Direito – Wikipédia, a enciclopédia livre
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sistema de normas que regula as condutas humanas por meio de direitos e deveres
Nota: Este artigo é sobre o sistema de normas que regula a vida em sociedade, dito "direito objetivo". Para as
prerrogativas que competem a cada um, veja Direitos subjetivos. Para a ciência que estuda as normas jurídicas e
sua operação, veja Ciência do direito. Para outros usos, veja Direito (desambiguação).
Em sua acepção mais restrita, o direito, em seu sentido objetivo,[nota 1] é o sistema de normas
que regula as condutas humanas por meio de direitos e deveres. Esse sistema se impõe em
praticamente todos os âmbitos das relações sociais e, como tal, exerce um papel de enorme
importância mas também de grande ambiguidade, visto que seu conteúdo e aplicação são
influenciados por fenômenos como a religião, a política, a economia, a cultura, a moral e a
linguagem. Sua natureza precisa, incluindo suas condições de validade e os fundamentos de
sua normatividade, é objeto de um antigo e complexo debate, em que se destacam as correntes
juspositivista e jusnaturalista e suas múltiplas ramificações.
Além do binômio direito interno e direito internacional, historicamente o direito tem sido dividido
em dois domínios maiores, sobretudo nos países cujos ordenamentos pertencem à família
romano-germânica de direitos, e em ramos que agregam normas e teorias que compartilham um
mesmo objeto e outras características. Assim, enquanto o direito público diz respeito ao Estado
e à sociedade, incluindo ramos como o direito administrativo e o direito penal, o direito privado
lida com a relação entre indivíduos e organizações, em áreas como o direito civil e o direito
agrário. Contudo, as transformações sociais produzidas desde a Modernidade têm tornado essa
divisão crescentemente incapaz de afiliar ramos do direito nascidos de novas necessidades
sociais, sobretudo quanto a interesses transindividuais, meta-individuais e coletivos.
Etimologia
Dito de outro modo, o termo derectum teria surgido como consequência de a maior parte da
população romana apreender o direito por seu aspecto orientador das condutas, e não por seu
aspecto técnico (a arte de realização da justiça), expresso pelo termo ius.[19] Apesar de sua
rejeição pelas classes mais educadas, que o consideravam vulgar, o termo derectum difundiu-se
dentre a sociedade romana e provavelmente coexistiu com o termo ius até os sécs. VII e VIII EC,
quando os conteúdos dos manuais de direito romano começaram a cair em desuso.[19] Por essa
época o uso do termo técnico ius foi suplantado pelo termo vulgar derectum, que então já era
parte do vocabulário comum, tanto na linguagem falada quanto na escrita.[19] O termo ius
conheceria uma ressurgência com o renascimento do direito romano,[19] iniciado com a
redescoberta do Corpus Juris Civilis pelos juristas italianos no século XII,[20] mas por essa época
os termos directum e derectum já eram amplamente utilizados para designar todo o conjunto ou
uma norma jurídica específica.[21] Do latim, eles evoluíram em português sucessivamente para
directo (1277), dereyto (1292) e dereijto (1331), até chegar à sua grafia atual, documentada pela
primeira vez no século XIII.[22]
História
Sociedades arcaicas
Assim, no âmbito das sociedades ágrafas o direito evidentemente não era legislado, mas sim
constituído essencialmente de costumes, que foram se perpetuando através das gerações e se
consolidando na forma de tradições e rituais.[33][nota 6] Como a mobilidade e o intercâmbio entre
as primeiras sociedades eram limitados pelas distâncias geográficas e o desenvolvimento
tecnológico, inicialmente os seus direitos apresentavam um grau acentuado de endogenia; os
direitos de cada sociedade, portanto, eram bastante particulares e apresentavam pouca
influência externa,[29] daí se falar em uma "multiplicidade de direitos" desde logo cedo.[33]
Direito romano
O marco inicial do direito romano, tal qual ele foi transmitido à posteridade, foi um corpo de
normas chamado Lei das Doze Tábuas (em latim: Lex Duodecim Tabularum), que se originou em
torno de 450 AEC, no início do período da República Romana.[60] Até então os romanos haviam
regulado sua sociedade por meio de costumes e rituais desenvolvidos ao longo de séculos, e
esse documento codificou parte das regras até então praticadas.[61] Embora não haja consenso
sobre a veracidade da tradição de que teria se originado em um contexto de disputa entre a
classe dos plebeus e a dos patrícios,[62][63] está claro que a Lei das Doze Tábuas foi influenciada
pelos direitos de outros povos, sobretudo códices da Mesopotâmia[64] e a legislação ateniense
elaborada por Sólon.[65]
A Lei das Doze Tábuas era parte daquilo que os romanos entendiam como ius civile ou direito
dos cidadãos,[nota 8] e que era aplicável unicamente aos cidadãos romanos.[70] Conforme a
república deu lugar a um império, seus governantes enfrentaram o crescente desafio de
governar uma população cada vez mais diversa e decentralizada, e disputas entre os cidadãos
romanos e os não-cidadãos, que viviam ou viajavam por seus territórios, mostraram a exaustão
do ius civile frente a muitos desses casos.[61] Assim, gradualmente foi se desenvolvendo o
chamado ius gentium ou direito dos povos, constituído por leis aplicáveis a todas as pessoas
livres, independente de sua nacionalidade, e que, na visão dos romanos, era fundado nos
princípios e valores compartilhados por toda a humanidade.[61][71] Mais tarde, com a
sofisticação do direito romano, um outro desdobramento viu o dia na forma do ius honorarium,
constituído de precedentes e soluções adotados por magistrados, particularmente o pretor, e
que facilitava a aplicação das leis ao fornecer elementos para suprir suas lacunas e mesmo
corrigi-las.[72][nota 9]
Idade Média
O imperador bizantino
Justiniano foi responsável
pela elaboração do Corpus
Iuris Civilis
Apesar da queda do Império Romano do Ocidente, o direito romano continuou a ser aplicado em
seu antigo território e também no Império Bizantino. Contudo, rapidamente o direito existente
nessas duas regiões deu origem a direitos distintos, devido a processos evolutivos próprios.[83]
Em paralelo, no território antes controlado pelo Império Ocidental, inicialmente o direito romano,
na forma do Código de Teodósio, continuou a ser utilizado pelas populações de origem
romana.[83] Não obstante, com a ausência de um governo central e de uma classe de
profissionais bem treinados para compreender e operar esse direito, ao longo dos séculos ele
incorreu em processos de fragmentação e barbarização, ou seja, de fusão com os costumes dos
povos germânicos que controlavam as diferentes regiões anteriormente romanas e de
diversificação por conta da crescente feudalização.[87] Pela época do reino de Justiniano, no
antigo território ocidental surgiram ao menos três codificações empreendidas por povos
germânicos, sendo a mais famosa a Lei Romana dos Visigodos (em latim: Lex Romana
Visigothorum), que consistiam de compilações pouco refinadas de fontes jurídicas romanas.[88]
Como Roma havia construído o direito mais compreensivo e sofisticado até então,[77] ele acabou
adotado em grande medida pelos governos que a sucederam, embora de maneira pouco
analítica e marcadamente desigual nas diferentes regiões.[68][89] Assim, embora o direito romano
jamais tenha deixado de existir completamente nas regiões que anteriormente eram parte do
Império Ocidental, documentos do período mostram uma crescente quantidade de erros
conceituais e ausência de originalidade e competência nas interpretações doutrinárias a seu
respeito.[90]
Os glosadores tiveram papel
fundamental na
redescoberta e reconstrução
do direito romano
Ao longo dos séculos de declínio do direito romano, contudo, essas atividades se encarregaram
de manter vivas a memória e a admiração por sua qualidade,[90] e eventualmente permitiriam
avanços consideráveis nos direitos locais dos reinos europeus.[91] Pelo século XI a Europa
emergia da idade das trevas, e isso foi acompanhado de uma revalorização da cultura clássica,
que levaria à criação das universidades e ao Renascimento do século XII.[92][90] Como efeito
mais imediato, esse movimento encorajou uma renovação no estudo do direito romano,
sobretudo no sul da França e no norte da Itália.[90][93] Embora o estudo do Corpus Iuris Civilis
tenha avançado em alguma medida por conta disso, sobretudo nas universidades de Pavia e
Ravena, esse avanço foi limitado e só ganhou verdadeiro impulso com a redescoberta em Pisa,
no final do século XI, de uma cópia completa do Digesto de Justiniano.[94][nota 11]
Por um motivo ou por outro, o a partir do século XI o direito romano passou a permear todos os
direitos da Europa, embora em diferentes medidas e com suas próprias cronologias.[100] Em um
movimento que prenunciava o processo de formação dos Estados nacionais,[101][99] ele
encontrou a simpatia dos monarcas europeus, pois mostrou-se útil em seus esforços para impor
seu poder real frente à nobreza feudal.[102] Consequentemente, muitos reinos viram surgir
codificações inspiradas no direito romano, ao passo que muitos daqueles que detinham poder
localmente protestaram em busca de manter seus costumes locais e antigos privilégios.[103]
Esse processo, contudo, foi apenas parcialmente efetivo, pois nenhum reino da época possuía a
força necessária para substituir completamente os direitos locais por uma burocracia
centralizada.[104] Assim, em primeiro lugar, apenas os casos envolvendo a alta justiça passaram
a ser julgados pela cortes reais, enquanto tudo o mais permaneceu sob a jurisdição da nobreza
local. Depois, o direito local continuou a ter preferência em relação ao direito romano, e este
passou a ser utilizado como fonte subsidiária.[104][nota 13]
Em última instância, em praticamente toda a Europa o ius commune (em português: direito
comum) europeu, uma combinação de direito romano, direito canônico[nota 14] e direito local (em
latim: ius proprium) continuou em uso até o final do século XVIII.[106][100][91] Elementos do Corpus
permaneceram uma fonte imediata do direito até tempos recentes, como na Alemanha, até em
1900, e na Escócia, África do Sul e Sri Lanka, até pelo menos a segunda metade do século XX;
além disso, a técnica romana influenciou fortemente o processo das codificações nas Américas,
na Europa e na Ásia a partir do século XVIII.[107][108] Em grande medida por conta do Corpus, o
direito romano tornou-se a fundação da família romano-germânica de direitos e pode ser
considerado "uma das mais poderosas forças formativas no desenvolvimento da civilização
ocidental".[107]
Uma situação semelhante, mas em última instância excepcional, diz respeito à Inglaterra. No
século XII a situação do direito desse país era essencialmente a mesma da Europa Continental:
seu direito local era fundado nos costumes; diferentes condados, e até mesmo em unidades
administrativas menores, possuíam diferentes direitos; o direito romano era estudado nas
universidades e monastérios.[109] Também como no continente, o direito romano penetrava o
direito inglês por meio do direito canônico e das cortes eclesiásticas, que julgavam temas como
casamentos e divórcios.[110] Contudo, a partir de Henrique II o reino foi construindo um sistema
de justiça relativamente bem organizado, e isso deu início a um processo de unificação do
direito do país.[103] O direito romano continuou a ser ensinado nas universidades, e, no século
XIII, havia uma marcada distinção entre o direito romano, científico, e o direito dos tribunais
ingleses, vernacular.[93] Como na Europa, por essa época o perfil profissional desejado pela
comunidade jurídica inglesa passou a compreender não apenas o direito romano, mas também
o direito dos tribunais.[91] O profissional ideal, portanto, passou a ser "mestre de ambos os
direitos" (em latim: utriusque iuris magister) e, nessa qualidade, a conhecer bem o direito comum
produzido pelos tribunais (em inglês: common law).[91] Essas bases do direito inglês[nota 15] se
definiriam mais claramente durante a Era Tudor, quando os Inns of Court se impuseram às
universidades quanto à formação dos juristas.[110]
Modernidade e Contemporaneidade
O Código Napoleônico de
1804, um produto influente
da era das codificações
O termo "era das codificações" foi cunhado pelo filósofo Jeremy Bentham para designar um
movimento de codificação que varreu a Europa continental no século XVIII e se deu pela
aplicação das teorias do direito natural na criação de legislações escritas abrangentes, com
base, sobretudo, na razão natural (não religiosa ou de qualquer outra origem) do ser
humano.[135] A teoria do direito natural fundado na razão forneceu critérios e padrões para a
definição de direitos subjetivos essenciais e permitiu ao jurista questionar o valor e a qualidade
do direito, ao passo que o fenômeno da codificação "abriu as portas para a possibilidade de
repensar e reformular todos os princípios, premissas e pilares fundamentais dos sistemas
jurídicos europeus".[135] Isso daria origem aos códigos especializados, que deveriam conter, de
maneira coerente e sistematizada, a totalidade dos princípios e regras relativos a cada ramo do
direito.[135] O fenômeno da codificação foi particularmente significativo na França nos anos
seguintes à Revolução de 1789, mas também foi importante na Confederação Germânica e se
espalhou, em diferentes graus, por todo o mundo durante os sécs. XIX e XX.[135]
O Código Napoleônico de 1804 foi a conquista mais proeminente da era das codificações;
considerado um monumento à perfeição da razão, transpôs para o direito a articulação
intelectual da soberania nacional: a França, como Estado unificado, deveria ter um direito
comum para todos os cidadãos, baseado na razão e não nos costumes.[135][95] Sua influência
iniciou-se com as Guerras Napoleônicas, mas estendeu-se a outras partes da Europa (Bélgica,
Luxemburgo, Holanda, Itália, Espanha, Portugal, Hungria, Romênia e Grécia), e à América Latina,
Turquia, Egito, China, Japão e Luisiana (Estados Unidos).[136]
Já o posterior o Código Civil Alemão de 1900, embora tenha tido influência considerável do
direito romano e seja um produto tardio do movimento de codificação,[95] teve uma origem
fundada no positivismo jurídico. O Código Napoleônico inspirou um movimento semelhante na
Alemanha, interessado em sistematizar e unificar as várias leis heterogêneas vigentes no país,
mas que foi oposto pela Escola Histórica do Direito, que defendia que um direito para todos os
reinos alemães não poderia ser identificado unicamente a partir da razão, porque o direito seria
um produto da cultura e dos hábitos de cada sociedade.[137] Seu membro mais ilustre, Friedrich
Carl von Savigny, defendia que povo tem uma história, um caráter e uma consciência próprios —
um "espírito nacional" (em alemão: Volksgeist) — que imprimem suas marcas no direito e nas
instituições jurídicas.[138] Seu discípulo Georg Friedrich Puchta daria continuidade a esse
trabalho e, com base no método da jurisprudência dos conceitos, deu passos importantes para
o estabelecimento do direito como uma ciência jurídica positiva, com uma existência
independente dos aspectos éticos, políticos e econômicos da vida social.[139] Nessa nova
concepção, as regras de direito somente poderiam ser extraídas de um sistema integrado de
normas positivadas.[140] Embora no longo prazo tenha prevalecido o interesse em unificar e
codificar o direito civil alemão, o Código Civil Alemão, que começou a ser elaborado algumas
décadas depois, foi muito influenciado pela perspectiva da Escola Histórica do Direito[141] e
influenciaria o direito de numerosos países, notadamente Japão, Suíça, Grécia, Rússia e os
países escandinavos.[142]
Globalização do direito
Dito de outro modo, a globalização do direito constitui "a criação de um fundo comum de regras
de aplicação geral" que não se confunde com uma verdadeira "ordem jurídica transnacional" que
supera os direitos do Estado, mas sim que, normalmente, se difunde pela incorporação de regras
comuns pelos diferentes direitos nacionais.[144] A aprovação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos em 1948 é um exemplo disse tipo, que, embora seja um documento não
vinculante, orientou, voluntariamente, o desenvolvimento dos direitos nacionais rumo a objetivos
comuns:[146] ela levou à criação, negociação e aprovação de regras em direito internacional
pelos Estados, que em seguida têm sido incorporadas aos direitos nacionais.[147]
Contudo, embora o desenvolvimento expressivo do direito internacional ao longo do século XX
seja um eixo da globalização do direito, esta corresponde "a uma etapa radicalmente nova e
qualitativamente diferente", pois, enquanto a internacionalização do direito foi apoiada e levada
a cabo pelos Estados-nação, "a globalização escapou amplamente de suas garras e seu escopo
não é mais apenas econômico, mas também social, cultural e político".[148] A globalização do
direito, portanto, se apoia também em outros eixos não necessariamente tutelados pelos
procedimentos convencionais do Estado:[149] esse fenômeno jurídico é inseparável da
globalização em geral, e a globalização de certos valores contribui positivamente para a
construção de regras comuns entre os Estados.[150]
Para alguns autores seria possível falar em um processo de globalização do direito dividido em
três fases que sobrepõem parcialmente.[151] A primeira delas, que vai da metade do século XIX
até o princípio da Primeira Guerra Mundial, teve como mecanismos de ação a imposição do
direito das metrópoles ocidentais ao mundo colonizado, a "abertura forçada" de nações não
ocidentais que escaparam ao colonialismo e "o prestígio da ciência jurídica alemã" no mundo
ocidental.[152] A segunda fase dessa globalização se estende do início do século XX a 1968, e foi
alimentada principalmente pelos movimentos reformistas de todas as faixas políticas no
Ocidente desenvolvido, pelos movimentos nacionalistas nos países periféricos e pelas elites dos
países que se tornaram independentes após o fim da Segunda Guerra Mundial.[152] A terceira
fase, correspondente ao período que vai do fim da Segunda Guerra Mundial até o princípio do
século XXI, foi movida pela influência americana na sequência da Segunda Guerra Mundial e da
Guerra Fria, e uma "nova consciência jurídica" dos Estados que, para poderem participar no
mercado mundial, se veem compelidos a respeitar as "condições estabelecidas por empresas
multinacionais e instituições reguladoras internacionais".[153]
Inflação regulamentar
Ao longo dos sécs. XIX e XX o positivismo jurídico se firmou como tendência dominante, tanto
nos direitos romano-germânicos quanto nos da common law,[154] e o direito, apreendido como
uma ordem normativa pura ou carregado das aspirações éticas do humanismo, continua
amplamente ancorado no pensamento racionalista clássico e na premissa de que é "possível
apreender objetivamente a realidade, racionalizá-la de acordo com categorias jurídicas abstratas
e atuar sobre elas por meio de comandos escritos de valor geral, impessoal e permanente".[155]
Por fim, a Contemporaneidade tem sido marcado por uma crescente juridicização das relações
sociais — a tendência generalizada de que conflitos sociais sejam discutidos sob o ponto de
vista jurídico, que tem como uma de suas principais consequências a judicialização das relações
sociais, entendida como a tendência de que litígios sejam submetidos ao judiciário, em
detrimento de outros modos de solução de conflitos.[157]
As discussões sobre esses fenômenos foram iniciadas na Alemanha no início do século XX por
Otto Kirchheimer, no contexto da institucionalização dos conflitos de classes e da progressiva
reorientação de disputas sociais e políticas para formas jurídicas de resolução de conflitos, que
ocorriam na transição do Império Alemão para o modelo de Estado social que se iniciava com a
República de Weimar.[158] Segundo Jürgen Habermas, essa foi uma etapa dos "surtos
sucessivos de juridicização" que se iniciaram com a formação do Estado burguês e depois
continuaram com as suas transições sucessivas para o Estado de Direito, o Estado de Direito
democrático e o Estado de Direito social e democrático no decorrer do século XX.[117]
Contudo, nesse contexto o Poder Judiciário assumiu gradualmente um papel mais pronunciado
na garantia e concretização de direitos encartados nas Constituições,[162] e foi se transformando
em depositário das esperanças individuais e coletivas "como um verdadeiro superórgão capaz
de resolver todas as diferenças existentes", em detrimento de meios alternativos de composição
em conflitos.[163] No longo prazo, isso acarretou uma "crise no Poder Judiciário",[164] que tem
como efeitos mais visíveis o abarrotamento dos tribunais,[165] que impede que atendam
satisfatoriamente as demandas que lhe são submetidas,[161] e também uma "cultura da
litigância" que produz outras consequências indesejadas.[166] No âmbito econômico, além da
litigância em si ser custosa, ela leva à adoção de estratégias “defensivas” nos negócios e
reprime a inovação.[167] No âmbito do setor público, ela onera o Estado e reprime programas e
projetos,[167] e leva à multiplicação do número de órgãos jurisdicionais e dos riscos de incerteza
jurisdicional, que resultam em maior lentidão da justiça[168][169] e, em última instância, na
necessidade de reformas do aparato do Judiciário.[170] Por fim, no âmbito das relações
humanas, o direito de ação e o processo judicial por vezes passam a ser instrumentos de
vinganças pessoais, tornando o Poder Judiciário "palco de rixas pessoais, íntimas e odiosas,
quando não uma verdadeira loteria jurídica";[161] e expõem os limites do modelo judicial de
resolução de conflitos, na medida em que ele — adversarial e fundado na oposição de interesses
— se revela particularmente mal adaptado a conflitos envolvendo partes comprometidas em
relacionamentos contínuos ou comunitários, como as relações de vizinhança e família.[171]
Natureza
Nessa linha, muitos buscaram individualizar o caráter do direito por meio do seu conteúdo,
alegando que cada uma de suas normas “institui ao mesmo tempo um direito a um sujeito e um
dever a um outro” e, portanto, que a norma jurídica se distinguiria por sempre regular uma
relação intersubjetiva — diferentemente das normas morais, que são unilaterais.[188] Como já se
colocou, contudo, embora essa noção seja muito difundida por explicar a dimensão prática do
direito, ela falha em diferenciar o direito de outros domínios normativos intersubjetivos, como
aquele das normas sociais.[189]
Outros, buscaram diferenciar o direito a partir de sua finalidade, alegando que ele regula relações
intersubjetivas diferentes daquelas reguladas pelas normas sociais, isto é, apenas as relações
intersubjetivas envolvendo ações necessárias à "conservação da sociedade".[189] Dito de outro
modo, nem toda ação humana é necessária à conservação da sociedade mas, aquelas que o
são, ao longo da história vão se distinguindo e passam a ser normatizadas, isto é, tornam-se
direito.[189] Contudo, também aqui se apresenta uma forte objeção, pelo fato de as normas
jurídicas — aquelas que seriam necessárias à conservação da sociedade — serem diferentes em
cada sociedade e mudarem no curso do tempo, e, por esse motivo, ser impossível "fixar de
modo unívoco os caracteres que fazem de uma norma uma regra essencial à conservação da
sociedade.[190]
Enfim, o debate a respeito da natureza do direito tem como eixo maior as questões das
condições de validade e dos fundamentos da normatividade do direito.[174] Historicamente, duas
tradições filosóficas principais têm se concentrado sobre esse propósito, as chamadas
correntes jusnaturalista e juspositivista,[174][nota 23] que se desdobram em uma ampla variedade
de concepções e teses e se opõe frontalmente quanto a algumas delas.[194] Embora alguns
autores apontem a diminuição da importância dessa dicotomia na atualidade[195] e indiquem a
emergência de rótulos, como direito pós-moderno, pós-positivismo e não-positivismo
principiológico, que expressariam a sua superação, alguns aspectos da relação entre essas duas
correntes permanecem profundamente divergentes e, portanto, continuam a alimentar um
intenso debate.[196]
A tradição do direito natural, também chamada jusnaturalista, é a mais antiga das duas
principais correntes filosóficas que buscam explicar a natureza do direito, e, em sua forma
contemporânea, remonta à Idade Média Tardia.[174] Embora suas bases possam ser traçadas até
a Antiguidade, na forma das concepções mítico-religiosas que as civilizações grega e romana
atribuíam ao direito, e algumas de suas concepções tenham sido objeto da atenção de filósofos
cristãos iniciais, como Agostinho de Hipona, ela viria a se desenvolver como uma tradição
filosófica autônoma a partir da Escolástica da Baixa Idade Média.[197][198] A Idade Moderna, por
sua vez, viu surgirem novos vetores de justificação do direito natural, desprendidos da religião e
fundados em uma "natureza [humana] racional e autônoma".[199]
Dentre as diversas correntes específicas que se filiam a essa tradição filosófica, ao menos dois
postulados centrais são comuns a todas elas.[200] O primeiro deles sustenta que "existem
princípios morais de justiça que são universalmente válidos e acessíveis à razão humana” e
pode ser dividido em dois postulados menores: de um lado a tese de que existem princípios
morais de justiça que são universalmente válidos, e que, portanto, incidem sobre todas as
pessoas, individual ou coletivamente, independentemente de onde e quando essas pessoas
existem;[201] e a tese de que esses princípios morais de justiça são acessíveis à razão humana,
ou seja, podem ser deduzidos ou intuídos.[202] E o segundo desses postulados maiores consiste
na ideia de que o direito positivado seria uma expressão desses princípios morais
universalmente válidos e acessíveis à razão humana, o que, por sua vez, implica que "um
sistema normativo ou uma norma não podem ser qualificados de jurídicos se contradizem ou
não passam pelo crivo de tais princípios”.[200]
Assim, o jusnaturalismo carrega em seu cerne a noção de que a autoridade de que o direito se
reveste — a sua normatividade — repousa sobre uma "criteriologia e autoridade externa [...] ao
órgão produtor do direito",[201] isto é, provém "da natureza das coisas ou da natureza do homem,
da razão humana ou da vontade de Deus".[203] As normas positivadas na legislação e nas outras
fontes jurídicas seriam apenas uma expressão do direito natural.[204] Como o direito natural seria
o fundamento do direito positivo, ele constituiria "um critério aferidor da atividade legislativa" e,
portanto, imporia limites à atividade do legislador em termos do que pode ou não ser objeto de
normas de direito.[201]
Ao longo de sua história, o jusnaturalismo angariou críticas contundentes por permitir justificar
toda sorte de valor moral[nota 24] e por fundar-se em "construções arbitrárias e subjetivas".[207]
Mais especificamente, sua versão tradicional e mais difundida encontrou uma grande objeção
com a emergência daquele que se tornou o "fator determinante da desqualificação recente do
direito natural": a progressiva emergência da "ciência moderna e o seu paradigma da
cientificidade"[199] e a consequente constatação de que "é, simplesmente, difícil sustentar que a
lei moralmente ruim não é lei".[174]
Assim, a tradição do direito natural passou por reformulações consideráveis no século XX,
notadamente por meio do trabalho de Ronald Dworkin. Ao contrário de outros membros dessa
tradição, Dworkin, um jusnaturalista atípico, jamais sustentou que um conteúdo moralmente
aceitável seria um pré-requisito para a validade da norma jurídica, preferindo concentrar-se na
distinção entre fatos e valores (entre o que a lei é e o que deveria ser) e em argumentar que a
relação entre essas duas instâncias é muito mais confusa do que o positivismo jurídico gostaria
de fazer ver. Para ele, "determinar o que é o direito, em casos particulares, depende
inevitavelmente de considerações político-morais sobre o que deveria ser", e, além do mais, uma
categoria específica de normas jurídicas, os princípios, seria essencialmente moral em seu
conteúdo.[174]
A emergência desta tradição filosófica foi uma expressão do de regras que possui
paradigma da cientificidade na reflexão sobre o direito, ensejada o tipo de unidade
pela busca de "um direito não duvidoso, inequívoco, e que que entendemos por
estivesse a salvo das arbitrariedades e injustiças".[213] sistema. É impossível
Gradualmente, ela viria a desqualificar a pretensão de cientificidade conhecermos a
do jusnaturalismo até então defendido.[214] A tese central da natureza do Direito
tradição positivista, por vezes chamada tese do positivismo se restringirmos
conceitual,[215][nota 27] é comum a todas as suas principais nossa atenção a uma
correntes e sustenta que "o direito não deve ser identificado regra isolada. As
utilizando critérios valorativos, mas sim critérios fáticos, empíricos, relações que
objetivos"[217] ou ainda "fatos sociais".[174] Dito em outras palavras, concatenam as
para juspositivistas o direito é "um artefato humano, o resultado de regras específicas de
uma escolha, convenção ou práticas sociais convergentes", cujo uma ordem jurídica
conteúdo pode ser identificado objetivamente.[218] Essa proposição também são
se desdobra em duas outras, ditas tese social e tese da essenciais à natureza
separação.[174] do Direito. Apenas
com base numa
Em primeiro lugar, a tese social sustenta que o direito é um compreensão clara
fenômeno intrinsecamente social e que, portanto, as regras do das relações que
direito são produto da sociedade e as condições para sua validade constituem a ordem
são fundadas nas práticas da sociedade. Inicialmente inspirados jurídica é que a
nas constatações de Hobbes de que o direito é sobretudo um natureza do Direito
instrumento de soberania política, os primeiros positivistas pode ser plenamente
argumentaram que o direito seria essencialmente o comando do entendida.[208]
soberano.[174] Mais tarde expoentes dessa vertente modificaram
essa tese, passando a justificar os fundamentos da validade do Hans Kelsen
direito em uma norma fundamental (no caso de Kelsen) ou regra
de reconhecimento (no caso de Hart).[nota 28][221][222] Este é um dos pontos fundamentais de
discordância entre as tradições filosóficas juspositivistas e jusnaturalistas, visto que essa última
sustenta que o conteúdo do direito positivado deve responder aos preceitos do direito natural,
isto é, à moralidade universal, sob pena de não constituir direito. Dito de outro modo, as
correntes jusnaturalistas — em oposição à tese social juspositivista — sustentam que o
conteúdo moral das normas, e não apenas sua fundamentação em uma norma fundamental,
também é necessário à sua validade jurídica.[174]
Coercitividade e normatividade
Historicamente o direito tem sido percebido como uma instituição que impõe suas demandas
práticas por meio de ameaças e violência institucionalizadas; de fato, muitos filósofos
positivistas sustentaram que a normatividade do direito reside em sua coercitividade,[174] e essa
permanece a opinião mais comum dentre os juristas.[225] Essa questão, inclusive, tem levado
parte da comunidade jurídica a julgar que o direito internacional na realidade não seria parte do
direito, visto que não existe "um governo mundial capaz de legislar e fazer cumprir essas leis por
meio de um sistema supranacional de sanções, como uma força militar internacional
independente".[226]
Alguns autores, por exemplo, argumentaram que a coercitividade não é exclusiva ao direito, visto
que alguns tipos de punição — como multas, suspensões, processos disciplinares e demissão,
mas não a capacidade de prisão — existem em setores exteriores ao direito.[230] Outros, ainda,
buscaram demonstrar que, embora toda norma jurídica seja prescritiva, quer dizer, busque
influenciar e modificar o comportamento humano,[231] nem toda estabelece um comando ou
imperativo, visto que existem normas que permitem comportamentos e atribuem
faculdades.[232]
Joseph Raz e Herbert Hart, ao tratarem desse tema, sustentaram que a coercitividade do direito
é um aspecto mais marginal do que seus antecessores presumiram, e que o direito desempenha
outras funções fundamentais na sociedade, para além de fornecer uma previsibilidade de reação
hostil aos infratores e, assim, incitar as pessoas a buscar evitar sanções.[174] Notadamente, Hart
defendeu uma concepção do direito como um fenômeno fornecedor de razões para a ação
humana, e que, além de oferecer a previsibilidade de sanção para infratores, também supre a
"razão ou justificação" para que essas sanções sejam aplicadas.[174][233] Embora tenha
enfatizado a importância da normatividade do direito, esse autor considera que indivíduos e
instituições se sujeitam a ele porque aceitam as suas regras como sendo válidas e, portanto,
vinculativas.[234]
Ainda mais recentemente, a aplicação da teoria dos jogos à investigação da natureza do direito
tem apresentado evidências que, em uma grande variedade de arranjos jurídicos, o
funcionamento do direito pode ser explicado por sua função em resolver problemas de
oportunismo, como no exemplo do dilema do prisioneiro. Essas evidências apontam, portanto,
que o direito pode exercer uma função de "fornecer incentivos coercitivos para o benefício
mútuo de todas as partes envolvidas". Além disso, outras vertentes filosóficas têm sublinhado
que o direito exerce outras funções na sociedade, como resolver problemas de coordenação
entre diversas pessoas, estabelecer padrões para comportamentos desejáveis, positivar
expressões simbólicas de valores comunais e resolver disputas sobre fatos, todas elas funções
que "têm muito pouco a ver com o aspecto coercitivo do direito e suas funções de imposição de
sanções".[174]
Estrutura
Historicamente, a estrutura do direito tem sido dividida em uma série de categorias. Embora por
vezes elas sejam difíceis de constatar e suas fronteiras possam se sobrepor, essa tradição de
qualificação do direito oferece vantagens evidentes em termos de sistematização e
organização, e também oferece ao jurista elementos adicionais que o permitem identificar o
regime jurídico adequado a cada situação de fato.[235][236][237] De uma maneira semelhante,
essas categorias orientam o jurista quanto a outras informações relevantes para a solução
problemas concretos, e que podem estar relacionadas a cada categoria: dados históricos,
princípios filosóficos, elementos do contexto social, dentre outras.[238]
Apesar do seu interesse, essa dicotomia tem sido objeto de críticas devido ao seu caráter
absoluto, incapaz de "encarnar a verdade eterna e universal de todos os fenômenos
jurídicos".[246] Como já se colocou, enquanto no passado essa dicotomia podia compreender
com mais precisão a realidade das relações sociais e, portanto, do direito, a Modernidade e a
Contemporaneidade viram transformações radicais que diminuíram a nitidez da distinção entre
as esferas publica e privada.[247] Além disso, a Modernidade viu surgirem novas categorias de
interesses transindividuais, meta-individuais e coletivos, nas quais o interesse de grupos sociais
e da sociedade como um todo não se confundem com o do Estado, e que, portanto, trazem
subjetividade à tarefa de identificação da esfera a que pertencem os interesses a serem
protegidos.[236]
Historicamente, a divisão entre direito interno e direito internacional tem como objeto a distinção
entre, respectivamente, as normas aplicáveis no interior de um Estado e as normas aplicáveis às
relações entre os Estados.[248] Embora no passado essa concepção do direito internacional, com
base unicamente nas relações entre Estados, tenha sido lugar-comum, muitos especialistas
consideram-na ultrapassada devido a um fenômeno recente de diversificação do direito
internacional.[249] Assim, concepções mais atuais do direito internacional podem tomar como
base a noção de sujeito de direito internacional, que compreende uma diversidade de entidades
como Estados, a Santa Sé, organizações internacionais, movimentos sociais com
reconhecimento internacional, e, em algumas situações específicas, até mesmo indivíduos e
empresas privadas; o critério do objeto das normas, segundo o qual o direito internacional é
aquele relativo a assuntos internacionais; ou ainda o critério do processo de formação das
normas, segundo o qual o direito internacional é aquele que emana de certas fontes,[248] dentre
as quais têm destaque os tratados.[250]
A relação entre o direito interno e o direito internacional é complexa e suscita uma série de
questionamentos, sobretudo a respeito da sua subordinação mútua.[251] Ao menos duas
correntes teóricas principais tentam explicar a relação entre eles, embora nenhum país siga à
risca qualquer uma delas, preferindo adaptá-las para criar suas próprias maneiras de lidar com a
relação entre as regras do direito interno e do internacional.[251] Essas duas teorias são
chamadas monista e dualista.[252]
A corrente monista propõem a unidade das normas internas dos países e das aplicáveis
internacionalmente; a proeminência do direito internacional ou a proeminência do direito interno
em caso de conflito; e a aplicação direta das normas internacionais sem a necessidade de que
elas sejam convertidas em lei interna.[252] Dito em maior detalhe, as teorias monistas afirmam
haver um sistema único composto pelas normas internas e internacionais, e caracterizado por
uma hierarquia, que, dependendo da teoria em questão, pode ser encabeçada pelas regras
internacionais (primado do direito internacional) ou pelas normas internas (primado do direito
interno).[253] As diferenças entre o direito interno e o direito internacional seriam apenas uma
questão do escopo de sua validade (o direito interno válido somente para o território de um
estado e para um período determinado e os domínios de validade do direito internacional, em
tese, ilimitados) e de centralização (a relativa descentralização do direito internacional e a
relativa centralização do direito interno).[254] Um exemplo dessa concepção monista pode ser
visto no direito dos Países Baixos, que, em caso de violação aos direitos humanos, autoriza o
juiz a aplicar os dispositivos da Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos mesmo quando
as suas normas estiverem em desacordo com a lei holandesa.[255]
A corrente dualista, por sua vez, prega a separação dos dois tipos de normas, a superioridade do
direito nacional em detrimento do internacional e a exigência de conversão da norma
internacional em nacional, normalmente por meio de uma lei ordinária.[256] Segundo as teorias
dualistas, portanto, existe uma cisão absoluta entre direito interno e internacional e,
consequentemente, duas ordens jurídicas, distintas a ponto de não ser possível conflito entre
elas.[257] Outras implicações dessa concepção da dicotomia entre direito interno e internacional
incluem a possibilidade de normas internas contrárias ao direito internacional; a impossibilidade
de uma ordem jurídica determinar a validade das normas da outra ordem; a inexistência de uma
hierarquia, isto é, de superioridade de uma ordem sobre outra; e, portanto, uma separação nítida
entre o Estado e a ordem internacional.[257]
Ramos do direito
Ver artigo principal: Lista de ramos do direito
Após sua divisão em interno e internacional e público e privado, o direito tem sido divido em
ramos distintos e autônomos[245] que, em alguns casos, têm sido identificados desde o direito
romano.[260] O número de ramos existentes é elevado, e inclui o direito civil, o direito
administrativo, o direito penal, o direito constitucional, o direito econômico, o direito do trabalho,
o direito processual e o direito comercial, dentre muitos outros.[261]
Assim como as outras categorias identificadas na estrutura do direito, os ramos do direito são
construções teóricas que visam facilitar seu estudo e ensino,[239] mas que também apresentam
aplicação concreta pois constituem "uma forma de institucionalidade" que permite ao jurista
produzir, escolher, validar e preservar o conhecimento jurídico, além de definir métodos de
trabalho e estabelecer padrões para delimitar, gerir e resolver "problemas juridicamente
relevantes".[261] Mais especificamente, os ramos do direito são detentores "do poder de
estabelecer seus próprios princípios [jurídicos]" e, assim, desempenham um papel importante na
qualidade do trabalho do jurista.[261]
Por outro lado, do ponto de vista da sociologia do direito a divisão do direito em ramos se deve
principalmente a fatores externos e seria sobretudo uma convenção útil para "dividir um campo
de trabalho".[261] Essa divisão do trabalho teria como consequências evidentes a especialização
do jurista, incluindo sua maior eficácia, e o estabelecimento de "barreiras de entrada que evitam
a interferência de estranhos", isto é, barreiras que protegem os interesses dos membros da
comunidade de cada disciplina e também comprometem os novos membros "com a
preservação da disciplina ao longo do tempo".[261]
Classificação
O estudo, caracterização e classificação dos direitos adotados por diferentes grupos culturais,
incluindo a identificação de suas semelhanças e diferenças e, portanto, daquilo que os distingue,
é um objeto proeminente da disciplina do direito comparado.[264][nota 32][266] Assim, desde o
século XIX comparatistas têm apresentado, baseados em diversos critérios, uma pluralidade de
propostas de agrupamento e classificação dos direitos praticados ao redor do planeta.[267] Além
de sua diversidade, algumas dessas propostas têm conhecido modificações devido às
transformações político-jurídicas ocorridas no período.[268] Assim, enquanto determinadas
categorias continuam a ser percebidas como dominantes,[nota 33] por sua difusão e por
continuarem presentes em todo sistema de classificação, outras, outrora prevalentes, têm
perdido sua significância.[270]
Dentre as diversas tipologias que têm sido propostas, algumas se destacam pela difusão que
encontraram. Talvez o mais conhecido desses sistemas de classificação seja aquele aventado
pelo jurista francês René David no início dos anos 1950, e que mais tarde foi revisto em seu
famoso Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo (no original, em francês: Les grands
systèmes de droit contemporains), primeiro publicado em 1964.[271] Em sua obra, ele identificou
três "famílias" principais de direitos, todas de origem ocidental e consideradas as mais
proeminentes ao redor do mundo,[271][272] respectivamente a família romano-germânica de
direitos, a família dos direitos socialistas e a família da common law; além de outras famílias de
direitos menos difundidos, no caso os direitos muçulmanos, o direito da Índia, os direitos do
Extremo Oriente e os direitos da África e de Madagascar.[273] Os critérios considerados por David
são duplos: ideológico e técnico — respectivamente, a noção de justiça subjacente a cada direito
e aspectos da técnica jurídica presentes em cada um.[274]
Um segundo sistema de classificação considerado clássico nessa temática foi proposto pelos
comparatistas alemães Konrad Zweigert e Hein Kötz em sua obra Introdução ao Direito
Comparado no Âmbito do Direito Privado (no original, em alemão: Einführung in die
Rechtsvergleichung auf dem Gebiete des Privatrechts).[267] Nessa obra, os autores propõe a
classificação dos direitos nas famílias romanística, germânica, nórdica, anglo-americana, do
Extremo Oriente e do direito religioso (que inclui as sub-famílias do direito islâmico e do direito
hindu).[275] Na mesma linha, provavelmente a mais comum das classificações identifica a
existência de quatro famílias principais de sistemas jurídicos em todo o mundo, nomeadamente
a família romano-germânica, a família da common law, a família dos direitos consuetudinários e
a família dos direitos religiosos.[276]
Categorias dominantes
Embora seja grande a diversidade de categorias propostas ao longo dos anos, um pequeno
número de categorias ou "famílias de direitos" se destaca por sua difusão e por estarem
presentes em praticamente todo levantamento realizado por especialistas: a família romano-
germânica de direitos, a família de direitos socialistas e a família da common law.[275] Contudo,
mudanças no panorama político-jurídico mundial têm se refletido sobre o assunto. Assim,
enquanto ao longo do século XX era universalmente identificada uma família de direitos
socialistas, desde a dissolução da União Soviética essa categoria tem perdido importância, visto
que o número de países a adotarem direitos desse tipo diminuiu consideravelmente.[268]
Família romano-germânica
Um tribunal inglês em
sessão. Precedentes judiciais
são a principal fonte dos
direitos da common law
A família romano-germânica de direitos, também chamada família do direito civil, é formada pelo
conjunto dos direitos nacionais ou, eventualmente, subnacionais, construídos sobre as bases do
direito romano e do seu intenso e contínuo estudo nas universidades européias a partir do
século XII.[272] Seu nome é uma referência ao fato do seu desenvolvimento tardio ter ocorrido
nas universidades dos países latinos e germânicos, e, alternativamente, ao papel central
desempenhado pelo ramo do direito civil no seu desenvolvimento inicial.[282] De fato, uma das
marcas dessa família de direito é o fato de ter se desenvolvido, historicamente, com o intuito de
regular as relações entre os cidadãos; outros ramos do direito só foram desenvolvidos mais
tarde, e a partir dos princípios já consolidados desse "direito civil".[272]
Esse grupo de direitos foi fortemente influenciado pelo movimento de codificação que varreu o
mundo no século XIX, e, assim, a lei escrita permanece a fonte por excelência desses
direitos.[283] De fato, são comuns menções à "primazia da lei como critério de racionalidade do
modelo romanogermânico".[284] Nessa família, portanto, as outras fontes de normas jurídicas
ocupam um papel necessário mas complementar, fruto do reconhecimento que a lei escrita nem
sempre é capaz de prever a diversidade de situações concretas que se apresentam ao juiz[285]
ou, ainda, de uma preferência do legislador, que pode buscar tratar com abundância de detalhes
certas temáticas mas escolher tratar outras de maneira mais vaga, de modo que as lacunas
sejam supridas pelo judiciário de acordo com a conveniência de caso concreto.[286]
A família da common law é formada pelo direito inglês e os direitos dele derivados.[288] Essa
família de direito foi constituída a partir das decisões tomadas pelos tribunais responsáveis por
julgar casos envolvendo a coroa ou que exigiam a intervenção do poder real, e, portanto, suas
raízes concernem principalmente um direito público, ligado às questões de governo, pois
disputas envolvendo cidadãos particulares só podiam ser submetidas aos tribunais reais "na
medida em que pusessem em jogo o interesse da Coroa ou do reino".[290]
Embora os direitos da common law também contem com legislações escritas, essas são
consideravelmente mais breves e, consequentemente, a grande maioria das normas jurídicas
resulta de precedentes judiciais que, eventualmente, vão se firmando em jurisprudência.[291]
Nesses direitos, portanto, o juiz, ao decidir casos concretos, cria regras de direito que passam a
se impor a outras decisões futuras.[290] Em contraposição às regras dos direitos romano-
germânicos, essas regras da common law são menos abstratas e visam dar solução a
processos judiciais concretos, isto é, sua preocupação imediata é "restabelecer a ordem
perturbada, e não a de lançar as bases da sociedade".[290]
Como os direitos romano-germânicos, a common law se difundiu pelo mundo todo como
resultado da colonização e da recepção voluntária de estruturas jurídicas. Também como
quanto aos direitos romano-germânicos, a common law foi recebida com maior ou menor
densidade em diferentes países, inclusive dando origem a direitos híbridos.[290]
Fontes
Fontes materiais
As fontes materiais referem-se ao conteúdo axiológico das normas, isto é, os múltiplos fatores
sociais — históricos, religiosos, políticos, sociológicos, geográficos e econômicos, dentre outros
— que ensejam o conteúdo das normas jurídicas e, assim, condicionam o aparecimento e as
transformações do direito.[219][295] Noção que remete àquilo que Montesquieu chamou de
"espírito das leis", elas são muito diversificadas pois "decorrem das convicções, das ideologias e
das necessidades de cada povo em certa época", isto é, consistem de toda sorte de valor caro a
uma sociedade.[296] Como já se disse, embora os incontáveis valores caros ao ser humano não
careçam necessariamente de normas para serem vivenciados, não há norma que possa existir
sem um valor que a anteceda.[297] Por conta das fontes materiais, portanto, o direito apresenta-
se como um instrumento essencial para a formalização das escolhas de valores[298] e,
consequentemente, como "um dos mais importantes repositórios e expressão dos valores de
qualquer sociedade".[299]
As fontes materiais antecedem o direito, e, portanto, não são normas ou podem ser invocadas
por si mesmas no âmbito judicial; são, antes, valores que, a partir de escolhas e atos de
vontade,[300] adentram o direito por meio das fontes formais[296] e, assim, adquirem uma
presença tangível no dia-a-dia da sociedade.[298] Kelsen, notadamente, distinguiu os valores que
constituem as fontes materiais dos valores jurídicos positivados nas normas. Para ele, esses
são conceitos "correlativos" e, enquanto os primeiros são subjetivos e relativos, visto que variam
de pessoa para pessoa (inclusive quanto à sua hierarquia, isto é, sobre quais são mais
importantes que outros[301]), os segundos podem ser identificados objetivamente nas fontes
formais. Ao direito, caberia descrever os valores contidos nas normas e realizar um julgamento a
respeito das condutas reais em relação a eles (condutas condizentes com a norma seriam
positivas, e, ao contrário, condutas em desacordo com a norma seriam valoradas
negativamente), mas jamais realizar a crítica dos valores contidos nas normas, até porque um
tal julgamento dependeria necessariamente dos valores do intérprete.[302]
A coerência dos valores que servem como fontes materiais do direito tem ligação direta com a
efetividade do direito e sua capacidade de manter a legitimidade do poder político em uma
sociedade.[303] Embora com frequência essas fontes encarnem valores concorrentes e
pertencentes a grupos de interesse distintos, o que se traduz em um direito cujos objetivos são
por vezes contraditórios entre si,[304][305] a efetividade do direito depende em grande medida de
valores e propósitos compartilhados por todos os membros da sociedade,[305] visto que "a
medida com que as normas jurídicas impõem obediência depende do quanto elas expressam ou
estão de acordo com os valores sociais geralmente aceitos".[306][307] Assim, como na maior
parte das sociedades modernas as normas jurídicas constituem as principais regras de
comportamento e penetram praticamente todas as atividades sociais e individuais, a relativa
coesão dos valores expressos pelas normas jurídicas desempenha um papel crucial na
manutenção do Estado democrático de direito.[308][nota 36]
Fontes formais
O direito é um sistema que tem a norma jurídica como elemento de base, e cada uma dessas
normas descola de uma ou mais fontes do direito por meio de um processo de interpretação.
Essas fontes — chamadas fontes formais do direito — podem ser entendidas como fontes de
criação do direito, a "maneira como as normas se manifestam ou exteriorizam",[310] ou como
fontes de cognição do direito,[311] isto é, "os meios empregados pelo jurista para conhecer o
direito".[219] Não por acaso, em grande medida a educação jurídica consiste em treinar
estudantes para que encontrem informações pertinentes e produzam argumentos a respeito das
normas criadas our expressas pelas fontes do direito.[312]
Costume jurídico: uma das mais antigas fontes do direito, que predominou até o advento da
escrita,[320] é composto por regras não escritas que se formam a partir de dois elementos
fundamentais: a convicção geral, no seio de uma sociedade, de que um comportamento é
obrigatório e necessário, e a repetição reiterada desse comportamento.[219]
Existe um rico debate a respeito de outras possíveis categorias de fontes formais, como os
contratos, os tratados, os "escritos de sábios reverenciados", a analogia e formas de "normas
supra-legislativas" como os princípios gerais do direito e a religião.[324][325] Contudo, para boa
parte dos especialistas essas potenciais fontes, ou ao menos parte de seus valores, constituem
espécies do costume, da jurisprudência e, principalmente, da legislação e da doutrina, até
porque normalmente elas encontram previsão, se manifestam ou são identificadas por meio de
uma delas.[219][326]
Articulação e hierarquia
Todo direito se articula por meio de uma hierarquia das fontes que reconhece, e que lhes
permite resolver os conflitos entre essas normas.[327] Como as hierarquias das fontes são
específicas a cada direito, elas são uma evidência da maior ou menor importância atribuída a
cada fonte por cada Estado,[328] e, assim, constituem um dos critérios centrais na distinção das
feições de cada direito e das famílias de direitos.[329] Com efeito, na teoria comparatista das
famílias de direitos que predominou desde a segunda metade do século XX, um dos principais
critérios de diferenciação dos direitos é justamente os tipos de fontes que cada direito
reconhece e a maneira como ele as articula.[329] Na Contemporaneidade, é comum que as
legislações prevejam expressamente as categorias e espécies de fontes adotadas pelos direitos
de que são parte, seja na legislação infra-constitucional ou na própria constituição nacional,[330]
e que elas também esbocem a hierarquia das fontes reconhecidas naquele direito.[330][327]
Embora seja teoricamente possível um direito fundado em apenas uma fonte, os direitos
conhecidos ao longo da história são considerados complexos, no sentido de reconhecerem
mais de uma delas.[331] Naqueles que contam com legislação escrita, incluindo os pertencentes
à família da common law, normalmente essa legislação se impõe às demais fontes do direito e,
portanto, suas normas não podem ser modificadas ou revogadas por meio de outras fontes.[332]
Esquema da hierarquia das fontes de
um direito. As fontes ocupam
posições distintas em cada
ordenamento, mas normalmente são
encimadas pela constituição
A coerência e a completude, por sua vez, são dimensões de uma mesma questão, e
correspondem ao que Savigny e Francesco Carnelutti chamaram, respectivamente, unidade
negativa/unidade positiva e ausência de vício por excesso/ausência de vício por falta.[339] Por um
lado, a coerência consiste na qualidade do ordenamento de "afastar as contradições" entre
normas, na sua capacidade de não apresentar normas incompatíveis entre si.[340] Em outras
palavras, no ordenamento apenas existem contradições aparentes entre duas normas, e ao
jurista cabe "purgar" a norma excessiva do ordenamento.[339] A completude, por outro lado,
consiste na qualidade do ordenamento de não apresentar brechas ou lacunas.[339] Atributo
essencial à certeza do direito,[341] ela impõe que, em caso de aparente lacuna, cabe ao jurista
"integrar" o ordenamento por meio das normas disponíveis, a fim de produzir uma norma
aplicável ao caso.[340] Tanto a coerência quanto a completude são atributos que dependem da
solução de problemas aparentes que se apresentam na operação do direito, nomeadamente a
presença de antinomias e lacunas potencias.[342]
Antinomias e lacunas aparentes
Em particular, a coerência do direito somente é possível por meio de certas normas que
expressam critérios de solução de antinomias — normas incompatíveis entre si — e permitem
determinar a norma cabível a cada caso e excluir outras normas potencialmente
incompatíveis.[343] Geralmente três critérios são encontrados nos direitos, para a solução de
potenciais antinomias.[344] O primeiro desses critérios é justamente o critério hierárquico, que
estabelece que lei superior se impõe a lei inferior (em latim: lex superior derogat inferiori).[345] Os
outros dois possíveis critérios, normalmente aplicáveis unicamente aos casos onde mais de
uma fonte ocupa um mesmo nível da hierarquia,[327] são o critério da especialidade, segundo o
qual a norma mais específica (em relação ao caso concreto) prevalece em relação à norma mais
geral (em latim: lex specialis derogat generali)[346] e, depois, o critério cronológico, segundo o qual
a lei mais recente prevalece sobre a mais antiga (em latim: lex posterior derogat priori).[347]
Como são possíveis antinomias mesmo com a aplicação desses critérios, é comum que cada
direito estabeleça uma relação hierárquica entre eles, isto é, que se imponha uma ordem de
preferência que permita resolver conflitos potenciais.[346] Nesse sentido, o mais comum é que o
critério hierárquico ou critério da especialidade seja prevalente, e que ambos se imponham ao
critério cronológico.[348] Persistindo a antinomia, é comum que se aplique um quarto critério,
excepcional, que consiste em eleger a norma mais favorável (em latim: lex favorabilis),
nomeadamente aquela que estabelece uma permissão, em detrimento de uma norma que
estabelece um imperativo (em latim: lex odiosa); continuando a haver uma antinomia, porque
duas normas se enquadram exatamente nas mesmas categorias em relação a esses quatro
critérios, essas normas se anulam mutuamente.[349]
Interpretação
Métodos tradicionais
Gramatical: corresponde àquilo que vulgarmente é descrito como “a letra da lei”, ou seja, é
uma interpretação literal do texto legal, produzida a partir de seu sentido lexical e, por vezes,
completada com sentidos especializados de termos técnicos. O limite do sentido atribuído ao
texto pelo idioma é também o limite da sua interpretação. Dado o dinamismo temporal,
geográfico e cultural da língua, os sentidos de certos termos tendem a ser cristalizados pela
doutrina e pela jurisprudência;[361]
Histórico: tem como base a intenção do autor e o contexto histórico da elaboração da lei.
Normalmente se funda em justificativas retiradas de documentos legislativos que possam
esclarecer os sentidos atribuídos aos termos da lei, as finalidades pretendidas e outros
elementos. Também pode buscar contextualizar o texto em função da “situação social,
política e econômica no momento da aprovação da lei”;[363]
Teleológico: toma como norte a finalidade pretendida com a norma, ou seja, o objetivo
almejado pelo legislador. A finalidade atribuída à norma carece justificativa razoável pelo
intérprete, isto é, “exige um convencimento argumentativo sobre o juridicamente correto”. É o
mais elástico dos métodos interpretativos clássicos, e, por isso, é possivelmente “o preferido
na prática da interpretação”.[364]
Ao longo do século XX esse processo interpretativo tradicional, que contempla uma diversidade
de métodos que são empregados com base na conveniência, tem sido objeto de uma série de
críticas no âmbito da hermenêutica jurídica, ciência cuja problemática é comumente ilustrada
por meio da metáfora que seu nome carrega: Hermes era o mensageiro dos deuses olímpicos e
o responsável por transmitir e esclarecer seus desejos à humanidade; ao Homem jamais era
possível conhecer diretamente o conteúdo dos desejos dos deuses, sendo-lhe dado conhecer
apenas aquilo que Hermes dizia a respeito da vontade divina.[365] Como já se colocou, "as
disposições, os enunciados, os textos, nada dizem: eles dizem o que os intérpretes dizem que
eles dizem", e esse é o problema central sobre o qual se debruça a hermenêutica do direito.[366]
Ver também
Ciências jurídicas
Dogmática jurídica
Filosofia do Direito
Sociologia do Direito
Direito comparado
Direito subjetivo
Direitos humanos
Advocacia
Solicitadoria
Notas e referências
Notas
1. O termo direito é polissêmico e, como tal, remete a diversos conceitos. O sistema de regras
que regula condutas, tratado neste artigo, é referido no meio jurídico como o direito
objetivo. Para outros significados, consulte Direito (desambiguação).
2. O significado inicial desse termo dentre os romanos indicava aquilo que a teoria moderna
do direito define como direito subjetivo. Seu uso para indicar o conjunto de regras relativas
a esses direitos subjetivos, isto é, o direito objetivo, é muito posterior.[2]
3. Essa influente teoria foi proposta pelo jurista e religioso português Sebastião Cruz, e foi
comunicada em uma palestra na Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, em
maio de 1968.[13]
4. Na cultura Egípcia do período, o deus Osíris utilizava uma balança para julgar as almas dos
mortos.[13]
5. A simbologia do direito tem raízes na própria constituição desse fenômeno, isto é, remonta
a tempos imemoriais, e surgiu da necessidade de manifestar noções jurídicas e a
obrigatoriedade de certos comportamentos por meio de algum tipo de linguagem perene,
em tempos anteriores ao advento da escrita.[25] Como já se observou, as mesmas causas
que deram origem aos símbolos religiosos também produziram os símbolos jurídicos;
enquanto primeiros reveladores e aplicadores do direito, os sacerdotes, "testemunhas da
utilização dos signos simbólicos nas práticas habituais da vida civil, impressionados com a
simpatia do povo por essas práticas e convencidos da impotência de qualquer
manifestação lógica para se comunicar com o gênero humano ainda na infância", tomaram
como meio de comunicação a prática de "revestir de um corpo físico a pura luz das noções
intelectuais que, sem esse cuidado, cegariam com seu brilho forte os olhos débeis [do
Homem]".[31] De fato, assim como a origem do direito está intrinsecamente relacionada à
religião, a simbologia religiosa é com frequência o ponto de partida da simbologia do
direito, embora essas duas ordens de símbolos tenham vida própria e reportem-se a
fenômenos e sirvam a objetivos distintos.[32]
6. A questão da relação entre o conhecimento da escrita e a complexidade e efetividade
desses direitos "arcaicos" ou "primitivos" é objeto de um debate em andamento, mas em
geral reconhece-se que mesmo algumas das sociedades que não conheciam a escrita
apresentaram práticas de regulação social relativamente complexas e desenvolvidas. Isso
tem sido constatado não apenas através de investigações históricas, mas também de
pesquisas antropológicas junto a diversas populações que continuam a se reger por essas
formas de direito, como povos autóctones da Amazônia, da Austrália, da Papua-Nova
Guiné, de Bornéu e de outras localidades.[34]
7. A formulação casuística das regras de direito toma a forma "se um homem faz X, ele será
sujeito à punição Y".[47] Um exemplo é a formulação "se um homem matar outro, esse
homem será morto".[48]
8. No início da história de Roma o ius civile era conhecido como ius quiritium. Esse nome fazia
referência a quirites (por sua vez o plural de quiris, que significa 'lança), que era o nome da
classe a que pertenciam os cidadãos da Roma antiga. Nesse sentido, o ius civile era o
direito dos cidadãos romanos plenos.[69]
9. Uma outra categoria, reconhecida por certos autores, é a do ius naturale, fundada em
direitos compartilhados por todas as criaturas vivas, inclusive animais, por exemplo
relativos à procriação e à própria defesa contra ataques.[61] Seu maior proponente foi
Cícero.[73]
10. O Código Justiniano foi promulgado em 7 de abril de 529. Pouco depois, Justiniano
promulgou decretos para preencher lacunas do Código, que ficaram conhecidos como
Cinquenta Decisões. Um novo Código, revisto, foi promulgado em 16 de novembro de 534.
Foi este documento que chegou à atualidade; dos demais, apenas fragmentos foram
preservados.[80]
12. Cátedras de direito romano foram sendo criadas nas universidades: na França, Inglaterra e
Espanha a partir do séc. XII; nos Países Baixos, Boêmia, Alemanha e Polônia desde o séc.
XIV.[97]
13. Apesar de muitos aspectos comuns, o desenvolvimento do direito romano na Europa não
foi uniforme. Ele seguiu caminhos diferentes e teve ênfases distintas em cada um
deles.[100]
14. O próprio direito canônico foi fortemente influenciado pelo Corpus Iuris Civilis. A publicação
do Decreto de Graciano (c. 1140) é o ponto de partida do direito canônico como uma
ciência jurídica.[105]
17. Não por acaso, o desenvolvimento de um direito público propriamente dito, em paralelo à
reformulação do direito privado que já existia, veio a converter o binômio direito
público/direito privado em uma das divisões mais relevantes do universo jurídico.[128]
18. Sobre a tradição do direito natural e suas múltiplas vertentes, vide a seção sobre a tradição
do direito natural.
19. O conhecimento dos próprios direitos está relacionado à classe social do indivíduo:
pessoas mais educadas e informadas são mais capazes e propensas a buscar a efetivação
de seus direitos.[160]
20. Hart refere-se a definições (que ele próprio define como "uma questão de traçado de linhas
ou de distinção entre uma espécie de coisa e outra, as quais a linguagem delimita por
palavras distintas") curtas, ou seja, aquelas sem justificativas mais detalhadas.[178]
21. Afinal, o direito "existe em várias camadas e níveis".[180] Além do direito estatal, ele inclui "o
direito criado e aplicado por agências internacionais e o direito religioso transnacional (por
exemplo, o direito canônico), e, historicamente, incluiu numerosas formas de direito
(consuetudinário, territorial, mercantil, pessoal, eclesiástico, etc.) cuja criação,
interpretação e aplicação não dependeram, de forma alguma, dos órgãos do Estado".[180]
Da mesma forma, sua aplicação se dá de maneira diversificada, por meio de tribunais
judiciais mas também de instâncias administrativas e de instâncias privadas como a
arbitragem.[181]
23. Uma outra tradição filosófica recente carece ser mencionada, embora secundária em
relação às do juspositivismo e do jusnaturalismo: a do realismo jurídico.[191] Definida
brevemente, essa tradição entende o direito como fato, ou seja, como aquilo que
efetivamente é praticado; ela opõe-se ao jusnaturalismo, por julgar tratar-se de uma
concepção idealista do direito, e ao juspositivismo, por julgar tratar-se de uma concepção
formalista do direito.[192] Assim, para a tradição do realismo jurídico, para que se possa
entender a natureza e o conteúdo do direito é preciso "realizar uma investigação empírica
das atividades dos operadores do direito, principalmente da atividade dos órgãos
decisórios [como juízes, tribunais, etc.]".[193]
24. Famosamente, o jurista dinamarquês Alf Ross comentou que "como uma prostituta, o
direito natural está à disposição de todos. Não há ideologia que não possa ser defendida
recorrendo-se à lei natural. E, na verdade, como poderia ser diferente, considerando-se que
o fundamento principal de todo direito natural se encontra numa apreensão particular
direta, uma contemplação evidente, uma intuição?".[206]
25. O termo "positivismo jurídico" não se confunde com "direito positivo". Segundo Norberto
Bobbio, o positivismo jurídico também não se confunde com o positivismo em sentido
filosófico, embora ambos tenham se relacionado em meados do séc. XIX.[209]
26. Como já se colocou, o termo juspositivismo é ambíguo, pois é utilizado para rotular teses
heterogêneas e, por vezes, incompatíveis, e também algumas teses explicitamente
rejeitadas por aqueles que são considerados os "principais expoentes do positivismo".[210]
Da mesma forma, esse termo vem sendo usado para designar certas posições defendidas
pelos principais positivistas, mas de maneira incidental ou contingente.[211] Esta seção do
artigo concentra-se nas posições centrais desses principais expoentes do positivismo.
27. Como já se colocou, "se o que se pretende é tratar dos positivistas enquanto um grupo, a
única tese legítima, capaz de descrever de forma fidedigna aquilo que todo e qualquer
positivista aceita enquanto tal, é a tese do positivismo conceitual".[216]
28. Como coloca Kelsen, o fundamento de validade de uma norma é a norma que lhe é
superior; assim, só é válida a norma criada de acordo com o "procedimento previsto em
norma superior". Isto é válido para todas as normas do direito, inclusive a constituição, mas
esta possui uma particularidade: como a constituição ocupa o topo da hierarquia do direito,
a sua norma superior não pode ser encontrada no direito posto ou positivado. O
fundamento da Constituição é a chamada "norma fundamental", que apenas pode ser
suposta.[219] Semelhantemente a Kelsen, Hart define "regra de reconhecimento" como a
categoria mais fundamental de regras do direito, mas, diferentemente, seu conceito inclui
as regras que "especificam as fontes do direito e os critérios para determinar se uma regra
tem validade jurídica". Essas regras são reconhecidas ao menos por aqueles que
administram o sistema de justiça, e estabelecem os procedimentos para a produção de
novas normas jurídicas.[220]
29. Famosamente, John Austin afirmou que toda e qualquer norma jurídica, digna de ser
considerada como tal, deve incluir uma ameaça respaldada por sanções. Hans Kelsen, por
sua vez, sustentou que a monopolização da violência e a capacidade de impor suas
demandas por meios violentos é a mais importante das funções do direito na
sociedade.[174] Essa visão, de que a sanção é uma característica necessária, central e
distintiva do direito, ainda persiste em grande parte da comunidade jurídica.[228]
30. A divisão entre direito público e direito privado é consideravelmente menos clara nos
direitos da família da common law.[241]
31. Portanto, é falsa a distinção dessas categorias com base nas fontes do direito — a noção
de que direito público e direito privado seriam respectivamente o "direito de origem pública"
e o "direito de origem privada".[244]
32. No âmbito dessa disciplina, esse tipo de classificação resulta daquilo que se convencionou
chamar macro comparações.[265]
34. A família de direitos profissionais é caracterizada pela separação dos campos jurídico e
político nas respectivas esferas de tomada de decisão e a ampla secularização do direito, e
inclui as versões britânica e americana do common law, os direitos romano-germânicos, os
direitos nórdicos e os direitos híbridos de common law e direito romano-germânico, como,
por exemplo, o da Escócia e o do Quebec. Na família de direitos políticos o direito e os
processos legais são majoritariamente definidos por relações políticas, e, portanto, direito e
política não apresentam grande separação. Ela inclui os direitos de países como Polônia,
Hungria e República Tcheca e de muitos dos países menos desenvolvidos da África e da
América do Sul. A família de direitos tradicionais, por sua vez, inclui casos nos quais o
direito e a religião (ou uma tradição filosófico-religiosa) não se encontram devidamente
separados. Ela inclui os países de direitos islâmicos, os países de direito indiano e hindu e
países que adotam "outras concepções asiáticas ou confucionistas de direito".[278]
35. Essa classificação foi exposta no artigo Três padrões de direito: taxonomia e mudança nos
sistemas jurídicos mundiais (no original, em inglês: Three Patterns of Law: Taxonomy and
Change in the World Legal Systems).[279]
36. Isso, evidentemente, não significa que os valores expressos pelas fontes materiais do
direito sejam o único fator de coesão social; de fato, a efetividade do próprio direito é
dependente "de vários outros sistemas de valores que sustentam os valores expressos no
direito".[309]
38. Para maiores detalhes, vide a seção relativa à natureza do direito no juspositivismo
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