Tania Cristina Santos Boy Corrigida
Tania Cristina Santos Boy Corrigida
Tania Cristina Santos Boy Corrigida
Protocolo:
um gênero discursivo na pedagogia de leitura e escrita do teatro
SÃO PAULO
2013
TÂNIA CRISTINA DOS SANTOS BOY
Protocolo:
um gênero discursivo na pedagogia de leitura e escrita do teatro
SÃO PAULO
2013
TÂNIA CRISTINA DOS SANTOS BOY
Protocolo:
um gênero discursivo na pedagogia de leitura e escrita do teatro
Área de concentração:
Pedagogia do Teatro
SÃO PAULO
2013
FOLHA DE APROVAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
Profº Drª.Ingrid Dormien Koudela___________________________________________
Instituição: Universidade de São Paulo Assinatura:________________________
Profº Dr._______________________________________________________________
Instituição:____________________________ Assinatura:________________________
Profº Dr._______________________________________________________________
Instituição:____________________________ Assinatura:________________________
Profº Dr._______________________________________________________________
Instituição:____________________________ Assinatura:________________________
Profº Dr._______________________________________________________________
Instituição:____________________________ Assinatura:________________________
À Sofia,
a Claudinei
e aos meus pais.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos os companheiros de jogo de cena e da vida que colaboraram com este
trabalho de forma direta ou indireta.
Agradeço a minha paciente e compreensiva orientadora Ingrid Dormien Koudela pela
lucidez e tranqüilidade com que me acalmou nos momentos de deslize. Obrigada Ingrid,
por ter partilhado comigo em todos esses anos experiências tão instigantes. Ao seu lado,
Ingrid, a teoria é encarnada no teatro.
Agradeço a sempre amiga Prof.ª Dr. Maria Lúcia de Amorim Soares, que me apresentou
Michael Foucault e se dispôs a colaborar tão firmemente no exame de qualificação.
Obrigada por não descansar os pés no riacho.
Agradeço a Prof.ª Dr. Maria Lúcia de Barros Pupo pelas palavras tão profundas na
banca de qualificação que muito contribuíram para o encaminhamento da pesquisa.
Agradeço a colaboração da minha irmã Roselaine na correção e formatação do trabalho.
Agradeço a paciência do meu companheiro Claudinei, o doce sorriso da minha filha
Sofia, a colaboração infinita da minha mãe e o apoio do meu pai.
Agradeço, enfim, a paciência de todos que suportaram uma companhia tão mal
humorada nesses anos de percurso tão turbulento.
RESUMO
The present research studies the creation of a pedagogy of reading and writing in drama
through the use of a methodology of teaching-learning with the use of the evaluation
instrument protokoll considered by the researcher Ingrid Koudela. The object of the
research is composed by pieces of protokoll produced by the pupils of Koudela in three
works at the Theater Department of the University of Sorocaba, and at the University of
São Paulo. The present research studies Bertolt Brecht, detaching moments of his
family life, his work, his political position and his creative process that are related to the
protokoll. The research does an analysis of the protokoll in Brazil as used by Koudela. It
establishes the relations done by Koudela between the Theatre Game and the evaluation
system by Viola Spolin. The research also does an historical retrospect of the
contributions of the protokoll staging and workshops. Vygotsky helps to understand the
contribution talking and writing allied to practical experience. Bakhtin helps to
understand the protokoll a kind of contribution for the artistic sphere of the theater by
the concepts of the dyalogism and the polyphony. Michael Foucault understands the
Writing of Self as hupomnêmata and letter. Finally, the research demonstrates the
pedagogy of reading and writing in drama through the methodology of teaching-
learning by the use of the evaluation instrument protokoll.
Figura 4 - As alunas Bia Belde e Paola Bertolini no jogo ‘Siga o Seguidor’ ................. 66
Figura 8 - alunos na improvisação da cena com o modelo de ação: gravura da Ira ....... 84
Figura 15 - Os alunos Daniel e Alexandre na criação da cena do vício da Ira ............. 104
Figura 19 - O aluno Marco na cena da Ira durante o ensaio geral da encenação “Chamas
na Penugem” ................................................................................................................. 110
Figura 23 - Cena com o coro de Marie na encenação “A Ferida Woyzeck” ................ 127
Figura 25 - O ator Hamilton Sbrana como o padre que conduz a plateia pela cidade
durante a encenação ...................................................................................................... 168
Figura 26 – a pé da grande paineira, antiga parada dos tropeiros, a cena com parte do
sermão e música infantil ............................................................................................... 169
Figura 28 - várias espécies de peixes surgiam pelo jardim da fazenda ........................ 171
Figura 30 – no quadro vivo o gesto coreografado na cena do vício da avareza ........... 178
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 12
2. CAPÍTULO 1 ............................................................................................................ 24
2.1 BERTOLT BRECHT – UM DIARISTA ......................................................................... 25
1. INTRODUÇÃO
Em 2006, eu estava estudando para fundamentar a minha dissertação, quando fui presenteada
por meu marido com o livro ‘Diários de Brecht’ que ele encontrara remexendo as prateleiras de
um sebo. Livro interessante que trazia o registro da vida de Brecht escrito por ele mesmo.
Gostei de ouvir a voz de Brecht que escapava das linhas, gostei de conhecer o homem em sua
humanidade.
Então, no ano seguinte escrevendo a dissertação estava relendo algumas passagens do ‘Diários
de Brecht’ e quase cai da cadeira. No texto, Brecht demonstrava conhecer a obra de Plutarco,
filósofo grego que eu estava, naquele momento, estudando através do pensador Michael
Foucault. O filósofo francês buscara no mundo grego, os processos de escrita utilizados naquela
sociedade para fundamentar o conceito ‘Escrita de Si’. Eu estudava o conceito foucaultiano para
fundamentar a minha pesquisa sobre o Teatro Estudantil em que usava os protocolos.
Preocupada em compreender a escrita do protocolo, fiz uma conexão entre os estudos de
Foucault e o hábito de escrever diários de Brecht de quem vinha a proposta dos protocolos
utilizados por Koudela. Brecht tinha o hábito de escrever diários e no mundo grego, Sêneca e
Plutarco recomendavam o exercício da escrita diária. Acreditei que poderia haver uma ligação
entre as propostas e fui estudar os pensadores. Estava criada a conexão entre protocolo, Brecht,
Koudela e Foucault. Propus em minha dissertação a conexão entre os conceitos. Em minha
defesa, Ingrid Koudela destacou essa vinculação e sugeriu a continuidade das pesquisas.
Então, para compreender e fundamentar a escrita proposta por Brecht, que eu estava conectando
a Foucault, busquei no filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin os fundamentos teóricos que me
permitiam compreender os protocolos produzidos nos processos vividos na arte teatral seguindo
a metodologia de ensino-aprendizagem utilizada por Koudela. Também precisei abarcar a obra
de Koudela para compreender o caminho percorrido por ela na colaboração com a construção do
conhecimento na área da Pedagogia do Teatro.
Para pensar numa proposta de pedagogia de leitura e escrita no teatro, busquei definir o conceito
de pedagogia. Modernamente, associamos o termo pedagogia à compreensão da intervenção
intencional e do fenômeno educativo que promoveram a construção de um saber específico na
área da educação. No sentido etimológico, a palavra pedagogia tem origem grega e, na
antiguidade, era utilizada para identificar ‘aquele que conduzia a criança à escola’. Paulo Freire
(2002) afirma que o aprender precedeu o ensinar, ou o ensinar se diluiu na experiência de aprender,
nesse caminho compreendemos que a prática educativa como um fato social tem sua origem
ligada ao desenvolvimento da própria humanidade.
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O pesquisador José Carlos Libâneo (1999) compreende que a pedagogia deve tratar da
problemática educativa e ser a responsável pela diretriz orientadora da ação, deve ainda se
ocupar, do ato educativo e da prática concreta que se realiza na sociedade.
O trabalho do pesquisador Humberto de Andrade Pinto, da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, mostra que, atualmente, há intensos debates sobre os conceitos que
definem a pedagogia. Pinto (2006) em sua tese entende a Pedagogia como uma ciência que
orienta e é produzida na prática do educador, que se consubstancia na sua ação e no seu fazer.
Identifica a especificidade da pedagogia, como ciência da educação, no movimento contínuo
entre a intenção clara do ‘para que fazer’ e do ‘como fazer’.
E ainda, com o pesquisador Schmied-Kowarzik (1988) compreendemos que a pedagogia
necessita ser simultaneamente um conhecimento para a educação, de modo que esta se efetive
pela práxis humana. Para Schmied-Kowarzik é no continuo movimento da e para a educação,
relacionando teoria e prática que a dialética se impõem como fundante da pedagogia, ao
relacionar teoria e prática.
Compreendendo que a pedagogia deve relacionar o saber teórico com a prática da ação
educativa, coadunamos com o pensar de Libâneo, Pinto e Schmied-Kowarzik sobre o conceito
de pedagogia, pois nesta pesquisa buscamos fundamentar a criação de uma pedagogia de leitura
e escrita no teatro através da metodologia de ensino-aprendizagem do teatro que usa o gênero
discursivo protocolo. A metodologia proposta por Koudela na criação da cena teatral é pautada
pela relação da teoria com a experiência prática vivida no jogo teatral.
Pinto (2006) ressalta que é o educador que realiza a mediação da teoria pedagógica e a práxis
educativa. Assim, buscaremos compreender a colaboração do gênero discursivo protocolo no
processo pedagógico que se efetua no encontro do educador com o aprendiz na criação da cena
teatral. E ainda, a contribuição da reflexão crítica sobre a prática experienciada no jogo teatral que
permeia a escrita do protocolo que é pautado na intersecção da teoria com a prática.
Freire (2002, p.12) compreende o ensinar como criar as possibilidades para a produção ou
construção do conhecimento, pois para ele, não se transfere conhecimento. Freire afirma que
não há docência sem discência, que apesar das diferenças, as parte envolvidas no processo da
aprendizagem não se reduzem à condição de objeto, um do outro. “Quem ensina aprende ao
ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém.”
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Vemos com o pensar freireano que o processo pedagógico é de interdependência entre educador
e aprendiz. Freire (2002) ressalta que social e historicamente, mulheres e homens são os únicos
seres que se tornaram capazes de aprender. E, para ele, aprender é uma aventura criadora,
aprender é construir, reconstruir e constatar para mudar.
A pedagogia do teatro é uma área de intensas pesquisas no Brasil e são muitos os pesquisadores
que colaboraram com a produção do pensamento acadêmico que definiu essa área que relaciona
pedagogia e arte teatral. Nesta pesquisa nos valeremos do pensar de Ingrid Koudela, Maria
Lúcia Pupo, Flávio Desgranges, Beatriz Cabral entre outros importantes pesquisadores. Assim,
buscaremos na relação estabelecida entre os envolvidos com os procedimentos de ensino-
aprendizagem da linguagem teatral e a possibilidade da construção do conhecimento na criação
de uma pedagogia de leitura e escrita no teatro.
A pesquisadora Maria Lúcia Pupo (1997) explica que a conexão entre a pedagogia e a arte
teatral está numa área do conhecimento internacionalmente conhecida como Teatro-Educação.
Para Beatriz Cabral (2008) os conceitos pedagogia do teatro e teatro como pedagogia estão na
esfera do Teatro na Educação e indicam a forma do professor direcionar sua prática,
identificando o método de ensino e planejando a partir dele. E vemos como afirma Pupo (2008,
p. 3) que a “Pedagogia do Teatro diz respeito à reflexão sobre as finalidades e as modalidades
implicadas em processos de aprendizagem envolvendo as artes da cena”, e ainda, que é um
terreno marcado pela interdisciplinaridade e constantes transformações.
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Na visão de Brecht, a Pedagogia do Teatro, como destaca Desgranges (2006), deveria propor
uma aprendizagem que se efetivasse como processo de apreensão crítica da vida social. Deveria
ser um processo que possibilitasse ao indivíduo conhecer as coisas pela via da experiência
sensível. Deveria, ainda, ser um processo sem ponto final ou finalidade pré-estabelecida, mas
que se estendesse por toda a existência.
Koudela (2001) afirma que de acordo com Brecht, uma obra de arte deve influenciar todas as
pessoas, independente da idade, status ou educação todas as pessoas podem entender e sentir
prazer com uma obra de arte porque todas as pessoas têm algo de artístico dentro de si. Para
Brecht (apud KOUDELA, 2001, p.17) na arte,
A proposta de educar através da arte teatral relacionada ao jogo, para Koudela (1991) aponta
para um caminho de autoconhecimento, pois o conceito de aprendizagem representado por essa
via surge através do princípio da atividade do indivíduo, que passa a ser artesão de sua própria
educação ao estabelecer a relação dialética teoria/prática.
A arte é uma facilitadora das múltiplas formas de saber, é fruto de uma experiência de vida, de
um processo de criação do artista partilhada no seu tempo e espaço, dimensionando o homem
como ser social e cultural. E este homem como indivíduo, e também, no seu papel na sociedade,
tem atitudes perante a realidade e de suas funções estéticas que exigem toda a sua capacidade de
agir em determinado sentido. (BOY, 2007)
Como destaca a pesquisadora Terezinha Heimann (2003) a função estética está nas atitudes
humanas que o homem adota perante a realidade, é a chamada atitude estética sobre a qual
exercemos uma influência. Para Heimann a estética consiste em um conhecimento e um
domínio teórico da realidade, pois a estética têm fronteira e relações com várias esferas da vida
prática, relações com a arte e com a criação artística, com as ciências concretas de cada uma das
artes.
E nessa experiência com a estética, Japiassu (2007), diferencia duas modalidades presentes na
própria estética que são:
Então o valor estético da obra está no envolvimento de interação que se estabelece entre o
sujeito e o objeto. A experiência estética acontece quando se consegue dominar os sistemas em
relação à obra ou ao acontecimento do espetáculo, e ainda, ao experimentarmos o prazer
desinteressado ao concentrarmos a nossa atenção na apreensão de um objeto.
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Heimann (2003) ainda nos lembra de que o teatro é uma das práticas culturais que coloca os
artistas sempre em confronto com o espectador e consigo mesmo, pois é essa preocupação que
provoca a transformação em suas práticas, e inspira a criar resultados com efeitos estéticos. E
quando se fala em efeitos estéticos ou resultados alcançados em função da iluminação, de
adereços, ou do que o corpo provoca em cena como objeto de arte e de estética, pensa-se em
uma representação possível da transcendência e da beleza daquele momento singular da
experiência estética que visam satisfazer o ideal de beleza.
O pesquisador Francisco Duarte (2004) afirma que ao assumirmos uma imagem para depois
chegarmos à consciência sobre ele podemos encontrar, nesse caminho, a sensação básica para
que o homem possa vivenciar experiências subjetivas que afetam o interior humano, e que
gerarão efeitos estéticos, pois enquanto contempladores de arte utilizamos nossa percepção
estética aliada às nossas experiências e vivências. O prazer estético se manifesta em nosso
cotidiano, expressando-se de diferentes formas, embora suas raízes na análise subjetiva e na
interioridade só aconteçam quando estão em comunicação com alguém, e exigem diálogos e
controvérsias, pois são fontes inesgotáveis de interpretação de sentidos.
O Ensino de Artes no sistema educacional brasileiro deveria propor a educação estética, é o que
afirma Duarte (1983), pois os aprendizes poderiam experimentar a Beleza que nasce da relação
entre objeto e consciência, entre homem e mundo. A experiência da Beleza proporciona ao
homem a percepção do mundo.
O pensador e autor teatral Ariano Suassuna (2005) assegura que a Beleza é uma construção que
se realiza dentro do espírito do contemplador, certa harmonização de suas faculdades. E entre
estas, destacam-se a imaginação e o entendimento, e a harmonização entre elas é governada pelo
sentimento de prazer ou desprazer. A beleza é obra pura e exclusiva do espírito do sujeito, que a
fabrica interiormente, diante do objeto estético. Cabe, então, ao espectador da obra de arte a
contemplação e a fruição sabendo que a verdadeira Arte não imita, mas recria, deforma e
transfigura a realidade.
E, Suassuna (2005), ainda completa que a linguagem dramática procura um caminho de maior
comunhão com a realidade, e que essa comunhão, deve ser exatamente a necessária para
convencer o espectador de que esse mundo superior da Arte é ao mesmo tempo este mundo, o
mundo no qual vivemos. Mas, Suassuna ressalta que a linguagem do Dramático deve
transfigurar a realidade, pois Arte nenhuma imita rigorosamente e estreitamente a vida.
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Segundo Heimann (2003), há quem julgue ser arte todo objeto que possui qualidades artísticas e
estéticas, tendo, porém, na estética a sua função dominante dada pela intencionalidade do
artista. Afirma também, que em nosso cotidiano convivemos com uma infinita produção de
formas e conteúdos que exigem sempre mais de nossa sensibilidade estética, pois em quase
todos os espaços pelos quais circulamos estão presentes as questões da forma e do estético.
Em seu trabalho Ostrower (1986), afirma que o homem não deixa de conscientizar-se de sua
existência social, ainda que esse processo não seja vivido de forma intelectual. O modo de sentir
e de pensar os fenômenos, os próprios modos de sentir-se e de pensar-se, vivenciar as
aspirações, os possíveis êxitos e eventuais insucessos, tudo se molda segundo idéias e hábitos
particulares ao contexto social em que se desenvolve o indivíduo.
Pupo (2001b) vê na ampliação do campo de atuação dos professores de teatro uma possibilidade
de rompimento com o modelo dominante de consumo espetacular em direção a uma prática
artística plena tecida junto a uma ação educativa, social e política que amplie a consciência de
quem a vive. Como defende o pesquisador Flávio Desgranges (2005), a capacidade de analisar
uma peça teatral não é somente um talento natural, mas uma conquista cultural, uma capacidade
que pode e precisa ser desenvolvida.
Por sugestão da minha orientadora, também recebi os protocolos produzidos pelos alunos do
curso ‘Teoria e Prática na Peça Didática de Bertolt Brecht’ da Pós-Graduação da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP. Não acompanhei as aulas do
curso todo, mas tive a oportunidade de conhecer os alunos no encontro do dia 31 de agosto de
2011. Nessa aula do curso participei da Roda do Grande Protocolo, ouvi a leitura e o debate dos
protocolos produzidos por eles naquele processo de aprendizagem da linguagem teatral, e
posteriormente pude conversar sobre a minha pesquisa. Os protocolos produzidos pelos
pesquisadores do curso da Pós-Graduação da ECA/USP enriqueceram e clarificaram a análise
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realizada nesta pesquisa e também foram usados como exemplos nas apreciações do objeto do
presente trabalho, assim como os protocolos dos alunos da Universidade de Sorocaba - Uniso.
Desde o primeiro encontro era solicitado aos alunos para que escrevessem os seus protocolos a
partir da teoria estudada e da prática experienciada. As percepções, as descobertas, as dúvidas,
as ideias de cada um eram registradas em seu protocolo e compartilhadas na semana seguinte na
leitura e debate realizado na Roda do Grande Protocolo.
Essa roda era o momento em que a professora Ingrid no início da primeira aula da semana se
sentava em roda com os alunos e solicitava que cada um no momento que quisesse, lesse parte
do seu protocolo. Outro aluno que acreditasse que uma parte do seu próprio protocolo
conversava com o que fora lido, poderia fazer a sua leitura a seguir e assim sucessivamente. A
união dos fragmentos dos protocolos formava um protocolo coletivo no momento da aula. Não
era a palavra de apenas uma pessoa, mas muitas vozes se manifestavam no processo de criação
da cena teatral.
Durante o momento de leitura não havia comentário, apenas os fragmentos de leitura dos
protocolos. Um tempo, geralmente de quinze minutos era estipulado pela professora para a
leitura. Terminado o tempo combinado, tinha início o debate dos assuntos levantados na leitura.
Então, todos podiam conversar e debater as questões que interessavam ao grupo. Esse debate
também ocorria com um tempo determinado, findo o tempo tinham início as atividades
propostas para o dia. As aulas sempre ocorriam na segunda e terça-feira. Então, os alunos
escreviam um protocolo sobre os eventos vividos nos dois dias para ser lido na segunda-feira da
semana seguinte.
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Para compreendermos o tema desta pesquisa, que é a criação de uma pedagogia de leitura e
escrita no teatro através da metodologia de ensino-aprendizagem do teatro com o uso do gênero
discursivo protocolo fundamentado percorreremos o texto que está organizado em três capítulos.
No Capitulo 1 faremos um estudo sobre a escrita de Bertolt Brecht em seus diários. Veremos
destacados em fragmentos de suas anotações diárias os registros dos momentos de sua vida
familiar, seu trabalho, suas posições políticas e seu processo criativo. Conheceremos um homem
em busca da perfeição na escrita de sua obra. Então, posteriormente poderemos compreender a
proposta de escrita dos protocolos no trabalho de Brecht. Em seguida, iniciaremos o percurso
que busca a compreensão da origem do protocolo no trabalho de Brecht. Logo após,
conheceremos o primeiro contato da pesquisadora Ingrid Koudela com a prática do protocolo e
trilharemos com ela o percurso do protocolo no Brasil. Veremos a relação estabelecida pela
pesquisadora Koudela entre o protocolo e o Jogo Teatral do Sistema de Viola Spolin e as
contribuições indeléveis deixadas pelo jogo na escrita do protocolo.
2. CAPÍTULO 1
Bertolt Brecht
(Conferência de Teatro em Damrstardt em 1955.
Neste capítulo veremos o hábito de Bertolt Brecht em manter registros escritos sobre os
acontecimentos de sua vida e trabalho em diários preservados até os dias de hoje e que se
tornaram importante fonte de pesquisa. Em seguida veremos o nascimento da proposta do
protocolo, de Brecht a Koudela, e os caminhos percorridos pelo gênero discursivo até o
momento presente.
Eugen Berthold Friedrich Brecht como foi batizado, nasceu em 10 de fevereiro de 1898 em
Augsburg, sul da Alemanha, filho de uma família burguesa, como afirma o pesquisador Frederic
Ewen (1991). Morreu Bertolt Brecht aos 58 anos em 14 de agosto de 1956 em Berlim,
conhecido como poeta, dramaturgo, diretor, autor, teatrólogo, ensaísta, pensador e crítico de seu
tempo.
Para o desenvolvimento desta pesquisa sobre a escrita de Bertolt Brecht utilizo os trabalhos dos
pesquisadores Werner Hecht e Herta Ramthun que coletaram o material no Arquivo Bertolt
Brecht da cidade de Berlim, Alemanha. Grande parte da obra do autor pode ser encontrada
nesse Arquivo. Muitos pesquisadores têm estudado, organizado o trabalho do ‘escrevinhador de
peças’ e descrito o hábito que ele tinha de escrever diários. O material pesquisado no Arquivo
era composto parte por diários escritos pelo próprio Brecht durante grande parte de sua vida e
também por outros materiais como agendas e todo tipo de folhas soltas que continham
anotações sobre eventos pessoais, de trabalho ou de fatos ocorridos na sociedade de seu tempo.
Em 1973, a obra ‘Diário de Trabalho’ organizada pelo pesquisador Werner Hecht foi publicada
pela Suhrkamp Verlag de Frankfurt, Alemanha, com a autorização de Stefan Brecht, filho de
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Bertolt Brecht. A editora Rocco adquiriu o direito de publicação dessa obra no Brasil e dividiu
em três volumes que compreendem: volume I dos anos de 1938 a 1941, volume II dos anos
1941 a 1947, que foram publicados em 2002. O volume III que compreende os anos 1948 a
1955 e que não chegou a ser publicados no Brasil. Assim, para esta pesquisa, utilizei uma
publicação argentina comprada num sebo virtual. A obra foi publicada na língua espanhola pela
Ediciones Nueva Vision em Buenos Aires no ano de 1979. Essa publicação fez uma divisão
diferente dos períodos da publicação brasileira. Usei o volume III 1944-1955 que abrangia o
período que faltava para completar a pesquisa desenvolvida. Eu mesma realizei a tradução do
espanhol para o português dos fragmentos utilizados neste trabalho.
Em 1975, a mesma editora Suhrkamp Verlag e também autorizado por Stefan Brecht publicou o
livro “Diários de Brecht – diários de 1920 a 1922; anotações autobigráficas de 1920 a 1954”.
Esse livro organizado pela pesquisadora Herta Ramthun foi publicado pela L&PM Editores em
1995 no Brasil. O livro foi organizado pela pesquisadora através da junção dos manuscritos de
quatro diários do começo dos anos de 1920, além de outras anotações do próprio Brecht em
agendas e outras folhas guardadas no Arquivo Bertolt Brecht em Berlim e também de um
material cedido pela filha de Brecht, Hanne Riob.
O editor alemão do livro “Diários de Brecht” (1995) explica, em nota no próprio livro, que os
diários foram escritos na língua alemã e sem nenhuma margem no papel, utilizando sempre a
folha toda, pois foram escritos no período pós-guerra de grande escassez de matéria prima. O
editor, ainda, afirma que provavelmente as folhas tenham sido obtidas na fábrica de papéis em
que o pai de Brecht era diretor.
Bertolt Brecht foi muitas vezes descrito como sendo impaciente, genioso, e também como um
diarista compulsivo. Segundo, a orelha do ‘Diário de Trabalho’ volume I (BRECHT, 2002a),
ainda muito cedo Brecht começou a encher páginas e páginas de cadernos com registros de
impressões, fatos, acontecimentos e reflexões relacionados ao seu dia a dia. Aos 15 anos já
havia composto seu primeiro diário, que só seria descoberto na década de 1980 e que seria
publicado, no final daquela década, pela mesma Suhrkamp Verlag na Alemanha, mas ainda não
publicado no Brasil.
Segundo Frederic Ewen (1991), aos 19 anos Brecht entrou para a faculdade de medicina em
Monique, mas recrutado pelo Exército trabalhou como enfermeiro e nessa época compôs ‘A
Lenda do Soldado Morto’ poema que ganhou grande repercussão. Tempos depois retomou os
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estudos, mas trocou a faculdade pela convivência com o meio artístico que efervescia em
Munique, estava escolhido o caminho que Bertolt Brecht percorreria durante sua vida dentro da
esfera da arte.
Brecht manteve o hábito de escrever diários durante toda a vida, mesmo no período de guerra e
de exílio manteve o registro escrito dos acontecimentos de sua vida familiar, de seus amigos,
seus amores, seu trabalho, suas posições políticas, suas preocupações e esperanças. Para um
estudo da importante obra deixada por Bertolt Brecht através do registro de seus diários,
agendas e anotações em folhas soltas, veremos agora uma seleção de fragmentos reunidos por
temas, para que possamos observar a colaboração da escrita na vida e no trabalho de Brecht e
relacioná-los, posteriormente, ao protocolo.
O primeiro tema sobre o qual foram recortados alguns fragmentos de registros presentes nos
diários é a importância que a escrita tinha na vida de Bertolt Brecht. Segundo uma anotação
feita por volta de 1923 na obra ‘Diários de Brecht’(1995), o autor nos revela o valor da escrita
em sua vida e o papel que ela desempenhava em seu cotidiano:
[...] estou anotando algo porque estou com a cabeça vazia e isso é para mim
a coisa mais saudável que há. (p. 145)
Muitos anos depois, em outro momento Brecht (1979) escreveu no dia 01 de janeiro de 1949:
[...] escrevo essas linhas, entre outras coisas, para clarear minhas ideias
sobre um determinado ponto [...]
E ainda, no dia 25 de dezembro de 1952, Brecht (1979) explicou sua relação com a escrita:
Percebemos que para Brecht, o ato de escrever o mantinha equilibrado, a escrita funcionava
como um organizador de ideias. Sua mente também ficava limpa ao escrever e isso o ajudava a
viver e trabalhar melhor. Em outra ocasião, Brecht mostra muita animação com a facilidade com
que estava escrevendo sua obra. Naquele momento a escrita tomava conta de sua vida, ele se
esquecia de outras obrigações, apenas o processo criativo da escrita o envolvia. Brecht (1995)
afirmou no dia 16 de setembro de 1921:
[...] estou bem disposto, não me interesso por nada, descuido de roupas,
comida, companhia e ao escrever tenho total tranqüilidade e equilíbrio.
Cada palavra rompeu sua casca, frases brotam direto do meu peito. Eu
apenas anoto.
Nesse registro Brecht nos permite ver o seu processo de criação ao escrever o texto teatral. Ele
demonstra preferência por andar em ambientes abertos enquanto trabalhava no seu processo
criativo. Brecht afirma gostar da indefinição, do momento em que o texto permanecia
incompleto a sua frente. Naquela circunstância o seu trabalho de escrita fluía, pois ele se
mantinha aberto ao que estava por vir. Brecht criava as linhas gerais da peça e depois ia
retomando e completando as partes. Ainda no registro do diário desse mesmo dia lemos:
Em outra passagem, Brecht reflete sobre o que podia escrever no diário, ele teme que sua escrita
seja usada contra ele, mas o exercício da escrita se mantinha em seu cotidiano e se mostrava de
suma importância em sua vida. Brecht (2002b) anotou em 21 de janeiro de 1942:
Nos últimos dias tenho passado os olhos por este diário. Naturalmente está
bastante distorcido, com receio de leitores indesejados, e terei dificuldade
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Nem sempre a escrita de seu trabalho fluía facilmente e em um momento de crise com a escrita,
Brecht (1995), no dia 8 de setembro de 1920, sentenciou:
[...] paira sobre mim qual adaga a incapacidade para fazer o quarto ato de
‘Tambores’[...].
Essa peça ‘Tambores da noite’ seria encenada em 1921. Em outra ocasião, desanimado com o
rendimento do seu processo de escrita Brecht (1995) anotou no dia 24 de setembro de 1920:
Em outra situação, sofrendo por estar muito cansado e com dificuldades para escrever Brecht
(1995) em 18 de maio de 1921 refletiu:
Percebemos o grande embate de Brecht com seu processo de escrita. Ele escrevia muito e
diferentes textos ao mesmo tempo. Na década de 1940, Brecht morando nos Estados Unidos da
América escreveu sobre como se sentia em relação ao seu trabalho na sociedade americana. Ele
reclama do sistema americano de produção de arte, no dia 27 de julho de 1942 Brecht (2002b)
escreveu:
Brecht também escreveu sobre seus hábitos de leitura, mostrando ser um ávido leitor em muitos
momentos. Ele ainda clarifica a importância dessas leituras em seu trabalho e a contribuição de
outros autores no seu processo de escrita, Brecht (1995) revelou no dia 4 de outubro de 1921:
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Pensando numa escrita que pudesse alterar certos comportamentos, no dia 01 de fevereiro de
1942 Brecht (2002b) escreveu:
Consultando-se muita gente seria possível bolar uma escrita social. No Bush
der Wendungen ‘Livro das Mutações’ as discussões em torno de uma
escrita poderiam render um bom capítulo.
Verificamos o tema da escrita nos fragmentos dos diários de Brecht, que nesta pesquisa, vão do
ano de 1920 a 1955, um ano antes de sua morte. Brecht se revela um diarista compulsivo, e
também descobrimos que ele criava os textos de suas peças, poemas, roteiros, entre outras
escritas, com muita urgência. Brecht demonstra certa angústia quando não escreve. As reflexões
presentes em seus diários nos permitem uma aproximação do processo da escrita brechtiana.
O segundo tema destacado entre os fragmentos é a vida familiar de Brecht. Encontramos muitos
relatos sobre suas relações familiares. Na obra ‘Diários de Brecht’ em que ele contava ainda
com seus 20 e poucos anos, Brecht fala mais abertamente de seus relacionamentos, mas com o
passar do tempo percebemos um Brecht um pouco mais cuidadoso ao relatar sua vida amorosa,
por exemplo. Ao longo dos anos, Brecht se mostra preocupado com seus filhos e em vários
momentos relata os acontecimentos vividos com eles.
No livro ‘Diários de Brecht’ encontramos o relato da morte da mãe de Brecht, Sophie Brezing,
que faleceu em 01 de maio de 1920 depois de um longo período de enfermidade, percebemos
31
em seus registros no ‘Diários de Brecht’ certa tensão existente entre ele e sua mãe. Brecht
(1995) escreveu uma anotação:
Minha mãe está morta desde ontem à tardinha, suas mãos esfriaram-se aos
poucos enquanto ela ainda ofegava... Eu a amava à minha maneira, mas ela
queria ser amada à sua. (p. 144)
Em muitas outras passagens dos diários, encontramos relatos sobre a vida dele com a mulher e
filhos. Em 1928, Brecht se casou com a atriz austríaca, Helene Weigel que se tornou a sua
grande companheira na vida e no trabalho. Brecht teve com ela três filhos: Stefan, Bárbara e
Hanne. Bertolt e Helene juntos organizaram em 1949 na República Democrática Alemã, o
Berliner Ensemble. Eles permaneceram em parceria até a morte de Brecht (EWEN, 1991).
Helene, conhecida como Helli, atuou em muitas peças de Brecht, ele demonstra em muitos
momentos grande admiração pelo trabalho artístico de Helene. Ao final da Segunda Guerra,
após o retorno a Alemanha, Brecht (1979) escreveu sobre Helli no dia 11 de janeiro de 1949:
Em outros registros de Brecht encontramos o relato sobre períodos difíceis para ele e sua
família, durante e após a guerra. Depois de muita privação de alimentos no período do exílio em
que a família Brecht morou em vários países europeus, a saúde de todos ficou bastante afetada.
Na passagem a seguir, Brecht se mostra preocupado com a saúde da filha Bárbara que chegara,
aos Estados Unidos da América em 1941, muito fragilizada e quase um ano depois da chegada
ao país ainda estava em tratamento. No dia 03 de maio de 1942 Brecht (2002b) escreveu:
Brecht escreveu em seus diários, muitas passagens sobre seu filho Stefan. Eles conversavam
muito e pareciam próximos. Quando Stefan foi convocado para servir o exército americano
ficou em treinamento no Camp Roberts. Numa licença do filho, Brecht desejava buscá-lo com o
carro da família, mas percebeu que o seu velho automóvel não aguentaria a viagem. Então,
desistindo da viagem, Brecht escreveu no dia 29 de outubro de 1944:
Queria ir buscar Steff que está de licença desde ontem. Tinha preparado
tudo na sexta-feira [...] como os anéis de segmento são novos, eu não
poderia fazer mais de 40 km por hora, havia forte nevoeiro em toda costa,
meu limpador de pára-brisa tinha pifado, as luzes se apagavam [...]
Numa carta endereçada ao filho Stefan que permanecia em treinamento no Camp Roberts,
Brecht (2002b) relata como a família se preparava para comemorar o natal no dia 18 de
dezembro de 1944:
[...] preparativos maciços para o natal se sucedem aqui em casa. Helli não
pára de costurar [...] Bárbara toma empréstimos que farão dela uma escrava
pelos próximos 50 anos. Todos esperamos que você esteja aqui para encher
o nariz com o aroma dos pinheiros [...]
Em outro momento, muito feliz por poder registrar que o filho Stefan iria para a Universidade,
Brecht (2002b) escreveu no dia 21 de janeiro de 1945:
Após seu basic training em Camp Roberts, Steff vai para a Universidade de
Chicago aprender japonês. Estamos muito contentes.
Após uma visita ao filho Stefan, que morava e estudava na Universidade de Chicago, mas que
se encontrava enfermo, Brecht (2002b) registrou numa anotação feita em meados do mês de
junho a julho de 1945:
33
Morando na Alemanha, depois do seu retorno em 1948 e distante do filho Stefan que
permanecera na América, Brecht (1979) registrou no dia 13 de novembro de 1952:
Steff regressou com Alma de París. Passaram o verão aqui; ele tinha
intenções de completar sua tese em Harvard [...]
Mesmo longe, pai e filho mantinham contacto. No penúltimo ano de registros em seus diários,
Brecht (1979) escreveu no dia 8 de julho de 1954:
Steff fez chegar a mim, por via indireta, a grande e exaustiva defesa de
Oppenheimer. Este tratado colaborou com a primeira bomba atômica [...]
Em todos os diários encontramos esses momentos em que Brecht nos permite entrever o
convívio familiar. Temos os relatos dos fatos cotidianos, mas temos também o registro da
criação de muitas de suas obras. Os diários de Brecht misturam o cotidiano do homem, marido,
pai, funcionário e amigo com os relatos dos processos de criação do importante autor.
Relacionando os diários de Brecht aos protocolos, desvelamos a mistura de relatos de fatos do
cotidiano ao processo de criação da cena teatral vivido num grupo de aprendizes do teatro.
O terceiro tema presente nos diários de Brecht é sua vida amorosa. Em “Diários de Brecht”
(1995), obra que retrata o período da vida de Brecht entre os anos de 1920 a 1922 encontramos
o relato de seus dias com seus amigos e relacionamentos amorosos, ele revela sua vida amorosa
com ‘Bi’, Paula Banholzer, com quem teve seu primeiro filho, Frank. Esse filho de Brecht, já
adulto, morreu em 1943 como soldado na antiga União Soviética. No dia 20 de junho de 1920,
Brecht (1995) escreveu:
Ao mesmo tempo em que Brecht (1995) tem um namoro juvenil com Paula Banholzer revela ter
outros encontros amorosos como no dia 21 de junho de 1920 em que anotou:
[...] Anni Bauer aparece no ateliê [...] tomamos aguardente sob a luz da
lamparina [...] Eu dedilho no violão, a beijo [...]
Brecht (1995) ainda revela outro relacionamento amoroso no mesmo período, no dia 31 de
agosto de 1920 registrou:
E em 23 de setembro de 1920, Brecht (1995) no registro do diário revela o fim de seu namoro
de juventude com Paula Banholzer:
No ano seguinte enquanto iniciava a produção de ‘Tambores na noite’ Brecht (1995) escreveu
sobre seu novo amor, a atriz Marianne Zoff, no dia 9 de fevereiro de 1921:
Brecht se casou com Marianne quando ela engravidou e em 1923 nasceu sua filha. Essa filha de
Brecht se tornaria mais tarde a conhecida atriz Hanne Riob. Em 1927, Brecht (1995) se
divorciou de Marianne Zoff.
Anos mais tarde, encontramos na escrita dos diários de Brecht uma postura muito diferente dele
em relação às anotações sobre sua vida amorosa, ele se torna muito mais discreto ao escrever
sobre seus romances. Outra conhecida amante de Brecht foi Ruth Berlau, uma atriz e jornalista
dinamarquesa. Eles se conheceram em 1933 em Thurô. Ruth acompanhou a família Brecht em
sua fuga pela Suécia e Finlândia. Também trabalhou e conviveu com Brecht na América, mas
aparece em seus diários discretamente, como colaboradora de suas peças e textos
cinematográficos. O romance entre eles não aparece de forma explicita em seus registros
diários.
Em 3 de setembro de 1944, deparamo-nos com um breve registro de apenas uma linha sobre a
hospitalização de Ruth. Aos 46 anos, ao contrário da forma como escrevera no passado, Brecht
(2002b) apenas anotou com muita discrição:
Nessa ocasião, Ruth que estava grávida fora internada inesperadamente para dar a luz. O bebê
de Ruth e Brecht nasceu prematuramente e recebeu o nome de Michael, mas viveu pouco
tempo.
Numa anotação de 1953 (1995) encontramos um registro de outra namorada de Brecht, mas ele
não cita o nome dela:
A namorada que tenho agora e que talvez seja a última, se parece muito
com a primeira [...] (p. 168)
Discretamente, Brecht relata o momento e as situações vividas com essa namorada, mas sendo
muito cuidadoso não revela sua identidade. Os destaques dos fragmentos dos diários de Brecht
aqui feitos nos permitem observar as mudanças na escrita brechtiana. Quando jovem, Brecht,
revelava sua vida pessoal sem resguardos, mas com o tempo os registros se tornam mais
cuidadosos, pois ele teme as consequências que seus registros podem trazer.
36
Nos protocolos escritos durante a criação da cena teatral, há muitos registros de acontecimentos
pessoais. Muitos desses fatos revelam as dificuldades de convivência no grupo e as experiências
pessoais na inter-relação como outros indivíduos do grupo. A escrita do protocolo permite a
expressão daquilo que o autor do protocolo deseja ressaltar no momento vivido.
O quarto tema encontrado nos diários de Brecht é a amizade e a convivência com seus amigos e
colaboradores em sua obra. Em seus registros Brecht cita muitos amigos com quem conviveu:
Walter Benjamin, Elisabeth Hauptmann, Martha Feuchtwanger, Alexander Granach, Langhoff
entre muitos outros que lhe oferecem abrigo durante os anos de fuga pela Europa, emprego e
acolhida nos Estados Unidos da América, e também na sua volta a Alemanha no período pós-
guerra.
Brecht escreveu sobre sua amiga e fiel colaboradora Margarete Steffin, Grete. Em seus diários,
Brecht registrou a fuga de sua família no período nazista de seu país acompanhada por Grete.
No dia 13 de maio de 1941 a família Brecht foi para Moscou. Grete que trabalhava para Brecht
e os acompanhava desde a saída da Alemanha com a saúde abalada, não tinha condições de
continuar a longa viagem até a América, por isso ficou na capital soviética. Em 29 de maio de
1941 numa anotação Brecht (1995) escreveu o momento em que levou Grete para o hospital:
[...] Ao meio-dia viajo com ela em uma velha ambulância para o sanatório
[...] ela tem que tomar oxigênio várias vezes [...] a visito às 5h. Está muito
tranqüila [...] Eu disse que viajarei, que recebi as passagens. Ela sorri e diz
com a voz profunda ‘Que bom’ (p. 164)
[...] Ela diz: “Vou em seguida, só duas coisas podem me deter: o perigo de
morte e a guerra” [...] (p. 164)
No mesmo dia, às 5 horas, a família Brecht partiu para tomar o Expresso Transiberiano para a
cidade de Vladivostok, pois de lá embarcariam num navio rumo à América.
No dia 04 de junho de 1941, às 9 horas, não mais resistindo aos males impingidos pela guerra,
Margaret Steffin faleceu. A família Brecht foi informada do acontecimento durante a viagem.
37
Em seu diário no dia 13 de julho de 1941 Brecht (2002a) relatou a luta de sua família e sua
amiga Grete para fugir da Europa em guerra. Brecht escreveu em seu diário:
Ainda nos registros do dia 13 de julho de 1941, Brecht transcreveu em seu diário o telegrama
que recebera dos amigos de Moscou que cuidavam de Grete:
[...] Oito horas da manhã Grete recebeu seu telegrama e leu tranqüila. Às 9
horas da manhã ela morreu [...]
A família Brecht podia permanecer na Califórnia em Los Angeles, a cidade do cinema, onde
Bertolt Brecht poderia trabalhar como roteirista, ou atravessar o país e ir para a cidade de Nova
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Iorque, onde também tinha amigos e havia uma intensa vida teatral. A amiga Martha
Feuchtwanger sugeriu que a família ficasse em Los Angeles e Brecht (2002b) anotou:
[...] Seu conselho é que fiquemos aqui, onde é mais barato do que em Nova
York, e onde há mais oportunidades de ganhar dinheiro.
Para Brecht a decisão foi muito difícil, ele precisava trabalhar para sustentar a família, mas se
mostrava bastante insatisfeito com o estilo de vida da sociedade americana e sentia a falta de sua
amiga e colaboradora Grete. Brecht (2002b) no dia 01 de agosto de 1941 escreveu:
Ainda em sofrimento pela morte de Grete, em agosto de 1941 Brecht anotou, em seu diário,
outra morte muito marcante em sua vida, a de seu amigo Walter Benjamim. Morte que ocorrera
um ano antes numa tentativa frustrada de ir para os Estados Unidos da América no dia 26 de
setembro de 1940.
Brecht ainda escreveria em vários momentos sobre a falta que sentia de sua colaboradora
Margaret Steffin. Quando completou um ano da morte dela Brecht (2002b) anotou no dia 04 de
junho de 1942 do seu diário:
No dia 30 de junho de 1942 Brecht (2002b) sentido ainda muito ressentimento em relação à
morte de Grete, escreveu em seu diário ele escreveu:
Não fiz nada e não farei nada para ‘superar’ a perda de Grete. Que bem isto
faz, reconciliar-se com coisas que aconteceram? Há ainda muitas pontas
nessa corda, à espera de que as coisas se prendam nelas. Hitler e a fome
mataram-na [...] meus esforços para salvá-la foram derrotados, e não fui
capaz de tornar as coisas mais fáceis para ela. Devemos esquecer os
sucessos mas não os fracassos.
Percebemos pelos registros de Brecht a mudança em sua escrita ao relatar sua vida pessoal. Para
ele o hábito de escrever se manteve, mas se tornou discreto pela preocupação do que poderia
acontecer com esses escritos. As dúvidas, os sofrimentos, as angústias presentes nos diários de
Brecht também estão em muitos protocolos produzidos num processo de criação teatral. Muitos
protocolos trazem questionamentos, preocupações e as incertezas no embate vivido com a
aprendizagem da linguagem teatral. A expressão de suas dúvidas permite ao autor do protocolo
a oportunidade de pensar e discutir com o grupo suas preocupações e assim avançar em seu
processo de aprendizagem da linguagem teatral.
O quinto tema presente na escrita do diário de Brecht é a política. Durante o ano de 1933 a crise
política e econômica avançava sobre a Alemanha. No dia 28 de fevereiro desse mesmo ano a
família Brecht juntamente com muitos artistas e escritores fugiram do próprio país. Os que
ficaram caíram vítimas da tortura, prisão e assassinato. A família Brecht foi para Praga, Viena e
depois Zurique, onde encontraram outros exilados como Walter Benjamin. Depois para Carona
na Suíça, em seguida aceitaram um convite para ir à Dinamarca, lá moraram na ilha de Thüro e
depois na ilha Fünen. (EWEN, 1991)
Em meio aos graves acontecimentos na Europa a família Brecht foi obrigada a fazer diversas
mudanças, lemos nos diários de Brecht a descrição, os comentários e as reflexões feitas por ele a
partir desses acontecimentos. Brecht registrou em seu diário os eventos que levariam à
deflagração da Segunda Guerra Mundial, no dia 01 de setembro de 1939 Brecht (2002a)
escreveu:
40
Esse foi o dia em que começou a invasão à Polônia e teve oficialmente início a Segunda Guerra
Mundial. Sobre esses eventos no dia 03 de setembro de 1939 Brecht (2002a) refletiu:
Só a noite é que todos começam a ver a terrível verdade. Isso foi quando
foram ao ar os boletins da rádio inglesa sobre a sessão da Câmara dos
Comuns. [...] O governo alemão quer a guerra, o povo alemão não. Os
governos da França e da Inglaterra não querem a guerra, os povos da França
e da Inglaterra querem, para deter Hitler.
E ainda no dia 05 de setembro de 1939 Brecht (2002a) escreveu sobre a sua surpresa pelo fato
da guerra ser declarada e não haver conflitos reais que demonstrassem o início desse
acontecimento histórico:
Em outra época, Brecht (2002b) escreveu sobre a chegada de sua família aos Estados Unidos da
América. Sentindo-se pouco a vontade no novo país e ainda preocupado com a situação de
guerra na Europa Brecht escreveu no dia 09 de agosto de 1941:
41
Brecht (2002b) recebeu notícias sobre o andamento da guerra e ao saber que sua querida cidade
fora bombardeada escreveu no dia 29 de agosto de 1943:
Anos depois, quando finalmente chega o tão desejado fim da Segunda Guerra Mundial, no dia
08 de maio de 1945 Brecht (2002b) escreveu numa frase o resultado de tanta luta travada no
campo de batalha:
Ao final da guerra, Brecht ainda exilado na América desejava voltar para seu país de origem,
Alemanha. Esse retorno demorou a se concretizar e quando ele finalmente conseguiu voltar,
encontrou a cidade de Berlim destruída pelos combates. No dia 27 de outubro de 1948 Brecht
(1979) escreveu:
Em muitas passagens do seu diário encontramos o relato das condições em que viva o povo
alemão ao final da Segunda Guerra. Após seu retorno, Brecht rapidamente retoma o seu trabalho
no teatro alemão e inicia a montagem de espetáculos. Brecht revela os problemas que enfrenta
com seus atores anos após o final da guerra. Muitos estão doentes ainda em decorrência do
vivido no período da guerra. Em 21 de maio de 1951, Brecht (1979) escreveu:
42
O sexto tema encontrado nos diários de Brecht são os filmes e os livros. Nos ‘Diários de Brecht’
(1995) conhecemos o cotidiano de um jovem e voraz leitor que lê: Plutarco, Hegel, as cartas de
Van Gogh ao irmão, Shakespeare, os poemas e os diários de Hebbel, Rimbaud, Büchner, Marx,
Goethe, Shelley, Balzac, Cain, Coy, Hemingway, entre muitos outros.
Conhecemos também um Brecht que adora relaxar lendo um bom romance policial inglês, como
vemos no registro que Brecht fez em seu diário mostrando o seu cotidiano, sua rotina de
trabalho, alimentação, leituras, amigos e os passatempos. No dia 05 de setembro de 1944
morando nos Estados Unidos da América Brecht (2002b) escreveu:
Plano para o dia: levantar ás 7. Jornal, rádio. Fazer café na pequena chaleira
de cobre. Manhã: trabalho. Almoço leve ás 12. Descanso com romance
policial. Tarde: trabalho ou fazer visitas. Ceia às 7. Em seguida convidados.
À noite meia página de Shakespeare ou poemas chineses de Waley. Rádio,
romance policial.
Ainda sobre Chaplin, lemos no dia 24 de março de 1947 a seguinte anotação no diário de Brecht
(2002b):
[...] Muito impressionado com os dois filmes que vi nestas últimas semanas:
‘tempestade sobre a Ásia’ e ‘Monsieur Verdoux’ de Chaplin: este último
devia chamar-se ‘The Provider’.
Conhecemos através dos registros escritos nos diários as predileções de Brecht. Seus filmes, livros,
autores, que nos permitem uma aproximação com o repertório do autor. Nos protocolos escritos
pelos aprendizes da linguagem teatral nos mais diferentes grupos aparecem muitas citações de
leituras, músicas, filmes, espetáculos pertencentes ao repertório de cada indivíduo. Muitos
acontecimentos vividos no grupo permitem ao aprendiz a relação com outras obras e a reflexão
sobre elas, contribuindo com o seu processo de aprendizagem da linguagem teatral.
Finalmente, o sétimo tema recortado dos diários de Brecht é a sua própria obra. Lemos ao longo
dos registros presentes nos diários a escrita de várias peças teatrais, poemas, scripts, entre outros
trabalhos. Em 21 de julho de 1943 Brecht morando na América (2002b) fez uma retrospectiva
do que escrevera até aquele momento:
Apesar das muitas dificuldades, pois estivera exilado desde 1933 da Alemanha, Brecht
escrevera um grande número de obras mesmo tendo vivido até 1941 em condições pouco
favoráveis e extremamente instáveis no período de guerra na Europa. Somente durante a década
44
de 40 morando nos Estados Unidos da América é que Brecht passou a ter condições mais
estáveis para escrever.
Por meio dos registros nos diários acompanhamos o surgimento de muitas ideias de Brecht para
diversos trabalhos, algumas frutificaram outras ficaram hibernando, mas impressiona a
preocupação de Brecht em sempre melhorar a sua escrita. Ele retoma seus textos em diversos
momentos e reescreve buscando a perfeição. O trabalho de Brecht com a peça “A alma boa de
Se-Tsuan’ é de uma exaustiva e constante reescrita. Pelos registros nos diários acompanhamos
ao longo dos anos o embate de Brecht com essa obra.
Retomando o seu trabalho de escrita da peça ‘A alma boa de Se-Tsuan’ que começara no início
dos anos 1930, no dia 15 de março de 1939 encontramos uma anotação de Brecht (2002a) onde
ele escreveu:
Dois meses depois, em maio de 1939, Pentecostes, Brecht (2002a) refletiu sobre o seu trabalho
com a peça ‘A alma boa de Se-Tsuan’:
Reescrevendo a mesma peça quatro meses depois, no dia 15 de julho de 1939 Brecht (2002a)
registrou sobre a peça ‘A alma boa de Se-Tsuan’:
‘A alma boa’. Retrabalhada mais uma vez a primeira cena. O principal era
dar algum desenvolvimento ao malvado Lao Go [...]
45
Seis meses depois, ainda não satisfeito com a peça ‘A alma boa de Se-Tsuan’, no dia 11 de
setembro de 1939 Brecht (2002a) analisou:
Estou meio atolado no trabalho sobre a parábola. A coisa não anda como
devia. Boa parte do trabalho é artificiosa demais, o todo não passa ainda de
um certo número de partes [...]
Mais de um ano depois de ter retomado a escrita da peça e analisando todo o trabalho que teve
ao escrever ‘A alma boa de Se-Tsuan’, no dia 20 de junho de 1940 Brecht (2002a) escreveu:
Percebemos a busca pela perfeição na escrita de seus trabalhos quando Brecht analisando todo o
tempo em que trabalhara na peça ‘A alma boa de Se-Tsuan’ ainda se sente insatisfeito. Brecht
(2002a) registrou no dia 20 de junho de 1940:
Ainda preocupado com a peça ‘A alma boa de Se-Tsuan’, na qual permanecia trabalhando, no
dia 30 de junho de 1940 Brecht (2002a) reclamou sobre as condições em que estava escrevendo.
Em várias passagens dos diários, Brecht mostra que era seu costume fazer a reescrita de suas
peças a partir da experimentação no palco. Seus atores encenavam o texto no palco e Brecht
corrigia fazendo as alterações que acreditava serem necessárias até estar perfeito. Mas naquele
momento, Brecht escrevia sem poder experimentar no palco o texto com seus atores e isso
dificultava a correção do seu trabalho.
46
Muito rigoroso e preocupado com certas peculiaridades sobre o texto da peça ‘A alma boa de
Se-Tsuan’, no dia 2 de julho de 1940 Brecht (2002a) comentou:
Decorrido quase uma década de trabalho com a escrita da peça e comentando o grande trabalho
de corrigir certos detalhes de ‘A alma boa de Se-Tsuan’, no dia 9 de agosto de 1940 Brecht
(2002a) escreveu:
Outras peças também tiveram o trabalho de reescrita de Brecht. Durante o ano de 1920
encontramos Brecht (1995) a escrever e reescrever as peças “Baal” e “Tambores na noite”.
Conhecemos por intermédio do seu diário os períodos em que a escrita era um sofrimento para
ele, e outros momentos em que a escrita fluía facilmente.
No dia 15 de julho de 1920 Brecht (1995) afirma que o texto da peça teatral está terminado:
Pouco mais de um mês depois, no dia 19 de julho de 1920 Brecht (1995) revela estar
preocupado e insatisfeito com a peça ‘Baal’ que já terminara:
[...] até a metade da semana escrevi a ‘Balada sobre muitos navios’ [...]
depois um quarto ato para ‘Tambores na Noite’, ato de encerramento. Ainda
na manhã de sábado, recriei o quarto ato dessa vez de maneira bem
diferente daquela de ‘Baal’, que agora percebo que estraguei totalmente. Ele
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Brecht (1995) expõe em seu diário o trabalho de retomada e reescrita do que acreditava ainda
não estar perfeito em suas obras. No dia 3 de agosto de 1920 ele escreveu:
[...] refiz o início do terceiro ato de ‘Tambores na noite’ [...] agora está tudo
pronto [...]
Mas como um perfeccionista, dias depois, revela ainda não estar satisfeito e retoma a escrita da
obra, em 23 de agosto de 1920 ele escreveu:
[...] estou ditando ‘Tambores na noite’. O terceiro ato está bom, fora alguns
detalhes. O quarto um bastardo, uma droga [...] (BRECHT, 1995)
Alguns dias depois, encontramos Brecht (1995) no dia 2 de setembro de 1920 ainda trabalhando
em ‘Tambores na noite’:
No dia 06 de junho de 1944 Brecht (2002b) afirmou ter concluído a escrita dessa peça, ele
anotou:
48
Mas já no dia 15 de junho de 1944 Brecht (2002b) se mostra insatisfeito com uma personagem
da peça e refletiu:
No dia 08 de agosto de 1944 Brecht (2002b) afirma que está tendo muito trabalho na reescrita
da peça e escreveu:
Como um autor extremamente rigoroso com a qualidade de sua escrita no final de julho de
1926, Brecht (1995) refletiu sobre os motivos que o levaram a escrever algumas de suas obras
até aquele momento. Brecht se mostra muito exigente consigo mesmo, ele é demasiadamente
crítico em relação a sua obra.
Hesito muito em me dedicar à literatura. Até agora fiz tudo com a mão
esquerda. Eu escrevia quando algo me ocorria ou quando o tédio ficava
forte demais. ‘Baal’ surgiu para por a pique uma peça fraca e de sucesso
devido a uma concepção ridícula do gênio de um homem amoral.
‘Tambores’ para ganhar dinheiro (a idéia foi essa, mas não rendeu nenhum
dinheiro). Com ‘Selva’ eu quis retificar os ‘Ladrões’ (e provar que a luta é
impossível por causa da insuficiência da linguagem). E ‘Eduardo’ porque
que queria encenar a obra Marlowe e ele não era suficiente [...] os sonetos
de puro tédio [...] ‘Um homem é um homem’ só para o teatro, mas o teatro
não é nada quando não existe apetite [...]
49
Brecht buscava escrever uma obra de qualidade superior, ele desejava falar sobre assuntos
essenciais, mas de uma forma leve. Em 1927, Brecht (1995) escreveu ‘O Voo no Oceano’, e
registrou num fragmento a seguinte anotação:
Ainda na década de 1930, Brecht analisou o percurso da sua obra até aquele momento e viu a
importância de seu legado. Avaliando a sua produção artística Brecht (1995) registrou em 1934:
Em 1949, Brecht já estava apresentando espetáculos. Em Pentecostes desse mesmo ano Brecht
(1979) escreveu:
Durante os anos de exílio em outros países da Europa, Brecht fez algumas viagens a trabalho,
pôde mostrar a sua obra e difundir suas idéias sobre a arte teatral. Brecht (2002a) escreveu em
23 de abril de 1939:
Brecht (2002a) participou dessa Conferência no teatro dos estudantes de Estocolmo e divulgou
suas opiniões e no dia 04 de maio de 1939 registrou:
[...] Teatro experimental. O trabalho parece bastante útil [...] eu trouxe para
‘dentro do negócio’ os elementos épicos extraídos prontos do teatro de Karl
Valentim, do circo ao ar livre e do parque de diversões de Augsburg.
Depois havia os filmes especialmente os mudos dos primeiros tempos, antes
que o cinema começasse a copiar do teatro a arte dramática [...] a
conferência [...] apresenta os experimentos como indutores reflexões,
fixadores de metas, etc. Constitui uma boa introdução ao ensaio ‘Nova
técnica de representar’. (BRECHT, 2002a)
O citado Karl Valentim era um famoso clown por quem Brecht tinha grande admiração desde
sua juventude quando o conhecera na Alemanha.
No período de exílio nos Estados Unidos da América, Brecht sofreu grande decepção com o
teatro americano, viu sua obra ser criticada, incompreendida e desprezada. Brecht encontrou
pouco ou nenhum espaço para sua obra na América. Durante o período de guerra em que ficara
de um país para outro, Brecht escreveu muito apesar da situação não oferecer as melhores
condições de trabalho, ele produziu diversas obras. Já no período vivido na América e com uma
situação melhor, Brecht (2002b) se sentiu muito desmotivado e em seu diário refletiu:
Ainda sobre o teatro feito na América, no dia 01 de novembro de 1941 Brecht (2002b)
reclamou:
Em nenhuma outra parte é mais difícil escrever sobre teatro do que aqui,
onde tudo que eles têm é o naturalismo teatral
Algum tempo morando nos Estados Unidos da América, Brecht bastante deprimido e
decepcionado, no dia 21 de abril de 1942, Brecht (2002b) escreveu:
[...] Na verdade há muitas coisas desde junho de 41 com que não consegui
me entender direito, coisas como a perda de Grete, o novo meio em que
vivo. Até mesmo o clima ameno daqui. E depois o jogo de roleta com as
stories, os confrontos com os bem-sucedidos e os malsucedidos, a falta de
dinheiro. Como conseqüência de tudo isso pela primeira vez em 10 anos
não estou trabalhando a sério em coisa alguma [...]
Muito desapontado com as condições de trabalho que se apresentam a ele, no dia 11 de maio de
1942 Brecht (2002b) escreveu:
Parece que a story que estou escrevendo com Lang (os reféns de Praga) tem
uma chance. Lang leu-a para um produtor que ficou impressionado. Como
odeio essas pequenas ondas de calor que atacam todo mundo logo que o
dinheiro surge no horizonte (ganhar tempo para trabalhar, morar melhor,
lições de música para Steff, nenhuma necessidade mais de caridade)
Sempre trabalhando, Brecht analisa suas obras e propõem a escrita de outras. No dia 30 de
outubro de 1942 Brecht (2002b) escreveu:
Discuti com Feuchtwanger meu plano de uma peça, Santa Joana de Vitry
(As Vozes). Examinado vários projetos (‘As viagens do deus da fortuna’ e
‘Uma mulher morta com carinho’) [...]
Ainda sobre o seu ofício de escrever, Brecht se mostra extremamente decepcionado com
atitudes do chefe do estúdio para quem trabalhava, e com as relações de trabalho no sistema
americano. No dia 24 de novembro de 1942 Brecht (2002b) registrou em seu diário:
Nos diários também encontramos a descrição de Brecht no período em que morou nos Estados
Unidos da América sobre sua rotina de trabalho no processo de escrita de suas peças. No dia 25
de novembro de 1942 Brecht (2002b) refletiu:
Ainda sobre a escrita da obra de Brecht, encontramos nos diários o relato de que durante os anos
de exílio e em todos os lugares onde morou, Brecht produziu muitos poemas. Ele manteve um
53
registro desses poemas para que pudesse publicá-los posteriormente. Morando nos Estados
Unidos da América, no dia 26 de setembro de 1943 Brecht (2002b) anotou:
No ano de 1944, Brecht se mostra ocupado com a escrita de outro projeto, agora para o teatro.
No dia 10 de dezembro Brecht (2002b) escreveu:
Ainda morando e trabalhando na América e mesmo sem ter certeza de que sua peça seria levada
a termo Brecht dedica-se ao trabalho de escrever. No dia 23 de janeiro de 1945 Brecht (2002b)
revelou:
Em permanente busca pela escritura de outra obra, Brecht (2002b) registrou em anotações que
vão de junho a meados de julho:
Depois de seis anos morando e trabalhando nos Estados Unidos da América e com muitas
decepções, finalmente ele começa o seu caminho de regresso a sua pátria, encontramos uma
anotação em que Brecht está à véspera da sua partida de volta a Europa. Infelizmente, essa volta
não seria diretamente para a sua querida Alemanha, mas sim para a Suíça. O retorno ao seu país
de origem ainda teria a espera de um ano morando no país vizinho até o seu regresso final. No
dia 05 de novembro de 1947 Brecht (2002b) escreveu:
Apesar de escrever e trabalhar muito, o que ocorreria ao longo de toda a vida, Brecht (1995, p.
146) no início da carreira reclama num fragmento escrito por volta de 1923 sobre as suas
dificuldades financeiras:
“[...] Não consigo mais pagar o meu sustento com minha renda. O aluguel é
alto demais e devora a renda mensal de minhas apresentações em Frankfurt
[...]
Durante toda a vida de trabalho artístico, a situação financeira de Brecht alteraria com períodos
de altos e baixos, mas isso nunca o impediu de escrever. Em 1925 analisando sua obra
produzida até aquele momento Brecht (1995, p. 150) deseja num fragmento:
[...] Não tenho a menor necessidade de que algum pensamento meu perdure.
Mas gostaria que tudo fosse devorado, transformado, consumido.
Destacamos ainda, outros registros interessantes encontrados nos diários de Brecht. Pensando
sobre o que faria se tivesse um teatro a sua disposição, no dia 01 de setembro de 1920 Brecht
(1995) explicou uma idéia sua que gostaria de por em prática durante a apresentação das suas
peças teatrais:
palco devem voltar a ser reais. Diabos, as coisas devem ser criticadas, a
ação, as palavras, os gestos, não a execução [...]
Abandono a literatura no dia em que não puder buscar mais nada nela.
As reflexões acerca das obras registradas nos diários de Brecht nos permitem a aproximação
com a produção artística do autor. Podemos analisar, a partir dos fragmentos dos diários de
Bertolt Brecht, que o hábito da escrita o acompanhou durante quase toda a sua vida, até mesmo
em momentos de grande dificuldade o exercício da escrita não foi abandonado. Acompanhamos
a vida de Brecht, através dos registros feitos por ele, desvelamos o seu processo de criação ao
trabalhar em suas peças, conhecemos o hábito de reescrita e a busca pela perfeição no seu
trabalho de ‘escrevinhador de peças’. Enfim, aproximamo-nos das dores vividas pelo homem
por trás do grande autor.
A próxima parte da pesquisa nos permitirá relacionar a importância dada por Brecht a escrita e
concretizada no ano de 1930 no registro das discussões promovidas após a apresentação da peça
“Aquele que diz sim” na escola Karl Marx ao desenvolvimento da escrita do protocolo. O hábito
e a importância dada à escrita se apresentam no registro dos eventos ocorridos naquela
apresentação. Há ainda, o fato de Brecht guardar os diários e todos os seus escritos durante toda
a sua vida revelando a importância que o exercício da escrita tinha para ele.
Os diários de Brecht trazem os relatos e as reflexões sobre os momentos vividos pelo autor. Os
protocolos também registram os acontecimentos e as reflexões de seus autores que estão
envolvidos com a aprendizagem da linguagem teatral. Buscaremos compreender neste trabalho
as características próprias do protocolo e assim poderemos diferenciá-los de um diário íntimo
pessoal. Faremos agora um percurso histórico da origem da proposta da escrita do protocolo.
56
O termo protocolo no trabalho de Bertolt Brecht aparece na pesquisa de Ingrid Koudela (2007,
p. 21) sobre a peça didática. Nesse trabalho de Koudela encontramos a primeira citação da
utilização da palavra ‘protokoll’ pelo ‘Escrevinhador de peças’. Em sua pesquisa, Koudela
afirma que Brecht tinha uma preocupação em ‘protocolar’ as reações das pessoas submetidas
aos experimentos das Peças Didáticas: ‘Aquele que diz sim’(Der Jasager)/ ‘Aquele que diz
não’(Der Neinsager). Para Koudela isso revela que as peças didáticas têm um caráter científico
de uma proposta programática.
A primeira apresentação da Peça Didática ‘Aquele que diz sim’, segundo Ewen (1991)
aconteceu em 23 de junho de 1930 no Instituto Central de Educação e Instrução de Berlim. A
proposta dessa encenação surgiu de uma versão feita de uma peça japonesa da escola de teatro
Nô traduzida por Elizabeth Hauptmann.
A história escrita por Zenchiku chamada ‘Taniko’, narra a peregrinação espiritual de um mestre
e de um garoto que resolve acompanhá-lo para orar pela recuperação da mãe enferma. A jornada
revela-se muito árdua e o garoto adoece. Segundo a tradição ele deve ser jogado no vale. O
garoto aceita o seu destino e os outros peregrinos cumprem o costume. (EWEN, 1991)
A partir da tradução, Brecht criou uma versão modificada da fábula, pois segundo Koudela
(2001) Brecht queria testar e pesquisar determinadas atitudes. Na peça didática de Brecht a
história é de um professor que faz uma expedição para uma pesquisa com outros professores
que estão além das montanhas. O garoto acompanha para obter remédios e salvar a mãe, mas cai
ao longo do caminho. O costume exige que ele seja questionado se consente ser deixado para
57
trás. O garoto consente, mas com medo de morrer sozinho pede para ser jogado no vale, e isso é
feito.
A apresentação da peça ‘Aquele que diz sim’ despertou muitas discussões, mas Koudela (2001)
destaca que Brecht ficou surpreso com a aceitação da peça, principalmente pela Igreja. Segundo
Ewen (1991), Brecht deu real importância aos comentários dos alunos da Escola Karl Marx de
Berlim. Para Brecht as críticas nos protocolos dos alunos foram incisivas e sagazes. Segundo
Ewen (1991) os alunos da Escola Karl Marx de Berlim fizeram perguntas relevantes buscando
saber o motivo dos companheiros do garoto não poderem salvá-lo, questionaram se a decisão
era mesmo necessária, queriam saber o motivo do grupo não voltar levando o garoto e se a
vantagem da expedição era maior que o sacrifício do garoto, dentre outras questões.
Koudela (2001) destaca ter sido positivo o resultado da discussão a cerca da apresentação da
peça didática ‘Aquele que diz sim’ na Escola Karl Marx, pois os alunos não mostraram estar de
acordo com o que estava errado.
Os protocolos feitos pelos alunos da Escola Karl Marx sobre os experimentos ocorridos em
1930 foram registrados, mas somente em 1959 foram publicados como ‘protokoll’ no ‘Caderno
4’ dos Versuche. Em seu trabalho Koudela (2001, p. 89) afirma que “No ‘Caderno 4’ [...] foram
registrados excertos de discussões, a partir desta primeira versão de ‘Aquele que diz sim’ na
Escola Karl Marx, em Neuköln [...]”.
Posteriormente, Brecht retomou a peça didática ‘Aquele que diz sim’ e apresentou uma segunda
versão. Brecht ainda escreveu uma versão onde o garoto passa a dizer não ao costume, assim
temos ‘Aquele que diz não’. Na nova história, o garoto quando questionado se consente em ser
deixado para trás argumenta que não vê sentido no costume antigo e que era necessário um novo
costume. O costume de repensar a cada nova situação. O grupo da expedição fica convencido e
leva o garoto de volta à vila estabelecendo um novo costume.
Koudela (2001) ainda lembra que Brecht determinava que essas duas peças fossem apresentadas
em conjunto. Para Brecht as Óperas Musicais ‘Aquele que diz sim’ e ‘Aquele que diz não’ eram
destinadas a escola e o texto podia ser modificado, transformando o espectador em autor e
atuante.
Assim, no episódio da peça ‘Aqueles que diz sim’ encontramos o primeiro registro da palavra
protocolo utilizada por Brecht na relação da escrita com a produção teatral.
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Ingrid Koudela, profunda pesquisadora da obra de Bertolt Brecht, nos revela o seu primeiro
contato com a proposta de escrever o ‘protokoll’ no artigo intitulado ‘Um Protocolo dos
Protocolos’ no livro ‘Brecht na pós-modernidade’(2001). Foi na década de 1980, durante um
seminário na Universidade de Hannover, Alemanha, que a pesquisadora exercitou a prática da
escrita do protocolo através da proposta do Professor Dr. Florian Vassem, estudioso da obra de
Brecht.
Ingrid conta que nas aulas teóricas de estudo sobre a peça ‘Galileu Galilei’ de Bertolt Brecht, o
Profº Vassem solicitava a um estudante, ou uma dupla, ou até mesmo em trio, que escrevessem
um texto, o protocolo, que recuperasse o que fora tratado no encontro anterior. Então, o
protocolo era fotocopiado para todos os estudantes e lido por um aluno em voz alta na aula
seguinte enquanto todos acompanhavam a leitura com suas próprias cópias em mãos. Finda a
leitura, Ingrid explica que se seguia um momento onde todos podiam comentar o que fora
relatado no protocolo. Ingrid acrescenta ainda que os estudantes tinham grande prazer em
discutir o conteúdo dos temas levantados pelo protocolo a cada encontro. Essa foi a primeira
experiência de Koudela com a prática de escrita do protocolo.
por um teatro associal’ publicado em 1992, que se devia ao final de cada etapa de uma oficina
fazer uma reflexão/avaliação. Steinweg propunha a solicitação da escrita aos participantes da
oficina, e explicava que o indivíduo no exercício da escrita poderia refletir com maior precisão e
detalhe sobre a experiência. Steinweg determinava, ainda, que a escrita deveria ser explícita e
acessível a todos os participantes.
O registro mais antigo da proposta de escrita do protocolo encontrado nesta pesquisa foi em
1990 em que Ingrid Koudela solicitou essa escrita aos seus alunos dos Cursos de licenciatura e
Especialização em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo. Socorro Santiago era aluna no curso de Especialização na época e escreveu um artigo “O
Protocolo: instrumento de trabalho de Bertolt Brecht, um recurso metodológico” (KOUDELA,
1992) em que busca registrar a experimentação do jogo teatral com a peça didática no processo
de criação que resultou na encenação ‘Voo’. Santiago apresenta em seu artigo fragmentos como
exemplos de protocolos escritos durante o curso na ECA/USP. No dia 28 de junho de 1990 com
o Protocolo Nº 1, Santiago busca definir o que seria o protocolo:
[...] é uma reflexão sobre a aula anterior. / Tem ligação com Brecht./ É um
registro do processo. / É um material de documentação importante.
[...]
A aula teve início
Com todos deitados no chão
E com os olhos bem fechados
Ficando-se na escuridão
Se ouvia Cybele e entendendo
Que mesmo não estando vendo
usássemos a imaginação
[...]
Depois de todos em pé
Cada qual num segmento
Era o olhar que determinava
Qual seria o movimento
E a câmara sendo o olhar
Aos gestos obturar
Pra não cair no esquecimento.
Afastando-se cada um
Isolava-se em seu lugar
E numa auto-observação
Todos foram procurar
As partes que dificilmente
Se olha ou mesmo sente
Tais como: sola do pé calcanhar...
[...]
O estudo assim se encerra
Onde tudo começou
Voltam todos pro lugar
Onde o exercício iniciou
Cada qual toma seu canto
E como num encanto
O que era sonho acabou.
Koudela (1999, p. 119) afirma que “a tematização do modelo de ação se dá através do jogo
teatral e da avaliação reflexiva. A interação no jogo leva a uma multiplicidade de imagens e
associações, que são experimentadas corporalmente, através da linguagem gestual”.
Vemos aqui que Koudela revela sua identificação com o pensar de Madalena Freire e que ela
passa a usar as propostas freireanas em seu trabalho. Lombardi (2005) afirma que o protocolo é
uma síntese da aprendizagem materializada na escrita, ressalta ainda que o protocolo que é um
instrumento de reflexão e avaliação, e uma reflexão-na-ação.
O Sistema de Jogos Teatrais desenvolvido por Viola Spolin presente no livro ‘Improvisação
para o Teatro’ foi publicado pela primeira vez nos Estados Unidos da América em 1963. No
Brasil foi traduzido por Ingrid Dormien Koudela e Eduardo José de Almeida Amos e publicado
em 1979.
Várias experimentações práticas com o Sistema de Jogos Teatrais ocorreram nos anos de 1978-
79 conduzidos por Koudela. O Grupo Foco foi formado, além de Koudela por outros
pesquisadores e posteriormente integrados à Cooperativa Paulista de Teatro no desenvolvimento
de oficinas com os jogos. Ingrid Koudela deu prosseguimento a essas oficinas com o Sistema de
Jogos Teatrais nos anos 1981-82 com a Associação Paulista de Teatro para a Infância e
Juventude. Em 1982 Ingrid Koudela defendeu sua dissertação de mestrado ‘Jogos Teatrais, um
processo de criação’ na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Koudela (2006) destaca que o objetivo do sistema de atuação por meio dos jogos é a
transmissão de uma proposta em que todos os que desejarem se expressar através do teatro
possam fazê-lo: sendo profissionais, amadores ou mesmo crianças.
Ingrid Koudela, em sua pesquisa de doutoramento, fez a junção dos textos das peças Didáticas
de Bertolt Brecht com o Sistema de Jogos Teatrais proposto por Viola Spolin. Essa junção
trouxe a dimensão prática para o trabalho com o texto. A experiência sensório-corporal
enriqueceu a vivência dos textos de Brecht. Segundo Spolin (2003) o processo de atuação no
teatro deve ser baseado na participação em jogos, pois, o participante teria a possibilidade de
desenvolver liberdade apesar do limite das regras estabelecidas na relação do jogo. Os jogos
teatrais são sociais e baseados em problemas a serem solucionados.
Na proposta de junção do texto com o jogo teatral, Koudela (2006), afirma que é o orientador de
um grupo que deve selecionar de acordo com a necessidade, o jogo mais adequado. A
pesquisadora destaca que para cada necessidade há um jogo específico que pode colaborar no
desenvolvimento das habilidades exigidas. E há ainda, a possibilidade de utilizar uma
determinada sequência de jogos ou usar os jogos de forma estanque.
64
O Sistema de Jogos Teatrais propõe uma aprendizagem não-verbal, segundo Koudela (2006) é
por meio da solução de problemas que o aprendiz conquista o conhecimento da matéria e da
experimentação direta dos jogos e adquire liberdade. O foco é ao mesmo tempo um catalisador
para o jogo e uma forma de criar unidade orgânica na improvisação. O processo de jogos
teatrais visa à efetivação da passagem do jogo dramático para a realidade objetiva do placo.
Desde sua publicação o Sistema de Jogos Teatrais tem sido amplamente divulgado e utilizado
no Brasil. A proposta da escrita do protocolo não é dependente do uso dos jogos teatrais, mas é
bastante comum a utilização do protocolo no trabalho com os jogos. Ingrid Koudela se valeu do
protocolo para registrar as suas propostas com os jogos teatrais em encenações, oficinas,
experimentos e aulas em diversas instâncias.
O protocolo como uma escrita sobre eventos vividos num grupo da esfera teatral recebeu a
marca do conhecimento construído por meio dos Jogos Teatrais. Na escrita do protocolo
encontra-se a descrição dos jogos e as descobertas feitas na avaliação da vivência sensório-
corporal experimentada. Veremos agora, em alguns fragmentos de protocolos destacados a
reflexão promovida pela aprendizagem do jogo. Todos os protocolos selecionados e citados,
aqui nesta pesquisa, foram escritos pelos alunos da pesquisadora Ingrid Koudela, ao longo de
mais de 30 anos, durante processos de criação de diversas montagens ou cursos, em que ela
aplicou a metodologia de ensino-aprendizagem com o uso do instrumento protocolo.
A aluna Edilaine afirma que houve grande entrega aos jogos por parte dos alunos, que a sua
utilização promoveu integração e tornou os movimentos dos jogadores orgânicos. Edilaine pôde
refletir em seu protocolo sobre a prática do jogo teatral e também o processo de criação da
encenação. Posteriormente, Edilaine ainda discutiu com todo o grupo a sua análise do processo
vivido no debate na Roda do Grande Protocolo.
Em seu protocolo a aluna Paola refletiu sobre a sua relação com a parceira de jogo na criação
dos gestos da encenação. Paola afirmou ainda que continuara os movimentos criados no
encontro anterior, o registro no protocolo permitiu a recuperação dos gestos experimentados
anteriormente e um progresso nas descobertas feitas. O protocolo funcionou como propulsor no
processo de criação, pois permitiu a recuperação e proporcionou o avanço na aprendizagem da
linguagem teatral.
A colaboração do jogo teatral na experiência do aluno fica evidente na reflexão promovida pela
escrita do protocolo da aluna Ana Érica Soares da encenação ‘A Ferida Woyzeck’ do curso de
Teatro da Universidade de Sorocaba que anotou no dia 17 de fevereiro de 2009:
O estado de jogo nos deixa apto a receber melhor as coisas ao nosso redor.
Estado de alerta, e abertos a novas possibilidades de jogo. [...] Acho que se
continuarmos investindo nesse lado participativo temos muito a crescer
como jogadores e atores.
foco. Falamos também dos conceitos do quem e onde, que apareciam nas
improvisações, falamos também que muitas vezes foram utilizados como
quem a infantilidade do grotesco já discutido em aulas anteriores. [...] A
discussão foi muito importante para o processo ensino-aprendizagem dos
alunos, colaborando para que a montagem não seja apenas um espetáculo
para ser apresentado, mas também para ser usado como embasamento
teórico [...]
O aluno Ramon compreende a importância do protocolo na sua formação, pois ele percebeu que
não está apenas montando um espetáculo obrigatório no curso de sua graduação, mas ele
percebe que há uma proposta metodológica na construção do conhecimento e que o protocolo
colabora para a aprendizagem da linguagem teatral que relaciona teoria e prática.
O pesquisador Adalberto registrou em seu protocolo a sua relação com os primeiros jogos
orientados por Koudela. Ele, também, cita a gravura ‘Peixes grandes comem peixes pequenos’
obra de Peter Brueghel que fora lida no encontro anterior e com a qual jogara na criação da cena
teatral. O pesquisador demonstra compreender a colaboração da experiência sensório-corporal
promovida pelo jogo teatral. Ele reflete em seu protocolo a experiência prática vivida.
No jogo teatral é o gesto que cria a realidade dos objetos e situações. O jogo torna manifesto o
gesto espontâneo para só posteriormente promover a decodificação do significado. Tornar
consciente o significado pode estabelecer a comunicação com a plateia. Os protocolos registram
as experiências corporais vividas na prática do jogo teatral e permitem a reflexão posterior
individual e coletiva que promove o avanço no processo de aprendizagem da linguagem teatral.
A avaliação é uma parte importante do Sistema dos Jogos Teatrais, é o momento em que
jogador e plateia conversam sobre o que realmente foi comunicado na prática do jogo. Segundo
Spolin (2003), a avaliação deve ocorrer ao final de cada momento em que a solução do
problema de atuação acontece, e ainda, que o exercício da avaliação pode terminar com a
reticência de alguns alunos no momento de expressar seus comentários.
Koudela (2008) afirma que a avaliação no jogo teatral não deve ser um julgamento ou uma
crítica. A avaliação deve nascer do foco e visar o seu restabelecimento, pois quando o jogador
trabalha no foco do jogo, toda a plateia compartilha e discute o jogo durante a avaliação.
Koudela ressalta que nenhum jogador será ridicularizado, menosprezado ou manipulado se as
perguntas da avaliação forem baseadas no problema (foco). Koudela assegura ainda, que a
confiança nos parceiros de jogo crescerá e formará uma parceria onde todos serão livres para
assumir a própria responsabilidade ao praticar o jogo.
O professor não deve assumir para si o momento da avaliação, para Spolin (2003), ele deve
fazer parte da plateia juntamente com os alunos. A avaliação deve ser um momento de
compartilhar promovendo nos alunos que estão na plateia a passagem de observadores passivos
a participantes ativos do problema.
Em sua prática com os jogos teatrais, a pesquisadora Ingrid Koudela passou a compreender o
momento da avaliação como uma situação em que pode ocorrer um avanço no processo de
aprendizagem da linguagem teatral. Koudela (2008) afirma que
Em seu livro ‘Jogos Teatrais’, Koudela (2006) relata que as suas primeiras experiências
realizadas com crianças e adolescentes na utilização do Sistema dos Jogos Teatrais de Viola
Spolin ocorreram nos meses de outubro e novembro em 1978. O curso ocorreu no Teatro Studio
São Pedro na cidade de São Paulo patrocinado pela Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia.
Nos referidos cursos, o momento da avaliação ocorreu de forma que as crianças responderam as
perguntas e os pesquisadores puderam constatar que o grupo sustentara o foco das atividades. O
mesmo ocorreu no grupo de adolescentes, até que houve uma surpresa no 10º encontro. Os
adolescentes solicitaram uma avaliação do processo aos pesquisadores, eles queriam
compreender o que se pretendia com aquele curso.
questionamento dos adolescentes. Koudela (2006, p. 79) afirma que o fato do grupo ter
questionado clarificou que “havia continuidade entre as percepções alcançadas nos encontros e a
realidade de cada participante.”
A escrita no processo de avaliação não está prevista no Sistema de Jogos Teatrais de Viola
Spolin, foi uma alteração feita pelos pesquisadores no decorrer do curso, a necessidade de
trabalhar com uma reflexão individual posterior ao momento vivido exigiu uma solução
diferenciada.
Percebemos a presença da escrita, mesmo que de forma fortuita, logo no início das
experimentações com Sistema de Jogos Teatrais pela pesquisadora Koudela. Veremos ao longo
do tempo a proposta do exercício da escrita ganhar espaço e força no trabalho da pesquisadora.
Compreenderemos agora o conceito da fisicalização e sua colaboração na escrita do protocolo.
vocabulário gestual necessário ao trabalho do ator. A aluna refletiu ao escrever seu protocolo e
debater o assunto com o grupo na Roda do Grande Protocolo.
O corpo para a aluna Alessandra se tornou produtor de outros códigos não pensados
anteriormente por ela. Na experiência da fisicalização do sensório-corporal e posteriormente na
escrita e debate do protocolo, a aluna pôde tomar consciência sobre as possibilidades do corpo
que modificaram sua compreensão do processo de ensino-aprendizagem do teatro.
A pesquisadora Heloíse Vidor do curso ‘Teoria e Prática da Peça Didática de Brecht’ da Pós-
Graduação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo no dia 17 de
agosto de 2011 escreveu:
Ando pelo espaço (e adoro o que vem) sentir a substância que está no
espaço, meu corpo, minha pele, meus poros em contato com a substância.
Saio da substância, entro e sou levada pela substância… Ando pelo espaço e
vejo o espaço, e vejo os outros e volto a atenção para mim. E num trio deixo
a substância, o espaço, o meu corpo e o corpo dos outros conversarem,
tentando afinar o nascimento dos gestos e das palavras. Que deliciosa a
sensação da palavra PARIDA pelos três!
do seu protocolo Heloise pôde refletir sobre o momento experienciado e compartilhar com os
companheiros de jogo na Roda do Grande Protocolo.
Também sobre a fisicalização no jogo teatral, a aluna Vanessa Bordin do curso ‘Teoria e Prática
da Peça Didática de Brecht’ da Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo no mesmo dia 17 de agosto de 2011 escreveu:
São muitas as propostas que servem de modelo utilizada por Koudela para criar a cena teatral,
veremos agora a colaboração do modelo de ação na escrita do protocolo.
O modelo de ação é o texto adotado para ser imitado num processo de criação da cena teatral.
Koudela (2007) no seu estudo da peça didática de Brecht destaca que o texto tem a função de
desencadear o processo de discussão através da parábola. Brecht utilizava modelos de ação
(textos), e ele considerava o texto como introdução da improvisação.
Na proposta brechtiana, conforme Koudela (2007), o texto não transmite o conhecimento por si
mesmo, mas visa provocar um processo, por cujo intermédio o conhecimento poderá ser
atingido. A fidelidade ao modelo de ação não significa a realização do texto em função dele
mesmo. O texto deve ser transportado para uma ação prática a partir da qual os jogadores
vivenciam e investigam as contradições com o próprio corpo. O modelo de ação propõe aos
jogadores um caso social que não se relaciona, necessariamente, com a experiência pessoal de
cada participante.
Koudela (2007) destaca que no trabalho com as peças didáticas de Brecht os atuantes ensinam a
si mesmo. Eles aprendem por meio da conscientização de suas experiências.
linguagem teatral desenvolvidos pela pesquisadora Ingrid Koudela e em todos esses processos,
Koudela utilizou a metodologia do uso do protocolo.
Na encenação do ano de 2007, houve um rico processo dialógico entre os textos propostos na
criação da encenação. Os modelos de ação utilizados em ‘Peixes Grandes Comem Peixes
Pequenos’ foram: a gravura com o mesmo título da encenação de Peter Brueghel e o quadro
‘Angelus Novus’ de Paul Klee, e os quatro textos: ‘Se os tubarões fossem homens’ de Brecht,
‘Aquário’ de Guimarães Rosa, ‘Sermão aos Peixes’ de Antônio Vieira, e ‘Anjo Triste’ de
Walter Benjamin.
A aluna Stela cita em seu protocolo a grande quantidade de textos utilizados no processo de
criação da encenação. A forma como ela organiza a citação dos textos denota que para ela a
quantidade era assustadora e que a deixou perturbada. Mas no final a experiência foi positiva,
pois ela encerra o protocolo se perguntando e respondendo:
A aluna Rogéria explica em seu protocolo que vários modelos de ação fizeram parte do
processo. Por esse motivo, ela se mostra surpresa pelo grupo ter conseguido realizar o
espetáculo. O protocolo da Rogéria ficou com muitas citações como o processo vivido na
criação da encenação e permitiu a ela compreender a colaboração de cada elemento proposto
pela encenadora.
A aluna Ismália escreve seu protocolo a partir da vivência com o texto descritivo de Brecht
sobre as gravuras de Peter Brueghel. Ismália coloca fragmentos das imagens acompanhadas de
fragmentos de textos descritivos e depois suas reflexões. Encontramos neste protocolo a forte
presença da marca do modelo de ação que entrara no texto espetacular da encenação.
[...]
Terça:
Leitura de protocolos
Comentários:
- seqüência e fluência das entradas e saídas;
- máscaras;
- Cd trazido por Tânia Boy – analisado por Marco, ilustrativo para a nossa
apresentação;
[...]
Amanda (aquecimento): em círculo, dar oito pulos para frente, para a direita
e para a esquerda, sacudir todo o corpo, sair para o abraço intencional,
fazendo caretas para o outro, voltar ao círculo. Imaginar que se tem uma
rosa nas mãos, como que tirada de dentro de cada um, oferecer para o outro.
Sair do círculo e escolher alguém para assumir seu lugar, trocar com o outro
Elemental, ainda no círculo, o gesto de cada um. Fechar com a dança de
roda. [...]
A aluna Ivanise utiliza em seu protocolo o gênero descritivo, ela usa verbos no infinitivo para
expressar os comandos dados e transmite a sua intenção ao se valer da descrição para apresentar
as atividades realizadas no encontro.
O aluno Rodrigo no seu protocolo reflete sobre o processo experienciado no seu próprio corpo
na fisicalização do gesto. A escrita do protocolo e seu posterior debate sobre as vivências
sensório-corporais proporcionadas pela prática da improvisação da cena permitiram a ele
aprender pela conscientização da experiência vivida.
Em 2009, na encenação ‘A Ferida Woyzeck’ os modelos de ação propostos por Koudela foram:
o texto ‘Woyzeck’ de George Büchner, o quadro ‘O Caçador de Passarinhos’ de Peter Brueghel
e Cantos de Trabalho da Cultura Popular Brasileira.
O modelo de ação da leitura de imagem do quadro ‘Ladrão de Passarinho’ de Peter Brueghel foi
relacionado ao jogo teatral na pesquisa do gesto e da fisicalização. A leitura foi utilizada no
processo de criação da personagem Woyzeck. Em relação a esse momento, a aluna Natália
Velden escreveu em seu protocolo no dia 11 de março de 2009:
A aluna Giovanna apenas cita o que ocorreu no encontro, ela busca nessa citação descrever o
que acontecera no trabalho desenvolvido na criação da encenação. O modelo de ação se faz
presente no protocolo através dessa breve citação de fatos que está fortemente relacionado a
forma como foi desenvolvida a leitura e a descrição feita da imagem estudada no processo.
A aluna Natália reflete em seu protocolo sobre a experiência da relação do jogo teatral e o
modelo de ação. Ela compreende o processo vivido e a sua colaboração na sua própria
formação. A escrita do protocolo cria a oportunidade para a reflexão e discussão do rico
processo vivido na criação da cena teatral permitindo ao aprendiz o aprofundamento na
construção do conhecimento.
É de lei e é de vera
É de lua é de luar
Quando o Nêgo velho canta, faz as estrelas brilhar.
E a lua canta junto, como o velho no congá...
90
[...]
E assim na marcha lenta da congada, iniciamos cada um dos dias de nosso
trabalho. Meio que como para aterrar o que ainda estava aéreo, trazer o
corpo a atenção necessária, ou a boca, incontrolável e barulhenta, ao
silêncio. [...],
‘Xô, xô pavão
Sai de cima do telhado
Deixa esse menino dormir sono assossegado
Esse menino não é meu, deram para eu criar... ’
A aluna Fernanda registra em seu protocolo fragmentos das músicas aprendidas e reflete sobre
as possibilidades com o texto de Büchner. A aluna cita em seu protocolo trechos da música ‘É
de lei e é de ver’, além da música ‘Xô pavão’ que entrou no texto espetacular final da
encenação. O último verso da música ‘Xô pavão’ citado por Fernanda, “... Esse menino não é
meu, deram para eu criar...” não faz parte da música original, ela criou o verso inspirada pela
peça de Büchner, na qual a paternidade do filho de Marie é questionada. As influências dos
modelos de ação propostos apareceram nos protocolos produzidos a partir da experiência vivida
e os protocolos ficaram mais musicais.
A música também foi determinante no encontro do dia 24 de agosto de 2011 no curso ‘Teoria e
Prática da Peça Didática de Brecht’ da Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo. Nesse curso o objetivo final não era uma encenação, a cada
encontro Koudela propunha um modelo de ação relacionado ao texto brechtiano para que os
pesquisadores pudessem conhecer as muitas possibilidades na criação da cena teatral.
‘POEMAS DIDÁTICOS
[...]
MENOS A SÉRIO
Bate o monjolo no pilão,
O segredo é a observação,
É assim, é assim, é assim,
É assim que minha mãe
91
Lava a saia.
‘Bate o monjolo no pilão’ e ‘Lava a saia’ são dois cantos que o pesquisador Adalberto aprendeu
no encontro anterior do grupo que também propunha a execução de gestos. Os cantos
funcionaram como modelo de ação para a criação das cenas experimentadas no encontro do
grupo. Esse modelo de ação deixou marcas na escrita do protocolo que foi quase cantado na
Roda do Grande Protocolo.
[...]
MAÇARIQUINHO
Ainda em outro exemplo de protocolo, agora da pesquisadora Lígia Helena do mesmo encontro,
temos uma grande citação de partes das músicas, descrição dos eventos e fatos imaginados pela
autora, tudo foi misturado às reflexões que ela fez:
Podemos perceber pelo protocolo da pesquisadora Lígia Helena que o modelo de ação proposto
para o trabalho com a linguagem teatral interfere na escrita dos protocolos que registram os
eventos ocorridos. As músicas são citadas no protocolo, pois a forte presença no momento
vivido no encontro deixou marcas na pesquisadora e para transmitir a sua intenção em recuperar
a experiência vivida, Lígia reproduz fragmentos musicais misturados aos comentários que
transmitem a alegria experienciada naquele momento.
Em outro encontro com mesmo grupo de pesquisadores, a proposta de Koudela foi a leitura de
imagem. Os pesquisadores realizaram a leitura da gravura ‘Peixes Grandes Comem Peixes
Pequenos’ e improvisaram com os jogos teatrais na criação da cena. A pesquisadora Daniele
Marques no dia 14 de setembro de 2011 descreveu em seu protocolo as cenas criadas por cada
grupo:
A pesquisadora Naila Broisler registrou em seu protocolo sobre a mesma experiência no dia 14
de setembro de 2011:
A pesquisadora Naila, além de escrever em seu protocolo suas inquietações sobre a relação do
jogo com o modelo de ação, também sentiu a necessidade de colocar uma fotografia da cena
criada na aula que reproduzia parte da gravura de Brueghel. A imagem trabalhada na criação da
cena a inspirou na utilização da fotografia em seu protocolo.
Percebemos pelos exemplos citados que dependendo do modelo de ação proposto no encontro o
protocolo muda de formato, isto é, o gênero escolhido para transmitir a intenção do seu autor
varia de acordo com e experiência vivida no encontro do grupo do fazer teatral.
No livro ‘Jogos Teatrais’, Ingrid Koudela (2006) relata as oficinas que realizou desde o ano de
1978 trabalhando com a linguagem teatral. A pesquisadora mostrou a realização das primeiras
oficinas com o Sistema de Viola Spolin e no convênio firmado com a Cooperativa Paulista de
Teatro, e posteriormente com Associação Paulista de Teatro para a Infância e Juventude.
Muitas oficinas foram destinadas aos mais diferentes grupos de aprendizes: crianças,
professores, atores, pesquisadores, diretores e autores. Em muitas dessas oficinas, Koudela
96
mostrou interesse no desenvolvimento de pesquisas na relação dos jogos teatrais com o teatro
para a infância e a juventude. Koudela (2006, p. 104) afirma que “o sistema de Spolin veio ao
encontro da necessidade de articular o processo de criação, fornecendo instrumentos para a
condução do trabalho realizado em grupo e para a leitura do jogo cênico.”
Desde as primeiras oficinas, Koudela registrou através da escrita a experiência vivida nos
encontros. As crianças das oficinas em 1978 tiveram seus desenhos e escritos registrados e
publicados na intenção de mostrar o resultado dos trabalhos realizados. Esses registros
permitem até hoje o acesso através de sua publicação no livro ‘Jogos Teatrais’ (2006a) ao que
foi vivido naquelas oficinas.
No livro ‘Texto e Jogo’ (1999) Ingrid Koudela registrou as oficinas que organizou e ministrou
na cidade de São Paulo, com três turmas diferentes Oficinas Pedagógicas realizadas em 1992, a
fim de desenvolver as possibilidades de sua pesquisa sobre as Peças Didáticas de Brecht no
Brasil. Para registrar e apreender o desenvolvimento das experiências com as peças didáticas
nessas oficinas, Koudela utilizou duas formas de coletar os dados: a primeira através de
gravações mecânicas das avaliações e comentários dos grupos, e a segunda foi através da
proposta de escrita do protocolo.
Koudela (1999) explica que a cada novo encontro na oficina dos grupos pesquisados
Koudela (1999) utilizou fragmentos desses protocolos para descrever, explicar e analisar os
procedimentos realizados nas oficinas, permitindo ao leitor do seu trabalho um
acompanhamento próximo ao momento vivido pelo grupo estudado. O protocolo escrito no
calor da ocasião busca apreender e capturar o que é próprio do teatro, a efemeridade do
momento presente. As Oficinas Pedagógicas, ministradas por Koudela (1999), foram realizadas
com três grupos distintos.
97
O primeiro foi o grupo de sete alunos do Curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com o qual Koudela trabalhou o
fragmento ‘O Maligno Baal, o associal’. Destaco, agora, alguns fragmentos dos protocolos dos
alunos dessas oficinas:
Sentados, uns ao lado dos outros [...] chamava a atenção, no espaço mais
amplo [...] lá estavam os trabalhadores braçais, e aqui estávamos nós,
pensadores [...] a voz próxima da instrução da Ingrid nos guiava através do
aquecimento visual [...] (p. 45)
O segundo grupo era formado por jovens da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo que trabalhou com a cena ‘A água partilhada’ de a ‘Exceção e o
Regra’, e finalmente o terceiro grupo formado por professores que participavam de um projeto
da Fundação para o Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo, Koudela trabalhou
com as cenas “A segunda investigação’ e ‘O Exame’ da Peça Didática de Baden Baden sobre o
Acordo.
Com o passar dos anos, Koudela deu maior valor ao registro escrito nos protocolos dos
aprendizes e passou a utilizar a metodologia de ensino-aprendizagem do teatro com a escrita do
gênero discursivo protocolo.
Em 1991 trabalhou no experimento de uma encenação que desenvolvia suas pesquisas sobre as
Peças Didáticas de Bertolt Brecht, Koudela (1992) realizou um projeto intitulado ‘Voo’. Nessa
encenação utilizou como modelo de ação o texto e a música da peça didática ‘Voo sobre o
Oceano’ e das máximas extraídas da ‘A Peça didática de Baden Baden sobre o Acordo’. A
proposta do projeto era aliar o Sistema de Jogos Teatrais de Viola Spolin à Peça Didática de
Bertolt Brecht com os alunos do Curso de Especialização em Artes Cênicas na Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
O resultado desse experimento está registrado no livro ‘Um vôo brechtiano’ publicado em 1992.
Nesse trabalho a pesquisadora Koudela fundamentou a análise da encenação, resultado do
projeto, e buscou através da divulgação da teoria e da prática renovar os processos pedagógicos
da educação político-estética.
A encenação ‘Voo’ foi apresentada num estilo coral, com a participação de seis atores dentro da
proposta de teatro improvisacional. Os atores se revezavam no papel do Aviador, que era
identificado pelo uso de uma máscara de mergulho. O trabalho com o texto da peça didática
visou completar o procedimento com o estranhamento. A música foi adaptada por Wanderley
Martins que fez também a direção musical.
O processo de montagem da encenação ‘Voo’ foi marcado pela escrita do protocolo. Segundo
Santiago (KOUDELA, 1992) a responsabilidade da escrita do protocolo era combinada no
início do encontro, que podia ser de uma pessoa ou mais, dependendo da proposta do encontro.
O responsável tomava notas durante o desenvolvimento das atividades. Depois realizava a
escrita do protocolo relatando os momentos vividos. Santiago, ainda destaca que utilizou os
protocolos escritos durante o processo de criação da encenação ‘Voo’ no primeiro semestre de
100
No dia 01 de março de 1991 o aluno Indalécio Santana foi o responsável pela escrita do
protocolo do encontro:
“ Tarde morna
CYBELE APRESENTADA PEDE O PANO
Propõe que se faça um círculo com próprio
E cada qual escolha um lugar lá dentro
Anunciando um nome, seu dono deve emitir
Frases curtas, de movimento, com dinâmicas
diferenciadas,
Os outros devolvem o sinal.”
Desde o início da década de 1990, muitas montagens realizadas pela encenadora Ingrid Koudela
se seguiram com o passar dos anos. Na cidade de Sorocaba desde sua chegada à Universidade
de Sorocaba em 2006, a cada ano a pesquisadora pôde desenvolver suas propostas de
encenações, apresentar e registrar suas pesquisas em diversas publicações contribuindo com o
101
Há uma grande diversidade de grupos que se valem do uso do protocolo, como: alunos de
escolas e universidades, grupos de aprendizes fora do âmbito escolar; e há também grupos de
atores amadores, profissionais e pesquisadores.
Um exemplo de protocolo que utiliza a linguagem da cena teatral ocorreu com o aluno Robson
Catalunha da encenação “Peixes Grandes comem Peixes Pequenos” do curso de Teatro da
Universidade de Sorocaba no dia 21 de março de 2007. Ele apresentou o seu protocolo através
de uma cena criada por ele e encenada no momento da Roda do Grande Protocolo com a ajuda
de colegas que foram dirigidos por ele naquele momento. A cena consistia numa fila de cadeiras
nas quais, Robson colocou outros atores e ele narrava a história que criara enquanto seus
colegas faziam o que ele indicava. A cena apresentava peixinhos numa fila em busca de
cuidados médicos no sistema público de saúde. Robson apresentava uma crítica à condição de
todo o sistema nacional de saúde. A cena estava descrita em seu protocolo, mas foi encenada
naquele momento. A ideia da cena partira dos acontecimentos vividos no encontro da semana
anterior a sua apresentação, onde o grupo do aluno Robson trabalhara com parte do texto de
102
Brecht “Se os tubarões fossem homens” que falava sobre a saúde dos peixinhos que eram
cuidados para posteriormente serem comidos pelos tubarões.
Um exemplo de protocolo que utiliza a linguagem do clipe aconteceu com o aluno Fábio Fioreli
da encenação “A Ferida Woyzeck” do curso de Teatro da Universidade de Sorocaba no dia 09
de fevereiro de 2009. Fábio criou um clipe com fotos tiradas por ele mesmo da oficina que
ocorrera no encontro da semana anterior com a pesquisadora Elaine Ferreira que trabalhara com
Cantos de Trabalho e de Roda. Além das fotografias tiradas, Fábio também gravara Elaine
cantando as músicas. A partir desse material, o aluno montou um clipe e na hora da Roda do
Grande Protocolo ele ligou o computador do teatro que estava conectado ao data show e sem
aviso prévio exibiu o seu protocolo. Ao final do debate enquanto eu recolhia os protocolos,
Fábio entregou a esta pesquisadora um CD com o clipe gravado e esse foi o seu protocolo
daquele encontro.
O protocolo que utiliza a linguagem do canto se fez presente através da aluna Melina Aronchi
da encenação “A Ferida Woyzeck” do curso de Teatro da Universidade de Sorocaba que no dia
103
Gostaria de destacar ainda, o protocolo que utiliza a linguagem da imagem criada pelo aluno
Daniel Gouveia da encenação “Chamas na Penugem” do curso de Teatro da Universidade de
Sorocaba no dia 25 de março de 2008. Daniel trabalhara na semana anterior com o aluno
Alexandre Ventris, da mesma turma, o tema da ira a partir da leitura da gravura de Peter
Brueghel, o velho.
Na criação da cena Daniel fizera o gesto de chutar com a planta do pé o rosto do aluno
Alexandre e ficar congelado nessa posição. Então, na criação do protocolo do encontro vivido,
Daniel pintou com tinta vermelha a sola do próprio pé e o imprimiu numa folha sulfite branca e
em torno da imagem escreveu diversas palavras como: ira, vícios, voz, duplas, atitudes,
grotesco, sete, força, urso, entre outras.
105
Protocolo do aluno Daniel sobre o encontro em que trabalhou com o vício da Ira
106
O protocolo do aluno Daniel era composto por imagem e palavras escritas que traziam o tema
do encontro vivido no fazer teatral, como a imagem do pé impressa no papel era muito forte, o
denominamos protocolo imagem. Nesta pesquisa, não nos deparamos com nenhum protocolo
composto apenas de imagem e sem o uso da palavra, por isso nos valemos do protocolo do
aprendiz Daniel para analisar a potência da imagem que pode surgir num protocolo. É muito
comum ocorrer o surgimento de protocolos imagem num processo de aprendizagem da arte
teatral. O aprendiz pode trazer o tema do encontro vivido no grupo representado numa imagem (
fotografia, desenho, colagens, entre outras possibilidades) que da mesma forma trará o tema do
encontro vivido e será compreendido como um enunciado que pode ser lido e compreendido
pelos companheiro de grupo do fazer teatral.
Esses são alguns exemplos de formatos dados aos protocolos no processo de criação de uma
montagem teatral. É importante ressaltar o valor da data no protocolo, pois são os eventos de um
determinado encontro que promovem a manifestação de uma ideia que pode ocorrer através de
uma linguagem que varia de acordo com a intenção do autor.
O protocolo é criado por seu autor depois de um encontro vivido com o grupo no qual o
indivíduo está inserido. Também está relacionado a uma experiência prática. É de real
importância observar essa característica do protocolo, pois sua escrita está interligada a uma
experiência sensório-corporal. Não parte, portanto, apenas de estudos teóricos, mas sim, como
destaca Koudela, de uma proposta com o jogo teatral.
O protocolo como texto escrito, pode ser compreendido pelo pensar de Bakhtin (2006b) como
um ato de fala impresso é, portanto, um elemento da comunicação verbal. É ainda, objeto de
discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira
ativa, para ser comentado e criticado. É orientado em função de intervenções anteriores na
mesma esfera artística do teatro, tanto as do próprio autor como as de outros autores
participantes do grupo. O discurso escrito é parte integrante de uma discussão, ele responde a
alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio,
107
motiva a criação no processo vivido. Segundo Koudela( 2001), o protocolo aponta para o futuro,
funciona como uma mola propulsora no movimento da criação artística teatral.
Fizemos a leitura dos protocolos da semana anterior, foi uma pena eu não
ter me lembrado dos meus, pois tinham coisas que a Fezinha pontuou sobre
as pessoas não se exporem o que acontece comigo, mas pelo menos
consegui falar sobre a minha inibição.
Sílvia reflete sobre o fato de não ter levado o protocolo da semana anterior. Ela queria ter lido o
enunciado do seu protocolo, pois ele continha comentários sobre suas dificuldades em se expor
na hora da cena que se conectariam aos de outra colega de turma que também refletira o tema.
A afirmação feita pela aluna Sílvia no enunciado do seu protocolo clarifica a importância da
recuperação dos eventos vividos feita pelo protocolo, pois eventos e reflexões que ela não
pensara anteriormente, mas que outro colega de turma trouxe a fez refletir. A troca de
experiências refletidas promovida pelo protocolo contribui para o desenvolvimento coletivo do
grupo que avança em suas descobertas durante o processo criativo.
A aluna Jane se identifica com as questões levantadas pela colega Ivanise e o compartilhamento
de dúvidas a faz ter mais coragem de continuar em suas reflexões e experimentações na criação
da cena teatral.
109
As preocupações com o processo de montagem também estão presentes nos protocolos como as
da aluna Ivanise de Carlo da encenação “Chamas na Penugem” do curso de Teatro da
Universidade de Sorocaba que no dia 23 de abril de 2008 escreveu:
A aluna revela as dificuldades em se trabalhar com um grupo tão grande de alunos, cerca de 40
indivíduos, e como os ritmos podem ser diferentes para as pessoas envolvidas no processo. A
colaboração da reflexão criada pela metodologia do ensino-aprendizagem do uso do protocolo
permite o avanço do aluno em seu processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem
teatral em consonância com os colegas de grupo. O conhecimento das dúvidas e descobertas dos
colegas facilita o relacionamento grupal.
Estou cansado e nauseado, resolvi vomitar tudo nesse protocolo [...] peguei
justamente o pecado que não tem nada a ver comigo, a Ira... tenho meus
momentos de ira [...] mas minha ira é passageira e depressiva [...]
110
Figura 18 - aluno Marco Palácio na criação da cena do vício da Ira da encenação “Chamas na
Penugem”
O aluno estava extremamente preocupado com a cena que assumira na montagem. Ele
acreditava não ser capaz de realizá-la, mas ao expor suas dificuldades recebeu um apoio maior
do grupo e durante o processo de criação do espetáculo ele conseguiu fazer a cena do vício da
ira. Tempos depois, Marco revelaria para o grupo sua alegria em ter enfrentado suas
dificuldades.
O protocolo é um enunciado criado por seu autor para ser compartilhado com o grupo do qual
participa e é criado depois de ocorrido o encontro do fazer teatral. O autor decide o que quer
dizer daquele encontro vivido, o que deixou marcas ou o provocou e sobre o qual resolveu
pensar. No princípio do protocolo está o compartilhamento da experiência vivida e como o
indivíduo se sentiu provocado pelos eventos.
O protocolo parte dos eventos ocorridos no encontro vivido, mas não precisa ficar preso ao
relato do real. Pode seu autor ficar livre para criar e expressar como foi provocado pelos eventos
vividos no encontro em determinada data e que deu origem ao protocolo. O já citado protocolo
cena do aluno Robson Catalunha apresentava uma situação criada por ele e não o que realmente
ocorrera no encontro anterior. Os eventos vividos no encontro o motivaram a criar a cena
teatral, mas era fruto da sua imaginação e não descrição da realidade.
O enunciado do protocolo da aluna Ismália ganha a forma de uma árvore estilizada impressa no
papel. Inspirada pela grande árvore que compunha o cenário do espetáculo, a aluna mistura a
citação de elementos presentes na gravura de Brueghel usada como modelo de ação para a
criação da cena teatral, com o posicionamento em formato de cebola dos atores no palco durante
a cena inicial, e ainda com as impressões pessoais que tocaram sua sensibilidade. Ismália de
forma criativa expressa sua percepção do momento vivido no encontro. O protocolo da aluna
não cumpre o papel de relatar a realidade, mas como os eventos vividos a afetaram e como
autora do protocolo ela busca a melhor forma de expressar essas impressões.
No segundo encontro realizado no dia 10 de fevereiro com o grupo de alunos do curso de Teatro
do ano de 2009 da Universidade de Sorocaba, a aluna Giovanna Lourenzetti da encenação ‘A
Ferida de Woyzeck’ escreveu em seu protocolo:
A aluna Elizângela Albertin revela sua surpresa com o formato da Roda do Grande Protocolo,
mas também demonstra sua compreensão da formação de um novo protocolo, pois naquele
momento ocorria a construção de um protocolo coletivo. As junções dos fragmentos dos
protocolos individuais constituem a força da coletividade presente no processo de criação da
encenação proposta pela pesquisadora Koudela.
Depois de determinado o tempo estabelecido pela professora Koudela para a leitura dos
protocolos, é aberto um momento para discussão dos temas levantados. O que ocorre então é
uma conversa sobre o que foi proposto por todos os protocolos apresentados pelos indivíduos do
grupo. O processo de criação da encenadora Koudela é colaborativo e as discussões e a
oportunidade de expressar as próprias ideias no debate dos protocolos permitem a criação de
uma unidade no grupo, pois todos podem conhecer as propostas dos parceiros da montagem.
Nas Oficinas ocorridas nos anos 1979 e início dos anos 1980, com os diretores, atores e
escritores foram colhidos depoimentos algum tempo depois para que se registrasse o resultado
do trabalho realizado.
Ao longo dos anos 1990, Koudela aplicou a proposta de protocolo em diversas oficinas e cursos.
Utilizou o instrumento de avaliação para registrar as experiências, analisar teoricamente e
produzir pesquisas acadêmicas que muito contribuíram para o desenvolvimento da área da
Pedagogia do Teatro.
Com o passar dos anos, Koudela deu um novo formato a proposta do protocolo. A pesquisadora
passou a propor que cada um escrevesse o seu próprio protocolo e no momento da leitura e
comentários sobre o texto, criou a leitura fragmentada formando um novo protocolo, mas agora
coletivo. Esse novo formato deu voz a todos os participantes que podiam a cada encontro
expressar suas ideias, dúvidas, descobertas, sugestões, etc. Esse novo formato permitiu a
polifonia de vozes que puderam se mostrar e compartilhar o momento vivido. Também o debate
se mostrou mais enriquecedor, pois vários temas surgiam na leitura e podiam ser discutidos por
todos.
A leitura fragmentada não permite a exclusividade de apenas uma voz ou tema, pelo contrário,
muitos assuntos são propostos e assim não há a centralização na opinião de apenas um aprendiz.
A multiplicidade das experiências refletidas permite o avanço de todos, pois quem não tinha
pensado num determinado assunto passa a refletir a partir da leitura do protocolo de um
companheiro de turma.
118
3. CAPÍTULO 2
28 de dezembro de 1952
Até meados dos anos 70 do século XX, Mikhail Mikhálovich Bakhtin escreveu uma importante
contribuição para o estudo da linguagem. Ele e seus colaboradores, do chamado Círculo de
Bakhtin, trabalharam no sentido de fundamentar essa área do saber humano. Muitos dos
conceitos formulados por eles modificaram a compreensão da forma como a linguagem opera
nas sociedades humanas.
De certa forma, na compreensão bakhtiniana (BAKHTIN, 2006a), todo texto sempre é criativo e
revela um indivíduo livre. O homem na criação do seu texto, falado ou escrito, exprime a si
mesmo e a sua humanidade, pois o indivíduo que é escritor é aquele que tem o dom do falar
indireto, de apresentar em seu próprio texto a fala de outros indivíduos.
120
[...] a professora Ingrid nos pedia uma caminhada o mais natural possível
[...] A professora Ingrid propôs uma reflexão [...] eu citei o ator Yoshi Oida
que relata em seu livro ‘O ator invisível’ a importância de trabalhar corpo e
mente [...] a professora Ingrid comentou sobre a capacidade do ator em se
doar ao trabalhar para um objetivo coletivo [...] o Ramon ressaltou a
questão das tensões percebidas nas caminhadas [...] Flávio ao meu lado
reparou que no quadro os únicos a praticarem o coito propriamente dito
eram dois cachorros [...] Robson Roso me mostrou a capa do filme que
dizia ‘O homem é estomago e sexo’.
Como ressalta Bakhtin em nossos enunciados cotidianos citamos as falas de outras pessoas. Os
protocolos dos alunos aqui pesquisados recuperam as falas dos colegas, dos professores, dos
autores estudados, entre outros, e a partir desses fragmentos podem refletir suas experiências
vividas no processo de criação teatral.
Para haver compreensão do autor de uma obra, Bakhtin (2006a) revela que precisamos ver e
compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, outro sujeito que é o autor.
O pensador afirma que o evento da compreensão é sempre dialógico, pois é sempre um correto
reflexo do reflexo. É um reflexo através do outro, é um objeto refletido.
criação no teatro. Cada texto sempre cria algo novo e singular, segundo Bakhtin (2006a), nunca
é apenas um reflexo. Na verdade também se cria o objeto no processo de criação, cria-se o
próprio poeta, a sua visão do mundo e os meios de expressão.
A língua e a palavra são quase tudo na vida humana na concepção bakhtiniana. Para Bakhtin
(2006a) o significado da palavra só pode ser definido com o auxílio de outras palavras da
mesma língua e nas suas relações com elas. Só no texto e através dele o significado das palavras
cria uma relação com o conceito ou imagem artística ou com a realidade concreta.
Michael Foucault (2004, p. 146), em sua pesquisa sobre a escrita no mundo grego afirma que
“nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional pode ser adquirida sem exercício”, e o
filósofo ainda destaca que o grego Sêneca sentenciava que “é preciso ler, mas também
escrever”. Podemos encontrar no protocolo do aluno Ricardo Devito da encenação “Chamas na
Penugem” do curso de Teatro da Universidade de Sorocaba escrito no dia 26 de março de 2008
um exemplo de um indivíduo que reflete sobre as técnicas e habilidades desenvolvidas durante a
formação de sua futura profissão.
Após a leitura dos protocolos, durante sua análise, se mostrou claro que
quaisquer referências que aproxime o modelo de ação às questões e
conceitos religiosos se distanciam da proposta do processo de montagem. A
exposição de cenas visualizadas na encenação ‘Paixão de Cristo’ nos serviu
como referência para a compreensão do conceito de Tableau Vivant [...]
Penso que esta proposta evidencia a busca da investigação de uma forma
própria [...] o repertório de muitos atores se mostrou determinante neste
processo
de leitura e escrita no teatro. O protocolo registra a palavra do seu próprio autor e dos outros no
processo de interação verbal existente num grupo de indivíduos envolvidos com a arte teatral.
Por meio do exercício da mistura leitura/escrita presente nos protocolos, pode-se compor
combinações infinitas entre a diversidade de materiais (músicas, imagens, danças, poesias,
filmes, gestos corporais, entre outros) trazidos no processo do fazer teatral. Veremos agora,
como a palavra dos companheiros de cena participam da escrita do protocolo.
Para compreendermos o protocolo, é necessário entendermos que ele tem o seu tema, ou seja, o
seu ponto inicial, promovido pelo momento vivido com um grupo de pessoas que estão unidas
pelo fazer teatral. Os protocolos são produzidos por seus autores depois de uma experiência
prática compartilhada com um grupo de indivíduos. É recorrente, portanto, o protocolo trazer as
palavras das outras pessoas participantes do processo vivido, ou ainda, de pessoas que não
estavam naquele momento experienciado, mas que de alguma forma se conectaram ao tema
trazido pelo encontro. A palavra presente no protocolo pode ser de um texto lido ou ouvido,
dentro ou fora do próprio grupo, mas é comum a palavra de outrem ser transmitida no protocolo.
Destacamos agora alguns exemplos que mostram a palavra do outro no enunciado do protocolo.
A aluna Ivanise de Carlo da encenação “Chamas na Penugem” do curso de Teatro da
Universidade de Sorocaba no dia 21 de maio de 2008 escreveu em seu protocolo:
Ivanise destaca em seu protocolo a fala de uma colega de turma para ressaltar a sua surpresa
diante de um tema que desconhecia até aquele momento. A fala da colega a faz perceber a
necessidade da realização de pesquisas no processo de criação da cena teatral.
123
Em outro exemplo, a aluna Maria Madalena Soares da encenação “A Ferida Woyzeck” do curso
de Teatro da Universidade de Sorocaba no dia 04 de março de 2009 traz em seu protocolo a
palavra da própria professora Ingrid para expressar sua intenção:
Como a Ingrid, havia falado, o protocolo não precisa ter várias linhas, uma
linha pode dizer o que ocorreu na aula, neste dia posso dizer com duas
palavras ‘harmonia/interação’.
É a fala indireta da professora Ingrid que a aluna Maria Madalena destaca no seu protocolo
elaborado no processo de ensino-aprendizagem do teatro instituído pelo uso do gênero
discursivo protocolo, ela cita a fala que reforça a mensagem que desejava transmitir aos colegas.
A aluna Elizângela destaca em seu protocolo as palavras de outras pessoas que não estavam
envolvidas no processo, mas que de alguma forma para ela as ideias transmitidas por esses
autores se conectaram ao tema do encontro vivido e ela decidiu trazê-las para comunicar a sua
intenção.
124
[...] Estar neutro sem terem planejado nada antes, apenas estar ali no agora
desenvolvendo um relacionamento espontâneo? [...] Segundo Yoshi Oida,
esforço, treinamento, estudo e trabalho são as coisas nas quais devemos nos
concentrar. Depois de um longo período de servidão, surge um tipo de
liberdade [...]
A aluna Maria Cristina cita a fala do autor Yoshi Oida, estudado na sala de aula, para ratificar
sua análise do processo vivido na criação da encenação. A compreensão da palavra do outro no
nosso próprio discurso é fundamental no estudo do protocolo, pois como afirma o pensador
Bakhtin que estuda o problema da transmissão da fala dos outros, do exame das palavras e dos
discursos de outrem, esse é um dos temas mais essenciais da fala humana:
O protocolo como um discurso que parte de um momento vivido numa coletividade artística do
fazer teatral traz a palavra de outrem proferida no cotidiano de um grupo. Essa palavra pode
assumir diversas intenções na interação verbal, pode concordar, confirmar, recusar, reforçar,
reiterar, completar o discurso do seu autor no processo de aquisição, desenvolvimento e
vivência da linguagem teatral.
Bakhtin (1998) pensa sobre o tema do sujeito que fala e como sua palavra está dentro da esfera
extraliterária da vida e da ideologia. O pensador afirma que ouvimos em nosso cotidiano falar
do sujeito que fala e daquilo que ele fala. Transmitimos, evocamos, ponderamos, julgamos as
palavras dos outros, as opiniões, as declarações, as informações. Indignamo-nos ou
125
concordamos com as palavras dos outros. Esse processo de interação verbal também aparece no
protocolo e é importante entender e interpretar as palavras dos outros no embate com as
palavras do próprio autor no interior do protocolo que nasce de um processo social de intensas
trocas.
Um exemplo das palavras dos outros nos protocolos ocorreu com o aluno Rodrigo Cintra da
encenação “Chama na Penugem” do curso de Teatro da Universidade de Sorocaba que no dia 19
de março de 2008 registrou os comentários feitos pelos colegas da turma durante o processo de
criação do espetáculo:
[...] o vício destrói o homem ainda na terra [...] todas as figura da imagem
estão na mesma condição [...] o excesso é uma doença [...] maçã símbolo da
sedução [...] peru - potência viril [...] nenhum soberbo ama os deuses [...]
O aluno Rodrigo anotou em seu protocolo as frases ditas por outras pessoas envolvidas no
processo, ele selecionou e transmitiu as palavras, mas decidiu não identificar quem eram as
pessoas que as proferiram, apenas as retransmitiu o que coadunava com a intenção do seu
próprio protocolo.
por maior que seja a precisão com que é transmitido o discurso de outrem incluído
no contexto sempre está submetido a notáveis transformações de significado. O
contexto que avoluma a palavra de outrem origina um fundo dialógico cuja
influência pode ser muito grande. Recorrendo a procedimentos de enquadramento
apropriados, pode-se conseguir transformações notáveis de um enunciado alheio,
citado de maneira exata. (p. 141)
E ainda que
Quando a intenção do autor do protocolo é a transmissão literal direta das palavras do outro é
muito importante situar a conversação, quem esteve presente no encontro, que gesto fez ou que
expressão tinha ao falar, quais as nuances de sua entonação enquanto falava, pois todas essas
informações revelam e modificam a compreensão do discurso.
Segundo Bakhtin (1998) todo o este entourage da palavra e a personalidade do falante podem
ser representados e até mesmo desempenhados. Esta representação se submete, no entanto, aos
problemas de uma transmissão praticamente interessada e inteiramente condicionada por eles.
Relatar um texto com nossas próprias palavras é, para Bakhtin (1998, p. 142), fazer um relato
bivocal das palavras de outrem, pois “as nossas palavras” não devem dissolver completamente a
originalidade das palavras alheias, o relato, com nossas próprias palavras, deve trazer um caráter
misto, reproduzir nos lugares necessários o estilo e as expressões do texto transmitido.
Quando a intenção do autor do protocolo é modificar a palavra do outro, temos uma deformação
paródica. Nela o autor do protocolo re-acentuará, reelaborará, recriará a palavra de outrem para
atingir o objetivo que intenta com o seu discurso.
Conforme Bakhtin (1998, p. 142) “deve-se incluir toda uma série de variantes da transmissão
que assimila a palavra de outrem em relação ao caráter do texto assimilado e dos objetivos
pedagógicos de sua compreensão e apreciação.” O objetivo da assimilação da palavra do outro
adquire um sentido ainda mais profundo e mais importante no processo de formação ideológica
do homem.
128
Assim, vimos que no campo de quase todo enunciado ocorre uma interação tensa e um conflito
entre a palavra do autor do protocolo e a de outrem, um processo de delimitação ou de
esclarecimento dialógico mútuo. Desta forma o enunciado do protocolo é um organismo muito
mais complexo e dinâmico. Segundo Bakhtin (1998, p.153), “só se pode falar da palavra do
outro, exatamente com a ajuda da própria palavra do outro.”
Bakhtin (2006b) afirma que para haver comunicação entre indivíduos de uma sociedade é
preciso que eles estejam socialmente organizados, que formem um grupo, uma unidade social,
pois só assim um sistema de signos pode constituir-se.
que esses indivíduos precisam estar integrados, ter relações entre si, pois as condições básicas
para haver um ato de linguagem são: a unicidade do meio social e a do contexto social imediato.
Quando o autor do protocolo está escrevendo, ele pensa nos destinatários, ou interlocutores, do
seu enunciado (texto do protocolo), que são os outros componentes do grupo. O enunciado
procede de alguém e se destina a alguém. O protocolo como um enunciado procede do seu autor
e se destina aos participantes do grupo no qual ele está inserido, pois o protocolo é um texto
criado para ser compartilhado com o grupo do seu contexto social.
O centro organizador de toda enunciação está situado no meio social que envolve o indivíduo. O
enunciado não existe fora de um contexto sócio-ideológico, em que cada locutor tem um
horizonte social bem definido, pensado e dirigido a um público social também definido. O
enunciado só pode ser analisado na sua complexidade quando considerado como fenômeno
sócio-ideológico. (BAKHTIN, 2006b)
O protocolo com seu enunciado existe dentro de um contexto específico vivido no fazer teatral,
ele também é dirigido a um interlocutor definido, pois é ao componente do grupo no qual está
inserido a quem ele objetiva comunicar um tema. O enunciado sempre propõe uma réplica, uma
reação, é ainda, constituído de significação e de tema. Esses dois elementos integram-se,
formando um todo. A compreensão desse todo só pode ocorrer na interação entre os indivíduos.
O enunciado do protocolo é uma réplica ao vivido no grupo, e propõe uma reação aos outros
integrantes do grupo quando apresentado na interação verbal ocorrida na discussão após a
apresentação dos protocolos.
Um exemplo que mostra esse enunciado de réplica é o protocolo do aluno Marco Palácio da
encenação ‘Chamas na Penugem’ do curso de Teatro da Universidade de Sorocaba do dia 18 de
março de 2008. Nesse protocolo o aluno escreveu a sua posição diante do que ficara decidido
130
pelo grupo na semana anterior, ele revela o seu descontentamento com a decisão tomada na
coletividade:
qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo, deve conter o germe de uma
resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema. Compreender a
enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela. A compreensão é uma
forma de diálogo, é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. (p. 136-37)
O protocolo como resultado de uma interação social num grupo que vive a arte teatral traz em
seu enunciado a palavra do seu próprio autor, mas traz também a palavra do outro que participa
da coletividade que compartilha a arte teatral.
131
É difícil traçar uma fronteira absoluta entre o tema e a significação do enunciado. Não há tema
sem significação e vice-versa (Bakhtin, 2006b). É impossível designar a significação de uma
palavra isolada, sem construir uma enunciação. O tema se apoia sobre certa estabilidade da
significação.
O tema da enunciação é individual e não reiterável, como afirma Bakhtin (2006b), se apresenta
como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem a enunciação, no protocolo
é o momento vivido no encontro do grupo teatral. Assim, o tema é determinado não só pelas
formas lingüísticas (palavras, sons, entonações, etc.), mas igualmente pelos elementos não-
verbais presentes na situação vivida na arte teatral.
Nos fragmentos do enunciado do gênero discursivo protocolo da aluna Sônia Duó da encenação
‘Peixes Grandes Comem Peixes Pequenos’ do curso de Teatro da Universidade de Sorocaba do
dia 31 de outubro de 2007 encontramos um texto que tem como tema o processo da encenação:
Neste exemplo temos o tema do enunciado do gênero discursivo protocolo que é o próprio
processo de criação da encenação. A aluna Sônia mostra a sua surpresa com o modelo de ação
adotado por Koudela, o tema do enunciado do seu protocolo ganha significado na compreensão
dos eventos vividos e apresentados pela aluna no texto do seu protocolo. Os leitores podem
compreender a significação somente com as informações sobre o contexto em que o protocolo
foi produzido.
No enunciado do protocolo o tema é trazido pelos eventos vividos no encontro do grupo teatral,
a significação da enunciação está no efeito da interação do autor com os outros indivíduos do
grupo. Nessa interação ocorre o processo ativo, por parte dos interlocutores, na apreensão do
tema e da significação do enunciado do protocolo. O tema e a significação são indissociáveis no
processo de compreensão do enunciado do protocolo.
133
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas, pois são inesgotáveis as
possibilidades da multiforme atividade humana, para Bakhtin (2006a) cada esfera possui um
repertório de gêneros discursivos que cresce, se diferencia e se complexifica de acordo com suas
necessidades.
Sempre que utilizamos a língua o fazemos num dado gênero, ainda que não tenhamos
consciência disso. É muito grande a variedade dos gêneros discursivos, abrangendo tanto
situações de comunicação oral como de escrita, englobando, desde as formas cotidianas mais
padronizadas ou as mais livres, e também as formas discursivas mais elaboradas, Bakhtin
(2006a) subdivide os gêneros em duas categorias: primários (simples) e secundários
(complexos).
134
Na presente pesquisa podemos compreender que as formas propostas por Gama no uso do
protocolo, mostram que o gênero discursivo protocolo é híbrido, por isso aceita a mistura dos
muitos gêneros existentes ao mostrar a intenção que o autor tinha ao criar o seu enunciado.
135
Na concepção bakhtiniana não pode haver enunciado isolado. Um enunciado sempre pressupõe
outros enunciados que o precederam e que o sucederão; ele nunca é o primeiro, nem o último; é
apenas um elo de uma corrente e não pode ser estudado fora dessa corrente. (BAKHTIN, 2006a)
Bakhtin (2006a) determina que a totalidade acabada do enunciado para poder suscitar uma
reação de resposta depende de três fatores indissociáveis: 1) o tratamento exaustivo do objeto do
sentido (o conteúdo temático que varia conforme as esferas da comunicação verbal); 2) o
projeto de discurso ou o estilo do locutor; 3) a escolha da forma composicional do enunciado
(gênero). A alternância dos sujeitos do discurso é que determinam os limites de cada enunciado
de cada sujeito nas mais diversas esferas da atividade humana e da vida.
A variedade no uso dos gêneros (a intenção e a escolha feita pelo autor) é determinada pela
situação discursiva, pela posição social e pelas relações pessoais entre os participantes da
comunicação. Quanto melhor se domina os gêneros, mais livremente se pode empregá-los,
expressando plena e nitidamente a sua individualidade realizando de modo acabado o seu
próprio e livre projeto de discurso. (BAKHTIN, 2006a)
Na escrita do enunciado do protocolo o autor tem uma intenção ao criá-lo partindo de uma
circunstância de comunicação artística e social vivida no grupo da esfera teatral. Essa intenção
determina que forma composicional ele dará ao seu enunciado. Quanto maior for o domínio do
136
autor dos mais variados gêneros discursivos existentes, mais rica, complexa e livre será a
reelaboração que ele fará na transmutação e criação do seu próprio enunciado no gênero
discursivo protocolo.
Pode-se perceber, com essas características, que o dialogismo marca o enunciado tanto externa
quanto internamente: ele já se constrói dialogicamente como discurso do outro. A situação dos
participantes, portanto, define a forma e o estilo do enunciado.
A esponsividade descrita por Bakhtin (2006a) está presente no enunciado do protocolo, pois é
mais um elo que liga os fatos e as ocorrências vividas pelo grupo da esfera teatral. Cada
indivíduo participante da leitura dos enunciados dos protocolos é um interlocutor e tem sempre
uma resposta-ativa. O discurso de um enunciado de um protocolo provoca outra reflexão e pode
gerar um novo protocolo formando a corrente da comunicação. Portanto, todo enunciado de
protocolo é uma resposta ao “já- dito”.
Segundo a pesquisadora brasileira Beth Brait (2006) para Bakhtin os enunciados refletem as
condições específicas e a finalidade de cada referida esfera, pela construção composicional, pelo
conteúdo temático e pelo estilo da linguagem. Cada enunciado é particular e individual, mas é
em cada esfera que se elabora os tipos relativamente estáveis de enunciados que são os gêneros
137
Conforme afirma Brait (2006), para Bakhtin não se deve minimizar as extremas
heterogeneidades dos gêneros discursivos deveram atentar para a diferença essencial entre os
gêneros discursivos primários e os secundários, sendo que estes surgem no âmbito de um
convívio cultural mais complexo e organizado como o artístico entre outros, e assim integram
acontecimentos como artístico-literário.
Todo enunciado é individual e pode refletir a individualidade do falante, que possui estilo
individual. De acordo com o pensamento bakhtiniano, só no enunciado a língua nacional se
materializa na forma individual. Há uma relação orgânica e indissolúvel do gênero com o estilo.
Em cada esfera são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de
determinada esfera. Uma determinada função e condição de comunicação discursiva, específica
de cada esfera geram determinados gêneros, determinados tipos de enunciados estilísticos,
temáticos e composicionais relativamente estáveis. (BRAIT, 2006)
Onde há estilo há gênero. Brait (2006) afirma, que segundo Bakhtin, a passagem do estilo de um
gênero para outro pode modificar ou renovar tal gênero. O ouvinte ao perceber e compreender o
significado (linguístico) do discurso ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição
responsiva. O ouvinte pode concordar ou discordar, pode completar, ou usar a posição
responsiva que se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão, às vezes a
partir da primeira palavra do falante. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de
natureza ativamente responsiva, toda compreensão é prenhe de resposta e o ouvinte pode se
tornar falante.
de enunciados que são os gêneros do discurso determina certas necessidades para melhor
expressar o projeto discursivo de seu autor, e este deve fazer suas escolhas para melhor refletir o
seu objetivo ao escrever o seu protocolo.
As possibilidades são enormes, pois são inesgotáveis e heterogêneas as necessidades das esferas
das quais os seres humanos participam. Nesta pesquisa, temos a esfera artística do teatro, com
suas especificidades, pois trabalha com o ato de criação na arte teatral. O enunciado criado no
protocolo é individual e reflete o estilo de cada um, mas ele reflete também o gênero escolhido.
Há na esfera artística do teatro características que pertencem a esse grupo específico e que
promovem o aprendizado da linguagem teatral na formação do aprendiz. Veremos agora, como
a palavra do falante que participa da esfera artística do teatro relaciona os muitos enunciados
que participam da interação verbal na criação da cena num grupo teatral.
O dialogismo é uma das características do protocolo, pois as relações dialógicas não podem ser
separadas do campo do discurso. O protocolo é o discurso de um locutor que está imerso na
139
linguagem. As relações dialógicas podem surgir na linguagem quando estão personificadas nos
enunciados de cada autor e convertem-se em posições de diferentes sujeitos expressos no
discurso.
Bakhtin (2006a) esclarece que para haver relações dialógicas são fundamentais as relações
lógicas e concreto-semânticas no discurso. As relações lógicas devem tornar-se dialógicas para
transformarem-se em discurso, enunciado com autor declarado, cujas posições são expressas,
pois todo enunciado tem autor.
Para a teoria de Bakhtin (2006a), não existe discurso neutro e nem fala individual.
Só há compreensão dos enunciados dos outros quando há reação às palavras que despertam
ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. De acordo com Bakhtin (1999), compreender
vai além de decodificar o sinal ou a forma lingüística. O que realmente importa é a interação dos
significados das palavras e seu conteúdo ideológico, tanto do ponto de vista enunciativo como
das condições de produção e da interação locutor/receptor.
140
O enunciado do protocolo da pesquisadora Ligia numa relação dialógica traz a citação de duas
obras de diferentes autores. Lígia estabeleceu uma conexão entre as duas obras, e assim criou o
seu próprio enunciado. Os companheiros de turma puderam observar seu protocolo e numa
atitude ativa compreender a relação dialógica estabelecia com os fatos vividos no grupo da
esfera teatral. Para Bakhtin (2006a, p. 326) “o enunciado nunca é apenas um reflexo, ele sempre
cria algo que não existia antes dele, absolutamente novo e singular.” Neste caso o novo é a
conexão estabelecida por Lígia.
O pensador Paulo Freire (2002) afirma que é importante que professor e alunos sejam
epistemologicamente curiosos, é essencial que saibam que a postura deles deve ser dialógica,
aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve.
143
As relações dialógicas presentes nos enunciados dos protocolos, compreendido pelo pensar de
Bakhtin (2006a), são de índole específica e não podem ser reduzidas a apenas relações lógicas
ou linguísticas. Elas só são possíveis entre enunciados integrais de diferentes sujeitos do
discurso, ou seja, entre diferentes textos, de protocolos ou não, de diferentes autores. Duas
produções do discurso, enunciados confrontados entre si, entram em um tipo especial de
relações semânticas que chamamos dialógicas. O significado da palavra é definido apenas com
o auxílio de outras palavras da mesma língua e nas suas relações com elas; só no enunciado e
através do enunciado tal significado chega à relação com o conceito ou imagem artística ou com
a realidade concreta.
Veremos a seguir, ainda fundados no pensador Bakhtin a compreensão que diferencia o autor da
autoria na escrita do enunciado do protocolo.
Para Bakhtin (2006a) todo enunciado tem um autor e o protocolo como um enunciado
produzido na esfera artística do teatro tem autor definido, assim seguindo o pensar bakhtiniano,
compreenderemos os conceitos de autor e autoria.
Para haver ato criador é preciso haver deslocamento na teoria de Bakhtin (2006a). Para o
pensador ao escrever uma autobiografia o escritor precisa se posicionar axiologicamente frente à
própria vida, sujeitando-a a uma valoração que ultrapasse o limite do apenas vivido. Ao tomar
144
uma posição axiológica frente à própria vida, o escritor precisa dar certo acabamento, o que ele
só atingirá ao distanciar-se da vida, e olhá-la de fora. É preciso tornar-se outro em relação a si
mesmo, é necessário, auto-objetificar-se, olhar-se com certo excedente de visão e conhecimento.
Bakhtin (2006a) explica que o ato de autocontemplar-se no espelho pode motivar a reflexão. Na
autocontemplação pode-se ver no espelho uma face nunca vista efetivamente na vida vivida,
pois o que se vê no espelho é apenas um reflexo do exterior. Os indivíduos se projetam uns nos
outros. Nunca se está sozinho, sempre há um segundo participante que está sempre envolvido no
evento da autocontemplação.
Primeiramente, ele pode escolher narrar os eventos vividos de forma descritiva. Na escrita do
enunciado do protocolo que relata o evento vivido, o autor ao escrever o protocolo auto-
obejetifica-se a si mesmo com certo excedente de visão, para refletir sobre os acontecimentos
vivenciados juntamente com os outros indivíduos do grupo que coletivamente participam do
processo experienciado na arte teatral.
Neste fragmento de enunciado de protocolo a pesquisadora Daniele decidiu relatar como ela viu
os fatos ocorridos no encontro no grupo do curso. Como autora, ela auto-objetificou-se,
olhando-se de fora, pôde refletir sobre os acontecimentos ocorridos com ela mesma. Daniele
pôde narrar com um excedente de visão os acontecimentos vivenciados no grupo do fazer
teatral. Esses fatos narrados clarificam a intenção da autora no enunciado do protocolo que
decidiu ressaltar determinados acontecimentos.
A pesquisadora Naila escolheu dos eventos vividos aqueles que desejava ressaltar e criou o
enunciado do seu protocolo sem a obrigação de apenas relatar os fatos, mas tocada pelos
eventos criou um objeto estético.
E finalmente, o autor pode ainda, fazer uma mistura do relato do vivido com a criação de um
enunciado inventivo, isto é, com partes que relatam e outras ficcionais. No fragmento do
protocolo do pesquisador Alexandre Falcão, do dia 13 de dezembro de 2011 do curso ‘Teoria e
Prática da Peça Didática de Brecht’ da Pós-Graduação da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, podemos identificar um exemplo de autor que decide relatar os
fatos vividos misturados a suas impressões de forma criativa:
Hello Helô!
A USP estava silenciosa, pela ausência
A USP estava ruidosa, violência
A USP estava perigosa, impaciência
A USP estava melindrosa, excrescência
[…]
147
Voz é corpo
Palavra é matéria
Poucas vezes isso esteve tão claro pra mim, quanto no exercício de quarta
passada.
O vazio está preenchido de sons, movimentos e sentidos.
A leitura como um jogo, a leitura como construção coletiva e polissêmica
de um discurso, de uma narrativa, de uma imagem.
Leitura performática. Aula-performática. Isso me agrada. Isso me cativa.
Isso me faz perceber o carinho e dedicação com que a Helô preparou a aula.
Não sinto vontade de imprimir um discurso linear sobre estas linhas. As
palavras me veem à mente, e recordo sensações espalhadas pelas curvas
diagonais da sala de aula.
Cartazes dispostos em planos e com conteúdos distintos. Folhas-fragmentos
de uma psique concreta alemã, de esquerda.
Não, eu não estive presente em todo o exercício de leitura. Cabulei minutos
de Brecht para visitar um inquieto cerebétiral.
No entanto, eu era plenamente capaz de contar o que havia lido. Dialética.
Me deu vontade de…
Neste enunciado de protocolo, o autor Alexandre decidiu apresentar os fatos ocorridos de forma
poética. Em seu poema encontramos partes que relatam os eventos ocorridos no dia,
conseguimos perceber o que aconteceu no encontro, mas seu poema também traz suas
impressões alternando o relato dos fatos com a subjetividade criativa da poesia.
No enunciado do protocolo, o indivíduo que o escreve se torna autor-criador de sua obra, e traz
outro olhar, pois para escrever-se é necessário sair de si mesmo e tornar-se objeto de sua própria
análise. O autor torna-se distinto de sua autoria que é o enunciado do seu discurso escrito no
protocolo. O enunciado do protocolo traz uma característica que o afasta da vida real, por isso
criação, que é o acabamento. Ao afastar-se de si mesmo o autor pode dar acabamento ao seu
discurso, tornando-se concluso, o que não é possível na vida vivida, pois estamos dentro do
evento e não nos afastamos.
Escrever um enunciado de um protocolo exige do seu autor uma tomada de posição axiológica
diante da própria vida. Para se tornar um autor-criador é preciso reorganizar os eventos vividos
no grupo na esfera artística do teatro. Faraco (BRAIT, 2006), afirma ainda que na chave
bakhtiniana o ato criativo envolve um complexo processo de transposições refratadas da vida
para a arte.
O enunciado do protocolo pode ter características da biografia, pois tem o seu tema, o seu ponto
inicial, nos eventos vividos, mas não há obrigatoriedade do registro ser apenas os
acontecimentos vividos. Quando o enunciado do protocolo apenas relata os acontecimentos,
temos como define Bakhtin (2006a, p. 153) um autor “ingênuo.”
Quanto menos fiel aos eventos vividos for o enunciado do protocolo, maior a possibilidade da
criação estética. Muitas vezes os acontecimentos presentes nos enunciados dos protocolos são
tangenciados através da criação de uma poesia, música, gesto, cena, enfim, um elemento
149
estético criado por seu autor. Quanto mais se afastar do registro do vivido mais criativo e
artístico poderá ser o enunciado do protocolo.
O enunciado do protocolo pode trazer o relato de um momento vivido com um grupo de fazer
teatral, e há a possibilidade de ocorrer, nesse relato, o aparecimento de características
pertencentes à autobiografia ou à biografia. Em Bakhtin encontramos um importante estudo
sobre essas formas de escrita, seu valor e suas contribuições.
Entre a autobiografia e a biografia não existe um limite claro para Bakhtin. O pensador
compreende tanto a biografia quanto a autobiografia como sendo a descrição de uma vida.
Bakhtin (2006a, p. 139), afirma que a autobiografia é “a forma transgrediente imediata em que
posso objetivar artisticamente a mim mesmo e minha vida.”
Quando o enunciado do protocolo traz o relato dos momentos vividos no grupo do fazer teatral
temos a coincidência do autor com a personagem no interior do enunciado. Bakhtin (2006a)
chama o autor de “ingênuo” quando há essa coincidência, afirma não haver fronteiras precisas
nos elementos de isolamento e acabamento na escrita autobiográfica, mas para ele isso não
150
diminui a importância dos enunciados biográficos. Bakhtin ainda assegura serem comuns os
valores da vida e da arte.
O enunciado do protocolo que traz o informe prático sobre o ato cognitivo do pensamento tem
uma importante contribuição ao fazer refletir sobre o momento vivido e permite um avanço na
experiência e no domínio da linguagem da arte teatral. O valor biográfico está em organizar a
narração do vivenciamento da própria vida e também a do outro promovendo uma tomada de
consciência.
O autor da biografia é aquele outro possível, que está conosco quando nos olhamos no espelho.
Ao escrever o enunciado do protocolo, o autor precisa tomar outra posição, isto é, precisa sair
de si mesmo e se olhar de fora, com o olhar de outro. Essa saída de si promove segundo Bakhtin
(2006a), a percepção de si mesmo na humanidade, numa coletividade, numa família, numa
nação. O autor do enunciado do protocolo se entrelaça na estrutura formal da vida. Bakhtin
(2006a) ressalta que:
A vontade de superar a fabulação da vida é vivenciar a determinidade das situações do dia a dia,
sua alternância e variedade, sem nada concluir, mantendo tudo em aberto. (BAKHTIN, 2006a)
Na biografia do segundo tipo que é a social de costumes não há histórias como força
organizadora da vida e a sociedade humana é a dos heróis vivos na qual os viventes de hoje e
suas relações são apenas um momento passageiro.
Na forma biográfica, o autor tem os mesmos valores que a personagem, ele não possui
elementos excedentes e transgredientes que a personagem não possua. Ele só dá continuidade a
própria vida das personagens.
Bakhtin (2006a) alerta sobre a possibilidade de haver a estilização da forma biográfica por um
autor crítico. Para ele, o autor pode tornar-se puro artista deixando de ser ingênuo e enraizado
no mundo da alteridade, onde há ruptura do parentesco entre personagem e autor. Quando o
152
autor do protocolo escreve de forma a relatar o vivido, segundo o pensar bakhtiniano, o texto
adquire as características da biografia. O enunciado do protocolo registra um processo vivido
num grupo teatral, e esse grupo tem uma relação de experiência compartilhada e, portanto, com
certa intimidade. Há uma aproximação entre o autor do enunciado do protocolo e suas
personagens que são os próprios parceiros do grupo.
Buscaremos agora compreender nos enunciados dos protocolos as vozes que se apresentam no
relato dos momentos vividos no processo de formação do aprendiz da linguagem teatral.
A polifonia é um dos conceitos criados por Bakhtin que nos permite, nesta pesquisa,
compreender a contribuição da presença da fala de outras pessoas nos protocolos. Segundo os
estudos de Bakhtin (2006a) a polifonia se caracteriza por vozes polêmicas em um discurso. Há
gêneros dialógicos monofônicos (uma voz que domina as outras vozes), gêneros bifônicos (duas
vozes diversas se alternam no discurso) e gêneros dialógicos polifônicos (vozes polêmicas com
consciências independentes).
A renomada pesquisadora da obra de Bakhtin, Beth Brait (2006) afirma que segundo Bakhtin,
Dostoiévski é o criador do romance polifônico que apresenta contradições irremediáveis. Não
há superação dialética dos conflitos desenvolvidos na trama do romance de Dostoiévski. No
romance polifônico de Dostoiévski não há resolução, não há síntese, não se atinge uma
apoteose. Segundo Bakhtin (2002), a multiplicidade de vozes e consciências independentes e
imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade
fundamental dos romances de Dostoiévski.
A consciência do herói é dada como a outra, a consciência do outro, mas não se objetifica, não
se torna simples objeto da consciência do autor porque não perde sua condição de ser autônomo
e equipolente do discurso dialogado. A consciência, tanto do autor quanto das personagens, é
infinita e inconclusa. (BAKHTIN, 2006a)
153
Dostoiévski, o romancista estabelece uma relação única com suas personagens, os quais têm voz
própria e o mínimo de interferência da parte dele como autor, criando, assim, um novo gênero
denominado por Bakhtin de polifônico, porque apresenta muitos pontos de vista, muitas vozes,
cada qual recebendo do narrador o que lhe é devido. (BAKHTIN, 2006a)
Na polifonia, o dialogismo se deixa ver ou entrever por meio de vozes polêmicas, isto é, vozes
que não são consoantes, que não tem a mesma consciência nem se orientam para o mesmo
lugar, mas se apresentam de forma independente, cada uma expressando o seu pensar.
Segundo Brait (2006) a principal distinção feita por Bakhtin entre a polifonia e o dialogismo é
que podemos encontrar na polifonia o dialogismo polifônico, e na dialogia podemos encontrar a
monofonia ou o dialogismo monofônico.
Também é possível encontrarmos o bifônico, onde duas vozes distintas se fazem ouvir, a voz do
autor do enunciado do protocolo e outra voz por ele trazida para o diálogo que o protocolo
registra. Encontramos um exemplo de duas vozes distintas que se fazem ouvir no fragmento do
enunciado do protocolo da aluna Maria Madalena do dia 12 de maio de 2009 da encenação ‘A
Ferida Woyzeck’ do curso de Teatro da Universidade de Sorocaba:
A aluna Maria Madalena apresenta em seu protocolo a sua própria voz ao relatar os fatos
ocorridos no encontro, mas traz também a fala da professora Ingrid Koudela que é retransmitida
de forma indireta, mas sabemos quais são as palavras da professora. Não há divergência entre as
vozes presentes no enunciado do protocolo. Então, temos o registro bifônico.
Em seguida, Elizângela apresenta no enunciado do seu protocolo a segunda voz nos versos
criados por ela mesma
Nestes fragmentos de enunciados de protocolo encontramos vozes distintas que mantém a sua
independência, pois sabemos quem são os autores e suas vozes não convergem para um mesmo
ponto. A autora do protocolo os escolheu e os citou em seu texto, mas uma voz não confirma a
outra, o que caracteriza a polifonia no discurso.
As vozes presentes nos enunciados dos protocolos nos exemplos apresentados nesta pesquisa,
sendo elas: monofônica, bifônica ou polifônica mostram a riqueza e a diversidade vivida no
processo de criação da encenação promovido pela encenadora Ingrid Koudela. A utilização, pela
pesquisadora Koudela, da metodologia de ensino-aprendizagem do teatro através do uso do
gênero discursivo protocolo permitiu aos aprendizes da linguagem teatral o registro do rico
processo e criou a possibilidade da reflexão sobre a experiência vivida em sua própria formação.
Em seu trabalho Foucault (2004), se voltou para os textos greco-romanos a fim de compreender
a prática da Escrita de Si proposta naquela cultura. No estudo da obra cristã Vita Antonii de
Atanásio, Foucault analisa e apresenta a anotação escrita das ações e dos pensamentos como um
elemento indispensável à vida ascética, pois segundo o texto de Atanásio, escrevendo as ações e
os movimentos de nossas almas, nos conheceríamos mutuamente. A escrita substituiria o olhar
do outro na ascese, disciplinando-nos.
Para o filósofo Foucault (2004) a Escrita de Si oferece o resultado da ação de um possível olhar.
A obrigação da escrita desempenha um papel de companheiro, suscitando o respeito humano. A
escrita pode exercer, na ordem dos movimentos internos, o mesmo que a presença do outro
exerce sobre a própria conduta tendo um papel próximo a confissão. Afirma ainda, que para
Atanásio, a escrita seria uma arma no combate espiritual dissipando a sombra interior.
Nenhuma técnica ou habilidade profissional poderia ser adquirida sem exercício, segundo
Foucault (2004). Para ele não se poderia mais aprender a arte de viver, a technê tou biou, sem
uma askêsis que deveria ser compreendida como um treino de si mesmo. Esse treino de Si viria
por meio do exercício da escrita. A técnica ou habilidade profissional também seria
desenvolvida pela prática da escrita.
Posteriormente, segundo Foucault (2004), esses princípios tradicionais foram ressaltados pelos
pitagóricos, socráticos e cínicos. O pensador acredita que durante muito tempo a escrita, o fato
de escrever para si e para outro, tenha desempenhado um papel importante.
Enfim, Foucault (2004, p.146) afirma que boa parte dos textos da época imperial trata sobre as
Práticas de Si. Sêneca defendia que era preciso ler, mas também escrever e Epícteto insistia
sobre a importância do papel da escrita como exercício pessoal e sempre o associava à
158
Segundo Foucault (2004), o que se percebe no pensamento de Epícteto é que a escrita está
associada ao exercício de pensamento de duas maneiras diferentes. Uma linear, pois vai da
meditação a atividade escrita e desta ao exercitar-se (gummazein), que é o adestramento na
situação real e à experiência, trabalho de pensamento pela escrita na realidade. A prática do
exercício da escrita nascida na reflexão advinda de uma prática experienciada no fazer teatral
permitiria ao aprendiz da linguagem teatral o adestramento necessário para o desenvolvimento
no domínio das técnicas da arte teatral. Assim, o protocolo pode promover o exercício da
meditação sobre a situação real.
A outra forma é a circular, pois a meditação precede as notas, mas essas mesmas notas
permitem uma releitura e revigoram a própria meditação. A forma circular é criada na medida
em que a reflexão sobre a prática precede a escrita, pois o autor tem uma intenção ao escrever
seu protocolo e cria o círculo, pois a leitura posterior do protocolo promove novas reflexões.
Nas duas formas, a escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a
askêsis, ou seja, toda elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em
princípios racionais de ação.
Para Plutarco, segundo Foucault (2004), a escrita como elemento de treinamento de si tem uma
função etopoiética, isto é, ela é a operadora da transformação da verdade em êthos. Nos
documentos dos séculos I e II essa escrita etopoiética aparece de duas formas: os hupomnêmata
e a correspondência. Buscamos, agora, no enunciado do protocolo a presença das características
dessas duas formas de escrita, veremos as definições e as aproximações delas com o protocolo.
159
No entanto Michael Foucault (2004), ainda ressalta que esses hupomnêmata não devem ser
confundidos com os diários ou com narrativa de fundo espiritual, não constituem uma narrativa
de si mesmo. (p. 148). Para Foucault (2004) os hupomnêmata não buscavam o indizível, mas sim
captar o já dito, reunir o que se pôde ouvir ou ler, e isso com a finalidade de constituição de si. Eles
devem ainda, estar inseridos em um contexto de tensão. Nos hupomnêmata se faz o recolhimento do
logos fragmentário transmitido pelo ensino, pela escuta ou pela leitura estabelecendo uma relação de si
consigo mesmo tão adequada e perfeita quanto possível.
A redação dos hupomnêmata pode efetivamente contribuir para a formação de Si, através desse
logoi dispersos, principalmente por três razões principais: os efeitos da limitação devidos à
160
Foucault (2004, p.149) lembra que Sêneca insiste que a Prática de Si está imbricada com a
leitura, pois não se poderia extrair tudo do seu próprio âmago nem se prover por si mesmo de
princípios racionais indispensáveis para se conduzir. Sêneca, ainda afirma, que “a ajuda dos
outros é necessária.”
Para Foucault (2004) a escrita dos hupomnêmata é uma escolha de elementos heterogêneos. O
essencial para quem escreve é poder considerar a frase retida como uma sentença verdadeira no
que ela afirma, adequada no que escreve útil de acordo com as circunstâncias. A escrita como
exercício pessoal feita por si e para si é uma arte da verdade díspar; uma maneira racional de
combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com singularidade da verdade e das
particularidades do seu uso.
Segundo Foucault (2004, p.152) o papel da escrita é constituir um “corpo”. Para o pensador é
apropriando-se das verdades transcritas das leituras feitas e tornando as verdades dessas leituras
como as suas próprias verdades, que se constrói um “corpo” que precisa ser compreendido. A
escrita transforma a coisa vista ou ouvida “em força e sangue”. A escrita se torna no próprio
escritor um princípio racional.
Na carta para Foucault (2004) temos o ato da escrita, mas não é somente isso, pois o ato da
escrita promove a leitura, pois ao se escrever se lê o que se escreve, do mesmo modo que, ao
dizer alguma coisa, se ouve o que se diz. A carta que se envia age, por meio do próprio gesto da
161
escrita, sobre aquele que a envia, assim como, pela leitura e releitura, ela age sobre aquele que a
recebe. Nessa dupla função a correspondência está bem próxima dos hupomnêmata.
Para o pensador Foucault (2004, p.154) todo aquele que instrui o outro, também age sobre si
mesmo, pois “são ofícios recíprocos, quem ensina se instrui”. O autor da carta quando a envia a
um destinatário tem o objetivo de ajudar o seu correspondente, aconselhando-o, exortando-o,
admoestando-o, consolando-o. A carta constitui para aquele que escreve uma espécie de treino.
O protocolo exerce essa função em seu autor, pois quando ele cria o enunciado do seu protocolo
tem a oportunidade de refletir sobre os eventos vividos e quando o enunciado do protocolo é
apresentado para o grupo ele exerce a mesma função que a carta, pois o protocolo tem como
destinatário o grupo do fazer teatral.
Escrever é se mostrar, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro. A carta é ao
mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário e uma maneira de se oferecer ao seu
olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo. As características da carta são: estilo simples,
livre na composição, despojado na escolha das palavras, já que cada um deve revelar nela a sua
alma. Na carta nos abrimos para o olhar do outro. (FOUCAULT, 2004)
O protocolo apresenta essas características da carta, pois é livre no seu estilo e composição,
podendo seu autor escolher a melhor forma de revelar suas intenções ao escrever o seu texto. No
protocolo, o aluno compartilha com o grupo o seu olhar sobre o momento vivido na arte teatral.
O enunciado do protocolo como a carta age sobre seu autor no momento da escrita, e age sobre
os companheiros de turma no momento da leitura e debate na Roda do Grande Protocolo.
O protocolo tem também as características presentes nos hupomnêmata, o que se deve ao fato
do protocolo recolher os fragmentos do que foi visto ouvido, ou lido durante o processo de
criação da cena teatral. A leitura e releitura desses fragmentos recolhidos permitem a reflexão e
o avanço na aprendizagem da linguagem teatral.
162
4. CAPÍTULO 3
Para análise do corpus deste trabalho utilizei protocolos recolhidos durante os anos em que
acompanhei a pesquisadora Ingrid Koudela em suas aulas. Analiso os enunciados dos
protocolos produzidos pelos alunos das montagens do curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade de Sorocaba: ‘Peixes Grandes Comem Peixes Pequenos’ de 2007, ‘Chamas na
Penugem’ de 2008, ‘A Ferida Woyzeck’ de 2009, e os protocolos dos alunos da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo do curso de Pós-Graduação ‘Teoria e
Prática da Peça Didática de Brecht’ de 2011.
Assim, foram analisados três processos de montagem de encenação e um curso. Todos eles com
a duração de um semestre. As montagens com dois encontros semanais e o curso com um
encontro. Em todos esses processos a pesquisadora Koudela utilizou a metodologia de ensino-
aprendizagem do teatro com o uso do gênero discursivo protocolo. Nos processos analisados, os
alunos escreveram seus protocolos a partir da prática com textos brechtianos relacionados aos
jogos teatrais desenvolvido por Koudela.
pesquisa, procuro nos enunciados dos protocolos recolhidos durante os processos vividos com a
linguagem teatral exemplos que mostram a relação da: prática, escrita, leitura, reflexão e debate
com a criação da pedagogia de leitura e escrita no teatro.
Como já vimos nos capítulos anteriores, Koudela propõe uma metodologia de ensino-
aprendizagem do teatro com o uso do gênero discursivo protocolo na esfera artística do teatro.
Nesta pesquisa, o protocolo que é compreendido como um gênero discursivo pertence, portanto,
ao campo da escrita. Vimos, também, que o protocolo é um gênero híbrido e, assim, aceita a
mistura de outros gêneros em sua formação.
Neste capítulo, relato meu primeiro contato com a pesquisadora Ingrid Koudela e depois como
chegamos ao tema desta pesquisa. Teremos em seguida um relato dos processos das montagens
e do curso. Destaco em cada processo fragmentos dos enunciados dos protocolos que permitem
a compreensão da criação da pedagogia de leitura e escrita no teatro.
Essa primeira turma do curso era composta por cerca de 40 alunos que conheciam o trabalho da
pesquisadora Koudela pelos livros estudados durante o curso e que fundamentavam a
metodologia do jogo teatral utilizada na proposta curricular da licenciatura.
Com uma turma tão grande o desafio da encenadora era criar um trabalho em apenas um
semestre e somente com dois dias de aulas dedicados a montagem. O espetáculo “Nós ainda
brincamos como vocês brincavam?” estreou no final do mês de junho daquele ano comprovando
a proposta da pesquisadora Koudela.
Dois anos depois o enunciado do protocolo da aluna Ivanise de Carlo do dia 21 de maio de 2008
relata a sua experiência vivida naquele dia ao assistir a apresentação dessa encenação no Teatro
Municipal da cidade de Sorocaba. Ivanise destaca
Foi a partir desse trabalho e da chegada de Ingrid Koudela a Sorocaba que a cena teatral da
nossa cidade começou a se modificar. Tive o prazer de conhecê-la e fazer algumas de suas
oficinas no Teatro do SESI de Sorocaba. Meu trabalho com meus alunos em teatro sofreram
então uma enorme transformação. A partir desse momento tive o privilégio de acompanhar a
professora Ingrid nas montagens que se seguiram na Universidade de Sorocaba. Montagens que
produziram ao longo dos processos de criação protocolos que pude observar, analisar,
questionar e pesquisar sempre sob olhar atento da minha orientadora. Protocolos que recolhi
durante os anos e se tornaram o meu objeto de estudo e tema deste trabalho.
166
Durante a leitura dos protocolos ninguém fala ou comenta, mas há reações como aprovação ou
desaprovação com a cabeça, risos, lamentos, surpresas, de forma que mesmo não falando os
alunos acabam se manifestando durante a formação do Grande Protocolo.
Logo após o tempo para a leitura, a professora determina estar aberto o momento para os
comentários. Então, se segue um tempo de conversa sobre aqueles assuntos levantados. Em
alguns momentos há concordância em outros questionamentos, dúvidas, medos, elogios,
felicitações, propostas de cenas, brincadeiras, citações de obras estudadas, vistas ou ouvidas.
Enfim, é um momento de ricas trocas vividas pelos alunos envolvidos no processo.
Com o passar dos anos e o meu interesse sobre a colaboração desse instrumento de avaliação
que era o protocolo, comecei a buscar fundamentação para poder descrever e explicar aos
alunos que chegavam e queriam saber o que era, como é que se escrevia e para que serviam
esses protocolos.
As dúvidas dos alunos eram sempre sobre o formato, percebi que eles buscavam um modelo, ou
seja, eles queriam saber a que gênero pertencia o protocolo. A professora Ingrid pacientemente
167
explicava sobre a liberdade proposta pelo protocolo que aceitava qualquer formato, tudo era
possível, mas isso em vez de acalmar os alunos os deixava ainda mais desesperados para a
escrita desse texto solicitado pela professora. Mais tarde é que compreendi que os alunos
participantes das montagens na Universidade de Sorocaba estavam no 5º período do curso e até
aquele momento eles eram cobrados por uma escrita acadêmica e, portanto, seguindo as regras
estabelecidas pela Associação Brasileira das Normas de Trabalhos Acadêmicos – ABNT.
Veremos agora a descrição do processo de criação das três encenações que a pesquisadora
Ingrid Koudela desenvolveu com os alunos do curso de licenciatura em Teatro na Universidade
de Sorocaba. Em seguida teremos a descrição do curso desenvolvido por Koudela na Pós-
Graduação na Universidade de São Paulo e os fragmentos dos protocolos produzidos pelos
pesquisadores que participaram do curso. Com os fragmentos dos enunciados dos protocolos
escritos pelos alunos e pelos pesquisadores poderemos analisar e compreender a contribuição do
gênero discursivo protocolo na criação da metodologia de leitura e escrita no teatro.
No ano de 2007 a montagem “Peixes Grandes comem Peixes Pequenos” teve como modelo de
ação a gravura de Peter Brueghel com o mesmo título. Nessa dramaturgia entraram também os
textos: “Sermão aos Peixes” do Padre Antonio Vieira, “Se os tubarões fossem homens” de
Bertolt Brecht, “O Anjo Triste” de Heiner Miller, além de “Aquário” de Guimarães Rosa. A
168
partir dos quais se criou uma montagem processional que percorria vários lugares da cidade de
Sorocaba.
O espetáculo tinha seu inicio no final da tarde na casa anexa a Igreja do Mosteiro de São Bento,
um dos marcos na fundação da cidade de Sorocaba. O ator Hamilton Sbrana interpretava um
estranho padre de faces rosadas e voz retumbante que trazia a vida parte do texto do “Sermão
aos Peixes”. Acompanhado do seu auxiliar, vivido pelo ator Mário Pérsico, e pelo coral da
Igreja, regido pelo Maestro Lúcio Martini, que entremeava o sermão com cantos religiosos. O
estranho padre dava início a uma jornada que percorreria alguns pontos da cidade. Na sala anexa
ainda, a plateia se deparava com a presença incômoda e silenciosa de dois anjos de asas
esfarrapadas inspirados na obra de Klee “Angelus Novus” e Heiner Miller. Os anjos olhavam a
cidade pela janela e testemunhavam os acontecimentos enquanto o padre pregava o seu sermão.
Em seguida o padre e seu auxiliar conduziam a plateia até um ônibus estacionado no largo São
Bento no qual ficava a Igreja. O público composto por 50 pessoas era acomodado no ônibus e
ciceroneado pelo padre e seu auxiliar que apresentavam a cidade à plateia.
Figura 25 - O ator Hamilton Sbrana como o padre que conduz a plateia pela cidade durante a encenação
169
Então, surgiam outros atores cantando uma música infantil “Segredos do Rio” dos músicos
sorocabanos Elaine Buzato e Walter Silva. A cena transcorria com a aparição de vários bonecos:
peixes, pescador, sereia, um jacaré que narravam a história de um peixinho e um pescador. Já
com o final da luz do dia a cena era iluminada pelos atores que seguravam lanternas nos pontos
em destaque e pela luz dos postes da cidade que começavam a se acender. Ouvia-se o cantar dos
pássaros que se recolhiam aos ninhos e sobrevoavam a lugar.
Figura 26 – a pé da grande paineira, antiga parada dos tropeiros, a cena com parte do sermão e música
infantil
170
Com o final da cena o público era novamente convidado a entrar no ônibus e era conduzido até
a casa sede de uma antiga fazenda que hoje é parte da Universidade de Sorocaba. Então, a
plateia era recebida por um cortejo acompanhado de um enorme boneco de um tubarão do
cenógrafo Jaime Pinheiro ao som do cacuriá “Jacaré boiô” transformado em “Tubarão boiô”
puxado pela grande alfaia da pesquisadora da cultura popular Sheila Guidem. O cortejo formado
pelos atores e plateia seguia até o final de um caminho que terminava no prédio de uma antiga
destilaria. Em frente ao prédio se formava uma grande roda e toda a plateia era chamada a
dançar e a brincar ao som da cacuriá “Jabuti sabe lê”.
Em seguida, sempre sob o olhar atento dos dois anjos, o padre continuava a pregação do seu
Sermão, logo peixes, vividos pelos atores, surgiam de todos os lados e respondiam com
estranhos sons ao padre. Então o cortejo continuava até a estufa da fazenda onde o auxiliar do
padre encerrava o sermão e lá dentro iluminados se viam bonecos de peixes nadando e os dois
anjos de olhos calmos que pareciam suspensos no ar e no tempo.
Figura 27 - Os atores Mário Pérsico e Hamilton Sbrana em frente a destilaria na cena do 'Sermão aos
Peixes'
171
Apareciam, a seguir, sapos, mariscos, sardinhas, caranguejos, polvos e outras espécies das águas
que se moviam pelos jardins da fazenda e diziam textos retirados da obra de Brecht e de
Guimarães Rosa. Nesse momento o público era dividido em quatro fileiras e conduzido pelo
interior da casa sede por caminhos diversos. Em vários espaços da casa os peixes se
apresentavam em cenas e traziam fragmentos de textos dos autores já citados.
Finalmente, a plateia que percorrera por caminhos diferentes a casa chegava ao grande terraço
onde banquinhos aguardavam a cansada plateia. Ao se sentar recebiam a visita lenta de algumas
tartarugas que provocavam risos. Em seguida, todas as outras espécies entravam acompanhadas
dos textos de Brecht e Rosa. Então, todos os peixes nadavam em direção a grande boca do
tubarão “onde todos os peixinhos tinham o final mais digno” recriando a gravura de Brueghel.
Na última cena, os anjos ressurgiam com vozes desconectadas em tons que variavam, eles
172
repetiam o texto de Heiner Muller num siga o seguidor sem fim e assim se encerrava o
espetáculo no alpendre da casa sede da fazenda.
No protocolo da aluna Ivanise de Carlo no dia 21 de maio de 2008 encontramos uma reflexão
dela a partir da experiência vivida na apresentação da estréia do espetáculo. Ivanise reflete:
A montagem foi marcada pela construção do texto espetacular através do processo dialógico dos
textos de Brecht, Muller, Benjamim, Guimarães, Padre Antônio Vieira e ainda da gravura de
Brueghel e do quadro de Paul Klee. Todo o processo de criação vivido trouxe a marca dessa
intertextualidade enriquecida ainda com as letras das músicas infantis e tradicionais dos cacuriás
que foram modificados para se ajustar ao espetáculo.
Os protocolos dos alunos resultantes do processo vivido demonstram o embate com os textos e
obras selecionadas pela encenadora, que aos poucos ia apresentando aos alunos os elementos
que comporiam o espetáculo.
Então, os alunos escreveram nos enunciados do gênero discursivo protocolo reflexões sobre a
experiência vivida no período de criação da encenação e a colaboração em sua própria formação
173
A aluna Patrícia afirmou que anotava tudo sobre o momento vivido na prática durante o
processo de criação e posteriormente ela relia a anotação feita e isso permitia a ela a
compreensão da teoria estudada. A aluna Patrícia auto-objetificou-se, pois o exercício da escrita
do enunciado do protocolo permitiu a ela colocar-se de fora da própria vida e olhar-se com um
excedente de visão. O afastamento da própria vida permitiu a aluna uma compreensão das
experiências vividas na relação da teoria com a prática na sua formação profissional, e ainda,
compreendeu a proposta usada de metodologia de ensino-aprendizagem do teatro com o uso do
gênero discursivo protocolo.
A aluna Rosicler assegurou que a junção da reflexão com a teoria que estudara colaborou com a
criação da encenação, já que muitas pesquisas foram necessárias para compreender o universo
proposto na montagem. O dialogismo presente na criação da montagem possibilitou a aluna
conectar conhecimentos e gerar novas descobertas. O fato dos verbos usados no enunciado do
protocolo de Rosicler estarem no plural denota o exercício da criação colaborativa
experimentada no grupo. O exercício da escrita do enunciado do protocolo trouxe para a
consciência de Rosicler todas as experiências vividas e exerceram forte influência na sua
formação, pois possibilitou a criação de uma pedagogia de leitura e escrita.
O aluno Flávio garantiu que as experiências vividas demoraram a tomar consciência em cada
aluno, mas que fora muito importante a criação de um espaço de reflexão e apreciação estética
durante o processo de montagem. O aluno de forma axiológica posiciona se fora de si para
analisar o vivido com excedente de visão. Ele é capaz de refletir sobre o processo de criação da
montagem no qual estivera envolvido. Como autor-criador do enunciado do seu protocolo
Flávio assume a autoria de sua autobiografia e num movimento circular modifica o seu pensar.
Ao debater na Roda do Grande Protocolo, o aluno pôde ainda influenciar e ser influenciado
pelos enunciados dos protocolos dos outros aprendizes da linguagem teatral.
175
O protocolo da aluna Tânia Mara trouxe uma reflexão sobre o dialogismo que se fez presente
em todo o processo de criação. O exercício da escrita na criação do enunciado do protocolo
permitiu à aluna a compreensão da colaboração dessa prática em sua formação. Ela ressaltou,
ainda, o valor da junção da leitura e da prática dos jogos vivido no processo de ensino-
aprendizagem de teatro proposto pela encenadora Koudela.
[...] a Ingrid começou a nos mostrar alguns quadros de Brueghel [... seus
quadros nos fazem pensar e repensar, quando começamos a associar o
quadro “Peixes Grandes Comem Peixes Pequenos” nos remeteu a leitura de
alguns acontecimentos no mundo [...]
O aluno Wagner pensou sobre a importância de refletir sobre outros acontecimentos do mundo
no processo de criação da encenação. Num movimento circular criado com a escrita e debate do
enunciado do protocolo, o aluno pôde se constituir como participante do mundo e como futuro
profissional da arte teatral na pedagogia de leitura e escrita proposta por Koudela.
E, finalmente, a aluna Solange declarou que ela fora estimulada a refletir pelo processo vivido.
A criação da pedagogia de leitura e escrita proposta na metodologia de ensino-aprendizagem do
teatro proposto por Koudela permitiu a aluna a compreensão do processo em que ela se
constituiu uma profissional da arte teatral.
Percebemos nos fragmentos destacados dos enunciados dos protocolos dos alunos para análise
que o uso do gênero discursivo protocolo na metodologia de ensino-aprendizagem do teatro
permitiu aos alunos momentos de reflexões sobre o processo vivido na criação da encenação.
Esses exemplos de fragmentos de enunciados do gênero discursivo protocolo mostram a
contribuição na metodologia de ensino-aprendizagem do teatro utilizado no processo de
formação no curso de licenciatura em Teatro pela pesquisadora Ingrid Koudela na criação de
uma pedagogia de leitura e escrita.
Em 2008 a encenação “Chamas na Penugem” trouxe o teatro de figuras alegóricas com uma
proposta que não contava histórias, mas alinhava quadros que se relacionavam através de
associações. Koudela buscou na tradição dos quadros vivos de Diderot a inspiração para a
encenação. A criação cênica foi organizada a partir do universo pictórico de Peter Brueghel. O
modelo de ação utilizado foram as gravuras de Brueghel que representavam os sete vícios
capitais.
O processo de montagem teve início com a leitura das imagens guiado pelo assistente de direção
e professor do curso Joaquim César Moreira Gama. Com cada gravura, Gama propôs um
177
Figura 29 - Joaquim Gama (camisa branca) com os alunos na leitura da imagem do vício da preguiça
Na montagem os gestos ganhavam significados essenciais. Koudela (2007) destaca que Brecht
insistia que um teatro baseado no gestus precisava ser coreografado. A elegância de um gesto, a
graça de um movimento e a invenção pantomímica ofereciam a fábula um auxílio inestimável.
No programa dessa encenação, Koudela (2008) afirma que o “Teatro de formas alegóricas
apresenta grande interesse como prática pedagógica na medida em que permite buscar a fonte de
formas teatrais oriundas da cultura popular.”
Gama (2010) destaca que as gravuras de Brueghel produzem uma narrativa singular, pois elas
não são lineares, não seguem as leis da perspectiva renascentista. As sete gravuras elaboradas
por Brueghel nos anos de 1556 e 1557 trazem seres elementais, grotescos e diabólicos, objetos e
espaços inusitados que se misturam a seres humanos revelando a visão crítica do artista acerca
do homem e da sociedade de sua época.
178
O espetáculo “Chamas na Penugem” de 2008 apresentava a descrição das imagens que foi
conduzida por um texto descritivo criado pela própria Ingrid Koudela para a montagem.
Segundo Gama (2010) Koudela assumiu a função dramaturga ao criar o texto para a montagem
que auxiliou numa leitura mais minuciosa das imagens e contribuiu para que os aprendizes da
linguagem teatral se detivessem aos detalhes das obras de Brueghel. Gama (2010, p. 146)
destaca que “o texto de Koudela relacionava-se com um gênero literário urbano denominado
‘Imagem de Pensamento’” e ainda afirma que:
179
esse gênero tem estreita relação com a tradição bíblica de narrar histórias de
forma épica, descrevendo detalhadamente as personagens, suas ações, e as
paisagens. Imagem de pensamento tornou-se uma espécie de parábola
urbana ou alegoria urbana.
(2010, p. 146)
O processo de criação do espetáculo “Chamas na Penugem” foi marcado pela leitura das
imagens das obras do artista flamenco Peter Brueghel. Os protocolos resultantes desse processo
refletiram esse momento criativo, muitos protocolos traziam em seus enunciados descrições de
imagens, cenas, procedimentos, entre outros.
O aluno Luiz demonstra no enunciado do seu protocolo que no processo vivido na criação da
encenação houve a junção e a colaboração da escrita, da leitura e do debate. Essa junção
permitiu ao aprendiz a aquisição e o desenvolvimento da linguagem teatral proposto nos
procedimentos da metodologia de ensino-aprendizagem do teatro. O enunciado do protocolo de
Luiz clarifica a importância do debate no processo de avaliação. O aluno retoma em seu
protocolo o que fora debatido no encontro anterior mostrando, como vimos com Bakhtin
(2006a), que cada protocolo é um elo na corrente da comunicação. Vemos ainda a criação do
‘movimento circular’ descrito por Foucault (2004), pois a escrita promove o debate que provoca
novas reflexões e um novo protocolo.
Prestei bastante atenção na leitura dos protocolos, pois não pude participar
da semana passada. Prestei atenção em cada frase e relato. [...]
A aluna Amanda cita os protocolos dos colegas que participaram do processo de montagem,
pois ela vê real importância na escrita deles. Em vários momentos, Amanda reafirma a
colaboração do enunciado do protocolo na promoção da discussão e reflexão no processo
vivido. Como compreendemos com Bakhtin (2006a) a palavra do outro está sempre presente em
nossos discursos. Os enunciados dos protocolos de Amanda estão repletos das palavras dos
outros. A polifonia de vozes está presente no processo de criação da montagem teatral e o
enunciado do protocolo de Amanda registra essa experiência vivida e que contribui com sua
formação na aprendizagem da linguagem teatral.
Iniciamos como de praxe com a leitura dos protocolos. Fico cada dia mais
satisfeita com o grupo, com a dedicação semana a semana, com a escrita
elaborada dos protocolos, propositores da próxima aula [...]
A aluna Evelyn demonstra satisfação com a escrita do protocolo realizada pela turma e acredita
que essa escrita pode ser um estímulo para o desenvolvimento do processo de criação. Evelyn,
afirma que a escrita do protocolo permite a recuperação dos eventos vividos, a aluna ainda
mostra que os enunciados dos protocolos trouxeram os temas para os debates na roda do Grande
Protocolo. A aluna compreende que o protocolo traz o encontro anterior, o que clarifica o
movimento circular criado no processo de comunicação. O protocolo, como a carta para os
gregos estudados por Foucault (2004), interfere no autor quando escreve o seu enunciado e nos
parceiros na roda do Grande Protocolo no momento da leitura e do debate.
A leitura dos protocolos está ficando cada vez mais interessante, porque as
pessoas além de se aprofundarem nas pesquisas, estão também registrando
suas impressões sobre o processo. Hoje. Os depoimentos foram muito
fortes, demonstraram muita vontade de trabalhar e que as pessoas estão
dispostas a investir no processo de criação do espetáculo, ou seja, estão
‘mergulhando de cabeça’ [...]
A aluna Jane se mostra surpresa com a qualidade dos textos produzidos pelos colegas e do quão
poéticos e criativos eles são. Jane, também afirma que há muita pesquisa envolvida no processo
de criação da encenação e que isso enriquece a compreensão de todos os envolvidos. A aluna
Jane ao criar os enunciados dos seus protocolos faz o exercício de Escrita de Si estudada por
Foucault (2004), que afirma que nenhuma técnica ou habilidade é desenvolvida sem a prática da
escrita. Jane se constitui como futura licenciada na metodologia de ensino-aprendizagem do
teatro proposta por Koudela. O enunciado do protocolo de Jane traz ainda o contexto vivido na
esfera artística do teatro a qual pertence o gênero discursivo protocolo. Compreendemos com a
aluna que, como afirma Bakhtin (2006a), o tema e a significação dos enunciados dos protocolos
são compreendidos diante da situação vivida no interior de um grupo teatral.
Percebemos nos fragmentos destacados dos enunciados dos protocolos que os alunos
compreendem a colaboração da escrita, da leitura e do debate no processo de aprendizagem da
linguagem teatral e se empenham em participar das atividades propostas pela professora em sua
metodologia de ensino-aprendizagem do teatro que propicia a criação de uma pedagogia de
leitura e escrita no teatro.
Em 2009, o espetáculo foi “A Ferida Woyzeck” adaptada da obra do autor alemão Georg
Büchner que conta a infeliz história de um soldado vitimado pela loucura e pela miséria. A
184
personagem Woyzeck é símbolo do sistema que oprime e do homem que explora seu
semelhante.
No espetáculo o texto de Büchner dialogava com cantigas de trabalho e de roda trazidas pela
pesquisadora da cultura popular Elaine Ferreira. A história da encenação se apresentava de
forma fragmentada, alinhando quadros de cenas no qual a coreografia, a pantomima, o canto e o
texto eram articulados na estruturação das cenas. Para Gama (2009), a montagem colocava o
público frente a frente com os podres poderes que fazem a roda da história girar. No programa
do espetáculo (anexo) Gama afirma que Woyzeck é a alegoria que representa uma legião de
homens honrados, bons sujeitos, que engolidos por um mundo frio e mecanizado, tornam-se
assassinos, loucos e associais.
A montagem foi concebida para ser vista numa arena. As apresentações ocorreram no final de
junho de 2009 na Usina Cultural Etore Marangone da cidade de Sorocaba onde uma
arquibancada fora montada em torno de uma arena, na qual se desenvolvia a cena teatral. A luz
criada pelo iluminador Claudinei Rosa, que foi por mim operada, foi explorada para ressaltar a
circularidade da cena com uma luz suave. Seis focos demarcavam o lugar onde o coro trazia as
personagens e com uma luz mais intensa que iluminava toda a arena se concretizavam as danças
coletivas e a festa.
As personagens eram revezadas pelos atores que representavam em coro. Vários atores
representavam Woyzeck na mesma cena, cada ator voltado para uma parte do público ora
atuavam em conjunto, ora falando sozinhos, o que tornava a cena extremamente dinâmica. O
gestus muito bem trabalhado e coreografado permitia que toda a plateia visualizasse a cena
completa.
As cenas se valiam das músicas da cultura popular e isso determinou o ritmo, o posicionamento
dos atores e o jogo com a plateia. As cenas fragmentadas criavam uma instabilidade e
provocavam o público que se esforçava para seguir a saga de Woyzeck.
186
A personagem Marie vivida por muitas atrizes, cantava, dançava e apresentava sua desgraçada
história através do coro e com gestus construídos no trabalho colaborativo.
No processo de criação vivido pelos alunos do curso os protocolos registraram a forte presença
da música, muitos protocolos eram cantados ou falados em forma de quadras como os
aprendidos na “Roda de Versos” com a pesquisadora Elaine Ferreira. A forte atmosfera de
musicalidade criada no processo marcou, não só a montagem, mas também a escrita dos alunos
que em muitos momentos se apresentaram em forma de versos, quadrinhas na estrutura da
cultura popular.
Destacaremos agora alguns fragmentos dos enunciados dos protocolos dos alunos.
A aluna Ana Érica mostra em sua reflexão que compreende a colaboração do gênero discursivo
protocolo no registro dos eventos e nas pesquisas suscitadas por ele. A aluna demonstra
entender que há uma metodologia de ensino-aprendizagem do teatro sendo utilizada na sua
formação e pesquisada para futuras propostas metodológicas. Na criação do seu protocolo aluna
realiza a Escrita de Si estudada por Foucault (2004). Para o pensador francês, o exercício da
escrita é fundamental para a aprendizagem de técnicas e habilidades profissionais.
Após a leitura dos protocolos da outra semana (que me fizeram ver o quão
‘poética’ eu sou pra escrever esse tipo de coisa [...]
A aluna Fernanda mostra o entendimento que ela teve sobre sua própria escrita após os
comentários dos colegas de turma surgidos no debate dos protocolos. Fernanda teve a
187
oportunidade de conhecer sua habilidade para escrever poesia, o que ela desconhecia, essa
descoberta permitiu que investisse no desenvolvimento desse gênero. Fernanda constituiu-se
como profissional da arte teatral no processo de aprendizagem propiciado pelo exercício da
Escrita de Si na criação do protocolo. Fernanda escreveu sua própria história e se constituiu
enquanto era a autora da sua própria formação.
A aluna Elizângela reflete sobre os temas aprendidos no encontro do grupo teatral e afirma que
o protocolo trouxe grandes ideias ao processo de criação. Na escrita do enunciado do seu
protocolo, Elizângela traz o tema para o debate na Roda do Grande Protocolo. A discussão
estabelecida sobre técnicas e habilidades da esfera artística do teatro é necessária para o seu
desenvolvimento profissional. Elizângela reforça a proposta do processo colaborativo presente
na criação da montagem teatral. Ela afirma ter ocorrido muitas proposições no processo de
criação da encenação. As reflexões feitas por ela e pelos companheiros de grupo experimentado
na metodologia de ensino-aprendizagem do teatro proposto criam o movimento circular e
estabelecem a corrente da comunicação.
Marcos Paulo reflete sobre as experiências vividas na esfera artística do teatro. O aluno
conjecturou sobre ser imprescindível o debate promovido pela leitura do enunciado do seu
protocolo. Ele afirma haver muitos debates no processo de criação das montagens teatrais o que
reflete a proposta da metodologia de ensino-aprendizagem do teatro utilizada pela encenadora.
O debate na Grande Roda do Protocolo proposta por Koudela proporciona a avaliação e
funciona como um propulsor no processo de aprendizagem da linguagem teatral.
A aluna Fernanda Souza avaliou que o protocolo não tem um formato definido e isso assusta
alguns alunos, mas para ela, o protocolo se mostra importante no trabalho desenvolvido no
grupo, por isso em sua reflexão solicita a todos que continuem escrevendo e compartilhando
seus protocolos. Na Escrita de Si exercitada na criação do enunciado do protocolo, Fernanda se
constitui como profissional da esfera artística teatral adquirindo as técnicas e as habilidades
propostas na metodologia de ensino-aprendizagem do teatro utilizada pela encenadora.
[...] Como a Ingrid, havia falado, o protocolo não precisa ter várias linhas,
uma linha pode dizer o que ocorreu na aula, neste dia posso dizer com duas
palavras ‘harmonia/interação’.
A aluna Maria Madalena afirma que o protocolo pode ser muito simples. Ao autocontemplar-se
Maria pôde projetar-se no outro e posicionar-se axiologicamente diante da própria vida. Ao
escrever o enunciado do seu protocolo, ela se tornou autora de sua própria história. Maria trouxe
em seu protocolo bifônico a palavra do outro para reforçar suas posições diante do vivido no
processo de criação da arte teatral no qual se constitui como profissional.
Fizemos a leitura dos protocolos da semana anterior, foi uma pena eu não
ter me lembrado dos meus, pois tinham coisas que a Fezinha pontuou sobre
as pessoas não se exporem o que acontece comigo, mas pelo menos
consegui falar sobre a minha inibição. [...]
190
Já a aluna Sílvia Regina lamenta não estar com seu protocolo no momento do debate, pois em
muitos temas discutidos ela gostaria de ter participado. Sílvia ainda mostra acreditar que o
protocolo colabora com sua aprendizagem da linguagem teatral. Os enunciados dos protocolos
da aluna Sílvia trazem os temas pertencentes à esfera artística do teatro. O movimento circular
criado pela metodologia de ensino-aprendizagem do teatro proposto pelo uso do gênero
discursivo protocolo permitiu a aprendiz Sílvia recuperar os momentos vividos no encontro
anterior, e ainda, o debate na Roda do Grande Protocolo propiciou a ela a reflexão de temas que
não pensara anteriormente, mas que na polifonia de vozes presentes no debate Sílvia pode entrar
na corrente de comunicação estabelecida e a discussão gerou novas reflexões e novos
protocolos.
Eu não acompanhei o curso todo, mas tive a oportunidade de conhecer a turma num encontro no
mês de agosto, quando Ingrid me convidou para apresentar a presente pesquisa do doutorado,
que naquele momento estava em andamento e próxima da qualificação.
Tarde muito agradável na companhia de pesquisadores tão dedicados e interessados. Pude ouvir
os protocolos que eles apresentaram, naquela tarde, relatando o encontro da semana anterior, em
que haviam jogado e cantado alguns cantos de trabalho que eu já conhecia. Não tive dificuldade
em entender e acompanhar a leitura na Roda do Grande Protocolo. Os fragmentos lidos dos
enunciados dos protocolos me permitiram ver e me divertir com a aula que ocorrera na semana
anterior.
Neste trabalho utilizo os protocolos que os pesquisadores dessa turma cederam para que eu
pudesse analisar e buscar em seus textos as características que estava estudando no gênero
discursivo protocolo recolhido durante os anos em que acompanhara a professora Ingrid na
Universidade de Sorocaba.
Apresento agora alguns fragmentos dos enunciados dos protocolos escritos pelos alunos da
turma do curso da ECA/USP:
Dialética da Malandragem
Na leitura dos protocolos da aula anterior, a partir dos relatos de cada
colega, pudemos tomar consciência de momentos significativos da aula. É
interessante que o protocolo, além de servir de registro de experiências
compartilhadas, aponte para o prolongamento dessas experiências em outros
níveis, mais reflexivo do que sensório-corporal, permitindo entrever o devir
de um conhecimento comum em construção.
Após essa leitura, Ingrid percebeu que o próprio jogo foi o elemento mais
comentado nos protocolos, mais do que Brecht, que ficou em segundo
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plano. Segundo ela, isso se deve a “própria força do jogo”. Para mim, o
jogo então não é apenas uma abordagem, ou uma passagem de acesso à
peça didática de Brecht, mas sua força vital. [“...]
O pesquisador Ricardo Reis afirmou se sentir livre ao poder debater os temas levantados pelos
protocolos, num processo de compartilhamento de seus questionamentos sobre as experiências
vividas no grupo. Na corrente de comunicação criada na escrita, leitura e debate na Roda do
Grande Protocolo proposto pela metodologia de ensino-aprendizagem do teatro proposto por
Koudela, o pesquisador Ricardo pode clarificar suas dúvidas e compreender o processo vivido
em sua formação.
A pesquisadora Heloíse revelou que passara uma semana ‘digerindo’ os eventos vividos no
encontro, ela compreendeu que a experiência prática promovera a reflexão. Ao criar o seu
enunciado, ela sentiu necessidade de colocar uma reprodução da gravura de Brueghel, a qual
lera e improvisara a partir dela no encontro anterior. Heloise utilizou seu protocolo para fazer
muitas perguntas, que foram lidas e discutidas no debate na Roda do Grande Protocolo
permitindo a reflexão e o avanço de todo o grupo. No segundo protocolo de Heloíse
encontramos uma reflexão sobre o modo de como deve ser a dinâmica na Roda do Grande
Protocolo. Ela demonstra ter compreendido a proposta de Koudela, mas sente que seu grupo não
fizera corretamente. Heloíse também percebeu a importância da metodologia de ensino-
aprendizagem do teatro utilizada e a sua colaboração no processo vivido. Auto-objetificando-se,
ela entendeu que a individualidade de cada pessoa se faz presente na escrita do protocolo que
refletem os mesmos eventos.
A pesquisadora Naila refletiu que o protocolo servira para analisar e compreender a experiência
vivida no encontro. Naila compreende que a escrita do protocolo permite a recuperação dos
eventos vividos e que esse exercício de escrita contribui para a sua formação. Ela acredita ser
necessário utilizar a sua objetividade para uma análise, mas afirma não conseguir abandonar sua
emoção. Então, ela assume que a escrita do seu protocolo terá a colaboração da sua
subjetividade.
A pesquisadora Daniele revela sua alegria ao redescobrir a prática da escrita do protocolo que se
tornou muito mais interessante ao compreender a colaboração do gênero discursivo no processo
de aprendizagem. Ela ainda percebeu a função da releitura do protocolo, pois cria um
movimento circular. A escrita, a leitura e o debate de um protocolo pode provocar a criação de
outro protocolo e outras reflexões.
[...] Começamos o dia com a leitura dos protocolos, não quis ser primeiro,
acho que ninguém queria. Ouvi o som do silêncio gritando em meu ouvido,
se é que isso é possível, hesitei, mordi os lábios e já estava pronto para
pronunciar a primeira palavra de meu protocolo quando ouvi a voz da Naila,
que iniciou a leitura de seu texto com veemência.
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Podemos compreender com os enunciados dos protocolos destacados dos pesquisadores que
participaram do curso em que se utilizou a metodologia de ensino-aprendizagem do teatro a
importante colaboração do gênero discursivo protocolo na criação de uma pedagogia de leitura e
escrita no teatro que colabora no processo de formação de pesquisadores da arte teatral.
198
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Ao final desta pesquisa sobre a criação de uma pedagogia de leitura e escrita no teatro através
da metodologia de ensino-aprendizagem do teatro com a utilização do gênero discursivo
protocolo podemos coadunar com o pensamento de Desgranges (2006) quando ressalta que na
visão de Brecht, a Pedagogia do Teatro, propõe uma aprendizagem que possibilita ao indivíduo
conhecer as coisas pela via da experiência sensível, e lembra ainda, que o processo de
aprendizagem não deve ter ponto final ou finalidade pré-estabelecida, mas deve acontecer por
toda a existência.
Podemos também relacionar a apontamento de Koudela (2001) quando afirma que para Brecht a
obra de arte influencia todas as pessoas e que elas podem entender e sentir prazer com uma obra
de arte porque todos têm algo de artístico dentro de si. Para Koudela (1991) a proposta de
educar através da arte teatral relacionada ao jogo aponta para um caminho de autoconhecimento,
pois a aprendizagem surge através do princípio da atividade do indivíduo, que passa a ser
artesão de sua própria educação ao estabelecer a relação dialética teoria/prática. Assim, vemos
que é na junção da experiência prática com a escrita, a leitura e a reflexão num processo de
debate que o aprendiz da linguagem teatral pode compreender o seu próprio processo de
formação.
Neste trabalho, acompanhamos o hábito que Bertolt Brecht teve, durante quase toda a sua vida,
em escrever diários e pudemos relacioná-lo ao posterior desenvolvimento do gênero discursivo
protocolo. Vimos o primeiro uso do protocolo no trabalho de Brecht após uma apresentação
teatral para os alunos da escola Karl Marx. Seguimos os registros nos diários de Brecht e
pudemos compreender as semelhanças com os registros presentes nos enunciados dos
protocolos. Mas também ressaltamos as características dos protocolos e a sua função de
propulsor na metodologia de ensino-aprendizagem de teatro proposto por Koudela. Assim,
diferenciamos o protocolo de um diário pessoal.
momento do debate. O protocolo é um gênero híbrido, e como tal, pode ser composto por
combinações infinitas: narração, descrição, poesia, músicas, imagens, danças, cenas teatrais,
gestos corporais, entre outros existentes no processo de criação teatral. Essas linguagens se
fundem para clarificar a intenção do autor do enunciado do protocolo que tem um tema gerado
na vivência ocorrida numa determinada data no grupo do fazer teatral.
Vimos que a pesquisadora Ingrid Koudela trouxe uma nova compreensão para o protocolo, para
ela, não é apenas uma escrita sobre o passado, mas sim um registro de ideias que funcionam
como uma mola propulsora no processo de criação. Todas as reflexões registradas nos
enunciados dos protocolos permitem o avanço do aprendiz, e promovem ainda reflexões e
avanços nos colegas de turma que ouvem e discutem coletivamente os protocolos escritos.
Os fragmentos dos enunciados dos protocolos destacados, nesta pesquisa, demonstraram que a
experiência prática permitiu a compreensão do significado do gesto, das possibilidades de
criação e do enriquecimento trazido pelas experiências vividas no fazer teatral. Então, o
protocolo mostra o resultado de uma experiência prática que promove uma reflexão individual,
proporciona a escrita e a leitura que geram um debate na coletividade e suscita novas reflexões
em todos os envolvidos no processo.
Entendemos como a palavra do outro está presente e colabora com o processo vivido na
metodologia de ensino-aprendizagem do teatro com o uso do gênero discursivo protocolo
utilizado pela pesquisadora Koudela. O protocolo registra a palavra do seu próprio autor e dos
outros envolvidos no processo de interação verbal. Vimos que essa interação é tensa e sempre
há conflito entre a palavra do autor do protocolo e a de outrem, é um processo de delimitação ou
de esclarecimento dialógico mútuo.
produz uma atitude de aprendizagem e de diálogo do indivíduo com o meio de interação social.
Cada indivíduo participante da leitura dos protocolos é um interlocutor e tem sempre uma
resposta-ativa. O discurso de um enunciado de um protocolo provoca outra reflexão e pode
gerar um novo protocolo formando a corrente da comunicação.
Consideramos que pela teoria bakhtiniana, a esfera artística do teatro determina a construção
composicional do protocolo, o conteúdo temático e o estilo da linguagem utilizado por seu autor
que faz suas escolhas para refletir o seu objetivo ao escrever o enunciado do seu protocolo. Há,
ainda, as relações dialógicas que são estabelecidas pela grande quantidade de enunciados
alheios.
Percebemos que o aprendiz que escreve o protocolo se torna autor de sua obra, e traz outro
olhar, pois para escrever-se é necessário sair de si mesmo e tornar-se objeto de sua própria
análise. O enunciado do protocolo traz uma característica que o afasta da vida real, por isso é
criação. Ao afastar-se de si mesmo o autor pode dar acabamento ao seu discurso, tornando-se
concluso. Apreendemos a importante colaboração do exercício de escrita que leva o aprendiz a
se tornar autor de seu próprio processo de construção de conhecimento, pois é refletindo sobre
suas experiências que o autor do protocolo se desloca de si mesmo e auto-objetifica-se.
Vimos que a possibilidade da criação estética é maior quando o autor do protocolo é menos fiel
ao relato dos eventos vividos. Quanto mais se afastar do registro do apenas vivido mais criativo
e artístico poderá ser o protocolo. Muitas vezes os acontecimentos presentes nos enunciados dos
protocolos são tangenciados através da criação de uma poesia, música, gesto, cena, enfim, um
elemento estético criado por seu autor. Ao afastar-se de si mesmo o autor do enunciado do
protocolo pode dar acabamento ao seu discurso, tornando-se concluso, o que não é possível na
vida vivida, pois estamos dentro do evento e não nos afastamos. Compreendemos com Bakhtin
que o autor do protocolo pode tornar-se puro artista deixando de ser ingênuo e enraizado no
mundo da alteridade.
Analisamos as vozes presentes nos protocolos dos exemplos apresentados nesta pesquisa, e
vimos que podem ser: monofônica, bifônica ou polifônica. As vozes mostraram a riqueza e a
diversidade vivida no processo de criação da encenação promovido pela encenadora Ingrid
Koudela. A utilização, pela pesquisadora Koudela, da metodologia de ensino-aprendizagem do
teatro através do uso do gênero discursivo protocolo permitiu aos aprendizes da linguagem
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teatral o registro do rico processo e criou a possibilidade da reflexão sobre a experiência vivida
em sua própria formação.
Entendemos com Foucault, neste trabalho, que a escrita está associada ao exercício de
pensamento de duas maneiras diferentes: uma linear que vai do exercício da escrita nascida na
reflexão advinda de uma prática sensório-corporal experienciada. E ainda, outra que é a forma
circular, pois a reflexão sobre a prática precede a escrita e a leitura posterior do enunciado do
protocolo promove novas reflexões. Em seus estudos sobre a Escrita de Si, Foucault descreve a
função etopoiética nos documentos: hupomnêmata e carta, que foram relacionados aos
protocolos nesta pesquisa.
Percebemos que o protocolo apresenta também as características da carta, pois é livre no seu
estilo e composição, podendo seu autor escolher a melhor forma de revelar suas intenções ao
escrever o seu texto. No protocolo, o aluno compartilha com o grupo o seu olhar sobre o
momento vivido na arte teatral. O protocolo como a carta age sobre seu autor no momento da
escrita, e age sobre os companheiros de turma no momento da leitura e debate na Roda do
Grande Protocolo.
Compreendemos que a pesquisadora, Ingrid Koudela se valeu da escrita para registrar suas
experiências e desenvolver análises científicas sobre a arte teatral. A pesquisadora mostrou, ao
longo dos anos, que em sua produção acadêmica buscou registrar os trabalhos pedagógicos
vividos nas oficinas, cursos, encenações, palestras, entre outras atividades. Entendemos a
importante contribuição do protocolo no registro dessas ações, dos eventos, das falas e do
material produzidos pelos participantes.
Desvelamos que em suas primeiras oficinas com o jogo teatral, nos anos 1978/79, Koudela
ainda não utilizava o protocolo, mas buscou formas para registrar o rico material produzido.
Com as crianças utilizou desenhos inspirada pelo trabalho de Madalena Freire, questionários
com os adolescentes e depoimentos com os diretores, artistas e escritores. Em todas as
203
Neste trabalho analisamos os enunciados dos protocolos produzidos pelos alunos de Ingrid Koudela
do curso de graduação em Teatro da Universidade de Sorocaba e também do curso ‘Teoria e Prática
com a Peça Didática de Bertolt Brecht’ da Pós-Graduação da Universidade de São Paulo.
Destacamos fragmentos desses protocolos, e neles encontramos as marcas das propostas feitas por
Koudela, o que nos permitiu comprovar a colaboração do enunciado do protocolo que funcionou
como um registro de avaliação do processo vivido, mas também como um propulsor na criação do
fazer teatral. O uso do gênero discursivo protocolo proporcionou ao aprendiz a reflexão e a
avaliação do momento experienciado na criação da arte teatral.
Segundo Freire (2011) não existe prática sem avaliação. Para o pensador ao se avaliar a prática
pode-se analisar o que se fez, e comparar os resultados com o que se desejava alcançar. A
avaliação da prática revela acertos, erros e imprecisões, permite a correção e a melhora da
prática. Avaliação e prática caminham juntas, e Freire propõe o exame constante dos avanços,
pois isso possibilitaria o vencimento das dificuldades encontradas.
Freire nos permite compreender que o protocolo possibilita a avaliação da prática experienciada
na criação da cena teatral. Entendemos que a escrita do protocolo parte da relação da teoria com
a experiência prática vivida no jogo teatral e que essa avaliação revela o processo de
aprendizagem da linguagem teatral. O desvelar dos avanços e das dificuldades na metodologia
de ensino-aprendizagem d com o uso do instrumento de avaliação protocolo permite a criação o
teatro de uma pedagogia de leitura e escrita no teatro.
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ANEXOS
Programas dos espetáculos e alguns protocolos produzidos pelos alunos de Ingrid Koudela.
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