2019 - Rossi e Rossi - Os Fundamentos Teoria e Prática
2019 - Rossi e Rossi - Os Fundamentos Teoria e Prática
2019 - Rossi e Rossi - Os Fundamentos Teoria e Prática
RESUMO
A relação entre teoria e prática é um tema polêmico nas ciências humanas e sociais, incluindo aqui,
o debate educacional. Em geral, a maior parte das análises busca saídas ainda no interior desta
sociedade e, mais precisamente, na mudança subjetiva. Propomos uma abordagem histórica e
ontológica a respeito da articulação entre conhecimento teórico e prática social. Nesse sentido, é
fundamental partir do processo de autoconstrução humana. Entendemos, dessa forma, que a teoria é
o conhecimento da essência do objeto e a prática, também na sua essência ao longo da história, é o
critério para a elaboração da crítica. A superação da oposição radical entre teoria e prática, em
nosso entendimento, é, desse modo, uma empreitada teórica de exercício da crítica às teorias em
seus avanços e em seus limites e, ao mesmo tempo, uma empreitada da crítica prática que trate de
transformar a objetividade real.
Palavras-Chave: Teoria. Prática. Educação. Crítica.
ABSTRACT
The relationship between theory and practice is a controversial subject in the human and social
sciences, including here the educational debate. In general, most of the analyzes seek outlets still
within this society and, more precisely, in subjective change. We propose a historical and
ontological approach to the articulation between theoretical knowledge and social practice. In this
sense, it is fundamental to start from the process of human self-construction. In this way we
understand that theory is the knowledge of the essence of the object and practice, also in its essence
throughout history, is the criterion for the elaboration of criticism. The overcoming of the radical
opposition between theory and practice, in our view, is thus a theoretical undertaking of the exercise
1
Pedagoga pelo Instituto Educacional do Estado de São Paulo. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de
Ciências da UFMS em Campo Grande – MS, Brasil. E-mail: [email protected]
2
Licenciado e Mestre em Geografia, Doutor em Educação pela UNESP/FCT de Presidente Prudente – SP. Docente da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMS em Campo Grande – MS, Brasil. E-
mail: [email protected]
of criticism of theories in their advances and their limits, and at the same time a work of practical
criticism that tries to transform the real objectivity.
Keywords: Theory. Practice. Education. Criticism.
Introdução
Do ponto de vista da reflexão a respeito desta importante questão, a maior parte das análises,
mesmo aquelas altamente elaboradas, propõem saídas ainda no interior do plano do conhecimento:
novas abordagens, novos currículos, novas reflexões, novas metodologias que, supostamente,
seriam capazes de superar a dicotomia entre teoria e prática. Respeitamos as análises nessa
orientação, todavia, estamos chamando a atenção para o fato de que ainda se baseiam numa
perspectiva gnosiológica (TONET, 2013), isto é, cujo polo central da resolução do problema reside
no sujeito, em saídas subjetivistas.
Nossa hipótese, que apresentamos publicamente para debate honesto e aberto, é a de que a
relação entre teoria e prática trata-se, em verdade, de uma relação objetiva, uma relação que pode
ser melhor compreendida à luz da perspectiva ontológica (LUKÁCS, 2012 e 2013). Isto quer dizer
que, no processo de conhecimento, o polo regente está no objeto. Dessa forma, entendemos
preliminarmente que: 1) a teoria e a prática estabelecem articulações existentes na realidade
objetiva ao longo da história, independentemente da consciência dos pesquisadores e; 2) a
dicotomia que se expressa entre o conhecimento teórico e a prática social não possui como causa a
consciência ou a subjetividade dos indivíduos sociais, mas, antes disso, possui como fundamento o
modo de funcionamento da atual forma de sociabilidade, em especial, no que se refere à atividade
responsável pela produção das condições materiais da existência social: o trabalho.
Com relação à formação de professores é preciso deixar claro que, do ponto de vista das
autênticas necessidades humanas, a atividade docente deve prezar pela transmissão do patrimônio
intelectual e cultural mais desenvolvido que o gênero já produziu (SAVIANI, 2011). Isto, por sua
vez, é inseparável de uma abordagem crítica sobre a relação aqui em pauta. É preciso enfatizar este
entendimento: a articulação entre o conhecimento teórico e a prática social não é uma articulação
apenas teórica, espiritual, subjetiva ou acadêmica. Antes disso: trata-se de um relacionamento que
existe, de fato, na realidade objetiva e se dinamiza em meio ao processo de autoconstrução humana.
Por isso, é preciso começar, primeiramente, pela compreensão de como os indivíduos se formam
enquanto seres humanos e, junto a este processo, a gênese e articulação entre teoria e prática. A
partir disso, avançamos para a demonstração dessa relação em meio à sociabilidade contemporânea
marcada por desigualdades estruturais e, por fim, nossas considerações finais a respeito deste
relevante e polêmico debate.
Para entendermos a relação que se estabelece entre o conhecimento teórico e a prática social
devemos partir não do debate conceitual e de tudo que já foi produzido a este respeito. O
conhecimento desta trajetória é relevante, todavia, para uma abordagem ontológica, ou seja,
centrada no objeto a partir de seu movimento histórico, devemos considerar, em primeiro lugar, o
processo de autoconstrução humana.
Sabe-se que o ser humano não nasce já pronto, isto é, não nasce já membro do gênero. Os
indivíduos quando nascem apresentam potencialidades para se formarem seres humanos. O quanto
irão se desenvolver nesse sentido e o nível de apropriação que estabelecerão com o patrimônio
intelectual elaborado e amealhado ao longo da história, são questões que só poderão ser respondidas
em face das possibilidades reais e concretas do momento histórico e da sociedade, enquanto
totalidade, que estivermos analisando.
O surgimento dos seres humanos na face da Terra é caracterizado por um salto ontológico,
Lukács (2013). Isto significa que há um salto de estrutura, um salto qualitativo e essencial do ser
meramente orgânico ao ser social/humanidade. O elemento responsável por este salto ontológico é o
trabalho que, desde já, não pode ser confundido, com relações de assalariamento ou emprego. O
O trabalho é a única categoria que funda o ser social e, com isso, abre a possibilidade para o
surgimento e desenvolvimento de uma série amplíssima de várias outras dimensões sociais
(educação, ciência, arte, filosofia, etc.) que terão funções distintas no processo de reprodução social.
Com os atos de trabalho surge um efetivo “pôr teleológico”, o que significa que há uma articulação
nova entre consciência e realidade objetiva (LUKÁCS, 2013). O trabalho é sempre a transformação
de uma parte da natureza, de modo conscientemente intencional pela ação humana, para a
criação/objetivação de algo inteiramente novo que possa atender uma necessidade real e existente
da vida em sociedade.
Vejamos o exemplo de Aristóteles que é retomado por Lukács (2013): a construção de uma
casa. A casa, possui em sua constituição, por exemplo, madeira, pedra e areia. Entretanto, do
movimento espontaneamente natural da madeira, pedra e areia não se origina uma casa. Para que
isso ocorra é preciso que a consciência humana, partindo de uma necessidade real (se proteger e
construir um abrigo, nesse caso), reflita sobre os vínculos, possíveis articulações e acumule os
conhecimentos necessários para a elaboração efetiva da casa. Uma vez feito este trabalho
“intelectual”, este “trabalho da consciência”, entra em cena o momento da objetivação, isto é, da
execução propriamente dita daquele projeto previamente idealizado. Neste aspecto, quando
objetivamos algo, podemos confrontar aquilo que pensávamos da realidade e seu funcionamento,
com aquilo que a realidade de fato é.
Não por um acaso qualquer Lukács afirma que: “[...] a verdade é concreta” (LUKÁCS,
2014, p. 57). Isto é fundamental: a verdade ou falsidade de uma teoria não são questões de
preferência ou gosto pessoal e acadêmico. Ao contrário: são questões passíveis de verificação
mediante o conhecimento efetivo da realidade social em sua essência, em seu movimento histórico,
em sua dinâmica própria.
Por isso mesmo, a partir dos atos de trabalho, de maneira germinal estão contidas as bases
da relação entre teoria e prática. A teoria é o conhecimento, sempre aproximativo, da articulação
entre as aparências e a essência do objeto investigado ao longo do processo histórico real. O
conhecimento teórico é sempre o conhecimento da realidade/objeto em si mesmo, perante aquilo
que se sabe e aquilo que pode ser conhecido a partir das possibilidades reais que determinado
momento histórico e social oferecem para tal.
Novamente podemos recorrer ao exemplo de Lukács (2013) sobre a vontade dos seres
humanos em voar. Esta vontade já estava presente entre os gregos (com o personagem mitológico
Ícaro, por exemplo), se manteve até Leonardo Da Vinci; porém só foi possível em ser objetivada na
sociedade capitalista. Qual a razão disto? O desenvolvimento das forças produtivas, das técnicas e
das ciências no capitalismo foi enorme e isto possibilitou apreender da realidade objetiva vínculos e
articulações que possibilitaram a objetivação do avião. As leis da física e da aerodinâmica do ar são
as mesmas ao longo da história, porém, agora, no capitalismo, podemos compreendê-las de modo
muito mais profundo, muito mais pormenorizado. Não se trata, portanto, de uma genialidade apenas
da subjetividade e da consciência, mas, antes disso, trata-se das condições materiais objetivas
alcançadas com a presente forma de sociabilidade.
Com efeito, a teoria é “o conhecimento do objeto – de sua estrutura e dinâmica – tal como
ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e
das representações do pesquisador” (NETTO, 2011, p. 20), sendo que esta reprodução não é algo
fotográfico ou mecânico. Por outro lado, trata-se de uma reprodução que almeje a essência e esta
reprodução “será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto” (NETTO,
2011, p. 21).
A prática social, por isso mesmo, naquilo que apresenta de essencial ao longo do processo
histórico real, é o critério para avaliarmos os avanços, as lacunas, os limites e as potencialidades de
determinada teoria, ou seja, como parâmetros para elaborarmos a crítica. Na perspectiva ontológica,
a crítica de uma teoria consiste:
É a crítica de uma propositura teórica a partir do cotejamento que é feito entre ela e
o real. É o real que serve de telão contra o qual é esbatida a teoria. E a teoria é
mostrada como falsa na medida em que ela não é a reprodução fiel do real, mas ela
é, no caso concreto da tematização hegeliana, o inverso do real (CHASIN, 1988, p.
16)
Como afirmamos no item anterior a realidade social não se resume ao trabalho. Ela se
conforma enquanto totalidade, enquanto síntese, enquanto rede de mediações entre os vários
complexos em suas múltiplas determinações recíprocas. Contudo, em todas as sociedades, haverá a
necessidade de transformação conscientemente intencional da natureza para a produção dos meios
de produção e de subsistência (abrigos, ferramentas, alimentos, vestimentas, estradas etc.). Em
outras palavras: em toda sociedade sempre houve e sempre haverá a necessidade do trabalho. Não
do trabalho assalariado que marca o fundamento do capitalismo, mas sim, do trabalho nesse
entendimento de transformação da natureza para a produção das condições materiais da existência
social.
Toda sociedade terá uma forma concreta e típica de exercer o trabalho. Na sociedade
escravista era o trabalho escravo; na sociedade feudal, o trabalho servil e na sociedade capitalista é
o trabalho assalariado a forma dominante. Entre o trabalho e a relação entre teoria e prática há a
mediação, inescapável, da totalidade social. O trabalho assalariado impacta a totalidade e esta, por
sua vez, impacta a relação e a dicotomia entre teoria e prática. A totalidade é a mediação, é o
momento predominante, entre a forma típica de trabalho e a orientação de cada complexo social
(ANDRADE, 2014).
Como afirmamos anteriormente a relação entre teoria e prática é uma relação existente na
objetividade social e não apenas no plano das ideias. Desse modo, mudar essencialmente algo
objetivo, exige, por seu turno, ações objetivas e concretas. Esse é o ponto que escapa à maioria das
análises educacionais sobre esta importância temática.
alimentos para o lucro e não para saciar as necessidades alimentares. Não por um acaso qualquer
produzimos muito mais do que a capacidade do planeta todo consumir e, mesmo assim, milhões de
toneladas são desperdiçadas e vários morrem de fome todos os dias. O objetivo social que subordina
tudo e todos é a reprodução dos lucros e o “bem dos negócios”.
Contribuir para avançar sobre esta oposição radical é um exercício teórico e, ao mesmo
tempo, prático. É teórico no sentido de permitir aos trabalhadores o conhecimento da essência desta
sociedade, do seu modo de funcionamento, da sua organização, das suas origens etc. Igualmente é
uma empreitada prática, pois implica a atuação real e concreta que ajude a transformar
essencialmente a forma de trabalho atual, rumo à uma outra organização do trabalho sem qualquer
tipo de exploração do homem pelo homem. Trata-se, pois da prática da crítica, no sentido de
exercer a crítica às teorias que se prendem apenas à camada epidérmica dos fenômenos estudados e,
em igual importância, a crítica da prática, ou seja, a crítica atuante que “ponha as mãos na massa” a
partir de uma sólida compreensão teórica do movimento essencial da objetividade. Este debate, no
que se refere à especificidade da educação escolar, foi, acertadamente abordado por Carvalho e
Martins (2017):
Os conteúdos escolares estão no âmbito das objetivações para-si, assim como não
basta viver em sociedade para se humanizar, não basta apenas frequentar a escola
para se apropriar das objetivações para-si. Dificilmente esses conteúdos serão
aprendidos de modo espontâneo. O ensino dos conhecimentos científicos, artísticos
e filosóficos mais elaborados da cultura humana depende de ações intencionais e
planejadas e na educação escolar, tal tarefa é responsabilidade do professor.
(CARVALHO e MARTINS, 2017, p. 175)
(LUKÁCS, 2012; 2013). Essa reflexão da teoria e prática como uma relação que existe, de fato, na
realidade objetiva, permite defender a escola como uma instituição “cujo papel consiste na
socialização do saber sistematizado [...] Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e
não ao conhecimento espontâneo, ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado [...]”
(SAVIANI, 2011, p. 14). A crítica ontológica muito pode contribuir nesta tarefa, tanto do ponto de
vista teórico, quanto do ponto de vista prático.
Considerações Finais
Neste texto abordamos o polêmico debate a respeito do fato das teorias estarem apartadas da
prática social. Partimos, em um primeiro momento, das bases ontológicas, isto é, histórias, da
articulação entre teoria e prática e, para isso, retomamos o processo de autoconstrução humana.
Entendemos que os seres humanos surgem na Terra quando desempenham atos de trabalho, pois
apresentam uma articulação nova entre consciência e realidade objetiva. À consciência caberá a
função social de pensar em vínculos, reflexões e análises das possibilidades reais e existentes na
própria objetividade, acumulando conhecimentos construídos historicamente para o atendimento
das necessidades sociais. Contudo, as possibilidades, os entraves e obstáculos serão determinados
pela própria realidade objetiva e não pelos anseios e desejos da consciência/subjetividade. Trata-se,
de fato, da constatação de que “o ser tem prioridade ontológica com relação à consciência”
(LUKÁCS, 2012, p. 307), ou seja, existe e coloca as bases reais e concretas para a consciência atuar
e refletir.
Por fim, demonstramos que a relação teoria e prática é uma relação existente na realidade e
não inventada pelos pesquisadores. O trabalho típico de cada sociedade utiliza a totalidade enquanto
mediação, ou seja, enquanto momento predominante na orientação desta articulação entre
conhecimento teórico e prática social. Como na sociedade contemporânea o trabalho é fragmentado,
não é controlado, conhecido por completo e nem gerido pelos próprios trabalhadores e pelas
autênticas necessidades humanas (mas apenas pelas necessidades mercadológicas), então,
incontornavelmente haverá uma dicotomia abissal entre a teoria e a prática.
Novamente: a reciprocidade entre teoria e prática não é algo existe apenas no plano teórico,
mas sim, na realidade objetiva. Desse modo, contribuir para alterar significativamente esta relação é
agir, igualmente, de modo concreto e objetivo. As ações que visem intervir na objetividade
precisam se basear numa sólida teoria que tenha apreendido o movimento essencial do objeto em
questão, caso contrário, não conseguirá atingir os objetivos traçados.
Vivemos em tempos em que é muito comum questionar ou, até mesmo, desvalorizar o papel
do professor no processo de transmissão e assimilação de conhecimentos. Argumenta -se, por
exemplo, que com as novas tecnologias tudo pode ser resolvido com o espírito empreendedor e
criativo dos alunos. Discordamos deste posicionamento. Ninguém aprende sozinho os conteúdos
escolares. Pensamos que a atividade dos professores é uma atividade intencional, que deve ter por
objetivo (se baseada numa postura preocupada com as reais necessidades do gênero) a transmissão
dos conhecimentos científicos mais elaborados que a humanidade já produziu ao longo da história
(SAVIANI 2011) e numa orientação crítica-ontológica (LUKÁCS, 2012; 2013). Este processo
implica uma forte e robusta teoria social e educacional a respeito da especificidade da prática
educativa em suas mediações com a escola e a sociedade.
Referências