Anton Tchékhov Últimos Contos - Trad. Rubens Figueiredo

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Anton Tchékhov

Últimos contos
tradução e apresentação
Rubens Figueiredo
Apresentação

Em casa de amigos
Iónitch
O homem no estojo
A groselheira
Sobre o amor
Um caso médico
Coisas de trabalho
A queridinha
A Nova Datcha
A dama do cachorrinho
No barranco
Nas festas de Natal
O bispo
A noiva

Autor

Créditos
Apresentação

Este volume reúne todos os últimos contos de Anton Tchékhov,


escritos entre 1898 e 1903, oito meses antes de sua morte. Ao lado
das peças teatrais, o conto foi sua forma literária de predileção, pelo
menos a partir de 1879, quando começou a estudar medicina em
Moscou. Ao longo de 25 anos, Tchékhov compôs mais de
quinhentos contos e novelas, assinados primeiro com pseudônimos
e, pouco depois, já médico formado, com seu próprio nome.
Oriundo de uma família empobrecida, que mudara da pequena
cidade de Taganrog para Moscou a fim de fugir de dívidas,
Tchékhov descobriu, aos dezenove anos, que a venda de pequenos
contos humorísticos para jornais e revistas ajudava, de forma
considerável, a suprir as carências de seus numerosos familiares.
No decorrer dos anos seguintes, muitas coisas mudaram, na vida de
Tchékhov e no mundo à sua volta, e os contos deste volume podem
ser lidos como o fruto mais acabado desse processo, uma espécie
de suma da elaboração artística e intelectual do autor.
Entre 1860 e 1904, anos de nascimento e morte de Tchékhov, o
Império Russo viveu um processo de expansão das relações
capitalistas ainda mais acelerado do que se verificara em décadas
anteriores. Profundas reformas sociais e institucionais
transformaram as feições em que, historicamente, a própria
sociedade russa se reconhecia. Para tanto, contribuiu a inversão de
capitais estrangeiros em projetos industriais e de infraestrutura de
grande porte — ferrovias, comunicações, energia, siderurgia etc.
Tais transformações, porém, foram impulsionadas por um Estado
cujas estruturas correspondiam, teoricamente, a uma etapa
histórica anterior. O imperador governava sem os
constrangimentos de nenhuma constituição ou parlamento, mas
com o respaldo da Igreja ortodoxa, detentora de postos
importantes, e até centrais, na estrutura do Estado e no regime
político. A nobreza, formada pelos senhores de terra, embora
decadente, continuava a exercer grande peso no conjunto da vida
social, por conta da predominância da economia agrária. Nesse
quadro, entretanto, o país se urbanizava, uma classe burguesa se
desenvolvia e, ano a ano, conquistava posições. Com a difusão da
educação e a necessidade de um corpo de profissionais no serviço
público e nas empresas, a pequena burguesia se ampliava contra o
fundo de uma nova e crescente classe operária e da massa
camponesa secular. Todos esses grupos sociais figuram, por meio
dos seus representantes, nas páginas deste livro.
Não será irrelevante ressaltar que Tchékhov era neto de um
servo de gleba que comprou a própria liberdade, filho
de um pequeno comerciante de província arruinado, aluno de liceu,
na província, e estudante de medicina, na cidade grande, graças a
bolsas de estudo e, por fim, escritor proletarizado, que vendia seu
trabalho, página por página, no mercado da imprensa de Moscou,
Petersburgo e outras cidades russas. Nesse aspecto, à diferença de
escritores das gerações anteriores, Tchékhov representava um novo
tipo de intelectual, chamado de raznotchínets, proveniente de
extratos inferiores da escala social. Como não podia deixar de ser,
as condições de vida e de trabalho de Tchékhov denotam as
transformações históricas em curso. No entanto, de que forma e até
que ponto seus contos também refletem e exprimem aquele
processo?
No período em que estes contos foram escritos, a tuberculose de
Tchékhov se agravou. A doença não tinha cura e Tchékhov sabia
que sua vida estava no fim. Se, no início da carreira, vendia um
conto a cada dois ou três dias, ao final, mal concluía um conto a
cada dois ou três meses. Nos cinco anos que este livro abarca,
Tchékhov morou em seu sítio em Melíkhovo, perto de Moscou, em
Nice, na França, e sobretudo em Ialta, na Crimeia, onde possuía
uma casa — os dois últimos endereços por recomendação médica,
em razão das temperaturas mais amenas.
O período também foi marcado pela tomada de posição política
menos discreta de Tchékhov, como, por exemplo, na repressão às
manifestações estudantis, em Petersburgo, e no célebre caso
Dreyfus. Tratava-se de uma trama judicial ocorrida na França que
mobilizou intelectuais em vários países e aprofundou a consciência
do alcance daquilo que separava os conservadores dos
progressistas. No contexto de tal polêmica, Tchékhov chegou a se
encontrar com o irmão de Dreyfus, em Paris. A fim de prestar seu
apoio, concedeu uma entrevista ao jornalista francês B. Lazare, que
havia levantado o assunto para a opinião pública. No entanto, ao
receber o texto da entrevista para sua aprovação, teve de negá-la,
pois o jornalista havia adulterado suas palavras e inventado uma
série de comentários sobre antissemitismo, a opinião pública na
Rússia e outros assuntos de todo estranhos às declarações do autor.
[1]
O caso Dreyfus levou Tchékhov a se afastar de Suvórin, seu
editor e amigo desde o início da carreira. Tratava-se de um
empresário e editor riquíssimo, cujos empréstimos, por toda a vida,
socorreram Tchékhov, ao mesmo tempo que mantinham o escritor
preso ao editor. Desde alguns anos, Suvórin vinha se
entrincheirando em posições monarquistas cada vez mais acerbas.
Isso se refletia nas páginas da sua principal revista, Nóvi Mir
[Mundo Novo], o que indispunha Tchékhov com a publicação.
Tanto assim que os contos deste volume foram publicados em
periódicos de linha editorial mais progressista, como no caso de
“No barranco”, lançado na revista Jizn [Vida], de Maksim Górki,
jovem escritor identificado com movimentos de esquerda. Aliás,
também nesse período, em 1902, Tchékhov renunciou ao seu posto
na Academia Imperial, em protesto contra a decisão do tsar Nicolau
II, que anulou a eleição de Maksim Górki para a instituição.
A par dos contos, Tchékhov também escreveu, ao longo
daqueles últimos anos, as peças Três irmãs e O jardim das cerejeiras.
Não por acaso, o leitor encontrará coincidências flagrantes entre as
narrativas aqui reunidas e as obras teatrais do autor. Alguns
personagens, e até suas palavras, se repetem quase literalmente.
Um exemplo é Serguei Sergueitch, personagem do conto “Em casa
de amigos”, que se assemelha muito ao Gáiev de O jardim das
cerejeiras e que, ao mesmo tempo, emprega as palavras exatas de
Soliónin, personagem da peça Três irmãs. Temas gerais presentes
nos dramas recorrem, em nova roupagem, nestas narrativas. Como
no mesmo conto “Em casa de amigos”, cujo enredo e ambiente
valem como uma variação do argumento desenvolvido na peça O
jardim das cerejeiras. Além disso, certas técnicas patentes nas peças,
como a repetição, a alternância e a alusão, também são adotadas nos
contos.
A título de exemplo, tomemos o conto “Iónitch”. Na casa da
família Túrkin, a repetição dos hábitos, dos gestos e das palavras
denotam, no plano imediato, a falta de perspectiva na vida dos
personagens naquela cidade de província. Entretanto, à medida que
o tempo passa, aquilo que é repetido, e que permanece igual na
superfície, vai se apresentando sob uma luz diferente, em
contraposição aos deslocamentos do mundo ao redor. As linhas
novas que surgem revelam, no fundo, a gravidade das mudanças em
curso. Uma proposta de casamento negada no início se repetirá ao
final da narrativa, porém com uma inversão de posições; desse
modo, unidas por um fio de tensão, uma cena remete à outra,
mantendo ambas presentes e ativas na mente do leitor. A longa
cena no cemitério, passada na juventude dos protagonistas em tom
de farsa, retorna como alusão muda, subentendida — mas agora em
tons trágicos —, nas últimas linhas do conto, por meio da rápida
referência à doença mortal de um dos protagonistas. A encenação
cômica do criado, que repete para as visitas sempre a mesma fala do
Otelo de Shakespeare (“Morra, mulher maldita!”), termina
reverberando ao fundo — agora, também, com um toque de
tragédia —, entre as poucas e rápidas palavras do desfecho do
conto, à primeira vista neutras e meramente informativas.
A dificuldade generalizada que os personagens dos contos
manifestam de dizer o que pensam, de responder o que lhes
perguntam, de ouvir o que diz o interlocutor, significa bem mais do
que a simples redução do poder conceitual das palavras. Pois, se
elas não correspondem mais ao mundo a que deveriam se referir, é
porque os personagens, em certa medida, perderam a capacidade
de apreender o seu próprio mundo e expressá-lo. Trata-se de um
mundo alheio a eles. Desse modo, a presença reiterada, nestes
contos, de sons aleatórios e banais adquire uma pertinência e um
tipo de significação que resultam, justamente, de sua carência de
sentido imediato.
O coaxar das rãs, o uivo do vento na chaminé da estufa, as
pancadas do contravento solto da janela durante a nevasca, os sinais
periódicos dos vigias noturnos, o canto dos rouxinóis, os estalos
mecânicos na fábrica, as batidas dos saltos da bota no chão —
enfim, todos os sons que perpassam estas páginas com tanta
insistência funcionam como alusões às palavras que, embora ditas
com clareza pelos personagens, perdem seu sentido pela falta de
reciprocidade com os interlocutores. Os sons do mundo natural ou
inanimado adquirem relevância, pois remetem às palavras que
caem no vazio, somam-se a essas palavras, acumulam-se no mesmo
espaço, até se formar uma atmosfera densa, em que os personagens
se veem tolhidos e isolados em suas inquietações sem resposta.
Tanto os contemporâneos de Tchékhov quanto a crítica da
posteridade se empenharam com afinco em buscar, em seus
contos, pelo menos as pontas das linhas do pensamento e das ideias
pessoais do autor. A posteridade, sobretudo, com o recurso a
excertos de suas cartas e a dados selecionados de pesquisa
biográfica e histórica, tenta até hoje montar um personagem
intelectual palatável ou funcional para as ideias dominantes. Como
se verifica, em particular, na influente doutrina tchekhoviana
elaborada pelo jornalismo e por círculos acadêmicos nos Estados
Unidos, na qual o escritor é pintado quase como um baluarte do
individualismo liberal. Entretanto, lidos aqui em conjunto e por
inteiro, estes contos deixam bem patentes aspectos importantes e,
para dizer o mínimo, pouco observados por essa vertente da crítica.
Chamo a atenção, neste texto, apenas para dois desses aspectos.
O primeiro é que, muito mais do que qualquer tipo de ideário ou
visão de mundo que o autor porventura tivesse, estes contos
ressaltam que o ponto forte de sua significação geral e de seu
alcance crítico decorre de outra fonte. O texto de Tchékhov é
sempre claro, as palavras e as frases são simples, seu sentido não
oferece dúvidas e, na absoluta maioria dos casos, nada aparentam
ter de especial. De outro lado, quase tudo o que acontece, as
situações, os personagens e o ambiente primam pelo aspecto
trivial, e também, em sua larga maioria, nada contêm de
extraordinário. Então, de onde vem a força dos contos, sua intensa
carga emotiva e crítica?
Se não provém diretamente do que se diz nem do que se mostra,
devemos buscar sua origem na relação entre essas duas dimensões:
o real contraposto às palavras e aos pensamentos, e vice-versa.
Trata-se de uma relação dinâmica, que não estaciona em conceitos,
não formula argumentos, mas se manifesta, antes, em forma de
problemas e pressões incessantes. O conto “A dama do
cachorrinho” constitui um caso exemplar dessa técnica (o mesmo
se aplica ao conto “Sobre o amor”, do qual ele é uma espécie de
variação). Aquilo que sentimentos simples e comuns tentam dizer é
silenciado e coagido, mais e mais, pela barreira insuperável de
convenções, também elas simples e comuns, mas que corporificam,
no plano individual, as estruturas sociais.
Os sentimentos e as convenções não se referem ao mesmo
mundo: sua matriz e seu propósito divergem. Porém ambos
incidem sobre as mesmas pessoas e ao mesmo tempo. Assim, sob
pressões opostas, as personagens se veem perdidas, sem
referências para guiar seus movimentos. Não à toa, neste conto, o
personagem Gúrov reflete que “tudo é belo neste mundo, tudo,
exceto aquilo que nós mesmos pensamos e fazemos”. O mesmo
vale para o rápido diálogo, tão trivial, em que Gúrov tenta expressar
suas emoções para um parceiro de jogo e diz: “Se o senhor
soubesse que mulher encantadora eu conheci em Ialta!”; mas, em
troca, o outro responde: “o senhor tinha razão: aquele esturjão
estava um pouco passado!”.
Este é um bom momento para apontar que esse desencontro
interno nas narrativas guarda importante simetria com o quadro
histórico geral que apontamos acima. Pois o avanço da ordem
burguesa, de um lado, e a persistência da Igreja, da monarquia e da
economia agrária, de outro, também apontam para mundos
diferentes. Entretanto, exercem sua coerção sobre as mesmas
pessoas e ao mesmo tempo, o que as deixa paralisadas.
Nessa perspectiva, podemos ler com vantagem o conto
“O bispo”. Pois o tão almejado sucesso do bispo, na burocracia
eclesiástica, o torna inatingível para a própria mãe, cuja miséria, aos
olhos do filho, parece apenas algo enfadonho e muito distante. Em
vez de ir ao encontro do mundo real e presente, o bispo foge para
as recordações. Mesmo ao saber que a irmã está vivendo de
esmolas, ele se sente tolhido, incapaz de fazer qualquer coisa para
ajudá-la. A exemplo da mãe, que também se sente paralisada, sem
forças até para pedir ajuda ao filho. Bem a propósito, nessa hora, o
bispo recorda a infância e relembra a assustada timidez da mãe, ao
visitar pessoas ricas na companhia dos filhos.
A rigor, é graças a esse procedimento de contrapor o que se vive
ao que se pensa que Tchékhov podia terminar uma narrativa
bruscamente, quase onde bem entendesse. Como ilustra o breve
conto “Nas festas de Natal”. Pois, uma vez delineada a relação dos
termos em desacordo, e bem amarrada a tensão interna e insolúvel
do conto, qualquer desfecho se torna supérfluo.
Essa mesma técnica permite que Tchékhov ponha em relevo os
efeitos subjetivos das tendências históricas objetivas em curso em
seu tempo. Em outras palavras, lhe permite sublinhar a maneira
como a infelicidade coletiva envenena a felicidade individual. Para
tanto, basta observar as reflexões e os sonhos do personagem Líjin,
do conto “Coisas de trabalho”. Ou as palavras do narrador do conto
“A groselheira”, quando afirma: “a pessoa feliz se sente bem só
porque os infelizes carregam seu fardo em silêncio e, sem tal
silêncio, a felicidade dela seria impossível”. Nessa fala, deve-se
ressaltar a palavra “silêncio”. E este é o segundo aspecto que os
últimos contos de Tchékhov nos revelam de forma incisiva. Em vez
de ser lançada diretamente aos olhos do leitor, a exploração das
massas trabalhadoras se denuncia, de forma indireta, nas angústias
difusas, nas inquietações vagas, nas aspirações de fuga e evasão
daqueles que as exploram ou que, mesmo sem querer, assessoram
os exploradores.
Nessa chave interpretativa, podemos ler com proveito, por
exemplo, o conto “Um caso médico”, no qual o médico vai tratar a
herdeira de uma fábrica, mas conclui que a doença é a própria
fábrica, bem como os operários, que passam em bando, como que
por acaso, ao lado de seu coche. Ou o conto “A noiva”, no qual as
criadas dormem no chão, entre baratas e imundície, enquanto a
dona da casa aplaca suas aflições e seu vago nervosismo com o
estudo de homeopatia, espiritismo e filosofia. Ou ainda o conto
“No barranco”, em que a busca de riqueza impõe relações que
destroem a família e determinam, com crueldade implacável, toda a
maneira de conduzir a vida. Ou ainda os caminhos pelos quais o
conto “O homem no estojo” investiga, ponto por ponto, as origens
do conformismo e do conservadorismo desesperado das classes
intermediárias. Até que, por trás do temor dos patrões e das
autoridades, tão bem expresso pelo protagonista do conto,
sobressaiam, para o leitor, todas as linhas da fragilidade da posição
daquela camada social.
Os exemplos são incontáveis e suas feições, muito variadas. No
entanto, pode-se dizer que, em regra, a significação e o teor crítico
e emotivo das narrativas de Tchékhov decorrem menos de cenas ou
enunciados explícitos que da relação entre a dimensão verbal e a
realidade, entre o pensado e o vivido, entre o individual e o
coletivo, entre um lado que fala e outro que não fala, mas pressiona
em surdina. É justamente essa pressão que entreouvimos, de fato,
nos contos. Afinal, um traço sempre lembrado, mas com certeza
mal compreendido, da voz desse autor. Cuja origem e posição
social frágil, como vimos (e nunca é demais frisar), o situava na
condição daqueles que nem sempre podem falar ou mesmo pensar
abertamente, sem se sentir ameaçados de perder o pouco que, a
duras penas, conseguiram obter.

Rubens Figueiredo
Em casa de amigos

De manhã, chegou uma carta!

Querido Micha,
O senhor se esqueceu de nós por completo, venha depressa,
queremos ver o senhor. Imploramos, nós duas, de joelhos.
Venha hoje, deixe-nos ver os seus olhos radiantes. Aguardamos
com impaciência.
Ta e Va.
Kuzmínki, 7 de junho.

A carta vinha de Tatiana Alekséievna Lósseva, que, dez ou doze


anos antes, quando Podgórin morava em Kuzmínki, era chamada de
Ta, para abreviar. Mas e quem era Va? Podgórin tinha lembrança de
longas conversas, risos alegres, romances, passeios à noitinha e um
verdadeiro jardim florido de meninas e moças, que, na época,
moravam em Kuzmínki e nos arredores, e Podgórin também tinha
lembrança de um rosto simples, inteligente, cheio de vida e com
sardas que combinavam muito bem com os cabelos ruivos, de tom
escuro — era Vária, ou Varvara Pávlovna, amiga de Tatiana. Vária
tinha se formado em medicina e estava trabalhando em algum lugar
na periferia de Tula,[2] numa fábrica, e agora, pelo visto, tinha ido a
Kuzmínki para passar uma temporada.
“A doce Va!”, pensou Podgórin, entregando-se a recordações.
“Como era maravilhosa!”
Tatiana, Vária e Podgórin tinham quase a mesma idade; porém,
naquela época, ele não passava de um estudante, enquanto as duas
já eram moças feitas, prontas para casar, e o encaravam como um
menino. Mesmo agora, apesar de já ser advogado e estar
começando a ficar grisalho, as duas ainda o chamavam de Micha,[3]
o consideravam um mero rapazinho e diziam que não tinha
nenhuma experiência de vida.
Ele amava muito as duas, no entanto parecia amá-las mais nas
recordações do que na realidade. Pouco sabia da vida atual de
ambas — estranha e difícil de compreender, para ele. Assim como
era estranha aquela carta breve, jocosa, que na certa as duas
compuseram com vagar e esmero, bem como era certo que,
enquanto Tatiana escrevia, às suas costas, de pé, estava Serguei
Sergueitch, seu marido… Fazia apenas seis anos que Kuzmínki fora
entregue como dote,[4] mas já havia sido arruinada por aquele
mesmo Serguei Sergueitch, e agora, toda vez que era preciso pagar
a um banco ou resgatar uma hipoteca, eles buscavam os conselhos
de Podgórin, na condição de advogado e, além do mais, já duas
vezes haviam lhe pedido algum empréstimo. Estava claro que,
também daquela vez, queriam obter de Podgórin conselho ou
dinheiro.
Kuzmínki já não tinha o atrativo de antes. Era um lugar triste. Já
não havia risos nem agitação nem rostos alegres e despreocupados
nem encontros em silenciosas noites de luar, entretanto, acima de
tudo, já não havia juventude; o mais provável era que tudo aquilo
fosse fascinante só nas memórias… Além de Ta e Va, lá também
vive Na, ou Nadiejda, irmã de Tatiana, que, de brincadeira e a sério,
chamavam de a noiva de Podgórin; ele a viu crescer, achavam que ia
casar com ela e, certa época, Podgórin esteve mesmo apaixonado e
teve a intenção de pedi-la em casamento, mas agora Nadiejda já
contava vinte e três anos e ele ainda não havia casado…
“Mas como foi que tudo acabou ficando desse jeito?”, pensava
agora, confuso, ao ler a carta. “Só que eu também não posso deixar
de ir lá, vão ficar magoadas…”
O fato de haver muito tempo que não visitava os Lóssev pesava
como uma pedra em sua consciência. E, depois de caminhar pelo
quarto e pensar bem, fez um esforço contra si mesmo e decidiu
visitá-los durante dois ou três dias, cumprir aquela obrigação e, em
seguida, ficar livre e tranquilo, pelo menos até o verão. Assim, após
o almoço, enquanto se preparava para ir à estação Bréstski,[5] disse
à criada que voltaria em três dias.
De Moscou a Kuzmínki, eram duas horas de viagem de trem e
mais uns vinte minutos de coche. Já da estação, se avistava o
bosque de Tatiana e três casas de campo altas e estreitas, que
Lóssev tinha começado a construir, mas não terminara, envolvido
em várias negociatas logo nos primeiros anos do casamento.
Aquelas casas de campo e vários outros negócios o levaram à ruína,
sem falar das viagens constantes a Moscou, onde almoçava no
Bazar Eslavo, jantava no Hermitage e terminava o dia na rua Málaia
Brónnaia[6] ou no Jivodiorka,[7] onde havia ciganos (a isso ele
chamava de “divertir-se”). O próprio Podgórin também era dado a
beber, às vezes em excesso, e frequentava mulheres de vida
desregrada, mas o fazia com frieza, indolência, sem nenhuma
satisfação, e era dominado por um sentimento de repulsa quando,
em sua presença, outros homens se entregavam àquilo com fervor.
Podgórin não compreendia as pessoas que se sentiam mais livres no
Jivodiorka do que em casa, na companhia de mulheres direitas, e
não gostava de tais pessoas; tinha a impressão de que qualquer
sordidez grudaria nele, como uma bardana. Também não gostava de
Lóssev, julgava-o desinteressante, incapaz de qualquer coisa, uma
pessoa preguiçosa e, em sua companhia, mais de uma vez
experimentara um sentimento de repugnância…
Logo depois do bosque, Serguei Sergueitch e Nadiejda vieram a
seu encontro.
— Meu caro, o que houve, por que o senhor se esqueceu de
nós? — disse Serguei Sergueitch, enquanto o beijava três vezes,[8]
e depois o segurou pela cintura, com as duas mãos. — O senhor
está completamente farto de nós, não é, meu velho?
Tinha feições pronunciadas, nariz grosso, barba rala e castanho-
clara; penteava os cabelos para o lado, à maneira de um
comerciante, a fim de parecer uma pessoa simples, um russo
comum. Ao falar, respirava forte, direto no rosto do interlocutor e,
quando calado, ofegava pelo nariz. O corpo bem nutrido e a
excessiva saciedade o sufocavam e, a fim de respirar melhor, ele
sempre estufava o peito, o que lhe dava um aspecto arrogante. A
seu lado, Nadiejda, a cunhada, parecia de uma leveza aérea. Era
uma lourinha pálida, esbelta, de olhos simpáticos e afetuosos; se
bonita ou não, Podgórin era incapaz de dizer, pois a conhecia desde
a infância e encarava sua aparência com indiferença. Naquele dia,
usava vestido branco e decotado, e a impressão do pescoço branco,
alongado e nu era nova para ele, e não muito agradável.
— Eu e a minha irmã estamos esperando o senhor desde a
manhã — disse ela. — Vária está conosco, também à espera do
senhor.
Tomou-o pelo braço e riu de repente, sem motivo, em seguida
deu um leve grito de alegria, como que encantada por alguma ideia
repentina. O campo de centeio em flor, imóvel no ar parado, e o
bosque, iluminado pelo sol, eram bonitos; e parecia que só agora,
ao caminhar ao lado de Podgórin, Nadiejda havia se dado conta de
tal beleza.
— Eu vim passar três dias com vocês — disse ele. — Perdoe,
não consegui, de maneira nenhuma, me desvencilhar mais cedo de
Moscou.
— Não é bom, não é bom, o senhor se esqueceu completamente
de nós — disse Serguei Sergueitch. — Jamais dans ma vie![9] —
disse ele, de súbito, e estalou os dedos.
Tinha o costume de pronunciar, em tom exclamativo, e de
surpresa para o interlocutor, uma expressão qualquer, sem
nenhuma relação com a conversa e, ao mesmo tempo, estalar os
dedos. Além disso, estava sempre imitando alguém; se revirava os
olhos ou jogava o cabelo para trás, com ar negligente, ou se adotava
um tom enfático, significava que, na véspera, tinha ido ao teatro ou
a um jantar em que fizeram discursos. Daquela vez, caminhava
como alguém que sofre de gota, em passos bem curtos, sem
flexionar os joelhos — na certa, também estava imitando alguém.
— A Tânia[10] nem acreditava mais que o senhor viria — disse
Nadiejda. — Já eu e Vária tínhamos um pressentimento; não sei por
quê, mas eu sabia que o senhor viria justamente nesse trem.
— Jamais dans ma vie! — repetiu Serguei Sergueitch.
Na varanda que dava para o jardim, as damas aguardavam. Dez
anos antes, Podgórin — estudante pobre, na ocasião — dava aulas
de matemática e história para Nadiejda, em troca de comida e um
quarto para dormir; e Vária, estudante, aproveitava para ter, com
ele, aulas de latim. Mas Tânia, na época já moça feita e bonita, não
pensava em nada, senão no amor, só queria amor e paixão, e queria
com fervor, esperava um noivo e sonhava com ele dia e noite.
Agora, já com mais de trinta anos, tão bonita e vistosa como antes,
num penhoar comprido, de mãos brancas e carnudas, ela só
pensava no marido e nas duas filhas pequenas e trazia no rosto a
expressão de alguém que, mesmo quando falava e sorria, estava
sempre alerta, sempre em guarda, na defesa de seu amor e de seu
direito a esse amor, sempre pronta para, a qualquer minuto, lançar-
se contra algum inimigo que quisesse tomar seu marido e suas
filhas. Ela amava muito e, assim lhe parecia, seu amor era
correspondido, mas o ciúme e o temor pelas filhas a afligiam o
tempo todo e impediam que fosse feliz.
Após a recepção ruidosa na varanda, todos, exceto Serguei
Sergueitch, foram para o quarto de Tatiana. Ali, por trás dos estores
fechados, os raios do sol não penetravam e reinava a penumbra,
tanto que todas as rosas do grande buquê pareciam de uma cor só.
Acomodaram Podgórin na velha poltrona junto à janela, Nadiejda
sentou-se a seus pés, num banquinho baixo. Ele sabia que, além das
censuras carinhosas, das brincadeiras e dos risos que agora soavam
e lhe traziam tantas lembranças de outros tempos, logo viria uma
conversa desagradável sobre letras de câmbio e hipotecas — era
inevitável —, e pensou que talvez fosse melhor tratar do assunto de
uma vez, não deixar para mais tarde; desembaraçar-se o quanto
antes e, depois, ir para o jardim e para o ar livre.
— Não é melhor conversar primeiro sobre negócios? — disse
ele. — Que novidade têm vocês sobre Kuzmínki? Tudo está bem
no reino da Dinamarca?[11]
— Nossa Kuzmínki vai muito mal — respondeu Tatiana, e
suspirou com tristeza. — Ah, os nossos negócios andam tão mal,
tão mal, que a situação parece que não poderia estar pior — disse,
e, abalada, começou a caminhar pela sala. — Nossa propriedade vai
ser vendida, o leilão está marcado para o dia 7 de agosto, já foi
divulgado em toda parte e os compradores vêm aqui, andam pelos
quartos, olham tudo… Qualquer um tem direito de entrar no meu
quarto e olhar. Pode ser correto, do ponto de vista jurídico, mas me
humilha, me ofende profundamente. Não temos como pagar e não
há mais onde pedir empréstimos. Em suma, é horrível, horrível!
Juro ao senhor — prosseguiu, parando no meio da sala; a voz
tremia, lágrimas cintilavam nos olhos. — Juro ao senhor, por tudo o
que há de mais sagrado, pela felicidade de minhas filhas: sem
Kuzmínki, eu não posso! Eu nasci aqui, este é o meu ninho e, se me
tomarem isto, não vou sobreviver, vou morrer de desespero.
— Parece-me que a senhora está vendo a situação de modo
sombrio demais — disse Podgórin. — Para tudo há um jeito. Seu
marido vai arranjar um emprego, a senhora vai tomar um caminho
novo, vai ter uma vida nova.
— Como o senhor pode dizer isso? — gritou Tatiana; agora, ela
parecia muito bonita e forte, e aquela prontidão para, a qualquer
minuto, lançar-se contra algum inimigo que quisesse tomar seu
marido, suas filhas e seu ninho, se expressava em seu rosto, e em
toda a sua figura, de modo especialmente incisivo. — Que vida
nova é essa? Serguei anda à procura de um emprego, estão
oferecendo o posto de inspetor de tributos em algum lugar na
província de Ufá ou de Perm, e eu estou disposta a ir para onde
quiserem, até para a Sibéria, estou disposta a viver lá dez, vinte
anos, contanto que eu saiba que, cedo ou tarde, um dia, apesar de
tudo, voltarei para Kuzmínki. Sem Kuzmínki, eu não posso. Não
posso e não posso. Eu não quero! — gritou e bateu com o pé no
chão.
— Micha, o senhor é advogado — disse Vária. — O senhor
conhece o ramo, e seu trabalho é dar conselhos sobre o que fazer.
Só havia uma resposta justa e razoável: “Não se pode fazer nada”.
Mas Podgórin não tinha coragem de dizer isso francamente, e
balbuciou, indeciso:
— Vai ser preciso pensar um pouco… Eu vou pensar.
Dentro dele, havia duas pessoas. Como advogado, lhe ocorria
cuidar de casos graves. Com os clientes e no tribunal, ele se portava
com destemor e exprimia sua opinião sempre de modo direto e
incisivo e, com os amigos, usava até um linguajar rude; mas na vida
pessoal e na intimidade, com as pessoas mais próximas ou
conhecidas de longa data, Podgórin demonstrava uma delicadeza
fora do comum, era acanhado e sensível, incapaz de se exprimir de
forma direta. Bastava uma lágrima, um olhar de esguelha, a menor
mentira ou um simples gesto feio para ele logo se retrair e perder a
coragem. Naquele momento, Nadiejda estava sentada a seus pés, e
ele não gostou do pescoço desnudo, aquilo o incomodava, sentia
até vontade de ir embora. Um ano antes, sem saber como, ele
encontrara Serguei Sergueitch na casa de certa senhora na rua
Brónnaia e, agora, diante de Tatiana, sentia-se constrangido, como
se ele mesmo tivesse participado de uma traição. E aquela conversa
sobre Kuzmínki o deixava em grande apuro. Estava habituado a ver
todas as questões espinhosas e desagradáveis resolvidas pelos juízes
ou pelos jurados, ou simplesmente por algum artigo da lei, porém,
quando apresentavam uma questão a ele, em particular, para que
ele, em pessoa, a solucionasse, então Podgórin se via perdido.
— Micha, o senhor é nosso amigo, todos nós amamos o senhor
como uma pessoa da família — prosseguiu Tatiana. — E digo ao
senhor com toda a sinceridade: toda nossa esperança está no
senhor. Pelo amor de Deus, nos explique o que devemos fazer.
Quem sabe é necessário apresentar uma petição em algum lugar?
Quem sabe ainda não é tarde para passar a propriedade para o
nome de Nádia ou de Vária?… O que fazer?
— Ajude, Micha, ajude — disse Vária, enquanto fumava. — O
senhor sempre foi muito inteligente. O senhor viveu pouco, não
tem nenhuma experiência da vida, mas, sobre os ombros, tem uma
cabeça muito boa… O senhor vai socorrer Tânia, eu sei.
— É preciso pensar… Talvez eu consiga imaginar alguma coisa.
Saíram para passear no jardim e, depois, no campo. Serguei
Sergueitch foi também. Segurou Podgórin pelo braço e o levou
sempre à frente dos demais, pelo visto com a intenção de conversar
com ele sobre algum assunto — na certa, seus negócios
fracassados. Andar ao lado de Serguei Sergueitch e conversar com
ele era um tormento. A todo instante beijava Podgórin, sempre três
vezes, segurava-o pelo cotovelo, abraçava-o pela cintura, respirava
em cheio no seu rosto, parecia coberto por uma cola açucarada que,
a qualquer momento, poderia grudar-se nele; a expressão dos
olhos, que deixava claro que ele precisava de algo de Podgórin e
que, a qualquer minuto, ia fazer um pedido, produzia uma
impressão angustiante, como se estivesse sob a mira de um
revólver.
O sol se pôs, começou a escurecer. Na ferrovia, aqui e ali,
cintilavam luzes verdes, vermelhas… Vária parou e, olhando para as
luzes, começou a recitar:

Reta, a ferrovia: aterros estreitos,


Trilhos, postes, pontes,
Pelas margens, ossos russos…
Quantos, quantos![12]

— Como é que continua? Ah, meu Deus, esqueci tudo!

Trabalhamos com afinco, no calor, no frio,


As costas eternamente curvadas…

Ela recitava com voz magnífica, que ressoava no peito, com


sentimento, um rosado vivo ardia no rosto e, nos olhos, surgiram
lágrimas. Era a Vária de outros tempos, a Vária estudante, e, ao
ouvi-la, Podgórin pensou no passado e recordou que ele mesmo,
quando universitário, sabia de cor muitos versos bonitos e adorava
recitar.

Sem aprumar ainda as costas arqueadas,


Até hoje, segue o povo calado, passivo…

Mas, daí em diante, Vária não lembrou mais… Calou-se, deu um


sorriso frouxo, apagado, e, depois que parou, as luzes verdes e
vermelhas ganharam um aspecto tristonho…
— Ah, eu esqueci.
Porém, de repente, Podgórin lembrou — por acaso, de algum
modo, aquilo havia sobrevivido incólume em sua memória de
estudante — e recitou devagar, a meia-voz:

Já suportou bastante, o povo russo,


Suportou esta estrada de ferro,
Suportou tudo — e com o peito largo,
Radiante, há de abrir caminho para si…
Pena que…

— Pena que — cortou Vária, lembrando —, pena que, viver esse


tempo tão belo, já não caberá a mim nem a ti!
Ela riu e bateu de leve com a mão no ombro de Podgórin.
Voltaram para casa e foram jantar. Serguei Sergueitch, com ar
negligente, enfiou o canto do guardanapo por dentro da gola —
imitando alguém.
— Vamos beber — disse, e serviu vodca para si e para Podgórin.
— Nós, estudantes de antigamente, sabíamos beber de verdade,
falar bonito e agir a sério. Bebo à sua saúde, meu amigo, e o senhor
vai beber à saúde de um velho tolo idealista e fazer votos para que
ele morra tão idealista quanto antes. A sepultura endireita o
corcunda.
Durante todo o jantar, Tatiana olhava para o marido com
ternura, com ciúmes, temerosa de que bebesse ou comesse algo
nocivo. Tinha a impressão de que ele se fartara das atenções das
mulheres, de que estava cansado — disso ela gostava no marido,
mas, ao mesmo tempo, a fazia sofrer. Vária e Nádia também
demonstravam ternura por Serguei Sergueitch, olhavam para ele
com preocupação, como se temessem que, de súbito, ele se
levantasse, fosse embora e as deixasse. Quando ele quis servir um
segundo cálice para si, Vária se mostrou zangada e disse:
— O senhor está se envenenando, Serguei Sergueitch. O senhor
é uma pessoa nervosa, impressionável, e pode facilmente tornar-se
alcoólatra. Tânia, mande tirar a vodca da mesa.
Em geral, Serguei Sergueitch fazia grande sucesso com as
mulheres. Elas adoravam sua estatura elevada, seu porte físico, os
traços pronunciados do rosto, sua ociosidade e seus infortúnios.
Diziam que era muito bondoso e, por isso, gastador; que era um
idealista e, por isso, sem senso prático; que era honesto, puro de
espírito, incapaz de fazer concessões às pessoas e às circunstâncias
e, por isso, nada possuía e não encontrava ocupações apropriadas
para si. As mulheres acreditavam nele a fundo, o adoravam e, desse
modo, o deixaram envaidecido com sua veneração, tanto assim que
ele mesmo passou a crer que era um idealista, sem senso prático,
honesto, puro de espírito, e também que era melhor do que aquelas
mulheres e que estava um degrau acima de todas elas.
— Mas por que o senhor não faz um elogio às minhas meninas?
— disse Tatiana, olhando com amor para as duas filhas, saudáveis,
bem nutridas, semelhantes a duas broas, enquanto amontoava, para
as meninas, dois pratos cheios de arroz. — Olhe só para elas!
Dizem que todas as mães elogiam os filhos, mas, garanto ao senhor,
eu sou imparcial, minhas filhas são fora do comum. Sobretudo a
mais velha.
Podgórin sorria para Tatiana e para as meninas, mas achava
estranho que aquela mulher jovem, saudável, inteligente, no fundo
um organismo tão grande e tão complexo, despendesse toda a
energia da vida num trabalho tão simples, tão rasteiro como a
organização daquele ninho que, por si só, mesmo sem ela, já se
organizaria muito bem.
“Talvez até seja necessário”, pensou ele, “mas é uma coisa
desinteressante e limitada.”
— Nem gemer ele conseguiu, quando sobre ele um urso caiu[13]
— disse Serguei Sergueitch, e estalou os dedos.
Jantaram. Tatiana e Vária levaram Podgórin para a sala de estar,
acomodaram a visita no sofá e começaram a conversar com ele a
meia-voz, de novo sobre negócios.
— Nós temos de ajudar o Serguei Sergueitch — disse Vária. —
É nossa obrigação moral. Ele tem suas fraquezas, não sabe
economizar, não pensa no dia de amanhã, mas isso acontece
porque ele é muito bom e generoso. Tem sempre alma de criança.
Se você der um milhão para ele, em um mês não sobrará mais nada,
vai distribuir tudo.
— É verdade, é verdade — disse Tatiana, e lágrimas correram
em suas faces. — Eu sofri demais com ele, mas tenho de
reconhecer que é um homem maravilhoso.
E então, as duas, Tatiana e Vária, não conseguiram se esquivar de
uma pequena crueldade e não pouparam Podgórin de uma censura:
— E a geração do senhor, Micha, já não é capaz de nada disso!
“Mas que história é essa de geração?”, pensou Podgórin. “Afinal,
Lóssev é mais velho do que eu uns seis anos no máximo…”
— Não é fácil viver neste mundo — disse Vária, e suspirou. —
Vivemos o tempo todo sob a ameaça de alguma perda. Ora querem
tomar a nossa propriedade, ora alguém muito próximo de nós
adoece e temos medo de que morra… e é assim, dia após dia. Mas o
que fazer, meus amigos? É preciso se resignar à vontade suprema,
sem lamúrias, é preciso lembrar que, neste mundo, nada é por
acaso, tudo tem um propósito distante. O senhor, Micha, ainda
viveu pouco e sofreu pouco, e vai rir de mim; pois pode rir, mesmo
assim, vou lhe contar: no tempo de minhas agruras mais aflitivas,
tive alguns episódios de clarividência, isso produziu uma
reviravolta no meu espírito e, agora, sei que nada é por acaso e tudo
que ocorre em nossa vida é necessário.
Como aquela Vária já grisalha, comprimida por um espartilho,
num vestido da moda, com ombreiras, aquela Vária que girava um
cigarro entre os dedos compridos, magros, e que por algum motivo
tremiam, como aquela Vária que cedia facilmente ao misticismo e
falava em voz tão lânguida e monótona — como ela era diferente da
Vária estudante, ruiva, alegre, expansiva, atrevida…
“Mas para onde foi tudo aquilo?”, pensou Podgórin, enquanto a
escutava, entediado.
— Cante alguma coisa, Va — disse Podgórin, a fim de
interromper aquela conversa sobre visões sobrenaturais. —
Antigamente a senhora cantava tão bem.
— Ah, Micha, o tempo passou e não volta mais.
— Então recite um pouco mais de Nekrássov.
— Eu já esqueci tudo. O que recitei agora há pouco me ocorreu
por acaso.
Apesar do espartilho e das ombreiras, percebia-se que ela
também andava passando necessidades e que, lá na fábrica perto de
Tula, vivia na penúria. Também dava para perceber que trabalhava
demais; o serviço pesado, monótono, e seu envolvimento constante
nos problemas alheios, sua preocupação com os outros, a haviam
esgotado, envelhecido, e Podgórin, agora, enquanto olhava com
pena para seu rosto já sem viço, pensava que, no fundo, o certo
mesmo seria socorrer não Kuzmínki, não Serguei Sergueitch, pelos
quais ela tanto se afligia, mas sim a própria Vária.
A instrução elevada e o fato de ter se tornado médica, pelo visto,
não tinham alterado a mulher que havia dentro dela. Assim como
Tatiana, ela adorava casamentos, famílias, batizados, longas
conversas sobre crianças, adorava com fervor os romances com
desenlaces felizes, só lia, nos jornais, notícias sobre incêndios,
enchentes e cerimônias de gala; desejava muito que Podgórin
pedisse Nadiejda em casamento e, se aquilo acontecesse, ela se
desmancharia em lágrimas de ternura.
Podgórin não sabia se a circunstância surgira por acaso ou se
tinha sido planejada por Vária, o fato é que, de repente, ele se viu a
sós com Nadiejda. Entretanto, a suspeita de que o estavam
observando às escondidas e queriam algo dele o deixava
constrangido e encabulado e, ao lado da moça, Podgórin tinha a
sensação de ter sido colocado, junto com ela, dentro de uma gaiola.
— Vamos para o jardim — disse Nadiejda.
Foram para o jardim: ele estava aborrecido, com um sentimento
de enfado, sem saber o que falar; já ela estava alegre, orgulhosa de
ficar a sós com ele, visivelmente satisfeita com a perspectiva de
Podgórin permanecer em sua casa por mais três dias, e também,
talvez, cheia de doces devaneios e esperanças. Ele desconhecia se
amava Nadiejda ou não, mas sabia que ela estava habituada com ele,
se afeiçoara a ele desde muito tempo e continuava a vê-lo, ainda,
como seu professor e, agora, em sua alma, se passava o mesmo que,
em outros tempos, se dera na alma de sua irmã Tatiana, ou seja, só
pensava no amor, em se casar o quanto antes, ter marido, filhos e o
seu cantinho para viver. O sentimento de amizade, tão forte entre
as crianças, Nadiejda o conservava até agora, e era bem possível que
apenas respeitasse Podgórin, gostasse dele como um amigo e
estivesse apaixonada não por ele, mas por aqueles sonhos de ter
marido e filhos.
— Está escurecendo — disse ele.
— Sim. Agora a lua aparece mais tarde.
O tempo todo, caminhavam apenas pela alameda perto da casa.
Podgórin não tinha intenção de ir para o fundo do jardim: lá era
escuro, ele teria de conduzir Nadiejda segura pelo braço, ficar
muito perto dela. Na varanda, algumas sombras se moviam, e ele
teve a impressão de que eram Tatiana e Vária, que o vigiavam.
— Preciso pedir um conselho ao senhor — disse Nadiejda, e se
deteve. — Se Kuzmínki for mesmo a leilão, Serguei Sergueitch vai
arranjar um emprego, e nossa vida vai mudar completamente. Não
vou mais morar com minha irmã, nós vamos nos separar, porque
não quero ser um fardo para a família. Eu preciso trabalhar. Vou
arranjar alguma coisa para fazer em Moscou, vou trabalhar muito,
vou ajudar a minha irmã e o seu marido. E o senhor vai me ajudar
com seus conselhos… não é verdade?
Sem nenhuma familiaridade com o trabalho, agora, no entanto,
ela estava repleta de entusiasmo com a ideia da independência, de
uma vida laboriosa, e construía planos para o futuro — isso estava
escrito em seu rosto, e aquela vida, em que ela iria trabalhar e
ajudar os outros, lhe parecia bela, poética. Podgórin via bem de
perto seu rosto pálido, as sobrancelhas escuras, e lembrou como era
uma aluna inteligente, sagaz, cheia de aptidões promissoras, e
lembrou como era agradável dar aula para Nadiejda. Agora, com
certeza, ela não era uma simples dama da sociedade à cata de um
noivo, mas uma jovem inteligente, generosa, de extraordinária
bondade, de alma dócil e meiga, da qual, como a cera, se poderia
moldar qualquer coisa e, num ambiente adequado, havia de se
transformar numa mulher maravilhosa.
“De fato, por que, então, não se casar com ela?”, pensou
Podgórin, mas logo, por algum motivo, se assustou com a ideia e
caminhou rumo à casa.
Na sala, Tatiana estava sentada ao piano, e sua maneira vigorosa
de tocar o fez lembrar-se do passado, quando, naquela mesma sala,
tocavam, cantavam e dançavam até de madrugada, diante das
janelas abertas, enquanto os pássaros, no jardim e no rio, também
cantavam. Podgórin se alegrou, começou a dizer gracejos, pôs-se a
dançar com Nadiejda e com Vária, depois cantou. Um calo no pé o
afligia, ele pediu permissão para calçar os chinelos de Serguei
Sergueitch e, por mais estranho que fosse, de chinelos, sentiu-se
uma pessoa de casa, da família (“como um cunhado…”, passou por
sua cabeça, num lampejo), e tornou-se ainda mais alegre. Ao vê-lo
assim, todos se animaram, se alegraram, como que rejuvenescidos;
no rosto de todos, reluziu a esperança: Kuzmínki estava salva!
Afinal, era simples de resolver: bastava inventar alguma coisa,
escavar algo nas leis ou então casar Nádia com Podgórin… E,
obviamente, aquela questão já estava bem encaminhada. Nádia,
rosada, feliz, com os olhos cheios de lágrimas, à espera de algo
extraordinário, rodopiava na dança, seu vestido branco inflava e se
viam os pezinhos bonitos e miúdos, em meias cor de pele… Vária,
muito contente, tomou Podgórim pelo braço e lhe disse a meia-voz,
com expressão eloquente:
— Micha, não fuja da sua felicidade. Apanhe a felicidade já,
enquanto ela mesma se oferece às suas mãos. Depois, o senhor vai
correr atrás dela e aí já será tarde, não vai mais alcançá-la.
Podgórin sentiu vontade de prometer, dar esperanças, e ele
mesmo já estava acreditando que Kuzmínki estava salva e que
aquilo era simples de fazer.
— E tu serás a rainha do m-u-u-undo… — cantou ele, fazendo
pose, mas de súbito se deu conta de que não podia fazer nada para
aquelas pessoas, rigorosamente nada, e emudeceu, com ar culpado.
Depois, sentou-se num canto, calado, encolheu as pernas e, sob
a cadeira, cruzou os pés calçados em chinelos alheios.
Olhando para ele, os demais também compreenderam que já não
era possível fazer nada, e emudeceram. Fecharam a tampa do piano.
Todos se deram conta de que era tarde, era hora de dormir, e
Tatiana apagou o grande lampião da sala.
Fizeram a cama de Podgórin na mesma casinha anexa onde ele
morara antigamente. Serguei Sergueitch o conduziu até lá, com
uma vela erguida bem alto, acima da cabeça, embora a lua já tivesse
subido e estivesse claro. Os dois caminharam pela alameda entre
arbustos de lilases e, sob os pés de ambos, o cascalho fino crepitava.
— Nem gemer ele conseguiu, quando sobre ele um urso caiu —
disse Serguei Sergueitch.
E Podgórin teve a impressão de que já ouvira a frase mil vezes.
Como estava farto daquilo! Ao chegarem à casinha, Serguei
Sergueitch tirou, de dentro do paletó folgado, uma garrafa e dois
cálices e os colocou sobre a mesa.
— É conhaque — disse. — Número zero-zero. Vária está lá em
casa e, com ela, não posso beber, agora ela desandou a falar em
alcoolismo, mas aqui nós podemos ficar sossegados. O conhaque é
excelente.
Sentaram-se. De fato, o conhaque parecia bom.
— Hoje vamos beber de verdade — prosseguiu Serguei
Sergueitch, enquanto acrescentava limão. — Sou um velho
estudante festeiro, às vezes adoro uma farra. É indispensável.
Nos olhos, havia a mesma expressão de que precisava de alguma
coisa de Podgórin e de que, a qualquer momento, ia fazer algum
pedido.
— Vamos beber, meu caro — prosseguiu, e suspirou. — Senão é
triste demais. Chegou o fim da linha, para os excêntricos como eu.
Acabou-se. O idealismo já saiu de moda. Hoje em dia, reina o rublo
e, se você não quiser ser varrido para fora da estrada, ajoelhe-se
diante do rublo e mostre veneração por ele. Só que eu não consigo.
Já é demais para mim!
— Quando vai ser o leilão? — perguntou Podgórin, para mudar
de assunto.
— Dia 7 de agosto. Mas eu, meu caro, não estou contando com a
salvação de Kuzmínki. A dívida acumulada é gigantesca e a
propriedade não gera receita nenhuma, só prejuízos, todos os anos.
Não vale a pena… Claro, Tânia está triste, é o seu solo natal; já eu,
confesso, fico até contente, em parte. Não sou um homem do
campo. Minha terra é a cidade grande, ruidosa, meu ambiente é a
luta!
Continuou a falar, mas não era ainda aquilo que desejava dizer e,
com olhar penetrante, espreitava Podgórin, como à espera do
melhor momento. De súbito, Podgórin viu seus olhos bem perto,
sentiu no rosto sua respiração…
— Meu caro, salve-me! — exclamou Serguei Sergueitch,
ofegante. — Preciso de duzentos rublos! Eu suplico ao senhor!
Podgórin queria dizer que ele mesmo andava apertado de
dinheiro e pensou que era melhor dar aqueles duzentos rublos a
um mendigo qualquer ou, até mesmo, simplesmente perder tudo
num jogo de cartas, porém seu constrangimento era terrível e,
naquele quarto acanhado, com uma vela acesa, sentiu-se preso
numa armadilha, queria livrar-se o quanto antes daquela respiração,
daquelas mãos moles que o seguravam pela cintura e que pareciam
já ter se grudado a ele, e bem depressa tratou de procurar nos
bolsos o seu caderno de anotações, dentro do qual guardava o
dinheiro.
— Tome… — balbuciou, tirando cem rublos. — O resto, só
depois. Não tenho mais comigo. Veja, eu não sei negar —
continuou, contrariado, e começou a se irritar. — Eu tenho o
coração mole de uma mulherzinha. Mas, faça o favor, depois me
pague esse dinheiro sem falta. Eu preciso dele.
— Agradeço ao senhor. Obrigado, meu amigo!
— E, pelo amor de Deus, pare de imaginar que é um idealista. O
senhor é tão idealista quanto um peru. O senhor não passa de um
leviano, uma pessoa ociosa, e mais nada.
Serguei Sergueitch suspirou fundo e sentou-se no sofá.
— Meu caro amigo, o senhor se irritou — disse. — Mas, se
soubesse como sofro! Estou atravessando uma fase horrorosa. Meu
caro amigo, eu juro, não é por mim mesmo que lamento, não!
Lamento é pela esposa e pelas filhas. Se não tivesse esposa e filhas,
eu já teria dado cabo da minha vida há muito tempo.
De repente, os ombros e a cabeça começaram a tremer, e ele se
desfez em soluços.
— Era só o que faltava — disse Podgórin, andando inquieto pela
sala, com forte irritação. — Pois muito bem, o que se faz com uma
pessoa que causa uma montanha de malefícios e depois começa a
chorar? Essas suas lágrimas desarmam a gente, eu não tenho forças
para lhe dizer nada. O senhor está chorando, portanto, o senhor
tem razão.
— Eu causei uma montanha de malefícios? — perguntou
Serguei Sergueitch, levantando-se e olhando para Podgórin com
surpresa. — Meu caro, será que o senhor disse mesmo isso? Eu
causei uma montanha de malefícios? Ah, como o senhor me
conhece mal! Como o senhor me compreende pouco!
— Muito bem, eu não compreendo o senhor, mas, por favor, só
não fique aí chorando. Isso é nojento.
— Ah, como o senhor me conhece mal! — repetiu Lóssev, com
total sinceridade. — Como o senhor me conhece mal!
— Olhe para si no espelho — prosseguiu Podgórin. — O senhor
já não é nenhum jovem, logo estará velho, chegou a hora de pôr a
cabeça no lugar, de se dar conta, por pouco que seja, de quem é o
senhor e do que é o senhor. Não fez nada a vida inteira, levou toda a
vida nesse palavrório ocioso e pueril, sempre com esses trejeitos,
essas palhaçadas. Nem sei como a cabeça do senhor ainda não
começou a girar. Como pode não estar cansado de viver desse

É É
jeito? É horrível ficar com o senhor! É maçante, me deixa à beira do
estupor!
Dito isso, Podgórin foi para fora, batendo a porta com força.
Talvez tivesse sido a primeira vez na vida em que foi sincero e disse
o que de fato queria.
Pouco depois, já lamentava ter sido tão severo. De que adiantava
falar a sério ou discutir com uma pessoa que mentia sem parar,
comia muito, bebia muito, gastava muito o dinheiro dos outros e,
ao mesmo tempo, estava convencido de que era um idealista e uma
vítima? Tratava-se, no caso, de mera tolice ou de antigos maus
costumes que se entranharam a fundo no organismo, como uma
doença, e já não tinham mais cura. Em todo caso, indignação e
censuras severas de nada adiantavam, nas circunstâncias, o melhor
seria dar risadas; uma zombaria bem-feita produziria muito mais
resultado do que uma dezena de sermões!
“A solução mais simples era não dar atenção, e pronto”, pensou
Podgórin. “E, acima de tudo, não dar dinheiro!”
Pouco depois, já nem pensava mais em Serguei Sergueitch nem
nos seus cem rublos. A madrugada estava silenciosa, sonhadora,
muito clara. Quando olhou para o céu daquela noite enluarada,
Podgórin teve a impressão de que só ele e a lua estavam acordados,
tudo o mais dormia ou, pelo menos, cochilava; e no seu
pensamento não havia nem gente nem dinheiro, e, pouco a pouco,
seu estado de ânimo se tornou sereno, apaziguado, ele se sentiu
unido àquele mundo e, no silêncio da madrugada, o rumor dos
próprios passos lhe pareceu muito triste.
O jardim era contornado por um muro de pedras brancas. No
lado que dava para o campo, no canto direito, havia uma torre,
construída muito tempo antes, ainda na época da servidão.
Embaixo, a torre era feita de pedra e, em cima, de madeira, com um
patamar, tinha o telhado em forma de cone, com uma agulha
comprida, na qual se via um negro cata-vento. No térreo, havia
duas portas, de modo que era possível passar do jardim para o
campo, e para cima, rumo ao patamar, havia uma escada que rangia
sob o peso dos pés. Embaixo da escada, amontoavam-se velhas
poltronas quebradas, e o luar, que agora penetrava pela porta,
iluminava as poltronas, e elas, com suas pernas tortas e viradas para
cima, pareciam ter ganhado vida de madrugada e ali, no silêncio,
era como se estivessem à espera de alguém.
Podgórin subiu pela escada até o patamar e sentou-se. Logo
depois do muro, havia uma vala com uma mureta, para marcar a
divisa, e depois vinha o campo, vasto, iluminado pelo luar.
Podgórin sabia que seguindo em linha reta, à frente, a três
verstas[14] do jardim, ficava o bosque, e agora ele tinha a impressão
de estar vendo, ao longe, uma faixa escura. As codornas e as
codornizes piavam; de vez em quando, do lado do bosque, vinha o
canto de um cuco, que também estava acordado.
Soaram passos. Alguém caminhava pelo jardim, na direção da
torre.
Um cachorro latiu.
— Juk![15] — ordenou uma voz baixa, de mulher. — Juk! Para
trás!
De baixo, veio o som de alguém entrando na torre e, após um
minuto, surgiu na mureta o cão negro, velho conhecido de
Podgórin. Ele parou, olhou para cima, para o lugar onde Podgórin
estava sentado, e abanou o rabo com ar amistoso. Em seguida, após
um breve intervalo, como uma sombra que saísse da vala escura,
ergueu-se um vulto branco que também parou na mureta. Era
Nadiejda.
— O que você está vendo lá? — perguntou ela para o cachorro, e
se pôs a olhar para cima.
Não estava vendo Podgórin, mas na certa sentia sua presença,
pois sorriu, e o rosto pálido, iluminado pela lua, parecia feliz. A
sombra negra da torre, que se estendia até bem longe, sobre a terra,
pelo campo, o vulto branco e imóvel, com um sorriso de enlevo no
rosto pálido, o cachorro preto, as sombras dos dois — tudo parecia
um sonho…
— Alguém está lá em cima… — falou Nadiejda, baixinho.
Ficou parada, à espera de que Podgórin descesse ou a chamasse
para junto dele e, afinal, se declarasse, e os dois seriam felizes,
naquela madrugada linda e serena. Branca, pálida, esguia, muito
bonita à luz da lua, ela esperava carinhos; seus constantes sonhos
de felicidade e amor a consumiam, ela já não tinha mais forças para
esconder seus sentimentos e toda sua figura, os olhos radiantes, o
sorriso feliz e imutável, revelavam seus pensamentos secretos, e
Podgórin ficou encabulado, retraiu-se, emudeceu sem saber se
devia dizer algo que transformasse tudo em mera brincadeira,
como era seu costume, ou manter-se calado, e então sentiu uma
irritação e só conseguiu pensar que ali, naquele jardim, numa noite
de luar, perto de uma jovem bela, apaixonada, sonhadora, ele se
sentia tão indiferente quando na rua Málaia Brónnaia — e, sem
dúvida, era por isso que, para ele, essa poesia era tão obsoleta
quanto aquela prosa grosseira. Obsoletos também eram os
encontros ao luar, as figuras femininas brancas e de cinturas finas,
as sombras misteriosas, as torres, os jardins e os “tipos” como
Serguei Sergueitch, e também como ele mesmo, Podgórin, com
seu tédio frio, sua irritação constante, sua incapacidade de adaptar-
se à vida real, sua incapacidade de tomar da vida aquilo que ela
podia oferecer, e com essa lamuriosa e enfadonha sede de algo que
não existe nem pode existir neste mundo. E agora, ali sentado
naquela torre, ele preferia uns fogos de artifício bonitos ou algum
desfile ao luar ou Vária recitando de novo “A estrada de ferro” ou
mesmo outra mulher que, de pé na mureta, lá onde agora estava
Nadiejda, contasse algo interessante, novo, sem nenhuma relação
com o amor nem com a felicidade e, no entanto, se falasse de amor,
que fosse como um chamado para novas formas de vida, elevadas e
racionais, cuja véspera já estamos vivendo, talvez, e que às vezes
até pressentimos…
— Não tem ninguém lá… — disse Nadiejda.
Depois de aguardar mais um minuto, ela seguiu rumo ao
bosque, devagar, de cabeça baixa. O cachorro foi correndo na
frente. E Podgórin, ainda por muito tempo, ficou vendo aquela
mancha branca.
“Mas como é que tudo ficou assim tão complicado…”, repetia
em pensamento, enquanto voltava ao seu quarto, na casinha anexa.
Não conseguia imaginar o que ia dizer para Serguei Sergueitch e
Tatiana, no dia seguinte, como ia se portar na frente de Nadiejda —
e também no terceiro dia, e, por antecipação, já sentia o
constrangimento, o medo, o tédio. Como preencher aqueles três
dias compridos que prometera passar ali? Veio à memória a
conversa a respeito de visões sobrenaturais e a frase feita de Serguei
Sergueitch: “Nem gemer ele conseguiu, quando sobre ele um urso
caiu”, lembrou-se de que no dia seguinte, para agradar a Tatiana,
teria de sorrir para suas filhas bem nutridas, rechonchudas… e
decidiu ir embora.
Às cinco e meia, na varanda da casa principal, apareceu Serguei
Sergueitch com um roupão de Bukhara[16] e, na cabeça, um fez com
uma borla pendurada. Podgórin, sem perder um minuto, foi até ele
e tratou de se despedir.
— Eu preciso estar em Moscou às dez horas — disse, sem olhar
para ele. — Esqueci completamente que estarão à minha espera no
cartório. Por favor, deixe-me partir. Quando elas se levantarem,
diga que peço desculpas e que lamento tremendamente…
Nem ouviu o que Serguei Sergueitch respondeu e se retirou
afobado, virando-se toda hora a fim de olhar para as janelas da casa
principal, receoso de que as damas despertassem e o retivessem ali.
Tinha vergonha de seu nervosismo. Sentia que era a última vez que
veria Kuzmínki e, ao partir, virou-se várias vezes para olhar para a
casinha anexa onde, em outros tempos, vivera tantos dias bonitos,
mas sua alma estava fria, sem sinal de tristeza…
Já em casa, sobre a mesa, viu, antes de tudo, o bilhete que
recebera na véspera. “Querido Micha”, leu. “O senhor se esqueceu
de nós por completo, venha depressa…” E, por algum motivo,
lembrou-se de como Nadiejda rodopiava ao dançar, como seu
vestido inflava e se viam os pés calçados em meias cor de pele…
Dez minutos depois, já estava sentado à mesa, trabalhando, e
não pensava mais em Kuzmínki.

1898
Iónitch

Na cidade provinciana de S., quando os visitantes se queixavam do


tédio e da monotonia da vida local, os habitantes, como que para se
defender, diziam que, ao contrário, era muito bom morar ali, que
havia uma biblioteca, um teatro, um clube, realizavam-se bailes e
que, por fim, havia famílias instruídas, interessantes e simpáticas,
com as quais valia a pena travar amizade. E apontavam a família
Túrkin como a mais culta e talentosa.
Essa família morava na rua principal, numa casa própria, ao lado
da residência do governador. O próprio Túrkin, de nome Ivan
Petróvitch, um moreno bonito, parrudo e de suíças, organizava
espetáculos amadores com fins beneficentes, ele mesmo
representava o papel de velhos generais e, nessas oportunidades,
tossia de modo bastante engraçado. Sabia muitas anedotas,
charadas, provérbios, adorava gracejos e ditos espirituosos e, pela
expressão do rosto, nunca se podia saber se estava brincando ou
falando sério. Sua esposa, Vera Ióssifovna, senhora magrinha,
graciosa, de pincenê, escrevia contos e romances e ficava contente
de ler suas obras em voz alta para os convidados. A filha, Ekatierina
Ivánovna, moça jovem, tocava piano. Em suma, cada membro da
família tinha seu talento próprio. Os Túrkin recebiam os
convidados com hospitalidade e exibiam seus talentos com alegria e
simplicidade cordial. Seu casarão de pedra era espaçoso e fresco no
verão, metade das janelas dava para um velho jardim sombreado,
onde rouxinóis cantavam na primavera; quando havia visitas em
casa, as facas tilintavam na cozinha, do pátio vinha um cheiro de
cebola assada e aquilo sempre prenunciava um jantar saboroso.
E para o dr. Dmítri Iónitch Stártsev, que tinha acabado de ser
nomeado médico local e fixara residência em Diálij, a nove verstas
de S., também disseram que, como membro da intelectualidade,
ele precisava conhecer os Túrkin. Certo dia, no inverno, em plena
rua, foi apresentado a Ivan Petróvitch; falaram um pouco sobre o
tempo, o teatro, a cólera, e seguiu-se um convite. Na primavera,
num feriado — o dia da Ascensão[17] —, depois de atender os
pacientes, Stártsev se dirigiu à cidade a fim de se distrair um
pouco, além de fazer compras. Foi a pé, sem pressa (ainda não
possuía coche nem cavalos), e cantarolava o tempo todo:

Quando eu ainda não tinha bebido as lágrimas do cálice da


existência…[18]

Na cidade, almoçou, passeou pelo parque e depois, como se fosse


do nada, lhe veio à lembrança o convite de Ivan Petróvitch, e
resolveu ir à casa dos Túrkin, ver que tipo de gente era aquela.
— Boa tarde, tenha a bondade — disse Ivan Petróvitch, ao
recebê-lo no alpendre. — Estou muito, muito contente de receber
uma visita tão agradável. Entre, vou apresentar o senhor à minha
mulher. Eu estava dizendo a ele, Vérotchka — prosseguiu,
enquanto apresentava o médico à esposa —, eu estava dizendo a ele
que não há nada no direito romano que o autorize a ficar o tempo
todo no seu hospital e que ele deve dedicar o seu ócio à vida social.
Não é verdade, meu anjo?
— Sente-se aqui — disse Vera Ióssifovna para a visita, indicando
um assento a seu lado. — O senhor pode me fazer a corte. Meu
marido é ciumento, um verdadeiro Otelo, mas, afinal, vamos nos
esforçar para agir de modo que ele não perceba nada.
— Ah, minha marota, malandrinha… — murmurou com ternura
Ivan Petróvitch, e a beijou na testa. — A visita do senhor veio
muito a calhar — dirigiu-se de novo ao médico. — Minha mulher
escreveu um romance grandiosíssimo e hoje vai ler sua obra em voz
alta.
— Jeantchik[19] — disse Vera Ióssifovna para o marido —, dites
que l'on nous donne du thé.[20]
Stártsev foi apresentado a Ekatierina Ivánovna, moça de dezoito
anos, muito parecida com a mãe, também magrinha e graciosa.
Ainda tinha fisionomia de criança e cintura fina, delicada; o peito
virginal, belo, saudável, já desenvolvido, evocava a primavera, a
verdadeira primavera. Em seguida, tomaram chá com geleia, mel,
balas e biscoitos muito gostosos, que derretiam na boca. No início
da noite, pouco a pouco, chegaram os convidados e, a cada um
deles, Ivan Petróvitch dirigia seus olhos risonhos e dizia:
— Boa noite, tenha a bondade.
Depois, todos foram sentar-se na sala, com rostos muito sérios, e
Vera Ióssifovna leu seu romance. Começava assim: “A friagem
aumentava…”. As janelas estavam totalmente abertas, ouvia-se o
tilintar das facas na cozinha, de onde também vinha o cheiro de
cebola assada… As poltronas macias, fundas, inspiravam
tranquilidade, as luzes cintilavam muito brandas na penumbra da
sala; e, naquele momento, na noite de verão, enquanto vozes e
risos vinham da rua e o aroma dos lilases bafejava do jardim, era
difícil entender como aquela friagem estava aumentando, e como o
sol nascente, com seus raios frios, iluminava uma planície coberta
de neve e um caminhante, que seguia sozinho pela estrada; Vera
Ióssifovna lia que uma jovem e bela condessa estava construindo
escolas, hospitais e bibliotecas em suas terras e que havia se
apaixonado por um pintor errante — lia coisas que nunca
acontecem na vida e, mesmo assim, era agradável ouvir, era
reconfortante, e vinham à cabeça pensamentos muito bonitos,
serenos —, não dava nenhuma vontade de levantar.
— Muito meritório… — falou Ivan Petróvitch, em voz baixa.
E um dos convidados, que, enquanto ouvia, deixava os
pensamentos fugirem para qualquer lugar muito, muito remoto,
confirmou, em voz quase inaudível:
— Sim… de fato…
Passou uma hora, e outra. No parque municipal, perto dali, uma
orquestra estava tocando e um coro cantava. Quando Vera
Ióssifovna fechou o caderno, todos se mantiveram em silêncio
durante uns cinco minutos, enquanto ouviam “Pequenina acha de
lenha”,[21] que o coro estava cantando, e a canção transmitia aquilo
que não havia no romance e que existe na vida.
— A senhora publica suas obras em revistas? — perguntou
Stártsev para Vera Ióssifovna.
— Não — respondeu. — Não publico em lugar nenhum.
Escrevo e escondo no meu armário. Para que publicar? — explicou.
— Afinal, nós temos recursos.
E, sem saber por quê, todos deram um suspiro.
— E agora, você, Kótik,[22] toque algo para nós — disse Ivan
Petróvitch para a filha.
Ergueram a tampa do piano e abriram partituras, já deixadas ali
de propósito. Ekatierina Ivánovna sentou-se e, com as duas mãos,
golpeou as teclas; logo depois, mais uma vez, golpeou com toda a
força, e outra vez, e mais outra; o peito e os ombros se sacudiam,
ela golpeava obstinadamente, sempre no mesmo lugar, e parecia
que não ia parar enquanto não cravasse as teclas bem fundo no
piano. A sala foi tomada por um trovão; tudo retumbava: o chão, o
teto, os móveis… Ekatierina Ivánovna estava tocando uma
passagem difícil, interessante, justamente por sua dificuldade,
longa e monótona e, enquanto escutava, Stártsev evocava pedras
que rolavam do alto da montanha, rolavam e rolavam sem cessar, e
ele desejava que parassem de rolar o quanto antes, porém, naquele
momento, Ekatierina Ivánovna, vigorosa, decidida, rosada por
causa do esforço e com um cachinho caído sobre a testa, lhe
pareceu muito bonita. Depois de passar o inverno em Diálij, entre
pacientes e mujiques, poder sentar-se numa sala de visitas, ver
aquela criatura jovem, elegante e provavelmente pura, ouvir
aqueles sons barulhentos, enfadonhos, mas, ainda assim, cultos, era
tão agradável, tão novo…
— Puxa, Kótik, hoje você tocou melhor do que nunca — disse
Ivan Petróvitch com lágrimas nos olhos, quando a filha terminou e
se pôs de pé. — Já pode morrer, Denis, você não vai escrever nada
melhor.[23]
Todos rodearam a jovem, deram-lhe os parabéns, se mostraram
admirados, garantiram que fazia muito tempo que não ouviam
música igual, e ela escutava em silêncio, sorria bem de leve e o
triunfo se estampava em toda a sua figura.
— Lindo! Maravilhoso!
— Lindo! — disse também Stártsev, rendendo-se à admiração
geral. — Onde a senhora estudou música? — perguntou para
Ekatierina Ivánovna. — No conservatório?
— Não, estou só me preparando para entrar no conservatório,
enquanto isso estudo aqui mesmo, com a mme. Zavlóvskaia.
— A senhora terminou o ginásio local?
— Ah, não! — respondeu por ela Vera Ióssifovna. — Nós
contratamos professores que dão aula aqui em casa, afinal, o senhor
há de convir que, no ginásio ou no instituto, pode haver más
influências; enquanto a menina está crescendo, deve permanecer
apenas sob a influência da mãe.
— Mesmo assim, vou estudar no conservatório — disse
Ekatierina Ivánovna.
— Não, Kótik ama sua mamãe. Kótik não vai causar desgosto ao
papai e à mamãe.
— Não, eu vou! Eu vou, sim! — disse Ekatierina Ivánovna,
fingindo birra, de brincadeira, e bateu com o pé no chão.
Durante o jantar, foi Ivan Petróvitch que mostrou seus talentos.
Rindo apenas com os olhos, contou anedotas, lançou tiradas
espirituosas, formulou enigmas engraçados que ele mesmo
solucionou e, o tempo todo, se expressava num linguajar insólito,
elaborado à custa de longos exercícios com ditos jocosos, algo que,
pelo visto, já se tornara um hábito para ele: grandiosíssimo, muito
meritório, agradeço ao senhor servilmente…
Porém isso foi tudo. Quando os convidados, satisfeitos e fartos,
se aglomeraram no vestíbulo para pegar seus casacos e suas
bengalas, em torno deles se movimentava afoito o lacaio Pavlucha,
ou Pava,[24] como era chamado em casa, um menino de uns catorze
anos, bochechudo e de cabeça raspada.
— Vamos lá, Pava, faça uma imitação! — disse Ivan Petróvitch.
O menino fez uma pose, ergueu a mão bem alto, e declamou em
tom trágico:
— Morra, mulher infeliz![25]
E todos gargalharam.
“Interessante”, pensou Stártsev, enquanto saía para a rua.
Ainda passou num restaurante e tomou uma cerveja, depois
seguiu a pé para sua casa, em Diálij. Ao longo de todo o caminho,
cantarolava:

Tua voz, para mim, carinhosa, meiga…[26]

Quando se deitou para dormir, após percorrer nove verstas, ele não
sentia o menor cansaço, ao contrário, tinha a impressão de que
andaria com prazer mais vinte verstas.
“Muito meritório…”, lembrou, enquanto pegava no sono, e deu
uma risada.

II

Stártsev pensava sempre em ir à casa dos Túrkin, mas havia muito


trabalho no hospital e ele não conseguia, de maneira nenhuma,
encontrar tempo livre. Desse modo, passou-se mais de um ano em
meio ao trabalho e à solidão; porém lhe trouxeram uma carta da
cidade, num envelope azul…
Já fazia tempo que Vera Ióssifovna sofria de enxaqueca, mas,
recentemente, todos os dias Kótik a deixava assustada dizendo que
ia para o conservatório e, com isso, os ataques de dor de cabeça
passaram a se repetir em intervalos cada vez menores. Todos os
médicos da cidade haviam passado pela casa dos Túrkin: chegara,
enfim, a vez do médico rural. Vera Ióssifovna tinha escrito uma
carta comovente, na qual pedia que Stártsev fosse aliviar seu
sofrimento. Stártsev foi até lá e, depois disso, passou a visitar a casa
dos Túrkin com frequência, com muita frequência… De fato, ele
ajudou um pouco Vera Ióssifovna, e ela já dizia a todos os seus
convidados que Stártsev era um médico admirável, espantoso. Mas
ele já não estava indo à casa dos Túrkin por causa da enxaqueca…
Era um feriado. Ekatierina Ivánovna havia terminado seus longos
e enfadonhos exercícios ao piano. Depois, eles se reuniram na sala
de jantar para tomar chá, e Ivan Petróvitch estava contando algo
engraçado. De repente, soou a campainha; foi preciso ir ao
vestíbulo para receber algum convidado; Stártsev, muito nervoso,
aproveitou o minuto de confusão para falar, num sussurro, com
Ekatierina Ivánovna:
— Pelo amor de Deus, eu suplico, não me torture, vamos para o
jardim!
Ela encolheu os ombros, como se estivesse perplexa e sem
entender o que queriam dela, mas levantou-se e foi.
— A senhora toca piano três, quatro horas — disse ele,
enquanto andava a seu lado. — Depois fica junto de sua mãe e eu
não tenho a menor chance de conversar com a senhora. Pelo menos
me dê quinze minutos, eu imploro.
O outono se aproximava, o velho jardim estava silencioso,
tristonho, folhas escuras jaziam nas alamedas. Já começara a
anoitecer mais cedo.
— Fiquei uma semana inteira sem ver a senhora — prosseguiu
Stártsev. — Se a senhora soubesse que sofrimento é para mim!
Vamos nos sentar. Escute-me.
Os dois tinham um recanto favorito no jardim: um banco
embaixo de um bordo. E, dessa vez, também se sentaram naquele
banco.
— O que o senhor deseja? — perguntou Ekatierina Ivánovna
com secura, como se tratasse de negócios.
— Fiquei uma semana inteira sem ver a senhora, fiquei tempo
demais sem ouvir a senhora. Sinto uma vontade apaixonada, estou
mesmo sedento de ouvir a sua voz. Fale.
Ela fascinava Stártsev com seu frescor, com a expressão inocente
dos olhos e das faces. Até na maneira como o vestido assentava na
jovem ele enxergava algo de extraordinário, meigo, comovente, por
sua graça simples e ingênua. Ao mesmo tempo, apesar daquela
inocência, ela lhe parecia muito inteligente e culta para a idade.
Com ela podia conversar sobre literatura, arte, qualquer coisa,
podia queixar-se da vida, das pessoas e, no entanto, às vezes,
durante uma conversa séria, de repente, sem nenhum motivo,
acontecia de ela começar a rir, ou ela fugia para dentro de casa.
Como quase todas as moças de S., Ekatierina Ivánovna lia bastante
(em S., em geral, lia-se muito pouco, e diziam até que, não fossem
as moças e os judeus jovens, a biblioteca local poderia muito bem
ser fechada); Stártsev gostava daquilo imensamente, sempre lhe
perguntava com emoção o que a jovem tinha lido nos últimos dias e
ouvia fascinado enquanto ela lhe contava.
— O que a senhora leu esta semana, enquanto não nos vimos?
— perguntou, também dessa vez. — Conte, por favor.
— Eu li Píssemski.[27]
— O quê, exatamente?
— Mil almas — respondeu Kótik — Mas que nome mais
engraçado o de Píssemski: Aleksei Feofiláktich!
— Aonde a senhora está indo? — assustou-se Stártsev quando
ela se levantou de repente e caminhou na direção de casa. — Eu
preciso muito conversar com a senhora, preciso explicar… Fique
aqui comigo, pelo menos cinco minutos! Eu suplico!
Ela se deteve, como se quisesse dizer algo e, depois,
embaraçada, enfiou um bilhetinho na mão dele, correu para casa e,
lá, sentou-se de novo ao piano.
“Hoje, às onze da noite”, leu Stártsev, “vá ao cemitério, junto ao
mausoléu de Demetti.”
“Ora, mas isso é uma enorme tolice”, pensou, a caminho de sua
casa. “Por que no cemitério? Para quê?”
Não havia dúvida: Kótik estava brincando. De fato, quem
poderia pensar a sério em marcar um encontro tarde da noite,
longe da cidade, num cemitério, quando seria tão fácil encontrar-se
na rua ou no parque da cidade? E será que, para uma pessoa como
ele, o médico local, homem inteligente, respeitável, ficaria bem
andar suspirando, receber bilhetinhos, esgueirar-se por cemitérios,
fazer tolices de que, hoje em dia, até adolescentes achariam graça?
A que vai levar esse romance? O que dirão seus camaradas, quando
souberem? Assim pensava Stártsev, enquanto vagava entre as mesas
do clube, porém, de repente, às dez e meia, levantou-se e tomou o
rumo do cemitério.
Naquela altura, ele já possuía uma parelha de cavalos e tinha a
seu serviço o cocheiro Pantieleimón, que usava um colete de
veludo. A lua brilhava. Era uma noite silenciosa, quente, mas de um
calor de outono. Na periferia, perto do matadouro, cães uivavam.
Stártsev deixou o coche nos limites da cidade, numa travessa, e
seguiu a pé, sozinho, para o cemitério. “Cada um tem as suas
esquisitices”, pensou. “Kótik também tem as dela e, quem sabe,
talvez não esteja brincando e venha de fato.” Rendeu-se àquela
esperança frágil, vazia, e ela o embriagou.
Percorreu meia versta pelo campo. O cemitério se destacava ao
longe como uma faixa escura, como um bosque ou um vasto jardim.
Via-se um muro de pedras brancas, um portão… À luz do luar, dava
para ler no portão: “Vem a hora em que todos…”.[28] Stártsev
atravessou o portão e a primeira coisa que viu foram as cruzes
brancas, os monumentos de ambos os lados da larga alameda e as
sombras negras que desciam dos mausoléus e dos choupos; em
redor, ao longe, via-se o branco e o preto, e árvores sonolentas que
curvavam os ramos por cima da brancura. Parecia que ali, no
cemitério, estava mais claro do que no campo; as folhas dos bordos,
semelhantes a patas de animais, se destacavam bem marcadas sobre
a areia amarela da alameda e sobre as lápides, e as inscrições nas
sepulturas surgiam nítidas. De início, o que assombrou Stártsev foi
aquilo que estava vendo agora pela primeira vez na vida e que,
provavelmente, nunca mais teria a chance de ver: um mundo que
não se parecia com nenhum outro, um mundo em que a luz do luar
era tão suave e bonita, como se ali fosse o seu berço, ali onde não
existia vida nenhuma, nada, entretanto, em cada choupo escuro,
em cada túmulo, sentia-se a presença de um mistério, que prometia
uma vida serena, bela, eterna. Das lápides e das flores murchas,
junto com o perfume das folhas do outono, vinha um sopro de
perdão, tristeza e serenidade.
Em redor, o silêncio; as estrelas miravam do céu, em profunda
resignação, e os passos de Stártsev soavam bruscos e inoportunos.
Só quando os sinos da igreja bateram e ele se imaginou morto,
enterrado ali para sempre, lhe veio a impressão de que alguém
estava olhando para ele e, por um instante, pensou que aquilo não
era nem serenidade nem silêncio, mas a surda angústia do nada, um
desespero desolador…
O mausoléu de Demetti tinha forma de capela, com um anjo no
alto; em outros tempos, certa companhia de ópera itinerante
italiana passou por S., uma das cantoras morreu, foi enterrada ali e,
para ela, ergueram aquele mausoléu. Na cidade, ninguém mais se
lembrava dela, porém, acima do pórtico, uma lamparina refletia o
luar e parecia estar acesa.
Não havia ninguém. E quem haveria de ir ali à meia-noite? Mas
Stártsev continuava esperando e, como se o luar inflamasse nele a
paixão, esperava com ardor, enquanto, na imaginação, retratava
beijos, abraços. Sentou-se junto ao mausoléu e ali ficou meia hora,
depois percorreu as alamedas laterais com o chapéu na mão,
enquanto aguardava, pensando que naqueles túmulos estavam
enterradas muitas mulheres e moças que tinham sido bonitas,
fascinantes, que tinham amado, que arderam de paixão nas
madrugadas, enquanto se entregavam a carícias. Como a mãe
natureza, no fundo, zomba horrivelmente do ser humano, e como
era vergonhoso ter de reconhecer aquilo! Stártsev pensava assim e,
ao mesmo tempo, tinha vontade de gritar que ele queria, que ele
esperava o amor a qualquer preço; à sua frente, reluziam não mais a
brancura dos pedaços de mármore, mas sim corpos lindos, ele via
formas que se escondiam, encabuladas, entre as sombras das
árvores, sentia calor, e aquela ansiedade tornou-se dolorosa…
Como se uma cortina baixasse, a lua se foi para trás de uma
nuvem e, de repente, tudo em volta escureceu. A muito custo,
Stártsev encontrou o portão — já estava escuro, como são as noites
de outono — e depois vagou uma hora e meia à procura da travessa
onde havia deixado seu coche.
— Estou cansado, mal consigo me aguentar em pé — disse para
Pantieleimón.
E, ao sentar-se com prazer no coche, pensou:
“Ah, eu não devia ter engordado!”

III

No dia seguinte, à noitinha, foi à casa dos Túrkin fazer o pedido de


casamento. Mas logo ficou claro que o momento não era
conveniente, pois Ekatierina Ivánovna estava em seu quarto com o
cabeleireiro, preparando o penteado. Ela precisava se arrumar para
o baile, à noite, no clube.
Mais uma vez, Stártsev foi obrigado a permanecer muito tempo
sentado na sala de jantar, tomando chá. Ivan Petróvitch, ao
perceber que o convidado parecia pensativo e entediado, tirou um
papelzinho do bolso do colete e leu uma carta ridícula de um
administrador alemão que contava que, na fazenda, todas as
“hordas” de repolho se perderam e os “murros” de tijolos
desmoronaram.
“E aposto que o dote que eles vão me dar não será pequeno”,
pensou Stártsev, enquanto ouvia distraído.
Depois de uma noite sem dormir, ele se encontrava num estado
de torpor, como se tivesse ingerido uma bebida doce e soporífera;
no espírito pairava uma neblina, mas ele se sentia alegre, aquecido
e, ao mesmo tempo, uma partezinha fria e pesada de sua cabeça
raciocinava:
“Pare com essa história, antes que seja tarde demais! Acha que
ela é para você? Ela é mimada, caprichosa, dorme até duas horas da
tarde, e você é o filho de um sacristão, um médico rural…”
“Pois é, e agora?”, pensou. “Tanto faz.”
“Além do mais, se você se casasse”, continuou aquela partezinha
de sua cabeça, “os pais dela obrigariam você a largar o trabalho de
médico rural e vir morar na cidade.”
“E daí?”, pensou. “Se tem de ser na cidade, que seja na cidade.
Eles vão me dar um dote, nós vamos comprar os móveis…”
Então, Ekatierina Ivánovna apareceu num vestido de baile
decotado, muito bonitinha, muito arrumada, e Stártsev ficou
encantado, chegou a tamanho arrebatamento que foi incapaz de
pronunciar uma palavra sequer, apenas olhava para ela e ria.
Ela começou a se despedir, e ele — já sem motivo nenhum para
permanecer ali — levantou-se, dizendo que estava na hora de ir
para casa: os pacientes o aguardavam.
— Não se pode fazer nada — disse Ivan Petróvitch. — Vá, e
aproveite para levar Kótik ao clube.
Lá fora chuviscava, estava muito escuro, e graças apenas à tosse
rouca de Pantieleimón foi possível adivinhar onde estavam os
cavalos. Tinham baixado a capota do coche.
— Eu caminho pelo tapete, você capota no topete — disse Ivan
Petróvitch, enquanto acomodava a filha no coche. — E por que
caminhos ele se mete… Vamos, toca os cavalos! Adeus, até à vista!
Foram embora.
— Sabe, ontem eu estive no cemitério — disse Stártsev. — Não
foi nada generoso nem delicado da sua parte…
— O senhor foi ao cemitério?
— Fui, fiquei lá e esperei a senhora por quase duas horas. Eu
sofri…
— Pois sofra mesmo, se não é capaz de entender uma
brincadeira.
Satisfeita por ter pregado uma peça com tamanha astúcia num
homem apaixonado e que a amava tanto, Ekatierina Ivánovna deu
uma gargalhada e, de repente, gritou de susto, pois naquele
instante os cavalos fizeram uma curva fechada para entrar no portão
do clube, e o coche pendeu bruscamente para o lado. Stártsev
abraçou Ekatierina Ivánovna pela cintura; assustada, a jovem se
apertou a ele, que não se conteve e a beijou com paixão nos lábios,
no queixo, e a abraçou com mais força.
— Chega — disse ela, com secura.
Num piscar de olhos, ela já não estava mais no coche, e o
guarda, junto à porta iluminada do clube, gritava para
Pantieleimón, numa voz abominável:
— O que está esperando, seu imbecil? Vá em frente de uma vez!
Stártsev foi para casa, mas logo voltou. Vestido num fraque
emprestado, de gravata branca e dura, que, mesmo assim, se
enrugava toda e queria se desprender do colarinho, lá estava ele no
salão do clube, à meia-noite, e dizia para Ekatierina Ivánovna com
entusiasmo:
— Ah, como sabem pouco da vida aqueles que nunca amaram!
Acho que até hoje ninguém descreveu o amor de maneira fiel e
duvido que seja possível descrever esse sentimento carinhoso,
alegre, torturante. E quem o experimentou pelo menos uma vez
não é capaz de traduzi-lo em palavras. De que adiantam os
preâmbulos, as descrições? Para que serve a eloquência inútil? Meu
amor é infinito… Eu peço. Eu imploro — exclamou Stártsev, afinal.
— Seja minha esposa!
— Dmítri Iónitch — disse Ekatierina Ivánovna, com expressão
muito séria, após refletir um pouco. — Dmítri Iónitch, sou muito
grata ao senhor por esta honra, eu respeito o senhor, mas… — Ela
se levantou e continuou a falar de pé. — Mas, me perdoe, não
posso ser sua esposa. Vamos falar a sério. Dmítri Iónitch, o senhor
sabe que aquilo que eu mais prezo na vida é a arte, eu amo, eu
adoro a música, loucamente, dediquei toda a minha vida à música.
Eu quero ser artista, quero a glória, o sucesso, a liberdade, e o
senhor quer que eu continue a viver nesta cidade, que eu continue
nesta vida vazia, inútil, que para mim se tornou insuportável.
Tornar-me esposa… ah, não, me desculpe! O ser humano deve
aspirar a fins mais elevados, mais brilhantes, e a vida conjugal
me manteria presa para sempre. Dmítri Iónitch — ela sorriu bem
de leve, pois ao pronunciar “Dmítri Iónitch” lembrou-se do nome
“Aleksei Feofiláktich” —, o senhor é um homem bom, generoso,
inteligente, o senhor é o melhor de todos… — e lágrimas brotaram
em seus olhos — eu simpatizo com o senhor com toda a minha
alma, mas… mas o senhor vai compreender…
E, para não começar a chorar, ela deu as costas e saiu da sala.
O coração de Stártsev deixou de bater inquieto. Quando saiu do
clube para a rua, antes de mais nada, arrancou do pescoço a gravata
dura e suspirou até o fundo do peito. Estava sentindo um pouco de
vergonha e o orgulho ferido — não contava com uma recusa —, e
era difícil acreditar que todos os seus sonhos, angústias e
esperanças o tivessem levado a um desfecho tão tolo, como uma
pecinha qualquer num espetáculo de teatro amador. E ficou
desgostoso do seu sentimento, daquele seu amor, tão desgostoso
que parecia à beira de se deixar dominar por soluços, ou de bater o
guarda-chuva com toda a força nas costas largas de Pantieleimón.
Durante uns três dias não teve vontade de fazer nada, não
comia, não dormia, mas quando chegou a notícia de que Ekatierina
Ivánovna tinha fugido para Moscou a fim de entrar no
conservatório, ele se acalmou e passou a viver como antes.
Depois, às vezes, quando recordava como tinha vagado pelo
cemitério ou como percorrera a cidade inteira à cata de um fraque,
ele se espreguiçava com ar indolente e dizia:
— Nossa, quanta confusão!

IV

Passaram quatro anos. Na cidade, Stártsev já formara uma grande


clientela. Toda manhã, bem depressa, atendia os pacientes em sua
casa, em Diálij, depois partia para cuidar dos pacientes da cidade, já
não viajava num coche de dois cavalos, mas sim de três, uma troica
enfeitada com guizos, e só voltava para casa tarde da noite. Havia
engordado, ganhara corpo e só andava a pé a contragosto, pois
sofria de falta de ar. Pantieleimón também engordara e, quanto
mais largo se tornava, mais tristes eram seus suspiros e lamentos
por seu destino amargo: estava farto da vida de cocheiro!
Stártsev visitava diversas casas e encontrava muita gente, mas
não fazia amizade com ninguém. Os habitantes o deixavam irritado
com suas conversas, com sua maneira de ver a vida e até com sua
aparência. Pouco a pouco, a experiência lhe havia ensinado que,
enquanto estavam jogando baralho ou comendo com ele, os
habitantes locais se mostravam pessoas calmas, benévolas e não de
todo idiotas, porém bastava falar de um assunto menos digerível,
por exemplo, política ou ciência, para logo ficarem emburrados ou
adotarem uma filosofia tão tacanha e raivosa que não restava outra
saída senão desistir e ir embora. Quando Stártsev tentava dizer,
mesmo para algum morador mais liberal, por exemplo, que
felizmente a humanidade estava progredindo e que, com o tempo,
seriam eliminados os passaportes e seria abolida a pena de morte, a
pessoa logo olhava meio de lado para ele e perguntava, com ar
incrédulo: “Quer dizer que qualquer um vai poder cortar o pescoço
de quem quiser, no meio da rua?”. E quando em sociedade, num
jantar ou num chá, Stártsev dizia que era preciso trabalhar, que não
se pode viver sem trabalho, todos entendiam aquilo como uma
acusação, fechavam a cara e se punham a discutir de modo
despropositado. Enquanto isso, os habitantes não faziam nada,
absolutamente nada, não se interessavam por coisa alguma, e era de
todo impossível inventar algum assunto para conversar com eles.
Assim, Stártsev evitava conversas, se limitava a comer e jogar
baralho, e quando calhava de se ver numa festa de família, na casa
de alguém, e o convidavam para comer, sentava-se à mesa e comia
calado, olhando para o prato; nessas ocasiões, tudo que as pessoas
diziam era sem interesse, errado, estúpido, ele se sentia irritado,
nervoso, mas se mantinha mudo, e como estava sempre calado e
austero, olhando sempre para o prato, o chamavam na cidade de
“polaco metido”, embora nada tivesse de polonês.
Distrações como teatro e concertos, ele as evitava, mas toda
noite jogava uíste durante três horas, mais ou menos, e com prazer.
Tinha mais uma distração, à qual se habituara pouco a pouco, sem
perceber: à noite, retirava dos bolsos o dinheiro recebido nas
consultas, e, às vezes, aquelas cédulas amarelas e verdes, com
cheiro de perfumes, de vinagre, de incenso, de óleo de baleia,
abarrotavam seus bolsos com uns bons setenta rublos; e depois de
juntar algumas centenas de rublos, ele ia à Sociedade de Crédito
Mútuo e os depositava numa conta-corrente.
Após a partida de Ekatierina Ivánovna, durante quatro anos, ele
só esteve na casa dos Túrkin duas vezes, a convite de Vera
Ióssifovna, que continuava a se tratar da enxaqueca. Todo verão,
Ekatierina Ivánovna visitava os pais, porém Stártsev não a viu
nenhuma vez; não calhou de se encontrarem.
Mas aqueles quatro anos chegaram ao fim. Certa manhã quente
e tranquila, no hospital, lhe entregaram uma carta. Vera Ióssifovna
escrevia que tinha muitas saudades dele e pedia que fosse à sua
casa, sem falta, para aliviar seus sofrimentos, ainda mais por ser o
dia de seu aniversário. Embaixo, vinha um adendo: “Ao pedido de
mamãe, acrescento também o meu. K.”.
Stártsev pensou bem e, à noite, foi à casa dos Túrkin.
— Ah, boa noite, tenha a bondade! — Ivan Petróvitch recebeu-o,
sorrindo só com os olhos. — Bonjouremos![29]
Vera Ióssifovna, já bastante envelhecida, de cabelos brancos,
apertou a mão de Stártsev, suspirou com ar afetado e disse:
— O senhor não quer mais me cortejar, doutor, nunca vem aqui,
eu já estou velha para o senhor. Mas agora chegou uma jovem,
quem sabe ela não tem mais sorte?
E Kótik? Havia emagrecido, ficara pálida, estava mais bonita e
mais esbelta; porém já não era mais Kótik, e sim Ekatierina
Ivánovna; já não havia o frescor de antes nem a expressão de
inocência infantil. Havia algo novo no olhar e nas maneiras — um
toque de temor e de culpa, como se ali, na casa dos Túrkin, ela já
não se sentisse em casa.
— Há quanto tempo! — disse ela, enquanto estendia a mão para
Stártsev, e era evidente que seu coração batia em sobressalto; e,
enquanto olhava para o rosto do médico com atenção e curiosidade,
prosseguiu: — Como o senhor engordou! Está mais corado, mais
maduro, porém, no conjunto, mudou pouco.
E naquele momento ela agradou a Stártsev, e agradou muito,
porém já havia na jovem algo de menos, ou algo de mais — ele
mesmo não conseguia dizer do que se tratava exatamente, mas algo
o impedia de sentir o mesmo de antes. Não gostou de sua palidez,
da nova fisionomia, do sorriso frouxo, da voz e, pouco depois, já
não estava gostando do vestido, da poltrona em que ela estava
sentada, e também não lhe agradava alguma coisa do passado,
quando por muito pouco não se casou com ela. Recordou seu amor,
os sonhos e as esperanças que, quatro anos antes, o deixavam em
alvoroço, e sentiu-se constrangido.
Tomaram chá com bolinhos. Depois, Vera Ióssifovna leu um
romance em voz alta, leu coisas que jamais acontecem na vida, e
Stártsev ouvia, olhava para a cabeça grisalha e bonita daquela
mulher, e não via a hora de aquilo terminar.
“Medíocre”, pensou, “não é a pessoa incapaz de escrever contos,
mas a pessoa que escreve e é incapaz de esconder o que escreveu.”
— Muito meritório — disse Ivan Petróvitch.
Em seguida, Ekatierina Ivánovna tocou piano em volume muito
alto, por muito tempo e, quando terminou, agradeceram bastante e
elogiaram demoradamente.
“Que bom que eu não me casei com ela”, pensou Stártsev.
Ekatierina Ivánovna olhava para ele e, pelo visto, esperava que
Stártsev a chamasse para ir ao jardim, mas ele se mantinha em
silêncio.
— Vamos conversar um pouco — disse ela, aproximando-se. —
Como anda sua vida? O que o senhor tem feito? Como vai? Passei
todos esses dias pensando no senhor — prosseguiu, nervosa. — Eu
queria mandar uma carta, queria ir eu mesma à sua casa em Diálij, e
cheguei a tomar a decisão de ir, mas depois mudei de ideia… Só
Deus sabe o que o senhor pensa de mim agora. Hoje fiquei
esperando o senhor com muita ansiedade. Por favor, vamos para o
jardim.
Foram para o jardim e se sentaram no mesmo banco, embaixo do
velho bordo, como quatro anos antes. Estava escuro.
— Como o senhor tem vivido? — perguntou Ekatierina
Ivánovna.
— Tudo bem, vou indo — respondeu Stártsev.
E não conseguiu inventar mais nada. Ficaram calados.
— Eu estou emocionada — disse Ekatierina Ivánovna, e cobriu o
rosto com as mãos. — Mas o senhor não ligue para isso. Eu me
sinto tão bem em casa, estou tão feliz de ver todo mundo, não
consigo me acostumar. E quantas recordações! Eu achava que nós
dois íamos ficar conversando sem parar, até amanhecer.
Agora, ele estava vendo seu rosto de perto, os olhos brilhantes, e
ali no escuro ela parecia mais jovem do que dentro de casa, e sua
antiga expressão infantil até pareceu voltar. De fato, ela olhava para
ele com uma curiosidade infantil, como se quisesse observar mais
de perto e compreender a pessoa que, em outro tempo, a amara
com tanto fervor, com tanta ternura e tanta infelicidade; os olhos
estavam lhe agradecendo aquele amor. E Stártsev recordou tudo
que havia ocorrido, todos os mínimos detalhes, como ele tinha
vagado pelo cemitério, como depois, pela manhã, voltara extenuado
para casa e, de repente, sentiu-se triste e desgostoso com o
passado. Uma centelha se acendeu em sua alma.
— E a senhora lembra como eu a levei até o clube, naquela festa?
— disse ele. — Chovia, estava escuro…
A centelha continuava a arder em sua alma e, agora, lhe veio a
vontade de falar, queixar-se da vida…
— Ah! — exclamou, com um suspiro. — Veja, a senhora me
pergunta como anda a minha vida. Mas como vivemos aqui? Ora,
isto não é vida. Envelhecemos, engordamos, vamos decaindo. Entra
dia, sai dia, e a vida vai passando, insípida, sem impressões, sem
pensamentos… De dia, ganhar dinheiro; à noite, o clube, a
companhia dos jogadores de cartas, dos alcoólatras, dos grosseirões
que eu não consigo suportar. O que há de bom nisso?
— Mas o senhor tem o seu trabalho, tem um propósito nobre na
vida. O senhor gostava tanto de falar do seu hospital. Naquela
época, eu era um pouco estranha, eu me imaginava uma grande
pianista. Hoje em dia, qualquer mocinha toca piano, e eu também
tocava, como todas, eu não tinha nada de especial. Sou tão pianista
quanto mamãe é escritora. Claro, naquela época, eu não
compreendia o senhor, mas depois, em Moscou, eu pensava no
senhor muitas vezes. Que felicidade ser um médico rural, ajudar os
que sofrem, servir o povo. Que felicidade! — repetiu Ekatierina
Ivánovna, com entusiasmo. — Quando eu pensava no senhor, em
Moscou, o senhor me surgia no pensamento como algo tão ideal,
sublime…
Stártsev lembrou-se das notas que, à noite, ele tirava dos bolsos
com tanto prazer, e a centelha se apagou em sua alma.
Levantou-se a fim de ir para casa. A moça o tomou pelo braço.
— O senhor é a melhor pessoa que conheci na vida —
prosseguiu. — Nós vamos nos encontrar, conversar, não é verdade?
Prometa. Eu não sou pianista, não me iludo mais comigo mesma e,
na sua presença, não vou mais tocar nem falar de música.
Quando entraram na casa e, à luz noturna, Stártsev viu o rosto e
os olhos tristes, agradecidos e assustados de Ekatierina Ivánovna
voltados para ele, sentiu um desassossego e, de novo, pensou:
“Que bom que não me casei naquela ocasião.”
Começou a se despedir.
— Não há nada no direito romano que dê ao senhor a
prerrogativa de ir embora sem jantar — disse Ivan Petróvitch,
enquanto o conduzia. — Da sua parte, isto é deveras perpendicular.
Mas, vamos lá, faça uma imitação! — disse no vestíbulo, dirigindo-
se a Pava.
Pava, que já não era um menino, mas sim um rapaz de bigode,
fez uma pose, ergueu a mão bem alto e disse, com voz trágica:
— Morra, mulher infeliz!
Tudo aquilo deixou Stártsev irritado. Ao sentar-se no coche e
olhar para a casa escura e para o jardim que, em outros tempos,
tinham sido tão queridos e tão preciosos para ele, lembrou-se de
tudo de uma vez só: os romances de Vera Ióssifovna, o piano
barulhento de Kótik, as tiradas jocosas de Ivan Petróvitch, a pose
trágica de Pava, e ponderou que, se as pessoas mais talentosas de
toda a cidade eram tão medíocres, o que se poderia esperar daquele
lugar?
Três dias depois, Pava trouxe uma carta de Ekatierina Ivánovna.
“O senhor não vem à nossa casa. Por quê?”, escreveu ela.
“Receio que o senhor tenha mudado em relação a nós; receio, e
tenho medo só de pensar nisso. Tranquilize-me, venha e me diga
que está tudo bem. Eu preciso conversar com o senhor. Sua I. T.”
Leu a carta até o fim, pensou um pouco e disse a Pava:
— Meu caro, diga que hoje eu não posso ir, estou muito
ocupado. Diga que irei mais ou menos daqui a uns três dias.
Entretanto, passaram os três dias, passou uma semana, e ele
nunca ia. Às vezes, ao passar pela casa dos Túrkin, recordava que
tinha de fazer uma visita, nem que fosse por um minuto, porém
ficava pensando e… não ia.
E nunca mais foi à casa dos Túrkin.
V

Passaram alguns anos. Stártsev engordou mais ainda, tornou-se


obeso, respira ofegante e caminha com a cabeça inclinada para trás.
Quando ele, rotundo e vermelho, se desloca em sua troica enfeitada
com guizos, e Pantieleimón, também rotundo e vermelho, com a
nuca muito carnuda, sentado na boleia, com os braços esticados
para a frente, muito retos, como se fossem de madeira, grita para os
que vêm no sentido contrário: “Mantenha a direita!”, ergue-se um
quadro grandioso e parece que não é um ser humano que está
passando, mas sim um deus pagão. Stártsev conta com uma
clientela imensa na cidade, não tem tempo nem para respirar, já
possui uma propriedade rural e duas casas na cidade, e tem em
mira uma terceira, que vai lhe trazer mais lucro, e quando lhe
dizem, na Sociedade de Crédito Mútuo, que a casa de alguém vai a
leilão judicial, ele segue até lá e, sem a menor cerimônia, percorre
todos os cômodos, sem dar atenção às mulheres e às crianças
despidas, que ficam olhando para ele com espanto e temor,
empurra todas as portas com a bengala e diz:
— Isto é o escritório? Aqui é o dormitório? E aqui, o que é?
Enquanto isso, respira com dificuldade e enxuga o suor da testa.
Tem muitos afazeres, mas não abandona seu cargo de médico
rural; a cobiça não lhe dá sossego, ele quer estar em toda parte ao
mesmo tempo. Em Diálij e na cidade, ele já é chamado apenas de
Iónitch.[30] “Para onde vai esse Iónitch?” Ou: “Não é melhor
chamar o Iónitch e fazer uma consulta?”.
Na certa, por ter a garganta cheia de gordura, sua voz se
modificou, ficou aguda e áspera. Seu temperamento também
mudou: tornou-se severo, irritadiço. Quando recebe os pacientes,
em geral se irrita, bate a bengala no chão com impaciência e grita,
com voz desagradável:
— Faça o favor de responder só o que foi perguntado! Não jogue
conversa fora!
Vive só. Acha a vida maçante, não se interessa por nada.
Desde que foi morar em Diálij, o amor por Kótik foi sua única
alegria e, provavelmente, a última. À noite, joga baralho no clube e
depois se senta sozinho diante de uma grande mesa e janta. É
servido por Ivan, o lacaio mais velho e respeitável, trazem para ele o
vinho Lafite nº 17, e todo mundo — os diretores do clube, o
cozinheiro e o lacaio — já sabe do que ele gosta e do que não gosta,
se esforçam ao máximo para satisfazê-lo, do contrário é bem
possível que se irrite, de repente, e comece a bater com a bengala
no chão.
Enquanto janta, às vezes se vira e se intromete na conversa de
qualquer um:
— Do que estão falando? Hein? De quem?
E quando, por acaso, em qualquer mesa perto da sua, alguém
menciona os Túrkin, ele pergunta:
— De que Túrkin estão falando? Daqueles que têm uma filha
que toca piano?
E isso é tudo que se pode dizer a respeito dele.
E quanto aos Túrkin? Ivan Petróvitch não envelheceu, não
mudou nada, continua como antes, com suas tiradas jocosas e suas
anedotas. Vera Ióssifovna, com prazer e com simplicidade afetuosa,
lê, como antes, seus romances para as visitas. E Kótik toca piano
mais ou menos quatro horas por dia. Envelheceu visivelmente,
adoece com frequência e todo outono viaja com a mãe para a
Crimeia. Ivan Petróvitch as acompanha até a estação e, quando o
trem parte, enxuga as lágrimas e grita:
— Adeus, até a vista!
E abana o lenço.

1898
O homem no estojo

Uns caçadores que perderam a hora de regressar tiveram de se


abrigar no celeiro do estaroste Prokófi, nos arredores do povoado
de Mironóssitskoie, para ali pernoitar. Eram só dois: o médico
veterinário Ivan Ivánitch e o professor de ginásio Búrkin. Ivan
Ivánitch tinha um sobrenome de família duplo e muito estranho,
Tchimcha-Guimaláiski, que não combinava nem um pouco com ele
e, em toda a província, era chamado apenas pelo nome e pelo
patronímico;[31] morava perto da cidade, num haras, e tinha saído
para caçar a fim de respirar um pouco de ar puro. Já Búrkin, o
professor de ginásio, todo verão se hospedava nas terras dos condes
P. e, naquele local, havia muito tempo já era considerado uma
pessoa de casa.
Não estavam dormindo. Ivan Ivánitch, velho, alto e magricelo,
de bigodes compridos, estava do lado de fora, sentado junto à porta
fumando cachimbo; a lua o iluminava. Búrkin estava do lado de
dentro, deitado sobre o feno, e ali, no escuro, não dava para vê-lo.
Os dois estavam contando diversas histórias. Entre outros casos,
comentaram que a esposa do estaroste, Mavra, mulher saudável e
que não era nada boba, durante toda a vida, nunca tinha ido a lugar
nenhum fora de seu povoado natal, nunca tinha visto uma cidade
ou uma estrada de ferro e, nos últimos dez anos, ficara o tempo
todo junto ao fogão e só saía de casa à noite.
— E o que há nisso de espantoso? — disse Búrkin. — Neste
mundo, não são raras as pessoas solitárias por natureza, que, como
o caranguejo-eremita ou o caracol, tentam se refugiar dentro de sua
casca. Talvez se trate, aqui, do fenômeno do atavismo, o retorno
para o tempo em que o antepassado do ser humano ainda não era
um animal social e vivia sozinho em sua toca, mas, no caso, talvez
seja apenas uma das variedades da personalidade humana… quem
sabe? Eu não sou naturalista e meu ramo de trabalho não trata
desse tipo de questão; só estou querendo dizer que pessoas como
Mavra não constituem um fenômeno raro. Aliás, veja, nem é
preciso ir muito longe: há cerca de dois meses, em nossa cidade,
morreu um tal de Biélikov, professor de grego, meu colega. O
senhor ouviu falar dele, é claro. Era famoso por sair de casa sempre
de galochas e guarda-chuva, e também não podia faltar um grosso
casaco de algodão, mesmo quando o tempo estava ótimo. O guarda-
chuva ficava dentro de uma capinha, o relógio, em outra capinha,
de camurça cinzenta, e, quando ele precisava da faquinha de
apontar lápis, retirava aquele instrumento de outra capinha; seu
rosto também parecia estar sempre metido dentro de uma capinha,
pois se escondia o tempo todo por trás de um colarinho alto. Ele
usava óculos escuros, blusão fechado, protetores de orelha de
algodão e, quando se sentava num coche de praça, mandava fechar
a capota. Em suma, percebia-se naquela pessoa um esforço
constante e irresistível de cobrir-se com algum tipo de invólucro,
criar para si algum estojo, por assim dizer, que o isolasse,
protegesse das influências exteriores. A realidade o irritava, o
assustava, mantinha-o em constante sobressalto e, quem sabe, a fim
de justificar sua timidez, sua aversão ao tempo presente, ele sempre
elogiava o passado e coisas que nunca existiram; a língua antiga que
ele lecionava representava, para ele, no fundo, o mesmo que as
galochas e o guarda-chuva, um lugar onde se escondia da vida real.
“‘Ah, como a língua grega é linda e sonora!', dizia, com uma
expressão doce no rosto; e, como se fosse para comprovar suas
palavras, estreitava os olhos, erguia o dedo e pronunciava:
‘Anthropos!'.[32]
“E Biélikov tentava esconder até seu pensamento dentro de um
estojo. Para ele, só eram claros os artigos de jornal e os
comunicados oficiais em que se proibia alguma coisa. Quando, num
comunicado oficial, se proibia os funcionários de saírem à rua
depois das nove horas da noite, ou, em algum artigo de jornal, se
proibia o amor carnal, aquilo, para ele, estava bem claro, bem
definido; está proibido, e pronto. Já nas licenças e nas permissões,
aos olhos dele, sempre se escondia um elemento de dúvida, havia
algo implícito e vago. Quando permitiam, na cidade, a formação de
um círculo de teatro ou de leitura ou de uma sala de chá, ele
balançava a cabeça e dizia, em voz baixa:
“‘Agora, tudo parece muito bonito, é claro, mas onde é que isso
vai acabar?'.
“Qualquer tipo de infração, transgressão ou desobediência às
regras o deixava num estado de grande abatimento, por mais que
aquilo não tivesse nada a ver com ele. Se um colega se atrasasse
para a missa ou se corressem rumores a respeito de alguma
travessura de alunos do ginásio ou se vissem uma dama da
sociedade, tarde da noite, na companhia de um oficial, ele ficava
muito nervoso e dizia o tempo todo: ‘Onde é que isso vai parar?'.
Nos conselhos de classe do colégio, ele nos massacrava com seus
escrúpulos minuciosos, suas manias e suas concepções puramente
de estojo acerca do mau comportamento da juventude nos ginásios
mistos de meninos e meninas, acerca do enorme barulho que os
alunos faziam nas aulas (‘Ah, tomara que isso não chegue aos
ouvidos das autoridades, ah, onde é que isso vai parar?'), e repetia
que seria muito bom expulsar Pietrov da segunda série e Iégorov,
da quarta série. E sabe o que acontecia? Com seus suspiros, suas
lamúrias, seus óculos escuros por cima do rosto pálido e miúdo,
sabe, aquela cara miúda de fuinha, ele nos subjugava a todos e, no
final, cedíamos e abaixávamos as notas de Pietrov e de Iégorov por
causa do comportamento, nós os deixávamos de castigo e, no final
da história, eles acabavam mesmo sendo expulsos. Biélikov tinha
um hábito esquisito: ir aos nossos apartamentos. Ele chegava à casa
de um professor, sentava-se e ficava calado, parecia que estava
observando alguma coisa. Ficava sentado assim, sem falar nada,
uma ou duas horas, e ia embora. A isso ele chamava ‘manter boas
relações com os colegas', mas era óbvio que, para ele, ir à nossa casa
e ficar ali era algo constrangedor e só nos visitava porque julgava
que era uma obrigação entre colegas de trabalho. Nós, professores,
tínhamos medo dele. Até o diretor tinha medo. Veja, tenha em
mente que nossos professores eram todos muito ponderados,
pessoas profundamente ordeiras, educadas, leitores de Turguêniev
e Shchedrin,[33] no entanto, aquele homem que andava sempre de
galochas e guarda-chuva manteve o ginásio inteiro sob seu domínio
durante quinze anos seguidos! E não era só o ginásio: era a cidade
inteira! As nossas damas não promoviam espetáculos domésticos
aos sábados, com receio de que ele ficasse sabendo; e os membros
do clero se intimidavam com ele e, em sua presença, não comiam
carne nem jogavam cartas. Por influência de pessoas como Biélikov,
durante os últimos dez ou quinze anos, passamos a ter medo de
tudo em nossa cidade. As pessoas tinham medo de falar alto,
mandar cartas, travar amizades, ler livros, ajudar os pobres, ensinar
os outros a ler e escrever…”
Ivan Ivánitch queria dizer algo, mas primeiro tossiu, acendeu o
cachimbo e começou a fumar, olhou para a lua e depois falou,
pausadamente:
— Pois é. Eram pessoas ponderadas, ordeiras, leitoras de
Shchedrin e Turguêniev, e também de Buckle[34] e vários outros,
mas se submetiam a ele, aceitavam… Esse tipo de coisa também
acontece.
— O Biélikov morava no mesmo edifício que eu — prosseguiu
Búrkin —, no mesmo andar, porta com porta, nós dois nos víamos
muitas vezes e eu conhecia sua vida doméstica. Dentro de casa, era
a mesma história: roupão, gorro, persianas, ferrolhos, toda uma
série das mais diversas proibições, barreiras e muitos “Ah, onde é
que isso vai parar?”. Deixar de comer carne fazia mal a ele, mas na
Quaresma ele não podia comer carne, porque as pessoas iam dizer
que Biélikov não obedecia às regras do jejum, e então ele comia
percas assadas na manteiga. Não era comida apropriada para o
jejum, de fato, mas também ninguém poderia dizer que ele comia
carne. Na casa dele não trabalhavam mulheres, pois Biélikov tinha
receio de que pensassem mal dele, seu cozinheiro era o Afanássi,
de uns sessenta anos de idade, beberrão e meio maluco, que em
outros tempos tinha sido ordenança no quartel e sabia cozinhar um
pouco. Esse Afanássi costumava ficar junto à porta, de braços
cruzados, e vivia resmungando sempre a mesma coisa, com um
profundo suspiro: ‘Hoje em dia, há muitos desses por aí!'.
“O quarto de Biélikov era pequeno, igual a um caixote, e tinha
uma cama com cortinado. Quando se deitava para dormir, ele
cobria a cabeça; ficava quente, abafado, o vento trepidava nas portas
fechadas, zumbia na chaminé da estufa; vinham suspiros da
cozinha, uns suspiros sinistros…
“Debaixo do cobertor, ele se sentia apavorado. Tinha medo de
onde tudo aquilo iria parar, tinha medo de que Afanássi cortasse
sua garganta, de que ladrões invadissem sua casa, e depois, a noite
inteira, tinha sonhos ameaçadores, e de manhã, quando íamos
juntos para o colégio, ele estava aborrecido, pálido, e era óbvio que
o colégio cheio de gente para onde ele estava caminhando era
apavorante, algo contrário a todo o seu ser, e também era evidente
que, para ele, pessoa solitária por natureza, era constrangedor
caminhar a meu lado.
“‘Fazem barulho demais nas nossas aulas', dizia, como se
tentasse encontrar uma explicação para seu sentimento aflitivo. ‘Eu
nunca vi nada parecido com isso.'
“Pois esse professor de grego, esse homem no estojo, imagine
só, já esteve, uma vez, à beira de se casar.”
Ivan Ivánitch virou os olhos rapidamente para dentro do celeiro
e disse:
— Está brincando!
— É verdade, por mais estranho que pareça, ele esteve à beira de
se casar. Um novo professor de história e geografia foi designado
para o nosso colégio, um tal de Mikhail Sávvitch Kovalienko, da
Ucrânia. Não veio sozinho, mas sim com a irmã Várienka. Era um
jovem alto, bronzeado, de mãos enormes e, pelo rosto, logo se via
que tinha voz de baixo e, de fato, sua voz parecia sair de um barril:
bu-bu-bu… A irmã já não era jovem, uns trinta anos, também alta,
esbelta, de sobrancelhas pretas, faces coradas… em suma, não era
nenhuma mocinha em flor, mas era um doce de pessoa, tão
desinibida, tão expansiva, ela vivia cantando baladas da Pequena
Rússia[35] e dando gargalhadas. Por qualquer motivo, desatava sua
risada muito sonora: ha-ha-ha! O primeiro contato mais estreito
que tivemos com os Kovalienko, eu me lembro, se deu no
aniversário do diretor do colégio. No meio dos pedagogos austeros,
de uma rigidez maçante, uma nova Afrodite nasceu das espumas:
ela caminhava com as mãos na cintura, gargalhava, cantava,
dançava… Cantou com emoção “Uivam os ventos”,[36] depois uma
balada, e mais outra, e todos nós ficamos fascinados com ela…
todos, até Biélikov. Sentou-se perto dela e disse, com um sorriso
doce: “A língua da Pequena Rússia, com sua ternura e sonoridade
agradável, faz lembrar o grego antigo”.
“Aquilo deixou Várienka lisonjeada e ela começou a contar, com
sentimento e convicção, que, no distrito de Gádiatch, ela possuía
um sítio onde morava sua mãe e lá nasciam peras, melões e
‘tabernas' que nem dava para descrever! Na Ucrânia, chamam as
abóboras de ‘tabernas', e as tabernas eles chamam de ‘cabanas', e
Várienka contou que, lá, fazem um borsch com tomates e berinjelas
que fica ‘tão gostoso, tão gostoso que a gente fica louca!'.
“Nós ouvíamos, ouvíamos e, de repente, a todos nós, veio a
mesma ideia; ‘Como seria bom se os dois se casassem', me disse o
diretor em voz baixa.
“Por algum motivo, todos ao mesmo tempo nos demos conta de
que o nosso Biélikov era solteiro e, naquele momento, nos pareceu
estranho que, até então, não tivéssemos lembrado aquilo e
houvéssemos deixado completamente de lado aquele detalhe tão
importante em sua vida. Como ele se relacionava com as mulheres,
como ele resolvia aquela questão essencial? Antes, o assunto não
nos interessava nem um pouco; talvez nem sequer admitíssemos a
simples ideia de que um homem que, mesmo com um tempo
excelente, só anda de galochas e guarda-chuva e que só dorme
fechado por trás de um cortinado pudesse amar.
“‘Ele já passou bastante dos quarenta, e ela já tem trinta anos…',
a esposa do diretor me explicou seu ponto de vista. ‘Eu acho que
ela se casaria com ele.'
“O que nós, na província, não somos capazes de fazer por puro
tédio? Quanta futilidade, quanto disparate! E isso acontece porque
não se faz aquilo que é de fato necessário. Pois bem: de onde foi
que, de uma hora para outra, nos veio toda aquela vontade de casar
o Biélikov, que ninguém conseguia sequer imaginar como um
homem casado? A esposa do diretor, a esposa do inspetor e todas as
damas ligadas ao nosso ginásio se animaram muito, chegaram a
ficar mais bonitas, como se, de repente, tivessem descoberto um
propósito para suas vidas. A esposa do diretor comprou ingressos
para um camarote do teatro e vimos que, no camarote, estava a
Várienka, radiante, feliz, com seu leque enorme e, a seu lado,
Biélikov, miúdo, curvado, parecia ter sido arrancado de casa à força,
seguro por tenazes. Um dia, dei uma festa e as damas exigiram que
eu convidasse Várienka e Biélikov. Em resumo, as engrenagens
começaram a girar. Verificou-se que Várienka não era contra se
casar. Ela não achava muita graça em morar com o irmão, os dois só
sabiam brigar e discutir o dia inteiro. Imagine só a cena: Kovalienko
vai andando pela rua, um homenzarrão alto, cheio de saúde, camisa
bordada, uma grande mecha de cabelo escapa por baixo do quepe e
escorre pela testa; na mão, uma pasta de livros, na outra mão, um
bastão grosso e nodoso. Atrás, vai a irmã, também com livros.
“‘Mas, afinal de contas, Mikháilik, você não leu nada disso!' Ela
discute, em voz bem alta. ‘Estou lhe dizendo, eu juro, você não leu
nada disso!'
“‘Pois eu estou dizendo que li, sim!', grita Kovalienko, e faz o
bastão trovejar de encontro à calçada.
“‘Ora essa, meu Deus, Míntchik! Por que está zangado? O que a
gente está discutindo é só uma questão de princípios.'
“‘Pois eu garanto a você que eu li!', grita Kovalienko, mais alto
ainda.
“E em casa, em presença de algum estranho, era o mesmo bate-
boca. Aquela vida, com certeza, não tinha graça nenhuma para ela,
daí a vontade de ter o seu canto, e é preciso também levar em conta
a idade de Várienka. Nessa altura da vida, não dá mais tempo de
ficar escolhendo, é melhor se casar com quem aparecer, nem que
seja um professor de grego. A bem da verdade, para a maioria das
nossas jovens solteiras, não importa com quem se casar, contanto
que elas se casem. De um jeito ou de outro, Várienka passou a
demonstrar uma evidente boa vontade com o nosso Biélikov.
“E o Biélikov? Ele ia à casa de Kovalienko da mesma forma como
ia à casa de todos nós. Chegava lá, sentava-se e ficava calado. Não
falava nada, enquanto Várienka cantava para ele ‘Uivam os ventos',
ou ficava olhando para ele com ar pensativo, com seus olhos
escuros, ou de repente derramava uma gargalhada: ‘Ha-ha-ha!'.
“Nas questões de amor e, sobretudo, de casamento, a sugestão
desempenha um papel importante. Todos, os colegas e as damas,
tentavam agora persuadir Biélikov de que devia casar, de que não
lhe restava mais nada na vida senão casar; todos nós o
felicitávamos, dizíamos as maiores banalidades com a cara mais
séria do mundo, coisas como: o matrimônio é um passo muito sério
na vida; além do mais, a Várienka nada tinha de feia, era uma
mulher interessante, filha de um conselheiro de Estado,[37]
proprietária de um sítio e, o mais importante de tudo, era a
primeira mulher que tratava Biélikov com atenção e carinho. A
cabeça do Biélikov começou a rodar e ele acabou chegando à
conclusão de que, realmente, precisava se casar.”
— E então chegou a hora de ele largar as galochas e o guarda-
chuva — exclamou Ivan Ivánitch.
— Pois sim. Logo se viu que isso era impossível. Ele colocou um
retrato de Várienka sobre a mesa e vinha toda hora à minha casa
para falar sobre Várienka, sobre a vida conjugal, dizia que o
matrimônio era um passo muito sério, ia muitas vezes à casa de
Kovalienko, mas seu modo de viver não mudou nem um pouco. Ao
contrário, até: a decisão de se casar agiu sobre ele de forma um
tanto doentia, ele emagreceu, ficou pálido e pareceu se refugiar
ainda mais fundo no seu estojo.
“‘Varvara Sávvichna me agrada', dizia-me, com um sorrisinho
sutil e contraído. ‘E eu sei que todo homem precisa se casar, mas…
sabe, tudo isso aconteceu tão de repente… Eu preciso pensar.'
“‘Mas o que há para pensar?', retrucava eu. ‘É só se casar, e
pronto.'
“‘Não, o casamento é um passo muito sério, primeiro é
necessário pesar bem as obrigações, as responsabilidades que ele
acarreta… para depois ver no que vai dar. Isso me deixa tão
preocupado, agora eu fico a noite toda sem dormir. E, confesso, eu
tenho medo: ela e o irmão têm uma forma um tanto estranha de
pensar, eles raciocinam assim, sabe, de um jeito esquisito, e a
personalidade dela é muito expansiva. Você casa e depois, quem
sabe, acaba ficando numa situação difícil.'
“E ele nunca fazia o pedido de casamento, sempre adiava, para
grande desgosto da esposa do diretor e de todas as nossas damas;
ele não parava de pesar bem as obrigações e as responsabilidades do
casamento e, enquanto isso, passeava quase todo dia em companhia
de Várienka, talvez achasse que aquilo era necessário, na sua
situação, e vinha sempre à minha casa para conversar sobre a vida
conjugal. O mais provável é que, no final, ele apresentaria de fato o
pedido e, assim, se realizaria mais um desses casamentos tolos e
supérfluos que existem entre nós aos milhares, nos quais as pessoas
se casam por puro tédio, por não ter nada mais para fazer, e teria
sido assim se, de repente, não tivesse estourado um kolossalische
Skandal.[38] É preciso dizer que o irmão de Várienka, o Kovalienko,
odiava Biélikov desde o primeiro dia em que o conheceu e não
conseguia suportá-lo.
“‘Eu não entendo', nos dizia ele, encolhendo os ombros. ‘Eu não
entendo como vocês conseguem engolir esse dedo-duro, esse
tipinho execrável. Ah, meus caros, como conseguem viver aqui? A
atmosfera é sufocante, intragável. Será que vocês são mesmo
pedagogos, professores? Não passam de burocratas, vocês não têm
aqui um templo da ciência, mas um tribunal de polícia, que ainda
por cima exala um cheiro azedo, igual à guarita de uma sentinela.
Não, meus caros, só vou morar aqui mais um pouco e depois vou
embora para o meu sítio e lá vou pescar caranguejos e dar aulas para
as crianças ucranianas. Eu vou embora e vocês vão ficar aqui, com o
seu Judas, e que ele vá para o inferno.'
“Ou então gargalhava, gargalhava até as lágrimas, ora com voz de
baixo, ora com voz aguda e estridente, e me perguntava, erguendo
as mãos espalmadas:
“‘Para que é que ele vem sempre à minha casa? O que ele quer?
Fica lá sentado, olhando.'
“Kovalienko chegou a dar um apelido ao Biélikov: Aranha
Chupa-Sangue.[39] E, é claro, nós evitávamos falar para ele que sua
irmã, Várienka, tinha intenção de se casar justamente com a tal
‘aranha'. E quando, certa vez, a esposa do diretor insinuou para
Kovalienko que seria bom unir sua irmã a um homem tão sério e
respeitado por todos como era Biélikov, ele fechou a cara e rosnou:
“‘Isso não é da minha conta. Ela pode se casar até com uma
víbora, eu não gosto de me meter na vida dos outros.'
“Pois bem, agora escute só o que foi que aconteceu. Não sei que
gaiato cismou de desenhar uma caricatura: Biélikov, de galochas e
de calça arregaçada, debaixo de um guarda-chuva, e Várienka
andando de braço dado com ele; embaixo, a inscrição: ‘O anthropos
apaixonado'. A expressão era um verdadeiro achado, entende,
surpreendente. O desenhista, com certeza, trabalhou várias noites
na sua ideia, pois todos os professores dos ginásios de meninos e de
meninas, os professores do seminário, os funcionários, todos
receberam um exemplar. Biélikov também recebeu. A caricatura
deixou nele a mais dolorosa impressão.
“Nós dois saímos juntos de casa, era exatamente o dia 1º de
maio, um domingo, e todos nós, professores e alunos, combinamos
de nos encontrar no ginásio e, depois, irmos a pé para um bosque,
nos arredores da cidade. E fomos para lá, mas Biélikov estava verde,
mais sombrio do que uma nuvem de chuva.
“‘Como existe gente ruim e malvada!', exclamou, e os lábios
começaram a tremer.
“Fiquei até com pena dele. Estávamos caminhando e, de
repente, imagine só, apareceu o Kovalienko andando de bicicleta e,
atrás dele, também de bicicleta, Várienka, vermelha, extenuada,
mas contente, alegre.
“‘Ah', gritou ela, ‘nós vamos na frente! O tempo está tão bom, o
dia está tão bonito que a gente fica louca!'
“E os dois desapareceram. O meu Biélikov, de verde passou a
branco, e pareceu estupefato. Parou e ficou olhando para mim…
“‘Por favor, o que foi isso?', perguntou. ‘Será que os meus olhos
me enganaram? Será que é decente que professores de ginásio e
mulheres andem de bicicleta?'
“‘Mas o que há nisso de indecente?', perguntei. ‘Deixe que eles
andem de bicicleta à vontade.'
“‘Mas como pode ser?', gritou, espantado com a minha
tranquilidade. ‘O que o senhor está dizendo?'
“Biélikov estava tão perturbado que nem quis continuar o
passeio e voltou para casa.
“No dia seguinte, ficou o tempo todo esfregando as mãos uma
na outra, tremendo, e pelo rosto era evidente que não estava nada
bem. Nem foi dar aula, o que lhe aconteceu pela primeira vez na
vida. Também não almoçou. À noite, vestiu uma roupa mais
aquecida, embora fizesse uma temperatura de verão, e caminhou a
custo até a casa de Kovalienko. Várienka não estava, ele encontrou
só o irmão.
“‘Sente-se, por favor', disse Kovalienko, em tom frio, e franziu as
sobrancelhas; tinha o rosto sonolento, havia acabado de repousar
após o jantar e estava de muito mau humor.
“Biélikov ficou sentado, em silêncio, durante uns dez minutos, e
então começou:
“‘Eu vim à casa do senhor para aliviar minha alma. Estou muito,
muito abatido. Um desses caluniadores de pasquim fez um desenho
da minha pessoa em traços ridículos, e ainda por cima na
companhia de outra pessoa, próxima a nós dois. Considero meu
dever garantir ao senhor que eu, de maneira nenhuma… Eu não dei
nenhum motivo para tal pilhéria, ao contrário, o tempo todo eu me
comportei como o mais decente dos homens.'
“Kovalienko continuava quieto, emburrado, mudo. Biélikov
esperou um pouco e continuou, em voz baixa, sofrida:
“‘E tenho mais uma coisa a dizer ao senhor. Eu trabalho há
muitos anos, o senhor apenas está começando, e considero meu
dever, como seu colega veterano, prevenir o senhor. O senhor anda
de bicicleta, e essa diversão é de todo indecente para a educação da
juventude.'
“‘Mas por quê?', perguntou Kovalienko, com voz de baixo.
“‘Ora, será mesmo preciso, nesse caso, dar mais alguma
explicação, Mikhail Sávvitch? Será que não está bem claro? Se um
professor anda de bicicleta, o que será dos alunos? Para eles, só vai
restar andar de pernas para o ar! E uma vez que nenhuma
comunicação oficial autoriza andar de bicicleta, não se pode fazer
isso. Ontem, eu fiquei apavorado! Quando vi a sua irmã, meus
olhos chegaram a escurecer. Uma mulher, ou moça, numa
bicicleta… é horroroso!'
“‘O que o senhor deseja, exatamente?'
“‘Eu só desejo uma coisa: prevenir o senhor, Mikhail Sávvitch.
O senhor é jovem, tem o futuro pela frente, é preciso se comportar
com muito, muito cuidado, o senhor comete tantos erros, ah,
tantos erros! O senhor anda de camisa bordada, sai sempre na rua
com não sei que livros nas mãos, e agora, ainda por cima, essa
bicicleta. O diretor será informado de que o senhor e sua irmã
andam de bicicleta, depois isso vai chegar ao curador… E o que
pode haver de bom nisso?'
“‘Se eu e a minha irmã andamos de bicicleta, não é da conta de
ninguém!', disse Kovalienko, e ficou vermelho. ‘E quem quiser se
meter nos meus assuntos domésticos e familiares, eu mando para
os cães do inferno.'
“Biélikov empalideceu e levantou-se.
“‘Se o senhor fala comigo nesse tom de voz, não posso
continuar', disse. ‘E peço que nunca diga nada acerca das
autoridades na minha presença. O senhor deve tratar o poder com
respeito.'
“‘E por acaso eu falei algo de ruim sobre as autoridades?',
perguntou Kovalienko, olhando para ele com raiva. ‘Por favor, me
deixe em paz. Eu sou um homem honesto e não quero conversar
com uma pessoa como o senhor. Eu não gosto de dedos-duros.'
“Biélikov se viu atrapalhado, nervoso e, com expressão de horror
no rosto, começou rapidamente a vestir seus agasalhos. Pois foi a
primeira vez na vida em que ouviu tamanha grosseria.
“‘Pode falar o que o senhor bem entender', disse Biélikov, ao sair
do vestíbulo para o patamar da escada. ‘Eu devo apenas prevenir o
senhor: talvez alguém esteja nos escutando e, para que não
entendam mal a nossa conversa e não acabe acontecendo alguma
coisa ruim, devo relatar ao senhor diretor o conteúdo da nossa
conversa… em linhas gerais. Eu tenho a obrigação de fazer isso.'
“‘Relatar? Pois vá de uma vez, relate tudo!'
“Kovalienko agarrou Biélikov por trás do colarinho e deu um
safanão para a frente, o que fez Biélikov descer a escada aos
trambolhões, com as galochas trovejando pelos degraus. Era uma
escada alta, íngreme, mas ele conseguiu rolar até embaixo sem
maiores estragos; levantou-se, apalpou o nariz: será que os óculos
tinham quebrado? Porém, bem na hora em que ele terminou de
rolar pela escada, Várienka estava chegando, com duas damas; elas
pararam ali embaixo e ficaram olhando: para Biélikov, aquilo foi o
mais terrível de tudo. Dava a impressão de que seria melhor ter
quebrado o pescoço, as duas pernas, do que fazer aquele papel
ridículo; agora, toda a cidade ia ficar sabendo, a notícia chegaria ao
diretor, ao curador… Ah, onde aquilo iria parar?… Fariam mais
caricaturas e, no final de tudo, viria a ordem para ser demitido…
“Quando Biélikov se levantou, Várienka o reconheceu e, ao ver
seu rosto ridículo, o casaco amarrotado, as galochas, sem entender
o que havia ocorrido e supondo que ele tivesse caído por acidente,
ela não se conteve e deu uma gargalhada que engoliu o prédio
inteiro.
“‘Ha-ha-ha!'
“E aquele ‘ha-ha-ha' estrondoso, avassalador, foi o fim de tudo:
do matrimônio e da existência terrena de Biélikov. Ele não ouvia
mais o que Várienka falava, não enxergava mais nada. Voltou para
casa e, antes de qualquer coisa, tirou o retrato da mesa, depois se
deitou na cama e não levantou mais.
“Uns três dias depois, o Afanássi veio à minha casa e perguntou
se não era melhor chamar o médico, pois era preciso fazer alguma
coisa para o patrão. Fui visitar Biélikov. Estava deitado por trás do
cortinado, embaixo do cobertor, calado; a qualquer pergunta só
respondia sim ou não, e mais nada. Não saía da cama, enquanto
Afanássi andava para lá e para cá, de rosto contraído, de ar sombrio,
suspirando fundo; e ele exalava um cheiro de vodca, como em uma
taberna.
“Um mês depois, Biélikov morreu. Fomos todos ao enterro, quer
dizer, os dois ginásios e o seminário. Naquele momento, deitado no
caixão, seu rosto tinha uma expressão mansa, agradável, até alegre,
como se estivesse contente por ter sido, afinal, colocado dentro de
um estojo, do qual nunca mais sairia. Pois é, ele alcançou o seu
ideal! E como se fosse uma homenagem para ele, na hora do
enterro o tempo estava encoberto, chuvoso, e todos nós calçávamos
galochas e segurávamos guarda-chuvas. Várienka também foi ao
enterro e, quando baixaram o caixão na sepultura, chorou um
pouco. Eu notei que as ucranianas só choram ou riem,
desconhecem os estados de espírito intermediários.
“Admito que enterrar pessoas como Biélikov é uma grande
satisfação. Quando voltamos do cemitério tínhamos fisionomias
melancólicas, austeras, ninguém estava disposto a revelar aquele
sentimento de satisfação, um sentimento parecido com o que
experimentávamos muito tempo antes, ainda na infância, quando
os adultos saíam de casa e nós podíamos correr à vontade pelo
jardim durante umas duas horas e desfrutar uma liberdade
completa. Ah, a liberdade, a liberdade! A mera sugestão, a mais
tênue esperança dessa possibilidade, já basta para dar asas à alma,
não é verdade?
“Pois bem. Retornamos do cemitério num bom estado de
espírito. No entanto, não passou nem uma semana e a vida voltou a
se arrastar como antes, a mesma vida austera, fatigante, sem
sentido, sem as proibições inscritas nas circulares, mas tampouco
inteiramente livre; a vida não ficou melhor. De fato, enterramos o
Biélikov, mas quantos homens no estojo restaram, e quantos ainda
vão nascer!”
— É isso mesmo, essa é a questão — disse Ivan Ivánitch, e
fumou o cachimbo.
— Quantos ainda vão nascer! — repetiu Búrkin.
O professor do ginásio saiu do celeiro. Era baixo, gordo,
totalmente careca, de barba preta que batia quase na cintura; junto
com ele, saíram os dois cães.
— Olhe só a lua. Que lua! — disse, olhando para o alto.
Já era meia-noite. À direita, via-se todo o povoado, a rua
comprida se estendia até longe, por umas cinco verstas. Tudo
estava imerso num sono sereno e profundo; nenhum movimento,
nenhum som, nem dava para acreditar que a natureza pudesse ser
tão silenciosa. Quando vemos, de madrugada, ao luar, a rua
comprida de um povoado rural, com suas isbás, suas medas de
feno, seus salgueiros adormecidos, nossa alma também fica serena;
nessa calma, nas sombras da madrugada, ela procura abrigo dos
trabalhos, das preocupações e do desgosto, ela se torna dócil,
tristonha, bonita, e parece que as estrelas olham para ela com
carinho e ternura, parece que já não existe maldade no mundo e
que tudo vai bem. À esquerda, na ponta do povoado, começa o
campo; visível até bem longe, até o horizonte, e em toda a esfera
desse campo, banhado pelo luar, também não há nenhum
movimento, nenhum som.
— Isso mesmo, essa é a questão — repetiu Ivan Ivánitch. — E,
por acaso, viver na cidade, no abafamento, na aglomeração,
escrever textos supérfluos, jogar baralho, por acaso isso também
não é um estojo? Passar a vida toda, como nós fazemos, no meio de
homens ociosos e briguentos, entre mulheres tolas e desocupadas,
dizer e ouvir toda sorte de absurdo, por acaso isso não é um estojo?
Sabe, se quiser, eu posso contar para o senhor uma história muito
instrutiva.
— Não, já é hora de dormir — respondeu Búrkin. — Até
amanhã!
Os dois entraram no celeiro e deitaram sobre o feno. Ambos já
estavam cobertos e começavam a pegar no sono, quando, de
repente, ouviram passos leves: tup, tup… Alguém caminhava perto
do celeiro; andou mais um pouco e se deteve, mas, depois de um
minuto, recomeçou: tup, tup… Os cães latiram.
— É a Mavra que está caminhando — disse Búrkin.
Os passos cessaram.
— Ter de ver e ouvir como as pessoas mentem — falou Ivan
Ivánitch, virando-se para o outro lado. — E ainda chamam você de
imbecil, porque tolera essas mentiras; você suporta ofensas,
humilhações, não ousa manifestar abertamente que está do lado das
pessoas honestas, livres, e você mesmo mente, sorri, e tudo por
causa de um pedaço de pão, por causa de um cantinho aquecido, de
um empreguinho qualquer, que não vale um tostão… não, é
impossível continuar a viver desse jeito!
— Ora, Ivan Ivánitch, isso aí já é de outra ópera — disse o
professor. — Vamos dormir.
Uns dez minutos depois, Búrkin já estava dormindo. Mas Ivan
Ivánitch continuava a se virar de um lado para o outro, suspirava, e
depois se levantou, foi para fora de novo, sentou-se junto à porta e
se pôs a fumar um cachimbo.

1898
A groselheira

Desde manhã cedo, nuvens de chuva encobriam o céu de ponta a


ponta; o tempo estava ameno, não fazia muito calor nem havia a
sensação de melancolia, comum em dias chuvosos e nublados,
quando nuvens pairam longo tempo acima do campo e as pessoas
ficam esperando a chuva, mas ela não vem. O veterinário Ivan
Ivánitch e o professor de ginásio Búrkin já estavam exaustos de
caminhar, o campo lhes parecia interminável. À frente, ao longe, se
avistavam a muito custo os moinhos de vento do povoado de
Mironóssitskoie, uma série de colinas se estendia à direita e,
depois, desaparecia na distância, e os dois sabiam que lá ficava a
margem do rio, havia campinas, salgueiros verdejantes e sítios, e
sabiam que, do alto de uma daquelas colinas, poderiam avistar
outro campo igualmente vasto, postes telegráficos e o trem, que, de
longe, parecia uma lagarta se arrastando, e sabiam também que de
lá, num dia limpo, dava para avistar até a cidade. Agora, com o
tempo ameno, quando toda a natureza parecia mansa e pensativa,
Ivan Ivánitch e Búrkin sentiam-se impregnados de amor por aquele
campo e pensavam em como este país é grande e belo.
— Da outra vez, quando ficamos no celeiro do estaroste Prokófi
— disse Búrkin —, o senhor queria me contar uma história.
— Foi sim, eu queria contar a história do meu irmão.
Ivan Ivánitch deu um longo suspiro e se pôs a fumar o cachimbo
para começar sua história, porém, exatamente naquele instante,
veio a chuva. Uns cinco minutos depois a chuva já caía forte,
caudalosa, e era difícil prever quando ia terminar. Ivan Ivánitch e
Búrkin se detiveram, pensando no que fazer; os cães, também
quietos, já ensopados e com o rabo entre as pernas, olhavam para
eles com ternura.
— Precisamos nos abrigar em algum canto — disse Búrkin. —
Vamos à casa do Aliókhin. Fica perto.
— Vamos lá.
Viraram para outra direção e caminharam, sem parar, pelo
campo ceifado, ora em linha reta, ora numa diagonal à direita, até
chegarem à estrada. Logo surgiram choupos, pomares e, depois, os
telhados vermelhos dos celeiros; o rio começou a rebrilhar ao
fundo e se abriu a visão de um braço de rio, com um moinho e um
poço branco para banhos. O lugar se chamava Sófino, a morada de
Aliókhin.
O moinho estava em funcionamento, o ruído abafava o barulho
da chuva; a barragem tremia. Perto de uma carroça, havia cavalos
encharcados, de cabeça baixa, enquanto pessoas caminhavam com
sacos sobre a cabeça. O vento uivava úmido, sujo, incômodo, a água
do braço de rio parecia gelada e hostil. Ivan Ivánitch e Búrkin já
experimentavam, em todo o corpo, a sensação de molhado, de
sujeira, de incômodo, pés e pernas pesavam muito por causa da
lama e, enquanto os dois subiam rumo ao celeiro senhorial,
passando pela barragem, mantinham-se calados, como se
estivessem irritados um com o outro.
Num dos celeiros, ouvia-se o barulho da máquina de peneirar; a
porta estava aberta e, através dela, saía uma poeira. No limiar estava
o próprio Aliókhin, alto, corpulento, de uns quarenta anos, cabelos
compridos, mais parecia um professor universitário ou pintor do
que um agricultor. Vestia uma camisa branca, que fazia muito
tempo não era lavada, usava uma corda em lugar de cinto e ceroulas
em lugar de calças, e tinha lama e palha grudadas nas botas. O nariz
e os olhos estavam pretos de poeira. Conhecia Ivan Ivánitch e
Búrkin e, pelo visto, ficou alegre com a visita.
— Por favor, senhores, vão indo para a minha casa — disse,
sorrindo. — Eu já vou, num minuto.
A casa era grande, tinha dois andares. Aliókhin morava no
térreo, em dois cômodos de teto abobadado e janelas pequenas,
onde, em outros tempos, moravam os encarregados da
administração da propriedade; a mobília era simples, o ar cheirava a
pão de centeio, vodca barata e arreios de cavalo. Ao andar de cima,
os cômodos dos nobres, Aliókhin raramente subia, só quando
chegavam visitas. Ivan Ivánitch e Búrkin foram recebidos pela
criada, uma jovem tão bonita que os dois se detiveram ao mesmo
tempo e olharam um para o outro.
— Nem podem imaginar como estou contente de vê-los aqui,
senhores — disse Aliókhin no vestíbulo, logo depois que eles
entraram. — Eu não estava esperando! Pelagueia! — Voltou-se para
a criada. — Traga roupas para as visitas se trocarem. E também vou
aproveitar para eu mesmo me trocar. Só que, primeiro, preciso me
lavar, senão vão achar que eu não me lavo desde a primavera. Mas
os senhores não gostariam de ir se banhar no poço, enquanto eles
arrumam tudo por aqui?
A bela Pelagueia, tão delicada e de feições tão dóceis, trouxe
toalhas e sabão e Aliókhin foi banhar-se no poço, com as visitas.
— Pois é, já faz muito tempo que eu não tomo banho — disse,
enquanto se despia. — Como estão vendo, tenho aqui um poço de
banhos muito bom, foi meu pai que construiu, só que eu nunca
tenho tempo para me lavar.
Sentou-se num degrau da escadinha e lavou os cabelos
compridos e o pescoço, enquanto a água à sua volta se tingia de
marrom.
— É, eu estou vendo… — disse Ivan Ivánitch, em tom
expressivo, enquanto olhava para a cabeça dele.
— Já faz muito tempo que eu não me lavo… — repetiu Aliókhin,
encabulado, lavou-se de novo e, agora, a água à sua volta ficou azul-
escura, como tinta de escrever.
Ivan Ivánitch foi até a beira do poço, atirou-se na água com
estrondo e nadou debaixo da chuva, com largas braçadas, enquanto
ondas se abriam à sua passagem e, sobre elas, balançavam lírios
brancos; nadou até o meio do braço de rio, afundou e, após um
minuto, surgiu mais adiante, nadou mais um pouco e afundou
muitas vezes, tentando tocar o fundo. “Ah, meu Deus…”, repetia,
extasiado. “Ah, meu Deus…” Nadou até o moinho, trocou algumas
palavras com os mujiques, voltou até o meio do braço do rio e, ali,
se deixou boiar, deitado, o rosto debaixo da chuva. Búrkin e
Aliókhin já tinham se vestido e se preparavam para ir embora, mas
ele não parava de nadar e mergulhar.
— Ah, meu Deus… — dizia. — Ah, Senhor, misericórdia…
— Ei, vamos lá, já chega! — gritou Búrkin.
Voltaram para casa. E só quando acenderam o grande lampião na
sala do primeiro andar e Búrkin e Ivan Ivánitch, vestidos em
roupões de seda e calçados em chinelas aquecidas, sentaram nas
poltronas, e o próprio Aliókhin, lavado, penteado, de casaco novo,
caminhava pela sala sentindo, com evidente satisfação, o calor, a
limpeza, as roupas secas, os calçados leves, enquanto a bela
Pelagueia, pisando no tapete sem fazer barulho, sorrindo de leve,
servia chá e geleia numa bandeja, só então Ivan Ivánitch deu início
à sua história, e parecia que não eram só Búrkin e Aliókhin que
estavam ouvindo, mas também as damas, velhas e jovens, e os
militares que, nas molduras douradas nas paredes, olhavam para
eles com ar sereno e austero.
— Somos dois irmãos — começou. — Eu, Ivan Ivánitch, e o
outro, Nikolai Ivánitch, uns dois anos mais jovem. Eu estudei na
universidade e me tornei veterinário, mas o Nikolai, desde os
dezenove anos, é funcionário da câmara fiscal. Nosso pai,
Tchimcha-Guimaláiski, foi soldado raso desde muito novo, porém,
como acabou a carreira no posto de oficial, nos deixou de legado
um título de nobreza hereditária[40] e uma pequena propriedade
rural. Depois da sua morte, a nossa propriedade foi confiscada a fim
de saldar dívidas, mas, apesar de tudo, vivemos nossa infância no
campo com bastante liberdade. Assim como as crianças
camponesas, nós passávamos os dias e as noites nos campos, na
mata, pastoreávamos os cavalos, arrancávamos a casca das árvores
para fazer sandálias, pescávamos, fazíamos várias coisas desse
tipo… E, vocês sabem, quem, uma vez na vida, já pescou percas ou
viu os tordos migratórios passarem em bando por cima das aldeias
nos dias cristalinos do outono, essa pessoa jamais será um habitante
da cidade e, até morrer, vai aspirar à vida em liberdade. Meu irmão
achava seu trabalho maçante. Os anos foram passando e ele, sempre
no mesmo emprego, sempre escrevendo os mesmos documentos,
sempre pensava a mesma coisa: Quem dera eu estivesse no campo!
E, pouco a pouco, aquele tédio acabou se consolidando num desejo
bem definido, o sonho de comprar uma pequena propriedade rural,
em qualquer canto, na beira de um rio ou lago.
“Ele era um homem bom, doce, eu adorava o meu irmão, porém
aquele desejo de se isolar a vida toda numa propriedade rural nunca
despertou a minha simpatia. É costume dizer que um homem só
precisa de três archin[41] de terra. Mas quem precisa de três archin
de terra é um cadáver, e não um uma pessoa. E agora também é
costume dizer que a nossa intelliguéntsia[42] tem atração pela terra e
aspira à vida rural, aos sítios, e, portanto, isso é bom. Só que esses
sítios acabam sendo aqueles mesmos três archin de terra. Deixar
para trás a cidade, a luta, o tumulto cotidiano, ir embora e se
esconder numa propriedade rural, isso não é vida, é egoísmo,
preguiça, é um tipo de vida monástica, mas uma vida monástica
sem nenhuma obra importante. O homem não precisa de três
archin de terra, de um sítio, mas de toda a esfera terrestre, de toda a
natureza, onde ele possa manifestar todas as faculdades e
capacidades de sua alma livre.
“Meu irmão Nikolai, enquanto trabalhava metido na sua
repartição, sonhava que ia tomar a sua schi[43] feita com os legumes
plantados por ele mesmo, cujo aroma saboroso iria se espalhar por
todo o pátio, sonhava que ia comer sentado na relva verdejante,
dormir sob o sol amigo, passar horas e horas num banquinho, junto
ao portão, olhando para o campo e para o bosque. Os livros de
agronomia e todos esses manuais e calendários agrícolas eram a sua
grande alegria, o seu alimento espiritual predileto; ele adorava ler
jornais, mas só lia os anúncios da venda de não sei quantas
deciatinas[44] de terra arável e pastos, com uma casa de fazenda, um
rio, um pomar, um moinho e açudes de água corrente. E, na sua
cabeça, vinha a imagem de trilhas no meio do pomar, flores, frutas,
casinhas suspensas para os passarinhos fazerem ninhos, carpas nos
açudes, enfim, vocês sabem, toda essa conversa. Aqueles quadros
imaginários variavam conforme os anúncios que apareciam diante
de seus olhos, mas, sei lá por que razão, em todos os anúncios, sem
exceção, havia sempre uma groselheira. Ele não conseguia
conceber nenhum sítio, nenhum recanto poético, sem que lá
houvesse uma groselheira.
“‘A vida rural tem seus prazeres', dizia muitas vezes. ‘Ficar
sentado na varanda, tomando chá, os patinhos nadando no lago, um
cheiro delicioso no ar e… e uma groselheira bem viçosa.'
“Ele sempre traçava um plano para a sua propriedade, só que,
toda vez, o plano acabava ficando igual: a) a casa senhorial; b) a casa
dos empregados; c) a horta; d) a groselheira. Levava uma vida de
muita parcimônia: não comia muito, não bebia muito, vestia-se
Deus sabe como, parecia um mendigo, e sempre poupava dinheiro
e depositava no banco. Era tremendamente sovina. Só de olhar para
ele me dava pena, eu lhe mandava algum dinheiro, o presenteava
nos dias de festa, mas até isso ele poupava. Quando uma pessoa
dessas enfia uma ideia na cabeça, não há nada que dê jeito.
“Os anos foram passando, ele foi transferido para outra
província, já contava mais de quarenta anos, vivia lendo os mesmos
anúncios nos jornais e sempre poupando dinheiro. Depois, eu
soube que ele casou. Sempre com o mesmo objetivo de comprar
um sítio com uma groselheira, ele casou, sem nenhum sentimento,
com uma viúva velha e feia, só porque tinha algum dinheirinho.
Casado, continuou a viver com parcimônia, mantinha a esposa
numa dieta de fome e depositava o dinheiro dela no banco, em seu
próprio nome. Antes, ela fora esposa de um diretor dos correios e
estava acostumada a ter na mesa empadões e licores de frutas, mas,
com o segundo marido, o pão preto nem dava para matar a fome;
com aquela vida, a mulher começou a definhar e, após três anos,
desistiu e entregou a alma a Deus. Claro que, nem por um minuto,
passou pela cabeça do meu irmão que ele era o culpado da morte da
esposa. O dinheiro, como a vodca, transforma o homem numa
criatura muito estranha. Em nossa cidade, morreu um comerciante.
Antes de morrer, ele ordenou que trouxessem um prato de mel e
comeu todo seu dinheiro e seus títulos bancários misturados com o
mel, para que ninguém tirasse proveito daquilo. Um dia, na estação
de trem, eu estava fazendo a inspeção de um rebanho e, naquele
momento, um negociante caiu embaixo de uma locomotiva e teve a
perna amputada. Levamos o homem para o hospital, o sangue
jorrava, uma situação terrível, e ele não parava de suplicar que
encontrássemos sua perna, pois só aí tudo ficaria resolvido; dentro
da bota da perna amputada, havia vinte rublos, e ele não podia
perder aquele dinheiro.”
— Isso aí já é de outra ópera — retrucou Búrkin.
— Quando morreu a esposa — prosseguiu Ivan Ivánitch, após
refletir um minuto —, meu irmão começou a procurar uma
propriedade rural. Claro, mesmo que você procure por cinco anos,
no final, não vai conseguir comprar aquilo que tanto sonhou e vai
acabar cometendo um engano. Por meio de um corretor, e
mediante um contrato de cessão de dívida, meu irmão Nikolai
adquiriu cento e doze deciatinas de terra, com casa senhorial,
habitação para os empregados, parque, mas sem pomar nem
groselheira nem açudes com patinhos; havia um rio, mas a água
tinha cor de café, porque, de um lado da fazenda, havia uma fábrica
de tijolos e, do outro, uma fábrica de cinzas de ossos. No entanto, o
meu Nikolai pouco se abateu com aquilo; encomendou vinte
mudas de groselheira, plantou-as e começou a viver como um
senhor de terras.
“Ano passado, fiz uma visita a ele. Eu pensei assim: vou até lá e
dou uma olhada, para ver como andam as coisas. Nas cartas, meu
irmão chamava suas terras de ‘Descampado de Tchumbaroklov' e
também de ‘Guimaláiskoie'. Cheguei a ‘Guimaláiskoie' depois do
meio-dia. Fazia muito calor. Por todo lado havia valas, cercas, sebes,
pinheiros plantados em fileiras, e não dava para saber como entrar
no pátio nem onde deixar o cavalo. Caminhei até a casa, um
cachorro ruivo correu a meu encontro, gordo, parecia um porco.
Queria latir, mas a preguiça não deixou. Da cozinha, veio a
cozinheira descalça, gorda, também parecia um porco, e disse que o
patrão tinha acabado de almoçar e estava descansando. Entrei no
quarto do meu irmão, ele estava sentado na cama, os joelhos
debaixo de um cobertor; tinha envelhecido, engordado, estava
obeso; bochechas, nariz e beiços repuxados para a frente, faltava
pouco para começar a grunhir embaixo do cobertor.
“Abraçamos um ao outro e vertemos algumas lágrimas de
alegria, mas também porque a mocidade tinha ficado para trás, bem
longe, e ambos já estávamos grisalhos e a caminho da morte. Ele
trocou de roupa e me levou para mostrar sua propriedade.
“‘E então, como tem passado por aqui?', perguntei.
“‘Tudo certo, graças a Deus, eu vivo bem.'
“Já não era o tímido funcionário pobretão de antigamente, mas
um autêntico senhor de terras, um bárin.[45] Já havia se adaptado,
criara o hábito e tomara gosto por aquela vida; comia muito, lavava-
se na bánia,[46] ganhara corpo. Já havia entrado na justiça contra a
administração local e contra as duas fábricas e se mostrava muito
ofendido quando os mujiques não o tratavam de ‘vossa
excelentíssima'. Preocupava-se seriamente com a própria alma, à
maneira dos bárin, fazia boas ações, não com humildade, mas com
soberba. Que boas ações eram essas? Tratava qualquer doença dos
mujiques com soda e óleo de rícino e, no dia do seu santo
onomástico, mandava rezar uma missa de ação de graças no meio
da aldeia dos camponeses e depois servia meio balde de vodca, pois
achava que era indispensável. Ah, esses horríveis meios baldes de
vodca! Num dia, o gordo senhor de terra arrasta os mujiques para a
polícia local porque deixaram seus animais pisotearem a lavoura
dele e, no dia seguinte, como é feriado, manda servir para os
mesmos mujiques meio balde de vodca, e eles bebem, gritam
‘Hurra!' e, embriagados, se curvam aos pés do senhor de terras. A
melhoria das condições de vida, a fartura, o ócio fomentam nos
russos a presunção, até a insolência. Nikolai Ivánitch, que, em
outros tempos, na câmara fiscal, chegava a sentir pavor de ter
opiniões próprias, ainda que só em pensamento, agora só dizia
grandes verdades, e tudo no tom de voz de um ministro:
‘A educação é necessária, mas, para o povo, isso é prematuro' e ‘os
castigos corporais são de todo perniciosos, mas em certos casos são
úteis e insubstituíveis'.
“‘Eu conheço o povo e sei como lidar com ele', dizia. ‘O povo me
ama. Basta acenar com o dedo, que o povo faz tudo que eu quiser.'
“E, note bem, o Nikolai falava tudo isso com um sorriso
inteligente e bondoso no rosto. Ele repetiu umas vinte vezes: ‘nós,
os nobres', ‘eu, como nobre'; era evidente que já havia esquecido
que nosso avô era um mujique e nosso pai, um soldado. Até o nome
de nossa família, Tchimcha-Guimaláiski, um completo disparate,
agora lhe parecia sonoro, cheio de distinção e muito agradável.
“Mas a questão não é o meu irmão, e sim eu mesmo. Quero
contar a vocês que mudança se deu em mim, naquelas poucas horas
em que estive na fazenda do meu irmão. À tardinha, enquanto
tomávamos chá, a cozinheira trouxe para a mesa um prato cheio de
groselhas. Não eram groselhas compradas, mas próprias do meu
irmão, colhidas ali, pela primeira vez desde que as mudas foram
plantadas. Nikolai Ivánitch deu uma risada, olhou para as groselhas
por um minuto e emudeceu, surgiram lágrimas em seus olhos, a
emoção o impediu de falar, em seguida colocou uma das frutas na
boca, olhou bem para mim, com o ar de uma criança em triunfo
que, afinal, ganhou seu brinquedo predileto, e disse:
“‘Que delícia!'
“Devorou-as com voracidade e repetia, sem parar:
“‘Ah, que delícia! Experimente!'
“Eram duras e azedas, porém, como disse Púchkin, ‘para nós,
uma ilusão sublime vale mais do que todas as verdades'.[47] Eu
estava diante de um homem feliz, cujo sonho mais querido havia se
tornado realidade palpável, um homem que alcançara o objetivo de
sua vida, obtivera o que tanto desejava, um homem satisfeito
consigo mesmo e com seu destino. Não sei por que razão, mas, aos
meus pensamentos acerca da felicidade humana sempre se
misturava algo de triste e, naquele momento, diante da imagem de
um homem feliz, fui dominado por um sentimento aflitivo,
próximo ao desespero. E a madrugada foi particularmente sofrida.
Arrumaram uma cama no quarto contíguo ao do meu irmão para eu
dormir e, ali, pude ouvir que ele não dormia, levantava da cama,
andava até o prato de groselhas e pegava uma frutinha de cada vez.
E pensei: No fundo, quanta gente satisfeita existe no mundo,
quanta gente feliz! Que força tão avassaladora é essa! Olhem para
esta vida: a arrogância e a ociosidade dos fortes, a ignorância e a
rudeza dos fracos, por todo lado, uma pobreza inconcebível,
moradias apertadas, degradação, embriaguez, hipocrisia,
mentiras… Enquanto isso, em todas as casas e nas ruas, o silêncio,
o sossego; dos cinquenta mil habitantes de uma cidade, não há um
só que grite, que manifeste em voz alta sua indignação. Nós vemos
as pessoas que vão ao mercado comprar mantimentos, comem de
dia, dormem à noite, falam suas bobagens, casam, envelhecem,
levam mansamente seus mortos para o cemitério; mas não vemos
nem ouvimos as pessoas que sofrem nem as coisas terríveis que se
passam nos bastidores da vida. Tudo é silêncio, sossego, e o único
protesto vem da estatística muda: tantos casos de loucura, tantos
litros de vodca consumidos, tantas crianças mortas de
subnutrição… E essa ordem das coisas, sem dúvida, é necessária;
sem dúvida, a pessoa feliz se sente bem só porque os infelizes
carregam seu fardo em silêncio e, sem tal silêncio, sua felicidade
seria impossível. É uma hipnose generalizada. Atrás da porta de
cada pessoa feliz e satisfeita, teria de haver alguém que, com as
batidas de um martelinho, obrigasse essa pessoa, o tempo todo, a
lembrar que os infelizes existem, que, cedo ou tarde, por mais feliz
que ela seja, a vida vai lhe mostrar suas garras, vai sobrevir a
desgraça, a doença, a pobreza, as privações, e ninguém vai querer
vê-la nem ouvi-la, assim como ela, hoje, não vê nem ouve os outros.
Só que esse homem com um martelinho na mão não existe e,
então, a pessoa feliz vai levando sua vida, as pequenas agruras do
dia a dia apenas resvalam nela, como um vento de outono e, assim,
tudo continua correndo às mil maravilhas.
“Naquela madrugada, me dei conta de que eu também era uma
pessoa satisfeita e feliz”, prosseguiu Ivan Ivánitch, e se pôs de pé.
“Na hora do almoço e durante a caçada, eu também dava lições de
como viver, como ter fé, como governar o povo. Eu também dizia
que o ensino é a luz, que a educação é indispensável, mas que, para
as pessoas simples, por ora, basta apenas a alfabetização. A
liberdade é um bem, eu dizia, sem ela, é impossível viver, a
liberdade é como o ar que se respira, só que é preciso esperar mais
um pouco. Pois bem, eu dizia isso, mas agora pergunto: esperar em
nome de quê?”, indagou Ivan Ivánitch, olhando zangado para
Búrkin. “Esperar em nome de quê, eu lhe pergunto. Em nome de
quais considerações? Dizem para mim que nada acontece de uma
vez, toda ideia se realiza na vida aos poucos, na hora certa. Mas
quem foi que disse isso? Onde está a prova de que isso é justo? Os
senhores argumentam mencionando a ordem natural das coisas, a
lei dos fenômenos, mas por acaso existe ordem ou lei que me
obrigue, eu, uma pessoa viva e pensante, a ficar parado à beira de
um abismo, esperando que ele se feche sozinho ou que se encha até
a borda com os sedimentos de solo que vão se acumulando, se
durante todo esse tempo eu poderia perfeitamente atravessar o
abismo ou construir uma ponte de um lado a outro? E, mais uma
vez: esperar em nome de quê? Esperar até que eu não tenha mais
forças para viver, se, enquanto isso, é preciso viver e eu tenho
vontade de viver?
“De manhã cedo, fui embora da casa do meu irmão e, desde
então, para mim, viver na cidade se tornou insuportável. O silêncio
e o sossego me oprimem, tenho medo até de olhar para a janela,
pois para mim, agora, não há espetáculo mais aflitivo do que uma
família feliz, sentada em torno da mesa, tomando chá. Eu já estou
velho, não sirvo para lutar, não sou capaz nem de odiar. Apenas me
angustio por dentro, me irrito, me aborreço, à noite minha cabeça
ferve com uma enxurrada de pensamentos e não consigo dormir…
Ah, quem dera eu fosse jovem!”
Em sua comoção, Ivan Ivánitch ficou andando de um lado para
outro e repetia:
— Quem dera eu fosse jovem!
De repente, chegou perto de Aliókhin e começou a apertar suas
mãos, ora a esquerda, ora a direita.
— Pável Konstantínitch — exclamou em voz de súplica. — Não
se entregue à apatia, não caia no estupor! Enquanto for jovem,
forte, bom, não deixe de fazer o bem! A felicidade não existe, não
deve existir, mas se há algum sentido ou propósito na vida, tal
sentido e tal propósito não se encontram, de jeito nenhum, na
nossa felicidade, mas sim em algo mais racional e importante. Faça
o bem!
E Ivan Ivánitch falou tudo isso com um sorriso suplicante, digno
de pena, como se estivesse pedindo para si mesmo.
Em seguida, os três continuaram sentados em suas poltronas,
em extremidades opostas da sala, e se mantiveram em silêncio. A
história de Ivan Ivánitch não satisfez nem Búrkin nem Aliókhin.
Sob o olhar dos generais e das damas, que, em suas molduras
douradas, na penumbra, pareciam estar vivos, era enfadonho
escutar a história de um funcionário pobretão que comia groselhas.
Por alguma razão, os três sentiam vontade de ouvir histórias de
pessoas elegantes, de mulheres. E a circunstância de estarem numa
sala onde tudo — o lustre encapado, as poltronas, os tapetes sob os
pés —, tudo dizia que ali, em outros tempos, tinham caminhado,
sentado, tomado chá aquelas mesmas pessoas que agora estavam
olhando de suas molduras e, de outro lado, o fato de que ali,
também agora, sem fazer o menor ruído, caminhava a bela
Pelagueia, tudo aquilo era melhor do que qualquer história.
Aliókhin estava morrendo de vontade de dormir; acordava cedo,
antes das três da madrugada, para cuidar da propriedade, e, agora,
seus olhos queriam fechar, porém ele temia que as visitas
contassem algo interessante em sua ausência e, por isso, não saiu.
Se era sensato, se era justo o que Ivan Ivánitch acabara de dizer,
Aliókhin nem parou para pensar no assunto; as visitas não estavam
falando de cereais, de feno, de alcatrão, mas de algo sem relação
direta com sua vida, e ele se sentia contente e queria que
continuassem…
— Mas já está na hora de dormir — disse Búrkin e levantou-se.
— Permitam que eu lhes deseje boa noite.
Aliókhin se despediu e foi para seu quarto, no térreo, enquanto
os hóspedes ficaram no primeiro andar. Os dois foram conduzidos
para pernoitar num quarto amplo, com duas camas grandes, velhas,
de madeira, com enfeites lavrados e, no canto, um crucifixo de
marfim; dos leitos largos, frescos, arrumados pela bela Pelagueia,
vinha o cheiro agradável de roupa de cama limpa.
Ivan Ivánitch despiu-se em silêncio e se deitou.
— Deus, perdoai a nós, pecadores! — disse, e cobriu-se todo,
até a cabeça.
De seu cachimbo, colocado sobre a mesa, vinha um forte cheiro
de tabaco queimado e Búrkin passou muito tempo desperto, sem
entender de onde vinha aquele cheiro forte.
A chuva bateu na janela a noite inteira.

1898
Sobre o amor

No desjejum do dia seguinte, serviram pirojki[48] muito saborosos,


caranguejos e bolinhos de carne de carneiro; enquanto comiam, o
cozinheiro Nikanor subiu ao primeiro andar para perguntar o que
as visitas desejavam para o almoço. De estatura mediana, rosto
balofo, olhos miúdos, barba rala, seu bigode dava a impressão de
que não tinha sido raspado, mas sim depilado.
Aliókhin contou que a bela Pelagueia estava apaixonada pelo
cozinheiro. Como era beberrão e de índole violenta, Pelagueia não
queria casar com ele, no entanto, aceitava viver com o cozinheiro,
mesmo sem casar. Só que o cozinheiro era muito devoto e as
convicções religiosas não lhe permitiam viver assim; exigia que ela
se casasse com ele, de outro modo não aceitaria, e insultava
Pelagueia, quando bêbado chegava a bater na jovem. Quando o
cozinheiro bebia, Pelagueia se escondia no primeiro andar, ficava
soluçando e, naquelas ocasiões, Aliókhin e a outra criada não saíam
de casa, para poder protegê-la, caso necessário.
Passaram a falar de amor.
— Como nasce o amor? — disse Aliókhin. — Por que Pelagueia
não se apaixonou por outra pessoa qualquer, alguém que combine
melhor com ela, com suas características morais e físicas, por que
foi se apaixonar logo pelo Nikanor, aquele focinho de porco, é
assim que todo mundo chama o Nikanor, já que a questão mais
importante, no amor, é a felicidade pessoal? Tudo isso é
desconhecido e podem interpretar o assunto como bem
entenderem. Até hoje, só uma verdade indiscutível foi dita sobre o
amor: justamente que ele é “um grande mistério”. Todo o resto que
escreveram e disseram sobre o amor não trouxe nenhuma solução,
mas apenas novas perguntas, que também ficaram sem resposta. A
explicação que parece servir para um caso não serve para dezenas
de outros, e a melhor solução, a meu ver, é explicar cada caso em
particular, sem tentar generalizar. Como dizem os médicos, é
preciso individualizar cada caso específico.
— Exatamente isso — concordou Búrkin.
— Nós, russos, pessoas respeitáveis, sentimos forte paixão por
perguntas sem resposta. Em geral, poetizam o amor, o enfeitam
com rosas, rouxinóis, mas nós, russos, enfeitamos nosso amor com
essas questões fatídicas e, de quebra, escolhemos, entre elas, as
menos interessantes. Em Moscou, quando ainda era estudante na
faculdade, eu tinha uma amante, uma dama muito doce e, toda vez
que eu a tomava em meus braços, pensava em quanto eu daria para
ela por mês e a quantas andaria, naquele momento, o preço do
quilo da carne bovina. Porque nós, quando amamos, não paramos
de nos indagar se aquilo é honesto ou desonesto, sensato ou tolo,
aonde será que vai dar aquele amor etc. etc. Se isso é bom ou ruim,
eu não sei, mas que atrapalha, não dá satisfação nenhuma e irrita…
isso eu sei.
Ele parecia querer contar uma história. Pessoas que vivem
sozinhas sempre trazem no espírito algo que gostariam muito de
contar. Na cidade, os solteirões vão às bánias e aos restaurantes
com a expressa intenção de conversar e, às vezes, contar aos
atendentes da bánia e aos garçons do restaurante histórias muito
interessantes; porém, no campo, eles costumam dar vazão à sua
alma na presença de visitas. Agora, pela janela, se via o céu
cinzento e as árvores molhadas de chuva; num tempo daqueles,
nem se podia pensar em ir a lugar nenhum e nada mais havia para
fazer, senão contar e ouvir.
— Já faz muito tempo que eu moro em Sófino e trabalho no
campo desde que terminei a universidade — começou Aliókhin. —
Por formação, não sou um homem de trabalho braçal; por
inclinação, sou um homem de gabinete, mas, quando vim para cá, a
fazenda estava com muitas dívidas, e, como meu pai se endividou,
em parte, porque gastou muito dinheiro com a minha educação,
decidi não ir embora e trabalhar até pagar aquela dívida. Tomei a
decisão e comecei a trabalhar aqui, confesso, não sem alguma
repugnância. Aqui o solo rende pouco e, para que a atividade
agrícola não desse prejuízo, era preciso usar o trabalho de servos ou
de diaristas, o que quase dá na mesma, ou então explorar a terra à
maneira dos camponeses, quer dizer, trabalhar no campo você
mesmo, junto com a sua família. Aqui, não há meio-termo. Mas,
naquele tempo, eu não entrava nesses detalhes. Não deixei em paz
nem um só torrão de terra, tirei de casa todos os mujiques e
camponesas das aldeias vizinhas, o meu trabalho fervia num
frenesi; eu mesmo também arava, semeava, ceifava e, com isso, me
aborrecia e, com nojo, andava de cara amarrada, como um gato
rural que, forçado pela fome, vai comer legumes na horta; meu
corpo doía e eu chegava a dormir de pé, trabalhando. No início,
achei que eu poderia facilmente conciliar aquela vida de
trabalhador braçal com meus hábitos de homem instruído; para
isso, achei que bastaria conservar certa ordem exterior, na vida. Eu
me instalei aqui, no primeiro andar, nos cômodos da nobreza,
ordenei que me servissem café e licor depois do desjejum e depois
do almoço e, quando me deitava para dormir, ficava lendo até tarde
a revista O mensageiro da Europa.[49] Mas um dia apareceu o nosso
padre Ivan e, de uma única tacada, sorveu todos os meus licores; e
a revista O mensageiro da Europa também foi parar na casa do padre,
pois no verão, sobretudo na época da ceifa, eu não tinha tempo
nem de chegar à minha cama e pegava no sono num celeiro, num
trenó ou em qualquer canto, abrigado na casinha de algum guarda-
florestal… Também, o que dá para ler assim? Pouco a pouco, eu me
mudei para o térreo, passei a almoçar na cozinha dos empregados e,
do antigo luxo, só restaram esses criados, que já trabalhavam para o
meu pai e que, para mim, seria triste mandar embora.
“Em meus primeiros anos de vida aqui, fui escolhido para ser
juiz de paz honorário. De vez em quando, eu tinha de ir à cidade e
tomar parte nas sessões da assembleia e do tribunal do distrito, e
isso me distraía. Depois de passar dois ou três meses sem sair da
fazenda, ainda mais no inverno, no final, começa a dar saudades
daquela sobrecasaca preta que se usa na cidade. No tribunal do
distrito também usavam sobrecasaca, uniformes, fraques, todos são
juristas, pessoas de alto nível de instrução; eu tinha com quem
conversar. Depois de ter dormido num trenó, depois de ter comido
na cozinha dos empregados, poder sentar-se, afinal, numa poltrona
estofada, calçar botinas leves, vestir camisa de linho limpa, com
uma correntinha atravessada no peito… era muito luxo!
“Na cidade, me recebiam cordialmente e eu, de bom grado,
estreitava relações de amizade. Entre todas as amizades que fiz, a
mais consistente e, para dizer a verdade, a mais agradável, para
mim, foi a de Luganóvitch, um juiz, meu colega no tribunal do
distrito. Vocês dois o conhecem: uma personalidade gentilíssima.
Aconteceu logo depois do famoso caso dos incendiários; o
julgamento havia se prolongado por dois dias, nós estávamos
exaustos. Luganóvitch olhou para mim e disse:
“‘Sabe de uma coisa? Venha jantar na minha casa.'
“Aquilo foi bastante inesperado, pois eu pouco me dava com
Luganóvitch, só para questões de trabalho, e nunca tinha ido à sua
casa. Passei no meu quarto de hotel por um minuto, apenas para
trocar de roupa, e parti rumo ao jantar. Lá, eu tive ocasião de
conhecer Anna Alekséievna, esposa de Luganóvitch. Na época, ela
ainda era muito jovem, não mais de vinte e dois anos e, seis meses
antes, tivera o primeiro filho. Isso ocorreu há muito tempo e, hoje,
sinto dificuldade para definir exatamente o que havia nela de tão
incomum e que me agradou tanto, mas, naquele momento, durante
o jantar, tudo me parecia de uma clareza irrefutável; eu via uma
mulher jovem, linda, bondosa, inteligente, fascinante, como eu
nunca tinha encontrado; na mesma hora, pressenti nela uma
criatura próxima a mim, já familiar, como se eu já tivesse visto
aquele rosto, aqueles olhos afáveis, algum dia, na infância, num
álbum de fotografias sobre a cômoda de minha mãe.
“No caso dos incendiários, foram condenados quatro judeus;
consideraram que havia uma quadrilha, a meu ver, sem base
nenhuma. Durante o jantar eu me emocionei muito, trazia um peso
dentro de mim e já não lembro o que foi que eu disse, só lembro
que Anna Alekséievna, o tempo todo, balançava a cabeça e dizia
para o marido:
“‘Dmítri, mas como isso é possível?'
“Luganóvitch era uma boa alma, uma dessas pessoas ingênuas
que se aferram, com unhas e dentes, à ideia de que, se uma pessoa
vai a julgamento, quer dizer que é culpada, e também à ideia de que
só se pode expressar dúvida sobre a sentença conforme o protocolo
legal e por escrito, mas de maneira nenhuma durante um jantar,
numa conversa particular.
“‘Eu e o senhor não provocamos incêndios', disse, com voz
doce. ‘E não somos julgados, não somos presos.'
“E ambos, marido e esposa, se esforçaram para que eu comesse
e bebesse um pouco mais; com base em alguns detalhes de pouca
importância, por exemplo, a maneira como os dois faziam café
juntos, como se entendiam mutuamente com meias palavras, eu
pude concluir que viviam em paz e harmonia e que estavam
contentes com minha visita. Após o jantar, tocamos piano a quatro
mãos, depois escureceu e fui para o meu hotel. Era o início da
primavera. Passei todo o verão sem sair de Sófino e nem sequer
tinha tempo de pensar na cidade, mas a lembrança da mulher
esbelta e loura persistia em mim, todos os dias; eu não pensava
nela, propriamente, mas era como se sua sombra tênue se
estendesse sobre a minha alma.
“No fim do outono, apresentaram na cidade um espetáculo
beneficente. Fui ao camarote do governador (recebi um convite
para passar ali no intervalo) e, quando eu olho, ao lado do
governador, lá está Anna Alekséievna e, de novo, com um choque,
a mesma impressão irresistível de beleza, os mesmos olhos doces e
afetuosos e, de novo, o mesmo sentimento de uma pessoa próxima.
“Ficamos sentados lado a lado, depois fomos ao saguão.
“‘O senhor emagreceu', disse ela. ‘Esteve doente?'
“‘Sim. Tive um problema no ombro e, quando o tempo está
chuvoso, durmo mal.'
“‘O senhor parece um pouco abatido. Na primavera, quando
almoçou conosco, o senhor pareceu mais jovem, mais animado. Na
ocasião, o senhor se entusiasmou e falou muito, foi muito
interessante e, confesso, até fiquei um pouco atraída pelo senhor.
Por algum motivo, durante o verão, o senhor me veio à memória
muitas vezes e hoje, quando estava me arrumando para vir ao
teatro, achei que iria encontrá-lo aqui.'
“E ela riu.
“‘Mas hoje o senhor está com um ar abatido', repetiu. ‘Isso deixa
o senhor mais velho.'
“No dia seguinte, fiz o desjejum na casa de Luganóvitch. Depois
da refeição, eles partiram para sua casa de campo, a fim de tomar
providências relativas ao inverno, e eu fui com eles. Também voltei
com eles para a cidade e, à meia-noite, tomamos chá juntos,
naquele calmo ambiente familiar, diante da lareira acesa, enquanto,
volta e meia, a jovem mãe saía para verificar se a filha pequena
estava dormindo. Depois disso, toda vez que ia à cidade, visitava os
Luganóvitch. Eles se habituaram comigo, e eu com eles. Em geral,
eu chegava sem aviso, como alguém de casa.
“‘Quem é?', soava, de um cômodo distante, uma voz arrastada,
que me parecia tão linda.
“‘É o Pável Konstantínitch', respondia a criada ou a babá.
“Anna Alekséievna vinha a meu encontro, com rosto
preocupado, e sempre perguntava:
“‘Por que ficou tanto tempo sem vir aqui? Aconteceu alguma
coisa?'
“Seu olhar, a mão elegante, nobre, que ela estendia para mim,
seu vestido de casa, o penteado, a voz e os passos produziam em
mim sempre a mesma impressão de algo novo, extraordinário e
importante em minha vida. Conversávamos por muito tempo,
ficávamos muito tempo em silêncio, cada um com seus próprios
pensamentos, ou ela tocava piano para mim. Se não havia ninguém
em casa, eu ficava esperando, conversava com a babá, brincava com
a criança ou mesmo me deitava no gabinete, sobre um divã turco, e
lia o jornal, e quando Anna Alekséievna voltava, eu a recebia no
vestíbulo, tomava de suas mãos todas as compras e, não sei por que
motivo, sempre carregava aquelas compras com amor e com o ar
triunfante de um menino.
“Como diz aquele provérbio: Minha esposa vivia
despreocupada, até que comprou um leitão. Os Luganóvitch
também viviam despreocupados, até que travaram amizade comigo.
Se passava muito tempo sem que eu fosse à cidade, isso queria
dizer que eu estava doente ou que algo tinha acontecido comigo, e
os dois ficavam muito preocupados. Inquietavam-se porque eu,
homem culto, que falava outras línguas, em lugar de me ocupar
com a ciência ou a literatura, vivia no campo, sempre em
movimento, como um esquilo que corre dentro de uma roda, eu
trabalhava demais, porém nunca tinha dinheiro no bolso. Tinham a
impressão de que eu sofria muito e que, se eu conversava, ria,
comia, era só para esconder meus desgostos, e até nos momentos
de alegria, quando eu me sentia bem, eu percebia seus olhares
indagadores pousados em mim. Eram especialmente tocantes
quando eu me via, de fato, em apuros, quando algum credor me
assediava ou eu não tinha dinheiro bastante para algum pagamento
urgente; ambos, marido e esposa, trocavam sussurros junto à
janela, depois ele vinha até mim e, com rosto sério, dizia:
“‘Se o senhor, Pável Konstantínitch, está precisando de dinheiro
no momento, eu e minha esposa pedimos que não se acanhe de nos
pedir emprestado.'
“E suas orelhas ficavam vermelhas de emoção. Então acontecia
que, logo depois de trocar mais alguns sussurros com a esposa
junto à janela, ele se aproximava de mim, com as orelhas
vermelhas, e dizia:
“‘Eu e minha esposa pedimos com insistência que aceite este
nosso presente.'
“E me dava um par de abotoaduras, uma cigarreira ou um abajur
e, em troca, eu mandava da fazenda, para eles, uma ave abatida,
manteiga ou flores. Por falar nisso, os dois eram pessoas abastadas.
No início, eu tomava dinheiro emprestado com frequência, e não
era muito criterioso, eu pegava emprestado onde pudesse, porém
não havia no mundo força capaz de me obrigar a pedir um
empréstimo aos Luganóvitch. Eu nem queria ouvir falar do assunto!
“Eu era infeliz. Em casa, no campo, no celeiro, eu pensava nela,
tentava entender o mistério daquela mulher jovem, bonita,
inteligente, que casou com um homem banal, quase um velho (o
marido tinha mais de quarenta anos), e teve filhos com ele, eu
queria entender o mistério daquele homem banal, de boa índole,
simplório, que raciocinava com um bom senso maçante e, nos
bailes e nas festas, sempre procurava a companhia de pessoas
graves, um homem apático, supérfluo, de expressão submissa,
indiferente, como se fosse um objeto posto à venda, um homem
que, no entanto, acreditava no seu direito de ser feliz e ter filhos
com a esposa; e eu tentava entender, o tempo todo, por que ela
havia encontrado logo aquele homem e não a mim, e qual a
necessidade de um erro tão terrível como aquele em nossa vida?
“Toda vez que eu ia à cidade, percebia, pelos seus olhos, que ela
estava à minha espera; ela mesma me confessava que, desde manhã
cedo, tinha uma sensação diferente, ela adivinhava que eu ia chegar.
Conversávamos por muito tempo, ficávamos em silêncio, mas não
confessávamos nosso amor um para o outro, escondíamos aquilo
com timidez, com ciúmes. Temíamos tudo que pudesse revelar
nosso segredo para nós mesmos. Eu a amava com ternura, a fundo,
mas ponderava, perguntava a mim mesmo a que poderia levar
aquele nosso amor, se nos faltassem forças para lutar contra ele; eu
achava inacreditável que o meu amor sereno, melancólico, de
repente pudesse romper brutalmente o curso feliz da vida de seu
marido, dos filhos, de toda aquela casa, onde gostavam tanto de
mim e onde acreditavam em mim. Aquilo era honesto? Ela iria
embora comigo, sim, mas para onde? Para onde eu poderia levá-la?
Seria muito diferente, se eu tivesse uma vida bonita, interessante,
se eu, por exemplo, lutasse pela libertação da pátria ou fosse um
cientista, um artista, um pintor famoso, pois tudo que eu podia
fazer era afastá-la de uma vida rotineira e banal e levá-la para outra
vida igual àquela, ou ainda mais sem graça. E quanto tempo a nossa
felicidade iria durar? O que seria dela, caso eu adoecesse, ou
morresse, ou simplesmente se deixássemos de amar um ao outro?
“Ela também parecia raciocinar de modo semelhante. Pensava
no marido, nos filhos, em sua mãe, que amava o genro como um
filho. Se Anna Alekséievna se rendesse ao seu sentimento, teria de
mentir ou contar a verdade, mas, na sua situação, as duas opções
eram igualmente terríveis e constrangedoras. E uma questão a
atormentava: Por acaso seu amor traria felicidade para mim, não iria
complicar minha vida, em si mesma já tão difícil e cheia de
desgostos? Anna Alekséievna tinha a impressão de já não ser tão
jovem para mim, de não ser tão ativa e tão disposta a trabalhar, para
poder dar início a uma vida nova, e muitas vezes dizia ao marido
que eu precisava casar com uma jovem inteligente, digna, que fosse
boa dona de casa, uma boa ajudante, e logo acrescentava que, na
cidade inteira, seria difícil encontrar alguém assim.
“Entretanto, os anos passaram. Anna Alekséievna tinha já dois
filhos. Quando eu chegava à casa dos Luganóvitch, a criada sorria
de modo acolhedor, as crianças gritavam que o tio Pável
Konstantínitch tinha chegado, se penduravam no meu pescoço e
achavam que eu também estava contente. Todos viam em mim uma
criatura nobre. Tanto adultos quanto crianças sentiam que uma
criatura nobre caminhava pela casa, e aquilo incutia em sua relação
comigo uma espécie de encanto singular, como se, em minha
presença, sua vida também fosse mais pura e mais bela. Eu e Anna
Alekséievna íamos juntos ao teatro, sempre a pé; sentávamos lado a
lado, nossos ombros se tocavam, em silêncio, eu tomava o binóculo
de suas mãos e, naquele instante, sentia que ela era uma pessoa
próxima a mim, que ela era minha, que um não podia viver sem o
outro, mas, por força de algum estranho mal-entendido, quando
saíamos do teatro, sempre nos despedíamos e nos separávamos,
como dois desconhecidos. Na cidade, já andavam falando sobre
nós, sabe-se lá o quê, porém, de tudo que diziam, não havia
nenhuma palavra de verdade.
“Nos últimos anos, Anna Alekséievna passara a viajar com mais
frequência, ora ia à casa da mãe, ora, da irmã; às vezes, já se
manifestava o mau humor, aflorava a consciência de uma vida
frustrante, desperdiçada, ocasiões em que ela não tinha vontade de
ver nem o marido nem os filhos. Nessa altura, ela já estava se
tratando de uma perturbação nervosa.
“Nós dois não dizíamos nada, ninguém dizia nada, mas, em
presença de estranhos, ela sentia uma inusitada irritação contra
mim; não importava o que eu dizia, ela sempre discordava e, se eu
estivesse discutindo com alguém, ela sempre tomava o lado de meu
oponente. Quando eu deixava cair alguma coisa, ela me dizia, em
tom frio:
“‘Meus parabéns.'
“Quando eu ia ao teatro com ela e calhava de eu esquecer o
binóculo, depois ela me dizia:
“‘Eu já sabia que você ia esquecer.'
“Por sorte ou azar, em nossa vida nada ocorre sem que, cedo ou
tarde, chegue ao fim. E veio a hora da separação, pois Luganóvitch
foi nomeado juiz numa província da parte ocidental do país. Foi
preciso vender a mobília, os cavalos, a casa de campo. Quando
fomos à casa de campo e depois retornamos, olhamos para trás a
fim de ver, pela última vez, o jardim e o telhado verde; estávamos
tristes, todos nós, e me dei conta de que havia chegado a hora de
me despedir não apenas daquela casa de campo. Ficou resolvido
que, no fim de agosto, Anna Alekséievna iria para a Crimeia, local
recomendado pelos médicos, e que Luganóvitch partiria pouco
depois, com os filhos, rumo a sua província ocidental.
“Muita gente foi à estação para dar adeus a Anna Alekséievna.
Depois de se despedir do marido e dos filhos, quando só faltava um
minuto para o terceiro apito do trem, entrei correndo em sua
cabine, no vagão, a fim de colocar na prateleira um de seus cestos
de viagem, que ela quase ia deixando para trás; e foi preciso me
despedir. Quando nossos olhares se encontraram, ali, na cabine,
nossa força interior nos abandonou, eu a abracei, ela apertou o
rosto de encontro ao meu peito e lágrimas desceram de seus olhos;
enquanto beijava seu rosto, seus ombros, suas mãos molhadas de
lágrimas — oh, como éramos infelizes, eu e ela —, confessei meu
amor e, com uma dor abrasadora no coração, compreendi como era
supérfluo, mesquinho e ilusório tudo aquilo que tolhia o nosso
amor. Compreendi que, quando amamos, se quisermos raciocinar
sobre nosso amor, é preciso partir de algo mais elevado, mais
importante, do que a felicidade ou a infelicidade, o pecado ou a
virtude, no sentido corrente dessas palavras, ou, até mesmo, nem é
preciso raciocinar de modo algum.
“Beijei-a pela última vez, apertei sua mão e nos separamos…
para sempre. O trem já estava em movimento. Tomei um assento
numa cabine vizinha, que estava vazia, e ali fiquei, chorando, até a
estação seguinte. Em seguida, fui para minha casa em Sófino, a
pé…”
Durante o relato de Aliókhin, a chuva tinha parado e o sol havia
surgido. Búrkin e Ivan Ivánitch saíram para a varanda; de lá, tinham
uma linda vista do pomar e do rio, que agora, sob o sol, rebrilhava
como um espelho. Ficaram encantados com a paisagem e, ao
mesmo tempo, sentiram pena daquele homem, de olhos bondosos
e inteligentes, que contava sua história com um coração tão puro;
de fato, naquela enorme propriedade rural, ele não parava um
minuto, como um esquilo que corre dentro de uma roda, e não se
dedicava à ciência nem a qualquer coisa que tornasse sua vida mais
agradável; os dois amigos também ficaram pensando em como
estaria o rosto amargo da jovem senhora no momento em que
Aliókhin se despediu, na cabine de trem, e beijou suas faces e seus
ombros. Os dois a tinham conhecido na cidade, Búrkin era até um
pouco seu amigo e achava que ela era bonita.
Um caso médico

O professor recebeu um telegrama da fábrica dos Liálikov: estava


sendo chamado com urgência. A filha de certa sra. Liálikova, a dona
da fábrica, pelo visto, estava doente e mais nada além disso era
possível entender daquele telegrama comprido e incoerente. O
professor não atendeu o chamado, mas, em seu lugar, mandou o
médico residente Korolióv.
Era preciso pegar o trem, desembarcar duas estações depois de
Moscou e, em seguida, viajar quatro verstas de coche. Mandaram
uma troica buscar Korolióv na estação; o cocheiro usava chapéu
enfeitado com pena de pavão e, a todas as perguntas, respondia
bem alto, como um soldado: “Não, senhor!”, “Sim, senhor!”. Era o
anoitecer de um sábado, o sol estava se pondo. Da fábrica para a
estação, os operários vinham a pé, em bandos, e se curvavam à
passagem do coche no qual viajava Korolióv. Ele estava encantado
com o anoitecer, com os jardins, com as casas de campo à beira da
estrada, com as bétulas e com a atmosfera serena à sua volta, em
que, agora, na véspera de um domingo, junto com os operários,
também o campo, o bosque e o sol se preparavam para o repouso —
para o repouso e, quem sabe, para as preces…
Korolióv nascera e crescera em Moscou, não conhecia o campo,
nunca se interessara por fábricas, nunca tinha posto os pés em
nenhuma fábrica, qualquer que fosse. Porém já acontecera de ler a
respeito delas, bem como visitar a residência de donos de
indústrias e conversar com eles; e, quando via uma fábrica, de
longe ou de perto, sempre pensava que, por fora, tudo era paz e
tranquilidade, mas, por dentro, com certeza, reinava a ignorância
impenetrável e o obtuso egoísmo dos proprietários, o trabalho
maçante e insalubre dos operários, brigas, vodca, insetos. E,
naquele momento, quando os operários, com respeito e temor,
davam passagem para o coche, em seus rostos, seus bonés, seu
modo de andar, Korolióv adivinhava a sujeira física, a embriaguez, o
nervosismo, a desorientação.
O coche atravessou os portões da fábrica. De ambos os lados se
entreviam os casebres dos operários, rostos de mulheres, roupas de
cama e cobertores pendurados nas varandas. “Cuidado!”, gritou o
cocheiro, mas nem por isso freou os cavalos. Surgiu um pátio
amplo, sem grama, cinco prédios enormes com chaminés, à curta
distância uns dos outros, armazéns para os produtos, barracões e,
por cima de tudo, uma camada cinzenta de algo semelhante a
poeira. Aqui e ali, como um oásis no deserto, havia uns
jardinzinhos de dar pena e os telhados verdes ou vermelhos das
casas onde morava o pessoal da administração. De repente, o
cocheiro freou os cavalos e o coche se deteve em frente a uma casa
que haviam pintado de cinza por cima da cor original; ali, havia um
canteiro de lilases coberto de pó e, do telhado amarelo, vinha um
forte cheiro de tinta.
— Por favor, senhor doutor — disseram vozes femininas no
vestíbulo e na antessala; ao mesmo tempo ouviam-se suspiros e
sussurros. — Por favor, estão esperando há muito tempo… é uma
grande desgraça. Por aqui, por favor.
A sra. Liálikova, gorda, idosa, usava um vestido preto de seda
com mangas ao estilo da moda, porém, a julgar pelo rosto, era uma
pessoa simples, de pouca instrução, estava olhando aflita para o
médico e não se atreveu a lhe dar a mão. A seu lado, havia uma
pessoa de cabelo curto, pincenê, blusa estampada e colorida, muito
magra e que já não era jovem. A criada a chamou de Khristina
Dmítrievna, e Korolióv deduziu que se tratava da governanta. Na
certa, por ser a pessoa mais educada da casa, ela foi incumbida de
receber e falar com o médico, pois, sem demora, tratou logo de
listar as causas da doença, com pormenores minúsculos e
impertinentes, só que não disse quem estava doente nem qual era o
problema.
O médico e a governanta sentaram-se e ficaram conversando,
enquanto a dona da casa se mantinha de pé, junto à porta, imóvel, à
espera. Daquela conversa, Korolióv deduziu que a paciente era
Liza, jovem de vinte anos, filha única da sra. Liálikova e sua
herdeira; fazia muito tempo que estava doente e tinha se tratado
com vários médicos, mas, na noite anterior, desde o anoitecer até a
manhã, sentiu tantas palpitações no coração que ninguém dormiu
na casa; temiam que fosse morrer.
— Pode-se dizer que, desde muito pequena, ela sempre viveu
adoentada — explicou Khristina Dmítrievna com voz cantada,
enquanto, a todo instante, enxugava os lábios com a mão. — Os
médicos, hoje, dizem que são os nervos, mas, quando era pequena,
eles injetaram nela umas escrófulas, como vacina, e agora acho que
todo o mal pode ter vindo daí.
Foram ao encontro da paciente. Já completamente adulta, de boa
estatura, grande, mas sem beleza, parecida com a mãe, os mesmos
olhos miúdos, a parte inferior do rosto larga, formada de maneira
desproporcional, cabelo despenteado, com o cobertor puxado até o
queixo, ela produziu em Korolióv, no primeiro minuto, a impressão
de uma criatura infeliz e desamparada que, de tanta pena, haviam
recolhido, agasalhado e abrigado, e nem dava para acreditar que se
tratava da herdeira dos cinco enormes prédios que compunham a
fábrica.
— Nós viemos à casa da senhora para curá-la — disse Korolióv.
— Boa tarde.
Apresentou-se e apertou sua mão — grande, fria e feia, aquela
mão. A jovem se pôs sentada na cama e, visivelmente habituada
com médicos desde muito tempo, indiferente ao fato de despirem
seus ombros e seu peito, ela se ofereceu para ser auscultada.
— Tenho palpitações no coração — disse. — A noite inteira foi
um horror tremendo… Por pouco eu não morri de pavor! Dê
alguma coisa para eu tomar.
— Vou dar, vou dar! Acalme-se.
Korolióv a examinou e encolheu os ombros.
— O coração está normal — disse. — Tudo se comporta bem,
tudo está em ordem. Houve uma perturbação nervosa, talvez, mas
isso é muito comum. É preciso considerar que o ataque já passou,
trate de descansar e dormir.
Naquele momento, trouxeram um lampião para o quarto. Diante
da luz, a paciente fechou os olhos e, de súbito, segurou a cabeça
entre as mãos e desatou a soluçar. De repente, a impressão de uma
criatura feia e desalentada desapareceu, e Korolióv já não reparou
nos olhos miúdos e na parte inferior do rosto malformada; ele viu
uma expressão sofrida e meiga, que se mostrou muito razoável e
comovente, e toda ela lhe pareceu esbelta, feminina, simples, e o
médico sentiu vontade de tranquilizá-la, não com remédios nem
com recomendações, mas com simples palavras de carinho. A mãe
abraçou a cabeça da filha e a apertou contra o peito. Quanto
desespero, quanta aflição no rosto daquela senhora! A mãe havia
alimentado e criado a filha, não medira despesas, devotara toda sua
vida para que a filha aprendesse francês, dança, música, havia
contratado dezenas de professores para ela, os melhores médicos,
pagava uma governanta e, agora, não entendia de onde vinham
aquelas lágrimas, por que tantos tormentos, não entendia e sentia-
se perdida, tinha a fisionomia culpada, inquieta, desesperada, como
se tivesse se omitido em algo muito grave, como se tivesse deixado
de fazer alguma coisa, ou não tivesse chamado alguém para cuidar
da filha, mas quem … ela não sabia.
— Lízanka, de novo… ora, não, de novo, não — dizia a mãe,
apertando a filha contra si. — Minha adorada, meu anjinho, minha
filha, diga, o que há com você? Tenha pena de mim, diga.
As duas choravam amargamente. Korolióv sentou-se na beira da
cama e segurou a mão de Liza.
— Chega, será que vale a pena chorar? — disse ele, com
carinho. — Afinal, não existe no mundo nada que mereça essas
lágrimas. Pronto, não vamos chorar mais, não há necessidade…
E ele mesmo pensou: “Está na hora de casar essa moça…”.
— O médico da nossa fábrica deu brometo de potássio para ela
— disse a governanta. — Mas notei que isso só piorou a situação.
Para mim, se é do coração, tem de tomar gotas… esqueci como se
chamam… de láudano, eu acho.
E, mais uma vez, despejou uma porção de detalhes. A
governanta interrompia o médico, não o deixava falar e, no rosto,
via-se estampado seu grande empenho, como se ela acreditasse
que, na condição de mulher mais instruída da casa, tivesse o dever
de entabular uma conversa ininterrupta com o médico e,
necessariamente, sobre questões médicas.
Para Korolióv, aquilo era maçante.
— Eu não vejo nada de especial — disse ele, ao sair do quarto,
dirigindo-se à mãe. — Se o médico da fábrica já tratou da sua filha,
deixe que ele continue o tratamento. Até agora, o tratamento foi
correto e não vejo necessidade de mudar de médico. Para que
mudar? É uma doença muito corriqueira, nada de sério…
Falava sem pressa, enquanto vestia as luvas, mas a sra. Liálikova
se mantinha imóvel e olhava para ele com olhos chorosos.
— Falta meia hora para o trem das dez — disse ele. — Espero
que eu não me atrase.
— Mas o senhor não poderia ficar aqui conosco? — perguntou
ela e, de novo, lágrimas desceram pelo rosto. — Eu me sinto
encabulada de incomodar, mas o senhor nos daria uma grande
alegria… Por favor — prosseguiu, à meia-voz, olhando para a porta
—, passe a noite aqui conosco. Ela é minha única… minha única
filha… Na noite passada, levei um susto, nem quero lembrar… Não
vá embora, pelo amor de Deus…
O médico queria lhe explicar que tinha muito trabalho em
Moscou, que a família o esperava em casa; era difícil, para ele,
passar uma noite inteira na casa dos outros, sem necessidade, mas
olhou para o rosto da senhora, suspirou e, em silêncio, começou a
despir as luvas.
No salão e na sala de visitas, em sua homenagem, acenderam
todos os lampiões e velas. O médico sentou-se ao piano e folheou
as partituras, depois observou os quadros nas paredes, os retratos.
Os quadros eram pinturas a óleo, em molduras douradas, paisagens
da Crimeia, o mar tempestuoso com um barquinho, um monge
católico com um cálice, e tudo seco, rebuscado, sem talento… Nos
retratos, nenhuma face bonita, interessante, apenas maçãs do rosto
largas, olhos espantados; Liálikov, pai de Liza, tinha testa pequena e
o rosto cheio de si, o uniforme parecia um saco por cima do corpo
grande e vulgar, uma medalha no peito e um emblema da Cruz
Vermelha. Cultura pobre, luxo ao acaso, sem consciência,
despropositado, como aquele uniforme do retrato; o brilho do
assoalho incomodava, o lustre incomodava e, por alguma razão,
vinha à lembrança a história do comerciante que ia à bánia com sua
condecoração pendurada ao pescoço…
Do vestíbulo veio um rumor, alguém falava baixo, com voz
rouca. De súbito, lá de fora, chegaram ruídos estridentes,
metálicos, entrecortados, como Korolióv jamais tinha ouvido e que,
naquele momento, ele não compreendeu; os sons repercutiram em
sua alma de modo estranho e incômodo.
“Acho que por nada neste mundo eu moraria aqui…”, pensou e,
de novo, pegou umas partituras.
— Doutor, por favor, vamos comer! — chamou a governanta, à
meia-voz.
Ele foi jantar. A mesa era grande, com muita comida e bebida,
mas só duas pessoas jantaram: ele e Khristina Dmítrievna. Ela
bebeu vinho madeira, comia e falava depressa, enquanto lançava
olhares para ele, através do pincenê:
— Os operários estão muito satisfeitos conosco. Na fábrica, todo
inverno, apresentamos espetáculos, os próprios operários são os
atores, e temos palestras, projeções de lanterna mágica, um
magnífico salão de chá e tudo o que se pode imaginar, eu acho. Eles
são muito dedicados a nós e, quando souberam que Lízanka tinha
piorado, encomendaram missas. São ignorantes, mas também têm
sentimentos.
— Parece que as senhoras não têm nenhum homem em casa —
disse Korolióv.
— Nenhum. Piotr Nikanóritch morreu faz um ano e meio e nós
ficamos sozinhas. Passamos o inverno aqui e o verão em Moscou,
na Polianka.[50] Eu já moro com elas há onze anos. Sou como uma
pessoa da família.
No jantar, serviram esturjão, bolinhos de carne de galinha e
compota de frutas; o vinho era caro, francês.
— Por favor, doutor, o senhor não faça cerimônia — disse
Khristina Dmítrievna enquanto comia, esfregava a boca com o
punho e era evidente que, na casa, ela vivia inteiramente a seu
gosto. — Por favor, coma.
Depois do jantar, levaram o médico para seu quarto, onde a
cama tinha sido preparada para ele. Mas Korolióv não quis dormir,
sentia um abafamento, o quarto tinha cheiro de tinta; vestiu o
casaco e saiu.
Lá fora estava fresco; já se via a luz da alvorada e, no ar úmido, se
distinguiam com clareza os cinco prédios da fábrica e suas
chaminés compridas, os barracões e os armazéns. Por acaso, era
feriado e ninguém trabalhava, as janelas estavam escuras, só em um
dos prédios um forno ainda se mantinha aceso, duas janelas
brilhavam rubras e, das chaminés, junto com a fumaça, de vez em
quando subia uma labareda. Longe, além do pátio, as rãs coaxavam,
os rouxinóis cantavam.
Enquanto olhava para os prédios da fábrica e para os barracões
onde os operários dormiam, de novo ele pensou aquilo que sempre
pensava quando via qualquer fábrica. Apesar dos espetáculos para
os operários, apesar da lanterna mágica, dos médicos de fábrica e
de diversas melhorias, mesmo assim, os operários que ele havia
encontrado naquele dia, a caminho da estação, não diferiam em
nada dos operários que ele vira muito tempo antes, ainda na
infância, quando não existiam espetáculos nem melhoria alguma.
Na condição de médico, que analisava doenças crônicas cuja causa
original era desconhecida e, por isso, não tinham cura, ele também
encarava as fábricas como uma irracionalidade, cujo motivo era
igualmente obscuro e insondável, e todas as melhorias na vida dos
operários fabris, Korolióv, mesmo sem considerá-las supérfluas, as
comparava ao tratamento de doenças incuráveis.
“Aqui existe um mal-entendido, é claro…”, pensava ele, olhando
para as janelas muito vermelhas. “Mil e quinhentos ou dois mil
operários trabalham sem descanso, em condições insalubres, para
produzir uma chita ruim, vivem subnutridos e só de vez em
quando, numa taberna, eles conseguem se desintoxicar desse
pesadelo; uma centena de pessoas vigia o trabalho e toda a vida
dessa centena de pessoas se consome na imposição de multas,
repreensões, injustiças, e só dois ou três assim chamados
proprietários tiram proveito dos lucros, embora não trabalhem nada
e desprezem a chita ruim. Porém o que é feito desses lucros, como
são aproveitados? Liálikova e sua filha infeliz são pessoas que dão
até pena de ver, a única que leva uma vida prazerosa é Khristina
Dmítrievna, solteirona tola e de certa idade, com seu pincenê. Em
resumo, todos trabalham naqueles cinco prédios e uma chita ruim é
vendida nos mercados do Oriente só para que Khristina
Dmítrievna possa comer esturjão e beber vinho madeira.”
De repente, irromperam sons estranhos, os mesmos que
Korolióv ouvira antes do jantar. Perto de um dos prédios da fábrica,
alguém batia numa placa de metal, batia e, no mesmo instante,
abafava o barulho das pancadas, de modo que os sons saíam secos,
bruscos, impuros, como “derr… derr… derr…”. Após meio minuto
de silêncio, em outro prédio, irromperam sons igualmente
entrecortados e desagradáveis, já mais baixos, mais graves: “dran…
dran… dran…”. Onze vezes. Claro, era o vigia noturno, que batia
onze horas.
Perto do terceiro prédio, ouviu-se: “jak… jak… jak…”. E assim se
repetiu, perto de cada prédio e, depois, atrás dos barracões e além
dos portões. Parecia que, no meio do silêncio da noite, um monstro
de olhos rubros propagava aqueles ruídos, o diabo em pessoa, que
ali dominava os proprietários e os operários e ludibriava tanto uns
quanto os outros.
Korolióv saiu do pátio e foi para o campo.
— Quem vem lá? — gritou para ele uma voz rude, no portão.
“É igual a uma prisão…”, pensou, e nada respondeu.
Ouviam-se as rãs e os rouxinóis, sentia-se que era uma noite de
maio. Da estação, chegou a seus ouvidos o barulho do trem; em
algum lugar, cantavam os galos da manhã, mas a noite, apesar disso,
estava silenciosa, o mundo dormia serenamente. No campo, não
distante da fábrica, havia uma pilha de troncos cortados, o material
de construção tinha sido amontoado ali. Korolióv sentou-se numa
tábua e continuou a pensar:
“A única pessoa que se sente bem aqui é a governanta, e a fábrica
trabalha para a satisfação dela. Mas isso é só uma impressão: ela não
passa de um preposto. O chefe mesmo, para quem tudo aqui se
produz, é o diabo.”
E pensou no diabo, no qual nem acreditava, e virou-se para as
duas janelas onde o fogo ardia. Teve a impressão de que, com
aqueles olhos rubros, quem estava olhando para ele era o diabo em
pessoa, aquela força insondável que fabricava a relação entre fortes
e fracos, aquele erro grosseiro que, agora, não havia meios de ser
corrigido. É preciso que o forte impeça o fraco de viver, é a lei da
natureza, mas isso só parece compreensível e fácil de assimilar nos
artigos de jornal ou nos manuais escolares, ao passo que, na
barafunda em que se conforma a vida cotidiana, no emaranhado de
todas as ninharias com as quais se tramam as relações humanas,
isso já não é uma lei, mas uma incongruência lógica, uma vez que
tanto o forte como o fraco, igualmente, caem vítimas de suas
relações recíprocas, sujeitando-se a alguma força diretriz
desconhecida, situada fora da vida, alheia ao ser humano. Assim
pensava Korolióv, sentado sobre as tábuas e, pouco a pouco, foi
dominado pela impressão de que aquela força desconhecida e
misteriosa, na verdade, estava perto e olhava para ele. Enquanto
isso, no oriente, o céu se tornava cada vez mais pálido, o tempo
passava depressa. Naquela hora em que não havia ninguém nos
arredores e parecia que tudo estava morto, os cinco prédios e as
chaminés, contra o fundo cinzento da alvorada, ganharam uma
feição singular, diferente de sua imagem à luz do dia; desapareceu
da memória por completo o fato de que, lá dentro, havia motores a
vapor, eletricidade, telefones, porém, não se sabe como, vinham ao
pensamento, o tempo todo, casebres de palafita, a idade da pedra,
sentia-se a presença de uma força inconsciente e brutal…
E, de novo, se ouviu:
— Der… der… der… der…
Doze vezes. Depois, silêncio, meio minuto de silêncio e…
irrompeu na outra ponta do pátio:
— Dran… dran… dran…
“Que desagradável, que horror!”, pensou Korolióv.
— Jak… jak… — ressoou num terceiro local, entrecortado, seco,
com uma espécie de irritação. — Jak… jak…
Desse modo, para assinalar a meia-noite, foram necessários
quatro minutos. Depois, o silêncio; e, de novo, a impressão de que
tudo em volta estava morto.
Korolióv ficou ali sentado mais um pouco e voltou para a casa,
mas ainda demorou muito para se deitar. Nos cômodos vizinhos,
sussurravam, ouvia-se o rumor de chinelos e de pés descalços.
“Será que ela teve outro ataque?”, pensou Korolióv.
Saiu a fim de ver como estava a paciente. Os cômodos já estavam
bem claros e, no salão, na parede e no assoalho, tremulava a fraca
luz do sol que penetrava através da neblina da manhã. A porta do
quarto de Liza estava aberta e ela mesma sentara na poltrona perto
da cama, de roupão, envolta num xale e despenteada. Os estores
das janelas estavam baixados.
— Como a senhora está se sentindo? — perguntou Korolióv.
— Agradeço ao senhor.
O médico tomou seu pulso, depois arrumou os cabelos de Liza,
caídos sobre a testa.
— A senhora não dorme — disse ele. — Lá fora o tempo está
ótimo, é primavera, os rouxinóis estão cantando, e a senhora fica
aqui no escuro, pensando sabe-se lá o quê.
Ela escutava e olhava para o rosto de Korolióv; os olhos de Liza
eram tristes, inteligentes, e estava bem claro que ela desejava dizer
alguma coisa.
— Isso acontece muitas vezes com a senhora? — perguntou
Korolióv.
Ela moveu um pouco os lábios e respondeu:
— Muitas vezes. Quase toda noite é difícil para mim.
Naquele momento, lá fora, os vigias noturnos começaram a
bater duas horas. Ouviu-se: “der… der… der…”, e ela estremeceu.
— Essas batidas perturbam a senhora? — perguntou.
— Não sei. Tudo aqui me perturba — respondeu, e se pôs
pensativa. — Tudo perturba. Na voz do senhor sinto solidariedade,
desde o primeiro olhar, por alguma razão, me pareceu que eu podia
contar tudo para o senhor.
— Então conte, eu lhe peço.
— Eu quero contar ao senhor qual é a minha opinião. Acho que
eu não estou doente, mas fico inquieta e sinto medo, porque tem
de ser assim e não pode ser diferente. Até uma pessoa saudável não
pode deixar de se perturbar, se, por exemplo, um bandido passa na
frente da sua janela. Muitas vezes, os médicos vêm me tratar —
continuou, olhando para os joelhos e sorrindo encabulada —, e eu
sou muito grata, é claro, e não nego a utilidade do tratamento, só
que eu gostaria de conversar não com um médico, mas com uma
pessoa próxima, um amigo, que me compreendesse, me
convencesse de que estou certa ou errada.
— Então a senhora não tem amigos? — perguntou Korolióv.
— Sou solitária. Tenho minha mãe, adoro a minha mãe, mas,
mesmo assim, sou solitária. Foi o rumo que a vida tomou… Os
solitários leem muito, mas falam pouco e escutam pouco, a vida é
misteriosa para eles; são místicos e, muitas vezes, veem o diabo
onde ele não existe. A Tamara de Liérmontov era solitária e via o
diabo.[51]
— E a senhora lê muito?
— Muito. Afinal, tenho todo o tempo livre, da manhã à noite.
De dia, eu leio, à noite, a cabeça fica vazia e, no lugar dos
pensamentos, vêm umas sombras.
— A senhora vê coisas à noite? — perguntou.
— Não, mas eu sinto…
De novo, sorriu e ergueu os olhos para o médico, e olhou para
ele com ar tão triste, tão inteligente; pareceu a Korolióv que Liza
acreditava nele, queria conversar de coração aberto, e também lhe
parecia que ela pensava as mesmas coisas que ele. Mas Liza ficou
em silêncio, talvez à espera de que o médico dissesse algo.
E Korolióv sabia o que dizer; estava claro, para ele, que Liza
precisava, o quanto antes, deixar os cinco prédios e o seu milhão,
se ela o possuía, deixar para trás aquele diabo que, de noite, ficava
olhando; também estava claro, para ele, que a própria Liza pensava
da mesma forma e apenas esperava que alguém, de sua confiança,
confirmasse aquilo.
Mas ele não sabia como dizer. De que modo? É constrangedor
perguntar para pessoas condenadas por que foram condenadas;
assim também, para pessoas muito ricas é embaraçoso perguntar
para que possuem tanto dinheiro, por que administram tão mal sua
riqueza, por que não a abandonam, mesmo quando veem que nela
reside a sua infelicidade; e, quando começam a falar sobre esse
assunto, em geral, a conversa se torna longa, constrangida,
acanhada.
“Como vou dizer?”, ponderou Korolióv. “Mas será que é preciso
dizer?”
Acabou dizendo o que queria, não de forma direta, mas por um
caminho enviesado:
— A senhora, na condição de proprietária da fábrica e rica
herdeira insatisfeita, não acredita nesse seu direito e agora, veja,
não dorme bem, e isso, claro, é melhor do que se a senhora
estivesse satisfeita, dormisse profundamente e achasse que tudo
está indo às mil maravilhas. A sua insônia merece respeito; de todo
modo, é um bom sinal. Na verdade, entre nossos pais, esta nossa
conversa seria impensável; eles não conversavam e, à noite,
dormiam profundamente, mas nós, a nossa geração, dormimos mal,
nos afligimos, conversamos muito e sempre queremos saber se
temos razão ou não. E para nossos filhos ou netos, esta questão, se
eles têm razão ou não, já estará resolvida. Para eles, será mais claro
do que é para nós. A vida vai ser bela daqui a cinquenta anos, só dá
pena porque nós não vamos chegar até lá. Seria interessante poder
dar uma olhada.
— E o que vão fazer os filhos e os netos? — perguntou Liza.
— Não sei… Na certa, vão abandonar tudo e partir.
— Partir para onde?
— Para onde?… Ora, para onde quiserem — respondeu
Korolióv, e deu uma risada. — Uma pessoa boa e inteligente pode
partir para qualquer lugar, não importa para onde.
Deu uma olhada no relógio.
— Mas o sol já nasceu — disse. — Está na hora de a senhora
dormir. Troque de roupa e trate de dormir muito bem. Eu gostei de
conhecer a senhora — prosseguiu, e apertou sua mão. — A senhora
é uma pessoa interessante, maravilhosa. Boa noite!
Foi para seu quarto e dormiu.
Na manhã seguinte, quando preparavam o coche, todos saíram
para a varanda a fim de despedir-se dele. Liza usava um vestido
branco, de festa, com flor no cabelo, pálida, langorosa; olhou para
ele com ar triste e inteligente, como na noite anterior, sorria,
falava, sempre com aquela expressão de quem queria lhe dizer algo
especial, importante, só para ele e mais ninguém. Ouvia-se o canto
das cotovias, os sinos da igreja. As janelas dos prédios da fábrica
reluziam alegres e, ao passar pelo pátio e, depois, pela estrada rumo
à estação, Korolióv já não se lembrava dos operários nem dos
casebres de palafita nem do diabo, e pensava em como era
agradável, numa manhã de primavera como aquela, viajar numa
troica, num coche confortável, e sentir o calor daquele solzinho.

1898
Coisas de trabalho

Um juiz de instrução interino e um médico distrital seguiam


viagem rumo ao povoado de Sírnia, para uma autópsia. No
caminho, foram surpreendidos por uma tempestade de neve,
andaram em círculos por muito tempo e acabaram chegando ao
destino não ao meio-dia, como esperavam, mas só à noite, já
escuro. Para pernoitar, hospedaram-se na pousada do ziémstvo.[52]
Por acaso, ali mesmo, na pousada do ziémstvo, se encontrava o
cadáver: tratava-se do corpo do corretor de seguros Lesnítski, que
chegara a Sírnia três dias antes e, depois de se instalar na pousada
do ziémstvo e pedir um samovar, num gesto completamente
inesperado para todos, matou-se com um tiro; e a circunstância de
ter dado cabo da própria vida de modo tão estranho, diante de um
samovar e de petiscos servidos à mesa, dava muitos motivos para
desconfiar de um homicídio; fazia-se necessária uma autópsia.
No vestíbulo, o médico e o juiz de instrução sacudiram a neve,
batendo os pés no chão, enquanto o velho ajudante de polícia Iliá
Lochadin observava, de pé, a seu lado, e iluminava o cômodo com
um lampião de folha de flandres nas mãos. Sentia-se um forte
cheiro de querosene.
— Quem é você? — perguntou o médico.
— Sou o “puliça”… — respondeu o ajudante de polícia.
Até na correspondência ele assinava assim: “Puliça”.
— E onde estão as testemunhas?
— Devem ter ido tomar chá, vossa excelência.
À direita, havia um cômodo limpo, “das visitas”, ou “dos
senhores”; à esquerda, a área de serviço, com uma grande estufa e
bancos de tábua, junto à parede. O médico e o juiz de instrução
entraram no cômodo limpo, com o policial logo atrás, segurando o
lampião bem alto, acima da cabeça. No chão, junto aos pés da mesa,
jazia um corpo comprido, imóvel, coberto por um pano branco. À
luz fraca do lampião, além do pano branco, viam-se em destaque as
galochas de borracha novas, e tudo ali era muito feio, tétrico: as
paredes escuras, o silêncio, as galochas, o corpo imóvel, morto.
Sobre a mesa, um samovar, já frio havia muito tempo e, em volta,
alguns embrulhos, na certa, de comida.
— Matar-se numa pousada de ziémstvo, que coisa mais
inconveniente! — exclamou o médico. — Se tinha mesmo tanta
vontade de meter uma bala na cabeça, que ele se matasse em casa,
num barracão, em qualquer lugar.
Do jeito como estava, de chapéu, casaco de pele e botas de
feltro, o médico deixou-se cair sobre um banco e o juiz de instrução
sentou-se de frente para ele.
— Esses histéricos e neurastênicos são os maiores egoístas —
prosseguiu o médico, em tom amargo. — Quando um neurastênico
dorme no mesmo quarto que a gente, faz barulho com o jornal o
tempo todo. Quando almoça com a gente, arruma briga com a
própria esposa, nem se acanha com a nossa presença; e, quando lhe
dá vontade de se matar, lá vai ele se matar bem longe, no campo,
numa pousada de ziémstvo, só para dar mais trabalho para todo
mundo. Esses senhores, em todas as circunstâncias da vida, só
pensam em si. Só em si! É por isso que os velhos não gostam deste
nosso “século nervoso”.
— Os velhos não gostam de nada — disse o juiz de instrução,
enquanto bocejava. — Olhe, mostre para esses velhos qual a
diferença entre os suicídios antigos e os de hoje em dia. Antes, o
que chamavam de uma pessoa digna se matava por ter dado um
desfalque no Tesouro do Estado, mas hoje em dia o sujeito se mata
porque está farto da vida, por causa de uma angústia… O que é
melhor?
— Estar farto da vida, sentir angústia. Mas, convenhamos, ele
podia muito bem não se matar aqui, numa pousada de ziémstvo.
— Ah, uma desgraça feito essa — disse o ajudante de polícia —,
uma desgraça feito essa é um verdadeiro castigo. O povo daqui está
muito abalado, vossa excelência, já faz três noites que não dorme. A
criançada vive chorando. É preciso alimentar as vacas, mas as
camponesas não vão ao estábulo porque têm medo… Acham que o
morto vai aparecer no escuro. Claro, são mulheres bobas, mas
alguns mujiques também têm medo. É só anoitecer que eles nem
passam mais sozinhos na frente da pousada, eles são assim, igual a
um rebanho. E as testemunhas também, é a mesma coisa…
O dr. Stártchenko, de meia-idade, barba escura e óculos, e o juiz
de instrução Líjin, louro, ainda jovem, que acabara de se formar
apenas dois anos antes, e que mais parecia um estudante do que um
funcionário, ficaram em silêncio, sentados, pensativos. Estavam
aborrecidos com o atraso. Agora, teriam de pernoitar ali, esperar
amanhecer, e não eram sequer seis horas, eles já previam uma noite
comprida e, depois, uma longa madrugada, escura e maçante,
previam o desconforto das camas, as baratas, o frio da manhã; e,
enquanto ouviam a tempestade de neve, que uivava na chaminé da
estufa e no sótão, os dois pensavam em como tudo aquilo era
diferente da vida que gostariam de ter e que haviam sonhado em
outros tempos, e também pensavam em como ambos estavam
longe de seus colegas, que agora, na cidade, passeavam por ruas
iluminadas sem ao menos se preocupar com o mau tempo, ou se
arrumavam para ir ao teatro ou liam um livro, sentados em seu
escritório. Ah, os dois dariam qualquer coisa para estar, agora,
passeando pela avenida Niévski[53] ou pela rua Petrovka, em
Moscou, para escutar uma canção decente, ficar uma ou duas horas
num restaurante…
— U-u-u-u! — cantava a tempestade de neve no sótão e, lá fora,
no vento, algo estalava com raiva, na certa, a tabuleta do letreiro da
pousada. — U-u-u-u!
— O senhor faça como preferir, mas eu não quero ficar aqui —
disse Stártchenko, e se levantou. — Ainda não são nem seis horas,
é cedo para dormir, vou para algum lugar. O Von Taunitz mora aqui
perto, a apenas três verstas de Sírnia. Vou passar a noite na casa
dele. Ei, ajudante de polícia, vá lá fora e diga ao cocheiro para não
desatrelar os cavalos. E o senhor, o que vai fazer? — perguntou
para Líjin.
— Não sei. Acho que vou deitar e dormir.
O médico agasalhou-se bem no seu casaco de pele e saiu. Ouviu-
se a ordem que deu ao cocheiro e os guizos sacudidos pelos
cavalos, mortos de frio. Partiram.
— Este lugar não serve para o senhor passar a noite — disse o
policial. — Vá para aquela outra parte ali, nos fundos. Não está
limpo, mas uma noite só não tem importância. Agora eu vou pedir
emprestado um samovar para um mujique, ponho para esquentar e
depois junto um punhado de feno, assim vossa excelência vai poder
dormir com a graça de Deus.
Após um breve intervalo, o juiz de instrução sentou-se na parte
dos fundos, junto à mesa, e tomou chá, enquanto o ajudante de
polícia Lochadin se mantinha de pé, na porta, e conversava. Era um
velho que passara dos sessenta anos, de baixa estatura, muito
magro, recurvado, branco, sorriso ingênuo no rosto, olhos
lacrimosos e, o tempo todo, contraía e estalava os lábios, como se
estivesse chupando um pedaço de gelo. Vestia um casaco de pele
curto, botas de feltro, e não largava a bengala. A juventude do juiz
de instrução lhe dava pena e, provavelmente por isso, o tratava por
“você”.
— O suboficial Fiódor Makáritch mandou que eu fosse avisar a
ele assim que chegasse o juiz de instrução ou o comissário de
polícia — disse. — Então, nesse caso, eu tenho de ir lá agora… Até
o distrito, são quatro verstas, a tempestade de neve, toda essa neve
acumulada no caminho… Nem sei se consigo chegar lá antes de
meia-noite. Olha só como está uivando.
— Eu não preciso do suboficial — disse Líjin. — Não há nada
para ele fazer aqui.
Observou o velho com curiosidade e perguntou:
— Diga, vovô: há quanto anos você é ajudante de polícia?
— Quantos anos? Já faz uns trinta. Eu comecei cinco anos
depois da emancipação dos servos,[54] é só fazer a conta. Desde
aquele tempo, todo dia, sou ajudante de polícia. Os outros podem
ter feriados, mas eu fico sempre de serviço. É Semana Santa, os
sinos tocam na igreja, vem a Páscoa, Cristo Ressuscitou,[55] e lá
estou eu, o tempo todo, com a minha bolsa. Vou à tesouraria, ao
correio, à casa do comissário, do presidente do ziémstvo, do
cobrador de impostos, do juiz, dos senhores, dos mujiques, de tudo
quanto é cristão ortodoxo. Eu levo embrulhos, avisos, cobranças,
cartas, diversos formulários, boletins e, sabe, meu bom senhor,
vossa excelência, hoje em dia inventaram uns formulários para
anotar uns números, amarelos, brancos, vermelhos, e todo senhor
de terra ou patrão ou mujique rico é obrigado a preencher dez
vezes por ano, dizer quanto plantou e colheu, quantos quartos ou
pud[56] de centeio ele tem, quanta aveia, feno, e como andou o
tempo e também que tipos de insetos apareceram. Claro, cada um
escreve o que bem entende, a minha função é pegar os formulários,
distribuir os papéis todos e depois voltar lá e trazer tudo de novo.
Olhe, vou dar um exemplo: você sabe que não adianta arrancar as
tripas desse senhor aí dentro, só vai emporcalhar suas mãos, mas
você fez o maior esforço para chegar aqui, vossa excelência, e tudo
só para cumprir as formalidades; não tem jeito. Há trinta anos que
eu cumpro todas as formalidades. No verão, tudo bem, é quente, é
seco, mas no inverno ou no outono, aí não tem nenhuma graça. Já
aconteceu de eu me afogar, me congelar, já aconteceu de tudo. E,
na floresta, gente ruim levou minha bolsa, bateram no meu
pescoço, e já fui até processado…
— Por que foi processado?
— Por fraude.
— Como assim, por fraude?
— Ah, sabe, o escrivão Khrissanf Grigóriev vendeu, para um
construtor, tábuas que não eram dele, quer dizer, enganou. Eu
acabei envolvido no negócio, me mandaram pegar vodca na
taberna; pois é, o escrivão nem me deu um pouco da vodca, nem
um copinho sequer, mas como eu, com minha pobreza toda, sou
uma pessoa despreparada, sem importância nenhuma, acabou que
nós dois fomos a julgamento. Ele foi para a prisão e eu, graças a
Deus, fui absolvido, com todos os meus direitos. No tribunal, leram
um papel. Todo mundo de uniforme, lá no tribunal. É o que estou
dizendo para você, vossa excelência, o meu serviço não é para
quem não tem o costume, senão é morte certa, Deus me livre, mas
para mim não é nada. Quando não estou de serviço, até as pernas
doem. Para mim, o pior é ficar em casa. Lá no distrito eu não paro,
acendo a estufa para o escrivão, levo água para o escrivão, engraxo
as botas do escrivão.
— E quanto você recebe de salário? — perguntou Líjin.
— Oitenta e quatro rublos por ano.
— Mas com certeza tem outra rendazinha, não é?
— Que rendazinha eu vou ter? Os patrões por aqui, hoje em dia,
quase nunca dão gorjeta. Hoje em dia, os senhores são muito
rigorosos, se ofendem por qualquer coisinha. Você leva um papel
para ele: fica ofendido; tira o chapéu para ele: fica ofendido. Ele diz,
você não entrou pela porta certa, você está bêbado, você está
cheirando à cebola, ele diz, você é um tagarela, seu filho da mãe.
Claro, existem alguns bons, mas também não dão nada para a
gente, só fazem rir da gente e inventar apelidos. Por exemplo, o sr.
Altúkhin; ele é boa pessoa, não bebe, entende, tem a cabeça no
lugar, mas, de repente, quando você menos espera, ele sai
berrando, nem ele entende por quê. Ele me deu um apelido. Ele
disse, você…
E o policial falou uma palavra, mas tão baixinho que era
impossível entender.
— Como? — perguntou Líjin. — Repita.
— Administração! — repetiu em voz alta. — Já faz muito tempo
que me chama desse jeito, uns seis anos. Bom dia, Administração!
Mas eu não ligo, deixo para lá, que Deus o ajude. Acontece de uma
patroa mandar um copinho de vodca e um pedacinho de empadão,
e aí eu bebo à saúde dela. Mas são os mujiques que dão mais; os
mujiques são mais religiosos, temem a Deus; um me dá pão, outro,
sopa, um ou outro até me dá um dinheirinho. Os estarostes me
pagam um chá na taberna. Olhe, agora mesmo, as testemunhas
foram tomar chá. Disseram: “Lochadin, fique aqui até nós
voltarmos, tome conta de tudo”. E me deram uns copeques. Eles
têm medo, por falta de costume. Ontem mesmo me deram quinze
copeques e ainda me serviram um copinho.
— E por acaso você não tem medo?
— Medo eu tenho, patrão, mas este é o meu trabalho, e não há
como eu me livrar disso. Verão passado, lá fui eu levar um preso
para a cidade, e aí ele começou a bater no meu pescoço! E toma! E
toma! E toma! No pescoço! Em volta, o campo, a mata: como eu ia
fugir? Pois é, e aqui é a mesma coisa. O sr. Lesnítski, eu ainda me
lembro dele deste tamaninho aqui, eu conheci o pai dele, e a mãe
também. Sou do povoado de Nedoschótovo e eles, os srs. Lesnítski,
moravam a menos de uma versta, bem menos, era assim, logo ali. E
o sr. Lesnítski tinha uma irmã, bem mocinha, temente a Deus e de
bom coração. Senhor, lembrai-vos da alma de sua serva Iúlia, de
eterna memória. Não casou, e quando morreu repartiu todos os
seus bens; para o convento destinou cem deciatinas de terra e, para
nós, a comunidade dos camponeses do povoado de Nedoschótovo,
doou duzentas deciatinas para rezar pela sua alma, mas o irmão
dela, um nobre, escondeu o tal papel, dizem que jogou no fogo da
estufa, e pegou toda a terra para si. Sabe, ele achou que ia tirar
vantagem, mas não, nada disso, gente assim não perde por esperar;
neste mundo, a mentira tem vida curta, irmão. Depois, esse nobre
ficou vinte anos sem se confessar, fugia da igreja, e então morreu
sem se confessar, sem se arrepender, ele estourou todo. Estava
muito gordão. E rebentou assim, de alto a baixo. Depois veio um
patrão jovem, um tal de Serioja, e tomaram tudo dele para pagar
dívidas, tomaram tudo o que ele tinha; pois é, ele não foi muito
longe nos estudos, não conseguia fazer nada na vida, e o presidente
do ziémstvo, tio dele, pensou assim: “Vou pegar esse Serioja para
trabalhar comigo, como corretor de seguros, não é um trabalho
complicado”. Mas o patrão era jovem, orgulhoso, também tinha
vontade de alcançar uma coisa maior, mais vistosa, mais folgada,
pois é, achava uma vergonha sacolejar numa charretezinha, para lá
e para cá pelo distrito, e conversar com mujiques; lá ia ele, sempre
olhando para o chão, e calado; gritavam bem na sua orelha:
“Serguei Sergueitch!”. E ele virava, assim, de repente: “Ahn?”. E,
de novo, olhava para o chão. E agora, veja só, o homem acabou se
matando. Não tem sentido, vossa excelência, está errado isso aí,
não dá para entender que exista isso no mundo, Senhor de
Misericórdia. Dizem que, se o pai foi rico e você é pobre, isso é
uma vergonha, está certo, é claro que é, mas o que se vai fazer?
Tem de se acostumar. Eu também levava uma vida boa, vossa
excelência, eu tinha dois cavalos, três vacas, cuidava de vinte
ovelhas, mas o tempo passou e eu fiquei só com uma mochilinha,
sim, senhor, e nem é minha, mas do governo, e agora dá até para
dizer que, na nossa Nedoschótovo, não tem casa pior do que a
minha. O Caio tinha quatro lacaios e agora o Caio é lacaio. Dona
Ada tinha quatro criadas e agora dona Ada é criada.
— E por que você empobreceu? — perguntou o juiz de
instrução.
— Os meus filhos bebem vodca demais. Bebem tanto, mas
bebem tanto, que nem dá para dizer, ninguém acredita.
Líjin escutava e pensava que ele mesmo, Líjin, cedo ou tarde,
iria para Moscou, ao passo que aquele velho ia ficar ali para sempre
e continuaria andando para lá e para cá, na mesma função, a vida
inteira; e quantas vezes mais, ao longo da vida, Líjin teria de
encontrar aqueles velhos há muito tempo acabados, desgrenhados,
imprestáveis, em cuja alma, de algum modo, tinham se fundido
para sempre a moedinha de cinco copeques, o copinho de vodca e a
profunda crença de que, neste mundo, a mentira tem vida curta.
Depois, Líjin cansou de ouvir o velho e mandou que trouxesse logo
o feno para fazer sua cama. No outro cômodo havia uma cama de
ferro, com travesseiro e cobertor, e eles poderiam perfeitamente
trazer aquele móvel, só que já fazia três dias que o falecido estava
estirado ao lado da cama (Quem sabe ele havia sentado na cama,
antes de se matar?), e agora não parecia nada agradável dormir ali…
“Ainda são só sete e meia”, pensou Líjin, depois de olhar ligeiro
para o relógio. “Que horror!”
Não sentia vontade de dormir, mas, por não ter o que fazer e
para acelerar a passagem do tempo, de alguma forma, deitou-se e
cobriu-se com a manta. Lochadin, enquanto lavava a louça, entrava
e saía várias vezes, estalando os lábios e suspirando, andava o
tempo todo em volta da mesa, até que, enfim, pegou seu lampião e
saiu. Ao ver, por trás, o cabelo comprido e grisalho do velho e seu
corpo recurvado, Líjin pensou:
“Parece um bruxo de ópera.”
Escureceu. Na certa, a lua já subira por trás das nuvens, pois se
viam com nitidez as janelas e a neve nas esquadrias.
— U-u-u-u! — cantava a tempestade. — U-u-u-u!
— Meu De-e-e-eus! — gemia uma camponesa no sótão, ou
assim parecia aos seus ouvidos. — Meu De-e-e-eus!
— Buh! — algo bateu com força na parede lá fora. — Trah!
O juiz de instrução apurou os ouvidos: não havia nenhuma
camponesa, era só o vento. Estava muito frio e ele se cobriu
também com o casaco de pele por cima da manta. Enquanto se
agasalhava, pensava que tudo aquilo — a tempestade de neve, a
pousada, o velho, o defunto deitado no cômodo vizinho —, tudo
aquilo estava muito distante da vida que ele desejava para si, tudo
aquilo era alheio a ele, mesquinho, desinteressante, sem graça. Se
aquele homem tivesse se matado em Moscou, ou em algum canto
perto de Moscou, e fosse necessário fazer uma investigação, aí sim
seria importante, digno de interesse e, quem sabe, daria até medo
de dormir ao lado de um cadáver; mas ali, a mil verstas de Moscou,
tudo aquilo se apresentava sob uma luz diferente, tudo aquilo não
era vida, não era gente, mas algo que existia só “para cumprir as
formalidades”, como dizia o Lochadin, tudo aquilo não deixava o
menor vestígio na memória, acabaria esquecido tão logo Líjin
partisse de Sírnia. A pátria, a Rússia autêntica, era Moscou,
Petersburgo, aquele lugar não passava de uma província, uma
colônia; quando alguém sonha em representar um papel de relevo,
ser conhecido, ser, por exemplo, juiz de instrução de casos
importantes ou promotor da corte distrital, ser uma pessoa de
destaque na sociedade, pensa sempre em Moscou. Só existe vida
em Moscou; naquele lugar, ninguém tem vontade de nada, é fácil
se conformar com seu papel irrelevante e só se pode esperar uma
coisa da vida: ir embora, ir embora o mais depressa possível. E
Líjin, em pensamento, vagava pelas ruas de Moscou, visitava
conhecidos, encontrava-se com parentes, colegas, e seu coração se
contraía de encanto ao pensar que, agora, tinha vinte e seis anos e
que, caso conseguisse se desvencilhar daquela província e fosse
parar em Moscou dali a cinco ou dez anos, ainda não seria tarde e
ele ainda teria uma vida inteira pela frente. E, enquanto caía no
torpor do sono, quando os pensamentos já começavam a se
embaralhar, ele imaginava os corredores compridos do tribunal em
Moscou, imaginava a si mesmo proferindo um discurso eloquente,
suas irmãs, uma orquestra que, por algum motivo, zumbia:
— U-u-u! U-u-u!
— Buh! Trah! — E estalava de novo: — Buh!
E, de repente, lembrou que, certa vez, no conselho do ziémstvo,
quando estava conversando com o contador, entrou no escritório
um senhor de olhos escuros, cabelo preto, magro, pálido; os olhos
tinham a expressão desagradável que se vê em pessoas que
dormiram demais depois do almoço, e aquilo prejudicava seu perfil
inteligente, de linhas delicadas; as botas de cano alto também não
combinavam com ele, pareciam brutas. O contador o apresentou:
“Este é o nosso corretor de seguros do ziémstvo”.
“Então, aquele era o Lesnítski… o próprio…”, só então Líjin se
deu conta.
Lembrou-se da voz baixa de Lesnítski, recordou seu modo de
andar e teve a impressão de que, ali perto, naquele instante, alguém
estava caminhando, e caminhando do mesmo jeito que Lesnítski.
De repente, sentiu medo, sua cabeça gelou.
— Quem está aí? — perguntou, agitado.
— O Puliça.
— O que você quer?
— Vim perguntar uma coisa, vossa excelência. Agora há pouco o
senhor disse que não precisa do suboficial, só que eu tenho medo
de que ele fique zangado. Ele me mandou ir lá. Não é melhor eu ir?
— Ora, me deixe! Você me enche a paciência… — exclamou
Líjin, irritado, e cobriu-se de novo.
— Ele vai se zangar comigo… Eu vou lá, vossa excelência,
durma bem.
E Lochadin saiu. No vestíbulo, sussurravam e conversavam em
voz baixa. Na certa, as testemunhas estavam de volta.
“Amanhã, vou liberar esses coitados mais cedo…”, pensou o juiz
de instrução. “Assim que o dia raiar, vou começar a autópsia.”
Estava começando a adormecer, quando, de repente, ouviu
passos, não tímidos, mas afoitos, barulhentos. Uma porta bateu,
vozes, o riscar de um fósforo…
— O senhor está dormindo? O senhor está dormindo? —
perguntou o médico Stártchenko, esbaforido e irritado, enquanto
riscava um fósforo atrás do outro; estava todo coberto de neve, e,
dele exalava um ar frio. — Está dormindo? Levante, vamos para a
casa de Von Taunitz. Ele mandou até cavalos para levar o senhor.
Vamos. Lá pelo menos o senhor pode jantar e dormir como gente.
Veja, eu vim pessoalmente buscá-lo. Os cavalos dele são
maravilhosos, chegaremos lá em vinte minutos.
— Mas que horas são?
— Dez e quinze.
Com sono, de má vontade, Líjin calçou as botas de feltro, vestiu
o casaco de pele, o capuz, e saiu junto com o médico. A friagem não
era tão grande, porém o vento batia com força, um vento cortante,
que arrastava nuvens de neve ao longo da rua, como se estivessem
fugindo de pavor; ao pé das cercas e junto às varandas, já se haviam
acumulado grandes montes de neve. O médico e o juiz de instrução
tomaram assento no trenó, e o cocheiro, todo branco, virou e se
abaixou na direção deles a fim de fechar o trinco da portinhola.
Ambos sentiam calor.
— Em frente!
Atravessaram o povoado. “Abrindo sulcos aveludados…”,[57]
pensou o juiz de instrução, num torpor, enquanto observava como
o cavalo da direita da troica movimentava as patas. Em todas as
isbás luzes brilhavam, como se fosse véspera de um grande dia de
festa: mas era porque os camponeses não queriam dormir, com
temor do defunto. O cocheiro se mantinha calado e triste; na certa,
havia se aborrecido por ter sido obrigado a esperar muito, diante da
pousada do ziémstvo, e agora também pensava no falecido.
— Pois lá na casa do Taunitz — disse Stártchenko —, quando
souberam que o senhor tinha ficado na pousada para pernoitar,
todos pularam em cima de mim, revoltados por eu não ter levado o
senhor comigo.
Na saída do povoado, numa curva, o cocheiro gritou de repente,
a plenos pulmões:
— Sai da frente!
Um homem surgiu de relance; caminhava com a neve pelos
joelhos, enquanto saía da estrada, e olhou para a troica; o juiz de
instrução viu uma bengala com um arco na ponta, uma barba e uma
bolsa a tiracolo, teve a impressão de que era Lochadin e lhe
pareceu, até, que estava sorrindo. O homem surgiu de relance e
desapareceu.
De início, a estrada corria pela orla do bosque, depois seguiu por
um largo corte aberto na mata; também de relance, surgiram
pinheiros antigos, um jovem bosque de bétulas, carvalhos altos,
jovens e retorcidos, que se erguiam solitários, em clareiras
desmatadas pouco antes por lenhadores, porém tudo logo se
confundiu no ar, nas nuvens de neve; o cocheiro disse que estava
vendo a floresta, mas o juiz de instrução não enxergava nada, a não
ser aquele cavalo. O vento soprava pelas costas.
De repente, os cavalos pararam.
— Puxa, o que foi? — perguntou Stártchenko, irritado.
O cocheiro desceu da boleia, em silêncio, e se pôs a correr em
volta do trenó, pisando forte nos calcanhares; correu em círculos,
sem parar, se afastando pouco a pouco do trenó, parecia até uma
dança; por fim, voltou e virou o trenó para a direita.
— O que foi, perdeu o caminho? — perguntou Stártchenko.
— Não foi na-a-a-ada…
Apareceu um vilarejo, ao longe, sem uma luzinha sequer. De
novo, o bosque, o campo, de novo perderam o caminho, o cocheiro
desceu da boleia e executou sua dança. A troica penetrou numa
alameda escura, avançou depressa e as patas traseiras do cavalo
fogoso resvalavam na parte frontal do trenó. Ali, as árvores
farfalhavam com estrondo, era aterrador, não se enxergava um
palmo à frente do nariz, parecia que estavam se precipitando por
dentro de um abismo e, de repente, uma luz clara bateu em seus
olhos, vinha da entrada de uma casa, das janelas ressoaram
entrecortados latidos de boas-vindas, vozes… Tinham chegado.
Enquanto, no térreo, no vestíbulo, eles despiam seus casacos de
pele e suas botas de feltro, no primeiro andar tocavam no piano
“Un petit verre de Clicquot”[58] e se ouvia como as crianças batiam
os pés no chão ritmadamente. As visitas logo sentiram o aroma e o
calor dos antigos aposentos da nobreza, onde, a despeito do tempo
que fizesse do lado de fora, estava sempre bem aquecido, limpo e
confortável.
— Vejam, mas que ótimo — disse Von Taunitz, obeso, de
costeletas grandes e com o pescoço de uma largura inacreditável,
enquanto apertava a mão do juiz de instrução. — Mas que ótimo.
Seja bem-vindo, é um grande prazer conhecê-lo. Eu e o senhor
fomos mais ou menos colegas. Um tempo atrás, eu fui colega de
trabalho do procurador, mas por pouco tempo, só dois anos; vim
para cá cuidar da minha propriedade rural e aqui envelheci. Em
resumo, sou um velho diabo. Seja muito bem-vindo — prosseguiu,
visivelmente contendo a voz para não falar alto; ele e as visitas
subiram ao primeiro andar. — Não tenho esposa, ela morreu, mas
aqui estão as minhas filhas, permitam que eu lhes apresente. —
Voltou-se e gritou para baixo, com voz de trovão. — Avisem ao
Ignat que deixe o trenó pronto amanhã às oito horas!
No salão, estavam suas quatro filhas, mocinhas bonitas, todas de
vestido cinzento e penteados iguais, além de uma prima, também
jovem e interessante, com seus filhos. Stártchenko, já conhecido na
casa, logo pediu que cantassem e duas senhoritas alegaram,
demoradamente, que não sabiam cantar e que não tinham
partituras, mas depois a prima sentou-se ao piano e elas, com vozes
trêmulas, cantaram um dueto de Dama de espadas.[59] E, mais uma
vez, começaram a tocar “Un petit verre de Clicquot”, e as crianças
se puseram a pular, batendo os pés no chão no ritmo da música.
Também Stártchenko se pôs a pular. Todos riram.
Depois, as crianças se despediram e foram dormir. O juiz de
instrução riu, dançou a quadrilha, cortejou as moças e pensou:
“Não será tudo isto um sonho?”. A parte dos fundos da pousada do
ziémstvo, o monte de feno no canto do chão, o rumor das baratas,
os móveis horrendos e indigentes, as vozes das testemunhas, o
vento, a tempestade de neve, o perigo de perder o caminho e, de
repente, aqueles aposentos claros e suntuosos, o som do piano,
moças bonitas, crianças de cabelos cacheados, risos alegres, felizes
— tamanha transformação parecia um conto de fadas; e era
inacreditável que tal transformação fosse possível a uma distância
de apenas três verstas, ou uma hora de viagem. Mas pensamentos
tristes vieram atrapalhar sua alegria, e ele pensava o tempo todo
que aquilo à sua volta não era a vida, mas apenas lascas de vida,
migalhas, que tudo ali era fortuito, não se podia tirar nenhuma
conclusão; chegou a sentir pena daquelas moças, que viviam ali e
terminariam suas vidas naquele fim de mundo, na província, longe
dos ambientes cultos, onde nada é fortuito, onde tudo é ponderado,
tudo tem suas normas e, por exemplo, qualquer suicídio tem sua
razão de ser, é possível explicar por que aconteceu e qual o seu
significado, no turbilhão geral da vida. Já que a vida que o rodeava
ali, naquele fim de mundo, lhe era incompreensível e como ele nem
sequer enxergava aquela vida, Líjin supunha que, ali, não existia
vida nenhuma.
Durante o jantar, conversaram sobre Lesnítski.
— Ele deixou esposa e um filho pequeno — disse Stártchenko.
— Eu acho que seria melhor proibir o casamento para os
neurastênicos e para as pessoas com problemas no sistema nervoso,
em geral; eu retiraria delas o direito e a possibilidade de multiplicar
pessoas semelhantes a elas. Pôr no mundo filhos com doenças
nervosas é um crime.
— Ele era um jovem infeliz — disse Von Taunitz, suspirou
baixinho e balançou a cabeça. — Quanto tempo ele teve de ficar
pensando, repensando e sofrendo, antes de, afinal, tomar a decisão
de tirar a própria vida… uma vida jovem. Em todas as famílias pode
ocorrer uma desgraça como essa, e isso é horrível. É difícil
suportar, é intolerável…
E todas as moças ouviam caladas, com o rosto sério, olhando
para o pai. Líjin tinha a sensação de que também ele precisava dizer
algo, mas não conseguia pensar em nada e só foi capaz de dizer:
— Sim, o suicídio é um fenômeno indesejável.
Ele dormiu num quarto aquecido, num colchão macio,
agasalhado por um cobertor, sob o qual havia um lençol fresco e
fino, todavia, por alguma razão, não se sentia confortável; talvez
porque, no quarto vizinho, o médico e Von Taunitz conversaram
demoradamente e, no alto, acima do teto e por dentro da chaminé
da estufa, a tempestade de neve roncava da mesma forma que na
pousada do ziémstvo, e também uivava em tom queixoso:
— U-u-u-u!
Fazia dois anos que a esposa de Taunitz tinha morrido e, até
então, ele não havia se conformado e, qualquer que fosse o assunto
da conversa, sempre mencionava a esposa; já não restava, naquele
homem, nada do procurador que ele tinha sido.
“Será possível que, algum dia, eu também chegue a uma
situação como essa?”, pensou Líjin, ao adormecer, enquanto ouvia,
através da parede, a voz acanhada de Von Taunitz, como a voz de
um órfão.
O juiz de instrução teve um sono intranquilo. Fazia calor, sentia-
se incomodado e, no sonho, ele parecia estar, não na casa de
Taunitz nem numa cama limpa e macia, mas ainda na pousada do
ziémstvo, deitado sobre o feno e ouvindo o que as testemunhas
conversavam à meia-voz; tinha a impressão de que Lesnítski estava
próximo, a quinze passos. No sonho, lembrou de novo como o
corretor de seguros, pálido, de cabelo escuro e botas de cano alto
empoeiradas, entrou no escritório do contador. “Este é o nosso
corretor de seguros do ziémstvo…” Depois, teve a impressão de que
Lesnítski e o ajudante de polícia Lochadin estavam caminhando no
campo, sobre a neve, lado a lado, e amparavam-se um no outro; a
tempestade de neve rodopiava acima deles, o vento soprava em
suas costas, enquanto os dois caminhavam e cantarolavam:
— Nós andamos, nós andamos, nós andamos.
O velho parecia um bruxo de ópera e os dois, de fato, cantavam
como num teatro:
— Nós andamos, nós andamos, nós andamos… Você está no
quentinho, na luz, no macio, mas nós andamos no frio gelado, na
nevasca, na neve funda… Não sabemos o que é sossego, não
sabemos o que é alegria… Suportamos nas costas todo o peso desta
vida, a nossa, a sua… U-u-u! Nós andamos, nós andamos, nós
andamos…
Líjin acordou e sentou na cama. Que sonho tumultuado e ruim!
E por que o corretor de seguros e o ajudante de polícia apareceram
juntos, no sonho? Que absurdo! E agora, quando o coração de Líjin
batia com força e ele estava sentado na cama com a cabeça apertada
entre as mãos, teve a impressão de que havia, de fato, algo de
comum na vida do corretor de seguros e do ajudante de polícia. Por
acaso não caminham na vida, os dois, lado a lado, amparando-se um
ao outro? Que elo invisível, mas significativo e necessário, existe
entre ambos, e mesmo entre eles e Taunitz, e entre todos, todo
mundo? Nesta vida, mesmo no vilarejo mais remoto e despovoado,
nada acontece por acaso, tudo está impregnado de uma ideia
comum, tudo tem uma alma, um propósito e, para compreender
isso, não basta pensar, não basta raciocinar, é preciso também, com
certeza, ter o dom de enxergar a vida por dentro, dom que nem
todo mundo possui, ao que parece. O infeliz que não suportou a
pressão, o “neurastênico” (nas palavras do médico) que se matou, e
o velho mujique, que passou a vida inteira na mesma função,
andando para lá e para cá, são acasos, fragmentos da vida, para
quem considera sua própria existência também um acaso; porém
são partes de um só organismo, prodigioso e racional, para quem
considera sua própria vida também uma parte de um todo comum,
e compreende isso. Assim pensava Líjin, essa era sua antiga ideia
secreta, e só agora ela desabrochou, clara e larga, em sua
consciência.
Líjin deitou-se e começou a adormecer; de repente, lá vão eles
andando, de novo, e cantam:
— Nós andamos, nós andamos, nós andamos… Nós carregamos
o que há de mais pesado e amargo na vida e deixamos para os
senhores o que é leve e alegre, e assim os senhores podem refletir,
de modo frio e razoável, em torno da mesa de jantar, sobre as
razões por que sofremos e perecemos e por que não somos
saudáveis e satisfeitos como os senhores.
Aquilo que estavam cantando já viera, antes, à mente de Líjin,
mas tal pensamento se apresentava como que por trás de outros
pensamentos e apenas se entrevia, timidamente, como uma
centelha distante, no ar nebuloso. E ele sentiu que o suicídio e o
desgosto do mujique pesavam, também, na sua consciência;
admitir que aquelas pessoas, submissas à sua sorte, carregavam nas
costas a parte mais pesada e mais sombria da vida — como era
horrível! Admitir aquilo e, ao mesmo tempo, desejar para si uma
vida radiante e cheia de movimento, entre pessoas felizes,
satisfeitas, e sonhar constantemente com essa vida, isso significava
sonhar com novos suicídios de pessoas esmagadas pelo trabalho e
pelas preocupações, ou de pessoas fracas, desamparadas, sobre as
quais os outros apenas conversam, às vezes, durante o jantar, com
enfado ou entre zombarias, sem que ninguém se mexa para ajudá-
las… E de novo:
— Nós andamos, nós andamos, nós andamos…
Como um martelo que bate nas têmporas.
Líjin acordou cedo, com dor de cabeça, por causa de um
barulho; no cômodo vizinho, Von Taunitz conversava com o
médico, em voz bem alta:
— Os senhores não podem partir agora. Veja como está lá fora!
Nem tente discutir, é só perguntar ao cocheiro: num tempo desses,
ele não vai levar os senhores nem por um milhão.
— Mas são só três verstas, afinal — retrucou o médico, em voz
de súplica.
— Mesmo que fosse meia versta. Se não pode, não pode, e
acabou-se. É só atravessarem o portão que vai ser um verdadeiro
inferno, num minuto vão se desviar da estrada. Eu não vou deixar
que saiam daqui por nada, por mais que isso desagrade os senhores.
— Pode ser que à noite o tempo melhore — disse um mujique,
enquanto acendia a estufa.
E, no cômodo vizinho, o médico passou a explicar como os
rigores da natureza influenciam o caráter do homem russo, os
invernos longos, que, ao tolherem a liberdade de movimento,
freiam o crescimento intelectual das pessoas, e Líjin ouvia com
enfado aqueles raciocínios, enquanto observava, pela janela, os
montes de neve acumulados ao pé da cerca e olhava para a poeira
branca que recobria todo o espaço visível, as árvores que se
curvavam, em desespero, ora à direita, ora à esquerda, ouvia o uivo
e os estalos, e pensava, sombrio:
“Ora, que moral se pode extrair disto? É uma nevasca e mais
nada…”
Ao meio-dia, almoçaram, depois vagaram pela casa, sem
propósito nenhum, caminhavam até as janelas.
“E o Lesnítski está lá deitado no chão”, pensou Líjin, olhando
para os turbilhões que rodavam frenéticos em cima dos montes de
neve. “O Lesnítski está lá deitado, e as testemunhas esperando…”
Conversavam sobre o tempo, sobre o fato de que as nevascas,
em geral, duravam dois dias, às vezes mais. Jantaram às seis horas,
depois jogaram baralho, cantaram, dançaram e, enfim, cearam. O
dia terminou, foram dormir.
De madrugada, o tempo melhorou. Quando se levantaram e
olharam pela janela, os salgueiros nus, com os galhos um pouco
abaixados, erguiam-se completamente imóveis, o dia estava
nublado, silencioso, como se agora a natureza se mostrasse
envergonhada de sua orgia, das loucas madrugadas e da liberdade
que havia concedido a suas paixões. Os cavalos, atrelados em fila,
aguardavam diante da varanda, desde as cinco da manhã. Quando
amanheceu de todo, o médico e o juiz vestiram seus casacos de
pele, suas botas de feltro, despediram-se do anfitrião e saíram.
Na varanda, junto ao cocheiro, estava o já conhecido puliça, Iliá
Lochadin, sem gorro, com a velha bolsa a tiracolo, todo cheio de
neve; tinha o rosto vermelho, molhado de suor. O lacaio, que saíra
para acompanhar as visitas até o trenó e cobrir suas pernas, olhou
para ele com ar severo e disse:
— O que você quer aqui, velho diabo? Trate de cair fora!
— Vossa excelência, o povo está nervoso… — disse Lochadin, e
todo seu rosto sorriu com ar ingênuo, visivelmente satisfeito por
estar, afinal, diante das pessoas que tanto desejava ver. — O povo
está muito nervoso, as crianças choram… Acharam que vossa
excelência tinha ido embora da cidade, outra vez. Tenha
misericórdia, nosso benfeitor…
O médico e o juiz não falaram nada, tomaram seus assentos no
trenó e partiram rumo a Sírnia.

1899
A queridinha

Ólienka[60], filha do assessor colegiado[61] aposentado Plemiánikov,


estava no alpendre de sua casa, sentada, refletindo. Fazia calor, as
moscas importunavam sem dar trégua e era muito agradável pensar
que, dali a pouco, chegaria a noite. Do leste, aproximavam-se
nuvens escuras de chuva e, de lá também, de vez em quando,
bafejava um ar úmido.
De pé, no meio do pátio, olhando para o céu, estava Kúkin,
empresário e dono do parque de diversões Tívoli, que residia ali
mesmo, no pavilhão anexo à casa principal.
— De novo! — disse, em desespero. — Vai chover de novo!
Chove todo dia, todo santo dia chove, parece até de propósito! Ah,
é o fim! É a ruína! Todo dia eu sofro prejuízos horríveis!
Ergueu as mãos e continuou, voltando-se para Ólienka:
— Esta é a nossa vida, Olga Semiónovna. Dá vontade de chorar!
A gente trabalha, sofre, se mata, passa noites sem dormir, sempre
pensando que vai melhorar… e para quê? De um lado, o público
ignorante, selvagem. Eu ofereço a melhor opereta, a melhor magia,
cançonetistas primorosos, mas será que eles precisam disso? Será
que o público entende alguma coisa? Eles precisam é de
palhaçadas! Só querem saber de vulgaridades! De outro lado, olhe
só para o tempo. Quase todo dia, chove. Começou no dia 10 de
maio e depois, de lá para cá, o resto de maio e junho inteiro foram
um verdadeiro horror! O público não aparece, mas e eu? Por acaso
não tenho de pagar o aluguel do mesmo jeito? Não tenho de pagar
os artistas?
No dia seguinte, ao entardecer, as nuvens vieram mais uma vez
e Kúkin disse, com um riso histérico:
— Como é que pode? Pois então, que chova! Que inunde o
parque inteiro, que eu mesmo fique debaixo da água! Que eu não
saiba o que é felicidade nem neste mundo nem no outro! E que os
artistas entrem na justiça contra mim! Aliás, para que fazer um
julgamento? Que me mandem logo para os trabalhos forçados, para
a Sibéria! Que eu vá para a forca, de uma vez! Ha-ha-ha!
E, no terceiro dia, a mesma coisa…
Ó
Ólienka ouvia Kúkin sem dizer nada, com ar sério e, de vez em
quando, vinham lágrimas aos seus olhos. Os infortúnios de Kúkin
acabaram comovendo Ólienka, que se apaixonou por ele. Era um
homem baixo, muito magro, de rosto amarelo, cabelo escorrido nas
têmporas, voz rala de tenorino e, quando falava, torcia a boca; trazia
sempre o desespero estampado no rosto, porém, apesar de tudo,
Kúkin despertou nela um sentimento genuíno e profundo. Ólienka
estava sempre amando alguém e, sem isso, não conseguia viver.
Antes, já amava o pai, que agora estava doente, num quarto escuro,
numa poltrona, e respirava com dificuldade; ela amava também sua
tia, que vinha de Briansk duas vezes por ano para visitá-la; e antes,
ainda, quando estudava nas primeiras séries do ginásio, amava seu
professor de francês. Ólienka era uma jovem tranquila, bondosa, de
olhar dócil e meigo, cheia de compaixão e muito saudável. Quando
olhavam para suas faces rosadas e cheias, para o pescoço branco e
delicado, com um sinalzinho escuro, quando olhavam para o sorriso
ingênuo e bondoso que surgia no rosto, se lhe diziam qualquer
coisa simpática, os homens pensavam: “Puxa, ela é bonita…”, e
sorriam; e as damas, numa festa, também não conseguiam se
conter e, mesmo no meio de uma conversa, de repente, a tomavam
pela mão e lhe diziam, num ímpeto de contentamento:
— Queridinha!
A casa onde ela morava desde seu nascimento, e que estava
registrada em seu nome, por herança, ficava na periferia da cidade,
no Bairro Cigano, perto do parque Tívoli; à tardinha e à noite, ela
ouvia a música do parque Tívoli, o estrondo dos fogos de artifício, e
tinha a impressão de que aquilo era Kúkin em luta contra o seu
destino, desferindo um ataque contra seu principal inimigo: o
público indiferente; ela sentia um doce aperto no coração, perdia a
vontade de dormir e quando, ao amanhecer, Kúkin voltava para
casa, Ólienka batia de leve na janelinha do seu quarto, deixava à
mostra para ele, através da cortina, o rosto e o ombro, e sorria
carinhosa…
Ele a pediu em casamento e casaram-se. Quando viu, sem
disfarces, seu pescoço e seus ombros carnudos e saudáveis, o
marido ergueu as mãos, admirado, e exclamou:
— Queridinha!
Kúkin estava feliz, porém, como na tarde do casamento e,
depois, à noite, a chuva não parou de cair, a expressão de desespero
não abandonava seu rosto.
Após o casamento, viviam bem. Ela trabalhava na bilheteria,
cuidava da ordem geral do parque de diversões, assinava as
despesas, pagava os salários, e suas faces rosadas e seu sorriso
meigo, ingênuo, como se fosse uma auréola, rebrilhavam ora na
janelinha na bilheteria, ora nos bastidores, ora no bufê. E, para seus
conhecidos, ela já dizia que, neste mundo, o mais notável, o mais
importante e necessário era o teatro e que só com o teatro era
possível obter um prazer verdadeiro e tornar-se educado e humano.
— E vocês acham que o público entende isso? — dizia Ólienka.
— Eles só querem saber de palhaçadas! Ontem, nós apresentamos
Fausto às avessas[62] e quase todos os camarotes estavam vazios,
mas, se eu e o Vánitchka[63] tivéssemos apresentado qualquer
vulgaridade, acredite, o teatro ficaria completamente lotado.
Amanhã, eu e o Vánitchka vamos montar Orfeu no inferno,[64] venha
assistir.
E aquilo que Kúkin dizia sobre o teatro e sobre os atores, ela
repetia. Quanto ao público, Ólienka o desprezava tanto quanto
Kúkin, por sua indiferença pela arte e sua ignorância. Ólienka
intrometia-se nos assuntos do teatro, corrigia os atores, cuidava do
desempenho dos músicos e, quando o jornal local se referia ao
teatro de modo desfavorável, ela chorava e depois ia até a redação
para se explicar.
Os atores adoravam Ólienka e a chamavam de “eu e o Vánitchka”
e de “a queridinha”; ela, por sua vez, tinha pena dos atores, lhes
dava pequenos empréstimos e se, por acaso, a enganavam, ela se
limitava a chorar baixinho, mas não fazia queixa para o marido.
No inverno, o casal também viveu bem. Arrendaram um teatro
na cidade durante toda a estação e o alugaram, por curto prazo, para
uma trupe da Pequena Rússia,[65] um mágico e um grupo local de
amadores. Ólienka engordava e resplandecia de contentamento,
mas Kúkin emagrecia, se tornava cada vez mais amarelo e se
queixava de prejuízos terríveis, embora os negócios corressem bem
durante todo o inverno. À noite, tossia e Ólienka lhe dava chá de
framboesa e de tília, aplicava fricções de água-de-colônia e envolvia
o marido em seus xales macios.
— Você é o meu benzinho! — dizia ela, com muita sinceridade,
enquanto alisava seus cabelos. — Você é o meu bonitinho!
Na Quaresma, ele foi para Moscou a fim de recrutar uma trupe,
e Ólienka não conseguia dormir sem Kúkin, ficava sentada junto à
janela e olhava para as estrelas. Nessa ocasião, ela se comparava
com as galinhas, que também passam a noite sem dormir e sentem-
se ansiosas quando o galo não está no galinheiro. Kúkin demorou-
se em Moscou, escreveu para avisar que voltaria na Semana Santa
e, nas cartas, já dava instruções acerca do Tívoli. Porém, na
segunda-feira da Semana Santa, de repente, tarde da noite, soou
uma pancada funesta na entrada; alguém batia no portão, e
pareciam golpes no fundo de um barril: Bum! Bum! Bum!
Sonolenta, chapinhando os pés descalços nas poças, a cozinheira
correu para abrir o portão.
— Abra, por caridade! — disse alguém, atrás do portão, com
surda voz de baixo. — Telegrama para a senhora!
Ólienka já havia recebido telegramas do marido, mas daquela
vez, por algum motivo, ficou aturdida. Com mãos trêmulas,
rompeu o selo do telegrama e leu o seguinte:
“Ivan Petróvitch faleceu hoje repentinamente aquimos
aguardamos ordens tenterro terça-feira.”
Era assim mesmo que estava escrito no telegrama, “tenterro” e a
incompreensível palavra “aquimos”; quem assinava era o diretor da
trupe de opereta.
— Meu pombinho! — Ólienka desatou a chorar. — Vánitchka,
meu adoradinho, meu benzinho! Por que eu fui conhecer você? Por
que eu tive de encontrar você e me apaixonar? Por que você deixou
sozinha a sua pobre Ólienka, esta infeliz?…
Kúkin foi enterrado na terça-feira, na cidade de Moscou, em
Vagánkovo;[66] Ólienka voltou para casa na quarta-feira e, assim que
entrou, desabou na cama e chorou tão alto que se ouvia na rua e nas
casas vizinhas.
— Queridinha! — diziam os vizinhos, e faziam o sinal da cruz.
— Queridinha Olga Semiónovna, mãezinha, como se desespera!
Três meses depois, certo dia, Ólienka voltava da missa tristonha,
em luto profundo. Por acaso, caminhando a seu lado, também de
volta para casa, vinha o seu vizinho Vassíli Andreitch Pustoválov,
gerente do depósito de madeira do comerciante Babakéiev. Usava
chapéu de palha, colete branco enfeitado com uma correntinha
dourada e mais parecia um grande senhor de terras do que um
vendedor.
— Tudo tem a sua razão de ser, Olga Semiónovna — disse ele,
pausadamente, com voz de compaixão. — Se uma pessoa próxima
de nós morre, quer dizer que essa é a vontade de Deus e, nesse
caso, devemos recordar e suportar com resignação.
Ele conduziu Ólienka até o portão, despediu-se e foi em frente.
Depois disso, ela ouvia o dia inteiro sua voz pausada e, assim que
fechava os olhos, surgia no pensamento a imagem da barba escura
de Pustoválov. Ela gostou muito dele e, pelo visto, Ólienka também
causou boa impressão, porque, após um breve tempo, uma senhora
de idade, que ela conhecia muito pouco, foi à sua casa tomar café e,
assim que sentou à mesa, começou a falar de Pustoválov, disse que
era um homem bom, sério, bem estabelecido, e garantiu que
qualquer noiva ficaria contente de casar com ele. Três dias depois, o
próprio Pustoválov foi visitá-la; ficou pouco tempo, mais ou menos
dez minutos, falou pouco, mas Ólienka se apaixonou, e a tal ponto
que passou a noite toda sem dormir, ardendo como se tivesse febre
e, de manhã, mandou chamar a senhora idosa. Em pouco tempo
tudo ficou acertado e, depois, ocorreu o casamento.
Casados, Pustoválov e Ólienka viviam bem. Em geral, ele ficava
no depósito de madeira até a hora do almoço, depois saía a trabalho,
Ólienka o substituía no escritório do depósito até a noite e, lá,
cuidava da contabilidade e despachava as mercadorias.
— Agora, todo ano, o preço da madeira sobe vinte por cento —
dizia ela para os compradores e conhecidos. — Veja bem, antes,
nós vendíamos madeira local, agora o Vássitchka[67] precisa viajar
todo ano à província de Moguilióv para trazer madeira. E que taxas!
— dizia ela, horrorizada, e cobria as faces com as mãos. — Que
taxas!
Ólienka tinha a impressão de que trabalhava no comércio de
madeira fazia já muito tempo, de que nada era mais importante e
indispensável, na vida, do que a madeira, e sentia haver algo
comovente e muito afim a ela nas palavras viga, tora, prancha, ripa,
sarrafo, caibro, tronco, barrote, apara… À noite, quando dormia, ela
sonhava com montanhas de tábuas e pranchas, infinitas fileiras de
carroções carregados de madeira rumo a algum local fora da cidade;
sonhava que o depósito de madeira era atacado por todo um
exército de troncos, de doze archin por cinco verchok,[68] que
marchavam de pé, Olga sonhava que as vigas, os troncos e os
barrotes trocavam golpes, repercutindo estalos estridentes de
madeira seca, ela sonhava que todos caíam por terra, levantavam-se
outra vez e se empilhavam uns sobre os outros; enquanto dormia,
Ólienka dava um grito e Pustoválov lhe dizia, com carinho:
— Ólienka, o que há com você, querida? Faça o sinal da cruz!
Os pensamentos de Ólienka eram iguais aos do marido. Se ele
pensava que no quarto fazia calor ou que os negócios andavam
parados, assim também pensava a esposa. O marido não gostava de
nenhuma diversão, por isso, nos feriados, ficava em casa, e Ólienka
fazia o mesmo.
— Mas vocês ficam sempre em casa ou no escritório — diziam
os conhecidos. — Deviam sair para ir ao teatro, queridinha, ou ao
circo.
— Eu e o Vássitchka não temos tempo para ir ao teatro —
respondia, com voz pausada. — Somos pessoas de trabalho, não
perdemos tempo com bobagens. E, afinal, o que há de tão bom
nesses teatros?
Aos sábados, ela e Pustoválov iam à missa das Vésperas, nos
feriados, iam à missa bem cedo e, quando voltavam da igreja,
caminhavam juntinhos, os rostos enternecidos, ambos cheiravam
bem, e o vestido de seda de Olga rumorejava de modo agradável;
em casa, bebiam chá e comiam pão com manteiga e geleias variadas
e, depois, um pedaço de empadão. Ao meio-dia, no quintal e na
rua, para além do portão, todos os dias as pessoas sentiam o cheiro
gostoso de sopa de beterraba e o aroma de cordeiro ou pato assado
e, no jejum da Quaresma, provavam o cheiro de peixe, e era
impossível passar diante do portão sem que viesse a vontade de
comer. No escritório, sempre havia um samovar aceso e os clientes
eram convidados a tomar chá com búbliki.[69] Uma vez por semana,
marido e esposa iam à bánia e voltavam lado a lado, muito
vermelhos.
— Estamos vivendo muito bem, graças a Deus — dizia Ólienka
para os conhecidos. — Deus permita que todos vivam como eu e o
Vássitchka.
Quando Pustoválov viajava para a província de Moguilióv a fim
de buscar madeira, Ólienka sentia muita saudade, não conseguia
dormir à noite, e chorava. Às vezes, ao fim do dia, recebia a visita
do veterinário militar Smírnin, jovem que residia no pavilhão anexo
à sua casa, como inquilino. Smírnin contava algumas histórias ou
jogava cartas com ela, e isso a distraía. Particularmente
interessantes eram seus relatos sobre sua vida conjugal; era casado
e tinha um filho, mas estava separado da esposa, pois ela o havia
traído, e agora ele a odiava e todo mês lhe mandava mais ou menos
quarenta rublos, para o sustento do filho. Enquanto escutava
aquilo, Ólienka suspirava, balançava a cabeça e sentia pena de
Smírnin.
— Que Deus ajude o senhor — dizia, ao se despedir, enquanto o
conduzia até a escada com uma vela na mão. — Obrigada por me
ajudar a suportar minha tristeza, que Deus lhe dê saúde e que a
Rainha do Céu…
E Ólienka, a exemplo do marido, se expressava em voz bem
pausada e ponderada; o veterinário já estava indo embora, pela
porta lá embaixo, quando ela o chamou e disse:
— Sabe, Vladímir Platónitch, o senhor devia fazer as pazes com
sua esposa. Perdoe sua esposa, nem que seja só pelo filho!… O
menininho, na certa, está entendendo tudo.

Ó
Quando Pustoválov retornava, Ólienka lhe contava à meia-voz a
história do veterinário e de sua vida conjugal infeliz, e os dois
suspiravam, balançavam a cabeça e falavam do menino que, com
certeza, sentia saudades do pai. Depois, por via de uma estranha
concatenação de ideias, marido e esposa se punham de pé diante
dos ícones, curvavam-se até o chão, em reverências, e faziam
orações para que Deus lhes desse filhos.
Assim viveram os Pustoválov, em paz e tranquilidade, em amor e
plena concórdia, durante seis anos. No entanto, certo dia, no
inverno, depois de tomar seu chá bem quente no depósito, Vassíli
Andreitch saiu sem o gorro para despachar um carregamento de
madeira, resfriou-se e adoeceu. Foi tratado pelos melhores
médicos, mas a doença levou a melhor e ele morreu, depois de
quatro meses enfermo. E, mais uma vez, Ólienka ficou viúva.
— Por que você me abandonou, meu benzinho? — soluçava,
depois do enterro do marido. — Como vou viver agora sem você,
amargurada e infeliz? Ah, minha gente bondosa, tenha pena de
mim, esta órfã desamparada…
Ela andava de vestido preto, com fitas de luto, e já havia
renunciado para sempre aos chapéus e às luvas, raramente saía de
casa, só para ir à igreja ou ao túmulo do marido e, em casa, vivia
como se fosse monja. Só depois de seis meses, retirou as fitas de
luto e passou a abrir as persianas das janelas. Às vezes, de manhã,
ela já era vista caminhando na rua para comprar mantimentos, em
companhia da cozinheira, mas, quanto à maneira como vivia em sua
casa e ao que se passava agora, ali dentro, só era possível fazer
conjecturas. E conjecturas não faltavam, pois, por exemplo, as
pessoas viam Ólienka tomar chá em seu jardim com o veterinário,
viam que Smírnin lia o jornal em voz alta para ela e, ao encontrar
uma senhora conhecida, no correio, Ólienka dizia:
— A nossa cidade não tem um serviço de vigilância veterinária
apropriado e isso gera muitas doenças. Volta e meia ouvimos falar
que pessoas ficaram doentes por causa do leite e porque foram
contaminadas por cavalos e vacas. A saúde dos animais domésticos
deve ser objeto de preocupação, tanto quanto a saúde das pessoas.
Ela repetia as ideias do veterinário e, agora, tinha a mesma
opinião que ele acerca de tudo. Estava claro que Ólienka não
conseguia sobreviver sequer um ano sem estar ligada a alguém, e
acabou encontrando sua nova felicidade no pavilhão anexo à sua
casa. Outra pessoa em tal situação talvez ficasse malvista, mas
ninguém conseguia pensar nada de ruim a respeito de Ólienka e,
em sua vida, tudo acontecia de modo muito natural. Nem ela nem o
veterinário falavam com ninguém sobre a mudança em suas
relações e tentavam esconder o assunto, no entanto, não
alcançaram sucesso, porque Ólienka era incapaz de ter segredos.
Quando Smírnin recebia a visita de colegas do regimento, Ólienka
começava a falar de uma praga que atacava o gado bovino, ou da
tuberculose animal, ou dos matadouros municipais, enquanto
servia o chá ou o jantar, porém Smírnin se mostrava terrivelmente
embaraçado e, quando as visitas se retiravam, ele a segurava pelo
braço e resmungava, com irritação:
— Mas eu já não pedi para você não falar de assuntos de que não
entende? Quando nós, veterinários, estivermos conversando, por
favor, não se intrometa. Puxa, que coisa maçante!
E ela olhava para Smírnin com espanto e perplexidade, e
perguntava:
— Mas então, Volóditchka,[70] sobre o que devo conversar?
Com lágrimas nos olhos, ela o abraçava, suplicava que não
ficasse zangado, e os dois terminavam felizes.
No entanto, aquela felicidade não durou muito. O veterinário
partiu com seu regimento, foi embora para sempre, pois o
regimento foi transferido para muito longe, para algum local quase
na Sibéria. E Ólienka ficou sozinha.
Agora, ela vivia completamente só. Já fazia muito tempo que o
pai morrera e sua poltrona estava abandonada no sótão, coberta de
poeira e sem um dos pés. Olga engordou e ficou feia, e quem
cruzava seu caminho na rua não olhava nem sorria para ela como
antes; estava claro que os anos melhores já haviam passado, tinham
ficado para trás, e agora começava uma espécie de vida nova,
desconhecida, sobre a qual era melhor não pensar. À noite, Ólienka
sentava na varandinha e ouvia a música e os fogos de artifício no
parque Tívoli, porém aquilo já não despertava quaisquer
pensamentos. Olga olhava com indiferença para seu pátio, sem
pensar em nada, sem querer nada e, depois, quando chegava a
madrugada, ia dormir e sonhava com o pátio vazio. Comia e bebia
sozinha, como que a contragosto.
O principal, e o pior de tudo, era que Ólienka já não tinha
nenhuma opinião. Olhava para os objetos à sua volta e compreendia
tudo o que se passava, no entanto, não conseguia formar opinião a
respeito de coisa alguma e não sabia o que devia dizer. E como é
horrível não ter opinião! Por exemplo, ver quanto custa uma garrafa
ou que está chovendo ou que um mujique passa numa carroça, mas
ignorar para que servem a garrafa, a chuva ou o mujique, ser
incapaz de dizer qual o sentido de cada um deles, e não conseguir
dizê-lo nem por mil rublos. Na companhia de Kúkin, de Pustoválov
Ó
e, depois, do veterinário, Ólienka era capaz de explicar tudo,
manifestaria sua opinião sobre o que quisesse; agora, no entanto,
tinha os pensamentos, e também o coração, tão vazios como o pátio
de sua casa. E era tão horrível, tão amargo como se tivesse
mastigado absinto.
Pouco a pouco, a cidade se expandiu em todas as direções;
Bairro Cigano já era o nome de uma rua e, lá onde ficavam o parque
Tívoli e os depósitos de madeira, ergueram-se prédios e se formou
uma série de ruazinhas. Como o tempo voa! A casa de Ólienka
escureceu, o telhado enferrujou, o celeiro inclinou-se e o pátio
inteiro foi tomado por ervas daninhas e urtigas bravas. Ólienka
envelheceu, tornou-se feia; no verão, senta-se na varandinha e, em
sua alma, como antes, há um vazio, um tédio, um sabor de absinto
e, no inverno, ela se acomoda junto à janela e fica olhando para a
neve. Quando bate o sopro da primavera, quando o vento traz o
som dos sinos das igrejas e irrompem, de repente, recordações do
passado, ela sente um doce aperto no coração e, dos olhos,
derramam-se lágrimas de amargura, mas isso não dura mais que um
minuto, volta de novo o vazio e a falta de razão para viver. A gatinha
preta Briska ronrona com doçura e se aconchega afetuosa, mas
carinhos de gato não comovem Ólienka. De que servem, para ela?
Quem dera tivesse um amor que se apoderasse de todo seu ser, de
toda sua alma e de sua razão, um amor que lhe trouxesse ideias, que
lhe mostrasse uma direção na vida e que incendiasse seu sangue
envelhecido. E ela afugentava Briska e lhe dizia, irritada:
— Vá embora… Não tem nada aqui para você.
E assim, dia após dia, ano após ano, nenhuma alegria, nenhuma
opinião. O que a cozinheira Mavra dizia já bastava.
Num dia quente de junho, ao cair da noite, na hora em que
passavam tocando o gado da cidade pela rua e nuvens de poeira
cobriam todos os pátios, de repente, alguém bateu no portão. A
própria Ólienka foi abrir e, quando viu, parou estupefata: atrás do
portão estava o veterinário Smírnin, já grisalho e em trajes civis. De
súbito, ela recordou tudo e não se conteve, desatou a chorar e
encostou a cabeça no peito de Smírnin, sem dizer nenhuma
palavra, e, sob o efeito da forte emoção, nem soube dizer como os
dois, em seguida, entraram em casa e sentaram para tomar chá.
— Meu adorado! — balbuciou, trêmula de alegria. — Vladímir
Platónitch! De onde foi que Deus trouxe você para cá?
— Eu quero me estabelecer aqui em definitivo — explicou. — Já
passei para a reserva e vim tentar a felicidade aqui, em liberdade,
levar uma vida sossegada. Além disso, já é hora de matricular meu
filho no ginásio. Ele cresceu. E, sabe, além disso, fiz as pazes com a
minha esposa.
— E onde está ela? — perguntou Ólienka.
— Está no hotel, com meu filho, enquanto ando à procura de
um apartamento.
— Meu Deus, mas, ora essa, fiquem aqui mesmo, na minha casa!
Não serve como apartamento? Ah, meu Deus, eu não vou cobrar
nada de vocês. — Ólienka se emocionou e desatou a chorar
novamente. — Morem aqui, o pavilhão anexo tem espaço de sobra
para mim. Que alegria, meu Deus!
No dia seguinte, já estavam pintando o telhado e branqueando as
paredes da casa, e Ólienka, com as mãos na cintura, andava pelo
pátio e dava ordens. No rosto, brilhava o antigo sorriso e toda ela se
animava, rejuvenescia, como se tivesse despertado de um longo
sono. Chegou a esposa do veterinário, magra, feia, de cabelo curto,
ar de pessoa caprichosa e, com ela, veio o menino, Sacha,[71]
pequeno demais para a idade (tinha nove anos completos), gordo,
olhos azul-claros, covinhas nas bochechas. E, assim que entrou no
pátio, o menino saiu correndo atrás da gata e logo ressoou seu riso
alegre, divertido.
— Titia, essa gata é da senhora? — perguntou para Ólienka. —
Quando ela tiver cria, por favor, dê um filhote para nós. A mamãe
morre de medo dos ratos.
Ólienka conversou um pouquinho com o menino, lhe deu chá e,
de repente, um calor subiu dentro do peito, o coração se encolheu
com doçura, como se aquele menino fosse seu filho de verdade. E à
noite, quando o menino se sentou à mesa na sala de jantar e fez a
lição de casa, Ólienka olhou para ele com ternura e sussurrou, cheia
de compaixão:
— Meu pombinho, que bonitinho… Meu filhinho, e já nasceu
tão inteligente, tão branquinho.
— Chama-se de ilha — leu Sacha — uma extensão de terra
cercada de água por todos os lados.
— Chama-se de ilha uma extensão de terra… — ela repetiu, e
aquilo foi a primeira opinião que exprimiu de maneira convicta,
depois de muitos anos de silêncio e de vazio nos pensamentos.
Ela já tinha suas opiniões e, durante o jantar, conversava com os
pais de Sacha e dizia que, hoje em dia, para as crianças, não é fácil
estudar no ginásio, mas que, apesar de tudo, o curso clássico é
melhor do que o técnico, pois, depois do ginásio, todos os
caminhos estão abertos: o aluno pode ser médico, pode ser
engenheiro.
Sacha começou a frequentar o ginásio. Sua mãe partiu para a
casa da irmã, em Khárkov, e não voltou mais; todo dia, o pai saía de
casa para examinar rebanhos, num lugar ou outro, e acontecia de
ficar fora por dois ou três dias seguidos, e Ólienka tinha a
impressão de que tinham abandonado Sacha por completo, que o
menino era um peso na família, que ele ia morrer de fome; ela o
trouxe para morar em sua casa, no pavilhão anexo, e montou um
pequeno quarto para ele.
E agora já faz seis meses que Sacha mora com ela, no pavilhão
anexo. Toda manhã, Ólienka entra no quarto do menino; ele dorme
profundamente, o braço dobrado por baixo da bochecha, mal
respira. Ólienka tem pena de acordá-lo.
— Sáchenka — diz, em tom de lástima. — Levante, pombinho!
Está na hora de ir para o ginásio.
Sacha levanta, troca de roupa, reza, depois senta à mesa para
tomar chá. Bebe três copos, devora dois grandes búbliki e meio pão
francês com manteiga. Ainda não acordou por completo e, por isso,
não está de bom humor.
— Mas, Sáchenka, você não decorou bem a fábula — diz
Ólienka, e olha para o menino como se ele fosse partir para uma
longa viagem. — Estou tão preocupada com você. Precisa se
esforçar, pombinho, estude… Obedeça aos professores.
— Ah, me deixe em paz, por favor! — diz Sacha.
Depois, lá vai ele pela rua, para o ginásio, pequenino, mas com
um boné muito grande e a mochila nas costas. Atrás dele, em
silêncio, caminha Ólienka.
— Sáchenka-a-a! — ela chama.
O menino olha para trás, e ela enfia na sua mão uma tâmara ou
um caramelo. Quando entra na travessa onde fica o ginásio, Sacha
sente vergonha de ter atrás de si uma mulher alta, gorda; vira para
trás e diz:
— Tia, vá para casa, agora vou sozinho.
Ólienka para e fica olhando para ele, atenta, sem piscar, até o
menino desaparecer na entrada do ginásio. Ah, como ela o ama! De
todas as suas antigas afeições, nenhuma foi tão profunda, nunca sua
alma se entregou com tanta devoção, abnegação e contentamento
como agora, quando dentro dela, mais e mais, se inflamava o
sentimento maternal. Por aquele menino de outra família, pelas
covinhas em suas faces, pelo seu boné, ela sacrificaria toda sua vida,
e sacrificaria com alegria, com lágrimas de ternura. E por quê? Ora,
quem vai saber por quê?
Depois de acompanhar Sacha até o ginásio, ela volta para casa
em silêncio, satisfeita, serena, transbordante de amor; seu rosto,
que rejuvenesceu nos últimos seis meses, brilha e sorri; quem
cruza com ela, na rua, sente uma satisfação e lhe diz:
— Bom dia, queridinha Olga Semiónovna! Como tem passado,
queridinha?
— Hoje em dia, o estudo no ginásio é muito difícil — diz ela, no
bazar. — Não é brincadeira, ontem mesmo, na primeira série,
deram uma fábula para decorar, uma tradução do latim e um
problema… E para um menino tão pequeno, como pode?
E começa a falar sobre os professores, as lições, os livros de
estudo — as mesmas coisas que Sacha lhe diz.
Depois das duas horas, os dois almoçam juntos, à tardinha,
fazem juntos a lição de casa e choram. Ao pôr Sacha na cama, ela
benze o menino e reza em voz baixa por muito tempo, depois vai
deitar, e devaneia sobre um futuro distante e nebuloso, quando
Sacha, concluído seu curso, será médico ou engenheiro, terá uma
grande casa própria, cavalos e um coche, vai casar e ter filhos… Ela
adormece, continua com os mesmos pensamentos e, dos olhos
fechados, lágrimas descem pelo rosto. A gatinha preta se deita
junto a ela, de lado, e ronrona:
— Mur… mur… mur…
De repente, uma batida forte no portão. Ólienka desperta e, com
o susto, nem consegue respirar; o coração bate com força. Passa
meio minuto e vem outra batida.
“É um telegrama de Khárkov”, pensa ela, e o corpo todo começa
a tremer. “A mãe quer que Sacha vá morar com ela, em Khárkov…
Ah, meu Deus!”
Ólienka se desespera; a cabeça, as pernas, os braços ficam
gelados, parece que não existe no mundo ninguém mais infeliz do
que ela. No entanto, passa mais um minuto e se ouve uma voz: é o
veterinário, de volta de algum clube.
“Ah, graças a Deus”, pensa.
Pouco a pouco, aquele peso vai deixando seu coração, ele se
torna leve outra vez; Olga se deita e pensa em Sacha, que está
dormindo profundamente no quarto vizinho e fala, de vez em
quando, num delírio:
—Você vai ver! Vá embora! Não bata em mim!

1899
A Nova Datcha

A três verstas do povoado de Obrutchánovo, estavam construindo


uma ponte enorme. Da cidadezinha, no alto da margem escarpada,
via-se o arcabouço de vigas entrecruzadas da obra e, na neblina e
nos dias calmos de inverno, quando os finos esteios de ferro da
construção e todos os bosques em redor amanheciam cobertos pela
geada, a ponte apresentava um quadro pitoresco e até fantástico. Às
vezes, o construtor da ponte, o engenheiro Kútcherov, gordo,
barbado, de ombros largos, com um quepe mole e amarrotado na
cabeça, atravessava ligeiro o povoado, de charrete ou carroça; às
vezes, nos feriados, apareciam os miseráveis que trabalhavam na
obra da ponte; pediam esmola, riam das mulheres do campo e, de
vez em quando, surrupiavam alguma coisa. Mas era raro; em geral,
os dias passavam tranquilos e sem alarde, como se não existisse
nenhuma construção, e só à noite, quando fogueiras ardiam perto
da ponte, o vento, bem de leve, trazia o canto dos miseráveis. E às
vezes, também, durante o dia, se ouvia um triste som metálico:
don… don… don…
Certa vez, a esposa do engenheiro veio visitá-lo. Gostou da
margem do rio e da paisagem exuberante do vale verde, com
aldeiazinhas, igrejas, rebanhos, e resolveu pedir ao marido que
comprasse um terreno para construir uma datcha. O marido
obedeceu. Compraram vinte deciatinas de terra e, no alto da
margem do rio, num pequeno descampado, onde antes pastavam as
vacas do povoado, ergueram uma bela casa de dois andares, com
uma ampla varanda, sacadas e uma torre encimada por uma agulha,
na qual, aos domingos, hasteavam uma bandeira — construíram
tudo em mais ou menos três meses e depois, durante todo o
inverno, plantaram árvores grandes e, quando a primavera chegou e
tudo em volta começou a verdejar, naquele novo sítio já havia uma
alameda, um jardim, dois trabalhadores de avental branco
escavavam a terra em volta da casa, um pequeno chafariz
esguichava e um círculo espelhado brilhava tão forte que os olhos
chegavam a doer. Aquele sítio já tinha nome: Nova Datcha.
Numa quente e clara manhã do fim de maio, dois cavalos foram
levados a Obrutchánovo para que Rodion Petróvitch, o ferreiro
local, consertasse as ferraduras. Os cavalos vinham da Nova Datcha.
Eram brancos como a neve, garbosos, bem nutridos e
incrivelmente parecidos um com o outro.
— São verdadeiros cisnes! — exclamou Rodion, olhando para os
cavalos com veneração.
Sua esposa, Stiepanida, os filhos e os netos saíram à rua para ver
os animais. Aos poucos, juntou-se um grupo numeroso. Vieram os
Lítchkov, pai e filho, ambos de rosto balofo e sem barba desde o
nascimento e de cabeça descoberta. Veio também Kózov, velho alto
e magro, de barba comprida e estreita, com sua bengala de cabo em
forma de gancho; piscava o tempo todo com os olhos astutos e
sorria, zombeteiro, como se soubesse de algo.
— Pois é, são brancos, mas o que isso tem de mais? — disse ele.
— Se derem aveia para os meus cavalos, também vão ficar uma
beleza. Mas ponha só esses daí debaixo do arado e do chicote e
então…
O cocheiro se limitou a olhar para ele com desdém e não disse
nem uma palavra. Mas depois, enquanto atiçavam o fogo na forja, o
cocheiro desandou a falar, fumando um cigarro. Por ele, os
mujiques souberam muitos pormenores: seus patrões eram ricos; a
patroa, Elena Ivánovna, antes de casar, morava em Moscou e era
pobre, trabalhava como governanta; era bondosa, compassiva e
gostava de ajudar os pobres. Na nova propriedade, contou o
cocheiro, não iam semear nem colher, mas apenas gozar a vida,
viver só para respirar o ar puro. Quando terminou e levou os
cavalos de volta, um bando de meninos o seguiu, cachorros latiram
e Kózov, olhando enviesado, piscou o olho, com ar zombeteiro.
— Que belos senhores de terra! — disse ele. — Construíram
uma casa, compraram cavalos, mas eles mesmos não têm o que
comer. Que belos senhores de terra!
Kózov passou a odiar, ao mesmo tempo, o sítio novo, os cavalos
brancos e o cocheiro bonito e bem nutrido. Era um homem
solitário, viúvo; tinha vida maçante (alguma doença, que ele
chamava ora de hérnia, ora de vermes, o impedia de trabalhar), o
dinheiro para a comida, ele recebia do filho, que trabalhava numa
confeitaria em Khárkov, e, desde o começo da manhã até o
anoitecer, Kózov vagava à toa pela margem do rio ou pelo povoado
e, se visse, por exemplo, um mujique carregando uma tora de
madeira ou uma vara de pescar, dizia: “A madeira dessa tora está
toda seca e roída por carunchos”, ou: “Com o tempo que está
fazendo, nenhum peixe vai morder seu anzol”. Na seca, dizia que
não ia chover até chegarem as grandes friagens, porém, quando
estava chovendo, dizia que a lavoura ia apodrecer no pé e tudo seria
perdido. E sempre, ao falar, piscava o olho o tempo todo, como se
soubesse de algo.
No sítio, à noite, disparavam foguetes, ardiam fogos de artifício e
um barco à vela, com lanternas vermelhas, deslizava diante de
Obrutchánovo. Certa vez, de manhã, a esposa do engenheiro,
Elena Ivánovna, foi ao povoado com a filha pequena num coche de
rodas amarelas, puxado por uma parelha de pôneis castanho-
escuros; as duas, mãe e filha, usavam chapéu de palha de abas
largas, arqueadas na direção das orelhas.
Era justamente a época de adubar a terra e o ferreiro Rodion,
velho, alto e descarnado, estava descalço, sem gorro, com uma
forquilha sobre o ombro, postado junto à sua carroça imunda e
repugnante, de onde olhava espantado para os pôneis e, por sua
fisionomia, era evidente que nunca tinha visto cavalos tão
pequenos.
— Chegou a kutcherikha![72] — sussurravam em redor. — Olhem
só, chegou a kutcherikha.
Elena Ivánovna lançava olhares para as isbás, como se estivesse
escolhendo uma delas, depois deteve os cavalos perto da isbá mais
pobre, onde se viam, nas janelas, várias cabeças de crianças —
louras, morenas, ruivas. Stiepanida, esposa de Rodion, velha bem
fornida, correu para fora da isbá, seu lenço deslizou da cabeça
grisalha e ela olhou para o coche contra o sol e seu rosto sorriu
muito e se contraiu todo, como se ela estivesse ofuscada.
— Isto é para os seus filhos — disse Elena Ivánovna, e lhe deu
três rublos.
De repente, Stiepanida desatou a chorar e se curvou até o chão;
Rodion também baixou a cabeça, deixando à mostra a vasta careca
morena e, com aquele movimento, por pouco não espetou a
forquilha no flanco da esposa. Elena Ivánovna ficou sem graça e
voltou.

II

Os Lítchkov, pai e filho, surpreenderam pastando em seu campo


dois cavalos de trabalho, um pônei e um bezerro da Algóvia,[73] e
conduziram os animais para o povoado, junto com o ruivo Volodka,
[74] filho do ferreiro Rodion. Chamaram o estaroste, juntaram
testemunhas e foram examinar a lavoura destruída pelos animais.
— Muito bem, eu só quero ver! — disse Kózov, piscando. — Eu
que-ro ve-e-er! Agora é que eu quero ver como é que o tal de
engenheiro vai se virar. Ele acha que não existe lei? Está certo!
Mande chamar o guarda, abre uma queixa!…
— Abre uma queixa! — repetiu Volodka
— Eu não quero deixar passar em branco, não! — gritava o
Lítchkov filho, e gritava cada vez mais alto, por isso o rosto sem
barba parecia cada vez mais estufado. — Agora, pegaram essa
moda! Se a gente deixar correr solto, eles vão estragar nosso campo
todo! Vocês não têm esse direito de humilhar o povo! A servidão já
acabou!
— A servidão já acabou! — repetiu Volodka,
— A gente vivia muito bem sem ponte — falou o Lítchkov pai,
com ar sombrio. — A gente não pediu nada, de que adianta uma
ponte? Não queremos!
— Irmãos, ortodoxos! Não podemos deixar isso assim!
— Certo, vamos ve-e-er! — E Kózov piscava o olho. — Agora é
que vamos ver como ele vai se virar! Que belos senhores de terra!
Voltaram para o povoado e, enquanto caminhavam, o Lítchkov
filho batia no peito com o punho cerrado e gritava o tempo todo, e
Volodka também gritava, repetindo suas palavras. Enquanto isso,
no povoado, uma verdadeira multidão se aglomerava em torno do
bezerro de raça e dos cavalos. O bezerro estava confuso e olhava
meio de lado, mas, de repente, baixou o focinho até a terra e saiu
correndo, dando coices para trás; Kózov se assustou, brandiu a
bengala contra ele, e todos começaram a rir. Depois, prenderam os
animais e se puseram a esperar.
À tardinha, o engenheiro mandou cinco rublos como
indenização pelo campo pisoteado, e os dois cavalos, o pônei e o
bezerro, que, enquanto isso, não tinham recebido comida nem
água, voltaram para casa de cabeça baixa, como condenados a
caminho do patíbulo.
Depois de receber os cinco rublos, os Lítchkov, pai e filho, o
estaroste e Volodka atravessaram o rio de bote e ficaram muito
tempo passeando. Dava para ouvir que estavam cantando e que o
jovem Lítchkov dava gritos. No povoado, as mulheres passaram a
noite toda preocupadas, sem dormir. Rodion também não dormiu.
— A coisa vai mal — dizia, enquanto se virava na cama de um
lado para outro, e suspirava. — O patrão fica aborrecido, depois vai
brigar… Ofenderam o patrão… ah, ofenderam, isso é ruim…
Um dia, os mujiques, entre eles Rodion, foram ao seu bosque
para repartir o cereal ceifado e, quando voltaram para casa, o
engenheiro os aguardava. Estava de camisa vermelha de algodão e
botas de cano alto; atrás dele, com a língua comprida para fora,
havia um cão perdigueiro.
— Boa tarde, irmãos! — disse.
Os mujiques pararam e tiraram os chapéus.
— Já faz muito tempo que eu quero falar com vocês, irmãos —
prosseguiu. — A questão é a seguinte. Desde o início da primavera,
todo dia, os animais de vocês entram no meu jardim e no meu
bosque. Tudo fica pisado, os porcos fuçam a terra no campo,
estragam a horta e derrubam os arbustos novos do bosque. Com os
pastores de você, nem adianta falar; eu peço e eles respondem com
grosserias. Todo dia, o meu campo é pisoteado e eu não faço nada,
não multo vocês, não dou queixa, entretanto, vocês pegaram meus
cavalos e o bezerro e me tomaram cinco rublos. Será que isso está
direito? Será que é assim que os vizinhos se tratam? — prosseguiu,
e sua voz era muito suave, persuasiva, seu olhar nada tinha de
severo. — Será que é assim que se comportam pessoas direitas?
Semana passada, um de vocês cortou dois carvalhos pequenos no
meu bosque. Vocês esburacaram a estrada para Eresnievo e, agora,
sou obrigado a fazer um desvio de três verstas. Por que vocês me
prejudicam o tempo todo? O que eu fiz de ruim para vocês? Digam,
pelo amor de Deus. Eu e minha esposa nos esforçamos ao máximo
para viver com vocês em paz e harmonia, ajudamos os camponeses
como podemos. Minha esposa é bondosa, franca, não nega
nenhuma ajuda, o sonho dela é ser útil a vocês e seus filhos. E
vocês pagam o nosso bem com o mal. Vocês não estão sendo justos,
irmãos. Pensem nisso. Peço a vocês, encarecidamente, pensem
nisso. Nós tratamos vocês de forma humana, então nos paguem na
mesma moeda.
Virou-se e foi embora. Os mujiques ficaram ali mais um pouco,
puseram seus gorros na cabeça e saíram caminhando. Rodion, que
entendia à sua maneira, e não da forma correta, tudo que lhe
diziam, deu um suspiro e falou;
— Tem de pagar, irmãos. Paguem em moeda, é o que ele diz…
Caminharam em silêncio até chegar ao povoado. Ao entrar em
casa, Rodion rezou, tirou as botas e sentou-se no banco ao lado da
esposa. Em casa, ele e Stiepanida ficavam sempre sentados lado a
lado, também na rua andavam lado a lado, comiam, bebiam e
dormiam sempre juntos e, quanto mais envelheciam, mais forte era
o seu amor. Sua isbá era quente, apertada, havia crianças por todo
lado — no chão, nas janelas, em cima da estufa… Apesar da idade
avançada, Stiepanida ainda paria e agora, quando olhava para aquele
bando de crianças, ela achava difícil distinguir os filhos de Rodion
dos filhos de Volodka. A esposa de Volodka — Lukiéria, jovem
camponesa bonita, de olhos saltados e nariz em forma de bico de
pássaro — estava misturando massa de farinha numa barrica; já o
próprio Volodka estava sentado no alto da estufa, com as pernas
penduradas no ar.
— Na estrada, perto do trigo-sarraceno do Nikita… aquele
engenheiro e o cachorro… — começou Rodion, depois de
descansar um pouco, enquanto coçava os quadris e os cotovelos. —
Ele disse: tem de pagar… com moeda, disse… Com moeda ou sem
moeda, de todo jeito, vamos ter de juntar dez copeques para cada
casa. O patrão ficou muito sentido com a gente. É uma pena…
— A gente vivia muito bem sem ponte — disse Volodka, sem
olhar para ninguém. — E a gente não quer.
— Que história é essa? A ponte é do governo.
— A gente não quer.
— E também não vão perguntar para você. Onde já se viu?
— Não vão perguntar… — arremedou Volodka. — A gente não
vai mesmo para lugar nenhum, para que serve uma ponte? Se
precisar, a gente vai de barco.
Lá fora, alguém bateu na janela com tanta força que a isbá inteira
pareceu sacudir.
— Volodka está aí? — ouviu-se a voz do Lítchka filho. —
Volodka, saia daí, vamos lá!
Volodka pulou da estufa e começou a procurar seu boné.
— Não vá, Volódia — falou Rodion, hesitante. — Não vá com
eles, filhinho. Você é um bobo, aqui com a gente, igual a uma
criancinha pequena, e eles não vão te ensinar nada que presta. Não
vá!
— Não vá, filhinho! — pediu Stiepanida, e começou a
pestanejar, à beira do choro. — Na certa, eles vão para a taberna.
— Para a taberna… — arremedou Volodka.
— Vai voltar bêbado de novo, cachorro desgraçado! — disse
Lukiéria, olhando para ele com fúria. — Vai, vai logo, e tomara que
pegue fogo de tanta vodca, satã sem rabo!
— Ei, cala a boca! — gritou Volodka.
— Me casaram com um palerma, acabaram com a minha vida,
uma órfã infeliz, e esse bêbado de cabeça vermelha… — Lukiéria
desatou a chorar, esfregando o rosto com a mão cheia de massa de
farinha. — Quem dera os meus olhos nunca tivessem visto você!
Volodka deu um tapa na orelha de Lukiéria e foi embora.
III

Elena Ivánovna e sua filha pequena foram a pé até o povoado.


Estavam passeando. Era justamente um domingo e tanto as
mulheres quanto as mocinhas tinham saído à rua em seus vestidos
de cor clara. Rodion e Stiepanida estavam sentados juntinhos na
varanda, sorriram para Elena Ivánovna e sua filha e
cumprimentaram as duas com uma reverência, como se faz com
pessoas conhecidas. Pelas janelas, mais de dez crianças olhavam
para elas; os rostos exprimiam espanto e curiosidade, ouvia-se um
sussurro:
— A kutcherikha chegou! É a kutcherikha!
— Bom dia — disse Elena Ivánovna, e se deteve; ficou um
pouco em silêncio e perguntou: — Então, como têm passado?
— Vamos indo, como Deus quer — respondeu Rodion, falando
ligeiro. — Sabe como é, vamos indo.
— Que vida a nossa! — Stiepanida sorriu com ironia. — A
senhora mesma está vendo, patroa querida, que pobreza a nossa!
Ao todo, são catorze almas na família, e só dois para ganhar o
sustento. Um é ferreiro só de nome: se trazem um cavalo para
ferrar, não tem carvão para a forja, não tem com que comprar nada.
Estamos acabados, patroa — prosseguiu e deu uma risada. —
Acabaram com a gente!
— A pobreza! — disse Rodion. — É muita preocupação, a gente
trabalha, trabalha e não vê o final. E ainda por cima Deus não
manda nem uma chuvinha… A gente vive mal demais. O que se vai
dizer?
— A vida é dura para vocês neste mundo — disse Elena
Ivánovna. — Em compensação, no outro mundo vocês serão
felizes.
Rodion não compreendeu e, em resposta, apenas tossiu na mão
fechada. Mas Stiepanida disse:
— Patroa querida, para o rico, no outro mundo também é bom.
O rico acende velas, encomenda missas, o rico dá esmola para os
mendigos, mas e o mujique? Não tem tempo nem de fazer o sinal
da cruz, ele mesmo é mais mendigo do que qualquer mendigo,
como vai poder se salvar? E, por causa da pobreza, nossos pecados
são muitos, de tanto desgosto, a gente chega a latir feito um
cachorro, não falamos nenhuma palavra bonita e só Deus sabe o
que mais acontece, patroa querida! Para nós, não existe felicidade
neste mundo e também não deve existir no outro. Toda a felicidade
ficou para os ricos.
Ela falava com alegria; era evidente que já estava acostumada a
falar de sua vida difícil. Rodion também sorria; gostava de ver como
sua velha era inteligente e falava bem.
— Só na aparência, a vida é fácil para os ricos — disse Elena
Ivánovna. — Cada um tem os seus desgostos. Olhe para nós, eu e o
meu marido não vivemos na pobreza, nós temos recursos, mas por
acaso somos felizes? Eu ainda sou jovem, mas já tenho quatro
filhos; as crianças vivem doentes, o tempo todo, eu também fico
doente, estou sempre me tratando.
— E qual é a doença da senhora? — perguntou Rodion.
— Doença de mulher. Não tenho sono, a dor de cabeça não me
dá sossego. Olhe, eu estou aqui conversando, mas a cabeça está
ruim, sinto uma fraqueza no corpo todo, e acho que mesmo o mais
pesado dos trabalhos era melhor do que ficar neste estado. E o meu
espírito também não está tranquilo. Eu sofro o tempo todo por
causa dos filhos, do marido. Cada família tem o seu tipo de
desgosto, e a nossa também tem. Não sou nobre. Meu avô foi um
camponês simples, meu pai era comerciante em Moscou e também
era uma pessoa simples. Mas os pais do meu marido são nobres e
ricos. Não queriam que ele casasse comigo, mas ele não obedeceu,
brigou com eles e, por isso, até hoje não nos perdoaram. Isso
angustia o meu marido, o perturba, o deixa em constante aflição;
ele ama sua mãe, ama profundamente. Pois é, e eu também me
aflijo. Sinto uma dor na alma.
Perto da isbá de Rodion, já haviam se juntado mujiques e
camponesas, que ficaram escutando. Kózov também se aproximou
e se deteve, enquanto repuxava sua barbicha comprida e estreita. E
chegaram os Lítchkov, pai e filho.
— Isso quer dizer que é impossível ser feliz e viver satisfeito, se
você não sente que está no seu lugar — continou Elena Ivánovna.
— Cada um de vocês tem a sua atividade, cada um de vocês
trabalha e sabe para que trabalha; o meu marido constrói pontes,
em resumo, cada um tem o seu lugar. Mas e eu? Eu apenas ando
para lá e para cá. Não tenho uma atividade minha, não trabalho e
me sinto sempre uma estranha. Estou dizendo tudo isso para que
vocês não julguem pelas aparências; se a pessoa veste roupas caras
e possui recursos, não significa que ela está satisfeita com a sua
vida.
Levantou-se para ir embora e pegou a mão da filha.
— Eu gosto muito deste lugar de vocês — disse ela, e sorriu, e
pelo sorrisinho frouxo e tímido se podia perceber muito bem que,
embora jovem e bonita, de fato, ela não era saudável; tinha rosto
pálido e magro, sobrancelhas escuras e cabelos louros. A menina
era igual à mãe, magrinha, loura e esguia. As duas cheiravam a
perfume.
— Eu gosto do rio, da mata, do povoado… — prosseguiu Elena
Ivánovna. — Eu podia passar a vida inteira aqui e acho que, aqui, eu
ia recuperar a saúde e encontrar o meu lugar. Eu desejo, e desejo
muito, ajudar vocês, ser útil a vocês, ser uma pessoa próxima de
vocês. Eu sei quais são as suas necessidades e aquilo que não sei, eu
sinto, eu adivinho com o coração. Estou doente, fraca e, para mim,
quem sabe, já não é mais possível mudar a vida como eu gostaria.
Mas eu tenho filhos, me esforço para criar meus filhos de modo que
se familiarizem com vocês, amem vocês. Eu vou sempre incutir nos
meus filhos a ideia de que a vida deles não pertence a eles mesmos,
mas a vocês. Só peço a vocês, encarecidamente, eu suplico,
acreditem em nós, vamos conviver de maneira amistosa. O meu
marido é bom, generoso. Não o perturbem, não o deixem irritado.
Ele é sensível com as mínimas coisas e ontem, por exemplo, os
animais de vocês entraram em nossa horta, um de vocês derrubou a
cerca das nossas colmeias de abelhas e essa maneira de nos tratar
leva meu marido ao desespero. Eu peço a vocês — prosseguiu com
voz suplicante e uniu as mãos no peito —, peço, tratem-nos como
bons vizinhos, vamos viver em paz! Como diz o provérbio, é
melhor uma paz ruim do que uma boa briga. E também este:
quando você compra uma propriedade, também está comprando
um vizinho. Eu repito, o meu marido é um homem bom, generoso;
se tudo correr bem, prometo que nós vamos fazer o que estiver ao
nosso alcance; vamos consertar as estradas, vamos construir
escolas para os seus filhos. Eu prometo a vocês.
— Sim, é claro, nós agradecemos muito, de coração, senhora —
disse o Lítchkov pai, olhando para o chão. — A senhora é instruída,
sabe mais do que a gente. Acontece que lá em Eresnievo, o
Vóronov, um mujique rico, sabe, prometeu construir uma escola,
também disse “eu vou dar isso e eu vou dar aquilo”, e na hora agá só
levantou as paredes com toras de madeira e largou tudo para lá,
depois obrigaram os mujiques a pôr o telhado e terminar a obra, e
aquilo custou mil rublos. Para o Vóronov, não é nada demais, ele
fica lá à toa, só alisando a barba, mas para os mujiques a coisa ficou
feia.
— Daquela vez, veio um corvo[75] e agora veio uma gralha —
disse Kózov e piscou o olho.
Ressoou uma risada.
— A gente não precisa de escola — falou Volodka, em tom
acerbo. — As nossas crianças vão a pé até Petróvskoie, deixe tudo
como está. A gente não quer.
Elena Ivánovna, de repente, ficou assustada. Empalideceu, se
encolheu, contraiu-se toda, como se algo áspero a tivesse tocado, e
se foi sem dizer mais nenhuma palavra. Caminhava cada vez mais
depressa, sem olhar para trás.
— Patroa! — chamou Rodion, atrás dela. — Patroa! Espere um
pouco, escute o que eu vou lhe dizer.
Foi atrás dela, sem gorro e falava baixo, como se pedisse
misericórdia:
— Patroa! Espere, escute o que eu vou lhe dizer.
Saíram do povoado, e Elena Ivánovna parou na sombra de uma
velha sorveira, perto de uma carroça.
— Não se ofenda, patroa — disse Rodion. — Não há de ser
nada! Tenha paciência. Espere uns dois anos com paciência. Vai
viver aqui, vai aguentar com paciência e tudo vai se resolver. O
nosso povo é bom, é pacato… o povo não é ruim, eu garanto à
senhora, é a pura verdade. Não ligue para o Kózov nem para os
Lítchkov, também não ligue para o Volodka, ele é o bobo lá da
minha casa: ele repete logo a primeira coisa que falam na frente
dele. O resto do povo é pacato, calado… Sabe, os outros ficariam
contentes de dizer uma palavra para ajudar a senhora, quer dizer,
assim, falar, só que eles não sabem. Eles têm alma, têm
consciência, mas a língua é que não ajuda. Não fique ofendida,
não… tenha paciência… Não há de ser nada!
Elena Ivánovna olhou para o rio largo e sereno. Estava pensando
em alguma coisa, e as lágrimas corriam pelo rosto. As lágrimas
abalaram Rodion e ele mesmo se viu à beira de chorar.
— Não ligue… — balbuciou. — Tenha paciência, dois aninhos
só. E a escola pode ser feita, a estrada pode ser feita, só que não de
uma vez só… Você quer, vamos dar um exemplo, semear trigo
naquela encosta ali, então primeiro tem que arrancar as raízes da
terra, retirar as pedras todas e, depois, passar o arado, e dar um
duro danado… E com o povo, sabe, é assim também… tem de dar
um duro danado, até conseguir colher.
Um bando numeroso saiu da isbá de Rodion e veio andando pela
rua naquela direção, rumo à sorveira. Cantavam, alguém tocava um
acordeão. Chegavam cada vez mais perto…
— Mamãe, vamos sair daqui! — disse a menina, pálida,
abraçando-se à mãe, com o corpo todo tremendo. — Vamos
embora, mamãe!
— Para onde?
— Para Moscou… Vamos embora, mamãe!
A menina desatou a chorar. Rodion ficou muito atrapalhado, seu
rosto se cobriu de suor. Tirou do bolso um pepino, pequeno, torto,
em forma de meia-lua, todo coberto de migalhas de centeio, e
começou a meter o pepino na mão da menina.
— Toma, toma… — balbuciava, com o rosto franzido e severo.
— Toma aqui esse pepininho, come… Chorar não adianta, a mamãe
vai bater… em casa, vai dar queixa para o papai… Toma, toma…
Elas foram em frente e Rodion sempre atrás, queria dizer algo
gentil, tranquilizador. E ao ver que as duas estavam ocupadas com
os próprios pensamentos e o próprio desgosto e que não davam
atenção a ele, parou e, protegendo os olhos do brilho do sol, ficou
muito tempo olhando para elas, até sumirem no bosque do seu
sítio.

IV

Era visível que o engenheiro se tornava cada vez mais irritado, em


qualquer bobagem e ninharia, via logo uma ofensa e uma agressão.
Seu portão ficava trancado até durante o dia e, à noite, no jardim,
dois guardas vigiavam, batiam numa tábua, a intervalos, para
indicar que estavam de vigia, e mais ninguém de Obrutchánovo era
contratado para trabalhar no sítio. Como se fosse de propósito,
alguém (um dos mujiques ou um dos operários miseráveis, não se
sabe) retirou as rodas novas da carroça e as substituiu por rodas
velhas; após um breve tempo, levaram dois arreios de cavalo e uma
tenaz, e até no povoado começou um falatório. Diziam que era
preciso dar queixa contra os Lítchkov e Volodka, e aí encontraram a
tenaz e os arreios no jardim do engenheiro, ao pé da cerca: alguém
os havia jogado ali.
Certo dia, um bando saiu do bosque e, de novo, topou com o
engenheiro na estrada. Ele parou e, sem cumprimentá-los, olhando
zangado, ora para um, ora para outro, falou:
— Eu já pedi para não colherem cogumelos no meu bosque nem
perto do meu pátio, já pedi para deixarem cogumelos para minha
esposa e meus filhos, mas as suas meninas vêm para cá assim que o
dia nasce e, depois, não deixam nem um cogumelo. Pedir para
vocês ou não pedir, dá tudo na mesma. Apelos, gentileza,
conversas, estou vendo que tudo isso é inútil.
Deteve seu olhar indignado em Rodion e prosseguiu:
— Eu e a minha esposa tratamos vocês como gente, como
iguais. E vocês? Ah, não adianta falar! Com certeza, desse jeito, não
vamos ter mais apreço por vocês. Não vai restar mais nada!
E, depois de fazer um esforço contra si mesmo, contendo a
própria raiva a fim de não falar mais palavras supérfluas, virou-se e
seguiu em frente.
Ao chegar em casa, Rodion rezou, tirou as botas e sentou-se no
banco ao lado da esposa.
— Pois é… — começou, após um breve descanso. — A gente
veio agorinha mesmo e topou, lá no caminho, com o engenheiro
Kútcherov… Pois é… Ele viu umas meninas lá, assim que o dia
nasceu… Ele perguntou por que não levam os cogumelos… para a
mulher a os filhos dele. Depois olhou bem para mim e disse: eu e a
minha esposa vamos pagar um bom preço para você. Eu quis me
curvar aos pés dele, mas tive medo… Que Deus lhes dê saúde…
Que o Senhor os proteja…
Stiepanida fez o sinal da cruz e suspirou.
— Os senhores são bons, têm bom coração… — prosseguiu
Rodion. — “Vamos pagar um bom preço…”, ele prometeu na frente
de todo mundo. Nos anos da velhice… não era nada mal… Eu vou
rezar por eles por toda a vida… Que a Rainha do Céu os proteja…
No Dia da Exaltação da Cruz, 14 de setembro, foi feriado na
paróquia. Os Lítchkov, pai e filho, saíram já de manhãzinha, foram
para o outro lado do rio e voltaram bêbados para o jantar; ficaram
andando muito tempo pelo povoado, ora cantavam, ora diziam
palavrões, depois arrumaram uma briga e foram ao sítio se queixar.
O primeiro a entrar foi o Lítchkov pai, com um pedaço de pau
comprido na mão; hesitante, ele parou e tirou o gorro da cabeça.
Naquele exato instante, o engenheiro estava sentado na varanda,
junto com a família, e tomava seu chá.
— O que você quer? — gritou o engenheiro.
— Vossa excelência, patrão… — começou Lítchkov, e desatou a
chorar. — Tenha misericórdia divina, me ajude… Por causa do meu
filho, não dá mais para viver… O filho me arruína, briga… Vossa
excelência…
Entrou o Lítchkov filho, sem gorro, também com um pedaço de
pau na mão; parou e cravou na varanda os olhos bêbados e
desnorteados.
— Não é minha obrigação me meter nos assuntos de vocês —
disse o engenheiro. — Procurem a administração local ou o
comissário de polícia.
— Já fui a toda parte… apresentei uma petição… — disse o
Lítchkov pai e desatou a soluçar. — Agora, aonde mais eu posso ir?
Sabe, agora ele é até capaz de me matar. Sabe, ele é capaz de
qualquer coisa. E fazer isso com o pai? Com o próprio pai?
Levantou o pedaço de pau e bateu com ele na cabeça do filho;
este levantou o seu pedaço de pau e acertou em cheio na careca do
pai, de tal modo que o sarrafo até deu um pulo. O Lítchkov pai nem
chegou a cambalear e golpeou o filho mais uma vez, de novo na
cabeça. E assim continuaram de pé, os dois, batendo na cabeça um
do outro, mas não parecia uma briga e sim uma espécie de
brincadeira. Do outro lado do portão, se aglomeraram mujiques e
camponesas, que ficaram olhando em silêncio para dentro do pátio,
e todos eles tinham o rosto sério. Aqueles mujiques estavam a
caminho das comemorações do feriado, mas, ao verem os Lítchkov,
sentiram vergonha e não entraram no pátio.
No dia seguinte, de manhã, Elena Ivánovna foi embora para
Moscou, junto com os filhos. E correu o rumor de que o
engenheiro ia pôr o sítio à venda…

Faz tempo que as pessoas se acostumaram com a ponte e já é difícil


imaginar o rio sem a ponte naquele lugar. Faz tempo que o monte
de entulho deixado pela construção foi coberto pelo capim; dos
operários miseráveis, ninguém mais se lembra e, em lugar da
canção popular “Dubínuchka”,[76] agora se ouve, quase toda hora, o
barulho de um trem que passa.
Faz tempo que a Nova Datcha foi vendida; agora pertence a um
funcionário público que, nos feriados, vai para lá com a família,
toma chá na varanda e depois volta para a cidade grande. Usa uma
insígnia honorífica presa ao quepe, fala e tosse como um
funcionário de alto escalão, embora não seja mais do que um
secretário colegiado[77] e, quando os mujiques o saúdam com uma
reverência, ele nem responde.
Em Obrutchánovo, todos envelheceram; Kózov já morreu, na
casa de Rodion há mais crianças ainda, no rosto de Volodka cresceu
uma comprida barba ruiva. Vivem pobres, como antes.
No início da primavera, serram lenha perto da estação. Depois
do trabalho, lá vão eles para casa, andam sem pressa, lado a lado; as
serras grandes se curvam sobre os ombros, o sol reflete nas
lâminas. Rouxinóis cantam nos arbustos à beira do rio, cotovias
gorjeiam voando no céu. A Nova Datcha está em silêncio, não há
ninguém, só pombos dourados, dourados porque o sol os ilumina,
revoam acima da casa. Todos — Rodion, os Lítchkov e Volodka —
se lembram dos cavalos brancos, dos pequenos pôneis, dos fogos de
artifício, do barco enfeitado com lanternas vermelhas, lembram
como a esposa do engenheiro, bonita, elegante, vinha ao povoado e
falava com tanta gentileza. E é como se tudo isso nem tivesse
existido. Tudo é como um sonho ou um conto de fadas.
Eles caminham passo a passo, exaustos, e pensam…
Em seu povoado, eles pensam, o povo é bom, pacato, razoável,
temente a Deus, e Elena Ivánovna também era pacata, bondosa,
dócil, dava tanta pena olhar para ela, mas então por que eles não se
entenderam bem e acabaram se separando como inimigos? Que
neblina ocultou de seus olhos aquilo que era o mais importante,
para deixar visível apenas o jardim pisoteado, a tenaz e os arreios
roubados, todas aquelas coisas insignificantes, que agora, na
lembrança, pareciam um enorme absurdo? Por que, com o novo
proprietário, eles vivem em paz e com o engenheiro não se deram
bem?
Sem saber como responder a tais perguntas, todos se calam, e só
Volodka resmunga qualquer coisa.
— O que é? — pergunta Rodion.
— A gente vivia muito bem sem ponte — disse Volodka, com ar
sombrio. — A gente vivia sem ponte e não pediu nada… e a gente
não precisa de nada.
Ninguém responde, e vão andando em silêncio, de cabeça baixa.

1899
A dama do cachorrinho

Diziam que havia surgido uma figura nova no calçadão à beira-mar:


uma dama com um cachorrinho. Dmítri Dmítritch Gúrov, que já
estava em Ialta fazia duas semanas e se habituara ao lugar, também
passara a se interessar por pessoas novas. Sentado no quiosque do
restaurante Vernet, ele viu a dama passando pelo calçadão à beira-
mar, loura, baixa estatura e de boina; atrás dela, andava ligeiro um
lulu-da-pomerânia branco.
Depois, várias vezes por dia, Gúrov a encontrava no parque
municipal e no jardim público. Ela passeava sozinha, sempre com a
mesma boina e com o cãozinho branco; ninguém sabia quem era e
só a chamavam assim: a dama do cachorrinho.
“Se está aqui sem o marido e sem conhecidos”, refletia Gúrov,
“não seria má ideia conhecê-la.”
Ele ainda não completara quarenta anos, mas tinha já uma filha
de doze anos e dois filhos que cursavam o ginásio. Casara cedo,
ainda estudante, no segundo ano da universidade e, agora, sua
esposa parecia quase vinte anos mais velha do que ele. Era alta, de
sobrancelhas escuras, empertigada, imponente, de aspecto grave e,
como ela mesma dizia, pensante. Lia muito, não escrevia o sinal
duro[78] nas cartas, não chamava o marido de Dmítri, mas de
Dimítri,[79] só que ele, em segredo, a considerava medíocre,
estreita, sem elegância, temia a esposa e não gostava de ficar em
casa. Já fazia tempo que começara a traí-la, traía com frequência e,
provavelmente por isso mesmo, quase sempre falava mal das
mulheres e quando, em sociedade, conversavam sobre mulheres,
ele as chamava assim:
— Raça inferior!
Achava que as experiências amargas o haviam ensinado o
suficiente para chamar as mulheres como bem entendesse, no
entanto, ele não seria capaz de viver dois dias sem a “raça inferior”.
Gúrov achava a companhia dos homens maçante, não se sentia à
vontade e, com eles, se mostrava frio, de poucas palavras. Por outro
lado, entre mulheres, sentia-se livre, sabia o que dizer e como se
portar; com elas, até ficar em silêncio era mais fácil. Na aparência,
no caráter, em toda a personalidade de Gúrov, havia algo atraente,
enigmático, que predispunha as mulheres a seu favor e as fascinava;
ele sabia disso e uma espécie de força também o atraía para as
mulheres.
Fazia muito tempo que a experiência repetida, na verdade uma
experiência amarga, ensinara a Gúrov que toda relação íntima, que,
no início, trazia à vida uma diversidade tão agradável e se
apresentava como uma aventura amena e ligeira, quando se tratava
de pessoas da alta sociedade, sobretudo no caso de moscovitas,
gente hesitante, tolhida em seus movimentos, inevitavelmente se
convertia num grande problema, cheio de complicações e, no final,
acabava se tornando um fardo pesado. No entanto, a cada novo
encontro com alguma mulher interessante, aquela experiência de
alguma forma se esquivava da memória, vinha uma vontade de
viver e tudo parecia muito simples e divertido.
Então, certa vez, ao anoitecer, ele estava almoçando no jardim e
a dama de boina se aproximou, sem pressa, a fim de sentar-se à
mesa vizinha. A expressão do rosto, o modo de andar, o penteado
diziam a Gúrov que se tratava de uma dama da alta sociedade,
casada, em visita a Ialta pela primeira vez, sozinha e entediada… As
histórias sobre a imoralidade dos costumes locais continham
muitas inverdades, ele desdenhava tais histórias e sabia que, na
maior parte, eram invenções de pessoas que, elas mesmas,
pecariam de bom grado se pudessem, porém, quando a dama
sentou à mesa vizinha, a três passos dele, vieram à lembrança de
Gúrov aquelas histórias de conquistas fáceis, de viagens à
montanha, e a ideia sedutora de uma relação rápida, efêmera, de
um romance com uma mulher desconhecida, de quem não se sabe
o nome nem o sobrenome, de súbito o dominou.
Carinhosamente, atraiu o cãozinho para si e, quando ele se
aproximou, ameaçou-o com o dedo em riste. O lulu-da-pomerânia
rosnou. Gúrov o ameaçou de novo.
A dama lançou um olhar para ele e logo baixou os olhos.
— Ele não morde — disse, e ruborizou-se.
— Posso dar um osso? — E, quando ela fez que sim com a
cabeça, Gúrov perguntou, amável: — Faz tempo que a senhora
chegou a Ialta?
— Uns cinco dias.
— Pois eu já estou amargando aqui minha segunda semana.
Ficaram calados por um minuto.
— O tempo passa depressa, só que aqui é tão maçante! — disse
ela, sem olhar para ele.
— Já virou um hábito dizer que aqui é maçante. Uma pessoa
qualquer mora em Beliov ou em Jizdra ou onde for, e não acha nada
maçante, mas quando chega aqui, diz logo: “Ah, que maçante! Ah,
que poeirento!”. Quem ouve pensa até que essa pessoa chegou de
Granada.
Ela riu. Depois, ambos continuaram a comer calados, como dois
desconhecidos; porém, após o jantar, caminharam lado a lado — e
teve início uma conversa divertida, ligeira, de pessoas livres,
satisfeitas, para quem não importa para onde ir nem sobre o que
conversar. Iam passeando e conversavam sobre a estranha
luminosidade do mar; a água tinha uma coloração lilás, muito tênue
e cálida e, sobre ela, a lua estendia uma faixa dourada. Conversavam
sobre o ar abafado, depois de um dia muito quente. Gúrov contou
que era moscovita, formado em letras, mas que trabalhava num
banco; no passado, pensara em ser cantor numa companhia de
ópera particular, mas abandonou o canto e, agora, possuía duas
casas em Moscou… Dela, Gúrov soube que fora criada em
Petersburgo, mas se casara em S., onde morava já fazia dois anos,
permaneceria em Ialta um mês e talvez o marido viesse a seu
encontro, pois também desejava tirar férias. Ela não foi capaz de
explicar onde o marido trabalhava — se era funcionário do governo
da província ou do ziémstvo provincial, e Gúrov achou aquilo
divertido. Ele soube também que seu nome era Anna Serguéievna.
Mais tarde, em seu quarto, Gúrov ficou pensando na mulher e
que, no dia seguinte, com certeza, os dois iriam se encontrar. Tinha
de ser assim. Ao deitar-se, Gúrov se deu conta de que fazia muito
pouco tempo que ela fora aluna do instituto para moças, como era
sua própria filha naquele momento, e se deu conta de quanta
timidez, quanto acanhamento ainda havia em seu riso, ao conversar
com um desconhecido — devia ser a primeira vez na vida em que
se via sozinha numa situação como aquela, em que a procuravam, a
observavam e falavam com ela com um único propósito secreto,
que era impossível que ela não adivinhasse. Gúrov recordou seu
pescoço fino, frágil, e os olhos bonitos, cinzentos.
“Mas algo nela me dá pena”, pensou, e começou a adormecer.

II
Passou uma semana, desde que se conheceram. Era feriado. Nos
quartos, estava abafado e, nas ruas, a poeira se erguia em
turbilhões, fazia voar os chapéus. O dia inteiro dava vontade de
beber, Gúrov ia muitas vezes ao quiosque à beira-mar e convidava
Anna Serguéievna para tomar um refresco ou um sorvete. Não
havia para onde fugir.
À noitinha, quando o vento amainou um pouco, os dois foram ao
porto para ver a chegada de algum navio. Muitas pessoas iam
passear no cais; estavam à espera de alguém, levavam buquês de
flores. E, ali, duas peculiaridades da multidão elegante de Ialta
chamavam nitidamente a atenção: as senhoras de idade vestiam-se
como jovens e havia muitos generais.
Por causa do mar agitado, o navio chegou tarde, depois do pôr
do sol, e teve de fazer muitas manobras antes de atracar. Anna
Serguéievna observava o navio e os passageiros através de um
lornhão, parecia à procura de algum conhecido e, quando se virou
para Gúrov, seus olhos brilhavam. Ela se mostrou muito falante,
suas perguntas vinham entrecortadas e ela mesma logo esquecia o
que acabara de perguntar; depois, perdeu o lornhão no meio das
pessoas aglomeradas.
A multidão elegante dispersou-se, já não havia mais ninguém no
cais, o vento cessara de todo, mas Gúrov e Anna Serguéievna
continuavam ali, como se esperassem que mais alguém fosse
desembarcar. Agora, Anna Serguéievna estava calada, cheirava as
flores, sem olhar para Gúrov.
— O tempo melhorou à noite — disse ele. — Para onde vamos
agora? O que acha de irmos a algum lugar?
Ela não respondeu.
Então, Gúrov olhou fixamente para ela e, de súbito, abraçou-a e
beijou-a nos lábios, foi envolvido pelo aroma e frescor das flores e,
na mesma hora, olhou em volta, receoso: alguém não teria visto?
— Vamos para o seu quarto… — disse ele, em voz baixa.
E os dois caminharam depressa.
O quarto estava abafado, cheirava a perfumes que ela comprara
numa loja japonesa. Gúrov, ao olhar para ela, agora, pensou: “Cada
encontro que acontece nesta vida!”. De seu passado, ele guardara a
lembrança de mulheres despreocupadas, alegres, contentes com o
amor, agradecidas a ele pela felicidade, embora muito breve; e
também de outras mulheres, como sua esposa, por exemplo, que
amavam sem sinceridade, entre conversas supérfluas, de modo
afetado, com histeria, e sua expressão dava a entender que não se
tratava de amor, de paixão, mas sim de algo mais importante; e
também a lembrança de duas ou três mulheres muito bonitas, frias,
em cujo rosto, num lampejo, surgia uma expressão de ave de
rapina, o desejo imediato de tomar para si, de arrancar da vida mais
do que a vida podia oferecer, e já não estavam na primeira
juventude, se revelavam caprichosas, insensatas, autoritárias, pouco
inteligentes e, quando o sentimento de Gúrov esfriava, a beleza de
tais mulheres lhe despertava ódio e as rendas de suas roupas de
baixo pareciam escamas.
Porém, desta vez, persistia sempre a mesma timidez, o
acanhamento da juventude inexperiente, uma sensação de
constrangimento; sem falar numa constante impressão de
desconfiança, como se alguém, a qualquer minuto, fosse bater à
porta. Anna Serguéievna, a “dama do cachorrinho”, tratava o que
havia ocorrido como algo especial, muito grave, equivalente à sua
queda — assim parecia, e aquilo era estranho e inoportuno. Suas
feições se abateram, perderam o viço, os cabelos compridos
pendiam tristes nos lados do rosto e ela afundou em pensamentos,
numa atitude tristonha, como a pecadora de uma pintura antiga.
— É ruim — disse ela. — Agora, o senhor vai ser o primeiro a
não me respeitar.
Sobre a mesa do quarto, havia uma melancia. Gúrov cortou um
pedaço e se pôs a comer, sem pressa. Haviam passado, pelo menos,
meia hora em silêncio.
Anna Serguéievna estava comovente, exalava a pureza, o decoro,
a ingenuidade de uma mulher que viveu pouco; uma vela solitária,
acesa sobre a mesa, mal iluminava seu rosto, porém se notava que
tinha a alma aflita.
— Mas por que eu deixaria de respeitar você? — perguntou
Gúrov. — Você não sabe o que está dizendo.
— Que Deus me perdoe! — exclamou ela, e seus olhos se
encheram de lágrimas. — É horrível.
— É como se você estivesse pedindo desculpas.
— Mas como é possível me desculpar? Eu sou uma mulher
ruim, baixa, desprezo a mim mesma e nem estou pensando em
desculpa nenhuma. Não foi o meu marido que eu traí, eu traí a mim
mesma. E não foi só agora, já estou traindo há muito tempo. O meu
marido talvez seja um homem bom, honesto, mas ele é um lacaio!
Eu não sei o que ele faz, não sei em que trabalha, só sei que é um
lacaio. Quando casei, eu tinha vinte anos, a curiosidade me
atormentava, eu queria algo melhor; afinal, existe outra vida, eu
dizia para mim mesma. Eu tinha vontade de viver! Viver e viver… A
curiosidade queimava dentro de mim… O senhor não entende,
mas, juro por Deus, eu já não conseguia me controlar, alguma coisa
estava acontecendo comigo, era impossível me conter, eu disse
para o meu marido que estava doente e vim para cá… E aqui fiquei
andando o tempo todo, para um lado e para outro, como num
estado de embriaguez, como uma louca… e agora me tornei uma
mulher vulgar, que não vale nada, que todos podem desprezar.
Gúrov já estava farto de ouvir, irritado com o tom ingênuo, com
o remorso, tão inesperado e inoportuno; não fossem as lágrimas
nos olhos, poderia pensar que ela estava brincando ou
representando um papel.
— Eu não entendo — disse em voz baixa. — O que você quer?
Ela escondeu o rosto no peito de Gúrov e apertou-se contra ele.
— Acredite, acredite em mim, eu suplico… — disse. — Eu amo
a vida honesta, pura, o pecado me dá repulsa, eu mesma não sei o
que faço. As pessoas simples dizem: foi o diabo que me tentou. E
agora também posso dizer de mim mesma que o diabo me tentou.
— Chega, chega… — balbuciou Gúrov.
Mirava aqueles olhos imóveis e assustados, a beijava, falava com
ela baixinho e carinhosamente e, pouco a pouco, ela foi se
acalmando, até que a alegria retornou; os dois se puseram a rir.
Mais tarde, quando saíram, não havia mais ninguém na calçada à
beira-mar, a cidade, com seus ciprestes, parecia completamente
morta, mas o mar ainda roncava alto, batia com força na margem;
uma barcaça balançava nas ondas e, nela, uma lanterna cintilava
sonolenta.
Encontraram um coche de praça e seguiram para Oreanda.[80]
— Agora há pouco, na recepção, eu descobri o seu sobrenome:
no quadro de registros, está escrito Von Dideritz — disse Gúrov.
— Seu marido é alemão?
— Não, ele teve um avô que era alemão, parece, mas ele mesmo
é ortodoxo.[81]
Em Oreanda, sentaram-se num banco perto de uma igreja,
olharam para o mar, lá embaixo, e ficaram em silêncio. Em meio à
névoa da manhã, mal se via Ialta, nuvens brancas pairavam imóveis
sobre os cumes das montanhas. As folhas das árvores nem se
mexiam, cigarras cantavam e o rumor do mar, que vinha lá de
baixo, surdo e monótono, falava de repouso, do sono eterno que
nos aguarda. Era o mesmo rumor que subia do mar quando Ialta e
Oreanda não existiam, que se ouve agora e que também vai ser
ouvido, surdo e indiferente, quando nós mesmos já não existirmos.
Nessa constância, nessa completa indiferença em relação à vida e à
morte de cada um de nós, se esconde, talvez, a garantia de nossa
salvação eterna, do incessante movimento da vida sobre a terra, do
aprimoramento contínuo. Sentado junto àquela jovem, que, ao
nascer do sol, parecia tão bonita, apaziguado e embevecido diante
daquela cena de conto de fadas — o mar, a montanha, as nuvens, o
céu vasto —, Gúrov refletiu que, no fundo, pensando bem, tudo é
belo neste mundo, tudo, exceto aquilo que nós mesmos pensamos
e fazemos, quando esquecemos os fins elevados da existência e a
própria dignidade humana.
Alguém se aproximou — devia ser um guarda —, olhou um
pouco para eles e foi embora. E aquele pormenor pareceu muito
misterioso, e também bonito. Via-se que estava chegando um navio
de Teodósia,[82] iluminado pelo sol nascente, já com as luzes
apagadas.
— A relva está com orvalho — disse Anna Serguéievna, depois
de um silêncio.
— Sim. Está na hora de ir para casa.
Voltaram para a cidade.
Depois disso, sempre ao meio-dia, os dois se encontravam à
beira-mar, almoçavam juntos, jantavam, passeavam, admiravam o
mar. Ela se queixava de dormir mal, de ter palpitações no coração,
fazia sempre as mesmas perguntas, atormentada ora pelo ciúme,
ora pelo temor de que ele não a respeitasse o bastante. E muitas
vezes, no parque público ou no jardim, quando não havia ninguém
perto, de repente, ele a puxava para junto de si e a beijava com
paixão. A completa ociosidade, aqueles beijos à luz do dia, cercados
de cautela e do receio de que alguém os visse, o calor, o cheiro do
mar e seu brilho constante aos olhos das pessoas ociosas, elegantes,
bem alimentadas, pareciam rejuvenescer Gúrov; ele dizia para
Anna Serguéievna que ela era bonita, que era sedutora, que ele
estava desesperadamente apaixonado, que não se afastaria dela nem
um passo, e muitas vezes ela se punha pensativa, sempre pedia para
ele confessar que não a respeitava, que não a amava nem um pouco,
que nela só via uma mulher vulgar. Quase toda noite, já tarde, eles
saíam da cidade rumo a um lugar qualquer, a Oreanda ou à cascata;
e o passeio era um sucesso, as impressões eram sempre belas,
grandiosas.
Estavam à espera do marido. Porém chegou uma carta em que
ele avisava ter alguma enfermidade nos olhos e implorava que a
esposa voltasse o quanto antes. Anna Serguéievna apressou-se.
— É bom mesmo que eu vá embora — disse para Gúrov. — É o
destino.
Ela partiu num coche e ele a acompanhou. Viajaram um dia
inteiro. Quando ela tomou seu assento no vagão do trem expresso e
quando soou o segundo apito, ela disse:
— Venha cá, deixe-me olhar para o senhor mais uma vez…
Quero olhar mais uma vez. Assim.
Ela não chorou, mas estava triste, parecia doente e o rosto
tremia.
— Eu vou pensar no senhor… vou lembrar — disse. — Que
Deus o proteja, cuide-se. Não pense mal de mim. Vamos nos
despedir para sempre, assim tem de ser, porque jamais deveríamos
ter nos conhecido. Então, que Deus o proteja.
O trem partiu depressa, suas luzes logo desapareceram e, num
minuto, já não se ouvia mais nada, como se tudo tivesse sido
arranjado, de propósito, a fim de interromper rapidamente aquele
doce devaneio, aquela loucura. E Gúrov, sozinho na plataforma,
enquanto olhava para a escuridão ao longe, ouvia o piar dos grilos e
o zumbir dos fios de telégrafo com a sensação de alguém que
acabou de acordar. E pensou que em sua vida ocorrera mais um
incidente, ou mais uma aventura, que também aquilo havia
terminado e, agora, só restariam recordações… Estava comovido,
triste, sentia um ligeiro remorso; pois aquela mulher jovem, que
agora ele nunca mais veria, não fora feliz com ele; Gúrov tinha sido
amável, afetuoso, entretanto, na maneira de tratá-la, em seu tom de
voz e em seus carinhos, se esgueirava, como uma sombra, uma
zombaria sutil, a crua arrogância de um homem feliz, que, ainda
por cima, tinha quase o dobro da idade da mulher. O tempo todo
ela o chamava de bom, extraordinário, elevado; estava claro que,
aos olhos dela, Gúrov parecia muito diferente do que era na
realidade e, portanto, sem querer, ele a havia enganado…
Ali na estação, já se sentia o cheiro do outono, a noite estava um
pouco fria.
“Está na hora de eu também partir para o norte”, pensou Gúrov,
ao sair da plataforma. “Está na hora!”

III

Em Moscou, a casa inteira já estava como no inverno, as chamas


fumegavam nas estufas e, de manhã, quando os filhos tomavam chá
e se preparavam para ir ao ginásio, lá fora estava escuro e a babá
mantinha a luz acesa por mais um tempo. A friagem forte já havia
chegado. Quando cai a primeira neve, no primeiro dia em que se
anda de trenó, é agradável ver a terra branca, os telhados brancos, é
doce respirar, é maravilhoso, e então vêm à memória os anos da
juventude. As velhas tílias e bétulas, brancas da geada, têm um
aspecto amistoso, parecem mais próximas ao coração do que os
ciprestes e as palmeiras e, junto a elas, não sentimos vontade de
pensar no mar e nas montanhas.
Gúrov era moscovita, voltara para Moscou num dia bonito,
gelado e, quando vestiu o casaco de pele e as luvas aquecidas e saiu
caminhando pela rua Petrovka, e quando, no sábado, ao entardecer,
ouviu os sinos, a viagem recente e os locais que visitara perderam
todo o encanto para ele. Pouco a pouco, Gúrov imergiu na vida de
Moscou, já lia avidamente três jornais por dia e afirmava que, por
uma questão de princípio, não lia os jornais de Moscou. Já se via
atraído por restaurantes, clubes, jantares festivos, comemorações,
já lhe parecia lisonjeiro estar em companhia de famosos advogados
e artistas ou jogar cartas com um catedrático, num clube
acadêmico. Já se sentia capaz de comer uma porção inteira de
solianka[83] na caçarola.
Passaria cerca de um mês e, assim pensava Gúrov, Anna
Serguéievna acabaria encoberta por uma nuvem na sua memória, e
só de vez em quando surgiria em sonhos, com seu sorriso tocante,
como outras mulheres também apareciam. No entanto, passou
mais de um mês, chegou o auge do inverno e, em sua memória,
tudo persistia com nitidez, como se ele tivesse se separado de Anna
Serguéievna no dia anterior. E as recordações ardiam cada vez mais
fortes. Se, no silêncio da tarde, chegavam a seu escritório as vozes
dos filhos que faziam seus deveres, se ele ouvia uma canção
romântica ou um órgão num restaurante ou se a nevasca uivava na
lareira, de repente, tudo parecia renascer na memória: o que
aconteceu no cais, o amanhecer com a nuvem nas montanhas, o
navio de Teodósia, e os beijos. Ele ficava andando muito tempo
pelo quarto, recordava, sorria, depois as lembranças se convertiam
em devaneios e, na imaginação, o passado se misturava com o
futuro. Anna Serguéievna não era um sonho, ela andava com Gúrov
por toda parte, como uma sombra, ela o seguia. De olhos fechados,
ele a via como se estivesse viva, e parecia mais bela, mais jovem,
mais meiga do que era; ele mesmo, aos próprios olhos, parecia
melhor do que tinha sido, então, em Ialta. Ao entardecer, da
estante de livros, da lareira, de um canto qualquer, ela olhava para
Gúrov, ele ouvia sua respiração, o rumor gentil de suas roupas. Na
rua, Gúrov seguia as mulheres com os olhos, à procura de alguma
talvez parecida com ela…
E já se via atormentado pelo forte desejo de compartilhar suas
lembranças com alguém. Contudo, em casa, não podia falar do seu
amor e, fora de casa, não tinha com quem conversar. Nem com os
inquilinos nem com os colegas do banco. E sobre o que iria falar?
Acaso o que sentira naquela ocasião era amor? Acaso houve algo
belo, poético ou instrutivo, ou ao menos interessante em sua
relação com Anna Serguéievna? Ele se via obrigado a falar, de
maneira genérica, sobre o amor, sobre as mulheres, e ninguém
desconfiava do que se tratava, só a esposa movia as sobrancelhas
escuras e dizia:
— O papel de homem esnobe não combina com você, Dimítri.
Uma noite, ao sair do clube acadêmico com seu parceiro de jogo,
um alto funcionário, Gúrov não se conteve e disse:
— Se o senhor soubesse que mulher encantadora eu conheci em
Ialta!
O funcionário subiu no seu trenó e partiu, mas, de repente,
virou-se para trás e gritou:
— Dmítri Dmítritch!
— O que foi?
— Agora há pouco, o senhor tinha razão: aquele esturjão estava
um pouco passado!
Aquelas palavras tão banais, de repente, por alguma razão,
deixaram Gúrov indignado, pareceram ultrajantes, infames. Que
maneiras selvagens, que pessoas! Que noites absurdas, que dias
sem graça, sem nenhum interesse! O jogo de cartas desenfreado, a
comilança, as bebidas, as conversas incessantes, sempre sobre os
mesmos assuntos. Atividades fúteis e conversas sempre iguais
tomavam para si a melhor parte do tempo, as melhores energias e,
no fim das contas, restava uma espécie de vida truncada, sem asas,
um contrassenso do qual era impossível correr e fugir, era como
estar internado num asilo de loucos ou num campo de prisioneiros!
Gúrov passou a noite toda sem dormir, exasperou-se, depois
atravessou o dia inteiro com dor de cabeça. Na noite seguinte,
dormiu mal, o tempo todo ficou sentado na cama, ou se pôs a
pensar ou a andar no quarto, de um lado para outro. Estava farto
dos filhos, do banco, não tinha vontade de ir a lugar nenhum, de
conversar sobre nada.
Em dezembro, nos feriados, resolveu viajar e disse para a esposa
que ia a Petersburgo prestar ajuda a um jovem amigo, e partiu rumo
a S. Para quê? Ele mesmo não sabia dizer. Tinha vontade de
encontrar-se com Anna Serguéievna e trocar uma palavra, marcar
um encontro, se possível.
Chegou a S. de manhã e se hospedou no melhor quarto do hotel,
onde o chão era todo revestido de um feltro cinzento, usado no
uniforme dos soldados, e, sobre a mesa, havia um tinteiro cinzento
de tanta poeira, com a estatueta de um homem a cavalo, de espada
na mão, mas sem cabeça. O recepcionista lhe deu as informações
necessárias: Von Dideritz morava na rua Staro-Gontchárnaia, numa
casa própria — não ficava longe do hotel —, vivia bem, era rico,
tinha seu próprio coche, todos o conheciam na cidade. O
recepcionista pronunciava o nome assim: Dridiritz.
Sem pressa, Gúrov caminhou até a rua Staro-Gontchárnaia,
procurou a casa. Bem em frente à casa, se estendia uma cerca
cinzenta, comprida, cheia de pregos.
“Uma cerca assim dá vontade de fugir”, pensou Gúrov, enquanto
espreitava ora as janelas, ora a cerca.
Ele refletiu: “Hoje não é dia útil e o marido, com certeza, está
em casa. De todo modo, não importa, seria muita impertinência
entrar em sua casa e criar um constrangimento. Se eu mandar um
bilhete, talvez caia na mão do marido e isso pode estragar tudo. O
melhor é apostar no acaso”. E ficou muito tempo andando pela rua
e perto da cerca, à espera daquele acaso. Viu um mendigo entrar
pelo portão e ser atacado por cães; uma hora depois, ouviu alguém
tocar piano e as notas chegavam até ele fracas, obscuras. Devia ser
Anna Serguéievna. De repente, a porta principal abriu, de lá saiu
uma velhinha e, atrás dela, veio correndo o conhecido lulu-da-
pomerânia branco. Gúrov quis chamar o cachorro, mas, de repente,
seu coração disparou e, com a emoção, ele não conseguiu lembrar o
nome do cãozinho.
Continuou a caminhar e, cada vez mais, sentia ódio daquela
cerca cinzenta, já pensava com irritação que Anna Serguéievna se
esquecera dele, talvez já andasse se distraindo com outro homem, e
seria até bastante natural, na situação de uma jovem obrigada a ver,
todo dia, da manhã à noite, aquela maldita cerca. Gúrov voltou para
seu quarto de hotel e ficou sentado no sofá por muito tempo, sem
saber o que fazer, depois almoçou e depois dormiu muito.
“Que tolice e que perturbação, tudo isso”, pensou ao acordar,
enquanto olhava para as janelas escuras; já era noite. “Pronto, para
que eu fui dormir tanto? Agora, o que vou fazer a noite toda?”
Sentou-se na cama coberta por uma colcha barata, cinzenta,
igual à de um hospital e, exasperado, escarneceu de si mesmo:
“Pronto, aí está a sua dama do cachorrinho… Aí está você e a sua
aventura… Agora, fique aí sentado.”
Ainda pela manhã, na estação de trem, seus olhos haviam
esbarrado num cartaz com muitas letras enormes: ia estrear na
cidade a peça A gueixa. Lembrou-se do cartaz e foi ao teatro.
“É bem possível que ela vá às estreias”, pensou.
O teatro estava lotado. E ali, como em geral ocorre em todos os
teatros de província, havia uma nuvem acima do grande lustre, a
balbúrdia agitava a galeria; antes do início do espetáculo, os dândis
locais se puseram de pé na primeira fila, com as mãos cruzadas nas
costas; e ali, no camarote do governador, no lugar de destaque,
estava sentada a filha do governador, de boá, enquanto o próprio
governador se ocultava humildemente atrás da beirada de uma
cortina e só se viam suas mãos; a cortina do palco sacudia, a
afinação da orquestra não terminava nunca. Durante todo o tempo
em que o público ia entrando e tomando seus assentos, Gúrov
procurava com os olhos, avidamente.
Anna Serguéievna entrou. Sentou-se na terceira fila e, quando
Gúrov olhou para ela, sentiu um aperto no coração e compreendeu
com clareza que agora, para ele, no mundo inteiro, não havia
pessoa mais próxima, mais cara e mais importante; perdida na
multidão provinciana, aquela mulher pequenina, sem nada de
notável, com um lornhão vulgar nas mãos, preenchia toda a vida de
Gúrov, era a sua dor, a sua alegria, era a única felicidade que agora
ele desejava para si; e, ao som da orquestra ruim, dos péssimos
violinos de costume, ele pensava em como ela era bonita. Pensava e
sonhava.
Com Anna Serguéievna, entrou e sentou-se a seu lado um
homem jovem, de suíças pequenas, muito alto e recurvado; a cada
passo, balançava a cabeça e parecia, o tempo todo, saudar alguém
com uma reverência. Na certa, era o marido, a quem, tempos antes,
em Ialta, no ímpeto de um sentimento de amargura, ela chamara de
lacaio. E, de fato, na sua silhueta alongada, nas suíças, na calva
discreta, havia algo da humildade de um lacaio, ele sorria dócil e, na
sua lapela, brilhava o distintivo de alguma sociedade científica,
semelhante ao escudo de identificação de um lacaio.
No primeiro intervalo, o marido saiu para fumar, ela ficou na
poltrona. Gúrov, que também sentara na plateia, aproximou-se e,
com voz trêmula e sorriso forçado, disse:
— Boa noite.
Ela olhou por um momento e empalideceu, depois olhou mais
uma vez, com horror, sem crer nos próprios olhos, e apertou com
força entre as mãos, ao mesmo tempo, o leque e o lornhão,
visivelmente lutando contra si mesma para não cair desmaiada. Os
dois se mantiveram em silêncio. Ela sentada, ele de pé, assustado
com a perturbação dela, sem se atrever a sentar-se a seu lado. Os
violinos e a flauta começaram a tocar as notas da afinação, de
repente veio o pavor: parecia que, dos camarotes, todos estavam
olhando. Então ela se ergueu depressa e seguiu rumo à saída; ele foi
atrás e os dois andaram sem rumo, por corredores e escadas, ora
subiam, ora desciam e, diante deles, passavam de relance pessoas
ao acaso, em uniformes de juiz, de professor e de funcionário da
administração rural, todos com seus distintivos; de relance,
passaram damas, casacos de pele pendurados nos cabides, soprou
uma corrente de ar que os imergiu no cheiro de tabaco que vinha
de pontas de cigarro. E Gúrov, cujo coração batia com força,
pensou:
“Ah, meu Deus! Para que toda essa gente, essa orquestra?…”
E nesse minuto, de repente, lembrou que, tempos antes, na
estação, naquela noite, depois de se despedir de Anna Serguéievna,
dissera para si mesmo que tudo estava terminado e que os dois
nunca mais se veriam. No entanto, como o fim ainda estava
distante!
Numa escada estreita e escura, onde se lia: “Entrada para o
anfiteatro”, ela parou.
— Como o senhor me assustou! — disse, ofegante, ainda muito
pálida, desnorteada. — Ah, como o senhor me assustou! Eu nem
sei como ainda estou viva. Por que o senhor veio? Por quê?
— Mas, compreenda, Anna, compreenda… — disse ele, em voz
baixa, afobado. — Eu suplico à senhora, compreenda…
Ela olhava para Gúrov com receio, com amor, com súplica,
olhava fixamente, a fim de gravar mais fundo suas feições na
memória.
— Eu sofro tanto! — prosseguiu ela, sem ouvi-lo. — Eu só
pensava no senhor, o tempo todo, vivia com os pensamentos no
senhor. Eu tinha vontade de esquecer, esquecer, mas por que, por
que o senhor veio?
Acima, no patamar da escada, dois alunos de ginásio fumavam
escondidos e olhavam para baixo, porém aquilo não tinha
importância para Gúrov, ele puxou Anna Serguéievna para si e a
beijou no rosto, nas faces, nas mãos.
— O que o senhor está fazendo, o que o senhor está fazendo? —
disse, apavorada, e o afastou. — Nós dois ficamos loucos. Vá
embora, hoje mesmo, vá embora já… Eu imploro ao senhor, em
nome de todos os santos, eu suplico… Estão vindo para cá!
Pela escada, alguém vinha subindo.
— O senhor tem de ir embora… — prosseguiu Anna
Serguéievna num sussurro. — Escute, Dmítri Dmítritch. Eu vou
encontrar o senhor em Moscou. Eu nunca fui feliz, agora sou infeliz
e nunca, nunca serei feliz, nunca! Não me obrigue a sofrer ainda
mais! Eu juro, irei a Moscou. Mas agora vamos nos separar! Meu
bem, meu querido, meu adorado, vamos nos separar!
Apertou a mão de Gúrov e desceu ligeiro pela escada, olhando
muito para trás, para ele e, em seus olhos se percebia que, de fato,
não era feliz. Gúrov permaneceu ali um pouco, de ouvidos atentos,
depois, quando tudo silenciou, foi pegar seu agasalho e saiu do
teatro.

IV

E Anna Serguéievna começou a visitá-lo em Moscou. Uma vez a


cada dois ou três meses, ela saía de S., dizia ao marido que ia
consultar-se com um catedrático de medicina, por conta de sua
doença de mulher — o marido acreditava e não acreditava. Ao
chegar a Moscou, ela se hospedava no hotel Bazar Eslavo e logo
enviava à casa de Gúrov um mensageiro. Gúrov ia a seu encontro e
ninguém em Moscou sabia nada a respeito.
Certa manhã de inverno, Gúrov saiu de casa para encontrá-la
dessa forma (o mensageiro estivera em sua casa na véspera, à noite,
mas não o havia encontrado). Com ele, foi a filha, pois o pai teve
vontade de levá-la ao ginásio, que ficava no caminho. Caía uma
neve grossa e molhada.
— Está fazendo três graus acima de zero, mas está nevando —
disse Gúrov para a filha. — É porque só está quente na superfície
da terra. Nas camadas superiores da atmosfera, a temperatura é
diferente.
— Papai, por que no inverno não tem trovoada?
Ele explicou também aquilo. Enquanto falava, pensava que lá
estava ele a caminho de um encontro, e nenhuma alma viva no
mundo sabia e, com certeza, jamais saberia. Gúrov tinha duas
vidas: uma às claras, vista e conhecida por todos que precisavam
saber, uma vida cheia de verdades convencionais e de embustes
convencionais, absolutamente semelhante à vida dos conhecidos e
amigos de Gúrov; e outra vida, que transcorria em segredo. E, por
uma estranha combinação de circunstâncias, talvez por acaso, tudo
que era importante, interessante, necessário para ele, tudo aquilo
em que ele era sincero e não se iludia, e que constituía o núcleo de
sua vida, se passava em segredo para os demais; no entanto, aquilo
que era a sua mentira, a sua casca, atrás da qual ele se escondia a
fim de ocultar a verdade, como, por exemplo, o seu trabalho no
banco, as discussões no clube, a sua “raça inferior”, as festas de
aniversário a que ia com a esposa, tudo aquilo se dava às claras.
E ele julgava os outros por si mesmo, não acreditava no que via e
sempre supunha que, com todo mundo, a vida autêntica e mais
interessante se passava por trás de um manto de segredo, como se
fosse o manto da noite. Toda existência pessoal se baseava no
segredo, e talvez fosse em parte por isso que as pessoas cultas
exigiam, com tanto zelo, respeito à sua privacidade.
Depois de deixar a filha no ginásio, Gúrov seguiu rumo ao hotel
Bazar Eslavo. Tirou o casaco de pele no térreo, subiu e bateu bem
de leve na porta do quarto. Anna Serguéievna, com o vestido
cinzento predileto de Gúrov, fatigada pela viagem e pela
expectativa, o aguardava desde a noite anterior; estava pálida,
olhava para ele sem sorrir e, mal Gúrov entrou, ela se apertou
contra seu peito. Parecia fazer dois anos que não se viam, e seu
beijo foi longo, demorado.
— E então, como tem passado? — perguntou ele. — O que há
de novo?
— Espere um pouco, já vou dizer… Não posso.
Não conseguia falar, de tanto que chorava. Deu as costas para ele
e apertou o lenço nos olhos.
“Pois bem, deixe que chore um pouco, enquanto isso, eu vou me
sentar”, pensou Gúrov, e sentou-se na poltrona.
Depois, tocou a sineta, pediu que trouxessem chá e, mais tarde,
enquanto ele bebia o chá, ela continuava de pé, o tempo todo,
voltada para a janela… Chorava de emoção, com a dolorida
consciência de que a vida de ambos tomara um rumo triste; eles só
se encontravam em segredo, escondiam-se das pessoas, como
ladrões! Não estariam suas vidas destroçadas?
— Vamos, pare! — disse ele.
Para Gúrov, era evidente que aquele amor não haveria de
terminar tão cedo, e tampouco era possível avistar seu fim. Anna
Serguéievna se apegava a ele com força cada vez maior, o adorava, e
seria inimaginável dizer a ela que, algum dia, tudo aquilo teria de
terminar; de resto, ela não acreditaria.
Gúrov se aproximou e segurou seus ombros para fazer um
carinho, dizer algum gracejo, mas, naquele instante, se viu no
espelho.
A cabeça já começava a ficar grisalha. Ele achou estranho ter
envelhecido tanto nos últimos anos, ter ficado tão feio. Os ombros
em que estavam pousadas suas mãos eram quentes e tremiam. Ele
sentia compaixão por aquela vida, ainda tão quente e tão bela,
porém, com certeza, já próxima de começar a esmaecer e murchar,
como a sua vida. Por que ela o amava tanto? Para as mulheres, ele
sempre parecera algo que não era de fato e, nele, amavam não o
próprio Gúrov, mas um homem criado por sua imaginação, um
homem que elas procuravam com avidez ao longo da vida; mais
tarde, quando se davam conta do engano, ainda assim amavam.
E nenhuma delas foi feliz com ele. O tempo foi passando, ele
conhecia alguém, unia-se, separava-se, mas nem uma vez amava;
havia de tudo ali, o que quisessem, só não havia amor.
E apenas agora, com a cabeça grisalha, Gúrov se apaixonou de
verdade, como se deve — pela primeira vez na vida.
Anna Serguéievna e ele se amavam como pessoas muito
próximas, irmãs, como marido e esposa, como amigos afetuosos;
tinham a impressão de que o próprio destino havia reservado um
para o outro, e era incompreensível a razão de ele ter uma esposa e
ela, um marido; eram como duas aves migratórias, macho e fêmea,
capturadas e forçadas a viver em gaiolas separadas. Perdoavam, um
ao outro, aquilo que os envergonhava no passado, perdoavam tudo
no presente e sentiam que aquele amor os havia transformado.
Antes, nos momentos de tristeza, Gúrov se apaziguava com
quaisquer raciocínios que lhe viessem à cabeça; mas agora ele nem
queria saber de raciocínios, sentia uma profunda compaixão,
desejava ser sincero, afetuoso…
— Pare, minha querida — dizia ele. — Já chorou um pouco…
Agora, chega… Vamos conversar, vamos pensar em alguma coisa.
Então, trocavam conselhos por muito tempo, conversavam sobre
como se livrar da necessidade de esconder-se, de fingir, de morar
em cidades diferentes, de passar muito tempo sem se verem. Como
se libertar daqueles embaraços insuportáveis?
— Como? Como? — perguntava ele, com a cabeça segura entre
as mãos. — Como?
E parecia que, dali a pouco, a solução seria encontrada, e que
então começaria uma vida nova, bela; entretanto, para ambos,
estava claro que o fim ainda estava longe, muito longe, e que o mais
complicado e difícil estava apenas começando.

1899
No barranco

O povoado de Ukléievo ficava no fundo de um barranco, por isso,


da estrada e da estação ferroviária, só se viam os campanários e as
chaminés das fábricas de chita. Quando os viajantes perguntavam
que povoado era aquele, respondiam:
— É o povoado onde o sacristão comeu todo o caviar num
funeral.
Certa vez, na casa do industrial Kostiukóv, durante a refeição
servida após a cerimônia fúnebre, um velho sacristão avistou o
caviar granulado no meio das entradas e o devorou com avidez; o
empurravam, o puxavam pela manga, mas ele parecia entorpecido
pela delícia: nada sentia e só fazia comer. Devorou todo o caviar, e a
lata continha cerca de quatro libras. Desde então, passara muito
tempo, o sacristão já morrera havia muito, mas todos se lembravam
do caviar. A vida ali era tão pobre, ou as pessoas eram tão incapazes
de observar qualquer coisa além daquele incidente banal, ocorrido
dez anos antes, que nada mais tinham para dizer sobre o povoado
de Ukléievo.
As febres, ali, nunca cessavam, e até no verão a terra ficava
lamacenta, sobretudo perto das cercas, sobre as quais se
debruçavam os velhos salgueiros, que davam uma sombra vasta. Ali,
o tempo todo, sentia-se o cheiro dos rejeitos industriais e do ácido
acético usado na fabricação da chita. As fábricas — três de chita e
uma de curtume — não ficavam dentro do povoado, propriamente,
mas na periferia e a certa distância. Eram fábricas pequenas e nelas
trabalhavam, ao todo, cerca de quatrocentos operários, no máximo.
Por causa do curtume, a água do rio muitas vezes se tornava
pútrida; os rejeitos contaminaram o pasto, o gado dos camponeses
contraiu a chaga siberiana e a fábrica recebeu ordem de fechar.
Oficialmente, estava fechada, porém funcionava em segredo, com o
conhecimento do comissário de polícia e do médico do distrito, a
quem o proprietário pagava dez rublos mensais. No povoado
inteiro, havia apenas duas casas decentes, de pedra, com telhado de
ferro; numa delas, se abrigava a administração provincial e, na
outra, uma construção de dois andares, bem em frente à igreja,
morava Grigóri Petróvitch Tsibúkin, comerciante natural de
Iepifan.[84]
Grigóri era dono de uma pequena mercearia, mas aquilo não
passava de uma fachada: na realidade ele fazia comércio com vodca,
porcos, couro, gado, trigo em grão, comprava e vendia o que
aparecesse, e quando, por exemplo, no exterior, havia demanda de
penas de pegas para fazer chapéus de senhora, ele conseguia lucrar
trinta copeques em cada par; arrematava bosques para vender a
madeira, emprestava a juros, em suma, era um velho astuto.
Tinha dois filhos. O mais velho, Aníssim, trabalhava na polícia,
no departamento de investigações, e raramente estava em casa. O
caçula, Stiepan, entrou no ramo do comércio e ajudava o pai,
porém não esperavam dele nenhuma ajuda real, pois tinha a saúde
fraca e era surdo; sua esposa, Aksínia, bonita, esbelta, que nos
feriados andava de chapéu e sombrinha, sempre acordava cedo,
deitava tarde e corria o dia inteiro para um lado e para outro,
segurando a barra da saia e tilintando suas chaves, ora para o
barracão, ora para a adega, ora para a mercearia, e o velho Tsibúkin
olhava para ela com alegria, seus olhos rebrilhavam e, naqueles
momentos, lamentava que ela não tivesse casado com o filho mais
velho, e sim com o caçula, o surdo, que, sem dúvida, pouco
entendia de beleza feminina.
O velho sempre tivera uma propensão para a vida familiar e
amava sua família mais que tudo no mundo, em particular o filho
mais velho, o detetive, e a nora. Tão logo casou com o surdo,
Aksínia revelou uma extraordinária capacidade para os negócios e já
sabia a quem se podia, ou não, emprestar dinheiro, guardava
consigo as chaves, não as confiava nem ao marido, fazia contas no
ábaco, examinava os dentes dos cavalos, como um mujique, e não
parava de rir e gritar; não importava o que ela fizesse, ou dissesse, o
velho apenas se derretia e murmurava:
— Ai, que norazinha! Ai, que belezura, mãezinha…
Era viúvo, no entanto, um ano após o casamento do filho, não se
conteve e casou-se também. A trinta verstas de Ukléievo,
encontraram para ele uma mulher solteira, Varvara Nikoláievna, de
boa família, já madura, mas bonita, bem apessoada. Assim que ela
se instalou no quarto do andar de cima, tudo na casa se iluminou,
como se todas as janelas tivessem ganhado vidros novos. As
lamparinas votivas passaram a ficar acesas, as mesas foram cobertas
por toalhas brancas como neve, nas janelas e no jardim apareceram
flores de olhinhos vermelhos e agora, no almoço, em vez de
comerem todos numa única tigela, um prato era colocado diante de
cada um. Varvara Nikoláievna sorria com simpatia e carinho, e tudo
na casa parecia sorrir. No pátio, algo que nunca se vira, começaram
a passar pedintes, peregrinos, beatos; ao pé das janelas, ouviam-se
as vozes chorosas e cantadas das mulheres de Ukléievo, bem como
a tosse encabulada dos mujiques debilitados, esquálidos, demitidos
das fábricas por embriaguez. Varvara ajudava com dinheiro,
comida, roupas velhas e, depois, já familiarizada com a nova casa,
passou a pegar mantimentos também na mercearia. Certa vez, o
surdo viu a madrasta retirar dois oitavos de chá e aquilo o
perturbou.
— A mãezinha pegou dois oitavos de chá — avisou, depois, para
o pai. — Onde eu registro essa retirada?
O velho nada respondeu, esperou um pouco, refletiu,
remexendo as sobrancelhas, e subiu para o quarto da esposa.
— Varvaruchka — disse ele, com carinho —, se por acaso você,
mãezinha, precisar de alguma coisa na mercearia, pode pegar.
Pegue à vontade, não se acanhe.
E, no dia seguinte, ao passar correndo pelo pátio, o surdo gritou
para ela:
— Mãezinha, se a senhora precisar de alguma coisa, é só pegar!
O fato de ela dar esmolas era algo novo, alegre e afável, a
exemplo das lamparinas votivas e das florezinhas vermelhas. Na
véspera do início do jejum ou na festa do santo padroeiro da igreja
local, que durava três dias, eles vendiam para os mujiques carne
seca apodrecida, de cheiro tão azedo que era difícil ficar perto do
barril, e aceitavam dos beberrões, como fiança, suas gadanhas, seus
gorros, os xales das esposas e, naquelas ocasiões, os operários das
fábricas chegavam a cair e rolar na lama, entorpecidos pela vodca
ruim, parecia que o pecado se condensava no ar, já era uma nuvem
que pairava em volta de todos e, naqueles momentos, de certo
modo, representava um alívio poder pensar que ali, na casa, havia
uma mulher meiga, asseada, que nada tinha a ver com carne seca
nem com vodca; naqueles dias angustiantes, nebulosos, as esmolas
agiam como uma válvula de escape em um mecanismo a vapor.
Na casa de Tsibúkin, os dias se passavam entre afazeres
incessantes. O sol ainda não tinha nascido e Aksínia já bufava,
enquanto lavava o rosto no vestíbulo, o samovar fervia na cozinha e
apitava, como o aviso de algo ruim. O velho Grigóri Petróvitch, que
vestia sobrecasaca preta e comprida, calça de chita e lustrosas botas
de cano alto, muito limpinho e pequenino, entrava e saía dos
cômodos, batendo os saltos das botas no chão, como o sogro da
canção famosa.[85] Abriam a mercearia. Quando o dia clareava,
traziam a charrete para a frente da varanda e o velho, garboso,
tomava assento na boleia, enterrava o grande boné até as orelhas e
quem o visse ali jamais diria já ter cinquenta e seis anos de idade.
Esposa e nora iam despedir-se e, naquele momento, trajando uma
sobrecasaca limpa e bonita, com um enorme garanhão murzelo,
que lhe custara trezentos rublos, atrelado à charrete, o velho não
gostava que os mujiques se aproximassem, com suas súplicas e
queixas; detestava os mujiques, sentia nojo deles e, se visse que
algum o aguardava no portão, gritava com raiva:
— O que está fazendo aí? Vá embora!
Ou, se era um mendigo, gritava:
— Deus há de prover!
Ele saía para tratar de seus negócios; a esposa, de roupa escura e
avental preto, arrumava a casa ou ajudava na cozinha. Aksínia
cuidava das vendas na mercearia e, do lado de fora, ouvia-se o
tilintar das garrafas e do dinheiro, os risos e os gritos de Aksínia, e a
irritação dos fregueses, xingados por ela; ao mesmo tempo, se
percebia que ali, na mercearia, já estava em curso o comércio
clandestino de vodca.[86] O surdo também ficava na mercearia ou,
sem gorro, de mãos nos bolsos, vagava pela rua e lançava olhares
distraídos ora para as isbás, ora para o céu. Em casa, tomavam chá
mais ou menos seis vezes por dia; sentavam-se à mesa, mais ou
menos quatro vezes, para comer. À noite, calculavam a receita do
dia e lançavam na contabilidade, depois dormiam profundamente.
Em Ukléievo, as três fábricas de chita tinham ligação por
telefone com as residências dos industriais Khrímini Velhos,
Khrímini Jovens e Kostiukóv. Estenderam o fio de telefone também
à administração provincial, mas lá o aparelho logo deixou de
funcionar, pois foi infestado por pulgas e baratas. O diretor da
administração provincial era um semianalfabeto e, nos
documentos, só escrevia em letras maiúsculas, uma a uma, e,
quando o telefone parou de funcionar, ele disse:
— Pois é, agora, sem telefone, nós vamos passar um aperto.
Constantemente, os Khrímini Velhos entravam na justiça contra
os Khrímini Jovens, às vezes os Jovens discutiam entre si e
começavam a abrir processos uns contra os outros e, então, sua
fábrica ficava sem produzir por um ou dois meses, enquanto não
fizessem as pazes, e aquilo distraía os habitantes de Ukléievo, pois
cada desavença dava ocasião a muita conversa e falatório. Nos
feriados, Kostiukóv e os Khrímini Jovens organizavam corridas de
charretes, saíam em disparada por Ukléievo e atropelavam bezerros
pelo caminho. Aksínia, muito arrumada, em farfalhantes saias
engomadas, passeava pela rua perto da mercearia; os Jovens
agarravam-na e a levavam na charrete, como se fosse à força. Então,
o velho Tsibúkin também saía de charrete, para exibir seu cavalo
novo, e levava consigo Varvara.
À noite, depois da corrida, quando eles se deitavam para dormir,
um acordeão caro começava a tocar no pátio da casa dos Jovens e,
se havia luar, aquelas notas despertavam na alma alegria e comoção
e, então, Ukléievo já não parecia mais ser um buraco.

II

Aníssim, o filho mais velho, vinha para casa muito raramente, só


nos feriados mais importantes; em compensação, muitas vezes, por
intermédio dos conterrâneos, mandava guloseimas e cartas escritas
com letra de outra pessoa, numa caligrafia muito bonita, sempre
em folhas de papel ofício, à maneira de uma petição. As cartas eram
coalhadas de expressões que Aníssim jamais usava em suas
conversas: “Adorados papai e mamãe, envio a vocês uma libra de
chá de ervas a fim de satisfazer suas necessidades corporais”.
Ao pé de cada carta, vinha rabiscado, como que por uma pena
defeituosa: “Aníssim Tsibúkin” e, abaixo, de novo, na mesma
caligrafia magnífica de antes: “Agente”.
As cartas eram lidas em voz alta várias vezes e o velho,
comovido, vermelho de emoção, dizia:
— Vejam, ele não quis morar aqui em casa, tomou o caminho da
gente mais instruída. O que fazer? Deixa! Cada um tem a sua
vocação.
Certa vez, antes da máslenitsa,[87] choveu forte, com granizo; o
velho e Varvara se aproximaram da janela para dar uma olhada e,
quem diria? Lá estava Aníssim, que chegava da estação num trenó.
Não esperavam sua chegada, de forma alguma. Ele entrou inquieto,
perturbado com alguma coisa e, depois, o tempo todo, permaneceu
assim; também se portou de modo um tanto displicente. Não
mostrou pressa nenhuma de ir embora, parecia que tinha sido
demitido. Varvara estava contente com sua chegada; olhava para ele
com certa malícia, suspirava e balançava a cabeça.
— Como pode ser isso, meu Deus? — dizia ela. — Ai-ai-ai, um
rapaz desse, que já completou vinte e sete aninhos e ainda desfila
solteiro por aí, um rapaz desse…
Do quarto vizinho, sua voz baixa e cadenciada soava assim: “Ai-
ai-ai-um-ra-paz-des-se”. Ela se pôs a sussurrar com o velho e com
Aksínia e seus rostos também ganharam uma expressão de malícia
e segredo, como conspiradores.
Resolveram casar Aníssim.
— Um-ra-paz-de-e-esse!… O caçula já casaram faz muito tempo
— dizia Varvara. — Mas você continua sem um par, que nem um
galo na feira. Onde é que já se viu? Ai-ai-ai, case logo, Deus há de
ajudar. Depois, faça como quiser, vá lá para o seu emprego, mas a
esposa vai ficar aqui e vai ajudar em casa, não é? Você vive em
desordem, rapaz, e eu vejo que esqueceu todas as regras. Ai-ai-ai,
um rapaz desse, puxa, é um pecado viver sozinho, com a gente lá
da cidade.
Quando algum Tsibúkin casava, escolhiam para eles as noivas
mais bonitas, como fazem os ricos. Para Aníssim também
encontraram uma noiva bonita. Ele mesmo tinha aparência
desinteressante, sem graça; de constituição fraca e doentia, altura
baixa, suas bochechas eram fartas, rechonchudas, como se ele as
tivesse inflado por dentro; os olhos não piscavam, o olhar era
penetrante, tinha barba ruiva, rala, que ele, pensativo, sempre
enfiava na boca e mordia; além do mais, se embriagava muitas
vezes, o que logo se percebia pelo rosto e pelo jeito de andar.
Porém, quando lhe comunicaram que já havia uma noiva para ele, e
muito bonita, Aníssim disse:
— Certo, mas, afinal, eu também não sou nenhum corcunda. Na
nossa família, os Tsibúkin, é preciso reconhecer, somos todos
bonitos.
Bem perto da cidade, ficava o vilarejo de Torgúievo. Pouco
tempo antes, metade do vilarejo tinha sido incorporada à cidade, o
resto continuava a pertencer ao vilarejo. Na primeira metade,
morava uma viúva, em seu casebre; tinha uma irmã muito pobre,
que trabalhava no campo como diarista, e essa irmã tinha uma filha
chamada Lipa, mocinha que também trabalhava como diarista. A
beleza de Lipa já era comentada em Torgúievo e apenas sua pobreza
terrível deixava todos desanimados; julgavam que algum homem de
mais idade, ou viúvo, se casaria com Lipa, sem se importar com sua
pobreza, ou a levaria consigo sem casar e, junto com Lipa, a mãe
não passaria fome. Varvara soube de Lipa graças às casamenteiras e
deu um pulo em Torgúievo.
Depois, na casa da tia, se cumpriu a apresentação dos noivos,
conforme todos os preceitos, com petiscos e bebida, e Lipa usou
um vestido novo, cor-de-rosa, feito de chita, costurado
especialmente para a ocasião e, nos cabelos, reluzia uma fitinha
escarlate, como uma chama. Era magrinha, pálida, fraca, de feições
finas e meigas, bronzeada pelo trabalho ao ar livre; o sorriso triste e
acanhado não abandonava seu rosto e os olhos fitavam com ar de
criança — confiantes e curiosos.
Era jovem, ainda menina, mal se percebiam os seios, mas já
podia casar, pois alcançara a idade. Na verdade, era bonita e, nela,
só uma coisa podia desagradar: as mãos grandes, masculinas, que
agora pendiam ociosas como duas volumosas tenazes.
— Ela não tem dote e nós não ligamos para isso — disse o velho
para a tia. — No caso do nosso Stiepan, também escolhemos a
noiva numa família pobre e, agora, não nos cansamos de elogiar sua
esposa. Tanto no trabalho como em casa, ela tem mãos de ouro.
Lipa estava junto à porta com ar de quem queria dizer: “Façam
comigo o que quiserem: eu confio em vocês!”, e sua mãe,
Praskóvia, a diarista, se escondeu na cozinha, mortificada pelo
acanhamento. Noutros tempos, ainda na juventude, um
comerciante em cuja casa Praskóvia lavava o piso se zangou,
começou a bater com os pés no chão na frente dela, o que a deixou
muito assustada, atônita e, depois disso, o medo se instalou em sua
alma pelo resto da vida. De medo, as mãos e as pernas sempre
tremiam, e tremiam também as bochechas. Sentada na cozinha, ela
tentava entreouvir o que diziam as visitas, e não parava de fazer o
sinal da cruz, comprimindo os dedos contra a testa, com os olhos
cravados num ícone. Aníssim, levemente embriagado, abriu a porta
da cozinha e falou, sem nenhuma cerimônia:
— Por que fica sentada aí dentro, adorada mãezinha? Sem a
senhora, para nós não tem graça.
E Praskóvia, intimidada, com a mão apertada contra o peito
emagrecido, descarnado, respondeu:
— Como quiser, queira perdoar, senhor… Estamos muito
satisfeitas com o senhor.
Depois da apresentação dos noivos, marcaram o dia do
casamento. Mais tarde, já em casa, Aníssim ficou o tempo todo
andando pelos cômodos e assoviando, ou então, ao lembrar-se de
algo de repente, parava pensativo e, imóvel, mirava o chão com
olhar penetrante, como se quisesse adentrar bem fundo na terra.
Não expressava satisfação por casar, e ele ia casar bem depressa, na
Krásnaia Gorka,[88] nem manifestava desejo de encontrar-se com a
noiva, limitava-se a assoviar. E era evidente que ia casar só porque
assim desejavam o pai e a madrasta, e também porque, no povoado,
aquilo já se tornara um costume: o filho se une a uma esposa para
que tenham uma ajudante nos trabalhos de casa. Aníssim não
demonstrava a menor pressa de ir embora e seu comportamento
era muito diverso do que se via em suas visitas anteriores — em
especial, ele se mostrava um tanto displicente e dizia coisas
despropositadas.

III

No povoado de Chikalova, moravam duas irmãs costureiras, da


seita dos flagelantes.[89] Como as roupas do casamento foram
encomendadas a elas, as duas iam até lá muitas vezes tirar as
medidas e se demoravam bastante, tomando chá. Para Varvara,
costuraram um vestido marrom, com rendas pretas e miçangas;
para Aksínia, um vestido verde-claro, com peitilho amarelo e cauda.
Quando as costureiras terminaram, Tsibúkin não pagou em
dinheiro, mas em produtos da mercearia, e as duas partiram
tristonhas, levando nas mãos trouxinhas com velas de cera e
sardinhas, das quais não tinham a menor necessidade e, quando
saíram do povoado e chegaram ao campo, sentaram num morrinho
e desataram a chorar.
Aníssim voltou três dias antes do casamento, completamente
renovado. Calçava reluzentes galochas de borracha e, em lugar de
gravata, trazia um cordão vermelho com bolinhas; vestia um
sobretudo também novo, solto por cima dos ombros, com os braços
por fora das mangas.
Depois de rezar com ar grave, cumprimentou o pai e lhe deu dez
rublos de prata e dez moedas de cinquenta copeques; para Varvara,
deu o mesmo; para Aksínia, vinte moedas de vinte e cinco
copeques. O principal atrativo daquele presente residia justamente
no fato de que todas as moedas eram novinhas em folha, como se
tivessem sido escolhidas uma a uma, e cintilavam ao sol. Fazendo
esforço para se mostrar sério e compenetrado, Aníssim mantinha o
rosto contraído e estufava as bochechas, porém exalava cheiro de
bebida; com certeza, durante a viagem, a cada estação de trem,
saíra correndo para a cantina. E, de novo, havia uma espécie de
displicência, algo que não condizia com ele. Mais tarde, Aníssim e
o velho beberam chá e comeram um pouco, enquanto Varvara
recontava entre os dedos os rublos novinhos em folha e indagava
sobre seus conterrâneos residentes na cidade.
— Está tudo certo, graças a Deus, eles vão bem — respondeu
Aníssim. — Só na família de Ivan Iegórov aconteceu uma coisa:
morreu a mãe dele, Sófia Nikíforovna. De tuberculose. A refeição
fúnebre em memória da alma da falecida foi encomendada a um
confeiteiro, ao preço de dois rublos e meio por pessoa. E tinha até
vinho de uva. Foram uns mujiques, nossos conterrâneos… E até
deles cobraram dois rublos e meio. E eles nem comeram nada. Um
mujique não sabe apreciar comida com molho!
— Dois e meio! — exclamou o velho, e balançou a cabeça.
— E o que é que tem? Lá não é que nem na roça. Você vai ao
restaurante comer uma coisinha, pede isso e aquilo, aí junta uma
turma, você vai bebendo e, quando olha, já está amanhecendo e
então, pronto, faça-me o favor, são três ou quatro rublos por
cabeça. E quando você vai com o Samoródov, aí ele gosta de
arrematar tudo com café e conhaque, e o conhaque sai por sessenta
copeques um calicezinho.
— Sempre com suas histórias — exclamou o velho com
admiração. — Sempre com suas histórias!
— Agora, eu ando o tempo todo com o Samoródov. É o
Samoródov que escreve as minhas cartas para vocês. Tem uma letra
maravilhosa. E se eu contar, mãezinha — prosseguiu Aníssim, com
alegria, voltando-se para Varvara —, se eu contar que tipo de
homem é esse Samoródov, a senhora nem vai acreditar. Nós todos
o apelidamos de Mukhtar,[90] porque é igual a um armênio: todo
moreno. Eu enxergo através dele, sei tudo o que ele está pensando,
eu o conheço como a palma da mão, mãezinha, e ele percebe isso e
anda sempre comigo, não me larga, e agora nós somos assim, unha
e carne. Ele tem certo medo de mim, só que, sem mim, ele não
consegue viver. Para onde eu vou, lá vem ele atrás. Sabe, mamãe,
tenho um olho certeiro, infalível. No meio da multidão, vejo um
mujique vendendo uma camisa. “Pare aí, essa camisa é roubada!” E,
quando a gente vai ver, está certo: a camisa é mesmo roubada.
— E como é que você pode saber? — perguntou Varvara.
— Eu sei e pronto! Eu tenho olho para isso. Não sei que camisa
é aquela, mas por algum motivo ela chama a minha atenção: é
roubada, e ponto-final. Lá no nosso departamento de investigação,
também já dizem assim: “Pois é, o Aníssim foi caçar galinholas!”.
Isso quer dizer: achar coisas roubadas. É… Roubar, qualquer um
pode. O difícil é guardar o que roubou! O mundo é vasto, mas não
tem onde esconder uma coisa roubada.
— Mas no nosso povoado, na casa do Gúntorev, semana
passada, sumiram com um carneiro e dois cordeiros — disse
Varvara, e suspirou. — E não tem quem investigue… Puxa vida…

É
— Como assim? Pode-se investigar. É uma coisa à toa, é possível
sim.
Chegou o dia do casamento. Fazia frio, mas era um claro e alegre
dia de abril. Desde manhã cedo, carroças puxadas por dois ou três
cavalos, enfeitados com fitas coloridas nos arcos e nas crinas,
percorriam Ukléievo ao som de suas campainhas. Nos salgueiros, as
gralhas grasnavam assustadas com tamanha agitação e os
estorninhos cantavam sem parar com tal alarido, como se
estivessem contentes de haver um casamento na família dos
Tsibúkin.
Em casa, sobre as mesas, já se viam peixes compridos, pernis e
aves recheadas, caixas de anchovas, diversos alimentos salgados e
marinados, uma infinidade de garrafas de vodca e vinho e, por toda
parte, o cheiro de chouriço defumado e lagostins avinagrados. O
velho andava em torno das mesas, batendo com os saltos no chão,
enquanto afiava uma faca na outra. Volta e meia, chamavam Varvara
aos gritos, exigiam algo, e ela, com ar desnorteado e respiração
ofegante, corria para a cozinha, onde, desde o raiar do dia,
trabalhavam o cozinheiro de Kostiukóv e a cozinheira particular dos
Khrímini Jovens. Aksínia, de cabelo frisado, sem vestido, mas de
espartilho, calçada em suas botinhas novas e rangentes, correu pelo
pátio como um tufão e apenas se viram, de relance, o peito e os
joelhos nus. O barulho era enorme, ressoavam pragas e palavrões;
os pedestres se detinham em frente aos portões escancarados e, em
tudo, pressentiam os preparativos de algo extraordinário.
— Foram buscar a noiva!
As sinetas das carroças tilintaram com força e, depois,
emudeceram ao longe, fora do povoado… Depois das duas horas, o
povo acorreu: de novo, ouviram-se as sinetas das carroças, estavam
trazendo a noiva! A igreja estava cheia, o candelabro brilhava, todo
aceso, o coro cantava, seguindo a partitura, como desejava o velho
Tsibúkin. O brilho das luzes e os vestidos claros ofuscaram Lipa, a
moça tinha a impressão de que os cantores, com suas vozes
possantes, golpeavam sua cabeça como martelos; as botinhas e o
espartilho, que ela vestia pela primeira vez na vida, a oprimiam e o
rosto tinha a expressão de quem acabara de acordar de um desmaio
— ela olha em volta e não compreende. Aníssim, de sobretudo
preto, com um cordão vermelho em lugar de gravata, se mostrava
pensativo, olhava para um único ponto e, quando os cantores
ergueram as vozes poderosas, fez depressa o sinal da cruz. Sua alma
estava comovida, ele tinha vontade de chorar. Conhecia a igreja
desde a primeira infância; naquele tempo, a mãe, já falecida, o
levava ali para comungar; na época, ele cantava no coro com os
meninos; cada recanto e cada ícone estavam gravados na memória.
Agora, Aníssim vai casar, precisa casar, é o costume. Mas ele já
nem pensa no assunto, é como se não se lembrasse daquilo, tinha
esquecido seu casamento por completo. Lágrimas o impediam de
ver os ícones, sentia um peso no coração; ele rezava e rogava a
Deus que os infortúnios inevitáveis, prestes a se desencadearem
sobre ele, mais dia, menos dia, de alguma forma passassem ao
largo, como as nuvens de tempestade que, na temporada de seca,
passavam ao largo do povoado, sem deixar cair nem um pingo de
chuva. E tantos pecados já se acumulavam no seu passado, tantos,
tantos pecados, e tudo tão irremediável, tão insolúvel, que, de certo
modo, chegava a ser um despropósito pedir perdão. Porém ele
pedia o perdão e até soluçava alto, mas ninguém dava atenção
àquilo, pois achavam que Aníssim tinha apenas bebido demais.
Ouviu-se um alarmado choro de criança.
— Mãezinha querida, me tire daqui, seja boazinha!
— Silêncio aí! — gritou o sacerdote.
Quando saíram da igreja, a caminho de casa, o povo correu atrás;
perto da mercearia, junto ao portão e no pátio, também havia muita
gente. Vieram camponesas para cantar louvores. Assim que os
noivos atravessaram a soleira da casa, os cantores, que já estavam a
postos na entrada, com suas partituras em punho, esbravejaram
com toda a força; músicos, trazidos da cidade especialmente para a
ocasião, começaram a tocar. Já estavam servindo o vinho
espumante do Don, em taças altas, e o carpinteiro e mestre de
obras Ielizárov, velho alto e magro, de sobrancelhas tão espessas
que mal dava para ver seus olhos, disse, voltando-se para os recém-
casados:
— Aníssim e você também, minha criança, amem um ao outro,
vivam segundo os preceitos de Deus, crianças, que a Rainha do
Céu não há de abandonar vocês. — Apoiou o braço sobre os
ombros do velho e soluçou. — Grigóri Petróvitch, vamos chorar,
chorar de alegria! — exclamou, com vozinha aguda e, na mesma
hora, de repente, gargalhou e prosseguiu, em estrondosa voz de
baixo: — Ho-ho-ho! E essa sua nora é bonita! Quer dizer, ela tem
tudo no lugar, tudo é lisinho, tudo encaixa, o mecanismo todo está
em boas condições, tem muito parafuso aí.
Ele havia nascido na província de Iegórievsk, mas desde muito
novo trabalhava nas fábricas de Ukléievo e na administração da
província e passara a vida ali. Fazia tempo que era conhecido como
um velho magro e espigado, tal como era agora, e já fazia tempo
também que o chamavam de Muleta. Talvez por ter passado mais
de quarenta anos trabalhando nas fábricas apenas em reformas e
obras, ele julgava qualquer pessoa ou objeto apenas pelo aspecto da
solidez: avaliava se estava precisando de reforma. E, antes de
sentar-se à mesa, ele experimentava algumas cadeiras para ver se
eram firmes, da mesma forma como apalpava um salmão.
Depois do espumante, todos se puseram sentados à mesa. Os
convidados conversavam, arrastando as cadeiras. O coro cantava na
entrada, os músicos tocavam e, ao mesmo tempo, do lado de fora,
as camponesas cantavam louvores, tudo a uma só voz — e havia
uma espécie de barafunda terrível, selvagem, dos sons mais
diversos, que fazia a cabeça rodar.
Muleta girava para lá e para cá, sentado em sua cadeira, e dava
cotoveladas nos vizinhos, não deixava os outros falarem e ora
chorava, ora ria.
— Crianças, crianças, crianças… — balbuciava ligeiro. —
Aksiniúchka, mãezinha, Varvaruchka, vamos viver todos em paz e
concórdia, minhas machadinhas adoradas…
Ele não costumava beber e por isso, daquela vez, se embriagara
com um cálice de bíter inglês. Aquele bíter repugnante, feito sabe-
se lá de quê, deixava atordoado qualquer um que o bebesse, com o
efeito de uma pancada na cabeça. A língua começava a enrolar.
Havia gente do clero, empregados das fábricas e suas esposas,
comerciantes e taberneiros de outros povoados. O chefe e o
escrivão do distrito, que trabalhavam juntos havia catorze anos e,
durante todo aquele tempo, não haviam assinado sequer uma folha
de papel, não haviam deixado uma só pessoa sair da sede da
administração provincial sem cometer alguma fraude ou ofensa,
agora estavam sentados lado a lado, ambos gordos, cevados, e
pareciam a tal ponto impregnados de falsidade que até na pele do
rosto traziam algo de peculiar e fraudulento. A esposa do escrivão,
magricela e vesga, havia levado todos os filhos e, como uma ave de
rapina, espreitava os pratos, agarrava tudo que aparecesse ao
alcance das mãos e metia nos bolsos, para si e para os filhos.
Imóvel, sentada, Lipa mantinha, o tempo todo, a mesma
expressão que mostrara na igreja. Desde que fora apresentado à
noiva, Aníssim não havia trocado nenhuma palavra com ela e por
isso, até agora, não sabia como era sua voz; e naquele momento,
sentado a seu lado, ele se mantinha calado e bebia o bíter inglês,
porém, quando se embriagou, começou a falar, dirigindo-se à tia,
sentada na sua frente:
— Eu tenho um amigo chamado Samoródov. É uma pessoa
especial. Um cidadão pessoalmente honrado, ele sabe conversar.
Mas adivinho o que ele está pensando e ele sente isso. Por favor,
vamos beber à saúde de Samoródov, titia!
Varvara não parava de andar à volta da mesa, servindo os
convidados, exausta, desnorteada e visivelmente satisfeita por
haver tanta comida e por tudo ser tão farto — naquela hora,
ninguém poderia criticar nada. O sol se pôs e o almoço prosseguia;
já nem se dava conta do que estavam comendo, bebendo, era
impossível distinguir o que diziam e só de vez em quando, nos
momentos em que a música cessava, se ouvia com nitidez que
alguma camponesa gritava, lá fora:
— Sugaram o nosso sangue, seus carrascos, que a desgraça caia
sobre vocês!
À noite, houve música e dança. Os Khrímini Jovens trouxeram
sua bebida e um deles, quando dançavam a quadrilha, segurou uma
garrafa em cada mão, com a taça presa na boca, e aquilo divertiu a
todos. No meio da quadrilha, de repente, puseram-se a dançar de
cócoras;[91] toda de verde, Aksínia passava como um lampejo, e a
cauda do vestido chegava a fazer vento. Alguém pisou na barra do
seu vestido, e o Muleta gritou:
— Olhem, arrancaram o rodapé! Crianças!
Aksínia tinha olhos cinzentos e ingênuos, que raramente
piscavam e, no rosto, o tempo todo, dançava um sorriso também
ingênuo. Naqueles olhos que não piscavam, na pequena cabeça,
erguida sobre o pescoço comprido, e em seu talhe esguio, havia
algo de serpente; sorrindo, verde e com o peitilho amarelo, ela
olhava fixo para quem passasse por ali, como uma víbora na
primavera, no meio do centeio novo, de cabeça esticada e erguida.
Os Khrímini a tratavam com toda a liberdade e era bem visível que,
fazia algum tempo, Aksínia já era íntima do mais velho deles.
Porém o surdo não percebia nada, nem olhava para a esposa; ficava
sentado, de pernas cruzadas, comia nozes e as trincava entre os
dentes com tamanho ruído que parecia dar tiros de pistola.
Foi então que o velho Tsibúkin em pessoa foi para o meio do
salão e sacudiu um lenço no ar, dando o sinal de que ele também
queria dançar de cócoras, à moda russa, e na casa toda, bem como
do lado de fora, um clamor de aplauso atravessou a multidão:
— Até ele vai dançar! Até ele!
Era Varvara que dançava, enquanto o velho apenas sacudia o
lenço no ar e roçava no chão ora um salto, ora outro, mas as pessoas
lá de fora vieram espiar pelas janelas, debruçadas umas nas outras,
estavam maravilhadas e, por um minuto, lhe perdoaram tudo — sua
riqueza e seus ultrajes.
— Muito bem, Grigóri Petróvitch! — gritavam na multidão. —
Vamos, força! Está vendo, você ainda é capaz de dançar! Ha-ha!
Tudo acabou tarde, depois de uma da madrugada. Cambaleante,
Aníssim despediu-se de todos os músicos e cantores e, a cada um,
deu de presente uma moeda nova de cinquenta copeques. O velho,
sem titubear, mas mancando um pouco de uma perna, despediu-se
dos convidados e, a cada um deles, disse:
— O casamento custou dois mil.
Quando se dispersaram, viu-se que alguém havia trocado o belo
casacão novo de um taberneiro de Chikalova por outro já velho e,
de repente, Aníssim ficou vermelho e começou a gritar:
— Espere aí! Eu vou achar, agora mesmo! Eu sei quem roubou!
Espere aí!
Saiu correndo para a rua, abalou no encalço de alguém;
seguraram-no, embriagado, vermelho de raiva, todo molhado,
puxaram-no pelo braço para dentro do quarto, onde a tia já estava
despindo Lipa, e fecharam a porta.

IV

Passaram cinco dias. Pronto para partir, Aníssim subiu ao quarto de


Varvara para se despedir da madrasta. Todas as lamparinas votivas
estavam acesas, havia um cheiro de incenso, a própria Varvara
estava sentada junto à janela e tricotava uma meia de lã vermelha.
— Você ficou pouco tempo conosco — disse. — Achou
maçante, não é? Ai-ai-ai… Nós vivemos bem, temos de tudo, com
fartura, e o seu casamento foi bem festejado, como deve ser; o
velho disse: custou dois mil rublos. Em suma, nós levamos uma
vida de comerciantes, só que é enfadonho ficar aqui. Fazemos mal a
muita gente. Meu coração dói, meu amigo, quanto mal nós
fazemos… meu Deus! Se trocamos um cavalo, se compramos
alguma coisa, se contratamos um empregado, em tudo há alguma
fraude. Fraudes e mais fraudes. O azeite na mercearia está azedo,
podre, pior do que o alcatrão que os outros vendem por aí. Diga lá,
por caridade, será que não é possível vender um azeite bom?
— Cada um cuida de si, mãezinha.
— Mas, afinal, um dia nós temos de morrer, não é? Ai-ai-ai,
francamente, você devia falar com seu pai!…
— Mas por que a senhora mesma não fala?
— Essa é boa! Eu já falei, e ele me disse a mesma coisa que você:
cada um cuida de si. No outro mundo, também vão escolher você
com estas palavras: cada um cuida de si. O julgamento de Deus é
justo.
É
— É claro que ninguém vai escolher ninguém — disse Aníssim,
e suspirou. — Não faz diferença nenhuma, no final, porque Deus
não existe, mãezinha. Nada vai ser julgado!
Varvara olhou bem para ele, com surpresa, deu uma risada e
abriu os braços. Como ela mostrou um espanto tão sincero com
suas palavras e olhava para ele como se fosse um excêntrico,
Aníssim perturbou-se.
— Pode ser que Deus exista, só que não existe fé nenhuma —
disse. — Quando me casaram, senti uma coisa esquisita. Assim
como quando a gente apanha um ovo embaixo da galinha e o
pintinho pia lá dentro, também dentro de mim a consciência
começou a piar, de repente, e durante o casamento eu não parava
de pensar: Deus existe! Mas, quando saí da igreja, acabou tudo,
pronto. Além do mais, como vou saber se Deus existe ou não?
Desde pequenos, ninguém nos ensina isso, e o bebê, quando ainda
está mamando no peito da mãe, só ensinam para ele uma coisa:
cada um por si. Afinal, o papai também não acredita em Deus. Há
alguns dias, a senhora contou que sumiram com uns carneiros do
Gúntorev… Pois eu achei os carneiros: foi um mujique de
Chikalova que roubou; ele roubou, mas as peles estão com o
papai… Veja só quanta fé!
Aníssim piscou o olho e balançou a cabeça.
— E o chefe do distrito também não acredita em Deus —
prosseguiu. — O escrivão do distrito também, e o sacristão
também. Se vão à igreja e fazem os jejuns, é só para que as pessoas
não falem mal deles, e também para o caso de acontecer, de fato,
quem sabe, o Juízo Final. Agora, andam dizendo que o fim do
mundo está chegando, parece, porque o povo está fraco, os filhos
não respeitam os pais etc. Isso é bobagem. Eu, mãezinha, entendo
que todas as desgraças acontecem porque as pessoas têm pouca
consciência. Eu enxergo por dentro das pessoas, mamãe, eu
entendo. Se alguém tem uma camisa roubada, eu percebo. Uma
pessoa está na taberna, parece que está lá tomando o seu chá e mais
nada, só que eu, com chá ou sem chá, enxergo também que essa
pessoa não tem consciência. Assim, você pode andar um dia inteiro
que não vai achar ninguém com consciência. E a causa de tudo é
porque não sabem se Deus existe ou não… Pois é, mãezinha.
Adeus. Trate de se manter viva e saudável, e não pense mal de mim.
Aníssim fez uma reverência até os pés de Varvara.
— Agradeço à senhora por tudo, mãezinha — disse. — A
senhora faz um bem enorme à nossa família. É uma mulher muito
correta, e eu estou muito contente com a senhora.
Aníssim saiu emocionado, porém voltou-se mais uma vez e
disse:
— Samoródov me envolveu num negócio: ou eu fico rico ou
estou desgraçado de uma vez. Se acontecer alguma coisa,
mãezinha, a senhora console o meu pai.
— Ora essa, o que está dizendo? Ai-ai-ai… Deus misericordioso.
E você, Aníssim, podia ser mais carinhoso com a sua esposa, vocês
olham um para o outro de cara tão amarrada; podiam sorrir um
pouquinho, puxa vida.
— Pois é, ela é meio esquisita… — disse Aníssim, e suspirou. —
Ela não entende nada, sempre calada. Ainda é novinha demais,
deixa ela crescer um pouco…
Diante da varanda, um garanhão branco, alto, bem nutrido, já
aguardava, atrelado a uma charrete com três fileiras de bancos.
O velho Tsibúkin tomou impulso, subiu, sentou-se muito
garboso e tomou as rédeas nas mãos. Aníssim beijou Varvara,
Aksínia e o irmão. Na varanda, também estava Lipa, imóvel,
olhando para o lado, como se não tivesse ido para se despedir e não
soubesse o que estava fazendo ali. Aníssim se aproximou dela e
roçou os lábios em sua face, bem de leve.
— Adeus — disse ele.
Sem olhar para Aníssim, Lipa sorriu de modo um tanto
estranho; o rosto estremeceu e, por alguma razão, todos sentiram
pena dela. Com um pulo, Aníssim também tomou assento na
charrete e pôs as mãos nos quadris, pois se considerava um homem
bonito.
Enquanto saíam do barranco e foram subindo, toda hora Aníssim
olhava para trás, para o povoado. Era um dia quente, claro. Pela
primeira vez, retiravam o gado dos estábulos, e mocinhas e
mulheres andavam à volta dos rebanhos, vestidas em trajes festivos.
Um touro pardo mugia, regozijando-se com a liberdade, e revolvia a
terra com as patas dianteiras. Por toda parte, acima, abaixo, as
cotovias cantavam. Aníssim virou-se a fim de olhar para a igreja,
graciosa, toda branquinha — caiada havia pouco tempo —, e
recordou que, cinco dias antes, tinha rezado ali; olhou para a
escola, com seu telhado verde, olhou para o rio, onde pescara e
tomara banho em outros tempos, e a alegria sacudiu dentro do
peito, veio uma vontade de que um muro, de repente, subisse da
terra, o impedisse de seguir adiante e ele tivesse de ficar ali, só com
seu passado.
Na estação, foram à cantina e beberam um cálice de xerez. O
velho meteu a mão no bolso para pegar o porta-moedas e pagar.
— Eu pago! — disse Aníssim.
Enternecido, o velho bateu com a mão no ombro do filho e
piscou para o garçom: olhe só que filho eu tenho.
— Quem dera você pudesse ficar aqui em casa e cuidar dos
negócios, Aníssim — disse. — Você não tem preço! E eu, meu
filho, o cobriria de ouro da cabeça aos pés.
— Não é possível, papai, de jeito nenhum.
O xerez estava meio azedo, tinha cheiro de cera de lacre, mesmo
assim tomaram mais um cálice.
Quando o velho voltou da estação, no primeiro momento, nem
reconheceu a nora mais jovem. Assim que o marido saiu pelo
portão, Lipa se transformou, alegrou-se de repente. Descalça, de
saia velha e surrada, com as mangas arregaçadas até os ombros,
estava lavando a escada que dava para o vestíbulo e cantava em sua
voz aguda, com um timbre de prata e, quando carregava para fora a
tina de água suja e olhava para o sol com seu sorriso de criança,
parecia, também ela, uma cotovia.
Um velho trabalhador que estava passando na frente da varanda,
balançou a cabeça e grasnou:
— Mas que nora é essa que Deus mandou para você, Grigóri
Petróvitch! — disse. — Não é uma mulher, é um verdadeiro
tesouro!

No dia 8 de julho, sexta-feira, Ielizárov, apelidado de Muleta, e Lipa


voltavam do povoado de Kazánskoie, aonde foram em peregrinação
no dia da festa da padroeira da paróquia, Nossa Senhora de Kazan.
Bem atrás, vinha Praskóvia, a mãe de Lipa, que sempre se atrasava,
pois era doente e sentia falta de ar. Faltava pouco para anoitecer.
— A-a-a! — Muleta admirou-se com o que Lipa acabara de falar.
— A-a!… O quê-ê?
— Eu, Iliá Makáritch, sou doida por geleia — disse Lipa. —
Sento sozinha num cantinho e fico, a vida toda, tomando chá com
geleia. Ou então eu e a Varvara Nikoláievna ficamos bebendo chá
juntas, e ela me conta uma história bem sentimental. Tem muita
geleia na casa deles, quatro potes. “Come, Lipa”, eles dizem. “Não
faça cerimônia.”
— A-a-a!… Quatro potes!
— Eles levam vida de rico. Chá com pão branco; e tem carne de
vaca na hora em que a gente quiser. Levam vida de rico, só que a
casa deles dá medo, Iliá Makáritch. Ai, que medo!
— E do que você tem medo, menina? — perguntou Muleta, e
olhou para trás, a fim de verificar se Praskóvia estava muito longe.
— Primeiro, na festa do casamento, eu tive medo do Aníssim
Grigóritch. Ele não fez nada, não me maltratou, só que, quando ele
chegava perto de mim, eu sentia um calafrio por dentro, em todos
os ossinhos. E eu não conseguia dormir nem uma noitezinha
sequer, tremia o tempo todo e rezava. E agora é da Aksínia que
tenho medo, Iliá Makáritch. Ela não fez nada, vive sorrindo, só que,
lá de vez em quando, espia pela janelinha e os olhos dela são tão
zangados e ardem tão verdes como os olhos das ovelhas no
estábulo. Os Khrímini Jovens vivem atazanando a Aksínia, falam
assim: “O seu velho tem uma terrinha em Butiókino, umas
quarenta deciatinas, essa terrinha tem água e uma areiazinha e
você, Aksiucha, podia construir lá uma fábrica de tijolo, e nós
entrávamos de sócios”. O preço do tijolo, agora, está em vinte
rublos o milheiro. Um bom negócio. Ontem, no almoço, Aksínia
disse para o velho: “Eu queria montar uma fábrica de tijolo em
Butiókino, eu mesma vou ser comerciante”. Falou e sorriu. Mas a
cara de Grigóri Petróvitch ficou fechada, dava para ver que ele não
gostou. Disse: “Enquanto eu estiver vivo, não pode separar, é todo
mundo junto”. E ela fuzilou com os olhos, começou a ranger os
dentes… Serviram panquecas… e ela não comeu!
— A-a-a!… — espantou-se Muleta. — Não comeu!
— E agora me diga, por favor, quando é que ela dorme? —
continuou Lipa. — Ela dorme só meia horinha e pula da cama, anda
para lá e para cá, sem parar, fica espiando; vê se os mujiques não
puseram fogo em alguma coisa, não roubaram alguma coisa… Ela
dá medo, Iliá Makáritch! E, depois do casamento, os Khrímini
Jovens também não foram dormir, foram lá para a cidade para abrir
um processo na justiça; e o povo anda falando que é tudo por causa
da Aksínia, parece. Dois irmãos prometeram construir uma fábrica
para ela e o terceiro ficou aborrecido, por isso a fábrica deles está
parada há um mês e o meu tio Prókhor ficou desempregado e foi
pedir migalhas de pão de porta em porta. Eu disse: “Você, meu tio,
por enquanto, devia ir arar a terra ou serrar lenha, era melhor do
que se cobrir de vergonha!”. E ele respondeu: “Eu perdi a força
para os trabalhos cristãos, não sei fazer nada, Lípinka!…”.
Pararam perto de um bosque de álamos jovens para descansar e
esperar Praskóvia. Fazia tempo que Ielizárov era mestre de obras,
mas não tinha charrete, andava a pé por todo o distrito, só com um
pequeno saco nas costas, no qual levava pão e cebola, e caminhava a
passos largos, balançando os braços. Era difícil acompanhar seu
ritmo.
Na entrada do bosque, havia um poste para demarcar a
propriedade. Ielizárov o empurrou para ver se estava firme.
Praskóvia chegou ofegante. Seu rosto cheio de rugas, sempre
assustado, brilhava de felicidade: naquele dia, Praskóvia tinha ido à
igreja, como todo mundo, depois andou pela feira e, lá, bebeu kvas
de pera! Aquilo era muito raro para Praskóvia e, agora, até lhe
parecia que tinha vivido ao seu gosto pela primeira vez na vida.
Depois que descansaram, os três seguiram caminho juntos. O sol já
estava se pondo, seus raios atravessavam o bosque e rebrilhavam
nos troncos. À frente, vozes retumbaram. As mocinhas de Ukléievo
tinham saído na frente, já fazia tempo, porém acabaram se detendo
ali no bosque: na certa, ficaram colhendo cogumelos.
— Ei, meninas! — gritou Ielizárov. — Ei, belezuras!
Em resposta, soaram risos.
— O Muleta chegou! É o Muleta! O velho caduco!
E o eco também riu. Agora, o bosque tinha ficado para trás. Já se
avistavam o topo das chaminés das fábricas, a cruz cintilou no
campanário: era o povoado, “aquele onde o sacristão comeu todo o
caviar num funeral”. Agora já estavam quase em casa; só faltava
descer aquele grande barranco. Lipa e Praskóvia, que andavam
descalças, sentaram sobre o capim para calçar-se; o mestre de obras
sentou-se a seu lado. Vista de cima, com seus salgueiros, sua igreja
branca e seu riacho, Ukléievo parecia bonita, tranquila, e só os
telhados das fábricas, pintados de cor escura e bruta, por economia,
perturbavam a paisagem. No outro lado, na encosta, aqui e ali,
como que espalhados por um vendaval, viam-se medas e feixes de
centeio, e também o centeio recém-ceifado, caído em fileiras; a
aveia também já estava pronta para a ceifa e reluzia ao sol, num tom
de madrepérola. Era tempo de colheita. Naquele dia, era feriado, no
dia seguinte, sábado, iam recolher o centeio, carregar o feno e,
depois, no domingo, seria feriado também; todos os dias, uma
trovoada ressoava ao longe; o ar ficava abafado, parecia que ia
chover e, agora, ao olharem para o campo, todos se punham a
pensar se Deus lhes daria tempo de colher o cereal, e sentiam-se
alegres, radiantes, e com uma inquietação no espírito.
— Hoje em dia, os ceifeiros cobram caro — disse Praskóvia. —
Um rublo e quarenta por dia!
E não parava de chegar gente da feira de Kazánskoie; mulheres,
operários das fábricas, com bonés novos, pedintes, uma garotada…
Ora passava uma carroça, levantando poeira, atrás corria um cavalo
que não fora vendido na feira e que parecia contente com aquilo,
ora puxavam pelos chifres uma vaca que relutava em andar, ora
passava outra carroça com mujiques bêbados, de pernas
penduradas na borda. Uma velha levava um menino de chapéu e
botas grandes; mesmo esgotado pelo calor e pelas botas, que não
lhe permitiam dobrar os joelhos, o menino, com todas as forças,
não parava de soprar uma corneta de brinquedo; eles já haviam
descido a rua e dobrado a esquina, mas ainda continuavam a ouvir a
corneta.
— Os donos das fábricas daqui andam meio malucos… — disse
Ielizárov. — Que desgraça! O Kostiukóv se aborreceu comigo.
Disse: “Tem muitas ripas nas cornijas”. “Muitas ripas como? Tem
tantas quantas deve ter, Vassíli Danílitch”, respondi. “Eu não como
essas suas ripas com mingau.” E ele: “Como você pode falar assim
comigo? Seu palerma, seu isso e aquilo! Não esqueça! Fui eu que fiz
de você o mestre de obras!”. E eu grito: “Pois quando não era
mestre de obras, eu bebia chá todo dia, do mesmo jeito que agora”.
E ele: “Vocês todos são uns vigaristas…”. Fiquei calado. Neste
mundo, nós somos vigaristas, pensei, mas no outro mundo vocês é
que vão ser os vigaristas. Ho-ho-ho! E, no dia seguinte, ele
amansou. Falou assim: “Não fique zangado comigo por causa das
coisas que eu digo, Makáritch. Se eu exagerei um pouco, ainda
assim, você tem de lembrar que sou um comerciante da primeira
guilda, sou superior a você, e você deve obedecer calado”. E
respondi: “O senhor é comerciante da primeira guilda e eu sou
carpinteiro, e isso é justo. E são José também foi carpinteiro. A
nossa profissão é justa, agradável a Deus, mas, se o senhor faz tanta
questão de ser superior, pois então que faça bom proveito, Vassíli
Danílitch”. Mas depois disso, quer dizer, depois dessa conversa,
fico pensando: Quem é superior? Um comerciante da primeira
guilda ou um carpinteiro? Pois bem, é o carpinteiro, crianças!
O Muleta refletiu um pouco e acrescentou:
— É assim, crianças. Quem trabalha, quem suporta, esse sim é
superior.
O sol já havia se posto e, sobre o rio, no muro da igreja e nos
descampados em torno das fábricas, subia uma neblina espessa,
branca, da cor do leite. Agora, enquanto a escuridão avançava
ligeira, luzes surgiam lá embaixo e parecia que a neblina ocultava
um abismo sem fundo. Lipa e a mãe, que tinham nascido na miséria
e estavam dispostas a viver assim até o fim, entregando para os
outros tudo o que possuíam, exceto suas almas dóceis e assustadas
— Lipa e a mãe, por um minuto, talvez tenham vislumbrado na
imaginação que, neste mundo vasto e misterioso, em meio ao
número infinito de vidas, também elas eram fortes, também elas
eram superiores a alguém; acharam agradável ficar sentadas lá no
alto, sorriam felizes e se esqueceram de que, apesar de tudo, era
preciso descer, ir até lá embaixo.
Enfim, voltaram para casa. Junto ao portão e perto da mercearia,
os ceifeiros estavam sentados no chão. Em geral, as pessoas de
Ukléievo não trabalhavam para Tsibúkin, era preciso contratar
gente de fora e, naquele momento, na penumbra, as pessoas ali
sentadas pareciam ter longas barbas negras. A mercearia estava
aberta e, na porta, se via que o surdo jogava damas com o aprendiz.
Os ceifeiros cantavam baixinho, mal dava para ouvir, ou pediam em
voz alta o pagamento do dia anterior, mas não lhe pagavam para que
não fossem embora antes de completarem mais um dia de trabalho.
Sem sobretudo e de colete, o velho Tsibúkin e Aksínia bebiam chá
junto à varanda, ao pé de uma bétula; havia um lampião aceso sobre
a mesa.
— Vovô-ô-ô! — disse um ceifeiro, por trás do portão, como que
para provocar. — Pague pelo menos a metade! Vovô-ô-ô!
E logo se ouviu uma risada e, depois, mais uma vez, cantaram
baixinho, quase não dava para ouvir… Muleta sentou-se à mesa e
também bebeu chá.
— Sabe, a gente foi à feira — começou a contar. — A gente se
divertiu, crianças, a gente se divertiu bem mesmo, com a graça de
Deus. E aconteceu um caso ruim: o ferreiro Sachka comprou
tabaco e pagou com uma moeda de cinquenta copeques, sabe,
pagou para um comerciante. Só que a moeda era falsa —
prosseguiu Muleta, e olhou em volta; queria falar em sussurros,
mas a voz soava rouca, abafada, e todos podiam ouvir. — Pois é, foi
se ver e a tal moeda era falsa. Perguntaram: Onde pegou? Ele disse:
“Foi o Aníssim Tsibúkin que me deu, quando eu fui me divertir no
casamento dele…”. Chamaram a polícia aos gritos, levaram… Já
pensou no que isso vai dar, Petróvitch, no falatório todo?…
— Vovô-ô-ô! — a mesma voz atrás do portão não parava de
provocar. — Vovô-ô-ô!
Houve um silêncio.
— Ah, crianças, crianças, crianças… — pôs-se a balbuciar ligeiro
o Muleta, e levantou-se; a sonolência o havia dominado. — Muito
bem, obrigado pelo chá e pelo açúcar, crianças. Está na hora de
dormir. Eu já estou carunchoso, minhas vigas de sustentação estão
todas podres. Ho-ho-ho!
Ao sair, disse:
— Já deve estar na hora de morrer!
E soluçou. O velho Tsibúkin não bebeu seu chá até o fim, mas
continuou ali sentado, pensando; pela expressão do rosto, parecia
escutar atentamente os passos do Muleta, que já ia longe pela rua.
— O ferreiro Sachka mentiu, na certa — disse Aksínia,
adivinhando os pensamentos do velho.
Ele foi para casa e, após um breve intervalo, voltou com um
pacote na mão; desembrulhou e os rublos cintilaram, novinhos em
folha. Pegou uma moeda, experimentou entre os dentes, jogou
numa bandeja; em seguida, mais uma…
— Estes rublos são mesmo falsificados… — exclamou, olhando
para Aksínia, com ar perplexo. — São aqueles… que o Aníssim
trouxe, são o presente dele. Minha filha, pegue isto aqui —
sussurrou e enfiou o pacote nas mãos dela. — Pegue isto aqui e
jogue no poço… Para o diabo com elas! E tome cuidado para que
não haja falatório. E que ninguém fique sabendo… Leve o samovar,
apague o lampião…
Sentadas no barracão, Lipa e Praskóvia viram as luzes da casa
serem apagadas, uma a uma; só no primeiro andar, no quarto de
Varvara, reluziam as lamparinas votivas, azuis e vermelhas, e de lá
vinha um sopro de serenidade, satisfação e inocência. Praskóvia não
conseguia, de jeito nenhum, se habituar ao fato de que a filha estava
casada com um rico e, quando a visitava, se mantinha timidamente
encolhida no vestíbulo, sorria com ar de súplica e lhe traziam chá e
açúcar. Lipa também não conseguia se habituar e, desde que o
marido viajou, ela não dormia na sua cama, mas em qualquer outro
lugar — na cozinha, no barracão —, todo dia lavava o chão ou a
roupa e tinha a impressão de ser uma empregada diarista. E agora,
de volta da peregrinação, elas beberam chá na cozinha, junto com a
cozinheira, depois foram para o barracão e se deitaram no chão,
entre um trenó e uma divisória. Ali era escuro, sentia-se o cheiro de
arreios. Em volta da casa, as luzes se apagaram, depois se ouviu o
surdo trancar a mercearia e os ceifeiros se espalharam pelo pátio
para dormir. Longe, na casa dos Khrímini Jovens, tocavam um
acordeão caro… Praskóvia e Lipa começaram a adormecer.
E, quando foram despertadas por um ruído de passos, o luar já
havia clareado a noite; Aksínia estava na entrada do barracão, de pé,
com seu pequeno colchão nas mãos.
— Acho que aqui está mais fresco… — disse, depois entrou e
deitou-se, quase no limiar, e a lua a iluminava inteira.
Aksínia não dormia, tinha a respiração pesada e as roupas
desfeitas por causa do calor, ela havia despido quase tudo — sob a
luz mágica do luar, que animal belo e orgulhoso era aquele! Passou-
se um breve tempo e, mais uma vez, soaram passos: na porta,
surgiu o velho, muito branco.
— Aksínia! — chamou. — Será que você está aí?
— Não amole! — retrucou, zangada.
— Eu falei para você, agora há pouco, para jogar o dinheiro no
poço. Você jogou?
— Onde já se viu, jogar dinheiro na água! Eu dei para os
ceifeiros…
— Ah, meu Deus! — exclamou o velho, com espanto e
assustado. — Que mulher endiabrada… Ah, meu Deus!
Ergueu os braços, saiu e, enquanto caminhava, não parava de
resmungar. Pouco depois, Aksínia se pôs sentada e suspirou fundo,
com irritação, depois se levantou, recolheu entre os braços seu
colchão e foi embora:
— Por que a senhora foi me casar com essas pessoas, mamãe? —
disse Lipa.
— É preciso casar, filhinha. Não depende de nós.
E uma sensação de tristeza inconsolável estava prestes a dominá-
las. Porém tinham a impressão de que alguém olhava das alturas do
céu, do azul, lá onde moram as estrelas, via tudo o que se passava
em Ukléievo e cuidava delas. Por maior que fosse a maldade, a noite
seguia bela e serena e, em todo o mundo de Deus, a verdade existia
e continuaria a existir, também bela e serena, e tudo sobre a terra
apenas aguardava a hora de fundir-se com a verdade, como a luz da
lua se fundia com a noite.
E as duas, tranquilas, apertadas uma contra a outra,
adormeceram.

VI

Já fazia tempo que chegara a notícia de que Aníssim tinha sido


preso por falsificar dinheiro e pôr em circulação moedas falsas.
Passaram os meses, passou mais de meio ano, um longo inverno
ficou para trás, veio a primavera e, na casa e no povoado, já haviam
se habituado à ideia de que Aníssim estava na prisão. E, tarde da
noite, quando alguém passava pela casa de Tsibúkin ou pela
mercearia, lembrava que Aníssim estava na prisão; e quando tocava
o sino do cemitério, por algum motivo, também vinha a lembrança
de que ele estava na prisão e aguardava a sentença da justiça.
Parecia que uma sombra havia caído sobre o pátio. A casa tinha
escurecido, o telhado estava coberto de ferrugem, a porta da
mercearia, pesada, revestida de ferro, pintada de verde, havia
desbotado, ou, como dizia o surdo, “definhou”; o próprio velho
Tsibúkin parecia ter escurecido também. Fazia tempo que não
cortava o cabelo e a barba, estavam compridos demais, ele já não
tomava impulso e pulava para sentar na boleia da carroça e não
gritava mais para os mendigos: “Deus há de prover!”. Suas forças
minguavam e todos percebiam aquilo. As pessoas tinham menos
medo de Tsibúkin e o guarda até deu parte da mercearia, embora,
como antes, continuasse a receber a quantia de praxe; três vezes
chamaram o velho à cidade para depor num processo por venda
clandestina de bebida, mas o processo era sempre adiado, porque
as testemunhas não compareciam, e o velho se atormentava.
Visitava o filho muitas vezes, contratava os serviços de algumas
pessoas, apresentava petições a outras, fazia doações de estandartes
a alguma igreja. Para o encarregado da prisão onde Aníssim estava
preso, Tsibúkin deu de presente um porta-copos de prata, com uma
inscrição, em louça esmaltada: “a alma conhece a medida certa”, e
também uma colherzinha comprida.
— Não há ninguém, ninguém que possa ajudar — dizia Varvara.
— Ai-ai-ai… É preciso apelar a alguém da alta sociedade, escrever
para autoridades importantes… Talvez ele seja solto antes do
julgamento! Para que torturar o rapaz desse jeito?
Também ela estava amargurada, engordou e empalideceu; como
antes, acendia as lamparinas do seu quarto e cuidava para que tudo
em casa se mantivesse limpo, oferecia às visitas geleia e pastilá[92]
de maçã. O surdo e Aksínia cuidavam das vendas na mercearia.
Deram início a um novo negócio, a fábrica de tijolos em Butiókino,
e Aksínia ia para lá de charrete quase todos os dias; ela mesma
guiava os cavalos e, ao encontrar conhecidos no caminho, esticava
o pescoço, como uma serpente no meio do centeio novo, e sorria
com ar ingênuo e enigmático. Lipa vivia brincando com seu bebê,
que nascera antes da Quaresma. Era um bebezinho miúdo,
esquálido, chegava a dar pena, e era até estranho que ele gritasse,
olhasse, e que o considerassem uma pessoa e o chamassem de
Nikífor. Ele ficava deitado em seu berço, Lipa se afastava até a porta
e dizia para ele, curvando-se numa reverência:
— Bom dia, Nikífor Aníssimitch!
Corria para ele a toda pressa e o beijava. Depois, se afastava até a
porta, curvava-se numa reverência e, de novo:
— Bom dia, Nikífor Aníssimitch!
O bebê espichava as perninhas vermelhas e o choro se misturava
com o riso, como acontecia com o carpinteiro Ielizárov.
Por fim, marcaram a data do julgamento. O velho partiu com
cinco dias de antecedência. Mais tarde, correu a notícia de que
despacharam uns mujiques do povoado, convocados como
testemunhas, bem como um velho operário, que também recebera
uma intimação.
O julgamento tinha sido na quinta-feira. Entretanto, o domingo
já ficara para trás e o velho não voltava nem chegava nenhuma
notícia. Na terça-feira, antes do anoitecer, Varvara estava sentada
diante de uma janela aberta, atenta a qualquer sinal do regresso do
velho. No quarto vizinho, Lipa brincava com seu bebê. Ela o fazia
saltar em seus braços e falava, com enlevo:
— Você vai crescer, ficar gra-a-ande, grande! Vai ser um muji-i-
ique, e nós vamos juntos trabalhar na roça! Vamos trabalhar na
roça!
— Ora essa! — Varvara se mostrava ofendida. — Como ainda
pode pensar em trabalhar na roça, bobinha? Em nossa casa, ele vai
ser comerciante!…
Lipa cantarolava baixinho, mas, pouco depois, já esquecia e, de
novo:
— Você vai ficar gra-a-ande, grande, vai ser muji-i-que, e vamos
juntos trabalhar na roça!
— Ora essa! Começou de novo a mesma ladainha!
Lipa se deteve na porta, com Nikífor nos braços, e perguntou:
— Mãezinha, por que é que eu amo tanto o Nikífor? Por que é
que tenho tanta pena dele? — prosseguiu, com voz arrastada, e
seus olhos rebrilharam de lágrimas. — Quem é ele? Como é ele? É
leve que nem uma pena, é uma migalhinha de nada, mas eu amo o
Nikífor, e amo como se fosse uma pessoa de verdade. Olhe, ele não
consegue fazer nada, não fala, mas eu entendo tudo que ele quer só
pelos olhinhos.
Varvara apurou os ouvidos: era o barulho das rodas do trem
noturno que chegava à estação. Teria o velho retornado? Agora,
Varvara não escutava nem entendia o que Lipa estava dizendo, não
se dava conta do tempo que passava, apenas tremia inteira, e não
era de medo, mas por causa da forte curiosidade. Viu uma carroça
rolando pela estrada, ligeira, com estrondo, cheia de mujiques.
Eram as testemunhas de volta da estação. Ao passar pela mercearia,
o velho operário saltou da carroça e correu para o pátio. De lá, deu
para ouvir que o cumprimentavam e faziam perguntas…
— Privação dos direitos e confisco de todos os bens — falou em
voz alta. — E vai para a Sibéria, seis anos de trabalhos forçados.
Viram que Aksínia estava saindo da mercearia pela porta de
serviço; tinha acabado de vender querosene, segurava uma garrafa
numa das mãos, um funil na outra e, na boca, entre os lábios, trazia
presa uma moeda de prata.
— E o papai, onde está? — perguntou ela, falando num
sussurro.
— Na estação — respondeu o operário. — Ele disse: “Eu já
estou indo, vou esperar só um pouquinho”.
E, quando se espalhou pela casa a notícia de que Aníssim tinha
sido condenado aos trabalhos forçados, de repente, a cozinheira
desatou a chorar aos berros na cozinha, como se alguém tivesse
morrido, achando que as boas maneiras o exigiam:
— Como foi nos abandonar agora, Aníssim Grigóritch,
falcãozinho precioso…
Os cães começaram a latir, alvoroçados. Varvara correu até a
janelinha e, dominada pela angústia, se pôs a gritar para a
cozinheira, forçando a voz ao máximo:
— Che-e-ega, Stiepanida, che-e-ega! Não nos torture, pelo amor
de Cristo!
Esqueceram-se de preparar o samovar, já não sabiam mais em
que pensar. Só Lipa não conseguia entender do que se tratava e
continuava a paparicar o bebê.
Quando o velho chegou da estação, já não lhe perguntaram coisa
alguma. Ele fez um gesto de cumprimento, depois percorreu todos
os cômodos da casa, em silêncio; não jantou.
— Não havia ninguém para interceder por ele… — começou
Varvara, quando os dois ficaram a sós. — Eu disse para apelar a
alguém da alta sociedade, mas ninguém me deu atenção, na hora…
Deviam apresentar uma petição…
— Mas eu intercedi por ele! — disse o velho e ergueu a mão. —
Assim que condenaram o Aníssim, eu procurei aquele senhor
importante que o defendeu no tribunal. Ele disse: “Não adianta,
agora é tarde, é impossível”. E o próprio Aníssim também disse: “É
tarde”. Mesmo assim, quando saí do tribunal, fiz um acordo com
um advogado, lhe dei até um adiantamento…Vou ficar aqui mais
uma semana e depois vou viajar de novo para lá. Seja o que Deus
quiser.
Mais uma vez, em silêncio, o velho percorreu todos os cômodos
e, quando voltou para o quarto de Varvara, disse:
— Eu devo estar doente. Minha cabeça… fica turva. Os
pensamentos se misturam.
Trancou a porta para que Lipa não ouvisse e prosseguiu, em voz
baixa:
— Ando preocupado com o dinheiro. Lembra, antes do
casamento, no domingo depois da Páscoa,[93] o Aníssim me trouxe
moedas de um rublo e de cinquenta copeques novinhas, não foi?
Pois eu separei umas moedas e escondi num pacotinho, mas o resto
eu misturei com o meu dinheiro… Há muito tempo, tive um tio,
Dmítri Filátitch, que Deus o tenha, ele vivia viajando para Moscou
e para a Crimeia atrás de mercadorias para vender. Ele tinha uma
esposa e, enquanto ele viajava atrás de mercadorias, ela se divertia à
vontade com outros homens. Teve seis filhos. E acontece que,
quando meu tio bebia demais, dizia, dando risadas: “Eu nunca vou
conseguir saber quem é meu filho e quem é filho dos outros”. Pois
é, era um homem sem maldade. E agora eu também não consigo
saber quais são as minhas moedas, as verdadeiras, e quais são as
moedas falsas. E então parece que todas são falsas.
— Ai, que Deus nos ajude!
— Vou à estação comprar a passagem, dou três rublos e fico
pensando se não são falsos. E me dá medo. Eu devo estar doente.
— O que se pode fazer, estamos todos nas mãos de Deus… Ai-
ai-ai… — disse Varvara, e balançou a cabeça. — Temos de pensar
bem nisso, Petróvitch… Qualquer dia, acontece alguma coisa, e
você já não é jovem. Se você morrer, quem sabe, sem você, é capaz
de fazerem mal ao seu neto. Ah, eu tenho medo de que façam mal
ao Nikífor, que o deixem sem nada! Pense bem, o pai já está
ausente, a mãe é muito novinha, tola… Passe para o nome dele,
desse menino, alguma terra pelo menos, a terra de Butiókino, por
exemplo. Sim, Petróvitch, isso mesmo! Pense bem! — Varvara
continuou, tentando persuadir. — É um menino tão bonitinho, dá
pena! Olhe, vá lá amanhã mesmo e registre um documento. Para
que esperar?
— Eu até me esqueci do meu neto… — disse Tsibúkin. —
Tenho de ir cumprimentá-lo. Mas você está dizendo que o menino
é bonzinho? Pois que ele cresça e fique bem. Que Deus o proteja!
Abriu a porta e, com o dedo curvado, chamou Lipa para si. Ela se
aproximou, com o bebê nos braços.
— Lípinka, se precisar de alguma coisa, é só pedir — disse ele.
— O que quiser comer, pode comer, nós não vamos reclamar, o
que importa é que tenha saúde… — Fez o sinal da cruz para o bebê.
— E cuide bem do meu netinho. O filho não está mais aqui, só
restou o neto.
Lágrimas desceram pelo rosto; entre soluços, ele se afastou.
Pouco depois, deitou-se e ferrou no sono, após sete noites sem
dormir direito.

VII
O velho foi à cidade e voltou pouco depois. Alguém contou para
Aksínia que ele tinha ido ao cartório a fim de redigir um
testamento, e que Butiókino, aquela mesma propriedade onde ela
cozia tijolos, seria herdada pelo neto Nikífor. Foi o que lhe
comunicaram pela manhã, quando o velho e Varvara estavam
sentados junto à varanda, debaixo de uma bétula, e tomavam chá.
Aksínia trancou a mercearia, tanto a porta da rua como a dos
fundos, reuniu todas as chaves que estavam com ela e atirou-as aos
pés do velho.
— Eu não vou mais trabalhar para vocês! — gritou bem alto, e,
de repente, desatou a chorar. — A verdade é que na casa de vocês
eu não sou uma nora, mas uma empregada! Todo mundo zomba, e
vivem dizendo: “Olhem só que empregada os Tsibúkin
arranjaram!”. Mas não vim aqui para prestar serviços! Eu não sou
mendiga, não sou nenhuma vagabunda, tenho pai e mãe.
Sem enxugar as lágrimas, ela cravou no velho os olhos
rancorosos, vesgos de raiva, banhados de lágrimas; tinha o rosto e o
pescoço vermelhos e tensos, pois estava gritando com todas as
forças.
— Não quero mais servir ninguém aqui! — prosseguiu. — Eu
me matei de trabalhar! Trabalhar, trabalhar, ficar todo santo dia
nesta mercearia, correr para lá e para cá de madrugada atrás de
vodca, isso fica para mim, mas quando se trata de dar a terra, aí fica
tudo para a mulher do condenado aos trabalhos forçados e para o
seu capetinha! Lá, ela é a dona, a patroa, e eu sou a empregada! Dá
logo tudo para ela, dá de uma vez, para essa mulher de presidiário,
quero que ela se entale com a sua terra, eu vou para minha casa!
Encontre outra palerma para o meu lugar, seus carrascos
desgraçados!
Em toda sua vida, o velho nunca havia insultado nem castigado
os filhos e nem sequer em pensamento admitia que alguém da
família pudesse lhe dizer grosserias ou faltar com o respeito;
naquele momento, ele ficou muito assustado, correu para dentro de
casa e escondeu-se atrás de um armário. Varvara estava tão perplexa
que nem conseguia se levantar, limitava-se a abanar as mãos no ar,
como se quisesse defender-se de abelhas.
— Ai, mas o que é isso, meu Deus? — balbuciava, horrorizada.
— O que é isso que ela está gritando? Ai-ai-ai… O povo vai ouvir!
Fale mais baixo… Ai, fale mais baixo!
— Já deram Butiókino para a mulher do condenado aos trabalhos
forçados — continuou a gritar Aksínia. — Agora, podem dar tudo
para ela: de vocês, eu não preciso de nada! Por mim, quero que se
danem! Todos aqui são da mesma corja! Já cansei de tudo isso, para
mim chega! Espoliaram todo mundo, a pé ou a cavalo, velhos ou
jovens, roubaram todo mundo, são uns bandidos! E quem é que
vendia vodca sem licença? E o dinheiro falso? Entupiram os cofres
de dinheiro falso e agora já não precisam mais de mim!
Perto dos portões escancarados, a multidão já havia se
aglomerado e olhava para dentro.
— Pois que todo mundo escute! — gritou Aksínia. — Eu vou
mesmo cobrir vocês de vergonha! Quero mais é que vocês
queimem até as cinzas de tanta vergonha! Vocês ainda vão ter de se
jogar aos meus pés! Ei, Stiepan! — Chamou o surdo. — Vamos para
casa agora mesmo! Vamos para a casa do meu pai e da minha mãe,
porque não quero morar com gente condenada à prisão! Pegue suas
coisas!
No pátio, as roupas brancas estavam penduradas nos varais;
Aksínia foi arrancando dali suas saias e blusinhas, ainda molhadas, e
jogando tudo nos braços do surdo. Depois, enfurecida, desvairou a
correr pelo pátio, em volta da roupa branca, arrancou todas as
roupas dos varais e, o que não era seu, ela atirava no chão e
pisoteava.
— Ai, pelo amor de Deus, sosseguem essa mulher! — gemia
Varvara. — O que deu nela? Deem logo Butiókino para ela, deem
essa terra de uma vez, pelo amor de Cristo no Céu!
— Puxa, que mulhe-e-er! — diziam no portão. — Olhem só, que
mulhe-e-er! Está mesmo possessa!
Aksínia correu para a cozinha, onde era hora de lavar roupa. Lipa
cuidava sozinha do trabalho, enquanto a cozinheira tinha ido ao rio
para enxaguar a roupa branca. Junto ao fogão, o vapor subia da tina
e do caldeirão, a cozinha estava abafada e turva de fumaça. No chão,
ainda havia um monte de roupa branca para ser lavada e, bem perto,
deitado sobre um banco, espichando as perninhas vermelhas,
estava Nikífor, de modo que, se caísse, não iria se machucar. Lipa
tinha acabado de retirar do monte de roupa suja uma blusinha de
Aksínia e colocado dentro da tina e, exatamente na hora em que ela
entrou, estava estendendo a mão para pegar, sobre a mesa, uma
vasilha com água fervente…
— Me devolva isso aqui! — gritou Aksínia, olhando com ódio
para Lipa, e arrancou a blusinha da tina. — Nem pense em tocar
suas mãos na minha roupa branca! Você é a mulher de um
presidiário e precisa saber qual é o seu lugar, quem você é!
Lipa olhava para ela, espantada, sem compreender, mas, de
repente, captou o olhar que Aksínia lançava sobre o bebê e, de
súbito, compreendeu, e gelou de pavor…
— Você tomou a minha terra, então olhe o que eu vou lhe dar!
Dito isso, Aksínia agarrou a vasilha com água fervente e
despejou em cima de Nikífor.
Em seguida, ouviu-se um grito como jamais se ouvira em
Ukléievo e ninguém acreditou que uma criatura miúda e frágil
como Lipa pudesse gritar assim. E, de repente, o pátio ficou em
silêncio. Aksínia entrou na casa, calada, com seu sorriso ingênuo de
antes… O surdo andava para lá e para cá pelo pátio, carregando nos
braços um monte de roupa branca, e depois, calado, sem pressa,
começou a pendurar de novo a roupa nos varais. E, até a cozinheira
voltar do rio, ninguém se atreveu a entrar na cozinha e ver o que
havia acontecido.

VIII

Levaram Nikífor ao hospital do ziémstvo e, à noite, ele morreu lá


mesmo. Lipa não esperou que viessem chamá-la, enrolou o defunto
num cobertor e levou para casa.
O hospital era novo, recém-construído, com janelas grandes,
erguido no alto de um morro; ao sol poente, o prédio rebrilhava
inteiro e parecia incendiar-se por dentro. Embaixo, havia um
vilarejo. Lipa desceu pela estrada e, antes de chegar ao vilarejo,
sentou-se junto a um pequeno poço. Uma mulher trouxe um cavalo
para beber água, mas o cavalo não bebeu.
— O que mais você quer? — disse a mulher, baixinho, para o
cavalo, sem compreender. — O que você tem?
Um menino de camisa vermelha, sentado à beira da água, lavava
as botas do pai. Além deles, não se via pessoa alguma, nem no
vilarejo nem no morro.
— Não está bebendo… — disse Lipa, olhando para o cavalo.
Mas a mulher do cavalo e o menino das botas foram embora e,
agora, já não se via mais ninguém. O sol deitou-se para dormir,
cobriu-se com um brocado, púrpura e dourado, e nuvens
compridas, vermelhas e lilases, que se estendiam pelo céu, velavam
seu repouso. Em algum lugar distante, não se sabia onde, um
abetouro berrou de modo surdo e melancólico, e parecia uma vaca
trancada no estábulo. O grito daquela ave misteriosa era ouvido a
cada primavera, porém não sabiam como ela era nem onde vivia.
Acima, no hospital, nos arbustos junto ao poço, do outro lado do
vilarejo e nos campos ao redor, os rouxinóis cantavam em profusão.
Um cuco ia contando os anos de vida de alguém, mas sempre
perdia a conta e recomeçava, mais uma vez. No poço, as rãs se
interpelavam umas às outras, irritadas e aos berros, e até se podia
distinguir as palavras: “Você é assim! Você é assim!”. Que algazarra!
Parecia que todas aquelas criaturas gritavam e cantavam de
propósito, para ninguém dormir naquela noite de primavera, e
também para todos, até as rãs irritadas, valorizarem e desfrutarem
cada minuto: pois a vida só é dada uma vez!
No céu, brilhava a meia-lua prateada, havia estrelas em grande
número. Lipa não sabia quanto tempo ficara junto ao poço, no
entanto, quando levantou e se pôs a caminhar, todos no vilarejo já
estavam dormindo e não havia nenhuma luz. Até sua casa, eram
talvez doze verstas, mas Lipa não tinha forças, perdera a noção do
caminho a seguir; a lua brilhava ora na sua frente, ora à direita, e o
mesmo cuco não parava de gritar, já com voz rouca, entre risos,
como se quisesse provocar: “Ai, olhe só, você perdeu o caminho!”.
Lipa caminhava depressa, seu lenço de cabeça caiu e se perdeu…
Lipa olhou para o céu e pensou onde estaria, agora, a alma de seu
menino: será que vinha atrás dela ou pairava lá no alto, perto das
estrelas, e nem pensava mais na sua mãe? Ah, como é solitária a
noite no campo, em meio à cantoria dos bichos, quando você
mesmo não pode cantar, em meio aos incessantes gritos de alegria,
quando você mesmo não pode se alegrar, enquanto a lua, também
sozinha, olha do céu, sem se importar se é primavera ou inverno,
ou se as pessoas estão vivas ou mortas… Com um desgosto na
alma, é penoso não ter ninguém perto. Quem dera Lipa tivesse a
seu lado a mãe, Praskóvia, ou o Muleta, ou a cozinheira, ou
qualquer mujique!
— Bu-u! — gritava o abetouro. — Bu-u!
De repente, ouviu-se com nitidez a voz de uma pessoa!
— Ponha os arreios, Vavila!
À frente, na beira da estrada, ardia uma fogueira; já não havia
chamas, só as brasas vermelhas brilhavam. Ouvia-se a mastigação
dos cavalos. Na escuridão, se destacavam duas carroças — uma
com um tonel, a outra, mais baixa, com sacos, e também dois
homens: um trazia um cavalo para atrelar e o outro de pé, imóvel,
junto à fogueira, com as mãos cruzadas nas costas. Um cachorro
começou a rosnar perto das carroças. O homem que estava
trazendo o cavalo parou e disse:
— Parece que vem alguém pela estrada.
— Chárik, cale a boca! — gritou o outro para o cachorro.
E, pela voz, dava para perceber que era um velho. Lipa se deteve
e falou:
— Que Deus os proteja!
O velho se aproximou e respondeu, sem demora:
— Boa noite!
— O seu cachorro não vai me morder, vovô?
— Não se preocupe, pode vir. Ele não vai fazer nada.
— Eu estou vindo do hospital — disse Lipa, depois de um breve
silêncio. — O meu filhinho morreu lá. Olhe, eu estou levando para
casa.
O velho não deve ter gostado de ouvir aquilo, pois se afastou e
exclamou, com pressa:
— Não há de ser nada, menina. É a vontade de Deus. Mexa-se,
rapaz! — disse, voltando-se para seu companheiro de viagem. —
Não faça corpo mole.
— É que não estou achando a coelheira para prender nos
tirantes — disse o rapaz. — Não estou vendo.
— Preste mais atenção, Vavila.
O velho levantou um tição em brasa, soprou — só os olhos e o
nariz se iluminaram; depois, quando acharam a coelheira, ele se
aproximou de Lipa, com o tição aceso na mão, e olhou bem para
ela; o olhar do velho exprimia compaixão e ternura.
— Você é mãe — disse. — Toda mãe tem pena dos filhos.
Ao dizer aquilo, suspirou e balançou a cabeça. Vavila despejou
algo no fogo, pisou para abafar as brasas e logo ficou tudo escuro;
aquela imagem desapareceu e agora, como antes, só havia o campo,
o céu com as estrelas e o alarido dos pássaros, que não deixava que
os próprios pássaros dormissem. Uma codorniz pareceu gritar
exatamente onde estava a fogueira.
Entretanto, passou um minuto e, de novo, já era possível ver as
carroças, o velho e o alto Vavila. Os carroções rangeram ao
tomarem a estrada.
— Vocês são santos? — perguntou Lipa para o velho.
— Não. A gente é de Firsánovo.
— Agora há pouco, você olhou para mim e meu coração ficou
mais leve. E o rapaz é calmo. Aí, eu pensei: eles devem ser santos.
— Você vai para longe?
— Para Ukléievo.
— Sente aqui, levamos você até Kuzmiénki. De lá, você segue
reto, e nós vamos para a esquerda.
Vavila sentou-se na carroça com o tonel, o velho e Lipa, na outra.
Avançaram a passo lento, Vavila na frente.
— O meu filhinho sofreu o dia todo — disse Lipa. — Ficava
olhando com seus olhinhos sem dizer nada, queria falar e não
conseguia. Deus Pai, Rainha do Céu! De tanto sofrimento, eu caía
no chão toda hora. Eu me levantava e caía de novo, bem do lado da
cama. Mas me diga, vovô, por que o pequenininho teve de sofrer
antes de morrer? Quando uma pessoa grande, uma mulher ou um
mujique, sofre assim, expia os seus pecados, mas por que com um
menininho, se ele não tem pecado nenhum? Por quê?
— Quem vai saber? — respondeu o velho.
E seguiram meia hora em silêncio.
— Não se pode saber tudo, por que e como — disse o velho. —
Não deram quatro asas para os pássaros, mas duas, porque com
duas já é possível voar; assim, também, não deram ao ser humano a
capacidade de saber tudo, só metade ou um quarto. Ele sabe tanto
quanto precisa saber para tocar sua vida.
— Vovô, para mim, é melhor ir a pé. Agora, o meu coração está
tremendo.
— Isso não é nada, fique aí.
O velho bocejou e fez o sinal da cruz sobre a boca.
— Não é nada… — repetiu. — Sua dor vai ser meia dor. A vida é
longa, ainda vão acontecer coisas boas e coisas ruins, vai acontecer
de tudo. A Mãe Rússia é grande! — disse ele, e olhou para os dois
lados. — Eu já andei por toda a Rússia e, nela, já vi de tudo,
acredite na minha palavra, minha cara. Vão acontecer coisas boas e
coisas ruins. Fui a pé até a Sibéria, andei pelo Amur e no Altai,
emigrei para a Sibéria e lá cultivei a terra, depois senti saudades da
Mãe Rússia e voltei para o meu povoado natal. E eu viajei a pé para
a Rússia; lembro que estávamos numa balsa, eu era só pele e osso
de tão magro, todo esfarrapado, descalço, morrendo de frio,
chupava uma casca de árvore para me alimentar, aí um senhor
qualquer que viajava na mesma balsa, e se ele morreu, que Deus o
tenha no Reino dos Céus, aquele senhor olhou para mim com pena
e suas lágrimas correram. Disse: “Ah, o seu pão é escuro, os seus
dias são escuros…”. Quando cheguei em casa, como se diz, eu não
tinha onde cair morto; minha mulher tinha ficado na Sibéria, onde
foi enterrada. Agora, sou lavrador. E o que é que tem? Pois vou
dizer para você: depois, aconteceram coisas ruins e coisas boas.
Olhe, eu não tenho vontade de morrer, minha cara, eu viveria bem
mais uns vinte aninhos; isso quer dizer que houve mais coisas boas.
É grande a Mãe Rússia! — disse e, de novo, olhou para os lados e
também para trás.
— Vovô — perguntou Lipa —, quando uma pessoa morre, por
quantos dias sua alma ainda fica vagando pela terra?
— Ah, quem vai saber? Olhe, vamos perguntar ao Vavila: ele foi
à escola. Agora, todo mundo estuda. Vavila! — o velho chamou.
— Ah?
— Vavila, quando uma pessoa morre, por quantos dias sua alma
anda pela terra?
Vavila deteve o cavalo e, então, respondeu:
— Nove dias. Mas o meu tio Kiril morreu e, depois, sua alma
viveu na nossa isbá por treze dias.
— Como você sabe?
— A gente ouvia umas batidas dentro da estufa por treze dias.
— Sei, está certo. Toca em frente — disse o velho, e era
evidente que ele não acreditava em nada daquilo.
Perto de Kuzmiénki, as carroças entraram na estrada principal,
mas Lipa seguiu em frente. Já estava clareando. Quando ela
começou a descer para o fundo do barranco, as isbás de Ukléievo e
a igreja estavam ocultas pela neblina. Fazia frio e Lipa tinha a
impressão de que o mesmo cuco de antes não parava de gritar.
Quando ela chegou a sua casa, o gado ainda não tinha sido
levado para o pasto; todos dormiam. Lipa sentou-se na varanda e
ficou esperando. O primeiro a sair foi o velho; bastou um olhar de
relance para ele compreender o que havia ocorrido e, por muito
tempo, não conseguiu pronunciar nenhuma palavra, apenas
estalava os lábios.
— Ah, Lipa — disse. — Você não protegeu o meu netinho…
Foram acordar Varvara. Ela ergueu os braços, desfez-se em
soluços e logo tratou de preparar o bebê para o enterro.
— Esse menino era tão bonzinho… — dizia. — Ai-ai-ai… Era só
um filhinho e a bobinha não protegeu…
Celebraram missas fúnebres de manhã e à noite. No dia
seguinte, o enterraram e, depois do enterro, os convidados e o
pessoal do clero comeram muito e com tamanha avidez que parecia
terem ficado muito tempo com fome. Atrás da mesa, Lipa servia as
pessoas, e o padre, erguendo seu garfo, com um cogumelo em
conserva espetado, lhe disse:
— Não sofra por uma criança. Delas será o Reino dos Céus.
Só depois que todos foram embora, Lipa tomou consciência, a
sério, de que Nikífor já não existia, nunca mais existiria, ela se deu
conta disso e começou a chorar. Também não sabia a qual dos
quartos devia ir para chorar, pois tinha a sensação de que, naquela
casa, depois da morte do menino, já não havia lugar para ela, sua
presença ali não tinha razão de ser, ela era supérflua; e os outros
também tinham a mesma sensação.
— Puxa, que choradeira é essa, aí? — berrou Aksínia,
aparecendo na porta, de repente. Ela vestira roupas novas e pusera
pó de arroz, para o enterro. — Cale essa boca!
Lipa queria parar, mas não conseguia e soluçava cada vez mais
forte.
— Não está ouvindo? — gritou Aksínia e, com forte raiva, bateu
o pé no chão. — Com quem você acha que estou falando? Fora
daqui, suma desta casa, e que seus pés nunca mais pisem aqui, sua
mulher de forçado! Fora!
— Vamos, vamos, vamos!… — interveio o velho, atarantado. —
Aksiuta, se aquiete, mãezinha… Ela está chorando, é natural… o
filho morreu…
— É natural… — Aksínia arremedou o velho. — Então ela pode
passar a noite aqui, mas amanhã eu não quero ver nem sombra dela
nesta casa! É natural!… — arremedou mais uma vez e, às
gargalhadas, seguiu para a mercearia.
No dia seguinte, de manhã cedo, Lipa foi morar na casa da mãe,
em Torgúievo.

IX

Hoje, o telhado e a porta da mercearia estão pintados, brilham


como novos; nas janelas, florescem alegres os gerânios, como no
passado, e aquilo que ocorreu três anos antes, na casa e no pátio de
Tsibúkin, já foi quase de todo esquecido.
Como naquele tempo, o velho Grigóri Tsibúkin é tido como o
dono da casa, mas na verdade tudo passou para as mãos de Aksínia;
é ela quem compra e vende e, sem sua aprovação, não se pode fazer
nada. A fábrica de tijolos vai de vento em popa; como a estrada de
ferro precisa de tijolos, o preço do milheiro alcançou vinte e quatro
rublos; mulheres e mocinhas do campo levam os tijolos até a
estação, carregam os vagões e, por esse trabalho, recebem um
quarto de rublo por dia.
Aksínia tornou-se sócia dos Khrímini e, agora, sua fábrica se
chama Khrímini Jovens e Companhia. Perto da estação, abriram
uma taverna e já não é na fábrica que tocam o acordeão caro, mas
sim na taverna, e quem aparece lá, muitas vezes, é o chefe dos
correios, que também montou para si um comércio qualquer, bem
como o chefe da estação. Os Khrímini Jovens deram um relógio de
ouro de presente para o surdo Stiepan e, volta e meia, ele tira o
relógio do bolso e encosta no ouvido.
No povoado, dizem que Aksínia adquiriu uma força enorme; e,
de fato, quando vai de manhã para a sua fábrica, bela, feliz, com seu
sorriso ingênuo, e depois, enquanto administra os negócios da
fábrica, ela sente dentro de si uma força enorme. Em casa, no
povoado, na fábrica, todos a temem. Quando Aksínia vai aos
correios, o chefe da agência se levanta de um pulo e lhe diz:
— Peço humildemente que a senhora sente aqui, Ksênia[94]
Abrámovna!
Um elegante senhor de terra, já de certa idade, numa
sobrecasaca de feltro fino e botas de verniz e cano alto, certo dia, ao
vender um cavalo para Aksínia, se deixou arrebatar a tal ponto por
aquela mulher que concedeu todos os descontos que ela desejava.
Ficou segurando sua mão por muito tempo e, enquanto mirava seus
olhos alegres, sagazes e ingênuos, disse:
— Para uma mulher como a senhora, Aksínia Abrámovna, eu
estou pronto a atender todos os desejos. Basta dizer quando
poderemos nos encontrar, sem que ninguém nos perturbe.
— Ora, quando o senhor desejar!
E, depois disso, o velho elegante passa pela mercearia quase
todos os dias para beber cerveja. A cerveja é horrível, amarga como
absinto. O senhor de terra sacode a cabeça, mas, mesmo assim,
bebe.
O velho Tsibúkin não se mete mais nos negócios. Não mexe com
dinheiro, pois é incapaz de distinguir o verdadeiro do falso, mas se
mantém calado, não fala com ninguém sobre a sua fraqueza.
Tornou-se um tanto esquecido e, se não lhe derem comida, ele
mesmo não pede; já se acostumaram a almoçar sem ele e, muitas
vezes, Varvara diz:
— Ontem, de novo, o nosso velho foi dormir sem comer.
Fala com indiferença, pois já se habituou. Tanto no inverno
como no verão, sabe-se lá por quê, o velho Tsibúkin anda pela rua
sempre de casaco de pele e só em dias muito calorentos fica em
casa, não sai. Em geral bem agasalhado, de casaco de pele e com a
gola levantada, ele passeia pelo povoado, pela estrada que vai até a
estação, ou fica sentado num banquinho perto do portão da igreja,
da manhã até o anoitecer. Senta-se ali e não se mexe. As pessoas
passam e o cumprimentam com uma reverência, mas ele não
responde, pois, como antes, não gosta de mujiques. Quando lhe
fazem alguma pergunta, responde de maneira sensata e educada,
mas muito sucinta.
No povoado, correm rumores de que a nora o expulsou da
própria casa, não lhe dá o que comer, e que o velho só se alimenta
graças à caridade de outras pessoas; alguns ficam contentes, outros
sentem pena.
Varvara engordou e empalideceu ainda mais e, como antes,
pratica boas ações, porém Aksínia não a perturba. Agora, há tanta
geleia em casa que nem dá tempo de comer tudo antes da nova
safra de frutas; o doce açucara nos potes e Varvara quase chora, sem
saber o que fazer com ele.
Quanto a Aníssim, começaram a esquecê-lo. Um dia, chegou
uma carta sua, escrita em versos, com a mesma caligrafia magnífica
de antes, numa folha de papel grande, do tipo usado para
apresentar petições. Pelo visto, seu amigo Samoródov estava
cumprindo pena junto com ele. Abaixo dos versos, em letras feias,
quase ilegíveis, vinha escrita uma linhazinha só: “Vivo sempre
doente, passo muitas dificuldades, me ajudem, pelo amor de
Cristo”.
Certa vez — foi num claro dia de outono, antes de anoitecer —,
o velho Tsibúkin sentou-se perto do portão da igreja, com a gola do
casaco levantada, e só se via seu nariz e a pala do boné. Na outra
extremidade do banco, muito comprido, sentaram o mestre de
obras Ielizárov e, a seu lado, o inspetor escolar Iákov, velho de
setenta anos, sem dentes. Muleta e o velho estavam conversando.
— Os filhos têm de dar de comer aos velhos, e dar de beber
também… têm de respeitar pai e mãe — disse Iákov, com irritação.
— Mas ela, a tal nora, expulsou o sogro da casa que é dele. Não dá
de comer ao velho, nem dá de beber… Para onde ele pode ir? Faz
três dias que não come.
— Três dias! — espantou-se Muleta.
— Olhe, ele fica ali sentado, sem falar nada. Está fraco. E por
que não fala nada? É melhor dar logo queixa na justiça… no
tribunal, não vão fazer elogios para ela.
— Quem foi que elogiaram no tribunal? — perguntou Muleta,
que não tinha ouvido bem.
— O quê?
— A mulher é boa, é esforçada. No ramo deles, sem isso, não se
consegue nada… quero dizer, sem pecado…
— Da sua própria casa — prosseguiu Iákov, irritado. —
O sujeito consegue levantar sua casa e depois vem alguém e
expulsa. Puxa, que peste me saiu essa mulher! Já pensou? Que
peste!
Tsibúkin estava ouvindo e não se mexeu.
— Na sua própria casa ou na casa dos outros, tanto faz, contanto
que esteja aquecido e que a mulherada não fique brigando… —
disse Muleta, e riu. — Quando eu era moço, tinha muita pena da
minha Nastássia. Era uma mocinha sossegada. E vivia me dizendo:
“Compre uma casa, Makáritch! Compre uma casa, Makáritch!
Compre um cavalo, Makáritch!”. Quando ela estava morrendo,
sempre me dizia: “Compre uma charrete ligeira, Makáritch, para
não ter de andar a pé”. E eu só comprava pães de mel para ela, mais
nada.
— O marido é surdo, um abobalhado — continuou Iákov, sem
ouvir as palavras de Muleta. — Um palerma dos pés à cabeça, que
nem um ganso. Como é que ele não consegue entender nada? Com
um ganso, mesmo que a gente dê uma paulada na cabeça, nem
assim ele vai entender.
Muleta levantou-se a fim de ir para casa, que ficava dentro da
fábrica. Iákov também se levantou e os dois seguiram juntos,
enquanto continuavam a conversa. Quando tinham se afastado uns
quinze passos, o velho Tsibúkin também se levantou e foi
arrastando os pés atrás deles, pisava hesitante, como se andasse
sobre gelo escorregadio.
O povoado já mergulhava no crepúsculo do fim do dia e o sol
apenas brilhava logo acima da estrada, que fugia serpenteante,
subindo pela encosta. As velhas estavam retornando da mata e, com
elas, vinha uma criançada; traziam cestos com cogumelos.
Mulheres e mocinhas, em bando, voltavam da estação onde haviam
carregado vagões com tijolos, tinham os narizes e as faces, abaixo
dos olhos, cobertos de pó vermelho de tijolo. Vinham cantando.
Lipa caminhava à frente de todas, cantava com voz aguda, a plenos
pulmões, olhando para o céu, e parecia triunfante e maravilhada,
porque o dia, graças a Deus, havia terminado e ela podia descansar.
Naquele bando, estava sua mãe, a diarista Praskóvia, que caminhava
com uma trouxinha na mão, ofegante, como sempre.
— Boa tarde, Makáritch! — disse Lipa, ao ver Muleta. — Boa
tarde, meu caro!
— Boa tarde, Lípinka! — alegrou-se Muleta. — Mocinhas,
florezinhas, amem este rico carpinteiro! Ho-ho-ho! Minhas
crianças, criancinhas — Muleta soluçou. — Minhas machadinhas
adoradas.
Muleta e Iákov seguiram em frente e se ouvia a conversa dos
dois. Mais adiante, o bando deparou com o velho Tsibúkin e, de
repente, se fez um silêncio. Lipa e Praskóvia ficaram um pouco para
trás e, quando o velho chegou aonde elas estavam, Lipa curvou-se
bastante, numa reverência, e disse:
— Boa tarde, Grigóri Petróvitch!
A mãe também se curvou numa reverência. O velho se deteve e,
sem falar nada, olhou para ambas; ele tinha os lábios trêmulos e os
olhos cheios de lágrimas. Lipa tirou um pedaço de empadão da
trouxa da mãe e deu para ele. O velho pegou e começou a comer.
O sol já havia baixado atrás do horizonte; seu brilho se apagara
também acima da estrada. Escureceu e o frio começou a cair. Lipa e
Praskóvia seguiram em frente e, depois, pelo caminho, durante
muito tempo, se benziam, fazendo o sinal da cruz.

1900
Nas festas de Natal[95]

— O que vou escrever? — perguntou Iegor, e molhou a pena.


Fazia quatro anos que Vassilissa não via a filha. Depois do
casamento, Efímia, a filha, partira para São Petersburgo com o
marido, mandou duas cartas e depois sumiu, como se tivesse
afundado na água; não deu mais sinal de vida. E tanto ao raiar do
dia, quando ordenhava uma vaca, como à noite, quando punha
lenha na estufa e ia dormir, a mãe pensava sempre a mesma coisa:
Como anda Efímia? Será que está viva? Era preciso mandar uma
carta, mas o velho marido não sabia escrever e ela não tinha a quem
pedir.
Nessa altura, chegaram as festas natalinas, e Vassilissa não
aguentou mais, foi à taverna falar com Iegor, irmão do proprietário,
que, após o regresso do serviço militar, ficava o tempo todo à toa na
taverna, onde também morava; diziam que ele escrevia cartas muito
bem, contanto que lhe pagassem direito. Na taverna, Vassilissa
conversou com a cozinheira, depois com o proprietário, depois
com o próprio Iegor. Acertaram o preço de quinze copeques.
E agora — isso aconteceu no segundo dia das festas natalinas, na
cozinha da taverna —, Iegor estava sentado diante da mesa, de pena
em punho. Vassilissa se mantinha de pé, na sua frente, pensativa,
com expressão de mágoa e preocupação. Junto com ela, tinha ido o
seu velho, Piotr, muito magro, alto, de calva marrom; também de
pé, olhava fixo e reto para a frente, como um cego. No fogão,
estavam cozinhando carne de porco; a panela chiava e crepitava,
parecia até falar: “fliu-fliu-fliu”. O ambiente era sufocante.
— O que vou escrever? — perguntou Iegor, de novo.
— O quê? — disse Vassilissa, olhando para ele, zangada e com
desconfiança. — Não me afobe! Você não está escrevendo de graça,
mas por dinheiro! Certo, escreva aí. Ao nosso querido genro Andrei
Khrissánfitch e à nossa adorada filha única Efímia Petrovna, com
amor, enviamos nossa saudação profunda e a eterna e indelével
bênção de seus pais.
— Pronto. E o que mais?
— E saudamos também pelo dia do nascimento de Cristo.
Estamos vivos e com saúde, o mesmo desejamos que o Senhor…
Rei dos Céus conceda para vocês.
Vassilissa refletiu um pouco e trocou um olhar com o velho.
— O mesmo desejamos que o Senhor… Rei dos Céus conceda
para vocês… — repetiu e começou a chorar.
E não conseguiu dizer mais nada. Porém, antes, de madrugada,
enquanto estava pensando, lhe parecia que tudo o que queria dizer
não caberia nem em dez cartas. Desde o dia em que a filha partira
com o marido, muita água havia corrido para o mar, os velhos
viviam como órfãos e suspiravam fundo, à noite, como se tivessem
enterrado a filha. E quanta coisa aconteceu, no povoado, durante
aquele tempo, quantos casamentos, quantas mortes! Que invernos
compridos! Que noites longas!
— Que calor! — exclamou Iegor, e desabotoou o colete. — Deve
estar fazendo uns setenta graus. E o que mais? — perguntou.
Os velhos ficaram calados.
— O que é que o seu genro faz por lá? — perguntou Iegor.
— Ele foi soldado, meu caro, você bem sabe — respondeu o
velho, em voz baixa. — Pois serviu o exército junto com você. Foi
soldado e agora, quer dizer, lá em Petersburgo, trabalha numa
clínica de águas. O médico trata os doentes com água. Sabe, ele é o
porteiro do médico.
— Olhe, está escrito aqui… — disse a velha, tirando uma carta
do bolso do casaco. — Recebemos da Efímia, Deus sabe há quanto
tempo. Talvez eles já nem estejam neste mundo.
Iegor refletiu um pouco e se pôs a escrever depressa.
“No presente”, escreveu, “quando o seu destino determinou o
término do seu tempo de serviço militar, recomendamos que
observe o Estatuto de Punições Disciplinares e Leis Criminais do
Departamento Militar e, só pela Lei, tome consciência da cultura
dos Membros do Departamento Militar.”
Terminou de escrever, leu em voz alta, mas Vassilissa achou que
ainda era necessário contar para a filha as necessidades que eles
tinham passado no ano anterior, faltara comida até o Natal, tiveram
de vender sua vaca. Também achava que precisavam pedir dinheiro,
contar que o velho adoecia muitas vezes e que, em breve, talvez
entregasse a alma a Deus… Mas como exprimir aquilo em palavras?
O que dizer primeiro e o que dizer depois?
“Preste atenção”, continuou a escrever Iegor, “ao Tomo Quinto
dos Regulamentos Militares. Soldado é um cargo geral, afamado.
Chamam de soldado o General Supremo e também o último
recruta…”
O velho moveu os lábios e falou baixinho:
— Queria ver os netinhos, era bom.
— Que netinhos? — perguntou a velha, e olhou para ele,
zangada. — É, pode ser que tenha, pode ser que não!
— Netinhos? Pode ser que tenha, sim. Quem sabe?
“E por isso o senhor pode avaliar”, apressou-se a escrever Iegor,
“qual é o inimigo interior e qual é o inimigo exterior.
O primeiríssimo Inimigo Interior é Baco.”
A pena rangia, fabricando uns caracoizinhos no papel,
semelhantes a pequenos anzóis de pesca. Iegor tinha pressa e relia
várias vezes cada linhazinha. Estava sentado num tamborete, com
as pernas compridas esticadas por baixo da mesa, bem nutrido,
saudável, de cara redonda e nuca vermelha. Ali estava a encarnação
de uma baixeza brutal, desdenhosa, invencível, orgulhosa de ter
nascido e crescido numa taverna, e Vassilissa compreendia muito
bem que aquilo era uma baixeza, mas não conseguia se exprimir em
palavras e limitava-se a olhar para Iegor de cara amarrada e com
desconfiança. A voz dele, as palavras incompreensíveis, o calor e o
abafamento faziam a cabeça doer, embaralhavam as ideias e ela não
conseguia falar nem pensar nada, apenas esperava que ele
terminasse de ranger a pena no papel. Já o velho olhava com total
confiança. Acreditava em Iegor e também na velha, que o levara até
lá, e quando, pouco antes, mencionou a clínica de águas, era visível
pelo seu rosto que ele acreditava também na clínica e na capacidade
terapêutica da água.
Iegor terminou de escrever, levantou-se e leu a carta inteira,
desde o início. O velho não entendeu, mas balançou a cabeça,
confiante.
— Está bom, vai correndo… — disse. — Deus queira que eles
estejam com saúde. Tudo certo…
Colocaram sobre a mesa três moedas de cinco copeques e
saíram da taverna; o velho olhava reto para a frente, como um cego,
e no rosto se estampava a confiança mais completa, porém, na hora
em que saíram da taverna, Vassilissa espantou um cachorro com a
mão e disse, zangada:
— Xô-ô, que peste!
A velha passou a noite toda acordada, os pensamentos a
inquietavam e, ao raiar do dia, levantou-se, rezou e foi até a estação
para enviar a carta.
Até a estação eram onze verstas.
II

A clínica de tratamento com águas do dr. B. O. Mozelveizer atendia


os pacientes também no Ano-Novo, como nos dias comuns, mas só
o porteiro Andrei Khrissánfitch estava de uniforme, com galões
novos, e suas botas reluziam de modo um tanto vistoso; a todos que
chegavam, ele dirigia uma saudação de feliz Ano-Novo e boas
festas.
Era de manhã. Andrei Khrissánfitch estava postado junto à porta
e lia um jornal. Às dez em ponto, chegou um general conhecido,
um frequentador habitual, e logo depois dele veio o carteiro.
Andrei Khrissánfitch tirou o capote do general e disse:
— Feliz Ano-Novo e boas festas, vossa excelência!
— Obrigado, meu caro. Para você também.
Ao subir pela escada, o general apontou para uma porta com a
cabeça e perguntou (todo dia perguntava aquilo e sempre esquecia):
— E o que tem neste quarto?
— É o gabinete de massagem, vossa excelência!
Quando os passos do general silenciaram, Andrei Khrissánfitch
passou os olhos na correspondência que acabara de chegar e
encontrou uma carta em seu nome. Abriu o envelope, leu algumas
linhas, depois, sem pressa, olhando para o jornal, foi para o seu
quarto, que ficava exatamente ali embaixo, no final do corredor.
Efímia, sua esposa, estava sentada na cama e amamentava um bebê;
outra criança, o filho mais velho, estava de pé a seu lado, com a
cabeça de cabelos cacheados metida nos joelhos da mãe, e um
terceiro filho dormia sobre a cama.
Quando entrou no quarto, Andrei entregou a carta para a esposa
e disse:
— Deve ser lá do campo.
Em seguida, saiu sem descolar os olhos do jornal e se deteve no
corredor, perto da porta. Dali, ouviu a voz trêmula de Efímia,
enquanto lia as primeiras linhas. E ela não foi capaz de ler nada
além daquele ponto. Para Efímia, tais linhas eram o bastante, as
lágrimas correram e, abraçando-se ao filhinho mais velho, beijando-
o, ela se pôs a falar, e era impossível compreender se estava
chorando ou rindo.
— É da vovó, do vovô… — disse ela. — Vem lá do campo…
Rainha do Céu… Por Todos os Santos… Lá, agora, os telhados estão
cobertos de neve… as árvores estão branquinhas. A criançada
passeia nuns trenós pequenininhos… E o vovô, carequinha, está
sentado junto à estufa… e o cachorrinho amarelo… Ah, minha
gente querida, adorada!
Ao ouvir aquilo, Andrei Khrissánfitch recordou que, três ou
quatro vezes, a esposa lhe entregara cartas e pedira que mandasse
para o campo, mas alguns assuntos importantes não o permitiram:
ele não enviou as cartas, que agora estavam perdidas em algum
canto.
— E as lebrezinhas correm pelo campo afora — lamentava-se
Efímia, em lágrimas, enquanto dava beijos no seu menino. — O
vovô, calminho, bom, e a vovó, também bondosa, piedosa. Lá no
campo, eles vivem conforme a religião, temem a Deus… No
povoado, tem uma igrejinha, os mujiquezinhos cantam no coro.
Quem dera a Rainha do Céu, mãe protetora, nos levasse para lá!
Andrei Khrissánfitch voltou para o quarto a fim de fumar,
enquanto não vinha ninguém e, de repente, Efímia se calou, se
acalmou, esfregou os olhos e só os lábios tremiam. Tinha muito
medo do marido, ah, como o temia! Chegava a estremecer, era
dominada pelo horror, só de ouvir seus passos, de ver seu olhar; ela
não se atrevia a dizer nenhuma palavra em sua presença.
Andrei Khrissánfitch começou a fumar, porém, exatamente
naquele momento, chamaram lá em cima. Ele apagou o cigarro e,
com o rosto muito sério, acudiu depressa à porta principal.
Era o general que estava descendo, rosado e fresco após o banho.
— E neste quarto, quem está aí? — perguntou, apontando para
uma porta.
— É a ducha de Charcot,[96] vossa excelência!

1900
O bispo

No mosteiro de Staro-Petróvski, estavam celebrando as vésperas do


Domingo de Ramos. Ao final, quando os ramos foram distribuídos,
já passava das nove horas, as velas se apagaram, os pavios viraram
cinzas, tudo parecia envolto por uma neblina. Na penumbra da
igreja, a multidão ondulava como o mar, e o reverendíssimo Piotr,
doente havia cerca de três dias, teve a impressão de que todos os
rostos — velhos e jovens, homens e mulheres — se pareciam uns
com os outros e de que todos os que vinham receber os ramos de
salgueiro de suas mãos tinham nos olhos a mesma expressão. No
nevoeiro, não dava para enxergar as portas, a multidão se movia
incessante, parecia que não tinha e não teria fim. O coro feminino
cantava, a monja lia o cânone.
Como estava abafado, que calor! Como as Vésperas haviam se
prolongado! O reverendíssimo Piotr se sentia exausto. Tinha a
respiração ofegante, rápida, seca, os ombros doíam de cansaço, as
pernas tremiam. Era incômodo e desagradável ouvir que um
iuródivi[97], de vez em quando, soltava gritos no meio do coro. Foi
então que, de repente, como um sonho ou um delírio, o
reverendíssimo teve a impressão de que, vinda do meio da
multidão, se aproximava sua mãe, Maria Timoféievna, que ele não
encontrava já fazia nove anos, ou então alguma velha parecida com
sua mãe e, depois de receber um ramo das mãos dele, a senhora foi
se afastando, mas olhava para ele o tempo todo, com ar alegre, com
um sorriso bondoso e contente, até se misturar de novo com a
multidão. Por algum motivo, lágrimas desceram pelo rosto do
bispo. Em sua alma, havia serenidade, tudo corria às mil
maravilhas, no entanto ele mirava fixo para o coro do lado
esquerdo, onde estavam lendo e onde, na penumbra da noite, já
não se podia distinguir ninguém, e então… chorou. Lágrimas
brilharam no rosto, na barba. Perto dele, alguém começou a chorar,
depois, um pouco à frente, outra pessoa também, em seguida mais
uma, e outra mais e, pouco a pouco, a igreja se encheu de um choro
abafado. Após um breve tempo, mais ou menos cinco minutos, o
coro de monjas cantou, ninguém mais chorava, tudo voltou ao que
era.
Dali a pouco, a cerimônia chegou ao fim. Quando o bispo se
acomodou na carruagem que o levaria para casa, as belas e alegres
badaladas dos sinos pesados, e tão caros a ele, ressoaram por todo o
jardim, iluminado pelo luar. Os muros brancos, as cruzes brancas
nas sepulturas, as bétulas brancas, as sombras negras e a lua
distante no céu, suspensa exatamente acima do mosteiro, pareciam
agora viver uma vida à parte, incompreensível, embora próxima aos
seres humanos. Era início de abril e, depois de um dia quente de
primavera, o tempo arrefeceu, começou a gelar um pouco e, no ar
frio e suave, sentia-se a aragem da primavera. O caminho do
mosteiro até a cidade passava por um areal, era preciso descer e
seguir a pé; e, de ambos os lados da carruagem, à luz do luar, claro
e sereno, peregrinos arrastavam os passos pela areia. Todos
seguiam calados, pensativos, tudo parecia inteiramente aprazível,
jovial, estreitamente unido — as árvores, o céu, até mesmo a lua, e
dava vontade de pensar que assim havia de ser para sempre.
Por fim, a carruagem chegou à cidade e avançou pela rua
principal. As lojas já haviam fechado, menos a do comerciante
Ierakin, milionário, onde experimentavam a iluminação elétrica,
que piscava com força, enquanto muita gente se aglomerava em
redor. Depois, vieram ruas largas, escuras, uma após a outra,
desertas e, já fora da cidade, a estrada do ziémstvo, o campo, o
aroma de pinheiros. De súbito, diante dos olhos, se ergueu um
muro branco e denteado, por trás dele, um alto campanário, todo
iluminado, e, junto a ele, cinco grandes cúpulas douradas e
brilhantes — era o Mosteiro Pankratiévski, onde o reverendíssimo
Piotr morava. Lá também pairava a lua, pensativa e serena, acima do
mosteiro. A carruagem atravessou o portão, rangendo sobre a areia
e, aqui e ali, ao luar, se entreviam vultos negros de monges, soavam
passos sobre as lajes de pedra…
— Veja só, vossa reverendíssima, a sua mãe chegou quando o
senhor estava ausente — informou um irmão leigo, assim que o
reverendíssimo entrou em seus aposentos.
— A mamãe? Quando chegou?
— Antes das Vésperas. Primeiro perguntou onde o senhor
estava e depois foi ao mosteiro feminino.
— Quer dizer que foi ela mesma que eu vi na igreja, agora há
pouco! Ah, meu Deus!
E o reverendíssimo desatou a rir de alegria.
— Ela mandou avisar, vossa reverendíssima, que voltará amanhã
— continuou o irmão leigo. — Ela veio com uma menina, deve ser
a neta. Estão hospedadas no albergue de Ovsiánikov.
— Que horas são?
— Onze e pouco.
— Ah, que pena!
O reverendíssimo ficou um breve tempo sentado na sala,
pensativo, como se não acreditasse que era tão tarde. Sentia
pontadas nas pernas e nos braços, a nuca doía. Fazia um calor
incômodo. Após descansar um pouco, foi para o seu quarto e, ali,
também se deixou ficar sentado por um tempo, sempre pensando
na mãe. Ouviu que o irmão leigo se retirava e que, por trás da
parede, o monge Sissói tossia. O relógio do mosteiro bateu um
quarto de hora.
O reverendíssimo trocou de roupa e começou a fazer as orações
da hora de dormir. Recitava com atenção as preces antigas,
conhecidas havia muito e, entretanto, pensava na mãe. Tinha nove
filhos e cerca de quarenta netos. No passado distante, morava num
povoado pobre com o marido, um diácono; viveu lá por muito
tempo, dos dezessete aos sessenta anos. O reverendíssimo se
recordava da mãe desde a mais remota infância, mal contava três
anos de idade, e como a amava! Uma infância doce, preciosa,
inesquecível! Por que aquele tempo irrecuperável, para sempre
perdido, parecia mais radiante, mais festivo e mais rico do que foi,
na realidade? Como era afetuosa e meiga a sua mãe, quando ele
adoecia, na infância e na mocidade! E agora as preces se
misturavam com as recordações, que se acendiam, cada vez mais
radiosas, como chamas; porém as preces não o impediam de pensar
na mãe.
Encerradas as orações, ele se despiu, deitou-se e, tão logo
escureceu em redor, surgiram diante de seus olhos o pai falecido, a
mãe, o povoado natal de Lessopólie… O rangido das rodas, o balido
das ovelhas, o sino da igreja nas manhãs claras de verão, os ciganos
ao pé da janela — oh, como era doce pensar naquilo! Veio à
memória o sacerdote de Lessopólie, o padre Simeon, dócil,
humilde, bondoso; embora magro e baixo, seu filho, um
seminarista, era imensamente alto e falava com furiosa voz de
baixo; certa vez, o filho do pope se exaltou com a cozinheira e a
insultou: “Ah, sua jumenta de Iegudiíl!”.[98] E o padre Simeon, ao
ouvir aquilo, não disse nenhuma palavra, apenas se envergonhou
por não conseguir lembrar que trecho das Sagradas Escrituras
mencionava a jumenta. O sacerdote que o sucedeu em Lessopólie
foi o padre Demian, que bebia demais e, volta e meia, se
embriagava até a serpente verde[99] e, por isso, tinha o apelido de
Demian-que-vê-a-serpente-verde. O professor em Lessopólie era
Matviei Nikoláitch, seminarista, homem bondoso e inteligente,
mas também beberrão; nunca batia nos alunos, contudo, por algum
motivo, tinha sempre pendurado na parede um feixe de varas de
bétula e, abaixo, num latim completamente sem sentido, a
inscrição: betula kinder balsamica secuta.[100] Também tinha um
cachorro chamado Sintaxe.
O reverendíssimo pôs-se a rir. A oito verstas de Lessopólie se
encontrava o povoado de Óbnino, onde havia um ícone milagroso.
No verão, o ícone do povoado era levado em procissão aos
povoados vizinhos e os sinos tocavam o dia inteiro, ora num
povoado, ora em outro, e o reverendíssimo tinha a impressão de
que a alegria palpitava no ar e ele (na época, chamado de Pavlucha)
caminhava atrás do ícone sem gorro, descalço, com uma fé ingênua,
um sorriso ingênuo, e infinitamente feliz. Em Óbnino — agora lhe
veio a lembrança — sempre havia muita gente e o sacerdote local,
padre Aleksei, a fim de acelerar o ofertório, obrigava seu sobrinho
surdo, Ilarion, a ler os bilhetinhos e anotações que acompanhavam
os pães eucarísticos,[101] “à saúde de fulano”, “ao repouso de
fulano”; Ilarion fazia a leitura, às vezes ganhava cinco ou dez
copeques por missa e, só quando já estava grisalho e calvo e a vida
já havia passado, de repente, ele viu escrito num papelzinho:
“Como você é burro, Ilarion!”. Até os quinze anos, pelo menos,
Pavlucha tinha pouca instrução, andava mal nos estudos, quiseram
até retirá-lo da escola religiosa e empregá-lo numa vendinha; certa
vez, ao ir ao correio em Óbnino para pegar cartas, Pavlucha ficou
olhando muito tempo para os funcionários e indagou: “Desculpe
perguntar, mas como vocês recebem seu salário: por mês ou por
dia?”.
O reverendíssimo fez o sinal da cruz e virou-se para o outro
lado, a fim de não pensar em mais nada e dormir.
“Minha mãe está aqui…”, lembrou-se e começou a rir.
A lua mirava pela janela, o chão do quarto estava iluminado e,
nele, sombras se estendiam. Um grilo cantou. No quarto vizinho,
atrás da parede, o padre Sissói roncava e, no seu ronco de velho,
percebia-se algo de solitário, órfão, errante, até. Em outros tempos,
Sissói tinha sido ecônomo e bispo diocesano, mas agora o
chamavam de “padre ex-ecônomo”; tinha setenta anos. Morava
num mosteiro a dezesseis verstas da cidade, mas também se alojava
na cidade, em qualquer lugar. Três dias antes, havia passado pelo
mosteiro Pankratiévski e o reverendíssimo abrigou-o em seus
aposentos para, em algum momento, numa hora vaga, conversar
com ele sobre negócios, sobre problemas locais…
À uma e meia, soaram as matinas. Ele ouviu que o padre Sissói
se pôs a tossir, resmungou com voz descontente, depois se
levantou e ficou passando, descalço, junto à porta dos quartos.
— Padre Sissói! — chamou o reverendíssimo.
Sissói voltou ao seu quarto e, pouco depois, reapareceu com
uma vela na mão, já de botas; por cima das roupas de baixo, vestia
sua batina e, na cabeça, um solidéu velho e desbotado.
— Não consigo dormir — disse o reverendíssimo, ao se pôr
sentado. — Devo estar doente. Mas o que eu tenho, não sei. Que
calor!
— Deve ter se resfriado, reverendo. Era bom besuntar o corpo
com sebo de vela.
Sissói esperou um pouco mais e bocejou:
— “Oh, Senhor, perdoai-me, pecador que sou!” Hoje, na loja do
Ierakin, acenderam a eletricidade — disse. — Eu não gosto!
O padre Sissói era velho, esquálido, recurvado, sempre
descontente com alguma coisa, tinha os olhos zangados,
proeminentes como os de um caranguejo.
— Eu não gosto! — repetiu, enquanto se retirava. — Não gosto,
e que Deus o proteja!

II

No dia seguinte, Domingo de Ramos, o reverendíssimo celebrou a


missa na catedral da cidade, depois visitou o bispo diocesano, foi à
casa de uma velha generala[102] gravemente enferma e, por fim,
voltou para casa. Depois de uma hora da tarde, visitas queridas
foram almoçar com ele: a velha mãe e a sobrinha Kátia, menina de
uns oito anos. Durante o almoço, um solzinho de primavera espiava
o tempo todo pela janela e iluminava, com alegria, a toalha de mesa
branca e os cabelos ruivos de Kátia. Através dos caixilhos duplos da
janela, ouvia-se o rumor das gralhas no jardim e o canto dos
estorninhos.
— Já faz nove anos que não nos vemos — disse a velha. — E
ontem, no mosteiro, quando eu olhei para o senhor… meu Deus!
Não mudou nem um pinguinho, só ficou um pouco mais magro,
talvez, e a barba está mais comprida. Rainha do Céu, Mãezinha!
Ontem, nas Vésperas, não consegui me conter, todo mundo estava
chorando. E, de repente, quando pus os olhos no senhor, também
comecei a chorar, e nem eu mesma sei por quê. É a vontade de
Deus!
Apesar do carinho com que falava, percebia-se que ela se sentia
constrangida, como se não soubesse se devia tratar o filho por você
ou senhor, se devia rir ou não, e era como se ela se sentisse antes a
esposa de um diácono do que a mãe do bispo. Enquanto isso, Kátia
olhava para o tio, o reverendíssimo, sem piscar, e parecia querer
decifrar que tipo de pessoa era aquela. Os cabelos da menina,
presos por uma travessa e uma fitinha de veludo, estavam um
pouco levantados e pareciam formar uma auréola, seu nariz era
arrebitado e os olhos, sagazes. Antes de sentar para almoçar, ela
quebrou um copo e agora sua avó, enquanto conversava, afastava da
neta ora um copo, ora uma taça. O reverendíssimo escutava a mãe e
recordou que, outrora, muitos anos antes, ela o levava, com os
irmãos e as irmãs, à casa de parentes que ela considerava ricos;
naquelas visitas, se mostrava muito preocupada com os filhos e,
agora, fazia o mesmo com os netos, e havia trazido Kátia…
— A Várienka, a irmã do senhor, tem quatro filhos — contou a
mãe. — Esta aqui é a Kátia, a mais velha, e só Deus sabe por que o
meu genro, o padre Ivan, caiu doente e morreu três dias antes da
Ascensão. E agora, para viver, a minha Várienka é obrigada a pedir
esmola.
— E como vai o Nikanor? — perguntou o reverendíssimo,
referindo-se ao irmão mais velho.
— Vai indo, graças a Deus. Vai levando, como Deus quer. Dá
para viver. Só tem um problema: o filho dele, o Nikolacha, meu
neto, não quis seguir carreira na igreja, entrou na universidade para
ser médico. Talvez seja melhor assim, quem sabe? É a vontade de
Deus.
— O Nikolacha retalha os defuntos — disse Kátia, e entornou
água sobre os joelhos.
— Fique quieta, menina, comporte-se — advertiu a avó, com
voz tranquila, e tomou o copo de suas mãos. — Coma e reze.
— Há quanto tempo não nos vemos! — disse o reverendíssimo,
e olhou com ternura para a mão e para o ombro da mãe. — Eu senti
saudade da senhora no exterior, mamãe, senti muita saudade.
— Muito grata por sua bondade.
— Ao fim da tarde, eu ficava sentado junto a uma janela aberta,
me sentia muito sozinho, ouvia alguém tocar música e, de repente,
me vinha uma saudade da terra natal e eu tinha impressão de que
eu daria qualquer coisa só para estar de novo em casa e ver a
senhora…
A mãe sorriu, ficou radiante, mas logo seu rosto se tornou sério
e ela disse:
— Muito grata por sua bondade.
De repente, o estado de ânimo do bispo se transformou. Olhava
para a mãe e não compreendia de onde vinha aquela expressão
respeitosa e intimidada, no rosto e na voz, não entendia por que
tudo aquilo, e nem a reconhecia mais. Sentiu-se triste, aborrecido.
Ainda por cima, tinha dor de cabeça, como na véspera, as pernas
doíam muito e o peixe parecia insípido, de paladar ruim e, a todo
instante, ele sentia vontade de beber…
Depois do almoço, vieram duas damas ricas, senhoras de terra,
de fisionomia tensa, que ficaram uma hora e meia sentadas e em
silêncio; depois, a trabalho, veio o arquimandrita, calado e meio
surdo. Então, soaram os sinos das Vésperas, o sol baixou atrás do
bosque e o dia chegou ao fim. Ao voltar da igreja, o reverendíssimo
rezou afobado, deitou-se na cama e cobriu-se para se aquecer.
Sentia enjoo só de recordar o peixe que comera no almoço. O
luar o deixava inquieto e, além do mais, ouvia-se uma conversa. No
cômodo vizinho, com certeza na sala, o padre Sissói estava falando
de política.
— Agora, os japoneses estão em guerra. Estão combatendo. Os
japoneses, mãezinha, são iguais aos montenegrinos, são da mesma
tribo. Estiveram juntos sob o jugo turco.
Em seguida, se ouviu a voz de Maria Timoféievna:
— Sabe, depois de fazer as orações, pois é, e depois de beber o
chá, nós fomos visitar o padre Iegor, sabe, em Novokhátnoie…
Toda hora dizia “depois de beber o chá”, ou “depois de tomar
chá”, e parecia que, de tudo o que fazia na vida, ela só sabia que
bebia chá, e mais nada. Com vagar e sonolência, o reverendíssimo
recordou o seminário, a academia. Por três anos, mais ou menos,
ele foi professor de grego no seminário, já não conseguia ler um
livro sem óculos, depois foi ordenado monge e nomeado inspetor.
Mais adiante, defendeu sua dissertação. Aos trinta e dois anos, foi
nomeado reitor do seminário, consagrado arquimandrita e, então, a
vida se revelou muito leve e aprazível, parecia muito, muito longa,
e não se avistava o seu fim. Então, começou a adoecer, emagreceu
demais, ficou quase cego e, por recomendação médica, teve de
abandonar tudo e ir para o exterior.
— Mas e depois, o que aconteceu? — perguntou o padre Sissói,
no cômodo vizinho.
— Depois, tomamos chá… — respondeu Maria Timoféievna.
— Paizinho, o senhor está com a barba verde! — exclamou
Kátia, de repente, com surpresa, e riu.
O reverendíssimo recordou que a barba do encanecido Sissói, de
fato, tinha um tom esverdeado, e riu também.
— Senhor meu Deus, que martírio é esta menina! — exclamou
Sissói bem alto, com irritação. — Que mimada! Fique quieta,
comporte-se!
O reverendíssimo recordou a igreja branca, nova em folha, em
que ele celebrava missas, quando no exterior; recordou o rumor do
mar de águas tépidas. Seu apartamento tinha cinco cômodos claros,
teto alto, biblioteca e escrivaninha nova no escritório. Lia muito,
escrevia com frequência. Recordou que tinha saudades da terra
natal, que uma cega pedinte tocava violão e cantava canções de
amor, todos os dias, embaixo de sua janela e ele, ao ouvi-la, por
alguma razão, pensava sempre no seu passado. Entretanto, corridos
oito anos, ele foi chamado de volta à Rússia e, agora, já se tornara
bispo sufragâneo e todo seu passado havia fugido para algum lugar
distante, envolto em uma neblina, como se fosse um sonho…
Com uma vela na mão, o padre Sissói entrou no quarto.
— Puxa — admirou-se. — O senhor já está dormindo,
reverendíssimo?
— O que é?
— Sabe, ainda é cedo, dez horas, pouco menos, até. Hoje eu
comprei uma velinha, queria friccionar o sebo no seu corpo.
— Tenho febre… — disse o reverendíssimo, e sentou-se. — De
fato, é preciso fazer alguma coisa. Minha cabeça não está bem…
Sissói tirou a camisa do bispo e se pôs a esfregar o peito e as
costas com o sebo da vela.
— Pronto, assim… pronto, assim… — dizia. — Senhor Jesus
Cristo… Assim. Hoje, fui à cidade, estive com aquele… como se
chama? O arcipreste Sidónski… Eu tomei chá com ele… Não gosto
dele, não! Senhor Jesus Cristo… Pronto, assim… Eu não gosto!

III

Velho, muito gordo, o bispo diocesano sofria de reumatismo, ou de


gota, e já fazia um mês que estava de cama. O reverendíssimo Piotr
o visitava quase todo dia e, em lugar dele, recebia pessoas com
solicitações. Agora, que ele mesmo estava mal de saúde, sentia-se
chocado com o vazio e a mesquinharia de tudo aquilo que pediam e
por que choravam; a ignorância e a timidez o deixavam irritado;
toda aquela massa de ninharias e futilidades o esmagava e ele tinha
a impressão de que, agora, entendia o bispo diocesano, que, na
mocidade, escrevera A doutrina do livre-arbítrio, mas agora parecia
se abandonar por inteiro a coisas irrelevantes, esquecera-se de tudo
e não pensava em Deus. Com certeza, no exterior, o
reverendíssimo se desabituara da vida russa e, para ele, aquela vida
era penosa; o povo lhe parecia bruto, as mulheres, com suas
súplicas, eram enfadonhas e tolas, os seminaristas e seus
professores se revelavam ignorantes, por vezes selvagens. E além
disso havia a papelada, o entra e sai de documentos, que chegavam
a dezenas de milhares, e que documentos! Os ajudantes de todas as
dioceses davam notas de comportamento para os sacerdotes, jovens
ou velhos, e até para suas esposas e filhos, davam nota cinco e
quatro, às vezes três, e era necessário falar, ler e escrever
documentos sérios sobre aquilo. Não tinha, rigorosamente, nem
um minuto livre, sua alma se mantinha agitada o dia inteiro e o
reverendíssimo Piotr só se acalmava quando estava na igreja.
Tampouco havia meio de se acostumar com o temor que, mesmo
sem querer, ele despertava nos outros, a despeito de seu
temperamento calmo, discreto. Quando olhava para as pessoas
naquela província, todos lhe pareciam pequenos, assustados,
culpados. Em sua presença, todos se intimidavam, mesmo o velho
arcipreste, todos “se arrojavam” a seus pés e, pouco tempo antes, a
esposa de um pope do campo, já idosa, que viera lhe trazer alguma
solicitação, não conseguiu pronunciar nenhuma palavra, de tanto
medo, e acabou indo embora sem obter nada. E ele, que nos
sermões nunca se atrevia a falar mal das pessoas, nunca repreendia
ninguém, pois tinha pena, com os peticionários perdia a cabeça, se
irritava, atirava ao chão o papel com suas solicitações. Durante todo
o tempo em que esteve ali, nem uma única pessoa conversou com
ele de maneira sincera, simples, humana; até sua velha mãe, pelo
visto, já não era a mesma, longe disso! Era até o caso de perguntar
por que, ao conversar com Sissói, ela falava sem parar, e ria muito,
mas com ele, seu filho, se mostrava séria, em geral calada, retraída,
uma conduta de todo estranha a ela. A única pessoa que se
mantinha à vontade em sua presença e dizia tudo o que desejava era
o velho Sissói, que passara toda a vida entre bispos e já enterrara
onze deles. Por algum motivo, era fácil, para o bispo, ficar em sua
companhia, embora, sem dúvida, Sissói fosse um homem difícil e
rabugento.
Terça-feira, após a missa, o reverendíssimo esteve na residência
episcopal, onde recebeu as solicitações das pessoas, se perturbou,
se aborreceu e, depois, foi para casa. Como antes, não estava se
sentindo bem, tudo que desejava era deitar-se; entretanto, assim
que entrou em casa, anunciaram a visita de Ierakin, jovem
comerciante que fazia doações à igreja, a fim de tratar de um
assunto muito importante. Era indispensável recebê-lo. Ierakin
permaneceu ali uma hora, mais ou menos, falava muito alto, quase
aos gritos, era até difícil entender o que dizia.
— Deus queira! — disse Ierakin, ao sair. — Absolutamente
imprescindível! Por força das circunstâncias, vossa eminência
reverendíssima! É a minha vontade!
Depois dele, veio a superiora de um mosteiro distante. Quando
também ela foi embora, soaram os sinos das Vésperas: era preciso ir
à igreja.
À noite, os monges cantaram de forma harmoniosa, inspirada,
um jovem monge de barba negra celebrou a missa; ao ouvir os
versículos sobre o noivo que virá à meia-noite e sobre os aposentos
enfeitados,[103] o reverendíssimo não sentia arrependimento dos
pecados nem desgosto, mas sim serenidade espiritual, calma, e o
pensamento o transportou para o passado remoto, a infância e a
mocidade, quando também cantavam sobre o noivo e os aposentos
enfeitados, e agora aquele passado ressurgia belo, alegre, vivaz,
como provavelmente nunca tinha sido. Talvez, no outro mundo, na
outra vida, recordemos o passado remoto, nossa vida aqui na terra,
com esse mesmo sentimento. Quem sabe? O reverendíssimo
estava sentado no altar, num lugar escuro. Lágrimas corriam em
seu rosto. Ele pensava que havia alcançado tudo que uma pessoa na
sua condição podia obter, ele tinha fé, porém, mesmo assim, nem
tudo estava claro, algo ainda faltava, ele não queria morrer;
continuava com a impressão de que não tinha o mais importante,
algo com que sonhara vagamente em outros tempos e, agora, ainda
o perturbava a mesma esperança no futuro que ele sentira na
infância, na academia e no exterior.
“Como estão cantando bem hoje!”, pensou, enquanto ouvia o
canto, atentamente. “Que beleza!”

IV

Na quinta-feira, ele celebrou missa na catedral e houve a cerimônia


do lava-pés. Quando a missa terminou e o povo se dispersou rumo
a suas casas, o dia estava ensolarado, quente, alegre, a água
rumorejava nas valas e, nos arredores da cidade, ouvia-se o meigo e
incessante canto das cotovias, que vinha dos campos e convidava ao
repouso. As árvores já haviam despertado, sorriam afáveis e, acima
delas, o céu azul, insondável e imenso, fugia só Deus sabe para
onde.
Uma vez em casa, o reverendíssimo Piotr tomou chá, depois
trocou de roupa, deitou-se na cama e mandou o irmão leigo fechar
as persianas. O quarto ficou escuro. No entanto, que cansaço, que
dor nas pernas e nas costas, uma dor pesada e fria, e que zoeira nos
ouvidos! Fazia muito tempo que não dormia, muito tempo, era essa
a sua impressão, pois, assim que os olhos fechavam, alguma
bobagem se esgueirava em seu cérebro e não o deixava adormecer.
Como na véspera, o som de vozes, copos e colheres de chá
atravessava a parede… Com alegria, entre gracejos, Maria
Timoféievna contava algo para o padre Sissói, que respondia, em
tom triste e melancólico: “Eles têm cada uma! Onde é que nós
estamos? Onde vamos parar?”. E, mais uma vez, o reverendíssimo
sentiu-se aborrecido, depois magoado, ao ver que a velha se portava
de maneira simples e natural com os outros, porém com ele, seu
filho, se mostrava intimidada, falava pouco e não dizia o que queria,
e o bispo chegava a ter a impressão de que, todos aqueles dias, em
sua presença, sua mãe procurava sempre um pretexto para se
manter de pé, pois tinha vergonha de sentar-se. E o pai? Com
certeza, se estivesse vivo, seria incapaz de pronunciar uma só
palavra diante dele…
No quarto vizinho, algo bateu no chão e se espatifou; na certa,
Katia deixara cair a xícara ou o pires, porque o padre Sissói, de
repente, cuspiu e exclamou, contrariado:
— Essa menina é um verdadeiro martírio, meu Deus, perdoe
este pobre pecador! Ninguém aguenta!
Depois, veio um silêncio, só se ouviam sons que vinham de fora.
E, quando o reverendíssimo abriu os olhos, viu Kátia no seu quarto,
de pé, imóvel, olhando para ele. Os cabelos ruivos, como de
costume, presos por uma travessa, estavam um pouco levantados e
pareciam formar uma auréola.
— É você, Kátia? — perguntou. — Quem é que está lá embaixo
e abre e fecha a porta toda hora?
— Não estou ouvindo — respondeu Kátia, e tentou ouvir.
— Olhe, agora alguém entrou.
— Mas isso foi dentro da sua barriga, titio!
Ele deu uma risada e afagou a cabeça da menina.
— Quer dizer que seu irmão Nikolacha, pelo que você diz,
retalha os defuntos? — perguntou ele, após um breve silêncio.
— É. Está estudando.
— E ele é bom?
— É bom, sim. Só que toma vodca demais.
— E o seu pai, do que foi que ele morreu?
— O papai ficou fraco e magro, muito magrinho e, de repente…
a garganta. Aí eu fiquei doente, e também o irmão Fiédia, todo
mundo ficou ruim da garganta. O papai morreu, titio, mas nós
ficamos bons.
O queixo da menina tremeu e lágrimas surgiram em seus olhos,
deslizaram pelas bochechas.
— Vossa reverendíssima — disse ela, com voz fina, já chorando
amargamente. — Titio, eu e mamãe ficamos na miséria… Dê algum
dinheiro para nós… faça essa caridade… tio querido!…
O bispo também chorou e, por muito tempo, por causa da
emoção, não conseguiu pronunciar uma só palavra, depois afagou a
cabeça da menina, tocou atrás do seu ombro e disse:
— Tudo bem, tudo bem, menina. Olhe, quando chegar a Páscoa,
vamos falar sobre isso… Eu vou ajudar… ajudo sim…
Tímida, em silêncio, a mãe entrou e rezou voltada para um
ícone. Ao ver que o filho não estava dormindo, perguntou:
— Não quer uma sopinha?
— Não, obrigado… — respondeu. — Não tenho vontade.
— O senhor não parece bem de saúde… agora que estou
reparando. Também, como não ficar doente? O dia inteiro de pé, o
dia inteiro… meu Deus, só de olhar para o senhor, dá pena. Bem,
não falta muito para a Semana Santa, aí o senhor vai descansar, com
a graça de Deus, e então vamos poder conversar. Agora, não vou
ficar mais aqui, para não incomodar o senhor com minhas
conversas. Vamos, Kátietchka, deixe o reverendo dormir um pouco.
E ele recordou que, muito tempo antes, quando ainda menino,
sua mãe era exatamente assim, falava com o padre naquele mesmo
tom, entre o respeitoso e o brincalhão… Só os olhos extremamente
bondosos, o olhar tímido e preocupado que ela lhe dirigiu de
passagem, ao sair do quarto, ainda deixavam adivinhar que aquela
era sua mãe. Ele fechou os olhos e parecia dormir, mas ouviu o
relógio bater duas vezes e o padre Sissói tossir, por trás da parede.
Entretanto, a mãe voltou e, por um minuto, olhou acanhada para
ele. Ouviu-se a chegada de alguém, numa carruagem ou caleche, na
frente da varanda. De súbito, batidas na porta, que foi aberta: o
irmão leigo entrou no quarto.
— Vossa reverendíssima! — gritou.
— O que foi?
— Os cavalos estão prontos, está na hora da Paixão do Senhor.
— Mas que horas são?
— Sete e quinze.
O bispo se vestiu e partiu rumo à catedral. Durante a leitura de
todos os doze trechos dos evangelhos, era preciso ficar de pé no
meio da igreja, imóvel, e o primeiro, o mais longo, o mais belo, ele
mesmo lia. Um ânimo alegre e bem-disposto o dominou. Aquele
primeiro trecho — “Agora, o filho do homem foi glorificado” —,
ele sabia de cor; e, enquanto lia, volta e meia erguia os olhos e via,
de ambos os lados, um verdadeiro mar de luzes, chegava a ouvir o
crepitar das velas, porém as pessoas não estavam visíveis, como no
ano anterior, e ele teve a impressão de que eram as mesmas pessoas
de sua infância e mocidade, teve a impressão de que haveriam de
ser sempre as mesmas, ano após ano, e até quando, só Deus podia
saber.
Seu pai fora diácono, o avô, padre, o bisavô, diácono, e todos os
seus antepassados, quem sabe, desde os tempos da cristianização
da Rus,[104] pertenceram ao clero; seu amor ao ministério da igreja,
ao clero e ao som dos sinos era inato, profundo, impossível de
erradicar; na igreja, sobretudo quando participava da cerimônia,
sentia-se vivo, animado, feliz. Como agora, também. No entanto,
terminada a leitura do oitavo evangelho, sentiu a voz enfraquecer,
nem sua tosse era possível ouvir, assaltou-o uma forte dor de
cabeça, e o medo de cair a qualquer momento o perturbou. De fato,
as pernas se entorpeceram por completo, a tal ponto que, pouco a
pouco, ele acabou por não sentir mais as próprias pernas e, agora,
não conseguia entender como, e apoiado em quê, ainda se
mantinha de pé e por que não caía…
Quando a missa terminou, eram quinze para meia-noite. Ao
chegar a seus aposentos, o reverendíssimo logo se despiu e deitou-
se, nem mesmo rezou. Não conseguia falar e tinha a impressão de
ser incapaz de manter-se de pé. Quando se cobriu com o cobertor,
de repente, veio um desejo de estar no estrangeiro, um desejo
irreprimível! Tinha a impressão de que daria a própria vida só para
não ver aquelas persianas baratas, deploráveis, aqueles tetos baixos,
não sentir aquele odor pesado do mosteiro. Quem dera houvesse ao
menos uma pessoa com quem ele pudesse conversar, desabafar as
mágoas!
No quarto vizinho, por muito tempo, soaram os passos de
alguém, mas ele não conseguia, de maneira nenhuma, atinar quem
era. Enfim, a porta abriu e Sissói entrou, com uma vela acesa e uma
xícara de chá.
— O senhor já se deitou, reverendíssimo? — perguntou. —
Olhe só o que eu trouxe: quero friccionar vodca e vinagre no
senhor. Se untar faz bem, isto aqui é ainda mais benéfico. Senhor
Jesus Cristo… Assim, pronto… Assim, pronto… Eu estive agora há
pouco no nosso mosteiro… Eu não gosto! Vou embora daqui
amanhã mesmo, reverendo, não quero mais ficar. Senhor Jesus
Cristo… Assim, pronto…
Sissói não conseguia permanecer muito tempo no mesmo lugar
e tinha a impressão de que já fazia um ano que residia no mosteiro
Pankratiévski. Ao ouvi-lo falar, era difícil, acima de tudo, entender
onde ele morava, se gostava de alguém ou de algo, se acreditava em
Deus… Ele mesmo não sabia por que era monge, nem sequer
pensava no assunto e já fazia muito tempo que se apagara de sua
memória o tempo em que recebera a tonsura. Era como se já
tivesse nascido monge.
— Vou embora amanhã. Que fiquem com Deus, todos eles!
— Eu queria conversar com o senhor… nunca tenho chance —
falou o reverendíssimo em voz baixa, com esforço. — Afinal, aqui,
não conheço ninguém, não sei de nada…
— Eu posso ficar até domingo, se o senhor deseja, assim será.
Mais do que isso eu não quero. Chega!
— Que bispo sou eu? — prosseguiu o reverendíssimo, em voz
baixa. — Eu poderia muito bem ser um pároco de aldeia, um
diácono qualquer… ou um simples monge… Tudo isto me sufoca…
me sufoca…
— O quê? Senhor Jesus Cristo… Assim, pronto… Muito bem,
vá dormir, reverendíssimo!… Onde já se viu? Onde é que isso vai
parar? Boa noite!
O reverendíssimo passou a noite inteira sem dormir. De manhã,
às oito horas, mais ou menos, teve início uma hemorragia
intestinal. O irmão leigo se assustou e, primeiro, correu para avisar
ao arquimandrita, só depois foi chamar o médico do mosteiro, Ivan
Andreitch, que morava na cidade. O médico, um velho gordo, de
barba comprida e grisalha, examinou demoradamente o
reverendíssimo, o tempo todo balançava a cabeça e franzia as
sobrancelhas, e no final, disse:
— Sabe de uma coisa, vossa reverendíssima? O senhor está com
febre tifoide!
Por causa da hemorragia, em cerca de uma hora, o
reverendíssimo emagreceu e empalideceu muito, definhou, o rosto
enrugou-se, os olhos ficaram grandes e ele parecia ter envelhecido,
diminuído de estatura, já estava até com a impressão de ser mais
magro, mais fraco e mais insignificante do que qualquer outra
pessoa, e de que tudo o que havia ocorrido em sua vida partira para
algum lugar muito distante, nunca mais haveria de repetir-se, não
teria continuidade.
“Que bom!”, pensou. “Que bom!”
Sua velha mãe chegou. Ao ver o rosto enrugado e os olhos
grandes do filho, assustou-se, caiu de joelhos diante da cama e se
pôs a beijar seu rosto, seus ombros, suas mãos. Por alguma razão,
ela também teve a impressão de que o filho era mais magro, mais
fraco e mais insignificante do que qualquer outra pessoa, ela não se
lembrava mais de que seu filho era bispo e o beijava como se fosse
uma criança, muito próxima, muito querida.
— Pavlucha, meu anjinho — disse. — Meu adorado!… Meu
filhinho!… Por que você ficou desse jeito? Pavlucha, me responda!
Kátia, pálida, compenetrada, se mantinha de pé e não entendia o
que havia com o tio, por que sua avó mostrava tamanho sofrimento
no rosto, por que ela dizia palavras tão tristes e comoventes.
Naquela altura, ele já não conseguia articular nenhuma palavra, não
compreendia nada, e lhe pareceu que já era uma pessoa simples e
comum, que estava andando ligeiro e alegre pelo campo, batendo
com uma varinha no chão e, acima dele, se alastrava o céu vasto,
inundado pelo sol, e agora ele era livre como um pássaro, podia ir
para onde bem entendesse!
— Filhinho, Pavlucha, me responda! — dizia a velha. — O que
você tem? Meu querido!
— Não perturbe o reverendo — exclamou Sissói, zangado, ao
atravessar o quarto. — Deixe que durma… Não há nada que fazer…
Não adianta!…
Vieram três médicos, deram conselhos, depois foram embora. O
dia foi longo, inacreditavelmente longo, depois teve início a noite,
também muito longa e, já de manhã, no sábado, o irmão leigo se
aproximou da velha, deitada no sofá da sala, e pediu que entrasse
no quarto: o reverendíssimo deixara de viver.
No dia seguinte, era Páscoa. Na cidade, havia quarenta e duas
igrejas e seis mosteiros; da manhã à noite, o repicar alegre e
retumbante dos sinos pairou acima da cidade, sem cessar, agitando
o ar da primavera; os pássaros cantavam, o sol brilhava radiante. Na
grande praça da feira, havia barulho e alvoroço, os balanços iam e
vinham, os realejos tocavam, um acordeão gemia, vozes
embriagadas ressoavam. Na rua principal, depois do meio-dia, teve
início o desfile de cavalos trotadores — em suma, a alegria reinava,
tudo era festa, como fora também no ano anterior e como seria,
com toda a certeza, no ano seguinte.
Passado um mês, foi nomeado um novo bispo sufragâneo e já
ninguém mais pensava no reverendíssimo Piotr. Depois, ele foi
completamente esquecido. Apenas a velha mãe do falecido, que
agora morava na casa do genro diácono, num longínquo vilarejo de
província, quando saía de casa ao entardecer para recolher sua vaca
e caminhava rumo ao pasto em companhia de outras mulheres, se
punha a falar dos filhos, dos netos, contava que teve um filho que
era bispo, e falava disso com timidez, receosa de que não
acreditassem…
E, na verdade, nem todas acreditavam.
A noiva

Já eram dez horas da noite e a lua cheia brilhava acima do jardim.


Na casa dos Chúmin, a cerimônia da vigília encomendada pela avó,
Marfa Mikháilovna, havia terminado e Nádia, que saíra para o
jardim por um minuto, viu que agora, no salão, estavam preparando
a mesa para o jantar, enquanto a avó ia e vinha, em seu suntuoso
vestido de seda; Andrei, o padre, arcipreste da catedral, conversava
com a mãe de Nádia, Nina Ivánovna, que, sob a luz noturna vazada
através da janela, parecia agora muito jovem; a seu lado, estava o
filho do padre Andrei,[105] Andrei Andreitch, que escutava a
conversa com atenção.
O jardim estava silencioso, fresco, sombras escuras se estendiam
sobre a terra. Em algum local distante, muito distante, na certa fora
da cidade, ouvia-se o coaxar das rãs. Sentia-se que era maio, o doce
mês de maio! Vinha o ímpeto de respirar fundo, a vontade de
pensar que, não ali, mas em algum lugar acima das árvores, mais
perto do céu, longe, fora da cidade, nos campos, nos bosques, a
primavera agora desdobrava sua vida misteriosa, bela, rica e
sagrada, inacessível ao fraco entendimento de um mero pecador. E,
sem saber de onde, vinha uma vontade de chorar.
Nádia já contava vinte e três anos; aos dezesseis, com fervor,
sonhava casar, e agora, por fim, estava noiva de Andrei Andreitch, o
mesmo que ela via ali, por trás da janela; Nádia gostava dele, o
casamento estava marcado para o dia 7 de julho, entretanto, não
existia contentamento, ela dormia mal à noite, havia perdido a
alegria… Pela janela aberta do porão, onde ficava a cozinha, se podia
ouvir o rebuliço das pessoas, o retinir das facas, o abrir e o fechar da
porta, que estalava no batente; sentia-se o cheiro de peru assado e
de cerejas em calda. E, por algum motivo, agora, parecia que toda a
vida seria daquele modo, sem mudança, sem fim!
Naquele momento, alguém saiu da casa e se deteve na varanda:
era Aleksandr Timoféitch, ou simplesmente Sacha, um hóspede
que chegara de Moscou havia dez dias. Muito tempo antes, uma
parenta distante da avó, chamada Mária Petrovna, viúva e doente,
magrinha e pequena, de origem nobre, porém empobrecida,
costumava vir à sua casa pedir esmola. Sacha era seu filho. Por
algum motivo, diziam que era um pintor talentoso e, quando sua
mãe morreu, a avó de Nádia, em nome da salvação da própria alma,
o enviou para estudar no Instituto Komissárovskoie, em Moscou;
dois anos depois, ele ingressou na Academia de Belas-Artes, lá
permaneceu por quase quinze anos e, aos trancos e barrancos,
concluiu o curso de arquitetura, só que não trabalhava como
arquiteto, mas sim numa litografia de Moscou. Quase todo verão,
passava uma temporada com a avó de Nádia e, em geral, chegava
muito doente e vinha com o intuito de repousar e tratar-se.
Agora, vestia um casacão abotoado até em cima e surradas calças
de brim, com as bainhas puídas. Tinha a camisa amarrotada e todo
ele denotava um aspecto de desleixo. Muito magro, olhos grandes,
dedos compridos e magros, barbado, pele escurecida e, ainda
assim, bonito. Era pessoa familiar entre os Chúmin, quase um
parente, e ali Sacha se sentia como em sua própria casa. Já fazia
tempo que o quarto onde agora se hospedava era chamado de
“quarto do Sacha”.
Ao parar na varanda, ele avistou Nádia e caminhou em sua
direção.
— É bonito, aqui na casa de vocês — disse ele.
— Claro que é bonito. O senhor devia ficar aqui até o outono.
— Sim, é isso mesmo que deve acontecer. Talvez eu fique até
setembro.
Riu sem nenhum motivo e sentou-se ao lado da moça.
— Pois é, eu estou aqui sentada, olhando para a mamãe, lá
dentro — disse Nádia. — Daqui, ela parece tão jovem! A minha
mãe, é claro, tem suas fraquezas — acrescentou, após um breve
silêncio. — Apesar disso, é uma mulher extraordinária.
— Sim, é bonita… — concordou Sacha. — A mãe da senhora, a
seu modo, é claro, é uma mulher muito boa e gentil, mas… como
dizer? Hoje de manhã cedo, eu fui à cozinha e, lá, três criadas
estavam dormindo deitadas no chão, não há cama e, em lugar de
lençol, trapos, mau cheiro, percevejos, baratas… A mesma coisa
que há vinte anos, nenhuma alteração. Quanto à vovó, não se pode
dizer nada, as avós são assim; mas a sua mãe, afinal de contas, fala
francês, participa de espetáculos artísticos. Parece que já poderia
compreender certas coisas.
Enquanto Sacha falava, estendia à frente da interlocutora dois
dedos compridos e ossudos.
— Aqui, tudo me parece um tanto selvagem e estranho —
prosseguiu. — Que diabo, ninguém faz nada. Mamãe só faz
passear, o dia inteiro, como se fosse alguma duquesa, e a vovó
também não faz nada, e a senhora… também. E o seu noivo, o
Andrei Andreitch, também não faz nada.
Nádia ouvira as mesmas palavras no ano anterior, bem como,
assim lhe parecia, dois anos antes, sabia que Sacha era incapaz de
raciocinar de outra maneira e aquilo, que antes a divertia, dessa
vez, por alguma razão, a deixou aborrecida.
— Tudo isso é velho e já me cansou faz tempo — disse, e
levantou-se. — O senhor devia inventar algo novo.
Ele deu uma risada, também se levantou e ambos seguiram para
casa. Alta, bonita, esbelta, agora ao lado dele, Nádia parecia muito
saudável e elegante; percebia aquilo, teve pena de Sacha e, por
algum motivo, sentiu-se constrangida.
— O senhor fala muita coisa desnecessária — disse. — Veja,
agora há pouco, falou do meu Andrei, mas, afinal de contas, o
senhor nem o conhece.
— O meu Andrei… Que Deus proteja o seu Andrei! É da
juventude da senhora que eu sinto pena.
Quando os dois entraram no salão, os outros já estavam sentados
à mesa, para jantar. A avó, ou como a chamavam em casa, vozinha,
muito gorda, feia, de sobrancelhas espessas e bigodes, falava alto e,
por sua voz e suas maneiras, logo se notava que ela era a senhora da
casa. A ela pertenciam as lojas do antigo mercado e a velha casa
com colunas, porém, toda manhã, ela rezava e pedia que Deus a
salvasse da ruína e, naqueles momentos, chorava. Sua nora, Nina
Ivánovna, loura, com a cintura fortemente cingida por um
espartilho, de pincenê, ostentava diamantes em todos os dedos; o
padre Andrei, velho, magro, sem dentes, tinha a expressão de
quem está prestes a contar algo muito engraçado; seu filho, Andrei
Andreitch, noivo de Nádia, gordo e bonito, de cabelos ondulados,
parecia um artista ou pintor — os três conversavam sobre
hipnotismo.
— Na minha casa, você vai se recuperar em uma semana —
disse a avó, dirigindo-se a Sacha. — É só comer um pouco mais.
Olhe só como você está! — e suspirou. — Ficou horrível! Parece
um verdadeiro filho pródigo, sem tirar nem pôr.
— Para malbaratar a riqueza paterna — recitou o padre Andrei,
lentamente, com olhos risonhos —, o filho execrado fartou-se com
a canalha insensata…[106]
— Eu adoro o meu paizinho — disse Andrei Andreitch, e tocou
por trás do ombro do pai. — É um velho maravilhoso. Um velho
muito bom.
Todos ficaram em silêncio. De súbito, Sacha deu uma risada e
comprimiu um guardanapo de encontro à boca.
— Quer dizer que o senhor acredita no hipnotismo? —
perguntou o padre Andrei a Nina Ivánovna.
— Eu não posso, é claro, afirmar que eu acredite — respondeu
Nina Ivánovna, dando ao rosto uma expressão muito séria e até
severa. — Mas tenho de reconhecer que, na natureza, há muita
coisa misteriosa e incompreensível.
— Concordo inteiramente com a senhora, embora eu deva
acrescentar, da minha parte, que a fé reduz de forma considerável o
alcance do misterioso, para nós.
Serviram um peru grande, muito gorduroso. O padre Andrei e
Nina Ivánovna continuaram sua conversa. Os brilhantes cintilavam
nos dedos de Nina Ivánovna e, depois, lágrimas brilharam em seus
olhos: estava abalada.
— Embora eu não me atreva a discutir com o senhor — disse ela
—, o senhor mesmo há de convir que, na vida, há muitos enigmas
insolúveis!
— Não há nenhum, eu me atrevo a assegurar à senhora.
Depois do jantar, Andrei Andreitch tocou violino, enquanto
Nina Ivánovna acompanhou ao piano. Dez anos antes, ele concluíra
a universidade, na faculdade de filologia, porém não exercera a
profissão em lugar algum, não tinha nenhuma ocupação definida e
só de vez em quando se apresentava em concertos beneficentes; na
cidade, as pessoas o chamavam de artista.
Andrei Andreitch começou a tocar; todos ouviam em silêncio.
Sobre a mesa, o samovar fervia baixinho, e apenas Sacha bebia chá.
Depois, quando bateu a meia-noite, uma corda do violino se
rompeu, de repente. Todos riram, houve um alvoroço geral e
começaram a se despedir.
Após conduzir o noivo até a porta, Nádia subiu ao seu quarto,
que dividia com a mãe (a avó ocupava o térreo). No salão, embaixo,
começaram a apagar as velas, enquanto Sacha continuava sentado,
tomando chá. À maneira moscovita, ele sempre se demorava
bastante quando bebia chá, e tomava cerca de sete copos de cada
vez. Após se despir e deitar-se, Nádia ficou muito tempo na cama,
ouvindo como uma criada arrumava o salão e a avó se mostrava
irritada. Por fim, tudo silenciou e só de vez em quando ressoava a
tosse de Sacha, em tom de baixo, dentro do seu quarto.
II

Quando Nádia acordou, deviam ser duas horas e estava começando


a amanhecer. Longe, em algum lugar, soaram as batidas de um vigia
noturno. Nádia estava sem sono, a cama parecia mole demais,
desconfortável. Como em todas as noites de maio antes daquela,
Nádia sentou-se na cama e se pôs a pensar. Os pensamentos eram
sempre os mesmos da noite anterior, repetitivos, redundantes,
obsessivos, pensava na maneira como Andrei Andreitch começou a
cortejá-la e pediu sua mão em casamento, como ela aceitou e
depois, pouco a pouco, passou a estimar aquele homem bondoso e
inteligente. No entanto, por alguma razão, agora, a menos de um
mês do casamento, Nádia começou a sentir medo, uma
inquietação, como se algo vago e opressivo a aguardasse.
“Tic-toc, tic-toc…”, soavam preguiçosas as batidas do vigia
noturno. “Tic-toc…”
Pela janela, grande e velha, via-se o jardim, densos arbustos de
lilases floresciam ao longe, sonolentos e murchos de frio; a neblina
espessa e branca flutuava em silêncio rumo aos lilases, queria cobri-
los. Gralhas sonolentas grasnavam nas árvores distantes.
— Meu Deus, por que estou me sentindo tão oprimida?
Talvez todas as noivas experimentassem o mesmo, antes do
casamento. Quem sabe? Ou seria a influência de Sacha?
Entretanto, Sacha dizia a mesma coisa havia vários anos, como se
recitasse de cor e, quando estava falando, o que ele dizia parecia
ingênuo e estranho. Mesmo assim, por que o Sacha não saía de sua
cabeça? Por quê?
Fazia tempo que o sinal do vigia noturno não soava. No jardim,
ao pé da janela, pássaros começavam a cantar, a neblina estava
abandonando o jardim e, como um sorriso, tudo em redor se
iluminava com a luz da primavera. Aquecido e acariciado pelo sol,
logo o jardim inteiro ganhou vida e as gotas de orvalho reluziram
nas folhas como diamantes; o jardim antigo, abandonado havia
muito tempo, parecia jovem e elegante naquela manhã.
A avó já despertara. Sacha tossia com sua voz de baixo. Ouvia-se
que, no térreo, arrastavam as cadeiras e serviam o samovar.
As horas passavam lentamente. Nádia já estava de pé havia muito
tempo e havia também muito tempo que contemplava o jardim, no
entanto, a manhã continuava a se arrastar.
Então, apareceu Nina Ivánovna, chorosa, com um copo de água
mineral na mão. Ela estudava espiritismo, homeopatia, lia muito,
adorava conversar sobre as dúvidas que a assaltavam e Nádia tinha a
impressão de que tudo aquilo continha um significado profundo,
misterioso. Agora, Nádia beijou a mãe e se pôs a caminhar a seu
lado.
— Por que estava chorando, mamãe? — perguntou.
— Ontem à noite, comecei a ler um conto que fala de um velho
e sua filha. O velho tem um emprego não sei onde e então o chefe
se apaixona pela filha dele. Ainda não li até o fim, mas há uma
passagem em que é difícil conter as lágrimas — disse Nina
Ivánovna, e tomou uns goles do seu copo. — Hoje de manhã, eu
me lembrei do conto e chorei de novo.
— Pois, para mim, estes dias todos têm sido muito tristes —
disse Nádia, após um breve silêncio. — Por que eu passo as noites
sem dormir?
— Não sei, querida. Quando não durmo à noite, fecho os olhos
com toda a força, olhe, assim, e imagino a Anna Kariênina, como
ela caminha, como ela fala, ou imagino alguma cena histórica, da
antiguidade…
Nádia sentiu que a mãe não a compreendia nem era capaz de
compreender. Sentia aquilo pela primeira vez na vida e chegou a ter
medo, quis se esconder, e fugiu para o seu quarto.
Às duas horas, sentaram-se à mesa para almoçar. Era quarta-
feira, dia de jejum e, por isso, serviram para a vovó sopa de
beterraba sem carne, especial para os dias de jejum, e carpa com
kacha.[107]
A fim de provocar a vovó, Sacha tomou a sopa de beterraba do
jejum, mas também o seu caldo de carne de sempre. Durante todo
o almoço, ele dizia gracejos, no entanto, suas brincadeiras soavam
canhestras, invariavelmente denotavam algum propósito moral e
acabavam não tendo graça nenhuma, pois quando ele, antes de
algum dito jocoso, erguia os dedos muito compridos, esquálidos
como os de um cadáver, logo vinha à mente de todos que Sacha se
encontrava gravemente enfermo e que talvez não tivesse mais
muito tempo neste mundo; em tal situação, ele dava muita pena e
as pessoas chegavam à beira das lágrimas.
Após o almoço, a vovó foi para seu quarto, descansar. Nina
Ivánovna tocou um pouco de piano e, depois, também se retirou.
— Ah, minha querida Nádia — Sacha deu início à sua conversa
de sempre, depois do almoço. — Se a senhora pelo menos me
ouvisse! Quem dera!
Sentada bem fundo na velha poltrona macia, Nádia mantinha os
olhos fechados, enquanto Sacha caminhava pela sala, de uma ponta
à outra.
— Se pelo menos a senhora fosse estudar! — dizia. — Só as
pessoas muito cultas e os santos são interessantes, só eles são
necessários. Afinal, quanto mais pessoas assim houver, mais cedo
virá o Reino de Deus na terra. E da sua cidade, então, pouco a
pouco, não restará pedra sobre pedra. Tudo será virado de pernas
para o ar, tudo vai se transformar, como num passe de mágica.
E então, aqui, haverá casas enormes, majestosas, jardins
deslumbrantes, chafarizes prodigiosos, pessoas extraordinárias…
Mas o principal não é isso. O principal é que a multidão, no sentido
em que nós entendemos a palavra, a multidão tal como é hoje, toda
esta maldade, não vai mais existir, porque todas as pessoas vão
acreditar e cada pessoa vai saber para que vive e ninguém vai tentar
se apoiar na multidão. Minha querida, adorada, vá embora! Mostre
a todos que está farta desta vida cinzenta, estagnada, pecadora.
Mostre isso, nem que seja só para si mesma!
— Não posso, Sacha. Eu vou casar.
— Ah, chega! De que adianta tudo isso?
Foram para o jardim, caminharam um pouco.
— De todo modo, minha cara, é preciso refletir, é preciso
compreender como é impura, como é imoral esta vida ociosa de
vocês — prosseguiu Sacha. — Tente entender, por exemplo, que se
a senhora, a sua mãe e a sua avó não fazem nada, quer dizer que
outras pessoas estão trabalhando por vocês, que vocês estão se
alimentando à custa da vida dos outros; por acaso isso é puro, por
acaso não é sórdido?
Nádia queria dizer: “sim, é verdade”; queria dizer que
compreendia; porém romperam lágrimas em seus olhos, ela
emudeceu de repente, encolheu-se toda e fugiu para o seu quarto.
Antes do anoitecer, Andrei Andreitch chegou e, como de hábito,
tocou violino por muito tempo. Em geral, era de poucas palavras e
talvez adorasse o violino porque, enquanto tocava, podia manter-se
mudo. Às onze horas, quando foi embora, já de casaco, abraçou
Nádia e sentiu forte desejo de beijar seu rosto, seus ombros, suas
mãos.
— Minha querida, adorada, linda!… — balbuciava. — Ah, como
estou feliz! Estou ficando louco de tanta alegria!
E Nádia teve a impressão de já ter ouvido aquilo muito, muito
tempo antes, ou ter lido aquilo em algum lugar… num romance
velho, gasto e já esquecido havia muito tempo.
No salão, Sacha estava sentado à mesa e tomava chá, com o pires
apoiado em seus cinco dedos compridos. Nina Ivánovna estava
lendo. A chama fraca crepitava na lamparina e parecia que tudo
estava tranquilo e corria muito bem. Nádia deu boa-noite e subiu
para o seu quarto, deitou-se e logo adormeceu. No entanto, a
exemplo da noite anterior, mal rompeu a primeira luz na
madrugada, ela despertou. Não sentia vontade de dormir, tinha a
alma inquieta, aflita. Ela se pôs sentada na cama, a cabeça apoiada
sobre os joelhos, pensava no noivo, no casamento… Por algum
motivo, lembrou que a mãe não amava o falecido marido e, agora,
não possuía nada, vivia na completa dependência da sogra, a
vozinha. E Nádia, por mais que pensasse, não conseguia conceber
por que, até então, ela vira na mãe algo de especial, extraordinário,
por que não enxergara, na mãe, uma mulher simples, comum,
infeliz.
No térreo, Sacha também não estava dormindo — ouvia-se sua
tosse. Era um homem terrível, ingênuo, pensava Nádia, e, nos
sonhos dele, em todos aqueles jardins prodigiosos e chafarizes
extraordinários, pressentia-se algo de ridículo; no entanto, por
algum motivo, na sua ingenuidade, e até no seu ridículo, havia tanta
beleza que, assim que Nádia apenas começava a ponderar se devia
mesmo ir embora dali para estudar, todo seu coração e todo seu
peito eram tomados por um frescor, inundados por um sentimento
de alegria e de exaltação.
— Mas é melhor não pensar, é melhor não pensar… —
sussurrou. — Não devo pensar nisso.
“Tic-toc…”, soaram as pancadas do vigia noturno, em algum
lugar distante. “Tic-toc… tic-toc…”

III

De repente, em meados de junho, Sacha se sentiu enfastiado e


resolveu partir para Moscou.
— Eu não consigo morar nesta cidade — dizia, com ar soturno.
— Sem água encanada, sem esgoto! No almoço, eu como com
repugnância, a imundície na cozinha é indescritível…
— Ah, espere mais um pouco, filho pródigo! — A vovó tentava
dissuadi-lo e, por algum motivo, falava em sussurros. — O
casamento é no dia sete!
— Não quero.
— Mas você pretendia ficar aqui até setembro!
— Só que agora eu não quero mais. Preciso trabalhar!
O verão transcorria úmido e frio, as árvores estavam molhadas,
tudo no jardim se mostrava tristonho e pouco acolhedor, dava de
fato vontade de ir trabalhar. No térreo e no primeiro andar, em
todos os cômodos, ouviam-se vozes femininas desconhecidas, a
máquina de costura da vovó trepidava: todos se apressavam para o
enxoval ficar pronto. Só de casacos de pele, Nádia ganhou seis, e o
mais barato, segundo a vovó, custava trezentos rublos! O rebuliço
irritava Sacha; ele se mantinha fechado em seu quarto, contrariado;
entretanto, acabou persuadido a ficar e deu sua palavra de que não
partiria antes de 1º de julho.
O tempo passava ligeiro. No dia de São Pedro,[108] depois do
almoço, Andrei Andreitch foi com Nádia à rua Moskóvskaia para,
mais uma vez, examinar a casa que tinham alugado e que, já havia
muito tempo, estava sendo preparada para os jovens. A casa tinha
dois andares, mas, por enquanto, só o andar de cima estava
mobiliado. Na sala, o chão brilhava com uma pintura que imitava
um piso de parquê, havia cadeiras vienenses, piano, uma estante
para as partituras do violino. Sentia-se o cheiro de tinta. Na parede,
pendia uma pintura a óleo, em moldura dourada: uma dama nua e, a
seu lado, um jarro lilás com a alça partida.
— Que quadro maravilhoso — disse Andrei Andreitch, e
suspirou de admiração. — É do pintor Chichmátchevski.
Mais adiante, ficava a sala de estar, com mesa redonda, poltronas
e sofá estofados de tecido azul-celeste. Acima do sofá, um grande
retrato fotográfico do pai de Andrei, de camelauco[109] ortodoxo e
medalhas. Depois, vinha a sala de jantar, com um bufê e, em
seguida, o dormitório; ali, na penumbra, jaziam duas camas, lado a
lado, e parecia que, ao decorarem aquele quarto, tinham em mente
a ideia de que, ali, sempre haveria de ser muito bom e de que
jamais poderia ser de outro modo. Andrei Andreitch conduzia
Nádia pelos cômodos do apartamento e, o tempo todo, a cingia pela
cintura; ela se sentia enfraquecida, culpada, detestava todos aqueles
cômodos, camas, poltronas, e a dama nua lhe dava náuseas. Para
Nádia, já estava bem claro que ela não tinha mais amor por Andrei
Andreitch, talvez nunca tenha havido amor nenhum. No entanto,
como dizer aquilo, para quem, para quê, ela não entendia, e não
conseguia entender, por mais que pensasse no assunto, dia após
dia, noite após noite… Ele a segurava pela cintura, falava com voz
tão carinhosa, tão discreta, ele estava tão feliz, enquanto
perambulava pela sua casa; mas, em tudo aquilo, Nádia via apenas
vulgaridade, tola, ingênua e intolerável vulgaridade, e o braço dele,
que envolvia sua cintura, lhe parecia duro e frio como um aro de
ferro. Nádia estava pronta, a qualquer instante, para fugir, chorar,
jogar-se pela janela. Andrei Andreitch levou-a para o banheiro, ali,
tocou na torneira embutida na parede e, de repente, a água jorrou.
— Que tal? — disse ele, e riu. — Mandei fazer uma caixa de
água de uns cem baldes no sótão e, agora, eu e você vamos ter água
em casa.
Foram para o pátio e, depois, para a rua, onde tomaram um
coche de praça. A poeira se erguia em nuvens densas e parecia que
logo ia chover.
— Não está com frio? — perguntou Andrei Andreitch,
estreitando as pálpebras por causa do pó.
Ela ficou muda.
— Ontem, o Sacha, você lembra, me repreendeu por eu nunca
fazer nada — disse ele, depois de um breve silêncio. — Pois é, ele
tem razão! Tem toda razão! Eu não faço nada e não consigo fazer
coisa nenhuma. Minha cara, por que é assim? Por que será que me
causa repulsa a mera ideia de que eu, algum dia, use uma insígnia
de funcionário público no chapéu[110] e vá trabalhar numa
repartição? Por que será que eu me sinto tão incomodado quando
vejo um advogado ou um professor de latim ou um membro do
judiciário? Ah, mãe Rus! Ah, mãe Rus, quantos ociosos e inúteis tu
suportas! Quantos como eu tu tens de levar nas costas, grande
sofredora!
E, como o próprio Andrei Andreitch nada fazia, ele generalizava
a situação e via naquilo um sinal dos tempos.
— Quando nos casarmos — prosseguiu —, iremos juntos para o
campo, minha cara, e lá vamos trabalhar! Vamos comprar um
pedaço de terra, com jardim, rio, e vamos trabalhar, contemplar a
vida… Ah, como vai ser bom!
Tirou o chapéu e os cabelos esvoaçaram ao vento, enquanto
Nádia escutava e pensava: “Meu Deus, quero ir para casa! Meu
Deus!”. Já bem perto de casa, cruzaram com o padre Andrei.
— Lá vai o papai! — alegrou-se Andrei Andreitch e acenou com
o chapéu. — Eu adoro o meu pai, de verdade — disse ele, enquanto
acertava as contas com o cocheiro de praça. — É um velho
maravilhoso. Um velho muito bom.
Nádia entrou em casa aborrecida, sentindo-se mal, prevendo
que teria de receber visitas a noite inteira, seria obrigada a entretê-
las, sorrir, ouvir o violino, escutar toda sorte de absurdos e só
conversar sobre o casamento. A vovó, imponente, suntuosa em seu
vestido de seda, arrogante, como sempre se mostrava diante das
visitas, estava sentada ao lado do samovar. O padre Andrei entrou,
com seu sorriso astuto.
— É uma satisfação e um abençoado consolo ver a senhora com
boa saúde — disse para a vovó, e era difícil compreender se
gracejava ou falava a sério.

IV

O vento trepidava na janela, no telhado; um assovio ressoava e,


dentro da estufa, tristonho e lastimoso, o domovói[111] entoava sua
cançãozinha. Era uma hora da madrugada. Em casa, todos estavam
na cama, mas ninguém dormia, e Nádia tinha sempre a sensação de
que, no térreo, alguém tocava violino. Ressoou uma forte pancada,
na certa o contravento de uma janela despencara. Um minuto
depois, Nina Ivánovna entrou, só de camisolão, com uma vela.
— Que batida foi essa, Nádia? — perguntou.
Naquela noite tempestuosa, com os cabelos presos numa trança
e um sorriso tímido, a mãe parecia mais velha, mais feia, mais
baixa. Nádia lembrou que, pouco tempo antes, considerava a mãe
uma pessoa extraordinária e escutava com orgulho as palavras que
ela dizia; agora, porém, nem conseguia lembrar tais palavras; tudo
que vinha à sua memória era fraco e supérfluo.
Dentro da estufa, irrompeu o canto de vozes em tom de baixo e
dava até para ouvir: “A-ah, meu De-e-eus!”. Nádia sentou-se na
cama e, de repente, agarrou com força os cabelos e desatou a
soluçar.
— Mamãe, mamãe — exclamou. — Minha adorada, se você
soubesse o que se passa comigo! Eu peço, eu imploro, me deixe ir
embora daqui! Eu suplico!
— Mas para onde? — perguntou Nina Ivánovna, sem
compreender, e sentou-se na cama. — Ir embora para onde?
Nádia chorou por muito tempo, incapaz de pronunciar qualquer
palavra.
— Deixe que eu vá embora desta cidade! — falou, afinal. — Esse
casamento não deve acontecer, e não vai acontecer… Compreenda!
Eu não amo esse homem… Não consigo nem falar sobre ele.
— Não, minha querida, não — respondeu Nina Ivánovna,
falando depressa, tremendamente assustada. — Acalme-se… Sua
alma está abalada. Isso vai passar. Acontece. Na certa, teve uma
briga com o Andrei; mas todo mundo sabe que brigas de
namorados terminam em beijos.
— Então vá embora, mamãe, vá embora! — Nádia desatou a
chorar.
— Pois é — disse Nina Ivánovna, após breve silêncio. — Não faz
muito tempo, você era um bebê, mas agora já é noiva. Na natureza,
há uma constante transformação da matéria. Sem perceber, você
mesma vai ser mãe, vai ficar velha e terá uma filha rebelde, igual à
que eu tenho.
— Minha querida, meu anjo, você é inteligente, você é infeliz —
disse Nádia para a mãe. — Você é muito infeliz… Por que diz essas
vulgaridades? Pelo amor de Deus, por quê?
Nina Ivánovna quis dizer alguma coisa, mas não conseguiu
pronunciar nenhuma palavra, soluçou e foi para seu quarto. As
vozes de baixo recomeçaram a zunir dentro da estufa e, de repente,
veio um medo. Nádia se ergueu da cama bruscamente e foi
depressa ver a mãe. Nina Ivánovna, chorando, jazia estirada na
cama, embaixo de um cobertor azul, com um livro nas mãos.
— Mamãe, me escute! — exclamou Nádia. — Eu imploro, reflita
e entenda! Entenda a que ponto a nossa vida é mesquinha e
humilhante. Os meus olhos se abriram, agora vejo tudo. E o que é o
seu Andrei Andreitch? Ele não tem nada de inteligente, mamãe!
Meu Deus do céu! Entenda, mãe, ele é um tolo!
Num movimento brusco, Nina Ivánovna se pôs sentada.
— Você e a sua avó vivem me atormentando! — disse, entre
soluços. — Eu quero viver! Viver! — repetiu e bateu duas vezes o
punho cerrado contra o peito. — Deem-me a liberdade! Eu ainda
sou jovem, quero viver, mas vocês me transformaram numa
velha!…
Desatou a chorar amargamente, deitou-se e se encolheu toda
embaixo do cobertor, como uma bola, e parecia tão pequena, tão
digna de pena, tão tola. Nádia foi para o seu quarto, vestiu-se,
sentou-se junto à janela e ficou aguardando o dia amanhecer.
Sentada ali, refletiu durante toda a madrugada, enquanto alguém, lá
fora, não parava de bater no contravento das janelas e assoviar.
De manhã, a vovó se queixou porque a ventania da madrugada
havia derrubado todas as maçãs no pomar e partido o tronco de
uma velha ameixeira. O tempo estava úmido, escuro, triste, as luzes
tinham de ficar acesas; todos reclamavam do frio e a chuva batia
forte nas janelas. Depois do chá, Nádia foi ao quarto de Sacha e,
sem dizer nenhuma palavra, se pôs de joelhos num canto, junto à
poltrona, e cobriu o rosto com as mãos.
— O que foi? — perguntou Sacha.
— Eu não consigo… — respondeu. — Eu não entendo como fui
capaz de viver aqui até agora, não consigo compreender! Eu
desprezo o meu noivo, desprezo a mim mesma, desprezo toda essa
vida ociosa, absurda…
— Tudo bem, tudo bem… — disse Sacha, ainda sem atinar do
que se tratava. — Está tudo bem… Não há de ser nada.
— Eu tomei nojo dessa vida — prosseguiu Nádia. — Eu não vou
suportar ficar aqui nem mais um dia. Amanhã mesmo, vou embora.
Leve-me com você, pelo amor de Deus!
Sacha olhou supreso para ela, por um minuto; enfim,
compreendeu e alegrou-se como uma criança. Abriu os braços e
começou a sapatear de leve, como se dançasse de alegria.
— Que ótimo! — disse, esfregando as mãos uma na outra. —
Meu Deus, que maravilha.
Nádia olhava para ele sem pestanejar, com olhos grandes e
apaixonados, como que enfeitiçada, à espera de que ele fosse dizer
algo importante, incomensurável por sua relevância; Sacha
continuava sem dizer nada, mesmo assim, para Nádia, parecia que,
à sua frente, se revelava algo novo e vasto, algo que até então ela
desconhecia, e olhava para Sacha repleta de expectativas, disposta a
tudo, mesmo que fosse a morte.
— Amanhã, eu vou embora — disse ele, após refletir um pouco.
— E a senhora irá até a estação para se despedir de mim… Eu vou
levar sua bagagem na minha mala e vou comprar a sua passagem; na
hora do terceiro apito do trem, a senhora vai entrar no vagão… e
nós vamos embora. Acompanhe-me até Moscou e, de lá, a senhora
pode seguir viagem sozinha para Petersburgo. A senhora tem
passaporte?
— Tenho.
— Juro que a senhora não vai lamentar nem vai se arrepender —
disse Sacha com entusiasmo. — Vá embora, vá estudar e, lá, deixe
que o destino a conduza. Quando a senhora der uma reviravolta na
sua vida, tudo vai ser diferente. O principal é dar uma reviravolta na
vida, tudo o mais não importa. Então, quer dizer que nós vamos
embora amanhã?
— Ah, sim! Pelo amor de Deus!
Nádia tinha a impressão de que estava muito transtornada, de
que carregava um peso na alma, como nunca antes, e parecia que,
até a hora da partida, teria de sofrer e pensar de modo torturante;
no entanto, assim que subiu para seu quarto e deitou na cama,
adormeceu imediatamente, num sono profundo, até o fim do dia, o
rosto em lágrimas e com um sorriso.

V
Chamaram um coche de praça. Já de chapéu e casaco, Nádia subiu
ao primeiro andar para, uma vez mais, ver sua mãe, ver tudo o que
era seu; deteve-se um momento em seu quarto, perto da cama,
ainda quente, observou bem e, depois, sem fazer barulho, entrou
no quarto da mãe. Nina Ivánovna dormia, o quarto estava em
silêncio. Nádia beijou a mãe e arrumou seus cabelos, permaneceu
ali cerca de dois minutos… Em seguida, sem pressa, desceu
novamente.
Lá fora, chovia forte. O coche, com a capota abaixada, todo
molhado, aguardava junto à varanda.
— Não tem lugar para você, Nádia — disse a vovó, quando a
criada começou a arrumar as malas no coche. — E, afinal, de onde
vem toda essa vontade de ir à estação com um tempo desse? É
melhor ficar em casa. Nossa, olhe só que chuva!
Nádia queria dizer algo e não conseguia. Então, Sacha acomodou
Nádia sentada no coche e cobriu suas pernas com a manta. Em
seguida, sentou-se a seu lado.
— Boa viagem! Que Deus abençoe! — gritou a vovó, da varanda.
— Sacha, escreva de Moscou para nós!
— Está certo. Adeus, vozinha!
— Que a Rainha do Céu o proteja e guarde!
— Puxa, que tempinho! — exclamou Sacha.
Só então, Nádia desatou a chorar. Agora, para ela, estava claro
que iria embora dali, a todo custo, algo em que, apesar de tudo,
ainda não acreditava na hora em que se despediu da avó e quando
olhou para a mãe. Adeus, cidade! E, de repente, de uma só vez,
tudo lhe veio à memória: Andrei, o pai dele, o quadro novo, a dama
nua com a jarra; e tudo aquilo já não assustava, não oprimia, parecia
ingênuo, diminuto, e ia ficando para trás, cada vez mais distante.
Quando tomaram seu assento no vagão e o trem partiu, todo aquele
passado, tão vasto e tão grave, se encolheu em uma bolinha, e
desdobrou-se à sua frente um futuro imenso, largo, que até então
era quase imperceptível. A chuva batia na janela do vagão, só se via
um campo verde, postes telegráficos e pássaros pousados nos fios
passavam em lampejos e, de repente, a alegria cortou sua
respiração: Nádia se deu conta de que partia rumo à liberdade,
estava indo embora para estudar, e de que era o mesmo que, em
outros tempos, se chamava de “fugir para os cossacos”.[112] Ela ria,
chorava, rezava.
— Tudo be-e-em! — dizia Sacha, com um risinho. — Tudo be-e-
em!
VI

O outono se foi, depois passou o inverno. Nádia sentia muita


saudade, todo dia pensava na mãe e na avó, e também em Sacha. As
cartas de casa chegavam tranquilas, afetuosas, e parecia que tudo
estava esquecido e perdoado. Em maio, depois dos exames,
saudável e alegre, Nádia viajou para casa e, no caminho, se deteve
em Moscou para visitar Sacha. Ele continuava o mesmo, tal como
no verão anterior: barbado, cabelos arrepiados, sempre o mesmo
sobretudo e a mesma calça de brim, os mesmos olhos grandes e
bonitos de sempre; no entanto, tinha aspecto doentio,
atormentado, envelhecido, estava magro e tossia o tempo todo. E,
por algum motivo, Nádia o achou cinzento, provinciano.
— Meu Deus, Nádia chegou! — disse ele, e deu uma risada de
alegria. — Minha adorada, meu anjo!
Ficaram um pouco na litografia, no meio do ar enfumaçado e do
cheiro sufocante de tintas e nanquim; depois, foram para o quarto
de Sacha, também enfumaçado e imundo; em cima da mesa, ao
lado de um samovar frio, havia um papel escuro sobre um prato
partido, muitas moscas mortas no chão e também sobre a mesa.[113]
Em tudo, ali, se percebia que Sacha tratava sua vida pessoal com
desmazelo, vivia ao sabor do acaso, com total desprezo pelo
conforto e, se alguém lhe falava a respeito de sua felicidade pessoal,
sua vida pessoal, sobre o amor de alguém por ele, Sacha não
conseguia compreender e se limitava a rir.
— Foi muito bom, tudo correu às mil maravilhas — explicou
Nádia, às pressas. — Mamãe foi me visitar em Petersburgo no
outono, disse que a vovó não está zangada, só que vai sempre ao
meu quarto e faz o sinal da cruz para as paredes.
Sacha parecia alegre, porém tossia um pouco, falava com voz
trêmula, e Nádia olhava para ele sem compreender se estava de fato
doente, com gravidade, ou era só impressão sua.
— Sacha, meu querido — disse. — Será que você está mesmo
doente?
— Não, não é nada. Eu estou doente, mas não muito…
— Ah, meu Deus — Nádia se perturbou. — Por que o senhor
não se trata, por que não cuida de sua saúde? Meu caro, meu
adorado Sacha — exclamou, lágrimas rolaram de seus olhos e, por
algum motivo, em sua imaginação, surgiram Andrei Andreitch, a
dama nua com a jarra e todo seu passado, que agora lhe parecia tão
distante quanto a infância; e ela chorou, porque Sacha já não
parecia tão novo, inteligente, interessante, como no ano anterior.
— Querido Sacha, o senhor está muito, muito doente. Nem sei o
que eu faria para que o senhor não estivesse tão pálido e magro. Eu
devo tanto ao senhor! Nem pode imaginar quanto o senhor fez por
mim, meu bom Sacha! No fundo, agora, o senhor é a pessoa mais
querida para mim, a pessoa por quem eu mais tenho carinho.
Ficaram ali e conversaram um pouco; depois de ter passado o
inverno em Petersburgo, Nádia tinha a impressão de que Sacha,
suas palavras, seu sorriso e toda sua figura exalavam algo de
antiquado, obsoleto, há muito tempo já decrépito, talvez até já
morto e enterrado.
— Depois de amanhã, eu vou para o Volga — disse Sacha. —
Pois é, depois vou me tratar com kumis.[114] Eu quero beber kumis.
Comigo vão também um amigo e sua esposa. Ela é uma pessoa
admirável; eu não lhe dou sossego, insisto o tempo todo para que
vá estudar. Quero que ela dê uma reviravolta na sua vida.
Terminada a conversa, foram para a estação. Sacha presenteou
Nádia com chá e maçãs; quando o trem partiu e ele, sorrindo,
abanou um lenço no ar, só pelo aspecto das pernas, se percebia que
estava muito enfermo e que não havia de viver muito tempo.
Nádia chegou à sua cidade ao meio-dia. Quando o coche a levou
da estação para casa, as ruas lhe pareceram muito largas e as casas,
pequenas e acanhadas; não viu ninguém no caminho, só um
alemão, afinador de piano, de casaco ruivo. Todas as casas pareciam
cobertas de poeira. A vovó, já de todo envelhecida, gorda e feia
como antes, envolveu Nádia em seus braços e chorou muito tempo,
com o rosto apertado contra o ombro da neta, incapaz de soltá-la.
Nina Ivánovna também envelhecera bastante, tinha o rosto
encovado, porém, como antes, ainda se enfeitava e, nos dedos,
reluziam diamantes.
— Minha querida! — disse, o corpo todo trêmulo. — Minha
querida!
Depois, sentaram e choraram, sem dizer nada. Era evidente que
a mãe e a avó se davam conta de que o passado estava perdido para
sempre, irrecuperável: não existiam mais nem posição na sociedade
nem as honras de antes nem o direito de receber convidados; era o
mesmo que acontecia quando, em meio à vida frívola e
despreocupada, de repente, à noite, ocorre uma batida policial em
casa e se revela que o proprietário cometeu fraudes, falsificações…
e adeus, para sempre, vida frívola e despreocupada!
Nádia subiu ao seu quarto e viu a mesma cama, as mesmas
janelas de cortinas brancas e ingênuas e, através das janelas, o
mesmo jardim alegre, cheio de vida, banhado de sol. Tocou a mão
de leve na sua mesa, na sua cama, sentou-se e refletiu um pouco.
Almoçou bem, tomou chá com um creme encorpado e delicioso,
mas faltava algo, sentia-se um vazio nos cômodos da casa e os tetos
eram baixos. À noite, na hora de dormir, deitou-se, cobriu-se e, por
alguma razão, achou engraçado estar naquela cama quente e muito
macia.
Nina Ivánovna entrou por um minuto, sentou-se, tímida e
cautelosa, como quem tem alguma culpa.
— E então, Nádia? — perguntou, após breve silêncio. — Está
contente? Muito contente?
— Estou contente, mamãe.
Nina Ivánovna levantou-se e fez o sinal da cruz para Nádia e para
a janela.
— Pois eu, como está vendo, virei uma pessoa religiosa — disse.
— Sabe, agora estudo filosofia e fico pensando, eu penso o tempo
todo… Agora, para mim, muita coisa ficou clara como o dia. Antes
de tudo, me parece, é preciso que a vida inteira passe como que
através de um prisma.
— Diga, mamãe, como anda a saúde da vovó?
— Parece que vai bem. Quando você foi embora com o Sacha e
chegou o seu telegrama, assim que a vovó leu, desmaiou; passou
três dias na cama, sem se mexer. Depois, ela rezava e chorava o
tempo todo. Agora, está bem.
Nina Ivánovna levantou-se e caminhou pelo quarto.
“Tic-toc…”, soaram as batidas do vigia. “Tic-toc, tic-toc…”
— Antes de tudo, é preciso que a vida inteira passe como que
através de um prisma — disse ela. — Ou seja, em outras palavras, é
preciso que a vida, na consciência, se divida em seus elementos
mais simples, como as sete cores elementares, e é preciso estudar
cada elemento em particular.
Nina Ivánovna ainda disse mais alguma coisa, porém, quando
saiu, Nádia já não estava ouvindo, pois adormecera rapidamente.
Maio passou, começou junho. Nádia já se sentia em casa. A vovó
cuidava do samovar, suspirava fundo; à noite, Nina Ivánovna falava
de sua filosofia; como antes, vivia como uma parasita naquela casa
e, a cada vinte copeques de que precisava, era obrigada a apelar
para a avó. Em casa, havia muitas moscas e o teto dos cômodos
parecia tornar-se mais baixo a cada dia. A avozinha e Nina Ivánovna
não saíam à rua, com medo de encontrar o padre Andrei e Andrei
Andreitch. Nádia caminhava pelo jardim, pela rua, olhava para as
casas, para as cercas cinzentas, e tinha a impressão de que, na
cidade, já fazia tempo que tudo envelhecera, se tornara obsoleto, e
apenas aguardava ou o fim ou o começo de algo jovem e fresco. Ah,
quem dera tivesse logo início aquela vida nova, radiante, quando
será possível olhar de frente, sem medo, nos olhos do próprio
destino, reconhecer que se está do lado certo, ser alegre, livre!
Cedo ou tarde, há de começar essa vida! Afinal, virá o tempo em
que a casa da avozinha, onde tudo está organizado para que quatro
criadas não tenham alternativa senão morar num único quarto, no
porão, na imundície — virá o tempo em que, daquela casa, não
restará o menor vestígio, será esquecida, ninguém vai mais se
lembrar. Só os meninos do terreno vizinho distraíam Nádia;
quando ela passeava pelo jardim, eles batiam na cerca e mexiam
com ela:
— Noiva! Noiva!
Chegou de Sarátov uma carta de Sacha. Com sua letra alegre e
dançante, contava que a viagem pelo Volga fora um grande sucesso,
porém sua saúde havia piorado um pouco em Sarátov, ele perdera a
voz e já fazia duas semanas que estava no hospital. Nádia
compreendeu o que aquilo significava e um pressentimento,
semelhante a uma certeza, a dominou. Percebeu com desagrado
que aquele pressentimento, bem como os pensamentos sobre
Sacha, não a emocionavam como antes. Nádia, com toda a paixão,
queria viver, queria ir para Petersburgo, e sua amizade com Sacha
lhe parecia algo doce, porém já distante, muito distante, no
passado! Ficou acordada a noite inteira e, de manhã, sentou-se
junto à janela e se pôs a escutar. De fato, vozes soavam lá embaixo;
muito alterada, a vovó fazia perguntas, falava depressa. Depois,
alguém começou a chorar… Quando Nádia desceu, vovó estava de
pé, num canto, rezando, o rosto coberto de lágrimas. Sobre a mesa,
um telegrama.
Nádia ficou andando pela sala, por muito tempo, enquanto ouvia
a vovó chorar, depois pegou o telegrama e leu. Informava que, na
manhã anterior, em Sarátov, vítima de tuberculose, falecera
Aleksandr Timoféitch, ou simplesmente Sacha.
Vovó e Nina Ivánovna foram à igreja encomendar a missa
fúnebre, enquanto Nádia ficou em casa, caminhando muito tempo
pelos cômodos e pensando. Ela se deu conta de que sua vida dera
uma reviravolta, como era o desejo de Sacha, que ali ela estava
sozinha, era uma estranha, supérflua, que nada ali lhe fazia falta,
que tudo que existia antes havia se apartado dela, e desaparecera,
como se tivesse ardido nas chamas e as cinzas tivessem sido
espalhadas pelo vento. Nádia entrou no quarto de Sacha, se deteve
um pouco ali.
“Adeus, querido Sacha!”, pensou e, à sua frente, retratou-se uma
vida nova, larga, vasta, e aquela vida, ainda desconhecida, cheia de
mistérios, atraía e fascinava Nádia.
Ela subiu ao seu quarto, fez as malas e, na manhã seguinte,
despediu-se da família e, alegre, cheia de vida, deixou a cidade,
assim supunha, para sempre.

1903
ANTON TCHÉKHOV nasceu em 1860 em Taganrog, um porto no
Mar de Azov, na Rússia. Após receber uma educação clássica em
sua cidade natal, mudou-se para Moscou em 1879 para estudar
medicina, diplomando-se em 1884. Ainda nos tempos de faculdade
conseguiu sustentar sua família graças a histórias humorísticas,
contos e esquetes publicados com enorme sucesso em diversas
revistas e jornais. Estreou em livro em 1886, e no ano seguinte já
receberia o prêmio Púchkin pelo seu segundo livro. Suas histórias
mais famosas foram escritas depois que retornou da temerária
viagem à Sacalina. A montagem por Stanislávski de sua peça A
gaivota, de 1898, consolidou sua fama no teatro, gênero em que
deixou alguns dos mais importantes textos da história, como Tio
Vânia, Três irmãs e O jardim das cerejeiras. Com a saúde debilitada
após contrair tuberculose, mudou-se para Ialta, onde entrou em
contato com Tolstói e Górki, e seria nessa cidade na costa do Mar
Negro que passaria o resto de seus dias. Em 1901 casou-se com
Olga Knipper, atriz do Teatro Artístico de Moscou. Morreu em
1904.

RUBENS FIGUEIREDO nasceu em 1956, no Rio de Janeiro.


Como escritor, publicou os romances Barco a seco e Passageiro do
fim do dia, além dos livros de contos As palavras secretas e O livro
dos lobos, entre outros. Como tradutor, verteu as obras de grandes
autores como Dostoiévski, Turguêniev, Tolstói e Bábel, além de
numerosos escritores contemporâneos de língua inglesa. Para a
Todavia, traduziu Infância, adolescência, juventude (Tolstói, 2018), A
ilha de Sacalina (Tchékhov, 2018), Crime e castigo (Dostoiévski,
2019) e Novelas completas (Tolstói, 2020).
© Todavia, 2023
© Tradução e apresentação, Rubens Figueiredo, 2023

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Original usado para esta tradução:


Чехов А. П., Полное собрание сочинений и писем в 30 т. ан ссср.
Москва: Наука, t. 10. Рассказы, повести, 1898-1903, 1986
[Tchékhov, A. P., Obra completa e cartas em 30 volumes. Academia de
Ciências da urss. Moscou: Naúka. v. 10: Contos, novelas, 1898-1903,
1986.]

capa
Fernanda Ficher
obra de capa
The Gang (2021), de Guim Tió
preparação
Leny Cordeiro
revisão
Paula Queiroz
Gabriela Rocha
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Tchékhov, Anton (1860-1904)


Últimos contos / Anton Tchékhov ; tradução e apresentação Rubens Figueiredo. — 1.
ed. — São Paulo : Todavia, 2023.

ISBN 978-65-5692-466-3

1. Literatura russa. 2. Contos. I. Figueiredo, Rubens. II. Título.

CDD 890

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura russa 890

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB 10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
1. Carta de Tchékhov a Ivan Pavlóvski, 28 de abril de 1898.
[ «« ]

2. Cidade situada a 190 quilômetros ao sul de Moscou. [Esta e as


demais notas chamadas por número são do tradutor.]
[ «« ]

3. Hipocorístico do nome Mikhail.


[ «« ]

4. Fica claro que Kuzmínki é o nome de uma grande propriedade


rural.
[ «« ]

5. Atual estação Bielarúski, em Moscou.


[ «« ]

6. Rua central de Moscou. Local de boemia, na época.


[ «« ]

7. Nome de casa noturna. Significa local onde trabalham


esfoladores.
[ «« ]

8. Era costume, entre homens, cumprimentar-se com três beijos,


nas duas faces e nos lábios.
[ «« ]

9. Francês: “Nunca em minha vida”.


[ «« ]

10. Hipocorístico de Tatiana.


[ «« ]

11. Alusão a uma fala do personagem Marcelo em Hamlet, tragédia


de Shakespeare: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”.
[ «« ]
12. Trata-se do poema “A estrada de ferro” (1864), de N. A.
Nekrássov (1821-78), um dos clássicos da literatura russa.
[ «« ]

13. Referência a uma fábula de I. A. Krilóv (1769-1844), O camponês e


o trabalhador.
[ «« ]

14. Uma versta equivale a 1,067 quilômetro.


[ «« ]

15. Em russo, escaravelho, besouro.


[ «« ]

16. Cidade no Uzbequistão, na Ásia Central.


[ «« ]

17. Quarenta dias após a Páscoa.


[ «« ]

18. Verso do poema “Elegia”, do poeta russo Anton Delvig (1798-


1831). Musicado posteriormente por M. L. Iákovlev.
[ «« ]

19. Trata-se do nome francês Jean seguido do sufixo diminutivo


russo. O nome Ivan corresponde ao francês Jean.
[ «« ]

20. Francês: “Diga para servirem o chá”.


[ «« ]

21. “Lutchínuchka”, canção popular russa.


[ «« ]

22. Gatinha.
[ «« ]

23. Dito famoso, atribuído ao príncipe Potiómkin (1739-91), após a


primeira apresentação da peça O menor de idade, do escritor russo
Denis Fonvinzin (1744-92).
[ «« ]

24. Em russo, pavoa.


[ «« ]

25. Da tragédia Otelo, de Shakespeare.


[ «« ]

26. Verso da canção “Noite”, do compositor russo A. G. Rubinstein


(1829-94), adaptado de um verso de Púchkin.
[ «« ]

27. Aleksei Feofeláktovitch Píssemski (1821-81), escritor russo,


autor do romance Mil almas (1858). A personagem, logo a seguir,
abrevia e altera um pouco o patronímico do escritor.
[ «« ]

28. João, 5,28: “Não vos admireis com isto: vem a hora em que
todos os que repousam no sepulcro ouvirão sua voz”.
[ «« ]

29. No original, o personagem constrói uma palavra russa a partir


da forma francesa bonjour (bom dia).
[ «« ]

30. O uso apenas do patronímico denota informalidade, maior


familiaridade.
[ «« ]

31. O nome russo é composto de três partes: prenome, patronímico


(formado a partir do prenome do pai) e sobrenome de família. No
caso, o nome completo é: Ivan Ivánitch (ou Ivánovitch) Tchimcha-
Guimaláiski.
[ «« ]

32. Em grego, homem.


[ «« ]
33. Refere-se a dois grandes escritores russos: Ivan Turguêniev
(1818-83) e Saltikov-Shchedrin (1826-89).
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34. Thomas Buckle (1821-62). Historiador inglês.


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35. Denominação usual da Ucrânia, na época.


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36. Canção popular ucraniana.


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37. Título do funcionalismo público no Império Russo,


correspondente à quinta classe, numa escala de catorze classes.
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38. Alemão [incorreto]: escândalo colossal.


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39. Referência à peça O explorador ou a aranha, do dramaturgo


ucraniano M. L. Kropivnítski (1840-1910), a que Tchékhov assistiu
em 1893.
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40. Após atingir o topo da carreira, o funcionário civil ou militar


ganhava um título da chamada nobreza hereditária, distinta da
nobreza antiga, histórica, que não era titulada.
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41. Um archin equivale a 71 centímetros.


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42. Intelectualidade, a camada instruída da sociedade. Por vezes, denota sua vanguarda
política.
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43. Sopa de legumes, à base de repolho.


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44. Uma deciatina equivale a 1,45 hectare.
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45. Denominação histórica dos grandes senhores de terras.


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46. Espécie de sauna tradicional russa, associada a diversos


costumes.
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47. Citação inexata do poema “O herói” (1830), de Púchkin.


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48. No singular, pirojok. Pastéis típicos, doces ou salgados. É o


diminutivo de pirog, empadão tradicional.
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49. Importante periódico progressista.


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50. Trata-se da rua Bolchaia Polianka.


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51. Refere-se ao poema “O demônio”, do poeta romântico russo


Liérmontov (1814-41).
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52. Conselho rural com funções administrativas, formado por


senhores de terra, que vigorou entre 1864 e 1919.
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53. Principal via pública de São Petersburgo, a capital russa, na


época.
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54. A emancipação dos servos data de 1861.


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55. Expressão repetida pelos fiéis, na Páscoa da Igreja ortodoxa.


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56. Um pud equivale a 16,38 quilos.


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57. Verso de Púchkin. Evguiéni Oniéguin, capítulo v, estrofe 2.


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58. Francês: “Um copinho de Clicquot” (tipo de champanhe).


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59. Ópera de P. I. Tchaikóvski, baseada na obra homônima de A. S.


Púchkin.
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60. Hipocorístico de Olga.


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61. Posto de oitava classe na tabela de patentes do serviço público


do Império Russo.
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62. Ou O pequeno Fausto, opereta do francês Florimon Hervé (1825-


92). Paródia da ópera Fausto, de Gounot.
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63. Hipocorístico de Ivan.


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64. Opereta do francês J. O enbach (1819-80).


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65. Atual Ucrânia.


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66. Ou seja, no cemitério Vagánkovskoie.


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67. Hipocorístico de Vassíli.


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68. Um verchok equivale a 4,4 centímetros.


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69. Roscas tradicionais, feitas de massa de trigo.


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70. Hipocorístico de Vladímir.


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71. Hipocorístico de Aleksandr.


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72. Em russo, é o feminino de “cocheiro”. No caso, um jogo de


palavras com o nome do engenheiro, Kútcherov.
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73. Espécie oriunda da Baviera, muito difundida na pecuária russa


da época.
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74. Diminutivo de Volódia, hipocorístico de Vladímir.


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75. Voron, raiz do nome Vóronov, em russo, significa corvo.


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76. Canção de trabalhadores braçais, surgida na década de 1860,


que logo adquiriu caráter revolucionário. Existe em numerosas
versões, que se multiplicaram ao longo das décadas. Dubínuchka é o
diminutivo de dubina, que significa sarrafo, porrete, ou pessoa alta
e forte.
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77. Posto da décima classe do serviço civil do Império Russo, numa


escala de catorze classes.
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78. Letra que já não correspondia a nenhum som na pronúncia. A
atitude denota simpatia por reformas modernizadoras.
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79. Pronúncia tida como mais moderna, por ser mais próxima da
forma ocidental do nome.
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80. Local tradicional de veraneio ao sul da Crimeia, perto de Ialta,


frequentado pela família do tsar.
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81. Ou seja, russo. Aqui, a religião cristã ortodoxa vale como


sinônimo de nacionalidade russa.
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82. Cidade ao sul da Crimeia.


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83. Sopa tradicional russa, feita com legumes na salmoura, carne,


peixe ou cogumelos.
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84. Povoado da região de Tula, cidade russa.


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85. Trata-se de uma canção folclórica russa de meados do século


xix.
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86. As bebidas só podiam ser vendidas por estabelecimentos


autorizados pelo tsar.
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87. Festa do calendário religioso ortodoxo, equivalente, pela data,


ao Carnaval.
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88. Em russo, Belo Morrinho. Nome popular do primeiro domingo


após a Páscoa ou dos dias imediatamente seguintes. Data preferida
para casamentos.
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89. Em russo, khlisti, da palavra russa khlíst, chicote. Acreditavam


na purificação por meio da flagelação, em rituais coletivos, em que
os adeptos entravam em transe. Cultuavam Jesus Cristo e também
antigas divindades eslavas pagãs. Trata-se de uma dissidência dos
Velhos Crentes, surgida em meados do século xvii.
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90. Nome árabe, significa “o eleito”. Era muito usado para designar
a principal autoridade local em países árabes.
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91. Estilo popular de dança russa.


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92. Doce russo tradicional, em forma de quadradinhos de frutas


prensadas.
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93. Fominá nediélia, domingo de Tomé, na Igreja ortodoxa.


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94. Forma erudita do nome Aksínia.


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95. Em russo, sviátki. Trata-se dos doze dias entre o Natal e o dia 6
de janeiro.
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96. Refere-se ao psiquiatra francês Jean-Martin Charcot (1825-93),


conhecido, entre outros motivos, por criar um tratamento por meio
de duchas.
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97. Pessoa mentalmente insana, mas tida como sagrada na Igreja


ortodoxa.
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98. Trata-se de um dos sete arcanjos da Igreja ortodoxa.
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99. “Embriagar-se até a serpente verde” é a tradução de uma


expressão idiomática russa que significa beber até ter alucinações.
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100. Betula, latim: bétula. Kinder, alemão: criança. Balsamica, latim:


que cura, consola. Secuta, latim: seca. O sentido almejado seria: “A
bétula seca cura a criança”.
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101. No rito ortodoxo, equivale à hóstia.


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102. No Império Russo, a esposa ou viúva de um general recebia o


título de generala.
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103. Mateus 25,1-15.


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104. Designação histórica, de raiz mitológica, das regiões povoadas


pelos eslavos orientais, cristianizados no século xx.
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105. Na Igreja ortodoxa, os sacerdotes casam e têm filhos. Exceto


os monges.
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106. Referência à parábola do filho pródigo (Lucas 15,11-32), mas


com o texto bastante modificado.
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107. Mingau de cereais. Tradicional na culinária russa.


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108. Dia 29 de junho.


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109. Em russo, kamilavka. Chapéu cilíndrico rígido e sem abas,
usado por certos membros do clero.
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110. Os funcionários públicos usavam uniformes e uma fita, ou


insígnia, no chapéu, chamada kokarda.
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111. Espírito doméstico que habitava a estufa, na mitologia popular


russa.
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112. No século xviii, os cossacos tinham o domínio de um vasto


território no que é hoje o sul da Ucrânia, com certa independência
do Império Russo. A expressão denotava a ideia geral de fuga das
convenções sociais.
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113. Um papel com veneno era usado para matar moscas.


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114. Bebida feita de leite de égua fermentado, tradicional em várias


regiões da Rússia e países vizinhos, tida como muito benéfica à
saúde.
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A ilha de Sacalina
Tchékhov, Anton
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368 páginas

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Inédito no Brasil, o relato de Tchékov é uma contundente denúncia


do sistema prisional russo do século XIX e um feito literário
impressionante. Tradução de Rubens Figueiredo. Um jovem médico
empreende uma viagem até os confins da Rússia para documentar
as terríveis condições de vida dos condenados a trabalhos forçados
em uma ilha-presídio. Uma jornada extenuante e quase fatal que o
fez regressar com um dos textos mais impressionantes da literatura
de não ficção em todos os tempos. A denúncia de um lugar onde
pessoas eram descartadas. O relato de um inferno – cercado de
água, frio e desumanidade por todos os lados.

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A repetição
Cesarino, Pedro
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144 páginas

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Totanauá é o primeiro de seu povo a aprender a ler. Escuta do papel


palavras estranhas que falam sobre um novo tempo. Tenta transmiti-
las aos seus parentes, que recebem as revelações sem saber se
creem ou não no velho homem.
Acomodado no jardim de um hospital, M. ouve relatos de pessoas
perturbadas com sonhos de parentes mortos por uma doença
devastadora. Durante a noite, recebe visitas de mulheres-espírito
que entram pela janela de seu apartamento. Trarão elas explicações
sobre os sonhos enigmáticos? Terão os sonhos alguma relação com
o estado desolador em que se encontra a metrópole e todo o
território em que vive M.? Desde seu apartamento, o narrador
rememora a infância e descobre documentos que se conectam ao
passado por meio dos sonhos e das visões.
Nessas duas novelas reunidas em A repetição, Pedro Cesarino
narra com maestria o percurso de dois personagens envolvidos em
dilemas sobre a verdade. Situados em mundos distintos — a
floresta, a metrópole e o litoral —, ambos se confrontam com a
herança da escravidão, da violência contra povos indígenas e da
exploração econômica. Valendo-se de fatos, estudos e documentos
históricos para a escrita de ficção, Pedro Cesarino desenvolve um
registro narrativo e imagético heterodoxo, estabelecido a partir da
interlocução com pensamentos indígenas e afrocentrados ainda
pouco presentes na literatura brasileira contemporânea.

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Exploração
Wiener, Gabriela
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O corpo que protagoniza Exploração é conflagrado por questões


que remontam à história e se desdobram nos incertos movimentos
do desejo e do afeto. Gabriela Wiener une jornalismo e ensaio para
insurgir-se contra o jugo colonial de territórios, imaginário e tesão.
Wiener define o ensaio pessoal, gênero que honra na altura de uma
Vivian Gornick, como "o sofrido artesanato do eu". Não se poderia
encontrar definição melhor do exercício que resulta nestas páginas
espantosas.

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Torto arado
Vieira Jr., Itamar
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Um texto épico e lírico, realista e mágico que revela, para além
de sua trama, um poderoso elemento de insubordinação social.

Nas profundezas do sertão baiano, as irmãs Bibiana e Belonísia


encontram uma velha e misteriosa faca na mala guardada sob a
cama da avó. Ocorre então um acidente. E para sempre suas vidas
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Numa trama conduzida com maestria e com uma prosa melodiosa,
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As últimas crianças de Tóquio
Tawada, Yoko
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Em um futuro próximo, onde os idosos vivem quase para sempre e


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