Vendida Ao Príncipe Que Me Seduziu 3 - Andreia Ama
Vendida Ao Príncipe Que Me Seduziu 3 - Andreia Ama
Vendida Ao Príncipe Que Me Seduziu 3 - Andreia Ama
Este livro é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares, diálogos e incidentes envolvendo-os
derivam da imaginação da autora. Quaisquer similaridades com pessoas reais, vivas ou mortas,
eventos ou locais são inteiramente coincidência. Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, transmitida, feito download, decompilado em
quaisquer formas ou por quaisquer meios, quer eletrônico ou mecânico, sem a expressa autorização
escrita da autora, exceto nos casos de breves citações inseridas em artigos de crítica ou resenha
literária.
© 2024 Andreia Amado
Capa por LADesigner © 2024 Andreia Amado
SUMÁRIO
Agradecimentos
Primeiro, um recadinho
Playlist
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Epílogo
Notes
Um príncipe marcado pelo passado. Uma herdeira aprisionada por um
destino cruel. Um amor proibido que desafia o poder e a paz entre dois
reinos.
Vasilisa vive sob o domínio do pai tirânico e está prestes a ser negociada
para garantir alianças políticas. Mas quando Lars surge em sua vida, ele não
apenas desperta uma paixão avassaladora, como também oferece uma
chance de escapar. O príncipe propõe um casamento de conveniência, mas o
desejo que os consome é muito mais do que um simples acordo.
Ele é o príncipe indomável, que será capaz de tudo para proteger a mulher
que o conquistou. Mesmo que ela possa odiá-lo por isso.
Ela é a herdeira tímida, que desafiará o destino, mesmo que isso
signifique se rebelar.
Ele precisará enfrentar o próprio passado, se quiser mantê-la ao seu
lado.
Ela terá que decidir entre a honra, um contrato, sua família e o amor.
Respondo:
Vou chamá-la para irmos juntas.
O suor escorre pelo meu rosto, empapa minha camisa, mas Tyr está
praticamente seco. Tem apenas a testa porejada e umas poucas marcas de
suor nas roupas.
Não é para menos: faz quinze dias que Vasilisa deixou Vinterland sem
se despedir, e além de não atender minhas ligações, não responde às minhas
mensagens nem meus e-mails.
Na sua casa, meus recados deixados com a governanta seguem sendo
dados, ou assim ela me diz.
Quinze dias em que me pergunto o que fiz de errado.
Tyr avança com rapidez, desferindo um jab i que bloqueio mais por
reflexo que realmente por estar prestando atenção. Contra-ataco com um
direto ii, mas ele esquiva com facilidade, sorrindo de lado.
— Concentre-se, Lars — alerta ele, pela segunda vez, com o jeito sério.
Assinto, esforçando-me para parecer confiante e tentando afastar os
pensamentos de Vasilisa e focar no presente. Ele é um adversário
formidável, muito mais experiente, claro, até mesmo por sua formação.
— Você está lento hoje — provoca, pulando nas pontas dos pés, os
punhos levantados na altura do rosto.
— Apenas me aquecendo — retruco.
Ele não se deixa enganar. Em um movimento rápido, aplica um gancho
de esquerda, que acerta meu queixo.
O mundo gira e caio de costas no chão semi-acolchoado. Sinto a dor
irradiar, mas é a dor emocional que me paralisa.
— Merda — resmungo, esfregando o maxilar. — Precisa acertar com
tanta força?
Tyr tira a luva e estende a mão para me ajudar a levantar.
— Não coloquei força. Hoje está fácil demais, Lars — diz. — O
problema é mulher?
Aceito a mão dele, levantando-me com um suspiro.
— Talvez só esteja distraído — respondo, tentando esconder a
frustração na minha voz.
Aceito sua mão e me coloco de pé.
— Distraído com o quê? Ou seria com quem? — Ele estreita os olhos
para mim, com um olhar que mistura curiosidade e preocupação, não
convencido. — Vasilisa?
— Nada importante — desconverso.
Vou até o canto, enxugar o rosto com a toalha e tomar um gole de água
da garrafa que deixei ali.
Tyr me observa por um instante, seus olhos azuis-esverdeados
penetrantes analisando-me. — É Vasilisa, não é?
Suspiro, sabendo que não adianta esconder. — Foi você mesmo que me
avisou que ela foi embora. E até o momento, não disse uma palavra. Não
mandou uma mensagem, nada. Simplesmente desapareceu.
— Nem para saber de Tatyana?
— Nem.
Franze a testa. — Estranho.
— Não é?
— Imagino como lidar com uma mulher assim deva ser frustrante —
diz ele, com um toque de empatia na voz. Vira a garrafa de água na boca e a
amassa na mão, fazendo quase que uma bolinha com o plástico e o joga
certeiro na cesta de lixo a alguns metros. — Prefiro enlouquecer com a
Harpia dos Infernos.
Rio dele, mas a graça acaba logo.
— Frustrante é pouco.
— Talvez ela tenha motivos?
Volta para o centro do ringue em posição de luta.
— Que motivos justificariam sumir assim? — questiono, irritado, não
só com o assunto, mas também em estar visivelmente sem concentração
quando um direto passa raspando pelo meu rosto.
Amparo um chute particularmente forte dele.
— Medo, talvez? — pergunta ele. — Pressões familiares? Sabemos que
o pai dela é controlador.
Esquivo-me do jab e contra-ataco com um direto, que ele evita com
maestria.
— Prometi a ela que cuidaria de tudo. — Rodeamo-nos buscando uma
brecha. Ele finta para um lado e eu para o outro. — Que ela podia confiar
em mim.
— Confiança não se ganha da noite para o dia, Lars. Confiança se
conquista.
Tento um chute, que ele ampara e entra com uma joelhada que me
acerta o estômago.
Dobro ao meio, sem ar.
— Ah, porra! — falo quando recobro o fôlego.
Tyr levanta as luvas, parando a luta. — Já chega por hoje, você não está
prestando atenção.
— Não estou com cabeça. — Respiro fundo, tentando conter a
frustração. — Além disso, com tudo o que está acontecendo no reino…
— Não tem sido fácil para nós — interrompe Tyr, passando a mão pelos
cabelos. — Primeiro a sabotagem na usina, o sequestro de Tatyana, depois a
fuga Arctic…
Ele desce do ringue e começa a se despir, ficando só de sunga e vai para
o chuveirão da piscina.
Também tiro as luvas e roupas ensopadas e jogo-as no cesto de roupas
sujas, e acompanho-o.
Depois da minha ducha, pergunto: — Notícias?
— Já recapturamos quase todos — diz.
E anda para a área da piscina, como se o caso não fosse gravíssimo, e
não o estivesse preocupando e deixando-o acordado, sem dormir, mas,
conheço Tyr. Sei que ele não vai descansar, enquanto não trouxer de volta
até o último fugitivo da prisão de segurança máxima que escapou durante o
apagão que aconteceu há alguns dias.— Errei. — Ele aperta os lábios, um
flash de culpa passando por seu rosto. — Errei feio, Lars, e espero que não
traga consequências.
Olho para ele, surpreso pela admissão. — Tyr, você mandou o exército
para tomar conta da penitenciária.
— Deveria ter mandado o exército, a marinha e a aeronáutica. A
inteligência e a contrainteligência. Todas as nossas forças. Como estou
fazendo agora. Deveria ter feito diferente — diz entredentes. E conclui: —
Como deveria ter feito diferente há vinte anos.
— Não, Tyr!
Engasgo, porque por mais que eu saiba que ele me deixou ali, com os
criminosos, para buscar ajuda, por mais que eu entenda que ele fez o que
achava certo, não consigo lidar com o sentimento de abandono.
Esse é um assunto que ficou combinado tacitamente que não tocaríamos
jamais.
Sempre fui um prodígio e minha mente analítica e matemática, mas
ainda infantil, foi uma bênção e uma maldição porque entrou em parafuso
com o que aconteceu durante o sequestro. Ou, como disse a terapeuta,
acionou um mecanismo de defesa para evitar lidar com emoções complexas
e dolorosas.
Mesmo sabendo racionalmente que Tyr fez aquilo para me salvar, a
sensação de ser deixado para trás por quem eu mais admirava e julgava ser
meu protetor causou uma quebra de confiança tão grande, que
simplesmente bloqueou por meses a minha habilidade de falar.
A culpa não foi dele. Não é.
Eu sei, ele sabe, mas acho que até hoje ele se culpa por ter me
abandonado naquele buraco.
O problema é todo meu, irresolvido, mas ainda que tenha feito terapia
por anos, e que racionalmente saiba que meu irmão fez o que pôde, o
sentimento de abandono está aqui, dentro do meu peito, pulsando e me
corroendo, sendo uma constante lembrança da minha vulnerabilidade.
Sei, conscientemente, que se ele não tivesse fugido, eu não teria sido
salvo.
Tyr arriscou tudo, a própria vida, para buscar ajuda e nos salvar, porque
sabia que ele era nossa única chance. No entanto, quando os homens
descobriram que ele tinha fugido resolveram me punir por isso. Tenho uma
marca feita a ferro quente para provar e isso me deixou com cicatrizes
profundas, tanto físicas quanto emocionais.
— Não foi sua culpa. Você me salvou. A mim, a você mesmo e aos
nossos amigos. Você tinha treze anos, fez o melhor que podia.
— Ainda assim — insiste ele. — Eu era o irmão mais velho. Deveria ter
te levado comigo, ter te protegido. Não sei, deveria ter feito diferente.
Eu vejo a dor nos olhos dele, a mesma dor que carrego comigo. Por algo
que estava fora do seu controle e que me assombra até hoje. Tento encontrar
as palavras certas, mas é difícil.
— Sinto muito. — Tyr coloca a mão no meu ombro, um gesto raro de
afeto. — Sinto muito por ter te abandonado naquela época. Se eu pudesse
voltar no tempo…
— Não podemos.
Quero dizer a ele que não precisa carregar esse peso, que não está
sozinho nessa dor, mas as palavras ficam presas no meu peito, na minha
garganta, qual pedras, que me impedem de dizer a ele que não era nossa
responsabilidade, de nos proteger, vigiar, salvar, grande demais para
meninos de, na época, dez e treze anos.
— Sobrevivemos. — A palavra sai rasgando. — É o que importa.
Sempre fui mestre em esconder minhas fraquezas, em fingir que nada
me afeta, muito mais do que ele.
— Sobrevivemos — concorda. — Mas a que custo?
— Foi caro, mas acho que valeu a pena. — Porque valeu mesmo estar
vivo, apesar de tudo. — Principalmente agora que você tem Tatyana e que
eu quero Vasilisa.
Respiro fundo, tentando controlar as emoções que ameaçam
transbordar. Que ameaçam me afogar. As noites sem dormir, os pesadelos
constantes, a desconfiança crônica. As eternas âncoras que ainda teimam
em me puxar para baixo, porque eu nunca consegui realmente superar o que
aconteceu.
E é justamente este sentimento de desamparo e vulnerabilidade que me
leva de volta a ela.
Não posso evitar pensar nela. É como se uma parte de mim tivesse sido
arrancada e me deixasse à deriva. Tento me concentrar, mas a sua ausência
é um vazio com o qual não sei lidar. A incerteza, o medo de ser abandonado
novamente, tudo isso me consome.
— Sinto falta dela — admito em voz baixa, quase para mim mesmo. —
Às vezes, parece que estou sozinho.
— Não está. — Ele aperta meu ombro. — Sei que não sou o melhor em
expressar sentimentos, mas me importo com você e vou te ajudar a
recuperá-la.
Encaro-o, vendo a sinceridade em seus olhos. — Obrigado.
— Talvez seja hora de procurá-la — retoma Tyr —, pessoalmente.
Descobrir o que realmente aconteceu. Não deixe que o passado defina seu
futuro.
— Pensei nisso, mas não quero parecer desesperado. — Balanço a
cabeça. — E se eu não for suficiente?
Ele me fita, horrorizado. — Lars, que absurdo!
— Sei que tenho meus demônios.
— Não são piores que os meus e olha quem eu consegui…
— A Harpia dos Infernos — brinco com ele.
— Não trocaria por ninguém — diz e sorri, o que é quase estranho nele.
— E acho que você encontrou uma mulher especial, não?
— Encontrei.
Ficamos em silêncio novamente, o peso das palavras apaixonadas
pairando entre nós.
Talvez Tyr esteja certo e seja hora de enfrentar meus medos, tanto em
relação a ele quanto a ela.
Ele sorri levemente. — Às vezes, é preciso engolir o orgulho.
— Fala o homem mais orgulhoso que conheço — retruco, erguendo
uma sobrancelha.
— Touché. — Ele ri. — Mas veja onde meu orgulho me levou.
— Você não poderia prever o que aconteceu.
Ele suspira. — Talvez não, mas se tivesse feito diferente poderia ter
poupado muitos problemas.
Assinto, entendendo o que ele quer dizer. — Talvez você tenha razão.
— Sempre tenho — brinca ele, tentando aliviar o clima.
Dou uma risada curta. — Não exagere.
Tyr abre as portas da área da piscina e vejo que meus outros três irmãos
já estão por lá.
— Bom dia — cumprimento.
Meu irmão mais velho, que está na borda, prestes a mergulhar, vira-se e
vem em nossa direção. — Não tenho boas notícias. Vamos nos sentar.
Faz um gesto na direção da mesa do café da manhã, que está posta no
solarium com vista para o jardim.
Toca a campainha chamando Vidar, que logo chega para tomar nota de
nossos pedidos, que não diferem muito do habitual: omeletes de quatro
ovos, com tomate, cebola, orégano, salsa e cebolinha, cogumelos e queijo
para Tyr, Magnus e para mim e; omeletes também para Thorvald e Leif,
acrescidos de presunto.
— E, por favor, blocos e canetas.
Blocos e canetas aparecem magicamente de alguma gaveta e Vidar se
retira para preparar os pedidos.
Tyr e eu, que somos vegetarianos desde o malfadado incidente, nos
servimos de pães artesanais, queijos locais, chicouté iii e geleias de frutas
silvestres. Magnus, Leif e Thorvald se servem arenque iv defumado.
O aroma de café fresco e chocolate quente preenche o ar quando
pergunto: — Então, qual a notícia ruim do dia?
Thorvald solta a bomba: — Yasmin ficou sabendo por Catarina, hoje de
manhã, quase madrugada, na verdade, que Vasilisa vai ficar noiva do irmão
de Tatyana.
Desta vez, engasgo de verdade e Leif precisa dar uns tapas nas minhas
costas para que eu volte a respirar normalmente.
— Como é? — pergunto rouco, depois de recuperar o fôlego.
As expressões preocupadas ao meu redor são evidentes.
— Jamal e Vasilisa vão oficializar o noivado no final desta semana —
diz Leif, que agora reparo, também não está com a melhor das caras.
— E não me diga que algum outro irmão te passou a perna também?
— Ainda não, mas tanto Hassan, quanto Mofarrej estão interessados em
Catarina — responde.
— Pelos deuses! Dois irmãos competindo pela mesma mulher? —
pergunto, incrédulo.
— Parece que sim — diz ele, suspirando.
Tyr bate com a faca no copo de cristal, chamando a nossa atenção. —
Podemos nos concentrar no assunto Vasilisa, que pelo jeito é mais
premente?
— O que Yasmin te falou exatamente? — indaga Magnus.
— Na verdade, a hora que saí do quarto, estavam as três, Yasmin,
Catarina e Tatyana, histéricas, porque não conseguiam falar direito com
Vasilisa, desde que ela foi para lá, há quinze dias — conta. — Com o
sequestro e tudo que aconteceu, sendo Vasilisa um pouco quieta mesmo,
esqueceram-se dela e como ela responde monossilabicamente, acharam que
estava tudo bem, até que ontem à noite, o pai de Catarina recebeu um
convite formal do cunhado para o noivado e comunicou à filha hoje de
manhã, que ligou para Vasilisa, que não atendeu. Parece que depois de
muita insistência de Catarina, ela conseguiu que o pai ligasse para o
cunhado, pai de Vasilisa, e depois de uma conversa breve, Hardrada disse
que Vasilisa estava muito contente com o noivado.
Ao ouvir essas palavras, sinto como se o mundo tivesse parado.
A notícia é um golpe duro, ao mesmo tempo, que uma sensação de
vazio toma conta de mim, a raiva começa a borbulhar no meu sangue. A
ideia de Vasilisa se comprometendo com outro homem é insuportável.
— É por isso que ela não responde às suas mensagens — raciocina Tyr.
Bebo um longo gole de suco de laranja, sentindo o gelado aliviar a
raiva, mas não a tensão.
A insegurança me corrói por dentro. Será que eu não fui suficiente? O
que fiz de errado?
Essas perguntas ecoam na minha mente, alimentando meu eterno ciclo
de autocrítica e dúvida. A sensação de abandono é esmagadora, e me sinto
traído e desamparado.
— O que pretende fazer agora? — pergunta Leif.
— Ir para Oslo. Encarar a… situação de frente. Não posso perder tempo
— digo, levantando-me.
Estou tonto até. Não quero ser possessivo, mas a ideia de perdê-la para
sempre é insuportável. Preciso entender o que está acontecendo e lutar por
ela, se ainda houver uma chance.
— Vou agora mesmo.
— Não.
Paro no meio do caminho com a palavra disparada por Tyr.
— Sente-se — ordena. — Não aja impulsivamente. Vamos elaborar um
plano.
Obedeço, porque realmente sinto-me confuso, em conflito entre meu
desejo de dar liberdade a Vasilisa e a necessidade de controlá-la para me
sentir seguro.
— O que temos sobre ela? — pergunta ele.
— Não muito — digo.
Magnus franze a testa para mim. — Você mandou investigar Vasilisa?
— Eu mandei — diz Thorvald.
— Li o dossiê por alto — digo. — Não revelou nada alarmante. Ela é
uma jovem inteligente, estudante de psicologia, controlada de perto pelo pai
e pela madrasta. Poucos amigos, vida social restrita.
— Ah, aqueles dossiês — diz ele, lembrando-se das pastas que
Thorvald distribuiu sobre as amigas de Tatyana que estiveram no casamento
de Tyr.
— Posso mandar fazer uma devassa nos laboratórios do pai — diz Leif.
— Posso pedir para hackear os computadores dos escritórios do pai
dela, mas acho que a melhor abordagem é outra… — diz Tyr, abrindo um
sorriso largo.
É raro ver meu irmão sorrir assim, tão abertamente.
— Fico até com medo quando você faz isso — diz Magnus.
Já eu fico mais calmo, porque quando Tyr sorri é porque as coisas vão
ficar feias para o lado do inimigo.
Rio. — Se alguém deveria ficar com medo é Jamal e Jarl Hardrada.
Vidar chega com dois garçons carregando bandejas com nossos pedidos
e interrompemos a conversa momentaneamente.
Assim que saem, Tyr recomeça: — Esse noivado é uma jogada de poder
do pai dela. Sabemos que ele é ambicioso e controlador. Ele deve estar
forçando esse casamento por interesses financeiros ou políticos.
— Sim, não tenho dúvidas disso, escutei uma conversa no corredor.
Conto para eles o que ouvi na outra noite.
— Faz sentido. E se Jamal está envolvido, pode ser ainda pior —
concorda Leif. — Agora, por que ela está aceitando tudo isso? Está de
acordo? Está fazendo joguinho duplo?
— Será que está? — indago a ele. — Você tem insistido nisso. Como
podemos ter certeza que ela não está sendo manipulada?
— Como podemos ter certeza de que está? — contradiz Magnus. — Ela
tem dezoito anos. Vai ter que dizer sim, de livre e espontânea vontade, na
frente de testemunhas na hora do casamento.
— Pode se casar por proxi v — sugiro.
— Não vale se a procuração for inválida — diz Magnus.
— Depende. Um muçulmano, árabe, radical, não está se importando
muito com isso, não. — Encaro-o sem pestanejar. — Ou você não se lembra
como ele a tratou no vestíbulo do palácio?
— Você tem um ponto — concorda Magnus.
— Não vou ficar parado enquanto ele a leva de mim.
— Calma, precisamos agir com cautela. — Tyr corta sua omelete e
coloca um pedaço na boca, mastigando devagar. — Você quer essa mulher?
— Mais do que qualquer coisa que quis na minha vida — digo.
— Ela será sua, Lars — afirma ele.
É uma promessa e Tyr sempre, sempre mesmo, cumpre suas promessas.
— Se o pai dela está por trás disso, não vai facilitar as coisas — diz
Thorvald.
— Isso não é problema — contradiz Tyr. — A operação Coração e
Coroa funcionou bem para você e Yasmin e vai funcionar para ele e Vasya
também.
A primeira esposa do meu irmão era muito mais velha do que ele e o
afastou de nós, quando ele tinha uns vinte anos, e morreu logo depois de
maneira trágica. Nesse período curto, ela forjou Tyr, que já tinha uma
personalidade difícil pelo que passamos juntos, a ferro e fogo, e o
transformou em um homem frio, que faz o necessário para ganhar as
batalhas e as guerras, que luta por todos nós. Ele é a pessoa ideal para se ter
ao lado quando se precisa.
— Claro, estamos nisso juntos — concorda Thorvald e se vira para Tyr:
— Quais as opções que temos no momento, General?
— Deixe-me pensar.
Tyr fisga um pedaço de brunost vi, passa chicouté em cima, e coloca-o
na boca, mastigando-o com prazer.
Posso ver as engrenagens girando na mente dele.
— Dependendo de como estiver o humor da noiva, não temos muitas.
Vamos considerar o pior cenário? Você acha que ela está de acordo com o
que o pai está fazendo?
— Não — digo. — Não posso acreditar nisso. Não depois de tudo que
aconteceu…
— Lars… — Leif balança a cabeça. — E se não for tão simples assim?
E se ela estiver de acordo com o casamento?
— Não acredito nisso. Algo está errado. — Sinto um nó no estômago,
mas não deixo transparecer. — Ela seria incapaz de me descartar desse jeito
sem motivo.
— Talvez ela esteja sendo pressionada — pondera Magnus. — Ou até
mesmo impedida de entrar em contato com as amigas e com você.
— Talvez ela não queira entrar em contato — insiste Leif. — Ela pode
estar fazendo um jogo duplo.
— Ninguém arriscaria a própria vida para não ficar dopada, Leif —
digo e então me lembro das mensagens que não foram entregues, das
ligações não atendidas. — Sem falar, que ela ficou realmente surpresa
quando viu as mensagens no celular. E se as nossas comunicações
estiverem sendo monitoradas?
Tyr olha para mim na hora. — Como assim?
Explico rapidamente o que aconteceu e mostro meu celular. — É
possível haver um terceiro entre nós?
— Sim, é, mas isso é tecnologia de governo — diz, e nem pega meu
celular. — Coisa de alto nível militar, e você está me dizendo que as
mensagens estavam no celular dela e que supostamente ela não viu.
— Sim, estavam.
— E que ela toma remédios fortes e que supostamente a deixam dopada
— diz Leif.
— Sim, ela mesmo me disse isso — tenho que admitir. — Quando está
longe do pai, diminui a dose pela metade. Chegou a passar mal na primeira
vez que dormiu comigo porque não tomou o remédio.
— Então, não vamos deixar a imaginação nos levar tão longe assim. O
que tem de errado aqui que vocês não estão enxergando? Vocês têm o
dossiê à mão?
Acesso o meu celular e passo para ele.
Em menos de um minuto o rosto dele se fecha e os olhos azuis-
esverdeados se levantam para mim, turbulentos.
— O que é?
— Me diz se eu entendi o juridiquês errado — diz ele e estende o
celular para Magnus.
Magnus, que é advogado, pelo jeito identifica o mesmo que ele, porque
fica sério. — Ela é absolutamente incapaz, declarada pela justiça vii.
— Como assim?
Ele esclarece: — Aqui diz em termos técnicos que ela é louca, mas
estão fodendo com a moça porque ela não é louca, nem incapaz.
— Ah! Finalmente! — exclamo. Viro-me para Leif: — Alguém são na
família.
— Não disse que ela era louca — diz ele. — Disse que o dossiê dizia
que ela tinha sido internada em clínicas psiquiátricas.
— Esquece tudo o que falamos até agora. — Tyr balança a cabeça e
firma a boca em uma linha. — Temos que forçar a mão. Nossas opções
serão poucas: nada de casamento na Escócia ou em Las Vegas. Nada do que
ela quiser, ou disser, tem valor. Precisamos horrorizar. Queremos escândalo.
Escândalo? — Mais escândalo? Mas…
Tyr me interrompe: — Magnus pode providenciar isso?
— Posso — diz Magnus, fazendo anotações no celular.
Tendo terminado sua omelete, Tyr se levanta e começa a andar pela
borda da piscina, com as mãos para trás.
— Tyr, ela é discreta. E se ela não aceitar? — pergunto, a dúvida
corroendo minha mente.
— Você não pode deixá-la saber — diz o General, agora em modo
estratégico total. — Não precisa contar a ela o que vai fazer.
Não sei se gosto do seu tom, mas estou disposto a considerar todas as
opções para proteger Vasilisa e garantir o nosso relacionamento.
Até mesmo ideias drásticas. Porque sei que meu irmão é dado a
estratégias exageradas: de vida ou morte. Mais de morte que de vida. Com
Tyr é assim: tudo ou nada.
— Lars, você está disposto a levar isso às últimas consequências? —
pergunta ele, com o semblante sério.
— Claro.
Ele volta para a mesa, abre espaço, pega a caneta e começa a escrever.
— O plano é o seguinte…
Debruço-me sobre o bloco enquanto ele escreve e escreve mais, os
rabiscos cobrindo a folha e fazendo o meu coração bater cada vez mais
forte.
Quando para, Thorvald assobia. — Isso certamente afastaria Jamal.
— Ainda não terminei — continua Tyr, virando a folha e voltando a
escrever. — Pelo que vocês me disseram ele é machista, mas acima de tudo
é orgulhoso. Já deve ter percebido que Lars quer a mesma mulher que ele.
Vai aceitá-la, só para depois colocá-la no harém.
— Isso é loucura — murmuro, mas a ideia não sai da minha cabeça. —
Ela detesta aparecer na imprensa. Não gosta de multidão…
— Não precisamos de multidão — explica Tyr. — Precisamos de vocês
dois, juntos.
— Você está falando sério? — pergunto, incrédulo.
— Absolutamente — responde Tyr, com firmeza. — Às vezes, é preciso
jogar sujo para proteger quem amamos.
— Se mesmo assim o outro insistir ou se o pai dela não ceder, e
tivermos que partir para algo mais radical… — diz Magnus, delineando a
estratégia —, aí é a mesma estratégia de Thor e Yasmin.
— Ela tem uma deficiência cardíaca — digo —, não vou arriscar a vida
dela.
— Tudo bem. Vamos apostar nisso.
Tyr tira uma foto das duas folhas de anotações, manda para um e-mail.
Pega o celular e faz uma ligação.
— Benoliel, preciso de quatro dos seus melhores homens e duas das
suas melhores mulheres para acompanhar meu irmão a Oslo para colocar
em prática o plano que enviei para seu e-mail. Saindo hoje.
Embora essas ideias sejam extremas, sinto uma determinação crescente
dentro de mim. Estou disposto a considerar todas as opções para proteger
meu amor e garantir que Vasilisa saiba o quanto ela significa para mim. Não
vou desistir sem lutar.
— Magnus, ligue para a Embaixada e avise que Lars vai ficar lá — diz.
— Não vou para um hotel?
— Sim e não, porque você vai cometer um crime e a embaixada tem
imunidade diplomática — explica ele. — Lá dentro ninguém pode te
prender.
— Tyr, o que você está…
— Vasilisa é uma incapaz, o que se equipara a uma menor de idade —
diz ele, colocando as palmas na mesa e se abaixando até quase ficar com os
olhos na altura dos meus. — Sequestrar e seduzir e foder uma incapaz é
crime. Quer ir para a cadeia caso o pai dela resolva te denunciar?
— Muito. Engraçado.
Ele sorri – de novo – talvez achando realmente engraçado a ideia de me
mandar para prisão. Recosta-se na cadeira, coloca as mãos atrás da nuca e
ordena, bem no seu estilo militar: — Prepare suas coisas. Você parte para
Oslo em duas horas.
Melissa não para de falar, animada, formulando planos para a festa de
amanhã, que ainda não entendi direito para que é.
— Temos que escolher sua roupa — diz. — Que cor você quer? Branco
ou prata? Vamos, vamos, termine o café. Precisamos ir.
— Tenho que terminar o trabalho da faculdade. Não posso — digo, mas
não me movo, porque esqueci o que acabei de falar. Olho para ela
novamente. — O que você disse mesmo?
— Que você precisa terminar seu café, meu bem. — Ela sorri e faz um
carinho no meu rosto. — Temos muito a fazer hoje e seu noivo vem te
apanhar às duas horas para ir ao representante Cartier ajustar sua aliança e o
anel de noivado que ele comprou em seu dedo.
— Ah, sim, é verdade.
Festa de noivado. Com Jamal.
Que meu pai aceitou por mim. Porque, segundo ele, Lars retirou a
proposta de casamento que fez por e-mail – sem grandes explicações.
Ainda bem.
Sem falar que enviou uma mensagem sucinta, informando-me que
estava tudo acabado entre nós porque eu fui embora de Vinter sem falar
com ele. Achou que fiz pouco caso de seu pedido de namoro, que não tive a
menor consideração com os sentimentos dele depois de tudo o que ele me
disse e prometeu. Que nosso tempo juntos não significou nada para mim.
Nem teve a decência de me atender quando liguei para me explicar.
Sinto um aperto estranho no peito ao pensar nisso e pisco para esconder
as lágrimas.
— Querida, está se sentindo bem? — pergunta Melissa. — Você está
bem emotiva hoje. Melhor tomar seus remédios.
Tomo um gole de suco e engulo as pílulas no potinho que ela empurra
na minha direção.
— É essa festa — digo para disfarçar. — É mesmo necessária?
— Claro, querida. — Ela sorri. — Mesmo sendo o filho mais novo do
Sheik El-Khoury, Jamal é um sheik de fato e de direito e um homem muito
importante e muito rico.
— Vamos logo com isso — diz meu pai da cabeceira da mesa. — Não
se atrase e, pelo amor de Deus! Não diga nada sobre o anel. É um tanto
cafona, grande demais, principalmente levando-se em conta que você é uma
moça pequena e delicada, mas os árabes gostam de coisas exageradas.
— Sim, senhor.
— Disse a ele que não tinha necessidade que você fosse à joalheria, que
bastava levar um anel seu, mas Jamal faz questão que você vá tirar a
medida. Quer ter certeza que o anel vai ficar perfeito no seu dedo — fala,
contrariado.
— Sim, senhor.
— Temos uma reunião com o governador e não podemos deixá-lo
esperando — reforça ele. — Nem um segundo.
— Ela já entendeu, Jarl, não precisa repetir — diz Melissa, levantando-
se e fazendo sinal para que eu me apresse. — Vamos, querida, termine de
comer. Vou apanhar sua bolsa no quarto.
A comida parece sem gosto, em contrapartida, o café está amargo
demais, mesmo assim obedeço, porque Melissa é tão calma e gentil comigo
que não merece que eu faça birra. Acho que nem eu teria tanta paciência
comigo mesma.
O motorista já está nos esperando na porta. As ruas passam rápido pela
janela escura do carro e me distraem do tagarelar incessante da minha
madrasta.
— Pedi a Noah para separar tudo o que ele tem em branco, prata e
dourado, tamanho pequeno e sandálias novas também, bem altas, porque
Jamal disse que gosta que mulheres usem saltos altos.
— Mas ele nem é alto assim — falo. — Se eu colocar saltos, vou ficar
da altura dele.
Minha voz soa estranha. Meio arrastada.
— Ah, minha querida, ele tem fetiches e está tudo bem — diz ela.
Olho para ela. — Fetiches, é? Quais?
— Depois te conto — diz ela, piscando para mim. — Agora, vamos.
O segurança abre a porta do carro, estende a mão para me ajudar a sair e
me firma quando cambaleio.
— Tudo bem, senhorita Hardrada? — pergunta, solícito.
— Sim, obrigada — agradeço. — Só escorreguei.
— O maquiador e o cabeleireiro também já estão aí — fala Melissa,
agarrando meu braço.
— Maquiador e cabeleireiro? Pra quê? — pergunto.
— Você tem que estar perfeita amanhã — diz ela.
Os seguranças abrem caminho pela Nedre Slottsgate lotada de turistas e
Melissa me guia e logo entramos no prédio da loja Yves Saint Laurent i,
onde somos recebidas pelo vendedor costumeiro.
Esqueci completamente o nome dele.
— Como vai, tudo bem? — Estendo a mão para cumprimentá-lo.
— Queridas! — exclama.
Ao invés de apertar minha mão, me puxa por ela e me dá um beijinho
na bochecha, como se fosse meu amigo íntimo, o que – acho – não é.
— Estava esperando por vocês!
Faz o mesmo com Melissa, com a diferença que ela não estende a mão
para ele e o abraça logo. Que estranho.
— Noah, querido!
Ah, é isso, Noah.
Nossa, estou muito lerda, mas dada às circunstâncias, estou pouco me
lixando.
— Já separei tudo o que acho que vocês vão gostar — diz, dando um
braço para ela e outro para mim e nos levando em direção a um elevador no
final da loja, falando mais do que Melissa.
No terceiro andar, as portas se abrem para um salão, onde tem mais
gente esperando por nós, e vestidos, muitos vestidos.
Suspiro. Qualquer um serve.
— Não, querida, você tem que estar linda! — diz o loiro, horrorizado.
Hmmm… Acho que falei em voz alta.
— Vamos nos concentrar em escolher o que fica melhor em você,
depois escolhemos o meu — diz Melissa para mim. — Só aí decidimos
maquiagem e cabelo.
Pisco.
— Entendeu?
Não muito, mas concordo: — Está bem.
Quase três horas depois, saímos da loja sem nenhum vestido, porque os
dois que escolhemos – um branco e prata para mim e um preto e dourado
para ela, com sandálias combinando – ficaram para fazer bainha e serão
entregues na amanhã de manhã lá em casa.
Dali, Melissa quer ir almoçar no restaurante do Chef de Vries para
escolher o menu da festa, mas insisto que tenho que voltar para casa porque
o meu celular me avisa que tenho aula online de Introdução à Psicologia da
Gestalt, apesar do meu cérebro não conseguir se lembrar o que é essa tal de
Gestalt.
Ligo o computador faltando um minuto para entrar no Teams ii, mas
demoro para localizar o aplicativo e encontrar meu login da faculdade.
Então, esqueço qual é minha senha. Tenho que fazer uma nova. Quando
peço para ser admitida na sala de aula, o professor já começou a aula há
bastante tempo.
— Senhorita Hardrada, a senhorita sabe que não admito atrasos —
reclama. Estreita os olhos para mim e continua: — Vejo que está
aparamentada. Talvez queira nos esclarecer o que é fechar a Gestalt,
valendo um ponto na média. Para mais ou para menos.
Tenho vontade de chorar, mas só abaixo as pálpebras, constrangida, e
digo: — Perdão pelo atraso, professor, isso não se repetirá. Infelizmente,
não sei responder à pergunta.
— Uma pena, senhorita. Não se atrase na próxima aula.
Fecho o áudio e levanto-me para pegar o caderno.
— Mal chegou e já saiu, senhorita?
Volto para a cadeira e abro o áudio novamente.
— Professor, só fui pegar o caderno para fazer anotações — explico.
— Deveria ter pegado antes de entrar na sala, senhorita — diz ele. — Se
sair do seu lugar de novo, vou ser obrigado a desconectá-la. Estamos
entendidos?
Meus olhos se enchem de lágrimas, mas respiro fundo e balanço a
cabeça: — Sim, senhor.
Fecho o áudio e me preparo para anotar a aula no celular.
— Alguém sabe a resposta para a pergunta que fiz para a senhorita
atrasada? — continua ele.
Logo uma mão digital se levanta e uma colega começa a explicar
detalhadamente o conceito. O professor passa o resto da aula toda – uma
hora e meia – se referindo a senhoritas aparamentadas e atrasadas, ou seja,
a mim de forma indireta, e quando acaba, relembra-me que perdi um ponto
na média.
Depois da aula, troco de roupa rapidamente porque Jamal deve estar
chegando para me apanhar para irmos a Cartier ajustar a aliança e o anel de
noivado.
— Vasilisa? — chama Melissa, com uma batida na porta do meu quarto,
quando estou acabando de trocar o vestido por calças compridas. — Jamal
chegou.
— Já estou indo — respondo, tentando parecer animada. — Só um
minutinho.
Ele me espera no vestíbulo, parecendo impaciente para sair, e pelas
portas abertas posso ver que uma SUV preta e grande está parada, com o
segurança em pé, ao lado do carro.
Apresso-me, mesmo correndo o risco de tropeçar, mas antes rolar
escada abaixo que incorrer na ira de homens como meu pai e Jamal.
Ainda não consegui entender porque Lars ficou tão chateado a ponto de
cortar contato, afinal eu mandei uma mensagem antes de sair de Vinter.
Preciso arrumar um minuto para ligar para Catarina, porque as
mensagens dela não estão fazendo muito sentido. Aliás, tenho que me
lembrar de mandar uma mensagem no grupinho, porque as meninas são
ótimas em resolver esse tipo de problema masculino e Tatyana e Yasmin
podem dar uma prensa nesse príncipe fresco.
— Olá, querida — diz Jamal, me puxando pela cintura para me dar um
beijo na boca. — Você está bonita.
Viro o rosto na hora e seus lábios caem na minha bochecha.
— Vamos? Papai me recomendou que não nos atrasássemos — digo.
Ele estreita os olhos, mas diz: — Claro, vamos.
Assim, que SUV desliza macia em direção a Nedre Slottsgate, Jamal me
puxa mais para perto.
— Onde está meu beijo? — pergunta ele, inclinando-se em minha
direção.
Forço um sorriso e dou um beijo rápido em sua bochecha, desejando
que esse dia acabe logo, tentando me desvencilhar de seu abraço, mas não
consigo.
— Pronto — digo, tentando manter a voz leve.
Ele franze a testa, claramente insatisfeito.
— Só isso?
Engulo em seco e uma onda de desconforto me toma.
Sei que, se recusar, ele pode insistir em algo mais do que estou disposta
a conceder agora. Decido ser esperta e ceder um pouco para evitar uma
situação pior.
Antes que ele possa tomar qualquer iniciativa, aproximo-me e toco seus
lábios com os meus em um beijo breve e leve.
— Melhor agora? — pergunto, recuando e baixando os olhos.
— Não. — Pelo tom de voz ele está insatisfeito e insiste na frase: — Só
isso?
— Prefiro esperar até estarmos casados — digo, com um sorriso tímido,
tentando ser a moça inocente que ele espera que eu seja. — Aí você me
ensina como fazer.
Ele franze a testa por um instante, mas depois força um sorriso. —
Claro, claro, mas não precisamos esperar tanto assim.
Parece apaziguado e puxa-me mais para junto de seu corpo, o polegar
acariciando a parte de baixo do meu seio.
Estremeço e ele confunde com prazer.
Ri baixinho no meu ouvido e pergunta: — Gosta disso, ãh?
Puxo a mão dele para baixo.
— Jamal, por favor — sussurro. — Isso é impróprio e estamos no carro.
— Ora, não me diga que nunca fez isso com…
— Nunca fiz isso — corto-o, porque não quero que ele continue e fale o
nome de Lars.
Meus olhos se enchem de lágrimas. Não quero pensar em Lars.
Ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Acho que é só porque
estou tomando meus remédios direitinho que consigo sustentar seu olhar.
— Meu pai não vai gostar de saber que está tomando essas liberdades
comigo antes do casamento — digo, piscando e deixando as lágrimas
escorrerem pelo rosto.
— Duvido que seu pai achasse ruim que você me desse um beijo — diz
ele, bem aborrecido. — Mas vou conversar com ele amanhã antes do
noivado.
O resto da viagem segue em um silêncio um tanto tenso e nossa visita à
loja é demorada porque Jamal faz questão de esperar para que o anel seja
consertado na hora e eu saia usando-o.
O anel, como disse meu pai, é enorme, mas não é cafona. Isso é exagero
de Jarl Hardrada e talvez um pouco de dor de cotovelo. É, sim,
exageradamente grande, perfeito e branco, sem inclusões, segundo o
joalheiro que nos atende em uma sala privada especial. Tanto que parece
falso. Não é meu estilo, mas é o do meu futuro marido.
Suspiro quando, depois de ajustado, ele o coloca no meu dedo e o
diamante recobre toda a minha falante.
— Que bom que gostou — diz ele, confundindo meus sinais mais uma
vez.
Ou talvez não se importando com eles.
— Gostei muito, obrigada — digo e dou um beijo no rosto dele.
Porque, sinceramente, vou fazer o quê? Dizer que não gostei?
Já sei que minha opinião não importa para ele.
Saímos da loja e Jamal verifica o relógio.
— Vou direto me encontrar com seu pai já que temos uma reunião agora
— diz. — Meu motorista vai deixá-la em casa.
— Tudo bem, obrigada.
O segurança enorme, careca, com uma barba de lenhador – ou de
profeta? – de óculos escuros aviador e terno preto abre a porta da SUV sem
nem nos fitar, mais parece um robô.
Jamal estende a mão para me ajudar a entrar e coloca metade do corpo
dentro do carro.
Acho que vai me dar outro beijo e inclino o rosto para o lado, mas ele
segura minha cabeça entre as mãos, os polegares no meu queixo, impedindo
de me mover.
Desta vez, sua língua invade minha boca, como uma lança, para dentro
e para fora. Várias vezes. Sua barba cerrada me arranha.
Até que o empurro. — Jamal!
Tenho vontade de passar o antebraço no rosto para limpar o babado à
volta da minha boca, mas me contenho.
Ele me dá um sorriso esfomeado.
— Amanhã, quando estivermos sozinhos, vou te dar um beijo de
verdade e te ensinar mais umas coisinhas que você vai gostar — diz ele.
— Se formos autorizados pelo meu pai — aviso a ele.
— Não se preocupe, querida, seremos — diz, e abre um sorriso
arrogante. — Falarei com ele agora mesmo.
Dá dois tapinhas na lateral do meu rosto e diz: — Até amanhã, minha
noiva.
A porta se fecha com um clique que soa definitivo aos meus ouvidos,
como se fosse uma porta de uma prisão.
Do lado de fora, Jamal fala alguma coisa para o segurança, que entra na
frente, como o guarda de uma penitenciária.
Porque é assim que estou me sentindo: uma criminosa indo cumprir sua
pena.
Minha mente é uma confusão de pensamentos. Preciso encontrar uma
saída dessa situação, mas não sei por onde começar.
Pego o celular e digito uma mensagem no grupo:
Meninas, cadê vocês? Pelo amor de Deus! Preciso de ajuda!
O motorista acelera.
— O que houve? — pergunta Vasilisa, notando a súbita mudança de
velocidade.
— Parece que o trem vai passar mais cedo — respondo, tentando soar
casual.
— Mais cedo? Lars, nenhum trem passa mais cedo ou mais tarde, nem
um segundo aqui. — Ela me olha com desconfiança. — O que está
acontecendo?!
Respiro fundo.
— Seu pai e Jamal já sabem que você estava comigo e… acho… que
levaram a polícia ao hotel para me prender.
Ela empalidece.
— Prender. Por quê?
— Porque seu pai fez com que a justiça te declarasse incapaz, o que
obviamente você não é, mas isso invalida qualquer decisão sua, como, por
exemplo, a sua vontade de estar comigo — digo. — E, por você ser
incapaz, eu não poderia ter feito sexo com você, porque, supostamente,
você não tem discernimento.
— Ele ia te colocar na cadeia por… — Ela leva a mão à boca, chocada.
— Não… não pode ser.
— Por eu ter te levado para cama? Sim, ia. — Seguro sua mão. —
Mesmo que você dissesse que foi por livre e espontânea vontade, de nada
valeria a sua declaração.
O carro entra em Frogner e ao invés de se dirigir diretamente para a
embaixada, entra numa rua lateral, mais estreita.
Olho para trás e não vejo mais a SUV onde estava a Major e não me
preocupo com isso porque sei que Tyr está coordenando.
— Sei que é difícil de aceitar, mas eu não retirei meu pedido de
casamento, muito pelo contrário. Jamal deve ter oferecido alguma coisa
melhor a seu pai e por isso ele escolheu dá-la em casamento a quem
interessava a ele, Jarl, e não a quem interessava a você.
Lágrimas se formam em seus olhos, mas ela as enxuga rapidamente. —
Acho… Acho que tem algum engano.
Ela ainda não espera traição do pai dela.
Eu sei que meus irmãos vão me dar sempre o amor e apoio, mas
também já vi que às vezes aqueles que estão mais próximos são os que te
machucam mais.
Segue-se um silêncio breve em que não tenho coragem de tirar a venda
dos olhos dela de uma vez só, mas as sirenes de polícia que se aproximam
quebram o transe dela.
— Preciso falar com meu pai — diz. — Ele vai me explicar o que está
acontecendo.
— Claro — digo. — Essa é a ideia. Assim que chegarmos à embaixada,
gostaria que você falasse primeiro com Magnus, ele pode explicar melhor a
situação. Depois com seu pai, que deve estar chegando com Jamal e a
polícia a qualquer momento.
— Jamal? Jesus! — exclama, estendendo a mão à frente. Fica branca
feito cera e vira-se para mim, segurando minha perna com força. — Lars!
Precisamos voltar! Liga para o hotel…
— Calma!
O portão de ferro preto e dourado já está aberto e os guardas os fecham
assim que o carro passa.
— Não! Você não está entendendo! — Ela aperta minha coxa, as unhas
curtas se enfiam na minha carne. — Os anéis! Esqueci os anéis no hotel!
A velocidade diminui e paramos na frente da casa antiga.
— Eu peguei, calma, calma — falo, procurando acalmá-la, porque não
quero que se preocupe.
Ela desaba e passa a mão na testa.
— Está se sentindo bem?
— Sim.
Mas não parece. — Vem.
A Embaixadora Madeleine Sørensen, uma senhora distinta de uns
cinquenta e poucos anos, trajando um tailleur bege de calça comprida e
sapatos baixos, está nos esperando na porta, com um sorriso.
— Senhora Embaixadora, desculpe todo esse inconveniente e obrigado
por nos receber — agradeço e apresento Vasilisa —, minha namorada,
Vasilisa Hardrada.
— Alteza, Senhorita Hardrada, sejam bem-vindos. — Cumprimentamo-
nos e ela nos direciona pelo vestíbulo de mármore, decorado com obras de
arte contemporâneas de artistas escandinavos. — Suas Majestades e suas
altezas esperam pelos senhores na conexão privada na sala de reuniões.
Posso oferecer café ou talvez um chá?
— Não, obrigado, acabamos de tomar o desjejum — digo, mas viro-me
para Vasilisa e pergunto: — Talvez uma água?
— Sim, aceito.
A sala de reunião é pomposa e bem apropriada para uma embaixada.
Provavelmente, aqui cabem umas cinquenta pessoas. O pé direito é alto, de
uns cinco metros. Esse palacete antigo deve ter pertencido a algum nobre
empobrecido.
Puxo a cadeira para Vasilisa à minha direita e a embaixadora senta-se ao
lado dele, deixando-me a cabeceira, já que sou a autoridade mais alta no
momento.
Um telão mostra duas telas: numa aparecem Thorvald, Tyr, Magnus,
Yasmin e Tatyana na sala de conferências do Palácio Frostholm e no quarto
de hotel, Catarina.
— Não estou entendendo — diz Vasilisa, olhando para mim.
— Prima, estávamos preocupadas! — diz Catarina. — Você não
respondia direito às mensagens…
— Nem às minhas — diz Yasmin.
— Nem às minhas — fala também Tatyana.
— Como assim eu não respondia direito?! — pergunta ela, a voz
alterada. — O que vocês queriam? Desenhos?! Fotos?! Relatórios?!
— Você pelo menos podia nos dizer o que estava acontecendo, mandar
um áudio — diz Tatyana, cruzando os braços. — Ser um pouquinho mais
acessível.
— E vocês? As plebeias, agora coroadas? A Rainha de Vinterland. E a
Princesa do Ártico. Vocês, agora que são da realeza, são acessíveis, por
acaso? — As frases saem em disparada, imparáveis, como se fossem balas
de uma metralhadora. — Entendo que vocês casaram e têm muitos
compromissos importantes, inaugurações, os maridos, o reino, só Jesus
Cristinho sabe o que mais, mas me abandonar e nem vir para o noivado
com um homem que eu. Não. Queria. Custava? — pontua as palavras,
quase as cuspindo. — E ainda avisam que não vêm, em cima da hora? É um
pouco demais, até para a realeza, não acham?! Vocês…
— Vasilisa. — Cubro a mão dela com a minha, efetivamente
lembrando-a que não é hora disso.
O rosto está corado, o peito sobe e desce, a respiração acelerada. Ela
está magoada. Profundamente.
— Desculpe, Vossa Excelência, me excedi — diz para a Embaixadora,
sem graça, e bebe o copo de água de uma vez.
Sorrio, porque não pede desculpas nem aos meus irmãos, nem às
amigas, nem a mim. E vai ter que pedir perdão, ao menos, às amigas.
Madeleine sorri para ela e enche o copo de novo. — Amigas perdoam.
— Espero que sim — diz ela.
— Vasilisa, não posso afirmar, mas desconfio que seu celular esteja
grampeado ou sendo monitorado.
— Meu celular? Aliás, cadê ele?
Tiro o celular dela do meu bolso e coloco no meio da mesa.
— Existem tecnologias avançadas, como o protocolo SS7, que é usado
pelas operadoras de telefonia para permitir que diferentes redes se
comuniquem — explico, tentando ser o mais claro possível. — Mas pessoas
com conhecimento e recursos podem explorar as vulnerabilidades desse
sistema para interceptar chamadas e mensagens de texto sem que você
perceba, o faz com que suas mensagens possam ser desviadas, lidas ou até
mesmo alteradas antes de chegarem ao destinatário.
Vasilisa franze a testa. — Mas meu pai é um cientista e não sabe nada
de tecnologia. Como ele teria acesso a isso?
Olho para Tyr, que decide intervir.
— Existem empresas privadas que oferecem esses serviços ilegalmente
para quem está disposto a pagar — diz. — Indivíduos com poder e
influência podem ter contatos que facilitam esse tipo de acesso.
Ela respira fundo, absorvendo a informação, então diz: — Então, todas
as minhas mensagens podem ter sido monitoradas?
— É bem provável — assinto.
— Além do SS7, há técnicas de man-in-the-middle e spoofing que
permitem que um terceiro intercepte e até modifique a comunicação entre
duas partes sem que elas percebam. Deste modo, você pode ter recebido
mensagens alteradas ou nem ter recebido mensagens importantes. Eles
podem até mesmo enviar respostas falsas, fazendo-se passar por outra
pessoa.
Ela pisca duas vezes e diz: — Mas meu pai não é militar e não acho que
tenha acesso a este tipo de tecnologia. Ele mal sabe usar o celular direito.
Tyr continua: — Sabemos que ele pode não ser especialista em
tecnologia, mas tem recursos para contratar quem seja. É possível que esteja
trabalhando com profissionais para monitorar suas comunicações e manter
controle sobre você.
Vasilisa aperta as mãos no colo, claramente abalada.
A Embaixadora coloca a mão em seu ombro. — Entendo que seja
difícil, mas precisamos considerar todas as possibilidades para garantir sua
segurança.
Ela suspira, os olhos fixos na mesa. — O que devo fazer?
— Primeiro, precisamos trocar seu celular por um dispositivo seguro —
sugere Tyr. — Além disso, evitar comunicações não-criptografadas e
encontros em locais não seguros.
— É difícil acreditar que meu próprio pai faria algo assim. — Ela
suspira, balança a cabeça, como se não conseguisse assimilar e olha para
Catarina. — É mais uma acusação grave.
Percebo Yasmin e Tatyana se entreolharem e o meu celular vibra no
bolso.
Discretamente, puxo-o e leio a mensagem.
Cunhada Favorita
Não insista neste ponto. Não achamos que ela está pronta para encarar
isto. Taty está avisando a Tyr tb. Vamos focar em Jamal.
A frase dela me dá uma ideia. Tenho certeza que Tyr vai entender e
seguir o meu pensamento e reformular o plano a partir daí.
Localizo no meu celular o último e-mail que mandei para o pai dela e
mostro-o para Vasilisa.
— Pode ser que quem esteja usando essas tecnologias seja Jamal —
digo para ela, mas olhando fixo para meu irmão.
Os olhos azuis-esverdeados dele se estreitam minimamente por um
mero instante e então ele sorri.
Sorri aquele sorriso que as pessoas normalmente dão quando estão
felizes, mas que ele dá quando está pronto para matar a pessoa que mais
odeia nesse mundo, e para mim é o suficiente.
Respiro fundo aliviado.
— Compreende agora por que estamos sendo tão cautelosos? —
pergunto a ela. — Não queremos fazer acusações inverídicas, mas estamos
querendo te proteger de…
Uma batida na porta me interrompe no mesmo segundo que Tyr põe a
mão no ouvido por um breve segundo.
— Com licença, eu já retorno — diz meu irmão.
Ele se levanta da cadeira e some da tela.
Um ajudante de ordens entra, sussurra algo no ouvido da Embaixadora,
que pede licença e se retira da sala junto com o rapaz.
Vasilisa me olha. — O que está acontecendo?
— Sei tanto quanto você.
Tyr não demora para voltar, mas a Embaixadora não retorna, o que me
diz que as coisas estão complicadas do lado de fora.
Ele se senta e limpa a garganta.
Meu celular treme várias vezes no bolso, mas não ouso abri-lo no
momento.
— Vasilisa, você sabia que seu noivo tinha conhecimento do seu
relacionamento com Lars desde o começo?
— Eu nunca escondi que… tinha interesse em seu irmão — diz ela. —
Nem ele em mim.
— Mas você nunca assumiu para ele ou para seu pai que entre vocês
havia mais que interesse? — pergunta Tyr.
— Não — diz ela.
— Bom, ele sabia, ou ao menos desconfiava, que entre vocês havia mais
que interesse.
— Sabia?
— Com certeza — confirma ele.
Ela se vira para Tatyana e pede confirmação: — Você também acha
isso?
Se a amiga sabe disso ou vai na onda do marido, não sei, mas pela
careta que faz: — Infelizmente, acho que sim.
Ela abraça seu corpo, como se estivesse com frio. — Por que você está
dizendo isso?
— Ele colocou alguém para te vigiar, vinte e quatro horas por dia —
continua Tyr.
Puta merda! Ele vai colocar a culpa toda no árabe? Fico até
envergonhado, mas Tyr é o melhor estrategista que tem e esta for a ideia é
uma saída de mestre.
Ela fica mais pálida do que já está. — Para me vigiar?
— A você e a Lars — continua ele, me envolvendo na história.
— A mim?
À medida que ele fala e conta o que está acontecendo e as medidas
emergenciais que Astrid está tomando para limpar a internet das fotos –
uma estratégia que também já estava prevista –, vejo a mistura de emoções
passando pelo rosto e corpo dela, que vai ficando cada vez menor na
cadeira: raiva, incredulidade, choque.
— Tyr, chega! — falo, porque tenho medo que ela passe mal de
verdade.
Mas Tyr ainda não terminou, porque ele é implacável: — A polícia, seu
pai e seu noivo estão aí fora, acompanhando um oficial de justiça, que veio
cumprir um mandado de busca e apreensão para levar Vasilisa para uma
clínica psiquiátrica e mandados de prisão para Lars por crime de roubo e
estupro de incapaz.
— O roubo é do anel de noivado e aliança? — pergunto.
— É.
— Foram devolvidos hoje de manhã pelo Concierge ao Sr. Hardrada,
com um bilhetinho meu, e já devem estar devidamente assinados e
protocolados. Um crime a menos.
— Além disso, temos uma novidade: você é acusado também de
homicídio qualificado — avisa Magnus, com um franzir de sobrancelhas.
— Homicídio?! — espanto-me.
Ele se recosta na cadeira e cruza os braços. — Supostamente, ontem de
madrugada, depois que as fotos vazaram, você ordenou que caçassem,
torturassem e matassem o guarda-costas que estava vigiando vocês. Depois
o corpo dele foi esquartejado e os pedaços foram dados para os Cane
Corso i, que fazem a vigília da propriedade da embaixada.
Como é?
Até dou risada, porque a invencionice deles é tão sem pé nem cabeça
que não vai colar, nem que a vaca tussa.
— Não ria — diz Tyr, sério, o que me causa mais surpresa e até um
arrepio. — A esposa do homem supostamente assassinado com requintes de
tortura, registrou uma denúncia hoje de manhã, disse que recebeu um
telefonema ameaçador hoje de madrugada e que não conseguiu mais falar
com o marido. Hoje de manhã, supostamente, uma pessoa da embaixada,
que está tendo a identidade mantida em sigilo, avisou a ela o que aconteceu
e ela foi até a delegacia para fazer o registro.
Debruço-me sobre a mesa. — Tyr, estamos falando exatamente de
quem? Quem eu supostamente mandei matar?
— Este homem.
Na tela aparece um homem alto, careca, com uma barba comprida,
cheia.
Ao meu lado, Vasilisa solta um arquejo.
Viro-me para ela. — Você o conhece?
— É o segurança de Jamal que estava no carro que me levou para casa
depois que ajustamos o anel e a aliança.
— Já eu nunca o vi mais magro ou gordo, ou mais careca ou barbado —
digo, bem irritado. — Além disso, eu estava acompanhado, dormindo, em
um hotel, que tem câmeras de segurança. Várias testemunhas me viram
entrar. As camareiras trocaram a roupa de cama por volta de uma hora da
manhã. Várias testemunhas me viram agora de manhã. Tomar café. Me
viram sair. Meu telefone está à disposição, assim como as ligações feitas do
quarto do hotel. Se eles quiserem, podem recolher as fezes dos cães e fazer
testes para verificar se encontram o DNA do homem ou algo parecido.
Além de estupro de incapaz, não há justificativa para me prender.
— Não sou incapaz — sussurra ela, horrorizada, provavelmente com a
imagem que se fixou na sua mente —, nem fui estuprada. Essa ideia é
horrível e enfeia o que nós…
— Mas o desgraçado do seu pai parece achar que o que aconteceu entre
nós é violento e degradante e não merece a bênção dele, mas o que aquele
nojento quer fazer com você, mesmo que você não queira, vale diamantes e
petrodólares — falo alto demais e finalizo com um soco na mesa.
Quando finalmente me calo, minha voz ainda ecoa pela sala e a mesa
treme.
— Desculpe. — Suspiro e fecho os olhos por um segundo. — A culpa
não é sua e…
— Lars! — interrompe Tyr, talvez com medo que eu confesse o seu
plano, mas não era essa a ideia.
— Eu… eu…
Mas ela não consegue completar. Com mãos trêmulas, abre a bolsa,
pega um frasco com o rótulo vermelho e toma uma pílula.
— Vasilisa, está se sentindo bem? — pergunto, puxando minha cadeira
para perto da dela, preocupado.
Coloco dois dedos na jugular e meço o batimento. Seu coração está
disparado, mas não parece muito anormal tendo em vista a gravidade da
situação em que estamos vivendo, mas quem sou eu para saber?
— Quer que chame um médico? — insisto, porque seu rosto está bem
pálido.
— Vai passar… — diz baixinho, respirando fundo e devagar várias
vezes.
Depois de uns dois minutos a cor dela volta ao normal e ela levanta os
olhos para mim. — Como vamos sair daqui?
— No helicóptero da Força Aérea Real de Vinterland — informa
Thorvald, que até o momento não havia dado uma palavra.
Ela arregala os olhos para ele. — Mas isso não vai criar problemas para
vocês?
— Ser rei tem suas vantagens e desvantagens — diz ele, dando um leve
sorriso para ela. — Uma delas é que meu cargo é vitalício, então posso me
dar ao luxo de cometer pequenos incidentes internacionais como estes
quando vejo que absurdos inaceitáveis estão sendo perpetrados, sem medo
de que a população me julgue no futuro e não me recoloque no trono. No
entanto, Vasilisa, eu preferiria que você conversasse com seu pai antes de
sair daí. Tentasse ponderar com ele.
— Por quê? Já que vocês acham que ele vem me sabotando, me
manipulando?
Observo a expressão no rosto de Vasilisa, uma mistura de confusão e
resistência. Entendo ser difícil para ela aceitar que o próprio pai possa estar
agindo contra seus interesses.
— Porque é sempre melhor tentar um acordo, tentar conciliar ou fazer
um trato, ou talvez perguntar as razões dele — explica Thorvald. — Afinal,
é seu pai, sua família.
Sei que Thorvald está tentando evitar um conflito direto, mas me
pergunto se essa é a melhor abordagem.
— Vasilisa — intervenho, buscando seu olhar —, talvez conversar com
ele possa esclarecer as coisas. Às vezes, as pessoas têm motivos que
desconhecemos.
— Não sei se consigo enfrentar ele assim. — Ela me olha, os olhos
cheios de lágrimas e incerteza. — Que me vendeu pelo maior preço e
deixou que um homem me expusesse em… em… nua e… e…
A mão que ela passa sobre os olhos treme tanto que não me contenho e
a tiro da cadeira e trago-a para o meu colo. Ela esconde o rosto no meu
pescoço, se encolhe e começa a chorar.
Meu coração aperta.
— Não fica assim, logo isso tudo passa e ninguém vai se lembrar do
caso — sussurro. Acaricio as costas dela e sacudo a cabeça para Tyr. — Vai
ficar tudo bem, Pequena. Eu prometo.
Sou um hipócrita. Deveria ter procurado outra opção porque sabia a dor
e o sofrimento que ia causar com essa medida drástica. Mesmo que tenha
sido com as melhores das intenções possíveis, mesmo que Tyr tenha
encontrado uma boa saída, os meios foram questionáveis e o estrago está
feito.
Como justificar o injustificável? Suspiro alto.
Do outro lado da tela, Tyr faz sinal para que eu me mantenha firme e diz
em silêncio que: — Era necessário o sacrifício.
— Demônio frio e desalmado! — xinga a esposa, que dá um tapa
estalado no bíceps dele, aborrecida com a falta de empatia dele.
— Harpia dos Infernos, depois você vai me agradecer — resmunga ele
de volta.
— Esses dois brigam até nas reuniões sérias? — pergunta Vasilisa,
fungando.
— Sempre — digo, até porque é verdade e isso a distrai.
Dou a ela o lenço que está no meu bolso de fora do blazer.
— Obrigada — diz, enxugando os olhos e assoando o nariz, e depois
amassa meu lenço na mão.
— Você está bem? — pergunto, alisando seu cabelo para trás e olhando
dentro de seus olhos.
Ela balança a cabeça, sem me encarar de volta e se ajeita na minha
coxa: — Vou falar com meu pai, se você ficar na sala comigo e não deixar
que ele me convença a ficar em Oslo. Quero ir com você para Vinterland.
— Não vou te deixar, prometo — asseguro, apertando meu abraço.
Apesar de querer proteger Vasilisa a todo custo, também reconheço a
importância de tentar resolver as coisas de forma diplomática, se possível.
Há muito em jogo, e não posso permitir que minhas emoções atrapalhem.
Ela suspira. — Tudo bem. Vou conversar com ele.
— Isso é ótimo. — Thorvald faz um gesto afirmativo com a cabeça,
parecendo satisfeito. — Ele ainda está no portão insistindo para entrar.
— Você quer dizer ameaçando — resmunga Magnus.
Ainda assim, não posso deixar de sentir uma ponta de apreensão sobre
como essa conversa vai se desenrolar.
— Alguma coisa nesse sentido — diz Thorvald. — Vou pedir que ela o
admita.
— Apenas ele, não quero falar com Jamal — diz Vasilisa.
— Nem cogitei isso — fala Thorvald.
Minha mente analítica começa a planejar nossos próximos passos em
Vinterland. Vai ser ótimo escolher com ela onde vamos viver em Vinter e
como vamos decorar…
— Mas antes, Lars…
Olho para ela. — Sim?
— Antes de falar com meu pai, eu… preciso de subsídios — diz,
inspirando fundo e se levando do meu colo. Ela ajeita a roupa. — Contra
Jamal. Quero saber o que ele fez.
— O que ele fez — repito, sem entender direito. — Contra mim? Essa
invencionice que mandei matar o segurança, você diz?
— E também… — Ela passa a mão no cabelo e engole em seco, mas
bebe um gole de água, limpa a garganta e diz: — E quero ver nossas fotos
que Jamal espalhou por aí.
Olho para Magnus na esperança de que Astrid tenha conseguido retirá-
las da internet, mas ele franze a boca numa careta e sacode ligeiramente a
cabeça.
Que merda.
Mas se esse é o preço que eu – e ela –, tenho que pagar para acordar ao
lado dela todas as manhãs, que assim seja.
Só espero que um dia ela não descubra o que fiz, porque mesmo que
tenha sido feito para nos unir, isso vai nos separar.
Pela primeira vez na vida, agradeço essa sensação de sonolência e confusão
que os remédios, prescritos pelos médicos que meu pai me levava, dão.
Sentada no sofá do majestoso salão da embaixada, sinto-me
desconectada da realidade.
Parece que não sou eu a mulher nua e sensual que Lars beija o pescoço
na sacada da varanda do hotel. Nem a que ele acaricia os seios. Nem a que
ele empurra contra a porta de vidro e que envolve seus quadris com as
pernas.
Tenho inveja de todas elas. São ingênuas, inexperientes. Crédulas.
Um rapaz entra e Lars para de caminhar pelo comprimento das janelas e
se vira em câmera lenta para a porta e retorna.
Eles falam alguma coisa que eu não consigo entender.
As suas vozes parecem vir pelo ar, em ondas, mas não chegam até mim.
Não é como se eu estivesse vendo um desenho animado, mas isso não é um
filme e sim a minha vida. Também não é uma alucinação, porque não tomei
nenhum ácido ou droga.
Ou melhor, tomei uma dose a mais do remédio para o coração e
provavelmente o efeito é esse.
Volto meu olhar para a tela do celular e continuo a passar o dedo e ver
as fotos dos momentos que eu gostaria de guardar só para nós dois, não para
serem consumidos pelo público ávido por escândalos.
Não me fixo em nenhuma até que uma mão grande interrompe.
— Já chega, não acha?
Deixo que o celular seja tirado da minha mão porque não me importo
mais. Encosto-me na cadeira e fecho os olhos.
— Vasilisa.
— Hmmm?
Minha mente enevoada não quer acordar, mas alguém me sacode
suavemente.
— Vasilisa!
Abro os olhos.
— Beba isso. Seu pai veio falar com você — diz Lars, ajudando-me a
tomar o café amargo e ruim e depois coloca a xícara na mesa.
Ele estreita os olhos para mim. — O que foi que você tomou?
— O remédio de sempre — digo, esforçando-me para ficar acordada. —
Mas em dose maior. Ele me deixa… zen.
Lars puxa o celular do bolso, lê uma mensagem e fala alguma coisa na
língua dele que soa como um palavrão.
— Levanta, vamos — pede e me ajuda a ficar de pé. — Vem, vamos
nos mover mais para o meio da sala. Seu pai vem aí com Jamal. Não diga
nada, não assine nada, em hipótese alguma. Não assine nada, entendeu?
— Entendi — digo. — Por quê?
— É complicado, explico melhor depois.
Ele passa o braço pela minha cintura e andamos até o meio da sala,
estrategicamente como se estivéssemos conversando e olhando a paisagem
da janela, um jardim verde, com árvores e passarinhos que voam de galhos
em galhos despreocupados e inconscientes dos dramas que são tratados
dentro destas paredes.
Quando a porta se abre novamente, e a Embaixadora entra, atrás dela
vêm meu pai, o pai e a mãe de Tatyana – cujos nomes esqueci – e atrás
deles, Jamal!, e uma entourage de advogados.
Sinto um frio na espinha ao vê-los e aperto a mão de Lars.
— Por favor, acomodem-se — diz a Sra. Sørensen, amavelmente.
Vira-se para nós e explica: — Sua Majestade, o Rei Thorvald,
aconselhado por Sua Alteza, o Ministro da Justiça e Relações Exteriores,
Príncipe Magnus, permitiu a entrada deles para que Sua Alteza, o Sheik
Jamal Bin Omar, e a senhorita Hardrada possam desfazer oficialmente o
noivado
— Eu já volto — diz ele. — Fique aqui.
Tento focar nas palavras deles, mas elas se misturam em um murmúrio
indistinto de cumprimentos de majestades e altezas e bom dias e como
estão.
A única coisa que consigo perceber é que tom é frio e desagradável.
Sinto minhas pernas tremerem.
Antes que perceba, Lars está de volta e seu braço ao redor da minha
cintura é a única âncora que me mantém de pé. Quero encostar a cabeça em
seu ombro, mas, ao mesmo tempo, não quero demonstrar fraqueza.
Meu pai não se aproxima de mim e não faz nada além de lançar um
olhar severo antes de se dirigir ao lugar que o assistente da Embaixadora
indica, assim como Jamal que se antes queria me beijar, agarrar e até fazer
sexo anal, agora se mantém longe, com um sorriso enigmático nos lábios.
Mas a mãe de Tatyana passa direto pela outra assistente e vem na minha
direção.
— Vasilisa, querida, é tia Karla. — Pega minhas mãos e me dá um beijo
no rosto. — Você está bem?
Isso, o nome dela é Karla.
— Acho que sim — digo —, dentro do possível.
Ela me olha preocupada. Então, empertiga-se e olha para Lars, com a
testa franzida. — Alteza, achei de muito mau gosto o ocorrido.
— Concordo com a senhora — diz ele. — Já providenciamos as
medidas legais cabíveis e a retirada imediata dessas imagens de todos os
blogs, sites, redes sociais, etc.
— Esperava que o senhor tivesse mais cuidado com uma moça da
estirpe e reputação de Vasilisa, afinal o senhor sabia que ela era amiga da
minha filha e uma jovem de boa família — repreende ela. — Não a
conheceu na rua, não a encontrou numa boate baixo nível, praticando
meretrício. E mesmo que tivesse encontrado, não poderia permitir esse tipo
de exposição vulgar.
— Não, senhora — responde Lars, abaixando a cabeça. — A senhora
tem toda razão. Peço desculpas se dei a impressão que quis desrespeitar
Vasilisa. Ou Tatyana. Não tinha interesse nenhum em ver a intimidade da
mulher a quem propus casamento, nem a minha, a senhora vai ter que
concordar comigo, exposta dessa forma. Foi uma invasão de privacidade
absurda.
Estou espantada com a carraspana que a tia Karla passa no homem
enorme e imponente que escuta tudo, apenas se desculpando e tentando se
justificar. Há pessoas dispostas a me ajudar, a me proteger.
— Espero que isso não se repita — diz ela, com firmeza.
O Sheik El-Khoury que já estava sentado, se levanta, e vem buscá-la. —
Meu bem, Sua Alteza já compreendeu — diz, amoroso e delicado. —
Podemos nos sentar e começar logo esta reunião? Quero ir para casa.
— Claro, Omar — diz ela, não muito satisfeita, como se tivesse muito a
falar ainda, mas cede ao desejo do marido e vai se sentar no lugar indicado
para ela, do outro lado da mesa.
Minha mente luta para fazer sentido de tudo, mas o nevoeiro causado
pelo medicamento me impede de pensar com clareza.
Lars puxa a cadeira para mim e acomodo-me. Quando ele se senta, diz
ao meu ouvido.
— Vai ficar tudo bem.
Sua voz é firme, mas suave, transmitindo uma segurança que me
acalma. Respiro fundo, tentando me agarrar a essa sensação, porque não sei
se acredito nele.
Os olhos escuros de Jamal parecem atrair todo o calor da sala e emanar
um frio tão grande que fazem com que um arrepio percorra meu corpo.
Não sei se é de medo ou raiva. Ou um dos dois.
Volto meu olhar para a embaixadora Sørensen que, acho, falou meu
nome.
— O Sheik Jamal exige que a senhorita assine os documentos oficiais
do distrato de casamento, para que tudo esteja legalmente registrado.
— Lamento que as coisas tenham chegado a esse ponto, Vasilisa — diz
ele, com um tom que parece mais condescendente que sincero. — Mas se
você realmente não me quer, não vou impor a minha vontade. É só assinar o
distrato e você está livre para seguir a vida com o príncipe.
Ele estala os dedos e um de seus advogados tira da pasta de couro um
envelope dourado com uma moldura marrom e entrega nas minhas mãos,
mas Lars o pega e abre.
— É para a senhorita Hardrada — diz o advogado.
— Como futuro marido dela e maior interessado em proteger seu
patrimônio, vou ler e me inteirar do conteúdo. Além disso, gostaria de saber
por que seria necessário que minha namorada assinasse uma dissolução, se
ela foi declarada incapaz pela justiça? Acredito que ela não assinou o
contrato de casamento, assinou?
Não entendo a pertinência da pergunta, mas a falta de resposta que se
segue é ensurdecedora e reveladora, denotando que há algo oculto.
Ele vira-se para mim e pergunta: — Você assinou o contrato, Vasilisa?
— Bem, assinei uma documentação que me mandaram assinar — digo,
sentindo-me a perfeita idiota, porque nem li o que assinei.
— Mas não leu?
Sacudo a cabeça, confirmando.
— Entendo — diz ele. Olha para o meu pai e pergunta: — Sr. Hardrada,
por que exatamente o senhor pediu a declaração de incapacidade de sua
filha, se ela é maior de idade e perfeitamente capaz e inteligente?
— Por idiotices dessas — resmunga ele.
— Mas agora o senhor pede que ela assine um distrato e não traz
nenhum suporte legal para ajudá-la, ficando inclusive em oposição a ela —
observa Lars, firme, o que me deixa mais tranquila. — Espero que o senhor
não se oponha que eu leia, me inteire e aconselhe-a, já que tenho não só
interesse no bem-estar de sua filha como no futuro dela.
Quando as mãos grandes de Lars giram a última página do contrato,
juntam as folhas e as batem duas vezes na mesa.
O advogado me estende a caneta de ouro, mas ela fica no ar porque
minhas mãos continuam no colo.
Meu pai fala: — Não há necessidade de prolongar isso. Assine isso
agora, Vasilisa.
Seu tom autoritário me irrita, mas, ao mesmo tempo, me constrangem,
afinal sou sua filha.
— Não há necessidade de Vasilisa assinar nada — começa Lars e então
dirige-se a mãe de Tatyana: — Madame Zimmerman, sinto muitíssimo pela
aula de mediocridade que a senhora vai receber.
Rasga o distrato ao meio.
— Como ousa rasgar um documento legal? — urra furioso Jamal e
levanta-se, a cadeira caindo no chão. — Isso é inadmissível!
— Isso é um ultraje! — grita meu pai, ao mesmo tempo. — Você está
interferindo em assuntos de família!
A tia Karla que está ao lado de Jamal se encolhe quando na cadeira
quando o marido dela se levanta também para impedir o filho de dar a volta
na mesa e vir para cima de Lars, que já está de pé.
A gritaria e a confusão trazem quatro seguranças loiros e grandes para
dentro da sala. Eles se espalham prontos para entrarem em ação, caso
necessário.
O Sheik El-Khoury é quem coloca ordem na sala, numa voz tão fria e
tão gelada quanto o Ártico no inverno: — Jamal, Sr. Hardrada, sentem-se.
— Senhores, peço que mantenham a compostura — intervém a
Embaixadora. — Estamos em um recinto diplomático. Podemos resolver
isso de maneira civilizada.
O Sheik El-Khoury pede: — Vossa Alteza, peço que nos explique Vossa
posição.
— A mãe de Vasilisa é descendente dos Romanov, por uma linha que
saiu da Rússia logo que o Czar recebeu a carta de Rasputin prevendo a
morte dele e da Família Imperial. Foi uma das poucas que sobreviveu e é
bastante rica. Por uma cláusula de testamento, a herança passou da mãe
para Vasilisa e somente ela poderia ceder a outrem. No contrato, seu filho
ficaria com o controle dessa herança. Se ela assinasse o distrato, a herança
passaria imediatamente para controle dele, como penalidade por ela ter
desistido do casamento. Tendo em vista que ela foi declarada incapaz pelo
próprio pai, que não teve assessoria jurídica alguma na assinatura do
primeiro ato, esse é nulo de pleno direito e não há necessidade de assinar o
segundo.
Meu pai cerra os punhos. — Você não tem o direito de interferir nos
assuntos da minha família!
Lars o encara diretamente. — Tenho todo o direito de proteger a mulher
com quem pretendo me casar. Além disso, questiono a legalidade das ações
que o senhor tem tomado em relação à sua filha.
A tensão na sala é palpável. Sinto meu coração acelerar, mas, ao mesmo
tempo, uma sensação de alívio começa a surgir.
Tia Karla olha para mim, surpresa. — Vasilisa, querida, você sabia de
tudo isso?
— Não — admito, a voz trêmula. — E não estou entendendo nada.
— Isso é inaceitável! — Jamal bate na mesa e aponta para Lars. — Esse
homem tem interesses escusos com minha noiva desde o dia do casamento
da minha irmã. Que essa farsa termine agora!
— Sugiro que reconsidere suas palavras — rebate Lars, parecendo até
calmo. — Porque eu fiz a proposta formal de casamento a ela e ao pai dela
primeiro e ela aceitou. Mas, se quiser insistir nisso, podemos perguntar a ela
para começar. E depois ir à justiça. Vamos descobrir quem tem razão. E
quem está tentando enganá-la, manipulá-la, dopá-la, roubá-la…
Ele soca a mesa e se prepara para sair da sala. — Não vou ser ofendido
por um pobretão, assassino, parte de uma gangue que vem engravidando
mulheres para encher os cofres…
— Chega! — a voz baixa e cortante do Sheik El-Khoury interrompe a
tirada. — Peça desculpas a Sua Alteza, cunhado da sua irmã, e à senhorita
Hardrada, futura princesa de Vinterland.
— Pai! Não podemos permitir isso.
Jamal fica branco quando o pai de Tatyana continua esperando. Vira-se,
dobra-se ao meio e, constrangido, diz: — Gostaria de me desculpar pelas
palavras impensadas.
— Está desculpado — dizemos em conjunto.
— Espere-me no carro — diz o Sheik.
Quando a porta se fecha, ele suspira.
— Que vergonha. Senhorita Hardrada, eu sinto muitíssimo que isso
tenha se passado. Este homem indigno será devidamente repreendido e
castigado. Tenha certeza.
Demoro um momento para entender que ele está falando do filho mais
novo dele e não do meu pai.
— O valor em dobro que ele pretendeu roubar da senhorita será
entregue em banco a ser designado por seus advogados em seu favor —
continua, contrito, ditando para um dos advogados que vai anotando tudo
em árabe. — Além disso, será feita uma doação no mesmo valor para uma
instituição de caridade a ser designada pela senhorita.
O advogado entrega o bloco e a caneta para ele assinar, depois retira a
folha, coloca em um envelope dourado com moldura em marrom, fecha
com lacre vermelho que esquenta na hora e o Sheik aperta o anel com o
brasão.
— Assim que estiver se sentindo melhor e seus advogados puderem
passar os dados para os meus, as transferências serão feitas — diz ele,
depositando o envelope nas minhas mãos.
— Muito obrigada, Vossa Majestade — faço uma pequena reverência.
— Jazakallah Khair. i
— Barakallah Feek ii. — Para Lars, ele diz: — Cuide bem desta menina,
Alteza, ela é uma joia.
— Sei disso, Majestade.
— Cuide-se. — Tia Karla me dá dois beijos, um abraço apertado. —
Qualquer coisa, peça à Tatyana para me chamar e irei imediatamente.
Ela levanta uma sobrancelha altiva para Lars. — Alteza, espero receber
o convite para o casamento de vocês em breve.
— Enviarei com prazer, Madame. Em breve.
— Vou acompanhá-los — diz a Embaixadora, com um sorrisinho
disfarçado.
Porque Karla Zimmerman é loira, linda, magra e foi por muitos anos
modelo de passarela, mas na hora de colocar um príncipe, ministro de
estado, no lugar sabe muito bem como fazer.
— Vamos, Karla, querida. — Oferece o braço à companheira e sai
resmungando baixinho alguma coisa.
— A realeza se acha uma raça tão superior que se esquecem de que
quanto menos se misturam, mais cheios de defeitos ficam — diz ele, com
um ricto nos lábios, assim que os El-Khoury saem da sala.
— Agora, vamos dar prosseguimento às nossas tratativas, Sr. Hardrada.
Quanto o senhor quer para vender a curatela da sua filha para mim?
Olho para Lars, espantada. — Como?
— Sente-se, Vasilisa — ordena, ríspido. — Ofereço dez por cento do
valor que Jamal pagou e o senhor me transfere agora a curadoria dela,
definitivamente.
Desabo na cadeira. — Pai?
— Dez por cento é um valor um tanto irrisório até para uma puta, não
acha? — Os olhos azuis do meu pai faíscam. — Não paga nem mil
camelos.
— Camelos são mais valorizados que mulheres no mundo árabe —
responde Lars, de uma maneira que não reconheço.
— Mas já que você descabaçou a menina, setenta e cinco por cento
seria mais razoável.
As lágrimas me enchem os olhos, mas respiro fundo. — Pai! O que
você está dizendo?
O homem que eu achava que gostava de mim se recosta na cadeira,
estende o braço direito e aperta um botão no centro da mesa.
A porta se abre e ele pede ao rapaz que aparece: — O envelope, por
favor.
Como se estivesse esperando pelo pedido, o rapaz entra trazendo um
envelope azul-marinho com o brasão da Casa de Gulbrandr e o entrega à
Lars.
Ele retira de dentro uma documentação com timbres e selos oficiais.
— Vinte e cinco por cento e nem um centavo a mais, afinal a
mercadoria já foi usada e o mundo inteiro já pode verificar que não é difícil
levá-la para cama.
Jesus misericordioso! Um arquejo escapa da minha garganta.
O homem que me fez flutuar pelos céus ontem solta uma gargalhada
horrível e diz: — Na verdade, nem precisa de cama.
— Pai, você vai deixar…
— Sua cachorra ingrata! Você fez por onde! — Meu pai aponta o dedo
para mim. — Defeituosa, doente, louca. Nunca prestou para nada. Nunca
mais quero te ver. Tomara que você morra igual à sua mãe.
Encaro-o, lutando para dizer qualquer coisa, esquecendo tudo o que
planejei falar antes. Perdoá-lo.
Levanto-me nas pernas que tremem tanto que nem sei como consigo.
Lars segura meu pulso.
— Aguarde ele assinar.
Empurra os documentos e uma caneta para meu pai.
— Você se acha esperto, principezinho de merda? — pergunta,
rabiscando a assinatura nos documentos com raiva. — Acha que está
levando um anjo coroado para casa?
— Sei o que estou levando: uma jovem bem-educada, bonita e
obediente, que me satisfaz sexualmente na cama a hora que eu quero, do
jeito que eu quero — qualifica-me, de modo frio e analítico, como se
realmente estivesse comprando um objeto numa loja. — É nova e
inexperiente, vou poder ensiná-la o que e como gosto. Vai me servir bem.
Ou talvez um animal que vai adestrar.
— Está enganado. Vai levar uma puta, defeituosa igual à mãe dela. —
Ele cospe no chão, descontrolado. — Ela é o protótipo da filha da puta.
Nunca vi uma expressão mais perfeita para uma mulher — grita, a saliva
escapando da boca pelos lados. — Filha. Da. Puta!
— Terminou de assinar? — A voz de Lars, gelada e seca, corta a
ladainha sem fim.
— Já.
— Coloque os documentos no envelope e entregue-os a ela — diz, sem
olhar para mim, enquanto abre o aplicativo do celular. — Devo fazer o
pagamento para que conta?
O homem que conheci como meu genitor também liga seu aparelho e
dita o número da conta-corrente.
Eles efetivam a transação.
Lars passa o braço pelos meus ombros e diz, cruelmente:.
— Foi um prazer fazer negócios com você, Hardrada. Não espere que
eu envie o convite de casamento.
— Traidora, vagabunda! Isso não vai ficar assim, Vasilisa, não vai! —
rosna, como resposta. — Vocês dois vão pagar caro por isso!
Como não ando, Lars quase que me puxa da sala, fazendo com que
meus pés se movam e obedeçam ao seu comando, porque meu cérebro não
funciona mais. Ou será que meu coração parou de vez?
— Você vai morrer igual à puta da sua mãe quando me largou!
Como assim?
Lágrimas nublam minha visão. Tropeço e Lars me impede de cair.
— O banheiro? — pergunto à Embaixadora, que está esperando do lado
de fora.
Por sorte, o lavabo é bem ao lado.
O café da manhã delicioso sobe do estômago para o esôfago, e mal
tenho tempo de me ajoelhar, abrir a tampa do vaso sanitário e vomitar.
A pobre da embaixadora puxa meu cabelo comprido e fica assistindo ao
espetáculo repugnante enquanto o gosto nojento da comida mastigada e
digerida por ácidos queima e agride minhas papilas gustativas,
impregnando minha língua, minha boca, meu nariz, mas, na verdade o que
está doendo é o meu coração que foi maltratado por um homem sem
escrúpulos.
O vômito traz espasmos violentos, e engasgo e choro ao mesmo tempo.
Dói. Fisicamente e na alma.
— Shhh, está tudo bem, querida — diz ela, carinhosa, segurando meu
cabelo, colocando a mão na minha testa. — Respire fundo.
Não sei o porquê — talvez por ingenuidade ou por desespero, mesmo
—, imaginei que meu pai me protegeria sempre. Ou que se importasse.
Por ser parecida com minha mãe, ele fosse me amar ou cuidar de mim.
Ser protetor. Amoroso.
Ou porque sou fruto de uma relação de amor. Ou sua prole.
Ou porque ele me criou e ensinou e cuidou de mim. Esteve ao meu lado.
Às vezes.
Sei lá.
Achei que meu pai fosse diferente.
Quando termino, lavo a boca, mas o gosto permanece. Acho que vai
ficar para sempre.
— Venha, querida — diz a embaixadora gentilmente.
Ela me direciona para uma suíte, com banheiro limpo. Providencia
escova de dentes e pasta, enxaguante bucal e toalha limpa.
— Tome seu tempo — oferece, sorrindo de maneira acolhedora, e
coloca um lenço macio na minha mão.
— Por que não deita um pouquinho? — sugere, indicando uma cama
que parece confortável e tem uma manta macia dobrada nos pés. — Vou
avisar ao príncipe que você está pronta para ir.
— Não, por favor — peço. — Preciso de um momento sozinha.
— Claro — concorda. — Chame, se precisar de algo.
— Obrigada — murmuro.
A porta fecha suavemente.
Aperto na mão o lenço que ela me deixou. Esse não tem o perfume de
Lars, e, sim, um leve toque de lavanda, calmante. Enfio o rosto nele e choro
no tecido macio toda a fraqueza que tem na minha alma.
Quem sabe assim eu deixe aqui, nessa terra maldita que matou minha
mãe, essa angústia que me corrói e dor que me consome? Que eu descubra
por que deixo que me manipulem e me usem? Que me façam de ingênua e
de marionete? De objeto e fantoche? E passe a ser dona da minha própria
vida?
Escuto a voz profunda de Lars do lado de fora e a suave de Madeleine,
mas não quero vê-lo, não quero encará-lo.
Sequer sei se quero olhá-lo nos olhos depois de tudo o que foi dito
naquela sala.
— Vasilisa?
Não respondo. Mesmo assim, ele abre a porta, entra e senta-se ao meu
lado.
— Vamos?
— Por quê?
Ele suspira e me encara, imóvel, os olhos azuis fixos no meu rosto,
como se não soubesse o que dizer.
Fecho os olhos, porque quando Lars Haraldson encara você, parece que
ele enxerga sua alma.
É enervante, mas sobrevivi ao bullying de amigas falsas num colégio
interno, ao abuso físico e sexual de uma freira, a manipulação psicológica e
medicamentosa de um pai, a internações psiquiátricas desnecessárias,
médicos e juízes amorais e aéticos…
O que é a sedução de um amante frio interessado no meu corpo?
Nem tenho mesmo certeza do que quero que aconteça entre nós dois a
partir de agora. O que eu sei é que não conheço nada sobre esse homem,
apesar de tudo o que aconteceu entre nós.
Ele ajeita melhor o cobertor ao meu redor e pega-me em seus braços,
como se eu fosse criança e ao invés de me debater e rebelar deixo que me
leve.
Afinal, agora ele é meu curador. Ou deveria dizer meu novo dono?
Nem abro os olhos. Encolho-me contra seu peito largo, afundo o rosto
em seu pescoço e continuo a chorar, agarrada ao lenço cheiroso da
Embaixadora e ao dele que está embolado desde aquela hora na minha mão.
Ele não dá uma palavra sequer, e anda com esses passos compridos dele
para fora deste palacete suntuoso que escutou tantas coisas bizarras esta
manhã.
Cruza um enorme espaço aberto e o vento acaricia meu cabelo, como se
soubesse que preciso muito de amor. Os passarinhos cantam ao redor
tentando me alegrar, mas coitadinhos, não conseguem. Quem poderia?
Entra no que suponho ser o helicóptero que vai nos levar para
Vinterland. Pelo silêncio que faz depois que a porta se fecha, imagino que
deva ser aqueles luxuosos e caros, de última geração. Ele se ajeita o mais
confortavelmente possível no assento, sem me soltar.
— Alteza, estamos prontos para partir, o senhor precisa colocar o cinto
— diz uma voz na cabine.
— Um segundo — pede. Sem me tirar do colo, ele dá um jeito de
prender o cinto. — A senhorita Hardrada vai no meu colo. Ela não está
passando bem.
Não é mentira, mas não entendo porque ele não quer me soltar.
— Sim, senhor.
Logo estamos voando.
Sua mão sobe e desce nas minhas costas, me acalmando, embalando.
Protetor.
Ou eu deveria dizer: obcecado e controlador?
Afinal, só mudei da posse de um homem para outro.
Porque a verdade é que são as pessoas que mais amamos e confiamos
que traem a nossa confiança e o nosso amor.
Talvez por acharem que serão perdoadas por simplesmente serem
amadas. Ou por acharem que, sendo nossos pais, cônjuges ou aparentados
de alguma maneira, devamos inerentemente algo a eles.
Não sabem que são essas relações que precisam de muito mais tato,
carinho, diplomacia e cuidado que quaisquer outras.
Enquanto o helicóptero sobrevoa um dos fiordes mais bonitos de Vinterland
e se aproxima da capital, meus olhos percorrem as águas cristalinas que se
tornam escuras e refletem as montanhas cobertas de neve.
A beleza austera da paisagem contrasta com a tempestade de emoções
dentro de mim: um quê de melancolia, irritação e, ao mesmo tempo,
animação e excitação. Uma mistura caótica que raramente experimento e
procuro me distanciar para analisar a situação, que é muito mais complicada
do que previ ao olhar pela primeira vez nos belos olhos verdes de Vasilisa.
Jamais poderia imaginar que me envolveria com uma moça cujo pai
cometia um crime tão sério quanto dopar – porque não tenho dúvidas que
ele faz isso – e manipular a própria filha.
Tentar direcioná-la para o melhor candidato era algo que qualquer pai
faria, mas vendê-la para o maior lance e depois, pressionado pelo
escândalo, não ter escrúpulos em deixá-la na penúria como uma forma de
castigo, talvez tenha sido uma das atitudes mais mesquinhas e grotescas que
já vi.
Sem falar naquela cena final. Jamais pensei que ele a xingaria daquela
maneira tão baixa e vil.
Minha atitude de pedir a transferência da curatela dele para mim, ao
invés de liberá-la, foi tão hedionda quanto?
Foi, mas tenho minhas razões.
E quando ela me perguntou as razões, não respondi por dois motivos:
primeiro porque não quero revelar o que vou fazer e depois seus olhos são
muito reveladores e me contam seus sonhos, e que sua alma é muito pura
ainda e quero mantê-la assim. Cada vez que mergulho nos olhos verdes,
parece que estou entrando em um desses fiordes deslumbrantes ainda
mantidos intocados, bálsamos de luz, e quero conservá-la desta maneira. Só
para mim.
Depois de uma hora chorando, sem fazer barulho ou sequer soluçar,
como se temesse me incomodar, finalmente Vasilisa dormiu, mas no rosto
sereno ainda há vestígios de lágrimas.
Observo por um instante sua expressão delicada, e uma sensação de
posse me invade. Assim como a raiva.
Decidir que queria ficar com ela em Vinterland foi fácil demais e por
isso que eu não fui a Oslo antes. Ver seu quarto, os livros na estante, suas
roupas no armário a fizeram mais real para mim: uma moça com um
passado e, pior, com sonhos. Com tantas ilusões que não sei como não as
enxerguei antes nas piscinas verdes. Ou talvez, mais preocupante ainda seja
a esperança que brilha ali e que sem pena pisei em cima naquela sala.
Se descobrir qual é a fórmula que ela usa para continuar brilhando e
florescendo no meio da podridão, talvez possa roubá-la e copiá-la.
Queria ser feliz. Uma vez na vida.
Acomodo melhor o peso leve do seu corpo relaxado contra o meu,
ajeitando uma almofada sob sua cabeça para que fique confortável.
Com cuidado para não a perturbar, tiro o celular do bolso e faço uma
ligação.
— Lars, estou a caminho da sala de almoço — atende Tyr no segundo
toque. — O restante da família está reunido, aguardando vocês.
— Tenho novidades — digo em voz baixa. — O pai de Vasilisa aceitou
um valor bem menor do que o esperado. Apenas vinte e cinco por cento.
Tyr gargalha. — Filho da puta. Estava desesperado.
Faço uma careta. — Foi… interessante.
— Não quero nem imaginar — responde Tyr. — Leif descobriu que o
laboratório dele está com problemas sérios. Dívidas, irregularidades
financeiras, tudo indica que está prestes a falir.
Suspiro, passando a mão livre pelos cabelos. — Isso explica a
disposição dele em negociar. Provavelmente, precisava de liquidez
imediata.
— Exato.
— A cena final com a filha foi deprimente — murmuro. — Bem
desagradável.
Tyr faz uma pausa antes de responder. — Crescimento raramente vem
sem dor. A ferida vai doer antes de começar a fechar, mas é esse rito de
passagem que nos fortalece.
Olho pela janela e a natureza selvagem espelha a turbulência que se
agita dentro de mim, cada pico nevado simbolizando uma decisão difícil,
cada sombra nos vales representando as consequências que ainda estão por
vir.
As palavras de Tyr me atingem com força. Penso no meu próprio
trauma que me moldou, que me fez quem sou hoje, nas cicatrizes que
carrego tanto no corpo quanto na alma. Sempre fui reservado, escondendo
minhas emoções atrás de uma fachada de força e virilidade. Mas, no fundo,
sei que essa dor é parte de mim, uma sombra que nunca desaparece
completamente.
— Acho desnecessário.
— Não disse que é necessário, mas a dor é um professor cruel e eficaz
— diz, a voz firme agora. — Às vezes, é necessário passar por experiências
desagradáveis para crescer na vida — reflete Tyr, com um tom
compreensivo. — O processo de cicatrização cria uma casca. Da próxima
vez, não vai doer tanto.
Meu peito aperta.
Será?
Vê-la sofrer daquela maneira me incomodou mais do que imaginei,
apesar de saber que também a fiz sofrer e vou fazer ainda. Mas tenho os
meus propósitos e são bons.
— Somos filhos da puta também — reconheço.
— Fale por você — diz ele, dando de ombros. — Talvez seja bom você
analisar isso com sua terapeuta para saber se não é um reflexo dos seus
traumas.
— Talvez. — Fecho os olhos por um instante. — Mas não quero falar
sobre isso. Aliás, estamos falando muito sobre esse assunto ultimamente.
— Talvez devêssemos ter falado sobre ele mais cedo, mais vezes —
insiste Tyr. — E, quem sabe, você já tivesse superado e não fosse tão fresco.
— Tyr! Basta. Não estou pronto para discutir isso — digo, e não sei a
que estou me referindo na realidade. Ao passado ou ao presente.
Ele ri. O bastardo do meu irmão ri. — Ninguém nunca está
completamente pronto, Lars. Mas, às vezes, precisamos dar um salto de fé.
Abro os olhos e encaro o horizonte pela janela. — Você acha mesmo
que é possível deixar o passado para trás?
— Acho que é possível ressignificá-lo — responde ele. — Usar as
experiências como aprendizado, não como correntes que nos prendem.
Olho para Vasilisa novamente. — Ela merece coisa melhor do que
alguém tão quebrado quanto eu.
— Lars!
— Mas eu não disse que não era egoísta o bastante para deixá-la se
afastar um milímetro sequer de mim.
Muito pelo contrário, minha vontade é de colocar uma corrente em seu
tornozelo e trancá-la em um quarto, onde só eu entre. Só de pensar naquela
cena de Jamal apalpando e beijando Vasilisa meus músculos tensionam, o
coração acelera, os punhos se cerram involuntariamente.
A batalha interna entre o homem racional e o lado primitivo que ela
desperta em mim é feroz. O lado primitivo está prestes a ganhar e eu sorrio,
porque gosto da sensação.
— Ora, ora, ora — diz Tyr do outro lado da câmera, porque me conhece
bem e identifica minhas expressões faciais com facilidade. — Talvez esse
fiapo de gente tenha um efeito mais benéfico em você que anos de terapia
não tiveram. O lado animal é prazeroso, Lars, deixe-o vir à tona.
Sacudo a cabeça. — Prefiro a racionalidade.
— Porque você nunca provou do fruto proibido — contrapõe Tyr. —
Talvez essa mocinha aí veja você além das suas próprias barreiras.
Fico em silêncio por um momento, ponderando suas palavras.
— Refletir sobre isso não fará mal — diz ele. — E…
— Estamos chegando em menos de trinta minutos — corto-o, porque
isso está ficando profundo e chegando perto demais de lugares escuros da
minha alma que não costumo visitar.
Entendendo o recado, ele finalmente empurra a porta da sala de almoço.
— Estou com Lars na linha, ele está chegando em uns trinta minutos —
avisa aos meus irmãos e cunhadas. — Vou conectá-lo ao telão.
Meu irmão é engenheiro eletrônico e de computação com especialidade
na área militar, tecnológico até o último fio de cabelo. O palácio só falta
falar, principalmente o celular dele, que vigia tudo e todos, menos a esposa,
que é uma espevitada, doidinha da cabeça, que quando botou os olhos nele,
decidiu o queria e pediu ao pai para fazer uma proposta de casamento
irrecusável.
— Oi, cunhado número dois — diz Yasmin. — Vocês devem estar com
fome.
— Shhhh — digo, colocando o dedo nos lábios. — Comi um sanduíche
e Vasya passou mal.
— Enjoou? — pergunta Yasmin.
— Ou já está grávida também?! — pergunta Tatyana, arregalando os
olhos.
— Não tem ninguém grávida aqui. — Rolo os olhos. — Ela se
aborreceu com o pai.
A expressão das duas fecha na hora.
— Vou pedir para preparar uma sopinha — fala Yasmin.
— Melhor. Cunhada, se puder adiantar e pedir a Vidar para separar as
residências que estão disponíveis para que Vasilisa escolha a que gostaria de
morar, vocês poderiam ajudá-la a escolher e decorar — peço a ela. — E só
trouxemos uma mochila de roupa.
— Não se preocupe. Tatyana e eu somos amigas de Vasya há anos e
vamos resolver tudo para ela — diz Yasmin.
— Você não está sozinho. Estamos todos aqui para ajudar — acrescenta
Thorvald, a voz suave, mas firme.
— Obrigado. Vejo vocês em breve — digo, encerrando a ligação.
Guardo o celular e respiro fundo, mas o ar parece insuficiente para
acalmar a tempestade que se agita dentro de mim. As palavras de Tyr e a
afirmação de Thorvald ecoam em minha mente, mas são engolidas pelo
turbilhão de emoções que ameaçam transbordar. Sempre me considerei um
solitário, alguém incapaz de se conectar profundamente com os outros
devido às cicatrizes do passado.
Olho para ela, ainda adormecida em meus braços, tão frágil e, ao
mesmo tempo, tão poderosa em seu impacto sobre mim.
Uma nova onda de possessividade me invade, uma necessidade quase
visceral de protegê-la, de mantê-la ao meu lado a qualquer custo parece
rasgar meu peito.
Quero cercá-la, envolvê-la, garantir que esteja sempre segura. Essa
obsessão é nova para mim, e, ao mesmo tempo, alarmante, irritante e
perigosa, mas não consigo controlá-la; é como se fosse uma parte intrínseca
do que me tornei ao seu lado.
Preciso encontrar um equilíbrio antes que essas emoções reprimidas
agora vindo à tona com uma força avassaladora me dominem
completamente.
É como um vulcão prestes a entrar em erupção.
A racionalidade que sempre guiou minhas ações, está se desfazendo,
sendo sufocada por uma intensidade que mal consigo compreender. Raiva
pelo que fizeram a ela, pelo que ousaram tentar roubar de mim. Medo de
que ela possa se afastar, de que minhas próprias falhas possam afastá-la.
Desejo ardente de tê-la só para mim, de assegurar que nada nem ninguém
possa machucá-la novamente.
Navego por territórios inexplorados, tanto externamente quanto dentro
de mim mesmo, e não posso deixar de questionar se estou preparado para o
que está por vir, quando evitei por tantos anos me envolver exatamente para
não ter que lidar com esse tipo de problema.
As montanhas imponentes ao meu redor erguem-se como os obstáculos
que enfrento e exprime a complexidade das escolhas que fiz, mas então
Vinter aparece no horizonte.
Em poucos minutos, o helicóptero inicia a descida sobre o heliponto do
palácio de Frostholm.
Acordo Vasilisa, com um toque suave em seu ombro, que abre os olhos
e pisca com a claridade.
— Já chegamos? — pergunta, a voz suave.
Não está mais arrastada, apenas sonolenta, que se parece com a de
quando dormiu comigo, o que me conta que o efeito dos remédios está
passando.
Ela provavelmente vomitou aquelas pílulas inteiras que tomou por
último e as que tomou de manhã antes que fizessem efeito completo.
— Sim, estamos pousando em Frostholm — respondo.
O helicóptero aterrissa e alguém vem abrir a porta para nós.
A ventania das hélices parece aumentar as emoções conflitantes que
sinto numa intensidade que ameaça transbordar a minha inquietação
enquanto seguimos em absoluto silêncio num carrinho de golfe até o
palácio e depois subimos as escadas da mesma maneira até a sala de
almoço.
Vasilisa passa as mãos nos cabelos antes de entrar, mas não olha para
mim, pedindo confirmação se está bem.
Para meu espanto, Catarina também está lá e corre para abraçar a prima.
— Vasya!
Cumprimento meus irmãos, minhas cunhadas e só então elas se
desgrudam. Como eu sei? Estava acompanhando de rabo de olho, porque
ficaram tanto tempo abraçadas em silêncio que comecei a me preocupar.
— Catarina, tudo bem? — cumprimento-a — Como você chegou tão
rápido?
— Ué, vim de avião — responde ela. — A pé é que não foi.
Sentamo-nos à mesa e o meu almoço e o dela é servido. As conversas
não fluem como sempre, porque quero escutar o que Vasilisa conversa com
as amigas e meus irmãos estão interessados em dados que não quero
compartilhar na frente delas.
— Vocês não sabem o que a mulher do Conselheiro Elkund disse ontem
— diz Yasmin, revirando os olhos.
— Ah, pronto. Começou — diz Tatyana, soprando para cima, o que faz
Tyr desviar a atenção do que estou sussurrando para ele imediatamente.
— Começou o quê, Harpia?
— Nada, Demônio, não é para prestar atenção na nossa conversa — diz
ela, virando a cadeira de costas para ele.
O que o deixa de orelha em pé e mais atento ainda.
Yasmin, percebendo logo trata de acalmá-lo: — Não liga, não, cunhado
número um, é que a lagartixa daquela Elkund decidiu que entende tudo
sobre moda feminina e disse que eu ficava igual a um papagaio elegante no
vestido verde que usei na inauguração do hospital.
— Pelo menos, ela acrescentou elegante — diz Catarina, às
gargalhadas.
— Quem foi es-sa? — diz Thorvald, sem achar graça nenhuma. — Tyr,
vamos dar uma chamada nesses conselheiros porque não é possível
continuar assim.
— Homens! — exclama Vasilisa. — Acham que o mundo gira ao redor
deles.
Comentário esse que eu não entendo.
Leif intervém: — Mas se os maridos defendem vocês, vocês reclamam.
Se não defendem, vocês reclamam também. Como é que sabemos como nos
comportar?
Ela volta-se para mim, e os olhos verdes estão, pela primeira vez, frios.
— Tem certas lutas que não precisamos que sejam lutadas por nós. Já
outras…
— Somos mesmo tão terríveis assim? — pergunta Thorvald.
— Piores — responde Yasmin, piscando. — Mas não se preocupem, nós
ainda gostamos de vocês.
— Às vezes — acrescenta Tatyana. — É bom colocá-los de castigo de
tempos em tempos.
Catarina balança a cabeça. — Eles são como crianças grandes. Precisam
de supervisão constante.
Vidar entra com café e petits fours i, além de um tablet e um álbum de
fotos.
— Alteza, senhorita Hardrada — diz ele, colocando os itens sobre a
mesa. — Aqui estão as opções de residências para a sua consideração.
Vasilisa parece surpresa. — Residências?
— Sim, não vamos morar no palácio — explico. — Gostaria que
escolhesse qual delas você prefere.
Ela começa a folhear o álbum, sem nem prestar atenção direito nas
imagens. Entre as opções, está um palácio pequeno que quase foi destruído
durante a Segunda Guerra Mundial, num local que sempre achei lindo: a
Månestrålens Fjordresidens, que fica num platô, debruçada sobre um
fiorde, ao lado de uma cachoeira belíssima.
— Esta é incrível — diz Tatyana, apontando exatamente para ele.
As fotos mostram uma construção que é um mix de um palácio na frente
e uma casa com arquitetura moderna nos fundos, que se integra
perfeitamente à paisagem natural.
Uma bomba atingiu a parte de trás do palácio e o projeto que ganhou a
licitação para reconstruí-lo optou por deixar à mostra o que tinha acontecido
e acrescentar uma estrutura totalmente nova e original.
A cicatriz é parte integrante da nossa história e além da óbvia beleza do
local, talvez seja exatamente isso que me atrai tanto na arquitetura. A
mistura perfeita entre o velho e o novo, o passado e o presente e a maneira
com que essas peças foram calcificadas novamente para voltar a funcionar.
Catarina gosta de outro, bastante até, o que faz com que Leif e Yasmin
sugiram mais um, porém no final Vasilisa fecha o álbum, com um barulho
seco, sem escolher nada.
— Então, qual você prefere? — pergunto.
— Não tenho preferência. Qualquer uma serve.
Não, não serve.
Se ela acha que vou me intimidar com esse jeito seco, está muito
enganada. Reabro o álbum e paro na Månestrålens Fjordresidens.
— A cachoeira é chamada de Raio de Luar — explico. — Nas noites
claras de lua cheia, o reflexo na água cria um espetáculo único.
Seguro sua mão e quando sinto que ela vai puxá-la, firmo o aperto de
meus dedos ao redor do seu punho.
— O nome da cachoeira me lembra a sensação que tive quando te vi
pela primeira vez — digo.
— Um raio de luar? — pergunta ela, sem me olhar.
— Um raio de luar — repito. — Que ilumina suavemente, sem queimar.
Não reparei que todos se calaram e o silêncio que se segue na sala faz
com que ela abaixe a cabeça para esconder que seu rosto está rosado.
— Ai, não, para!
É a doida da mulher de Tyr que grita e coloca as mãos nos ouvidos,
quebrando o encanto.
— Isso foi tão doce que é capaz de dar cárie — diz ela.
— Quem diria que Lars tinha um lado poético — provoca Magnus.
Mas Vasilisa não diz nada.
— Acho que está decidido, então — digo para Vidar e peço: —
Providencie a minha mudança, por favor, e a senhorita Hardrada trouxe
apenas algumas coisas que vieram conosco no helicóptero. O resto ela irá
começar a comprar aos poucos.
— Certamente, Alteza — responde ele, fazendo uma leve reverência de
cabeça, antes de se retirar.
— Imaginem as festas que poderemos fazer lá! — exclama Yasmin.
— E as fotos! — acrescenta Tatyana. — Os cenários serão incríveis.
Vasilisa olha para as duas. — Vamos com calma.
— Claro, sem pressa — diz Yasmin, levantando-se. — Primeiro, vamos
tirar umas horas para dar uma repaginada total e mudar esse look antigo.
— Depois fazer umas comprinhas. — Tatyana bate no meu ombro e
estende a mão. — O cartão de crédito ilimitado, por favor?
— Não precisa — diz Vasilisa —, eu tenho o meu.
Entrego o meu à amiga e escolho as palavras com cuidado: — Use, em
caso do pai dela ter bloqueado a conta ou algo assim.
— Ao menos, Paipai nunca deixou as joias da sua mãe com aquele
crápula. — Catarina puxa a prima. — Eu sempre disse que ele não prestava.
— É, disse — concede ela, sem entusiasmo.
Ela quase sai da sala sem falar comigo. Na porta, faz uma breve parada
e olha por cima do ombro para mim.
Hesita como se não soubesse o que fazer.
— Nos vemos mais tarde — digo, quebrando a tensão.
— A gente vai pensar no seu caso — grita Tatyana, como se houvesse a
possibilidade de que elas não fossem me entregar Vasilisa de volta.
— Não queria dizer nada, não — fala Magnus com aquela cara de eu te
disse. — Você está fodido.
— Eu sei — concordo com ele, mas meus lábios se torcem e se abrem
num sorriso.
Nem que a levassem para o inferno, eu perderia Vasilisa. Porque até lá
eu iria, e se fosse preciso, mataria o próprio diabo, para trazê-la de volta
para mim.
Durante as quase três horas que ficamos no Spa, onde um cabeleireiro, uma
manicure e uma pedicure, além das meninas que tentam me enlouquecer –
ou segundo eles, dão uma repaginada no meu look, seja lá isso o que for,
sem me deixar olhar no espelho –, tenho tempo de interiorizar e analisar
com calma as reações do meu pai, de Lars e as minhas naquela maldita
reunião, o que me lembro por estar cheia de remédios e em choque, e
categorizar meus sentimentos agora que minha mente está mais clara.
Porque preciso decidir o que vou fazer e como vou agir.
Não adianta ficar de birra e não escolher onde vou morar. É melhor
encarar o problema de frente e fazer do limão um coquetel gostoso de limão
com vodka.
Lars é um espécimen que nenhuma mulher jogaria fora. E o Lars que
me seduziu no casamento da minha melhor amiga é melhor ainda.
O que foi que aconteceu ali?
Não posso negar que o desejo.
Desde o momento em que o vi, eu o quis como nunca quis um homem.
E esse querer não é somente no sentido sexual, apesar de não poder negar
que um desejo físico ardente deixa meu corpo em chamas. É inexorável,
como uma erupção de um vulcão ativo, que se avizinha e da qual não se
escapa.
Nem vou tentar impedir a combustão. Não vai sobrar nada, nem de
mim, nem dele, além de brasas tremeluzentes.
É como se ele tivesse jogado uma maldição sobre mim, talvez sobre
nós. E não há cura nem escapatória para esse feitiço, que ora me enlaça
suave como um sopro de brisa, e ora me aperta como correntes de ferro
incandescentes, queimando e atraindo ao mesmo tempo, arrastando minha
alma para ele.
Quero saber tudo que aconteceu a ele quando era criança; o que causou
aquelas cicatrizes, o que causou um trauma tão grande que o fez dizer
aquelas coisas ao meu pai.
Pela primeira vez na minha vida, eu tenho interesse por um homem.
Homem macho, forte, dominante.
O que me dá medo.
— Você está muito pensativa — diz Catarina, trazendo um sanduíche e
um suco para eu comer.
— Verdade.
No entanto, não falo o que está me incomodando porque ainda não
consegui digerir direito o que aconteceu.
— Esses irmãos costumam nos deixar assim — diz Yasmin, alisando a
barriga de quase sete meses. — O que foi que Lars fez?
Olho para ela. — Como você sabe que ele fez alguma coisa?
— Porque ele é sorridente demais — diz Tatyana indo se sentar longe
do meu sanduíche para não ficar enjoada. — Está escondendo alguma coisa.
Sorrio. — Está ficando esperta, hein?
Ela me dá a língua. — Sempre fui, mas tenho direito as minhas
escorregadinhas, não é?
— Todas nós temos — digo.
— Então, desembucha logo qual foi a sua — insiste ela.
Suspiro. — Vou poder ver meu cabelo?
— Não — gritam todas ao mesmo tempo, incluindo Charles, o gay
francês transformista que está separando pentes, tesouras e navalhas, como
se fosse fazer uma cirurgia no meu cabelo.
Ponho as mãos na cabeça. — Gosto deles compridos, tá? — relembro a
ele.
— Vamos ver, meu bem, vamos ver — diz ele, sem se comprometer, e
com delicadeza as retira. — Não estrague suas unhas. Estão lindas.
Estão mesmo. Pintadas de vermelho-escuro, um tom que nunca usei,
mas que sempre gostei.
— Pode começar a falar, querida, vou fingir que não estou escutando,
mas depois vou dar os meus pitacos, tá? — diz ele, descarado.
Quando levanto uma sobrancelha – que também foi depilada – ele
sussurra: — Corto o cabelo de muitas mulheres que transaram com seu
noivo.
— Deus Amado, Charles — diz Yasmin.
Para meu horror e deleite de Catarina, ele continua: — Não se acanhe.
Várias vieram aqui chorar as mágoas ou apenas contar sobre o tamanho do
pau dele e as mágicas que produz.
Meu rosto esquenta. — Jesus Cristinho…
— Sei de coisas que você nem imagina, meu bem — diz ele, piscando
para mim e clicando as tesouras no ar. — Sou quase melhor conselheiro que
cabeleireiro.
— Você sabe sobre todos os irmãos? — pergunta Tatyana, já
interessada.
— Digamos que o rei e o príncipe-herdeiro, os que já estão casados,
eram mais reservados, e os três mais novos… ui! — ele finge um tremor e
se sacode todo —, eram os mais saidinhos.
— Ah, e eu que achava que você ia me contar alguma coisa do meu
marido — faz um biquinho.
— Não sei muito dos maridos de vocês, a não ser a fofoca braba que a
piranha fazia com a periquita coroada, o que não interessa, já que a víbora
morreu, graças aos deuses — diz, referindo-se à primeira mulher de
Thorvald. Começa a pentear e separar as minhas mechas. — Já Lars,
Magnus e Leif desde cedo, por não terem muitas responsabilidades, fizeram
um estrago na população feminina do reino. Magnus menos, mas Lars e
Leif, deuses amados! Vocês não têm i-de-i-a do que esses dois aprontaram.
Até dividir mulheres os dois dividiram.
Olho para Catarina horrorizada e a maluca sorri, deliciada.
— Enlouqueceu, mulher? — sussurro.
— Quero casar mais rápido, isso, sim! — sussurra ela de volta. — Falta
só coragem de dizer isso para ele.
— E para seu pai, né?! — relembro a ela.
Ela faz uma careta.
— Depois que sua prima contar o que a está chateando e nós
resolvermos tudo, vamos colocar o príncipe Leif na linha, pode deixar.
Resignada, porque sou uma contra quatro, conto o que aconteceu nos
últimos dias, na festa de noivado e na reunião. Com todos os detalhes que
me lembro com nitidez.
— Não tenho dúvidas de que há algo que fez com que ele se retraísse na
última hora — digo, porque não o reconheci naquelas frases bruscas, brutas.
Foi bastante chocante ouvir que ele vai me treinar e, ao mesmo tempo…
Jesus misericordioso… Fico úmida, o corpo inteiro lateja. Tenho vontade de
estar na cama com ele.
Porque o homem é irresistível.
Tenho ódio das mulheres que o tiveram e ao mesmo tempo tenho a
vontade de dar língua para todas elas e dizer bem alto: sou eu que vou me
casar com ele.
É infantilidade? Pode até ser, mas é assim que me sinto, então se ele
quiser me ensinar o que gosta e quando gosta, tudo bem.
— Mas por que quis continuar com a minha tutela? Não podia
simplesmente ter pedido para me liberar?
— Talvez ele queira ter certeza de que você está segura — sugere
Yasmin.
— Pode ser que ele esteja com medo de te perder e ache que, mantendo
a tutela, consegue ficar mais próximo — concorda Catarina.
Não sei se este insight psicológico sobre Lars está correto. Precisaria
saber mais sobre ele para analisar melhor.
— Talvez ele esteja tentando mostrar um lado diferente de si mesmo —
sugere Charles, pensativo.
— Como estudante de psicologia, você sabe que as pessoas têm
camadas — acrescenta Yasmin. — Talvez ele esteja revelando uma que
você ainda não conhecia.
— Olha, Yás, pensando bem, eu até acho que ele está tentando me
proteger de alguma coisa — digo, refletindo. — Lars nunca falou nada
parecido, nem deu a entender que queria me controlar. Muito pelo contrário.
Fiquei até bem surpresa.
— Mas será que não é uma forma de ele garantir que você fique por
perto? — pergunta Tatyana, arqueando uma sobrancelha. — Homens às
vezes têm maneiras tortas de demonstrar afeto.
— Isso faz sentido — pondera Yasmin. — Mas você precisa conversar
com ele e esclarecer tudo.
— Concordo — digo, suspirando. — Preciso entender quais são as
intenções dele.
— E enquanto isso não acontece, que tal dar uma mexida com ele? —
sugere Tatyana, com um sorriso travesso. — Dois podem jogar esse jogo,
querida. Você pode deixá-lo tão intrigado quanto ele te deixa.
— Como assim? — pergunto, curiosa.
— Mostre que você também tem o controle da situação — explica ela.
— Faça-o perceber que você não é uma peça no jogo dele.
— Meninas, vocês são irresistíveis, e quando eu terminar com essa
princesa, ela vai estar deslumbrante — interrompe Charles, enquanto ajusta
meu cabelo. — Esses homens não terão a menor chance com nenhuma de
vocês, vão ficar de queixo caído.
— Não sei se quero provocá-lo desse jeito — confesso, tentando ver
meu reflexo no espelho, mas Charles não deixa. — Não quero jogar esses
joguinhos que não levam a lugar nenhum.
— Às vezes, é necessário para eles acordarem — comenta Tatyana,
dando de ombros. — Mas a decisão é sua.
Suspiro, porque não tenho experiência e elas têm.
— Então, o que você quer? — pergunta Catarina.
— Voltar para a faculdade o mais rápido possível — anuncio.
Yasmin rola os olhos para o teto. — Isso é ótimo! Mas estamos falando
de Lars. Você vai romper ou continuar com ele?
— Você tem alguma dúvida de qual será a resposta dela, meu bem? —
pergunta Charles, ligando o secador e me impedindo de responder.
Depois de alguns minutos, com um floreio, ele gira a cadeira e tomo um
susto.
Ele não cortou muito; não mudou muito a cor. Meus cabelos agora têm
um corte mais contemporâneo, com mechas ainda mais claras que destacam
meus olhos. Pareço diferente, renovada, quase como se fosse uma nova
versão de mim mesma.
— Você está deslumbrante, Vasya! — exclama Yasmin, admirando o
trabalho perfeito.
Sinto-me mais leve, mais… livre.
— Está mais linda ainda — diz, afofando meu cabelo.
— Concordo! Esse visual realçou ainda mais sua beleza natural —
acrescenta Tatyana, sorrindo.
Charles nos acompanha até a porta. — Arrasem nas compras! E
lembrem-se, confiança é tudo — diz ele, piscando para mim. — Vai voar,
princesa, e deixa seu gavião te caçar. Eles gostam da caça e nós gostamos
de ser caçados.
Ai, Jesus Cristinho!
— Você precisa de roupas que combinem com essa nova fase — diz
Yasmin.
Saímos do salão animadas, mas as últimas palavras de Charles, que
parecem bobas, ficam na minha cabeça. Só de imaginar Lars me caçando já
fico excitada e tenho certeza de que ele gosta de ser o caçador também.
O sol da tarde ilumina as lojas do shopping e uma moça de uns quarenta
anos, loira, está nos esperando na porta de uma das lojas.
— Já tenho tudo separado conforme a senhora me pediu — diz ela, nos
encaminhando para uma sala especial onde tem roupas separadas em várias
araras.
Ela estende a mão para mim: — Sou Ingrid Mauritz, muito prazer,
senhorita.
— Prazer, e é Vasilisa.
— Ingrid é minha super secretária, uso e abuso dela — diz Yasmin —,
vamos aproveitar e pedir para ver como estão as inscrições da faculdade de
psicologia e se dá para adiantar alguma coisa.
— Claro — diz Ingrid, já tirando uma caderneta da bolsa e anotando o
assunto. — Mais alguma coisa?
— Sim, vamos deixar algumas roupas separadas para serem entregues
hoje mesmo e a nossa vendedora poderia enviar coisas parecidas para a
Månestrålens Fjordresidens amanhã para Vasya escolher com calma — diz
Yasmin. — Amanhã, vamos decorar a residência e precisamos da sua ajuda.
— Claro, vou adorar ajudar. Vasilisa vai precisar de assessoria também?
— Por enquanto não — digo, admirando um vestido que Catarina
escolheu. — Quero focar na faculdade e se acompanhar Lars, será apenas
em alguns compromissos. Até o casamento, quando decidiremos como
faremos.
— Acho que Lars nem vai te reconhecer — diz Catarina, fechando o
zíper. — Esse ficou show.
— Gosto — observando meu reflexo no espelho. — Qual o próximo?
— Gente, acabei de receber uma mensagem — diz Yasmin, com um
tom que mistura alívio e seriedade enquanto estou tirando o vestido.
— Diz logo, não faz mistério — manda Tatyana.
— Vasya, Magnus pediu para avisar que todas as fotos já foram
retiradas dos sites e redes sociais — explica Yasmin. — E que os tabloides
sensacionalistas, assim como o fotógrafo, vão publicar amanhã um pedido
de desculpas por invadirem a privacidade de vocês.
Desabo no sofá da salinha, amassando o vestido de seda entre as mãos,
com um nó na garganta.
A sensação de invasão, de vulnerabilidade é sufocante e parece que o ar
ficou rarefeito e que meu coração vai explodir.
Lembro que vomitei e que o remédio que tomei pode não estar fazendo
efeito. Puxo o ar, tentando me acalmar, mas não consigo respirar.
— Meu remédio — peço, mas minha voz falha.
Catarina se ajoelha na minha frente, pega minhas mãos e diz: — Calma.
Respira. Respira devagar que vai dar tudo certo. Você não precisa do
remédio.
Uma lágrima escapa, deslizando pelo meu rosto. Tento respirar fundo,
mas a emoção me domina e desabo no choro.
— Ah, querida…
Ela me abraça. Yasmin e Tatyana também.
— Chora, mesmo, não precisa se segurar — diz Tatyana, segurando
minha mão.
— Mesmo sabendo que as fotos foram removidas, fui exposta —
confesso, meio gaguejando, as lágrimas agora caindo livremente. — Me
sinto exposta. Nunca pensei que algo assim pudesse acontecer. E não tive
culpa de nada. A impressão que tenho é que as pessoas me olham e me
veem nua.
— Deve ser terrível, mesmo. — Yasmin me abraça apertado.
— Sim — concorda Tatyana. — Sei que é difícil ver algo positivo nisso,
mas pelo menos pense que você se livrou da desgraça do meu irmão e agora
pode ficar com Lars, que era quem você queria.
Enxugo minhas lágrimas com o lenço que Yasmin me estende.
— E talvez, de certa forma, isso tenha sido um mal necessário, já que
ainda te livrou daquele crápula do seu pai — raciocina Catarina.
— Acho que vocês têm razão. — Respiro fundo, absorvendo suas
palavras e o peso no meu peito diminui. — Obrigada, meninas. Não sei o
que faria sem vocês.
— Não precisa agradecer — diz Tatyana, dando-me um abraço
apertado. — Amigas são para isso.
— Agora, vamos terminar isso, porque mal começamos — diz Yasmin.
Separamos várias roupas, entre blusas, camisas, calças, saias, vestidos
de todos os tipos, suéteres, casacos, xales, vários tipos de bolsas, cintos e
sapatos, lingeries, camisolas e tantas outras peças e acessórios. Nunca
imaginei que eu precisasse e usasse tantos artigos de moda.
Céus!
Sem falar que não fomos ver nada de rosto, nem cabelo, como
maquiagem, perfumes, presilhas, chapéus. No entanto, não tenho condições
de fazer mais nada hoje, porque no final de mais de três horas, estamos
exaustas. Mas animadas.
Bom, elas estão. Muito. Como se eu fosse uma boneca nova que elas
estão reconstruindo. Já eu me sinto numa gangorra. Uma hora estou ótima,
na outra só quero chorar.
Forço um sorriso também. — Se eu te disser que tudo o que eu quero é
um banho, agora, você acredita?
— Acredito — diz, colocando umas vinte peças dobradas em um braço
e pegando uns quinze cabides em cada mão. — Gente, conseguimos
comprar muito hoje, hein?
Debaixo de uma montanha de roupa maior que ela, Tatyana fala: — E
ainda falta muuuuuito!
— Amanhã, vai ser mais fácil — diz Yasmin, que está carregando outro
monte, mas menor, por causa do barrigão. — Aliás, precisamos escolher os
vestidos de gala. Não posso esquecer de pedir a Ingrid, isso.
— E o vestido de noiva! Tem que ser absolutamente deslumbrante —
lembra Tatyana.
— Qual tiara você vai usar, Vasya? — pergunta Catarina, com os olhos
brilhando de entusiasmo. — Sua mãe tinha umas deslumbrantes! Aliás, vou
mandar mensagem para o meu pai, pedindo para separar tudo o que ele tem
guardado e mandar o avião entregar. Logo! Nem sei se você já viu o tesouro
que ela tinha!
Sinceramente? Do jeito que meu humor está no momento, um vestido
feito de juta e uma coroa de espinhos me parecem mais apropriados do que
renda bordada e brilhantes.
Não acho que vou me recuperar fácil de perder a admiração que eu tinha
por meu pai. Talvez não fosse enorme, mas existia uma admiração cega e
um amor filial por ele. Ele era minha única ligação de família. Com a minha
mãe. Isso me deixa bem desolada.
Porque foi muito duro ter sido xingada daquele jeito e perceber que ele
nunca me valorizou de verdade. Preciso superar. Vou superar, mas ainda vai
demorar um pouco. Tem apenas algumas horas e ainda estou tentando
processar tudo.
— Seria maravilhoso, Catarina — digo, tentando me animar —,
adoraria ver e conhecer mais sobre minha mãe.
Elas continuam a fofocar, e Catarina conta o que o pai falava sobre a
irmã, minha mãe, enquanto a vendedora passa as roupas no caixa, e vou me
animando porque são histórias que não conhecia e me aproximam dela e me
confortam.
Porém, nada me prepara para a hora de pagar a conta.
Charles não permitiu que eu pagasse a renovação do meu look — disse
que era um presente — e o restante que fiz lá, Yasmin pagou em dinheiro
para que eu não estragasse as unhas recém-pintadas.
Minhas mãos estão tremendo quando tiro o cartão de crédito de dentro
da carteira. Será que vai funcionar? Será que meu pai mexeu no meu
dinheiro? Dilapidou a minha herança nesses quase treze anos que gerenciou
meus bens?
Por que nunca pensei nisso?!
Sempre confiei nele cegamente, e agora me pergunto se fui ingênua
demais.
— Qual o valor final? — indago à vendedora, que diz uma soma
astronômica, mas nada que preocupasse Melisfestófeles anteriormente, que
usava meu cartão para pagar as minhas roupas e as dela também.
Ou será que Melissa era dependente do meu cartão? Será que tinha
acesso à minha conta?
Jesus! Cada vez mais me dou conta de que não sei nada. Que não tinha
nenhuma autonomia.
— Quer que eu pague com o de Lars? — pergunta Tatyana, percebendo
minha hesitação.
— Não — afirmo e entrego meu cartão à atendente.
Porque também não quero usar o dinheiro de um homem que acha que é
meu dono agora e quer controlar minha vida.
E apesar de já ter racionalizado que talvez ele não tenha feito de
propósito, por desejo de se proteger e que talvez estivesse sob pressão,
ainda dói e magoa, e me dá raiva.
Quero ser independente e mandar todos para o inferno.
Reteso minha espinha, preparando-me para uma eventual recusa do
banco, mas quando escuto o barulho da maquininha, meus olhos marejam.
Assino a boleta e viro de costas, porque vou chorar de alívio.
— Ei, não fica assim — diz Catarina, me abraçando. — Você é mais
forte do que pensa.
— Abraço coletivo! — grita Tatyana.
E as outras duas idiotas vêm me abraçar também, como acontecia no
internato quando eu ia me esconder de Madre Jutta no quarto delas.
O calor do abraço coletivo me traz um conforto inesperado e acabo
rindo no meio do choro, o que faz a dor ficar um pouco mais suportável.
— Obrigada — murmuro, fungando e tentando controlar as emoções.
— Vocês são incríveis.
— Claro que somos e você também é — diz Tatyana, me apertando bem
forte. — Ou já se esqueceu?
Não, não esqueci. Aquele tipo de lição se aprende para sempre.
Yasmin providencia um lenço de papel — Toma, ando com isso na
bolsa depois que fiquei grávida. Sou a manteiga mais derretida de
Vinterland.
— Obrigada.
Limpo o rosto e assoo o nariz.
— Vamos superar isso juntas. Você não está sozinha. — Ela me olha
nos olhos. — E qualquer coisa, mando cortar cabeças.
— Tyr é bom nisso — diz Tatyana.
Respiro fundo, assentindo. — Tudo bem, suas loucas, aceito a ajuda.
Talvez seja hora de tomar as rédeas da minha vida e enfrentar os
desafios de cabeça erguida, começando por saber quanto tenho no banco,
que tipo de investimentos tenho, o que tenho em meu nome.
Com amigas malucas e fortes como elas ao meu lado, sinto que posso
conseguir.
— Acho que preciso de uma bebida — digo, pegando várias sacolas.
As seguranças de Yasmin e Tatyana que ficam, discreta e
disfarçadamente, circulando pela loja se aproximam e nos ajudam.
— Vamos atacar a adega da sua casa nova — diz Yasmin. E depois
suspira. — E a cozinha, porque para Taty e eu só sucos.
Se fosse antes, pararíamos em um bar, mas agora Yasmin é rainha e
Tatyana esposa do príncipe-herdeiro e ambas carregam princesas.
Após tirarmos algumas fotos com quem pede, entramos na SUV
blindada de Yasmin, com a do guarda-costas atrás, que já está esperando
por nós na saída do shopping.
Durante o percurso, Ingrid, que está na frente, anota o que precisamos
fazer – milhões de coisas – e me dou conta de que estou sem celular.
O que traz à baila outro assunto chato que estava no fundo da minha
mente, mas que eu não queria enfrentar: meu pai controlava minhas
comunicações.
Quando percebe que o assunto é pessoal, a secretária de Yasmin, que é
diplomata, fecha o vidro da divisão discretamente, o que dá espaço para
conversarmos melhor.
— É por isso que vocês não me respondiam às vezes — falo, chocada.
— Ou que não me atendiam…
Essa realização é mais uma nuvem sombria no meu céu já cinzento.
Achava que a comunicação era falha, mas nunca desconfiei de algo
dessa magnitude. Ou se desconfiei, nunca quis admitir para mim mesma.
Agora, tudo faz sentido.
As mensagens não respondidas das minhas amigas, as ligações que
nunca chegavam ou se perdiam, as respostas estranhas, os convites
perdidos.
Ele manipulou não apenas minha saúde e vida financeira, mas também
me isolou das pessoas que me importavam e se importavam comigo.
É assustador perceber o quanto ele fez sem que eu percebesse.
— Você está bem, Vasya? — pergunta Yasmin, notando minha
expressão distante.
— Ainda não — confesso, sentindo uma mistura de raiva e tristeza —,
mas vou ficar. Não vou deixar mais ninguém pisar em mim de novo.
Ninguém vai mandar em mim de novo.
— Esse é o espírito — diz Tatyana e continua: — Tyr já mandou recado
que vai enviar por Lars um celular novo para você. Mais novo, melhor,
super, hiper tecnológico, com todos os aplicativos, que ninguém vai poder
hackear.
— Über-merda — resmungo.
— Vasilisa! — exclama Catarina, chocada.
É, eu não costumo falar palavrão, mas estou ficando de saco cheio,
sabe? Tudo tem um limite e eu não sou uma incapaz.
— Não custava nada me perguntarem, falarem comigo. Porque…
pensem bem. Agora, temos mais um ponto de atrito — digo. — Do meu
ponto de vista, Lars roubou, porque não tenho outro termo para isso, já que
foi sem minha permissão, meu celular e computador e os entregou para Tyr
analisar. Ele vai olhar…
— Você tinha condições de permitir alguma coisa? — pergunta Yasmin,
levantando uma sobrancelha. — Dopada do jeito que estava?
Isso efetivamente me cala.
— Por que não marcamos uma consulta com o médico real e
descobrimos o que você tem de verdade? — pergunta Tatyana.
— Papai sempre quis te levar no médico dele e seu pai nunca deixou —
fala Catarina. — Talvez, seja a hora de ver a quantas anda a sua saúde
depois de tantos remédios manipulados.
Encaro Yasmin. — Pode marcar. Check-up total — peço. Não quero
mais ser passiva em relação a nada. — Ginecologista, também, porque
sempre me disseram que eu não podia tomar anticoncepcional e não vou
deixar meu corpo na mão de Lars.
— É bom, porque além de tarados, esses irmãos são férteis — diz
Tatyana, fazendo uma careta.
Como a Residência Fiorde Raio do Luar é um pouco distante da cidade,
demoramos um pouco para chegar, mas gosto do impacto inicial já nos
portões de ferro, feito de lanças pretas e prateadas enormes, que se abre
para uma alameda ladeada por árvores centenárias, plantadas a espaços
regulares em um jardim gramado.
Por uns cinco minutos, as árvores nos sombreiam até que se abrem para
um jardim de buchinhos e um palacete de dois andares, não muito grande,
mas com traços do Palácio, com colunas de mármore imponentes para a
entrada.
E mais além, faceia um paredão de um fiorde. Estamos quase na beirada
de uma plataforma, no meio de uma montanha.
É de tirar o fôlego.
— Bonito, hein? — diz Yasmin, impressionada.
— Sen-sa-ci-o-nal. — Tatyana assobia. — Ou como diriam os
americanos, fodidamente sensacional!
Eu nem comento, porque se tivesse olhado o álbum com calma teria
escolhido essa. Fico contente que Lars tenha feito.
Ao saltarmos na escadaria, somos recebidas pelo mordomo – inglês,
segundo Ingrid nos explicou no carro, já que todos são escolhidos no
Instituto de Mordomos Britânico , que os treina à perfeição, não só em
protocolo, mas também em hotelaria.
— Sou Barnaby, senhorita Vasilisa, seja bem-vinda. — Um senhor
magro e empertigado, me cumprimenta com uma leve inclinação da cabeça
e um sorriso gentil. — Será uma honra servi-la em sua nova residência. Se
me permite, apresentarei a casa a senhorita e às suas convidadas. Amanhã, a
Sra. Frings, que é a governanta, e eu apresentaremos os empregados.
— Claro, obrigada, Barnaby — respondo, maravilhada com os afrescos
delicados que enfeitam o vestíbulo de pé direito alto.
Ele faz uma reverência para Yasmin e Tatyana, que logo dispensam o
protocolo e cumprimenta Catarina.
— Imagino que tenham notado a semelhança com Blenheim Palace ,
pois foi a inspiração para a construção.
Ele vai nos contando a história do palacete, apontando um e outro
móvel, peça ou quadro mais notável, e respondendo a nossas perguntas, até
chegarmos a um ponto em que a arquitetura antiga evolui para linhas
contemporâneas, onde para.
— Infelizmente, fomos bombardeados durante a Segunda Guerra
Mundial — explica e gesticula para paredes de vidro, estruturas metálicas e
madeiras aparentes, chão de cimento bruto misturado à – o que acho que
seja – mármore preto, veiado com o que parece prata líquida, que contrasta,
mas, ao mesmo tempo, complementam o estilo clássico. — O projeto
ganhador foi de um arquiteto novo, daqui de Vinterland, concorrendo com
grandes escritórios do mundo inteiro. Ficou pronto recentemente e soube
que Sua Majestade, o rei Thorvald estava até pensando em colocá-lo à
venda, o que seria uma pena, já que é mais que merecido que um príncipe e
uma princesa — ele sorri para mim — habitem esse lugar de sonho.
— É de sonho mesmo — digo.
— A integração entre o antigo e o novo é impressionante — comenta
Yasmin, observando os detalhes. — É como se estivéssemos em dois
mundos ao mesmo tempo.
— Um verdadeiro estudo de contrastes — comento, embasbacada. Viro-
me para ver a parte do palacete e a transmudação dele para a casa onde
agora estamos. — É fascinante como ele conseguiu integrar tudo de forma
tão harmoniosa, não apagar a cicatriz e ainda assim, não a deixa tão
aparente de forma a chocar. É sutil, quase…
Como as cicatrizes nas costas de Lars.
Paro e olho para cima e em volta.
No espaço do salão do palacete de séculos e séculos passados, com seus
afrescos e lustres de cristal e móveis antigos, e suas paredes que um dia
foram explodidas e rachadas e hoje estão fechadas e integradas com um
salão novo com obras de artes, móveis, iluminações contemporâneas tão
diferentes.
Será que ele percebeu que escolheu a casa por causa disso também?
— É como se cada parte valorizasse a outra — acrescenta Tatyana. —
Um diálogo entre o passado e o presente.
Barnaby nos guia até uma ampla sala com vista para o fiorde. A
sensação é de estar flutuando sobre as águas, tamanha é a proximidade com
o abismo.
— Aqui é a área íntima da residência. Os quartos e suítes estão
localizados nesta ala, proporcionando privacidade e vistas deslumbrantes —
explica ele. — Já fizemos a mudança de Sua Alteza e colocamos suas
coisas também no seu closet, senhorita.
— Perfeito, Barnaby, obrigada — digo, ainda impactada pela revelação
que tive há pouco.
— Se precisarem de algo, por favor, não hesitem em pedir — diz, com
um sorriso caloroso. — O príncipe me avisou que chegará em breve e que o
jantar poderia ser servido às nove e meia, se a senhorita estivesse de acordo.
Olho no relógio e vejo que são sete ainda.
Dá tempo de fofocar um pouco, tomar banho e me preparar.
— Está ótimo — respondo.
Ele me mostra como funciona o interfone e onde deixou bebidas e um
pequeno lanche e se retira, deixando-nos na antessala da suíte principal.
Aproximo-me das amplas janelas e a visão é estonteante.
Numa quina que avança em uma curva, acima, a cachoeira Raio de Luar
despenca pelo que parece um abismo sem fim, suas águas brilhando sob a
luz do sol.
— Agora entendo por que Lars escolheu este lugar — diz Catarina,
posicionando-se ao meu lado. — É simplesmente mágico.
— E a forma como a cachoeira reflete a luz… — observa Yasmin. —
Parece um véu de prata.
— Ele disse que a cachoeira o fazia lembrar de você — relembra
Tatyana, sorrindo. — Bem romântico para alguém que dizem ser tão
reservado.
— Vamos explorar a suíte! — sugere Yasmin, puxando-me pela mão.
Para chegar no quarto precisamos passar por dois closets amplos, sendo
que o meu é o dobro do de Lars.
— Este lugar é um sonho — comenta Catarina, abrindo as portas do
closet.
— Espera até ver o banheiro — grita Tatyana, de outro ambiente.
Não é um banheiro. É quase um spa.
O espaço revestido em mármore com veios em tons de cinza e dourado
sobre fundo branco, tem uma bancada com duas pias, lugar separado para
maquiagem, uma cama de massagem, pequena sauna, uma banheira de
hidromassagem e um chuveiro gigante, mas isso tudo empalidece porque a
parede de vidro que da banheira e do chuveiro fica juntinho da cachoeira.
As águas estão tão próximas que quase podemos tocá-las e o vidro está
todo molhado, como se estivesse chovendo.
— Isso é surreal! — exclama Yasmin. — Imagine tomar banho todo dia
aqui ou à noite, de luz apagada, com a lua iluminando a cachoeira.
— Um cenário de conto de fadas — concorda Catarina. — E o quarto,
onde é?
— Aqui! — grita a doida da Tatyana, que já está lá. — Vasya! Você não
vai acreditar! E tirem os sapatos!
Ainda bem que ela avisou. O tapete branco de uns cinco dedos é a coisa
mais gostosa que já senti debaixo dos meus pés.
A decoração minimalista cria uma atmosfera de tranquilidade que é
arrematada pela vista magnífica.
Uma cabeceira branca estofada em couro recobre a parede de trás da
cama gigante.
— Isso é… — Pego no cobertor felpudo em cima da cama e descubro
horrorizada que é de pele de vison. — Jesus Santíssimo.
— Nem adianta reclamar — resmunga Tatyana, aborrecida. — Eles têm
fazenda de arminhos aqui e matam os bichinhos.
— Meninas, é a cultura deles — diz Yasmin. — Não podemos sair
mudando tudo de uma vez, tem que ser aos poucos. Não temos passarinhos
em gaiolas? Aqui eles cultivam e matam arminhos.
Bom, é verdade.
Num canto, onde tem uma lareira a gás, tem um local para leitura com
duas poltronas e uma mesinha.
E um arranjo de Calla Lilies deslumbrante em um vaso transparente
amarrado com uma corda bem grossa de juta.
De um suave tom creme pálido no centro, a pétala fica rósea, rosa
chicletes até um rosa mais fechado na borda, como se a flor tivesse corado.
— É para você — diz Tatyana, abanando o cartão.
— Vamos levar para a antessala? — pergunto, pegando o arranjo. —
Preciso de uma bebida antes de ler qualquer coisa. Boa, ruim ou neutra.
Elas me seguem no trajeto de volta.
Coloco o arranjo na mesa de centro e preparo um shot de vodka Grey
Goose, que está geladíssima e licorosa, como uma descendente de russa que
se preze gosta de tomar. As meninas se servem cada uma da bebida de sua
preferência e desabamos todas no sofá.
— Za nashe zdorov’ye — brindo, elas me acompanham e viro o shot de
uma vez.
Sacudo a cabeça porque a vodka desce queimando. — Nossa, eu
precisava disso.
— Você é doida, isso, sim — diz minha prima.
— Eu é que sou doida… Tá bom… — resmungo baixinho. — Que
horas eles costumam sair do trabalho?
— Depende da quantidade de trabalho — responde Yasmin, que já está
aqui há mais tempo.
— E do nível de tesão — complementa Tatyana, rindo.
— Ai, começou — reclama Catarina, soprando o ar para cima.
— Como Lars esteve esses dias fora, deve estar chegando a qualquer
momento — acrescenta Yasmin. — Lê logo esse cartão para a gente ir
embora.
Abro o envelope verde-musgo, impresso com o brasão da Casa de
Gulbrandr, e tiro o cartão branco com uma moldura verde musgo onde no
meio tem o monograma LH entrelaçados.
Minha princesa,
Bem-vinda a este lugar mágico e especial que reflete o que vi em você
quando nossos olhares se cruzaram a primeira vez.
Espero que sejamos muito felizes nesta casa que, como você, exala
beleza, força e um toque de impossível.
~ LH
Viro o cartão, porque tem uma setinha e atrás continua:
Quando passei na estufa para encomendar este arranjo, descobri que
essa flor ainda não fora batizada e que o nosso Jardineiro-Chefe pretendia
chamá-la de Magnífica, mas ainda estava na dúvida porque faltava algum
qualificativo.
Acredito que juntos encontramos a solução. Ela foi nomeada de:
Pecadora Magnífica, em sua homenagem.
Pedi que plantassem em nosso jardim.
Seu,
Lars
— Uau — sussurra Tatyana —, ele consegue ser pior que Tyr.
— Lars pode ser enigmático… ou… sei lá, estranho… — suspiro —,
mas demonstra cuidado e carinho nos detalhes.
Sim, enigmático e estranho, porque não sei nem como qualificar o que
houve naquela reunião, o que dizer deste um toque de impossível, como
interpretar essa declaração de carinho e tesão, essa homenagem, e esse
amarrado de juta tão simbólico – porque para bom entendedor meio
amarrado basta.
— Vasya, talvez seja o momento de conversar abertamente com ele —
diz Catarina.
— Não sei se concordo — fala devagar Yasmin, alisando o barrigão. —
Mantenha um pouco de mistério. Não revele tudo de uma vez.
Olho para ela, curiosa. — Como assim?
Yasmin sorri. — O mistério é uma poderosa ferramenta feminina. Faz
parte da sedução.
— Exato — diz Tatyana. — Não se trata de jogar jogos, mas de manter
a chama acesa, a curiosidade.
— Tenho sido muito transparente?
— Sim, mas não porque você queria, mas porque não sabia o que estava
fazendo, na verdade — fala minha prima. — Aqueles remédios não
deixavam a verdadeira Vasilisa aparecer.
— Talvez seja hora de dosar um pouco?
— Não acho que você vá ter problemas em dobrá-lo — diz Tatyana me
olhando de cima a baixo.
— Não? Por quê?
— Porque reis viram mendigos quando fazemos boquetes — diz e pisca
para Yasmin. — Não é, Vossa Majestade?
Ao que a outra indaga: — E quando damos o cu?
As duas caem na gargalhada.
— Jesus, Maria e José! — diz Catarina para mim. — Por que elas não
contam tudo logo?
— Sexo é poderoso. É uma forma de equilibrar a relação — explica
Yasmin. — Fale de seus próprios desejos.
— Sem falar que, às vezes, não fazer sexo para solucionar os problemas
é a melhor maneira de mostrar a eles que nem tudo se resolve na cama,
empurrando a sujeira para debaixo do tapete — diz Tatyana e acrescenta: —
Além disso, homens como Lars apreciam desafios. Não que você deva fazer
doce, mas mostrar que é uma mulher independente e segura.
— Não sei se estou entendendo o que vocês querem dizer.
— Deixa eu dar umas dicas melhores — diz Yasmin, chegando mais
para a beira do sofá.
— Lars que se prepare — ri Catarina, quando as duas terminam.
— E lembre-se, a comunicação é essencial. Se você tem muita
dificuldade, espere estar pronta, mas converse — insiste Yasmin.
Olho novamente para a cachoeira, suas águas fluindo incessantemente.
— A cachoeira segue seu curso com determinação, mas não revela seu
destino — murmuro. — O que será que tem lá embaixo, escondido naquele
lago?
— Bela analogia. Filosófica. — Catarina sorri. — Gosto disso.
— Majestade, Alteza, senhorita, boa noite.
Damos um pulo com a voz profunda de Lars que está encostado no
umbral da porta, sorrindo.
— Lars! — grita Yasmin. — Assim, você me mata de susto!
— Fico contente em ver que estão aproveitando tanto da hospitalidade
de Vasilisa que esqueceram dos maridos.
— Deus Amado, está tarde! — Yasmin olha o relógio horrorizada e se
levanta. Ela passa a mão na barriga. — Vamos, mocinha, ou seu pai vem
nos resgatar.
— Na verdade, ele já veio — revela Lars, abrindo um sorriso maior
ainda, como se soubesse de um segredo que nós não sabemos. — Ele, Tyr e
Leif estão bem aqui na sala de televisão, esperando para levar vocês de
volta.
As outras duas pulam do sofá, sendo que Catarina fica vermelhinha.
Despedimo-nos com abraços.
— Boa sorte, Vasya — sussurra Tatyana no meu ouvido. — Qualquer
caminho que você escolher vai funcionar.
— Vai dar tudo certo — afirma Yasmin. — Siga seu instinto.
Catarina me dá um beijo. — Qualquer coisa, me ligue.
— Pode deixar.
Os olhos azuis de Lars encontram os meus e ele os deixa deslizar sobre
mim, me eletrificando, de cima a baixo, de uma maneira que me excita, me
abala, me faz esquecer qualquer conversa que eu tive com as meninas.
— Vou acompanhá-las até a porta — diz, sem se aproximar para me
cumprimentar. — Já volto.
— Tudo bem.
Quando ele vira as costas, consigo tragar o ar para dentro dos meus
pulmões e respirar de novo.
Quem foi que disse que vai dar tudo certo?
Quando chego de volta na suíte, Vasilisa já tomou banho, trocou de roupa e
está me esperando sentada na antessala, com um livro na mão.
Por um instante, fico parado na porta, apenas a observando.
A luz crepuscular do verão nórdico, que vai durar mais umas duas horas
pelo menos, apesar de já serem quase dez horas da noite, ilumina seus
cabelos dourados, criando um halo que a faz parecer etérea.
Às vezes, parece realmente uma sílfide e tenho medo que suma.
— Você demorou — diz quando entro no ambiente.
— Perdão, eles ficaram conversando — digo, tirando o celular e a
carteira e deixando-os na mesa da escrivaninha. — Vou tomar uma
chuveirada e não demoro.
— Posso usar seu computador? — pede ela, apontando para o meu
notebook, e justifica: — Preciso checar meu e-mail da faculdade, puxar
minhas notas para fazer a transferência. Ingrid conseguiu com a reitoria da
universidade que eu comece esta semana.
— Esta semana? — replico, tentando esconder a contrariedade.
Queria tirar uns cinco, seis dias e viajar com ela. Planejava ter esses dias
a sós com ela, longe de distrações, antes da vida tomar seu rumo. A
antecipação desse tempo juntos foi o que me manteve centrado nas últimas
horas. Mas agora, meus planos parecem escorrer pelos dedos.
— Sim, não quero perder o semestre e, como as universidades têm
convênio, foi bem simples realmente — explica, com um sorriso que
deveria me acalmar, mas só aumenta minha tensão.
— Entendo. — Forço um sorriso para disfarçar a decepção que sinto.
Retorno nos meus passos e puxo a cadeira para ela se sentar. — Venha, vou
liberar para você.
Puxo a outra cadeira, que está do outro lado da mesa, onde em breve
ficará o computador dela, e sento-me ao seu lado.
Seu perfume adocicado e envolvente me deixa momentaneamente
distraído, perturbando minha concentração, e esqueço o que devo fazer.
Digito minha senha, mas Tyr é implacável em suas lições, e a tempo,
uma voz interna me alerta sobre os protocolos de segurança. Não deveria
permitir acesso irrestrito ao meu sistema.
— Na verdade — digo, fechando a tela abruptamente e fazendo logoff
—, seria melhor criar uma conta de convidado para você.
Ela franze a testa quando abro uma sessão de convidado para ela.
— Por quê? Não confia em mim? — indaga, num tom um tanto quanto
magoado.
Sinto um músculo se contrair em minha mandíbula.
— Não é questão de confiança — respondo, mantendo o tom firme, mas
tento suavizar a situação: — Mas é que precisamos seguir os protocolos de
segurança, e por isso cada um tem que ter sua própria conta, com seu
próprio login e senha.
— Protocolos de segurança? — repete, cruzando os braços. — Parece
exagero.
— Não é exagero quando se lida com informações sensíveis — retruco,
tentando não deixar transparecer a irritação. A culpa não é dela, e ela
deveria saber que um ministro de estado não pode ceder o computador a
qualquer um, nem mesmo a esposa. — Para não termos nenhum problema
com hackers ou vazamentos, Tyr requer que cada um entre com seu login e
senha. Entendeu?
Ela me olha, os olhos verdes desafiadores.
— Além disso, meu computador contém dados confidenciais.
Ela me olha de esguelha, como se não acreditasse totalmente.
— Aqui não tem acesso à internet — diz ela, franzindo a testa.
É verdade, porque só dispositivos, contas e conexões previamente
autorizadas têm permissão.
Droga. — Vou liberar o acesso para você desta vez, mas, por ordens de
Tyr, essa será a última vez que terá acesso irrestrito ao meu computador. Da
próxima vez, você terá que usar seu próprio login e senha, seguindo
protocolos de segurança rígidos.
Ela suspira, claramente aborrecida. — Não entendo por que você tem
acesso a todos os meus dispositivos, sem nem me perguntar se podia
entregar meu celular e computar ao seu irmão, mas eu não posso acessar os
seus livremente.
A insinuação me atinge como um golpe.
— Isso é diferente — retruco. — Preciso garantir que tudo esteja sob
controle.
— Sob seu controle, você quer dizer — rebate, erguendo o queixo.
O ar entre nós se torna pesado. Sinto o conflito interno se intensificar.
Quero agradá-la, mas a ideia de ceder terreno me incomoda profundamente.
— Vasilisa, não vamos tornar isso mais complicado do que já é — digo,
tentando encerrar o assunto. — Depois do jantar, podemos discutir isso.
— Claro, adiar conversas importantes parece ser a sua especialidade —
ironiza, mas abaixa e começa a digitar.
Respiro fundo, contando até três.
— Vou tomar banho — digo, tentando aliviar a tensão. — Depois do
jantar, ligamos para Tyr, e ele pode explicar melhor.
— Como quiser — responde ela, voltando a atenção para o computador.
Dirijo-me ao banheiro e fecho a porta.
Gostaria de ter aproveitado para conversar com ela no banho. É
interessante como a roupa cria barreiras que a nudez não impõe.
Na intimidade, na pele contra pele, mesmo sem sexo, as palavras fluem
com mais naturalidade, as defesas caem, e as almas se aproximam sem
obstáculos.
A água quente escorre sobre mim, mas não consegue lavar a frustração
que sinto. Por que é tão difícil equilibrar esse desejo avassalador por ela e
minha necessidade de manter o controle?
As palavras dela ecoam na minha mente: Sob seu controle.
Talvez ela tenha razão em parte, mas a ideia dela sob meu controle não
me parece nada ruim, nem um pouco.
Minha mente analítica tenta encontrar uma solução lógica, mas as
emoções turbulentas complicam qualquer raciocínio claro. A verdade é que
tenho dificuldade em abrir mão do controle. É uma armadura que construí
ao longo dos anos para proteger as cicatrizes que carrego.
Talvez se eu exercitar mais o controle sobre ela na cama, possa liberar
mais na vida diária.
Saio do banho e visto um moletom e uma camiseta e volto à antessala
onde a encontro absorvida pelo site da universidade de Vinter.
O perfume dela ainda permeia o ar, despertando em mim um desejo de
proximidade que contrasta com a barreira invisível que se formou entre nós.
— Vasilisa? — chamo suavemente. — Conseguiu o que precisava?
— Sim, consegui, obrigada — diz, fechando a tampa do computador.
— Procedimento de fechamento errado — digo, abrindo a tampa
novamente e fazendo os procedimentos de segurança que Tyr enfia todos os
dias em nossa mente. Fecho todas as abas da internet, todos os programas e
aplicativos, faço logoff e efetivamente desligo o computador. Só então
fecho a tampa. — Agora, sim.
— Credo. — Ela levanta o olhar, os olhos verdes encontrando os meus.
— Podemos ir jantar? Estou morrendo de fome.
— Claro — respondo, e estendo a mão para ela, esforçando-me para
suavizar o ar.
Ela olha para a minha palma virada para cima, hesita e depois de um
momento, coloca a sua mão menor dentro da minha.
— Amanhã, vou pedir a Tyr para providenciar um computador novo
para você com todas as configurações necessárias — aviso. — Assim, você
terá acesso ao que precisar sem restrições.
— Seria mais fácil talvez se eu fosse com você escolher e pedir para
instalar os aplicativos que faço uso — fala enquanto andamos pelo corredor.
— Podemos ir juntos para o trabalho — ofereço. — Ingá, minha
secretaria, pode te auxiliar com o que for necessário também.
— Marquei com as meninas de fazer umas mudanças na decoração pela
manhã — informa, sem graça. — Não sabia que você ia me chamar para
irmos juntos. Posso desmarcar.
— De maneira nenhuma — contesto. — Pode ir na hora do almoço ou
no final do expediente. Ou você pode me dizer o estilo que gosta, via
chamada de vídeo, e peço a alguém da área de informática que venha fazer
a instalação para você.
— Ah, então prefiro — diz. — Não quero mudar muita coisa, mas fazer
apenas alguns ajustes, trocar um quadro de lugar e vão chegar mais algumas
roupas. Yasmin disse que vamos precisar em breve de um longo e não se
acha um tão fácil.
— Combinado. Eu… — Paro antes de falar no celular que trouxe.
Quero deixar esse assunto para mais tarde e emendo: — Pedi a Barnaby
para colocar a mesa para nós na varanda. Tudo bem?
Todo o espaço contemporâneo tem uma espécie de varanda que o rodeia
e conecta o interior com o ambiente externo, e nos permite usar durante os
dias mais quentes o jardim.
— Sim, também gosto de aproveitar esses dias mais longos — diz.
A sala de jantar é acolhedora e intimista, e assim como o resto da
decoração é minimalista, exala elegância e sofisticação por meio de sua
simplicidade, mas grande demais para apenas duas pessoas.
Ela para diante da pintura, que ocupa uma das paredes e atrai o olhar.
— Impactante. É de Kiefer ? — pergunta.
— Sim, é — confirmo. — O Trauma de Balder é o título.
— Não conheço a lenda desse deus nórdico — diz, e anda para trás para
poder ver melhor a obra.
— Balder, o deus da inocência, beleza, paz e pureza, sonhou com a
própria morte, o que causaria Ragnarök . Sua mãe, desesperada, tentando
impedir o destino, forçou cada objeto da Terra a jurar solenemente nunca
machucar seu filho — narro, enquanto ando para o seu lado. — No entanto,
por alguma razão, ela se esqueceu do visco, pensando que era
insignificante. Loki, sabendo disso, usou a erva para fazer uma lança
mágica que, finalmente, matou Balder. A mãe implorou por sua libertação
do submundo e recebeu a promessa de ter seu filho de volta, mas só após o
fim do Ragnarök. É uma metáfora do passado problemático da Alemanha e
da tentativa de ter um novo futuro.
— Ele comunica bem essa questão da culpa e da responsabilidade da
sociedade austro-germânica e todos os apoiadores de Hitler — diz,
pensativa —, e consegue encontrar o equilíbrio perfeito entre a ordem e o
caos nos trabalhos, apesar de à primeira vista não parecer tão organizado
assim.
— Segundo ele, se houver muita ordem, a obra está morta; e se houver
muito caos, ela não é coerente. Um grande artista — concordo e acrescento:
— E esse quadro e essa lenda nos lembram que nada, absolutamente nada
na vida é insignificante. Nem mesmo uma ervinha minúscula.
O que me faz pensar sobre muitos temas difíceis. Prefiro algo mais leve
para hoje. Já tivemos assuntos áridos demais para um dia só.
— Os lustres são móveis e podem ser mudados de lugar de acordo com
a disposição das mesas — falo para ela, mudando de assunto, apontando
para os globos pendentes. — As duas mesas quadradas podem acomodar
dezesseis pessoas quando usadas separadas e podem ser unidas numa só e aí
apenas Barnaby sabe quantas pessoas sentam aqui.
A sala nem parece tão grande e espaçosa, talvez porque a arquitetura, ao
trazer o jardim para dentro com as portas de vidro, não só ajuda a aproveitar
a beleza da luz natural e economizar eletricidade em uma cidade que
durante o inverno pode ter luz apenas por quatro a seis horas por dia, como
com a iluminação torna o espaço aconchegante e convidativo.
— Vamos? — Abro a porta de vidro e a espero passar, antes de fechar.
Do lado de fora, tem duas mesas menores, para quatro pessoas e as
mesmas cadeiras confortáveis, com estofados em verde-claro, se repetem.
A mesa está posta com os jogos americanos e guardanapos de linho
brancos e como centro de mesa um bonsai de camélia.
— Ai, que lindo! — exclama, ao se sentar, e passa a ponta dos dedos
sobre as pétalas delicadas das flores na arvorezinha. — É tão delicado.
— Sua Alteza é quem os cultiva — denuncia Barnaby, que chega com o
vinho e o amuse-bouche .
— Sua Alteza, quem? — Espantada, ela olha para meu rosto e depois
para minhas mãos. — Ele?
Sorrio. — Sim, por que o espanto?
Ela pisca várias vezes, sem jeito, e dá de ombros. — Não sei, mas não
imaginaria você como minimalista, cultivador de bonsais ou… Sei lá, só
não imaginei.
— Ainda temos muito a descobrir um sobre o outro.
— Pão rústico e creme de champignons doces, com os cumprimentos da
Chef — diz o mordomo, nos servindo. — Aceitam vinho?
— Por favor — peço.
Depois que Barnaby sai, explico para ela: — Não sou exatamente um
minimalista, apesar de apreciar a ideia de eliminar o desnecessário e focar
no que realmente importa. A simplicidade traz uma sensação de…
tranquilidade.
— Você é da filosofia que menos é mais? — pergunta ela.
— Por quê? Você não é? — indago, ao escutar um tom estranho, quase
defensivo, em sua voz.
— Não, não sou — afirma, sem medo. — Porque isso é mais uma
daquelas verdades que tentam nos empurrar garganta abaixo, como se fosse
absoluta e a única maneira correta de viver.
Opa. Terreno perigoso. — É mesmo?
— O menos é pouco. O mais é excessivo — ela explica sua teoria. —
Sou do partido que o bom, porque perfeito não há, é o meio do caminho.
— E quem foi que tentou te convencer de que o ditado “menos é mais”
era bom e você descobriu que era uma falácia?
Claramente ganhando tempo e pensando na resposta que vai me dar, ela
toma o caldinho de cogumelos servido em uma xícara-copo de cerâmica
branca rústica, coloca-a de volta na mesa delicadamente e limpa os lábios
com guardanapo.
— Alguém lá do internato — diz, como se não importasse, mas posso
ver em seus olhos que isso não é algo trivial.
Hmmm… O terreno é mais que perigoso, é pantanoso. Talvez tenha até
areia movediça aí e seja mortal.
— Alguma amiga que eu conheça? — insisto, porque percebo que o
assunto é importante e talvez tenha a ver com as cicatrizes nas costas dela.
— Não, não é alguém que você conheceria — diz, seca, e desvia o
olhar. — Me conta mais da sua paixão por bonsai. Já visitou o Japão?
Ela muda de assunto tão bruscamente que me surpreende e,
desconfiado, faço uma anotação mental para conversar com Tyr sobre isso.
Vou fazer uma devassa naquela escola desgraçada e descobrir o que
aconteceu lá.
— O bonsai, que significa plantado em bandeja, vem originalmente da
Índia — conto para ela, pois realmente sou um apaixonado pela arte. —
Espalhou-se para a China, depois para o Japão e só depois de muitos anos
foi integrado à cultura japonesa. Posso dizer que aprendi muito mais do que
miniaturizar árvores, já que esta arte convida o artista a meditar sobre a
beleza natural, a passagem do tempo, a buscar harmonia e equilíbrio e, com
isso, encontrar a paz interior.
Ela me fita com uma expressão faminta, que ainda não tinha visto em
seus olhos.
— É mesmo? E você encontrou?
— Encontro às vezes, sim, às vezes não — confesso, honestamente,
porque o anseio em seu olhar é tão profundo que posso ver que ela também
busca isso. — Mas faço bonsai há anos, e Vidar provavelmente enviou
meus exemplares para a estufa daqui. Ele sabe que gosto de supervisionar e
cuidar pessoalmente de cada uma das minhas criações.
Barnaby traz a entrada e o prato principal – tudo vegetariano – porque
ainda não combinei nem com ela, nem com a chef, como vai ser a
organização doméstica, e continuamos a conversar sobre temas leves.
Sei que preciso abordar alguns assuntos chatos, mas não quero estragar
o momento e a tensão entre nós já é palpável. Sinto que estamos à beira de
um precipício, algo que pode mudar tudo. E preciso estar preparado.
Depois da sobremesa, levo-a para uma volta no jardim. O sol se eterniza
no horizonte às dez horas da noite e ainda vai ficar por ali por umas duas
horas ou mais até sumir por pouquíssimo tempo.
— Mais alguns dias e as noites brancas começarão — falo, ao chegar na
beirada do abismo.
A vista daqui é fascinante e para completar o encantamento o som
distante do mar batendo nas rochas abaixo ecoa nos paredões e sobe.
Olhar para baixo é inevitável e a sensação é deliciosamente vertiginosa.
Isto é, para quem não tem medo de altura. De onde estamos, são mais de
mil metros até o mar lá embaixo. Não há como sobreviver a uma queda. Por
isso o guarda-corpo de um metro e vinte, de vidro super-resistente, é preso
com ferro encravados firmemente na rocha.
Se alguém caísse daqui, quando o corpo chegasse lá embaixo, no sopé
da montanha, ou nas águas, dificilmente iria estar inteiro, porque o paredão
é bem escarpado e…
Pelos deuses! Estou mórbido hoje.
— Podemos pedir para o arquiteto pensar em instalar um banco aqui —
sugiro. — O que acha?
Ela apoia os braços na bancada e deita a cabeça. — No momento, só
acho que quero que o quarto tenha cortinas bem escuras. Estou precisando
dormir.
— O dia foi difícil, não foi? Quer ir para o quarto?
Ponho as mãos de leve nos ombros dela e faço uma massagem.
Ela inspira fundo e solta o ar devagarinho. — Daqui a pouco.
— Você vai dormir no escuro total. O projeto previa persianas
automáticas por fora das janelas — conto para ela. — Descem do teto por
controle remoto.
Ela vira a cabeça para mim. — Você é apaixonado por isso aqui.
Conhece tudo.
— Sou. Já era quando estava destruído, quando ficou pronto, caí de
amores — confesso, sorrindo. — Foi ideia de Magnus e minha recuperar as
propriedades e vender ou transformá-las em hotéis, para diminuir o gasto
público e aumentar a receita.
— E, mesmo apaixonado por essa, ia me deixar escolher outra casa se
eu gostasse mais?
Levanto os ombros. — A casa é sempre mais das mulheres que dos
homens e já te tirei da sua.
O vento frio sopra o cabelo dela e estendo a mão retirando-o do rosto,
querendo fazer mais do que isso, querendo puxá-la para mim e beijá-la.
Levá-la para o quarto e fazer amor com ela. Mas ela se empertiga e dá um
passo para o lado e para trás.
— Você não gostou do cabelo — afirma ela, mudando de assunto
bruscamente de novo. — Nem do novo look.
Arqueio uma sobrancelha. — Quem disse isso?
— Você não falou nada desde que chegou…
Não é que eu não tenha gostado. Gostei, sim, ela está deslumbrante,
ficou mais mulher, mais sexy. Está exalando confiança.
No entanto, havia antes nela um quê de ingenuidade, um ar de pureza
que me cativava de uma forma diferente.
— Gostei, sim. Tanto do corte, quanto das roupas — digo, tentando
escolher as palavras com cuidado. — Ficou… moderno, mas eu gostava
antes também.
Enquanto a observo, percebo que essa mudança reflete seu crescimento,
sua autonomia emergente. Ver Vasilisa lidando com suas próprias emoções,
ou talvez, com suas antigas amarras de maneira tão rápida e eficaz, me faz
sentir inadequado e frustrado, como se eu estivesse falhando em
acompanhar seu ritmo, preso em meus próprios ódios, receios e angústias.
— Mas você prefere como era antes, não é? — pressiona, querendo
minha opinião honesta.
— Não se trata de preferir um ou outro — começo, olhando nos olhos
dela. — Você é linda de qualquer jeito. Na verdade, você ficou ainda mais
linda, mais madura, mais confiante.
— Não exagera. — Ela inclina a cabeça, estudando-me. — Mas? O que
incomoda?
— Admito que essa mudança tão rápida me pegou de surpresa. Para ser
sincero, me assusta um pouco e diz mais sobre mim do que sobre você.
— Assusta?
Passo o dedo entre suas sobrancelhas, desfazendo a ruga que se formou
ali e sorrio.
— Porque simboliza que você está mudando, se descobrindo. Às vezes,
tenho receio de perder o controle sobre as coisas ao meu redor.
Isso mexe comigo profundamente. Confronta-me com meus próprios
medos, obrigando-me a encarar o menininho inseguro que ainda habita em
mim, temeroso de ser deixado para trás mais uma vez, que não é apenas um
obstáculo pessoal, mas pode ser uma barreira que afeta meu relacionamento
com essa mulher tão especial.
Sou um homem inteligente e analítico, mas quando se trata de emoções,
sinto-me perdido e vulnerável. Talvez, como disse Tyr, porque as mantenho
bem fechadas em gavetas, guardadas a sete chaves e evite entrar em contato
com elas.
Ela franze a testa, parecendo confusa por um momento, e depois,
claramente chateada, diz: — Porque está sem controle. E é por isso que não
quis me libertar… que me comprou daquele jeito… daquele jeito…
Ela anda três passos para longe e se vira. — Nem tenho adjetivos para
qualificar a sua atitude.
Ela é como um espelho e reflete minhas próprias inseguranças e a
necessidade de amadurecer. Ou talvez, como disse Tyr, de encarar que
preciso de um pouco menos de racionalidade e um pouco mais de instinto
animal.
E o animal dentro de mim exige sair da jaula quando ela coloca essa
distância entre nós.
Fecho meus braços à sua volta, engaiolando-a contra o guarda-corpo.
— Você quer continuar a me controlar.
Deslizo as costas da mão pela pele sedosa de seu rosto.
— Não, minha princesa, eu quero, e eu vou, te possuir — sussurro no
ouvido dela, observando como a pele dela se arrepia.
— Não vai — promete, afastando o rosto e deixando o pescoço à
mostra.
Sorrio.
Mesmo sendo bem menor que eu, ela não se intimida. A minha Pequena
é mais do que um rostinho lindo e corpo sensual, é determinada e corajosa.
Vivaz. E eu gosto disso. Com ela, jamais ficarei entediado.
— Já possuo. Olha como você reage a mim e ainda nem comecei a fazer
nada. — Deslizo o nariz pela coluna do pescoço dela e beijo a marca de
chupão que deixei ali. — E as partes que não possuo ainda, vou possuir.
Os mamilos se enrugando quando minha mão desce mais.
Ela segura meu antebraço. — Pare.
Paro, mas pergunto: — Você está com medo?
— Não, acho que é você que está — rebate, com um brilho desafiador
nos olhos.
Desta vez, eu rio.
O que ela não sabe é que se tive dificuldades de me conectar com outras
pessoas em um nível mais profundo antes e se tenho dificuldade de lidar
com a aflição e pesar de décadas atrás, não tenho o menor medo de me
apaixonar perdidamente por essa moça.
Se eu fechar os olhos, posso me ver construindo a vida com ela e daqui
há anos, nós dois mais velhos, com meus irmãos e cunhadas e vários
sobrinhos à nossa volta e uma casa cheia de amor e risadas. Uma família
unida e forte. Em Vinterland e em qualquer lugar do mundo.
Não vai demorar para eu entregar, de vez, meu coração a ela, e quando
isso acontecer, será para sempre.
Puxo-a para mim e após uma pequena resistência, ela vem. Nossos
corpos se amoldam perfeitamente, como se fossem feitos um para o outro.
— Vou fazer amor com você…
— Não quero — afirma, empurrando meu peito de leve. — Estou
chateada e aborrecida com você. Cansada. Com dor de cabeça.
— Tudo bem, eu não faço, então — murmuro no seu ouvido, ainda
acariciando bem de leve seu corpo, apesar da frustração. — Podemos
conversar amanhã.
Se ela esperava que eu insistisse, é porque ainda não me conhece. Posso
muito bem passar uma noite desejando-a intensamente, com o pau duro e as
bolas cheias de tesão, e ainda assim, amanhã… ah, amanhã… quando ela
não resistir mais, e implorar que eu a foda, vai ser muito melhor.
A minha não-persistência de alguma maneira a irrita.
— Me larga!
O engraçado é que ela não grita. Pelo contrário, a ordem é dada em um
sussurro sedutor. Um convite silencioso.
— Esse é um pedido que não posso atender — aviso desde logo.
Porque ela não quer que eu solte. Sua linguagem corporal – a falta de
afastamento e a respiração acelerada – me diz isso. Sua própria voz – suave,
trêmula e rouca – a denuncia.
Porque algo mais forte do que eu, impele-me a não a soltar. A
necessidade de tê-la em meus braços, de sentir seu corpo contra o meu. O
instinto de possessivo, de marcá-la como minha.
Um desejo profundo e uma conexão inegável.
Porque a quero aqui. Agora. Comigo.
Para sempre.
Pego-a no colo e olho dentro destes olhos verdes hipnóticos.
— Você vai dormir nos meus braços e amanhã a gente conversa.
— Nós não queremos as mesmas coisas — informa a mim, e me desafia
a provar que estou errado.
O sorriso no meu rosto se amplia quando ando na direção do nosso
quarto.
— Ah… minha querida — murmuro. — Queremos, sim, você só não
sabe ainda.
— Vocês não sabem o que Lars fez com ela ontem!
O tanto de gemido, grunhido e resmungo vindos de Tatyana e Catarina,
que só chegaram agora e perderam o que falei para Yasmin – porque não
estava conseguindo me controlar! –, não está no Guiness, mas é inevitável
devido à frase típica.
— Se a gente soubesse, você não teria dito essa frase desnecessária e eu
não estaria te respondendo assim! — reclama Tatyana.
Elas se sentam no sofá branco do meu closet – ou melhor, salão de
vestir, porque isso não é nem um quarto de tão grande – lindo e
absolutamente branco, que está ficando colorido com a quantidade de
roupas já penduradas.
Yasmin ri e fecha o zíper do longo pink e roxo que estou
experimentando para um eventual gala. — Ah, deixa de ser chata.
— Ficou ótimo, não acham?
— Acho que vocês devem começar a contar o que aconteceu — pede
Tatyana. — Já, Yás!
Juntas começamos a narrar a tortura que passei, enquanto elas aprovam
– ou não – as roupas que já chegaram hoje de manhã e eu experimento.
— Conforme prometeu, aquele monumento de virilidade masculina
feito para o prazer me colocou para dormir e eu estava tão cansada que
capotei, mas quando acordei hoje de manhã, o anjo…
— Anjo! Olha isso, Taty, ela já está chamando ele de anjo — aponta
Yasmin e começa a rir. — Você está apaixonada!
— Eu?
— O homem é pior que Thorvald, pior que Tyr — relembra Yasmin —
e você ainda o apelida de Anjo. Isso só pode ser paixão.
Pode até ser.
— Anjo, sim, só que caído e aí vira diabo — complemento.
Conto para elas como acordei com seus dedos traçando desenhos na
pele da minha barriga, bem em cima do monte de vênus, e seus lábios
acariciando minha nuca. Eu quase cedi. Estava tão sonolenta e relaxada que
quase esqueci de tudo e quando me lembrei, até pensei em desistir. Meu
coração estava acelerado. Meu sexo, encharcado. Meus quadris, sem
permissão, já ondulavam contra suas coxas, buscando mais do pau grosso e
largo, confortavelmente, aninhado entre as minhas pernas, tão duro que o
estou sentindo até agora. Mais um pouco eu ia gozar.
Mas me mantive firme.
Rolei para fora da cama e me masturbei debaixo do chuveiro, tendo que
morder o braço para que ele não escutasse o gemido que quase escapou.
— Para completar, ele estava me esperando para tomar café comigo e
disse que eu devia a ele aquele orgasmo — gemo e sento-me no chão para
experimentar uma sandália.
— Por que a birra? — pergunta Tatyana. — O homem é lindo e eu
fiquei excitada só de ouvir você contar sobre as preliminares, imagina o
vamos ver.
— Não é birra, é questão de princípios — explico, ajustando o vestido
no espelho.
— Lars certamente é lindo, mas é muito… muito intenso — explico. —
Ele me desconcerta de todas as maneiras possíveis. É como se ele soubesse
todos os meus pontos fracos e os explorasse com maestria. Me… desfaz. É
como se eu fosse um quebra-cabeça e ele estivesse tentando me montar e
desmontar ao mesmo tempo. É instinto de sobrevivência.
— Ah, para. Sexo é bom e você gosta — provoca Catarina.
— Gosto? — Paro um momento para analisar todas as emoções que ele
me causa. — Acho que sim…
— Acha?! — gritam as três ao mesmo tempo.
— Tá bom, adoro, fiquei viciada no homem, mas sinceramente?, não sei
como agir com um homem desses.
Nem sei direito o que dizer a ele.
Nem sei direito o que sinto, além de mágoa, confusão e raiva.
— A culpa do que aconteceu não é toda dele… Você entende isso, não?
— pergunta Yasmin, colocando a mão no meu ombro. — E também
entende que ele pode ter agido mal ou falado coisas que não devia, mas que
ele te salvou, não é?
— Entendo, claro, mas estou machucada com tudo o que aconteceu e
acho que é mais que normal. — Respiro fundo, tentando organizar meus
pensamentos. — Preciso de um tempo para processar tudo isso e entender o
que realmente quero.
— É compreensível — diz Yasmin, colocando a mão no meu ombro. —
Mas não se feche completamente.
— Ah! Antes que eu me esqueça — exclama Tatyana, mexendo na
bolsa sem fundo dela. — O Demônio enviou isso.
Tira um super celular da bolsa – já aberto e já configurado, pelo jeito.
— É inhackeável!
Essa palavra existe?
— É um modelo de última geração, com segurança máxima,
programado pelo Demônio em pessoa — continua. — Tyr é sensacional, o
melhor que tem.
Acabo rindo da empolgação e orgulho dela ao falar do marido.
— E avisou que Lars já pediu seu computador e que vai mandar
mensagem de que horas vão vir instalar.
— Nossa, que legal! — sacaneio. — Mas e a internet? Vão me dar
acesso? Ou me deixar no escuro?
O deboche é minha maneira de lidar com a situação e as emoções. Por
um lado, aprecio o gesto, mas por outro, me incomoda saber que eles têm
acesso e controle de tudo que eu faço.
— Parece que alguém está preocupado em te manter conectada —
comenta Catarina, arqueando as sobrancelhas.
— Ou me manter sob vigilância — acrescento, meio séria, meio
brincando.
— Ou só agradar mesmo — diz Yasmin. — Esses homens não têm
muita noção de limite. Você vai ter que ensinar a ele, mas por enquanto só
agradeça.
— Talvez eu devesse agradecer, mas ainda não sei como me sinto sobre
isso — admito, colocando o celular na mesa de centro da antessala.
— Você vai descobrir com o tempo — diz Yasmin, dando-me um
abraço. — O importante é que você está retomando o controle da sua vida e
do seu corpo. Isso me lembra…
Ela pega o celular para conferir com a secretária se o Dr. Andersen, o
médico que atende à família, e a Dra. Elise Strand, a ginecologista e
obstetra, estão disponíveis para consultas hoje.
— Ambas marcadas já. Dra. Strand às quatro e Dr. Andersen cinco e
meia — diz. — E Ingrid pediu para assim que você tiver os documentos da
faculdade para enviar para ela agitar as coisas junto à reitoria.
— Pedi ontem por e-mail. — Abro o celular e anoto na agenda. — Mais
tarde, vou ver se eles já enviaram. Mais alguma coisa?
Para que fui perguntar? Tem mais de um milhão de coisas.
Trocamos números e Tatyana e Yasmin vão me passando tudo de
importante em Vinterland que preciso saber e o que preciso fazer. Sem falar
nas esposas e filhas dos tais Lordes Conselheiros.
Finalizamos a parte das roupas, almoçamos e mudamos algumas peças
de lugar, apenas para que a casa fique mais com a minha cara.
Até que meu celular vibra e o nome de Lars aparece na tela, pedindo
uma ligação por vídeo.
— Olha o anjo aí — brinca Tatyana. — Atende logo, se não ele vira
diabo.
Rindo, atendo.
— Gosto de escutar esse seu riso — diz, sorrindo do outro lado da tela.
Não resisto em espezinhá-lo. — Mesmo sabendo que você é a razão da
piada?
— Não me importo — responde, sem titubear.
E me deixa sem resposta. Esse homem é bipolar, só pode ser.
— Não queria conversar isso por telefone, mas como estamos em
reunião — ele inverte a câmera e, por um momento, vejo a sala onde estão
os irmãos e mais gente que não conheço em uma mesa longa, coberta de
computadores, tablets, pastas e papéis que parecem muito importantes — e
precisamos decidir algumas datas da agenda real, resolvi ligar e te consultar.
— Ora, que magnânimo da sua parte — zombo e levo um cutucão do pé
de Catarina na perna, mas meu gênio ainda está meio azedo, eu sei. — Em
que posso ajudar?
Ele sorri, sem se abalar. — Pode me dizer se tem alguma data de
preferência para o nosso casamento?
Meu coração para. Literalmente.
É como se o músculo tropeçasse, perdesse o ritmo, caísse no chão inerte
por um segundo e depois se levantasse de um pulo, socando-se contra
minhas costelas. Dói tanto que deixo o aparelho cair e coloco a mão na
garganta, buscando o ar.
— Seu idiota! — grita Catarina e pula na minha direção, mas sem saber
o que fazer.
Yasmin pega o celular e entra em pânico: — Ela não está tomando os
remédios!
Quem nunca sentiu isso, não sabe qual é a sensação de perder uma
batida cardíaca – ou mais, porque parece que dura um minuto inteiro e
demora para voltar ao normal. É horrível.
— Está tudo bem — digo, rouca, e estendo a mão, olhando para elas
que estão pálidas.
Inspiro fundo e volto à ligação.
— Pedi uma ambulância — diz ele, andando para algum lugar,
provavelmente mais branco que eu. — Estou indo para o hospital e Leif vai
ligar para o médico que nos atende.
— Não precisa — digo, devagar, meio tonta. — Já, já isso passa…
— Não interessa — quase berra no celular. — Não vamos brincar com
seu coração.
— Lars, já tive isso antes — falo e tento explicar enquanto ele desce as
escadas feito um endemoniado: — Foi só uma arritmia…
— Só? Só uma arritmia?! — grita mesmo, desta vez. — O que vai ser
da próxima vez? Uma parada cardíaca?
O celular sacode tanto na mão dele que já estou ficando tonta.
— É normal.
— O caralho que é!
Olho para as meninas, sem saber o que fazer.
Elas já viram isso acontecendo no colégio e nunca ficaram apavoradas
antes assim. Levanto os ombros.
— Olha, pode marcar nosso casamento para o outro domingo — tento
distraí-lo.
— Vou marcar, mas quero minha noiva viva para entrar comigo na
capela — rosna.
— Lars…
Para um segundo antes de entrar no carro e olha para trás, para alguém
que grita alguma coisa para ele, grita outra coisa de volta – tudo em
vinterlandês, ou seja, não entendo nada – e entra no carro dando ordens ao
motorista, que parte com ele ainda de porta aberta.
— A ambulância está chegando aí e estou indo também — diz, batendo
a porta, finalmente. — Vá para o hospital, Vasilisa, senão te arrasto até lá
pelos cabelos!
Desliga.
— O que foi isso? — pergunto, olhando para o celular e depois para as
meninas.
Barulho de sirene se faz ouvir bem ao longe. Não se passou nem cinco
minutos.
— Definitivamente, ele é pior que Tyr — sussurra Tatyana.
— Definitivamente — confirma Yasmin.
— Acho melhor eu ir então, não é? — Levanto-me porque ele tem todo
o jeito de quem cumpre as promessas.
— Melhor, né? — diz Catarina, meio apalermada com a intensidade do
homem. — Afinal, você não quer estragar os cabelos recém-cortados.
Sorrio, mesmo que fracamente. — Não, de jeito nenhum.
— Nós vamos com você — diz Yasmin.
— Claro! — ajunta Tatyana.
Eu não esperava outra coisa. Sempre fomos as quatro mosqueteiras,
mesmo que eu fosse mais quietinha e arredia, o nosso lema era, e pelo jeito,
ainda é: uma por todas e todas por uma.
No caminho para o hospital, que é aqui pertinho, descubro que estou
sem meus documentos. Quando ligo para Lars, que está com a cara mais
enrugada do mundo, ele me avisa que Tyr já colocou uma versão digital no
meu celular porque – olha que espetáculo! –, por sorte, esse meu futuro
cunhado, neurótico e obcecado, ordenou que assaltassem – essa é a palavra
– meu cofre e trouxessem tudo o que estava dentro: joias e documentos.
Depois de umas três horas sendo revirada de cabeça para baixo por uns
cinco médicos, descubro que minha arritmia é atípica, não parece ter
acontecido nada grave – jura?! –, mas eles não sabem exatamente o que foi.
Com arritmias é assim, foi o que escutei a vida inteira.
A única coisa boa foi que agora não preciso mais fazer nenhuma
consulta já que ambos os médicos foram deslocados para cá.
Só que meu humor está dos piores. Desde pequena, como qualquer
criança que tenha passado por cirurgia cardíaca, detesto hospital e
frequentei muitos, vezes demais.
Quanto à cirurgia que foi feita na minha infância, ninguém tem ideia de
qual seja, porque não eles têm acesso ao meu prontuário, nem a exames
anteriores à cirurgia. A única coisa que sabem dizer é que foi de peito
aberto.
Que novidade… Qualquer pessoa que olhe para o meu peito com um
pouco mais de atenção consegue ver a linha fininha e quase transparente
onde o meu osso esterno foi serrado ao meio.
E – isso, sim, é novidade! –, se havia algum defeito, ele foi corrigido.
Eu, aparentemente, não tenho ab-so-lu-ta-men-te nada no coração.
Então porque fico tão cansada, sedada, sonolenta e tenho hipotensão e
frequência cardíaca baixa? Sem falar na arritmia?
Eles não sabem.
Ha-ha, que bom.
Depois, eles pedem a minha permissão para chamar Lars para entrar na
consulta comigo.
Quase não dei, mas bastou um olhar para ele – os cabelos desalinhados,
dois botões da camisa aberta e gravata desfeita, como se não conseguisse
respirar, e andando de um lado para outro no corredor – para conceder.
E quando me vê, sentada na poltrona à frente da mesa da Dra. Basara, a
cardiologista, com dezenas de diplomas na parede, conversando e
aparentemente bem, ele me suspende do assento e me abraça bem apertado
contra seu peito, como se não me visse há anos, enfiando a cabeça no vão
do meu pescoço e ficando por um momento assim, sem dizer uma palavra.
— Lars… — sussurro, sem saber como lidar com essa explosão.
Ele levanta a cabeça e me fita. — Você está bem?
A minha vontade inicial era de quebrar alguma coisa na cabeça dura
dele, mas depois desse abraço sentido, penteio seus cabelos com meus
dedos e faço um carinho em seu rosto.
— Eu disse que estava — respondo. — Precisa acreditar mais em mim.
Só então ele me coloca sentada de novo e senta-se na outra poltrona, me
dando a mão.
A médica, que tem uma paciência de deixar Jó embasbacado, e o Dr.
Andersen respondem às intermináveis perguntas de Lars e estou convencida
a sair daqui com um Holter i, quando ele pergunta: — Doutora, é possível
que drogas tenham causado esse descontrole?
Ela estreita os olhos para mim. — A senhorita me disse que não era
usuária.
— Não sou. — Olho para o maluco ao meu lado. — De onde você tirou
essa ideia? Nunca nem coloquei um cigarro na boca, quanto mais um de
maconha ou de cocaína.
A médica sorri. — Não se fuma cocaína.
Sopro para cima. — É, eu sei, modo de dizer.
— Mas você tomava aqueles remédios que seu pai mandava manipular
— diz ele. — Remédio é droga e, segundo Leif, aquelas cápsulas podiam
conter qualquer coisa.
— Isso é grave. — A médica fica séria e digita alguma anotação na
minha ficha. — Porque seu coração não parece apresentar nada que cause
arritmia.
Lars conta para a médica o que aconteceu e como são as embalagens
dos remédios e fico sabendo que Tyr ordenou que procurassem as receitas
ou alguma pista de como tinham sido manipulados os remédios, sem
sucesso.
Levanto os ombros. — Mas não temos como saber o que ele colocava
nelas…
— Pedimos análise de todas as pílulas que você tomava — revela ele,
na maior cara de pau. — Devem ficar prontas a qualquer momento e os
laudos serão enviados para a senhora. Pedi urgência.
Fico tão chocada com mais uma invasão de privacidade que nem digo
nada.
— Então, vamos esperar até estarem prontos para requisitar novos
exames — diz a médica.
Prescreve um remédio, assina a receita e a coloca em um envelope,
onde já tem uma lista das substâncias que podem desencadear arritmias e
que devo evitar – nenhuma novidade para mim – e outras indicações que
foram ditas durante a consulta, como manter uma alimentação saudável e
equilibrada, praticar exercícios físicos com regularidade e controlar o
estresse – também nada de novo.
— Qualquer coisa, me ligue, mas compre esse remédio e tenha à mão,
para um caso mais agudo de arritmia. A senhorita está liberada para ir para
casa. Descansar.
— Tudo bem — digo, olhando de esguelha para o homem ao meu lado,
que não parece muito feliz. — Obrigada, doutora.
Quando saio da sala, o lounge está lotado com a realeza. Até porque o
hospital não é muito grande e esses irmãos são todos enormes.
As meninas vêm correndo me abraçar, querendo saber como eu estou, e
os gigantes vêm atrás e recebo um abraço apertado de cada um.
— Vamos jantar todos lá em casa — avisa Lars.
Olho para ele, horrorizada. — Mas, Lars… não organizei nada e vocês
são… muitos.
— Eu avisei a Barnaby — informa ele, como se isso fosse mágica.
— Esses nossos mordomos são perfeitos — diz Yasmin, passando o
braço pelo meu.
— Melhor que diamante no dedo, é ter um mordomo inglês em casa —
diz Tatyana. — Taylor me salva de vários apertos.
Não demora muito para, depois do jantar – que estava divino e foi bem
divertido –, Lars expulsá-los, dizendo que eu precisava descansar.
Só que antes disso, tenho algumas coisas a conversar com esse feitor de
escravos, que pensa que pode mandar e desmandar em mim, sem falar que
acha que não me deve satisfação do que faz.
— Precisamos conversar — digo, cruzando os braços, assim que
ficamos a sós.
Ele ergue uma sobrancelha, mantendo a expressão impassível. — Sobre
o quê, exatamente?
Respiro fundo, tentando organizar meus pensamentos. — Sobre essa sua
mania de fazer as coisas sem falar comigo.
— Vamos conversar. No quarto — diz e vira-se, caminhando em direção
ao nosso quarto. — Quero você na cama, descansando.
Vê-lo repetir a mesma atitude sem reparar o que está fazendo, fecha
minha garganta e traz lágrimas aos meus olhos.
Talvez não seja culpa dele me fazer chorar só por achar que vou me
submeter às suas vontades, sem pensar, mas não tive uma adolescência
normal.
Droga. A quem estou enganando? Não tive uma vida normal até hoje.
Qual criança é enviada para um internato, tão pequena que perde o
contato com a mãe definitivamente, a ponto de mal se lembrar dela, e com
quase todo o resto da família? E depois quantas são abusadas por aqueles
que deveriam cuidar delas?
Muitas, infelizmente, eu sei, mas isso não deveria ser assim.
Talvez eu só esteja aqui hoje porque encontrei as meninas e, mais tarde,
Frau Meyer, a professora de teatro, que percebendo meu quase pavor de ser
notada, resolveu me ajudar a superá-lo, sem saber que Madre Jutta ia ao
meu quarto à noite, há anos, e deitava-se comigo. Às vezes, só para dormir,
mas outras vezes…
E tudo começou exatamente devido a uma arritmia. Quando eu tinha
nove anos, a Madre foi designada para dormir no meu quarto, já que antes
de se ordenar, tinha sido enfermeira. Depois de uns meses, dormir no meu
quarto passou a significar dormir na minha cama e não demorou para
avançar para carícias mais íntimas.
Ainda me lembro a primeira vez que vomitei e ela me puniu, com
cinquenta chicotadas, por ser ingrata e não agradecer o carinho e amor que
ela me dava. Não foi a última vez.
Muitas vezes, o castigo me incapacitava de ir à aula no dia seguinte.
O que levou Fräu Meyer ao meu quarto um dia de manhã – o que
obrigou a freira a interromper o castigo –, com um pedido para que eu
interpretasse para a peça de final de ano da escola, Anna Karenina, de Liev
Tolstoy, personagem com características totalmente opostas às minhas –
ousadas, confiantes e até irreverentes – já que nenhuma das meninas queria
ser vista por seus pais na pele de uma adúltera.
Ela sabia que meu pai não estaria na peça.
Não posso deixar Lars, com toda a boa intenção de me proteger que ele
tenha, desfazer anos de uma terapia baseada em expressão criativa,
autoconfiança e liberdade emocional para fortalecer minha autoestima e me
ensinar a me desconectar do controle de Madre Jutta.
Seis meses depois da apresentação da peça, passei a dormir com as três
mosqueteiras e nos tornamos inseparáveis. A freira não tinha mais desculpa
para ficar comigo, porque minhas arritmias tinham desaparecido.
Minhas arritmias tinham desaparecido…
Essa epifania e, porque quero que meu casamento com Lars seja
saudável, sento-me no sofá, cruzo as pernas e digo: — Não.
Ele se volta lentamente para mim, como se não pudesse conceber minha
negativa.
— Não? — Franze a testa. — Não o quê?
— Não quero conversar no quarto. Um relacionamento saudável não
passa pela aceitação passiva das vontades alheias.
As sobrancelhas sobem e ele retorna para o ambiente que é tão
simbólico deste momento.
— Vontades alheias?
Sim, porque tudo o que passei me fazia distorcer a ideia de amor e
cuidado e hoje entendo que não preciso merecer o amor através do
sacrifício pessoal.
Pode parecer pouco e pode parecer birra não querer conversar no
quarto, mas a cada vez que eu cedo à ideia de que meus desejos não são
importantes, eu me desrespeito.
As minhas necessidades são tão importantes quanto as dos outros,
mesmo que inconscientemente na minha estratégia interna para evitar
violência ou punição, eu tenda a passar o projeto dos outros à frente dos
meus próprios, submetendo-me ou sendo complacente para evitar
confrontos ou desagrados.
Com toda a manipulação de Madre Jutta e do meu pai, minha maneira
de olhar um relacionamento é distorcido, sem dúvida. As cicatrizes
emocionais são muito mais profundas que as das minhas costas. Não há
desculpa para um adulto, particularmente alguém em uma posição de
confiança, abusar dessa posição e tirar vantagem de uma criança. Abuso
leva a tantas perdas emocionais que se eu não tivesse encontrado Fräu
Meyer, não estaria aqui.
Longas conversas com ela e várias leituras direcionadas me ajudaram a
entender que eu poderia ser uma vítima ou uma sobrevivente. Foi ela quem
me ajudou a iniciar uma discreta terapia com outra professora, o que abriu
mais ainda meus olhos.
Aponto para o sofá do outro lado da mesa de centro e digo: — Sente-se.
Bem longe. Para que eu não perca o foco. Porque este homem é
perigoso para o meu raciocínio e a minha sanidade.
— Sim, senhora.
Entre divertido, debochado e irritado, ele sorri e obedece.
Não deveria ser difícil conversar com ele, até porque ele não se recusa a
isso, mas meus pensamentos, tão ordenados antes, se embolam e me
confundem.
— O que eu fiz de errado? — pergunta.
— Errados, no plural — digo. — Podemos começar pelo final: você
simplesmente decidiu que eu precisava de repouso e que deveríamos
conversar no quarto, sem sequer me perguntar o que eu queria.
Ele pisca. — Só isso? Mas não fui eu que decidi, são ordens médicas.
— Lars… — Suspiro. — Você invadiu meu quarto, arrombou meu
cofre, pegou meu celular e computador e entregou para seu irmão fazer uma
devassa.
— Você preferiria estar na casa do seu pai nesse exato momento? —
pergunta entredentes. — Ou gostaria que eu tivesse mandado uma
mensagem, áudio ou e-mail informando todas as medidas que eu ia tomar
para te salvar daquela situação criminosa que estavam te mantendo? Talvez
você preferisse que nem Tyr, nem eu tivéssemos interferido quando…
Ele estanca no meio da frase e desvia o olhar. Levanta-se do sofá, vai
até a parede de vidro e fica olhando para o jardim.
O sol já começou a se por e o horizonte está tingido com rosas,
abóboras e laranjas, no espetáculo diário da natureza que duvido que ele
esteja vendo.
— Quando Jamal me agarrou à força? — pergunto para as costas dele,
completando o que ele engoliu. — Me beijou, apalpou e quase… — Engulo
em seco, mas vocalizo o restante da cena que iria acontecer: — Quase
estuprou meu ânus, com a ciência e concordância do meu pai?
Os ombros se tensionam, os punhos se fecham, como se lembrar da
cena o impelisse à violência.
— Meu instinto foi de protegê-la. Se agi sem consultá-la, foi porque
estava preocupado.
Passa a mão pelo cabelo e volta. Desta vez, senta-se ao meu lado e me
encara.
A intensidade dos azuis me consome e me desarma.
É uma expressão nascida de dor forjada no fogo do inferno. As chamas
parecem destruí-lo de dentro para fora. É o olhar tempestuoso, de desejo
não correspondido, de vontade não compreendida.
Ele segura as minhas mãos nas dele.
— Vasilisa… — começa em tom rouco e precisa limpar a garganta para
continuar: — Fiz o que foi necessário. Não me arrependo, faria de novo, e
não vou me desculpar por isso.
Como na primeira vez que nossos olhares se cruzaram, fico hipnotizada
por estes olhos tão expressivos, cativa do seu sofrimento agudo tão aparente
e desta fortaleza de ferro fundido que o segura.
— Infelizmente, sei melhor que ninguém que foi necessário, mas
poderia ter me informado depois. Não sou uma criança, muito menos
incapaz.
Seus olhos escurecem para um tom de azul lindo, onde um redemoinho
que parece querer me tragar. Mas são manchinhas verdes que ousam
macular esse céu turbulento, como se fossem fontes secretas de força, as
faíscas que me enraízam.
E talvez a ele também.
— Tem razão. — Ele suspira, passa a mão pelos cabelos de novo, e
depois assente novamente: — Tem toda razão.
Foi mais fácil que pensei.
— Tenho?
Ele hesita por um momento, mas depois diz: — Estou habituado a dar
ordens e vê-las obedecidas sem questionamentos. Gosto de controlar tudo e
nunca precisei me justificar para ninguém. Vou me esforçar para ser mais…
aberto.
Sorrio. — Isso é um começo.
— Aproveitando… — Ele enfia a mão no bolso interno do paletó e tira
de lá uma pequena caixa de couro azul-marinho. — Tenho algo para você.
Abre, mostrando um diamante quadrado rosa, deslumbrante, ladeado
por dois triângulos perfeitos, a metade do tamanho do outro, o dobro da
delicadeza e beleza.
— Achei que você ia gostar de algo assim, um pouco menor e mais
delicado, mas…
— É lindo, Lars. Perfeito.
Ele desliza o anel no meu dedo anelar. A joia brilha sob a luz suave da
sala e não sei porquê me lembra da minha mãe.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
Jogo meus braços à volta do seu pescoço e o beijo e ele corresponde, me
puxando para o seu colo. Suas mãos me seguram e ele me beija com tanta
força que fico tonta. Ele é quase bruto, roubando meu controle e minha
razão com um beijo que carece de gentileza e tem tanto fogo que quase
esquecemos das ordens médicas.
Suspiro quando nossas bocas se descolam e ele me aperta forte contra
seu peito.
— Fiquei apavorado hoje à tarde. Você tem ideia de quanto tempo ficou
fora do ar?
— Foi o susto…
Ele segura meu queixo e levanta meu rosto para o dele. — Não quero
sustos como aquele ocorrendo de novo. Nunca mais. Vou cuidar de você.
Encosto a cabeça em seu ombro, sentindo o ritmo constante do seu
coração debaixo da minha mão, e suspiro. — Se você pedir direitinho, eu
penso se deixo você cuidar de mim.
Uma risada escapa do peito dele e ele beija o topo da minha cabeça. —
Meu apego pelo controle não se desfez em apenas uma conversa, mocinha,
e você é muito importante para eu deixá-la a solta. Você vai ter que aturar
minha obsessão e neurose por um bom tempo.
Posso fazer isso.
Este homem é, contra todas minhas expectativas, uma estranha mistura
de agressividade e gentileza; crueldade e sensibilidade; potência e
vulnerabilidade. Um quebra-cabeça com um número infinito de peças que
nunca vou terminar de fazer.
Acho que ele nunca deixará de me surpreender.
— Precisamos falar sobre a cerimônia — digo depois de um momento
de um silêncio confortável. — Gostaria que fosse algo muito simples e
pequeno e…
— Podemos fazer isso na cama? — interrompe ele. — Descansando?
Eu escolho minhas batalhas sabiamente e essa não é uma que eu preciso
ganhar.
Sorrio. — Podemos.
Desde as quatro e meia da manhã, os passarinhos cantam do lado de fora da
janela do quarto. Anunciam o dia que amanhece ensolarado, sem a menor
consideração com a ansiedade que me faz levantar da cama, que parece fria
e vazia demais sem Vasilisa, e descer para a academia.
Começo pela esteira, com dez minutos a doze quilômetros por hora.
Aumento a velocidade até que estou correndo, como se o diabo estivesse
me perseguindo. Ou devo dizer: a Diaba?
Meu coração martela mais rápido no peito ao pensar que mais algumas
horas estarei esperando por Vasilisa no altar. As loucas decidiram que a
cerimônia será no Templo de Afrodite, localizado no meio do lago nos
jardins de trás do Palácio Frostholm, e a festa no Pavilhão Italiano.
Porque depois de algumas conversas – e discussões acaloradas –,
finalmente conseguimos nos entender e acordar que o casamento seria bem
mínimo, principalmente para os padrões de um príncipe de Vinterland.
Se o de Tyr já foi pequeno com quatrocentas pessoas, o meu com
duzentos convidados é praticamente um mini-wedding. Não conseguimos
que fosse em quinze dias. Vasilisa pediu dois meses e como ela estava
morando comigo, não me importei.
Estou pingando de suor quando uma hora depois Tyr chega e saio da
esteira.
Tomo uma surra no ringue – leve, afinal tenho que estar inteiro para a
noiva mais tarde –, porque minha mente está nela.
De todas as mulheres que eu podia ter escolhido, fui pegar a loira mais
linda e etérea, o que disfarçou bem o temperamento determinado. Isso me
deixa completamente apaixonado.
Sorrio e Tyr desfere um chute baixo, uma rasteira, tirando meu
equilíbrio e me jogando no chão.
— Você está pensando nela — diz ele, estendendo a mão para me ajudar
a me levantar.
— Você não estaria, se tivessem te separado da doidinha por uma
semana?
Ele resmunga e me puxa.
Desde a semana passada, fui expulso da Månestrålens Fjordresidens e
enviado para o meu antigo quarto no Palácio Frostholm.
Porque, segundo as meninas, o noivo tem que sentir saudades da noiva.
E eu estou morrendo de saudades de enterrar a língua na bocetinha rosada e
doce da minha princesa loira.
Do ringue, vamos para a piscina e vejo que estão dispondo as cadeiras
em semicírculo na beirada do espelho d’água, alinhadas para cada
convidado ter uma visão perfeita da cerimônia.
Nado por meia hora e quando saio, tem centenas de pessoas arrumando
os arranjos de flores brancas e verdes e enfeitando o templo com algo que
se parece com nuvens delicadas em árvores. Sei que são florzinhas
minúsculas entremeadas com folhagem presas em uma tela de arame quase
transparente porque vi a montagem ontem quando fui escolher o buquê,
como manda a tradição vinterlandesa.
Não foi difícil: Pecadoras Magníficas em cascata amarradas com fita de
seda verde.
— Vai ficar lindo — diz Tyr.
— Sim, vai — concordo, observando a movimentação. — Elas são
malucas, mas têm um bom gosto inato.
As árvores do bosque ao fundo e o lago acrescentam uma tranquilidade
ao ambiente, como se o lugar e a natureza estivessem em sintonia conosco.
Ou quase, porque ainda estou preocupado com a saúde de Vasilisa e
recentemente algumas coisas estranhas vêm acontecendo no meu
ministério.
— Tyr, quero que você fique de olho nos meus funcionários enquanto
eu estiver de lua-de-mel — peço. — Notei que alguns jornalistas estão
sabendo, com antecedência, de notícias que deveriam ser secretas. Isso me
causou alguns problemas sérios essa semana passada, especialmente numa
licitação que teve que ser cancelada por vazamento de informações
confidenciais.
Ele franze a testa. — Isso é grave. Você tem alguma desconfiança?
— Nenhuma. Conversei com Ingá e com meus assessores mais
chegados, mas não temos ideia de quem pode ser.
— Talvez seja alguém de dentro, alguém que tem acesso direto às
informações. Alguém dentro do seu círculo mais íntimo pode estar
recebendo para isso. Checou as movimentações bancárias?
— Já, nada estranho nessa área — informo. — Inclusive pedi ajuda ao
meu colega na Interpol e não tivemos nada estranho vindo de Vinterland
recentemente.
Ele pega uma toalha e enrola no corpo, ainda pensativo. Não interrompo
sua linha de pensamento porque sei como Tyr funciona.
— Ou então… — Ele levanta os olhos e me encara. — Pode ser um
hacker muito bom. Precisamos rastrear todos os acessos aos sistemas,
verificar logs, e talvez até fazer uma auditoria completa. Segunda-feira, sem
falta, mando o Grupo do Subsolo começar uma conferência dos protocolos
de segurança. Precisamos ser cautelosos.
— Exatamente — assinto. — Preciso que investigue discretamente. Não
quero alarmar ninguém ainda.
— Não se preocupe — diz ele, firme. — Vou pegar o rato que está
fazendo ninho na sua casa, antes que te cause mais problemas.
Sinto um alívio imediato, porque com Tyr as coisas são rápidas e
eficientes e a equipe de especialistas dele pode resolver qualquer problema,
sendo que esse grupo é super-secreto, composto de apenas cinco pessoas, e
lida com a tecnologia mais avançada do mundo.
— Ótimo. Vamos nos vestir e tomar café da manhã?
— Vamos. — Ele verifica o relógio. — Já está quase na hora. Daqui a
pouco, teremos mais uma adição para a família. Pelo menos, essa não é tão
doidinha quanto a Harpia dos Infernos.
Ainda bem, porque igual à esposa dele eu não aguentaria. Mas também
só Tatyana para colocar e manter Tyr na linha.
As próximas horas passam voando e quando me dou conta, meu reflexo
no espelho mostra um homem impecavelmente vestido, no fardão de gala
da Guarda Montada de Vinterland.
Sinto-me estranho, como se estivesse usando uma armadura, mas, ao
mesmo tempo, é simbólico e representa um compromisso de um homem
que ama e que está pronto para proteger o que é seu.
Amo.
Amo mesmo, com paixão e entrega, com todo o meu coração e alma,
sem medo de mostrar minha vulnerabilidade ou de ser ferido, porque tenho
certeza que ela não vai fazer isso.
O bispo tentou por tudo convencê-la a fazer a cerimônia religiosa na
capela, mas só depois de muito convencimento, ela aceitou que ele fizesse
uma benção ontem, apenas porque a Família Real de Vinterland é obrigada
a se casar na igreja. Uma dessas baboseiras de antigamente.
Não descobri exatamente o que aconteceu no internato, mas percebi que
Vasilisa é cética em relação à religião – e, segundo soube por Tyr, tem
horror a uma determinada freira, da qual já tenho o nome anotado.
No final, o importante, para mim, é unir minha vida à dela.
Desço para o gramado uns quinze minutos antes da hora marcada para a
cerimônia, porque Vasilisa avisou que não ia atrasar. É o tempo suficiente
para escutar alguns Lordes Conselheiros sem noção virem me parabenizar.
— Uma excelente escolha, Alteza — diz um, logo seguido de outro: —
Uma descendente dos Romanov. A dinastia de Vinterland está em boas
mãos.
— Finalmente alguém à nossa altura — fala mais um.
Fico pensando se devo lembrá-los que a Rainha de Vinterland e a
Princesa do Ártico, esposa do príncipe-herdeiro eram plebeias, mas
mantenho-me calado, agradeço e vou pegar um shot de Acquavit no bar que
está servindo bebidas para os convidados.
— Nervoso? — pergunta Leif quando me vê virar o copinho de uma
vez.
— Ansioso — confesso e mudo de assunto quando vejo a noiva dele,
deslumbrante em um vestido verde-água, vir em nossa direção: — E você?
Animado para o seu?
Ele faz uma careta. — Podemos falar de outra coisa?
Rio e pergunto: — O que houve?
— Não sei, mas a menina tímida que quase não falava mostrou as garras
e são afiadas.
— Não acredito, ela não pode ser tão ruim assim.
— Não, só pior — resmunga bem baixinho porque ela está quase em
cima de nós.
— Bom dia, Lars — diz para mim, sorrindo, ignorando totalmente o
noivo. — Vasilisa já vem e está ab-so-lu-ta-men-te deslumbrante.
— Não tenho dúvidas disso. — Sorrio de volta. — Você também está
deslumbrante.
É verdade. Parece que a briga entre os dois fez a mocinha tímida
desabrochar.
— Obrigada. Pena que alguns príncipes de Vinterland não sejam tão
educados e gentis como você — diz.
Leif suspira alto.
Só então ela dá uma breve olhadela para ele.
— Nossos lugares são lá na frente, Casanova — informa a ele e, sem
esperar, se vira e se dirige para o lugar.
— Bom dia para você também, Bruxa — resmunga ele, mas a segue
igual cachorro atrás de um pedaço suculento de carne.
Fico pasmo por um segundo antes de cair na gargalhada. Ainda não
havia ouvido uma interação entre eles.
E, supostamente, Catarina era a mais tímida das quatro amigas.
— O que é tão engraçado? — pergunta Tyr chegando com Tatyana.
— Não tenho a menor ideia — digo. — Mas você sabia que Leif e
Catarina estão às turras e o apelido dele é Casanova?
— E Don Juan, Galinhão, Galanteador de Quinta, Cafajeste e mais
alguns outros não muito apropriados para os ouvidos do público atual —
conta Tatyana.
— Pelos deuses! — Rio de novo. — Mas o que houve?
— Alguém mandou para ela a lista de mulheres com quem ele
supostamente saiu enquanto ela estava na Rússia preparando o enxoval —
diz Tyr.
Que merda. Meu sorriso morre. — Isso não tem a menor graça.
Tatyana dá um sorriso sem dentes. — Ela também acha. Vamos,
Demônio, Vasilisa está pronta. Não chore, cunhado, é feio homem que se
desfaz como manteiga derretida. Sem falar que fica horrível nas fotos.
Não sei se ela está brincando ou não, mas estou pouco me importando.
Não choro há muitos anos e não pretendo chorar hoje.
A orquestra sinaliza a hora e Thorvald e Yasmin abrem o cortejo, como
manda a tradição.
Meus passos são firmes na passarela de madeira e o sorriso nos meus
lábios não falha e até aumenta quando passo pela mãe e pai de Tatyana em
direção ao templo no centro do lago.
Obviamente, Jamal, assim como os outros meios-irmãos não foram
convidados. Assim como Hardrada e Melissa, os quais são personas non-
gratas em Vinterland. Afinal, depois de tudo o que fizeram, não merecem
estar presentes em um momento tão importante para nós.
A indenização à Vasilisa, bem como a doação prometida pelo Sheik
foram feitas.
A Diaba cogitou em não aceitar, mas não tive pudor nenhum em
convencê-la. Afinal, como dizia o Imperador romano Vespasiano, pecunia
non olet i, ou seja, o dinheiro não tem cheiro, e com a situação dos cofres de
Vinterland os milhões de coroas serão muito bem aproveitados.
A próxima música traz Sven, Soren e Sten, carregando tantos balões
brancos que acho que vão sair voando – ideia das quatro Mosqueteiras e
deles.
Há um breve silêncio, depois o farfalhar das roupas dos convidados se
levantando e então o ensurdecedor tambor do meu coração palpitando nos
meus ouvidos, porque no final da passarela aparece Vasilisa, trazida pelo
Grão-Duque Vladimir Romanov, seu meio-irmão russo, um homem de uns
trinta e cinco anos, sério e fechado.
Em um vestido que deixa os ombros de fora e é em parte clássico, em
parte abusado com transparências, é a perfeita sílfide. Dizer que ela está
linda, deslumbrante ou qualquer outro adjetivo é bobagem porque o que
sinto por essa criatura ultrapassa qualquer sentimento físico.
Quando nossos olhos se encontram, o sentimento que me liga a ela é
ainda mais forte do que o da primeira vez e estou mais certo do passo que
estou dando.
Sem os remédios, Vasilisa se transformou e abriu as asas. Deslanchou
na faculdade e sorri com mais frequência. Tem nela uma nova vitalidade.
Mas, ao mesmo tempo, ainda hesita, evita tomar certas decisões
importantes, como se tivesse medo de ser livre demais.
Avanço e cumprimento o Grão-Duque Romanov: — Vossa Graça,
cuidarei bem dela.
— Desejo que vocês dois sejam muito felizes — cumprimenta ele de
volta.
Vira-se para a irmã e a beija. — Mamãe estaria orgulhosa de você hoje,
Diabinha.
Descobrimos que era assim que a mãe a chamava quando ela era
pequenininha. Coincidência, não é?
Mas antes que ele vire o véu e me entregue Vasilisa coberta, eu me
adianto e a tomo dele.
Porque é isso que eu faço: tomo-a para mim – porque ela é minha,
mesmo – e não deixo que ninguém a cubra, porque quero mostrar ao mundo
que tenho orgulho dela e que ela não precisa mostrar respeito por mim ii.
— Prometo fazer você a mulher mais feliz do mundo — digo em seu
ouvido.
— Eu sei que você vai tentar — é a resposta que ela me dá.
Soou estranho? Mas vem acompanhada de um sorriso radiante.
É porque ainda estamos nos acertando.
O controle que exerço sobre tudo ao meu redor é uma armadura que
construí para me proteger dos traumas que carrego. Porém, com ela, minha
obsessão se intensificou. O passado dela é um espelho distorcido do meu;
cada ferida dela traz à tona as minhas próprias, e o efeito é um constante
embate entre nós.
A cada riso que ela solta, a cada olhar que me lança, eu me apaixono
mais e mais controlador me torno. Sei disso e tenho tentado me controlar,
numa batalha interminável.
Ela é como uma chama que arde diante de mim, mas que nunca posso
segurar completamente. Essa inviabilidade é essa barreira entre nós, que só
me faz querer lutar mais por ela, numa batalha interminável.
Tento me aproximar emocionalmente, mas parece que um muro
invisível nos separa. Apesar da química intensa que temos, algo me
bloqueia. Eu mesmo? Ou é ela?
Mesmo assim, nesses dois meses, conseguimos fazer com que nossa
vida entrasse em uma rotina gostosa, apesar das conversas e eventuais
discussões, quase perfeita demais para ser verdade.
A cerimônia é curta e presidida por Thorvald, como autoridade máxima
de Vinterland.
— Queridos familiares, amigos e dignitários presentes — a voz dele
ressoa pelo lago e jardim. — Hoje é um dia de grande alegria para
Vinterland. Reunimo-nos para celebrar a união de meu irmão, o Príncipe
Lars Haraldson, da Casa de Gulbrandr, e da encantadora Vasilisa, da Casa
Romanov.
Ele faz uma pausa, olhando diretamente para Vasilisa.
— Vasilisa, desde que chegou ao nosso reino, trouxe consigo graça,
inteligência e uma luz que iluminou não apenas a vida de Lars, mas de
todos nós que tivemos o privilégio de conhecê-la. Sua linhagem e origem
são nobres, mas é seu coração e caráter que realmente nos cativam.
Voltando-se para os convidados, Thorvald continua: — Esta união
simboliza não apenas o amor entre duas pessoas, mas também a de famílias,
culturas e esperanças para o futuro de nosso reino. Lars recebe Vasilisa hoje
como sua esposa, mas ela também é acolhida por todos nós como Princesa
de Vinterland.
Ele retorna o olhar para nós, com um sorriso e nos faz as perguntas de
praxe e damos as respostas esperadas, já que combinamos que não faríamos
discursos e promessas públicas, além de repetir os votos normais.
Trocamos as alianças e ele declara: — Pelo poder a mim concedido
como rei, é com grande honra, que os declaro oficialmente casados.
Vasilisa, seja bem-vinda à nossa família e ao reino de Vinterland. Que união
de vocês seja abençoada com amor, felicidade e prosperidade.
Os meninos soltam os balões brancos que sobem no ar.
— Lars, você já pode beijar a noiva.
Sorrio, voltando-me para Vasilisa. Inclino-me e puxo-a para mim.
— Eu te amo, minha princesa — digo baixinho em seus lábios.
Seus olhos verdes se arregalam com a declaração. — Lars!
Sorrio e a beijo apaixonadamente.
Os aplausos soam pelo jardim, nos alcançam no templo, e a Guarda
Montada da qual faço parte, que está em formação no jardim, começam os
disparos da salva de tiros.
Vasilisa estremece e arfa nos meus braços com o susto.
Então, sinto-a interromper o beijo e descer a mão do meu pescoço.
Firmo meu braço entorno da sua cintura e levanto a cabeça.
— O que foi?
Ela olha para baixo, para a área perto das costelas, onde uma mancha
carmesim começa a se espalhar pela renda delicada e até então branca de
seu vestido.
— Vasilisa! — exclamo, horrorizado.
Seu olhar assustado se volta para o meu e, sem dar uma palavra ou
soltar um gemido, ela fecha os olhos e vacila contra o meu peito. Seguro-a
antes que caia.
Tyr aparece ao meu lado no mesmo minuto, seus olhos percorrendo os
arredores com foco mortal.
— Saia pelo outro lado e leve-a para a clínica agora! — ordena Tyr —
Eu cuido do resto.
Levanto Vasilisa em meus braços, seu rosto branco feito cera, enquanto
guarda-costas correm para formar uma barreira protetora ao nosso redor.
— Por aqui, Alteza — direciona um deles.
Vejo saindo à minha frente Thorvald com Yasmin no colo – ela está com
oito meses de gravidez – e sento-me no carrinho de golfe e Leif senta-se ao
meu lado. Atrás vem Magnus e Catarina e Tatyana com meus sobrinhos,
enquanto convidados gritam e o caos irrompe ao nosso redor.
— Como ela está? — pergunta Leif, colocando os dedos no pescoço
dela para pegar a pulsação.
— Sangrando — digo entredentes, pressionando minha mão sobre o
local.
O sangue quente e vermelho-vivo escorre entre meus dedos em
contraste com seu rosto pálido.
— Não para, Leif, não para!Ele tira o casaco e pressiona junto comigo.
Os olhos verdes escuros se abrem. — Lars?
O medo e a raiva apertam meu peito como um punho de ferro. Não
posso perdê-la, não agora.
— Vai ficar tudo bem — juro, sem saber se vou poder cumprir a
promessa.
Enquanto o carrinho acelera, cada segundo parece uma eternidade.
Meu olhar se volta para o templo. Quem ousou fazer isso?
— Doí — geme ela, quando as rodas passam pela entrada do palácio e
entramos no túnel do subsolo, em direção à clínica.
— Estamos chegando — diz Leif, segurando a mão dela. — Aguente
firme.
Ele me fita e posso ver raiva em seus olhos também.
Quem seria capaz de tamanha crueldade?
Quando chegamos à clínica, a equipe médica assume o controle e fico
ali impotente, de punhos cerrados, enquanto a levam.
— Vai com ela — peço a Leif.
— Volto assim que puder para dar notícias — diz.
Seguro seu ombro. — Não, fica com ela — digo a ele.
Ele me encara um segundo e entende. — Tudo bem.
Porque não consigo ficar parado vendo os olhos verdes arregalados e
cheios de medo, grudados em mim.
Porque mais importante que minha paz e calma, é a dela.
O latejar na minha cabeça e o enjoo fazem com que eu não queira abrir os
olhos, nem acordar direito.
Será que bebi demais? Será que dei vexame? Logo no dia do meu
casamento?
Minha mente tenta juntar as peças.
A memória vem em flashes.
Lembro-me da excitação das meninas com os pequenos arranjos,
acompanhados de mensagens sensuais que Lars enviou de hora em hora.
Os nossos planos para descobrir se o e-mail anônimo enviado para
Catarina sobre as escapadas de Leif eram reais ou não, e se fossem como
Catarina ia torturá-lo.
O buquê de Pecadoras Magníficas chegando.
Tatyana, Catarina e Yasmin montando os broches e colares de diamantes
rosa da minha mãe no meu vestido, como se fossem… sei lá, alfinetes.
Porque o meu meio-irmão, o Grão-Duque Vladimir Romanov, e meu
tio, o Príncipe Ivan Romanov, trouxeram as joias da minha mãe e o incrível
é que entre elas tinha um conjunto de tiara, brincos e dois broches em
formato de flor, de tamanhos diferentes, e colares, que combinavam
perfeitamente com o anel que Lars me deu.
Não ia usar tudo junto, porque achei demais, mas as doidinhas fizeram
uma montagem na cintura do vestido Valentino, que ficou perfeito e ainda
contrabalançou a leveza da renda e point d’esprit. Tirou um pouco da
atenção da transparência da saia e do forro nude abusado que pedi,
chamando atenção para os diamantes rosa dos broches e colares.
O modelo foi inspirado no da minha mãe quando se casou com o
primeiro marido, com um corte clássico com o decote de ombro a ombro,
mangas longas e saia ligeiramente rodada.
Ficou perfeito para um casamento no jardim.
Vladimir e eu descemos as escadarias do Palácio Frostholm, cruzamos o
jardim e a passarela de madeira. A brisa levantou meu véu e fez a saia leve
rodopiar ao meu redor.
Estava tão feliz que senti vontade de abrir os braços e voar naquele
momento.
Lars esperava por mim no templo grego, vestindo um uniforme com um
casaco comprido abaixo do quadril, num tom tão fechado e austero, que as
cordas grossas douradas e as insígnias que brilhavam no peito e o enorme
sorriso no rosto tornavam-no imponente e elegante.
Só que quando ele disse que me amava e me beijou… tomei um susto
tão grande que até doeu!
E depois disso…
Não me lembro de mais nada. Apesar que o calor dos seus lábios ainda
parece estar presente, porque meu corpo está quente, fervendo.
Franzo a testa, forçando a memória…
Acho que foi o choque. Não esperava a declaração de amor.
Não queria um homem que me amasse, droga!
Preciso me centrar, acalmar e lembrar como e quando foi que isso
aconteceu. Mas quando vou respirar fundo, uma dor aguda na minha lateral
direita faz com que eu arqueje. Tento me levantar, o que torna a dor mais
intensa ainda.
Imagens do tecido fininho sendo tingido de vermelho e o som de tiros
me tomam de supetão.
Levei um… tiro?
Abro os olhos com dificuldade, porque parecem estar grudados, e
quando tento me empurrar de novo na cama, a mão grande e quente de Lars
me segura.
— Calma, calma — diz ele, baixinho. — Está tudo bem agora.
— Ou quase — corrige Leif do outro lado. — Mas vai ficar assim que
essa febrinha passar.
Sim, levei um tiro.
— Sede…
Lars olha para Leif, que sobe a cabeceira da cama, e depois pega um
copinho com um canudo.
— Só um pouquinho para não enjoar com a anestesia — diz ele. — De
um a dez, como está a dor?
— Se eu não me mexo e não respiro, sete… — murmuro, rouca. —
Senão, onze.
Ele faz uma careta e checa o relógio. — Vou pedir à enfermeira para
administrar mais uma dose de analgésico.
— O que aconteceu?
— Eles usaram uma dose menor de anestesia porque ainda não tem
certeza do seu problema cardíaco — Lars suspira. — Precisamos resolver
essa pendência, Vasya.
— Não… — Limpo a garganta. — Não é isso que estou perguntando.
E ele sabe, porque desvia o olhar. — Ainda não sabemos direito.
— Lars… — Conheço esse jeito dele. — O que foi que combinamos?
Ele abaixa a grade da cama e se senta no colchão com cuidado,
segurando minha mão.
— Não estou mentindo.
— Só está omitindo — digo.
Ele fecha os olhos, respira fundo e finalmente diz: — Não temos
suspeitos, nem nada concreto, além da bala que te atingiu. Tyr está à caça
dos culpados desde ontem…
— On-ontem? — Não gosto de escutar o tremor na minha voz, nem de
sentir as lágrimas quentes que escorrem pelo meu rosto. — Nós nos
casamos ontem?
— Ontem. — Outro suspiro e ele passa os braços ao meu redor com
tanto cuidado que parece que vou quebrar. — Não chora, Pequena, eles não
conseguiram o que quer que quisessem fazer.
— Que era? — pergunto entre soluços. — Me matar? Porque estragar o
dia do meu casamento conseguiram.
— Não chora, meu amor, não chora — pede, beijando meus cabelos.
— Não me chama de meu amor!
Tento empurrá-lo, mas quanto mais faço força, mais ele me aperta
contra o peito e acabo desistindo porque estou fraca e também seu peito
largo e braços fortes são bons de se aninhar.
— Eles não esperavam que você se assustasse com a minha declaração
— sussurra no meu ouvido, as mãos me levantando da cama com tanto
cuidado que parece que eu vou quebrar. — Mas o que te salvou mesmo foi
o broche da sua mãe. A bala resvalou no brilhante e entrou torta. Não
atingiu nenhum órgão vital. Graças aos deuses, o médico estancou a
hemorragia rápido e você já está fora de perigo.
Assinto e me aconchego nele, porque sem ele, me sinto completamente
à deriva. Como alguém pode ter tentado me matar no dia do meu
casamento?
— Quem teria motivos para fazer isso? — pergunto, mais para mim
mesma do que para ele.
Os braços dele me puxam mais para perto. — Não se preocupe, Tyr vai
descobrir e quando soubermos…
Ele não termina, mas não precisa. Yasmin contou o que Tyr fez uma
vez, e prefiro não pensar nisso agora.
Batem na porta e ele me coloca de volta nos travesseiros. — Entre.
É a enfermeira, com o analgésico, conforme prometeu Leif. Ela me
cumprimenta, faz alguns procedimentos rápidos e depois sai.
— Quando podemos ir para casa? — pergunto.
— Provavelmente, amanhã à tarde ou depois de amanhã — diz Lars,
aproximando-se de novo. — Dr. Andersen vai passar na hora do almoço.
Seu irmão, seu tio e as meninas estão aí fora. Tanto Yasmin quanto Tatyana
não queriam arredar o pé da sala de espera, apesar de Thorvald e Tyr terem
ameaçado dar uma surra bem dada nas duas se não fossem dormir. Quer vê-
los?
— Claro. — Sorrio, apesar das lágrimas, sentindo uma onda de gratidão
pelas amigas e por esse meio-irmão que surgiu do nada e que parece me
apoiar incondicionalmente.
— Eles conseguiram alguma coisa com as ameaças? — pergunto.
— Só colocá-las para dormir nos antigos quartos deles aqui no palácio
mesmo — diz ele sorrindo também.
Porque como a clínica fica no subsolo do Palácio Frostholm, é só descer
– ou subir, dependendo do referencial – as escadas ou os elevadores.
— Aliás, seu tio e seu irmão se mudaram para cá, também — informa
ele. — A pedido de Tyr. Por questões de segurança.
— Ainda bem que Vidar é experiente, não é? — brinco.
— Amém à fleuma dos mordomos britânicos — fala e me dá um beijo
na testa. — Vou chamar seu irmão e seu tio primeiro.
— Ótimo.
Sorrio.
Mas a verdade é que estou apavorada com o que poderia ter acontecido
e com medo do que poderá acontecer no futuro. E com raiva. Muita raiva.
Alguém tentou tirar minha vida no dia mais feliz da minha vida. O pior
é saber que não vai ficar assim, não vai parar. Quem tentou, vai tentar de
novo.
Lars abre a porta, interrompendo minhas divagações. Meu meio-irmão,
seguido do meu tio, pai de Catarina, o Príncipe Ivan Romanov, entram.
— Diabinha… — a voz de Vladimir sai rouca, carregada de emoção, e
ele se aproxima da cama. — Fiquei tão assustado quando vi o sangue
manchando sua roupa. Não podia acreditar que depois de tantos anos sem
nos ver, iria perdê-la daquele jeito.
Sinto um nó na garganta.
— Não vou deixar de te perturbar ainda por um bom tempo. Você ainda
tem muito a me contar sobre minha… nossa mãe — digo para ele, meus
olhos enchendo de lágrimas novamente.
— Você é muito parecida com ela, Vasya — diz meu tio.
Menos os olhos, porque eles dois tem o mesmo tom de azul dela. Já eu
não sei a quem saí.
Eles se sentam nas cadeiras perto da cama e conversamos por um tempo
até que meu tio sinaliza que já ficaram tempo demais e que, infelizmente,
acabei de passar por uma cirurgia e que devo descansar.
— Gostaria de estreitar nossos laços, Vasya. Hardrada fez de tudo para
nos afastar e eu caí direitinho na conversa dele — diz Vladimir, com raiva
na voz. — Afastei-me até da minha mãe.
— Eu também — assinto, tentando segurar as lágrimas que insistem em
cair, porque as palavras dele me tocam profundamente.
— Vinterland faz fronteira com a Rússia — diz, seus olhos cheios de
sinceridade. — Se sentir saudades, precisar de algo, ou quiser só conversar,
não hesite em me procurar.
— Vlad, em falar em conversar… Meu pai disse uma coisa estranha
na… última vez que o vi. — Minhas palavras saem sussurradas porque
acabei de pensar uma coisa horrível. — Que minha mãe morreu porque ela
o largou.
Não quero acreditar que ele matou minha mãe. Mas por que ele ia dizer
aquilo? E será que ele tentaria me matar? A ideia é absurda, mas não
impossível.
Os olhos do meu irmão se estreitam. — Ele disse isso?
Antes que eu possa responder, Lars interfere: — Já conversei com seu
tio sobre isso, minha princesa, e ele prometeu investigar o ocorrido.
— Sim, vou à fundo nisso, Vasya, não se preocupe. Nunca gostei de
Hardrada e agora tenho todas as razões para desgostar mais ainda. Mas
podemos conversar sobre isso em outro momento — diz o príncipe. —
Tenho certeza de que haverá oportunidades melhores para discutirmos tudo
com calma.
Aquela frase do meu pai foi muito estranha.
— Com certeza — concorda Lars, olhando para os dois. — Acho
melhor chamar as meninas antes que elas ponham fogo na clínica.
Meu tio se aproxima e deposita um beijo suave em minha testa. — O
que você precisar, peça a Catarina para me chamar.
Sorrio, sentindo-me um pouco mais tranquila. — Obrigada.
Eles se despedem e meu irmão me dá um abraço gentil e cuidadoso para
não me machucar, e promete voltar para o casamento de Catarina. Afinal,
como ele mesmo acabou de lembrar, Vinterland faz fronteira com a Rússia.
— Descanse e se recupere logo, Diabinha — diz Vladimir da porta,
lançando um último olhar afetuoso antes de sair.
Lars os acompanha até a porta e volta com as minhas amigas, as faz
colocar as bolsas no armário, tirar os sapatos e pôr umas sapatilhas
especiais.
— Nós acabamos de tomar banho — diz Yasmin, quando ele as
encaminha para o banheiro para lavar as mãos e os rostos.
— Ordens médicas — insiste, fazendo um paredão entre elas e a minha
cama.
Isso é sacanagem e só não rio porque sei que vai doer.
Depois que elas cumprem as ordens médicas ele as deixa chegar perto
de mim, dizendo: — Elas prometeram que não vão te cansar muito.
— Não prometemos nada disso — diz Tatyana, se aboletando no
colchão sem a menor cerimônia, para horror do meu marido. — Ela precisa
de um pouco de animação, isso, sim.
— Ela está brincando, Lars — diz Catarina, enquanto se senta do meu
outro lado.
— Estou nada! Olha como está pálida.
Yasmin ri. — Para de assustar o número três, Taty, ele perdeu uns vinte
anos da vida dele ontem, tadinho.
— Se você quiser ir tomar café, a gente promete não a cansar — diz
Catarina.
A única que não se aventura na cama é Yasmin – acho que por causa da
barriga que está enorme – e senta-se na poltrona larga onde meu tio estava
sentado antes, esticando os pés na cadeira da frente com um suspiro.
— Não tenho tanta certeza assim, cunhada número três — Ele dá um
sorriso para ela e vai se sentar no sofá. — Vou ficar bem aqui.
— Ué, eu não seria a número quatro? E futura, porque ainda não casei
— pergunta Catarina, franzindo a testa. — Leif é o mais novo, certo?
— Resolvi numerar vocês por ordem de casamento — diz ele.
— É para confundir a gente — afirma Tatyana, olhando para ele com
desconfiança. — Isso é alguma tática combinada com o Demônio?
— Não, Harpia. Cada doido com sua mania — implica ele.
— Só o Demônio pode me chamar de Harpia, ô lobo em pele de
cordeiro. — Ela se vira para mim, com a mão na cintura e pergunta: —
Você vai permitir que ele fique aqui escutando nossa conversa?
Sorrio. — É só você começar a falar suas barbaridades que ele vai sair
daqui correndo.
Os olhos dela brilham, mas antes que ela diga alguma coisa, lá do canto
da suíte, ele abaixa a revista que abriu e pensei que estava lendo, e diz: —
Eu não contaria com isso hoje, não.
Um gemido coletivo sai da boca das três.
Não demora muito, Lars expulsa as três do quarto e elas se vão sem
reclamar, porque veem que eu estou cansada.
É uma sensação assustadora de impotência.
— Voltaremos de tarde — dizem da porta.
— Não vou a lugar nenhum — brinco.
— Não vai mesmo — diz ele, fechando a porta e vindo para o meu lado.
— Nem vai receber mais visitas agora de manhã. Acabei de virar a
plaquinha de visitas permitidas. É hora de descansar.
— Deita aqui comigo.
— Eu? — Ele arregala os olhos. — Não acho que seja permitido e
posso te machucar.
— Só um pouquinho… — peço. — A cama é gigante.
Ele acaba deitando, porque a cama é realmente grande. Também com o
tamanho desses cinco irmãos tinham que fazer camas hospitalares tamanho
king-size.
Fecho os olhos e me recosto no peito dele, permitindo que o silêncio
preencha confortavelmente o espaço entre nós.
O sono vem e vai, mas não consigo dormir profundamente de novo
porque agora tem uma sombra na nossa relação que antes não existia: Lars
está apaixonado por mim.
Não. Lars me ama. O que é muito pior.
Obsessão, necessidade de controle, tesão desenfreado e dominação?
Tudo isso eu posso lidar e tentar podar.
Até paixão.
Amor? Não, de maneira nenhuma.
Não é que eu não queira o apego emocional que transforma pessoas
inteligentes em criaturas abestalhadas, infantilizadas, grudentas e… sei lá
todos esses adjetivos não muito elogiosos ou lisonjeiros. Não é isso. Meu
problema com amor é outro, apesar de achar a transformação de um homem
viril em um poeta que faz rimas melosas absolutamente patético. O que
tenho medo é de não conseguir lidar com um coração partido. Sobreviver ao
abuso já foi difícil o suficiente.
Do jeito que a minha natureza é sensível, emocional e intensa, o risco de
me machucar é enorme. E o perigo em potencial que eu corro de me
apaixonar por ele e ele começar a me controlar? E se ele mudar? E se eu me
decepcionar? E se ele partir meu coração?
E se eu partir o dele?
A ideia de passar pela mesma quebra de confiança que passei com
Madre Jutta e com meu pai, novamente, desta vez com um homem, na fase
adulta, é insuportável.
A dor seria ainda maior.
Droga.
Saber que ele se sente assim me assusta. Apavora.
Talvez, se eu soubesse que ele estava apaixonado por mim, não tivesse
aceitado me casar com ele. Apesar de agora ser tarde para lamentar, não é
tarde demais para impedir algo pior de acontecer.
Porque o amor é uma força desconhecida, imprevisível e, acima de
tudo, perigosa.
Muito perigosa.
O ambiente lúgubre da Sala de Conferências que não ajuda a aliviar a
atmosfera tensa e pesada da reunião, mesmo que o sol esteja brilhando lá
fora, mas dada à gravidade dos assuntos com que temos lidado ultimamente
acho que nem se estivéssemos no jardim o ar estaria mais leve.
Os documentos espalhados pela mesa, os gráficos complexos e o mapa
gigante nas telas são claros até demais: os prejuízos causados nesse último
mês pelos vazamentos das informações confidenciais foram substanciais.
— Mas eu achei o esconderijo do rato — diz Tyr ao meu lado.
Estou sentado na segunda cadeira à direita da cabeceira da mesa à frente
de Leif, na configuração tradicional da nossa reunião semanal.
Normalmente, depois da reunião com todos os secretários ficamos só
nós cinco – e eventualmente um ou outro membro da equipe de Tyr – e
discutimos os assuntos sigilosos, como esse.
— É inadmissível que informações tão sensíveis estejam sendo
divulgadas para jornalistas! — Thorvald tamborila os dedos irritadamente
na mesa de madeira antiga. — Estamos falando de contratos bilionários, de
alianças estratégicas e, acima de tudo, da segurança do reino. Precisamos
descobrir quem está vazando essas informações.
— Concordo — respondo, rabiscando no bloco à minha frente, um
hábito que sempre me ajudou a manter a calma, mas que hoje falha
miseravelmente.
Meus olhos percorrem os documentos. Detalhes minuciosos sobre
negociações confidenciais, números exatos, datas e nomes. Alguém está nos
espionando há semanas e semanas.
Ou eu deveria dizer: me espionando.
Essa possibilidade me incomoda profundamente.
— Isso já nos causou prejuízos consideráveis — comento.
— Conforme você me pediu, Lars, revisei todos os protocolos de
segurança e não deixei nenhuma brecha. Implementei medidas mais
rígidas… — diz Tyr, espalhando sobre a mesa os relatórios confidenciais
que o Grupo do Subsolo compilou. — É alguém de dentro, não temos a
menor dúvida.
— Já sabíamos disso.
— Sim, sabíamos, mas não quem.
Um dos integrantes do Grupo do Subsolo, o ex-major do exército, e
também engenheiro, Eirik Lundgren fala: — Reduzimos ao máximo a
superfície de ataque e chegamos à conclusão de que os dados foram
exfiltrados através de um canal de comunicação oculto. — Ele explica
minuciosamente como fizeram para analisar o tráfego de rede e identificar a
assinatura do malware. — Reduzimos ao máximo o número de pessoas com
acesso aos dados mais sensíveis e chegamos à conclusão de que o
vazamento está vindo de um computador específico. Isolamos e
monitoramos cada dispositivo. — Mostra como foi feito e, para o meu
espanto, conclui: — É alguém que acessa o seu computador, príncipe Lars.
E Tyr faz a pergunta: — Quem tem acesso ao seu computador?
— Impossível — digo. — Só pessoas de extrema confiança têm acesso
ao meu computador e todos foram interrogados por você mesmo.
— Exatamente. — Tyr cruza os braços. — Alguém está mentindo.
Sacudo a cabeça, porque a única pessoa que acessa meu computador é
minha secretária direta. Uma senhora de uns cinquenta e poucos anos,
casada, diplomata de carreira, finíssima. Herdei-a do ministro anterior e já
me salvou de grandes problemas. Com presidentes, com primeiros-
ministros, secretários, funcionários, com ex-namoradas, com Vasilisa e até
comigo mesmo.
Conheço-a há anos e confio minha vida a ela.
— Duvido.
— Tenho certeza do que estou dizendo, Lars. É alguém que tem acesso
ao seu computador — insiste ele. — Quem é que tem acesso a ele?
— Ingá — falo finalmente.
— Ingá? — repete Thorvald, levantando as sobrancelhas na testa. —
Mas ela trabalha para você há muito tempo…
— Ela trabalha comigo desde sempre — confirmo. — Você tem certeza,
Tyr?
Ele bate com a caneta na tela do iPad, onde uma linguagem ininteligível
para mim supostamente diz que o vazamento de dados vem do meu próprio
computador.
— Se é só ela que tem a senha, é ela.
Como não digo nada, ele estende a mão.
— Seu computador, por favor — pede.
Sem saída, entrego meu notebook para ele, que o passa à outro dos
integrantes do Grupo do Subsolo, Stella Nordin, que é engenheira de
computação, dando ordens para, , enquanto estamos em reunião, colocar
armadilhas tecnológicas, que vai acionar um tipo de câmera escondida para
filmar quem entra no meu computador.
— Espero que você não veja pornografia com Vasilisa aí — diz ele,
fazendo gracinha para aliviar a tensão.
Dou um sorriso sem dentes para ele e volto à afirmar: — Não é Ingá.
— Você coloca a mão no fogo por ela? — pergunta.
Suspiro e digo: — Depois do que nós fizemos com a minha própria
esposa, não coloco a mão no fogo por mais ninguém.
O canalha do meu irmão ri. — Foi por uma boa causa, Lars.
— Eu sei, mas aprendi uma dura lição — digo, sentindo meus ombros
endurecer.
Até hoje não me conformei em ter vasado aquelas fotos.
— O que me leva a um outro problema: alguma notícia sobre quem
atirou em Vasilisa? Alguma novidade sobre a investigação?
— Infelizmente, nada ainda. — Tyr balança a cabeça negativamente. —
Mas estamos trabalhando incansavelmente para encontrar o responsável.
Um silêncio elétrico paira no ar.
— Não sei o porquê, mas acho que está tudo interligado — diz
Thorvald do seu lugar na cabeceira, tamborilando os dedos novamente. —
E acho que ainda vamos descobrir uma fossa tão cheia de esgoto e monstros
repugnantes que vamos ficar horrorizados.
— Ainda temos o problema da faca e da Égide — lembra a professora
Bergström, a terceira integrante, se referindo à atentados antigos. —
Precisamos eliminar as falsas pistas, reduzir ao máximo as possibilidades
do que é certo, para chegarmos as explicações lógicas, se não vamos ficar
fazendo o que eles querem que é dar voltas em torno do nada.
— E se voltarmos mais ainda ao passado? — sugere o quarto integrante,
o psicólogo Johannes Mal. — Aos atentados dos Reis Rollo e Canuto?
— Acho que temos que ser mais objetivos no momento — digo. — Não
porque não estou preocupado em desvendar a Égide, mas porque
precisamos parar rápido essa hemorragia. Depois, voltamos a investigar
mais fundo.
— É um ponto — concorda.
Tyr dispensa sua equipe e assim que eles saem e terminamos os outros
assuntos de governo, digo: — Preciso de um conselho pessoal.
Meus irmãos me olham com curiosidade.
— O que houve? — pergunta Leif.
— Desde que se recuperou, Vasilisa tem agido de forma estranha,
distante — confesso. — Fechada. Não sei se o que aconteceu trouxe à tona
algum trauma do passado dela, mas sinto que há algo que ela não está me
contando. Como se estivesse guardando algum segredo.
Ela se recuperou até que rápido, fisicamente, mas emocionalmente
parece quase ausente.
— Talvez ela precise de mais tempo — sugere Magnus, o eterno
conciliador. — Passar por algo assim não é fácil.
— Você acha que ela está escondendo alguma coisa? — pergunta Tyr,
franzindo a testa. — Você já tentou conversar com ela sobre isso?
— Não — admito, passando a mão pelos cabelos, e olho para a janela,
perdido em pensamentos. — Ela sofreu um trauma, talvez um semelhante
com o meu quando era mais jovem, e uma vez perguntei o que era, mas ela
se fechou e não quis me contar. E me incomoda não poder ajudá-la.
Porque sei que tem algo que a está atormentando.
— Você acha que foi o tiro que trouxe o trauma à tona? — pergunta
Thorvald, preocupado. — Ou é alguma outra coisa? Talvez ela esteja com
medo que o atentado se repita?
O que é uma possibilidade e fez com que eu ficasse cem por cento mais
neurótico, e redobrasse a segurança, reconheço, mas coloquei a culpa em
Tyr.
— Como vão as coisas na cama? — pergunta Leif.
— Estamos só nos beijos e abraços quase castos, e olhe lá.
Faço uma careta. Apesar de minha mão esquerda – sou canhoto – ter
ganhado uns calos neste mês, meu pau está duro neste exato momento e
minhas bolas estão roxas.
— Também não adianta muito, né?
— Como assim? — perguntam os quatro ao mesmo tempo.
— Ah, céus. Suas inteligências raras! — Rolo os olhos para o teto. —
Ela levou um tiro! Mal conseguia andar. O Dr. Andersen pediu para
evitarmos relações por seis semanas, consegui negociar um mês, ou seja,
hoje.
— E o que você está fazendo aqui? — pergunta Tyr, o taradão, que faz
sexo no mínimo duas vezes por dia, com os olhos quase saindo das órbitas.
— Não estou sabendo como lidar com ela — falo, meio desesperado,
quase arrancando os cabelos da cabeça de ansiedade. — Se sou muito
carinhoso, se insisto em perguntar sobre como foi o dia dela, ou o que ela
fez ou… sei lá, se procuro ser mais íntimo, ela se fecha, muda de assunto,
ergue uma parede entre nós.
Magnus se inclina na minha direção, como se não estivesse ouvindo
direito. — Que estranho.
— As mulheres são os animais mais esquisitos do planeta Terra —
resmunga Leif.
— Acho que é uma ofensa aos pobres bichos você dizer isso — fala Tyr.
— Eles ao menos se comportam de maneira consistente, já as mulheres são
imprevisíveis, mudam de humor em questão de segundos, de ideia como
quem troca de roupa, conseguem brigar com você por algo que sonharam a
vida toda, sem falar que inventam problemas do nada.
— Estava demorando — reclama Magnus, rolando os olhos para o teto.
— Será que ela descobriu sobre as fotos, Lars?
Um frio desce pela minha espinha, mas imediatamente refuto a
possibilidade: — — Não acho que seja possível.
— Possível? — Magnus arqueia a sobrancelha. — Não subestime o
radar delas. Elas enxergam através de paredes, têm audição supersônica e
rastreiam qualquer coisa suspeita num raio de milhares de quilômetros.
— E a gente achando que os espiões eram problema… — Leif balança a
cabeça.
— Mas falando sério: talvez seja um mecanismo de defesa para lidar
com o tiro — diz Thorvald. — Talvez ela esteja com medo do futuro.
Talvez precise de um pouco de espaço.
— Sem falar que ela passou por poucas e boas com aquele pai maluco
— relembra Leif. — A menina foi dopada e medicada com
betabloqueadores, benzodiazepínicos e digitálicos para induzir sintomas
físicos que reforçavam a ideia de que ela era doente e precisava da proteção
dele. Acrescente a isso, que ele a tratava como uma imprestável, a diminuía,
humilhava e só os deuses sabem o que mais.
— Você consegue imaginar algum pai fazendo isso? — pergunta
Thorvald, entredentes. Ele, que vai ser pai novamente em breve, fica
extremamente irritado com esse tópico. — Forçar o coração saudável de
uma filha linda e inteligente daquelas a ser doente para manipular o
dinheiro dela?
Balanço a cabeça. — Uma absurdo sem tamanho… O problema é que,
quando ela me afasta, fico no escuro.
— Ela estava indo bem, Lars. Calma, dê mais um tempinho a ela —
intervém Leif. — Vai para casa.
— Leva um presente, flores e chocolates. Pede a Barnaby para deixar
um jantar frio no jardim à luz de velas e sumir de vista — diz Magnus. —
Beija a moça e ela vai voltar a ser a sua Diaba.
— Vocês podiam tirar uns dias — sugere Tyr. — Afinal, vocês nem
tiveram lua-de-mel. Por que não tiram uns dias no Ártico? Só vocês dois.
Mesmo que seja um final de semana esticado.
— Olha… é uma boa ideia — digo. — Vou tocar no assunto hoje à
noite.
— Amanhã de manhã. Nada de assuntos que possam lembrar o
casamento hoje — diz Thorvald. — Agora, vai!
— Vou — digo, levantando-me, mais animado.
— Boa sorte! — gritam eles.
Antes de sair, vou para a minha sala e faço algumas ligações
importantes. É o tempo suficiente para Stella terminar de preparar o meu
computador e Tyr me devolver.
Ele me expulsa do palácio, dizendo: — Não faça nada que eu não faria.
Rio, porque não sei se Vasilisa faria a metade das coisas que Tatyana faz
com Tyr.
Ela chega em casa da faculdade mais cedo do que o habitual, mas
graças aos meus irmãos cheguei muito antes. Com a ajuda de Barnaby e sua
equipe perfeita, que já foram embora ou dormir, está tudo organizado para a
nossa noite.
Assim que ela desce do carro, sei que tem alguma coisa que a está
incomodando – vejo no verde dos seus olhos –, mas prefiro ignorar meus
instintos e não pergunto nada.
— Você chegou mais cedo! — exclama quando me vê esperando por ela
na entrada lateral da casa, e abre um sorriso tão bonito, um que não vejo há
muito tempo.
— Você também — falo, admirando o vestido cinza-claro longo,
soltinho, de mangas compridas, que a deixa mais jovem ainda.
— Estava com saudades — diz, levantando os braços e me puxando
pelos cabelos que ainda estão molhados do banho para me dar um beijo.
— Eu também, Pequena, muitas — respondo, antes que ela cole seus
lábios aos meus.
Puxo-a ao encontro do meu corpo, com cuidado, afinal tem apenas trinta
dias que um desgraçado de um projétil de fogo quase a levou de mim e às
vezes percebo que ela ainda sente dor.
— Que bom — diz ela, depois de roubar meu fôlego e de me deixar
ainda mais excitado do que eu já estava.
— Aonde vamos? — pergunto, divertido, porque ela me pega pela mão
e vai entrando pela casa, determinada.
— Tenho um presente para você.
— Para mim? Mas não é meu aniversário — digo, fingindo surpresa
com a data.
— Não, é nosso.
Sem soltar a minha mão, passa pelo escritório, larga a pasta da
faculdade e a bolsa no seu lado da mesa e continua direto até o closet.
— Hmmm…
Vira-se de costas para mim, levanta os cabelos e pede: — Abre o zíper,
por favor?
Com o maior prazer.
Pensei em milhões de maneiras de como começar a sedução dela, e
parece que ela também andou imaginando algo, porque quando levanta os
olhos para mim no espelho, não consegue impedir o rosto de ficar
vermelhinho.
Ela passa a língua nos lábios quando livro seu corpo da barreira
indesejada e o vestido cai no chão.
O reflexo revela um corselet transparente e de renda prata e… couro
preto, com cinta-liga, e correntes e uma calcinha completamente
transparente que me mostra que ela depilou o monte de vênus inteiro.
— Caralho…
Dou um passo para trás para admirar as costas da lingerie, que é apenas
um pedacinho de pano transparente entremeado com couro e um lacinho
preto bem em cima da bunda. Nada mais.
O melhor presente que eu poderia ganhar.
Preciso fechar os olhos um momento para me controlar, porque puta que
pariu!, essa Diaba me mata com esse jeitinho tímido e, ao mesmo tempo,
safado dela.
Ela se vira nas sandálias prateadas de saltos altos. Lambe os lábios de
novo e diz: — Você está muito vestido.
— Não seja por isso — Arranco minhas roupas em tempo recorde e
deixo tudo jogado no chão do closet mesmo, e piso nelas, para chegar mais
perto dela. — Pecadora safada, você me enlouquece…
Tomo seus lábios em um beijo faminto. Porque é assim que estou:
faminto pela minha princesa.
Quando a puxo para mim, me dou conta que é a primeira vez que vou
tê-la como minha esposa e que não pode ser aqui.
Pego-a no colo e levo-a para o quarto, mas ela empurra meu ombro.
— Lars, não, aqui não — diz e me direciona para as portas que levam
para o jardim. — Lá fora. Perto da cachoeira.
Sigo as instruções, em passadas rápidas, porque já tem muito mais de
um mês que não a fodo. Um mês e uma semana para ser preciso.
Quando viro no nosso jardim privativo vejo uma estrutura
contemporânea, minimalista, que se integram com a paisagem natural ao
redor, onde há apenas um banco estilo sofá-cama, que convida ao
relaxamento total. Ou não.
— Seu presente — sorri para mim.
Posicionado na beira do penhasco, o caramanchão oferece uma vista
espetacular do fiorde que se estende abaixo, com águas azul-esverdeadas
refletindo o céu e, ao mesmo tempo, parece estar quase abaixo da cachoeira
Raio de Luar.
— Você é perfeita, meu amor — falo, encantado que ela tenha se
lembrado do que conversamos brevemente no primeiro dia.
Deito-a nas almofadas macias e volumosas.
— Mas eu prefiro esse presente aqui — falo em seus lábios. — Posso
desembrulhar?
Ela sorri. — Se você quiser. É seu também.
Sento-me ao seu lado e desfaço os laços que prendem o corselet, sem
pressa, acariciando cada pedacinho de pele que aparece, até que os bicos
dos seios rosados despontam já enrugados.
— Olha essas lindezas — murmuro, deslizando os dedos por dentro da
renda e seguro um biquinho entre o polegar e o indicador.
— Lars… — Ela coloca a mão sobre a minha.
Levanto os olhos para ela.
— Não faz amor comigo. Faz sexo — pede. — Suado, sujo, safado.
Não entendo essa resistência ao carinho, mas se ela quer eu faço.
Abocanho um de seus seios e puxo-o entre os dentes. Suas costas
arqueiam e chupo o mamilo, e repito os mesmos movimentos no outro,
enquanto arrebento sua calcinha violentamente, destruindo a lingerie tão
delicada.
Enfio a mão entre suas pernas que caem para os lados, encontrando-a
molhada.
— Vadia, pecadora — murmuro contra sua pele.
— Por favor, por favor — geme, choraminga.
Caio de joelhos no chão à sua frente, porque se ela peca, faço questão
de pagar os pecados por ela.
— Ah! — geme e estremece, as mãos puxando meus cabelos, quando
meus dedos se enterraram de uma vez em sua bocetinha ensopada. — Ai,
que delícia.
— É isso que você quer?
— É… é, sim… — geme e ondula. — Enfia mais, me chupa. Me dá
prazer, Anjo.
— Pede com educação — aviso, estancando o movimento. — Pede para
o seu príncipe. Vamos.
— Por favor — geme, alucinada. — Por favor, meu príncipe, me dá
mais!
Abro a boca e abocanho seu sexo enquanto giro meus dedos, puxando e
metendo sem parar.
Ela se entrega, rebola no meu rosto, buscando seu prazer, linda. Eu a
lambo, chupo e fodo, com língua, lábios e dedos, deliciando-me com o que
posso proporcionar a ela.
Ela goza e cai arfando nas almofadas e subo no sofá e volto a beijá-la,
desta vez com muita gentileza, esperando que ela se recupere.
Acaricio a pele, com a ponta dos dedos, com pequenos beijos,
descobrindo novamente seu perfume, sua maciez. Trago sua mão à minha
boca, beijo a ponta de seus dedos, lambo seu punho, sinto a vibração do seu
pulso, a batida do seu coração e o ritmo de sua respiração enquanto beijo o
interior do seu braço. Ela estremece.
Beijo a curva suave do seu ombro e seguro o seio pesado na minha
palma, brincando com o mamilo novamente.
— Lars… — reclama, ofegante de novo.
Então, antes que ela me peça algo, beijo seus lábios.
E o universo some.
O que foi antes, não existe mais. Jamal, Hardrada. O tiro, todo aquele
sangue, a possibilidade de a tirarem de mim… Meu passado e o dela. Tudo
isso morreu.
Tudo se condensa neste momento, nesse beijo apaixonado, no nosso
presente.
Enquanto a beijo, percebo que minha vida ao lado dela é uma tela em
branco e que ela e eu somos os pintores. Resta saber quais serão as cores e
as imagens que faremos juntos.
Esse beijo é que vai concretizar o nosso futuro.
Ela não decepciona e me beija de volta.
Beija-me com paixão – e com carinho e suavidade. Suas mãos deslizam
por meus braços, ombros, pescoço, pelo meu corpo inteiro, como se
estivesse reaprendendo meu tamanho e minha forma.
— Lars — geme de novo e, com um movimento que me surpreende, ela
me derruba nas almofadas e sobe sobre mim.
— Cuidado… — falo, preocupado, mas ela me silencia com outro
beijo.
E eu deixo que tome a dianteira e ela desce pelo meu corpo, e devolve o
favor, chupando meu pau.
— Ah, sua gostosa — grunho, segurando seus cabelos na mão para
poder ver melhor o espetáculo. — Chupa mais fundo.
Fecho os olhos e deixo minha cabeça cair para trás, tomado pelo prazer,
mas não quero gozar na sua boca.
— Chega — ordeno, puxando-a para cima.
Rolo com ela, deito-a embaixo de mim, posiciono-me e quando estou
pronto para penetrá-la, lembro-me que não trouxe a camisinha.
— Merda!
— O que foi? — pergunta, desvairada, e me puxa pelas pernas. — Vem,
vem.
— Esqueci o preservativo no moletom — explico.
— Não importa, não tem problema — diz, me pegando na mão macia e
posicionando a cabeça sensível do meu pau na sua entrada. — Vem, vem.
Quando ela levanta o quadril, não resisto, estoco dentro dela feito um
animal.
Ela grita, arqueia o torso, enfia as unhas nos meus ombros.
O prazer de entrar na sua bocetinha é imenso, apesar de ela ser tão
apertada que só depois de umas três arremetidas é que consigo penetrá-la
até o fundo.
— Lars, Lars! — Ela me aperta nos braços — Quero mais… Mais…
Dou mais, dou o que ela quiser, contando que ela seja minha. Inteira,
completa. Só minha.
— Goza, Diaba, goza e diz quem te dá prazer — ordeno.
Meu sangue lateja nas minhas têmporas, nos meus ouvidos, no meu pau,
nas minhas bolas.
Vou gozar e só queria mais uns minutos nesse espaço-tempo em que
parece que estou fundido com ela, em que sou uma parte do seu ser.
Penetro-a firme, forte, fundo. Fora de mim.
As gotas de água gelada da cachoeira nos molham, se misturam com o
nosso suor, como se estivessem nos avisando que o abismo está a poucos
metros de distância e que a queda é fatal.
Ela grita meu nome, goza, as unhas arranham minhas costas inteiras.
— Caralho, Diaba, você está me estrangulando.
Brigo com a realidade para a qual não quero voltar, mas, finalmente, o
desejo, avassalador, dilacera meu controle, o tesão é eclipsado pela
necessidade de sentir e sou puxado para o paraíso por um momento infinito
e tão breve.
— Lars…
Nossos olhos se encontram, se conectam, não há nada neste momento
no mundo além de nós dois.
E, então, tudo se intensifica: o som da cachoeira que ruge ao nosso lado;
a força da natureza que se entrelaça com a nossa, descontrolada, como um
vórtice puxando tudo à nossa volta, e explode, termina e me reorganiza.
Acalma em um sentimento inexplicável e profundo de acerto.
— Anjo, acho que no céu não fazem isso que acabamos de fazer — diz,
ainda ofegante.
— Pois a mim, pareceu o paraíso.
Não quero sair de dentro dela, nem me mexer, mas escorrego para o
lado, deito-me, e abro o braço para que ela venha se aconchegar no meu
peito.
Ela suspira e vem. Seus dedos penteiam meus cabelos.
— Esse local não podia ter ficado mais perfeito. Obrigado.
— Vai ser nosso refúgio — diz.
Realmente parece um refúgio secreto onde a beleza bruta da natureza
encontra o conforto moderno, mas simples, ideal para momentos de
contemplação e paz. E paixão, como os que tivemos agora.
Deslizo as mãos por seus quadris arredondados, sua cintura fina, onde
do lado direito a cicatriz vermelha e raivosa risca sua pele perfeita. Ela
emagreceu, as costelas estão aparecendo. Faço uma anotação mental para
pedir à Chef para descobrir o que ela gosta e caprichar mais nas refeições.
O engraçado é que sempre achei que relacionamentos eram uma estrada
perigosa e sei que o que sinto por Vasilisa está me levando por um caminho
que nunca percorri antes, mas há algo nela que me completa, apesar de
também me assustar por causa da intensidade com que me faz amar.
Nunca tive essa vontade desesperada de mergulhar no caos de outra
pessoa e conhecê-la por inteiro.
Nunca desejei ficar apenas assim, aproveitando o calor do corpo de uma
mulher e vendo o sol se pôr no horizonte.
Ela é perfeição. Na complexidade e simplicidade. No futuro, esse novo
campo inexplorado, ela é a fonte de todas as possibilidades, ideias, a força
avassaladora que me impulsiona.
Uma brisa fria sopra, esfriando nossos corpos, apesar dos aquecedores
que ligaram automaticamente há pouco.
— Vamos entrar?
— Vamos. — Ela se espreguiça e boceja. — Estou cansada.
— Você não dormiu bem ontem à noite — falo, após uma pequena
hesitação.
— A comida não caiu bem — justifica, levantando-se e recolhendo as
peças destruídas da lingerie.
Dá às costas para mim e volta para o quarto, efetivamente cortando o
assunto.
Ou será que ela tem pesadelos e não quer me contar?
Meu sono é muito leve e reparei que assim que voltamos para casa, ela
acordou bem mais cedo e saiu do quarto de ponta dos pés para não
perturbar meu descanso.
Algumas vezes, foi para o jardim. Outras, para o outro quarto e tentou
dormir de novo, como se tivesse ficado incomodada pela minha presença na
cama. A maioria das vezes, foi para o escritório estudar ou ler, ou só olhar
para o horizonte, perdida em pensamentos.
Duas ou três vezes fui atrás dela, mas percebi que não gostou.
Queria que soubesse que estava disponível para ela, que entendesse que
pode confiar em mim, que posso ajudá-la. Mas para não me tornar mais
uma das correntes que a prendem, não insisti.
Suspiro e não insisto porque sei que o que ela passou não foi fácil. Ela
realmente precisa de tempo e ajuda para lidar com o medo, digerir o que
houve.
Quando chego no banheiro, ela está lavando o cabelo.
Entro no box, que tem dois chuveiros, para tomar uma chuveirada
rápida e não me demoro mais do que o necessário, apesar de ter vontade de
pegar o óleo de banho e lavar seu corpo.
Pego minha roupa no chão do closet dela, levo para o meu, onde me
visto com outra e espero por ela na sala íntima, que é um espaço múltiplo,
aconchegante, de leitura e TV, que também dá para o jardim, onde está
posto o nosso jantar.
E quando ela chega, vem sorrindo, o que me dá um alívio enorme.
— Também tenho um presente para você — digo, entregando-lhe uma
caixa branca, característica do Maître Chocolatier i Pierre Marcolini. — Um
passarinho me contou que são suas preferidas.
— Ah, Lars, obrigada — diz, pegando a caixa e abrindo. — Trufas de
champagne. Amo!
Ela é tão fácil de agradar que é até ridículo. No entanto, claro que para
essa data tão importante, não comprei só chocolates.
Porque não faz trinta dias do nosso casamento. Na verdade, este é o
primeiro dia do nosso casamento. Então, fui buscar algo simbólico,
elegante, discreto e permanente. Não foi fácil e, ao mesmo tempo, foi.
Escolhi uma pulseira da coleção Love, do Cartier, que precisa de uma
chave de fenda para ser fechada e aberta. É o que chamam de pulseira-
escrava. A escolha é emblemática, até porque o presente não termina na
pulseira pura e simples. É de ouro rosé ii, com seis brilhantes discretos,
porque a ideia é ela usar diariamente, junto ao relógio.
— Ah, Lars… É linda!
— Fico feliz que tenha gostado. — Sorrio e pego a pulseira da caixa. —
Mas tem mais…
Queria fazer uma gravação na parte de dentro e essa era perfeita.
Escolher a frase não foi difícil: Fazer você sorrir é o que me faz feliz.
Porque é isso: o som do riso dela, o brilho nos olhos verdes, são como
melodias e poemas que quero guardar para sempre.
— Nem sei o que dizer… É lindo — sussurra e seus olhos se enchem de
lágrimas.
— Mas não é para você chorar, minha princesa, porque linda é você —
respondo. — E não é só a beleza física, mas o que você me faz sentir…
Ela me beija, interrompendo o que vou dizer.
Não é a primeira, nem a décima vez que ela faz isso.
A primeira vez não percebi, porque foi de uma maneira gentil. Ela faz
isso com uma mistura de firmeza e suavidade e um toque de selvageria que
me distraiu, mas depois da quarta ou quinta vez, comecei a reparar e acho
que vejo medo em seus olhos.
— Posso colocar? — pergunto, depois que ela interrompe o beijo.
Ela me dá o braço esquerdo e fecho a pulseira, guardando a chave de
fenda na caixa.
— Obrigada. Estou apaixonada — diz. — Mesmo!
Pela pulseira, não por mim. Isso me entristece um pouco, mas sou
paciente.
— Vamos jantar? — sugiro, mantendo o clima mais leve. — Temos
salada caprese, guacamole, quiche de legumes e de salmão.
— Você está se saindo um ótimo dono de casa — brinca ela.
Pisco para ela. — Com Barnaby, é fácil.
Saímos para a varanda, onde Barnaby deixou tudo organizado e nos
servimos antes de sentarmos. A conversa gira por assuntos leves, mas
percebo que ela come pouco e boceja, apoiando a cabeça na mão, como se
estivesse com tanto sono que fosse dormir ali mesmo.
— O que acha de fazermos uma viagem de uns cinco dias? Poderíamos
ir para aquele hotel no Ártico onde Tyr e Tatyana fizeram a lua de mel
deles.
Ela hesita e boceja de novo. — Talvez…
Franzo a testa. — Talvez?
— Estou com sono demais no momento para pensar sobre isso no
momento. — Ela desvia o olhar e boceja de novo. — Podemos conversar
sobre isso amanhã?
Não sei se está fingindo ou se está realmente cansada, mas não forço. —
Claro. Você já terminou?
— Já.
— Então vamos descansar — digo.
Pego a bandeja de madeira comprida e Vasilisa traz os pratos e talheres.
Levamos tudo para a copa, que fica ao lado da sala de jantar. Enquanto lavo
a louça, ela guarda a comida na geladeira, como se fôssemos um casal de
muito anos, o que me faz sorrir.
Passo o braço em seus ombros e caminhamos lado a lado pelo corredor
silencioso para o nosso quarto.
Vasilisa estanca na entrada espantada com a cama que está aberta.
— Como foi que Barnaby passou por nós e nem percebemos?
Levanto as mãos. — Não me pergunte. Me lembro da mãe de Leif
dizendo para o meu pai que esses mordomos ingleses eram meio mágicos.
— Devem ser. — Ela ri e então me olha. — Posso dormir sem trocar de
roupa e sem escovar os dentes?
— Pelos deuses! De onde saiu isso?
— Acho que foi o sexo — diz.
Aproximo-me por trás e envolvo-a em um abraço suave. — Vem, eu te
ajudo.
Ela se vira em meus braços, ficando de frente para mim. Nossos olhares
se encontram.
Ela se coloca na ponta dos pés e me beija, um gesto terno que retribuo
com afeto. Nossas emoções parecem se alinhar, e sinto uma conexão
profunda que vai além das palavras. — Adorei nossa comemoração.
Obrigada!
— Vamos escovar os dentes, porque roupas para dormir são
dispensáveis.
Depois que deitamos, e Vasilisa está aconchegada em meus braços, não
demora para a respiração dela ficar lenta e profunda.
Também adormeço, mas parece que acordo logo depois, com a sensação
de que algo está diferente.
Abro os olhos e vejo Vasilisa se esgueirando para fora da cama, como
na segunda vez que dormimos juntos. Agarro seu pulso, tentando impedir
que ela saia.
— Aonde você vai? — minha voz sai rouca de sono.
— Lars! — Ela põe a mão na boca, puxa o braço com força e sai
correndo.
Merda.
O olhar de apavorada que ela tinha nos olhos me faz levantar de um
pulo.
Sinto um aperto no peito que não sei explicar. Encontro-a debruçada
sobre a pia, jogando água gelada sobre si mesma, sem se importar em se
molhar toda.
Não é enjoo, é pesadelo. É horror! Pavor. Conheço os sintomas.
Seguro seus cabelos compridos nas mãos e amparo seu corpo.
— Calma, princesa. Talvez seja melhor um banho morno de banheira —
digo. — Quer?
Ela fecha a torneira e tateia em busca da toalha, que entrego a ela.
— Não, já estou bem melhor. Foi só um pesadelo.
Bingo!
— Quer conversar sobre isso? — pergunto, sentindo que o sonho ruim
ainda a incomoda.
— Não, já passou. — Ela nega com a cabeça. — Melhor trocarmos de
roupa e irmos tomar café.
— Tudo bem.
Aproveitamos que estamos no final do verão para tomar o desjejum no
jardim. Em breve, as manhãs serão muito curtas, quase inexistentes, e será
impossível ficar muito tempo do lado de fora. Olho para o telhado de vidro
com o pé direito de mais de vinte metros desse ponto da estrutura
contemporânea e dou graças aos deuses por ter escolhido uma casa que tem
uma infraestrutura toda preparada para o inverno e as tempestades de neves
que assolam agora a nossa região.
Sem falar que esse lado da residência é ecologicamente correto e com a
eletricidade que gera, mantém o palácio, as residências dos funcionários, o
que é perfeito.
Vasilisa come apenas algumas frutas e toma um copo de suco.
— E então, animada para a nossa viagem no final de semana? —
pergunto, tentando mudar de assunto.
— Viagem?
— Para o Ártico.
Ela me olha, com um brilho estranho nos olhos.
— Lars… — Sua voz treme, como se estivesse lutando para encontrar
as palavras certas. — Eu…
Para novamente.
Chego minha cadeira mais para perto da dela e pego sua mão na minha,
segurando-a, firme. Posso sentir a tensão em seus dedos, que tremem como
asas de um passarinho amedrontado.
Meu olhar se fixa no dela.
— Fala, meu amor — digo, em um tom baixo e grave. — Confie em
mim.
Inclino-me em sua direção. Quero que ela sinta que não está sozinha,
que pode se render à minha proteção sem medo.
Minha outra mão se eleva para acariciar suavemente sua face, meu
polegar roçando a pele macia dos seus lábios entreabertos.
— Você sabe que pode me contar o que quiser que vou te apoiar e te
ajudar no que precisar, não sabe?
Ela balança a cabeça, inspira profundamente, mas as palavras não vêm.
Pisca, talvez afastando lágrimas?, o que me diz que é algo sério, e meu
coração erra uma batida.
— Sei — sussurra, finalmente, a voz rouca, como se fosse difícil
empurrar pela garganta o que está escondendo, o que a vem atormentando
há semanas.
Hesita mais um segundo e então, com um meio-sorriso, diz: — Vou
fazer um estágio na Arctic.
— Na Arctic?! — repito, incrédulo, e sem conseguir me controlar,
exclamo: — Você ficou maluca?!
Ela puxa a mão da minha e dá uma risada ácida. — Me apoiar e ajudar
no que eu precisar, não é?
Passo as mãos no rosto duas vezes e me levanto da cadeira, precisando
de um pouco de distância.
Primeiro, porque tenho certeza que não era isso que ela ia dizer.
Segundo, porque a minha reação foi péssima. Terceiro, porque a Arctic é a
prisão de segurança máxima de Vinterland. É para lá que são enviados os
criminosos mais perigosos do Reino, incluindo serial killers, outros
psicopatas.
— Perdão, mas é que não acho prudente, nem seguro, uma princesa de
Vinterland trabalhando em uma prisão. Muito menos na Arctic — digo, o
nome da prisão saindo quase como um rosnado. — Não sei se você sabe,
mas é lá que os criminosos que cometeram crime de lesa-majestade e
obtiveram o benefício de prisão perpétua, ao invés de pena de morte, estão
presos.
— Não sabia disso, mas não vou lidar com eles e, sim, com os
psicopatas — explica. — Além disso, os atendimentos não serão feitos o
tempo todo lá no Ártico. Muitos acompanhamentos serão realizados quando
os presos vierem para julgamento e em sessões on-line. Não vejo problema
nenhum…
Giro nos calcanhares porque as imagens sangrentas que eu deixei no
passado querem arrombar a porta e invadir meu presente. — Eu vejo!
— Estarei acompanhada o tempo todo da minha professora. Quero
aprender mais sobre psicologia forense e me especializar nessa área.
Essa criatura etérea e doce quer lidar com criminosos?
— Como é?
— Lars, preciso fazer isso. É importante para mim. — Ela também se
levanta e vem na minha direção. — Não é perigoso. Sei que você se
preocupa, mas…
— Mas nada! — interrompo, minha voz mais alta do que pretendia. —
Você não pode e não vai se colocar em risco assim.
Ela para no meio do caminho, os olhos cheios de lágrimas, mas cheios
de ímpeto e determinação também. — Quem decide isso sou eu. Você não
manda em mim.
Aperto a ponte do nariz.
— Não, não mando em você, Vasilisa. — Inspiro fundo e solto o ar
lentamente, domando as emoções turbulentas que ordenam que eu a tranque
no quarto imediatamente. — Mas basta uma palavra minha e Tyr proíbe
você de entrar na Arctic.
Seus lábios se abrem e fecham e finalmente ela diz: — Você faria isso…
— Faria — afirmo, porque não vou mentir: a segurança dela é
prioridade. — Não me obrigue a tomar atitudes que eu não gostaria.
Não gosto de tolhê-la, mas também não posso permitir que ela se
coloque em perigo. Já chega o que aconteceu no casamento.
Meu celular toca e vibra ao mesmo tempo. O alarme para a reunião com
os investidores americanos, eu cancelo. Thorvald na linha, eu ignoro. No
entanto, não posso estender mais essa discussão, até porque é sem sentido.
— Entendo seu desejo, mas precisamos considerar as implicações… —
digo e pego meu blazer nas costas da cadeira. — Eu tenho que ir, Thor
inclusive está me ligando, mas prometo compensar você mais tarde.
Vou até onde ela está, parecendo fossilizada no meio da sala. No
entanto, ela pisca e duas lágrimas rolam pelo rosto.
Merda. Talvez minha reação tenha sido desmedida.
— Preciso ir mesmo, minha princesa. Conversamos melhor sobre isso
mais tarde, está bem? — digo, de maneira suave, mas ela não responde. —
Vou perguntar a Tyr o que ele acha…
Ela continua a chorar, tão quieta que se eu não estivesse na sua frente
não saberia.
— Não precisa chorar, a gente vai dar um jeito de você participar de
alguma parte desse projeto — tento novamente. — À noite, você me mostra
como serão os atendimentos on-line e a gente marca uma conversa com sua
professora e estabelece protocolos de segurança. Tudo bem?
Nada.
— Pequena, não fica assim…
Estendo a mão para limpar mais duas lágrimas grossas que rolam
silenciosamente pela pele macia, mas no último segundo ela vira o rosto.
— Nos vemos à noite, Lars. — Ela me dá as costas. — Bom trabalho.
Fecho os olhos e suspiro. — Vasilisa, você não entende o que está me
pedindo…
— É, eu sei — diz, engasgada. — Sou inexperiente, inadequada,
ineficiente, improdutiva, imprestável, e se você quiser adicionar outros
adjetivos negativos, esteja à vontade.
A suavidade da voz é contrariamente proporcional à força da porrada
que as palavras contêm.
— Vasya, não seja injusta, não é assim!
— É, é assim mesmo, Lars. — Na passagem entre a sala e o escritório,
ela faz uma pausa, passa o antebraço pelo rosto e olha para mim por cima
do ombro. — Aliás, eu esqueci. Também sou incapaz. Não só não tenho
nenhum poder de decisão, como você manda em mim.
Com esse último golpe, perfeitamente aplicado, ela me joga no chão e
nem se dá ao trabalho de se vangloriar da vitória.
Porque essa batalha, nós dois perdemos.
Não o levo a porta, nem peço carona a ele, como me habituei a fazer desde
que vim morar com ele.
Entro no escritório, fecho a porta e sento na minha cadeira, apoio os
cotovelos na mesa, o rosto nas mãos e deixo o choro vir.
O primeiro soluço que escapa do meu peito vem de tão de dentro que
dói. Estava demorando para mais um tentar me cercear, me impedir de ser
quem sou.
Esse projeto, apelidado de DarkLine i, cujo nome foi escolhido
paraenfatizar a linha tênue entre comportamento normal e psicopático, vai
ajudar a mapear padrões e comportamentos obscuros. É totalmente
inovador em Vinterland e vai analisar vários serial killers ii e psicopatas,
como a mente deles funciona, e vários outros detalhes, e formar uma base
de dados acessável pela polícia e agências de investigação, inclusive
internacionais, com foco em antecipar perfis e ações criminosos, e visando
solucionar mais rápido e evitar mortes desnecessárias.
É sempre assim que eles começam: com um papinho de vou te ajudar e
te apoiar, e quando você conta seus desejos e sonhos mais íntimos onde
você se vê realizada, matando dragões, ou ao menos domando-os e
acorrentando-os aos seus pés, eles retiram sua espada e roubam seu cavalo,
sem pena. Ou fazem você parecer um Quixote, que deseja lutar contra algo
muito mais amedrontador e perigoso que moinhos de vento.
Porque o mundo é assim: cruel, injusto e cheio de expectativas. E
parece que não aprendi que confiar é me expor a mais dor e que sempre
haverá alguém querendo me controlar.
Até entendo que a ideia de uma princesa lidando com criminosos e em
uma prisão seja bizarra, mas nem é a tal Arctic lá do Ártico mesmo. É a
filial, aqui em Vinter, para onde os prisioneiros vão quando estão em
julgamento ou por alguma outra razão.
É a maneira que tenho de entender e trabalhar as minhas neuroses.
Muito mais saudável do que sair por aí proibindo cônjuges de fazer A,
B ou C só porque tem medos e inseguranças que não sabe enfrentar e acha
que é mais experiente.
Imagina se conto o que tem atormentado as minhas noite, manhãs e
tardes. Acho que ele surtava de vez. Credo!
Enxugo os olhos e olho o relógio. Quinze para as dez. Se eu correr,
consigo pegar a professora, que vai sair da faculdade só às dez e meia. A
única coisa que preciso é do formulário impresso.
Decido que não vou deixar as regras e imposições dele ditarem minhas
ações.
Foda-se.
— Foda-se — repito a palavra em voz alta, lembrando das lições de
Fräu Meyer e penso nas personagens que incorporei e deixo que a força da
determinação feminina me possua, essa força que tenho lá dentro e que me
socorreu tantas vezes. Porque ninguém, nunca mais, vai fazer comigo o que
meu pai fez.
Pego o interfone, disco o número da garagem e peço: — Olaf, bom dia,
vou sair em cinco minutos. Pode trazer o carro para a lateral, por favor? —
enquanto ligo meu computador e abro uma aba da internet.
Bufo, enquanto espero que a página da faculdade carregue e uma raiva
começa a tomar conta de mim. Nem acesso livre à internet, eu tenho.
O neurótico obsessivo com segurança do meu cunhado instalou tantas
proteções e barreiras, ou seja lá como é o nome desses trecos que ele enfiou
no meu computador que para entrar em qualquer site levo milênios!
— Inacreditável — murmuro, vendo a mensagem de acesso negado
piscar na tela.
Meus olhos batem no notebook de Lars, esquecido sobre a mesa, e me
lembro como consegui entrar no meu e-mail em segundos quando usei o
computador dele.
Sem pensar duas vezes, puxo o notebook dele para perto de mim e abro-
o.
A senha? A mesma da outra vez: $r@L+V@$i1!$@. Quando na época
comentei que não sabia como ele conseguia decorar aquilo, ele explicou
que era Lars escrito ao contrário mais Vasilisa, com vogais sendo
substituídas por números e símbolos e o s por cifrão. Achei tão fofo que não
deu para esquecer.
Quando a senha abre a máquina, sorrio ironicamente e dou o dedo do
meio para a tela.
Acesso à internet. Consigo entrar no portal da faculdade em menos de
um minuto e baixo o formulário necessário, enquanto o do meu computador
continua rodando e rodando, como se fosse um carrossel colorido de um
circo empobrecido.
— Claro, o príncipe super-poderoso que quer controlar a princesa tem
acesso ilimitado — digo para o escritório vazio. — Babaca, filho da puta.
Preencho o formulário rapidamente, dou o comando de imprimir duas
cópias. Para adiantar, assino o formulário com o programa de assinaturas
eletrônicas da faculdade, anexo a um e-mail e envio o arquivo para a
professora Berg, informando que estou a caminho. Ela responde
imediatamente que me aguardará no estacionamento, porque não podemos
nos atrasar de jeito nenhum ou perderemos aquela entrevista.
Fecho todos os programas, faço logoff da conta, desligo e fecho o
notebook. Tudo conforme ele me ensinou.
Pego as folhas, enfio na minha pasta, jogo meu notebook, iPad e celular
de qualquer jeito dentro da minha bolsa e me levanto. Pego o laptop de Lars
para colocá-lo no lugar exato quando a porta do escritório se abre de
supetão.
Dou um pulo quando meu marido entra.
— Nossa, assim você me mata do coração — digo e ergo o computador
dele. — Esqueceu isso?
Ele arqueia as sobrancelhas. — Exatamente.
— Ia pedir para Barnaby entregar no seu escritório — respondo,
colocando o aparelho nas mãos dele.
Ele me observa por um instante, os olhos buscando os meus. — Você
vai sair?
— Vou — afirmo, erguendo o queixo. — Tenho aula.
Ele me pega pelo braço.
Olho para cima.
O cabelo meio despenteado e os olhos que ardem azuis dão a ele um ar
de selvageria que me deixa com vontade de morder seu lábio e talvez até
tirar sangue… Provocá-lo para que ele me dobre sobre a mesa, levante
minha saia, empurre a calcinha para o lado e se enfie dentro de mim, sem
ligar para quem estiver escutando meus gritos.
Só de pensar no seu pau me abrindo, em senti-lo todo dentro de mim e
nele fazendo sexo forte e duro comigo fico nervosa.
Esse homem mexe comigo de um jeito que nem sei definir, mas se eu
ceder agora ele vai se habituar a repetir o comportamento.
— Estou atrasada. — Passo a língua nos lábios. — Preciso ir.
Seus olhos acompanham o movimento e escurecem.
Acho que ele vai me puxar para os seus braços. Ou me empurrar contra
a parede. E me beijar.
Dou um passo para trás.
— Vasilisa, não quero que as coisas fiquem assim entre nós.
— Lars, na minha opinião, você já disse tudo o que precisava —
retruco. Desço o olhar para os dedos dele à volta do meu bíceps. — Pode
me soltar, por favor?
Ele suspira, e deixa cair a mão. — Vasya, minha princesa…
— Até mais tarde — respondo, passando por ele em direção à saída,
antes que eu me descontrole, ceda e seja eu que me jogue em seus braços.
Detesto mentir, mas fiz minha escolha e preciso ser firme.
Escuto mais um suspiro, irritado desta vez, e seus passos atrás dos
meus.
Olaf já está com o carro na lateral e Barnaby abre a porta para mim.
— Tenha um bom dia, Alteza — diz.
— Obrigada, Barnaby, para você também — digo, tentando controlar a
ansiedade e o desejo que decidiram entrar em guerra dentro de mim.
Assim que ele fecha a porta, viro-me para Olaf e peço: — Para a
universidade, por favor.
Não posso contar a ele o que não me deixa dormir em paz. Como
também não pude contar a ele o que vou fazer agora.
Não gosto de mentir, mas foi ele que me colocou nessa posição.
Viver com uma mentira é difícil, tão difícil que estou quase desistindo,
mas só de pensar no que ele vai fazer comigo sinto um calafrio e enjoo ao
mesmo tempo.
Não sei se tenho coragem… Sei que mais dia, menos dia ele vai
descobrir e preciso decidir como agir. Por enquanto, não há nada a fazer.
Olho pela janela, vendo as paisagens passarem como um borrão, e o
bairro universitário se aproximar.
Mando uma mensagem no grupo das Quatro Mosqueteiras, porque
preciso desabafar:
Homens controladores e possessivos são bons namorados e maridos
somente nos livros hot.
Meu celular apita logo.
A primeira que responde é Tatyana. Claro.
Na cama, também.
Depois meu celular enlouquece com umas dez figurinhas de Catarina –
todas absolutamente impróprias para menores de cem anos, no mínimo!, e
de muito mau gosto –, que variam de uma mulher babando por um pau
enorme até um sexo feminino, super cabeludo, arreganhado e rebolando
para um vibrador e outras mais que não quero nem rever.
— Gente… — murmuro entre horrorizada, chocada e divertida, quando
ela coloca uma figurinha móvel, que é quase um vídeo, pornográfica e
politicamente incorreta, que faz meu rosto ficar quente. — Que horror!
Essa deveria ser proibida, sob pena de queimar as córneas.
— Disse alguma coisa, Alteza? — pergunta o motorista, olhando-me
pelo retrovisor.
— Não, Olaf, nada. Estou falando sozinha, ou melhor com a tela do
celular — digo para ele, sentindo meu rosto ficar quente.
Ele sorri. — Sei como é, tenho filhos.
Jesus, Maria e José. Essa minha prima me apronta cada uma.
Respondo com outra figurinha – uma lagartixa arrancando os olhos e
gritando que queria poder desver aquilo – e um texto:
Credo! Onde você arranja essas imagens?
Ela responde:
No grupo de leitura! kkkkkk
Nem pergunto quais os livros que elas leem, porque… nem com Jesus,
Maria e José!
Até que chega a de Yasmin:
É porque você ainda não aprendeu a controlar seu príncipe. Vamos te
ensinar a colocar Lars na coleira e como fazer com que ele te dê a pata,
sem que você precise nem pedir. Happy hour não alcoólico hoje, às 15:30?
Sorrio e respondo:
Marcado, mas duas coisinhas:
1 – nesse horário, o nome da refeição é Afternoon tea iii (só para não
deixar de ser chata)
2 – será que de coleira e obediente ele fica tão gostoso quanto é
rebelde?
Yasmin responde:
1 – Tem razão.
2 – É um caso a se pensar…
E Tatyana envia uma figurinha d’O Pensador iv, de Rodin, com um pau
ereto no meio das pernas, e o subtítulo: duas cabeças pensam melhor que
uma.
Não aguento e caio na gargalhada.
Suas malucas. A gente se vê mais tarde, estou chegando na
universidade.
Fui.
Ao menos, elas me fizeram rir.
Chego à faculdade cinco minutos antes do horário marcado e nem
espero com o decoro de sempre que Olaf venha abrir a porta.
— Tchau, obrigada! — grito, já correndo pelo campus – mas não com a
mesma velocidade de antes, por causa da cirurgia –, em direção contrária a
que costumo ir normalmente.
Logo vejo a professora, uma senhora gordinha, baixinha, com jeito e
cara de Mamãe Noel, encostada num sedã vermelho.
— Vasilisa! — exclama ao me ver. — Na hora.
— Não perderia isso por nada desse mundo — digo, ofegante, porque
ninguém vai sufocar meus sonhos.
— Ótimo. Vamos? — Entramos no carro e ela sorri para mim. — Fico
feliz que tenha decidido participar. Será uma experiência enriquecedora.
Assinto, respirando fundo e sentindo não só um peso sair dos meus
ombros, como meu pulmão se expandir, livre. — Tenho certeza disso.
Ela aperta o botão de ignição, mas o carro não dá a partida. Tenta de
novo, mas nada acontece.
— Ué… Será que esqueci a chave?
Procura a chave automática na bolsa e a encontra com relativa
facilidade. Tira-a, põe no console e tenta de novo.
— Que esquisito, estava funcionando perfeitamente até umas duas horas
quando cheguei — diz, claramente perdida e sem saber o que fazer para
ligar ou consertar o veículo. — Esses carros elétricos muito avançados
ainda me deixam confusa.
— Por que não pegamos um táxi? — Não sugiro meu motorista porque
não quero ser delatada para meu marido controlador. — Ou um Über?
— Claro, claro — diz, já se virando para o banco de trás e agarrando
sua bolsa. — Boa ideia.
Peço no meu aplicativo.
No entanto, mal saímos do carro, a Sra. Berg acena para um mini-carro
elétrico que passa, e grita: — Helga, Helga!
O carro para e o vidro escuro abre uns três dedos, mostrando o rosto de
uma mulher loira, bonita, de perfil.
A professora pergunta: — Me dá uma carona? Meu carro quebrou.
— Entre, entre — diz a voz mais grave e rouca que já ouvi na vida.
— Ótimo! — diz a professora Berg, dando a volta no carro e
gesticulando para que eu entre primeiro.
Tenho que me contorcer para entrar no banco de trás e quando a tal da
Helga abaixa o banco, fico com medo de perder os pés. Se eu não fosse
magra e baixa, não caberia. De jeito nenhum mesmo.
— Vamos, vamos — diz a professora e a outra arranca com o carro. —
Helga, essa é Vasilisa, minha aluna de psicologia criminal. Ela vai fazer
parte do projeto DarkLine. Vasilisa, a doutora Helga Bakke é a
coordenadora do nosso projeto. Também é a chefe do setor de criminal
profiling v na polícia e professora aqui na universidade, nas faculdades de
direito, psiquiatria e psicologia. Ela ensina como desmistificar os mistérios
e lendas que envolvem os serial killers e como prevenir e solucionar esses
casos mais rapidamente.
— Muito prazer, doutora — digo, sorrindo. — Esta é uma área que me
interessa bastante e espero aprender com esse projeto e ajudar no que eu
puder.
Ela vira o rosto para mim e sorri – ou tenta, porque seu rosto deste lado,
o rosto bonito, é todo destruído por cortes profundos. A mão sobe para a
garganta, e dois dedos pressionam entre o buraco das clavículas, chamando
atenção para o pescoço, onde tem mais cicatrizes.
A voz rouca, grave e ligeiramente computadorizada que ouvi antes, diz:
— Alteza, o prazer é todo meu.
Alguém tentou matar essa mulher linda.
Demoro uns segundos para me recobrar, mas logo falo: — Só Vasilisa,
por favor. Aqui a superior é a senhora.
Com um repuxar da boca, ela aperta de novo o espaço na garganta: —
Prefiro a ideia de sermos parceiras.
A professora Berg começa a tagarelar, o carrinho acelera pelas ruas e
um nó se forma no meu estômago.
Será que estou cometendo um erro ao me envolver nesse projeto? Será
que Lars tinha razão e é realmente muito perigoso uma princesa de
Vinterland se envolver nisso?
Olho para o rosto da chefe do projeto, todo destruído, claramente por
algum criminoso similar a esses a quem ela dedica a vida a estudar.
Meu celular vibra e o nome do meu marido aparece na tela, como se
soubesse que estou pensando nele. Que estou mentindo para ele. Traindo
sua confiança.
Recuso a ligação.
Ele insiste e recuso de novo.
Não é que eu esteja de birra, apenas não sei qual é o assunto e não quero
brigar em público, acho mais prudente não atender.
Depois da sexta ligação, quando o medo e a excitação se misturam no
peito e já nem consigo prestar atenção direito na conversa, desligo o celular.
Afinal, supostamente, estou em aula e não poderia mesmo atender o
telefone.
Saímos da cidade e o quadrado cinza fechado, praticamente sem janelas,
desponta do outro lado, isolado numa ilha, que mais parece um pedestal.
Esperamos na guarita a confirmação das nossas identidades. Logo vem
a autorização e o vão da ponte que liga o continente, onde estamos, à ilha,
finalmente se fecha, permitindo que passemos.
A voz computadorizada soa de novo no carro e ecoa as dúvidas que
sussurram em looping cada vez mais rápido na minha mente, parecendo
uma roda-gigante que enlouqueceu, e que roda, roda, roda, rápido, tão
rápido que não dá para distinguir mais as cores, e não me oferece nenhuma
solução, igual ao círculo colorido da internet no meu computador.
Percebo que estou prestes a entrar em um mundo onde a linha entre a
sanidade e a loucura é tênue, e onde cada decisão pode ser uma questão de
vida ou morte.
Quando chegamos na ilha, um barulho alto se faz ouvir. Olho para trás e
vejo que as laterais da ponte se recolhem e o abismo reaparece de novo.
Não há mais volta.
Será que vou pagar muito caro por ter mentido a Lars?
— Babaca…
Quando cheguei ao palácio, tinha uma mensagem para ir direto à sala de
Tyr, e nem a sensação de mau presságio que me invadiu quando vi todos os
meus irmãos reunidos – o que só acontece quando algo está terrivelmente
errado – podia ter me preparado para ver as imagens de Vasilisa, com
aquele sorriso irônico, digitando freneticamente no meu computador, nem
para ouvir as poucas, mas cruéis palavras, pronunciadas com desrespeito e
raiva, que me machucam mais do que qualquer coisa.
A câmera instalada no meu computador e as armadilhas funcionaram
até melhor do que imaginávamos. Infelizmente.
— É, eu sou um babaca mesmo — resmungo de novo, enquanto o
helicóptero corta o ar em direção à ilhota onde o Cubo se localiza.
Olho para baixo e a raiva ferve ainda mais quente em minhas veias, o
vapor vermelho sobe para minha mente como uma névoa venenosa,
engrossando as nuvens que já se formam, cada vez mais escuras e gordas,
inchadas com mágoa e um ressentimento que queima.
— Calma… — diz Tyr, tentando colocar panos quentes — ou talvez
sejam gelados? — para controlar a tempestade que se agita violentamente
dentro do meu peito depois de me dar provas de que o rato — ou seria a
ratazana? — que roía os alicerces de confiança e lealdade do meu
ministério era a minha própria esposa.
— Você precisa pensar com clareza — tenta me acalmar Leif também,
sentado à minha frente.
— Calma?! Clareza?! — retruco, quase rosnando. — Como você pode
me pedir isso? Precisa de algo mais claro para você que aquela filmagem?
— Porque ela não fez de propósito.
— Ah, não? Então porque mentiu, dizendo que ia para a aula, e fazendo
exatamente o que eu a proibi de fazer? — pergunto com um travo amargo
na boca. — Dissimulada. Como posso confiar nela agora?
Pego o celular e ligo para ela novamente. A cada toque não-atendido, a
raiva dentro de mim cresce.
Caixa postal.
Desligo com força, com vontade de jogar o aparelho longe e vê-lo se
espatifar em pedacinhos.
— Ela não atende — digo entredentes. — Está me evitando porque sabe
que está me traindo…
— Ou talvez porque aqui na ilha há bloqueadores de celular possantes
que impedem a comunicação entre presos e quem quer que seja — lembra
Tyr, racional. — Celulares não funcionam lá. Não tire conclusões
precipitadas, nem aumente o problema. Ela entrou no seu computador,
acessou o e-mail pessoal, o site da faculdade e mentiu para participar de um
projeto que desejava e que você a proibiu sem conversar. Ponto. Não crie
chifre em cabeça de cavalo.
Da euforia à infelicidade. Do paraíso ao inferno. Como tudo pode
mudar em apenas alguns dias? Horas?
Foi exatamente por causa dessa gangorra emocional que evitei
relacionamentos a vida inteira.
— Estou começando a me perguntar se fui precipitado em confiar nela.
Será que ela tem algo a ver com o hacker?
— Lars, escute-se. Vasilisa não faria isso — diz Leif. — Você a
conhece.
— Conheço? Não sei, talvez eu tenha sido ingênuo — retruco, a dúvida
evidente na minha voz. — Talvez você é que estivesse certo e ela fosse
louca ou talvez o pai…
— Pare! — Tyr pega no meu joelho, aperta, me obrigando a encará-lo.
— Você não quer dizer essas palavras em voz alta. Respire, Lars. Lembra
como quando éramos crianças e tudo parecia estar dando errado?
Sim, lembro. Até bem demais e ele sabe disso.
— Não é isso que está acontecendo — diz ele, suavemente, respirando
fundo e soltando devagar, como a nossa professora de ioga fazia. —
Respire, meu irmão, o mundo não está contra você.
Fecho os olhos e faço o exercício por uns cinco minutos, tranquilizando
efetivamente a minha mente.
— Stella vai me mandar um relatório em breve. Não demora muito para
escarafunchar todos os e-mails de Vasya e checar todos os sites que ela
visitou quando estava no seu computador. Vamos encontrar a porta por onde
o hacker se infiltrou e descobrir quem a está manipulando sem que ela
saiba.
— Vamos pousar, General — avisa o piloto pelos headfones.
As muralhas altas da Arctic se erguem diante de nós, um cinza sem
graça e no entanto tão impenetráveis.
— Como posso confiar nela agora? Como posso acreditar em qualquer
coisa que ela me diga?
— Se Magnus estivesse aqui ele diria que é bem-feito — comenta Leif.
— Que foi o destino dando o troco pelas fotos que você vazou.
— É, diria, mas ele não está. Magnus tem um problema de culpa não-
resolvido — relembra Tyr. — Então, é o seguinte: mulheres amam homens
que tomam atitudes para protegê-las e o que você fez foi com um propósito.
Se ela descobrir, explica-se. Se ela não descobrir, não se fala mais nisso.
O helicóptero pousa suave.
Antes de saltarmos, Tyr aperta meu ombro com firmeza e diz: — Não
deixe a raiva nublar seu julgamento.
As hélices giram furiosas quando saímos do aparelho e corremos em
direção à entrada do Cubo, meus irmãos me ladeando como se estivessem
prontos para me agarrar e me impedir de cometer alguma violência.
Mas não há necessidade.
O meu autocontrole é antigo, forjado na batalha entre o silêncio que
meu corpo me forçou após o sequestro e tortura e a necessidade de
sobreviver sem demonstrar fraqueza e os gritos que queriam sair pela minha
garganta de qualquer jeito; treinado arduamente em anos de disciplina para
ignorar a dor e a raiva que me consumiam por dentro.
Acho que foi por isso que passei tantos meses sem falar quando me
libertaram.
Se eu abrisse a boca, não ia conseguir parar de gritar: de dor, de medo,
de fome e sede. De desespero e de ódio, porque o que sofri naqueles dias
preso naquele frigorífico, entre aquelas peças de carne penduradas e sem
saber se Tyr ia voltar, foi algo que só desejo aos meus piores inimigos.
Foi por isso que me tornei reservado e racional.
Sou excepcional em controlar meus ímpetos e emoções intensas,
violentos, apaixonados e irracionais. Sei como bloquear os sentimentos
negativos que ameaçam me dominar, reprimi-los e transformá-los em força
interna produtiva.
Ou talvez eu deva dizer: era.
Porque agora, tudo mudou.
Desde que ela entrou na minha vida, o controle que pensei ser absoluto
começou a rachar.
O vento congelante que chicoteia a ilha perdida no meio do mar
combina com o gelo que se forma ao redor do meu coração, e, ao mesmo
tempo, uma chama, uma mistura perigosa de emoções que ameaçam
explodir tudo a qualquer momento.
A imagem daquela gravação, Vasilisa me xingando e invadindo meu
computador, me queima por dentro.
Porque é isso: essa Diaba tentadora, essa Pecadora Magnífica, essa
mulher que tem quase a metade do meu peso e do meu tamanho acabou
com a minha frieza.
Paro, com dor no peito, quando vejo Vasilisa, que sai neste momento do
Cubo e caminha ao lado de duas senhoras em direção ao estacionamento,
quase vazio, enquanto conversa.
Ela sorri, com algo que uma das professoras fala. O mesmo sorriso que
me encanta e enlouquece, mas que agora também aumenta minha frustração
e desilusão.
É a vida que segue seu curso normal, sem se importar que meu coração
parece prestes a parar – e é irônico que ela é que seja a cardíaca.
Pergunto-me o que vai acontecer, o que vou fazer? Como lidar com
isso?
— Vasilisa! — berra Tyr. — Cuidado!
Ele se vira e puxa das mãos do segurança que nos acompanha o rifle e
começa a atirar na direção de um carro preto que avança descontrolado para
cima delas.
Vasilisa e as professoras se viram.
A expressão calma e de satisfação nos rostos das mulheres se
transforma em incredulidade e então em pânico.
O tempo parece desacelerar. A raiva gelada que pressionava o meu peito
segundos atrás se transforma em um medo intenso frente à possibilidade
que algo aconteça a ela, que eu possa perder o que mais quis na vida, faz
com que eu reaja.
Instintivamente, começo a correr na direção dela, meu coração
martelando no peito, o sangue pulsando nos ouvidos.
A morte fria e implacável se aproxima, na forma de um monstro de
metal em alta velocidade, para atingi-la, fazê-la voar pelo ar, passar por
cima do capô, do teto e terminar no chão de cimento bruto. Morta.
— Vasya! — clamo, estendendo a mão, como se pudesse evitar de ela
ser acertada pelo carro, como se pudesse salvá-la da morte eminente. —
Mova-se!
Ela continua ali, até que um barulho alto, alto demais, como se fosse
uma explosão, faz com que ela se mova, de um pequeno passo para trás, e
uma das senhoras possa agarrá-la pelo paletó do terno. É graças a isso é que
ao invés vejo o retrovisor acertar em cheio seu quadril, fazê-la rodopiar e
ser jogada para a calçada, enquanto o veículo muda de rumo, passa
raspando por elas e colide violentamente contra o paredão.
O estrondo da batida se mistura com gritos e ecoa pelo pátio. Estilhaços
de metal e vidro voam em todas as direções.
— Leif! — berro, enquanto me ajoelho ao lado dela.
O rosto está contorcido de dor, os olhos fechados, apertados.
O terninho preto e branco que ela gostava está sujo e rasgado em vários
lugares.
— Vasya, fale comigo — peço, apavorado, e irritado com as idiotices
que a gente repara nessas horas.
Ela abre os olhos. — Lars… O que você está fazendo aqui? —
questiona ela, a confusão evidente em sua voz.
— O que você acha?
— Onde dói, Vasilisa? — pergunta Leif, me dando um cutucão discreto.
É, sei, agora não é hora.
— É só meu quadril. E o ombro. E joelho. O carro quase não me pegou.
Quase não pegou?!
Por todos os deuses! Acho que quem vai ter um ataque cardíaco sou eu.
Um grupo de guardas e paramédicos saem do Cubo e correm pelo pátio,
com macas e caixas de material médico.
— O que caralho aquele filho da puta estava fazendo? — pergunta Tyr a
ninguém em particular ao se ajoelhar perto dela também. — Se não tiver
nenhuma emergência, quero tirar vocês daqui, agora.
Olho por sobre o ombro e vejo que o motorista do carro permanece no
mesmo lugar, com a cabeça caída sobre o volante. Tem muito sangue
espalhado pelo vidro e que o paramédico que está com ele sacode a cabeça
e solta o punho.
Ótimo. Menos um.
— Por mim, podemos ir — diz Leif. — Para o hospital. Quero uma
ressonância e um Raio-X.
— Não precisa…
Ele fecha a cara para ela. — Não perguntei se precisa.
— Posso pegá-la no colo? — pergunto à Leif, porque
independentemente das dúvidas que tenho sobre ela, não permitirei que
nada de mal aconteça com ela.
— Sim — diz ele, se levantando.
— E as professoras? — pergunta ela, puxando a minha camisa.
— Tyr vai resolver qualquer problema — asseguro, lançando um olhar
rápido para as duas mulheres, que estão amparadas pelos guardas e
paramédicos, mas não parecem ter sofrido nada. — E providenciar alguém
para levá-las para casa.
Levanto-a nos braços e só não a esmago contra mim, porque sei que ela
deve estar muito dolorida.
Entramos no helicóptero e ainda pendurado do lado de fora, com a porta
aberta, Tyr ordena: — Vamos!
Como se não bastasse o tiro há um mês, algum filho da puta tentou
matá-la. De novo.
Enquanto nos afastamos da Arctic, não posso deixar de me perguntar até
que ponto nossas vidas estão emaranhadas nessa teia de segredos e
desconfianças e se seremos capazes de desvendar tudo isso antes que seja
tarde demais.
Não quero largar Vasilisa, porém é mais seguro que ela se sente. Ajusto
o cinto e mal vejo o tempo passar enquanto seguimos para o hospital.
Não pensei que fosse retornar a esse quarto tão cedo, nem que estaria
segurando a mão de Vasilisa na minha enquanto aguardo o resultado do
laudo de exames.
Leif e o Dr. Andersen entram e se aproximam da cama conversando,
mas as expressões do rosto são tranquilas, o que me acalma.
— E então? — pergunta Vasilisa. — Posso ir para casa?
— Mais tarde saberemos — diz o Dr. Andersen. — A ressonância do
crânio não mostrou nenhuma lesão mais grave, além de uma concussão leve
e por enquanto achamos melhor que fique ainda em observação. E já que
estamos no hospital, vamos pedir um Raio-X e uma tomografia para
descartar qualquer lesão óssea no quadril. O hematoma está bem extenso e
pancadas nos quadris são traiçoeiras. Um dia você está andando, no outro…
Ele não continua e faz uma careta.
— Não precisa. — Vasilisa nega com a cabeça. — Estou ótima, gostaria
de ir para casa. Dormir na minha cama.
— É só para garantir que está tudo bem — insiste.
Ela cruza os braços. — Não precisa. Sério, estou me sentindo bem
melhor.
— Vasilisa, é importante que façamos todos os exames necessários —
argumenta Leif, com toda a paciência do mundo.
Ela me lança um olhar nervoso e pede: — Lars, quero ir para casa.
Não gosto de vê-la assim, mas também entendo a necessidade de
checarmos todos os pontos necessários. — Pequena, é rápido.
Ela hesita, olhando para Leif, para o Dr. Andersen e depois para mim.
Suspira, passa a mão no rosto e diz finalmente: — Eu… eu não posso fazer
exames de Raio-X.
— Por que não? — pergunta Dr. Andersen.
Ela me olha nos olhos, hesita por um momento e então diz: — Estou
grávida.
— Grávida?! — exclamo, incrédulo.
Mal escuto Dr. Andersen e Leif se retirarem do quarto discretamente
porque a notícia não faz sentido e o mundo ao meu redor parece girar por
um momento e ficar torto.
— Descobri uma semana depois do atentado.
Tem um mês isso. Levanto-me e ando pelo quarto. Passo a mão pelos
cabelos, tentando processar tudo.
— E você não me contou por quê? — pergunto, minha voz embargada.
— Decidiu sozinha, sem me consultar, que ia ser mãe?
— Fiquei com medo da sua reação — responde, a voz baixa.
— Da minha reação?! — repito, atordoado. — Qual reação?
No entanto, parece que a cada palavra dita, ao invés de resolvermos os
nossos problemas, a distância entre nós aumenta.
— Não é isso, Lars…
— Então o que é? — interrompo. — Você me coloca à margem da sua
vida. Você não me inclui, não me conta as coisas. Como podemos ter um
relacionamento assim?
— Estava confusa, assustada. Precisava de tempo para aceitar. Não tem
sido fácil — Ela fica em silêncio por um momento. — Eu… sinto muito.
— Sentir muito não é suficiente. — As desculpas soam vazias em meus
ouvidos. Balanço a cabeça, a frustração transbordando. — Parece que você
não quer que eu faça parte da sua vida.
— Não é verdade! — exclama ela. — Só tenho dificuldade em me abrir,
em confiar plenamente.
— E acha que esconder uma gravidez ajuda em quê?
— Sempre quis ser mãe e pensei que nunca fosse realizar esse sonho.
Você me avisou na nossa primeira vez, quando o preservativo arrebentou,
que não queria ser pai. — Aperta os braços ao redor do corpo. — E tinha
medo que você me pressionasse a abortar!
Talvez tivesse. Talvez, não.
Com os olhos fixos no rosto dela, dou um passo para trás, querendo me
afastar dela. Da realidade concreta de que um filho meu está crescendo na
barriga de Vasilisa. Porque já não sei mais como me sinto em relação à isso.
Um filho, uma criança. Um serzinho inocente nesse mundo tão vasto e
cruel. E tão cheio de possibilidades maravilhosas…
Ela estende a mão na minha direção. — Lars, por favor, tente
entender…
— Você não confiou em mim, me excluiu de algo tão importante, que
afeta a nós dois. Não divide as coisas comigo, evita conversar — concluo, a
voz fria, caminhando de costas para a porta. — Você fez a sua escolha,
preciso agora fazer a minha.
— Desculpe, não queria mentir, mas eu não podia deixar você matar o
nosso futuro — murmura e abaixa a cabeça, as lágrimas escorrendo pelo
rosto.
As palavras saem de sua boca como flechas envenenadas e me atingem
afiadas, diretamente no coração.
É como se um dique se rompesse e uma fenda emocional profunda
acontecesse dentro de mim, me dividindo ao meio.
Emoções dos mais diferentes tipos me invadem: alegria, raiva,
desilusão. Pânico. Amor. Por um lado, estou emocionado com a ideia de ser
pai. Mas por outro, tenho um medo atávico de não poder proteger meu
filho. O medo e a dor que escutei na voz dela parecem me esmagar.
Olho para ela, sentindo-me perdido. As paredes do hospital parecem se
fechar ao nosso redor. Preciso sair daqui, pensar.
Sem saber como lidar com tudo isso, saio do quarto.
Caminho pelo corredor, que me parece infinito, ouvindo os chamados
dela se afastarem. Cada passo que dou pesa uma tonelada, me leva mais
longe dela, mais longe de tudo o que eu conheço.
O ar frio da rua me golpeia o rosto. Inspiro profundamente, tentando
clarear os pensamentos.
Olho para o céu nublado, as nuvens escuras refletindo meu estado de
espírito. Não sei o que fazer, nem como consertar o que está quebrado entre
nós.
Sem rumo, começo a andar, deixando Vasilisa para trás. A distância
entre nós nunca foi tão grande.
Como chegamos a esse ponto?
— A senhora está liberada, Alteza, mas lembre-se, um pouco de repouso
não faz mal — diz o Dr. Andersen.
— Até me sinto tentada a apavorá-la um pouco mais — diz a Dra.
Strand, que veio até ao hospital fazer alguns exames quando soube do
acontecido. — Mas tendo em vista que Sua Majestade e Sua Alteza, o
General Tyr, já estão aí fora, nem vou falar nada.
— Eles estão?
— Estão! — confirma ela, fazendo a careta e balançando a cabeça. —
Como são neuróticos com segurança, vão provavelmente colocar correntes
nos seus tornozelos.
Dr. Andersen abre a porta do quarto para mim e quase que não quero
mais sair, mas como não tem jeito, vou em frente.
Yasmin, Tatyana e Catarina me cercam assim que saio para o lounge.
— Viemos assim que soubemos — diz Yasmin, me abraçando com
força. — Quer ir para a sua casa ou para a minha?
— Para a minha — respondo, tentando sorrir, mas falhando
miseravelmente.
Lágrimas quentes rolam pela minha face quando entro no carro de Tyr.
Só podem ser esses hormônios da gravidez, porque faz muito tempo que
aprendi que chorar não resolve nada.
— Ah, prima, não chora — diz Catarina.
Mesmo quando Catarina e Tatyana me abraçam e tentam me consolar
estou impotente para limpá-las ou mesmo pará-las porque queria tanto que
meu marido estivesse aqui comigo.
— Não pensei que Lars fosse tão tinhoso. Tem quase cinco horas que
ele saiu… — sussurro para elas. — Achei que ele daria tempo para ele
pensar no que quisesse e voltar para me buscar.
— Vou capar esse desgraçado desse meu cunhado quando ele voltar
rastejando — sussurra Tatyana no meu ouvido, me fazendo dar um riso
aguado. — Porque ele vai voltar, você vai ver. Eles não resistem ao nosso
charme.
Sentamos na sala de estar, onde não sei como, o arquiteto conseguiu que
o palacete do século dezoito fizesse uma transição suave até o século vinte e
um.
Aliás, todos se sentam, menos Tyr, que se apoia na parede, braços
cruzados sobre o peito.
— Sabemos que as coisas entre você e Lars não estão fáceis — começa
Thorvald. — E achamos importante que você entenda algumas coisas.
— Para começar, Lars te ama muito — fala Magnus.
— Belo jeito de demonstrar — diz Tatyana.
— Harpia, quieta — reclama Tyr.
— As feridas de Lars são profundas — continua Leif. — De um
acontecimento da infância…
— Você está falando do que deixou as cicatrizes nas costas? —
pergunto. — Ele me falou por alto sobre isso uma vez. Porque… eu
também tenho algo parecido.
Leif troca um olhar com Tyr e faz um gesto com a cabeça. A impressão
que eu tenho é que em alguns segundos eles conversam em silêncio sobre
décadas de emoções silenciadas e talvez até reprimidas.
Até que finalmente, o irmão de Lars cede e se senta ao meu lado. Ele
me conta toda a história com os detalhes sórdidos, horrendos, que acho que
nem os próprios irmãos sabiam e finaliza com: — Isso deixou marcas nele,
mais do que físicas, psicológicas. Medos, inseguranças. Especialmente
quando se trata de construir uma família e ser pai, mas não acredito que ele
fuja à responsabilidade.
Meu coração aperta.
— Então, a reação dele… — começo, mas um nó se forma na minha
garganta e as lágrimas rolam pelo meu rosto.
As peças começam a se encaixar e as palavras de Tyr fazem sentido,
mas não aliviam a dor que sinto.
— … foi influenciada por esses traumas — completa Leif.
Catarina me abraça, tentando me consolar. — É difícil, eu sei, mas vai
passar. Ele vai voltar e vai ficar ao seu lado, você vai ver.
— Além disso, querida, você está grávida — diz Tatyana, olhando de
cara feia para o marido. — Os hormônios com certeza estão amplificando o
que você sente.
— E esses hormônios não estão ajudando você a raciocinar nem um
pouquinho — diz ele, devolvendo a careta para ela.
— Vocês dois, podemos focar?
— Não, talvez eu tenha dito algumas palavras duras para ele e me
enganado quanto à reação que ele teria — admito em voz baixa. — Mas me
fiquei com tanto medo…
— É compreensível — diz Yasmin que está sentada ao meu lado. —
Mas talvez seja hora de vocês conversarem com calma.
Antes que eu possa responder, Barnaby abre a porta da varanda e Lars
entra carregando em um braço um enorme buquê de rosas brancas e no
outro uma elefanta de pelúcia, com laço rosa, quase do tamanho dele, e um
elefantinho de gravatinha borboleta.
Seus olhos encontram os meus e ele diz: — Trouxe presentes para
vocês. E se for menina, a gravatinha vira um laço que prende na orelha.
Começo a sorrir, mas quando ele põe o elefantinho no chão e demonstra
como transformar o animalzinho de macho para fêmea, coloco as mãos no
rosto e desabo no choro porque esse homem é muito fofo.
Sinto seus braços me rodearem e ele sussurra no meu ouvido: — Não
chora, minha princesa. Não te falei que o que me faz feliz é ver o seu
sorriso?
E isso me faz chorar mais ainda porque quem aguenta um romântico
desses?
— Desculpa ter saído daquele jeito. Eu… fui pego de surpresa e deixei
meus medos falarem mais alto. Mas foi simples, foi só organizar algumas
coisas na minha cabeça — diz me ninando nos seus braços. — Perdão se te
magoei, não foi minha intenção.
— Também não — digo, abraçando-o de volta. — Não quis esconder
nada de você, nem decidir sozinha, mas fiquei tão contente quando a
doutora disse que não vou ter grandes problemas em levar a gravidez a
termo. Quis muito ter esse bebê. Quero muito.
— Eu também — diz. — Sei que isso não justifica o que fiz, mas tenho
medo de não poder proteger nosso filho, de que ele sofra…
Ele levanta a cabeça e me olha nos olhos.
Nos azuis-escuros, vejo o amor e a preocupação e também um oceano
escuro e tempestuoso, onde se escondem monstros que não conheço e que o
aterrorizam até hoje.
— Que sofra algo parecido com o que eu sofri.
— Ah, Lars! — Aperto meus braços ao redor dele e deito minha cabeça
em seu ombro. — Prometo que daqui em diante não esconderei mais nada
de você. Juro. Quero que você faça parte da minha vida sempre.
A barreira se dissolve e um silêncio confortável se instala entre nós.
Uma batida no umbral da porta interrompe o nosso abraço.
A família toda – Thorvald, Tyr, Leif, Magnus e as meninas – está
esperando do outro lado, com expressões esperançosas no rosto.
— Podemos entrar? — pergunta Yasmin.
Sorrio. — Podem.
— Quer dizer que teremos mais uma adição na família real? — pergunta
Thorvald.
— Daqui a uns oito meses — confirmo.
— Parabéns!
Eles nos cumprimentam e logo a sala vira um local de beijos, abraços e
cumprimentos alegres.
— Demônio! Quero um bicho de pelúcia grande assim para o quarto do
nosso bebê, também — diz Tatyana abraçando a elefanta que é maior do
que ela. — Olha que gracinha!
— Compro uma amanhã, Infeliz.
— Não tem mais — avisa Lars. — Comprei os últimos disponíveis. Vão
entregar aqui de amanhã de manhã.
— Os últimos, quantos? — pergunto para ele, porque escutei algo em
seu tom de voz que me conta que exagerou.
— Bem, não tinham muitos… — conta. — Achei que ia ficar uma graça
no quartinho.
— Sei, e esses muitos são quais? — insisto.
— O leão, a girafa, a hipopótamo e a ursa. — Ele vai ticando os dedos,
para, coça a cabeça e finaliza: — Ah, sim, e o jacaré. Com seus filhotes.
Jesus, Maria e José. Socorro! O homem surtou. O que me conta que o
medo dele é mais do que real e ainda não o abandonou.
— Sei… e o berço, mesinha de apoio, poltrona de amamentar, trocador
de fraldas, eu e o bebê? Ficamos onde?
Ele olha para mim e sorri, sem jeito. — Talvez você queira dar um par
para Tatyana. Ou dois. É que eu quis que você e o bebê…
Engulo a vontade de rir e coloco o dedo nos lábios dele.
— Não, vou dar nada para ela, não. O General que se vire para
conseguir um bicho de pelúcia gigante para a esposa dele. Já sei o que vou
fazer com o seu zoológico.
— Já? — pergunta Catarina.
— Claro. Vou transformar a sala íntima em brinquedoteca. Afinal, não
pretendo ter um filho só — aviso.
Lars arregala os olhos. — Não?
Sacudo a cabeça e sorrio. — Até porque estamos esperando gêmeos.
Ele fica pálido e murmura: — Pelos deuses!
Vasilisa dorme serenamente nos meus braços, seus cabelos espalhados
sobre o travesseiro. Observo seu rosto tranquilo, notando como mesmo
adormecida ela exibe uma força impressionante.
Ela se mexe levemente, uma expressão de desconforto atravessa suas
feições.
— Hmmm… — murmura, abrindo os olhos lentamente.
— Bom dia, minha Diaba tentadora — digo, sorrindo.
Ela estica o corpo, mas logo faz uma careta.
— Parece que um caminhão passou por cima de mim — comenta com
uma voz rouca, tentando encontrar uma posição confortável. — Estou
dolorida em todos os lugares.
— Não foi um caminhão, nem foi por cima, mas não me surpreende —
respondo, acariciando suavemente suas costas. — Foi quase por cima e foi
um carro. E não ajuda que tem um mês da cirurgia. Quer o analgésico?
— Quero.
Deixei os remédios do meu lado da cama, assim ela não precisa se
movimentar para alcançá-los. Pego a dose recomendada e um copo d’água e
a ajudo a beber e ela se aconchega de novo em meus braços, suspira, e sorri.
— Estou tão feliz.
— Prometo que vou colocar sorrisos nos rostos dos três. Sempre. —
Inclino-me e deposito um beijo carinhoso em sua barriga. — Ou das três.
— Sei que vai. — Ela passa os dedos pelos meus cabelos e ri baixinho
quando sente meu pau duro cutucar sua barriga.
— Se eu não estivesse tão dolorida, eu topava uma viagem para o
paraíso agora, Anjo — diz, beijando o canto da minha boca.
— Quem sabe amanhã?
— Mas eu posso te ajudar com isso — diz, me beijando.
Nesse momento, meu celular vibra na mesa de cabeceira. Ignoro
solenemente porque sua mão macia começa um vai e vem delicioso no meu
pau.
Mas o celular volta a vibrar. E insiste de novo. E de novo.
— Hmmm… — reclama ela, me soltando. — Acho que alguém quer
falar com você com urgência. Melhor você atender logo.
— Verdade — digo, pegando o aparelho.
Estendo a mão e pego o aparelho que voltou a vibrar. Na tela, o nome é
de Magnus, que só me liga em caso de urgência mesmo.
Franzo a testa. Levanto-me e atendo a chamada. Caminho até a janela.
Aproveito, aciono o controle remoto para abrir as persianas. O dia está
nublado, cinzento, a chuva fininha molhando o vidro.
— Fale.
— Lars, temos um problema gravíssimo — diz ele, a voz tensa. — Você
está sozinho?
Olho para Vasilisa, que se acomoda nos travesseiros.
— O que aconteceu? — indago, mantendo a voz baixa.
— Lembra daquela acusação de assassinato na embaixada de Oslo? —
pergunta ele de maneira retórica. — Foi confirmada e as coisas se
complicaram.
Um nó se forma no meu estômago. — Entendo.
Mas na verdade não entendo nada, porque eu não mandei matar
ninguém.
— Jamal pressionou a Corte Sueca e a carta rogatória parou na mão de
Vikstrom — explica ele, se referindo a Kael Vikstrom, o líder das minorias
que, graças à Yasmin e Tatyana conseguiu um lugar no conselho dos Lordes
e pelo jeito já começou a nos dar trabalho. — Thorvald não conseguiu
segurá-lo.
— Puta que pariu, Magnus.
— Ele ordenou a emissão do mandado de prisão assim que o processo
chegou às mãos dele — conta Magnus, irritadíssimo —, nem teve a
delicadeza de me ligar, como ministro de estado, ou príncipe de Vinterland,
para avisar. Foi o chefe de polícia que me chamou para avisar que está a
caminho da sua residência. Arrume-se.
— Lars? — a voz suave de Vasilisa me traz de volta. — Tem certeza de
que está tudo bem?
Viro-me para ela e tento esboçar um sorriso, mas um frio desce pela
espinha.
— Sim, apenas questões de trabalho que surgiram de última hora.
Ela me observa atentamente. — Você parece preocupado.
Tudo está desmoronando.
— Nada que eu não possa resolver — respondo, começando a me vestir.
Caminho até o closet, precisando ganhar tempo para pensar.
— Qual a probabilidade de não usar Vasilisa como testemunha?
— Vamos tentar resolver com todos os integrantes do grupo que foram a
Oslo com você — continua ele. — Já estou providenciando o habeas
corpus, mas Vikstrom exige provas da sua inocência e as nossas provas são
testemunhais.
Passo a mão pelo rosto. — Conseguimos evitar que isso vaze para a
imprensa?
Magnus hesita, antes de responder. — Talvez, mas Jamal vai tentar
transformar isso em escândalo.
Fecho os olhos por um instante, processando as informações, e tento
manter a calma, mas sei que estou prestes a perder o que conquistei ontem.
— Entendo. Mantenha-me informado.
Desligo a chamada e permaneço em silêncio, encarando as montanhas
cobertas de neve, que parecem ainda mais frias hoje.
Enquanto coloco a camisa, meus pensamentos correm. Como vou
protegê-la disso? Não quero envolvê-la, não gostaria que ela fosse exposta
mais do que já foi, mas talvez não tenha escolha.
Ela aparece no closet, vestida com um robe dourado diáfano, a testa
franzida. — Lars, está acontecendo algo que eu deveria saber?
— Preciso sair por um momento — anuncio, tentando soar casual. —
Assuntos do Ministério da Justiça. Nada com que se preocupar.
— Agora? — questiona, surpresa. — Pensei que passaríamos o dia
juntos.
— Lamento por isso. Mas prometo que volto o mais rápido possível.
Ela arqueia uma sobrancelha, claramente desconfiada, mas não insiste.
— Certo.
Paro, olhando em seus olhos verdes. — Na verdade, Vasilisa, tem uma
coisa acontecendo, sim. E é uma coisa que eu menti sobre, muito séria.
Ela suspira, cruzando os braços.
— Você sabe que pode confiar em mim também, certo? — diz ela.
O telefone toca novamente. É Magnus de novo.
— Não temos muito tempo — digo. — Então, vou ser breve. Você
precisa acreditar que tive as melhores intenções, que fiz o que fiz para te
salvar e para ficar com você, que se pudesse ter feito diferente teria feito…
— Você está me assustando… — diz ela.
— Maldição! — exclamo, cerrando os punhos. Respiro fundo, fecho os
olhos e me centro. Essa é a melhor maneira de explicar. Mecânica, distante,
fria. Não temos tempo, não dá para ser emotivo, nem envolver sentimentos
e nem explicar fatos que ainda não tenho provas, só indícios e
desconfianças. Abro minhas mãos e começo a tomar as atitudes necessárias.
— Venha se vestir que vou explicando.
Levo-a para o closet dela e pego um tailleur cinza-chumbo com detalhes
rosa clarinho e entrego a ela. — Não importa o que eu diga, vista isso.
Ela me olha estranho, mas obedece e tira o robe.
— Sabe as nossas fotos que vazaram?
Ela levanta as sobrancelhas e pega a lingerie e uma blusa de seda branca
de laço.
— Fui eu quem mandei tirar — confesso. — Eu sabia que o fotógrafo
estaria ali fora. Astrid, nossa RP, de maneira anônima, avisou para algumas
publicações que teria um furo e elas reservaram um lugar na primeira
página. Também se preparou para fazer a limpeza.
Ela para de abotoar os botões e me encara boquiaberta. — Você
planejou tudo…
— Não podia deixar aquele imundo casar com você.
O fogo em seu olhar se torna uma chama fria. Em dois passos, ela está
na minha frente. Não a impeço quando desfere um tapa na minha cara.
— Você é igual a todos os outros! — As lágrimas enchem seus olhos,
tornando o verde mais brilhante. — Eu te odeio!
— Entendo que esteja magoada. Entendo que não possa compreender
porque fiz isso, mas, preciso da sua ajuda no momento
Ela ri. — Devia deixar você se foder.
— Talvez, mas temos mais pelo que lutar. — Olho para sua barriga. —
Temos nossos filhos. Não mandei matar ninguém. O fotógrafo que fez as
fotos não foi o segurança de Jamal e você sabe disso. Ajude-me a consertar
isso.
— Você é um babaca. — Ela me olha fixamente. — Não tem ideia do
quanto o que fez me magoou, me expôs, me humilhou.
— Não sei mesmo, mas posso dizer que já estava arrependido antes de
fazer — admito, a voz falhando. — E de qualquer maneira preciso da sua
ajuda. Não apenas por mim, mas por nós. Pelos nossos filhos.
Ela aperta os punhos, lutando contra as emoções.
Fica difícil respirar, mas era um risco.
Ela respira fundo, fechando os olhos por um momento. Quando os abre
novamente, há uma determinação ali.
Meu celular toca novamente.
— A polícia está no seu portão, Lars. Você está pronto? — pergunta
Magnus.
— Quase. Contei o que aconteceu para Vasilisa — digo.
Ele assobia do outro lado da linha.
— O testemunho dela seria o nosso trunfo. Quanto tempo você precisa?
Viro-me para encará-la. — Você vai testemunhar a nosso favor?
— Tudo bem.
— Obrigado. — Dou um passo em sua direção. — Eu…
Ela ergue a mão, me impedindo de aproximar. — Não. Gostaria de
terminar de me arrumar sozinha.
Saio do closet, fechando a porta suavemente atrás de mim. Apoio-me na
parede do corredor, sentindo o peso das consequências das minhas ações.
— Cinco minutos, Magnus.
— Como ela reagiu?
— Como esperado — respondo, esfregando as têmporas. — Concordou
em testemunhar, mas está devastada.
— Encontro com vocês no Tribunal. Com o depoimento dela, isso não
vai durar muito.
Não sei se ela poderá me perdoar, mas pelo menos agora a verdade está
exposta.
As imponentes colunas da Corte Suprema de Vinterland parecem ainda
mais gigantes e pergunto-me se o arquiteto que planejou o tribunal tinha em
mente humilhar criminosos e aterrorizar testemunhas quando as desenhou
tão grossas, grandes e altas, e mandou que as esculpissem em mármore tão
perfeitamente branco. E para piorar a situação devem ter uns vinte degraus
para chegar a elas. E desde a rua até a entrada do prédio, a passagem está
toda apinhada de jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas, fofoqueiros,
admiradores, haters, passantes, e todo o tipo de gente que os policiais e
seguranças, que Tyr destacou para cá, que mantém atrás de grades,
deixando um caminho liberado para nós.
Sem falar nos manifestantes, pelos quais já passamos, uns pedindo a
renúncia de Thorvald e eleições democráticas para primeiro-ministro,
outros com cartazes de Viva a monarquia. Vai entender.
— Tem certeza de que não quer entrar por trás? — pergunta Lars.
Poderíamos entrar pelos fundos, mas recuso-me a me esconder.
— Não fiz nada de errado.
Porque é isso. Eu não fiz nada de errado. Engulo as lágrimas que
teimam em formar um bolo na minha garganta desde que ele me contou o
que fez, porque também não ousaria pensar que ele seria capaz de contratar
um fotógrafo para nos expor nus e ele o fez.
O carro de polícia para e o nosso para atrás. Ao menos, tiveram a
gentileza de não algemarem Lars e permitiram que ele viesse comigo no
carro.
Até porque Vikstrom aceitou que Jamal entrasse no país já que está
representando os interesses do morto.
Assim que Tyr, que está esperando por nós na calçada, abre a porta do
carro, os flashes começam a espocar.
Lars sai e me estende a mão.
Aceito, apesar de não querer. Aqui, em público, somos uma unidade.
— Princesa, como é estar casada com um assassino? — grita o primeiro
jornalista.
— Princesa, uma foto! — pede outro.
— Não pare — sussurra Tyr —, nem olhe para eles.
— Ah, não. Eu vou parar e falar com eles, Cunhado. Só um minutinho
— digo, teimosa.
Aproximo-me de um dos lados da grade, para infelicidade do General e
horror do meu marido que vem atrás.
— Princesa, a senhora sabia que seu marido era tão sanguinário?
Microfones e aparelhos de gravação são enfiados todos no meu rosto.
— Bom dia. — Sorrio. — Quem ousa pensar esse tipo de coisa e
verbalizar esse tipo de pergunta, claramente não conhece o príncipe Lars.
Olho para trás e sorrio para eles. Meu marido e cunhado disfarçam bem,
mas posso dizer que estão espantados com minha cara de pau. Até eu estou
espantada comigo mesma. Será que sempre tive essa força dentro de mim e
não sabia? Será que minha mãe também era assim?
— Então a senhora vai testemunhar a favor dele? — pergunta outro
jornalista.
— Mas é claro que vou, ele estava comigo a noite inteira — digo, e
estendo a mão, chamando-o para o meu lado, apesar de sentir um travo
amargo na minha boca —, as próprias fotos comprovam isso.
— Príncipe Lars, o senhor mandou matar o fotógrafo?
— Já chega! — diz Tyr, passando o braço ao meu redor e me puxando.
— O resto vocês poderão saber daqui a pouco quando voltarmos.
— General, General! — chama uma jornalista ao chegarmos nos
últimos degraus. — O senhor acredita que o Príncipe vai ser solto com
habeas corpus?
— Claro — diz ele e nos leva para dentro, não respondendo a mais
nenhuma pergunta, apesar dos gritos dos jornalistas.
O som das portas se fechando e depois dos nossos passos ecoam pelo
salão silencioso e vazio, já que a esta hora o tribunal ainda estaria fechado.
Magnus nos espera do lado de dentro, vestindo uma toga preta, que o
deixa ainda mais imponente do que já é, acompanhado de duas moças, que
também vestem togas.
— Dras. Sophia e Helena, minhas assistentes — diz, apresentando-as.
— Vikstrom requisitou que, devido a Vasilisa ser sua esposa, ela seja levada
para uma sala isolada. Como não temos nada a temer, e é de praxe que as
testemunhas não assistam ao julgamento, não vi problemas quanto a isso.
Você está tranquila?
— Sim, estou — digo.
— Ótimo. — Ele me dá um sorriso e aperta a minha mão, sussurrando:
— Vai ficar tudo bem.
Lars faz menção de me dar um beijo, mas dou um sorriso e viro-me para
a moça. — Vamos?
Eles entram com Tyr, me deixando com Helena.
Esperamos cerca de meia hora e Helena me explica o que está
acontecendo e o que devo esperar das perguntas.
Escuto do outro lado da porta, Magnus dizer: — A defesa chama ao
banco de testemunhas a Princesa Vasilisa Romanov Eisenhart-Gulbrandr.
Alguém com voz grossa anuncia meu nome completo e, como tudo na
vida, quando as portas duplas de madeiras se abrem, o recinto é totalmente
diferente do que imaginei.
Pensei que fosse uma sala de audiências parecida com aquelas que se vê
em filmes americanos, mas é completamente diferente e muito maior.
O ambiente, que mais se parece com uma sala de trono de palácio, é
austero, com paredes de madeira escura, detalhes dourados, estandartes com
brasões do reino pendurados por toda a sala.
As laterais estão lotadas com pessoas assistindo ao julgamento, algumas
tomando notas, outras desenhando e outras prestando atenção, mas quando
as portas se fecham com o que parece um barulho definitivo, o silêncio se
torna opressor e todos os olhares se voltam para mim e me acompanham
enquanto cruzo a longa passarela até o cercado.
Obrigo-me a manter meu foco na frente, durante a travessia que dura
quilômetros, fixada no rosto de Thorvald, que como rei, preside a Corte. Ao
lado dele está um senhor de uns setenta e muitos anos e do outro lado, uma
senhora, também bem velhinha, segundo Helena me contou brevemente, os
Lordes Conselheiros mais velhos de Vinterland. Pelas fotos que Helena me
mostrou identifico logo o tal do Vikstrom, o relator do processo, que apesar
de também estar de toga, como os outros juízes, parece querer se destacar
por deixar à mostra um lenço vermelho amarrado à volta do pescoço no
lugar da gravata.
Fico logo irritada com o homem que mantém seu olhar fixo em mim.
Vou ter uma conversa séria com Tatyana e Yasmin, porque já que o
trouxemos para dentro do palácio, temos que colocá-lo na linha.
Minha vontade é olhar em volta e descobrir onde Lars está, mas não
faço isso.
Uma mocinha me recepciona quando chego à área restrita e me leva até
a cadeira de testemunha.
— Estamos aqui para deliberar sobre as acusações de homicídio contra
o Príncipe Lars Haraldson, acusado de mandar assassinar Ahmed bin
Hasher Al Maktoum. O crime teria ocorrido na Embaixada de Vinterland,
em Oslo, motivo pelo qual a Corte Sueca solicita a deportação do acusado
para julgamento — diz Thorvald, a voz reverberando nas paredes de
mármore. — A defesa pediu o seu depoimento e para isso, Vossa Alteza
deve dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade.
Está disposta a prestar juramento?
— Sim, Senhor.
A assistente se aproxima e oferece a Bíblia para que eu coloque minha
mão por cima e me dá o papel com o juramento que devo ler.
Faço o juramento, lendo as palavras indicadas, apesar de não acreditar
no livro em que apoio minha mão, e saber que, por esse homem que roubou
meu coração de maneira tão inesperada e intensa, eu mentiria
descaradamente e falaria qualquer coisa para salvá-lo.
Sento-me.
Magnus se levanta e vem para o centro do tribunal.
— Excelências, mais uma vez, a defesa apresentará provas contundentes
de que esse processo é uma armação e a inocência do Príncipe Lars
Haraldson será provada com facilidade.
Espero que sim, porque meu coração dispara com a mera ideia de Lars
ser acusado injustamente e ser culpado de um crime que não cometeu,
porque Jamal ficou com o ego ferido. A ideia de Lars ser acusado
injustamente não é algo que consigo suportar. Por mais que eu esteja
chateada com meu marido por ele ter escondido informações de mim,
prefiro engolir meu orgulho do que vê-lo sendo punido por algo que
claramente é uma farsa.
Ele começa com as perguntas básicas de praxe, confirmando meu nome,
e depois vem aquelas sobre a nossa intimidade.
— Princesa — começa Magnus —, poderia nos dizer onde o príncipe
Lars estava na noite em que o suposto crime ocorreu?
— Sim — respondo sentindo meu rosto ficar quente. — Ele estava
comigo. Passamos a noite juntos.
Um novo murmúrio percorre a sala.
— Está afirmando que o príncipe Lars não poderia ter cometido o crime
porque estava em sua companhia?
— Exatamente. Ele me ajudou a escapar da casa do meu pai depois da
recepção que celebrou o acordo contratual de noivado assinado pelo Sheik
Jamal e meu pai, em meu nome, e fomos para o hotel dele onde passamos a
noite.
— A senhora sabia que estavam sendo fotografados? Confirma que
participou voluntariamente dessa encenação que resultou em um escândalo
internacional?
— Não, senhor, não sabia. Fui tão enganada quanto o público, mas
posso afirmar que a pessoa que dizem ser o fotógrafo era guarda-costas…
— Protesto, Excelência. — O advogado de Jamal levanta-se. — Não foi
isso que o advogado de defesa perguntou.
— Vou refazer a pergunta — diz Magnus.
Ele vai até sua mesa, na lateral direita da sala, pega algo e volta até onde
estou e me mostra uma foto. — A senhora conhece esse homem?
— Conheço — confirmo.
Ele então mostra a foto para Vikstrom.
— Pode nos dizer quem era, Alteza?
— Não seu nome, porque nunca me foi apresentado, mas esse homem
era o segurança do Sheik Jamal bin Omar, andava no banco do carona do
carro que o transportava, e nunca tirou uma fotografia minha.
— A defesa não tem mais perguntas.
O procurador então se levanta. — A procuradoria não tem perguntas.
O advogado do meu ex-noivo se levanta com um sorriso macabro no
rosto. — Alteza, a senhora já esteve internada em várias instituições
psiquiátricas, não esteve?
— Porque meu pai me dopava com…
— Sim ou não? — interrompe a minha justificativa.
Respiro fundo e abaixo a cabeça. — Sim.
— Não é verdade que a senhora tinha ciência que seu pai assinou um
contrato de noivado com Sua Alteza, o Sheik Jamal bin Omar, e recebeu
dez milhões de dólares em sua conta corrente. A senhora aceitou os anéis de
brilhantes que ele lhe deu no valor de dez milhões de dólares, e depois o
enganou com outro homem, inclusive não se importando em fazer sexo em
lugar que pudesse ser fotografada nua e exposta nas páginas de todos os
jornais, e ainda se recusou a assinar o distrato?
— O que a minha vida tem a ver com o processo em pauta? —
pergunto.
— Responda à pergunta do advogado, Alteza — diz o Conselheiro
Vikstrom. — Sim ou não?
— Sim.
— Essa mulher e o acusado não só planejaram o assassinato de um
inocente, como tramaram enganar, seduzir e roubar um homem…
— Isso não é verdade! — grito ao mesmo tempo, em que Thorvald bate
com o martelo. — Advogado, não aceitarei que minta e ofenda uma
princesa do reino de Vinterland. Se voltar a proferir acusações infundadas,
serei obrigado a pedir que abandone imediatamente esta Corte.
— Minhas mais sinceras desculpas, Majestade. — O advogado faz uma
pequena reverência para Thorvald, que é quase debochada, e vira-se para o
Tribunal. — Não tenho mais perguntas para a testemunha.
— Vossa Alteza, a senhora está dispensada — diz Vikstrom, com um
tom gelado, mas que não é dirigido a mim e sim aos advogados de
acusação. Dá para perceber que está irritadíssimo. — Se desejar, pode
permanecer no recinto. Não acredito que precisaremos ouvi-la novamente.
Depois de mim, são ouvidos o fotógrafo, os integrantes da equipe de Tyr
e então Magnus levanta-se e fala: — A defesa convoca como testemunha
sua Alteza, o Sheik Jamal bin Omar bin Mohamed Al-Khoury.
Vikstrom ergue as duas sobrancelhas e após um segundo de estupor,
meu ex-noivo recusa-se de pronto, aos gritos: — Não admito, não sou
acusado de nada, não vou depor.
Um burburinho alto toma conta da sala.
— Silêncio na corte! — ordena Thorvald, batendo o martelo.
— Podemos nos aproximar, Majestade? — pergunta o advogado de
Jamal.
Não consigo escutar o que dizem, mas depois de ouvir o que dizem
Thorvald troca olhares com o Conselheiro Vikstrom antes de se voltar para
nós.
— A Corte precisa deliberar sobre essas novas informações.
Ele bate o martelo e se retira com os outros Lordes Conselheiros para
uma sala adjacente.
O tempo parece se arrastar. Finalmente, as portas se abrem e eles
retornam e retomam seus lugares.
Vikstrom permanece em pé. Limpa a garganta.
— Após considerar as novas evidências, a corte concluiu que não há
base para as acusações de homicídio contra Sua Alteza, o príncipe Lars
Haraldson. Contudo, não podemos ignorar a gravidade das ações que
levaram a esta acusação.
Sinto um frio percorrer minha espinha.
— Portanto, encerro esta audiência — continua ele —, ordenando à
Procuradoria Real que abra investigações por abuso, manipulação e
conspiração contra Sua Alteza, a princesa Vasilisa e por tentativa de
comprometimento da honra e segurança de Sua Alteza, o príncipe Lars
Haraldson, ambos da Casa Gulbrandr — conclui Vikstrom, a voz engolida
pelo alvoroço que tomou conta do local.
Nem o martelo de Thorvald consegue colocar ordem na sala. Os
jornalistas saem correndo.
Lars se levanta, vem em minha direção e me abraça. Retorno o abraço,
aliviada, mas ainda não estou com espírito de comemoração. O máximo que
concedo é dar a mão a ele. Afinal, somos parceiros.
Quando saímos do edifício, os flashes das câmeras nos cegam.
Esqueci dos repórteres. Eles gritam perguntas de todos os lados. Lars
passa o braço ao redor dos meus ombros e para, respondendo a algumas,
mas evito os microfones, porque não esperava que o Conselheiro Vikstrom
virasse o jogo dessa maneira. Que ele absolvesse Lars era uma esperança,
mas que abrisse investigações a nosso favor? O homem cresceu no meu
conceito.
— Lars, vamos — sussurro para ele, porque estou enjoada. — Não
estou me sentindo bem.
Todo esse clima tenso e pesado envenena o ar, e respirar se tornou
difícil. Meu coração pulsa devagar, com baques surdos, como se estivesse
lutando contra um peso invisível que o sufoca.
Ele passa o braço pela minha cintura, me puxando para perto, e me
apoio nele, sentindo a força e o calor que, mesmo nesse momento, ele
consegue transmitir, como um ponto de equilíbrio no caos.
Porque tudo o que eu quero é ser feliz, que sejamos felizes, mas a
traição é como um abismo intransponível entre nós.
Ignoramos as demais perguntas, entrando rapidamente no carro que nos
aguarda, milhares de degraus Assim que as portas se fecham, encosto no
banco e deixo escapar um suspiro profundo.
— O que você está sentindo?
Muita vontade de chorar.
— Quer que eu ligue para a Dra. Strand?
Sacudo a cabeça.
Não, quero que ele faça uma mágica e que volte no tempo.
Porque não acho que exista um remédio para a decepção, a dor de ser
traída, a desconfiança que corrói e a sensação de ser usada.
Deixo as lágrimas escorrerem.
— Meu amor, vamos superar isso, temos muito mais do que uma
simples aliança ou compromisso entre nós. O que sentimos um pelo outro é
real e inquebrável. É único — diz ele, segurando as minhas mãos e trazendo
para os lábios. — Eu te amo muito e prometo me redimir. Juro. Por favor,
acredite em mim.
As palavras vêm de longe, mas quero tanto acreditar nisso.
Os olhos azuis intensos mergulham nos meus. — Nós fizemos um bebê
juntos, algo que nunca pensei que pudesse acontecer comigo, algo que me
daria tanto significado e esperança.
Eu abaixo minha mão para a minha barriga e uma frágil ponte suspensa
de madeira começa a se construir entre as margens escuras do abismo,
balançando enlouquecidamente por ventos de incerteza e medo.
— Eu preciso de um tempo, Lars, para pensar.
Ele me puxa para seus braços, deposita um beijo na coluna do meu
pescoço, fazendo um arrepio deslizar pela minha espinha.
— O tempo que você quiser, contando que você volte para mim.
De repente, o carro dá uma guinada violenta.
Lars me solta, sua atenção mudando para a janela tão subitamente que
me sinto como um barco sem âncora, à deriva em um mar tempestuoso.
O motorista diz alguma coisa em vinterlandês que não entendo.
— O que é?
Sou jogada sobre suas pernas e ele se abaixa sobre mim, dizendo: —
Tem alguém atrás de nós.
Um barulho forte e uma batida joga o carro para um lado. O veículo
acelera, então imediatamente freia, mas somos atirados longe por uma
explosão brutal.
O mundo vira de cabeça para baixo, e vira um carrossel, que gira e gira
sem parar até que finalmente para com um estrondo de metal se chocando
contra asfalto e vidros se partindo e gritos e tiros e algo mais acontecendo
que não sei o que é.
Uma dor aguda me impede de respirar e minha cabeça dói, mas depois
de um momento a tontura passa.
Tento me mexer, mas Lars está em cima de mim, pesado, imóvel.
Um cheiro estranho invade minhas narinas.
Gasolina. Queimando. Calor. Fogo!
O carro está pegando fogo!
Começo a entrar em pânico, mas ele logo se mexe.
— Vasilisa?
— Estou bem — digo, apesar de sentir dor no corpo todo e sangue na
boca.
Ele se mexe e abre a porta, empurra-a e, desajeitadamente, cai para fora.
— Venha — diz, me estendendo a mão.
Rastejo para fora e olho ao redor. Não tenho ideia de onde estamos.
— Corra — fala, apontando numa direção. — Para lá é Vinter. Não seja
pega.
— Lars…
Sangue escorre de um corte na sua testa. Muito sangue.
Como vou fazer isso? Vou ser mais uma a abandoná-lo? Como o irmão?
Não, não! De jeito nenhum, não posso deixá-lo. Sacudo a cabeça.
— Vá! Não seja pega — pede, olhando nos meus olhos. — Tyr vai nos
encontrar.
Faço um balanço da floresta fechada à minha volta enquanto meu
coração parece que vai explodir.
Não seja pega, foi o que ele me pediu. Não seja pega.
Não sei onde estou, mas corro com todas as minhas forças na direção
em que ele mandou.
A floresta está assustadoramente silenciosa e eu corro mais rápido que
posso, me esforçando para obedecer a ordem dele.
Mas logo escuto passos me perseguindo, passos que parecem perto
demais.
Um tiro ecoa na floresta, passando rente pela minha cabeça e acerta o
tronco na minha frente, fazendo lascas voarem pelo ar.
E parece vindo do lado errado.
Paro, confusa.
— Não acertei porque não quis, mas posso matar seu marido — fala a
voz bem perto.
Na minha frente, aparecem dois homens arrastando Lars pelos braços. A
cabeça dele pende entre os ombros, sangue pinga do cabelo.
Um outro homem segura uma arma que parece ser um rifle.
Meu corpo se recusa a obedecer à minha mente que ordena que eu me
vire e corra para o outro lado.
Apenas recuo até minhas costas baterem num tronco.
— Ah, a princesa é inteligente.
As feições do homem, que é claramente o chefe, são magras e
envelhecidas. Seus olhos são da cor de noite e o cabelo da cor da neve mais
pura das montanhas de Vinterland.
A iluminação fraca da lua que passa pelas árvores faz um jogo de luz
estranho e ele parece um vampiro, mas não é isso que mais me assusta.
É o sorriso maldoso e a frieza calculada na voz gelada: — Princesa, se
não quiser que eu estoure os miolos do seu marido na sua frente, agora
mesmo, é melhor vir conosco.
Acordo sobressaltado, a cabeça latejando e a boca seca. O chão frio e úmido
sob mim traz um calafrio que percorre minha espinha. Tento me mover, mas
uma súbita dor nas costelas me impede momentaneamente.
Abro os olhos devagar.
A minha visão está turva, mal consigo distinguir formas ao meu redor,
mas a realidade se impõe aos poucos. Estou em um tipo de armazém
abandonado, com as paredes úmidas e bolorentas. No teto, tem ferros
enferrujados e ganchos grandes. Já vi isso em algum lugar, só não me
recordo onde. Fecho os olhos tentando me lembrar e quando a memória me
invade, é como o pior dos pesadelos. Sento-me de súbito.
— Olha só quem decidiu acordar — zomba a voz fria e calculista que
eu jamais esqueci. — A nossa festa não seria a mesma sem você, meu
querido.
A visão agora é nítida e não poderia ser mais cruel: Vasilisa amarrada,
pelos pulsos, o rosto pálido, suspensa no ar por um gancho de segurar
carne. Seus pés descalços mal tocam o chão e de onde estou posso ver que
suas panturrilhas exibem marcas de hematomas.
Um nó se forma em minha garganta. Não posso acreditar, não posso.
— O que você fez com ela? — minha voz sai rouca, cheia de ódio.
— Ah, nada de mais — responde Markus, passando a ponta da faca no
rosto dela, fazendo-a estremecer. — Só esquentando para a diversão, mas
nós vamos aproveitar muito a noite. Você sabe como eu sou bom com a
faca.
Como ele ousa fazer isso com ela? Com a mulher que eu amo?
Ele se vira para ela e continua: — Você não faz ideia do prazer que senti
ao cortar o principezinho. Ele chorava tanto. Tão patético. Mas você,
bonequinha, você é mais interessante.
A cada palavra que ele diz, minha vontade de matá-lo aumenta. Como
ele pode ser tão cruel? Tão insano?
— O segurança do Sheikezinho também foi bem interessante de cortar
— diz. — Gritou muito o porco. Gosto dos que gritam.
A raiva me consome por dentro, uma fúria ardente que ameaça me
dominar. Estou novamente em uma posição de impotência, incapaz de
proteger aqueles que amo. Ver Vasilisa em perigo, assim como aconteceu no
passado com outras pessoas queridas, desperta em mim lembranças
dolorosas. Agora, com ela grávida, a sensação de medo e fracasso é ainda
mais esmagadora.
— Foi você que mandou matar o segurança? — pergunto, minha voz
tensa com a fúria contida.
— Exatamente — confirma, um brilho de orgulho perverso em seus
olhos escuros.
— Por quê?
— Porque aquele idiota era dispensável e eu queria colocar minhas
mãos em você. Tinha bons contatos na Suécia — diz de maneira fria.
O jeito como ele segura o rosto de Vasilisa e o vira contra a luz, como se
estivesse decidindo se ela é bonita ou feia, ou se os dois lados são
simétricos, faz calafrios me invadirem.
O medo se mistura à raiva; este homem é um psicopata perigoso, e aqui
estamos nós dois à sua mercê.
— E a tentativa de assassinato no casamento? Foi você? — pergunto, a
voz rouca.
— Matar a bonequinha? Claro que não — ri ele. — Uma mulher não
vale todo esse esforço. Mas você… você vale muito mais e…
O celular dele toca interrompendo, o que ele ia falar.
— Preciso atender isso. Não vão embora. Volto já.
Às gargalhadas, ele vai até a porta, abre-a, o que deixa ver que do lado
de fora é uma floresta nativa e ainda chove.
Depois, a porta de ferro bate com um estrondo.
— Lars? Você está bem? — sussurra ela.
— Estou — minto, forçando uma animação falsa na voz para
tranquilizá-la. — Vamos sair daqui, prometo.
Lutando contra a dor, levanto-me nos joelhos. Meus pulsos estão
amarrados com cordas ásperas, mas não muito apertadas. Sinto uma
pontada aguda na costela esquerda e um corte superficial na testa, mas nada
que me impeça de me mover. Talvez haja uma chance de escapar.
— Quem é esse homem? — pergunta Vasilisa, a voz tremendo.
— Markus Eriksson. O chefe da gangue que me sequestrou décadas
atrás — respondo, cerrando os dentes. — Um criminoso que deveria estar
trancafiado na prisão Arctic. Achei que nunca mais o veria.
— Por que ele está fazendo isso?
Suspiro, sentindo o peso da culpa.
— Nós o capturamos anos atrás, e ele jurou vingança. Deveria estar
cumprindo perpétua. Não sei como, encontrou uma maneira de escapar e
quer acertar as contas.
A realização de que estou revivendo meu pior pesadelo do passado me
atinge em cheio. Desta vez, porém, é ainda terrível. Vasilisa, grávida, está
envolvida. O medo de perdê-la me paralisa por um momento.
— Sinto muito por ter te colocado nisso — digo, a voz falhando.
— Não é sua culpa — assegura, seus olhos buscando os meus na
penumbra. — Vamos encontrar uma saída juntos.
Antes que eu possa responder, a porta pesada se abre com um rangido
agudo.
— Olha só, o casal real tão unido e apaixonado — zomba ele. — Que
cena tocante e bonita.
Markus se aproxima, um sorriso sinistro estampado no rosto,
carregando uma caixa de madeira, do tipo usada para transportar
encomendas pelo correio, com estampa de frágil, com etiquetas estrangeiras
coladas nas laterais, e embalada em quilômetros de plástico super-resistente
e isolante.
— Tenho um presentinho especial para você, princesinha — debocha,
colocando a caixa numa mesa. — Acabou de chegar.
Ela o encara, com coragem. — Não quero nada seu.
Ele pega uma tesoura e corta o plástico. Depois, vai até uma mesa no
canto que até o momento não havia notado, onde tem material cirúrgico – e
que faz todos os pelos do meu corpo se arrepiarem – e pega uma furadeira à
bateria. Coloca uma máscara cirúrgica e uns óculos especiais e abre os
parafusos dos quatro cantos da caixa.
— Ah! Olha isso — diz ele, abrindo lentamente a tampa. — Acredito
que vai apreciar este em particular.
Uma onda de náusea me invade com o fedor que se espalha pelo
ambiente.
Com um movimento brusco, ele vira a caixa, e não posso acreditar no
que estou vendo.
A cabeça de Jarl Hardrada cai no chão com um baque surdo e rola até
parar aos nossos pés, os olhos vítreos fixos no nada.
Com um grito estrangulado, minha esposa recua na ponta dos pés,
balançando-se nas cordas que a prendem ao teto, contorce-se para afastar-se
da cabeça decepada, mas não consegue e, entre soluços, vomita.
— Seu filho da puta desgraçado! Seu monstro! — Com um chute, rolo a
cabeça para longe dela. — Tire isso daqui.
Mesmo sem jeito, seguro Vasilisa pela cintura e levanto-a, e aos
solavancos, arranjo uma maneira de tirar o gancho da posição que está e
levo-a para longe do vômito e do crânio.
Ele agarra a cabeça de Jarl pelos cabelos e a levanta, olhando nos olhos
mortos.
Vasilisa soluça, seu corpo tremendo. — Por quê? Por que fez isso?
Ele se aproxima dela, trazendo a cabeça nas mãos, e inclina-se para
sussurrar: — — Está vendo o que acontece com quem não cumpre o que
promete, Alteza? — diz, se deleitando com o desespero dela.
E por que não dizer?, com o meu.
— Você é doente — digo, entredentes. — Isso não vai ficar assim.
O ódio que sinto é quase palpável. Preciso encontrar uma maneira de
sair daqui, e tirá-la daqui, de protegê-la. Não posso falhar.
— Claro que vai. — Ele ri, um som gelado que ecoa pelo armazém. —
Vocês dois são ingênuos. Acham que o mundo é justo? Que o bem sempre
vence? Estou aqui para provar o contrário.
— Como foi que você escapou da Arctic? — pergunto, tentando desviar
a atenção dele para mim, porque me agonia vê-lo observar Vasilisa com
esses olhos escuros como a noite.
Sinto um alívio imenso quando consigo meu intento e ele vem em
minha direção, os passos medidos.
— Ah, que bonitinho ele está interessado em mim — diz ele, com
sarcasmo. — Depois que destruiu meu negócio, minha família e minha
vida, me enfiando naquele buraco gelado sem calefação, que nem pode ser
chamado de prisão, pelas as celas serem escavadas na pedra, e no inverno
ficam enregeladas, a luz elétrica é desligada à noite e os guardas tratam os
detentos pior do que tratam os animais. Os prisioneiros só veem a luz um
dia por mês e não têm direito ao básico como exercício diário e banheiro.
Para comer, temos que trabalhar…
— Acho mais do que justo — interrompo a ladainha. — Aqui fora, no
mundo das pessoas de bem, para comer, todos têm que trabalhar. Por que na
prisão seria diferente?
Ele fica sem resposta por um segundo. — Por que está interessado em
mim?
— Não estou interessado em você — falo friamente, meu olhar fixo no
dele. — Só quero saber como você fugiu, para impedir outras fugas.
— Vou contar, principezinho, mas não vai impedir outras, porque a
minha foi genial. — Ele ri, um som vazio e cruel. — Tenho uma irmã que
sempre foi muito parecida comigo. Ao longo dos anos, ela fez algumas
cirurgias plásticas para ficarmos idênticos, até mesmo mudou de sexo, mas
não alterou o nome oficial. Durante uma das visitas, aproveitamos o apagão
causado pela explosão na Tyrvulkan, planejado pela Égide, organização que
faço parte. Enquanto todos corriam como baratas tontas, trocamos a peruca
e roupa, eu saí livremente e ela ficou em meu lugar.
— Você usou sua própria irmã? — pergunta Vasilisa, chocada com a
história. — Você corrompe até sua própria família para seus próprios fins?
Não tem vergonha?
— Ora, não corrompi nada. Ela queria dinheiro. Aliás, sempre dei
dinheiro para eles, nada mais justo que retribuíssem meus caprichos —
justifica. — Sem falar que depois que fui preso, eles ficaram com meu
negócio.
— E trabalharam de maneira limpa por muitos anos — retruco.
— E estragaram tudo — diz, levantando os braços e rodopiando. —
Deixaram tudo apodrecer. Veja isso, vou ter que começar tudo de novo!
— Você acha que dinheiro paga tudo? — pergunta ela, indignada.
— É o que move o mundo, não é? — responde ele com um sorriso
cínico. — Foi por isso que seu principezinho se casou com você, não foi?
— Não, não foi!
— Vasilisa… — chamo, sacudindo a cabeça, sinalizando para que ela
não entre no jogo dele, porque com esse tipo de louco psicopata não há
como argumentar.
— Então, princesinha, vou deixar vocês relaxando mais um pouco
enquanto chamo meu banqueiro. Preciso acertar ainda umas coisinhas para
que você possa me fazer rico em bitcoins e mandar umas transferências
para a minha conta no Irã. Depois que estiver lá, nem os Estados Unidos
conseguem bloquear meus fundos. Morar no Oriente Médio nunca foi meu
sonho, mas — ele dá de ombros e finaliza com uma risada sinistra —, com
o seu dinheiro, vou comprar um harém e foder escravinhas virgens pelo
resto da minha vida.
— Claro, isso depois de terminarmos a nossa festinha — zomba, saindo
pela porta enferrujada que se fecha com um estrondo.
O silêncio volta a nos envolver, opressor.
Olho ao redor e avisto uma cadeira velha e capenga encostada na
parede. Com cuidado, subo nela, apesar das pernas instáveis.
Estico-me e consigo espiar pela pequena janela imunda o contorno das
montanhas ao longe e o arco-íris eterno que dá o nome ao fiorde, perto de
onde estamos escondidos.
— Idiota arrogante — resmungo.
— O que você vê? — pergunta Vasilisa, a voz carregada de esperança.
— Estamos perto do fiorde do Arco-Íris — respondo, descendo da
cadeira. — Se conseguirmos sair daqui, não vai ser difícil Tyr nos achar. Ele
já deve estar próximo, inclusive.
Ela expira, aliviada.
— Vou te tirar daí — falo, olhando para o alto e percebendo que se eu a
levantar talvez consiga desenganchar as amarras dos punhos do gancho. —
Consegue enrijecer os braços?
— Acho que sim — diz.
— Ótimo. — Seguro-a pela cintura. — Em três. Dois. Um. Já.
Não é nem um pouco difícil, o que me espanta, porque não tem guardas
conosco e nem ouvi a porta trancando.
Não é possível que ele não ache que não vou tentar fugir.
No entanto, assim que coloco Vasilisa de novo no chão, entendo.
Ela geme de dor, e se eu não a amparo, ela teria caído no chão.
— O que foi? — pergunto, descendo-a até o chão com ela nos meus
braços.
Ela soluça e lágrimas de dor escorrem por seu rosto.
— Ele espancou as solas dos meus pés e minhas panturrilhas. Porque
tentei fugir. Acho que não consigo nem pisar no chão, quanto mais andar.
Examino seus pés e pernas e noto que os hematomas que vi mais cedo
estão ficando mais roxos e mais extensos. Abraço-a bem apertado. — Filho
da puta.
— Markus quer nos quebrar. Quer que percamos a esperança.
— Ele está jogando com meus medos e traumas — digo para ela,
percebendo a verdade em suas palavras.
Ela me observa por um momento, a intensidade em seu olhar
aumentando.
— Lars, você precisa ir — declara ela, segurando minha mão. — Você
precisa ir buscar ajuda.
— Não vou te deixar aqui — protesto, o conflito interno me rasgando
por dentro.
— É a única maneira. Se você for, pelo menos, temos uma chance. Se
você ficarmos, nós dois morremos. — Ela traz minha mão para sua barriga.
— Nós quatro morremos.
As palavras dela me atingem em cheio, mas a ideia de deixá-la é
insuportável.
— Por favor, Lars… — pede ela, as lágrimas escorrendo incontidas. —
Vá e traga ajuda.
Engulo em seco, lutando contra a emoção.
— Eu vou, mas prometo que volto. Aguente firme. — Abraço-a forte.
— Eu te amo mais do que tudo.
— Também te amo — responde ela, forçando um sorriso entre as
lágrimas.
Com relutância, levanto-me e olho ao redor.
— Vou trazer ajuda o mais rápido possível. Não o provoque e tente
ganhar tempo. Se ele pedir dinheiro, dê. Dê tudo o que ele quiser.
Ela assente.
— Eu te amo. Muito.
Beijo-a, desesperado e rápido demais, e dirijo-me silenciosamente até a
porta. Abro-a e sou recebido pelo ar frio da floresta.
Olho para trás uma última vez e vejo-a encolhida no canto.
Cada passo é uma luta contra o instinto de voltar para protegê-la, mas
preciso ser forte por nós dois.
Meu coração pesa como chumbo, mas sei que essa é nossa única
chance.
Agora sei como Tyr se sentiu quase duas décadas atrás.
Encolho-me em um canto escuro do armazém, tentando ignorar a presença
macabra da cabeça de meu pai a poucos metros de mim.
O fedor de carne apodrecida e o cheiro metálico de sangue se juntam ao
odor forte de mofo e umidade das paredes e ainda do meu próprio vômito,
mas tento manter o foco em pensamentos mais fortes e energias melhores.
Em Lars e no futuro. Em amor.
Uma coisa é certa: Lars fez o que achou necessário para me libertar das
amarras de meu pai e de Jamal. Poderia ter feito diferente? Poderia. Poderia
ter me contado antes? Sim, com certeza. Mas não o fez e não adianta chorar
sobre o leite derramado. Ele é o homem que eu amo. Não quero nem pensar
como eu estaria se tivesse me casado com Jamal e ainda estivesse sob o
jugo de meu pai.
No entanto, quando sairmos daqui, exigirei minha liberdade. Sou dona
de mim mesma.
A porta range, interrompendo minhas divagações, e Markus volta,
entrando, carregando uma cadeira, arrastando-a pelo chão de concreto, de
maneira que parece proposital para me irritar.
Ele a posiciona à minha frente e se senta, cruzando as pernas com uma
tranquilidade perturbadora. Estar aqui, sozinha com esse homem que já me
machucou, que decapitou meu pai e que, décadas atrás, feriu tanto o homem
que amo, é aterrorizante, mas eu sou forte.
— Vejo que seu maridinho fugiu — comenta ele, um sorriso torto nos
lábios. — Não estou surpreso de ele a abandonar. É um covarde mesmo.
— Ele não me abandonou. — Respiro fundo e encaro-o. — Lars
voltará.
— Talvez, sim, talvez, não. Quem sabe? — Markus dá de ombros. —
Mas eu não estarei mais aqui, bonequinha. Se você não obedecer, você
estará. Talvez não inteira, mas pode ser que ainda esteja viva. Mas só se me
obedecer. O que me diz?
Ele é maluco ou o quê? Sinto uma onda de ódio subir pela minha
garganta, mas a engulo. Preciso ganhar tempo.
— Vou obedecer — digo, estou apavorada, mas ele não vai saber disso.
— Que bom! — Bate palmas. — Então, temos negócios a tratar.
Ele vai até a mesa atrás e volta com um laptop e o abre, virando a tela
em minha direção. — Vamos direto ao ponto. Preciso que transfira uma
quantia considerável para algumas contas minhas. Considere uma
indenização pelos transtornos que seu marido me causou.
— E se eu me recusar? — desafio, mantendo o olhar firme.
— Não aconselho. — Ele ri baixinho. — Além do mais, se colaborar,
posso reconsiderar meus planos para você. Talvez eu a pique em pedacinhos
enquanto estiver viva. O que acha?
Cada segundo ao lado dele é uma luta contra o pânico. Tento manter a
compostura, mas a cabeça de meu pai no chão, os olhos sem vida fixos no
vazio, me deixam sem chão.
A percepção de que Markus é capaz de qualquer coisa me paralisa.
Sinto-me vulnerável, presa numa armadilha sem saída.
— O que exatamente quer que eu faça?
— Boa garota — diz ele, deslizando o laptop mais perto. — Aqui estão
as instruções. Compras de criptomoedas, transferências eletrônicas, você
sabe como é.
Olho para a tela, onde várias janelas estão abertas com contas no que
parece ser o Irã. Ele vai drenar minhas finanças.
— Você não vai conseguir escapar disso — aviso, enquanto começo a
digitar, seguindo as instruções. — As autoridades rastrearão essas
transações.
Os minutos se estendem como horas enquanto espero cada transação ser
processada. O silêncio pesado é preenchido apenas pelo som distante de
máquinas trabalhando e pelo gotejar constante de água das tubulações
antigas.
Meu coração martela no peito, e uma camada fina de suor recobre
minha testa apesar do frio. A tensão é tangível, e a sensação de perigo
iminente torna difícil até mesmo respirar.
— Ah, mas não estou muito preocupado com isso. Com o Irã e os
Aiatolás ninguém mexe ou eles explodem os campos de petróleo e o mundo
fica a pé.
— É?
— É. Sabe, enquanto você esvazia sua fortuna, estou pensando em
como será divertido ver Vinterland em ruínas — comenta ele, casualmente.
— O que quer dizer com isso? — pergunto, sem desviar os olhos da
tela, mas fazendo tudo o mais devagar possível.
— Simples — diz, sorrindo. — Assim que terminar suas transferências,
acionarei um dispositivo para explodir a Usina Tyrvulkan e assim toda
aquela obra-prima de geração de energia geotérmica estará perdida. Vocês
voltarão em uma década de investimentos. Sem falar que terão que
indenizar os contratos que têm com os países para fornecimento de energia.
As mãos tremem sobre o teclado. Não posso permitir isso.
Lars, cadê você?
— Você é louco! Não é só o fornecimento de energia, com isso o vulcão
pode explodir. Milhares de pessoas podem morrer!
Ele sorri mais abertamente, feliz. — Exatamente. E não sobrará nada
para os bebês que você espera, nem para seus sobrinhos. Um novo começo,
à minha maneira.
Tento convencer Markus de novo, buscando desesperadamente uma
forma de ganhar tempo. As operações bancárias internacionais não são
instantâneas, e cada segundo adicional pode ser a diferença entre a vida e a
morte. Minha mente corre, procurando argumentos, mas é difícil pensar
com clareza sob tanta pressão. O medo de que ele cumpra sua ameaça de
destruir Vinterland e machucar ainda mais pessoas inocentes é sufocante.
— Por favor, não faça isso — imploro, tentando manter a voz firme. —
Podemos encontrar outra solução.
— Ah, mas essa é a solução perfeita para mim.
Olho para Markus, tentando encontrar algum traço de humanidade em
seus olhos, mas tudo o que vejo é frieza e satisfação cruel. O armazém
parece encolher ao nosso redor, as sombras se alongando como mãos
sinistras. A sensação de isolamento é esmagadora. Preciso agir, fazer algo
para impedir esse homem, mas sem recursos e sob vigilância constante,
minhas opções são limitadas.
Sinto a esperança se esvaindo, mas me agarro à determinação de não
deixar que ele vença.
— E se eu der todo o meu dinheiro?
Ele consulta o celular e sorri. — Já deu, bonequinha.
Olho para a minha conta e vejo que não tem mais nada mesmo.
Ele se levanta e pega um facão e dá um sorriso macabro. — Agora, eu
vou começar a brincadeira. Sabe a sua professora, a Helga? Ela era minha
esposa e não quis mais ficar comigo quando descobriu que eu gostava de
cortar criancinhas. Ela não ficou ainda mais bonita?
— Seu monstro! — grito, e sem pensar atiro o computador em cima
dele.
Exatamente nesse minuto, a porta se abre com um estrondo.
— Tyr, porque a demora? — impaciento-me, porque não aguento nem mais
um segundo saber que Vasilisa está lá dentro, nas mãos daquele psicopata.
É por minha causa que ela está ali. É a mim que ele quer.
Isso é insuportável e imperdoável.
Esperei tanto tempo para ouvir que ela me amava e foi nessa situação
que consegui ouvi-la dizer isso.
Sem falar que fiz tudo errado. Comprei a curatela do pai dela. Mantive-
a cativa, sem necessidade. Não dei a liberdade que ela queria. Não expliquei
as minhas razões. E por quê? Pelos deuses, por quê?
Tem horas que Markus ri e zomba dela e ela mantém uma compostura
que me faz amá-la e admirá-la ainda mais.
— Porque você não quer deixar nenhuma possibilidade em aberto,
quer? — pergunta ele, os olhos grudados no monitor de televisão que
transmitem as imagens das câmeras que ele instalou dentro do antigo galpão
frigorífico.
O crepúsculo já se foi há muito e as paredes de metal enferrujado
refletem a luz branca acesa muitos metros acima da cabeça deles, que dá ao
lugar uma aparência ainda mais sombria.
O ar gelado do contêiner faz com que fantasminhas saiam pela minha
boca e isso me dá arrepios.
— Mas quem estamos esperando?
— Por quem está manipulando tudo isso: a Égide — fala doutora Helga,
a professora de Vasilisa na Universidade e ex-mulher de Markus.
Até tentei olhar para o lado direito do seu rosto, mas a cada vez que
olhava seus cortes, sentia a dor fantasma nos meus, e tive que discretamente
trocar de lugar com Tyr e me sentar do seu lado esquerdo.
— Mas por que o chefão apareceria logo agora? Se nem Thor ou
nenhum de nós está lá?
— Porque a Égide ama a monarquia — diz a professora. — Para eles,
ela é quase a realeza britânica, ela é uma princesa da Casa Romanov. O que
talvez tenha ainda mais mistério e sedução para eles.
Um som e um sinal vermelho começam a piscar furiosamente em dois
outros monitores.
— O que é isso? — pergunto.
— Os bancos, General — informa o ex-major Eirik Lundgren,
integrante do Grupo do Subsolo, que está na frente das duas telas,
coordenando uma terceira. — As contas da princesa foram esvaziadas.
Temos agora uma hora para informar que as transações foram feitas sob
coação e que sendo ela é incapaz, não poderia tê-las feito sem a autorização
do príncipe Lars.
— Tyr…
No monitor principal, vejo Vasilisa se destemperar e jogar o computador
na cara de Markus quando ele diz que gosta de cortar criancinhas.
— General! — chama a professora. — Não podemos mais esperar!
Do lado de fora do galpão, acabou de saltar de uma caminhonete
enorme, uma mulher forte, toda musculosa, cabelos curtos cortados e
vestida com roupas em estilo militar, e que abre a porta com um chute.
Os pelos da minha nuca se arrepiam.
— Merda! Fodeu! — xinga meu irmão.
— O que foi? — pergunto, porque ele não é de gastar palavrões
desnecessários.
— Você fica aqui! — diz Tyr, saindo correndo do contêiner e gritando
ordens no ponto: — Homens nas janelas, entrem. Snipers i a postos. Estou a
caminho.
A adrenalina explode nas minhas veias. Meu coração bate
descompassado, quero ir até lá, lutarao lado dela por ela.
No entanto, é pela tela presa na parede do contêiner, que vejo janelas
encardidas quebrando e espalhando estilhaços de vidro enormes quando os
homens de preto pulam para dentro do prédio.
Vasilisa grita e tenta fugir, mas não consegue andar e cai. Arrasta-se
para longe. Markus se joga para cima dela, agarra uma de suas pernas, faz
um círculo com a faca que está usando, consegue acertar alguma parte do
corpo dela.
Ela grita e eu berro. Soco a mesa e ela chuta a cara dele.
Tiros soam. Mais gritos.
Vejo mãos puxarem Markus de cima de Vasilisa e Tyr pegá-la no colo,
com muito cuidado, franzir o rosto, gritar alguma coisa e sair com ela
correndo. Aliviado, caio sentado na cadeira.
A professora me estende um copo de água, mas recuso, porque acho que
não consigo beber nada.
Preciso dela. Segurá-la em meus braços.
Lundgren vem até mim e devagar, como se eu fosse um imbecil, diz: —
Alteza, o General está pedindo para o senhor ir direto para o helicóptero.
Ele já foi para Vinter.
O que me alarma e dou um pulo. — Ela está bem?
— Parece que sim, mas está machucada e precisava de atendimento
médico imediato — informa ele.
— Claro.
Por que não pensei nisso?
Com meu coração na mão e peito apertado, saio para o quadriciclo e
dali para o helicóptero, acompanhado pela professora, e Lundgren, que no
seu super hiper mega ultra blaster tablet, vai dando ordens de
cancelamento para os bancos e revertendo todas as transações feitas por
Vasilisa.
Pousamos no teto do hospital e quando chego ao lounge encontro minha
família e o irmão mais velho dela.
Pelos olhos vermelhos de Catarina não tenho coragem de perguntar
nada, mas a espevitada da minha cunhada avança sobre mim e acho que se
ela tivesse uma vassoura, ancinho, machado, foice… sei lá, qualquer coisa,
ela usaria.
— Tomara que ela faça você comer o pão que o diabo amassou! —
exclama Tatyana, batendo no meu peito. — Tomara que ela te deixe!
E isso faz Catarina sair do seu estupor e vir para cima de mim também:
— Você não a merece. Como pode deixá-la naquele lugar sozinha?
Não impeço os socos e tapas delas porque as duas têm razão: Vasilisa
me deu seu sorriso, seu calor, seu amor.
Até mesmo a porra da vida dela, quando recebeu um tiro em meu lugar.
E o que foi que dei a ela? Falta de liberdade, excesso de carinho.
Obsessão.
Leif é o primeiro a reagir e pega Catarina em um abraço carinhoso. —
Bruxa, calma! Se ele não tivesse fugido, Tyr não a teria salvado.
Tyr pega Tatyana nos braços, levantando-a do chão. — Harpia, chega.
— Ela está em cirurgia — informa Thorvald, colocando a mão no meu
ombro. — A facada não atingiu nenhum órgão vital. A Dra. Strand e Dr.
Andersen estão com ela.
Preciso limpar a garganta para perguntar: — Os bebês?
— Até o momento, estão bem — diz ele.
Desabo na primeira cadeira e pressiono os calcanhares das palmas das
mãos contra os olhos.
Levanto a cabeça com o barulho de uma porta se abrindo na esperança
que seja um médico com notícias, mas é Magnus que entra com uma
bandeja de café nas mãos. Ele distribui as xicrinhas, mas estou enjoado
demais para aceitar.
Não tenho paciência para participar das conversas que se desenvolvem
ao meu redor e fico em silêncio, pensando no que fiz desde que comecei o
meu relacionamento com Vasilisa.
Escuto vagamente a doutora Helga explicar para Tyr e Thorvald que é
exatamente para evitar esse tipo de crime e para ajudar com soluções
rápidas que estão desenvolvendo o projeto que proibi Vasilisa de participar.
Thorvald diz que ela terá o apoio total dele para ampliar o projeto a
nível nacional. E o meu também. Sem a ajuda dela e da professora Berg,
talvez Tyr não nos encontrasse a tempo. Ambas foram fundamentais em
apontar onde estávamos, em ajudar a prender os capangas e em informar
que havia mais pessoas envolvidas, inclusive o pai de Vasilisa, o ex-noivo,
que foi preso antes de deixar o país, e que os tentáculos da Égide estavam
por toda a parte.
Ela suspira. — Espero que agora Markus fique trancafiado para sempre.
— Infelizmente, isso não vai acontecer, Professora — diz Tyr.
— Como assim, General? — pergunta ela, espantada com a frase dele.
Abro os olhos e vejo que Tyr se vira para ela, e sorri, o que me conta
que tem planos sinistros para o criminoso. Regozijo-me com isso.
— Uma pessoa não vive para sempre.
— Ah, claro — diz a inocente. — É maneira de dizer.
O que o faz sorrir mais ainda e pela primeira vez na noite sorrio
também. Espero poder estar presente quando meu irmão soltar as amarras
dos demônios que assolam a alma dele em cima de Markus. Vou me sentir
vingado.
No entanto, a dor quase insuportável que se instalou no meu peito mata
o sorriso do meu rosto quase imediatamente porque ainda não tenho
notícias de Vasilisa.
Levanto-me e ando pela sala.
O ponteiro dos segundos no relógio à minha frente parece zombar de
mim.
O Dr. Andersen passa e avisa que a cirurgia já está terminando e que
tudo vai bem. A Dra. Strand ficará com ela até o final.
Quase cinco mil e cem segundos desde que cheguei, finalmente!, a Dra.
Strand aparece, com um sorriso no rosto, o que alivia um pouco a dor física
alojada sob meu esterno.
— Ela já está no quarto — diz. — Está dormindo, porque estava muito
nervosa e achei melhor sedá-la levemente. Provavelmente, vai dormir a
noite toda.
— Ela está bem?
— Considerando as circunstâncias? — pergunta ela, levantando as
sobrancelhas. — Está ótima.
— Que bom, muito obrigado, doutora.
— Passo amanhã de manhã para liberá-la — diz e se despede.
Quando abro a porta do quarto, meu olhar vai direto para o rosto pálido
de Vasilisa, quase tão branco quanto o lençol que a cobre.
Fico chocado de ver que ela está conectada a um IV, uma bolsa de
sangue, um monitor de frequência cardíaca e tantos outros fios e máquinas
que não parece estar tão bem assim.
Viro-me para ir buscar um médico e dou um encontrão em Thorvald,
que está logo atrás de mim.
— Calma — diz ele, me segurando pelos ombros. — Ela vai ficar bem.
As próximas horas parecem se arrastar.
Meus irmãos mais velhos são os primeiros a ir para casa com as
esposas. Afinal, Yasmin teve bebê há pouco e Tatyana está muito grávida.
Leif, sob as ordens de Vladimir, também leva Catarina. Magnus e Vladimir,
os solteiros, ficam e se revezam em aturar os meus resmungos e grunhidos.
Às sete horas da manhã, já estou desesperado, porque ela ainda não se
mexeu.
— Você deveria dormir um pouco — tenta Magnus.
Olho para ele, enviesado.
— Ou talvez tomar um banho — diz Vladimir e funga. — Está fedendo.
Nem me digno a responder.
— Fazer a barba, talvez — sugere Magnus mais uma vez. — Você está
parecendo Jamal.
Isso faz com que eu me mexa.
Passo a mão no rosto e sinto os pelos espetarem. Ainda me lembro de
quando ela me pediu para tirar a barba, porque não queria se lembrar da
sensação da barba no beijo forçado de Jamal.
Não deve estar parecendo nem de longe com a barba do árabe, mas não
quero que ela acorde e me veja barbado.
Finalmente solto a mão dela e me levanto da cadeira onde sentei desde
que entrei no quarto.
— Vou tomar um banho e fazer a barba. Se ela acordar, venham me
avisar.
— Pode deixar — diz Magnus. Ele vai até o armário e pega a minha
roupa. — Aqui, Lars.
Quando saio do banho, sentindo-me renovado, a Dra. Strand está
entrando no quarto e Magnus e Vladimir saindo.
— Bom dia. Como foi a noite?
— Ela não se mexeu, apesar das enfermeiras que entraram e saíram
várias vezes — digo, preocupado.
— Que bom — diz a médica, pegando o tablet. — Ela estava precisando
descansar.
Chego perto da cama e faço um carinho nos cabelos loiros do meu
amor, que para a minha surpresa abre os olhos e pisca esses verdes
brilhantes que fazem minha vida mais alegre.
— Oi, meu amor.
E sorri. Nem consigo dizer nada porque fico repleto de amor. Abaixo-
me e pego-a nos braços, tendo cuidado com os fios que ainda estão presos
ao corpo dela, informando que está tudo bem.
Engulo as lágrimas de alívio que teimam em querer encher meus olhos.
Limpo minha garganta e sussurro, rouco: — Oi, minha princesa.
— Você não vai chorar, vai? — pergunta baixinho no meu ouvido,
Solto uma risada aguada e sacudo a cabeça. — Espero que não.
Ela ri, o som mais lindo do mundo, e me abraça com um braço só. —
Pode chorar. Não sou igual à Tatyana que acha que homem que chora fica
feio.
Rio e coloco-a de volta nos travesseiros. — A Dra. Strand está aqui para
nos liberar.
Para meu espanto, ela me expulsa do quarto e só me deixa entrar de
volta quando estar de banho tomado e arrumada, com uma roupa que
Catarina, que ainda está meio brava comigo, traz para ela.
Quando saímos, a luz do dia nos envolve, trazendo uma sensação de
renascimento.
— Vamos para casa — digo para ela, segurando sua mão com força.
— Vamos. — Ela aperta minha mão de volta, mas diz séria: — Temos
muito o que conversar.
Não sei se gosto muito desta frase.
Antes de chegar aos portões da Månestrålens Fjordresidens, ainda na
alameda ladeada de árvores, já podemos ver o enxame de jornalistas na
entrada particular de nossa casa.
Assim que notam o carro, todos se viram na nossa direção e os flashes
pipocam. Câmaras são erguidas e os profissionais correm para o meio da
rua, sem medo de serem atropelados por outros carros, tentando pegar uma
visão melhor da SUV, pois o carro da segurança impede um melhor visual.
A sorte deles é que por ser cedo, o movimento é bem pequeno.
Lars suspira ao meu lado, os dedos tamborilando impacientemente no
apoio de braço entre nós dois.
— Será que vão nos perseguir para sempre? — pergunta ele,
retoricamente, lançando um olhar aborrecido pelo vidro.
— Vão e você sabe disso, mas não me importo. — Apoio minha cabeça
no seu ombro e entrelaço meus dedos com os dele, tentando aliviar a tensão
que sinto emanar do seu corpo. — Estou bem, você está bem, nossos bebês
estão bem.
— Exato. Um pouquinho de paz viria a calhar — resmunga ele. — É só
isso que peço.
— Podemos marcar uma coletiva e até anunciar a gravidez. Assim eles
nos deixariam em paz — sugiro, virando-me para encará-lo. — O que acha?
Ele me encara, ainda de cara fechada. — Na verdade, estava pensando
em mandar todos eles para…
Antes que ele complete a frase, estendo a mão e coloco delicadamente
meus dedos sobre seus lábios.
Arqueio uma sobrancelha. — Um príncipe de Vinterland é mais bem-
educado que isso e sabe que ter a imprensa ao seu lado é importante. Afinal,
isso lhe serviu quando lhe conveio, não?
— Você tem razão — admite, e segurando minha mão, morde a ponta
do meu dedo e depois deposita um beijo suave em minha palma.
Posso ouvir os jornalistas gritando nossos nomes, fazendo perguntas que
se perdem no ar e os flashes das câmeras iluminam o interior por breves
instantes quando o carro passa pelos portões.
O sol matinal ilumina os jardins e a fachada imponente do palacete
antigo. Uma onda de alívio me inunda. Estou em casa, mesmo sabendo que
ainda há aparas a acertar.
— Sinceramente, meu amor, só quero você ao meu lado — insiste ele.
— O resto não importa.
Sorrio para ele, meu coração aquecendo com suas palavras.
— Estou aqui ao seu lado — respondo, entrelaçando meus dedos aos
dele. — Quero dizer, estarei, se e enquanto você se comportar.
Lars franze as sobrancelhas. — É a segunda vez que você diz coisas que
me deixam apreensivo.
— Porque nós vamos conversar, Anjo — aviso de novo e concluo: —
Mais tarde, porque pelo número de carros temos visitas.
— Ainda acho que deveríamos ter fugido para uma cabana isolada nas
montanhas — reclama quando o carro passa pela entrada principal e ele
repara que o estacionamento interno da nossa residência tem movimento.
— Era tentador — concordo. — Mas não íamos conseguir ficar
escondidos por muito tempo. A família, a começar por Tyr, ia nos encontrar.
Sem falar na imprensa.
— Infelizmente, você tem toda razão. Novamente.
— Prometo que, assim que melhorar, vou para o Ártico com você. Só
nós dois.
— E eu prometo tentar ser mais paciente com a imprensa — acrescenta
ele, suspirando teatralmente.
Sorrio, balançando a cabeça. — Já é um começo.
O carro para em frente à entrada lateral da residência, onde Barnaby
está a postos. O motorista abre o porta-malas e o segurança retira a cadeira
de rodas que vou ser obrigada a usar por uns dez a quinze dias ou até que os
cortes nos meus pés cicatrizem por completo.
Lars desce, me pega no colo, e me coloca na cadeira.
— Seja bem-vinda de volta, Alteza — diz Barnaby. — Estávamos todos
rezando para a senhora voltar logo e bem.
— Obrigada, Barnaby.
Lars empurra minha cadeira de rodas pela rampa lateral.
— Então, agendamos a coletiva para semana que vem?
— Não — discordo, olhando o jardim e a vista magnífica do fiorde com
a cachoeira na lateral. — Depois de amanhã de tarde, antes do crepúsculo,
seria ótimo. Dá tempo de nos prepararmos e não deixar o assunto morrer.
— Entrarei em contato com Astrid e pedirei a ela para organizar a
coletiva.
— Com um lanche bem típico, no jardim — digo e viro o pescoço para
olhar para ele. — Eles vão até esquecer o que vieram fazer aqui.
— Você não presta, Diaba.
Sorrio. — Mas vamos encarar essa coletiva como uma oportunidade.
— Oportunidade? — franze a testa, curioso.
— Sim. De mostrarmos ao mundo quem realmente somos, sem
máscaras ou mal-entendidos. Depois de tudo o que passamos, seria bom
esclarecer as coisas.
— Você sempre vê o lado positivo, não é?
Dou de ombros, sorrindo. — Alguém precisa equilibrar seu pessimismo
ocasional.
Ele ri. — Acho que fazemos uma boa dupla.
— Concordo plenamente.
As portas se abrem, revelando que a sala de estar está decorada com
arranjos elegantes de Pecadoras Magníficas misturadas a outras flores
brancas que não reconheço, e o primeiro a vir me receber é Vladimir.
— Vasya, que susto você nos deu — diz, me dando um abraço afetuoso.
— Vladimir! — exclamo, surpresa. — Não esperava vê-lo aqui.
— Como assim? — diz ele, indignado, depois de me dar um beijo. —
Vim para o casamento e para a festa, não viria quando você é sequestrada?
— Ele chegou ontem, assim que soube da notícia e não arredou o pé do
hospital nem um minuto — conta Lars ainda atrás de mim. — Só saiu do
seu quarto hoje de manhã cedo, na hora que a Dra. Strand entrou para te
liberar.
Fico surpresa com isso, mas não deveria. Isso é que é família.
Depois meu tio, Ivan, repete o abraço, e diz em tom paternal: —
Vasilisa, minha querida, é bom tê-la de volta em segurança.
Mais um abraço, de Magnus desta vez.
E então um berro de: — Chegamos! —, anuncia minhas amigas e nem
dá tempo que Barnaby avise que são Tatyana, Catarina e Yasmin,
acompanhadas dos maridos e noivo que chegam, porque três furacões
entram na sala, o que faz Lars se postar à minha frente.
— Calma, calma — diz meu marido, levantando as palmas, mas quando
elas não diminuem a velocidade, ele ordena com a voz firme: — Calma!
Parem aí mesmo.
E elas estancam, mas porque ficam horrorizadas ao me verem na
cadeira de rodas.
— É só por uns dias — aviso. — Sai da frente, Lars.
Assim que ele se move, elas avançam devagar.
Bom, em termos…
— Abraço coletivo! — grita Tatyana. E as três, ao mesmo tempo, vem
me dar um abraço.
— Tyr! Thor! Leif! — berra Lars, sem saber o que fazer. — Pelo amor
dos deuses! Contenham suas mulheres!
No entanto, no meio de tanto perfume francês delicioso, cabelos
sedosos, e blusas de seda, eu só posso rir.
Porque não tem nada melhor que essa amizade sororal, i que só amigas
de anos e anos, como nós, podem entender.
Acho que se deixasse, elas me raptariam para o quarto, e me fariam
contar tudinho só para elas, mas depois de uns cinco minutos, o nosso
abraço se desfaz.
Leif se aproxima e me dá um beijo. — Bom te ver bem.
Seguido de Tyr, que se inclina e mal me dá um abraço. — Fico contente
que esteja bem, Cunhada.
Mas eu não me esqueci de quem foi que me tirou daquele galpão, quem
correu comigo nos braços, e quem entrou gritando ordens urgentes no
helicóptero, parecendo que ia matar o piloto se ele não voasse o mais rápido
possível.
Lembro dele arrancando a própria camisa e rasgando-a em tiras com
uma adaga que puxou da cintura – parecendo bem o Neandertal que a
mulher o acusa de ser – e amarrando-a em volta da minha coxa.
Ri das coisas idiotas que ele me contou sobre Lars – não sei se inventou
na hora –, mas me mantiveram distraída até que chegássemos ao hospital e
os médicos colocassem uma máscara sobre o meu rosto e o mundo
escurecesse de vez.
— Obrigada por ter me salvado, Tyr — digo, jogando meus braços ao
redor do pescoço dele e puxando-o para baixo. — Obrigada mesmo!
— Não fui eu, foi uma equipe — diz ele, me dando dois tapinhas nas
costas e se remexendo como se não se sentisse à vontade em ser abraçado.
— Como está a coxa?
— Vai ficar ótima — respondo. — Graças a vocês todos.
— Você é forte, Vasya. — Tatyana sorri e puxa o marido para se sentar
ao lado dela. — A mais forte de todas nós.
Por último, Thorvald se aproxima trazendo a filhinha nos braços, a
Princesa Alva, futura rainha de Vinterland.
— Posso? — pergunto, depois de cumprimentá-lo.
Ele hesita por um instante, mas depois cede. — Pode, claro.
— Ela está cada dia mais linda — digo, acariciando a bochechinha
rosada da bebê.
— Também… É igual à mãe — fala o pai mais babão que já vi neste
mundo. — Vai ser um problema em driblar os conquistadores.
— Acho que nenhum vai servir, né? — brinco com ele, devolvendo a
neném, porque sinto que ele está incomodado em não a ter nos braços.
Ele levanta as sobrancelhas na dúvida. — Depende. Vai ter que passar
pelo meu crivo.
Yasmin dá uma risadinha.
Logo, o aroma de café recém-passado e pães quentes e frescos invade
meus sentidos exatamente quando Barnaby entra na sala e avisa: — O café
da manhã está servido.
— Vamos?
Lars empurra minha cadeira em direção à sala de jantar, mas o banquete
– porque isso não é um café da manhã – foi servido no jardim, onde
Barnaby fez uma mesa longa e me posiciona no centro e se senta ao meu
lado.
Revezamo-nos em contar o que todos querem saber: o que aconteceu e
como foi que nos sentimos durante toda a odisseia.
— Não vou mentir, fiquei com muito medo — respondo, séria —,
apesar de saber que ia ser salva, eu estava estudando psicopatas e aquele
homem…
Um arrepio faz meu corpo estremecer.
Lars passa meu braço pelo dele e entrelaça nossos dedos. — A doutora
Bakke foi fundamental em nos ajudar a localizar o esconderijo de Markus,
nos avisar que ele tinha uma nova parceira, que se correspondia com ele na
prisão, que o visitava, quais eram os hábitos dele.
Olho para Lars, surpresa. — É mesmo?
Ele sorri. — Além de ter prometido ajudar no que pudesse, fiquei muito
impressionado com o DarkLine.
— Eu também — adiciona Tyr. — Sem falar que foi ela que identificou
a troca de… corpos, logo depois do incidente no Cubo. Se ela tivesse me
avisado disso um ou dois dias antes, nada disso teria acontecido.
— Que bom! — digo, entusiasmada.
— Coloquei toda a estrutura do Ministério da Justiça e Relações
Exteriores à disposição do projeto — fala Magnus. — E apesar de você
estar fazendo psicologia, se continuar a trabalhar nesse projeto, talvez eu
tenha um posto para você no meu secretariado quando acabar a faculdade,
Cunhada.
Olho para Lars que continua sorrindo.
— Jura?
— Se prometer cumprir a lista de protocolos de segurança que Tyr vai te
passar, não vejo problema algum — confirma ele.
— Prometo!
Puxo-o pelos cabelos e dou um beijo em sua boca, ganhando assobios
de todos na mesa.
— Você teve muita sorte, Pequena, não vamos arriscar de novo.
— Ela definitivamente tem um anjo da guarda muito forte — diz
Magnus.
Sorrio para o meu marido. — Eu tenho o meu anjo particular, não é,
Anjo?
— Se você tivesse me apelidado de anjo, Harpia, acho que eu teria te
afogado no Tyrvulkan na primeira semana de casamento — resmunga Tyr
da ponta da mesa.
— Mas com uma frase fo-fa desta, Bárbaro, você queria ser apelidado
de anjo, como? — pergunta Tatyana com um sorriso.
Olho espantada para os dois. — Mas eles ainda estão deste jeito? —
pergunto para ninguém em particular.
— Acho que eles vão se amar assim até morrer — comenta Leif.
— Por que de paixão você entende, não é, Don Juan? — cutuca
Catarina.
— Já poções são sua especialidade, não é, Bruxa? — retruca ele,
imediatamente.
Viro-me para Lars e pergunto baixinho: — Colocaram alguma coisa na
água de Vinter?
Ele dá de ombros e sussurra: — Contanto que você continue a ser minha
Diaba e eu seu Anjo, por mim está tudo bem.
Sorrio. — Então, tá.
O café da manhã prossegue em um clima que oscila entre assuntos
sérios, temas leves, e implicâncias entre os dois casais. Compartilhamos
risadas e conversamos sobre o futuro.
Estou cercada por pessoas que me amam e apoiam. Minha família, de
sangue e de coração.
O relógio marca quase meio-dia quando o cansaço começa a me vencer
e Lars é o primeiro a notar.
~ FIM . ~
Você já leu meus outros livros? Para os outros irmãos, ou saber mais, me
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Capítulo 1
i Taça de champagne em francês.
ii Sílfide significa mulher esbelta e delicada, mas na mitologia céltica e germânica, que engloba
também a mitologia nórdica, é o gênio feminino do ar.
Capítulo 2
i Na Europa e nos Estados Unidos, não existem “damas de honra”, como nós conhecemos, e sim
flower-girls, ou seja: meninas das flores. As damas de honra são adultas, as nossas madrinhas.
ii Na astronomia, o equinócio ocorre no instante em que o Sol cruza a linha do equador, fazendo com
que o dia e a noite tenham a mesma duração. Os equinócios ocorrem nos meses de março e setembro
e definem as mudanças de estação. Como Vinterland, fica no hemisfério norte, as estações lá são
inversas das que acontecem no Brasil, que fica no hemisfério sul.
iii Ou Mefistófeles. Essa figura surgiu na Idade Média, como aliado de Lúcifer e Lucius na captura
de almas inocentes, seduzindo-as, através de roubos de corpos humanos atraentes. É um dos
demônios mais cruéis e em muitas culturas também se torna sinônimo do próprio Diabo. O nome
significa: o que não ama a luz. Na literatura, Mefistófeles é o personagem-chave nas várias versões
de Fausto, sendo a mais conhecida a do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, um poema
magistral, escrito ao longo de sessenta anos. Aparece ao velho cientista, que frustrado por não possuir
os vastos conhecimentos que gostaria, e em troca de alcançar o grau máximo da sabedoria, ser
rejuvenescido e obter o amor de uma bela donzela, decide fazer um pacto com o demônio.
iv Grigori Yefimovich Rasputin foi um russo, autoproclamado místico, santo e filósofo que se tornou
uma figura extremamente influente no final do período imperial, depois de salvar a vida do único
filho do Czar Nicolau II, que era hemofílico.
v Segundo Henri Troyat, da Academia Francesa, Rasputin teria previsto a sua própria morte. Em
1916, ele escreveu uma carta ao Czar: “Pressinto que deixarei de viver antes de 1 de janeiro. (…) Se
ouvires o som do sino a dizer que Gregório foi morto, fica a saber que, se foi um dos teus que
provocou a minha morte, nenhum dos teus, nenhum dos teus filhos viverá mais de dois anos. Eles
serão mortos pelo povo russo”. Dois anos depois do seu assassinato, tramado pelo príncipe Felix
Yussupov, a família imperial foi brutalmente assassinada em 1918.
vi Joseph Mallord William Turner, ou só William Turner, foi um pintor, gravurista e aquarelista
romântico inglês, considerado um dos precursores da pintura moderna, em função dos seus estudos
sobre cor e luz. Seus trabalhos são marcantes, com colorações expressivas, paisagens imaginativas e
marinhas, muitas vezes violentas.
vii Que se saiba Turner só pintou a Erupção do Vesúvio, em 1817, que se encontra exposta no The
British Art Center, em New Haven.
viii Turner foi muito à Holanda, França e Itália, e sim, rodou a Europa desenhando e voltava a
Londres com volumosos cadernos de esboços para suas pinturas. Talvez ele tenha visitado
Vinterland, mas os historiadores não têm certeza disso. ;-)
Capítulo 4
i Fausto, de Goethe, verso 1066-7, tradução livre.
ii Curador é aquele judicialmente incumbido de cuidar de interesses e bens daqueles totalmente
incapazes e impossibilitados de exprimir sua vontade, como órfãos, menores, doentes mentais,
toxicômanos, etc….
Capítulo 6
i Palácio dos Amores.
ii Existem alguns tipos de imunidade aplicáveis a estrangeiros: por ex.: diplomática e a de chefes de
Estado. No caso, a de chefe de Estado, a qual o Sheik Jamal está se referindo, consiste na
inviolabilidade pessoal que protege os governantes em visita a outro país, contra medidas coercitivas
(a prisão ou detenção, por ex) e contra ofensas à sua pessoa e dignidade.
iii Quando em uso de títulos como Vossa Majestade, Vossa Alteza Real, etc… a regra formal
determina que se utilize o pronome Vossa/Vosso, com letra maiúscula, mas para manter a fluidez do
texto preferi usar sua/seu, a não ser em casos específicos em que o personagem precisa frisar a
formalidade da situação, como nesse caso.
Capítulo 10
i Para quem não sabe, a expressão Histórias da Carochinha vem de Portugal e Contos da Carochinha
é o título do primeiro livro infantil publicado no Brasil, em 1894. A Dona Carochinha é uma barata e
a origem da palavra deriva do espanhol, carocha, cucaracha que quer dizer… barata, claro.
Capítulo 11
i Ou Creso, foi o último rei da Lídia. É famoso por sua riqueza, a qual foi atribuída à exploração das
areias auríferas do rio Pactolo, afluente do Hermo onde, segundo a lenda, se banhou o Rei Midas,
aquele que a lenda dizia que transformava em ouro tudo o que tocava.
Capítulo 12
i Isengard significa Fortaleza de Ferro em nórdico antigo.
ii Dark Prince significa Príncipe Sombrio.
iii Término repentino de um relacionamento sem quaisquer explicações ou avisos, onde a parte passa
a ignorar quaisquer tentativas de contato ou comunicação feita pela outra.
iv Mulher fatal, sedutora.
v Bolsa tipo carteira.
vi Venha ver, segundo a norma culta, mas eles são crianças…
vii За здоровье! no alfabeto cirílico, ou transliterado Za zdorovye!, quer dizer À sua saúde! em
russo.
viii За наше здоровье! no alfabeto cirílico, ou transliterado Za nashe zdorov’ye!, significa À nossa
saúde! em russo.
ix Em francês, significa, casaco solto ou capa longa e pesada.
Capítulo 13
i Interruptor que controla a intensidade da luz
ii Sexy, por ser adjetivo da língua inglesa, não deveria ser flexionado, mas como foi incorporado à
fala, coloquei o plural.
iii Os homens árabes têm atitudes e comportamentos em público que aqui no Ocidente seriam
facilmente vistos como indicadores de homossexualidade, que é desaprovada e comumente
reprimida, até com pena de morte em alguns países.
iv É o cumprimento tradicional entre os árabes muçulmanos, o famoso aportuguesado ‘salamaleico’,
e quer dizer: a paz de Alah esteja com vós; daí surgiu a palavra salamaleque, que é utilizada para se
referir a um cumprimento demasiado polido.
v A resposta significa: que a paz de Alah esteja sobre vós também.
vi A frase original é de Nelson Rodrigues: Nada mais obsceno do que o rosto humano. Só a cara é
indecente e exige a folha de parreira. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu.
vii Conhecido no Brasil como Narguilé, é um cachimbo de água.
viii O correto é Tolstaya, porque em russo se flexionam os sobrenomes de acordo com o gênero da
pessoa.
ix Sophia foi entusiasta ajudante do marido e sua copista. Só de Guerra e Paz foram sete versões.
Capítulo 14
i Expressão francesa que quer dizer: fora do concurso. Expressa que a pessoa é inigualável, sem
rivais.
ii Jörmungandr, uma gigantesca serpente, é a segunda filha do deus Loki com a gigante Angrboda.
De acordo com a Edda em Prosa, Odin raptou de Asgard os três filhos de Loki: o lobo Fenrir,
Jörmungandr e a deusa Hela, sendo a serpente jogada no grande oceano que circula Midgard. O
prefixo jörmun significa enorme, vasto ou sobre-humano. A palavra gandr pode ser uma variedade
de coisas em nórdico antigo, mas refere-se a entidades e/ou seres alongados, como: cobra, fiorde, rio,
cajado, bengala, mastro, pênis, etc. A serpente cresceu tanto que seria capaz de cobrir a Terra e
morder sua própria cauda, como um Ouroboros. Por isso, ganhou o nome alternativo de Serpente de
Midgard (Midgårdsormen) ou Serpente do Mundo.
iii Uma Valkyria, literalmente escolhedora dos mortos, é uma das inúmeras figuras femininas que
guiam as almas dos mortos para o salão do deus Odin, Valhalla. As Valkyrias também aparecem
como amantes de heróis e outros mortais, onde às vezes são descritas como filhas da realeza, às vezes
acompanhadas por corvos e às vezes conectadas a cisnes ou cavalos.
iv Na mitologia nórdica, Valhalla, literalmente Salão dos Mortos, é descrita como um salão
majestoso localizado em Asgard e presidida pelo deus Odin. Metade dos que morrem em combate
entram em Valhalla, enquanto a outra metade é escolhida pela deusa Freyja para residir em
Fólkvangr.
Capítulo 15
i O jab é tipo de soco usado nas artes marciais e lutas corporais.
ii O direto é outro estilo de soco usado em artes marciais e lutas corporais.
iii É uma geleia feita com uma amora silvestre, típica das regiões de turfeiras, tipo de solo formado
pela decomposição de musgos e materiais orgânicos, como fósseis sob o solo. Parece uma grande
framboesa amarelo-alaranjada. Também chamado de chocoutai. É encontrada nos países que têm
fronteira com o Ártico.
iv Pequeno peixe gorduroso típico do Mar do Atlântico Norte, Báltico ou Pacífico Norte.
v Casamento por procuração.
vi Queijo de cabra típico da Escandinávia.
vii Vasilisa não poderia realizar nenhum ato da vida civil, nem mesmo se casar, senão por declaração
do seu curador, no caso o pai, já que se fizéssemos uma equiparação estaria enquadrada no inciso I,
do art. 1.767 do Código Civil Brasileiro, que diz que estão sujeitos à curatela, os que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para os atos da vida civil;
Capítulo 16
i Rua de compras chiques de Oslo.
ii O Teams é uma plataforma de computação ou aplicativo de computador e celular para reunião de
empresas e educação;
Capítulo 17
i Cobertura;
ii Fiorde Oslo.
iii Chá fermentado, levemente efervescente e adoçado, consumido por seus supostos benefícios à
saúde, mas não há evidências desses benefícios. Acredita-se que tenha se originado da China, onde é
tradicional. No início do século XX, havia se espalhado para a Rússia, depois para outras partes da
Europa Oriental e Alemanha.
iv Pequenos grupos de pessoal altamente treinado, enfatizando suficiência, furtividade, velocidade e
coordenação tática, comumente conhecidos como forças especiais.
Capítulo 18
i A moeda da Noruega é a Norsk Krone, ou seja a Coroa Norueguesa, mas ninguém, na Noruega, fala
“x coroas norueguesas” e, sim, “x coroas”.
ii Na mitologia grego-romana, o néctar é a bebida dos deuses do Olimpo. Para o Hinduísmo,
Taoísmo, Budismo e várias escolas, é o amṛita, em sânscrito, o símbolo sagrado da sabedoria,
iluminação espiritual e também da cura e renovação da vida.
iii A origem do termo perversão é de 1660 e não tinha conotação sexual, que a partir de 1896, foi
aplicado originalmente a variantes de sexualidades ou comportamento sexual considerado prejudicial
pelo indivíduo ou grupo que usa o termo.
Capítulo 19
i Cão da Córsega, ou Cão Robusto, dependendo da tradução (italiana ou celta), é uma raça de
cachorro, de grande porte, do tipo mastim, oriunda da região sul da Itália, onde é valorizada como
cão de guarda e de caça de javalis. Pode ser treinado para ser feroz e possui uma das mordidas mais
poderosas do mundo canino, só perdendo para o Kangal, da Turquia, que corresponde
aproximadamente a quase 50 kgf/cm 2.
Capítulo 20
i Esta expressão significa: Que Allah te recompense com o bem. É usada para expressar gratidão e
despedida ao mesmo tempo.
ii Significa: Que Allah te abençoe. É uma maneira de retribuir os bons desejos que Vasilisa fez a ele.
Capítulo 21
i Petit four, em francês, quer dizer: forno pequeno. Um petit four é uma massa pequena e doce (ou
salgada) da pâtisserie clássica francesa.
Capítulo 24
i Aparelho portátil que monitora o ritmo cardíaco do indivíduo em um período de 24 a 48 horas;
Capítulo 25
i No século I d.C., após a tumultuada guerra civil conhecida como o Ano dos Quatro Imperadores,
Vespasiano assumiu o trono. O Império Romano estava com sérios problemas financeiros. Para
reabastecer os cofres públicos, ele implementou uma série de novos impostos. Um desses impostos
foi sobre a coleta de urina dos mictórios públicos, conhecida como vectigal urinae. Isso, porque, na
Roma Antiga, a urina era um bem valioso. Coletada de mictórios públicos, era usada em processos
industriais, como o curtimento de couro e a lavagem de roupas, devido ao seu conteúdo de amônia,
que servia como agente de limpeza. Quando seu filho, o futuro imperador Tito, criticou a medida
fiscal como sendo indigna e de mau gosto, Vespasiano pegou uma moeda obtida com o imposto,
aproximou-a do nariz de Tito e perguntou se ela tinha algum cheiro desagradável. Tito respondeu que
não. Vespasiano então declarou: — No entanto, vem da urina. Daí, vem a famosa frase Pecunia non
olet, que ilustra princípios tributários, e indica que o valor do dinheiro não é afetado pela sua origem.
A expressão tornou-se proverbial e é usada até hoje para sugerir que ganhos financeiros,
independentemente de sua fonte, não carregam consigo mácula ou desonra.
ii O véu já era usado em cerimônias de casamento na Grécia Antiga (para afastar e confundir os
maus espíritos, assim como as damas de honra) e no Império Romano. Para a religião judaico-
católica-muçulmana, simboliza a pureza, modéstia, castidade e submissão ao marido. Em diferentes
culturas ao redor do mundo, o véu simboliza diferentes coisas.
Capítulo 27
i Traduz-se por algo similar à: Mestre do chocolate.
ii Ouro rosado.
Capítulo 28
i Linha Sombria ou Linha Escura;
ii Criminosos em série
iii Chá da tarde.
iv O Pensador é uma das mais famosas esculturas do escultor francês Auguste Rodin e retrata Dante
Alighieri, em frente dos Portões do Inferno, ponderando sobre seu poema. Originalmente, a peça foi
feita para a porta monumental do Museu de Arte Decorativa de Paris, baseado na obra Divina
Comédia, de Dante. Há várias versões da estátua, de tamanhos diferentes, feitas pelo artista. A mais
famosa, de 1m80 de altura, em bronze, fica no jardim do Museu Rodin, em Paris.
v Criminal profiling, ou perfilamento criminal, é processo de análise criminal que une as
competências de um investigador criminal e do especialista em comportamento humano.
Capítulo 35
i Pessoa que atira de um esconderijo, com altíssima precisão e a longa distância;
Capítulo 36
i Sororal é um adjetivo que vem de “soror”, que significa, em latim, irmã. Sororal significa, neste
sentido, amizade ou amor profundo e solidariedade entre mulheres. É semelhante à fraternal, mas por
ser apenas entre mulheres, fraternal não pode ser usado. Não confundir com sóror, que se refere
somente a freiras.
Capítulo 37
i Essa serpente só existe nas montanhas de Vinterland e sua mordida é muito potente.
ii As enguias Anguilla anguilla são nativas da região Árticas e escandinavas e, sim, comem entre
outras coisa, cadáveres de animais marinhos.