Vendida Ao Príncipe Que Me Seduziu 3 - Andreia Ama

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Copyright © 2024 Andreia Amado

Este livro é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares, diálogos e incidentes envolvendo-os
derivam da imaginação da autora. Quaisquer similaridades com pessoas reais, vivas ou mortas,
eventos ou locais são inteiramente coincidência. Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, transmitida, feito download, decompilado em
quaisquer formas ou por quaisquer meios, quer eletrônico ou mecânico, sem a expressa autorização
escrita da autora, exceto nos casos de breves citações inseridas em artigos de crítica ou resenha
literária.
© 2024 Andreia Amado
Capa por LADesigner © 2024 Andreia Amado
SUMÁRIO

Agradecimentos
Primeiro, um recadinho
Playlist
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Epílogo
Notes
Um príncipe marcado pelo passado. Uma herdeira aprisionada por um
destino cruel. Um amor proibido que desafia o poder e a paz entre dois
reinos.

Por trás do sorriso encantador e da fachada de autoconfiança, o Príncipe


Lars Haraldson carrega cicatrizes profundas que o afastam de qualquer
envolvimento emocional. Quando seus olhos encontram os de Vasilisa, a
herdeira bilionária e tataraneta dos Romanov, ele é puxado para um
turbilhão de sentimentos intensos e incontroláveis.

Vasilisa vive sob o domínio do pai tirânico e está prestes a ser negociada
para garantir alianças políticas. Mas quando Lars surge em sua vida, ele não
apenas desperta uma paixão avassaladora, como também oferece uma
chance de escapar. O príncipe propõe um casamento de conveniência, mas o
desejo que os consome é muito mais do que um simples acordo.
Ele é o príncipe indomável, que será capaz de tudo para proteger a mulher
que o conquistou. Mesmo que ela possa odiá-lo por isso.
Ela é a herdeira tímida, que desafiará o destino, mesmo que isso
signifique se rebelar.
Ele precisará enfrentar o próprio passado, se quiser mantê-la ao seu
lado.
Ela terá que decidir entre a honra, um contrato, sua família e o amor.

Em meio a traições e segredos, Lars e Vasilisa vão enfrentar inimigos


implacáveis e uma atração proibida que ameaça devorar a ambos. Com o
passado e o presente conspirando contra eles, devem decidir se a paixão
intensa que os une pode se transformar em amor – ou se estão destinados a
se odiar para sempre.
Prepare-se para um romance hot intenso e arrebatador, onde o poder
e o amor colidem em uma trama de tirar o fôlego.

Aviso: Vendida ao Príncipe que me Seduziu, o 3º livro da Série


Operação Coração e Coroa, da autora best-seller da Amazon Andreia
Amado, é um livro único e independente e está gratuito no Kindle
Unlimited, mas pode conter pequenos spoilers dos dois romances anteriores
que fazem parte da saga.
Tropos: Age Gap, Casamento de conveniência, Gravidez inesperada,
Opostos se atraem, Alfa macho protetor, Redenção pelo Amor, Fast Burn.
Gostaria de agradecer muitíssimo, em ordem alfabética, porque sem vocês
todos, unidos, mais um casal Real endiabrado não teria sido publicado:
Isabel Góes, a Izzie, minha revisora e companheira de capítulos e
muitas histórias, obrigadíssima!;
Kika e Layce, da Aide Agência Literária, vocês são mais que
assessoras, são meus anjos da guarda!;
Thaís Araujo, o meu help indispensável, não vivo sem você;
LADesigner, pela linda capa;
Ainda: minha companheira de rabiscos, a autora Yole Qualio, you do
know why this time. Obrigada pelas dicas, confabulações e leitura crítica.
As minhas betas maravilhosas, também em ordem alfabética, porque
são todas perfeitas. Amo seus comentários e sugestões! Então,
obrigadíssima de coração à: Jessica Barbosa e Lanah Cruz.
Todas as Instagrammers e Parceiras, pela ajuda indispensável em
divulgar meus bebês.
E, por último, os mais importantes, que não contribuem com o livro,
mas com minha sanidade – ou insanidade? – minha família, que atura meu
quase que literal sumiço, nas últimas duas semanas que antecedem a
entrega de um livro e a Loki, meu companheiro peludo muito amado, que
fica deitado no meu pescoço enquanto digito madrugada a dentro.
Andreia
Princesas e Príncipes da minha vida,
Para quem não leu Grávida do Rei que não me Amava e Rejeitada pelo
Príncipe que não me Queria, bem-vindos à Vinterland, um reino
escandinavo fictício, lá no norte da Europa, bem do ladinho da Noruega,
onde vivem Vikings viris, as roupas pegam fogo e mais um clichê-nada-
clichê vai deixar vocês grudados na cadeira.
Esse romance começou no livro passado, mas vocês não viram. Só eu,
eles, quase todos os convidados que estavam no casamento do Príncipe-
herdeiro de Vinterland e alguns que não deveriam estar também…
Opa, mas não vamos dar spoilers, não é?
E como sempre, minhas histórias não são fáceis de escrever, apesar de
eu sempre achar que vão ser. Esses dois me apareceram com tantos traumas
que, Jesus Cristinho, minhas mãos estão enroladas em gelo neste exato
momento e meu coração, tadinho, está sofrendo, mas foi uma jornada e
tanto.
Se foi intenso escrever Tyr e Tatyana – chorei no final, o que nunca
tinha acontecido antes –, nem sei como qualificar Lars e Vasilisa…
Este meu principe é diferente do outro, claro. O Demônio é… enorme,
não cabe em palavras.
Já o Anjo é mais suave, mas também foi… profundo, excessivo.
Talvez tenha sido Vasilisa que foi mais sombria. Porque a Diaba é muito
diferente da Infeliz da Harpia, que é espevitada e engraçada que só.
Enfim, mais uma vez, amei de paixão cada momento que passei com
eles e agora entrego-os para vocês.
Espero que AMEM-OS tanto quanto eu!
Com muito carinho,
Boa leitura!
Para ouvir a playlist no Spotify enquanto lê a história de Lars e Vasya,
clique aqui:

Playlist de Vendida ao Príncipe que me Seduziu


ou aponte a câmera do seu celular para o QR Code abaixo:

A música do casal é Angels, do Robbie Williams, e esta é letra e a tradução:


I sit and wait
eu sento e espero
Does an angel contemplate my fate?
Um anjo contempla meu destino?
And do they know the places where we go
E eles conhecem os lugares onde vamos
When we’re grey and old?
Quando estivermos grisalhos e velhos?
'Cause I have been told
Porque me disseram
That salvation lets their wings unfold
que salvação permite que suas asas se abram
So when I’m lying in my bed
Então, quando estou deitado na minha cama
Thoughts running through my head
Pensamentos passando pela minha cabeça
And I feel that love is dead
E eu sinto que o amor está morto
I’m loving angels instead
Estou amando anjos em vez disso
And through it all she offers me protection
E através de tudo isso, ela me oferece proteção
A lot of love and affection, whether I'm right or wrong
Muito amor e carinho, esteja certo ou errado
And down the waterfall, wherever it may take me
E descendo a cachoeira, onde quer que ela me leve
I know that life won’t break me
Eu sei que a vida não vai me quebrar
When I come to call, she won’t forsake me
Quando eu ligar, ela não vai me abandonar
I’m loving angels instead
Estou amando anjos em vez disso
When I’m feeling weak
Quando estou me sentindo fraco
And my pain walks down a one way street
E minha dor caminha por uma rua de mão única
I look above
eu olho para cima
And I know I’ll always be blessed with love
E eu sei que sempre serei abençoado com amor
And as the feeling grows
E à medida que o sentimento cresce
She brings flesh to my bones
Ela traz carne aos meus ossos
And when love is dead
E quando o amor estiver morto
I’m loving angels instead
Estou amando anjos em vez disso

Espero que vocês gostem das músicas e da leitura!


Do lado de fora da capela do palácio Frostholm, observo que o sol da
manhã atravessa os vitrais e espalha cores sobre os convidados que chegam
para o casamento do príncipe-herdeiro de Vinterland e meu irmão, Tyr
Haraldson Eisenhart-Gulbrandr, com Tatyana Zimmerman El-Khoury, a
melhor amiga da rainha.
Cumprimento todos com meu sorriso e charme habituais, no entanto,
por dentro, sinto-me oco.
Mas foda-se, posso remediar isso rápido.
Pego uma taça de Champagne Crystal na primeira bandeja que passa
pela minha frente e preparo-me para arranjar uma boceta gostosa onde
possa afogar minhas mágoas e é isso. Porque não há nada melhor na vida
que a bebida dourada na flûte i de cristal francês na minha mão e o corpo
macio e cheiroso de uma mulher, cujo nome amanhã já terei esquecido.
Se querem me julgar, julguem. Muitos o fazem. Pensam que me
importo? Não. Pouco me lixo e é isso que dá raiva aos desocupados, que
gostariam de agir da mesma maneira, mas não tem a coragem necessária
para fazer como eu.
Não é que eu seja um bêbado hedonista. Não. Sou hedonista, não um
bêbado.
Só que o vazio e a escuridão aqui dentro do meu peito são tão grandes
que preciso me atordoar com o que a sociedade chama de prazeres.
No entanto, às vezes, nem mesmo o álcool me embriaga o suficiente
para me fazer esquecer minhas dores insuportáveis. Nem mesmo a lascívia
e tesão do sexo fazem passar meu ódio e desespero. É como se cada gole e
cada toque apenas ampliassem o abismo dentro de mim, tornando minhas
angústias ainda mais palpáveis e inescapáveis.
Quando minha alma está neste estado de aflição atroz, a impressão que
tenho é que só a morte pode me salvar. Como isso não é uma opção, prefiro
me enganar e me afogar nos gozos intensos da carne.
Termino a bebida, pego uma segunda taça e aproximo-me de Tyr, que
está com cara de poucos amigos, não que isso seja um fato anormal.
— Tudo bem?
— Por que não estaria? Nasci preparado e pronto para qualquer coisa —
diz ele, olhando-me torto. — Sem falar que a garota é um tesão.
Tyr é sempre assim: nunca dá o braço a torcer.
Porém, depois de tudo que aconteceu em sua vida, um casamento de
conveniência com uma moça linda, espevitada, bilionária e que o pai é
Sheik é a menor de suas preocupações.
— E viverão felizes para sempre — rindo e provocando meu irmão.
— Deixo essa parte para você.
Solto uma risada curta. — Primeiro tenho que arranjar uma noiva. A
minha cancelou mesmo nosso contrato devido ao que aconteceu com
Yasmin.
— Você não vai conseguir escapar por muito tempo, Lars. Thor já disse
que o próximo na fila é você. O reino precisa de… — ele faz uma pausa,
buscando a palavra —, progresso.
— Progresso… Sim. Claro. — Dou um de meus sorrisos programados.
— Não há nada mais progressista do que um casamento arranjado. Parece
que o futuro do reino depende das nossas alianças e da nossa habilidade de
fazer sacrifícios.
Ele me encara por um instante, seus olhos me analisando como se
quisesse ler nas entrelinhas.
— Acho que você está fugindo da raia.
— Fugindo? Eu? — Reviro os olhos. — Por quê? Não tenho problemas
com mulheres, muito pelo contrário.
— Não, com mulheres, não. — Meu irmão, que me conhece muito bem,
melhor do que eu gostaria, balança a cabeça e me dá dois tapas no ombro.
— O seu problema é que você evita qualquer coisa que toque sua alma.
Parece estar sempre alegre, sempre rindo, mas, na verdade, não se
permite… sentir.
— Eu, hein? De onde saiu isso? — Não costumamos trocar
confidências. Não, mesmo. E não vai ser agora que iremos começar. —
Acho graça na vida. Por que não acharia?
— Lars, eu estava lá, até não estar mais… e sinto muito por isso, mas
voltei assim que pude. — O tom dele se suaviza. — Talvez seja hora de
mudar essa máscara.
— Deixa de ser bobo. Não tem máscara nenhuma. Acho que você está é
nervoso com o casamento.
Ele grunhe e eu solto uma risada.
— Eu topo me casar a qualquer hora e com qualquer uma.
— Qualquer uma, é? — Tyr ergue a sobrancelha. — Casa com Tatyana,
então.
— Ela só quer você, Tyr. — Rio e conserto a frase: — Qualquer uma,
menos ela.
— Bom saber disso — a voz de Thorvald, nosso meio-irmão mais velho
e o rei de Vinterland, corta o zumbido de fundo. Ele chega por trás, um
brilho calculista nos olhos.
— Basta gostar de foder e não ser romântica — complemento, jogando
a frase no ar como se fosse a coisa mais banal do mundo. — Quero uma
noiva nos mesmos termos da antiga.
Tyr torce os lábios, o que me diz que ele sabe exatamente o que estou
insinuando.
A verdade é que, para mim, intimidade nunca foi sobre emoção, e sim o
oposto: é controle sobre as emoções.
Tanto Tatyana, a noiva de Tyr, quanto Yasmin, a esposa de Thor, são
mulheres extraordinárias, com suas próprias qualidades. Lindas, graciosas e
de boa linhagem. Uma amiga com qualidades parecidas serviria para mim.
Contanto que não queira ou precise, o que é bem pior, de amor.
— Como se fosse tão simples assim encontrar uma mulher tão…
insensível e desapaixonada como aquela — diz Tyr, com uma dose de
cinismo no tom, e olha de relance para a capela.
Elegantemente decorada com copos de leite brancos é o cenário perfeito
e tradicional de casamento, onde violinos, um cravo e uma harpa tocam
Verão – uma das Quatro Estações, de Vivaldi – para os convidados que vão
lotando os bancos, lembrando-me que a noiva apaixonada é a peça final
que falta do quebra-cabeça que Tyr foi forçado a montar.
Porque no caso dele, apesar de ser um casamento de conveniência, foi a
noiva que se encantou à primeira vista e forçou o casamento.
Tyr foi comprado. Se ele não fosse meu irmão, eu estaria rindo de me
dobrar.
— Pode não ser fácil, mas não é impossível — digo.
— E se não arranjarmos uma mulher tão fria quanto sua noiva anterior?
— pergunta Thorvald, pegando uma taça de Champagne na bandeja que o
garçom passa oferecendo.
Tyr pega uma também e eu troco a minha vazia por uma cheia.
— Uma que não seja grudenta e não me confunda com um pet serve —
digo.
Thorvald franze o cenho. — Um pet?
— É… Não fique me alisando e não queira me levar para passear todo
dia — esclareço, o que faz Tyr soltar uma gargalhada alta.
O fato é tão raro que chama atenção e vários convidados olham e
sorriem.
Erguemos um brinde automático, sorrindo também como se
estivéssemos completamente imersos na festividade.
— Mulheres costumam ser sonhadoras — continua Thorvald, o tom
prático como sempre.
— Infelizmente — resmunga Tyr.
Thorvald ignora o comentário do noivo mal-humorado com uma
risadinha e segue seu raciocínio: — Leif vai tentar renegociar o contrato,
porque o pai da noiva dele é muito influente e as cláusulas eram bem
interessantes. Falta você e Magnus.
Não é a primeira vez que ele repisa isso.
— Mas a noiva de Tyr tem várias amigas herdeiras e bilionárias.
Segundo Magnus, algumas são até da realeza. Faça sua escolha e pedirei
para Yasmin providenciar a apresentação. Pode dar certo, Lars.
Sinto a pressão na sua persistência.
Nem sempre Thorvald foi romântico. Antes, o casamento para ele era
um negócio, e como rei de Vinterland, não pode se dar ao luxo de pensar
diferente.
Agora? Pelos deuses! O homem é um convertido, que acha que todo
mundo tem que encontrar o amor.
Mas para mim? Bem, as coisas nunca foram e não serão tão simples
porque meu coração carrega cicatrizes profundas.
— Casar é bom, você vai ver — insiste ele.
Tyr bufa. — Se você gostar de harpias…
— Harpias e homens das cavernas costumam dar um bom par —
comenta ele, sorrindo.
Rio e dou um longo gole no meu próprio Champagne.
Thorvald colocava os deveres acima de qualquer coisa, um verdadeiro
rei e líder, até em momentos festivos, como este, mas teve a sorte de
encontrar a mulher perfeita.
— Qualquer uma razoavelmente bonita, educada, que goste de sexo
quente e não seja melada serve, Thor — digo, com um sorriso, como se
fosse óbvio. — Você sabe disso. Nunca me senti realmente atraído por
nenhuma mulher, de verdade. Então, o que importa?
Thorvald ergue uma sobrancelha, claramente não impressionado e
impaciente.
— Importa, sim. Importa, muito. — Ele baixa o tom de voz e se inclina
ligeiramente em minha direção. — Não podemos ter mais complicações
políticas.
— Então, podemos procurar uma qualquer, sem complicações —
retruco, sem muita vontade de prolongar a conversa. — Talvez no Oriente.
Elas entendem melhor o conceito de casamento de conveniência. Uma
bobinha qualquer, bem novinha, nem precisa ter finalizado os estudos ainda.
Que eu possa controlar.
— Piorou. Vinterland precisa de princesas como minha rainha:
inteligentes e parceiras. Que apoiem o desenvolvimento do reino. Isso é
vital. — Ele chega mais para perto e diz, baixinho: — Nossas parceiras
precisam ser fortes. Precisam ser mulheres que possam lidar com a
quantidade de testosterona no palácio e que sejam resilientes, que possam
viver sozinhas, enquanto nós salvamos o reino. E, às vezes, acho que elas
precisam nos salvar também…
— Ei, fale por você! — reclama Tyr.
— Sinceramente, Tyr? — pergunta ele, sorrindo, olhando a esposa que
vem pelo corredor. — Acho que nós damos mais trabalho a elas do que elas
a nós.
Tyr abaixa as sobrancelhas. — Você bateu com a cabeça, Thorvald.
Suspiro. Mas acho que, no geral, ele está certo.
Thorvald está quase sempre certo, mas isso não muda o fato que casar é
uma prisão disfarçada de dever. Obrigação. Sacrifício pelo bem maior.
A realidade é que se me casar serei amarrado por um contrato social a
alguém e não estou preparado para as expectativas que a convivência
forçada acaba trazendo. São complicações que não tenho estrutura para
lidar.
Talvez eles aceitem essas amarras com um sorriso no rosto, mas eu? A
ideia de coexistência constante me sufoca. Não é só sobre dividir espaço,
cama ou responsabilidades. É sobre permitir que alguém entre em um
espaço reservado, íntimo, que prefiro que continue assim, fechado. Não
gostaria de abrir essa parte de mim que mantenho fechada desde que…
Bem, desde sempre.
As cicatrizes não são mais frescas, mas ainda doem.
— Você está pensando demais, Lars — diz Tyr, que compartilha um
pouco das minhas dores. — Não precisa ser tão complicado.
Após o que aconteceu comigo, e com Tyr, quando eu tinha dez anos,
forcei-me a me distanciar das emoções e a trancafiá-las por trás de uma
muralha de ferro, disfarçando minha escuridão e frieza com sorrisos. Acho
que nem meus irmãos entendem direito. Talvez nem eu entenda.
— Fácil para você dizer. — Passo a mão no cabelo e sorrio, escondendo
o desconforto. — Você se acostumou com a ideia de ter alguém ao lado. Eu,
por outro lado, prefiro a distância. Menos bagunça emocional.
— Somos príncipes. E os príncipes de Vinterland precisam casar para a
estabilidade do reino. Simples assim — diz Thorvald, com aquela calma
tirânica que só aqueles que detém o poder têm.
— Você é rei.
— Semântica. — Ele vira a taça de Champagne, o líquido dourado
brilhando sob os raios de sol e continua: — Você pode escolher ou posso
escolher para você, Lars.
— Pode escolher — repito, degustando as palavras como se o
Champanhe estivesse azedo. — Não é como se uma mulher fosse fazer
alguma diferença mesmo.
— Não qualquer uma. — Thorvald não recua. Ele nunca recua. — Mas
uma com a inteligência e a força certas. A questão é: você está pronto para
encontrar essa pessoa ou vai continuar se escondendo atrás deste seu
sarcasmo?
Tyr observa em silêncio, seus olhos avaliando o quanto essas palavras
me atingem.
Porque talvez ele entenda. Estava lá comigo. Ou não.
Talvez ninguém entenda. Porque não tenham experienciado e assim não
possam compreender a profundidade de tantos anos vivendo assim.
Talvez nem eu.
Será que algum dia vou encontrar alguém que realmente me entenda?
Ao menos um pouquinho?
Não que eu me importe. Nunca me importei.
Sempre mantive meus relacionamentos leves e passageiros.
Para Thorvald, casar era uma estratégia, uma jogada no tabuleiro de
poder. Virou amor.
Para Tyr, ainda é uma incógnita.
Para mim? Só posso considerar se for com uma mulher que não queira
amor. Caso contrário, é abrir uma porta que já fechei há muito tempo.
Nunca considerei me unir a outra pessoa, a não ser pelo bem do reino.
Assim, quando pensei nisso, procurei uma noiva que quisesse quartos
separados, e também que pensasse o casamento como uma questão política.
Por acaso, encontrei uma que queria comprar um príncipe. Acho que ela
nem gostava tanto de sexo, mas exigia quartos separados, não queria filhos
– uma das minhas exigências –, tinha as conexões internacionais políticas
certas, e muito, muito dinheiro para injetar nos cofres de Vinterland.
Era perfeita. Mas quando soube que a instabilidade política poderia
colocar a vida dela em risco, caiu fora.
Encontrar outra assim vai ser difícil.
Nem posso retrucar ao comentário de Thorvald porque Astrid, a chefe
do protocolo e relações-públicas do reino, vem ao nosso encontro. —
Podemos começar. A noiva já vem.
Ela chama suas assistentes e coordena para organizarem os convidados
e a nós em pares para entrarmos na capela.
Como a cerimônia é pequena e ambas as famílias são irregulares –
nossos pais já são falecidos e os pais da noiva não são casados – a entrada
não vai seguir nenhuma tradição, apenas o protocolo que os primeiros a
entrar em toda cerimônia em Vinterland, são o rei e a rainha.
Depois entra Tyr, levado por Sven. A mãe de Tatyana, uma ex-modelo
lindíssima, com o filho mais velho do Sheik com a sua ex-primeira esposa.
Depois entro eu, com uma das amigas de Tatyana, uma moça tão tímida que
nem entendi seu nome; outros dois meios-irmãos nossos, Magnus e Leif, e
os três meios-irmãos da noiva, acompanhados de outras amigas da noiva.
Observo os quatrocentos convidados da cerimônia como se estivesse
vendo tudo de fora, um espectador de uma peça que já conheço o final.
Sorrisos, conversas, olhares trocados. Todos perfeitamente
coreografados, cada um cumprindo seu papel. Eu, claro, faço o mesmo, mas
o vazio e a escuridão que me acompanham estão ali, sempre presentes,
nunca se dissipam.
O casamento é pequeno para o príncipes-herdeiros de Vinterland, mas
Tyr não aceitou nada maior.
Ele me lança um olhar rápido. Seu rosto está impassível, como sempre,
mas a tensão em seus ombros diz muito.
Sorrio para ele, tentando passar um pouco de força e calma, mas sei o
que ele deve estar sentindo. O passado dele é pior que o meu.
No entanto, todos parecem felizes, ou pelo menos convencidos disso.
Casamentos são eventos políticos disfarçados de celebrações, e todo mundo
aqui sabe disso, mesmo que finjam o contrário.
Por alguma razão que não consigo entender, sinto um arrepio e meu
olhar volta a vagar pelo altar, escaneando os rostos de familiares, amigos e
desconhecidos.
No meio de toda aquela multidão, entre um véu pra lá de diferente,
joias, tiaras, chapéus de todos os modelos e tamanhos, vestidos coloridos e
ternos impecáveis, sou atraído por um par de olhos verdes.
Por um momento, sinto uma conexão inexplicável. É como se estivesse
prestes a descobrir algo que não deveria.
Estes olhos.
Há algo neles. Não sei o que é, mas um quê de mistério em suas
profundezas me atinge com força, como se eles escondessem um segredo –
ou vários –, ao mesmo tempo que seu corpo promete prazeres
desconhecidos.
Ela.
Quem é ela?
Além do tom do vestido, rosa, o mesmo das outras madrinhas, o fato de
que está ao lado do meio-irmão mais novo de Tatyana deixa claro que é
uma das amigas da noiva. O uso da tiara e não do chapéu sobre o cabelo
loiro me diz que ela é da realeza.
O penteado… sei lá como chama este penteado, meio preso, meio solto,
emoldura bem o rosto de camafeu, perfeito: pele de porcelana, narizinho
empinado e uma boca de coração que adoraria foder.
Adoraria, não. Adorarei.
O vestido é de um tecido fino e um tanto transparente para o altar. Para
completar, é justo, marca o corpo de sílfide ii e ainda tem um decote
abusado, mas ela disfarça isso tudo com um xale pesado de franjas.
Como sou muito mais alto que ela, e estou um degrau acima, quando o
xale escorrega – de propósito? – tenho uma boa visão de seu colo e seios.
Se o bispo e os padres não notam a infração cometida, meu radar
masculino detecta na hora.
Cobrarei a multa mais tarde. Ah, vou, sim, e ela vai gostar de pagar.
Há uma beleza serena nela, mas é mais do que isso.
É como se ela estivesse em um mundo à parte, separada de todos nós,
mas, ao mesmo tempo, observando cada detalhe.
Intuitiva. Intensa.
Minha respiração para por um segundo, meu corpo reagindo antes que
eu tenha consciência da minha própria ação.
Essa mulher prende minha atenção de uma maneira que nenhuma
conseguiu antes, mas é algo em sua expressão e postura quase impenetrável
que deixa meu pau duro feito rocha.
E agora, tudo dentro de mim deseja descobrir o que vai dentro daquela
mente.
Ela não abaixa o olhar. Não desvia.
Como se soubesse que eu estou tentando fugir de algo. E, por um
instante, não sei se estou pronto para enfrentar o que quer que seja que ela
esconde.
Ou talvez, o que eu mesmo escondo. Que não quero e não posso
descobrir.
— Qualquer uma serviria, hein? — murmuro para mim mesmo.
Algo me diz que, pela primeira vez, pode não ser assim tão simples.
Não, porque agora eu sei: é essa.
É essa a mulher que eu quero.
E o que quero, eu conquisto.
São os aplausos, assobios e vivas dos convidados ao final do beijo de Tyr e
Tatyana que quebram o encanto que me ligou ao homem que tem os olhos
mais intensos que já vi na minha vida.
Não é apenas a cor – um azul profundo, como um mar infinito –, é o
que ela carrega: uma barreira de sombras, impenetrável, que atrai para seu
interior, como a sedução de uma flauta mágica.
Eu mal percebo o barulho à minha volta, perdida na volúpia quente
deste momento, incapaz de desviar dos olhos hipnóticos dele. Há algo nele
que me puxa, como se houvesse algo nas profundezas daquele olhar que eu
precisasse entender… ou temer.
Meu coração está acelerado e por minutos me sinto viva, o mundo ao
meu redor desaparece, e tudo o que vejo são estes oceanos misteriosos,
onde quero me perder, que escondem segredos inexplorados, que quero
desvendar.
O bispo ainda diz mais umas palavras e então Tyr oferece seu braço a
Tatyana, e os dois se viram e saem como marido e mulher.
Minhas mãos tremem levemente e respiro fundo, tentando me recompor,
mas os aplausos e a excitação dos convidados que ficam mais altos me
deixam mais inquieta.
O homem só desconecta seus olhos dos meus quando precisa oferecer
seu braço à minha amiga Catarina.
Como tenho um pé na realeza – sou descendente direta dos Romanov,
tataraneta de Catarina, a Grande, pela minha falecida mãe –, acabei
aprendendo todos os protocolos obrigatórios complicadíssimos que regem
cerimônias em que as nobrezas europeia e russa estão envolvidas. Assim,
deduzo que o dono dos olhos azuis é o príncipe Lars, já que ele sai logo
depois dos pais de Tatyana e do irmão mais velho dela, o herdeiro, que
agora tem como par a única daminha de honra i, sobrinha do Sheik.
O altar vai ficando vazio, até que chega a minha vez. O meu par, o
Sheik Jamal Bin Omar, o irmão mais novo de Tatyana, me oferece o braço.
Colo um sorriso no rosto e ponho os dedos de leve no antebraço dele
para sairmos juntos.
— Você está bem? — pergunta, ao ver que meus dedos estão tremendo.
— Sim — murmuro, forçando um sorriso maior. — Acho que foi a
emoção e… o calor.
Mentira.
O frio em Vinterland é uma constante, como um abraço gelado que
nunca se desfaz. Os verões são menos congelantes e os invernos,
enregelantes.
Como hoje é o equinócio ii de primavera, a temperatura lá fora deve
estar uns oito graus e aqui dentro uns dezesseis. Para alguns, isso é até frio.
Para mim, é civilizado.
Na capela cheia, devia estar uns vinte e dois graus.
Isso não é calor.
Foi ele.
Aquele homem com olhos que parecem querer invadir cada parte de
mim, fazendo paixões e desejos que nem eu mesma sabia que poderia sentir
por alguém se acenderem.
— Apesar de católica, foi muito bonita a cerimônia, não? — comenta.
Ai, estes preconceituosos.
Quase esqueci que o pai de Tatyana é muçulmano. A mãe dela insistiu
em criar a filha na religião católica e, como eles nunca se casaram e o pai
era louco pela amante, acabou cedendo.
— Muito bonita — digo.
— E Taty estava linda, apesar de o vestido ser um tanto decotado — diz,
olhando bem dentro do meu decote, com olhos gulosos.
Tudo com este homem é apesar de, é?
Preconceituoso e machista.
Jogo a estola de seda pesada de volta sobre os ombros de onde
escorregou, cobrindo meus seios, e tenho vontade de falar para ele que meu
rosto é mais para cima.
— Pois eu achei o decote até bem-comportado — retruco, porque não
suporto esses tipos.
— Você vai ser uma noiva linda também — diz e é bastante indiscreto
ao perguntar: — Está namorando?
Quase que eu engasgo, mas consigo engolir a saliva e digo, rouca: —
Não, não estou. — Resolvo mentir antes que ele se assanhe: — Mas tenho
vários pretendentes que estou analisando.
— Vou conversar com seu pai para me colocar em primeiro lugar —
diz, arrogante.
Como se meu pai fosse escolher por mim.
Bom, ele vai, mas isso é assunto para outra hora.
— Afinal, sou um partido muito bom.
Jesus santíssimo, salvai-me de homens assim.
Quando passo ao lado do meu pai, Jarl Hardrada, ele me dá um aceno
de cabeça satisfeito, e minha madrasta, Melissa, um sorriso enorme.
Talvez, já tenham percebido o interesse deste ao meu lado? Ou do
príncipe? Ou estejam planejando alguma outra coisa, como me casar com
algum homem que eles achem conveniente e esteja aqui na festa?
Ou talvez eu deva dizer: planejando me vender?
Eu deveria ir embora. Fugir, talvez. Ou quem sabe voltar para meu
plano original que era entrar para um convento, obviamente que não seja
aquele que me serviu de internato, nem nenhuma ordem ligada a alguma da
qual Madre Jutta faça parte.
Quase rio comigo mesmo, porque não tenho nenhuma convicção
religiosa. Muito ao contrário.
Abomino, por razões pessoais, a religião católica, que acho demagoga
ao extremo. Não tenho nada contra Deus, apenas contra os seres humanos
que professam o Santo nome em vão na igreja.
Isso é ridículo, minha experiência naquele internato de freiras foi pior
que péssima.
Sacudo a cabeça internamente e deixo o passado onde ele deve ficar: no
passado.
Volto ao presente, ao casamento de minha amiga Tatyana, uma mulher
forte e resiliente, que viveu um inferno tão ruim ou até pior que o meu
naquele colégio, e o presente é apenas um borrão de vozes, risos e brindes.
Uma névoa me envolve, como se eu não fizesse parte daquela
celebração, daquela cena.
Pensando friamente, a ideia de um convento não parece assim tão
absurda.
É uma forma de escapar, de ter paz, de não ter contato com tantas
pessoas. Posso até mesmo fazer voto de silêncio. Lá, pelo menos, ninguém
me forçaria a… Nada. Ninguém me obrigaria a nada.
Respiro fundo, tentando afastar o pânico.
Minhas mãos voltam a tremer e a respiração se torna rasa, errante.
É como se um longo e perigoso túnel escuro abrisse uma bocarra à
minha frente.
Puxo uma longa respiração, para afastar o pânico, mas entra menos ar
do que deveria.
Hoje é o casamento de Tatyana, estou aqui por ela, por minha amiga.
Estou segura aqui. Estou segura. Segura.
A ladainha me acalma, mas as sombras ainda pairam ao meu redor e o
final do túnel ameaça se fechar.
Não tenho certeza como chego até a Sala do Trono, onde serão feitas
fotos, mas ao encarar novamente o príncipe Lars, consigo tomar um longo
gole de ar.
Alto, imponente e intimidante, com olhos que parecem ver além de
qualquer coisa, há algo nele que me puxa, atrai, comanda. Não sei. É algo
diferente, poderoso. Um magnetismo que incomoda e, ao mesmo tempo, me
fascina.
É lindo, claro. Isso não me surpreende, porque todos os cinco irmãos
Eisenhart-Gulbrandr são lindos.
Todos são muito altos, acima de um metro e noventa e cinco, com
diferença de alguns centímetros, um para o outro, o que me faz sentir
mínima, mesmo sobre saltos de doze centímetros, já que só tenho um metro
e sessenta e cinco. Todos também são muito fortes, como se fizessem muito
exercício. Thorvald, Magnus e Leif são bem loiros. Tyr tem os cabelos
negros como as penas das asas da graúna, e Lars castanho-escuros. Os olhos
dos cinco são azuis, de diferentes tons.
Mas são as expressões em seus olhos que os diferencia basicamente.
A de Lars é enigmática. Ao mesmo tempo que acolhe, ameaça, porque
sinto que ele me vê.
Não como meu pai me vê, como uma moeda de troca.
Nem como os outros homens, que querem me foder e esperam que eu
seja algo que não sou.
Ele olha para mim com desejo, sim, mas também como se estivesse
tentando desvendar um mistério. Como se soubesse que, por trás dessa
fachada, há mais. Muito mais. E eu odeio isso.
— Está tudo bem? — pergunta Tatyana, trazendo-me de volta para o
presente.
Sorrio de leve, tentando parecer tranquila. — Sim, claro. Só estava…
pensando.
Ela ri, um som suave, alheia à tempestade que gira dentro de mim. —
Você sempre pensa demais. Relaxe e aproveite. Só hoje, vai.
Relaxar. Como se fosse fácil.
Enquanto os noivos e pais de Tatyana e outros padrinhos se posicionam
para as fotos, dou uma última olhada para ele, que está conversando com o
meio-irmão mais velho.
Seus olhos varrem o grupo de convidados, à procura de algo. Ou
alguém.
Faço um exercício de meditação, forçando-me a sair do transe.
Ele é só um homem.
Ou melhor: ele é um homem intenso. Complicado.
Como o noivo.
Posso ver em seus olhos. Conheço os sintomas e as máscaras. Muito
bem. Até demais.
Só que, se Tatyana gosta dos riscos e das aventuras, eu não tenho
espaço, nem estrutura na minha vida para mais complicações.
Não depois de tudo o que já passei.
— Talvez o convento seja a melhor opção — murmuro para mim
mesma, antes de seguir para meu lugar ao lado do Sheik Jamal.
Só quero ir para longe.
Longe de olhares inquisidores. Longe de tudo isso.
Longe de homens como meu pai. Ou de alguns homens, como meu par,
nem tanto pelo tamanho ou força, porque esse é até baixinho comparado aos
outros, mas pela energia estranha que exalam, que conseguem me intimidar,
algo que jurei nunca mais permitir.
Ele pega minha mão agora e a põe sobre seu braço, colocando a dele por
cima.
Quando tento, discretamente, escorregar a mão para baixo e aumentar a
distância entre nós, Jamal fecha seus dedos, possessivamente sobre os
meus.
— Não precisa temer — diz, com um sorriso.
Temer o quê?
Como franzo o cenho, ele explica: — Vou conversar com seu pai mais
tarde. Podemos marcar o noivado o mais rápido possível.
Deus me livre e guarde!
Não é que o irmão de Tatyana seja feio. Deve até ser bem atraente para
as mulheres que gostam do estilo de homem intimidador.
No entanto, além de tê-lo achado bem desagradável, a cruz do problema
reside no fato que não tenho o menor interesse em me casar e o país dele é
muito machista.
Depois de não sei quantas poses, os padrinhos são liberados e ficam só
os noivos para as fotos do casal.
Arrisco um olhar para trás de relance para o príncipe e lá está ele, ainda
com os olhos fixos em mim. Firmes, penetrantes, como se soubesse que, de
algum modo, já conseguiu quebrar uma parte da muralha que construí ao
meu redor.
Como se estivesse prestes a se tornar a complicação que tanto temo, o
que me assusta mais do que qualquer outra coisa.
Mas, entre o que está ao meu lado e Lars, prefiro muito mais o segundo,
já que há algo nele que me atrai, que vai além da aparência.
É bonito, mas é… quase que brutal. A impressão que tenho é que nada
pode passar por cima dele e que, quando está disposto a algo, destrói tudo o
que está pelo caminho para conseguir. Sem que você perceba.
O perigo está escondido por um verniz de civilidade, sorrisos e
sensualidade.
Homens como ele ou o noivo são as piores espécies de machos, porque
são capazes de entrar no coração de uma mulher sorrateiramente, se alojar
ali e fazer um estrago.
Quando chegamos nos grandes salões que foram abertos e integrados
para receber os quatrocentos convidados, a festa está em pleno andamento.
Arranjos florais em tons de rosa, laranja, fúcsia, amarelo, roxo e verde
pendem do teto e se misturam aos lustres de cristal, acesos mesmo durante
o dia. As mesas são cobertas com toalhas de linho brancas, decoradas com
arranjos de flores exuberantes nas mesmas cores, e taças de cristal e
porcelanas combinando. Grandes espelhos refletem e ampliam o esplendor
do ambiente.
Risos, conversas e o tilintar de taças de Champanhe preenchem o ar e
uma banda toca uma música de fundo.
Meu pai está em seu elemento, movendo-se de grupo em grupo com
uma facilidade que sempre me impressiona, me localiza assim que entro no
braço de Jamal e se aproxima.
Antes que eu possa cair em alguma armadilha feita por homens, arranjo
uma desculpa: — Preciso retocar o batom.
— Você está perfeita — diz.
— Meu caro. — Rolo os olhos para o teto e solto um suspiro irritado. —
É um eufemismo para preciso ir ao banheiro.
— Ah, claro.
Então, solta-me, meio a contragosto.
Quase saio correndo.
Não vou para o banheiro, onde posso esbarrar com minha madrasta, mas
sim em busca de um lugar para respirar. Um que seja bem longe de Jamal e
meu pai, que estão agora em confabulações.
Encontro um canto atrás de uma palmeira, onde só tem duas mesas
baixinhas, com quatro cadeirinhas, para o meu alívio, todas vazias.
Sento-me ali e respiro fundo.
Enquanto todos estão à vontade, a cada segundo que passa me sinto
mais deslocada.
Não gosto de multidões.
Gosto menos ainda quando homens ficam me admirando.
Não gosto de homens. Ou, pelo menos, pensei que não gostava.
Até hoje.
O mais estranho é retornar essa admiração e sentir meu corpo reagir a
uma… forma masculina.
Sempre achei que eu tinha tendências ou assexuadas, ou homossexuais,
já que até hoje só senti atração por mulheres e mesmo assim…
Passo uma borracha nisso e volto a focar em Lars: talvez a atração por
ele se justifique por não ser qualquer forma, mas uma excepcional.
Lars é facilmente o mais bonito dos irmãos e provavelmente o homem
mais bonito neste casamento, mas não é a beleza dele que me prende.
Não sei como qualificar as sensações que aquele olhar azul intenso
causa no meu corpo e mente. Seria medo?
Fecho os olhos com força e tento focar em qualquer outra coisa que não
seja o homem que me encantou na capela, mas é impossível. Ele está aqui.
Eu o sinto, mesmo sem olhar em sua direção.
Ou seria excitação? Desejo sexual puro e simples?
Sinto meu rosto aquecer e meu sexo fica molhado.
Tenho vontade de chegar perto dele, de conversar, ouvir sua voz, sentir
seu perfume.
— Você deveria sorrir mais, Vasya — murmura meu pai, surgindo do
nada como sempre faz. — Você fica mais linda ainda sorrindo. Igual à sua
mãe.
— Pai.
Coloco-me de pé com um salto.
Reconheço a expressão em seu rosto. Ele está calculando. Planejando.
Minha pele arrepia só de pensar nas possibilidades que ele está
considerando.
Ele me pega pela mão, suavemente, e diz: — Venha, querida, esta noite
é uma boa oportunidade para nós.
Não é um pedido. Já sei, e nem contradigo, mas não resisto a provocar:
— Oportunidade para quê, pai?
— Três príncipes de Vinterland estão solteiros. Assim como os filhos do
Sheik — diz, sem se referir à palavra casamento. — O seu par está bem
interessado em você. Já veio falar comigo, mas não incentivei uma conversa
mais profunda. Acho interessante, mas existem opções melhores aqui no
Ocidente.
— Não estou interessada em me casar — digo, sem disfarçar minha
irritação.
— Unir nosso nome ao deles abrirá portas, filhinha. Grandes e
importantes.
— Portas para quê? — respondo, tentando manter a calma. — Para que
você possa voltar a este mundo VIP que tanto adora?
— Querida… — Ele me encara com um olhar de reprovação. — Não é
sobre mim. Pense no que significaria para você casar bem e deixar de ser
vista apenas como… bom, você sabe.
Sei exatamente o que ele está insinuando.
Ele nunca esquece o passado, nem deixa que eu esqueça.
A Louca Doentinha. É como ele gosta de se referir a mim, quando
pensa que não estou ouvindo.
Operei o coração quando era pequena e tomo remédios até hoje, mas o
problema é que fui internada mais de uma vez em centros psiquiátricos, e
por isso ele diz que não sirvo para nada, que nunca serei boa o suficiente, e
que ele já teria desistido se ele não tivesse pena de mim e se eu não o
lembrasse de minha mãe a quem ele amou muito.
— Não tenho interesse algum em me casar, papai — repito, tentando
manter a voz firme.
Ele suspira, como se eu fosse uma criança teimosa. — Interesse ou não,
Vasilisa, você sabe que não tem escolha. Não é sobre o que você quer. É
sobre o que você precisa e vai fazer.
Finco os pés no chão, mesmo sabendo que essa batalha já foi travada
outras vezes. — Papai, não quero.
— Meu benzinho, não se trata do que você quer, isso aqui é um jogo. —
Meu pai sorri. — Você já é uma adulta. Todos aqui estão jogando.
Procurando uma mulher bonita, uma herdeira, homem rico, viril. Querem
fazer uma conexão. Você, minha querida, é minha rainha e eu vou proteger
o seu futuro.
E se tornar um rei, completo em silêncio.
— O que você quer, pai? Que eu simplesmente escolha um deles e
pronto?
— Exato, Vasilisa — diz uma voz feminina suave, chegando por trás. —
Nós só estamos querendo garantir seu futuro.
Ou está querendo se livrar de mim de uma vez por todas?
Melissa, minha madrasta, uma mulher linda, uns oito anos mais velha
que eu e uns trinta mais nova que meu pai, deveria se chamar Mefisto iii.
Tudo o que fez depois que se casou com meu pai, aos vinte anos, logo
depois da morte da minha mãe, foi explorar ao máximo o corpo e alma dele,
sem se importar em como usava o dinheiro e a influência dele.
É um pouco dor de cotovelo? Pode ser, mas que é ridículo, é.
Meu pai coloca uma mão firme no meu ombro, um gesto afetuoso, mas
que só me deixa ainda mais tensa.
Então, ordena: — Agora, sorria.
Com um braço possessivo sobre meu ombro, ele oferece o outro braço a
ela e nos leva para circular pelo salão, o sorriso fixo no rosto.
Sua simpatia é parte de uma máscara que ele jamais tira. Aperta as mãos
e me apresenta a todos os homens que podem ser importantes, não
importam as idades.
Tento achar uma saída, mas tudo o que vejo e ouço são os sussurros e as
negociações implícitas acontecendo ao meu redor.
Os homens me olham com interesse, um mais velho chega a lamber os
lábios.
Um arrepio de desconforto desce pela minha espinha.
Estou cercada. O mundo ao qual eles querem me prender está aqui,
pronto para me sufocar.
— Posso fugir — murmuro, mais para mim mesma do que para ele, mas
ele ouve.
Ele aperta meu ombro, os dedos cravando na minha pele. — Não desta
vez, filha.
Continuamos a circular. Sou elogiada, de maneira exagerada, por
qualidades que eu nem sabia que tinha, como se eu fosse um produto à
venda. Talvez eu seja.
Até que as fanfarras soam e os convidados abrem espaço para Tatyana e
Tyr, que voltam à festa naquele momento, ela irradiando felicidade, ele,
intensidade.
Espero que o casamento dela não seja um desastre. Porque homens
como ele são complicados. Dá para ver no olhar, meio psicótico.
Não sei porque mulheres são atraídas por homens assim. Será que é a
excitação do perigo?
Eles caminham para o meio da pista de dança ao mesmo tempo que
quatro garçons empurram uma mesa redonda gigante onde está o bolo. O
bolo? Os bolos, melhor dizendo.
Arrumados em peças da baixela de ouro da Casa de Gulbrandr, tem uns
cinco bolos brancos, de tamanhos diferentes, enfeitados com rosas bem
brancas e de um vermelho quase-negro.
O maître oferece uma espátula para Tatyana, mas Tyr agradece e com
um repuxar de lábios, saca da cintura uma adaga – meio psicótico é pouco
para esse homem, ele é psicótico por inteiro –, tirando ohs! e ahs! dos
convidados e entrega a ela.
A louca da minha amiga dá a ele um sorriso enorme e corta o bolo com
a lâmina, e abusada que é, serve um pedaço a ele na própria faca.
Jesus misericordioso!
Tento me concentrar na dança que se segue, mas olho de relance e lá
está ele. Lars.
Os olhos azuis intensos, firmes, aqueles que me despiram de qualquer
proteção na capela, agora me observam novamente. Fixados em mim.
Analisando, estudando.
De novo, sinto aquela mesma onda pulsante me invadir. Desconfortável
e excitante, ao mesmo tempo.
Algo no modo como ele me olha… É como se soubesse que estou
tentando escapar. Não me sinto só observada; me sinto descoberta. Mas
quero e posso me revelar?
Desvio o olhar rapidamente, mas já é tarde demais.
Minha madrasta, que está sempre atenta a minha postura e reações,
percebe. Percebe meu interesse por Lars e o olhar dele em mim. Como a
mulher calculista que é, vê nisso uma vantagem que não vai deixar escapar.
Sussurra algo no ouvido do meu pai.
— É interessante também — murmura ele para ela, sorrindo de canto.
— O quê? — pergunto, mesmo já sabendo a resposta.
Ele segura meu braço com uma firmeza que me faz estremecer. —
Venha, vou te apresentar.
— Pai, não…
Mas antes que ele possa fazer alguma coisa, vejo um par de sapatos de
cadarços parar bem na minha frente.
— Príncipe Lars! — exclama meu pai, como se fossem velhos
conhecidos.
Não.
Um frisson me percorre, fico gelada.
— Sr. e Sra. Hardrada, ainda não os tinha visto essa noite. Como vão?
— Muito bem, muito bem, e o senhor, Alteza? — pergunta todo
deferencial.
— Príncipe Lars, boa noite, linda festa — diz a aprendiz de Satã.
— Deixe-me apresentar minha filha, Vasilisa — apressa-se em falar
meu pai. — Vasya, este é o irmão do noivo, Sua Alteza Real, o príncipe
Lars Haraldson Eisenhart-Gulbrandr.
Ele estende a mão e, por um momento, hesito antes de entregar a minha.
O toque é firme, quente, faz com que eu queira que ele me puxe para
seu peito, me abrace. Faz com que eu queira sair correndo daqui.
— É um prazer, Vasilisa — diz, com uma voz profunda e envolvente.
Parece um cumprimento normal, mas a maneira como pronuncia meu
nome, devagar, degustando as sílabas, como se estivesse me provando na
boca, faz meu coração disparar.
Ergo minha cabeça devagar, com medo de encará-lo assim tão de perto.
Eu estava certa de estar amedrontada, porque uma pressão estranha
aperta meu peito. Se antes, ao encará-lo, eu conseguia respirar, agora, olhar
em seu rosto tem o efeito contrário.
Seus lábios sorriem, seu rosto inteiro se modifica, menos seus olhos,
que contam outra história.
— O prazer é meu, Alteza — respondo, num tom mais suave do que
gostaria, porque ainda estou sem ar.
— Com licença, um amigo está nos chamando ali — diz meu pai,
sempre o estrategista, e se afasta com Melissa, deixando-nos a sós.
O silêncio se estica entre nós, e ele continua segurando minha mão por
um tempo a mais do que o necessário, o olhar ainda fixo nos meus.
Observa, analisa, como se quisesse que eu lhe fizesse confidências.
— Espero que esteja aproveitando a festa — diz ele, finalmente me
soltando, mas dando um passo à frente, diminuindo a distância entre nós.
Sinto o calor de seu corpo, uma presença intensa que me deixa tonta.
— Sim, estou — minto, tentando soar convincente, enquanto minha
mente gira com mil pensamentos conflitantes. — Yasmin e a equipe do
palácio se esmeraram.
— Você gostaria de ver a Galeria de Retratos? — pergunta, a voz baixa
e hipnotizante. — É um lugar mais tranquilo, perfeito para uma conversa.
Hesito, sentindo uma mistura de medo e curiosidade. A proximidade
dele é intoxicante, e não consigo evitar me sentir atraída por essa aura de
poder.
— Acho que sim — respondo, minha voz quase um sussurro.
— Vamos — ordena praticamente.
— Claro — murmuro, porque, vamos combinar, vou dizer o quê?, não,
não quero?
Ele gesticula para a direita e assim que dou o primeiro passo, coloca a
mão nas minhas costas, o polegar pousando bem na minha coluna.
Pior, começa um vai e vem leve com o dedo.
Espantada, olho-o, mas ele está prestando atenção no caminho, como se
a carícia fosse inconsciente.
Seu toque me deixa arrepiada. Meu corpo esquenta e esfria, numa
reação estranha, e me sinto dividida entre o desejo e o medo.
Caminhamos pelo salão, desviando das conversas e olhares curiosos, até
chegarmos a uma porta discreta no fundo.
Ele a abre, revelando uma sala comprida, iluminado apenas por luzes
suaves, que destacam pinturas antigas e retratos de membros da família real.
— Este lugar tem muita história — diz ele, guiando-me para dentro e
fechando a porta sem nem olhar. — Cada um destes retratos envolve casos
de intrigas e segredos. Disputas pelo trono.
Essa é uma das poucas vezes em que não sei o que dizer e não porque
eu esteja intimidada.
Estou um tanto tonta porque cada passo firme dele no chão de mármore
ecoa com promessas.
Ou seriam ameaças?
Sensações percorrem meu corpo. De uma maneira deliciosa.
A galeria é longa, tão longa que parece quase infinita. Os olhos dos
retratos nos seguem, querendo nos contar suas glórias e seus dramas, e me
faz sentir ainda mais estranha e desconfortável, como se estivéssemos sendo
observados.
Paramos em frente a um grande retrato de uma mulher impressionante,
seus olhos azuis parecem estar vivos.
— Princesa Elena. Bonita, não é?
— Linda — concordo.
Nem tem como discordar: a loira é deslumbrante, tem um sorriso
extremamente simpático e um olhar que transmite calma.
— Foi minha tia-avó e regente durante quase vinte anos e uma das
figuras mais controversas de nossa história — comenta Lars, com seu olhar
fixo no retrato. — Muitos a admiravam, mas outros a temiam. Ela governou
com uma mão de ferro em tempos difíceis.
— Por quê? Parece ser tão… gentil — digo, examinando a expressão da
jovem senhora, que parece ser aberta e acolhedora. — Tão benevolente.
— Na maioria das vezes, as aparências enganam, Vasilisa. — Ele volta
sua atenção para mim. — Dizem que continuou mandando em Vinterland
mesmo após meu tio Rollo ter assumido o trono com dezoito anos. Nunca
mais se casou, mas teve um amante, no estilo Rasputin iv, que a ajudava a
governar, mas ele arranjou uma mulher muito mais nova, se casou, e pior, a
abandonou, e ela, enfurecida, mandou matá-lo.
A intensidade do olhar e o tom da voz de Lars, misturada à história
intrigante, fazem com que eu sinta um arrepio. Tenho a impressão de que
estou sendo avisada, de alguma forma, sobre as camadas ocultas da nobreza
e do poder.
— Não me diga que ele amaldiçoou a família dela também v — dou uma
risada nervosa.
— Também. — Ele balança a cabeça, sério, e continua: — Morreram
todos em uma explosão terrorista dois anos depois. E em sequência, dois
anos depois, morreram meu tio e depois meu pai. Exatamente como ele
previu.
Credo.
Tenho vontade de fazer o sinal da cruz, mas não quero que ele pense
que estou com medo de uma coisa do passado.
Então, digo: — Parece que seu irmão quebrou a maldição.
— Parece — diz.
Suavemente, pressiona a mão nas minhas costas, guiando-me mais para
dentro.
Observo os rostos austeros e serenos das pinturas, as marinhas, sentindo
uma curiosidade crescente.
— Sempre fico impressionada com a técnica desses pintores de fazer os
olhos nos quadros nos seguirem — digo, tentando esconder meu
nervosismo. — Parece que estão nos espiando.
— Você tem algo a esconder, Vasilisa? — pergunta, com um tom rouco.
Rio, mais nervosa. — Quem não tem seus segredos?
— É verdade — concorda e para diante de outro quadro. — Adoro este.
Não é um retrato, mas uma paisagem.
— Lembra Turner vi — digo, porque tem a mesma dramaticidade dos
quadros do pintor inglês, mas não é uma marinha e sim uma explosão
vulcânica vii.
— É um Turner — corrige-me.
— Não sabia que Turner tinha vindo até tão longe — digo, surpresa.
— Ele viajou bastante pela Europa depois de 1802 — diz. — Quando
esteve por aqui viii, recebeu a comissão de vários quadros, mas ele era…
excêntrico, privado e recluso. Não gostava de estar com pessoas. Só pintou
este e foi-se embora.
— Você gosta de estar com pessoas?
Não sei de onde saiu essa pergunta.
Ele se vira para mim.
Seus olhos brilham e se fixam nos meus, enraizando-me no lugar. A
mão dele sobe pelas minhas costas, deixando um rastro de fogo no caminho
e para na minha nuca. O polegar agora alisa a coluna da minha garganta.
Ele se aproxima mais, coloca a outra mão nas minhas costas.
Sua presença é quase sufocante na penumbra da sala fria.
— Não costumo gostar, mas por incrível que pareça, Vasilisa —
murmura, a voz ainda mais rouca —, eu gosto de estar com você.
Vasilisa me olha surpresa, os olhos verdes um tanto arregalados, os lábios
rosados entreabertos.
Essa não é uma moça – porque ela não deve ter mais que dezoito anos
–, que posso empurrar parede acima, chegar a calcinha para o lado, enfiar
meu pau na boceta – claro, depois de muitas preliminares, porque amo as
preliminares –, amanhã mandar flores e esquecer seu nome.
Essa garota… moça… jovem… é diferente.
Talvez a convivência com uma moça tímida seja menos complicada,
mais simples. Ao mesmo tempo, pode ser mais difícil, já que ela quase não
fala, mal me olha nos olhos.
Engraçado que, apesar de serem amigas, ela e Tatyana são
diametralmente opostas. Enquanto minha cunhada é o sol escaldante, essa
moça é a lua, suave, com raios que iluminam, porém, de uma maneira
mais… doce.
É, talvez: suave, doce e… serena sejam as palavras que eu esteja
buscando.
Mesmo assim, um monstro dentro de mim deseja virá-la contra a
parede, levantar seu vestido e enfiar meu caralho em sua boceta.
Mordo o interno da minha boca para me controlar.
Assim como os retratos ancestrais nas paredes da galeria do palácio
Frostholm parecem me julgar, vocês também devem estar fazendo o
mesmo.
De novo.
Já estou acostumado. Daqui a pouco, quando vocês me conhecerem
melhor, vão entender: sou um homem que adora sexo, bastante até, mas
sentimentos nunca os tive.
Bom, até agora. Porque depois que bati os olhos nessa ninfeta, a pintura
da explosão vulcânica representa o que estou sentindo, o que não faz o
menor sentido.
Sei que não posso quebrar uma boneca de porcelana tão preciosa destas.
Por mais que eu queira fodê-la com todo o tesão que estou sentindo agora.
Provavelmente é até virgem.
— Quero saber mais sobre você — digo, baixinho.
Ela é lindíssima, sem dúvida, com essa beleza etérea e olhos verdes que
parecem conter florestas virgens e selvagens, ainda inexploradas.
Essa timidez e pureza me atraem de uma maneira que nunca
experimentei antes. Sua fragilidade desperta em mim um desejo de proteção
e, ao mesmo tempo, há uma parte sombria em mim que deseja destruir essa
natureza intocada, talvez por medo de não ser digno dela, ou por uma
necessidade inexplicável de ver o caos onde há ordem.
Ou seria o inverso?
Seus olhos fazem com que me sinta como se estivesse à beira de um
abismo, prestes a mergulhar em um mundo desconhecido, onde não
conheço as regras. Isso me deixa ainda mais louco e com mais tesão.
Preciso saber, controlar, possuir e desvendar cada mistério que ela esconde.
Gosto de ter o controle, de saber o que acontece ao meu redor, de
conhecer as pessoas com quem lido. Totalmente. Essa necessidade de
controle é uma armadura que construí para me proteger das incertezas da
vida, das surpresas que podem me levar de volta aos momentos de dor que
passei. Mesmo que essa armadura me isole e me impeça de viver
plenamente algumas experiências. É uma luta constante entre a segurança e
o desejo de me entregar ao desconhecido que agora pareço estar perdendo.
Detesto ser surpreendido.
A impressão de vulnerabilidade que essa sensação me traz é algo que
evito a todo custo. Não gosto nem mesmo daquelas festinhas de aniversário
que os amigos fazem. Resultado dos meus traumas e que, de uma maneira
ou de outra, superei. Porém, as cicatrizes físicas e mentais ficaram e são
lembranças constantes do que acontece quando sou impulsivo e espontâneo.
É isso.
É isso que está me tirando do prumo: não ter o controle. Não saber
quem ela é, o que gosta, o que a faz suspirar, gemer, gozar. O que ela lê nas
horas vagas, qual comida prefere, o que a faz rir e o que a faz chorar. A
falta de conhecimento sobre ela me deixa em um território desconhecido, e
isso é assustador e excitante ao mesmo tempo.
Em todos os meus trinta e um anos, nunca fiquei tão impactado por uma
mulher – por um ser humano – como por ela.
Se eu puder controlá-la, a sensação desaparece e volto ao normal.
Ela passa a língua pelos lábios carnudos e macios, molhando-os.
Minha mente suja imagina-a de joelhos, aqui mesmo nesta galeria, e
meu pau abrindo essa boquinha de coração, até chegar em sua garganta.
Será que ela iria engasgar? Será que iria gemer e pedir mais?
Em um movimento reflexo, meus dedos se apertam à volta de seu
pescoço, e finalmente ela responde à minha pergunta: — Não há muito o
que saber.
Desvia o olhar para baixo, o que me deixa ainda mais curioso.
É a última chance para eu me arrepender, para dar um passo atrás e
evitar o risco.
— Acho que você é muito mais do que aparenta, Vasilisa — digo, sem
nem reconhecer minha voz, porque a conexão silenciosa é forte demais para
ignorar.
Preciso saber se é só minha imaginação.
Aproximo-me um pouco mais e deixo as costas da minha outra mão
roçarem de leve seu rosto, e deslizo mais, descendo, até chegar em um dos
seus seios, onde fecho a mão em punho e deixo as bases das falanges se
arrastarem pelo mamilo, antes de agarrar sua cintura.
Ela arfa.
O tecido do vestido revela que os bicos se enrugaram e me conta que o
que fiz a excitou.
Bom, muito bom.
Ela levanta as pálpebras e nossos olhares se encontram.
Ela cora. Cora!
Meu pau incha ainda mais, empurra o zíper, pede liberdade.
Não sabia que jovens ainda coravam.
— Você pode não gostar do que vai descobrir — murmura.
Posso ir embora, arranjar uma mulher que não vai me pedir beijos
apaixonados ou declarações de amor à meia-noite; que não vai me olhar
com olhos onde a vida pulsa mais intensa que numa floresta selvagem; que
não vai me fazer sentir como se cada momento fosse uma eternidade de
emoções tumultuadas.
No entanto, algo dentro de mim se rebela, me impede de sair do lugar e
se recusa a aceitar uma vida sem essa intensidade que ela promete.
— Nunca fui um homem de me esquivar de desafios — digo, por fim.
Porque o mesmo monstro que quer consumir a alma dessa garota e
devorar minha liberdade, quer, com a mesma voracidade, sentir as batidas
dos nossos corações descontrolados pela paixão.
A música da festa e o burburinho da conversa se misturam e ecoam ao
longe, caóticos, quase como uma trilha sonora para o que está por vir.
Deslizo o polegar para o seu maxilar e subo traçando seu lábio inferior,
sentindo o calor e a maciez.
— Não — suspira baixinho.
Tão baixinho que a palavra quase que não é uma negação.
Se ela não quer que eu a beije, por que seus lábios se separam? Por que
ela levanta a cabeça e fecha os olhos?
A tempestade que se agita dentro de mim me avisa que este é o ponto
sem retorno.
— Tem certeza?
Aproximo meu rosto do seu enquanto ela continua de olhos fechados.
Inclino-me lentamente, dando tempo a ela de repetir a negativa, de
gritar, de tentar escapar dos meus braços e fugir daqui. Antes que eu mesmo
possa pensar demais, meus lábios encontram os dela.
— Lars…
Sua boca é suave, tímida, a se abrir por completo, mas assim que minha
língua a lambe e invado sua boca, ela geme, passa os braços ao redor do
meu pescoço e se entrega.
Responde com uma urgência que espelha a minha.
Seu corpo quer o que sua palavra negou há pouco.
Na verdade, quer mais.
Um som estrangulado escapa do seu peito e ela cola o corpo no meu,
angulando minha cabeça, tomando a liderança, beijando-me esfomeada
como se eu fosse o último homem na terra.
Seus dedos se enrolam em meus cabelos, puxam, largam, descem pelo
meu rosto, me tocam como se quisessem me conhecer por inteiro neste
breve espaço de tempo.
Eu deixo. Deixo que ela me toque, que entrem por dentro do paletó do
meu fraque, puxe minha gravata, minha camisa, que as unhas arranhem
meu abdômen, como uma gata selvagem.
Curiosamente, gosto da sensação de ser objeto de seu desejo.
Seus dedos abrem botões. As mãos espalmam meu peito, se arrastam
para baixo, abrem meu cinto, o zíper e seguram meu pau por cima da cueca.
Prendo a respiração por um segundo, quando ela para. Não sei se é
porque sentiu meu tamanho, se é porque não tem certeza do que deve fazer,
ou se por estarmos muito expostos.
Ou, lembro a mim mesmo, se é porque ela é ainda muito jovem e
acabou de me conhecer.
— Deliciosa — murmuro em sua boca.
Passo um braço por debaixo de sua bunda e levanto-a. Ando até um vão
arredondado mais adiante, onde tem um sofá estrategicamente colocado
para quem quiser apreciar a pintura da coroação do primeiro rei de
Vinterland, o que não é meu objetivo no momento.
Sento-me com ela no colo, puxando suas saias para cima e aprofundo o
beijo, agora ditando o ritmo.
Subo a mão para o seio macio e pesado e deixo meus dedos se
deleitarem com a sensação. Deslizo o polegar para dentro do decote e
circulo o bico intumescido.
Ela joga a cabeça para trás, arfa e, tímida, se remexe sobre meu pau
duro.
— Gostosa.
Afundo os dedos em sua carne, seguro seus quadris com força, a
reposicionando, e ajudo-a a encontrar uma posição e um ritmo.
— Assim, Pequena — ordeno, e quando ela abre os olhos, continuo: —
Rebola gostoso no meu pau.
O rosto, que já está corado, fica vermelhinho.
— Isso… Assim… — estimulo.
Ela se movimenta, testando, conhecendo. Quando meu membro roça no
seu clitóris, ela geme alto.
Fecha os olhos novamente e se entrega às sensações que a fricção
provoca em seu corpo.
Pelos deuses.
Puxo o seio para fora e abocanho o mamilo rosado na minha boca.
Chupo, mordisco, e chupo mais.
Seus suspiros, sua pele macia, seu cheiro me enlouquecem. Não resisto
a enfiar uma de minhas mãos por debaixo das saias, acariciando sua perna.
Meu dedo pressiona o interno do joelho, tirando um tremor dela, e deslizo a
palma, subindo mais, até chegar na sua virilha.
Passo o polegar pelo fundo da calcinha – uma tanguinha mínima, por
sinal, que está encharcada. Ela geme e se oferece delicadamente para mim,
arqueando o quadril e pressionando-se na minha mão.
A calcinha é de uma renda macia e fina, mas o que está por baixo é
melhor ainda. O monte de vênus é quase todo depilado e o pelo que resta
recobre só a parte de cima.
Não me contenho e rasgo a renda, liberando a bocetinha.
— Ah, eu gostava dessa calcinha — murmura na minha boca.
— Compro a porra da coleção toda para você — rosno.
A vontade que tenho é de rasgar seu vestido, vê-la inteira nua. Tirar
meu pau da cueca e meter todo dentro dela, mas não quero que minha
primeira vez com ela seja assim.
Porque, sim, esta vai ser a primeira vez de muitas.
Só que é ela que põe a mão por cima do meu membro e pede: — Vem,
Lars, vem. Eu preciso.
— Pequena, não trouxe camisinha — minto, porque o preservativo está
no bolso interno do meu fraque. Estou sempre prevenido. — Agora esfrega
essa bocetinha encharcada em mim e goza — peço, circulando o clitóris
com o polegar. — Goza gostoso.
Não me importo que seja uma tortura para mim. Já sofri outras piores e
sobrevivi.
Abro mais suas coxas, encaixo-a bem sobre minha ereção e fecho meus
braços atrás de suas costas, apertando-a bem junto ao meu corpo.
Começo a me mover também, querendo vê-la atingir o paraíso.
Quando seu corpo estremece e se derrete em minhas mãos, mantenho-a
cativa nos meus braços, acariciando os cabelos que estão soltos.
Eu seria capaz de fazer qualquer coisa para sair daqui com ela em meu
braço e que se dane que os outros vão comentar que fodemos.
Quero fazer isso, a qualquer hora, em qualquer lugar.
Eu a desejo em minha cama, ver seus cabelos loiros espalhados em
meus travesseiros, seu perfume impregnando meus lençóis e o gosto da sua
boceta marcando para sempre o meu paladar.
Quando nossas bocas se separam, sinto que algo mudou.
— Eu… eu…
Coloco um dedo em seus lábios, antes de depositar outro beijo ali,
porque não há necessidade de se justificar.
Puxo seu vestido para cima e ajeito-o em seu corpo. Mesmo assim, não
adianta muito. Não porque estava amassado, ou porque sua coroa esteja
torta. Não, tomei cuidado com isso.
Ela está brilhando. Está com aquele viço, com cara de quem foi bem
beijada e bem-amada.
— Vasilisa… — Acaricio seu rosto com as costas da mão. — Eu que…
— Não!
Sai do meu colo de um pulo.
Seus olhos não estão mais lânguidos como antes.
— Tenho… que voltar… para a festa — diz, olhando-se no enorme
espelho veneziano na lateral. — Meu pai… vai me procurar.
Não tento segurá-la, porque está assustada e se eu a prender aqui só vai
piorar.
— Até breve — prometo, a voz calma, mas repleta de avisos não
verbalizados.
Vira-se e sai correndo, tão leve que os saltos nem fazem barulho. Mas a
porta batendo ecoa no silêncio que me envolve enquanto arrumo minha
roupa.
Sorrio ao notar que ela esqueceu algo.
Não foi um sapatinho, não é de cristal, mas é algo muito melhor.
Pego a tanguinha dourada, trago o pedacinho de tecido rasgado para
meu nariz e inalo seu perfume.
Não, não tenho fetiche por calcinhas, meu fetiche é por ela.
— E agora você é minha — anuncio para a galeria vazia.
Meu coração bate fora do ritmo enquanto ando rápido em direção ao
banheiro, rezando para não encontrar ninguém conhecido pelo caminho.
Cada passo que dou é uma batalha interna para não olhar para trás, para
não permitir que a paixão, ou o que seja esse sentimento que Lars despertou
em mim, cresça. Porque não posso me perder naquele par de olhos intensos,
que parecem conter universos inteiros.
Ele me beijou como se quisesse me provar e, quando retribui, como se
quisesse me engolir. Como se meu sabor fosse irresistível e lhe desse um
prazer inigualável.
Aquilo me enlouqueceu. Fui possuída por uma vontade quase cega de
tê-lo dentro do meu corpo. Acho que se ele tivesse preservativo, tinha
transado ali mesmo na galeria dos retratos com todos os ancestrais dele por
testemunhas.
Ah! Mas foi tão… bom. Tão… delicioso. Certo.
Respiro fundo e olho-me no espelho.
Abraço essa mudança, essa nova Vasilisa que vejo refletida, ainda
sentindo a presença dele em mim.
— Será que ele ainda me olharia do mesmo jeito se soubesse o que já
fiz e o que já aceitei que fizessem comigo? — indago para meu reflexo. —
Será que ainda me desejaria daquele jeito se conhecesse todos meus
segredos?
Provavelmente não.
Ele é diferente. Fechado, mas sorridente e desconfio, não será fácil
mantê-lo à distância.
Seria mais fácil se tivéssemos feito amor e resolvido ali mesmo, porque
agora ele vai querer repetir para saciar a curiosidade e o desejo que
instiguei. Para sentir novamente aquela conexão intensa.
Passa a haver a possibilidade de uma coisa nova e diferente. Um futuro
que seja bem distinto do passado.
Solto uma risada amarga. Que ilusão.
— Nada vai se repetir — digo a mim mesma, meu tom firme.
Mais cedo ou mais tarde, ele desistiria.
A sensação de estar perdida entre o desejo e a razão, entre o medo e a
coragem, é péssima e apaga toda a satisfação obtida com o sexo.
Porque a verdade sempre aparece e eu não estou preparada para
enfrentar as consequências.
Sinto meu corpo tensionar só de pensar nessa possível realidade
alternativa e minha mente acelera, tentando antecipar as variáveis, as
possíveis reações e desfechos.
É como diz Goethe: o que o homem não sabe é o que lhe mais falta faz,
e o que sabe, ele não tem uso. i
Penso nisso enquanto encaro meus olhos no espelho, procurando uma
resposta que talvez só o tempo revele.
Lavo meus pulsos e molho o rosto, a água fria ajudando a clarear meus
pensamentos.
Preciso relaxar, me recompor e voltar para a festa.
Apesar de tudo, sou uma lutadora e isso que aconteceu é só mais um
degrau no meu caminho para a autodescoberta e para, quem sabe, um futuro
onde eu possa ser realmente feliz.
— Respire, Vasilisa — digo para mim mesma, tentando encontrar um
fio de calma em meio ao turbilhão. — Você é mais forte do que isso. Você
não quebra, você não se rende.
Não preciso me apavorar. É só o manter longe, manter todos os homens
longe, que assim a verdade nunca vai precisar aparecer.
É quase uma ironia que eu tenha escolhido ser psicóloga porque acho
muito fácil resolver a vida e as encrencas dos outros, mas minha vida que é
bom? É uma complicação sem tamanho!
— Falei para o seu pai que você estaria aqui — diz Melissa, entrando no
banheiro.
Seus olhos percorrem minha figura com seu habitual olhar
mefistofélico, provavelmente à procura de algum amassado ou sujo no
vestido indicador do que andei fazendo com Lars.
Aliás, não sei como não só o penteado resistiu, como também o vestido.
— Veio retocar o batom?
Quase digo que vim. Quase. Porque me dou conta de que esqueci a
bolsa na mesa onde fica meu lugar. — Não, vim ao banheiro mesmo.
Ela arqueia uma sobrancelha perfeitamente delineada.
— Foi tudo bem com o príncipe? — pergunta, fingindo casualidade e
tirando o batom da bolsa e aplicando uma camada nos lábios preenchidos
artificialmente.
Provavelmente quer saber para começar a planejar o meu futuro.
— Foi, sim — respondo, tentando manter a voz tão casual quanto a
dela.
— Ele pareceu bastante… impressionado com você — comenta ela,
com um tom insinuante. — Isso poderia ser vantajoso para todos nós.
— Não acho que seja algo relevante — retruco, e desejando encerrar
logo o assunto, digo: — Mas ele é… interessante.
— É só esse adjetivo que você tem para se referir ao solteiro mais
bonito e cobiçado de toda Vinterland? Nossa, Vasya, você precisa melhorar
seu repertório ou vai ficar solteira para sempre — debocha ela, claramente
insatisfeita com minha resposta vaga. — Seu pai me pediu para vir buscá-la
porque Jamal está conversando com ele sobre um possível acordo.
Sinto um frio na espinha ao ouvir isso. — Acordo?
— Sobre um possível noivado e casamento. Sabe como são esses
árabes. Com eles não têm teste, namoro. Fazem contrato de casamento com
uma jovem virgem que achem de boa família e casam.
Credo. A última coisa que quero agora é lidar com mais um
pretendente. Ainda mais um machista como o irmão de Tatyana.
— Vamos? — pergunta, guardando o batom na bolsa e dando uma
última olhada no espelho.
— Claro — respondo, esforçando-me para dar um sorriso.
Talvez, ao invés de entrar para um convento, possa conseguir uma
transferência para uma faculdade nos Estados Unidos. Uma ideia bem
melhor. Assim, mantenho a distância do meu pai, da aprendiz de Satã e de
todos esses homens que estão interessados na minha conta bancária e
herança.
Enquanto seguimos pelos corredores opulentos do palácio, Melissa
lança um olhar de soslaio em minha direção. — Quem você prefere? Lars
ou Jamal?
Jesus misericordioso!
— Nenhum dos dois — digo.
— Ah, tem algum outro em vista? — pergunta baixinho.
— Não, Melissa. — Resolvo chocar logo e exagero: — Prefiro
mulheres.
Isso a faz estancar no meio do passo e se virar para mim. A raiva que
ela está sentindo transparece no rosto.
— Deixa de ser engraçadinha, garota, e comporte-se — fala,
entredentes. — Caso contrário, seu pai arruma um jeito de te declarar
insana de uma vez e ao invés de te casar com um príncipe ou com um
Sheik, ele te manda de volta para aquele convento, ou, quem sabe… — ela
abaixa a voz —, te trancafia naquela última instituição psiquiátrica, aquela
que patrocinamos.
Ao contrário de meu pai, Melissa não usa meias palavras.
Não duvido nada que ela cumpra as ameaças, então calo a boca e não
digo tudo o que passa na minha cabeça: que, na verdade, prefiro evitar
relacionamentos amorosos com os seres humanos em geral. Com mulheres,
homens, não-binários, indefinidos ou seja lá o que andam inventando de
designação. Bom, talvez… exceto… com um par de olhos azuis intensos.
Ao entrarmos na festa, fazemos o caminho para onde meu pai está com
Jamal, ambos sorrindo de maneira que me faz querer desaparecer e imersos
em uma conversa… Como qualificar? Comercial? Uma intensa negociação
de transferência de fundos?
Assim que nos aproximamos, meu pai abre um sorriso largo.
Preciso sair daqui!
— Vasilisa, minha querida! — exclama ele, estendendo a mão para mim
e me puxando para seu lado. — Jamal estava elogiando sua elegância esta
noite.
— Não só elegante, deslumbrante — complementa Jamal, olhando mais
para meu decote que para meus olhos.
— Obrigada — murmuro.
Odeio que mais uma vez meu medo, paralisia e pânico fez com que eu
delegasse a alguém o que eu deveria sair e fazer, mas desta vez a culpa não
é da minha madrasta. Melissa ligou quando recebeu o convite para o
casamento em dez dias – imposição do noivo – e, já que estava em Nova
Iorque acompanhando meu pai em uma viagem de negócios e entediada,
ofereceu-se para comprar o vestido para mim.
Como temos o mesmo corpo e ela tem um gosto excepcional, aceitei.
Chegou a me enviar uma foto quando encontrou esse na Maison Oscar de la
Renta e eu aprovei. Só esqueci que sou um pouco mais alta e que ela tem
menos busto que eu. Não é que tenha ficado vulgar ou apertado. O vestido é
um espetáculo e fiquei super sexy nele, como ela disse que eu ficaria, mas
valorizou demais meus seios e os homens ficam babando.
Na realidade, se a noiva não fosse Tatyana, eu nem viria ao casamento,
mas não podia recusar.
— Estávamos discutindo sobre a possibilidade de vocês dois passarem
mais tempo juntos — diz meu pai, lançando-me um olhar significativo. —
Talvez seja uma excelente oportunidade para fortalecer os laços entre
nossas famílias.
— Seria uma honra — acrescenta Jamal, seus olhos buscando os meus
com expectativa.
Eles me encurralaram direitinho.
Jamal é um homem bonito, educado e cortês – superficialmente, porque
na intimidade deve ser mandão e um cavalo machista –, mas não desperta
em mim as emoções confusas que Lars provoca.
Sem falar que não quero nada com homem nenhum. Nem mulher,
aquilo foi para sacanear com Melissa. Não quero nada com ninguém, na
verdade. Estou muito bem como estou: sozinha.
Antes que possa responder, sinto o olhar de Lars sobre mim. Ele está
mais próximo agora, conversando com alguns convidados, mas claramente
atento.
— Talvez possamos dar uma volta pelo jardim que foi montado na
varanda? — sugere Jamal, que parece ter percebido que o príncipe se
aproximou e que está interessado em mim também. — Ouvi dizer que é
lindo.
— Acho uma ótima ideia — concorda meu pai, antes que eu possa dizer
qualquer coisa. — O ar fresco fará bem a vocês.
Ar fresco? Está mais para ar gelado.
Tenho vontade de rolar os olhos para o teto, mas minha educação não
me permite.
— Vamos pegar sua estola — diz ele e põe a mão na minha cintura para
me guiar por entre as mesas.
Pego minha bolsa e estola e aproveito para cobrir meus ombros e colo,
escondendo meus seios dos olhares gulosos dele.
Resignada, escuto as descrições da sua última viagem ao Vietnam e
Camboja e críticas à cultura e às paisagens de lá – fascinante e exótica na
minha opinião, inculta e pobre na dele –, como se eu fosse uma total
ignorante e nunca tivesse lido sobre a região e muito menos ido lá. Dou
respostas monossilábicas enquanto caminhamos em direção ao tal jardim
porque não tenho a menor intenção de entrar em conflito com uma pessoa
com pontos de vista tão radicalmente diferentes dos meus.
Na verdade, o tal jardim é um ambiente para fumantes. Ele abre a porta
francesa e gesticula para que eu passe na sua frente, sem me perguntar se
me incomodo com cigarros, charutos e similares.
Não me incomodo com o cheiro, nem com a fumaça – até gosto do
aroma e, se ele tivesse me oferecido, o outro que está no bolso, até teria
aceitado, sempre tive curiosidade sobre o sabor –, mas vamos combinar que
cortesia é tudo.
Andamos um pouco pelos caminhos sinuosos formados com pedras
coloridas, ladeados por árvores, enfeitadas com orquídeas exóticas, que a
iluminação estrategicamente colocada realçam. Aqui e ali tem pequenas
fontes de água. Foram criados recantos aconchegantes com sofás e
poltronas para fumar ou apenas sentar, beber e conversar. Em alguns cantos
mais reservados, há gazebos cobertos de trepadeiras e nichos escondidos
por conjuntos de palmeiras altas, onde alguns casais aproveitam para uns
amassos mais arrebatados.
Credo! Não dava para pagar um quarto de motel, não?
Sinto minhas bochechas ficarem quentes quando me lembro que tem
uma hora, se tanto, que estava fazendo algo parecido.
Parece que os noivos andaram espalhando hormônios estimulantes pelo
ar.
— Vamos nos sentar aqui — aponta para um sofá curvo, vazio, onde
cabem apenas duas pessoas.
E se eu disser que não quero? Mas não digo e me sento, obediente.
Então, ele se senta do meu lado, com a perna encostada na minha, do
quadril ao joelho, mesmo que eu cruze a minha e me recoste no canto. Tira
do bolso um charuto, um cortador e um isqueiro, ambos de ouro e
cravejados de brilhantes e rubis, e começa o ritual que é para acendê-lo.
— Ficou um espaço lindo e bem agradável aqui — digo para preencher
o silêncio e cobrir os suaves suspiros e gemidos que às vezes filtram pelas
árvores ao nosso redor.
— Muito agradável — diz, depois de soprar a fumaça no ar.
Ele passa o braço no encosto e se ajeita. Com isso, a minha estola
escorrega e desliza por um ombro.
Quando vou ajeitá-la, ele me impede.
— Gosto assim — diz, segurando minha mão. — Fica sensual.
Engulo em seco e penso em dizer que estou com frio, mas acho melhor
não, por que dá de ele querer me esquentar? Vai ser pior.
Abaixo a mão no colo e deixo um lado aparente.
— Vasilisa — diz Jamal —, vou ser direto com você.
Ah, não. Não seja, por favor.
— Sim? — Finjo-me de desentendida. — Sobre o quê?
— Estou precisando me casar e você é uma bela mulher, apesar de ser
católica — diz.
Começou mal. Bem mal.
— Mas isso pode ser facilmente resolvido com uma conversão para o
Islã — avisa, sem nem me perguntar se eu desejo ou quero.
— É mesmo?
— Sim, meu pai é autoridade máxima e tudo se resolverá facilmente —
afirma, como se fosse fato consumado. — Como seu pai falou, já
conversamos sobre a possibilidade de formalizarmos um noivado e só falta
ele consultar os advogados durante a semana.
— Jura? Vou conversar com ele porque vocês esqueceram algo bem
importante…
Vou dizer o quê? Antes que eu me esqueça, vai à merda, pois eu não
vou formalizar nada com um homem preconceituoso como você?
— Claro — diz ele —, as cláusulas sobre seu dote.
Respiro fundo e mordo as palavras que tenho vontade de dizer. Busco
na mente o que posso responder ao invés de dar um tapa na cara do
convencido, mas antes que possa decidir, uma voz familiar interrompe meu
raciocínio.
— Com licença — diz Lars, que surge das sombras. — Vasilisa.
— Estamos tendo uma conversa particular, Alteza — corta Jamal, a
irritação clara no seu tom de voz frio, e deixa a mão boba pesar sobre o meu
ombro. — Se puder se retirar…
— Imaginei que estavam — responde Lars, sem se abalar —, mas sua
irmã me pediu que viesse buscar a amiga.
Aproveito a deixa e já me levanto. — O que foi?
— Uma dança… especial com as madrinhas — diz Lars. — Só falta
você.
— Ah, claro… — concordo, mas não me lembro de nada parecido.
Não sei se ele está inventando ou se Tatyana me viu sair com Jamal e
mandou Lars me salvar. Das duas, uma.
— Continuamos nossa conversa depois — diz Jamal.
— Vamos, então — diz Lars, me oferecendo o braço ao mesmo tempo
que o outro.
— Ela veio comigo, volta comigo — diz Jamal.
Suspiro alto, irritada com a disputa de testosterona. — Olha,
sinceramente? Não preciso de ajuda para andar e vou voltar sozinha, que
vou mais rápido. Vocês dois fiquem aí e conversem.
Deixo os dois medindo forças e saio do jardim.
Vai ser bem complicado conseguir impedir meu pai de me casar.
Vocês devem estar pensando que é fácil, que é só dizer que não quero,
mas o problema são as alternativas: o convento ou um hospital psiquiátrico.
Como ele é meu curador designado pela justiça ii, não tenho muita
opção.
Assim que entro na festa de novo, pego uma Acquavit que está
passando na bandeja de shots. Sei que não devo beber devido ao meu
coração, mas dane-se!
Viro o copinho e o líquido desce queimando. Tusso e meus olhos
lacrimejam.
Antes que o garçom se afaste muito, corro atrás dele e pego outra,
porque só pra lá de Bagdá para aguentar tanto homem querendo mandar na
minha vida.
Encontro as meninas na pista de dança, como disse Lars, e elas logo me
puxam para a rodinha.
Até penso em contar a elas sobre o que aconteceu.
Compartilho muita coisa com elas, mas nem tudo. São minhas melhores
amigas, talvez a única coisa que eu conheça por família.
Mas acabo desistindo porque Yasmin é alegre e tem uma vida sexual pra
lá de quente depois que se casou com seu rei lindo de morrer e quente como
lava e Tatyana… Ah, o que dizer dessa moça alegre e risonha e tão feliz? É
praticamente o oposto da minha personalidade.
Então depois de fazer mais alguns brindes com shots de Acquavit,
comer alguma coisa deliciosa no almoço sensacional que é servido, mas que
nem sinto o gosto de tão anestesiada que está minha boca, subo logo para
minha suíte.
Antes que algum dos dois machos voltem a farejar à minha volta, como
se fosse época de acasalamento.
Ainda bem que gosto muito da minha própria companhia.
Acordei mais cedo do que o normal, porque mesmo depois de todo o álcool
que ingeri no almoço que se alongou até às oito da noite, apesar dos noivos
terem saído por volta das quatro –, não consegui dormir muito.
Não que meu sono seja exatamente uma maravilha. Depois do
sequestro, nunca mais consegui dormir pacificamente. Uma parte do meu
cérebro está sempre alerta, como se estivesse preparado para reagir a um
ataque.
Quando chego à academia, às quatro da manhã, meu parceiro de insônia
e luta, Tyr, não está porque viajou de lua de mel – óbvio – o que acho ótimo
porque hoje eu seria um péssimo companheiro para qualquer um.
Estou elétrico, o que é bastante incomum, e tenho a ligeira impressão
que é devido à loira delicada e perfumada que tive em meus braços.
Faço um alongamento básico e vou direto para a esteira. Um
aquecimento de dez minutos a dez quilômetros por hora é minha preliminar
para uma corrida de uma hora a catorze.
Então, com o suor escorrendo pelo rosto e ensopando a camiseta e os
shorts, engulo uma garrafa de água de uma vez e vou para o saco de boxe.
Descarrego minha frustração em socos, joelhadas, chutes e todos os
tipos de golpes possíveis e imagináveis, fantasiando que estou destruindo
meus oponentes. Depois, quando o local à minha volta está tão encharcado
que começa a escorregar, faço uma parada rápida para hidratar, trocar de
roupa e mudo para o boneco em tamanho natural, que simula melhor o
treinamento e me dá a vantagem de praticar o foco, coordenação e
velocidade. Sem falar que a fisionomia provocante do desgraçado é um
convite irresistível para atacá-lo com mais força e aliviar o estresse.
Até que a imagem de Vasilisa se sobrepõe à do homem na minha frente,
toma conta da minha mente – de novo – e paro o exercício, colocando as
mãos nas coxas para recuperar o fôlego.
A sensação que tive quando olhei naqueles olhos verdes foi de um
puxão, como se ela tivesse pegado uma parte de mim. Talvez a palavra certa
seja roubado, porque não dei permissão de ela pegar nada.
E depois, quando tentei pegar alguma coisa dela, não consegui. A moça
tem as barreiras tão firmes que não descobri uma brecha, mas ela permitiu
que aquele almofadinha do meio-irmão da Tatyana fizesse uma proposta ao
pai dela.
Fico com tanta raiva quando me lembro que desfiro um chute tão forte
no boneco que ele balança violentamente, se dobrando.
Ainda estou ofegante quando um sonolento Leif chega, esfregando os
olhos e com cara de quem fodeu muito, e meu humor só piora.
— Bom dia — cumprimenta ele.
Emito um grunhido, o que, para ele, que me conhece sua vida toda,
deveria ser um aviso evidente para que não se aproxime, mas mesmo assim
ele o faz.
— O que houve? — indaga, olhando para as poças de água que se
acumulam ao meu redor, perto do saco de pancada e à volta da esteira onde
corri, o que mostra que estou aqui há muito tempo – mais de duas horas e
meia – e o faz ter cautela ao se aproximar.
Leif é mais novo de nós cinco, meu melhor amigo e parceiro de todas as
horas. Assim como Tyr, conhece bem meu humor e sabe que sou pouco
dado a oscilações e que quando isso acontece – muito raramente – não
consigo manter o controle e explodo.
A tensão aumenta sob meus ombros, mas se não posso lutar com ele,
posso desabafar.
— Tudo, nada. — Limpo o suor da testa com o braço. — Conheci uma
moça ontem…
— Isso tudo é devido a uma mulher? — questiona, surpreso, porque
sabe como sou com elas.
Sorrio pela primeira vez em horas. Arranco a camisa ensopada e vou em
direção à área da piscina. — Não é qualquer mulher, Leif.
Ele arqueia uma sobrancelha, intrigado. — Deve ser alguém especial
para te deixar assim.
Enquanto tiro os shorts e os tênis, digo: — Especial não é bem a
palavra. Misteriosa, evasiva, irritante talvez. É amiga de Tatyana e Yasmin.
Bem tímida.
— Ixi, a que estava comigo nem falava. Acho que, se disse umas cinco
palavras, disse muito. Nem parece amiga da Harpia. — Leif cruza os
braços, encostando-se na parede. — Vai ficar fazendo mistério? Ou vai me
contar quem é?
— Vasilisa Hardrada.
Entro no chuveirão para tirar o suor e, quando saio, sacudo a cabeça.
— A Romanov, filha de Jarl Hardrada? — Leif parece surpreso. —
Ouvi dizer que ela é… complicada.
Pareceu mesmo. E isso me assusta.
— Complicada é pouco. — Pego outra garrafa de água na geladeirinha.
— Mas linda, perfumada, gostosa. E delicada.
— Uau. Tudo isso em algumas horas? — pergunta Leif com um meio
sorriso. — Já foi para cama?
— Ha, ha. Engraçadinho. — Lanço-lhe um olhar duro porque não
comento meus casos. — O que me irrita é que não consigo tirá-la da
cabeça.
— Então, por que não faz algo a respeito? — sugere ele.
— Vou fazer, porque um dos meios-irmãos de Tatyana já se adiantou. A
impressão que tenho é que o pai está tentando empurrá-la para o primeiro
que aparecer pela frente. — Respiro fundo, tentando controlar a frustração.
— Preferia conhecê-la primeiro, antes de me amarrar em um casamento,
mas acho que não vai ter muito jeito.
Leif observa-me por um momento. — Talvez ela tenha problemas…
— E quem não os têm? — retruco e pego uma garrafa d’água. — Mas
não sou do tipo que desiste facilmente.
— Isso eu sei. — Ele sorri. — Então, qual é o plano?
Tomo a água pensando por um instante. — Descobrir o que a faz
funcionar. Entender suas motivações. Ela é um enigma, e você sabe como
adoro um desafio.
— Cuidado para não se queimar, Lars — adverte Leif. — Às vezes,
quanto mais profundo você mergulha, mais difícil é voltar.
Dou de ombros. — Talvez eu esteja precisando de um pouco de emoção
na minha vida.
Leif me estuda com atenção. — Isso é novo vindo de você.
— Talvez seja hora de mudar algumas coisas. — Sorrio.
Ele assente lentamente. — Bem, se precisar de ajuda, estou aqui.
— Sei disso e agradeço, mas por enquanto posso jogar esse jogo
sozinho.
Termino de beber, jogo a garrafinha fora e mergulho na piscina para
umas braçadas relaxantes.
A água fria desperta meus sentidos, clareia minha mente, mas não afasta
a imagem dela. Vasilisa, com aqueles olhos verdes e sua reserva emocional
impenetrável.
Conversar com Leif sempre ajuda, mesmo que eu não admita. Talvez
essa obsessão por uma mulher seja exatamente o que preciso para sair dessa
rotina entediante.
Quando termino, ele está na esteira.
— Fico aguardando novidades — diz Leif.
— Se eu as tiver — respondo, sem me comprometer. — Depende do
que o dia me reserva.
Ele ri. — Boa sorte com a senhorita misteriosa.
— Vou precisar — murmuro, secando o rosto com a toalha.
Passo pela bandeja de frutas e pego quatro bananas. Comendo a
primeira, entro pelas passagens secretas – afinal, não fica bem um príncipe
de Vinterland ser visto circulando, molhado, de calção de banho e descalço,
com uma toalha nos ombros, pelas escadarias de mármore do palácio a esta
hora da manhã – e subo direto para meu quarto para tomar banho.
A água quente escorre sobre minhas costas, lava a tatuagem e as
cicatrizes que permanecem ali, como lembretes do passado que nunca me
abandona, que me assombra, e que me lembram que a vida é efêmera e que
tudo pode acabar de uma hora para outra.
Isso me faz ainda mais resoluto em ter aquilo que eu quero.
Enquanto troco de roupa, tomo uma decisão e antes de descer para o
café da manhã, resolvo sentar-me à minha escrivaninha e abrir meu
computador.
Mando mensagem para minha secretária e peço que ela encontre
imediatamente o e-mail particular do Sr. Jarl Hardrada.
Enquanto aguardo, faço umas correções no contrato de casamento de
Tyr e Tatyana para apresentar como proposta inicial.
Enlouqueci?
Pode ser, mas além do desejo de tê-la ao meu lado ser mais forte que a
razão, há uma lógica nisso.
O reino precisa de alianças e de dinheiro e, como herdeira, Vasilisa é
perfeita. Se com ela vem um desafio, melhor ainda.
Há algo na moça que me intriga profundamente, algo que nunca notei
em outra.
Não é só o corpo, mas o mistério nos olhos, a delicadeza que se esconde
sob cada gesto.
Quero mais do que tocá-la; quero desvendá-la.
Desvendar seus segredos, mergulhar em quem ela é quando ninguém
está olhando, além da fachada controlada que ela tão cuidadosamente
construiu.
É um desejo que vai além do físico, uma necessidade de conhecer cada
detalhe oculto, cada camada e sombra que ela esconde do mundo. Tirar suas
máscaras e seus véus e desnudá-la só para mim.
Quero conhecê-la em toda sua profundidade, algo que nunca quis com
outra mulher.
Escrevo mais algumas linhas na proposta para o pai dela, ponderando
sobre o que dizer. Será que ela sequer se interessaria por mim?
Não sei, já que ela deve ter outros pretendentes muito melhores.
Vi o puto enfiando os olhos no decote dela e depois prendendo sua mão
sobre seu braço. Também reparei que ele conversou longamente com o pai
dela no casamento.
Sem falar que ainda peguei os dois no jardim e acho que mais um pouco
ele ia beijá-la!
Se ela se casasse com ele, seria uma princesa também, já que seria
mulher do filho do Sheik, e não teria que contribuir com dinheiro para o
reino El-Khoury, rico em petrodólares.
No entanto, tem várias e grandes desvantagens: a religião, o fato de que
podem se casar com várias esposas e ter um sem-número de amantes, sem
falar que podem se divorciar. O país é extremamente machista e as
mulheres não podem sair às ruas com os cabelos expostos, nem sem cobrir
suas roupas.
Não me parece uma união muito atraente para uma mulher ocidental.
Já nós, príncipes de Vinterland, não temos nenhum problema com
religião ou com roupas. Os atuais não têm amantes, sem falar que depois
que temos filhos somos obrigados a ficar casados para sempre, o que não
sei se é uma vantagem, porque vamos combinar, nem sempre o casamento
dá certo.
E isso é um problema para mim. Não o para sempre, mas filhos.
Não quero filhos.
Acho uma loucura e uma irresponsabilidade um adulto colocar uma
criança no mundo, sabendo que não vai poder dar a ela toda a proteção que
ela merece.
Meus dedos param de digitar, porque preciso pensar nessa cláusula com
cuidado.
Eu sei o que é ficar vulnerável, e a ideia de falhar com uma criança é
intolerável.
Penso em pedir ajuda a Magnus. Sei que ele não diria nada a ninguém.
Meu meio-irmão é um túmulo, mas não quero envolvê-lo.
É, eu sei, é quase uma falha de caráter essa minha dificuldade de pedir
ajuda e confiar nas pessoas, mas, enfim, o que eu posso fazer? Sou assim
mesmo, essa é a maneira que encontrei para sobreviver.
Minha boca quer beijar aqueles lábios macios de formato de coração,
chupar seus mamilos perfeitos, descobrir o sabor de sua boceta.
Minhas mãos querem mapear cada centímetro daquela pele de
porcelana. Meus ouvidos querem escutar seus suspiros, sussurros, gemidos
e gritos de prazer.
Tudo o que meu caralho, que está duro feito rocha desde que comecei a
pensar nela, quer é se afundar em cada buraco daquela mulher perfeita.
Gozar em sua boca, boceta, cu, peitos… sobre ela inteira.
Quero tomar posse de seu corpo todo e deixar minhas marcas bem
visíveis para mostrar para os outros machos que ela é minha.
Só minha.
Sim, estou obcecado.
Termino as alterações no contrato. Não mudei muita coisa: aumentei um
pouco o valor a ser dado a título de dote pelo Sr. Hardrada; retirei as
cláusulas de gravidez; troquei exploração de petróleo por pesquisa científica
da flora e fauna nativas do Ártico vinterlandês, algo que deve atrair
qualquer CEO de uma grande indústria farmacêutica, diminuí um pouco as
isenções tributárias, para ter margem para negociar.
Talvez Leif possa dar uma lida para ver se eu não estou comprometendo
demais o reino. Afinal, como ministro da saúde, laboratórios farmacêuticos
são da área dele. Ele teria uma visão mais clara sobre isso, mas algo me diz
que ele não vai aprovar. Ao menos, não totalmente.
Se vou fazer isso, vou fazer do meu jeito. Fecho o rascunho do contrato,
anexo ao e-mail e redijo um texto cuidadoso, formal, mas bem meloso, para
o homem pedindo a mão da filha dele em casamento.
O celular vibra e na tela está a resposta da minha secretária com o
endereço eletrônico.
Minha mente vagueia enquanto encaro a tela do laptop, sentindo o peso
da decisão que estou prestes a tomar.
Por mais irracional que pareça, há algo inevitável neste impulso. Não se
trata apenas de uma estratégia política ou de uma simples atração física; é
uma necessidade inexplicável de tê-la ao meu lado.
Faço as últimas correções e releio, confirmando se está tudo correto.

Assunto: Proposta de Aliança Matrimonial


Caro Sr. Hardrada,
Espero que este o encontre em plena saúde e sucesso.
Com a devida deferência, manifesto meu interesse em iniciar
negociações formais para o matrimônio entre mim e Vossa ilustre
filha, Vasilisa Aleksandrovna Romanova Volkonskaya Hardrada.
Nesses últimos dias, tive o privilégio de conhecê-la e fiquei
profundamente impressionado com sua inteligência, graciosidade e
seu notável senso de dever. Acredito que uma união entre a Casa de
Gulbrandr e a Casa Romanov-Hardrada não apenas consolidaria
nossos laços dinásticos, mas também proporcionaria benefícios
substanciais em termos políticos e econômicos, tanto para Vossa
Família quanto para o Reino de Vinterland.
Sei que uma jovem com o prestígio e a inteligência de Vasilisa
merece uma negociação à altura, e, como Ministro da Economia e
Príncipe de Vinterland, estou pronto para garantir segurança e bem-
estar de maneira adequada.
Proponho realizar o casamento em um mês, no máximo dois,
conforme o andamento das negociações e Vossas disponibilidades.
Essa proposta é válida por vinte e quatro horas.
Aguardo com expectativa a honra de Vossa resposta e permaneço
à disposição para discutir os termos mais detalhadamente.
Receba os meus mais elevados cumprimentos e votos de estima.
Respeitosamente,
Lars Haraldson, Princeps

Parece loucura o prazo de vinte e quatro horas? Não é. Essas tratativas


precisam começar já e este casamento deve acontecer o mais breve
possível.
Quanto mais tempo eu levar para comprometer a moça, mais espaço
dou para que outros pretendentes – como aquele pretensioso do Jamal –
tentem conquistá-la. Não posso, não vou permitir isso.
Também não quero envolver nenhum dos meus irmãos nisso, preciso
manter estrito controle sobre essa negociação. Isso é entre mim, Vasilisa,
seu pai e, em última instância, Thorvald, que precisa dar sua autorização e
assinar o contrato para que nos casemos.
Se for preciso aceitar quaisquer condições que o pai dela imponha para
isso, falo direto com o rei.
Aperto o enviar. O e-mail some da caixa de entrada e aparece na de
saída.
É claro que não significa que será fácil, mas pelo menos agora há uma
abertura e um caminho.
Jarl Hardrada não é o tipo de homem que recusa uma oferta vantajosa, e
sei que ele verá que todas as vantagens tributárias estão nas entrelinhas da
minha proposta.
Fecho o computador com um clique.
O som me soa definitivo, como algemas se fechando ao redor dos meus
pulsos.
Deixo os dedos repousarem por um momento sobre a superfície fria da
mesa e a tensão se dissipa do meu corpo.
Levanto-me da cadeira e desço para tomar café, estranhamente calmo,
como se o fato de estar aprisionado fosse bom.
Talvez seja porque, enquanto tomava banho, um desejo fervente
começou a arder em meu peito e se transferiu para o meu corpo. Tão forte
que precisei bater uma punheta. É claro que quero foder a moça, mas não é
só isso.
Quero destruir essa muralha que ela construiu ao redor de si mesma.
Roubá-la de dentro desse quarto escuro onde ela está aprisionada e salvá-la.
Sei que este desejo é perigoso, que mexer com os sentimentos dela pode
me deixar ainda mais exposto.
Mas será que foi ela que se aprisionou?
Se foi ela mesma, entendo a necessidade. Mostrar-se para os outros e
para o mundo é assustador. A ideia de intimidade e relacionamento também
me assusta e podemos procurar juntos a chave.
Será que poderei me abrir algum dia?
Ou foi o pai?
Porque se foi pai dela, quero ser eu a libertá-la e esfregar na cara do
filho da puta.
Montado em um cavalo negro, vou ser o cavalheiro maldito dela.
Arrombar a porra da porta da torre amaldiçoada, tirá-la de lá, e trazê-la para
dentro do meu castelo, para usufruir sozinho dos raios da sua lua porque
não há calor, nem luz em meu universo.
Se tiver que mantê-la cativa, que seja.
O caminho para a suíte designada para meu pai e Melissa no Palácio
Frostholm me parece interminável.
Ao contrário dos pais de Tatyana, quando ainda era noiva, que
preferiram ficar num hotel, meu pai e minha madrasta aceitaram
imediatamente o convite para se hospedar aqui. Claro que Jarl Hardrada não
perderia a oportunidade de ficar mais perto dos príncipes e prezar da
intimidade da realeza, mesmo que o rei e a rainha não habitem mais o
palácio principal e sim o Palais des Amours i, um pequeno palacete,
acessível a pé ou por um túnel subterrâneo.
Quase faço meia-volta e retorno ao meu quarto.
Não gostei do pressentimento que tive ao ver a luz piscando no telefone
da mesinha de cabeceira do meu quarto quando saí do banho e a sensação
piorou quando ouvi o recado pedindo que, antes de descer para o café da
manhã, fosse ao seu quarto.
Respiro fundo, tentando acalmar o turbilhão de pensamentos que
atravessa minha mente. Seja lá o que for que ele deseje conversar, não será
agradável. Bato na porta.
Quase que imediatamente, Melissa abre.
— Entre, seu pai está lhe esperando.
A opulência da antessala, com seus móveis antigos e cortinas pesadas,
só aumenta minha ansiedade.
O sol da manhã inunda o ambiente com uma luz suave, quase
aconchegante, o que contrasta violentamente com o nó de tensão que se
forma em meu estômago.
— Bom dia, Vasilisa querida — diz ele, virando-se da janela, onde
estava admirando a paisagem.
No rosto, tem um sorriso aberto, carinhoso, que eu vi muitas vezes se
apagar rapidamente.
— Bom dia, pai.
Meu pai é um homem grande, imponente, bonito até para quem gosta de
loiros, e sua figura se destaca ainda mais no ambiente luxuoso.
— Sente-se, por favor.
Reteso, chego a dar um passo para longe do sofá, mas obedeço, com os
dentes apertados e a respiração rasa.
O estofado macio da cadeira não faz nada para aliviar a sensação de
prisão que me envolve.
— Sua madrasta me disse algo que me preocupou — continua, o tom
suave. — Ela acha que você… bom, que você pode estar confusa, talvez
achando que é diferente. Mas sei que isso não é verdade.
Melissa, sempre metendo o nariz onde não deve. Meu corpo enrijece,
mas me mantenho quieta.
— Confusa? — pergunto, porque não sei a que ele se refere e quando
ele começa macio assim, fico até com medo.
— Sua madrasta falou comigo sobre essa bobagem de… — faz uma
pausa, como se as palavras lhe causassem repulsa —, você não se interessa
por casamento e que é lésbica.
Se sou, isso não deveria ser problema de ninguém.
Não sei se é porque tenho ciúmes dela e da posição que galgou ao se
casar com meu pai, mas acho que ela está sempre em busca de algo para se
beneficiar. A mentira que falei ontem, de forma despreocupada, foi
suficiente para que ela o envenenasse contra mim. Ou será que é
preocupação mesmo?
— Pai, é que…
Mas as palavras ficam presas na garganta, porque o que me impede de
dizer alguma coisa não é minha incerteza, é a falta de vontade de confrontar
meu pai e Melissa logo agora de manhã.
Minha personalidade vive uma eterna luta entre a resistência, a
resiliência e a submissão.
— Eu sei, eu sei — diz ele, levantando-se e caminhando até mim com
uma expressão de preocupação, que recentemente passei a duvidar se é
mesmo verdadeira. — E é por isso que estou aqui para te ajudar. Sei que o
casamento pode parecer assustador, mas é o melhor para você, querida.
Jamal… ou talvez Lars… Eles são boas opções.
Meus dentes se apertam involuntariamente ao ouvir isso.
Não são opções, na verdade. São predadores em busca de uma presa.
Não importa quem eu escolha, todos querem a mesma coisa: me controlar.
— Pai, já disse que não quero me casar. Posso ficar solteira para
sempre. Ou até ir para um convento, se for necessário.
Minha voz soa cansada, um tanto derrotada até, o que não é a maneira
mais inteligente de lidar com ele. Se é que tem alguma maneira de lidar
com meu pai. Já tentei todas e nenhuma deu certo.
Estou cansada de brigar. Cansada de tentar me encaixar no que ele quer.
Já não sei mais o que fazer para caber na caixa que ele criou para mim e que
não é minha.
Por um momento, acho que vejo gelo em seus olhos azuis, como se eu
estivesse sendo ridícula, como se eu tivesse falado a coisa mais absurda do
mundo.
— Minha filha querida, recebi outro pedido de casamento e vou entrar
em tratativas. Estou te dando a chance de escolher: Lars ou Jamal.
— Nenhum dos dois — insisto.
Seu sorriso desaparece e ele se inclina para mim, segurando minhas
mãos entre as dele. As mãos são quentes, carinhosas, mas cada vez que ele
me toca dessa forma, tremo.
— Vasilisa, você está cometendo um grande erro — murmura, o tom
condescendente, paternalista. — Quem iria querer se casar com você, se
soubesse do seu passado, da sua saúde, enfim, de tudo sobre você?
Meu coração dispara com a menção. — Mas é isso, pai…
— Mas Jamal é capaz de entender, querido — diz Melissa, chegando
mais para perto.
— Exato, Jamal é capaz de ser compreensivo, porque você seria uma
das quatro esposas… — Ele aperta minhas mãos um pouco mais. — Acho
que Lars também. São bons homens e aceitariam você, do jeito que é.
Do jeito que sou.
Tenho vontade de chorar. De fugir, desaparecer, deixar tudo para trás e
nunca mais voltar.
Porque ouvi isso a vida inteira e me sinto quebrada.
Ou talvez, eu devesse agir como louca. Gritar e quebrar algo. Quebrar
tudo, num ataque de fúria.
Ou então, também tenho vontade de me levantar e falar em alto e bom
som que sou perfeita como sou. Que tenho a capacidade de fazer minhas
próprias escolhas… De confrontar todos e exigir respeito. Porque, se sou
assim, é assim que eu sou, e daí? Mas… De que jeito eu sou, exatamente?
— Você não pode fazer isso comigo — digo, enquanto a raiva começa a
borbulhar dentro de mim. — Não vou me submeter a você, a Lars, Jamal ou
qualquer outro homem que me objetifique e queira me usar como moeda de
troca em uma transação comercial.
— Jarl… — Melissa coloca a mão no ombro dele, talvez o avisando que
não está em casa e que aqui podem escutar meus gritos.
— Gostaria, preferiria que fosse Jamal, mas pode ser Lars também —
diz ele, soltando minhas mãos e se afastando até a janela, de novo.
— Sou sua filha, uma mulher independente e livre. Não posso ser
obrigada a me casar.
— Querida… — Ele sorri. — Não pode ser obrigada a se casar, claro
que não. Por isso, estou lhe dando duas opções. Mas se não escolher,
filhinha, se você continuar recusando, se você não fizer o que é certo, eu…
bem, você sabe… como seu curador e maior interessado em seu bem-estar e
futuro, posso ser forçado a tomar medidas drásticas que não gostaria de
tomar…
Ele diz isso de uma maneira tão suave, com tanto carinho, e não
termina, deixando a ameaça no ar. Muito mais eficaz do que se dissesse o
que vai fazer, e me lembra que ele tem total poder sobre minha vida e pode
fazer comigo o que quiser.
Essa escolha que ele está me dando é ilusória.
Aproxima-se, sua figura imponente me fazendo sentir uma garotinha de
novo, indefesa e presa. — Então, meu amor, quem você prefere?
Minhas mãos se apertam no colo e tento não demonstrar fraqueza, mas
estou tremendo. O medo e a raiva se misturam, me deixando tonta.
Não posso vencer esse jogo. Ele não recuará até que eu ceda e talvez o
casamento seja uma escapatória.
— Eu…
As palavras se perdem na minha mente, o nome fica preso na minha
garganta.
— Você será parte da realeza novamente — relembra, sua voz mais
suave ainda, ao se sentar no sofá —, como sua mãe era.
Trazer minha mãe à baila é maldade.
Não sou nada além de uma moeda de troca. No entanto, minha recusa
pode ter consequências graves. Muito graves.
— Eu… — engasgo nas palavras. — Posso decidir mais tarde?
Quero gritar, quero sair correndo e nunca mais voltar. Mas as paredes
parecem se fechar ao meu redor.
— Depois de conversar com os dois novamente?
— Claro, é uma boa ideia — diz Melissa, que solta o ar que estava
prendendo. — Não acha, Jarl?
Nem reparei que ela estava tão tensa.
O ar da suíte parece pesar sobre meus ombros, enquanto tento processar
tudo isso. Olho para meu pai, mas não consigo ver o homem que deveria
me proteger. Tudo o que vejo é uma ameaça. Tento não transparecer o
quanto o odeio por me colocar nessa posição, por me reduzir a uma
marionete, um joguete nas mãos dele e destes dois homens que mal me
conhecem.
Ou será que sou louca e doente mesmo, como os médicos sempre
disseram? Ou melhor, atestam em seus laudos?
— Pense com calma. Faça a melhor escolha. — Sorri, um sorriso calmo
e cheio de ternura. — E lembre-se que acho que Jamal vai ser um melhor
marido para você.
— Vou me lembrar, pai — respondo. — Podemos descer para o café?
São quase nove e meia. Yasmin planejou entretenimentos para antes do
almoço e não quero perder.
— Claro, claro, vamos.
Ele vai em direção à porta e abre e espera que Melissa passe antes de
me dizer: — Espero sua resposta antes das seis da tarde de hoje.
— Sim, senhor — murmuro, sem olhar em seus olhos, porque não quero
que ele veja a raiva que tenho certeza que está estampada nos meus.
Desço as escadas em silêncio, fingindo que presto atenção às esculturas
gigantes nos nichos que representam deuses nórdicos.
Meu pai sabe que meu maior medo é perder a pouca liberdade que ele
me concede, porque, na verdade, não sou livre, nem independente, nem
nada.
Sou um engodo. Uma criança, adolescente, jovem adulta que foi
diversas vezes confinada e declarada incapaz pela justiça, apesar de não me
sentir assim.
É normal, dizem os psiquiatras e psicólogos. É por isso que sou… bem,
louca.
Respiro fundo, tentando conter a raiva. Mas o medo, a maldita sensação
de impotência, ainda é maior do que minha vontade de lutar. A verdade é
que, apesar de tudo, não sei o que fazer. Não sei como escapar.
O saguão está fervilhando de gente, convidados da festa de ontem que
estão hospedados no palácio e outros que vieram do exterior para o
casamento.
Alguns conversam animadamente, outros se dirigem ao salão para o
café da manhã, de onde alguns saem.
Sinto-me estranha no meio de tanta gente desconhecida.
Jamal, junto com os irmãos, estão saindo do salão, rindo alto e, por mais
que eu tente me esconder atrás de meu pai, ele me vê e logo acena.
Seu sorriso se alarga.
Os quatro irmãos se aproximam e ficam me esperando na base da
escada.
— Aproveite e converse com ele, Vasya — murmura meu pai.
Os homens trocam cumprimentos rápidos e meu pai e Melissa saem,
nos deixando a sós. Bem, não tanto a sós, já que os irmãos estão a nossa
volta.
— Vasilisa, bom dia, que bom vê-la já tão cedo — diz Jamal, com um
tom que me faz estremecer. — Dormiu bem?
— Sim, obrigada — respondo. — E você?
— Como um bebê.
Ele ri e os irmãos o acompanham, o que me deixa desconfortável,
porque é óbvio que fizeram alguma noitada, que deve ter envolvido sexo, e
que estão rindo disso.
— Que bom — digo, chateada, mas com um sorriso.
Viro-me para ir tomar café, quando ele pega no meu braço.
— Venha nos acompanhar em um passeio pelo jardim.
Não é um pedido, mas mesmo assim respondo: — Não, obrigada, vou
tomar o café da manhã.
— Não seja tola, venha conosco — insiste, puxando meu braço. —
Você pode tomar café depois.
— Jamal, são quase dez horas — digo, tentando me soltar. — Ainda
não…
— Ora, Vasilisa, não seja esfomeada — reclama ele. — Seu estômago
pode esperar mais meia…
— Não, não pode — interrompe Lars, se postando bem na nossa frente.
— Solte o braço dela. Agora.
— Não — afirma Jamal em um tom mais alto.
Aperta meu braço e, com um solavanco, me joga para trás.
Caio nos braços de um dos irmãos, que me segura como se fosse me
manter presa, até que Jamal decida o que quer fazer comigo.
Subitamente, o vestíbulo se cobre de um silêncio sepulcral e tudo o que
eu quero é sumir.
Meu pai se vira e, quando vê o que está acontecendo, um sorriso lento
se abre em seus lábios e ele cochicha algo no ouvido de Melissa. Devagar,
ele vem para perto querendo manter a visão dos dois homens que se
enfrentam por mim. Posso ver pela sua expressão que está satisfeito, mas
também preocupado.
Eu não estaria agoniada se ambos não estivessem com as expressões e
os punhos fechados e os ombros tensionados. Mais parecem touros raivosos
escavando o chão que pavões mostrando as caudas em leque.
— Vou levar Vasya para um passeio no jardim.
— Você está desrespeitando a Casa de Gulbrandr — diz Lars, os olhos
azuis faiscando de raiva, dando um passo à frente. — Quer mesmo
desrespeitar a casa que é agora de sua irmã assim?!
— Ela é só uma mulher. Deixei que você nos interrompesse ontem —
continua Jamal —, mas não vou deixar que nos interrompa uma segunda
vez.
— Não é uma questão de deixar — diz Lars, a voz autoritária ressoando
no ar. — Não foi um pedido, foi uma ordem.
O outro joga a cabeça para trás e ri. — Você não tem autoridade sobre
mim. Tenho imunidade ii.
— Com o devido perdão, Vossa Alteza Real, mas o senhor está
equivocado — diz outro dos príncipes chegando por trás de Lars, acho que
o nome deste é Magnus. — De acordo com uma regra bem estabelecida de
Direito Internacional, a imunidade é apenas concedida a seu pai, como
chefe de estado, e claro aos diplomatas de seu país, o que não é Vosso iii
caso.
A cara de tacho de Jamal é impagável. Juro que dava tudo para vê-lo
sair daqui carregado, algemado, amarrado… sei lá… humilhado de alguma
maneira.
Não que eu seja má, mas vamos combinar que ele merece.
— E corrija-me caso eu esteja enganado, Magnus — diz outra voz
masculina, agora por trás do grupinho dos irmãos —, essa tal imunidade é
extensiva apenas a atos que se referem ao livre exercício das funções de
governante, ou seja, para tutelar os interesses do Estado que ele governa,
não para manter moças seguras contra suas vontades.
As mãos que estão me agarrando me soltam na hora e viro-me para ver
o príncipe mais novo, Leif, atrás de nós.
Parece que é orquestrado: ele dá um passo à frente e os meios-irmãos de
Tatyana dão um passo para trás.
Ele estende a mão para mim e diz, baixo, mas firme: — Srta. Hardrada,
venha.
Não espero um segundo convite e saio do meio dos irmãos de Tatyana,
ficando ao lado do príncipe, mas só quero que tudo acabe logo e que as
pessoas se dispersem.
Quem salva a situação é Yasmin.
— Vasya — chama ela alto.
Vem correndo do salão, junto com Charlotte, Emily e Catarina.
Passa o braço pelo meu e diz: — Estava te esperando para começar as
fofocas. Venha.
As meninas fazem uma rodinha à minha volta e começam a falar sobre a
festa de ontem, como se nada estivesse acontecendo, e me levam em
direção ao salão, onde nos sentamos em uma das mesas redondas.
Fico aliviada e respiro mais facilmente quando vejo os três príncipes
entrarem logo após nós cinco e irem direto para o buffet se servir.
Pelo jeito, o mal-estar foi resolvido rápido.
Assim que os garçons se afastam, Yasmin pergunta baixinho: — O que
foi aquilo?
— Muitos egos masculinos exacerbados no mesmo ambiente. O irmão
de Tatyana e seu cunhado resolveram que me querem e como se eu fosse o
último pedaço de carne no açougue, resolveram me disputar — digo, depois
de tomar um gole bem grande do chocolate quente para esquentar meu
corpo que parece gelado.
— Achei que iam chegar aos tapas — diz Emily.
— Você quer dizer socos — corrige Catarina. — Os punhos estavam
cerrados.
— Ai! Queria ver quem é que ia ganhar: os loiros ou os morenos —
suspira Charlotte.
— Credo! — exclamo, porque foi por pouco e detesto briga. —
Podemos mudar de assunto?
Yasmin começa a contar sobre a gravidez e logo elas esquecem o show
lá fora, o que dou graças a Deus. Mas, pelos olhares curiosos dirigidos à
nossa mesa e sussurros não tão baixos que alguns convidados sem noção
cochicham por detrás das mãos, a fofoca pelo jeito vai continuar por um
bom tempo.
Suspiro.
Detesto, odeio mesmo, ser o centro das atenções.
Finalmente, após tantas comemorações, o palácio respira tranquilo.
Os murmúrios de conversas, risadas e Champanhe borbulhando
praticamente terminou.
A maioria dos convidados já foi embora ou se retirou para seus
aposentos para dormir. O silêncio que agora domina o Frostholm é um
alívio, mas não o suficiente para acalmar o que ferve dentro de mim.
Recusei o convite de Yasmin para o jantar íntimo que ela planejou com
as amigas. Não tinha estômago para isso. Não depois do que aconteceu
mais cedo.
Para começar, Jarl e Melissa estão na minha lista de pessoas banidas.
A imagem de Jamal puxando Vasilisa, seu sorriso presunçoso, a maneira
como ele a tratou, como se ela fosse um brinquedo, ainda me incomoda –
atormenta, talvez fosse a palavra a ser usada –, mais do que gostaria de
admitir e não quero que isso transpareça para meus irmãos.
Muito menos para ela ou para o pai e madrasta dela.
Na verdade, estou irritado comigo mesmo por sentir isso. Não sei o que
me deixou mais furioso: ver Jamal forçar a mão sobre ela ou observar o pai
dela não tomar uma atitude.
Como ele pôde ser tão passivo diante do que os caras estavam fazendo
com a moça?
Jarl deveria proteger a filha e limitou-se a voltar para perto, e percebi
seu sorriso de satisfação, apesar de discreto, como se gostasse de assistir a
dois homens disputando sua filha. Como se ela fosse uma peça em uma
negociação. E talvez, no fundo, seja exatamente isso, porque parece que
para ele tudo é uma questão de poder, de controle. De preço.
Não entendo esse tipo de homem que trata as mulheres como se fossem
propriedades ou servissem apenas para satisfazer seus caprichos.
Pior, são as mulheres que não defendem as outras, como a madrasta.
Eu deveria estar lidando com isso de forma mais racional, mais fria.
Não é nada que não tenha visto antes, afinal.
Isso só reforça minha determinação em proteger Vasilisa, mesmo que
ela ainda não saiba disso. Porque essa moça despertou algo em mim que
ainda não consigo nomear e isso me deixa desestabilizado.
Por isso, aqui estou eu, sozinho, montando guarda nos jardins,
esperando que eles voltem do maldito jantar para que possa ir até a suíte
dela, bater na porta da antessala e perguntar se ela quer conversar.
Ao mesmo tempo, eu me pergunto o que diabos estou fazendo.
Desde quando eu, Lars Haraldson, o homem que sempre controlou cada
aspecto de sua vida com precisão, estou tão obcecado por uma mulher?
A resposta do pai dela ao meu e-mail foi vaga. Demasiado vaga. Cheia
de formalidades e evasivas, mencionando discutir opções e avaliar o
cenário, mas não se comprometeu com nada concreto.
Isso me irrita e me diz que há outros pretendentes. Possivelmente o
próprio filho da puta do Jamal. Talvez já tenha feito seu lance, e a julgar
pela maneira como agiu mais cedo, acha que está ganhando.
Não que me considere completamente livre de culpa. Estou, afinal,
fazendo uma proposta comercial, oferecendo minha coroa e favores
tributários em troca de um dote que beneficiará Vinterland. Mas jamais, em
tempo algum, trataria Vasilisa como um objeto.
Ela merece ser respeitada e valorizada.
Inspiro profundamente o ar noturno frio dos jardins, tentando acalmar a
mente. Pensar de maneira lógica sempre me trouxe paz, mas essa situação
me tira do prumo.
Cada vez que penso nela, algo em mim se agita. Preciso dessa mulher.
Não apenas como parte de um acordo, mas por algo mais.
Se ela disser sim ao meu pedido, o jogo muda. Se não… Bom, eu não
sou homem de aceitar um não sem lutar.
O vento sopra cortante, talvez prometendo uma neve tardia, mesmo no
começo da primavera, mas não me incomoda. Gosto das temperaturas
geladas de Vinterland.
Pelo janelão que dá para o jardim, posso ver a movimentação na sala de
estar de Yasmin e Thorvald, que me avisa que eles finalmente estão se
despedindo.
Volto para o carrinho de golfe, que está estacionado do outro lado do
bosque, e dirijo em direção ao palácio. Não há perigo de nos encontrarmos,
já que eles seguirão pela passagem subterrânea que conecta o pequeno
Palais des Amours ao Palácio Frostholm.
Acima de tudo, preciso de tempo para organizar meus pensamentos
antes de ver Vasilisa.
Estaciono na garagem dos fundos e subo rapidamente as escadas. O
silêncio é reconfortante, a única coisa que consigo controlar no momento.
Entro na antessala do quarto vazio ao lado do de Vasilisa, deixando a porta
entreaberta. Encosto na parede e tento colocar as coisas em perspectiva.
Uma parte de mim sabe que eu deveria agir de forma mais racional, mas
há algo sobre ela que me tira do prumo. Algo que não consigo ignorar.
Menos de cinco minutos se passam quando ouço um ruído no corredor.
Vozes. Passos que se aproximam.
Coloco o ouvido na fresta para ouvir melhor porque nessas construções
antigas as paredes são grossas.
— … acho que foi um erro ter ficado tanto tempo.
Ouço Vasilisa dizer, a voz baixa, quase como se estivesse confessando
para si mesma. Ela soa incerta, confusa até, como se estivesse questionando
cada segundo. Por que ela está pensando isso? O que a incomoda?
O que aconteceu entre ontem e agora?
— Bobagem, minha filha — retruca o pai com o tom preocupado que
usa quando está perto dela. É um dissimulado filho da puta, isso sim. —
Este casamento vai levar ao seu e à nossa felicidade. Você vai ver. Boa
noite, meu benzinho.
— Boa noite, papai — responde ela. — Boa noite, Melissa.
— Boa noite, querida — diz a madrasta. — Durma com os anjos.
O tom é polido, mas falso como o diabo. Interesseira e calculista essa aí.
Uma fechadura faz um clique suave ao se fechar.
— Um final de semana bem lucrativo, hein, querido? — escuto Melissa
comentar com malícia, confirmando minhas suspeitas.
— Ainda não, mas tem grandes possibilidades de sucesso — responde
ele, rindo baixinho, satisfeito. — Temos muitas peças no tabuleiro.
As vozes vão ficando mais fracas, pois eles estão andando para a outra
ponta da ala, onde ficam as suítes maiores. Até que ficam ininteligíveis e
então inaudíveis.
A ideia de que Jamal ainda pode estar sendo considerado me enfurece,
mas também me move à ação.
Outra porta de quarto se fecha.
Espero cinco minutos. Cinco minutos de pura tensão, enquanto aguardo
que a possibilidade de esbarrar com o pai dela seja zero. Assim que o tempo
passa, saio dos meus aposentos e caminho em direção à suíte dela.
Bato na porta que leva ao quarto dela. Sim, sei que é ousado, mas ir
para a antessala seria inútil. Ela provavelmente não ouviria ou, pior, o pai e
a madrasta poderiam interceptar a visita.
Preciso falar com ela. Agora.
Uma fresta se abre, revelando o rosto de Vasilisa.
— Lars…? — sussurra, surpresa, os olhos verdes arregalados.
— Posso entrar? — pergunto, a voz baixa, mais firme.
— A essa hora? — retruca, com um toque de nervosismo.
— Gostaria de conversar com você — pressiono.
— Eu… já estou vestida para dormir.
Levanto uma sobrancelha.
O rosto fica rosado, como se só então se desse conta de que já a vi quase
nua. Abaixa os olhos por um segundo. Então, me encara, em silêncio.
Espero enquanto toma sua decisão.
Finalmente, diz: — Tudo bem, pode entrar.
Ela some e a abertura se alarga o suficiente para que eu possa passar.
Dizer que ela está vestida só pode ser sacanagem. A mulher está
praticamente nua.
O robe longo é de renda prata e de um tecido diáfano azul e cai sobre
uma camisola curta combinando. Com alças fininhas que desafiam a
gravidade ao segurar os seios pesados, termina logo depois do sexo,
esconde pouco da pele pálida e perfeita e me mostra que, por baixo, ela está
nua. A diaba dorme sem calcinha!
Com a luz do abajur iluminando-a por trás, fica tudo ainda mais sedutor.
Meu pau reage na mesma hora e quase esqueço a porta entreaberta, mas
a tempo lembro-me de fechá-la e passar a chave na fechadura.
Quando me viro de volta para ela, mantenho meus olhos em seu rosto,
tentando controlar os pensamentos e a luxúria que toma meu corpo. Inspiro
profundamente o aroma potente dela que preenche o ambiente: floral e
adocicado. Como ela.
Eu deveria dar meia-volta e sair daqui. Deveria voltar para o meu quarto
e não ser tão egoísta, mas essa flor delicada, linda, quase que exótica, não
deveria ter brotado do cimento rachado e sujo que é minha vida.
Frágil, mas resiliente, ela é um sopro de beleza em meio à sujeira e
combina perfeitamente com o quarto luxuoso, com móveis forrados com
seda dourada e tapeçarias que cobrem as paredes.
Caminho até o sofá ao lado da lareira acesa, o tipo de lugar que convida
a uma leitura antes de dormir ou à intimidade e me sento, indicando para
fazer o mesmo.
Vasilisa se acomoda, mantendo uma pequena distância entre nós, as
mãos descansando no colo, escondendo o sexo quase todo depilado, e
aguarda, dócil e submissa, sem saber que isso me deixa ainda mais
excitado.
Não posso contar a ela ainda, sob pena de assustá-la, mas controlar e
dominar é o que faço de melhor.
Ser assim é o que me define. É a maneira que encontrei para sobreviver
a todas as perdas e ao caos que existia dentro de mim. O controle é mais
importante do que qualquer coisa.
Foi o que pensei até hoje. Mas não é, porque também tenho vontades e
necessidades incontroláveis. E, por mais que não esteja tudo bem, é melhor
aceitar isso do que me tornar um monstro.
Porque naquela noite horrível aprendi que os seres humanos não
conseguem controlar seus próprios desejos simplesmente porque não os
aceitam.
O segredo para não se tornar um monstro é aceitar que não é possível se
afastar de todos os pecados para sempre. Para ser disciplinado e controlado,
é preciso saber que se é falível e ter uma válvula de escape para extravasar
os desejos. Não que aos dez anos eu tenha entendido aquilo, mas ao longo
de anos de terapia, sim.
Mas agora preciso dela sob meu controle.
Ela, que deveria ser apenas mais um contrato, uma mulher qualquer
com quem deveria me casar para ajudar Vinterland a prosperar, nada além
de um peão no jogo complicado da política.
Não sei, tenho a impressão de que Vasilisa vê a verdade escondida sob
meus sorrisos. Que, mesmo sem saber, pode me dar tudo o que preciso.
Talvez, não agora, mas em breve.
Quando ela disser sim. Ou melhor, o pai dela disser sim.
Inclino-me um pouco mais para a frente, meus olhos fixos nos dela.
— Enviei uma proposta de casamento ao seu pai, mas gostaria de fazer
o pedido a você, mesmo sabendo que você não pode me dar uma resposta
agora, gostaria de ter a honra de ser seu marido. — Aproximo-me mais um
pouco, minha mão estendendo-se para tocar suavemente seu rosto. —
Quero você. Não só por ser linda, mas porque tem algo que me atrai, que
me chama.
Pauso por um segundo, observando sua reação, mas além do fato de que
sua respiração ficou mais rápida, ela permanece quieta.
— É difícil ficar perto de você sem querer saber mais, sem querer te
tocar — sussurro, e enfio a mão em seus cabelos, segurando-a pela nuca
com força. — Pior que difícil, impossível.
Quando Vasilisa não se afasta do meu toque, ordeno: — Olhe para mim.
Então, ela levanta os olhos para os meus e vejo desejo intenso ali. Sem
esperar mais, fecho o espaço entre nós e a beijo.
Seus lábios são suaves, hesitantes, no início, mas, como na Galeria de
Retratos, permite-se ser levada, entrega-se e retribui, tímida no começo,
mas logo sinto a urgência surgir quando ela sobe em meu colo.
Não sou muito fã de beijos. Na verdade, raramente beijo uma mulher
por muito tempo na foda. É íntimo demais para meu gosto e não é uma das
estimulações de que elas gostam mais na cama, mas com Vasilisa? Acho
que posso beijá-la a noite toda.
— Quero que você se entregue para mim — confesso, desfazendo o
laço do seu robe.
Lentamente, subo a outra mão por sua perna, o polegar firme no interior
de sua coxa, em uma tortura que a faz rebolar sobre meu pau duro. Acaricio
sua virilha. Seus grandes lábios, os pequenos. Passo a ponta do dedo sobre
sua fenda pequenina, que está muito encharcada, e subo até o clitóris.
— Quero fazer coisas com você… — murmuro, puxando seus cabelos
com força, um aviso do que está por vir, mas ela não reclama. Apenas
arqueia o torso, oferecendo-se, e geme baixinho na minha boca.
— Me oferece seu peito — peço e ela obedece na hora.
A camisolinha é tão fina e delicada que os bicos parecem furar o tecido
e não resisto a abocanhar um e chupá-lo, com força.
Puxo o biquinho com meus dentes e mordo-o.
O jeito que sua cabeça cai para trás e ela geme baixinho me enlouquece.
Até só preliminares com ela são melhores e mais quentes do que uma
foda com qualquer outra mulher.
Faço o mesmo com o outro e ela enfia as unhas nos meus ombros,
desesperada, e se arrasta sobre meu pau, mas seguro seu quadril firme, para
que não goze com a estimulação.
Porque hoje quero fodê-la.
Eu preciso dela enlouquecida e alucinada.
Mais que a ouvi-la suspirar e gemer, quero ouvi-la dizer meu nome.
Gritar. Implorar por mim.
Eu a pego pela cintura e levanto-me com ela. Vasilisa se assusta por um
momento, mas então passa as pernas à volta dos meus quadris.
Levo-a até a cama e a coloco deitada na transversal, ajoelhando-me no
chão e lambo a bocetinha rosada.
— Porra, que delícia!
Ela arqueia as costas, arfa, agarra meus cabelos.
A respiração ofegante fica mais pesada quando fecho meus lábios à
volta de seu clitóris e chupo, de leve e com força, alternando, tirando
suspiros e gemidos dela. Deslizo um dedo dentro do canal apertado, que já
pulsa.
Quando levanto meus olhos, vejo que ela está mordendo o lábio,
apertando um mamilo entre os dedos.
Caralho!
O tesão me faz chupá-la mais forte e meter um segundo dedo na fenda
apertadinha, preparando-a para mim.
— Agora, goza, gostosa.
Seguro seu quadril com uma mão e ataco-a sem pena com lábios, língua
e dedos, ao mesmo tempo.
Ela tenta escapar, mas convulsiona na cama e grita. Seu torso faz um
arco completo e ela goza na minha boca e cai na cama, soluçando.
Meus músculos estão retesados, meu pau dolorido, pelo orgasmo que
quero encontrar dentro de sua boceta apertada, quente e molhada.
Arranco minha camisa e moletom, já colocando a camisinha que estava
no bolso.
Deito-me na cama com ela em meus braços e espero que se recupere,
acariciando seus cabelos.
— Isso foi lindo.
Ela abre os olhos e os verdes estão mais escuros e inundados de desejo.
Por mim.
Gosto do jeito que ela fica toda rosada sob meu toque. Da maneira que
sua respiração se descontrola ainda mais, que a veia no seu pescoço pulsa,
contando-me que seu coração está disparado.
Ela me beija e meu corpo reclama que não gozou, mas ainda vou ter
tempo de meter fundo no seu corpo virgem, senti-la se abrindo para meu
caralho. De me banquetear com o som de seu prazer.
Seu joelho esbarra no meu pau e puxo meus quadris para trás.
Seus olhos se arregalam quando vê o tamanho e a grossura da minha
ereção, mas antes que ela se arrependa, viro-a de costas para mim e
encaixo-a na minha frente.
Deslizo meus lábios pelo seu pescoço degustando a pele macia das suas
costas.
— Vamos fazer isso devagar e sem pressa — sussurro em seu ouvido.
— Não vou durar muito, mas você vai gozar de novo.
Começo a sedução toda de novo e, quando a sinto relaxada, viro-a e
dedico-me aos seus seios.
As mãos dela vão para as minhas costas, mas as agarro e as coloco nos
meus ombros.
Estou completamente tomado pelo tesão, os sentidos alterados.
Ajoelho-me entre suas coxas, engancho seus joelhos nos meus braços, e
as levanto. Abro-a igual a uma flor, aponto o pau em sua entrada e esfrego-
me na sua umidade.
Fito seus olhos, indagando o que já sei: — Está pronta para mim?
Ela acena com a cabeça.
— Responde, Vasilisa, com palavras — peço. — Gosto de escutar
palavras. Gosto de saber que você está aqui. Comigo. Quero escutar o meu
nome nos seus lábios, saber que estou te dando prazer.
Quero fazer tudo com ela, subjugá-la ao meu desejo e fazê-la descobrir
o dela. Vê-la gemer e gritar meu nome. Gritar o nome dela e deixá-la saber
que é ela que me dá prazer.
— Sim, Lars, sim…
Arrasto meus dentes no mamilo, mordisco não tão de leve, e quando ela
geme, deslizo a cabeça do meu pau para dentro.
— Ah! — Ela tensiona todo o corpo. — Espera.
Merda.
— Relaxa — digo. — Não temos pressa.
Coloco uma de suas pernas no meu ombro e enfio a mão entre nós,
dedilhando seu clitóris.
Apoio meu antebraço na cama e com a outra mão seguro uma das suas.
— Isso, meu bem, isso — murmuro, persuadindo-a a abrir-se mais para
mim. — Olhe nos meus olhos. Pronta?
Ela geme, suspira, se contorce, rebola, mas pacientemente espero suas
palavras, enquanto a deixo ainda mais molhada. Porque ela tem que
aprender a verbalizar seu desejo, seu prazer.
— Vem, Lars, não aguento mais, por favor, vem…
— O que você quer? — incito.
— Você… — geme. — Quero mais.
— Mais o quê?
Ergue os quadris e finalmente confessa, ficando toda rosadinha: —
Quero você todo dentro de mim. Faz amor comigo.
Martelo-me dentro dela com força, tomando o que é meu.
Meu corpo inteiro estremece e o som que deixa meu peito é quase
animalesco porque o prazer é indescritível e delirante.
Não há nada gentil sobre este momento. É absolutamente intenso,
passional e brutal. E ela parece gostar disso, porque grita de prazer e dor e
crava as unhas nos meus ombros.
Estranhamente, também gosto. Gosto da falta de gentileza dela e de ter
suas marcas na minha pele.
Seu corpo delicado se expande além do limite para me receber e se
fecha como um punho quente e úmido em volta do meu membro. Preciso
fazer uma pausa para respirar e me controlar para não gozar feito um
adolescente.
Aproveito para beijar seus olhos, as duas lágrimas que escorreram e
depois sua boca.
— Já vai passar.
Mesmo quando a sinto relaxar um pouco e sua boceta gulosa me sugar,
não tenho pressa. Porque tenho medo de machucá-la com o tesão quase
irracional que corre nas minhas veias.
— Lars… eu…
Ela desce a mão para o clitóris, fecha os olhos e começa a se masturbar.
Puta que me pariu!
— Isso, meu bem, se solta. — Enfio meu pau com vontade, até o fundo
do corpo dela, ocupando-o. — Assim, toma todo meu caralho.
— Ai, Lars…
— Goza, vem.
Vejo suas carnes se abrindo para me acomodar por inteiro. Seus seios
pesados balançam a cada estocada funda, as pontas rosadas me provocando,
implorando pela minha boca, pelos meus dentes.
Não resisto e me deito por cima dela, tomando um seio na boca.
Meu corpo inteiro pulsa com o dela. A tensão entre nós aumenta, suas
pernas se contraem ao meu redor, tremendo, os quadris sobem
desgovernados, destruindo o meu controle.
Ela abre os olhos e me fita.
— Lars, eu…
Beijo-a, porque não preciso que me diga que vai gozar intensamente.
Estamos conectados, além das palavras.
Seus gemidos ficam cada vez mais altos e rápidos até que parecem se
unir em uma só palavra, que é uma mistura de meu nome e um longo grito
de prazer.
Um arrepio violento percorre minha espinha, enviando um raio direto
para meu saco.
Não quero que este momento tão especial termine, mas meus sentidos
estão sobrecarregados, e cedo. Gozo assim que uma última contração do
canal estreito dela me faz refém e tira um grunhido alto do meu peito.
A sensação que tenho é que sou levado daqui, deste quarto, deste reino,
pelo tornado que é essa moça delicada nos meus braços. É um rodopiar sem
fim, onde o corpo macio e perfumado dessa mulher é o começo e o fim de
tudo, onde só quero meter nela com mais força e me ancorar no seu útero,
quem sabe não voltar a tocar na terra nunca mais.
É êxtase, físico e espiritual.
A impressão que tenho é que estou flutuando, solto, perdido, e enquanto
os braços, as pernas e a boceta dela me segurarem, não preciso de mais
nada.
Não me preocupo em abafar meus gemidos animalescos enquanto fodo
seu corpo virgem e esporro tudo dentro dela.
Quando ela se empurra contra mim e geme uma última vez, depois
relaxa finalmente na cama, o encanto se quebra.
Fico enterrado ali por um longo minuto, aproveitando os últimos
tremores da bocetinha apertada, enquanto dedos macios alisam as minhas
costelas, meus ombros, se enfiam em meus cabelos. Acariciam-me com
doçura.
Respiro fundo, desacelerando as batidas do meu coração.
E, novamente, isso é estranho, mas delicioso. Tudo com essa moça é um
deleite.
Eu a chupo bem debaixo da sua orelha, marcando-a.
— Obrigado.
Ela estremece quando saio dela. Suspira.
Rolo para o lado. Apoio-me num cotovelo e inclino-me na sua direção.
Beijo-a. Beijo-a mais profundamente do que já beijei qualquer outra
mulher antes. Perco o ar entre seus lábios e não quero encontrá-lo
novamente.
Quando ela interrompe nossa conexão, sem fôlego, eu me levanto da
cama.
— Vou buscar uma toalha para você — digo e me dirijo para o
banheiro.
Quando vou tirar a camisinha, gelo.
Olho para o preservativo rasgado e um arrepio de pânico percorre minha
espinha.
Isso nunca aconteceu comigo antes.
Maldita sorte.
Por um momento, fico paralisado, o que é anormal. Sempre soube
controlar qualquer situação, qualquer imprevisto. Mas agora, há a
possibilidade de uma responsabilidade que nunca quis carregar.
O ar no banheiro parece mais pesado, como se o próprio ambiente
estivesse reagindo à minha súbita onda de ansiedade.
Respiro fundo, forçando-me a pensar de forma lógica, analítica. Jogo
fora a camisinha estourada, lavo-me e, quando vou pegar a toalha molhada
para ela, uma batidinha na porta, que deixei aberta, chama a minha atenção.
— Posso entrar? — pergunta Vasilisa.
Parece jovem demais, com os cabelos loiros bagunçados, caindo pelos
ombros, os olhos verdes ainda lânguidos.
— Claro.
— Gostaria de usar o banheiro — diz, com o cenho franzido. —
Estou… muito molhada.
Claro que está.
Se isso não tivesse acontecido comigo, seria risível.
Essa situação não é algo com que eu queira lidar, mas não tem jeito.
— O preservativo estourou.
— O quê? — Sua voz sai alta, nervosa, como se não acreditasse.
O que já me dá a resposta para a próxima pergunta que preciso fazer,
mas faço assim mesmo: — Vasilisa, você usa algum tipo de contraceptivo?
Pílula anticoncepcional? Ou algum outro método?
Ela se encosta na parede, pálida.
Vou até ela e coloco as mãos em seus ombros. — Está tudo bem. Vou
providenciar uma pílula do dia seguinte para você.
Ela levanta o olhar para mim e balança a cabeça. — Não, não posso
tomar nenhum tipo de anticoncepcional ou nada parecido.
Merda. Um imprevisto como este pode mudar tudo.
— Por quê?
— Fiz uma cirurgia cardíaca na infância — diz, a voz retornando ao
volume normal. Endireita-se, passa a mão nos cabelos, como se subitamente
estivesse se afastando emocionalmente da situação. — Tomo vários
remédios controlados incompatíveis com métodos anticoncepcionais
hormonais.
Cirurgia cardíaca?
Mas antes que eu possa perguntar alguma coisa, ela se afasta, vai para a
pia, pega uma escova de cabelo e começa a se pentear.
— Mas… devo ficar menstruada nos próximos dois ou três dias, então
acho que não temos com o que nos preocupar por enquanto, ainda mais que
você estava usando algo. — Ela me encara. — Preservativos têm… têm
algo dentro?
— Espermicida — esclareço. — A marca que eu uso tem, mas isso não
garante nada. A quantidade usada é mínima para não causar infertilidade a
longo prazo, então estamos na corda bamba. Não quero filhos, Vasilisa.
Nunca os quis.
— Não se preocupe, também não os quero — diz.
Prende os cabelos com um elástico, coloca a escova na pia e se vira para
mim.
Fita-me bem dentro dos olhos quando diz: — Vou te manter avisado…
Se algo der errado, decidimos o que fazer.
Solto o ar que estava prendendo sem me dar conta. Em parte, estou
aliviado com a resposta e com sua postura: prática e objetiva – exatamente
o que precisamos neste momento. Por outro lado, estranho este
comportamento um tanto frio para uma moça tão jovem.
— Ótimo — digo. — Não vai acontecer nada, mas na remota hipótese,
resolvemos juntos, da melhor maneira possível.
Faço um carinho em seu pescoço com o polegar, porque também não
quero que ela se sinta pressionada a nada.
Afinal, precisam de dois para fazer um filho.
— Você quer tomar um banho? — sugiro.
— Com você? — Ela sorri levemente. — Acho que não ficaria só no
banho.
Sorrio. — Claro que não. Vou te esperar na cama.
— Não demoro.
E ela não demora mesmo, e logo está de volta aos meus braços, de
camisola nova, perfumada e com os cabelos loiros escovados.
No entanto, esses minutos em que ela ficou longe me deram tempo para
pensar, tempo demais.
O fato de que ela ficou bem pálida quando mencionei que o
preservativo tinha falhado, era virgem e que sexo não é exatamente uma
atividade tranquila para o coração continua girando na minha mente.
Preciso me certificar de que está tudo bem, que não há riscos para sua
saúde.
— Você está se sentindo bem? — pergunto, puxando-a para mais perto.
— Ótima — suspira nos meus lábios e entrelaça os dedos nos meus
cabelos. — Melhor impossível.
— Mas… seu coração? — insisto, minha voz firme, com uma
preocupação que raramente deixo transparecer.
— Estou bem, Lars. Desde a cirurgia, faço acompanhamento médico
regular, não estou sentindo nada de errado — responde ela, com um leve
sorriso, tentando me tranquilizar. — Os médicos dizem que posso ter uma
vida quase normal, tomando alguns cuidados. Só preciso evitar emoções
fortes e estresse desnecessário.
Ela fala como se estivesse repetindo algo que já ouviu inúmeras vezes,
como uma verdade pronta, imposta por outros. No entanto, há algo na
maneira como responde, que me diz que essa não é apenas uma
preocupação médica. Há algo mais profundo, uma história que está
relutante em compartilhar. Uma sombra de algo não dito.
O que ela está escondendo?
— Além de evitar emoções fortes e estresse, o que mais os médicos te
disseram? — pergunto, minha voz firme, porque não consigo deixar isso
passar. — Quais remédios você toma, Vasilisa? E quais são as outras
precauções que precisa ter?
Seu olhar se desvia por um instante, como se estivesse buscando as
palavras certas. Ou talvez tentando decidir o quanto quer compartilhar.
— Não tomo remédios comprados na farmácia, mas manipulados no
laboratório do meu pai especialmente para mim — responde finalmente. —
Meu coração está… estável.
— Mas você ainda tem a mesma condição de infância?
Observo-a, absorvendo cada palavra, mas ainda não estou convencido,
principalmente porque tem um tom de incerteza.
— Regulada, sim.
— Que é?
— É complicado… — Ela hesita, mordendo o lábio inferior. — Não sei
direito, são várias condições, mas todas reguladas. Não sou frágil ou
limitada. Já basta que meu pai me trata assim desde que nasci, me mantendo
afastada de tudo, sempre à margem de todas as coisas boas. E nunca
aconteceu nada.
Essa reclamação chama a minha atenção e me faz sentir um desconforto
que não esperava. Ela carrega este fardo sozinha, com medo de ser vista
como uma pessoa fraca, como alguém que não pode ter uma vida normal.
— Vasilisa… — Suavizo o tom e acaricio seus cabelos. — Não vejo
você como limitada, estou preocupado. Só isso.
— Não precisa — suspira. — Basicamente é isso. Devo evitar situações
que possam causar muito estresse emocional e grandes esforços físicos.
Tudo que possa… bom, descontrolar meu ritmo cardíaco.
Como é?
Essas últimas palavras me atingem com força. Sexo intenso não é
exatamente indicado, então. Ainda mais o tipo de sexo que tivemos.
Acelerado, intenso, desmedido.
— E você me deixa saber disso só agora? — exclamo, levantando-me
da cama. — Porra, Vasilisa!
Cato o moletom no chão, enfio as pernas e visto-o. Ando de um lado
para o outro, tentando controlar a frustração, a preocupação e o fato de que
ela sonegou essa informação.
E se algo tiver acontecido? E se eu a tiver levado além do limite que o
corpo dela suporta?
— Isso muda tudo.
Ela se senta mais empertigada, os olhos faiscando. — Muda o quê?
— Se soubesse antes, teria feito… — Passo a mão no cabelo e me viro
de frente para ela. — Diferente. O que acabamos de fazer foi arriscado.
— Não, não foi. — Ela me encara, olhos desafiadores. — Foi delicioso,
e foi até… normal.
Levanto minhas sobrancelhas até o meio da testa. — Normal?
O adjetivo me choca tanto que estanco no meio do quarto.
Como assim, normal? Que porra essa moça, virgem, claramente
inexperiente, com um problema cardíaco, estava esperando? Alguma
posição do Kama Sutra? Uma cena BDSM?
— Poderia ter sido mais… sujo! Safado — diz, se ajoelhando na cama e
passando a mão no corpo. — Depravado.
— Você queria… — Estou chocado. — Depravado?
— Adorei que você me liberou para dizer o que eu queria — diz, entre
excitada e irritada. — Que você deixou eu falar seu nome.
Como assim, liberei e deixei? Nunca a proibi de nada. O que me diz que
alguém já proibiu. Há uma história aqui, mas pode ser que ela não esteja
pronta para contar. Nem que tenha se dado conta do que disse.
— Quero poder dizer o que desejo — confessa, a voz não tão firme,
como se não tivesse esse hábito.
Ela sai da cama e vem até mim. Põe as palmas no meu peito e lambe os
lábios.
Enfio a mão em seus cabelos e prendo-os em meu punho, bem na sua
nuca, inclinando a cabeça dela para que me olhe.
— Vasilisa…
Ela me encara com estes olhos verdes profundos que guardam um
mundo só dela e onde tem um universo de emoções no qual, neste
momento, a firmeza e resistência brigam com a vulnerabilidade e a
incerteza.
— Permita que eu seja eu mesma.
Não respondo porque, primeiro, o pedido é meramente retórico e,
segundo, não quero interromper a epifania dela. Acho que pela primeira vez
essa moça está tirando do coração coisas que ficaram enterradas ali por
muito tempo.
— Não me julgue… — pede rouca e desliza a boca pelo meu bícep,
sobre as pontas das tatuagens de asas que aparecem ali. — Desejo sexo, que
faça meu corpo ficar arrepiado. Sexo safado, que deixe meu corpo marcado.
Ela chupa meu mamilo em sua boca e mordisca-o. Meu pau responde na
hora.
Pelos deuses!
Onde é que essa diaba estava? Como se escondeu dentro desta moça
com rosto e corpo de anjo?
— Que me faça gritar até ficar rouca… Que me foda até que eu não
ande no dia seguinte…
A mão empurra meu moletom para baixo e agarra meu membro.
Começa um vai e vem e endureço mais.
— Quero tudo com você. Se você é um anjo, não me importo se eu
morrer…
Puxo seu cabelo para trás com força, interrompendo sua fala. Coloco
um dedo sobre sua boca.
— Nem todos os anjos vivem no céu, mocinha — aviso, sério, olhando
no fundo dos seus olhos.
— Não me importo… — geme.
— Vou te dar o que você quer, mas você precisa ser honesta comigo. Se
houver riscos, quero saber, porque eu vou te foder de maneiras que você
não imagina, mas não vou te colocar em perigo.
— Prometo — suspira, sem parar de me masturbar. — Só me leva de
novo para o paraíso.
— Se eu te levar ao paraíso, não espere salvação — rosno em seus
lábios.
Pego-a no colo e levo-a de volta para a cama. Sou controlado, mas não
tanto e me faltam forças para resistir à tentação.
Anjos caíram por muito menos, mas foda-se, já que vou para o inferno
mesmo, melhor ir com razão.
Sou acordada por este homem super sensual, encaixado perfeitamente no
meio das minhas pernas, depositando beijos no pescoço.
Seu cheiro afrodisíaco me atiça e eu, que nunca gostei de acordar cedo,
se for assim todos os dias, nem vou me importar.
— Hmmm, bom dia — murmuro. — Que horas são?
Ele desliza a língua quente pela minha clavícula e sobe por minha
garganta, fazendo-me tremer.
— Hora de transformar uma virgem inocente em pecadora destinada ao
inferno — sussurra no meu ouvido, segurando meus pulsos acima de minha
cabeça, dominando-me completamente como fez à noite.
Mordisca o interior dos meus braços e esfrega os pelos macios da barba,
e um arrepio gostoso percorre todo meu corpo. Desce mais e para bem
sobre os meus seios.
— Olha esses peitos — diz baixinho, antes de soltar meus pulsos e
agarrá-los.
Aperta-os juntos e lambe-os por cima da renda mesmo, criando uma
fricção excitante. Chupa-os, enviando correntes de tesão para minha boceta.
— Ai, Lars — gemo.
Levanta os olhos azuis para mim e me dá um sorriso safado. —
Qualquer dia desses, vou fazer a espanhola aqui.
Nem consigo prestar muita atenção porque ele já está mordiscando meu
mamilo, que se enruga e fica pontudo, como se quisesse entrar logo em sua
boca.
— Fazer o quê?
Arqueio minhas costas e puxo os bojos para baixo, querendo mais da
sua língua, de seus dentes, da sua boca.
— Nunca ouviu falar da espanhola? — A pergunta sai abafada porque a
boca se fecha sobre meu mamilo.
— Lars, eu era virgem até ontem…
— Vou adorar te corromper — diz.
Um raio desce pela minha espinha, quando ele dá uma mordida mais
forte, e enfio as unhas em seus bíceps.
— Ai, Lars — choramingo e, desesperada, sem conseguir compreender
o que este homem tesudo faz comigo que me deixa alucinada, peço: —
Mais…
Gemo alucinada e me esfrego em seu pau.
— O que você quer, pecadora?
Uma coisa me come por dentro, mas não sei definir o que é.
— Quero mais… forte, preciso sentir mais — confesso, excitada, meu
sexo latejando. — Quero perder o controle…
Porque é isso.
Quero o risco, o coração batendo alucinado e que se dane se algo
acontecer. Quero sentir prazer, dor, paixão e todas as emoções que não senti
até hoje direito.
O que aconteceu com Madre Jutta não valeu e nem quero pensar nisso
agora.
Puxo os cabelos dele, levantando sua cabeça para fitar seus olhos azuis,
que estão escuros de desejo. — Quero que você me faça mulher e que não
me julgue. Quero que você me faça gozar e que não se importe se eu pedir
para me machucar um pouco.
— Você quer que eu te machuque um pouco, Pequena? — pergunta, os
olhos brilham ainda mais forte. — Posso fazer isso. Posso fazer de você
minha mulher.
Com estas palavras, ele toma minha boca, engolindo meu grito e me
invade. De uma vez, entrando até a metade de tão grosso que é, abrindo-me
toda.
Parece que libertei alguma coisa dentro dele.
Sai de dentro de mim e me gira na cama, colocando-me de quatro e se
atola em mim, bruto.
Para dentro de mim, bem no fundo, empurra a camisola até a minha
cintura e espanca minha bunda.
— Ai, Lars! — É, isso! A ardência me faz empinar mais e pedir: —
Mais! Vem, forte. Me fode, forte.
— Vadia! Vou te foder!
Sou devorada assim. De quatro, com Lars espancando minha bunda e
metendo com força, e metendo de novo, até que sinto um cuspe no meu
ânus e ele enfia o polegar inteiro no meu cu.
— Ah, ai! — grito, com a ardência e a sensação de estar ainda mais
cheia.
Meus braços cedem quando as estocadas ficam mais rápidas. Ele tira o
polegar de dentro de mim, passa o braço pela minha cintura e a outra mão
começa a torcer meu clitóris.
— Goza, pecadora.
— Ai, Lars…
— Isso, chama meu nome, vadia, e goza no meu pau — rosna.
Agarro suas coxas, enfio minhas unhas.
Grito com um tapa mais estalado, a ardência me faz entrar em puro
delírio e gozo.
Ele não para, continuando a me penetrar com vontade, empurrando-se
mais fundo, mais rápido, mais forte, como se quisesse se fundir comigo,
como se fosse morrer se não o fizesse.
— Goza mais, porra, goza mais! — ordena, espancando-me com uma
mão enquanto fricciona meu clitóris com a outra.
Como se meu corpo tivesse vontade própria, obedece e eu convulsiono
sem parar.
O excesso de sensações faz meus sentidos sobrecarregarem e berro: —
Lars! Ai, Lars, vem comigo. Vem!
— Vou, com você eu vou até o inferno!
Ele se deita sobre mim, vira meu rosto e toma minha boca num beijo
descontrolado, de total entrega.
Um vendaval me arrasta. Arrasta tudo à nossa volta. Sem controle.
Destruindo tudo, não deixando nada, a não ser prazer.
Grito de novo, desta vez na sua boca.
Ele sai de dentro de mim de repente e me larga, levantando-se nos
joelhos. Estou tremendo tanto que escorrego nos lençóis e fico ali.
Ele rosna: — Vadia. Gostosa.
Ele grunhe alto, várias vezes. Jatos grossos e quentes caem sobre as
minhas costas e minha bunda, até que, exausto, ele se deita ao meu lado,
ofegante.
— Você fica linda marcada com minha porra — diz, deslizando os
dedos sobre seu gozo, espalhando-o sobre a minha pele, como se me ver
toda lambuzada com seu sêmen lhe desse prazer.
Ele deposita um beijo no meio das minhas escápulas e se levanta da
cama, e me deixa ali nua, esporrada e marcada, esgotada e tão satisfeita de
tanto dar e gozar que parece que estou desossada.
E meu coração batendo forte, descontrolado, tão forte e descontrolado
que está doendo. Parece que vai sair do meu peito.
Acho que deveria ter tomado meu remédio ontem à noite, mas é que
sempre durmo tão profundo, fico tão molinha quando acordo, que demoro
um século para voltar a ser eu novamente. Com esse homem quente na
cama, queria aproveitar cada segundo…
Estendo a mão. Tento chamar Lars, mas não consigo falar nem o nome
dele.
Suspiro e a escuridão me leva.
Abro as cortinas e o sol da manhã entra tímido. Mesmo já estando quase no
começo de abril, em Vinterland a primavera ainda precisa brigar para
espantar o frio e se anunciar. Os jardins ainda têm neve e só em um local ou
outro se vê grama verde e algumas flores mais tinhosas.
Espreguiço-me e solto um longo suspiro. Os hormônios do orgasmo
potente ainda percorrem minhas veias.
— Assim você me mata, Diaba — digo a ela, que não responde.
Quando me viro para o quarto que está pintado com suaves tons
dourados, meu ar some.
Voo em direção à cama, onde Vasilisa, de olhos fechados, a boca
azulada, está com o braço esticado, a mão pendendo para fora, como se
tivesse tentado me chamar e desmaiado antes.
Trago-a para meu colo e a sacudo.
— Porra, Vasilisa, acorda!
Ela não reage. Então, pego o telefone e ligo para Leif.
— Preciso de ajuda — digo, assim que ele atende. — Vasilisa desmaiou,
está cianótica e me disse que tem problemas cardíacos.
— Quais?
— Não sei!
— Ela está respirando? — indaga, tenso.
Como se escutasse a pergunta dele, com um arquejo forte, como a de
um náufrago que acabou de ser resgatado, ela volta a si.
— Meus remédios — pede. — Vidros… vermelhos.
— Estou a caminho — diz ele, enquanto solto o celular na mesa de
cabeceira.
— Onde estão?
— Na minha mesa — murmura ela, os olhos semicerrados.
Corro até a mesinha ao lado da cama e vejo vários frascos. Ajo rápido e
pego os que têm os rótulos vermelhos. As anotações me dizem que ela deve
tomar duas pílulas de um e uma dose de outro, que é sublingual.
Pego uma garrafa d’água no minibar, volto para a cama e a apoio em
meu braço. Entrego os comprimidos para ela engolir e ajudo-a a beber.
Depois, coloco o comprimido sublingual sob sua língua.
— Melhor? — pergunto depois de uns dois minutos, quando a cor dela
começa a voltar ao normal.
— Sim — assente, um pouco sonolenta. — Daqui a pouco passa.
Sinto um alívio momentâneo, mas a preocupação ainda me consome.
— O que aconteceu exatamente? — questiono, tentando entender.
Ela suspira, fechando os olhos por um instante. — Às vezes, meu
coração… simplesmente falha. Os médicos dizem que é uma arritmia rara.
E… eu esqueci de tomar o remédio ontem à noite.
— Vasilisa! — Passo a mão no cabelo exasperado. Por que o quão
irresponsável é essa menina? — Pelos deuses! Isso é sério! Você precisa de
atendimento médico imediato.
— Não, por favor! — Ela segura minha mão, seu toque frágil, mas
determinado. — Já aconteceu antes. Sei como lidar com isso e meu pai não
gosta que eu fale sobre o assunto.
— Seu pai não está aqui agora e, sinceramente, mesmo que ele
estivesse, você seria vista por um médico — insisto, a intensidade em
minha voz, deixando claro que não vou recuar. Antes que ela possa
protestar novamente, ouço batidas firmes na porta. — E Leif está na porta.
Visto as calças e sem camisa mesmo, vou até lá e abro, encontrando
meu irmão mais novo, estetoscópio no pescoço e uma bolsa preta na mão,
com uma expressão séria.
Ele me dá uma olhada de cima a baixo, rápida já dentro da antessala e
pergunta na lata: — Foi depois do sexo?
— Foi. — Fecho a porta atrás dele, e levo-o para o quarto, contando,
puto: — Segundo ela, um episódio de arritmia, porque se esqueceu de
tomar o remédio ontem à noite.
— Oi, Vasilisa, bom dia. Está se sentindo melhor? — pergunta ele, com
suavidade.
— Bem melhor. Foi só um susto. Esqueci de tomar meus remédios…
e… Bem… Mas já tomei. Depois que… — Ela cora, me lança um olhar em
minha direção e baixa os olhos, envergonhada. Limpa a garganta e, ainda
mais sem jeito, diz: — O caldo entornou, mas… agora vai ficar tudo bem.
Leif dá um sorriso com o jeitinho atrapalhado dela, mas eu não estou
achando nada engraçado.
— Posso te examinar?
Ele não atende mais como médico, pois se especializou em
administração hospitalar, mas cursou a faculdade de medicina até o final e
fez os atendimentos necessários para se formar, então sabe lidar com
emergências.
Ela olha para mim e depois para Leif, hesitando por um momento, mas
acaba concordando: — Claro.
Leif senta-se ao lado dela, pegando gentilmente seu braço e posiciona
os dedos no pulso dela.
Fico em silêncio enquanto ele observa o relógio e conta os batimentos
dela por vários segundos. Depois, abre a bolsa preta, tira um aparelho para
medir a pressão arterial e coloca o estetoscópio.
Depois de alguns minutos, ele guarda tudo e se vira para ela.
— A sua pressão está baixa, o que não é de todo ruim — comenta, e
continua, com a voz calma que já o vi usar em atendimentos: — Mas seu
pulso está irregular. Você sabe qual é sua condição cardíaca específica?
— Os médicos dizem que é uma arritmia rara. Fiz uma cirurgia quando
bebê, mas ainda tenho episódios ocasionais — explica ela, evitando meu
olhar.
— Você toma medicamentos regularmente? — pergunta Leif.
— Sim, tenho alguns remédios que devo tomar diariamente e outros em
caso de emergência — responde, apontando para os frascos na mesa de
cabeceira.
Leif pega os frascos, lê os rótulos com atenção, coloca-os no lugar e
depois volta a atenção para ela.
— Foi um descuido — suspira ela. — Isso não costuma acontecer.
— Alguma vez já teve outros sintomas além do desmaio? — pergunta
ele. — Tonturas, falta de ar, dores no peito?
— Sempre — admite Vasilisa. — Mas, apesar de diária, não é nada
muito grave. Já estou acostumada.
— Seria bom fazermos um eletrocardiograma — sugere. — Temos
equipamentos aqui mesmo na clínica do palácio. Ou, se você preferir, posso
trazer para cá.
— Não, não precisa, sério — diz. — Já estou me sentindo bem.
Leif levanta uma sobrancelha. — Tem certeza?
— Tenho.
O jeito que ela me olha, com uma mistura de medo e vulnerabilidade, e
como Leif não pressiona, também não insisto.
— Você deveria fazer uma consulta com o cardiologista da sua
confiança para uma avaliação mais aprofundada quando voltar para casa —
diz e se levanta. — Qualquer coisa, um de vocês me chama. Nada de
estrepolias hoje, mocinha. Ordens médicas.
— Sim, senhor, doutor — diz ela, com um sorriso. — E, Leif, obrigada.
— Não deveria dizer que foi um prazer, mas foi. — Sorri de volta para
ela. — Sempre que precisar, é só chamar.
Rolo os olhos internamente para mim mesmo porque não gosto dessa
facilidade com que os dois trocam sorrisos.
Eu o acompanho até a porta.
— Não sabia que você era ciumento — sussurra ele para mim, com uma
risadinha.
— Não era — confirmo.
O que o faz rir mais alto e dizer: — Tudo bem, já entendi.
Mudo de assunto antes que ele resolva fazer mais perguntas: — O que
você achou? Ela vai ficar bem?
— Não tenho como avaliar, assim, sem exames de sangue, de imagens,
sem um eletro, mas não me pareceu nada grave — diz.
Abro a porta da antessala e olho de um lado para o outro do corredor.
Afinal, não quero que ninguém nos pegue saindo do quarto da moça, mas
ainda é bem cedo e estão todos dormindo.
— O que ela toma te diz o que ela tem? — pergunto, encostando a
porta.
— Os rótulos dos remédios não contêm nem especificações dos
princípios ativos usados, nem dosagens, só o nome dela, anotações
genéricas sobre conduta e restrições. — Ele me olha dentro dos olhos. —
Ali pode ter placebo, cocaína ou qualquer outra coisa.
Franzo a testa com a frase estranha. — O que você está querendo dizer
com isso?
— Nada. — Sacode a cabeça —, só o que eu disse mesmo: não tenho
como saber o que tem ali dentro, já que aqueles frascos não indicam os
compostos. Eu arriscaria dizer que não são originais do laboratório.
— Tudo bem, obrigado.
Dou uma olhada no corredor de novo, gesticulo para ele, e o observo
sair, inquieto com essa notícia.
Volto para o quarto e encontro Vasilisa sentada na cama, ainda pálida,
mas parecendo tranquila.
— Que tal um banho quentinho?
— Acho bom, né? Afinal, você me besuntou toda com… — ela cora,
ficando vermelhinha, o que me diz que está realmente melhorando — seu
gozo.
Coloco meus punhos fechados ao lado do corpo dela, enjaulando-a.
Os olhos verdes se arregalam.
Ao invés de recuar, eu me aproximo ainda mais e, com a boca bem
junto à dela, aviso: — Da próxima vez, vou gozar na sua boca e você vai
engolir tudo. Tudo mesmo.
Os olhos verdes ficam lânguidos, como se ela gostasse da ideia.
Essa vadia vai me levar à loucura.
Antes que eu esqueça que ela não pode mais se esforçar hoje e acabe
matando a menina com um enfarte, pego-a no colo. — Vamos.
— Para onde você quiser — diz toda sedutora.
Suspiro, o que a faz rir.
— Trate de se comportar — ordeno e coloco-a de pé no banheiro. —
Levante os braços.
Ela obedece e puxo a camisola de seu corpo. Os mamilos rosados logo
se enrugam nos seios, o que me deixa salivando.
Ainda não tinha visto seu corpo à luz do dia e fico de pau duro de novo,
porque ela é perfeita.
Pelos deuses.
Passo a mão na boca porque provavelmente estou babando.
— Lars, acho melhor eu tomar banho sozinha — diz, sorrindo.
Estou igual a um adolescente, parado no meio do banheiro, com uma
ereção gigante fazendo uma tenda no meu moletom, com os olhos grudados
no corpo pequeno e macio, com curvas em todos os lugares.
— É, acho que é melhor mesmo — digo, porque se eu me juntar a essa
garota na banheira, vou fodê-la de novo.
Sento na beirada de mármore, de costas para ela de propósito, e tempero
a água mais para quente. Preparo tudo para ela, com sais de banho e óleo
para o corpo, tentando me concentrar no que estou fazendo. No entanto, só
de pensar em seu corpo aqui dentro, fico mais excitado.
Escuto uma risadinha atrás de mim.
— Você está achando graça? — pergunto, virando-me e pegando-a pela
cintura. — Vou pensar num castigo bem apropriado para a senhorita. Por
várias infrações.
Ela faz um biquinho lindo. — Mas eu não fiz nada.
— Para começar, não tomou seu remédio…
— Mas é que ele me deixa meio dopada — diz, sorrindo e deslizando a
ponta dos dedos pela tatuagem nos meus ombros —, e eu queria aproveitar
ao máximo nossa noite. Não sei quando e se vamos ter outra.
— Se? — A vontade que tenho é de rosnar bem alto. — Entenda bem
uma coisa: vamos ter muitas noites, manhãs e tardes. Vou te foder o resto da
minha vida, Vasilisa. Só eu, e ninguém mais.
Ela pisca várias vezes com a intensidade da minha declaração e uma
sombra cai sobre seus olhos.
— Eu não aceitei seu pedido, Lars — diz.
— Então, acho bom aceitar logo — retruco —, porque é comigo que
você vai casar.
— Deixa eu te dizer uma coisa, gostosão — fala bem, séria, olhando
dentro dos meus olhos —, não gosto de ser pressionada.
Como se quisesse encerrar o assunto, ela vira as costas para mim.
Se eu ia retrucar mais alguma coisa, esqueço, porque nas costas dela
vejo cicatrizes finas, clarinhas, desfigurando o que deveria ser a pele mais
perfeita do mundo.
— Vasilisa…
Levanto-me e traço uma das linhas, que se cruza sobre outras, das
escápulas até a cintura dela.
— Quem fez isso com você?
Não consigo esconder nem o choque, nem a raiva da minha voz. Porque
quem fez isso vai pagar. E caro.
Ela gira nos calcanhares e dá um passo para trás, com os olhos
faiscando. Estende a mão, pega a primeira toalha que vê pela frente e se
cobre.
— Sai.
— Eu…
Ela aponta o dedo para a porta e repete: — Sai!
Desta vez, quem obedece sou eu, porque sei que, às vezes, a retirada é
uma estratégia para se ganhar a batalha.
Entro no chuveiro antes de ir para a banheira e as lágrimas quentes se
misturam com a água que caí sobre mim.
Não sei por que estou chorando.
Não. Sei. Por quê. Estou. Chorando.
Na verdade, sei.
É a mistura de tudo: a emoção de ter um homem pela primeira vez na
minha cama e me sentir completa; o susto da arritmia; o medo de meu pai
descobrir e me obrigar a tomar remédios que me deixem ainda mais
entorpecida, porque os que trouxe são mais leves do que os que uso em
Oslo; e, no final, quando tudo parecia estar dando certo, as sombras do
passado retornam para me assombrar.
A mão longa da Madre Jutta e a sua promessa de que eu nunca a
esqueceria se concretiza cada vez que tento me libertar.
Por mais que eu evitasse tirar a roupa na frente das minhas amigas,
sempre acabo por me lembrar das cicatrizes, físicas e emocionais, que
carrego.
Não quero me lembrar dela.
Quero sentir prazer com meu parceiro, seja ele quem for: Lars ou
qualquer outro.
Quero poder abrir minhas asas e voar, experimentar a vida nas correntes
de ar e vento, sem os grilhões que me prendem à terra e ao passado.
Respiro fundo, deixando a água quente escorrer pelas costas, tentando
lavar não apenas meu corpo, mas também as mágoas que me sufocam.
Fecho os olhos e imagino um futuro, onde posso ser livre, onde meu
coração não está aprisionado pelo medo e pela culpa.
Saio do chuveiro e vou para a banheira. Quando passo pelo espelho,
vejo meu reflexo embaçado e, por um momento, quase não me reconheço.
Ali tem uma jovem mulher, com olhos brilhantes, assim como incertos,
mas é o que meu corpo pede, a energia que circula nele que me faz
sussurrar para ela: — Você só vai conseguir se enfrentar seus demônios.
Relaxo na água quente e perfumada que Lars preparou com tanto
carinho e quase cochilo.
Quando uma batida soa na porta e a voz dele pergunta: — Posso entrar,
Pequena?
Suspiro e respondo: — Não sou pequena, mas pode entrar.
O cabelo ainda molhado e penteado para trás, junto com um novo
conjunto de moletom azul-marinho, sugerem que ele provavelmente foi até
seu quarto tomar banho. — Tudo bem?
— Tudo.
— Queria pedir desculpas — diz, e joga o suéter do conjunto na
poltrona que tem num canto do banheiro gigante —, pelo modo como reagi
e…
— Não precisa, fui eu que exagerei…
Não liga para a minha negativa e continua a falar: — … e também
queria te mostrar uma coisa. Talvez assim você entenda o porquê do meu
choque e da minha raiva.
Então, ele tira a camisa de mangas compridas e senta-se de costas para
mim na beirada da banheira.
Vejo, então, por inteira, a tatuagem enorme sobre os músculos firmes
nas costas largas: sobrevoando uma magnífica paisagem de floresta e
fiorde, tem uma águia, com olhos azuis intensos, iguaizinhos aos dele. As
penas vão ficando douradas e se transformam em asas de anjo, que descem
sobre os ombros e braços, como se essas asas pudessem protegê-lo.
— Já tinha visto uma parte dela. É linda e dife…
Engasgo e não consigo continuar.
Embaixo da tatuagem, tem várias cicatrizes. Muito mais que as minhas.
— Fui… fomos… — Ele inspira fundo e começa de novo: — Quando
éramos crianças, Tyr e eu fomos para a casa de dois amigos. Irmãos,
colegas nossos. Do colégio… Lá, sem contar nada para ninguém,
resolvemos passar a noite na floresta, acampar. Para mostrar que não
tínhamos medo do escuro ou… — dá de ombros — qualquer idiotice de
meninos de dez, doze anos.
Sento-me na banheira e deixo meus dedos fazerem o mesmo que os dele
fizeram enquanto ele conta a história.
— Fomos pegos por uma gangue que roubava gado.
Ao contrário de mim, ele me deixa mapear não só a paisagem, mas
também as marcas. Não são de chicotadas como as minhas, são de…
cortes?
Nem sei o que fizeram com ele.
— Quando descobriram quem eles tinham na mão, resolveram negociar
nossas vidas pelos companheiros que estavam presos — diz. — Mas meu
pai era apenas o irmão mais novo do rei, um duque na época e não tinha
nenhum poder…
Entre as escápulas está uma marca em alto-relevo, que no momento que
passo o dedo, ele estremece, como se até hoje doesse.
— Depois de algum tempo, eles resolveram copiar aqueles malucos do
Oriente Médio e filmar a tortura para ver se conseguiam algum resultado…
Abraço-o por trás, não me importando se vou molhá-lo com a água da
banheira e minhas lágrimas, e dou beijos em toda a extensão de seus
ombros.
— Enquanto estavam… distraídos, brincando comigo, Tyr conseguiu
fugir para buscar ajuda — diz ele, colocando a mão sobre a minha por cima
do seu coração, que estranhamente nem está acelerado. — Mas quando
voltou…
Dá de ombros de novo.
Nem sei o que dizer, porque essa não é uma história triste, é um
pesadelo.
— Eles foram presos, eu e meus irmãos fizemos tatuagens… Cada um
do seu jeito, mas isso não é suficiente, sabe? — sussurra ele.
Sinto a dor dele espelhada dentro de mim, como se fosse minha.
As cicatrizes físicas são apenas uma parte da história; as emocionais,
invisíveis, são ainda mais profundas e mais difíceis de curar. Traumas não
desaparecem da noite para o dia. Muitas vezes, levam décadas e décadas.
— Lars, ninguém deveria passar por algo assim, muito menos uma
criança — digo, a voz embargada, abraçando-o com mais força. — E
carregar isso sozinho torna tudo ainda mais difícil.
— Achei que, compartilhando isso com você, talvez pudesse entender
por que reagi daquela forma — diz e se vira para mim. — Ver suas
cicatrizes… trouxe tudo de volta.
Fecho os olhos por um momento, percebendo que estamos mais
conectados do que imaginei. Nossas dores, embora diferentes, nos
aproximam. Ambos carregamos marcas do passado que influenciam quem
somos hoje.
— Quer me contar sobre as suas?
Respiro fundo, mas meu coração logo acelera e minha respiração
encurta. — Hoje não. Acho melhor não abusar do meu pobre coração.
Imediatamente, ele balança a cabeça e pega uma toalha. — Que tal
descansarmos um pouco? Você está há tanto tempo aí que vai ficar toda
enrugada.
Sorrio. — Não gostaria que isso acontecesse antes do tempo.
Deixo que ele enxugue cada pedacinho do meu corpo, depois me enrole
em uma toalha macia e leve para o quarto.
Para o meu espanto, a cama foi trocada e arrumada e está aberta para
nos receber.
— Pedi às arrumadeiras para trocarem os lençóis, quando fui para meu
quarto — explica, como se adivinhasse meus pensamentos.
Tira seu moletom e entra comigo, puxando o edredom sobre nós dois.
Aconchega-me ao seu corpo e diz: — Relaxe e durma. Ainda são sete da
manhã.
Ficamos em silêncio, apreciando a presença um do outro.
— Obrigada por confiar em mim — digo, depositando um beijo no seu
esterno. — Deve ter sido difícil… contar sua história.
Ele segura minha mão. — Por incrível que pareça, para você não foi.
O calor do seu corpo e o vai e vem da sua mão nas minhas costas me
embala e logo estou dormindo.
Parece que não passa muito tempo e Lars está me beijando e acordando
de novo.
— Tem alguém na porta — sussurra em meus lábios. — Parece seu pai.
— Que horas são? — pergunto, grogue.
O remédio sempre me deixa assim: embotada e apalermada. Não
consigo nem ficar muito apavorada.
— Dez para as dez. — Inclina-se e me dá um beijo, demorado, sem
ligar para quem está batendo na porta. — Hora da pecadora acordar.
Abraço seu pescoço e retribuo, até que ficamos sem fôlego.
— Preciso ir agora, mas nos falamos mais tarde.
Ele se levanta da cama e aproveito para admirar seu corpo atlético.
Lars é o exemplar perfeito de virilidade masculina.
Os músculos são definidos e se move com agilidade. Pega a camiseta e
o conjunto de moletom jogados ao lado da cama, caminha até a estante de
livros e, com um movimento discreto, abre uma passagem secreta que eu
não havia notado antes.
A luz matinal realça cada detalhe do corpo entalhado. Dos ombros
musculosos e peitoral largo às veias salientes nos antebraços, passando pelo
abdômen esculpido e o delicioso cinto de Apolo, que desce num V e aponta
na direção do seu pau grosso e longo mesmo em repouso, que logo é
coberto pelas calças.
Quando vira para me jogar um beijo, percebe meu olhar e sorri. —
Gosta do que vê, Diaba?
Sinto um calor subir pelo meu rosto, mas sorrio. — Talvez, Anjo.
— O paraíso te espera mais tarde — promete em um sussurro.
A estante volta para o lugar sem um barulho, e o quarto fica novamente
em silêncio. Até as batidas na porta voltarem a soar.
— Já vou!
Espreguiço-me e vou até o closet, pegando um robe de seda japonesa
pesada.
— Bom dia, Vasilisa.
Lars tinha razão. É meu pai, acompanhado de Mefistófeles. Ops, de
Melissa.
— Bom dia. Dormiram bem? — pergunto.
— Muito bem — diz Melissa e então me olha de cima a baixo. — Você
é que parece que não dormiu bem. O que aconteceu com seu cabelo?
— Tive um pesadelo e tomei um banho — invento, passando a mão
pelos fios que devem estar desalinhados. — Não quis secar de madrugada.
Ela arqueia uma sobrancelha, claramente desconfiada, mas não insiste.
Meu pai me fita bem dentro dos olhos. — Não esqueceu de tomar seus
remédios de novo, esqueceu?
Como ele sabe? Será que percebeu algo diferente?
— Não, não esqueci — minto, sustentando seu olhar.
— Decidimos que vamos embora hoje — diz Melissa, com um tom
definitivo. — Praticamente todos os convidados já se foram, e só a família
da noiva ficou. Nosso voo parte às duas.
Sinto um aperto no peito ao pensar em deixar Lars tão repentinamente,
mas não posso demonstrar.
— Ah, tão cedo? — digo, tentando parecer apenas surpresa. — Pensei
que ficaríamos mais um pouco.
— Não há mais razão para permanecermos — afirma meu pai, cruzando
os braços. — Temos assuntos a resolver em Oslo e você mesma disse ontem
que já tínhamos ficado muito tempo.
Minha mente trabalha rapidamente, buscando uma maneira de ganhar
tempo.
— Eu… combinei de fazer um passeio com as meninas hoje. Será que
eu poderia voltar sozinha amanhã?
Meu pai franze a testa. — Não, não quero você viajando sozinha sem
necessidade.
Olho para Melissa em busca de apoio, mas ela apenas esboça um sorriso
frio.
— Será bom voltarmos para casa — diz ela. — Você parece cansada.
Precisa retomar sua rotina e seus estudos.
Respiro fundo, lutando contra a frustração. — Só mais um dia?
— Não — responde meu pai, firme. — Já tomei minha decisão. Até às
treze horas, você tem bastante tempo para ver suas amigas.
Sinto a impotência me dominar. Não adianta insistir, e, derrotada,
assinto: — Tudo bem.
— Ótimo — finaliza ele, virando-se para sair. — Esteja pronta. Não
queremos nos atrasar.
Assim que a porta se fecha, pego o celular e envio uma mensagem para
Yasmin.
Preciso desabafar. Urgente.

Vejo as reticências ondulando e a resposta aparece:


Claro! Catarina está vindo tomar café comigo aqui em casa.
Vem também.

Respondo:
Vou chamá-la para irmos juntas.

Ela me manda um ok e envio uma mensagem para minha prima vir


encontrar comigo no quarto e corro para o closet. Visto uma camisa de
mangas compridas turquesa e calça de lã skinny azul-marinha.
Dali vou para o banheiro.
Meu cabelo está sem a escova que fiz ontem, por isso, com mais
volume, mas nada que justifique a reclamação da chata da Melissa.
Faço um coque baixo bem moderno e coloco uma maquiagem leve.
Apesar de ter dormido pouco, meus olhos brilham.
Uma parte de mim se sente a mulher mais sortuda do mundo, mas outra
parte começa a entrar em pânico.
Minha mente está uma confusão de sentimentos e pensamentos.
Catarina chega quando estou no closet de novo, enfiando umas botas
nos pés.
— Oiê! Bom dia! Então, quais são os planos para hoje?
— Vou voltar para Oslo às duas.
— Já? Você não ia amanhã?
— Ia, mas meu pai decidiu diferente. — Minha voz sai meio lenta e a
vontade que tenho é de dar uma sacudida em mim mesma. — E aconteceu
um monte de coisa de ontem para hoje.
— Jura? O quê?
Não sei se tenho estômago – ou melhor, coração – para repetir duas
vezes a mesma história, então enquanto e pego um casaco de couro, digo
para ela: — Foi tanta coisa, tanta coisa, que tenho que contar para vocês
duas juntas. Até parar, meu coração parou!
— Credo, prima! — exclama, arregalando os olhos. — Assim fico
preocupada.
— É, eu sei, foi burrice, mas não tomei os remédios de propósito —
conto antes de sair do quarto. — Vem.
— Como assim, de propósito?! — pergunta esganiçada, me seguindo
escada abaixo.
— Paredes podem ter ouvidos — sussurro e coloco um dedo na boca.
Ela não insiste porque conhece meu pai.
Começamos a tagarelar sobre o casamento e pegamos o carrinho de
golfe no subsolo para o palácio de Yasmin.
Assim como minhas amigas, Catarina, Tatyana e Yasmin, e em menor
grau, Charlotte e Emily, cada qual a sua maneira, temos pais disfuncionais
ou somos órfãs.
No meu caso, cresci sem conhecer o amor de pais ou de avós.
Fui enviada para o colégio interno cedo, porque minha mãe também
sofria do coração e não podia ter estresse. Mesmo longe do estresse-mór
dela, – surpresa: eu! –, ela morreu cedo.
Sonhava em receber visitas dos meus avós maternos russos, mas eles
pouco iam ao colégio, pois se ocupavam em criar meu meio-irmão mais
velho, com quem raramente falo. Os paternos morreram logo depois que fiz
dez anos e também se dedicaram a criar meu outro meio-irmão mais velho,
com quem não tenho contato.
Meu pai se casou logo com a Mefisto encarnada, que teve outro filho e
nem ele, nem Melissa são afeitos a carinhos ou a elogios. Ao menos, não
para mim: a louca doentinha.
Yasmin está nos esperando na porta do jardim de inverno do Palais des
Amours, com Brutus, o cachorro Terra Nova dos enteados, que mais parece
um urso negro e quando eles não estão, a segue por toda a parte.
— Andem, andem! Quero saber de tudo! — diz, gesticulando para
sermos mais rápidas.
Sentamo-nos à volta da mesa redonda, que está lotada de delícias, e
Brutus vai se deitar em um tapete felpudo na frente da lareira a gás que fica
no fundo do ambiente.
— Então? — pergunta Catarina, enquanto nos serve de chocolate
quente. — Qual é o babado?
— Eu… — Inspiro fundo e, sentindo-me um pouco mais tranquila na
presença das amigas, solto a bomba: — Passei a noite com Lars.
Yasmin engasga e preciso bater nas costas dela.
— Também não é para tanto, né? — reclamo.
— Como não? — pergunta minha prima, com os olhos arregalados.
Aliás, os olhos das duas estão arregalados.
— Desde quando você fica nua na frente de alguém? — pergunta
Yasmin, rouca.
— Não vai me dizer que fez sexo, vestida! — exclama Catarina.
— Credo, Cat, não precisa tanto — falo. — A gente já tinha dado uns
amassos no casamento de Taty.
— Sério?! Você nem disse nada — reclama Catarina. — E como foi?
Mordo o lábio, tentando encontrar as palavras. — Incrível. E ontem
foi… muito, muito melhor. O homem tem uma pegada que me virou do
avesso!
Yasmin se recosta na cadeira e respira fundo. Dá dois socos no peito e
bebe água.
— Melhorou? — pergunto.
Ela acena com a cabeça. — Melhorei. Foi o susto.
Relaxo e acabo rindo. — Como eu ia imaginar que era tão bom se nunca
havia provado, né?
As duas riem também.
— Eu sempre disse… — lembra Catarina.
— É, mas com papai em cima… — Desvio o olhar por um momento.
— Faltou oportunidade.
— Mas e aí? Conta, porque eu nunca fiz tudo — pede Catarina.
Coro, mas acabo contando partes e finalizo com: — Foi ótimo,
sensacional, mas… aconteceu um imprevisto: a camisinha estourou.
Yasmin leva a mão à boca. — Que merda, Vasya…
— Estou apavorada — confesso, sentindo a tensão voltar. — Não sei o
que fazer. Não tomo anticoncepcional e não estou pronta para lidar com as
possíveis consequências. Devo ficar menstruada nos próximos dias, mas…
— Calma. — Catarina coloca a mão sobre a minha. — Não antecipe os
problemas.
— É isso. Pode ser que nada aconteça. — Yasmin me olha nos olhos. —
Não adianta criar preocupações antes do tempo. Vai dar tudo certo.
— Eu sei, mas e se não der?
— Talvez seja uma boa ideia procurar um médico daqui a uns dez dias
— sugere Yasmin.
— Em Oslo? — pergunto. — Meu pai me mata se descobrir que não
sou mais virgem.
— Prima, estamos juntas nessa. — Catarina aperta minha mão. — Falta
muito para dez dias, até lá a gente vai se falando. Se a sua menstruação não
vier, dou um jeito de ir te ver e levar aqueles exames de farmácia.
— E Lars? — pergunta Yasmin. — Como ele reagiu?
Conto para elas como ele foi atencioso e tudo o que disse.
— Estranho ele não querer ter filhos. Se dá tão bem com os sobrinhos
— comenta Yasmin.
Catarina balança a cabeça. — Homens podem ser tão complicados às
vezes.
— Queria vê-lo antes de ir embora…
— Embora?! — questiona Yasmin.
— Pois é, meu pai pediu o avião para às duas — digo para ela. —
Vamos sair do palácio em… — Olho para o relógio e fico desolada: —
Uma hora e meia, mais ou menos.
— Você pode se encontrar com ele aqui. Ninguém precisa ficar
sabendo.
— Quer coisa mais romântica? — suspira Catarina, com um brilho nos
olhos. — Um encontro num jardim de inverno…
— Manda mensagem para ele — diz Yasmin.
Pego o celular no bolso e paro. — Não tenho o número dele.
Minha amiga rola os olhos para o teto. — Ai, o que seria de você sem
mim, hein?
— Não, não, não. Não liga.
Mas ela não me escuta. — Cunhado número dois? Sim, claro que sou
eu, sua cunhada favorita — diz, piscando para mim. — Vasya está voltando
às treze para Oslo e quer encontrar com você. Quer vir até aqui?
— Ele disse que está terminando uma reunião e que em uns trinta,
quarenta minutos chega aqui — avisa Yasmin, guardando o telefone. —
Tempo suficiente para a gente terminar de fofocar.
Ai. Quero me afundar no chão de vergonha.
— Sua mala já está pronta? — pergunta Catarina.
— Não, ainda tenho que…
— Não se preocupe — diz Yasmin e começa a digitar furiosamente no
celular. — Já mandei minha arrumadeira fechar suas coisas e trazer para cá.
Ser rainha tem que servir para alguma coisa.
Não demora nem os quarenta minutos para Lars chegar e posso sentir
seu olhar me queimando a distância.
Yasmin e Catarina trocam sorrisos conspiratórios e se levantam.
— Não façam nada que eu não faria! — diz Yasmin antes de fechar a
porta, deixando-me sozinha com ele.
Meu rosto fica quente e Lars ri, aproximando-se.
— Elas são sempre assim? — pergunta, com aquele sorriso que faz meu
coração bater mais rápido. — Maluquinhas?
Sorrio. — Sim. Conheço Yasmin desde que tínhamos uns seis anos,
acho. Ela nunca mudou.
— E você, tem amigos de infância?
— Alguns — responde e se senta no sofá, me puxando para sentar
também.
Mas o engraçado é que seu tom sugere que talvez não sejam tantos
quanto ele gostaria.
O ar no Jardim de Inverno está agradável, a temperatura amena. Nas
árvores, os passarinhos cantam e, em algum lugar, um casal de bichos-
preguiça se pendura nos cipós. As flores desabrocham, as folhas verdes
brilham sob a luz do sol que atravessa as janelas altas, mas de repente tudo
parece se aquecer e ficar mais vivo.
É ele.
Somos nós.
Tento disfarçar meu nervosismo, mas o jeito como ele me olha, tão
profundo, não facilita.
— Oi, Pequena. — Suas mãos emolduram meu rosto. — Já estava com
saudades.
Faço um biquinho. — Não sou pequena.
— Perto de mim, é — contradiz. — Mas se você quiser pode ser Diaba,
Pecadora, Sedutora…
Ele me beija e o mundo ao meu redor some.
Não havia experimentado desejo por um homem. Nem paixão. Muito
menos essa lascívia voraz de que os romances tanto falam. Para mim, isso
tudo era história da Carochinha i, mas descobri que não é.
É quente, volátil, alucinante.
Seu perfume afrodisíaco – madeira, Acquavit e Lars – me tenta, as mãos
largas me seguram pela nuca, angulam minha cabeça para me beijar mais
fundo. Os dedos longos se firmam na minha carne me dominando. A barba
me arranha e os dentes mordem meu lábio.
— Diaba Pecadora, você me enlouquece — diz, deslizando a boca pelo
meu maxilar. — Vou te roubar para mim, Vasilisa. Não vou deixar você ir
embora.
— Rouba. Quero ficar com você, Anjo — peço.
— Nem todos os anjos são puros — avisa.
— Mas, pelo jeito, esse aqui conhece o caminho do paraíso pelo pecado.
Ele ri, sacode a cabeça, como se dissesse que eu não tenho jeito, e me
beija de novo.
Porque quero tudo dele: o toque, o perfume, a presença poderosa. O
pecado, o paraíso e, se for preciso, o inferno, também.
Entrego-me aos seus beijos e carícias até que uma batida na porta de
vidro nos interrompe.
Yasmin e Catarina entram, seus olhares cúmplices, mas logo percebo
que não estão sozinhas.
Thorvald, o marido de Yasmin, vem atrás e informa: — Desculpa
interromper, mas os irmãos El-Khoury estão vindo se despedir.
— Esse cara é um pé no saco — resmunga Lars.
Sinto uma inquietação dentro de mim, porque isso quer dizer que a
minha hora de ir também está chegando e não quero que termine.
Não quero voltar para Oslo. Não quando estou começando a conhecer
meu corpo, a descobrir meus desejos.
— Majestades, Alteza, senhoritas — diz o Sheik Hassan El-Khoury, o
mais velho dos meios-irmãos de Tatyana ao entrar. — Estamos de partida e
gostaríamos de nos despedir pessoalmente e agradecer toda a hospitalidade.
Segue-se o rapapé de sempre, com trocas de cordialidade,
agradecimentos falsos e sorrisos formais, mas assim que pode Jamal se
aproxima mais e inclina-se levemente em minha direção.
— Yasmin, Catarina. — Sorri de forma calorosa para as duas e vira-se
para nós. — Vasilisa, Lars.
Há algo de inquietante nele, e por mais que eu tente ignorar, percebo o
jeito como seus olhos me procuram, mesmo quando ele está falando com
outros. Algo nele sempre me faz desconfortável. Das intenções ocultas por
trás de cada palavra educada aos nomes que mais parecem lâminas afiadas
trocadas com cortesia.
Talvez isso seja a arte da diplomacia.
— Jamal — diz Lars, com um sorriso que não alcança os olhos. — Não
sabia que já estava de saída.
— Sim, infelizmente. Mas tenho motivos para voltar em breve. — O
comentário paira no ar como uma provocação velada, o olhar dele se desvia
casualmente para mim antes de voltar a Lars. — Para ver a minha irmã, é
claro.
— É claro — diz Yasmin se levantando, com um sorriso, afinal conhece
o meio-irmão de Tatyana há mais tempo que nós, apesar de sabermos que
nunca gostou muito dos três. — Será muito bem-vindo.
Mas Jamal não está interessado em despedidas formais. Ele vira-se
diretamente para mim, o foco de sua atenção claro como o dia.
— Vasilisa, vou a Oslo em breve. Espero que possamos continuar nossa
conversa lá.
Antes que eu possa responder, Lars se adianta e estende a mão para
cumprimentar os outros meios-irmãos, bloqueando a visão direta de Jamal
para mim, de maneira tão sutil que parece quase acidental.
No entanto, o sheik volta seu olhar para mim, e repete, como se quisesse
deixar claro que eu sou o motivo de ter vindo se despedir. — Avisei ao seu
pai que estarei em Oslo, Vasilisa, e fui convidado para jantar em sua casa.
Lars aperta o maxilar.
— Ouvi a primeira vez, Alteza, mas eu estudo — digo, a voz modulada
para não soar subserviente, porque já chega meu pai querendo mandar na
minha vida. — Se eu tiver tempo para vê-lo, avisarei.
— Claro. — Jamal ri de forma suave, irritante, como se eu fosse ter
tempo. Dá um aceno e uma última olhada que me faz sentir acuada. — Até
lá.
— Ele é persistente — diz Lars.
— Vocês dois são — digo a ele.
Ele levanta as sobrancelhas.
Porque é verdade. No fundo, ambos são homens poderosos,
acostumados a conseguir o que querem, e agora o alvo deles sou eu.
Não gosto desse jogo de forças, onde o duelo é travado com palavras
que não são ditas, mas que soam tão alto quanto qualquer confronto físico.
— É melhor avisar meu pai que estou aqui, antes que ele vá me procurar
e não me encontre — digo e mando uma mensagem para o celular dele.
— Anota o meu número — diz Lars.
Anoto rapidamente e ele faz o mesmo. Logo meu pai e Melissa também
vêm se despedir de Yasmin e do marido dela.
Mais rapapés desnecessários.
Lars aproveita a oportunidade para marcar território, igual Jamal fez, e
puxa meu pai para um canto, para uma conversa reservada que não escuto,
mas que não dura muito tempo.
Abraço minhas amigas e agradeço o carinho: — Obrigada por tudo, de
verdade.
Yasmin me dá dois beijos e sussurra no meu ouvido: — Não se esqueça
de nos manter informadas.
— Pode deixar.
— Qualquer coisa, me liga — diz Catarina.
Quero muito dar um último beijo na boca de Lars, mas não posso.
Então, cumprimento-o com dois beijos no rosto, como se fosse um amigo.
— A gente se vê em breve — sussurra ele, apertando minha cintura.
Aceno que sim com a cabeça porque minha garganta está fechada com
um nó.
— Vamos, Vasilisa — chama meu pai.
Saio do jardim de inverno com passos pesados.
O vento frio bate no meu rosto e um arrepio percorre minha espinha,
aumentando a sensação de vazio que se instalou.
Olho para trás uma última vez antes de entrar no carro e vejo Lars
parado na entrada. A vontade de correr de volta para ele é quase irresistível.
Ele levanta a mão em um aceno, e faço o mesmo, tentando segurar as
lágrimas que ameaçam cair.
Entro no carro, coloco os óculos escuros e encosto a cabeça na janela.
Melissa pergunta: — Está tudo bem?
— Só queria ter ficado com as minhas amigas — digo.
— Não seja infantil, Vasya — fala meu pai. — Você quis estudar, então
tem responsabilidades. Elas, não.
Como assim? Yasmin é rainha e ministra de Vinterland e Catarina está
estudando para prestar vestibular. Não retruco que ele as está
menosprezando porque não adiantaria.
Sinto meu celular vibrar dentro da bolsa. Quando abro, vejo que é uma
mensagem de Lars.
Cuide-se, Pequena. Em breve, vou te levar para o Paraíso de
novo.

Mas ao invés de me trazer um sorriso aos lábios, o texto põe lágrimas


nos meus olhos, porque algo me diz que não vai ser tão fácil e simples
assim.
Quando passamos pelas grades do palácio e elas se fecham atrás de nós,
meu coração aperta e dói. Muito.
Desta vez, não é porque esqueci de tomar o remédio.
A explosão na nossa usina geotérmica mais importante e uma das mais
modernas do mundo, a Tyrvulkan, no Ártico, provocou um caos tão grande
no reino que deveria ter tirado Vasilisa da minha cabeça. Mas nem no meio
da reunião sobre o apagão generalizado, consigo pensar em outra coisa e
respondo às perguntas de maneira quase que mecânica.
— Podemos tentar outro empréstimo internacional — digo, folheando
os documentos que trouxe sobre a situação financeira atual de Vinterland.
— Com o aporte de Yasmin e de Tatyana, nossas finanças estão melhores…
— Não — corta Thorvald, que está bem nervoso e não é sem razão.
Segurança energética é vital para a estabilidade de Vinterland,
especialmente porque vendemos energia para outros países europeus
menores, que agora também estão à beira de um colapso energético e cujos
presidentes e primeiros-ministros estão desde ontem no pé de Thorvald para
ter uma posição sobre a retomada do fornecimento de energia.
É a nossa economia, imagem internacional, é Vinterland sendo
empurrado para a beira do precipício. Não posso deixar isso acontecer.
Todo o fluxo monetário, essa fonte lucrativa que estabilizou a nossa
economia nos últimos meses, pode evaporar em questão de dias. Horas.
— Tatyana vai dar uma festa para Yasmin semana que vem e vai
convidar as amigas. — Tyr olha para nós três que ainda estamos solteiros e
sugere: — O ideal seria ao menos mais um casamento com uma herdeira
bilionária.
— Todas eram lindas — diz Magnus, que sempre foi o mais disposto a
se colocar no mercado para o casamento.
— E riquíssimas — acrescenta Thorvald. — Já mandei Ragnar fazer um
levantamento de cada uma delas e de suas famílias. Só escolher e seduzi-
las.
Permaneço calado, sem prestar muita atenção nos quatro que mais
parecem adolescentes fofocando sobre as amigas de Tatyana do que homens
poderosos e influentes falando sobre questões sérias e decisões que podem
mudar o rumo do reino.
Rabisco ideias no bloco à minha frente sobre como recuperar a
credibilidade de Vinterland. Revejo as multas dos contratos e acordos
internacionais vinculados a esta usina, que traz recursos que fluem para os
cofres do reino. A falta de um suspeito principal pela sabotagem é um ponto
delicado a ser mantido em sigilo. Se não resolvermos isso rapidamente,
todo o progresso recente estará comprometido. Precisamos consertar a
Tyrvulkan já. As outras duas geotérmicas estão sobrecarregadas e não
suportarão a demanda por muito tempo.
E no meio de tantos números, vejo o nome de Vasilisa de novo.
Na verdade, minha mente devaneia por outras razões.
Não são só saudades.
Depois da primeira resposta vaga à minha proposta e da minha
sequência, o pai de Vasilisa não deu continuidade às nossas conversações,
apesar do meu terceiro e-mail, e isso já tem quase sete dias.
Assim como Vasilisa também está silente.
Primeiro, demorou dois dias para responder à minha primeira
mensagem. Quando o fez, foi com um texto curto e estranho, quase que
cifrado, de que estava bem – o que entendi como não estando grávida – e
super ocupada com a faculdade. Depois, simplesmente não respondeu mais
a nenhuma das minhas mensagens.
Estou muito, muito preocupado com a total falta de notícias.
A menção do sobrenome Romanov me faz prestar atenção na conversa.
É Magnus que está falando, mencionando a prima: — … A de olhos
azuis é Catarina Mikhailovna, que poderia ser a próxima Czarina da Rússia,
se ainda houvesse Czares por lá. O pai é amigo de Putin. A outra, a de olhos
verdes, é Vasilisa Hardrada, descende de russos pelo lado da mãe e suecos
pelo lado do pai.
Sinto a pressão se acumulando nos meus ombros, apertando, sufocando.
— Ambas já são tão ricas, sem falar nas famílias, que o Rei Croesus i
ficaria pobre perto delas — continua ele. — Se Leif quer Catarina, posso
ficar com…
— Não — corto, antes que Magnus termine seu pensamento. — Vasilisa
é minha.
Um silêncio se segue à minha declaração.
Limpo a garganta e continuo: — Isso é, se ela aceitar minha proposta.
Magnus levanta as palmas. — Tudo bem, posso escolher alguma outra.
— Então, Catarina para Leif, Vasilisa para Lars. Vou mandar entregar as
outras pastas para Magnus — diz Thorvald. — Estejam com os assuntos
que elas gostam na ponta da língua para semana que vem.
— A minha não abre a boca. É tímida que só — diz Leif. — Como vou
fazer para seduzi-la?
— Se não consegue conversar, enfie a língua na boca e o pau na boceta
que dá um resultado parecido — diz o General.
Magnus faz um som estrangulado. — Pelos deuses, Tyr, você ainda não
aprendeu nada?
— Tempos difíceis demandam atitudes drásticas. — Dá de ombros. —
Deu certo com Thor.
Segue-se uma discussão acalorada entre os dois. Como sempre.
Magnus não suporta este tipo de comentário e Tyr sempre os faz para
provocá-lo. Parecem cão e gato, esses dois, mas se amam tanto que chego a
ter ciúmes da relação deles. Afinal, Tyr é meu irmão de sangue.
Depois que Tyr pede desculpas, revisamos as possíveis soluções
emergenciais e os riscos econômicos, mas minha mente ainda se desvia.
Alinhamos algumas diretrizes a serem repassadas para cada ministério e
secretarias para garantir uma resposta coordenada, buscando minimizar os
danos e estabilizar a situação o mais rápido possível.
Ainda rolam umas gracinhas sobre Tyr e Tatyana e o furor sexual deles,
mas estou tão preocupado que não consigo participar muito.
— Lars — chama Thorvald.
Levanto a cabeça para encontrar três dos meus irmãos me olhando fixo,
o que me diz que de novo não respondi a alguma pergunta. Onde está Tyr?
— Desculpe, o que foi desta vez?
— Desta vez, nada. Só que você está estranho — diz Thorvald. — Nem
parecia que estava presente…
— Acaso não respondi todas as perguntas de maneira apropriada? —
pergunto.
— Não foi isso que quis dizer, Lars, desculpe se soou assim, mas é que
fico preocupado com você.
Não suporto quando ele começa com essa voz de irmão mais velho
preocupado, tratando-me como se eu fosse aquele garoto perdido e frágil e
precisasse de cuidados e proteção.
Houve um tempo que eu realmente tinha esses surtos, ficava ausente e
preso em memórias dolorosas, perdido em meus próprios pensamentos, mas
com a terapia e muita força de vontade, fui me recuperando, fortalecendo e
evoluindo, aprendendo a diferenciar o que era passado e presente, o que era
real e o que era fruto do meu trauma. Isso passou.
— Estou bem, Thorvald — respondo, firme, porque não preciso da pena
de ninguém. — Apenas pensando em outras possibilidades para resolver a
situação.
— Então, se está tudo bem…
— Comigo está, mas…
Thorvald franze a testa. — Mas?
Troco um olhar com Leif, então decido abrir o jogo. Até porque nenhum
de nós pode se casar sem autorização do rei, logo é melhor que ele saiba de
uma vez que já comecei as tratativas.
Conto que enviei um e-mail com uma proposta preliminar de casamento
para o pai de Vasilisa e digo brevemente, sem entrar em detalhes, o que
aconteceu entre nós.
Thorvald se recosta na cadeira e cruza os braços, claramente
impressionado. Ele sabia que tínhamos trocado uns beijos, que eu estava
interessado na moça, mas não que nós já tínhamos dormido juntos.
Limpo a garganta e finalizo: — Achei que estávamos mais ou menos
alinhados e que ele aceitaria minha proposta. Porque sei que ela estava
interessada…
— E?
— Depois da primeira resposta, na qual ele não se comprometeu, mas
também não me descartou, apesar dos meus e-mails de acompanhamento,
não obtive continuidade — digo, sem esconder a frustração.
Magnus cruza os braços. — Talvez ele esteja considerando outras
ofertas.
— É o que temo — assinto. — Principalmente, porque quando foi
embora, Jamal disse que iria a Oslo visitar Vasilisa. Provavelmente, o pai
dela está inclinado a aceitá-lo, já que não teria que desembolsar um tostão.
Leif arqueia a sobrancelha. — Aquele seboso e misógino, meio-irmão
da Taty?
— Ele mesmo.
Thorvald me observa atentamente. — Você a quer de verdade?
Encaro-o e digo sem vacilar: — Mais do que tudo. Estou disposto a
fazer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, para ter Vasilisa.
Ele troca um olhar significativo com Magnus e Leif. — Neste caso,
talvez devamos reativar a Operação Coração e Coroa.
— Ora, por que não pensei nisso antes? — Expectativa substitui a
ansiedade. — Conquistar a noiva por quaisquer meios necessários, mas
quais?
— Não se trata de só conquistar a noiva, Lars. — Thorvald se inclina
para a frente, coloca os antebraços na mesa e cruza os dedos. — Pelo que
entendi, o pai dela está relutante em te escolher e inclinado a entregá-la a
um noivo machista. Um que não vai aceitar uma mulher… como direi…
usada. Então, precisamos inviabilizar a moça.
— Pelos deuses! — exclama Magnus e se levanta com uma careta de
nojo. — Não preciso participar disso.
— Sente-se! — ordena Thorvald. — Você é a cabeça jurídica do reino.
Preciso dos seus conselhos.
— Não para isso — resmunga ele, mas senta-se novamente, com a cara
amarrada.
— Bom, se ele for daqueles frescos que acham que se a mulher não é
mais virgem, não presta… — dou de ombros e sorrio, recostando na cadeira
—, já era.
Magnus sacode a cabeça. — Vocês não têm jeito mesmo.
— Nós? — pergunto. — Você está confundindo as coisas, Magnus. Só
estou defendendo Vasilisa. Ela estava feliz, não queria ir embora… Queria
ficar. Comigo.
— Tudo bem, mas e se Jamal não se importar com a falta de um hímen
patético, você vai fazer o que Thor fez? Vai enganar a moça e engravidá-la?
— pergunta ele. — E mais… Vai querer ser pai?
Esse meu irmão não é bom na luta com punhos, mas com palavras é
imbatível. Dá um direto de esquerda como ninguém e me joga na lona, sem
ar, sem precisar encostar em mim.
Não pensei nisso. Primeiro, porque não havia considerado nada tão
drástico. Segundo porque a hipótese seria a última a ser considerada, mas é
a melhor de todas.
Passo a mão pelo meu maxilar, que hoje está liso, sem barba,
ponderando a situação.
— Quer saber? Se for preciso, estou disposto a arriscar minha sanidade
para não perder Vasilisa, mas primeiro tenho que analisar se ela pode
engravidar, já que ela tem um problema cardíaco. Não poria a vida dela em
risco.
Isso tira o sorrisinho sardônico da cara dele e o faz ficar sério.
Nada como ser sincero e mostrar o coração para trazer o seu maior e
melhor jogador para o seu lado, não é?
Magnus não é o nosso melhor estrategista – esse é Tyr – mas ele é o
mais inteligente de nós, e sem ele ao meu lado com certeza essa operação
não daria tão certo.
Ele puxa o bloco para sua frente, faz umas anotações e diz: — Isso
muda o cenário totalmente. Vamos montar a estratégia e avisar Tyr.
— Aliás, se ele estivesse aqui, diria que casar com uma herdeira é muito
melhor e mais barato que um empréstimo internacional — diz Thorvald.
— Sem falar que essas mulheres são mais cheirosas, inteligentes e
interessantes que os engravatados do FMI ou do Banco Mundial —
arremata Leif.
— Eu que o diga — resmungo, porque lidei com esses chatos por muito
tempo e dou graças aos deuses em não ter que vê-los por um bom tempo.
Com sua mente afiada e criatividade inigualável, Magnus começa a
traçar um plano que pode virar o jogo a meu favor.
— Vou deixar Astrid — ele se refere a Astrid Rasmunssen, sua
subordinada, chefe do cerimonial e responsável pelas relações-públicas e
comunicações do palácio — de sobreaviso para soltar pequenos boatos para
a imprensa em troca de exclusividades e cobertura favorável.
— Mandei mensagem para Tyr, avisando-o do que decidimos — diz
Thorvald —, e pedindo um dossiê completo sobre Jamal e sobre sua noiva.
— Quanto antes, melhor — afirmo. — O tempo não está a nosso favor.
— Leif, você providencia um dossiê sobre os laboratórios Hardrada —
ordena Thorvald e, com um sorriso satisfeito, apoia as mãos na mesa e se
levanta, encerrando a reunião. — Então é isso: a Operação Coração e Coroa
está em andamento de novo. Daqui a dois dias voltamos a nos ver para
comparar anotações e decidir o que faremos.
Fecho minha pasta e pego meu iPad, aliviado de que estou mais
próximo de trazer Vasilisa para meu lado. Para sempre.
Com esse pensamento, deixo o escritório de Thorvald, determinado e
decidido a vencer.
Mesmo que precise de subterfúgios.
Catarina e eu chegamos ao Palácio Isengard i, a casa de Tatyana, no final da
tarde. Como estamos perto do Círculo Ártico, em meados de abril, o sol
ainda brilha alto no céu e contrasta com a temperatura fria da capital Vinter.
Tatyana e Yasmin estão nos esperando na porta de entrada, ambas
sorrindo de um lado a outro. Provavelmente, estão super animadas com a
festa de aniversário de Yasmin, que acontecerá amanhã aqui.
— Sejam bem-vindas! — exclama Tatyana, abraçando-nos.
Damos pulinhos e gritinhos como se fôssemos adolescentes.
— Espero que tenham feito boa viagem, senhoritas — diz um senhor,
que suponho ser o mordomo. — Sou Taylor e estou à disposição para o que
precisarem durante suas estadias aqui.
— Sim, foi ótima, obrigada — digo, sorrindo, assim como Catarina, que
também agradece.
— Taylor é o nosso mordomo perfeito e vai providenciar em levar tudo
para o quarto que separei para vocês — diz Tatyana e nos puxa para dentro
da casa. — Venham ver como está ficando lindo o salão!
O salão de festas é grandioso, bem no estilo francês, com um teto alto
adornado por lustres de cristal, paredes cobertas por painéis dourados
esculpidos à mão e espelhos antigos, refletindo o brilho das luminárias.
— Uau, Tatyana, está realmente magnífico! — exclamo, maravilhada
com a beleza do lugar.
O ambiente ainda está caótico, com umas cem pessoas indo e vindo,
mas já começa a tomar forma, com o tablado da banda elevado, ao fundo, a
pista de dança transparente iluminada por baixo e mesas e cadeiras sendo
arrumadas. Arranjos de flores estão sendo montados no teto, nas paredes e
em vasos monumentais.
— Amanhã vai ser incrível — fala Catarina. — Como você conseguiu
organizar isso tudo em uma semana?
— Foi fácil. Astrid, a RP do reino, Ingrid, a secretária da Yasmin, e
Jean, o meu secretário, são ótimos e dedicados — responde Tatyana,
sorrindo. — Vem, vamos subir!
— Vai ser um sucesso — diz Yasmin, animadíssima.
— Vai, sim!
Tento compartilhar o entusiasmo delas, principalmente o da dona da
casa, que sai do salão e indo em direção ao vestíbulo, tagarelando sem
parar.
Por ser filha bastarda de um Sheik árabe com uma modelo, décadas
mais nova, sofreu o pão que o diabo amassou no colégio interno onde
estudamos, lugar onde só tinha meninas bilionárias, das supostas melhores e
mais selecionadas famílias do mundo, o que quer que isso signifique.
Provavelmente, só quem tiver QI – quem indica – e um milhão de dólares
por ano para pagar as mensalidades, mais outro milhão para gastar em
idiotices, como roupas, presentes para as amigas e passeios do colégio.
Depois de nos mostrar nosso quarto, vamos para a antessala do Quarto
da Rainha, onde tem um lanche delicioso nos esperando.
— Vamos postar uma foto para fazer inveja às jararacas? — pergunta
Catarina.
Fazemos uma pose abraçadas e ela publica no perfil dela, com a legenda
simples e nos marca.
Enquanto comemos os mini sanduíches e canapés deliciosos, Tatyana
conta como foi a lua de mel e como está animada para sua primeira festa
como uma princesa de verdade.
— Olha isso! Quantos comentários e curtidas — digo, porque meu
celular não para de apitar com notificação.
Eu nem tenho muitos seguidores. Minha conta é relativamente nova.
Meu pai nunca me deixou ter rede social e só permitiu agora porque insisti
que preciso de um perfil profissional.
— Bem-feito para aquelas bruacas do colégio, devem estar se mordendo
por não terem sido convidadas nem para os seus casamentos, nem para a
festa de amanhã — diz Catarina. — Elas puxavam o meu saco porque eu
sou Romanov, mas não gosto de gente metida e chata.
— Aliás, falando em gente chata… — Tatyana volta-se para mim —
Vasya, o que está rolando entre você e meu irmão?
— Nada. Por quê?
— Você sabe que pode nos contar qualquer coisa, não é? — diz Yasmin.
— Claro — digo, franzo a testa, preocupada que ela saiba de alguma
coisa que eu não sei. — Mas por que essa insistência? Eu conto tudo para
vocês.
Ela inclina-se para frente, com um brilho curioso nos olhos. — Fiquei
sabendo que Jamal foi te visitar.
— Ah, isso — falo, aliviada. — Não, ele foi visitar meu pai. Parece que
seu pai quer desenvolver remédios mais baratos para a população e está
interessado em fazer uma parceria exclusiva com os Laboratórios Hardrada
ou algo assim. Não quis me aprofundar para não parecer que eu estava
interessada nele.
— Ah… Tem certeza que é só isso?
— Ele quis sair comigo, mas eu não quis — digo. — Você sabe que seu
irmão não faz muito meu estilo, né? Muito…
— Machista demais — completa ela.
— Isso — concordo.
Ia dizer misógino, mas melhor ficar no machista demais.
— Que rosas são essas? — pergunta Catarina, apontando para um
arranjo de rosas gordas quase pretas de tão escuro que é o vermelho.
— Rosas Dark Prince ii, feitas em homenagem a Tyr — diz ela, com um
sorriso encantado. — O jardineiro-chefe das estufas é um biólogo estudioso
e apaixonado por botânica e está sempre criando flores novas. Acho que ele
tem uma queda pelo General.
— Que tudo — digo, levantando-me e tirando uma do vaso.
— Esses homens de Vinterland são bem românticos — diz Yasmin,
suspirando —, Thor também nomeou um lírio duplo em minha
homenagem.
— Só se forem os casados e os jardineiros, porque Lars de romântico
não tem nada — desabafo. — Para me levar para cama, me disse que havia
feito uma proposta de casamento para o meu pai e, como eu estava… —
sinto meu rosto esquentar —, interessada nele, não quis questionar, mas
depois que fui embora, ele simplesmente desapareceu. Foi como se não
tivesse acontecido nada entre nós. Nem respondeu às mensagens que enviei.
— Jura? — pergunta Yasmin, surpresa. — Estou impressionada. Não é
muito o estilo dele. Sempre que pedi alguma coisa, ele me atendeu na hora.
Me pareceu super atencioso.
— Fiquei bem decepcionada. Pensei que ele fosse diferente.
— Será que aconteceu alguma coisa? — pergunta Tatyana. — Bem, eles
estiveram bem atrapalhados com a explosão da usina. Foi um caos. Nós até
reduzimos a lua de mel.
— Foi mesmo. O que teve de primeiro-ministro e presidente ligando
para Thor pedindo explicações… e Lars é o ministro da economia… —
Yasmin tenta amenizar a situação. — Ficou bem ocupado e…
— Se fosse só no período da explosão e do apagão, faria sentido —
interrompo, sentindo a voz falhar. — Mas e antes?
— Como assim, antes? — pergunta Tatyana, franzindo a testa.
— Ele não respondeu nem à mensagem que enviei para dizer que não
estava grávida. Podia… Sei lá, ter mandado um joinha, um emoji ou um
okay.
Levanto e ajeito a rosa no vaso de novo. Preciso fazer alguma coisa para
não chorar, mas não consigo impedir as lágrimas de brotarem.
Viro-me para elas e falo com a voz embargada: — Quanto tempo leva
para escrever: Ufa, que bom que escapamos desta? Dez segundos? Ou
alguma bobagem fofa depois, do tipo: estou com saudades? Três segundos?
Mas ele simplesmente preferiu me ignorar. Puff, é como se tivesse
desaparecido no ar. Agora, as pessoas estão se habituando a fazer
ghosting iii.
Tatyana e Yasmin trocam olhares e elas e Catarina se levantam e vêm as
três me abraçar.
— Não fica assim — diz minha prima, tentando me consolar.
— Sei que parece pouco caso — diz Yasmin —, mas deve ter uma boa
explicação para isso.
— Quem sabe ele não recebeu as suas mensagens? — sugere Catarina,
tentando encontrar uma solução para o descaso masculino flagrante.
— Como assim não recebeu? — fungo, enxugando as lágrimas, porque
a ideia me parece absurda. — E pior é que mandei umas… sei lá… dez
mensagens. Sou muito idiota mesmo.
— Você mandou as mensagens para o número certo? — indaga Yasmin.
Elas tentam encontrar palavras para me consolar, mas a decepção já está
instalada no meu coração.
— Respondi para a primeira mensagem que ele me mandou — digo,
sentindo a frustração aumentar. — Não tem como estar errado.
— Quer que eu fale com ele? — pergunta Yasmin, me puxando para
sentar novamente. — Ou com Thor?
— Não! — respondo rapidamente, quase em um sobressalto.
Ela me olha preocupada. — Mas, Vasya…
— O que você vai fazer quando o vir? — quer saber Tatyana.
— O que vocês acham? — pergunto. — Porque não sei. Não. Sei. O que
fazer.
E preciso decidir. Porque em menos de duas horas verei novamente
aquele homem sedutor, com seus olhos azuis penetrantes, corpo poderoso,
pegada de matar e um sorriso que me faz derreter, e não sei o que vai
acontecer.
— Acho que antes de tomar qualquer atitude, você deve se comunicar.
Ou esperar que ele o faça — diz Yasmin já se levantando. — Eu vou indo e
espero vocês mais tarde.
— É, acho que é por aí — concorda Tatyana. — Lars não parece ser tão
cabeça-dura quanto Thor ou Tyr.
— Para o bem ou para o mal, vamos ficar lindas e deixá-los de pau duro
— diz Catarina. — Assim, eles pensam menos.
Só minha prima mesmo para me fazer rir uma hora destas. Dispersamos
o nosso bando, combinando de nos ver mais tarde na casa de Yasmin e sigo
com Catarina para o quarto.
Ela vai para o banho e eu para o telefone, falar com meu pai e dar
satisfação que cheguei bem, porque ele é neurótico. Não sei se foi a morte
prematura de minha mãe que o deixou assim, ou se ele sempre foi assim,
mesmo, mas se eu não avisar é capaz de mandar me buscar. Depois corro
para o banho, porque quero estar bonita e cheirosa – não para Lars, claro
que não, para mim mesma.
Uma hora passa voando.
Estou tentando decidir que roupa usar para o jantar de Yasmin e
Thorvald – e obviamente para infernizar o Anjo que tira meu fôlego, ainda
enrolada na toalha, quando Catarina entra no closet, toda perfumada, e
estanca.
— Não está pronta ainda?!
— Não sei o que vestir — gemo.
— Você deve ir de femme fatale iv, mostrando todo o seu potencial —
sugere, sempre com ideias erradas.
Ou seriam certas?
— Não quero me vestir para ele — digo, porque ainda estou na dúvida
de como vou agir.
— Claro que quer. Não começa com esse papo de psicologista…
— Psicóloga! — corrijo horrorizada.
— Quando atrapalha, é psicologista — explica ela, me fazendo rir. —
Nada desse negócio que você tem que se vestir para você mesma e blá-blá-
blá. Faz bem se sentir desejada por um homem — diz ela.
— E se sentir rejeitada, faz?
— Ih… Você está amuada desde que cheguei ontem a Oslo e se não me
contou nada foi porque a peste daquela chata ficou rondando a gente.
Aquela mulher não desgruda nunca, não?
— Não — suspiro. — Agora, deu para ficar me esperando engolir os
remédios na frente dela. Não sei como descobriu que não tomei as pílulas
na noite em que dormi com Lars.
Ela para de remexer nas roupas que estão penduradas no closet e me dá
uma olhada horrorizada.
— Eu, hein?, a cada dia a coisa fica pior para o seu lado. Já pensou em
contratar um advogado e pedir revisão da curadoria do seu pai? Já pensou
em ir morar sozinha?
— Entrar na justiça contra o meu pai? — pergunto horrorizada com a
possibilidade. — Não é como se ele me maltratasse, Cat. E Melissa é só
uma maluca obsessiva, mas é gentil e preocupada comigo.
— A Melistófeles?
Rio com o apelido que ela colocou na minha madrasta quando soube
que eu a comparava com Mefistófeles.
Ela para e se vira para mim. — Mas você não acha que ele exagera de
vez em quando? E ela exagera sempre?
— Ela, sempre. Ele, às vezes — digo. — Isso me irrita, mas não tenho
coragem de entrar na justiça. E também não é como se ele me aprisionasse.
Faço faculdade e… estou aqui, não estou?
— É verdade, está — fala entre irônica e sarcástica. — Vai ver é
implicância minha, né?
Faz uma careta tão feia que me diz que não concorda muito com o que
acabei de dizer, e que continua achando que meu pai e minha madrasta não
são confiáveis, mas enfim… Não acho que meu pai seja tão ruim quanto ela
pinta. A Mefisto de saias, ainda vai, mas papai é só um homem com
interesses desviantes. Faz o que é necessário para obter seus desejos. É
errado, é? Mas não é o que quase todos nós fazemos?
— O que acha deste?
— Não, preto, não — nego.
— Este! Este é perfeito! — exclama. — Lars precisa ver o que estará
perdendo, se não der valor a você.
Ela pega um vestido Gucci, de gaze, com mangas compridas bufantes e
cuja saia nem é tão mini assim, terminando uns quatro dedos acima do
joelho. Com babados no decote, no fechamento e nos ombros, tem por
baixo um forro da mesma cor.
Levanto uma sobrancelha. — Tem certeza?
— Claro! A cor turquesa suave valoriza seus olhos verdes, destacando-
os ainda mais e o modelo é despretensioso… Até que ele te veja de costas
— diz ela, piscando para mim.
Porque, com os babados da frente e a combinação, não dá para perceber
que o vestido é totalmente transparente. Até que eu me vire de costas. É
uma das poucas roupas com decote nas costas que me sinto bem em usar
porque mostra sem realmente mostrar.
— Olha lá, hein?
— Eu garanto que ele vai ficar de quatro… Ou melhor, vai querer te
colocar de quatro!
Meu rosto fica quente só de lembrar nossa última vez.
— Conta! — pede, puxando-me pela mão e me fazendo sentar na
penteadeira e pegando a bolsa de maquiagem dela. — Ele já te pôs de
quatro?
— Jesus, Maria e José! Você não tem filtro, prima?!
Ela ri. — Ah, conta aí, vai! Sou a única de vocês que ainda não fez
nada!
Enquanto Catarina aplica uma maquiagem levinha nos meus olhos,
mudo de assunto para desviar minha mente de Lars e das sacanagens
gostosas que ele sabe fazer.
— Como assim? No seu namoro não rolou nada?
— Nem começou, já acabou — responde ela, com um suspiro. — Mais
um frouxo que ficou com medo do meu pai.
— Ih, mas esse seu pai também, hein? Você fala do meu, mas acho que
o seu é pior — digo para ela.
— Fecha os olhos — manda. Com um suspiro longo, completa: —
Sinceramente?, não sei qual pai é pior, o meu, o seu, ou o da Taty.
— Meninas! — grita Tatyana, entrando no quarto feito um furacão. —
Tenho novidades!
— Ai! Quer me matar do coração?! — exclama Catarina, dando um
pulo de susto e colocando a mão no peito.
— Ué?! A cardíaca aqui agora é você? — pergunto.
— Quase borrei sua maquiagem toda com rímel — reclama ela.
Rio. — Exagerada!
Tatyana se joga na poltrona. — Vocês não sabem!
— Ih, ela pegou a mania da Yás! — fala Catarina, referindo-se ao
hábito que Yasmin tem de anunciar uma notícia importante com: vocês não
sabem ou algo similar.
— É, parece que peguei, né? — Tatyana ri. — Então, deixa eu contar
logo: fiquei sabendo que Leif está interessado em você, Catarina.
— O quê?! — Catarina arregala os olhos e depois põe o antebraço sobre
eles. — Ah, não! Não! E agora? Como vou encarar o bonitão? Vou morrer
de vergonha.
— Para! — digo, rindo. — Deixa de ser fresca! Vai ser muito mais fácil.
Esta timidez dela não é só fachada. Catarina trava mesmo. Conosco ela
é assim extrovertida e doidinha porque nos conhece há séculos.
A gente acha que a grama do vizinho é mais verde, mas não é não. Tem
sempre alguém com um desafio pior que o nosso.
— Concordo — acrescenta Tatyana, sorrindo. — Você é muito mais
extrovertida do que acha e Leif é um fofo.
— Espero que sim — murmura, parecendo que quer se esconder
embaixo da penteadeira.
— Só focar na gente, quando você vir, vai estar íntima dele — digo. —
Relaxa.
— Vai ser difícil.
Então, para distrair a mente de Catarina do problema que subitamente
surgiu, pergunto: — Estou pronta? Podemos ir?
— Um segundo! — Ela pega um gloss rosado e aplica na minha boca.
— Agora, sim. Mais bonita impossível. Coloca isso na bolsa.
— Obrigada, meninas — digo.
Calço scarpins nudes e pego uma clutch v da mesma cor, onde coloco o
celular, o gloss e a caixinha de remédios, para o caso de emergência.
Dou uma olhada no espelho e rodopio, sentindo-me mais confiante.
— Está maravilhosa. Pronta para arrasar — responde Tatyana.
— Ele vai ficar de quatro ou será… — E Catarina pisca para mim com a
brincadeira.
Dou um tapa no seu braço com a carteira. — Para, sua boba!
Descemos as escadas juntas, rindo.
No hall de entrada, encontramos Tyr esperando por nós, impecável em
um blazer marinho sobre uma camisa de algodão branca e calça jeans
escura.
A postura imponente e séria faz a roupa despojada parecer um terno.
Ainda não me acostumei com o marido de Tatyana.
Na realidade, não só com ele. Os irmãos Eisenhart-Gulbrandr são todos
superlativos. Cada um a sua maneira.
— Estou me sentindo um homem de sorte por acompanhar tantas flores
lindas — diz ele.
Mas sem sorrir. Não é estranho?
— Sempre tão cavalheiro — brinca Tatyana, dando-lhe um leve
empurrão.
— Só porque falei a verdade? — retruca ele e oferece o braço para a
esposa.
— Não liguem, meninas, é um Bárbaro Neandertal — diz ela para nós.
— Um dia aprende a ter modos.
Ele suspira.
— Boa noite, Taylor — diz ao chegar na porta. — Não precisa esperar
por nós.
— Sim, senhor, General — diz o mordomo. — Boa noite, Alteza,
senhoritas. Bom jantar.
— Boa noite, Taylor — dizemos em conjunto.
— A carruagem está pronta, princesas. — Tyr abre a porta do carro para
nós e faz uma reverência de brincadeira.
— Olha! — diz Tatyana. — Ele está cheio de gracinhas hoje. Deve estar
querendo alguma coisa.
— Tatyana, comporte-se! — diz ele em voz baixa para ela antes de
fechar a porta.
— Acho que não, Demônio.
— Taty! — sussurro, horrorizada. — Isso lá é maneira de falar com seu
marido? Demônio? Bárbaro? Neandertal?
Ela ri e joga o cabelo por sobre o ombro e diz no meu ouvido: — Ele
gosta.
Não acredito muito, porque ele dá a volta no carro e entra atrás do
volante e não dá mais nenhuma palavra até chegarmos até o Palais des
Amours enquanto eu e Tatyana tagarelamos por ele e Catarina, que, por
estar na presença de estranhos, fica calada.
O mordomo vem pegar nossos casacos e avisa: — O coquetel está
servido no Jardim de Inverno.
— Ih, pelo jeito estamos atrasados — diz Tatyana. — Mas ela não falou
quinze para as oito?
— É que Leif queria conversar um assunto com Thor antes e pediu para
chegar quinze minutos mais cedo — esclarece Tyr.
Catarina arregala os olhos para mim, apavorada.
Ai, Jesus santíssimo, agora é que ela não abre a boca mesmo.
— Tia Taty! — gritam Soren e Sten, os enteados de Yasmin, gêmeos de
quatro anos, que ainda estão acordados, mas já vestidos para dormir, apesar
dos pijamas mais parecerem com roupas para sair de tão bonitos: um
conjunto de malha azul-marinho debruado de azul-céu, as camisas de botão,
com gola e punhos. Dá vontade de apertar muito estes loirinhos.
Eles vêm correndo e agarram a mão de Tatyana, a minha e a da minha
prima.
— Vem ver vi o que Sven ensinou para Brutus! — diz Soren, o mais
falante.
Seguimos os meninos até onde estão Yasmin e Sven e o enorme
cachorro Terra Nova que Tyr deu de presente ao filho.
Brutus – o maior cachorro que já vi, gigante mesmo, e acho que o mais
gentil –, está sentado pacientemente, esperando que deem ordens a ele. É
outro que dá vontade de dar abraços.
— Oi, tia Taty — diz Sven, tímido.
Não sei se é timidez ou se ele é retraído, o que sei é que este menino
lindo merece todos os abraços do mundo. Tatyana se agacha e o envolve
nos braços.
— Oi, querido, tudo bem?
Quando Tatyana se afasta, cada uma de nós se aproxima e abraça Sven,
que fica encabulado e parece ainda mais tímido, mas, em contrapartida
estufa o peito. Ah, o que um pouco de amor e o carinho não fazem, não é?
— Cunhada, meninos — cumprimenta Tyr, que de uma hora para outra
ficou duro feito um pau.
Parece que não sabe como lidar com o próprio filho, nem com os
sobrinhos.
A relação entre pai e filho ainda é bem tensa, mas acho que é natural
considerando tudo o que aconteceu. O pobre garoto tem muito a processar e
colocar em perspectiva e Tyr não sabe como se posicionar.
— Então, o que você andou ensinando a Brutus, Sven? — pergunta Tyr,
todo sério, abaixando-se para ficar da altura do filho.
— A dar a pata — diz, sem olhar no rosto do pai. Ele estende a
mãozinha e diz: — Brutus, dá a pata!
O cão levanta a enorme pata peluda, e põe na mão do menino, cobrindo-
a todinha.
— Ora, muito bem, Sven — elogia Tyr.
Os lábios dele se abrem no primeiro sorriso da noite.
Ele faz um carinho sem jeito nos cabelos loirinhos do filho e na
cabeçorra do cachorro, que abana o rabo.
— Você está fazendo um ótimo trabalho com ele. Continue assim.
E vai se juntar aos irmãos do outro lado do jardim.
— Acho que você precisa abraçar mais seu marido — digo para minha
amiga.
Ela suspira e balança a cabeça. — Ele é um caso sério.
— Bom, acho que é hora das crianças irem para a cama — diz Yasmin.
Segue-se um ah coletivo e comprido.
— Mas não são nem oito horas — diz Soren. — E tio Lars ainda não
chegou. Não podemos ir dormir sem falar com ele que ele vai ficar triste!
Neste momento, Lars passa pela porta, incrivelmente sexy, todo de
preto, blazer, camisa de gola rolê preta e jeans.
Meu coração acelera involuntariamente.
Não reparando que estamos no canto mais longe, vai direto se juntar aos
irmãos.
— Olha! Ele acabou de chegar… — fala Soren.
Os dois mais novos saem correndo, com o cachorrão e Sven atrás, o que
faz Yasmin rir.
— Preciso de uma bebida. Bem forte — digo.
— Mas, Vasya, você não pode beber — começa Yasmin.
— Ai, não começa! Diminuí a dose dos remédios — conto.
Catarina arregala os olhos. — Você ficou louca? Vai que seu coração
para igual à outra vez? E se você morrer igual à sua mãe?
— Para! Pode parar! — Puxo a apavorada pela mão em direção ao
console onde estão copos e bebidas, porque eu realmente estou precisando
de álcool no sangue. — Não vai acontecer nada!
As outras duas seguem atrás, caladas. Sei que Yasmin não concorda
muito com esta bagunça de remédios que eu faço e que a doida da Tatyana
apoia integralmente. Por ela, eu dava uma de louca e não tomava mais
remédio algum para ver no que dava. Mas já vi que não dá para fazer isso.
— Vocês querem tomar o quê? — pergunta Yasmin, fazendo às vezes de
dona de casa. — Não é porque eu estou proibida de beber bebida alcoólica
que vocês não podem se fartar. Tem Champagne, vinho, Acquavit, vodka
para fazer uma capiroska…
— Champagne para mim — diz Catarina.
— Eu quero um shot de vodka.
Pego logo a garrafa de Grey Goose e me servo de um duplo no copinho
longo e fino.
— Za zdorovye vii! — saúdo e viro de uma vez.
— Za nashe zdorov’ye viii! — retruca Catarina.
— Dá para falar inglês? — reclama Tatyana. — Se não, a gente começa
a falar português e vocês não vão entender nada.
— Só brindamos à saúde e vocês que pensam que não vamos entender,
é parecido com espanhol, italiano e francês, dá para entender quase tudo —
debocha Catarina e abre o Champagne com um pop alto, o que chama a
atenção dos homens.
Os olhos azuis hipnóticos e intensos de Lars param bem em cima de
mim e ele franze as sobrancelhas.
Tinha me esquecido do poder do olhar deste homem.
— Ai, meu coração — gemo, baixinho.
Catarina, apavorada, larga a garrafa em cima da mesa e me segura. —
Vasya, você está bem?
— Claro, sua boba, estou brincando — sussurro entredentes e sorrio,
tentando disfarçar o nervosismo. Giro nos calcanhares, ficando de costas
para os homens. — Seja discreta, eles estão olhando.
Yasmin sacode a cabeça e sorri: — Sinto muito em dizer, mas vocês
duas são tudo, menos discretas. Vou levar os meninos para dormir, se não
amanhã para acordar, será uma dificuldade.
— Também vou — diz Tatyana —, não é todo dia que tenho a
oportunidade de ficar com Sven e acho importante me aproximar dele.
— Sobramos — digo para Catarina em russo quando as duas se afastam.
— Será que vamos ser atacadas? Comidas? Devoradas?
Ela faz uma careta e se serve de mais Champagne. — Espero que não
doa.
Rio. — Credo, Cat.
Ela responde baixinho: — Lembre-se do que conversamos mais cedo:
confiança é tudo. Você é poderosa, você pode tudo. Não é ele quem manda
na relação. É você.
Assinto, respirando fundo. Reúno coragem e decido que não vou deixar
que a presença dele me abale. Se ele escolheu me ignorar, não vou dar o
gostinho de demonstrar fraqueza.
— Boa noite, moças — diz uma voz masculina.
Catarina cora e abaixa os olhos.
Viro-me e encontro Leif sorrindo para nós.
— Oi, Leif — respondo.
— Já estão prontas para a festa de amanhã? — indaga ele.
— Ah, não! — Rio, tentando parecer despreocupada, porque de
esguelha vejo que Lars em olhando na minha direção. — Tatyana nos mata,
se não formos de longo. O negócio é sério.
— Por mim, poderiam ir assim, estão lindas — diz, olhando diretamente
para Catarina.
Como minha prima continua a observar as borbulhas subindo na taça de
cristal, ele se vira para mim e pergunta: — Ficou tudo bem com você?
— Sim, obrigada, não senti mais nada — digo. — Foi esquecimento
mesmo.
— Que bom — diz. — Yasmin me disse que você gosta de rosas,
Catarina.
— Verdade — responde ela, baixinho.
— Que sorte então que pedi para o jardineiro-chefe nos esperar com a
estufa aberta — diz, impedindo que ela negue o convite que faz em seguida:
— Vamos até lá?
Ela me lança um olhar de pânico, mas não me convido para ir junto,
porque é óbvio que ele quer ir só com ela.
— Claro — responde, com um suspiro tão sentido que tenho vontade de
rir.
Se fosse um dos irmãos de Tatyana eu até me arriscaria a ir com ela ou
ficaria com pena, mas com Leif? Pena zero.
O problema de Catarina é que ela só se sente à vontade ao redor de
rapazes fracos, em que ela possa mandar e desmandar, e o que acontece
com esses é que depois nenhum deles tem estofo e peito para enfrentar o pai
dela.
Ela sabe que precisa de um homem com H, mas tem medo deles. Não
sei porquê.
Os dois se afastam e fico sozinha. Observo-os partir, ansiosa, porque
não vai demorar para Lars vir atrás de mim.
Mas até hoje lutei contra tanta coisa que me incapacitou, não é agora
que vou desmoronar sob um sedutor.
Decido tomar mais uma dose de coragem líquida.
— Não sei se é bom para pessoas com arritmia cardíaca beber assim.
Ah, pronto. Fica sem falar comigo por mais de uma semana e agora se
sente no direito de me criticar?
Meu corpo safado reage na hora ao perfume delicioso, que me
embriaga, e à voz de veludo, que me envolve: meus mamilos enrugam, meu
sexo fica úmido, inchado.
Minha vontade é de socar o copinho no console – com raiva de mim
mesma e dele –, mas me controlo porque: primeiro, sou educada demais;
segundo, não quero quebrar o cristal finíssimo de Sua Majestade, o Rei
Thorvald; e, terceiro, ainda arrisco a cortar minha mão.
Coloco a delicada taça ao lado do balde de gelo e viro-me para ele,
fixando-me meu olhar mais frio.
— O que eu faço ou deixo de fazer não lhe diz respeito.
Ai. Não consigo acreditar que disse isso.
Sinto o espanto dele – tão grande quanto o meu – com minha resposta
malcriada, mas dane-se.
Viro as costas, pego meu xale e passo por ele sem encostar em seu
corpo. Caminho em direção à porta que leva a uma varanda larga, mas antes
que eu chegue lá fora, ele coloca a mão larga e quente no meu cotovelo e
fecha-a, dominando-me com este gesto.
Este toque simples e íntimo me desfaz de uma maneira vertiginosa e
vigorosa – e, porque não dizer, vergonhosa –, e me faz pensar em todos os
lugares que ele não tocou. Nem beijou, nem lambeu.
Ainda.
— Por aqui.
Ele me leva em direção à outra porta e damos em um canto mais fresco
do jardim, onde a brisa fria da noite entra. Faz com que eu estremeça apesar
do manteau ix de lã que ele tira da minha mão e coloca sobre meus ombros.
— Esse seu vestido é muito fino para Vinter — diz, com a mão agora
espalmada nas minhas costas por debaixo do xale.
Como se não bastasse seu toque, o polegar começa aquele vai e vem
hipnótico na minha coluna, o mesmo do dia do casamento, atiçando meu
desejo.
Respiro fundo, tentando me acalmar. — Não pretendia ficar em um
local frio.
Daqui dá para ver céu limpo, salpicado de estrelas, e ninguém mais
consegue nos ver.
Quando chegamos perto da lareira, onde nos sentamos da outra vez, só
que do lado de fora, ele para, vira-se para mim e inclina a cabeça.
— Ou veio assim para me provocar? — sussurra bem junto do meu
ouvido.
As únicas partes dos nossos corpos que estão se tocando são a mão dele
nas minhas costas e um lado do seu rosto com o meu, mas mesmo assim
meus sentidos estão sobrecarregados.
— Não tenho interesse nenhum em te provocar, Lars — digo.
— É mesmo? Então, se eu fizer isso… — ele traça meu lábio inferior
com a língua e chupa-o entre os dentes —, você não vai ligar, não é?
Meus lábios se abrem – porque preciso inspirar, é o que digo para mim
mesma! –, e ele ri baixinho, invade a boca, e me beija.
Ele tem gosto de Acquavit e homem. Cheiro de Lars e de madeira.
Forte, firme.
Ele traz meu corpo para o dele com gentileza, pressionando-me contra a
parede de músculos e dominando com firmeza, mas sem me machucar.
Já eu o agarro pelos cabelos, puxando-os com força, fazendo-o gemer
de dor. De propósito, para puni-lo.
O poder sempre fez parte de minhas fantasias sexuais, mas eu nunca
soube que poderia usá-lo também. Gosto que ele deixe que eu me sinta um
pouco poderosa. É… libertador. Ao mesmo tempo que me acalma, me
excita. Como se contrabalançasse um pouco a posição desigual não só na
cama, como na vida.
— Senti saudades, Pequena — diz, deslizando a boca pela minha.
— Mentiroso!
Mordo seu lábio com força, beijando-o com volúpia, com raiva. Não
gosto de ser manipulada, enganada, e sinto que ele está fazendo isso agora.
— Juro que senti — enfatiza, abrindo os laços que fecham o vestido de
cima e deslizando a mão para dentro para segurar meu seio. — Diaba
sedutora.
Abocanha um seio sobre o tecido fininho, chupa o bico rígido, morde e
o sopra.
Quero que ele rasgue este vestido e tire sua roupa. Quero sentir seu
corpo contra o meu… sentir seu pau me abrindo, senti-lo todo dentro de
mim.
Quero que ele me empurre contra a parede de vidro e me foda logo.
Solta o mamilo e fecha meu vestido de novo.
— Pelos deuses, Vasilisa — sussurra. — Quase me esqueço onde estou.
Ele coloca a testa na minha e inspira fundo duas vezes.
Emoldura meu rosto entre as mãos. Como se eu fosse uma boneca de
porcelana, frágil, delicada, preciosa.
— Pensei que fosse enlouquecer sem você — sussurra na minha boca.
Soco seu ombro com raiva, porque sinto lágrimas virem aos meus olhos.
— Para, Lars, para! — Ele deixa os braços caírem e dá um passo para
trás. — Já entendi: você quer me foder.
Ele levanta as sobrancelhas.
— Também quero, mas não precisa inventar tanta mentira — sussurro.
— Não estou inventando — diz, aborrecido. — Se alguém tinha que
reclamar de alguma coisa aqui, este alguém sou eu. Você sumiu por dois
dias, mal se dignou a me avisar se estava ou não grávida e depois
desapareceu de novo. Não respondeu a nenhuma das minhas mensagens. —
Ele passa a mão no cabelo e anda para longe. Respira fundo, como se
pensando em algo, vira-se e volta ao meu espaço pessoal. — Não quis nem
saber se eu tinha me explodido junto com a Tyrvulkan. E como se não
bastasse, volta uma completa estranha…
Pisco. — Como assim? Quem não respondeu às minhas mais de dez
mensagens foi você!
— Dez mensagens? — indaga ele, franzindo a testa e arregalando os
olhos ao mesmo tempo.
Em um gesto exasperado, que nunca o vi ter, puxa o celular do bolso de
dentro do blazer e o sacode bem na minha frente.
— Recebi meia mensagem, muito da seca, dois ou três dias depois que
você se foi.
Ele clica no aparelho e me mostra a tela onde tem várias mensagens que
ele me enviou, algumas bem gracinhas.
— Tem algo errado — digo. Suspiro e deixo as defesas baixarem. —
Não recebi nada disso aí.
— Ah, é? Então, quem recebeu? Sua gêmea? Um fantasma?
— Posso te mostrar meu celular também… — Olho para ele. — Parece
que aconteceu alguma coisa… Não sei, uma incompatibilidade, talvez?
— Talvez. — Ele inclina a cabeça ainda na dúvida. — Engenharia é a
área de Tyr.
A voz de Leif e uma resposta murmurada de Catarina vêm de algum
lugar perto, o que me faz dizer: — É melhor a gente entrar.
— Melhor mesmo. — Antes que eu me mova, ele me pressiona contra a
parede de vidro e me beija rapidamente, com volúpia. — Mas não se
engane, Diaba, eu morri de saudades e pretendo mostrar o quanto hoje à
noite.
É o perfume adocicado de Vasilisa e seu corpo macio roçando no meu pau
que me acorda.
— Onde a senhorita pensa que vai? — pergunto no ouvido dela, minha
voz rouca de sono, e firmo a mão na sua cintura, impedindo que escape.
Ela gira a cabeça, os olhos verdes brilhando. — A lugar nenhum.
Estreito os olhos porque o rubor no rosto denuncia que ia a algum lugar,
sim, mas também me diz que era para fazer algo de cunho sexual. Como ela
não costuma tomar a iniciativa, fico curioso e ainda mais excitado.
— Acho bom.
Afrouxo o abraço, deito-me de costas, colocando os braços atrás da
cabeça – para dar total acesso a ela, claro! –, fecho os olhos e relaxo.
Com os olhos fechados, os outros sentidos ficam mais aguçados, sem
falar na minha imaginação, e meu membro empurra o edredom de tão ereto
e duro.
Não demora, ela se mexe de novo, desta vez mais devagar, como se não
quisesse me alertar. Tenho vontade de sorrir da sua ingenuidade e
inexperiência, ao mesmo tempo que estou muito excitado.
Sinto-a se virar na minha direção e descer para debaixo dos lençóis e
então a língua molhada lambe a cabeça do meu pau.
Caralho!
Nada melhor para começar o dia.
Jogo o cobertor para a beirada da cama, descobrindo-a, e estendo o
braço e rodo o dimmer i do abajur, acendendo apenas um pouco da luz. O
suficiente para ver o espetáculo, mas não muito para não a deixar
envergonhada.
Quando ela engole a cabeça e chupa, agarro seus cabelos e gemo: —
Que delícia essa boquinha, Diaba. Agora, mais fundo. Vamos!
Guio sua cabeça e ela obedece, deslizando-me mais para dentro, olhos
verdes inocentes grudados em mim e saber que sou o primeiro boquete dela
faz a experiência diferente de tudo que experimentei antes.
Seus dedos, lábios e língua me comandam com carícias suaves e
safadas.
Ela me toma mais. Até a metade. E mais um pouquinho.
— Mais — rosno, levantando os quadris, empurrando-me na sua
garganta.
Ela geme e a vibração me deixa a ponto de explodir.
Porra!
Essa menina pequena e delicada, com meu pau entre os lábios, tem todo
meu prazer em suas mãos. Neste exato momento, sou todo dela.
Isto me atinge bem no meio do peito.
— Vem aqui, sua gostosa… — sussurro e puxo-a para cima de mim,
beijando-a na boca.
Porque preciso do controle de novo.
Rolo com ela, bocas coladas, braços, pernas e corpos entrelaçados e
deito-a na cama sob mim.
Enfio os dedos sob o sutiã desse… baby-doll – ou só os deuses sabem
como se chama essa camisetinha deliciosamente indecente e sedutora de
renda e seda – e tiro seus seios de dentro dos bojos, apertando os globos
macios nas minhas palmas.
— Você fica linda nessas camisolas e lingeries sexies ii.
Estendo o braço, pego o hidratante que ela pôs ontem à noite em cima
da mesa e deixou minha imaginação a mil. Encho a mão com creme e
começo uma massagem nos seios fartos. Aliso e belisco os mamilos
rosados, brincando com eles.
Ela arqueia o torso e geme: — Ai, Lars, que delícia!
Então, ajoelho-me sobre ela, com as pernas do lado de fora do seu
corpo.
— Agora, vadia, aperta bem as tetas — ordeno, rouco, e lambuzo meu
pau com mais creme e enfio-o entre os globos, por debaixo da camisolinha.
— Vou fazer a espanhola antes de te foder.
A pressão do meu peso sobre o dela imobiliza-a e domina-a
completamente. Ela está à minha mercê, o cabelo longo espalhado pelos
travesseiros, e isso me enlouquece.
Inclino-me, agarro sua nuca e puxo sua cabeça para cima.
— Vou te marcar toda.
— Vem, me usa — pede, apertando mais os peitos.
Começo um vai e vem rápido com os quadris, fodendo seus peitos como
um louco, tarado, porque é assim que me sinto no momento: tarado, meio
louco.
— Ah, Diaba! — grunho. — Sua gostosa.
O prazer dispara pela minha espinha como um raio, vai se acumulando
no meu saco, fervilhando, girando. Loucamente.
Ela estende a língua e lambe a cabeça do meu pau.
— Porra!
O pensamento me falta e me entrego ao clímax. Um vórtice úmido e
quente me puxa para o centro do deleite e gozo, jatos marcando o pescoço e
o colo dela. Ainda duro, escorrego para baixo na cama e puxo suas pernas
para cima. Empurro o shortinho para o lado e meto na buceta encharcada.
— Lars! — grita, quando deslizo inteiro até o fundo.
Tudo com ela é assim: em demasia, ao mesmo tempo, em que tem falta.
Como se toda essa paixão não fosse suficiente.
— Agora, goza, Diaba — rosno, fodendo-a com força e vontade, o tesão
ainda fervendo no meu corpo. — Goza e grita bem alto.
— Ai, Lars. Sim, isso, por favor… — geme, ondulando contra mim.
Alucinada, ela me arranha, esfrega-se em mim, tremendo descontrolada.
— Preciso…
— Fala, Vasilisa — exijo, segurando sua nuca em minha mão, apoiando
minha testa na dela, nossos lábios se tocando —, confessa que me deseja
tanto quanto eu desejo você.
— Confesso — geme, sem parar, sacudindo-se, precisando de mais. —
Eu… ah… Lars!
Circulo o clitóris e, com um grito, ela goza, o corpo retesado.
Toda marcada por mim: o rosto rosado, os lábios avermelhados pela
minha barba crescida, o colo e os seios lambuzados com a minha porra.
Até que ela cai exausta, ofegante, sugando ar, e mesmo assim, toma
minha boca em um beijo. Suave, agora, e lento.
Com gosto de saciedade. De contentamento.
Exatamente como me sinto.
— Acho que desta vez morri de verdade — sussurra na minha boca —,
mas passo bem.
— Que bom. — Rio, mas depois me lembro do susto e resolvo checar:
— Tudo bem com o coração?
— Tudo acelerado — sorri —, mas ele não vai parar. Tomei metade dos
remédios ontem.
Desabo ao seu lado, preocupado. — Vasilisa! Metade? Por que não
tomou inteiro?
— Porque eu fico apalermada, lenta, com a sensibilidade diminuída —
conta. — Não gosto de me sentir assim.
Pego uns lenços úmidos no kit que tem na cabeceira e limpo-a. — Já
conversou isso com seu médico?
— Já, mas ele insiste que tenho que manter a dose — diz, suspirando e
se aconchegando em mim. — E aí, quando contei que já tinha feito uma
experiência por conta própria, ele contou para meu pai e eles resolveram
aumentar a dose. Agora, para tomar metade, eu tenho que abrir a pílula e
separar o pozinho. Dá muito mais trabalho e o sabor é horrível.
Tenho vontade de sugerir a ela que faça uma consulta com o médico que
cuida de nós, mas não sei se estou me intrometendo muito. Vou conversar
com Leif primeiro.
— Descreve como você se sente quando toma o remédio inteiro —
peço.
— Embotada. De uma maneira um tanto ridícula, a sensação é de não
ter medo de nada. Nada me apavora, me atinge, me emociona. Se você
disser que vai me matar, eu vou dizer que está tudo bem. Se você me pedir
em casamento, também vai estar tudo bem. E se o mundo estiver acabando,
eu vou sorrir e não me importar. Fico super zen.
— Zen?! Você acha que fica zen?!
A raiva que sinto não pode nem ser expressa em palavras, não sei se o
pai dela sabe, mas pelo jeito, sim, ela está sendo dopada e nem se deu conta.
— É, ao menos os batimentos permanecem baixos e inalterados — diz.
O que mais ela tem deixado de sentir? O que está sendo sufocado sem
que ela nem perceba?
— Podemos voltar a dormir? — pergunta, no meio de um bocejo.
— Podemos.
Ela vira de costas para mim e se encaixa certinho no meu corpo.
— Me abraça? — pede.
Deitada bem aqui, o cabelo bagunçado, parece um tanto encantadora,
um tanto perdida e precisando de alguém que a proteja.
Urgentemente!
Faço o que pede e prometo: — Sempre, Pequena.
Essa mulher está mexendo comigo de maneiras que ainda estou
tentando entender.
Dou um beijo na marquinha roxa bem na base de seu pescoço, resultado
do nosso sexo de antes de ontem à noite, e que fez com que ela tivesse que
passar maquiagem para cobrir, já que o vestido tomara que caia que usou na
festa de aniversário de Yasmin deixava os ombros à mostra.
Ela estava linda, a mais bonita das mulheres.
Aliás, o verbo e o tempo verbal estão errados: ela é linda. Mais do que
linda, ela é…
O quê?
Não consigo encontrar uma definição exata que caiba para ela. Há algo
intangível, algo que não se expressa com palavras. Vasilisa é feita de força e
fragilidade, de uma luz que me cega e uma sombra que me intriga. Ela é um
mistério que eu quero decifrar e proteger ao mesmo tempo.
Em menos de um minuto, sua respiração se aprofunda, mas as perguntas
latejam sem parar na minha cabeça.
Esses remédios não estão apenas controlando uma condição médica;
eles a estão controlando por completo.
O que estão dando a ela? O que quer que seja, tenho a sensação de que
não é só para o bem dela.
Não posso ignorar isso, mas se eu intervir, ela pode me ver como mais
um tentando controlar sua vida.
O jeito como ela se encaixa em mim agora, pedindo por conforto, me
mostra que ela confia em mim de uma forma que talvez nem perceba ainda
e eu fico preso entre querer protegê-la e não querer controlar suas escolhas.
Preciso de provas, de alguém que possa confirmar minhas dúvidas.
Leif. Ele vai saber o que fazer.
Eu a observo dormir, sentindo o peso dessa responsabilidade crescer:
esses remédios podem apagar parte de quem ela realmente é.
Fecho os olhos, deixando a incerteza se dissolver por um momento.
Volto a acordar com Vasilisa se mexendo, tentando escapar da cama.
Seus movimentos são super lentos, como se não quisesse me acordar.
— Já está você escapando de novo — reclamo, meu corpo já está em
alerta.
— Nossa! Seu sono é muito leve — fala, impressionada.
Sim! Desde aqueles dias na floresta, meu sono é muito leve, mas não
digo isso para ela.
— Aonde você vai agora?
— Preciso tomar um banho antes de descermos para o café da manhã, já
que você me lambuzou toda — ela sorri, tímida —, e pensei em te deixar
dormir mais um pouco.
— Prefiro aproveitar cada momento ao seu lado — respondo,
levantando-me.
— Só se prometer se comportar.
— Não posso prometer nada — brinco, aproximando-me e envolvendo
sua cintura e puxando-a para um beijo. — Bom dia, minha princesa.
Porque é isso que essa mulher vai ser: minha princesa e quero que seja
logo.
Sigo-a para o banheiro e cumpro minha promessa, porque dormi mais
do que o normal e já são quase dez e trinta. Com certeza, a família, que
ficou por aqui já que a festa acabou tarde, deve estar tomando café da
manhã. Até porque somos todos madrugadores.
Pronta, Vasilisa está estranhamente quieta, escovando o cabelo e
olhando fixamente para o espelho, com certeza não enxergando nada do que
está fazendo.
— Pequena, está tudo bem? — pergunto, percebendo que ela está
pálida.
Ela pisca algumas vezes, como se voltasse à realidade. — Sim… só…
estava me lembrando da facada. Será que Tatyana está bem mesmo?
Não é fácil presenciar um atentado, ainda mais de uma amiga.
Principalmente, quando se está desprevenido. Tatyana, Yasmin, Catarina e
Vasilisa foram inaugurar um orfanato e enquanto estavam interagindo com
as crianças, um terrorista se infiltrou e o caos tomou conta.
Tiro a escova de suas mãos e coloco na pia. Giro-a de frente para mim
e, com as mãos em seus ombros, pergunto: — Você está?
— Estou, mas ainda estou impressionada e um pouco assustada com a
rapidez com que tudo aconteceu. — Ela suspira, apoiando-se em meu
ombro. — O terrorista atacou Tatyana tão de repente. Eu estava
praticamente ao lado dela e nem vi, nem percebi que havia alguma ameaça.
Envolvo-a nos meus braços. — Sei como é, mas ela deve estar bem ou
Tyr já teria feito um estardalhaço para chamar Leif e nós teríamos escutado,
porque ele está no quarto ao lado.
Ela levanta o olhar para mim. — Como pode acontecer algo assim? Em
um lugar cheio de seguranças?
— Infelizmente, há um grupo que há décadas tenta desestabilizar a Casa
de Gulbrandr e a monarquia em Vinterland. Dois dos nossos tios foram
mortos em atentados. Tyr está montando uma grande operação para
descobrir quem está por trás disso — explico. — Acostumamo-nos a estar
sempre alertas, mas isso não é fácil. Nosso maior medo é de que algo
aconteça às crianças.
— Ah, nem fala nisso, Lars! — Franze a testa e faz um carinho no meu
rosto. — Deve ser difícil viver sob essa constante ameaça.
— Muito — digo, encarando-a —, mas não vou deixar que nada
aconteça com você.
— Não estou preocupada comigo, mas com você e com os meninos —
diz, abraçando-me.
— Também não vai acontecer nada com eles. — Beijo sua testa. —
Vamos? Não quero que nos esperem para o café.
Ela concorda e saímos do quarto de mãos dadas, algo que nunca fiz com
mulher nenhuma.
Descemos as escadas em direção ao salão principal.
Ao entrarmos, sou surpreendido pela presença da família inteira de
Tatyana, sentados e integrada com a minha, tomando café. Em mesas
separadas para homens e mulheres, porque machistas do jeito que são não
devem achar o assunto das mulheres interessante, o que é de uma
ignorância a toda prova.
No entanto, eu não deveria me espantar que viessem visitá-la. Ao
menos, os pais. O Sheik Omar foi criado culturalmente diferente, mas é
nítido que ama a filha e a amante – ou melhor, a companheira –,
loucamente. Só não sabe como lidar com isso de maneira civilizada.
Mas até os três meios-irmãos? Que história é essa? Uma pontada de
desconfiança cutuca minha mente: eles estão interessados nas amigas da
irmã, isso sim.
Assim que Jamal vê Vasilisa entrando ao meu lado, levanta-se e vem em
nossa direção, o que faz com que meu sangue ferva nas veias.
A mera ideia de competição me irrita profundamente; não suporto a
possibilidade de outro homem tentando se aproximar dela.
Ela titubeia e passo o braço pelas costas dela, deixando minha mão
pousar na sua cintura, para, além de a apoiar, marco meu território.
Mas isso não detém Jamal, que avança com confiança e se inclina, e
tasca dois beijos no rosto dela, o que é completamente fora do padrão para
um árabe, que em seus países evitam tocar em mulheres e até as encarar
quando falam com elas – vai entender! –, mas o contato físico entre dois
homens – andar de mãos dadas, cumprimentar com beijo no rosto ou sentar
no colo iii – Cruz credo! –, é normal.
— As-salámu Alaikum iv — cumprimenta ele, com um olhar cheio de
segundas intenções. — É muito bom te ver de novo.
— Alaikum As-Salaam v — responde ela, um pouco surpresa. — Não
esperava encontrá-lo aqui.
— É, não sabia que estava em Vinterland — interfiro, porque a presença
dele me incomoda.
— Cheguei agora de manhã. Não poderia deixar de vir ver como está
minha irmã depois que ela levou uma facada — explica, lançando-me um
olhar tão rápido que chega a ser descortês. — Ficamos muito preocupados
com a falta de segurança desse atentado.
Acho que Vasilisa percebe que não gosto da cutucada e tenta mudar de
assunto: — Fico feliz que Tatyana tenha sua família por perto neste
momento.
— Precisamos colocar a conversa em dia, nós dois, Vasya — sugere ele.
— Quem sabe depois do café?
Antes que ela possa responder, subo a mão da sua cintura para seu
ombro.
— Na verdade, ela já tem compromissos agendados hoje — digo,
olhando diretamente para ele. — Com sua meia-irmã.
Como Jamal mantém o sorriso, não sei. Se fosse eu, já tinha fechado a
cara, mas eu não sou uma cobra como o homem à minha frente. Estou mais
para um leão.
— Compreendo — diz, e sua expressão se amplia, enquanto um leve
brilho de desafio surge em seus olhos antes de se desviarem para ela —,
mas com certeza você vai arrumar uma horinha para mim, não é?
Vasilisa parece desconfortável. — Quem sabe?
— Claro. — Ele inclina a cabeça em assentimento. — Pode ser em
Oslo, também. Estarei lá na semana que vem.
Faz questão de me provocar, exibindo um esgar insolente e provocador,
enquanto deixa claro que está mexendo no que é meu.
Depois, inclina-se para ela e aí, sim, sorri e diz: — Você tem meu
celular. Aguardo sua mensagem.
Li uma vez, em algum lugar, que não havia nada mais obsceno que o
rosto humano vi, que do pescoço para baixo nenhum outro órgão precisava
de folhas de parreira para tapar suas vergonhas e, diante das expressões na
cara desse filho da puta, tenho que concordar em gênero, número e grau.
Se eu fosse mais jovem, talvez tivesse esmurrado sua cara, mas já estive
em situações muito mais desafiadoras na vida para cair em armadilhas
patéticas feitas por boyzinhos mimados e riquinhos que não sabem como se
portar na frente de uma mulher que merece respeito e consideração.
Olho para Vasilisa brevemente, bem próxima ao meu corpo e com meu
braço passado por suas costas, meus dedos fechados em torno do seu
ombro, possessivamente, antes de retornar meu olhar para ele, sério, e o
encarar.
Se tem alguém perdendo essa guerra, esse alguém é ele.
Ele acaba por desviar o olhar e se afastar.
— Lars! Sério! — murmura Vasilisa, entredentes, assim que ele está
longe o suficiente. — Isso era mesmo necessário?
— Não gosto dele — admito —, e não o quero perto de você.
— Jamal pode ser um pouco insistente, mas sei me cuidar e posso lidar
com ele — afirma ela, com firmeza. — Não precisa se preocupar.
— Não posso evitar — digo, putíssimo.
Talvez tenha exagerado para quem não tem um relacionamento
estabelecido? Talvez, mas foda-se.
Aliás, isso é algo que quero resolver antes dela ir embora.
— Vamos? — Ela sorri, aliviando a tensão. — Estou com fome.
Dirigimo-nos à mesa do buffet, servimo-nos e vamos nos sentar com os
demais – infelizmente, separados.
— Bom dia — cumprimento primeiro a mesa das mulheres, onde paro
para puxar a cadeira para Vasilisa.
Tatyana parece completamente recuperada do incidente, mas também,
desde ontem, quando recebeu os convidados escandalosamente vestida
numa amarração shibari que Tyr deve ter encomendado especialmente para
a festa, ela já estava com a aparência bem melhor.
— Bom dia — respondem as mulheres em uníssono.
Sigo para a mesa dos homens e sento-me entre Leif e Tyr, bem distante
do Sheik e companhia.
A conversa flui sobre assuntos leves, mas percebo que há uma
inquietação no ar e logo depois Thorvald se levanta com o Sheik e os filhos
e vão para o jardim, pois os viciados precisam fumar a shisha vii.
Magnus e Tyr são os próximos. Aproveito que Jamal está longe e cutuco
Leif para entramos na roda da mesa das mulheres, mas não conseguimos
nem começar a conversar, porque quando Jamal nota meu movimento,
retorna com um sorriso um tanto debochado para o meu gosto, senta-se
novamente à nossa mesa e gira a cadeira na direção da nossa.
— Vasilisa, querida? — chama, como se fosse habitual chamá-la de
querida.
Vai para a puta que te pariu!
Vasilisa, que estava distraída conversando com Yasmin e Catarina, vira-
se, confusa. — Sim?
— Aquele livro raro que você mencionou quando estive na sua casa. Os
Diários, de Sophia Tolstoy viii, lembra? — diz Jamal, lançando um olhar
calculado na minha direção.
— Eu? Mencionei? — Ela franze o cenho, claramente não se lembrando
de ter feito tal pedido, e seu desconforto é palpável, mas não posso
interferir, já que ela me pediu para deixá-la lidar com essa situação.
— Sim, claro, durante o jantar. Você disse que estava procurando uma
edição boa em russo há muito tempo — continua Jamal, como se quisesse
esfregar na minha cara que ele esteve na casa dela em Oslo, enquanto eu
não.
— Ah, sim. Quero ler sobre a vida dela. Acho que sem Sophia, não
teríamos tantos clássicos assinados por Liev ix.
— Não seja exagerada, ela era só uma ajudante, mas enfim, os diários
devem ser sobre os conflitos do casal e da família, temas que certamente lhe
interessam, como mulher e psicóloga — diz.
Pelos deuses!
Se isso é a maneira dele de mostrar alguma sensibilidade depois daquele
incidente vergonhoso no vestíbulo da última vez, é um imbecil, mesmo. No
entanto, com certeza, é melhor do que tratá-la como apenas uma mulher.
— Eu consegui uma edição rara, de colecionador, e um livro de uma
psicóloga comentando o diário, vai te ajudar a apreciar a complexidade
psicológica e emocional do relacionamento, e os trouxe comigo. Está no
meu quarto. Quer ir pegar?
Isso está indo longe demais! Vasilisa não vai entrar no quarto desse
filho da puta nem amarrada! Nem sobre o meu cadáver!
Vasilisa ri sem jeito, desconcertada, e seu olhar busca o meu por um
breve segundo antes de se voltar para Jamal. — Ah… Pode ser mais tarde?
Estou um pouco ocupada agora.
Só me resta jogar minha última cartada antes que eu perca o controle,
porque minha paciência está no limite.
Recosto-me na cadeira, cruzo os braços sobre o peito, e encaro o
engraçadinho: — Você já leu?
— Tolstoy? Claro…
— Não — interrompo. — Você já leu essa obra que trouxe para Vasya?
— Trabalho muito e meu tempo de leitura é escasso — diz Jamal, dando
de ombros. — Não costumo me interessar por diários femininos.
— Ah, mas deveria. Esse é excepcional — comento, com a voz firme.
— Ilustra como relacionamentos podem ser sutilmente destrutivos. Liev era
obsessivo, opressivo, suas atenções vorazes e incontroláveis e eram difíceis
de lidar para Sophia. Ao mesmo tempo, ela morria de ciúmes dele.
Ele dá um sorriso sem graça. — Mais do mesmo entre casais, não?
— Talvez, se você olhar o envolvimento deles como um produto da
cultura patriarcal, na qual as mulheres devem gravitar em torno dos seus
homens, sejam eles pais, maridos ou filhos — concordo, mas acrescento: —
No entanto, a coisa se agrava quando o… macho em questão era o maior
romancista que já existiu e considerado um profeta religioso por seus
contemporâneos.
Ele ri, mas a expressão se fecha. — Não me diga que você leu.
— Pois é, que coincidência, não?
Na verdade, não li esse diário em particular, mas há alguns anos, tive
um caso com uma russa. Também psicóloga, e também apaixonada por
literatura. Ela leu não só o diário, mas fez questão de discutir cada detalhe
do relacionamento dos dois comigo, mandando umas indiretas – ou seriam
diretas? –, talvez tentando transformar bons momentos de cama em namoro
firme. Eu, porém, não estava interessado em nada mais sério.
— Lars, não sabia que você gostava de literatura russa — diz Vasilisa,
que me olha com curiosidade, surpresa por essa faceta que ela talvez não
esperasse em mim. — E que pensamento fascinante…
— Admiro muito literatura russa, mas li porque compreendo o valor de
conhecer a perspectiva feminina nos relacionamentos. — Faço uma pausa
para deixar as palavras massacrarem meu opositor. — O diário de Sophia
Tolstaya é um mergulho na alma de uma mulher que sacrificou sua própria
identidade por um gênio. A sociedade é injusta com as mulheres, de uma
maneira geral e, principalmente, nós, homens, precisamos ser educados nas
dinâmicas de relacionamentos.
Ele fica me olhando com cara de idiota e, acuado e burro que é, mostra
sua verdadeira cara: — Não é mais do que obrigação de uma esposa se
sacrificar para apoiar o marido.
As mulheres na mesa do lado soltam uma exclamação baixa coletiva. Já
uma risada escapa da garganta de Leif.
— Discordo — digo. — Muitas vezes, não percebemos o quanto nossas
expectativas e pressões podem destruir as mulheres ao nosso lado, mesmo
que não seja nossa intenção. Não nego que Tolstoy era um gênio, mas
Sophia viveu nas sombras dele e nem recebeu crédito nas obras que ajudou
a editar.
— É, você deve se sentir bem culpado por alguma transgressão para
pensar tão bem assim de uma mulher que morreu há mais de um século. —
Jamal finge um sorriso, claramente irritado com a maneira como estou
conduzindo a conversa e se levanta, deixando a cadeira ranger com o
movimento brusco.
Não me digno a responder, porque Vasilisa põe a mão no meu
antebraço, capturando minha atenção.
— Faz muito tempo que você leu? — quer saber.
— Sim, mas temos várias edições nas bibliotecas dos nossos palácios —
respondo, observando o interesse dela aumentar. — Mas podemos fazer
uma leitura em conjunto se você quiser.
— Com licença — diz ele, forçando um sorriso para Vasilisa. —
Depois, não esqueça de passar no meu quarto para pegar os livros, querida.
Vasilisa nem nota a saída dele, mais interessada em mim e no que
acabamos de discutir.
— Então, você acha que livros assim podem ajudar aos homens a pensar
sobre relacionamentos?
— Acredito que sim, se a pessoa estiver disposta. Entender o que não se
vê à primeira vista é essencial. — Inclino-me um pouco mais perto,
mantendo o olhar preso ao dela. — Especialmente para nós, homens, que
achamos que sabemos de tudo. Acabamos percebendo que não sabemos é
quase nada.
Não sei o que foi que eu disse, mas ela põe as mãos no meu rosto, me dá
um beijo na boca e recua, fitando-me bem dentro dos olhos.
— Se você continuar falando assim, eu me apaixono — sussurra.
Fico até tonto com a declaração e a demonstração de carinho, assim em
público, e parece que o mundo some, restando só eu e ela, aqui.
Esses olhos verdes que querem dizer tanta coisa, mas não conseguem.
Pego suas mãos na minha e beijo seus dedos. — Posso continuar, se
você quiser.
A falta de expansividade dela, sua formalidade e jeitinho tímido e
inocente – que se transforma quando estamos a sós – é como se a vestissem
em uma camisa de força e não a deixassem ser ela mesma.
Vasilisa às vezes me lembra uma borboleta presa dentro de uma
crisálida grossa demais, debatendo-se para sair. Temo que não consiga
romper a casca, acabe presa e morra sufocada.
A imagem me dá arrepios e me faz tomar coragem para reformular
minha frase e completar: — Aliás, melhor dizendo, vou continuar e espero
que você se apaixone, porque…
— Vasya!
O grito de Tatyana quebra a nossa bolha e faz com que ela dê um pulo
na cadeira e sacuda a cabeça, como se estivesse hipnotizada.
— Sim?
— Olha isso!
Suspiro. Não sei se fui salvo pelo grito ou se devo enforcar minha
cunhada, arrastar Vasilisa até uma sala à prova de som e trancá-la comigo
por alguns meses. Depois a gente vê no que dá.
Falei da obsessão de Liev Tolstoy pela mulher e estou ficando
igualzinho.
Termino meu café e vou me juntar a Magnus e Tyr, que estão
conversando mais afastados da mesa.
Converso um pouco com eles e Tyr nos pede para dar suporte a Tatyana
enquanto ele estiver viajando para o Ártico durante a semana que entra e
claro que concordamos em fazê-lo.
Magnus vai se juntar a Thorvald lá fora e eu vou conversar com Leif.
— Preciso da sua ajuda. De novo.
Ele arqueia a sobrancelha. — Algo errado?
— Não sei… Lembra dos remédios manipulados de Vasilisa? —
pergunto e ele acena levemente.
Conto rapidamente o que ela me falou e, enquanto Leif escuta, seu olhar
fica mais sério.
Quando termino, concluo: — Todos os remédios dela são manipulados,
o que não faz muito sentido, principalmente porque o pai tem um
laboratório. Tive a impressão que a estão dopando.
— Nunca li um artigo onde um médico recomendava remédios
manipulados para pacientes cardíacos, mas não fiz residência em nada,
muito menos em cardiologia, Lars. Sou generalista com especialidade em
administração hospitalar, é estranho, sim, mas você já considerou que ela
pode ter um parafuso a menos? — pergunta Leif, o olhar incisivo. — Ela
afirmou que não havia recebido suas mensagens e que não havia escrito
aquela mensagem sobre a gravidez que você recebeu. E quando vocês
foram olhar o celular dela, estava tudo lá. Das duas, uma: ou ela mentiu, ou
é doida de pedra.
Suas palavras me atingem com força, porque em nenhum momento após
ver as mensagens no celular dela considerei essas possibilidades.
— Ou ela se esqueceu de ver as mensagens — argumento, com a voz
mais controlada do que me sinto —, e agora, com o que ela me falou, posso
acrescentar que alguém a está dopando e isso dificulta ainda mais sua
concentração.
Leif balança a cabeça lentamente, ponderando. — Bom, também tem
essa possibilidade… mas acho mais difícil.
Franzo a testa. — Difícil? Você acha que ela mentiu?
— Lars, não estou dizendo que ela é uma mentirosa compulsiva, mas
estamos lidando com algo que pode ser psicológico também. — Ele
claramente mede as palavras. — Vasilisa operou o coração cedo, foi
enviada para um internato, perdeu a mãe… Não sei até que ponto isso pode
ter afetado a maneira como ela processa as coisas. Às vezes, o trauma pode
fazer as pessoas criarem realidades alternativas, mesmo que
inconscientemente. Ela pode estar se protegendo do seu interesse por ela
por não querer lidar com perdas.
Será?
Mas é quase impossível ser tão boa atriz para falsificar a surpresa
genuína que ela demonstrou ao ver as mensagens que estavam lá. A
maneira como ela jurou que não as vira…
Enquanto meu coração se recusa a acreditar no que Leif está sugerindo,
minha mente começa a juntar as peças.
— Mas e o fato que ela afirma não ter escrito uma mensagem que
escreveu? Como se explica isso?
— Ela não tem um histórico de problemas psicológicos? Se não me
engano, li algo sobre internações em instituições psiquiátricas no relatório
que Thorvald providenciou — relembra Leif, pensativo. — Só estou
dizendo, Lars, que pode ser uma possibilidade. Se os remédios estão
realmente manipulando a mente dela, a primeira coisa que precisamos
entender é o que está sendo administrado. Mas se for psicológico, é uma
história completamente diferente. Pode ser que, no fundo, ela nem saiba que
está fazendo isso.
Sinto uma mistura de frustração e desespero. Como posso proteger
alguém de si mesma, se for esse o caso? Não quero acreditar que Vasilisa
esteja inventando coisas, mas Leif não é o tipo de pessoa que fala sem
pensar.
— Vamos descobrir o que têm nesses remédios antes de tirar conclusões
precipitadas — digo, com firmeza. — Prefiro considerar todas as hipóteses.
— Justo.
Porque é possível que algo mais esteja acontecendo. Franzo ainda mais
a testa, um pensamento inquietante surge.
— Leif, e se as mensagens dela estiverem sendo interceptadas ou
alteradas? — pergunto, a ideia tomando forma.
Ele me olha com ceticismo.
— Interceptadas? Por quem? Por quê?
— Alguém que tivesse acesso ao celular dela — raciocino — A
madrasta talvez? Talvez com interesse em Jamal e quisesse causar
problemas entre nós? O pai dela é controlador ao extremo. Se ela se casar
com ele, os pais não terão que desembolsar um centavo, muito pelo
contrário, ainda receberiam um valor de dote considerável.
— É, pode ser — Mas o ceticismo ainda está presente em seu olhar. —
Só não descarte a possibilidade de que algo pode estar se passando na
mente dela. Às vezes, a verdade que vemos não é a verdade que os outros
estão vivendo.
— Leif, é o seguinte… não me interessa se ela me quer, se está com
medo, ou se tem problemas mentais ou cardíacos, porque nunca quis uma
mulher e essa eu quero. — Faço uma pausa, medindo minha próxima frase,
porque sei que esse meu irmão e amigo carrega um fardo talvez mais
pesado que o meu. — Nenhum de nós, da Casa Gulbrandr, é santo, muito
pelo contrário. Se essas moças, inocentes e mal saídas da adolescência,
conhecessem os demônios que vivem sob nossas fachadas de Vikings viris,
sairiam correndo e nunca mais pisariam em Vinterland.
Ele me encara por um longo segundo, então finalmente acena com a
cabeça.
Leif me observa por um momento e finalmente assente: — Vou te
ajudar, mas não descarte nada, Lars.
— Obrigado.
Meu irmão me dá um aceno antes de se afastar, mas as dúvidas dele
continuam ecoando na minha mente.
Será que Vasilisa está se protegendo emocionalmente de mim, ou
alguém a está manipulando de uma maneira que vai além do que consigo
imaginar?
De uma forma ou de outra, vou descobrir a verdade.
Mas… e se ele estiver certo?
O vento gelado de Vinterland entra pela lã leve do meu casaco e faz com
que eu feche a cobertura plástica do carrinho de golfe, mas não adianta
muito.
Foi o dia bonito, com sol a pino no céu azul, apesar de ser quase sete da
noite, e as flores enfeitando o gramado perfeito, maculado pela neve apenas
embaixo dos pinheiros mais fechados, que fez que eu viesse pelos jardins
até o Palais des Amours, para onde eu e Catarina nos mudamos depois de
Tatyana brigou com Tyr e achamos melhor dar espaço para o casal, ao invés
de pegar os túneis do subsolo.
Mesmo em meados para final de abril, às vezes parece inverno.
— Cheguei! — chamo, abrindo a porta do Jardim de Inverno.
Yasmin acena para mim, lá do fundo, perto da lareira, pelo jeito o local
preferido dela. — Estamos aqui.
— Oi, meninas — digo, sorrindo.
— Demorou por quê? — pergunta Catarina.
— Lars te encontrou pelo caminho, né? — implica Tatyana. — E te
levou para ensaboar as costas dele?
Ah, pronto, começou a gozação. — Não, fui apanhar um livro na
biblioteca.
— Não liga, Vasya — diz Yasmin e balança a cabeça para Tatyana: —
Você e Tyr não deixam o palácio e a vizinhança dormir, não pode falar de
ninguém.
— Não deixávamos, no momento estou fazendo greve — diz ela,
fazendo uma careta. — Mas já estou com saudades da berinjela do
Demônio!
— Berinjela! — exclama Catarina e reclama: — Ou vocês três
começam a contar os pormenores, ou não quero nem conversa, porque
senão vou morrer de inveja.
— Ih, estou achando que Leif não gosta da fruta — diz Yasmin e
pergunta: — Nada ainda?
— Yás! — Ela, que tem a mesma pele clarinha que eu, fica corada.
Então, sussurra: — Bom, de melão, ele gosta.
— Melão?! — exclamo, horrorizada. — É assim que você se refere aos
seus seios?
— Foi a primeira fruta que me veio à cabeça — diz ela, rindo.
A risada é geral.
Nem entro na brincadeira, se não isso não termina hoje e pergunto: —
Não resolveu seus problemas com Tyr, Taty?
— Não, quem dera. O demônio é uma mula. — Ela suspira. — Mas
tenho boas notícias: combinei com Thorvald de começar a trabalhar no
ministério de Yasmin.
— No Ministério para o Clima, Energia e Serviços Públicos — corrige
Yasmin. — Não é meu ministério e, sim, de Vinterland.
— Ora, excelente, Taty — digo, sorrindo e feliz que ela esteja se
organizando de forma independente. — Preciso de um favor.
— Claro.
Tiro da bolsa um embrulho que contém os dois livros que Jamal deixou
com Vidar, o mordomo-chefe do palácio, para que fossem entregues a mim.
— Você pode providenciar para que isso retorne às mãos do seu irmão?
— digo, colocando-o em cima da mesa.
Depois vou para o console pegar uma bebida.
— São os livros? — pergunta ela, abrindo o embrulho.
Tira Os Diários de dentro, folheia o livro por alguns instantes e depois o
coloca em cima do presente.
— Não quero que ele se sinta com direito a me ligar ou qualquer outra
coisa parecida só porque me deu um livro — E corrijo-me rápido: — Dois,
que seja.
— Posso fazer isso, mas duvido que surta efeito — diz, balançando a
cabeça, porque já conhece os meios-irmãos que têm.
— Hassan veio me perguntar se eu estava namorando — diz Catarina.
— E Mofarrej perguntou tanto à Emily quanto a Charlotte.
— Ai — geme Tatyana. — Será que eles vão atacar todas. As. Minhas.
Amigas? Não conseguem entender que nós ocidentais não gostamos desse
tipo de abordagem, nem do estilo de homem que eles são?
— Hassan nem é de todo ruim, acho que puxou mais ao seu pai, mas
Mofarrej e Jamal são hors-concours i — digo, com toda educação possível,
porque não dá.
Termino de me servir de Champagne e volto para onde elas estão,
refastelando-me no sofá.
— Nem me fala — diz ela.
— Às vezes, acho que deveria ser obrigatório para que os homens
pudessem se casar, fazer algum tipo de curso sobre relacionamentos e como
tratar as mulheres — digo.
Brutus levanta a cabeçorra e late, como se concordasse comigo, e nos
faz rir.
Ficamos jogando conversa fora até que uma batida na porta e um: —
Com licença — vindo de uma voz masculina, nos interrompe.
— Chegou seu par — sussurra Tatyana.
Viro-me e encontro Lars caminhando em nossa direção, o sorriso
charmoso e os olhos azuis que brilham intensos fazem meu coração
acelerar.
Ele veste um casaco azul-marinho comprido até o quadril sobre uma
gola rolê grossa turquesa e calças jeans escuras.
— Boa noite — diz ele, parando diante de nós. Seu olhar fixa-se em
mim, mas ele se dirige à Yasmin e fazendo uma reverência zombeteira,
avisa: — Majestade, vim roubar sua dama de companhia por umas
horinhas.
— Claro, Alteza número dois, mas não a mantenha ocupada por muito
tempo — brinca Yasmin, piscando para mim. — Precisaremos dela mais
tarde.
— Prometo devolvê-la sã e salva — responde ele, com o sorriso
charmoso que distribui com facilidade. — Devidamente jantada.
As meninas riem e meu rosto esquenta com o duplo sentido.
Tatyana avisa: — Acho bom que ela volte inteira, também.
— Já isso não posso prometer — brinca ele, piscando para minha
amiga. Estende-me a mão. — Vamos?
Levanto uma sobrancelha e olho para ele de soslaio, porque ele não
perguntou a mim se eu queria ir. — Onde?
— Você vai ver — responde, enigmático, e pega minha mão na sua,
quente e firme. — Prometo que você vai gostar.
— E se eu não gostar?
Ele franze a testa e se vira para Yasmin. — Ela sempre foi tão
combativa assim?
É Catarina que responde: — Quando está longe da influência negativa e
controle sufocante do pai, ela é mais leve, mais espontânea. Essa é a
verdadeira Vasilisa ou o mais perto que você vai conseguir conhecer
enquanto ela não se liberta completamente das amarras dele.
— Cat! — reclamo, porque ela sabe que eu não gosto que fale assim tão
abertamente sobre meus problemas familiares e expondo minhas
vulnerabilidades, e pior, na frente dele.
— Ué?! Estou mentindo? — pergunta ela.
As sobrancelhas dele se juntam. — Não entendi.
— Catarina não gosta do meu pai — digo para ele e, mesmo sem saber
aonde vou, aceno para elas, porque preciso tirá-lo daqui urgentemente: —
Vejo vocês amanhã.
Caminhamos em silêncio até um carro com motorista, que está nos
esperando, na porta da casa de Yasmin.
— O que Catarina tem contra seu pai? — pergunta assim que
começamos a nos mover.
— Ela o acha muito protetor e controlador — explico, suspirando. —
Sem falar que o pai dela, meu tio, que era irmão da minha mãe, tem horror
ao meu pai e encheu a cabeça dela com histórias negativas sobre a morte da
minha mãe.
— Ela morreu muito cedo, não foi? — pergunta, apertando minha mão.
— Sim, mas eu já nem tinha mais contato com ela, porque segundo meu
pai eu era um fator de estresse para o coração dela e já tinham me enviado
para o colégio interno.
— Como?
Ele fica me olhando por uns segundos e vou explicar, pensando que ele
não entendeu, quando a expressão do rosto dele se fecha, sua mandíbula
trava, e seus olhos azuis escurecem com desaprovação.
— Isso é inconcebível — explode. — Nenhuma criança deveria ser
vista como um peso, Vasilisa, especialmente não por seus próprios pais.
Isso me deixa com um nó na garganta e, ao mesmo tempo, com o
coração quentinho. Gosto de saber que, para ele, as crianças são tesouros
preciosos e devem ser sempre protegidas e amadas acima de tudo.
— É bom saber que você pensa assim — digo, colocando a cabeça no
seu ombro. — Às vezes é difícil conciliar o que sinto com o que sempre
ouvi.
— Óbvio! — Ele me abraça e sinto-o sacudindo a cabeça, visivelmente
irritado, antes de continuar: — Não consigo entender como alguém pode
afastar uma criança da mãe ou que mãe permite isso. É desumano.
Fico em silêncio porque também acho, mas agora não tem mais nada a
fazer com o buraco dentro do meu peito que deveria ter sido preenchido por
abraços, beijos e colo de mãe. Vai ficar para sempre mal remendado.
— Chegamos — diz ele quando o carro diminui a velocidade e para na
frente de uma cancela que dá entrada para uma marina.
— Vamos sair de lancha?
— Vamos — diz ele, ainda mantendo o mistério.
— Pensei que fôssemos jantar fora — digo, olhando para o meu casaco
fino sobre um vestido de malha de lã. Sem falar nos sapatos, nada
apropriados para o mar. — Não estou vestida para sair de lancha.
Ele para, passa o braço pela minha cintura e me puxa para o corpo dele.
— Vamos jantar fora. Al mare. — Lars abaixa a cabeça e, com a boca
próxima à minha, diz: — E você está linda. Para mim, isso basta.
Um beijo e já esqueço das botas de saltos que dificultam andar no píer
de madeira. Mas não demora para que um de meus saltos enganche entre
uma fresta e outra e eu tenha que me abaixar para puxá-lo.
— Ora… — resmunga ele baixinho. — Não é que você tinha razão.
— Não vou dizer que eu te disse — falo, sorrindo para ele quando me
levanto.
Ele sorri de volta. — Não seja por isso.
Sem que eu espere, ele passa os braços a minha volta e me pega no colo.
— Problema resolvido.
— Lars! — grito e me agarro no pescoço dele. — Me põe no chão.
— Quando chegarmos na lancha — diz ele, andando normalmente,
como se eu não pesasse mais do que uma criança.
Cinco minutos depois, ele me coloca no chão.
Não é exatamente uma lancha.
Está mais para um iate impressionante, com linhas elegantes e
modernas, três conveses visíveis, heliponto e detalhes em vidro que
refletem a luz do entardecer. O tipo de embarcação que só um bilionário
possuiria.
Ele cumprimenta o capitão em inglês e me apresenta: — Capitão
Nilsen, esta é Vasilisa, minha namorada.
— Prazer em conhecê-la, senhorita — diz o Capitão Nilsen, com um
leve aceno de cabeça.
Sinto uma mistura de emoções. Meu coração dispara ao ouvi-lo me
apresentar como namorada. Uma parte de mim está emocionada, mas outra
parte está inquieta. Nós não combinamos nada sobre isso. Será que ele está
presumindo demais?
Ele me dá a mão para me ajudar a entrar e a primeira coisa que faço é
tirar as botas – salto alto e lancha não combinam – que um marinheiro
solícito vem logo apanhar e guardar, assim como nossos casacos.
— É bom tirar a meia-calça também — diz ele. — Não temos previsão
de tempestade, mas pés descalços não escorregam.
— Sim, senhor, comandante — respondo, fazendo uma continência.
Ele aperta os dedos na minha cintura e se abaixa, colocando a boca bem
junto do meu ouvido e sussurra: — Gosto de uma moça obediente.
Um arrepio desce pela minha espinha.
Ai, esse homem.
— Por aqui.
As portas de vidro se abrem silenciosamente para nos deixar entrar no
que deve ser o salão principal do iate, decorado com madeiras nobres,
tapetes e mármore italiano com móveis de design exclusivo. Se não fossem
as enormes janelas panorâmicas que oferecem uma vista deslumbrante do
mar e quase imperceptível balanço, quando o iate desliza pelas águas
calmas da baía, eu diria que estamos em algum apartamento de frente para o
mar em terra firme.
— Pedi Champagne para a gente, tudo bem? — diz quando dois garçons
entram e nos cumprimentam com murmúrios.
— Claro — respondo, porque vamos combinar, o que seria melhor do
que isso?
Os rapazes colocam uma garrafa de Champagne já aberta e várias de
água em um balde de prata, que tem o pé fixado ao chão, uma bandeja com
canapés na mesa ao lado onde já estão taças e copos de cristal.
Olham para Lars, que diz: — Obrigado, chamarei se for preciso.
Tão silenciosamente quanto entraram, desaparecem, o que me diz que
Lars orquestrou isso antecipadamente e com detalhes.
Não sei o porquê, mas tudo isso junto à iluminação suave e uma música
de fundo, que criam uma atmosfera sofisticada e sensual, faz meu coração
bater ainda mais rápido. A impressão que tenho é que estou indo para uma
armadilha.
— O banheiro. Aonde é?
Ele me leva por uma escada para o segundo andar, que dá em uma suíte
master toda envidraçada, com lareira, ambiente de televisão e uma cama tão
grande que devem caber uns quatro Lars ali.
— Atrás da cama — diz, referindo-se à parede que faz às vezes de
cabeceira. Esbarra de leve em mim e me deixando saber o quanto está
excitado. — Pode deixar suas coisas aí, porque depois do jantar, vamos
subir.
Meu corpo traidor já esqueceu que minha mente não gostou de ele me
apresentar como sua namorada. Quer ser tomado. Não quer esperar o jantar.
Quer agora. Já.
Encosto-me nele, raspando a bunda em seu pau. — Lars, eu quero…
Suas mãos seguram minha cintura, param meu movimento e me puxam
com força para sua frente.
— Mais tarde, Pequena. Comporte-se, porque tenho planos para nossa
noite — diz, a boca bem perto do meu ouvido. Lambe a minha orelha e se
roça em mim. — Aproveita, tira também a calcinha e o sutiã.
Então, solta-me e vai para a escada, onde para e me dá um olhar de cima
a baixo.
— Não se masturbe, porque eu vou saber — diz e desce.
Fico ali, boquiaberta por um minuto, tão excitada que estou tremendo.
Vou rapidamente ao banheiro, luxuosíssimo, e deixo minha lingerie
dobradinha na poltrona que tem no closet – porque é lógico que num mini-
navio destes tem um walk-in closet – e desço, lembrando-me que devo
conversar com ele sobre o meu novo título: namorada.
Ele está sentado no sofá de frente para a proa e estende a mão assim que
coloco o pé no último degrau.
— Vem aqui, minha princesa — chama, me estendendo uma flûte com o
líquido dourado borbulhante.
Gosto quando ele me chama de minha princesa, mais do que quando me
chama de minha namorada, o que é, no mínimo, ridículo, porque o primeiro
é muito mais sério – e até castrador, já que pressupõe casamento, já que ele
é um príncipe de fato e de direito – do que o segundo, mas sinto um quê de
paixão e desejo quando ele me chama assim. Perto de minha princesa,
minha namorada soa… insosso, aguado.
Sento-me ao lado dele, que passa o braço e me puxa para um beijo.
Breve demais.
— Saúde — brinda, clicando sua taça com a minha. — À mulher mais
encantadora desse mundo.
— Não vou retribuir o elogio, estou zangada com você — digo, fazendo
um biquinho.
Ele ri, mas ao invés de me beijar de novo, bebe o Champagne e aponta
para uma cachoeira meio escondida em uma reentrância de um paredão
gigante pelo qual passamos.
Busco uma maneira de abordar meu incômodo com o fato de ter sido
anunciada como sua namorada, mas não sei como, sem desagradá-lo,
principalmente que dá para perceber que ele se esforçou tanto para que essa
noite fosse especial que isso me trava.
Não sei se o fato de ter sido indesejada a vida inteira pela minha família,
descartada como lixo ou pior, escondida como vergonha, pelos meus
próprios pais, nada mais do que um problema para meus irmãos muito mais
velhos e afastada da convivência do muito mais novo, que faz com que eu
evite dizer o que eu quero e faça tudo para agradar.
Acabo me calando e acho que nada do que meu pai fez nesse último ano
ao tentar me recuperar e reintroduzir na sociedade, como ele diz, vai
modificar o fato que eu fui enxotada de casa durante anos.
Nem todo o fingimento dele e de Melissa vai me convencer que eles me
amam e isso me faz duvidar de qualquer outro gesto.
Tesão, eu aceito. Posso sentir, ver. Tocar.
Amor? Já não sei.
A amizade com as meninas no colégio – Catarina, Tatyana, Yasmin,
Emily e Charlotte –, foi o que me sustentou durante aquele período e eu
retribuí do meu jeito. A opressão de Madre Jutta mal ou bem acabou me
dando foco para terminar os estudos mais cedo. Acabei ganhando a
reputação de estranha. Ou melhor, mais estranha.
Posso culpar meus pais, ou melhor, meu pai por isso? Também não sei.
Teve uma época que até desconfiei que eu podia ser homossexual
porque gostava dos abraços acolhedores das minhas amigas, dos seus
carinhos macios e suaves. Faziam com que eu me sentisse querida.
Acabei me afastando um pouco delas por isso.
Depois entendi que era carência. Pura e simples. Agora, então que
descobri que gosto mais dessa força masculina – dura, firme, forte, que
achei que fosse me repelir –, tenho certeza que era só falta de experiência e
conhecimento do mundo. E de carinho e amor.
Não sei mais se sei alguma coisa.
O céu começa a escurecer com o azul-marinho da noite, o sol descendo
no horizonte, e tingindo o azul com tons alaranjados e róseos exatamente na
hora em que entramos no fiorde.
— Que lindo — sussurro, impactada com a obra de arte magnífica
pintada e esculpida pela natureza.
— Achei que fosse passar a viagem inteira calada — diz Lars.
— Você também estava quieto — respondo.
— Porque você não estava aqui — diz ele, perceptivo. — Estava longe.
Aonde você foi?
— Ao passado — respondo.
Tomo o gole final do Champagne e ele enche de novo minha taça.
Ajeito-me no sofá, um pouco mais de frente para ele e, tomando
coragem, digo: — Lars, tem uma coisa… que queria falar com você.
Ele se reclina, os olhos azuis fixos nos meus. — Claro, diga.
— Você me apresentou como sua namorada — falo, sem rodeios. —
Nós não discutimos isso. Fiquei surpresa.
Ele ergue uma sobrancelha. — Pensei que estivesse mais do que
implícito, considerando nossa conversa no quarto há alguns dias, e que
temos dormido juntos.
— Implícito? — questiono, mantendo o olhar firme no dele. — Gosto
de ter as coisas claras. Não sou fã de suposições, especialmente sobre algo
tão importante.
O sorriso de lado, ao mesmo tempo, provocador e encantador, morre.
Seus olhos percorrem meu rosto. Como se tentasse decifrar meus
pensamentos ou… qual será a minha reação ao que vai fazer ou dizer.
Fico mais nervosa quando o momento se estende e ele não diz nada.
— Você não acha que tenho razão? — pergunto.
— Em parte.
Abro a boca para argumentar, mas não tenho tempo.
— Então, já que estamos falando no assunto… — A mão que estava no
meu ombro vai para a parte de trás do encosto do sofá e volta com uma
embalagem verde-pistache. — Tenho algo para oficializar o nosso namoro.
Mas… Jesus santíssimo! Quem falou em oficializar alguma coisa?
Olho para a caixa, surpresa. — O que é isso?
— É para a mulher que consome meu corpo nas minhas noites
solitárias, que não me deixa focar no trabalho, porque minha mente está
curiosa em saber tudo sobre ela, desde pequenos detalhes, como o que ela
gosta de comer e os filmes que ela gosta de ver, até outros detalhes não tão
puros assim — declara.
Meu coração vem à boca. — Não sabia que tinha esse efeito sobre você.
— Nem eu sabia que uma mulher era capaz de fazer isso comigo —
confessa e põe a caixa na minha mão. — E não sou do tipo que ignora isso.
Com dedos trêmulos, abro o botão e levanto a tampa acamurçada.
Dentro, repousa uma corrente fina com pontos em safiras e brilhantes
onde está suspenso um pingente de flores sofisticado, em uma composição
que desce em cascata, onde os azuis, claro e escuro, das safiras contrastam
com o brilho dos diamantes. O fecho, que foi claramente modificado, é um
símbolo do infinito com asas estilizadas, um design elegante esculpido em
ouro branco ou talvez platina.
— É… é lindo, Lars. — Minha voz sai quase como um sussurro, porque
não esperava algo tão caro ou especial. Dou um selinho nele. — Obrigada.
Amei!
— Posso colocar em você? — pergunta, a voz mais grave.
— Pode, claro.
— Não era bem isso que eu queria, e ia demorar para fazer a minha
ideia, sob encomenda, então pedi para mudarem o fecho — diz, enquanto
me viro de costas, afastando o cabelo. — Queria asas para simbolizar a
liberdade que quero que você tenha ao meu lado e o infinito é o laço que
espero que possamos construir.
Meu coração dá um salto. — Ah, é?
Porque nem tenho palavras para responder a isso e acho que essa
declaração me idiotizou.
Agora está mais do que explícito.
— Claro que é, Vasilisa. Nunca conheci alguém que me intrigasse tanto.
Depois que fecha o colar e que me viro, ele reforça: — Então, você
aceita ser minha namorada?
Então, aceito?
Meu coração está batendo tão rápido que temo que ele possa ouvir.
Tento manter a compostura, mas é difícil diante da intensidade de seu olhar.
— Lars, isso é… muito significativo. Não sei se mereço algo assim. —
Sinto meu rosto queimar. — Não sei o que dizer.
Ele arqueia uma sobrancelha e sorri. — Se não merecesse, eu não
estaria aqui, agora. Então, é só dizer sim.
— É que… tudo isso é tão rápido. Eu…
— Sei que pode parecer repentino — interrompe ele, seu tom firme,
mas não agressivo. — Mas não sou do tipo que perde tempo quando
encontra algo que realmente quer. E eu quero você.
Engulo em seco, minha mente lutando para processar tudo. — Você é
direto, não é?
— Sempre fui. — Ele dá um meio sorriso. — E acho que você aprecia
isso.
— Aprecio. — Não posso deixar de sorrir também. — Mas tem meu
pai…
Ele estende um dedo e o coloca sobre meus lábios. — Não se preocupe
com seu pai. Se você me disser que me quer, resolvo tudo.
Sinto uma mistura de emoções: felicidade, desejo. Medo. Porque eu
conheço Jarl Hardrada e as coisas com ele não são tão fáceis assim.
— Eu… Você sabe que sim, que eu te quero, mas…
Ele franze o cenho, esperando, e quando não continuo, insiste: — Mas?
Respiro fundo. — Pode ser que meu pai não permita que nós tenhamos
um relacionamento. Ele não pode saber que estamos… — Desvio os olhos
para as minhas mãos no colo porque juro que me envergonho de ter que
dizer explicar isso aos dezoito anos —, que nós já fomos para a cama.
Escuto seu suspiro suave.
— Entendo.
— Não sei se você entende. Meu pai é dado a atitudes extremas.
— Prometo que ele não vai saber de nada e que não vou deixar que ele
nos impeça de ficar juntos. — Ele coloca a mão sob meu queixo, erguendo
levemente meu rosto. — Confie em mim.
Os olhos são tão intensos e penetrantes, com um fogo que trêmula nas
suas profundezas, e me pego dizendo: — Tudo bem.
Talvez eu devesse mesmo confiar nele.
Porque, se não o fizer, como vou construir algo entre nós?
Sem falar que Lars é um homem de trinta e um anos, um ministro de
Estado, tem experiência e vai saber lidar com meu pai.
Não preciso ter medo, nem ficar tão ansiosa.
— Então, sim, aceito ser sua namorada, mas prefiro que isso fique só
entre nós dois — peço.
Percebo que ele não gosta muito da ideia, mas ele concorda com um
aceno leve. — Se é isso que você quer, manteremos sem rótulos, por
enquanto.
— Obrigada — digo, sentindo-me aliviada.
— Ótimo! — Seu sorriso se amplia e ele leva minha mão aos lábios,
depositando um beijo suave nos meus dedos. — E bem a tempo.
Entramos por um fiorde magnífico os últimos raios e tons róseos e
alaranjados sumido no azul-marinho e refletindo em uma cachoeira que
parece infinita, as águas prateadas brilhando sob a luz crepuscular.
Seguimos até uma enseada tranquila, onde o capitão joga a âncora.
— Chegamos ao nosso destino — anuncia Lars e estende a mão para
mim. — Vem.
Na proa, há um amplo sofá-cama circular, largo, aconchegante e fundo,
com mantas enroladas na beirada.
Dois marinheiros estão terminando de arrumar o espaço; um deles ajeita
almofadas, enquanto o outro coloca outro balde de prata com uma garrafa
de Champagne e taças de cristal ao lado. Os aquecedores altos já estão
ligados, fazendo com que o ar esteja friozinho, mas agradável.
— Quantos baldes de prata tem esse navio? — sussurro para Lars.
Ele ri e responde baixinho: — Não sei, não sou proprietário do
Jörmungandr ii, mas pelo jeito tem um monte.
Horrorizada, viro-me para ele e continuo, aos sussurros: — Você alugou
esse barco para a gente vir passear?
— Não — balança a cabeça sorrindo. — Pedi emprestado a um amigo
por uma noite.
— Ah, ufa.
— Por quê? — pergunta agora mais alto, porque os marinheiros já
sumiram e nos deixaram a sós. — Você não viria se soubesse que era
alugado?
— Viria, mas é porque deve custar uma fortuna alugar um iate como
esse e sei que Vinterland está com problemas financeiros. Ia me sentir
culpada se você estivesse gastando uma montanha de dinheiro para me
impressionar — raciocino, sentando-me no sofá e afundando nas almofadas
macias. — Não preciso disso.
— Uma moça econômica, isso é bom. — Ele se senta também, recosta-
se e me puxa para o meio de suas pernas, apoiando minhas costas em seu
peito. — Mas saiba que acho que não faz mal algum agradar à mulher que a
gente gosta.
Olho para o céu estrelado. Aninhada em seu corpo, sinto uma paz que
há muito não experimentava. Ou melhor, que talvez eu nunca tenha tido.
Confiar nele seja o primeiro passo para algo maior.
Os lábios dele descem pela coluna do meu pescoço enquanto sua mão
sobe, entra pelo meu vestido, desliza pela minha perna.
— Lars… Alguém pode vir…
— Não vem — diz, baixinho. — Nem se você gritar.
— Como você sabe? — gemo. — Costuma trazer mulheres aqui?
Ele ri baixinho. — Não precisa ter ciúmes, Pequena, nunca vim aqui
sozinho com uma mulher.
— O que quer dizer que já veio com uma mulher e seu amigo. Ele faz
surubas aqui?
A risada é mais alta agora. — Não exatamente, mas vim a várias festas
aqui e, claro que, com trinta anos, já tive outras namoradas, Vasilisa.
Giro para ficar de frente para ele e sento-me em seu colo. — Por que
nunca se casou?
— Porque não encontrei você antes.
— Ah, para… Deixa de ser puxa-saco. Não tinha uma moça que te
interessasse?
— Você quer conversar? Agora? — pergunta ele, levantando a
sobrancelha. — Devo estar fazendo alguma coisa errada.
Sorrio. — Tira o suéter.
— Ora, a mocinha gosta de dar ordens — diz, mas obedece desnudando
o peito musculoso para mim.
Ponho as mãos em seus ombros e vou beijá-lo quando, de repente,
acima de nós, o azul-marinho da noite fica mais claro.
Olho para cima, espantada, exatamente quando o céu explode em tons
esverdeados, avermelhados e violáceos. As cores dançam sobre nós, em fios
de luz, formando cortinas luminosas, num espetáculo hipnotizante.
— Isso… Nossa, Lars!
Fico sem palavras diante da beleza surreal das luzes celestiais, que se
movem graciosamente, como se estivessem realizando um espetáculo
apenas para nós.
— A aurora boreal — sussurra ele. — O Sol está com mais tempestades
do que o normal.
Já tinha visto a aurora boreal antes, mas nada assim tão colorido e
fulgurante, tão explosivo como as chamas que percorrem meu corpo quando
ele beija meu pescoço.
— Já eu fiquei sabendo que são as Valkyrias iii levando os espíritos dos
guerreiros Vikings mortos para Valhalla iv — comento, baixinho, não
querendo quebrar o encanto.
Sinto o sorriso dele contra minha pele.
— As luzes são produzidas pela interação da massa coronal do Sol, que
é um fluxo de gás fervente magnetizado — diz, puxando meu vestido para
cima. — Ao entrar em contato com a magnetosfera…
— Lars!
Ele para de falar e me olha. — O que foi que eu fiz?
Ponho o dedo em seus lábios e sussurro: — Prefiro a mitologia e o sexo.
Ele ri suavemente e me deita no sofá.
É só no dia seguinte que voltamos para Vinter.
— Falei com um amigo no departamento de análises do laboratório do reino
e ele já se prontificou a fazer aquilo que combinamos — diz Leif quando
saímos da reunião no escritório de Thorvald sobre a falha no sistema de
computadores que desligou a usina Tyrvulkan, causando um apagão no
Ártico e norte do país. — Conseguiu as pílulas?
— Ainda não. Ontem, saímos de barco e ela só levou as que ia tomar à
noite e a de emergência. Anteontem, dormimos no meu quarto — explico.
— Como ela só está tomando metade da dose e já tivemos aquele problema
outro dia, achei melhor não arriscar. Vamos dormir no quarto dela hoje ou
amanhã e pego, sem falta, enquanto ela estiver dormindo.
— Vocês estão falando de Vasilisa? — pergunta Tyr, que vem atrás de
nós.
Estranhando o tom, olho para ele. — Sim, por quê?
— Porque ela voltou para Oslo quando nós estávamos na coletiva de
imprensa — diz ele. — Quando deixei Tatyana na sala, a primeira coisa que
Yasmin fez foi reclamar que o pai de Vasilisa tinha mandado o avião para
levar Vasilisa e Catarina de volta, que ele sempre estragava os programas
delas.
— Catarina também? — pergunta Leif.
— Também, parece que os pais delas não se gostam, mas gostam menos
ainda de vocês, pobretões, que ficam se pavoneando com as filhas deles
para cima e para baixo e colocando notas nos jornais — conta Tyr.
— Merda — resmungo, me lembrando da nossa foto aos beijos na suíte
do iate na primeira página do jornal mais lido de Vinterland.
Não foi a primeira que saiu de nós – e de Leif e Catarina –, mas foi a
primeira mais comprometedora.
— Será que foi um tiro no pé essa ideia de espalhar notas pela
imprensa? — pergunto a Tyr.
— Não sei, podemos analisar isso mais tarde. Tenho que correr, porque
vou levar aquela Harpia dos Infernos, que mal está falando comigo, à
obstetra. Se eu souber de mais alguma coisa, aviso.
É, pelo jeito, nós três estamos mal-arranjados.

O suor escorre pelo meu rosto, empapa minha camisa, mas Tyr está
praticamente seco. Tem apenas a testa porejada e umas poucas marcas de
suor nas roupas.
Não é para menos: faz quinze dias que Vasilisa deixou Vinterland sem
se despedir, e além de não atender minhas ligações, não responde às minhas
mensagens nem meus e-mails.
Na sua casa, meus recados deixados com a governanta seguem sendo
dados, ou assim ela me diz.
Quinze dias em que me pergunto o que fiz de errado.
Tyr avança com rapidez, desferindo um jab i que bloqueio mais por
reflexo que realmente por estar prestando atenção. Contra-ataco com um
direto ii, mas ele esquiva com facilidade, sorrindo de lado.
— Concentre-se, Lars — alerta ele, pela segunda vez, com o jeito sério.
Assinto, esforçando-me para parecer confiante e tentando afastar os
pensamentos de Vasilisa e focar no presente. Ele é um adversário
formidável, muito mais experiente, claro, até mesmo por sua formação.
— Você está lento hoje — provoca, pulando nas pontas dos pés, os
punhos levantados na altura do rosto.
— Apenas me aquecendo — retruco.
Ele não se deixa enganar. Em um movimento rápido, aplica um gancho
de esquerda, que acerta meu queixo.
O mundo gira e caio de costas no chão semi-acolchoado. Sinto a dor
irradiar, mas é a dor emocional que me paralisa.
— Merda — resmungo, esfregando o maxilar. — Precisa acertar com
tanta força?
Tyr tira a luva e estende a mão para me ajudar a levantar.
— Não coloquei força. Hoje está fácil demais, Lars — diz. — O
problema é mulher?
Aceito a mão dele, levantando-me com um suspiro.
— Talvez só esteja distraído — respondo, tentando esconder a
frustração na minha voz.
Aceito sua mão e me coloco de pé.
— Distraído com o quê? Ou seria com quem? — Ele estreita os olhos
para mim, com um olhar que mistura curiosidade e preocupação, não
convencido. — Vasilisa?
— Nada importante — desconverso.
Vou até o canto, enxugar o rosto com a toalha e tomar um gole de água
da garrafa que deixei ali.
Tyr me observa por um instante, seus olhos azuis-esverdeados
penetrantes analisando-me. — É Vasilisa, não é?
Suspiro, sabendo que não adianta esconder. — Foi você mesmo que me
avisou que ela foi embora. E até o momento, não disse uma palavra. Não
mandou uma mensagem, nada. Simplesmente desapareceu.
— Nem para saber de Tatyana?
— Nem.
Franze a testa. — Estranho.
— Não é?
— Imagino como lidar com uma mulher assim deva ser frustrante —
diz ele, com um toque de empatia na voz. Vira a garrafa de água na boca e a
amassa na mão, fazendo quase que uma bolinha com o plástico e o joga
certeiro na cesta de lixo a alguns metros. — Prefiro enlouquecer com a
Harpia dos Infernos.
Rio dele, mas a graça acaba logo.
— Frustrante é pouco.
— Talvez ela tenha motivos?
Volta para o centro do ringue em posição de luta.
— Que motivos justificariam sumir assim? — questiono, irritado, não
só com o assunto, mas também em estar visivelmente sem concentração
quando um direto passa raspando pelo meu rosto.
Amparo um chute particularmente forte dele.
— Medo, talvez? — pergunta ele. — Pressões familiares? Sabemos que
o pai dela é controlador.
Esquivo-me do jab e contra-ataco com um direto, que ele evita com
maestria.
— Prometi a ela que cuidaria de tudo. — Rodeamo-nos buscando uma
brecha. Ele finta para um lado e eu para o outro. — Que ela podia confiar
em mim.
— Confiança não se ganha da noite para o dia, Lars. Confiança se
conquista.
Tento um chute, que ele ampara e entra com uma joelhada que me
acerta o estômago.
Dobro ao meio, sem ar.
— Ah, porra! — falo quando recobro o fôlego.
Tyr levanta as luvas, parando a luta. — Já chega por hoje, você não está
prestando atenção.
— Não estou com cabeça. — Respiro fundo, tentando conter a
frustração. — Além disso, com tudo o que está acontecendo no reino…
— Não tem sido fácil para nós — interrompe Tyr, passando a mão pelos
cabelos. — Primeiro a sabotagem na usina, o sequestro de Tatyana, depois a
fuga Arctic…
Ele desce do ringue e começa a se despir, ficando só de sunga e vai para
o chuveirão da piscina.
Também tiro as luvas e roupas ensopadas e jogo-as no cesto de roupas
sujas, e acompanho-o.
Depois da minha ducha, pergunto: — Notícias?
— Já recapturamos quase todos — diz.
E anda para a área da piscina, como se o caso não fosse gravíssimo, e
não o estivesse preocupando e deixando-o acordado, sem dormir, mas,
conheço Tyr. Sei que ele não vai descansar, enquanto não trouxer de volta
até o último fugitivo da prisão de segurança máxima que escapou durante o
apagão que aconteceu há alguns dias.— Errei. — Ele aperta os lábios, um
flash de culpa passando por seu rosto. — Errei feio, Lars, e espero que não
traga consequências.
Olho para ele, surpreso pela admissão. — Tyr, você mandou o exército
para tomar conta da penitenciária.
— Deveria ter mandado o exército, a marinha e a aeronáutica. A
inteligência e a contrainteligência. Todas as nossas forças. Como estou
fazendo agora. Deveria ter feito diferente — diz entredentes. E conclui: —
Como deveria ter feito diferente há vinte anos.
— Não, Tyr!
Engasgo, porque por mais que eu saiba que ele me deixou ali, com os
criminosos, para buscar ajuda, por mais que eu entenda que ele fez o que
achava certo, não consigo lidar com o sentimento de abandono.
Esse é um assunto que ficou combinado tacitamente que não tocaríamos
jamais.
Sempre fui um prodígio e minha mente analítica e matemática, mas
ainda infantil, foi uma bênção e uma maldição porque entrou em parafuso
com o que aconteceu durante o sequestro. Ou, como disse a terapeuta,
acionou um mecanismo de defesa para evitar lidar com emoções complexas
e dolorosas.
Mesmo sabendo racionalmente que Tyr fez aquilo para me salvar, a
sensação de ser deixado para trás por quem eu mais admirava e julgava ser
meu protetor causou uma quebra de confiança tão grande, que
simplesmente bloqueou por meses a minha habilidade de falar.
A culpa não foi dele. Não é.
Eu sei, ele sabe, mas acho que até hoje ele se culpa por ter me
abandonado naquele buraco.
O problema é todo meu, irresolvido, mas ainda que tenha feito terapia
por anos, e que racionalmente saiba que meu irmão fez o que pôde, o
sentimento de abandono está aqui, dentro do meu peito, pulsando e me
corroendo, sendo uma constante lembrança da minha vulnerabilidade.
Sei, conscientemente, que se ele não tivesse fugido, eu não teria sido
salvo.
Tyr arriscou tudo, a própria vida, para buscar ajuda e nos salvar, porque
sabia que ele era nossa única chance. No entanto, quando os homens
descobriram que ele tinha fugido resolveram me punir por isso. Tenho uma
marca feita a ferro quente para provar e isso me deixou com cicatrizes
profundas, tanto físicas quanto emocionais.
— Não foi sua culpa. Você me salvou. A mim, a você mesmo e aos
nossos amigos. Você tinha treze anos, fez o melhor que podia.
— Ainda assim — insiste ele. — Eu era o irmão mais velho. Deveria ter
te levado comigo, ter te protegido. Não sei, deveria ter feito diferente.
Eu vejo a dor nos olhos dele, a mesma dor que carrego comigo. Por algo
que estava fora do seu controle e que me assombra até hoje. Tento encontrar
as palavras certas, mas é difícil.
— Sinto muito. — Tyr coloca a mão no meu ombro, um gesto raro de
afeto. — Sinto muito por ter te abandonado naquela época. Se eu pudesse
voltar no tempo…
— Não podemos.
Quero dizer a ele que não precisa carregar esse peso, que não está
sozinho nessa dor, mas as palavras ficam presas no meu peito, na minha
garganta, qual pedras, que me impedem de dizer a ele que não era nossa
responsabilidade, de nos proteger, vigiar, salvar, grande demais para
meninos de, na época, dez e treze anos.
— Sobrevivemos. — A palavra sai rasgando. — É o que importa.
Sempre fui mestre em esconder minhas fraquezas, em fingir que nada
me afeta, muito mais do que ele.
— Sobrevivemos — concorda. — Mas a que custo?
— Foi caro, mas acho que valeu a pena. — Porque valeu mesmo estar
vivo, apesar de tudo. — Principalmente agora que você tem Tatyana e que
eu quero Vasilisa.
Respiro fundo, tentando controlar as emoções que ameaçam
transbordar. Que ameaçam me afogar. As noites sem dormir, os pesadelos
constantes, a desconfiança crônica. As eternas âncoras que ainda teimam
em me puxar para baixo, porque eu nunca consegui realmente superar o que
aconteceu.
E é justamente este sentimento de desamparo e vulnerabilidade que me
leva de volta a ela.
Não posso evitar pensar nela. É como se uma parte de mim tivesse sido
arrancada e me deixasse à deriva. Tento me concentrar, mas a sua ausência
é um vazio com o qual não sei lidar. A incerteza, o medo de ser abandonado
novamente, tudo isso me consome.
— Sinto falta dela — admito em voz baixa, quase para mim mesmo. —
Às vezes, parece que estou sozinho.
— Não está. — Ele aperta meu ombro. — Sei que não sou o melhor em
expressar sentimentos, mas me importo com você e vou te ajudar a
recuperá-la.
Encaro-o, vendo a sinceridade em seus olhos. — Obrigado.
— Talvez seja hora de procurá-la — retoma Tyr —, pessoalmente.
Descobrir o que realmente aconteceu. Não deixe que o passado defina seu
futuro.
— Pensei nisso, mas não quero parecer desesperado. — Balanço a
cabeça. — E se eu não for suficiente?
Ele me fita, horrorizado. — Lars, que absurdo!
— Sei que tenho meus demônios.
— Não são piores que os meus e olha quem eu consegui…
— A Harpia dos Infernos — brinco com ele.
— Não trocaria por ninguém — diz e sorri, o que é quase estranho nele.
— E acho que você encontrou uma mulher especial, não?
— Encontrei.
Ficamos em silêncio novamente, o peso das palavras apaixonadas
pairando entre nós.
Talvez Tyr esteja certo e seja hora de enfrentar meus medos, tanto em
relação a ele quanto a ela.
Ele sorri levemente. — Às vezes, é preciso engolir o orgulho.
— Fala o homem mais orgulhoso que conheço — retruco, erguendo
uma sobrancelha.
— Touché. — Ele ri. — Mas veja onde meu orgulho me levou.
— Você não poderia prever o que aconteceu.
Ele suspira. — Talvez não, mas se tivesse feito diferente poderia ter
poupado muitos problemas.
Assinto, entendendo o que ele quer dizer. — Talvez você tenha razão.
— Sempre tenho — brinca ele, tentando aliviar o clima.
Dou uma risada curta. — Não exagere.
Tyr abre as portas da área da piscina e vejo que meus outros três irmãos
já estão por lá.
— Bom dia — cumprimento.
Meu irmão mais velho, que está na borda, prestes a mergulhar, vira-se e
vem em nossa direção. — Não tenho boas notícias. Vamos nos sentar.
Faz um gesto na direção da mesa do café da manhã, que está posta no
solarium com vista para o jardim.
Toca a campainha chamando Vidar, que logo chega para tomar nota de
nossos pedidos, que não diferem muito do habitual: omeletes de quatro
ovos, com tomate, cebola, orégano, salsa e cebolinha, cogumelos e queijo
para Tyr, Magnus e para mim e; omeletes também para Thorvald e Leif,
acrescidos de presunto.
— E, por favor, blocos e canetas.
Blocos e canetas aparecem magicamente de alguma gaveta e Vidar se
retira para preparar os pedidos.
Tyr e eu, que somos vegetarianos desde o malfadado incidente, nos
servimos de pães artesanais, queijos locais, chicouté iii e geleias de frutas
silvestres. Magnus, Leif e Thorvald se servem arenque iv defumado.
O aroma de café fresco e chocolate quente preenche o ar quando
pergunto: — Então, qual a notícia ruim do dia?
Thorvald solta a bomba: — Yasmin ficou sabendo por Catarina, hoje de
manhã, quase madrugada, na verdade, que Vasilisa vai ficar noiva do irmão
de Tatyana.
Desta vez, engasgo de verdade e Leif precisa dar uns tapas nas minhas
costas para que eu volte a respirar normalmente.
— Como é? — pergunto rouco, depois de recuperar o fôlego.
As expressões preocupadas ao meu redor são evidentes.
— Jamal e Vasilisa vão oficializar o noivado no final desta semana —
diz Leif, que agora reparo, também não está com a melhor das caras.
— E não me diga que algum outro irmão te passou a perna também?
— Ainda não, mas tanto Hassan, quanto Mofarrej estão interessados em
Catarina — responde.
— Pelos deuses! Dois irmãos competindo pela mesma mulher? —
pergunto, incrédulo.
— Parece que sim — diz ele, suspirando.
Tyr bate com a faca no copo de cristal, chamando a nossa atenção. —
Podemos nos concentrar no assunto Vasilisa, que pelo jeito é mais
premente?
— O que Yasmin te falou exatamente? — indaga Magnus.
— Na verdade, a hora que saí do quarto, estavam as três, Yasmin,
Catarina e Tatyana, histéricas, porque não conseguiam falar direito com
Vasilisa, desde que ela foi para lá, há quinze dias — conta. — Com o
sequestro e tudo que aconteceu, sendo Vasilisa um pouco quieta mesmo,
esqueceram-se dela e como ela responde monossilabicamente, acharam que
estava tudo bem, até que ontem à noite, o pai de Catarina recebeu um
convite formal do cunhado para o noivado e comunicou à filha hoje de
manhã, que ligou para Vasilisa, que não atendeu. Parece que depois de
muita insistência de Catarina, ela conseguiu que o pai ligasse para o
cunhado, pai de Vasilisa, e depois de uma conversa breve, Hardrada disse
que Vasilisa estava muito contente com o noivado.
Ao ouvir essas palavras, sinto como se o mundo tivesse parado.
A notícia é um golpe duro, ao mesmo tempo, que uma sensação de
vazio toma conta de mim, a raiva começa a borbulhar no meu sangue. A
ideia de Vasilisa se comprometendo com outro homem é insuportável.
— É por isso que ela não responde às suas mensagens — raciocina Tyr.
Bebo um longo gole de suco de laranja, sentindo o gelado aliviar a
raiva, mas não a tensão.
A insegurança me corrói por dentro. Será que eu não fui suficiente? O
que fiz de errado?
Essas perguntas ecoam na minha mente, alimentando meu eterno ciclo
de autocrítica e dúvida. A sensação de abandono é esmagadora, e me sinto
traído e desamparado.
— O que pretende fazer agora? — pergunta Leif.
— Ir para Oslo. Encarar a… situação de frente. Não posso perder tempo
— digo, levantando-me.
Estou tonto até. Não quero ser possessivo, mas a ideia de perdê-la para
sempre é insuportável. Preciso entender o que está acontecendo e lutar por
ela, se ainda houver uma chance.
— Vou agora mesmo.
— Não.
Paro no meio do caminho com a palavra disparada por Tyr.
— Sente-se — ordena. — Não aja impulsivamente. Vamos elaborar um
plano.
Obedeço, porque realmente sinto-me confuso, em conflito entre meu
desejo de dar liberdade a Vasilisa e a necessidade de controlá-la para me
sentir seguro.
— O que temos sobre ela? — pergunta ele.
— Não muito — digo.
Magnus franze a testa para mim. — Você mandou investigar Vasilisa?
— Eu mandei — diz Thorvald.
— Li o dossiê por alto — digo. — Não revelou nada alarmante. Ela é
uma jovem inteligente, estudante de psicologia, controlada de perto pelo pai
e pela madrasta. Poucos amigos, vida social restrita.
— Ah, aqueles dossiês — diz ele, lembrando-se das pastas que
Thorvald distribuiu sobre as amigas de Tatyana que estiveram no casamento
de Tyr.
— Posso mandar fazer uma devassa nos laboratórios do pai — diz Leif.
— Posso pedir para hackear os computadores dos escritórios do pai
dela, mas acho que a melhor abordagem é outra… — diz Tyr, abrindo um
sorriso largo.
É raro ver meu irmão sorrir assim, tão abertamente.
— Fico até com medo quando você faz isso — diz Magnus.
Já eu fico mais calmo, porque quando Tyr sorri é porque as coisas vão
ficar feias para o lado do inimigo.
Rio. — Se alguém deveria ficar com medo é Jamal e Jarl Hardrada.
Vidar chega com dois garçons carregando bandejas com nossos pedidos
e interrompemos a conversa momentaneamente.
Assim que saem, Tyr recomeça: — Esse noivado é uma jogada de poder
do pai dela. Sabemos que ele é ambicioso e controlador. Ele deve estar
forçando esse casamento por interesses financeiros ou políticos.
— Sim, não tenho dúvidas disso, escutei uma conversa no corredor.
Conto para eles o que ouvi na outra noite.
— Faz sentido. E se Jamal está envolvido, pode ser ainda pior —
concorda Leif. — Agora, por que ela está aceitando tudo isso? Está de
acordo? Está fazendo joguinho duplo?
— Será que está? — indago a ele. — Você tem insistido nisso. Como
podemos ter certeza que ela não está sendo manipulada?
— Como podemos ter certeza de que está? — contradiz Magnus. — Ela
tem dezoito anos. Vai ter que dizer sim, de livre e espontânea vontade, na
frente de testemunhas na hora do casamento.
— Pode se casar por proxi v — sugiro.
— Não vale se a procuração for inválida — diz Magnus.
— Depende. Um muçulmano, árabe, radical, não está se importando
muito com isso, não. — Encaro-o sem pestanejar. — Ou você não se lembra
como ele a tratou no vestíbulo do palácio?
— Você tem um ponto — concorda Magnus.
— Não vou ficar parado enquanto ele a leva de mim.
— Calma, precisamos agir com cautela. — Tyr corta sua omelete e
coloca um pedaço na boca, mastigando devagar. — Você quer essa mulher?
— Mais do que qualquer coisa que quis na minha vida — digo.
— Ela será sua, Lars — afirma ele.
É uma promessa e Tyr sempre, sempre mesmo, cumpre suas promessas.
— Se o pai dela está por trás disso, não vai facilitar as coisas — diz
Thorvald.
— Isso não é problema — contradiz Tyr. — A operação Coração e
Coroa funcionou bem para você e Yasmin e vai funcionar para ele e Vasya
também.
A primeira esposa do meu irmão era muito mais velha do que ele e o
afastou de nós, quando ele tinha uns vinte anos, e morreu logo depois de
maneira trágica. Nesse período curto, ela forjou Tyr, que já tinha uma
personalidade difícil pelo que passamos juntos, a ferro e fogo, e o
transformou em um homem frio, que faz o necessário para ganhar as
batalhas e as guerras, que luta por todos nós. Ele é a pessoa ideal para se ter
ao lado quando se precisa.
— Claro, estamos nisso juntos — concorda Thorvald e se vira para Tyr:
— Quais as opções que temos no momento, General?
— Deixe-me pensar.
Tyr fisga um pedaço de brunost vi, passa chicouté em cima, e coloca-o
na boca, mastigando-o com prazer.
Posso ver as engrenagens girando na mente dele.
— Dependendo de como estiver o humor da noiva, não temos muitas.
Vamos considerar o pior cenário? Você acha que ela está de acordo com o
que o pai está fazendo?
— Não — digo. — Não posso acreditar nisso. Não depois de tudo que
aconteceu…
— Lars… — Leif balança a cabeça. — E se não for tão simples assim?
E se ela estiver de acordo com o casamento?
— Não acredito nisso. Algo está errado. — Sinto um nó no estômago,
mas não deixo transparecer. — Ela seria incapaz de me descartar desse jeito
sem motivo.
— Talvez ela esteja sendo pressionada — pondera Magnus. — Ou até
mesmo impedida de entrar em contato com as amigas e com você.
— Talvez ela não queira entrar em contato — insiste Leif. — Ela pode
estar fazendo um jogo duplo.
— Ninguém arriscaria a própria vida para não ficar dopada, Leif —
digo e então me lembro das mensagens que não foram entregues, das
ligações não atendidas. — Sem falar, que ela ficou realmente surpresa
quando viu as mensagens no celular. E se as nossas comunicações
estiverem sendo monitoradas?
Tyr olha para mim na hora. — Como assim?
Explico rapidamente o que aconteceu e mostro meu celular. — É
possível haver um terceiro entre nós?
— Sim, é, mas isso é tecnologia de governo — diz, e nem pega meu
celular. — Coisa de alto nível militar, e você está me dizendo que as
mensagens estavam no celular dela e que supostamente ela não viu.
— Sim, estavam.
— E que ela toma remédios fortes e que supostamente a deixam dopada
— diz Leif.
— Sim, ela mesmo me disse isso — tenho que admitir. — Quando está
longe do pai, diminui a dose pela metade. Chegou a passar mal na primeira
vez que dormiu comigo porque não tomou o remédio.
— Então, não vamos deixar a imaginação nos levar tão longe assim. O
que tem de errado aqui que vocês não estão enxergando? Vocês têm o
dossiê à mão?
Acesso o meu celular e passo para ele.
Em menos de um minuto o rosto dele se fecha e os olhos azuis-
esverdeados se levantam para mim, turbulentos.
— O que é?
— Me diz se eu entendi o juridiquês errado — diz ele e estende o
celular para Magnus.
Magnus, que é advogado, pelo jeito identifica o mesmo que ele, porque
fica sério. — Ela é absolutamente incapaz, declarada pela justiça vii.
— Como assim?
Ele esclarece: — Aqui diz em termos técnicos que ela é louca, mas
estão fodendo com a moça porque ela não é louca, nem incapaz.
— Ah! Finalmente! — exclamo. Viro-me para Leif: — Alguém são na
família.
— Não disse que ela era louca — diz ele. — Disse que o dossiê dizia
que ela tinha sido internada em clínicas psiquiátricas.
— Esquece tudo o que falamos até agora. — Tyr balança a cabeça e
firma a boca em uma linha. — Temos que forçar a mão. Nossas opções
serão poucas: nada de casamento na Escócia ou em Las Vegas. Nada do que
ela quiser, ou disser, tem valor. Precisamos horrorizar. Queremos escândalo.
Escândalo? — Mais escândalo? Mas…
Tyr me interrompe: — Magnus pode providenciar isso?
— Posso — diz Magnus, fazendo anotações no celular.
Tendo terminado sua omelete, Tyr se levanta e começa a andar pela
borda da piscina, com as mãos para trás.
— Tyr, ela é discreta. E se ela não aceitar? — pergunto, a dúvida
corroendo minha mente.
— Você não pode deixá-la saber — diz o General, agora em modo
estratégico total. — Não precisa contar a ela o que vai fazer.
Não sei se gosto do seu tom, mas estou disposto a considerar todas as
opções para proteger Vasilisa e garantir o nosso relacionamento.
Até mesmo ideias drásticas. Porque sei que meu irmão é dado a
estratégias exageradas: de vida ou morte. Mais de morte que de vida. Com
Tyr é assim: tudo ou nada.
— Lars, você está disposto a levar isso às últimas consequências? —
pergunta ele, com o semblante sério.
— Claro.
Ele volta para a mesa, abre espaço, pega a caneta e começa a escrever.
— O plano é o seguinte…
Debruço-me sobre o bloco enquanto ele escreve e escreve mais, os
rabiscos cobrindo a folha e fazendo o meu coração bater cada vez mais
forte.
Quando para, Thorvald assobia. — Isso certamente afastaria Jamal.
— Ainda não terminei — continua Tyr, virando a folha e voltando a
escrever. — Pelo que vocês me disseram ele é machista, mas acima de tudo
é orgulhoso. Já deve ter percebido que Lars quer a mesma mulher que ele.
Vai aceitá-la, só para depois colocá-la no harém.
— Isso é loucura — murmuro, mas a ideia não sai da minha cabeça. —
Ela detesta aparecer na imprensa. Não gosta de multidão…
— Não precisamos de multidão — explica Tyr. — Precisamos de vocês
dois, juntos.
— Você está falando sério? — pergunto, incrédulo.
— Absolutamente — responde Tyr, com firmeza. — Às vezes, é preciso
jogar sujo para proteger quem amamos.
— Se mesmo assim o outro insistir ou se o pai dela não ceder, e
tivermos que partir para algo mais radical… — diz Magnus, delineando a
estratégia —, aí é a mesma estratégia de Thor e Yasmin.
— Ela tem uma deficiência cardíaca — digo —, não vou arriscar a vida
dela.
— Tudo bem. Vamos apostar nisso.
Tyr tira uma foto das duas folhas de anotações, manda para um e-mail.
Pega o celular e faz uma ligação.
— Benoliel, preciso de quatro dos seus melhores homens e duas das
suas melhores mulheres para acompanhar meu irmão a Oslo para colocar
em prática o plano que enviei para seu e-mail. Saindo hoje.
Embora essas ideias sejam extremas, sinto uma determinação crescente
dentro de mim. Estou disposto a considerar todas as opções para proteger
meu amor e garantir que Vasilisa saiba o quanto ela significa para mim. Não
vou desistir sem lutar.
— Magnus, ligue para a Embaixada e avise que Lars vai ficar lá — diz.
— Não vou para um hotel?
— Sim e não, porque você vai cometer um crime e a embaixada tem
imunidade diplomática — explica ele. — Lá dentro ninguém pode te
prender.
— Tyr, o que você está…
— Vasilisa é uma incapaz, o que se equipara a uma menor de idade —
diz ele, colocando as palmas na mesa e se abaixando até quase ficar com os
olhos na altura dos meus. — Sequestrar e seduzir e foder uma incapaz é
crime. Quer ir para a cadeia caso o pai dela resolva te denunciar?
— Muito. Engraçado.
Ele sorri – de novo – talvez achando realmente engraçado a ideia de me
mandar para prisão. Recosta-se na cadeira, coloca as mãos atrás da nuca e
ordena, bem no seu estilo militar: — Prepare suas coisas. Você parte para
Oslo em duas horas.
Melissa não para de falar, animada, formulando planos para a festa de
amanhã, que ainda não entendi direito para que é.
— Temos que escolher sua roupa — diz. — Que cor você quer? Branco
ou prata? Vamos, vamos, termine o café. Precisamos ir.
— Tenho que terminar o trabalho da faculdade. Não posso — digo, mas
não me movo, porque esqueci o que acabei de falar. Olho para ela
novamente. — O que você disse mesmo?
— Que você precisa terminar seu café, meu bem. — Ela sorri e faz um
carinho no meu rosto. — Temos muito a fazer hoje e seu noivo vem te
apanhar às duas horas para ir ao representante Cartier ajustar sua aliança e o
anel de noivado que ele comprou em seu dedo.
— Ah, sim, é verdade.
Festa de noivado. Com Jamal.
Que meu pai aceitou por mim. Porque, segundo ele, Lars retirou a
proposta de casamento que fez por e-mail – sem grandes explicações.
Ainda bem.
Sem falar que enviou uma mensagem sucinta, informando-me que
estava tudo acabado entre nós porque eu fui embora de Vinter sem falar
com ele. Achou que fiz pouco caso de seu pedido de namoro, que não tive a
menor consideração com os sentimentos dele depois de tudo o que ele me
disse e prometeu. Que nosso tempo juntos não significou nada para mim.
Nem teve a decência de me atender quando liguei para me explicar.
Sinto um aperto estranho no peito ao pensar nisso e pisco para esconder
as lágrimas.
— Querida, está se sentindo bem? — pergunta Melissa. — Você está
bem emotiva hoje. Melhor tomar seus remédios.
Tomo um gole de suco e engulo as pílulas no potinho que ela empurra
na minha direção.
— É essa festa — digo para disfarçar. — É mesmo necessária?
— Claro, querida. — Ela sorri. — Mesmo sendo o filho mais novo do
Sheik El-Khoury, Jamal é um sheik de fato e de direito e um homem muito
importante e muito rico.
— Vamos logo com isso — diz meu pai da cabeceira da mesa. — Não
se atrase e, pelo amor de Deus! Não diga nada sobre o anel. É um tanto
cafona, grande demais, principalmente levando-se em conta que você é uma
moça pequena e delicada, mas os árabes gostam de coisas exageradas.
— Sim, senhor.
— Disse a ele que não tinha necessidade que você fosse à joalheria, que
bastava levar um anel seu, mas Jamal faz questão que você vá tirar a
medida. Quer ter certeza que o anel vai ficar perfeito no seu dedo — fala,
contrariado.
— Sim, senhor.
— Temos uma reunião com o governador e não podemos deixá-lo
esperando — reforça ele. — Nem um segundo.
— Ela já entendeu, Jarl, não precisa repetir — diz Melissa, levantando-
se e fazendo sinal para que eu me apresse. — Vamos, querida, termine de
comer. Vou apanhar sua bolsa no quarto.
A comida parece sem gosto, em contrapartida, o café está amargo
demais, mesmo assim obedeço, porque Melissa é tão calma e gentil comigo
que não merece que eu faça birra. Acho que nem eu teria tanta paciência
comigo mesma.
O motorista já está nos esperando na porta. As ruas passam rápido pela
janela escura do carro e me distraem do tagarelar incessante da minha
madrasta.
— Pedi a Noah para separar tudo o que ele tem em branco, prata e
dourado, tamanho pequeno e sandálias novas também, bem altas, porque
Jamal disse que gosta que mulheres usem saltos altos.
— Mas ele nem é alto assim — falo. — Se eu colocar saltos, vou ficar
da altura dele.
Minha voz soa estranha. Meio arrastada.
— Ah, minha querida, ele tem fetiches e está tudo bem — diz ela.
Olho para ela. — Fetiches, é? Quais?
— Depois te conto — diz ela, piscando para mim. — Agora, vamos.
O segurança abre a porta do carro, estende a mão para me ajudar a sair e
me firma quando cambaleio.
— Tudo bem, senhorita Hardrada? — pergunta, solícito.
— Sim, obrigada — agradeço. — Só escorreguei.
— O maquiador e o cabeleireiro também já estão aí — fala Melissa,
agarrando meu braço.
— Maquiador e cabeleireiro? Pra quê? — pergunto.
— Você tem que estar perfeita amanhã — diz ela.
Os seguranças abrem caminho pela Nedre Slottsgate lotada de turistas e
Melissa me guia e logo entramos no prédio da loja Yves Saint Laurent i,
onde somos recebidas pelo vendedor costumeiro.
Esqueci completamente o nome dele.
— Como vai, tudo bem? — Estendo a mão para cumprimentá-lo.
— Queridas! — exclama.
Ao invés de apertar minha mão, me puxa por ela e me dá um beijinho
na bochecha, como se fosse meu amigo íntimo, o que – acho – não é.
— Estava esperando por vocês!
Faz o mesmo com Melissa, com a diferença que ela não estende a mão
para ele e o abraça logo. Que estranho.
— Noah, querido!
Ah, é isso, Noah.
Nossa, estou muito lerda, mas dada às circunstâncias, estou pouco me
lixando.
— Já separei tudo o que acho que vocês vão gostar — diz, dando um
braço para ela e outro para mim e nos levando em direção a um elevador no
final da loja, falando mais do que Melissa.
No terceiro andar, as portas se abrem para um salão, onde tem mais
gente esperando por nós, e vestidos, muitos vestidos.
Suspiro. Qualquer um serve.
— Não, querida, você tem que estar linda! — diz o loiro, horrorizado.
Hmmm… Acho que falei em voz alta.
— Vamos nos concentrar em escolher o que fica melhor em você,
depois escolhemos o meu — diz Melissa para mim. — Só aí decidimos
maquiagem e cabelo.
Pisco.
— Entendeu?
Não muito, mas concordo: — Está bem.
Quase três horas depois, saímos da loja sem nenhum vestido, porque os
dois que escolhemos – um branco e prata para mim e um preto e dourado
para ela, com sandálias combinando – ficaram para fazer bainha e serão
entregues na amanhã de manhã lá em casa.
Dali, Melissa quer ir almoçar no restaurante do Chef de Vries para
escolher o menu da festa, mas insisto que tenho que voltar para casa porque
o meu celular me avisa que tenho aula online de Introdução à Psicologia da
Gestalt, apesar do meu cérebro não conseguir se lembrar o que é essa tal de
Gestalt.
Ligo o computador faltando um minuto para entrar no Teams ii, mas
demoro para localizar o aplicativo e encontrar meu login da faculdade.
Então, esqueço qual é minha senha. Tenho que fazer uma nova. Quando
peço para ser admitida na sala de aula, o professor já começou a aula há
bastante tempo.
— Senhorita Hardrada, a senhorita sabe que não admito atrasos —
reclama. Estreita os olhos para mim e continua: — Vejo que está
aparamentada. Talvez queira nos esclarecer o que é fechar a Gestalt,
valendo um ponto na média. Para mais ou para menos.
Tenho vontade de chorar, mas só abaixo as pálpebras, constrangida, e
digo: — Perdão pelo atraso, professor, isso não se repetirá. Infelizmente,
não sei responder à pergunta.
— Uma pena, senhorita. Não se atrase na próxima aula.
Fecho o áudio e levanto-me para pegar o caderno.
— Mal chegou e já saiu, senhorita?
Volto para a cadeira e abro o áudio novamente.
— Professor, só fui pegar o caderno para fazer anotações — explico.
— Deveria ter pegado antes de entrar na sala, senhorita — diz ele. — Se
sair do seu lugar de novo, vou ser obrigado a desconectá-la. Estamos
entendidos?
Meus olhos se enchem de lágrimas, mas respiro fundo e balanço a
cabeça: — Sim, senhor.
Fecho o áudio e me preparo para anotar a aula no celular.
— Alguém sabe a resposta para a pergunta que fiz para a senhorita
atrasada? — continua ele.
Logo uma mão digital se levanta e uma colega começa a explicar
detalhadamente o conceito. O professor passa o resto da aula toda – uma
hora e meia – se referindo a senhoritas aparamentadas e atrasadas, ou seja,
a mim de forma indireta, e quando acaba, relembra-me que perdi um ponto
na média.
Depois da aula, troco de roupa rapidamente porque Jamal deve estar
chegando para me apanhar para irmos a Cartier ajustar a aliança e o anel de
noivado.
— Vasilisa? — chama Melissa, com uma batida na porta do meu quarto,
quando estou acabando de trocar o vestido por calças compridas. — Jamal
chegou.
— Já estou indo — respondo, tentando parecer animada. — Só um
minutinho.
Ele me espera no vestíbulo, parecendo impaciente para sair, e pelas
portas abertas posso ver que uma SUV preta e grande está parada, com o
segurança em pé, ao lado do carro.
Apresso-me, mesmo correndo o risco de tropeçar, mas antes rolar
escada abaixo que incorrer na ira de homens como meu pai e Jamal.
Ainda não consegui entender porque Lars ficou tão chateado a ponto de
cortar contato, afinal eu mandei uma mensagem antes de sair de Vinter.
Preciso arrumar um minuto para ligar para Catarina, porque as
mensagens dela não estão fazendo muito sentido. Aliás, tenho que me
lembrar de mandar uma mensagem no grupinho, porque as meninas são
ótimas em resolver esse tipo de problema masculino e Tatyana e Yasmin
podem dar uma prensa nesse príncipe fresco.
— Olá, querida — diz Jamal, me puxando pela cintura para me dar um
beijo na boca. — Você está bonita.
Viro o rosto na hora e seus lábios caem na minha bochecha.
— Vamos? Papai me recomendou que não nos atrasássemos — digo.
Ele estreita os olhos, mas diz: — Claro, vamos.
Assim, que SUV desliza macia em direção a Nedre Slottsgate, Jamal me
puxa mais para perto.
— Onde está meu beijo? — pergunta ele, inclinando-se em minha
direção.
Forço um sorriso e dou um beijo rápido em sua bochecha, desejando
que esse dia acabe logo, tentando me desvencilhar de seu abraço, mas não
consigo.
— Pronto — digo, tentando manter a voz leve.
Ele franze a testa, claramente insatisfeito.
— Só isso?
Engulo em seco e uma onda de desconforto me toma.
Sei que, se recusar, ele pode insistir em algo mais do que estou disposta
a conceder agora. Decido ser esperta e ceder um pouco para evitar uma
situação pior.
Antes que ele possa tomar qualquer iniciativa, aproximo-me e toco seus
lábios com os meus em um beijo breve e leve.
— Melhor agora? — pergunto, recuando e baixando os olhos.
— Não. — Pelo tom de voz ele está insatisfeito e insiste na frase: — Só
isso?
— Prefiro esperar até estarmos casados — digo, com um sorriso tímido,
tentando ser a moça inocente que ele espera que eu seja. — Aí você me
ensina como fazer.
Ele franze a testa por um instante, mas depois força um sorriso. —
Claro, claro, mas não precisamos esperar tanto assim.
Parece apaziguado e puxa-me mais para junto de seu corpo, o polegar
acariciando a parte de baixo do meu seio.
Estremeço e ele confunde com prazer.
Ri baixinho no meu ouvido e pergunta: — Gosta disso, ãh?
Puxo a mão dele para baixo.
— Jamal, por favor — sussurro. — Isso é impróprio e estamos no carro.
— Ora, não me diga que nunca fez isso com…
— Nunca fiz isso — corto-o, porque não quero que ele continue e fale o
nome de Lars.
Meus olhos se enchem de lágrimas. Não quero pensar em Lars.
Ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Acho que é só porque
estou tomando meus remédios direitinho que consigo sustentar seu olhar.
— Meu pai não vai gostar de saber que está tomando essas liberdades
comigo antes do casamento — digo, piscando e deixando as lágrimas
escorrerem pelo rosto.
— Duvido que seu pai achasse ruim que você me desse um beijo — diz
ele, bem aborrecido. — Mas vou conversar com ele amanhã antes do
noivado.
O resto da viagem segue em um silêncio um tanto tenso e nossa visita à
loja é demorada porque Jamal faz questão de esperar para que o anel seja
consertado na hora e eu saia usando-o.
O anel, como disse meu pai, é enorme, mas não é cafona. Isso é exagero
de Jarl Hardrada e talvez um pouco de dor de cotovelo. É, sim,
exageradamente grande, perfeito e branco, sem inclusões, segundo o
joalheiro que nos atende em uma sala privada especial. Tanto que parece
falso. Não é meu estilo, mas é o do meu futuro marido.
Suspiro quando, depois de ajustado, ele o coloca no meu dedo e o
diamante recobre toda a minha falante.
— Que bom que gostou — diz ele, confundindo meus sinais mais uma
vez.
Ou talvez não se importando com eles.
— Gostei muito, obrigada — digo e dou um beijo no rosto dele.
Porque, sinceramente, vou fazer o quê? Dizer que não gostei?
Já sei que minha opinião não importa para ele.
Saímos da loja e Jamal verifica o relógio.
— Vou direto me encontrar com seu pai já que temos uma reunião agora
— diz. — Meu motorista vai deixá-la em casa.
— Tudo bem, obrigada.
O segurança enorme, careca, com uma barba de lenhador – ou de
profeta? – de óculos escuros aviador e terno preto abre a porta da SUV sem
nem nos fitar, mais parece um robô.
Jamal estende a mão para me ajudar a entrar e coloca metade do corpo
dentro do carro.
Acho que vai me dar outro beijo e inclino o rosto para o lado, mas ele
segura minha cabeça entre as mãos, os polegares no meu queixo, impedindo
de me mover.
Desta vez, sua língua invade minha boca, como uma lança, para dentro
e para fora. Várias vezes. Sua barba cerrada me arranha.
Até que o empurro. — Jamal!
Tenho vontade de passar o antebraço no rosto para limpar o babado à
volta da minha boca, mas me contenho.
Ele me dá um sorriso esfomeado.
— Amanhã, quando estivermos sozinhos, vou te dar um beijo de
verdade e te ensinar mais umas coisinhas que você vai gostar — diz ele.
— Se formos autorizados pelo meu pai — aviso a ele.
— Não se preocupe, querida, seremos — diz, e abre um sorriso
arrogante. — Falarei com ele agora mesmo.
Dá dois tapinhas na lateral do meu rosto e diz: — Até amanhã, minha
noiva.
A porta se fecha com um clique que soa definitivo aos meus ouvidos,
como se fosse uma porta de uma prisão.
Do lado de fora, Jamal fala alguma coisa para o segurança, que entra na
frente, como o guarda de uma penitenciária.
Porque é assim que estou me sentindo: uma criminosa indo cumprir sua
pena.
Minha mente é uma confusão de pensamentos. Preciso encontrar uma
saída dessa situação, mas não sei por onde começar.
Pego o celular e digito uma mensagem no grupo:
Meninas, cadê vocês? Pelo amor de Deus! Preciso de ajuda!

As reticências aparecem na tela. A resposta de Tatyana entra.


Eu e Yás não vamos poder ir ao noivado. As coisas aqui em
Vinterland estão bem complicadas. Boa sorte amanhã. A
gente conversa depois.

A resposta de Catarina entra depois:


Chego amanhã à tarde com meu pai. Alguma emergência?
Quer que eu te ligue?

Quero, mas o que vai adiantar.


Mordo meu braço para impedir um soluço de escapar e respiro fundo
para acalmar meu coração que parece querer escapar do peito. Não quero
que os seguranças digam para Jamal que eu estava chorando.
Pego na bolsa um calmante sublingual e ponho na debaixo da língua.
Encosto a cabeça no assento e espero o remédio fazer efeito para responder.
Não, deixa para lá. Acho que estou só nervosa.
É isso. Estou nervosa. E com medo. Com tanto medo que mal consigo
respirar.
No entanto, vou ter que aprender a lidar com esse problema. Sozinha.
Sempre lidei com meus problemas sozinha mesmo.
Assim que chego em casa, aviso à governanta: — Estou com
enxaqueca, Frida. Não quero ser incomodada. Nem sei se vou jantar.
— Sim, senhorita.
Subo para o meu quarto, fecho a porta atrás de mim e me atiro na cama,
finalmente deixando as lágrimas caírem.
Não posso continuar sendo controlada dessa forma. Preciso tomar uma
atitude.
Mas qual?
Minha mente e meu corpo odeiam Jamal e pedem, imploram por Lars,
que está em Vinterland neste momento.
Pego o celular, passo o dedo, desbloqueando a tela e busco o número
dele nos contatos.
Será que ele vai atender? Será que, se eu pedisse ajuda, ele viria?
Parte de mim quer acreditar que sim, que tudo isso – o e-mail
cancelando a proposta de casamento e a mensagem acabando com tudo
entre nós é apenas um erro, um engano.
Ou não sei…
Talvez eu deva ligar para ele e perguntar por quê? Por que ele fez isso
comigo? Conosco?
Como ele pôde ter me largado depois de ter dito tantas palavras lindas?
Talvez eu deva exigir saber como ele pôde ter me abandonado nas mãos
desse homem desgraçado? Porque ele sabia que, na hora que ele saísse da
competição, meu pai ia me entregar para Jamal.
Se eu pedisse para ele vir me abraçar e fazer passar esta dor que faz meu
coração bater tão devagar e minha respiração ficar tão curta, ele viria?
Viria me levar para longe, para algum lugar onde eu não tenha que
tomar esses remédios que me deixam tão cansada e tão tonta que nem
entendo o que estou fazendo?
Ele foi o primeiro homem que mexeu comigo desse jeito.
Disco o número.
Que toca.
Uma vez, duas, cinco, dez vezes.
Mais uma chance.
Uma última chance.
E novamente toca, toca, e a ligação cai.
Pior que tudo, é essa solidão. Que se tornou maior depois que ele a fez
ir embora. Agora, por vingança, voltou com força redobrada.
— Maldito seja, Lars — sussurro para a tela. — Maldito seja. Quero
que você queime toda a eternidade no inferno, Anjo. Porque eu não sabia
como acreditar nas pessoas e você me ensinou.
Jogo o celular na parede e o aparelho cai no chão. Ainda inteiro.
Maldito seja.
Eu o desejo – e, neste exato momento, eu o odeio também.
Tyr hackeou as câmeras da Casa Hardrada, o que segundo ele não foi nada
fácil. O homem tem um sofisticado sistema de segurança, mas para Tyr
nada é impossível. Descobrimos, inclusive, que o quarto, closet e banheiro
de Vasilisa são monitorados e que ela tem privacidade zero, o que fez com
que Tyr colocasse essas câmeras apenas no meu celular.
Só faltei ficar louco de tesão ao vê-la tomar banho e bati uma punheta,
gozando no chuveiro, chamando o nome dela.
Depois acompanho o maquiador e o cabeleireiro a arrumarem para a
festa e Melissa ir ajudá-la a se vestir.
Pronta, em um vestido branco e prata, com os cabelos loiros presos no
alto da cabeça, e os olhos verdes grandes realçados pela maquiagem mais
parece um raio de luar.
Os rapazes dão uns últimos retoques, em meio a gritinhos, porque ela
está um deslumbramento realmente, e saem.
Então, para o horror de Melissa – e meu ódio! –, ela quase começa a
chorar.
Conta que depois de dar o anel a ela, Jamal a beijou no carro à força e
quer mais. A madrasta então começa a dar instruções de como se
comportar: ela deve deixá-lo beijá-la e apalpá-la, mas não o sexo. O pai
autorizou.
É aí que começo a perder a cabeça.
Não posso acreditar no que estava ouvindo. Pego as chaves do carro,
mas antes que eu saia, um dos homens do serviço secreto de Vinterland que
me acompanham, bloqueia a porta.
— Saia da frente! — ordeno.
— Desculpe, Alteza. Temos ordens do General de impedi-lo de cometer
alguma imprudência.
— Príncipe Lars, seus irmãos estão em uma videochamada no
computador — diz o outro segurança.
Pelo jeito, Tyr previu que alguma coisa ia acontecer e eu ia surtar e deu
ordens para que estivessem preparados.
Não quero falar com ninguém.
Tudo o que quero é invadir a casa dos Hardrada e socar Jarl até não
sobrar nada da cara dele, mas respiro fundo e vou até o escritório da suíte
Penthouse i Oslo, do hotel The Thief onde estou hospedado, com vontade de
pegar o vaso que tem na mesa de centro e atirar pela varanda, dentro do
Oslofjord ii.
Na tela principal, é Tyr que aparece.
— Diga — falo, sem paciência.
— Calma, Lars — pede ele.
— Calma?! — berro para ele. — Calma?!
Ando de um lado para o outro da sala feito um leão enjaulado porque
sei que do lado de fora tem seguranças que me impedem de sair.
A ideia inicial era tirá-la da casa, após a festa acabar, dentro da van do
serviço de buffet e passar a noite com ela. Depois do café da manhã, fazer
um passeio pelo fiorde em lancha aberta, atracado aos beijos com ela.
Tudo bem documentado pela imprensa.
Só então, acintosamente, ir tocar a campainha da porta da casa
Hardrada, com ela no meu braço, e avisar que vim buscá-la para retornar a
Vinterland comigo. Se ele não aceitasse, tudo desse errado e o pai fosse à
polícia, iríamos para a embaixada.
— Sim, calma — diz, sem alterar a voz. — Se você se precipitar pode
estragar o plano e pôr tudo a perder. Tudo. Vasilisa e o futuro que vocês
poderiam vir a ter juntos — lembra ele. — É isso que você quer?
— Não, claro que não, mas ponha-se no meu lugar, porra! — berro.
— Já estive em lugar pior — diz ele.
O que me faz sentar pesadamente na cadeira de couro em frente à
escrivaninha. — Perdão.
— Tudo bem, vamos focar no problema — diz ele. — Tendo em vista
tudo o que você me contou e as dúvidas que temos, tenho uma pergunta
para você: você arriscaria a vida de uma mulher apenas para tê-la em sua
cama?
— Você não está cogitando… — diz a voz de Magnus de algum lugar
na sala onde não posso ver e de repente ele aparece por sobre o ombro de
Tyr e olha para o que suponho ser o bloco que está na mesa, onde Tyr deve
ter feito alguma anotação. — Às vezes, tenho vergonha de ser seu irmão,
Tyr.
— Meio-irmão, mas melhor amigo — corrige ele, seco. — Você tem
alguma ideia melhor, Magnus?
Ele olha por sobre o ombro e Magnus aperta os lábios em uma linha
fina.
— Estou aberto a sugestões — continua.
Nenhuma resposta.
— Já que não tem, fique calado.
A resposta é o estrondo de porta batendo fechada.
— Apesar de ser o feminista de nós cinco, ou talvez, exatamente por ser
assim, Magnus não lida bem com a realidade dos fatos e dos
relacionamentos entre homens e mulheres — diz Tyr, com um suspiro. —
Nunca são simples, nunca são lógicos, mas são sempre… ótimos.
— Quando dão certo — complementa Thorvald.
— Isso — concorda Tyr. — Bom, vou te mandar o passo a passo por e-
mail e…
Magnus entra na ligação, de dentro da sala dele agora, interrompendo
Tyr por um segundo tenso.
Como Magnus não diz nada, meu irmão continua: — Siga e acabaremos
de uma vez por todas com qualquer possibilidade de outro homem, que não
você, se casar com ela.
— Você vai para o inferno se continuar ouvindo os conselhos de Tyr —
diz Magnus, aborrecido.
— Já estou lá há muitos anos, Magnus. Décadas, na verdade — digo,
suavemente, porque sei que ele tem a melhor das intenções. — E ainda não
sei o que Tyr está propondo, mas sei que eu quero Vasilisa, eu sei que ela
me quer, e vou fazer de tudo para que Jamal não a roube de mim.
Magnus olha bem dentro dos meus olhos e diz entredentes: — Então,
Lars, você deve saber que só se pode provocar o diabo até um certo limite.
Depois, perde-se a alma. Depois quando ela descobrir…
— Se ela descobrir — interrompe Tyr.
— Elas sempre descobrem, não são burras como vocês acham que são
— diz Magnus para ele e se volta para mim e resmunga: — Não venha
depois chorar no meu ombro, nem me pedir para quebrar o gelo com ela.
Sorrio porque as palavras dele fizeram meus pelos se arrepiarem todos.
— Tenho seu irmão para fazer isso.
— Ai, ai — suspira Leif na tela.
— Muito bem, acabei de receber um aviso que nosso pessoal já está
dentro da festa — diz Tyr. — Se houver algum problema, vá direto para a
embaixada. Eles já estão de sobreaviso. E use sempre o carro oficial.
Respiro fundo e exalo devagar. — Pode deixar.
— Outra coisa: Catarina estará em Oslo. Como não sabemos qual será a
reação dela, não a deixe te ver até que Leif consiga falar com ela —
aconselha ele.
Bato continência para ele e digo: — Sim, senhor, General.
Ele me mostra o dedo e desliga.
Os outros irmãos que estão ainda na linha riem, me desejam boa sorte e
desligam também.
Impulso é o que nos move e motiva. Sexo é um dos mais fortes desses
impulsos. Paixão é outro.
Pego as chaves e saio da suíte, seguido de perto pelos dois homens que
estão comigo. Descemos até a garagem em silêncio e dirijo até a
embaixada, no bairro de Frogner.
São apenas sete horas da noite de sexta-feira, tenho impulsos de sobra
no momento e nada para fazer a não ser elucubrar, o que não é nada bom.
Distraio-me com a entrada e saída dos convidados na Casa Hardrada
pelas super câmeras instaladas ontem à noite por um dos rapazes no telhado
da nossa embaixada, anguladas exatamente para obtermos total visão de
quem entra e quem sai.
Para nossa sorte, Frogner é um bairro bastante bucólico e essa região
onde está a casa do pai de Vasilisa é a preferida pelas embaixadas – a nossa
inclusive está neste mesmo quarteirão, que sorte, não? –, e só tem casas
com muros baixos, em terrenos grandes e afastados um dos outros. O The
Thief, o hotel onde estamos hospedados, fica em Tjuvholmen, coisa de dez
minutos de distância de carro, se tanto. Ou seja, se surgir qualquer
problema, é rápido de nos abrigar.
Sei que o novo plano está correndo como previsto: a primeira a se
infiltrar, na parte da manhã, foi a Major Lia Tamarkin junto ao serviço de
florista, decoração e cerimonial. No embalo, trocou a pasta com a lista
original de convidados pela nossa, com os nomes fictícios de mais outras
duas pessoas.
Depois, na parte da tarde, com o serviço de buffet, entraram o Tenente-
Coronel Noah Bogoraz, substituindo um dos garçons, que recebeu um valor
vultoso para ficar doente na última hora, e a Sargento Yael Laikin, no lugar
da moça faz-tudo.
Uns minutos depois que Vasilisa saiu do quarto, a Sargento e a Major
entraram em ação: fizeram uma pequena mochila para ela, com roupas,
sapatos, óculos escuros, maquiagem, artigos pessoais, e, lógico o celular
dela – porque ninguém me convence que esse aparelho não está grampeado
ou algo assim –, além de, é claro, os remédios que ela usa – sendo que
separou duas de cada para Leif analisar em laboratório. Não encontraram
nenhuma caixa comprada em farmácia, apenas remédios manipulados. E,
porque Tyr fez o upload de um vídeo do quarto, closet e banheiro vazios,
em looping, no sistema deles, tiveram todo o tempo do mundo para remexer
nos armários e olhar em todos os cantos possíveis e até abrir o cofre – de
onde a Sargento retirou o colar que dei e colocou na mochila. A Major fez
uma cópia do hard disk do computador dela, quem sabe o que tem ali
dentro? Enquanto a Major trocava de roupa e virava uma das convidadas, a
Sargento saía da casa pelos fundos e entregava tudo na van disfarçada com
um letreiro do mesmo serviço de buffet que está servindo o jantar,
estrategicamente estacionada na outra rua.
Dez minutos depois, uma suposta amiga de Tatyana e Yasmin, da época
do internato, Natasha, em um vestido dourado longo, deslizou para dentro
da casa, no braço do pai, o Conde Ostropov – ou melhor, Coronel Amos
Riese –, que no momento se encontra ao meu lado.
Os outros dois homens do grupo tático estão lá fora, a postos, atrás atrás
dos volantes da van e da SUV preta blindada da embaixada.
Já eu entrei pela lateral da casa, andando mesmo, há dez minutos
apenas, pois a cerca de madeira é tão baixa que nem precisei pular.
Vocês acham que foi invasão de privacidade remexer as coisas dela sem
permissão?
Eu sei que foi, mas não sinto a menor culpa em fazer o que é necessário
para ter o que quero, mesmo que isso possa ofender sensibilidades delicadas
ou até murchar flores sensíveis que brotam no cimento e vêm colorir minha
vida.
Homens como eu deveriam vir com um rótulo de aviso ou algo parecido
para que moças como ela não se aproximassem.
Agora, é tarde demais: ela é minha.
Ainda assim, não estou tão focado e frio, como sempre. Estou abalado,
para dizer o mínimo e isso me irrita.
Não importa o quanto eu tente encontrar aquele espaço escuro e vazio
dentro de mim que me permite não sentir nada, ele não está em lugar
nenhum.
E é por causa dela que trouxe luz e cor ao meu mundo.
Vasilisa quebrou minhas defesas e fez com que meu mundo mudasse
irrevogavelmente.
Olho no relógio: onze horas. Pela movimentação na rua, os convidados
já foram quase todos embora. O bom do convidado europeu é isso: são
civilizados e previsíveis.
Os eventos começam pontualmente na hora marcada e também não se
estendem para além do horário normal de quatro horas de festa, a não ser
que seja algum evento realmente especial, como um casamento.
Sorrio. Em breve, ela virá se encontrar comigo.
Isto é, se seguir as instruções do bilhete que recebeu das mãos do
Tenente-Coronel Bogoraz por volta das dez e meia, quando, depois de
terem partido o bolo de noivado e o pai não ter permitido que ela brindasse
com Champagne, lhe entregou uma taça especial com um tal de
Kombucha iii.
Assim que a casa se aquieta ainda mais, vejo-a abrir a porta da varanda.
Ela olha para um lado e depois para o outro. Hesita e então vem na minha
direção, linda e tão etérea quanto uma sílfide.
Meu coração acelera.
Tenho vontade de sair do caramanchão que fica entre a piscina e a
quadra de tênis – sim, a Casa Hardrada, no bairro mais caro de Oslo, tem
direito à piscina e à quadra de tênis, garagem para uns cinco carros e um
extenso jardim. Um luxo só.
Como se pudesse ler minha mente, Tyr, que está acompanhando tudo
pelas câmeras do telhado da embaixada, aconselha no ponto: — Fique onde
está, Lars.
Ainda bem que não me movi, porque, merda!, o filho da puta
desgraçado do Jamal vem atrás.
— Vasilisa! — chama ele. — Espere! Quero conversar com você.
Ela para no meio do jardim, os olhos arregalados. Olha para um lado,
para o outro, como se estivesse me procurando.
— Está tarde — diz.
Ele se aproxima, devagar, com um sorriso presunçoso no rosto, e passa
o braço pela cintura dela, que coloca as palmas no peito dele.
— É rápido.
— Jamal, estamos em público — diz, chegando a parte de cima do
corpo para trás.
Como se não quisesse o beijo dele.
— Estamos sozinhos, boneca, e falei com seu pai, como disse que faria,
e é claro que ele autorizou que eu a beijasse. Afinal, sou seu noivo — diz
ele, o sorriso crescendo no rosto — Inclusive, autorizou sexo anal.
— Como? — Ela fica branca e dá um passo para trás.
Como é?! Dou um passo à frente.
— Calma, Lars, temos tudo sob controle — diz Tyr, no ponto.
— Como o Alcorão não permite que façamos sexo vaginal antes do
casamento — explica ele, pegando-a pela cintura. — Podemos aliviar as
coisas de outra maneira…
Dou outro passo, pronto para tirá-lo de cima dela, se for preciso.
— Coronel, contenha-o — ordena Tyr. — Agora! E se for preciso,
derrube-o.
— Sim, senhor — diz o Coronel Riese ao meu lado, que imediatamente
algema meu pulso ao seu cinto.
Fico boquiaberto. Pensei que fosse para conter Jamal, não a mim.
Sem esperar que ela responda, Jamal se inclina e a beija.
Ver Vasilisa nos braços do outro homem me atinge como se Tyr tivesse
me dado um soco no diafragma. O ar some dos meus pulmões.
Atiro-me para frente. Para avançar sobre o bastardo e separá-lo da
minha princesa. Acabar com ele.
É só o tranco que recebo no braço que me faz permanecer no lugar. A
ordem de Tyr foi certeira, porque não ia conseguir ficar aqui parado, por
conta própria, sabendo que outro homem está beijando Vasilisa à força,
tocando-a sem o consentimento dela, mesmo que tenha o paterno.
Como um pai tem coragem de fazer isso com uma menina tão suave
quanto Vasilisa?
— Alteza, por favor, não quero ter que cumprir a ordem do General —
sussurra o Coronel ao meu lado. — E não vai adiantar nada.
Deixo a cabeça pender por um momento e respiro fundo enquanto a
raiva fervilha. A visão deste imundo impondo seus desejos sobre ela é
insuportável.
Minha vontade é de urrar, de socar alguma coisa, de preferência a cara
do bastardo filho da puta.
— Tyr, quero a pele do desgraçado — rosno.
— Não se preocupe, também quero! — A voz de Tyr corta pela neblina
vermelha e preta que toma conta de mim.
Vasilisa não corresponde, mas também não resiste, como mandou a
madrasta. O quanto custa isso a ela? Não sei se teria esse sangue-frio e
equilíbrio em mim.
— Major Tamarkin, venha para o jardim — ordena Tyr. — Rápido.
— Sim, senhor, General.
Quase viro as costas para não assistir à cena, mas não o faço, porque se
ela pode se submeter a essa humilhação e indignação, eu também posso
aguentar e compartilhar dessa dor e vergonha.
— General, estou a postos.
— Vá até o casal e distraia-o para que Vasilisa possa escapar — ordena
Tyr.
Respiro fundo e me preparo também, porque teremos pouco tempo para
tirá-la daqui sem causar um escândalo que poderia colocar toda a operação
em perigo.
Vejo a Major surgir da casa. Vacila levemente, anda na direção do casal,
mas não em linha reta, como se tivesse bebido em demasia, talvez para o
caso de alguém estar assistindo à cena de dentro da casa. Aproxima-se de
Jamal por trás, abraça-o e se esfrega nele.
— Olá, garanhão.
Surpreso, Jamal solta Vasilisa e gira para ver quem é.
— Recebi seu recado, querido.
— Que recado, mulher louca?! — exclama, tentando se desvencilhar. —
Nem te conheço. Saia daqui!
A Major tropeça, cai, puxando Jamal com ela, que por não estar
preparado para ser puxado, se estatela de cara na grama.
A mulher começa a rir, apontando para Jamal, que, em contrapartida
está furioso e todo sujo de verde.
Enquanto ele está distraído, Vasilisa aproveita para sair correndo, só que
em outra direção.
Merda!
— Bogoraz, redirecione a futura princesa para o lugar certo — coordena
Tyr pelo ponto — Tamarkin, se o desgraçado não sair daí em cinco segundo
apague-o. Lars, se Riese te soltar, você vai ficar onde está?
Suspiro e respondo: — Vou.
O Coronel solta a algema do meu pulso e, conforme prometi,
permaneço escondido no caramanchão, observando a Major, uma mulher
bonita de uns quarenta anos, fazer o idiota ficar com tanta raiva que ele sai
dos jardins xingando até a décima geração da família dela.
Com um sorriso satisfeito, ela se levanta do gramado com elegância e se
junta a nós.
— Trabalho impecável, Major — diz Tyr a ela.
O Tenente-Coronel aparece na porta da varanda da casa no minuto exato
em que Vasilisa chega lá e consegue impedi-la de entrar. De onde estou, não
consigo ouvir o que ele diz a ela, mas vejo que ela acena positivamente e
faz o caminho oposto com ele até onde estamos.
Os olhos verdes dela se arregalam quando me veem, como se ainda não
acreditasse, e noto uma mistura de surpresa e alívio em sua expressão.
— Lars!
Não consigo evitar e puxo-a para os meus braços e a beijo. Seus lábios
são suaves contra os meus, e por um momento, todo o caos ao nosso redor
desaparece. Sinto seu corpo relaxar, correspondendo ao beijo com igual
intensidade.
— Lars, você a beija depois, precisamos sair daqui agora — reclama
Tyr no meu ouvido.
Afasto-me, embora a contragosto, e olho nos olhos dela.
— Precisamos ir, Pequena.
— Onde?
— Para o meu hotel.
Ela assente, ainda um pouco atordoada. — Tudo bem.
A Major Tamarkin nos sinaliza que a área está segura, e começamos a
nos mover rapidamente pelos jardins, seguindo um caminho previamente
planejado para evitar as câmeras de vigilância, mesmo que Tyr as tenha
desabilitado.
— O que está acontecendo? — sussurra Vasilisa, quando saímos pelos
fundos. — Por que estamos saindo por aqui?
— No caminho eu te conto — digo.
Ela franze a testa, mas se cala e tenta acompanhar meu passo.
Reduzo a velocidade porque ela está usando um vestido longo
justíssimo e super decotado e saltos completamente inapropriados para
fugas em alta velocidade.
Chegamos ao carro da embaixada, que está estacionada na rua lateral,
pronto para partir. O Coronel entra no banco do carona e nós no banco de
trás. Os outros dois vão para a van que está mais adiante – porque a
Sargento Lankin está no quarto de Vasilisa, de porta trancada, fingindo ser
ela, até segunda ordem.
O motor elétrico não faz ruído ao acelerar e afastamo-nos do local, sem
chamar atenção.
A divisão de vidro nos dá privacidade.
— Senti saudades.
Não espero que ela responda e abaixo a cabeça e roço minha boca na
sua. Não pretendia fazer mais que isso, mas o problema é que é ela.
Forte e resistente como a seda, delicada, mas indestrutível. Encantadora
e tentadora como uma diaba. Perfeita para mim.
Sou pego desprevenido com o desejo intenso que me atinge e preciso
levantar a cabeça por um minuto para olhá-la, assustado com a intensidade
do sentimento. A impressão que tenho é que esses dias em que estivemos
separados só aumentaram a paixão, a ânsia por estar com ela e a
necessidade de fazê-la minha. Não sei lidar com esta… obsessão.
O que é isso?
Tesão, desejo? Com certeza, mas isso dá e passa.
Estou apaixonado? Meu coração dá um solavanco no peito tão forte que
não há dúvidas da resposta: estou, muito. Mas é mais forte do que paixão,
porque eu vou fazer o que for necessário para ter essa moça comigo.
Pode ser… amor?
— Lars… — reclama, puxando a aba do meu paletó.
Seus olhos verdes estão brilhantes e lânguidos, as pálpebras
semicerradas.
Ela não espera que eu aja: vem para o meu colo e enfia a mão nos meus
cabelos, angula minha cabeça e cola seus lábios nos meus, beijando-me
com sofreguidão, como se precisasse de mim mais do que preciso dela.
Desisto de pensar. Invado sua boca, busco sua língua. Mesmo assim, é
pouco, quero mais.
O mundo ao nosso redor desaparece, deixando apenas a sensação de
seus lábios nos meus, suas palmas macias no meu rosto e o ritmo acelerado
de nossos corações.
Seja lá o que for isso que estamos compartilhando, não quero que acabe
tão cedo. Mas estamos próximos e logo, a velocidade do veículo diminui.
Interrompo o beijo.
— Estamos chegando — digo para ela, rouco.
Na garagem, a Major já está com o elevador aberto e esperando por nós.
— Obrigado — agradeço.
— Tudo sincronizado. As coisas da senhorita Hardrada já estão
arrumadas no closet, senhor — informa-me quando as portas estão se
fechando, antes que Vasilisa possa fazer qualquer pergunta.
Volto a beijá-la, efetivamente distraindo-a.
Porque ela vai me odiar pelo que farei e preciso aproveitar cada
segundo que tenho em que ela ainda não o faz.
Sou um filho da puta? Sou, mas pelo menos eu vou salvá-la de algo
pior.
Eu poderia ser um total cafajeste e dizer a ela que a amo, ou ao menos
admitir que a desejo e que o dinheiro dela vai ajudar a salvar Vinterland.
Se ela ia fazer alguma pergunta, desiste e, sinceramente, eu também já
nem sei o que foi que a Major disse.
A única coisa que sei, no momento, é que quero desfrutar de cada
pedacinho dela. Beijar cada centímetro de sua pele. Fazê-la esquecer que
outro homem a tocou. Esquecer que outro homem a tocou.
Sou ciumento e possessivo pra caralho. Sei disso. E farei o que for
preciso para que Vasilisa seja minha e feliz comigo.
Porque meu coração não mente: bate por ela.
Uma leve brisa me avisa que chegamos ao nosso andar.
Apesar da suíte Oslo ter quartos separados que poderiam ser ocupados
pelos special-ops iv, também reservei a outra suíte para ter privacidade total,
então saio do elevador, ainda agarrado a ela, sem nem me preocupar em
olhar para os lados para ver se tem alguém estranho no hall e nos
corredores.
Não quero nem tirar a mão de seus cabelos para pegar o cartão no meu
bolso e abrir a porta do quarto. Encosto-a na parede do corredor e continuo
beijando-a ali mesmo.
Essa mulher me enlouquece. Seu perfume feminino, floral e adocicado,
afrodisíaco, envolve meu corpo em volutas, me aprisionando em seu feitiço
e não me deixa pensar, só sentir.
Desço a mão e seguro seu seio em minha palma, acariciando com o
polegar o mamilo túrgido que o tecido diáfano do vestido quase indecente
não disfarça.
Ela geme meu nome.
— Lars! Temos um plano a cumprir — lembra-me Tyr no ponto,
efetivamente jogando um balde de água fria no meu desejo e me arrancando
da minha nuvem cor de rosa.
Interrompo o beijo e apoio a testa na dela, respirando pesadamente. —
Melhor entrarmos no quarto antes que demos um show aqui no corredor do
hotel e acabemos presos por atentado ao pudor.
Ela ri, um som melodioso, entre o tilintar de cristais delicados e o piano.
Encantador.
E acho que é a primeira vez que escuto esse som. Vasilisa não é muito
de rir e decido que vou fazê-la rir mais vezes.
Muitas vezes mesmo.
Isso é uma promessa.
— Posso pedir um favor? — peço a ele assim que entro na suíte.
— Claro, pode pedir dois, três — diz ele. — Quantos você quiser.
— Tira a barba?
Ele passa a mão sobre os pelos do rosto. Então, o rosto se fecha em uma
expressão tempestuosa, as sobrancelhas descem sobre os olhos, quase se
juntam no meio.
— Ele te machucou?
O azul dos olhos dele, normalmente quente e intenso, agora se torna
gélido, como se pudesse congelar o próprio sol.
É um olhar violento, que só aqueles criminosos perigosos, que não
fazem ameaças ou levantam as vozes, têm aqueles que puxam o gatilho sem
piscar, sem sentir remorso ou pensar duas vezes, se quem estão matando vai
se casar amanhã, tem filhos ou netos.
— Não — respondo rapidamente, sentindo um calafrio ao perceber a
intensidade da raiva dele. — Não quero me lembrar dele enquanto estiver
com você. E você já esteve sem barba antes.
— Se ele tocar em você de novo, morre — diz no meu ouvido. — E vai
ser com requintes de crueldade.
Então, gira nos calcanhares e some por uma porta, que presumo deva
ser a que leva para o quarto.
Solto o ar que estava prendendo nos meus pulmões devagar, porque não
estava esperando por isso do meu príncipe sorridente.
Espera aí. Eu disse meu príncipe? Lars não é meu e depois que aceitei
ficar noiva de Jamal tudo o que posso ter dele são esses momentos
roubados.
O som distante da água correndo indica que ele está se barbeando.
Só o fato de estar longe de Jamal me deixa mais aliviada, mas uma
sombra de inquietação ainda paira sobre mim.
Não consigo afastá-lo completamente dos meus pensamentos. A voz
dele ecoa na minha cabeça, e uma parte de mim teme o que ele fará quando
descobrir onde estou.
Será que entendeu que foi enganado?
Como vou justificar minha fuga?
Posso dizer que fiquei horrorizada com outra mulher o agarrando e fui
para o quarto dormir…
O que me traz mais um problema: meu pai.
Será que ele foi ao meu quarto?
Meu pai sempre encontrou uma maneira de me controlar, de me
envolver em sua teia de manipulações, e com esse noivado estendeu sua
influência para sempre, porque Jamal e ele parecem ter estabelecido uma
boa amizade.
Um arrepio percorre meu corpo.
Jamal não é burro e uma hora vai descobrir que foi tudo armação. Não
me parece o tipo de homem que perdoa ou que esquece. Ele me dá a
impressão de ser vingativo, uma presença invasiva, sufocante, que me faz
querer correr para bem longe.
Bem, ao menos, nesse momento, estou longe dele e do meu pai e a
sensação é de liberdade, a de poder respirar e de poder ser eu mesma, sem
estar na eterna vigilância do que falo ou faço.
Será que ele vai descobrir que não estou em casa?
Será que foi loucura vir para cá?
Jesus misericordioso! O que foi que eu fiz?!
Olho ao redor da suíte. É enorme e luxuosa, tudo impecavelmente
organizado. Mas, apesar da beleza ao meu redor, há algo desconcertante no
fato de estar aqui, sozinha com ele.
Estar com Lars deveria ser reconfortante, e de certo modo é, mas não
posso evitar me sentir um pouco fora do meu próprio corpo, como se não
pertencesse completamente a este lugar. Porque não deveria, mesmo. Estou
noiva de outro homem.
Caminho até a porta da varanda e abro-a.
A temperatura do começo de junho está mais agradável e há um ou
outro casal aproveitando para caminhar na marina.
As embarcações se refletem na água e balançam suavemente, como se
dançassem ao ritmo das águas calmas do Oslofjord.
A vista é hipnotizante, calmante, com o pôr-do-sol que se estende até
altas horas da noite adentro e dá a ilusão de que ainda é de tarde.
É também um lembrete de que o mundo é vasto e cheio de
possibilidades, muito além das paredes que meu pai ergueu ao meu redor.
Enquanto uma parte de mim ainda está horrorizada com a minha fuga,
com medo do que pode estar acontecendo na Casa Hardrada e temendo a
repercussão do que fiz e das consequências, outra parte – rebelde, ainda que
incipiente, vulnerável e escondida –, quer mandar tudo às favas e aproveitar
o momento.
Respiro fundo, fecho os olhos e deixo-me conectar com essa pequena
faísca.
Vejo-a crescer, sopro para que fique mais forte, mais luminosa até virar
um clarão e iluminar todo o meu interior.
Deixo que me aqueça e sorrio sentindo esse calor gostoso. O prazer é
quase tão bom quanto o que sinto com Lars.
Só eu posso manter essa chama acesa e é isso que tenho que fazer.
Solto o cabelo do coque elegante e passo os dedos para as mechas
escorrerem pelos meus ombros e pelas costas. É engraçado que com Lars
sinto vontade de ser provocante, de atiçá-lo, só para ver o que ele vai fazer.
Até mesmo para ver se ele vai ser um pouco mais bruto e me castigar.
Apoio-me na balaustrada, jogo a cabeça para trás e deixo que o sangue
corra mais rápido pelas minhas veias.
Dane-se meu pai e Jamal. Estou exatamente onde quero estar: com meu
amante e farei essa noite tudo o que eu quiser, porque pode muito bem ser a
última noite de prazer que eu tenha na minha vida.
— Você está muito sexy assim — sussurra Lars no meu ouvido,
chegando sorrateiro por trás.
Uma de suas mãos pousa de leve no meu baixo ventre e me puxa ao
encontro do seu sexo. Sinto seu pau já ereto se acomodar na minha bunda e
ele se roça ali enquanto abre meu zíper.
— Estou me sentindo sexy — respondo.
— Não está com frio? — pergunta, depositando beijos na minha coluna.
— Não, gosto dessa temperatura e tenho certeza de que você vai me
aquecer.
Ele ri baixinho e empurra as alças para baixo, liberando meus seios. —
Você estava tão linda neste vestido, parecia uma sílfide. Fiquei com medo
de que desaparecesse no ar.
As mãos descem pelos meus ombros, acariciando meus braços e
envolvem meus seios. Os polegares e indicadores brincam com meus
mamilos, rolando-os devagarinho, enquanto seus lábios beijam, lambem e
chupam meu pescoço, me enlouquecendo.
— Lars…
Chega a ser ridículo como meu corpo responde a ele. Assustador.
— Hmmm?
— Tenho pressa — reclamo. Porque preciso tocar nele.
— Eu, não. Nenhuma — diz ele. — Esperei muito tempo por isso e
temos a noite toda.
— Vamos para o quarto… — gemo.
— Nós vamos. Mais tarde — diz, com um sorriso na voz, sem sair do
lugar. — Porque, agora, vou te foder aqui mesmo, de pé, neste frio. Nesta
varanda. E depois você vai me deixar duro de novo e vou te foder de quatro
no sofá da sala. Só mais tarde, na cama. E no chuveiro. Porque eu vou te
foder muito esta noite. E amanhã de manhã, também.
Labaredas aquecem minhas veias, ferventes, como eu não sentia desde a
última vez que ele me tocou.
Uma força animalesca crepita entre nós, nervosa, poderosa.
Quente. Tão quente e palpitante que a impressão que dá é que o desejo
tem vida própria.
— Quero fazer coisas com você…
— Faz… — peço.
Seus movimentos são precisos: descarta meu vestido no chão, como se
o longo bordado não tivesse custado algumas dezenas de milhares de
coroas i e arrebenta a delicada calcinha cor da pele.
— Afasta as pernas — grunhe, rouco.
Obedeço e empino os quadris, provocando-o e recebo um tapa estalado.
— Ai, Lars — gemo e rebolo, oferecendo o outro lado a ele, buscando
por mais. — Por favor…
— Vadia gostosa. Você me deixa louco, sabia? — A mão desliza pelos
globos da minha bunda. — Essa bunda linda… Você vai me dar este
cuzinho hoje?
— Dou o que você quiser…
— Mais tarde vou cobrar — sussurra no meu ouvido, tirando um tremor
gostoso de mim. Os dedos procuram minha entrada molhada, massageiam-
me. — Você me quer aqui, Vasilisa? Quer?
Minha pele está toda arrepiada e não é do ar frio. É desta loucura que só
ele sabe causar, desta insanidade que só ele desperta em mim.
Gemo e empurro meu sexo contra seu dedo, mas ele puxa a mão para
trás.
— Então, peça!
Acho que se ele parar de me tocar, eu morro, então falo: — Quero você
dentro de mim, Lars, por favor.
Ele enfia um dedo e gemo alto.
— Assim?
Sim, mas não. É pouco. Quero mais. Quero mais que beijos e mãos me
acariciando. Quero minhas mãos em sua pele. Seu corpo sobre o meu. Seu
pau dentro de mim, me abrindo, me alongando, me fazendo toda dele.
— Não. Quero você, seu pau.
Ele ri alto desta vez e retira os dedos. Escuto o zíper descer e o barulho
de um pacotinho rasgar.
As costas dele roçam nas minhas, sua mão esquerda se apoia na minha
enquanto a direita posiciona a cabeça bem na minha entrada.
Então o sinto se retesar atrás de mim e puxar a minha mão da
balaustrada.
— O que é isso?
Por um momento, não sei a que ele está se referindo. Então, quando viro
a cabeça, o brilhante faísca na luz e entendo. Tento puxar o braço, mas não
consigo.
Antes que eu possa responder, ele me pega pelos ombros e me gira.
Minhas costas são subitamente pressionadas contra a superfície gelada da
porta de vidro da varanda.
Uma de suas mãos sobe para meu pescoço enquanto a outra segura meu
punho de encontro à porta.
Ofego, quase sem ar, mas não porque ele estava restringindo minha
respiração, mas porque é muito excitante ser segurada assim por um homem
grande como Lars.
Não sei dizer exatamente a razão, mas as paredes do meu sexo latejam,
ficam mais úmidas. A vontade que tenho é de me submeter à sua posse, ser
dominada por ele.
Ele solta a minha garganta.
— Você não usa o que outro homem te deu enquanto eu te fodo —
rosna, tirando o anel do meu dedo e a aliança e atirando-os, com raiva, em
algum lugar dentro do quarto.
— Lars!
Parecendo um tanto selvagem, declara, quase que num rosnado: —
Porque você é minha. Minha!
— Estou aqui porque quero, mas ele tem mais direito sobre mim que
você.
— O caralho que tem!
Então me vira de novo e o único aviso que tenho de que vai me penetrar
é que a força com que segura meu quadril.
Seu pau arremete de uma vez, abrindo-me toda, bruto, estocando até o
fundo.
— Ah, Lars! — grito.
— Isso, diga ao mundo a quem você pertence, por quem seu corpo
chama — rosna ele, sem parar de meter forte. — Você é minha.
— Queria, mas não sou.
— Aceitou ser minha namorada. E vai ser minha princesa.
O prazer é violento, quase excessivo. Arqueio meu torso e jogando os
braços para trás, agarro seus cabelos.
— Você me deixou, agora sou dele.
— Não deixei. — A palma quente desliza sobre a minha bunda, antes de
me espancar com força. — E não é dele, é minha.
— Então, me beija, Anjo — peço.
Tento puxar sua cabeça para frente e encostando a minha em seu ombro,
procurando sua boca, mas ele se afasta.
— Ninguém mais te toca além de mim. — Ele me encara, com esses
olhos mais azuis que o mediterrâneo, enquanto tira o pau inteiro e volta a se
socar forte dentro de mim. — Ninguém mais te beija, ou te toca, te fode,
principalmente se você não quer.
— Você não pode achar que tem algum direito, Lars — arfo, com a
tensão sexual que aumenta a cada estocada bruta, impossível de resistir ao
prazer alucinante —, não quando retirou seu pedido de casamento, sumiu
por semanas e reaparece, assim do nada, pedindo para eu passar a noite com
você.
— Não sumi, Diaba tentadora — diz no meu ouvido, me fodendo como
um garanhão. E apesar de ele ter dito que não tinha pressa, a mão me rodeia
pela frente e começa a me bolinar. — Mas agora aproveita e goza.
A lascívia ameaça me consumir, como sempre acontece quando estou
com ele. Sexo entre nós é assim, intenso, mas agora… é mais ardente,
febril. É avassalador.
Pulso ao seu redor, quente e molhada.
Estou naquele ponto doce que nunca quero que acabe, mas sempre
acaba. Meu corpo treme e treme, e eu tenho espasmos em torno do seu pau,
agarrando-me aos seus cabelos, rebolando, gemendo.
— Me beija — imploro, mas ele não cede.
— Goza, Diaba, grita meu nome quando gozar bem alto e conta para o
mundo que você é minha — ordena, antes de voltar para dentro de mim. —
Goza!
Explodo.
Grito bem alto o nome dele e finalmente me entrego.
Ainda estou latejando quando ele me vira e me encara. Os olhos azuis
estão quase tão escuros quanto o céu que finalmente escureceu.
Ele me levanta pela bunda contra o vidro, e quando o abraço com as
pernas, se enfia em mim, com uma estocada tão profunda, tão gostosa, que
a cabeça de seu pau toca o meu útero.
— Ai, Lars, ai, meu Deus!
— Sentiu? Você é minha, Vasilisa, e não vou permitir que outro homem
a roube de mim.
Segurando-me com força, ele dá mais duas arremetidas. Joga a cabeça
para trás, os tendões do pescoço retesados e goza.
— Diaba! — solta um grunhido selvagem, enfiando-se bem fundo em
mim. — Você é minha, Diaba! Diz!
A paixão gravada em seu rosto bonito, quando me enche deste jeito
bárbaro, é algo que não vou esquecer jamais.
O desejo intenso que sinto por esse homem me trai: estou ofegante, o
coração batendo rápido, a pele toda arrepiada.
— Sou sua!
Só então ele me beija. Sem descolar a boca da minha nem para respirar.
Como se estivesse com sede e eu fosse a água. Como se eu fosse o
néctar ii.
Ele me beija e me leva para um paraíso ainda mais sublime, de onde não
quero voltar.
E eu o beijo de volta, como se ele realmente fosse o anjo, que me dá
asas e voa junto comigo, pelo azul-marinho infinito do céu pontilhado de
estrelas.
Ainda dentro de mim, ele anda até o sofá e se senta ali, abraçado
comigo.
— Lars, precisamos conversar — digo, penteando seus cabelos com os
dedos.
— Não, não tem conversa — nega, balançando a cabeça. — Você
aceitou ser minha, não pode aceitar ser de outro.
— Mas se você retirou a sua proposta, o que você queria que eu fizesse?
— explico. — Depois sumiu. Telefonei hoje para você, antes da festa, você
nem atendeu…
Ele deixa a cabeça cair para trás e fecha os olhos por um longo
momento.
— Lars?
— É… — Ele solta o ar com força. — Acho que precisamos conversar,
sim. Vem, vamos tomar uma chuveirada.
Seguimos para o banheiro, mas se a ideia era ser algo rápido, logo vai
para o ralo junto com a espuma, porque basta ele ensaboar meu corpo e seu
membro começa a ficar ereto novamente.
— Acabei de gozar e quero mais — diz, rouco. — De joelhos.
Ele faz pressão de leve no meu ombro e eu cedo. Vou para o chão do
chuveiro.
— Abre — ordena. — Abre bem, que vou foder essa sua boca gostosa e
você vai engolir minha porra toda.
De onde estou vejo os abdominais bem definidos, tão definidos que
parecem esculpidos em bronze molhado, e o membro, enorme, inchado e
ereto, quase encostando no estômago. Seus dedos miram a cabeça
vermelha-escura com uma gota brilhante de sêmen já aparecendo para
baixo e empurra-se entre meus lábios.
— É mais que desejo o que sinto — a voz torturada, seus dedos se
enfiam nos meus cabelos, puxam minha cabeça mais para perto. — É…
fome de você, Vasilisa. Necessidade.
Deixando que eu me acostume com sua largura e tamanho. Começa um
vai e vem, movendo os quadris num ritmo suave.
O banheiro é luxuoso e aconchegante, num tom de azul-marinho que
torna ainda mais íntimo o ato, que adiciona um nível a mais de intensidade
ao momento. Mas tudo com Lars é assim: descontrolado, desmedido,
destemperado.
— Tanto que dói — confessa, os olhos azuis cravados em mim —,
quase me deixa com vontade de te fazer sofrer, também.
Observo sua garganta subir e descer, como se lhe custasse muito dizer
isso.
— Quero que você se vicie em mim tanto quanto eu estou viciado em
você — diz.
Ele fecha os olhos, inclina a cabeça para trás, deixando a água do
chuveiro cair sobre ele, como se ela pudesse resfriar seu ardor.
Mas acho que nada a não ser eu, tem a força e o poder de satisfazer este
deus nórdico neste exato momento. Isso me faz redobrar meus esforços.
Assim, entregue, viril e macho, ele é a imagem perfeita do pervertido iii.
Se existisse um rosto masculino para o sexo mais safado, mais bonito, mais
gostoso, esse seria o dele. Eu seria uma a me entregar às suas perversões.
Todas elas, quaisquer que fossem elas. Aliás, me entreguei.
Solto-o para tomar ar, não deixando de masturbá-lo com a mão.
Enrolo a língua na cabeça macia. Chupo-a e delicio-me com ela, como
se fosse um doce.
— Agora, pecadora, vou enfiar tudo. — Ele dá um puxão leve nos meus
cabelos enrolados nos seus punhos, me avisando que vai voltar a entrar. —
Abre, língua para baixo.
Relaxo o maxilar e deixo que ele meta o pau enorme, ao mesmo tempo
que me puxa e traz meu rosto até o seu púbis.
Urra de prazer e pede: — Engole, vadia.
Tento, mas engasgo com a cabeça polpuda na minha garganta e preciso
empurrar suas pernas.
Com um grunhido selvagem, ele me libera.
Fico ali, recobrando o fôlego, esperando que ele decida o que fazer
comigo, porque estou completamente viciada nele.
Ele se agacha, me pega no colo, me leva para a cama e me coloca sobre
o edredom, sem se importar que estou ensopada.
Pega uma camisinha na mesinha de cabeceira, se cobre e vem para a
cama.
Posiciona-se sobre mim e me encara. — O tiro saiu pela culatra.
— Que tiro? — pergunto desnorteada, porque não estou entendendo
mais nada.
Passo os dedos por seu cabelo molhado, penteando-o para trás. Acho
que ele enlouqueceu. Seus olhos têm uma expressão febril. Realmente, não
parece bem.
— Se eu pretendia me livrar do seu vício, não deveria ter te provado
novamente.
Rio e tranço as pernas em volta da cintura dele.
Ele entra em mim. Devagar desta vez, como prometeu antes.
— O som do seu riso. O cheiro do seu perfume. — Cada uma das
minhas qualidades vem acompanhadas de uma estocada firme. — O seu
gosto, seu cabelo, a maciez da sua pele, tudo seu. É perfeito.
— Lars… — gemo.
— Perfeita. — Ele abaixa a cabeça e suga meu mamilo na boca. —
Inocente e pecadora. Vadia. Diaba. Minha.
As veias do pescoço estão saltadas, o pomo sobe e desce, e ele acelera o
ritmo, movendo os quadris, observando meu rosto.
Estou ardendo, sem ar, e ele enfia a mão entre nós.
— Goza, vadia, goza e me mostra que é minha!
Abraço-o forte, ondulando no seu ritmo, beijando-o, querendo
desesperadamente ser toda dele.
O desejo se espalha pelo meu corpo, deixando um rastro de fogo. Sem
poder me conter, completamente arrebatada, começo a gozar, estrangulando
seu pau grosso e duro dentro de mim.
Estremeço, porque o orgasmo não termina. Meu sexo parece que vai
explodir e me incendiar toda. Meu corpo ondula, pede por mais. Grito
coisas desconexas, arrebatada.
Ele sai de mim, me vira na cama, levanta meus quadris e enfia a cara na
minha boceta.
— Lars!
Sua língua quente e voraz me lambe e me penetra e seus lábios me
chupam.
— Lars, me fode, por favor, me fode — imploro, desesperada.
Seu pau estoca bruto, de uma vez, com força, me fazendo receber cada
centímetro dele.
Grito, alucinada, porque é gostoso demais.
Sem parar de me penetrar, puxa meu torso para cima.
— Vadia safada da porra, você gosta disso, não gosta?
— Gosto, gosto!
Ele me beija, engole meus gemidos e gritos.
O orgasmo se espalha, entorpece, toma tudo de mim e me liberta.
Voo alto. Alto, muito alto, e o abismo vem, em queda vertiginosa.
Caio na cama, exausta, e ele desce comigo, grudando o peito às minhas
costas, ainda me comendo firme.
Puxa-me pelos cabelos e com a boca na minha, pede de novo: — Diz
que é minha.
— Sou sua. Sua, só sua.
Com uma estocada dura, enterrado dentro de mim até o final, ele
finalmente se entrega.
É minha vez de tomar para mim seu gemido rouco.
Acordo bem cedo com Vasilisa nos meus braços.
Depois do nosso banho ontem, sentamo-nos na sala para conversar
enquanto trocavam o edredom e travesseiros molhados, mas não
conseguimos desenvolver muito. Primeiro, porque estava tarde – era mais
de uma hora da manhã – e depois, ela estava muito sonolenta, mais do que o
normal.
Sugeri deixarmos para hoje de manhã o que ela concordou e fomos
dormir assim que as camareiras saíram da suíte, devidamente
recompensadas.
Seu corpo delicado se aninhou no meu, e ela não se mexeu mais.
Cheguei a ficar com câimbra no braço e mesmo quando me mexi, ela não
acordou. Apenas, suspirou, virou-se, abraçou um travesseiro e se
aconchegou em mim de costas, o que me deixou ainda mais convencido que
o pai a está dopando.
Fico observando-a dormir por mais uns minutos.
Seus cabelos loiros estão espalhados pelo lençol cinza-escuro, criando
um contraste que realça ainda mais sua beleza serena.
Este é o tipo de manhã que desejo ter o resto da minha vida.
Se não tivesse os problemas e as muitas pedras no longo caminho a
percorrer para ter a tal vida que quero.
Com cuidado para não a acordar, deslizo para fora da cama. Há
responsabilidades que não posso ignorar.
Cubro-a com o edredom, certificando-me de que está respirando bem e
que está confortável.
Vou ao banheiro, escovo os dentes e lavo o rosto com água gelada,
preparando-me para o dia, que sei que vai ser difícil.
No closet, escolho uma roupa clássica, que não compromete e é sempre
apropriada para essas situações, mas passa a impressão de confiança,
elegância e poder e isso é importante: calça e um blazer azuis-marinhos e
uma camisa de botões brancos. A ponta de um lenço de algodão branco
aparece discreta no bolso de cima, onde penduro meus óculos aviador.
Pego meu celular na mesa de cabeceira, fecho a porta suavemente e vou
para a sala de estar.
Disco o número de Tyr e ele me atende no segundo toque.
— Bom dia. Tudo bem por aí?
— Bom dia, tudo funcionando como esperado — diz, e vai direto ao
ponto: —Astrid conseguiu segurar as primeiras páginas dos jornais
europeus mais importantes até a meia-noite com a promessa que teria fotos
bombásticas. Segundo ela, as redes sociais estavam bombando com as fotos
do noivado e assim que chegaram as fotos de vocês dois aos beijos na
varanda enlouqueceram. As de vocês nus deu até pane.
A sensação de ver Vasilisa exposta dessa maneira me corrói por dentro.
Mesmo sabendo que era parte do plano, não consigo evitar o nó que se
forma em meu estômago.
A ideia de que todos possam vê-la em um momento tão íntimo me deixa
furioso e profundamente desconfortável. Nunca quis que ela passasse por
isso, e o pensamento de que possa se sentir traída me atormenta.
— Que droga, Tyr. É muito ruim?
O silêncio do outro lado é palpável antes que meu irmão responda: —
As fotos são granuladas como o fotógrafo prometeu. As que vocês estão
juntos não são pornográficas. São eróticas, mas bonitas, muito bonitas
mesmo, mas… — ele faz uma pausa como se estivesse procurando a
palavra — são comprometedoras, como pedimos. É trabalho de
profissional.
— Merda.
Pego meu celular e, com mãos trêmulas, abro o feed de notícias do
Instagram.
Não preciso nem procurar. As nossas fotos estão espalhadas por toda a
rede. Fecho e entro no site de pesquisa. Coloco meu nome na barra e clico.
Uma lista gigante aparece com links para todos os jornais, sites, blogs de
notícias, redes sociais e sabe-se mais o quê. Com o dela, o de Jamal, os
nossos sobrenomes, a palavra escândalo e realeza acontece o mesmo.
Quando clico em Imagens, as fotos granuladas de nós dois, em momentos
íntimos, nossos corpos seminus e o dela completamente nu, nas mais
variadas poses, aparecem.
Estamos expostos, vulneráveis.
Sinto a náusea subir; quase vomito ao pensar que o mundo inteiro está
testemunhando uma paixão que deveria ser apenas minha e dela.
Fecho os olhos, tentando controlar a mistura de raiva e culpa que me
invade.
— Eu nunca quis expor Vasilisa dessa forma — falo, a voz carregada de
pesar.
— Era necessário, Lars, você sabe disso — diz, frio. — Precisamos
manter o controle da narrativa. Sugiro que acorde Vasilisa, tome café com
ela na varanda e depois saia pela garagem direto para a embaixada, antes
que alguém acorde e acione a polícia.
Passo a mão pelo rosto, tentando me recompor.
— Estamos monitorando a Casa Hardrada e o Hotel Continental. Estão
todos dormindo ainda e não sabem de nada — avisa, com firmeza.
— Excelente. — Respiro fundo, levemente mais calmo. — Isso vai nos
dar a vantagem de que precisamos.
— Não use celular com ela e não deixe que ela use. Está em todos os
lugares. E não fale nada para ela ainda.
Não quero nem imaginar como Vasilisa vai se sentir ao descobrir que
está exposta para o mundo inteiro, que nossa intimidade foi violada.
O medo de perder sua confiança me sufoca. Sei que fizemos isso para
protegê-la, mas a que custo?
— E quando ela descobrir? Como vou encará-la?
Tyr suspira do outro lado. — Vamos lidar com isso juntos quando
acontecer. Por enquanto, mantenha a calma e siga o plano. Ela precisa de
você forte agora.
— Tudo bem.
Preciso encontrar uma maneira de explicar tudo a ela, de fazê-la
entender que, apesar de tudo, meus sentimentos são sinceros e que farei o
possível para protegê-la.
— Ótimo. E lembre-se, cuidado redobrado. As coisas podem e
provavelmente vão ficar intensas.
— Estarei atento, pode deixar.
Desligo a chamada e fico olhando para o horizonte pela janela. A
responsabilidade pesa sobre meus ombros como nunca antes. Sei que as
próximas horas serão cruciais, não apenas para o plano, mas para o futuro
do meu relacionamento com Vasilisa.
A engrenagem está em movimento, e não há espaço para erros.
Quando me levanto, a luz bate no diamante que joguei de qualquer
maneira ontem à noite para dentro do quarto. Pego-o. Giro-o contra a luz. É
um belo anel. Um pouco exagerado, bem ao gosto dos Sheiks árabes,
grande demais para uma moça como Vasilisa, mas não posso negar a
qualidade excepcional da joia. Procuro a aliança, que está embaixo da
poltrona, e vou até o escritório. Sento-me na escrivaninha e na gaveta pego
um envelope do hotel onde ponho os dois anéis e subscrevo-o, em letras
garrafais, com o nome de Jarl Hardrada.
Puxo da gaveta duas folhas em branco. Com um sorriso de canto, em
uma, deixo uma mensagem específica para o concierge para fazer a entrega
do envelope em mãos ao Sr. Hardrada, com protocolo de recebimento. Na
outra, uma frase apenas. Dobro esta em três, ponho no envelope e lacro-o.
Junto uma nota de cem coroas do clips de dinheiro do bolso de dentro do
blazer, coloco tudo em outro envelope maior e ponho no bolso de fora do
blazer.
Volto para o quarto. Vasilisa ainda dorme tranquilamente. Sento-me na
cama e beijo sua nuca.
— Vasilisa — chamo baixinho, meu nariz inspirando profundamente
seu perfume adocicado. — Hora de acordar.
A vontade que tenho é de entrar nos lençóis novamente. Beijar cada
centímetro dela, depois fazer amor com ela bem devagar, mas prometo a
mim mesmo que compensarei mais tarde.
Ela abre os olhos e os esfrega.
— Lars? — murmura com a voz sonolenta.
— Bom dia, minha princesa. — Forço um sorriso.
Ela sorri de volta, rolando na cama, e espreguiçando-se como uma
gatinha manhosa, no meio de todos os travesseiros. — Hmmm… Que horas
são?
— Cedo ainda, mas pensei em tomarmos café juntos na varanda, antes
de sairmos.
Ela fecha os olhos e suspira. — Parece uma ótima ideia.
Mas não se mexe.
Rio. — Ei, moça, é para hoje.
Ela senta-se na cama, passando a mão nos cabelos. — Esse remédio me
deixa lenta, mas vou me arrumar. Me dá dois minutos.
— Você quer alguma coisa especial?
— Especial? — pergunta, na porta do banheiro.
A luz do sol que entra pela janela deixa seu corpo nu dourado.
Pelos deuses!
Se ela não quer, eu quero: ela, deste jeito mesmo.
— Para comer… — explico, meio entontado com a sua beleza. — Ovos
ou… — Ou o quê, mesmo? — Panquecas? Waffles?
— Ah, não, nada. O que vier no café, está bom — diz e some, fechando
a porta.
Passo a mão na boca, porque devo estar babando.
Deixo-a para se preparar e vou até a varanda. Peço ao serviço de quarto
que traga o café da manhã e aviso que sou vegetariano. Eles tomam nota do
meu omelete e peço waffles com xarope para Vasilisa.
Envio uma mensagem para a Major Tamarkin, que está na outra suíte.
Major, bom dia. Podem ir tomar o desjejum. Após, por favor,
pague as contas das nossas duas suítes e informe à
recepção que nós dois faremos o check-out em mais ou
menos uma hora. Tem um envelope para ser entregue ao
Concierge. Entrego qdo descer.

Eficiente como sempre responde em menos de um minuto:


Entendido, senhor. Já tomamos café e liberamos nossa suíte.

Envio outra mensagem:


Ótimo. Encontro com vocês na garagem. Aviso qualquer
mudança.
A campainha me avisa que nosso café da manhã chegou e abro a porta
para o mordomo e o garçom entrarem e arrumarem a mesa na frente da
varanda.
A vista é espetacular e o sol, que nasceu às quatro da manhã, vai alto no
céu azul-cerúleo, sem uma única nuvem.
Vasilisa demora tanto que quase vou buscá-la.
Acabei de fechar a porta quando ela surge, correndo, pula em mim, as
pernas e braços me agarrando e tasca um beijo na minha boca.
— Bom dia! O dia está lindo!
— Não tanto quanto você — respondo.
Porque com um rabo de cavalo, sem um pingo de maquiagem, vestindo
uma blusa rosa curta e sem mangas, uma calça jeans clara justinha e tênis,
ela parece uma jovem adorável. Bom, uma jovem de dezoito anos, com
peitos e bunda e boceta deliciosos.
Com ela nos braços, sento-me na cadeira.
Ela cora levemente. — Ah, para.
— Por mais que eu queira, não podemos nos demorar — digo, com
pena.
Ela faz um biquinho. — Alguém me prometeu muitas fodas antes de me
devolver para casa.
— Não vou te devolver para casa ainda, mas tenho um encontro em
quinze minutos. — Sorrio e a beijo, antes de colocá-la na cadeira da frente.
— Vamos, aproveite que as panquecas estão quentinhas.
— Hmmm, está bem.
Ataco minha omelete e ela as panquecas.
— Você está pensativo — diz, depois de um tempo.
— Muitas coisas acontecendo — admito. Na realidade, estou me
sentindo culpado. — Mas nada com que deva se preocupar — termino antes
que ela pergunte o que é.
— Lars — pega na minha mão —, quero dividir tudo com você.
Aperto a dela.
— Eu sei. E aprecio isso. Prometo que vou compartilhar, no momento
certo.
Ela suspira. — Você está muito misterioso.
Procuro distraí-la, servindo o chocolate quente que sei que ela gosta e
conversando sobre as amigas e meus sobrinhos, contando peraltices de
Brutus, conseguindo tirar uns risos dela.
De repente, uma sombra de preocupação passa pelo rosto dela e ela
pega o celular e começa a verificar as mensagens.
— Acabei de perceber que não sei o que aconteceu na minha casa
ontem — diz, a testa franzida.
Eu sei, mas não digo nada. A Sargento Laikin avisou mais cedo a Tyr,
que me informou, que ninguém entrou no quarto e que até há uma hora,
quando ela se esgueirou para fora da Casa Hardrada e para dentro da
Embaixada de Vinterland, também não haviam batido na porta, nem
procurado entrar. Ou seja, tudo calmíssimo.
— Não tem nenhuma mensagem do meu pai ou de Melissa. Isso é
estranho. — Ela levanta os olhos para mim. — Será que ninguém notou que
eu saí de casa?
— Provavelmente, não — raciocino com ela. — Você não costuma sair
à noite, costuma?
— Não, nunca. — Ela para, pensa e responde: — Sou bem metódica e
antes de sair para o jardim, para ir falar com você, havia dado boa noite ao
meu pai e à Melissa.
— Por que iriam desconfiar de alguma coisa?
— Verdade…
Ela hesita, vai falar mais alguma coisa, mas antes que possa, tiro o
celular de sua mão e o guardo no meu bolso. Só por precaução. Não quero
que ela veja as redes sociais. Não ainda.
Olho o relógio e decido que é hora de ir. — Terminou?
— Já.
Nesse segundo, uma mensagem de Tyr entra:
Saia imediatamente. Casa Hardrada em polvorosa. Polícia
acionada.

Pego o telefone e peço ao Concierge para me encontrar na garagem.


— Vamos. — Levanto-me e puxo a cadeira dela. — Da embaixada,
ligamos para o seu pai e esclarecemos tudo.
Ela põe a bolsa no ombro, mas para e franze a testa. — Esclarecemos o
quê? O que está acontecendo? Por que não posso simplesmente ir para
casa?
Puxo-a para mim e fito-a bem dentro dos lindos olhos verdes. — Confie
em mim. É mais seguro se você vier comigo agora. Prometo que vou
explicar tudo em breve.
— Tudo bem — diz, olhando nos meus olhos. — Confio em você.
Não deveria.
Inclino-me e a beijo. Enrosco minha língua na dela, minha mão em seus
cabelos, como quero enroscar nossas vidas para sempre e beijo-a até
ficarmos sem ar.
— Tem certeza que precisamos ir? — pergunta, lânguida.
— Infelizmente — confirmo.
Ela suspira e se solta dos meus braços. — Vou pegar minhas coisas.
— Não precisa.
— Mas…
— Não! A mesma pessoa que trouxe suas coisas vai levar — digo,
puxando com urgência para a saída, porque meu celular treme de novo no
bolso.
Seguimos para o elevador que leva à garagem. Enquanto descemos,
envio uma mensagem para a Major Tamarkin informando que minha
bagagem está fechada e as coisas de Vasilisa ainda estão no armário. Ela me
responde que viu que saí e já está na suíte pegando tudo.
Ao chegarmos à garagem, nosso motorista está à espera, com o motor
ligado. O Tenente-Coronel Bogoraz está com a porta aberta e o Concierge
nos espera ao lado.
Vasilisa dá bom dia e entra.
Entrego o envelope com o anel e a aliança ao distinto senhor e dou as
informações detalhadas: — Por favor, entregue nas mãos do senhor
Hardrada ou do Sheik, faça com que verifique o conteúdo e assine o
recebimento. Depois, avise imediatamente à embaixada.
— Sim, senhor.
— A Major já vai descer. Assim que puderem, vão para a Embaixada —
digo, preocupado, porque quero ir embora da Noruega o mais rápido
possível.
Assim que termino de falar, o elevador se abre e a Major aparece, com
minha mala e a mochila de Vasilisa. Ora, não é que a menina havia
arrumado tudo mesmo?
— Podemos ir — digo, entrando.
A nossa SUV sobe pela rampa de saída, seguida pela outra.
Pego o celular e envio uma mensagem para Tyr.
A caminho. Mantenha-me informado sobre qualquer
novidade.
Ele responde quase imediatamente.
Entendido. Embaixada ciente.

Assim que deixamos a garagem, ouço ao longe o som de sirenes.


Discretamente, olho pelo retrovisor e vejo dois carros de polícia chegando
ao hotel, seguido pela SUV do pai de Vasilisa e, também, de Jamal.
Não esperava por esta. Achei que quando ele me visse fodendo com ela
fosse desistir da menina.
Meu coração acelera, mas mantenho a expressão serena para não a
alarmar. Rapidamente, envio outra mensagem para Tyr:
Temos companhia dupla. Jamal e Hardrada já chegaram ao
hotel com 2 carros de polícia.

Recebo uma resposta imediata:


Não se preocupe. Quando chegarmos a Frogner, a rota
alternativa será ativada.

O motorista acelera.
— O que houve? — pergunta Vasilisa, notando a súbita mudança de
velocidade.
— Parece que o trem vai passar mais cedo — respondo, tentando soar
casual.
— Mais cedo? Lars, nenhum trem passa mais cedo ou mais tarde, nem
um segundo aqui. — Ela me olha com desconfiança. — O que está
acontecendo?!
Respiro fundo.
— Seu pai e Jamal já sabem que você estava comigo e… acho… que
levaram a polícia ao hotel para me prender.
Ela empalidece.
— Prender. Por quê?
— Porque seu pai fez com que a justiça te declarasse incapaz, o que
obviamente você não é, mas isso invalida qualquer decisão sua, como, por
exemplo, a sua vontade de estar comigo — digo. — E, por você ser
incapaz, eu não poderia ter feito sexo com você, porque, supostamente,
você não tem discernimento.
— Ele ia te colocar na cadeia por… — Ela leva a mão à boca, chocada.
— Não… não pode ser.
— Por eu ter te levado para cama? Sim, ia. — Seguro sua mão. —
Mesmo que você dissesse que foi por livre e espontânea vontade, de nada
valeria a sua declaração.
O carro entra em Frogner e ao invés de se dirigir diretamente para a
embaixada, entra numa rua lateral, mais estreita.
Olho para trás e não vejo mais a SUV onde estava a Major e não me
preocupo com isso porque sei que Tyr está coordenando.
— Sei que é difícil de aceitar, mas eu não retirei meu pedido de
casamento, muito pelo contrário. Jamal deve ter oferecido alguma coisa
melhor a seu pai e por isso ele escolheu dá-la em casamento a quem
interessava a ele, Jarl, e não a quem interessava a você.
Lágrimas se formam em seus olhos, mas ela as enxuga rapidamente. —
Acho… Acho que tem algum engano.
Ela ainda não espera traição do pai dela.
Eu sei que meus irmãos vão me dar sempre o amor e apoio, mas
também já vi que às vezes aqueles que estão mais próximos são os que te
machucam mais.
Segue-se um silêncio breve em que não tenho coragem de tirar a venda
dos olhos dela de uma vez só, mas as sirenes de polícia que se aproximam
quebram o transe dela.
— Preciso falar com meu pai — diz. — Ele vai me explicar o que está
acontecendo.
— Claro — digo. — Essa é a ideia. Assim que chegarmos à embaixada,
gostaria que você falasse primeiro com Magnus, ele pode explicar melhor a
situação. Depois com seu pai, que deve estar chegando com Jamal e a
polícia a qualquer momento.
— Jamal? Jesus! — exclama, estendendo a mão à frente. Fica branca
feito cera e vira-se para mim, segurando minha perna com força. — Lars!
Precisamos voltar! Liga para o hotel…
— Calma!
O portão de ferro preto e dourado já está aberto e os guardas os fecham
assim que o carro passa.
— Não! Você não está entendendo! — Ela aperta minha coxa, as unhas
curtas se enfiam na minha carne. — Os anéis! Esqueci os anéis no hotel!
A velocidade diminui e paramos na frente da casa antiga.
— Eu peguei, calma, calma — falo, procurando acalmá-la, porque não
quero que se preocupe.
Ela desaba e passa a mão na testa.
— Está se sentindo bem?
— Sim.
Mas não parece. — Vem.
A Embaixadora Madeleine Sørensen, uma senhora distinta de uns
cinquenta e poucos anos, trajando um tailleur bege de calça comprida e
sapatos baixos, está nos esperando na porta, com um sorriso.
— Senhora Embaixadora, desculpe todo esse inconveniente e obrigado
por nos receber — agradeço e apresento Vasilisa —, minha namorada,
Vasilisa Hardrada.
— Alteza, Senhorita Hardrada, sejam bem-vindos. — Cumprimentamo-
nos e ela nos direciona pelo vestíbulo de mármore, decorado com obras de
arte contemporâneas de artistas escandinavos. — Suas Majestades e suas
altezas esperam pelos senhores na conexão privada na sala de reuniões.
Posso oferecer café ou talvez um chá?
— Não, obrigado, acabamos de tomar o desjejum — digo, mas viro-me
para Vasilisa e pergunto: — Talvez uma água?
— Sim, aceito.
A sala de reunião é pomposa e bem apropriada para uma embaixada.
Provavelmente, aqui cabem umas cinquenta pessoas. O pé direito é alto, de
uns cinco metros. Esse palacete antigo deve ter pertencido a algum nobre
empobrecido.
Puxo a cadeira para Vasilisa à minha direita e a embaixadora senta-se ao
lado dele, deixando-me a cabeceira, já que sou a autoridade mais alta no
momento.
Um telão mostra duas telas: numa aparecem Thorvald, Tyr, Magnus,
Yasmin e Tatyana na sala de conferências do Palácio Frostholm e no quarto
de hotel, Catarina.
— Não estou entendendo — diz Vasilisa, olhando para mim.
— Prima, estávamos preocupadas! — diz Catarina. — Você não
respondia direito às mensagens…
— Nem às minhas — diz Yasmin.
— Nem às minhas — fala também Tatyana.
— Como assim eu não respondia direito?! — pergunta ela, a voz
alterada. — O que vocês queriam? Desenhos?! Fotos?! Relatórios?!
— Você pelo menos podia nos dizer o que estava acontecendo, mandar
um áudio — diz Tatyana, cruzando os braços. — Ser um pouquinho mais
acessível.
— E vocês? As plebeias, agora coroadas? A Rainha de Vinterland. E a
Princesa do Ártico. Vocês, agora que são da realeza, são acessíveis, por
acaso? — As frases saem em disparada, imparáveis, como se fossem balas
de uma metralhadora. — Entendo que vocês casaram e têm muitos
compromissos importantes, inaugurações, os maridos, o reino, só Jesus
Cristinho sabe o que mais, mas me abandonar e nem vir para o noivado
com um homem que eu. Não. Queria. Custava? — pontua as palavras,
quase as cuspindo. — E ainda avisam que não vêm, em cima da hora? É um
pouco demais, até para a realeza, não acham?! Vocês…
— Vasilisa. — Cubro a mão dela com a minha, efetivamente
lembrando-a que não é hora disso.
O rosto está corado, o peito sobe e desce, a respiração acelerada. Ela
está magoada. Profundamente.
— Desculpe, Vossa Excelência, me excedi — diz para a Embaixadora,
sem graça, e bebe o copo de água de uma vez.
Sorrio, porque não pede desculpas nem aos meus irmãos, nem às
amigas, nem a mim. E vai ter que pedir perdão, ao menos, às amigas.
Madeleine sorri para ela e enche o copo de novo. — Amigas perdoam.
— Espero que sim — diz ela.
— Vasilisa, não posso afirmar, mas desconfio que seu celular esteja
grampeado ou sendo monitorado.
— Meu celular? Aliás, cadê ele?
Tiro o celular dela do meu bolso e coloco no meio da mesa.
— Existem tecnologias avançadas, como o protocolo SS7, que é usado
pelas operadoras de telefonia para permitir que diferentes redes se
comuniquem — explico, tentando ser o mais claro possível. — Mas pessoas
com conhecimento e recursos podem explorar as vulnerabilidades desse
sistema para interceptar chamadas e mensagens de texto sem que você
perceba, o faz com que suas mensagens possam ser desviadas, lidas ou até
mesmo alteradas antes de chegarem ao destinatário.
Vasilisa franze a testa. — Mas meu pai é um cientista e não sabe nada
de tecnologia. Como ele teria acesso a isso?
Olho para Tyr, que decide intervir.
— Existem empresas privadas que oferecem esses serviços ilegalmente
para quem está disposto a pagar — diz. — Indivíduos com poder e
influência podem ter contatos que facilitam esse tipo de acesso.
Ela respira fundo, absorvendo a informação, então diz: — Então, todas
as minhas mensagens podem ter sido monitoradas?
— É bem provável — assinto.
— Além do SS7, há técnicas de man-in-the-middle e spoofing que
permitem que um terceiro intercepte e até modifique a comunicação entre
duas partes sem que elas percebam. Deste modo, você pode ter recebido
mensagens alteradas ou nem ter recebido mensagens importantes. Eles
podem até mesmo enviar respostas falsas, fazendo-se passar por outra
pessoa.
Ela pisca duas vezes e diz: — Mas meu pai não é militar e não acho que
tenha acesso a este tipo de tecnologia. Ele mal sabe usar o celular direito.
Tyr continua: — Sabemos que ele pode não ser especialista em
tecnologia, mas tem recursos para contratar quem seja. É possível que esteja
trabalhando com profissionais para monitorar suas comunicações e manter
controle sobre você.
Vasilisa aperta as mãos no colo, claramente abalada.
A Embaixadora coloca a mão em seu ombro. — Entendo que seja
difícil, mas precisamos considerar todas as possibilidades para garantir sua
segurança.
Ela suspira, os olhos fixos na mesa. — O que devo fazer?
— Primeiro, precisamos trocar seu celular por um dispositivo seguro —
sugere Tyr. — Além disso, evitar comunicações não-criptografadas e
encontros em locais não seguros.
— É difícil acreditar que meu próprio pai faria algo assim. — Ela
suspira, balança a cabeça, como se não conseguisse assimilar e olha para
Catarina. — É mais uma acusação grave.
Percebo Yasmin e Tatyana se entreolharem e o meu celular vibra no
bolso.
Discretamente, puxo-o e leio a mensagem.
Cunhada Favorita
Não insista neste ponto. Não achamos que ela está pronta para encarar
isto. Taty está avisando a Tyr tb. Vamos focar em Jamal.
A frase dela me dá uma ideia. Tenho certeza que Tyr vai entender e
seguir o meu pensamento e reformular o plano a partir daí.
Localizo no meu celular o último e-mail que mandei para o pai dela e
mostro-o para Vasilisa.
— Pode ser que quem esteja usando essas tecnologias seja Jamal —
digo para ela, mas olhando fixo para meu irmão.
Os olhos azuis-esverdeados dele se estreitam minimamente por um
mero instante e então ele sorri.
Sorri aquele sorriso que as pessoas normalmente dão quando estão
felizes, mas que ele dá quando está pronto para matar a pessoa que mais
odeia nesse mundo, e para mim é o suficiente.
Respiro fundo aliviado.
— Compreende agora por que estamos sendo tão cautelosos? —
pergunto a ela. — Não queremos fazer acusações inverídicas, mas estamos
querendo te proteger de…
Uma batida na porta me interrompe no mesmo segundo que Tyr põe a
mão no ouvido por um breve segundo.
— Com licença, eu já retorno — diz meu irmão.
Ele se levanta da cadeira e some da tela.
Um ajudante de ordens entra, sussurra algo no ouvido da Embaixadora,
que pede licença e se retira da sala junto com o rapaz.
Vasilisa me olha. — O que está acontecendo?
— Sei tanto quanto você.
Tyr não demora para voltar, mas a Embaixadora não retorna, o que me
diz que as coisas estão complicadas do lado de fora.
Ele se senta e limpa a garganta.
Meu celular treme várias vezes no bolso, mas não ouso abri-lo no
momento.
— Vasilisa, você sabia que seu noivo tinha conhecimento do seu
relacionamento com Lars desde o começo?
— Eu nunca escondi que… tinha interesse em seu irmão — diz ela. —
Nem ele em mim.
— Mas você nunca assumiu para ele ou para seu pai que entre vocês
havia mais que interesse? — pergunta Tyr.
— Não — diz ela.
— Bom, ele sabia, ou ao menos desconfiava, que entre vocês havia mais
que interesse.
— Sabia?
— Com certeza — confirma ele.
Ela se vira para Tatyana e pede confirmação: — Você também acha
isso?
Se a amiga sabe disso ou vai na onda do marido, não sei, mas pela
careta que faz: — Infelizmente, acho que sim.
Ela abraça seu corpo, como se estivesse com frio. — Por que você está
dizendo isso?
— Ele colocou alguém para te vigiar, vinte e quatro horas por dia —
continua Tyr.
Puta merda! Ele vai colocar a culpa toda no árabe? Fico até
envergonhado, mas Tyr é o melhor estrategista que tem e esta for a ideia é
uma saída de mestre.
Ela fica mais pálida do que já está. — Para me vigiar?
— A você e a Lars — continua ele, me envolvendo na história.
— A mim?
À medida que ele fala e conta o que está acontecendo e as medidas
emergenciais que Astrid está tomando para limpar a internet das fotos –
uma estratégia que também já estava prevista –, vejo a mistura de emoções
passando pelo rosto e corpo dela, que vai ficando cada vez menor na
cadeira: raiva, incredulidade, choque.
— Tyr, chega! — falo, porque tenho medo que ela passe mal de
verdade.
Mas Tyr ainda não terminou, porque ele é implacável: — A polícia, seu
pai e seu noivo estão aí fora, acompanhando um oficial de justiça, que veio
cumprir um mandado de busca e apreensão para levar Vasilisa para uma
clínica psiquiátrica e mandados de prisão para Lars por crime de roubo e
estupro de incapaz.
— O roubo é do anel de noivado e aliança? — pergunto.
— É.
— Foram devolvidos hoje de manhã pelo Concierge ao Sr. Hardrada,
com um bilhetinho meu, e já devem estar devidamente assinados e
protocolados. Um crime a menos.
— Além disso, temos uma novidade: você é acusado também de
homicídio qualificado — avisa Magnus, com um franzir de sobrancelhas.
— Homicídio?! — espanto-me.
Ele se recosta na cadeira e cruza os braços. — Supostamente, ontem de
madrugada, depois que as fotos vazaram, você ordenou que caçassem,
torturassem e matassem o guarda-costas que estava vigiando vocês. Depois
o corpo dele foi esquartejado e os pedaços foram dados para os Cane
Corso i, que fazem a vigília da propriedade da embaixada.
Como é?
Até dou risada, porque a invencionice deles é tão sem pé nem cabeça
que não vai colar, nem que a vaca tussa.
— Não ria — diz Tyr, sério, o que me causa mais surpresa e até um
arrepio. — A esposa do homem supostamente assassinado com requintes de
tortura, registrou uma denúncia hoje de manhã, disse que recebeu um
telefonema ameaçador hoje de madrugada e que não conseguiu mais falar
com o marido. Hoje de manhã, supostamente, uma pessoa da embaixada,
que está tendo a identidade mantida em sigilo, avisou a ela o que aconteceu
e ela foi até a delegacia para fazer o registro.
Debruço-me sobre a mesa. — Tyr, estamos falando exatamente de
quem? Quem eu supostamente mandei matar?
— Este homem.
Na tela aparece um homem alto, careca, com uma barba comprida,
cheia.
Ao meu lado, Vasilisa solta um arquejo.
Viro-me para ela. — Você o conhece?
— É o segurança de Jamal que estava no carro que me levou para casa
depois que ajustamos o anel e a aliança.
— Já eu nunca o vi mais magro ou gordo, ou mais careca ou barbado —
digo, bem irritado. — Além disso, eu estava acompanhado, dormindo, em
um hotel, que tem câmeras de segurança. Várias testemunhas me viram
entrar. As camareiras trocaram a roupa de cama por volta de uma hora da
manhã. Várias testemunhas me viram agora de manhã. Tomar café. Me
viram sair. Meu telefone está à disposição, assim como as ligações feitas do
quarto do hotel. Se eles quiserem, podem recolher as fezes dos cães e fazer
testes para verificar se encontram o DNA do homem ou algo parecido.
Além de estupro de incapaz, não há justificativa para me prender.
— Não sou incapaz — sussurra ela, horrorizada, provavelmente com a
imagem que se fixou na sua mente —, nem fui estuprada. Essa ideia é
horrível e enfeia o que nós…
— Mas o desgraçado do seu pai parece achar que o que aconteceu entre
nós é violento e degradante e não merece a bênção dele, mas o que aquele
nojento quer fazer com você, mesmo que você não queira, vale diamantes e
petrodólares — falo alto demais e finalizo com um soco na mesa.
Quando finalmente me calo, minha voz ainda ecoa pela sala e a mesa
treme.
— Desculpe. — Suspiro e fecho os olhos por um segundo. — A culpa
não é sua e…
— Lars! — interrompe Tyr, talvez com medo que eu confesse o seu
plano, mas não era essa a ideia.
— Eu… eu…
Mas ela não consegue completar. Com mãos trêmulas, abre a bolsa,
pega um frasco com o rótulo vermelho e toma uma pílula.
— Vasilisa, está se sentindo bem? — pergunto, puxando minha cadeira
para perto da dela, preocupado.
Coloco dois dedos na jugular e meço o batimento. Seu coração está
disparado, mas não parece muito anormal tendo em vista a gravidade da
situação em que estamos vivendo, mas quem sou eu para saber?
— Quer que chame um médico? — insisto, porque seu rosto está bem
pálido.
— Vai passar… — diz baixinho, respirando fundo e devagar várias
vezes.
Depois de uns dois minutos a cor dela volta ao normal e ela levanta os
olhos para mim. — Como vamos sair daqui?
— No helicóptero da Força Aérea Real de Vinterland — informa
Thorvald, que até o momento não havia dado uma palavra.
Ela arregala os olhos para ele. — Mas isso não vai criar problemas para
vocês?
— Ser rei tem suas vantagens e desvantagens — diz ele, dando um leve
sorriso para ela. — Uma delas é que meu cargo é vitalício, então posso me
dar ao luxo de cometer pequenos incidentes internacionais como estes
quando vejo que absurdos inaceitáveis estão sendo perpetrados, sem medo
de que a população me julgue no futuro e não me recoloque no trono. No
entanto, Vasilisa, eu preferiria que você conversasse com seu pai antes de
sair daí. Tentasse ponderar com ele.
— Por quê? Já que vocês acham que ele vem me sabotando, me
manipulando?
Observo a expressão no rosto de Vasilisa, uma mistura de confusão e
resistência. Entendo ser difícil para ela aceitar que o próprio pai possa estar
agindo contra seus interesses.
— Porque é sempre melhor tentar um acordo, tentar conciliar ou fazer
um trato, ou talvez perguntar as razões dele — explica Thorvald. — Afinal,
é seu pai, sua família.
Sei que Thorvald está tentando evitar um conflito direto, mas me
pergunto se essa é a melhor abordagem.
— Vasilisa — intervenho, buscando seu olhar —, talvez conversar com
ele possa esclarecer as coisas. Às vezes, as pessoas têm motivos que
desconhecemos.
— Não sei se consigo enfrentar ele assim. — Ela me olha, os olhos
cheios de lágrimas e incerteza. — Que me vendeu pelo maior preço e
deixou que um homem me expusesse em… em… nua e… e…
A mão que ela passa sobre os olhos treme tanto que não me contenho e
a tiro da cadeira e trago-a para o meu colo. Ela esconde o rosto no meu
pescoço, se encolhe e começa a chorar.
Meu coração aperta.
— Não fica assim, logo isso tudo passa e ninguém vai se lembrar do
caso — sussurro. Acaricio as costas dela e sacudo a cabeça para Tyr. — Vai
ficar tudo bem, Pequena. Eu prometo.
Sou um hipócrita. Deveria ter procurado outra opção porque sabia a dor
e o sofrimento que ia causar com essa medida drástica. Mesmo que tenha
sido com as melhores das intenções possíveis, mesmo que Tyr tenha
encontrado uma boa saída, os meios foram questionáveis e o estrago está
feito.
Como justificar o injustificável? Suspiro alto.
Do outro lado da tela, Tyr faz sinal para que eu me mantenha firme e diz
em silêncio que: — Era necessário o sacrifício.
— Demônio frio e desalmado! — xinga a esposa, que dá um tapa
estalado no bíceps dele, aborrecida com a falta de empatia dele.
— Harpia dos Infernos, depois você vai me agradecer — resmunga ele
de volta.
— Esses dois brigam até nas reuniões sérias? — pergunta Vasilisa,
fungando.
— Sempre — digo, até porque é verdade e isso a distrai.
Dou a ela o lenço que está no meu bolso de fora do blazer.
— Obrigada — diz, enxugando os olhos e assoando o nariz, e depois
amassa meu lenço na mão.
— Você está bem? — pergunto, alisando seu cabelo para trás e olhando
dentro de seus olhos.
Ela balança a cabeça, sem me encarar de volta e se ajeita na minha
coxa: — Vou falar com meu pai, se você ficar na sala comigo e não deixar
que ele me convença a ficar em Oslo. Quero ir com você para Vinterland.
— Não vou te deixar, prometo — asseguro, apertando meu abraço.
Apesar de querer proteger Vasilisa a todo custo, também reconheço a
importância de tentar resolver as coisas de forma diplomática, se possível.
Há muito em jogo, e não posso permitir que minhas emoções atrapalhem.
Ela suspira. — Tudo bem. Vou conversar com ele.
— Isso é ótimo. — Thorvald faz um gesto afirmativo com a cabeça,
parecendo satisfeito. — Ele ainda está no portão insistindo para entrar.
— Você quer dizer ameaçando — resmunga Magnus.
Ainda assim, não posso deixar de sentir uma ponta de apreensão sobre
como essa conversa vai se desenrolar.
— Alguma coisa nesse sentido — diz Thorvald. — Vou pedir que ela o
admita.
— Apenas ele, não quero falar com Jamal — diz Vasilisa.
— Nem cogitei isso — fala Thorvald.
Minha mente analítica começa a planejar nossos próximos passos em
Vinterland. Vai ser ótimo escolher com ela onde vamos viver em Vinter e
como vamos decorar…
— Mas antes, Lars…
Olho para ela. — Sim?
— Antes de falar com meu pai, eu… preciso de subsídios — diz,
inspirando fundo e se levando do meu colo. Ela ajeita a roupa. — Contra
Jamal. Quero saber o que ele fez.
— O que ele fez — repito, sem entender direito. — Contra mim? Essa
invencionice que mandei matar o segurança, você diz?
— E também… — Ela passa a mão no cabelo e engole em seco, mas
bebe um gole de água, limpa a garganta e diz: — E quero ver nossas fotos
que Jamal espalhou por aí.
Olho para Magnus na esperança de que Astrid tenha conseguido retirá-
las da internet, mas ele franze a boca numa careta e sacode ligeiramente a
cabeça.
Que merda.
Mas se esse é o preço que eu – e ela –, tenho que pagar para acordar ao
lado dela todas as manhãs, que assim seja.
Só espero que um dia ela não descubra o que fiz, porque mesmo que
tenha sido feito para nos unir, isso vai nos separar.
Pela primeira vez na vida, agradeço essa sensação de sonolência e confusão
que os remédios, prescritos pelos médicos que meu pai me levava, dão.
Sentada no sofá do majestoso salão da embaixada, sinto-me
desconectada da realidade.
Parece que não sou eu a mulher nua e sensual que Lars beija o pescoço
na sacada da varanda do hotel. Nem a que ele acaricia os seios. Nem a que
ele empurra contra a porta de vidro e que envolve seus quadris com as
pernas.
Tenho inveja de todas elas. São ingênuas, inexperientes. Crédulas.
Um rapaz entra e Lars para de caminhar pelo comprimento das janelas e
se vira em câmera lenta para a porta e retorna.
Eles falam alguma coisa que eu não consigo entender.
As suas vozes parecem vir pelo ar, em ondas, mas não chegam até mim.
Não é como se eu estivesse vendo um desenho animado, mas isso não é um
filme e sim a minha vida. Também não é uma alucinação, porque não tomei
nenhum ácido ou droga.
Ou melhor, tomei uma dose a mais do remédio para o coração e
provavelmente o efeito é esse.
Volto meu olhar para a tela do celular e continuo a passar o dedo e ver
as fotos dos momentos que eu gostaria de guardar só para nós dois, não para
serem consumidos pelo público ávido por escândalos.
Não me fixo em nenhuma até que uma mão grande interrompe.
— Já chega, não acha?
Deixo que o celular seja tirado da minha mão porque não me importo
mais. Encosto-me na cadeira e fecho os olhos.
— Vasilisa.
— Hmmm?
Minha mente enevoada não quer acordar, mas alguém me sacode
suavemente.
— Vasilisa!
Abro os olhos.
— Beba isso. Seu pai veio falar com você — diz Lars, ajudando-me a
tomar o café amargo e ruim e depois coloca a xícara na mesa.
Ele estreita os olhos para mim. — O que foi que você tomou?
— O remédio de sempre — digo, esforçando-me para ficar acordada. —
Mas em dose maior. Ele me deixa… zen.
Lars puxa o celular do bolso, lê uma mensagem e fala alguma coisa na
língua dele que soa como um palavrão.
— Levanta, vamos — pede e me ajuda a ficar de pé. — Vem, vamos
nos mover mais para o meio da sala. Seu pai vem aí com Jamal. Não diga
nada, não assine nada, em hipótese alguma. Não assine nada, entendeu?
— Entendi — digo. — Por quê?
— É complicado, explico melhor depois.
Ele passa o braço pela minha cintura e andamos até o meio da sala,
estrategicamente como se estivéssemos conversando e olhando a paisagem
da janela, um jardim verde, com árvores e passarinhos que voam de galhos
em galhos despreocupados e inconscientes dos dramas que são tratados
dentro destas paredes.
Quando a porta se abre novamente, e a Embaixadora entra, atrás dela
vêm meu pai, o pai e a mãe de Tatyana – cujos nomes esqueci – e atrás
deles, Jamal!, e uma entourage de advogados.
Sinto um frio na espinha ao vê-los e aperto a mão de Lars.
— Por favor, acomodem-se — diz a Sra. Sørensen, amavelmente.
Vira-se para nós e explica: — Sua Majestade, o Rei Thorvald,
aconselhado por Sua Alteza, o Ministro da Justiça e Relações Exteriores,
Príncipe Magnus, permitiu a entrada deles para que Sua Alteza, o Sheik
Jamal Bin Omar, e a senhorita Hardrada possam desfazer oficialmente o
noivado
— Eu já volto — diz ele. — Fique aqui.
Tento focar nas palavras deles, mas elas se misturam em um murmúrio
indistinto de cumprimentos de majestades e altezas e bom dias e como
estão.
A única coisa que consigo perceber é que tom é frio e desagradável.
Sinto minhas pernas tremerem.
Antes que perceba, Lars está de volta e seu braço ao redor da minha
cintura é a única âncora que me mantém de pé. Quero encostar a cabeça em
seu ombro, mas, ao mesmo tempo, não quero demonstrar fraqueza.
Meu pai não se aproxima de mim e não faz nada além de lançar um
olhar severo antes de se dirigir ao lugar que o assistente da Embaixadora
indica, assim como Jamal que se antes queria me beijar, agarrar e até fazer
sexo anal, agora se mantém longe, com um sorriso enigmático nos lábios.
Mas a mãe de Tatyana passa direto pela outra assistente e vem na minha
direção.
— Vasilisa, querida, é tia Karla. — Pega minhas mãos e me dá um beijo
no rosto. — Você está bem?
Isso, o nome dela é Karla.
— Acho que sim — digo —, dentro do possível.
Ela me olha preocupada. Então, empertiga-se e olha para Lars, com a
testa franzida. — Alteza, achei de muito mau gosto o ocorrido.
— Concordo com a senhora — diz ele. — Já providenciamos as
medidas legais cabíveis e a retirada imediata dessas imagens de todos os
blogs, sites, redes sociais, etc.
— Esperava que o senhor tivesse mais cuidado com uma moça da
estirpe e reputação de Vasilisa, afinal o senhor sabia que ela era amiga da
minha filha e uma jovem de boa família — repreende ela. — Não a
conheceu na rua, não a encontrou numa boate baixo nível, praticando
meretrício. E mesmo que tivesse encontrado, não poderia permitir esse tipo
de exposição vulgar.
— Não, senhora — responde Lars, abaixando a cabeça. — A senhora
tem toda razão. Peço desculpas se dei a impressão que quis desrespeitar
Vasilisa. Ou Tatyana. Não tinha interesse nenhum em ver a intimidade da
mulher a quem propus casamento, nem a minha, a senhora vai ter que
concordar comigo, exposta dessa forma. Foi uma invasão de privacidade
absurda.
Estou espantada com a carraspana que a tia Karla passa no homem
enorme e imponente que escuta tudo, apenas se desculpando e tentando se
justificar. Há pessoas dispostas a me ajudar, a me proteger.
— Espero que isso não se repita — diz ela, com firmeza.
O Sheik El-Khoury que já estava sentado, se levanta, e vem buscá-la. —
Meu bem, Sua Alteza já compreendeu — diz, amoroso e delicado. —
Podemos nos sentar e começar logo esta reunião? Quero ir para casa.
— Claro, Omar — diz ela, não muito satisfeita, como se tivesse muito a
falar ainda, mas cede ao desejo do marido e vai se sentar no lugar indicado
para ela, do outro lado da mesa.
Minha mente luta para fazer sentido de tudo, mas o nevoeiro causado
pelo medicamento me impede de pensar com clareza.
Lars puxa a cadeira para mim e acomodo-me. Quando ele se senta, diz
ao meu ouvido.
— Vai ficar tudo bem.
Sua voz é firme, mas suave, transmitindo uma segurança que me
acalma. Respiro fundo, tentando me agarrar a essa sensação, porque não sei
se acredito nele.
Os olhos escuros de Jamal parecem atrair todo o calor da sala e emanar
um frio tão grande que fazem com que um arrepio percorra meu corpo.
Não sei se é de medo ou raiva. Ou um dos dois.
Volto meu olhar para a embaixadora Sørensen que, acho, falou meu
nome.
— O Sheik Jamal exige que a senhorita assine os documentos oficiais
do distrato de casamento, para que tudo esteja legalmente registrado.
— Lamento que as coisas tenham chegado a esse ponto, Vasilisa — diz
ele, com um tom que parece mais condescendente que sincero. — Mas se
você realmente não me quer, não vou impor a minha vontade. É só assinar o
distrato e você está livre para seguir a vida com o príncipe.
Ele estala os dedos e um de seus advogados tira da pasta de couro um
envelope dourado com uma moldura marrom e entrega nas minhas mãos,
mas Lars o pega e abre.
— É para a senhorita Hardrada — diz o advogado.
— Como futuro marido dela e maior interessado em proteger seu
patrimônio, vou ler e me inteirar do conteúdo. Além disso, gostaria de saber
por que seria necessário que minha namorada assinasse uma dissolução, se
ela foi declarada incapaz pela justiça? Acredito que ela não assinou o
contrato de casamento, assinou?
Não entendo a pertinência da pergunta, mas a falta de resposta que se
segue é ensurdecedora e reveladora, denotando que há algo oculto.
Ele vira-se para mim e pergunta: — Você assinou o contrato, Vasilisa?
— Bem, assinei uma documentação que me mandaram assinar — digo,
sentindo-me a perfeita idiota, porque nem li o que assinei.
— Mas não leu?
Sacudo a cabeça, confirmando.
— Entendo — diz ele. Olha para o meu pai e pergunta: — Sr. Hardrada,
por que exatamente o senhor pediu a declaração de incapacidade de sua
filha, se ela é maior de idade e perfeitamente capaz e inteligente?
— Por idiotices dessas — resmunga ele.
— Mas agora o senhor pede que ela assine um distrato e não traz
nenhum suporte legal para ajudá-la, ficando inclusive em oposição a ela —
observa Lars, firme, o que me deixa mais tranquila. — Espero que o senhor
não se oponha que eu leia, me inteire e aconselhe-a, já que tenho não só
interesse no bem-estar de sua filha como no futuro dela.
Quando as mãos grandes de Lars giram a última página do contrato,
juntam as folhas e as batem duas vezes na mesa.
O advogado me estende a caneta de ouro, mas ela fica no ar porque
minhas mãos continuam no colo.
Meu pai fala: — Não há necessidade de prolongar isso. Assine isso
agora, Vasilisa.
Seu tom autoritário me irrita, mas, ao mesmo tempo, me constrangem,
afinal sou sua filha.
— Não há necessidade de Vasilisa assinar nada — começa Lars e então
dirige-se a mãe de Tatyana: — Madame Zimmerman, sinto muitíssimo pela
aula de mediocridade que a senhora vai receber.
Rasga o distrato ao meio.
— Como ousa rasgar um documento legal? — urra furioso Jamal e
levanta-se, a cadeira caindo no chão. — Isso é inadmissível!
— Isso é um ultraje! — grita meu pai, ao mesmo tempo. — Você está
interferindo em assuntos de família!
A tia Karla que está ao lado de Jamal se encolhe quando na cadeira
quando o marido dela se levanta também para impedir o filho de dar a volta
na mesa e vir para cima de Lars, que já está de pé.
A gritaria e a confusão trazem quatro seguranças loiros e grandes para
dentro da sala. Eles se espalham prontos para entrarem em ação, caso
necessário.
O Sheik El-Khoury é quem coloca ordem na sala, numa voz tão fria e
tão gelada quanto o Ártico no inverno: — Jamal, Sr. Hardrada, sentem-se.
— Senhores, peço que mantenham a compostura — intervém a
Embaixadora. — Estamos em um recinto diplomático. Podemos resolver
isso de maneira civilizada.
O Sheik El-Khoury pede: — Vossa Alteza, peço que nos explique Vossa
posição.
— A mãe de Vasilisa é descendente dos Romanov, por uma linha que
saiu da Rússia logo que o Czar recebeu a carta de Rasputin prevendo a
morte dele e da Família Imperial. Foi uma das poucas que sobreviveu e é
bastante rica. Por uma cláusula de testamento, a herança passou da mãe
para Vasilisa e somente ela poderia ceder a outrem. No contrato, seu filho
ficaria com o controle dessa herança. Se ela assinasse o distrato, a herança
passaria imediatamente para controle dele, como penalidade por ela ter
desistido do casamento. Tendo em vista que ela foi declarada incapaz pelo
próprio pai, que não teve assessoria jurídica alguma na assinatura do
primeiro ato, esse é nulo de pleno direito e não há necessidade de assinar o
segundo.
Meu pai cerra os punhos. — Você não tem o direito de interferir nos
assuntos da minha família!
Lars o encara diretamente. — Tenho todo o direito de proteger a mulher
com quem pretendo me casar. Além disso, questiono a legalidade das ações
que o senhor tem tomado em relação à sua filha.
A tensão na sala é palpável. Sinto meu coração acelerar, mas, ao mesmo
tempo, uma sensação de alívio começa a surgir.
Tia Karla olha para mim, surpresa. — Vasilisa, querida, você sabia de
tudo isso?
— Não — admito, a voz trêmula. — E não estou entendendo nada.
— Isso é inaceitável! — Jamal bate na mesa e aponta para Lars. — Esse
homem tem interesses escusos com minha noiva desde o dia do casamento
da minha irmã. Que essa farsa termine agora!
— Sugiro que reconsidere suas palavras — rebate Lars, parecendo até
calmo. — Porque eu fiz a proposta formal de casamento a ela e ao pai dela
primeiro e ela aceitou. Mas, se quiser insistir nisso, podemos perguntar a ela
para começar. E depois ir à justiça. Vamos descobrir quem tem razão. E
quem está tentando enganá-la, manipulá-la, dopá-la, roubá-la…
Ele soca a mesa e se prepara para sair da sala. — Não vou ser ofendido
por um pobretão, assassino, parte de uma gangue que vem engravidando
mulheres para encher os cofres…
— Chega! — a voz baixa e cortante do Sheik El-Khoury interrompe a
tirada. — Peça desculpas a Sua Alteza, cunhado da sua irmã, e à senhorita
Hardrada, futura princesa de Vinterland.
— Pai! Não podemos permitir isso.
Jamal fica branco quando o pai de Tatyana continua esperando. Vira-se,
dobra-se ao meio e, constrangido, diz: — Gostaria de me desculpar pelas
palavras impensadas.
— Está desculpado — dizemos em conjunto.
— Espere-me no carro — diz o Sheik.
Quando a porta se fecha, ele suspira.
— Que vergonha. Senhorita Hardrada, eu sinto muitíssimo que isso
tenha se passado. Este homem indigno será devidamente repreendido e
castigado. Tenha certeza.
Demoro um momento para entender que ele está falando do filho mais
novo dele e não do meu pai.
— O valor em dobro que ele pretendeu roubar da senhorita será
entregue em banco a ser designado por seus advogados em seu favor —
continua, contrito, ditando para um dos advogados que vai anotando tudo
em árabe. — Além disso, será feita uma doação no mesmo valor para uma
instituição de caridade a ser designada pela senhorita.
O advogado entrega o bloco e a caneta para ele assinar, depois retira a
folha, coloca em um envelope dourado com moldura em marrom, fecha
com lacre vermelho que esquenta na hora e o Sheik aperta o anel com o
brasão.
— Assim que estiver se sentindo melhor e seus advogados puderem
passar os dados para os meus, as transferências serão feitas — diz ele,
depositando o envelope nas minhas mãos.
— Muito obrigada, Vossa Majestade — faço uma pequena reverência.
— Jazakallah Khair. i
— Barakallah Feek ii. — Para Lars, ele diz: — Cuide bem desta menina,
Alteza, ela é uma joia.
— Sei disso, Majestade.
— Cuide-se. — Tia Karla me dá dois beijos, um abraço apertado. —
Qualquer coisa, peça à Tatyana para me chamar e irei imediatamente.
Ela levanta uma sobrancelha altiva para Lars. — Alteza, espero receber
o convite para o casamento de vocês em breve.
— Enviarei com prazer, Madame. Em breve.
— Vou acompanhá-los — diz a Embaixadora, com um sorrisinho
disfarçado.
Porque Karla Zimmerman é loira, linda, magra e foi por muitos anos
modelo de passarela, mas na hora de colocar um príncipe, ministro de
estado, no lugar sabe muito bem como fazer.
— Vamos, Karla, querida. — Oferece o braço à companheira e sai
resmungando baixinho alguma coisa.
— A realeza se acha uma raça tão superior que se esquecem de que
quanto menos se misturam, mais cheios de defeitos ficam — diz ele, com
um ricto nos lábios, assim que os El-Khoury saem da sala.
— Agora, vamos dar prosseguimento às nossas tratativas, Sr. Hardrada.
Quanto o senhor quer para vender a curatela da sua filha para mim?
Olho para Lars, espantada. — Como?
— Sente-se, Vasilisa — ordena, ríspido. — Ofereço dez por cento do
valor que Jamal pagou e o senhor me transfere agora a curadoria dela,
definitivamente.
Desabo na cadeira. — Pai?
— Dez por cento é um valor um tanto irrisório até para uma puta, não
acha? — Os olhos azuis do meu pai faíscam. — Não paga nem mil
camelos.
— Camelos são mais valorizados que mulheres no mundo árabe —
responde Lars, de uma maneira que não reconheço.
— Mas já que você descabaçou a menina, setenta e cinco por cento
seria mais razoável.
As lágrimas me enchem os olhos, mas respiro fundo. — Pai! O que
você está dizendo?
O homem que eu achava que gostava de mim se recosta na cadeira,
estende o braço direito e aperta um botão no centro da mesa.
A porta se abre e ele pede ao rapaz que aparece: — O envelope, por
favor.
Como se estivesse esperando pelo pedido, o rapaz entra trazendo um
envelope azul-marinho com o brasão da Casa de Gulbrandr e o entrega à
Lars.
Ele retira de dentro uma documentação com timbres e selos oficiais.
— Vinte e cinco por cento e nem um centavo a mais, afinal a
mercadoria já foi usada e o mundo inteiro já pode verificar que não é difícil
levá-la para cama.
Jesus misericordioso! Um arquejo escapa da minha garganta.
O homem que me fez flutuar pelos céus ontem solta uma gargalhada
horrível e diz: — Na verdade, nem precisa de cama.
— Pai, você vai deixar…
— Sua cachorra ingrata! Você fez por onde! — Meu pai aponta o dedo
para mim. — Defeituosa, doente, louca. Nunca prestou para nada. Nunca
mais quero te ver. Tomara que você morra igual à sua mãe.
Encaro-o, lutando para dizer qualquer coisa, esquecendo tudo o que
planejei falar antes. Perdoá-lo.
Levanto-me nas pernas que tremem tanto que nem sei como consigo.
Lars segura meu pulso.
— Aguarde ele assinar.
Empurra os documentos e uma caneta para meu pai.
— Você se acha esperto, principezinho de merda? — pergunta,
rabiscando a assinatura nos documentos com raiva. — Acha que está
levando um anjo coroado para casa?
— Sei o que estou levando: uma jovem bem-educada, bonita e
obediente, que me satisfaz sexualmente na cama a hora que eu quero, do
jeito que eu quero — qualifica-me, de modo frio e analítico, como se
realmente estivesse comprando um objeto numa loja. — É nova e
inexperiente, vou poder ensiná-la o que e como gosto. Vai me servir bem.
Ou talvez um animal que vai adestrar.
— Está enganado. Vai levar uma puta, defeituosa igual à mãe dela. —
Ele cospe no chão, descontrolado. — Ela é o protótipo da filha da puta.
Nunca vi uma expressão mais perfeita para uma mulher — grita, a saliva
escapando da boca pelos lados. — Filha. Da. Puta!
— Terminou de assinar? — A voz de Lars, gelada e seca, corta a
ladainha sem fim.
— Já.
— Coloque os documentos no envelope e entregue-os a ela — diz, sem
olhar para mim, enquanto abre o aplicativo do celular. — Devo fazer o
pagamento para que conta?
O homem que conheci como meu genitor também liga seu aparelho e
dita o número da conta-corrente.
Eles efetivam a transação.
Lars passa o braço pelos meus ombros e diz, cruelmente:.
— Foi um prazer fazer negócios com você, Hardrada. Não espere que
eu envie o convite de casamento.
— Traidora, vagabunda! Isso não vai ficar assim, Vasilisa, não vai! —
rosna, como resposta. — Vocês dois vão pagar caro por isso!
Como não ando, Lars quase que me puxa da sala, fazendo com que
meus pés se movam e obedeçam ao seu comando, porque meu cérebro não
funciona mais. Ou será que meu coração parou de vez?
— Você vai morrer igual à puta da sua mãe quando me largou!
Como assim?
Lágrimas nublam minha visão. Tropeço e Lars me impede de cair.
— O banheiro? — pergunto à Embaixadora, que está esperando do lado
de fora.
Por sorte, o lavabo é bem ao lado.
O café da manhã delicioso sobe do estômago para o esôfago, e mal
tenho tempo de me ajoelhar, abrir a tampa do vaso sanitário e vomitar.
A pobre da embaixadora puxa meu cabelo comprido e fica assistindo ao
espetáculo repugnante enquanto o gosto nojento da comida mastigada e
digerida por ácidos queima e agride minhas papilas gustativas,
impregnando minha língua, minha boca, meu nariz, mas, na verdade o que
está doendo é o meu coração que foi maltratado por um homem sem
escrúpulos.
O vômito traz espasmos violentos, e engasgo e choro ao mesmo tempo.
Dói. Fisicamente e na alma.
— Shhh, está tudo bem, querida — diz ela, carinhosa, segurando meu
cabelo, colocando a mão na minha testa. — Respire fundo.
Não sei o porquê — talvez por ingenuidade ou por desespero, mesmo
—, imaginei que meu pai me protegeria sempre. Ou que se importasse.
Por ser parecida com minha mãe, ele fosse me amar ou cuidar de mim.
Ser protetor. Amoroso.
Ou porque sou fruto de uma relação de amor. Ou sua prole.
Ou porque ele me criou e ensinou e cuidou de mim. Esteve ao meu lado.
Às vezes.
Sei lá.
Achei que meu pai fosse diferente.
Quando termino, lavo a boca, mas o gosto permanece. Acho que vai
ficar para sempre.
— Venha, querida — diz a embaixadora gentilmente.
Ela me direciona para uma suíte, com banheiro limpo. Providencia
escova de dentes e pasta, enxaguante bucal e toalha limpa.
— Tome seu tempo — oferece, sorrindo de maneira acolhedora, e
coloca um lenço macio na minha mão.
— Por que não deita um pouquinho? — sugere, indicando uma cama
que parece confortável e tem uma manta macia dobrada nos pés. — Vou
avisar ao príncipe que você está pronta para ir.
— Não, por favor — peço. — Preciso de um momento sozinha.
— Claro — concorda. — Chame, se precisar de algo.
— Obrigada — murmuro.
A porta fecha suavemente.
Aperto na mão o lenço que ela me deixou. Esse não tem o perfume de
Lars, e, sim, um leve toque de lavanda, calmante. Enfio o rosto nele e choro
no tecido macio toda a fraqueza que tem na minha alma.
Quem sabe assim eu deixe aqui, nessa terra maldita que matou minha
mãe, essa angústia que me corrói e dor que me consome? Que eu descubra
por que deixo que me manipulem e me usem? Que me façam de ingênua e
de marionete? De objeto e fantoche? E passe a ser dona da minha própria
vida?
Escuto a voz profunda de Lars do lado de fora e a suave de Madeleine,
mas não quero vê-lo, não quero encará-lo.
Sequer sei se quero olhá-lo nos olhos depois de tudo o que foi dito
naquela sala.
— Vasilisa?
Não respondo. Mesmo assim, ele abre a porta, entra e senta-se ao meu
lado.
— Vamos?
— Por quê?
Ele suspira e me encara, imóvel, os olhos azuis fixos no meu rosto,
como se não soubesse o que dizer.
Fecho os olhos, porque quando Lars Haraldson encara você, parece que
ele enxerga sua alma.
É enervante, mas sobrevivi ao bullying de amigas falsas num colégio
interno, ao abuso físico e sexual de uma freira, a manipulação psicológica e
medicamentosa de um pai, a internações psiquiátricas desnecessárias,
médicos e juízes amorais e aéticos…
O que é a sedução de um amante frio interessado no meu corpo?
Nem tenho mesmo certeza do que quero que aconteça entre nós dois a
partir de agora. O que eu sei é que não conheço nada sobre esse homem,
apesar de tudo o que aconteceu entre nós.
Ele ajeita melhor o cobertor ao meu redor e pega-me em seus braços,
como se eu fosse criança e ao invés de me debater e rebelar deixo que me
leve.
Afinal, agora ele é meu curador. Ou deveria dizer meu novo dono?
Nem abro os olhos. Encolho-me contra seu peito largo, afundo o rosto
em seu pescoço e continuo a chorar, agarrada ao lenço cheiroso da
Embaixadora e ao dele que está embolado desde aquela hora na minha mão.
Ele não dá uma palavra sequer, e anda com esses passos compridos dele
para fora deste palacete suntuoso que escutou tantas coisas bizarras esta
manhã.
Cruza um enorme espaço aberto e o vento acaricia meu cabelo, como se
soubesse que preciso muito de amor. Os passarinhos cantam ao redor
tentando me alegrar, mas coitadinhos, não conseguem. Quem poderia?
Entra no que suponho ser o helicóptero que vai nos levar para
Vinterland. Pelo silêncio que faz depois que a porta se fecha, imagino que
deva ser aqueles luxuosos e caros, de última geração. Ele se ajeita o mais
confortavelmente possível no assento, sem me soltar.
— Alteza, estamos prontos para partir, o senhor precisa colocar o cinto
— diz uma voz na cabine.
— Um segundo — pede. Sem me tirar do colo, ele dá um jeito de
prender o cinto. — A senhorita Hardrada vai no meu colo. Ela não está
passando bem.
Não é mentira, mas não entendo porque ele não quer me soltar.
— Sim, senhor.
Logo estamos voando.
Sua mão sobe e desce nas minhas costas, me acalmando, embalando.
Protetor.
Ou eu deveria dizer: obcecado e controlador?
Afinal, só mudei da posse de um homem para outro.
Porque a verdade é que são as pessoas que mais amamos e confiamos
que traem a nossa confiança e o nosso amor.
Talvez por acharem que serão perdoadas por simplesmente serem
amadas. Ou por acharem que, sendo nossos pais, cônjuges ou aparentados
de alguma maneira, devamos inerentemente algo a eles.
Não sabem que são essas relações que precisam de muito mais tato,
carinho, diplomacia e cuidado que quaisquer outras.
Enquanto o helicóptero sobrevoa um dos fiordes mais bonitos de Vinterland
e se aproxima da capital, meus olhos percorrem as águas cristalinas que se
tornam escuras e refletem as montanhas cobertas de neve.
A beleza austera da paisagem contrasta com a tempestade de emoções
dentro de mim: um quê de melancolia, irritação e, ao mesmo tempo,
animação e excitação. Uma mistura caótica que raramente experimento e
procuro me distanciar para analisar a situação, que é muito mais complicada
do que previ ao olhar pela primeira vez nos belos olhos verdes de Vasilisa.
Jamais poderia imaginar que me envolveria com uma moça cujo pai
cometia um crime tão sério quanto dopar – porque não tenho dúvidas que
ele faz isso – e manipular a própria filha.
Tentar direcioná-la para o melhor candidato era algo que qualquer pai
faria, mas vendê-la para o maior lance e depois, pressionado pelo
escândalo, não ter escrúpulos em deixá-la na penúria como uma forma de
castigo, talvez tenha sido uma das atitudes mais mesquinhas e grotescas que
já vi.
Sem falar naquela cena final. Jamais pensei que ele a xingaria daquela
maneira tão baixa e vil.
Minha atitude de pedir a transferência da curatela dele para mim, ao
invés de liberá-la, foi tão hedionda quanto?
Foi, mas tenho minhas razões.
E quando ela me perguntou as razões, não respondi por dois motivos:
primeiro porque não quero revelar o que vou fazer e depois seus olhos são
muito reveladores e me contam seus sonhos, e que sua alma é muito pura
ainda e quero mantê-la assim. Cada vez que mergulho nos olhos verdes,
parece que estou entrando em um desses fiordes deslumbrantes ainda
mantidos intocados, bálsamos de luz, e quero conservá-la desta maneira. Só
para mim.
Depois de uma hora chorando, sem fazer barulho ou sequer soluçar,
como se temesse me incomodar, finalmente Vasilisa dormiu, mas no rosto
sereno ainda há vestígios de lágrimas.
Observo por um instante sua expressão delicada, e uma sensação de
posse me invade. Assim como a raiva.
Decidir que queria ficar com ela em Vinterland foi fácil demais e por
isso que eu não fui a Oslo antes. Ver seu quarto, os livros na estante, suas
roupas no armário a fizeram mais real para mim: uma moça com um
passado e, pior, com sonhos. Com tantas ilusões que não sei como não as
enxerguei antes nas piscinas verdes. Ou talvez, mais preocupante ainda seja
a esperança que brilha ali e que sem pena pisei em cima naquela sala.
Se descobrir qual é a fórmula que ela usa para continuar brilhando e
florescendo no meio da podridão, talvez possa roubá-la e copiá-la.
Queria ser feliz. Uma vez na vida.
Acomodo melhor o peso leve do seu corpo relaxado contra o meu,
ajeitando uma almofada sob sua cabeça para que fique confortável.
Com cuidado para não a perturbar, tiro o celular do bolso e faço uma
ligação.
— Lars, estou a caminho da sala de almoço — atende Tyr no segundo
toque. — O restante da família está reunido, aguardando vocês.
— Tenho novidades — digo em voz baixa. — O pai de Vasilisa aceitou
um valor bem menor do que o esperado. Apenas vinte e cinco por cento.
Tyr gargalha. — Filho da puta. Estava desesperado.
Faço uma careta. — Foi… interessante.
— Não quero nem imaginar — responde Tyr. — Leif descobriu que o
laboratório dele está com problemas sérios. Dívidas, irregularidades
financeiras, tudo indica que está prestes a falir.
Suspiro, passando a mão livre pelos cabelos. — Isso explica a
disposição dele em negociar. Provavelmente, precisava de liquidez
imediata.
— Exato.
— A cena final com a filha foi deprimente — murmuro. — Bem
desagradável.
Tyr faz uma pausa antes de responder. — Crescimento raramente vem
sem dor. A ferida vai doer antes de começar a fechar, mas é esse rito de
passagem que nos fortalece.
Olho pela janela e a natureza selvagem espelha a turbulência que se
agita dentro de mim, cada pico nevado simbolizando uma decisão difícil,
cada sombra nos vales representando as consequências que ainda estão por
vir.
As palavras de Tyr me atingem com força. Penso no meu próprio
trauma que me moldou, que me fez quem sou hoje, nas cicatrizes que
carrego tanto no corpo quanto na alma. Sempre fui reservado, escondendo
minhas emoções atrás de uma fachada de força e virilidade. Mas, no fundo,
sei que essa dor é parte de mim, uma sombra que nunca desaparece
completamente.
— Acho desnecessário.
— Não disse que é necessário, mas a dor é um professor cruel e eficaz
— diz, a voz firme agora. — Às vezes, é necessário passar por experiências
desagradáveis para crescer na vida — reflete Tyr, com um tom
compreensivo. — O processo de cicatrização cria uma casca. Da próxima
vez, não vai doer tanto.
Meu peito aperta.
Será?
Vê-la sofrer daquela maneira me incomodou mais do que imaginei,
apesar de saber que também a fiz sofrer e vou fazer ainda. Mas tenho os
meus propósitos e são bons.
— Somos filhos da puta também — reconheço.
— Fale por você — diz ele, dando de ombros. — Talvez seja bom você
analisar isso com sua terapeuta para saber se não é um reflexo dos seus
traumas.
— Talvez. — Fecho os olhos por um instante. — Mas não quero falar
sobre isso. Aliás, estamos falando muito sobre esse assunto ultimamente.
— Talvez devêssemos ter falado sobre ele mais cedo, mais vezes —
insiste Tyr. — E, quem sabe, você já tivesse superado e não fosse tão fresco.
— Tyr! Basta. Não estou pronto para discutir isso — digo, e não sei a
que estou me referindo na realidade. Ao passado ou ao presente.
Ele ri. O bastardo do meu irmão ri. — Ninguém nunca está
completamente pronto, Lars. Mas, às vezes, precisamos dar um salto de fé.
Abro os olhos e encaro o horizonte pela janela. — Você acha mesmo
que é possível deixar o passado para trás?
— Acho que é possível ressignificá-lo — responde ele. — Usar as
experiências como aprendizado, não como correntes que nos prendem.
Olho para Vasilisa novamente. — Ela merece coisa melhor do que
alguém tão quebrado quanto eu.
— Lars!
— Mas eu não disse que não era egoísta o bastante para deixá-la se
afastar um milímetro sequer de mim.
Muito pelo contrário, minha vontade é de colocar uma corrente em seu
tornozelo e trancá-la em um quarto, onde só eu entre. Só de pensar naquela
cena de Jamal apalpando e beijando Vasilisa meus músculos tensionam, o
coração acelera, os punhos se cerram involuntariamente.
A batalha interna entre o homem racional e o lado primitivo que ela
desperta em mim é feroz. O lado primitivo está prestes a ganhar e eu sorrio,
porque gosto da sensação.
— Ora, ora, ora — diz Tyr do outro lado da câmera, porque me conhece
bem e identifica minhas expressões faciais com facilidade. — Talvez esse
fiapo de gente tenha um efeito mais benéfico em você que anos de terapia
não tiveram. O lado animal é prazeroso, Lars, deixe-o vir à tona.
Sacudo a cabeça. — Prefiro a racionalidade.
— Porque você nunca provou do fruto proibido — contrapõe Tyr. —
Talvez essa mocinha aí veja você além das suas próprias barreiras.
Fico em silêncio por um momento, ponderando suas palavras.
— Refletir sobre isso não fará mal — diz ele. — E…
— Estamos chegando em menos de trinta minutos — corto-o, porque
isso está ficando profundo e chegando perto demais de lugares escuros da
minha alma que não costumo visitar.
Entendendo o recado, ele finalmente empurra a porta da sala de almoço.
— Estou com Lars na linha, ele está chegando em uns trinta minutos —
avisa aos meus irmãos e cunhadas. — Vou conectá-lo ao telão.
Meu irmão é engenheiro eletrônico e de computação com especialidade
na área militar, tecnológico até o último fio de cabelo. O palácio só falta
falar, principalmente o celular dele, que vigia tudo e todos, menos a esposa,
que é uma espevitada, doidinha da cabeça, que quando botou os olhos nele,
decidiu o queria e pediu ao pai para fazer uma proposta de casamento
irrecusável.
— Oi, cunhado número dois — diz Yasmin. — Vocês devem estar com
fome.
— Shhhh — digo, colocando o dedo nos lábios. — Comi um sanduíche
e Vasya passou mal.
— Enjoou? — pergunta Yasmin.
— Ou já está grávida também?! — pergunta Tatyana, arregalando os
olhos.
— Não tem ninguém grávida aqui. — Rolo os olhos. — Ela se
aborreceu com o pai.
A expressão das duas fecha na hora.
— Vou pedir para preparar uma sopinha — fala Yasmin.
— Melhor. Cunhada, se puder adiantar e pedir a Vidar para separar as
residências que estão disponíveis para que Vasilisa escolha a que gostaria de
morar, vocês poderiam ajudá-la a escolher e decorar — peço a ela. — E só
trouxemos uma mochila de roupa.
— Não se preocupe. Tatyana e eu somos amigas de Vasya há anos e
vamos resolver tudo para ela — diz Yasmin.
— Você não está sozinho. Estamos todos aqui para ajudar — acrescenta
Thorvald, a voz suave, mas firme.
— Obrigado. Vejo vocês em breve — digo, encerrando a ligação.
Guardo o celular e respiro fundo, mas o ar parece insuficiente para
acalmar a tempestade que se agita dentro de mim. As palavras de Tyr e a
afirmação de Thorvald ecoam em minha mente, mas são engolidas pelo
turbilhão de emoções que ameaçam transbordar. Sempre me considerei um
solitário, alguém incapaz de se conectar profundamente com os outros
devido às cicatrizes do passado.
Olho para ela, ainda adormecida em meus braços, tão frágil e, ao
mesmo tempo, tão poderosa em seu impacto sobre mim.
Uma nova onda de possessividade me invade, uma necessidade quase
visceral de protegê-la, de mantê-la ao meu lado a qualquer custo parece
rasgar meu peito.
Quero cercá-la, envolvê-la, garantir que esteja sempre segura. Essa
obsessão é nova para mim, e, ao mesmo tempo, alarmante, irritante e
perigosa, mas não consigo controlá-la; é como se fosse uma parte intrínseca
do que me tornei ao seu lado.
Preciso encontrar um equilíbrio antes que essas emoções reprimidas
agora vindo à tona com uma força avassaladora me dominem
completamente.
É como um vulcão prestes a entrar em erupção.
A racionalidade que sempre guiou minhas ações, está se desfazendo,
sendo sufocada por uma intensidade que mal consigo compreender. Raiva
pelo que fizeram a ela, pelo que ousaram tentar roubar de mim. Medo de
que ela possa se afastar, de que minhas próprias falhas possam afastá-la.
Desejo ardente de tê-la só para mim, de assegurar que nada nem ninguém
possa machucá-la novamente.
Navego por territórios inexplorados, tanto externamente quanto dentro
de mim mesmo, e não posso deixar de questionar se estou preparado para o
que está por vir, quando evitei por tantos anos me envolver exatamente para
não ter que lidar com esse tipo de problema.
As montanhas imponentes ao meu redor erguem-se como os obstáculos
que enfrento e exprime a complexidade das escolhas que fiz, mas então
Vinter aparece no horizonte.
Em poucos minutos, o helicóptero inicia a descida sobre o heliponto do
palácio de Frostholm.
Acordo Vasilisa, com um toque suave em seu ombro, que abre os olhos
e pisca com a claridade.
— Já chegamos? — pergunta, a voz suave.
Não está mais arrastada, apenas sonolenta, que se parece com a de
quando dormiu comigo, o que me conta que o efeito dos remédios está
passando.
Ela provavelmente vomitou aquelas pílulas inteiras que tomou por
último e as que tomou de manhã antes que fizessem efeito completo.
— Sim, estamos pousando em Frostholm — respondo.
O helicóptero aterrissa e alguém vem abrir a porta para nós.
A ventania das hélices parece aumentar as emoções conflitantes que
sinto numa intensidade que ameaça transbordar a minha inquietação
enquanto seguimos em absoluto silêncio num carrinho de golfe até o
palácio e depois subimos as escadas da mesma maneira até a sala de
almoço.
Vasilisa passa as mãos nos cabelos antes de entrar, mas não olha para
mim, pedindo confirmação se está bem.
Para meu espanto, Catarina também está lá e corre para abraçar a prima.
— Vasya!
Cumprimento meus irmãos, minhas cunhadas e só então elas se
desgrudam. Como eu sei? Estava acompanhando de rabo de olho, porque
ficaram tanto tempo abraçadas em silêncio que comecei a me preocupar.
— Catarina, tudo bem? — cumprimento-a — Como você chegou tão
rápido?
— Ué, vim de avião — responde ela. — A pé é que não foi.
Sentamo-nos à mesa e o meu almoço e o dela é servido. As conversas
não fluem como sempre, porque quero escutar o que Vasilisa conversa com
as amigas e meus irmãos estão interessados em dados que não quero
compartilhar na frente delas.
— Vocês não sabem o que a mulher do Conselheiro Elkund disse ontem
— diz Yasmin, revirando os olhos.
— Ah, pronto. Começou — diz Tatyana, soprando para cima, o que faz
Tyr desviar a atenção do que estou sussurrando para ele imediatamente.
— Começou o quê, Harpia?
— Nada, Demônio, não é para prestar atenção na nossa conversa — diz
ela, virando a cadeira de costas para ele.
O que o deixa de orelha em pé e mais atento ainda.
Yasmin, percebendo logo trata de acalmá-lo: — Não liga, não, cunhado
número um, é que a lagartixa daquela Elkund decidiu que entende tudo
sobre moda feminina e disse que eu ficava igual a um papagaio elegante no
vestido verde que usei na inauguração do hospital.
— Pelo menos, ela acrescentou elegante — diz Catarina, às
gargalhadas.
— Quem foi es-sa? — diz Thorvald, sem achar graça nenhuma. — Tyr,
vamos dar uma chamada nesses conselheiros porque não é possível
continuar assim.
— Homens! — exclama Vasilisa. — Acham que o mundo gira ao redor
deles.
Comentário esse que eu não entendo.
Leif intervém: — Mas se os maridos defendem vocês, vocês reclamam.
Se não defendem, vocês reclamam também. Como é que sabemos como nos
comportar?
Ela volta-se para mim, e os olhos verdes estão, pela primeira vez, frios.
— Tem certas lutas que não precisamos que sejam lutadas por nós. Já
outras…
— Somos mesmo tão terríveis assim? — pergunta Thorvald.
— Piores — responde Yasmin, piscando. — Mas não se preocupem, nós
ainda gostamos de vocês.
— Às vezes — acrescenta Tatyana. — É bom colocá-los de castigo de
tempos em tempos.
Catarina balança a cabeça. — Eles são como crianças grandes. Precisam
de supervisão constante.
Vidar entra com café e petits fours i, além de um tablet e um álbum de
fotos.
— Alteza, senhorita Hardrada — diz ele, colocando os itens sobre a
mesa. — Aqui estão as opções de residências para a sua consideração.
Vasilisa parece surpresa. — Residências?
— Sim, não vamos morar no palácio — explico. — Gostaria que
escolhesse qual delas você prefere.
Ela começa a folhear o álbum, sem nem prestar atenção direito nas
imagens. Entre as opções, está um palácio pequeno que quase foi destruído
durante a Segunda Guerra Mundial, num local que sempre achei lindo: a
Månestrålens Fjordresidens, que fica num platô, debruçada sobre um
fiorde, ao lado de uma cachoeira belíssima.
— Esta é incrível — diz Tatyana, apontando exatamente para ele.
As fotos mostram uma construção que é um mix de um palácio na frente
e uma casa com arquitetura moderna nos fundos, que se integra
perfeitamente à paisagem natural.
Uma bomba atingiu a parte de trás do palácio e o projeto que ganhou a
licitação para reconstruí-lo optou por deixar à mostra o que tinha acontecido
e acrescentar uma estrutura totalmente nova e original.
A cicatriz é parte integrante da nossa história e além da óbvia beleza do
local, talvez seja exatamente isso que me atrai tanto na arquitetura. A
mistura perfeita entre o velho e o novo, o passado e o presente e a maneira
com que essas peças foram calcificadas novamente para voltar a funcionar.
Catarina gosta de outro, bastante até, o que faz com que Leif e Yasmin
sugiram mais um, porém no final Vasilisa fecha o álbum, com um barulho
seco, sem escolher nada.
— Então, qual você prefere? — pergunto.
— Não tenho preferência. Qualquer uma serve.
Não, não serve.
Se ela acha que vou me intimidar com esse jeito seco, está muito
enganada. Reabro o álbum e paro na Månestrålens Fjordresidens.
— A cachoeira é chamada de Raio de Luar — explico. — Nas noites
claras de lua cheia, o reflexo na água cria um espetáculo único.
Seguro sua mão e quando sinto que ela vai puxá-la, firmo o aperto de
meus dedos ao redor do seu punho.
— O nome da cachoeira me lembra a sensação que tive quando te vi
pela primeira vez — digo.
— Um raio de luar? — pergunta ela, sem me olhar.
— Um raio de luar — repito. — Que ilumina suavemente, sem queimar.
Não reparei que todos se calaram e o silêncio que se segue na sala faz
com que ela abaixe a cabeça para esconder que seu rosto está rosado.
— Ai, não, para!
É a doida da mulher de Tyr que grita e coloca as mãos nos ouvidos,
quebrando o encanto.
— Isso foi tão doce que é capaz de dar cárie — diz ela.
— Quem diria que Lars tinha um lado poético — provoca Magnus.
Mas Vasilisa não diz nada.
— Acho que está decidido, então — digo para Vidar e peço: —
Providencie a minha mudança, por favor, e a senhorita Hardrada trouxe
apenas algumas coisas que vieram conosco no helicóptero. O resto ela irá
começar a comprar aos poucos.
— Certamente, Alteza — responde ele, fazendo uma leve reverência de
cabeça, antes de se retirar.
— Imaginem as festas que poderemos fazer lá! — exclama Yasmin.
— E as fotos! — acrescenta Tatyana. — Os cenários serão incríveis.
Vasilisa olha para as duas. — Vamos com calma.
— Claro, sem pressa — diz Yasmin, levantando-se. — Primeiro, vamos
tirar umas horas para dar uma repaginada total e mudar esse look antigo.
— Depois fazer umas comprinhas. — Tatyana bate no meu ombro e
estende a mão. — O cartão de crédito ilimitado, por favor?
— Não precisa — diz Vasilisa —, eu tenho o meu.
Entrego o meu à amiga e escolho as palavras com cuidado: — Use, em
caso do pai dela ter bloqueado a conta ou algo assim.
— Ao menos, Paipai nunca deixou as joias da sua mãe com aquele
crápula. — Catarina puxa a prima. — Eu sempre disse que ele não prestava.
— É, disse — concede ela, sem entusiasmo.
Ela quase sai da sala sem falar comigo. Na porta, faz uma breve parada
e olha por cima do ombro para mim.
Hesita como se não soubesse o que fazer.
— Nos vemos mais tarde — digo, quebrando a tensão.
— A gente vai pensar no seu caso — grita Tatyana, como se houvesse a
possibilidade de que elas não fossem me entregar Vasilisa de volta.
— Não queria dizer nada, não — fala Magnus com aquela cara de eu te
disse. — Você está fodido.
— Eu sei — concordo com ele, mas meus lábios se torcem e se abrem
num sorriso.
Nem que a levassem para o inferno, eu perderia Vasilisa. Porque até lá
eu iria, e se fosse preciso, mataria o próprio diabo, para trazê-la de volta
para mim.
Durante as quase três horas que ficamos no Spa, onde um cabeleireiro, uma
manicure e uma pedicure, além das meninas que tentam me enlouquecer –
ou segundo eles, dão uma repaginada no meu look, seja lá isso o que for,
sem me deixar olhar no espelho –, tenho tempo de interiorizar e analisar
com calma as reações do meu pai, de Lars e as minhas naquela maldita
reunião, o que me lembro por estar cheia de remédios e em choque, e
categorizar meus sentimentos agora que minha mente está mais clara.
Porque preciso decidir o que vou fazer e como vou agir.
Não adianta ficar de birra e não escolher onde vou morar. É melhor
encarar o problema de frente e fazer do limão um coquetel gostoso de limão
com vodka.
Lars é um espécimen que nenhuma mulher jogaria fora. E o Lars que
me seduziu no casamento da minha melhor amiga é melhor ainda.
O que foi que aconteceu ali?
Não posso negar que o desejo.
Desde o momento em que o vi, eu o quis como nunca quis um homem.
E esse querer não é somente no sentido sexual, apesar de não poder negar
que um desejo físico ardente deixa meu corpo em chamas. É inexorável,
como uma erupção de um vulcão ativo, que se avizinha e da qual não se
escapa.
Nem vou tentar impedir a combustão. Não vai sobrar nada, nem de
mim, nem dele, além de brasas tremeluzentes.
É como se ele tivesse jogado uma maldição sobre mim, talvez sobre
nós. E não há cura nem escapatória para esse feitiço, que ora me enlaça
suave como um sopro de brisa, e ora me aperta como correntes de ferro
incandescentes, queimando e atraindo ao mesmo tempo, arrastando minha
alma para ele.
Quero saber tudo que aconteceu a ele quando era criança; o que causou
aquelas cicatrizes, o que causou um trauma tão grande que o fez dizer
aquelas coisas ao meu pai.
Pela primeira vez na minha vida, eu tenho interesse por um homem.
Homem macho, forte, dominante.
O que me dá medo.
— Você está muito pensativa — diz Catarina, trazendo um sanduíche e
um suco para eu comer.
— Verdade.
No entanto, não falo o que está me incomodando porque ainda não
consegui digerir direito o que aconteceu.
— Esses irmãos costumam nos deixar assim — diz Yasmin, alisando a
barriga de quase sete meses. — O que foi que Lars fez?
Olho para ela. — Como você sabe que ele fez alguma coisa?
— Porque ele é sorridente demais — diz Tatyana indo se sentar longe
do meu sanduíche para não ficar enjoada. — Está escondendo alguma coisa.
Sorrio. — Está ficando esperta, hein?
Ela me dá a língua. — Sempre fui, mas tenho direito as minhas
escorregadinhas, não é?
— Todas nós temos — digo.
— Então, desembucha logo qual foi a sua — insiste ela.
Suspiro. — Vou poder ver meu cabelo?
— Não — gritam todas ao mesmo tempo, incluindo Charles, o gay
francês transformista que está separando pentes, tesouras e navalhas, como
se fosse fazer uma cirurgia no meu cabelo.
Ponho as mãos na cabeça. — Gosto deles compridos, tá? — relembro a
ele.
— Vamos ver, meu bem, vamos ver — diz ele, sem se comprometer, e
com delicadeza as retira. — Não estrague suas unhas. Estão lindas.
Estão mesmo. Pintadas de vermelho-escuro, um tom que nunca usei,
mas que sempre gostei.
— Pode começar a falar, querida, vou fingir que não estou escutando,
mas depois vou dar os meus pitacos, tá? — diz ele, descarado.
Quando levanto uma sobrancelha – que também foi depilada – ele
sussurra: — Corto o cabelo de muitas mulheres que transaram com seu
noivo.
— Deus Amado, Charles — diz Yasmin.
Para meu horror e deleite de Catarina, ele continua: — Não se acanhe.
Várias vieram aqui chorar as mágoas ou apenas contar sobre o tamanho do
pau dele e as mágicas que produz.
Meu rosto esquenta. — Jesus Cristinho…
— Sei de coisas que você nem imagina, meu bem — diz ele, piscando
para mim e clicando as tesouras no ar. — Sou quase melhor conselheiro que
cabeleireiro.
— Você sabe sobre todos os irmãos? — pergunta Tatyana, já
interessada.
— Digamos que o rei e o príncipe-herdeiro, os que já estão casados,
eram mais reservados, e os três mais novos… ui! — ele finge um tremor e
se sacode todo —, eram os mais saidinhos.
— Ah, e eu que achava que você ia me contar alguma coisa do meu
marido — faz um biquinho.
— Não sei muito dos maridos de vocês, a não ser a fofoca braba que a
piranha fazia com a periquita coroada, o que não interessa, já que a víbora
morreu, graças aos deuses — diz, referindo-se à primeira mulher de
Thorvald. Começa a pentear e separar as minhas mechas. — Já Lars,
Magnus e Leif desde cedo, por não terem muitas responsabilidades, fizeram
um estrago na população feminina do reino. Magnus menos, mas Lars e
Leif, deuses amados! Vocês não têm i-de-i-a do que esses dois aprontaram.
Até dividir mulheres os dois dividiram.
Olho para Catarina horrorizada e a maluca sorri, deliciada.
— Enlouqueceu, mulher? — sussurro.
— Quero casar mais rápido, isso, sim! — sussurra ela de volta. — Falta
só coragem de dizer isso para ele.
— E para seu pai, né?! — relembro a ela.
Ela faz uma careta.
— Depois que sua prima contar o que a está chateando e nós
resolvermos tudo, vamos colocar o príncipe Leif na linha, pode deixar.
Resignada, porque sou uma contra quatro, conto o que aconteceu nos
últimos dias, na festa de noivado e na reunião. Com todos os detalhes que
me lembro com nitidez.
— Não tenho dúvidas de que há algo que fez com que ele se retraísse na
última hora — digo, porque não o reconheci naquelas frases bruscas, brutas.
Foi bastante chocante ouvir que ele vai me treinar e, ao mesmo tempo…
Jesus misericordioso… Fico úmida, o corpo inteiro lateja. Tenho vontade de
estar na cama com ele.
Porque o homem é irresistível.
Tenho ódio das mulheres que o tiveram e ao mesmo tempo tenho a
vontade de dar língua para todas elas e dizer bem alto: sou eu que vou me
casar com ele.
É infantilidade? Pode até ser, mas é assim que me sinto, então se ele
quiser me ensinar o que gosta e quando gosta, tudo bem.
— Mas por que quis continuar com a minha tutela? Não podia
simplesmente ter pedido para me liberar?
— Talvez ele queira ter certeza de que você está segura — sugere
Yasmin.
— Pode ser que ele esteja com medo de te perder e ache que, mantendo
a tutela, consegue ficar mais próximo — concorda Catarina.
Não sei se este insight psicológico sobre Lars está correto. Precisaria
saber mais sobre ele para analisar melhor.
— Talvez ele esteja tentando mostrar um lado diferente de si mesmo —
sugere Charles, pensativo.
— Como estudante de psicologia, você sabe que as pessoas têm
camadas — acrescenta Yasmin. — Talvez ele esteja revelando uma que
você ainda não conhecia.
— Olha, Yás, pensando bem, eu até acho que ele está tentando me
proteger de alguma coisa — digo, refletindo. — Lars nunca falou nada
parecido, nem deu a entender que queria me controlar. Muito pelo contrário.
Fiquei até bem surpresa.
— Mas será que não é uma forma de ele garantir que você fique por
perto? — pergunta Tatyana, arqueando uma sobrancelha. — Homens às
vezes têm maneiras tortas de demonstrar afeto.
— Isso faz sentido — pondera Yasmin. — Mas você precisa conversar
com ele e esclarecer tudo.
— Concordo — digo, suspirando. — Preciso entender quais são as
intenções dele.
— E enquanto isso não acontece, que tal dar uma mexida com ele? —
sugere Tatyana, com um sorriso travesso. — Dois podem jogar esse jogo,
querida. Você pode deixá-lo tão intrigado quanto ele te deixa.
— Como assim? — pergunto, curiosa.
— Mostre que você também tem o controle da situação — explica ela.
— Faça-o perceber que você não é uma peça no jogo dele.
— Meninas, vocês são irresistíveis, e quando eu terminar com essa
princesa, ela vai estar deslumbrante — interrompe Charles, enquanto ajusta
meu cabelo. — Esses homens não terão a menor chance com nenhuma de
vocês, vão ficar de queixo caído.
— Não sei se quero provocá-lo desse jeito — confesso, tentando ver
meu reflexo no espelho, mas Charles não deixa. — Não quero jogar esses
joguinhos que não levam a lugar nenhum.
— Às vezes, é necessário para eles acordarem — comenta Tatyana,
dando de ombros. — Mas a decisão é sua.
Suspiro, porque não tenho experiência e elas têm.
— Então, o que você quer? — pergunta Catarina.
— Voltar para a faculdade o mais rápido possível — anuncio.
Yasmin rola os olhos para o teto. — Isso é ótimo! Mas estamos falando
de Lars. Você vai romper ou continuar com ele?
— Você tem alguma dúvida de qual será a resposta dela, meu bem? —
pergunta Charles, ligando o secador e me impedindo de responder.
Depois de alguns minutos, com um floreio, ele gira a cadeira e tomo um
susto.
Ele não cortou muito; não mudou muito a cor. Meus cabelos agora têm
um corte mais contemporâneo, com mechas ainda mais claras que destacam
meus olhos. Pareço diferente, renovada, quase como se fosse uma nova
versão de mim mesma.
— Você está deslumbrante, Vasya! — exclama Yasmin, admirando o
trabalho perfeito.
Sinto-me mais leve, mais… livre.
— Está mais linda ainda — diz, afofando meu cabelo.
— Concordo! Esse visual realçou ainda mais sua beleza natural —
acrescenta Tatyana, sorrindo.
Charles nos acompanha até a porta. — Arrasem nas compras! E
lembrem-se, confiança é tudo — diz ele, piscando para mim. — Vai voar,
princesa, e deixa seu gavião te caçar. Eles gostam da caça e nós gostamos
de ser caçados.
Ai, Jesus Cristinho!
— Você precisa de roupas que combinem com essa nova fase — diz
Yasmin.
Saímos do salão animadas, mas as últimas palavras de Charles, que
parecem bobas, ficam na minha cabeça. Só de imaginar Lars me caçando já
fico excitada e tenho certeza de que ele gosta de ser o caçador também.
O sol da tarde ilumina as lojas do shopping e uma moça de uns quarenta
anos, loira, está nos esperando na porta de uma das lojas.
— Já tenho tudo separado conforme a senhora me pediu — diz ela, nos
encaminhando para uma sala especial onde tem roupas separadas em várias
araras.
Ela estende a mão para mim: — Sou Ingrid Mauritz, muito prazer,
senhorita.
— Prazer, e é Vasilisa.
— Ingrid é minha super secretária, uso e abuso dela — diz Yasmin —,
vamos aproveitar e pedir para ver como estão as inscrições da faculdade de
psicologia e se dá para adiantar alguma coisa.
— Claro — diz Ingrid, já tirando uma caderneta da bolsa e anotando o
assunto. — Mais alguma coisa?
— Sim, vamos deixar algumas roupas separadas para serem entregues
hoje mesmo e a nossa vendedora poderia enviar coisas parecidas para a
Månestrålens Fjordresidens amanhã para Vasya escolher com calma — diz
Yasmin. — Amanhã, vamos decorar a residência e precisamos da sua ajuda.
— Claro, vou adorar ajudar. Vasilisa vai precisar de assessoria também?
— Por enquanto não — digo, admirando um vestido que Catarina
escolheu. — Quero focar na faculdade e se acompanhar Lars, será apenas
em alguns compromissos. Até o casamento, quando decidiremos como
faremos.
— Acho que Lars nem vai te reconhecer — diz Catarina, fechando o
zíper. — Esse ficou show.
— Gosto — observando meu reflexo no espelho. — Qual o próximo?
— Gente, acabei de receber uma mensagem — diz Yasmin, com um
tom que mistura alívio e seriedade enquanto estou tirando o vestido.
— Diz logo, não faz mistério — manda Tatyana.
— Vasya, Magnus pediu para avisar que todas as fotos já foram
retiradas dos sites e redes sociais — explica Yasmin. — E que os tabloides
sensacionalistas, assim como o fotógrafo, vão publicar amanhã um pedido
de desculpas por invadirem a privacidade de vocês.
Desabo no sofá da salinha, amassando o vestido de seda entre as mãos,
com um nó na garganta.
A sensação de invasão, de vulnerabilidade é sufocante e parece que o ar
ficou rarefeito e que meu coração vai explodir.
Lembro que vomitei e que o remédio que tomei pode não estar fazendo
efeito. Puxo o ar, tentando me acalmar, mas não consigo respirar.
— Meu remédio — peço, mas minha voz falha.
Catarina se ajoelha na minha frente, pega minhas mãos e diz: — Calma.
Respira. Respira devagar que vai dar tudo certo. Você não precisa do
remédio.
Uma lágrima escapa, deslizando pelo meu rosto. Tento respirar fundo,
mas a emoção me domina e desabo no choro.
— Ah, querida…
Ela me abraça. Yasmin e Tatyana também.
— Chora, mesmo, não precisa se segurar — diz Tatyana, segurando
minha mão.
— Mesmo sabendo que as fotos foram removidas, fui exposta —
confesso, meio gaguejando, as lágrimas agora caindo livremente. — Me
sinto exposta. Nunca pensei que algo assim pudesse acontecer. E não tive
culpa de nada. A impressão que tenho é que as pessoas me olham e me
veem nua.
— Deve ser terrível, mesmo. — Yasmin me abraça apertado.
— Sim — concorda Tatyana. — Sei que é difícil ver algo positivo nisso,
mas pelo menos pense que você se livrou da desgraça do meu irmão e agora
pode ficar com Lars, que era quem você queria.
Enxugo minhas lágrimas com o lenço que Yasmin me estende.
— E talvez, de certa forma, isso tenha sido um mal necessário, já que
ainda te livrou daquele crápula do seu pai — raciocina Catarina.
— Acho que vocês têm razão. — Respiro fundo, absorvendo suas
palavras e o peso no meu peito diminui. — Obrigada, meninas. Não sei o
que faria sem vocês.
— Não precisa agradecer — diz Tatyana, dando-me um abraço
apertado. — Amigas são para isso.
— Agora, vamos terminar isso, porque mal começamos — diz Yasmin.
Separamos várias roupas, entre blusas, camisas, calças, saias, vestidos
de todos os tipos, suéteres, casacos, xales, vários tipos de bolsas, cintos e
sapatos, lingeries, camisolas e tantas outras peças e acessórios. Nunca
imaginei que eu precisasse e usasse tantos artigos de moda.
Céus!
Sem falar que não fomos ver nada de rosto, nem cabelo, como
maquiagem, perfumes, presilhas, chapéus. No entanto, não tenho condições
de fazer mais nada hoje, porque no final de mais de três horas, estamos
exaustas. Mas animadas.
Bom, elas estão. Muito. Como se eu fosse uma boneca nova que elas
estão reconstruindo. Já eu me sinto numa gangorra. Uma hora estou ótima,
na outra só quero chorar.
Forço um sorriso também. — Se eu te disser que tudo o que eu quero é
um banho, agora, você acredita?
— Acredito — diz, colocando umas vinte peças dobradas em um braço
e pegando uns quinze cabides em cada mão. — Gente, conseguimos
comprar muito hoje, hein?
Debaixo de uma montanha de roupa maior que ela, Tatyana fala: — E
ainda falta muuuuuito!
— Amanhã, vai ser mais fácil — diz Yasmin, que está carregando outro
monte, mas menor, por causa do barrigão. — Aliás, precisamos escolher os
vestidos de gala. Não posso esquecer de pedir a Ingrid, isso.
— E o vestido de noiva! Tem que ser absolutamente deslumbrante —
lembra Tatyana.
— Qual tiara você vai usar, Vasya? — pergunta Catarina, com os olhos
brilhando de entusiasmo. — Sua mãe tinha umas deslumbrantes! Aliás, vou
mandar mensagem para o meu pai, pedindo para separar tudo o que ele tem
guardado e mandar o avião entregar. Logo! Nem sei se você já viu o tesouro
que ela tinha!
Sinceramente? Do jeito que meu humor está no momento, um vestido
feito de juta e uma coroa de espinhos me parecem mais apropriados do que
renda bordada e brilhantes.
Não acho que vou me recuperar fácil de perder a admiração que eu tinha
por meu pai. Talvez não fosse enorme, mas existia uma admiração cega e
um amor filial por ele. Ele era minha única ligação de família. Com a minha
mãe. Isso me deixa bem desolada.
Porque foi muito duro ter sido xingada daquele jeito e perceber que ele
nunca me valorizou de verdade. Preciso superar. Vou superar, mas ainda vai
demorar um pouco. Tem apenas algumas horas e ainda estou tentando
processar tudo.
— Seria maravilhoso, Catarina — digo, tentando me animar —,
adoraria ver e conhecer mais sobre minha mãe.
Elas continuam a fofocar, e Catarina conta o que o pai falava sobre a
irmã, minha mãe, enquanto a vendedora passa as roupas no caixa, e vou me
animando porque são histórias que não conhecia e me aproximam dela e me
confortam.
Porém, nada me prepara para a hora de pagar a conta.
Charles não permitiu que eu pagasse a renovação do meu look — disse
que era um presente — e o restante que fiz lá, Yasmin pagou em dinheiro
para que eu não estragasse as unhas recém-pintadas.
Minhas mãos estão tremendo quando tiro o cartão de crédito de dentro
da carteira. Será que vai funcionar? Será que meu pai mexeu no meu
dinheiro? Dilapidou a minha herança nesses quase treze anos que gerenciou
meus bens?
Por que nunca pensei nisso?!
Sempre confiei nele cegamente, e agora me pergunto se fui ingênua
demais.
— Qual o valor final? — indago à vendedora, que diz uma soma
astronômica, mas nada que preocupasse Melisfestófeles anteriormente, que
usava meu cartão para pagar as minhas roupas e as dela também.
Ou será que Melissa era dependente do meu cartão? Será que tinha
acesso à minha conta?
Jesus! Cada vez mais me dou conta de que não sei nada. Que não tinha
nenhuma autonomia.
— Quer que eu pague com o de Lars? — pergunta Tatyana, percebendo
minha hesitação.
— Não — afirmo e entrego meu cartão à atendente.
Porque também não quero usar o dinheiro de um homem que acha que é
meu dono agora e quer controlar minha vida.
E apesar de já ter racionalizado que talvez ele não tenha feito de
propósito, por desejo de se proteger e que talvez estivesse sob pressão,
ainda dói e magoa, e me dá raiva.
Quero ser independente e mandar todos para o inferno.
Reteso minha espinha, preparando-me para uma eventual recusa do
banco, mas quando escuto o barulho da maquininha, meus olhos marejam.
Assino a boleta e viro de costas, porque vou chorar de alívio.
— Ei, não fica assim — diz Catarina, me abraçando. — Você é mais
forte do que pensa.
— Abraço coletivo! — grita Tatyana.
E as outras duas idiotas vêm me abraçar também, como acontecia no
internato quando eu ia me esconder de Madre Jutta no quarto delas.
O calor do abraço coletivo me traz um conforto inesperado e acabo
rindo no meio do choro, o que faz a dor ficar um pouco mais suportável.
— Obrigada — murmuro, fungando e tentando controlar as emoções.
— Vocês são incríveis.
— Claro que somos e você também é — diz Tatyana, me apertando bem
forte. — Ou já se esqueceu?
Não, não esqueci. Aquele tipo de lição se aprende para sempre.
Yasmin providencia um lenço de papel — Toma, ando com isso na
bolsa depois que fiquei grávida. Sou a manteiga mais derretida de
Vinterland.
— Obrigada.
Limpo o rosto e assoo o nariz.
— Vamos superar isso juntas. Você não está sozinha. — Ela me olha
nos olhos. — E qualquer coisa, mando cortar cabeças.
— Tyr é bom nisso — diz Tatyana.
Respiro fundo, assentindo. — Tudo bem, suas loucas, aceito a ajuda.
Talvez seja hora de tomar as rédeas da minha vida e enfrentar os
desafios de cabeça erguida, começando por saber quanto tenho no banco,
que tipo de investimentos tenho, o que tenho em meu nome.
Com amigas malucas e fortes como elas ao meu lado, sinto que posso
conseguir.
— Acho que preciso de uma bebida — digo, pegando várias sacolas.
As seguranças de Yasmin e Tatyana que ficam, discreta e
disfarçadamente, circulando pela loja se aproximam e nos ajudam.
— Vamos atacar a adega da sua casa nova — diz Yasmin. E depois
suspira. — E a cozinha, porque para Taty e eu só sucos.
Se fosse antes, pararíamos em um bar, mas agora Yasmin é rainha e
Tatyana esposa do príncipe-herdeiro e ambas carregam princesas.
Após tirarmos algumas fotos com quem pede, entramos na SUV
blindada de Yasmin, com a do guarda-costas atrás, que já está esperando
por nós na saída do shopping.
Durante o percurso, Ingrid, que está na frente, anota o que precisamos
fazer – milhões de coisas – e me dou conta de que estou sem celular.
O que traz à baila outro assunto chato que estava no fundo da minha
mente, mas que eu não queria enfrentar: meu pai controlava minhas
comunicações.
Quando percebe que o assunto é pessoal, a secretária de Yasmin, que é
diplomata, fecha o vidro da divisão discretamente, o que dá espaço para
conversarmos melhor.
— É por isso que vocês não me respondiam às vezes — falo, chocada.
— Ou que não me atendiam…
Essa realização é mais uma nuvem sombria no meu céu já cinzento.
Achava que a comunicação era falha, mas nunca desconfiei de algo
dessa magnitude. Ou se desconfiei, nunca quis admitir para mim mesma.
Agora, tudo faz sentido.
As mensagens não respondidas das minhas amigas, as ligações que
nunca chegavam ou se perdiam, as respostas estranhas, os convites
perdidos.
Ele manipulou não apenas minha saúde e vida financeira, mas também
me isolou das pessoas que me importavam e se importavam comigo.
É assustador perceber o quanto ele fez sem que eu percebesse.
— Você está bem, Vasya? — pergunta Yasmin, notando minha
expressão distante.
— Ainda não — confesso, sentindo uma mistura de raiva e tristeza —,
mas vou ficar. Não vou deixar mais ninguém pisar em mim de novo.
Ninguém vai mandar em mim de novo.
— Esse é o espírito — diz Tatyana e continua: — Tyr já mandou recado
que vai enviar por Lars um celular novo para você. Mais novo, melhor,
super, hiper tecnológico, com todos os aplicativos, que ninguém vai poder
hackear.
— Über-merda — resmungo.
— Vasilisa! — exclama Catarina, chocada.
É, eu não costumo falar palavrão, mas estou ficando de saco cheio,
sabe? Tudo tem um limite e eu não sou uma incapaz.
— Não custava nada me perguntarem, falarem comigo. Porque…
pensem bem. Agora, temos mais um ponto de atrito — digo. — Do meu
ponto de vista, Lars roubou, porque não tenho outro termo para isso, já que
foi sem minha permissão, meu celular e computador e os entregou para Tyr
analisar. Ele vai olhar…
— Você tinha condições de permitir alguma coisa? — pergunta Yasmin,
levantando uma sobrancelha. — Dopada do jeito que estava?
Isso efetivamente me cala.
— Por que não marcamos uma consulta com o médico real e
descobrimos o que você tem de verdade? — pergunta Tatyana.
— Papai sempre quis te levar no médico dele e seu pai nunca deixou —
fala Catarina. — Talvez, seja a hora de ver a quantas anda a sua saúde
depois de tantos remédios manipulados.
Encaro Yasmin. — Pode marcar. Check-up total — peço. Não quero
mais ser passiva em relação a nada. — Ginecologista, também, porque
sempre me disseram que eu não podia tomar anticoncepcional e não vou
deixar meu corpo na mão de Lars.
— É bom, porque além de tarados, esses irmãos são férteis — diz
Tatyana, fazendo uma careta.
Como a Residência Fiorde Raio do Luar é um pouco distante da cidade,
demoramos um pouco para chegar, mas gosto do impacto inicial já nos
portões de ferro, feito de lanças pretas e prateadas enormes, que se abre
para uma alameda ladeada por árvores centenárias, plantadas a espaços
regulares em um jardim gramado.
Por uns cinco minutos, as árvores nos sombreiam até que se abrem para
um jardim de buchinhos e um palacete de dois andares, não muito grande,
mas com traços do Palácio, com colunas de mármore imponentes para a
entrada.
E mais além, faceia um paredão de um fiorde. Estamos quase na beirada
de uma plataforma, no meio de uma montanha.
É de tirar o fôlego.
— Bonito, hein? — diz Yasmin, impressionada.
— Sen-sa-ci-o-nal. — Tatyana assobia. — Ou como diriam os
americanos, fodidamente sensacional!
Eu nem comento, porque se tivesse olhado o álbum com calma teria
escolhido essa. Fico contente que Lars tenha feito.
Ao saltarmos na escadaria, somos recebidas pelo mordomo – inglês,
segundo Ingrid nos explicou no carro, já que todos são escolhidos no
Instituto de Mordomos Britânico , que os treina à perfeição, não só em
protocolo, mas também em hotelaria.
— Sou Barnaby, senhorita Vasilisa, seja bem-vinda. — Um senhor
magro e empertigado, me cumprimenta com uma leve inclinação da cabeça
e um sorriso gentil. — Será uma honra servi-la em sua nova residência. Se
me permite, apresentarei a casa a senhorita e às suas convidadas. Amanhã, a
Sra. Frings, que é a governanta, e eu apresentaremos os empregados.
— Claro, obrigada, Barnaby — respondo, maravilhada com os afrescos
delicados que enfeitam o vestíbulo de pé direito alto.
Ele faz uma reverência para Yasmin e Tatyana, que logo dispensam o
protocolo e cumprimenta Catarina.
— Imagino que tenham notado a semelhança com Blenheim Palace ,
pois foi a inspiração para a construção.
Ele vai nos contando a história do palacete, apontando um e outro
móvel, peça ou quadro mais notável, e respondendo a nossas perguntas, até
chegarmos a um ponto em que a arquitetura antiga evolui para linhas
contemporâneas, onde para.
— Infelizmente, fomos bombardeados durante a Segunda Guerra
Mundial — explica e gesticula para paredes de vidro, estruturas metálicas e
madeiras aparentes, chão de cimento bruto misturado à – o que acho que
seja – mármore preto, veiado com o que parece prata líquida, que contrasta,
mas, ao mesmo tempo, complementam o estilo clássico. — O projeto
ganhador foi de um arquiteto novo, daqui de Vinterland, concorrendo com
grandes escritórios do mundo inteiro. Ficou pronto recentemente e soube
que Sua Majestade, o rei Thorvald estava até pensando em colocá-lo à
venda, o que seria uma pena, já que é mais que merecido que um príncipe e
uma princesa — ele sorri para mim — habitem esse lugar de sonho.
— É de sonho mesmo — digo.
— A integração entre o antigo e o novo é impressionante — comenta
Yasmin, observando os detalhes. — É como se estivéssemos em dois
mundos ao mesmo tempo.
— Um verdadeiro estudo de contrastes — comento, embasbacada. Viro-
me para ver a parte do palacete e a transmudação dele para a casa onde
agora estamos. — É fascinante como ele conseguiu integrar tudo de forma
tão harmoniosa, não apagar a cicatriz e ainda assim, não a deixa tão
aparente de forma a chocar. É sutil, quase…
Como as cicatrizes nas costas de Lars.
Paro e olho para cima e em volta.
No espaço do salão do palacete de séculos e séculos passados, com seus
afrescos e lustres de cristal e móveis antigos, e suas paredes que um dia
foram explodidas e rachadas e hoje estão fechadas e integradas com um
salão novo com obras de artes, móveis, iluminações contemporâneas tão
diferentes.
Será que ele percebeu que escolheu a casa por causa disso também?
— É como se cada parte valorizasse a outra — acrescenta Tatyana. —
Um diálogo entre o passado e o presente.
Barnaby nos guia até uma ampla sala com vista para o fiorde. A
sensação é de estar flutuando sobre as águas, tamanha é a proximidade com
o abismo.
— Aqui é a área íntima da residência. Os quartos e suítes estão
localizados nesta ala, proporcionando privacidade e vistas deslumbrantes —
explica ele. — Já fizemos a mudança de Sua Alteza e colocamos suas
coisas também no seu closet, senhorita.
— Perfeito, Barnaby, obrigada — digo, ainda impactada pela revelação
que tive há pouco.
— Se precisarem de algo, por favor, não hesitem em pedir — diz, com
um sorriso caloroso. — O príncipe me avisou que chegará em breve e que o
jantar poderia ser servido às nove e meia, se a senhorita estivesse de acordo.
Olho no relógio e vejo que são sete ainda.
Dá tempo de fofocar um pouco, tomar banho e me preparar.
— Está ótimo — respondo.
Ele me mostra como funciona o interfone e onde deixou bebidas e um
pequeno lanche e se retira, deixando-nos na antessala da suíte principal.
Aproximo-me das amplas janelas e a visão é estonteante.
Numa quina que avança em uma curva, acima, a cachoeira Raio de Luar
despenca pelo que parece um abismo sem fim, suas águas brilhando sob a
luz do sol.
— Agora entendo por que Lars escolheu este lugar — diz Catarina,
posicionando-se ao meu lado. — É simplesmente mágico.
— E a forma como a cachoeira reflete a luz… — observa Yasmin. —
Parece um véu de prata.
— Ele disse que a cachoeira o fazia lembrar de você — relembra
Tatyana, sorrindo. — Bem romântico para alguém que dizem ser tão
reservado.
— Vamos explorar a suíte! — sugere Yasmin, puxando-me pela mão.
Para chegar no quarto precisamos passar por dois closets amplos, sendo
que o meu é o dobro do de Lars.
— Este lugar é um sonho — comenta Catarina, abrindo as portas do
closet.
— Espera até ver o banheiro — grita Tatyana, de outro ambiente.
Não é um banheiro. É quase um spa.
O espaço revestido em mármore com veios em tons de cinza e dourado
sobre fundo branco, tem uma bancada com duas pias, lugar separado para
maquiagem, uma cama de massagem, pequena sauna, uma banheira de
hidromassagem e um chuveiro gigante, mas isso tudo empalidece porque a
parede de vidro que da banheira e do chuveiro fica juntinho da cachoeira.
As águas estão tão próximas que quase podemos tocá-las e o vidro está
todo molhado, como se estivesse chovendo.
— Isso é surreal! — exclama Yasmin. — Imagine tomar banho todo dia
aqui ou à noite, de luz apagada, com a lua iluminando a cachoeira.
— Um cenário de conto de fadas — concorda Catarina. — E o quarto,
onde é?
— Aqui! — grita a doida da Tatyana, que já está lá. — Vasya! Você não
vai acreditar! E tirem os sapatos!
Ainda bem que ela avisou. O tapete branco de uns cinco dedos é a coisa
mais gostosa que já senti debaixo dos meus pés.
A decoração minimalista cria uma atmosfera de tranquilidade que é
arrematada pela vista magnífica.
Uma cabeceira branca estofada em couro recobre a parede de trás da
cama gigante.
— Isso é… — Pego no cobertor felpudo em cima da cama e descubro
horrorizada que é de pele de vison. — Jesus Santíssimo.
— Nem adianta reclamar — resmunga Tatyana, aborrecida. — Eles têm
fazenda de arminhos aqui e matam os bichinhos.
— Meninas, é a cultura deles — diz Yasmin. — Não podemos sair
mudando tudo de uma vez, tem que ser aos poucos. Não temos passarinhos
em gaiolas? Aqui eles cultivam e matam arminhos.
Bom, é verdade.
Num canto, onde tem uma lareira a gás, tem um local para leitura com
duas poltronas e uma mesinha.
E um arranjo de Calla Lilies deslumbrante em um vaso transparente
amarrado com uma corda bem grossa de juta.
De um suave tom creme pálido no centro, a pétala fica rósea, rosa
chicletes até um rosa mais fechado na borda, como se a flor tivesse corado.
— É para você — diz Tatyana, abanando o cartão.
— Vamos levar para a antessala? — pergunto, pegando o arranjo. —
Preciso de uma bebida antes de ler qualquer coisa. Boa, ruim ou neutra.
Elas me seguem no trajeto de volta.
Coloco o arranjo na mesa de centro e preparo um shot de vodka Grey
Goose, que está geladíssima e licorosa, como uma descendente de russa que
se preze gosta de tomar. As meninas se servem cada uma da bebida de sua
preferência e desabamos todas no sofá.
— Za nashe zdorov’ye — brindo, elas me acompanham e viro o shot de
uma vez.
Sacudo a cabeça porque a vodka desce queimando. — Nossa, eu
precisava disso.
— Você é doida, isso, sim — diz minha prima.
— Eu é que sou doida… Tá bom… — resmungo baixinho. — Que
horas eles costumam sair do trabalho?
— Depende da quantidade de trabalho — responde Yasmin, que já está
aqui há mais tempo.
— E do nível de tesão — complementa Tatyana, rindo.
— Ai, começou — reclama Catarina, soprando o ar para cima.
— Como Lars esteve esses dias fora, deve estar chegando a qualquer
momento — acrescenta Yasmin. — Lê logo esse cartão para a gente ir
embora.
Abro o envelope verde-musgo, impresso com o brasão da Casa de
Gulbrandr, e tiro o cartão branco com uma moldura verde musgo onde no
meio tem o monograma LH entrelaçados.
Minha princesa,
Bem-vinda a este lugar mágico e especial que reflete o que vi em você
quando nossos olhares se cruzaram a primeira vez.
Espero que sejamos muito felizes nesta casa que, como você, exala
beleza, força e um toque de impossível.
~ LH
Viro o cartão, porque tem uma setinha e atrás continua:
Quando passei na estufa para encomendar este arranjo, descobri que
essa flor ainda não fora batizada e que o nosso Jardineiro-Chefe pretendia
chamá-la de Magnífica, mas ainda estava na dúvida porque faltava algum
qualificativo.
Acredito que juntos encontramos a solução. Ela foi nomeada de:
Pecadora Magnífica, em sua homenagem.
Pedi que plantassem em nosso jardim.
Seu,
Lars
— Uau — sussurra Tatyana —, ele consegue ser pior que Tyr.
— Lars pode ser enigmático… ou… sei lá, estranho… — suspiro —,
mas demonstra cuidado e carinho nos detalhes.
Sim, enigmático e estranho, porque não sei nem como qualificar o que
houve naquela reunião, o que dizer deste um toque de impossível, como
interpretar essa declaração de carinho e tesão, essa homenagem, e esse
amarrado de juta tão simbólico – porque para bom entendedor meio
amarrado basta.
— Vasya, talvez seja o momento de conversar abertamente com ele —
diz Catarina.
— Não sei se concordo — fala devagar Yasmin, alisando o barrigão. —
Mantenha um pouco de mistério. Não revele tudo de uma vez.
Olho para ela, curiosa. — Como assim?
Yasmin sorri. — O mistério é uma poderosa ferramenta feminina. Faz
parte da sedução.
— Exato — diz Tatyana. — Não se trata de jogar jogos, mas de manter
a chama acesa, a curiosidade.
— Tenho sido muito transparente?
— Sim, mas não porque você queria, mas porque não sabia o que estava
fazendo, na verdade — fala minha prima. — Aqueles remédios não
deixavam a verdadeira Vasilisa aparecer.
— Talvez seja hora de dosar um pouco?
— Não acho que você vá ter problemas em dobrá-lo — diz Tatyana me
olhando de cima a baixo.
— Não? Por quê?
— Porque reis viram mendigos quando fazemos boquetes — diz e pisca
para Yasmin. — Não é, Vossa Majestade?
Ao que a outra indaga: — E quando damos o cu?
As duas caem na gargalhada.
— Jesus, Maria e José! — diz Catarina para mim. — Por que elas não
contam tudo logo?
— Sexo é poderoso. É uma forma de equilibrar a relação — explica
Yasmin. — Fale de seus próprios desejos.
— Sem falar que, às vezes, não fazer sexo para solucionar os problemas
é a melhor maneira de mostrar a eles que nem tudo se resolve na cama,
empurrando a sujeira para debaixo do tapete — diz Tatyana e acrescenta: —
Além disso, homens como Lars apreciam desafios. Não que você deva fazer
doce, mas mostrar que é uma mulher independente e segura.
— Não sei se estou entendendo o que vocês querem dizer.
— Deixa eu dar umas dicas melhores — diz Yasmin, chegando mais
para a beira do sofá.
— Lars que se prepare — ri Catarina, quando as duas terminam.
— E lembre-se, a comunicação é essencial. Se você tem muita
dificuldade, espere estar pronta, mas converse — insiste Yasmin.
Olho novamente para a cachoeira, suas águas fluindo incessantemente.
— A cachoeira segue seu curso com determinação, mas não revela seu
destino — murmuro. — O que será que tem lá embaixo, escondido naquele
lago?
— Bela analogia. Filosófica. — Catarina sorri. — Gosto disso.
— Majestade, Alteza, senhorita, boa noite.
Damos um pulo com a voz profunda de Lars que está encostado no
umbral da porta, sorrindo.
— Lars! — grita Yasmin. — Assim, você me mata de susto!
— Fico contente em ver que estão aproveitando tanto da hospitalidade
de Vasilisa que esqueceram dos maridos.
— Deus Amado, está tarde! — Yasmin olha o relógio horrorizada e se
levanta. Ela passa a mão na barriga. — Vamos, mocinha, ou seu pai vem
nos resgatar.
— Na verdade, ele já veio — revela Lars, abrindo um sorriso maior
ainda, como se soubesse de um segredo que nós não sabemos. — Ele, Tyr e
Leif estão bem aqui na sala de televisão, esperando para levar vocês de
volta.
As outras duas pulam do sofá, sendo que Catarina fica vermelhinha.
Despedimo-nos com abraços.
— Boa sorte, Vasya — sussurra Tatyana no meu ouvido. — Qualquer
caminho que você escolher vai funcionar.
— Vai dar tudo certo — afirma Yasmin. — Siga seu instinto.
Catarina me dá um beijo. — Qualquer coisa, me ligue.
— Pode deixar.
Os olhos azuis de Lars encontram os meus e ele os deixa deslizar sobre
mim, me eletrificando, de cima a baixo, de uma maneira que me excita, me
abala, me faz esquecer qualquer conversa que eu tive com as meninas.
— Vou acompanhá-las até a porta — diz, sem se aproximar para me
cumprimentar. — Já volto.
— Tudo bem.
Quando ele vira as costas, consigo tragar o ar para dentro dos meus
pulmões e respirar de novo.
Quem foi que disse que vai dar tudo certo?
Quando chego de volta na suíte, Vasilisa já tomou banho, trocou de roupa e
está me esperando sentada na antessala, com um livro na mão.
Por um instante, fico parado na porta, apenas a observando.
A luz crepuscular do verão nórdico, que vai durar mais umas duas horas
pelo menos, apesar de já serem quase dez horas da noite, ilumina seus
cabelos dourados, criando um halo que a faz parecer etérea.
Às vezes, parece realmente uma sílfide e tenho medo que suma.
— Você demorou — diz quando entro no ambiente.
— Perdão, eles ficaram conversando — digo, tirando o celular e a
carteira e deixando-os na mesa da escrivaninha. — Vou tomar uma
chuveirada e não demoro.
— Posso usar seu computador? — pede ela, apontando para o meu
notebook, e justifica: — Preciso checar meu e-mail da faculdade, puxar
minhas notas para fazer a transferência. Ingrid conseguiu com a reitoria da
universidade que eu comece esta semana.
— Esta semana? — replico, tentando esconder a contrariedade.
Queria tirar uns cinco, seis dias e viajar com ela. Planejava ter esses dias
a sós com ela, longe de distrações, antes da vida tomar seu rumo. A
antecipação desse tempo juntos foi o que me manteve centrado nas últimas
horas. Mas agora, meus planos parecem escorrer pelos dedos.
— Sim, não quero perder o semestre e, como as universidades têm
convênio, foi bem simples realmente — explica, com um sorriso que
deveria me acalmar, mas só aumenta minha tensão.
— Entendo. — Forço um sorriso para disfarçar a decepção que sinto.
Retorno nos meus passos e puxo a cadeira para ela se sentar. — Venha, vou
liberar para você.
Puxo a outra cadeira, que está do outro lado da mesa, onde em breve
ficará o computador dela, e sento-me ao seu lado.
Seu perfume adocicado e envolvente me deixa momentaneamente
distraído, perturbando minha concentração, e esqueço o que devo fazer.
Digito minha senha, mas Tyr é implacável em suas lições, e a tempo,
uma voz interna me alerta sobre os protocolos de segurança. Não deveria
permitir acesso irrestrito ao meu sistema.
— Na verdade — digo, fechando a tela abruptamente e fazendo logoff
—, seria melhor criar uma conta de convidado para você.
Ela franze a testa quando abro uma sessão de convidado para ela.
— Por quê? Não confia em mim? — indaga, num tom um tanto quanto
magoado.
Sinto um músculo se contrair em minha mandíbula.
— Não é questão de confiança — respondo, mantendo o tom firme, mas
tento suavizar a situação: — Mas é que precisamos seguir os protocolos de
segurança, e por isso cada um tem que ter sua própria conta, com seu
próprio login e senha.
— Protocolos de segurança? — repete, cruzando os braços. — Parece
exagero.
— Não é exagero quando se lida com informações sensíveis — retruco,
tentando não deixar transparecer a irritação. A culpa não é dela, e ela
deveria saber que um ministro de estado não pode ceder o computador a
qualquer um, nem mesmo a esposa. — Para não termos nenhum problema
com hackers ou vazamentos, Tyr requer que cada um entre com seu login e
senha. Entendeu?
Ela me olha, os olhos verdes desafiadores.
— Além disso, meu computador contém dados confidenciais.
Ela me olha de esguelha, como se não acreditasse totalmente.
— Aqui não tem acesso à internet — diz ela, franzindo a testa.
É verdade, porque só dispositivos, contas e conexões previamente
autorizadas têm permissão.
Droga. — Vou liberar o acesso para você desta vez, mas, por ordens de
Tyr, essa será a última vez que terá acesso irrestrito ao meu computador. Da
próxima vez, você terá que usar seu próprio login e senha, seguindo
protocolos de segurança rígidos.
Ela suspira, claramente aborrecida. — Não entendo por que você tem
acesso a todos os meus dispositivos, sem nem me perguntar se podia
entregar meu celular e computar ao seu irmão, mas eu não posso acessar os
seus livremente.
A insinuação me atinge como um golpe.
— Isso é diferente — retruco. — Preciso garantir que tudo esteja sob
controle.
— Sob seu controle, você quer dizer — rebate, erguendo o queixo.
O ar entre nós se torna pesado. Sinto o conflito interno se intensificar.
Quero agradá-la, mas a ideia de ceder terreno me incomoda profundamente.
— Vasilisa, não vamos tornar isso mais complicado do que já é — digo,
tentando encerrar o assunto. — Depois do jantar, podemos discutir isso.
— Claro, adiar conversas importantes parece ser a sua especialidade —
ironiza, mas abaixa e começa a digitar.
Respiro fundo, contando até três.
— Vou tomar banho — digo, tentando aliviar a tensão. — Depois do
jantar, ligamos para Tyr, e ele pode explicar melhor.
— Como quiser — responde ela, voltando a atenção para o computador.
Dirijo-me ao banheiro e fecho a porta.
Gostaria de ter aproveitado para conversar com ela no banho. É
interessante como a roupa cria barreiras que a nudez não impõe.
Na intimidade, na pele contra pele, mesmo sem sexo, as palavras fluem
com mais naturalidade, as defesas caem, e as almas se aproximam sem
obstáculos.
A água quente escorre sobre mim, mas não consegue lavar a frustração
que sinto. Por que é tão difícil equilibrar esse desejo avassalador por ela e
minha necessidade de manter o controle?
As palavras dela ecoam na minha mente: Sob seu controle.
Talvez ela tenha razão em parte, mas a ideia dela sob meu controle não
me parece nada ruim, nem um pouco.
Minha mente analítica tenta encontrar uma solução lógica, mas as
emoções turbulentas complicam qualquer raciocínio claro. A verdade é que
tenho dificuldade em abrir mão do controle. É uma armadura que construí
ao longo dos anos para proteger as cicatrizes que carrego.
Talvez se eu exercitar mais o controle sobre ela na cama, possa liberar
mais na vida diária.
Saio do banho e visto um moletom e uma camiseta e volto à antessala
onde a encontro absorvida pelo site da universidade de Vinter.
O perfume dela ainda permeia o ar, despertando em mim um desejo de
proximidade que contrasta com a barreira invisível que se formou entre nós.
— Vasilisa? — chamo suavemente. — Conseguiu o que precisava?
— Sim, consegui, obrigada — diz, fechando a tampa do computador.
— Procedimento de fechamento errado — digo, abrindo a tampa
novamente e fazendo os procedimentos de segurança que Tyr enfia todos os
dias em nossa mente. Fecho todas as abas da internet, todos os programas e
aplicativos, faço logoff e efetivamente desligo o computador. Só então
fecho a tampa. — Agora, sim.
— Credo. — Ela levanta o olhar, os olhos verdes encontrando os meus.
— Podemos ir jantar? Estou morrendo de fome.
— Claro — respondo, e estendo a mão para ela, esforçando-me para
suavizar o ar.
Ela olha para a minha palma virada para cima, hesita e depois de um
momento, coloca a sua mão menor dentro da minha.
— Amanhã, vou pedir a Tyr para providenciar um computador novo
para você com todas as configurações necessárias — aviso. — Assim, você
terá acesso ao que precisar sem restrições.
— Seria mais fácil talvez se eu fosse com você escolher e pedir para
instalar os aplicativos que faço uso — fala enquanto andamos pelo corredor.
— Podemos ir juntos para o trabalho — ofereço. — Ingá, minha
secretaria, pode te auxiliar com o que for necessário também.
— Marquei com as meninas de fazer umas mudanças na decoração pela
manhã — informa, sem graça. — Não sabia que você ia me chamar para
irmos juntos. Posso desmarcar.
— De maneira nenhuma — contesto. — Pode ir na hora do almoço ou
no final do expediente. Ou você pode me dizer o estilo que gosta, via
chamada de vídeo, e peço a alguém da área de informática que venha fazer
a instalação para você.
— Ah, então prefiro — diz. — Não quero mudar muita coisa, mas fazer
apenas alguns ajustes, trocar um quadro de lugar e vão chegar mais algumas
roupas. Yasmin disse que vamos precisar em breve de um longo e não se
acha um tão fácil.
— Combinado. Eu… — Paro antes de falar no celular que trouxe.
Quero deixar esse assunto para mais tarde e emendo: — Pedi a Barnaby
para colocar a mesa para nós na varanda. Tudo bem?
Todo o espaço contemporâneo tem uma espécie de varanda que o rodeia
e conecta o interior com o ambiente externo, e nos permite usar durante os
dias mais quentes o jardim.
— Sim, também gosto de aproveitar esses dias mais longos — diz.
A sala de jantar é acolhedora e intimista, e assim como o resto da
decoração é minimalista, exala elegância e sofisticação por meio de sua
simplicidade, mas grande demais para apenas duas pessoas.
Ela para diante da pintura, que ocupa uma das paredes e atrai o olhar.
— Impactante. É de Kiefer ? — pergunta.
— Sim, é — confirmo. — O Trauma de Balder é o título.
— Não conheço a lenda desse deus nórdico — diz, e anda para trás para
poder ver melhor a obra.
— Balder, o deus da inocência, beleza, paz e pureza, sonhou com a
própria morte, o que causaria Ragnarök . Sua mãe, desesperada, tentando
impedir o destino, forçou cada objeto da Terra a jurar solenemente nunca
machucar seu filho — narro, enquanto ando para o seu lado. — No entanto,
por alguma razão, ela se esqueceu do visco, pensando que era
insignificante. Loki, sabendo disso, usou a erva para fazer uma lança
mágica que, finalmente, matou Balder. A mãe implorou por sua libertação
do submundo e recebeu a promessa de ter seu filho de volta, mas só após o
fim do Ragnarök. É uma metáfora do passado problemático da Alemanha e
da tentativa de ter um novo futuro.
— Ele comunica bem essa questão da culpa e da responsabilidade da
sociedade austro-germânica e todos os apoiadores de Hitler — diz,
pensativa —, e consegue encontrar o equilíbrio perfeito entre a ordem e o
caos nos trabalhos, apesar de à primeira vista não parecer tão organizado
assim.
— Segundo ele, se houver muita ordem, a obra está morta; e se houver
muito caos, ela não é coerente. Um grande artista — concordo e acrescento:
— E esse quadro e essa lenda nos lembram que nada, absolutamente nada
na vida é insignificante. Nem mesmo uma ervinha minúscula.
O que me faz pensar sobre muitos temas difíceis. Prefiro algo mais leve
para hoje. Já tivemos assuntos áridos demais para um dia só.
— Os lustres são móveis e podem ser mudados de lugar de acordo com
a disposição das mesas — falo para ela, mudando de assunto, apontando
para os globos pendentes. — As duas mesas quadradas podem acomodar
dezesseis pessoas quando usadas separadas e podem ser unidas numa só e aí
apenas Barnaby sabe quantas pessoas sentam aqui.
A sala nem parece tão grande e espaçosa, talvez porque a arquitetura, ao
trazer o jardim para dentro com as portas de vidro, não só ajuda a aproveitar
a beleza da luz natural e economizar eletricidade em uma cidade que
durante o inverno pode ter luz apenas por quatro a seis horas por dia, como
com a iluminação torna o espaço aconchegante e convidativo.
— Vamos? — Abro a porta de vidro e a espero passar, antes de fechar.
Do lado de fora, tem duas mesas menores, para quatro pessoas e as
mesmas cadeiras confortáveis, com estofados em verde-claro, se repetem.
A mesa está posta com os jogos americanos e guardanapos de linho
brancos e como centro de mesa um bonsai de camélia.
— Ai, que lindo! — exclama, ao se sentar, e passa a ponta dos dedos
sobre as pétalas delicadas das flores na arvorezinha. — É tão delicado.
— Sua Alteza é quem os cultiva — denuncia Barnaby, que chega com o
vinho e o amuse-bouche .
— Sua Alteza, quem? — Espantada, ela olha para meu rosto e depois
para minhas mãos. — Ele?
Sorrio. — Sim, por que o espanto?
Ela pisca várias vezes, sem jeito, e dá de ombros. — Não sei, mas não
imaginaria você como minimalista, cultivador de bonsais ou… Sei lá, só
não imaginei.
— Ainda temos muito a descobrir um sobre o outro.
— Pão rústico e creme de champignons doces, com os cumprimentos da
Chef — diz o mordomo, nos servindo. — Aceitam vinho?
— Por favor — peço.
Depois que Barnaby sai, explico para ela: — Não sou exatamente um
minimalista, apesar de apreciar a ideia de eliminar o desnecessário e focar
no que realmente importa. A simplicidade traz uma sensação de…
tranquilidade.
— Você é da filosofia que menos é mais? — pergunta ela.
— Por quê? Você não é? — indago, ao escutar um tom estranho, quase
defensivo, em sua voz.
— Não, não sou — afirma, sem medo. — Porque isso é mais uma
daquelas verdades que tentam nos empurrar garganta abaixo, como se fosse
absoluta e a única maneira correta de viver.
Opa. Terreno perigoso. — É mesmo?
— O menos é pouco. O mais é excessivo — ela explica sua teoria. —
Sou do partido que o bom, porque perfeito não há, é o meio do caminho.
— E quem foi que tentou te convencer de que o ditado “menos é mais”
era bom e você descobriu que era uma falácia?
Claramente ganhando tempo e pensando na resposta que vai me dar, ela
toma o caldinho de cogumelos servido em uma xícara-copo de cerâmica
branca rústica, coloca-a de volta na mesa delicadamente e limpa os lábios
com guardanapo.
— Alguém lá do internato — diz, como se não importasse, mas posso
ver em seus olhos que isso não é algo trivial.
Hmmm… O terreno é mais que perigoso, é pantanoso. Talvez tenha até
areia movediça aí e seja mortal.
— Alguma amiga que eu conheça? — insisto, porque percebo que o
assunto é importante e talvez tenha a ver com as cicatrizes nas costas dela.
— Não, não é alguém que você conheceria — diz, seca, e desvia o
olhar. — Me conta mais da sua paixão por bonsai. Já visitou o Japão?
Ela muda de assunto tão bruscamente que me surpreende e,
desconfiado, faço uma anotação mental para conversar com Tyr sobre isso.
Vou fazer uma devassa naquela escola desgraçada e descobrir o que
aconteceu lá.
— O bonsai, que significa plantado em bandeja, vem originalmente da
Índia — conto para ela, pois realmente sou um apaixonado pela arte. —
Espalhou-se para a China, depois para o Japão e só depois de muitos anos
foi integrado à cultura japonesa. Posso dizer que aprendi muito mais do que
miniaturizar árvores, já que esta arte convida o artista a meditar sobre a
beleza natural, a passagem do tempo, a buscar harmonia e equilíbrio e, com
isso, encontrar a paz interior.
Ela me fita com uma expressão faminta, que ainda não tinha visto em
seus olhos.
— É mesmo? E você encontrou?
— Encontro às vezes, sim, às vezes não — confesso, honestamente,
porque o anseio em seu olhar é tão profundo que posso ver que ela também
busca isso. — Mas faço bonsai há anos, e Vidar provavelmente enviou
meus exemplares para a estufa daqui. Ele sabe que gosto de supervisionar e
cuidar pessoalmente de cada uma das minhas criações.
Barnaby traz a entrada e o prato principal – tudo vegetariano – porque
ainda não combinei nem com ela, nem com a chef, como vai ser a
organização doméstica, e continuamos a conversar sobre temas leves.
Sei que preciso abordar alguns assuntos chatos, mas não quero estragar
o momento e a tensão entre nós já é palpável. Sinto que estamos à beira de
um precipício, algo que pode mudar tudo. E preciso estar preparado.
Depois da sobremesa, levo-a para uma volta no jardim. O sol se eterniza
no horizonte às dez horas da noite e ainda vai ficar por ali por umas duas
horas ou mais até sumir por pouquíssimo tempo.
— Mais alguns dias e as noites brancas começarão — falo, ao chegar na
beirada do abismo.
A vista daqui é fascinante e para completar o encantamento o som
distante do mar batendo nas rochas abaixo ecoa nos paredões e sobe.
Olhar para baixo é inevitável e a sensação é deliciosamente vertiginosa.
Isto é, para quem não tem medo de altura. De onde estamos, são mais de
mil metros até o mar lá embaixo. Não há como sobreviver a uma queda. Por
isso o guarda-corpo de um metro e vinte, de vidro super-resistente, é preso
com ferro encravados firmemente na rocha.
Se alguém caísse daqui, quando o corpo chegasse lá embaixo, no sopé
da montanha, ou nas águas, dificilmente iria estar inteiro, porque o paredão
é bem escarpado e…
Pelos deuses! Estou mórbido hoje.
— Podemos pedir para o arquiteto pensar em instalar um banco aqui —
sugiro. — O que acha?
Ela apoia os braços na bancada e deita a cabeça. — No momento, só
acho que quero que o quarto tenha cortinas bem escuras. Estou precisando
dormir.
— O dia foi difícil, não foi? Quer ir para o quarto?
Ponho as mãos de leve nos ombros dela e faço uma massagem.
Ela inspira fundo e solta o ar devagarinho. — Daqui a pouco.
— Você vai dormir no escuro total. O projeto previa persianas
automáticas por fora das janelas — conto para ela. — Descem do teto por
controle remoto.
Ela vira a cabeça para mim. — Você é apaixonado por isso aqui.
Conhece tudo.
— Sou. Já era quando estava destruído, quando ficou pronto, caí de
amores — confesso, sorrindo. — Foi ideia de Magnus e minha recuperar as
propriedades e vender ou transformá-las em hotéis, para diminuir o gasto
público e aumentar a receita.
— E, mesmo apaixonado por essa, ia me deixar escolher outra casa se
eu gostasse mais?
Levanto os ombros. — A casa é sempre mais das mulheres que dos
homens e já te tirei da sua.
O vento frio sopra o cabelo dela e estendo a mão retirando-o do rosto,
querendo fazer mais do que isso, querendo puxá-la para mim e beijá-la.
Levá-la para o quarto e fazer amor com ela. Mas ela se empertiga e dá um
passo para o lado e para trás.
— Você não gostou do cabelo — afirma ela, mudando de assunto
bruscamente de novo. — Nem do novo look.
Arqueio uma sobrancelha. — Quem disse isso?
— Você não falou nada desde que chegou…
Não é que eu não tenha gostado. Gostei, sim, ela está deslumbrante,
ficou mais mulher, mais sexy. Está exalando confiança.
No entanto, havia antes nela um quê de ingenuidade, um ar de pureza
que me cativava de uma forma diferente.
— Gostei, sim. Tanto do corte, quanto das roupas — digo, tentando
escolher as palavras com cuidado. — Ficou… moderno, mas eu gostava
antes também.
Enquanto a observo, percebo que essa mudança reflete seu crescimento,
sua autonomia emergente. Ver Vasilisa lidando com suas próprias emoções,
ou talvez, com suas antigas amarras de maneira tão rápida e eficaz, me faz
sentir inadequado e frustrado, como se eu estivesse falhando em
acompanhar seu ritmo, preso em meus próprios ódios, receios e angústias.
— Mas você prefere como era antes, não é? — pressiona, querendo
minha opinião honesta.
— Não se trata de preferir um ou outro — começo, olhando nos olhos
dela. — Você é linda de qualquer jeito. Na verdade, você ficou ainda mais
linda, mais madura, mais confiante.
— Não exagera. — Ela inclina a cabeça, estudando-me. — Mas? O que
incomoda?
— Admito que essa mudança tão rápida me pegou de surpresa. Para ser
sincero, me assusta um pouco e diz mais sobre mim do que sobre você.
— Assusta?
Passo o dedo entre suas sobrancelhas, desfazendo a ruga que se formou
ali e sorrio.
— Porque simboliza que você está mudando, se descobrindo. Às vezes,
tenho receio de perder o controle sobre as coisas ao meu redor.
Isso mexe comigo profundamente. Confronta-me com meus próprios
medos, obrigando-me a encarar o menininho inseguro que ainda habita em
mim, temeroso de ser deixado para trás mais uma vez, que não é apenas um
obstáculo pessoal, mas pode ser uma barreira que afeta meu relacionamento
com essa mulher tão especial.
Sou um homem inteligente e analítico, mas quando se trata de emoções,
sinto-me perdido e vulnerável. Talvez, como disse Tyr, porque as mantenho
bem fechadas em gavetas, guardadas a sete chaves e evite entrar em contato
com elas.
Ela franze a testa, parecendo confusa por um momento, e depois,
claramente chateada, diz: — Porque está sem controle. E é por isso que não
quis me libertar… que me comprou daquele jeito… daquele jeito…
Ela anda três passos para longe e se vira. — Nem tenho adjetivos para
qualificar a sua atitude.
Ela é como um espelho e reflete minhas próprias inseguranças e a
necessidade de amadurecer. Ou talvez, como disse Tyr, de encarar que
preciso de um pouco menos de racionalidade e um pouco mais de instinto
animal.
E o animal dentro de mim exige sair da jaula quando ela coloca essa
distância entre nós.
Fecho meus braços à sua volta, engaiolando-a contra o guarda-corpo.
— Você quer continuar a me controlar.
Deslizo as costas da mão pela pele sedosa de seu rosto.
— Não, minha princesa, eu quero, e eu vou, te possuir — sussurro no
ouvido dela, observando como a pele dela se arrepia.
— Não vai — promete, afastando o rosto e deixando o pescoço à
mostra.
Sorrio.
Mesmo sendo bem menor que eu, ela não se intimida. A minha Pequena
é mais do que um rostinho lindo e corpo sensual, é determinada e corajosa.
Vivaz. E eu gosto disso. Com ela, jamais ficarei entediado.
— Já possuo. Olha como você reage a mim e ainda nem comecei a fazer
nada. — Deslizo o nariz pela coluna do pescoço dela e beijo a marca de
chupão que deixei ali. — E as partes que não possuo ainda, vou possuir.
Os mamilos se enrugando quando minha mão desce mais.
Ela segura meu antebraço. — Pare.
Paro, mas pergunto: — Você está com medo?
— Não, acho que é você que está — rebate, com um brilho desafiador
nos olhos.
Desta vez, eu rio.
O que ela não sabe é que se tive dificuldades de me conectar com outras
pessoas em um nível mais profundo antes e se tenho dificuldade de lidar
com a aflição e pesar de décadas atrás, não tenho o menor medo de me
apaixonar perdidamente por essa moça.
Se eu fechar os olhos, posso me ver construindo a vida com ela e daqui
há anos, nós dois mais velhos, com meus irmãos e cunhadas e vários
sobrinhos à nossa volta e uma casa cheia de amor e risadas. Uma família
unida e forte. Em Vinterland e em qualquer lugar do mundo.
Não vai demorar para eu entregar, de vez, meu coração a ela, e quando
isso acontecer, será para sempre.
Puxo-a para mim e após uma pequena resistência, ela vem. Nossos
corpos se amoldam perfeitamente, como se fossem feitos um para o outro.
— Vou fazer amor com você…
— Não quero — afirma, empurrando meu peito de leve. — Estou
chateada e aborrecida com você. Cansada. Com dor de cabeça.
— Tudo bem, eu não faço, então — murmuro no seu ouvido, ainda
acariciando bem de leve seu corpo, apesar da frustração. — Podemos
conversar amanhã.
Se ela esperava que eu insistisse, é porque ainda não me conhece. Posso
muito bem passar uma noite desejando-a intensamente, com o pau duro e as
bolas cheias de tesão, e ainda assim, amanhã… ah, amanhã… quando ela
não resistir mais, e implorar que eu a foda, vai ser muito melhor.
A minha não-persistência de alguma maneira a irrita.
— Me larga!
O engraçado é que ela não grita. Pelo contrário, a ordem é dada em um
sussurro sedutor. Um convite silencioso.
— Esse é um pedido que não posso atender — aviso desde logo.
Porque ela não quer que eu solte. Sua linguagem corporal – a falta de
afastamento e a respiração acelerada – me diz isso. Sua própria voz – suave,
trêmula e rouca – a denuncia.
Porque algo mais forte do que eu, impele-me a não a soltar. A
necessidade de tê-la em meus braços, de sentir seu corpo contra o meu. O
instinto de possessivo, de marcá-la como minha.
Um desejo profundo e uma conexão inegável.
Porque a quero aqui. Agora. Comigo.
Para sempre.
Pego-a no colo e olho dentro destes olhos verdes hipnóticos.
— Você vai dormir nos meus braços e amanhã a gente conversa.
— Nós não queremos as mesmas coisas — informa a mim, e me desafia
a provar que estou errado.
O sorriso no meu rosto se amplia quando ando na direção do nosso
quarto.
— Ah… minha querida — murmuro. — Queremos, sim, você só não
sabe ainda.
— Vocês não sabem o que Lars fez com ela ontem!
O tanto de gemido, grunhido e resmungo vindos de Tatyana e Catarina,
que só chegaram agora e perderam o que falei para Yasmin – porque não
estava conseguindo me controlar! –, não está no Guiness, mas é inevitável
devido à frase típica.
— Se a gente soubesse, você não teria dito essa frase desnecessária e eu
não estaria te respondendo assim! — reclama Tatyana.
Elas se sentam no sofá branco do meu closet – ou melhor, salão de
vestir, porque isso não é nem um quarto de tão grande – lindo e
absolutamente branco, que está ficando colorido com a quantidade de
roupas já penduradas.
Yasmin ri e fecha o zíper do longo pink e roxo que estou
experimentando para um eventual gala. — Ah, deixa de ser chata.
— Ficou ótimo, não acham?
— Acho que vocês devem começar a contar o que aconteceu — pede
Tatyana. — Já, Yás!
Juntas começamos a narrar a tortura que passei, enquanto elas aprovam
– ou não – as roupas que já chegaram hoje de manhã e eu experimento.
— Conforme prometeu, aquele monumento de virilidade masculina
feito para o prazer me colocou para dormir e eu estava tão cansada que
capotei, mas quando acordei hoje de manhã, o anjo…
— Anjo! Olha isso, Taty, ela já está chamando ele de anjo — aponta
Yasmin e começa a rir. — Você está apaixonada!
— Eu?
— O homem é pior que Thorvald, pior que Tyr — relembra Yasmin —
e você ainda o apelida de Anjo. Isso só pode ser paixão.
Pode até ser.
— Anjo, sim, só que caído e aí vira diabo — complemento.
Conto para elas como acordei com seus dedos traçando desenhos na
pele da minha barriga, bem em cima do monte de vênus, e seus lábios
acariciando minha nuca. Eu quase cedi. Estava tão sonolenta e relaxada que
quase esqueci de tudo e quando me lembrei, até pensei em desistir. Meu
coração estava acelerado. Meu sexo, encharcado. Meus quadris, sem
permissão, já ondulavam contra suas coxas, buscando mais do pau grosso e
largo, confortavelmente, aninhado entre as minhas pernas, tão duro que o
estou sentindo até agora. Mais um pouco eu ia gozar.
Mas me mantive firme.
Rolei para fora da cama e me masturbei debaixo do chuveiro, tendo que
morder o braço para que ele não escutasse o gemido que quase escapou.
— Para completar, ele estava me esperando para tomar café comigo e
disse que eu devia a ele aquele orgasmo — gemo e sento-me no chão para
experimentar uma sandália.
— Por que a birra? — pergunta Tatyana. — O homem é lindo e eu
fiquei excitada só de ouvir você contar sobre as preliminares, imagina o
vamos ver.
— Não é birra, é questão de princípios — explico, ajustando o vestido
no espelho.
— Lars certamente é lindo, mas é muito… muito intenso — explico. —
Ele me desconcerta de todas as maneiras possíveis. É como se ele soubesse
todos os meus pontos fracos e os explorasse com maestria. Me… desfaz. É
como se eu fosse um quebra-cabeça e ele estivesse tentando me montar e
desmontar ao mesmo tempo. É instinto de sobrevivência.
— Ah, para. Sexo é bom e você gosta — provoca Catarina.
— Gosto? — Paro um momento para analisar todas as emoções que ele
me causa. — Acho que sim…
— Acha?! — gritam as três ao mesmo tempo.
— Tá bom, adoro, fiquei viciada no homem, mas sinceramente?, não sei
como agir com um homem desses.
Nem sei direito o que dizer a ele.
Nem sei direito o que sinto, além de mágoa, confusão e raiva.
— A culpa do que aconteceu não é toda dele… Você entende isso, não?
— pergunta Yasmin, colocando a mão no meu ombro. — E também
entende que ele pode ter agido mal ou falado coisas que não devia, mas que
ele te salvou, não é?
— Entendo, claro, mas estou machucada com tudo o que aconteceu e
acho que é mais que normal. — Respiro fundo, tentando organizar meus
pensamentos. — Preciso de um tempo para processar tudo isso e entender o
que realmente quero.
— É compreensível — diz Yasmin, colocando a mão no meu ombro. —
Mas não se feche completamente.
— Ah! Antes que eu me esqueça — exclama Tatyana, mexendo na
bolsa sem fundo dela. — O Demônio enviou isso.
Tira um super celular da bolsa – já aberto e já configurado, pelo jeito.
— É inhackeável!
Essa palavra existe?
— É um modelo de última geração, com segurança máxima,
programado pelo Demônio em pessoa — continua. — Tyr é sensacional, o
melhor que tem.
Acabo rindo da empolgação e orgulho dela ao falar do marido.
— E avisou que Lars já pediu seu computador e que vai mandar
mensagem de que horas vão vir instalar.
— Nossa, que legal! — sacaneio. — Mas e a internet? Vão me dar
acesso? Ou me deixar no escuro?
O deboche é minha maneira de lidar com a situação e as emoções. Por
um lado, aprecio o gesto, mas por outro, me incomoda saber que eles têm
acesso e controle de tudo que eu faço.
— Parece que alguém está preocupado em te manter conectada —
comenta Catarina, arqueando as sobrancelhas.
— Ou me manter sob vigilância — acrescento, meio séria, meio
brincando.
— Ou só agradar mesmo — diz Yasmin. — Esses homens não têm
muita noção de limite. Você vai ter que ensinar a ele, mas por enquanto só
agradeça.
— Talvez eu devesse agradecer, mas ainda não sei como me sinto sobre
isso — admito, colocando o celular na mesa de centro da antessala.
— Você vai descobrir com o tempo — diz Yasmin, dando-me um
abraço. — O importante é que você está retomando o controle da sua vida e
do seu corpo. Isso me lembra…
Ela pega o celular para conferir com a secretária se o Dr. Andersen, o
médico que atende à família, e a Dra. Elise Strand, a ginecologista e
obstetra, estão disponíveis para consultas hoje.
— Ambas marcadas já. Dra. Strand às quatro e Dr. Andersen cinco e
meia — diz. — E Ingrid pediu para assim que você tiver os documentos da
faculdade para enviar para ela agitar as coisas junto à reitoria.
— Pedi ontem por e-mail. — Abro o celular e anoto na agenda. — Mais
tarde, vou ver se eles já enviaram. Mais alguma coisa?
Para que fui perguntar? Tem mais de um milhão de coisas.
Trocamos números e Tatyana e Yasmin vão me passando tudo de
importante em Vinterland que preciso saber e o que preciso fazer. Sem falar
nas esposas e filhas dos tais Lordes Conselheiros.
Finalizamos a parte das roupas, almoçamos e mudamos algumas peças
de lugar, apenas para que a casa fique mais com a minha cara.
Até que meu celular vibra e o nome de Lars aparece na tela, pedindo
uma ligação por vídeo.
— Olha o anjo aí — brinca Tatyana. — Atende logo, se não ele vira
diabo.
Rindo, atendo.
— Gosto de escutar esse seu riso — diz, sorrindo do outro lado da tela.
Não resisto em espezinhá-lo. — Mesmo sabendo que você é a razão da
piada?
— Não me importo — responde, sem titubear.
E me deixa sem resposta. Esse homem é bipolar, só pode ser.
— Não queria conversar isso por telefone, mas como estamos em
reunião — ele inverte a câmera e, por um momento, vejo a sala onde estão
os irmãos e mais gente que não conheço em uma mesa longa, coberta de
computadores, tablets, pastas e papéis que parecem muito importantes — e
precisamos decidir algumas datas da agenda real, resolvi ligar e te consultar.
— Ora, que magnânimo da sua parte — zombo e levo um cutucão do pé
de Catarina na perna, mas meu gênio ainda está meio azedo, eu sei. — Em
que posso ajudar?
Ele sorri, sem se abalar. — Pode me dizer se tem alguma data de
preferência para o nosso casamento?
Meu coração para. Literalmente.
É como se o músculo tropeçasse, perdesse o ritmo, caísse no chão inerte
por um segundo e depois se levantasse de um pulo, socando-se contra
minhas costelas. Dói tanto que deixo o aparelho cair e coloco a mão na
garganta, buscando o ar.
— Seu idiota! — grita Catarina e pula na minha direção, mas sem saber
o que fazer.
Yasmin pega o celular e entra em pânico: — Ela não está tomando os
remédios!
Quem nunca sentiu isso, não sabe qual é a sensação de perder uma
batida cardíaca – ou mais, porque parece que dura um minuto inteiro e
demora para voltar ao normal. É horrível.
— Está tudo bem — digo, rouca, e estendo a mão, olhando para elas
que estão pálidas.
Inspiro fundo e volto à ligação.
— Pedi uma ambulância — diz ele, andando para algum lugar,
provavelmente mais branco que eu. — Estou indo para o hospital e Leif vai
ligar para o médico que nos atende.
— Não precisa — digo, devagar, meio tonta. — Já, já isso passa…
— Não interessa — quase berra no celular. — Não vamos brincar com
seu coração.
— Lars, já tive isso antes — falo e tento explicar enquanto ele desce as
escadas feito um endemoniado: — Foi só uma arritmia…
— Só? Só uma arritmia?! — grita mesmo, desta vez. — O que vai ser
da próxima vez? Uma parada cardíaca?
O celular sacode tanto na mão dele que já estou ficando tonta.
— É normal.
— O caralho que é!
Olho para as meninas, sem saber o que fazer.
Elas já viram isso acontecendo no colégio e nunca ficaram apavoradas
antes assim. Levanto os ombros.
— Olha, pode marcar nosso casamento para o outro domingo — tento
distraí-lo.
— Vou marcar, mas quero minha noiva viva para entrar comigo na
capela — rosna.
— Lars…
Para um segundo antes de entrar no carro e olha para trás, para alguém
que grita alguma coisa para ele, grita outra coisa de volta – tudo em
vinterlandês, ou seja, não entendo nada – e entra no carro dando ordens ao
motorista, que parte com ele ainda de porta aberta.
— A ambulância está chegando aí e estou indo também — diz, batendo
a porta, finalmente. — Vá para o hospital, Vasilisa, senão te arrasto até lá
pelos cabelos!
Desliga.
— O que foi isso? — pergunto, olhando para o celular e depois para as
meninas.
Barulho de sirene se faz ouvir bem ao longe. Não se passou nem cinco
minutos.
— Definitivamente, ele é pior que Tyr — sussurra Tatyana.
— Definitivamente — confirma Yasmin.
— Acho melhor eu ir então, não é? — Levanto-me porque ele tem todo
o jeito de quem cumpre as promessas.
— Melhor, né? — diz Catarina, meio apalermada com a intensidade do
homem. — Afinal, você não quer estragar os cabelos recém-cortados.
Sorrio, mesmo que fracamente. — Não, de jeito nenhum.
— Nós vamos com você — diz Yasmin.
— Claro! — ajunta Tatyana.
Eu não esperava outra coisa. Sempre fomos as quatro mosqueteiras,
mesmo que eu fosse mais quietinha e arredia, o nosso lema era, e pelo jeito,
ainda é: uma por todas e todas por uma.
No caminho para o hospital, que é aqui pertinho, descubro que estou
sem meus documentos. Quando ligo para Lars, que está com a cara mais
enrugada do mundo, ele me avisa que Tyr já colocou uma versão digital no
meu celular porque – olha que espetáculo! –, por sorte, esse meu futuro
cunhado, neurótico e obcecado, ordenou que assaltassem – essa é a palavra
– meu cofre e trouxessem tudo o que estava dentro: joias e documentos.
Depois de umas três horas sendo revirada de cabeça para baixo por uns
cinco médicos, descubro que minha arritmia é atípica, não parece ter
acontecido nada grave – jura?! –, mas eles não sabem exatamente o que foi.
Com arritmias é assim, foi o que escutei a vida inteira.
A única coisa boa foi que agora não preciso mais fazer nenhuma
consulta já que ambos os médicos foram deslocados para cá.
Só que meu humor está dos piores. Desde pequena, como qualquer
criança que tenha passado por cirurgia cardíaca, detesto hospital e
frequentei muitos, vezes demais.
Quanto à cirurgia que foi feita na minha infância, ninguém tem ideia de
qual seja, porque não eles têm acesso ao meu prontuário, nem a exames
anteriores à cirurgia. A única coisa que sabem dizer é que foi de peito
aberto.
Que novidade… Qualquer pessoa que olhe para o meu peito com um
pouco mais de atenção consegue ver a linha fininha e quase transparente
onde o meu osso esterno foi serrado ao meio.
E – isso, sim, é novidade! –, se havia algum defeito, ele foi corrigido.
Eu, aparentemente, não tenho ab-so-lu-ta-men-te nada no coração.
Então porque fico tão cansada, sedada, sonolenta e tenho hipotensão e
frequência cardíaca baixa? Sem falar na arritmia?
Eles não sabem.
Ha-ha, que bom.
Depois, eles pedem a minha permissão para chamar Lars para entrar na
consulta comigo.
Quase não dei, mas bastou um olhar para ele – os cabelos desalinhados,
dois botões da camisa aberta e gravata desfeita, como se não conseguisse
respirar, e andando de um lado para outro no corredor – para conceder.
E quando me vê, sentada na poltrona à frente da mesa da Dra. Basara, a
cardiologista, com dezenas de diplomas na parede, conversando e
aparentemente bem, ele me suspende do assento e me abraça bem apertado
contra seu peito, como se não me visse há anos, enfiando a cabeça no vão
do meu pescoço e ficando por um momento assim, sem dizer uma palavra.
— Lars… — sussurro, sem saber como lidar com essa explosão.
Ele levanta a cabeça e me fita. — Você está bem?
A minha vontade inicial era de quebrar alguma coisa na cabeça dura
dele, mas depois desse abraço sentido, penteio seus cabelos com meus
dedos e faço um carinho em seu rosto.
— Eu disse que estava — respondo. — Precisa acreditar mais em mim.
Só então ele me coloca sentada de novo e senta-se na outra poltrona, me
dando a mão.
A médica, que tem uma paciência de deixar Jó embasbacado, e o Dr.
Andersen respondem às intermináveis perguntas de Lars e estou convencida
a sair daqui com um Holter i, quando ele pergunta: — Doutora, é possível
que drogas tenham causado esse descontrole?
Ela estreita os olhos para mim. — A senhorita me disse que não era
usuária.
— Não sou. — Olho para o maluco ao meu lado. — De onde você tirou
essa ideia? Nunca nem coloquei um cigarro na boca, quanto mais um de
maconha ou de cocaína.
A médica sorri. — Não se fuma cocaína.
Sopro para cima. — É, eu sei, modo de dizer.
— Mas você tomava aqueles remédios que seu pai mandava manipular
— diz ele. — Remédio é droga e, segundo Leif, aquelas cápsulas podiam
conter qualquer coisa.
— Isso é grave. — A médica fica séria e digita alguma anotação na
minha ficha. — Porque seu coração não parece apresentar nada que cause
arritmia.
Lars conta para a médica o que aconteceu e como são as embalagens
dos remédios e fico sabendo que Tyr ordenou que procurassem as receitas
ou alguma pista de como tinham sido manipulados os remédios, sem
sucesso.
Levanto os ombros. — Mas não temos como saber o que ele colocava
nelas…
— Pedimos análise de todas as pílulas que você tomava — revela ele,
na maior cara de pau. — Devem ficar prontas a qualquer momento e os
laudos serão enviados para a senhora. Pedi urgência.
Fico tão chocada com mais uma invasão de privacidade que nem digo
nada.
— Então, vamos esperar até estarem prontos para requisitar novos
exames — diz a médica.
Prescreve um remédio, assina a receita e a coloca em um envelope,
onde já tem uma lista das substâncias que podem desencadear arritmias e
que devo evitar – nenhuma novidade para mim – e outras indicações que
foram ditas durante a consulta, como manter uma alimentação saudável e
equilibrada, praticar exercícios físicos com regularidade e controlar o
estresse – também nada de novo.
— Qualquer coisa, me ligue, mas compre esse remédio e tenha à mão,
para um caso mais agudo de arritmia. A senhorita está liberada para ir para
casa. Descansar.
— Tudo bem — digo, olhando de esguelha para o homem ao meu lado,
que não parece muito feliz. — Obrigada, doutora.
Quando saio da sala, o lounge está lotado com a realeza. Até porque o
hospital não é muito grande e esses irmãos são todos enormes.
As meninas vêm correndo me abraçar, querendo saber como eu estou, e
os gigantes vêm atrás e recebo um abraço apertado de cada um.
— Vamos jantar todos lá em casa — avisa Lars.
Olho para ele, horrorizada. — Mas, Lars… não organizei nada e vocês
são… muitos.
— Eu avisei a Barnaby — informa ele, como se isso fosse mágica.
— Esses nossos mordomos são perfeitos — diz Yasmin, passando o
braço pelo meu.
— Melhor que diamante no dedo, é ter um mordomo inglês em casa —
diz Tatyana. — Taylor me salva de vários apertos.
Não demora muito para, depois do jantar – que estava divino e foi bem
divertido –, Lars expulsá-los, dizendo que eu precisava descansar.
Só que antes disso, tenho algumas coisas a conversar com esse feitor de
escravos, que pensa que pode mandar e desmandar em mim, sem falar que
acha que não me deve satisfação do que faz.
— Precisamos conversar — digo, cruzando os braços, assim que
ficamos a sós.
Ele ergue uma sobrancelha, mantendo a expressão impassível. — Sobre
o quê, exatamente?
Respiro fundo, tentando organizar meus pensamentos. — Sobre essa sua
mania de fazer as coisas sem falar comigo.
— Vamos conversar. No quarto — diz e vira-se, caminhando em direção
ao nosso quarto. — Quero você na cama, descansando.
Vê-lo repetir a mesma atitude sem reparar o que está fazendo, fecha
minha garganta e traz lágrimas aos meus olhos.
Talvez não seja culpa dele me fazer chorar só por achar que vou me
submeter às suas vontades, sem pensar, mas não tive uma adolescência
normal.
Droga. A quem estou enganando? Não tive uma vida normal até hoje.
Qual criança é enviada para um internato, tão pequena que perde o
contato com a mãe definitivamente, a ponto de mal se lembrar dela, e com
quase todo o resto da família? E depois quantas são abusadas por aqueles
que deveriam cuidar delas?
Muitas, infelizmente, eu sei, mas isso não deveria ser assim.
Talvez eu só esteja aqui hoje porque encontrei as meninas e, mais tarde,
Frau Meyer, a professora de teatro, que percebendo meu quase pavor de ser
notada, resolveu me ajudar a superá-lo, sem saber que Madre Jutta ia ao
meu quarto à noite, há anos, e deitava-se comigo. Às vezes, só para dormir,
mas outras vezes…
E tudo começou exatamente devido a uma arritmia. Quando eu tinha
nove anos, a Madre foi designada para dormir no meu quarto, já que antes
de se ordenar, tinha sido enfermeira. Depois de uns meses, dormir no meu
quarto passou a significar dormir na minha cama e não demorou para
avançar para carícias mais íntimas.
Ainda me lembro a primeira vez que vomitei e ela me puniu, com
cinquenta chicotadas, por ser ingrata e não agradecer o carinho e amor que
ela me dava. Não foi a última vez.
Muitas vezes, o castigo me incapacitava de ir à aula no dia seguinte.
O que levou Fräu Meyer ao meu quarto um dia de manhã – o que
obrigou a freira a interromper o castigo –, com um pedido para que eu
interpretasse para a peça de final de ano da escola, Anna Karenina, de Liev
Tolstoy, personagem com características totalmente opostas às minhas –
ousadas, confiantes e até irreverentes – já que nenhuma das meninas queria
ser vista por seus pais na pele de uma adúltera.
Ela sabia que meu pai não estaria na peça.
Não posso deixar Lars, com toda a boa intenção de me proteger que ele
tenha, desfazer anos de uma terapia baseada em expressão criativa,
autoconfiança e liberdade emocional para fortalecer minha autoestima e me
ensinar a me desconectar do controle de Madre Jutta.
Seis meses depois da apresentação da peça, passei a dormir com as três
mosqueteiras e nos tornamos inseparáveis. A freira não tinha mais desculpa
para ficar comigo, porque minhas arritmias tinham desaparecido.
Minhas arritmias tinham desaparecido…
Essa epifania e, porque quero que meu casamento com Lars seja
saudável, sento-me no sofá, cruzo as pernas e digo: — Não.
Ele se volta lentamente para mim, como se não pudesse conceber minha
negativa.
— Não? — Franze a testa. — Não o quê?
— Não quero conversar no quarto. Um relacionamento saudável não
passa pela aceitação passiva das vontades alheias.
As sobrancelhas sobem e ele retorna para o ambiente que é tão
simbólico deste momento.
— Vontades alheias?
Sim, porque tudo o que passei me fazia distorcer a ideia de amor e
cuidado e hoje entendo que não preciso merecer o amor através do
sacrifício pessoal.
Pode parecer pouco e pode parecer birra não querer conversar no
quarto, mas a cada vez que eu cedo à ideia de que meus desejos não são
importantes, eu me desrespeito.
As minhas necessidades são tão importantes quanto as dos outros,
mesmo que inconscientemente na minha estratégia interna para evitar
violência ou punição, eu tenda a passar o projeto dos outros à frente dos
meus próprios, submetendo-me ou sendo complacente para evitar
confrontos ou desagrados.
Com toda a manipulação de Madre Jutta e do meu pai, minha maneira
de olhar um relacionamento é distorcido, sem dúvida. As cicatrizes
emocionais são muito mais profundas que as das minhas costas. Não há
desculpa para um adulto, particularmente alguém em uma posição de
confiança, abusar dessa posição e tirar vantagem de uma criança. Abuso
leva a tantas perdas emocionais que se eu não tivesse encontrado Fräu
Meyer, não estaria aqui.
Longas conversas com ela e várias leituras direcionadas me ajudaram a
entender que eu poderia ser uma vítima ou uma sobrevivente. Foi ela quem
me ajudou a iniciar uma discreta terapia com outra professora, o que abriu
mais ainda meus olhos.
Aponto para o sofá do outro lado da mesa de centro e digo: — Sente-se.
Bem longe. Para que eu não perca o foco. Porque este homem é
perigoso para o meu raciocínio e a minha sanidade.
— Sim, senhora.
Entre divertido, debochado e irritado, ele sorri e obedece.
Não deveria ser difícil conversar com ele, até porque ele não se recusa a
isso, mas meus pensamentos, tão ordenados antes, se embolam e me
confundem.
— O que eu fiz de errado? — pergunta.
— Errados, no plural — digo. — Podemos começar pelo final: você
simplesmente decidiu que eu precisava de repouso e que deveríamos
conversar no quarto, sem sequer me perguntar o que eu queria.
Ele pisca. — Só isso? Mas não fui eu que decidi, são ordens médicas.
— Lars… — Suspiro. — Você invadiu meu quarto, arrombou meu
cofre, pegou meu celular e computador e entregou para seu irmão fazer uma
devassa.
— Você preferiria estar na casa do seu pai nesse exato momento? —
pergunta entredentes. — Ou gostaria que eu tivesse mandado uma
mensagem, áudio ou e-mail informando todas as medidas que eu ia tomar
para te salvar daquela situação criminosa que estavam te mantendo? Talvez
você preferisse que nem Tyr, nem eu tivéssemos interferido quando…
Ele estanca no meio da frase e desvia o olhar. Levanta-se do sofá, vai
até a parede de vidro e fica olhando para o jardim.
O sol já começou a se por e o horizonte está tingido com rosas,
abóboras e laranjas, no espetáculo diário da natureza que duvido que ele
esteja vendo.
— Quando Jamal me agarrou à força? — pergunto para as costas dele,
completando o que ele engoliu. — Me beijou, apalpou e quase… — Engulo
em seco, mas vocalizo o restante da cena que iria acontecer: — Quase
estuprou meu ânus, com a ciência e concordância do meu pai?
Os ombros se tensionam, os punhos se fecham, como se lembrar da
cena o impelisse à violência.
— Meu instinto foi de protegê-la. Se agi sem consultá-la, foi porque
estava preocupado.
Passa a mão pelo cabelo e volta. Desta vez, senta-se ao meu lado e me
encara.
A intensidade dos azuis me consome e me desarma.
É uma expressão nascida de dor forjada no fogo do inferno. As chamas
parecem destruí-lo de dentro para fora. É o olhar tempestuoso, de desejo
não correspondido, de vontade não compreendida.
Ele segura as minhas mãos nas dele.
— Vasilisa… — começa em tom rouco e precisa limpar a garganta para
continuar: — Fiz o que foi necessário. Não me arrependo, faria de novo, e
não vou me desculpar por isso.
Como na primeira vez que nossos olhares se cruzaram, fico hipnotizada
por estes olhos tão expressivos, cativa do seu sofrimento agudo tão aparente
e desta fortaleza de ferro fundido que o segura.
— Infelizmente, sei melhor que ninguém que foi necessário, mas
poderia ter me informado depois. Não sou uma criança, muito menos
incapaz.
Seus olhos escurecem para um tom de azul lindo, onde um redemoinho
que parece querer me tragar. Mas são manchinhas verdes que ousam
macular esse céu turbulento, como se fossem fontes secretas de força, as
faíscas que me enraízam.
E talvez a ele também.
— Tem razão. — Ele suspira, passa a mão pelos cabelos de novo, e
depois assente novamente: — Tem toda razão.
Foi mais fácil que pensei.
— Tenho?
Ele hesita por um momento, mas depois diz: — Estou habituado a dar
ordens e vê-las obedecidas sem questionamentos. Gosto de controlar tudo e
nunca precisei me justificar para ninguém. Vou me esforçar para ser mais…
aberto.
Sorrio. — Isso é um começo.
— Aproveitando… — Ele enfia a mão no bolso interno do paletó e tira
de lá uma pequena caixa de couro azul-marinho. — Tenho algo para você.
Abre, mostrando um diamante quadrado rosa, deslumbrante, ladeado
por dois triângulos perfeitos, a metade do tamanho do outro, o dobro da
delicadeza e beleza.
— Achei que você ia gostar de algo assim, um pouco menor e mais
delicado, mas…
— É lindo, Lars. Perfeito.
Ele desliza o anel no meu dedo anelar. A joia brilha sob a luz suave da
sala e não sei porquê me lembra da minha mãe.
Meus olhos se enchem de lágrimas.
Jogo meus braços à volta do seu pescoço e o beijo e ele corresponde, me
puxando para o seu colo. Suas mãos me seguram e ele me beija com tanta
força que fico tonta. Ele é quase bruto, roubando meu controle e minha
razão com um beijo que carece de gentileza e tem tanto fogo que quase
esquecemos das ordens médicas.
Suspiro quando nossas bocas se descolam e ele me aperta forte contra
seu peito.
— Fiquei apavorado hoje à tarde. Você tem ideia de quanto tempo ficou
fora do ar?
— Foi o susto…
Ele segura meu queixo e levanta meu rosto para o dele. — Não quero
sustos como aquele ocorrendo de novo. Nunca mais. Vou cuidar de você.
Encosto a cabeça em seu ombro, sentindo o ritmo constante do seu
coração debaixo da minha mão, e suspiro. — Se você pedir direitinho, eu
penso se deixo você cuidar de mim.
Uma risada escapa do peito dele e ele beija o topo da minha cabeça. —
Meu apego pelo controle não se desfez em apenas uma conversa, mocinha,
e você é muito importante para eu deixá-la a solta. Você vai ter que aturar
minha obsessão e neurose por um bom tempo.
Posso fazer isso.
Este homem é, contra todas minhas expectativas, uma estranha mistura
de agressividade e gentileza; crueldade e sensibilidade; potência e
vulnerabilidade. Um quebra-cabeça com um número infinito de peças que
nunca vou terminar de fazer.
Acho que ele nunca deixará de me surpreender.
— Precisamos falar sobre a cerimônia — digo depois de um momento
de um silêncio confortável. — Gostaria que fosse algo muito simples e
pequeno e…
— Podemos fazer isso na cama? — interrompe ele. — Descansando?
Eu escolho minhas batalhas sabiamente e essa não é uma que eu preciso
ganhar.
Sorrio. — Podemos.
Desde as quatro e meia da manhã, os passarinhos cantam do lado de fora da
janela do quarto. Anunciam o dia que amanhece ensolarado, sem a menor
consideração com a ansiedade que me faz levantar da cama, que parece fria
e vazia demais sem Vasilisa, e descer para a academia.
Começo pela esteira, com dez minutos a doze quilômetros por hora.
Aumento a velocidade até que estou correndo, como se o diabo estivesse
me perseguindo. Ou devo dizer: a Diaba?
Meu coração martela mais rápido no peito ao pensar que mais algumas
horas estarei esperando por Vasilisa no altar. As loucas decidiram que a
cerimônia será no Templo de Afrodite, localizado no meio do lago nos
jardins de trás do Palácio Frostholm, e a festa no Pavilhão Italiano.
Porque depois de algumas conversas – e discussões acaloradas –,
finalmente conseguimos nos entender e acordar que o casamento seria bem
mínimo, principalmente para os padrões de um príncipe de Vinterland.
Se o de Tyr já foi pequeno com quatrocentas pessoas, o meu com
duzentos convidados é praticamente um mini-wedding. Não conseguimos
que fosse em quinze dias. Vasilisa pediu dois meses e como ela estava
morando comigo, não me importei.
Estou pingando de suor quando uma hora depois Tyr chega e saio da
esteira.
Tomo uma surra no ringue – leve, afinal tenho que estar inteiro para a
noiva mais tarde –, porque minha mente está nela.
De todas as mulheres que eu podia ter escolhido, fui pegar a loira mais
linda e etérea, o que disfarçou bem o temperamento determinado. Isso me
deixa completamente apaixonado.
Sorrio e Tyr desfere um chute baixo, uma rasteira, tirando meu
equilíbrio e me jogando no chão.
— Você está pensando nela — diz ele, estendendo a mão para me ajudar
a me levantar.
— Você não estaria, se tivessem te separado da doidinha por uma
semana?
Ele resmunga e me puxa.
Desde a semana passada, fui expulso da Månestrålens Fjordresidens e
enviado para o meu antigo quarto no Palácio Frostholm.
Porque, segundo as meninas, o noivo tem que sentir saudades da noiva.
E eu estou morrendo de saudades de enterrar a língua na bocetinha rosada e
doce da minha princesa loira.
Do ringue, vamos para a piscina e vejo que estão dispondo as cadeiras
em semicírculo na beirada do espelho d’água, alinhadas para cada
convidado ter uma visão perfeita da cerimônia.
Nado por meia hora e quando saio, tem centenas de pessoas arrumando
os arranjos de flores brancas e verdes e enfeitando o templo com algo que
se parece com nuvens delicadas em árvores. Sei que são florzinhas
minúsculas entremeadas com folhagem presas em uma tela de arame quase
transparente porque vi a montagem ontem quando fui escolher o buquê,
como manda a tradição vinterlandesa.
Não foi difícil: Pecadoras Magníficas em cascata amarradas com fita de
seda verde.
— Vai ficar lindo — diz Tyr.
— Sim, vai — concordo, observando a movimentação. — Elas são
malucas, mas têm um bom gosto inato.
As árvores do bosque ao fundo e o lago acrescentam uma tranquilidade
ao ambiente, como se o lugar e a natureza estivessem em sintonia conosco.
Ou quase, porque ainda estou preocupado com a saúde de Vasilisa e
recentemente algumas coisas estranhas vêm acontecendo no meu
ministério.
— Tyr, quero que você fique de olho nos meus funcionários enquanto
eu estiver de lua-de-mel — peço. — Notei que alguns jornalistas estão
sabendo, com antecedência, de notícias que deveriam ser secretas. Isso me
causou alguns problemas sérios essa semana passada, especialmente numa
licitação que teve que ser cancelada por vazamento de informações
confidenciais.
Ele franze a testa. — Isso é grave. Você tem alguma desconfiança?
— Nenhuma. Conversei com Ingá e com meus assessores mais
chegados, mas não temos ideia de quem pode ser.
— Talvez seja alguém de dentro, alguém que tem acesso direto às
informações. Alguém dentro do seu círculo mais íntimo pode estar
recebendo para isso. Checou as movimentações bancárias?
— Já, nada estranho nessa área — informo. — Inclusive pedi ajuda ao
meu colega na Interpol e não tivemos nada estranho vindo de Vinterland
recentemente.
Ele pega uma toalha e enrola no corpo, ainda pensativo. Não interrompo
sua linha de pensamento porque sei como Tyr funciona.
— Ou então… — Ele levanta os olhos e me encara. — Pode ser um
hacker muito bom. Precisamos rastrear todos os acessos aos sistemas,
verificar logs, e talvez até fazer uma auditoria completa. Segunda-feira, sem
falta, mando o Grupo do Subsolo começar uma conferência dos protocolos
de segurança. Precisamos ser cautelosos.
— Exatamente — assinto. — Preciso que investigue discretamente. Não
quero alarmar ninguém ainda.
— Não se preocupe — diz ele, firme. — Vou pegar o rato que está
fazendo ninho na sua casa, antes que te cause mais problemas.
Sinto um alívio imediato, porque com Tyr as coisas são rápidas e
eficientes e a equipe de especialistas dele pode resolver qualquer problema,
sendo que esse grupo é super-secreto, composto de apenas cinco pessoas, e
lida com a tecnologia mais avançada do mundo.
— Ótimo. Vamos nos vestir e tomar café da manhã?
— Vamos. — Ele verifica o relógio. — Já está quase na hora. Daqui a
pouco, teremos mais uma adição para a família. Pelo menos, essa não é tão
doidinha quanto a Harpia dos Infernos.
Ainda bem, porque igual à esposa dele eu não aguentaria. Mas também
só Tatyana para colocar e manter Tyr na linha.
As próximas horas passam voando e quando me dou conta, meu reflexo
no espelho mostra um homem impecavelmente vestido, no fardão de gala
da Guarda Montada de Vinterland.
Sinto-me estranho, como se estivesse usando uma armadura, mas, ao
mesmo tempo, é simbólico e representa um compromisso de um homem
que ama e que está pronto para proteger o que é seu.
Amo.
Amo mesmo, com paixão e entrega, com todo o meu coração e alma,
sem medo de mostrar minha vulnerabilidade ou de ser ferido, porque tenho
certeza que ela não vai fazer isso.
O bispo tentou por tudo convencê-la a fazer a cerimônia religiosa na
capela, mas só depois de muito convencimento, ela aceitou que ele fizesse
uma benção ontem, apenas porque a Família Real de Vinterland é obrigada
a se casar na igreja. Uma dessas baboseiras de antigamente.
Não descobri exatamente o que aconteceu no internato, mas percebi que
Vasilisa é cética em relação à religião – e, segundo soube por Tyr, tem
horror a uma determinada freira, da qual já tenho o nome anotado.
No final, o importante, para mim, é unir minha vida à dela.
Desço para o gramado uns quinze minutos antes da hora marcada para a
cerimônia, porque Vasilisa avisou que não ia atrasar. É o tempo suficiente
para escutar alguns Lordes Conselheiros sem noção virem me parabenizar.
— Uma excelente escolha, Alteza — diz um, logo seguido de outro: —
Uma descendente dos Romanov. A dinastia de Vinterland está em boas
mãos.
— Finalmente alguém à nossa altura — fala mais um.
Fico pensando se devo lembrá-los que a Rainha de Vinterland e a
Princesa do Ártico, esposa do príncipe-herdeiro eram plebeias, mas
mantenho-me calado, agradeço e vou pegar um shot de Acquavit no bar que
está servindo bebidas para os convidados.
— Nervoso? — pergunta Leif quando me vê virar o copinho de uma
vez.
— Ansioso — confesso e mudo de assunto quando vejo a noiva dele,
deslumbrante em um vestido verde-água, vir em nossa direção: — E você?
Animado para o seu?
Ele faz uma careta. — Podemos falar de outra coisa?
Rio e pergunto: — O que houve?
— Não sei, mas a menina tímida que quase não falava mostrou as garras
e são afiadas.
— Não acredito, ela não pode ser tão ruim assim.
— Não, só pior — resmunga bem baixinho porque ela está quase em
cima de nós.
— Bom dia, Lars — diz para mim, sorrindo, ignorando totalmente o
noivo. — Vasilisa já vem e está ab-so-lu-ta-men-te deslumbrante.
— Não tenho dúvidas disso. — Sorrio de volta. — Você também está
deslumbrante.
É verdade. Parece que a briga entre os dois fez a mocinha tímida
desabrochar.
— Obrigada. Pena que alguns príncipes de Vinterland não sejam tão
educados e gentis como você — diz.
Leif suspira alto.
Só então ela dá uma breve olhadela para ele.
— Nossos lugares são lá na frente, Casanova — informa a ele e, sem
esperar, se vira e se dirige para o lugar.
— Bom dia para você também, Bruxa — resmunga ele, mas a segue
igual cachorro atrás de um pedaço suculento de carne.
Fico pasmo por um segundo antes de cair na gargalhada. Ainda não
havia ouvido uma interação entre eles.
E, supostamente, Catarina era a mais tímida das quatro amigas.
— O que é tão engraçado? — pergunta Tyr chegando com Tatyana.
— Não tenho a menor ideia — digo. — Mas você sabia que Leif e
Catarina estão às turras e o apelido dele é Casanova?
— E Don Juan, Galinhão, Galanteador de Quinta, Cafajeste e mais
alguns outros não muito apropriados para os ouvidos do público atual —
conta Tatyana.
— Pelos deuses! — Rio de novo. — Mas o que houve?
— Alguém mandou para ela a lista de mulheres com quem ele
supostamente saiu enquanto ela estava na Rússia preparando o enxoval —
diz Tyr.
Que merda. Meu sorriso morre. — Isso não tem a menor graça.
Tatyana dá um sorriso sem dentes. — Ela também acha. Vamos,
Demônio, Vasilisa está pronta. Não chore, cunhado, é feio homem que se
desfaz como manteiga derretida. Sem falar que fica horrível nas fotos.
Não sei se ela está brincando ou não, mas estou pouco me importando.
Não choro há muitos anos e não pretendo chorar hoje.
A orquestra sinaliza a hora e Thorvald e Yasmin abrem o cortejo, como
manda a tradição.
Meus passos são firmes na passarela de madeira e o sorriso nos meus
lábios não falha e até aumenta quando passo pela mãe e pai de Tatyana em
direção ao templo no centro do lago.
Obviamente, Jamal, assim como os outros meios-irmãos não foram
convidados. Assim como Hardrada e Melissa, os quais são personas non-
gratas em Vinterland. Afinal, depois de tudo o que fizeram, não merecem
estar presentes em um momento tão importante para nós.
A indenização à Vasilisa, bem como a doação prometida pelo Sheik
foram feitas.
A Diaba cogitou em não aceitar, mas não tive pudor nenhum em
convencê-la. Afinal, como dizia o Imperador romano Vespasiano, pecunia
non olet i, ou seja, o dinheiro não tem cheiro, e com a situação dos cofres de
Vinterland os milhões de coroas serão muito bem aproveitados.
A próxima música traz Sven, Soren e Sten, carregando tantos balões
brancos que acho que vão sair voando – ideia das quatro Mosqueteiras e
deles.
Há um breve silêncio, depois o farfalhar das roupas dos convidados se
levantando e então o ensurdecedor tambor do meu coração palpitando nos
meus ouvidos, porque no final da passarela aparece Vasilisa, trazida pelo
Grão-Duque Vladimir Romanov, seu meio-irmão russo, um homem de uns
trinta e cinco anos, sério e fechado.
Em um vestido que deixa os ombros de fora e é em parte clássico, em
parte abusado com transparências, é a perfeita sílfide. Dizer que ela está
linda, deslumbrante ou qualquer outro adjetivo é bobagem porque o que
sinto por essa criatura ultrapassa qualquer sentimento físico.
Quando nossos olhos se encontram, o sentimento que me liga a ela é
ainda mais forte do que o da primeira vez e estou mais certo do passo que
estou dando.
Sem os remédios, Vasilisa se transformou e abriu as asas. Deslanchou
na faculdade e sorri com mais frequência. Tem nela uma nova vitalidade.
Mas, ao mesmo tempo, ainda hesita, evita tomar certas decisões
importantes, como se tivesse medo de ser livre demais.
Avanço e cumprimento o Grão-Duque Romanov: — Vossa Graça,
cuidarei bem dela.
— Desejo que vocês dois sejam muito felizes — cumprimenta ele de
volta.
Vira-se para a irmã e a beija. — Mamãe estaria orgulhosa de você hoje,
Diabinha.
Descobrimos que era assim que a mãe a chamava quando ela era
pequenininha. Coincidência, não é?
Mas antes que ele vire o véu e me entregue Vasilisa coberta, eu me
adianto e a tomo dele.
Porque é isso que eu faço: tomo-a para mim – porque ela é minha,
mesmo – e não deixo que ninguém a cubra, porque quero mostrar ao mundo
que tenho orgulho dela e que ela não precisa mostrar respeito por mim ii.
— Prometo fazer você a mulher mais feliz do mundo — digo em seu
ouvido.
— Eu sei que você vai tentar — é a resposta que ela me dá.
Soou estranho? Mas vem acompanhada de um sorriso radiante.
É porque ainda estamos nos acertando.
O controle que exerço sobre tudo ao meu redor é uma armadura que
construí para me proteger dos traumas que carrego. Porém, com ela, minha
obsessão se intensificou. O passado dela é um espelho distorcido do meu;
cada ferida dela traz à tona as minhas próprias, e o efeito é um constante
embate entre nós.
A cada riso que ela solta, a cada olhar que me lança, eu me apaixono
mais e mais controlador me torno. Sei disso e tenho tentado me controlar,
numa batalha interminável.
Ela é como uma chama que arde diante de mim, mas que nunca posso
segurar completamente. Essa inviabilidade é essa barreira entre nós, que só
me faz querer lutar mais por ela, numa batalha interminável.
Tento me aproximar emocionalmente, mas parece que um muro
invisível nos separa. Apesar da química intensa que temos, algo me
bloqueia. Eu mesmo? Ou é ela?
Mesmo assim, nesses dois meses, conseguimos fazer com que nossa
vida entrasse em uma rotina gostosa, apesar das conversas e eventuais
discussões, quase perfeita demais para ser verdade.
A cerimônia é curta e presidida por Thorvald, como autoridade máxima
de Vinterland.
— Queridos familiares, amigos e dignitários presentes — a voz dele
ressoa pelo lago e jardim. — Hoje é um dia de grande alegria para
Vinterland. Reunimo-nos para celebrar a união de meu irmão, o Príncipe
Lars Haraldson, da Casa de Gulbrandr, e da encantadora Vasilisa, da Casa
Romanov.
Ele faz uma pausa, olhando diretamente para Vasilisa.
— Vasilisa, desde que chegou ao nosso reino, trouxe consigo graça,
inteligência e uma luz que iluminou não apenas a vida de Lars, mas de
todos nós que tivemos o privilégio de conhecê-la. Sua linhagem e origem
são nobres, mas é seu coração e caráter que realmente nos cativam.
Voltando-se para os convidados, Thorvald continua: — Esta união
simboliza não apenas o amor entre duas pessoas, mas também a de famílias,
culturas e esperanças para o futuro de nosso reino. Lars recebe Vasilisa hoje
como sua esposa, mas ela também é acolhida por todos nós como Princesa
de Vinterland.
Ele retorna o olhar para nós, com um sorriso e nos faz as perguntas de
praxe e damos as respostas esperadas, já que combinamos que não faríamos
discursos e promessas públicas, além de repetir os votos normais.
Trocamos as alianças e ele declara: — Pelo poder a mim concedido
como rei, é com grande honra, que os declaro oficialmente casados.
Vasilisa, seja bem-vinda à nossa família e ao reino de Vinterland. Que união
de vocês seja abençoada com amor, felicidade e prosperidade.
Os meninos soltam os balões brancos que sobem no ar.
— Lars, você já pode beijar a noiva.
Sorrio, voltando-me para Vasilisa. Inclino-me e puxo-a para mim.
— Eu te amo, minha princesa — digo baixinho em seus lábios.
Seus olhos verdes se arregalam com a declaração. — Lars!
Sorrio e a beijo apaixonadamente.
Os aplausos soam pelo jardim, nos alcançam no templo, e a Guarda
Montada da qual faço parte, que está em formação no jardim, começam os
disparos da salva de tiros.
Vasilisa estremece e arfa nos meus braços com o susto.
Então, sinto-a interromper o beijo e descer a mão do meu pescoço.
Firmo meu braço entorno da sua cintura e levanto a cabeça.
— O que foi?
Ela olha para baixo, para a área perto das costelas, onde uma mancha
carmesim começa a se espalhar pela renda delicada e até então branca de
seu vestido.
— Vasilisa! — exclamo, horrorizado.
Seu olhar assustado se volta para o meu e, sem dar uma palavra ou
soltar um gemido, ela fecha os olhos e vacila contra o meu peito. Seguro-a
antes que caia.
Tyr aparece ao meu lado no mesmo minuto, seus olhos percorrendo os
arredores com foco mortal.
— Saia pelo outro lado e leve-a para a clínica agora! — ordena Tyr —
Eu cuido do resto.
Levanto Vasilisa em meus braços, seu rosto branco feito cera, enquanto
guarda-costas correm para formar uma barreira protetora ao nosso redor.
— Por aqui, Alteza — direciona um deles.
Vejo saindo à minha frente Thorvald com Yasmin no colo – ela está com
oito meses de gravidez – e sento-me no carrinho de golfe e Leif senta-se ao
meu lado. Atrás vem Magnus e Catarina e Tatyana com meus sobrinhos,
enquanto convidados gritam e o caos irrompe ao nosso redor.
— Como ela está? — pergunta Leif, colocando os dedos no pescoço
dela para pegar a pulsação.
— Sangrando — digo entredentes, pressionando minha mão sobre o
local.
O sangue quente e vermelho-vivo escorre entre meus dedos em
contraste com seu rosto pálido.
— Não para, Leif, não para!Ele tira o casaco e pressiona junto comigo.
Os olhos verdes escuros se abrem. — Lars?
O medo e a raiva apertam meu peito como um punho de ferro. Não
posso perdê-la, não agora.
— Vai ficar tudo bem — juro, sem saber se vou poder cumprir a
promessa.
Enquanto o carrinho acelera, cada segundo parece uma eternidade.
Meu olhar se volta para o templo. Quem ousou fazer isso?
— Doí — geme ela, quando as rodas passam pela entrada do palácio e
entramos no túnel do subsolo, em direção à clínica.
— Estamos chegando — diz Leif, segurando a mão dela. — Aguente
firme.
Ele me fita e posso ver raiva em seus olhos também.
Quem seria capaz de tamanha crueldade?
Quando chegamos à clínica, a equipe médica assume o controle e fico
ali impotente, de punhos cerrados, enquanto a levam.
— Vai com ela — peço a Leif.
— Volto assim que puder para dar notícias — diz.
Seguro seu ombro. — Não, fica com ela — digo a ele.
Ele me encara um segundo e entende. — Tudo bem.
Porque não consigo ficar parado vendo os olhos verdes arregalados e
cheios de medo, grudados em mim.
Porque mais importante que minha paz e calma, é a dela.
O latejar na minha cabeça e o enjoo fazem com que eu não queira abrir os
olhos, nem acordar direito.
Será que bebi demais? Será que dei vexame? Logo no dia do meu
casamento?
Minha mente tenta juntar as peças.
A memória vem em flashes.
Lembro-me da excitação das meninas com os pequenos arranjos,
acompanhados de mensagens sensuais que Lars enviou de hora em hora.
Os nossos planos para descobrir se o e-mail anônimo enviado para
Catarina sobre as escapadas de Leif eram reais ou não, e se fossem como
Catarina ia torturá-lo.
O buquê de Pecadoras Magníficas chegando.
Tatyana, Catarina e Yasmin montando os broches e colares de diamantes
rosa da minha mãe no meu vestido, como se fossem… sei lá, alfinetes.
Porque o meu meio-irmão, o Grão-Duque Vladimir Romanov, e meu
tio, o Príncipe Ivan Romanov, trouxeram as joias da minha mãe e o incrível
é que entre elas tinha um conjunto de tiara, brincos e dois broches em
formato de flor, de tamanhos diferentes, e colares, que combinavam
perfeitamente com o anel que Lars me deu.
Não ia usar tudo junto, porque achei demais, mas as doidinhas fizeram
uma montagem na cintura do vestido Valentino, que ficou perfeito e ainda
contrabalançou a leveza da renda e point d’esprit. Tirou um pouco da
atenção da transparência da saia e do forro nude abusado que pedi,
chamando atenção para os diamantes rosa dos broches e colares.
O modelo foi inspirado no da minha mãe quando se casou com o
primeiro marido, com um corte clássico com o decote de ombro a ombro,
mangas longas e saia ligeiramente rodada.
Ficou perfeito para um casamento no jardim.
Vladimir e eu descemos as escadarias do Palácio Frostholm, cruzamos o
jardim e a passarela de madeira. A brisa levantou meu véu e fez a saia leve
rodopiar ao meu redor.
Estava tão feliz que senti vontade de abrir os braços e voar naquele
momento.
Lars esperava por mim no templo grego, vestindo um uniforme com um
casaco comprido abaixo do quadril, num tom tão fechado e austero, que as
cordas grossas douradas e as insígnias que brilhavam no peito e o enorme
sorriso no rosto tornavam-no imponente e elegante.
Só que quando ele disse que me amava e me beijou… tomei um susto
tão grande que até doeu!
E depois disso…
Não me lembro de mais nada. Apesar que o calor dos seus lábios ainda
parece estar presente, porque meu corpo está quente, fervendo.
Franzo a testa, forçando a memória…
Acho que foi o choque. Não esperava a declaração de amor.
Não queria um homem que me amasse, droga!
Preciso me centrar, acalmar e lembrar como e quando foi que isso
aconteceu. Mas quando vou respirar fundo, uma dor aguda na minha lateral
direita faz com que eu arqueje. Tento me levantar, o que torna a dor mais
intensa ainda.
Imagens do tecido fininho sendo tingido de vermelho e o som de tiros
me tomam de supetão.
Levei um… tiro?
Abro os olhos com dificuldade, porque parecem estar grudados, e
quando tento me empurrar de novo na cama, a mão grande e quente de Lars
me segura.
— Calma, calma — diz ele, baixinho. — Está tudo bem agora.
— Ou quase — corrige Leif do outro lado. — Mas vai ficar assim que
essa febrinha passar.
Sim, levei um tiro.
— Sede…
Lars olha para Leif, que sobe a cabeceira da cama, e depois pega um
copinho com um canudo.
— Só um pouquinho para não enjoar com a anestesia — diz ele. — De
um a dez, como está a dor?
— Se eu não me mexo e não respiro, sete… — murmuro, rouca. —
Senão, onze.
Ele faz uma careta e checa o relógio. — Vou pedir à enfermeira para
administrar mais uma dose de analgésico.
— O que aconteceu?
— Eles usaram uma dose menor de anestesia porque ainda não tem
certeza do seu problema cardíaco — Lars suspira. — Precisamos resolver
essa pendência, Vasya.
— Não… — Limpo a garganta. — Não é isso que estou perguntando.
E ele sabe, porque desvia o olhar. — Ainda não sabemos direito.
— Lars… — Conheço esse jeito dele. — O que foi que combinamos?
Ele abaixa a grade da cama e se senta no colchão com cuidado,
segurando minha mão.
— Não estou mentindo.
— Só está omitindo — digo.
Ele fecha os olhos, respira fundo e finalmente diz: — Não temos
suspeitos, nem nada concreto, além da bala que te atingiu. Tyr está à caça
dos culpados desde ontem…
— On-ontem? — Não gosto de escutar o tremor na minha voz, nem de
sentir as lágrimas quentes que escorrem pelo meu rosto. — Nós nos
casamos ontem?
— Ontem. — Outro suspiro e ele passa os braços ao meu redor com
tanto cuidado que parece que vou quebrar. — Não chora, Pequena, eles não
conseguiram o que quer que quisessem fazer.
— Que era? — pergunto entre soluços. — Me matar? Porque estragar o
dia do meu casamento conseguiram.
— Não chora, meu amor, não chora — pede, beijando meus cabelos.
— Não me chama de meu amor!
Tento empurrá-lo, mas quanto mais faço força, mais ele me aperta
contra o peito e acabo desistindo porque estou fraca e também seu peito
largo e braços fortes são bons de se aninhar.
— Eles não esperavam que você se assustasse com a minha declaração
— sussurra no meu ouvido, as mãos me levantando da cama com tanto
cuidado que parece que eu vou quebrar. — Mas o que te salvou mesmo foi
o broche da sua mãe. A bala resvalou no brilhante e entrou torta. Não
atingiu nenhum órgão vital. Graças aos deuses, o médico estancou a
hemorragia rápido e você já está fora de perigo.
Assinto e me aconchego nele, porque sem ele, me sinto completamente
à deriva. Como alguém pode ter tentado me matar no dia do meu
casamento?
— Quem teria motivos para fazer isso? — pergunto, mais para mim
mesma do que para ele.
Os braços dele me puxam mais para perto. — Não se preocupe, Tyr vai
descobrir e quando soubermos…
Ele não termina, mas não precisa. Yasmin contou o que Tyr fez uma
vez, e prefiro não pensar nisso agora.
Batem na porta e ele me coloca de volta nos travesseiros. — Entre.
É a enfermeira, com o analgésico, conforme prometeu Leif. Ela me
cumprimenta, faz alguns procedimentos rápidos e depois sai.
— Quando podemos ir para casa? — pergunto.
— Provavelmente, amanhã à tarde ou depois de amanhã — diz Lars,
aproximando-se de novo. — Dr. Andersen vai passar na hora do almoço.
Seu irmão, seu tio e as meninas estão aí fora. Tanto Yasmin quanto Tatyana
não queriam arredar o pé da sala de espera, apesar de Thorvald e Tyr terem
ameaçado dar uma surra bem dada nas duas se não fossem dormir. Quer vê-
los?
— Claro. — Sorrio, apesar das lágrimas, sentindo uma onda de gratidão
pelas amigas e por esse meio-irmão que surgiu do nada e que parece me
apoiar incondicionalmente.
— Eles conseguiram alguma coisa com as ameaças? — pergunto.
— Só colocá-las para dormir nos antigos quartos deles aqui no palácio
mesmo — diz ele sorrindo também.
Porque como a clínica fica no subsolo do Palácio Frostholm, é só descer
– ou subir, dependendo do referencial – as escadas ou os elevadores.
— Aliás, seu tio e seu irmão se mudaram para cá, também — informa
ele. — A pedido de Tyr. Por questões de segurança.
— Ainda bem que Vidar é experiente, não é? — brinco.
— Amém à fleuma dos mordomos britânicos — fala e me dá um beijo
na testa. — Vou chamar seu irmão e seu tio primeiro.
— Ótimo.
Sorrio.
Mas a verdade é que estou apavorada com o que poderia ter acontecido
e com medo do que poderá acontecer no futuro. E com raiva. Muita raiva.
Alguém tentou tirar minha vida no dia mais feliz da minha vida. O pior
é saber que não vai ficar assim, não vai parar. Quem tentou, vai tentar de
novo.
Lars abre a porta, interrompendo minhas divagações. Meu meio-irmão,
seguido do meu tio, pai de Catarina, o Príncipe Ivan Romanov, entram.
— Diabinha… — a voz de Vladimir sai rouca, carregada de emoção, e
ele se aproxima da cama. — Fiquei tão assustado quando vi o sangue
manchando sua roupa. Não podia acreditar que depois de tantos anos sem
nos ver, iria perdê-la daquele jeito.
Sinto um nó na garganta.
— Não vou deixar de te perturbar ainda por um bom tempo. Você ainda
tem muito a me contar sobre minha… nossa mãe — digo para ele, meus
olhos enchendo de lágrimas novamente.
— Você é muito parecida com ela, Vasya — diz meu tio.
Menos os olhos, porque eles dois tem o mesmo tom de azul dela. Já eu
não sei a quem saí.
Eles se sentam nas cadeiras perto da cama e conversamos por um tempo
até que meu tio sinaliza que já ficaram tempo demais e que, infelizmente,
acabei de passar por uma cirurgia e que devo descansar.
— Gostaria de estreitar nossos laços, Vasya. Hardrada fez de tudo para
nos afastar e eu caí direitinho na conversa dele — diz Vladimir, com raiva
na voz. — Afastei-me até da minha mãe.
— Eu também — assinto, tentando segurar as lágrimas que insistem em
cair, porque as palavras dele me tocam profundamente.
— Vinterland faz fronteira com a Rússia — diz, seus olhos cheios de
sinceridade. — Se sentir saudades, precisar de algo, ou quiser só conversar,
não hesite em me procurar.
— Vlad, em falar em conversar… Meu pai disse uma coisa estranha
na… última vez que o vi. — Minhas palavras saem sussurradas porque
acabei de pensar uma coisa horrível. — Que minha mãe morreu porque ela
o largou.
Não quero acreditar que ele matou minha mãe. Mas por que ele ia dizer
aquilo? E será que ele tentaria me matar? A ideia é absurda, mas não
impossível.
Os olhos do meu irmão se estreitam. — Ele disse isso?
Antes que eu possa responder, Lars interfere: — Já conversei com seu
tio sobre isso, minha princesa, e ele prometeu investigar o ocorrido.
— Sim, vou à fundo nisso, Vasya, não se preocupe. Nunca gostei de
Hardrada e agora tenho todas as razões para desgostar mais ainda. Mas
podemos conversar sobre isso em outro momento — diz o príncipe. —
Tenho certeza de que haverá oportunidades melhores para discutirmos tudo
com calma.
Aquela frase do meu pai foi muito estranha.
— Com certeza — concorda Lars, olhando para os dois. — Acho
melhor chamar as meninas antes que elas ponham fogo na clínica.
Meu tio se aproxima e deposita um beijo suave em minha testa. — O
que você precisar, peça a Catarina para me chamar.
Sorrio, sentindo-me um pouco mais tranquila. — Obrigada.
Eles se despedem e meu irmão me dá um abraço gentil e cuidadoso para
não me machucar, e promete voltar para o casamento de Catarina. Afinal,
como ele mesmo acabou de lembrar, Vinterland faz fronteira com a Rússia.
— Descanse e se recupere logo, Diabinha — diz Vladimir da porta,
lançando um último olhar afetuoso antes de sair.
Lars os acompanha até a porta e volta com as minhas amigas, as faz
colocar as bolsas no armário, tirar os sapatos e pôr umas sapatilhas
especiais.
— Nós acabamos de tomar banho — diz Yasmin, quando ele as
encaminha para o banheiro para lavar as mãos e os rostos.
— Ordens médicas — insiste, fazendo um paredão entre elas e a minha
cama.
Isso é sacanagem e só não rio porque sei que vai doer.
Depois que elas cumprem as ordens médicas ele as deixa chegar perto
de mim, dizendo: — Elas prometeram que não vão te cansar muito.
— Não prometemos nada disso — diz Tatyana, se aboletando no
colchão sem a menor cerimônia, para horror do meu marido. — Ela precisa
de um pouco de animação, isso, sim.
— Ela está brincando, Lars — diz Catarina, enquanto se senta do meu
outro lado.
— Estou nada! Olha como está pálida.
Yasmin ri. — Para de assustar o número três, Taty, ele perdeu uns vinte
anos da vida dele ontem, tadinho.
— Se você quiser ir tomar café, a gente promete não a cansar — diz
Catarina.
A única que não se aventura na cama é Yasmin – acho que por causa da
barriga que está enorme – e senta-se na poltrona larga onde meu tio estava
sentado antes, esticando os pés na cadeira da frente com um suspiro.
— Não tenho tanta certeza assim, cunhada número três — Ele dá um
sorriso para ela e vai se sentar no sofá. — Vou ficar bem aqui.
— Ué, eu não seria a número quatro? E futura, porque ainda não casei
— pergunta Catarina, franzindo a testa. — Leif é o mais novo, certo?
— Resolvi numerar vocês por ordem de casamento — diz ele.
— É para confundir a gente — afirma Tatyana, olhando para ele com
desconfiança. — Isso é alguma tática combinada com o Demônio?
— Não, Harpia. Cada doido com sua mania — implica ele.
— Só o Demônio pode me chamar de Harpia, ô lobo em pele de
cordeiro. — Ela se vira para mim, com a mão na cintura e pergunta: —
Você vai permitir que ele fique aqui escutando nossa conversa?
Sorrio. — É só você começar a falar suas barbaridades que ele vai sair
daqui correndo.
Os olhos dela brilham, mas antes que ela diga alguma coisa, lá do canto
da suíte, ele abaixa a revista que abriu e pensei que estava lendo, e diz: —
Eu não contaria com isso hoje, não.
Um gemido coletivo sai da boca das três.
Não demora muito, Lars expulsa as três do quarto e elas se vão sem
reclamar, porque veem que eu estou cansada.
É uma sensação assustadora de impotência.
— Voltaremos de tarde — dizem da porta.
— Não vou a lugar nenhum — brinco.
— Não vai mesmo — diz ele, fechando a porta e vindo para o meu lado.
— Nem vai receber mais visitas agora de manhã. Acabei de virar a
plaquinha de visitas permitidas. É hora de descansar.
— Deita aqui comigo.
— Eu? — Ele arregala os olhos. — Não acho que seja permitido e
posso te machucar.
— Só um pouquinho… — peço. — A cama é gigante.
Ele acaba deitando, porque a cama é realmente grande. Também com o
tamanho desses cinco irmãos tinham que fazer camas hospitalares tamanho
king-size.
Fecho os olhos e me recosto no peito dele, permitindo que o silêncio
preencha confortavelmente o espaço entre nós.
O sono vem e vai, mas não consigo dormir profundamente de novo
porque agora tem uma sombra na nossa relação que antes não existia: Lars
está apaixonado por mim.
Não. Lars me ama. O que é muito pior.
Obsessão, necessidade de controle, tesão desenfreado e dominação?
Tudo isso eu posso lidar e tentar podar.
Até paixão.
Amor? Não, de maneira nenhuma.
Não é que eu não queira o apego emocional que transforma pessoas
inteligentes em criaturas abestalhadas, infantilizadas, grudentas e… sei lá
todos esses adjetivos não muito elogiosos ou lisonjeiros. Não é isso. Meu
problema com amor é outro, apesar de achar a transformação de um homem
viril em um poeta que faz rimas melosas absolutamente patético. O que
tenho medo é de não conseguir lidar com um coração partido. Sobreviver ao
abuso já foi difícil o suficiente.
Do jeito que a minha natureza é sensível, emocional e intensa, o risco de
me machucar é enorme. E o perigo em potencial que eu corro de me
apaixonar por ele e ele começar a me controlar? E se ele mudar? E se eu me
decepcionar? E se ele partir meu coração?
E se eu partir o dele?
A ideia de passar pela mesma quebra de confiança que passei com
Madre Jutta e com meu pai, novamente, desta vez com um homem, na fase
adulta, é insuportável.
A dor seria ainda maior.
Droga.
Saber que ele se sente assim me assusta. Apavora.
Talvez, se eu soubesse que ele estava apaixonado por mim, não tivesse
aceitado me casar com ele. Apesar de agora ser tarde para lamentar, não é
tarde demais para impedir algo pior de acontecer.
Porque o amor é uma força desconhecida, imprevisível e, acima de
tudo, perigosa.
Muito perigosa.
O ambiente lúgubre da Sala de Conferências que não ajuda a aliviar a
atmosfera tensa e pesada da reunião, mesmo que o sol esteja brilhando lá
fora, mas dada à gravidade dos assuntos com que temos lidado ultimamente
acho que nem se estivéssemos no jardim o ar estaria mais leve.
Os documentos espalhados pela mesa, os gráficos complexos e o mapa
gigante nas telas são claros até demais: os prejuízos causados nesse último
mês pelos vazamentos das informações confidenciais foram substanciais.
— Mas eu achei o esconderijo do rato — diz Tyr ao meu lado.
Estou sentado na segunda cadeira à direita da cabeceira da mesa à frente
de Leif, na configuração tradicional da nossa reunião semanal.
Normalmente, depois da reunião com todos os secretários ficamos só
nós cinco – e eventualmente um ou outro membro da equipe de Tyr – e
discutimos os assuntos sigilosos, como esse.
— É inadmissível que informações tão sensíveis estejam sendo
divulgadas para jornalistas! — Thorvald tamborila os dedos irritadamente
na mesa de madeira antiga. — Estamos falando de contratos bilionários, de
alianças estratégicas e, acima de tudo, da segurança do reino. Precisamos
descobrir quem está vazando essas informações.
— Concordo — respondo, rabiscando no bloco à minha frente, um
hábito que sempre me ajudou a manter a calma, mas que hoje falha
miseravelmente.
Meus olhos percorrem os documentos. Detalhes minuciosos sobre
negociações confidenciais, números exatos, datas e nomes. Alguém está nos
espionando há semanas e semanas.
Ou eu deveria dizer: me espionando.
Essa possibilidade me incomoda profundamente.
— Isso já nos causou prejuízos consideráveis — comento.
— Conforme você me pediu, Lars, revisei todos os protocolos de
segurança e não deixei nenhuma brecha. Implementei medidas mais
rígidas… — diz Tyr, espalhando sobre a mesa os relatórios confidenciais
que o Grupo do Subsolo compilou. — É alguém de dentro, não temos a
menor dúvida.
— Já sabíamos disso.
— Sim, sabíamos, mas não quem.
Um dos integrantes do Grupo do Subsolo, o ex-major do exército, e
também engenheiro, Eirik Lundgren fala: — Reduzimos ao máximo a
superfície de ataque e chegamos à conclusão de que os dados foram
exfiltrados através de um canal de comunicação oculto. — Ele explica
minuciosamente como fizeram para analisar o tráfego de rede e identificar a
assinatura do malware. — Reduzimos ao máximo o número de pessoas com
acesso aos dados mais sensíveis e chegamos à conclusão de que o
vazamento está vindo de um computador específico. Isolamos e
monitoramos cada dispositivo. — Mostra como foi feito e, para o meu
espanto, conclui: — É alguém que acessa o seu computador, príncipe Lars.
E Tyr faz a pergunta: — Quem tem acesso ao seu computador?
— Impossível — digo. — Só pessoas de extrema confiança têm acesso
ao meu computador e todos foram interrogados por você mesmo.
— Exatamente. — Tyr cruza os braços. — Alguém está mentindo.
Sacudo a cabeça, porque a única pessoa que acessa meu computador é
minha secretária direta. Uma senhora de uns cinquenta e poucos anos,
casada, diplomata de carreira, finíssima. Herdei-a do ministro anterior e já
me salvou de grandes problemas. Com presidentes, com primeiros-
ministros, secretários, funcionários, com ex-namoradas, com Vasilisa e até
comigo mesmo.
Conheço-a há anos e confio minha vida a ela.
— Duvido.
— Tenho certeza do que estou dizendo, Lars. É alguém que tem acesso
ao seu computador — insiste ele. — Quem é que tem acesso a ele?
— Ingá — falo finalmente.
— Ingá? — repete Thorvald, levantando as sobrancelhas na testa. —
Mas ela trabalha para você há muito tempo…
— Ela trabalha comigo desde sempre — confirmo. — Você tem certeza,
Tyr?
Ele bate com a caneta na tela do iPad, onde uma linguagem ininteligível
para mim supostamente diz que o vazamento de dados vem do meu próprio
computador.
— Se é só ela que tem a senha, é ela.
Como não digo nada, ele estende a mão.
— Seu computador, por favor — pede.
Sem saída, entrego meu notebook para ele, que o passa à outro dos
integrantes do Grupo do Subsolo, Stella Nordin, que é engenheira de
computação, dando ordens para, , enquanto estamos em reunião, colocar
armadilhas tecnológicas, que vai acionar um tipo de câmera escondida para
filmar quem entra no meu computador.
— Espero que você não veja pornografia com Vasilisa aí — diz ele,
fazendo gracinha para aliviar a tensão.
Dou um sorriso sem dentes para ele e volto à afirmar: — Não é Ingá.
— Você coloca a mão no fogo por ela? — pergunta.
Suspiro e digo: — Depois do que nós fizemos com a minha própria
esposa, não coloco a mão no fogo por mais ninguém.
O canalha do meu irmão ri. — Foi por uma boa causa, Lars.
— Eu sei, mas aprendi uma dura lição — digo, sentindo meus ombros
endurecer.
Até hoje não me conformei em ter vasado aquelas fotos.
— O que me leva a um outro problema: alguma notícia sobre quem
atirou em Vasilisa? Alguma novidade sobre a investigação?
— Infelizmente, nada ainda. — Tyr balança a cabeça negativamente. —
Mas estamos trabalhando incansavelmente para encontrar o responsável.
Um silêncio elétrico paira no ar.
— Não sei o porquê, mas acho que está tudo interligado — diz
Thorvald do seu lugar na cabeceira, tamborilando os dedos novamente. —
E acho que ainda vamos descobrir uma fossa tão cheia de esgoto e monstros
repugnantes que vamos ficar horrorizados.
— Ainda temos o problema da faca e da Égide — lembra a professora
Bergström, a terceira integrante, se referindo à atentados antigos. —
Precisamos eliminar as falsas pistas, reduzir ao máximo as possibilidades
do que é certo, para chegarmos as explicações lógicas, se não vamos ficar
fazendo o que eles querem que é dar voltas em torno do nada.
— E se voltarmos mais ainda ao passado? — sugere o quarto integrante,
o psicólogo Johannes Mal. — Aos atentados dos Reis Rollo e Canuto?
— Acho que temos que ser mais objetivos no momento — digo. — Não
porque não estou preocupado em desvendar a Égide, mas porque
precisamos parar rápido essa hemorragia. Depois, voltamos a investigar
mais fundo.
— É um ponto — concorda.
Tyr dispensa sua equipe e assim que eles saem e terminamos os outros
assuntos de governo, digo: — Preciso de um conselho pessoal.
Meus irmãos me olham com curiosidade.
— O que houve? — pergunta Leif.
— Desde que se recuperou, Vasilisa tem agido de forma estranha,
distante — confesso. — Fechada. Não sei se o que aconteceu trouxe à tona
algum trauma do passado dela, mas sinto que há algo que ela não está me
contando. Como se estivesse guardando algum segredo.
Ela se recuperou até que rápido, fisicamente, mas emocionalmente
parece quase ausente.
— Talvez ela precise de mais tempo — sugere Magnus, o eterno
conciliador. — Passar por algo assim não é fácil.
— Você acha que ela está escondendo alguma coisa? — pergunta Tyr,
franzindo a testa. — Você já tentou conversar com ela sobre isso?
— Não — admito, passando a mão pelos cabelos, e olho para a janela,
perdido em pensamentos. — Ela sofreu um trauma, talvez um semelhante
com o meu quando era mais jovem, e uma vez perguntei o que era, mas ela
se fechou e não quis me contar. E me incomoda não poder ajudá-la.
Porque sei que tem algo que a está atormentando.
— Você acha que foi o tiro que trouxe o trauma à tona? — pergunta
Thorvald, preocupado. — Ou é alguma outra coisa? Talvez ela esteja com
medo que o atentado se repita?
O que é uma possibilidade e fez com que eu ficasse cem por cento mais
neurótico, e redobrasse a segurança, reconheço, mas coloquei a culpa em
Tyr.
— Como vão as coisas na cama? — pergunta Leif.
— Estamos só nos beijos e abraços quase castos, e olhe lá.
Faço uma careta. Apesar de minha mão esquerda – sou canhoto – ter
ganhado uns calos neste mês, meu pau está duro neste exato momento e
minhas bolas estão roxas.
— Também não adianta muito, né?
— Como assim? — perguntam os quatro ao mesmo tempo.
— Ah, céus. Suas inteligências raras! — Rolo os olhos para o teto. —
Ela levou um tiro! Mal conseguia andar. O Dr. Andersen pediu para
evitarmos relações por seis semanas, consegui negociar um mês, ou seja,
hoje.
— E o que você está fazendo aqui? — pergunta Tyr, o taradão, que faz
sexo no mínimo duas vezes por dia, com os olhos quase saindo das órbitas.
— Não estou sabendo como lidar com ela — falo, meio desesperado,
quase arrancando os cabelos da cabeça de ansiedade. — Se sou muito
carinhoso, se insisto em perguntar sobre como foi o dia dela, ou o que ela
fez ou… sei lá, se procuro ser mais íntimo, ela se fecha, muda de assunto,
ergue uma parede entre nós.
Magnus se inclina na minha direção, como se não estivesse ouvindo
direito. — Que estranho.
— As mulheres são os animais mais esquisitos do planeta Terra —
resmunga Leif.
— Acho que é uma ofensa aos pobres bichos você dizer isso — fala Tyr.
— Eles ao menos se comportam de maneira consistente, já as mulheres são
imprevisíveis, mudam de humor em questão de segundos, de ideia como
quem troca de roupa, conseguem brigar com você por algo que sonharam a
vida toda, sem falar que inventam problemas do nada.
— Estava demorando — reclama Magnus, rolando os olhos para o teto.
— Será que ela descobriu sobre as fotos, Lars?
Um frio desce pela minha espinha, mas imediatamente refuto a
possibilidade: — — Não acho que seja possível.
— Possível? — Magnus arqueia a sobrancelha. — Não subestime o
radar delas. Elas enxergam através de paredes, têm audição supersônica e
rastreiam qualquer coisa suspeita num raio de milhares de quilômetros.
— E a gente achando que os espiões eram problema… — Leif balança a
cabeça.
— Mas falando sério: talvez seja um mecanismo de defesa para lidar
com o tiro — diz Thorvald. — Talvez ela esteja com medo do futuro.
Talvez precise de um pouco de espaço.
— Sem falar que ela passou por poucas e boas com aquele pai maluco
— relembra Leif. — A menina foi dopada e medicada com
betabloqueadores, benzodiazepínicos e digitálicos para induzir sintomas
físicos que reforçavam a ideia de que ela era doente e precisava da proteção
dele. Acrescente a isso, que ele a tratava como uma imprestável, a diminuía,
humilhava e só os deuses sabem o que mais.
— Você consegue imaginar algum pai fazendo isso? — pergunta
Thorvald, entredentes. Ele, que vai ser pai novamente em breve, fica
extremamente irritado com esse tópico. — Forçar o coração saudável de
uma filha linda e inteligente daquelas a ser doente para manipular o
dinheiro dela?
Balanço a cabeça. — Uma absurdo sem tamanho… O problema é que,
quando ela me afasta, fico no escuro.
— Ela estava indo bem, Lars. Calma, dê mais um tempinho a ela —
intervém Leif. — Vai para casa.
— Leva um presente, flores e chocolates. Pede a Barnaby para deixar
um jantar frio no jardim à luz de velas e sumir de vista — diz Magnus. —
Beija a moça e ela vai voltar a ser a sua Diaba.
— Vocês podiam tirar uns dias — sugere Tyr. — Afinal, vocês nem
tiveram lua-de-mel. Por que não tiram uns dias no Ártico? Só vocês dois.
Mesmo que seja um final de semana esticado.
— Olha… é uma boa ideia — digo. — Vou tocar no assunto hoje à
noite.
— Amanhã de manhã. Nada de assuntos que possam lembrar o
casamento hoje — diz Thorvald. — Agora, vai!
— Vou — digo, levantando-me, mais animado.
— Boa sorte! — gritam eles.
Antes de sair, vou para a minha sala e faço algumas ligações
importantes. É o tempo suficiente para Stella terminar de preparar o meu
computador e Tyr me devolver.
Ele me expulsa do palácio, dizendo: — Não faça nada que eu não faria.
Rio, porque não sei se Vasilisa faria a metade das coisas que Tatyana faz
com Tyr.
Ela chega em casa da faculdade mais cedo do que o habitual, mas
graças aos meus irmãos cheguei muito antes. Com a ajuda de Barnaby e sua
equipe perfeita, que já foram embora ou dormir, está tudo organizado para a
nossa noite.
Assim que ela desce do carro, sei que tem alguma coisa que a está
incomodando – vejo no verde dos seus olhos –, mas prefiro ignorar meus
instintos e não pergunto nada.
— Você chegou mais cedo! — exclama quando me vê esperando por ela
na entrada lateral da casa, e abre um sorriso tão bonito, um que não vejo há
muito tempo.
— Você também — falo, admirando o vestido cinza-claro longo,
soltinho, de mangas compridas, que a deixa mais jovem ainda.
— Estava com saudades — diz, levantando os braços e me puxando
pelos cabelos que ainda estão molhados do banho para me dar um beijo.
— Eu também, Pequena, muitas — respondo, antes que ela cole seus
lábios aos meus.
Puxo-a ao encontro do meu corpo, com cuidado, afinal tem apenas trinta
dias que um desgraçado de um projétil de fogo quase a levou de mim e às
vezes percebo que ela ainda sente dor.
— Que bom — diz ela, depois de roubar meu fôlego e de me deixar
ainda mais excitado do que eu já estava.
— Aonde vamos? — pergunto, divertido, porque ela me pega pela mão
e vai entrando pela casa, determinada.
— Tenho um presente para você.
— Para mim? Mas não é meu aniversário — digo, fingindo surpresa
com a data.
— Não, é nosso.
Sem soltar a minha mão, passa pelo escritório, larga a pasta da
faculdade e a bolsa no seu lado da mesa e continua direto até o closet.
— Hmmm…
Vira-se de costas para mim, levanta os cabelos e pede: — Abre o zíper,
por favor?
Com o maior prazer.
Pensei em milhões de maneiras de como começar a sedução dela, e
parece que ela também andou imaginando algo, porque quando levanta os
olhos para mim no espelho, não consegue impedir o rosto de ficar
vermelhinho.
Ela passa a língua nos lábios quando livro seu corpo da barreira
indesejada e o vestido cai no chão.
O reflexo revela um corselet transparente e de renda prata e… couro
preto, com cinta-liga, e correntes e uma calcinha completamente
transparente que me mostra que ela depilou o monte de vênus inteiro.
— Caralho…
Dou um passo para trás para admirar as costas da lingerie, que é apenas
um pedacinho de pano transparente entremeado com couro e um lacinho
preto bem em cima da bunda. Nada mais.
O melhor presente que eu poderia ganhar.
Preciso fechar os olhos um momento para me controlar, porque puta que
pariu!, essa Diaba me mata com esse jeitinho tímido e, ao mesmo tempo,
safado dela.
Ela se vira nas sandálias prateadas de saltos altos. Lambe os lábios de
novo e diz: — Você está muito vestido.
— Não seja por isso — Arranco minhas roupas em tempo recorde e
deixo tudo jogado no chão do closet mesmo, e piso nelas, para chegar mais
perto dela. — Pecadora safada, você me enlouquece…
Tomo seus lábios em um beijo faminto. Porque é assim que estou:
faminto pela minha princesa.
Quando a puxo para mim, me dou conta que é a primeira vez que vou
tê-la como minha esposa e que não pode ser aqui.
Pego-a no colo e levo-a para o quarto, mas ela empurra meu ombro.
— Lars, não, aqui não — diz e me direciona para as portas que levam
para o jardim. — Lá fora. Perto da cachoeira.
Sigo as instruções, em passadas rápidas, porque já tem muito mais de
um mês que não a fodo. Um mês e uma semana para ser preciso.
Quando viro no nosso jardim privativo vejo uma estrutura
contemporânea, minimalista, que se integram com a paisagem natural ao
redor, onde há apenas um banco estilo sofá-cama, que convida ao
relaxamento total. Ou não.
— Seu presente — sorri para mim.
Posicionado na beira do penhasco, o caramanchão oferece uma vista
espetacular do fiorde que se estende abaixo, com águas azul-esverdeadas
refletindo o céu e, ao mesmo tempo, parece estar quase abaixo da cachoeira
Raio de Luar.
— Você é perfeita, meu amor — falo, encantado que ela tenha se
lembrado do que conversamos brevemente no primeiro dia.
Deito-a nas almofadas macias e volumosas.
— Mas eu prefiro esse presente aqui — falo em seus lábios. — Posso
desembrulhar?
Ela sorri. — Se você quiser. É seu também.
Sento-me ao seu lado e desfaço os laços que prendem o corselet, sem
pressa, acariciando cada pedacinho de pele que aparece, até que os bicos
dos seios rosados despontam já enrugados.
— Olha essas lindezas — murmuro, deslizando os dedos por dentro da
renda e seguro um biquinho entre o polegar e o indicador.
— Lars… — Ela coloca a mão sobre a minha.
Levanto os olhos para ela.
— Não faz amor comigo. Faz sexo — pede. — Suado, sujo, safado.
Não entendo essa resistência ao carinho, mas se ela quer eu faço.
Abocanho um de seus seios e puxo-o entre os dentes. Suas costas
arqueiam e chupo o mamilo, e repito os mesmos movimentos no outro,
enquanto arrebento sua calcinha violentamente, destruindo a lingerie tão
delicada.
Enfio a mão entre suas pernas que caem para os lados, encontrando-a
molhada.
— Vadia, pecadora — murmuro contra sua pele.
— Por favor, por favor — geme, choraminga.
Caio de joelhos no chão à sua frente, porque se ela peca, faço questão
de pagar os pecados por ela.
— Ah! — geme e estremece, as mãos puxando meus cabelos, quando
meus dedos se enterraram de uma vez em sua bocetinha ensopada. — Ai,
que delícia.
— É isso que você quer?
— É… é, sim… — geme e ondula. — Enfia mais, me chupa. Me dá
prazer, Anjo.
— Pede com educação — aviso, estancando o movimento. — Pede para
o seu príncipe. Vamos.
— Por favor — geme, alucinada. — Por favor, meu príncipe, me dá
mais!
Abro a boca e abocanho seu sexo enquanto giro meus dedos, puxando e
metendo sem parar.
Ela se entrega, rebola no meu rosto, buscando seu prazer, linda. Eu a
lambo, chupo e fodo, com língua, lábios e dedos, deliciando-me com o que
posso proporcionar a ela.
Ela goza e cai arfando nas almofadas e subo no sofá e volto a beijá-la,
desta vez com muita gentileza, esperando que ela se recupere.
Acaricio a pele, com a ponta dos dedos, com pequenos beijos,
descobrindo novamente seu perfume, sua maciez. Trago sua mão à minha
boca, beijo a ponta de seus dedos, lambo seu punho, sinto a vibração do seu
pulso, a batida do seu coração e o ritmo de sua respiração enquanto beijo o
interior do seu braço. Ela estremece.
Beijo a curva suave do seu ombro e seguro o seio pesado na minha
palma, brincando com o mamilo novamente.
— Lars… — reclama, ofegante de novo.
Então, antes que ela me peça algo, beijo seus lábios.
E o universo some.
O que foi antes, não existe mais. Jamal, Hardrada. O tiro, todo aquele
sangue, a possibilidade de a tirarem de mim… Meu passado e o dela. Tudo
isso morreu.
Tudo se condensa neste momento, nesse beijo apaixonado, no nosso
presente.
Enquanto a beijo, percebo que minha vida ao lado dela é uma tela em
branco e que ela e eu somos os pintores. Resta saber quais serão as cores e
as imagens que faremos juntos.
Esse beijo é que vai concretizar o nosso futuro.
Ela não decepciona e me beija de volta.
Beija-me com paixão – e com carinho e suavidade. Suas mãos deslizam
por meus braços, ombros, pescoço, pelo meu corpo inteiro, como se
estivesse reaprendendo meu tamanho e minha forma.
— Lars — geme de novo e, com um movimento que me surpreende, ela
me derruba nas almofadas e sobe sobre mim.
— Cuidado… — falo, preocupado, mas ela me silencia com outro
beijo.
E eu deixo que tome a dianteira e ela desce pelo meu corpo, e devolve o
favor, chupando meu pau.
— Ah, sua gostosa — grunho, segurando seus cabelos na mão para
poder ver melhor o espetáculo. — Chupa mais fundo.
Fecho os olhos e deixo minha cabeça cair para trás, tomado pelo prazer,
mas não quero gozar na sua boca.
— Chega — ordeno, puxando-a para cima.
Rolo com ela, deito-a embaixo de mim, posiciono-me e quando estou
pronto para penetrá-la, lembro-me que não trouxe a camisinha.
— Merda!
— O que foi? — pergunta, desvairada, e me puxa pelas pernas. — Vem,
vem.
— Esqueci o preservativo no moletom — explico.
— Não importa, não tem problema — diz, me pegando na mão macia e
posicionando a cabeça sensível do meu pau na sua entrada. — Vem, vem.
Quando ela levanta o quadril, não resisto, estoco dentro dela feito um
animal.
Ela grita, arqueia o torso, enfia as unhas nos meus ombros.
O prazer de entrar na sua bocetinha é imenso, apesar de ela ser tão
apertada que só depois de umas três arremetidas é que consigo penetrá-la
até o fundo.
— Lars, Lars! — Ela me aperta nos braços — Quero mais… Mais…
Dou mais, dou o que ela quiser, contando que ela seja minha. Inteira,
completa. Só minha.
— Goza, Diaba, goza e diz quem te dá prazer — ordeno.
Meu sangue lateja nas minhas têmporas, nos meus ouvidos, no meu pau,
nas minhas bolas.
Vou gozar e só queria mais uns minutos nesse espaço-tempo em que
parece que estou fundido com ela, em que sou uma parte do seu ser.
Penetro-a firme, forte, fundo. Fora de mim.
As gotas de água gelada da cachoeira nos molham, se misturam com o
nosso suor, como se estivessem nos avisando que o abismo está a poucos
metros de distância e que a queda é fatal.
Ela grita meu nome, goza, as unhas arranham minhas costas inteiras.
— Caralho, Diaba, você está me estrangulando.
Brigo com a realidade para a qual não quero voltar, mas, finalmente, o
desejo, avassalador, dilacera meu controle, o tesão é eclipsado pela
necessidade de sentir e sou puxado para o paraíso por um momento infinito
e tão breve.
— Lars…
Nossos olhos se encontram, se conectam, não há nada neste momento
no mundo além de nós dois.
E, então, tudo se intensifica: o som da cachoeira que ruge ao nosso lado;
a força da natureza que se entrelaça com a nossa, descontrolada, como um
vórtice puxando tudo à nossa volta, e explode, termina e me reorganiza.
Acalma em um sentimento inexplicável e profundo de acerto.
— Anjo, acho que no céu não fazem isso que acabamos de fazer — diz,
ainda ofegante.
— Pois a mim, pareceu o paraíso.
Não quero sair de dentro dela, nem me mexer, mas escorrego para o
lado, deito-me, e abro o braço para que ela venha se aconchegar no meu
peito.
Ela suspira e vem. Seus dedos penteiam meus cabelos.
— Esse local não podia ter ficado mais perfeito. Obrigado.
— Vai ser nosso refúgio — diz.
Realmente parece um refúgio secreto onde a beleza bruta da natureza
encontra o conforto moderno, mas simples, ideal para momentos de
contemplação e paz. E paixão, como os que tivemos agora.
Deslizo as mãos por seus quadris arredondados, sua cintura fina, onde
do lado direito a cicatriz vermelha e raivosa risca sua pele perfeita. Ela
emagreceu, as costelas estão aparecendo. Faço uma anotação mental para
pedir à Chef para descobrir o que ela gosta e caprichar mais nas refeições.
O engraçado é que sempre achei que relacionamentos eram uma estrada
perigosa e sei que o que sinto por Vasilisa está me levando por um caminho
que nunca percorri antes, mas há algo nela que me completa, apesar de
também me assustar por causa da intensidade com que me faz amar.
Nunca tive essa vontade desesperada de mergulhar no caos de outra
pessoa e conhecê-la por inteiro.
Nunca desejei ficar apenas assim, aproveitando o calor do corpo de uma
mulher e vendo o sol se pôr no horizonte.
Ela é perfeição. Na complexidade e simplicidade. No futuro, esse novo
campo inexplorado, ela é a fonte de todas as possibilidades, ideias, a força
avassaladora que me impulsiona.
Uma brisa fria sopra, esfriando nossos corpos, apesar dos aquecedores
que ligaram automaticamente há pouco.
— Vamos entrar?
— Vamos. — Ela se espreguiça e boceja. — Estou cansada.
— Você não dormiu bem ontem à noite — falo, após uma pequena
hesitação.
— A comida não caiu bem — justifica, levantando-se e recolhendo as
peças destruídas da lingerie.
Dá às costas para mim e volta para o quarto, efetivamente cortando o
assunto.
Ou será que ela tem pesadelos e não quer me contar?
Meu sono é muito leve e reparei que assim que voltamos para casa, ela
acordou bem mais cedo e saiu do quarto de ponta dos pés para não
perturbar meu descanso.
Algumas vezes, foi para o jardim. Outras, para o outro quarto e tentou
dormir de novo, como se tivesse ficado incomodada pela minha presença na
cama. A maioria das vezes, foi para o escritório estudar ou ler, ou só olhar
para o horizonte, perdida em pensamentos.
Duas ou três vezes fui atrás dela, mas percebi que não gostou.
Queria que soubesse que estava disponível para ela, que entendesse que
pode confiar em mim, que posso ajudá-la. Mas para não me tornar mais
uma das correntes que a prendem, não insisti.
Suspiro e não insisto porque sei que o que ela passou não foi fácil. Ela
realmente precisa de tempo e ajuda para lidar com o medo, digerir o que
houve.
Quando chego no banheiro, ela está lavando o cabelo.
Entro no box, que tem dois chuveiros, para tomar uma chuveirada
rápida e não me demoro mais do que o necessário, apesar de ter vontade de
pegar o óleo de banho e lavar seu corpo.
Pego minha roupa no chão do closet dela, levo para o meu, onde me
visto com outra e espero por ela na sala íntima, que é um espaço múltiplo,
aconchegante, de leitura e TV, que também dá para o jardim, onde está
posto o nosso jantar.
E quando ela chega, vem sorrindo, o que me dá um alívio enorme.
— Também tenho um presente para você — digo, entregando-lhe uma
caixa branca, característica do Maître Chocolatier i Pierre Marcolini. — Um
passarinho me contou que são suas preferidas.
— Ah, Lars, obrigada — diz, pegando a caixa e abrindo. — Trufas de
champagne. Amo!
Ela é tão fácil de agradar que é até ridículo. No entanto, claro que para
essa data tão importante, não comprei só chocolates.
Porque não faz trinta dias do nosso casamento. Na verdade, este é o
primeiro dia do nosso casamento. Então, fui buscar algo simbólico,
elegante, discreto e permanente. Não foi fácil e, ao mesmo tempo, foi.
Escolhi uma pulseira da coleção Love, do Cartier, que precisa de uma
chave de fenda para ser fechada e aberta. É o que chamam de pulseira-
escrava. A escolha é emblemática, até porque o presente não termina na
pulseira pura e simples. É de ouro rosé ii, com seis brilhantes discretos,
porque a ideia é ela usar diariamente, junto ao relógio.
— Ah, Lars… É linda!
— Fico feliz que tenha gostado. — Sorrio e pego a pulseira da caixa. —
Mas tem mais…
Queria fazer uma gravação na parte de dentro e essa era perfeita.
Escolher a frase não foi difícil: Fazer você sorrir é o que me faz feliz.
Porque é isso: o som do riso dela, o brilho nos olhos verdes, são como
melodias e poemas que quero guardar para sempre.
— Nem sei o que dizer… É lindo — sussurra e seus olhos se enchem de
lágrimas.
— Mas não é para você chorar, minha princesa, porque linda é você —
respondo. — E não é só a beleza física, mas o que você me faz sentir…
Ela me beija, interrompendo o que vou dizer.
Não é a primeira, nem a décima vez que ela faz isso.
A primeira vez não percebi, porque foi de uma maneira gentil. Ela faz
isso com uma mistura de firmeza e suavidade e um toque de selvageria que
me distraiu, mas depois da quarta ou quinta vez, comecei a reparar e acho
que vejo medo em seus olhos.
— Posso colocar? — pergunto, depois que ela interrompe o beijo.
Ela me dá o braço esquerdo e fecho a pulseira, guardando a chave de
fenda na caixa.
— Obrigada. Estou apaixonada — diz. — Mesmo!
Pela pulseira, não por mim. Isso me entristece um pouco, mas sou
paciente.
— Vamos jantar? — sugiro, mantendo o clima mais leve. — Temos
salada caprese, guacamole, quiche de legumes e de salmão.
— Você está se saindo um ótimo dono de casa — brinca ela.
Pisco para ela. — Com Barnaby, é fácil.
Saímos para a varanda, onde Barnaby deixou tudo organizado e nos
servimos antes de sentarmos. A conversa gira por assuntos leves, mas
percebo que ela come pouco e boceja, apoiando a cabeça na mão, como se
estivesse com tanto sono que fosse dormir ali mesmo.
— O que acha de fazermos uma viagem de uns cinco dias? Poderíamos
ir para aquele hotel no Ártico onde Tyr e Tatyana fizeram a lua de mel
deles.
Ela hesita e boceja de novo. — Talvez…
Franzo a testa. — Talvez?
— Estou com sono demais no momento para pensar sobre isso no
momento. — Ela desvia o olhar e boceja de novo. — Podemos conversar
sobre isso amanhã?
Não sei se está fingindo ou se está realmente cansada, mas não forço. —
Claro. Você já terminou?
— Já.
— Então vamos descansar — digo.
Pego a bandeja de madeira comprida e Vasilisa traz os pratos e talheres.
Levamos tudo para a copa, que fica ao lado da sala de jantar. Enquanto lavo
a louça, ela guarda a comida na geladeira, como se fôssemos um casal de
muito anos, o que me faz sorrir.
Passo o braço em seus ombros e caminhamos lado a lado pelo corredor
silencioso para o nosso quarto.
Vasilisa estanca na entrada espantada com a cama que está aberta.
— Como foi que Barnaby passou por nós e nem percebemos?
Levanto as mãos. — Não me pergunte. Me lembro da mãe de Leif
dizendo para o meu pai que esses mordomos ingleses eram meio mágicos.
— Devem ser. — Ela ri e então me olha. — Posso dormir sem trocar de
roupa e sem escovar os dentes?
— Pelos deuses! De onde saiu isso?
— Acho que foi o sexo — diz.
Aproximo-me por trás e envolvo-a em um abraço suave. — Vem, eu te
ajudo.
Ela se vira em meus braços, ficando de frente para mim. Nossos olhares
se encontram.
Ela se coloca na ponta dos pés e me beija, um gesto terno que retribuo
com afeto. Nossas emoções parecem se alinhar, e sinto uma conexão
profunda que vai além das palavras. — Adorei nossa comemoração.
Obrigada!
— Vamos escovar os dentes, porque roupas para dormir são
dispensáveis.
Depois que deitamos, e Vasilisa está aconchegada em meus braços, não
demora para a respiração dela ficar lenta e profunda.
Também adormeço, mas parece que acordo logo depois, com a sensação
de que algo está diferente.
Abro os olhos e vejo Vasilisa se esgueirando para fora da cama, como
na segunda vez que dormimos juntos. Agarro seu pulso, tentando impedir
que ela saia.
— Aonde você vai? — minha voz sai rouca de sono.
— Lars! — Ela põe a mão na boca, puxa o braço com força e sai
correndo.
Merda.
O olhar de apavorada que ela tinha nos olhos me faz levantar de um
pulo.
Sinto um aperto no peito que não sei explicar. Encontro-a debruçada
sobre a pia, jogando água gelada sobre si mesma, sem se importar em se
molhar toda.
Não é enjoo, é pesadelo. É horror! Pavor. Conheço os sintomas.
Seguro seus cabelos compridos nas mãos e amparo seu corpo.
— Calma, princesa. Talvez seja melhor um banho morno de banheira —
digo. — Quer?
Ela fecha a torneira e tateia em busca da toalha, que entrego a ela.
— Não, já estou bem melhor. Foi só um pesadelo.
Bingo!
— Quer conversar sobre isso? — pergunto, sentindo que o sonho ruim
ainda a incomoda.
— Não, já passou. — Ela nega com a cabeça. — Melhor trocarmos de
roupa e irmos tomar café.
— Tudo bem.
Aproveitamos que estamos no final do verão para tomar o desjejum no
jardim. Em breve, as manhãs serão muito curtas, quase inexistentes, e será
impossível ficar muito tempo do lado de fora. Olho para o telhado de vidro
com o pé direito de mais de vinte metros desse ponto da estrutura
contemporânea e dou graças aos deuses por ter escolhido uma casa que tem
uma infraestrutura toda preparada para o inverno e as tempestades de neves
que assolam agora a nossa região.
Sem falar que esse lado da residência é ecologicamente correto e com a
eletricidade que gera, mantém o palácio, as residências dos funcionários, o
que é perfeito.
Vasilisa come apenas algumas frutas e toma um copo de suco.
— E então, animada para a nossa viagem no final de semana? —
pergunto, tentando mudar de assunto.
— Viagem?
— Para o Ártico.
Ela me olha, com um brilho estranho nos olhos.
— Lars… — Sua voz treme, como se estivesse lutando para encontrar
as palavras certas. — Eu…
Para novamente.
Chego minha cadeira mais para perto da dela e pego sua mão na minha,
segurando-a, firme. Posso sentir a tensão em seus dedos, que tremem como
asas de um passarinho amedrontado.
Meu olhar se fixa no dela.
— Fala, meu amor — digo, em um tom baixo e grave. — Confie em
mim.
Inclino-me em sua direção. Quero que ela sinta que não está sozinha,
que pode se render à minha proteção sem medo.
Minha outra mão se eleva para acariciar suavemente sua face, meu
polegar roçando a pele macia dos seus lábios entreabertos.
— Você sabe que pode me contar o que quiser que vou te apoiar e te
ajudar no que precisar, não sabe?
Ela balança a cabeça, inspira profundamente, mas as palavras não vêm.
Pisca, talvez afastando lágrimas?, o que me diz que é algo sério, e meu
coração erra uma batida.
— Sei — sussurra, finalmente, a voz rouca, como se fosse difícil
empurrar pela garganta o que está escondendo, o que a vem atormentando
há semanas.
Hesita mais um segundo e então, com um meio-sorriso, diz: — Vou
fazer um estágio na Arctic.
— Na Arctic?! — repito, incrédulo, e sem conseguir me controlar,
exclamo: — Você ficou maluca?!
Ela puxa a mão da minha e dá uma risada ácida. — Me apoiar e ajudar
no que eu precisar, não é?
Passo as mãos no rosto duas vezes e me levanto da cadeira, precisando
de um pouco de distância.
Primeiro, porque tenho certeza que não era isso que ela ia dizer.
Segundo, porque a minha reação foi péssima. Terceiro, porque a Arctic é a
prisão de segurança máxima de Vinterland. É para lá que são enviados os
criminosos mais perigosos do Reino, incluindo serial killers, outros
psicopatas.
— Perdão, mas é que não acho prudente, nem seguro, uma princesa de
Vinterland trabalhando em uma prisão. Muito menos na Arctic — digo, o
nome da prisão saindo quase como um rosnado. — Não sei se você sabe,
mas é lá que os criminosos que cometeram crime de lesa-majestade e
obtiveram o benefício de prisão perpétua, ao invés de pena de morte, estão
presos.
— Não sabia disso, mas não vou lidar com eles e, sim, com os
psicopatas — explica. — Além disso, os atendimentos não serão feitos o
tempo todo lá no Ártico. Muitos acompanhamentos serão realizados quando
os presos vierem para julgamento e em sessões on-line. Não vejo problema
nenhum…
Giro nos calcanhares porque as imagens sangrentas que eu deixei no
passado querem arrombar a porta e invadir meu presente. — Eu vejo!
— Estarei acompanhada o tempo todo da minha professora. Quero
aprender mais sobre psicologia forense e me especializar nessa área.
Essa criatura etérea e doce quer lidar com criminosos?
— Como é?
— Lars, preciso fazer isso. É importante para mim. — Ela também se
levanta e vem na minha direção. — Não é perigoso. Sei que você se
preocupa, mas…
— Mas nada! — interrompo, minha voz mais alta do que pretendia. —
Você não pode e não vai se colocar em risco assim.
Ela para no meio do caminho, os olhos cheios de lágrimas, mas cheios
de ímpeto e determinação também. — Quem decide isso sou eu. Você não
manda em mim.
Aperto a ponte do nariz.
— Não, não mando em você, Vasilisa. — Inspiro fundo e solto o ar
lentamente, domando as emoções turbulentas que ordenam que eu a tranque
no quarto imediatamente. — Mas basta uma palavra minha e Tyr proíbe
você de entrar na Arctic.
Seus lábios se abrem e fecham e finalmente ela diz: — Você faria isso…
— Faria — afirmo, porque não vou mentir: a segurança dela é
prioridade. — Não me obrigue a tomar atitudes que eu não gostaria.
Não gosto de tolhê-la, mas também não posso permitir que ela se
coloque em perigo. Já chega o que aconteceu no casamento.
Meu celular toca e vibra ao mesmo tempo. O alarme para a reunião com
os investidores americanos, eu cancelo. Thorvald na linha, eu ignoro. No
entanto, não posso estender mais essa discussão, até porque é sem sentido.
— Entendo seu desejo, mas precisamos considerar as implicações… —
digo e pego meu blazer nas costas da cadeira. — Eu tenho que ir, Thor
inclusive está me ligando, mas prometo compensar você mais tarde.
Vou até onde ela está, parecendo fossilizada no meio da sala. No
entanto, ela pisca e duas lágrimas rolam pelo rosto.
Merda. Talvez minha reação tenha sido desmedida.
— Preciso ir mesmo, minha princesa. Conversamos melhor sobre isso
mais tarde, está bem? — digo, de maneira suave, mas ela não responde. —
Vou perguntar a Tyr o que ele acha…
Ela continua a chorar, tão quieta que se eu não estivesse na sua frente
não saberia.
— Não precisa chorar, a gente vai dar um jeito de você participar de
alguma parte desse projeto — tento novamente. — À noite, você me mostra
como serão os atendimentos on-line e a gente marca uma conversa com sua
professora e estabelece protocolos de segurança. Tudo bem?
Nada.
— Pequena, não fica assim…
Estendo a mão para limpar mais duas lágrimas grossas que rolam
silenciosamente pela pele macia, mas no último segundo ela vira o rosto.
— Nos vemos à noite, Lars. — Ela me dá as costas. — Bom trabalho.
Fecho os olhos e suspiro. — Vasilisa, você não entende o que está me
pedindo…
— É, eu sei — diz, engasgada. — Sou inexperiente, inadequada,
ineficiente, improdutiva, imprestável, e se você quiser adicionar outros
adjetivos negativos, esteja à vontade.
A suavidade da voz é contrariamente proporcional à força da porrada
que as palavras contêm.
— Vasya, não seja injusta, não é assim!
— É, é assim mesmo, Lars. — Na passagem entre a sala e o escritório,
ela faz uma pausa, passa o antebraço pelo rosto e olha para mim por cima
do ombro. — Aliás, eu esqueci. Também sou incapaz. Não só não tenho
nenhum poder de decisão, como você manda em mim.
Com esse último golpe, perfeitamente aplicado, ela me joga no chão e
nem se dá ao trabalho de se vangloriar da vitória.
Porque essa batalha, nós dois perdemos.
Não o levo a porta, nem peço carona a ele, como me habituei a fazer desde
que vim morar com ele.
Entro no escritório, fecho a porta e sento na minha cadeira, apoio os
cotovelos na mesa, o rosto nas mãos e deixo o choro vir.
O primeiro soluço que escapa do meu peito vem de tão de dentro que
dói. Estava demorando para mais um tentar me cercear, me impedir de ser
quem sou.
Esse projeto, apelidado de DarkLine i, cujo nome foi escolhido
paraenfatizar a linha tênue entre comportamento normal e psicopático, vai
ajudar a mapear padrões e comportamentos obscuros. É totalmente
inovador em Vinterland e vai analisar vários serial killers ii e psicopatas,
como a mente deles funciona, e vários outros detalhes, e formar uma base
de dados acessável pela polícia e agências de investigação, inclusive
internacionais, com foco em antecipar perfis e ações criminosos, e visando
solucionar mais rápido e evitar mortes desnecessárias.
É sempre assim que eles começam: com um papinho de vou te ajudar e
te apoiar, e quando você conta seus desejos e sonhos mais íntimos onde
você se vê realizada, matando dragões, ou ao menos domando-os e
acorrentando-os aos seus pés, eles retiram sua espada e roubam seu cavalo,
sem pena. Ou fazem você parecer um Quixote, que deseja lutar contra algo
muito mais amedrontador e perigoso que moinhos de vento.
Porque o mundo é assim: cruel, injusto e cheio de expectativas. E
parece que não aprendi que confiar é me expor a mais dor e que sempre
haverá alguém querendo me controlar.
Até entendo que a ideia de uma princesa lidando com criminosos e em
uma prisão seja bizarra, mas nem é a tal Arctic lá do Ártico mesmo. É a
filial, aqui em Vinter, para onde os prisioneiros vão quando estão em
julgamento ou por alguma outra razão.
É a maneira que tenho de entender e trabalhar as minhas neuroses.
Muito mais saudável do que sair por aí proibindo cônjuges de fazer A,
B ou C só porque tem medos e inseguranças que não sabe enfrentar e acha
que é mais experiente.
Imagina se conto o que tem atormentado as minhas noite, manhãs e
tardes. Acho que ele surtava de vez. Credo!
Enxugo os olhos e olho o relógio. Quinze para as dez. Se eu correr,
consigo pegar a professora, que vai sair da faculdade só às dez e meia. A
única coisa que preciso é do formulário impresso.
Decido que não vou deixar as regras e imposições dele ditarem minhas
ações.
Foda-se.
— Foda-se — repito a palavra em voz alta, lembrando das lições de
Fräu Meyer e penso nas personagens que incorporei e deixo que a força da
determinação feminina me possua, essa força que tenho lá dentro e que me
socorreu tantas vezes. Porque ninguém, nunca mais, vai fazer comigo o que
meu pai fez.
Pego o interfone, disco o número da garagem e peço: — Olaf, bom dia,
vou sair em cinco minutos. Pode trazer o carro para a lateral, por favor? —
enquanto ligo meu computador e abro uma aba da internet.
Bufo, enquanto espero que a página da faculdade carregue e uma raiva
começa a tomar conta de mim. Nem acesso livre à internet, eu tenho.
O neurótico obsessivo com segurança do meu cunhado instalou tantas
proteções e barreiras, ou seja lá como é o nome desses trecos que ele enfiou
no meu computador que para entrar em qualquer site levo milênios!
— Inacreditável — murmuro, vendo a mensagem de acesso negado
piscar na tela.
Meus olhos batem no notebook de Lars, esquecido sobre a mesa, e me
lembro como consegui entrar no meu e-mail em segundos quando usei o
computador dele.
Sem pensar duas vezes, puxo o notebook dele para perto de mim e abro-
o.
A senha? A mesma da outra vez: $r@L+V@$i1!$@. Quando na época
comentei que não sabia como ele conseguia decorar aquilo, ele explicou
que era Lars escrito ao contrário mais Vasilisa, com vogais sendo
substituídas por números e símbolos e o s por cifrão. Achei tão fofo que não
deu para esquecer.
Quando a senha abre a máquina, sorrio ironicamente e dou o dedo do
meio para a tela.
Acesso à internet. Consigo entrar no portal da faculdade em menos de
um minuto e baixo o formulário necessário, enquanto o do meu computador
continua rodando e rodando, como se fosse um carrossel colorido de um
circo empobrecido.
— Claro, o príncipe super-poderoso que quer controlar a princesa tem
acesso ilimitado — digo para o escritório vazio. — Babaca, filho da puta.
Preencho o formulário rapidamente, dou o comando de imprimir duas
cópias. Para adiantar, assino o formulário com o programa de assinaturas
eletrônicas da faculdade, anexo a um e-mail e envio o arquivo para a
professora Berg, informando que estou a caminho. Ela responde
imediatamente que me aguardará no estacionamento, porque não podemos
nos atrasar de jeito nenhum ou perderemos aquela entrevista.
Fecho todos os programas, faço logoff da conta, desligo e fecho o
notebook. Tudo conforme ele me ensinou.
Pego as folhas, enfio na minha pasta, jogo meu notebook, iPad e celular
de qualquer jeito dentro da minha bolsa e me levanto. Pego o laptop de Lars
para colocá-lo no lugar exato quando a porta do escritório se abre de
supetão.
Dou um pulo quando meu marido entra.
— Nossa, assim você me mata do coração — digo e ergo o computador
dele. — Esqueceu isso?
Ele arqueia as sobrancelhas. — Exatamente.
— Ia pedir para Barnaby entregar no seu escritório — respondo,
colocando o aparelho nas mãos dele.
Ele me observa por um instante, os olhos buscando os meus. — Você
vai sair?
— Vou — afirmo, erguendo o queixo. — Tenho aula.
Ele me pega pelo braço.
Olho para cima.
O cabelo meio despenteado e os olhos que ardem azuis dão a ele um ar
de selvageria que me deixa com vontade de morder seu lábio e talvez até
tirar sangue… Provocá-lo para que ele me dobre sobre a mesa, levante
minha saia, empurre a calcinha para o lado e se enfie dentro de mim, sem
ligar para quem estiver escutando meus gritos.
Só de pensar no seu pau me abrindo, em senti-lo todo dentro de mim e
nele fazendo sexo forte e duro comigo fico nervosa.
Esse homem mexe comigo de um jeito que nem sei definir, mas se eu
ceder agora ele vai se habituar a repetir o comportamento.
— Estou atrasada. — Passo a língua nos lábios. — Preciso ir.
Seus olhos acompanham o movimento e escurecem.
Acho que ele vai me puxar para os seus braços. Ou me empurrar contra
a parede. E me beijar.
Dou um passo para trás.
— Vasilisa, não quero que as coisas fiquem assim entre nós.
— Lars, na minha opinião, você já disse tudo o que precisava —
retruco. Desço o olhar para os dedos dele à volta do meu bíceps. — Pode
me soltar, por favor?
Ele suspira, e deixa cair a mão. — Vasya, minha princesa…
— Até mais tarde — respondo, passando por ele em direção à saída,
antes que eu me descontrole, ceda e seja eu que me jogue em seus braços.
Detesto mentir, mas fiz minha escolha e preciso ser firme.
Escuto mais um suspiro, irritado desta vez, e seus passos atrás dos
meus.
Olaf já está com o carro na lateral e Barnaby abre a porta para mim.
— Tenha um bom dia, Alteza — diz.
— Obrigada, Barnaby, para você também — digo, tentando controlar a
ansiedade e o desejo que decidiram entrar em guerra dentro de mim.
Assim que ele fecha a porta, viro-me para Olaf e peço: — Para a
universidade, por favor.
Não posso contar a ele o que não me deixa dormir em paz. Como
também não pude contar a ele o que vou fazer agora.
Não gosto de mentir, mas foi ele que me colocou nessa posição.
Viver com uma mentira é difícil, tão difícil que estou quase desistindo,
mas só de pensar no que ele vai fazer comigo sinto um calafrio e enjoo ao
mesmo tempo.
Não sei se tenho coragem… Sei que mais dia, menos dia ele vai
descobrir e preciso decidir como agir. Por enquanto, não há nada a fazer.
Olho pela janela, vendo as paisagens passarem como um borrão, e o
bairro universitário se aproximar.
Mando uma mensagem no grupo das Quatro Mosqueteiras, porque
preciso desabafar:
Homens controladores e possessivos são bons namorados e maridos
somente nos livros hot.
Meu celular apita logo.
A primeira que responde é Tatyana. Claro.
Na cama, também.
Depois meu celular enlouquece com umas dez figurinhas de Catarina –
todas absolutamente impróprias para menores de cem anos, no mínimo!, e
de muito mau gosto –, que variam de uma mulher babando por um pau
enorme até um sexo feminino, super cabeludo, arreganhado e rebolando
para um vibrador e outras mais que não quero nem rever.
— Gente… — murmuro entre horrorizada, chocada e divertida, quando
ela coloca uma figurinha móvel, que é quase um vídeo, pornográfica e
politicamente incorreta, que faz meu rosto ficar quente. — Que horror!
Essa deveria ser proibida, sob pena de queimar as córneas.
— Disse alguma coisa, Alteza? — pergunta o motorista, olhando-me
pelo retrovisor.
— Não, Olaf, nada. Estou falando sozinha, ou melhor com a tela do
celular — digo para ele, sentindo meu rosto ficar quente.
Ele sorri. — Sei como é, tenho filhos.
Jesus, Maria e José. Essa minha prima me apronta cada uma.
Respondo com outra figurinha – uma lagartixa arrancando os olhos e
gritando que queria poder desver aquilo – e um texto:
Credo! Onde você arranja essas imagens?
Ela responde:
No grupo de leitura! kkkkkk
Nem pergunto quais os livros que elas leem, porque… nem com Jesus,
Maria e José!
Até que chega a de Yasmin:
É porque você ainda não aprendeu a controlar seu príncipe. Vamos te
ensinar a colocar Lars na coleira e como fazer com que ele te dê a pata,
sem que você precise nem pedir. Happy hour não alcoólico hoje, às 15:30?
Sorrio e respondo:
Marcado, mas duas coisinhas:
1 – nesse horário, o nome da refeição é Afternoon tea iii (só para não
deixar de ser chata)
2 – será que de coleira e obediente ele fica tão gostoso quanto é
rebelde?
Yasmin responde:
1 – Tem razão.
2 – É um caso a se pensar…
E Tatyana envia uma figurinha d’O Pensador iv, de Rodin, com um pau
ereto no meio das pernas, e o subtítulo: duas cabeças pensam melhor que
uma.
Não aguento e caio na gargalhada.
Suas malucas. A gente se vê mais tarde, estou chegando na
universidade.
Fui.
Ao menos, elas me fizeram rir.
Chego à faculdade cinco minutos antes do horário marcado e nem
espero com o decoro de sempre que Olaf venha abrir a porta.
— Tchau, obrigada! — grito, já correndo pelo campus – mas não com a
mesma velocidade de antes, por causa da cirurgia –, em direção contrária a
que costumo ir normalmente.
Logo vejo a professora, uma senhora gordinha, baixinha, com jeito e
cara de Mamãe Noel, encostada num sedã vermelho.
— Vasilisa! — exclama ao me ver. — Na hora.
— Não perderia isso por nada desse mundo — digo, ofegante, porque
ninguém vai sufocar meus sonhos.
— Ótimo. Vamos? — Entramos no carro e ela sorri para mim. — Fico
feliz que tenha decidido participar. Será uma experiência enriquecedora.
Assinto, respirando fundo e sentindo não só um peso sair dos meus
ombros, como meu pulmão se expandir, livre. — Tenho certeza disso.
Ela aperta o botão de ignição, mas o carro não dá a partida. Tenta de
novo, mas nada acontece.
— Ué… Será que esqueci a chave?
Procura a chave automática na bolsa e a encontra com relativa
facilidade. Tira-a, põe no console e tenta de novo.
— Que esquisito, estava funcionando perfeitamente até umas duas horas
quando cheguei — diz, claramente perdida e sem saber o que fazer para
ligar ou consertar o veículo. — Esses carros elétricos muito avançados
ainda me deixam confusa.
— Por que não pegamos um táxi? — Não sugiro meu motorista porque
não quero ser delatada para meu marido controlador. — Ou um Über?
— Claro, claro — diz, já se virando para o banco de trás e agarrando
sua bolsa. — Boa ideia.
Peço no meu aplicativo.
No entanto, mal saímos do carro, a Sra. Berg acena para um mini-carro
elétrico que passa, e grita: — Helga, Helga!
O carro para e o vidro escuro abre uns três dedos, mostrando o rosto de
uma mulher loira, bonita, de perfil.
A professora pergunta: — Me dá uma carona? Meu carro quebrou.
— Entre, entre — diz a voz mais grave e rouca que já ouvi na vida.
— Ótimo! — diz a professora Berg, dando a volta no carro e
gesticulando para que eu entre primeiro.
Tenho que me contorcer para entrar no banco de trás e quando a tal da
Helga abaixa o banco, fico com medo de perder os pés. Se eu não fosse
magra e baixa, não caberia. De jeito nenhum mesmo.
— Vamos, vamos — diz a professora e a outra arranca com o carro. —
Helga, essa é Vasilisa, minha aluna de psicologia criminal. Ela vai fazer
parte do projeto DarkLine. Vasilisa, a doutora Helga Bakke é a
coordenadora do nosso projeto. Também é a chefe do setor de criminal
profiling v na polícia e professora aqui na universidade, nas faculdades de
direito, psiquiatria e psicologia. Ela ensina como desmistificar os mistérios
e lendas que envolvem os serial killers e como prevenir e solucionar esses
casos mais rapidamente.
— Muito prazer, doutora — digo, sorrindo. — Esta é uma área que me
interessa bastante e espero aprender com esse projeto e ajudar no que eu
puder.
Ela vira o rosto para mim e sorri – ou tenta, porque seu rosto deste lado,
o rosto bonito, é todo destruído por cortes profundos. A mão sobe para a
garganta, e dois dedos pressionam entre o buraco das clavículas, chamando
atenção para o pescoço, onde tem mais cicatrizes.
A voz rouca, grave e ligeiramente computadorizada que ouvi antes, diz:
— Alteza, o prazer é todo meu.
Alguém tentou matar essa mulher linda.
Demoro uns segundos para me recobrar, mas logo falo: — Só Vasilisa,
por favor. Aqui a superior é a senhora.
Com um repuxar da boca, ela aperta de novo o espaço na garganta: —
Prefiro a ideia de sermos parceiras.
A professora Berg começa a tagarelar, o carrinho acelera pelas ruas e
um nó se forma no meu estômago.
Será que estou cometendo um erro ao me envolver nesse projeto? Será
que Lars tinha razão e é realmente muito perigoso uma princesa de
Vinterland se envolver nisso?
Olho para o rosto da chefe do projeto, todo destruído, claramente por
algum criminoso similar a esses a quem ela dedica a vida a estudar.
Meu celular vibra e o nome do meu marido aparece na tela, como se
soubesse que estou pensando nele. Que estou mentindo para ele. Traindo
sua confiança.
Recuso a ligação.
Ele insiste e recuso de novo.
Não é que eu esteja de birra, apenas não sei qual é o assunto e não quero
brigar em público, acho mais prudente não atender.
Depois da sexta ligação, quando o medo e a excitação se misturam no
peito e já nem consigo prestar atenção direito na conversa, desligo o celular.
Afinal, supostamente, estou em aula e não poderia mesmo atender o
telefone.
Saímos da cidade e o quadrado cinza fechado, praticamente sem janelas,
desponta do outro lado, isolado numa ilha, que mais parece um pedestal.
Esperamos na guarita a confirmação das nossas identidades. Logo vem
a autorização e o vão da ponte que liga o continente, onde estamos, à ilha,
finalmente se fecha, permitindo que passemos.
A voz computadorizada soa de novo no carro e ecoa as dúvidas que
sussurram em looping cada vez mais rápido na minha mente, parecendo
uma roda-gigante que enlouqueceu, e que roda, roda, roda, rápido, tão
rápido que não dá para distinguir mais as cores, e não me oferece nenhuma
solução, igual ao círculo colorido da internet no meu computador.
Percebo que estou prestes a entrar em um mundo onde a linha entre a
sanidade e a loucura é tênue, e onde cada decisão pode ser uma questão de
vida ou morte.
Quando chegamos na ilha, um barulho alto se faz ouvir. Olho para trás e
vejo que as laterais da ponte se recolhem e o abismo reaparece de novo.
Não há mais volta.
Será que vou pagar muito caro por ter mentido a Lars?
— Babaca…
Quando cheguei ao palácio, tinha uma mensagem para ir direto à sala de
Tyr, e nem a sensação de mau presságio que me invadiu quando vi todos os
meus irmãos reunidos – o que só acontece quando algo está terrivelmente
errado – podia ter me preparado para ver as imagens de Vasilisa, com
aquele sorriso irônico, digitando freneticamente no meu computador, nem
para ouvir as poucas, mas cruéis palavras, pronunciadas com desrespeito e
raiva, que me machucam mais do que qualquer coisa.
A câmera instalada no meu computador e as armadilhas funcionaram
até melhor do que imaginávamos. Infelizmente.
— É, eu sou um babaca mesmo — resmungo de novo, enquanto o
helicóptero corta o ar em direção à ilhota onde o Cubo se localiza.
Olho para baixo e a raiva ferve ainda mais quente em minhas veias, o
vapor vermelho sobe para minha mente como uma névoa venenosa,
engrossando as nuvens que já se formam, cada vez mais escuras e gordas,
inchadas com mágoa e um ressentimento que queima.
— Calma… — diz Tyr, tentando colocar panos quentes — ou talvez
sejam gelados? — para controlar a tempestade que se agita violentamente
dentro do meu peito depois de me dar provas de que o rato — ou seria a
ratazana? — que roía os alicerces de confiança e lealdade do meu
ministério era a minha própria esposa.
— Você precisa pensar com clareza — tenta me acalmar Leif também,
sentado à minha frente.
— Calma?! Clareza?! — retruco, quase rosnando. — Como você pode
me pedir isso? Precisa de algo mais claro para você que aquela filmagem?
— Porque ela não fez de propósito.
— Ah, não? Então porque mentiu, dizendo que ia para a aula, e fazendo
exatamente o que eu a proibi de fazer? — pergunto com um travo amargo
na boca. — Dissimulada. Como posso confiar nela agora?
Pego o celular e ligo para ela novamente. A cada toque não-atendido, a
raiva dentro de mim cresce.
Caixa postal.
Desligo com força, com vontade de jogar o aparelho longe e vê-lo se
espatifar em pedacinhos.
— Ela não atende — digo entredentes. — Está me evitando porque sabe
que está me traindo…
— Ou talvez porque aqui na ilha há bloqueadores de celular possantes
que impedem a comunicação entre presos e quem quer que seja — lembra
Tyr, racional. — Celulares não funcionam lá. Não tire conclusões
precipitadas, nem aumente o problema. Ela entrou no seu computador,
acessou o e-mail pessoal, o site da faculdade e mentiu para participar de um
projeto que desejava e que você a proibiu sem conversar. Ponto. Não crie
chifre em cabeça de cavalo.
Da euforia à infelicidade. Do paraíso ao inferno. Como tudo pode
mudar em apenas alguns dias? Horas?
Foi exatamente por causa dessa gangorra emocional que evitei
relacionamentos a vida inteira.
— Estou começando a me perguntar se fui precipitado em confiar nela.
Será que ela tem algo a ver com o hacker?
— Lars, escute-se. Vasilisa não faria isso — diz Leif. — Você a
conhece.
— Conheço? Não sei, talvez eu tenha sido ingênuo — retruco, a dúvida
evidente na minha voz. — Talvez você é que estivesse certo e ela fosse
louca ou talvez o pai…
— Pare! — Tyr pega no meu joelho, aperta, me obrigando a encará-lo.
— Você não quer dizer essas palavras em voz alta. Respire, Lars. Lembra
como quando éramos crianças e tudo parecia estar dando errado?
Sim, lembro. Até bem demais e ele sabe disso.
— Não é isso que está acontecendo — diz ele, suavemente, respirando
fundo e soltando devagar, como a nossa professora de ioga fazia. —
Respire, meu irmão, o mundo não está contra você.
Fecho os olhos e faço o exercício por uns cinco minutos, tranquilizando
efetivamente a minha mente.
— Stella vai me mandar um relatório em breve. Não demora muito para
escarafunchar todos os e-mails de Vasya e checar todos os sites que ela
visitou quando estava no seu computador. Vamos encontrar a porta por onde
o hacker se infiltrou e descobrir quem a está manipulando sem que ela
saiba.
— Vamos pousar, General — avisa o piloto pelos headfones.
As muralhas altas da Arctic se erguem diante de nós, um cinza sem
graça e no entanto tão impenetráveis.
— Como posso confiar nela agora? Como posso acreditar em qualquer
coisa que ela me diga?
— Se Magnus estivesse aqui ele diria que é bem-feito — comenta Leif.
— Que foi o destino dando o troco pelas fotos que você vazou.
— É, diria, mas ele não está. Magnus tem um problema de culpa não-
resolvido — relembra Tyr. — Então, é o seguinte: mulheres amam homens
que tomam atitudes para protegê-las e o que você fez foi com um propósito.
Se ela descobrir, explica-se. Se ela não descobrir, não se fala mais nisso.
O helicóptero pousa suave.
Antes de saltarmos, Tyr aperta meu ombro com firmeza e diz: — Não
deixe a raiva nublar seu julgamento.
As hélices giram furiosas quando saímos do aparelho e corremos em
direção à entrada do Cubo, meus irmãos me ladeando como se estivessem
prontos para me agarrar e me impedir de cometer alguma violência.
Mas não há necessidade.
O meu autocontrole é antigo, forjado na batalha entre o silêncio que
meu corpo me forçou após o sequestro e tortura e a necessidade de
sobreviver sem demonstrar fraqueza e os gritos que queriam sair pela minha
garganta de qualquer jeito; treinado arduamente em anos de disciplina para
ignorar a dor e a raiva que me consumiam por dentro.
Acho que foi por isso que passei tantos meses sem falar quando me
libertaram.
Se eu abrisse a boca, não ia conseguir parar de gritar: de dor, de medo,
de fome e sede. De desespero e de ódio, porque o que sofri naqueles dias
preso naquele frigorífico, entre aquelas peças de carne penduradas e sem
saber se Tyr ia voltar, foi algo que só desejo aos meus piores inimigos.
Foi por isso que me tornei reservado e racional.
Sou excepcional em controlar meus ímpetos e emoções intensas,
violentos, apaixonados e irracionais. Sei como bloquear os sentimentos
negativos que ameaçam me dominar, reprimi-los e transformá-los em força
interna produtiva.
Ou talvez eu deva dizer: era.
Porque agora, tudo mudou.
Desde que ela entrou na minha vida, o controle que pensei ser absoluto
começou a rachar.
O vento congelante que chicoteia a ilha perdida no meio do mar
combina com o gelo que se forma ao redor do meu coração, e, ao mesmo
tempo, uma chama, uma mistura perigosa de emoções que ameaçam
explodir tudo a qualquer momento.
A imagem daquela gravação, Vasilisa me xingando e invadindo meu
computador, me queima por dentro.
Porque é isso: essa Diaba tentadora, essa Pecadora Magnífica, essa
mulher que tem quase a metade do meu peso e do meu tamanho acabou
com a minha frieza.
Paro, com dor no peito, quando vejo Vasilisa, que sai neste momento do
Cubo e caminha ao lado de duas senhoras em direção ao estacionamento,
quase vazio, enquanto conversa.
Ela sorri, com algo que uma das professoras fala. O mesmo sorriso que
me encanta e enlouquece, mas que agora também aumenta minha frustração
e desilusão.
É a vida que segue seu curso normal, sem se importar que meu coração
parece prestes a parar – e é irônico que ela é que seja a cardíaca.
Pergunto-me o que vai acontecer, o que vou fazer? Como lidar com
isso?
— Vasilisa! — berra Tyr. — Cuidado!
Ele se vira e puxa das mãos do segurança que nos acompanha o rifle e
começa a atirar na direção de um carro preto que avança descontrolado para
cima delas.
Vasilisa e as professoras se viram.
A expressão calma e de satisfação nos rostos das mulheres se
transforma em incredulidade e então em pânico.
O tempo parece desacelerar. A raiva gelada que pressionava o meu peito
segundos atrás se transforma em um medo intenso frente à possibilidade
que algo aconteça a ela, que eu possa perder o que mais quis na vida, faz
com que eu reaja.
Instintivamente, começo a correr na direção dela, meu coração
martelando no peito, o sangue pulsando nos ouvidos.
A morte fria e implacável se aproxima, na forma de um monstro de
metal em alta velocidade, para atingi-la, fazê-la voar pelo ar, passar por
cima do capô, do teto e terminar no chão de cimento bruto. Morta.
— Vasya! — clamo, estendendo a mão, como se pudesse evitar de ela
ser acertada pelo carro, como se pudesse salvá-la da morte eminente. —
Mova-se!
Ela continua ali, até que um barulho alto, alto demais, como se fosse
uma explosão, faz com que ela se mova, de um pequeno passo para trás, e
uma das senhoras possa agarrá-la pelo paletó do terno. É graças a isso é que
ao invés vejo o retrovisor acertar em cheio seu quadril, fazê-la rodopiar e
ser jogada para a calçada, enquanto o veículo muda de rumo, passa
raspando por elas e colide violentamente contra o paredão.
O estrondo da batida se mistura com gritos e ecoa pelo pátio. Estilhaços
de metal e vidro voam em todas as direções.
— Leif! — berro, enquanto me ajoelho ao lado dela.
O rosto está contorcido de dor, os olhos fechados, apertados.
O terninho preto e branco que ela gostava está sujo e rasgado em vários
lugares.
— Vasya, fale comigo — peço, apavorado, e irritado com as idiotices
que a gente repara nessas horas.
Ela abre os olhos. — Lars… O que você está fazendo aqui? —
questiona ela, a confusão evidente em sua voz.
— O que você acha?
— Onde dói, Vasilisa? — pergunta Leif, me dando um cutucão discreto.
É, sei, agora não é hora.
— É só meu quadril. E o ombro. E joelho. O carro quase não me pegou.
Quase não pegou?!
Por todos os deuses! Acho que quem vai ter um ataque cardíaco sou eu.
Um grupo de guardas e paramédicos saem do Cubo e correm pelo pátio,
com macas e caixas de material médico.
— O que caralho aquele filho da puta estava fazendo? — pergunta Tyr a
ninguém em particular ao se ajoelhar perto dela também. — Se não tiver
nenhuma emergência, quero tirar vocês daqui, agora.
Olho por sobre o ombro e vejo que o motorista do carro permanece no
mesmo lugar, com a cabeça caída sobre o volante. Tem muito sangue
espalhado pelo vidro e que o paramédico que está com ele sacode a cabeça
e solta o punho.
Ótimo. Menos um.
— Por mim, podemos ir — diz Leif. — Para o hospital. Quero uma
ressonância e um Raio-X.
— Não precisa…
Ele fecha a cara para ela. — Não perguntei se precisa.
— Posso pegá-la no colo? — pergunto à Leif, porque
independentemente das dúvidas que tenho sobre ela, não permitirei que
nada de mal aconteça com ela.
— Sim — diz ele, se levantando.
— E as professoras? — pergunta ela, puxando a minha camisa.
— Tyr vai resolver qualquer problema — asseguro, lançando um olhar
rápido para as duas mulheres, que estão amparadas pelos guardas e
paramédicos, mas não parecem ter sofrido nada. — E providenciar alguém
para levá-las para casa.
Levanto-a nos braços e só não a esmago contra mim, porque sei que ela
deve estar muito dolorida.
Entramos no helicóptero e ainda pendurado do lado de fora, com a porta
aberta, Tyr ordena: — Vamos!
Como se não bastasse o tiro há um mês, algum filho da puta tentou
matá-la. De novo.
Enquanto nos afastamos da Arctic, não posso deixar de me perguntar até
que ponto nossas vidas estão emaranhadas nessa teia de segredos e
desconfianças e se seremos capazes de desvendar tudo isso antes que seja
tarde demais.
Não quero largar Vasilisa, porém é mais seguro que ela se sente. Ajusto
o cinto e mal vejo o tempo passar enquanto seguimos para o hospital.
Não pensei que fosse retornar a esse quarto tão cedo, nem que estaria
segurando a mão de Vasilisa na minha enquanto aguardo o resultado do
laudo de exames.
Leif e o Dr. Andersen entram e se aproximam da cama conversando,
mas as expressões do rosto são tranquilas, o que me acalma.
— E então? — pergunta Vasilisa. — Posso ir para casa?
— Mais tarde saberemos — diz o Dr. Andersen. — A ressonância do
crânio não mostrou nenhuma lesão mais grave, além de uma concussão leve
e por enquanto achamos melhor que fique ainda em observação. E já que
estamos no hospital, vamos pedir um Raio-X e uma tomografia para
descartar qualquer lesão óssea no quadril. O hematoma está bem extenso e
pancadas nos quadris são traiçoeiras. Um dia você está andando, no outro…
Ele não continua e faz uma careta.
— Não precisa. — Vasilisa nega com a cabeça. — Estou ótima, gostaria
de ir para casa. Dormir na minha cama.
— É só para garantir que está tudo bem — insiste.
Ela cruza os braços. — Não precisa. Sério, estou me sentindo bem
melhor.
— Vasilisa, é importante que façamos todos os exames necessários —
argumenta Leif, com toda a paciência do mundo.
Ela me lança um olhar nervoso e pede: — Lars, quero ir para casa.
Não gosto de vê-la assim, mas também entendo a necessidade de
checarmos todos os pontos necessários. — Pequena, é rápido.
Ela hesita, olhando para Leif, para o Dr. Andersen e depois para mim.
Suspira, passa a mão no rosto e diz finalmente: — Eu… eu não posso fazer
exames de Raio-X.
— Por que não? — pergunta Dr. Andersen.
Ela me olha nos olhos, hesita por um momento e então diz: — Estou
grávida.
— Grávida?! — exclamo, incrédulo.
Mal escuto Dr. Andersen e Leif se retirarem do quarto discretamente
porque a notícia não faz sentido e o mundo ao meu redor parece girar por
um momento e ficar torto.
— Descobri uma semana depois do atentado.
Tem um mês isso. Levanto-me e ando pelo quarto. Passo a mão pelos
cabelos, tentando processar tudo.
— E você não me contou por quê? — pergunto, minha voz embargada.
— Decidiu sozinha, sem me consultar, que ia ser mãe?
— Fiquei com medo da sua reação — responde, a voz baixa.
— Da minha reação?! — repito, atordoado. — Qual reação?
No entanto, parece que a cada palavra dita, ao invés de resolvermos os
nossos problemas, a distância entre nós aumenta.
— Não é isso, Lars…
— Então o que é? — interrompo. — Você me coloca à margem da sua
vida. Você não me inclui, não me conta as coisas. Como podemos ter um
relacionamento assim?
— Estava confusa, assustada. Precisava de tempo para aceitar. Não tem
sido fácil — Ela fica em silêncio por um momento. — Eu… sinto muito.
— Sentir muito não é suficiente. — As desculpas soam vazias em meus
ouvidos. Balanço a cabeça, a frustração transbordando. — Parece que você
não quer que eu faça parte da sua vida.
— Não é verdade! — exclama ela. — Só tenho dificuldade em me abrir,
em confiar plenamente.
— E acha que esconder uma gravidez ajuda em quê?
— Sempre quis ser mãe e pensei que nunca fosse realizar esse sonho.
Você me avisou na nossa primeira vez, quando o preservativo arrebentou,
que não queria ser pai. — Aperta os braços ao redor do corpo. — E tinha
medo que você me pressionasse a abortar!
Talvez tivesse. Talvez, não.
Com os olhos fixos no rosto dela, dou um passo para trás, querendo me
afastar dela. Da realidade concreta de que um filho meu está crescendo na
barriga de Vasilisa. Porque já não sei mais como me sinto em relação à isso.
Um filho, uma criança. Um serzinho inocente nesse mundo tão vasto e
cruel. E tão cheio de possibilidades maravilhosas…
Ela estende a mão na minha direção. — Lars, por favor, tente
entender…
— Você não confiou em mim, me excluiu de algo tão importante, que
afeta a nós dois. Não divide as coisas comigo, evita conversar — concluo, a
voz fria, caminhando de costas para a porta. — Você fez a sua escolha,
preciso agora fazer a minha.
— Desculpe, não queria mentir, mas eu não podia deixar você matar o
nosso futuro — murmura e abaixa a cabeça, as lágrimas escorrendo pelo
rosto.
As palavras saem de sua boca como flechas envenenadas e me atingem
afiadas, diretamente no coração.
É como se um dique se rompesse e uma fenda emocional profunda
acontecesse dentro de mim, me dividindo ao meio.
Emoções dos mais diferentes tipos me invadem: alegria, raiva,
desilusão. Pânico. Amor. Por um lado, estou emocionado com a ideia de ser
pai. Mas por outro, tenho um medo atávico de não poder proteger meu
filho. O medo e a dor que escutei na voz dela parecem me esmagar.
Olho para ela, sentindo-me perdido. As paredes do hospital parecem se
fechar ao nosso redor. Preciso sair daqui, pensar.
Sem saber como lidar com tudo isso, saio do quarto.
Caminho pelo corredor, que me parece infinito, ouvindo os chamados
dela se afastarem. Cada passo que dou pesa uma tonelada, me leva mais
longe dela, mais longe de tudo o que eu conheço.
O ar frio da rua me golpeia o rosto. Inspiro profundamente, tentando
clarear os pensamentos.
Olho para o céu nublado, as nuvens escuras refletindo meu estado de
espírito. Não sei o que fazer, nem como consertar o que está quebrado entre
nós.
Sem rumo, começo a andar, deixando Vasilisa para trás. A distância
entre nós nunca foi tão grande.
Como chegamos a esse ponto?
— A senhora está liberada, Alteza, mas lembre-se, um pouco de repouso
não faz mal — diz o Dr. Andersen.
— Até me sinto tentada a apavorá-la um pouco mais — diz a Dra.
Strand, que veio até ao hospital fazer alguns exames quando soube do
acontecido. — Mas tendo em vista que Sua Majestade e Sua Alteza, o
General Tyr, já estão aí fora, nem vou falar nada.
— Eles estão?
— Estão! — confirma ela, fazendo a careta e balançando a cabeça. —
Como são neuróticos com segurança, vão provavelmente colocar correntes
nos seus tornozelos.
Dr. Andersen abre a porta do quarto para mim e quase que não quero
mais sair, mas como não tem jeito, vou em frente.
Yasmin, Tatyana e Catarina me cercam assim que saio para o lounge.
— Viemos assim que soubemos — diz Yasmin, me abraçando com
força. — Quer ir para a sua casa ou para a minha?
— Para a minha — respondo, tentando sorrir, mas falhando
miseravelmente.
Lágrimas quentes rolam pela minha face quando entro no carro de Tyr.
Só podem ser esses hormônios da gravidez, porque faz muito tempo que
aprendi que chorar não resolve nada.
— Ah, prima, não chora — diz Catarina.
Mesmo quando Catarina e Tatyana me abraçam e tentam me consolar
estou impotente para limpá-las ou mesmo pará-las porque queria tanto que
meu marido estivesse aqui comigo.
— Não pensei que Lars fosse tão tinhoso. Tem quase cinco horas que
ele saiu… — sussurro para elas. — Achei que ele daria tempo para ele
pensar no que quisesse e voltar para me buscar.
— Vou capar esse desgraçado desse meu cunhado quando ele voltar
rastejando — sussurra Tatyana no meu ouvido, me fazendo dar um riso
aguado. — Porque ele vai voltar, você vai ver. Eles não resistem ao nosso
charme.
Sentamos na sala de estar, onde não sei como, o arquiteto conseguiu que
o palacete do século dezoito fizesse uma transição suave até o século vinte e
um.
Aliás, todos se sentam, menos Tyr, que se apoia na parede, braços
cruzados sobre o peito.
— Sabemos que as coisas entre você e Lars não estão fáceis — começa
Thorvald. — E achamos importante que você entenda algumas coisas.
— Para começar, Lars te ama muito — fala Magnus.
— Belo jeito de demonstrar — diz Tatyana.
— Harpia, quieta — reclama Tyr.
— As feridas de Lars são profundas — continua Leif. — De um
acontecimento da infância…
— Você está falando do que deixou as cicatrizes nas costas? —
pergunto. — Ele me falou por alto sobre isso uma vez. Porque… eu
também tenho algo parecido.
Leif troca um olhar com Tyr e faz um gesto com a cabeça. A impressão
que eu tenho é que em alguns segundos eles conversam em silêncio sobre
décadas de emoções silenciadas e talvez até reprimidas.
Até que finalmente, o irmão de Lars cede e se senta ao meu lado. Ele
me conta toda a história com os detalhes sórdidos, horrendos, que acho que
nem os próprios irmãos sabiam e finaliza com: — Isso deixou marcas nele,
mais do que físicas, psicológicas. Medos, inseguranças. Especialmente
quando se trata de construir uma família e ser pai, mas não acredito que ele
fuja à responsabilidade.
Meu coração aperta.
— Então, a reação dele… — começo, mas um nó se forma na minha
garganta e as lágrimas rolam pelo meu rosto.
As peças começam a se encaixar e as palavras de Tyr fazem sentido,
mas não aliviam a dor que sinto.
— … foi influenciada por esses traumas — completa Leif.
Catarina me abraça, tentando me consolar. — É difícil, eu sei, mas vai
passar. Ele vai voltar e vai ficar ao seu lado, você vai ver.
— Além disso, querida, você está grávida — diz Tatyana, olhando de
cara feia para o marido. — Os hormônios com certeza estão amplificando o
que você sente.
— E esses hormônios não estão ajudando você a raciocinar nem um
pouquinho — diz ele, devolvendo a careta para ela.
— Vocês dois, podemos focar?
— Não, talvez eu tenha dito algumas palavras duras para ele e me
enganado quanto à reação que ele teria — admito em voz baixa. — Mas me
fiquei com tanto medo…
— É compreensível — diz Yasmin que está sentada ao meu lado. —
Mas talvez seja hora de vocês conversarem com calma.
Antes que eu possa responder, Barnaby abre a porta da varanda e Lars
entra carregando em um braço um enorme buquê de rosas brancas e no
outro uma elefanta de pelúcia, com laço rosa, quase do tamanho dele, e um
elefantinho de gravatinha borboleta.
Seus olhos encontram os meus e ele diz: — Trouxe presentes para
vocês. E se for menina, a gravatinha vira um laço que prende na orelha.
Começo a sorrir, mas quando ele põe o elefantinho no chão e demonstra
como transformar o animalzinho de macho para fêmea, coloco as mãos no
rosto e desabo no choro porque esse homem é muito fofo.
Sinto seus braços me rodearem e ele sussurra no meu ouvido: — Não
chora, minha princesa. Não te falei que o que me faz feliz é ver o seu
sorriso?
E isso me faz chorar mais ainda porque quem aguenta um romântico
desses?
— Desculpa ter saído daquele jeito. Eu… fui pego de surpresa e deixei
meus medos falarem mais alto. Mas foi simples, foi só organizar algumas
coisas na minha cabeça — diz me ninando nos seus braços. — Perdão se te
magoei, não foi minha intenção.
— Também não — digo, abraçando-o de volta. — Não quis esconder
nada de você, nem decidir sozinha, mas fiquei tão contente quando a
doutora disse que não vou ter grandes problemas em levar a gravidez a
termo. Quis muito ter esse bebê. Quero muito.
— Eu também — diz. — Sei que isso não justifica o que fiz, mas tenho
medo de não poder proteger nosso filho, de que ele sofra…
Ele levanta a cabeça e me olha nos olhos.
Nos azuis-escuros, vejo o amor e a preocupação e também um oceano
escuro e tempestuoso, onde se escondem monstros que não conheço e que o
aterrorizam até hoje.
— Que sofra algo parecido com o que eu sofri.
— Ah, Lars! — Aperto meus braços ao redor dele e deito minha cabeça
em seu ombro. — Prometo que daqui em diante não esconderei mais nada
de você. Juro. Quero que você faça parte da minha vida sempre.
A barreira se dissolve e um silêncio confortável se instala entre nós.
Uma batida no umbral da porta interrompe o nosso abraço.
A família toda – Thorvald, Tyr, Leif, Magnus e as meninas – está
esperando do outro lado, com expressões esperançosas no rosto.
— Podemos entrar? — pergunta Yasmin.
Sorrio. — Podem.
— Quer dizer que teremos mais uma adição na família real? — pergunta
Thorvald.
— Daqui a uns oito meses — confirmo.
— Parabéns!
Eles nos cumprimentam e logo a sala vira um local de beijos, abraços e
cumprimentos alegres.
— Demônio! Quero um bicho de pelúcia grande assim para o quarto do
nosso bebê, também — diz Tatyana abraçando a elefanta que é maior do
que ela. — Olha que gracinha!
— Compro uma amanhã, Infeliz.
— Não tem mais — avisa Lars. — Comprei os últimos disponíveis. Vão
entregar aqui de amanhã de manhã.
— Os últimos, quantos? — pergunto para ele, porque escutei algo em
seu tom de voz que me conta que exagerou.
— Bem, não tinham muitos… — conta. — Achei que ia ficar uma graça
no quartinho.
— Sei, e esses muitos são quais? — insisto.
— O leão, a girafa, a hipopótamo e a ursa. — Ele vai ticando os dedos,
para, coça a cabeça e finaliza: — Ah, sim, e o jacaré. Com seus filhotes.
Jesus, Maria e José. Socorro! O homem surtou. O que me conta que o
medo dele é mais do que real e ainda não o abandonou.
— Sei… e o berço, mesinha de apoio, poltrona de amamentar, trocador
de fraldas, eu e o bebê? Ficamos onde?
Ele olha para mim e sorri, sem jeito. — Talvez você queira dar um par
para Tatyana. Ou dois. É que eu quis que você e o bebê…
Engulo a vontade de rir e coloco o dedo nos lábios dele.
— Não, vou dar nada para ela, não. O General que se vire para
conseguir um bicho de pelúcia gigante para a esposa dele. Já sei o que vou
fazer com o seu zoológico.
— Já? — pergunta Catarina.
— Claro. Vou transformar a sala íntima em brinquedoteca. Afinal, não
pretendo ter um filho só — aviso.
Lars arregala os olhos. — Não?
Sacudo a cabeça e sorrio. — Até porque estamos esperando gêmeos.
Ele fica pálido e murmura: — Pelos deuses!
Vasilisa dorme serenamente nos meus braços, seus cabelos espalhados
sobre o travesseiro. Observo seu rosto tranquilo, notando como mesmo
adormecida ela exibe uma força impressionante.
Ela se mexe levemente, uma expressão de desconforto atravessa suas
feições.
— Hmmm… — murmura, abrindo os olhos lentamente.
— Bom dia, minha Diaba tentadora — digo, sorrindo.
Ela estica o corpo, mas logo faz uma careta.
— Parece que um caminhão passou por cima de mim — comenta com
uma voz rouca, tentando encontrar uma posição confortável. — Estou
dolorida em todos os lugares.
— Não foi um caminhão, nem foi por cima, mas não me surpreende —
respondo, acariciando suavemente suas costas. — Foi quase por cima e foi
um carro. E não ajuda que tem um mês da cirurgia. Quer o analgésico?
— Quero.
Deixei os remédios do meu lado da cama, assim ela não precisa se
movimentar para alcançá-los. Pego a dose recomendada e um copo d’água e
a ajudo a beber e ela se aconchega de novo em meus braços, suspira, e sorri.
— Estou tão feliz.
— Prometo que vou colocar sorrisos nos rostos dos três. Sempre. —
Inclino-me e deposito um beijo carinhoso em sua barriga. — Ou das três.
— Sei que vai. — Ela passa os dedos pelos meus cabelos e ri baixinho
quando sente meu pau duro cutucar sua barriga.
— Se eu não estivesse tão dolorida, eu topava uma viagem para o
paraíso agora, Anjo — diz, beijando o canto da minha boca.
— Quem sabe amanhã?
— Mas eu posso te ajudar com isso — diz, me beijando.
Nesse momento, meu celular vibra na mesa de cabeceira. Ignoro
solenemente porque sua mão macia começa um vai e vem delicioso no meu
pau.
Mas o celular volta a vibrar. E insiste de novo. E de novo.
— Hmmm… — reclama ela, me soltando. — Acho que alguém quer
falar com você com urgência. Melhor você atender logo.
— Verdade — digo, pegando o aparelho.
Estendo a mão e pego o aparelho que voltou a vibrar. Na tela, o nome é
de Magnus, que só me liga em caso de urgência mesmo.
Franzo a testa. Levanto-me e atendo a chamada. Caminho até a janela.
Aproveito, aciono o controle remoto para abrir as persianas. O dia está
nublado, cinzento, a chuva fininha molhando o vidro.
— Fale.
— Lars, temos um problema gravíssimo — diz ele, a voz tensa. — Você
está sozinho?
Olho para Vasilisa, que se acomoda nos travesseiros.
— O que aconteceu? — indago, mantendo a voz baixa.
— Lembra daquela acusação de assassinato na embaixada de Oslo? —
pergunta ele de maneira retórica. — Foi confirmada e as coisas se
complicaram.
Um nó se forma no meu estômago. — Entendo.
Mas na verdade não entendo nada, porque eu não mandei matar
ninguém.
— Jamal pressionou a Corte Sueca e a carta rogatória parou na mão de
Vikstrom — explica ele, se referindo a Kael Vikstrom, o líder das minorias
que, graças à Yasmin e Tatyana conseguiu um lugar no conselho dos Lordes
e pelo jeito já começou a nos dar trabalho. — Thorvald não conseguiu
segurá-lo.
— Puta que pariu, Magnus.
— Ele ordenou a emissão do mandado de prisão assim que o processo
chegou às mãos dele — conta Magnus, irritadíssimo —, nem teve a
delicadeza de me ligar, como ministro de estado, ou príncipe de Vinterland,
para avisar. Foi o chefe de polícia que me chamou para avisar que está a
caminho da sua residência. Arrume-se.
— Lars? — a voz suave de Vasilisa me traz de volta. — Tem certeza de
que está tudo bem?
Viro-me para ela e tento esboçar um sorriso, mas um frio desce pela
espinha.
— Sim, apenas questões de trabalho que surgiram de última hora.
Ela me observa atentamente. — Você parece preocupado.
Tudo está desmoronando.
— Nada que eu não possa resolver — respondo, começando a me vestir.
Caminho até o closet, precisando ganhar tempo para pensar.
— Qual a probabilidade de não usar Vasilisa como testemunha?
— Vamos tentar resolver com todos os integrantes do grupo que foram a
Oslo com você — continua ele. — Já estou providenciando o habeas
corpus, mas Vikstrom exige provas da sua inocência e as nossas provas são
testemunhais.
Passo a mão pelo rosto. — Conseguimos evitar que isso vaze para a
imprensa?
Magnus hesita, antes de responder. — Talvez, mas Jamal vai tentar
transformar isso em escândalo.
Fecho os olhos por um instante, processando as informações, e tento
manter a calma, mas sei que estou prestes a perder o que conquistei ontem.
— Entendo. Mantenha-me informado.
Desligo a chamada e permaneço em silêncio, encarando as montanhas
cobertas de neve, que parecem ainda mais frias hoje.
Enquanto coloco a camisa, meus pensamentos correm. Como vou
protegê-la disso? Não quero envolvê-la, não gostaria que ela fosse exposta
mais do que já foi, mas talvez não tenha escolha.
Ela aparece no closet, vestida com um robe dourado diáfano, a testa
franzida. — Lars, está acontecendo algo que eu deveria saber?
— Preciso sair por um momento — anuncio, tentando soar casual. —
Assuntos do Ministério da Justiça. Nada com que se preocupar.
— Agora? — questiona, surpresa. — Pensei que passaríamos o dia
juntos.
— Lamento por isso. Mas prometo que volto o mais rápido possível.
Ela arqueia uma sobrancelha, claramente desconfiada, mas não insiste.
— Certo.
Paro, olhando em seus olhos verdes. — Na verdade, Vasilisa, tem uma
coisa acontecendo, sim. E é uma coisa que eu menti sobre, muito séria.
Ela suspira, cruzando os braços.
— Você sabe que pode confiar em mim também, certo? — diz ela.
O telefone toca novamente. É Magnus de novo.
— Não temos muito tempo — digo. — Então, vou ser breve. Você
precisa acreditar que tive as melhores intenções, que fiz o que fiz para te
salvar e para ficar com você, que se pudesse ter feito diferente teria feito…
— Você está me assustando… — diz ela.
— Maldição! — exclamo, cerrando os punhos. Respiro fundo, fecho os
olhos e me centro. Essa é a melhor maneira de explicar. Mecânica, distante,
fria. Não temos tempo, não dá para ser emotivo, nem envolver sentimentos
e nem explicar fatos que ainda não tenho provas, só indícios e
desconfianças. Abro minhas mãos e começo a tomar as atitudes necessárias.
— Venha se vestir que vou explicando.
Levo-a para o closet dela e pego um tailleur cinza-chumbo com detalhes
rosa clarinho e entrego a ela. — Não importa o que eu diga, vista isso.
Ela me olha estranho, mas obedece e tira o robe.
— Sabe as nossas fotos que vazaram?
Ela levanta as sobrancelhas e pega a lingerie e uma blusa de seda branca
de laço.
— Fui eu quem mandei tirar — confesso. — Eu sabia que o fotógrafo
estaria ali fora. Astrid, nossa RP, de maneira anônima, avisou para algumas
publicações que teria um furo e elas reservaram um lugar na primeira
página. Também se preparou para fazer a limpeza.
Ela para de abotoar os botões e me encara boquiaberta. — Você
planejou tudo…
— Não podia deixar aquele imundo casar com você.
O fogo em seu olhar se torna uma chama fria. Em dois passos, ela está
na minha frente. Não a impeço quando desfere um tapa na minha cara.
— Você é igual a todos os outros! — As lágrimas enchem seus olhos,
tornando o verde mais brilhante. — Eu te odeio!
— Entendo que esteja magoada. Entendo que não possa compreender
porque fiz isso, mas, preciso da sua ajuda no momento
Ela ri. — Devia deixar você se foder.
— Talvez, mas temos mais pelo que lutar. — Olho para sua barriga. —
Temos nossos filhos. Não mandei matar ninguém. O fotógrafo que fez as
fotos não foi o segurança de Jamal e você sabe disso. Ajude-me a consertar
isso.
— Você é um babaca. — Ela me olha fixamente. — Não tem ideia do
quanto o que fez me magoou, me expôs, me humilhou.
— Não sei mesmo, mas posso dizer que já estava arrependido antes de
fazer — admito, a voz falhando. — E de qualquer maneira preciso da sua
ajuda. Não apenas por mim, mas por nós. Pelos nossos filhos.
Ela aperta os punhos, lutando contra as emoções.
Fica difícil respirar, mas era um risco.
Ela respira fundo, fechando os olhos por um momento. Quando os abre
novamente, há uma determinação ali.
Meu celular toca novamente.
— A polícia está no seu portão, Lars. Você está pronto? — pergunta
Magnus.
— Quase. Contei o que aconteceu para Vasilisa — digo.
Ele assobia do outro lado da linha.
— O testemunho dela seria o nosso trunfo. Quanto tempo você precisa?
Viro-me para encará-la. — Você vai testemunhar a nosso favor?
— Tudo bem.
— Obrigado. — Dou um passo em sua direção. — Eu…
Ela ergue a mão, me impedindo de aproximar. — Não. Gostaria de
terminar de me arrumar sozinha.
Saio do closet, fechando a porta suavemente atrás de mim. Apoio-me na
parede do corredor, sentindo o peso das consequências das minhas ações.
— Cinco minutos, Magnus.
— Como ela reagiu?
— Como esperado — respondo, esfregando as têmporas. — Concordou
em testemunhar, mas está devastada.
— Encontro com vocês no Tribunal. Com o depoimento dela, isso não
vai durar muito.
Não sei se ela poderá me perdoar, mas pelo menos agora a verdade está
exposta.
As imponentes colunas da Corte Suprema de Vinterland parecem ainda
mais gigantes e pergunto-me se o arquiteto que planejou o tribunal tinha em
mente humilhar criminosos e aterrorizar testemunhas quando as desenhou
tão grossas, grandes e altas, e mandou que as esculpissem em mármore tão
perfeitamente branco. E para piorar a situação devem ter uns vinte degraus
para chegar a elas. E desde a rua até a entrada do prédio, a passagem está
toda apinhada de jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas, fofoqueiros,
admiradores, haters, passantes, e todo o tipo de gente que os policiais e
seguranças, que Tyr destacou para cá, que mantém atrás de grades,
deixando um caminho liberado para nós.
Sem falar nos manifestantes, pelos quais já passamos, uns pedindo a
renúncia de Thorvald e eleições democráticas para primeiro-ministro,
outros com cartazes de Viva a monarquia. Vai entender.
— Tem certeza de que não quer entrar por trás? — pergunta Lars.
Poderíamos entrar pelos fundos, mas recuso-me a me esconder.
— Não fiz nada de errado.
Porque é isso. Eu não fiz nada de errado. Engulo as lágrimas que
teimam em formar um bolo na minha garganta desde que ele me contou o
que fez, porque também não ousaria pensar que ele seria capaz de contratar
um fotógrafo para nos expor nus e ele o fez.
O carro de polícia para e o nosso para atrás. Ao menos, tiveram a
gentileza de não algemarem Lars e permitiram que ele viesse comigo no
carro.
Até porque Vikstrom aceitou que Jamal entrasse no país já que está
representando os interesses do morto.
Assim que Tyr, que está esperando por nós na calçada, abre a porta do
carro, os flashes começam a espocar.
Lars sai e me estende a mão.
Aceito, apesar de não querer. Aqui, em público, somos uma unidade.
— Princesa, como é estar casada com um assassino? — grita o primeiro
jornalista.
— Princesa, uma foto! — pede outro.
— Não pare — sussurra Tyr —, nem olhe para eles.
— Ah, não. Eu vou parar e falar com eles, Cunhado. Só um minutinho
— digo, teimosa.
Aproximo-me de um dos lados da grade, para infelicidade do General e
horror do meu marido que vem atrás.
— Princesa, a senhora sabia que seu marido era tão sanguinário?
Microfones e aparelhos de gravação são enfiados todos no meu rosto.
— Bom dia. — Sorrio. — Quem ousa pensar esse tipo de coisa e
verbalizar esse tipo de pergunta, claramente não conhece o príncipe Lars.
Olho para trás e sorrio para eles. Meu marido e cunhado disfarçam bem,
mas posso dizer que estão espantados com minha cara de pau. Até eu estou
espantada comigo mesma. Será que sempre tive essa força dentro de mim e
não sabia? Será que minha mãe também era assim?
— Então a senhora vai testemunhar a favor dele? — pergunta outro
jornalista.
— Mas é claro que vou, ele estava comigo a noite inteira — digo, e
estendo a mão, chamando-o para o meu lado, apesar de sentir um travo
amargo na minha boca —, as próprias fotos comprovam isso.
— Príncipe Lars, o senhor mandou matar o fotógrafo?
— Já chega! — diz Tyr, passando o braço ao meu redor e me puxando.
— O resto vocês poderão saber daqui a pouco quando voltarmos.
— General, General! — chama uma jornalista ao chegarmos nos
últimos degraus. — O senhor acredita que o Príncipe vai ser solto com
habeas corpus?
— Claro — diz ele e nos leva para dentro, não respondendo a mais
nenhuma pergunta, apesar dos gritos dos jornalistas.
O som das portas se fechando e depois dos nossos passos ecoam pelo
salão silencioso e vazio, já que a esta hora o tribunal ainda estaria fechado.
Magnus nos espera do lado de dentro, vestindo uma toga preta, que o
deixa ainda mais imponente do que já é, acompanhado de duas moças, que
também vestem togas.
— Dras. Sophia e Helena, minhas assistentes — diz, apresentando-as.
— Vikstrom requisitou que, devido a Vasilisa ser sua esposa, ela seja levada
para uma sala isolada. Como não temos nada a temer, e é de praxe que as
testemunhas não assistam ao julgamento, não vi problemas quanto a isso.
Você está tranquila?
— Sim, estou — digo.
— Ótimo. — Ele me dá um sorriso e aperta a minha mão, sussurrando:
— Vai ficar tudo bem.
Lars faz menção de me dar um beijo, mas dou um sorriso e viro-me para
a moça. — Vamos?
Eles entram com Tyr, me deixando com Helena.
Esperamos cerca de meia hora e Helena me explica o que está
acontecendo e o que devo esperar das perguntas.
Escuto do outro lado da porta, Magnus dizer: — A defesa chama ao
banco de testemunhas a Princesa Vasilisa Romanov Eisenhart-Gulbrandr.
Alguém com voz grossa anuncia meu nome completo e, como tudo na
vida, quando as portas duplas de madeiras se abrem, o recinto é totalmente
diferente do que imaginei.
Pensei que fosse uma sala de audiências parecida com aquelas que se vê
em filmes americanos, mas é completamente diferente e muito maior.
O ambiente, que mais se parece com uma sala de trono de palácio, é
austero, com paredes de madeira escura, detalhes dourados, estandartes com
brasões do reino pendurados por toda a sala.
As laterais estão lotadas com pessoas assistindo ao julgamento, algumas
tomando notas, outras desenhando e outras prestando atenção, mas quando
as portas se fecham com o que parece um barulho definitivo, o silêncio se
torna opressor e todos os olhares se voltam para mim e me acompanham
enquanto cruzo a longa passarela até o cercado.
Obrigo-me a manter meu foco na frente, durante a travessia que dura
quilômetros, fixada no rosto de Thorvald, que como rei, preside a Corte. Ao
lado dele está um senhor de uns setenta e muitos anos e do outro lado, uma
senhora, também bem velhinha, segundo Helena me contou brevemente, os
Lordes Conselheiros mais velhos de Vinterland. Pelas fotos que Helena me
mostrou identifico logo o tal do Vikstrom, o relator do processo, que apesar
de também estar de toga, como os outros juízes, parece querer se destacar
por deixar à mostra um lenço vermelho amarrado à volta do pescoço no
lugar da gravata.
Fico logo irritada com o homem que mantém seu olhar fixo em mim.
Vou ter uma conversa séria com Tatyana e Yasmin, porque já que o
trouxemos para dentro do palácio, temos que colocá-lo na linha.
Minha vontade é olhar em volta e descobrir onde Lars está, mas não
faço isso.
Uma mocinha me recepciona quando chego à área restrita e me leva até
a cadeira de testemunha.
— Estamos aqui para deliberar sobre as acusações de homicídio contra
o Príncipe Lars Haraldson, acusado de mandar assassinar Ahmed bin
Hasher Al Maktoum. O crime teria ocorrido na Embaixada de Vinterland,
em Oslo, motivo pelo qual a Corte Sueca solicita a deportação do acusado
para julgamento — diz Thorvald, a voz reverberando nas paredes de
mármore. — A defesa pediu o seu depoimento e para isso, Vossa Alteza
deve dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade.
Está disposta a prestar juramento?
— Sim, Senhor.
A assistente se aproxima e oferece a Bíblia para que eu coloque minha
mão por cima e me dá o papel com o juramento que devo ler.
Faço o juramento, lendo as palavras indicadas, apesar de não acreditar
no livro em que apoio minha mão, e saber que, por esse homem que roubou
meu coração de maneira tão inesperada e intensa, eu mentiria
descaradamente e falaria qualquer coisa para salvá-lo.
Sento-me.
Magnus se levanta e vem para o centro do tribunal.
— Excelências, mais uma vez, a defesa apresentará provas contundentes
de que esse processo é uma armação e a inocência do Príncipe Lars
Haraldson será provada com facilidade.
Espero que sim, porque meu coração dispara com a mera ideia de Lars
ser acusado injustamente e ser culpado de um crime que não cometeu,
porque Jamal ficou com o ego ferido. A ideia de Lars ser acusado
injustamente não é algo que consigo suportar. Por mais que eu esteja
chateada com meu marido por ele ter escondido informações de mim,
prefiro engolir meu orgulho do que vê-lo sendo punido por algo que
claramente é uma farsa.
Ele começa com as perguntas básicas de praxe, confirmando meu nome,
e depois vem aquelas sobre a nossa intimidade.
— Princesa — começa Magnus —, poderia nos dizer onde o príncipe
Lars estava na noite em que o suposto crime ocorreu?
— Sim — respondo sentindo meu rosto ficar quente. — Ele estava
comigo. Passamos a noite juntos.
Um novo murmúrio percorre a sala.
— Está afirmando que o príncipe Lars não poderia ter cometido o crime
porque estava em sua companhia?
— Exatamente. Ele me ajudou a escapar da casa do meu pai depois da
recepção que celebrou o acordo contratual de noivado assinado pelo Sheik
Jamal e meu pai, em meu nome, e fomos para o hotel dele onde passamos a
noite.
— A senhora sabia que estavam sendo fotografados? Confirma que
participou voluntariamente dessa encenação que resultou em um escândalo
internacional?
— Não, senhor, não sabia. Fui tão enganada quanto o público, mas
posso afirmar que a pessoa que dizem ser o fotógrafo era guarda-costas…
— Protesto, Excelência. — O advogado de Jamal levanta-se. — Não foi
isso que o advogado de defesa perguntou.
— Vou refazer a pergunta — diz Magnus.
Ele vai até sua mesa, na lateral direita da sala, pega algo e volta até onde
estou e me mostra uma foto. — A senhora conhece esse homem?
— Conheço — confirmo.
Ele então mostra a foto para Vikstrom.
— Pode nos dizer quem era, Alteza?
— Não seu nome, porque nunca me foi apresentado, mas esse homem
era o segurança do Sheik Jamal bin Omar, andava no banco do carona do
carro que o transportava, e nunca tirou uma fotografia minha.
— A defesa não tem mais perguntas.
O procurador então se levanta. — A procuradoria não tem perguntas.
O advogado do meu ex-noivo se levanta com um sorriso macabro no
rosto. — Alteza, a senhora já esteve internada em várias instituições
psiquiátricas, não esteve?
— Porque meu pai me dopava com…
— Sim ou não? — interrompe a minha justificativa.
Respiro fundo e abaixo a cabeça. — Sim.
— Não é verdade que a senhora tinha ciência que seu pai assinou um
contrato de noivado com Sua Alteza, o Sheik Jamal bin Omar, e recebeu
dez milhões de dólares em sua conta corrente. A senhora aceitou os anéis de
brilhantes que ele lhe deu no valor de dez milhões de dólares, e depois o
enganou com outro homem, inclusive não se importando em fazer sexo em
lugar que pudesse ser fotografada nua e exposta nas páginas de todos os
jornais, e ainda se recusou a assinar o distrato?
— O que a minha vida tem a ver com o processo em pauta? —
pergunto.
— Responda à pergunta do advogado, Alteza — diz o Conselheiro
Vikstrom. — Sim ou não?
— Sim.
— Essa mulher e o acusado não só planejaram o assassinato de um
inocente, como tramaram enganar, seduzir e roubar um homem…
— Isso não é verdade! — grito ao mesmo tempo, em que Thorvald bate
com o martelo. — Advogado, não aceitarei que minta e ofenda uma
princesa do reino de Vinterland. Se voltar a proferir acusações infundadas,
serei obrigado a pedir que abandone imediatamente esta Corte.
— Minhas mais sinceras desculpas, Majestade. — O advogado faz uma
pequena reverência para Thorvald, que é quase debochada, e vira-se para o
Tribunal. — Não tenho mais perguntas para a testemunha.
— Vossa Alteza, a senhora está dispensada — diz Vikstrom, com um
tom gelado, mas que não é dirigido a mim e sim aos advogados de
acusação. Dá para perceber que está irritadíssimo. — Se desejar, pode
permanecer no recinto. Não acredito que precisaremos ouvi-la novamente.
Depois de mim, são ouvidos o fotógrafo, os integrantes da equipe de Tyr
e então Magnus levanta-se e fala: — A defesa convoca como testemunha
sua Alteza, o Sheik Jamal bin Omar bin Mohamed Al-Khoury.
Vikstrom ergue as duas sobrancelhas e após um segundo de estupor,
meu ex-noivo recusa-se de pronto, aos gritos: — Não admito, não sou
acusado de nada, não vou depor.
Um burburinho alto toma conta da sala.
— Silêncio na corte! — ordena Thorvald, batendo o martelo.
— Podemos nos aproximar, Majestade? — pergunta o advogado de
Jamal.
Não consigo escutar o que dizem, mas depois de ouvir o que dizem
Thorvald troca olhares com o Conselheiro Vikstrom antes de se voltar para
nós.
— A Corte precisa deliberar sobre essas novas informações.
Ele bate o martelo e se retira com os outros Lordes Conselheiros para
uma sala adjacente.
O tempo parece se arrastar. Finalmente, as portas se abrem e eles
retornam e retomam seus lugares.
Vikstrom permanece em pé. Limpa a garganta.
— Após considerar as novas evidências, a corte concluiu que não há
base para as acusações de homicídio contra Sua Alteza, o príncipe Lars
Haraldson. Contudo, não podemos ignorar a gravidade das ações que
levaram a esta acusação.
Sinto um frio percorrer minha espinha.
— Portanto, encerro esta audiência — continua ele —, ordenando à
Procuradoria Real que abra investigações por abuso, manipulação e
conspiração contra Sua Alteza, a princesa Vasilisa e por tentativa de
comprometimento da honra e segurança de Sua Alteza, o príncipe Lars
Haraldson, ambos da Casa Gulbrandr — conclui Vikstrom, a voz engolida
pelo alvoroço que tomou conta do local.
Nem o martelo de Thorvald consegue colocar ordem na sala. Os
jornalistas saem correndo.
Lars se levanta, vem em minha direção e me abraça. Retorno o abraço,
aliviada, mas ainda não estou com espírito de comemoração. O máximo que
concedo é dar a mão a ele. Afinal, somos parceiros.
Quando saímos do edifício, os flashes das câmeras nos cegam.
Esqueci dos repórteres. Eles gritam perguntas de todos os lados. Lars
passa o braço ao redor dos meus ombros e para, respondendo a algumas,
mas evito os microfones, porque não esperava que o Conselheiro Vikstrom
virasse o jogo dessa maneira. Que ele absolvesse Lars era uma esperança,
mas que abrisse investigações a nosso favor? O homem cresceu no meu
conceito.
— Lars, vamos — sussurro para ele, porque estou enjoada. — Não
estou me sentindo bem.
Todo esse clima tenso e pesado envenena o ar, e respirar se tornou
difícil. Meu coração pulsa devagar, com baques surdos, como se estivesse
lutando contra um peso invisível que o sufoca.
Ele passa o braço pela minha cintura, me puxando para perto, e me
apoio nele, sentindo a força e o calor que, mesmo nesse momento, ele
consegue transmitir, como um ponto de equilíbrio no caos.
Porque tudo o que eu quero é ser feliz, que sejamos felizes, mas a
traição é como um abismo intransponível entre nós.
Ignoramos as demais perguntas, entrando rapidamente no carro que nos
aguarda, milhares de degraus Assim que as portas se fecham, encosto no
banco e deixo escapar um suspiro profundo.
— O que você está sentindo?
Muita vontade de chorar.
— Quer que eu ligue para a Dra. Strand?
Sacudo a cabeça.
Não, quero que ele faça uma mágica e que volte no tempo.
Porque não acho que exista um remédio para a decepção, a dor de ser
traída, a desconfiança que corrói e a sensação de ser usada.
Deixo as lágrimas escorrerem.
— Meu amor, vamos superar isso, temos muito mais do que uma
simples aliança ou compromisso entre nós. O que sentimos um pelo outro é
real e inquebrável. É único — diz ele, segurando as minhas mãos e trazendo
para os lábios. — Eu te amo muito e prometo me redimir. Juro. Por favor,
acredite em mim.
As palavras vêm de longe, mas quero tanto acreditar nisso.
Os olhos azuis intensos mergulham nos meus. — Nós fizemos um bebê
juntos, algo que nunca pensei que pudesse acontecer comigo, algo que me
daria tanto significado e esperança.
Eu abaixo minha mão para a minha barriga e uma frágil ponte suspensa
de madeira começa a se construir entre as margens escuras do abismo,
balançando enlouquecidamente por ventos de incerteza e medo.
— Eu preciso de um tempo, Lars, para pensar.
Ele me puxa para seus braços, deposita um beijo na coluna do meu
pescoço, fazendo um arrepio deslizar pela minha espinha.
— O tempo que você quiser, contando que você volte para mim.
De repente, o carro dá uma guinada violenta.
Lars me solta, sua atenção mudando para a janela tão subitamente que
me sinto como um barco sem âncora, à deriva em um mar tempestuoso.
O motorista diz alguma coisa em vinterlandês que não entendo.
— O que é?
Sou jogada sobre suas pernas e ele se abaixa sobre mim, dizendo: —
Tem alguém atrás de nós.
Um barulho forte e uma batida joga o carro para um lado. O veículo
acelera, então imediatamente freia, mas somos atirados longe por uma
explosão brutal.
O mundo vira de cabeça para baixo, e vira um carrossel, que gira e gira
sem parar até que finalmente para com um estrondo de metal se chocando
contra asfalto e vidros se partindo e gritos e tiros e algo mais acontecendo
que não sei o que é.
Uma dor aguda me impede de respirar e minha cabeça dói, mas depois
de um momento a tontura passa.
Tento me mexer, mas Lars está em cima de mim, pesado, imóvel.
Um cheiro estranho invade minhas narinas.
Gasolina. Queimando. Calor. Fogo!
O carro está pegando fogo!
Começo a entrar em pânico, mas ele logo se mexe.
— Vasilisa?
— Estou bem — digo, apesar de sentir dor no corpo todo e sangue na
boca.
Ele se mexe e abre a porta, empurra-a e, desajeitadamente, cai para fora.
— Venha — diz, me estendendo a mão.
Rastejo para fora e olho ao redor. Não tenho ideia de onde estamos.
— Corra — fala, apontando numa direção. — Para lá é Vinter. Não seja
pega.
— Lars…
Sangue escorre de um corte na sua testa. Muito sangue.
Como vou fazer isso? Vou ser mais uma a abandoná-lo? Como o irmão?
Não, não! De jeito nenhum, não posso deixá-lo. Sacudo a cabeça.
— Vá! Não seja pega — pede, olhando nos meus olhos. — Tyr vai nos
encontrar.
Faço um balanço da floresta fechada à minha volta enquanto meu
coração parece que vai explodir.
Não seja pega, foi o que ele me pediu. Não seja pega.
Não sei onde estou, mas corro com todas as minhas forças na direção
em que ele mandou.
A floresta está assustadoramente silenciosa e eu corro mais rápido que
posso, me esforçando para obedecer a ordem dele.
Mas logo escuto passos me perseguindo, passos que parecem perto
demais.
Um tiro ecoa na floresta, passando rente pela minha cabeça e acerta o
tronco na minha frente, fazendo lascas voarem pelo ar.
E parece vindo do lado errado.
Paro, confusa.
— Não acertei porque não quis, mas posso matar seu marido — fala a
voz bem perto.
Na minha frente, aparecem dois homens arrastando Lars pelos braços. A
cabeça dele pende entre os ombros, sangue pinga do cabelo.
Um outro homem segura uma arma que parece ser um rifle.
Meu corpo se recusa a obedecer à minha mente que ordena que eu me
vire e corra para o outro lado.
Apenas recuo até minhas costas baterem num tronco.
— Ah, a princesa é inteligente.
As feições do homem, que é claramente o chefe, são magras e
envelhecidas. Seus olhos são da cor de noite e o cabelo da cor da neve mais
pura das montanhas de Vinterland.
A iluminação fraca da lua que passa pelas árvores faz um jogo de luz
estranho e ele parece um vampiro, mas não é isso que mais me assusta.
É o sorriso maldoso e a frieza calculada na voz gelada: — Princesa, se
não quiser que eu estoure os miolos do seu marido na sua frente, agora
mesmo, é melhor vir conosco.
Acordo sobressaltado, a cabeça latejando e a boca seca. O chão frio e úmido
sob mim traz um calafrio que percorre minha espinha. Tento me mover, mas
uma súbita dor nas costelas me impede momentaneamente.
Abro os olhos devagar.
A minha visão está turva, mal consigo distinguir formas ao meu redor,
mas a realidade se impõe aos poucos. Estou em um tipo de armazém
abandonado, com as paredes úmidas e bolorentas. No teto, tem ferros
enferrujados e ganchos grandes. Já vi isso em algum lugar, só não me
recordo onde. Fecho os olhos tentando me lembrar e quando a memória me
invade, é como o pior dos pesadelos. Sento-me de súbito.
— Olha só quem decidiu acordar — zomba a voz fria e calculista que
eu jamais esqueci. — A nossa festa não seria a mesma sem você, meu
querido.
A visão agora é nítida e não poderia ser mais cruel: Vasilisa amarrada,
pelos pulsos, o rosto pálido, suspensa no ar por um gancho de segurar
carne. Seus pés descalços mal tocam o chão e de onde estou posso ver que
suas panturrilhas exibem marcas de hematomas.
Um nó se forma em minha garganta. Não posso acreditar, não posso.
— O que você fez com ela? — minha voz sai rouca, cheia de ódio.
— Ah, nada de mais — responde Markus, passando a ponta da faca no
rosto dela, fazendo-a estremecer. — Só esquentando para a diversão, mas
nós vamos aproveitar muito a noite. Você sabe como eu sou bom com a
faca.
Como ele ousa fazer isso com ela? Com a mulher que eu amo?
Ele se vira para ela e continua: — Você não faz ideia do prazer que senti
ao cortar o principezinho. Ele chorava tanto. Tão patético. Mas você,
bonequinha, você é mais interessante.
A cada palavra que ele diz, minha vontade de matá-lo aumenta. Como
ele pode ser tão cruel? Tão insano?
— O segurança do Sheikezinho também foi bem interessante de cortar
— diz. — Gritou muito o porco. Gosto dos que gritam.
A raiva me consome por dentro, uma fúria ardente que ameaça me
dominar. Estou novamente em uma posição de impotência, incapaz de
proteger aqueles que amo. Ver Vasilisa em perigo, assim como aconteceu no
passado com outras pessoas queridas, desperta em mim lembranças
dolorosas. Agora, com ela grávida, a sensação de medo e fracasso é ainda
mais esmagadora.
— Foi você que mandou matar o segurança? — pergunto, minha voz
tensa com a fúria contida.
— Exatamente — confirma, um brilho de orgulho perverso em seus
olhos escuros.
— Por quê?
— Porque aquele idiota era dispensável e eu queria colocar minhas
mãos em você. Tinha bons contatos na Suécia — diz de maneira fria.
O jeito como ele segura o rosto de Vasilisa e o vira contra a luz, como se
estivesse decidindo se ela é bonita ou feia, ou se os dois lados são
simétricos, faz calafrios me invadirem.
O medo se mistura à raiva; este homem é um psicopata perigoso, e aqui
estamos nós dois à sua mercê.
— E a tentativa de assassinato no casamento? Foi você? — pergunto, a
voz rouca.
— Matar a bonequinha? Claro que não — ri ele. — Uma mulher não
vale todo esse esforço. Mas você… você vale muito mais e…
O celular dele toca interrompendo, o que ele ia falar.
— Preciso atender isso. Não vão embora. Volto já.
Às gargalhadas, ele vai até a porta, abre-a, o que deixa ver que do lado
de fora é uma floresta nativa e ainda chove.
Depois, a porta de ferro bate com um estrondo.
— Lars? Você está bem? — sussurra ela.
— Estou — minto, forçando uma animação falsa na voz para
tranquilizá-la. — Vamos sair daqui, prometo.
Lutando contra a dor, levanto-me nos joelhos. Meus pulsos estão
amarrados com cordas ásperas, mas não muito apertadas. Sinto uma
pontada aguda na costela esquerda e um corte superficial na testa, mas nada
que me impeça de me mover. Talvez haja uma chance de escapar.
— Quem é esse homem? — pergunta Vasilisa, a voz tremendo.
— Markus Eriksson. O chefe da gangue que me sequestrou décadas
atrás — respondo, cerrando os dentes. — Um criminoso que deveria estar
trancafiado na prisão Arctic. Achei que nunca mais o veria.
— Por que ele está fazendo isso?
Suspiro, sentindo o peso da culpa.
— Nós o capturamos anos atrás, e ele jurou vingança. Deveria estar
cumprindo perpétua. Não sei como, encontrou uma maneira de escapar e
quer acertar as contas.
A realização de que estou revivendo meu pior pesadelo do passado me
atinge em cheio. Desta vez, porém, é ainda terrível. Vasilisa, grávida, está
envolvida. O medo de perdê-la me paralisa por um momento.
— Sinto muito por ter te colocado nisso — digo, a voz falhando.
— Não é sua culpa — assegura, seus olhos buscando os meus na
penumbra. — Vamos encontrar uma saída juntos.
Antes que eu possa responder, a porta pesada se abre com um rangido
agudo.
— Olha só, o casal real tão unido e apaixonado — zomba ele. — Que
cena tocante e bonita.
Markus se aproxima, um sorriso sinistro estampado no rosto,
carregando uma caixa de madeira, do tipo usada para transportar
encomendas pelo correio, com estampa de frágil, com etiquetas estrangeiras
coladas nas laterais, e embalada em quilômetros de plástico super-resistente
e isolante.
— Tenho um presentinho especial para você, princesinha — debocha,
colocando a caixa numa mesa. — Acabou de chegar.
Ela o encara, com coragem. — Não quero nada seu.
Ele pega uma tesoura e corta o plástico. Depois, vai até uma mesa no
canto que até o momento não havia notado, onde tem material cirúrgico – e
que faz todos os pelos do meu corpo se arrepiarem – e pega uma furadeira à
bateria. Coloca uma máscara cirúrgica e uns óculos especiais e abre os
parafusos dos quatro cantos da caixa.
— Ah! Olha isso — diz ele, abrindo lentamente a tampa. — Acredito
que vai apreciar este em particular.
Uma onda de náusea me invade com o fedor que se espalha pelo
ambiente.
Com um movimento brusco, ele vira a caixa, e não posso acreditar no
que estou vendo.
A cabeça de Jarl Hardrada cai no chão com um baque surdo e rola até
parar aos nossos pés, os olhos vítreos fixos no nada.
Com um grito estrangulado, minha esposa recua na ponta dos pés,
balançando-se nas cordas que a prendem ao teto, contorce-se para afastar-se
da cabeça decepada, mas não consegue e, entre soluços, vomita.
— Seu filho da puta desgraçado! Seu monstro! — Com um chute, rolo a
cabeça para longe dela. — Tire isso daqui.
Mesmo sem jeito, seguro Vasilisa pela cintura e levanto-a, e aos
solavancos, arranjo uma maneira de tirar o gancho da posição que está e
levo-a para longe do vômito e do crânio.
Ele agarra a cabeça de Jarl pelos cabelos e a levanta, olhando nos olhos
mortos.
Vasilisa soluça, seu corpo tremendo. — Por quê? Por que fez isso?
Ele se aproxima dela, trazendo a cabeça nas mãos, e inclina-se para
sussurrar: — — Está vendo o que acontece com quem não cumpre o que
promete, Alteza? — diz, se deleitando com o desespero dela.
E por que não dizer?, com o meu.
— Você é doente — digo, entredentes. — Isso não vai ficar assim.
O ódio que sinto é quase palpável. Preciso encontrar uma maneira de
sair daqui, e tirá-la daqui, de protegê-la. Não posso falhar.
— Claro que vai. — Ele ri, um som gelado que ecoa pelo armazém. —
Vocês dois são ingênuos. Acham que o mundo é justo? Que o bem sempre
vence? Estou aqui para provar o contrário.
— Como foi que você escapou da Arctic? — pergunto, tentando desviar
a atenção dele para mim, porque me agonia vê-lo observar Vasilisa com
esses olhos escuros como a noite.
Sinto um alívio imenso quando consigo meu intento e ele vem em
minha direção, os passos medidos.
— Ah, que bonitinho ele está interessado em mim — diz ele, com
sarcasmo. — Depois que destruiu meu negócio, minha família e minha
vida, me enfiando naquele buraco gelado sem calefação, que nem pode ser
chamado de prisão, pelas as celas serem escavadas na pedra, e no inverno
ficam enregeladas, a luz elétrica é desligada à noite e os guardas tratam os
detentos pior do que tratam os animais. Os prisioneiros só veem a luz um
dia por mês e não têm direito ao básico como exercício diário e banheiro.
Para comer, temos que trabalhar…
— Acho mais do que justo — interrompo a ladainha. — Aqui fora, no
mundo das pessoas de bem, para comer, todos têm que trabalhar. Por que na
prisão seria diferente?
Ele fica sem resposta por um segundo. — Por que está interessado em
mim?
— Não estou interessado em você — falo friamente, meu olhar fixo no
dele. — Só quero saber como você fugiu, para impedir outras fugas.
— Vou contar, principezinho, mas não vai impedir outras, porque a
minha foi genial. — Ele ri, um som vazio e cruel. — Tenho uma irmã que
sempre foi muito parecida comigo. Ao longo dos anos, ela fez algumas
cirurgias plásticas para ficarmos idênticos, até mesmo mudou de sexo, mas
não alterou o nome oficial. Durante uma das visitas, aproveitamos o apagão
causado pela explosão na Tyrvulkan, planejado pela Égide, organização que
faço parte. Enquanto todos corriam como baratas tontas, trocamos a peruca
e roupa, eu saí livremente e ela ficou em meu lugar.
— Você usou sua própria irmã? — pergunta Vasilisa, chocada com a
história. — Você corrompe até sua própria família para seus próprios fins?
Não tem vergonha?
— Ora, não corrompi nada. Ela queria dinheiro. Aliás, sempre dei
dinheiro para eles, nada mais justo que retribuíssem meus caprichos —
justifica. — Sem falar que depois que fui preso, eles ficaram com meu
negócio.
— E trabalharam de maneira limpa por muitos anos — retruco.
— E estragaram tudo — diz, levantando os braços e rodopiando. —
Deixaram tudo apodrecer. Veja isso, vou ter que começar tudo de novo!
— Você acha que dinheiro paga tudo? — pergunta ela, indignada.
— É o que move o mundo, não é? — responde ele com um sorriso
cínico. — Foi por isso que seu principezinho se casou com você, não foi?
— Não, não foi!
— Vasilisa… — chamo, sacudindo a cabeça, sinalizando para que ela
não entre no jogo dele, porque com esse tipo de louco psicopata não há
como argumentar.
— Então, princesinha, vou deixar vocês relaxando mais um pouco
enquanto chamo meu banqueiro. Preciso acertar ainda umas coisinhas para
que você possa me fazer rico em bitcoins e mandar umas transferências
para a minha conta no Irã. Depois que estiver lá, nem os Estados Unidos
conseguem bloquear meus fundos. Morar no Oriente Médio nunca foi meu
sonho, mas — ele dá de ombros e finaliza com uma risada sinistra —, com
o seu dinheiro, vou comprar um harém e foder escravinhas virgens pelo
resto da minha vida.
— Claro, isso depois de terminarmos a nossa festinha — zomba, saindo
pela porta enferrujada que se fecha com um estrondo.
O silêncio volta a nos envolver, opressor.
Olho ao redor e avisto uma cadeira velha e capenga encostada na
parede. Com cuidado, subo nela, apesar das pernas instáveis.
Estico-me e consigo espiar pela pequena janela imunda o contorno das
montanhas ao longe e o arco-íris eterno que dá o nome ao fiorde, perto de
onde estamos escondidos.
— Idiota arrogante — resmungo.
— O que você vê? — pergunta Vasilisa, a voz carregada de esperança.
— Estamos perto do fiorde do Arco-Íris — respondo, descendo da
cadeira. — Se conseguirmos sair daqui, não vai ser difícil Tyr nos achar. Ele
já deve estar próximo, inclusive.
Ela expira, aliviada.
— Vou te tirar daí — falo, olhando para o alto e percebendo que se eu a
levantar talvez consiga desenganchar as amarras dos punhos do gancho. —
Consegue enrijecer os braços?
— Acho que sim — diz.
— Ótimo. — Seguro-a pela cintura. — Em três. Dois. Um. Já.
Não é nem um pouco difícil, o que me espanta, porque não tem guardas
conosco e nem ouvi a porta trancando.
Não é possível que ele não ache que não vou tentar fugir.
No entanto, assim que coloco Vasilisa de novo no chão, entendo.
Ela geme de dor, e se eu não a amparo, ela teria caído no chão.
— O que foi? — pergunto, descendo-a até o chão com ela nos meus
braços.
Ela soluça e lágrimas de dor escorrem por seu rosto.
— Ele espancou as solas dos meus pés e minhas panturrilhas. Porque
tentei fugir. Acho que não consigo nem pisar no chão, quanto mais andar.
Examino seus pés e pernas e noto que os hematomas que vi mais cedo
estão ficando mais roxos e mais extensos. Abraço-a bem apertado. — Filho
da puta.
— Markus quer nos quebrar. Quer que percamos a esperança.
— Ele está jogando com meus medos e traumas — digo para ela,
percebendo a verdade em suas palavras.
Ela me observa por um momento, a intensidade em seu olhar
aumentando.
— Lars, você precisa ir — declara ela, segurando minha mão. — Você
precisa ir buscar ajuda.
— Não vou te deixar aqui — protesto, o conflito interno me rasgando
por dentro.
— É a única maneira. Se você for, pelo menos, temos uma chance. Se
você ficarmos, nós dois morremos. — Ela traz minha mão para sua barriga.
— Nós quatro morremos.
As palavras dela me atingem em cheio, mas a ideia de deixá-la é
insuportável.
— Por favor, Lars… — pede ela, as lágrimas escorrendo incontidas. —
Vá e traga ajuda.
Engulo em seco, lutando contra a emoção.
— Eu vou, mas prometo que volto. Aguente firme. — Abraço-a forte.
— Eu te amo mais do que tudo.
— Também te amo — responde ela, forçando um sorriso entre as
lágrimas.
Com relutância, levanto-me e olho ao redor.
— Vou trazer ajuda o mais rápido possível. Não o provoque e tente
ganhar tempo. Se ele pedir dinheiro, dê. Dê tudo o que ele quiser.
Ela assente.
— Eu te amo. Muito.
Beijo-a, desesperado e rápido demais, e dirijo-me silenciosamente até a
porta. Abro-a e sou recebido pelo ar frio da floresta.
Olho para trás uma última vez e vejo-a encolhida no canto.
Cada passo é uma luta contra o instinto de voltar para protegê-la, mas
preciso ser forte por nós dois.
Meu coração pesa como chumbo, mas sei que essa é nossa única
chance.
Agora sei como Tyr se sentiu quase duas décadas atrás.
Encolho-me em um canto escuro do armazém, tentando ignorar a presença
macabra da cabeça de meu pai a poucos metros de mim.
O fedor de carne apodrecida e o cheiro metálico de sangue se juntam ao
odor forte de mofo e umidade das paredes e ainda do meu próprio vômito,
mas tento manter o foco em pensamentos mais fortes e energias melhores.
Em Lars e no futuro. Em amor.
Uma coisa é certa: Lars fez o que achou necessário para me libertar das
amarras de meu pai e de Jamal. Poderia ter feito diferente? Poderia. Poderia
ter me contado antes? Sim, com certeza. Mas não o fez e não adianta chorar
sobre o leite derramado. Ele é o homem que eu amo. Não quero nem pensar
como eu estaria se tivesse me casado com Jamal e ainda estivesse sob o
jugo de meu pai.
No entanto, quando sairmos daqui, exigirei minha liberdade. Sou dona
de mim mesma.
A porta range, interrompendo minhas divagações, e Markus volta,
entrando, carregando uma cadeira, arrastando-a pelo chão de concreto, de
maneira que parece proposital para me irritar.
Ele a posiciona à minha frente e se senta, cruzando as pernas com uma
tranquilidade perturbadora. Estar aqui, sozinha com esse homem que já me
machucou, que decapitou meu pai e que, décadas atrás, feriu tanto o homem
que amo, é aterrorizante, mas eu sou forte.
— Vejo que seu maridinho fugiu — comenta ele, um sorriso torto nos
lábios. — Não estou surpreso de ele a abandonar. É um covarde mesmo.
— Ele não me abandonou. — Respiro fundo e encaro-o. — Lars
voltará.
— Talvez, sim, talvez, não. Quem sabe? — Markus dá de ombros. —
Mas eu não estarei mais aqui, bonequinha. Se você não obedecer, você
estará. Talvez não inteira, mas pode ser que ainda esteja viva. Mas só se me
obedecer. O que me diz?
Ele é maluco ou o quê? Sinto uma onda de ódio subir pela minha
garganta, mas a engulo. Preciso ganhar tempo.
— Vou obedecer — digo, estou apavorada, mas ele não vai saber disso.
— Que bom! — Bate palmas. — Então, temos negócios a tratar.
Ele vai até a mesa atrás e volta com um laptop e o abre, virando a tela
em minha direção. — Vamos direto ao ponto. Preciso que transfira uma
quantia considerável para algumas contas minhas. Considere uma
indenização pelos transtornos que seu marido me causou.
— E se eu me recusar? — desafio, mantendo o olhar firme.
— Não aconselho. — Ele ri baixinho. — Além do mais, se colaborar,
posso reconsiderar meus planos para você. Talvez eu a pique em pedacinhos
enquanto estiver viva. O que acha?
Cada segundo ao lado dele é uma luta contra o pânico. Tento manter a
compostura, mas a cabeça de meu pai no chão, os olhos sem vida fixos no
vazio, me deixam sem chão.
A percepção de que Markus é capaz de qualquer coisa me paralisa.
Sinto-me vulnerável, presa numa armadilha sem saída.
— O que exatamente quer que eu faça?
— Boa garota — diz ele, deslizando o laptop mais perto. — Aqui estão
as instruções. Compras de criptomoedas, transferências eletrônicas, você
sabe como é.
Olho para a tela, onde várias janelas estão abertas com contas no que
parece ser o Irã. Ele vai drenar minhas finanças.
— Você não vai conseguir escapar disso — aviso, enquanto começo a
digitar, seguindo as instruções. — As autoridades rastrearão essas
transações.
Os minutos se estendem como horas enquanto espero cada transação ser
processada. O silêncio pesado é preenchido apenas pelo som distante de
máquinas trabalhando e pelo gotejar constante de água das tubulações
antigas.
Meu coração martela no peito, e uma camada fina de suor recobre
minha testa apesar do frio. A tensão é tangível, e a sensação de perigo
iminente torna difícil até mesmo respirar.
— Ah, mas não estou muito preocupado com isso. Com o Irã e os
Aiatolás ninguém mexe ou eles explodem os campos de petróleo e o mundo
fica a pé.
— É?
— É. Sabe, enquanto você esvazia sua fortuna, estou pensando em
como será divertido ver Vinterland em ruínas — comenta ele, casualmente.
— O que quer dizer com isso? — pergunto, sem desviar os olhos da
tela, mas fazendo tudo o mais devagar possível.
— Simples — diz, sorrindo. — Assim que terminar suas transferências,
acionarei um dispositivo para explodir a Usina Tyrvulkan e assim toda
aquela obra-prima de geração de energia geotérmica estará perdida. Vocês
voltarão em uma década de investimentos. Sem falar que terão que
indenizar os contratos que têm com os países para fornecimento de energia.
As mãos tremem sobre o teclado. Não posso permitir isso.
Lars, cadê você?
— Você é louco! Não é só o fornecimento de energia, com isso o vulcão
pode explodir. Milhares de pessoas podem morrer!
Ele sorri mais abertamente, feliz. — Exatamente. E não sobrará nada
para os bebês que você espera, nem para seus sobrinhos. Um novo começo,
à minha maneira.
Tento convencer Markus de novo, buscando desesperadamente uma
forma de ganhar tempo. As operações bancárias internacionais não são
instantâneas, e cada segundo adicional pode ser a diferença entre a vida e a
morte. Minha mente corre, procurando argumentos, mas é difícil pensar
com clareza sob tanta pressão. O medo de que ele cumpra sua ameaça de
destruir Vinterland e machucar ainda mais pessoas inocentes é sufocante.
— Por favor, não faça isso — imploro, tentando manter a voz firme. —
Podemos encontrar outra solução.
— Ah, mas essa é a solução perfeita para mim.
Olho para Markus, tentando encontrar algum traço de humanidade em
seus olhos, mas tudo o que vejo é frieza e satisfação cruel. O armazém
parece encolher ao nosso redor, as sombras se alongando como mãos
sinistras. A sensação de isolamento é esmagadora. Preciso agir, fazer algo
para impedir esse homem, mas sem recursos e sob vigilância constante,
minhas opções são limitadas.
Sinto a esperança se esvaindo, mas me agarro à determinação de não
deixar que ele vença.
— E se eu der todo o meu dinheiro?
Ele consulta o celular e sorri. — Já deu, bonequinha.
Olho para a minha conta e vejo que não tem mais nada mesmo.
Ele se levanta e pega um facão e dá um sorriso macabro. — Agora, eu
vou começar a brincadeira. Sabe a sua professora, a Helga? Ela era minha
esposa e não quis mais ficar comigo quando descobriu que eu gostava de
cortar criancinhas. Ela não ficou ainda mais bonita?
— Seu monstro! — grito, e sem pensar atiro o computador em cima
dele.
Exatamente nesse minuto, a porta se abre com um estrondo.
— Tyr, porque a demora? — impaciento-me, porque não aguento nem mais
um segundo saber que Vasilisa está lá dentro, nas mãos daquele psicopata.
É por minha causa que ela está ali. É a mim que ele quer.
Isso é insuportável e imperdoável.
Esperei tanto tempo para ouvir que ela me amava e foi nessa situação
que consegui ouvi-la dizer isso.
Sem falar que fiz tudo errado. Comprei a curatela do pai dela. Mantive-
a cativa, sem necessidade. Não dei a liberdade que ela queria. Não expliquei
as minhas razões. E por quê? Pelos deuses, por quê?
Tem horas que Markus ri e zomba dela e ela mantém uma compostura
que me faz amá-la e admirá-la ainda mais.
— Porque você não quer deixar nenhuma possibilidade em aberto,
quer? — pergunta ele, os olhos grudados no monitor de televisão que
transmitem as imagens das câmeras que ele instalou dentro do antigo galpão
frigorífico.
O crepúsculo já se foi há muito e as paredes de metal enferrujado
refletem a luz branca acesa muitos metros acima da cabeça deles, que dá ao
lugar uma aparência ainda mais sombria.
O ar gelado do contêiner faz com que fantasminhas saiam pela minha
boca e isso me dá arrepios.
— Mas quem estamos esperando?
— Por quem está manipulando tudo isso: a Égide — fala doutora Helga,
a professora de Vasilisa na Universidade e ex-mulher de Markus.
Até tentei olhar para o lado direito do seu rosto, mas a cada vez que
olhava seus cortes, sentia a dor fantasma nos meus, e tive que discretamente
trocar de lugar com Tyr e me sentar do seu lado esquerdo.
— Mas por que o chefão apareceria logo agora? Se nem Thor ou
nenhum de nós está lá?
— Porque a Égide ama a monarquia — diz a professora. — Para eles,
ela é quase a realeza britânica, ela é uma princesa da Casa Romanov. O que
talvez tenha ainda mais mistério e sedução para eles.
Um som e um sinal vermelho começam a piscar furiosamente em dois
outros monitores.
— O que é isso? — pergunto.
— Os bancos, General — informa o ex-major Eirik Lundgren,
integrante do Grupo do Subsolo, que está na frente das duas telas,
coordenando uma terceira. — As contas da princesa foram esvaziadas.
Temos agora uma hora para informar que as transações foram feitas sob
coação e que sendo ela é incapaz, não poderia tê-las feito sem a autorização
do príncipe Lars.
— Tyr…
No monitor principal, vejo Vasilisa se destemperar e jogar o computador
na cara de Markus quando ele diz que gosta de cortar criancinhas.
— General! — chama a professora. — Não podemos mais esperar!
Do lado de fora do galpão, acabou de saltar de uma caminhonete
enorme, uma mulher forte, toda musculosa, cabelos curtos cortados e
vestida com roupas em estilo militar, e que abre a porta com um chute.
Os pelos da minha nuca se arrepiam.
— Merda! Fodeu! — xinga meu irmão.
— O que foi? — pergunto, porque ele não é de gastar palavrões
desnecessários.
— Você fica aqui! — diz Tyr, saindo correndo do contêiner e gritando
ordens no ponto: — Homens nas janelas, entrem. Snipers i a postos. Estou a
caminho.
A adrenalina explode nas minhas veias. Meu coração bate
descompassado, quero ir até lá, lutarao lado dela por ela.
No entanto, é pela tela presa na parede do contêiner, que vejo janelas
encardidas quebrando e espalhando estilhaços de vidro enormes quando os
homens de preto pulam para dentro do prédio.
Vasilisa grita e tenta fugir, mas não consegue andar e cai. Arrasta-se
para longe. Markus se joga para cima dela, agarra uma de suas pernas, faz
um círculo com a faca que está usando, consegue acertar alguma parte do
corpo dela.
Ela grita e eu berro. Soco a mesa e ela chuta a cara dele.
Tiros soam. Mais gritos.
Vejo mãos puxarem Markus de cima de Vasilisa e Tyr pegá-la no colo,
com muito cuidado, franzir o rosto, gritar alguma coisa e sair com ela
correndo. Aliviado, caio sentado na cadeira.
A professora me estende um copo de água, mas recuso, porque acho que
não consigo beber nada.
Preciso dela. Segurá-la em meus braços.
Lundgren vem até mim e devagar, como se eu fosse um imbecil, diz: —
Alteza, o General está pedindo para o senhor ir direto para o helicóptero.
Ele já foi para Vinter.
O que me alarma e dou um pulo. — Ela está bem?
— Parece que sim, mas está machucada e precisava de atendimento
médico imediato — informa ele.
— Claro.
Por que não pensei nisso?
Com meu coração na mão e peito apertado, saio para o quadriciclo e
dali para o helicóptero, acompanhado pela professora, e Lundgren, que no
seu super hiper mega ultra blaster tablet, vai dando ordens de
cancelamento para os bancos e revertendo todas as transações feitas por
Vasilisa.
Pousamos no teto do hospital e quando chego ao lounge encontro minha
família e o irmão mais velho dela.
Pelos olhos vermelhos de Catarina não tenho coragem de perguntar
nada, mas a espevitada da minha cunhada avança sobre mim e acho que se
ela tivesse uma vassoura, ancinho, machado, foice… sei lá, qualquer coisa,
ela usaria.
— Tomara que ela faça você comer o pão que o diabo amassou! —
exclama Tatyana, batendo no meu peito. — Tomara que ela te deixe!
E isso faz Catarina sair do seu estupor e vir para cima de mim também:
— Você não a merece. Como pode deixá-la naquele lugar sozinha?
Não impeço os socos e tapas delas porque as duas têm razão: Vasilisa
me deu seu sorriso, seu calor, seu amor.
Até mesmo a porra da vida dela, quando recebeu um tiro em meu lugar.
E o que foi que dei a ela? Falta de liberdade, excesso de carinho.
Obsessão.
Leif é o primeiro a reagir e pega Catarina em um abraço carinhoso. —
Bruxa, calma! Se ele não tivesse fugido, Tyr não a teria salvado.
Tyr pega Tatyana nos braços, levantando-a do chão. — Harpia, chega.
— Ela está em cirurgia — informa Thorvald, colocando a mão no meu
ombro. — A facada não atingiu nenhum órgão vital. A Dra. Strand e Dr.
Andersen estão com ela.
Preciso limpar a garganta para perguntar: — Os bebês?
— Até o momento, estão bem — diz ele.
Desabo na primeira cadeira e pressiono os calcanhares das palmas das
mãos contra os olhos.
Levanto a cabeça com o barulho de uma porta se abrindo na esperança
que seja um médico com notícias, mas é Magnus que entra com uma
bandeja de café nas mãos. Ele distribui as xicrinhas, mas estou enjoado
demais para aceitar.
Não tenho paciência para participar das conversas que se desenvolvem
ao meu redor e fico em silêncio, pensando no que fiz desde que comecei o
meu relacionamento com Vasilisa.
Escuto vagamente a doutora Helga explicar para Tyr e Thorvald que é
exatamente para evitar esse tipo de crime e para ajudar com soluções
rápidas que estão desenvolvendo o projeto que proibi Vasilisa de participar.
Thorvald diz que ela terá o apoio total dele para ampliar o projeto a
nível nacional. E o meu também. Sem a ajuda dela e da professora Berg,
talvez Tyr não nos encontrasse a tempo. Ambas foram fundamentais em
apontar onde estávamos, em ajudar a prender os capangas e em informar
que havia mais pessoas envolvidas, inclusive o pai de Vasilisa, o ex-noivo,
que foi preso antes de deixar o país, e que os tentáculos da Égide estavam
por toda a parte.
Ela suspira. — Espero que agora Markus fique trancafiado para sempre.
— Infelizmente, isso não vai acontecer, Professora — diz Tyr.
— Como assim, General? — pergunta ela, espantada com a frase dele.
Abro os olhos e vejo que Tyr se vira para ela, e sorri, o que me conta
que tem planos sinistros para o criminoso. Regozijo-me com isso.
— Uma pessoa não vive para sempre.
— Ah, claro — diz a inocente. — É maneira de dizer.
O que o faz sorrir mais ainda e pela primeira vez na noite sorrio
também. Espero poder estar presente quando meu irmão soltar as amarras
dos demônios que assolam a alma dele em cima de Markus. Vou me sentir
vingado.
No entanto, a dor quase insuportável que se instalou no meu peito mata
o sorriso do meu rosto quase imediatamente porque ainda não tenho
notícias de Vasilisa.
Levanto-me e ando pela sala.
O ponteiro dos segundos no relógio à minha frente parece zombar de
mim.
O Dr. Andersen passa e avisa que a cirurgia já está terminando e que
tudo vai bem. A Dra. Strand ficará com ela até o final.
Quase cinco mil e cem segundos desde que cheguei, finalmente!, a Dra.
Strand aparece, com um sorriso no rosto, o que alivia um pouco a dor física
alojada sob meu esterno.
— Ela já está no quarto — diz. — Está dormindo, porque estava muito
nervosa e achei melhor sedá-la levemente. Provavelmente, vai dormir a
noite toda.
— Ela está bem?
— Considerando as circunstâncias? — pergunta ela, levantando as
sobrancelhas. — Está ótima.
— Que bom, muito obrigado, doutora.
— Passo amanhã de manhã para liberá-la — diz e se despede.
Quando abro a porta do quarto, meu olhar vai direto para o rosto pálido
de Vasilisa, quase tão branco quanto o lençol que a cobre.
Fico chocado de ver que ela está conectada a um IV, uma bolsa de
sangue, um monitor de frequência cardíaca e tantos outros fios e máquinas
que não parece estar tão bem assim.
Viro-me para ir buscar um médico e dou um encontrão em Thorvald,
que está logo atrás de mim.
— Calma — diz ele, me segurando pelos ombros. — Ela vai ficar bem.
As próximas horas parecem se arrastar.
Meus irmãos mais velhos são os primeiros a ir para casa com as
esposas. Afinal, Yasmin teve bebê há pouco e Tatyana está muito grávida.
Leif, sob as ordens de Vladimir, também leva Catarina. Magnus e Vladimir,
os solteiros, ficam e se revezam em aturar os meus resmungos e grunhidos.
Às sete horas da manhã, já estou desesperado, porque ela ainda não se
mexeu.
— Você deveria dormir um pouco — tenta Magnus.
Olho para ele, enviesado.
— Ou talvez tomar um banho — diz Vladimir e funga. — Está fedendo.
Nem me digno a responder.
— Fazer a barba, talvez — sugere Magnus mais uma vez. — Você está
parecendo Jamal.
Isso faz com que eu me mexa.
Passo a mão no rosto e sinto os pelos espetarem. Ainda me lembro de
quando ela me pediu para tirar a barba, porque não queria se lembrar da
sensação da barba no beijo forçado de Jamal.
Não deve estar parecendo nem de longe com a barba do árabe, mas não
quero que ela acorde e me veja barbado.
Finalmente solto a mão dela e me levanto da cadeira onde sentei desde
que entrei no quarto.
— Vou tomar um banho e fazer a barba. Se ela acordar, venham me
avisar.
— Pode deixar — diz Magnus. Ele vai até o armário e pega a minha
roupa. — Aqui, Lars.
Quando saio do banho, sentindo-me renovado, a Dra. Strand está
entrando no quarto e Magnus e Vladimir saindo.
— Bom dia. Como foi a noite?
— Ela não se mexeu, apesar das enfermeiras que entraram e saíram
várias vezes — digo, preocupado.
— Que bom — diz a médica, pegando o tablet. — Ela estava precisando
descansar.
Chego perto da cama e faço um carinho nos cabelos loiros do meu
amor, que para a minha surpresa abre os olhos e pisca esses verdes
brilhantes que fazem minha vida mais alegre.
— Oi, meu amor.
E sorri. Nem consigo dizer nada porque fico repleto de amor. Abaixo-
me e pego-a nos braços, tendo cuidado com os fios que ainda estão presos
ao corpo dela, informando que está tudo bem.
Engulo as lágrimas de alívio que teimam em querer encher meus olhos.
Limpo minha garganta e sussurro, rouco: — Oi, minha princesa.
— Você não vai chorar, vai? — pergunta baixinho no meu ouvido,
Solto uma risada aguada e sacudo a cabeça. — Espero que não.
Ela ri, o som mais lindo do mundo, e me abraça com um braço só. —
Pode chorar. Não sou igual à Tatyana que acha que homem que chora fica
feio.
Rio e coloco-a de volta nos travesseiros. — A Dra. Strand está aqui para
nos liberar.
Para meu espanto, ela me expulsa do quarto e só me deixa entrar de
volta quando estar de banho tomado e arrumada, com uma roupa que
Catarina, que ainda está meio brava comigo, traz para ela.
Quando saímos, a luz do dia nos envolve, trazendo uma sensação de
renascimento.
— Vamos para casa — digo para ela, segurando sua mão com força.
— Vamos. — Ela aperta minha mão de volta, mas diz séria: — Temos
muito o que conversar.
Não sei se gosto muito desta frase.
Antes de chegar aos portões da Månestrålens Fjordresidens, ainda na
alameda ladeada de árvores, já podemos ver o enxame de jornalistas na
entrada particular de nossa casa.
Assim que notam o carro, todos se viram na nossa direção e os flashes
pipocam. Câmaras são erguidas e os profissionais correm para o meio da
rua, sem medo de serem atropelados por outros carros, tentando pegar uma
visão melhor da SUV, pois o carro da segurança impede um melhor visual.
A sorte deles é que por ser cedo, o movimento é bem pequeno.
Lars suspira ao meu lado, os dedos tamborilando impacientemente no
apoio de braço entre nós dois.
— Será que vão nos perseguir para sempre? — pergunta ele,
retoricamente, lançando um olhar aborrecido pelo vidro.
— Vão e você sabe disso, mas não me importo. — Apoio minha cabeça
no seu ombro e entrelaço meus dedos com os dele, tentando aliviar a tensão
que sinto emanar do seu corpo. — Estou bem, você está bem, nossos bebês
estão bem.
— Exato. Um pouquinho de paz viria a calhar — resmunga ele. — É só
isso que peço.
— Podemos marcar uma coletiva e até anunciar a gravidez. Assim eles
nos deixariam em paz — sugiro, virando-me para encará-lo. — O que acha?
Ele me encara, ainda de cara fechada. — Na verdade, estava pensando
em mandar todos eles para…
Antes que ele complete a frase, estendo a mão e coloco delicadamente
meus dedos sobre seus lábios.
Arqueio uma sobrancelha. — Um príncipe de Vinterland é mais bem-
educado que isso e sabe que ter a imprensa ao seu lado é importante. Afinal,
isso lhe serviu quando lhe conveio, não?
— Você tem razão — admite, e segurando minha mão, morde a ponta
do meu dedo e depois deposita um beijo suave em minha palma.
Posso ouvir os jornalistas gritando nossos nomes, fazendo perguntas que
se perdem no ar e os flashes das câmeras iluminam o interior por breves
instantes quando o carro passa pelos portões.
O sol matinal ilumina os jardins e a fachada imponente do palacete
antigo. Uma onda de alívio me inunda. Estou em casa, mesmo sabendo que
ainda há aparas a acertar.
— Sinceramente, meu amor, só quero você ao meu lado — insiste ele.
— O resto não importa.
Sorrio para ele, meu coração aquecendo com suas palavras.
— Estou aqui ao seu lado — respondo, entrelaçando meus dedos aos
dele. — Quero dizer, estarei, se e enquanto você se comportar.
Lars franze as sobrancelhas. — É a segunda vez que você diz coisas que
me deixam apreensivo.
— Porque nós vamos conversar, Anjo — aviso de novo e concluo: —
Mais tarde, porque pelo número de carros temos visitas.
— Ainda acho que deveríamos ter fugido para uma cabana isolada nas
montanhas — reclama quando o carro passa pela entrada principal e ele
repara que o estacionamento interno da nossa residência tem movimento.
— Era tentador — concordo. — Mas não íamos conseguir ficar
escondidos por muito tempo. A família, a começar por Tyr, ia nos encontrar.
Sem falar na imprensa.
— Infelizmente, você tem toda razão. Novamente.
— Prometo que, assim que melhorar, vou para o Ártico com você. Só
nós dois.
— E eu prometo tentar ser mais paciente com a imprensa — acrescenta
ele, suspirando teatralmente.
Sorrio, balançando a cabeça. — Já é um começo.
O carro para em frente à entrada lateral da residência, onde Barnaby
está a postos. O motorista abre o porta-malas e o segurança retira a cadeira
de rodas que vou ser obrigada a usar por uns dez a quinze dias ou até que os
cortes nos meus pés cicatrizem por completo.
Lars desce, me pega no colo, e me coloca na cadeira.
— Seja bem-vinda de volta, Alteza — diz Barnaby. — Estávamos todos
rezando para a senhora voltar logo e bem.
— Obrigada, Barnaby.
Lars empurra minha cadeira de rodas pela rampa lateral.
— Então, agendamos a coletiva para semana que vem?
— Não — discordo, olhando o jardim e a vista magnífica do fiorde com
a cachoeira na lateral. — Depois de amanhã de tarde, antes do crepúsculo,
seria ótimo. Dá tempo de nos prepararmos e não deixar o assunto morrer.
— Entrarei em contato com Astrid e pedirei a ela para organizar a
coletiva.
— Com um lanche bem típico, no jardim — digo e viro o pescoço para
olhar para ele. — Eles vão até esquecer o que vieram fazer aqui.
— Você não presta, Diaba.
Sorrio. — Mas vamos encarar essa coletiva como uma oportunidade.
— Oportunidade? — franze a testa, curioso.
— Sim. De mostrarmos ao mundo quem realmente somos, sem
máscaras ou mal-entendidos. Depois de tudo o que passamos, seria bom
esclarecer as coisas.
— Você sempre vê o lado positivo, não é?
Dou de ombros, sorrindo. — Alguém precisa equilibrar seu pessimismo
ocasional.
Ele ri. — Acho que fazemos uma boa dupla.
— Concordo plenamente.
As portas se abrem, revelando que a sala de estar está decorada com
arranjos elegantes de Pecadoras Magníficas misturadas a outras flores
brancas que não reconheço, e o primeiro a vir me receber é Vladimir.
— Vasya, que susto você nos deu — diz, me dando um abraço afetuoso.
— Vladimir! — exclamo, surpresa. — Não esperava vê-lo aqui.
— Como assim? — diz ele, indignado, depois de me dar um beijo. —
Vim para o casamento e para a festa, não viria quando você é sequestrada?
— Ele chegou ontem, assim que soube da notícia e não arredou o pé do
hospital nem um minuto — conta Lars ainda atrás de mim. — Só saiu do
seu quarto hoje de manhã cedo, na hora que a Dra. Strand entrou para te
liberar.
Fico surpresa com isso, mas não deveria. Isso é que é família.
Depois meu tio, Ivan, repete o abraço, e diz em tom paternal: —
Vasilisa, minha querida, é bom tê-la de volta em segurança.
Mais um abraço, de Magnus desta vez.
E então um berro de: — Chegamos! —, anuncia minhas amigas e nem
dá tempo que Barnaby avise que são Tatyana, Catarina e Yasmin,
acompanhadas dos maridos e noivo que chegam, porque três furacões
entram na sala, o que faz Lars se postar à minha frente.
— Calma, calma — diz meu marido, levantando as palmas, mas quando
elas não diminuem a velocidade, ele ordena com a voz firme: — Calma!
Parem aí mesmo.
E elas estancam, mas porque ficam horrorizadas ao me verem na
cadeira de rodas.
— É só por uns dias — aviso. — Sai da frente, Lars.
Assim que ele se move, elas avançam devagar.
Bom, em termos…
— Abraço coletivo! — grita Tatyana. E as três, ao mesmo tempo, vem
me dar um abraço.
— Tyr! Thor! Leif! — berra Lars, sem saber o que fazer. — Pelo amor
dos deuses! Contenham suas mulheres!
No entanto, no meio de tanto perfume francês delicioso, cabelos
sedosos, e blusas de seda, eu só posso rir.
Porque não tem nada melhor que essa amizade sororal, i que só amigas
de anos e anos, como nós, podem entender.
Acho que se deixasse, elas me raptariam para o quarto, e me fariam
contar tudinho só para elas, mas depois de uns cinco minutos, o nosso
abraço se desfaz.
Leif se aproxima e me dá um beijo. — Bom te ver bem.
Seguido de Tyr, que se inclina e mal me dá um abraço. — Fico contente
que esteja bem, Cunhada.
Mas eu não me esqueci de quem foi que me tirou daquele galpão, quem
correu comigo nos braços, e quem entrou gritando ordens urgentes no
helicóptero, parecendo que ia matar o piloto se ele não voasse o mais rápido
possível.
Lembro dele arrancando a própria camisa e rasgando-a em tiras com
uma adaga que puxou da cintura – parecendo bem o Neandertal que a
mulher o acusa de ser – e amarrando-a em volta da minha coxa.
Ri das coisas idiotas que ele me contou sobre Lars – não sei se inventou
na hora –, mas me mantiveram distraída até que chegássemos ao hospital e
os médicos colocassem uma máscara sobre o meu rosto e o mundo
escurecesse de vez.
— Obrigada por ter me salvado, Tyr — digo, jogando meus braços ao
redor do pescoço dele e puxando-o para baixo. — Obrigada mesmo!
— Não fui eu, foi uma equipe — diz ele, me dando dois tapinhas nas
costas e se remexendo como se não se sentisse à vontade em ser abraçado.
— Como está a coxa?
— Vai ficar ótima — respondo. — Graças a vocês todos.
— Você é forte, Vasya. — Tatyana sorri e puxa o marido para se sentar
ao lado dela. — A mais forte de todas nós.
Por último, Thorvald se aproxima trazendo a filhinha nos braços, a
Princesa Alva, futura rainha de Vinterland.
— Posso? — pergunto, depois de cumprimentá-lo.
Ele hesita por um instante, mas depois cede. — Pode, claro.
— Ela está cada dia mais linda — digo, acariciando a bochechinha
rosada da bebê.
— Também… É igual à mãe — fala o pai mais babão que já vi neste
mundo. — Vai ser um problema em driblar os conquistadores.
— Acho que nenhum vai servir, né? — brinco com ele, devolvendo a
neném, porque sinto que ele está incomodado em não a ter nos braços.
Ele levanta as sobrancelhas na dúvida. — Depende. Vai ter que passar
pelo meu crivo.
Yasmin dá uma risadinha.
Logo, o aroma de café recém-passado e pães quentes e frescos invade
meus sentidos exatamente quando Barnaby entra na sala e avisa: — O café
da manhã está servido.
— Vamos?
Lars empurra minha cadeira em direção à sala de jantar, mas o banquete
– porque isso não é um café da manhã – foi servido no jardim, onde
Barnaby fez uma mesa longa e me posiciona no centro e se senta ao meu
lado.
Revezamo-nos em contar o que todos querem saber: o que aconteceu e
como foi que nos sentimos durante toda a odisseia.
— Não vou mentir, fiquei com muito medo — respondo, séria —,
apesar de saber que ia ser salva, eu estava estudando psicopatas e aquele
homem…
Um arrepio faz meu corpo estremecer.
Lars passa meu braço pelo dele e entrelaça nossos dedos. — A doutora
Bakke foi fundamental em nos ajudar a localizar o esconderijo de Markus,
nos avisar que ele tinha uma nova parceira, que se correspondia com ele na
prisão, que o visitava, quais eram os hábitos dele.
Olho para Lars, surpresa. — É mesmo?
Ele sorri. — Além de ter prometido ajudar no que pudesse, fiquei muito
impressionado com o DarkLine.
— Eu também — adiciona Tyr. — Sem falar que foi ela que identificou
a troca de… corpos, logo depois do incidente no Cubo. Se ela tivesse me
avisado disso um ou dois dias antes, nada disso teria acontecido.
— Que bom! — digo, entusiasmada.
— Coloquei toda a estrutura do Ministério da Justiça e Relações
Exteriores à disposição do projeto — fala Magnus. — E apesar de você
estar fazendo psicologia, se continuar a trabalhar nesse projeto, talvez eu
tenha um posto para você no meu secretariado quando acabar a faculdade,
Cunhada.
Olho para Lars que continua sorrindo.
— Jura?
— Se prometer cumprir a lista de protocolos de segurança que Tyr vai te
passar, não vejo problema algum — confirma ele.
— Prometo!
Puxo-o pelos cabelos e dou um beijo em sua boca, ganhando assobios
de todos na mesa.
— Você teve muita sorte, Pequena, não vamos arriscar de novo.
— Ela definitivamente tem um anjo da guarda muito forte — diz
Magnus.
Sorrio para o meu marido. — Eu tenho o meu anjo particular, não é,
Anjo?
— Se você tivesse me apelidado de anjo, Harpia, acho que eu teria te
afogado no Tyrvulkan na primeira semana de casamento — resmunga Tyr
da ponta da mesa.
— Mas com uma frase fo-fa desta, Bárbaro, você queria ser apelidado
de anjo, como? — pergunta Tatyana com um sorriso.
Olho espantada para os dois. — Mas eles ainda estão deste jeito? —
pergunto para ninguém em particular.
— Acho que eles vão se amar assim até morrer — comenta Leif.
— Por que de paixão você entende, não é, Don Juan? — cutuca
Catarina.
— Já poções são sua especialidade, não é, Bruxa? — retruca ele,
imediatamente.
Viro-me para Lars e pergunto baixinho: — Colocaram alguma coisa na
água de Vinter?
Ele dá de ombros e sussurra: — Contanto que você continue a ser minha
Diaba e eu seu Anjo, por mim está tudo bem.
Sorrio. — Então, tá.
O café da manhã prossegue em um clima que oscila entre assuntos
sérios, temas leves, e implicâncias entre os dois casais. Compartilhamos
risadas e conversamos sobre o futuro.
Estou cercada por pessoas que me amam e apoiam. Minha família, de
sangue e de coração.
O relógio marca quase meio-dia quando o cansaço começa a me vencer
e Lars é o primeiro a notar.

— Acho que minha princesa necessita descansar — diz ele, levantando-se,


sem a menor cerimônia.
Como são todos da família, nossos convidados não demoram a se
despedir, entendendo que preciso de repouso. Um a um, eles me abraçam,
prometendo voltar no dia seguinte.
Lars me leva para o quarto.
Convoco a governanta e a Chef para me ajudarem a trocar de roupa e
fazer o que preciso fazer no banheiro – porque vamos combinar que não dá
para acabar com o encanto assim tão cedo. Evitar determinadas intimidades
mantém o fascínio.
— Volto para te levar para a cama — diz ele, cruzando os braços.
— Não precisa, Lars — protesto. — Elas podem me levar.
No entanto, o Anjo, porque esse homem é um anjo, não importa o que
Catarina diga, insiste: — Sei que podem. Mas não custa nada deixar eu
cuidar um pouco de você. Eu gosto.
Assim perco minhas duas aliadas, que se derretem como sorvete no sol.
Até suspiram.
Ele sorri, aquele sorriso que desarma todas as mulheres de Vinterland –
e a mim também.
Reviro os olhos – só para não ceder sem nenhuma resistência e deixá-lo
muito convencido –, e digo: — Você é teimoso.
— Apenas persistente — retruca. — E preocupado com o bem-estar da
minha princesa.
Não me demoro muito, porque estou realmente cansada e vou confessar
que gosto de ir nos seus braços para a cama.
— Viu como é bom ceder de vez em quando? — implica, com a voz
suave, quando recosto minha cabeça em seu ombro.
— Hmmm… Tudo bem, vou deixar você ganhar esta.
Ele me põe gentilmente sobre os lençóis macios, ajusta os travesseiros
ao meu redor, certificando-se de que estou bem acomodada e me cobre.
— Precisa de mais alguma coisa? — indaga.
— Só de você — digo, segurando seu antebraço. — Fica comigo?
— Óbvio. Você achou que eu ia a algum lugar? — pergunta ele,
arqueando uma sobrancelha.
Ele dá a volta, tira a roupa, entra na cama e me abraça com cuidado,
puxando meu corpo para mais perto do dele.
Ajeita-nos melhor nos travesseiros macios, e deixa que me acomode
nele como eu bem quero.
— Confortável?
— Se eu disser que você é meu travesseiro preferido, você se ofende?
— pergunto.
— Me sinto é honrado — responde. — Muito honrado.
— Sabe — começo hesitante —, apesar de tudo o que aconteceu, e
apesar do que ainda não conversamos, sinto que estamos mais próximos.
— Também sinto — concorda ele, acariciando minha mão com o
polegar. — E quero que saiba que estou aqui por você, para você, com
você. Sempre.
— Eu sei — murmuro, sentindo meus olhos ficarem pesados.
— Agora descanse. Você precisa recuperar suas forças.
— Promete que estará aqui quando eu acordar? — pergunto, já meio
sonolenta.
— Prometo, até porque não pretendo ir a lugar nenhum — assegura ele,
a voz firme.
— Não pense que esqueci nossa conversa — digo, bocejando.
— Sei que não esqueceu — responde ele, apertando o botão da persiana
para escurecer o ambiente. — Depois do almoço, teremos todo o tempo do
mundo.
Aconchegada nos braços dele, não custa muito para meus olhos
fecharem, segura e em paz, apesar dos eventos recentes, que ainda estão
frescos em minha mente.
A última coisa que sinto é o toque reconfortante dos braços de Lars à
minha volta, e adormeço com a certeza de que estou exatamente onde
deveria estar.
Já se passaram quase dois meses desde que voltamos para casa.
Mesmo assim, todas as noites, invariavelmente, Vasilisa tem dormido
mal. Pesadelos a atormentam e isso me angustia profundamente, embora eu
saiba que é uma reação normal, após tudo o que ela passou.
Procurei apoio psicoterapêutico para ela no dia seguinte e desde então
tenho sido mais do que apenas paciente; tenho me esforçado para ser seu
pilar, reduzindo seu estresse ao mínimo. Porque sei, por experiência
própria, que foi algo mais que traumático e é natural que esteja sofrendo as
consequências psicológicas daquele evento.
A única coisa que não fiz e que tenho fugido como o diabo foge da cruz
foi da conversa que ela quer ter comigo.
Apesar da culpa que sinto. Uma culpa que pesa mais do que o mundo e
eu não sou poderoso como Hércules.
Nem forte como Tyr, esse irmão que admiro e adoro mais do que todos.
A nossa relação antes marcada pelo não-dito, hoje está em
transformação.
Só percebi quão grande foi o sacrifício que meu irmão fez por mim,
quando tive que repetir seu ato de amor. Por tantos anos oscilei entre a
dualidade de admiração e rejeição, entre lealdade profunda e pequenas
explosões de ressentimento que surgiam nos momentos de crise. Até que há
umas quatro semanas, eu tomei coragem e sentei-me com ele e pedi que ele
me ouvisse. Acho que falei por uma hora.
Quando terminei, ele me deu um de seus raríssimos sorrisos e
perguntou: — Doeu?
— Não — foi a minha resposta.
— Ótimo. Semana que vem, venha na minha sala, no mesmo horário.
Vamos conversar mais — e com um tapa nas minhas costas, o idiota me
deixou sozinho na minha sala, com um sorriso mais idiota ainda nos lábios.
Depois de ter percebido quanto tempo eu perdi, é claro que não esperei
uma semana. No dia seguinte, lá estava eu na sala dele. Fiquei só trinta
minutos. Agora, vou lá todo dia. Deixou de ser só um monólogo e virou um
bate-papo de irmãos mesmo.
No entanto, a conversa com Vasilisa continuei driblando. Apesar da
insistência dela. Da psicóloga. Dos meus irmãos. Das amigas.
Céus. De todos. Acho que até dos deuses.
Porque eu precisava desse tempo.
Aliás, vários algos. Muito importantes.
E fiz. Todos eles.
Hoje, vamos conversar.
Tanto que liberei os empregados e pedi para Barnaby deixar só uma ceia
fria para nós dois jantarmos mais tarde.
Cheguei do trabalho mais cedo para fazer a aula de ioga com ela.
Uma das recomendações da psicóloga para reduzir o estresse. Porque
como está grávida, Vasilisa não pode tomar quase nenhum remédio, sessões
de ioga, relaxamento e meditação ajudam muito.
Participo sempre que posso, como há pouco, e ela adormeceu ao meu
lado depois, no nosso cantinho junto à cachoeira, aninhada em uma manta
macia estendida sobre a grama, aproveitando o sol de outono que ainda
aquece o ar de Vinterland.
Em breve, o frio voltará com força, tornando momentos como este, ao
ar livre, impossíveis.
Inclusive, reduzi minha carga horária no trabalho, comparecendo,
presencialmente, ao ministério apenas duas horas por dia.
As reuniões presenciais com meus irmãos acontecem na parte da frente
do palacete da Månestrålens Fjordresidens, e depois todos jantamos juntos,
o que tem animado bastante Vasilisa.
Ver seu sorriso me dá esperança de que, aos poucos, ela recupere a
alegria e o que aconteceu ocupe um espaço cada vez menor na sua
memória.
Procurei criar um ambiente tranquilo e seguro para ela, inclusive
pedindo a Tyr a instalação de sistemas de segurança adicionais aqui em casa
e no seu dia a dia. Por incrível que pareça, ela aderiu a todos os novos
protocolos que ele propôs. Trocou de e-mail e número de celular, de
computador e aparelho de telefone e até de nome, tirando para sempre o
Hardrada da sua vida.
Começou uma vida nova.
Saber que todas as transações que fez para Markus foram canceladas lhe
deram ânimo. Assim como saber que o Sheik El-Khoury recompensou
regiamente a esposa do segurança Ahmed pela sua morte, e levada para
trabalhar em Paris na casa da mãe de Tatyana.
Procuro dar o mínimo de detalhes possíveis sobre o Caso da Princesa
Romanov, como está sendo chamado o sequestro dela na imprensa, para não
a aborrecer: como a morte com um tiro na cabeça da mulher musculosa que
arrebentou a porta com um chute e era companheira de Markus – eles
pretendiam fatiá-la juntos, um de seus prazeres preferidos quando eram um
casal, segundo a doutora Bakke; o conveniente afogamento dos comparsas
de Markus, ao perderem a direção do veículo que dirigiam e caírem em um
lago; e a morte dos outros que estavam fazendo a ronda do armazém
galpão, picados pela Vipera Scandia i, uma serpente que só é encontrada nas
montanhas de Vinterland e que pica pessoas liberando um veneno que as
esfria até que elas morrerem congeladas. Não falo sobre a Égide ou algo
parecido. Mas, na verdade, isso não a chateia.
No entanto, notícias como a morte acidental de Jamal, atacado e
devorado vivo por arminhos esfomeados e raivosos, quando fugiu da
cadeia; e a descoberta que Markus torturou o pai antes de matá-lo e que
desfigurou Melissa a abalam profundamente.
Esses acontecimentos parecem trazer à tona uma culpa que não é dela e
faz com que seu progresso retroceda.
A única coisa boa foi que esses arminhos, infelizmente, tiveram que ser
abatidos e viraram colcha para minha cama. Triste, não? Não. Eles foram
criados para isso – na fazendo dos avós de Vikstrom, que odeia homens que
se aproveitam de mulheres, seja de que maneira for. Só que ops!, esses vinte
e poucos animaizinhos carnívoros foram deixados com fome por uns três
dias e soltos logo que Jamal conseguiu fugir da cadeia, após se cortar nos
arames farpados.
Aliás, pelo jeito que Tatyana ficou sem falar com Tyr por uns dois dias,
pensei que ela tivesse descoberto que a morte não foi acidental. Mas não foi
isso. A Infeliz da esposa estava aborrecidíssima com ele porque a notícia
havia vazado para a imprensa e Vasilisa soube e ficou chateada.
Vai entender, não é?
Observo seu rosto sereno, os cabelos dourados espalhados como um
halo ao redor da cabeça e a barriga que já está redonda com os bebês.
Sorrio. Gêmeos. Nem acredito ainda.
Desde que Markus e a irmã que tomou seu lugar foram definitivamente
trancafiados de novo na Arctic até já a sinto mais calma, mais tranquila.
Nossa relação vai caminhando aos trancos e barrancos. Os pesadelos, a
dificuldade para dormir e a angústia não ajudam. Os hormônios, muito
menos. Uma hora chora e pede para eu não sair. A outra hora, está
irritadiça. Pede espaço. Não estou reclamando, mas acho que se
estivéssemos fazendo sexo regularmente ajudaria, mas ela simplesmente
aboliu isso da nossa vida e não sei como abordar o tema.
Até pensei em conversar com meus irmãos casados, para me ajudarem
com ideias de como voltar para a cama com minha mulher, mas não tenho
passado tempo suficiente sozinho com eles.
Suspiro e tomo coragem de ligar para Leif, que também não vai muito
bem nessa área, com um eterno caso de congestão testicular, já que ele e
Catarina brigam mais que outra coisa.
— Muito ocupado? — sussurro.
— Mais ou menos, mas para você tenho tempo — diz ele. — Como está
sua princesa?
— Melhor, cochilando — digo.
— Hmmm… Você já…?
— Não. — Passo a mão no cabelo, meio desesperado. — Devo
conversar com ela?
— Porra, não, Lars! — exclama ele. — Sabe o que eu acho? Devemos
seguir os conselhos de Tyr, menos as cordas, algemas e chicotes. Já olhou
para os sorrisos da Infeliz?
Hmmm… Não é que ele tem razão?
— Aqueles dois vivem aos beijos e agarros! E Thor, que seguiu os
conselhos dele, também vive muito bem com Yasmin. A gente fica ouvindo
Magnus e estamos assim — desabafa e não para por aí: — Você está
vestido? Dispa-se já! Ela está vestida? Dispa-a. Acorde-a com beijos e
carícias. A não ser que ela diga um sonoro não!, não pare. Entendeu?
Sorrio. — Entendi.
— Depois me conta se deu certo que coloco em prática — diz ele mais
calmo.
Solto uma risada baixa. — Então sou a cobaia, não é?
— Melhor você do que eu. Boa sorte.
— Obrigado.
Desligo ainda rindo baixinho e seguindo os conselhos dele, tiro minha
roupa e também a de Vasilisa, agradecendo por ela estar usando veste de
ioga bem confortáveis e fáceis de remover. Ela resmunga, mas nem acorda.
Aumento a temperatura dos aquecedores e ajeito a manta melhor.
Faço um carinho de leve em seus cabelos, que o vento despenteia e
beijo seus lábios.
Ela acorda e espreguiça.
Não espero que se afaste de mim, ou me negue, ou invente qualquer
desculpa. Tomo sua boca e prendo-a debaixo do meu corpo.
Como ainda está sonolenta, ela se entrega ao beijo.
Logo estou deslizando mais para baixo, abocanhando os mamilos
rosados, e sinto-a excitada, além da conta, a bocetinha molhada, latejando,
quase a ponto de gozar.
— Lars, não para, por favor… — pede, ondulando no meu rosto quando
fecho minha boca à volta de seu clitóris.
Mas não me demoro lá e beijo, lambo e chupo cada pedacinho do seu
corpo.
Está enlouquecida, alucinada, rebola, implorando por mim.
— Lars, por favor, vem! — geme, puxa meus cabelos com força.
— Isso, Diaba, me diz o que você quer — ordeno, virando-a de quatro.
— Me fala o que você gosta. Quem você quer.
Ela está tão excitada que uso sua lubrificação para estimular seu ânus,
enfio o polegar. Ela grita, rebola.
Suas mãos agarram a manta para se equilibrar. — Você, Anjo, só você.
— Vou te foder agora.
Levantando mais seu quadril, enfio meu pau tão fundo que ela geme e
arqueia o torso, raspando os seios no chão.
— Lars! — Parece não saber se pede para parar ou para continuar.
Enterro tudo, enterro mais, e coloco os dedos dela no clitóris, fazendo
fricção junto.
— Masturbe-se.
O sangue corre veloz nas minhas veias, ardendo, enquanto enfio meu
pau, repetidamente, com vontade, dentro dela. Penetrando-a sem delicadeza
no cu, abrindo-a mais. Bombardeando-a de prazer.
— Vou gozar! — grita.
— Vai, sim, vai gozar muito — aviso, já sentindo os primeiros tremores.
E é assim que ela goza a primeira vez, gritando meu nome para o
mundo inteiro escutar quem dá prazer a ela.
Eu a fodo e depois disso, faço amor com ela.
Deixo-a fora de si de prazer, perdida nas sensações que já conhece e
que, ao mesmo tempo, são desconhecidas porque sempre a desfazem, cada
vez de uma nova maneira.
Até que outro clímax forte e longo a faz convulsionar, e me leva junto
para aquele paraíso de onde não quero voltar.
No entanto, a realidade se impõe, e não é assim tão diferente do paraíso,
porque quando meu coração se acalma e minha respiração se regulariza, é
nos braços do meu amor que me encontro.
Apoio-me em um cotovelo e olho para ela. — Quantos filhos vamos
ter?
A resposta dela é arregalar os olhos e se levantar de um pulo, como se
quisesse correr para longe de mim.
Rio.
Já ela quando se dá conta do que está fazendo, para e alonga-se nas
pontas dos pés, se espreguiçando.
Parece uma gata. Ou talvez uma bailarina. Ou parece Vasilisa, mesmo.
Linda.
Depois, me olha do alto.
— Lars — diz, meio debochada. — Vamos devagar com o andor e com
o ardor, tá? Esses aqui ainda nem nasceram.
Seguro o riso e balanço a cabeça: — Sim, senhora.
Desde um mês atrás, quando seus pés ficaram totalmente curados e ela
voltou a andar, as coisas se acalmaram um pouco. Como se a independência
dela fosse a coisa mais importante para ela.
O que me lembra que ainda temos um abismo a transpor.
— Aliás, tenho um presente para você — falo, me pondo de pé também.
— Gosto de presentes — comenta, suspirando satisfeita. —
Especialmente esses assim, surpresas. Foi uma tarde maravilhosa.
— Fico feliz que tenha gostado — digo, segurando sua mão e levando-a
em direção ao quarto. — Você merece toda a felicidade do mundo.
Ela para e fica olhando para o horizonte. A brisa suave teima em
levantar seus cabelos novamente. — Também acho, mas a felicidade parece
tão etérea e fugaz. Podia durar mais do que meros segundos.
— Vai durar, você vai ver. — Puxo-a pela mão. — Acho melhor
entrarmos. Está esfriando.
Tomamos um banho rápido e trocamos de roupa – eu mais rápido do
que ela, claro.
Estou esperando por ela, sentado na antessala, com um envelope pardo
oficial do governo nas mãos quando ela vem do closet, cheirosa como uma
flor, e elegante como só ela consegue ser, mesmo em roupas simples, de
cabelo molhado e descalça. E também trazendo um envelope nas mãos.
Ela se senta ao meu lado e ponho o envelope em suas mãos.
— O que é isso? — pergunta, curiosa.
— Seu presente. Ou, na verdade, o que sempre deveria ter sido seu —
digo.
Ela puxa os papéis de dentro do envelope e vejo o momento em que seu
cérebro registra o que seus olhos escaneiam. Sua expressão muda de
surpresa para choque.
— Lars… — Ela passa alguns segundos ainda lendo, absorvendo as
informações.
O primeiro documento é a condenação da clínica psiquiátrica onde ela
foi internada na adolescência. A clínica foi julgada por fraude, abuso e
negligência contra menores. As provas mostraram que, dependendo do
cliente, eles mantinham pacientes internados desnecessariamente para
lucrar com as cobranças mensais exorbitantes.
As lágrimas começando a surgir e ela limpa o rosto na manga da blusa,
e balbucia: — Lars… eu não sabia.
— Foi Leif que descobriu.
Entrego uma caixa de lenços a ela, que aceita com mãos trêmulas. Ela
puxa um lenço e seca os olhos, tentando recompor-se.
O segundo documento é a condenação do médico que a tratou durante
toda a vida. Ele foi acusado de fraude e de ser cúmplice de acobertar o pai
dela na “Síndrome de Münchhausen por procuração [i]”, um termo técnico
para quando um cuidador inventa doenças ou causa sintomas em alguém
sob seus cuidados para atrair atenção ou lucro. Ele a medicava sem
necessidade, mantendo-a em um estado de dependência e fragilidade.
O terceiro documento é a certidão de óbito de Markus Eriksson, por
ataque cardíaco.
Um soluço escapa de seu peito e vejo a dor refletida em seus olhos.
Mas obviamente não foi assim que aconteceu. Eu estava lá e assisti a
morte do canalha, apesar de Tyr ter sido contra. Achou que eu ia ficar mais
traumatizado, mas não sabe que tem uma moça aqui na minha casa que tem
feito um tratamento comigo à base de carinho que tem ajudado muito na
minha cura.
Não posso dizer que bati palmas, sorri e que estava feliz, mas um
sentimento de justiça e até de dever cumprido encheu meu peito quando o
vi perder o equilíbrio depois de mais de quarenta e oito horas em pé na
beira da máquina de moer carne industrial, cair na caçamba e ter o corpo
triturado até sobrar apenas pedaços irreconhecíveis que foram jogados nos
oceanos onde tem enguias ii, já que entre outras coisas, comem cadáveres de
outros seres marinhos e comeriam esses pedacinhos de carne desumana,
também.
O quarto documento é a certidão de óbito de sua mãe, retificada.
Ela leva a mão à boca, chocada, quando confirma que onde constava
que a causa da morte era um ataque cardíaco agora é assassinato por
envenenamento. Segue-se a investigação revelou que seu pai estava
envolvido no crime, motivado por questões de ciúmes, financeiras e de
poder.
— La-Lars! — Meu nome é entrecortado por outro soluço.
O quinto e último documento é a anulação da curatela que seu pai
detinha sobre ela. Por decisão judicial, ela é declarada plenamente capaz e
livre para tomar suas próprias decisões.
Ela deixa os papéis caírem no chão e se joga nos meus braços.
— Lars!
Envolvo-a com firmeza, sentindo seu corpo tremer contra o meu.
— É, acho que esse é mesmo o meu nome — digo suavemente,
tentando aliviar a tensão.
Ela se afasta apenas o suficiente para me olhar nos olhos, lágrimas
escorrendo pelo rosto.
— Você me deu minha liberdade — diz ela, chorando e rindo ao mesmo
tempo. — Não tenho palavras para agradecer.
— Ela sempre foi sua, meu amor — explico. — Só te comprei do seu
pai, porque desconfiava que havia algo errado e não queria que ele a usasse
depois para fazer alguma coisa, como Markus queria fazer.
— Você sabia…? — pergunta ela, a voz quase um sussurro.
— Sobre Markus e seu pai?
— Sim.
Balanço a cabeça. — Não, não podia imaginar que seu pai desceria tão
baixo. Mas suspeitava que havia algo muito sério acontecendo. Tínhamos
indícios de que ele a manipulava e poderia tentar algo pior. Eu não podia
permitir.
Ela respira fundo, tentando assimilar tudo.
— Lars, eu te amo tanto, tanto — declara ela, apertando minhas mãos.
Meu coração dá um solavanco tão grande dentro do peito que acho que
vai sair pelas costelas.
— Como?
Estou chocado, mas também há algo mais dentro de mim. Algo que se
expande e me machuca, como se quisesse sair mesmo, tenta explodir meu
peito.
Liberar-se de dentro de mim. Libertar-me.
— Sinto tanta culpa por tudo o que aconteceu. Se meu pai não estivesse
envolvido com Markus, talvez não tivéssemos sido sequestrados. Sinto que,
de alguma forma, sou responsável por ter trazido esse perigo para nossas
vidas.
É como se eu a estivesse vendo pela primeira vez. Vendo sua
vulnerabilidade, tão igual à minha, que me comove profundamente.
Pelos deuses, como é que ela sabe as dores que têm na minha alma?
— Eu te amo muito — repete, seus olhos ainda presos aos meus. —
Você me desculpa?
E todo aquele vazio emocional sombrio, feio e triste, que se criou dentro
de mim quando Tyr me deixou para buscar ajuda, e que eu, ainda criança,
não fui capaz de interpretar corretamente, e entendi como uma escolha de
ser deixado para trás, escapa com ar em balão furado.
Vai embora e ao invés de deixar um sensação oca no lugar, deixa um
espaço em branco, um lugar novo onde posso me reconectar com minhas
emoções, sem ficar vulnerável; um universo onde o amor é um ato de
coragem, equilibrado e saudável, e não uma fragilidade ou para ser usado
como meio de manipulação.
— Pelos deuses, meu amor! Não há nada a perdoar — respondo,
levando suas mãos aos meus lábios e beijando-as com carinho. — Se
alguém tem culpa, esse alguém é Markus e sua mente doentia, ou quem está
por trás da Égide, que ainda vamos descobrir quem é. Você não é
responsável pelas ações de seu pai.
Entrego nas mãos dessa mulher o controle da vida dela porque é com
ela que quero construir um relacionamento profundo, e preencher o antigo
vazio com confiança.
— É verdade, não sou, mas…
É aqui que aceito que amar significa, inevitavelmente, correr o risco de
perder. E de ganhar muito, mas muito mais.
Porque mesmo que a vida traga perdas, essa conexão emocional é o que
dá sentido a tudo.
— Sem mas… — Olho profundamente em seus olhos e há um brilho
especial ali. — Enquanto eles perderam tudo, nós temos um futuro pela
frente.
— Não, não temos — diz ela sacudindo a cabeça, mas sorrindo.
Franzo a testa curioso. — Não? Por que não?
Ela me entrega o envelope que trouxe do seu closet. — Porque temos
dois. Ou melhor: duas.
Rio. Meu coração quase explode de felicidade.
Por que a vida, com todas as suas incertezas, ainda vale a pena ser
vivida.
O que pode ser melhor que isso?
Nunca imaginei que um dia estaria com um barrigão quase pornográfico, de
trinta e sete semanas de gêmeas que são bem filhas do pai enorme.
Recostada – porque já não sei o que é sentar reta há muito tempo – em uma
poltrona muito confortável, estou montando uma antessala e uma suíte de
bebê com as maluquetes das minhas amigas.
— Não, sua Infeliz! Não é assim que se mede! — diz Catarina, puxando
a fita métrica digital da mão de Tatyana. — Me dá isso.
— Só Tyr pode me chamar de Infeliz, sua Bruxa — revida Tatyana, que
tenta puxar o aparelho da mão da minha prima.
E as duas começam uma gangorra que me leva às gargalhadas.
Eu podia ter contratado uma firma para fazer tudo? Claro que poderia.
Com meu dinheiro, não precisava levantar um dedo, mas é muito mais
divertido compartilhar esses momentos com minhas amigas, sem falar que é
emotivo, porque já comecei a chorar de novo no meio da risada ao vê-las
brigar entre si enquanto tentam marcar na parede os locais exatos para
pendurar as pinturas em guache das mamães animais e suas filhotinhas.
— Altezas. Altezas. Por favor.
Elas param de puxar o aparelho de um lado para o outro e olham para o
rosto impassível de Barnaby.
Não sei como ele consegue manter a fleuma britânica enquanto eu estou
às gargalhadas com Alva, a filha de Thorvald, e Sverre, o filho de Tyr, que
estão repetindo o mau exemplo dado pelas duas, e a Yasmin tenta ensinar
que não é para fazer assim.
— Se eu puder ajudar, Altezas — diz, se aproximando devagar como se
estivesse com medo de apanhar de uma delas. — Eu posso medir, marcar,
então as senhoras podem colocar os pregos no lugar. Ou eu mesmo posso
martelar para não machucarem seus dedinhos. Ou não — emenda rápido,
quando Tatyana levanta o martelo —, e pendurar os oito quadrinhos. O que
acham?
— Ótimo! — Tatyana pula do chão, animada, e entrega o tal do medidor
e o martelo e pregos para ele. — Vamos lá. Temos dois dias para colocar
ordem nessa zona.
É, e nem parece que cada detalhe foi pensado com amor e carinho,
porque está uma zona mesmo, com papéis, plásticos bolha, fitas adesivas e
caixas coloridas espalhados por todo canto, além da infinidade de bichos de
pelúcia gigantes e seus filhotinhos, que Lars comprou de presente para mim
logo que descobriu que eu estava grávida.
Sem falar que depois acrescentou um filhotinho, porque se eram dois
bebês, tinham que ser representados adequadamente. Justo.
— Vamos terminar hoje — diz Barnaby, sorrindo, e requisitando pelo
interfone o que me parece uma tropa de choque: começando pela
governanta, a Sra. Håkansson, passando pela Chef Isabella, o motorista Sr.
Zhang, minhas duas seguranças particulares, Yael e Shira, e mais umas
cinco outras pessoas. Nem eu sabia que tinha tantos empregados
trabalhando assim na Månestrålens Fjordresidens.
— Mas Barnaby… Para que tanta gente? — pergunto abismada.
— Para garantir que tudo fique perfeito para as pequenas princesas,
Alteza. — Ele me lança um olhar, entre sereno e preocupado. — Também
prometi ao príncipe esta manhã, quando ele saiu para trabalhar, que a hora
que a senhora fosse para a maternidade mais tarde, o quartinho estaria
pronto, Alteza — diz ele, sério. — É claro que poderíamos deixar para
terminar amanhã, mas a senhora não quer que ele fique mais nervoso ainda,
quer?
— Nãooo! — quem responde são as minhas amigas.
Barnaby sorri. — Imaginei.
Porque Lars, o mais sorridente dos cinco irmãos, quase tão sedutor
quanto Magnus, ultimamente tem dado choque elétrico em quem chega
perto dele. Sua máscara de autoconfiança e controle absoluto caiu. Ele não
reluta mais em admitir suas fraquezas ou em permitir que alguém veja suas
inseguranças, e isso o torna humano, demasiadamente humano. E quem está
por perto estranha.
Menos eu.
Até porque não dá choque em mim, claro.
Comigo, ele anda tão doce, tão carinhoso, tão charmoso, tão sexy, que
tenho usado e abusado do pobre coitado na cama e fora dela.
Barnaby, o perfeito, como o apelidei, divide o exército de funcionários
assim que entram na sala em várias equipes.
A barriga enorme e pesada me impede de ajudar tanto quanto eu
gostaria, mas escolho alguns detalhes, como por exemplo, onde colocar a
foto que tiramos no ensaio quando eu ainda estava mais ou menos normal,
há uns três meses.
Fizemos com o mesmo fotógrafo que fez o de Tatyana e Tyr, um
rapazinho sensível, simpático, delicado, de nome difícil, Asmund Ulfson,
que se tornou o nosso xodó e vai fotografar também o parto. Descobrimos
que ele é marido – e submisso – do chefão da agência de inteligência,
espionagem, contraespionagem e contraterrorismo de Vinterland, um tal de
Benoliel, que se eu encontrasse no escuro, sairia correndo, mas que confio
minha vida a ele de olhos fechados. Coisas da vida, não é?
Logo a pequena operação de guerra dá resultados e o zoológico das
minhas pequenas começa a tomar forma.
Não quis nada minimalista. Também não quis nada exagerado.
É um quarto de bebê de princesas modernas, que serão educadas para
serem mulheres independentes, fortes, confiantes e compassivas. Para
serem líderes que, valorizando a empatia, a diversidade e o respeito ao
próximo, inspirem seu povo.
Espero que elas possam contribuir positivamente para a sociedade,
usando seus talentos e habilidades para fazer a diferença no mundo.
Na hora do almoço, para nosso espanto, está tudo pronto e arrumado.
— Ficou perfeito — diz a Sra. Håkansson, que dá o retoque final,
afofando a cortina.
— Ficou.
As paredes são pintadas em verde-clarinho e os móveis são todos em
laca-branca.
O resto dá o colorido.
Os quadrinhos pintados em guache, com as mamães-princesas e duas
filhotinhas: girafa e girafinhas, elefanta e elefantinhas, hipopótamo e
hipopotamozinhas, onça e oncinhas, além de mais quatro outras mamães-
princesas e suas filhotinhas. Espalhadas pela antessala, as versões em
pelúcia, tornam o ambiente ainda mais acolhedor e mágico.
Esse ambiente de sonhos reflete o que quero para elas. Porque ninguém,
nunca, vai pisar nas minhas princesas. Elas vão crescer sabendo que podem
ser o que quiserem, que não há limites para seus sonhos.
Vou ensinar a elas a pensar por si mesmas, a questionar o mundo e tudo
ao redor delas e até mesmo a mim, se elas acharem que estou errada.
Não vão ser mimadas e ter tudo o que quiserem. Vão ter que estudar e
mostrar que merecem ganhar os brinquedos. Vão aprender a enfrentar os
desafios, a superar obstáculos e lutar por aquilo que acham que é certo e
justo. Vão ter todo o amor do mundo.
Mas uma coisa jurei para mim e juro agora de novo: nunca vou deixar
alguém fazer com elas o que fizeram comigo.
Começo a chorar de emoção.
— Nada de choro! Agora é hora só de sorriso e risadas — diz Tatyana e
grita: — Abraço coletivo.
E elas vêm me abraçar e acabamos rindo e chorando ao mesmo tempo,
porque elas sabem o que estou pensando.
— Quem é que está chorando? — A voz profunda de Lars vem do
corredor.
Limpamos as lágrimas rápido, porque mesmo que sejam de felicidade,
sei que ele ainda fica incomodado, apesar de já estar lidando bem melhor
com as emoções e fragilidades. Sua obsessão e controle, então, melhoraram
muitíssimo.
Elas se afastam rápido porque andam com medo de levar puxão de
orelha dele.
— Jesus, Maria e José! Acho que preciso de um guindaste para me
levantar daqui — falo para distraí-lo.
Arrasto o bumbum – ou deveria dizer bundão?, porque estou me
sentindo enorme! – para a beirada da poltrona e estendo os braços. Ainda
faço um biquinho para completar.
— Amor, me ajuda, por favor?
É o suficiente para ele esquecer qualquer outra coisa. Parece que o
mundo inteiro dele sou eu. Talvez seja.
— Vem, minha princesa.
Ele me levanta como se eu não pesasse nada.
— A mala da maternidade já está pronta? — pergunta.
— Sim — digo, apontando para um canto da antessala. — Ali.
— Barnaby, será que você poderia me fazer o favor de colocar no carro?
— pede e vira-se para mim. — Você se importa se formos mais cedo para o
hospital? Liguei para a Dra. Strand e perguntei se ela poderia adiantar a
cesárea e ela disse que sim e…
Ele traz minhas mãos aos lábios e as beija. Do jeito que me olha,
qualquer coisa que pedisse eu daria a ele.
— Tenho que confessar que estou não só nervoso com a cirurgia, mas
muito ansioso para ver as meninas.
— Não me importo, meu amor. Também estou ansiosa para ver nossas
meninas. — Sorrio para ele. — Quero que sejam parecidas com você.
— Ora. Não gosto de te contrariar, mas vou ser obrigado. — Ele me dá
o sorriso mais lindo que já vi e nem os gritinhos das meninas conseguem
furar a nossa bolha de amor. — Eu espero, desejo e sonho que sejam lindas
iguais à mãe.
Meu sorriso cresce tanto com essa frase que tenho que concordar. —
Então, que seja feita a Vossa vontade, Alteza.
— Ótimo. — Ele beija minha boca e me solta. — Por que você não
pede ajuda a uma dessas pestes endiabradas para tomar banho e se arruma
enquanto organizo os últimos detalhes com a médica e o hospital?
Assim que ele sai do quarto, as meninas me rodeiam, pulando, e vão me
levando para o meu quarto, pela porta de conexão que Lars mandou abrir
para facilitar a amamentação.
— Vamos, vamos, vamos! — exclama Tatyana excitadíssima. — Mal
posso esperar para ver a carinha da minha afilhada.
— Quem disse que é sua afilhada? — pergunta Catarina. — É minha.
— Parem vocês duas — diz Yasmin. — É minha afilhada, afinal eu sou
a Rainha de Vinterland.
Rio. — Mas quem disse que doidas como vocês vão batizar minhas
filhas?
Elas murcham. — Quem serão as madrinhas?
— Não sei — minto, virando-me de costas para elas não verem o rubor
que recobre meu rosto e prendendo o cabelo, porque vou tomar só uma
chuveirada.
— Conseguiram decidir os nomes? — pergunta Yasmin. — Preciso
avisar a Astrid.
— Por mim tinha decidido há muito tempo — sorrio para elas, pondo o
vestido no cesto e entrando no boxe com cuidado — mas ele estava na
dúvida. Esses homens…
— São todos iguais — concorda Yasmin.
— Mas quais são, afinal? — pergunta Tatyana.
— Alexandra Elizaveta para a primeira que nascer, em homenagem à
minha mãe — conto, puxando a torneira. — Beatrice Louise, em
homenagem à mãe de Lars, para a segunda.
— Que lindo, Vasya — diz minha prima, emocionada. — Meu pai já
sabe?
— Ainda não. Só vocês sabem. Quando eu entrar na sala de parto, você
liga para ele e conta.
Enquanto a conversa animada com minhas amigas continua, me
entretenho e nem percebo o tempo passar.
— Vamos? — pergunta Lars na porta. — A Dra. Strand está com tudo
preparado para a cesariana.
Foi o meu problema cardíaco anterior, que elevou a minha pressão
arterial, somado à gravidez gemelar que fez a médica decidir que o parto
normal seria desaconselhável.
A distância para o hospital é tão curta que nem dá para ficar nervosa.
A Dra. Strand nos recebe à entrada do hospital, com um sorriso
tranquilizador.
— Bem-vinda, Vasilisa. Tudo preparado para a chegada das meninas?
— Mais do que nunca — respondo, sentindo pela primeira vez uma
mistura de nervosismo e empolgação.
Subimos para o quarto onde troco de roupa e Lars vai se arrumar e se
vestir para entrar comigo na sala de cirurgia.
De repente, o que parecia tão distante está prestes a se concretizar.
Sou colocada na maca e sinto uma onda de emoções me inundar.
As luzes do corredor passam acima da minha cabeça, uma após a outra,
criando um ritmo hipnótico que combina com a batida acelerada do meu
coração.
Penso nas duas vidas dentro de mim, tão próximas em conhecer o
mundo aqui fora.
Em poucos minutos, verei os rostinhos das minhas filhas e serei
responsável por dois seres humanos indefesos que já amo mais do que tudo,
mesmo sem tê-las conhecido ainda.
A ideia é ao mesmo tempo, emocionante e um pouco assustadora.
A sala de cirurgia ainda está na penumbra e a Dra. Strand acaricia meus
cabelos, me acalmando, enquanto a anestesista coloca um líquido gelado na
minha coluna e depois a parte debaixo do meu corpo relaxa. Eles me
ajeitam na maca e levantam uma cortina, impedindo-me de ver o que vão
fazer.
— É uma sensação estranha — digo para a médica.
— Mas garanto que é bem melhor assim — diz ela, piscando para mim.
Ela ajeita um círculo de luzes brilhantes e respiro fundo, tentando
acalmar meu coração acelerado.
Nesse momento, o fotógrafo e Lars entram na sala, vestidos com roupas
esterilizadas.
Lars vem se sentar ao meu lado, atrás da cortina.
Dou a mão para ele, que a segura com firmeza.
— Nervosa? — pergunta ele.
— Acho que sim — sussurro, mas uma onda de tranquilidade me
envolve ao sentir seu toque.
— Tudo bem, também estou. — Ele me dá um sorriso. — Mas pelo
menos estamos nervosos juntos.
— Obrigada por estar ao meu lado — murmuro, olhando em seus olhos.
— Sempre estarei — responde ele, inclinando-se para depositar um
beijo suave na minha testa. — Mesmo nervoso.
Rio. — Para, Lars!
— Não estou conseguindo. Porque você é incrível — sussurra Lars. —
Nossas meninas têm muita sorte de ter você como mãe.
A médica sorri para nós por detrás da máscara. Deve estar achando nós
dois muito loucos.
Sorrio, sentindo as lágrimas se acumularem nos cantos dos olhos.
— E você será o melhor pai que elas poderiam ter.
— Vai dar tudo certo — diz ele, com convicção.
Fecho os olhos por um momento, ouvindo os sons suaves dos
instrumentos e as vozes baixas da equipe médica. Penso em todas as coisas
que quero ensinar às minhas filhas, em como quero que elas sejam felizes e
realizadas.
De repente, um choro agudo preenche a sala.
Meu coração quase para. E menos de um minuto depois outro choro se
junta ao primeiro.
A Dra. Strand anuncia: — Alexandra Elizabeta e Beatrice Louise, as
mais novas princesas de Vinterland, nasceram bem e saudáveis.
— Temos uma família — diz Lars, com um sorriso que ilumina todo o
seu rosto e se mistura com as lágrimas de felicidade que ele me disse um
dia que não iria derramar.
— Sim, temos — concordo, sem me preocupar em enxugar as minhas.
Não demora muito para que as duas pediatras tragam as meninas ainda
sujinhas, mas enroladas em mantas verdes e rosas, e as coloquem no meu
peito.
Não dá ainda para diferenciar entre elas, a não ser pelas pulseiras nos
pulsos, mas não tem problema. Elas são perfeitas.
— São lindas — soluço, mais lágrimas escorrendo pelo rosto. — Bem-
vindas ao mundo, minhas princesas.
Lars me abraça e me dá um beijo. — Obrigado.
Meu mundo inteiro se resume a esse momento.
A sensação que tenho é que estou levitando. O calor de seus pequenos
corpos, o suave batimento de seus coraçõezinhos. O abraço do meu marido.
Nunca experimentei um amor tão intenso e imediato.
Se há alguém na vida mais feliz que eu, desconheço.
Enquanto a equipe médica finaliza o procedimento, rio de mim mesmo, sem
acreditar que um dia disse que não ia ter filhos.
Fico com ela até o final, de mãos dadas o tempo todo, sentindo cada
emoção que atravessa seu olhar.
Sei que ainda teremos muitos desafios pela frente, mas por essas duas
pequenas vidas nos braços da mulher quis assim que meus olhos a viram,
posso enfrentar qualquer desafio. Físico ou espiritual.
— Obrigada por me dar esse presente — diz ela para mim, olhando-me
com tanto amor que minha garganta fecha.
— Eu que agradeço por tornar minha vida completa e significativa —
respondo.
Acaricio delicadamente a cabecinha das nossas princesinhas e dou um
beijo na minha rainha, porque é isso: Vasilisa é e sempre será a peça mais
importante da minha vida.
Acompanho-as até o quarto, onde, aos pares, nossos parentes vêm
conhecer nossas filhas. O brilho nos olhos de cada um ao segurar Alexandra
e Beatrice é indescritível, e a alegria se espalha como uma onda
contagiante.
Dois dias depois, deixamos o hospital, cada um levando, nos braços,
uma princesa. Na porta, a imprensa nos aguarda, uma multidão de flashes e
perguntas ansiosas.
Sorrio ao lado de Vasilisa, e orgulhosos, apresentamos nossas filhas ao
mundo. Após respondermos a algumas perguntas e posarmos para fotos,
entramos no carro que nos levará para casa, deixando para trás o burburinho
dos repórteres e da cidade.
A Månestrålens Fjordresidens é fora da cidade e está envolta em uma
atmosfera de paz e aconchego. O sol de final de inverno entra pelas janelas
inteiras e ilumina suavemente a sala decorada com os arranjos de flores e os
presentes enviados por amigos e familiares.
Assim que entramos em casa, Vasilisa se acomoda na poltrona gigante
da antessala, perto da janela e estica as pernas para amamentar Beatrice, a
caçula, que é uma verdadeira esfomeada.
— Ela tem um apetite e tanto — comento, sorrindo.
— Puxou ao pai — brinca ela, levantando os olhos para mim.
Rimos baixinho e vou até o quarto e entrego Alexandra, que dorme a
sono solto nos meus braços, para a babá.
Apesar de serem absolutamente iguais, já noto uma pequena diferença
entre as duas: enquanto Beatrice suga com vigor e é mais esfomeada,
Alexandra mama com mais calma e gosta de aproveitar o seu tempo com a
mãe. Bom, foi o que me pareceu nesses dois dias.
Decidimos que nesse começo vamos contar com ajuda constante.
Depois decidiremos como vamos fazer. Nada é definitivo.
As amigas de Vasilisa chegam logo depois, entrando no quarto
silenciosamente e sussurrando para não acordar as meninas.
— Obrigado por virem, doidinhas — respondo, genuinamente feliz pela
presença delas.
Vasilisa sorri para as amigas. — Estou tão feliz que acho que estou
sonhando.
— Quero ver você repetir isso daqui a um mês — diz Tatyana, piscando
para ela.
Passamos a tarde juntos, conversando em tons suaves para não perturbar
as pequenas. A casa está cheia de vida, mas, ao mesmo tempo, uma calma
serena nos envolve. É como se todos estivéssemos em sintonia com a nova
energia que enche o nosso mundo.
Mais tarde, quando o silêncio toma conta da casa e as meninas dormem
em seus berços, sento-me na varanda fechada do nosso quarto ao lado de
Vasilisa, admirando as estrelas no céu.
— Parece um sonho, não é? — diz ela, encostando a cabeça em meu
ombro e bocejando.
— O melhor dos sonhos — concordo, entrelaçando meus dedos aos
dela.
Ficamos ali, em silêncio, apreciando a imensidão do céu noturno e o
som distante da cachoeira. Sei que não importa o que venha pela frente,
temos um ao outro e uma família que é nosso maior tesouro.
Ela suspira suavemente. — Nunca imaginei que poderia ser tão feliz.
— Você merece toda a felicidade do mundo — afirmo, olhando em seus
olhos. Beijo sua testa, sentindo-me completo. — E farei tudo para que
continuemos assim.
Ela sorri e boceja de novo.
Fecho os olhos por um instante, gravando este momento na memória.
— Vamos descansar? — Levanto-me e estendo a mão para Vasilisa. —
Amanhã será um novo dia cheio de aventuras com nossas pequenas.
Ela ri, como se eu tivesse dito algo muito absurdo.
— O que foi?
— Não acho que vamos descansar por alguns meses.
Mal ela diz isso, a porta de conexão que se abre e a babá aparece com
uma das meninas no braço.
— Ao menos, eu não vou.
— É, parece que não — concordo, sorrindo. — Prometo ajudar no que
for possível.
— Então, vem. Você pode trocar a sua primeira fralda.
E eu vou e deixo todas as sombras do passado para trás.
Com Vasilisa e nossas filhas ao meu lado, a vida é exatamente como
deveria ser.
O que importa agora é o presente que estamos construímos. O futuro
que nos aguarda.
Vamos iniciar o capítulo mais incrível de nossas vidas.

~ FIM . ~

Ao menos, até o livro do próximo irmão.


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Adorei passar essas páginas com você!
NOTES

Capítulo 1
i Taça de champagne em francês.
ii Sílfide significa mulher esbelta e delicada, mas na mitologia céltica e germânica, que engloba
também a mitologia nórdica, é o gênio feminino do ar.

Capítulo 2
i Na Europa e nos Estados Unidos, não existem “damas de honra”, como nós conhecemos, e sim
flower-girls, ou seja: meninas das flores. As damas de honra são adultas, as nossas madrinhas.
ii Na astronomia, o equinócio ocorre no instante em que o Sol cruza a linha do equador, fazendo com
que o dia e a noite tenham a mesma duração. Os equinócios ocorrem nos meses de março e setembro
e definem as mudanças de estação. Como Vinterland, fica no hemisfério norte, as estações lá são
inversas das que acontecem no Brasil, que fica no hemisfério sul.
iii Ou Mefistófeles. Essa figura surgiu na Idade Média, como aliado de Lúcifer e Lucius na captura
de almas inocentes, seduzindo-as, através de roubos de corpos humanos atraentes. É um dos
demônios mais cruéis e em muitas culturas também se torna sinônimo do próprio Diabo. O nome
significa: o que não ama a luz. Na literatura, Mefistófeles é o personagem-chave nas várias versões
de Fausto, sendo a mais conhecida a do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, um poema
magistral, escrito ao longo de sessenta anos. Aparece ao velho cientista, que frustrado por não possuir
os vastos conhecimentos que gostaria, e em troca de alcançar o grau máximo da sabedoria, ser
rejuvenescido e obter o amor de uma bela donzela, decide fazer um pacto com o demônio.
iv Grigori Yefimovich Rasputin foi um russo, autoproclamado místico, santo e filósofo que se tornou
uma figura extremamente influente no final do período imperial, depois de salvar a vida do único
filho do Czar Nicolau II, que era hemofílico.
v Segundo Henri Troyat, da Academia Francesa, Rasputin teria previsto a sua própria morte. Em
1916, ele escreveu uma carta ao Czar: “Pressinto que deixarei de viver antes de 1 de janeiro. (…) Se
ouvires o som do sino a dizer que Gregório foi morto, fica a saber que, se foi um dos teus que
provocou a minha morte, nenhum dos teus, nenhum dos teus filhos viverá mais de dois anos. Eles
serão mortos pelo povo russo”. Dois anos depois do seu assassinato, tramado pelo príncipe Felix
Yussupov, a família imperial foi brutalmente assassinada em 1918.
vi Joseph Mallord William Turner, ou só William Turner, foi um pintor, gravurista e aquarelista
romântico inglês, considerado um dos precursores da pintura moderna, em função dos seus estudos
sobre cor e luz. Seus trabalhos são marcantes, com colorações expressivas, paisagens imaginativas e
marinhas, muitas vezes violentas.
vii Que se saiba Turner só pintou a Erupção do Vesúvio, em 1817, que se encontra exposta no The
British Art Center, em New Haven.
viii Turner foi muito à Holanda, França e Itália, e sim, rodou a Europa desenhando e voltava a
Londres com volumosos cadernos de esboços para suas pinturas. Talvez ele tenha visitado
Vinterland, mas os historiadores não têm certeza disso. ;-)

Capítulo 4
i Fausto, de Goethe, verso 1066-7, tradução livre.
ii Curador é aquele judicialmente incumbido de cuidar de interesses e bens daqueles totalmente
incapazes e impossibilitados de exprimir sua vontade, como órfãos, menores, doentes mentais,
toxicômanos, etc….

Capítulo 6
i Palácio dos Amores.
ii Existem alguns tipos de imunidade aplicáveis a estrangeiros: por ex.: diplomática e a de chefes de
Estado. No caso, a de chefe de Estado, a qual o Sheik Jamal está se referindo, consiste na
inviolabilidade pessoal que protege os governantes em visita a outro país, contra medidas coercitivas
(a prisão ou detenção, por ex) e contra ofensas à sua pessoa e dignidade.
iii Quando em uso de títulos como Vossa Majestade, Vossa Alteza Real, etc… a regra formal
determina que se utilize o pronome Vossa/Vosso, com letra maiúscula, mas para manter a fluidez do
texto preferi usar sua/seu, a não ser em casos específicos em que o personagem precisa frisar a
formalidade da situação, como nesse caso.

Capítulo 10
i Para quem não sabe, a expressão Histórias da Carochinha vem de Portugal e Contos da Carochinha
é o título do primeiro livro infantil publicado no Brasil, em 1894. A Dona Carochinha é uma barata e
a origem da palavra deriva do espanhol, carocha, cucaracha que quer dizer… barata, claro.
Capítulo 11
i Ou Creso, foi o último rei da Lídia. É famoso por sua riqueza, a qual foi atribuída à exploração das
areias auríferas do rio Pactolo, afluente do Hermo onde, segundo a lenda, se banhou o Rei Midas,
aquele que a lenda dizia que transformava em ouro tudo o que tocava.

Capítulo 12
i Isengard significa Fortaleza de Ferro em nórdico antigo.
ii Dark Prince significa Príncipe Sombrio.
iii Término repentino de um relacionamento sem quaisquer explicações ou avisos, onde a parte passa
a ignorar quaisquer tentativas de contato ou comunicação feita pela outra.
iv Mulher fatal, sedutora.
v Bolsa tipo carteira.
vi Venha ver, segundo a norma culta, mas eles são crianças…
vii За здоровье! no alfabeto cirílico, ou transliterado Za zdorovye!, quer dizer À sua saúde! em
russo.
viii За наше здоровье! no alfabeto cirílico, ou transliterado Za nashe zdorov’ye!, significa À nossa
saúde! em russo.
ix Em francês, significa, casaco solto ou capa longa e pesada.

Capítulo 13
i Interruptor que controla a intensidade da luz
ii Sexy, por ser adjetivo da língua inglesa, não deveria ser flexionado, mas como foi incorporado à
fala, coloquei o plural.
iii Os homens árabes têm atitudes e comportamentos em público que aqui no Ocidente seriam
facilmente vistos como indicadores de homossexualidade, que é desaprovada e comumente
reprimida, até com pena de morte em alguns países.
iv É o cumprimento tradicional entre os árabes muçulmanos, o famoso aportuguesado ‘salamaleico’,
e quer dizer: a paz de Alah esteja com vós; daí surgiu a palavra salamaleque, que é utilizada para se
referir a um cumprimento demasiado polido.
v A resposta significa: que a paz de Alah esteja sobre vós também.
vi A frase original é de Nelson Rodrigues: Nada mais obsceno do que o rosto humano. Só a cara é
indecente e exige a folha de parreira. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu.
vii Conhecido no Brasil como Narguilé, é um cachimbo de água.
viii O correto é Tolstaya, porque em russo se flexionam os sobrenomes de acordo com o gênero da
pessoa.
ix Sophia foi entusiasta ajudante do marido e sua copista. Só de Guerra e Paz foram sete versões.

Capítulo 14
i Expressão francesa que quer dizer: fora do concurso. Expressa que a pessoa é inigualável, sem
rivais.
ii Jörmungandr, uma gigantesca serpente, é a segunda filha do deus Loki com a gigante Angrboda.
De acordo com a Edda em Prosa, Odin raptou de Asgard os três filhos de Loki: o lobo Fenrir,
Jörmungandr e a deusa Hela, sendo a serpente jogada no grande oceano que circula Midgard. O
prefixo jörmun significa enorme, vasto ou sobre-humano. A palavra gandr pode ser uma variedade
de coisas em nórdico antigo, mas refere-se a entidades e/ou seres alongados, como: cobra, fiorde, rio,
cajado, bengala, mastro, pênis, etc. A serpente cresceu tanto que seria capaz de cobrir a Terra e
morder sua própria cauda, como um Ouroboros. Por isso, ganhou o nome alternativo de Serpente de
Midgard (Midgårdsormen) ou Serpente do Mundo.
iii Uma Valkyria, literalmente escolhedora dos mortos, é uma das inúmeras figuras femininas que
guiam as almas dos mortos para o salão do deus Odin, Valhalla. As Valkyrias também aparecem
como amantes de heróis e outros mortais, onde às vezes são descritas como filhas da realeza, às vezes
acompanhadas por corvos e às vezes conectadas a cisnes ou cavalos.
iv Na mitologia nórdica, Valhalla, literalmente Salão dos Mortos, é descrita como um salão
majestoso localizado em Asgard e presidida pelo deus Odin. Metade dos que morrem em combate
entram em Valhalla, enquanto a outra metade é escolhida pela deusa Freyja para residir em
Fólkvangr.

Capítulo 15
i O jab é tipo de soco usado nas artes marciais e lutas corporais.
ii O direto é outro estilo de soco usado em artes marciais e lutas corporais.
iii É uma geleia feita com uma amora silvestre, típica das regiões de turfeiras, tipo de solo formado
pela decomposição de musgos e materiais orgânicos, como fósseis sob o solo. Parece uma grande
framboesa amarelo-alaranjada. Também chamado de chocoutai. É encontrada nos países que têm
fronteira com o Ártico.
iv Pequeno peixe gorduroso típico do Mar do Atlântico Norte, Báltico ou Pacífico Norte.
v Casamento por procuração.
vi Queijo de cabra típico da Escandinávia.
vii Vasilisa não poderia realizar nenhum ato da vida civil, nem mesmo se casar, senão por declaração
do seu curador, no caso o pai, já que se fizéssemos uma equiparação estaria enquadrada no inciso I,
do art. 1.767 do Código Civil Brasileiro, que diz que estão sujeitos à curatela, os que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para os atos da vida civil;

Capítulo 16
i Rua de compras chiques de Oslo.
ii O Teams é uma plataforma de computação ou aplicativo de computador e celular para reunião de
empresas e educação;

Capítulo 17
i Cobertura;
ii Fiorde Oslo.
iii Chá fermentado, levemente efervescente e adoçado, consumido por seus supostos benefícios à
saúde, mas não há evidências desses benefícios. Acredita-se que tenha se originado da China, onde é
tradicional. No início do século XX, havia se espalhado para a Rússia, depois para outras partes da
Europa Oriental e Alemanha.
iv Pequenos grupos de pessoal altamente treinado, enfatizando suficiência, furtividade, velocidade e
coordenação tática, comumente conhecidos como forças especiais.

Capítulo 18
i A moeda da Noruega é a Norsk Krone, ou seja a Coroa Norueguesa, mas ninguém, na Noruega, fala
“x coroas norueguesas” e, sim, “x coroas”.
ii Na mitologia grego-romana, o néctar é a bebida dos deuses do Olimpo. Para o Hinduísmo,
Taoísmo, Budismo e várias escolas, é o amṛita, em sânscrito, o símbolo sagrado da sabedoria,
iluminação espiritual e também da cura e renovação da vida.
iii A origem do termo perversão é de 1660 e não tinha conotação sexual, que a partir de 1896, foi
aplicado originalmente a variantes de sexualidades ou comportamento sexual considerado prejudicial
pelo indivíduo ou grupo que usa o termo.
Capítulo 19
i Cão da Córsega, ou Cão Robusto, dependendo da tradução (italiana ou celta), é uma raça de
cachorro, de grande porte, do tipo mastim, oriunda da região sul da Itália, onde é valorizada como
cão de guarda e de caça de javalis. Pode ser treinado para ser feroz e possui uma das mordidas mais
poderosas do mundo canino, só perdendo para o Kangal, da Turquia, que corresponde
aproximadamente a quase 50 kgf/cm 2.

Capítulo 20
i Esta expressão significa: Que Allah te recompense com o bem. É usada para expressar gratidão e
despedida ao mesmo tempo.
ii Significa: Que Allah te abençoe. É uma maneira de retribuir os bons desejos que Vasilisa fez a ele.

Capítulo 21
i Petit four, em francês, quer dizer: forno pequeno. Um petit four é uma massa pequena e doce (ou
salgada) da pâtisserie clássica francesa.

Capítulo 24
i Aparelho portátil que monitora o ritmo cardíaco do indivíduo em um período de 24 a 48 horas;

Capítulo 25
i No século I d.C., após a tumultuada guerra civil conhecida como o Ano dos Quatro Imperadores,
Vespasiano assumiu o trono. O Império Romano estava com sérios problemas financeiros. Para
reabastecer os cofres públicos, ele implementou uma série de novos impostos. Um desses impostos
foi sobre a coleta de urina dos mictórios públicos, conhecida como vectigal urinae. Isso, porque, na
Roma Antiga, a urina era um bem valioso. Coletada de mictórios públicos, era usada em processos
industriais, como o curtimento de couro e a lavagem de roupas, devido ao seu conteúdo de amônia,
que servia como agente de limpeza. Quando seu filho, o futuro imperador Tito, criticou a medida
fiscal como sendo indigna e de mau gosto, Vespasiano pegou uma moeda obtida com o imposto,
aproximou-a do nariz de Tito e perguntou se ela tinha algum cheiro desagradável. Tito respondeu que
não. Vespasiano então declarou: — No entanto, vem da urina. Daí, vem a famosa frase Pecunia non
olet, que ilustra princípios tributários, e indica que o valor do dinheiro não é afetado pela sua origem.
A expressão tornou-se proverbial e é usada até hoje para sugerir que ganhos financeiros,
independentemente de sua fonte, não carregam consigo mácula ou desonra.
ii O véu já era usado em cerimônias de casamento na Grécia Antiga (para afastar e confundir os
maus espíritos, assim como as damas de honra) e no Império Romano. Para a religião judaico-
católica-muçulmana, simboliza a pureza, modéstia, castidade e submissão ao marido. Em diferentes
culturas ao redor do mundo, o véu simboliza diferentes coisas.

Capítulo 27
i Traduz-se por algo similar à: Mestre do chocolate.
ii Ouro rosado.

Capítulo 28
i Linha Sombria ou Linha Escura;
ii Criminosos em série
iii Chá da tarde.
iv O Pensador é uma das mais famosas esculturas do escultor francês Auguste Rodin e retrata Dante
Alighieri, em frente dos Portões do Inferno, ponderando sobre seu poema. Originalmente, a peça foi
feita para a porta monumental do Museu de Arte Decorativa de Paris, baseado na obra Divina
Comédia, de Dante. Há várias versões da estátua, de tamanhos diferentes, feitas pelo artista. A mais
famosa, de 1m80 de altura, em bronze, fica no jardim do Museu Rodin, em Paris.
v Criminal profiling, ou perfilamento criminal, é processo de análise criminal que une as
competências de um investigador criminal e do especialista em comportamento humano.

Capítulo 35
i Pessoa que atira de um esconderijo, com altíssima precisão e a longa distância;

Capítulo 36
i Sororal é um adjetivo que vem de “soror”, que significa, em latim, irmã. Sororal significa, neste
sentido, amizade ou amor profundo e solidariedade entre mulheres. É semelhante à fraternal, mas por
ser apenas entre mulheres, fraternal não pode ser usado. Não confundir com sóror, que se refere
somente a freiras.
Capítulo 37
i Essa serpente só existe nas montanhas de Vinterland e sua mordida é muito potente.
ii As enguias Anguilla anguilla são nativas da região Árticas e escandinavas e, sim, comem entre
outras coisa, cadáveres de animais marinhos.

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