2019 - Rossi e Rossi - Os Fundamentos Teoria e Prática

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ISSN 2595-3109, volume 17, número 02, junho de 2019.

OS FUNDAMENTOS DA RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA


The Basis of the Relation Between Theory and Practice

Aline Santana Rossi1


Rafael Rossi 2

RESUMO
A relação entre teoria e prática é um tema polêmico nas ciências humanas e sociais, incluindo aqui,
o debate educacional. Em geral, a maior parte das análises busca saídas ainda no interior desta
sociedade e, mais precisamente, na mudança subjetiva. Propomos uma abordagem histórica e
ontológica a respeito da articulação entre conhecimento teórico e prática social. Nesse sentido, é
fundamental partir do processo de autoconstrução humana. Entendemos, dessa forma, que a teoria é
o conhecimento da essência do objeto e a prática, também na sua essência ao longo da história, é o
critério para a elaboração da crítica. A superação da oposição radical entre teoria e prática, em
nosso entendimento, é, desse modo, uma empreitada teórica de exercício da crítica às teorias em
seus avanços e em seus limites e, ao mesmo tempo, uma empreitada da crítica prática que trate de
transformar a objetividade real.
Palavras-Chave: Teoria. Prática. Educação. Crítica.

ABSTRACT
The relationship between theory and practice is a controversial subject in the human and social
sciences, including here the educational debate. In general, most of the analyzes seek outlets still
within this society and, more precisely, in subjective change. We propose a historical and
ontological approach to the articulation between theoretical knowledge and social practice. In this
sense, it is fundamental to start from the process of human self-construction. In this way we
understand that theory is the knowledge of the essence of the object and practice, also in its essence
throughout history, is the criterion for the elaboration of criticism. The overcoming of the radical
opposition between theory and practice, in our view, is thus a theoretical undertaking of the exercise

1
Pedagoga pelo Instituto Educacional do Estado de São Paulo. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Ciências da UFMS em Campo Grande – MS, Brasil. E-mail: [email protected]
2
Licenciado e Mestre em Geografia, Doutor em Educação pela UNESP/FCT de Presidente Prudente – SP. Docente da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMS em Campo Grande – MS, Brasil. E-
mail: [email protected]

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of criticism of theories in their advances and their limits, and at the same time a work of practical
criticism that tries to transform the real objectivity.
Keywords: Theory. Practice. Education. Criticism.

Introdução

“Os que se encantam com a prática sem a ciência


são como os timoneiros que entram no navio
sem timão nem bússola,
nunca tendo certeza do seu destino” Leonardo Da Vinci

É muito comum observarmos, principalmente no debate educacional, a afirmação de que a


teoria está apartada da prática. Nesse mesmo sentido, vários profissionais da educação, depois de
formados e em atuação cotidiana nas escolas, em geral, argumentam que nas universidades há muita
teoria e que a prática é bem diferente daquilo que aprenderam em seus cursos de graduação.

Do ponto de vista da reflexão a respeito desta importante questão, a maior parte das análises,
mesmo aquelas altamente elaboradas, propõem saídas ainda no interior do plano do conhecimento:
novas abordagens, novos currículos, novas reflexões, novas metodologias que, supostamente,
seriam capazes de superar a dicotomia entre teoria e prática. Respeitamos as análises nessa
orientação, todavia, estamos chamando a atenção para o fato de que ainda se baseiam numa
perspectiva gnosiológica (TONET, 2013), isto é, cujo polo central da resolução do problema reside
no sujeito, em saídas subjetivistas.

Nossa hipótese, que apresentamos publicamente para debate honesto e aberto, é a de que a
relação entre teoria e prática trata-se, em verdade, de uma relação objetiva, uma relação que pode
ser melhor compreendida à luz da perspectiva ontológica (LUKÁCS, 2012 e 2013). Isto quer dizer
que, no processo de conhecimento, o polo regente está no objeto. Dessa forma, entendemos
preliminarmente que: 1) a teoria e a prática estabelecem articulações existentes na realidade
objetiva ao longo da história, independentemente da consciência dos pesquisadores e; 2) a
dicotomia que se expressa entre o conhecimento teórico e a prática social não possui como causa a
consciência ou a subjetividade dos indivíduos sociais, mas, antes disso, possui como fundamento o
modo de funcionamento da atual forma de sociabilidade, em especial, no que se refere à atividade
responsável pela produção das condições materiais da existência social: o trabalho.

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Com relação à formação de professores é preciso deixar claro que, do ponto de vista das
autênticas necessidades humanas, a atividade docente deve prezar pela transmissão do patrimônio
intelectual e cultural mais desenvolvido que o gênero já produziu (SAVIANI, 2011). Isto, por sua
vez, é inseparável de uma abordagem crítica sobre a relação aqui em pauta. É preciso enfatizar este
entendimento: a articulação entre o conhecimento teórico e a prática social não é uma articulação
apenas teórica, espiritual, subjetiva ou acadêmica. Antes disso: trata-se de um relacionamento que
existe, de fato, na realidade objetiva e se dinamiza em meio ao processo de autoconstrução humana.
Por isso, é preciso começar, primeiramente, pela compreensão de como os indivíduos se formam
enquanto seres humanos e, junto a este processo, a gênese e articulação entre teoria e prática. A
partir disso, avançamos para a demonstração dessa relação em meio à sociabilidade contemporânea
marcada por desigualdades estruturais e, por fim, nossas considerações finais a respeito deste
relevante e polêmico debate.

Teoria, Prática e Crítica: Origens Históricas

Para entendermos a relação que se estabelece entre o conhecimento teórico e a prática social
devemos partir não do debate conceitual e de tudo que já foi produzido a este respeito. O
conhecimento desta trajetória é relevante, todavia, para uma abordagem ontológica, ou seja,
centrada no objeto a partir de seu movimento histórico, devemos considerar, em primeiro lugar, o
processo de autoconstrução humana.

Sabe-se que o ser humano não nasce já pronto, isto é, não nasce já membro do gênero. Os
indivíduos quando nascem apresentam potencialidades para se formarem seres humanos. O quanto
irão se desenvolver nesse sentido e o nível de apropriação que estabelecerão com o patrimônio
intelectual elaborado e amealhado ao longo da história, são questões que só poderão ser respondidas
em face das possibilidades reais e concretas do momento histórico e da sociedade, enquanto
totalidade, que estivermos analisando.

O surgimento dos seres humanos na face da Terra é caracterizado por um salto ontológico,
Lukács (2013). Isto significa que há um salto de estrutura, um salto qualitativo e essencial do ser
meramente orgânico ao ser social/humanidade. O elemento responsável por este salto ontológico é o
trabalho que, desde já, não pode ser confundido, com relações de assalariamento ou emprego. O

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trabalho, desde o princípio, se articula com a linguagem/comunicação, com as relações sociais e a


divisão do próprio trabalho (LUKÁCS, 2013).

O trabalho é a única categoria que funda o ser social e, com isso, abre a possibilidade para o
surgimento e desenvolvimento de uma série amplíssima de várias outras dimensões sociais
(educação, ciência, arte, filosofia, etc.) que terão funções distintas no processo de reprodução social.
Com os atos de trabalho surge um efetivo “pôr teleológico”, o que significa que há uma articulação
nova entre consciência e realidade objetiva (LUKÁCS, 2013). O trabalho é sempre a transformação
de uma parte da natureza, de modo conscientemente intencional pela ação humana, para a
criação/objetivação de algo inteiramente novo que possa atender uma necessidade real e existente
da vida em sociedade.

Vejamos o exemplo de Aristóteles que é retomado por Lukács (2013): a construção de uma
casa. A casa, possui em sua constituição, por exemplo, madeira, pedra e areia. Entretanto, do
movimento espontaneamente natural da madeira, pedra e areia não se origina uma casa. Para que
isso ocorra é preciso que a consciência humana, partindo de uma necessidade real (se proteger e
construir um abrigo, nesse caso), reflita sobre os vínculos, possíveis articulações e acumule os
conhecimentos necessários para a elaboração efetiva da casa. Uma vez feito este trabalho
“intelectual”, este “trabalho da consciência”, entra em cena o momento da objetivação, isto é, da
execução propriamente dita daquele projeto previamente idealizado. Neste aspecto, quando
objetivamos algo, podemos confrontar aquilo que pensávamos da realidade e seu funcionamento,
com aquilo que a realidade de fato é.

Não por um acaso qualquer Lukács afirma que: “[...] a verdade é concreta” (LUKÁCS,
2014, p. 57). Isto é fundamental: a verdade ou falsidade de uma teoria não são questões de
preferência ou gosto pessoal e acadêmico. Ao contrário: são questões passíveis de verificação
mediante o conhecimento efetivo da realidade social em sua essência, em seu movimento histórico,
em sua dinâmica própria.

Por isso mesmo, a partir dos atos de trabalho, de maneira germinal estão contidas as bases
da relação entre teoria e prática. A teoria é o conhecimento, sempre aproximativo, da articulação
entre as aparências e a essência do objeto investigado ao longo do processo histórico real. O
conhecimento teórico é sempre o conhecimento da realidade/objeto em si mesmo, perante aquilo
que se sabe e aquilo que pode ser conhecido a partir das possibilidades reais que determinado
momento histórico e social oferecem para tal.

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Novamente podemos recorrer ao exemplo de Lukács (2013) sobre a vontade dos seres
humanos em voar. Esta vontade já estava presente entre os gregos (com o personagem mitológico
Ícaro, por exemplo), se manteve até Leonardo Da Vinci; porém só foi possível em ser objetivada na
sociedade capitalista. Qual a razão disto? O desenvolvimento das forças produtivas, das técnicas e
das ciências no capitalismo foi enorme e isto possibilitou apreender da realidade objetiva vínculos e
articulações que possibilitaram a objetivação do avião. As leis da física e da aerodinâmica do ar são
as mesmas ao longo da história, porém, agora, no capitalismo, podemos compreendê-las de modo
muito mais profundo, muito mais pormenorizado. Não se trata, portanto, de uma genialidade apenas
da subjetividade e da consciência, mas, antes disso, trata-se das condições materiais objetivas
alcançadas com a presente forma de sociabilidade.

A prática, no que se refere às aparências, é o ponto de partida necessário e incontornável de


toda pesquisa, de todo conhecimento teórico. Por meio da apropriação dos conhecimentos
científicos construídos historicamente, pode-se superar as aparências e avançar em suas articulações
com a essência, entendida como a gênese histórica, o desenvolvimento e a estrutura de um
determinado objeto. Por sua vez, com a mobilização de outros conhecimentos e com a apreensão e
tradução da lógica do objeto, pode-se explicitar articulações e movimentos do próprio objeto que
antes não tinham sido percebidos e, com isso, produz-se a teoria a respeito de algo que existe na
realidade efetivamente. Esta teoria, por sua vez, poderá contribuir, no futuro, para que mais
articulações e legalidades mais profundas possam ser capturadas deste mesmo objeto ou de outros.

Com efeito, a teoria é “o conhecimento do objeto – de sua estrutura e dinâmica – tal como
ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e
das representações do pesquisador” (NETTO, 2011, p. 20), sendo que esta reprodução não é algo
fotográfico ou mecânico. Por outro lado, trata-se de uma reprodução que almeje a essência e esta
reprodução “será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto” (NETTO,
2011, p. 21).

A teoria, portanto, não é um conjunto enciclopédico mecanicista descolado da realidade


prática. Em algumas abordagens filosóficas isto até pode acontecer. Todavia, de um ponto de vista
ontológico, a teoria é o conhecimento correto da essência, da estrutura, do movimento contraditório
do objeto em suas articulações com a totalidade social. A totalidade de uma sociedade são as
múltiplas interações que os seus complexos, isto é, as suas dimensões exercem entre si. Nesse
sentido, a totalidade se configura como uma rede de mediações, uma síntese qualitativa que guarda

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o movimento histórico passado e apresenta a orientação, os entraves e as possibilidades para o


desenvolvimento presente de cada uma das dimensões que congrega e dinamiza.

A prática social, por isso mesmo, naquilo que apresenta de essencial ao longo do processo
histórico real, é o critério para avaliarmos os avanços, as lacunas, os limites e as potencialidades de
determinada teoria, ou seja, como parâmetros para elaborarmos a crítica. Na perspectiva ontológica,
a crítica de uma teoria consiste:

[...] em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os


seus condicionamentos e os seus limites – ao mesmo tempo em que se faz a
verificação dos conteúdos desse conhecimento a partir dos processos históricos
reais (NETTO, 2011, p. 18)

Desse modo, a crítica é de extrema relevância. O abandono da crítica é o abandono da


possibilidade de criação de novos conhecimentos teóricos mais profundos e que traduzam mais a
essência do real. Aqui, de novo, vale a ênfase: a base da crítica ontológica não está na consciência,
em preferências ou rejeições subjetivas. O fundamento da crítica ontológica é a totalidade em sua
dinâmica histórica efetiva. Para Chasin (1988) a crítica ontológica:

É a crítica de uma propositura teórica a partir do cotejamento que é feito entre ela e
o real. É o real que serve de telão contra o qual é esbatida a teoria. E a teoria é
mostrada como falsa na medida em que ela não é a reprodução fiel do real, mas ela
é, no caso concreto da tematização hegeliana, o inverso do real (CHASIN, 1988, p.
16)

Portanto, nem a teoria é um conjunto escolástico de informações pomposas descoladas do


real, nem a prática deve ser supervalorizada. Caso inflemos em demasia a consideração a respeito
do conhecimento teórico em detrimento da realidade objetiva, poderemos cair no idealismo que
tenta deturpar a realidade e encaixá-la em padrões construídos subjetivamente. Por outro lado,
desprezar acriticamente o conhecimento teórico, pode levar ao fetiche da prática, ao praticismo
espontaneísta que desemboca em aventuras irresponsáveis. Não se trata de uma relação de
equilíbrio harmônico entre ambas. Como vimos, a teoria parte da realidade para traduzi-la em sua
essência. Nesse aspecto, o conhecimento teórico é indispensável para a intervenção eficaz na
objetividade. Ao mesmo tempo, é a própria essência do real que servirá para a elaboração da crítica
ao conhecimento teórico acumulado historicamente.

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A Dicotomia entre Teoria e Prática nesta Sociedade

Como afirmamos no item anterior a realidade social não se resume ao trabalho. Ela se
conforma enquanto totalidade, enquanto síntese, enquanto rede de mediações entre os vários
complexos em suas múltiplas determinações recíprocas. Contudo, em todas as sociedades, haverá a
necessidade de transformação conscientemente intencional da natureza para a produção dos meios
de produção e de subsistência (abrigos, ferramentas, alimentos, vestimentas, estradas etc.). Em
outras palavras: em toda sociedade sempre houve e sempre haverá a necessidade do trabalho. Não
do trabalho assalariado que marca o fundamento do capitalismo, mas sim, do trabalho nesse
entendimento de transformação da natureza para a produção das condições materiais da existência
social.

Toda sociedade terá uma forma concreta e típica de exercer o trabalho. Na sociedade
escravista era o trabalho escravo; na sociedade feudal, o trabalho servil e na sociedade capitalista é
o trabalho assalariado a forma dominante. Entre o trabalho e a relação entre teoria e prática há a
mediação, inescapável, da totalidade social. O trabalho assalariado impacta a totalidade e esta, por
sua vez, impacta a relação e a dicotomia entre teoria e prática. A totalidade é a mediação, é o
momento predominante, entre a forma típica de trabalho e a orientação de cada complexo social
(ANDRADE, 2014).

Como afirmamos anteriormente a relação entre teoria e prática é uma relação existente na
objetividade social e não apenas no plano das ideias. Desse modo, mudar essencialmente algo
objetivo, exige, por seu turno, ações objetivas e concretas. Esse é o ponto que escapa à maioria das
análises educacionais sobre esta importância temática.

No caso desta forma de sociabilidade, o trabalho aparece esfacelado, fragmentado, como


atividade alienada. Os trabalhadores não se reconhecem no produto de seu trabalho, não se
reconhecem entre si (veja-se, por exemplo, o alto nível de competitividade e egoísmo que
presenciamos todos os dias entre os próprios trabalhadores), não possuem conhecimento de todo o
processo produtivo, não controlam a própria atividade de trabalho nem as finalidades da mesma.
Tudo isto é determinado pelo mercado, pelas grandes empresas multinacionais. As mercadorias são
produzidas não com o objetivo primordial de atenderem uma autêntica necessidade humana, mas
com a meta essencial de serem vendidas. Pouco importa, por exemplo, para esta sociedade, que o
alto nível de agrotóxicos em nosso ar, água e alimentos gere câncer. Isto é um “efeito colateral” que
não pode, de modo algum, perante os defensores da ordem, ser associado ao imperativo de produzir

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alimentos para o lucro e não para saciar as necessidades alimentares. Não por um acaso qualquer
produzimos muito mais do que a capacidade do planeta todo consumir e, mesmo assim, milhões de
toneladas são desperdiçadas e vários morrem de fome todos os dias. O objetivo social que subordina
tudo e todos é a reprodução dos lucros e o “bem dos negócios”.

Este é o fundamento da oposição entre a teoria e a prática nesta sociedade. Apresentar


possibilidades reais e efetivas de superação da separação entre o conhecimento teórico e a prática
social é um exercício teórico que congrega, inexoravelmente, a atividade prática de transformação
social. Se o trabalho, isto é, a atividade vital humana, é uma atividade alienada, com desigualdades
estruturais, é uma atividade voltada para o enriquecimento de uns às custas da exploração alheia,
então, incontornavelmente, haverá a dicotomia abissal entre teoria e prática.

Contribuir para avançar sobre esta oposição radical é um exercício teórico e, ao mesmo
tempo, prático. É teórico no sentido de permitir aos trabalhadores o conhecimento da essência desta
sociedade, do seu modo de funcionamento, da sua organização, das suas origens etc. Igualmente é
uma empreitada prática, pois implica a atuação real e concreta que ajude a transformar
essencialmente a forma de trabalho atual, rumo à uma outra organização do trabalho sem qualquer
tipo de exploração do homem pelo homem. Trata-se, pois da prática da crítica, no sentido de
exercer a crítica às teorias que se prendem apenas à camada epidérmica dos fenômenos estudados e,
em igual importância, a crítica da prática, ou seja, a crítica atuante que “ponha as mãos na massa” a
partir de uma sólida compreensão teórica do movimento essencial da objetividade. Este debate, no
que se refere à especificidade da educação escolar, foi, acertadamente abordado por Carvalho e
Martins (2017):

Os conteúdos escolares estão no âmbito das objetivações para-si, assim como não
basta viver em sociedade para se humanizar, não basta apenas frequentar a escola
para se apropriar das objetivações para-si. Dificilmente esses conteúdos serão
aprendidos de modo espontâneo. O ensino dos conhecimentos científicos, artísticos
e filosóficos mais elaborados da cultura humana depende de ações intencionais e
planejadas e na educação escolar, tal tarefa é responsabilidade do professor.
(CARVALHO e MARTINS, 2017, p. 175)

O papel da educação escolar e da atuação dos professores é fundamental neste sentido.


Entendemos que a atividade docente é uma atividade intencional que deve ter como objetivo, se
preocupada com os interesses do gênero humano, a transmissão dos clássicos do patrimônio
intelectual elaborado historicamente (SAVIANI, 2011) e numa abordagem crítica e ontológica

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(LUKÁCS, 2012; 2013). Essa reflexão da teoria e prática como uma relação que existe, de fato, na
realidade objetiva, permite defender a escola como uma instituição “cujo papel consiste na
socialização do saber sistematizado [...] Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e
não ao conhecimento espontâneo, ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado [...]”
(SAVIANI, 2011, p. 14). A crítica ontológica muito pode contribuir nesta tarefa, tanto do ponto de
vista teórico, quanto do ponto de vista prático.

Considerações Finais

Neste texto abordamos o polêmico debate a respeito do fato das teorias estarem apartadas da
prática social. Partimos, em um primeiro momento, das bases ontológicas, isto é, histórias, da
articulação entre teoria e prática e, para isso, retomamos o processo de autoconstrução humana.
Entendemos que os seres humanos surgem na Terra quando desempenham atos de trabalho, pois
apresentam uma articulação nova entre consciência e realidade objetiva. À consciência caberá a
função social de pensar em vínculos, reflexões e análises das possibilidades reais e existentes na
própria objetividade, acumulando conhecimentos construídos historicamente para o atendimento
das necessidades sociais. Contudo, as possibilidades, os entraves e obstáculos serão determinados
pela própria realidade objetiva e não pelos anseios e desejos da consciência/subjetividade. Trata-se,
de fato, da constatação de que “o ser tem prioridade ontológica com relação à consciência”
(LUKÁCS, 2012, p. 307), ou seja, existe e coloca as bases reais e concretas para a consciência atuar
e refletir.

A partir destes entendimentos, percebemos que o conhecimento teórico é aquele


conhecimento que apreende, que traduz e que capta o movimento essencial do objeto ao longo da
história em suas legalidades próprias e em suas articulações com a totalidade social. Para a
abordagem ontológica, que possui preocupações em desvendar o objeto do modo como ele é em si
mesmo, não se trata, portanto, de “construir”, “enquadrar” ou “recortar” o objeto, mas sim,
apreendê-lo e revelar sua estrutura e dinâmica própria.

Por fim, demonstramos que a relação teoria e prática é uma relação existente na realidade e
não inventada pelos pesquisadores. O trabalho típico de cada sociedade utiliza a totalidade enquanto
mediação, ou seja, enquanto momento predominante na orientação desta articulação entre
conhecimento teórico e prática social. Como na sociedade contemporânea o trabalho é fragmentado,

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não é controlado, conhecido por completo e nem gerido pelos próprios trabalhadores e pelas
autênticas necessidades humanas (mas apenas pelas necessidades mercadológicas), então,
incontornavelmente haverá uma dicotomia abissal entre a teoria e a prática.

Novamente: a reciprocidade entre teoria e prática não é algo existe apenas no plano teórico,
mas sim, na realidade objetiva. Desse modo, contribuir para alterar significativamente esta relação é
agir, igualmente, de modo concreto e objetivo. As ações que visem intervir na objetividade
precisam se basear numa sólida teoria que tenha apreendido o movimento essencial do objeto em
questão, caso contrário, não conseguirá atingir os objetivos traçados.

Vivemos em tempos em que é muito comum questionar ou, até mesmo, desvalorizar o papel
do professor no processo de transmissão e assimilação de conhecimentos. Argumenta -se, por
exemplo, que com as novas tecnologias tudo pode ser resolvido com o espírito empreendedor e
criativo dos alunos. Discordamos deste posicionamento. Ninguém aprende sozinho os conteúdos
escolares. Pensamos que a atividade dos professores é uma atividade intencional, que deve ter por
objetivo (se baseada numa postura preocupada com as reais necessidades do gênero) a transmissão
dos conhecimentos científicos mais elaborados que a humanidade já produziu ao longo da história
(SAVIANI 2011) e numa orientação crítica-ontológica (LUKÁCS, 2012; 2013). Este processo
implica uma forte e robusta teoria social e educacional a respeito da especificidade da prática
educativa em suas mediações com a escola e a sociedade.

Se o trabalho for completamente controlado pelos próprios trabalhadores e organizado para


atender as reais demandas dos indivíduos e do gênero humano, então, haverá chances reais e
efetivas para que a compreensão sólida teoricamente da realidade possa se expandir para todos e
não apenas para alguns. Portanto, contribuir para a superação da oposição radical entre teoria e
prática é um empreendimento que congrega: 1) a prática da crítica, isto é, a crítica que apreenda as
lacunas, avanços e retrocessos das teorias sociais no confronto com a essência do real e; 2) a crítica
da prática: a atuação organizada, consciente e coletiva de construção de uma forma de trabalho sem
qualquer tipo de exploração. Fundamental entendermos que “as atividades espirituais do homem
não são, por assim dizer, entidades da alma, como imagina a filosofia acadêmica”, mas sim,
“formas diversas sobre a base das quais os homens organizam cada uma de suas ações e reações ao
mundo externo” e, nesse sentido, “os homens dependem sempre, de algum modo, destas formas
para a defesa e a construção de sua existência” (LUKÁCS, 2014, p. 24).

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Referências

ANDRADE, M. A. Trabalho e Totalidade Social: Qual o Momento Predominante da Reprodução


Social? In: COSTA, G.; ALCÂNTARA, N. Anuário Lukács. São Paulo: Instituto Lukács, 2014. p.
177-203.

CARVALHO, B.; MARTINS, L. M. Formação de Professores: Superando o dilema Teoria versus


Prática. Revista Germinal, Salvador, v. 9, n. 1, p. 172-181, 2017.

CHASIN, J. Superação do Liberalismo. 1988, mime.


LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social – I. São Paulo: Boitempo: 2012.
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social – II. São Paulo: Boitempo: 2013.
LUKÁCS, G. Conversando com Lukács: entrevista a Léo Kofler, Wolfang Abendroth e Hans
Heinz Holz/Georg Lukács. Tradução de Gisieh Vianna. São Paulo: Instituto Lukács, 2014.
NETTO, J. P. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: Primeiras Aproximações. Campinas – SP: Autores
Associados, 2011.
TONET, I. Método Científico – Uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.

Recebido em: 01/05/2019

Aceito em: 12/06/2019

Publicado em: 02/07/2019

ISSN 2595-3109, vol. 17, n. 02, junho de 2019.

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