiragem pode ser vista
procura de homens, o subdelegado da fregue­
como um problema de controle social e segu­
sia da Lagoa afirmou que os recrutados eram
rança pública, ou como uma técnica bem-
“reconhecidos capoeiras e capangas”.25
sucedida de resistência e de relativa autono­
Um incidente em abril de 1870 mostra que
mia, dependendo do ponto de vista. Ela se
o confronto polícia versus capoeira continuava destaca entre as várias técnicas de resistência
sem trégua. O comandante da Polícia Militar
que os escravos do Rio de Janeiro praticavam,
informou ao chefe de polícia que
que vão desde a rebelião armada, embora em
escala menor e sempre reprimida pelas forças
“no conflito das capoeiras que se deu na
da ordem, passando pela fuga e formação de
frente do matadouro, acudiu a patrulha que
quilombos nos arredores da cidade, até o jeito
aí se achava, coadjuvou o inspetor do
quarteirão e lutou com o grande número de de “puxar o dia”, que deve ser visto como o
método mais disponível e direto de contestar o
capoeiras que se achavam reunidos, acu­
dindo também as praças do quartel de Está- trabalho forçado.28
Estudos Afro-Asiâticos n-16,1989
136
do proprietário em relação a sua propriedade
Voltando ao tema da consolidação institu­
cional depois da abdicação de Pedro I, inclusi­ humana.
Os resultados mais generalizados desse
ve nas instituições policiais, esses exemplos
processo histórico têm que esperar uma outra
também nos dão hipóteses importantes para oportunidade para serem analisados.30 Por en­
melhor entender o desenvolvimento da nação
quanto podemos sugerir que as instituições e
independente, e a relação do Estado com a so­ práticas policiais no Brasil depois da indepen­
ciedade.29 É fundamental nesse processo o
dência, produto da implantação das formas
aumento da intervenção da máquina estatal
institucionais “modernas”, reforçaram o con­
não só nas ruas e praças da cidade, mas tam­
trole tradicional dos dominadores sobre os
bém nas relações do dono com o escravo, tão
dominados, na mesma medida em que arroga­
básicas na formação social do Brasil. As res­ ram para o Estado funções de controle até
trições, da década de 1830, ao castigo consi­
então deixados em mãos dos proprietários e
derado “rigoroso” nem sempre foram aplica­
seus agentes particulares.
das na prática e nem mesmo mantidas nos re­
gulamentos policiais, quando as autoridades
acharam que foram necessárias medidas mais
enérgicos de repressão. Mas, de qualquer for­ O autor agradece à Comissão Fulbright do
ma, a elite política estabeleceu e manteve a le­
Brasil o apoio financeiro, que possibilitou a
gitimidade da mediação do Estado, tanto para pesquisa em arquivos e bibliotecas relevantes,
controlar o comportamento não aceitável dos
bem como ao Centro de Estudos Afro-Asiáticos
escravos no espaço público da cidade, como e ao Arquivo Nacional pelo apoio logístico.
capoeira, quanto para restringir o livre arbítrio

NOTAS

Abreviaturas usadas IIUU notas:


nas i>M^.
- Arquivo Nacional, Rio de Janeiro
AN
— Ofícios do Chefe de Polícia da Corte
OCP-C — Sigla interna da documentação não catalogada do Arquivo Nacional
GIF! - Arquivo Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
AG/PMERJ
1 Rebelião escrava no Brasil. 2- cd., São Paulo, Brasilicnsc, 1987, p. 8.
2 Um importante trabalho sobre a história das instituições policiais é o de Gizlene Neder, Nancy Naro, e José
Luiz Werneck da Silva, A Policia na Corte e no Distrito Federal, 1831-1930. Série Estudos PUC/RJ, n- 3, Rio de

Janeiro, PUC, 1981.


3 Roberto da Matta, A casa e a rua. Rio de Janeiro, Brasilicnse, 1985.
4 Para uma visão muito mais abrangente da vida dos escravos, como o próprio título indica, veja a obra magis­
tral de Mary Karasch, Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Princeton, Princeton University Press, 1987. Sobre
o desenvolvimento geral da cidade, veja Eulália Maria Lahmayer Lobo, História do Rio de Janeiro: do capital co­
mercial ao capitalismo industrial e financeiro. 2 vols., Rio de Janeiro, IBMEC, 1978.
5 Sobre o período do fim do século XIX e começo do atual ver o ensaio de Jair Moura, “Evolução, apogeu e
declínio da capoeira no Rio de Janeiro”, in Caderno RioArte, ano 1, n? 3 (1985), 86-93. Veja também Luiz Sérgio
Lhas e Paulo Knauss de Mendonça, “Capoeira, vida e morte no Rio de Janeiro”, Museu Histórico da Cidade do
Kio de Janeiro, Projeto Gonzaga de Sá, 1986 (mimeof, c Luiz Sérgio Dias, “Escravo urbano e repressão na corte
impenal , in Boletim Informativo do AGCRJ, ano 1, n® 1 (maio-agosto, 1979), 15-21. Agradeço a Luiz Eduardo

Mendonça estas citações.


sovelão, espécie de punhal pontiagudo, foi uma das armas favoritas dos ca
6 AN, Códice 403/3, 1.3.1820. O
poeiras da época.
137
Estudos Afro-Asiáticos rP 16,1989
60-«,S1° 06 AraÚj°' ^^ bórico sobre a polícia da capital federal. Rio de Janeiro, Ed. Nacional, 1898, p.

8 José Alípio Goulart, Da palmatória ao patíbulo (castigos de escravos no Brasil). Rio de Janeiro, INL, 1971, p.
195. Este livro pioneiro cataloga muitas leis e avisos sobre o assunto, sem pretender aprofundar a avaliação da
aplicação das medidas legais na prática.

9 O regulamento do Calabouço de Corte, já em 1831, mandava que os açoites dados nos escravos seriam no má­
ximo de duzentos, distribuídos a um máximo de cinquenta por dia, “em virtude de requerimento dos senhores ou
ordem escrita das autoridades”; AN U6 165 (OCP-C), 15.10.1831. Há uma recompilação destes regulamentos em
AN U6 173 (OCP-C), 2.8.1836.

10 AG/PMERJ, Correspondência recebida, 16.11.1832. Naquele tempo a Polícia Militar chamava-se Corpo
Municipal de Permanentes.

11 AN U6 166 (OCP-C), 26.6.1833.

12 AG/PMERJ, Correspondência recebida, 10.8.1836.

13 Os quatro documentos que tratam deste incidente se acham em AN, GIFI 5B 425 (Instituições Policiais),
3.1.1837.

14 AN U6 203 (OCP-C), 8.4.1845.

15 AN 1J6 215 (OCP-C), 9.10.1852

16 AN, Códice 385, Receita de bilhetes de correção de escravos, Intendente Geral de Polícia, 1826. Veja Ka-
rasch, Slave Life, Tabela 5.1, p. 125, organizando os dados por sexo e número de açoites.
17 Relatório do ministro da Justiça, 1831, p. 11.
18 A taxa de pagamento por açoite fora abandonada com essas reformas, embora os donos pagassem $200 (du­
zentos réis) por dia para o sustento, a pedido, dos escravos no Calabouço. O próprio Calabouço fora mudado do
morro do Castelo para o novo complexo penitenciário na atual Rua Frei Caneca, em 1837. Nas estatísticas que se­
guem, deixo de lado os casos não especificados ou sem informação.
19 AN, Códice 398, Prisões no Rio, 1849-1850.

20 Correio Mercantil (Rio de Janeiro), 14.12.1855, p. 1.


21 AN U6 484 (OCP-C), 19.1.1859.

22 AG/PMERJ, Correspondência do chefe de polícia, 27.1.1865.


23 AN U6 484 (OCP-C), 18, 24.2.1859. Os pedestres eram policiais uniformizados, auxiliares dos delegados e
subdelegados, que não se devem confundir com soldados da Polícia Militar. Sobre a Guarda Nacional, veja Fer­
nando Uricoechea, O minotauro imperial. Rio de Janeiro, Difel, 1978; e Antônio E.M. Rodrigues, A Guarda Na­
cional no Rio de Janeiro. Série Estudos PUC/RJ n- 5, Rio de Janeiro, PUC, 1981.
24 ANU6 19 (Polícia-Avisos), 4.9.1869.

25 AN U6 518 (OCP-C), 3.1.1872. A denúncia original apareceu em A República, 28.12.1871.

26 AG/PMERJ, Correspondência ao chefe de polícia, 21.4.1870. Os inspetores de quarteirão eram voluntários


civis, auxiliares do sistema policial, que vigiavam uma área de no mínimo 25 casas.

27 AG/PMERJ, Ordens do Dia, n? 188,5.8.1887.

28 Para um estudo mais abrangente da resistência dos escravos, veja Clóvis Moura, Rebeliões da senzala. 4* ed..
Porto Alegre, Mercado Aberto, 1988.

29 Para uma análise do processo político da formação do Estado, veja José Murilo de Carvalho, A construção
da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro, Campus, 1980; e Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquare-
ma. Brasília, Hucitec, 1987. Sobre o desenvolvimento do sistema judiciário, veja Thomas I ■ lory. Judge atui Jury
in Imperial Brazil, 1808-1871. Austin, University of Texas Press, 1981.
138
Estiulos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
30 Sobre o funcionamento do sistema policial numa cidade provinciana, ver o estudo de Thomas H. Holloway,
“The Brazilian ‘Judicial Police’ in Floranópolis, Santa Catarina, 1841-1871”, Journal of Social History, 20:4
(1987), p. 733-756.

SUMMARY

A Healthy Dose of Terror: Police Repression of Capoeiras and Slave


Resistance in nineteenth Century Rio de Janeiro

This article presents preliminary results of a re­ years, mitigated the arbitrary application of excessive
search project still in progress, on police and society punishment, although day-to-day practice continued
in nineteenth-century Rio de Janeiro. Police docu­ to be repressive. Capoeira per se was not specifically
ments provide a ‘window” on the world of the lower outlawed, but it continued to be reason for police ac­
classes, including slaves, while recognizing that the tion and arrest.
behavior reflected in these sources is a biased sample In one 1836 incident a Justice of the Peace, inves­
of the universe of social activity. tigating a case of a master ordering a slave to be se­
verely beaten, concluded that such brutal treatment
Among the many specific reasons for repression was justified in the case of capoeiras, whom nothing
of slaves, one of the most common and the most se­ would contain short of “a healthy dose of terror.”
rious was for the practice of “capoiera.” Today ca­
By the 1850s police immediately punished those
poeira refers to a form of stylized martial art perfor­
arrested for capoeira with 150 lashes. Of the slaves
med to rhythmic music, but in the 19th century the
arrested by police during 1850, 69 were for capoeira,
term was applied to organized groups (called “mal- and only 35 for escape or attempted escape. In the
tas”), primarily composed of slaves with the partici­ Year from June 1857 to May 1858, the slave jail of
pation of some free persons as well. Police reports in­
Rio de Janeiro received 81 capoeiras, the single most
dicate that capoeiras, commonly armed with daggers
important reason for incarceration, accounting for 25
or razors, frequently engaged in physical intimidation
per cent of the total 329 slaves sent to the establish­
or assault. Common targets were tavern cashiers and
ment in that period. Escape, in contrast, was the rea­
police patrols.
son for 28 jailings, 8.5 per cent of the total.
The persistence of capoiera activity, despite re­ Despite frequent arrests and summary punish­
current efforts as repression by Rio’s police, suggest ment, capoeira gangs continued to be active through
that it was a successful method of establishing and the end of the Empire. The police saw them as a
defending “social space” on the part of urban blacks. constant threat to public order. From the slaves’ pers­
In the 1820s it was common practice for men arrested pective, it seems apparent that capoeira successfully
for capoeira to receive from 100 to 300 lashes in acted to resist the strict control over slaves’ lives, and
summary punishment. The criminal code of the Em­ to defend a certain degree of autonomy for the social
pire, promulgated in 1830, along with specific res­ world of slaves and their allies among free people of
trictions on the whipping of slaves in the next few the urban lower classes.

RÉSUMÉ

Une Saine Dose de Terreur: La Répression Policière des Capoeiras et Ia


Résistence des Esclaves au XIXe Siècle à Rio de Janeiro

Cet article présente les résultats préliminaires d’un portements que ces sources reflètent offrent un exem­
projet de recherche en coure sur la police et la société ple biaisé de l’univere de l’activité sociale.
de Rio de Janeiro au X1XÔ siècle. Les documents de Parmi les nombreuses raisons spécifiques invo­
police offrent une “fenêtre” sur le bas monde, y com­ quées pour la répression des esclaves, l’une des prin­
pris les esclaves mais il faut reconnaître que les com­ cipales et des plus sérieuses concernait la pratique de

Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989 139


la “capoeira”. De nos jours, la capoeira évoque une
forme stylisée d’arts martiaux sc déroulant sur fond qui avait ordonné que son esclave soit sévèrement
battu, 1 juge de paix qui instruisait le cas conclut qu’un
musical rythmé mais au 19ème siècle, le terme
s’appliquait à des groupes organisés (appelés “mal­ traitement brutal de ce genre était justifié pour le cas
des capoeiras, car rien ne couperait mieux leur action
tas”) qui se composaient à l’origine d’esclaves aux­
qu’une “saine dose de terreur”.
quels sc joignaient quelques personnes libres. Les
rapports de police indiquent que les capoeiras, qui Vers 1850, la police punissait immédiatement
étaient fréquemment armées de poignards et de ra­ ceux qu’elle arrêtait pour délit de capoeira de 150
soirs, s’engageaient souvent dans des bagarres ou dans coups de fouet. Parmi les esclaves arrêtés par la police
des assauts. Leurs cibles les plus communes étaient les en 1850, 69 le furent pour délit de capoeira et seule­
caissiers de taverne et les patroiulles de police. ment 35 pour s’être sauvés ou avoir essayé de sc sau­
La persistance de l’activité des capoeiras, malgré ver. Entre juin 1857 et mai 1855, la prison des escla­
les efforts répétés de repression mis en oeuvre par la ves de Rio de janeiro reçut 81 capoeiras. II constituait
police de Rio indiquent qu’elles constituaient pour les à lui seul, le plus important motif d’incarcération:
noirs urbains une méthode efficace leur permettant 25% du total de 329 esclaves envoyés à cet établisse­
d’établir et de défendre un “espace social”. Vers ment sur la période. Les fuites, par contre, répon­
1820, il était commun qu’un homme arreté pour délit daient pour 28 emprisonnements soit 8,5% du total.
de capoeira soit sommairement puni de 100 à 300
Malgré les arrestations fréquentes et les punitions
coups de fouet. Le code criminel impérial promulgué
sommaires, les bandes de capoeiras sc montrèrent ac­
en 1830 contenait des restrictions spécifiques concer­
tives jusqu’au delà de la fin de l’empire. La police vo­
nant le fouettement des esclaves durant les quelques
yait en elle une menace constante à l’ordre public. Si
années à suivre et tempérait quelque peu l’application
arbitraire de punitions execessives, mais la pratique on se place du point de vue des esclaves, il semble
évident que les capoeiras leur permirent de résister
quotidienne continuait à se montrer répressive. La ca­
efficacement au strict contrôle auquel leurs vies
poeira en soi était n’étail pas spécialement hors-la-loi
étaient soumises. Elles permettaient aussi au monde
mais était toujours un motif de répression policière et
d’arrestation. des esclaves et à leurs alliés qui se situaient parmi le
peuple libre des classes urbaines, de se préserver un
En 1836, lois d’un incident concernant un maitre
certain degré d’autonomie.

140 Estudos Afro-Asiaticos n- 16, 1989


O "CIDADÃO- “(...) E porque de todos os atos supra-indi-
ciados resulta, por um lado, que se tentaria
CRIMINOSO": diretamente por fatos destruir a integridade

O ENGENDRAMENTO do Império, destruir a atual Constituição


política, ou pelo menos alguns de seus arti­
DA IGUALDADE gos, e privar o Imperador de parte de sua
autoridade constitucional, crimes previstos
ENTRE HOMENS e punidos pelos arts. 68, 85, 86 e 87 do Có­
LIVRES E ESCRAVOS digo Criminal; e, por outro, que para levar
a efeito estes crimes se reuniam as Povoa­
NO BRASIL DURANTE ções de Iguarassú, Nazaré, Água Preta,
O SEGUNDO Una, Bonita, Caruarú, e outras, contendo
evidentemente mais de vinte mil pessoas, o
REINADO* que constitui o crime de rebelião, mencio­
nado no art. 110 do mesmo Código, e tanto
que as forças revoltosas ocuparam essas
povoações por diversas vezes, e expelindo
Isabel Andrade Marson** delas as autoridades legais exerceram as
atribuições destas, e reuniam os habitantes
para se oporem com armas às ordens e for­
ças do Governo (...)”'

Os termos da Pronúncia com que o chefe


de polícia Jeronimo Martiniano Figueira de
Mello reconheceu uma rebelião na luta armada
que se desenrolou na província de Pernambu­
co, entre novembro de 1848 e abril de 1849, e
a condenação dos reús pronunciados no julga­
mento presidido por José Thomaz Nabuco de
Araújo, em agosto de 1849, marcam um mo­
mento significativo na história da constituição
da cidadania e do trabalho livre no Brasil.
Para comprovar nos termos da lei vigente a
existência de uma rebelião comandada pelo
Partido da Praia - portanto, um movimento
que teria envolvido,vinte mil pessoas -, Fi­
gueira de Mello precisou reconhecer que todos
os habitantes, livres e escravos indistintamen­
te, das povoações de Iguarassu, Nazaré, Água
* Comunicação apresentada no simpósio His­ Preta, Una, Bonito, Caruaru e outras como
tórias de Liberdade - Cidadãos e Escravos no pessoas, ou seja, como súditos com direito à
Mundo Moderno, realizado pelo Departa­ cidadania. Assim, os termos da Pronúncia
mento de História do IFCH da Unicamp, em igualizaram perante a lei, por meio do crime,
junho de 1988. proprietários de engenhos (considerados cabe­
* * Professora do Departamento de História da ças da rebelião) com rendeiros, lavradores,
moradores, escravos e habitantes das povoa­
FFLCH da USP.
ções em geral.
Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989
141
O recurso de retórica aqui utlizado pelo constituição da nação de trabalhadores livres um lado incentivaram investimentos de gran­
chefe de polícia foi parte de uma manobra po­ a poderosos proprietários concorrentes nos
fossem apenas temas de projetos políticos da des recursos e por outro concentraram os car­
lítica de grande envergadura: incriminar e de­ negócios e na política, que manejavam a lei
elite proprietária. gos de decisão em mãos de um pequeno grupo
sacreditar os liberais, legitimando o golpe de a seu favor e provocavam abertamente seus
A situação que se pode testemunhar nos de proprietários do interior, aparentados ou li­
setembro de 1848, que colocara os conserva­ adversários políticos. Sem dúvida, esses se­
episódios que configuram a Rebelião Praieira gados ao presidente da província. Na verdade,
dores à frente do Ministério. Mas seu signifi­ nhores de engenho traziam consigo o apoio de
nos coloca um problema: por que a igualdade o Barão da Boa Vista encaminhava em Per­
cado não se esgota aí. O que mais desperta a seus lavradores, rendeiros e moradores que
aparece primeiramente no interior da repre­ nambuco as medidas necessárias à implantação
atenção é a forma como essa manobra tornou- compartilhavam dos mesmos receios.
sentação política, que concretiza a disputa en­ das reformas que se desdobrariam a partir de
se vitoriosa — os praieiros foram efetivamente Mas a política modernizadora do Barão não
tre membros da elite priprietária? Por que 1850 com a regularizaçao das terras e a aboli­
condenados pelo crime de rebelião - e como atingiu apenas os proprietários do interior; ela
aparece como imposição e parte da farsa que ção do tráfico de escravos no Império-e, por
foi absorvida tanto pelos réus, que não denun­ foi a montagem do processo e julgamento dos discriminou também comerciantes do Recife,
ciaram o estratagema em seu libelo de defesa isso, sua administração criaria descontenta­ que eram tradicionais fornecedores e financia­
praieiros? Por que resguarda uma ambigüidade
durante o julgamento, quanto pelos meios le­ mento cm grande parte dos proprietários, des­ dores do Estado no setor de obras públicas. A
tão densa que chega a confundir cidadania e de comerciantes e senhores de engenho até
gais, que referendaram a condenação, e pelos nova equipe de engenheiros franceses trazidos
crime? Essas questões nos remetem à reflexão
registros dos acontecimentos, que inscreveram rendeiros, artífices c caixeiros urbanos. para remodelar a Repartição de Obras Públi­
do significado mais profundo da ascensão dos
na memória essa leitura da rebelião. Uma úni­ Foi exatamente contrapondo-se ao autori­ cas cm 1842, chefiada pelo engenheiro em
homens livres pobres c escravos à cidadania,
ca denúncia foi feita pelo deputado Urbano tarismo, exclusivismo c centralismo da política chefe Louis Lèger Vauthier, substituiu, ou
ou, em outros termos, à sua transformação em
Sabino Pessoa de Melo na Apreciação da Re­ baronista que formou-se uma oposição liberal ameaçava, substituir práticas tradicionais de
trabalhadores livres dos canaviais nordestinos.
volta Praieira, na qual percebeu a construção inédita cm Pernambuco. Seus membros eram fornecimento de materiais e de financiamento
ardilosa do crime de rebelião feita pelo chefe compostos por um grupo de bacharéis que já de obras urbanas, uma vez que, por exemplo,
de polícia, discriminando, entre outros argu­ exerciam cargos políticos e que tinham sido na construção das pontes trocou materiais lo­
mentos, a confusão que o texto da Pronúncia e A moldagem do cidadão-criminoso: discriminados e preteridos pelo Barão da Boa cais (especialmente a madeira) por estruturas
depois o do Libelo-Crime e o da sentença fi­ a farsa e a tragédia da igualdade Vita quando este distribuíra as benesses pro­ de ferro importadas da Europa - o que já foi
zeram entre almas, habitantes e pessoas.2 vinciais em 1842 — os deputados Nunes Ma­ concretizado nas pontes do Caxangá e do Rio
As primeiras exteriorizações da “igualda­ chado, Urbano Sabino e Félix Peixoto - e por Capiberibe em Goiana - e passou a privilegiar
Na Pronúncia do chefe de polícia, no Li­
de” entre cidadãos proprietários e a população um significativo contingente de senhores de grandes financistas, muitos de origem portu­
belo-Crime do produtor Barreto e na sentença
livre de pouca ou nenhuma posse e mesmo es­ engenho que vivia uma trajetória de ascensão guesa, nas obras de grande porte, como foi o
do juiz Nabuco de Araújo, homens livres e es­
cravos se igualizaram como pessoas, como ci­ cravos no âmbito das atividades políticas se social e cuja fortuna recente (cspecialmente a caso da construção do Teatro Público e da es­
dariam em Pernambuco nas eleições de 1844.3 posse de terras) ainda não estava devidamente trada da Escada?
dadãos, mas de uma forma ambígua para os
Na província, dois grupos disputavam solidificada porque havia sido adquirida após a
preceitos vigentes sobre a cidadania - iguali­
acirradamente os cargos políticos (juizados de independência política, no processo de expan­
zaram-se numa atuação criminosa. Homens li­
paz, câmaras municipais, delegacias e subdele- são das atividades econômicas (açúcar e algo­ 7 . A política como espetáculo
vres pobres e escravos adentraram a igualdade
gacias de polícia c as deputações provincial e dão) que se instaurou quando as restrições
jurídica com senhores de engenho e negocian­
geral e senatorias), valorizados sobremaneira coloniais foram superadas. Tais senhores de
tes, determinada e impositivamente, num ato O projeto de modernização gerenciado pelo
pela Lei de Interpretação do Ato Adicional de engenho sentiam-se ameaçados pelas determi­
de força, e como infratores, no interior de uma Barão da Boa Vista e afinado com o Ministé­
1841 e pela Reforma do Código do Processo. nações do Ministério Honório contidas no
manobra política, por meio da qual os conser­ rio Honório colocou a província em pé de
De um lado os conservadores (ou guaribus), projeto de Lei de Terras ou Lei Agrária,
vadores derrotaram moral e juridicamente os guerra porque interferia com intensidade em
liderados pelo Barão da Boa Vista e que des­ apresentado pelo Conselho de Estado em
praieiros em Pernambuco e dominaram a polí­ procedimentos costumeiros que garantiam di­
frutavam de posição privilegiada quer por 1843, que propunha uma rápida regularização
tica na província e no Império. Assim, a “i- reitos a significativa parcela de proprietários
reunir os membros mais destacados da elite da posse de terras no Império, e pelas mudan­
gualdade” não fora solicitada pelos seus possí­ que haviam sido os responsáveis pela concreti­
proprietária (de engenhos e do comércio), quer ças no funcionamento da Repartição de Obras
veis “beneficiários” e emergiu no interior de zação da Independência, preservando a ordem
ainda por dominar a maior parte dos cargos Públicas de Pernambuco, que vinham cercean­
um jogo político dos proprietários pela posse nos conturbados anos da Regência. Ele foi a
políticos essenciais nos escrutínios eleitorais. do a participação dos proprietários de engenho
do poder. Antes de ser oficializada pela “abo­ origem da formação de um novo partido, com­
Os baronistas haviam exercido por longo tem­ de menores recursos na arrematação dos lan­
lição” legal da escravidão, a igualdade jurídica bativo e determinado, que, saindo na defesa de
po a administração provincial (de 1837 a 1844) ços das estradas construídas na província.
entre homens livres pobres, escravos e pro­ cidadãos ameaçados em seus direitos, renova­
e colocado em prática um projeto de moderni­ Ainda olhavam com desconfiança o fato de o
prietários já transitava pelo imaginário políti­ ria as estratégias políticas das elites proprietá­
zação administrativa sintomática de uma rápi­ presidente ter entregue cargos de decisão nas
co, embora a igualização pela cidadania, a rias. Assim, o Partido Nacional de Pernambu­
da centralização do poder e dos negócios: por vilas do interior - delegacias e subdelegacias -
co, ou Partido da Praia, instituiria, entre outras
142
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asidticos n-16,1989
143
práticas, a mobilização disciplinada da popula­ Reconhecendo a parcela de poder que esses impõem porque igualam os membros do grupo vasculhamento dos engenhos Monjope, do
ção urbana, a massa indistinta de cidadãos que eleitores significavam, sua utilidade política no e criam a multidão. Nas manifestações, todos coronel João Cavalcanti, e Pindoba, do coro­
reunia em manifestações públicas, numa igual­ enfrentamento com os conservadores, sua se nivelam num conjunto indistinto, abrindo a nel José Maria de Barros Barreto, ambos
dade representada, desde proprietários até profunda insatisfação frente à administração possibilidade de visualizar, pelo menos por al­ aparentados do antigo presidente, e pela apre­
biscateiros e escravos que circulavam pelas Boa Vista e as contínuas retaliações que cer­ guns instantes, uma ampla cidadania que en­ ensão de inúmeros escravos roubados que lá
ruas do Recife. Sob sua orientação, a política ceavam suas manifestações autônomas, o Par­ volvia todos os presentes na representação: eram mantidos até que as buscas movidas pe­
provincial ganharia a dimensão de espetáculos tido da Praia repensou uma possível atuação senhores de engenho, comerciantes, artesãos, los antigos proprietários amainassem.6
públicos organizados e dirigidos, especial­ dos votantes primários. Devidamente discipli­ caixeiros, soldados da tropa de linha, funcio­ O achado foi um trunfo inestimável para a
mente nos momentos de eleições ou quando nados pelo partido, poderiam auxiliar nas elei­ nários públicos, assalariados, pescadores, bis­ Praia. Mas a montagem dos processos contra
acontecimentos ocorridos na Corte precisavam ções pressionando os locais de votação, fazen­ cateiros e mesmo escravos, todos aparecendo os ladrões ilustres levaria esse trunfo mais
ser apoiados ou rejeitados. Nesses espetáculos, do demonstrações a favor da oposição, ou como iguais na demonstração em favor do longe porque daria ensejo a uma prática políti­
os mais ilustres signatários do partido apare­ mesmo registrando os acontecimentos da partido enquanto dura o espetáculo. Sem dú­ ca extremamente eficaz: as testemunhas do
ceriam ao lado de outros contingentes sociais Corte favoráveis ou desfavoráveis aos praiei­ vida, todo recurso foi válido no enfrentamento crime que depuseram contra os poderosos se­
de menor prestígio, criando, através do núme­ ros. Eles poderiam corporificar o número que entre a Praia e os conservadores, quando os nhores foram nada menos que os próprios es­
ro, uma massa de coação capaz de impressio­ daria legitimidade à atuação do partido: nú­ primeiros decidiram-se pela invasão do poder. cravos apreendidos nas buscas, cujos depoi­
nar os adversários conservadores, tão habitua­ mero de votos nas eleições primárias e número mentos ganharam ainda um eco público, pois
dos às manobras de bastidores ou ao manejo e volume nas manifestações públicas, trans­ foram divulgados pelo jornal oficial do gover­
das representações legislativas. formando-as de testemunhos da desordem em no da província, o Diário Novo, em janeiro
2 .2. A igualdade como cumplicidade
Mas a estratégia do partido não tinha gran­ exteriorização da legaliade do partido numa e fevereiro de 1846.
no crime: O '‘roubo de escravos” A atuação praieira trouxe à tona toda uma*
des veleidades revolucionárias, já que o re­ causa em favor da ordem. E, para ganhar o
curso à mobilização popular fazia parte de apoio daqueles que deveriam compor o espetá­ faceta desabonadora da elite guabiru em geral
uma oposição constitucional que deveria atuar culo da política nas ruas do Recife, a Praia não A estratégia praieira foi um sucesso. Aliada e da família Cavalcanti-Rego Barros-Barreto
em etapas e gestos planejados, sem ferir a or­ hesitou em incluir em seu programa temas que a outras manobras, faria com que em agosto em particular: o envolvimento no roubo de es­
dem e a lei, conforme sempre apregoaram as tinham ressonância entre os eleitores primários de 1845 a Praia dominasse não apenas os car­ cravos, denunciado na fala das próprias “mer­
lideranças. O objetivo maior era atingir os do Recife: a nacionalização do comércio a re­ gos políticos (representações nas Câmaras), cadorias” apreendidas. Acionado pela disputa
talho, a defesa dos artesãos nacionais frente à mas também a Presidência da província e com pelo poder entre os proprietários da província,
cargos públicos, ganhando as eleições, e criar
uma deputação autônoma capaz de defender concorrência estrangeira e a crítica à “oligar­ ela os postos policiais (chefia de polícia, dele­ o escravo ganhava voz de pessoa como cida­
na Câmara Provincial e Geral e no Senado os quia” Cavalcanti-Rego Barros. gacias e subdelegacias), assim como os milita­ dão, tornando público e notório que cidadãos
ilustres se acumpliciavam com escravos, ali­
interesses dos proprietários. Para chegar a essa Fazer números nas eleições e nos espetá­ res Comando de Armas e cargos na tropa de
ciando-os com promessas de um trabalho mais
deputação, era preciso vencer as eleições em culos de rua, eis o papel reservado aos que de­ linha e na Guarda Nacional, promovendo uma
inversão geral jamais experimentada na admi­ suave “(...) prometendo-lhes melhor vida do
dois níveis: as primárias, da qual resultaria um veriam compor a grandeza numérica do parti­
corpo de eleitores fiéis, e as secundárias, do. Portanto, não foi por acaso que passaram a nistração de Pernambuco. que a que tinha na casa de seus senhores
(...)”;7 que os açoitavam em seus engenhos
quando esses eleitores escolheriam vereadores, ser reconhecidos como “os cinco mil” — em E esse sucesso faria com que o partido se­
deputados provinciais e gerais e senadores. vez de se apresentarem na luta com seus pró­ para depois encaminhá-los a outras praças
guisse adiante e explorasse ainda mais a estra­
Assim, a Praia necessitava cortejar os eleitores prios rostos, recebiam máscaras de representa­ distantes, onde, já com outro nome, eram ven­
tégia da “igualdade” em outros passos da in­
de paróquia, em sua maior parte cidadãos de ção, fantoches apropriados das lutas heróicas vasão do poder. Ele não se contentou em didos. O mesmo ocorria com escravos apreen­
do passado morto. A Praia concretizava em didos no sertão e que eram colocados em Re­
menores posses (rendeiros, artesãos, funcio­ afastar os adversários dos cargos policiais:
nários públicos, soldados, pequenos negocian­ Pernambuco as manipulações da burguesia dispôs-se a desmoralizá-los publicamente e, cife ou outras vilas do litoral.
tes, lavradores) que tinham participação nas européia esquadrinhadas por Marx em O 18 O uso de testemunhos de escravos para in­
fiel à ordem, usando a lei como recurso. As­
Brumário de Lufs Bonaparte: glorificar a sua sim, as ex-autoridades policiais foram não só diciar senhores de engenho tem um sentido
eleições primárias, mas que já não possuíam
autonomia para promover suas próprias ma­ luta, desfigurar e manipular os outros projetos destituídas de seus cargos, mas tiveram contra ambíguo, pois configura procedimentos e sig­
nifestações públicas (como ocorrera em 1831 e revolucionários da luta real.5 elas processos movidos pelos novos delegados nificados contraditórios, nos quais o escravo
aparece, ao mesmo tempo, como cúmplice, ví­
nos anos seguintes), e nem a possibilidade de Mas o número aqui tinha uma composição praieiros, que acusaram-nas de crimes infa-
ver seus representantes diretos ocuparem car­ contraditória. Ao mesmo tempo que se trans­ mantes: chefiar quadrilhas de desordeiros e tima, pessoa e coisa, deixando transparecer a
gos políticos, sempre preteridos pelos candi­ figurava em instrumento do partido, ele criava assassinos e, principalmente, contrabandear complexidade de um momento em que se co­
e roubar escravos. A comprovação dos delitos meçou a pensar e a viver, no âmbito da políti­
datos da elite proprietária de terras e de negó­ a imagem da força e da legitimidade através da
unidade e da igualdade. A força c o volume se foi feita, dentre outros procedimentos, pelo ca, a imagem da igualdade que se generaliza-
cios.
Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989 145
144 Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989
ria, posteriormente, quando a escravidão foi política foram originalmente o homem livre
Os “cinco mil” haviam ganhado um esta­ pequenos proprietários, sustentáculos da
abolida juridicamente. Por um lado, o teste­ pobre ou de poucas posses, o escravo e o ad­
tuto corpóreo nos espetáculos cobrados pela ordem pública (...) O comércio e a agricul­
munho dos escravos roubados igualava se­ versário político.
política e os partidos se esmeraram em cons­ tura hoje vedados aos nossos patrícios po­
nhores e escravos no crime, já que esse tipo de
truir projetos de reformas políticas, sociais e bres lhes serão abertos. A nossa população
delito pressupunha uma cumplicidade entre
administrativas que agradassem aos novos achará sobejos meios de existência, e não
o ladrão e a mercadoria roubada, pois ele difi­
1 .3. Dimensões da igualdade parceiros. Depois da vitória praieira de
cilmente poderia acontecer sem a vontade ex­ seremos mais obrigados a dizer como hoje
representada: da farsa à tragédia 1844-1845, na qual foi significativo o pro­ que o Brasil está povoado demais G—)’’10
pressa de ambos. Na verdade, a ação culpabiii-
zava tanto o escravo que se deixou seduzir e grama de critica aos portugueses, em 1846 os
Compelir os proprietários de terras ociosas
que estava efetivamente fugindo e, com a fu­ conservadores pensaram um sucedâneo que
Tanto nos episódios da política, como espe­ a vendê-las. A solução do problema estaria na
ga, lesando seu antigo senhor, quanto o la­ pudesse fazer frente à proposição praieira.
táculo quanto nos processos em que os teste­ criação de um imposto territorial sobre as
drão-proprietário que, dando cobertura, pos­ Primeiramente, a revista, O Progresso (desde
munhos escravos incriminaram senhores de “terras ociosas”, de forma a obrigar seus pro­
sibilitava que a fuga-crime acontecesse com 1846) c, mais tarde, os jornais O Lidador e
engenho, podia-se perceber que a imagem da prietários a desfazerem-se delas, transferindo-
sucesso. Como cúmplices, senhores e escravos o Diário de Pernambuco (a partir de fins de
iguaUade representada ganhava espaço no as aos mais desfavorecidos. A concretização
são aqui vistos como pessoas dotadas de de­ 1847 c durante 1848) foram gradativamente
imaginário político e na disputa provincial, dessa proposta possibilitaria que se consti-
terminação e que no delito comum se equipa­ articulando uma proposta alternativa que ga­
assumindo um estatuto de realidade efetiva. tuísse uma vasta camada de pequenos pro­
ravam perante a lei. E importante ressaltar as nhou publicidade também nos discursos do
Os resultados do estratagema praieiro foram prietários, cidadãos verdadeiramente livres e
facetas inéditas dessa prática: os escravos partido nos meetings: propunham a construção
arrasadores para os guabirus: nivelaram hie­ comprometidos com a ordem, a lei e a nação;
apareceram publicamente igualados aos se­ de um Estado que se colocasse acima das
rarquias rigidamente diferenciadas; confundi­ uma “classe média” que abrigaria caixeiros,
nhores, enquanto estes, grandes proprietários, querelas partidárias, com a missão de eliminar
ram indivíduos dos mais diferentes status polí­ funcionários públicos, vendeiros, lavradores e
adentrando um crime que era tradicionalmente os abusos e as irregularidades cometidas pelo
tico ç, social; desmoralizaram publicamente moradores. Os apertos financeiros desses ci­
imputado aos escravos: a fuga.0 partidos quando no poder; que se buscasse
famílias até então poderosas c de prestígio dadãos também se desfariam com a abolição
Mas o escravo aparece também como víti­ uma solução para o desemprego urbano na
inabalável. Sem dúvida, a Praia não só invadiu dos múltiplos impostos c taxas que oneravam
ma e como testemunha que se identifica com província (a questão social mais premente),
o poder e assenhoreou-se dele quanto ridicu­ produtos e serviços, que seriam substituídos
os cidadãos honestos e, mais ainda, como bra­ que levava grande parte dos cidadãos primá­
larizou e enxovalhou seus adversários, su­ por um único imposto, a ser cobrado apenas
ço através do qual se pode efetivar o exercício rios a pleitear os empregos públicos na admi­
plantando suas estratégias políticas. dos ricos.1’
da lei. Enquanto testemunhas de acusação, nistração e na tropa (e tornarem-se assim alvo
Todas essas ocorrências vinham indicar aos fácil das ambições partidárias) ou então a ten­ O projeto conservador revelou astúcia sutil.
suas falas se sobrepõem à dos senhores infra­
baronistas que as artimanhas dos praieiros ha­ Ele reinterpretou a Lei de Terras a favor dos
tores, referendando e possibilitando a atuação tar colocarem-se num comércio já saturado.
viam se transformado em realidade e precisa­ pequenos proprietários e se apropriou e apri­
de cidadãos zelosos da ordem e da proprieda­ Os jornais e os políticos conservadores se
vam ser enfrentadas com os mesmos recursos morou temas criados pela Praia - a crítica aos
de. Aqui, o escravo não só é considerado como colocavam uma tarefa mais “nobre que a exer­
e argumentos, ou seja, também os conserva­ “barões feudais” e às relações de vassalagem,
pessoa, mas é alçado à igualdade com os ho­ cida pela Praia: consideravam-se mestres e e mesmo a nacionalização do comércio a reta­
dores, até então adeptos das manobras de ga­
mens probos, com a cidadania ideal prevista na guias; “povo”, já que pretendiam “(...) ensinar lho, recolocada num texto muito tímido que
binete, precisariam assumir de fato a existên­
lei vigente; como pessoas que, buscando me­ ao povo os seus direitos e deveres e mostrar-
cia política dos “novos cidadãos”. A partir daí estipulava um arranjo pacífico para legalizar
lhores condições de vida, se viram ludibriadas lhes seus verdadeiros amigos, os que curam de
instaurou-se uma verdadeira competição entre os estrangeiros aqui estabelecidos e conceden­
por infratores do direito de propriedade. melhorar a sua desgraçada condição”.9 E a
os partidos para ganhar o apoio dos “cinco do um prazo de seis meses àqueles que deci­
Mas, em ambos os casos, o escravo é tam­ resolução da “desgraçada condição social” só dissem sair do Império.12 O testemunho mais
mil”, de forma a garantir espetáculos públicos
bém coisa, quer como mercadoria furtada seria possível com uma reforma das proprie­ flagrante do sucesso das criações conserva­
de sucesso e a vitória nas eleições primárias.
(preservando seu estatuto de instrumento de dades territoriais existentes, ou tornar acessí­ doras foi o fato de, já nas eleições de 1847, um
Praieiros e guabirus cortejaram os eleitores de
trabalho, pois não negam a escravidão), quer vel ao cidadão de pequenas posses as terras dos líderes dos “cinco mil”, o jornalista Bor­
paróquia com tanto empenho que o próprio
como instrumento da política acionado pelos próximas às vilas que se encontravam sob o ges da Fonseca, aparecer numa chapa conser­
Barão da Boa Vista passaria a participar dos
praieiros na luta contra os guabirus. Em toda controle de grandes proprietários, que as vadora concorrendo à deputação provincial e
meetings lado a lado com o então proscrito lí­
essa complexidade, uma certeza: a astúcia mantinham inaproveitadas ou entregues a de participar dos meetings promovidos pelos
der dos caixeiros, Borges da Fonseca, falando
praieira criara uma figura essencial no embate centenas de moradores, verdadeiros vassalos: guabirus em Recife.
para um público heterogêneo que incluía desde
político e na prática jurídica que a partir daí se A Praia reagiu aos avanços de seus adver­
seus pares até pescadores, libertos ou negros
afirmaria gradativamente - o cidadão-crimi­ “(...) Assim que os grandes proprietários sários, articulando um projeto mais ousado so­
de ganho que se encontravam nas ruas do Re­
noso. E os paradigmas dessa figura jurídica e não tiverem mais vassalos, os moradores bre a nacionalização do comércio a retalho e
cife.
atuais serão transformados em milhares de levando-o às vias de fato. Em fins de maio de
146
Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989 Estudos Afro-Asiáticos n-16, 1989 147
1848, ja ameaçada por muitas cisões e por dos conservadores, em sua origem meras fi­
pressões na província e na Corte que coloca­ guras de retórica, não se identificavam exata­
vam em risco seu espaço político, o deputado mente com os homens de carne e osso que de­
Numes Machado apresentou na Câmara do veriam representá-los nos espetáculos da polí­
Império, em 3 e 9 de junho, um novo projeto, tica. Poderiam, um dia, vir a ser o povo disci­
procurando resgatar o prestígio do partido no plinado dos discursos, mas ainda não o eram,
Recife: tanto que ousaram ganhar autonomia em ma­
nifestações não programadas, agindo à revelia
“§ 12 - nacionalização do comércio a reta­
das lideranças, ameaçando a “vida e a proprie­
lho:
Artigo único: É privativo do Cidadão Bra­ dade”, fugindo ao controle do partido. Nesse
momento, exteriorizaram o avesso da partici­
sileiro o comércio a retalho. O Governo
pação deles esperada nos espetáculos públicos:
marcará um prazo razoável, depois do qual
a violência — aparentada ao crime —, a autono­
não poderão continuar as casas estrangei­
mia - o reverso da cidadania disciplinada e
ras, que vendam a retalho, atualmente
obediente. Quando a “igualdade” parecia ple­
existentes.
na, “os cinco mil” assumiram o direto de ex­
§ 2- - isenção do serviço da Guarda Nacio­
teriorizar o seu entendimento da igualdade,
nal para os caixeiros:
pressionando os parlamentares do partido para
Artigo primeiro: As casas de negócio, de
que agilizassem a aprovação do projeto de na­
qualquer gênero que sejam, nacionais ou
cionalização do comércio a retalho.
estrangeiras, a se abrirem de novo, só ob­
terão licença tendo pelo menos um caixeiro As manifestações de 26 e 27 de junho de
brasileiro. 1848 trouxeram um sabor de tragédia para
Artigo segundo: Ficam isentos do serviço a farsa parlamentar praieira. Os incidentes
ativo da Guarda Nacional os caixeiros bra­ começaram pelas 9 horas da manhã de 26 de
sileiros.13 junho, de uma forma corriqueira: um estu­
dante dò Liceu teve uma altercação com um
Foi a divulgação dessas propostas que ga­ caixeiro português de um armazém de carne
rantiu em 17 de junho uma manifestação es­ seca da Rua da Praia, que terminou num pe­
trondosa a favor do partido. Nesse dia, correu queno confronto em que o caixeiro acertou o
por todo o Recife a notícia de que o Senado estudante com um peso de ferro. Professores e
anulara pela segunda vez as eleições do ano alunos do Liceu intervieram e a ocorrência
anterior, quando haviam sido eleitos dois se­ parecia encerrada, quando, depois das 10 ho­
nadores praieiros por Pernambuco. Os conser­ ras, correu a notícia de que o rapaz havia
vadores não puderam comemorar a vitória do morrido (alguém chegou até a dobrar os si­
Senado no enfrentamento com a Câmara e nos), o que deu origem à formação de grupos
com o Imperador. Os “cinco mil” patrulhavam de manifestantes que passaram a depredar as
as ruas da cidade para dar apoio aos praieiros, casas de comércio de portugueses, ferindo
denotando que a identidade entre a Praia e eles muitos comerciantes e chegando a matar pelo
parecia ter atingido seu momento de apogeu. menos duas pessoas.
Mas a igualdade não resistiria por muito A Polícia do Recife, então sob o controle
tempo: em 26 e TI de junho, o desencanto da Praia, procurou agir de imediato, com cau­
ocuparia seu lugar, tanto para a Praia, que tela para não ferir o prestígio do partido junto
criara os cinco mil, quanto para caixeiros, aos aliados de véspera, mas não conseguiu de­
vendeiros, artesãos e assalariados, que repre­ belar os protesto. Os “cinco mil” estavam de­
sentaram a igualdade nas manifestações públi­ cididos a cobrar as promessas dos praieiros,
cas. Na verdade instaurou-se um impasse: “os e sua determinação se acentuou com a atuação
cinco mil” da Praia ou a futura “classe média” de muitos provocadores infiltrados entre os

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989


148
manifestantes a mando dos conservadores, cretos que haviam enfrentado a tropa, depre­
provocadores que auxiliaram muito nas depre­ dado a propriedade dos portugueses e ousado
dações para acentuar a faceta desabonadora afrontar a Assembléia Provincial:
dos “cinco mil” e, principalmente, manchar o
“(...) Repelimos inteiramente do povo per­
brilho político da Praia. Além de colocar insti­
nambucano o fato do dia 26; não se con­
gadores entre a multidão, os guabirus pressio­
funda o povo com aqueles grupos, que vi­
naram o presidente da província para que
mos na Rua da Praia e no Pátio do Colégio;
agisse com mais rigor na repressão, acionando,
não, pelo amor de Deus, não foi o povo,
à revelia da Praia e do chefe de polícia, não
nem houve a esse respeito o menor senti­
apenas os reforços policiais solicitados pelas
mento popular, conquanto haja entre a po­
autoridades dos bairros atingidos, mas a pró­
pulação e os portugueses ódios e agravos
pria tropa de linha, dando ao episódio uma di­
desde a independéncia(...)”1 *
mensão política assustadora.
Os protestos iniciados às 10 horas da ma­ Mas a desilusão não atingiu apenas as lide­
nhã teriam desdobramentos impensados: duas ranças praieiras. Ela alcançou mais profunda­
ásperas proclamações que atingiram o Impera­ mente os próprios “cinco mil”, que sofreram
dor e o regime monárquico constitucional; prisões, recrutamento e a desabonadora fama
uma embaixada que coagiu o presidente da de desordeiros, criminosos, agindo ao lado e
província a tomar medidas contra os portu­ equiparados aos negros cativos, “a última
gueses; o pedido de demissão do comandante classe da sociedade”, tanto para a Praia quanto
de Armas; uma representação extremamente para os conservadores:
agressiva que, em 27 de junho, adentrou a
Câmara Provincial e intimou-a a determinar a “(...) os assassinos, insuflados pelos bem
saída dos portugueses da província dentro de conhecidos membros da Voz do Brasil
15 dias; e, no final desse mesmo dia, a entrada acompanhados por grande número de indi­
em cena da Guarda Nacional, sob a chefia dos víduos pertencentes a última classe da so­
conservadores, para debelar as últimas mani­ ciedade, entre os quais vimos alguns negros
cativos, tinham o arrojo de dirigirem-se ao
festações e selar a derrota política dos praiei­
ros no episódio, denunciando-os como coni­ Palácio do Governo, e fazerem ao Exmo.
Sr. Vice-Presidente da Província as mais
ventes com a turba depredadora e incompe­
absurdas exigências (...)”15
tentes na agilização dos recursos repressivos
que a província tinha a seu dispor.
A partir de então eles não mas se presta­
Diante de todas essas ocorrências, a situa­ riam a manifestações de rua ou qualquer outra
ção se invertia: se até poucos dias antes a participação ao lado da Praia. Assim, quando
identidade com os “cinco mil” e com seus no final daquele ano, o partido tentou aliciar
protestos de rua tinha um sabor de populari­ na cidade combatentes para sua revolta, as
dade, agora parecia exatamente o contrário e a adesões foram muito restritas e movidas ape­
Praia precisava minimizar a repercussão e a nas pelo interesse pecuniário, por mais que
dimensão dos acontecimentos e, principal- o Diário Novo exortasse os cidadãos a pegar
mente, negar sua igualdade com aqueles “cin­ em armas; e quando os rebeldes invadiram o
co mil’ que haviam desrespeitado a lei e a or­ Recife, em 2 de fevereiro de 1849, não houve
dem. Ou seja, num intuito desesperado de sal­ nenhuma adesão popular, apesar de a cidade
var sua grande criação política — “os cinco estar quase desguarnecida de tropas do gover­
mil” enquanto instrumento da política nos es­ no. Os “cinco mil” assistiram quietos ao con­
petáculos de rua —, os praieiros passaram a fronto entre os proprietários provinciais na
desvinculá-los daqueles manifestantes con- sua guerra particular pela posse do poder.

Estudos Afiro-Asiáticos n- 16,1989 149


Diante de todas as ocorrências, a igualdade 1. 4. As faces do cidadão-criminoso
ganhou clareza tanto para os proprietários
quanto para os cinco mil. Os homens livres
Em vista do desenrolar de todo esse pro­
pobres ou de poucas posses do Recife eram
cesso, esclarecem-se os termos da Pronún­
“iguais” aos proprietários enquanto atores dis­
cia formada pelo chefe de polícia Figueira de
ciplinados nos espetáculos políticos. Se ou­
Mello, em maio de 1849, e também a naturali­
sassem ganhar autonomia, travestiam-se em
dade com que foi incorporada. Na verdade, já
criminosos, ou sejam, eram ambígua e contra­
há algum tempo, os senhores de engenho, co­
ditoriamente cidadãos-criminosos tanto
merciantes, lavradores, rendeiros, artesãos,
quanto os escravos que testemunharam contra
caixeiros e até mesmo escravos vinham se
os proprietários de engenhos.
confundindo numa igualdade representada ao
Na verdade, a consciência dessa situação e
nível da política pernambucana, de tal forma
a conseqüente recusa de atuar ao lado dos se­
nhores da política provincial não podem ser que poderiam ser arrolados como pessoas in­
distintas em mais um artifício da política, o
tomadas como percepções recentes, ou seja,
“os cinco mil” nunca tinham sido intrumentos Processo da Rebelião Praieira.
facilmente apropriáveis pelos praieiros e gua- Mas trata-se de um novo conceito de igual­
birus, pois, afinal, não haviam nascido de ne­ dade, porque não remete mais à igualização
nhuma ordem idílica. Conheciam seu valor po­ dos cidadãos pelos direitos e pela propriedade.
lítico, tinham seus próprios projetos e nego­ Essa igualdade representada traz em seu bojo
ciaram na melhor condição possível, filhos que um desdobramento ambíguo e perverso por­
eram da mesma ordem burguesa, competitiva e que impele para o interior da lei os homens li­
discriminadora, na qual atuavam as astutas ca­ vres pobres e os escravos apenas como crimi­
beças dos donos do poder. Assim, o prestar-se nosos. A igualdade na cidadania proprietária é
ao jogo dos partidos provinciais em disputa foi mera representação - nos espetáculos públicos
até o ponto em que essa participação abriu es­ ou nos testemunhos -, enquanto a igualdade
paço para o encaminhamento de reivindicações real, aquela aberta pelo direito à sombra da lei,
próprias, das quais tinham plena consciência: é a do crime, da repressão, da disciplina.
Assim, a figura do cidadão-criminoso que a
“(...) Senhores do partido praieiro, vós bem Pronúncia da Rebelião Praieira projeta crista­
que tenhais mais aderentes no povo, toda­ lizou com acuidade, sob o ponto de vista dos
via não conteis com ele amarrado ao vosso proprietários, aqueles indivíduos que deveriam
carro. O desgosto já começa; vós tendes compor futuramente o novo corpo da cidada­
vilmente traído a este povo, que tão de boa nia.
fé se congregou para carregar-vos sobre os Nesse sentido, o tema da igualdade que
seus ombros, e vêde que o dia do desenga­ emerge no interior da política tinha um sentido
no público não está longe, e é nesse dia que histórico mais profundo que ultrapassava o
infalivelmente haveis de cair, como cairão estatuto de mero artifício numa comezinha
os baronistas, porque vós estais seguindo a luta pelo poder. O tema da igualdade indistinta
mesma política sem a mínima diferença.” entre os membros da nação era essencial no
“(...) caros patrícios, reanimai-vos! o co­ projeto de moldagem de uma nação de cida­
mércio é nosso; este ano mesmo vamos to­ dãos livres, da qual deveria ser banida a figura
mar conta dessas lojas e tabernas, dessas do escravo e imposta a do cidadão-criminoso,
boticas, dessas oficinas, desses estabeleci­ que adentra o universo da lei compulsoria-
mentos todos, que por nossa incúria estão mente, e por via do crime.
na posse do estrangeiro; cuidai desde já de É no imaginário político que essa nação
prevenir-vos escolhendo o local que mais apareceu primeiramente, quando o trabalho li­
vos convier para vosso estabelecimento.”18 vre como relação social universal emergia

150 Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989


apenas como projeto a ser concretizado. E esse de rua, e de juntos povoarem o mundo do tra­
mesmo imaginário construiu categorias — a balho pensado para o presente e para o futuro,
igualdade representada e o cidadão-criminoso passaram a ser identificados na violência de
— capazes de abranger os homens concretos suas atuações. Os homens livres desapropria­
que deveriam compor a força de trabalho dis­ dos de suas posses e compelidos a vende­
ciplinada, mas ainda por fazer. O cidadão-cri­ rem-se • foram mesclados à tradicional figura
minoso foi essa figura e ela resguardou toda a do escravo no imaginário dos proprietários:
ambigüidade de um momento em que homens sempre uma ameaça. Os debates nos jornais e
livres e escravos (os futuros trabalhadores li­ mesmo nas Câmaras testemunham a consciên­
vres) ainda não assumiam a igualdade repre­ cia dos senhores de engenho de que seriam ne­
sentada que se lhes queria impor. Especial- cessários mecanismos de compulsão ao traba­
mente os homens livres de pequenas posses, lho para fazer tanto do escravo como dos ho­
estes empenhavam-se cm preservar um esta­ mens livres pobres trabalhadores operosos.17
tuto de cidadania inscrito no passado e no Assim, a construção de uma categoria for­
presente que os classificava para as eleições mada, simutaneamente, por homens livres e
primárias c do qual eles se recusavam termi­
escravos (a figura do cidadão-criminoso), a
nantemente a abrir mão. E, enquanto no exer­
vivência da política como espetáculo e o re­
cício dessa cidadania, puderam engajar-se nu­
curso aos testemunhos dos escravos, a imposi­
ma luta em defesa da lei para preservar direi­
ção de uma igualdade representada, denotam a
tos adquiridos. Foi com esse propósito que vi­
moldagem de uma nova cidadania e o encami­
mos caixeiros, artistas nacionais e pequenos
nhamento da implantação do trabalho livre.
comerciantes enfrentando a concorrência
Ao mesmo tempo que a Praia trazia os “cinco
portuguesa no comércio, ou então lavradores,
mil” para as ruas ou colhia testemunhos de es­
rendeiros e moradores atuantes na Revolta
cravos, pensava também um projeto de prote­
Praieira para repudiar a Lei de Terras e a mo­
ção à indústria nacional que incorporava os
dernização dos engenhos, ameaças ao usufruto
artesãos urbanos como assalariados e consu­
da posse útil da terra que ficava na orla dos
midores, além de defender a abolição do tráfi­
banguês e que seria ocupada pelos canaviais
co de escravos. Da mesma forma, os conser­
caso se cumprisse a modernização dos enge­
vadores, ao proporem o imposto territorial
nhos.
sabiam que as terras a serem lançadas no mer­
Nessa perspectiva, a defesa da lei não se
cado não poderiam ser adquiridas por caixei­
identifica com a obediência ou com a partici­
ros ou artesãos, pelo seu alto custo. Os benefi­
pação disciplinada nos espetáculos da política.
ciários desse projeto seriam os proprietários
A defesa dos direitos pode se confundir com a
interessados na ampliação dos canaviais e na
violência quando se faz necessário garantir
modernização da produção açucareira. Sem
posses invadidas e anuladas pelos direitos de
outros cidadãos mais poderosos. O direito de dúvida, nem praieiros nem guaribus preten
diam preservar o passado; pelo contrário ""
expansão das fortunas dos grandes investido­
res começava a colidir, naquele momento, com tavam empenhados na construção de uma *
nação. n°Va
as posses tradicionais dos eleitores primários e,
nesse enfrentamento, os pequenos proprietá­ E essa nova nação foi recusada pelos h
rios passam a ser vistos como criminosos por­ mens livres pobres. A mesma determi -~
dos “cinco mil” do Recife pode ser reconT
que agridem a reprodução das grandes fortu­
nas e entravam o progresso. da no movimento que mobilizou lavrad
Foi enquanto ameaça à vida e à propriedade rendeiros e moradores contra os Decret °reS’
dos grandes senhores que os eleitores primá­ e 798 de 18 de junho de 1851. o prim 797
rios puderam ser igualizados com os escravos. terminou que a partir de 15 de julho ^ de’
Além de aparecerem juntos nas manifestações se realizaria um Censo Geral / ^52
lmPério e o
Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989
151
segundo, que a partir de 12 de janeiro de 1852
Conclusão: cidadania, trabalho da lei e do crime? Por que predominou a ima­ bano Sabino, e O libelo do povo, de Torres
seriam obrigatórios o registro civil dos nasci­
livre e memória gem de que o trabalho livre nas áreas açuca­ Homem -, os “cinco mil” aparecem como ci­
mentos e óbitos, nos quais deveriam constar reiras foi decorrência da evolução natural da dadãos legítimos e ordeiros, uma vez que a
^mbém a origem e a cor da pele de cada cida­ Praia precisava perpetuar e comprovar uma
história?
dão. Tais decretos seguiram de perto duas ou- Assim, o sentido histórico mais profundo imagem da legalidade na sua ascensão ao po­
Podemos vislumbrar algumas respostas se
tras leis vitais para a vida de todos os habitan- da ambiguidade contida na figura do cidadão- der. Já nos textos dos conservadores, como
recuperarmos os pressupostos que informam
do Império: a abolição do tráfico e a pro­ criminoso que a política e os meios jurídicos p a Crônica da Rebelião Praieira, de Figueira de
os trabalhos da historiografia que registrou os
mulgação da Lei de Terras, ambas de setembro pernambucanos cristalizaram em meados do Mello, Ação, reação, transação, de Justiniano
acontecimentos expostos neste texto, espe­
de 1850. século XIX é um processo de luta entre pro­ José da Rocha, ou mesmo em O estadista do
cialmente o “Mata-Marinheiro”, de 26 e 27 de
prietários de grandes posses, signatários do Império, de Joaquim Nabuco, é a imagem ne­
junho de 1848, e o “Ronco da Abelha”. As­
Quando os decretos foram divulgados na Estado e uma variada camada de pequenos gativa que predomina, referendando o com­
sim, vamos perceber que a luta real vivida
proprietários e homens livres pobres que se portamento criminoso dos “cinco mil”.
região dos engenhos provocaram a revolta de nesses episódios adentrou a memória recons­
homens livres. Grupos de manifestantes diri­ recusaram veementemente a assumir o esta­
truída segundo os fundamentos da política e
giram-se às vilas e rasgaram os editais do tuto de igualdade com libertos e escravos.
das ciências burguesas: devidamente civiliza­ Assim, as interpretações destruiram a am-
Censo e do registro civil de nascimento e de Essa luta se feriu no encaminhamento da con­ dos, domados, formalizados e, principalmente, bigüidade original, recriando as ocorrências
óbitos. Combinados à abolição do tráfico, os cretização de um projeto político que, ao internalizados nas lutas dos senhores. num drama formal que atenuou e obscureceu
decretos soaram como uma determinação imi­ mesmo tempo, remodelou a empresa açuca­ Nesse sentido, a luta que se travou em Per­
os confrontos, como, por exemplo, a desilusão
nente de substituição dos escravos pelos ho­ reira em Pernambuco (concentrou a proprie­ nambuco apareceria, nos trabalhos historio- que se instaurou no relacionamento entre a
mens livres nas tarefas da agricultura. dade fundiária, modernizou a produção de gráficos do século XIX e mesmo do século
Praia e os “cinco mil” depois dos aconteci­
açúcar, implantou o free trade e concluiu a XX, atrelada aos “fatos” nos quais as elites
mentos de 26 e 27 de junho de 1848 em Reci­
No imaginário e na experiência de lavra­ abolição do tráfico de escravos), redefiniu a proprietárias que encaminharam o progresso e
fe, ou mesmo fê-los desaparecer, como é o
dores, moradores, rendeiros e homens livres concepção de cidadania, igualizando formal­ a modernização são colocadas como persona­
caso do “Ronco da Abelha”, quando os ho­
em geral, trabalho livre e escravidão foram mente desde proprietários até libertos e escra­ gens principais, no caso a Rebelião Praieira,
mens livres pobres se recusaram a assumir
igualados exatamente porque as medidas ad­ vos e impôs o trabalho livre a homens livres que incorporou à sua aura tanto o “Mata-Ma-
uma igualdade que os novelava não com os
ministrativas que se seguiram, uma ao lado da pobres e escravos. rinheiro” quanto o “Ronco da Abelha”. O
proprietários, mas com os escravos.
outra, obrigariam a pessoa despojada de meios “fato” Rebelião ou Revolução Praieira, a
Todavia, para os homens livres pobres, a guerra dos proprietários de prestígio, arreba­
próprios de sobrevivência a venderem seu tra­
vivência da igualdade imposta significaria a nhou, determinou e obscureceu todos as outras Dessa intensa luta restaram apenas frag­
balho cotidianamente, sem outra contrapartida
perda de posses e, com ela, da autonomia para lutas que se feriram no seu tempo. E esse obs­ mentos esparsos nos jornais e na documenta­
que o mínimo necessário para viver e ao sabor
sobreviver fora da necessidade de vender-se curecimento se acentuou ainda mais porque ção oficial, como aparece na Pronúncia do
das necessidades dos proprietários de engenho
disciplinada e cotidianamente à sua revelia. reduziu a complexidade do momento a uma chefe de polícia. E se tivermos em mente o
o que em termos concretos resultava numa si­
Para aqueles que não dispunham mais da terra luta dicotômica de cunho moral. Os relatos largo período de tempo que medeia a ascensão
tuação igual ou pior do que a do escravo. O
aforada ou cedida, da caça e da pesca, ou do conservadores mostram os guaribus como o da Praia em 1844, a Rebelião em 1848 e a
trabalho livre que se vivenciara até então tinha
artesanato ou do pequeno negócio, a igualdade lado correto e a Praia como o lado mau, e vi­ abolição da escravidão em 1888, além da cau­
outra conotação; confundia-se com a oferta
os empurrava para baixo, uma vez que a nova ce-versa. O bom e o mau, a lei e o crime, a or­ tela com que o governo imperial implementou
espontânea, em períodos curtos e delimitados
cidadania absorvia dois atributos essenciais da dem e a desordem são as categorias que clas­ as decisões mais polêmicas da modernização (a
(nas safras de açúcar, por exemplo), e não es­
escravidão e confundia-se com ela: a compul­ sificam homens e ações, aprisionam as múlti­ Lei de Terras levou mais de 30 anos para co­
tava relacionado à sobrevivência cotidiana ob­
são ao trabalho e a disciplina no ritmo e forma plas e complexas facetas da luta real e frag­ meçar a ser cumprida e o Censo Geral só foi
tida com a agricultura de subsistência na terra
exigidos pelo lucro a ser usufruído por ter­ mentam, descaracterizam e desvalorizam a re­ realizado em 1870), nos daremos conta da re­
aforada ou apossada e com a caça e a pesca
ceiros. sistência dos “cinco mil” é dos lavradores, sistência dos homens livres frente à “escravi­
abundantes. O ato de destruir editais parecia
olver, de imediato, a ameaça da escraviza- rendeiros e moradores dos engenhos. zação” e que a imposição do trabalho livre
Se a constituição da “igualdade” trazia em
As explosões isoladas que ocorreram em Nos relatos feitos pelos praieiros - A Apre­ pouco tem a ver com a história determinada
seus fundamentos um processo de luta tão in­
Ç 'tas vilas da região da Mata (em Pernambu- ciação da Revolta Praieira, do deputado Ur­ por leis naturais do progresso.
tenso, como explicar que essa luta não tenha
01111 Alagoas e Paraíba) se estenderam por um aparecido com transparência na memória que
até que o governo suspendeu os dois de- se perpetuou sobre esse momento? Por que a
tós e passaram à memória como “O Ronco cidadania perdeu sua ambiguidade originária
da Abelha”. que a remetia, ao mesmo tempo, ao universo

Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 19119 Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989 153


152

____ L
NOTAS

1 Autos do inquérito da Revolução Praieira. Introdução de Vamirch Chacon. Brasília, Senado Federal 1979 p
388.

2 MELLO, Urbano Sabino Pessoa de. Apreciação da Revolta Praieira etn Pernambuco, 2- ed. Brasília, Senado
Federal, 1978. p. 15. A 1? ed. é de 1849.

3 A descrição e análise detalhadas dos episódios descritos neste texto aparecem em MARSON, Izabel A. O im­
pério do progresso: a Revolução Praieira (1842-1855). S.Paulo, Brasiliense, 1987.
4 Os projetos de Vauthier são expostos em seus relatórios enviados à Presidência da província de Pernambuco,
publicados pe\a Revista do Arquivo Público de Pernambuco. Recife, Imprensa Oficial, 23 ed. 3(5): 141-215, I - e 2-
semestres de 1948.

5 MARX, K. - "O 18 Brumário de Luís Bonaparte” in: Manucristos econômicos e filosóficos e outros textos es­
colhidos. S.Paulo, Abril Cultural. 25 ed. 1978, p. 330-331.
6 Diário Novo. Recife, Typ, Imparcial, de Luís Inácio Ribeiro Roma, 14, 16, 27, 28 e 30 de janeiro de 1846,
reproduz os interrogatórios feitos pelo chefe de polícia Antonio Affonso Ferreira. O tema do contrabando de es­
cravos e sua importância na Rebelião Praieira foi apresentadado por NARO, Nancy P Brazils 1848' The Praieira
Revolt. Tese de Doutoramento, 1982, mimeo. O roubou de escravos na província tem sido estudado por Marcus
J.M. de Carvalho, “Quem furta mais e esconde: o roubo de escravos em Pernambuco 1832-1855”. Estudos Eco-
nômicos. I.P.E. - USP, n? especial, v. 17, p. 89-110, 1987.
7 Diário Novo, 14.1.1846.

8 A percepção do escravo enquanto coisa e pessoa ao mesmo tempo, assim como seu lugar na legislação colo­
nial, na qual tem acesso a direitos e punições, foram termas brilhantemente analisados por LARA, Silvia Hunold
em Campos da violência - Escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e
Terra 1988.

9 O Progresso. Revista Social, Lideraria e Scientifíca. Recife, Typ. de Manoel Figueiroa de Faria, 1846-1848.
3 tomos. A citação foi retirada da reedição feita em 1950 pela Imprensa Oficial do Estado de Pernambuco, com
supervisão de Amaro Quintas, t. II, p. 399.

10 Idem, tomo I, p. 298-299; tomo II, p. 676-677, em artigo de 3.10.1847.


11 Idem, tomo I, p. 61, em artigo de 20.6.1846.
12 Idem, tomo H, p. 637, em artigo de 24.9.1847.
13 A barca de S.Pedro. Recife, Typ. Imparcial de Luís Inácio Ribeiro Roma, 23.6.1848.
14 Idem, 11.7.1848.
15 O Lidador. Recife, Typ. de Manoel Figueiroa de Faria, 4.7.1848.
16 O Renegerador Brazileiro. Recife, Typ Nazarena, de Antonio Borges da Fonseca, 4.10.1845; e A Voz do
Brazil. Recife, Typ. d’A Voz do Brazil, de Inácio Bento de Loyola, 18.6.1848.
17 Sobre a imagem do escravo na percepção das elites proprietárias, reporto-me essencialmentc ao trabalho de
AZEVEDO, Célia M. Marinho de Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites - século XIX. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1987. A indicação da necessidade de mecanismos de compulsão ao trabalho para a discipli-
narização dos homens livres pobres aparece com clareza nas discussões do Congresso Agrícola do Recife de 1878.
Ver Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife (outubro de 1878), ed. fac-similar. Recife, Fundação Estadual de
Planejamento Agrícola de Pernambuco, 1978, com prefácio de Gadiel Permeei.; esse tema já foi por mim abor­
dado no artigo “Trabalho livre e progresso”, S.Paulo, Revista Brasileira de História, 4(7): 81-93, 1984.

Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


154
SUMMARY

The “Criminal Citizen”: The Establishing of Equality Between Free Men


and Slaves in Imperial Brazil

The article focuses on the officially sanctioned workers who would be submissive to political domi­
post-abolitionist process whereby an image of equal nation and judicial control.
citizenship between free men and slaves was consti­ Once recognized as political resources, the ideas
tuted. It analyzes the political conflict between libe­ of equality and of criminal citizenship were approa­
rals (Praieiros) and conservatives (Guabirus) in the ched from three distinct angles. First of all, they were
province of Pernambuco between 1844 and 1852; arguments used bu party politicians in Pernambuco in
conflicts which were to lead to a number of social their struggle for power and domination. Thus, these
shocks, among them the Praieira Revolution of 1848- arguments appeared in speeches given at public mee­
1849. The analysis demonstrates that in the middle of tings, in party platforms, in the use of slave testimony
the 19th century, with the decline of slave traffic and to incriminate political opponents, and even in the
the supression of slavery itself, it became necessary to Pronuncia, in which Chief of Policie JerAnimo M. Fi-
modify the constitutional definition of citizenship. gueira de Mello recognized the "rebellion” which led
Within this new concept, citizenship was no longer to armed struggle between Praieiros and Guabirus,
linked to the ownership of property, and was there­ and assured the 1849 victory of the Conservatives
fore applicable to both free poor men and newly or over the Liberals.
soon-to-be freed slaves. Given these historical con­
Secondly, they were a reflection of the struggle
tingents, political party policies and imperial judicial
which pitted sugar cane mill owners (the heralders of
acts gradually introduced a new, though contradic­
progress) concerned with expanding their enterprises,
tory, category of the “criminal citizen”: that of a
against sharecroppers and squatters, who lived on the
nonpropertied individual who was at the same time a
outskirts of the mill properties and resisted the loss of
partner of traditional property owners covered by ju­
their properties and their rights; losses which did not
dicial equality, and a criminal; an unpredictable, dan­
make them equal to the tend owners, but to free men
gerous threat to order and property, especially when
forced to work as salaried labor, or even as slaves.
he put his newly attributed theoretical rights - liberty
and equality - into effective action without the appro­ Thirdly, these new concepts were strategically
val or knowledge of his natural political leaders. used by the propertied elite in the process of creating a
Clearly the “equality” incorporated into this new pool of free laborers, trained to work within the ry-
concept of citizenship was actually part of a greater them of the sugar cane industry and to satisfy the ne­
political project dedicated to overcoming slavery eds of wealth and power accumulation by the sugar
while at the same time creating a contingency of free and coffee barons.

RÉSUMÉ

Le “Citoyen-Criminel” ou la Formation de la Notion d’Égalité entre Hommes


Libres et Esclaves durant la Seconde Monarchie

Lors de l’abolition de l’esclavage au Brésil, une vant l’urgence croissante de la suppression du trafic
conception particulière concernant la citoyenneté et des esclaves et de l’esclavage lui-même, Vidés de ci­
l’égalité entre hommes libres et affranchis acquit un toyenneté inscrite à la Constitution de l’Empire dut
caractère officiel. Le présent article retrace le pro­ subir d’importante aménagements.
cessus selon lequel s’est constituée cette conception En ses lieu et place surgit un nouveau concept qui
tout en analysant la lutte qui opposa les liberáux n’impliquait plus la possession de biens matériels et
(“praicros”) aux consrvatcurs (“guabirus”) dans la qui pouvait inclure aussi bien les hommes libres pau­
province de Pemambuco entre 1844 et 1852 et qui vres que les esclaves affranchis où à afranchir. Face à
donne lieu à nombre da péripéties, parmi lesquelles la ces cotingences historiques, les projets politiques des
Révolution "Praiera” de 1848-1849. partis et les milieux juridiques de l’Empire engen­
A partir de la seconde moitié du XIXe siècle, de- drèrent progressivement une nouvelle catégorie, en

Estudos AJro-Asidticos n- 16, 1989


155
elle-même essentiellement contradictoire: celle du
criminer des adversaires. On, les retrouve même dand
“citoyen-criminel”. Elle désignait tout individu qui,
le Pronunciamient par lequel le Chef de Police, Jerô-
dépourvu de biens, pouvait apparaître à la fois comme
nimo M. Figueira de Mello reconnaissait une Rébel­
l’égal des propriétaires traditionnels au point de vue
lion dans la lutte armée qui opposait les “Praieros” et
juridique et comme un criminel, un homme imprévi­
les "Guabirus” à Pernambuco. (Cet acte consacra
sible et donc dangereux. Il constituait en particulier
d’ailleurs, en 1849, la victoire des conservateurs sur
une menace à l’ordre public quand s’opposant à ses les libéraux.)
chefes politiques “naturels” il manifestait son inten­
tion de faire effectivement usage des droits qui lui Ces thèmes ensuite servaient à extérioriser la lutte
étaient théoriquement attribués: la liberté et l’égalité. entre les planteurs de canne à sucre désireux d’aug­
C’est là, en quoi l’idée d’égalité que contenait ce nou­ menter leurs affaires (les tenants du progrès) et les
veau concept de citoyenneté faisait partie d’un ample fermiers ou les squatters qui vivaient sur les marges
projet politique qui visait à la fois à dépasser le stade des plantations. Ces derniers résistaient à la perte de
de l’esclavage et à constituer un contingent de tra­ leurs propriétés et de leurs droits car une telle perte
vailleurs libres mais soumis à la domination politique loin de les égaler aux maîtres, les ravalaient au rang
et au contrôle juridique. d'hommes libres contraints de se vendre en tant que
Apréhendés en tant que recours politiques, les salariés ou même au rang d’esclaves.
thèmes de l'égalité et de la citoyenneté criminelle fu­
Les thèmes de l’égalité et de la citoyenneté crimi­
rent abordés sous trois angles distincts. Tout d’abord,
ils servaient d’arguments aux partis politiques de Per- nelle constituèrent finalement un recours stratégique
nambouc dans leur dispute pour le pouvoir. C’est ainsi pour l’élite propriétaire désireuse de former un mar­
qu’ils transparaissent dans les spectacles politiques ché de travaillera libres disciplinés adaptés au rhyth-
(meetings), dans les programmes des partis, dans l'u­ mes de la production sucrière ainsi qu’aux besoins de
tilisation de témoignages d’esclaves se destinant à in­ reproduction de la richesse et du pouvoir des “ba­
rons” du sucre et du café.

156
Estudos Afro-Asidticos n? 16,1989
"Não sei se, como diz o provérbio, as
REVISITANDO A coisas repetidas agradam, mas creio
“DEMOCRACIA que, pelo menos, elas significam. E o que
procurei com tudo isto foi captar signifi­
RACIAL”: RAÇA E cações." (Roland Barthes- Mitologias)
IDENTIDADE Neste artigo, pretendo demonstrar como as
discussões acerca do negro e das relações ra­
NACIONAL NO ciais no Brasil vinculam-se à questão mais
PENSAMENTO abrangente da nacionalidade e quais as impli­
cações desse fato para a compreensão do que
BRASILEIRO chamamos “ideologia racial brasileira”.1.
Pode-se observar que, pelo menos até a dé­
cada de 30, todos aqueles que se propuseram
pensar a sociedade brasileira tendo como ob­
Denise Ferreira da Silva*
jetivo definir uma “especificidade nacional”
tiveram como ponto de partida e/ou de chega­
da um diagnóstico da situação racial no País.
Com as discussões sobre o negro e as rela­
ções raciais iniciou-se o processo de constitui­
ção das ciências sociais como campo de estu­
do. Ao mesmo tempo, tais discussões foram a
base a partir da qual especulou-se acerca da
identidade nacional, no momento em que o
País estava em vias de constituir-se como na­
ção capitalista independente. Nesse sentido,
procuro retomar aqui as principais teses do
pensamento racial brasileiro, com a preocupa­
ção de pôr em destaque os projetos de nação a
elas subjacentes.
Não pretendo realizar um estudo exaustivo
de toda a produção intelectual do período
considerado, que vai até a década de 30, com a
publicação de Casa grande & senzala (1933),
mas apenas uma revisão de alguns aspectos do
pensamento racial brasileiro.
Nesse sentido, elegi como primeiro período
a ser analisado aquele em que o País passava
por profundas transformações e iniciava uma
nova fase já independente de Portugal. Essa
fase, que vai, aproximadamente, até a abolição
da escravidão, está marcada por uma dupla
preocupação. De um lado, a desagregação do
regime de trabalho escravo colocava no centro
da discussão o problema da formação de uma
* Mestranda em Sociologia no Instituto de mão-de-obra livre. De outro, o impacto das
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e pes­ teorias do racismo científico apontava para
quisadora do CEAA. a impossibilidade de se construir uma nação

Estudos Afro-Asiâticos n? 16, 1989 157


ciai. Uma realidade indisfarçável: um número música, o negro revela-se indiferente em
com uma população em sua maioria negra e ao grupo das nações capitalistas, era a cons­ suas relações sociais, não se importando
considerável de negros e mestiços dissemina­
mestiça. trução da nacionalidade brasileira: com os filhos e utilizando-se da mulher
dos por vários setores da sociedade.
A necessidade de formar mão-de-obra li­ como se fosse uma serva ou objeto.”4
“Esta passagem, ou transição, era concebi­ A inferioridade do negro era fato provado
vre e a urgência de realizar a “reformulação
da como um tempo ordeiro de superação cientificamente. A população brasileira, na Com isso Couty introduzia o tema da vaga­
étnica” da população, para viabilizar o “pro­
gradativa dos graves problemas sócio-ra­ forma como se constituía, não apresentava bundagem do negro, sua tendência ao alcoo­
gresso” e o “desenvolvimento” da nação, le­
ciais, em que um conjunto de táticas de qualquer possibilidade dc mudança. Uma das
varam à elaboração de uma estratégia que se lismo e à marginalidade. O que se associava
controle e de disciplina seria aplicado a fim saídas propostas foi o incentivo à importação
convencionou chamar de “ideal do branquea­ à tese de sua inferioridade racial, seu baixo
de se atingir no futuro o tão sonhado tempo dc trabalhadores europeus em massa. A imi­
mento”. A defesa dessa estratégia, conforme desenvolvimento mental e sua incapacidade
de progresso. Nesse meio tempo, esperava- gração européia viria rcsolvcr o duplo proble­
veremos adiante, deu-se a partir de uma para o trabalho.
se que o país pudesse preencher uma carên­ ma: formar mão-de-obra livre c afeita às no­ No pensamento abolicionista identifica-se
adaptação das teses do racismo científico à
cia básica como: a nacionalidade. Para isso vas condições dc trabalho e reverter a compo­
nossa realidade racial. Isto é, ao incentivo à um maior esforço na defesa da tese da “har­
era preciso que se forjasse uma população sição étnica da população do País. “Progresso”
imigração européia adicionaram-se a idéia do monia racial brasileira”, como exemplifica esse
plenamente identificada com a idéia dc pá­ e “branqueamento” eram projetos inseparáveis
“paraíso racial brasileiro” e a tese de que a trecho de O abolicionismo, de Joaquim
tria, de sociedade brasileira, não só cm ter­ e o segundo aparecia como condição única
“miscigenação” levaria ao “branqueamento”. Nabuco;
mos de limites demográficos, como princi- para a viabilização do primeiro.
Num segundo momento, será analisado o palmentc no sentido de uma ética nacional. “A escravidão, por felicidade nossa, não
Em certo sentido, obscrva-sc até uma in­
pensamento de Nina Rodrigues, que, ao con­ Contudo, a percepção de uma explosiva azedou nunca a alma do escravo contra o
versão nas concepções sobre a escravidão.
trário de seus contemporâneos, aceita inte­ senhor falando coletivamente, nem criou
heterogeneidade sócio-racial destaca-se Seus males originariam-sc menos do regime de
gralmente as postulações das teorias raciais entre as duas raças o ódio recíproco que
como um considerável entrave no pensa­ trabalho forçado do que da própria inferiori­
européias. Para ele, a população brasileira, na existe naturalmente entre opressores e
mento daqueles que almejam transformar o dade racial dos africanos escravizados. E al­
forma como se constituía racialmente, estava
país recém-independente em nação."2 guns, como Percira Barreto, chegam a conde­ oprimidos. Por este motivo o contato entre
condenada à “inferioridade”. eles sempre foi isento das asperezas fora da
Nesse momento, dois temas merecem a nar a escravidão não pelo mal que inflige aos
Em seguida, para a análise das idéias dos escravidão e o homem de cor achou todas
atenção dos analistas da questão nacional: de negros, mas pelos males sociais resultantes da
defensores da tese do “branqueamento”, no
presença dessa raça inferior entre “nós”. as avenidas abertas diante dele.”5
período posterior à Abolição, retoma-se a um lado, o fim da escravidão e a transição para
obra de Oliveira Vianna que serviu de texto o trabalho livre; de outro, a composição racial No pensamento dos defensores da imigra­ Os abolicionistas buscavam viabilizar o fim
introdutório aos resultados do Censo de 1920, da população brasileira, um dos itens conside­ ção européia destacam-se dois aspectos: dc um da escravidão afirmando que, apesar de todos
Evolução do povo brasileiro. rados fundamentais para se pensar a nacionali­ lado, a difusão de representações negativas os males acarretados aos negros, sua situação
Por fim, analisarei a obra que sintetizou o dade. acerca do negro, que serviam para justificar de escravo não fez com que desenvolvessem
É importante ressaltar que esses temas sua substituição pelo trabalhador imigrante
nosso padrão de relações raciais e redefiniu ódio contra seu senhor branco. E este, por sua
aparecem na maioria das vezes inseparáveis. A branco; dc outro, a defesa da tese da “harmo­
a identidade brasileira sobre bases positivas - vez, ao deparar-se com o negro livre, tratava-
questão principal é: como formar mão-de- nia racial brasileira”.
Casa grande & senzala, na qual Gilberto o como a um igual. Dessa forma, eliminava-se
obra de trabalhadores livres que possa levar a O médico francês Louis Couty, professor
Freyre reelabora as concepções existentes toda e qualquer idéia de que, finda a escravi­
cabo o “desenvolvimento” da nação, tendo-se da Escola Politécnica e do Museu do Rio de
acerca de nossa situação racial, valorizando dão, o negro viesse a desejar vingar-se daquela
uma população majoritariamente negra e mes­ Janeiro, foi um dos principais influenciadores
não somente as contribuições das “raças for­ raça que o manteve no cativeiro.
tiça? Ainda por cima, tendo experimentado do pensamento imigrantista e um grande di­
madoras”; para ele, a forma específica como E importante chamar a atenção para o fato
quase três séculos de escravidão! vulgador da tese do “paraíso racial brasileiro”, de que as crenças na “inferioridade do negro”
as raças se relacionaram é característica fun­
As teorias raciais do século XIX3 tiveram a qual defendia juntamente com suas concep­
damental da identidade nacional. e na “harmonia racial brasileira” fazem parte
profunda influência sobre a elite intelectual ções negativas acerca do negro: do pensamento racial desse momento. Ambas
brasileira. Segundo alguns teóricos do deter­
“Não era a liberdade o que importava ao se conjugam enquanto argumentos necessários
I minismo racial, o Brasil seria bom exemplo
negro no Brasil, mesmo porque suas ori­ para justificar a imigração européia, e para
dos males advindos do contato não-controlado
gens africanas descartavam qualquer idéia tranqüilizar os possíveis imigrantes acerca da
No seu livro Onda negra medo branco, entre raças diferentes. Para os intelectuais
de liberdade individual; importava-lhe so­ situação racial no País.
Célia Azevedo mostra como as discussões so­ brasileiros, totalmente voltados para o que se
mente o direito de nada fazer, uma vez que No entanto, observa-se que a “miscigena­
bre o negro e a situação racial no Brasil ocu­ produzia na Europa, colocava-se a necessidade
ele é quase sempre um grande preguiçoso. ção” - o principal tema a sensibilizar nossos
param o pensamento da elite desde a indepen­ de viabilizar a modernização da sociedade
(...) Intenso e indiscreto em seu gosto intelectuais — era o ponto de partida e de che­
dência. A principal questão, então, tendo em brasileira tendo como referenciais idéias ab­
quanto às coisas do paladar, do trajar, da gada para quase todos aqueles que se preocu-
vista que o País estava em vias de integrar-se solutamente negativas sobre nossa situação ra-
Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 159
158 Estudos Ajro-Asiáticos n- 16, 1989
pavam com a reformulação étnica da popula­ II
ção brasileira.
Nesse momento, desenvolve-se a idéia de As preocupações de Nina Rodrigues, pro­
que a “miscigenação” levaria, no futuro, ao fessor de medicina legal da Faculdade de Me­
surgimento de um tipo racial branco adaptado dicina da Bahia, não diferem das que mobili­
às condições do continente americano, idéia zavam seus contemporâneos na virada do sé­
presente principalmente no pensamento de culo. A ele também se colocava a questão da
Sflvio Romero. nossa definição enquanto povo, e do País co­
Esse “darwinista social” afirmava que o mo nação.
Brasil era formado pela mistura de três raças: Da mesma maneira que seus contemporâ­
a branca, a negra e a índia. A primeira, contu­ neos, Nina Rodrigues vai buscar na análise da
do, seria superior: situação racial do País a compreensão das es­
“Não há mais tipos raciais puros no Brasil pecificidades do nosso povo e de nossa organi­
e, mesmo que houvesse, nenhum índio ou zação social. Mas, diferentemente daqueles
negro puro sangue jamais se notabilizou na que defendiam o “branqueamento” como
História do Brasil. O produto dos séculos principal meio de viabilização da nação brasi­
de miscigenação mostrava variadíssimos leira, ele buscou conhecer nossa realidade ra­
graus de influência dos três elementos. Os cial investigando a vida dos negros e mestiços.
brancos predominaram porque a sua cul­ Um dos fatores que marcam a diferença
tura era mais desenvolvida.”6 entre Nina Rodrigues e os outros intelectuais
do seu tempo é a sua aceitação total das teses
Quanto ao futuro...
do determinismo racial. Para ele, a inferiorida­
“A minha tese, pois, é que a vitória na luta de dos negros era fato comprovado pela ciên­
pela vida, entre nós, pertencerá, no porvir, cia evolucionista e a degenerescência dos mes­
ao branco; mas que esse, para essa mesma tiços, uma verdade inquestionável.
vitória, atento às agruras do clima, tem ne­ Nesse sentido, para ele, a população brasi­
cessidade de aproveitar-se do que de útil as leira, na forma como estava constituída ra­
outras duas raças lhe podem oferecer, má­ cialmente, era inviável. Também a imigração
ximo a preta, com que tem mais cruzado. européia não se apresentava como saída eficaz,
Pela seleção natural, todavia, depois de na medida em que a “miscigenação” só faria
prestado o auxílio de que necessita, o tipo aumentar o número de “tipos degenerados”.
branco irá tomando a preponderência até
O ponto fundamental a ser resgatado no
mostrar-se puro e belo como o velho mun­
trabalho de Nina Rodrigues é sua preocupação
do. Será quando já estiver de todo aclima­
em realizar uma análise na qual as diferenças
tado no continente. Dois fatores contri­
têm peso inquestionável. Embora seus refe­
buirão JLargamente para esse resultado: de
renciais teóricos apontassem para a imutabili­
um lado, a extinção do tráfico africano e o
dade do caráter das “raças inferiores”, isso
desaparecimento constante dos índios, e de
não o levou a excluir a necessidade de conhe­
outro a imigração européia.”7
cer a forma como os representantes dessas ra­
Nota-se nas idéias de Sílvio Romero algu­ ças, principalmente os negros, viviam em
mas teses que serão defendidas pelos princi­ nossa sociedade. Pelo contrário, era sua crença
pais pensadores da questão racial no nosso sé­ na inferioridade dos negros e na degeneres­
culo: Oliveira Vianna e Gilberto Freyre. Mas, cência dos mestiços que dirigia suas preocupa­
antes de analisar o pensamento desses autores, ções para a investigação da forma como eles
seria importante rever as contribuições de Ni­ viviam e influenciavam a sociedade brasileira.
na Rodrigues> um intelectual que se colocou na Em sua obra O animismo fetichista dos negros
contramão das concepções de sua época. baianos, na qual relata suas pesquisas empíri-

160 Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989


cas nos terreiros de Salvador, Nina Rodrigues mento da Medicina de seu tempo, que criou
mostra como a religião dos negros fazia parte a perícia (...) como também no movimento
de nossa sociedade, envolvendo a todos. de criação de uma outra disciplina interes­
“A existência na Bahia de crenças feti- sada no ser humano, a antropologia.”9
chistas tão profundas, de práticas tão re­ No caso específico dos estudos sobre o ne­
gularmente constituídas como as da África gro e as relações raciais, que é o que me inte­
não occultas e disfarçadas, mas vivendo à ressa enfatizar aqui, a disposição de Nina Ro­
plena luz do dia, de uma vida que tem ar- drigues de investigar as consequências do es­
rhas de legalidade nas licenças policiaes treito convívio entre negros e brancos no
para as grandes festas annuaes ou Can­ Brasil opera uma mudança significativa. Com
domblés, que conta com a tolerância da Nina Rodrigues o negro deixa de ser apenas
opinião pública manifestada na naturalidade a imagem retórica das discussões acerca dos
com que a imprensa diária dá conta dessas males da escravidão e passa a ser contemplado
reuniões como si se tratasse de qualquer como “objeto de ciência”. O foco central de
facto da nossa vida normal; a existência de suas análises, como das de seus contemporâ­
praticas que estendem a sua acção a es- neos, será a “miscigenação”.’A ele também vai
pheras muito mais amplas do que aquellas interessar a inserção do negro na sociedade
em que se gereram; de crenças que são brasileira, vista sob sua forma mais naturaliza­
adoptadas e seguidas pelas soi-disant clas­ da: a “mestiçagem”. Sua grande preocupação
ses civilizadas, mercê já das allianças con­ era “a possibilidade do negro transformar o
traídas com o culto catholico, já do consir- branco, alterá-lo, torná-lo outro”.10
cio firmado com praticas espiritas; esta
Em As raças humanas e a responsabilidade
existência, assim vivida e multiforme, é
penal no Brasil podemos ver claramente qual
coisa que está no animo publico e no pleno
era o sentido das preocupações de Nina Ro­
conhecimento de todos.”8
drigues com a presença do negro e seus mesti­
O interesse de Nina Rodrigues não se es­
ços na sociedade brasileira.. A principal ques­
gotava com o conhecimento em si de tais prá­
tão que se coloca nesse livro é: “Pode-se exi­
ticas. Era fundamental conhecer os grupos que
gir que estas raças distintas respondam por seu
constituíam a sociedade brasileira, principal­
actos perante a lei com igual plenitude de res­
mente os dominados, para levar a cabo um
ponsabilidade penal?”” Estando as “raças in­
projeto visando a um controle maior da socie­
feriores”, principalmente o negro, incorpora­
dade. Esse projeto insere-se na sua luta pela
das à nossa sociedade, participando de todos
autonomia da ciência em relação ao Estado e
os direitos da ordem republicana, percebe-se
pela constituição da medicina legal como dis­
que o questionamento de sua imputabilidade
ciplina autônoma, cuja atuação, segundo esse
penal traz implicitamente o questionamento de
autor, encontrava-se diretamente ligada ao or­
sua própria cidadania.
denamento jurídico da sociedade brasileira.
Nesse sentido, o interesse em investigar a
Para a realização desse propósito de constitui­
vida dos negros na sociedade brasileira tem
ção do campo da medicina legal, Rodrigues
como objetivo conhecer a forma como se dava
estabelece uma metodologia que o leva a.reali­
sua inserção e o grau de influência que exercia
zar um duplo movimento:
sobre a população “branca”. No projeto de
“(.. .) Nina Rodrigues resolveu também, ao Nina Rodrigues identifica-se seu propósito
examinar a questão da capacidade civil e da fundamental: o controle e a limitação da parti­
responsabilidade penal do brasileiro, ir até
cipação do negro em nossa sociedade.
‘os seus alicerces mesmo’, isto é, investigar
as consequências da interação racial. Assim “Os negros africanos são o que são: nem
fazendo, ele se inscreveu não só no movi- melhores nem peiores que os brancos; sim-

Estiulos Afro-Asiríticos n- 16, 1989 161


plismente elles pertencem a uma outra
phase do desenvolvimento intellectual e monstrando suas diferenças e qualidades espe­
Vejamos agora as idéias de um dos princi­
moral. Essas populações infantis não pu­ cíficas. Tais diferenças, segundo sua intenção, Ção da sociedade brasileira, Oliveira Vianna
pais defensores da tese do “branqueamento”
deram chegar a uma mentalidade muito deveriam determinar não somente o seu grau elabora uma categorização dos diversos re­
em nosso século.
adiantada e para esta lentidão de evolução de imputabilidade penal, mas também seu pró­ presentantes do “typo africano” que foram
tem havido causas complexas. (...), o que prio estatuto civil, os limites de sua cidadania. trazidos com a escravidão. Ao fazê-lo, o autor
se pode garantir com experiência adquirida, Os trabalhos de cunho mais antropológico
III indica suas qualidades físicas, morais e inte­
é que pretender impor a um povo negro a de Nina Rodrigues foram retomados na déca­ lectuais e a maneira como se comportaram en­
civilização européia é uma pura aberra­ Na fase posterior à abolição da escravidão, quanto trabalhadores escravos.
da de 30, momento em que, mais uma vez, o
ção ”12 interesse de nossa elite intelectual volta-se destaca-se o pensamento de Oliveira Vianna,
A partir da caracterização das “raças for­
representativo das concepções daqueles que
Nina Rodrigues acaba por concluir que a para o estudo do negro e da situação racial no madoras ’, Oliveira Vianna procura demons­
Brasil, tendo cm vista a definição de nossa viam no “branqueamento” a única saída para o
responsabilidade penal, fundada na noção de “progresso” do País. trar por que o processo evolutivo do povo
livre arbítrio, não pode ser a mesma para as identidade nacional. brasileiro (do ponto dc vista racial) encon­
Desse advogado, formado pela Faculdade
“raças inferiores” e as “raças brancas civiliza­ Arthur Ramos vai reivindicar a herança tra-se na direção da formação de um tipo na­
de Direito do Rio de Janeiro, optei por anali­
das”. Mas, acrescenta, isso não deve ser colo­ intelectual de Nina Rodrigues, retomando seu cional, mestiço, que deverá apresentar carac­
sar a obra que foi utilizada como texto intro­
cado em termos gerais de raça; é necessário interesse pelo conhecimento da vida dos ne­ terísticas predominantes do “typo aryano
dutório aos resultados do censo de 1920,
que se desça ao estudo das individualidades gros e mestiços no Brasil. Ramos, no entanto, superior”.
Evolução cio povo brasileiro.
para a avaliação da imputabilidade penal dos abandona as teses do determinismo racial e
No capítulo referente à formação racial do
membros das “raças inferiores”. conduz suas investigações para o estudo das Segundo sua teoria, todas as raças huma­
povo brasileiro, Oliveira Vianna faz uma ca­
O ponto crucial do convívio entre raças manifestações culturais dos negros, tomadas nas, mesmo as inferiores, são capazes de pro­
racterização das “raças formadoras”, dando a
diferentes estaria menos na proximidade de como sobrevivências culturais de origem duzir tipos superiores (ou eugênicos); o que as
sua versão do “mito das três raças”: diferencia é sua maior ou menor capacidade de
grupos humanos situados em escalas distintas africana.
da evolução humana do que na forma mais É importante ressaltar que Arthur Ramos, “Entre nós, o negro, o índio e o branco cal- produzi-los. Por isso, quando raças de dife­
naturalizada como se dá esse contato - a deiam-se profundamente, cruzam-se e rc- rentes índices de fecundidade em tipos supe­
ao contrário de seu mestre, não estava tão
“mestiçagem”. O resultado do cruzamento de cruzam-se em todos os sentidos (. . ■) em riores entram em contato, aquelas de menor
preocupado com os possíveis males causados
pela influência do negro em nossa sociedade. todos os pontos do território c, como cada capacidade são absorvidas ou, no mínimo, do­
raças em estágios evolutivos tão diferentes se­
ria a produção de tipos “moraes c sociaes, evi­ um desses elemeptos traz uma anthropolo- minadas pelas dc maior fecundidade.17
Para ele, segundo nos diz Mariza Corrêa, está­
dentemente inviáveis e certamente hybri- gia própria e uma cbnstituição psycologica
vamos formando uma “cultura nacional”. O Nesse sentido, Oliveira Vianna acredita que
dos”.13 Citando Spencer, Nina Rodrigues específica, compreende-se como é arduo o
que não deve ser estranhado, posto que, no a civilização brasileira é obra exclusiva do
afirma que suas conclusões encontram evi­ problema da determinação da influência
momento em que escreve, a busca e a defesa branco. Negros e índios só são agentes de ci­
dente comprovação no caso brasileiro. da “especificidade nacional” eram as palavras que cada um delles tem na fonnação do
vilização quando, ao se misturarem com os
de ordem. nosso povo c na constituição dos caracteres
“A julgar por certos factos, a mistura entre brancos, produzem tipos mestiços “superio­
somáticos c psycologicos de nossos typos
raças de homens muito dessemelhantes pa­ “Na sua maioria, no entanto, os negros nacionais.”16 res (que trazem mais elementos da raça
rece produzir um typo mental sem valor, branca”).
brasileiros estão se misturando, física e
que não serve nem para o modo de viver da Nesse processo, Oliveira Vianna destaca o
culturalmcnte, com o tipo nacional em sua
papel do “typo aryano”, considerado o ele­ O que está fora de dúvida, porém, é que
raça superior, nem para o da raça inferior maior parte ctnicamente luso-brasileiro, c
que não presta em fim para gênero algum mento condutor e civilizador mais importante. combinações de hereditariedades favorá­
com os padrões culturais da península, mo­ veis geram, por vezes, mestiços superiores,
de vida.”14 Quanto aos “typos raciais inferiores”, afirma­
dificados no novo meio ambiente. O resul­
va que a população indígena acabou por inte- que se esforçam, por todas as maneiras,
São os “mestiços” que vão despertar maior tado dessas misturas é a formação, no Bra­
grar-sc totalmcntc à sociedade nacional; os para ascender as classes superiores: (. . .)
sil, de um mosaico cultural luso-afro-bra-
grau de interesse em Nina Rodrigues. Sua negros, ao contrário, trouxeram a este país o - e o fazem com tanto mais rapidez quanto
sileiro, no qual frcqücntemente c impossí­
preocupação em aprofundar o conhecimento contingente maior de confusão e discordância. tem para auxiliá-los uma caracterização
da formação da sociedade brasileira vai dirigir vel distinguir os elementos originais. O
Por esse motivo ele confere, cm sua análise, anthropologica favoravel, isto é, quante
seus esforços no sentido de estabelecer uma cruzamento no plano físico e a aculturação mais sc approximam, pela côr da tez e pela
maior peso ao que chama dc “typos afri­
no nível cultural estão absorvendo o negro
categorização dos diversos tipos de “mesti­ canos”. fórma dos cabcllos, principalmcnte, do typo
brasileiro num trabalho lento mais decisivo
ços”. O objetivo principal seria a ordenação e Depois dc identificar as características dos anthropologico do homem branco.”16
de gradual modificação dos velhos tipos c
hierarquização das diversas categorias, de- povos arianos que dirigiram o processo dc co­
das velhas culturas de origem africana.”15 Por fim, Oliveira Vianna examina os dados
lonização c foram os responsáveis pela forma-
162 dos censos anteriores (1872 c 1890) sobre a
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
163
composição racial da população, observando
IV
que o País se encontra em franco processo de
branqueamento. Segundo ele, isso se deve ao
As idéias utilizadas por Gilberto Frcyre já
crescimento relativo da raça ariana, resultante
estavam presentes no pensamento racial bra­
de um reduzido aumento ou estacionamento da
sileiro desde, pelos menos, o século XIX. Mas
população negra e mestiça, do crescimento
a força das teorias raciais c o baixo nível de
natural no interior do grupo branco, que é
desenvolvimento económico do País coloca­
maior que o dos outros, e, ainda, da imigração
européia. vam o Brasil cm situação dc inferioridade no
cenário internacional. Não c à toa que somente
“Esse admiravel movimento immigratorio após a Primeira Guerra Mundial, quando os
não concorre apenas para augmentar rapi­ países europeus tem sua superioridade mundial
damente, em nosso paiz, o coefficiente da abalada, encontramos esforços mais efetivos
massa aryana pura; mas também, cruzando- para a superação da influência do pensamento
racista entre nós. Os acontecimentos da Sema­
se e recruzando-se com a população
mestiça, contribue para elevar, com cgual na de 22 c o “Manifesto Antropofágico" são
rapidez, o theor aryano do nosso san­ exemplos dessa busca dc valorização do que é
gue.’’19 brasileiro”, cm detrimento dos “valores es­
trangeiros”. E foi justamente na década dc 30,
Apesar das diferenças regionais do “pro­ quando se acentua o nacionalismo brasileiro,
cesso de branqueamento” e da ainda conside­ que se deu a primeira edição de Casa grande
rável presença de negros e mestiços na popu­ & senzala.
lação nordestina, suas expectativas são favo­ Com Casa grande & senzala temos a ca­
ráveis: racterização das “raças formadoras” do povo
brasileiro sob uma ótica bastante diferente.
“Na massa cabocla do nordeste, os typos Essa obra dc Gilberto Frcyre faz a síntese fi­
que hão de emergir ao fim desse trabalhoso nal do nosso “mito das tres raças”.
processo selectivo, a que ella está sujeita, Em relação ao branco, no caso, o portu­
hão de ser, alli - como ao centro, como ao guês, Gilberto Freyrc demonstra que, devido
sul, como em todo paiz - variantes do ar­ às qualidades de seu caráter, ele seria o único
yano vestidus com a libré dos nossos climas povo europeu capaz de obter sucesso na em­
tropicaes.”20 presa colonial. Quanto ao índio e ao negro,
afirma que contribuíram, em maior ou menor
O pensamento de Oliveira Vianna apre­
grau, para o sucesso da colonização, tendo si­
senta uma ruptura com as teorias racistas no do o índio, mais exatamente a mulher índia,
que se refere à degenerescência dos mestiços. muito importante para o povoamento do País
O homem brasileiro que surge da mistura das
nos primeiros anos.
três raças é o “mestiço”. Desse ponto de vista,
No entanto, é o negro que Gilberto Freyre
a especificidade nacional é dada pelo amalga- vai apontar como principal colaborador do
mento de três raças distintas, que resultará na
português na construção da sociedade brasi­
formação de um tipo racial perfeitamente ade­
leira, seja como trabalhador das lavouras de
quado à vida nos trópicos. Mas esse tipo bra­
cana-de-açúcar, seja como trabalhador nas
sileiro, em função da “superioridade da raça
minas ou ocupado com as tarefas domésticas
branca”, é branco. Não como o branco euro­
no interior das casas grandes.
peu, mas um tipo que herda das “raças infe­
Num certo sentido, pode-se dizer que,
riores” os elementos necessários para realizar
nessa obra, Gilberto Freyre faz a elaboração
a difícil tarefa de construir uma civilização nos
final do que seriam as bases da nossa nação,
trópicos.
recuperando positivamente as representações
164
Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989
acerca das “raças formadoras” do povo brasi­ O negro, na sua condição de escravo na so­
leiro. ciedade patriarcal, não mais o africano ou a
Na verdade, se tomada especificamente sob “raça negra”, vai ser o personagem de Casa
o aspecto das relações entre as raças. Casa grande & senzala: os‘ “muleques”, as “negri­
grande & senzala narra o pfocesso de consti­ nhas”, as “amas de leite”, sob o domínio dos
tuição da sociedade brasileira a partir de um “senhores patriarcas”, das “senhoras vingati­
dado fundamental: a “miscigenação”. vas”, das “jovens brancas virgens” ou do “si-
“Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo nhozinho malvado”.
louro, traz na alma, quando não no corpo — A relação senhor-escravo, segundo Gil­
há muita gente de genipapo ou mancha berto Frcyrc, é o principal antagonismo a mar­
mongólica pelo Brasil - a sombra, ou pelo car a sociedade patriarcal brasileira. E a partir
i menos a pinta, do indígena ou do negro.”21 dessa relação que o autor desenvolve a maior
| Ao valorizar as contribuições das “três ra- parte de sua obra. Senhor c escravo, branco e
negro, dominante c dominado são os pólos ir­
ças”, em nenhum momento Frcyrc as coloca
| em pc de igualdade no que se refere à tarefa redutíveis de uma formação social autoritária,
de levar a cabo a colonização e a construção conservadora c imutável. Porém, argumenta
Freyrc:
da sociedade brasileira. Segundo ele, foi o
branco, português, através do intcrcurso se­ “É verdade que agindo sempre, entre tan­
xual (violento ou não) com a índia c a negra,
tos antagonismos, amortecendo-lhes o cho­
quem garantiu o surgimento do “mestiço”,
que ou harmonizando-os, condições de
este sim, tipo adequado para construir a nação
confraternização c de mobilidade social pe­
brasileira. Nesse sentido, o que há cm Casa
culiares ao Brasil: a miscigenação, a dis­
grande & senzala c, antes de tudo, uma defesa
persão da herança, o fácil e freqüente
da “miscigenação” e do sucesso da coloniza­
acesso a cargos e a elevadas posições políti­
ção portuguesa nos trópicos.
cas c sociais dos mestiços c de filhos natu­
Não é à toa que, apesar de criticar as teses rais (. . .).”23
que dennem o negro como “raça inferior”,
Frcyrc só se propõe falar dele na sua condição A identidade nacional assim formulada te­
de escravo: ria como caracteristica principal uma rígida
“O negro no Brasil, nas suas relações com hierarquização em que os pólos antagônicos
a cultura e com o tipo de sociedade que permanecem nos lugares nela definidos. Mas,
aqui se vem desenvolvendo, deve ser consi­ garantindo o desenvolvimento e a harmonia da
derado principalmente sob o critério da nossa organização social, construímos ele­
História Social e Econômica da Antropolo­ mentos mediadores que trazem em si caracte­
gia Cultural. Daí ser impossível - insistimos rísticas de ambos os pólos.24
nesse ponto - separá-lo da condição degra­ Com Casa grande & senzala, Gilberto Fre-
dante de escravos, dentro da qual abafa­
yre consegue redirecionar as concepções que
ram-se nele muitas das suas melhores ten­ se tem da formação racial brasileira, operando
dências criadoras e normais para acentua­
uma transformação no sentido de definir nossa
rem-se outras, artificiais e até mórbidas.
especificidade de um ponto de vista positivo.
Tornou-se, assim, o africano um decidido
A nação brasileira tem, assim, graças à tese da
agente patogênico no seio da sociedade “democracia racial”, uma identidade racial e
brasileira. (...) O negro foi patogênico, nacional articulada e positiva. Do ponto de
mas a serviço do branco; como parte irres­ vista ideológico, no entanto, essa formulação
ponsável de um sistema articulado por apenas reorganiza e sintetiza as teses que vi­
outros.”22 goravam até então.
Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989 165
Mas, a valorização da “miscigenação” não
Considerações finais levou necessariamente a uma modificação das
concepções negativas que se tinha sobre o ne­
A análise das idéias daqueles que se debru­
gro. Para esses pensadores, era justamente a
çaram sobre a questão da nacionalidade de­ “inferioridade racial do negro” que o faria
monstra que a recorrência à nossa constituição desaparecer ou sucumbir no convívio com a
racial se deu não somente em função da real “raça superior”. Nesse sentido, o pensamento 1
composição da população, mas também visava racial que valoriza a “miscigenação” se realiza
responder ao problema da organização interna reafirmando os postulados negativos acerca do
da nação que se desejava construir. negro. Disso resulta a elaboração de uma
identidade nacional que, longe de ser positiva, ,
A abolição da escravidão c a instituição da
acaba por acentuar um sentimento de inferio­
ordem republicana impõem um reordenamento
ridade cm relação aos “povos desenvolvidos ’ 1
social e político do País. Durante a escravidão,
da Europa e aos Estados Unidos, dado pela
temos uma organização social que situa os se­ presença de representantes da “raça inferior ’ |
nhores brancos no pólo dominante, enquanto
os negros escravos e brancos pobres consti­ cm nossa população.
Com Casa grande & senzala temos a for­
tuem o setor dominado da sociedade brasileira.
mulação mais acabada do nosso padrão de re­
A nova ordem social, estabelecida sobre bases
capitalistas, conduz à necessidade de redefinir lações raciais, elaborada no mesmo movimento
que produz uma definição positiva da identi­
as posições dos grupos sociais que constituem
a nação. dade brasileira.
Em sua elaboração final, a ideologia racial |
A raça foi, desde o início, a base a partir da brasileira mantém separados e definidos os pa- I
qual se desenvolveu a reflexão acerca da péis atribuídos a negros e brancos. O negro, I
constituição da nação brasileira. A adoção das não mais visto como “raça inferior”, passa a
teses do determinismo racial servia, num certo ser referido sob a ótica das relações que man- ;
sentido, aos interesses daqueles que apostavam teve com o branco no período escravocrata.
numa organização sócio-política na qual às Nesse sentido, portanto, seu lugar está defini­
elites “brancas” caberia a tarefa de conduzir do na formação social brasileira: subordinado,
os destinos da nação.25 Nossa realidade racial,
no entanto, impedia a aceitação integral dessas dominado, inferior.
O “elogio à mestiçagem” aparece como
teses. A forma como se desenvolveram as re­
o recurso ideológico fundamental para o
lações entre negros e brancos no período es­
ocultamento das desigualdades concretas entre
cravocrata permitiu um tal grau de “miscige­
os membros dos “grupos raciais”. Postula-se
nação” que, mesmo entre os membros das eli­
uma igualdade primordial, dada numa origem
tes, era possível perceber traços físicos que
mítica, entre as “raças formadoras”. Os indi-
denunciavam uma ascendência negra. Esse
víduos que desenvolvem relações concretas na
fato fez com que a “mestiçagem” surgisse co­
vida social brasileira, num tempo histórico, 1
mo foco central das discussões acerca das re­
não são contemplados por esse pensamento.
lações entre as “raças” e da nacionalidade. De
É importante enfatizar essa característica
Silvio Romero a Oliveira Vianna, observamos
do pensamento que se formula tendo como
o esforço de dar um sentido positivo à “misci­
base o “mito das três raças”. Falar em “raças”
genação”, embasado na tese de que, contra­
no Brasil é situar a reflexão nesse piano a-
riamente às proposições do racismo científico,
histórico, mítico, que esvazia o caráter político
a “mestiçagem” levaria necessariamente ao
das relações que os “grupos raciais” desenvol­
“branqueamento” da população brasileira, isto
vem historicamente. A “mestiçagem primor­
é, ao surgimento de um “tipo mestiço (em­
dial”, segundo nossa ideologia racial, permitiu
branquecido) nacional”.
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
166
círculos, o que se vê é a permanência das for­
a formação do que se chamou de “especifici­
mulações da ideologia racial.
dade nacional”. Apontar as contradições exis­ Na maioria das vezes em que se toca na
tentes nas reais condições de convívio inter- questão racial, as discussões são colocadas
racial seria colocar em xeque a própria identi­ num nível ideológico que remonta a um “tem­
dade nacional. Nesse sentido, observa-sc que, po primordial”, quando as “raças se mistura­
na maioria das vezes em que se chama a aten­ ram”. Com um discurso naturalizado que fala
ção para essas contradições, esbarra-se numa de “sangue”, “traços fenotípicos”, “influên­
contra-argumentação que se nutre das postu­ cias culturais”. Nesse nível, há uma distinção
lações desse pensamento racial, tanto quanto assumida entre as “raças”. A partir daí, histo­
se procura enfatizar a “igualdade entre as ra­ ricamente, nossa ideologia racial elimina as
ças”, quanto nos momentos em que se quer distinções e reafirma a união primordial, míti­
justificar a condição desvantajosa do negro em ca. Mas, sob essa igualdade primordial, natu­
nossa sociedade. ralizada, perpetuam-se todos os estereótipos
Os estudos recentes sobre o negro e as re­ negativos e preconceitos que servem para dis­
lações raciais no Brasil comprovam que o ra­ criminar os “negros”. A lógica da “democra­
cismo e a discriminação racial limitam a parti­ cia racial” é perversa: se todas as raças estão
cipação do negro nas oportunidades existentes juntas desde o ponto de partida, o fato de o
na sociedade brasileira pós-Abolição. Tais li­ negro encontrar-se em posição desvantajosa
mitações são expressas em termos de acesso à
deve-se a uma incapacidade inerente a sua
educação formal, de alocação no mercado de “raça”. Nesse sentido, é necessária a realiza­
trabalho e de nível de rendimento.26 ção de estudos que reflitam acerca da articula­
As conclusões desses trabalhos têm sido ção entre ideologia racial e identidade brasi­
muito eficazes no sentido de demonstrar o leira. Só assim será possível desvendar os en­
caráter ideológico da tese da “democracia ra­ traves ideológicos que impedem maior pene­
cial”. Mas, o que se tem observado é que elas tração do pensamento que denuncia a maneira
encontram sua circulação restrita entre os es­ desigual como o negro vive em nossa socieda­
tudiosos do assunto e os movimentos negros.
Quando se discute a questão racial fora desses de.

notas

1 Por ideologia racial brasileira entende-se um conjunto de idéias sempre recorrentes nas discussões sobre a
questão racial travadas fora dos círculos acadêmicos e do âmbito dos movimentos negros organizados. Tais idéias
são fruto do pensamento racial que será analisado neste artigo. Hoje cm dia elas estão popularizadas e podem ser

identificadas nas colocações ao nível do senso comum.


2 Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX,

Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 60. Grifos meus.


3 Dentre os teóricos cujas idéias tiveram maior influência entre nós destacam-se o Conde de Gobincau e Louis

Agassiz.
Citado emCelia M.M. de Azevedo, Onda negra. . .., op.cit.,$- 80-
4

5 Citado em idem, p. 68.

6 Citado em idern, p. 79.


Citado em E. Thomas Skidmore, Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro, Rio de Ja-
7
neiro,i. Paz e Terra, 1976, p. 51.
167
Estudos Afro-Asiáticos n? 16,1989
the cultural contributions of each, Freyre proposed
the 1930’s. Under the influence of European racial
8 Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros baianos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935, p. the harmonious nature of inter-cultural relations as
theory, Brazilian intellectuals concerned themselves
a fundamental defining element of Brazilian nationa­
15-6. Grifos do autor. with the influence which the “inferior races” would
lity. However, a closer look reveals Casa Grande &
9 Mariza Corrêa, “As ilusões da liberdade. A escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil”, Tese de Dou­ have over the “development” and “progress’ of their
Senzala to be basically an apology of racial inter­
torado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, mimeo, 1982, p. 106-7. growing country. mixture and of Portuguese colonization. In Freyre’s
The underlying pesupositions of scientific racism work we can observe the preservation of already exis­
10 Idem.p. 137. pointed to the inferiority of the Brazilian nation, gi­ ting ideas of Brazilian racial thought which date back
11 Nina Rodrigues, As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil, Salvador, Livraria Progresso Edi­ ven the great numbers of Blacks and Mulattoes in the to the “imigrantistas” (the defenders of immigration):
population. In an effort to throw a positive light on the effort to shed a positive light on miscegenation
tora, 1957,p.111.
the national identity, European racial theories were and the beliefs in both the supremacy of the white
12 Idem,p. 120. adapted to Brazilian racial reality. “Miscegenation” colonialists within the process of the formation of
became the focal point for speculation among Brazi­ Brazilian society and the inferiority of Blacks, the
13 Idem, p. 133. lian thinkers who stated, contrary to the position of latter not racially determined, but as the result of the
14 Idem, ibidem. scientific racism, that “miscegenation” was not to be slave condition within patriarchal society.
considered the cause of "degenerate racial types”. Thus arc the bases of Brazilian racial ideology and
15 Citado em Mariza Corrêa, “As ilusões da liberdade. . ,op. cif., p 2.27. Even Nina Rodrigues, who fully accepted the racist national identity presented. Our specific nature is the
16 Oliveira Vianna, Evolução do povo brasileiro, São Paulo, Cia Editora Nacional, 1933, p. 15. notion that mixing blood led to degeneration, belie­ result of the harmonious way in which the races have
ved, as did Oliveira Vianna, that Mulattoes could be related to each other through our historical formation.
17 Idem, p. 154-5. categorized into types, establishing a distinction Racial inter-mixture appears to be the cornerstone of
between "inferior and superior Mulattoes”. “racial democracy”, pointing toward equality betwe­
18 Idem,p. 162. en the races. This defense of racial inter-misture is
The effort to define national identity on positive
19 Idem, p. 177. basis clear among those who defended European thus a fundamental ideological tool which hides con­
immigration, including Nina Rodrigues, Oliveira crete inequalities between racial groups. It postulates
20 Idem.p. 194. a primordial equality, dating from a mythical origin,
Vianna, and Gilberto Freyre. This led to the deve­
betweem the races which formed Brazil. Individuals
21 Gilberto Freyre, Casa grande & senzala, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1987, p. 283. lopment of the strategy, bom of the belief in the racial
inferiority of Blacks and the degeneration resulting and the concrete relations they develop in Brazilian
22 Idem, p. 321. from miscegenation, by which European immigration social life arc not covered by this kind of thought.
was stimulated in hopes of “whitening” the Brazilian As we have seen, Brazilian racial ideology was
23 Idem, p. 54. formed alongside discussions about the construction
population. of a growing nation. Within this thought. Blacks
24 Roberto Da Matta, em Relativizando: uma introdução à antropologia social, Petrópolis, Vozes, 1984, faz
Casa Grande & Senzala is the supreme example of occupy an inferior and subordinate position, and ra­
uma interessante análise do “mito das três raças” para demonstrar a maneira totalizante c hierarquizada como re­
this effort toward a positive reading of racial inter- cial-intermixture appears as a fundamental element in
presentemos a sociedade brasileira. i mixture. By abandoning the arguments of racial de­ the development of a specific nationality. In this sen­
25 A adoção desse pensamento por nossa elite intelectual não se deu de forma tranquila. “Definindo-se como terminism, Gilberto Freyre redefined the bases for se, it is necessary to examine the ties between the two
observadores da realidade nacional, e como seus críticos imparciais, os intelectuais brasileiros deste período ao discussing the “races which formed Brazil”. By subs­ in order to better comprehend the ideological traps
mesmo tempo que definem o restante da população como seus objetos privilegiados de análise, se constituem tituting the concept of race with that of culture, he which block efforts to point out real inequalities
também como categoria social. E de certa forma sc separam da sociedade cm que viviam, ao elegerem a raça co­ 1 demonstrated that three races contributed to the for­
suffered by Blacks in Brazilian society.
mo primeiro critério de nacionalidade (. . ) Esquizofrênico ou paradoxal, o resultado da escolha não dependeu mation of Brazilian society. Further, by pointing out
inteiramente do que desejassem os intelectuais: vivendo num contexto social que a ciência dominante da época
definia como incompatível com a ‘civilização’ ou o ‘progresso’ c tendo que prestar contas ao mesmo tempo à sua
condição de cidadãos dessa nação e de membros daquele universo científico, tomava-se difícil escapar à ambigui­
dade. Mariza Corrêa, “As ilusões da liberdade. . ”,op. cit., P- 26. RÉSUMÉ
26Dentre os estudos recentes sobre as relações raciais no Brasil destacam-se: Oliveira, Porcaro c Araújo, O lu­
gar do negro na força de trabalho, Rio de Janeiro, IBGE, 1981, e Carlos A. Hasenbalg, Discruninação e desigual­ Un Nouveau Regard sur la “Démocratie Raciale”: Race et Identité
dades raciais no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1979. Raciale dans la Pensée Brésilienne

ricures” auraient sur le “développement” et sur le


SUMMARY Cet article reprend les discussions concernant les
“progrès” de la nation que l’on prétendait construire.
noirs et les relations raciales au Brésil en mettant en Face au nombre élevé des noirs et des métis parmi
relief leur rapport avec une question plus ample: celle la population, les postulats du “racisme scientifique”
Re-Examining "Racial Democracy”: Race and National
de la construction de la nationalité. Depuis la seconde destinaient la nation brésilienne à l’infériorité. La né­
Identity in Brazilian Thought
moitié du XlXè siècle et jusqu’aux années 30, la défi­
cessité d’affirmer une identité nationale positive ame­
nition de l’identité raciale a constitué la préoccupation na les penseurs brésiliens à adapter les théories racia­
dominante de la pensée sociale brésilienne. Influencés
This article takes a second look at discussions formation of nationality. The move toward defining les européennes à notre réalité. Ils concentrèrent leurs
par les théories raciales européennes, les intellectuels recherches sur les mélanges raciaux. Contrairement à
about Blacks and race relations in Brazil, emphasizing national identity predominated in Brazilian social
brésiliens étudiaient l’influence que les “races infé-
the ties between these and the larger question of the thought from the middle of the 19th century through
169
Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989
168
Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989
ce qu’affirmait le “racisme scientifique”, ils ne cro­ portugaise au Brésil. Dans l’oeuvre de Freyre, nous
yaient pas que le métissage conduirait à la production observons la permanence d’idées qui faisaient déjà
de “types raciaux” dégénérés. Même Nina Rodrigues, partie de la pensée raciale brésilienne depuis les par­
qui acceptait intégralement la thèse raciste de la dégé­ tisans de l’immigration: la tentative de donner un ca­
nérescence des métis, croyait à la possibilité d’établir ractère positif aux mélanges raciaux, la foi en la su­
une catégorisation des différents types de métis et, de prématie du colonisateur blanc pour conduire le pro­
même qu’Oliveira Vianna, faisait une distinction en­ cessus de formation de la société brésilienne et la cro­
tre “métis inférieurs” et “métis supérieurs”. yance dans l’infériorité des noirs qui, pour lui, n’est
Depuis les défenseurs de l’immigration europé­ pas duc à leur race mais à leur condition d’esclaves au
enne jusqu’à Gilberto Freyre, en passant par Nina Ro­ sein de la société brésilienne.
drigues et par Oliveira Vianna, on observe cette C’est ainsi que sont posées les bases de l’idéologie
préoccupation de définir l’identité nationale sur des raciale brésilienne et celles de l’identité nationale. Ce
bases positives. C’est ainsi qu’ils furent amenés a prô­ qui fait notre spécificité, c’est l’harmonie des relations
ner une stratégie qui, conjugant la croyance en l’infé­ inter-raciales qui a présidé à la formation de la socié­
riorité raciale des noirs à la thèse selon laquelle les té. Les mélanges raciaux apparaissent comme le prin­
mélanges raciaux ne provoquaient pas l’apparition de cipal suport de la thèse de la “démocratie raciale” qui
types dégénérés, a encouragé l’immigration europé­ met en évidence l’égalité entre les races. L* “Éloge du
enne comme un moyen de “blanchir” la population Métissage” est, dans ce sens, un recours idélogique
brésilienne. Il est convenu d’appeler cette stratégie fondamental dans l’occultation des inégalité concrètes
“L’idéal du blanchissement”.
qui existent entre les membres des groupes raciaux.
Avec Casa Grande & Senzala, nous observons la Le postulat posé est qu’il existe, donnée à une origine
consolidation de cet effort visant à donner un sens
mythique, une identité primordiale entre les races
positif à l’identité nationale à partir d’une valorisation
fondatrices. Ce postulat ne prende pas en considéra­
effective du métissage. Abandonnant les postulats du
tion les individus concrets qui se fréquentent au sein
déterminisme racial, Gilberto Freyre re-définit les
de la société brésilienne.
bases de la discussion sur les "races formatrices”. Il
Comme nous venons de le voir, l’idéologie raciale
substitue ainsi le concept de race à celui de culture et
brésilienne a été formulée au moment même où l’on
démontre comment les trois races ont contribué à la
discutait la construction et la viabilité de la nation.
formation de la société brésilienne. En valorisant
Les noirs y apparaissent comme occupant une place
l’apport culturel de chacune d’elles, il désigne le ca­
inférieure et subalterne et les mélanges raciaux y sont
ractère harmonieux de la vie en commun parmi nous
vus comme l’élément fondateur de la spécificité bré­
comme étant l’élément fondamental de notre spécifi-
silienne. Il faut en tenir compte si on veut comprendre
cité nationale. Toutefois, une analyse plus attentive
révèle que “Casa Grande e Senzala” constitue avant les entraves idélogiqucs qui freinent la pénétration
d’une pensée dénonçant les inégalités qui frappent le
tout un “éloge du métissage” et de la colonisation
mode de vie des nos dans notre société.

170 Estudos Afro-Asidticos n- 16,1989


”E o rumor da cidade foi mudando: se­
IMPRESSÕES DA melhava ainda um rufar longínquo de
FESTA: BLOCOS AFRO tambores, mas, no tumulto de vozes que
se mesclava a esse rumor, distingue a
SOB O OLHAR DA queixa de vozes familiares.” (Charles
IMPRENSA BAIANA Dickens - "Um conto de duas
cidades”.)

Mesmo amareladas pela rápida ação do


Olivia Maria dos Santos Gomes* tempo, que ao imprimir sua marca reivindica
um outro olhar do curioso leitor, as páginas
dos jornais conservam descrições quase que
coloridas de alguns dos seus personagens. So­
bretudo quando são impressões acerca de
eventos que comumente são narrados utilizan­
do-se os contrastes produzidos pelas cores,
pelo brilho, pelo movimento e pelos sons, co­
mo é o caso do carnaval.
A descrição da festa por certo requer uma
narrativa que abuse da metáfora. Uma leitura
sistemática dessas descrições, em que alguns
atores são privilegiados, nos revela a incidên­
cia de alguns recursos utilizados assim como a
recorrência de temas que vão caracterizar o
personagem e sua inserção na festa a partir do
uso de determinadas categorias. Em tais des­
crições, que ocupam certos espaços nas pági­
nas dos periódicos nos meses que antecedem o
carnaval, os personagens - os foliões que po­
voam as ruas da cidade, sejam aqueles organi­
zados nos variados tipos de entidades carna­
valescas ou os que preferem estar anônimos e
dispersos em meio a multidão - são retratados
a partir de condutas específicas que aparecem
opostas na desordem ordenada da festa. Al­
guns deles - índios, negros, brancos amorta­
lhados, homens e mulheres traves tidos, reis
e rainhas, entre outros - figurarão compondo
esse enorme cenário cuja descrição oscila entre
a folia e a violência.
Nesse sentido, meu objetivo é tentar com­
preender de que forma esses personagens, em
particular os blocos afro, são retratados pelos
jornais da cidade. Não se trata de uma análise
* Mestranda em Antropologia Social no Mu­ textual da narrativa jornalística, mas de uma
seu Nacional — PPEAS/UFRJ e pesquisadora leitura que procura identificar de que maneira
do CEAA. os blocos são descritos pela imprensa baiana.
171
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
unindo a confrontação das fontes em questão
fotográficas etc. que incidem sobre alguns dos
com a observação de alguns dos momentos personagens.
que aqui desejo retraçar.
Já que utilizo a idéia de um cenário para
falar dos jornais, é preciso destacar alguns 1. O carnaval “participação”
momentos nos quais neles abundam informa­
ções sobre o carnaval, momentos em que os A década de 70 pode ser caracterizada, em
blocos afro passam a ser um dos principais linhas gerais, como um momento em que a es­
personagens que aí figuram. Para tanto, esta­ trutura do carnaval baiano sofre grandes
beleço um recorte cronológico que procura transformações, momento de emergência de
cobrir a trajetória dessas entidades desde o entidades surgidas nas décadas anteriores e
desfile do primeiro bloco, o Ilê Aiyê, em 1975, que, então, alcançam enorme popularidade
até o carnaval de 1988, quando se comemora o junto ao público, como é o caso dos blocos de
centenário da Abolição, momento em que, de­ índio e dos trios elétricos, bem como de sur­
finitivamente, os blocos despontam como gimento e revitalização de novos grupos, como
principal atração do carnaval de Salvador. é o caso dos blocos afro e dos afoxés. Durante
Evidentemente esse retrato não vem sendo toda a década de 60 e início dos anos 70, o
produzido de forma linear, de modo a ser modelo de carnaval carioca exerce grande in­
pensado apenas como uma conquista por parte fluência nos festejos baianos, embora temas
dessas entidades, que deixam de ser vistas co­ e ritmos do carnaval pernambucano que pene­
mo “nota destoante”1 da festa para polarizar, tram na Bahia nos anos 50, a partir da passa­
seja em ritmos, sons de espaços na mídia e nos gem do Clube Vassourinhas de Recife por
órgãos oficiais, todas as atenções em tomo do Salvador,2 passem a ser difundidos pela então
carnaval baiano. Esse trajeto tem sido produ­ estreante Dupla Elétrica, tornando-se, então, a
zido por um constante diálogo entre os blocos, expressão musical carnavalesca mais famosa
com outras entidades carnavalescas, com os da cidade. Na visão de alguns autores, o ad­
órgãos organizadores e a própria imprensa, vento dos trios proporcionou ao carnaval
acompanhando as transformações ocorridas na baiano tanto a mistura de tendências musicais
própria sociedade em que a festa acontece. regionais diversas, a partir da improvisação da
guitarra baiana no frevo elétrico, como a des­
Mesmo a festa não pode ser pensada como um
coberta de um estilo próprio e sincrético da
ritual maior cujos princípios são alterados de­
festa baiana, que a distanciava do ritmo caden­
pendendo da evidência de um ou outro perso-
ciado das escolas de samba cariocas e a identi­
sonagcm, do modismo coreográfico ou rítmi­
ficava como um "carnaval participação”, em
co mas sim como festas sucessivas que, em­
oposição ao “carnaval espetáculo”- Os trios
bora com tempo e espaço bem delimitados, só
ganham destaque nos meios de comunicação e
são comparáveis a partir da confrontação de
nas ruas da cidade como um espaço democráti­
certos elementos internos. Como comparar o
co e de participação popular, ao mesmo tempo
carnaval baiano da década de 70 com o carna­
em que acirram-se as críticas ao carnaval ca­
val de 1988? Sendo o principal objetivo deste rioca, cada vez mais reduzido ao desfile das
artigo perceber essas transformações através
escolas de samba, que transformava o folião
das descrições produzidas pelos jornais, há que em público.
levar em conta as mudanças de orientação Por outro lado, as escolas de samba baia­
próprios órgãos de imprensa. Contudo,
nas, embora já nesse momento em franca de­
percebendo mudanças de ordens varia- cadência e reclamando apoio c subvenção dos
ocorridas no período, é possível atentar órgãos sociais empenhados na organização do
Ü bém para 35 invariâncias: a utilização de
carnaval, persistem aglutinando em torno dc si
termos, figuras, linguagens, imagens
a população dc baixa renda dos bairros dc pc-

172 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


riferia. Desde meados da década de 60 elas vi­ desfilaram personagens históricos tão res­
nham ocupando grande parte do noticiário peitáveis, e aqui está um exemplo, pois ne­
sobre o carnaval. Os jornais registravam o nhum outro espetáculo pode garantir tama­
“explendor” dos desfiles e a riqueza dos nha audiência, merece sem dúvida os me­
sambas-enredos que as agremiações apresen­ lhores votos o bom gosto das escolas de
tavam como marcas da criatividade popular samba que se apresentaram neste carnaval.
em recriar, “em termos de um quase teatro”,3 Não só elas, mas os cordões e os afoxés,
suas raízes. As escolas de samba e os afoxés estes últimos, um legítimo privilégio do
representavam, sobretudo por serem forma­ carnaval baiano. Nos próximos carnavais as
ções oriundas de bairros e classes populares, a escolas de samba devem optar por temas
prova da participação popular em um carnaval mais regionais, que são tantos, cabendo à
até então marcadamente de elite. Ter grandes Sutursa não só o seu apoio e ajuda como
escolas, como a Filhos da Liberdade e Diplo­ também encarregar-se de tornar o carna­
matas da Amaralina, entre outras, significava val, como já o vem fazendo, um merecido
trazer para o carnaval baiano turistas atraídos chamariz para os turistas, os visitantes de
por uma festa que se legitimava como popular. outros estados brasileiros e estrangeiros.”*
Justamente porque elas, ao contrário das mar-
Esse “movimento” no sentido de tornar
chinhas executadas ao longo dos desfiles dos
mais regional o carnaval baiano atravessa o
corsos, dos cordões e nas batalhas de confete,
início dos anos 70 concomitantemente à con­
que narravam as desventuras de piratas, jardi­
sagração do “trio elétrico” como um “produ­
neiras e pierrots apaixonados, divulgavam te­
to” eminentemente baiano. Durante toda a dé­
mas de cunho nacional. Investido de um cará­
cada de 60 o gênero popularizou-se na Bahia,
ter nacionalista, o samba, e mais especifica­
primeiramente através de seus inventores, o
mente o samba-enredo, identificar-se-ia mais
Trio Elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar.
com as coisas “populares”, justamente por
Mas o grande divulgador do frevo elétrico du­
veicular uma temática onde figuravam os he­
rante todo o período foi o Trio Tapajós,
róis, a história, o folclore c outros símbolos
também responsável pela sofisticação técnica e
patrióticos. Nesse sentido, as escolas de samba pela implantação de um esquema comercial de
tal como aparecem no imaginário da imprensa apoio aos trios que, em troca, se comprome­
baiana da década de 60 parecem ser uma espé­
tiam com políticos e empresas a veicular seus
cie de contraponto de cunho popular à seg­ anúncios não apenas no carnaval da cidade
mentação social existente nos carnavais das
como também no das festas da micareta.5 A
décadas anteriores, quando o “povo” era ainda despeito da estrutura empresarial criada, a
sinônimo de “público”. No entanto, mesmo
própria música - o frevo elétrico - passa a ser
observando que as escolas de samba baianas divulgada por todo o País, não só pelo Tapajós
não são mera “cópia carbono” das cariocas,
como por outros artistas baianos.
algumas notícias vêm reivindicar uma certa Já na década de 70 os trios sofrem novas
regionalização da temática dos sambas-
transformações técnicas e passam a constituir-
enredos, papel que caberia aos órgãos oficiais
se num espaço nos quais os jovens músicos
que regulamentam o carnaval:
baianos iniciam os primeiros passos rumo à
“A campeã do carnaval de 1969 optou por profissionalização. Os trios proliferam e têm
um tema histórico tão caro à formação do suas dimensões ampliadas. Pelo seu grande
nosso povo. Teve o seu aspecto didático, poder sonoro e pelo fato de transitarem pelas
trouxe, cm meio aos requebros excitantes ruas, num momento inicial, sem a proteção de
das passistas, quadros c personagens histó­ cordas, os trios rapidamente transformam-se
ricos que não devemos esquecer. E sc ao no grande centro de efervescência popular, lu­
som do convidativo samba de carnaval gar do delírio e da violência. Posterionnente,
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
173
alguns trios vão se privatizando, ou seja, além bairros de periferia, neste momento em plena
de patrocinarem o comércio e a indústria da expansão.
cidade, seus organizadores passam a cobrar É nesse contexto que os trios elétricos
taxas em troca de fantasias e proteção aos fo­ passam a figurar como a mais importante ma­
liões associados. Alguns blocos chegam a nifestação musical do carnaval, justamente por
possuir trios próprios, o que provoca uma traduzir a pluralidade cultural baiana em sin­
reorganização da festa carnavalesca, já que tonia com o resto do País. Nessa medida, já no
a privatização dos trios se dá paralelamente ao início dos anos 70, as escolas de samba, tão
aumento da violência na cidade. No interior populares na década anterior, passam a não
dessas novas entidades, blocos organizados mais condizer com a novidade introduzida pe­
sobretudo em bairros de classe média, mais los trios - a ampla participação popular. Nas
uma vez operam-se clivagens de caráter social páginas dos jornais, já não existem mais espa­
e racial. ços para as “faceiras mulatas”, o pandeiro e o
Para além das questões acima apontadas, a tamborim; apenas para uma multidão de fo­
popularização do trio elétrico reveste-se de liões amortalhados ou simplesmente com fan­
outras implicações situadas no âmbito da in­ tasias diferenciadas atrás de um grande cami­
dústria cultural, mais especificamente, na rela­ nhão de múltiplas cores, brilhos e neons. As
ção que mantém com o movimento estético- escolas de samba que resistem são descritas
musical que nesse momento lhe é contemporâ­ como agonizantes cortejos compostos por de­
neo, o tropicalismo. Diferentemente das rela­ sanimados foliões.
ções anteriormente estabelecidas pelo discurso
“Mais uma vez ficou atestado que o folião
modernista de cunho nacionalista, utilizan-
baiano não aceita a escola de samba nos
do-se de recursos temáticos no sentido de
seus festejos momescos. Adepto do carna­
produzir uma estética da inversão e da carna-
val participação o povo de Salvador não
valização, ao se referirem à realidade brasi­
prestigiou o desfile deste ano das escolas
leira no texto literário, incorporavam as ima­
Ritmos da Liberdade, Juventude do Garcia
gens do carnaval como sendo as de uma gran­
e Diplomatas de Amaralina — a Filhos do
de festa da “raça”,6 como um espaço de múlti­
Tororó desistiu de desfilar — não só pelo
plas tendências culturais, os tropicalistas pri­
atraso de quatro horas com que deram en­
vilegiaram um outro elemento, subjacente e
trada na avenida como também pela pobre­
contraditório, presente nessa multiplicidade. A
za de seus temas, trajes e, principalmente,
coexistência do velho e do novo, do moderno e
na visível apatia de seus membros. A falta
do arcaixo e, essencialmente, a mistura rítmica,
de organização do órgão responsável pela
étnica e cultural que produz uma nova estética:
sua apresentação e o constante desfile de
“no tropicalismo a festa não tem valor rege­
blocos, cordões e trios elétricos apressaram
nerador”.7 A ordem em questão é a de carna-
a morte das escolas de samba.”8
valizar, que se traduz na multiplicidade de
sons, ritmo e cores produzidas pelos trios ao Mas a ênfase nessa imagem do carnaval de
trieletrizar. A linguagem musical dos trios está Salvador como sendo a de uma festa popular
em consonante transformação; reproduz a que se constrói em parte por oposição ao car­
idealização da modernidade em uma cidade naval carioca também contém elementos inter-
que, nesse momento, é invadida por variados ternos à própria história do carnaval baiano.
investimentos, do pólo petroquímico à expan­ Se o carnaval da década de 70 é um momento
são da indústria do turismo. Salvador se in­ de mistura de tendências musicais e classes so­
veste do novo, mesmo que o velho, essa con­ ciais em torno do trio elétrico — embora, mes­
trapartida que nos salta aos olhos, signifique a mo na divisão geográfica desse espaço, possam
absoluta miséria da população que engrossa os ser delimitadas determinadas “zonas de efer-

174 Estudos Afro-Asiáticos n- lã, 1989


vescência”9 socialmente diferenciadas, nas liares que não desfilavam no centro da cidade,
quais a festa é destituída da simples idealização mas nos seus bairros de origem.
de uma ordem de inversão de papéis sociais -, Brincar o carnaval, seria, sobretudo para o
observa-se que no momento anterior, ou seja, “povo”, ficar na rua assistindo à passagem dos
nos carnavais da década de 60, essa diferen­ préstitos. Por outro lado, essa demarcação de
ciação podia ser nitidamente percebida- Se a espaços sociais bastante delimitados, na visão
mistura trouxe consigo a violência, presente de de antigos foliões baianos,11 era responsável
forma marcante nos jornais a partir da década pela “ordem” e “tranqüilidade” da festa.
de 70 (no período anterior ela é retratada de Nesse sentido, a participação “ordenada” de
forma menos contundente), o'formato partici­ grupos sociais distintos, em espaços diferen­
pativo do novo carnaval baiano traz a desor- ciados, transformava as ruas num ambiente
denação da festa. A idéia de mistura rítmica e tranqüilo e alegre onde podiam brincar as
da participação popular se sobrepõe à trans­ “famílias”:
parência e distinção anterior desses mesmos
“Esse pessoal mais miúdo ficaria ali por
elementos.
baixo, na Baixa do Sapateiro. O pessoal de
elite brincava nesses trechos (isto é, no per­
Ao contrário das escolas de samba, os
curso dos préstitos). A família ia uma com
grandes clubes e sociedades - entidades com­
a outra. Hoje em dia tudo embolou. O povo
postas cm grande parte por membros da elite
era muito manso e ordeiro. Havia muita
baiana c que fizeram sucesso nas décadas de
educação, muito respeito. Eles sabiam de
40 e 50 - agora cedem espaço aos bailes em
suas condições e não se adiantavam. Fica­
ambientes fechados nos luxuosos hotéis da ci­
dade. Na década de 50, o carnaval dos clubes e vam pelos lados do Terreiro sambando na
sociedades - formados pelas mais importantes rua.”12
famílias da cidade - consistia em grande des­
Essa comparação se constrói, sobretudo,
files marchas que utilizavam enfeitados carros
confrontando o carnaval da década de 50 com
alegóricos sobre os quais saíam as “rainhas”:
o dos anos 70, momento em que, na visão
“as meninas que iam nos préstitos eram como desse folião, “tudo embolou”. Além de um re­
figuras de biscuit na rua, lindo, para enfeitar, corte social explicitamente presente tanto na
iam sentadas agradecendo”.10 As músicas memória dos antigos foliões quanto nas des­
cantadas eram sobretudo as marchinhas divul­ crições dos carnavais que aparecem nos jornais
gadas nas rádios pelos grandes cantores da da época, parece existir uma outra demarcação
época e trechos operísticos que identificavam que se apresenta mais dissimulada e revestida
cada grupo. Mesmo existindo outros grupos de outros significados no imaginário da im­
carnavalescos compostos por população de prensa: uma diferenciação racial. Ao lado das
baixa renda oriunda dos bairros mais modestos sociedades e cordões, também aparecem men­
da cidade, os grupos de maior prestígio eram ções aos afoxés, como os Mercadores de Bag­
justamente aqueles mais ricos, que abusavam dá, Congo D’África e Filhos de Gandhi, res­
na ornamentação e luxo dos seus carros, como saltando o aspecto místico da cultura afro-
é o caso do Fantoches de Euterpe. Nesse car­ brasileira como marca patente da integração
naval, que se caracteriza principalmente pelo racial que se faz presente na festa carnavalesca
desfile dos grandes clubes, não há uma inte­ baiana, definida pela intensa participação po­
gração da grande parte da população ali pre­ pular, sem distinção de classe, sexo ou raça.
sente, que apenas assiste à festa. Havia tam­ Passado o período de perseguição dos primei­
bém outros tipos de préstitos, menos elitiza- ros afoxés e embaixadas, no final do século
dos, como as “pranchas”, os “cordões” e as passado e início deste século, quando a reor­
“batucadas” - geralmente organizações fami­ ganização do espaço urbano exigia a redefini-

EstudosAfro-Asiâticosn? 16,1989 175


ção de um novo corpo social, “civilizado” e mocracia cultural”. Assim como os afoxés,
distinto das práticas culturais e religiosas que outros tipos de manifestações culturais emi­
caracterizavam a “barbárie”’3 e o “aninismo nentemente negras são identificadas como re-
fetichista” dos negros, na segunda metade do manescências folclóricas, demonstrações da
século, é justamente essa relação com a reli­ pluralidade cultural que se expressa na festa
giosidade negra, especialmente o candomblé, carnavalesca:
que ganha destaque nas páginas dos jornais. A
“Cidade do Salvador — o carnaval, como
valorização do caráter religioso e principal­ grande festa do povo, em que se exteriori­
mente “africano” dessas entidades é enfatiza­ zam todas as manifestações da alma coleti­
da seja na descrição do desfile de afoxés, como va, constitui o ambiente para o conheci­
o faz Cláudio Tuiuti Tavares em um texto que mento das sobrevivências históricas e totê-
acompanha um ensaio fotográfico de Pierre micas dos negros africanos, o excelente
Verger sobre a presença do afoxé Congo lastro e a mais vigorosa paisagem do fol­
D’África no carnaval de 1948,’4 no qual o clore brasileiro. Os negros enchem o car­
autor descreve os “despachos” realizados an­ naval da Bahia. São a poderosa força mo­
tes da saída do grupo às ruas, distinguindo os triz que impulsiona o carnaval baiano, com
elementos já sincretizados do culto, como a seu grande contingente de músicas, de
presença de um folião representando um “ca­ canto, de beleza e danças, elementos de
boclo”, daqueles genuinamente nagôs, como forte entusiasmo, humanidade e de grande
os cânticos e o ritmo ijexá; seja na utilização ternura social (.. ).”’6
de temas afro-brasileiros por outras entidades,
como os cordões. É a partir desses elementos folclóricos e re­
ligiosos, incorporados a um imaginário de res­
“Carnaval está na porta; dentre os vários
gate e construção de uma cultura popular re­
cordões que sairão as ruas, destaca-se o
gional, que se processa um jogo em que o
cordão carnavalesco “Papai Borocô” pelo
segmento social e racialmente discriminado
seu sistema afro-brasileiro que nos obriga a
é introduzido no discurso oficial através de sua
cair na folia. Este cordão, que conta com
cultura, vista como tradicional e folclórica,
vários foliões, está apto a abafar neste car­
tornando-se parte constituinte de uma cultura
naval, pois o mesmo está ensaiando com
oficial. O carnaval seria, então, um momento
afinco, sob a regência do folião Didi.”’5
privilegiado no qual emergem as diferenças e
Os afoxés, já na década de 50, aparecem as disparidades culturais coexistentes num
nos jornais como manifestação profana dos mesmo espaço físico, no qual a própria diver­
cultos “bárbaros” e tradicionais do negro. sidade é “dramatizada” pelos variados grupos.
Além de seu aspecto religioso, são ressaltados Estes, organizados em agremiações carnava­
os ritmos, as danças e a característica folclóri­ lescas, através das quais estariam operando
ca dos afoxés - o que os diferencia de outros distinções étnicas, fazem-se presentes não pe­
grupos carnavalescos. Nesse sentido, parecem los possíveis enfoques críticos à realidade na­
engrossar o grande melting pot nacional, no cional, mas por transformarem as diferenças
qual manifestações culturais de origens diver­ num grande painel cultural em que essas se
sas são incorporadas por um discurso naciona­ apresentam como “exóticas”, “populares” e
lista que se constrói desde a década de 30 vi­ “tradicionais”. É a diferença dramatizada,
sando explicar a integração racial a partir da convertida em atração e, nesse sentido, hierar­
pacífica e sobretudo ordeira existência da di­ quizada,’7 que é viabilizada no espaço carna­
versidade cultural, cujo um dos recortes é valesco. Por outro lado, essa inversão, incor­
marcadamente étnico, no interior da cultura porada pelos próprios grupos marginalizados,
nacional que se constitui através de uma “de- torna possível - já que estes têm sua cultura

176 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


reconhecida oficialmente - a conquista de uma que aparece nos jornais baianos está dividida
cidadania possível em determinados espaços da basicamente em dois tipos de colunas: as desti­
sociedade brasileira. nadas a pequenos avisos, convocação de asso­
ciados de blocos, cordões e afoxés para festi­
Entretanto, já na década de 70, são os trios
vais de música, quitação de carnês e entrega de
elétricos que vão viabilizar uma imagem po­
fantasias, divulgação de temas e músicas; e as
pular e participativa do carnaval baiano. Pri­
colunas dedicadas a notícias de cunho policial
meiro porque propiciam a mistura tanto de
relacionadas ao carnaval — basicamente, sobre
distintos grupos sociais como de estilos musi­
as reuniões entre os órgãos de segurança e a
cais. Em segundo lugar, porque são eles que
federação de clubes carnavalescos nas quais
conferem ao carnaval de Salvador, na visão da
são discutidas medidas visando coibir a violên­
imprensa, o status de carnaval do “povo”, que
cia. É interessante notar como a imagem do
agora ocupa as ruas não mais como “público”.
carnaval baiano como uma festa violenta apa­
Em vez de se tornar um espetáculo que divi­
rece nas páginas dos jornais relacionada a de­
de os foliões em atores e espectadores, o trio
terminados personagens. Além de creditada ao
converge para junto de si uma multidão in­
tipo de agitação produzida pela dança e pela
discriminada, o que é visto como causa da
música dos trios, essa imagem é relacionada a
violência: um determinado grupo de foliões que provoca
“(...) o carnaval está disvirtuado (...) se brigas e tumultos na ordem da festa: os com­
não tiver um planejamento vai estourar. É ponentes dos blocos de índio.
uma tristeza. Porque estão todos saindo Eles serão os personagens mais constantes
num tempo só, uma hora só, um dia só. O a figurar nas colunas policiais relacionadas ao
trio elétrico, que é aquele delírio extraordi­ carnaval durante toda a década de 70, nas
nário, é a modificação, a massa humana quais se exige a ação imediata dos poderes pú­
atrás, aí samba todo mundo, samba rico, blicos e de órgãos de segurança. Tendo nomes
samba pobre, samba ladrão, samba tudo no como Cheyenes, Tupis, Tamoios, Comanches,
meio. É um perigo (...) hoje em dia embo­ Sioux e Apaches, entre outros, os blocos de
lou.”18 índio eram a expressão de uma imensa maioria
de jovens, em grande parte composta de
Atrás dos trios segue uma enorme multidão
homens, que saía pelas ruas vestida de índio,
que, na visão de alguns autores e principal­
num estilo que lembra antigos-filmes de cow-
mente dos jornais, se apresenta como um ver­ boy. Identificados como “desordeiros”, “vio­
dadeiro “catalizador de diferenças sociais”.
lentos” e “marginais”, os componentes dos
Dessa idéia também partilha Antonio Risério,
blocos de índio, majoritariamente negros, se­
ao caracterizar os trios como uma “espécie de
rão constantemente o alvo de investidas mais
zona liberada, território livre onde todas as
violentas da repressão policial no carnaval e
distinções vão por água abaixo”.19 Segundo
diminuirão em número e tamanho após o boom
esse autor, eles perdem sua marca de espaço
das entidades negras nos anos 80. Esses blocos
horizontal no momento em que passam a ser
desprezavam os elementos afro e davam ên­
domínio exclusivo de foliões de determinados
fase à utilização de roupas, objetos, penas e
blocos. pinturas inspiradas em tribos indígenas ameri­
Nessa contextualização superficial do car­
naval baiano da década de 70, não poderia dei­ canas e brasileiras, num estilo rítmico que os
xar de mencionar a presença dos blocos de ín­ aproxima dos blocos de índios cariocas, como
o Cacique de Ramos e o Bafo da Onça. O
dio. Justamente nesse momento em que se
maior de todos eles, o Apaches de Tororó,
confrontam imagens de uma folia sem contro­
le, cujo delírio gera a violência, com os antigos em meados dos anos 70 chegou a sair às ruas
carnavais. Parte do noticiário sobre o carnaval de Salvador com cerca de dois mil componen-
177
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
1

tes. Fundado em 1968 no bairro do Amparo


do Tororó, o Apaches já em 1969 sai às ruas palavras de Antonio Belmiro, presidente do
Apaches de Tororó, deve ser ordenado: que em distintos momentos são produzidas naval. Além da imprópria exploração do
com 500 figurantes e em 1972 recebe o título pelos jornais. No entanto, esse resgate deu-se tema e da imitação norte-americana, reve­
de campeão do carnaval, momento em que já “Porque o carnaval está crescendo e tudo no sentido dc atestar uma ausência anterior: a lando uma enorme falta de imaginação,
começam a aparecer nas colunas policiais fo­ que cresce de modo desordenado tende ao do personagem que passa a polarizar os espa­ uma vez que em nosso país existe uma infi­
liões vestidos de índio envolvidos em pequenos caos. Nós somos meio bairristas c conside­ ços da imprensa baiana nos anos 80 - o folião nidade de motivos a serem explorados, os
conflitos com a polícia. Mas é em 1977 que ramos o nosso carnaval o melhor do mun­ negro. integrantes do ‘Ilê Ayiê’ - todos de cor -
explode o grande confronto entre a polícia e do, porque tem a participação do povo, mas A primeira notícia que encontramos sobre chegaram até a gozação dos brancos e das
componentes do bloco, gerando intensos pro­ essa participação é desordenada.”21 um bloco, que nesse momento ainda não é ca­ demais pessoas que observavam no palan­
testos dos foliões e dos próprios organizadores racterizado como tendo estilo afro mas que que oficial.”24
do carnaval. Além do estigma, o incidente com utiliza temas “baseados na cultura afro-
os Apaches faz com que os órgãos responsá­ 2. O carnaval de “todas as Áfricas” Ao levar para as ruas cartazes e músicas
brasileira”, é anterior ao carnaval dc 1975 c se
veis pela segurança baixem portaria limi­ que incluíam denúncias sobre a situação de
refere ao Ilê Ayiê. Seu título é: “Depois do
Muito mais do que revelar diferentes com­ marginalização em que vive a população negra
tando em mil o número de componentes dos ensaio geral o Ilê Ayiê dá fantasia.”
blocos: preensões da sociedade c de uma época, pelos na Bahia, o Ilê Ayiê teria saído dos limites
olhos dos grupos e indivíduos que nela vive­ “Composto de 500 figurantes sairá este ano aceitáveis na abordagem de temas afro-
“Não basta a legítima animação do povo ram — já que é o diálogo que travaram entre si pela primeira vez o bloco carnavalesco brasileiros. O bloco, chamado de racista, tor­
enchendo as ruas, da Praça da Sé ao Campo e suas concepções de mundo que será o ex­ Ayiê, do bairro do Curuzu que fará o en­ nava visível a discriminação racial presente na
Grande, para que se continue a assegurar trato da notícia -, os jornais nos falam de um saio geral na próxima sexta-feira, quando sociedade brasileira, que por sua vez se ex­
ao carnaval da Bahia o título de mais ani­ outro tipo de apreensão. Aquela que é produ­ haverá a entrega das fantasias aos associa­ pressava dentro da própria estrutura de seg­
mado do Brasil. É preciso, e com urgência zida pelos próprios órgãos de imprensa en­ dos. O diretor do Ilê Ayiê, Apolônio de mentação social e racial do carnaval baiano,
retirar dele esta mancha negra que se cha­ quanto veículos de informação capazes de re­ Souza dc Jesus, disse que o bloco já está fi­ através da composição das várias entidades
ma violência, e em conseqüência da qual gistrar diariamente, através de fotos, artigos, liado à Federação dos Clubes Carnavalescos carnavalescas, fazendo analogia com a socie­
morreram por homicídios, nos três dias da reportagens e notícias, o cotidiano de uma ci­ e ao concurso promovido pelo departa­ dade norte-americana. Ao usar expressões
festa momesca, uma dezena de pessoas dade. Porém, os fatos que ali são imprimidos mento dc folclore c certames da municipa­ como hlack power, o bloco transportava para a
(. . .) também não é mais possível tolerar sob o epíteto de informação são antes dc tudo lidade, esperando obter boa colocação pela
Bahia uma realidade - o problema racial - que
que blocos carnavalescos como os ‘Apaches uma outra visão de mundo que se alia àquelas originalidade da nova agremiação. E acres­
nada tinha a ver com a democracia racial rei­
de Tororó’, renovem todos os anos que o jornal anseia descrever. A notícia, antes centou: ‘nossas músicas são utilizadas ba­
nante no País. Nesse sentido, na visão do jor­
sua presença de violência, de baderna, em dc mais nada, é uma descrição interpretativa seadas na cultura afro-brasileira, c deverão
nal A Tarde, o bloco estaria ocultando seu real
meio à sadia animação do povo, partindo de um fato. O próprio tecido da realidade que agradar com o samba Kosê-Kosê’ (.. ,).”23
propósito, que era propagar a luta de classes:
para agressões até mesmo de blocos inte­ é apreendida enquanto fato é resultado dc uma
Aparentemente, seu formato cm nada di­
grados por mulheres, como ocorreu este tarefa de seleção e classificação de eventos sob “A harmonia que reina entre as parcelas da
fere das notas anteriores relacionadas a outras população provenientes das diferentes et­
_ ”20 uma ótica que o precede. Enquanto veículo de
ano. entidades que utilizam a mesma temática. No
opinião que é orientado e atende a determina­ nias constitui, está claro, um dos motivos
entanto, ao confrontarmos com a notícia que de inconformidade dos agentes de irritação
Os órgãos responsáveis pela organização das expectativas de grupos sociais e políticos,
aparece no mesmo jornal após o carnaval, po­ que bem gostariam de somar aos propósitos
do carnaval participação clamavam pela orde­ os jornais têm o poder de construir imagens e
demos perceber que o tema a ser apresentado da luta dc classes o espetáculo da luta de
nação da festa e pela intervenção disciphnada não apenas reproduzi-las. Neles as aspirações
em nenhum momento parece ser a causa da raças.”25
da polícia, e já no final da década os jornais e práticas individuais e de grupos são trans­
dissonância do bloco com o espírito momesco
" estar povoados de debates e discussões formadas em representações, constituindo Nem a própria constatação que no bloco
baiano. O que causa indignação é a imprópria
promovidas pelas entidades comprometidas “sistemas de significação”22 cuja concepção aparece explicitamente veiculada é direta­
P a no sentido de restabelecer a tran-
do discurso subjaz o personagem. É nesse
exploração do tema e o fato dc o bloco ser
com a lês«-« composto exclusivamente por foliões negros, mente enfocada, mas revestida de outros sig­
"Tdade ao folião baiano. E é nesse momento sentido que renovamos a idéia de que os jor­ nificados. Na verdade, a “nota destoante” que
como atesta o título do referido artigo, “Bloco
dos trios, afoxés, blocos de percus- nais possam ser pensados como cenários nos o Ilê Ayiê tinha produzido na festa só se expli­
racista, nota destoante”:
- e de índios que ocupam as ladeiras e praças quais diferentes personagens atuam em dife­ cava pelos seus propósitos não-revelados. Se
idade, os blocos afro - personagens cuja renciados momentos de forma mais ou menos “Conduzindo cartazes onde se liam inscri­ não tinha explorado de forma apropriada os
em produzida pela imprensa baiana é aqui enfática. ções tais como: ‘Mundo Negro’, ‘Black temas que se propunha, era porque o bloco
^desiada - começam a povoar as páginas Power’, ‘Negros para você’ etc., o bloco Ilê
Até então, reconstituí uma parte da história trouxe para o carnaval baiano elementos exó­
pnvi & carnaval baiano cresce mas, nas Ayiê, apelidado de ‘Bloco do Racismo’,
dos jornais. do carnaval baiano, através de representações genos à festa.26 Embora veiculados como ma­
proporcionou um feio espetáculo neste car- nifestações folclóricas, a utilização de temas
178 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
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afro-brasileiros não era novidade no carnaval
estudam arte negra e sua influência no Bra­
baiano, tendo sido até, de certa forma, esti­
sil. Não há nada contra pessoas de outras No entanto, essa transposição e esvazia­
mulada quando reivindicou-se a elaboração de outras entidades. Além das composições ins­
raças. Acontece, afirma um dos diretores mento de significado parecem ser operados de
uma temática regional pelos blocos populares piradas numa “poética afro-baiana” lançadas
do ‘Ilêaiê’, é que ‘com a entrada de pessoas diferenciadas formas pelos diversos grupos.
No entanto, ao desprezar essa forma de abor­ pelos trios, os próprios blocos de índio apare­
leigas no assunto, poderá haver uma des- 1 Quando nada porque figurar com assiduida­
dagem, o bloco, em vez de somar-se aos acor­ cem utilizando temas afro-brasileiros. O pró­
caracterização de nosso bloco, o número de de nas páginas dos jomais pode representar,
des diversificados porém harmônicos da folia prio Risério acaba por valorizar essa mudança
componentes será limitado não podendo em certa medida, uma ampliação de espaços e
baiana, produzia a dissonância. A existência de ultrapassar 500’.”2® gradativa que ocorre em alguns blocos de ín­
afoxés e outros grupos que utilizavam como parceiros políticos. Evidentemente, essa rela­
dio no sentido de se “africanizarem”:
tema aspectos da cultura afro-brasileira, se­ ção entre as descrições que compõem a narra­
Se por um lado o Ilê Ayiê abre espaço para
tiva jornalística c a própria sociedade apre­ “Sintomaticamente a violência vai se ate­
gundo a ótica da imprensa da época, só rea­ inúmeros blocos afro, seus desfiles já não.
firmava a presença de um “pluralismo cultu­ senta-se como um movimento pendular e de nuando, e mesmo tendendo a desaparecer,
causam qualquer impacto que se traduza em
ral”,27 reflexo da convivência pacífica entre a múltiplos reflexos. Nesse sentido, deve ser na medida em que se amplia e se aprofunda
notícia semelhante à que foi veiculada nos jor­
matizada com as próprias concepções que cir­ a consciência da negritude.”34
população brasileira de origens étnicas diver­ nais no carnaval de 1975.
sificadas. Localiza-se justamente nesse ponto a culam nos meios acadêmidos no momento, dos No entanto, os jornais explicitam uma ten­
A partir de 1980, os jornais já começam a quais os jornais parecem ser uma espécie de
impropriedade da abordagem produzida pelo são entre as próprias entidades carnavalescas
Ilê Ayie, ao questionar a pluralidade cultural contar a própria história do surgimento dos “consultores”. Isso porque muitas das explica­
em torno dessa valorização. Segundo o presi­
blocos afro como sendo uma “revolução” ções sobre a “revolução estética” ocorrida em
do carnaval baiano. Por outro lado, a idéia de dente dos Tupis,
ocorrida no carnaval baiano nos anos 70. A Salvador com o advento dos blocos afro e a
um bloco restrito a negros parece ter sido um
impasse difícil de ser traduzido em explicações proliferação de blocos teria causado uma reo- revitalização dos afoxés serão dadas por ar­ “(..) o pessoal está dando mais preferência
rientação estética da festa baiana, visível in­ tistas e intelectuais. à cultura negra, aos afoxés. Depois que
nos jornais da Bahia. As notícias subsequentes
ao primeiro desfile do Ilê, além de divulgarem clusive nas próprias composições dos blocos Segundo esses artistas c intelectuais, os foram criados os blocos afros despertou
temas, quantidade de figurantes e as “atra­ de trio. Entretanto, essa mudança de orienta­ blocos afro teriam trazido para o novo carna­ mais a curiosidade da cultura. E agora a
ções” que o bloco levaria para as ruas, refe­ ção teria se dado principalmente na ênfase aos val baiano o carnaval participação dos anos cultura negra ficou mais conhecida também
rem-se com frequência, quando não ao “triste temas “africanos”, revelando uma mudança de 70, a valorização da diversidade cultural, de pela participação dos blocos afros, ‘mas
espetáculo” de 1975, às argumentações de que comportamento da juventude negra baiana em origem marcadamcnte étnica, que tinha na Ba­ apesar de pertencer a cultura negra, Ade­
o bloco não é racista. Com isso a ênfase passa torno da construção c valorização de determi­ hia grande representatividade.3’ Não como mir Carvalho entende que é necessário’ dar
a recair na abordagem estética que será apre­ nados símbolos de identidade étnica que ti­ o faziam os antigos afoxés, voltados para a preferência pelos índios pois eles são os
sentada pelo bloco, deslocando a questão da nham como inspiração o continente e a cultura preservação de aspectos religiosos dessa cul­ donos da terra.”35
restrição ao ingresso de brancos em função da negra africanos. Esses recursos eram manipu­ tura, mas dando-lhe um conteúdo de “mobili­
lados no sentido de se fortalecerem os espaços zação política consciente”. Mesmo a diferença Tanto a utilização da temática afro pelos
opção do bloco de só trabalhar “temas africa­
de uma cidadania negra no Brasil,29 ao mesmo entre os próprios blocos e os afoxés, que teria blocos de índio, quanto a atribuição da dimi­
nos”: nuição da violência no carnaval à “consciência
tempo cm que ganham força diversos grupos levado a Bahiatursa a instituir a categoria
“bloco afro”, parece ser apenas de ênfase em da negritude ” por certo merecem análises mais
“O bloco Ilêaiê da Liberdade, está com to­ políticos e culturais de luta contra a discrimi­
nação racial no País. A valorização de deter­ alguns elementos de cultura negra que são aprofundadas, as quais, no entanto, não são o
dos os detalhes já definidos para este car­
minados aspectos da cultura negra, enquanto abordados; os afoxés aparecem caracterizados objetivo do presente artigo.
naval. Com três anos de fundado, já goza
lugar da resistência e elo de ligação entre a como “mais preceito do que carnaval” e os Entretanto, ao folhearmos os jornais da dé­
de muita simpatia dos foliões que vão à rua cada de 80, não só não encontramos sinais de
Bahia e a África, traduzia-se, por oposição, j blocos afro “transmitem caracteres da cultura
para assistir desfiles de blocos e cordões. O
num movimento de recusa a outros modelos afro, embora possam fazê-lo explorando o es­ uma diminuição substancial da violência (o que
enredo para esse ano será ‘Ilê na Nigéria’,
culturais. E são justamente esses símbolos de pírito do carnaval”.32 ocorre parecem ser carnavais mais violentos
com uma fantasia, como não poderia deixar sucedidos por outros menos violentos, devido
identidade étnica escolhidos pelos blocos que Dessa forma, os temas escolhidos a cada
de ser, explorando motivos africanos (..) à intensa repressão policial), como a aborda­
serão realçados pela imprensa baiana enquanto ano por cada bloco ganham cada vez mais am­
Tendo sido criticado no passado como ra­ gem de temas afro pelos blocos de índio pare­
uma “revolução” de caráter estético e despro­ pliada dimensão nas páginas dos jornais. A
cista, uma vez que só participam do desfile
vida das dimensões políticas contidas no ques­ própria expressão utilizada por Antonio Risé- ce ser apenas circunstancial. O que há é uma
negros, sua diretoria ainda ressentida com ênfase nos temas relacionados ao índio brasi­
tionamento que seus agentes propõem. O que rio para o processo desencadeado pelos blocos
isto, fez uma ressalva, dizendo que o bloco leiro.
para os diversos grupos é o lugar da resistên­ afro no carnaval de Salvador - “reafricaniza-
não é discriminatório. O que ocorre é que Particularmente em relação à violência, ela
cia apresenta-se nas páginas dos periódicos ção”33 - aparece veiculada nos jornais como
seus compores têm raízes africanas e aparece menos relacionada aos componentes
como exótico.30 explicação à transformação que por sua vez
dos blocos de índio e mais à latente tensão en­
também se verifica nas notícias destinadas a
180 Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989 tre os “blocos de branco” e os “blocos de ne-
Estudos Afro-Asiáticos n-16, 1989
181
gro . Não só o aumento das entidades negras haver o prazer da folia, que é substituído
no carnaval, como também a penetração das pelo prazer da vaidade e orgulho de bem se
músicas produzidas por compositores de blo­ apresentar num espetáculo montado para
cos afro em diversos espaços da indústria ser exibido e colher aplausos como faziam
cultural os coloca em evidência, em detrimento antigamente, os clubes carnavalescos em
das músicas compostas pelas bandas de trio. seus desfiles em carros alegóricos na aveni­
Passando a ser os responsáveis pelo sucesso do da (...) De outro lado os blocos com ban­
carnaval baiano, que nesse momento já é co­ das eletrônicas são culturalmente vazios,
nhecido como “africanizado”, os blocos come­ porque seus donos têm um único objetivo:
çam a figurar constantemente no noticiário ganhar dinheiro com a folia (...) Aí não há
que antecede o carnaval, principalmente nas cultura, mas apenas indústria. Quem entra
páginas relacionadas ao turismo em Salvador. num bloco desses só precisa ter pernas e
Se agora é a cultura negra que é valorizada, disposição prá pular. Nada mais. O que é
a imagem do carnaval participação, enquanto um desperdício porque exatamente neles é
festa popular e sincrética quanto aos estilos que estão os nossos jovens universitários,
musicais, passa a ser associada à forte presen­ outros estudantes e profissionais liberais ou
ça das entidades negras no carnaval. Em con­ assalariados com bom nível de educação,
trapartida, os trios aparecem vinculados a uma todos capazes de absorver um trabalho
marcante presença do poder econômico. É in­ cultural qualquer.”36
teressante confrontar as duas imagens: a dos Sintoma dessa mudança de ênfase que ao
blocos afro como expressão “cultural” e a
mesmo tempo acarreta uma reorganização do
dos trios como uma “eletrônica vazia”: espaço carnavalesco, com brancos brincando
“Os últimos carnavais têm mostrado uma em blocos de trio e os negros em afoxés, blo­
tendência a segregação racial, dentro do cos afro e de índio, são as expressões usadas
programa de desfiles das entidades. Assim, na maioria das manchetes e títulos dos periódi­
o que temos visto - e provavelmente se re­ cos: “magia”, “graça”, “tradição”, “força”,
petirá este ano - são os afoxés (dos negros) “raça”, “africanização”, “ponte-africana”,
e os blocos de índios (assim se chamam) “negra, a cor da beleza” etc. Mesmo dando às
apresentando-se à noite, enquanto o que descrições dos desfiles dos blocos uma conota­
poderíamos considerar como ‘bloco de ção de exotismo, os jornais acabam por carac­
brancos’ tomando conta da avenida durante terizá-los, ao privilegiarem as entidades negras
todo dia. Por que isto? Não há qualquer em oposição aos blocos de trio, como a mais
horário destinado pela organização do car­ importante “manifestação cultural do carnaval
naval para justificar essa separação. O que baiano”. Esse processo acabou tendo grande
ocorre, me parece, é uma conseqüência repercussão no carnaval de 1988, o “carnaval
natural do poder aquisitivo que estratifica a da Abolição”.
sociedade (...) Assim estabelece-se um Se é em Salvador que se pode constatar de
paradoxo: há mais cultura onde há pobreza. forma mais marcante a presença da cultura
O afoxé e o bloco de índio apresentam dan­ negra, o ano do centenário não poderia deixar
ças e cantos, que precisam ser ensaiados, de servir como tema para a decoração da cida­
com coreografia estudada, música com­ de: a “Bahia de Todas as Áfricas”. Embora o
posta especialmente para o desfile e fanta­ acirramento da tensão entre “trios” e “afros”
sias pesquisadas, não raramente com as- já estivesse presente ao longo das interminá­
sessoria de eruditos e professores univer­ veis discussões acerca da organização do car­
sitários. E alguns deles incluem em sua naval - de um lado os blocos afro protestando
apresentação o recado político com base contra a desigualdade sonora no confronto
antropológica. Nessas entidades parece não entre baterias e guitarras amplificadas; de ou-
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
182
tro, os trios se sentindo discriminados quanto tricos, ou armados de machadinhas causando
ao apoio e à subvenção dada pela Prefeitura -, pânico à tranqüilidade da festa, neste momento
proliferam cartas de leitores e entidades ne­ eles estão organizados e fantasiados, mostran­
gras acusando certos blocos de trio de não do com “orgulho” a sua cultura. A mistura
permitirem o ingresso de foliões negros. Mais produzida pelos trios elétricos, ainda não res­
tarde, acusações da mesma natureza aparecem tritos aos limites dos cordões de isolamento,
na imprensa vindas de foliões brancos contra a segue-se uma ordenação de distintos espaços
discriminação por eles sofrida no ensaio do restritos. A reorganização distingue territórios
Muzenza.3-7 e evidencia as diferenças. Se, na visão de anti­
Ao mesmo tempo, alguns blocos afro gos foliões,39 o carnaval dos anos 70 promovia
çam discos e suas músicas são amplamente di­ uma indiferenciação de classes sociais, que ti­
vulgadas não só durante o carnaval, como é o nham seus espaços próprios para brincar, o
caso do Olodum. Se 1986 tinha sido o ano do carnaval dos anos 80 as reorganiza etnica-
“fricote” de Luís Caldas, com toda a cidade mente. Nas páginas dos jornais, os negros que
cantando — e os blocos afro protestando — compõem os blocos afro e afoxés da cidade
o refrão “negra do cabelo duro, que não gosta aparecem como a vertente exótica da plurali­
de pentear (..)”, em 1987 era Gerônimo quem dade cultural existente na festa baiana. Se a
cantava “eu sou negão, meu coração é a Li­ mistura sem controle que se vê na festa no iní­
berdade”, retratando o encontro entre um blo­ cio dos anos 70 ameaça a tranqüilidade do car­
co e o trio elétrico. Já em 1987 é a vez de naval, e por conseguinte significa a evasão do
“Faraó”, do bloco Olodum e, finalmente, em turismo (é constante a relação que se faz entre
1988, vários blocos afro têm suas músicas a violência e o turismo), o distanciamento pro­
cantadas e amplamente divulgadas não só nas duzido por um recorte étnico representou o
rádios mas pelas próprias bandas de trio. No restabelecimento da ordem. Isso porque, desde
entanto, aumenta nos jornais a ameaça dos 1986, e tendo como auge o carnaval de 1988,
trios elétricos de não mais desfilarem no car­ o “ritmo e a cadência” produzidos pelos tam­
naval de Salvador e partirem para cidades do bores dos blocos têm sido identificadas como
interior, devido à falta de apoio dos organis­ os responsáveis pela paz40 reinante no
mos oficiais. Mas é em 1987 que esses órgãos carnaval:
tomam providências no sentido de delimitar
espaços e horários carnavalescos, diminuindo, “(..) os blocos afros e afoxés deram o rit­
dessa forma, os riscos de um confronto: mo cadenciado do ‘camaval de todas as
Áfricas’, mantendo a massa muito mais dis­
“O que aconteceria se o negão da música
posta a mexer o corpo com malícia do que
de Gerônimo resolvesse partir para briga
ao exercício da violência. E até mesmo os
contra o trio que estava abafando o seu
trios aderiram à música de influência afro,
afoxé. É exatamente o medo que essa pos­
deixando de lado os ritmos mais
sibilidade passa ocorrer na vida real que
pesados”.41
está assustando os diretores dos blocos de
trio. Este temor surgiu porque a coordena­
ção do carnaval resolveu que os trios elétri­ Por outro lado, essa violência, que era ex­
cos deverão sair somente até às 19 horas plosiva ao som elétrico do trio, aparece dissi­
nos dias de carnaval. Deste horário em muladamente caracterizada enquanto um con­
diante o desfile é do povo.”38 fronto racial (começam a aparecer nos jornais
pequenas notas, muitas vezes em tom anedóti­
Finalmente, poderia dizer que, se no carna­ co, relatando incidentes entre trios e blocos
val dos anos 70 os foliões negros estão em afro). Passado um primeiro momento de re­
meio à violenta massa que segue os trios elé- sistência à introdução de outras abordagens de
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 183
temas afro-brasileiros que não aquelas enfo­ festações que traduzem a pluralidade e, ao
cadas a partir de uma perspectiva meramente mesmo tempo, a singularidade da cultura re­
folclórica, segue-se um movimento de incor­ gional. O carnaval participação não mais se
poração, percebido no uso de certas expres­ opõe ao carnaval espetáculo:
sões na descrição desses mesmos grupos. Se a
novidade produzida pelos blocos era a divul­ “O Pelourinho é a parte mais importante de
gação da cultura negra a partir da veiculação um conjunto que começa na Praça Castro
de alguns de seus aspectos que tinham como Alves e vai até às Portas do Carmo. E aí
origem a África, este é um movimento de que temos de desenvolver nosso carnaval
afastamento. E, se da grande massa são reve­ espetáculo, como o que existe no Rio de
lados os matizes, o reconhecimento de um ou­ Janeiro, civilizado, não com Escolas
tro pressupõe, por sua vez, uma forma de re­ de Samba, mas com afoxés, com blocos de
presentação. Nesse sentido, o movimento em índio e com blocos de fantasiados. O car­
direção à “africanização” também pode ser naval de gente que pesquisa para compor
traduzido num distanciamento. Paradoxal­ uma música, contar uma história e criar
mente, a sua representação enquanto coisa uma fantasia. O carnaval dc quem tem cé­
exótica é incorporada a um conjunto de mani­ rebro e sensibilidade artística.”42

NOTAS

1 A Tarde, 12.2.1975.
2 Fred de Góes, O país do carnaval elétrico. Salvador, Corrupio, 1982, p. 19.

3 Estado da Bahia, 22.2.1969.


4 O tema da Diplomatas da Amaralina, campeã do camaval dc 1969, foi “Epopéia de uma raça”. Estado da
Bahia, op. cit., p.2.
5 Fred de Góes, O país do carnaval elétrico. . ., op. cit., p. 63.

6 Celso F. Favaretto, Tropicália, alegoria, alegria, São Paulo, Kairós, 1979, p. 92.

7 Idem, p. 95.
8 A Tarde, 12.2.1975.
9 Renato Ortiz, “Carnaval: sagrado e político”, in .Peter Fry, Consciência fragmentada,. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1980, p. 20.
10 Maria Teresa Roxo Nobre, “Meandros da participação: formas de compartilhar espaço”, Ciência e Cultura,
vol. 30, n9 5,1977, p. 536.

11 Idem, p. 538.
12 Idem, p. 537.
13 Peter Fry, Sérgio Carrara e Ana Luiza Martins Costa, “Negros e brancos no carnaval da Velha Repúbli­
ca”, in J. J- Reis, org.. Escravidão & invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo, Brasi-
liense, 1987, p. 245-6.
14 Cláudio Tuiuti Tavares, “Afoché- Ritmo Bárbaro da Bahia”, O Cruzeiro, 29.5.1948.

15 Diário da Bahia, 31.1.1954.


16 Cláudio T. Tavares, “Afoché. . .”, op. cit., p. 58.
jg4 Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989
17 Roberto Da Matta, Carnavais, malandros e heróis: para tuna sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro,
Zahar, 1983, p. 11.
18 Maria Teresa R. Nobre, “Meandros da participação. . ",op. cit., p. 539.

19 Antonio Risório, Carnaval ijcxtí, Salvador, Corrupio, 1981.

20 Jornal da Bahia, 24.2.1977.


21 Idem, 16.2.1979.
22 Lilia Moritz Schwarcz, Retrato ent branco e negro, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 253.

23 ATarde, 5.2.1975.
24 Idem, 12.2.1975.
25 Idem.
26 Interessantes comparações poderiam ser feitas com a repercussão que tiveram as escolhas dos temas Cuba e
Madagascar, rcspcctivamente, cm 1986 c 1988, pelo bloco afro Olodum.
27 P. Fry, S. Carrara c A.L. Martins Costa, “Negros c brancos. . .”, op. cit., p. 234.

28 A Tarde, 31.1.1979.
29 P. Fry, S. Carrara c A.L. Martins Costa, “Negros c brancos. . ,”,op.cit.
30 Beatriz Góes Dantas, Vovô nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janeiro, Graal,

1988, p. 200-1.
31 A Bahia parece ser também um importante referencial de luta para os grupos c entidades negras, pela cons­
trução que dela fazem enquanto “centro da negritude no Brasil". Ver Cactana Damasccno, Micênio Santos e So­
nia Giacomini, “Um perfil das entidades dedicadas à questão do negro no Brasil”, Comunicações do Iser, n! 29,

1988,p.7.
32 Jornal da Bahia, 1.3.1981.
33 Antonio Risório, Carnaval ijcxâ. . ., op. cit., p. 17.

34 Idem, p. 69.
35 Jomalda Bahia, 9.2.1982.
36 A Tarde, 9.2.1986.
37 /dem, 4.2.1983.
38 Jomal da Bahia, 11.2.1987.
39 Maria Teresa R. Nobre, “Meandros da participação. . ",op. cit., p. 530.
40 No entanto, cm jornais do mesmo ano, leitores se queixam da violência: “Sr. Redator: Nunca violência no
Carnaval como neste ano. Foliã da festa momesca em Salvador desde 1973, nunca assisti tanta agressão. Mas em
diversas ocasiões, meu medo decorria da presença dos policiais. Onde eu via um PM, imaginava que alguma
confusão poderia acontecer, pois os policiais passavam agressivamente na multidão afastando todo mundo cornos
seus cacctetcs, que passavam a ser denominados de ‘fautas’. Um absurdo. Carnaval é festa. E festa no meu enten­
der é sinônimo de alegria, não de briga(. . .)." Tribuna da Bahia, 19.2.1988, seção de “Cartas”.

41 Tribuna da Bahia, 17.2.1988.


42 Artigo de Adinael Motta Maia, publicado em A Tarde, 10.1.1988.

185
Estudos Afro-Asiâticos n- 16,1989
SUMMARY
“^ Impressions: The ,.Blocos Afro„ ftom the pQint ^ vkw ^ ^ ^^ ^

«m™® f 11115 articIe is to “alyse the way the


blocos afro of Salvador have been described in the
Bahia press. They became well-know in the 1970’s
Carnival as black groups who defended a political in­
tervention against racial discrimination in Brazilian
society as an essentially cultural activity. Although oXhon "“"' hand tMs laW resented an
most of them recognise themselves as “cultural
groups” and develop cultural and educational activi­
ties in the “communities” where they come from for
their carnival activities, the purpose of this work is to
group how their participation in carnival is portrayed nts spaces, such “the So"^“ “ d — a"“'
in the press. 3
The article gives first a short background of the
Salvador carnival in the seventies, when the “blocos
afro” were bom. It focusses on the different kinds of
popular participation in others types of groups. Alon­ was related to the social ‘"T“'™"«1 violence
gside the groups composed of black people, such as
the “bloco afro”, “afoxés” and “bloco de índio”
there were other groups where the majority of com­
ponents were white. Besides this, the most important
characteristic of Bahia’s carnival as a symbol of the
public’s wider participation was the “trio elétrico” a h • ,e ^l^ntiy associated with the cul-
big, brightly illuminated truck that drives around the S "e^nt^ °f S^or’s carnival,
streets playing all kinds of musical styles attracting a “blocos afro" XX* andcult"ral objectives of the
multitude of followers. In the mid-seventies the
as just one more exotic stvfe ^m '" newsPaPe.'5
“trios elétricos” had become the private domain of the Salvador canrival, Xre 2 bl^“"^0“'“ '"
middle class groups in the city, and this provoked all puMon canplayinaa’oXjXy ““ poor<’°-

RÉSUMÉ

impressions de Festive ^ ..B]ocos Afro„ Vus ^ ^ ^ ^ ^ .

Cet article a pour but d’analyser la façon dont la


presse de Bahia décrit les “blocos afro”. C’est au cour d»16« b™5?6 tout d’abord un bref tableau de
des carnavals des années soixante-dix qu’ils se rendi­ surent SX” deS '"”*’ soixante-dix, lorsque
rent célèbres par des thèses selon lesquelles la lutte les différente, r 0005 afro”’ tout en mettant en relief
politique contre la discrimination raciale dans la so­ pulaire Certa' Om^S ^“Paies de participation po-
ciété brésilienne devait consister dans des activités e,Ies’ comme "blocos
essentiellement culturelles. En effet, la plupart d’entre cnmrÁcí h X^ et ^es "blocos de índios” étaient
eux se considèrent comme des groupes culturels et étaient J noirs- A côté de cela, d’autres groupes
établissent une séparation entre leurs réalisations cul­ T ?" maj°rité de ^«cs- Malgré tout, la
tuelles ou éducationelles au sein de leurs “commu­ r n S ^ 3 PÏUS *mPortante du carnaval de Ba-
nautés” d’origine et leur action lors du carnaval. Mal- 5 ? ^L,S.ymboIisait le miex une ample partici-
cela, l’objectif est de ne révéler que la façon dont . k n ’ étaÍt k "^ Métrico”, un énorme
la presse dépeint leur participation au carnaval car elle cannon brillamment illuminé qui parcourait les rues
en jouant toute sorte de rythmZs et en entraînant^
ignore leurs autres activités-
suite une foule de gens. Vers le milieu des années soi-

186 EstudosAfro-Asiáticosn^l6, J989


’T^’ '“ "tri°S eléîricos” * la ville furent pri-
vaus& par un certatn groupe le lu clause moyenne. fêtes du carnaval acquéraient des caractéristiques de
Ce a donna heu à toutes sortes de discriminations ru- participation active et, en même temps, de violence
males ou soc,aies envers les noire et les pauvres. Mais croissante. Il fut établi un rapprochement entre ce fait
aux yeux de la presse, te carnaval de la ville était le ^V“ “T1^30^” sociaux ou raciaux que les “trios
Plus popuiatre du Brésil. On l'appela même "le car­ eléticos favorisaient sans restriction. En résumé:
naval de la part,c,potion”. Ce titre représentait par quoique la presse ait mal accueilli les “blocos afro’’
a lleurs un contre - pouls à l'importance de plus en lors de leur première sortie, les accussant de racisme,
plus grande que prenaient les défilés des "escolas de il se trouva néanmoins que certains jomaux les asso­
samba de Rio de Janeiro et à toute l'histoire des car­ cièrent au pluralisme culturel et racial du carnaval de
navals tradhionnels de Bahia eux-mêmes. La parti- S^d°r’ Ainsi>/es objectifs principaux des “blocos
culanté de ces derniers est que chaque groupe social
afro ne sont traités dans les journaux que comme un
ZZm 1 P"lT ”“ “e faÇ°" ^^ “ “i", n°-
exotisme - parmi tant d’autres - propre au carnaval de
tammentdes blocos et cordões”
Les “blocos afro” surgirent à un moment où les Salvador, quand les noirs et les pauvres peuvent
s anuser dans le respect de l’ordre établi.

Estudos Afro~Asiàticosn-16, 1989


187
NOTAS SOBRE Os processos de miscigenação racial e ge­
ração de um estrato de população mestiça livre
MISCIGENAÇÃO no País iniciaram-se simultaneamente num

RACIAL NO BRASIL Brasil dominado pela plantation escravista. Os


contatos sexuais assimétricos entre diferentes
grupos raciais (no caso, homens brancos com
mulheres negras) não são simplesmente o re­
Carlos A. Hasenbalg* sultado da libido, lubricidade ou caráter nacio­
nal dos membros de um desses grupos. Eles
Nelson do Valle Silva** também são propiciados, de maneira geral,
pela existência de (a) extremas desigualdades
Luiz Claudio Barcelos*** de poder entre os grupos dominante e subor­
dinado e (b) um desequilíbrio acentuado na
composição por sexo do grupo dominante
(predomínio numérico de homens)1. Essas
condiçoes, presentes no Brasil no início do
período colonial, estimularam a formação do
grupo mulato. Com o passar do tempo, o ca­
samento ou cruzamento entre pessoas de di­
ferentes combinações de cor configurou um
sistema multirracial de classificação, passando
a cor a ser percebida ao longo de um contínuo
de gradações.
Durante a vigência do sistema escravista, o
grupo escravo esteve composto majoritaria-
mente por negros (africanos e crioulos), en­
quanto a população de cor livre formava-se
predominantemente de mestiços.
No que diz respeito à formação desse últi­
mo grupo, a interpretação oferecida por Mar-
vin Harris é a de que os senhores de escravos
não tinham outra alternativa senão criar uma
classe livre de mestiços para executar funções
econômicas e militares intermediárias.

“Os senhores de escravos foram obrigados


a criar um grupo intermediário livre de
mestiços para ficar entre eles e os escravos,
pois havia certas funções econômicas es­
senciais para as quais o trabalho escravo
* Vice-Diretor do CEAA e Professor do era inútil e para as quais não havia brancos
IuPeij. disponíveis.”2

** Pesquisador do Laboratório Nacional de A explicação de Harris para a diferença


Computação Científica do CNPq. entre os sistemas de categorização racial no
Brasil e nos Estados Unidos baseia-se nesse
*** Mestrando do Programa de Sociologia do fato. Nos Estados Unidos, a regra de hipodes-
*uPerj. cendência, mediante a qual os mestiços são
188 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
classificados como negros, teria se originado menta proporcionalmente de pouco mais de
porque a entrada de africanos e a emergência 2/5 para quase 2/3 do total. Já no período
de um grupo mulato só ocorreram após o esta­ 1940-1980 a tendência é apardização da po­
belecimento de uma numerosa classe interme­ pulação, notando-se uma diminuição propor­
diária de brancos, não deixando, assim, lugar cional tanto do grupo de cor branca quanto do
para um grupo de pessoas de cor livres.3 de cor preta.
Seja como for, a população mestiça livre No que se refere à forma como a miscige­
cresceu rapidamente durante o século passado nação e a questão racial foram pensadas du­
e no período final da escravidão a população rante a crise final do escravismo e o período
brasileira já tinha atingido um elevado grau de que a ela se seguiu, basta apontar aqui duas
miscigenação racial. Os dados do censo demo­ posições. A primeira, derivada do racismo
gráfico de 1872, levantados duas décadas de­ científico do final do século passado e que tem
pois do fim do tráfico de escravos e mais de em Nina Rodrigues a sua figura mais destaca­
uma década antes do início da imigração em da, postulava não só a inferioridade racial do
massa de europeus, não deixam dúvidas negro e do índio, como também a suposta de­
quanto a isso. Nessa data, o País contava com generescência dos mestiços, com todas as im­
uma população de 8.419 mil habitantes, dos plicações pessimistas dela decorrentes para
quais 45% foram registrados como brancos, o futuro do País. Já na concepção das elites da
39^% como mulatos, 10,9% negros e 4,6% época a miscigenação era encarada pragmati­
índios. camente. A mistura racial era vista como um
A Tabela 1 permite visualizar as mudanças amortecedor de conflitos sociais - e aqui a
na composição da população por grupos de cor comparação com os Estados Unidos é uma
entre 1890 e 1980. constante - e constituía elemento crucial do
Não obstante as mudanças nos procedi­ projeto nacional de branqueamento. É via mis­
mentos para registrar a cor das pessoas nos cigenação e imigração européia que se enca­
diferentes recenseamentos, essas informações minha a solução para o problema posto pela
mostram duas tendências gerais. O período de presença do negro, antecipando-se a sua gra­
50 anos compreendido entre 1890 e 1940, que dual desaparição.
se caracterizou pelo impacto da imigração E somente na década de 1930, com a publi­
européia, é uma fase de branqueamento da po­ cação de Casa grande & senzala, de Gilberto
pulação, em que o grupo de cor branca au­ Freyre, que a miscigenação será redimensio-

TABELA 1

Composição da população por grupo de cor


(Brasil, 1890-1980)

COR 1890 1940 1950 1960 1980

Branca 44,0 63,5 61,7 61,0 54,8


Parda 41,4 21,2 26,5 29,5 38,5
Preta 14,6 14,6 11,0 8,7 5,9
Amarela e s/d 0,7 0,8 0,8 0,8

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Censos Demográficos de 1950e 1980.

Estudos Afro-Asiâticos ns 16,1989 189


nada em suas consequências positivas para o ambos os cônjuges pertenciam ao mesmo gru­
projeto da nação, não só em termos de rela­ po de cor, o que representa um nível de endo-
ções raciais harmoniosas e democráticas como gamia de cerca de 79%. Entretanto, a propor­
também pela riqueza do patrimônio cultural, ção de casamentos endogâmicos varia acen-
que combina a contribuição das três raças fun­ tuadamente de grupo para grupo. Por exem­
dadoras. plo, se tomarmos os maridos como base de
As concepções freyrianas prevaleceram percentualização, obtém-se que a proporção
com valor de verdade no ideário das elites e de homens brancos casados com mulheres
resultaram num privilegiamento, no interior também brancas é de 84%, comparada a uma
das ciências sociais, da investigação dos as­ proporção equivalente entre pretos de apenas
pectos culturais da mistura racial no Brasil - 52%; os valores correspondentes entre ama­
os diversos sincretismos. relos e pardos é de 65 e 77%, respectivamente.
A questão do grau e da extensão com que Assim, fica claro que os grupos raciais mais
tem ocorrido o processo de miscigenação no numerosos têm mais oportunidades de realizar
País tem sido mais freqüentemente estudada eventuais normas endogâmicas do que os gru­
por geneticistas.4 Embora as populações mais pos menores, mais sujeitos a pressões no senti­
estudadas sejam as do Norte e Nordeste - Sal­ do do casamento fora de seu grupo racial.
danha,6 por exemplo, considerando grupos Examinando os 21% de casos exogâmicos,
sangüíneos e a sensibilidade à feniltiourea a constatação é de que existe uma predomi­
(marcadores genéticos freqüentemente utiliza­ nância (57,5%) de casamentos em que a mu­
dos por serem mais comuns em algumas raças lher é mais clara do que o homem, contra
do que em outras), estima que os componentes 42,5% de casos inversos, ou seja, em que o
índio, negro e branco dessas populações atin- homem é mais claro do que a esposa. Essa di­
18 34 e 48%» respectivamente -, é possí- ferença na direção da escolha marital, no en­
veT hoje, avaliar o grau que o processo de tanto, parece refletir basicamente diferenciais
Liigenáção atinge em nosso País. Assim, demográficos na composição da população e
rifica-se que pessoas em Porto Alegre con- não possíveis assimetrias no comportamento
V"deradas fenetipicamente brancas apresenta- de homens e mulheres com origem normativa.
3 em média, 8% de genes de origem afri- Na verdade, as grandes diferenças no tamanho
Vam’ sendo de 4 e 11% as estimativas para os dos grupos e nas suas “razões de masculinida­
mínimo e máximo dessa mistura. Para de” (isto é, na relação entre o número de ho­
V estimativas para esses valores são mens e o número de mulheres) desequilibradas
bastante próximas: 3 e 19% respecti- - particularmente o fato de que do grupo
No que diz respeito aos fenotipica- branco são oriundos quase 51% das mulheres
vamente. ^^ativas feitas no Rio de Ja- casadas, comparado com apenas 48,5% dos
mente Curitiba e Porto Alegre “su- homens casados - dão conta da quase totalida­
neiro, Sao de de sua constituição gené- de daquela diferença.9
caucasóide”.8 Além disso, como se pode constatar na Ta­
tica sena ^ investigação relevante sobre bela 2, existe grande variação regional nas
Outra ü miscjgenação, dessa vez no âm- proporções das diversas combinações de cor
o processo ^iais, é formada pelos estu- no casamento. O padrão geral parece ser no
bit° ^Xamentosinter-raciais/ sentido de que, quanto mais aó Sul a região,
dos sobre exarnina o padrao de casamento maior a proporção envolvendo .indivíduos do
Quando ^edorninante no Brasil, ressalta a grupo branco. Já as proporções envolvendo
inter-racial p casan)entos endogâmicos. De pessoas do grupo preto não seguem a lógica
importância ^do uma amostra nacional inversa, sendo mais elevadas no Rio de Janei­
fato. Silva» verifícou que, em 12.294, ro, em Minas Gerais e no Espírito Santo. Co-
_ 15.55o
com Estudos Afro-Asüfticos n? 16, 1989

190
mo, no entanto, os estoques populacionais em pardo. Como indicado antes, essas proporções
cada grupo variam de região para região, as endogâmicas refletem em larga medida os as­
proporções de casamentos endogâmicos tam­ pectos mais estritamente demográficos da po­
bém variam amplamente. Se calcularmos as pulação, isto é, as variações regionais tanto no
proporções de homens casando com mulheres tamanho dos grupos quanto em suas “razões
no seu mesmo grupo de cor, obteremos para as de masculinidade”. De qualquer forma, a
diversas regiões os seguintes valores. consequência desses padrões de casamento
Novamente, parece existir um padrão espe­ inter-racial é a existência de diferenças muito
cialmente estruturado no sentido Norte-Sul, as significativas entre as regiões no que diz res­
proporções endogâmicas entre brancos e pre­ peito aos produtos dessas uniões, isto é, no ní­
tos sendo mais elevadas quanto mais ao Sul vel de miscigenação das populações.
a região e o contrário acontecendo no grupo A parte final deste artigo destina-se a ava-

TABELA 2

Distribuição de cor do marido por cor da esposa e por região

COR REGIÃO
MARIDO ESPOSA 1:NORTE 2N0RDESTE 3:CENTRO-OESTE 4:MG/ES 5: RJ &SP 7:SUL

Branco Branca 13,6 19,9 39,3 50,7 55,9 70,6 83,6


Branco Parda 7,7 7,6 10,0 6,7 7,6 5,9 3,2
Branco Preta 0,1 0,5 0,6 0,9 1,5 0,8 0,4
Pardo Branca 10,4 10,6 12,0 8,8 8,9 7,2 3,7
Pardo Parda 64,2 52,3 32,6 23,0 14,5 11,2 6,0
Pardo Preta 0,8 2,0 0,9 1,2 1,7 0,6 0,3
Preto Branca 0,3 0,8 1,1 1,0 1,1 0,9 0,5
Preto Parda 1,7 2,8 1,6 2,9 2,4 0,5 0,5
Preto Preta 1,2 3,4 1,9 4,9 6,3 2,4 1,8

TOTAL 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100%


(1.563) (5.570) (2.175) (1.498) (1.073) (1.199) (2.340)

Fonte: Tabulação especial, amostra de 1% do Censo de 1980.

TABELA 3

Casamento endogâmico segundo a cor do marido e região

REGIÕES
%
COR DO MARIDO
NORTE NORDESTE C. OESTE MG/ES RJ SP SUL

Branco 64 71 79 87 86 91 96
Pardo 85 81 72 70 58 59 60
Preto 38 49 41 56 64 ‘ 63 64

Estudos Afro-Asiátícos n- 16, 1989 191


liar outro aspecto do processo de miscigenação Considerando a origem de cada grupo de TABELA 4
no Brasil, relacionando a cor de uma amostra cor, nota-se que 18.211 mil brancos (77,4%)
de indivíduos jovens com a mesma caracterís­ são filhos de casais racialmente endogâmicos, Cor das pessoas de 5 a 24 anos segundo a cor do chefe
tica dos seus presumíveis genitores. Traba­ compostos por pai e mãe brancos. Descontan­ do domicílio e da cônjuge
lhou-se com uma amostra de domicílios do os 11,2% desse grupo que pertencem a fa­ (Brasil)
(PNAD, 1982) da qual foram selecionados in­ mílias de chefe sem cônjuge, restam ainda
divíduos com idade entre 5 e 24 anos, asso- 11,4% de brancos que se originam de outras CHEFE
ciando-se a cada um desses indivíduos as ca­ combinações de cor, sendo as mais freqüentes BRANCO PARDO PRETO
CÔNJUGE
racterísticas do chefe de família e da cônjuge pai pardo e mãe branca (1.239 mil) e pai bran­
(no caso em que esta existia). Esse critério de co e mãe parda (917 mil). % % %
seleção e de atribuição de filiação não garante No grupo pardo, 11.027 mil (64,5%) são Br 18.211.183 98,8 1.239.071 51,3 82.783 29,6
que chefe e cônjuge sejam os pais biológicos filhos de pai e mãe pardos. Além dos 14,2% Pa 211.760 1,1 1.172.845 48,5 144.891 51,8
Branco 0,2
dos indivíduos analisados, embora tudo faça Pr 6.944 0,1 4.249 52.299 18,6
que provêm de famílias sem cônjuges, restam
crer que essa atribuição seja correta para a T 18.429.887 100,0 2.416.165 100,0 279.973 100,0
21,3% oriundos de outras combinações de cor.
maioria esmagadora dos casos. As combinações exogâmicas das quais origina-
Br 916.934 42,7 372.359 3,3 8.727 1,2
Essa abordagem está sujeita a algumas li­ se o maior número de pardos são com os gru­
Pa 1.225.294 57,1 11.027.760 96,4 506.384 72,0
mitações óbvias. Em primeiro lugar, deve-se pos de cor adjacentes: pardo com branco, em Pardo
Pr 5.337 0,2 39.185 0,3 188.050 26,8
considerar que o fato de a informação sobre primeiro lugar, e pardo com preto em segun­ T 2.147.565 100,0 11.439.304 100,0 703.161 100,0
cor se constituir numa auto-avaliação por do. Vale a pena notar que apenas 255 mil, ou
parte do informante dá margem a que diferen­ 1,5% do grupo pardo, têm origem no cruza­ Br 45.520 20,7 6.282 1,8 15.373 0,7
ças regionais e culturais na percepção dessa mento entre brancos e pretos — os grupos ex­ Pa 110.423 50,3 218.383 62,8 52.008 2,4
Preto
característica se manifestem nos dados coleta­ tremos de cor. Pr 63.730 29,0 122.924 35,4 2.071.993 96,9
dos. Além disso, ao se considerar a população T 219.673 100,0 347.589 100,0 2.139.374 100,0
Finalmente, 2.072 mil (65%) dos pretos são
com mais de 5 anos de idade, estamos implici­ filhos de casais compostos por pai e mãe pre­
tamente desconsiderando a existência de Br 2.471.314 91,4 162.316 6,9 7.532 1,1
tos. Como já foi notado, 19,9% dos pretos 221.067 8,2 2.128.575 91,0 86.049 12,9
eventuais diferenças significativas (embora de Pa
pertencem a famílias com chefe sem cônjuge, Sem Cônjuge 49.221
Pr 10.844 0,4 2,1 572.782 86,0
magnitude desconhecida) na mortalidade in­ restando 15,1% de pretos que se originam de 2.340.112 100,0 666.363 100,0
T 2.703.225 100,0
fantil por diversas combinações de cor dos ge­
outras combinações, principalmente de preto
nitores. Em terceiro lugar, também desconsi­ com pardo. Fonte: Pesquisa Nacional por Amostragem de Do micmo - PNAD, 1982.
deramos eventuais diferenças entre filhos de
Um outro aspecto da Tabela 4 que merece
diferentes combinações de cor no que diz res­ atenção refere-se às celas localizadas fora da
peito à saída da família de origem, seja devido mãe numa proporção superior à que seria teo­ são indicativos de duas tendências gerais do
diagonal principal, onde encontram-se as
ao abandono (crianças de rua e institucionali­ ricamente esperada. O exemplo mais acentua­ processo de miscigenação racial: (a) as combi­
pessoas do grupo analisado que provêm de
zadas), seja pela constituição de suas próprias do dessa tendência é dado pelos filhos de mu­ nações com preto tendem a gerar resultados
combinações de cor exogâmicas. As três celas
famílias. Por último, a análise restringe-se às lheres pardas com homens pretos, que são mais claros e (b) as combinações com pardo
situadas acima da diagonal principal concen­
combinações dos grupos de cores branca, pardos em 72% dos casos, quando a proporção tendem a gerar resultado pardo.
tram 3.399 mil pessoas; as três abaixo contam
esperada seria de 50%. A única exceção a essa Com relação ao primeiro aspecto, nota-se
Preta e parda, excluindo-se o grupo amarelo. com 2.715 mil pessoas. Isso quer dizer que são
tendência geral está constituída pelos filhos de que a combinação de preto com branco resulta
A Tabela 4 indica a cor das pessoas entre 5 mais numerosos os filhos de casais racialmente
mães pretas e pais pardos, que são pardos em em 25,7% de brancos, 51,1% de pardos e ape­
e 24 anos de idade segundo a combinação de exogâmicos em que a mãe é mais clara que o
62,8% dos casos, quando a proporção espera­ nas 23,2% de pretos, quando as proporções
cor do chefe do domicílio e do(a) cônjuge. pai, resultado que certamente reflete a propor­
da seria de 50%. esperadas deveriam ser de 25, 50 e 25%, res­
A última fileira da tabela contempla os casos ção mais elevada de casais exogâmicos em que
A Tabela 5 informa, para o Brasil e suas pectivamente. No entanto, é na combinação de
com informação incompleta, isto é, das pes­ a mulher é mais clara do que o homem. pretos com pardos que o grupo preto perde o
regiões, a cor das pessoas entre 5 e 24 anos de
soas nessa faixa etária que residiam em domi­ A última constatação a ser feita com base maior contingente de pessoas, já que a propor­
idade segundo a combinação de cor dos pais,
cílio nos quais o chefe não tinha cônjuge. En- nos dados da Tabela 4 diz respeito à cor dos ignorando-se, dessa vez, a distinção entre ção de pretos resultante é de 29,6%, quando o
contravam-se nessa situação 2.641 mil brancos filhos de casais compostos por pessoas de co­ chefe de domicílio e cônjuge e eliminando os esperado seria 50%.
(11,2% do total), 2.436 mil pardos (14,2%) e res diferentes. Nesses casos, nota-se a tendên­ casos de pessoas que vivem em domicílios sem A segunda tendência, no sentido de as
632 mil pretos (19,9%).10 cia no sentido de os filhos seguirem a cor da cônjuge. Os dados para a totalidade do Brasil combinações com pardo resultarem em pro-
192 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 193
194
TABELA 5
Cor das pessoas de 5 a 24 anos segundo a combinação de cor do chefe do domicílio e do côn/uge

Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


porções de pardos acima do que seria espera­ e pardos. Seguindo a tendência da totalidade
do, é observada nos cruzamentos de pardos do País, nas regiões Norte, Nordeste, Centro-
com brancos, que resultam em 47,2% de bran­ Oeste e Minas Gerais-Espírito Santo, essa
cos, 52,5% de pardos e 0,2% de pretos, em vez combinação resulta numa proporção de pardos
dos 50, 50 e 0%, que seriam esperados. Essa ligeiramente superior a 50%, enquanto no Rio
tendência é ainda mais acentuada na combina­ de Janeiro, São Paulo e na região Sul a pro­
ção de pardos com pretos, que resulta em 69% porção de pardos é inferior a 50%. Novamen­
de pardos, proporção muito mais elevada do te, uma população branca mais miscigenada,
que os 50% esperados. ao cruzar com o grupo pardo, resulta numa
Esses resultados, que apontam para um proporção mais alta de pardos.
crescimento mais rápido do grupo pardo, con­
Seguindo a mesma linha de raciocínio, é
trariam uma das expectativas iniciais, qual se­ possível constatar que, nas regiões mais ao
ja, a de que estaria acontecendo um processo Norte, a combinação de branco com preto re­
de embranquecimento da população. sulta numa proporção mais baixa de brancos
Ao se levar em conta o comportamento dos do que no Rio de Janeiro, São Paulo e região
mesmos dados nas diferentes regiões do País, é Sul.
possível introduzir algumas peculiaridades do
processo de miscigenação. Afora essas tendências regionais gerais,
merece ainda ser destacada uma peculiaridade
Considerando, em primeiro lugar, a combi­
de Minas Gerais-Espfrito Santo: nessa região,
nação de branco com branco, nota-se que a
a combinação de preto com pardo resulta nu­
proporção de brancos resultante aumenta na
ma proporção de pretos (59,1%) substancial­
direção Norte-Sul: desde um mínimo de 90%
mente mais elevada do que no Brasil e demais
na região Norte até o máximo de 99,7% na re­
regiões.
gião Sul. Independentemente das variações re­
gionais na percepção da cor, uma possível ex­ A título de conclusão, pode ser sugerido
plicação para essa tendência seria a de que o que, na ausência de fatores políticos ou cultu­
grupo branco, nas partes mais ao Norte do rais que introduzam mudanças significativas
País, apresentam um grau mais elevado de no sistema de cálculo da identidade racial pre­
miscigenação do que o grupo branco nas re­ valecente no Brasil, é o segmento pardo da
giões mais ao Sul, onde houve o reforço da população que deve apresentar o ritmo mais
imigração em massa de europeus. rápido de crescimento no futuro imediato,
Um resultado semelhante ocorre quando se mantendo a tendência que parece ter-se so­
observa o resultado da combinação de brancos breposto entre 1940 e 1980.

NOTAS

1 Estes dois fatores conducentes a contatos sexuais entre os grupos raciais dominante e subordinado são desta­
cados por Herbert M. Blalock Jr., Race and ethnic relations, Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1982, p. 41-3.

2 Marvin Harris, Patterns of race in the Americas, Nova Torque, Walker, 1964, p. 117.

3 Usando evidências do século XIX, Manuela Carneiro da Cunha critica a hipótese de Harris sobre a existência
de nichos ocupacionais específicos para os mestiços livres, mostrando que existia uma acirrada competição por

Estudos AJro-Asidticos n- 16, 1989 195


certas ocupações
berros e sua voltaentre escravos,
à África, libertos
São Paulo, e pobres livres.
Brasiliense 1985 Ver M Conda Cunha Nfgros ^^geiros, os escravos li­
n 90-1
meira. metade do século XIX, não ^“'Z S™ ^ P- a^n-'
escravidão no Brasil. A experiência das índias Ocidentais inglesas tenl a 9 f eà^^
demográficos enfatizados por Harris. Nessas ilhas, a ausência de uma pípulacão & ,mportância dos Stores
s-stema racial tripartido de brancos. mula.os (classe intermediSna livre) e -sA^Z^“ T

4 Veja.^exe^Io.F.M.Sa)^ ^
64 . „^“^ “’^ N“- B^ ~-^^, vo;

6 F.M. Salzano, “Em busca das raízes.. .”, op, dt., p. 52,

7
ElzaVer,
Berquó, exemplo,
por “ Thales
Nupcialidade dade Azevedo,
população negra no Brasilracial:
Democracia ideologia
”, Campinas, e realidaá.
mimeo, 1987 pP Óp°I,S’ „
Vozes’ 1975, e

8 Nelson
1987 do Valle Silva, “Distância social e casamento inter-racial no Brasil” • EstudnAfro-Asiáticos,
, p. 54-84. a a ■ n. 14,

9 Idem, p. 13-5.
10 Sabendo-se,
pode-se poréoutro
concluir que lado, que a maioria
substancialmente maior adesses
proporção está
casosde composta
crianç« por família
e jot^^e mU,heres’
socializados em condiçoes associadas a extrema pobreza. Ver Moema de Poli T Pa h pardos 3UC «s®© sendo
me de algumas questões”., EstudosAfro-Asiáticos, n. 13, 1987, p. 100-9. ’ neco’ A família negra: exa-

SUMMARY

Notes on Racial Miscegenation in Brazil

This article analyses the racial breakdow of the More recent studies of inter-racial marriages have
Rmrilian population in an attempt to ascertain ten- shown a predominant tendency (80%) toward endoge­
inconbinations between the groups. During nous racial unions. Variations in the proportion of
, neriod, racial intermixture was a fact of exogenous racial marriages can be explained by the
the reinfOrced by certain characteristics of relative differences in size of racial groups within the
Brazilian ’ omjc system and by the predominant
population as a whole and different male/female ra­
016 white men in the population. The forma- tios.
number. mulattoe group has been explained in terms The findings in this article were based on the
tion of a1®diatc socio-economic function. With ti- PNAD-82 sampling, relating the color of individual
of its lations and marriage between persons of young people with that of their presumed biological
me, sexual r s has generated a color conti- parents. The foremost conclusions of the study are
different co ^pJc ^ classified.
that there are a greater number of children from exo­
nuum by decline of slavery, racial intermixture genous unions where the mother is of lighter color
During used as the basis for pessemistic predic- than the father and taht individuals tend to assume the
was at ti"1®8, mre while at others was pragmatically mother’s color more than the father’s. It is more inte­
dons of the ^^ since the 1930’5, the general resting to note that where the distinction between
accepted by social sciences has been to investigate head-of-household and spouse is ignored, there is a
tendency in of racial intermixture, following marked tendency toward a lighter colocr classification
the cultural ^^of Gilberto Freyre, who sought to of the offspring of unions with Blacks, and of the
in the foo® tight on miscegenation. The process of mulattoe classification in unions of this category, lea­
shed a P03?VCifiif has been studied only by geneti- ding us to believe that the mulattoe group will be the
miscegenauon fastest growing in the near future.
cists.
Estudos Afro-Asidticos n- 16,1989
196
^— tv-

RÉSUMÉ

Notes sur les Mélanges Raciaux au Brésil

Cet article analyse la composition raciale de la po­ quence des thèses de Gilberto Freyre qui visaient à re­
pulation brésilienne. Ce que veulent ses auteurs, c’est donner un sens positif aux mélanges raciaux. Le pro­
identifier la tendance selon laquelle les groupes ra­ cessus de méssage, proprement dit, n’a été étudié que
ciaux se combinent entre eux. Les mélanges raciaux par des généticiens.
constituent une donnée de la réalité brésilienne depuis Les plus récentes études sur les mariages inter-ra­
l’époque coloniale. Ils y étaient favorisés par les ca­ ciaux mettent en évidence une prédominance de l’en­
ractéristiques socio-économiques du système et par dogamie raciale (80%). Les variations dans la propor­
l’excédent numérique masculin au sein du groupe tion d’exogamie raciale des différents groupes de
blanc dominant. La formation du groupe mulâtre couleur peuvent être expliquées par les dissimilitudes
s’explique par la fonction socio-économique intermé­ entre les tailles relatives de ces groupes au sein de la
diaire qu’il exerce. Au long des années, les unions en­ population totale et par l’importance numérique des
tre les personnes diversement métissées’dnt engendré hommes chez chacun d’eux.
un continuum de couleurs selon lequel les personnes Pour cet article, on a travaillé sur un échantillon
sont classées. extrait de la Recherche Nationale par Échantillonnage
Lors de la crise finale de l’esclavage, les métissa­ de Domiciles de 1982 en comparant la couleur des in­
ges provoquèrent deux types d’attitudes: tantôt ils dividus jeunes à celle de leurs probables géniteurs.
donnaient lieu à des conclusions pessimistes sur le Les principales conclusions que l’on puisse retirer de
futur du pays, tantôt ils étaient acceptés de façon cette analyse sont les suivantes: - les enfants de cou­
pragmatique par les élites. À partir des années 30, la ples exogamiques sont plus numbreux quand la mère
tendance générale des sciences sociales a été d’orga­ est plus claire que le père; — les individus ont plutôt
niser des recherches sur les aspects culturels qu’impli­ tendance à être de la couleur de leur mère que de celle
quent les mélanges raciaux. Il faut voir là une consé­ de leur père.

gstudos Afro-Asiâticos n- 16, 1989 197


AS DESIGUALDADES Introdução
RACIAIS EIVI DOIS Este artigo segue o mesmo caminho dos
TIPOS DE FAMÍLIA trabalhos de Oliveira, Porcaro & Araújo e
Slenes,1 entre outros, que têm procurado colo­
car em questão os pressupostos que estabele­
cem a especificidade da família negra no
Moema De Poli Teixeira Brasil.
Pacheco* Para tanto, recorreu-se a pesquisas de
campo2 bem como a fontes secundárias - basi­
camente, os censos do IBGE.3
Pretendo aqui abordar duas questões que a
meu ver permanecem de alguma forma como
marcos teóricos mais amplos para o estudo da
população negra no Brasil e que se refletem,
por sua vez, na maneira como é abordada a
famflia negra. Quais sejam, a que gira em tor­
no de sua estrutura e organização e outra de­
corrente de um tipo de postura diante dessa
primeira questão, que estabelece uma determi­
nada relação entre formas de organização fa­
miliar e situações sócio-econômicas, vendo
nela a possível superação de desigualdades
raciais.
De acordo com a ótica adaptativa que cerca
a grande maioria dos trabalhos, a constituição
da família negra, incapaz de se apresentar
dentro dos padrões de organização familiar da
sociedade, tem se colocado como um “proble­
ma” que pode estar associado às heranças de
padrões africanos4 ou vinculado estritamente
ao passado escravo do negro.5
Recordemos um pouco essa questão da ori­
gem do problema”. Para Herskovits, a diver­
gência de padrões caracterizaria aspectos
normais das relações de família e parentesco
das sociedades africanas. O caráter poligínico
e de obrigações extensas de parentescos das
famílias africanas, por exemplo, se manifesta­
ria sob a forma de instabilidade conjugal das
famílias negras na sociedade monogâmica do
Novo Mundo, onde essas relações estariam
ausentes.6 Ou seja, assumiria “forma européia
aquilo que é essencialmente africano no senti­
mento”.7 Já para Frazier, a escravidão teria
* Mestre em Antropologia Social pelo Museu apagado toda e qualquer influência que a cul­
Nacional e Pesquisadora do IBGE. tura africana pudesse ter tido sobre a família
198 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989
negra. Ela emergiria primeiramente como uma mas sociais não devem ser encarados como
organização natural, baseada fundamental­ ‘as causas’ da desorganização social impe-
mente nos laços entre a mãe e sua prole.0 rante no ‘meio negro’ e que tampouco de­
Parafraseando Levi-Strauss,9 a família ne­ vam ser compreendidas como fenômenos
gra - caracterizada por uma fraqueza dos la­ isolados (. . .) Se esta tivesse encontrado
ços conjugais e pelo arranjo da mulher com meios mais rápidos de participação da he­
seus filhos - deveria este seu caráter à perma­ rança sócio-cultural da comunidade inclu­
nência num estado de natureza, segundo a siva e, particularmente, se tivesse absorvido
teoria de Frazier, ou a um estado de cultura, tnais depressa seus modelos de organização
para os adeptos da teoria de Herskovits, no da família, é muito provável que aqueles
qual, ao que tudo indica, o elemento negro problemas sociais não se propagariam nem
mantém-se enquanto elo perdido a ser se perpetuariam nas mesmas propor­
buscado. ções.”13
No Brasil, Florestan Fernandes10 foi o au­ A saída da anomia, nesse tipo de visão de
tor que mais se deteve na análise do processo cunho adaptative, seria via a “organização” da
de constituição da família negra, de forma que família negra segundo os “padrões" requeri­
ele será nosso principal interlocutor. Podemos dos pela sociedade abrangente. Nesse sentido,
dizer que os trabalhos que se seguiram ao a família negra “organizada” surgiria como
consagrado A Integração do Negro na Socie­ um contraponto para a “desorganização” rei­
dade de Classes (1- edição em 1964) tomam nante entre os negros.
suas teses como ponto de partida, quer no Essa forma dual de abordagem das famílias
sentido de dar-lhes prosseguimento,’1 quer no negras encontra-se presente também nos tra­
de repensá-las?2 que é a proposta deste artigo. balhos de autores norte-americanos. Berger e
Como Gilberto Freyre antes dele, Florestan Simon,14 em seu trabalho “Black Families and
Fernandes pretendeu colocar sobre o sistema The Moynihan Report: A Research Evolua-
escravista e posteriormente sobre o capitalista tion”, fazem um estudo comparativo de famí­
a responsabilidade pela “permissividade” mo­ lias “intactas” e famílias “quebradas” para
ral e anomia social que caracterizariam, de testar a principal hipótese de Moynihan:15 a de
forma predominante, até os dias de hoje, a po­ que famílias negras socializam suas crianças de
pulação negra. forma muito diferente das famílias brancas.
O estudo das condições sob as quais a fa­ Eles estudaram os efeitos reunidos de raça, se­
mília negra se constitui é importante, segundo xo, classe social e organização familiar - com­
Florestan Fernandes, pelo papel que ela tem preendida pela análise daqueles dois modelos —
desempenhado, mais do que qualquer outro em um número de indicadores de interação
fenômeno social, na perpetuação dessa ano­ familiar, padrões de comportamento anti­
mia. social, aspirações educacionais e concepções
“A inexistência da família como instituição do papel dos sexos para concluir que não
social integrada ou, então, o seu funciona­ existem diferenças significativas entre famílias
mento inconsistente, por estar formando-se brancas e negras, “quebradas” ou “intactas”,
em condições sumamente adversas, é que que dêem suporte às conclusões de Moynihan.
vêm a ser, do ponto de vista sociológico, os Mc Lanahan,16 ao pretender estudar os
elementos centrais. Isso não significa que efeitos da estrutura familiar sobre a reprodu­
se deva ignorar ou subestimar o desempre­ ção da pobreza, também compara as famílias
go, o alcoolismo, o abandono do menor, do onde falta o cônjuge com aquelas onde os dois
velho c dos dependentes, a mendicância, a pais estão presentes para testar as hipóteses
vagabundagem, a prostituição, as doenças e formuladas no sentido de responsabilizar a
a criminalidade. Apenas, que esses proble- primeira estrutura pelo desenvolvimento de

Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 199


uma subclasse na América. Os resultados de
conspícuo como notável, eminente, distinto,
sua pesquisa não deram suporte à noção de ilustre, sério, grave, respeitável, o que por si
que a ausência permanente do papel do homem
só denota a distância que se pretende estabele­
em si mesma é o fator principal sobre os efei­
cer entre esse modelo e aquele em que ainda se
tos da estrutura familiar. Eles no mínimo con­
encontraria a grande maioria de populáção ne­
tradiriam um aspecto da posição de sub­
gra, reforçando a ótica polarizada em que é
classe, qual seja, o de que qualquer desvio no
analisada a constituição da família negra.
modelo de família nuclear implicaria uma so­
Nos Estados Unidos, autores como Mc
cialização inapropriada e patológica das crian­
Queen e Frazier22 parecem concordar que se
ças.
trataria de uma questão de conquista de
Uma outra linha de trabalhos também tem
“oportunidades”, principalmente econômicas.
se utilizado da análise comparativa desses dois
Frazier diz que
modelos de organização da família para inves­
tigar os efeitos da estrutura familiar sobre a “os desvios no caráter da família negra dos
delinqüência juvenil, uma vez que gangues de padrões americanos dominantes têm sido
adolescentes têm crescido bastante nos Esta­ imputados principalmente ao isolamento
dos Unidos, tornando-se um problema social social e à posição econômica do negro. Na
importante a ser solucionado pelo governo. medida em que o negro adquira educação e
Um problema que tem sido associado com fa­ alcance maiores oportunidades econômicas
mílias “quebradas”, que seriam, por sua vez, e participe de todas as fases da vida ameri­
mais freqüentes entre os negros.'7 cana. ele está tomando os padrões america­
Assim, ainda que alguns autores tenham nos de comportamento característico das
procurado questionar o seu significado,'8 a diferentes classes e regiões. Sua vida fami­
estabilidade, para a família negra, acaba por liar crescendo conforme o padrão america­
tornar-se um objetivo, um pré-requisito - no tem se tomado uma parte de sua heran­
também presente na tese de Moynihan” - ça cultural.”23
para a plena integração da população negra na
sociedade abrangente - segundo BilHngsley,20 Para Mc Queen. “se os habitantes pobres
um mito a ser conquistado, e a que se poderia dos guetos tivessem o poder e know-how para
chegar, de acordo com um mesmo ponto de reestruturar as instituições sociais que contro­
vista adaptativo, na medida em que fossem al­ lam oportunidades e recursos e que os relegam
cançados os meios necessários para isso, como ao mais baixo degrau do sistema de status, as
nos fala Florestan Fernandes: lições da história nos dizem que eles o
fariam”.24
“A importância da ‘família negra’ integrada No estudo da família negra, portanto, fica
está, portanto, em demonstrar que o negro estabelecido um marco teórico que se baseia
e o mulato podiam desenvolver padrões de numa visão polarizada a respeito de sua cons­
vida conjugal altamente respeitáveis e tituição. a partir de um modelo possível de ser
conspícuos C • •) ela evidenciava que estes “assimilado” - já que ele é sempre colocado
seriam tão capazes de organizar conspi-
como pertencendo à sociedade abrangente, al­
cuamente sua vida quanto os brancos. Tudo go a ser “conquistado”, de fora para dentro -
dependia de oportunidades econômicas e de outro “anômico” - devido a um passado
. • »»21
e sociais. , escravo e mantido via herança “natural” ou
interessante observar o numero de vezes “cultural”.
que Florestan Fernandes faz uso do termo Esse maior grau de estabilidade a que o ne­
adjetivar os níveis de “orga- gro poderia chegar já se encontraria visível
‘‘COnS^^ -3™ ° “
riTde0Aurélio Buarque de Holanda define numa “elite negra”25 e na família negra ru­
ral,26 via exemplos e convivência com a fa-

200 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


milia patriarcal, famílias de imigrantes etc. Nas
qüência, segundo a qual os vários arranjos
palavras de Fernandes: “A sociedade de clas­
estruturais se repetiam. Mas, parece fora de
ses abriu as suas portas aos ‘homens de cor’,
diívida que o arranjo mais frequente con­
sob a condição de que se mostrassem capazes
sistia no par, constituído pela mãe solteira
de enfrentar e de resolver os seus problemas
ou sua substituta eventual, quase sempre a
de acordo com o código ético-jurídico que ela
avó, e seu filho ou filhos. Em segundo lu­
institutuía.”27
gar, viriam os casais ‘amasiados’ com o fi­
A especificidade da família negra é discuti­
lho ou filhos dos dois cônjuges (de sua
da, de uma maneira ou de outra, sempre por
união ou de amasiamentos anteriores). Por
um viés adaptative desses dois modelos que.
fim os casais constituídos segundo os ar­
embora questionado por autores como Billin-
ranjos matrimoniais sancionados legal­
gsley e Farley & Hermanlin,20 tem permaneci­
mente. Então, a família tanto podia tender
do como orientação para a grande maioria. Ou
para um elevado grau de integração e de
o negro se mostra “adaptado” ao estabelecer
estabilidade (como ocorria, normalmente,
determinado tipo de “organização” familiar,
entre os ‘negros ordeiros’, também chama­
quando alcança os meios para isso, ou não
dos na tradição cultural como ‘negros de
quer - por tradição cultural - ou não consegue
elite’) quanto podia exibir graus variados de
fazê-lo - por imposição de condições de vida
desintegração e de instabilidade.”31
-, mantendo-se em famílias “incompletas”,
“Ao lado da família incompleta ou desinte­
“instáveis” e “desorganizadas”, cuja caracte­
grada, existia também a família negra ‘inte­
rística fundamental é a predominância de pa­
grada’. Em regra, ela tendia para o tipo da
pelfeminino.
família conjugal.”32
Ainda que o conceito de “organização” seja
mais amplo, por estar referido não apenas a Já foram devidamente relativizados dois
determinada estrutura familiar mas a formas dos pressupostos que norteriam a conceituação
da família negra como “incompleta” - o da
de relações familiares, padrões de socialização
“insuficiência econômica do homem negro”33
dos filhos e normas de estabilidade conjugal
e o da mulher negra como “sustentáculo” da
(alguns autores levantaram a discussão desse
família negra34 (com dados da PNAD 76 e do
conceito em particular para investigar a insta­
Censo Demográfico de 1980).
bilidade da família “incompleta”29), e por isso
Por outro lado, ainda que estudos também
não se possa fazer uma associação direta entre
o que se coloca como “organização” e “desor­ recentes, tanto no Brasil - Slenes,35 através do
ganização” com tipos de família - o próprio estudo de matrículas de escravos, e Pacheco38,
Florestam Fernandes demonstra em algum com dados de arranjos familiares do Censo de
1980 - como nos Estados Unidos - Billingsley
momento a preocupação em fazer uma relati-
e Farley & Hermalin,37 com dados do censo
vização dessa relação30 -, não se pode negar
que exista uma associação, em última instân­ americano -, tenham mostrado uma população
cia, entre os princípios de “organização” e fa­ negra constituindo, em sua maior parte, famí­
lias conjugais estáveis, ao contrário da imagem
mílias conjugais com seus filhos e entre os de
“desorganização” e famílias constituídas por veiculada pelos trabalhos de Florestan Fernan­
mulheres sós com seus filhos. des no Brasil e Moynihan nos EUA, gostaria,
aqui, de discutir' a questão, ainda não ampla­
mente debatida, que se encontra por trás dessa
“A ‘família negra’, tal como ela se mani­
polarização. Ela está centrada, a meu ver, em
festa em São Paulo durante as três primei­ dois argumentos principais: o de que certos ti­
ras décadas deste século, poderia ser defi­
pos de famílias de alguma forma estão deter­
nida como uma família incompleta. É im­
minados por situações sócio-econômicas ou
possível, em nossos dias, determinar a fre-
são por elas mantidos ou viabilizados; e o de
Estudos Afro-Asiátícos n- 16, 1989
201
que um modelo dominante na sociedade seria níveis, por um processo paralelo de redu­ mais “organizadas”, a qual, a meu ver, é uma claro que empiricamente calcadas, mas que de
possibilitado por um maior acesso às oportuni­ ção, de racionalização, de triunfo do indivi­ das vertentes da crença de que o desenvolvi­ maneira alguma dão conta dos significados di­
dades econômicas, resultando numa maior in­ dualismo (. . .) Em primeiro lugar, nada in­ mento capitalista superaria todas as desigual­ versos que podem assumir relações entre indi­
tegração da família negra. dica que as formas de organização familiar dades sociais, já foi discutida exaustivamente víduos inseridos nos mesmos tipos de família
sejam mecanicamente as linhas mestras do por Oliveira, Porcaro e Araújo45 em análises em diferentes contextos sociais.
desenvolvimento econômico e social de uma que apontam para o tipo de inserção de negros Concordo ainda com outros pesquisadores
Associação entre pobreza e anomia — região (...) Em segundo lugar, o que parece e brancos no mercado de trabalho enquanto quando afirmam que , se a família é um fenô­
“organização” e desenvolvimento ficar sempre entre parênteses neste tipo um dos fatores fundamentais na reprodução meno social, “não se pode falar teoricamente
econômico de argumento é o fato de que um maior das desigualdades raciais, e que pretendo tra­ da família, em geral, mas unicamente de tipos
esfacelamento nas relações de trabalho po­ zer para a discussão ao nível da organização de família, tão numerosos como as regiões, as
“(. . .) duas conexões de ordem geral são deria redundar numa maior necessidade de familiar. classes sociais e os subgrupos existentes no
evidentes. Primeiro, a forma histórica as­ apoio comunitário em outras esferas, in­ interior da sociedade”.47
sumida pela pauperização do negro e do clusive familiar, e não o contrário. Isto é, a Na análise dos dados censitários, a cor das
mulato, como herdeiros da situação social e uma série de processos econômicos de um Família enquanto um conceito famílias foi definida pela cor do chefe, e essa
da condição humana do ‘escravo’ e do ‘li­ determinado período histórico pode corres­ censitário aproximação estatística tem se mostrado bas­
berto’, combinou a anomia social e a misé­ ponder uma série de processos sociais de tante satisfatória devido à predominância de
ria segundo esquemas que tendiam a libe­ natureza diferente: sua identidade não é uma homogamia racial das uniões no Brasil.46
Através de tabulações especiais da amostra
automática."42 Talvez seja desnecessário dizer, também,
rar, e a fortalecer, unilateralmente, os in­ de 25% do Censo Demográfico de 1980, foi
gredientes tóxicos ou destrutivos que elas que o que sc tem convencionado chamar de
Para Billingsley, por exemplo, ainda que as feita uma classificação para os possíveis ar­
próprias continham. Segundo, semelhante ranjos dos elementos componentes das famí­ “negro” nas análises dos dados do IBGE -
condições econômicas sejam importantes, a
interação entre a anomia e a miséria con- apesar de esse termo não fazer parte das cate­
questão fundamental para viabilizar a família lias, a qual, ainda que essencialmente descriti­
verteu-se em fator dinâmico crônico da va, oferecesse uma aproximação aos modelos gorias dos levantamentos — é a reunião das
negra está em a sociedade superar o racismo. Se­
categorias preto e pardo, realizada no sentido
neutralização ou do solapamento das ‘ten­ gundo ele, “a questão da estabilidade familiar de “organização” e “desorganização” familiar
de oferecer uma melhor comparabilidade dos
sões criadoras’ (ou ‘socialmente construti­ numa sociedade de rápidas mudanças está se discutidos anteriormente. Os dados, porém,
vas’) da desorganização social.”30 dados em termos de um enfoque racial, já que
tornando uma ilusão também para as famílias não permitem uma avaliação das uniões ao
vários estudos têm mostrado que as duas cate­
brancas. Ainda assim, a sociedade continuaria longo do tempo, de modo que se pudesse colo­
Não se pretende minimizar a relação exis­ gorias tendem a se aproximar sócio-economi-
tente entre condições de vida e tipos de ar­ acreditando que as famílias negras deveriam car de forma mais contundente em questão
camente quando em face da categoria dos
ranjo familiar. Contudo, muitos trabalhos têm ser estáveis e que, se fossem, esta suprema o conceito de “estabilidade conjugal” para as
famílias negras. Apresentarei, no entanto, os brancos.49
mostrado ser esta uma relação bastante dinâ­ virtude produziria outras grandes conseqüên-
dados disponíveis sobre o estado conjugal do Colocados os limites dos dados, resta-me
mica, ao discutir, por exemplo, a aplicação dos cias desejáveis”. E isto seria mais uma ilu­
chefe dessas famílias, na medida em que di­ questionar a sua própria validade para os ob­
conceitos de instabilidade e desorganização às são, já que o maior problema com que se de­
versos autores têm apontado ser este um indi­ jetivos a que me propus.
famílias onde falta o cônjuge,39 ou mostrando para a população negra, na visão do autor, não
diz respeito à estabilidade mas sim “à habilida­ cador importante tanto para a caracterização Em primeiro lugar, concordo com Alt-
como condições adversas podem gerar, ao
de em sobreviver como negro numa sociedade das famílias conjugais quanto das de chefe sem man50 no sentido da importância de se conse­
contrário do que se espera, estímulo para, por
branca”.43 cônjuge, constituindo uma das “dimensões de guir um melhor aproveitamento do material
exemplo, o aprofundamento das relações entre
Mc Lanahan,44 ao final do seu estudo, re­ sua estabilidade”.46 secundário disponível que, na maioria das ve­
parentes40 ou para a manutenção - ainda que
comenda que as políticas sociais devem girar Uma vez que o proprio conceito de família, zes, não é utilizado até onde poderia ser.
vulnerável - de. vínculos conjugais.41
no sentido de equalizar os rendimentos dc di­ por definição, não pode ser separado do de re­ Por outro lado, ainda que sujeito a questio­
Mariza Corrêa, tentando repensar a família
ferentes formas de família e minimizar o stress produção, as tipologias foram construídas vi namentos e adequações empíricas, é também
patriarcal brasileira, levanta o problema de se
que acompanha a ruptura conjugal, o que po­ sando caracterizar basicamente famílias com verdade que “o dado censitário coloca sob
relacionar diretamente desenvolvimento eco­
deria ter sucesso na eliminação de algumas das filhos, o que, por sua vez, também se aproxi­ perspectiva uma abrangência e comparabilida­
nômico com formas de família.
desvantagens intergeracionais comumente maria mais dos conceitos de integração e de­ de só possíveis em levantamentos desse
“Ao derivar a moderna família conjugal da atribuídas à estrutura familiar e às famílias de sintegração associados aos arranjos familiares. tipo” 51
família patriarcal, Antônio Cândido subs­ mãe sozinha. Resta-nos lembrar os limites que sc im­ De forma que me proponho a fazer um es­
creve a suposição largamente aceita de que Em síntese, pretendo abordar, aqui, a põem a todo e qualquer modelo ou tipologia tudo comparativo das famílias conjugais com
o processo de industrialização e urbaniza­ questão que estabeleceu uma ligação entre gerados na sua própria concepção, qual seja, a filhos e de mulheres sem cônjuge com filhos,
ção é sempre acompanhado, em todos os desenvolvimento económico e tipos de família de que estamos tratando com abstrações. É brancas e negras, em duas regiões - Nordeste

202 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989 203
e Sudeste (nesta destacando também São Ainda que as encontremos em maior nú­
Paulo, como centro para o debate com F. Fer­ mero do que as brancas na zona rural, perce­
nandes) -, refletindo diferentes níveis de de­ be-se que as famílias negras também estão,
senvolvimento econômico,52 a fim de verificar como aquelas, mais concentradas nas zonas
se o tipo de arranjo familiar predominante é urbanas — 62,5% no Brasil urbano, a maior
diverso nas duas regiões, segundo a situação proporção (27,3%) no Sudeste urbano e, a se­
urbana ou rural do domicílio, e investigar se o guir, no Nordeste urbano (22,8%).
seu padrão conjugal também difere, para ver A distribuição dos tipos de famílias brancas
qual o impacto que isso traria para os níveis de e negras nas regiões Nordeste e Sudeste
desigualdade racial, medida por um indicador acompanha de perto o padrão que já havia sido
familiar de renda. Tentarei mostrar se, através atribuído em trabalho anterior53 ao Brasil co­
desses dados, é possível dizer que a “organiza­ mo um todo: o da família conjugal com filhos
ção da família negra” em famflias conjugais” e em sua forma mais “restrita”, sem a presença
“estáveis” está associada a desenvolvimento de outros parentes — padrão que, ao que tudo
econômico (aqui representado pela região Su­ indica, enquanto estrutura de arranjo domésti­
deste) e. conseqüentemente, a uma redução co, não varia segundo a cor das famílias ou re­
das desigualdades de rendimento entre famílias gião em que se encontram, mesmo em São
brancas e negras. Paulo, como apontara F. Fernandes (ver Ta­
belas 2, 2.1, 2.2 e 2.3).
O que parece acontecer no Sudeste e em
Caracterização geral das famílias São Paulo é um aumento relativo das famílias
brancas de casal sem filhos, acompanhado por
Os dados da Tabela 1 informam que quase uma proporção relativamente maior de famí­
metade das famílias negras (45,5%) encon­ lias negras de mulher sem cônjuge com filhos.
tra-se no Nordeste e outros 33,6%, na região As famflias rurais, tanto brancas quanto ne­
Sudeste, enquanto as famílias brancas con­ gras, mostram-se mais representadas nas fa­
centram-se sobretudo no Sudeste (55,2%) - mílias conjugais com filhos do que as famflias
mais da metade - e, depois, na região Sul urbanas, confirmando as teses de que a chefia
(25%). feminina sem cônjuge com filhos é um fenô­
Por outro lado, mais de 70% das famílias da meno mais urbano e que a assim denominada
região Nordeste são negras, como brancas são maior “estabilidade” da família rural - aqui
quase 70% das famílias que se encontram na compreendida por essa maior proporção de
região Sudeste, o que, de certa forma, também famílias “conjugais” —, se comprovada, pode
justifica a escolha dessas duas regiões para um ser tão válida para as brancas quanto para as
estudo comparativo. negras.
Não podemos desconsiderar, ainda, o peso
Estado conjugal
relativo dessas regiões dentro do Brasil. Sa­
bemos que apenas na região Sudeste estão cer­ Colocados os limites de investigação da
ca de 46% de todas as famílias brasileiras e estabilidade de uma união pelo estado conju­
que o número de famílias no Nordeste é 59% gal, este indicador mostra que 50% das famí­
do número de famílias no Sudeste. Portanto, lias negras de casal com filhos estão unidas
uma análise de diferenciais regionais deve le­ pelo laço civil e religioso, ao lado de 75% das
var em conta que aquilo que se disser sobre famílias brancas (ver Quadro 1). O fato de as
famílias no interior da região Sudeste tem im­ famílias negras estabeleceram mais uniões só
pacto sobre um maior número de pessoas - no civil - seguidas das consensuais e depois das
sobre 55% das famílias brancas e 34% de to­ só no religioso - do que as famílias'brancas
das as famflias negras. pode ser avaliado juntamente com os dados de

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989


204
rendimento, que mostram que as uniões só no Paulo, tanto para brancas quanto para negras
civil ou só no religioso são mais freqüentes nas (ver Quadro 2).
faixas de renda familiar mais baixas (até três Assim, poderíamos dizer que se cerca de
salários mínimos), onde sabemos que as famí­ 60% das famílias negras são compostas por
lias negras estão mais concentradas, enquanto casais com filhos - tanto no Brasil quanto no
o primeiro tipo de união — no civil e no reli­ Nordeste, Sudeste ou São Paulo (ver Tabelas
gioso - é mais freqüente nas faixas de renda 2, 2.1, 2.2 e 2.3) -, estas se encontram 50% no
familiar mais elevadas (mais de três salários Brasil, 42% no Nordeste e 60% tanto no Su­
mínimos). Basta ver que elas - principalmente deste como em São Paulo, em uniões conside­
as uniões só no religioso - são mais freqüentes radas “estáveis” pelos padrões da sociedade
no Nordeste, enquanto as uniões no civil e no abrangente, aos quais estão associados os laços
religioso aumentam no Sudeste e em São pelos casamentos civil e religioso.

TABELA 1

Distribuição percentual das famílias brancas e negras e composição racial por regiões
e situação do domicílio -1980

S1T. DO DOMICÍLIO DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL COMPOSIÇÃO RACIAL


E REGIÕES TOTAL BRANCAS NEGRAS TOTAL BRANCAS NEGRAS

Brasil 100 100 100 100 56,1 42,9


Norte 4,3 1,6 7,9 100 20,3 78,8
Nordeste 26,9 12,9 45,5 100 26,9 72,6
Sudeste 46,0 55,2 33,6 100 67,3 31,3
SP 23,0 30,8 12,0 100 75,3 22,4
Sul 16,7 25,0 5,9 100 84,1 15,1
C. Oeste 6,1 5,3 7,1 100 49,4 50,0

Brasil Urbano 70,4 76,3 62,5 100 60,8 38,0


Norte 2,3 1,0 4,0 100 24,4 74,8
Nordeste 14,0 7,4 22,8 100 29,6 69,9
Sudeste 39,0 47,6 27,3 100 68,5 30,0
SP 20,6 27,7 15,1 100 75,4 31,5
Sul 10,9 16,4 3,7 100 84,6 14,5
C. Oeste 4,2 3,9 4,7 100 51,6 47,7

Brasil Rural 29,6 23,7 37,5 100 45,0 54,3


Norte 2,0 0,5 3,9 100 15,6
83,3
Nordeste 12,9 5,5 22,7 100 23,9
75,6
Sudeste 7,0 7,6 6,3 100 60,8
38,2
SP 2,4 3,1 1,3 100 73,5
2,2 100 24,1
Sul 5,8 8,6 83,1
C. Oeste 2,4 100 16,3
1,9 1.5 44,3
55,0
Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980 - IBGE.

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989


205
TABELA 2 TABELA 2.1

Distribuição percentual das famílias brancas e negras por tipos de família Distribuição percentual das famílias brancas e negras por tipos de família
segundo a situação do domicílio - Brasil segundo a situação do domicílio - Região Nordeste

TIPOS DE FAMÍLIA TIPOS DE FAMÍLIA


E SIT. DO DOMICÍLIO TOTAL BRANCAS NEGRAS E SIT. DO DOMICÍLIO TOTAL BRANCAS NEGRAS

TOTAL Total absoluto 24.977.406 14.022.134 10.706.949 TOTAL Total absoluto 6.707.660 1.802.424 4.869.484
Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0 Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0

Casal s/filhos s/parentes 11,9 13,3 10,1 Casal s/filhos s/parentes 10,2 10,8 10,0
Casal s/filhos c/parentes 2,0 1,9 2,1 Casal s/filhos c/parentes 2,5 2,5 2,4
Casal c/filhos s/parentes 60,8 61,4 60,1 Casal c/filhos s/parentes 59,3 58,6 59,6
Casal c/filhos c/parentes 8,7 8,2 9,4 Casal c/filhos c/parentes 9,7 9,8 9,7
Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 9,1 8,3 10,2 Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 10,0 9,7 10,1
Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 2,2 1,9 2,6 Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 2,8 2,7 2,8
Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,4 1,2 1,5 Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,4 1,3 1,4
0,4 0,3 0,5 Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,5 0,5 0,5
Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes
Outras famílias 3,5 3,5 3,5 Outras famílias 3,6 4,1 3,5

17.579.709 10.697.020 6.868.567 3.485.961 1.033.353 2.435.210


URBANA Total absoluto URBANA Total absoluto
Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0 Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0
Casal s/filhos s/parentes 12,0 13,5 9,7 Casal s/filhos s/parentes 9,5 10,3 9,1
Casal s/filhos c/parentes 1,9 1,9 2,3 2,4 2,3
1,9 Casal s/filhos c/parentes
Casal c/filhos s/parentes 59,4 56,8 54,7 54,2 54,9
58,4 Casal c/filhos s/parentes
Casal c/filhos c/parentes 10,2 11,2 11,2 11,3
9,1 8,5 Casal c/filhos c/parentes
Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 12,2 12,3 11,6 12,6
10,4 9,3 Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes
Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 2,6 2,1 3,3 Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 3,8 3,5 0,0

Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,2 1,1 1,4 Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,2 1,2
Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,4 0,3 0,5 Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,5 0,5
Outras famílias 4,0 3,9 4,0 4,5 5,1 4,2
Outras famílias

RURAL Total absoluto 7.397.697 3.325.114 4.020.382 3.221.699 769.071 2.434.274


RURAL Total absoluto
Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0 Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0
Casal s/filhos s/parentes 11,6 12,5 10,7 Casal s/filhos s/parentes 11,0 11,5 10,8
Casal s/filhos c/parentes 2,1 1,8 2,3 Casal s/filhos c/parentes 2,6 2,6 2,6
Casal c/filhos s/parentes 66,6 68,1 65,4 Casal c/filhos s/parentes 64,3 64,6 64,2
Casal c/filhos c/parentes 7,8 7,4 8,2 Casal c/filhos c/parentes 8,1 7,9 8,2
Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 6,0 5,0 6,9 Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 7,4 7,0 7,5
Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 1,3 1,0 1,6 Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 1,8 1,6 1,8
Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,6 1,5 1,7 Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,6 1,5 1,6
Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,5 0,4 0,5 Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,5 0,5 0,5
Outras famílias 2,5 2,3 2,7 Outras famílias 2,7 2,8 2,8

Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980 - IBGE. Fonte: Tabulações Especiaia do Censo Demográfico de 1980 - IBGE.

206
Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989 207
TABELA 2.2 TABELA 2.3

Distribuição percentual das famílias brancas e negras por tipos de família Distribuição percentual das famílias brancas e negras por tipos de família
segundo a situação do domicílio — Região Sudeste segundo a situação do domicílio - São Paulo

TIPOS DE FAMÍLIA TIPOS DE FAMÍLIA


E ST. DO DOMICÍLIO TOTAL BRANCAS NEGRAS E SIT. DO DOMICÍLIO TOTAL BRANCAS NEGRAS

TOTAL Total absoluto 11.498.899 7.744.117 3.595.504 TOTAL Total absoluto 5.742.478 4.321.386 1.284.374
Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0 Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0

Casal s/filhos s/parentes 12,9 14,0 10,6 Casal s/filhos s/parentes 13,5 14,4 10,6
Casal s/filhos c/parentes 1,7 1,8 1,7 Casal s/filhos c/parentes 1,7 1,7 1,7
Casal c/filhos s/parentes 60,1 60,6 59,3 Casal c/filhos s/parentes 61,1 61,5 59,7
Casal c/filhos c/parentes 8,2 7,9 8,8 Casal c/filhos c/parentes 8,3 7,9 9,4
Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 9,3 8,5 Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 8,2 7,7 10,0
11,1
Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 1,8 2,6 Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 1,7 1,6 2,3
2,1
Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,3 1,5 Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,2 1,2 1,4
1,4
0,5 Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,4 0,3 0,4
Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,4 0,3
Outras famílias Outras famílias 3,9 3,7 4,5
3,9 3,8 3,9

URBANA Total absoluto 5.152.333 3.887.369 1.141.873


URBANA Total absoluto 9.746.311 6.678.726 2.925.293
100,0 Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0
Total relativo (%) 100,0 100,0
Casal s/filhos s/parentes 10,5 Casal ^/filhos s/parentes 13,6 14,5 10,5
13,1 14,2
Casal s/filhos c/parentes .1,7 Casal s/filhos c/parentes 1,7 1,7 1,7
1,7 1,8
Casal c/filhos s/parentes Casal c/filhos s/parentes 60,2 60,6 58,7
58,8 59,3 57,7
Casal c/filhos c/parentes 8,4 8,0 9,6
Casal c/filhos c/parentes 8,4 8,1 9,0
Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 8,6 8,2 10,6
Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 10,0 9,1 12,1
Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 1,9 1,7 2,5
2,2 2,0 2,9
Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,2 1,1 1,3
1,3 1,2 1,5
Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,3 0,3 0,4
0,4 0,3 0,4
Outras famílias Outras famílias 4,1 3,9 4,7
4,1 4,0 4,2

RURAL Total absoluto 590.145 434.017 142.501


RURAL Total absoluto 1.752.588 1.065.391 670.211
Total relativo (%) 100,0 100,0 100,0
100,0 100,0 100,0 Total relativo (%)
Casal s/filhos s/parentes Casal s/filhos s/parentes 12,9 13,3
12,1 12,9 10,8 11,3
Casal s/filhos c/parentes Casal s/filhos c/parentes 1,5 1,4 1,6
1,7 1,6 1.8
Casal c/filhos s/parentes 69,2 69,8
Casal c/filhos s/parentes 67,5 68,5 65,8 67,8
Casal c/filhos c/parentes 7,5 7,2
Casal c/filhos c/parentes 7,4 7,0 8,0 8,2
Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 4,0 3,7
Mulher chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 5,5 4,7 6,9 5,1
Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,6 0,6
Mulher chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 1,0 0,8 1,4 0,9
Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes Homem chefe s/cônj. c/filhos s/parentes 1,6 1,5
1,8 1,7 1,9 1,9
0,4 0,5 Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,3 0,3
Homem chefe s/cônj. c/filhos c/parentes 0,4 0,4
2,4 2,9 Outras famílias 2,4 2,2
Outras famílias 2,6 2,8
Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980 - IBGE.
Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980 - IBGE.

Estudos Afro-Asiáticos n-16,1989 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989


209
QUADRO 1 Os Quadros 3 c 4 nos informam que as fa­ banas. na região Sudeste e em São Paulo. A
mílias de mulher chefe sem cônjuge com filhos proporção de mulheres separadas é mais se­
Distribuição das famílias de casal com filhos por tipo de união segundo a situação do
são predominantemente constituídas por viú­ melhante entre famílias brancas e negras, um
domicílio e classes de rendimento mensal familiar - 1980
vas, tanto entre as brancas como entre as ne­ pouco maior no Nordeste que no Sudeste ou
gras, numa proporção que aumenta ainda mais em São Paulo, constituindo-se na segunda
SITUAÇÃO DO DOMICÍLIO TIPO DE UNIÃO na zona rural, nas faixas de renda mais eleva­ maior freqüência - depois das viúvas - que
E CLASSES DE CIVIL E SÓ
das e na região Sudeste e São Paulo. As divor­ caracteriza o estado conjugal das famílias de
RENDA MENSAL FAMILIAR TOTAL RELIG. SÓ CIVIL RELIGIOSO CONSENSUAL ciadas ou desquitadas são mais freqüentes en­ mulher chefe sem cônjuge com filhos, tanto
tre as brancas, o que parece estar associado brancas quanto negras.
Brasil
também ao fenômeno urbano, às classes de
Brancas 100 75,6 13,1 3,9 7,4
Negras 100 50,3 20,7 13,7 15,3
maior rendimento familiar e à região Sudeste e Rendimento familiar: diferenciais
São Paulo. raciais e regionais
Urbana Observa-se. também, que as mulheres sem
Brancas 100 76,2 13,5 2,2 8,1 A distribuição dessas famílias por algumas
cônjuge com filhos solteiros são mais repre­
Negras 100 53,4 22,9 6,9 16,8
sentativas entre as famílias negras, represen- classes de rendimento mensal familiar (ver
tatividade que cresce nas de baixa renda, ur­ Quadro 5) mostram as famílias de mulher
Rural
brancas 100 73,9 11,8 8,7 5,6 QUADRO 3
Negras 100 45,9 17,5 23,5 13,1
Distribuição das famílias de mulher chefe sem cônjuge com filhos por estado civil
Até 3 SM segundo a situação do domicílio e classes de rendimento mensal familiar- 1980
Brancas 100 67,5 16,5 6,7 9,3
Negras 100 45,6 21,3 16,5 16,6
SITUAÇÃO DO
DOMICÍLIO E CLASSES ESTADO CIVIL
+ de 3 SM
DE RENDIMENTO DESQ. E
Brancas 100 82,3 10,3 1,6 5,8
MENSAL FAMILIAR TOTAL SOLTEIRAS SEPARADAS DIVORC. VIÚVAS S/DECL
Negras 100 62,6 19,3 6,1 12,0

Brasil
Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.
Brancas 100 14,1 21,3 8,5 50,2 5,9
Negras 100 22,8 26,3 2,0 40,2 8,7
QUADRO 2
Distribuição das famílias de casal com filhos por tipo de união segundo as regiões — 1980 Urbana
Brancas 100 14,8 21,9 9,7 48,2 5,4
TIPO DE UNIÃO Negras 100 24,7 27,2 2,6 37,8 7,7
REGIÕES CIVIL E SÓ
TOTAL RELIG. SÓ CIVIL RELIGIOSO CONSENSUAL Rural
Brancas 100 10,1 17,7 1.6 61,6 9,0
Nordeste Negras 100 17,2 23,9 0,4 47,0 11,5
Brancas 100 57,9 16,6 16,4 9,1
Negras 100 42,4 20,8 21,4 15,4
Até 3 SM
Sudeste Brancas 100 16,5 23,6 5,7 48,4 5,8
Brancas 100 78,0 12,9 1,6 7,5 Negras 100 22,6 26,9 1,5 41,1 7,9
Negras 100 60,4 20,0 4,3 15,3
-F de 3 SM
São Paulo
Brancas 100 5,2 16,4 13,4 60,9 4,1
Brancas 100 80,1 12,3 1,3 6,3
Negras 100 60,8 22,0 3,2 14,0 Negras 100 7,9 22,4 5,3 59,3 5,1

Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE. Fonte: Tubulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.

210 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 Estudos Afro-Asiáticos n- 16, 1989 211
QUADRO 4
Distribuição das famílias de mulher chefe sem cônjuge com filhos por estado civil
segundo as regiões - 1980

ESTADO CIVIL
REGIÕES
DESO. E
TOTAL SOLTEIRAS SEPARADAS DIVORC. VIÚVAS S/DECL.

Nordeste
Brancas 100 14,3 26,7 3,4 44,4 11,2
Negras 100 20,4 29,0 1,0 37,3 12,3

Sudeste
Brancas 100 13,7 20,3 10,3 51,0 4,7
Negras 100 23,9 24,0 3,1 43,6 5,4

SP
Brancas 100 13,0 20,4 11,4 50,6 4,6
Negras 100 23,7 27,0 4,2 39,6 5,5

Fonte: Tubulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.

QUADRO 5
Famílias de casal com filhos e de mulher chefe sem cônjuge com filhos por cor e região
segundo classes de rendimento mensal familiar (em salários-mín.) - 1980

TIPOS DE FAMÍLIA/ CLASSES DE RENDIMENTO MENSAL FAMILIAR


COR/REGIÃO
TOTAL ATÉ DE DE DE DE MAIS S/REN. S/DECL
1 SM la2 2a3 3a5 5a10 de10

Casal c/filhos
ND Brancas 100 31,9 24,8 12,0 10,6 8,7 9,5 1,8 0,7
ND Negras 100 39,4 29,9 12,3 8,8 4,7 2,2 2,0 0,7
SD Brancas 100 5,0 14,8 14,4 21,6 23,3 20,2 0,3 0,4
SD Negras 100 10,7 25,2 20,2 23,0 15,5 4,6 0,3 0,5

Mulher chefe
s/cônj. c/ filhos
ND Brancas 100 39,6 20,5 8,4 7,4 6,2 3,8 12,4 1,7
ND Negras 100 49,2 20,9 7,1 4,3 2,1 0,6 14,3 1,5
SD Brancas 100 13,7 20,5 14,0 17,3 16,9 9,6 6,5 1,5
SD Negras 100 24,4 27,4 14,3 13,7 8,3 1,7 9,0 1,2

Fonte: Tubulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.

212 Estudos AJro-Asiáticos n? 16,1989


chefe sem cônjuge com filhos, numa propor­ lias “estáveis” e “organizadas” de casal com
ção bastante elevada, como famílias sem ren­ filhos, essa melhoria é relativamente menor
dimento e situadas sobretudo na região para as famílias negras. Farei, a seguir, um
Nordeste.54 estudo mais detido desses diferenciais a partir
No entanto, mesmo onde a situação de po­ de uma variável de renda média familiar.
breza é generalizada para famílias brancas e
O exame do Gráfico 1, que classifica as
negras - região Nordeste -, as famílias negras
famílias brancas e negras de casal com filhos e
de chefia feminina sem cônjuge estão presen­
de mulher chefe sem cônjuge com filhos no
tes cerca de 10% a mais que as brancas na fai­
Nordeste e no Sudeste segundo seu rendi­
xa de até um salário mínimo de renda mensal,
mento médio familiar, expresso em salários
assim como as brancas perfazem três vezes
mínimos, juntamente com a análise do Quadro
mais que elas na faixa de cinco a dez salários e
6, mostra que as famílias negras encontram-se
cerca de seis vezes mais — sempre em termos
mais próximas entre si nos dois tipos de famí­
representativos e não numéricos, já que a po­
lia e nas duas regiões que as famílias brancas
pulação negra compõe a imensa maioria dessa
região — na faixa mais elevada de rendimento, (ver Gráfico 1); que as famílias de chefia fe­
superior a dez salários mínimos de renda minina sem cônjuge estão mais próximas que
as conjugais, tanto entre as negras quanto en­
mensal familiar.
tre as brancas: e que a relação entre famílias
No Sudeste, a situação de desigualdade en­
brancas e negras, nos dois tipos de família em
tre as famílias brancas e negras nas duas pri­
questão, é mais distante na região Sudeste (ver
meiras faixas de rendimento é ainda pior que
Quadro 6).
no Nordeste: nessas faixas, as negras encon­
tram-se praticamente 18 pontos percentuais Donde se conclui que. dentre as famílias
acima das brancas, situação que se repete na conjugais, as famílias negras não estão mais
categoria dos “sem rendimento ".55 próximas economicamente das brancas e que.
As desigualdades entre as famílias brancas num meio considerado como de maior desen­
e negras em termos de rendimento parecem volvimento econômico - a região Sudeste -. as
ser, de fato, maiores na região Sudeste, nos famílias negras afastam-se ainda mais das
dois tipos de família: nessa região, embora brancas, ao invés de se aproximarem, como
melhorem os níveis de rendimento familiar, sugeriam os pressupostos teóricos que
e seja mais elevado o nível de renda das famí­ analisamos. 4

QUADRO 6

Diferenciais de rendimento médio familiar -1980

TIPOS DE REND. MÉDIO EM CRUZEIROS


família
NORDESTE SUDESTE nordestT^
BRANCAS NEGRAS BRANCAS NEGRAS

Casal com filhos 16.890 8.605 31.576 15.212 59 9


48,2
Mulher chefe sem
cônj. com filhos 8.909 4.841 18.101 9.295 543
51,4
Fonte-' Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.
Estudos Afro-Asidticos n° 16,1989
213
GRÁFICO 1

Rendimento médio em salários mínimos das famílias


8,00

E23ng-nd Sng-sd í® br-nd H§br-sd


A - Mulher chefe sem cônjuge com filhos
B - Casal com filhos
NG — Negras
BR — Brancas
ND - Nordeste
SD - Sudeste

Vamos observar, então, que a aproximação gras corresponde um aumento do número de


das famílias negras do modelo '‘estável” de pessoas da família na força de trabalho maior
organização das famílias brancas e das “opor­ que nas brancas. Por exemplo, se as famílias
tunidades” econômicas supostamente ofereci­ brancas de casal com filhos no Nordeste urba­
das aos membros dessas famílias na região no, ao passarem da classe de renda de até três
mais desenvolvida do País, está longe de que­ salários mínimos para a de mais de três salá­
rer significar uma melhoria das condições de rios, colocam mais 0,45 de seus membros na
vida da população negra ou mesmo uma dimi­ força de trabalho, como podemos ver no Qua­
nuição das desigualdades raciais estabelecidas dro 8, as famílias negras nas mesmas condi­
ao nível sócio-econômico. E isto pode ser as­ ções inserem mais 1.63 de seus membros. No
sociado a algumas características dessas Sudeste urbano essa mesma relação seria de
famílias. 0,63 membros para as brancas e 0.87 para as
Como podemos verificar no Quadro 7, as negras.
famílias negras são sempre maiores que as Na verdade, sabemos que os dois fatores —
brancas e, no Sudeste, mesmo sendo menores famílias maiores e o ingresso de mais pessoas
que no Nordeste, apresentam um maior nú­ na força de trabalho — são fenômenos que po­
mero médio de pessoas na força de trabalho. dem estar associados a estratégias de sobrevi­
Com base no Quadro 8, observamos que a vência de famílias mais pobres — situação da
uma melhoria do rendimento das famílias ne­ grande maioria das famílias negras —, que en-
Estudos Afro-Asiáticas n- 16,1989
214
QUADRO 7

Tamanho médio e número médio de pessoas na força de trabalho das famílias conjugais
com filhos e de mulher chefe sem cônjuge com filhos, brancas e negras, por região

TIPOS DE FAMÍLIA BRASIL NORDESTE SUDESTE SÄO PAULO

TAMANHO N* MÉDIO TAMANHO N* MÉDIO TAMANHO N® MÉDIO TAMANHO N* MÉDIO


MÉDIO NA FT MÉDIO NSFT MÉDIO NA FT MÉDIO NA FT

Casal com filhos 5,13 1,69 5,70 1,67 4,82 1,68 4,63 1,73
Brancas 4,84 1,69 5,52 1,64 4,65 1,67 4,52 1,71
Negras 5,53 1,68 5,76 1,68 5,19 1,71 5,02 1,81

Mulher s/cônj.
c/ filhos 3,42 1,32 3,59 1,17 3,32 1,42 3,25 1,52
Brancas 3,27 1,34 3,49 1,13 3,21 1,40 3,16 1,48
Negras 3,57 1,30 3,63 1,19 3,49 1,45 3,48 1,61

Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.

QUADRO 8
Número médio de pessoas na força de trabalho das famílias brancas e negras de casal
com filhos e mulher sem cônjuge com filhos por regiões e situação do domicílio
segundo classes de renda -1980

TIPOS DE FAMÍLIAS REGIÕES/SrrUAÇÃO DO DOMICÍLIO


E CLASSES DE RENDA BRASIL NORDESTE SUDESTE SÄO PAULO
MENSAL FAMILIAR URBANA RURAL URBANA RURAL URBANA RURAL URBANA RURAL

Casal c/ filhos até


3 SM
Brancas 1.25 1.58 1.34 1.67 1.21 1.45 1.20 1.46
Negras 1.33 1.63 1.38 1.71 1.27 1.50 1.25 1.51

Casal c/filhos +
de 3 SM
Brancas 1.86 2.36 1.79 2.51 1.84 2.32 1.85 2.31
Negras 2.11 2.68 2.01 2.94 2.14 2.76 2.18 2.75

Mulher s/cônj.
até 3 SM
Brancas 1.07 1.34 1.03 1.34 1.07 1.26 1.08 1.351
Negras 1.18 1.43 1.16 1.46 1.19 1.34 1.21 1.41

Mulher s/cônj. +
de 3 SM
Brancas 1.91 2.66 1.71 2.79 1.92 2.64 1.98 2.66
Negras 2.49 3.07 2.23 3.16 2.59 3.16 2.70 3.08

Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.

Estudos Afro-Asidticos ns 16,1989


215
Entram, assim, uma forma de melhorar suas
Quando se analisa a composição dessa for­
condições de vida.
ça de trabalho familiar, percebe-se que, mes­
Como pode ser visto no Quadro 9, a dife- mo existindo um mesmo padrão de arranjos
rença no tamanho de famílias brancas e negras que serve tanto para as famílias brancas
também é maior nas classes de renda mais ele­ quanto para as negras, estas apresentam-se
vadas, na região Sudeste e São Paulo. numa proporção mais elevada que aquelas, e

QUADRO 9

Tamanho médio das famílias brancas e negras de casal com filhos e mulher sem cônjuge
com filhos por regiões e situação do domicílio segundo classes de renda - 1980

TIPOS DE FAMÍLIAS REGIÕES/SITUAÇÃO DO DOMICÍLIO


E CLASSES DE RENDA
BRASIL NORDESTE SUDESTE SÃO PAULO
Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural

Casal c/filhos
até 3 SM
Brancas 4.59 5.25 5.26 5.76 4.42 5.06 4.25 4.74
Negras 5.16 5.72 5.47 5.82 4.78 5.52 4.57 5.08
- diferença de
tamanho 0.57 0.47 0.21 0.06 0.36 0.46 0.32 0.34

Casal c/filhos
+ de 3 SM
Brancas 4.67 5.76 5.19 6.63 4.59 5.68 4.52 5.38
Negras 5.54 6.85 5.90 7.24 5.32 6.67 5.23 6.22
- diferença de
tamanho 0.87 1.09 0.71 0.61 0.73 0.99 0.71 0.84

Mulher s/cônj.
até 3 SM
Brancas 3.02 3.54 3.36 3.68 2.93 3.40 2.83 3.25
Negras 3.39 3.74 3.59 3.74 3.18 3.64 3.06 3.44
- diferença de
tamanho 0.37 0.20 0.23 0.06 0.25 0.24 0.23 0.19

Mulher s/cônj.
+ de 3 SM
Brancas 3.57 4.77 3.85 5.05 3.51 4.80 3.48 4.63
Negras 4.50 5.46 4.66 5.47 4.42 5.61 4.40 5.23
- diferença de
tamanho 0.93 0.69 0.81 0.42 0.91 0.81 0.92 0.60

Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.

216 Estudos Afro-Astáticos ns Iß, 1989


Nota-se, também, que as família5 na ^
principalmente na região Sudeste, nos arranjos
Nordeste - como vimos, maiores e
nos quais três pessoas ou mais das famílias
baixo rendimento — utilizam mais a or
trabalham (ver Quadro 10).
trabalho dos filhos maiores de 18 anos,.
As famílias compostas por mulher chefe
sem dúvida, vai se refletir na melhona
sem cônjuge com filhos, além de se apresen­
tarem. como vimos, em proporções elevadas, rendimentos da família.
O fato de as famílias negras mostrarem
como famílias sem rendimento, mostram-se.
uma tendência um pouco maior que as bran
em grandes percentuais, como famílias onde
de inserir mais membros de suas famílias n
nenhuma pessoa trabalha (ver Quadro 11).
força de trabalho pode ser aqui também verifi­
Contudo, mesmo para elas, subsiste o pa­
cado na taxa de atividade dos filhos homens,
drão onde apenas uma pessoa trabalha — em que nas famílias negras, tanto no Nordeste
geral o chefe - em proporção ainda maior no quanto no Sudeste, é maior que nas famílias
Sudeste c entre as famílias negras, cujo chefe,
nesse caso específico, c mulher. Diferente do brancas.
que ocorre nas famílias de casal com filhos
que, no Sudeste, representam-se menos dentro
Categorias sócio-ocupacionais
desse padrão cm que apenas uma pessoa tra­
balha. No entanto, enquanto o arranjo onde
essa uma pessoa que trabalha não é o chefe Se o padrão de composição da FT familiar
cresce para as famílias brancas de mulher é aquele no qual apenas o chefe trabalha, o
chefe no Sudeste, cresce para as negras aquele estudo de sua inserção no mercado de trabalho
arranjo onde só o chefe — mulher — trabalha. ajuda na explicação dos diferenciais de rendi­
Ainda assim, a família de mulher sem côn­ mento familiar que foram encontrados entre
juge com filhos mostra, cm comparação com famílias brancas e negras, conjugais com filhos
as famílias conjugais. índices muito mais redu­ ou de mulher sem cônjuge com filhos. Ele
zidos do padrão dominante de apenas uma mostra que a constituição de famílias “com­
pessoa trabalhando na família. E mesmo den­ pletas” e “estáveis” de fato não está vinculada
tro desse padrão, mostra-se para elas bastante a uma maior aproximação dos negros das ocu­
elevado aquele em que essa pessoa não c o pações mais bem remuneradas ou a uma alte­
chefe, apontando que essas famílias, ainda ração significativa na inserção de brancos e
numa proporção maior que as famílias conju­ negros na estrutura ocupacional, como se
gais, precisam contar, efetivamente, com o pretendia supor.
trabalho e o rendimento de um maior número Como podemos observar, os chefes das
de membros para a sua manutenção, princi­ famílias brancas estão sempre, em ambos os
palmente na região de maior desenvolvimento tipos de famílias, mais que o dobro dos chefes
econômico — o Sudeste. das famílias negras em ocupações não ma­
O dado de que as famílias na região Su­ nuais, numa proporção maior na região Su­
deste, em geral, tenderiam a atrair um maior deste e em São Paulo, onde os negros se en­
número de membros para a força de trabalho - contram muito mais que os brancos em ocuna"
basicamente, o fator que justificaria uma me­ ções manuais urbanas. p "
lhoria de sua renda familiar - pode ser também
verificado pela taxa de atividade dos filhos Como afirma Porcaro. “(...) poderf
tanto quanto pela taxa de atividade das cônju­ zer que a inserção dos negros, tanto e
Paulo como no Nordeste, se dá no Sã°
ges, apresentadas nos Quadros 12 e 13, que
segmentos do mercado, isto é, em § mesrnos
mostram-se realmente maiores nesta região,
externos do mercado de trabalho J®81116"^
tanto entre as famílias brancas como entre as
no mercado secundário”?® P^mário ou
negras, entre filhos homens ou mulheres.
Estudos Afro-Asiátícos n-16, 1989
217
QUADRO 10

Famílias de casal com filhos por composição da força de trabalho segundo regiões -1980

COMPOSIÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO FAMILIAR


TOTAL UMA PESSOA TRABALHA DUAS PESSOAS TRABALHAM TRÉS PESSOAS OU MAIS TRABALHAM
N
E TOTAL SÓ CHEFE QUAL­ CHEFE QUAIS­ TOTAL CH. CÔNJ. QUAIS­
N QUER TOTAL CHEFE E CÔNJ. QUER FILHO QUER
E
REGIÕES H UM FILHO DOIS TRÉS
U
M
A

Nordeste
Brancas 100 3,7 57,8 54,8 3,0 24,1 13,0 9,9 1,2 14,4 4,5 9,9
Negras 100 3,2 58,7 56,3 2,4 22,2 10,9 10,3 1,0 15,9 5,6 10,3
Estudos Afro- Asiáticos n? 16, 1989

Sudeste
Brancas 100 2,8 56,3 52,5 3,8 25,0 13,2 9,8 2,0 15,9 4,3 11,6
Negras 100 2,9 57,5 54,4 3,1 22,3 11,8 8,7 1,8 17,3 5,2 12,1

Fonte. Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE.


Estudos Afro-Asiáticos n? 16, 1989

QUADRO 11

Famílias de mulher chefe sem cônjuge com filhos por composição da força
de trabalho segundo regiões -1980

COMPOSIÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO FAMILIAR

TOTAL UMA PESSOA TRABALHA DUAS PESSOAS TRABALHAM TRÊS PESSOAS OU MAIS TRABALHAM

REGIÕES NENHUMA TOTAL SÓ CHEFE QUALQ. TOTAL CH. FILHO QUAISQ.

Nordeste
Brancas 100 31,2 43,7 26,3 17,4 15,7 8,9 6,8 9,4
Negras 100 28,7 44,5 30,4 14,1 16,4 10,7 5,7 10,4

Sudeste
Brancas 100 21,0 45,2 24,8 20,4 19,4 9,6 9,8 14,4
Negras 100 19,5 46,1 31,3 14,8 18,8 10,9 7,9 15,6

Fonte: Tabulações Especiais do Censo Demográfico de 1980, IBGE,


QUADRO 12

Taxa dB atividade das cônjuges - 1980

TIPO DE FAMÍLIA
NORDESTE
brancas NEGRAS SUDESTE
brancas negras
Casal com filhos
19«2 18,1
19,5 19,3
Fonte. Tabulações Especiais
do Censo Demográfico de 1980, IBGE.

QUADRO 13

Taxa de atividade dos filhos — 1980

FILHOS POR SEXO E


GRUPOS DE IDADE nordeste
BRANCAS NEGRAS SUDESTE
brancas negras
Total
34,0 36,3
Homens 44,5 44,0
47,3 51,3
10 a 17 anos 53,6 54,4
31,3 3b,3
18 anos e mais 29,6 32,3
74,1 80,4
Mulheres 82,1 87,0
19,7 19,5
10 a 17 anos 34,0 32,0
8,6 11»1
18 anos e mais 15,8 17,3
39,6 38,6 61,2 60,8
Fonte. Tabulações Especiais ------ -----------
do Censo Demográfico de 1980, IBGE.

O que mostra, no geral, que o argumento


que estabelece que a melhoria das condições Comentários finais
de vida de uma população está associada a pa­
Neste artigo, procurei situar num determi­
drões e estruturas de família é tão amplo que
nado contexto de análise a discussão em torno
toma-se válido tanto para os brancos quanto
da organização da família negra, vista por
para os negros, uma vez que o que parece fun­
grande parte dos pesquisadores como dividida
damental é a especificidade das famílias que
entre um tipo anômico, “instável”, vinculado
bradas de mulher chefe sem cônjuge com fi­
às condições gerais de anomia social em que se
lhos diante do padrão dominante constituído
encontraria a maioria da população negra e
por famílias conjugais com filhos e que, dentro
que seria constituído basicamente por famílias
desse contexto, as distâncias estabelecidas en­
“incompletas” de mulher chefe com filhos, e
tre famílias brancas e negras são mantidas e de
outro que refletiria a melhoria das condições
forma ainda mais acentuada nos meios de
de vida dessa população, qual seja, a família
maior desenvolvimento econômico (Região
conjugal “completa”, “estável” e “organiza­
Sudeste). da”, predominante na sociedade.
220
Estudos Afro-Asiàticos n- 16, 1989

221
Questionou-se o pressuposto que relaciona sas desigualdades se expressam e são mantidas.
üpos de família a situações sócio-econômicas e Ainda que a ótica da organização e desor­
que acompanha essa perspectiva tendente para ganização familiares, por comportar outras
uma polarização, segundo o qual a “estabilida­ instâncias como relações entre os membros das
de” familiar chegaria para a família negra famílias,'caráter e durabilidade das uniões, de­
junto com o desenvolvimento econômico, finição dos papéis conjugais etc., não possa ser
quando, ao estar mais próxima do modelo totalmente assimilada pelos dados levantados,
“branco” de organização familiar, as desigual­ estes indicam a necessidade de superação dessa
dades raciais seriam reduzidas. perspectiva polarizada da constituição da fa­
Através da construção de tipos aproxima­ mília negra, assim como da crença de que a
dos com dados do Censo Demográfico de estrutura familiar está diretamente associada a
1980, mostrou-se, mediante os indicadores de situações sócio-econômicas nas quais a “orga­
rendimento familiar, que as desigualdades ra­ nização” da família negra em famílias conju­
ciais mantêm-se de forma semelhante em fa­ gais estaria vinculada à melhoria de suas con­
mílias “completas” ou “incompletas”, em re­ dições de vida e à diminuição das desigualda­
giões de diferentes níveis de desenvolvimento des raciais.
sócio-econômico, e que, ao contrário do que Na linha proposta por Billingsley,57 tudo
se supunha, elas chegam a ser mais acentuadas leva a crer que a questão da necessidade de
nos meios de maior “organização” familiar e a família negra se “estabilizar”, se “organizar”
de maior desenvolvimento econômico - que para sc tornar viável e se “integrar” à socieda­
aqui foram identificados com famílias conju­ de abrangente seja mais um mito a ser supera­
gais com filhos e com a região Sudeste do do, de forma a melhor contextualizar a família
País, onde destacou-se São Paulo. negra no Brasil, já que os dados comprovam
Levantou-se, ainda, algumas características que não se pode perder de vista a existência de
dessas famílias como estado conjugal e civil, uma instância própria das relações raciais, que
tamanho, composição da força de trabalho fa­ parecem estar determinando as desigualdades
miliar, taxa de atividade dos seus membros e e cujos mecanismos de reprodução vão além
categorias sócio-ocupacionais do chefe para das estruturas de família, situações e “oportu­
tentar compreender as formas pelas quais es­ nidades” sócio-econômicas

NOTAS

Oliveira, Porcaro e Araújo, Repensando o Lugar da Mulher Negra”, Estudos Afro-Asiáticos, n. 13, 1987; R.
\ s “Escravidão e Família: Padrões de Casamento e Estabilidade Familiar numa Comunidade Escrava”
(Campinas’ Sécu\o XIX), Anais do IVEncontro Nacional de Estudos Populacionais, vo). IV, São Paulo, outubro de

1984.
ma P-PT- Pacheco, Aguentando a Barra: Uma Reflexão sobre a Família Negra de Baixa Renda, trabalho
2 no GT Temas e Problemas da População Negra no Brasil do VII Encontro Anual da Anpocs, Águas
apresen gp, outubro de 1983, e Família e Identidade Racial - Os Limites da Cor nas Relações e Representa-
de São _ DO de Baixa Renda, Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia So-

Ú 1 n P T. Pacheco, “A Família Negra: Exame de Algumas Questões”, Estudos Afro-Asiáticos, n. 13,


3 Mo ema v
1987 k vitsr^^^^^^^

Estudos Afro-Asiáticos n- 16,1989


222
5 E.F Frazier, “The Negro Family in the United States”, in R.F. Wich e R. Me Ginnis, Selected Studies tn
Carriage and Family, Nova Iorque, Wolt, Rinehart and Winston, 1960; F. Fernandes, A Integração do Negro na
Sociedade de Classes, vol. 1, São Paulo, Ática, 1978.
6 Herskovits, The Myth. . .. op. cit., p. 167-8.

7 Idem, p 168.
8 E.F Frazier, “The Negro Family. . ”, op. cit.. p. 137
9 C. Levi-Strauss, “Natureza e Cultura”, in C. Levi-Strauss, As Estruturas Elementares do Parentesco, Pelró
polis/São Paulo, Vozes/EDUSP, 1976.

10 A Integração do Negro ...op.cit


Il J B. Borges Pereira. Cor. Profissão e Mobilidade, São Paulo, Pioneira, 1966. e I.M.F Barbosa, Socialização
e Relações Raciais: Um Estudo de Família Negra em Campinas. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma­
nas da Universidade de São Paulo, mimeo, 1983.
12 Ver Oliveira. Porcaro c Araújo. “Repensando o Lugar. „ .''. op. cit., e Moema D.P.T Pacheco, * A Família
'••'egra ”, op.cit.
13 Florestan Fernandes. A Integração do Negro.. op. cit., p 154-5 Grifos meus.
14 A.S. Berger c W. Simon, “Black Families and the Moynihan Report: A Research Evaluation .SocialPro-
blems. vol 22, n 2, dezembro, 1974.
15 Moynihan (1965).
16 S. Me Lanahan, “Family Structure and the Reproduction of Poverty", American Journal ofSociology, vol
90, n. 4, janeiro, 1985
17 Ver T P. Monahan, “Family Status and the Delinquent Child: A Reappraisal and Some New Findings".So-
cialForces, vol. 35, outubro, 1956; J. Toby. “The Differential Impact of Family Desorganization“. Amencan5o-
ciological Review, vol 22, n 5, outubro, 1957; R.A. Tennyson, “Family Structure and Delinquent Behavior", in
Klein c Myerhoff, eds.. Juvenile Gangs in Context, Englewood Cliffs, NJ, Prentice-Hall, 1967; Larzon e Mye-
rhoff (1967); R.J. Chilton e G.E Markle, “Family Disruption, Delinquent Conduct and the Efcct of Subclassifi­
cation”, American Sociological Review, vol. 37, fevereiro, 1972; R.L. Matsueda, "Testing Control Theory and
Differential Association: A Causal Modeling Approach", American Sociological Review, vol. 47, agosto, 1982; T
Hirschi, “Crime and! the Family”, in J.Q. Wilson, ed.. Crime and Public Policy, Sao Francisco^ ICS Press, 1983;
H. Rankin, “The Family Context of Delinquency”, Social Problems, vol .30, n. , a ri , , eimer(1987).
18 Por exemplo, R. Farley e A.I. Hermalin, “Family Stability: A Comparison of Trends between Blacks and
'Whites”, American Sociological Review, vol. 36, n. 1, fevereiro, 1971, p. 1
19 “It was by destroying the negro family under slavery that white America broke the will of the negro people.
Although that will has reasserted itself in our time, it is a resurgence that is doome to rustation unless the viabi­
lity of the negro family is restored.” Moynihan (1965), p. 30.
20 A. Billingsley, Black Families in White America, Englewood Cliffs, NJ. Prentice-Hall, 1968.

21 F. Fernandes, A Integração do Negro. . ., op. cit., P- 215. Grifos meus.


22 A.J. Me Queen, “The Adaptations of Urban Black Families: Trends, Problem^ and Issues”, in ß R •
e H.A Hoffman, The American Family - Dying or Developing. Nova lorque/Londres, Plenum Press, 1979, p 93.
E.F. Frazier, “The Negro Family.. .”, op. cit
23 E.F Frazier, "The Negro Family. . .”, op. cit., p. 143. Grifos meus.

24 A.J Me Queen, “The Adaptations.. .”, op. cit., p 93. Grifo meu.
25 F Fernandes, A Integração do Negro. . .. op. cit.. e I.M.F. Barbosa, Socialização e Relações Raciai
cit. -,op.
26 “The rural family is known to be better integrated than the urban family; this is partly because
e rural fa.
Estudos Afro-Asidticos n- 16,1989
223
mily has reUined more economic, recreational, and other functions, partly because r
and partly because social controls in general are stronger in rural arcas ” Cf J Tobv ? Y
op. ar., p 509 Differential Impact. .. .
“Ja salientamos que a permanência mais ou menos demorada em zonas rurais 1 .
negro ou do . mulato
. livres do passadoi rústico paulistano) facilitava a aquisição
. ' HUivalcnte
, - da ■ - do
, participação j
-
família imperantes em nosso mundoI agrário
z .
Os segmentos das ,levas migrantes * “non..
de uc padrões .de organizaçao
•• . da
- , . de
condiçoes e encontravam oportunidades .
, conquistar ,
uma fonte popuiaçaodc
permanente c satisfatória dc cor
anhoque tinham
obtinham
assim, também uma situação favorável à preservação e à consolidação da herança cultural tra^oHntada do mundo
rústico.” CF. F. Fernandes, A Integração do Negro. . ., op. cit., p. 211. H

27 F.Fernandes, AIntegração do Negro. ... op. cit.,p 245


28 A. Billingsley, Black Families. . ., op. cit.; R. Farley e A.I. Hermalin, “Family Stability ” op cit
29 R. Farley e A.I. Hermalin, “Family Stability. . .”,op.cit

30 “Cumpre assinalar, doutro lado, que o amasiamento não representava, por si mesmo, um obstáculo à estabi­
lidade estrutural e à normalidade funcional. Vários casos conhecidos revelam que algunsnegros ‘direitos’ e ‘or­
deiros’, ferrenhamente apegados ao código tradicionalista e à sua rígida etiqueta, punham em prática, conspicua-
mente, esse tipo dc arranjo matrimonial (. . .) Em sentido inverso, famílias que se organizavam de conformidade
com as normas legais podiam exibir um grau de instabilidade c dc desintegração só comparável aos casais amasia­
dos ditos debochados.” F. Fernandes, A Integração do Negro. . ., op. cit., p. 200.
31 Idem, ibidem Gri fos meus
32 Idem, p. 211.
33 Oliveira. Porcaro e Araújo. "O Lugar do Negro na Força de Trabalho-, 1BGE-DEISO 1985

34 Oliveira, Porcaro e Araújo, “Repensando o Lugar., l'.op.cit.


35 R. Slenes, “Escravidão e Família. ..”, op cjt

36 M.D.P.T. Pacheco, “A Família Negra... ”,Op. cit

37 A. Bimngslcy. B^ F^. ,.op dt, R Far|ey e A , H„malin ..„^ ^^ ^ ^

38 F. Fernandes, A Integração do Negro. . ., Op. cit.p 226.

39 Z. C.
— Stack, “O Comportamento Sexual e Estrat' ■ o
M Rosaldo e L. Lamphere, A Mulher, a Cultura Sobrcv,vôncia ™ma Comunidade Negra Urban ■
icy, BMFanrtes. ...o. d,, M.D.P.T. Pacheco. A^doí^ ' ^ ,979; * “*"">£

40 C. Stack, "O Comportamento Sexual. .”, op cil

41 A.J. Mc Queen, “The Adaptations...”, op. cit

42 M. Corrêa, “Repensando a Família Patriarcal Rr,ei


Familiar no Brasil". * Colcha * ReMhos _ sol™^™^^ '-™ *= O^oni^o
34 . Gnfos meus. aE Sao Paulo, Brasiliensc, 1982 p

43 Segundo Billingsley, o racismo inviabiliza a famír


born child from having an equal chance of being born ina EXndirinT dedmaneiras- “^ Prevents the new-
Xg of getting
nitiesequal accessa to
firstrate education.
jobs that maximize his if
Even the child
abilities ^ surmnn f ^u ’’Y^ Severc|Pyrevc
^ Hracism restricts his Ct
"‘s him opportu.

ting equal pay with white workers It mcreases his chance of dyL eariy ando/ ’""’^ h'S°PPortuniticsof get-
the cemetery of his cho.ce. Thus, hterahy from thc crad]e to^/ ^ P'cvc"* him from being buried in
snecter of racism. It is true, of course, that many families esmne thf „ \ r 8 famiIy is threatened by the
that many families have shown an amazing ability to survive cotornTanXh'^ ” ÍSa,so ,ruc
. .-eles Still, when compared with white families r achieve in the face of impossible
position, and opportunities”. A Billingsley. BlackF^es. . *™ XX ST'^"7 aSSÍ8"Cd ÍnferÍOr status’

44 s. Me Lanahan, “Family Structure . .”, op d(

Estudos Afro-Asidticos n- 16, 1989


224
45 Entre eles, Oliveira, Porcaro e Araújo, “O lugar do Negro. . .”, op. cit.; e R.M. Porcaro, “Desigualdade
Racial e Segmentação do Mercado de Trabalho'', Estudos Afro-Asiáticos, n. 15, julho, 1988.

46 R. Farley e A.I. Hermalin, “Family Stability. . .” op. cit., p. 2. Ver, ainda, R.E. Bali, “Marital Status,
Household Structure, and Life Satisfaction of Black Women”, Social Problems, vol. 30, n. 4, abril, 1983; e S.
toe. Lanahan, “Family Structure. . .”., op. cit.

47 M.G. Castro et alii, “O Quadro das Famílias em Domicílios de Chefe Migrante e Natural”, FIBGE.mim^o,
^79, p. 4.

48 Ver Oliveira, Porcaro e Araújo, “O Lugar do Negro. . .”, op. cit.; Nelson do Valle Silva, “Distância Social
e Casamento Inter-Racial no Brasil", Estudos Afro-Asiáticos.n. 14, 1987; E. Berquó, Nupcialidade da População
Hegra no Brasil, NEPO/Unicamp,mímeot 1987.

49 Ver Nelson do Valle Silva, “Cor e o Processo de Realização Sócio-Econômica”, trabalho apresentado no
$T Temas e Problemas da População Negra no Brasil, IV Encontro Anual da Anpocs, outubro de 1980; Oliveira,
^Orcaro e Araújo, “O Lugar do Negro. . .”, op. cit.
50 A.M. Goldani Altman, “A Demografia ‘Formal’ da Família: Técnicas e Dados Censitários", ABEP, mimeo,
*984, p. 1288

51 Cf. Lewin e Ribeiro, “Família: Um Conceito em Crítica”, in M.G. Castro et alii, “O Quadro das Famí-
lla« . .”, op. cit.
$2 R.M. Porcaro, “Desigualdade Racial. . ,”,op.cit.

^2 M.D.P.T. Pacheco, “A Família Negra. . .”,op. cit.


54 o que não significa que as pessoas dessas famílias não trabalhem, visto que o levantamento é deficiente na
aPüração do trabalho informal que caracteriza boa parte do trabalho feminino.

O que pode significar que o trabalho informal estaria incidindo de forma mais acentuada sobre os negros do
ödeste.
56 R.M. Porcaro, “Desigualdade Racial. . .”, Op. cit.,p. 196.

^7 A Billingsley, Black Families. .., op. cit.

SUMMARY
The Racial Inequalities de in Two Kinds of Families

Using data from the 1980 Demographic Census, there is a clear similanty between female-h<.
’^s study offers a comparison of black and white fa­ milies in the Northeast and two-parent famiK ■ fa'
milies in two different types of domestic groups - fa­ distant southeastern region of São Paulo - m 016
milies consisting of a couple and their children, and nomic development is more accelerated in ere eco~
^Ogle-parent families consisting of a female and her higher and family groups more stable. ’ ^es ^
Mildren — in two distinct socio-economic regions —
^e Northeast and Southeast (specifically São Paulo), These differentials reflect certain conrt-
’he objective of the study is to verify the origin of ch are characteristic of these black famiii/ÜOns Whi
hypotheses which associate improvements in living arc larger in number and that they show a ^t theC
conditions of the black population and a consequent gree of activity among spouces and chi J ^^r d ’
diminishing of racial inequality, with a more “stable” as a greater average number of men^, n‘ ^
’ype of familial structure within areas of greater eco- force. When associated with the type * ’* the w??
^mic development. activity of the head of the household *
The study shows that these two models are linked lead to the conclusion that the black ^e^ °M
’° very specific socio-economic conditons in which, pies a constant position in Brazil ^P^o^ors
contrary to expectations, black families are closer to reproduced in different «o-econp^ty
"'hite families in the poorer Areas. More specifically, contexts. and is
^studos Afro-Asiáticos n- 16, 1989

225
O Centro de ^^pâ^
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tf NOTÍCIAS DO CEAA sobre o Negro no Brasil^mposta P^^ni,
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RÉSUMÉ fessores Kab^le^ nove®'
Rarialés Touchant Deux Types de Famille Giralda Seyferth, Ron^ dia 3 to**,
do Valle Suva, ^““7U "ovar os seg®"
Les Inégalités bro de 1988 e decidiu apr
De famille élève seu e ses en- L
(quand la femme-^l Nord_Est)> et plus éloignés là i ProjetOS: • fro-brasUeirai”, ^
^ ^vail a pour but de vérifier ta fants et dans la ^æ0 omique est lc plus accéléré t
taines thèses qui associent 1’^°^Queu­ où le développement ^ paulo) ainsi que dans \
tions de vie de la populationnoire-ct, encor^ (dans les et les degrés d’organisation J
ce, la diminution des inégalités raciales de. les milieux où les r élevés ( uand les deux f
grande "stabilité” de structure des fend « ^ de la famille sont 1«
gré de développment économique du mil fournies époux élèvent leurs en reflet de certaines condi- I
se trouvent insérées. Sur la base de donnée Ces différences so ^.^ Celles-ci ï
par le Recensement Démographique JeJ’ ’ ^ et tions caractéristiques uses^ lc ^ d,activité des [
s’efforce de comparer la situation de fanull _ sont généralement n° tplus élevé et, en moyenne, 1 B£"?“AnS da W^tidade de negro .^P^
blanches dans deux types de ^ctt^ lc enfants et des femmes y ^ membres appartient i
celles qui réunissent époux et enfants et un nombre plus ^na socie œs données au type 1 * p^d:
chef de famille est une femme qui ?ève ^"afferent à la force de tra™« • des chefs de ces familles, |
d’insertion Pæ^'TL que la population noire sem- « como desafio Brasilândia Sarraf
fants. L’enquête touche deux le
entre elles par leur situation Sâo on est amené à conciur Ution brésilienne, une l
Nord-Est et le Sud-Est et met en relief le ble occuper, au sein d ^ en se rcproduisant, quels â
position qui se maint ^.^^ques et fami- •
Paulo. ni- Merca ^^dQ sobre iTS
Contrairement à ce que l’on ^“^.^TX’ires et que soient les conte
veau de vie et le statut racial des fanu’ta „ liaux.
blanches sont plus proches dans les milieux p

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Giaconüni (RJ). total de 45


o in Concurso contou "
projetos, f^" “ bueiro, todos de
3a problemática do ^f.mportância do tema,
boa qualidade, teórico e metodológl-
outros pelo um passo funda-
“^n^dSnvolvimento to tosque sobre
O Negro no Brasil.
227

.* Estudos Afro-A^ticosn^ 16,1989


Estudos Afro-Asiâticos n- 16,

226
ébano
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Perpetuação do subdesenvolvimento africano
Dimensão intercultural da identidade brasileira
Ser escrava no Brasil
Desigualdade racial e mercado de trabalho
Literatura e consciência
Bibliografia da literatura afro-brasileira
Estudos Afro-Asiáticos - 10 anos: índice geral

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