20 - Alexandre Barbalho

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198 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

ESTADO E CULTURA
NO NORDESTE:
UMA LEITURA DAS POLÍTICAS
CULTURAIS NORDESTINAS
Alexandre Barbalho

Partindo do pressuposto de que no Nordeste há um histórico de forte relação clientelista


entre intelectuais e Estado, discute-se como reagiram as políticas culturais na região com a
atuação do Ministério da Cultura a partir da gestão do ministro Gilberto Gil, em seu esforço
de institucionalização dessas políticas por meio da participação social.

1. O Nordeste é uma invenção ajudaram a fixar a região como terra do


O Nordeste, antes de ser uma delimita- atraso e da miséria, ainda hoje vigente no
ção geográfica ou político-administrativa, é imaginário nacional. Em 1878, a Gazeta de
uma invenção cultural. Uma região que foi se Notícias, do Rio de Janeiro, enviou ao Ceará
constituindo a partir de discursos diversos e um de seus jornalistas, o militante abolicio-
dispersos no tempo e no espaço, junto com nista José do Patrocínio, com o objetivo de
a própria criação da nação brasileira e sua mandar notícias sobre a seca que devastava
comunidade imaginada. Remonta, portan- o sertão e causava comoção na capital do
to, à divisão entre o Norte da cana-de-açú- Império – experiência da qual resultou seu
car e o Sul cafeeiro da segunda metade do romance Os Retirantes, publicado em 1879.
século XIX. Em 1897, o jornalista Euclides da Cunha foi
Essa invenção não se dá somente a par- enviado por O Estado de S. Paulo para cobrir a
tir de formulações nativas. Como se disse, guerra dos “bárbaros”, conselheiristas contra
é um processo disperso. Há dois exemplos o Exército Nacional. A estadia de Euclides no
de representação do Nordeste publicizada interior da Bahia virou Os Sertões, publicado
nos anos 1800 na imprensa sudestina que em 1902, sucesso de público para a época e
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 199

revelador do autoritarismo republicano con- onde se encontram poder e linguagem, onde


tra os sertanejos. se dá a produção imagética e textual da es-
Claro que se trata de um outro Norte, pacialização das relações de poder” (ALBU-
futuro Nordeste, esse retratado por Eucli- QUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 23).
des e Patrocínio, e não daquele analisado
pelo pernambucano Gilberto Freyre em Ca- 2. Política cultural de intelectuais e
sa-Grande & Senzala (1933), livro traduzido políticos (e vice-versa)
e editado em várias línguas e países e uma É de se supor que nessa região as relações
das principais (e primeiras) ferramentas de entre os intelectuais e a política, entre a
leitura e interpretação do Brasil para os não cultura e o Estado, se não são exclusivas dela,
brasileiros – vide o depoimento do anglo-ja- ganham ali liames fortes. Há um vai e vem de
maicano Stuart Hall sobre a importância de indivíduos entre os campos cultural e político,
ter lido Freyre nos anos 1950 para sua obra em que o capital amealhado em um é recon-
e suas reflexões sobre hibridismo. vertido em capital do outro, garantindo car-
Trata-se, no primeiro caso, do Nordeste reiras mais ou menos vitoriosas, a depender
seco, de O Outro Nordeste, como revela o títu- das jogadas e tomadas de posição acertadas ou
lo do livro do sociólogo cearense Djacir Me- não de cada um desses dublês de escritores (a
nezes. Publicado em 1937, funcionou como grande maioria) e políticos.
uma espécie de resposta a Casa-Grande & Podemos lembrar do cearense José de
Senzala, pois este, recorrendo à metonímia, Alencar, romancista, autor de, entre inúmeros
pretendia falar de todo o Nordeste referindo- outros, Iracema, uma “lenda” sobre a origem
-se apenas a uma pequena parte, à do litoral não apenas de sua província, mas de todo o
abençoado com o solo de massapê, ou seja, a país, ao estabelecer o encontro amoroso entre
Zona da Mata da Paraíba à Bahia, esquecen- o colonizador e a indígena, daí resultando o
do a parte maior do território, aquela interior, primeiro cearense/brasileiro. Foi também de-
ocupada na trilha do gado – os caminhos de putado pelo Ceará, em constante embate com
dentro e de fora, na clássica formulação do o imperador Pedro II, de quem foi ministro da
historiador cearense Capistrano de Abreu. Justiça. Lembramos também do maranhense
Vê-se, nessa breve digressão, como é José Sarney, imortal da Academia Brasileira
complexa a identificação do que seja o Nor- de Letras e um dos mais longevos políticos
deste, como é impossível fixá-lo em um só brasileiros. Presidente do país, criou o Minis-
sentido. Os discursos que o constituem se tério da Cultura. E, bem antes, quando eleito
espalham por produtos culturais (músicas, governador de seu estado, convidou o cineasta
filmes, romances, poesias, peças teatrais, baiano Glauber Rocha para filmar sua posse
ensaios, textos acadêmicos e jornalísticos) – material que resultou no curta-metragem
desde o século XIX e chegam até hoje, início Maranhão 66 e em várias sequências de Terra
do terceiro milênio. Nessa longa duração, em Transe, filme cujo principal personagem é
pode-se dizer, junto com Durval Muniz de um poeta agitador das massas e conselheiro
Albuquerque Júnior, que “o Nordeste nasce político de um governador populista.
200 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Também não é de se estranhar que esses Se hoje existe o Conselho Federal de


intelectuais em relação íntima com o poder Cultura, com uma larga folha de serviço à
acabem por reivindicar a atuação institu- cultura nacional [...] isso se deve [...] ao fato
cional dos governos estaduais na cultura de eu ter me sentado como secretário-geral
por meio de políticas públicas conduzidas da Academia Brasileira de Letras, ao lado
por eles próprios, ou que assumam posições do Presidente Castelo Branco [...] aproveitei
privilegiadas na elaboração das políticas cul- a vizinhança [...] para lhe sugerir, teimosa-
turais em âmbito federal. mente, a criação [do órgão].1
No contexto estadual, é paradigmático
o caso do Ceará, que criou a primeira Secre- Não é à toa que os elementos fortes do
taria de Cultura do país, em 1966. A ideia pensamento do CFC eram os da mestiça-
surgiu durante o I Congresso Cearense de gem, da tradição e do popular, pois, diante
Escritores, realizado em 1946. Uma das 19 da indiscutível variedade regional, a saída
teses discutidas e aprovadas no evento foi foi apontar esses valores como emblemas da
apresentada pelo historiador Raimundo Gi- diversidade na unidade nacional. A região,
rão, intitulada A Necessidade de uma Secre- longe de ser negada, passou mesmo a ser
taria de Cultura. Escritor profícuo, com mais valorizada e a ter o status de uma “filosofia
de 50 obras publicadas, membro do Instituto social”, como aponta Renato Ortiz (1985).
Histórico e Geográfico de seu estado, Girão Nesse contexto, sobressai o Nordeste como
foi prefeito de Fortaleza e se tornou o primei- pretenso berço das mais autênticas mani-
ro secretário de Cultura. Plácido Castelo, o festações da cultura brasileira, em mais um
governador que o nomeou, também fazia recurso metonímico do poder simbólico.
parte do Instituto do Ceará e era autor de
pesquisas sobre assuntos regionais. 3. Uma hipótese e uma questão
No contexto federal, é reveladora, Diante do contexto esboçado acima, é
durante o Regime Militar, a atuação do factível propor como hipótese que, historica-
Conselho Federal de Cultura (CFC), órgão mente, há no Nordeste um ambiente favorável,
responsável por formular o pensamento so- de um lado, à criação de espaços institucionais
bre o setor naqueles anos de exceção. Criado para as políticas culturais, e de outro, ao estabe-
em 1966 pelo presidente Castelo Branco, cea- lecimento de relações pouco republicanas en-
rense e amigo da escritora e sua conterrânea tre o Estado e a cultura, baseadas no intimismo
Rachel de Queiroz, ela própria integrante do e no clientelismo entre intelectuais e políticos,
Conselho, o CFC reuniu intelectuais reno- e materializadas em políticas de “balcão”.
mados, de perfil conservador – muitos de- Partindo do pressuposto de que essa hi-
les nordestinos. Em depoimento publicado pótese é verdadeira, uma questão, entre outras,
no jornal O Povo, de Fortaleza, o escritor se coloca: como reagiu essa região diante das
maranhense Josué Montello, um dos fun- políticas culturais promovidas pelo Ministério
dadores do CFC e seu primeiro presidente, da Cultura (MinC) a partir da gestão do minis-
entrega o jogo: tro baiano Gilberto Gil, em 2003? A pergunta
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 201

tem pertinência porque, como é sabido por pelo Suplemento de Cultura da Munic 2006.
todos(as) que acompanham essa área, há Ainda que seja um indicador limitado –
um esforço por parte de Gil e sua equipe em aliás, como todos os indicadores; o MinC (BRA-
transformar a cultura em objeto de políticas de SIL, 2010), em seu documento fundante sobre
Estado, e não só de governo, a partir da lógica o SNC, por exemplo, recomenda a combinação
federalista – com o Plano Nacional de Cultura do IGMC com outros indicadores, como os ín-
(PNC) e o Sistema Nacional de Cultura (SNC), dices educacionais, sociais, econômicos etc. –,
por exemplo – e da participação social possi- é importante retomá-lo no sentido de trazer
bilitada por conferências, consultas públicas, elementos que possam esclarecer a configu-
câmaras setoriais e conselho de cultura pari- ração das políticas culturais nordestinas nos
tário e deliberativo, entre outros instrumen- últimos 15 anos.
tos de governança (BARBALHO; BARROS; O IGMC é subdividido em outros índices
CALABRE, 2013; BARBALHO; CALABRE; mais específicos: o primeiro é o de Fortaleci-
RUBIM, 2015; BARBALHO; RUBIM, 2007; mento Institucional e Gestão Democrática.
RUBIM, 2010). Como situa Miranda, esse índice leva em con-
Para ensaiar uma resposta à questão – e sideração que “a existência de instituições que
trata-se somente disto mesmo, um ensaio –, preservem a prioridade do setor através de vá-
vale a pena recorrer aos dados disponibilizados rias administrações é um fato positivo para a
pelo Índice de Gestão Municipal em Cultura e gestão cultural, pois favorece a continuidade
pelos Suplementos de Cultura da Pesquisa de e o seu crescimento”, bem como “o princípio
Informações Básicas Estaduais (Estadic) 2014 de que, quanto mais a população participa das
e da Pesquisa de Informações Básicas Munici- decisões de gestão, mais efetiva será a ação em
pais (Munic) 2014, do IBGE. Ainda que defa- prol da cultura no município” (MIRANDA,
sados, é o que existe de mais atualizado sobre 2009, p. 2). O segundo é o Índice de Infraes-
o setor, que só muito recentemente tem sido trutura e Recursos Humanos. E, por fim, o Ín-
objeto de atenção por parte dos formuladores dice de Ação Cultural, que, diferentemente dos
oficiais de estatísticas. anteriores, voltados para os meios, mensura a
oferta no setor por parte do município.
4. O que dizem os dados De acordo com o Índice de Fortaleci-
No esforço de obtenção de informações mento Institucional e Gestão Democrática,
e construção de índices balizadores para as nenhum município nordestino estava entre
políticas culturais, Rogério Miranda (2009), os dez mais bem avaliados no ano de 2006.
pesquisador do Instituto de Pesquisa Econô- Contudo, em termos de estado, o Ceará esta-
mica Aplicada (Ipea), desenvolveu o Índice de va em quinto lugar, atrás de Distrito Federal,
Gestão Municipal em Cultura (IGMC). Trata- Minas Gerais, Mato Grosso e Mato Grosso do
-se de um primeiro índice estatístico na área, Sul. Também não havia qualquer município
que possibilitou ranquear os municípios bra- nordestino entre os dez primeiros classifi-
sileiros em relação ao quesito gestão cultural cados, segundo o Índice de Infraestrutura e
recorrendo às informações disponibilizadas Recursos Humanos. Mas o estado da Bahia,
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apesar de não fazer parte do grupo com as então se a esse dado se combinam outros que
melhores médias, possuía mais de 50% dos possam apontar para uma nova realidade.
seus municípios com valores acima da média Quando se trata de publicizar e tornar
nacional para esse índice. mais ágil o acompanhamento das políticas,
Quanto ao Índice de Ação Cultural, Re- os órgãos gestores da cultura nos estados
cife liderava o ranking, no entanto, sendo a nordestinos não se destacam, pois apenas
única cidade nordestina a fazer parte do gru- cinco (Ceará, Paraíba, Pernambuco, Ala-
po das dez melhores. Por sua vez, quando se goas e Bahia) utilizavam sistemas informa-
olha o conjunto dos municípios dos estados, tizados de gerenciamento, e nenhum deles
Ceará e Pernambuco estão entre os cinco tinha instalada a total capacidade operativa
mais pontuados. Por fim, en- definida pelo IBGE em seis
tre os dez municípios com os Entre os dez municípios funcionalidades: 1. Cadastra-
com os maiores valores
maiores valores no IGMC, Re- mento de projetos culturais,
no IGMC, Recife aparece
cife aparece na quarta coloca- pelos agentes, para solicitação
na quarta colocação,
ção, com 172,86 [para efeito com 172,86 [para efeito de apoio; 2. Acompanhamen-
de comparação, Caxias do Sul de comparação, Caxias to da execução dos projetos
(RS) estava em primeiro, com do Sul (RS) estava em cadastrados; 3. Cadastro de
179,51]. Quando se restringe o primeiro, com 179,51]. agentes e objetos culturais; 4.
índice somente às capitais, Re- Planejamento orçamentário
cife sobe para primeiro no ranking do IGMC e da política de cultura; 5. Gestão do patrimô-
Teresina aparece na nona colocação. nio cultural; e 6. Gestão de equipamentos
Vamos agora para um conjunto de dados culturais. A ausência geral se refere ao item
mais recentes formado pelo Suplemento da 4, exatamente o mais nevrálgico, por tratar
Estadic e da Munic de 2014. Comecemos com da forma como os recursos são aplicados.
informações que se relacionam com o Índi- Como contraponto ao contexto da ges-
ce de Fortalecimento Institucional e Gestão tão estadual, Pernambuco (16,8%) e Ceará
Democrática. No que diz respeito à gestão, o (15,2%) estão entre os sete estados brasilei-
Suplemento informa que, em 2014, todos os ros que contavam com a maior quantidade
estados nordestinos possuíam algum órgão de municípios com sistemas de informatiza-
gestor específico para a cultura, a despeito da ção, e o segundo se destaca entre aqueles com
diversidade de formatos (secretaria, fundação maior proporção de municípios com páginas
etc.). Quando se observa a realidade munici- de conteúdo exclusivo do órgão gestor de cul-
pal, o Maranhão, entre os estados brasileiros, tura, com 14,3%.
apresenta a maior proporção de municípios Outro ponto importante para o melhor
com estrutura organizacional exclusiva para a desempenho da política pública se refere
política cultural (62,8%). Com certeza, a exis- à capacitação de seus gestores. Esse foi um
tência de secretaria ou fundação de cultura item alvo de grande investimento por parte
não garante a efetividade da política e muito do MinC, no esforço de implantação do SNC,
menos o seu caráter republicano. Vejamos a partir principalmente do segundo governo
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Lula. Entre 2009 e 2010, a Secretaria de Arti- Ainda no quesito formação, agora vol-
culação Institucional (SAI) do Ministério ela- tada para os setores da cultura, todos os es-
borou o Programa de Formação de Gestores tados promoveram cursos em alguma das 13
Culturais, cujo Curso Piloto de Gestão Cultu- categorias consideradas pelo IBGE: música;
ral ocorreu em Salvador. Logo na sequência, artes plásticas; teatro; gestão cultural; dança;
em 2012, a Fundação Joaquim Nabuco, em patrimônio, conservação e restauração; ma-
parceria com o MinC e a Universidade Federal nifestações tradicionais populares; cinema;
Rural de Pernambuco, ofertou o primeiro cur- literatura; vídeo; circo; artesanato; e fotogra-
so de especialização em formação de gestores fia. Pernambuco foi o único estado do país
culturais dos estados do Nordeste. que afirmou promover capacitação em todas
Em grande parte como as áreas, e o Ceará ocupava a
Em grande parte como
desdobramento da atuação do quarta colocação, com 53,3%
desdobramento da
Governo Federal, todos os es- atuação do Governo entre os cinco estados onde
tados nordestinos ofereceram Federal, todos os mais da metade de seus muni-
algum tipo de formação para estados nordestinos cípios ofereceram algum curso.
seus servidores na área da cul- ofereceram algum tipo Quanto ao esforço de
tura, ainda que nenhum tenha de formação para seus transformar a política cultu-
atuado nos sete temas estabe- servidores na área ral em política de Estado, um
lecidos pelo IBGE: 1. Curso de da cultura. dado importante se refere aos
elaboração e gestão de proje- planos. Nesse ponto, todos os
tos; 2. Curso de gestão cultural; 3. Curso de estados nordestinos estavam com seu pla-
editais; 4. Curso de capacitação tecnológica e no de cultura em elaboração em distintos
administrativa; 5. Curso de leis de incentivo; estágios. A exceção da região e do país era
6. Curso de captação de recursos; 7. Curso de Alagoas, que já tinha o seu formalizado e re-
gestão de equipamentos culturais. gulamentado por instrumento legal.
Os cursos mais ofertados estão inseridos Por sua vez, no que diz respeito aos oito
nos itens 1, 5 e 6, de perfis mais tradicionais, objetivos das políticas culturais estabeleci-
orientados muitas vezes pela lógica das leis das pelo IBGE (1. Preservar o patrimônio
de incentivo à cultura. São formações ofereci- histórico, artístico e cultural; 2. Tornar a
das tanto pelo poder público quanto pelo setor cultura um dos componentes básicos para a
privado, desde a criação da Lei Sarney, com qualidade de vida da população; 3. Democra-
incremento na gestão de Francisco Weffort tizar a gestão cultural; 4. Integrar a cultura
no MinC (1995-2002), quando se legitimou ao desenvolvimento local; 5. Dinamizar as
a figura do captador de recursos. O menos atividades culturais do estado; 6. Garantir
ofertado foi o item 7 (apenas Piauí e Bahia), a sobrevivência das tradições culturais lo-
o que pode ser indício da pouca presença de cais; 7. Descentralizar a produção cultural;
equipamentos públicos de cultura sob respon- 8. Ampliar o grau de participação social nos
sabilidade do órgão gestor estadual ou da falta projetos culturais), o Piauí foi o único estado
de profissionalização na sua gestão. nordestino a listar todos eles.
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É revelador de um novo momento das a atuação dos conselheiros basicamente se


políticas culturais na região que o objetivo resume a se pronunciar, a emitir pareceres e,
mais citado não tenha sido o de preservação em menor escala, a elaborar e aprovar planos
do patrimônio nem o de garantir as tradições e propor, avaliar e referendar projetos cultu-
culturais – temas que marcaram as políticas rais. Funções estratégicas, como administrar
culturais nordestinas e brasileiras em tem- o fundo de cultura ou atuar nos temas referen-
pos anteriores –, mas o de democratizar a tes aos convênios, principal via de repasse de
gestão cultural. recursos para a sociedade civil, estão quase ou
Um item fundamental para a questão mesmo totalmente ausentes no cotidiano dos
que estamos enfrentando diz respeito à exis- conselheiros de cultura.
tência, ao tipo e ao funcionamento de conse- Analisando-se as respostas dos estados
lhos de cultura. De acordo com a Tabela 1, nordestinos quanto à conferência de cultura,
todos os estados nordestinos não só possuem todos já haviam realizado conferências, e no
conselhos, como esses são ou paritários ou Piauí, Ceará, Paraíba, Alagoas e Bahia elas
com maior quantidade de conselheiros re- estavam previstas por lei. No âmbito munici-
presentando setores da so- pal, 2.793 municípios tinham
ciedade civil. Dessa forma, É revelador de um realizado suas conferências,
superou-se, pelo menos for- novo momento das sendo que em 811 havia previ-
malmente, o conselho “chapa políticas culturais na são em lei para a realização. O
branca”, no qual predominava região que o objetivo Nordeste foi a região que apre-
mais citado não tenha
o número de representantes sentou o maior porcentual de
sido o de preservação
governamentais e não se atua- municípios com conferências
do patrimônio nem
va, assim, como espaço de me- o de garantir as já realizadas (64,4%, sendo
diação entre o poder público e tradições culturais, mas que 18,7% estavam previstas
os cidadãos. o de democratizar a por lei). Para se ter uma ideia
É igualmente relevante gestão cultural. do alcance desse dado, na Re-
que quase todos, com exceção gião Sul, segunda colocada,
do Piauí, não se restrinjam mais ao papel a porcentagem foi de 46,6%, portanto bem
limitado de assessorar o gestor quando abaixo da realidade nordestina. Entre os seis
consultado, mas que deliberem sobre a estados que tinham mais de 80,0% dos mu-
política a ser implementada pelo Poder Exe- nicípios com conferências realizadas estão
cutivo. Há ainda que avançar no que se refere o Ceará (88,0%, 162 municípios) e a Bahia
aos conselhos assumirem caráter normativo (84,9%, 354 municípios).
e fiscalizador, mas os números apontam uma Quanto ao fomento ou apoio a iniciati-
situação de relativo equilíbrio, sendo que Ma- vas específicas para o campo da diversidade
ranhão, Paraíba e Pernambuco possuem con- cultural, também um indicador importante
selhos que reúnem as quatro características. no que se refere à democratização da ação
Também é preciso ampliar as atribuições do Estado na cultura, todos os estados nor-
desses conselhos. Como indica a Tabela 2, destinos possuem políticas com esse fim. O
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 205

destaque é o Rio Grande do Norte, que só não Estadic e da Munic de 2014, ocorreu o for-
atende a um – o de “pessoa com deficiência” talecimento desse processo. A existência
– dos 13 segmentos listados pelo IBGE, vin- generalizada de órgãos gestores exclusivos
do atrás apenas de São Paulo, que atende a para a área, alguns deles com sistemas in-
todos. Os outros segmentos são: culturas formatizados de gerenciamento – contando
populares; comunidades indígenas; comu- com gestores capacitados, conselhos pari-
nidades afro-religiosas; comunidades qui- tários e deliberativos, planos e conferências
lombolas; crianças e adolescentes; jovens; participativas –, entre outros sinalizadores,
outras comunidades tradicionais; comunida- aponta para um novo modus operandi das
de LGBTT; mulheres; idosos; comunidades políticas culturais nordestinas.
de descendentes de nacionalidades estran- Talvez a melhor expressão da nova
geiras; comunidades ciganas. composição de forças seja a afirmação dos
valores da participação, da democracia e da
5. Algumas considerações finais institucionalização por parte dos gestores
A partir dos dados apresentados acima estaduais de cultura nos períodos imediata-
é factível afirmar que a política cultural no mente anterior e posterior à realização da III
Nordeste se assenta hoje em patamar di- Conferência Nacional de Cultura, entre 27 de
ferente daquele que vigorou entre os anos novembro e 1 de dezembro de 2013, que en-
1960 e 1990, no qual predominava, de um volveu milhares de pessoas nas conferências
lado, a atuação de intelectuais renomados municipais e estaduais que a antecederam
e próximos ao poder político vigente e, de em todo o país.
outro, uma atuação com vistas a expressões Para encerrar, vejamos algumas destas
eruditas e à valorização do popular. Obser- falas das quais destaquei algumas passagens
va-se um esforço de institucionalizar a em itálico. Segundo o então secretário de Es-
relação do governo no campo cultural re- tado da Cultura de Alagoas, Osvaldo Viégas, a
correndo a diversos instrumentos de gestão III Conferência Estadual foi “um momento de
pública, como planos, conselhos, fundos, interlocução entre poder público e sociedade
conferências e, de forma democrática, va- civil no intuito de estabelecer diretrizes para
lorizando a participação da sociedade ci- o desenvolvimento da cultura em Alagoas”.2
vil, mais especificamente dos agentes do Por sua vez, a secretária de Estado da Cultu-
campo cultural. ra de Sergipe, Eloísa Galdino, defendeu que
Percebe-se que, entre a divulgação dos “as conferências municipais visam a mobi-
resultados do IGMC, baseados em dados de lização das comunidades para o debate e a
2006 – em que os estados nordestinos não proposição de políticas de cultura junto a
tiveram muito destaque no cenário nacional, representantes do poder público”, favore-
a não ser, em determinados quesitos, Ceará, cendo a “participação intensa e coletiva dos
Bahia e Pernambuco (nos Índices de Fortale- agentes de cultura, com base em uma visão
cimento Institucional e Gestão Democrática diferenciada sobre como construir políticas
e de Ação Cultural) –, e a do Suplemento da públicas para esta área”.3
206 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

TABELA 1
ESTADOS DO NORDESTE COM CONSELHO DE CULTURA, POR ALGUMAS CARACTERÍSTICAS (2014)

CARÁTER CARÁTER CARÁTER


ESTADO COMPOSIÇÃO CONSULTIVO DELIBERATIVO NORMATIVO
Maranhão Paritário Sim Sim Sim
Piauí Maior representação da sociedade civil Sim Não Não
Ceará Maior representação da sociedade civil Não Sim Não
Rio Grande do Norte Maior representação da sociedade civil Sim Sim Não
Paraíba Paritário Sim Sim Sim
Pernambuco Maior representação da sociedade civil Sim Sim Sim
Alagoas Paritário Sim Sim Não
Sergipe Maior representação da sociedade civil Sim Sim Não
Bahia Maior representação da sociedade civil Sim Sim Sim

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Estaduais 2014.

TABELA 2: ESTADOS DO NORDESTE, POR ATRIBUIÇÕES DO CONSELHO DE CULTURA (2014)

FISCALIZAR O
PRONUNCIAR- ACOMPANHAR CUMPRIMENTO
SE E EMITIR E AVALIAR A DAS DIRETRIZES PROPOR,
PARECER SOBRE ELABORAR EXECUÇÃO DE E INSTRUMENTOS AVALIAR E
ASSUNTOS DE E APROVAR PROGRAMAS DE FINANCIA- REFERENDAR
NATUREZA PLANOS DE E PROJETOS MENTO DA PROJETOS
ESTADO CULTURAL CULTURA CULTURAIS CULTURA CULTURAIS
Maranhão Sim Sim Sim Sim Não
Piauí Não Sim Não Não Sim
Ceará Sim Não Sim Não Não
Rio Grande do Norte Sim Não Não Não Sim
Paraíba Não Sim Não Sim Não
Pernambuco Sim Sim Não Não Não
Alagoas Sim Não Não Não Sim
Sergipe Sim Não Não Não Sim
Bahia Sim Não Sim Não Não

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Estaduais 2014.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 207

QUANTIDADE DE
CARÁTER ESCOLHA DOS INTEGRANTES REUNIÕES NOS CONSELHEIROS
FISCALIZADOR DA SOCIEDADE CIVIL ÚLTIMOS 12 MESES SÃO REMUNERADOS
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 4 Não
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 48 Sim
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 6 Não
Sim Indicação do poder público e da sociedade civil 80 Sim
Sim Indicação da sociedade civil 12 Não
Sim Indicação do poder público 96 Sim
Não Indicação do poder público e da sociedade civil 6 Não
Não Indicação do poder público 44 Sim
Não Outra forma de escolha 24 Não

FISCALIZAR AS
APRECIAR E ATIVIDADES ELABORAR
APROVAR DE ENTIDADES NORMAS E APRECIAR
FISCALIZAR AS NORMAS E CULTURAIS ADMINISTRAR DIRETRIZES E APROVAR
ATIVIDADES DO DIRETRIZES DE CONVENIADAS O FUNDO PARA NORMAS PARA
ÓRGÃO GESTOR FINANCIAMENTO COM A GESTÃO ESTADUAL DE CONVÊNIOS CONVÊNIOS
DA CULTURA DE PROJETOS ESTADUAL CULTURA CULTURAIS CULTURAIS
Sim Sim Sim Não Não Não
Não Não Não Não Não Não
Sim Não Não Não Não Não
Não Não Não Não Não Não
Não Não Não Não Sim Não
Sim Não Não Não Não Não
Não Não Não Sim Não Não
Não Não Não Sim Não Não
Não Sim Não Não Não Não
208 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

A secretária de Estado da Cultura do


Maranhão, Olga Simão, falando dos mais Alexandre Barbalho
de 120 municípios que realizaram as con- É doutor em comunicação e cultura con-
ferências municipais no seu estado, avaliou temporâneas pela Universidade Federal da Bahia
que “impõe-se às instituições e à sociedade (UFBA). Professor dos programas de pós-gradua-
civil o dever de caminhar juntas para que o ção em sociologia e em políticas públicas da Uni-
fazer cultural seja também o esforço de criar versidade Estadual do Ceará (Uece) e do programa
condições, facilitar e assegurar a manutenção de pós-graduação em comunicação da Universida-
dos valores que convivemos, enfim, de pensar de Federal do Ceará (UFC).
uma política de Estado para a cultura com a Líder do Grupo de Pesquisa em Políticas de
participação de todos”. Cultura e de Comunicação – CULT.COM. Autor e or-
Para o secretário de Estado da Cultura ganizador de diversos livros e artigos, entre os quais
da Paraíba, Chico César, a Conferência Es- Política Cultural e Desentendimento (Ibdcult, 2016).
tadual foi positiva “por aproximar Governo
e agentes culturais, poder público e sociedade
civil”.4 O processo das conferências, de ela-
boração dos planos e da criação dos conse-
lhos de cultura se dá de forma coletiva e com
participação da sociedade, o que reforça “a
legitimidade e a necessidade dessas alte-
rações” e “o conjunto dos cidadãos, de uma
forma democrática e transparente”, como
avaliou o secretário de Cultura do Ceará,
Paulo Mamede.5
O que os secretários afirmam, portan-
to, é a elaboração da política cultural como
resultado da relação imprescindível entre
Estado e sociedade civil, e não mais a par-
tir das decisões dos intelectuais renomados
fechados em gabinetes com os gestores pú-
blicos. Agora, pode-se afirmar, são outros os
tempos. E que perdurem.
POLÍTICAS CULTURAIS & MODELOS SUSTENTÁVEIS Alexandre Barbalho 209

Referências

BARBALHO, Alexandre; BARROS, José Márcio; CALABRE, Lia (Org.). Federalismo e


políticas culturais no Brasil. Salvador: Edufba, 2013.

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RUBIM, Albino (Org.). Políticas culturais no governo Lula. Salvador: Edufba, 2010.

Notas

1 O Povo, 22 mar. 1975, p. 18.

2 Disponível em: <http://primeiraedicao.com.br/noticia/2013/08/30/iv-conferencia-


estadual-de-cultura-e-aberta-e-maceio>. Acesso em: 5 dez. 2018.

3 Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/banner-3/-/asset_publisher/


axCZZwQo8xW6/content/conferencias-nos-estados/10883>.
Acesso em: 5 dez. 2018.

4 Disponível em: <http://paraiba.pb.gov.br/conferencia-estadual-apresenta-


resultados-positivos-para-o-setor-de-cultura/>. Acesso em: 5 dez. 2018.

5 Disponível em: <https://www.secult.ce.gov.br/2014/03/06/aprovada-nova-lei-do-


conselho-estadual-de-politica-cultural/>. Acesso em: 5 dez. 2018.

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