Tiago Pereira Andrade

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

TIAGO PEREIRA ANDRADE

Desafios na educação juvenil:


a aprendizagem fraturada

Doutorado em Ciências Sociais

São Paulo

2018
TIAGO PEREIRA ANDRADE

Desafios na educação juvenil:


a aprendizagem fraturada

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências
Sociais, sob a orientação do Prof. Dr. Edgard de Assis
Carvalho.

SÃO PAULO

2018

2
BANCA EXAMINADORA

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___________________________

___________________________

___________________________

___________________________

3
Dedicatória

Dedico esta tese a todos aqueles que se esforçam


para que os processos educacionais transformem o
mundo em algo melhor, pensando em toda a
humanidade, todo ser vivo e em todo o planeta.

4
Estudante contemplado com
BOLSA - CAPES - PROSUP/PUC

5
Agradecimentos

Agradeço a todos os professores que fizeram parte da minha trajetória de vida, iniciando
pelos meus pais, com longa carreira na docência estatal, e chegando até aqueles com quem debati
inúmeras vezes e me aguçaram a fazer esta pesquisa; aos membros do Núcleo de Estudos da
Complexidade, pois sem eles esta tese não se concluiria; e em especial ao meu orientador, Dr.
Professor Edgard de Assis Carvalho, com quem tanto aprendi e continuo aprendendo.

6
Resumo

Observamos uma crise da educação superior no mundo contemporâneo. O objetivo desta tese é investigar em literaturas e depoimentos o
que entendemos por educação, aprendizagem, produção de conhecimento e como estamos lidando com a formação de jovens em uma sociedade
individualista, imersa nas burocracias, digitalizada e neoliberal. Alguns desafios, dentre os diversos encontrados nessa crise, serão abordados
nesta pesquisa: a supervalorização de um conceito de razão e da ciência em detrimento das outras formas de aprendizagem do mundo, como as
artes, a poesia, os sentimentos, os mitos; a fragmentação dos saberes, que contribui para a falta de um sentido na educação dos dias de hoje; e
também a instantaneidade das informações em uma sociedade conectada às redes sociais por meio dos gadgets (telefones celulares e
computadores portáteis). Todos esses desafios se articulam na forma como o conhecimento é produzido e questionam o papel contemporâneo do
professor, do estudante e de todos os agentes nas instituições de ensino. Os resultados são obtidos como um sistema aberto de conhecimento,
dialogando com imagens, poesias e, ao final, com depoimentos, de uma forma transdisciplinar.

Palavras-Chave: Educação; Complexidade; Aprendizagem.

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Abstract

We observe a crisis of higher education in the contemporary world. The goal of this thesis is to investigate in literatures and statements
about what we understand by education, learning, knowledge, and how we are dealing with the training of young people in an individualistic
society, steeped in bureaucracy, digital and neoliberal. Some among the various challenges found in this crisis will be covered in this research:
the overvaluation of reason and science to the detriment of other forms of learning in the world, such as the arts, the poetry, the feelings, the
myths; the fragmentation of knowledge that contributes to the lack of a sense in education today; and also, the immediacy of information in a
society conected in social networks by means of the gadgets (cell phones and laptops). All these challenges articulate in how knowledge is
produced and question the contemporary role of the teacher, the student and all agents in the educational institutions. The results are obtained as
an open system in a dialogue with images, poetry and ih the end with testimonials, in a transdisciplinary way.

Keywords: Education; Complexity; learning.

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Sumário
Apresentação do autor ............................................................................................................................................................................................................ 11

Introdução .......................................................................................................................................................................................................................................... 19

1 Educação .......................................................................................................................................................................................................................................... 30

2 Aprendizagem e conhecimento .................................................................................................................................................................................. 66

3 Razão, ciência, complexidade ...................................................................................................................................................................................... 81

4 Rumo ao digital ........................................................................................................................................................................................................................ 101

Diálogo com os educadores .............................................................................................................................................................................................. 129

Considerações finais .............................................................................................................................................................................................................. 159

Bibliografia ...................................................................................................................................................................................................................................... 162

Anexos .................................................................................................................................................................................................................................................. 167

9
Lista de imagens

Imagem 1 – Fotografia A razão da tese, de Tiago Pereira Andrade.....................................................................................................................29

Imagem 2 – Desenho Encontros diagramados, de Bruno Sabino.........................................................................................................................47

Imagem 3 – Fotografia Individucação, de Tiago Pereira Andrade.......................................................................................................................56

Imagem 4 – Fotografia Poesia do conhecimento, de Tiago Pereira Andrade......................................................................................................98

Imagem 5 – Desenho Gepeto indignado, de Bruno Sabino.................................................................................................................................99

Imagem 6 – Desenho Retomar as raízes, de Luiza Bicalho Vianna....................................................................................................................100

Imagem 7 – Desenho Tal liberdade, de Bruno Sabino........................................................................................................................................113

Imagem 8 – Captura de tela animação de Steve Cutts: Solidão..........................................................................................................................120

Imagem 9 – Captura de tela animação de Steve Cutts: Real Ilusão....................................................................................................................128

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indiferença, mas estudava bastante para garantir a nota e dizia para

Apresentação do os outros que não tinha estudado nada, só para que ficassem com
raiva e me achassem mais inteligente. Hoje me envergonho disso.

autor Talvez o meu único diferencial era a facilidade que tinha


em conversar sobre quase tudo com todos. Confesso, nunca fui
totalmente desinibido e até hoje não sou. Fico envergonhado,
Começo parafraseando o poeta e ex-professor da PUC-SP
nervoso ao falar em público, e quando começa um semestre em que
Haroldo de Campos, em seu canto galático, do livro e álbum
vou dar aula para turmas novas, sinto um frio na barriga, talvez por
recitado Galáxias, de 2004: e começo aqui e meço aqui este começo,
ter pouco tempo como professor – 8 anos –, talvez por ser parte da
e recomeço e remeço e arremesso, e aqui me meço, quando se vive
minha personalidade, ou talvez isso seja um sentimento eterno para
sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o
todos os professores, que mentem, como eu fazia, quando dizem que
começo da, por isso meço, por isso começo escrever mil páginas,
não ficam nervosos.
escrever milumapáginas para acabar com a escritura, para
começar com a escritura, para acabarcomeçar com a escritura, por Mas é fato que passei a maior parte da minha vida, dos
isso recomeço, por isso arremeço, por isso teço escrever sobre meus 37 anos, sentado nas cadeiras de estudante – adentrei na
escrever, é o futuro do escrever... educação infantil com 4 anos e só fiquei sem assistir aulas de 1999
até o início de 2000. E em todo esse tempo questionei muito os
Para mim nunca foi fácil estudar ou produzir um texto. Por
outros e me questionei muito também sobre o que eu fazia ali, qual
muitas vezes era elogiado enquanto estudante, mas com certo
era o sentido de estar estudando. Deixei de entrar em muita aula sem
destaque para as artes e as exatas. Eu era do tipo que sentava no
um bom motivo e usava a expressão “cabular” para a falta
fundo da sala, distraía os outros, dissimulava uma atitude de

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propositiva e sem justificativa plausível, afinal, sempre existiu esta posteriormente Pinacoteca Estação – e em exposições itinerantes do
tolerância no universo educacional, não é verdade? SESC. Como sempre fui de conversar bastante, alguns amigos mais
próximos sempre me diziam: “Nossa, como você explica bem,
Amei muito alguns professores e odiei outros também. No
poderia dar aulas!”.
meu modo de ver as coisas, grande parte dos estudantes passou pelas
mesmas coisas que eu. Desde que nasci, nunca me lembrei de uma Por parte da família, ora existia resistência a essa atividade
sala de aula em que não tinha um aluno dormindo ou lutando contra profissional – já que a experiência professoral da rede pública
o sono – a não ser quando o professor usava de algum método sobrecarregava e pagava mal –, ora existia apoio, pois, mesmo sem o
punitivo ou coercitivo. Lembro-me até de gente dormindo durante a devido prestígio em território nacional, a vida de estudos sempre se
prova do vestibular. apresentou crítica e com certo reconhecimento informal de parte da
sociedade.
Vivi o ambiente educacional minha vida toda, até quando
não estava trabalhando ou estudando, uma vez que meus pais, Mas eu não tinha tanta certeza do que queria. Em minha
madrinha, irmãos e, por consequência, quase todos os amigos dos história profissional, apesar da pouca idade, penso que trabalhei em
meus pais sempre foram professores do ensino fundamental, médio, certa variedade de profissões, ocupações. Aos 14 anos, tive minhas
superior, cursinho, escolas de línguas, nas redes públicas, privadas e primeiras experiências remuneradas, enchendo balões laminados em
até mesmo em aulas particulares. shopping centers ou balões de látex para serem soltos na largada de
corridas no autódromo de Interlagos.
Desde a faculdade, eu já comecei a lecionar aulas de inglês
– particular e no curso em rede de franquias CCAA – e fazia Em 1996, aos 16 anos, tive pela primeira vez minha carteira
monitoria explicativa em museus – Museu do Imaginário e profissional assinada, pois cursava colegial técnico em

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telecomunicações. Fui trabalhar na Telesp, empresa que cuidava da No retorno ao Brasil, no ano 2000, precisava retomar minha
telefonia em São Paulo, que posteriormente foi vendida à vida estudantil, acreditando na máxima de que precisamos
Telefônica. Ainda nas telecomunicações, de 1996 até 1998, instalei conquistar nosso lugar de destaque na sociedade e o caminho mais
antenas em torres de telefonia celular, assim que esta foi próximo de uma realidade plausível é o dos estudos. Mas não
implementada no Brasil, e em seguida fui suporte de gostava mais das exatas e não acreditava mais na minha
telecomunicações no Banco Chase Manhatan, na zona sul competência musical.
paulistana.
A experiência de ter convivido com pessoas das mais
No início de 1999, fui morar nos Estados Unidos, pois algo diversas culturas e ideologias diferentes me aproximava cada vez
já me incomodava com as exatas e meu apreço pelas artes me fez mais das humanidades, e tanto pela formação familiar quanto pelo
pensar que queria ser músico. Sempre amei música! Já havia círculo de amizades e afinidades sempre tive forte ligação não só
estudado desde 1997 – hoje sei que é uma idade tardia caso queira com a política, mas também com a tentativa de aproximação com
seguir carreira. Nos EUA, fiz curso preparatório para o TOEFL, e culturas que não eram do meu conhecimento.
por já possuir inglês fluente, não foi difícil. Queria a Berkley,
Como os vestibulares já haviam acontecido, iniciei o
faculdade de música em Massachussets, mas quando vi que não
cursinho pré-vestibular Anglo sem ter certeza de qual curso
conseguiria me sustentar e pagar o curso, passei dois anos morando
escolheria. Depois de duas semanas no cursinho, optei por um curso
e trabalhando lá sem fazer a faculdade. Nesse período, trabalhei na
que então se tornaria uma grande paixão e identificação em minha
construção civil, lavando pratos, como instalador de antenas, em
vida: Ciências Sociais.
cozinha de restaurante, lanchonetes, lavando carros, limpeza de
cinema, em depósito no cais e promotor de casa noturna.

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A partir de 2002, os primeiros anos de graduação na PUC- prestar a caridade? Gostei e continuei. Fui aprendendo e sentindo,
SP foram de muitas descobertas, encontros com pessoas que são aceitando, até virar pai pequeno – um cargo abaixo de pai de santo.
grandes amigos até hoje, muita diversão, brigas com a instituição Por lá permaneci durante sete anos, e sou eternamente grato por essa
pela busca de bolsa acadêmica e o início de minha relação amorosa experiência, com a qual aprendi muito sobre o mundo de forma não
mais longa até hoje, que durou oito anos. Aliás, as minhas racional.
dificuldades em gerenciar uma vida acadêmica, trabalhar, o primeiro
Durante esses oito anos de relacionamento com minha ex-
relacionamento dividindo as contas do lar, e um bocado de boemia,
namorada, sete anos de umbanda e sete anos de graduação, trabalhei
foram as desculpas utilizadas para demorar sete anos para me
como programador de banco de dados para empresas de logística –
formar.
com a ajuda do meu irmão, meu último retorno às exatas – e depois
Foi também nesse período que deixei de ser agnóstico e me no orçamento participativo da prefeitura de São Paulo, na
tornei umbandista. O motivo inusitado foi que estava me sentindo subprefeitura da Lapa, em seguida no SESC Pompeia, no Museu do
mal de saúde, desmaiava a todo momento e me sentia fraco e Imaginário, Estação Pinacoteca, dando aulas de inglês, na Fundação
confuso. Fui a diversos médicos, e todos me diziam que eu estava Prefeito Faria Lima, da USP, como pesquisador de políticas
bem, mesmo assim os sintomas continuaram. Nesse momento, públicas, na CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e
minha mãe, que frequentava diversas religiões, pois se encantava Urbano) em pesquisa de infraestrutura do entorno de futuras
com o assunto, me trouxe um recado de um terreiro de umbanda que instalações habitacionais, em um hotel de luxo no Jardim Europa
prometia solucionar meu mal-estar. como auditor noturno e tradutor de inglês, até que comecei como
assistente de biblioteca na UNIP (Universidade Paulista) da Vila
Fui sem acreditar – e até hoje não sei se acredito –, mas
Mariana.
amei o ritual, fiz amizade com as pessoas, e que mal poderia fazer

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Da mesma forma que o excesso de informações sobre as Orientado pela professora Rose, foi uma trajetória de
minhas atividades em um curto período de tempo confunde o leitor, grande felicidade e responsabilidade, uma vez que nunca antes um
assim estava minha mente profissional: confusa, cansada e sem funcionário havia percorrido esse caminho nessa instituição. O tema
perspectiva clara de rumo profissional. Mas, pela ironia do destino, de estudo da minha pesquisa/dissertação de mestrado era entender a
trabalhando em uma faculdade, encontrei alento para estudar muito, construção de arquétipos de juventude na mídia brasileira, mais
terminar minha faculdade e escolher o que queria para mim. Da especificamente na revista Veja, por meio da análise discursiva,
UNIP fui para a ESPM (Escola Superior de Propaganda e análise de conteúdo e análise imagética de todas as edições da
Marketing), ainda trabalhando na biblioteca. revista durante um período de seis meses. Nesse momento, para
discutir a questão da juventude, um dos autores de mais afinidade e
Nos meus últimos dias de PUC, comentei com alguns
mais utilizado foi Edgar Morin e suas reflexões sobre a
professores que gostaria de seguir carreira acadêmica. A professora
juvenilização da cultura.
Lucia Helena Rangel, sabendo de minha história, me incentivou e
pediu para que eu procurasse na ESPM a professora Rose de Melo Já havia lido e possuía plenas lembranças de Edgar Morin
Rocha, e assim o fiz. na graduação e já gostava muito. Ao fazer um resgate de sua obra,
entrei em contato com diversas obras do professor Edgard de Assis
A política institucional da ESPM oferecia bolsa para
Carvalho, com quem infelizmente não tive aula, mas por
funcionários que conseguissem passar nos processos seletivos, desde
coincidência, ou ironia do destino, havia orientado minha
que os gestores estivessem de acordo. Montei um projeto, prestei
orientadora durante o pós-doutorado. Ao defender o mestrado,
prova e entrevista e passei em 13o de um total de 16 entrantes.
vislumbrava uma possibilidade futura de um doutorado com Edgard
Éramos a 4a turma do recém-criado curso de pós-graduação em
de Assis Carvalho, mas ainda não era o momento.
Comunicação e Práticas de Consumo da instituição.

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Com o título de mestre e quatro anos de trabalho na busquei uma tematização, um objeto que englobasse os dois fatores.
biblioteca da ESPM, queria muito trabalhar na área acadêmica. No fundo, não percebia que os jovens realmente enxergavam um
Como conhecia muitos professores, pedia a todo momento ajuda sentido na relação entre juventude e aprendizagem. Como professor,
para indicação profissional. Minha gestora – Debora Bonfim – na notei que quase nenhum estudante tinha prazer nem via beleza no
biblioteca acreditava em meu potencial e lutou muito para que eu universo acadêmico. Percebia por experiência própria que
tivesse uma chance. Depois de muitas tentativas, recebi uma pouquíssimo do que se ensinava em um curso superior era
oportunidade para ajudar o líder da área – Mário René, de aproveitável tanto na vida profissional como na prática.
humanidades – em suas atividades burocráticas e, em troca,
Paralelamente a isso, os avanços tecnológicos
receberia a oportunidade de substituir professores que faltassem.
comunicacionais vinham preencher lacunas informacionais e até se
Assim, comecei como professor substituto. No semestre sobrepunham aos ensinamentos da sala de aula. O Google respondia
seguinte, dei aula para uma turma de adaptação – transferência de imediatamente, como se carregássemos todas as enciclopédias no
outras faculdades – e dependência vespertina; no seguinte obtive bolso. O professor, detentor do conhecimento, tinha de rever sua
minhas primeiras turmas regulares, depois passei a professor regular, função em sala de aula.
ajudei a criar o curso de Ciências Sociais e do Consumo, do qual
Velhos e novos desafios de uma carreira docente foram os
hoje sou supervisor.
grandes motivadores da seleção do objeto de estudo desta tese.
No meio de todo esse processo, surgiu o tempo, a Afinal de contas, como ser professor em tempos em que poucos
necessidade e a vontade de continuar meus estudos, e então comecei possuem motivação para estudar? Como tentar fazer da atividade
meu projeto de doutorado. Como eu não queria me afastar da cotidiana algo que faça sentido e realmente tenha utilidade
temática da juventude e estava encantado com a sala de aula, simultânea para os indivíduos e para a sociedade?

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Diante desses dois grandes desafios, o projeto de doutorado
foi escrito com a intenção de ficar sob a orientação do professor
Edgard de Assis Carvalho, que o acolheu, e desde então vem se
desenvolvendo e se reformulando nos últimos anos com dedicação.

Vale evidenciar algo que está intrinsecamente ligado à


minha história de vida e ao meu tema de doutorado. Penso que no
mundo moderno a máxima satisfação humana só pode ser atingida
se o homem se vir como peça de uma engrenagem que move de
forma consciente a espécie humana, o planeta Terra, e isso se dá por
meio da atividade que esse “ser humano” exerce no mundo em seu
cotidiano. É no trabalho que passamos a maior parte de nossa vida,
depositamos a maior parte de nossas esperanças e aplicamos os
nossos maiores aprendizados. Tenho grande orgulho em acordar às
5:30 da manhã em uma segunda-feira para dar aula, pois dialogando
e construindo conhecimento com os jovens me sinto pleno, contente
e não vejo o tempo passar.

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Sala cheia, sala vazia O professor não para,
Os estudantes desesperam,
O professor desespera,
O professor adentra, Os estudantes dispersam,
Os estudantes conversam, O professor braveja,
O professor cumprimenta, Os estudantes protestam,
Os estudantes conversam, O professor se magoa,
O professor se senta, Os estudantes confessam,
Os estudantes conversam, O professor escuta,
O professor marca presença, Os estudantes despertam,
Os estudantes se aquietam, O professor se anima,
O professor começa, Os estudantes revelam,
Os estudantes se sentam, O professor aprende,
O professor explica, Os estudantes ensinam,
Os estudantes se dispersam, O professor se perde,
O professor atenta, Os estudantes protestam,
Os estudantes regressam, O professor se despede,
O professor continua, Os estudantes conectam.
Os estudantes se conectam,
O professor se lamenta,
Os estudantes se negam,
O professor desanima,
Os estudantes dispersam,
O professor se esforça,
Os estudantes conversam,
O professor continua,
Os estudantes assonam, Poesia de Tiago Pereira Andrade
O professor insiste,
Os estudantes protestam,

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Introdução
vezes nos coloca abaixo dessa condição, já que o macaco, ao
adentrar na faculdade, diz se sentir pior, sendo que esperava o
melhor.

As indagações sobre como aprendemos e quais os rumos da O principal objeto de análise está nos valores educacionais
educação no mundo contemporâneo, considerando o fácil acesso a do mundo contemporâneo, focando principalmente os sentidos da
diversas formas de saber, foram os inspiradores para este estudo. educação e tentando entender de que forma lidamos com o
Percebemos uma supervalorização do individualismo e a conhecimento, o que nos leva a refletir sobre o papel dos
disseminação de verdades absolutas nos processos de aprendizagem. professores, estudantes e das instituições de ensino e como lidamos
Pela crítica a este processo, a tese pede outro paradigma de leitura, com um saber fragmentado em uma época de disseminação de
que ora trará análises de forma cartesiana, ora trará interpretações informações pelos meios digitais.
dos assuntos estudados em outras linguagens, como a poesia, a
Levamos em consideração os seguintes desafios: relação
apresentação imagética, as experiências em depoimentos, criando
educação/aprendizagem/história/mercado; a forma como a
assim uma intertextualidade e permitindo que o leitor faça leituras
construção do saber é fragmentada e como as disciplinas não se
não tão convencionais na academia.
relacionam entre si; e principalmente os meios que influenciam na
A universidade moderna vem sendo sistematicamente construção do conhecimento. Não pretendemos nos limitar aqui aos
questionada por grandes pensadores das mais diversas áreas. Como fatores intraescolares: elaboração de plano de ensino e conteúdos;
exemplo, lembremos o conto de Franz Kafka, Um relatório para a programas; atividades; métodos de ensino; e práticas pedagógicas.
academia, de 1917, que nos conta como um macaco se tornou um Ao contrário, queremos evidenciar alguns fatos conceituais e
acadêmico, que nos aproxima da mesma condição de um símio e por históricos para questionar a mentalidade social no sentido de

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existência da formação superior como está dada, guiando a tese panorama geral desde a Grécia Antiga até a sociedade
como ferramenta de abertura do conhecimento e finalidade não contemporânea, passando pelo Iluminismo e o nascimento da
conclusiva. sociedade industrial. Mas ainda analisaremos a faculdade – ou
universidade, local do ensino superior – como o locus das
A academia, no sentido grego, era o lugar do saber na
sapientiae, enquanto produtora crítica do conhecimento e
sociedade, do desenvolvimento intelectual e também físico, mas nos
modificadora da sociedade para um bem comum.
interessa principalmente o primeiro caso, mesmo sabendo que não
podemos dissociar desenvolvimento físico e intelectual se quisermos Na parte conceitual, articularemos distintas áreas do
um rendimento equilibrado de ambos. Ou seja, ia-se à universidade1 conhecimento, porém, majoritariamente, nosso estudo estará
2
ou faculdade para produzir conhecimento, entender o mundo e ancorado, nesta mesma ordem, em sociologia/antropologia,
obter formação política e cidadã. Evidenciamos no mundo educação, comunicação, história e psicologia.
contemporâneo, entre outras explicações, que se cursa uma
Mas a pesquisa, que bem poderia se bastar no resgate
faculdade principalmente para obter um diploma e assim escolher
conceitual, se estenderá a aplicações metodológicas com
um caminho entre uma diversidade de profissões.
experiências pedagógicas e coleta de depoimentos, por isso, na parte
Diversos foram os processos históricos que construíram e empírica, tratamos de dois objetivos específicos: o primeiro
transformaram essa mentalidade, por isso é necessário delinear um objetivo investiga a percepção de docentes e discentes sobre a
construção do conhecimento, como percebemos a essência e os
1 Universidade significava, no séc. VII, apenas uma corporação de pessoas interessadas na troca de
conhecimentos. Depois, com o controle da igreja, se tornou uma palavra divina da unificação de todos
sentidos da educação que conhecemos e como essa relação interfere
os conhecimentos (FERREIRA, 1993, p. 109). Segundo a Wikipedia: Uma universidade é uma
instituição pluridisciplinar de formação dos quadros de profissionais de nível superior, de pesquisa, de na aprendizagem, principalmente proposta por um curso acadêmico.
extensão e de domínio e cultivo do saber humano.
2 Faculdade é uma das denominações adaptadas pelas Universidades para as suas unidades orgânicas. As perguntas que aparecem como guia para buscar nosso
Ela já está ligada à fragmentação do saber.

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esclarecimento são: qual a contribuição da faculdade na melhoria da concordância e discordância entre os relatos e as teorias, além de
sociedade? O acesso imediato à informação e a relação estreita dos promover possibilidades de debates transdisciplinares.
jovens com a tecnologia facilitam ou dificultam o aprendizado? A
Algumas perguntas estiveram presentes na elaboração dos
dificuldade por parte dos docentes com esse tipo de situação
problemas: a falta de relação entre as disciplinas gera algum tipo de
encontrada em sala de aula é consequência de quais processos do
interpretação superficial dos conteúdos que elas tratam em comum?
nosso sistema educacional? Estamos criando resistência contra uma
A fragmentação desmotiva o aluno no processo de aprendizagem?
situação inevitável do mundo contemporâneo? Há a tendência a uma
As experiências que combatem os problemas, como a fragmentação
uniformização desse tipo de cultura juvenil e educacional?
dos saberes e a modificação do mundo pelo digital, podem facilitar a
O segundo objetivo de investigação é o relato de docência e a aprendizagem na criação de um sentido?
experiências imediatas que tentam lidar tanto com formas de saber
Os resultados obtidos nos pontos de investigação serviram
que contemplem a complexidade – fragmentação dos saberes –
como base para compreender a forma com que os estudantes e os
quanto com experiências relatadas de como a vida digital e os
professores se sentem em relação ao processo de construção do
gadgets interferem nos processos educacionais e de aprendizagem.
conhecimento. Além da falta de motivação no desenvolvimento de
Interessa-nos também coletar relatos. Como exemplo, temos a
uma vida acadêmica, eles também vivem intermediados pela
experiência de criação de uma matriz que possibilite relacionar os
comunicação por meio da tecnologia digital em um mundo
principais temas das disciplinas de humanidades no curso de
neoliberal.
Ciências Sociais e do Consumo em uma faculdade de grande poder
aquisitivo em São Paulo. Procuramos encontrar pontos de Algumas escolas e faculdades, além dos professores, de
forma geral, estudam saídas para esse evidente dilema, e seus relatos

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elucidam e nos convidam a refletir sobre como lidamos com a Consideramos que talvez o jovem universitário contemporâneo não
desmotivação. Os resultados dos pontos de investigação serão esteja nem acumulando as informações, devido a sua relação com os
articulados na busca pela compreensão de que as escolas e gadgets, nem desenvolvendo um senso crítico idealizado devido à
faculdades esperam o desenvolvimento crítico dos alunos e não fragmentação da aprendizagem. Portanto, os modelos atuais não
somente o acúmulo de informações fragmentadas para o propiciam nem uma cabeça cheia nem uma cabeça bem-feita.
conhecimento técnico de suas futuras profissões ou carreiras.
Michel Serres faz uma analogia, em sua obra Polegarzinha
O que pretendemos é demonstrar, e possuímos como (2013), em que a protagonista do conto – uma representante da
hipótese, que a essência existencial de uma faculdade (ou juventude que anda o tempo todo interagindo com o celular na mão
universidade) não deveria estar somente relacionada a propiciar – pode ser comparada com a lenda do bispo São Denis de Paris:
ajuda na obtenção de um diploma para empregabilidade, como após ser decapitado, carregou a própria cabeça, caminhando até sua
muitos acreditam, mas a superficialidade gerada pela fragmentação igreja. Podemos dizer que os jovens carregam suas cabeças em suas
dos saberes e a dificuldade em lidar com novas culturas digitais mãos. Nem a cabeça bem-feita – crítica – nem a cabeça cheia – de
estão impossibilitando o desenvolvimento crítico e tornando o informações –, mas queremos discutir a formação de um novo
estudo pouco interessante. modelo a ser compreendido, e o desafio é como compreendê-lo
epistemologicamente. Esse novo modelo é um jovem que questiona,
Michel de Montaigne (1580) apresenta em seus Ensaios
mas não aprofunda, que possui poucas filiações, que atesta a
uma frase que depois passou a ser muitas vezes revisitada por outros
realidade pelos meios digitais e vê na educação um processo
autores: “Mais vale uma cabeça bem-feita que uma cabeça cheia”.3
objetivo na obtenção de um diploma e não de uma formação cidadã.

3Michel de Montaigne, escritor, filósofo e político francês do séc. XVI, a quem é atribuída a frase, pleine” porém existem muitas traduções dessa frase no Brasil que podem divergir da tradução utilizada
obviamente escreveu-a em francês, sua língua: “Mieux vaut une tête bien faite, plutôt qu’une tête bien neste projeto.

22
A dificuldade em pesquisar nas ciências humanas parte de Vivemos uma intensificação da quantofrenia. O professor
um princípio em que as inúmeras teorias se confrontam com maior José de Souza Martins 4 afirma que as universidades utilizam a
velocidade e maior frequência, comparadas às ciências naturais, pois meritocracia como regulador da vida acadêmica, e assim medem o
não conseguimos nos afastar totalmente do objeto (o homem), que é índice de produtividade – da mesma forma que fazemos com os
imprevisível, além de sua cultura viver em constante mutação. estudantes –, e isso possui pouco ou nenhum sentido, uma vez que a
Todos esses elementos, ao mesmo tempo que dificultam, educação universitária deveria ser um lugar de criação e ensino e
enriquecem a pesquisa. não um lugar de produção. Essa quantofrenia tem levado os índices
de avaliação e de produtividade a fechar programas e demitir
Como professores, utilizamos instrumentos como provas,
docentes sem se preocupar, na verdade, com os valores que estamos
trabalhos acadêmicos, frequência em sala de aula, disciplina
deixando para os jovens e quais rumos queremos para o nosso
comportamental, entre outros, para quantificar, qualificar e medir o
mundo.
conhecimento adquirido pelos alunos. Ao mesmo tempo, somos
avaliados por estudantes, coordenadores, reitoria e órgãos estatais Ficam então as perguntas: será que estamos realmente
que aprovam os cursos. Apesar disso, entendemos que dificilmente preocupados com a formação de cidadãos críticos e responsáveis
temos a garantia de que esses instrumentos podem prever a com o futuro de nosso planeta? Ou será que essa é apenas uma visão
formação de um cidadão crítico, ou até mesmo de um bom romântica, já que nossos objetivos são formar cientistas e técnicos
profissional ou uma boa escola. que saibam reproduzir somente um conhecimento aplicado?

4 MARTINS, José de Souza. Quantofrenia e mérito. Disponível em:


<http://www.valor.com.br/cultura/5111534/quantofrenia-e-merito>
Acesso em 18/12/2017.

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Para discutir o sentido de aprendizagem, é preciso saber o professores mira em um alvo (os educandos) e lança seus projéteis
que é conhecimento. Como Edgar Morin nos ensina em Os sete para acertá-los. O grande problema do mundo contemporâneo é que
saberes necessários à educação do futuro, o conhecimento nunca é esses alvos são móveis e rápidos, portanto poucos são atingidos.
o reflexo no espelho da realidade. Muitas vezes, quando pensamos Então é proposto que os educadores passem a utilizar mísseis
em conhecimento, imaginamos o pleno entendimento do mundo, teleguiados, ou mísseis inteligentes, que acompanham as trajetórias
desconsiderando os erros e as ilusões. Portanto, o conhecimento não dos alvos (PORCHEDDU, 2009). Os alvos dificilmente alcançáveis
é a imagem do mundo, e sim uma tradução dele, e, como toda dessa pesquisa são os jovens desmotivados, normalmente
tradução, apresenta falhas de interpretação (MORIN, 2000). acompanhados de suas tecnologias portáteis.

Em 2005, a professora/pesquisadora italiana Alba Esta tese nos convidará a repensar os modelos educacionais
Porcheddu realizou uma entrevista com Zygmunt Bauman em busca por todos os agentes da sociedade: educadores, aprendizes,
de um diálogo entre a sociologia e a pedagogia, cujo título é trabalhadores das instituições educacionais, pais de estudantes, mas
Zygmunt Bauman: intervista sull’educazione. Sfide pedagogiche e também nos faz repensar, por meio do papel central – a educação –,
modernità liquida, em que o sociólogo nos alerta sobre a que tipo de sociedade queremos para nós, enquanto seres humanos
dificuldade, até pela escassez de estudos, em adaptar os rígidos situados em uma época e em alguns lugares onde o sentido das
modelos educacionais vigentes ao mundo contemporâneo, inclusive sociedades é pouco criticado, e, consequentemente, ressuscitará
pelos avanços tecnológicos (PORCHEDDU, 2009). questionamentos que muitos podem dar por resolvidos, provenientes
principalmente da natureza humana.
O autor, ao discorrer sobre a educação, além de classificá-la
Faremos uma breve introdução, ora nos apoiando nas
como um grande negócio financeiro, ainda faz uma metáfora
críticas contemporâneas, ora nos conceitos históricos, ora nos
comparando os educadores a balistas, sendo que a maioria dos

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filosóficos, tentando apresentar algumas das mais diversas áreas do Aristóteles. É fundamental esse resgate devido à forte influência na
conhecimento que registraram discussões sobre o assunto de forma filosofia da educação que se deu nos momentos seguintes.
transdisciplinar: antropologia, educação, psicologia e filosofia. Evocamos a entrada do mundo moderno, centrada no
A parte inicial – 1o capítulo conceitual – da tese é apoiada Iluminismo, de Descartes, Bacon, mas principalmente Comenius,
no resgate de alguns pensadores que discutiram modelos conceituais que em 1649 escreveu a Didática magna, ou Tratado da arte
no mundo ocidental, pensando a forma como guiamos a educação universal de ensinar tudo a todos, e assim entender como pensava
até o mundo contemporâneo. O foco é a observação em quais aquele que, para alguns, era considerado o pai da didática moderna.
momentos a educação se aproximou de algum sentido de Essa parte é fundamental para concebermos historicamente a
complexidade, ou uma educação de sentido – por isso gera alguns educação conforme conhecemos hoje.
saltos cronológicos. Diversos pensadores da época, por mais que estivessem
Interessa-nos entender a paideia, como era formado o ligados intrinsecamente à filosofia e à religião, acabam criando
cidadão na Grécia Antiga, e como esse modelo foi se modificando métodos que aprofundam o pensamento lógico, matemático e
ao longo da história por Homero, Sófocles, Platão, Aristóteles e científico, fundamentais para as sustentações das teorias que
outros pensadores, que serviram como exemplo para o império guiaram a filosofia de organização social moderna.
romano, e perdurando ao longo de boa parte da era medieval. Estudamos também as discussões de Jean-Jacques
Vale ressaltar que houve diversos momentos históricos da Rousseau sobre a natureza humana e por que criamos o Estado. Ele
educação grega, e esses modelos também variavam de localidade discutia os modelos de liberdade e educação sensível, , introduzindo
para localidade. A análise parte de Homero e seus primeiros – entre outros – o conceito de educação negativa, que condenou sua
registros escritos, seguida pela dominação do período ático, obra Emílio, em 1762, às chamas e seu autor à prisão.
passando pelos pré-socráticos e culminando em Sócrates, Platão e

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Rousseau possui papel central nas discussões sobre educação de forma geral, discutindo ideias como: aprendizagem,
educação, e seu legado contribui muito tanto para entendermos os conhecimento, empirismo, apriorismo e construtivismo.
moldes da educação que conhecemos quanto para podermos criticar No 3o capítulo, faremos uma breve discussão sobre razão e
os rumos desses modelos educacionais, que de sensível possui tão ciência, para que possamos fazer uma análise do mundo circundante
pouco – ou quase nada –,fazendo-nos até entender por que alguns e evidenciar critérios para começar a pensar a educação de forma
pensadores como Franz Kafka se tornaram críticos das instituições complexa. Os processos educacionais evidenciam no mundo
educacionais, dizendo que elas não faziam o que prometiam contemporâneo uma centralidade de um conceito específico de razão
enquanto virtude, mas eram sistemas disciplinares e rituais afastados que fragmenta os saberes, e da ciência como redentoras da
de suas propostas. modernidade, e refletiremos sobre como tudo isso começou.
No 2o capítulo, baseamo-nos em conceitos, principalmente Em meio a toda essa reflexão, interessa-nos conhecer as
sobre como entendemos conhecimento e aprendizagem – como o ser possibilidades de refletir sobre todo o processo de construção do
humano aprende e o que podemos chamar de conhecimento –, e conhecimento e como podemos pensar modelos educacionais
quais deles podem ser e são utilizados para apropriação de modelos diferentes. Faremos elucubrações sobre a educação, ancorados
educacionais no universo que nos circunda hoje. principalmente na complexidade de Edgar Morin e de que forma
De forma transdisciplinar, com bases na pedagogia, na esse autor propôs reflexões que nos ajudem a lidar com todos os
filosofia e posteriormente nas neurociências, discorremos sobre problemas até agora mencionados.
como o ser humano aprende, cria seus modelos mentais e quais Repensar a natureza humana, observar o que deixamos para
caminhos e sentidos dá para o conhecimento. trás nos momentos e teorias citadas nos capítulos anteriores, religar
Tratamos conceitos da biologia, da complexidade e os saberes com o intuito de dar um sentido para todos os agentes
posteriormente das neurociências para dialogar com pensadores da educacionais, além de olhar para a ciência e para a razão como

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elementos complementares e não únicos dos paradigmas de refletir perguntas fundamentais como: quem somos nós? O que
contemporâneos são algumas de suas propostas. fazemos aqui? Para onde vamos?
No 4o e último capítulo conceitual, teremos como apoio as Interessa-nos refletir principalmente na questão da
críticas do mundo pós-moderno, começando com Dany-Robert educação, pensando no acesso às mídias sociais, às tecnologias
Dufour, que, estudando os modelos de escola que conhecemos, portáteis, que surgem em um momento em que os jovens, sem uma
percebeu não só na educação, mas nas instituições sociais como um formação crítica, ou com uma formação cada vez mais técnica, cada
todo, um diagnóstico da transformação do mundo pelo vez mais se interconectam e possuem acesso instantâneo a muitas
neoliberalismo, pelo consumo e pela lacuna do Outro Social, ou da informações, sem nos deixar claro quais as consequências disso no
simbologia a ser seguida – no sentido lacaniano –, o vazio do mundo mundo educacional.
contemporâneo, que criou uma sociedade em que a educação merece Refletiremos também sobre a relação da juventude com as
a devida reflexão. tecnologias portáteis e as redes sociais. Elemento central na
As ideias provenientes do desenvolvimento do capital, da discussão sobre como construímos o conhecimento no mundo
cultura de massa, da sociedade passiva perante os meios contemporâneo, os gadgets invadiram nosso cotidiano e nos
comunicacionais, perdendo o protagonismo da própria vida – transportaram de vez para o mundo digital. Esse transporte modifica
parafraseando Guy Debord em A sociedade do espetáculo (1967) –, nossa sociabilidade e até nossas personalidades.
e do entendimento de que a única razão da educação é o mundo do Na parte final, criamos diálogos entre a parte de
trabalho, para poder consumir e dar sentido à existência, foram investigação bibliográfica e a coleta de depoimentos dos professores
moldando o meio e as mentalidades, relegando cada vez mais uma – majoritariamente do ensino superior de instituições privadas –, que
função crítica e transformadora da sociedade, cada vez mais incapaz respondem a uma pesquisa qualitativa em forma de questionário
estruturado.

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Dividimos a análise das entrevistas em três blocos: criadas especificamente para esta tese e outras encontradas em
enchendo a cabeça; fazendo a cabeça; perdendo a cabeça. O pesquisas na internet.
motivo da nomeação dos blocos se deve à obra Polegarzinha: Uma
nova forma de viver em harmonia, de pensar as instituições, de ser e
de saber, de Michel Serres (2012), e à frase de Michel de Montaigne
em Ensaios, de 1580, com as palavras: “Mais vale uma cabeça bem-
feita do que uma cabeça cheia”. A ideia é que um ser humano que
sabe fazer, que é criativo, crítico e entende os processos como um
todo é mais importante do que um indivíduo que decora e acumula
informações.
Porém, Serres acrescenta um novo elemento: comparados
ao bispo São Denis de Paris, que é decapitado e carrega sua cabeça
nas mãos, os jovens de hoje nem têm mais uma cabeça bem-feita
nem uma cabeça cheia – de forma provocativa, carregam seus
celulares nas mãos, ou suas cabeças, onde acumulam as informações
e o saber fazer.
Ressaltamos a intertextualidade e a linguagem contida nesta
tese; a cada reflexão são propostas poesias entre itens ou entre
capítulos. Algumas imagens que dialogam com as poesias foram

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A razão da tese

Dois colegas doutores:

– A razão da tese é uma escrita para nosso ego;


– A tese é escrita para ser esquecida.

Um preto velho:

– De nada adianta a tese, se não puder se entendida por todos;


– Não vai inventar a roda, vai entendê-la melhor.

Três jovens bêbados:

– Como é chique o título de doutor!;


– A academia é igual a qualquer empresa liberal;
– Mas qual a razão de estudar tanto?

Outro colega doutor:

– Que bom que já passei por tudo isso!;


– Entendo toda sua frustração.

A razão é a escrita para ser esquecida,


De nada adianta a tese, vai entendê-la melhor,
Como é igual estudar tanto,
Que bom toda sua frustração.

Poesia por Tiago Pereira Andrade


Foto tirada pelo autor: na umbanda, o preto velho representa a sabedoria, o acúmulo
do conhecimento e a facilidade de transmitir a aprendizagem.

29
§ 1 Educação

1 Educação
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Prólogo sobre educação Seis Nações. Como ato de grandeza, os Estados Unidos pediram que
os índios enviassem jovens para a escola dos colonizadores. Esta foi
A única coisa que interfere com meu aprendizado a resposta:
é a minha educação.
Albert Einstein
[...] Nós estamos convencidos, portanto que os
Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de
senhores desejam o bem para nós e agradecemos
modificar a apropriação dos discursos,
com todo coração. Mas aqueles que são sábios
com os saberes e os poderes que eles trazem consigo.
Michel Foucault reconhecem que diferentes nações têm
concepções diferentes das coisas e, sendo assim,
os senhores não ficarão ofendidos em saber que a
Educar, do latim, significa instruir e criar. A composição da vossa ideia de educação não é a mesma ideia que
a nossa. [...] Muitos de nossos bravos guerreiros
palavra traz o prefixo ex, que significa fora, e ducere, que significa foram formados nas escolas do Norte e
guiar, conduzir e liderar, de forma que ex ducere compõe o aprenderam toda vossa ciência. Mas quando eles
voltaram para nós, eles eram maus corredores,
significado de conduzir para fora do eu, ou seja, para o mundo, ignorantes na vida da floresta e incapazes de
suportarem o frio e a fome. Não sabiam como
preparar para o mundo e sair de si mesmo. caçar um veado, matar o inimigo ou construir
A educação está presente em todos os segmentos da uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal.
Eles eram portanto totalmente inúteis. Não
sociedade, e não só na escola. Encontra-se presente nas instituições, serviam como guerreiros, como caçadores ou
como conselheiros. Ficamos extremamente
nas ruas, nos bares, nos shows, nos encontros, no cinema, nos
agradecidos pela vossa oferta e, embora não
templos e qualquer outro lugar que se possa imaginar. Carlos possamos aceitá-la, para mostrar nossa gratidão,
oferecemos aos nobres senhores da Virgínia que
Rodrigues Brandão, em sua obra O que é educação (1981), nos nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes
conta uma história sobre um documento assinado na colonização ensinaremos tudo que sabemos e faremos, deles,
homens (BRANDÃO, 1981).
norte-americana – um tratado de paz na Virgínia com os índios das

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Vale colocar este trecho da carta para percebermos que os existem redes estruturais sociais para a aprendizagem ou para a
modelos educacionais existentes não podem receber uma transferência do saber. É a forma como a espécie transmite seus
qualificação como melhor ou pior, tampouco um modelo único, pois conhecimentos e conduz as gerações seguintes.
são todos diferentes e adequados ao tempo e à cultura local. Os Quando uma sociedade atinge uma organização complexa,
modelos e a maneira como formamos os adultos dependem da época como nós conhecemos por Durkheim em Da divisão do trabalho
e da sociedade da qual estamos falando. A educação é uma fração do social (1893), observamos, como no mundo ocidental, o surgimento
modo de vida social. Ela é diferente em sociedades tribais, das instituições destinadas exclusivamente à educação, mas nada
industriais, em sociedades de Estado laico ou não laico e em impede que sociedades menos complexas possuam espaços e rituais
sociedades com grandes ou pequenas divisões de classes sociais. destinados exclusivamente para a formação das crianças e dos
A princípio, a educação serve para a aprendizagem de jovens.
regras de conduta, para a manutenção da sociedade, a produção Interessa-nos entender a sociedade na qual estamos
material e não material, para inserção no mundo do trabalho e dos inseridos e observar o processo educacional nas instituições de
modos de produção, e discorre também sobre os segredos das ensino superior, e não a discussão ampla sobre o tema educacional,
religiões e principalmente sobre como conviver em sociedade. Em apesar de ser necessário fazê-la.
alguns grupos sociais, são necessários guerreiros, líderes, Ao fazer uma análise contemporânea de como lidamos com
intelectuais, e as formas educacionais estão a serviço dessas o termo educação, podemos tomar como premissa os conceitos
diferentes necessidades (BRANDÃO, 1981). utilizados tanto pelo senso comum – ensinar, transmitir
Apesar de a educação se dar em todos os segmentos sociais, conhecimento – quanto os conceitos que podem ser pesquisados no
existem sociedades que possuem escolas institucionalizadas e outras universo circundante. Educar é dar a alguém todos os cuidados
que não possuem. Mesmo naquelas que não possuem escolas

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necessários ao pleno desenvolvimento de sua personalidade; Durkheim, em Educação e sociologia (1953), pensava os
transmitir saber a; dar ensino a; instruir; socializar. processos de aprendizagem, colocando-os em uma doutrina
A educação está totalmente ligada ao processo de pedagógica, apoiando-se principalmente na condição do homem e da
aprendizagem, tutoria, construção de conhecimento, passagem de sociedade com o objetivo de transmitir cultura – que engloba
informações, transformações e socialização.5 A escola, a família e a valores, normas, atitudes, experiências e representações –, apenas
sociedade como um todo, conforme a concebemos, se tornam como garantia de um processo social. Assim como Talcott Parsons
responsáveis pelo processo educacional. (1973), em A universidade americana, que via a educação como
Mesmo na legislação brasileira vigente atualmente uma necessidade funcional por meio da qual os indivíduos visam a
podemos verificar, no artigo 205 da Constituição, que a educação, construir identidades e internalizar normas sociais.
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e Independentemente da visão histórica que pretendemos
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno discorrer nas próximas páginas, a educação depende de um processo
desenvolvimento da pessoa para o exercício da cidadania e sua de interação no qual existe ou uma transmissão, ou uma troca de
qualificação para o trabalho. Porém, esses conceitos foram se experiências, informações, comunicações, interpretações e diálogos,
adaptando ao mundo concomitantemente às necessidades e ao qual damos o nome de processo de ensino/aprendizagem,
paradigmas, e observamos que são modificados historicamente. fazendo-se necessário o entendimento desse processo.
A escolarização do jovem pressupõe dois problemas no
5 Educação engloba os processos de ensinar e aprender. É um fenômeno observado em qualquer
sociedade e nos seus grupos constitutivos, responsável pela sua manutenção, perpetuação,
mundo moderno, como nos conta Neil Postman em O fim da
transformação e evolução da sociedade a partir da instrução ou condução de conhecimentos,
disciplinamentos (educar a ação), doutrinação, às gerações que se seguem, dos modos culturais educação: redefinindo o valor da escola (1931): um que diz sobre a
de ser, estar e agir necessários à convivência e ao ajustamento de um membro no seu grupo ou
sociedade, ou seja, é um processo de socialização que visa uma melhor integração do indivíduo engenharia, ou sobre os meios pelos quais os jovens aprendem o
na sociedade ou no seu próprio grupo. Disponível em <http://observador.pt/opiniao/uma-
revolucao-na-educacao-ou-uma-educacao-como-empresa-de-desumanizacao-do-homem>. mundo, as questões didáticas, as formas ou como lidar com a
Acesso em 28/03/2017.

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aprendizagem; e o outro tem a ver com a razão da educação, que o criatividade, a transformação e a sensibilidade. Aprendizagem não
autor chama de problema metafísico. A razão não como sentido de se restringe à formação profissional que observamos no mundo
motivação, nem com o sentido de explicar fins e meios, mas razão contemporâneo.
como sinônimo de sentido. Existem diversas formas de conceituar a aprendizagem, e
O autor trata essa razão como algo abstrato, algo maior a Knud Illeris, em Teorias contemporâneas da aprendizagem
ser acreditado no processo, dizendo que, para que os processos (2007:3), definiu o conceito de forma bem abrangente como
educacionais e as escolas possuam algum sentido, os jovens, os pais “qualquer processo que, em organismos vivos, leve a uma mudança
e os professores precisam de algo a seguir, como um deus, ou vários permanente em capacidades e que não se deva unicamente ao
deuses. Estudantes, professores, pais e funcionários, de forma geral, amadurecimento biológico ou ao envelhecimento”. A forma desse
tendem a ver esse processo como uma função social obrigatória, um processo envolve uma história, pois nem sempre foi tão diferente do
ritual árduo que precede as conquistas econômicas e sociais. No que é hoje. Ora mais calcado no pensamento complexo, ora não.
Brasil, poucos professores são bem remunerados, respeitados e Interessa-nos aqui buscar essas rupturas e as identificamos na
possuem condições adequadas aos processos de educação, com estrutura deste capítulo.
exceção de poucas escolas particulares, que, mesmo assim, estão Como falamos do mundo moderno, ou contemporâneo,
distantes de algum esquema adequado. buscamos fazer uma retrospectiva histórica e antropológica dos
Existem conceitos sobre a educação de forma bem modelos educacionais que inspiraram e guiaram àquele que
cartesiana, porém observamos que alguns pensadores, como Edgar possuímos hoje. Nas páginas a seguir, temos por objetivo principal
Morin, tentam resgatar e questionar a forma como aprendemos o perceber quais são as inspirações da educação superior na
mundo, que por vezes fogem do cientificismo positivista e tentam contemporaneidade, e para isso é necessário buscar em raízes
fazer desabrochar o senso de coletividade, a liberdade, a históricas desde a Grécia no século V a.C., passando pela Idade

34
Média até a entrada da modernidade, evidenciando quais modelos
corroboram para o enaltecimento das razões objetiva e subjetiva e da
ciência como as únicas formas, ou principais formas, apreciadas
para explicarmos e entendermos o mundo e valorizadas nos atuais
processos de formação do homem.
Devido à abrangência do tema, talvez alguns assuntos podem
parecer ser abordados sem o devido aprofundamento que a
curiosidade nos aguça, mas temos de lembrar qual é o fio condutor,
a educação mais ou menos fragmentada. A estrutura central do
desenvolvimento é um diálogo contemporâneo – um diagnóstico do
universo acadêmico em dias atuais. A ideia do texto é entender as
inspirações que conduziram aos modelos educacionais que
conhecemos hoje. Para isso, pretendemos discutir educação,
apreensão do conhecimento, sabedoria e formação do homem no seu
mais amplo contexto.

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A paideia como inspiração à modernidade sobre a natureza do Homem, tanto na condição corpórea – física –
quanto espiritual – essência. O processo se dava pela força vital
Há pessoas que transformam o sol numa simples mancha amarela, criadora e pela conservação de todo ser vivo. Era na educação que
mas há aqueles que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol.
Pablo Picasso essa força atingia seu mais alto grau de intensidade, dirigida para
uma finalidade (JAEGER, 1994:1-4).
A educação do homem deve começar pela poesia, ser fortificada pela
conduta justa e consumar-se na música. Essa ideia tratava da formação do homem grego, mas em
Confúcio
alguns aspectos possui estreita associação com concepções
Paideia é o nome dado ao sistema educacional grego, que modernas do ensino superior, ou ensino universitário. Claro que não
incluía uma formação ética, artística, política, racional e podemos negar os outros graus de ensino para esse processo, como a
principalmente filosófica, nascida nos tempos de Homero – pré-escola, o ensino fundamental, o médio e as mais diversas formas
aproximadamente no século VIII a.C. –, visando à formação de um de cursos propostos na sociedade contemporânea.
cidadão capaz de desempenhar um papel positivo na sociedade. Os A importância e a necessidade na prática da educação estão
antigos ocidentais – mais precisamente na Grécia –associavam a associadas com o grau de desenvolvimento de um povo e consistem
educação e a cultura fortemente à literatura, e assim a chamavam de na mudança da natureza física do ser humano para elevá-lo a uma
formação superior. A prática da educação está vinculada a um grau natureza superior (JAEGER, 1994:1). Todos os termos que tratamos
de desenvolvimento atingido pelos povos por meio da vontade em relação aos estudos de Jaeger possuem séculos de discussões, já
consciente e da razão, mas nem sempre foi assim, uma vez que que a maioria desses conceitos foi se tornando mais complexa ao
estava fortemente ligada à espiritualidade. longo do tempo.
As descobertas de si próprios pelo espírito humano faziam Entenderemos educação como uma essência da
com que se entendesse melhor sobre o mundo interior e exterior, comunidade, e não como uma propriedade individual.

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designada a qualquer agrupamento humano –, estava estritamente
Toda educação é assim o resultado da ligado à formação do homem no modelo educacional grego.
consciência viva de uma norma que rege uma
comunidade humana, quer se trate de família, de
uma classe ou de uma profissão, quer se trate de Hoje estamos habituados a usar a palavra cultura
um agregado mais vasto, como um grupo étnico não no sentido de um ideal próprio da
ou um Estado (JAEGER, 1994:2). humanidade herdeira da Grécia, mas antes numa
acepção bem mais comum, que a estende a todos
os povos da Terra, incluindo os primitivos.
Toda a estruturação interna e externa das sociedades, seu
Entendemos assim por cultura a totalidade das
desenvolvimento essencial e todo seu crescimento dependem dos manifestações e formas de vida que caracterizam
um povo (JAEGER, 1994:3).
valores que regem os grupos, e esses valores estão representados nas
formas de educação. É no espírito da paideia que os gregos utilizaram o conceito
É impossível discutirmos educação sem começarmos pelos de cultura, que na Roma Antiga até inspirou Augusto a adquirir o
gregos. O helenismo na Grécia representava um progresso, modelo grego para o desenvolvimento de seu povo e para que
comparado a outros povos, e guiou tanto o mundo ocidental quanto pudéssemos conceber a Antiguidade como uma unidade histórica no
o mundo oriental como um modelo a ser seguido. mundo ocidental.
Desde a antiguidade, as primeiras preocupações com as O mundo grego é o espelho onde se reflete o mundo
formas educacionais advêm de um modelo que somente a moderno e o lugar e período em que temos como símbolo de uma
aristocracia detinha, pois, assim como hoje, poucos tinham acesso a autoconsciência racional, do lugar do indivíduo e da sociedade. Se
ele. analisarmos a fundo, podemos dizer que os gregos antigos parecem
O conceito de cultura, que há tantos séculos é discutido, fundidos aos europeus modernos quando se trata de educação, caso
antes de possuir uma denominação antropológica – que pode ser sejam comparados aos povos orientais da mesma época.

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O senso inato de natureza e o problema da individualidade condutor de entendimento do mundo pelos sentimentos, e não
guiaram o mundo ocidental para o racionalismo. Observemos nas somente pela razão que conhecemos hoje.
artes as formas como os corpos gregos eram representados, a riqueza Podemos dizer então que a grande diferença do pensamento
das formas e a profundidade dos escritores que inauguraram as mais grego para o pensamento oriental da época não é a descoberta do eu
diversas formas de expressão, permitindo-nos dizer que eles subjetivo, mas sim a consciência de um sistema de leis graduais que
atingiram uma forte consciência de si mesmos. Essas características determinam uma essência humana, elevando o humanismo, e não o
estão presentes na oratória, nas artes, na arquitetura, na visão individualismo.
estética e organizacional. Os homens mais importantes da Grécia sempre estavam a
Para Jaeger, essas formas de pensamento são exprimidas na serviço da comunidade, e mesmo que possuíssem conexão estreita
mais bela criação grega: a filosofia. com a espiritualidade, não se manifestavam como profetas; mesmo
Nela se manifesta da maneira mais evidente a quando falavam de religião, sua formação pessoal se manifestava
força que se encontra na raiz do pensamento e da
arte grega, a percepção clara da ordem mais forte, unindo a trindade grega: o poeta, o Homem do Estado e o
permanente que está no fundo de todos os sábio.
acontecimentos e mudanças da natureza e da
vida humana (JAEGER, 1994:10). A arte é essencial na educação da paideia, porém não
aparece somente na pintura, escultura e arquitetura, mas
A filosofia não está somente atrelada com o lado racional,
principalmente na poesia, na música, na filosofia e na retórica, pois
mas também com a arte e a poesia, e existe um elemento intuitivo
seus praticantes se tornavam os legisladores, e essas artes estavam
que busca entender o objeto como um todo. Entender a filosofia
mais próximas da política.
como principal forma do pensamento grego é entender a forma de
A literatura na função da educação aparece muito mais
educação da paideia, baseada nas artes e na poesia, como um fio
tarde na Grécia, e os primeiros vestígios literários, assim como em

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todos os outros povos, possuem um caráter moral e prático: honrar O termo é utilizado, ao longo dos séculos, com o sentido de
os deuses, honrar pai e mãe e respeitar os estrangeiros, mas também excelência humana, elevação a um nível superior e possui a mesma
apresentam comunicação de conhecimentos e aptidões profissionais, raiz que a palavra aristocracia. Fazendo uma comparação, podemos
às quais deram o nome de tékhne (JAEGER, 1994:21). dizer que se a educação tem como foco o areté, é como se o sentido
Retomando um período anterior ao termo paideia – pois ele da educação fosse tornar o ser humano em um ser excelente em
começa a ser usado somente no início do século V a.C. –, termos de preparação, comportamento, atividade política, artística e
percebemos que significava somente “criação de meninos”, porém o cidadania.
sentido elevado da palavra foi adquirido mais tarde. Outro tema Retomando a literatura, lembremos que Homero, na Ilíada,
essencial para explicar a formação grega, a priori, é o conceito de onde conta a história de Aquiles, sua honra aos deuses e sua forma
areté. de entregar a vida como um guerreiro cheio de virtudes, atribuiu ao
Areté significava adaptação excelente, virtude, protagonista a forma mais intensa de areté. Segundo Platão,
cavalheirismo, cortesia, heroísmo. Possui uma concepção parecida à Homero, em seu tempo, era o educador de toda a Grécia.
nobreza e guiava o ideal de educação daquela época. Na Ilíada e na A retórica antiga foi o que fomentou a concepção de arte,
Odisseia, a palavra é utilizada de diversas formas, como essência unindo razão e espiritualidade, e posteriormente o cristianismo
humana, superioridade dos seres não humanos, coragem, rapidez dos converteu a arte em uma questão puramente espiritual e estética.
cavalos, como nos conta Jaeger: Toda a poesia homérica, depois da adoção dos modelos cristãos, foi
Ao contrário, o homem comum que não tem tratada como conteúdo pagão, errôneo e excluído do universo
areté, e se o escravo descende por acaso de uma
família de alta estirpe, Zeus tira-lhe metade de educacional, e a partir de então a poesia começou a ocupar o
areté e ele deixa de ser quem era antes. A areté é universo das sombras.
atributo próprio da nobreza (JAEGER, 1994:25).

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A poesia grega em geral, como fonte de ação educadora, só educacional da nobreza, o principal objetivo da educação era ensinar
é possível se fizer valer todas as forças éticas e estéticas do homem. os valores do trabalho.
Homero, mesmo representando a cultura grega primitiva e fonte do A luta não acontece somente no campo de batalha entre
nosso conhecimento mais antigo sobre a sociedade grega, possui cavalheiros, mas também no trabalho silencioso da vida do campo.
uma descrição imortal sobre os valores educacionais desse povo que Toda sociedade grega é destacada por ser uma sociedade de muito
6
serviu como base da nossa formação moderna: trabalho, como nos conta Heródoto:
A Grécia foi sempre um país pobre, mas baseia
nisso a sua areté. Alcança-a pelo engenho e pela
O Pathós do sublime destino heroico do homem submissão a uma lei austera. É por ela que a
lutador é o sopro espiritual da Ilíada. O éthos da Hélade se defende de sua pobreza e servidão
cultura e da moral aristocrática encontra na (JAEGER, 1994:85).
Odisseia o poema de sua vida (JAEGER,
1994:65).
A participação do povo campestre no processo de
Outro poeta fundamental para o entendimento do universo desenvolvimento grego é evidente, considerando o relevo
educacional na Grécia é Hesíodo. Ao contrário do universo dos montanhoso. A conquista das navegações e a importância do litoral
nobres aristocráticos, que espelhava o mundo da cidade, esse poeta só aparecem mais tarde na história da Grécia, fazendo-nos relevar a
estava ligado à vida campestre. Nesse caso, ao contrário do foco predominância das atividades agrícolas e pastorais na economia e
representando a maior parte das atividades.
Hesíodo não descartava a poesia homérica e entendia muito
6 Pathos ou path é uma palavra grega que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade,
sofrimento, assujeitamento, sentimento e ligação afetiva. O conceito filosófico foi criado por bem a importância das artes e questões espirituais, que eram
Aristóteles e utilizado por Descartes para designar tudo o que se faz, ou acontece de novo, é
geralmente chamado de pathos. O conceito está ligado a padecer, e significa que é passivo de um
acontecimento, padece deste mesmo.
A palavra ethos tem origem na Grécia Antiga e significa valores, ética, hábitos e harmonia. É o
“conjunto de hábitos e ações que visam ao bem comum de determinada comunidade”.

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repassadas na forma tradicional de rapsódia7, e percebemos então um grande ideal de cidadão, e podemos observar isso nas poesias de
que na formação do homem da época todas as classes possuíam sua Sólon, que tratavam da dicotomia entre o individual e o coletivo.
contribuição de forma complementar para a sociedade.
Tanto a vida aristocrática como a vida no campo possuíam Certamente, são igualmente ricos quem possui muita prata,
ouro, campos de terra fértil em trigo,
uma interligação com a vida social na pólis. Toda a vida feudal na cavalos e mulas, e quem tem à sua disposição somente essas
Idade Média possuiu estreita ligação com esse conceito. Ela era o coisas:
ter conforto em relação ao estômago, às costas e aos pés
centro de todos os acontecimentos que envolviam decisões políticas, e divertir-se com um jovem ou com uma mulher, e sempre que
isso chega,
e nela se encontravam todas as formas de entendimento da vida a flor da idade, com isso a juventude torna-se harmoniosa.
estrutural: espiritual e humana. De lá saíam todas as orientações da Esses são os bens para os mortais; pois, com todas as riquezas
excessivas, ninguém chega à morada do Hades,
vida comunitária, e ela é responsável por toda a educação estatal. nem se pagasse um resgate, escaparia à morte,
nem às penosas doenças, nem à perversa velhice que se
Esparta foi uma das maiores contribuintes para o modelo de aproxima.8
educação estatal da Grécia antiga. A cidade foi um fenômeno em
coletividade, em contraposição ao individualismo de Atenas, e Tudo isso advém do período pré-socrático, perpassando
acabou se tornando um modelo de educação estatal e cidadania para depois por Platão e Aristóteles, e em seus tempos a filosofia assumia
toda a Grécia pelo seu empenho e história de firmamento. papel central na educação. Nesses tempos, a educação estava
As outras cidades gregas contribuíram de forma menor fortemente aliada à tríade poeta, legislador e o Homem do Estado. A
nesse processo, e somente no século VI a.C., em Atenas, podemos filosofia é associada ao pensamento científico cada vez que fazemos
observar uma organização sólida enquanto situação política, além de

7Rapsódia é um trecho de poema épico recitado pelos rapsodos de forma melódica; uma forma 8Poesia retirada da dissertação de mestrado de Carlos Maia, do curso de Letras da UFRJ em 2008.
de contar histórias, mitos e poesias. Acesso em 25/08/2016. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/pgclassicas/CarlosMaia.pdf.

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qualquer tipo de resgate histórico, porém ele ainda não era marco da um controle social e espiritual permanente. Nesse processo se deu o
centralidade do pensamento racional nem do pensamento mítico. apogeu e o declínio do espírito ático9.
O pensamento mítico, no sentido filosófico, descreve Podemos dizer (JAEGER, 1994:348) que os poetas
narrativas de forte apelo simbólico, que constituem uma operação oriundos da tragédia, do drama e da criação desses modelos de
cerebral diferente da razão. Por meio dos mitos diversos, povos se controle social e espiritual – os sofistas – foram considerados os
situavam no mundo e na natureza, e dificilmente os mitos obedecem fundadores das ciências da educação, e por consequência
a alguma lógica, alguma verdade empírica ou científica, porém eles estabeleceram os fundamentos da pedagogia, que até o momento
fixam modelos e funções nas atividades humanas. fomenta as formas educacionais que conhecemos. Ainda hoje se
Com Sófocles, percebemos a essência da poesia grega, que discute se a pedagogia é uma arte ou uma ciência, mas vale lembrar
concebe a criação como uma tragédia e possui forte poder educativo. que os sofistas não davam o nome às suas artes de ciências, e sim de
A tragédia nos demonstra que a busca principal pelos modelos tékhne.
educacionais não advém da individualidade, pois se tratava de uma Sobre a discussão de a pedagogia ser uma ciência ou uma
forma de arte passada de um filósofo para outro, demonstrando um arte, e o que a leva a ser diluída em vertentes diferentes da antiga
espírito solidário, mas estimulava a competição por meio das suas areté, vale lembrar que a conversão da educação em uma técnica é
narrativas. muitas vezes pensada assim:
O drama representou o mais alto grau de desenvolvimento Quando ensina a areté política, o sofista chama
de tékhne política a sua profissão. A conversão
do teatro e fez crescer o número de poetas participando de concursos da educação em uma técnica é um caso particular
dionisíacos, que eram fomentados pelo Estado por meio de prêmios de tendência geral do tempo de dividir a vida
inteira numa série de compartimentos separados,
e representações. As intenções eram fomentar a arte para promover
9Entendemos por espírito ático a predominância da cultura da pólis – Atenas – nas
decisões políticas e sociais do desenvolvimento do povo grego.

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concebidos com vistas a uma finalidade e gregos que estivessem ao seu alcance. Se antes a formação estava
teoricamente fundamentados num saber
adequado e transmissível. É sobretudo em ligada a uma elite, podemos dizer que foram os sofistas que
matemática, medicina, ginástica, teoria musical, trouxeram a ideia de formação humana, ou humanismo, fazendo
arte dramática, etc. Que nós encontramos
especialistas e obras especializadas (JAEGER, com que na modernidade a questão do humanismo esteja tão
1994:349).
atrelada à ideia de formação universal.

Os sofistas, conhecidos por seu relativismo, aparecem A famosa citação sofista existente na obra de Platão, de que

representados nas obras antigas como pré-socráticos, e um de seus o homem é a medida de todas as coisas, representa em certa medida

maiores expoentes é Protágoras. Identificamos nesse pensador um um antropocentrismo, aproximando-se muito do individualismo

esforço para distinguir tékhne das técnicas profissionalizantes, e pelo moderno. Essas inspirações advêm dos pensamentos desse período

mesmo motivo poderíamos dizer que, nesse período de ático, e podemos dizer que essa ideia de educação foi muito

individualismo acentuado, existiam a educação de forma geral e a representativa e determinou muitas características das Cidades-

diferente educação sofista. Para alguns, a educação sofista estragava Estados gregas, atingindo as necessidades políticas e práticas da

os jovens, mesmo assim muitos procuravam os sofistas para uma época. Uma educação mais democrática, porém mais fragmentada,

alternativa à formação técnica e profissional, pois esta tinha foco mas mesmo assim muito mais complexa e de sentido do que

político, astronomia, música, além de geografia e aritmética. possuímos no mundo moderno.

Podemos dizer que, mesmo mais fragmentada que anteriormente, a A ideia humanista trouxe a toda a Grécia a concepção de

educação sofista ainda era mais completa que a educação geral. um Estado com melhorias para a vida individual. Nessa ideia, o

Protágoras nos dizia que sem educação política não existia direito, a dike, do cidadão ganha força e fundamenta a eudemonia na

uma educação universal, por isso podemos dizer que a paideia pólis. A educação para todo o Estado vira sinônimo de educação

possui como essência a formação política e ética, para todos os para a justiça. Nesse momento, nasce a crise do Estado e

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consequentemente a crise da educação grega. As lutas por direitos alternância no poder, e é a época em que alguns autores utilizam a
culminaram na guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta, devido expressão do Iluminismo grego. É nesse momento que a figura do
ao embargo comercial. A partir de então, Atenas começa a perder filósofo aparece como o novo modelo de homem.
forças. Esse novo homem deve entender os mitos, mas como
A contraposição entre aristoi (excelentes) e demos (povo) analogias da realidade, alegoria para explicar o mundo, além de
marca esse movimento, modificando toda a forma de aprendizagem, utilizar a retórica para se expressar, tudo relacionado com o domínio
abrindo para Jano – posterior deus romano, que representava as da razão, e para ser um cidadão completo, utilizasse estes métodos
mudanças – uma importância que se desdobra por muito tempo, até para atuar politicamente na pólis. Neste mesmo momento:
o século IV na queda de Atenas, após 30 anos de guerras, dando
origem ao período socrático. ... nasce o pensamento como episteme, e não
mais como éthos e como práxis apenas. A
Na fase entre os sofistas e Sócrates é que nasce a pedagogia guinada será determinante para a cultura
como “um saber autônomo, sistemático e rigoroso” (CAMBI, ocidental, já que reelabora num nível mais alto e
complexo os problemas da educação e os
1999:87). Observamos então que a educação passa de éthos e práxis enfrenta fora de qualquer localismo e
determinismo cultural e ambiental, num processo
para episteme. É a universalidade da educação racional imperando de universalidade racional; e porá em circulação
pela primeira vez no mundo conhecido como ocidental. aquela noção de Paidéia que sustentou por
milênios a reflexão educativa, reelaborando-se
É no século IV a.C., após a derrota e rápida reconstrução de como Paidéia cristã, como Paidéia humanística e
depois como Bildung (CAMBI, 1999:87).
Atenas, entre os períodos de Sólon, Péricles, Sófocles, Ésquilo,
Fídias, Sócrates e Platão, que surge a ideia de paideia clássica, pois é
o momento em que a sociedade se torna mais complexa, com novas É a partir desse conflito que pensamos a essência da
classes sociais, agitando assim a vida política pela busca de paideia, se deve ser algo retórico-humanístico, como era, ou

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filosófico-político, como cunhou Platão. O projeto público de humana, areté, que era estendida à máxima excelência nos esportes,
Platão, que prevê o desenvolvimento gradual e progresso da nas artes, no sentimento comunitário e na política. Era uma
educação, é o primeiro programa de educação da cultura europeia. formação acessível a pouquíssimos cidadãos.
O curso fundamental educava no ensino da ginástica e da Depois, observamos um movimento em que a intenção de
música, cuja forma filosófica foi reformulada por Platão, e é acesso a uma educação excelente – que não estivesse resumida à
estabelecida a partir da antiga paideia grega. O estágio posterior, que técnica trabalhista, tékhne, mas à formação do homem – para atingir
corresponde ao ensino de formação geral dos sofistas, foi concebido um número maior de aprendizes, ficou limitada quando comparada à
apenas como preparação para o degrau seguinte, que ensinava a amplitude do areté, mas mesmo assim ainda andava de mãos dadas
dialética, contanto que ela sozinha permita a ideia do bem. com as artes e a política, como o teatro no período dos sofistas.
A paideia passa a ser entendida aqui como o processo Por fim, na era socrática a educação começa a se parecer
abrangente de toda a vida, no qual o ser humano, ao contemplar a muito com a educação na modernidade, pois, mesmo que acessível a
imagem do ser ideal, deve, analogamente, dar forma às suas próprias um número maior de pessoas, se torna centralizada no
feições de modo elaborado. (...) Merece menção outra especificação, desenvolvimento da razão e da ciência, mas sem perder os laços com
que é manifestada igualmente por Platão: paideia é defendida como a filosofia, diferenciando um pouco o que conhecemos por educação
um assunto que diz respeito ao ser humano e somente a ele hoje.
(RITTER; GRUNDER, col. 38 apud GROSS, Renato, 2012) As inspirações foram levadas a Roma e se espalharam por
Em suma, pudemos observar que a educação e a formação toda a Europa junto com o império romano. Uma educação não tão
do homem não foi igual em toda Grécia e se transformou muito ao excelente, mas sempre buscando atingir um número maior de
longo do tempo, em processos dialógicos e conflituosos. Em pessoas até o início da decadência do império e adoção do
determinados momentos, a educação era ligada à expressão máxima cristianismo, quando o modelo grego é obscurecido pelo modelo

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jesuítico e o teocentrismo se torna a ideologia social que guiaria o
mundo por centenas de anos até a modernidade.

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Encontros diagramados

Homero estava lá ao lado de Melville,


Como se Aquiles e Moby Dick tirassem sarro de nós,
Tolstoi destoava pela finura e a capa vermelha,
Ele dizia: _Por que tanto conteúdo?

Se quero romper, por que tanta métrica?

Do outro lado estava eu, com Jaeger,


Conversando com Comenius,
Esperando por Rousseau,
E morrendo de medo de Foucault.

Se quero romper, por que tanta métrica?

Descartes, escondido, me perseguia,


Quando eu ia ao banheiro, Kant gritava,
Lá na última estante, Fiori pedia uma consulta,
E Cambi dizia, cadê a História na sua poesia?

Se quero romper, por que tanta métrica?

Morin e Bauman me chamavam de canto,


Junto com Serres me chamavam Quintana,
E minhas linhas vazias caçoavam dizendo,
Se quero romper, por que tanta métrica?
Poesia de Tiago Pereira Andrade

Imagem desenhada à mão por Bruno Sabino, estudante do curso de Comunicação


Social da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, inspirada na
poesia ao lado. Técnica: nanquim. 47
O Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos biólogos, etc., extirpando uma aprendizagem complexa – quanto na
concepção dos sentidos e das percepções de aprendizagem do
Os homens nascem ignorantes, não estúpidos. mundo e da vida – como os mitos e as artes. Na paideia grega,
Eles se tornam estúpidos pela educação.
Bertrand Russell período pré-socrático, buscava-se o areté, que significava a
formação humana alcançada em sua potência plena, integrada com o
Gradualmente na história grega percebemos a mundo.
desconstrução de uma ideia de aprendizagem integrada no universo Procuravam criar um sentido de ensino holístico, em que o
educacional. Podemos utilizar esse conceito de integração cidadão da pólis seria um grande guerreiro, um grande artista, um
educacional como ponto de partida para o desenvolvimento do grande filósofo e um grande político, além de um cidadão exemplar
raciocínio até aqui discutido. Integrare, do latim, significa tornar – obviamente poucos recebiam essa educação. Com os sofistas,
inteiro, fazer um só, de integer, que significa inteiro, completo; in incentiva-se o individualismo nos concursos de teatro, as lutas por
significa não. Tangere significa tocar. A composição traz a noção de direitos e justiça, dando início à fragmentação da aprendizagem,
10
intocado, por isso, inteiro . pois, para vencer os concursos e criar um Estado de educação para
Ao associar esse adjetivo à noção de aprendizagem todos, era necessário excelência nas questões estéticas das artes e do
buscamos criar um sentido de uma aprendizagem não fragmentada, logos – razão.
podendo ser tanto uma ideia de fragmentação dos saberes (MORIN, No período socrático, a aprendizagem se desintegra ainda
1999, A cabeça bem-feita) – que tornou as pessoas especialistas no mais, centralizada cada vez mais na razão, e Aristóteles chega até a
mundo moderno, como, por exemplo, advogados, engenheiros, reduzir o areté da paideia somente ao logos. Durante toda a Idade

10
Média houve uma intensificação nesse processo, relegando cada vez
Consultório Etmológico: Disponível em:
<http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/integral>. Acesso em 25/10/2016. mais o universo das artes nas formações, porém centralizando um

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novo elemento, a religião cristã. O cristianismo torna-se protagonista Inspirado principalmente pelos gregos, mas com forte
do mundo ocidental como verdade sobre a vida decorrente de influência dos primeiros intelectuais da Igreja Católica na
escolhas políticas de um império romano em decadência. decadência do império romano, como Santo Agostinho, no século
As verdades educacionais da modernidade advêm das IV d.C., até São Tomás de Aquino, no século XIII d.C., Decartes se
transformações decorrentes do Iluminismo, que, aliado às dedicou a reorganizar a centralidade da razão pela forma dedutiva,
Revoluções Industriais e Francesa, retoma como valor da era criando tratados científicos, sendo o mais conhecido de 1637: O
moderna o progresso e a ordem por meio de avanços tecnológicos e discurso do método.
organizações sociais mais complexas nas grandes cidades. A Francis Bacon contribuiu muito para esse processo.
aprendizagem torna-se mais fragmentada pela especialização dos Nascido em Londres em 1561, publica em 1620 sua obra mais
saberes, que forma técnicos para a ocupação de seus papéis nos importante: Novum Organum (Novo Instrumento). A concepção
quadros sociais. Críticos dos processos educacionais medieval até então era baseada principalmente em pressupostos
contemporâneos observam que somente na aprendizagem integrada, religiosos e conceitos metafísicos, criados principalmente pela forma
retomando todas as formas de aprender – sentimentos, os mitos e as cristã. Ele tinha como meta inverter a relação do excesso de
artes – e a transdisciplinaridade na religação dos saberes, é que raciocínio em contraposição à observação da natureza:
formaremos novamente cidadãos críticos, altruístas, solidários e
transformadores da sociedade. Os homens, até agora, pouco e muito
superficialmente se têm dedicado à experiência,
Ao fazer uma análise, percebemos as mudanças na mas têm consagrado um tempo infinito a
formação humana na modernidade. Temos conhecido René meditações e divagações engenhosas (BACON,
1973:79).
Decartes, nascido em 1596 em Estocolmo, como o primeiro filósofo
da era moderna.

49
Sua principal preocupação era metodológica, pois os Comenius foi um bispo protestante, educador, cientista e
procedimentos utilizados para explicar o mundo de forma racional escritor tcheco, nascido em 1592, que viveu na Alemanha e na
ainda estavam atrelados à cultura greco-romana e sua forma Polônia, conhecido por uma proposta de modelo universal de
obscurecida ou mistificada por ensinamentos advindos da religião educação. Segundo suas próprias palavras, a arte de educar pode ser
apostólico-romana. explicada como:
Sua tese era de que os sentidos humanos eram infalíveis e Processo seguro e excelente de instituir, em
todas as comunidades de qualquer Reino cristão,
representavam toda fonte de conhecimento humano, por isso cidades, aldeias, escolas tais que toda a
pregava a observação e experimentação como imprescindíveis para juventude de um ou de outro sexo, sem excetuar
ninguém em siveiarte alguma, possa ser formada
chegarmos à verdade e à razão, e por essa razão foi conhecido como nos estudos, educada nos bons costumes,
impregnada de piedade, e, desta maneira, possa
pai do empirismo. ser nos anos da puberdade, instruída em tudo o
Tanto o método dedutivo de Decartes, que propunha que o que diz respeito à vida presente e à futura, com
economia de tempo e de fadiga, com agrado e
raciocínio lógico pressupõe verdades por meio de argumentos solidez.
Onde os fundamentos de todas as coisas que se
plausíveis, como o método empirista de Bacon, de observação da aconselham são tirados da própria natureza das
natureza e experimentação para construção de teorias que descrevem coisas; sua verdade é demonstrada com
exemplos paralelos das artes mecânicas; o curso
o mundo, contribuíram para Jan Amus Comenius pensar em uma dos estudos é distribuído por anos, meses, dias e
horas; e, enfim, é indicado um caminho fácil e
nova proposta educacional no mundo moderno.
seguro de pôr estas coisas em prática com bom
Por meio da Didática magna, publicada em 1657, resultado.
A proa e a popa de nossa Didática será investigar
Comenius tornou-se um dos mais ostensivos expoentes de uma e descobrir o método segundo o qual os
proposta pedagógica educacional da época. Sua obra trata de uma professores ensinem menos e os estudantes
aprendam mais; nas escolas, haja menos barulho,
proposta de modelo educacional político-ideológica e religiosa. menos enfado, menos trabalho inútil, e, ao

50
contrário, haja mais recolhimento, mais atrativo significa a arte de ensinar – e tinha como inspiração uma demanda
e mais sólido progresso; na Cristandade, haja
menos trevas, menos confusão, menos dissídios, de alunos e professores, prometendo-lhes rapidez, efetividade e
e mais luz, mais ordem, mais paz e mais prazer nesse processo.
tranquilidade (COMENIUS, 2001 [1657]:11-12).
Anteriormente, quando se ensinava, por exemplo, a
A proposta era ousada, e mesmo que analisássemos hoje,
astronomia em determinados períodos da Grécia Antiga, nas ágoras
muito tentadora em alguns sentidos, considerando as práticas
– reuniões públicas –, os que aprendiam o faziam no campo, ou seja,
educacionais modernas. Lembremos que a proposta advém dos
aprendendo astronomia olhando diretamente para o céu estrelado, o
desafios encontrados na mudança de paradigmas de uma época,
que traduzia uma observação empírica in locus e criava maior
assim como as mudanças da Grécia para a Idade Média foram
sensação de sentido do que olhar somente para as literaturas. Trazer
igualmente de grandes desafios às mudanças da Idade Média para a
a natureza como modelo voltava a ser um grande desafio, e em um
Modernidade. As novas formas de encarar o mundo do trabalho, a
universo científico, considerando as descobertas da física, química e
ascensão cada vez maior do universo científico, grandes viagens
biologia, nada melhor que centralizar os esforços educacionais nas
para um número cada vez maior de terras representavam novos
ciências naturais.
paradigmas de uma nova universalização. No campo da formação de
Comenius admite que o leitor pode não acreditar em suas
jovens e crianças, o intuito principal era suavizar os pesares
palavras quando se tem o primeiro contato com elas, mas pede que
educacionais criando um sentido efetivo para a educação e que fosse
não seja julgado antes de conhecer sua totalidade, e as ressalvas
acessível a todos – há quem critique dizendo que, nesse caso,
aparecem inúmeras vezes ao longo do discurso. Ele trata a educação
somente ao universo cristão.
como a arte das artes, pois ao formar o homem formamos o mais
A promessa compelia a garantir bons resultados por meio
versátil e mais complexo de todos os animais.
de seus métodos didáticos – lembrando que, nesse caso, didática

51
Contra os métodos didáticos mais rápidos, Comenius, por isso, apesar do peso religioso em quase todas as citações de sua
ser um religioso fervoroso, como quase todos intelectuais de sua obra, em quase todas as páginas, observamos que suas técnicas
época, evoca a providência divina como algo que contribui para a científicas por vezes apresentam um lado que não era comum na
construção de um método que o autor chamou de perfeito. coexistência com um universo mágico. A proposta de educação
Repleto de referências bíblicas, passando por Gênesis, como memorização e dominação total da natureza representa muito
Eclesiastes, Salmos e diversas louvações divinas, Didática magna: a bem a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo, do
arte universal de ensinar tudo a todos resgata nas passagens sagrado para o profano, do religioso para o laico.
sagradas a importância da formação dos jovens como regeneração Há uma enorme exaltação à razão, à necessidade do
da sociedade, elevando a um grau máximo a importância das novas entendimento sobre o antropocentrismo, mas sem perder o elo
gerações. Demonstra, assim, a importância da educação no caráter religioso, cristão, pois em todo momento a associação entre o
do ser humano. “Educar, pois, providamente a juventude é homem e o divino são explícitas. A primeira regra promulgada é a
providenciar para que os espíritos dos jovens sejam preservados das do autoconhecimento, o “conheça-te a ti mesmo”, remetendo ao
corruptelas do mundo e para que as sementes da honestidade neles templo de Apolo em Delfos, na Grécia – uma vez que é esse um dos
lançadas sejam...” (COMENIUS, 2001 [1657]:39). deuses da razão no Olimpo –, e em seguida defendido por diversos
Na proposta de Comenius há um endereçamento para os textos bíblicos.
pais, os professores, os estudantes, as escolas, os Estados e a Igreja, O homem é colocado em todo momento como imagem e
centralizando os principais atores do processo educacional e semelhança de Deus e por isso é a mais bela de todas as criaturas, a
intimando a todos participarem desse processo. perfeição, e a preocupação em não opor a razão e a ciência com o
Se o novo modelo a ser seguido é a natureza, as pensamento mágico ou religioso.
comparações do homem com o universo natural são inevitáveis, por

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O ser humano é descrito como portador de uma luz natural como bem dito na citação acima, visa a um claro objetivo. Antes de
que vai se desenvolvendo por meio da intelectualidade, e nos compreendermos esse objetivo, vale ressaltar a percepção de que os
demonstra que esta só é possível pela experiência, mas que esse ensinamentos para pessoas mais novas, jovens e crianças, é
caminho pode se perder pelos prazeres ou pela busca de honra, que fundamental, uma vez que seus valores ainda não foram
nos levam a fins imediatos, mas nos fazem perder a paz e o apetite; a corrompidos.
sabedoria, ao contrário, nos leva a caminhos infinitos. O objetivo educacional de Comenius é aquele observado
Se o homem é imagem e semelhança de Deus e é perfeito e hoje em dia por todos os analistas críticos da modernidade, como
a natureza também é, seguir os passos da natureza propiciará ao progresso na teoria de Augusto Comte, que significa a
homem a criação de obras perfeitas também. A escola então é transformação do mundo em uma ciência, a organização
responsável por apresentar esses passos naturais e possui um papel metodológica inspirada na física e na matemática para futuras
estruturante de toda sociedade: civilizações industriais. Estamos falando de 1657 e até hoje
podemos ver que nossa sociedade se prepara para esse modelo
Se, portanto, queremos Igrejas e Estados bem industrial, na maioria das vezes com as mesmas formas
ordenados e florescentes e boas administrações,
primeiro que tudo ordenemos as escolas e educacionais, focando na economia, no indivíduo, e não no
façamo-las florescer, a fim de que sejam
coletivismo, no respeito, na cidadania ou no pensamento planetário.
verdadeiras e vivas oficinas de homens e viveiros
eclesiásticos, políticos e econômicos. Assim O que faz de Comenius tão atual não é somente a
facilmente atingiremos o nosso objetivo; doutro
modo, nunca o atingiremos (COMENIUS, 2001 preparação para a vida industrial, ou mercadológica, no caso do
[1657]:11-12). mundo contemporâneo, mas as discussões em torno da
O modelo educacional deve surgir desde a pré-escola, ou democratização do ensino e dos métodos pedagógicos mais eficazes.
desde a infância, e a preparação, ou formação de todos os cidadãos,

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Comenius classifica todas as formas de conhecer o mundo escolha daquilo que é bom e ruim; e a memória é a retenção das
em três tipos: objetos de observação que incluem o céu e a terra; ideias de diferenciação entre bem e mal guardadas para serem
objetos de imitação, que são as coisas naturais que já existem no aplicadas no futuro.
mundo e que os homens devem seguir; e por fim os objetos de Por mais confusas que essas classificações possam parecer
fruição, que fazem parte de uma providência divina. Os objetos de hoje em dia, o que fica claro é que a educação da didática magna
observação são distinguíveis pela inteligência, e nossa vontade enaltece o controle racional sobre as paixões, em detrimento do
decide qual o caminho que seguimos após aqueles que caminhamos, ódio, da raiva, do instinto, do descontrole emocional e dos
que distinguimos pela inteligência, por isso nossa vontade é nossa ensinamentos das virtudes de outras culturas que não fossem a
consciência. O corpo, para Comenius, é uma máquina e o cérebro, cristã.
ou a mente, é o que define todas as operações (SILVA, 2006)11. Como o ser humano é dotado de luz, e é próximo de Deus,
Basicamente, a fundamentação da didática de Comenius ele é senhor de sua própria trajetória, e a educação deve ser um guia
está ligada a uma doutrina pedagógica que propicie aos indivíduos para essa trajetória, e o melhor exemplo a ser seguido é a
atingir as seguintes qualidades elementares: vastos conhecimentos transformação do humano em cristão exemplar. Ser um cristão é
que estão ligados ao intelecto, à razão e à ciência; a vontade, o possuir as virtudes dos ensinamentos éticos do cristianismo, mas,
desenvolvimento das virtudes, que está associado ao mundo do além de um grande humanista, Comenius também direcionava a
trabalho, e do desenvolvimento potencial individual; e a memória no importância da educação à filosofia orientada para a razão e a
desenvolvimento religioso, atrelado aos valores morais e coletivos. ciência.
O intelecto, ou a razão, é o instrumento de diferenciação A razão e a ciência na educação não representam total
das coisas e está ligado ao empirismo; a vontade desenvolve a separação com o universo da fé, uma vez que ele acreditava na
imortalidade do espírito, e assim o aprendizado deveria ir além dos
11 http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/013e4.pdf

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desejos e das conquistas materiais, colocando a sabedoria e as As ousadias de Comenius – que, apesar de religioso, tratou
virtudes acima dos bens terrenos. o teocentrismo de forma inovadora, trouxe novamente a reflexão da
O modelo educacional não pode ser tratado como rígido salvação dos povos por meio da educação e buscou a mensagem de
para com o estudante, mas centraliza a responsabilidade do processo paz e harmonia no humanismo transmitido pelos valores cristãos –
educacional no professor. Um estudante, quando não tem vontade de marcaram todos os estudos e propostas educacionais posteriores e se
estudar, não deve ser obrigado; o professor tem de saber atraí-lo sem tornaram uma das obras mais importantes de educação do mundo.
forçá-lo, caso contrário não obterá resultados.
A melhor forma de explicitar o objetivo da didática de
Comenius é entender seu projeto de pansofia, termo grego que pode
ser traduzido como sabedoria universal. Essa sabedoria inclui
acessibilidade de todos a uma enciclopédia do saber universal –
entusiastas da modernidade a associariam à internet – que acumule o
máximo do conhecimento humano; a fundação da escola, espaço
físico com todas as condições laboratoriais necessárias; e um
método em que o indivíduo pudesse aplicar de forma prática todo
conhecimento desenvolvido em todas as áreas do saber.
Bons livros, bons professores e bons métodos salvariam a
humanidade, seriam a cura para todos os males e elevariam os
progressos morais, intelectuais e espirituais dos homens.

55
Individucação

O mundo explode lá fora,


Eu me protejo aqui dentro,
Meu mundo, melhor que outros,
Não tem tortura e lamento,

Prefiro não entrar nessa luta,


Cada um com seu tormento,
Não tenho culpa, coragem,
Conquista, prêmio, reconhecimento,

Empatia tenho toda hora,


Pelos que me dão alento,
Por aqueles que sofrem em vão,
Fracos, não fizeram direito,

Filhos terão minha riqueza,


Os deles terão o seu erro,
Lute pelo que vale,
E vá congelando seu peito,

Sem discurso de esmola,


Não consegui ouro a esmo,
Estudei a vida toda,
Educação a mero deleite...

Poesia de Tiago Pereira Andrade


Foto tirada pelo autor: o corredor claro e colorido da faculdade recebe um
tratamento de imagem para demonstrar aspectos de envelhecimento e sujeira.
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A educação como forma de conservar a bondade Os gregos primeiro criaram a paideia pensando no ensino
das crianças, depois moldaram a educação de forma mais ampla,
A educação é uma coisa admirável, mas é bom recordar que nada com uma nova característica: voltada um pouco mais para a razão,
do que vale a pena saber pode ser ensinado.
Oscar Wilde com os pré-socráticos, e depois racionalizaram mais ainda com
Sócrates, Platão e Aristóteles, deixando as artes um pouco mais
A educação exige os maiores cuidados, porque
influi sobre toda a vida. excluídas dos processos de aprendizagem, mas nunca se afastando
Sêneca
da filosofia. Em determinado momento, pensaram a educação em
plena evidência ou máxima expressão humana no areté, um ser
Observamos duas ideias educacionais que foram
crítico, cidadão, político, artista e ético.
inspiradoras dos modelos que vivemos hoje, resgatando os gregos na
No fim da Idade Média – e início da era moderna –, com
paideia, seguida pelos moldes estabelecidos no fim da Idade Média,
Comenius e a didática magna combatendo um pouco os modelos dos
culminando em Comenius, em sua tentativa de modernizar a
jesuítas e tentando ensinar tudo a todos, a mudança nos processos
pedagogia ensinando tudo a todos. Interessa-nos agora entender
educacionais foi o enfrentamento dos métodos tradicionais,
mais sobre a modernidade: Jean-Jacques Rousseau, que se
discutindo formas e conteúdos, voltada a processos intuitivos na
preocupou com uma educação centrada na criança.
aprendizagem, tudo se baseando nos princípios da natureza e
Emílio ou Da educação, de 1762, marco que dividiu a
inaugurando a área da pedagogia.
educação no mundo ocidental, uma vez que a visão sobre o homem
Rousseau dialoga com todos os modelos anteriores e pensa
não está mais tão calcada nem na mitologia nem na religião, uma
a formação humana de forma complexa, inclusive estabelecendo
visão mais antropocêntrica ainda, apesar de não abandonar as
concepções divinas e naturais.

57
uma visão sobre a juventude12 ou a fase de formação do cidadão ou ou da felicidade, nem do senso de comunidade, nem do
do humano, colocando como pano de fundo ensinamentos conhecimento da natureza.
provenientes das reflexões modernas. O ser humano passa a ser O filme Good Will Hunting (1997), traduzido como Gênio
levado em conta em sua dimensão psicológica, biológica e social indomável, trata da história de um jovem superdotado que possui
nos modelos educacionais. memória fotográfica, decora livros e soluciona problemas
Por uma filosofia que pensasse a natureza humana, em matemáticos como ninguém. O protagonista, apesar da genialidade,
entender o ser humano como uma espécie que depende da sociedade provém de uma vida com diversos problemas emocionais e utiliza da
para se firmar enquanto cidadão, enquanto posicionamento de intelectualidade, ou dos instrumentos da razão, para fugir de seus
mundo, saber conviver em harmonia com a natureza, com as pessoas problemas. Em determinado momento, discute com seu analista, que
e com as coisas, ele via na educação a redenção. Não somente a desafia o seu conhecimento, dizendo que tudo que ele aprendia nos
educação institucional, mas também a doméstica e social, e não de livros tinha menos valor, uma vez que ele não podia sentir sobre o
forma dialética, mas de forma dialógica. que ele estava falando, mas simplesmente repetir.
Há uma clara divisão em sua obra do que ele chama de A metáfora desse longa-metragem nos indica um dos
mestres dos processos educacionais: educação para a natureza, caminhos propostos a percorrer por Rousseau em Emílo, que
educação para as coisas e educação para a sociedade, remetendo à evidencia a importância dos sentidos e dos sentimentos nos
ideia do ser psico-bio-social. Esses mestres não são separados, mas processos educacionais, o que vem sendo relegado pelo mundo
intercambiam na complexidade humana exaltando os sentimentos, o ocidental desde os gregos, em um mundo em que mais importa o
instinto, o homem no sentido mais amplo e não desprovido da dor status social do que o bem-estar emocional ou a adaptação ao meio e

12
o entendimento da natureza.
Entenderemos aqui juventude como a fase de transição entre o ser humano criança
e adulto, sendo que o jovem engloba o adolescente, a criança e a fase infantil. O tema
será mais bem discutido mais à frente.

58
A obra Emílio não trata apenas de uma nova didática, mas natureza, a sensibilidade e o senso de comunhão ainda são colocados
de uma nova forma de entender a educação, uma nova forma de em detrimento do ensino tecnicista e individualista.
lidar com os jovens e as crianças enquanto aprendizes, e por A ideia de uma ação global ou planetária, preocupada com
consequência uma nova forma de olhar para a sociedade, ao tratar de a espécie humana, está presente em toda a obra por meio de uma
maneira mais profunda a crítica feita à oposição entre natureza e tríade que reflete o homem, a natureza e a cultura, dividida em três
cultura. A crítica de Rousseau é para com os males da centralidade tipos de mestres educacionais: a natureza, o homem e as coisas
do pensamento de civilização que opõe o homem natural, e portanto (PAIVA, 2011). O pensamento é a formação de um homem total,
ignora os valores naturais. com algumas semelhanças entre o conceito grego de areté, mas sob
Quando Rousseau debateu suas ideias com os outros as circunstâncias históricas de um mundo moderno, e o conceito de
pensadores – como Hobbes e Lock –, evidenciou que quando eles pulverização do ensino abordada por Comenius, de ensinar tudo a
falavam do homem natural, estavam na verdade falando do homem todos.
social, da sociedade civil moderna. Todos os atributos criticados do
homem, como desejo e opressão, são na verdade descrições do O projeto educacional de Rousseau é, dessa
forma, a conjunção harmônica desses três
homem civil, e não do homem selvagem (PAIVA, 2011). mestres num fim único: a formação de um
Lembremos que a Didática magna escrita por Comenius é homem total, autêntico, devidamente
desnaturado, e bem preparado para viver com
de aproximadamente 100 anos antes de Emílio, 1657 e 1762, e o que seus semelhantes num nível de virtude que o
prepara para o verdadeiro exercício de cidadania:
as difere é a concepção de uma educação tradicional e religiosa em cumprir seus deveres, respeitar o próximo,
Comenius contra uma educação inovadora e humanista, que ainda se buscar agradar a Deus e desenvolver suas
potencialidades para o benefício de todo social
encontra ausente em grande parte do universo educacional do (PAIVA, 2011).
mundo contemporâneo. O respeito ao ser humano enquanto

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O homem é o degenerador de sua própria condição natural, A educação da natureza não depende de nós e a das coisas
e para resgatá-la precisa da educação. Prova disso é a manipulação somente em alguns aspectos, mas a dos homens depende totalmente
que faz na natureza circundante, como trata os animais para seu de nós, mas mesmo assim o êxito não é garantido. Assim como
próprio benefício, como altera o clima, como deforma tudo e não Comenius, Rousseau diz que a educação é uma arte, e o percurso
aceita o mundo como é. Assim como deforma a natureza, mexe nas necessário para o sucesso de uma boa educação jamais é garantido.
plantas, cultiva cruzamento de espécies, pode utilizar da educação Mesmo assim, tratamos o educar de uma criança como um esforço
para transmitir seus valores. para atingir um alvo, e, além de todos os esforços, precisamos de
sorte para atingi-lo (aqui, dialoga diretamente com a entrevista de
Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos Bauman para Porcheddu, na introdução).
carentes de tudo, precisamos de assistência;
nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o O método utilizado para a tentativa de acertar o alvo ao
que não temos ao nascer e de que precisamos educar tem de levar em consideração a natureza do desenvolvimento
quando grandes nos é dado pela educação
(ROUSSEAU, 1762). da criança, por isso é necessário dar a ela a devida liberdade para
interação com o mundo natural, como, por exemplo, o entendimento
A concepção refere-se à educação da primeira infância, e a
do que é pena ou dor. A experiência também é ressaltada pelo
primeira educação é dada pela mãe. Mas a referência se dá pela
humanismo e os sentimentos, logo o amor é fundamental nesse
necessidade do desenvolvimento da educação da natureza: pois se
processo. O principal exercício é criar um ser humano que possuirá
trata do desenvolvimento de nossas faculdades e de nossos órgãos;
caráter no futuro, por isso tudo aquilo que não depende do
da educação dos homens: a utilização com o que fazer desses órgãos
ensinamento da família, e sim da natureza, deve ser valorizado,
e dessas faculdades; e a educação das coisas: os ensinamentos
como a centralidade da mulher nesse processo. Segundo Rousseau, o
decorrentes das experiências que temos com os objetos materiais.
papel do homem no ato de gerar e sustentar um filho corresponde

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somente a 1/3 de seu papel referente ao ato de formar um cidadão, e As discussões contemporâneas sobre esse processo nos
é preciso fazer muito mais. ensinam que esse papel é muito mais de troca do que de imposição.
O papel dos pais, então, passa a ser uma garantia do Por mais que tenhamos a sensação de blindarmos as crianças na
desenvolvimento educacional da criança ao evitar as más influências primeira infância, torna-se impossível controlar tudo que as cerca, e
para o desenvolvimento das plenas virtudes dela. Sendo assim, o as respostas dadas por elas aos estímulos que propiciamos são
esforço da educação familiar ocorre com melhores resultados não fundamentais. Saber escutá-las e entender o que pensam e estudar e
somente na transmissão do conhecimento, mas propiciando o reaprender com elas.
contato com o natural, entendendo por natureza as necessidades Rousseau traz à tona uma diferenciação nas fases do
gerais da vida cotidiana. crescimento de um ser humano e por consequência classifica
O filme Capitão Fantástico (2016) ilustra bem uma momentos diferentes das fases de desenvolvimento atrelados a fases
discussão de quem pode levar ao pé da letra essa interpretação de educacionais diferentes. Inicia-se a fase dos infans, ou aqueles que
uma educação de máxima proteção que leva a um desenvolvimento não podem falar, e a educação utilizada é a da natureza. Passamos
com sentimentos, liberdade e o conhecimento da própria natureza. O adiante para a fase dos puer, ou puerum infantem, que ainda é a
protagonista e sua esposa decidem criar e educar os filhos no meio criança em formação, pois as crianças começam a falar e chorar
do mato, distante das grandes cidades, para que eles tenham grande menos. Quando a criança não falava e só chorava, não poderíamos
desempenho físico, mental, pratiquem artes, façam leituras de saber se era sono, fome ou dor, e agora elas já podem dizer o que é.
grandes clássicos, serem bons em suas retóricas, possuírem um bom Essa segunda fase poderíamos classificar entre aproximadamente os
senso comunitário, entenderem de política e saberem produzir seus 2 anos de vida até aproximadamente os 12 anos.
próprios alimentos por meio da caça, pesca e plantio. Esse período da vida é a evidência e formação total dos
sentidos, como a linguagem, a visão e a audição, e

61
consequentemente é o período da construção dos significados. Por Mesmo assim, a criticidade moral não poderá faltar nesse
esse motivo, a educação é focada na sensibilidade física e na momento, pois o mundo moral é aberto aos vícios, onde poderá
sensibilidade moral. culminar em mentiras, maldades, enganações e outras características
Os modelos educacionais estão claramente calcados em que não pertencem à virtude desejada. Tudo isso requer muita
modelos científicos e baseados na razão, uma vez que as paciência do educador, logo, muita sensibilidade, perseverança e
classificações etárias dialogam com áreas como a biologia e a crença processual.
percepção empirista. A criança, nos modelos educacionais A melhor forma de explicitar as dificuldades dessa fase da
anteriores, era tratada como um pequeno adulto. Existiam poucos natureza é um diálogo descrito em sua obra, entre o mestre e o
cuidados ou preocupações com as fases da vida perante a aprendiz, em um modelo tradicional no qual a criança não possui a
aprendizagem. concepção moral para o convívio em sociedade e colocaria o mestre
O homem nasce com o coração puro, e o meio o degenera, em um ciclo que deixaria o diálogo confuso e sem fim, por isso o
por isso o cuidado em afastar a criança daqueles que podem isolamento e o empirismo se tornam necessários:
degenerar seu sentido natural e a educação da sensibilidade moral,
que está atrelada ao que Rousseau chama de educação das coisas. Mestre: Não se deve fazer isso.
Criança: E por que não se deve fazer isso?
Nesse período, qualquer tentativa de abstração intelectual Mestre: Porque é ruim.
para a educação é ineficaz, pois a criança tem de aprender com as Criança: Ruim! E o que é ruim?
Mestre: O que lhe proíbem.
dificuldades impostas ou obstáculos físicos que a natureza propicia. Criança: Que mal existe em fazer o que lhe
proíbem?
Nessa fase, a aprendizagem se dá pela aprendizagem empírica, e Mestre: Punem você por ter desobedecido.
somente em uma fase posterior a criança aprenderá as regras morais, Criança: Eu faço as coisas de um jeito que
ninguém fica sabendo.
a diferença entre bem e mal. Mestre: Vão espioná-lo.

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Criança: Eu me esconderei. É somente na idade da razão, ou das paixões, compreendida
Mestre: Vão lhe fazer perguntas.
Criança: Eu mentirei. entre 15 e 20 anos, que a maior sensibilidade do ser humano se
Mestre: Não se deve mentir. completa e se dá a formação moral e espiritual do indivíduo, e essa
Criança: Por que não se deve mentir?
Mestre: Porque é ruim, etc. fase corresponde ao ensino médio – como se chama no Brasil – e ao
(ROUSSEAU, 1762)
início da faculdade. Após passar uma longa fase, até aqui descrita
A educação da natureza é também chamada de momento de pelo isolamento, pelos jogos, pela infância, é que seus órgãos físicos
fraqueza, o que vai mudar no início da adolescência. Somente dos e sua intelectualidade atingem o amadurecimento necessário para
12 aos 15 anos, na chamada idade da força, a criança desenvolve sua lidar com o universo circundante, e o jovem descobre que vive em
força física, sua moral e sua intelectualidade, e assim é possível um mundo cercado de depravações, ilusões, e é nessa hora que o
educar suas paixões de forma utilitária. É a hora de direcionar os convívio com a sociedade, o pensamento voltado para a espécie
esforços para que a criança seja capaz de satisfazer suas humana, o amor ao próximo e a si mesmo, a piedade, a empatia, o
necessidades no limite da utilidade. altruísmo se tornam fundamentais na formação, por isso é a fase que
É nesse período que a idade da natureza deixa de fazer mais nos interessa.
sentido e é substituída pela idade da força. As paixões da criança Saber educar as paixões para o convívio com a própria
não devem ser reprimidas, e sim direcionadas para algo que lhe espécie se torna fundamental não no sentido de aniquilar as paixões,
possa ser útil e também para a sociedade. mas para não guiá-las para o individualismo. Todos esses
Vemos a necessidade de uma educação prática. Se vai pensamentos se convergem em uma educação complexa.
aprender a agricultura, deve plantar, sentir a terra nas mãos. Se vai As dificuldades em criar um pensamento que contemple
aprender algum tipo de artesanato, deve produzir, pois é por meio do toda a espécie humana, o pensamento comunitário, no planeta, ao
ofício que se aprende a aplicabilidade humana da aprendizagem. contrário do pensamento individualista, é o grande desafio desse

63
processo educacional, e é exatamente o que podemos observar na burocracias somente para o benefício de seus próprios grupos ou até
educação universitária. mesmo de indivíduos em detrimento do pensamento comunitário.
Combater o ódio, a indiferença, a inveja, a mentira como
paixões humanas que não necessariamente agregam ao convívio
social e levam à degeneração da própria espécie é o método para
preservar e melhorar a humanidade no mundo moderno. Uma
sociedade, mesmo que pautada na razão, quando extremamente
individualista, utiliza da razão utilitarista e não da razão complexa.
Segundo essa educação, o homem deve ser sensível, deve
compreender as mazelas e as misérias humanas e assim reconstruir o
mundo social. Os espetáculos trágicos da vida cotidiana devem ser
observados para provocar a piedade, a compaixão para com aqueles
que sofrem diariamente, e assim fazer algo para mudar essa
realidade em benefício da continuação da espécie e da melhoria do
convívio humano. Parte desse processo é o entendimento das
relações humanas e da vida social de forma crítica e profunda.
No mundo de hoje, a sociologia, a antropologia, a história
e, em outras medidas, diversas áreas das humanidades cumprem esse
papel importante e permitem a crítica às doutrinas dogmáticas de
alguns grupos religiosos e de autoridades despóticas, que utilizam as

64
Retrospectiva educacional Não iria comprar.

Explico a vida nas guerras,


Meu povo devo honrar, A escola desune os empenhos,

Crescer e lutar pela pólis, Reprova para não questionar,

Arte, razão e poetizar. Ignora os sentimentos,


Lucra para não fechar.

Imagem e semelhança divina,


Jamais questionaria o amar,
Se Deus é o motivo da vida,
Aprenderia a rezar.

Resultado da evolução humana,


Ciência e muito estudar,
Se fosse melhorar minha vida,
Aprenderia a ganhar.

Sou realmente o que tenho,


Consumo para me encontrar, Poesia de Tiago Pereira Andrade

Se questionasse o dinheiro,

65
§ 2 Aprendizagem e Conhecimento

conhecimento

2 Aprendizagem e
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Aprendizagem e conhecimento mal temos tempo de questionar nossos papéis enquanto agentes
desse processo.
Olho os livros na minha estante, Muitos educadores e educandos operam seu dia a dia com
Que nada dizem de importante,
Servem só pra quem não sabe ler... atividades burocráticas advindas da modernidade como um simples
Raul Seixas - Trecho da música Eu também Vou Reclamar papel social, rotineiro, sem se questionar por que estão ali e o que
poderiam fazer para melhorar o processo educacional, encarando
Ao discutirmos aprendizagem, notamos dois processos
como algo útil, transformador, agradável e que possua sentido. O
básicos, um interno e outro externo: o interno é um processo
professor ensina, o estudante apreende, e a aprendizagem é medida
psicológico de elaboração e aquisição, e o externo de interação entre
em uma prova ou trabalho.
o indivíduo e o meio, seu ambiente social, cultural e material, por
Discutimos muito na contemporaneidade que um dos
isso notamos uma base psicológica, uma biológica e outra social.
maiores desafios na educação é a subjetividade da mensuração da
Muitas teorias educacionais não abordam as três bases e
aprendizagem, normalmente feita por meio de algum tipo de
normalmente se prendem somente a uma ou outra. De um lado,
avaliação. Sabemos que diversas condições limitam a medição das
teorias behavioristas e cognitivas, de outro, as teorias modernas de
informações transmitidas, remetendo à pergunta: como avaliar?
aprendizagem social (ILLERIS, 2013:17).
Educar é transmitir informação? O único sentido da avaliação é
A aprendizagem é uma meta da educação, mas possui um
cuidar da aprendizagem (DEMO, 2010:5).
sério problema: detectamos que, na maioria das vezes, os atores
É incoerente pensar na avaliação se não discutirmos
sociais dos projetos de ensino/aprendizagem não aprendem o que
primeiramente o que vem a ser aprendizagem e conhecimento.
poderiam ou deveriam, portanto existem vários obstáculos. Entre os
Apoiar-nos-emos aqui em diversos teóricos que discutem os
obstáculos, observamos os excessos presentes na modernidade, e
conceitos de forma epistemológica. Podemos dizer que a

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aprendizagem é uma dinâmica reconstrutiva política. É movida pela Os seres vivos se desenvolvem de maneira auto-organizada
autopoiese13 – é a característica de todo ser vivo de funcionar de – de dentro para fora –, porém criam expectativas de
dentro para fora (MATURANA, 2001; CAPRA, 2002) –, a realidade desenvolvimento igual ao de outros, e caso esses outros não se
externa não se impõe ao sujeito, mas o sujeito que a capta de forma comportem da maneira esperada, fazem uma intervenção de fora
reconstrutiva, interpretativa ou hermenêutica. Os seres vivos são para dentro – com medicamentos, exercícios, alimentação, cirurgias,
autorreferentes, pois compreendem a realidade a partir de si imposições –, porém essa interferência só é possível caso
mesmos. Não há acesso imediato à realidade externa. Todos somos concomitantemente ocorra um encaixe na dinâmica de dentro para
constitutivos uns dos outros. Enação14 no sentido de denominar uma fora.
ação de dentro para fora (VARELA, 1997). O processo de dependência de todo animal, incluindo o ser
humano, começa com a expectativa de crescer com cuidados – no
13 Autopoiese ou autopoiesis (do grego auto, "próprio", e poiesis, "criação") é um termo cunhado na caso humano, o cuidado materno, por exemplo – e se desenvolver
década de 1970 pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para
designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. Segundo essa teoria, um ser vivo é para buscar certa autonomia, caso não morra. Não promover ou
um sistema autopoiético, caracterizado como uma rede fechada de produções moleculares (processos)
em que as moléculas produzidas geram com suas interações a mesma rede de moléculas que as limitar a autonomia de qualquer ser humano pode acarretar em um
produziu. A conservação da autopoiese e da adaptação de um ser vivo ao seu meio são condições
sistêmicas para a vida. Portanto, um sistema vivo, como sistema autônomo, está constantemente se erro, já que se impossibilita o aprendizado (DEMO, 2010:13).
autoproduzindo, autorregulando, e sempre mantendo interações com o meio, onde este apenas
desencadeia no ser vivo mudanças determinadas em sua própria estrutura, e não por um agente externo. "Na medida em que estas situações locais se transformam constantemente devido à atividade do sujeito
Fonte: Wikipedia. percebedor, o ponto de referência necessário para compreender a percepção não é mais um mundo
dado anteriormente, independente do sujeito da percepção, mas a estrutura sensório-motora do sujeito"
14 Enação é um termo cunhado pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1980, (Varela e cols., 1993:235).
citados por Varela e cols., 1993), a partir da expressão espanhola en acción.
2 - A cognição, em suas estruturas, emerge dos esquemas sensório-motores vivenciados que permitem
A enação pode ser compreendida em dois pontos congruentes e complementares: à ação ser construída e guiada pela percepção. É a estrutura vivencial sensório-motora contextualizada,
"a maneira pela qual o sujeito percebedor está inscrito num corpo, [...] que determina como o sujeito
1 - A ação guiada pela percepção, ou seja, a compreensão da percepção é a compreensão da forma pela pode agir e ser modulado pelos acontecimentos do meio" (Varela e cols., 1993:235).
qual o sujeito percebedor consegue guiar suas ações na situação local.

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As máquinas funcionam de forma diferente do ser humano A política da aprendizagem é uma concepção fortemente
– de fora para dentro –, pois precisam de nós para funcionar, como o abordada por Paulo Freire que precisa ser entendida para darmos
computador, que só faz o que mandamos, que só sabe o que nós sequência a um entendimento complexo de aprendizagem. Para tal,
colocamos lá dentro. Não conseguimos colocar nada dentro do ser faremos uma regressão aos conceitos utilizados por teóricos
humano como se coloca em um computador, pois todo ser vivo pode recorrentemente utilizados para discutir esse conceito, iniciando por
aprender. Isso significa que a vida não é mecânica e reprodutiva, Jean Piaget, para assim criarmos uma reflexão de sentido.
mas é construção e reconstrução permanente Analisando as formas de aprender sobre o mundo, na obra
diálogo de Piaget e Freire proposta por Fernando Becker em 2010, O
Se reunirmos 10 pessoas em torno de uma mesa caminho da aprendizagem em Jean Piaget e Paulo Freire: da ação
redonda e contarmos para a número 1 uma
história, para que conte adiante para a número 2, à operação, alguns conceitos são apresentados para facilitar o
até a número 10, veremos que esta história pode entendimento sobre termos comumente utilizados por esses autores,
chegar bastante retocada ou irreconhecível. A
razão é autopoiética ou hermenêutica: não como: o empirismo, que é a hipótese de que a aprendizagem ou
sabemos reproduzir a história. Ao contarmos
uma história, o fazemos na condição de sujeitos, conhecimento adquirido de um sujeito se dá por meio da experiência
não de objetos. Entramos na história e já fazemos vivenciada no meio físico e recebida pela percepção dos sentidos; o
parte dela. (...) Por outra, se fizermos isso com
10 computadores, inserindo em cada um deles o apriorismo, que nos conta que no nascimento o indivíduo já traz
mesmo arquivo gravado, será sempre o mesmo,
consigo condições da aprendizagem, que se manifesta
reprodutivamente (DEMO, 2010:13).
imediatamente ao nascimento ou pela maturação; e o termo
Se admitirmos a aprendizagem como uma dinâmica atualmente discutido e primeiramente abordado neste capítulo, o
reconstrutiva, estamos dizendo que somente aprendemos quando construtivismo, que, negando as hipóteses anteriores, diz que a
reconstruímos o conhecimento. aprendizagem é construída pela interação entre o físico e o social –

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um longo processo de trocas simultâneas entre o sujeito e o meio Nesse mesmo sentido, Paulo Freire (1996:47) demonstra
(BECKER, 2010:13-14). que ensinar não é transmitir conhecimento, e sim criar possibilidades
Ao explorarmos os tipos de aprendizagens, lembramos que para a própria construção do conhecimento, evocando o
cada teoria possui seu conceito e forma de avaliação, e a proposta de construtivismo em sua obra Pedagogia da autonomia. Freire
Piaget na formação do conhecimento tange tanto o empirismo demonstra a face política ou politicidade existente na educação
quanto o apriorismo e demonstra que a hereditariedade, como dito como uma característica humana de se “subordinar ao destino
anteriormente, se dá pelo processo de maturação. Porém, biológico e social, ou ao ambiente externo e principalmente aos
independentemente do conhecimento inato, existe o adquirido, por dominadores e ao poder, sabendo reagir, fundar a capacidade de
meio de aquisição imediata ou mediata. A aquisição imediata história própria, individual e coletiva” (DEMO, 2002). Freire luta
acontece na leitura, pelo processo da percepção, e na interpretação contra uma realidade opressora existente na sociedade e desenvolve
sensório-motora, pela compreensão imediata. Já a aquisição mediata sua obra em prol dos menos favorecidos, demonstrando a existência
acontece em função da experiência em controles não sistemáticos, de uma alienação propiciada por parte dos modelos educacionais
como a aprendizagem stricto sensu – colocar o dedo na tomada dói – que impossibilita o desenvolvimento de uma consciência crítica dos
, e nos controles sistemáticos, como a indução. oprimidos.
Carl Rogers, ao discutir o conceito de aprendizagem, execra A dependência biológica e social do ser humano nos limita
que associemos a esse conceito tudo que seja sem vida, estéril, fútil a não fazer a história que desejamos por causa de nossas condições
ou rapidamente esquecido, demonstrando que o que controladas pela sociedade ao longo do tempo e pela biologia, que
verdadeiramente importa é a insaciável curiosidade e a compreensão determina nossas heranças genéticas por meio da evolução com o
do mundo (DEAQUINO, 2007:3). passar dos anos. Porém, dentro desses limites construímos histórias
próprias, e cada vez que aprendemos aumentamos nossa margem

70
rumo ao aumento de uma relativa liberdade. Desde então, o sobre um conceito desse termo que dê conta completa dessa ideia),
conhecimento é o maior recurso transformador da vida humana. entre outros tantos valores, que limitamos o homem a um ser
Até o momento, criamos uma correlação estreita entre simplesmente racional, exaltando o iluminismo e o
conhecimento e aprendizagem, porém não são sinônimos. Adotemos antropocentrismo.
o termo – conhecimento – como uma dinâmica intensa e profunda Nesse sentido, acabamos não dando conta de perceber que,
que necessariamente precisa de aprendizagem. Quem possui ao longo da história não foi somente a exaltada razão decorrente do
conhecimento questiona, desconstrói, além de ser construtivo, pois Iluminismo e todos os desenvolvimentos derivados da revolução
imagina cada vez mais e tenta sempre poder fazer diferente (DEMO, científica os únicos responsáveis pelo desenvolvimento da
2010:14). humanidade.
Separar conhecimento de aprendizagem exige, então, que A racionalidade fixada na existência humana se tornou uma
deixemos claro que a expectativa existente nos centros do saber e do visão ocidentalizada que muitas vezes deixa de ser discutida de
conhecimento – as universidades, faculdades, institutos de pesquisas forma ampla e complexificada. Em O pensamento selvagem (1989
e análises – atrela imediatamente conhecer e aprender com [1908]), Lévi-Strauss tenta nos demonstrar por meio de seus relatos
racionalidade, tentando ao máximo separar outras formas de antropológicos que o que ele chama de “selvagem” significa uma
entender o cosmos. operação cognitiva presente em todos os seres humanos e não
Para vários pensadores, é evidente que não há luz sem somente nas comunidades indígenas e tribais ou em povos mais
escuridão, que só é possível pensar no cheio se pensarmos o vazio, antigos.
que a paz é o produto da guerra e vice-versa, mas quando Lévi-Strauss, ao longo de sua obra, demonstra em diversas
analisamos os seres humanos, muitos de nós utilizamos regras comunidades humanas – neste caso, presentes na África e na
morais – bem e mal – e explicações sobre culturas (há grande debate América – que as lógicas de classificação, ordenação e até de

71
construção de vocabulários e dos pensamentos são decorrentes de É de extrema importância para Roudinesco contextualizar o
necessidades de interação dos homens para com o meio em que instinto e a desconstrução como parte do comportamento humano
vivem, e da forma como se relacionam, e que nada há de simples que não é aceito como algo complementar ao conhecimento, mas
nessas construções – retomando mais uma vez o construtivismo. Ao visto como oposição. Obviamente, não é intenção da autora nos
contrário do que pensavam os evolucionistas, não somos (nós, fazer pensar que destruição e atrocidades humanas devem ser aceitas
ocidentais modernos) dotados de maior racionalidade do que eles com naturalidade, mas que possamos entender o que há de
(sociedades antigas e tribais), nem eles mais instintivos do que nós. compreensível nelas, já que todos nós carregamos nossos lados
A razão e o instinto se desenvolvem de forma concorrente e obscuros e eles são essenciais para nossa aprendizagem.
complementar, um necessitando do outro, inseparáveis. A ciência e a razão monopolizaram o conhecimento
Elisabeth Roudinesco (2008) também nos demonstra em humano a ponto de transformá-lo em conhecimento único. Se muitas
sua obra que, ao longo da história, as chamadas perversidades, ou vezes a ciência criticou o fundamentalismo, ela também se
lados obscuros dos homens, têm sido combatidas pela Igreja, pela transformou em fundamentalista, assim como as formas de
ciência em consultórios psicanalíticos ou pela neurociência para aprendizagem e domínio do conhecimento. Se para diversos autores
dissimular algo que existe em todos nós, como diz a autora: “... a aprendizagem coletiva aparece como maior marco da evolução da
eliminar a perversão não seria destruir a própria ideia de distinção espécie humana, o conhecimento desenvolvido nas faculdades e
entre bem e mal que fundamenta a civilização?”. Para a autora, a universidades por meio de uma ciência fragmentada tornou-se marco
perversidade faz parte do ser humano e não pode ser dissociada da de uma única forma possível de formação da sabedoria e do
razão, e nosso imaginário remete perversidade ao instinto, algo fora conhecimento dos seres contemporâneos, ignorando a aventura da
do ser humano. história humana.

72
Retomando Freire em Pedagogia do oprimido, é possível Após abordar diversos conceitos na parte inicial deste
evidenciar que não foi à toa que o mundo científico se tornou como capítulo, era nosso interesse provocar e permitir um aprofundamento
o redentor do mundo contemporâneo, mantendo o conhecimento e a teórico. Interessa-nos agora fazer um resgate histórico das formas
aprendizagem como modelos acessíveis a grupos dominantes. Se pelas quais desenvolvemos o ensino, conforme conhecemos hoje.
visitarmos a história, veremos que o conhecimento “sempre andou
de mãos dadas com a censura e com o colonialismo” (DEMO,
2010:17).
O ser humano crítico, aquele que detém o conhecimento e
transforma seu mundo e ambiente, não está localizado massivamente
nas instituições de ensino, onde é proposto o saber, a aprendizagem
e o conhecimento; ele é raro em qualquer lugar, uma vez que
formamos técnicos fundamentalistas da razão e das profissões.
Portanto, a medição da aprendizagem, ou a avaliação, é
simultaneamente algo totalmente subjetivo – da interpretação do
aprendiz e a percepção do professor – e burocratizado do mundo
moderno calcado na razão, em que se espera a reprodução de um
único caminho como resposta para avaliação. Em caso de respostas
tabuladas corretamente, o aprendiz evolui seu nível de aprendizagem
até superar esse processo para obter um diploma, mas nem sempre
foi assim.

73
Aprendizagem e o cérebro documental Neurociências na educação (2011), nos explica como
funciona a aprendizagem no cérebro.
Ao cérebro humano são atribuídas diversas funções, entre
Nosso cérebro é o melhor brinquedo já criado: nele se encontram todos
os segredos, inclusive o da felicidade. elas as causas de nossas emoções, o controle da temperatura e da
Charles Chaplin
pressão arterial, a respiração, receber e gerenciar milhares de
Você não pode ensinar nada a ninguém, mas pode ajudar as pessoas a
descobrirem por si mesmas. informações vindas dos sentidos e do sistema imunológico. Além
Galileu Galilei
dessas, controlar o andar, o falar, o raciocinar, a imaginação, o

Ao tentarmos entender as formas de aprendizagem do registro de memórias e o planejamento do futuro.

homem, além da pedagogia, diversas outras áreas do saber podem São 86 bilhões de neurônios que se comunicam por sinais

servir como recursos de análise. Francis Wolff, em Nossa químicos e elétricos entre o córtex, núcleos profundos, tronco

humanidade: de Aristóteles às neurociências (2010), evidencia a encefálico e o cerebelo, conforme a ordem das imagens.

importância do estudo do cérebro no mundo contemporâneo para


entendimento de nossas operações lógicas e emocionais.
Há no mundo contemporâneo uma corrente de pensamento
ligada às neurociências da educação para a aprendizagem, nomeada
neuropsicopedagogia, que busca, por meio da neurociência
cognitiva, entender como nós aprendemos para aprimorar os
processos de ensino/aprendizagem. Com base nessa área de
entendimento do ser humano, Suzana Herculano-Houzel, na série

74
Imagens fotografadas do documentário Neurociências na educação (2011).

No entendimento complexo que possuímos sobre o ser


humano no mundo contemporâneo, não podemos deixar de entender
o componente biológico, que ajuda a entender a aprendizagem,
mesmo que utilizando uma ciência jovem, de apenas 150 anos de
idade.
Imagem fotografada do documentário Neurociências na educação (2011).
Na base da aprendizagem, podemos entender como o
cérebro faz novas conexões, e as motivações humanas estão
A parte sensorial recebe informações do ambiente e as
intrinsecamente associadas a isso. A formação de talentos e os
processa de forma coordenada para criar uma imagem ou
desenvolvimentos de atividades podem bem ser entendidos por essa
representação da realidade. Por meio dessa representação, nossas
área do saber.
ações se tornam adequadas aos estímulos. Criamos uma
A estrutura do cérebro humano é bastante semelhante à
representação da realidade e damos identidades e formas às coisas,
estrutura do cérebro de outros animais. Ele é dividido em três
grandes porções: sensorial, motora e associativa.

75
além de entendermos como devemos nos sentir em relação aos importa se a pessoa está dormindo ou resolvendo problemas
meios e aos outros. matemáticos.
A parte motora precisa da imagem criada pela parte Isso é explicado devido a quais partes o cérebro prioriza seu
sensorial, e assim sabemos como gerar nossos movimentos e funcionamento para determinadas situações. Cada parte que é
também como devemos nos comportar e interagir com as pessoas ou exigida inibe a demanda de energia excessiva para o funcionamento
com o meio. das outras, e só por isso é possível estudar o cérebro por ressonância
A parte associativa – predominantemente no córtex pré- magnética e visualizar que parte dele funciona com mais
frontal, ou parte dianteira da cabeça – acrescenta complexidade ao intensidade, dependendo da atividade.
nosso comportamento, fazendo associações com o passado e com o O cérebro funciona completamente o tempo todo, e a ideia
futuro. É nessa parte do cérebro que estão os planejamentos, os de que o ser humano usa somente 10% da capacidade cerebral é uma
julgamentos, esperanças, as metas, fazendo com que nossa vida inverdade. O que varia é a intensidade de funcionamento do cérebro
mental não esteja associada somente ao aqui e agora. em uma função específica.
Todo nosso controle executivo também se encontra nessa O tamanho do cérebro não possui nenhuma associação com
porção do cérebro: nossas decisões, nossos desejos e moralidade. inteligência, capacidade ou memória, e ao contrário de muito do que
Todas essas funções são desenvolvidas principalmente na se imaginava no século XIX, quase não há diferenças entre os
adolescência ou idade escolar. cérebros dos homens e os das mulheres – em média, os cérebros das
O bom funcionamento das funções cerebrais demanda mulheres são 10% menor – nem independência entre os dois
muita energia do corpo humano – 20% de todo o oxigênio que hemisférios. Albert Einstein, por exemplo, possuía um cérebro do
respiramos e alimentos que ingerimos. Independentemente da tamanho de um cérebro feminino, como nos conta Suzana
demanda ou da atividade cerebral, esse consumo é contínuo, não Herculano-Houzel.

76
O desenvolvimento do cérebro vai se modificando ao longo Isso não significa que um adulto não é capaz de aprender,
da vida, e podemos perceber uma redução da densidade cortical pois o processo de aprendizagem permanece na vida adulta, mas não
durante a adolescência ou fase da aprendizagem. Somente entre 10 e de forma tão rápida, frequente e eficiente como acontece com um
12 anos de idade uma criança atinge a massa cefálica de um cérebro cérebro em formação.
desenvolvido, mas isso não representa um cérebro formado, pois na As decisões que acontecem no cérebro não acontecem de
adolescência ele ainda está em formação. forma racional. Nós não avaliamos o que é positivo ou negativo na
É um período de excesso de conexões e informações que hora que escolhemos algo, não tomamos decisões lógicas avaliando
configuram e reconfiguram os valores e as regras morais, de acordo o bônus e o ônus das consequências. O cérebro possui um sistema
como ele é usado durante as experiências da vida, por isso a fase em que atribui valores ao que fazemos que fogem da esfera da
que mais facilmente aprendemos é a juventude. racionalidade. A principal base desse sistema de valores é a emoção.
A base da aprendizagem consiste em modificações das A forma como o corpo se sente é a base principal para a
conexões entre os neurônios. Isso acontece muito mais facilmente no tomada de decisão quando avaliamos alguma informação. O sistema
início da vida. Aprender a aprender consiste, então, em saber se recebe o nome de recompensa e motivação. Uma avaliação de algo
adaptar a situações novas, que são muito mais frequentes quando que pareça simultaneamente interessante e perpasse por experiências
possuímos poucas experiências. do esperado e do inesperado. Logo, as decisões são tomadas pela
A linguagem, por exemplo, para uma criança que possui busca de um resultado de prazer e satisfação que ocorre de forma
contato com diversos idiomas, é uma operação cerebral mais fáceis não racional, mas se expresse no corpo ou em um prazer imediato.
de aprender, pois ela está traduzindo o mundo pela primeira vez, e Esse sistema de recompensas e de experimentações
assim os estímulos são respondidos de forma mais intensa. corporais é a base para que busquemos repetições de reações de
prazeres corporais, por isso está associada às nossas motivações. Ao

77
acordarmos de manhã, conforme nossos afazeres, temos ou nãos as defende que as emoções são essenciais para todo ser humano e não
nossas motivações necessárias devido a esse mecanismo, incluindo o devem ser excluídas do processo de aprendizagem, pois são
aprendizado. fundamentais para todas as nossas decisões.
Aprender, de forma teórica, é um dos maiores prazeres do O carinho também é fundamental para o bem-estar e para o
cérebro e deveria ser a ação mais motivadora que conhecemos, pois desenvolvimento do cérebro, pois por meio desse gesto
significa entender uma nova maneira de fazer alguma coisa, de reconhecemos o meio e as pessoas em quem podemos confiar em
resolver algum problema e de juntar informações. O sistema de nossa sociedade. O carinho reduz as respostas ao estresse e permite
recompensa reconhece o aprendizado como algo valioso e digno de que o cérebro se forme de uma maneira que lide com o mundo de
repetição. maneira mais calma e com menos ansiedade. A solidão é uma das
As emoções são fundamentais para o funcionamento do maiores causadoras dos males neuronais do mundo contemporâneo,
cérebro, pois são as expressões dadas pelo corpo para o conteúdo por isso o carinho é fundamental para a aprendizagem.
dos pensamentos, revisitando nossas memórias e nossas projeções A reativação cerebral também é um sistema muito
para o futuro. E são recursos que o cérebro tem para saber o que o importante para a aprendizagem e é fundamental para entender
corpo acha daquelas ideias, memórias e possibilidades, funcionando como o individualismo é percebido fisiologicamente. Assim como o
como verdadeiros indicadores de que algo pode ser muito bom ou sistema de recompensa é ativado por antecipação, criando um clima
muito ruim. de euforia antes de vivenciar um fato, somente pela memória –
Segundo a psicologia, existem seis expressões humanas sente-se prazer somente de imaginar que irá senti-lo –, a reativação
universais que podem ser reconhecidas em qualquer pessoa: também acontece quando nos lembramos de algum episódio bom ou
felicidade; tristeza; surpresa; nojo; raiva; medo. Antônio Damásio, ruim e quando projetamos algo no futuro.
em O erro de Descartes, emoção, razão e cérebro humano (1994),

78
Esse processo de reativação das representações emocionais algum sistema de operação nova, ele agirá de acordo com a
também é responsável pelo sentimento de empatia, pois é por meio experiência de aprendizagem. As conexões entre os neurônios se
desse processo que nos imaginamos no lugar de outra pessoa e modificam à medida que temos de lidar com algo novo, e isso fica
acabamos por sentir o que o outro está sentindo; logo, é fundamental marcado.
para o pensamento comunitário. Ao ver alguém passando por O excesso de sinapses – ou troca de informações entre os
alguma situação que nosso cérebro reconhece, compartilhamos do neurônios – contribui para facilitar a aprendizagem, e essas ocorrem
mesmo sentimento – mesmo que em menor intensidade – da pessoa com grande frequência, principalmente na vida infantil, no período
por já ter passado por isso. escolar.
A imaginação também se dá pela reativação do cérebro,
pois ela é a capacidade de visualizar ou vivenciar mentalmente algo
que não está acontecendo naquele momento. Ouvimos mentalmente,
lembramo-nos de cheiros, revivemos experiências, e tudo isso ajuda
a constituir a criatividade, pois é dessa maneira que vislumbramos
novos caminhos ou novas maneiras de resolver problemas. Para as
neurociências, a nossa criatividade somente é possível com um
repertório de experiências. Quanto mais variada for a experiência
sensorial de uma pessoa, mais recursos para a criatividade ela
possuirá.
O aprendizado para as neurociências é a modificação do
cérebro junto com a experiência. Uma vez que o cérebro passa por

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Mestre, são plácidas Envelhecemos.
Saibamos, quase
Mestre, são plácidas Maliciosos,
Todas as horas Sentir-nos ir.
Que nós perdemos.
Se no perdê-las, Não vale a pena
Qual numa jarra, Fazer um gesto.
Nós pomos flores. Não se resiste
Ao deus atroz
Não há tristezas Que os próprios filhos
Nem alegrias Devora sempre.
Na nossa vida.
Assim saibamos, Colhamos flores.
Sábios incautos, Molhemos leves
Não a viver, As nossas mãos
Nos rios calmos,
Mas decorrê-la, Para aprendermos
Tranquilos, plácidos, Calma também.
Tendo as crianças
Por nossas mestras, Girassóis sempre
E os olhos cheios Fitando o Sol,
De Natureza… Da vida iremos
Tranquilos, tendo
À beira-rio, Nem o remorso
À beira-estrada, De ter vivido.
Conforme calha,
Sempre no mesmo Ricardo Reis – Fernando Pessoa
Leve descanso Poema sobre a educação
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.

80
§ 3 Razão,
Ciência,
Complexidade

Razão, ciência, com plexidade

81
Razão, racionalidade, ciência Enquanto a religião, a fé e as formas dos conhecimentos
míticos sempre se ocuparam em tentar dar um sentido à vida, a
razão, e posteriormente a ciência, tentou explicar a vida por
O homem é um animal racional que perde sempre a cabeça
quando é chamado a agir pelos ditames da razão. observação, teorias e matemática, como nos conta Hubert Reeves,
Oscar Wilde
astrofísico, na obra A mais bela história do mundo, publicada em

Max Weber, em 1922, em sua obra Economia e sociedade, 1997 no Brasil.

tentava nos demonstrar que a modernidade, marcada pelo O papel da razão e da ciência nos demonstra como
Iluminismo e o Positivismo, enfrenta um problema: a crença na podemos nos iludir ao acreditarmos que elas são as únicas formas de
razão como única verdade da motivação das ações sociais. Sua entendermos o mundo. Conforme o mundo foi evoluindo e se
teoria buscava, assim, difundir estudos sobre ética, carisma, religião, tornando mais complexo, percebemos que estamos cada vez mais
estamentos, tradição e emoções como outros motivadores que nos pautando na formação de ideias organizacionais que pouco
explicam as ações humanas. levam em consideração tudo aquilo que não é considerado racional,

A teoria weberiana sobre as motivações das ações humanas mas são importantes.

demonstrava que não estamos motivados nem agimos simplesmente Mas ao criticarmos a razão, de qual conceito estamos
pela razão moderna. Ele destacava principalmente as ações sociais falando? “Tal como é entendida e praticada em nossa civilização, a
tradicionais e afetivas, evidenciando que agimos por vezes sem racionalização progressista tende a obliterar a própria substância da
questionar o que temos como premissa, seguindo a tradição e razão em nome da qual se apoia a causa do progresso”
também as ações de forma afetiva, motivadas pela emoção. (HORKHEIMER, 2002).

82
Explicar o conceito da palavra razão sempre causa confusão voltado para o indivíduo para justificar suas ações em busca do
na mente do homem que não se debruça sobre esses estudos, e que próprio benefício. O pensamento da filosofia clássica não aniquila os
se guia por ela, mas normalmente, caso pressionado, dirá que está sentidos de razão descritos por Horkheimer em 1947 nem vice-
atrelado a uma questão de utilitarismo. Horkheimer, em Eclipse da versa, pois um está contido no outro. O grau de racionalidade de um
razão (2002), ao pensar de uma forma dicotômica, a razão, nesse ser humano, no pensamento complexo, pode ser medido segundo a
caso, está ligada à classificação e dedução, que chamou de razão harmonização de suas explicações de ações que está contida na
subjetiva, atrelada a meios e fins, pois faz com que o homem escolha totalidade.
um propósito e um procedimento, e se encerra na ideia de que algo
Quando pensamos a razão no sentido de logos ou ratio,
possa ser racional por si mesmo. Ser racional por si só, nesse caso,
estamos expressando a faculdade humana de pensar, e ao longo do
normalmente está atrelado a algum tipo de vantagem que o sujeito
tempo diversas transformações humanas e uma acentuação do
possa tirar, evocando o individualismo, sem se dar à dúvida refletiva
mundo ocidental no individualismo denunciou a mitologia e a fé
dos valores da ordem social, resultando assim em uma definição de
como falsidades, ou como invenções criativas do ser humano, para
razão constatado pelo autor nos últimos séculos.
preencher lacunas existenciais. As histórias míticas, as tradições
Na filosofia grega antiga, também chamada de filosofia orais das crenças, recheadas de fatos que na teoria fogem do
clássica, a razão vinha sendo discutida no pensamento do todo – universo da compreensão de grande parte das pessoas na
incluindo todos os seres vivos – e terminando na espécie humana. modernidade, contribuíram em muito para que o sentido de razão
Para efeito de comparação, a filosofia clássica se aproximava mais perdesse o sentido de totalidade, como, por exemplo, os estudos das
de um pensamento complexo, comunitário e planetário, enquanto no constelações, que, ao serem antropomorfizadas, ajudaram a entender
mundo moderno, fragmentando os saberes, o pensamento é prático e

83
a geometria e contribuíram para o desenvolvimento do um pensamento complexo. Ao descartar o pensamento mítico, a
conhecimento humano que possuímos hoje. emoção, a religião, as artes, afastamo-nos de produzir um sentido de
preocupação com todas as formas do saber e de integralizar todos os
Paul Feyerabend (2009 [1987]) nos diz que o ideal de
seres vivos e, por que não, o cosmos.
racionalismo e de ciência fez promessas na educação das
civilizações em modernizá-las. Os ideais serviam para desenvolver Por isso podemos dizer que as formas de saber que
meios de obtenção de lucros e solucionar problemas sociais, mas predominam no mundo moderno não dirigem a realidade social, pois
também poderiam responder a uma lógica de perpetuação das majoritariamente ela está subordinada a sanar os interesses
condições de dependência material para as civilizações ditas conflitantes dos indivíduos e é responsável por ter abandonado o
modernas. senso de coletividade do ser humano enquanto espécie e
consequentemente o resto das preocupações para com o mundo.
As civilizações utilizam dogmas para defender benefícios
em meio à diversidade e com isso impedem que grandes mudanças Mesmo a razão dos pioneiros da civilização burguesa,
possam ocorrer nas trajetórias de cada povo para que consigam se como nos conta Horkheimer (2002), não era tão utilitarista e
manter hegemônicos enquanto classes e estamentos. fragmentada. Nas legislações nacionais e internacionais, a razão
funcionaria quase como uma entidade que emanasse dos homens e
A educação, que poderia possuir um papel transformador
regulasse as relações humanas, e, com o tempo, ser racional passou a
nesse processo, se encontra recheada de dogmas, e os estudantes
significar ser refratário, conduzindo ao conformismo das injustiças
desde cedo entendem que devem visar ao lucro econômico por meio
ou à aceitação das imperfeições, não de forma positiva, mas dando
do desenvolvimento intelectual. Cabe-nos a indagação de como
margem maior ao individualismo.
poderia ocorrer esse processo, senão na subversão ou obscuridade de

84
No começo do Iluminismo, por exemplo, na França do é nada mais do que o sucesso da ideia
(HORKHEIMER, 2002).
século XVI, Michel de Montaigne adaptou a razão à vida individual,
e, embora fazendo com que muitos de seus leitores abdicassem da
religião em favor da razão como realidade intelectual, sua filosofia Tanto a religião como os mitos, as artes e a filosofia,
andava de mãos dadas com a literatura e as artes, por isso seu integravam o conceito de razão, e ajudavam a compor um
pensamento foi conciliatório e humanista, e não puramente pensamento não fragmentado, e podemos constatar um quase
individualista, nem mesmo fragmentado. consenso social desde a época de Horkheimer de que o declínio do

Grande parte dos motivos da razão perder seu sentido de pensamento filosófico e a desvalorização dos saberes, que hoje
chamamos de não práticos da vida, não fizeram com que a sociedade
totalidade foi o divórcio que teve com a religião, como diz o dito
perdesse nada e se supervalorizasse somente o saber científico.
popular normalmente atribuído a Albert Einstein: “A ciência sem a
religião é manca, a religião sem a ciência é cega”. Esse consenso é o cerne central da crítica de uma educação

Os avanços rumo à civilização que conhecemos hoje foram científica e prática do mundo contemporâneo, quando observamos

cada vez mais compartimentando nosso conhecimento e que a grande maioria das respostas dadas por estudantes em sala de

modificando nosso pensamento: aula para a pergunta “Qual o motivo de vocês estarem cursando uma
faculdade, que custa caro, que exige sacrifícios e disciplina?” é:
O pensamento moderno tentou extrair uma
Porque se eu quiser ser alguém na vida preciso fazer faculdade; Para
filosofia dessa visão das coisas, tal como se
apresenta no pragmatismo. O centro dessa ganhar o diploma e consequentemente arrumar um bom emprego;
filosofia é a opinião de que uma ideia, um
conceito ou uma teoria nada mais são do que um
esquema ou plano de ação, e portanto a verdade

85
Porque os meus pais querem. etc.15 Dificilmente alguém daria estas Desde o início da modernidade, os pensadores da sociedade
respostas: Para me tornar um cidadão; Para melhorar o meio; Para esperam então a solução de problemas sociais e a definição dos
entender melhor o mundo, etc. rumos da sociedade associadas às doutrinas ideológicas, ou
pensamentos dos povos calcados na ciência. É claro que não
Muitas correntes filosóficas repassaram à ciência o papel de
ignoraram as atrocidades causadas pelo uso das ciências nas guerras,
resolução dos problemas no mundo moderno que não haviam sido
por exemplo, mas a filosofia positivista tenta trazer à tona o
cumpridos em momentos anteriores, remetendo à corrente positivista
pensamento matemático como salvador do mundo moderno, assim
do Iluminismo, que acredita no método científico como única
como era a fé para o mundo medieval.
verdade para grande parte dos pensadores até hoje.
A razão se tornou puramente instrumental, comandando
A filosofia positivista, que considera o
instrumento “ciência” como o campeio uma perpetuação de atividades administrativas e coordenativas da
automático do progresso, é tão falaciosa quanto
outras glorificações da tecnologia. A tecnocracia
vida, prometendo uma autonomia dos sujeitos e obscurecendo a
econômica espera tudo da emancipação dos razão clássica objetiva, que tentava suprir a vida que englobava uma
meios materiais de produção. Platão queria
transformar os filósofos em governantes; os totalidade, a natureza e os saberes complexos.
tecnocratas querem transformar engenheiros em
componentes do quadro de diretores da O individualismo crescente desse processo no mundo
sociedade. O positivismo é tecnocracia filosófica
(HORKHEIMER, 2002). contemporâneo nos leva então a questionar essa razão, essa ciência,
uma vez que era o instrumento para um mundo melhor, e por vezes
se mostra irracional e bruta. As motivações humanas também
passam por uma crise, uma transformação, mas muitas vezes
Na carreira docente, costumo fazer essa pergunta ao ensinar sociologia básica para explicar as
15

motivações das ações sociais da teoria weberiana.

86
relegando a base da formação humana, a educação, a universidade, o reflexão e especulação estão para a filosofia enquanto a observação
lugar da construção do conhecimento e do saber. e a experiência estão para a ciência.

Edgar Morin, em O método 3: o conhecimento do Descartamos a ideia de que a ciência permite e requer
conhecimento, de 1986, discute a crise decorrente da disjunção entre reflexões e se utiliza de especulações e erros, enquanto não damos
ciência e filosofia, que culminou em uma cisão entre o espírito e o conta de que a filosofia jamais desdenha da observação e das
cérebro. Morin percebe que entendemos ciência como aquilo que é experimentações. Não existem fronteiras entre elas.
natural, por isso damos o nome de ciências naturais, como a física,
O mesmo tipo de pensamento pode ser aplicado à razão e
por exemplo, e, em contrapartida, àquilo que remete ao espírito
aos sentimentos: pedimos a todo o momento em que os sentimentos
chamamos de metafísica.
estão mais aflorados para controlá-los na hora de tomar decisões e
Temos compartimentado as tecnologias, o cérebro, a também descartamos de uma análise positiva todos os seres
psicanálise, a teoria do conhecimento, a epistemologia, e cada uma humanos que não demonstram os sentimentos.
dessas áreas é estudada separadamente e por vezes de forma
Ciência, filosofia, razão e sentimentos não são
concorrente e não complementar.
concorrentes, um não se sobrepõe ao outro, mas se articulam de
Antes as possibilidades e os limites do conhecimento eram maneira simultaneamente caótica e organizada em todos nós. Sendo
restritos à filosofia, enquanto hoje percebemos que compartilhamos assim, nem a razão nem a ciência, que são tão superestimadas nos
os limites do conhecimento também com as neurociências, a dias de hoje, dariam conta de serem explicadas de forma
psicologia, a sociologia, a história e a biologia, mas mesmo assim independente.
criamos uma dicotomia entre a filosofia e a ciência em dois polos: a

87
Sapiens, o complemento que compõe a denominação de Agora, também explicamos o homem pela evolução das espécies,
nossa espécie, tanto científica como taxonomicamente (Homo pelos genes e pelo desempenho de seu cérebro. Logo, é um animal
sapiens), deriva do latim (sábio). O nome foi criado quando se como os outros, pois passa de um homem estrutural para um homem
acreditava que a sapiência seria a principal distinção entre nós e os neuronal.
outros animais – além de autoconsciência, polegar opositor,
De acordo com o que era tratado como ciência na Grécia
permitindo realizar o movimento de pinça, etc. Para Morin, a junção
Antiga ou na Idade Média, ou até mesmo no início da Era Moderna,
dessas duas palavras não é suficiente para descrever a nossa espécie,
poderíamos dizer que tanto Descartes quanto Aristóteles eram
e então propõe acrescentar um novo elemento: Homo Sapiens
cientistas e físicos, mas também metafísicos e filósofos. Algumas de
Demens, pois todo homem é racional e também acometido de
suas teorias prosperaram, outras não, o que nos faz pensar que a
loucuras ou possui demência.
ciência não está restrita a explicações verdadeiras e circuitos
Francis Wolf (2010) questiona que a racionalidade seja uma fechados sobre as representações no mundo.
marca de supremacia humana perante outras espécies e nos conta
Wolf nos desafia a pensar a ciência como algo complexo,
sobre as mudanças ocorridas no último século, quando o homem
pois, de forma geral, as pessoas tendem a colocar no mesmo grau de
deixa de ser analisado somente à luz da psicanálise e da antropologia
cientificidade áreas tão distintas do conhecimento, como
cultural e passa pela antropologia estrutural, quando é determinado
Astronomia, Sociologia, Linguística, História e Física, e tratam-nas
pela sociedade, família ou pelos desejos inconscientes ou pela sua
como verdades distintas e concorrentes, mesmo que todas tenham se
história.
desenvolvido para explicar o mundo circundante conforme
Hoje a razão do homem também é explicada pelas conhecemos hoje.
neurociências, as ciências cognitivas e a biologia da evolução.

88
Ciência é tudo aquilo que atrai nossos olhares, aguça nossa
curiosidade; é tudo para o qual procuramos criar explicações das
mais diversas formas, para entender melhor o mundo,
principalmente após observação ou indução.

89
Elucubrações para uma educação complexa pensadores, e existe uma sensação de crise nos processos
educacionais. Essa sensação não é nova, pois já a observamos em
vários processos históricos, mas possui suas peculiaridades.
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil Para entender essas peculiaridades, fizemos uma análise
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
histórica, social e cultural até o momento, apontando relações tensas
Do ensino do primeiro grau e conflituosas, pois o que observamos da educação hoje contradiz
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital...
Caetano Veloso e Gilberto Gil, trecho da música Haiti suas condições históricas, porém reforçam os valores
contemporâneos. Nesse sentido, as condições materiais de trabalho,
São muitos os questionamentos possíveis quando tentamos a confluência de culturas, os avanços tecnológicos, o mundo
entender a educação contemporânea e a problematização colocada permeado pelo consumo e a cultura de massa disseminando
por docentes e discentes decorrentes de descontentamentos do informações calcadas no individualismo contribuem para
processo educacional. Com raríssimas exceções, muitos veem pouco desconexões do pensamento nas esferas da existência e
sentido nos processos educacionais – principalmente em nível consequentemente no sentido da construção do conhecimento.
superior – e os tratam como um ritual disciplinar ou como uma
Os cursos superiores, cada vez mais especializados nas
obrigação.
formações técnicas, e a forma como os conteúdos curriculares se
Partimos do pressuposto de uma nova produção cultural organizam na necessidade de criar determinadas competências e
mundial que permeia os sentidos e significados, à qual costumamos habilidades, com disciplinas que não dialogam entre si, são reflexos
dar o nome de pós-modernidade. É um processo de profundas do que Edgar Morin chama de fragmentação dos saberes. Para
mudanças e em alta velocidade, como atestado por diversos

90
entender esse pensamento, é necessário entender a proposta de todas as nossas diferenças e transformações ocorridas em todas as
repensar a natureza humana. sociedades para legitimar as ações humanas no espaço e no tempo.
A natureza humana se constitui assim como uma variedade de
Em O paradigma perdido (1973), Morin evidencia na
testemunhos, perspectivas, transformações e ideologias, que se
ciência um ciclo fechado e demonstra como atingimos nossa
negam e se reafirmam e fazem com que o homem se separe e se
concepção de natureza, tentando de todas as formas nos diferenciar
reintegre ao universo.
de outros animais. O ser humano, em todo momento, tenta dominar,
subjugar e conquistar a natureza em determinadas ocasiões, por A busca por um sentido de totalidade é uma tentativa de
meio da religião ou da filosofia, buscando escapar da morte para reconstrução crítica de observar a natureza humana. Esta se mostra
mostrar sua soberania enquanto espécie. por organização, interações, a ordem e a desordem, que são
constantes, apesar de não nos darmos conta da obscuridade, a qual
A contradição é que, apesar de se reconhecer enquanto
relegamos às operações de aprendizagem com o meio em que
espécie, muitas vezes não reconhece no outro de sua própria espécie
vivemos. Essa obscuridade existe para os pensamentos não práticos
um semelhante. Assim como nas antigas civilizações, como a grega,
da vida moderna. Escondemos e lutamos contra nossos instintos,
que via o persa como um bárbaro ou o escravo, que estava fora do
nossa fé, nosso pensamento mágico, nossas emoções e sentimentos,
mundo da paideia, como uma ferramenta que trabalhava para um
e até mesmo os conhecimentos críticos para com a sociedade se
grupo específico, hoje em dia criamos um discurso – mesmo que na
esses não forem práticos.
prática não funcione assim – de dizer que todos somos iguais.
Na esfera educacional, podemos observar um reflexo de
Ao afirmar a igualdade entre todos os homens, justificamos
tudo isso, já que, como vimos, a educação transmite valores do
no mérito, na cultura, na história e na educação a maleabilidade de
mundo e da cultura vigente, prepara e direciona os jovens para um

91
projeto do que a sociedade espera como mudanças, ou do modus que sabemos da imprevisibilidade humana, como a manipulação da
operandi dela, e vivemos em uma sociedade em que pouco se energia nuclear.
discute o seu sentido. Cabe rever o papel do homem, as discussões
Se, por um lado, a ciência resolve mistérios, satisfaz
sobre a natureza humana e também de tudo aquilo que acreditamos
necessidades e desejos sociais e conquista cada vez mais espaços,
ser único e verdadeiro.
por outro, observamos que ela pode nos criar problemas, ameaças,
O papel do universo científico também é de suma como o aumento das diferenças sociais, a destruição da natureza e as
relevância, uma vez que discutimos educação, aprendizagem e a dificuldades de relacionamento. Mas para compreender bem esse
crença na razão subjetiva como verdades quase absolutas. Todos os processo, não podemos polarizar a ciência entre uma boa e outra má.
outros modos de conhecimento são questionados pelas Toda ciência é boa e também má, é ambivalente e complexa.
comprovações e descobertas científicas nos últimos três séculos,
Por esse motivo, não pretendemos, de maneira alguma,
como Morin nos conta em Ciência com consciência (1982).
condenar nem a ciência nem a razão, mas tentar demonstrar que
Não há dúvidas da importância do desenvolvimento dos estas não são únicas dentro de um universo complexo de formar e de
conhecimentos científicos e de quanto eles nos ajudam a entender conhecer o mundo, muito menos representam verdades absolutas. A
com precisão informações que antes nos pareciam tão nebulosas. ciência representa um carro-chefe na relação com as técnicas que
Conhecimentos que permitiram viagens espaciais, o entendimento retroalimentam a sociedade e consequentemente todas as nossas
da microbiologia e das estruturas dos DNAs, da comunicação em organizações estatais e educacionais.
alta velocidade, entre outras magnitudes da produção humana. Claro
Os interesses econômicos, capitalistas, o
que alguns desses conhecimentos nos deixaram com medo, perante o interesse do Estado desempenham o seu papel
activo neste circuito pelas suas finalidades, os
seus programas, as suas subvenções. A

92
instituição científica suporta as coações técnico- perceber o mundo não se apresentam somente nas técnicas, mas
burocráticas próprias dos grandes aparelhos
econômicos ou estatais, mas nem o Estado, nem também no conhecimento da natureza e nos mitos.
a indústria, nem o capital são guiados pelo
espírito científico: utilizam os poderes que a Pensando na educação, Edgar Morin escreveu, nos anos de
investigação científica lhes dá (MORIN, 1982).
1999 e 2000, sua obra chamada Os sete saberes necessários para a
educação do futuro, em que nos convida para repensar os modelos e
Por esses motivos, vale colocar a ciência e a razão no o ethos educacionais. Esses saberes tentam, antes de tudo, fazer com
campo da complexidade e assim questionar modelos que pensemos – ao contrário da proposta de Comenius – que os
preestabelecidos da razão. Devemos lembrar que esses conceitos são modelos educacionais sejam adequados às sociedades e às culturas,
evolutivos e trazem em si mesmos seus piores inimigos, que estão mas considerando todas as sociedades e todas as culturas os
associados à racionalização que as sufoca. Como nos mostrou a conhecimentos sobre a condição humana, os mistérios da vida e os
Escola de Frankfurt, a razão e a ciência podem se autodestruir por mistérios do universo.
meio da racionalização, pela não admissão do erro ou dos outros
É necessário fazer uma ressalva: esses saberes não são
pontos de vista.
disciplinas e muito menos um manual de como lidar com a
A razão é definida pelo tipo de diálogo que mantém com o educação, mas se aproximam de uma crítica aos modelos
mundo exterior, que por vezes respeita os mistérios da vida e muitas educacionais que nos permite repensar as relações dentro dos
outras vezes, de maneira que Morin (2005) chama de falsa processos educacionais.
racionalidade, tratou as sociedades de primitivas ou desprovidas da
O primeiro saber diz sobre o erro e a ilusão e sobre como
lógica por não entender a complexidade de seus pensamentos e
devemos entender as condições humanas e nossa facilidade em se
organizações. Por isso percebemos que as diferentes formas de

93
iludir e errar, evidenciando nossas características mentais, cerebrais cultural, social e histórico é fundamental. O ser humano pode e deve
e culturais. A ciência e a razão sempre se esforçaram para afastar ser entendido de maneira complexa, e os conhecimentos para
tudo aquilo que fosse errado, e na visão complexa, os erros devem entendê-lo estão nas artes, nos mitos, na literatura, nas ciências
ser incorporados aos esquemas de aprendizagem, para que o humanas, nas ciências da natureza, e toda essa diversidade é
conhecimento faça sentido e possamos saber como lidar com nossos insolúvel.
não saberes.
O quarto saber diz respeito a ensinar a identidade terrena,
O segundo saber decorre de um problema: de análise das uma vez que quase nunca discutimos nos moldes educacionais
partes sem levar em conta o todo. Primeiro é necessário saber os contemporâneos a questão terrena, uma identidade planetária.
problemas locais para neles inserir os problemas globais, e não o Aprendemos a segregação de etnias, de países, de culturas, mas não
contrário. Na educação, o conhecimento é fragmentado em diversas pensamos em nossa condição de espécie que vem vencendo
disciplinas que não dialogam entre si, e assim há um impedimento barreiras comunicacionais, geográficas e não aprendemos as
para entender os contextos. A parte e o todo devem ser analisados opressões entre os povos que devastaram a humanidade e a natureza.
em conjunto, e as áreas do saber devem ser trabalhadas de formas Precisamos lembrar que todos partilhamos de um destino comum,
transdisciplinares. A esse tipo de conhecimento dá-se o nome de uma vez que vivemos em um planeta comum, e assim devemos
conhecimento pertinente. cuidar dele como um todo, o que está muito atrelado à questão da
sustentabilidade.
O terceiro saber diz respeito à condição humana, e todos
deveriam entendê-la. Tem muito em comum com o segundo, uma O quinto saber tenta nos ensinar a enfrentar as incertezas.
vez que também trata da fragmentação dos saberes. Mas conhecer o Costumamos, nas instituições de ensino, dialogar somente com
ser humano como, ao mesmo tempo, físico, biológico, psíquico, aquilo que é certo. Ensina-se o certo, mas não aprofundamos nas

94
dúvidas e nas incertezas. Fazer a pergunta bem formulada é muito tecido interdependente. Esse saber e todos os outros dialogam
mais importante do que dar as respostas corretas. Com isso, mutuamente, são interdependentes e se completam. Ser ético, em
criaríamos estratégias para lidar melhor com os imprevistos e os algumas medidas, é não desejar para os outros aquilo que eu não
inesperados. A razão subjetiva e a ciência estão muito atreladas às gostaria que eles desejassem para mim.
certezas. Hoje observamos na física quântica, por exemplo, a ideia
Todos esses saberes se articulam e se misturam para uma
da incerteza até naquilo que tínhamos como ciências duras.
proposta de reforma do pensamento, que remete à frase dita por
O sexto saber lida diretamente com os processos Montaigne no início deste trabalho – “Mais vale uma cabeça bem-
comunicacionais humanos, pois tenta nos ensinar a compreensão. feita do que uma cabeça cheia” –, e na tentativa de religar os saberes
Mesmo que a compreensão pareça fazer parte do nosso dia a dia, ela e propor uma identidade planetária, a proposição de Morin está
está, em muitos sentidos, afastada pela nossa praticidade em lidar fortemente atrelada a uma proposta de reforma educacional.
com as diferenças. A incompreensão precisa ser estudada para
Para tal reforma, percebemos que problemas essenciais do
sabermos as origens do racismo, do machismo, da xenofobia e de
ser humano, que antes eram respondidos, ou ao menos permitiam
todas as formas de desprezo. Essencialmente, a busca da
uma reflexão por filósofos e religiosos, hoje quase não são
compreensão mútua significa andar em busca da paz.
discutidos nas instituições de ensino, cada vez mais técnicas, cada
O sétimo e último saber diz respeito à ética do gênero vez mais burocráticas, cada vez menos úteis, considerando o acesso
humano, que não se expressa pela moral, mas pelo entendimento de instantâneo à informação.
que o ser humano é simultaneamente parte da espécie e também um
Sabemos que, por condições culturais e históricas, além das
indivíduo. É um exercício de empatia com os indivíduos e
regras morais e das necessidades instantâneas do mundo moderno,
simultaneamente um exercício de entender que somos um grande

95
ficamos impossibilitados de fazer reflexões mais profundas, mas se XXI, publicada em 1999. O objetivo primeiro era dar sugestões para
queremos algo diferente, também não podemos utilizar de uma o segundo grau, ou, como costumamos chamar, ensino médio, mas o
solução prática instantânea e muito menos fragmentada. Se não autor propôs uma reforma na educação universitária. O então
vamos pensar de forma fragmentada, comecemos primeiramente ministro da Educação respondeu que o mais difícil seria mudar as
encontrando interlocuções entre as ciências humanas e as ciências mentalidades.
naturais.
A mudança de mentalidade esperada é substituir os
Quando falamos de humanismo e biologia juntos, ou de pensamentos de um mundo prático, racional, burocrático,
física e filosofia, ou de matemática, música e linguagens, todos fragmentado e sem um senso crítico desenvolvido por um de senso
interdependentes, acabamos criando certo tipo de estranheza para crítico profundo, mais coletivista, pois o mundo em que vivemos
todos os especialistas dessas áreas, porém não nos faltam serve somente aos interesses particulares do lucro.
experiências ou tentativas de reintegrá-las ao menos em um sentido
Foi formado um conselho científico, e logo Morin
educacional. Até mesmo educadores, professores e estudantes
evidenciou dois desafios que deveriam ser levados em consideração:
tentam criar ferramentas ou complexificar os métodos para permitir
o primeiro, o da globalidade, em que tornaria evidente a
essa religação.
inadequação entre os saberes fragmentados e as atuais realidades do
Uma das experiências conhecidas ocorreu em 1998, quando mundo, que são as transnacionais, as discussões planetárias e os
Edgar Morin foi convidado pelo ministro da Educação da França, problemas cada vez mais transversais; o segundo tem a ver com a
Claude Allègre, para organizar jornadas temáticas em torno da ideia não pertinência do modo de conhecimento e de ensino, que muito se
da reforma educacional no país. As experiências são relatadas e parece com o primeiro, mas está atrelado ao modo como o ensino
gravadas em sua obra A religação dos saberes: o desafio do século olha e propõe soluções para os problemas de forma fracionados.

96
Foram organizadas então as jornadas temáticas, que seriam
temas com pontos de reflexões para que os educadores observassem
pontos em comum de problemáticas importantes que independessem
de suas áreas de saber. Essas jornadas possuíam como objetivos
adequar as finalidades educativas em: formar pessoas que fossem
capazes de organizar seus pensamentos, e não acumulá-los; ensinar a
condição humana; ensinar a viver; e por fim pensar em uma escola
que ensine também a cidadania.

Os temas criaram uma interlocução entre diversos autores


das mais diversas áreas do saber e receberam os nomes de: o mundo;
a Terra; a vida; a humanidade; línguas, civilizações, literatura, artes,
cinema; a história; as culturas adolescentes; a religação dos saberes.
Apesar do esforço tremendo e dos ótimos resultados obtidos como
experiência, a reforma na educação não foi bem sucedida, uma vez
que era necessária uma mudança cultural ou de mentalidade.

97
Poesia do conhecimento

A universidade não é mais o lugar do saber,


No Olimpo, só restou Apolo,
As luzes agora são só dos celulares,
De Comte, jogaram fora o amor, restando só ordem e progresso...

Faz muito tempo que sentir não é mais importante,


A aristocracia perdeu o areté,
Muito antes de virar empresa, já havia perdido a crítica,
Muito antes de virar moderna, já havia perdido a mística,
Muito antes de virar razão, já havia perdido o mito.

Entender virou decorar,


Corrigir virou esconder,
Construir virou passar,
Formar virou papel,
Questionar virou amém,
Criticar virou parabéns,
Professor bate cartão,
E o aluno virou freguês.

A prova não prova nada,


A aula pestaneja as pálpebras,
A informação agora só é mídia,
Só é publicidade,
E falta de sensatez.

Fragmentar para não questionar,


Graduar para qualificar,
Ignorar para aprender. Poesia de Tiago Pereira Andrade

Foto tirada pelo autor: a imagem faz uma analogia entre a luz do conhecimento e a
luz emitida pelo flash do aparelho celular na hora de capturar uma imagem. 98
Gepeto indignado

Pinóquio era querido, mas era de madeira oca,


O velhinho só queria que ele aprendesse,
Foi enchendo,
Enchendo,
Enchendo,
Sua cabeça oca...
Não de profissão...
Não de expectativa...
Mas de valores,
Mas de amores,
De postura!
Mesmo assim Pinóquio mentiu.
De que adiantou tanta humanidade?

Melhor seria enchê-lo de razão e punição?


Ou
melhor
ensiná-lo
uma
ocupação
sem arte,
poesia,
crítica,
política

emoção?

Pra que mais um cidadão?


Se todo ser humano mente um
montão? Poesia de Tiago Pereira Andrade
Imagem desenhada à mão por Bruno Sabino, estudante do curso de Comunicação
Social da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, inspirada na
poesia ao lado. Técnica: nanquim.
99
Retomar as raízes

Sempre tenho dúvidas, mas nem sempre tenho respostas.


Na falta, lembro do aconchego,
Da terra, do lar, do útero,
Sem o incômodo da alienação.

Sem saber pra onde vou, busco sempre lembrar de onde vim.
Nos meus sonhos de criança,
Nas minhas lembranças mais ingênuas,
Eu me divertia com a desocupação.

Sempre que tenho perguntas, descubro que qualquer resposta basta.


O retorno, o cheiro da mãe,
Não quero saber a verdade,
Quero um abraço, ou uma bronca.

Sem entender o mundo, sei que talvez a minha única opção seja sentir.
Os sentimentos construídos,
A razão imposta,
O reencontro quase psicanalítico.

Sempre que pesquisei algo, nunca deixei sem o gênesis.


Mesmo que não seja verdade,
Mesmo que pra parecer mais bonito,
A explicação epistemológica.

Sem capacidade retórica, para que os milhões de livros?


Os diálogos repetidos,
A dialética socrática,
A dialógica complexa.

Poesia de Tiago Pereira Andrade

Imagem desenhada à mão por Luiza Bicalho Vianna, estudante do curso de Design da
Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, inspirada na poesia ao 100
lado. Técnica: guache.
4
ruo
mo
ao § 4 Rumo ao digital
dig
ital

101
Educação, contemporaneidade e a influência liberal selecionarmos o que dizer do passado. Não podemos também falar
sobre o futuro sem entender o presente. Mesmo assim, as análises
sobre o passado obviamente não são descartáveis; elas enriquecem e
O passado é história, o futuro é mistério e o agora
uma dádiva, por isso se chama presente. tornam mais complexas as pesquisas.
Provérbio chinês

Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, O principal problema da pesquisa é tentar descobrir a
os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.
Paulo Freire lacuna que gera o desinteresse ou não motivação dos agentes
educacionais – estudantes, professores e por vezes funcionários.

Nem todos os momentos históricos e nem todos os autores Entender por que isso ocorre e entender a educação não separada de

que poderiam fazer parte da ideia central desta tese foram abordados todo o processo social, mas integrante e reflexo do toda a sociedade.

para contemplar o devido estado da arte, uma vez que nos Selecionamos essa forma de olhar para o passado, por esse motivo a

interessava observar somente alguns clássicos selecionados. Mas o escolha da fragmentação dos saberes e da ciência, os avanços

principal é que, mesmo que a tese tenha sido estruturada com uma tecnológicos e o individualismo como pontos processuais para

linearidade progressiva da história, entendemos que essa história não analisar momentos históricos e tentar interpretar o presente.

é a causa única para explicar o mundo contemporâneo. Em uma retrospectiva no mundo ocidental de alguns rumos

Morin, em Para onde vai o mundo? (2012), discute a ideia percorridos pelos modelos educacionais, focando principalmente nos

de relacionar presente, passado ou futuro de forma recursiva. Muitas momentos em que a razão e a ciência foram tomando ou alternando

vezes nós associamos o tempo presente como consequência do com outras formas de saber, o papel central nos moldes da educação,

passado, mas não levamos em conta que dependemos do momento, e percebemos que rumamos ao individualismo. Entender a educação

do lugar, utilizando de características do presente para

102
grega, os pedagogos do Iluminismo e da modernidade é fundamental Por mais que esses diagnósticos nos pareçam comuns e as
para entender a educação no mundo contemporâneo. mazelas decorrentes dessas características sejam discutidas com
diferentes enfoques e soluções, independentemente da corrente
Entendemos por modernidade o período após a Idade
filosófica ou do posicionamento político de quem analisa, há uma
Média marcado pelas mudanças de paradigmas decorrentes
concordância: os problemas existem e não são de fácil solução.
principalmente das revoluções industriais, da revolução francesa e
do Iluminismo. No mundo contemporâneo, diversos pensadores Uma das principais propostas da educação é a preparação
tratam o período presente como pós-modernidade, modernidade moral e dos valores, que, para alguns pensadores, deve ser feita em
líquida, crise da modernidade, entre muitos outros, ou simplesmente casa e, para outros, na escola e na sociedade como um todo, mas não
modernidade. há dúvidas de que a mentalidade coletiva, a cultura e os valores
humanos guiam os grupos, as famílias, as nações e a espécie. Uma
Existem muitas formas de abordar o período histórico
forma, ou talvez a melhor, de refletir sobre os rumos da sociedade é
contemporâneo, porém é necessário observar suas características
por meio da educação, e todos os autores até aqui discutidos se
comuns a todos aqueles que estudam esse assunto, como: um
preocuparam com esse aspecto e direcionaram os possíveis
avançado e complexo sistema financeiro; grandes desigualdades
caminhos a percorrer.
sociais; antropocentrismo e individualismo; grandes mudanças nas
dinâmicas das formas de sociabilidade; divisão cada vez maior do Os próprios modelos gregos, em diferentes épocas e regiões
trabalho social; intensa globalização; avanços tecnológicos cada vez da Grécia, oscilaram – conforme a necessidade – entre valorizar a
mais rápidos; entre diversos outros temas que poderíamos relação mestre/aprendiz, preocupando-se em formar uma minoria de
aprofundar. cidadãos exemplares e altruístas responsáveis por toda a pólis e por
vezes preocupados com todos os mistérios do planeta, e formar um

103
grande número de aprendizes que tivessem uma ocupação mais cristã, cujos valores trazem ensinamentos que combatem o
específica, quase nos deixando um paradoxo para pensar: ensinar individualismo, contra uma incapacidade crítica proveniente da
poucos de forma aprofundada ou muitos de uma forma mais proibição de questionamentos que revelassem as ordens da natureza,
superficial. que hoje chamamos de ciência.

Mesmo que esses muitos fossem ensinados de forma um Posteriormente, a ciência e a razão, havia muito tempo
pouco mais superficial, ainda assim a formação crítica e a obscurecidas, desde a Grécia, como questionadoras e
sensibilidade para as artes, o entendimento sobre a política e sobre transformadoras do mundo, voltam a ser exaltadas com o início do
os deuses quase nunca eram subtraídos das formas educacionais, cientificismo, positivismo e iluminismo decorrentes das novas
colaborando para algumas formações mais complexas, muito mais subversões do mundo europeu, que cada vez mais conquistava novos
do que a grande maioria das que conhecemos hoje. territórios por meio do imperialismo e cada vez mais criava
condições de vida de extrema diferença social para os menos
Esses modelos inspiraram Roma e, por consequência, quase
abastados.
toda a Idade Média. Durante centenas de anos, foram representados
pela Igreja Católica, cuja escola que mais expressava esse processo Comenius nos trouxe então uma proposta de fornecer
foi a jesuítica, que foi cada vez mais excluindo um lado crítico e ferramentas modificadoras, exaltando o homem – mesmo sem se
transformador do ser humano que vivia no Ocidente, explicando o separar da igreja – para uniformizar a forma de ensinar e assim
mundo muitas vezes por meio de doutrinas religiosas, e não da propiciar mudanças sociais significativas por meio da equalização e
ciência. Mesmo assim, o lado racional não era totalmente excluído, democratização dos conhecimentos científicos, racionais e
o que nos traz outro paradoxo: uma forma de ensinar que possui religiosos. Nesse caso, religioso significa somente o ensinamento
sensibilidade humana, calcada na religião dogmatizada pela igreja cristão.

104
Jean Jacques-Rousseau, trouxe sua interpretação de como quanto na filosofia e na sociologia. Como sugere o título do livro, o
educar um ser humano em crescimento, resgatando a ideia de uma autor analisa as mudanças políticas e sociais decorrentes do
formação sensível que preparasse os educandos para pensar a desenvolvimento capitalista dizendo que sua velocidade é rápida e
espécie e o todo social, na ideia de que o mundo dos homens poderia calcada no intenso consumo de tudo, até no consumo de si mesmo.
subverter os valores humanos, por isso ele precisaria de uma
O capitalismo está, portanto, ancorado no consumo, algo
interação com a natureza enquanto fosse criança e posteriormente
voraz que se alimenta de todos os recursos existentes e até dos
um direcionamento para transformar seus desejos em talentos que
próprios indivíduos. Essa dinâmica faz com que exista uma
fossem trabalhados para o bem de todos.
aniquilação dos sujeitos, que no pensamento psicanalítico acontece
Todas as propostas do homem clássico direcionam de forma simbólica. A dessimbolização do mundo é o ponto central
caminhos e experiências que, apesar de terem moldado de certa para entender a teoria de Dufour.
forma o mundo da educação, são influenciadores, mas talvez não
No simbólico e no imaginário, a afirmação do mundo se dá
únicos determinantes para contribuir na análise de um diagnóstico
pelo pensamento social, que funciona como um espelho, ou o Outro
do mundo em que vivemos hoje, em que a fragmentação dos
Social. Como efeito desse exemplo, conforme a linha de
saberes, o individualismo e o capitalismo imperam até mesmo nas
pensamento, o Outro Social no sujeito moderno iluminista é a
formas como construímos nosso conhecimento e como treinamos os
Razão; no mundo medieval, esse sujeito era Deus, mas dependendo
jovens para lidar com o mundo.
da análise poderia ser o Rei; no mundo contemporâneo, esse Outro
Dany-Robert Dufour, em sua obra A arte de reduzir as Social se torna o mercado. Esse Outro Social representa uma
cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal (2003), estrutura simbólica que serve para formar os sujeitos e marcá-los em
discorre sobre o assunto apoiando-se tanto na psicanálise lacaniana suas relações e escolhas.

105
O simbólico, ou o Outro Social, como mercado, funciona circulação de mercadorias, e por consequência a aniquilação do
de forma dinâmica, com uma capacidade de alteração rápida e simbólico.
intensa representada pelo consumo, e o sujeito se torna o
Tudo tem um preço, tudo pode ser vendido, e esse preço
consumidor e o consumido. Os sujeitos críticos, os sujeitos
muda; aquilo que é essencial passa a ser descartável e vice-versa,
ideológicos, os de pensamentos complexos, que direcionaram os
nas mais diversas situações. Nesse sentido, o homem crítico, ou o
tipos educacionais na Grécia, ou nas inspirações de Comenius e
homem sensível, ou o pensamento na espécie, ou até mesmo o
Rousseau, eram bem demarcados, enquanto o sujeito consumidor, de
pensamento no planeta começam a perder o sentido. O trabalho não
rápidas mudanças, tem dificuldade em se demarcar, e assim o
produz mais os valores, pois as principais transações financeiras são
mundo vai se dessimbolizando, pois todas as trocas se representam
parte de uma economia virtual, que vende muito caro coisas
no valor monetário da mercadoria.
subjetivas ou inexistentes.
O que antes se apresentava de forma transcendental ou fora
O capitalismo, na atualidade, dita normas e padrões de
do universo da razão passa a ser recusado, substituído por
comportamento e de corpo por meio da cultura de massa, e o
mercadorias e serviços, que se tornam importantes e tomam um
caminho mais evidente é a desinstitucionalização, desvinculando os
caráter essencial no mundo atual. Nem a moral, nem o sensível, nem
símbolos da formação humana. Para Dufour, o discurso midiático, as
o tradicional, nem o pensamento transcendente passam como únicos
práticas de consumo e a mercantilização de tudo estão
ou prioritários nas escolhas humanas, sem que se leve em conta a
transformando a lógica humana, deixando-a mais narcisista, fechada
questão monetária, e podem até oferecer obstáculos à busca da
sobre si mesma, individualista e mais isolada do que antes. O
liberdade material e individualista. O que importa é o jogo da livre
Sapiens passa a ser Zappiens: em vez de praticar a sapiência, fica

106
“zapeando” canais de comunicação, na televisão ou em outras Dufour nos conta que a partir da televisão há um fato
mídias, como os celulares nas sociedades atuais. antropológico novo: as crianças adentram as escolas já
empanturradas de televisão desde a sua mais tenra idade. Antes
O papel da televisão é fundamental na formação de muitos
mesmo de falar, elas já estão simbolizando o mundo em frente a
jovens, pois faz parte da linguagem, e todo homem é consistente em
telas, e por vezes as tecnologias são instrumentos para tentar tornar
apostar em toda nova prática da linguagem (DUFOUR, 2003:119).
as crianças mais calmas, fazendo-as consumir imagens, sequências e
Podemos apostar também que assim são as mídias sociais, a internet
sons de forma repetitiva desde cedo.
e os telefones móveis. A obra de Dufour faz uma análise de um
momento histórico em que essas outras mídias não estavam tão Se na época que isso era dito sobre a televisão, em que
disseminadas, então nos cabe entender a essência da formação pesquisa da UNESCO demonstrava que as crianças passavam em
proveniente primeiro da televisão. média três horas por dia assistindo TV, ou 50% de tempo a mais que
qualquer atividade, como escola, ler, ficar entre família ou amigos16,
A primeira invenção de midiatização das informações que
hoje esse tempo está diluído com as tecnologias portáteis, ou quase
contribuiu para a disseminação e construção de conhecimentos
extensão do corpo humano, como diria Marshal McLuhan (1964).
foram os livros, no Renascimento, que ajudaram a mudar muito a
forma de simbolização do mundo. A crítica proveniente dos livros Analisando o conteúdo evidente em todas as mídias, que
foi marco de experiência poderosa, pois confrontava os sujeitos nos bombardeiam imagens de forma ininterrupta, observamos, mais que
mistérios do ser. Do mesmo modo, as formas de comunicação do tudo, uma forma agressiva de publicidade, que é um convite ao
mundo contemporâneo trazem consequências para as formas
simbólicas ou de simbolização do mundo. Não cabe questionar de
16Jo Groebel, “The Unesco Global Study on Media Violence”, em Children and Media
que forma a televisão e as novas mídias fazem isso. Violence, UNESCO, Stockholm, 1998, extraído de DUFOUR, Dany-Robert. A arte de
reduzir as cabeças: Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal, 2003.

107
consumo de mercadorias e serviços, instalação de marcas como Lembremos de Guy Debord e a Sociedade do espetáculo
traduções de valores humanos, como, por exemplo, a felicidade. (1967), em que o autor nos conta que os meios de comunicação de
massa nos transformaram de protagonistas em meros espectadores
A violência era outro fator recorrente nas imagens
da vida; a imagem e a aparência se tornam mais importantes do que
midiáticas (vindo em segundo lugar, depois da publicidade). Em
a essência e o ser, a ilusão toma lugar da realidade e o homem se
1995, uma criança de onze anos de idade teria visto em média cerca
torna passivo. Assim, o consumo das imagens molda os conceitos e
de 100.000 atos de violência e teria assistido a cerca de 12.000
as identidades, interferindo em nossos projetos de vida e nos
assassinatos17. Fica a questão de, na falta de estudos recentes sobre
transformando em seres solitários em meio a uma massa de
esse assunto, o quanto esses números podem ter crescido com as
consumidores.
novas mídias.
A ideia de Dufour e a de Debord se misturam no tratamento
Antes, a iniciação à parte simbólica da formação humana se
da questão simbólica que permeia o mundo atual de tal maneira,
dava por meio do texto, depois pela imagem, e assim o sentido se
para que possamos entender como são os jovens que vão às escolas e
criava. O texto poderia ser uma lenda, um conto, a fala cotidiana, ou
faculdades e, não podemos deixar de dizer, de certa forma, a
algo realmente escrito, como um livro ou folheto, e assim a
sociedade como um todo, não excluindo os professores, pais e todos
imaginação e a criatividade eram aguçadas. A simbologia da fantasia
os agentes educacionais.
era essencial ao interior do sujeito. Essa imaginação se perde quando
o texto oferece uma mesma imagem para todos. Sabemos que as transmissões de narrativas, valores e
preocupações com o mundo são constitutivas de uma geração para a
outra:
17Wendy Josephson, Television Violence: A Review of the Effects on Children of
Different Ages, Patrimoine canadien, 1995, extraído de DUFOUR, Dany-Robert. A arte
de reduzir as cabeças: Sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal, 2003.

108
Transmitir uma narrativa é, com efeito, condições para fazer parte desse grupo é ter acesso a essas
transmitir conteúdos, crenças, nomes próprios,
genealogias, ritos, obrigações, saberes, relações tecnologias e condições de vida atreladas a certos privilégios
sociais... mas é também antes de tudo um dom de materiais, além de fazer parte de uma cultura de massa ocidental, e
palavra. É passar de uma geração à outra a
aptidão humana para falar, de modo que o mesmo assim sempre existirão exceções.
destinatário de narrativa possa, por sua vez,
identificar-se como si e situar os outros a seu Sem uma boa referência simbólica fixada, os estudantes
redor antes dele e depois dele, a partir desse
ponto (DUFOUR, 2003:128). têm dificuldade na integração com um fio do discurso, pois a
questão da autoridade da palavra é algo totalmente confuso. Sem a

A simbolização é como um segredo passado de geração autoridade da palavra não há discurso. A ordem de falar, escutar e

para geração, que fazemos sem nos dar conta, e sempre fizemos isso. escrever mal delineada reduz o horizonte de entendimento, porque

Talvez seja esse o papel da televisão, das mídias sociais e das novas não há o desenvolvimento da linguagem como era antes.

formas de comunicação que encontramos no mundo de hoje. As Sem esse referencial simbólico, os estudantes não são mais
referências das crianças e dos jovens são uniformizadas e seus capazes de cumprir seu papel, e consequentemente os professores
gestos difundidos e repetidos, por muitas vezes até mesmo seus também não conseguem cumprir os deles. Enquanto se espera do
gostos. professor um saber acumulado de gerações para gerações para que

Esses jovens, com referências simbólicas mal fixadas por determinados assuntos possam ser discutidos com os estudantes, os

uma utilização exacerbada das mídias, são tratados por muitos como estudantes, por vezes, não conseguem, ou quando o fazem não

uma geração narcisista, desinteressada e com pouco foco para as escutam, e torna-se preciso repensar o processo educacional.

coisas, por isso muito difícil de lidar. Claro que não podemos
generalizar, falamos aqui de um grupo bem específico. As pré-

109
Várias são as propostas a partir desse pensamento de rever há mais a disciplina na aprendizagem, levando-nos à contradição:
o papel do professor em sala de aula, uma nova função mediadora, agora que a obrigação da educação é generalizada, há cada vez
diferente do modelo docente de autoridade da fala, mas Dufour menos educação.
(2003:137) relembra Hannah Arendt, que havia previsto
O novo pedagogo se difere do velho pela seguinte questão:
consequências devastadoras por esse processo, principalmente para
enquanto o pedagogo de hoje renuncia aos trabalhos dos estudantes,
as crianças: sem uma autoridade bem compreendida, poderíamos
que eles são pouco hábeis a praticar, para poder aplicar técnicas em
rumar diretamente para o totalitarismo.
que a aprendizagem deles facilite seu contentamento, o pedagogo
Autoridade, nesse sentido, não significa persuasão, antigo é aquele que busca os meios possíveis para fazer o estudante
tampouco a utilização de meios de coerção, mas sim introduzir o entrar no discurso do saber e desenvolver a função crítica.
discurso e a fala em um mundo preestabelecido, e assim assumir
O que pudemos entender de Dufour desse processo é que,
uma responsabilidade educacional, ou responsabilidade do mundo
mesmo que percebamos a necessidade de uma formação mais
adulto de colocar os jovens sujeitos como coautores do mundo. Com
complexa, que tente recuperar alguns valores que estão presentes em
essa responsabilidade modificada, fica a sensação de que o papel do
alguns momentos gregos, ou até mesmo na educação sensível de
professor seja de distribuir cada característica de cada geração em
Rousseau, o fato de os valores no mundo contemporâneo estarem
seu lugar e seu tempo, negando as outras gerações e reafirmando as
cada vez mais atrelados ao consumo, ao mercado e ao
características daquelas com a qual lida.
desenvolvimento do capitalismo, cada vez mais a educação se torna
A linha de pensamento que expressa uma negação algo secundário nas possibilidades de refletir e transformar o mundo.
geracional e o fim de uma autoridade da fala nos leva à interpretação
de que uma geração não faz mais a educação da outra, portanto não

110
A pergunta que guia esta tese, que constata uma dificuldade
na educação contemporânea, só pode ser respondida de forma
complexa, e com certeza não se trata somente da falta de
sensibilidade, da falta de crítica ou da subversão dos valores do
mundo capitalista expressados na razão subjetiva e no
individualismo, mas todas essas características realmente
incomodam diversos críticos do mundo educacional, como pudemos
observar até o momento. O ethos da educação contemporânea, tanto
na relação dialética de Paulo Freire quanto na relação dialógica de
Edgar Morin, merece reflexões, até mesmo a partir dos agentes
educacionais, para que possamos questionar o futuro da educação.

111
Falsas promessas do entendimento Que não percebem que seus últimos conselhos deram errado.

Não sei o que querem de mim os professores, Não sei o que querem de mim esses avaliadores,

Que vivem sendo velhos mesmo quando novos, Se quando professores, não foram bem avaliados.

Que se mostram preocupados, mas pouco ajudam, Se quando educadores, fecharam as mentes,

Que cobram tanto sobre tão pouco. Se quando conselheiros, nos deram caminhos errados,
E agora nos dão notas,

Não sei o que querem de mim esses tutores, Mas não notam.

Que vivem sendo líderes mesmo delegando,


Que ganham para que a gente trabalhe,
Que não sujam as mãos, mas apontam os erros.

Não sei o que querem de mim esses educadores,


Que falam bonito, mas agem estranho,
Que com arrogância clamam que eu seja humilde,
Que ao explicar não notam minha indiferença.

Poesia de Tiago Pereira Andrade


Não sei o que querem de mim os conselheiros,
Que mesmo que eu não peça, me dizem o que fazer,
Que têm um monte de problemas, mas cuidam dos meus,

112
Tal liberdade

Ainda não entendi o conceito de liberdade,


Não me explicaram bem,
Ou não sou capaz,
No começo achei que era plena e fui à sua busca,
Mas só encontrei limites.
Depois percebi que precisava de um aposto,
Livre de quê?
Mesmo assim não conseguia que ela fosse 100%,
A prisão não estava fora,
Estava em mim,
Percebi que era mais fácil me livrar que me libertar.

E de tudo aquilo que me livrei,


Percebi que só substituí,
Por outro.

Aquilo que era para ser caminho virou cela.


Poesia de Tiago Pereira Andrade

Imagem desenhada à mão por Bruno Sabino, estudante do curso de Comunicação


Social da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo, inspirada na
poesia ao lado. Técnica: nanquim. 113
Educação e tecnologias contemporâneas Em um momento tão alicerçado pelo individualismo, de
uma sociedade neoliberal e com os saberes tão fragmentados,
evidenciamos nas páginas anteriores que as mídias possuem um
Não procure empatia no mundo virtual. Aqui a hipocrisia prevalece
e o sentimentalismo é o que pouco importa. papel fundamental na construção de nossas referências simbólicas,
Autor desconhecido
como estudamos em Dany-Robert Dufour.
Ah, modernidade…
Engoliste cartas, A mídia, que foi de fundamental importância para o
Fizeste lagartas
Que sem qualidade entendimento das relações de aprendizagem, estava representada –
E sem humildade
Se julgam normais em um passado recente – por um meio que habitava em quase todos
(por serem iguais)
Vivendo de abraços, os domicílios dos países ocidentais desenvolvidos: a televisão.
Sorrisos e laços Porém, após duas décadas, novos meios midiáticos surgiram.
Que são virtuais…
Verônica Miyake Comecemos pelos computadores, que agora não habitam mais
Algumas das propostas colocadas para um pensamento somente os domicílios, mas os bolsos das pessoas e modificaram a
complexo sobre a educação devem ser evidenciadas para que forma de se comunicar e relacionar nas redes.
consigamos analisar a relação que grande parte dos jovens possui
Pensadores aprofundaram seus olhares sobre esse fenômeno
com a aprendizagem. Se no segundo saber dos 7 saberes necessários
e, de forma geral, seus estudos traduziram os termos dos meios
à educação do futuro é preciso contextualizar o global com o local,
digitais, e assim podemos descrever que uma sociedade em rede é
impelimo-nos a entender a relação dos jovens com a aprendizagem e
uma sociedade em que a estrutura social é feita de redes alimentadas
as tecnologias que estão disponíveis para mediatizar o mundo.
por informação eletrônica e tecnologias comunicacionais.

114
A sociedade em rede permeia valores, produções, O fato curioso é que os computadores, em menos de 20
informações, poder, organizações, e tudo isso por meio de textos, anos, se tornaram portáteis e acessíveis para grande parte da
imagens, sons, discursos e gestos. Ao mesmo tempo em que reforça população. No mundo atual, para qualquer dúvida há quase sempre
a mídia de massa, possibilita-nos alternativas a ela. Ao mesmo uma resposta instantânea, um caminho a seguir, uma solução de um
tempo em que facilita a união entre as pessoas, pela facilidade problema, a tradução de uma língua e a intercomunicação cada vez
comunicacional e os interesses em comum, também as separa, pois maior com pessoas de quase qualquer lugar. Bauman (2001) nos
as pessoas possuem nichos de identidades diferentes. contava que “o telefone celular é o golpe de misericórdia nas
relações de tempo e espaço”.
Entender a possibilidade de repensar a sociedade por meio
das mídias eletrônicas é fundamental para compreender quais são os Se antes falávamos do individualismo e da fragmentação
inputs carregados pelos agentes educacionais – estudantes e como eixos centrais dos processos educacionais para criticar os
professores principalmente – e por que nascem tantas teorias de rumos de como ensinamos os jovens e o sentido desse processo,
repensar o papel daqueles que transformaram os processos gerando como consequência a falta de empenho dos estudantes e dos
educacionais em uma transmissão de informação, ou de repensar o professores, evidenciamos que agora o mundo mudou, tornando-se
papel dos professores detentores do conhecimento, que propiciam imediatista, com pessoas mais independentes umas das outras e das
18
aos seus estudantes somente a “cabeça cheia” . instituições, e tudo isso advém como consequência do
desenvolvimento humano representado fortemente nas tecnologias
18MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o portáteis, na busca de facilitar nosso progresso – um valor moderno.
pensamento. O autor retoma Michel de Montaigne apresentando-nos a ideia
da frase “Mais vale uma cabeça bem-feita do que uma cabeça cheia”. A cabeça
Sherryl Turkle nos convida a pensar, em Alone Together.
bem-feita é crítica, criativa, soluciona problemas e se preocupa com o mundo,
enquanto a cabeça cheia é técnica, individualista e fruto de uma educação Why we expect more from technology and less from each other
neoliberal dos saberes fragmentados.

115
(2011), o entendimento de o que muda em nossa sociabilidade, e pouco, ou quase nenhum interesse na passividade imposta pelos
muito nos interessa, uma vez que essas tecnologias estão em todas as modelos educacionais e pela simples transmissão de informações,
relações humanas, até dentro das salas de aula. Quanto mais associada à falta de sentido dos saberes fragmentados, o uso dos
utilizamos as redes sociais, mais valorizamos as facilidades, as celulares é quase uma constante nos locais de estudo.
conveniências e os controles sobre as coisas e as informações em
Vemos também nas pesquisas da autora o excesso de
detrimento das expectativas que possuímos sobre os outros seres
preocupação com a imagem, o que nos remete mais uma vez à teoria
humanos – em um mundo fragmentado com tantos problemas
de Guy Debord em Sociedade do espetáculo (1967), que diz que as
voltados aos indivíduos, o questionamento complexo causa preguiça
aparências se tornam mais importantes do que a essência. O trabalho
nas pessoas.
de Turkle foi feito a partir da coleta de depoimentos, e uma boa
Em lugar dos contatos reais, acabamos por optar por parte de seus entrevistados diz gastar um bom tempo de sua vida se
contatos virtuais, mais idealizados, sem o perigo nem os encantos preocupando com as composições de seus perfis ou suas imagens na
dos encontros. As pessoas se desaproximam na mesma medida em vida virtual.
que se aproximam, e escrever mensagens curtas se tornou muito
Os assíduos no universo tecnológico estão mais
mais corriqueiro do que encontros face a face e até mesmo
preguiçosos para protagonizar a vida fora das telas, e seus
conversas longas que costumávamos ter ao utilizar os telefones.
relacionamentos são mais superficiais e descartáveis. Além disso, a
As pessoas se tornam mais distraídas, pois quando estão ocupação mental exagerada nos faz sentir como se estivéssemos o
juntas, ficam mentalmente longe, vivendo duas realidades tempo todo solucionando sempre os mesmos problemas, em
simultâneas, a real e a virtual. Dentro da sala de aula esse processo constante comunicação com diversas pessoas e, por consequência,
se torna quase inevitável. Como grande parte dos estudantes possui nos falta os momentos de contemplação.

116
A lacuna de tempo para a contemplação é abordada por muito distante da possibilidade das propostas das educações gregas,
outro autor, que traça diagnósticos do mundo atual, Byung-Chul de Rousseau ou até mesmo de Comenius. O perfil do jovem que já
Han, em sua obra Sociedade do cansaço (2015). Vivemos a nasce inserido nesse processo, por esse motivo, é uma novidade na
sociedade do desempenho, pois precisamos em todo momento história da educação, e pouco sabemos como lidar com ela.
provar nosso valor, seja nas redes sociais, seja nas notas dadas na
Michel Serres, em Polegarzinha: uma nova forma de viver
sala de aula, nas entrevistas de emprego, nos relacionamentos, para
em harmonia, de pensar as instituições, de ser e de saber (2012), faz
com o Estado e em todas as instâncias que a sociedade neoliberal
uma reflexão discursiva sobre esse assunto. A Polegarzinha tem esse
nos invoca para que possamos ser contemplado com o devido bem-
nome por estar o tempo todo digitando com os polegares em seu
estar proveniente de uma meritocracia.
smartphone, e ela não habita a mesma Terra que antigamente
O empenho exacerbado, turbinado pelos gadgets habitávamos, pouco conhece os animais e o campo – a não ser
eletrônicos, cria uma geração de indivíduos que não descansam, que quando faz turismo –, além de viver na cidade. Ela discute os
não refletem, por isso não aprofundam em nada em sua vida. A direitos de diversos grupos e o politicamente correto, tendo assim
contemplação seria essencial para uma vida equilibrada, para respostas e julgamentos prontos, nunca deixando nenhuma análise
criações de forma geral e para que pudéssemos criar empatia pelas suficientemente complexa para entender os erros.
pessoas, deslocando-se um pouco do sentimento individualista para
A representação da Polegarzinha é de todos os jovens que
um sentimento altruísta.
são formatados pela mídia e pela publicidade e vivem um avanço em
A ilusão de estarmos sempre acompanhados por meio dos relação à Sociedade do Espetáculo, pois adentraram na Sociedade
smartphones, atrelada às comunicações blindadas das emoções à Pedagógica, onde tudo se ensina e se aprende – mesmo que de forma
falta de contemplação, gera uma vida confusa, que se apresenta rasa – e permite que todos sejam autodidatas por meio de seus

117
gadgets. Eles acessam todas as pessoas e todos os lugares, por isso Evidenciamos a incompatibilidade entre os modos de ser
possuem uma relação de espaço e tempo diferente das gerações desse jovem e as antiquadas instalações e formas de escolas, e os
anteriores. estudantes sentem-se entediados e os professores frustrados. Paula
Sibília, em sua obra Redes ou paredes (2012), nos conta que a escola
Como esses jovens conhecem e circulam tanto no universo
desenvolvida no Iluminismo já não faz mais sentido, já que a
virtual, possuem um número menor de filiações e de vínculos.
sociedade se encontra fascinada pela imagem, pela performance – ou
Normalmente, não têm religião nem partidos, não são patriotas –
desempenho – e também propõe repensar a escola dando mais
claro, as exceções ainda são evidentes. Eles têm dificuldades de se
protagonismo para o estudante nos processos de ensino e
relacionar, por isso poucos conseguem criar uma vida a dois. Todos
aprendizagem. Mesmo assim, não há nenhuma garantia de que um
esses processos acabam por incentivar ainda mais o individualismo.
jovem estudante protagonista dos seus estudos em uma sala de aula
A transmissão dos saberes se encontra em xeque, já que consiga repensar um mundo melhor.
existe muito conhecimento acessível a todo mundo, e a sala de aula
A linguagem é diferente, assim como grande parte das
perde muito o sentido. Se, como Montaigne dizia, “mais vale uma
preocupações humanas, o que transforma a instituição de ensino em
cabeça bem-feita do que uma cabeça cheia”, priorizando o ser crítico
uma arena em que guerrilham valores de gerações diferentes. Se
em vez do ser que somente detém informações, hoje em dia o jovem
antes se ia a uma faculdade para ser excelente, hoje existe uma forte
nem precisa mais deter informações, pois ele acessa os celulares
dúvida se esse processo garante algum tipo de excelência, e se
quando precisa saber qualquer coisa. Michel Serres diz que nem
garante, qual a explicação disso a não ser a burocracia de um
mais cabeça cheia, nem mais cabeça bem-feita, pois agora
diploma.
carregamos as cabeças nas mãos.

118
Com um número cada vez maior de pessoas vivendo uma
vida ativa, permeada pela burocracia e sem os momentos de
contemplação, percebemos que criamos menos, questionamos cada
vez de forma mais superficial, e tudo que historicamente foi pensado
para uma educação superior volta a dar lugar a algo protocolar e não
algo que possa mudar o rumo da humanidade.

119
Imagem retirada do clipe musical Are you lost in the world like me? Artista: Moby. Animação de Steve Cutts. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=VASywEuqFd8>. Acesso em 21/12/2017. O clipe faz duras críticas à imersão das pessoas no mundo virtual. A imagem reflete a
ideia de solidão entre os conectados.

120
Como os “digitais” se comportam Observando os dias atuais, notamos que o comportamento
diante desse processo está em todas as esferas sociais, e com o
passar do tempo percebemos mudanças não só nas formas de
Sim, minha força está na solidão. Não
tenho medo nem de chuvas tempestivas sociabilidade, mas também no comportamento das pessoas, que
nem das grandes ventanias soltas, pois
eu também sou o escuro da noite.
assumiram posturas que antes eram somente relacionadas à vida
Clarice Lispector virtual e modificaram seus comportamentos também por causa das
O sono diurno é como o pecado da facilidades e a forma de lidar com o conhecimento proveniente desse
carne: quanto mais se tem mais se quer,
contudo nos deixa infelizes, satisfeitos e advento.
insatisfeitos ao mesmo tempo.
Umberto Eco Marshall McLuhan já nos alertava, em Os meios de
comunicação: como extensões do homem (Understandig media):
Ainda estamos tentando entender todas as características
comportamentais de um tempo em que as tecnologias da A tecnologia elétrica penetrou as nossas
muralhas e nós continuamos surdos, mudos,
comunicação se tornaram tão presentes e quais as consequências cegos e inconscientes à sua colisão com a
tecnologia de Gutenberg (MCLUHAN, 1964).
decorrentes das formas como estamos utilizando. O fato é que
estamos mais solitários e muitos de nós adictos às novas tecnologias.
Observamos que nosso comportamento mudou pelos meios
Quando os telefones celulares que acessam a internet
digitais e não nos damos conta das mudanças subsequentes de
começaram a se popularizar, era comum observar um
algumas décadas de interação por essas mídias e tecnologias.
deslumbramento e dedicação a essa nova cultura, principalmente
Byung-Chul Han, em No enxame: reflexões sobre o digital (2013),
entre os jovens. Assim também aconteceu com as redes sociais, que
nos alerta que estamos nos embriagando com essa tecnologia digital
levaram mais tempo para conquistar as pessoas mais velhas.

121
e não estamos dando conta do quanto embriagados estamos, a segurança do olhar próximo, mas o corpo físico distante, ajudam a
levando-nos a uma crise que não só se reflete no sistema excluir o respeito, e ao observarmos a interação nas redes sociais
educacional, mas na sociedade como um todo. notamos uma cultura da indiscrição e irresponsabilidade das
O primeiro alerta é que esses processos nos fazem ficar shitstorms19.
literalmente sem respeito às hierarquias, ao próximo, às instituições As shitstorms remetem à indignação, e no mundo virtual,
e a situações que antes respeitávamos muito. O respeito requer um como a comunicação é simétrica – todos podem interagir – aquele
estranhamento, um olhar distanciado, pois quando respeitamos, lugar acaba se tornando um meio de exposição e um campo de
evitamos o olhar curioso, e notamos que, pela forma como nos batalha. Por essa simetria, o poder não é mais o mesmo, pois, nas
acostumamos com a vida digital, nenhum olhar mais é distanciado, mídias antigas, um jornalista escrevia, e o que recebia de respostas
pois a vida intermediada pelo digital aguça um olhar do espetáculo. eram cartas dos leitores que o editor decidia se publicava, respondia
Com a substituição do olhar do respeito pelo olhar do ou ignorava. Com a redação virtual, a resposta é imediata e acontece
espetáculo, a sociedade ruma no sentido dos escândalos, em que no calor dos sentimentos para que todos possam observar, portanto a
tudo é julgável e as esferas públicas e privadas se misturam, e tudo excitação faz com que os meios digitais sejam mídias do afeto, das
aquilo que é privado se torna público, e o decoro, ou a decência, emoções.
também acaba, desaparecendo nesse processo. Byung-Chul conta A indignação é muito eficaz para aglutinar a atenção. As
que a comunicação digital diminuiu tanto as distâncias espaciais pessoas se atraem de forma incontrolável para a interação com esse
quanto as temporais e mentais. Não sabemos mais respeitar. espetáculo de desrespeito, porém esse processo intenso também é
Arriscamos dizer que para quem está imerso no mundo
19Byung-Chul Han, em No enxame: reflexões sobre o digital, 2013, cunha esse
virtual, não há mais privacidade, uma vez que as imagens são termo, que pode ser traduzido literalmente como “tempestade de merda”,
produzidas quase de forma pornográfica e acelerada. O anonimato e relacionado à enorme quantidade de indignação e de injúrias que ocorrem
nas redes sociais.

122
fluido, acontece e deixa de acontecer de forma rápida. Do mesmo lugares de massa, como um estádio de futebol ou um anfiteatro, pois
jeito que se deposita muita energia nas discussões e no desrespeito, ele não possui habilidade para as intimidades das reuniões públicas.
logo em seguida muda-se o foco. Os homens digitais não produzem o sentido da unidade. Quando se
Falta firmeza para a sociedade digital que vive da fala deles no coletivo, não se usa a palavra reunião, e sim
indignação, que a todo momento busca por espetáculos e escândalos. concentração. Os meios de comunicação anteriores, como o rádio,
É uma rebeldia que não objetiva nenhum debate e nenhum diálogo, uniam os homens, enquanto os meios digitais os isolam.
pois é focada em si mesma, em exposição, em parecer algo para o Além de ser um meio das emoções, o meio digital é um
público. Essa multidão indignada é dispersa e de pouca ação, pois lugar de presença constante, e o acontecimento é imediato. A
sabe reclamar, reproduzir injúrias, se manifestar de forma afetiva, comunicação é produzida e enviada sem intermediários, sem
mas não se organiza e não produz nenhuma ação relevante. mediadores, revisores, editores. Possui também uma característica,
A dominação na sociedade em que vivemos parece estar em que é a capacidade de reverberação, de multiplicação. Se antes as
declínio, uma vez que a voz das massas também parece prevalecer. informações eram consumidas de forma passiva, hoje todos
Byung-Chul analisa pontos positivos, mas também negativos, nesse produzem e disseminam de forma ativa.
processo, pois as novas massas se comportam como um enxame O comportamento dos digitais chega a ser comparado com
digital. O termo “enxame” é utilizado porque essa massa digital é um fato curioso: no início do século XX, um cavalo chamado Hans
desprovida de alma, uma vez que a alma unifica, e esse enxame é aparentemente sabia fazer contas simples, até que um grupo de
composto por indivíduos isolados. Aproxima-se mais de uma união cientistas analisou o fenômeno. Concluíram que o cavalo não sabia
casual de homens do que de uma massa. fazer contas, mas interpretava as sutis mudanças faciais e corporais
Esse enxame não tem coerência, não se exprime por meio da pessoa que estava a sua frente, por isso batia a pata no chão no
de uma única voz, e sim por ruídos. O homem digital estranha os mesmo número de vezes que essas mudanças aconteciam.

123
Ao mesmo tempo em que o homem digital se parece com o defasagem do sinal. Os olhares via uma tela são transparentes, sem
cavalo Hans, pela capacidade de imitação e por parecer inteligente, vida e tão opacos quanto o sentimento da distância.
ele não se assemelha em nada ao cavalo quando pensamos na O mundo digital também produz os modelos por meio das
comunicação interpretativa. A comunicação corpórea e tátil não faze imagens. Uma vez que as imagens parecem mais vivas, e melhores
parte da comunicação dos digitais, pois a maioria dos do que na realidade, os digitais se inspiram nas imagens para tentar
comunicadores não possui nem corpo nem rosto. Os telefones converter a realidade. O consumo imagético é onipresente e faz
celulares, assim como os programas de texto de computador, pensar que a vida virtual é mais bela do que a vida fora do mundo
corrigem automaticamente os erros de escrita, toda forma de erro, digital, pois é sedutora e otimizada.
toda negatividade, o que exclui parte da capacidade crítica dos A imagem no digital se torna modelo para o real e de
digitais. alguma forma transforma a realidade em refém da imagem virtual.
Como descreverão o mundo os poetas que não puderem Elas são consumíveis e domesticadas e assim perdem uma essência
cruzar os olhares com as pessoas, observar a expressão corporal ou sobre as suas verdades. A busca incessante de fotografias quando
sentir os cheiros? Talvez outras formas de acessar os sentidos turistas vão a algum lugar ou quando os digitais vão a algum evento
possam dar conta de exprimir um pouco mais as percepções é a busca por tornar o real nessa imagem idealizada e consumida no
comunicacionais, mas ainda não existem. virtual e blindar a realidade não tão magnífica.
Até mesmo as chamadas de vídeo via telefone parecem Produzimos uma enorme quantidade de imagens no meio
produzir uma proximidade, mas ela é falsa e ilusória, pois a digital e nos afastamos cada vez mais do real, criando uma distância
distância não deixa de existir, e ainda não é possível o olho no olho, ainda maior que as mídias analógicas. Byung-Chul vê nessa
pois as direções da câmera e da tela não condizem, além da produção maciça de imagens uma reação de defesa e de fuga, um

124
delírio da otimização. Se a realidade é imperfeita, o refúgio se busca homo faber. Ele joga com a vida muito mais do que trabalha e muito
na tentativa de transformá-la perfeita por meio das imagens digitais. mais do que constrói.
O casamento entre a máquina capital e a máquina digital, Quando a datilografia veio substituir a escrita à mão, já
ao mesmo tempo em que nos promete liberdade e encurtamento das houve um afastamento entre a escrita e o ser, pois a letra à mão
distâncias, também aniquila nossa liberdade de ação. Essa ação é a possui alma, possui identidade, como a força que é feita da caneta
que Hannah Arendt, em A condição humana (2001), chama de força sobre o papel, o formato das letras, a forma como ocupa as páginas.
de criação, de nascimento, dar início a algo baseado na confiança e O digital afasta e uniformiza ainda mais a escrita e se afasta ainda
na esperança, logo, um sentido pleno de ação. mais do ser.
Com o digital, Byung-Chul diz que a ação está subordinada O protagonismo dos sujeitos na vida digital é substituído
aos processos automáticos, por isso um novo começo se torna quase por um projeto, pois a forma de vida depende dos meios, e o meio
impossível, restando a dúvida se continuamos a ser sujeitos de digital é a forma como os sujeitos se transformaram em um projeto
nossas próprias decisões. No mundo digital, eterniza-se a de otimização e delineamento:
mensagem, a imagem e as pessoas que já partiram, então o tempo
digital se aproxima do atemporal: as pessoas entram nos perfis de [...] em termos gerais, podemos dizer que o modo de
ser ou forma de vida de uma época assume na sua fase
quem já morreu e deixam recados de saudades, assim como no dia crítica modos de expressão que alcançam pela primeira
das crianças as pessoas postam fotografias de sua infância. vez o seu pleno desenvolvimento através de um novo
meio (BYUNG-CHUL, 2013).
O homem digital “tecla” em vez de agir e atrofia as mãos
pelos teclados e pelos telefones celulares. O homem do amanhã Se as categorias ameaçadas no mundo digital, como
talvez se aproxime muito mais de um homo ludens do que de um espírito, ação, pensamentos e verdades, se encontram quase
ausentes, e estas se encontravam muito mais presentes na ordem da

125
vida real, substituímos no digital por categorias como cálculos, repulsivas, se tornam algo comum e estão circunscritas ao âmbito da
individualismo, modismos, indignação e passividade. As verdades diversão, do homo ludens.
existem tanto no universo digital quanto no mundo fora do digital, Nesse universo lúdico, tudo é consumível, e a totalização
mas enquanto no digital elas são únicas e verdades no universo fora do consumo, apesar de gerar grande quantidade de troca de
do digital, a verdade implica também a falsidade, é uma ideia informações em velocidades impressionantes, também resume todas
complexa. O mundo digital é muito mais dicotômico, entre direita e as nossas formas de selecionar as informações baseadas no gosto.
esquerda, falso e verdadeiro, bem e mal. Perdemos nossa capacidade imunitária para selecionarmos
Até mesmo o amor, que filósofos, poetas, religiosos e informações na era digital, pois não as filtramos e geramos, como
cientistas tentam em todo momento explicar, no mundo digital se consequência, inúmeras perturbações psíquicas, mas a principal
tornou simplesmente a oposição ao ódio. Em tempos de tentativas de delas é a fadiga da informação. Os portadores dessa doença psíquica
complexificar o mundo, o que o conhecimento construído no digital se queixam de crescente incapacidade analítica, falta de atenção,
faz é simplificar da forma mais determinista e rasa possível. ansiedade e incapacidade de assumir responsabilidades.
Os perfis nas redes sociais não são complexos, pois são A maior quantidade de informações não conduz melhores
desprovidos da tristeza, da dor e da negatividade. Há uma decisões, e consequentemente a capacidade de julgamento fica
expurgação total de tudo aquilo que se apresenta como essencial na debilitada. Menos é mais: esse ditado evidencia que a negatividade,
constituição do ser humano, construindo uma ideia de positividade ausente no meio digital, é de extrema importância para a
como única e contínua. aprendizagem e para nos permitir esclarecer melhor o mundo. O
A forma como a informação é transmitida na rede também excesso de luz faz com que o que deveria ser claro se torne
é exacerbada, não se causa mais nenhum tipo choque, pois até transparente. A fadiga da informação nos conduz à depressão, e uma
mesmo as imagens que antes causavam estranhamento, ou eram de suas características é uma afecção narcisista, pois é algo contínuo

126
do indivíduo consigo mesmo. Como as redes sociais são meios de transparência anda de mãos dadas com a vigilância, e a confiança
exposição imagética narcísica, elas aceleram esse processo. anda de mãos dadas com o controle.
Sobre esse meio de exposição imagético, lembremos que a A lógica da eficácia, que registra todos os passos e rastros
imagem, ou a fotografia, é uma representação, ou emanação do na sociedade digital, permite que sejamos investigados a qualquer
referente. Toda fotografia tem como destino permanecer ligada ao momento, por isso há uma protocolização geral da vida e a
referente, por isso, apesar do olhar fotográfico, a ideia é que a confiança não tem sentido, somente o controle. Exemplo é o Big
fotografia não pertence ao lugar da ficção e da manipulação, mas se Data20, que substitui até pesquisas de mercado, que antes eram feitas
aproxima mais do lugar da verdade. de forma etnográfica, com a coleta de entrevistas e depoimentos.
O mundo digital nos faz repensar essa questão, pois a Os digitais, ou ocupantes do panóptico digital, apesar da
fotografia não se aproxima mais do lugar da verdade, de tão extrema vigilância, não se sentem prisioneiros e vivem uma falsa
manipulada e idealizada que ela é. A fotografia digital nas redes ilusão de liberdade, por isso expõem sua vida de forma voluntária,
sociais representa a hiper-realidade, ela é mais real do que a criando a ideia de autoexploração. A autoexposição e a
realidade e vai se desligando cada vez mais do referente e se autoexploração acontecem de forma concomitante, e a espionagem
aproximando cada vez mais da autorreferência, como as selfies. já faz parte do cotidiano das pessoas: desde questões de ordem de
Por todos os motivos sinalizados no panóptico digital, a segurança de Estado até administradores que querem observar o
confiança também não é possível no mundo digital, nem é mais comportamento de seus funcionários, passando pelas relações
considerada necessária. Ela não existe, pois é supervalorizada a amorosas, as pessoas se espionam e não se preocupam com isso.
possibilidade de adquirir informação fácil e rápida no lugar da
segurança que uma confiança construída permitisse. Nesse sentido, a 20Grandes bases de dados que coletam e registram todos os movimentos dos
mídia digital é responsável pela crise de confiança que vivemos. A usuários do mundo digital e assim conseguem quantificar e qualificar
preferências e comportamento no mundo digital.

127
Real Ilusão

Aaaaah, que pena


Tá na hora, de ir embora
Não queria ir, mas a nossa história
É tão linda
Fico triste em pensar que tudo pode terminar
Minha vida
Tem dois mundos:
O de fora, é chamado de realidade
E o que está no peito, bem guardado
E se chama... Ilusão!

Emília, para o tempo, porque não dá!


Um pouco do estar, e mensurar, o mundo natural e o mundo da magia
Seria até melhor, se a vida fosse assim
Pirlimpimpim
E o que é real virava fantasia

Já que a vida
Tem dois mundos
Realidade e ilusão
Todo mundo
Bem podia
Ter os dois no coração

Gente, que vontade enorme de me dividir!

Música de Aretha – Álbum Pirlimpimpim, 1982.


Trilha sonora do Sítio do Pica-pau Amarelo
Imagem retirada do clipe musical Are you lost in the world like me? Artista:
Moby. Animação de Steve Cutts. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=VASywEuqFd8>. Acesso em
21/12/2017.

128
Diálogo com os
- Quais valores você vê no universo educacional do
mundo contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de

educadores
hoje? O que o motivava e o que o motiva a ser professor?
O tema central do trabalho e a pergunta que suscitou o
início dessas investigações giravam em torno de diagnosticar a
Com o intuito de criar um diálogo entre a pesquisa crise da educação contemporânea, mas principalmente
bibliográfica e uma pesquisa empírica que representasse dados questionando as motivações dos envolvidos no sistema educacional
tangíveis sobre a realidade, coletamos depoimentos em forma de e quais as avaliações que docentes fariam sobre o que significa
entrevistas de professores – majoritariamente do ensino superior – estudar no ensino institucionalizado ainda hoje.
para análise. Pudemos observar o quanto a educação se transformou
desde os primeiros projetos educacionais da antiga civilização grega,
Percurso metodológico pensando principalmente os projetos civilizatórios, e quais são as
reais preocupações em torno desses pensamentos hoje em dia.
Criamos um roteiro de perguntas que tentam resgatar todo o
conteúdo e nos permitir a reflexão e percepção docente de tudo que - Em que medida você considera a educação para com
foi estudado. Esse roteiro de perguntas está pautado principalmente os sentimentos, as artes, a metafísica e a poesia importante para
na crise da educação do mundo contemporâneo. Cada questão é o desenvolvimento dos discentes? Você se vê responsável neste
fundamentada nas investigações iniciais e nos nossos objetivos processo?
principais, conforme segue: A fragmentação dos saberes excluiu da esfera da
educação a capacidade dialógica da transdisciplinaridade e relegou

129
quase que totalmente discussões sobre os sentimentos, as artes, a percebe que isso pode gerar/gera uma falta de sentido na
metafísica e a poesia. formação?
Em um mundo tecnicista, podemos ter a impressão de que Evidenciamos, por meio das respostas sobre essa pergunta,
os professores podem ou não possuir essa percepção – de fundamentalmente a fragmentação dos saberes e o universo da
responsabilidade perante a criação de um cidadão – e que possam complexidade.
também possuir ou não uma sensibilidade sobre a importância desse A forma como as instituições tratam o assunto e dão
processo. diretrizes para criar uma formação de sentido é fundamental para
Ao pensarmos o significado do areté – formação de um que possamos perceber qual é a mentalidade educacional que existe
cidadão ético, artista, político e guerreiro na Grécia, comparada à no mundo contemporâneo, promovida pelos críticos que abordamos
formação que temos hoje – ou até mesmo pensar a educação como nesta pesquisa.
forma de conservar a bondade, é possível criar um paralelo das
propostas de educação do início do mundo moderno e do mundo - O uso constante dos celulares e computadores
contemporâneo. portáteis facilita ou dificulta a aprendizagem? Como você faz
É possível também analisar sob a óptica das neurociências para perceber isso?
enquanto constituição do cérebro ao entendermos o quanto o O universo digital, talvez a questão mais recente e com um
carinho é fundamental no processo de aprendizagem. menor estado da arte das temáticas de toda esta pesquisa, aqui é
evidenciado pela percepção dos docentes. Apesar de somente uma
- Você nota que as disciplinas dos cursos que você pergunta explícita sobre o tema, notamos que nas respostas de outras
leciona/lecionou não dialogam entre elas? Em que medida você perguntas o tema também é evidenciado.

130
A forma como utilizamos os gadgets dentro e fora das a fragmentação dos saberes e o individualismo são observações
instituições de ensino modifica a forma como construímos o importantes para também compreendermos a percepção da educação
conhecimento. enquanto um produto de consumo da sociedade em que vivemos.

- No seu ponto de vista, os estudantes, de forma geral, - Como você enxerga o excesso de burocracias,
são motivados ou desmotivados para o processo de rankings, notas e classificações no processo de
ensino/aprendizagem? E os docentes? Por quê? ensino/aprendizagem?
Mais incisiva do que a primeira pergunta, porém Na introdução da tese, abordamos de forma rápida a
fundamental para um diagnóstico das motivações e análise da questão da quantofrenia e das burocracias de uma sociedade que
educação do mundo contemporâneo, essa questão nos leva a uma enxerga na meritocracia e no individualismo um projeto de
reflexão que foi induzida pelas respostas anteriores, articulando até educação que, além de fragmentar, nos torna cada vez mais
respostas que envolvem o momento atual de uma política neoliberal individualistas e desvirtua as propostas educacionais de eras
no contexto educacional. anteriores.

- O que é mais importante no seu papel como professor: Você conhece experiências educacionais que saibam
formar um cidadão para o mundo ou formar um profissional de lidar com alguns dos possíveis problemas evidenciados nas
sucesso? Qual é a contribuição da faculdade na melhoria da perguntas anteriores? Poderia relatá-las?
sociedade? De forma geral, tentamos captar com as respostas dadas a
A formação tecnicista e a educação como um projeto de essa questão se conseguimos fazer elucubrações que caminham
humanidade perpassam as respostas aqui analisadas. Mais uma vez, para compreender melhor o universo em que vivemos e se

131
caminhamos ou não para a complexidade, e em caso positivo, quão No terceiro e último bloco – perdendo a cabeça –
distantes estamos desse projeto. analisaremos as percepções docentes sobre a utilização das redes
sociais, das tecnologias comunicacionais, principalmente
Os principais termos de análise aparecem em negrito nas representadas pelos aparelhos celulares, e de que forma os docentes
explicações das perguntas, mas não estão restritos às perguntas, acreditam que esse processo corrobora ou contrapõe os processos de
podendo aparecer em outras respostas. Dividimos a análise das construção do conhecimento e seus papéis nas instituições de ensino.
respostas em três grandes blocos para a compreensão, baseadas no Ainda no último bloco, coletamos depoimentos para saber
livro Polegarzinha (2012), de Michel Serres. se os professores conhecem ou não experiências que ajudam a
O primeiro bloco – enchendo a cabeça – objetiva entender combater os problemas evidenciados e fazer com que o discente
a formação individualista, tecnicista e neoliberal voltada à reencontre a “cabeça perdida”.
transformação do ensino em um objeto de consumo. Além disso, Foram entrevistados 14 professores: 2 do ensino
também trata da forma como construímos o conhecimento e lidamos médio/fundamental e 12 do ensino superior de faculdades
com a aprendizagem de forma acrítica, decorrente da fragmentação particulares, que possuem como características o alto valor da
dos saberes. mensalidade e a preparação direta para o mercado de trabalho. O
No segundo bloco – fazendo a cabeça – tentaremos notar tempo de docência variou de 6 a 30 anos, e as disciplinas formaram
como os professores acreditam em uma formação complexa e quais um leque contemplando Filosofia, Comunicação, Psicologia,
esforços são feitos para que os estudantes construam conhecimentos Cálculo, Marketing, Economia, Sociologia, Geografia, Teologia e
pertinentes com uma preocupação com os rumos da nossa sociedade, Neurociências.
espécie e do planeta.

132
Enchendo a cabeça e valorização do trabalho docente em uma
sociedade que prioriza profissões consideradas
mais nobres (Paulo Crispim).
Professores, de forma geral, dizem-se motivados pela
educação e pelo processo de ensino/aprendizagem, mas quase Para alguns, existe uma ideia de uma desmotivação
sempre observam dificuldades por parte dos discentes em se motivar generalizada, principalmente no ensino superior, muitas vezes
diante dos presentes modelos educacionais. atrelada ao acesso instantâneo da informação. Mesmo assim,
Entendemos que a desmotivação não é uma constante, e é professores notam esse processo e tentam de alguma forma melhorá-
uma questão em que se deve levar em consideração fatores muito lo.
complexos, contextos bem amplos, mas utilizamos esse recurso
porque a desmotivação perceptível foi um dos influenciadores desta Acredito que haja uma desmotivação
generalizada. Mesmo não sendo explicitada ou
tese. verbalizada, creio que ela advém da impotência
diante do mundo, da corrente de informações que
permanentemente nos chega. Quando tudo é
A desmotivação pode estar em ambas as partes e simultâneo e instantâneo, o saber próprio entra
até mesmo ser algo fluido, que vem e vai. Não em um dilema funcional: “De que adianta saber
creio existir uma resposta afirmativa para essa isto agora se ‘tudo’ terá mudado amanhã?”. Isso
questão. Estudantes podem, por exemplo, sentir- atinge todo o social e, consequentemente, a
se motivados pela competição, isso é parte da educação. Estamos vivendo um novo paradigma,
ideologia dominante em nosso tempo, portanto ainda não percebido por alguns, e quando
penso que a motivação é derivada do sentido percebido, ainda não entendido efetivamente
político que o docente atribui a sua profissão e (Diogo Bornhausen).
isso também vale para o estudante. Os docentes,
diante da crescente burocratização e controle
exercido no trabalho docente, além de extensas Até mesmo dentro da sala de aula não existem
jornadas de trabalho, atravessam um momento de generalizações sobre a percepção do que é estar motivado. Depende
desmotivação gerada pelo pouco reconhecimento

133
da formação, das expectativas, do momento em que se encontra a recentes. Esse crescimento exponencial no
número de matriculados em cursos de nível
economia e dos problemas fragmentados fora do ambiente escolar. superior está ligado, em boa parte, à chamada
As inquietações do mundo moderno ultrapassam a ideia de uma cultura do bacharelado, ou seja, a noção de que,
para se colocar no mercado do trabalho, deva-se
simples motivação ou desmotivação. ter uma formação superior. Em um exemplo, é
comum ver pessoas exercendo funções típicas de
nível médio (vendedores, eletricistas, mecânicos,
Infelizmente, sempre teremos uma parcela dos etc.) ostentando o diploma de bacharel. Essa
estudantes para quem não adianta ser a melhor exigência oriunda do mercado de trabalho, mas
disciplina ou o melhor professor, porque não irá também explicada por fatores como
ser o incentivo essencial para uma mudança. É reconhecimento social e até mesmo por políticas
preciso de automotivação, e sem isso os fatores públicas educacionais (preocupadas, muitas
externos não garantem um movimento para a vezes, com questões meramente quantitativas),
aprendizagem efetiva (Vanessa Marchesin). tem conduzido, aos bancos escolares, pessoas
com pouca ou quase nenhuma vocação para a
academia. Muitas dessas pessoas, cuja
Fato é que sempre existiram estudantes motivados e personalidade remete mais ao como se faz do
que ao por que se faz, estariam certamente mais
desmotivados, mas a motivação é cada vez mais discutida no estimuladas se frequentassem cursos livres ou
momento, principalmente porque os estudantes têm sido tratados técnicos, específicos de sua área de atuação
(Orlando Fernandes).
como clientes e pelo aumento do número de estudantes do ensino
superior, o que vem cada vez menos garantindo um futuro esperado
A velocidade de mudanças existentes no mundo,
para quem cursou a faculdade.
principalmente na forma como nos relacionamos, causa inquietações
e questionamentos nos moldes tradicionais de ensino, onde nos falta
Creio que a atual percepção de uma quantidade
maior de estudantes desmotivados em sala de a reflexão, a contemplação para pensarmos até mesmo em processos
aula tem forte correlação com o maior número de
estudantes frequentando universidades em anos

134
que suavizem e ofereçam alternativas ao ritmo de vida que a termine logo para que possam viver sua vida
(Pedro Calabrez).
sociedade propõe.

Os docentes que responderam às perguntas se mostram


[…] penso que, no geral, o nível de motivação
preocupados com a orientação mercadológica como principal valor
dos docentes está aquém do que poderia ser se
houvesse espaço e valorização para pesquisa, sobre o universo educacional contemporâneo. Outra questão
experimentação metodológica, inovação e
criatividade. Não se valorizam encontros preocupante é que observam um controle da docência mensurado
sistemáticos e coletivos de reflexão, questão por metas e resultados. Há uma competição entre as escolas e entre
importantíssima neste universo educacional
(Leslie Marko). as faculdades, como um mercado, em que os estudantes são tratados
primeiro como consumidores e depois como alunos.
Todos gostam de aprender, e isso em si mesmo já deveria
ser um grande fator motivacional, mas, muitas vezes, a falta de [...] a educação é vista como um direito e um
sentido na educação, que se apresenta quase que exclusivamente meio de acesso ao mercado de trabalho, contudo
está inserida no modelo mercadológico, que
como uma burocracia para adentrar no mercado de trabalho, tem prioriza a burocratização, a eficiência gestora em
detrimento da transmissão de valores com
contribuído para que o ensino não apresente nada, além das
impacto e ação social transformadora (Paulo
informações que já são acessíveis a todos. Crispim).

Existe a percepção de uma contradição, uma vez que o


[…] o ser humano gosta de aprender. Mas
quando o processo de aprendizagem não é acesso à informação poderia despertar uma consciência crítica, o que
compreendido em seu sentido amplo, muitas
vezes perde-se a motivação para aprender. Aí não ocorre; vivemos uma superficialidade na produção do
vemos a cena tão comum em universidades e conhecimento. Alguns professores têm passado por dificuldades
faculdades: jovens que querem apenas que aquilo

135
pelos modelos tradicionais de “transmissão do conhecimento” projetos, entre outros, sem que isso passe por
uma perspectiva crítica (Pedro Ferreira).
dentro das salas de aula, pois percebem que os alunos deixam de
respeitar o conhecimento de alguns professores porque acreditam Apesar dos esforços para que os discentes desenvolvam
que podem ter acesso ao conhecimento imediatamente em um uma responsabilidade ética-social-ambiental, graças aos
acesso virtual. conhecimentos e habilidades desenvolvidos pelo meio digital, os
estudantes têm cada vez mais dificuldades nas resoluções de
O sentido da relação professor-aluno se
problemas, enxergam em suas formações somente um ritual para
modificou, pois o clássico transmissor de um
saber acumulado possuiria pouca utilidade em obtenção de diplomas e não entendem a ideia de que por meio da
um ambiente de indiscriminado acesso
instantâneo (Diogo Bornhausen). educação podem se tornar cidadãos melhores.

Até mesmo a educação básica já demonstra muitos traços Infelizmente, a educação atual possui muitas
falhas [...] Conhecimentos e habilidades estão
de ensino técnico profissionalizante ou simplesmente a preparação
garantidos ainda mais com o uso da tecnologia e
para o vestibular. Os ambientes laborais das instituições de ensino internet, porém resolução de problemas,
resiliência e atitudes são essenciais para a
básico se aproximam muito mais da ideia de tékhne do que da ideia formação do caráter do estudante. Podemos até
de areté. O que os docentes percebem é que a educação vem se pensar que a educação virou apenas um
comércio, sem a atenção para um bem muito
afastando cada vez mais de uma perspectiva crítica. maior, que é a formação de cidadãos (Vanessa
Marchesin).

Assim, as novas experiências na educação têm Alguns docentes observam que esse fenômeno de crise não
reproduzido valores do “ambiente laboral”, como
o ensino por competências, educação por
está somente circunscrito ao universo educacional, mas à sociedade
como um todo. As características dessa crise estão no consumismo

136
exacerbado – entende-se também no materialismo, no imediatismo nos cursos superiores, e as mentes pensantes estão se distanciando
decorrente do comportamento social e no individualismo. do locus da sapientiae.
Os valores do universo educacional ou de A busca por autoconhecimento, com professores, mas fora
qualquer outro universo são indissociáveis aos
valores que os seres humanos trazem consigo em das instituições de ensino, pode ser evidenciada na mídia de forma
determinado tempo histórico. O universo geral:
educacional de hoje é contaminado pelos valores
de sua época: o materialismo, o imediatismo e o
individualismo (Orlando Fernandes).
Veja, então, um efeito evidente desse
movimento: nunca foi tão grande a demanda por
É nítida a percepção sobre a necessidade de mudanças para autoconhecimento. Afinal, no Brasil, quase nada
em nossa educação formal (fundamental, média e
modelos educacionais menos rígidos e mais democráticos do que os superior) nos oferece insumos para refletirmos
sobre nós mesmos. Professores que, através das
modelos tradicionais. O imediatismo gerado pelo digital pressupõe
redes sociais, oferecem tais insumos, atingem o
personalidades que querem gastar cada vez menos tempo com a status de celebridades nos dias atuais. Veja
Cortella, Karnal, Clóvis de Barros. Entre os
educação. Os cursos de curta duração fazem cada vez mais sucesso, livros mais vendidos no Brasil, temos cada vez
e a velocidade com que o mundo muda faz com que os conteúdos mais filosofia, psicologia e afins. Os cursos de
psicologia despontam, hoje, entre os mais
curriculares tecnicistas estejam desatualizados após alguns anos concorridos do Brasil em quase todas as
universidades. As pessoas estão em busca de si
desde o ingresso na faculdade. mesmas, e infelizmente nosso sistema
Muitas vezes, aquilo que se ensina em um curso superior educacional coíbe essa busca (Pedro Calabrez).

está muito distante da vida prática dos estudantes, tanto na questão A sociedade está colocando a educação em segundo plano.
mercadológica quanto na forma como vivemos em sociedade. O Não os processos educacionais, como a obtenção de títulos e
valor do conhecimento está em defasagem com aquilo que se propõe diplomas, mas a educação enquanto valor de transformação do ser

137
humano. A sociedade busca, acima de tudo, o entretenimento – modelos de aprendizagem. Há esperança nas palavras de alguns
homo ludens – e o consumo. O professor, para ser bem avaliado, docentes que observam a crise como um processo de transição para
assume um papel de animador de festas, e o conhecimento profundo a evolução da educação.
é dissipado e esquecido, pois enfrenta a concorrência das
informações superficiais da mídia, sem nenhum critério curador. Com a tecnologia e as mudanças de valores
ocasionados por ela, o universo educacional deve
O modelo neoliberal vende a ideia pronta de educação para acompanhar os novos valores sem fronteiras,
o sucesso, em que estudantes são consumidores e professores meros geográficas e demográficas. [...] Modelos de aula
em que o professor é o ator principal estão
funcionários das instituições de ensino. acabando. Metodologias ativas serão cada vez
mais aplicadas (Vera Pacheco).

A educação de hoje, ao se tornar um dos mais


promissores negócios para os investidores
Mesmo os professores que buscam traçar um diagnóstico
contemporâneos, perde seu papel social de realista da situação têm consciência das mudanças das perspectivas
preparar o sujeito para o mundo da vida,
tornando-se mera ferramenta para atingir o que o sobre os valores no universo educacional contemporâneo:
mundo neoliberal denominou “sucesso”. À
revelia da projeção dos pais, os jovens de hoje
estão à mercê de um sistema de ensino que trata Educação para a produtividade mercadológica,
os alunos como clientes e os professores como geração e manutenção de empregos/atividades
serviçais (João Matta). econômicas. A noção de uma paideia geralmente
já não consta nos objetivos das organizações
educacionais (Alberto Montoya).
Apesar disso, é notório o discurso dos valores sobre a
pluralidade de ideias e de que as metodologias ativas podem nos Observamos que encher a cabeça e formar cidadãos não
ajudar a enfrentar todos esses desafios. Existe a proposta para que os críticos são os diagnósticos dados por parte dos docentes
professores passem a ser mentores e os estudantes coprodutores dos entrevistados. Normalmente, as explicações estão atreladas tanto ao

138
modelo mercadológico do ensino quanto aos valores da sociedade à concorrem com as frustrações de um modelo educacional voltado
qual o sistema educacional está atrelado. para o mercado e que não garante que os jovens se tornem cidadãos
Percebemos que o fator tecnologia, ou as mídias digitais, melhores ou com conhecimento crítico mais aprofundado.
também aparece como empecilho para uma formação crítica e a
construção de uma cabeça bem-feita. As mudanças nos
comportamentos dos professores advêm de projetos pedagógicos
que convidam os estudantes a protagonizar cada vez mais o espaço
da sala de aula, assemelhando-se em muito ao construtivismo.
Se, por um lado, esse processo é positivo, por outro,
lembremo-nos dos alertas de Dufour e de Hannah Arendt, que nos
colocam a pensar sobre a falta de referência de autoridade a que os
chamados processos de metodologias ativas possam nos conduzir,
ainda mais para uma sociedade que, como nos conta Byung-Chul
Han, não entende bem a noção de respeito, pois não distancia o olhar
e vive ancorada nas indignações.
Entendemos também que, para a grande maioria dos
docentes que responderam às pesquisas, a maior motivação para o
processo de ensino/aprendizagem seja de fundo emocional. A paixão
e o ambiente de construção do conhecimento, que estão atrelados ao
maior exercício do cérebro, como nos contam as neurociências,

139
Fazendo a cabeça positivamente docentes e discentes da mesma
dimensão (Paulo Crispim).

Existe um esforço de grande parte dos professores para que Os professores que estão familiarizados com uma educação
questões como os sentimentos, as artes, a metafísica, a religião e a complexa se preocupam em ir além da transmissão da informação ou
poesia se tornem um fator importante no processo de do conteúdo e se fazem responsáveis por esse processo educacional,
ensino/aprendizagem, porém nos questionários as respostas que não está simplesmente limitado ao acúmulo de conteúdo, ainda
enfatizaram, com maior frequência, a questão sentimental e a mais refletindo sobre uma educação que hoje em dia compete com a
linguagem artística. absorção de informações que estão acessíveis pelos gadgets.
Percebemos que as disciplinas que tratam de humanidades
clássicas, como Sociologia, Filosofia ou até mesmo as disciplinas […] vejo que, para além da matéria específica, é
relacionadas com a área da Comunicação, têm maior facilidade em primordial à educação proporcionar um modo de
ver a realidade na qual o aluno se insere.
fazer a ponte com outras áreas que não estejam estritamente ligadas Consequentemente, todos os âmbitos citados na
questão fazem parte direta neste processo. Desse
com a razão e a ciência.
modo, sinto-me responsável por este caminho,
complexo de ser criado, pois retira todos os
participantes de seus lugares-comuns (Diogo
O educador que não considera o aspecto Bornhausen).
sentimental e emocional do sujeito e do contexto
em que está inserido é um transmissor
burocrático da informação, não o considero Percebemos que existe uma preocupação maior na
educador na acepção do termo. A linguagem
artística permite que a criação e a tradução das formação crítica do “saber fazer”, e não apenas do “entender”, nas
relações e sentimentos humanos sejam respostas dos professores que lidam com a educação dos mais
potencializadas e afloradas no espaço da escola,
gerando aprendizagens significativas que afetam novos, e assim notamos certa influência do legado de Rousseau – e

140
hoje em dia reafirmado pelas neurociências –, que também traz um Estas temáticas – as artes, a metafísica, a religião
e as poesias – são essenciais como base da
respeito às fases de desenvolvimento dos jovens. O termo “educação formação de caráter e ainda mais proporcionam o
integral” aparece na fala desses professores e expressa muito bem o desenvolvimento de atitudes. Hoje, com a
tecnologia/internet, foi deixado de lado o
que chamamos de cabeça bem-feita. humano e a resolução de problemas. Com estas
temáticas, você propicia o desenvolvimento
deste lado mais humano, que hoje considero
Considero de extrema importância que a essencial. Sem isso, afastamo-nos da habilidade
educação contemple tais aspectos. A educação emocional mais importante, que é a empatia.
integral (que considera o aluno em sua Sentir o outro pressupõe o autoconhecimento,
complexidade) precisa caminhar neste sentido, portanto ou nos aproximamos destas temáticas
uma vez que desenvolvem competências ou cada vez mais veremos a intolerância e o
socioemocionais nos discentes, favorecendo o discurso do ódio como a força motriz da
pensamento crítico, a resolução de problemas, a humanidade (Vanessa Marchesin).
criatividade e a abertura para o novo (Pedro
Ferreira).
A afetividade é notada como essencial para a compreensão
do universo circundante, e é vista como parte integral, e não
Existe a percepção de que as habilidades e as atitudes no
segregada do universo da razão. Os docentes se mostram
processo de ensino/aprendizagem são essenciais para a resolução
preocupados com esse processo, assim como pudemos evidenciar
dos problemas, principalmente por vivermos na era digital, e que,
nas neurociências e nas discussões sobre as formas de
assim como nos conta Byung-Chul Han, os relacionamentos por
aprendizagem.
meio da internet atrapalham esse desenvolvimento, e elas podem e
devem ser resgatadas pela forma como os professores lidam com as
Considero essencial a presença da afetividade, da
emoções e as ensinam. Sem isso, não é possível o subjetividade, assim como a manifestação e o
autoconhecimento. estudo das artes como tradução do mundo em
que habitamos. Estes valores permitem a

141
interação entre discentes e com os docentes de que, à primeira vista, parecem completamente
forma a expressarem, de forma integrada ao distintos (Pedro Calabrez).
plano racional, o que percebem, pensam e
sentem na sociedade (Leslie Marko).
Existe claramente a percepção de que a educação
Os docentes que estudam ou são entusiastas das meramente técnica e mercadológica não propicia nenhuma
neurociências afirmam que, para a educação, as emoções são de capacidade de reflexão e amadurecimento, conforme os docentes
extrema importância, assim como o entendimento das artes esperam, pois nela não há espaço para a coletividade, a preocupação
apresenta caminhos para o entendimento da natureza humana, e com a humanidade e principalmente o autoconhecimento. Notamos
principalmente para a transdisciplinaridade, que é a base para o que os discentes entram não só em um processo educacional sem
pensamento complexo. sentido, mas em uma vida sem sentido.

Como neurocientista, posso ser taxativo: não há Nosso percurso histórico nos mostra,
educação sem emoção. Os processos emocionais frequentemente, que a educação meramente
estão na base do aprendizado longevo e efetivo. técnica e instrumental para preparar apenas
Mesmo nas aulas mais formais e técnicas, sem objetos para o mundo do trabalho não traz ao
emoção a absorção do conteúdo será pequena ou mundo as reflexões, as transformações e o
inexistente. Para além disso, do ponto de vista do amadurecimento que tanto desejamos. Nosso
cérebro, um pensamento diverso e plural é, desejo por uma vida que preserve nossa
inclusive, saudável. O ensino de artes, de humanidade passa pelo profundo entendimento
maneira geral, é engrandecedor não só pela de nós mesmos, de nossas ambições, de nossos
imensamente importante noção de que as sonhos, de nossas fantasias. Uma vida sem
expressões artísticas são uma janela para a autoconhecimento, sem as artes, sem as buscas
natureza humana, mas também para que sejamos metafísicas e sem poesia torna-se robotizada e
capazes de um pensamento transdisciplinar, sem sentido. E é a educação que deve apresentar
capaz de criar conexões criativas entre campos ao sujeito contemporâneo estas possibilidades de
dar sentido à vida (João Matta).

142
formação de seus estudantes para o mundo, e não somente para a
Mesmo que os professores se esforcem para incluir as artes, profissão.
os sentimentos e a poesia no contexto educacional, notamos que
alguns têm a clara noção de que os valores da paideia não constam Para mim, estas são dimensões mais importantes
de serem desenvolvidas nos discentes do que os
mais nos universos educacionais modernos por escolha das conhecimentos aplicáveis, meramente
instituições de ensino, que são organizações que não encorajam esse operacionais e transitórios (Arnaldo Mendes).

processo. Mesmo assim, as diferentes linguagens humanas não são


Mesmo assim, alguns docentes têm maior dificuldade de ter
percebidas como linguagens puras. Arte, literatura, religião e ciência
acesso a uma forma de educação complexa, pois suas disciplinas,
estão em todo momento se comunicando de alguma forma.
por vezes, são extremamente técnicas. Mesmo assim, sabendo da sua
importância, tentam de alguma forma abordar os assuntos.
Penso, diferentemente da modernidade, que não
existem conteúdos puros. É papel do professor
mediar os conteúdos a partir das diversas formas Tenho dificuldades nesse sentido em função das
de recepção da linguagem humana, como arte, disciplinas que venho lecionando nos últimos
literatura, religião e outros símbolos da cultura tempos. Minha saída sempre foi tentar me
(Andrey Mendonça). utilizar “da educação para com os sentimentos”
durante o processo de aprendizagem estabelecido
Os esforços para uma educação complexa, que “faz bem à com meus alunos (Ricardo Poli).

cabeça”, estão delegados aos professores e não partem da instituição


O diálogo entre as disciplinas também aparece como
de ensino. Percebemos que, de forma geral, os professores,
preocupação para os professores. Embora a maioria acredite que as
principalmente os mais experientes, tendem a optar por tentar uma
disciplinas possuem conexão, principalmente na estrutura do núcleo
curricular dos cursos, muitas vezes observamos que não existe tanto

143
esforço para fazer com que os professores dialoguem sobre os (falando especificamente sobre o papel do
professor). Encontrei e encontro este não diálogo
conteúdos e as formas das aulas, a não ser quando o diálogo seja e vejo o quanto ele é prejudicial, onde, por
uma medida institucional. exemplo, o aluno não faz a ponte entre
sociologia e comunicação (no caso da minha
área) (Diogo Bornhausen).
O diálogo depende de uma predisposição e da
concepção político-pedagógica do lugar no qual Existem algumas medidas, como trabalhos
sua prática esteja inserida. Creio que os
componentes de ciências humanas de uma forma interdisciplinares, que envolvem não todas, mas algumas disciplinas
geral buscam o diálogo de forma até mais
em diversas faculdades e também escolas fundamentais e médias,
tranquila que em outras áreas… (Paulo Crispim).
mas, de forma geral, essas medidas são pontuais, mesmo que as
O saber muitas vezes se apresenta de forma desarticulada instituições de ensino incentivem esse processo.
para os estudantes, que dependem muito dos modelos educacionais.
As disciplinas mais específicas das áreas de conhecimento dos Acho importantíssima a troca e o diálogo entre
as disciplinas de um mesmo curso. Na escola em
cursos são mais valorizadas pelos estudantes, enquanto as que trabalho há uma tentativa de incentivar esse
disciplinas que não fazem parte do eixo central de cada curso são diálogo. Há um horário semanal de aula comum
a todos os professores que se chama
tratadas com menor peso e desvalorizadas por estudantes, e muitas “Interdisciplinar”. O objetivo é que o corpo
docente elabore e aplique em conjunto atividades
vezes também pela instituição. interdisciplinares… (Pedro Ferreira).

Vejo isso como um caminho, infelizmente, O esvaziamento de sentido, quando a transdisciplinaridade


comum, pois, diante da desestabilização dos
lugares, dos papéis e das funções, como citei, a
não é incentivada pelas escolas, passa a ser então de total
tendência está justamente em engessar mais os responsabilidade dos professores que acreditam na importância
modelos que não correspondem à realidade

144
desse processo. A falta de conexão entre os conteúdos cria múltiplos outros campos do conhecimento, bem como
também procurei saber quais disciplinas haviam
conteúdos vazios, e o que notamos é que não há um projeto sido ministradas antes da minha, quais aquelas
realmente grande que apresente esforços para uma educação de que estavam sendo ministradas
concomitantemente e quais as que viriam depois
sentido, mesmo em cursos bem específicos. e teriam a minha como suporte. Sempre tive essa
preocupação talvez por ter sentido, como
estudante, essa mesma falta de diálogo entre os
A maioria das disciplinas é estruturada para um diferentes componentes curriculares (Orlando
conteúdo mínimo que é necessário explicar ao Fernandes).
estudante, porém desde que escolhi ser docente
fiz uma promessa, que é fazer a conexão com
outras disciplinas para que o conteúdo não seja Observamos que o ensino é tratado como uma colcha de
vazio. Mas sei que na minha faculdade não tive
um professor que fizesse o diálogo com outras retalhos, em que a maioria das instituições, até o ensino médio, se
disciplinas. Acredito que é por isso que me
preocupo em sempre trazer as outras disciplinas preocupa quase que exclusivamente em formar o estudante para ser
para dialogar com o conteúdo que eu leciono. aprovado em algum vestibular e, quando adentra o curso superior,
Mas tecnicamente as disciplinas de todos os
cursos caminham independentemente. Talvez para uma formação mercadológica e tecnicista.
isso seja uma tarefa do professor em construir
Mesmo assim, os docentes, quando perguntados se era mais
estes laços (Vanessa Marchesin).
importante formar um cidadão para o mundo ou um profissional de
Para que as disciplinas de cada curso dialoguem, é evidente sucesso, deram duas respostas: de um lado, o cidadão para o mundo;
a necessidade dos docentes de cada vez mais ampliarem seus de outro, as duas coisas juntas. Isso demonstra que o sentido de
horizontes de aprendizagem e se aprofundarem em outras áreas de educação, ao menos perante os docentes, não se apresenta de
conhecimento. Este processo nem sempre ocorre. maneira tão fragmentada ou tecnicista.
Para tentar estabelecer esse diálogo, sempre Com certeza, formar para o mundo, que, por sua
busquei, como professor, aprofundar-me em vez, apresenta-se cada vez mais individualista e

145
superficial. Diante disso, o profissional docente predominantemente midiáticos, colocando o
deve ampliar a bagagem cultural do estudante e aluno em cheque diante de suas próprias práticas.
provocá-lo a deslocar-se de uma visão Acredito que ao se perceber ele será capaz de,
maniqueísta e reduzida dos conflitos que se quando for produzir, ser capaz de agir diferente
apresentam. A universidade é fundamental nesse ao que tem de lidar (Diogo Bornhausen).
processo, contudo a crescente mercantilização da
educação, transformada em mercadoria, coloca a
maior parte das instituições fechadas em
redomas que separam a sociedade do A concepção de cidadão para o mundo é de um sujeito
conhecimento prático. Nesse sentido, a autônomo e consciente de suas escolhas e decisões para consigo
universidade vem produzindo um discurso que
não se traduz em ação prática na maioria das mesmo e para com o mundo. O comportamento social que dita os
vezes (Paulo Crispim).
modelos de sucesso é recorrentemente ampliado por discursos

Mesmo em uma sociedade individualista, a percepção de midiáticos, mas nem sempre se relacionam com a realidade do que é

um profissional de sucesso é daquele que poderá melhorar o mundo. ser bem sucedido em algo. Notamos uma noção mais ampla do que

Logo, o cidadão para o mundo e o profissional de sucesso não significa o sucesso além dos projetos individualistas.

necessariamente seriam aqueles a atingir status social ou grande


Penso que o professor deve formar seres
recompensa financeira – pois não necessariamente estaraõ ajudando humanos mais conscientes, com tudo de bom e
a melhorar o mundo. de ruim que há nisso. Sucesso deve ser apenas
uma consequência de nossos atos e não devemos
buscá-lo como um fim em si mesmo (Ana
Creio que ambas as instâncias são Enésia).
concomitantes. Para mim, formar um cidadão
significa formar um bom profissional, que Não há uma dicotomia entre o profissional de sucesso e o
consequentemente terá sucesso. Pessoalmente,
por lecionar no segundo semestre, procuro cidadão para o mundo, e a maioria dos docentes soube interpretar
desconstruir saberes consolidados,
muito bem a pergunta, mas as respostas discursivas demonstraram

146
grande reflexão sobre esse assunto. A pergunta interessava muito
mais demonstrar a consciência dos docentes sobre em que medida a
educação – principalmente tecnicista e superior – poderia pensar a
melhoria da sociedade, e não somente a formação de profissionais
para o mercado de trabalho.

147
Perdendo a cabeça A atenção dos estudantes não é a mesma, pois existem
inúmeras seduções no universo digital, e se torna muito difícil
Dentre as discussões de maiores preocupações dos disputar se os estudantes não estão mais vendo tanto sentido no
professores em intervalos de aulas e em reuniões, notamos a queixa ensino, como muitas vezes acontece.
recorrente da utilização dos aparelhos celulares durante as aulas. Personalidades midiáticas que discutem o cotidiano ajudam
Também é visível uma mudança comportamental dos jovens desde a pautar assuntos de interesse dos estudantes, que faz com que as
que começaram a se relacionar de forma mais intensa com as propostas temáticas das aulas partam muito mais dos discentes do
plataformas digitais. que dos docentes.
Os estudantes não só se dispersam facilmente como
confirmam a veracidade do conteúdo discutido em sala de aula por […] impactos na aprendizagem dos alunos
dependem da intencionalidade do uso proposto
causa do uso dos telefones celulares. As conversas paralelas, que pela escola. Tendo a achar que, se não houver
antes causavam ruídos em sala de aula, hoje acontecem por meio de um trabalho pedagógico permanente com este
uso, elas não facilitam a aprendizagem. O uso de
aplicativos de mensagens instantâneas. celulares imprime um ritmo acelerado e fluido,
muitas vezes incompatível com um ritmo mais
Diversos professores utilizam o acesso ao digital como lento e artesanal necessários na construção de
ferramenta pedagógica. A sociedade nem sempre faz um uso saberes mais acadêmicos. O aparelho celular
acaba sendo usado pelos alunos como portal para
racionalizado do meio digital e o utiliza de forma exacerbada, porém exposição de sua vida e vigilância/controle da
nas tentativas de proibição da utilização dos celulares em sala de vida de outras pessoas. Muitos alunos com
intenso uso de celular, ativos nas redes sociais,
aula é notada uma dependência, pois quase ninguém consegue seguir ainda se mantêm ausentes nas discussões
presenciais realizadas em sala, onde eles
as regras. poderiam se expressar e trocar com seus pares
(Pedro Ferreira).

148
É notório que, além do elemento de distração, os estudantes precisamos dar sentido e direcionar para um
modelo mais saudável (Vanessa Marchesin).
que se destacam no processo de ensino/aprendizagem são aqueles
que fazem uso da escrita convencional, em papel, talvez por uma Do mesmo modo que um automóvel pode ser
utilizado para o transporte rápido e confortável
questão cultural ou por se adequar em um sistema de maior atenção. de pessoas, mas também pode matá-las se
conduzido de forma irresponsável, aparelhos, tais
como celulares e computadores portáteis, podem
Além disso, há maior estimulação cognitiva trazer benefícios e malefícios ao processo de
quando se usa a escrita convencional porque aprendizagem, a depender de sua utilização
nosso conhecimento foi construído através da (Orlando Fernandes).
escrita, e não do teclado de um computador.
Quem sabe se, no futuro, a alfabetização for
realizada 100% no meio digital, aí sim o mindset
O modo de utilização depende muito do estudante, e a
será diferente, porém atualmente ainda é pela a motivação para a aprendizagem também está muito ligada a isso.
escrita convencional (Vanessa Marchesin).
Mas há um fator de adicção, um elemento comportamental que

Porém, em atividades de pesquisa, a utilização do digital é causa uma luta interna, uma vez que a mente de quem porta um
sempre muito bem explorada, e dependendo da aula e de quem a aparelho celular se altera ao receber uma mensagem. No mesmo

ministra, o uso da tecnologia contribui. Fato é que as tecnologias momento em que o aparelho vibra, acende ou faz algum barulho, há

nem sempre são usadas de forma favorável, logo, tudo que é um teletransporte espiritual. Há uma alteração de humor e um desvio

potencializado para melhorias também gera problemas. natural da atenção.

Acredito que tudo depende do objetivo da sua [...] que também afeta, e isto é mais
aula, e aí o docente adapta quais serão as comprometedor, a relação docente-estudante
ferramentas necessárias para a execução da aula. desgastando-a, facilitando-se a criação de
Infelizmente, a humanidade não sabe como barreiras, irritações, críticas superficiais e
utilizar a tecnologia a seu favor, portanto ausências (Leslie Marko).

149
comum ficarmos o tempo inteiro mexendo em
celulares. Mas para um aprendizado normal, ou
Mesmo percebendo que a proibição do uso não traz efeitos seja, para a norma geral de funcionamento do
positivos, a saúde do aluno e a crescente aparição de estudantes com cérebro que permite um bom aprendizado, isso é
muito prejudicial. Atenção é energia (carga
problemas como ansiedade, estresse, depressão e pânico nos faz cognitiva) dedicada a um estímulo. Quando
temos múltiplos estímulos, isso necessariamente
pensar que isso é consequência do ritmo de vida dos tempos atuais, exige uma distribuição de energia. Acontece que
intensificado principalmente pela utilização dos meios digitais. energia é limitada. A mera presença de um
celular, mesmo em modo silencioso, prejudica
nossa capacidade cognitiva (Adrian F. Ward,
Kristen Duke, Ayelet Gneezy, Maarten W. Bos.
O uso constante dos celulares não só dificulta a
Brain Drain: The Mere Presence of One’s Own
aprendizagem como evoca outras consequências
Smartphone Reduces Available Cognitive
na saúde física e mental. Porém, os professores,
Capacity. Journal of the Association for
de alguma forma, devem conscientizar os alunos
Consumer Research, 2017; 2 [2]: 140 DOI:
e não proibir o uso, porque isso não vai adiantar
10.1086/691462) (Pedro Calabrez).
(Vera Pacheco).

Alguns professores acreditam que somente a proibição dos Os eletrônicos portáteis não são empecilhos somente para

celulares em sala de aula poderia ajudar nas consequências as esferas educacionais, mas a forma com que estamos lidando com

dificultosas da aprendizagem por causa do uso desses aparelhos. eles hoje fazcom que sejam empecilho para todas as relações sociais

Para o bom funcionamento cerebral no processo de aprendizagem, a presenciais. Mas o senso comum traz visões tecnofóbicas, e ainda

atenção é uma energia cognitiva que é dispersa, como dizem as carecemos de estudos complementares que vão dizer quanto as

neurociências. relações mediadas pelos digitais podem ser prejudiciais. Na

Dificulta tremendamente. Deveriam ser educação, os celulares sozinhos não atrapalham, mas sim quando
proibidos em sala de aula. Hoje em dia
confundimos o “comum” com o “normal”. É

150
são aliados à falta de sentido e desinteresse nesses modelos reflexões profundas, e sim fórmulas prontas em pequenos conteúdos
educacionais. movidos por debates intensos e desrespeitos. Os shitstorms pautam
os comentários de notícias e se esvaziam na mesma velocidade em
Minha experiência de 18 anos como educador e que aparecem.
16 de mercado me leva a poder pensar que não é
o uso da tecnologia em sala de aula que atrapalha O acesso que o mundo digital permite não está restrito ao
o aprendizado do aluno no mundo atual, é seu conhecimento superficial, mas a forma massiva como é utilizado
desinteresse por aquilo que não sabe e não faz
parte do conteúdo distribuído pela mídia em reflete um interesse por coisas supérfluas, e isso toma a frente nas
geral. Para os jovens, só faz sentido aquilo que
ele já sabe (o pouco ou quase nada) e que é opções dos usuários. Cabe também aos professores ensinar a
legitimado pelos influenciadores utilização correta do meio digital.
contemporâneos, youtubers, cantores, jogadores
de futebol. As celebridades nunca tiveram lugar
tão privilegiado na construção do contexto social
O uso constante de equipamentos eletrônicos não
e da cultura como têm hoje. As mesmices e
me parece ser o problema, desde que
simplificações grosseiras das teorias sociais
mobilizados pelos discentes para acessar ou
apresentadas por youtubers, intelectuais
ampliar as discussões em sala. Creio que o
midiáticos e outras celebridades atrapalham
problema esteja no objeto de uso, por vezes são
muito mais o aprendizado que, propriamente, a
redes sociais com conteúdos alheios ao tema da
tecnologia móvel e portátil (João Matta).
aula, assim como jogos eletrônicos (Alberto
Montoya).
Há uma pasteurização do saber, e a mídia toma o lugar de
verdade absoluta, porém sem profundidade. O efeito de verdade que O celular também incentiva o individualismo, uma vez que
as mídias portáteis transmitem está relacionado principalmente com sua utilização restringe a pessoa a fazer somente o que ela tem
a falsa força de massa que elas produzem. Não há informações interesse na hora em que poderia ou deveria fazer algo para que não
organizadas no mundo digital, não há, no grosso de sua produção, ficasse tão voltada para si mesma.

151
[…] os estudantes, ao menos em grande parte, protocolização geral da vida. Se a burocracia do mundo moderno
encontram-se envoltos em um mundo particular
nos seus gadgets. E quando pedimos para que veio para ajudar a organizar a sociedade, as qualificações e
eles usem seus aparelhos para a aula, há uma padronizações se tornaram cada vez mais presentes. A necessidade
apatia geral, como se eles tivessem que sair do
universo paralelo e retornar à sala de aula reguladora da sociedade é um comportamento que gera a
(Andrey Mendonça).
impessoalidade e a falta de complexidade na hora de qualificar.
Existe também uma vigilância exacerbada pelo meio Partimos então da premissa de que é um excesso de burocracias,
digital, uma invasão de privacidade e um excesso de julgamentos rankings e classificações de tudo, que são fatores que atrapalham o
sobre a vida de qualquer pessoa, incluindo a dos professores. ensino.
Estudantes inspecionam comportamentos e, em meio à indignação
exacerbada, criam desinteresse pela aula ou até mesmo movimentos […] esse fenômeno é a falência da educação para
a transformação, ela cria guetos inacessíveis para
punitivos, pedindo para que professores não lecionem em suas boa parte das pessoas, estimula a segregação e a
turmas por posicionamento político ou ideológico. desumanização da relação ensino/aprendizagem,
perpetua um falso discurso meritocrático em uma
sociedade de classes, além de estimular diversas
[…] o uso indiscriminado de tais recursos patologias oriundas da busca frenética por um
prejudica de forma contundente a aprendizagem. lugar entre os melhores. Essas práticas têm
Tento perceber isso interagindo com os reduzido a ação docente em muitos casos à
estudantes. Existe o lado colaborativo, existe o equiparação de um treinador (coach para os
lado da vigilância, extremamente desagradável incautos) que prioriza metas em detrimento da
(Ricardo Poli). criação e da ousadia que caracterizam a espécie
humana (Paulo Crispim).

O casamento do mundo digital com o mundo neoliberal,


No mundo neoliberal há um ambiente competitivo
como nos conta Byung-Chul Han, traz à tona um comportamento de
instaurado, e a sociedade como um todo tenta refleti-lo, e por vezes

152
se incomoda com isso, mas mesmo assim acaba reproduzindo. No […] pode acarretar em cobrança e sobrecarga de
trabalho, desviando a atenção, muitas vezes, de
universo em que a imagem vale mais que a essência, o “estar à aspectos centrais do trabalho discente, que seria
frente” e mostrar desempenho torna-se uma obsessão, e na educação pensar estratégias didáticas mais eficazes,
projetos interdisciplinares, processos avaliativos
esse tipo de comportamento não é diferente. mais significativos, etc. A educação se faz no
processo, e o que muitas vezes estes rankings e
classificações fazem é ignorar o processo e todas
Nós nos impulsionamos à conquista e mostrar ao as condições reais de ensino-aprendizagem em
outro nossas habilidades, nossa imagem de uma escola em detrimento de critérios externos e
sucesso. Isso não é diferente na educação. pontuais (Pedro Ferreira).
Contudo, justamente na educação, este princípio
do capital mostra seu lado mais perverso, pois
toda e qualquer informação (como sentimentos,
Mesmo os docentes que consideram as burocracias
as artes, a metafísica e a poesia) tende a ser necessárias não as veem com bons olhos. Na hora de avaliar
rechaçada no menor problema que houver, na
primeira nota baixa no ranking. Isso constitui, a estudantes, percebemos que alguns, que possuem ótimos
meu ver, a maior lesão gerada atualmente, pois
desempenhos durante as aulas, não necessariamente vão bem nas
se lesa justamente o saber, o estar e agir no
mundo, as relações (Diogo Bornhausen). provas. Notamos que os que vão bem nas provas são aqueles que
decoram informações – Cabeças Cheias – e não necessariamente os
Os vetores do controle pelos rankings e pelas burocracias
que desempenharam um papel na construção do conhecimento
são por vezes externos ao ambiente educacional e causam
durante o curso.
sobrecarga dos professores, que, na maioria das vezes, perdem o
Professores buscam saídas para esse problema com
foco principal, que é a educação dentro da sala de aula, as ações
processos de avaliação criativos para cumprir burocracias e lidar
pedagógicas e as percepções dos docentes sobre a verdadeira
com as notas dos estudantes, tentando criar um sistemas mais justo e
evolução dos discentes na aprendizagem.
flexível.

153
construção do conhecimento, porém os professores acabam
Infelizmente, precisamos disso para um repetindo-o por não conceberem alternativas.
constructo mental. Se até no caos existe uma
organização mínima, portanto precisamos destas
burocracias para garantir um direcionamento. Observo como desgastantes, mas necessários em
Porém, mesmo com tudo isso, podemos utilizar um sistema coerente com estes procedimentos.
ferramentas flexíveis para avaliação do processo Eles poderão ser transformados à medida que a
de aprendizagem e assim você tira o peso dado compreensão pedagógica de crescimento, quem
nestas métricas. Até a prova pode possuir um sabe um dia instituída e vivida por todos os
caráter de encerramento de ciclo ou de segmentos da educação, permitir mudanças
verificação diretiva do pacote mínimo que deve conceituais e práticas e onde a experiência do
ser cobrado nos semestres seguintes. Acredito conhecimento seja mais importante que a
que tudo depende de como você pode aplicar manutenção de um sistema hierárquico,
durante o processo de ensino/aprendizagem. meritocrático (fundado em condições sociais e
Gosto muito de inovar, e os estudantes têm econômicas privilegiadas) e de poder em todos
solicitado novas alternativas, mesmo que o os sentidos (Leslie Marko).
objetivo seja o mesmo (Vanessa Marchesin).

As necessidades do mundo contemporâneo de classificar e


Não há saídas para as burocracias, mas os excessos e as
avaliar as qualidades do ensino são evidentes, mas não
formas não transparentes dos instrumentos de avaliação podem fazer
necessariamente os critérios utilizados são suficientemente
com que injustiças sejam cometidas, que os erros não sejam
abrangentes e condizentes com a realidade.
corrigidos e os talentos não sejam devidamente valorizados.
Quando questionados sobre se tinham ciência de algum
Podemos acabar medindo coisas não tão importantes e deixar de
modelo educacional ou saídas para lidarem com as crises
medir outras de suma importância.
educacionais evidenciadas, as respostas dos professores podem ser
Esse sistema hierárquico e meritocrático é cansativo e
divididas em três blocos: aqueles que acreditam em modelos
coloca em xeque, muitas vezes, os rumos da aprendizagem e da
estrangeiros; aqueles que utilizam técnicas em sala de aula

154
chamadas de “metodologias ativas”, que convidam os estudantes a centralidade de como lidar com os problemas que reflete em todas as
serem mais protagonistas no processo de construção do esferas sociais.
conhecimento e criam jogos pedagógicos para maior envolvimento Os caminhos possíveis ainda são tratados. Pensando
dos alunos; e aqueles que desconhecem totalmente saídas para esses somente nos modelos educacionais, a Finlândia e o Canadá são
problemas. citados como sistemas que valorizam o educador e facilitam esse
Na França, no ensino fundamental, a partir de 2018, o processo. Claro que modelos isolados em outros países levam em
celular será totalmente banido das escolas, assim como os jovens consideração uma mentalidade cultural diferente da que
menores de 16 anos serão totalmente proibidos de abrir contas de conhecemos.
perfis em redes sociais21. Em meio a polêmicas, a medida demonstra
que é uma busca para lidar com o problema. O modelo escandinavo é, para mim, um exemplo
interessante. A valorização, antes de tudo, do
Da mesma maneira, na China22, o governo, a partir de 2018, professor e do seu papel. A valorização do
irá dar notas/classificações para seus habitantes e empresas, em que conhecimento, do papel do conhecimento na vida
dos alunos e da sociedade. A educação não pode
serão avaliados o montante do capital e envolvimentos sociais e ser mera formalidade. Ela deve ser a base e o
foco de uma sociedade que pretende criar um
políticos para promover privilégios sociais. A ideia reforça a mundo melhor amanhã do que temos hoje (Pedro
Calabrez).

A Escola da Ponte, em Portugal, também é citada como


21 França vai proibir uso de celulares para alunos do ensino fundamental.
Disponível em <https://g1.globo.com/educacao/noticia/franca-vai-proibir- exemplo, mas como um caso isolado que não traduz a realidade
uso-de-celulares-para-alunos-do-ensino-fundamental.ghtml>. Acesso em
06/01/2018. social do mundo, muito menos do Brasil. É evidenciado que não há
22 O governo 'Black Mirror' chinês vai dar uma nota para seus habitantes.
um modelo universal e que cada grupo, cada cultura, deve procurar
Disponível em < https://www.tecmundo.com.br/futuro/111094-governo-
black-mirror-chines-dar-nota-habitantes.htm>. Acesso em 06/01/2018.

155
uma saída levando em consideração sua diversidade, história e perguntas que suas áreas do saber podem tentar responder sobre uma
mentalidade. mesma temática.
Entre as diversas temáticas estão: Natureza Humana;
Contudo, o que observamos são ações isoladas Valores, Ética e Moral; Estado, Política e Poder; Tecnologias. Os
de excelência num universo massificado de
mediocridade. Penso que o grande desafio é professores preenchem uma tabela com perguntas que
transformar boas práticas em políticas públicas necessariamente serão abordadas em seus cursos, e todo o corpo
massificadas. No caso do Brasil, é preciso
inventar um modelo e deixar de copiar os docente e discente recebe essa tabela, que servirá como um guia de
modelos estrangeiros que funcionam, conforme
destaquei anteriormente, porque foi pensado e transdisciplinaridade.
praticado dentro de um contexto que exige Outras ações, como as academias para professores, que
compreensão histórica, conhecimento e
reconhecimento dos elementos que compõem a buscam desenvolver as metodologias ativas por meio de workshops,
identidade do brasileiro (Paulo Crispim).
e atividades de pesquisa tentam implementar as metodologias ativas,
que visam a aperfeiçoar os modelos de aprendizagem conforme a
Por contar com casos isolados, muitos preferem dizer que
cultura do mundo vigente.
desconhecem experiências que lidam com o cenário de crise
A ideia de uma metodologia ativa é inserir o estudante
educacional existente, mas descrevem situações em que houve
como agente principal de sua aprendizagem. Logo, é criar uma
diagnósticos positivos na busca de recriar uma cabeça bem-feita.
situação de protagonismo e comprometimento do estudante
Na tentativa de recriar o sentido de uma formação superior,
enquanto o professor se transforma em um mentor nesse processo. O
o curso de Ciências Sociais e do Consumo da ESPM vem
maior problema enfrentado nesse caso é quando o discente que está
desenvolvendo uma ferramenta que optou por chamar de TARCISO
acostumado com outras metodologias tem dificuldade em se adaptar
– Transaberes AncoRados em Ciências Sociais – e visa a criar uma
ao novo processo.
matriz em que os professores das diversas disciplinas irão elaborar

156
até mesmo sem diálogos específicos a respeito
disso (Ana Sampaio).
A pedagogia, enquanto campo de estudo, vem se
debruçando ao longo dos anos a discutir formas
Além da pedagogia, as neurociências aplicadas também
que envolvam mais os estudantes durante as
aulas, sugerindo modelos de ensino alternativos vêm desenvolvendo estratégias para facilitar a aprendizagem, uma
às tradicionais aulas expositivas, conhecidos
como metodologias ativas de aprendizagem. O vez que entre os principais problemas detectados nesse processo
uso de metodologias ativas de aprendizagem estão: ansiedade; alteração na memória funcional; desconforto com
parte do axioma de que a desmotivação do
estudante se dá devido à forma tradicional como os processos; e consequentemente a desmotivação.
as aulas são conduzidas pelos professores e que
estas já não são mais capazes de atrair o
estudante da atual geração (Orlando Fernandes). Para garantir uma aprendizagem efetiva, você
precisa trabalhar alguns conceitos: atenção,
memória, motivação e emoção. Ao explicar
Os esforços pessoais dos professores na tentativa de lidar como funcionam e como potencializar, você
com os problemas evidenciados são recorrentes, o que nos aumenta o engajamento dos estudantes. Além
disso, temos algumas técnicas que podem ser
demonstra uma evidente transformação de paradigmas na sociedade utilizadas, e os estudantes percebem mudanças
rápidas (Vanessa Marchesin).
como um todo.

As condições de trabalho para os professores muitas vezes


Penso que as experiências de dar sentido ao que
se ensina e também de dar uma formação mais atrapalham esse processo, e o empenho para as mudanças é um
humana aos nossos alunos vêm principalmente grande empecilho considerando que em muitos lugares poucas
do esforço pessoal dos professores em fazerem o
mesmo com suas próprias vidas. Ao nos pessoas se predispõem a rediscutir seus métodos, uma vez que já
esforçarmos para melhorarmos a nós mesmos,
estamos nos esforçando também para melhorar estão acostumadas com eles e, se deram resultados antes, persistem
nosso próprio universo, e isso pode ser percebido em continuar tentando.

157
Ambientes não tão formais, saídas a campo e exercícios de
discussão em grupo sobre temáticas que envolvam o interesse dos
estudantes foram inúmeras vezes relatados. Algumas vezes essas
experiências evidenciam grande competitividade entre os alunos,
mas mesmo assim eles demonstram envolvimento e motivação.
Segundo as respostas dos professores, não há fórmulas para
lidar com essas questões, mas há uma tentativa cotidiana das
instituições, dos docentes e discentes para tentar criar saídas na
formação crítica, complexa, que poderá realmente trazer a ideia de
uma educação transformadora que atenderá a um pensamento
complexo.

158
Considerações
Refletir e escolher como lidamos com esses julgamentos ou
apontamentos é escolher quais critérios serão utilizados diante

finais
desses dilemas que incomodam muitos profissionais da educação e
por vezes a sociedade como um todo.
Resgatamos modelos mentais sobre a educação no mundo
Tendo a crise da educação como temática central desta ocidental desde a antiguidade no intuito de encontrar em quais
pesquisa, vale lembrar que etimologicamente a palavra crise tem momentos ela se assemelhava à mentalidade que possuímos hoje –
origem no latim crisis e no grego krisis, que resultou em uma individualista, fragmentada e tecnicista – e em que momentos se
tradução que aponta para: julgamento, seleção, resultado de uma aproximava de uma educação complexa, que propunha um
avaliação. Mas em suas origens mais profundas, krinein significa pensamento holístico na formação de um cidadão crítico.
separar, e krei, peneirar. A trama da peneira, ou o buraco por onde Percebemos que esse dilema esteve quase sempre presente
passa a seleção de resíduos no ato da peneiração, é chamada de na História ocidental, e depois mundial, mas aos poucos, graças à
critério. mentalidade social, aos modelos econômicos e progressistas e ao
Identificar uma crise é apontar para problemas, fazer Iluminismo, fomos rumando para o que somos hoje e construímos os
julgamentos, e, por mais que o prognóstico possa ser pessimista modelos educacionais que se evidenciaram cada vez mais aquém de
sobre o presente e talvez o futuro da educação, a intenção deste texto uma educação complexa, sendo esta característica muito mais
é uma reflexão crítica de como aprendemos no mundo visível com o advento das tecnologias portáteis em rede.
contemporâneo e qual legado queremos para o mundo em que O processo mercadológico do mundo neoliberal nos leva a
vivemos. transformar qualquer coisa em produtos ou serviços, e com a
educação não é diferente. Estudantes são tratados como clientes e

159
avaliam os professores como serviçais. A mentalidade da sociedade Cansaço, consumo, produtividade, passividade e
atual ainda faz com que sejamos imediatistas, individualistas e individualismo são características marcantes nesta sociedade. As
indignados. Grande parte dessas características é detectada pelo doenças da contemporaneidade são mentais: depressão; ansiedade;
comportamento no mundo digital e fora dele. deficit de atenção; pânico. Todas possuem ligação direta com o
A atenção é uma característica escassa em nossa sociedade, nosso ritmo de vida e com o que esperamos para o mundo.
e as pessoas estão em todo momento conectadas por meio de seus O comportamento detectado no universo digital produz
gadgets, elevando a Galáxia de Gutemberg a algo inimaginável. A falsas verdades absolutas, e as massas, que parecem se organizar nas
Sociedade do Espetáculo atingiu tamanha proporção que a imagem redes sociais, na verdade se desentendem e ficam estáticas. O
dita a realidade, assim como a Sociedade do Consumo reduziu todas casamento do digital com o neoliberal faz com que a educação, por
as nossas relações a questões materiais. muitas vezes, reproduza esses valores.
Não temos tempo para reflexão, pois estamos totalmente Intelectuais e professores se esforçam para guiar as novas
direcionados à produtividade. O ócio é condenável, e conduzimos a gerações para essas reflexões, mas são limitados e se tornam reféns
vida para trabalho intenso, e para o consumo, sem nos dar conta dos de um sistema burocratizado, porém existem ações efetivas na busca
males que esses processos nos trazem. O pensamento que guia o de melhorias.
mundo ainda é o progresso e o acúmulo de capital. Os direitos humanos, os direitos dos animais e a
O saber fragmentado funciona como cabresto e não nos responsabilidade socioambiental são fortemente discutidos, assim
permite reflexões profundas sobre a vida. Não conseguimos como projetos educacionais que tentam nos levar a transformações
perceber os rumos da humanidade, e a educação, que poderia ter um na forma como conduzimos a sociedade, mas aparecem de formas
papel transformador nesse processo, está relegada a criar a isoladas.
perpetuação dele.

160
Ignoramos os erros e as ilusões, contrariando o conselho educar, acabam soando utópicas em outras partes do mundo, como o
dado para a reforma da educação proposto por Edgar Morin em Os Brasil.
sete saberes necessários à educação do futuro (2000) e vivemos em A construção de uma BNCC – Base Nacional Comum
um mundo dicotômico, de certo e errado, bem e mal. Curricular – propõe que os componentes curriculares dialoguem
Detectamos, por meio das entrevistas, que os professores, entre eles, e assim as ações integradas entre as disciplinas ajudariam
de forma geral, se incomodam com as dificuldades de lidar com essa a criar um sentido na educação fundamental, o que já identifica
mentalidade social nas instituições de ensino e desconhecem pequenas mudanças nesse processo. O processo de
fórmulas prontas para lidar com essa realidade, mas se esforçam, e a ensino/aprendizagem se apresentaria de forma complexa e se
maioria tem diagnósticos parecidos sobre possíveis medidas estende além de criar competências e habilidades, como também a
atenuantes. aprendizagem social e emocional.
As metodologias ativas estão presentes quase como um Ações como esta da BNCC e a proibição do uso dos
mantra nessa nova etapa educacional, pois criam a sensação de uma celulares nas escolas da França demonstram as preocupações sociais
aula participativa e descontraída, em que se espera que os estudantes com os rumos da educação, e com os problemas aqui identificados,
construam o conhecimento com protagonismo. Porém, muitas vezes no mundo inteiro.
essa metodologia sofre muita resistência por parte dos estudantes, Para os pessimistas, esse estado crítico da educação pode
que não estão acostumados com elas, além de romper um pouco com apresentar uma calamidade, mas, aos poucos, percebemos que a
a relação hierárquica entre mestre e aprendiz. educação dogmática que visa ao lucro e à formação tecnicista pode
Referências internacionais de educação, como a Finlândia, dar lugar a um pensamento complexo, graças aos esforços de
que afirma ter transformado a sociedade por meio de uma educação educadores e reflexões sociais decorrentes dos pensamentos aqui
gratuita e uma mentalidade social de supervalorizar o papel do discutidos.

161
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WEBER; Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa:
Editora Universidade de Brasília, 1991. v. 1.

166
Anexos

167
Nome: Paulo Crispim Alves de Souza que no mundo de hoje a educação é vista como um direito e um
meio de acesso ao mercado de trabalho, contudo, está inserida no
Instituição de Ensino: Escola Nossa Senhora das Graças (Gracinha) modelo mercadológico que prioriza a burocratização, a eficiência
Tempo de docência: 7 anos gestora em detrimento da transmissão de valores com impacto e
ação social transformadora. O que motivou a ser professor é a
Disciplina: Sociologia capacidade de exercer uma profissão que possibilita autonomia,
criação e ação social no contato direto com a juventude.
Acompanhar o desenvolvimento de estudantes e perceber as
Quais valores você vê no universo educacional do mundo descobertas é algo que mantem meu interesse permanente por essa
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O profissão. A possibilidade de tratar com pessoas diferentes, criar
que te motivava e o que te motiva ser professor? coisas novas e estar sempre querendo algo diferente são
componentes que ajudam na manutenção do gosto e d vocação que
Creio que os valores que predominam de uma forma geral na acredito ter para área educacional.
educação de hoje são correspondentes ao discurso do mercado,
quais sejam, a ideia de metas, resultados mensuráveis, controle da
docência com base em resultados, relação de consumidor por parte
Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,
de algumas famílias nas escolas particulares e ainda um
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento
componente visto como de ascensão ou manutenção social no
dos discentes? Você se vê responsável neste processo?
Brasil. A segunda parte é redundante está contida na resposta da
primeira, ou seja, os valores da educação é reflexo direto dos
valores neoliberais da economia de mercado acompanhado da
retórica de inclusão das diferenças. Com exceção de poucos No meu entendimento os sentimentos e as potências por eles
projetos ousados que rompem com o modelo massificado que provocadas são indissociáveis do processo e da relação entre
vislumbra ranking e acesso ao ensino superior de qualidade, as ensino e aprendizagem. O educador que não considera o aspecto
escolas competem e com isso desenham seu projeto de acordo com sentimental e emocional do sujeito e do contexto em que está
os interesses em voga ou de seu público alvo. Tudo isso para dizer inserido é um transmissor burocrático da informação não o

168
considero educador na acepção do termo. A linguagem artística faz parte de um contexto e meu grupo de trabalho têm uma
permite que a criação e a tradução das relações e sentimentos predisposição que facilita a busca por propostas integradoras
humanos sejam potencializadas e afloradas no espaço da escola, acerca dos estudos sociológicos. Quando o conhecimento é
gerando aprendizagens significativas que afetam positivamente transmitido sem relação com outras áreas ou até mesmo sendo
docentes e discentes da mesma dimensão. Minhas práticas e apenas ferramenta de controle burocrático gera uma total falta de
propostas pedagógicas em Sociologia colocam a produção e a sentido em aprender. Em um contexto de acesso a informação como
experiência artística como elemento central do processo de nunca na história a necessidade de criara sentidos e diálogo é
aprendizagem significativa gerando por consequência a poesia e as central para qualquer projeto político pedagógico, ou seja, é
reflexões metafísicas para além do conteúdo ou da informação, ou preciso uma sinergia entre os preceitos que orientam o currículo da
seja, as diferentes linguagens artísticas possibilitam que os escola em parceria com a concepção integrada dos saberes. E isso
estudantes e professores vivenciem experiências significativas que só pode ser alcançado com formação continua dos professores, bem
se tornam aprendizagem. Sem isso no meu entendimento não existe como, uma mudança epistemológica das universidades que mantém
processo educativo. guetos de poder baseado em especializações sem sentido prático
para o exercício docente.

Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou


não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou
pode gerar/gera uma falta de sentido na formação? dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso?

O diálogo depende de uma predisposição e da concepção político Como qualquer ferramenta o que vai definir a eficácia do seu uso é
pedagógica do lugar na qual sua prática esteja inserida. Creio que a intencionalidade pedagógica por trás dele. Uma escola ou
os componentes de ciências humanas de uma forma geral buscam o professor que proíbe ou usa burocraticamente as ferramentas não
diálogo de forma até mais tranquila que em outras áreas do estabelece nenhum tipo de reflexão acerca do ato. As coisas devem
conhecimento, contudo, a minha experiência no gracinha é algo que ser contextualizadas e transmitidas de forma transparente para o

169
grupo. Por exemplo, a proibição pode ser acompanhada de um Estudantes podem, por exemplo, sentir-se motivados pela
desafio que traga a tona a crescente dependência destes aparelhos competição, isso é parte da ideologia dominante em nosso tempo,
para as pessoas, assim como o uso, pode ser estimulado como forma portanto penso que a motivação é derivada do sentido político que o
de busca por múltiplas referentes diante de um assunto abordado. docente atribui a sua profissão e isso também vale para o estudante.
Entendo que o docente precisa ter clareza da intenção pedagógica Os docentes diante da crescente burocratização e controle exercido
de qualquer ferramentas, portanto, quanto a intenção é clara o uso ao trabalho docente, além de extensas jornadas de trabalho
desses recursos facilitam a aprendizagem. A relação da chamada atravessa um momento de desmotivação gerada pelo pouco
geração “Polegarzinha” com os aparelhos é uma relação de reconhecimento e valorização do trabalho docente em uma
extensão corporal o que evidentemente modifica a forma de sociedade que prioriza profissões consideradas mais nobres. Mesmo
aprender, negar isso é negar as experiências e as transformações que retoricamente as pessoas reconheçam o valor da atividade de
humanas. A educação tem o papel de traduzir e provocar reflexões e professor na prática o que vemos são salários defasados, violência e
ações modificadoras e não possui o papel de fiscalizador de um tipo condições degradantes para o exercício da profissão, baixo
considerado ideal de aprendizagem. Em suma, é preciso ter investimento na formação continua do profissional e até mesmo um
intenção, planejamento e clareza das escolhas pedagógicas que discurso punitivista e obscurantista como o projeto Escola sem
possam ser experienciadas, diante disso o uso é bem vindo. Partido que busca criminalizar a profissão. Diante desse cenário
considero que a imensa maioria exerce a profissão para sobreviver
e não como vocação, diante disso sua ação passa a ser
No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou burocratizada com todo estimulo de exames e controles exercidos
desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os país a fora.
docentes? Por quê?

O que é mais importante no seu papel como professor, formar um


Novamente é preciso levar em conta o contexto. A desmotivação cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a
pode estar em ambas às partes e até mesmo ser algo fluído que vem contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?
e vai. Não creio existir uma resposta afirmativa para essa questão.

170
Com certeza formar para o mundo que, por sua vez, apresenta-se desumanização da relação ensino/ aprendizagem, perpetua um falso
cada vez mais individualista e superficial. Diante disso o discurso meritocráticos em uma sociedade de classes, além de
profissional docente deve ampliar a bagagem cultural do estudante estimular diversas patologias oriundas da busca frenética por um
e provoca-lo a deslocar-se d uma visão maniqueísta e reduzida dos lugar entre os melhores. Essas práticas têm reduzido à ação docente
conflitos que se apresentam. A universidade é fundamental nesse em muitos casos a equiparação de um treinador (coach para os
processo, contudo, a crescente mercantilização da educação incautos) que prioriza metas em detrimento da criação e da ousadia
transformada em mercadoria, coloca a maior parte das instituições que caracterizam a espécie humana. É uma distorção que ajuda a
fechadas em redomas que separam a sociedade do conhecimento entender a falta de estimulo da categoria. Contudo, não sou contra
prático. Nesse sentido a universidade vem produzindo um discurso ao professor ter exigências e reponsabilidade em sua profissão, o
que não se traduz em ação prática na maioria das vezes. O modelo discurso vitimista muitas vezes atua dialeticamente como muleta
mercadológico prioriza o estudante consumidor em detrimento do para profissionais irresponsáveis e pouco afeitos a grandeza da
estudante autor e realizador. A herança eurocêntrica do profissão. Ao vincular essa responsabilidade ao rankeamento, essas
conhecimento enciclopédico segue cerrando fileiras contra a políticas, estimulam docentes que visam apenas a meta sem pensar
democratização das universidades do país. Legando as classes na relação entre professor e aluno pautada na confiança e muitas
populares um ensino desqualificado e precarizado que não vezes em novas estratégias. Como qualquer classificação, a
representa um avanço para a cidadania e na busca por direitos. burocratização desumaniza e exclui boa parte da pessoas do direito
a educação.

Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e


classificações no processo de ensino/aprendizagem? Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com
alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?
Como respondido em todas as perguntas anteriores, esse fenômeno
é a falência da educação para a transformação, ela cria guetos
inacessíveis para boa parte ds pessoas, estimula a segregação e a

171
É conhecida uma série de propostas consideradas inovadoras,
inclusivas e eficientes como, por exemplo, a escola da Ponte em
Portugal. Contudo, o que observamos são ações isoladas de
excelência num universo massificado de mediocridade. Penso que o
grande desafio é transformar boas práticas em políticas públicas
massificadas. No caso do Brasil é preciso inventar um modelo e
deixar de copiar os modelos estrangeiros que funcionam, conforme
destaquei anteriormente, porque foi pensado e praticado dentro de
um contexto que exige compreensão histórica, conhecimento e
reconhecimento dos elementos que compõem a identidade do
Brasileiro. Creio que estamos longe dessa concepção, o que observo
é a crença e a transferência de experiências de países
completamente diferentes do Brasil sendo enxertado nas Políticas
educacionais como retórica de propaganda com índices
questionáveis de qualidade.

172
Nome: Diogo Andrade Bornhausen O sentido da relação professor-aluno se modificou, pois, o clássico
transmissor de um saber acumulado possuiria pouca utilidade em
Instituição de Ensino: Fundação Armando Alvares Penteado - FAAP um ambiente de indiscriminado acesso instantâneo. Isso se reflete
Tempo de docência: 06 anos no modo como o aluno enxerga o professor, por vezes o
descredibilizando, se não explicitamente, ao menos implicitamente.
Disciplina: Teorias da Comunicação e Metodologia de Pesquisa O primeiro, diante deste desafio, raramente flexibiliza seu próprio
saber, ao contrário, recorre a um nostálgico poder-saber e impõe
sua força simbólica sobre quem está a sua frente. Nesse sentido, o
Quais valores você vê no universo educacional do mundo principal valor que esteja imperando no universo educacional pode
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O ser visto como uma crise, seja de valores ou perspectivas dos papéis
que te motivava e o que te motiva ser professor? a serem estabelecidos neste ambiente.

Claro que tal crise é proveniente também de um percurso histórico


fundado na especialização e na separação dos saberes. Mas no que
Respondendo de forma complementar as duas primeiras questões, diz respeito ao mundo contemporâneo, vejo no dia a dia que o
creio que a educação hoje é regida por um tipo específico de cenário tecnológico contribui severamente para o agravamento
contradição. Por um lado, vivemos o inimaginável, se pensamos até desta ocorrência.
bem pouco tempo atrás, com o acesso instantâneo e aparentemente
ilimitado da informação. Utopicamente isto seria um sinal de uma
liberalização democrática e horizontal de aprendizado e formação
Nesse sentido, respondendo à terceira questão, a profissão e o
de conhecimento. Por outro lado, este mesmo ambiente, marcado
espaço da sala de aula me estimulam a tentar, sob diferentes
pelo excesso e velocidade, nos coloca (docentes e discentes) em uma
caminhos, o inverso. Com isso quero dizer que tento desconstruir o
apreensão tendencialmente superficial. Naturalmente, nessas
meu lugar e o lugar dos meus alunos em um espaço de diálogo de
condições são afetados todos os âmbitos cotidianos, e de uma forma
ideias. Tarefa nem sempre simples, pois tanto eu quanto eles fomos
muito contundente a educação.
educados desde cedo em um outro modelo (descrito acima). Para
eles, principalmente, há uma dificuldade em questionar, em duvidar

173
do próprio saber, do que acessam e da matéria que está sendo Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
colocada. Não percebem que a construção do conhecimento se dá não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso
na capacidade que temos de tornar o conteúdo algo nosso, físico, pode gerar/gera uma falta de sentido na formação?
corporal – poderia dizer. Ou se percebem, por muitas vezes optam
pelo caminho mais simples, ao qual foram condicionados, da
assimilação simples, decorada, cujo resultado será quantificado. Uma das consequências principais do que foi citado na primeira
Ainda na questão, nesses 06 anos em que leciono, busco subverter a resposta está justamente na desarticulação do saber. Vejo isso como
minha própria lógica e a deles, se posso dizer assim, procurando um caminho, infelizmente, comum, pois, diante da dessastabilização
primordialmente a sala de aula como um espaço de escuta, de dos lugares, dos papéis e das funções, como citei, a tendência está
relações e de diálogos. justamente em engessar mais os modelos que não correspondem à
realidade (falando especificamente sobre o papel do professor).
Encontrei e encontro este não diálogo e vejo o quanto ele é
Em que medida você considera a educação para com os sentimentos, prejudicial, onde, por exemplo, o aluno não faz a ponte entre
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento sociologia e comunicação (no caso da minha área). Desde que
dos discentes? Você se vê responsável neste processo? iniciei como docente e percebi isso, aproveitei a vantagem que a
disciplina de Teorias da Comunicação possui e assumo, desde o
início, que ali é o espaço dessa interlocução entre variadas
Em continuidade com o que expus acima, vejo que para além da disciplinas. Felizmente, os resultados têm sido extremamente
matéria específica, é primordial à educação proporcionar um modo proveitosos.
de ver a realidade na qual o aluno se insere. Consequentemente,
todos os âmbitos citados na questão fazem parte direta neste
processo. Desse modo, me sinto responsável por este caminho, O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou
complexo de ser criado, pois retira todos os participantes de seus dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso?
lugares comuns.

174
Creio que este seja um dos principais desafios pelos quais passa a que para a sala de aula (e outras muitas atividade cotidianas,
educação atualmente. Tentarei enumerar alguns dos cenários que principalmente relacionadas às relações interpessoais) necessitam
vejo, para facilitar a articulação. de distanciamento tecnológico, ou seja, ser capaz de dizer “sim” ou
“não” nas horas devidas. Creio que a sala de aula, ou o espaço de
- Como previamente apontado na primeira resposta, vejo que com aprendizado em sentido amplo, são lugares do “não”.
as tecnologias há a descredibilização da função do espaço de
ensino. “Para que ouvir o que o professor tem a dizer se encontro
tudo no google depois?” Isto prejudica o espaço de debate, de
reflexão – com temporalidade específica – que a sala de aula No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou
possui. desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os
docentes? Por quê?
- Em seguida, “ora, tantas coisas pra ver (whatsapp, Facebook,
instagram, etc), difícil prestar atenção” (isto ouço dos meus
alunos). Consequentemente, a uma rarefação da atenção, e assim Acredito que haja uma desmotivação generalizada. Mesmo não
por diante. sendo explicitada ou verbalizada, creio que ela advém da
- Por outro lado, poderia se pensar em alternativas conjuntas ao impotência diante do mundo, da corrente de informações que
uso tecnológico, uso das redes como espaço de debate, ensino permanentemente nos chega. Quando tudo é simultâneo e
digital, etc. Sinceramente, não acredito que seja este o caminho, instantâneo o saber próprio entra em um dilema funcional: “de que
pois, por mais que seja interessante, o instagram (exemplo) adianta saber isto agora se “tudo” terá mudado amanhã?”. Isto
possivelmente supere o interesse em conhecer algo mais atinge todo o social e, consequentemente, a educação. Estamos
profundamente. vivendo um novo paradigma, ainda não percebido por alguns, e
quando percebido, ainda não entendido efetivamente.
Acredito que (e aqui falo do lugar específico que ocupo em teorias
da comunicação) é necessário criar um sensibilidade crítica no
aluno. Isto significaria dar a eles condições de perceber que a
tecnologia é extremamente benéfica para muitas atividades, mas

175
O que é mais importante no seu papel como professor, formar um artes, a metafísica e a poesia sentimentos, as artes, a metafísica e a
cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a poesia) tende a ser rechaçada no menor problema que houver, na
contribuição da faculdade na melhoria da sociedade? primeira nota baixa no ranking. Isto constitui, ao meu ver, a maior
lesão gerada atualmente, pois se lesa justamente o saber, o estar e
agir no mundo, as relações.
Creio que ambas as instâncias são concomitantes. Para mim,
formar um cidadão, significa forma um bom profissional, que
consequentemente terá sucesso. Pessoalmente, por lecionar no Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com
segundo semestre, procuro desconstruir saberes consolidados, alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
predominantemente midiáticos, colocando o aluno em cheque diante anteriores? Poderia relatá-las?
de suas próprias práticas. Acredito que ao se perceber ele será
capaz de, quando for produzir, ser capaz de agir diferente ao que
tem de lidar. Não creio em experiências que poderiam ser descritas como bem
sucedidas. Não creio em fórmulas. Creio sim na experiência
cotidiana. Para mim, ela se estabelece nas sutilezas, nas relações,
Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e nas pessoas serem capazes de se ouvir, de dialogar, de crescer
classificações no processo de ensino/aprendizagem? mutuamente. Isto é efetivamente transformador e isto pode
acontecer com uma turma de alunos em um dia, mas não no outro.
É complexo.
O ambiente da competição nos acompanha em todos os âmbitos de Contudo, buscando um relato, recentemente participei de uma
nossa vida, este é o fundamento do capitalismo. Nos impulsionamos banca de Rádio e TV, sendo que dei aula aos alunos bem no início
a conquista e mostrar ao outro nossas habilidades, nossa imagem de suas trajetórias. Fui convidado para ser avaliador por eles, o
de sucesso. Isso não é diferente na educação. Contudo, justamente que me deixou honrado. Após a avaliação, alguns vieram a mim e
na educação, este princípio do capital mostra seu lado mais disseram o quanto o que havíamos discutido em aula havia sido
perverso, pois todas e qualquer informação (como sentimentos, as revolucionário em suas trajetórias e o quanto modificou em suas

176
atuais atividade profissionais. Creio ser esta uma resposta aos
problemas evidenciados neste questionário.

177
Nome: Pedro Maciel da Costa Ferreira sua volta a partir de valores e conhecimentos refletidos nas
conversas e atividades que propomos.
Instituição de Ensino: Escola Nossa Senhora das Graças

Tempo de docência: 10 anos


Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,
Disciplina: Geografia
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento
dos discentes? Você se vê responsável neste processo?

Quais valores você vê no universo educacional do mundo


contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O Considero de extrema importância que a educação contemple tais
que te motivava e o que te motiva ser professor?
aspectos. A educação integral (que considera o aluno em sua
complexidade) precisa caminhar neste sentido, uma vez que
desenvolvem competências socioemocionais nos discentes,
O universo educacional do mundo contemporâneo está cada vez favorecendo o pensamento critico, a resolução de problemas, a
mais assumindo os valores do mundo do trabalho. Não me refiro ao criatividade e a abertura para o novo. Na área que leciono, a
ensino técnico, mas à própria educação básica. Há uma percepção incorporação destes aspectos no pensamento acadêmico geográfico
de que algo está errado com a escola e precisa mudar. Mas as ainda é tímida, mas vem ganhando espaço nas periódicos e
direções ainda são nebulosas e muitas vezes apenas reproduzem um simpósios. Tento assimilar tais abordagens e trazer para o ensino
discurso de que se deve preparar os discentes para um mundo do básico uma perspectiva geográfica que assuma a linguagem das
futuro, como se isso fosse possível de ser previsto e controlado. artes como essencial no processo de aprendizagem dos alunos.
Assim, as novas experiências na educação têm reproduzido valores Alguns exemplos de projetos desenvolvidos neste sentido: Sertão em
do “ambiente laboral”, como o ensino por competências, educação Músicas (com turma de 7º ano); Canções Urbanas (9º ano);
por projetos, entre outros, sem que isso passe por uma perspectiva Catálogo de Lugares Imaginários (6º ano); Paisagens do Futuro (6º
crítica. O que me motiva a ser professor é o fato de me sentir sujeito ano).
ativo na transformação de pessoas, que podem atuar no mundo a

178
Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou saberes mais acadêmicos. O aparelho celular acaba sendo usado
não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso pelos alunos como portal para exposição de sua vida e
pode gerar/gera uma falta de sentido na formação? vigilância/controle da vida de outras pessoas. Muitos alunos com
intenso uso de celular, ativos nas redes sociais, ainda se mantém
ausentes nas discussões presenciais realizadas em sala, onde eles
Acho importantíssima a troca e o diálogo entre as disciplinas de um poderiam se expressar e trocar com seus pares. Há possibilidade de
mesmo curso. Na escola em que trabalho há uma tentativa de se rever este uso e proporcionar que se torne a favor do processo
incentivar este diálogo. Há um horário semanal de aula comum a pedagógico. Das práticas que conheço, entretando, ainda não fui
todos os professores que se chama “Interdiscplinar”. O objetivo é convencido da real transformação que ela pode gerar.
que o corpo docente elabore e aplique em conjunto atividades
interdisciplinares com turmas do Ensino Fundamental 2.
No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou
desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os
O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou docentes? Por quê?
dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso?
Depende da faixa etária e condições de aprendizagem. Na escola
que leciono acredito que docentes e discentes são, de forma geral,
motivados. Percebe-se isso observando os projetos desenvolvidos,
Primeiramente eu separaria o uso de celulares e computadores. Os as reflexões realizadas entre os professores nos fóruns reservados a
jovens utilizam estes recursos de modo muito distintos. Além disso, isso, a participação dos alunos em projetos de contraturno, entre
responderia que seus impactos na aprendizagem dos alunos outros. Vale lembrar que se trata de uma escola de classe média
dependem da intencionalidade do uso proposto pela escola. Tendo alta na cidade de São Paulo que remunera bem seus professores
achar que, se não houver um trabalho pedagógico permanente com quando comparada à realidade geral da educação na cidade.
este uso, elas não facilitam a aprendizagem. O uso de celulares
imprime um ritmo acelerado e fluído, muitas vezes incompatível com
um ritmo mais lento e artesanal necessários na construção de

179
O que é mais importante no seu papel como professor, formar um aprendizagem em uma escola em detrimento de critérios externos e
cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a pontuais.
contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?

Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com


Cidadão para o mundo. Trata-se de uma concepção mais ampla de alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
educação, que inclusive contempla um profissional de sucesso. No anteriores? Poderia relatá-las?
âmbito do ensino fundamental devemos construir conhecimentos,
habilidades e competências necessárias para a formação de um
sujeito autônomo e consciente de suas escolhas e decisões para A escola que trabalho, grosso modo, parece refletir sobre alguns
consigo mesmo e para com o mundo. dos pontos acima. Há uma tentativa de propor projetos
interdisplinares que trabalhem com diferentes linguagens; um
empenho em discutir questões ligadas à juventude e tecnologia e, ao
Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e menos no Ensino Fundamental 2, não se percebe a cobrança por
classificações no processo de ensino/aprendizagem? resultados externos. O que sinto, apesar disso tudo, é que o ritmo
para reflexão e reconstrução dos caminhos é engolido pela ritmo
corrido do tempo escolar, composto por aulas, avaliações,
São vetores externos ao controle do professor, o que pode acarretar comunicações e planejamento individual. Acredito que as soluções
em cobrança e sobrecarga de trabalho, desviando a atenção, muitas para os problemas evidenciados nas perguntas anteriores passam
vezes, de aspectos centrais do trabalho discente que seria pensar pela equipe docente, que deve ser a protagonista na mudança dos
estratégias didáticas mais eficazes, projetos interdisciplinares, rumos da eduação. Para isso, vale a pena ressaltar, precisa-se
processos avaliativos mais significativos, etc. A educação se faz no pensar outras condições de trabalho. Talvez a ampliação da carga
processo e o que muitas vezes estes rankings e classificações fazem horário do professor, que poderia trocar a atribuição de aulas por
é ignorar o processo e todas as condições reais de ensino- grupos de estudo, planejamento coletivo e formação.

180
Nome: Vanessa Clarizia Marchesin Infelizmente a educação atual possui muitas falhas porque talvez
perdeu o propósito em desenvolver a responsabilidade ética-sócio-
Instituição de Ensino: ESPM - SP ambiental do estudante. Eu vejo a educação como apenas uma
Tempo de docência: 2 a 6 meses (ESPM) e 7 anos (total) etapa que precisa ser realizada para se chegar ao vestibular.
Conhecimentos e habilidades estão garantidos ainda mais com o
Disciplina: Psicologia, Sexualidade e Neurociência Aplicada ao uso da tecnologia e internet, porém resolução de problemas,
Mercado resiliência e atitudes são essenciais para a formação do caráter do
estudante. Podemos até pensar que a educação virou apenas um
comércio sem a atenção para um bem muito maior que é a formação
Quais valores você vê no universo educacional do mundo de cidadãos.
contemporâneo?

Eu penso em pelo menos 7 valores: Capacidade de adaptação para


O que te motivava e o que te motiva ser professor?
garantir um comportamento mais flexível dos estudantes, pois há
uma evolução acelerada de tudo que nos rodeia o que favorece um Ser professor é como um agricultor. Ele precisa cuidar da terra e
aumento de oportunidades; Expansão do conhecimento que é estar atento aos desafios que possam aparecer durante o cultivo. A
facilitada com o uso da tecnologia e da internet; Independência com preocupação é constante e o seu maior orgulho é presenciar o
incentivo constante da autonomia para a construção de crescimento e desenvolvimento da sua terra. A mesma coisa pode
conhecimento; Empreendedorismo para este novo contexto de ser referida na docência. É óbvio que durante o processo
mercado; Criatividade para a resolução de problemas; Espírito de conhecemos vários perfis de estudantes e sabemos que apenas uma
equipe com respeito à diversidade; e Honestidade que é o valor porção deles será o nosso orgulho porque você fez a diferença na
fundamental para a educação. vida de cada um. Apesar de muitos estudantes passarem por nós
sempre tem aqueles especiais que possuem um brilho diferente. São
estudantes que nos dão prazer de acordar todos os dias porque você
Como você vê a educação no mundo de hoje? fez a diferença. A motivação ainda é a mesma: O desafio de fazer a
diferença. E ao fazer a diferença você garante que a sua motivação

181
se mantenha ativa para mais e mais energia. Todos os dias são Eu sou responsável e também o mediador do processo. Não
diferentes quando se é docente. E esta paixão sempre vem com adiantar propor uma temática e não mostrar qual é o caminho para
questionamentos: e hoje como será? Qual o desafio? Mesmo que se chegar a um fim. Obviamente não sou o único porque o estudante
algumas vezes possa ser triste ainda sim foi um aprendizado. Ser também tem papel importante nesta troca, mas ele precisa de um
professora foi uma escolha e acredito que foi a minha melhor guia para se desenvolver.
escolha profissional. Considero-me privilegiada de fazer parte da
formação de caráter dos estudantes.
Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
não dialogam entre elas?
Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento A maioria das disciplinas são estruturadas para um conteúdo
dos discentes? mínimo que é necessário explicar ao estudante, porém desde que
escolhi ser docente fiz uma promessa que é fazer a conexão com
Estas temáticas são essenciais como base da formação de caráter e outras disciplinas para que o conteúdo não seja vazio. Mas sei que
ainda mais proporcionam o desenvolvimento de atitudes. Hoje com na minha faculdade não tive um professor que fizesse o diálogo com
a tecnologia/internet foi deixado de lado o humano e a resolução de outras disciplinas. Acredito que é por isso que me preocupo em
problemas. Com estas temáticas você propicia o desenvolvimento sempre trazer as outras disciplinas para dialogar com o conteúdo
deste lado mais humano que hoje considero essencial. Sem isso nos que eu leciono. Mas tecnicamente as disciplinas de todos os cursos
afastamos da habilidade emocional mais importante que é a caminham independentemente. Talvez isso seja uma tarefa do
empatia. Sentir o outro pressupõe o autoconhecimento, portanto ou professor em construir estes laços.
nos aproximamos destas temáticas ou cada vez mais veremos a
intolerância e o discurso do ódio como a força motriz da
humanidade. Em que medida você percebe que isso pode gerar/gera uma falta de
sentido na formação?

Você se vê responsável neste processo?

182
Com certeza as disciplinas impendentes geram conflitos para os portanto precisamos dar sentido e direcionar para um modelo mais
estudantes. Na maioria das vezes eles não entendem como todos os saudável.
conteúdos farão sentido até o fim do curso. Às vezes somente
quando estão no estágio que as temáticas começam a dialogar, mas
penso que podemos fazer isto com estudos de casos para Como você faz para perceber isso?
proporcionar uma resolução de problemas durante o curso. Criar
os laços é que dá sentido na formação do estudante. Na verdade, eu já faço o planejamento prévio das atividades que
serão estabelecidas durante o semestre e aviso aos estudantes
quando será permitido (ou incentivado) o uso de tecnologia. As
O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou regras da disciplina são apresentadas no início do curso e
dificulta a aprendizagem? mantenho o meu cronograma até o fim do curso. No início de cada
aula apresento o objetivo para que ao final seja realizado o
Depende. Se é um momento em que é preciso explicar um conceito, fechamento. Este é um modelo que uso há 7 anos e tenho bons
uma teoria, um pensamento você precisa da atenção do estudante, resultados, porém a cada semestre realizo modificações de acordo
portanto celulares e computadores portáteis são distratores. Já é com o perfil da sala. Mesmo assim o modelo pode ser falível e
provado que para garantir a memorização você precisa de atenção. algumas vezes é necessário maior rigor para garantir o
Além disso, há maior estimulação cognitiva quando se usa a escrita planejamento. No início de cada curso eu me proponho a avaliar os
convencional porque nosso conhecimento foi construído através da estudantes com alguns questionamentos de vida para conhecer o
escrita e não do teclado de um computador. Quem sabe se no futuro meu público e também tenho um pouco de sensibilidade para
a alfabetização for realizada 100% no meio digital aí sim o mindset conduzir as atividades.
será diferente, porém atualmente ainda é pela a escrita
convencional. Agora se há uma atividade de pesquisa devemos
estimular o uso da tecnologia. Acredito que tudo depende do No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou
objetivo da sua aula e aí o docente adapta quais serão as desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem?
ferramentas necessárias para a execução da aula. Infelizmente a
humanidade não sabe como utilizar a tecnologia ao seu favor,

183
Depende. Em sala de aula eu consigo dividir em três partes: 1/3 O que é mais importante no seu papel como professor, formar um
está motivado; 1/3 está motivado, porém ainda não tem certeza da cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso?
escolha (se for IES); e 1/3 está desmotivado (no momento, pois não
acredito em um estado fixo). Infelizmente sempre teremos uma Antigamente era formar um profissional de sucesso, porém hoje é
parcela dos estudantes que não adianta ser a melhor disciplina ou o formar um cidadão. E isso se deu por uma simples razão: O que é
melhor professor que não irá ser o incentivo essencial para uma sucesso? Temos que fugir do comportamento social que é
mudança. É preciso de automotivação e sem isso os fatores externos generalizar um conceito. Se acreditamos na diversidade, portanto o
não garantem um movimento para a aprendizagem efetiva. conceito de sucesso também possui este mesmo caráter de
variabilidade. Mas quando pensamos em formar um cidadão é a
base de qualquer desenvolvimento profissional. O cidadão sempre
deixará uma marca e este é insubstituível.
E os docentes? Por quê?

Depende. Sempre teremos professores motivados e desmotivados. A


motivação tem uma relação direta com a força motriz e seus Qual a contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?
objetivos. Alguns estudantes podem nos provocar desmotivação,
porém se somos automotivados então este fator externo pode apenas Acredito que a maior contribuição é guiar o estudante para a busca
por um curto espaço de tempo provocar esta diminuição de energia. de resolução de problemas e para isso ajudamos na formação de
A grande questão é manter um equilíbrio entre fatores internos e caráter. Hoje o foco está na atitude do indivíduo porque
externos, portanto o poder de transformar está em nossas mãos. conhecimentos e habilidades podem ser aprendidas em curto prazo,
Seria muito fácil culpar o que é externo, mas não podemos mas caráter é estrutural para a vida.
simplificar questões do comportamento humano. Sabe-se que todo
indivíduo é um ser bio-psico-social, portanto tem um caráter
complexo. Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e
classificações no processo de ensino/aprendizagem?

184
As burocracias são necessárias para organizar o cérebro do Para se garantir uma aprendizagem efetiva você precisa trabalhar
indivíduo. Infelizmente precisamos disso para um constructo mental. alguns conceitos: atenção, memória, motivação e emoção. Ao
Se até no caos existe uma organização mínima, portanto precisamos explicar como funcionam e como potencializar você aumenta o
destas burocracias para garantir um direcionamento. Porém mesmo engajamento dos estudantes. Além disso, temos algumas técnicas
com tudo isso podemos utilizar ferramentas flexíveis para avaliação que podem ser utilizadas e os estudantes percebem mudanças
do processo de aprendizagem e assim você tira o peso dado nestas rápidas.
métricas. Até a prova pode possuir um caráter de encerramento de
ciclo ou de verificação diretiva do pacote mínimo que deve ser Hoje quais são as maiores queixas dos estudantes: ansiedade, falta
cobrado nos semestres seguintes. Acredito que tudo depende de de atenção, falhas na memória (alteração funcional) e problemas de
como você pode aplicar durante o processo de ensino aprendizagem. Quando aprendemos como o cérebro aprende estas
aprendizagem. Gosto muito de inovar e os estudantes têm solicitado queixas podem ser trabalhadas para minimizar os desconfortos dos
novas alternativas mesmo que o objetivo seja o mesmo. estudantes.

Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com


alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?

Como sou entusiasta da Neurociência Aplicada para a Educação eu


gosto de usar algumas estratégias para facilitar o aprendizado do
estudante. Ao entender como o cérebro aprende você consegue
potencializar as inteligências dos estudantes. Eu digo muitas vezes
que isso não reinventar a roda, mas sim deixar a roda girar. As
estratégias não são complicadas e quando você explica aos
estudantes você garante maior engajamento em sala.

185
Nome: Orlando Assunção Fernandes

Instituição de Ensino: Escola Superior de Propaganda e O que me motivava a ser professor é o que ainda continua a me
Marketing motivar: Paixão.

Tempo de docência: 22 anos

Disciplina: Economia Paixão não apenas por produzir/transmitir conhecimentos ou por


compartilhar experiências e vivências obtidas em minha trajetória
acadêmica e profissional, mas paixão por educar.
Quais valores você vê no universo educacional do mundo
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje?
O que te motivava e o que te motiva ser professor? Paixão por educar para a autonomia, para formar cidadãos com
pensamento crítico, aptos a serem agentes transformadores de sua
realidade.
Não vejo grandes diferenças entre o que ocorre no universo
educacional do que ocorre em outros setores da sociedade.
Em que medida você considera a educação para com os
sentimentos, as artes, a metafísica e a poesia importantes para o
Os valores do universo educacional ou de qualquer outro universo desenvolvimento dos discentes? Você se vê responsável neste
são indissociáveis aos valores que os seres humanos trazem consigo processo?
em determinado tempo histórico.

Todo o processo educacional, essencialmente, sedimenta-se em


O universo educacional de hoje é contaminado pelos valores de sua relações humanas. Destarte, toda e qualquer forma de educação
época: o materialismo, o imediatismo e o individualismo.

186
que amplie a formação humanística do estudante deve ser Sempre tive essa preocupação talvez por ter sentido, como
estimulada. estudante, essa mesma falta de diálogo entre os diferentes
componentes curriculares.

Você nota que as disciplinas dos cursos que você


leciona/lecionou não dialogam entre elas? Em que medida você Essa percepção que tinha, e que os estudantes de hoje continuam a
percebe que isso pode gerar/gera uma falta de sentido na ter, a meu sentir, possui algumas explicações.
formação?

A primeira é derivada da própria elaboração das matrizes


As disciplinas que ministrei não só dialogam entre elas como curriculares dos cursos que, invariavelmente, são idealizadas de tal
também, em maior ou menor grau, com as de outras áreas de sorte a dividir o conhecimento em pequenos compartimentos
conhecimento. (componentes curriculares), no qual o conhecimento é ministrado
de forma fragmentada.

Para tentar estabelecer esse diálogo, sempre busquei, como


professor, aprofundar-me em outros campos do conhecimento, bem Outras explicações advêm da própria tendência de reprodução
como também procurei saber quais disciplinas haviam sido capitalista, ou seja, de um processo de produção calcado na divisão
ministradas antes da minha, quais aquelas que estavam sendo e na alienação do trabalho.
ministradas concomitantemente e quais as que viriam depois e
teriam a minha como suporte.
A exigência de especialização de conhecimentos, privilegiando a
formação específica em detrimento à formação generalista, faz com
que o profissional docente tenha dificuldades de fazer a interface
com outras disciplinas que não sejam de sua área de expertise.

187
Ademais, a ausência de estímulos das instituições de ensino em Todavia, o seu modo de utilização está ligado à forma como se
fazer com o profissional docente busque deter uma visão geral do conduz a aula (que pode inclusive utilizar esses aparelhos como
processo educacional, no caso em tela, da matriz curricular, dos elementos constitutivos do aprendizado), bem como à motivação
componentes curriculares que a constituem e dos conhecimentos, intrínseca do estudante para com o seu próprio aprendizado.
habilidades e atitudes previstas em cada um deles, também ajudam
a explicar essa sensação do estudante.
No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são
motivados ou desmotivados para o processo de
O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ensino/aprendizagem? E os docentes? Por quê?
ou dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso?

Muito se tem discutido sobre o problema da motivação dos


Do mesmo modo que um automóvel pode ser utilizado para o estudantes.
transporte rápido e confortável de pessoas, mas também pode mata-
las se conduzido de forma irresponsável, aparelhos, tais como
celulares e computadores portáteis, podem trazer benefícios e Alguns alegam aspectos geracionais, enquanto outros colocam a
malefícios ao processo de aprendizagem a depender de sua culpa nos métodos de ensino utilizados pelos professores em sala de
utilização. aula.

Quando eles são utilizados pelos estudantes como uma forma de O fato é que desde que iniciei a carreira docente, percebo, dentro de
recreação/distração durante as aulas, certamente dificultam o sala de aula, estudantes mais motivados do que outros.
processo de ensino e aprendizagem.

188
Creio que a atual percepção de uma quantidade maior de Muitas dessas pessoas, cuja personalidade remete mais ao como se
estudantes desmotivados em sala de aula tem forte correlação com o faz do que ao por que se faz, estariam certamente mais estimuladas
maior número de estudantes frequentando universidades em anos se frequentassem cursos livres ou técnicos, específicos de sua área
recentes. de atuação.

Esse crescimento exponencial no número de matriculados em cursos Outra questão importante para explicar tal fenômeno é a
de nível superior está ligado, em boa parte, a chamada cultura do quantidade de estudantes que, por diferentes motivos, acabam se
bacharelado, ou seja, a noção de que para se colocar no mercado matriculando em cursos que não lhe trazem satisfação.
do trabalho, deva-se ter uma formação superior.

A falta de orientação e de programas vocacionais que direcionem o


Em um exemplo, é comum ver pessoas exercendo funções típicas de estudante para uma carreira mais aderente ao seu perfil, em uma
nível médio (vendedores, eletricistas, mecânicos, etc.) ostentando o sociedade cuja escolha da carreira profissional se dá aos 17 anos,
diploma de bacharel. ajudam também a elucidar o fenômeno.

Essa exigência oriunda do mercado de trabalho, mas também Nesse sentido, um propedêutico, que permitisse ao estudante
explicada por fatores como reconhecimento social e até mesmo por frequentar um curso básico de dois anos antes de fazer a escolha
políticas públicas educacionais (preocupadas, muitas vezes, com definitiva por uma determinada carreira (e na qual somente a partir
questões meramente quantitativas), tem conduzido, aos bancos dessa escolha o estudante passaria a ter contato com disciplinas
escolares, pessoas com pouca ou quase nenhuma vocação para a específicas da área selecionada, como se faz hoje nos chamados
academia.

189
“colleges” americanos), minimizaria a sensação de desmotivação permitem a estes encontrar uma colocação profissional na carreira
presente em muitos estudantes do ensino superior. escolhida.

No que se refere à motivação de professores, penso ocorrer aqui o Porém, como disse anteriormente, creio que minha missão em sala
mesmo que ocorre em muitas outras profissões, ou seja, um número de aula seja maior, isto é, acredito que meu papel como professor
significativo de profissionais vocacionados que, apesar de todas as perpassa a de um simples transmissor de técnicas necessárias ao
dificuldades inerentes à carreira, são verdadeiramente apaixonados sucesso profissional do meu estudante.
por seu ofício, e outros tantos que encontram nessa profissão
apenas uma possibilidade de remuneração adicional em momentos
de dificuldades de colocação profissional em sua área de origem. Sou também um educador e tenho clareza do impacto social do meu
trabalho e do meu compromisso com o aprimoramento intelectual
do meu estudante, bem como em formar cidadãos com pensamento
O que é mais importante no seu papel como professor, formar crítico.
um cidadão para o mundo ou formar um profissional de
sucesso? Qual a contribuição da faculdade na melhoria da
sociedade? Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e
classificações no processo de ensino/aprendizagem?

Creio que os dois objetivos não são excludentes.


Notas, rankings e classificações são frequentes em nossa vida
contemporânea, estando presentes em vários setores da atividade
Sou um profissional da educação superior que forma quadros para econômica.
empresas. As técnicas e teorias que transmito aos meus estudantes

190
Somos hoje constantemente avaliados. E com a educação não é
diferente.
A pedagogia, enquanto campo de estudo, vem se debruçando ao
longo dos anos a discutir formas que envolvam mais os estudantes
durante as aulas, sugerindo modelos de ensino alternativos às
Creio que um sistema de avaliação discutido e bem formulado, seja tradicionais aulas expositivas, conhecidos como metodologias
ele pensado no estudante ou no docente, desde que transparente e ativas de aprendizagem.
equânime, possa ser um instrumento de correção de rumos e de
valorização de talentos.

O uso de metodologias ativas de aprendizagem parte do axioma de


que a desmotivação do estudante se dá devido à forma tradicional
A questão central é que o emprego de instrumentos de avaliação em como as aulas são conduzidas pelos professores e que estas já não
demasia, e o que é pior, enviesados, pode sim afetar o andamento são mais capazes de atrair o estudante da atual geração.
do processo de ensino/aprendizagem ou até mesmo, o que é ainda
mais temerário, acabar por conduzir a um processo de
padronização, afetando a liberdade e criatividade dos agentes
envolvidos. Todavia, minha experiência na aplicação dessas metodologias
revela que os estudantes que se envolvem em formas ativas de
aprendizagem são também os mesmos que se envolvem com as aulas
expositivas tradicionais e que o problema da motivação do
Quando for esse o caso, então os mesmos devem ser repensados. estudante se dá por fatores estruturais, aos quais já fiz referência
anteriormente.

Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com


alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?

191
Nome: Ana Enésia Sampaio Machado Considero não apenas importantes, mas fundamentais. Sim, vejo-me
responsável neste processo.
Instituição de Ensino: ESPM

Tempo de docência: na ESPM, 9 anos; em geral, 26 anos


Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
Disciplina: Estatística, Cálculo e disciplinas relacionadas à Lógica e não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso
à Religião. pode gerar/gera uma falta de sentido na formação?

Quais valores você vê no universo educacional do mundo Algumas das disciplinas que leciono dialogam mais entre si, mas em
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O outras o diálogo é bem escasso. Sim, penso que a falta de diálogo
que te motivava e o que te motiva ser professor? entre as disciplinas pode gerar falta de sentido na formação.

Penso que a educação, seja ela institucionalizada ou não, é O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou
fundamental para que compreendamos melhor a nós mesmos e o dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso?
mundo, para que questionemos nossas próprias escolhas e também
as ideias que nos são apresentadas.

Dificulta quando o celular ou o computador é usado para que o


aluno não esteja realmente presente na aula, mas seu uso pode ser
Em que medida você considera a educação para com os sentimentos, direcionado para fins didáticos. O uso dessas ferramentas pode ser
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento de grande ajuda nas aulas.
dos discentes? Você se vê responsável neste processo?

192
No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou Totalmente. Usamos os números para ficar medindo e classificando
desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os tudo, mas as coisas realmente importantes não podem ser medidas.
docentes? Por quê?

Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com


Não são muito motivados. Nem sempre percebem o quanto o saber alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
pode lhes fazer falta. anteriores? Poderia relatá-las?

O que é mais importante no seu papel como professor, formar um Penso que as experiências de dar sentido ao que se ensina e também
cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a de dar uma formação mais humana aos nossos alunos vem
contribuição da faculdade na melhoria da sociedade? principalmente do esforço pessoal dos professores em fazerem o
mesmo com suas próprias vidas. Ao nos esforçarmos para
melhorarmos a nós mesmos, estamos nos esforçando também para
Penso que o professor deve formar seres humanos mais conscientes, melhorar nosso próprio universo, e isso pode ser percebido até
com tudo de bom e de ruim que há nisso. Sucesso deve ser apenas mesmo sem diálogos específicos a respeito disso.
uma consequência de nossos atos e não devemos busca-lo como um
fim em si mesmo.

Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e


classificações no processo de ensino/aprendizagem?

193
Nome: Leslie Marko Considero essencial a presença da afetividade, da subjetividade e
assim como a manifestação e o estudo das artes como tradução do
Instituição de Ensino:ESPM mundo em que habitamos. Estes valores permitem a interação entre
Tempo de docência:10 anos discentes e com os docentes de forma a expressarem, de forma
integrada ao plano racional, o que percebem, pensam e sentem na
Disciplina: Comunicação e Linguagem, Expressão e Comunicação, sociedade.
Estudos e Projetos dirigidos, Teatro, Práticas de apresentação

Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou


Quais valores você vê no universo educacional do mundo não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O pode gerar/gera uma falta de sentido na formação?
que te motivava e o que te motiva ser professor?

É necessário integrar as área do conhecimento. Caso o


Vejo valores tanto para docentes como para estudantes: facilitação conhecimento permaneça fragmentado não necessariamente haverá
de processos aprendizagem, participação, autonomia, deficiência m porque cada um pode criar as pontes na medida do
horizontalidade, afetividade, desenvolvimento, ética, justiça. possível. Mas se o Curso fomenta a construção destas pontes,
qualquer construção será mais integrada e orgânica.

Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,


as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou
dos discentes? Você se vê responsável neste processo? dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso?

194
Em termos óbvios dificulta quando se perde foco e concentração e
ajuda quando auxilia em pesquisas e desenvolvimento. Mas penso
que também afeta, e isto é mais comprometedor, a relação docente- Penso que precisamos formar cidadãos para o mundo mas
estudante desgastando a mesma, facilitando-se a criação de formando profissionais isto será possível. Não abraço a linha de
barreiras, irritações, críticas superficiais e ausências. formarmos profissionais de sucesso se é que sucesso significa
processos de conquista/desafios/metas/produtividade/bem estar
individual, etc . A Faculdade pode contribuir na medida em que
aceite docentes com esta visão e componha no seu quadro de
No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou profissionais ambas as possibilidades (proporção maior para
desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os compreender a sociedade e seu potencial de mudança para um
docentes? Por quê?
mundo mais justo e melhor). Profissionais de sucesso poderão ser
também competentes pensadores desta sociedade.

É difícil de responder esta questão porque depende de cada curso,


cada área, cada Faculdade, etc. Mas penso que no geral o nível de Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e
motivação dos docentes está aquém do que poderia ser se houvesse classificações no processo de ensino/aprendizagem?
espaço e valorização para pesquisa, experimentação metodológica,
inovação e criatividade. Não se valorizam encontros sistemáticos e
coletivos de reflexão, questão importantíssima neste universo
educacional. Observo como desgastantes, mas necessários em um sistema
coerente com estes procedimentos. Eles poderão ser transformados
na medida em que a compreensão pedagógica de crescimento quem
sabe um dia instituído e vivida por todos os segmentos da educação,
O que é mais importante no seu papel como professor, formar um permita mudanças conceituais e práticas e onde a experiência do
cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a conhecimento seja mais importante que a manutenção de um
contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?
sistema hierárquico, meritocrático (fundado em condições sociais e
econômicas privilegiadas)e de poder em todos os sentidos..

195
Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com
alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?

Desconheço na Educação Superior formal e sim em Educação


infantil (Colégio Vera Cruz, Colégio St Nicholas (alguns aspectos)
Escola da Ponte, Agora, etc. ), espaços não formais (movimentos
juvenis). No âmbito da arte-educação estes valores são presentes e
cultivados. Assim em processos de construção coletiva no teatro por
exemplo, existem numerosas experiências satisfatórias e que
merecem ser objetos de pesquisa e principalmente de inspiração.

Penso que esta pesquisa que você está realizando Thiago, além de
apaixonante é muito necessária para abrir brechas e proporcionar
elementos para aberturas críticas e experiências inovadoras
coerentes. Parabéns! Fico interessadíssima em conhecer mais e
acompanhar!

196
Nome: Vera Pacheco O que te motivava e o que te motiva ser professor?
Instituição de Ensino: FAAP
Tempo de docência: 30 anos Vocação , para ser professor não basta ser profissional é preciso
Disciplina: Marketing e Comunicação ser apaixonado por aquilo que faz.

Quais valores você vê no universo educacional do mundo Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,
contemporâneo? as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento
dos discentes?

Com a tecnologia e as mudanças de valores ocasionadas por ela.


O universo educacional deve acompanhar os novos valores sem Não há medida para o conhecimento dessas disciplinas , devem

fronteiras , geográficas e demográficas. estar presente na vida dos alunos sempre.

Como você vê a educação no mundo de hoje? Você se vê responsável neste processo?

Muito mais colaborativa. Modelos de aula onde o professor é o ator De certa forma sim, o marketing e a comunicação também
promovem os sentimentos.
principal, está acabando. Metodologias ativas serão cada vez mais
aplicadas.

197
Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
não dialogam entre elas? Os alunos ficam sem foco. Frações de segundos distraídos com o
celular perdem uma linha de raciocínio e o a aprendizado fica raso.
Não, os programas disciplinares dos cursos que lecionam, sempre
estão alinhados com todas as disciplinas do semestre em questão. No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou
desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem?
Em que medida você percebe que isso pode gerar/gera uma falta de
sentido na formação? São motivados pq tem consciência da importância do ensino
superior.
O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou Ficam desmotivados dependendo de quem está na linha de frente.
dificulta a aprendizagem?

E os docentes? Por quê?


O uso constante dos celulares não só dificultam aprendizagem,
como evocam outras consequências na saúde física e mental . Para os docentes cada vez mais motivar alunos tem sido desafiador.
Porém os professores de alguma forma deve conscientizar os alunos A concorrência da atenção tem sido desleal. Acredito que a
e não proibir o uso, pq isso não vai adiantar. motivação venha da sua vocação que não o deixa desistir.

Como você faz para perceber isso?

198
O que é mais importante no seu papel como professor, formar um Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com
cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores?

As duas coisas., um profissional ético .


Levando em consideração a falta de foco e atenção a melhor

Qual a contribuição da faculdade na melhoria da sociedade? metodologia são as aulas invertidas. Tenho usado essa metodologia
e consigo um aproveitamento de aproximadamente 80%.

Na instituição que leciono, as disciplinas de humanidades refletem


Poderia relatá-las?
muito sobre essas questões e com certeza formando alunos mais
preocupados em com a sociedade.
Desenvolvi um projeto em parceira com a empresa Coral, projeto
social Tudo de cor.
Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e
classificações no processo de ensino/aprendizagem? A primeira etapa foi o desenvolvimento de um artigo sobre
marketing social .

Ainda necessário, mas acredito que as mudanças também A segunda etapa foi a visita nas ongs beneficiadas com o projeto,

acontecerão nesses aspectos. indicadas pela empresa, com entrega e relatórios de observações,
entrevistas e resultados. Excelente envolvimento de todos os grupos.

199
Nome: Pedro Calabrez pelos meios de comunicação eletrônicos, em especial aqueles que
Instituição de Ensino: ESPM (10 anos, 2007-2016), Belas Artes (1 são mediados pela internet. As pessoas estão cada vez menos
ano, 2016), FIA (4 anos, 2013-2017), Casa do Saber (7 anos, 2011- dispostas a investir meses ou anos de suas vidas em cursos que, no
2017), Instituto Europeo di Design (2 anos, 2016-2017) fim das contas, agregarão muito pouco a suas vidas. “Nanocursos”

Disciplinas: Filosofia da Comunicação, Fronteiras do são cada vez mais comuns fora do Brasil: cursos pequenos e curtos,

Comportamento Humano, Psicologia, Neurociências Aplicadas, sobre temáticas específicas que sejam de interesse ao público. Essa

Economia Comportamental é uma realidade até mesmo em grandes universidades tradicionais.


Em um mundo veloz, uma graduação que toma quatro anos é, hoje,
uma mera formalidade. Cada vez mais busca-se um diploma apenas
Quais valores você vê no universo educacional do mundo
para ter acesso ao mercado de trabalho, e não para adquirir
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O
conhecimento. Afinal, ao final dos quatro anos o mundo já será
que te motivava e o que te motiva ser professor?
outro. Não faz sentido uma grade de disciplinas rígidas pré-
estabelecidas pelo MEC. Muita coisa que se ensina hoje estará
O mundo mudou e muda em uma velocidade estonteante. Apesar morta amanhã.
disso, a educação formal permanece mais ou menos inalterada.
Nesse processo, vejo dois movimentos simultâneos.
O segundo movimento é consequência do primeiro: existe um
Primeiramente, uma grande demanda por conhecimento menos abismo entre o que se ensina em universidades e faculdades e a
engessado, menos pautado em modelos rígidos tradicionais, e mais realidade do mercado de trabalho. A educação está, em termos
acessível aos mais diversos públicos. Esse movimento é certamente, literais, atrasada. Em descompasso com o ritmo em que o mundo se
ao mesmo tempo, causa e efeito da disseminação de informação encontra. Isso torna a educação formal, cada vez mais, uma mera

200
formalidade, algo que se cumpre para que seja atendida uma quatro (ou mais) anos investidos na faculdade serão de pouquíssima
estética educacional. Diploma de ensino superior permite acesso a valia para o egresso, em todos os sentidos.
uma parcela de vagas de emprego mais seleta – e é por isso que os O que me motiva a ser professor vai na contramão desse
jovens fazem faculdade. Não pela utilidade do conhecimento. Afinal, movimento. Para mim, educação não é mero meio para obter
ele é cada vez mais distante do mundo profissional de fato. Muito emprego. Ela é a base de todo comportamento necessário a um bom
menos pelo valor do conhecimento em si. Afinal, a valorização do cidadão, a um bom ser humano. Uma sociedade carente de
conhecimento em si é cada vez menos trabalhada, em todos os níveis educação, como a brasileira, não saberá votar, gerir suas finanças
educacionais. O ensino médio serve para passar no vestibular. O domésticas, abrir e manter um negócio, compreender as mudanças
ensino superior serve para ganhar um diploma e trabalhar. Cada políticas, sociais e econômicas. Não saberá lutar por estratégias de
vez menos educamos pelo valor do conhecimento, cada vez menos pensamento para viver e conviver da melhor forma. Educação é a
educamos para melhorar o pensamento, a vida e o convívio dos base da independência de um cidadão.
seres humanos em sociedade. Cada vez menos formamos seres Veja, então, um efeito evidente desse movimento: nunca foi tão
humanos com H maiúsculo, seres pensantes, cidadãos, e cada vez grande a demanda por autoconhecimento. Afinal, no Brasil, quase
mais formamos profissionais técnicos, cuja técnica, em muitos nada em nossa educação formal (fundamental, média e superior)
casos, está atrasada, pois a grade de disciplinas dos cursos está nos oferece insumos para refletirmos sobre nós mesmos.
igualmente atrasada. Se compararmos com a educação filosófica Professores que, através das redes sociais, oferecem tais insumos,
grega, por exemplo, creio que nunca estivemos tão longe desse
atingem o status de celebridade nos dias atuais. Veja Cortella,
modelo. Os gregos buscavam formar mentes pensantes. Hoje Karnal, Clóvis de Barros. Entre os livros mais vendidos no Brasil,
escolas, faculdades e universidades estão longe disso. Ou seja, os temos cada vez mais filosofia, psicologia e afins. Os cursos de
psicologia despontam, hoje, entre os mais concorridos do Brasil em

201
quase todas as universidades. As pessoas estão em busca de si
mesmas, e infelizmente nosso sistema educacional coíbe essa busca, Como neurocientista, posso ser taxativo: não há educação sem
por não oferecer grades curriculares alinhadas a ela. O exemplo da emoção. Os processos emocionais estão na base do aprendizado
ESPM é emblemático: em 2016, metade das disciplinas de ciências longevo e efetivo. Mesmo nas aulas mais formais e técnicas, sem
humanas foram removidas da grade do curso de Publicidade e emoção a absorção do conteúdo será pequena ou inexistente. Para
Propaganda. Isso está acontecendo de forma massiva. O resultado é além disso, do ponto de vista do cérebro, um pensamento diverso e
muita gente demandando autoconhecimento, mas não encontrando plural é, inclusive, saudável. O ensino de artes, de maneira geral, é
na educação formal. Por consequência, essa demanda é atendida engrandecedor não só pela imensamente importante noção de que
por outros “fornecedores”, fora da esfera educacional formal. Por as expressões artísticas são uma janela para a natureza humana –
um lado, é ótimo. Por outro, nunca se viu tanta informação falsa, mas também para que sejamos capazes de um pensamento
deturpada e pouco refletida. Mas quem pode mudar isso – os transdisciplinar, capaz de criar conexões criativas entre campos
professores, pensadores e pesquisadores –, em vez de compreender que, à primeira vista, parecem completamente distintos. Vejo esse,
essa dinâmica e se adequar ao mundo, frequentemente preferem inclusive, como um movimento para o futuro da ciência: a
ficar seguros dentro dos muros de universidades e laboratórios, em integração de visões de campos diversos é cada vez mais objeto de
círculos de especialistas que só falam para si mesmos. Precisamos estudo de grandes pensadores e pesquisadores. Nada disso é
mudar isso. possível sem criatividade, e pouca coisa cria terreno fértil para a
criatividade como o estudo das artes.
Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento
dos discentes? Você se vê responsável neste processo?

202
Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou Dificulta tremendamente. Deveriam ser proibidos em sala de aula.
não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso Hoje em dia confundimos o “comum” com o “normal”. É comum
pode gerar/gera uma falta de sentido na formação? ficarmos o tempo inteiro mexendo em celulares. Mas para um
aprendizado normal, ou seja, para a norma geral de funcionamento

Disciplinas, “cadeiras” disciplinares, no ensino superior, do cérebro que permite um bom aprendizado, isso é muito

geralmente são ilhas de conhecimento com pouquíssimo diálogo prejudicial. Atenção é energia (carga cognitiva) dedicada a um

entre elas. Na contramão do que disse acima – do movimento para o estímulo. Quando temos múltiplos estímulos, isso necessariamente

qual ruma a ciência, um movimento transdisciplinar de diálogo –, exige uma distribuição de energia. Acontece que energia é limitada.

as grades curriculares no Brasil são engessadas e pouco A mera presença de um celular, mesmo em modo silencioso,

integradas. Fazem muito sentido no papel. No entanto, na prática, prejudica nossa capacidade cognitiva (Adrian F. Ward, Kristen

não poderiam ser menos desconexas. Isso obviamente cria uma falta Duke, Ayelet Gneezy, Maarten W. Bos. Brain Drain: The Mere

de sentido formativo nos jovens. O ensino é uma colcha de retalhos. Presence of One’s Own Smartphone Reduces Available Cognitive

Afinal, formamos fazedores de vestibular, e não seres pensantes Capacity. Journal of the Association for Consumer Research, 2017;
2 (2): 140 DOI: 10.1086/691462).
capazes de integrar ideias diversas em sistemas de pensamento
holísticos.
As tecnologias móveis e a internet são fantásticas em diversos

O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou aspectos. Como disse acima, ela permite que as pessoas acessem

dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso? informação e conhecimento que jamais conseguiriam décadas atrás.
Mas precisamos ter consciência das limitações que elas impõem à
educação. Não é porque algo é comum que devemos adotar como

203
norma. Não é porque tudo é permitido que tudo é, necessariamente, estará plenamente motivado. Nas inúmeras universidades e
bom. faculdades particulares, professores trabalham como taxistas:
acumulando o máximo de horas aula para terem um melhor salário.

No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou Nesse contexto, é muito difícil priorizar o estudo, pesquisa e

desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os atualização do conhecimento. Nas públicas, criam-se muitas vezes

docentes? Por quê? guetos intelectuais de profissionais que, nos termos de Bourdieu,
apenas trabalham para a manutenção do próprio poder. Mesmo nas
universidades de ponta, geralmente públicas, o pesquisador não tem
Vejo muita motivação por parte dos estudantes, que acaba sendo
verba, o professor não tem condições para fazer seu melhor. Por
frustrada pelo engessamento e falta de sentido no ensino que
isso perdemos, ano a ano, nossos melhores professores para
mencionei acima. Jovens gostam de aprender. Aliás, o ser humano
universidades fora do Brasil.
gosta de aprender. Mas quando o processo de aprendizagem não é
compreendido em seu sentido amplo, muitas vezes perde-se a
motivação para aprender. Aí vemos a cena tão comum em O que é mais importante no seu papel como professor, formar um

universidades e faculdades: jovens que querem apenas que aquilo cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a

termine logo para que possam viver suas vidas. contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?

Da parte dos professores, creio que o sistema educacional é Sem sombra de dúvida é a formação de um cidadão. Para mim, a

extremamente desmotivador. Primeiramente pelos incentivos: quem noção de sucesso é intimamente atrelada ao impacto positivo que

ganha pouco e trabalha em condições precárias certamente não um ser humano tem sobre a vida em sociedade e, por consequência,

204
sua própria vida. Precisamos revisitar o conceito de sucesso que O modelo escandinavo é, para mim, um exemplo interessante. A
tem sido disseminado. A vida bem-sucedida desejada por muitos, valorização, antes de mais nada, do professor e do seu papel. A
hoje, é uma vida infeliz e sem sentido. A educação deveria lutar valorização do conhecimento, do papel do conhecimento na vida
contra isso, e não a favor. dos alunos e da sociedade. A educação não pode ser mera
formalidade. Ela deve ser a base e o foco de uma sociedade que
pretende criar um mundo melhor amanhã do que temos hoje.
Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e
classificações no processo de ensino/aprendizagem?

Precisamos, evidentemente, classificar e avaliar a qualidade do


ensino. Isso não significa que os critérios utilizados, atualmente,
sejam os melhores. Creio que essa é a chave da questão: precisamos
de uma grande reflexão e reformulação do papel do ensino, para
então criar sistemas de avaliação condizentes.

Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com


alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?

205
Nome: João Osvaldo Schiavon Matta conhecimento profundo com qualquer informação que pela mídia
Instituição de Ensino: ESPM - SP circula livremente sem qualquer critério curador. A educação de

Tempo de docência: 18 anos hoje, ao se tornar um dos mais promissores negócios para os
investidores contemporâneos, perde seu papel social de preparar o
Disciplina: Teoria da Comunicação
sujeito para o mundo da vida, tornando-se mera ferramenta para
atingir o que o mundo neoliberal denominou “sucesso”. À revelia
1. Quais valores você vê no universo educacional do mundo da projeção dos pais, os jovens de hoje estão à mercê de um sistema
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O de ensino que trata alunos como clientes e professores como
que te motivava e o que te motiva ser professor? serviçais. Isto os tira da realidade ao desviá-los do aprendizado
pela experiência e pela capacidade de lidar com seus limites e
No caso de uma eventual generalização, vejo a perda de valores no frustrações, partes importantes no processo de aprendizado.
universo educacional contemporâneo como um dos principais
sintomas da crise holística pela qual passamos. O lugar que está O que me motivou durante muitos anos a ser professor foram três
sendo dado à educação coloca-a em perigosa mistura com o fatores: 1. O aprendizado contínuo que esta atividade no leva a
entretenimento e com o mercado. Esta tríade, tipicamente experimentar; 2. O distanciamento do mundo da educação do
contemporânea, esgota os valores modernos circunscritos na mundo fake do universo empresarial, que experimentei por 16 anos
educação – valor ao conhecimento científico, ao detentor do antes de dar aula; 3. A interação verdadeira em sala de aula, onde
conhecimento e aos que se desafiam pelo caminho de adquiri-lo. às portas fechadas, a relação professor aluno é verdadeira e o
Confunde-se, de forma sem precedentes, a educação com o feedback é real e instantâneo. Hoje, apenas o item 1. me mantém
divertimento, o professor com um animador de festas e o motivado na atividade.

206
poesia, torna-se robotizada e sem sentido. E é a educação que deve
Não devo deixar de considerar que o pano de fundo desta minha apresentar ao sujeito contemporâneo estas possibilidades de dar
trajetória está alicerçado em minha verdadeira fé de que a única sentido à vida.
saída desta crise da modernidade em que nos metemos neste início
de milênio é a educação. 3. Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso
2. Em que medida você considera a educação para com os pode gerar/gera uma falta de sentido na formação?
sentimentos, as artes, a metafísica e a poesia importantes para o
desenvolvimento dos discentes? Você se vê responsável neste Com a educação cada vez mais voltada ao entretenimento e ao
processo? objetivo de dar lucro, os diálogos interdisciplinares tornaram-se
secundários nas instituições de ensino, em todos os níveis. Não há
Nosso percurso histórico nos mostra, frequentemente, que a uma preocupação com os diálogos interdisciplinares, visto que os
educação meramente técnica e instrumental para preparar apenas alunos chegam ao ensino superior sem qualquer preparo para
objetos para o mundo do trabalho não traz ao mundo as reflexões, conectar diferentes saberes, não se mostrando equipados para as
as transformações e o amadurecimento que tanto desejamos. Nosso necessárias conexões entre autores, teorias, pensamentos e práticas.
desejo por uma vida que preserve nossa humanidade passa pelo A formação, principalmente ao ser consolidada pelo ensino
profundo entendimento de nós mesmos, de nossas ambições, de superior, não prepara, atualmente, o estudante para a vida, mas sim
nossos sonhos, de nossas fantasias. Uma vida sem para o exercício funcional de uma profissão. Não faz sentido uma
autoconhecimento, sem as artes, sem as buscas metafísicas e sem formação que apenas prepare o indivíduo para o desempenho

207
técnico de uma profissão, pois isto não o capacita a exercer seu respeito do quanto a tecnologia portátil e móvel realmente
papel em outros universos da vida social – como cidadão, como atrapalha a educação.
familiar, como amigo, como participante de uma comunidade, como
eleitor etc.
Minha experiência de 18 anos como educador e 16 de mercado me
leva a poder pensar que não é o uso da tecnologia em sala de aula
4. O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou que atrapalha o aprendizado do aluno no mundo atual, é seu
dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso? desinteresse por aquilo que não sabe e não faz parte do conteúdo
distribuído pela mídia em geral. Para os jovens, só faz sentido

Sem dúvida, os “eletrônicos portáteis” hoje significam um potencial aquilo que ele já sabe (o pouco ou quase nada) e que é legitimado

empecilho às relações sociais presenciais, ao mesmo tempo em que pelos influenciadores contemporâneos youtubers, cantores,

aprimoram as relações online, que podem complementar os jogadores de futebol. As celebridades nunca tiveram lugar tão

relacionamentos offline. Assim, não vejo estes aparatos como os privilegiado na construção do contexto social e da cultura como têm

principais empecilhos para a aprendizagem no mundo atual, nem hoje. As mesmices e simplificações grosseiras das teorias sociais

tampouco como algo que traga significativas melhoras a este apresentadas por youtubers, intelectuais midiáticos e outras

processo. Cada caso precisa ser estudado em separado para celebridades atrapalham muito mais o aprendizado que,
propriamente, a tecnologia móvel e portátil.
alguma conclusão um pouco mais confiável a este respeito. O senso
comum insiste em distribuir visões tecnofóbicas a este respeito, mas
com pouco ou quase nenhum rigor científico em suas conclusões a

208
5. No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados 6. O que é mais importante no seu papel como professor, formar um
ou desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a
docentes? Por quê? contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?

De alguma forma respondi boa parte desta pergunta na anterior. Sem dúvida, diante de todas minhas respostas anteriores, forma um
Há uma desmotivação generalizada no mundo contemporâneo em cidadão, um sujeito para a realidade e não mais um objeto de
relação ao processo de geração do conhecimento – seja para se projeção e competição de pais submetidos a um modo de vida
construir a partir de pesquisas científicas, pensamentos profundos, monoliticamente neoliberal. A faculdade deveria consolidar e
ensaios, produções artítsticas, como para se adquirir através de aprofundar o início de uma formação que, ao complementar a
leituras, discussões. Em relação ao corpo docente brasileiro, educação familiar, prepararia os jovens para as mudanças que o
vivemos uma importante desvalorização de nossas funções enquanto mundo tanto precisa.
professores, pesquisadores e orientadores de pesquisa. Tanto o
governo atual como a iniciativa privada insiste em colocar-nos em 7. Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e
lugar qualquer na sociedade, sem qualquer valor, o que é, no classificações no processo de ensino/aprendizagem?
mínimo, incoerente visto que a retórica vai na direção contrária, do
desenvolvimento, da evolução. Este momento de desprezo ao
Instrumentos da Sociedade de Controle que só servem como formas
conhecimento, ao mundo da pesquisa, à profundidade científica
de se manter a hegemonia e os privilégios de quem está no poder.
acompanha o tom que tivemos na época do golpe de 64 e em outros
momentos obscuros de nossa história recente.

209
8. Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com
alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?

Não. Há alguns casos no ensino público que servem como estado da


arte destes enfrentamentos, mas são ofuscados pelos casos de
escolas da moda.

210
Nome: Alberto Montoya · A noção de uma paideia geralmente já não consta nos objetivos
Instituição de Ensino: ESPM das organizações educacionais.

Tempo de docência: 15 anos


Disciplina: Geopolítica Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso
pode gerar/gera uma falta de sentido na formação?
Quais valores você vê no universo educacional do mundo
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O
que te motivava e o que te motiva ser professor? · Creio que a pergunta esteja “enviesada”, infere que a falta de
diálogo é a premissa. No curso de Relações Internacionais as
disciplinas do eixo estruturante do curso dialogam, o mesmo para
· Educação para a produtividade mercadológica, geração e
os professores responsáveis por essas disciplinas. Por exemplo,
manutenção de empregos/atividades econômicas.
Geopolítica é ministrada no quarto semestre do curso e dialoga com
· Transmitir para as gerações subsequentes os dilemas geopolíticos
disciplinas que estão alocadas antes na matriz curricular (Teoria e
da paz e da guerra nas relações internacionais.
História das RI), outras que são concomitantes no quarto semestre
(Análise de Processo Decisório e Economia Política Internacional),
Em que medida você considera a educação para com os sentimentos, por fim, disciplinas posteriores (Política Internacional no quinto
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento semestre).
dos discentes? Você se vê responsável neste processo?

211
O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou O que é mais importante no seu papel como professor, formar um
dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso? cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a
contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?

· O uso constante de equipamentos eletrônicos não me parece ser o


problema, desde que mobilizados pelos discentes para acessar ou · Tentar despertar o desejo de saber, o amor pela busca do saber.
ampliar as discussões em sala. Creio que o problema esteja no · Entendo que diferentes faculdades tenham “funções sociais”
objeto de uso, por vezes são redes sociais com conteúdos alheios ao distintas, creio ser difícil depurar uma função geral. No caso da
tema da aula, assim como jogos eletrônicos. ESPM, vejo que a sua missão é formar “transformadores”,
sobretudo no ambiente mercadológico e empresarial.
No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou
desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e
docentes? Por quê? classificações no processo de ensino/aprendizagem?

· Não entendi qual seria a conotação de motivação, por exemplo, · Mais uma vez, a pergunta soa estranho. Parte da premissa que há
vontade de saber, melhores empregos/remuneração, excesso de burocracia, porém, não indica o que seria considerado
aperfeiçoamento da cidadania? um nível normal ou baixo de burocracia.

212
Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com
alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?

· Na ESPM, temos o Núcleo de Prática Pedagógica e a Academia


Nacional de Professores que oferecem diferentes cursos, oficinas e
workshops para os professores durante todo o ano sobre diversos
temas abordados acima. Creio que o mesmo deveria ser estendido
aos discente, proporcionando novas oportunidades para entendem o
processo de aprendizagem.

213
Nome: Andrey Mendonça Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,
Instituição de Ensino: ESPM-SP as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento

Tempo de docência: Dez anos dos discentes? Você se vê responsável neste processo?

Disciplina: Teologia e Filosofia


Acredito que os aspectos elencados são fundamentais para um
desenvolvimento saudável dos discentes. Penso, diferentemente da
Quais valores você vê no universo educacional do mundo
modernidade, que não existem conteúdos puros. É papel do
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O
professor mediar os conteúdos a partir das diversas formas de
que te motivava e o que te motiva ser professor?
recepção da linguagem humana, como arte, literatura, religião e
outros símbolos da cultura.
Ao menos, enquanto discurso, os valores apregoados no mundo da
educação são a pluralidade de ideias, o respeito à diversidade de
Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
pessoas nas mais diferentes dimensões e os papeis de professores e
não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso
estudantes como mentores e coprodutores da aprendizagem. O que
pode gerar/gera uma falta de sentido na formação?
sempre me motivou foi a sala de aula, não apenas enquanto lugar
físico, mas o contato com os estudantes nas mais diversas dimensões
da vida, isto é, o processo de ensino/aprendizagem como via de mão Em geral, sempre procurei dialogar com as outras disciplinas,
dupla. talvez, por causa da especificidade da teologia e da filosofia como
suportes meta-teóricos dos mais diversos campos do saber.

214
O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou Penso que, de forma geral, estudantes e docentes não são
dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso? motivados, de fato, para o processo educacional. Embora reconheça
que há diversas ações de marketing e iniciativas pedagógicas por

Na minha experiência como docente na ESPM, o uso da tecnologia, parte das Instituições de Ensino, estas se tornam ineficazes, pois
não há confiança da eficácia desses métodos.
sem uma normatização estrutural, pode atrapalhar o processo de
aprendizagem. Pois, os estudantes, ao menos em grande parte,
encontram-se envoltos em um mundo particular nos seus gadgets. E No final das contas, há uma supervalorização dos métodos e um
quando pedimos para que eles usem seus aparelhos para a aula, há descaso com as pessoas partes do processo (docentes e discentes),
uma apatia geral, como se eles tivessem que sair do universo que são vistos como instrumentos da técnica. Neste sentido, a
paralelo e retornar à sala de aula. No entanto, quando usamos os educação, em nossa opinião, retorna à caverna platônica, ou seja,
laboratórios informatizados, há um engajamento tanto na aula ao obscurantismo e ao teatro da aprendizagem.
como na produção de conteúdo. O que nos leva a pensar que
precisamos construir mais pontes entre o ensino e os meios digitais.
O que é mais importante no seu papel como professor, formar um
cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a
No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?
desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os
docentes? Por quê?
Esse, talvez, seja o grande dilema da contemporaneidade. As IE’s
cada dia mais são cobradas pela eficácia mercadológica, isto é,
pela formação de profissionais competentes e competitivos no

215
mundo corporativo. No entanto, nosso papel no processo
educacional, especialmente da filosofia, é conduzir os estudantes à Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com
autorreflexão e ao autoconhecimento. O objetivo não é formar, alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
colocar em formas, formatar, ao contrário, nas palavras de Mia anteriores? Poderia relatá-las?
Couto “repensar o pensamento”, as formas de vida existentes, o
mundo, a economia, a política e todas as construções sociais, e,
Talvez, em nossa experiência, uma das experiências mais
partir disso, reconectar a pessoa com a realidade da vida que nos
enriquecedoras foi vivida durante esse ano. Num ambiente menos
cerca. Penso que o papel das IE’s na melhoria da sociedade é cada
formal que a sala de aula, propomos que os estudantes fizessem, em
vez mais raro, já que seu objetivo está vendido aos ditames do
grupos, um exercício de fala e escuta. O tema do encontro era a
mercado.
vida interrompida: aborto e suicídio. Após uma breve explicação
sobre a confidencialidade daquele momento, as pessoas começaram
Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e a partilhar suas experiências de vida, alguns falaram de terceiros,
classificações no processo de ensino/aprendizagem? outros de parentes próximos e poucos de si mesmos.
Ao final do semestre, todas as turmas que vivenciaram a
Particularmente, desacreditamos de todos os processos experiência, falaram que aquele dia foi um marco. Conhecer as
burocráticos e métricas que tentam mensurar o processo pessoas, e as histórias de vida por elas relatadas, acolher a dor e o
educacional de forma matemática. Estes perdem sua eficácia sofrimento, foi simplesmente transcendente.
quando buscam padronizar algo que é subjetivo, isto é, do campo da
percepção psicossocial dos docentes e discentes.

216
Nome: Arnaldo Mendes Junior tento fazer o melhor como agente transformador da sociedade, mas
me motivando pela remuneração, status e liberdade de gestão de
Instituição de Ensino: ESPM tempo que a profissão oferece.
Tempo de docência: 20 anos

Disciplina: Marketing
Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento
dos discentes? Só acredito na formação holística do ser humano.
Quais valores você vê no universo educacional do mundo Para mim, estas são dimensões mais importantes de serem
contemporâneo? Vejo valores conflitantes alicerçando o universo desenvolvidas nos discentes do que os conhecimentos aplicáveis,
educacional contemporâneo. De um lado vejo idealismo, meramente operacionais e transitórios.
patriotismo, compartilhamento, integração, curiosidade e
generosidade. Por outro lado, vejo valores negativos, como Você se vê responsável neste processo? Sem dúvida. Porém,
individualismo, vaidade, pragmatismo e fins justificando meios. E limitado pelo programa das disciplinas das áreas que leciono, todas
esses valores estão distribuídos entre todos as classes participantes mais técnicas. Por outro lado, me exponho pessoalmente de forma
do universo intensa a fim de demonstrar, na prática docente e no
relacionamento interpessoal, a importância desses saberes e como
Como você vê a educação no mundo de hoje? Vejo com usá-los na sua vida, inclusive profissional.
preocupação e otimismo. Preocupado com a batalha de valores
conflitantes e com o atual placar mais favorável aos valores
negativos, ao meu ver. Otimista, pois sei que a educação é a única Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
forma de evoluirmos social e humanamente. não dialogam entre elas? Leciono uma das disciplinas tronco (eixo)
O que te motivava e o que te motiva ser professor? Era motivado dos cursos de minha escola. Em minha disciplina faço incursões em
pelo ideal de transformação da sociedade brasileira, da construção história, geopolítica, cultura, tecnologia, sociologia, psicologia,
de uma sociedade mais justa e feliz. Hoje sou mais pragmático: análise ambiental ampla, dentre outros temas mais breves. Apesar
disso, não me sinto trabalhando de forma integrada às atividades de

217
meus demais colegas que se dedicam ao estudo mais aprofundado desenvolvimento de visão crítica, exigida para uma atuação
de cada uma dessas áreas de conhecimento. O diálogo se dá pela profissional e cidadã adequadas, gerados pelos atraentes conteúdos
eventual integração pela grade curricular, não pela articulação dos acessados pelos dispositivos digitais, fazem com que cada aluno se
agentes e processos. isole da sala de aula e das dinâmicas que estão sendo propostas,
normalmente mais custosas e menos prazerosas que os atrativos do
Em que medida você percebe que isso pode gerar/gera uma falta de ciberespaço.
sentido na formação? É um dos fatores que me parece estar levando
à vitória, parcial e temporária, dos valores negativos, já citados por
mim anteriormente. A falta de compreensão do discente, gerado
pelo esforço fragmentado de aprendizagem que ele realiza em cada No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou
disciplina, e a falta de visão do todo e da sua participação no desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? Estão
processo maior de formação dos discentes, por parte dos docentes desmotivados, por que não vem sentido em suas vidas além do
que dirigem e influenciam esse processo leva a esse pragmatismo consumo e do prazer imediato. Querem viver apenas o hoje, visto
funcional, A formação fica negligenciada por ambas as partes. que não sabem o que esperar do futuro. Por outro lado, não foram
preparados para lidar com a perseverança, humildade dedicação e
disciplina que o estudo exige.

O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou E os docentes? Já os docentes estão desmotivados, em parte, por
dificulta a aprendizagem? A aprendizagem do aluno não é motivos semelhantes, nas novas gerações de docentes, enquanto que
prejudicada, pois algo ele sempre estará aprendendo a partir de as gerações mais velhas estão desmotivadas por verem seus ideais
qualquer experiência de vida. Mas a sua formação nas áreas de transformação da sociedade não serem alcançados, se sentirem
específicas do saber que consideramos importantes para que atinja desvalorizados socialmente e serem vistos como obstáculos e
a plenitude de sua forma humana e profissional, esta está sendo opositores aos interesses dos alunos.
muito dificultada e prejudicada, mesmo.

Como você faz para perceber isso? O permanente desvio de atenção


e a perda do foco, necessários para o verdadeiro aprendizado e O que é mais importante no seu papel como professor, formar um
cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso?

218
O mundo precisa de cidadãos críticos e conscientes, para que
tenhamos profissionais, políticos, empresários e pessoas em geral
éticas e úteis, e assim, construamos uma sociedade de verdadeiro
sucesso.

Qual a contribuição da faculdade na melhoria da sociedade? Seu


papel seria finalizar a formação cidadã profissional, levando o
estudante ao seu pleno desenvolvimento para participação na
sociedade, através de sua atuação técnica.

Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e


classificações no processo de ensino/aprendizagem? Como fatos de
mercado: inexoráveis, mas que devem ser considerados apenas
como fatores de mercado, não como direcionadores de esforços.

Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com


alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?

Experiências sistemáticas só conheço as promovidas no Canadá e,


principalmente, na Finlândia.

219
Nome: Ricardo Poli de Campos sua totalidade. Afinal, os valores da educação são intangíveis e os
de uma empresa se resumem a lucratividade. Minha motivação
Instituição de Ensino: ESPM – Escola Superior de Propaganda e sempre foi a mesma, interagir com meus alunos ensinar e aprender
Marketing com eles, seja do jeito que for.
Tempo de docência: 23 anos

Disciplina: Marketing III, dentre outras.


Em que medida você considera a educação para com os sentimentos,
as artes, a metafísica e a poesia importantes para o desenvolvimento
dos discentes? Você se vê responsável neste processo?
Quais valores você vê no universo educacional do mundo
contemporâneo? Como você vê a educação no mundo de hoje? O
que te motivava e o que te motiva ser professor?
Acho mais do que fundamental. Tenho dificuldades nesse
sentido em função das disciplinas que venho lecionando nos últimos
tempos. Minha saída sempre foi tentar me utilizar “da educação
Trata-se de uma pergunta extremamente ampla. Em se para com os sentimentos” durante o processo de aprendizagem
tratando do universo do ensino superior, vejo uma transformação estabelecido com meus alunos.
muito grande no que tange ao principal objetivo na formação dos
estudantes universitários. Hoje muito mais voltado para as
necessidades do mercado de trabalho, antes muito mais para as Você nota que as disciplinas dos cursos que você leciona/lecionou
necessidades do mundo. Sob o ponto de vista das instituições não dialogam entre elas? Em que medida você percebe que isso
educacionais privadas, percebo um tipo de gestão em que os valores pode gerar/gera uma falta de sentido na formação?
primordiais da educação vêm deixando de ser prioridade. Acredito
que uma instituição privada, ainda mais em se tratando de uma
fundação ou associação, deve executar processos eficientes de
gestão empresarial. Entretanto, não devem ser geridas como tal em Em certa medida há um certo diálogo. E quando não há, não
acredito que que isso gere falta de sentido na formação do

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estudante. Particularmente, de uns tempos para cá, sempre procurei Os estudantes são o alvo desse processo, não acredito que
estabelecer algum tipo de conexão entre a minha disciplina e a tenham expectativas muito bem definidas em relação a isso. Logo,
outras que pertenciam à grade curricular dos estudantes. Isso, em cabe muito mais ao professor motivá-los nesse sentido. Já os
certa medida é algo mais propício quando se leciona uma disciplina docentes se sentem motivados quando tais processos não sejam
que é o centro da formação dos estudantes. Acredito que os impostos. Quando impostos, esses os utilizam de forma ritualista.
professores de tais disciplinas sejam os maiores responsáveis por Mas quando é convidado e apresentado a conhecer um universo de
fazer isso acontecer. possiblidades, acredito que faz questão de se aprimorar em fazer
uso de técnicas que efetivamente melhorem seu processo de ensino.

O uso constante dos celulares e computadores portáteis facilita ou


dificulta a aprendizagem? Como você faz para perceber isso? O que é mais importante no seu papel como professor, formar um
cidadão para o mundo ou formar um profissional de sucesso? Qual a
contribuição da faculdade na melhoria da sociedade?
Depende do uso. Se o uso for para fins acadêmicos, sem
problema. Mas o uso indiscriminado de tais recursos prejudica de
forma contundente a aprendizagem. Tento perceber isso interagindo Com certeza, a primeira opção. Tal pergunta remete à
com os estudantes. Existe o lado colaborativo, existe o lado da primeira. Acho que as universidades têm um papel fundamental na
vigilância, extremamente desagradável. melhoria da sociedade. Entretanto, se assim o fazem, é outra coisa.
Para que isso aconteça, é preciso que se tenha uma política para o
que deseja em relação às universidades. Um projeto de sociedade,
No seu ponto de vista os estudantes de forma geral são motivados ou de país, de futuro.
desmotivados para o processo de ensino/aprendizagem? E os
docentes? Por quê?

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Como você enxerga o excesso de burocracias, rankings, notas e
classificações no processo de ensino/aprendizagem?

O excesso é sempre desastroso. Cabe a cada universidade


entender cada um desses itens, se aproveitar na justa medida deles e
estabelecer um processo de comunicação institucional que a
defenda das distorções e prejuízos que essas classificações trazem.
Particularmente, em relação ao meu processo de
ensino/aprendizagem, isso nunca influenciou em nada.

Você conhece experiências educacionais que saibam lidar com


alguns dos possíveis problemas evidenciados nas perguntas
anteriores? Poderia relatá-las?

Não.

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