Natureza e Missão Da Teologia - Joseph Ratzinger
Natureza e Missão Da Teologia - Joseph Ratzinger
Natureza e Missão Da Teologia - Joseph Ratzinger
NATUREZA -
E MISSAO
DA TEOLOGIA
OH-00465
C DD-230
111 . Aplicações, 85
PREFÁCIO
A "Instrução sobre a vocação do teólogo na Igrej a", 87
Observação preLim.inar, 87 Na Igreja, ou m es mo na socied ade ocide ntal como um todo,
a teologia e os teólogos passaram a ser hoj e um tema discutido
I . Apresen tação, 87
por todos, e tam bém um tema controvertid o. No mundo mo-
2. Pontos da discussão d o texto, 92 de rno, ao que me parece, o teólogo de pa ra-se com uma dupla
a) Auto ridad e só e m caso de defini ção infa lível ?, 95 ex pectativa. Ele deve, por unl 1ado, esclarecer racionalmente as
b) Magistério, uni versidade e meios de comunicação, 98 tradições do cristianismo , isolar nelas o núcleo que te m condi -
c) TI·adlção p rofética contra tradição episco pa l?, 102 ções de ser ass imil ado hoj e, e ao mesmo te mpo fo rçar à mode ra-
ção a institu ição da I grej a. Mas es pe ra-se d ele também que ao
meSlllO te mpo ele confira rumo e con teLldo aos anseios relig io-
sos e de transcen dência capazes de ser propostos hoje. Na socie-
dade mundial em fo rmação impõe-se, além disso, ao teólogo a
tarefa d e levar adiante o diálogo das religiões e de con tribuir
para o dese nvolvimento de um elhos mundial, que tenha como
ponto central os conceitos de justiça, paz e preser vação da cria-
ção. Por último o teólogo deve ria ser ainda algué m qu e trouxes-
se consolo às almas, que ajudasse os indi víduos a se auto-encon-
trare m e a superar suas pró p rias alienações, pois o mero consolo
cole tivo de Uln Inundo melho r e tuais pacífi co que viria a reali-
zar-se no futuro comprovou-se como de todo insuficiente.
Em todo este esfo rço, não raro a I greja como instituição, e
sobretudo o magisté rio d a I grej a Católica, é vista como um obs-
táculo co ncreto . O po nto d e pa rtida do magistério é que o "ser-
cristão" , e mais ainda o "se r-católico", poss ui um conteúdo de-
terminado , te ndo por conseguinte para o nosso pensar um a di-
re tri z que não pode se r manipulada à vo nt.ade , diretriz essa que
confer e ao d iscurso do teólogo seu peso próprio, acima de todo
discurso me rame nte político o u filosó fi co. A teologia - na visão
do magistério - não su rge p elo simples tato d e se imagina r qua n-
ta religião pode ser ex igida d o Home m, e mpregando para isso
ele mentos d a tradição cristã. Ela surge pelo fato de impor-se um
limite à arbitraried ade do p ensamento, pois adqui rimos conhe-
•
) oseph R a tzin ge r
Natureza e mi ss ão da te o logia
I. Cf. F. Gerke. Chtisl us ill der s/Jiilal1lihPn P[aslik. rvlainz, ~ 1 1 948, p. 5. Cr. também F.
va n der Meer. Die UrsfJ1'ünge christlicher Kum/. Fre iburg, t 982, p. 51ss.
2. Ibid . p. 6.
•
vl'rdad e iro filósofo ' porque sabe d o lnlste ' , n.o d a more G ' k ções presentes neste contexto, o. filóso.fo. o ferecia o. esquema de
rl'S lIl1I e a visão do que const't' . ~
I UI o cnstao represent d '
e. el ' e
. , idé ias em que se po.dia entender qual e ra a ve rdadeira mensa-
:lllllqClI ssima arte, na seguinte frase" " O ' a d nesla
I rI) das com osi _ ," _ . : que se encontra no cen- gem de Cristo e da ressurreição .
, p çoes cllstas maIS antJgas não é o mundo d Bíb!' Tudo isto, como. é do conhecimento d e todos quantos com -
0 11 ~Il~ hlstó na sagrada, lHas sim O fiJóso[o, como I a 1 la partilham da vida do. mundo de h o.je com um mínimo. de aten-
1'I1/'151"'1/.1IS, a quem pelo Evalwelh r.' c ' nod elo do hO)f1O
'. ~ b o OI leIta a r evelação do \'el'd a- ção, não. é apenas coisa do passado. Depois que e m toda parte foi
cIC II o paral so"!I . abalada a segurança dada pelo cristianismo na questão. da morte
A fusão entre fil osofia e cristi anismo q ue a Ul'f: ' e do. caminho para a vida, vo.lta a cr escer por toda parte o. núme-
da m orte, se manifesta como imagem d'a ' qd , . ~ce a qll~stão
'd
vid a d H . veI a e ll a questao da ro dos "sábio.s", que oferecem como pro.duto a "filosofia". Para a
, r' o omem, lo.go atmge um a densidade ainda m aio.r. O filó- questão com que nos ocupamos, a relação entre fé e filosofia, isto
so o passa a ser a Imagem do. próprio. Cristo O q d ' pode ser de importância, na medida em que com isto volta-se a
re l) resent . r ~ " . . ue se eseJa
a i nao e a aparenCla externa de Cristo . lembrar m ais urna vez aos filósofos e teólogos prof:i ssionais o que
e o q , EI . I ' m as sIm quem
f. . ueI e rea ' me nte e ra: o perfe ito filósoDO. C l·'IStO.,
· co mo Ge rke em última aná lise, para alénl de toda sua e rudição, se espera
_01 mu a multo be m , a parece na roupagem daquele . d eles: a resposta às grandes questões da vida. A resposta à per-
co 4 A fi fi que o In vo.-
u. I 050 la, a busca do sentido em face da mo rte é a g unta: Como é mesmo que o ser-Homem se torna realidade?
tada agora como sendo a e r .' ' (: presen-
de Lá . EI P gunta sob, e Cn sto. Na ress urreição Co. mo. se deve viver para que o ser-H o m e m obten ha êxito? Acho
zal O e se a presenta como O fil ósofo qu e rea lm ente r ._ que em nossa pergunta precisamos ter se mpre este apelo diante
pond~ ~1LJdando. a mo.rte, e com isto mudando a vida. Aqui aqu~l~ do.s o.lhos, po.rque nele realme nte se toca naq uilo qu e constitui o
que Ja esd c: os apologetas era uma convicção tra nsfo rma-se elo. de união entre filo.sofia e teolo.gia. Mas a questão. d e como
co nte " I ' Jo'd? martlr
d mplaçao. " Justlno,
, na primeira m e tade do em se- ambas se relacionam concretamente, de como as difere ntes exi-
~~il~'a ~i~~~~fi~' h~vla car~cdte~'iz~do~o cristianismo com o a ve rda- gências racionais de ambas pod em ser assumidas, esta, na tu ral-
' c ' , e Isto pOl uas I azoes'. A t O
are ,a maIS ' .Impo.rtante m e nte, não. po.de ser respondida a pa rtir daqui , ela exige um esfor-
cio
' ,filI oso.
. ,o e pe rguntar po. I ' Deus.. A "mude
' . d o. ve rdadeiro fil óso-
fo. e vIver seg undo. 01 ço. m etódico próprio.
.',stCIO e' . -,ogos, e com Ele. Ja' que o significad o do ser
CI_ (: "VIve . r de caco I'd o com o L orTos os verchde iro f~'I ' r
sao os cnstãos .' , " .b ' (: S I OS010S 2. Urna distinção que transfonnou -se em oposição
_ ,e pai ISSO o Cristianismo é a ve rdadei ra fil osofi !;
C0 111 estas a firmações , q ue pocIe m parecer-nos
. abstr atas r a. . No início de sua história, como ouvimos, O cri stianismo con-
siderava-se a si próprio como filo sofia, ou lnesm O como a filoso-
fia por excelência. Será que se pode afirmar isso talnbém nos
du se nCla d e sentido, da desorientação e dos receios po. ' I ' dias de hoje? E se não., po.r que não o. po.demos? Que foi que
\locado f . I e a p l 0- mudo.u ? Co.mo. deve ho.j e ser melhor definida a relação e ntre
S, o ereCla um m e rcado abundante do I I"
ver. Assim com J ' J . _: qua se pOC la VI- ambo.s? A identificação entre cristianism o e fil oso. fia deve-se a
o l OJe, e a convocava nao so Illoedeiros Fdsos d
))a Iavra mas tambê I a um d eterminado conceito da f-iloso fia que aos poucos passou a
~l aque es que reaJme nLe estava m a ba lados
c
. ..' d
c qu e ,uu avam. Asslln, apesar d e to.das as d ecepções e fal sifi ca: ser criticado pelos pen sadores cristãos, se ndo d efiniti vamente
abando.nado no século. 13. A dife re nça e ntre um e outro., que é
:1. l bid., p. 7.
I. l iliel .. p. 8. obra antes de tudo de To.más d e Aquino, os di stingue mais ou
n. ( :f.() .I\l icll c l, lpd,oo o<p(cx. In: T hWNT 18r, R f' ~ . . m enos assim: Filosofia é a razão pura procurando responde r às
I I .l l. \'r1 11 BiLh ha s'll". Phil osOl, l ' C I ,. . ' :.l. e ..clcll clas Impo rtantes t.ambé m e m
, u e, 111sten tum M oncht . I . LI U questões últimas da realidade. Conheci mento filosófico. é soment.e
S/)I!III(I )','rlli. I'~ i ll s i cd e lll, ~ 1971 , p. 3']9-387.' .tllll. n . r . . \'on l~aiLhas<1 I· .
o. conhecimento a que se po.de chega r pela razão como tal, sem
14 15
Nn lll l'cza e missã o da t e o l ogia J os e p h Ra tzi n ge r
M ' I'l'('orre l'à revelação , Sua certeza provém unicamente do ar- zão inteira1uente neutra em relação à fé cristã, e se a filosofia não
g llllll'IIIO, e ~ uas afirmações valem tanto quanto os argumen tos, pode ter conh ecimento de nada que é dado ao pensa mento pela
J\ 1 'o logia, ao invés, é a realização co mpreen~iva da revelação de fé, então a tilosofia de um fiel cristão não pode deixar de parecer
I)e ll s; é a fe e m busca de compreender. Por conseguinte ela pró- um pouco fi ctícia. Mas será que efetivamente as respostas cristãs
. -
pna nao encontra seus conteúdos, mas os obtém da revelação, são d e tal natureza que fecham o caminho ao pensamento? Não
para e m seguida compreendê-los em sua ligação e em seu senti- poderiam as últimas r espostas, por sua nature.za, estar semp~e
d o inte rno, Com uma terminologia que teve início apenas com abertas para aquilo que não foi nem pode ser dito? Não pode ... a
l b más de Aquino, passou-se a fazer referência a esses dois terre- acontecer que a verdadeira profundidade e dramaticidade só
nos diferentes, lilosofia e teologia, como a ordem natural e a pudesse ser conferida às perguntas por estas respostas? Não po-
ordem sobrenatural. Estas distinções só passa ranl a ser inteira- deria ocorrer que elas radicalizassem tanto o pensar quanto o
mente claras na Era Moderna. Esta, então, projetou sua leitura perguntai; que os pusessem em andamento, em lugar de bloqueá-
sobre Tomás de Aquino, com isto conferi ndo-lhe uma interpre- los? O próprio Jaspers disse certa vez vez que o pensamento que
tação que o distancia mais fortemente da trad ição mais antiga do se desvincula da grande tradição cai numa seriedade tal que se
que o que pode ser encontrado nos simples textos •. torna vazid' . Não mostraria isto que o conhecilnento d e uma
Mas nossa atenção não precisa se ocupar aqui com estes pro- grande resposta, como a transmitida p ela fé, constitui mais um
ble mas históricos. De qualquer forma, é um fato que desde a estímulo do que um empecilho para as verdadeiras perguntas?
Idade Média tardia a filosofia é associada à razão pura e a teolo- Teremos que retornar mais adiante a estas considerações.
gia à fé, e que até o presente esta distinção marcou a imagem Neste momento, ao in vés, precisamos voltar-nos para a negação
tanto de uma quanto da outra. Mas uma vez feita esta distinção, da filosofia por parte da teologia. A oposição contra a filosofia ,
inevitavelmente surge a questão se filosofia e teologia ainda po- como pretensa destruidora da teologia, é muito antiga . Pode ser
dem ter unIa com a outra alguma relação m etódica, De iníci o encontrada de uma forma muito aguda em Tertuliano, mas vol-
isto é negado de ambas as partes, com fortes razões . Como exem- tou a se acender sempre de novo na Idade Média, alcançando
plo d a contradição por parte da filosofia, menciono apenas os uma notável radicalidade, como por exemplo na obra tardia de
nomes de H e idegger e jaspe rs. Para H eidegger a filosofia con- São Boaven tura9 . Uma nova era de contrad ição à filosofia em
siste essencialmente em perguntar. Quem ach a quejá conhece a favor da pura palavra divina teve início com Martinho Lutero.
resposta não pode ma is filosofar. A pergunta filosófi ca, do ponto Seu grito d e batalha sola scriptura não foi só uma declaração de
ele vista teológico, é uma lou cura, e por conseguinte fal ar de guerra contra a interpretação clássica da escritura pela tradição
uma filosofia cristã é como falar de um fe rro de madeira. Tam- e o magistério da Igreja; foi também uma declaração de guerra à
bém j aspers ach a que aquele que julga j á estar de posse da res- escolástica, ao aristotelislllo e ao platonislTIo na teologia, Incluir
posta fracassou como fil ósofo: o movimento aberto da transcen - a filosofia na teologia era para ele o mesmo que destruir a men-
dência é interrompido em favor de uma suposta certeza definiti- sagem da graça, por tanto destruir o próprio núcleo do Evange-
va' . Na verdade deve-se dizer: Se do filosofar faz parte uma ra- lh o. Filosofia é p ara ele a expressão do Home m que nada conhe-
ce da graça, e que te nta por si mesmo construir sua sabedoria e
~i. Com I'crerência aos ~roblemas históricos, cf r. va n Slee nbergh en . Die PhilosoPhie justiça. A oposição entre ajustiça das obras e ajustiça da graça,
111113. jaltr/lltndert. MHrllque!Paderborn, 1977 . • E, Gilson. Le Thomismc, Pari s, 5} 945,
., A. H a~t!Il. ThollUlS von Aquin geslern U'lld heute , Frankfurt, 1953, • Do ponto de vista
8. K. J aspel's e R. Bu ltmann. Die Fmge der Enlm)'l/wlogisienmg. Munique , 1954, ~. 12.
MSI C Ill{UICO, sobre a mesma questão: E. Gilson. Der Geisl derlllillelalterlichen PhilosoPhie.
1950.
ViC IIOI , C f. J. Pie per. Über die Schwierigkeit heule tU glauben - Au fsatze u nd Reden. Mumque,
7, Cf, J Pi eper. Jlerteidigungs1'ede für tiie PhilosoPllie. Muniqu e, 1966, p. l 28 . • W.M. 1974, p. 302. . _ .
9. Cf. J. Ratzi nger. Die Geschichlslheologie eles heiligen BOl/avenlura. Mumque/Zunque,
Nl'idl. ( :hl'islliche Philoxophie - ein e Absurd itat? Salzburg, 198 1.
1959, p. 140-1 6 1.
16 17
•
'I "C segun d o Lutero rep resenta a separação entre Cristo e o fil osófico. De fato nem Lutero n e m Ba rth puderam suprimir O
(t Il! icrisLo, é p a ra ele como se fosse o m esmo que a oposição e ntre p e n sam e nto fil osófico e a h eran ça filosófica, e a histó l-ia da teolo-
" fil oso fi a e um p e nsamento baseado na Bíblia . Vista ass im , filo- g ia evan gélica é pelo me nos tão fo rte m e nte d ete rminada p e lo
solia é pura destruição da teologia 10. Em n osso século, com o sa- in tercâmbio com a filosofia quanto a da teologia católica.
bemos, foi Ka rl Barth qu em conferiu caráter mais agudo a este Não obsta nte, é possível se constatar aqui uma difere nça, cuja
p rOLesto contra a filosofia na teologia , com a objeção contra a análise ao mesmo te mpo nos leva ao ce rne do nosso problema. A
analogia entis, n a qual ele viu uma invenção cio anticristo, mas um exame mais acurado, a rejeição que se mantém e m múlLip las
ta mbém a (Inica e inabalável razão para não se tornar católico. variações, de Lutero a Barth, r efere-se não à fil osofia e m si, mas
Mas a analogia entis é ex pressão simplesm ente da opção o ntológica sim à meta física, elTI sua forma estabelecida por Platão e Aris-
da teologIa católIca para a síntese e ntre a idéia do ser na filosofia e tóteles. A atitude an timetafísica de Lutero permanece ainda subs-
a idéia de Deus na Bíblia. Contr a esta continuidade entre a busca ta lKialm ente presa à escolástica da Idade Média ta rdia, que
lilosófica das razões ú ltimas e a apropriação teológica da fé bíblica, era o que ele conhecia. Ela encontra seus li m ites na adesão ao
ele opõe a desconti nuidad e radical: a fé, segundo ele, desmascara dogma da Igreja primitiva. A o rtodoxia protestante, qu e cons-
como de ídolos tod as as image n s de Deus cri a d as pe lo pe n samen- truiu sua própria escolás tica, C0111 a fidelidade às antigas profis-
to. Ele não vive da ligação, mas sim d o paradoxo. Concebe o Deus sões ele fé atenuou mais ainda o que a posição ele Lutero possu ía
inteiramente difere nte, que não deve d esenvolver·se a partir do d e revolucionário, de nlodo que esta só veio a manifestar-se ple-
nosso pensame nto nem ser por ele ameaçado ll . na mente na segunda metade d a Era Moderna. Nela o pró prio
Assim O caminho p a rece estar bloquead o d e ambos os lados: dogma da Igrej a prinlitiva aparece como a quintessência da he-
a filosofi a defe nde -se contra os dados d o pe nsa mento con stituí- lenização e da o ntologização da fé . Efetivamente, tan to con1 a
dos pela fé; na pureza e liberdade d o seu p e n sa mento, e la sente- do utrina do Deus uno e trino q uanto com a profissão de Cristo
se prejudicada por eles. A teologia defende-se COntra os dados como verdadeiro Deus e verdadeiro Homem o conte údo onto-
do con hecimento filo sófico, vendo neles uma ameaça à pureza e lógico das a firm ações bíblicas passo u a ocupar O centro do p en -
à n ovida d e d a fé. Mas na realidade o j){!thos d essas negações n ão samento e da fé cristã. A acusação d e h e lc ni zação , que d o mina a
consegue ser mantido. Co mo poderia o pensa mento fil osófi co ce na desde o sécu lo 19, vê nisto o d ista nci a m e nto da pura fé
pôr-se a cam in ho sem nenhum dado prévio? Desde Platão a Filo- bíb lica na salvação . O verd adeiro e le m e nto impulsionador é aq ui
so fi a vive u sempre do diálogo crítico com a g rande trad içrlO reli- a rt::je ição básica do pe nsam ento meta físico, ao passo que para as
giosa. Sua dignidade própria se mpre p e rmanece u ligada à di g- idéias hi stórico-fi losóficas a porta permanece amplamente aber-
nidade das tradições, a partir das quais luto u p e la verdade. Q uan- ta. Pode-se certamente dize r que a progr essiva substituição da
do fez com que este diá logo se calasse, logo e la veio ta m bém a metaHsica pela filosofia da história, qu e ocorre u depois de Kant,
sucum bir como fil osofi a. E vice-versa, na reflexão sobre a pala- também é substancialmen te determ inada po r estes processos na
vra revelada, simplesme nte a teologia não pode evitar compor- teologia, e que po r sua vez o desenvolvim ento fil osófico assiIn
Lar-se filosoficame nte. Desde que não se restrinja a recontar, a ocasio nado retroagiu fo rte mente sobre as opções teológicas l2 .
re unir unicam ente fatos h istóricos ma rgin ais, mas tente chegar à Na situação filosófica assi m surgida, pa ra muitos a única coisa
co mpree n são n o sentido próprio, ela ing ressa n o p e nsame nto filosoficame nte razoável parece ser a negação da o ntologia, o u
pelo menos a renúncia filosófica à o ntologia. Mas por o utro lado
I (). Cf: B. Lohse e Manin Luther. Eine Einfiihnmg in sein Leben "Uwl sein Wrrll. Muni-
que, ID8 1, p. 166ss. 12. Cf. agora a este respeito H . Thielicke. C{allhell /Ou/ J)rl/II('/I in rir,. NmZf'il. Tübingen,
I I. Sohre u raciocínio de K. Barth referente à analogia entis, <.:ompal·e-se antes de 1983. Também é instrutivo K. Asendorf. Lulher u.nrl H('~('{ - Un l.ersllchllngen zur
( 1Idl ) 11 . U. von Ba lthasar. Karl Ba"l"th. Einsiedeln, .1 1976. Grundlcgllng cincl" neuen systematischen Th eologie. \Viesbaden, 1982.
18 19
Natureza e missão da teologia Joseph Ratzin gc r
não se pode parar na renúncia à ontologia . Com ela cai ta mbém, e teólogos, foi necessário contrapor que ambas estão indissolu-
a longo prazo, a própria idéia de Deus, e e ntão passa a ser lógi- velme nte ligad as a esta dime nsão d o pensame nto, e indisso-
co, o u mes mo a ser a única coisa possível , construir a fé como luvelme nte inte rligadas entre si.
puro paradoxo, como o fez Barth, ou pelo me nos como O tentou Este diagnóstico, de início inteiramente genérico, precisa ago-
fa zer. Mas co m isto vo lta-se a rej e itar a aceitação inicial da razão. ra de ceru1. forma ser precisado e concretizado. U ma vez ultrapas-
Uma fé que se transforma em paradoxo a rigorjá n ão pode in- sada esta contradição dos opostos, a pergunta precisa agora ser
terp relar nem penetrar o mund o do dia-a-dia. E vice-versa, não formu lada positivamente: Em que sentido a fé necessita da filoso-
se pode viver na pura contradição. A meu ve r, isto mostra sufici- lia? De que maneira a filosofia está aberta para a fé e interiormen-
entemente que a questão da metafisica não pode ser excl uída da te disposta a dialogar com a mensagem da té? Desejo esboçar aqui
questão fi losófica sen do degradada a um resquício helenístico . com a maior brevidade três níveis de uma resposta.
Q uando se deixa de interrogar pela origem e o destino do todo,
a) Um primeiro nível da li gação entre as questões filosóficas
se está deixa~do de lado o que é própri o e característico do ques-
e teológicas nós já podemos e ncontrar quando consideralIlOs as
tlOn amento filo sófico. Apesar de na história, e nos dias de hoj e, a
im agens mais antigas da fé. Tanto a fe qu anto a fi losofi a estão
OPOSIÇão. contra a fil osofia na teologia ser em ampla escala ape-
voltadas para a questão primordial do Homem , a pergunta que
nas opOSIção co ntra a me tafísica. e não contra a fil osofia em si, o
lhe é dirigida pela morte. A questão da mo rte ,é a pe nas a forma
teólogo é o último a consegu ir separar uma coisa da o utra. E vice-
radical da pergunta pelo como do bem viver. E a pergunta pela
versa, o fil ósofo que deseje realnle nte chegar até às raízes não pode
orige m e o destino do Homem : d e onde ele vem e para o nde vai.
se desfazer do aguilhão d a pergunta sobre Deus, da pergunta so-
A morte é a perg unta que em última análise não pode ser repri-
bre a origem e o destino do ser e m si.
mida. e que se faz presente na existência humana COIDO Ul11 agui-
lh ão metafisico. O Hom em não pode deixar de interrogar -se
3. Tentativa de uma nova Te/ação
sobre o significado deste fim. Mas por ou tro lado, para todo aquele
Com as conside rações até aqui apresentadas começam os por que pensa, é claro que em última análise esta pergunta só pode-
esclarecer e m largos traços a dife re nça entre fil osofi a e teologia. ria ser respondida com fundamento por a lgué m que conh ecesse
Ao meSll10 tempo fi cou evidente qu e na hi stória de é:u nbas as o outro lado da morte. Mas a fé, sabendo que é dada a resposta
disciplinas esta disti nção ass umiu cada vez mais a forma de lima a esta pergunta, exige a atenção e renexão provocadas pela pe r-
opos ição. Mas ficou claro também qu e a oposição entre filoso fi a glll1ta. Tal resposta não implica de forma a lg uma no fi·acasso da
e teologia provocou modificações ne las próprias. No âmbito des- pergunta, como pe nsa jaspe rs. Pelo contrário, a pe rgunta fra-
le desenvolvimento, a fil osofia procura se mpre mais desfazer-se cassa quando não existe perspecti va de resposta. A fé o uve a res-
da ontologia, isto é, da qu estão qu e lhe é própria e primordial. A posta porque mantém viva a pe rgunta. Ela só pode r eceber a
leologia, por sua vez. e nvolve-se nesse processo dos fundame n- resposta como resposta quando consegue lev{I-la a uma relação
lOS. que a tornaranl possível e m sua tensão característica e ntre compree nsível com sua perg unta . Q uando a fe fala da ressurrei-
revelação e razão. Em o posição a isso di ssemos que a fil osofia, çflo dos mo rtos, não se trata de Lima afirm ação mais ou menos
como tal, não pode re nunciar à o nto logia, e que a teologia não é obscura sobre um lu gar futuro que não se possa controlar e so-
me nos depende nte dela. Excl uir a ontologia da teologia n ão li - bre um tempo futuro que nos é desconhecido, mas sim d e com-
be rl"a o pensamento filosófico, antes o paralisa. S uprimi r a onto- preender o ser do H omem no conjunto d a realidade. Aqui está
logia da filosofia n ão purifica a teologia, mas antes retira-lhe o em jogo também a questão básica da justiça, que é inseparável da
di"" ele debaixo cios pés. À comum oposiçfto contra a metafisica, questão da esperança; trata-se da relação entre história e ethos, da
'1"l' h~j c parece por vezes ser a verdade ira ligação entre filósofos relação entre o agir do Homem e a imutabilidade do real. Trata-se
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Natureza e missão da teo l ogia
Jo s eph Ratzi n g cr
de perguntas que podem assumir fo rmas diferentes de um p eríodo to rno d os conceitos de logos e aletheia não p ode ser red uzid a a
para o utro, mas que substanciahne nte pennanecem as mesmas, e uma me ra a tribuição d e sentido hebraico, e m q ue logos ("sse
que só podem avançar pelo intercâmbio de pergunta e resposta, de a pe nas "palav ra" no sentido de um discurso histó rico de De us, c
pensamen to filosófico e teológico. Este diálogo do pensamento hu- aletheia apenas a confiabilidad e o u fidelidade. E vice-versa, pda
mano com os d ados da fé terá um determinado aspecto quando for mesma razão não se pode ac usar J oão de torcer o elemen to bíbli-
realizado como um d iálogo rigorosamente filosófico, e outro total- co pa ra o he le nista. Ele está dentro da tradição sapiencial clás-
men te d iferente quando fo r pensado como diálogo pro priamente sica. Justame nte nele se pode estudar o acesso interio r da fé bí-
teológico. Mas en tre un1 e o utro eleve ex istir alguma relação, em blica e m De us e d a cristo logia bíblica ao interrogar filo sófi co,
últim a análise nenh um pod e dispensar o outro inteiramente. ta nto em suas conseq üê ncias qua nto em suas o rigens .
l3
b) Do segu ndo nível d e li gação ta m bémjá se falo u antes: a fé A altern ativa se o mundo deve ser entendid o a partir de um
re presenta uma afi r mação fil osófi ca, quase que ontológica, quan- intelecto criado r o u de uma combinação de probabilidades den -
d o professa a existê ncia d e Deus, e de um Deus que te m pod er tro de algo que em si não possui sentido - também hoj e é esta
sobre a r ealidad e co mo um tod o. Um De us se m poder é e m si alternativa que constitui a pergunta detenninante para nossa com-
uma contrad ição. Se Ele não puder agir, fala r, e se não pude r- preensão d a realid ade, e a ela não se pod e fu gir. Qu e ~ , ao il:vés,
mos d irigir-nos a Ele, podemos considerá-lo como um a hi pótese quiser r edu zir a fé a um par adoxo o u a um mero sJn1bohslno
abstrata; mas isto não te m nad a a ve r com aquele que a fé dos histó rico, deixa de atingir a posição histó rico-re ligiosa da fé, pela
ho mens chama de "De us". Afirmar um Deus criado r e salvador q ual tanto os pr ofetas qua nto os a póstolos co mbate ra m. A uni-
par a O mun do in teiro ultrapassa a com unidade particular de ver salidad e da fé, pressuposta na ta rda m issio nária, só tenl sen-
religião. Ela não q ue r ser um símbolo d o in om inável, que nu- tid o, e só pode ser mo ralm ente j usüfi cada, se nela realtnente for
ma religião apar ece de uma fo rma e em outra d e Uln a fo rma super ado o simbo lismo das religiões e n: v i st~ d e u ma r<;sposta
d ifer en te. mas sin1 uma a firm ação sobre a pró p ria realidad e e m com um, em que t.:1. mbém se faz a pelo a razao comumtana do
si. Este ir rom per do pensamenLO de Deus pa ra Ul11a ex igê ncia H o mem. O nde este asp ecto comunitá rio esti ver excluído,já não
básica à razão hum ana é mu ito clara na crítica à rel igião dos ex iste mais ne nhuma comunicação da huma nidad e que chegue
prote las de Israel e dos livros sapie nciais da Bíblia . Quando ne- até às últimas conseqüências. Por isso, a partir da questão de
les são mor daz111ente ridicula ri zados os de uses a utofabricados, e Deus a fé te m que exp or-se à disputa tilosólica. Se desistir da
qua ndo a estes se opõe o ú nico Deus verdad e iro e rea l, esta mos ex igê ncia de racio nalidad e de sua afirm ação básica, ela não está
d ian te do l11esmo movimento es pi r itu al que pode ser enco ntra- se ret ra indo para uma fé mais pura, mas sim traindo um ele-
do nos pré-socráticos d o a ntigo iluminismo grego. Q ua ndo os me nto básico de si pró pria. E vice-versa, se a filosofia quiser p er-
profetas vêem no Deus de Israel a razão criado ra de tod a reali - manecer fi el à sua causa, te rá que expo r-se à exigência da fé
dade, trata-se clara mente de crítica rel igiosa e m favo r de uma para COln a razão. Ta mbé m neste nível o inte r-relacio n amento
visão correta da realidade. Aq ui a fé de I srael u ltrapassa clara- d e fil osofi a e teologia é in d isp ensável.
mente os limites de um a rel igião do povo; ela re p resenta u ma c) Po r último d esej aria pelo menos com po ucas frases mencio-
ex igência uni versal, o nde a uni versalidade está ligada à racio- nar a luta e m to rn o dessa questão d entro da teologia luedieva1.
nalidade. Sem esta crítica religiosa profética, o u ni versalismo cris- . . ."
Em Boaven tura e u enco ntro duas respostas prlnClpals a pe rgun-
I ~"O Leria per man ecido inin1agináve1. Nela preparo u-se no inte- ta se e po r que é certo tentar compreender a mensagem bíblica
ri o)' cio próprio Israel aq uela síntese elementa r entre o elemento com métodos d o pe nsam ento fil osófi co. A primeira resp osta ba-
g rego e o bíblico, pela qu al luta ra m os Padres d a Igreja. Po r isso
a ('(,' 11 1 ra lização da me nsagelll cristã no Evan gelho de J oão e m 13. Im portantes referên cias a t:Slas qu estões sâo ofer ecidas pOl" I-l , Gese. Ocr
Johannt:sprolog. I n: H . Cese. Z.nr biblischen 11teologie. Mu ni que, 1977 , p. 152-20 I.
22 23
N a tureza e missã o da te o l og i a
] oseph Rat z in ge r
s(;i ,~-se n~ma frase de IPd 3, 13, que na Idade Méd ia constituía o
ender. Q uer conhecer sempre melhor aq uele a quem a ma. "Bus-
t6p ' co c1",~SlCO que fornecia a base p ara a teologia sistemática
ca sua face", como sempre de novo di z Agostinho, baseando-se
c~mo tal: _EstaI se mpre prontos ~~ra vos d efende r contra quem
nos sahnosl6 . Amar é querer conhecer, e assim o buscar compre-
ped :, lazoes d e vossa es pe rança ". Aqui o texto grego é bem
m,IIS e xpressIvo que qualqu er t::adução. A qu em p e rgunta r pelo ende r pod e se r precisamente uma exigência do am or. Dito com
fogos da espel ança ,. d evem os fieIs da r sua apo-Iogia. O Logos pre- o utras palavras : En tre amor e verdad e existe uma ligação qu e é
Cisa ter sIdo tão assImilad o por el es que possa transformar-se e m importa nte para a teologia e a filosofia. A fé cristã pode dizer de
apo~logla ; a palavra passa a ser p elos cri stãos resposta à interro- si mes ma: Ache i o alnor. Mas o al110r a Cristo e ao próximo a
gaç_ao dos h omens. A prim eira vista isto pa rece uma fund amen- partir de Cristo só pode ter consistê ncia quan do for no mais p ro-
t~çao p~ra m ente ap ologética d a teologia e da procura pela ra- fund o d e si a mo r à verdade. O fato r missioná rio ganha aqui um
z~o ~a r-e. Tem-se q~e pode r expli car ao outro p or que se crê. A novo as pecto: O verdadeiro amor ao próximo que r d ar ao pró-
fe nao e pura deClsao, se o fosse ela não a tingiria o o utro. Ela ximo também aquil o que o Homem necessita de mais profun do:
que r e pode ser comp rovada. Q uer tornar-se compreensível pa ra conhecime nto e verdade . Nós havíamos partido mais acima da
o ~ utro . EXIge ser um Log0s.' e por isso sempre de novo poder qu estão da morte como aguilhão fi losófico da fé; descobrim os
~O l nar-se apo-Iog la. N um nJ vellnals profundo, no en tanto esta e ntão a qu estão de De us e sua exigência universal como lugar da
mte~pr~tação a pologética da teologia é missionária, e a conc;pçãO filosofi a na teologia. Agora podemos acrescentar, co mo te rceiro
mlSSlOnan a manlfesta, por sua vez, a natureza interio r da fé: e la só pon to: o am or, com o centro do ser -cri stão, d o qual "depe nde m a
P? de ser nli~si~nária quando reahne nte ultrapassa todas as tradi- Le i e os Pro fetas", é ao mesmo tempo amor à verdade , e só assim
ço~s e cOnStItul um apel? ~ raz~o, um voltar-se para a pró pria se Inantém como ágape a De us e ao Ho me m .
veldade',Tem que ser mlsslonán a ta mbém, u ma vez que o Ho-
mem est~ d ,;stmado a reconhecer a realidade e tem que, na sua
resposta as uJtlmas COIsas, comportar-se não ape nas tradicio nal- Ob servação final: gnose, f ilosofia e teologia
men;e mas ta mbél~ de acordo com a verdade. A fé cristã, com sua Por últim o eu gostari a de voltar mais uma vez ao início, à
e~!genCla ITIISSIOnan a, dIstancIOu-se da história das o utras re li- idé ia dos prime iros j)adres, de que o cristianismo é a verdadeira
glO:s; esta sua exigê ncia provém de sua cr ítica filosófica das re- filosofi a. O tto Mich el lembrou que a palavr a filosofia era evitad a
IiglOes, e só a part~r d aí pode ser fundamentada. O fato de hoj e o pelos gnósticos. A palavr a gnose representava para eles uma exi-
ele~,ento mlSSlonan o estar ameaçado de debilitar -se está associa- gência mais alta. A fil osofi a que se mpre perma nece inte rroga-
do li pe rda de filosofia que caracteriza a atual situação teológica. ção, esperand o uma resposta que sozinha ela não pode dar, n ão
Mas em Boaven tura amda pod e ser encontrad a uma outra sig nificava mui ta coisa para el es. Queriam te r um conhecime nto
~ ndamentação da teologia, que primeiro interpre ta numa dire- claro - conheci me nto que é pod er, com o qua l pode ser domina-
çao ~n te l ramente dife re nte, mas que mesmo assim confirma a do o mundo de um e ou tr o lado da morte". A gnose passa a ser
p artIr de dentro o qu e j á foi dito antes. O santo sabe que o in tro- a n egação da filosofi a, ao passo qu e a fé d efe nde a um só tempo
d uZll' a filosofia, na teologia nao é incontestado. Ele admite que o que a filosofia possui de gra nde e d e humilde. Não é algo mui-
eX,lste um ~ vlolenCla da razão, que não se pode harmo nizar co m to semelh ante a isto o que existe hoj e? Da ftlosofia pro priamen te
a fé .. Mas dIZ que também existe uma in terrogação por um outro dita, com sua ince rteza última, nós estamos fartos. Não quere-
motivo: Pode ser qu e a fé d eseje compreende r por amo r àquele mos fil osofia mas sim g nose, isto é, um conhecime nto exato, que
li que m e la de u seu consentimento . O amor procura compre-
l5
possa ser compr ovad o. A filosofia, e m larga escala, está cansada
14 . Hoa VC ll llll·a, Sento PJ"OQe1lL. qu 2 sed Con tra I
Ir" Ihid. , qu 2 ad G. 16. CC p. ex. En in ps 104 ,3 Chr XL, p. 1537 .
17 . CC sobre iSlO O . Michel. qHÀoooep(ct. l n: ThWNT I X 185, nO!..:"1 136.
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N :1t u r e z a e m i sco;o
~.. d a t e o 1og ia
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Nllturcza e m i ssã o da teologia
Joscph Ratzinger
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Joseph Ratzinger
Natu r eza c m issão da te o log i:1
os pCl'lgos a que o diálogo está suje ito: as pessoas podem chegar em si mesma, quando deixa de ser merecedora de cmpe nho c
atenção, o conh ecime nto só poderá ser avaliado atra vés da utili-
a ~J 111 consenso porque existe a verdade comum ; mas o consenso
dade. Nesse caso ele já não se justifica por si mesmo, mas ape nas
lI ao pode ocupar o lugar da verdade. Nesse ponto que "
levo t' '. d _. ' Ja nos pelos obj etivos a cujo serviço se encontra. Passa, e ntão, a f~l zc r
. ~I a ~ ~ centl o a questao, façamos uma interrupção, para
pa rte dos objetivos e me ios, e isto sig nifica que de alguma rorma
conslde l atInas uma segunda caracte rística do acad êmico.
ele eSlá subordinado a alguma forma d e poder o u de co nquista
d o poder. Expressan do isto com o utras palavras: se o Homem
2. A libeTdade não pudesse de alguma forma reconhecer ele próprio a verda-
. Da essência do acadêmico, e do seu esforço por co mpreen - de, mas unicamente a utilidad e das coisas para isto ou para aqui-
dei, tem feito parte d esde sempre a liberdade , Liberdade , agui, lo, e ntão a norma d e todo agir e de todo pensar passaria a ser o
slgl1lfica essenCIalm ente duas coisas. Em prim el'l'o lug ' . uso e o consumo; então o Inundo se translormaria unicalnente
'b Td d " . areapos- em "matéria para a prática". Torna-se clara aq ui a inexorável e
SI I I a e de tudo pergun ta r, de di zer tudo qu anto na lu ta pe la
vel dade IJarecer mereced 01. d e ser d'Ito, d e ser perguntado e inevitável decisão que sempre mais profunda mente passou a ser
pens~do" . Até (~q~i nós nos e ncontramos claramente no âmbito o dilema da Era Moderna, e que hoj e é apresentada como seu
destino: será que a verdade é realmente acessível ao H o meln ?
d~;U1lo que h~Je e pelo menos teoricamente aceito e d efendido
Adianta procurá-Ia ? Será que a única salvação consistiria, talvez,
fip todos.. Mesmo assim preCIsamos perg un t'll" ' . Q ue é que JUSll-
'.
e m buscar a verdade, reconhecê-Ia como a ve rdad eira senhora
1C3 esta "be rdade, que e m ce r~as circunstâ ncias é lão p e ri gosa?
d os ho me ns, como a única coisa que salva? O u consistiria a ver-
~ua~ o.s~u .fundamen~o? E~t~ n~sco é assumido e m favor d e qu ê? dadeira libe rtação do Homem em abandonar a queslão da ver-
~ un l c~ I esposta sausfatona. e a seguinte: A próp ria ve rdade, dade, como fica claro na nova lógica d e Francis Bacon , qua ndo
pOI causa dela mesma, pOSSUI táo g rande valor gue justifica o ele desperta do sonho especulativo e fin alme nte ass ume em suas
~sco, ne~lhuma outra cOIsa o u pessoa seria capaz de justificá-lo. mãos o domínio das coisas para tornar-se o " mestre e senhor da
as aq Ui logo nos vemos envolvid os em um dramático con fli to nalureza"?' Seria válida a defmição d e Giambattista Vico, de que
com, t~das as estr~tégia s de mudança, ao mesmo tempo que nos verdad e é unicamente aquilo que é feito (e portanlo aquilo que
d e ~a, a mos tambem com a questão dos funda me ntos da nossa pode ser feilo), ou será válida a afirmação cristã de que a verda-
s?cledade. Tentemos, por isso, descrever com toda exatidão pos- d e anteced e o lazer?8 A liberdade que resulta do novo pe nsa-
slve l este ponto, que Josef Pieper de fin e como segue: "O mento de Bacon é a liberdade para fazer tudo e para reconhecer
d~stll1gue (o acadêm ico) é antes de tudo este estar livre de I:l~~ o sabe r e o poder co mo a única lei do Homem - uma libe rdade,
çao a ,qmllsquer
. eventuais
. , . fin alid ades de uso- um estai'
.: -I'Ivre que
g no enta nto, que a ntes não estivera em vigor, e que pôde ser apre-
co nsUtlu ~ verdad eira lI berdade acadêmica', e que. porta nto se ntad a como a verdadeira libe rtação na conduta do filho mais
por defin . ição se exting ue Iogo que as C1enClas
'. . passam a se r me-' novo, que toma posse da he rança e com ela parte para o d esco-
:;os objetos d e qua lquer g l:UpO, seja qual for sua o rganização"'. nhecido. Mas a liberdade para fa zer tudo, a libe rdade que não
Pode-se q.lI ~l e r tomar a hl o~ofi~ a seu serviço; mas o que é to-
mado a se i ViÇO de alguma coISa Já náo é fil osofia" 6. 7. No seu Nov/lm Orgmwm F. Bacon tentou d ar uma nova defin içflo d a essência da
A perg unla pela liberdade está inseparavelmente ligada à per- filoso lia. Ela já não pel'gun ta sim plesmente pela verdade mas sim pelo podei' e sa-
ber, pelo poder do H om e m sobre o mu ndo. Seu objetivo é co nqu islar o domínio
gunta pela verd ade . Q uando a verdade deixa de ser um valor sobre a nalu reza. Cf. J. Pieper, l.e.. nota 2, p. 20. A importflllcia de F. Bacon na
origem da Era Moderna é en faticamente d emonstrad a por M. Kriele. Befreiung und
4. ~~bre est~ Seçã? cf. J. Ratzinger. Freih eit und Bi ndu ng in der Kin:he
RatzlI1g<::l". Kt)"che-O!wmene-Poiiiik. Einsiedeln 1987 16r, 182 r:: [ • In : J.
f;olilische Aufkla.ru.ng. Freiburg, 1980, p. 78-82. Cf. ainda R. Spaeman n e R. Lõw.Die
5. L. c., p. 28. ' ,p.:.l- ..l, .•. c., p. 28. Frage Wo z'U~ Munique/Zurique, 198 1, p. I aos.
6. Ibk\., p. 29, 8. Cf. .I. Ratzinger. Einfü.Jmmg in das ChristenlU1It. Munique, 1968, p. 33-43 .
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Na t ure z a e missão da t e ol o gia J o seph Rarzing e r
rcco nh ece mais nenhum comprolnisso com a verdade - com o com a clareza e severidade que lhe são próprias. Não foi por
pai - , vive sob a cotnpulsão de que o que agora d e termina o acaso que isto acontece u, pois aqui, nos dias de terror do Tercei-
Il o me m é unica mente o usar e o ser -usado. sendo por isso em ro Reich, o aspecto destrutivo da aliança entre razão, máquina e
ú ltima a nálise uma liberdade de escravo - mesmo que isto só política já se havia manifestado com absolu ta clareza. Aqui se
chegue a evide nciar-se mais tarde, e mesmo que dure até esgo- havia tornado manifesto o que é a razão quando os fins e a eficá-
lar-se, a ponto de chegar às bolotas dos porcos e de invejar os cia são erguidos à condição de único Deus, e com isto pôde-se
porcos por não estarem suj eitos à maldi ção da liberdade . Che- ver que unicamente o valor da verdade, seu caráter intocável, é
gou-se a esse pOl1to nos postos mai s avançados do dese nvolvi - capaz de salvar. O que Guardini disse então sobre a universidade
mento mod e rno, mas o c1aulor ecológico, contra o Homem mostra bem a essência do ve rdadeiramente acadêmico: "Se a
como destruidor do ser, não traz sa lvação enquanto a pergunta universidade possui um sentido espiritu al, é o de ser o lugar
pela verdade não for novamente co locada. "A verdade vos li- onde se pergunta pela verdade , pela pura verdade - não por
bertará" ao
8,32) - esta palavra do Senhor pode se r co mpre- causa de algum objetivo, mas por causa dela mesma: pelo fato de
endida hoj e de uma forma inteiramente nova na profund ida- ser verdade"lo. No contexto de nossas preocupações atuais, a
de e grandeza d e sua exigência. A verdade ira a lternaüva do mesma idéia foi formulada pelo bispo Hermann Dietzfelbinger,
nosso tempo passo u a ser e nlre a liberdade do fazer e a liber - ao recebe r o prêmio Romano Guardini. Nessa ocasião ele mos-
dade da verdade . Mas a libe rd ade do fazer que não se deixa trou como a questão da verdade estava sendo desviada para a do
tolher pe la verdade é a ditadura dos /ins, e m um mundo de valor, le lnbrando que de início as idéias das origens do nacional-
onde a verdade já se encontra a usente, e com isto a escravi zação socialismo foram vistas como "valores" sensatos e libertadores,
do H o me m sob a aparência de libertação. Só quando a verda- sendo desta forma legitimados. A frase de Carl Friedrich von
de ti ver valor e m si mesma, e quando ver a verdade for mais Weizsacker, ciú'lda então, merece ser repetida aqu i: "Afirmo que
importante d o qu e todos os êxitos e sucessos, só e ntão é que a longo prazo só pode prosperar uma sociedade orientada para
seremos livres. E por isso a li berdade verdadeira é apenas a a verdade, não para a felicidade" 11 .
liberdade da verdade. Mas isto , p recisamente no momento em que recordamos o
contexto da palavra de Guardini mencionada acima, significa o
3. O ceniTo: a verdade corno fundamento e medida da seguinte: A maior e a melhor defesa do Homem , e a melhor
liberdade defesa e purificação do mundo, ocorre quando se resiste ao do-
mínio do dogma da transformação, ou rnelhOl~ do dogma da
Com isto nós chega mos ao verdadeiro núcleo de nossas con- Eactibilidade, e se adere ao d ireito da verdade por causa dela
siderações: liberdade "acadê mica" é a liberdade para a verdade, e mesma. Pois q uando o Hom em torna-se verdadeiro, isto é, ao
o que a justilica é estar aí para a verdade, sem ter qu e preocu- mesmo tempo um pouco o mundo tornando-se verdadeiro, e
par-se com os fin s a alca nçar. A mulhe r d e Ló, que olha para quando o Home m se tor na verdadeiro ele se torna bom, e lá
trás, é transformada numa estátua d e sal; e o Odeu , depois de onde esse Homem se encontra o l1ltllldo se torna bOln. Tomás de
subir na luz, pe rde tudo quando procura garantir o êxit09 • Aqui no, como se sabe, definiu a verdade como O adequar-se do
TenLemos agora apreender com a máxima precisão possível espírito à realidade . A falha desta definição foi mostrada com
esLa idéia, para que possamos ver com clareza suas ex igências e muita clareza sobretudo na fil osofia personalista do período en-
implicações. Parece-me significativo o fato de Romano Gua rdini
ha vê-Ia fo rmulado uma vez enl conexão com a qu estão judaica, 10. R. Guardini, I.c., nota 2, p . 10.
11 . I-I. Dietzfe[binger. Dimensionen der Wahrheit. In: K<1th. Akadt!mie in B(l)'ern.
!I. J':s la illl<lg'Cll1 em Pi e per, p. 69, lemb rando K. Weiss. C h ronik 19~0/1981, p . 148- 156; citaçào 150.
32 33
•
Irc as guerras e no após-guerra 12 . Esta fórmula, ce rtamente, não nidade d a verdade, d e que por sua vez dependem a dignidad e
diz tudo , mas ela mostra alguns ele me ntos de decisiva importâ n- do Home m e do mundo, se não se ap re nde a ver nisto O ser e a
cia: perceber a ve rdad e é um processo que aj usta o Home m ao d ignidade do Deus vivo. Por isso em última análise o resp eito à
,
ser. E o ajuste entre o e u e o mundo. é a harmo nia, o ganh a r verdade é inseparável daquela atitude respeitosa que nós cha-
presentes, o ser purificado. Na medida em que os H o me ns se ma mos d e adoração. Verdade e culto estâo en tre si numa r elação
deixam conduzir e purificar pela ve rdade, eles e nco ntra m o ca- inseparável - um não pode realmen te prosperar sem o outro,
minh o não apenas para o seu verdad eiro eu, mas ta mbém para o co mo efetivamen Le tantas vezes chegaran1 a sepa rar-se no de-
tu. Pois na verdade eles se tocam, e é a in verdade, o u a ausência curso da história.
de ve rdad e, que faz com qu e se fechem um para o o utro . Cami-
nha r pa ra a verdade, de acordo com isso, signifi ca discip lina ; 4. O culto
quando a verdade purifica d o egoísmo , da co mpul são para a Com isto, em nossa p esquisa do acadêmico e da teo ria do
au t.o-s uficiê ncia, quando ela torna o H omem obed iente e confe- acadêm ico, chegamos j á a um último ponto de vista. Q ue a p ala-
re-lhe a coragem da hum ildade, isto sign ifi ca ta mbém que ela vra "Academia" te nha sido de início o nome de um templo pré-
ensina a perceber a paródia da liberdade presente na factib ilidade, urba no, antes qu e Platão criasse ali sua escola, p ode de in ício
e a paródia do di{llogo presente no palavreado supera a confu- não parecer muito significativo para a histór ia da nova institui-
são entre a usência de compromisso e li berdade, tornando-se as- ção. Mas considerando com mais atenção podere mos perceber
sim fecunda precisamente por ser amada sem ou tras intenções. aqui uma ligação mais profunda, que cer ta me nte não deixo u d e
Depois destas co nside rações. estamos preparados para dar ser importante para O fundador. Pois do ponto d e vistaj u rídico
um último passo. Precisamos ainda colocar a pergunta de Pilatos: a academia de Platão era uma associação d e culto. Dessa fo rma,
O que é a verdade? - se bem que de uma forma diferente do qu e a veneração das musas era uma componen te im portante da vida ;
fez Pila tos. Hermann Dietzfelbinger lembrou que o que a pe r- existia expressamente o cargo do p repar ado r dos sacriflci os " .
gunta de Pila tos possui de opressivo é que na realidade ela não é Isto é be m mais do qu e uma simples coincidência externa, p ossi-
uma pergunta, 111as siIn Ullla resposta. Ao qu e se apresenta com velmente uma concessão às estruturas sociológicas de e ntão. Em
a pretensào da verdade ele diz: Deixe de conversa - o que é a últim a análise, a liberdade para a verdade, e a liberdade d a ver-
verdade? Q ue remos antes ocupar- n os com o concreto. - É nesta dade, não pode existir sem que o d ivino seja reconhecido e ve-
forma que quase sempre a pergunta de Pilatos é fe ita hoje. Mas nerado. O estar li vre da obrigação de se r útil só pode se r funda-
ago ra ela tem que ser acolhida com toda ser iedad e: Como sabe- mentado , e só pode permanece r, se realm ente existir o que foi
mos que to r nar-se verdadeiro significa tornar-se bom, que exis- reti rado da propriedade e do proveito do Homem, se existir o
te a bond ad e e m si? Como sabemos que ela vale por si mesma, direito ma is elevado d e propriedad e cio di vino, a intocável exi-
sem que precise co mprovar-se pelos fi ns? T udo isto só ocorre gência da divindad e. "A liberdade da Theol'ia, diz Pieper, re por-
quando a verdade possui e m si mesma sua própria d ignidade, tando-se a Platão, "está indefesa e d esprotegida - a não ser que
qua ndo e la subsiste e m si mesma e possui ma is se r do que tudo o esteja especialmente incluída na proteção dos de uses"14. O ser
mais; quando ela pró pria é o chão que me suste nta. Q uando livr e da uti lidade, o estar livre dos objetivos do poder, só e ncon-
refletimos sobre a essência da verdad e, nós chegamos ao concei- tra sua garantia mais profunda na reserva do que não está su-
to de Deus. Não se pode por mui to tempo segurar o ser e a dig-
12. Cf. L. B. Puntel. Wa hrheit. In: 1-1 . Krings, H.1\'1. Baulll gé1rlner e Chr. Wi ld . 13. Picper, 1.c., p. 37s. Cf. H. Meinhard t.. Akademie. In : J. Rittcl- (cd.). HistOl1sches
IIrwdlJ/lrh j)hilosoj)hischer Grundbegriffe /11. Mu nique, 1974, p. I 649- J 668. Worterbuch der Philosophie J. Basiléia/St llugart, 197 1, p. 121 - 124.
14. lbid. , p. 36.
34 35
Natureza e mis s ão da t eo logia
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