A Ciência do Direito e Thomas Kuhn

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A Ciência do Direito e Thomas Kuhn

Dermeval Rocha da Silva Filho

Sumário: Introdução. 1. Vida e obra de Thomas Kuhn. Breve histórico. 2. Conceito


de paradigma. 3. Ciência normal. 4. Anomalias. 5. Crises. 6. Surgimento de novos
paradigmas. 7. A importância dos paradigmas existentes 8. A necessidade de novos
paradigmas. 9. Aplicação das ideias de Kuhn à ciência do direito. Conclusão.
Referências.

Resumo: Em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, Thomas Kuhn


inaugura na ciência o conceito de paradigma dominante, explica como se dá a sua
funcionalidade no dia a dia, discorrendo como os pesquisadores lidam com as
inevitáveis anomalias e crises em sua aplicação, trazendo, a partir de exemplos
clássicos da história da ciência, uma reflexão sobre a necessidade e a importância
de novos paradigmas como pressuposto para o avanço científico. No presente
artigo, estudaremos a influência das ideias kuhnianas para a ciência do direito,
sabendo-se que Kuhn não tratou dessa relação, e se de fato o universo do direito
comporta trabalhar com paradigmas dominantes ou “revoluções copernicanas”.

Palavras-chave: Kuhn. Paradigma dominante. Ciência do direito.

Abstract: In his Structure of Scientific Revolutions, Thomas Kuhn opens in science


the concept of dominant paradigm explains how is its functionality on a daily basis,
discussing how researchers deal with the inevitable anomalies and crises in their
application, bringing, from classic examples of the history of science, a reflection of
the need and the importance of new paradigms as a prerequisite for scientific
advancement. In this article, we will study the influence of Kuhn's ideas for the
science of law, knowing that Kuhn did not treat this relationship, and indeed the law
2

of the universe involves working with dominant paradigms or "Copernican


revolution".

Keywords: Kuhn. Dominant paradigm. Science of law.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende estudar como a obra de Thomas Kuhn (A


Estrutura das Revoluções Científicas), escrita em 1962, desenvolvida especialmente
no campo das ciências naturais e exatas, pode ajudar-nos a entender como
funcionaria a ideia de paradigma dominante na ciência do direito, se é que é
possível. Nessa perspectiva, traremos um breve panorama da vida e obra desse
autor, abordaremos o conceito de paradigma dominante, o que significam ciência
normal, anomalias, crises e como se dá o surgimento dos novos paradigmas.
Analisaremos a importância dos paradigmas existentes, enfocando a necessidade
de mudança de paradigmas como pressuposto para o avanço científico ou a eclosão
de revoluções científicas. Por fim, estudaremos a possibilidade de ampliarmos a
aplicação das ideias de Kuhn sobre paradigma dominante ao universo do direito, e
qual é a contribuição de sua obra para este ramo das ciências humanas.
3

1 VIDA E OBRA DE THOMAS KUHN. BREVE HISTÓRICO

Thomas Samuel Kuhn nasceu em Cincinnati, Ohio, Estados Unidos, em 18


de julho de 1922, tendo falecido em 17 de junho de 1996. Formou-se em Física,
tendo cursado, na mesma área, mestrado (1943) e doutorado (1949) na
Universidade de Harvard. Escreveu vários livros, a começar pelo A Revolução
Copernicana, publicado em 1957, tendo se notabilizado, entretanto, com o livro
Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962, que é o marco teórico deste nosso
artigo, uma das obras mais importantes do século XX, sede em que Kuhn traça um
histórico do desenvolvimento do conhecimento científico, inovando na academia
com a ideia do estudo dos paradigmas e sua superação como antepasso para as
revoluções científicas.

2 CONCEITO DE PARADIGMA

O termo paradigma tem origem no grego – paradeigma – que significa


modelo ou exemplo. Nas palavras de Thomas Kuhn, (1998, p. 29) que cunhou a
palavra no campo científico, trata-se de um “conjunto de crenças, valores e técnicas
comuns a um grupo que pratica um mesmo tipo de conhecimento.”

Em sua obra aqui estudada ele traz duas características que reputa
fundamentais ao paradigma: a primeira característica revela modelos construídos a
partir de pesquisas bem sucedidas, as quais, por seus resultados e conquistas,
conseguem convencer e atrair um grupo duradouro de novos adeptos, afastando-os
de outras formas de atividades científicas diferentes; em segundo lugar, paradigma é
algo consensualmente aceito como um padrão que se mostra apto a resolver todo e
qualquer problema que eventualmente venha desafiar o grupo de praticantes
daquela ciência.

Nesse sentido é que o autor se refere ao termo paradigma (KUHN, 1998, p.


29), “Daqui por diante deverei referir-me às realizações que partilham essas duas
características como “paradigmas”, um termo estreitamente relacionado com “ciência
normal.”
4

A “praia” do paradigma é a ciência normal, sendo ali que os cientistas


aparentemente convencidos, convertidos e comprometidos com os novos rumos da
ciência, acorrem para resolver os velhos problemas ou os problemas cotidianos, só
que dessa vez pautados pelas regras e padrões que conformam o novo
empreendimento científico.

3 CIÊNCIA NORMAL

A ciência normal não se preocupa em descobrir novidades. Ela não se


presta a tanto. A ciência normal rege-se e trabalha com a existência de um
paradigma ou padrão estabelecido para nortear o pensamento científico
consensualmente dominante, em torno de quem os cientistas fazem
tradicionalmente gravitar suas observações e resoluções de problemas. Tal
acontece nas escolas, nos laboratórios, nas indústrias, enfim, em toda parte onde se
pratica aquele determinado ramo da ciência.

É a pesquisa realizada hoje como produto cristalizado das descobertas


científicas de ontem. É o campo onde os cientistas de uma determinada comunidade
resolvem os problemas a partir de normas, manuais, procedimentos e fundamentos
construídos pelo advento do novo paradigma. Talvez não fosse o objetivo dos
cientistas irrequietos como Copérnico, Newton, Lavosier e Einstein, mas é fato que,
após o rompimento do velho para a chegada de um novo paradigma, eles chegaram
a um outro lugar comum, claro, em um outro nível, em um outro patamar evolutivo,
porém lugar comum ou ciência normal. É assim que funciona a ciência madura, a
ciência responsável.

Com efeito, é o estágio comum ou o “céu de brigadeiro” da ciência bem


sucedida, aquilo que podemos chamar de porto seguro para onde, ao fim e ao cabo,
chegarão os destemidos navegantes dos mares turbulentos das grandes revoluções,
o destino dos gênios que não se acomodam com o mesmo do mesmo, preferindo
conviver com os desafios que, se de um lado oprimem, do outro apontam para
novos horizontes e novas perspectivas, enfim, novos caminhos e novas rotas para o
5

conhecimento científico, pioneirismo digno dos grandes nomes da história da


ciência, características dos mais notáveis e premiados gênios da humanidade.

Segundo Kuhn, (1998, p. 77) “ciência normal, atividade que consiste em


solucionar quebra-cabeças, é um empreendimento altamente cumulativo1,
extremamente bem-sucedido no que toca ao seu objetivo, a ampliação contínua do
alcance e da precisão do conhecimento científico” .

Com isso, de início ele relaciona a ideia de ciência normal com a ideia de
quebra-cabeças, ensinando-nos, com essa ilustração, como se dá o processo de
resolução de problemas pela ciência normal, que se traduz em encaixar de forma
bem-sucedida2 cada peça do jogo com observância das regras postas pelos adeptos
do paradigma dominante e sem chance para sua alteração ou inovação3.

Em segundo lugar, ele apresenta a ciência normal como um edifício


construído de conhecimentos produzidos a partir de normas consensuais por parte
daquele grupo ou comunidade científica, sem qualquer indução a mudanças no
paradigma dominante. Por último, ele vai trazer a ideia de uma conjunção de
valores, modelos e normas comuns que pautam o agir especializado do cientista
normal, refinando-o, especializando-o mas também infelizmente rotinizando-o.

É por isso que Kunh (1998, p. 91) vai dizer que “essa profissionalização leva
a uma imensa restrição da visão do cientista e a uma resistência considerável à
mudança de paradigma. A ciência torna-se sempre mais rígida.”

1
(KUHN, 1998, p. 177), “Aliás, no capítulo A Invisibilidade das Revoluções Científicas, Kuhn
traz o seguinte: “Sendo os manuais veículos pedagógicos destinados a perpetuar a ciência
normal, devem ser parcial ou totalmente reescritos toda vez que a linguagem, a estrutura
dos problemas ou as normas da ciência normal se modifique. Em suma, precisam ser
reescritos imediatamente após cada revolução científica e, uma vez reescritos, dissimulam
inevitavelmente não só o papel desempenhado, mas também a própria existência das
revoluções que os produziram [...] Deste modo, os manuais começam truncando a
compreensão do cientista a respeito da história de sua própria disciplina e em seguida
fornecem um substituto para aquilo que eliminaram.”
2
(KUHN, 1998, p. 58) “Pelo menos para os cientistas, os resultados obtidos pela pesquisa
normal são significativos porque contribuem para aumentar o alcance e a precisão com os
quais o paradigma pode ser aplicado.”
3
(KUHN, 1998, p. 58) “[...] o objetivo da ciência normal não consiste em descobrir novidades
substantivas de importância capital [...]”.
6

Segundo Thomas Kuhn, o desafio do cientista ao cultivar a ciência normal


não é o desejo de ser útil, não consiste na exploração do novo, nem tampouco a
esperança de encontrar ordem e o impulso para testar o conhecimento estabelecido.
Ele vai dizer que (1998, p. 60) “Uma vez engajado em seu trabalho, sua motivação
passa a ser bastante diversa. O que o incita ao trabalho é a convicção de que, se for
suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar um quebra-cabeça que ninguém
até então resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem.”

Em outras palavras, a ciência normal é vista como um conjunto de modelos


bastantes em si mesmos, muitas vezes enxergados acriticamente como auto-
suficientes pela comunidade científica que os abraça dogmaticamente, dificultando
uma dialética saudável que pode ensejar o surgimento de alvissareiros avanços e
revoluções, enfim novos paradigmas.

4 ANOMALIAS

No “céu de brigadeiro” onde se dá o desenvolvimento da ciência normal, no


cotidiano onde o pesquisador seleciona os problemas e sai na certeza de respostas,
temos nada mais nada menos do que um convencional quebra-cabeças, cujo
desafio do cientista é fazer encaixar as aludidas peças. E encaixar as aludidas
peças acaba por ensejar a formação de uma cultura padronizada e adepta a
manuais para aperfeiçoamento de replicadores em série, numa perspectiva de
busca de eficiência e resultados, flertando assim com o pragmatismo característico
da ciência normal.

Ocorre, entretanto, que às vezes surgem ruídos na subsunção dos


problemas aos modelos ou paradigmas existentes, relativizando o encaixe perfeito
das peças do quebra-cabeças. De repente, meio que sem esperar, uma peça não se
amolda perfeitamente às outras peças, gerando com isso uma crise no paradigma
existente4. Entretanto, não é toda e qualquer anomalia que gera uma crise. Na
verdade, muitas anomalias surgem, suscitam dúvidas nos cientistas, mas tempos

4
KUHN,, op. cit., p. 92 “Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma,
tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e, consequentemente de uma
ocasião para a mudança de paradigma.”
7

depois acabam sendo superadas. Alarme falso. O processo subsuntivo volta a


funcionar.

É por isso que Thomas Kuhn (1998, p. 112) sugere que “para uma anomalia
originar uma crise, deve ser algo mais do que uma simples anomalia.” Para a
eclosão de uma crise, antepasso do novo paradigma, deve ser algo que escape às
dificuldades normais de adequação entre o paradigma e o problema a resolver, por
exemplo. Na verdade, uma anomalia não passa de algo que ao fim e ao cabo não
resiste a uma análise mais aprofundada, sucumbindo-se ao processo normal de
encaixe das peças do quebra-cabeça.

Em outras palavras, a anomalia surge inesperadamente, provoca uma certa


apreensão, mas logo depois acaba se encaixando ao quebra-cabeças, o qual
inclusive sai mais fortalecido dessas experiências de tensão e superação,
sedimentando na mente dos cientistas a crença na eficácia do paradigma dominante
e na capacidade de respostas seguras da ciência normal. Mudar pra quê? Não há
invenções, acontecimentos científicos notáveis ou impactos extraordinários entre os
especialistas ao enfrentarem as anomalias, não havendo que se cogitar ou pensar
em mudança de paradigma. Eficaz, portanto, “a pesquisa firmemente baseada em
uma ou mais realizações científicas passadas” (KUHN, 1998, p. 29), rendem-se
todos ao adágio popular, no sentido de que em time que se ganha não se mexe.

De acordo com o autor referido (1998, p. 113), “quando [...]uma anomalia


parece ser algo mais do que um novo quebra-cabeça da ciência normal, é sinal de
que se iniciou a transição para a crise e para a ciência extraordinária.”

Trataremos sobre crise no próximo tópico.

5 CRISES

As crises via de regra atestam a falência do paradigma dominante, o qual


não consegue, como outrora, dar respostas satisfatórias às anomalias que
inevitavelmente se apresentam. As peças simplesmente não se encaixam mais.
Alguma coisa não está funcionando para resolver aquele problema ou anomalia, o
8

que gera uma certa perplexidade no cientista, criando assim um ambiente especial e
impulsionador5 para fazer prosperar novas descobertas.

No funcionamento regular da ciência normal, no andar cotidiano da


resolução de problemas, vez ou outra, surge aquilo que Kuhn denomina de
anomalia. Anomalia, como já visto neste artigo, é um problema que de repente não
se amolda ao figurino convencionalmente apresentado como modelo ou paradigma
por um determinado campo do saber, mas que, no final das contas, acaba por ser
solucionado pela ciência normal. Entretanto, esse encaixe pode não acontecer como
se esperava, o que nos remete à ideia de crise, enfim, um estágio da ciência onde o
cientista simplesmente não sabe o que fazer, eis que o processo subsuntivo não
funciona mais. Segundo Kuhn (1998, p. 115), “uma crise pode terminar com a
emergência de um novo candidato a paradigma e com uma subsequente batalha por
sua aceitação.”

Não sabendo o que fazer e sendo corajoso – característica dos


revolucionários – essa crise acaba por impulsionar uma busca direcionada a apontar
caminhos e soluções, aparecendo aí novas perspectivas e, enfim, a eclosão de
novos paradigmas.

6 SURGIMENTO DE NOVOS PARADIGMAS

Segundo o professor Nelson Cerqueira6,

Se você ficar sempre considerando as normas, você estará no


paradigma vigente, no paradigma existente. Só quando saímos
do paradigma vigente é que vamos pensar em outras

5
(KUHN, 1998, p. 54) “Emergem apenas em ocasiões especiais, geradas pelo avanço da
ciência normal.”
6
Aula ministrada pelos professores Rodolfo Pamplona Filho e Nelson Cerqueira, na
disciplina Metodologia da Pesquisa em Direito, no Mestrado em Direito da Universidade
Federal da Bahia, em 23 ago. 2016.*
9

possibilidades7. Por outro lado, a sua investigação, a sua


curiosidade pode lhe orientar a buscar alguma outra coisa além
das normas, além do dogmático. E quando você busca alguma
coisa além do dogmático, você pode quebrar o paradigma. Mas
você tem que considerar que a investigação é estimulada por
um paradigma que está querendo surgir, querendo brotar. E
esse brotar é possível se você desconsiderar o paradigma
normal.*

Em outros termos, o surgimento de novos paradigmas é pressuposto


necessário para o avanço científico, mas tal não significa dizer que acontece dentro
das normas vigentes, de forma natural ou incentivada pelos convictos praticantes do
modelo existente, como se a própria comunidade científica cuidasse de pavimentar
esse caminho. Ao contrário, se no itinerário cíclico da ciência, primeiro temos a crise,
depois um paradigma, ciência normal, seguindo-se com uma crise novamente a
apontar um candidato a novo paradigma (crise, paradigma, ciência normal,
paradigma, crise), parece certo que isso se dá de forma absolutamente tensionada,
tendo Kuhn colecionados clássicos exemplos dessa difícil transição.

É claro, todavia, que o resultado final desse embate de forças para a eleição
do paradigma dominante, embora beneficie a sociedade, não culminará em
manchetes de jornais e revistas ou necessariamente vai ensejar uma chamada em
cadeia nacional de rádio e televisão; talvez de início no máximo uma publicação
numa revista científica de renome e quem sabe depois um prêmio nobel, desses que
bem poucos de fora da academia tomam conhecimento. Conforme afirmou Kuhn
(1998, p. 145),

7
Além de basear-se Kuhn, essa reflexão do prof. Cerqueira também encontra assento em
Paul Feyrabend (2007, p. 48) “Como descobrir a espécie de mundo que pressupomos, ao
agir como agimos? A resposta é clara: não podemos descobri-lo a partir de dentro.
Necessitamos de um padrão externo de crítica, necessitamos de um conjunto de
pressupostos alternativos [...].”
De igual forma o Prof. Cerqueira inspirou-se em Karl Popper (2004, p. 21), para quem “é o
cientista “não normal”, o cientista ousado, que abre as janelas e deixa entrar o ar fresco, que
não pensa sobre a impressão que causa, mas que tenta ser bem entendido.”
10

[...]não há transplante geográfico; fora do laboratório os


afazeres cotidianos em geral continuam como antes. Não
obstante, as mudanças de paradigma realmente levam os
cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de
pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu
único acesso a esse mundo dá-se através do que vêem e
fazem, poderemos ser tentados a dizer que, após uma
revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente.

Entretanto, apesar da comunidade científica reagir a um mundo diferente, tal


não significa dizer que para a afirmação de novos paradigmas é preciso lançar fora
os despojos do exemplar derrotado e descartar todo o estoque de conhecimento
adquirido anteriormente, nem tampouco largar mão dos instrumentos ou objetos
outrora utilizados, até porque Kuhn defende o caráter cumulativo da ciência (em que
pese não dos paradigmas), bem como a importância de prestigiar a sua história
evolutiva.

7 IMPORTÂNCIA DOS PARADIGMAS EXISTENTES

Paradigma remete à ideia de consenso, padrão ou modelo, e isso numa


sociedade plural, independentemente do campo do saber, é algo muito difícil de
conseguir. Segundo Kuhn (1998, p. 37), “a história sugere que a estrada para um
consenso estável na pesquisa é extraordinariamente árdua”.

Com isso, parece certo assinalar que, se de um lado o avanço científico é


necessário a bem da ciência e da humanidade, de outro é preciso admitir que a
ciência precisa trabalhar em bases sólidas e minimamente coerentes e sustentáveis,
daí a importância dos paradigmas.

Thomas Kunh (1998, p. 31) vai lembrar que os estudos sobre óptica física
antes de Isaque Newton eram extremamente desorganizados, assentados que
estavam em um apanhado de soluções individuais desprovidas de “um conjunto-
padrão de métodos ou de fenômenos que todos os estudiosos da óptica se
sentissem forçados a empregar e explicar.” Destaca que situações como esta são
11

típicas na história da ciência, sendo exceções a matemática e a astronomia, sede


em que os primeiros paradigmas datam da pré-história. Ilustra seu raciocínio
averbando que (1998, p. 41) “em algum momento entre 1740 e 1780, os eletricistas
tornaram-se capazes de, pela primeira vez, dar por estabelecidos os fundamentos
de seu campo de estudo. Daí para frente orientaram-se para problemas mais
recônditos e concretos.”

Parece relevante, portanto, a ideia de trabalhar com modelos ou exemplares


na ciência.

8 A NECESSIDADE DE NOVOS PARADIGMAS

Importante de antemão deixar bem claro que a mudança de paradigma não


é algo que deve acontecer pelo simples fato de que alguém ou algum grupo de
pesquisa assim entendeu por fazê-lo. Não decorre de um impulso rebelde movido
por um gesto de insubordinação individual com irradiação sobre uma comunidade da
ciência até então passiva, nem tampouco uma estafa natural que está a ponto de
vencer o cientista, fazendo-o ansiar por novos ares e novos horizontes para vencer a
monotonia dos laboratórios ou a aridez dos círculos acadêmicos. Não, não é isso.
Logo, não se pode, num gesto de rebeldia ou “anarquia”, rechaçar um paradigma,
sem, contudo, ao mesmo tempo, substituí-lo por um outro, o que configuraria a
rejeição da própria ciência (KUHN, 1998, p. 108).

Segundo Ken Wilber, (1998, p. 28-29), a ideia de paradigma de Thomas


Kuhn foi erroneamente interpretada por boa parte da academia e que The Structure
of Scientific Revolutions tornou-se o livro mal interpretado mais influente do século
passado, sendo que grande parte de sua popularidade veio de um mal-entendido de
suas conclusões fundamentais.

Kuhn enxergava a ciência instrumentalizando-se do método científico a


caminho da descoberta de respostas baseada não em teorismos, mas em fatos e
evidências empíricas, servindo-se para tanto de modelos ou exemplares testados e
comprovados que ele cunhou de paradigmas.
12

Entretanto, segundo Wilber, muitos começaram a entender a concepção de


paradigma numa perspectiva aberta a múltiplas interpretações possíveis da
realidade, não mais contingente como outra qualquer (1998, p. 28-29), enfim
modelos que em vez de descobertos, são construídos ao sabor de conveniências
culturais e sociais, exemplares que em vez de fundados em razões empíricas, são
fragilmente sustentados em meras teorias abstratas dissociadas de evidências reais,
algo que horrorizava Kuhn.

É o que Wilber chama de “teorismo8” ou paradigmas calcados, entre outras


coisas, em ideologias e interesses do momento, trazendo a seguinte crítica:

A idéia era de que, uma vez que os “paradigmas” governam a


ciência, se você não gosta da visão de mundo dela,
simplesmente imagine um novo paradigma para si mesmo, e é
aqui que o “narcisimo” entra em campo. Uma vez que os
paradigmas não se baseiam em fatos, não temos de ficar
presos à autoridade da ciência em nenhuma forma
fundamental. Em vez disso, a ciência se torna apenas mais
uma entre as diferentes leituras do texto do mundo, sem mais
autoridade real do que a poesia, a astrologia ou a quiromancia:
todas são interpretações igualmente legítimas da confusão
florescente e alvoroçada da experiência.

Em outros termos, não se trata de aspirações ideológicas ou palavras de


ordem apresentadas como fatos por uma geração narcisista que ao largo da ciência9

8
(WILBER, 1998, p. 29-30) “Esse “teorismo” também significa que a ciência era
presumivelmente arbitrária (ela seria o resultado não da evidência real mas de uma
estrutura de poder imposta), relativa (ela não revelaria nada de verdadeiram ente constante
na realidade, mas simplesmente coisas relativas à imposição científica do poder);
socialmente construída (não seria um mapa correspondente a uma realidade verdadeira,
mas uma construção baseada em convenções sociais), interpretativa (ela não revelaria nada
de fundamental sobre a realidade, mas seria simplesmente uma entre as muitas
interpretações do texto do mundo), carregada de poder (ela não se basearia em fato
neutros; ela não seria dominada por fato, mas simplesmente dominaria as pessoas,
geralmente por motivos etnocêntricos e androcêntricos); e não progressista (uma vez que a
ciência procede de rupturas e de quebras, não poderia haver progresso cumulativo em
nenhuma das ciências). Kuhn não confirmava nenhuma dessas visões”
9
(WILBER, 1998, p. 31) “Essa espalhafatosa má intepretação de Kuhn tirou de cena as
provas da verdade, e todos os projetos egocêntricos imagináveis correram para ocupar o
vazio. A ciência foi reduzida a entulho ou, mais precisamente, a poesia.”
13

se enxerga capaz de criar a sua própria realidade como centro do universo


(WILBER, 1998, p. 33).

Na verdade, a mudança de paradigma surge em um processo responsável


desencadeado pela necessidade da ciência ir ao encontro de sua razão de ser e
existir, que é a sua vocação instrumental para buscar verdades, ainda que
provisórias, resolver problemas ou oferecer soluções.
14

9 APLICAÇÃO DAS IDEIAS DE KUHN À CIÊNCIA DO DIREITO

As ideias de Thomas Kuhn sobre paradigma dominante ou exemplares de


uma comunidade científica parece que não se afinam perfeitamente às ciências
humanas e sociais10 11, em especial ao campo do direito, pelo menos da forma como
proposta para as ciências naturais e exatas no livro A Estrutura das Revoluções
Científicas.

E essa dificuldade de aproximação das ideias Kuhnianas à ciência do direito


pode ser melhor compreendida à luz de uma reflexão trazida (ASSUNÇÃO, 2010),
no artigo “Sobre a noção de paradigma e seu uso nas ciências humanas.”

Em seu artigo “Sobre a noção de paradigma e seu uso nas ciências


humanas”, José D’Barros Assunção vem sustentar que, ao contrário das ciências
exatas e naturais, as ciências humanas não caminham com exemplares únicos ou
paradigmas dominantes. Não há no campo das ciências humanas aquele modelo
único decorrente de uma ruptura revolucionária ou exemplar hegemônico com
vocação para o monopólio. Ao contrário. Na verdade, as ciências humanas
convivem com os chamados multiparadigmas, enfim, vários exemplares convivendo
e oferecendo soluções e respostas satisfatórias. Nesse sentido eis o seguinte
fragmento:

Com as ciências humanas, não é preciso insistir no fato de que


é muito mais comum identificarmos, ao longo de toda a sua
história, o eterno padrão dos “paradigmas concorrentes” que se
dão ao mesmo tempo, em recíproca descontinuidade. Aqui, se
10
(LIMA FILHO, 2014, p. 9) “Enquanto a normalidade científica, na perspectiva teórica de
Kuhn é um esforço de consenso com a finalidade de um entendimento, o dissenso é uma
característica das ciências sociais. As condições definidoras de crise do paradigma nas
ciências naturais são a rotina nas sociais (...) Chegaríamos à conclusão de que as ciências
sociais seriam anômalas, pois viveriam numa crise permanente sem uma normalidade
científica nem um paradigma definido.”
11
(WALTER, ROCHA, 2016, p. 11). “As ciências sociais e, consequentemente, a
administração poderiam ser consideradas como imaturas ou pré-paradigmáticas, visto que,
diante de seu recente surgimento, ainda não puderam consolidar seu paradigma. Para Kuhn
(1962), as ciências imaturas ou pré-paradigmáticas não possuem um conjunto hegemônico
de ideias fundamentais, ou seja, uma concepção geral com a qual a maioria dos
pesquisadores esteja de acordo e as empregue no desenvolvimento de seus trabalhos”.
15

cada teoria permite de fato colocar e resolver novos problemas,


não se pode dizer que um paradigma supere o outro, em
absoluto. É assim que, desde há muito, historiadores e
sociólogos se acostumaram a conviver com uma expressiva
diversidade de paradigmas relativos aos seus campos de
saber, e também de teorias concorrentes concernentes aos
seus mais diversos objetos de estudos (ASSUNÇÃO, 2010, p.
6).

A ideia aqui transmitida é que as ciências sociais e humanas, e esse


raciocínio aplica-se ao campo do direito, não trabalham pautadas em um paradigma
único, hegemônico, isolado, soberano e fruto de drástico rompimento com um outro
paradigma derrotado e abandonado, lidando bem, ao revés, com um universo plural
de exemplares que se dialogam, sem se excluírem mutuamente, e que se
comunicam a bem do progresso científico12. Ele vai concluir que a comunidade de
historiadores, por exemplo, “jamais se pronuncia em bloco a favor da adoção de um
único paradigma, mesmo ao cabo de algumas gerações, tal como ocorreu com a
maior parte da comunidade dos físicos ao aderir ao paradigma newtoniano, e ao
considerá-lo mais tarde superado pela teoria da relatividade.” (ASSUNÇÃO, 2010, p.
11)

E como proposta para uma melhor adaptação das ideias kuhnianas às


ciências humanas, Assunção (2010, p. 11) vai defender que, ao lado do termo
paradigma, poderíamos falar – talvez com mais propriedade - da noção de matriz
disciplinar, que também é um conceito trazido por Kuhn em sua obra aqui
estudada13, e que “corresponderá, antes de mais nada, a um universo mais amplo
de valores que dificilmente seriam colocados em questionamento pela ampla maioria
dos praticantes do campo” (ASSUNÇÃO, 2010, p. 11)

(LIMA FILHO, 2016, p. 9) “A lógica das ciências sociais não é igual à lógica das ciências
12

naturais. Leocádio.”
13
(KUHN, 1998, p. 225) “Para os nossos propósitos atuais, sugiro “matriz disciplinar”:
“disciplinar” porque se refere a uma posse comum aos praticantes de uma disciplina
particular; “matriz” porque é composta de elementos ordenados de várias espécies, cada um
deles exigindo uma determinação mais pormenorizada.”
16

E de fato a ciência do direito acomoda-se nesse universo – que não se


enfeixa no figurino positivista das ciências14 – lidando melhor em seu objeto não com
aquilo que só pode ser visto por um microscópio ou telescópio, como nas “ciências
duras”, mas, consoante lição de Karl Larenz, compreendido como um fato cultural ou
enquanto um complexo recortado de acontecimentos ou situações a que empresta
significados e valorações (2009, p. 131).

No campo do direito, por exemplo, teríamos alguns princípios e postulados


básicos ou estruturais que são aceitos por todos ou quase todos os seus praticantes,
formando assim um conjunto irredutível, “e que, de certo modo, é o que marca a
identidade do campo em relação a outras áreas de saber – constituindo, por assim
dizer, o “núcleo duro” de uma matriz disciplinar‟ (ASSUNÇÃO, 2010, p. 11)

De fato, acostumado a lidar com premissas teóricas que paralelamente


gozam de geral aceitação pela comunidade jurídica, parece que o direito se encaixa
melhor nessa ideia de pluriparadigmas ou com a noção de matriz disciplinar,
bastando, para tanto e por conta dos limites desse artigo, citar alguns exemplos:

Primeiro, o exemplo do princípio da legalidade no âmbito da Administração


Pública.

De há muito se convencionou e se entendeu que o princípio da legalidade


significa dizer que o administrador público só pode fazer aquilo que estiver
expressamente estabelecido na lei. Segundo Gustavo Binenbojm (2008, p. 27), “Tal
paradigma costuma ser sintetizado na negação formal de qualquer vontade
autônoma aos órgãos administrativos, que só estariam autorizados a agir de acordo
com {...} a lei.”

Em sua obra citada, fruto de tese de doutorado em direito público pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e adotando algo que ele chama de uma
“concepção fraca” de paradigma para adaptá-la à ciência do direito, Binenbojm

14 (LARENZ, 2009, p. 125) “Com exceção da lógica e da matemática, o conceito positivista


de ciência só admite como científicas as disciplinas que se servem dos métodos das
ciências da natureza, ou seja, de uma pesquisa causal que assente na observação, na
experimentação e na recolha de factos. Ora, não só a ciência do Direito, mas também as
chamadas ciências do espírito, como, por ex., a linguística, a história de arte, da filosofia e
da literatua, e, muito mais ainda, a filosofia e a teologia, são manifestamente incompatíveis
com semelhantes métodos. Se estas ciências não devem ser todas excluídas do círculo das
ciências reconhecidas, então carece de crítica o próprio conceito positivista de ciência.”
17

inspira-se em Thomas Kuhn para defender que o paradigma da legalidade está em


crise por conta da emergência de um candidato à sua sucessão, chamado
paradigma da juridicidade, ainda em batalha de aceitação no Brasil. Pode até se
confirmar essa tese do professor carioca, tanto mais porque a história da ciência
está a demonstrar que crises podem durar muitos anos, talvez passar por muitas
gerações de cientistas, até vingar o processo revolucionário de desconstrução do
velho para o surgimento do novo paradigma.

Em que pese, infelizmente, o “fraco” paradigma da juridiciadade (aqui tratado


como candidato) ainda não goze do prestígio merecido no país, sobretudo no âmbito
da Administração Pública, preferimos acreditar, no entanto, que haverá um só
horizonte de ciência normal para esses dois paradigmas, os quais funcionarão
juntos, cada qual finalmente cumprindo seu papel de apontar respostas às questões
suscitadas, eis que, além do direito não operar com paradigma dominante, o modelo
da supremacia legal (como na administração tributária e no direito administrativo
sancionador, por ex.,) apresenta-se como a cristalização de conquistas históricas em
favor do cidadão, ou seja, o agir do servidor ou agente público em tais casos ainda
depende de previsão ou regramento legal (e é bom que o seja), até porque a própria
Constituição assim prefere, de modo que em muitas situações a sua conduta é
pautada única e exclusivamente na lei.

A supremacia da lei, enfim, ainda é um paradigma vigente no direito pátrio,


gozando de “boa saúde” e com promessa de grande longevidade. Aliás, o próprio
professor Binenbojm (2008, p. 147) admite que “Apesar de a lei do parlamento, no
sentido literal clássico, encontrar-se em crise, ela ainda é importante fonte do direito
administrativo, sendo o meio constitucional através do qual são ordinariamente
criados direitos e obrigações.”

De qualquer sorte, o velho modelo hoje não vale mais para tudo, eis que de
outro lado já entrou no radar da jurisprudência o “paradigma” da juridicidade (ainda
princípio da juridicidade), algo mais amplo que o paradigma da legalidade, dado que
as discussões postas a acertamento ao Estado-juiz não mais se limitam à fria
legalidade, sendo – em grande parte - amplificadas em prestígio à força normativa
da Constituição.
18

Entra em consideração aqui a ampliada perspectiva do princípio da


legalidade, a saber: o princípio da juridicidade, o qual inicialmente vinha sendo
trabalhado na academia15 e que de há muito goza do prestígio da jurisprudência
pátria16.
Em um outro trecho do ensaio de Assunção (2010, p. 8), temos a seguinte
reflexão:

O universo das ciências sociais e humanas, enfim, oferece


desde cedo aos seus praticantes uma complexa rede de
paradigmas e posicionamentos teóricos que devem ser
escolhidos, caso a caso, para a prática da produção de
conhecimento em cada um dos campos de saber. Não é com a
sucessão de paradigmas que suplantam uns aos outros, e que
fazem a ciência avançar a partir de rupturas irreversíveis, que
lidam os cientistas sociais e humanos, mas sim com a
possibilidade de estabelecerem uma comunicação entre
mundos distintos.

É o princípio da juridicidade entendido como reflexo da necessária


constitucionalização da ordem jurídica, mas sem rupturas irreversíveis típicas das

15
(BINENBOJM, 2008, p. 36-37) “Tal postura científica assenta na superação do dogma da
imprescindibilidade da lei para mediar a relação entre a Constituição e a Administração
Pública. Com efeito, em vez de a eficácia operativa das normas constitucionais –
especialmente as instituidoras de princípios e definidoras de direitos fundamentais –
depender sempre de lei para vincular o administrador, tem-se hoje a Constituição como
fundamento primeiro do agir administrativo.”
16
“No Recurso Especial nº 1001673, o STJ assim decidiu “[...] 4. Cabe ao Poder Judiciário,
no Estado Democrático de Direito, zelar, quando provocado, para que o administrador atue
nos limites da juridicidade, competência que não se resume ao exame dos aspectos formais
do ato, mas vai além, abrangendo a aferição da compatibilidade de seu conteúdo com os
princípios constitucionais, como proporcionalidade e razoabilidade.”

“No mesmo sentido, no Mandado de Segurança nº 26.849, o STF pontuou que “[...]A rigor,
nos últimos anos viu-se emergir no pensamento jurídico nacional o princípio constitucional
da juridicidade, que repudia pretensas diferenças estruturais entre ato de poder, pugnando
pela sua categorização segundo os diferentes graus de vinculação ao direito, definidos não
apenas à luz do relato normativo incidente na hipótese, senão também a partir das
capacidades institucionais dos agentes públicos envolvidos.”
19

“ciências duras”, e em processo de construção de mais uma matriz disciplinar na


ciência do direito.

Enfim, dito de outra forma, o paradigma da legalidade caminhará


normalmente com o paradigma ou matriz disciplinar da juridicidade, em que pese
este último esteja ainda fase de aceitação no país, sendo de se esperar que, mesmo
com sua consolidação, ambos ao final serão aplicados a seu tempo e modo – ainda
que em regime de concorrência ou tensão - a depender do caso concreto, na
medida das possibilidades fáticas e dos abrandamentos necessários.

O segundo exemplo de convivência de paradigmas tem relação com a


eficácia dos direitos fundamentais.

Havia um paradigma no sentido de que os direitos fundamentais não


poderiam ser invocados em face de particulares, mas apenas em face do Estado,
tendo em conta o grande prestígio de outro paradigma muito importante que é o da
milenar autonomia da vontade, uma das colunas do direito privado. Aquele primeiro
e antigo paradigma está em processo de mudança no Brasil (talvez em crise),
gozando referida tendência do beneplácito da maioria da doutrina e jurisprudência,
em ordem a se admitir a eficácia dos direitos fundamentais entre particulares.
Entretanto, mesmo aquele velho paradigma estando em fase de transição,
reavaliação e, quem sabe, superaçao, parece certo que sua convivência com o
paradigma da autonomia da vontade durará por muito tempo ainda ou chegará
apenas um ponto ótimo de acomodação (como no primeiro exemplo), uma evidência
que nas ciências sociais, como a do direito, revoluções copernicanas são realmente
muito raras ou improváveis.

De fato os direitos fundamentais têm como razão de ser inicialmente a


necessidade da limitação do Estado em face do cidadão, eis que tais direitos
nasceram pela necessidade de se tutelar os cidadãos em face do Estado. Foi na
Alemanha, entretanto, mais especificamente a partir dos artigos 1º e 19 da
Constituição Federal de 1949, que surgiram os primeiros debates sobre a a eficácia
entre os particulares dos direitos fundamentais.

Em que pese essa iniciativa na Alemanha, há quem se posicione


contrariamente à ideia de eficácia entre particulares dos direitos fundamentais, ao
20

argumento de que isso sacrificaria o princípio da autonomia contratual, uma ameaça


à própria lógica interna do direito privado17.

Contudo, questionando essa visão, Virgílio Afonso da Silva (2008, p. 18)


pondera que ela é limitada e “provou-se rapidamente insuficiente, pois se percebeu
que, sobretudo em países democráticos, nem sempre é o Estado que significa a
maior ameaça aos particulares, mas sim outros particulares, especialmente aqueles
dotados de algum poder social ou econômico.”

Ou seja, de um lado o Estado e do outro o cidadão, o clássico titular dos


direitos fundamentais. Tais direitos surgiram à época do liberalismo, ao passo que a
eficácia dos direitos fundamentais entre particulares é uma pauta relativamente
nova, eis que surgiu posteriormente na Alemanha18. Assim, o primeiro paradigma é
no sentido de que direitos fundamentais geram pretensões apenas contra o Estado,
já o segundo paradigma é no sentido de que a autonomia da vontade deve ser
considerada, não podendo sofrer interferências indevidas.

Demonstraremos aqui, ainda que em passant, que já de algum tempo esses


paradigmas comportam releituras não mais mutuamente excludentes mas
harmonizadoras, o que tem sido feito pela doutrina e jurisprudência pátria.

Juan María Bilbao Ubillos, (2003, p. 27), autor espanhol e defensor da


aplicação direta dos direitos fundamentais entre particulares, vai ponderar que tal
aplicação em algumas hipóteses comporta limites e abrandamentos, como no caso
do princípio da igualdade, argumentando que “a vinculação do princípio da igualdade
só pode impor-se de forma mediata ou indireta, por via legislativa, como sucede no
âmbito laboral [...]. E sempre com prudência, para não aniquilar a especificidade
deste tipo de relações”.

17
(VIANNA, p. 576) “Os defensores desta posição consideram que a extensão da eficácia
dos direitos fundamentais às relações privadas, além de desnecessária, seria contrária à
própria natureza e ao âmbito de aplicação desses direitos, constituindo gravíssima ameaça
à autonomia privada, capaz de destruir a identidade do direito privado, além de conferir
exagerado poder aos juízes em detrimento do legislador democrático”.
18
(ABRANTES, 2005, p. 74-75) “a ideia de que os direitos e liberdades fundamentais se
impõem aos cidadãos nas suas relações interprivadas, constituindo um limite à autonomia
negocial, é originária da Alemanha. Já aflorada no domínio da Constituição de Weimar [...]
veio mesmo a transformar-se num “tema-paradigma” do Direito Constitucional e do Direito
do Trabalho nas décadas de 50 e 60.”
21

O exemplo mais comum de aniquilamento da autonomia da vontade


aconteceria se um pai desse um presente em favor de um filho em detrimento dos
demais, e se, insatisfeitos, pudessem os demais filhos acionar o pai para obter do
Poder Judiciário uma decisão reparadora com base no direito fundamental à
igualdade. Não é assim que funciona, a eficácia dos direitos fundamentais entre
particulares comporta ponderações.

A propósito, válido trazer aqui antes dos julgados, por sua pertinência com o
tema em foco, o magistério de Luciano Martinez (2013, p. 139) ao abordar o alcance
da proteção constitucional à liberdade sindical, nos seguintes termos:

A vinculação dos particulares em matéria de direitos da


liberdade sindical merece uma menção particularizada à sua
exigibilidade nos processos legislativos privados [...] como é o
caso dos acordos coletivos e das convenções coletivas de
trabalho, mas também ao processo de confecção de
instrumentos sem força normativa, mas que têm, por conta da
autonomia individual privada, status de fonte autônoma de
direitos e deveres como, por exemplo, estatutos, regulamentos
e contratos, com destaque especial para o contrato de
emprego.

E arremata o professor (2013, p. 140): “Quem, enfim pode negar que esses
atos jurídicos estão submetidos ao dever de conformação aos parâmetros fornecidos
pelas normas de direitos fundamentais?”

Cite-se como exemplo dessa linha de entendimento a impossibilidade de um


contrato de trabalho trazer cláusula proibitiva ao técnico em radiologia de prestar
serviços a mais de um empregador, e com isso violando o princípio da liberdade
profissional. É o que decidiu o Tribunal Superior do Trabalho, no Recurso de Revista
nº 2810-75.2011.5.02.0035, verbis:

[...] A Lei 7.394/1985, em que se estabelece duração semanal


máxima do trabalho para técnico de radiologia em vinte e
quatro horas e, ao mesmo tempo é fixado piso salarial superior
ao mínimo legal (arts. 14 e 16 da Lei 7.394/1985) oferece
garantia ao trabalhador. Não há proibição expressa à
22

acumulação de mais de um vínculo de emprego, seja na


iniciativa privada ou no setor público, para a categoria. 1.4.
Realmente, o art. 5º, II e XIII, da Constituição Federal,
assegura ao cidadão o livre exercício de sua profissão. 1.5.
Diante disso, embora a redução dos riscos à saúde, inerentes
ao trabalho, seja princípio da maior relevância, não anula a
liberdade individual do trabalhador que, à míngua de
disposição normativa expressa, tem espaço para discernir
sobre o que é melhor para sua vida, inclusive deliberar pela
acumulação de dois vínculos como de técnico em radiologia.

Portanto, à luz desse caso, pareceria cabível admitir a eficácia dos direitos
fundamentais entre particulares, inclusive nas relações laborais privadas, hipótese
em que um cidadão pode aferir se um determinado contrato – independentemente
de qualquer legislação mediadora – ofende ou não o texto Maior.

Porém, malgrado o caso referido, o Supremo Tribunal Federal, órgão que


tem a última palavra sobre a aplicabilidade das normas constitucionais, ainda não se
posicionou categoricamente sobre o paradigma vigente, mesmo tendo oportunidade
para tanto: Trata-se do Recurso Extraordinário nº 201.819/RJ, sede em que a União
Brasileira de Compositores – EBC, recorreu contra acórdão do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, que confirmou decisão de primeira instância no sentido
de reintegrar membro excluído daquela entidade, ao argumento de afronta ao
princípio constitucional do contraditório e ampla defesa. A relatora do recurso,
Ministra Hellen Gracie, votou pelo provimento do recurso, entendendo tratar-se de
questão meramente infralegal que se resolve por meio do quanto previsto em
estatutos e regulamentos internos da entidade, os quais gozaram da anuência e
foram livremente subscritos pelo particular dentro de sua autonomia privada. O
Ministro Gilmar Mendes, em voto revisor, abriu divergência negando provimento ao
recurso, elencando as várias correntes doutrinárias acerca da eficácia dos direitos
fundamentais entre particulares, em que pese não tenha se filiado a nenhuma delas.
Isso vale frisar aqui.
23

Naquela assentada, e vislumbrando ofensa ao contraditório pela entidade, a


Corte preferiu abraçar a doutrina norte-americana da state action19, corrente que
admite a aplicabilidade dos direitos fundamentais entre particulares, desde que para
tanto o agente supostamente violador se comporte no caso como representante ou
longa manus do Estado. Dito de outra forma, o Ministro Gilmar Mendes optou por
fundamentar o seu voto, no que foi acompanhado pelo tribunal, apenas no caráter
público da atuação da EBC, deixando a Corte ao menos uma sinalização de sua
posição sobre o assunto aqui enfocado, que é ainda pelo respeito ao paradigma da
autonomia privada.

De qualquer sorte, ainda que o Supremo Tribunal Federal posicione-se pela


apliacabilidade ampla dos direitos fundamentais entre os particulares, tal não
resultará na pena de morte do clássico paradigma dos direitos fundamentais
enquanto pretensões subjetivas do cidadão em face do Estado. Talvez no máximo o
surgimento de um novo modelo ou quem sabe apenas uma adaptação no já
existente, marca do processo cumulativo da ciência do direito, envidenciando o seu
ambiente propício a pluriparadigmas.

(VIANNA, 2003, p. 582) “[...] há atividades que, independentemente de delegação, são de


19

natureza essencialmente estatal, implicando a submissão dos particulares que


eventualmente as exercem aos direitos fundamentais.”
24

CONCLUSÃO

De fato a obra estudada neste trabalho é um clássico da história da ciência


e, como tal, não poderia deixar de influenciar, em alguma medida, todas as demais
disciplinas do campo do saber, tanto aquelas da área de estudo das “ciências
duras”, quanto aquelas relacionadas às ciência humanas e sociais, a exemplo do
direito.

O progresso tem a ver com própria essência ou espírito da ciência, sendo


até mesmo intuitivo admitir que os paradigmas estão aí para serem superados no
tempo e no espaço e que a ciência – qualquer que seja ela - não será ciência se ela,
trilhando no campo dialético, não for dinâmica, mutável e aberta a evolução.
Oportuna a reflexão que o autor faz sobre a importância dos paradigmas para a
ciência, mostrando, todavia, como se dá muitas vezes a árdua transição de um
paradigma para outro, trazendo o elemento crise como um instrumental comumente
necessário para novas descobertas, enfim, novos paradigmas.

Parece claro, contudo, que a influência de Thomas Kuhn para o universo do


direito não se dá da mesma forma constatada nas ciências cujas perpectivas
positivistas caracterizam-se pela verificação e experimentação. De igual forma,
iluminados pela obra visitada de Ken Wilber, aprendemos que no campo do saber
não seria intelectualmente correto buscarmos inspiração em Thomas Kuhn para
sustentar que cada indivíduo ou grupo pode no grito adotar um paradigma só para
chamar de seu, desprestigiando o seu legado e as noções elementares do método
científico.

Ao que se vislumbrou neste artigo, com recurso didático a dois casos


extraídos da dogmática constitucional (princípio da legalidade e eficácia dos direitos
fundamentais), a ciência do direito não trabalharia com paradigma dominante nem
com a hipótese de reviravoltas extraordinárias a exemplo da guinada do
geocentrismo para a Revolução Copernicana do heliocentrismo, ela funcionaria na
verdade com uma convivência de paradigmas ou, como inferiu José D’Barros
Assunção na própria obra de Kuhn, com uma comunicação de matrizes
disciplinares, que não se excluem mutuamente, militando, ao revés, em regime de
25

complementação e colaboração, como de praxe acontece nas ciências humanas e


sociais.

REFERÊNCIAS

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