Psicologia Na Assistencia Social

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Sumário

Agradecimentos............................................................................................... 9

Apresentação da Coleção
Ana Mercês Bahia Bock............................................................................ 11

Prefácio
Marcus Vinicius de Oliveira Silva............................................................ 15

1. o princípio da caminhada............................................................... 19

2. A desigualdade social brasileira: uma questão em debate........... 25


2.1 Por uma leitura crítica da desigualdade social brasileira............. 28
2.2 A teoria da desigualdade social brasileira a partir de Jessé Souza. 34
2.3 A teoria da subjetividade a partir de González Rey..................... 42
2.4 A dimensão subjetiva da desigualdade social............................... 46

3. A Psicologia e o “social”................................................................... 51

4. O SUAS como espaço de trabalho das psicólogas.................. 57


4.1 A assistência social no Brasil e a constituição do SUAS.............. 59
4.2 As psicólogas no CRAS/SUAS......................................................... 62
8 LUANE NEVES SANTOS

5. O encontro das psicólogas com o “social”: campos de


expressão das desigualdades.......................................................................... 67
5.1 Relatando uma experiência de pesquisa........................................ 68
5.2 A vivência singular das psicólogas no CRAS/SUAS..................... 74
5.3 O encontro das psicólogas com o “social” no CRAS/SUAS:
as zonas de sentido............................................................................ 91

6. Por uma atuação com compromisso social............................ 121

Referências....................................................................................................... 129

Sobre a Autora................................................................................................. 135


9

Agradecimentos

A credito que toda obra é sempre fruto de “muita gente”. Gente que nos
auxilia com teoria e técnica e gente que nos sustenta pessoalmente com
seu acolhimento. Como diria Gonzaguinha, “aprendi que se depende sempre
de tanta, muita, diferente gente. Toda pessoa sempre é as marcas das lições
diárias de outras tantas pessoas”. Por isso, agradeço com carinho àqueles que
contribuíram para construção deste livro, mesmo sabendo da difícil tarefa de
especificar aqui apenas algumas dessas pessoas.
Aos meus familiares, especialmente aos meus pais, Wellington Neves e
Noélia Neves, pelo amor e incentivo constantes.
Ao meu marido Leonardo Santos, pelo apoio expresso nas atitudes coti‑
dianas.
Aos meus irmãos e amigos, pela diferença que nosso convívio produz em
minha vida.
A Alessivânia Mota, por sua interlocução a este projeto e essa humani‑
dade sensível a convidar a minha humanidade.
A Renata Sá Nunes Barreto, pelo vínculo transformador.
Aos autores e autoras cujas obras me inquietaram, inspiraram, emocio‑
naram, enfim, foram essenciais para construção deste trabalho, em especial a
Ana Bock, Fernando González Rey e Jessé Souza.
A Marcus Vinicius de Oliveira Silva, por estar há tantos anos inspirando
com suas palavras e ações o compromisso social na minha atuação como
psicóloga brasileira.
10 LUANE NEVES SANTOS

Aos colegas e espaços institucionais que integrei e integro, que, seja pela
alteridade ou pela complementaridade, me auxiliaram a manter vivo o deba‑
te que aqui se apresenta, sendo fundamentais para minha constituição como
profissional e pesquisadora.
À Cortez Editora e ao Instituto Silvia Lane, em especial a Ana Bock pela
confiança e oportunidade de participar desta Coleção, tão significativa para a
Psicologia.
Agradeço a toda pessoa que me fez perceber que “é tão bonito quando a
gente pisa firme nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos. É tão
bonito quando a gente vai à vida nos caminhos onde bate bem mais forte o
coração”.
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Apresentação da Coleção

A Coleção “Construindo o Compromisso Social da Psicologia” tem sua


origem em uma certeza: é preciso ultrapassar o próprio discurso e co‑
laborar para a construção de novos conceitos e teorias, assim como para
novas formas de atuação profissional. Ou seja, entendemos que desde o final
dos anos 1980 a Psicologia inaugurou um novo discurso: o do compromisso
social. Ele significou, sem dúvida, um rompimento com um trajeto e um
projeto de Psicologia que se estruturaram no Brasil. Uma profissão impor‑
tante que não ampliou sua inserção social de forma a vincular‑se teórica e
praticamente às questões urgentes que atingiam a maior parte da sociedade
brasileira. Não que não existissem tentativas, mas as vozes eram poucas (e
com certeza fizeram eco).
As mudanças na sociedade brasileira produziram novos ventos na Psi‑
cologia. Entidades se constituíram e se construíram fortes; novos campos,
como a Psicologia da Saúde e a Psicologia Social comunitária, se instalaram;
teorias críticas começaram a ter lugar, mesmo que tímido, na formação dos
estudantes. Enfim, pudemos assistir ao fortalecimento do vínculo da Psicolo‑
gia e dele participar, como ciência e profissão, com a sociedade brasileira.
O discurso do Compromisso Social da Psicologia tornou‑se referência
para um novo projeto de profissão e de ciência. Não queríamos mais percor‑
rer um trajeto “elitista” e estreito. Queríamos servir à sociedade em suas ca‑
rências e necessidades a partir da Psicologia.
Hoje, com um discurso bastante amadurecido e com muitas adesões,
percebemos que é hora de ir adiante e ultrapassar a expressão da vontade. É
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hora de produzir conhecimentos (teorias e práticas) que permitam o avanço


do projeto do Compromisso Social. Alguns aspectos se mostram como ne‑
cessários: um deles é a aliança da pesquisa com a prestação de serviço. É
deste lugar e desta forma que queremos produzir a competência técnica que
o compromisso social exige. Outro aspecto importante é fazer isso em expe‑
riências interdisciplinares ou transdisciplinares. O novo projeto exige leituras
complexas, e isso só faremos nos reunindo a outros profissionais e pesquisa‑
dores que trazem suas leituras para tornar as nossas mais ricas e completas.
Um terceiro aspecto (não ouso dizer último, pois tenho a certeza de que são
muito mais que os mencionados) é a tarefa de levar nossos saberes e fazeres
para serem aplicados em serviços e pesquisas com populações que nunca ou
poucas vezes tiveram acesso a eles. E aqui, relacionado diretamente a esta
experiência, essência do compromisso social, reafirma‑se a importância da
disposição permanente de mudar nossas certezas.
Meus caminhos pela Psicologia me permitiram a certeza de que muitos
profissionais da Psicologia ou de áreas afins já estavam, no cotidiano de seu
trabalho, formulando e desenvolvendo novas possibilidades. Era preciso fazer
circular estas experiências. Foi com esta intenção que, em nome do Instituto
Silvia Lane — Psicologia e Compromisso Social —, apresentei à Cortez Edi‑
tora o projeto de uma coleção que permite a sistematização e a circulação de
títulos que representam áreas em que as urgências se colocam e nas quais
profissionais já apontaram novas possibilidades, fazendo avançar o projeto do
compromisso.
A Cortez Editora recebeu o Instituto Silvia Lane como parceiro, e aí está
o resultado: uma coleção com títulos diversos e de muitos autores. Um corpo
editorial formado por membros do Instituto aprovou o projeto e os títulos.
Pareceristas convidados pelo Instituto apreciaram as obras, opinaram, sugeri‑
ram e agora prefaciam os livros da coleção. Eu tenho o orgulho de organizar a
coleção e apresentar cada obra aos psicólogos, professores, pesquisadores e
estudantes que seguem construindo seu caminho na Psicologia e em áreas afins,
guiados pela vontade de manter com a sociedade brasileira um compromisso
de transformação e de construção de condições dignas de vida para todos.
Todos os livros desta coleção unem‑se pela proposta mais ampla de de‑
senvolvimento do projeto do Compromisso Social. Também apresentam em
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comum sua organização, por sua temática e sua necessária leitura crítica; além
disso, contêm referências para uma nova prática em seu campo e sugestões
de atividades e de leituras que podem diversificar o trabalho. A ousadia de
duvidar das certezas e de dar visibilidade a aspectos da realidade pouco co‑
nhecidos ou considerados unifica os autores em um único estilo.
Agradeço aos autores que confiaram a mim sua produção e aos parece‑
ristas/prefaciadores que com tanta atenção e competência ampliaram meu
trabalho.

Ana Mercês Bahia Bock


Organizadora da Coleção
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Prefácio

D iferentemente do que o senso comum expressa, o Brasil não é um país


que tenha muitos problemas sociais. Nós temos um só problema. Só que,
enorme! Invisibilizado no nosso cotidiano por artifícios misteriosos que o
encobrem, lidamos com as suas consequências nos mais triviais aspectos: na
qualidade do transporte coletivo disponível para as massas nas nossas metró‑
poles; na má qualidade da educação infantil e de todas as demais políticas
fundamentais e responsáveis pela reprodução da vida; ou pelas mortes des‑
necessárias, no caso da saúde, seja das novas gerações de um tipo de brasilei‑
ros, seja na garantia de menos desconforto para os mais velhos deste mesmo
tipo. Na atribuição de um valor para o salário mínimo, incompatível mesmo
com o adjetivo que o qualifica, porque a classe de pessoas que o recebe é
compreendida como um grupo sem pretensões e sem outras necessidades
para além de se reproduzirem, em parâmetros mínimos, compatíveis com a
subvida que levam. Nos mais diversos estilos de apartação social. Nos sofisti‑
cados, como os da má-fé institucional, que cinicamente segue nos afirmando
como todos somos “iguais perante a lei”, enquanto no cotidiano se revela que
a lei entre nós se dobra e se curva, às vezes fazendo malabarismos para aliviar
o seu peso e noutras, seletivamente, deixando-se cair, inclemente como deve
ser a boa lei, só que apenas nas costas de alguns. No cinismo com que assisti‑
mos e concordamos com as opiniões dos jornais televisivos noturnos sobre
impactos negativos no que diz respeito ao desemprego — e para a vida de uma
outra parte de nós — caso venham a ser regulamentados os direitos trabalhis‑
tas das domésticas, heranças atávicas de um passado senhorial, matriz de
nossa tradição secular no convívio com gente que não é gente e que a nossa
16 LUANE NEVES SANTOS

semântica é tão rica na nomeação: “gente sem eira, nem beira”, “sem classe”,
“gentinha”, “gentalha”, “arraia miúda”, “proleta”, “povo”, “povão”, “gente humil‑
de”, “favelado”, “pobre”, “ralé”. Razão dos nossos medos, das nossas desconfian‑
ças, das nossas inseguranças, depositários de todas as nossas projeções do pior
que trazemos em nós, seres a quem atribuímos todas as nossas limitações e as
do país, objetiva e subjetivamente. Somos uma sociedade aprisionada por não
sermos capazes de reconhecer o que nos aprisiona, não sermos capazes de
fazer perguntas em face do que fizemos como modo natural de sermos uma
sociedade. Nós, brasileiros, só temos um enorme problema social: a desigual‑
dade social. Desigualdade que não enxergamos porque ali só vemos, merito‑
craticamente, uma “natureza”. Desigualdade que é como um câncer a corroer
as entranhas da nação.
Quando a ideologia turva e encobre, a única esperança é a de uma filo‑
sofia que seja crítica de si mesmo e seja capaz de afrontar os “ídolos da tribo”.
Modernamente é isso que se espera de uma Ciência que seja capaz de repre‑
sentar bem a reveladora tradição “galileica” comprometida com o que está
para além das aparências, disposta a contrariar as evidências mistificadoras
em nome de fazer exprimir o não percebido, o não visto, o não pensado. Nes‑
ta perspectiva, é desesperançosa a tradição intelectual brasileira quando se
trata da produção de versões explicativas da “questão brasileira”. Miscigenação,
patrimonialismo, cordialidade, “jeitinho”, “caráter” são tipos de categorias
disponibilizadas pelo melhor da nossa inteligência nacional, que encontrando
eco no senso comum, amalgamam um “mito de nação” do qual também fazem
parte a ideia de que somos uma nação alegre, sensual, afetiva, emotiva, solar,
pacífica e tropical que soube como nenhuma outra “misturar” raças, tempe‑
rando com cordialidade os conflitos.
E se no campo das ciências sociais são poucos aqueles que desafiam o
coro dos contentes, as psicológicas são cegas, surdas e mudas quando se trata
de oferecer contribuição para o desvelamento de nossas contradições sociais
mais intestinas. O casamento de um subjetivismo individualista com uma
perspectiva a-histórica e elitista a faz uma grande caucionadora do véu meri‑
tocrático que tudo encobre e tudo justifica socialmente: “Cada um está no seu
lugar, graças a Deus”! “Cada um está socialmente localizado, onde fez por
merecer”. “O que conta é a qualidade de cada indivíduo, o que ele é capaz de
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fazer com o que fizeram com ele”; a sua capacidade de ser um organismo
“resiliente”. A ideia da igualdade de todos — e todas — perante a lei é irmã
carnal do “universalismo psicológico do humano” capaz de fazer abstrair
todos os “detalhes” definidores das condições concretas da existência que os
inscreve em culturas, classes, histórias étnicas, genealogia da sua posição nas
hierarquias, nas violências simbólicas e na engenharia das dominações de toda
ordem.
Estes parágrafos anteriores se impuseram a mim como necessários para
alertar o leitor acerca da importância da publicação que ora ele tem em mãos.
Nela, despretensiosamente e com a escrita clara de quem não tem nada para
esconder, a autora Luane Neves Santos desafia a si mesma para superar as suas
próprias cegueiras de “mulher brasileira” com sua trajetória ascendente de
classe; que se faz psicóloga através destas mesmas marcas. Ela se propõe por
meio da sua escolha temática — nessa oportunidade na qual se candidatou a
ampliar seu capital cultural pela assunção do primeiro degrau na carreira
científica — a deslindar as complexas tramas que instituem a sociedade bra‑
sileira como sexta economia mundial e oitavo lugar no campeonato mundial
de desigualdades sociais.
E o faz adotando no seu trabalho a perspectiva do diálogo interdiscipli‑
nar, acionando o melhor das “rebeliões teóricas” dos distintos campos disci‑
plinares que ela coloca para conversar. Escudada no sociólogo Jessé Souza,
uma das mentes mais lúcidas entre aquelas aplicadas na produção de “expli‑
cações sobre o Brasil” e dos autores nos quais ele se escora, compreende que
a tarefa intelectual no campo social tem as características de produção de
“recursos de guerra” pois, se as ideias não mudam o mundo em si mesmas, as
boas mudanças não podem ser feitas prescindindo de boas ideias que “cor‑
respondam aos fatos”. E os fatos recentes na vida política nacional têm evi‑
denciado todo tipo de resistência para que não seja superado o tempo dos
“pobres, honestos e limpinhos” mantidos no seu devido lugar.
De outro lado, aciona o pequeno time de psicólogos rebelados, que se
inscrevem entre os que recusam o lugar da psicologia como “dormente
ideológico” ou num lugar acrítico apenas como mais um recurso de domina‑
ção, buscando evidenciar que são nos próprios processos da vida social e
institucionais que se inscreve a produção das formas de subjetivação que
18 LUANE NEVES SANTOS

torna possível que uns e outros tenham seus scripts desenhados segundo o
grau de contingenciamento a que são submetidos pelas instituições sociais e
por estruturas injustas e injustificáveis.
E o faz cortando na própria carne. Primeiro, pela disposição de colocar
em questão os fazeres da sua própria profissão em xeque, já que biografica‑
mente teve vida profissional como psicóloga num estabelecimento hospitalar,
onde tinha entre sua clientela subcidadãos, e pôde vivenciar os modos como
as instituições tratam o tema da desigualdade: sem reconhecê-lo como tal.
Segundo, por sua disposição respeitosa de construção do trabalho empírico
junto a suas colegas, profissionais da Psicologia que se situam no fulcro da
estrutura desigual da sociedade brasileira, consubstanciado no espaço insti‑
tucional do SUAS, que é o locus do reconhecimento tardio da desigualdade
social como um problema não apenas dos que se encontram nas piores con‑
dições, mas, como questão estrutural, também necessita do engajamento do
Estado e da sociedade na sua superação.
Este trabalho contribui também para evidenciar as nossas lacunas teóri‑
cas; a necessidade de outras agendas de pesquisa que incluam os modos de
vida concretos de nossas populações de “desclassificados”. Mostra também o
quanto a formação e o preparo das nossas trabalhadoras psicólogas ainda se
encontram dissociados da realidade da vida da nossa gente e de nosso povo.
O quanto é profundo o abismo que nos separa das nossas clientelas, neste front
avançado, onde por mais evidente que a desigualdade se mostre, em todas as
suas facetas ela segue sendo ignorada como o fenômeno mais relevante.
Para mim, o livro fez refletir. As pessoas não são pobres porque ganham
pouco. Elas ganham pouco porque são pensadas como um tipo de gente que
não precisa de muito para viver. As pessoas não são desiguais porque são
pobres. As pessoas são pobres porque não são consideradas iguais, são pen‑
sadas como outra classe de humanidade. Gente que teima em se reproduzir a
despeito dos processos de negação histórica das suas existências.

Marcus Vinicius de Oliveira Silva


Vice-presidente do Islene
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O princípio da caminhada

O objetivo deste livro é discutir a temática da desigualdade social brasilei‑


ra, a partir do reconhecimento de sua expressão na atuação das psicó‑
logas e psicólogos, sobretudo nas políticas de assistência a populações em
condição de vulnerabilidade social. Intitulado A psicologia na assistência social:
convivendo com a desigualdade, o livro visa trazer para o debate o encontro
da Psicologia com o “social”, como superação da distância que a Psicologia
mantinha historicamente em relação à realidade social brasileira e à camada
pobre de nossa sociedade. Uma das experiências que propiciou esta aproxi‑
mação foi a abertura de amplo mercado de trabalho na assistência social.
Este encontro da Psicologia com o “social” foi e é permeado por tensões,
conflitos, e materializa-se atualmente nas políticas públicas, especialmente
nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) que oportunizam
às(aos) psicólogas(os) trabalhar pela superação das desigualdades sociais e
pobreza no país. Recorre-se ainda à noção de compromisso social da Psico‑
logia, destacando a necessidade de que tais estudos e práticas sejam analisados
à luz do reconhecimento e problematização da desigualdade social brasileira.
As reflexões que se seguem ancoram-se na Psicologia sócio-histórica, no
esforço para articular o sujeito ao seu processo social. A proposta é expandir
o debate sobre a desigualdade social e a expressão de sua dimensão subjetiva
20 LUANE NEVES SANTOS

na Psicologia como ciência e profissão, inspirados nas discussões teóricas que


sucederam a dissertação de mestrado da autora (Santos, 2013). Iniciaremos o
debate apresentando a minha trajetória frente à temática da desigualdade
social e a atuação como profissional e pesquisadora da Psicologia.
Na sequência, o capítulo A desigualdade social brasileira: uma questão
em debate apresenta um panorama geral sobre o fenômeno da desigualdade
social brasileira, destacando sua expressão complexa, numa proposta supera‑
dora da dicotomia indivíduo-sociedade. No terceiro capítulo, A psicologia e
o “social”, discute-se o processo de construção histórica da psicologia, incluin‑
do o processo de aproximação com as questões sociais, em especial as políti‑
cas públicas. Reflete-se sobre o (des)preparo dos profissionais para atuar
nesse cenário, considerando tanto o ponto de vista técnico quanto o desen‑
volvimento de recursos subjetivos para atuação com compromisso social.
O quarto capítulo, O SUAS como espaço de trabalho das psicólogas,
historia o processo de construção da atual política de assistência social no
Brasil, situando o funcionamento do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS) e a inserção de psicólogos e psicólogas nas equipes mínimas dos Cen‑
tros de Referência de Assistência Social. Posteriormente, o capítulo 5, O en‑
contro das psicólogas com o “social”: campos de expressão das desigualdades,
discutirá sobre o processo de trabalho das psicólogas em cenários de desigual‑
dade social extrema, refletindo sobre vínculo e tecnologias, colonização da
formação, deficiências e potencialidades. Aborda-se, assim, a psicologia e seus
problemas para lidar com o “social”, seus equívocos e seus modos.
O capítulo final, Por uma atuação com compromisso social na psicologia,
é um convite à reflexão e à construção de uma prática profissional compro‑
metida com a realidade social brasileira. Busca, portanto, rever o conceito de
compromisso social da psicologia à luz do enfrentamento ético-político da
desigualdade social em nosso país. Enfrentar este fenômeno significa por
vezes enfrentar a nossa própria trajetória, perceber as nossas contradições
como pessoas, profissionais e pesquisadores que, na vida e no trabalho, aliam
recursivamente posturas que contribuem para reprodução e transformação
da desigualdade social no Brasil.
Quando se fala de um tema como a desigualdade social brasileira, nos
reportamos a um aspecto tão estruturante da nossa sociedade, que, inevita‑
A PSICOLOGIA NA ASSISTÊNCIA SOCIAL 21

velmente, estamos nos remetendo a uma dimensão organizadora das subjeti‑


vidades individuais e sociais dos brasileiros. Por esta razão, opta-se aqui por
esclarecer ao leitor, de imediato, qual o princípio da caminhada da autora, não
só como profissional e pesquisadora do tema, mas como brasileira, que tam‑
bém é afetada pela vivência deste fenômeno. Princípio aqui entendido como
o início da jornada, mas também como o orientador desta, como o conjunto
de elementos que, ao serem explicitados, esclarecem as direções adotadas, os
limites e potencialidades das reflexões construídas.
Perceber-se como pesquisadora de um tema, analisando também a si
mesma dentro da atividade de pesquisa e frente ao objeto pesquisado, me
parece fundamental, e para auxiliar nesse intento, recorro à definição de im‑
plicação do sociólogo francês René Barbier (1985, p. 120):

A implicação, no campo das ciências humanas, pode ser então definida como
o engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis cientí-
fica, em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passada e
atual nas relações de produção e de classe, e de seu projeto sociopolítico em
ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso
seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento.

Barbier (1985) situa três níveis de abordagem para o conceito de impli‑


cação: psicoafetivo, histórico-existencial e estrutural-profissional. Tais níveis
encontram-se articulados e agem uns sobre os outros. O primeiro nível refe‑
re-se ao envolvimento pessoal do pesquisador, que do ponto de vista históri‑
co-existencial participa do “aqui agora” da sua pesquisa e atua a partir da sua
socialização, incluindo elementos da sua classe de origem e dos seus grupos
de referência. Aliado a tal processo, a atitude individual do profissional está
sujeita ao papel social de sua profissão dentro de um mercado de trabalho
estruturado pelas relações de classe, caracterizando o terceiro nível.
O contato com tal conceito foi, ao mesmo tempo, esclarecedor e revela‑
dor. A partir da noção de implicação posso analisar por que foi tão difícil me
tornar pesquisadora da desigualdade social e sua expressão na psicologia,
inicialmente no mestrado e atualmente no doutorado. Durante o mestrado
no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da
Bahia, me debati com diversas possibilidades temáticas para o projeto de
22 LUANE NEVES SANTOS

pesquisa, que sofreu pelo menos três mudanças significativas até chegar aos
entrelaçamentos entre subjetividade e desigualdade social na vivência das
psicólogas no CRAS/SUAS. As leituras eram, por vezes, mobilizadoras e o
tema parecia delicado demais para ser enfrentado.
Hoje, percebo que estou completamente implicada nas pesquisas que
venho desenvolvendo, não só pela minha condição de psicóloga brasileira,
que vivencia a desigualdade social como uma realidade que a nenhum de nós
pode escapar, mas também pela maneira particular com que esse tema se
apresentou na minha história pessoal e familiar. Venho de uma família hu‑
milde que ascendeu socialmente ancorada na noção de que a união familiar,
associada a uma dedicação extrema ao estudo e trabalho, é central para o
crescimento das pessoas. Eu, particularmente, não vivi situações de pobreza
e privação, mas acompanhei desde cedo os relatos sobre as dificuldades e
humilhações vivenciadas por meus avós e a superação transgeracional empre‑
endida por meus pais e tios.
Do ponto de vista pessoal, apesar de não vivenciar a pobreza, pude ex‑
perienciar a desigualdade e as ressonâncias subjetivas dessa vivência. Duran‑
te minha infância, vivi em um bairro popular de Salvador e estudava perto de
minha residência. Nesse período, os contatos sociais eram restritos a esse ciclo
e, frente à condição econômica dos meus colegas, a minha casa parecia aos
meus olhos um castelo, o que fazia eu me sentir em uma posição de conforto
e distinção.
Com o passar dos anos e a priorização pelo ensino de qualidade como
um valor familiar, fui transferida de escola duas vezes, sendo esta última si‑
tuada num bairro de classe média alta de Salvador. Lembro-me do estranha‑
mento com o bairro, com a escola, com os hábitos e, sobretudo, com o modo
de tratamento entre as pessoas a partir da posição social que ocupavam. Entrei
em contato com uma realidade socioeconômica que eu não tinha parâmetros
para dimensionar, e percebi que, aos olhos de muitos, o meu “castelo” poderia
ser apenas um casebre.
Talvez por tais identificações, minha história profissional tenha sido
construída na assistência a populações vulneráveis socialmente, seja nos es‑
tágios que realizei em saúde mental e hospitalar no Sistema Único de Saúde
(SUS) durante a graduação em psicologia pela Universidade Federal da Bahia,
A PSICOLOGIA NA ASSISTÊNCIA SOCIAL 23

ou mesmo como profissional de um hospital filantrópico, quando pude me


deparar com tantas histórias sofridas, não somente pelo aspecto do adoeci‑
mento físico, mas, sobretudo, pelo sofrimento social, pela dificuldade de
acesso à saúde e a condições mínimas para uma vida digna. Ao trabalhar
junto a populações vulneráveis como psicóloga hospitalar no SUS, percebi
que as minhas noções sobre a pobreza eram profundamente abstratas e que
as restrições e humilhações vivenciadas por essas pessoas são de uma concre‑
tude que chega a doer.
O contato com a abordagem teórica da desigualdade social, assim como
as leituras da psicologia sócio-histórica e do compromisso social, me sensibi‑
lizaram profundamente. Esse encontro teórico foi marcado por sentimentos
de revelação, resistência e transformações. Percebo claramente um antes e um
depois, sobretudo na construção cotidiana de uma atitude reflexiva sobre as
relações sociais, fortemente verticalizadas em nossa sociedade.
No início desses estudos, minha atuação profissional estava voltada para
a área hospitalar no SUS, e não foi fácil identificar momentos em que me
flagrei atuando na reprodução da desigualdade social, seja na “boa intenção”
de auxiliar um conhecido, ou mesmo desconsiderando os atravessamentos da
realidade social nos sujeitos assistidos, os quais, por vezes, impõem os limites
da ação desses sujeitos no mundo. Inferir ausência de demanda para atendi‑
mento psicológico, para pacientes que hoje avaliaria como portadores de
poucos recursos simbólicos para formular demandas nos moldes que apren‑
demos na academia, é um bom exemplo desse processo.
Apesar do caráter sofrido do contato com a implicação frente à desigual‑
dade social, há algo de substancial nesse novo olhar, que se traduziu em uma
prática profissional mais consistente. Reconhecer os limites dos usuários
oriundos das camadas pobres também me ajudou a buscar de maneira cons‑
ciente as potencialidades desses sujeitos, por meio de intervenções contextua‑
lizadas à realidade social e maior rigor quanto à anterior tendência de “ajudar
as pessoas”, quando a motivação era associada a uma identificação de classe.
Foi duro compreender que favorecer alguns implica necessariamente desfa‑
vorecer outros.
No mestrado, foi interessante o contato com participantes tão diversas
ao pesquisar as psicólogas que atuam nos Centros de Referências de Assistên‑
24 LUANE NEVES SANTOS

cia Social em municípios da região metropolitana de Salvador. Senti no meu


corpo a mistura de identificações e rejeições às visões de mundo e homem
apresentadas, bem como às concepções do trabalho junto a comunidades em
situação de vulnerabilidade social. Em muitos momentos, me emocionei com
o relato das minhas colegas, oscilando entre a raiva no julgamento ferrenho
e compaixão na empatia frente aos inúmeros obstáculos e dificuldades para
estruturação de uma práxis transformadora das desigualdades sociais. De
certa forma, vejo um pouco de mim na fala de cada uma delas, seja a Luane
do passado, do presente, ou mesmo a que visualizo para o futuro.
Atualmente, como aluna do doutorado no Programa de Educação: Psi‑
cologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sigo
aprofundando o estudo sobre a temática da desigualdade social e sua expres‑
são na psicologia, buscando captar como esse processo se apresenta na for‑
mação de psicólogos e psicólogas no Brasil. A desigualdade social sempre me
tocou, perpassou a minha história pessoal e familiar, como a história de
tantos outros brasileiros. Ao passo que não desejo me alienar, empobrecer,
não me parece um recurso eficaz. Que alternativas podem ser construídas
nesse contexto? Que essa desigualdade tão concreta e próxima, mas que teima
em se fazer invisível, possa se revelar, ainda que em parte, nas reflexões deste
trabalho.

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