Em trânsito pelas fronteiras do Jornalismo

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Comunicação Pública

Vol.14 nº 27 | 2019
Número com dossiê temático

Em trânsito pelas fronteiras do Jornalismo


In transition through the boundaries of Journalism

Joaquim Fidalgo

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/cp/5522
DOI: 10.4000/cp.5522
ISSN: 2183-2269

Editora
Escola Superior de Comunicação Social

Edição impressa
ISBN: 2183-2269
ISSN: 16461479

Refêrencia eletrónica
Joaquim Fidalgo, « Em trânsito pelas fronteiras do Jornalismo », Comunicação Pública [Online], Vol.14
nº 27 | 2019, posto online no dia 13 dezembro 2019, consultado o 14 novembro 2020. URL : http://
journals.openedition.org/cp/5522 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cp.5522

Este documento foi criado de forma automática no dia 14 novembro 2020.

Comunicação Pública Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons -
Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.
Em trânsito pelas fronteiras do Jornalismo 1

Em trânsito pelas fronteiras do


Jornalismo
In transition through the boundaries of Journalism

Joaquim Fidalgo

NOTA DO EDITOR
Recebido: 27 de setembro de 2019
Aceite para publicação: 28 de outubro de 2019

1. Apresentação
1 A história da constituição do jornalismo enquanto profissão é, em boa parte, a história
do desenho e da afirmação das fronteiras que delimitam um território específico sobre
o qual os ‘legítimos’ representantes reclamam uma determinada jurisdição (Abbott,
1988; Fidalgo, 2008). Esta marcação de terreno, como acontece com qualquer uma das
chamadas ‘profissões estabelecidas’, faz-se a par com a definição das condições – nos
planos cognitivo, associativo e normativo (Larson, 1977) – que devem ser preenchidas
por todos os que queiram ser ‘incluídos’ na profissão e que servem também para
‘excluir’ quantos, trabalhando em atividades mais ou menos semelhantes, não as
preencham. Este é, no entanto, um processo difícil e controverso, pois tais fronteiras
são frequentemente porosas e evoluem ao longo do tempo, em função dos contextos
históricos, sociais e culturais. Isso sucede quer porque a profissão, em certo momento,
pretende alargar a sua jurisdição a áreas situadas nas margens do seu território
(Ruellan, 1997), quer porque atividades concorrentes situadas na linha de fronteira
tentam ser admitidas também naquele espaço. Em tempos de transição, não é difícil
encontrar exemplos do chamado ‘boundary work’ (Gieryin, 1983; Lewis, 2013) – ou seja,
um trabalho que se desenvolve nas zonas algo ambíguas de fronteira e que, por isso,
disputa o direito a ser considerado profissional no mesmo plano, embora não seja aceite

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como tal pelo grupo que institucionalmente domina o território. Afinal, como recorda
Stuart Hall (apud Tenenboim-Weinblatt, 2009, p. 420), “os jornalistas, tal como outros
grupos sociais e comunidades, definem a sua identidade em relação com, e por exclusão
de, alguns outros”.
2 Tendo este cenário como pano de fundo, é nosso propósito refletir aqui sobre o trânsito
entre o território do jornalismo e o de outros ofícios da área da Comunicação,
designadamente recolhendo (através de um inquérito online) os testemunhos e
avaliações de um conjunto de profissionais que em determinada altura transpuseram
essa fronteira.

2. ‘Boundary work’ em múltiplas formas


3 O território que os jornalistas procuraram delimitar com exclusividade, nos inícios do
processo de profissionalização, tinha por objeto a procura, a produção, a edição e a
difusão de notícias e a informação sobre a atualidade, mas estabelecendo como
pressuposto que isso devia ser feito com respeito por um conjunto de padrões
profissionais, princípios éticos e normas deontológicas: disciplina de verificação, rigor,
objetividade, independência, abertura à prestação de contas (‘accountability’),
orientação pelo interesse público (Kovach & Rosenstiel, 2004). Entretanto, várias outras
atividades ligadas aos domínios da comunicação no espaço público – tais como
publicidade, assessoria de comunicação, marketing, relações públicas, comunicação
empresarial, etc. – foram-se desenvolvendo também, sendo formalmente diferenciadas
do jornalismo (em alguns países, como é o caso de Portugal, os jornalistas estão mesmo
legalmente proibidos de trabalhar nesses domínios – cf. Estatuto do Jornalista, 1999).
Este processo levou a que a prática do jornalismo ficasse pertença, em jeito de
monopólio, daqueles que detinham o estatuto legal – e respetivo reconhecimento
político e social – de jornalistas, assim se definindo os profissionais mais pela categoria
que lhes era outorgada (o ‘ser’) do que pela atividade concreta que desempenhavam (o
‘fazer’) (Ruellan, 1997).
4 Mas as múltiplas transformações ocorridas nas últimas décadas vieram desafiar este
estado de coisas. Na sequência dos desenvolvimentos tecnológicos associados à era
digital – a que se vem acrescendo uma maior vontade de participação dos cidadãos na
esfera pública (Rosen, 2006) –, cada vez mais pessoas se foram envolvendo em
atividades de algum modo ligadas à produção e difusão de informação, reivindicando
fazer também alguma forma de jornalismo, mesmo que apenas numa base amadora e
casual. A disseminação explosiva de instrumentos de autoedição, baratos no custo e
fáceis no manuseamento, desde blogues às múltiplas plataformas de redes sociais, e
tudo isso estimulado pelas potencialidades infindas da Internet, tornou acessível a
qualquer um(a) o exercício do trabalho informativo, que, até há poucos anos, requeria
uma infraestrutura empresarial, organizacional e económica bastante pesada (Stearns,
2013). O monopólio do exercício do jornalismo desapareceu, portanto. E até a relevância
dos jornalistas enquanto mediadores entre os produtores primários de informação e os
seus destinatários finais quase desapareceu, com a facilidade que hoje tem qualquer
entidade de comunicar diretamente com toda a gente, através do website, do Twitter, do
Facebook, do Youtube. Neste cenário, fala-se já não de produtores de informação, de um
lado, e de consumidores de informação, do outro, mas de “prosumidores” (em inglês, “
produsers”), simultaneamente num e noutro polo dos processos comunicativos. A

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simples necessidade de inventar uma nova palavra, híbrida, dá conta de como as


antigas palavras já não bastam para dizer as novas realidades (Kunelius, 2016).
5 De hibridização se pode falar igualmente a propósito de ‘publirreportagens’ (ou ‘
advertorials’, ou ‘infomercials’, na terminologia anglófona). É novamente de zonas de
fronteira que se trata: os domínios tradicionalmente separados da informação
jornalística e da publicidade foram-se aproximando, por vezes até confundindo, com
isso aumentando as zonas de tensão que tantas vezes no passado se tinham insinuado.
Para isto contribuíram, mais uma vez, mudanças importantes no panorama mediático
(de novo com o contexto digital em pano de fundo) e novas sensibilidades no plano
sociocultural.
6 O tradicional modelo de negócio em que assentava a atividade dos media, com uma
substancial parte dos seus custos coberta por receitas publicitárias e alguns proventos
oriundos da venda de exemplares ou assinaturas, entrou em crise, uma vez que se foi
disseminando a ideia de que os conteúdos jornalísticos podem ser consultados
gratuitamente. E, com a diminuição das tiragens dos jornais, diminuiu também o
investimento publicitário nesses meios, tudo contribuindo para a sua fragilização em
termos económicos e para a busca de modos supostamente mais atrativos de anúncio
comercial de produtos. Começaram então a aparecer, e não têm parado de proliferar, os
formatos de publicidade que se assemelham a formatos jornalísticos, quando não se
confundem deliberadamente com eles. “Content marketing”, “branded content”, “native
advertising” (Foremski, 2010), “conteúdos patrocinados” são termos que se tornaram
correntes nas empresas de media e cujo fundo comum é o seu carácter híbrido,
misturando de algum modo (e em diversos graus) o que tradicionalmente se associa aos
formatos da informação jornalística e o que é do domínio da informação comercial –
desde logo porque é um serviço encomendado e pago por clientes 1. E nalguns casos são
os próprios jornalistas que acabam por ser chamados a trabalhar, mais às claras ou mais
dissimuladamente, na ‘produção’ destes novos ‘conteúdos’ – o que volta a questionar a
especificidade das fronteiras que delimitam o território profissional dos jornalistas.
7 Por outro lado, nas últimas décadas têm ganho enorme relevância, seja nas instituições
públicas, seja no domínio empresarial, as áreas da comunicação estratégica, da
assessoria e das relações públicas: serviços que procuram, de modos e com objetivos
diversos, publicitar o que se faz, estabelecer pontes com os jornalistas, construir uma
boa imagem pública, afirmar uma presença positiva nos media. A procura de
profissionais que se encarreguem destas tarefas tem crescido fortemente, o que fez com
que se tenham multiplicado cursos e formações para os novos ofícios, mas também com
que se tenha cativado um razoável número de jornalistas para o novo mercado de
trabalho. E muitos jornalistas, por muito diversas razões, têm trocado o seu ofício por
outros ligados à assessoria de imprensa, à gestão ou consultoria em comunicação, à
comunicação estratégica ou às relações públicas, como adiante veremos. O pressuposto
é que um jornalista domina um conjunto de saberes e competências que se podem
revelar de grande utilidade nas funções ligadas à gestão de comunicação e à elaboração
de ‘conteúdos patrocinados’. Basta fazer uma pesquisa rápida na internet para ver a
quantidade de páginas que glosam este tema: o de que os jornalistas dão, em princípio,
bons ‘content marketers’ (ver Figura 1). E porquê? As explicações aduzidas andam todas,
com ligeiríssimas variações, em torno destas qualidades atribuídas aos jornalistas 2:
• São pessoas treinadas;
• São bons a fazer perguntas;

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• São excelentes contadores de histórias;


• Sabem escrever de um ponto de vista neutro, não ‘para vender’;
• São excelentes a fazer investigação e entrevistas aprofundadas;
• Estão habituados a respeitar prazos e ‘deadlines’;
• Têm poder de influência.

Figura 1 – Do jornalismo ao ‘content marketing’

Fonte: World Wide Web, sites diversos

3. Novas ameaças – novas oportunidades?


8 Todo este contexto levanta questões sobre o presente e o futuro do jornalismo, a
começar na sua eventual (re)definição e a terminar na identidade profissional dos
próprios jornalistas.
9 A demarcação clara entre o que é informação jornalística (informação selecionada,
trabalhada e difundida segundo critérios de interesse público) e o que é publicidade nas
suas múltiplas formas (informação de carácter comercial, desenvolvida a pedido de
clientes e paga, respondendo a critérios de interesse particular) tem por propósito
essencial não iludir ou enganar os públicos. A publicidade sempre esteve presente nos
órgãos de comunicação social (sendo essencial para a sua sobrevivência económica),
mas tradicionalmente em espaços e com formatos que claramente a identificavam – e,
fazendo-o, demarcavam-na dos conteúdos editoriais. Este imperativo ético de
transparência é relevante na medida em que reforça a credibilidade dos media e
permite manter uma relação de confiança com quem os usa. Ora é esta relação que fica
em causa se começam a surgir e a multiplicar-se exemplos de confusão deliberada entre
conteúdos editoriais e conteúdos comerciais, como se tem visto nos anos mais recentes

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(Benton, 2014; Meyer, 2014). De modos mais ou menos disfarçados, e com uma
identificação nem sempre visível, surge uma diversidade de “conteúdos patrocinados”
que, no fundo, procuram mimetizar os formatos jornalísticos e, assim, transmitir uma
mensagem de facto publicitária, mas disfarçada com as marcas da independência e do
rigor tradicionalmente associadas ao jornalismo3.
10 Problemas de tipo semelhante podem ocorrer quando jornalistas são chamados a
trabalhar em áreas de publicidade, de informação comercial ou de comunicação
estratégica, com isso afetando também a imagem de isenção, independência e serviço
público que são apanágio (e precioso património) da profissão. O facto de estarem
definidas legalmente – além de ética e deontologicamente – certas incompatibilidades
entre o trabalho como jornalista e funções nas áreas de publicidade, marketing,
assessoria de imprensa ou relações públicas4 procura, precisamente, proteger uma
relação de confiança com os públicos que só pode estar assente em pressupostos de
clareza e de transparência. Mais uma vez, o que se questiona não é o facto de haver
quem trabalhe numas ou noutras áreas de comunicação no espaço público, mas o facto
de isso não dever fazer-se em simultâneo5. Aliás, está legalmente previsto que um
jornalista que passe a trabalhar nessas outras áreas o faça sem problemas, desde que
deposite o título que o habilita profissionalmente junto da Comissão da Carteira
Profissional de Jornalista (CCPJ), recuperando-o quando cessa as funções abrangidas
pela incompatibilidade.
11 O quadro aqui sumariamente descrito não é, no que toca aos jornalistas e às fronteiras
da profissão, isento de controvérsia. Há, desde logo, a pressão sobre o mercado de
trabalho, que advém da difícil situação económico-financeira de boa parte dos meios de
comunicação e que tem tornado cada vez mais frequente o trânsito de jornalistas para
outras atividades que lhes são, por assim dizer, próximas. Encontrar ocupação
permanente, estável e razoavelmente remunerada no jornalismo, nos tempos que
correm, não se revela tarefa fácil. Em contrapartida, as oportunidades de trabalho
noutros domínios da comunicação continuam a aumentar, e em boa parte dos casos
oferecendo condições mais aliciantes do ponto de vista material.
12 Mas a própria coexistência destes dois mundos em separado – e com fronteiras bem
desenhadas – vem sendo questionada, ora porque a revolução digital alterou
substancialmente a paisagem mediática, ora porque o contexto sociocultural permite
olhares diferentes sobre estas realidades. É o que sublinha Sparrow (2014, s/p):
In the early years of the transition from mass media to digital media, traditional
news organizations held tightly to their model of a firewall between content and
advertising. But technology companies such as Google and Facebook built new
business models that specifically tied content to advertising.
13 O certo é que proliferam os exemplos de ‘boundary work’ neste domínio: atividades que,
banidas pelos jornalistas no passado, desejam agora ser, de algum modo, aceites (e
legitimadas) na esfera socialmente mais valorizada do jornalismo. Paralelamente, isso
implicaria uma maior flexibilidade também no trânsito entre ofícios da comunicação,
ou até a sua acumulação, no caso dos profissionais. E isto sucede em diferentes sentidos:
podem ser jornalistas que passam a trabalhar em assessoria ou publicidade ao mesmo
tempo que fazem trabalho jornalístico (muitas vezes em regime ‘freelance’), podem ser
jornalistas que deixam o domínio dos media e passam a desenvolver o seu ofício numa
empresa industrial ou comercial, procurando ajudar a vender os seus produtos.

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14 O assunto não é fácil. Veja-se, a propósito, o que diz um profissional que deixou o
jornalismo num jornal tradicional e passou a trabalhar em ‘produção de conteúdos’
numa empresa industrial chamada HubSpot (um exemplo daquilo a que hoje se chama “
brand journalism” ou “corporate journalism”):
I still think of myself as a journalist, but I don’t know if I would call myself that
officially. I think being a journalist — a real journalist — is a special thing, and
requires real independence, which I don’t have. My job is to get people to be aware
of HubSpot in hopes that some small percentage of them will actually buy HubSpot
software. That’s not journalism. Yes, it involves storytelling, content creation, skills
that you develop as a journalist. (…) Some of the stuff I write I think I could be
publishing in Newsweek or any other mainstream media outlet. But no, my job
really is not journalism (apud Lasica, 2013).
15 Entre o que ‘é’ jornalismo e aquilo que ‘parece’ jornalismo, há uma diversidade
crescente de interpretações. No sentido de contribuir para aprofundar a reflexão e
acrescentar-lhe alguns dados de pesquisa empírica, dirigimos um inquérito a um
conjunto de profissionais portugueses que decidiram trocar o jornalismo por outro
ofício da área da comunicação. O objetivo essencial é conhecer mais em profundidade
as suas experiências concretas, bem como os modos de olhar estas questões, quer no
plano pessoal, quer num plano mais geral. Disso daremos conta na segunda parte deste
artigo.

4. O olhar de ex-jornalistas
16 A nossa reflexão teórica sobre o tema das fronteiras mais ou menos porosas em redor
do jornalismo, com as implicações que isso tem no plano do trânsito de profissionais
deste ofício para outros da área da comunicação estratégica ou persuasiva, foi
complementada com uma investigação empírica, de que agora se apresentam
elementos informativos e resultados.

4.1. Notas metodológicas

17 A investigação empírica consistiu no lançamento de um inquérito a profissionais de


diversas áreas da comunicação (assessores de imprensa, consultores de comunicação,
etc.) que obrigatoriamente tivessem já trabalhado como jornalistas profissionais. Ou
seja, jornalistas que em determinada altura – por gosto, por necessidade, por
oportunidade – decidiram mudar de ofício, embora mantendo-se no domínio da
comunicação.
18 O inquérito foi feito através de um questionário distribuído online. Na fase preparatória,
um primeiro modelo de questionário foi apresentado, em forma de pré-teste, a quatro
pessoas cuja situação profissional correspondia ao universo em estudo, tendo
posteriormente havido conversa direta com cada uma, de modo a ajustar perguntas e
formulações.
19 O questionário era constituído por três partes: a primeira destinada à recolha de
elementos de identificação e caracterização da pessoa inquirida, a segunda solicitando
explicações e opiniões no plano pessoal (sempre através de questões abertas) e a
terceira pedindo explicações e opiniões no plano geral (também através de questões
abertas).

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20 A amostra foi constituída pelo método de “bola de neve” (Coutinho, 2018, p. 97) – as
primeiras abordagens foram feitas a partir dos nossos conhecimentos diretos, nuns
casos por e-mail e noutros por telefone, tendo-se pedido aos contactados que
fornecessem dados de contacto de outros/outras profissionais em situação semelhante.
A distribuição do inquérito e a recolha das respostas ocorreram entre março e setembro
de 2017.

Figura 2 – Caracterização da amostra

Fonte: Elaboração própria

21 No total, foram inquiridas 65 pessoas – 34 do género masculino e 31 do género


feminino. A grande maioria (40 inquiridos) reside/trabalha na região da Grande Lisboa,
seguindo-se o Grande Porto (20) e o Resto do País (5), algo que não surpreende, dada a
concentração de empresas da área da comunicação nas duas grandes metrópoles (e
muito especialmente na capital).
22 A nível etário, a maior fatia situa-se na faixa dos 40 – 49 anos (25 casos), seguindo-se a
dos 50 – 59 anos (19) e a dos 30-39 anos (11).
23 Relativamente ao período na atual profissão, depois de terem deixado o jornalismo, são
23 os que o fizeram há menos de cinco anos, 17 há mais de 11 e menos de 20 anos, e 15
há mais de cinco e menos de dez anos.

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Figura 3 – As “novas” profissões dos inquiridos

Fonte: Elaboração própria

24 Das 65 pessoas que responderam ao inquérito, quase metade (30) trabalha hoje em
Assessoria de Imprensa/Assessoria de Comunicação, seja em instituições públicas, seja
em empresas privadas. Das restantes, 17 são Consultores/as de Comunicação e seis são
Diretores/as de Comunicação. Quanto às restantes 12, há designações profissionais
diversas – Direção de Marketing Corporativo, Relações Públicas, Gestão de
Comunicação, Comunicação de Ciência, Consultoria em Comunicação Estratégica,
Comunicação Interna –, mas o âmbito é semelhante.
25 Dado pretendermos fazer, a partir dos resultados deste inquérito, uma reflexão
essencialmente qualitativa, baseada nas perceções individuais de um conjunto de
profissionais, não tivemos a preocupação de que a amostra correspondesse, em termos
estatísticos, ao universo a estudar. O número de respostas obtido (65) pareceu-nos
interessante para não nos ficarmos apenas por situações casuísticas, mas não há
qualquer pretensão de considerar a amostra representativa, nem em termos globais,
nem em termos de distribuição geográfica ou de escalões etários. De resto, não há
sequer, no país, dados rigorosos que nos permitam arriscar números sobre a
quantidade de ex-jornalistas hoje a trabalhar nos novos domínios da comunicação.
26 Isto significa que não se fará qualquer extrapolação dos dados recolhidos para o
universo em análise, mas apenas se avançará com algumas reflexões e hipóteses de
explicação.

4.2. Questões de investigação

27 Os objetivos essenciais do inquérito tinham que ver com uma melhor compreensão dos
motivos por que estes profissionais tinham trocado o jornalismo por outra profissão na
área da comunicação estratégica e/ou organizacional, bem como de qual o balanço que
faziam da nova experiência, por relação com a anterior, e até que ponto a sua decisão se
tinha tornado definitiva ou, pelo contrário, poderia vir a ser revertida.
Simultaneamente, procurou-se recolher as opiniões dos inquiridos sobre estes dois
domínios profissionais da área da comunicação e o seu relacionamento mútuo.

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28 Tendo em conta o propósito específico deste artigo, referir-nos-emos a sete questões


que quisemos ver abordadas pelos inquiridos:
29 Q1: Porque trocaram o jornalismo por outra profissão da área da comunicação?
30 Q2: Admitem ou não regressar ao jornalismo? Porquê?
31 Q3: Como entendem que uma e outras profissões são olhadas (e valorizadas) pelo
público?
32 Q4: Até que ponto a experiência profissional como jornalista foi relevante para o
exercício das novas funções?
33 Q5: Até que ponto consideram ambos os ofícios (in)compatíveis?
34 Q6: Aprovam que profissionais vão alternando trabalho como jornalistas e como
assessores/consultores de comunicação?
35 Q7: Consideram importante diferenciar os ‘produtos’ de cada uma destas profissões?

4.3. Apresentação e discussão de resultados

36 (Q1) Em resposta à primeira questão – formulada nos seguintes termos: “Porque deixou
o jornalismo e passou a dedicar-se à nova profissão/atividade?” –, emergiram três
grandes explicações: razões materiais (mudar de ofício significou ir ganhar mais
dinheiro), razões emocionais (cansaço e/ou desilusão com o jornalismo e desejo de
mudança) e razões externas (mudança forçada, por despedimento ou extinção do posto
de trabalho, ou surgimento de uma oportunidade aliciante).
37 Dos 65 inquiridos, quase um terço (20) apontou o dinheiro como motivo para a
mudança, embora quase sempre associado a uma outra razão: dinheiro + desilusão com
o jornalismo (9), dinheiro + desejo de mudança (5), dinheiro + razões familiares (3),
dinheiro + aproveitamento de uma oportunidade (3).
38 Eis alguns exemplos de respostas, no que toca ao primeiro tipo de explicações (razões
materiais):
- [Deixei o jornalismo] porque o jornalismo deixou de conseguir pagar-me as contas
ao final do mês.
- Melhor equilíbrio trabalho/vida pessoal. Novos desafios. Salário mais
recompensador. Desencanto com a crescente falta de condições para fazer um
trabalho jornalístico relevante.
- Pela degradação das condições de trabalho (principalmente pela baixa
remuneração e perda de regalias); pela falta de possibilidade de realizar
reportagens e trabalhos mais aprofundados.
- Aconteceu naturalmente, embora tenha havido três razões que, somadas, foram
decisivas para deixar o jornalismo: a) A possibilidade de maior retorno financeiro,
b) A menor pressão do trabalho diário na assessoria e c) Um certo desejo de
mudança para fazer algo de novo e diferente.
39 O segundo grupo de explicações (apontado por 14 inquiridos) tinha que ver com
cansaço e desilusão relativamente ao trabalho em jornalismo, com o complementar
desejo de mudar, de experimentar outra coisa. Exemplos:
- [Mudei] porque me deparei com dificuldades crescentes para cumprir a missão de
jornalista como a entendia e deixei de sentir a recompensa devida em relação aos
sacrifícios impostos à família.
- Porque o trabalho que estava a fazer no jornalismo deixou de ser apelativo e as
condições, tanto éticas como profissionais e financeiras, degradaram-se.

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- Porque o jornalismo se tornou uma profissão desinteressante, com redações cheias


de estagiários que ninguém tinha tempo de formar e onde o importante era
transformar press releases em notícias. Tudo se tornou superficial.
40 Do total dos inquiridos, 14 referiram ter mudado de atividade por a tal terem sido
forçados, enquanto 11 apontaram como móbil principal o surgimento de uma boa
oportunidade e seis referiram explicitamente a vontade de mudar. Exemplos:
- [Mudei porque] fui despedido do jornal (…). Ao fim de quase dois anos
desempregado, aceitei aquela que foi a única oferta de emprego que me surgiu.
- Vontade de mudar.
- Curiosidade em experimentar e perceber como funciona "o outro lado", bem como
a possibilidade de aprender mais (…).
41 (Q2) Sobre a segunda questão – “Pensa voltar a trabalhar como jornalista? Porquê?” –, a
grande maioria dos inquiridos (43 em 65) foi clara ao recusar essa hipótese. Apenas
quatro dos respondentes admitiram regressar à profissão, enquanto os restantes 18 não
quiseram dar uma resposta taxativa e preferiram ficar-se pelo “talvez” (“talvez sim”
em três casos, “talvez não” em nove, apenas “talvez” em seis). Os motivos aduzidos são
variados, apresentando-se em clara correlação com as respostas à questão anterior. Ou
seja, os motivos que levaram à saída do jornalismo mantêm-se atuais e explicam porque
não se deseja reverter a situação profissional, agora ou no futuro.
42 Alguns exemplos de respostas:
- Não excluo [voltar ao jornalismo], mas não penso nisso. É uma profissão de
enorme desgaste físico e emocional. E o digital veio tornar o seu exercício ainda
mais desafiante.
- Sim, numa fase posterior. Porque tenho esperança de que as empresas
proprietárias de órgãos de comunicação social invertam esta tendência e voltem a
valorizar o jornalismo de qualidade, em detrimento do jornalismo fast food.
- Não. Depois de trabalhar a informação "dentro" das instituições, é difícil regressar
ao papel de pesquisador externo dessa mesma informação.
- Não. Porque considero que a saída do jornalismo para a assessoria é um caminho
só de ida, embora tenha o maior respeito por quem regressa.
43 (Q3) Na terceira questão, procurava-se indagar até que ponto a atual profissão dos
inquiridos era mais ou menos valorizada do que a de jornalista, seja em termos de
estatuto social perante a opinião pública, seja em termos de estatuto profissional e
remuneratório. E aqui as respostas foram de sentido oposto, conforme se falava de um
domínio ou de outro.
44 Uma clara maioria dos respondentes (41 em 65) é de opinião que a atual profissão é, em
termos de estatuto social, MENOS valorizada do que a de jornalista. Cinco (5) entendem
que, pelo contrário, é mais valorizada, enquanto 11 não veem grande diferença entre
uma e outra, e oito não têm opinião sobre o assunto.
45 Em contrapartida, no que toca à componente material, uma maioria ainda mais
expressiva (45 em 65) entende que a atual profissão é MAIS valorizada do que a de
jornalista em termos de estatuto económico (remuneração). Apenas quatro consideram
que é menos, enquanto seis entendem que a situação é semelhante em ambas as
profissões. Um pequeno número de respondentes (cinco) entende que é difícil dar uma
resposta taxativa, pois tanto pode ser 2mais” como “menos”, em função de critérios
específicos (por exemplo, a posição na hierarquia das empresas e a senioridade). E
quatro não têm opinião sobre a matéria (ver Figura 4)

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Figura 4 – O estatuto social e o estatuto económico

Fonte: Elaboração própria

46 Alguns exemplos das justificações dadas:


- As perceções mudam consoante o tipo de público. Quem conhece mal a atividade
de consultor de comunicação desvaloriza-a, quem conhece bem valoriza-a. (…) Esta
atividade já foi mais mal vista, assim como o jornalismo já foi mais bem visto...
- É menos valorizada. A maioria das pessoas nem percebe o que fazemos. Mesmo os
"empregadores" não sabem bem. Depois, à exceção de uns mais exuberantes
comunicadores, estamos nos bastidores, poucos nos conhecem. E, ao contrário de
um certo romantismo com que se olha para o jornalismo, os assessores são vistos
como uma espécie de mercenários ao serviço do poder e do dinheiro.
- Creio que, em geral, o estatuto de assessor de imprensa é menos valorizado
socialmente que o estatuto de jornalista (…), mas mais valorizado em termos de
remuneração.
- O nível médio das remunerações dos jornalistas sofreu uma descida acentuada, em
consequência da grande oferta de profissionais no mercado (…). Com esse
enquadramento, a minha atividade é mais bem remunerada que a média dos
jornalistas, mas compara mal com alguma "elite" do jornalismo que se encontra nas
direções, nas televisões e algumas áreas especializadas.
- A profissão de jornalista é vista como algo nobre, entre o lunático e o justiceiro. Os
jornalistas têm muito poder na opinião pública. Os assessores/consultores/‘spin
doctors’ são malvistos, conotados com alguma obscuridade. A esmagadora maioria
da minha família nem sequer entende o que faço para ganhar a vida.
47 (Q4) A quarta questão buscava indagar até que ponto a experiência dos inquiridos
enquanto jornalistas tinha sido relevante para a nova atividade como assessores de
imprensa/consultores de comunicação, fosse no momento (e na oportunidade) da
contratação, fosse no exercício das novas funções. E as respostas foram claríssimas: 63
dos 65 inquiridos responderam que a experiência como jornalistas tinha sido
importante para a sua contratação para o novo trabalho (apenas dois entenderam que
isso não tinha tido relevância); por outro lado, 61 dos 65 consideram que a anterior
atividade no jornalismo se tem revelado importante para o bom desempenho das
funções em assessoria/consultoria de comunicação (apenas um respondeu “não” e três
entendem que essa experiência terá tido alguma importância mas não terá sido
decisiva).
48 São duas as ordens de razões mais referidas pelos respondentes para explicar esta
opinião: por um lado, as competências e os saberes associados ao labor profissional dos
jornalistas; por outro lado, a componente relacional e a capacidade de ‘networking’
daqueles profissionais.
49 Na primeira ordem, são referidos dados mais técnicos, como a capacidade de escrever,
depressa e bem, textos que são dirigidos para os media e que, portanto, respeitam uma

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determinada estrutura (o ‘lead’, a ‘pirâmide invertida’, a escolha de um título, a


capacidade de síntese, a valorização do que é mais importante). É também referida a
capacidade de ex-jornalistas para perceberem o que são factos relevantes e noticiáveis,
bem como a sua competência para traduzir em linguagem acessível informações por
vezes muito técnicas, tornando mais apelativa e eficaz a mensagem a passar. A
necessidade de cumprir prazos (‘deadlines’) e de ter atenção ao tempo certo da
divulgação de notícias é igualmente recordada como uma das rotinas em que os
jornalistas mais se foram treinando e que depois podem exercer na assessoria ou ofícios
afins.
50 Na segunda ordem, praticamente todos os inquiridos invocam o conhecimento vivido
do mundo dos media, bem como das redações e do ‘modus operandi’ dos jornalistas no
seu dia a dia, como um ativo muito relevante para o bom exercício das suas funções na
área da comunicação persuasiva, para a qual se mudaram. Além disso, destacam a boa
carteira de contactos que um jornalista normalmente acumula (e que um ex-jornalista
pode usar nos novos contextos), assim como um conhecimento aprofundado da
atualidade nacional e internacional – e em particular de certos domínios em que se era
especialista. Há ainda quem refira que o facto de se ser ex-jornalista torna mais fácil a
interlocução com jornalistas, pois pressupõe respeito mútuo e uma base de confiança
na relação. Como dizia um respondente, porém, existe o reverso da medalha: “Torna-se
mais difícil termos de ‘vender’ a um jornalista algo em que nós próprios sabemos que
não pegaríamos quando éramos jornalistas”. Ou seja, o conhecimento (vivido) de ambos
os lados traz vantagens, mas aqui e ali pode implicar alguma inibição.
51 Como vemos por estas respostas no contexto português, a perceção da importância da
experiência jornalística para trabalhos dos domínios da assessoria ou comunicação
estratégica coincide no essencial com testemunhos recolhidos noutras latitudes e
noutros contextos, tal como referimos atrás (ver ponto 2).
52 (Q5) Na quinta questão, procuramos refletir sobre o aspeto das eventuais
incompatibilidades entre a profissão de jornalista e as profissões da área da
comunicação persuasiva. Num primeiro momento, foi perguntado se os inquiridos
conheciam situações de pessoas a trabalhar em simultâneo nas duas áreas (algo que,
como acima dissemos, é proibido em Portugal). E as respostas foram surpreendentes:
dos 65 inquiridos, 40 afirmaram conhecer pessoas que acumulam trabalho nos dois
domínios, enquanto 19 disseram que não e seis não sabem/não respondem (ver Figura
5).
53 Em complemento, foi perguntado se aprovavam ou desaprovavam tal situação, sendo
que aqui as respostas se matizaram um pouco. Aproximadamente metade da amostra
(32) disse desaprovar, enquanto seis inquiridos disseram aprovar. Pelo meio, ficaram
opiniões intermédias, fossem as de quem não tem uma posição fechada sobre o assunto
(7), fossem as de quem não sabe/não responde (9), fossem as de quem desaprova mas
diz compreender os motivos e a necessidade dessas acumulações (11) (ver Figura 5).

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Figura 5 – Acumulações e incompatibilidades

Fonte: Elaboração própria

54 No essencial, os motivos aduzidos para a reprovação desta situação têm que ver com
potenciais conflitos de interesses, com exigências éticas de independência e
transparência e com receios de que os papéis dos profissionais sejam de algum modo
confundidos aos olhos do público – o que redundaria em prejuízo para o jornalismo. E
só razões económicas (muitas vezes uma questão de ‘pura sobrevivência’) podem ser
apontadas nestes casos para justificar a acumulação de ofícios tendencialmente
incompatíveis.
55 De um modo mais temperado, algumas das opiniões sugerem que uma eventual
acumulação pode ser admitida se os domínios em que se trabalha como jornalista forem
radicalmente diferentes das áreas em que se exercem funções de assessoria ou
consultoria. Aí, haveria que avaliar as situações caso a caso e contar igualmente com o
escrúpulo ético e profissional dos implicados para manter as águas bem separadas.
56 No lado oposto, há algumas opiniões, mais raras, que manifestam abertura a esta
acumulação de funções e que sugerem mesmo que é matéria a merecer revisão. Um dos
respondentes invoca o regime vigente noutros países – como o Brasil –, onde a questão
das incompatibilidades não se coloca e um jornalista pode trabalhar simultaneamente
como assessor ou publicitário, mantendo ativo o seu título profissional. De acordo com
estas vozes, para além da questão da sobrevivência económica dos jornalistas, há hoje
novas sensibilidades relativamente ao modo de lidar com as questões da comunicação
no espaço público, sendo certo que a maioria dos cursos que preparam jornalistas são
cursos em que simultaneamente se preparam percursos profissionais para assessoria,
relações públicas, gestão de comunicação e afins. Sendo áreas próximas em termos de
saberes e competências, há muito quem lhes aponte um potencial de intermutabilidade
que pode, desde logo, alargar o mercado de trabalho na área.
57 Eis alguns exemplos das respostas recolhidas:
(Conhece casos de acumulação? E o que acha disso?)
- Sim, embora poucos. É uma situação eticamente condenável, que por vezes se deve
à necessidade de uma remuneração extra. É muito difícil cumprir este duplo papel,
ou estar de ambos os lados da barricada.
- O conflito de interesses existe e por mais que o profissional em causa queira
separar águas elas acabam sempre por se poder misturar. Vi pessoas defenderem
que um jornalista que trabalhe na política, por exemplo, podia assessorar uma
entidade cultural. Não é verdade. Desde logo pela influência que pode exercer na
redação onde trabalha, mas também porque tudo é política, tudo se toca.
- Sim, conheço. Creio que, infelizmente, é um comportamento cada vez mais
frequente. Há jornalistas com "avenças" e com part-times em agências de

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comunicação ou que trabalham simultaneamente como jornalistas e como


consultores de empresas. Parece-me gravíssimo.
- Não sou tão taxativo na resposta: depende dos casos e da natureza do trabalho
desenvolvido no exercício dessas funções. (…) Os normativos espelham a evolução e
o desenvolvimento social de uma nação democrática. Por conseguinte devem
evoluir.
- Considero uma violação da lei, das boas práticas e até uma situação de
concorrência desleal face aos profissionais - jornalistas e assessores - que
desempenham corretamente as suas funções, para além de fragilizar a imagem de
independência dos jornalistas.
- Depende do que se faz: se faço propaganda de uma empresa de vestuário e depois
faço crítica de livros e de filmes, tudo bem. O que se faz num lado não pode
conflituar (em termos de interesses) com o que se faz no outro.
58 (Q6) A sexta questão é complementar desta. Foi perguntado aos inquiridos se veem
algum problema em que um(a) profissional vá trabalhando tanto em jornalismo como
em assessoria de imprensa/consultoria de comunicação/relações públicas, mudando de
área sempre que queira ou precise. Aqui já não se trataria, portanto, de uma situação de
acumulação, mas de alternância.
59 Neste caso, as opiniões são menos taxativas, não sendo fácil encontrar uma tendência
maioritária. Há quem não veja qualquer problema em se ir saltando de um para outro
lado da fronteira profissional, considerando que não se pode negar a uma pessoa o
direito ao trabalho (o que significa que muitas vezes esse trânsito acontece por
necessidade) e pressupondo que ela vai cumprir com escrúpulo as regras profissionais e
exigências éticas de uma e outra área. Há, opostamente, quem considere que essa
situação deve ser evitada, em nome da isenção, pois são ofícios considerados
incompatíveis e passar de um a outro põe em causa a credibilidade dos jornalistas, o seu
capital mais precioso. No meio destas posições mais extremadas, há aqueles que
admitem algum trânsito entre profissões, mas acrescentam que ele deve ser
condicionado e regulamentado: não trocar frequentemente de lado, não “misturar as
águas” e, sobretudo, no momento de eventual regresso ao jornalismo, observar um
“período de nojo” e só aceitar funções em áreas diversas daquelas em que se exerceu a
assessoria ou a consultoria.
60 Eis alguns exemplos de respostas:
(Concorda com o trânsito entre o jornalismo e outras profissões da comunicação?)
- Parece-me uma situação que devia ser evitada, mas que é difícil de evitar, dada a
proximidade entre os dois domínios e a escassez de trabalho no sector do
jornalismo.
- Admito que possa haver UMA mudança, embora com o cumprimento de regras
rigorosas que acautelem incompatibilidades, nomeadamente um período de nojo na
abordagem de determinadas matérias. Não admito é os "saltitões" entre o
jornalismo e outras atividades.
- Não vejo problema, se o profissional em questão se abstiver de trabalhar em
jornalismo na mesma área em que anteriormente trabalhou em assessoria. Não
considero que tenha de ser um jejum para a vida, mas durante algum tempo julgo
que seria essencial.
- Vejo problema, sim. Não concordo com a possibilidade de um jornalista ir
alternando entre o jornalismo e a assessoria ao longo da sua vida profissional. Creio
que deveria ser introduzida uma grelha de princípios que regulasse essa atividade
giratória entre redações e assessorias.
- A profissão de jornalista exige isenção, incompatível com essa acumulação de
funções inconciliáveis. Um assessor de Imprensa é alguém que estabelece um
vínculo mais ou menos temporário com uma entidade remuneradora que expecta

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um determinado tratamento de imagem em que a isenção, na verdade, não tem


lugar. Logo, vestir indiscriminadamente camisolas opostas destrói a credibilidade
necessária ao exercício do jornalismo.
- Se houver transparência – entrega da carteira – não vejo nisso qualquer problema.
Pode-se ser sério, competente e rigoroso a vestir qualquer uma das camisolas. Um
ótimo assessor pode voltar a ser um ótimo jornalista: conheço vários casos.
- Parece-me óbvio que esta situação é real e que existe no mercado. Na minha
opinião, e tendo em conta este novo paradigma da comunicação, considero que
casos como este só vão aumentar. Se assim é, não vale a pena esconder a cabeça
como a avestruz. A situação existe, pelo que deve ser debatida e regulamentada.
61 (Q7) Uma última questão procurava perceber a sensibilidade dos inquiridos à
publicação, nos media, de produtos híbridos – publirreportagens, ‘advertorials’,
exemplares de ‘conteúdo patrocinado’ – que têm a aparência de produtos jornalísticos,
mas que de facto são serviços publicitários, encomendados e pagos por empresas ou
marcas.
62 Nesta matéria, 29 dos 65 inquiridos consideraram, genericamente, que tal prática não é
muito agradável, mas é tolerável desde que estejam devidamente identificados (e
assinalados como produtos publicitários) os textos e fotos de carácter híbrido. Como
dizia um respondente: “Não vejo mal, desde que fique claro para o leitor o que é notícia
e o que é conteúdo patrocinado (pago)”. Esta perspetiva é glosada de diferentes modos,
embora haja também quem sugira que a identificação (considerada imprescindível) não
terá o efeito pretendido. Como assinalou outro respondente: “Mesmo que essas páginas
estejam identificadas (que normalmente estão), o leitor comum não as sabe distinguir. E
isso torna interessante este negócio”. Há ainda quem critique o facto de, em alguns
media, haver jornalistas que são “coagidos a desenvolver produtos não editoriais”.
63 Dos 65 inquiridos, 25 pronunciam-se expressamente contra esta prática de
‘publirreportagens’ e afins. De acordo com as vozes mais críticas, os produtos híbridos –
que de algum modo procuram confundir-se com jornalismo – são “perversos e
enganadores”, sendo que, de acordo com outra opinião, “a ambiguidade é atualmente o
maior inimigo do jornalismo”. Ora, como acrescenta um respondente, “a necessidade de
sobrevivência dos órgãos de comunicação social não pode valer tudo”.
64 Um terceiro grupo de inquiridos, no total de cinco, pronuncia-se de modo mais
favorável a estas práticas. Um deles explica: “Parece-me inevitável, na conjuntura atual
do jornalismo e na multiplicação de formatos de comunicação existentes, que se
desenvolvam vários formatos de abordagem de temas com perfil e intuito comercial”.
Outro fala em sentido semelhante: “Esta tendência enquadra-se na dinâmica atual. E,
particularmente em relação a determinados produtos e targets, vejo vantagens para o
consumidor”. E outro ainda: “Isto parece-me perfeitamente normal. Estamos a viver um
novo paradigma no setor da comunicação. Como é óbvio, os vários atores têm de se
adaptar e experimentar novos modelos”.
65 Do total dos 65 inquiridos, seis não se manifestaram relativamente a este assunto.

5. Notas conclusivas
66 Há, decididamente, alguma agitação nas fronteiras que delimitam o território
tradicional do jornalismo. Este vem sendo desafiado por novos conceitos, novos atores e
novas práticas, muito em função (e em consequência) das profundas alterações
tecnológicas da era digital, mas também muito em função de contextos socioculturais

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que já não se reveem nos modelos recentes em que os media se foram construindo e
afirmando. É por isso, e igualmente por uma crise económica severa (de que o mais
claro expoente é a dramática diminuição de receitas das empresas jornalísticas, quer
por baixa da publicidade, quer por disseminação da ideia de que se pode/deve ter
acesso gratuito aos meios de comunicação, disponíveis via internet), que aquelas
fronteiras se tornam mais porosas e mais difusas, facilitando o surgimento de exemplos
variados daquilo a que se chama “boundary work”. Surgem produtos híbridos, que
parecem jornalismo, mas de facto são publicidade ou marketing; surgem atores
híbridos, que trabalham simultaneamente em conteúdos editoriais e em conteúdos
comerciais; surgem exemplos múltiplos de trânsito “para dentro” e “para fora” das
fronteiras profissionais.
67 Os resultados da nossa investigação permitem compreender melhor os percursos
profissionais de quem conhece os dois lados deste território: o lado da informação
jornalística e o lado da comunicação estratégica ou persuasiva. Permitem compreender
melhor as motivações de quem altera o seu percurso, as perceções relativas a um e
outro lado, o juízo sobre complementaridades ou incompatibilidades, as perspetivas
quanto ao futuro.
68 Três notas podem destacar-se, em jeito de conclusão:
69 1. As dúvidas a propósito do que é o jornalismo hoje e de quem o faz podem ser olhadas
como uma ameaça a padrões estabelecidos, mas também como uma oportunidade para
recentrar as atenções no que verdadeiramente importa e para reinventar o seu lugar e
modo de estar nas sociedades complexas em que vivemos;
70 2. A clareza e a transparência são elementos essenciais de todos os processos
comunicativos no espaço público, sejam os que se dedicam à informação jornalística,
sejam os que tratam da comunicação persuasiva, e as zonas de ambiguidade ou de
confusão deliberada acabam por prestar um mau serviço aos destinatários últimos
destes processos;
71 3. Só com um esforço continuado de clareza – que é tributário de uma incontornável
exigência ética – pode o jornalismo recuperar a credibilidade que aqui e ali lhe vem
faltando, mas que é essencial para estabelecer com os cidadãos uma relação de
confiança, mesmo (ou sobretudo) num contexto em que se torna cada vez mais difícil
distinguir o trigo do joio, o verdadeiro do ‘fake’, o livre do condicionado, o
independente do vendido e comprado.

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NOTAS
1. As principais publicações portuguesas desenvolveram gabinetes próprios que oferecem aos
clientes este tipo de serviços, chamados ‘branded content’. Ver por exemplo os casos do Público
(https://comunique.publico.pt/publicidade/estudio-p.html), do Jornal de Notícias (https://
www.jn.pt/brandstory.html), do Correio da Manhã (https://www.cmjornal.pt/mais-cm/marcas) ou
do Observador (https://observador.pt/perfil/obslab/).
2. Cf. Kylie Ora Lobell (S/D), https://www.contentharmony.com/blog/journalists-make-great-
content-marketing-writers/ , consultado em 18/9/2019.
3. Mesmo com identificação apropriada, as exigências de clareza não são adequadamente
preenchidas, pois, como têm evidenciado diversos estudos, até pessoas muito familiarizadas com
o universo online e as redes sociais não conseguem distinguir um conteúdo patrocinado de um
texto noticioso (cf. Jarvis, 2016).
4. Ver Estatuto do Jornalista, artigo 3.º - Incompatibilidades
(disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/34438975/view?
consolidacaoTag=Comunica%C3%A7%C3%A3o+Social).
5. Recorde-se, a propósito, que o enquadramento legal destas matérias, nomeadamente a questão
das incompatibilidades para os jornalistas, existe em Portugal mas não noutros países (como é o
caso frequentemente referido do Brasil).

RESUMOS
A constituição do jornalismo enquanto profissão passou pela definição de um território próprio e
pela correspondente demarcação de fronteiras, de modo a incluir os legítimos trabalhadores do
ofício e a excluir os outros. Mas estas fronteiras têm-se tornado porosas, ameaçadas que estão por
atividades próximas que reclamam ser consideradas em plano de igualdade com os profissionais
encartados. Em complemento, tem-se assistido à proliferação, nos media, de produtos que
parecem jornalísticos mas são de facto publicitários, bem como ao trânsito de profissionais do
jornalismo para domínios da comunicação estratégica, o que lança alguma confusão junto do
público sobre “quem é quem”. Neste artigo procuramos fazer uma reflexão sobre estas
tendências, complementando-a com um inquérito junto de profissionais que trocaram o
jornalismo por outras atividades da comunicação, no sentido de perceber as suas motivações e
expectativas.

The construction of journalism as a profession implied the definition of a specific territory and
the demarcation of its boundaries, in order to include the legitimate workers of the job and to

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exclude all the others. But these boundaries are becoming porous and threatened by
neighbouring activities that demand to be treated like the journalists that own a professional
license. Besides that, different media have been developing a variety of ‘products’ that somehow
look like journalism, but in fact are pieces of advertisement (content marketing). Together with
this trend, a number of professional journalists are moving to jobs belonging to the domain of
the so-called “strategic communication” or “persuasive communication”, which causes some
confusion in the public about “who is who”. In this article, we reflect about these new trends and
present the results of a survey among professionals that left journalism for other communication
jobs, trying to understand their motivations and expectations.

ÍNDICE
Keywords: journalism, professionalization, boundary, ethics, transparency
Palavras-chave: jornalismo, profissionalização, fronteira, ética, transparência

AUTOR
JOAQUIM FIDALGO
Departamento de Ciências da Comunicação, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho
[email protected]

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