Anton Tchékhov Últimos Contos - Trad. Rubens Figueiredo
Anton Tchékhov Últimos Contos - Trad. Rubens Figueiredo
Anton Tchékhov Últimos Contos - Trad. Rubens Figueiredo
Últimos contos
tradução e apresentação
Rubens Figueiredo
Apresentação
Em casa de amigos
Iónitch
O homem no estojo
A groselheira
Sobre o amor
Um caso médico
Coisas de trabalho
A queridinha
A Nova Datcha
A dama do cachorrinho
No barranco
Nas festas de Natal
O bispo
A noiva
Autor
Créditos
Apresentação
Rubens Figueiredo
Em casa de amigos
Querido Micha,
O senhor se esqueceu de nós por completo, venha depressa,
queremos ver o senhor. Imploramos, nós duas, de joelhos.
Venha hoje, deixe-nos ver os seus olhos radiantes. Aguardamos
com impaciência.
Ta e Va.
Kuzmínki, 7 de junho.
É É
jeito? É horrível ficar com o senhor! É maçante, me deixa à beira do
estupor!
Dito isso, Podgórin foi para fora, batendo a porta com força.
Talvez tivesse sido a primeira vez na vida em que foi sincero e disse
o que de fato queria.
Pouco depois, já lamentava ter sido tão severo. De que adiantava
falar a sério ou discutir com uma pessoa que mentia sem parar,
comia muito, bebia muito, gastava muito o dinheiro dos outros e,
ao mesmo tempo, estava convencido de que era um idealista e uma
vítima? Tratava-se, no caso, de mera tolice ou de antigos maus
costumes que se entranharam a fundo no organismo, como uma
doença, e já não tinham mais cura. Em todo caso, indignação e
censuras severas de nada adiantavam, nas circunstâncias, o melhor
seria dar risadas; uma zombaria bem-feita produziria muito mais
resultado do que uma dezena de sermões!
“A solução mais simples era não dar atenção, e pronto”, pensou
Podgórin. “E, acima de tudo, não dar dinheiro!”
Pouco depois, já nem pensava mais em Serguei Sergueitch nem
nos seus cem rublos. A madrugada estava silenciosa, sonhadora,
muito clara. Quando olhou para o céu daquela noite enluarada,
Podgórin teve a impressão de que só ele e a lua estavam acordados,
tudo o mais dormia ou, pelo menos, cochilava; e no seu
pensamento não havia nem gente nem dinheiro, e, pouco a pouco,
seu estado de ânimo se tornou sereno, apaziguado, ele se sentiu
unido àquele mundo e, no silêncio da madrugada, o rumor dos
próprios passos lhe pareceu muito triste.
O jardim era contornado por um muro de pedras brancas. No
lado que dava para o campo, no canto direito, havia uma torre,
construída muito tempo antes, ainda na época da servidão.
Embaixo, a torre era feita de pedra e, em cima, de madeira, com um
patamar, tinha o telhado em forma de cone, com uma agulha
comprida, na qual se via um negro cata-vento. No térreo, havia
duas portas, de modo que era possível passar do jardim para o
campo, e para cima, rumo ao patamar, havia uma escada que rangia
sob o peso dos pés. Embaixo da escada, amontoavam-se velhas
poltronas quebradas, e o luar, que agora penetrava pela porta,
iluminava as poltronas, e elas, com suas pernas tortas e viradas para
cima, pareciam ter ganhado vida de madrugada e ali, no silêncio,
era como se estivessem à espera de alguém.
Podgórin subiu pela escada até o patamar e sentou-se. Logo
depois do muro, havia uma vala com uma mureta, para marcar a
divisa, e depois vinha o campo, vasto, iluminado pelo luar.
Podgórin sabia que seguindo em linha reta, à frente, a três
verstas[14] do jardim, ficava o bosque, e agora ele tinha a impressão
de estar vendo, ao longe, uma faixa escura. As codornas e as
codornizes piavam; de vez em quando, do lado do bosque, vinha o
canto de um cuco, que também estava acordado.
Soaram passos. Alguém caminhava pelo jardim, na direção da
torre.
Um cachorro latiu.
— Juk![15] — ordenou uma voz baixa, de mulher. — Juk! Para
trás!
De baixo, veio o som de alguém entrando na torre e, após um
minuto, surgiu na mureta o cão negro, velho conhecido de
Podgórin. Ele parou, olhou para cima, para o lugar onde Podgórin
estava sentado, e abanou o rabo com ar amistoso. Em seguida, após
um breve intervalo, como uma sombra que saísse da vala escura,
ergueu-se um vulto branco que também parou na mureta. Era
Nadiejda.
— O que você está vendo lá? — perguntou ela para o cachorro, e
se pôs a olhar para cima.
Não estava vendo Podgórin, mas na certa sentia sua presença,
pois sorriu, e o rosto pálido, iluminado pela lua, parecia feliz. A
sombra negra da torre, que se estendia até bem longe, sobre a terra,
pelo campo, o vulto branco e imóvel, com um sorriso de enlevo no
rosto pálido, o cachorro preto, as sombras dos dois — tudo parecia
um sonho…
— Alguém está lá em cima… — falou Nadiejda, baixinho.
Ficou parada, à espera de que Podgórin descesse ou a chamasse
para junto dele e, afinal, se declarasse, e os dois seriam felizes,
naquela madrugada linda e serena. Branca, pálida, esguia, muito
bonita à luz da lua, ela esperava carinhos; seus constantes sonhos
de felicidade e amor a consumiam, ela já não tinha mais forças para
esconder seus sentimentos e toda sua figura, os olhos radiantes, o
sorriso feliz e imutável, revelavam seus pensamentos secretos, e
Podgórin ficou encabulado, retraiu-se, emudeceu sem saber se
devia dizer algo que transformasse tudo em mera brincadeira,
como era seu costume, ou manter-se calado, e então sentiu uma
irritação e só conseguiu pensar que ali, naquele jardim, numa noite
de luar, perto de uma jovem bela, apaixonada, sonhadora, ele se
sentia tão indiferente quando na rua Málaia Brónnaia — e, sem
dúvida, era por isso que, para ele, essa poesia era tão obsoleta
quanto aquela prosa grosseira. Obsoletos também eram os
encontros ao luar, as figuras femininas brancas e de cinturas finas,
as sombras misteriosas, as torres, os jardins e os “tipos” como
Serguei Sergueitch, e também como ele mesmo, Podgórin, com
seu tédio frio, sua irritação constante, sua incapacidade de adaptar-
se à vida real, sua incapacidade de tomar da vida aquilo que ela
podia oferecer, e com essa lamuriosa e enfadonha sede de algo que
não existe nem pode existir neste mundo. E agora, ali sentado
naquela torre, ele preferia uns fogos de artifício bonitos ou algum
desfile ao luar ou Vária recitando de novo “A estrada de ferro” ou
mesmo outra mulher que, de pé na mureta, lá onde agora estava
Nadiejda, contasse algo interessante, novo, sem nenhuma relação
com o amor nem com a felicidade e, no entanto, se falasse de amor,
que fosse como um chamado para novas formas de vida, elevadas e
racionais, cuja véspera já estamos vivendo, talvez, e que às vezes
até pressentimos…
— Não tem ninguém lá… — disse Nadiejda.
Depois de aguardar mais um minuto, ela seguiu rumo ao
bosque, devagar, de cabeça baixa. O cachorro foi correndo na
frente. E Podgórin, ainda por muito tempo, ficou vendo aquela
mancha branca.
“Mas como é que tudo ficou assim tão complicado…”, repetia
em pensamento, enquanto voltava ao seu quarto, na casinha anexa.
Não conseguia imaginar o que ia dizer para Serguei Sergueitch e
Tatiana, no dia seguinte, como ia se portar na frente de Nadiejda —
e também no terceiro dia, e, por antecipação, já sentia o
constrangimento, o medo, o tédio. Como preencher aqueles três
dias compridos que prometera passar ali? Veio à memória a
conversa a respeito de visões sobrenaturais e a frase feita de Serguei
Sergueitch: “Nem gemer ele conseguiu, quando sobre ele um urso
caiu”, lembrou-se de que no dia seguinte, para agradar a Tatiana,
teria de sorrir para suas filhas bem nutridas, rechonchudas… e
decidiu ir embora.
Às cinco e meia, na varanda da casa principal, apareceu Serguei
Sergueitch com um roupão de Bukhara[16] e, na cabeça, um fez com
uma borla pendurada. Podgórin, sem perder um minuto, foi até ele
e tratou de se despedir.
— Eu preciso estar em Moscou às dez horas — disse, sem olhar
para ele. — Esqueci completamente que estarão à minha espera no
cartório. Por favor, deixe-me partir. Quando elas se levantarem,
diga que peço desculpas e que lamento tremendamente…
Nem ouviu o que Serguei Sergueitch respondeu e se retirou
afobado, virando-se toda hora a fim de olhar para as janelas da casa
principal, receoso de que as damas despertassem e o retivessem ali.
Tinha vergonha de seu nervosismo. Sentia que era a última vez que
veria Kuzmínki e, ao partir, virou-se várias vezes para olhar para a
casinha anexa onde, em outros tempos, vivera tantos dias bonitos,
mas sua alma estava fria, sem sinal de tristeza…
Já em casa, sobre a mesa, viu, antes de tudo, o bilhete que
recebera na véspera. “Querido Micha”, leu. “O senhor se esqueceu
de nós por completo, venha depressa…” E, por algum motivo,
lembrou-se de como Nadiejda rodopiava ao dançar, como seu
vestido inflava e se viam os pés calçados em meias cor de pele…
Dez minutos depois, já estava sentado à mesa, trabalhando, e
não pensava mais em Kuzmínki.
1898
Iónitch
Quando se deitou para dormir, após percorrer nove verstas, ele não
sentia o menor cansaço, ao contrário, tinha a impressão de que
andaria com prazer mais vinte verstas.
“Muito meritório…”, lembrou, enquanto pegava no sono, e deu
uma risada.
II
III
IV
1898
O homem no estojo
1898
A groselheira
1898
Sobre o amor
1898
Coisas de trabalho
1899
A queridinha
Ó
Quando Pustoválov retornava, Ólienka lhe contava à meia-voz a
história do veterinário e de sua vida conjugal infeliz, e os dois
suspiravam, balançavam a cabeça e falavam do menino que, com
certeza, sentia saudades do pai. Depois, por via de uma estranha
concatenação de ideias, marido e esposa se punham de pé diante
dos ícones, curvavam-se até o chão, em reverências, e faziam
orações para que Deus lhes desse filhos.
Assim viveram os Pustoválov, em paz e tranquilidade, em amor e
plena concórdia, durante seis anos. No entanto, certo dia, no
inverno, depois de tomar seu chá bem quente no depósito, Vassíli
Andreitch saiu sem o gorro para despachar um carregamento de
madeira, resfriou-se e adoeceu. Foi tratado pelos melhores
médicos, mas a doença levou a melhor e ele morreu, depois de
quatro meses enfermo. E, mais uma vez, Ólienka ficou viúva.
— Por que você me abandonou, meu benzinho? — soluçava,
depois do enterro do marido. — Como vou viver agora sem você,
amargurada e infeliz? Ah, minha gente bondosa, tenha pena de
mim, esta órfã desamparada…
Ela andava de vestido preto, com fitas de luto, e já havia
renunciado para sempre aos chapéus e às luvas, raramente saía de
casa, só para ir à igreja ou ao túmulo do marido e, em casa, vivia
como se fosse monja. Só depois de seis meses, retirou as fitas de
luto e passou a abrir as persianas das janelas. Às vezes, de manhã,
ela já era vista caminhando na rua para comprar mantimentos, em
companhia da cozinheira, mas, quanto à maneira como vivia em sua
casa e ao que se passava agora, ali dentro, só era possível fazer
conjecturas. E conjecturas não faltavam, pois, por exemplo, as
pessoas viam Ólienka tomar chá em seu jardim com o veterinário,
viam que Smírnin lia o jornal em voz alta para ela e, ao encontrar
uma senhora conhecida, no correio, Ólienka dizia:
— A nossa cidade não tem um serviço de vigilância veterinária
apropriado e isso gera muitas doenças. Volta e meia ouvimos falar
que pessoas ficaram doentes por causa do leite e porque foram
contaminadas por cavalos e vacas. A saúde dos animais domésticos
deve ser objeto de preocupação, tanto quanto a saúde das pessoas.
Ela repetia as ideias do veterinário e, agora, tinha a mesma
opinião que ele acerca de tudo. Estava claro que Ólienka não
conseguia sobreviver sequer um ano sem estar ligada a alguém, e
acabou encontrando sua nova felicidade no pavilhão anexo à sua
casa. Outra pessoa em tal situação talvez ficasse malvista, mas
ninguém conseguia pensar nada de ruim a respeito de Ólienka e,
em sua vida, tudo acontecia de modo muito natural. Nem ela nem o
veterinário falavam com ninguém sobre a mudança em suas
relações e tentavam esconder o assunto, no entanto, não
alcançaram sucesso, porque Ólienka era incapaz de ter segredos.
Quando Smírnin recebia a visita de colegas do regimento, Ólienka
começava a falar de uma praga que atacava o gado bovino, ou da
tuberculose animal, ou dos matadouros municipais, enquanto
servia o chá ou o jantar, porém Smírnin se mostrava terrivelmente
embaraçado e, quando as visitas se retiravam, ele a segurava pelo
braço e resmungava, com irritação:
— Mas eu já não pedi para você não falar de assuntos de que não
entende? Quando nós, veterinários, estivermos conversando, por
favor, não se intrometa. Puxa, que coisa maçante!
E ela olhava para Smírnin com espanto e perplexidade, e
perguntava:
— Mas então, Volóditchka,[70] sobre o que devo conversar?
Com lágrimas nos olhos, ela o abraçava, suplicava que não
ficasse zangado, e os dois terminavam felizes.
No entanto, aquela felicidade não durou muito. O veterinário
partiu com seu regimento, foi embora para sempre, pois o
regimento foi transferido para muito longe, para algum local quase
na Sibéria. E Ólienka ficou sozinha.
Agora, ela vivia completamente só. Já fazia muito tempo que o
pai morrera e sua poltrona estava abandonada no sótão, coberta de
poeira e sem um dos pés. Olga engordou e ficou feia, e quem
cruzava seu caminho na rua não olhava nem sorria para ela como
antes; estava claro que os anos melhores já haviam passado, tinham
ficado para trás, e agora começava uma espécie de vida nova,
desconhecida, sobre a qual era melhor não pensar. À noite, Ólienka
sentava na varandinha e ouvia a música e os fogos de artifício no
parque Tívoli, porém aquilo já não despertava quaisquer
pensamentos. Olga olhava com indiferença para seu pátio, sem
pensar em nada, sem querer nada e, depois, quando chegava a
madrugada, ia dormir e sonhava com o pátio vazio. Comia e bebia
sozinha, como que a contragosto.
O principal, e o pior de tudo, era que Ólienka já não tinha
nenhuma opinião. Olhava para os objetos à sua volta e compreendia
tudo o que se passava, no entanto, não conseguia formar opinião a
respeito de coisa alguma e não sabia o que devia dizer. E como é
horrível não ter opinião! Por exemplo, ver quanto custa uma garrafa
ou que está chovendo ou que um mujique passa numa carroça, mas
ignorar para que servem a garrafa, a chuva ou o mujique, ser
incapaz de dizer qual o sentido de cada um deles, e não conseguir
dizê-lo nem por mil rublos. Na companhia de Kúkin, de Pustoválov
Ó
e, depois, do veterinário, Ólienka era capaz de explicar tudo,
manifestaria sua opinião sobre o que quisesse; agora, no entanto,
tinha os pensamentos, e também o coração, tão vazios como o pátio
de sua casa. E era tão horrível, tão amargo como se tivesse
mastigado absinto.
Pouco a pouco, a cidade se expandiu em todas as direções;
Bairro Cigano já era o nome de uma rua e, lá onde ficavam o parque
Tívoli e os depósitos de madeira, ergueram-se prédios e se formou
uma série de ruazinhas. Como o tempo voa! A casa de Ólienka
escureceu, o telhado enferrujou, o celeiro inclinou-se e o pátio
inteiro foi tomado por ervas daninhas e urtigas bravas. Ólienka
envelheceu, tornou-se feia; no verão, senta-se na varandinha e, em
sua alma, como antes, há um vazio, um tédio, um sabor de absinto
e, no inverno, ela se acomoda junto à janela e fica olhando para a
neve. Quando bate o sopro da primavera, quando o vento traz o
som dos sinos das igrejas e irrompem, de repente, recordações do
passado, ela sente um doce aperto no coração e, dos olhos,
derramam-se lágrimas de amargura, mas isso não dura mais que um
minuto, volta de novo o vazio e a falta de razão para viver. A gatinha
preta Briska ronrona com doçura e se aconchega afetuosa, mas
carinhos de gato não comovem Ólienka. De que servem, para ela?
Quem dera tivesse um amor que se apoderasse de todo seu ser, de
toda sua alma e de sua razão, um amor que lhe trouxesse ideias, que
lhe mostrasse uma direção na vida e que incendiasse seu sangue
envelhecido. E ela afugentava Briska e lhe dizia, irritada:
— Vá embora… Não tem nada aqui para você.
E assim, dia após dia, ano após ano, nenhuma alegria, nenhuma
opinião. O que a cozinheira Mavra dizia já bastava.
Num dia quente de junho, ao cair da noite, na hora em que
passavam tocando o gado da cidade pela rua e nuvens de poeira
cobriam todos os pátios, de repente, alguém bateu no portão. A
própria Ólienka foi abrir e, quando viu, parou estupefata: atrás do
portão estava o veterinário Smírnin, já grisalho e em trajes civis. De
súbito, ela recordou tudo e não se conteve, desatou a chorar e
encostou a cabeça no peito de Smírnin, sem dizer nenhuma
palavra, e, sob o efeito da forte emoção, nem soube dizer como os
dois, em seguida, entraram em casa e sentaram para tomar chá.
— Meu adorado! — balbuciou, trêmula de alegria. — Vladímir
Platónitch! De onde foi que Deus trouxe você para cá?
— Eu quero me estabelecer aqui em definitivo — explicou. — Já
passei para a reserva e vim tentar a felicidade aqui, em liberdade,
levar uma vida sossegada. Além disso, já é hora de matricular meu
filho no ginásio. Ele cresceu. E, sabe, além disso, fiz as pazes com a
minha esposa.
— E onde está ela? — perguntou Ólienka.
— Está no hotel, com meu filho, enquanto ando à procura de
um apartamento.
— Meu Deus, mas, ora essa, fiquem aqui mesmo, na minha casa!
Não serve como apartamento? Ah, meu Deus, eu não vou cobrar
nada de vocês. — Ólienka se emocionou e desatou a chorar
novamente. — Morem aqui, o pavilhão anexo tem espaço de sobra
para mim. Que alegria, meu Deus!
No dia seguinte, já estavam pintando o telhado e branqueando as
paredes da casa, e Ólienka, com as mãos na cintura, andava pelo
pátio e dava ordens. No rosto, brilhava o antigo sorriso e toda ela se
animava, rejuvenescia, como se tivesse despertado de um longo
sono. Chegou a esposa do veterinário, magra, feia, de cabelo curto,
ar de pessoa caprichosa e, com ela, veio o menino, Sacha,[71]
pequeno demais para a idade (tinha nove anos completos), gordo,
olhos azul-claros, covinhas nas bochechas. E, assim que entrou no
pátio, o menino saiu correndo atrás da gata e logo ressoou seu riso
alegre, divertido.
— Titia, essa gata é da senhora? — perguntou para Ólienka. —
Quando ela tiver cria, por favor, dê um filhote para nós. A mamãe
morre de medo dos ratos.
Ólienka conversou um pouquinho com o menino, lhe deu chá e,
de repente, um calor subiu dentro do peito, o coração se encolheu
com doçura, como se aquele menino fosse seu filho de verdade. E à
noite, quando o menino se sentou à mesa na sala de jantar e fez a
lição de casa, Ólienka olhou para ele com ternura e sussurrou, cheia
de compaixão:
— Meu pombinho, que bonitinho… Meu filhinho, e já nasceu
tão inteligente, tão branquinho.
— Chama-se de ilha — leu Sacha — uma extensão de terra
cercada de água por todos os lados.
— Chama-se de ilha uma extensão de terra… — ela repetiu, e
aquilo foi a primeira opinião que exprimiu de maneira convicta,
depois de muitos anos de silêncio e de vazio nos pensamentos.
Ela já tinha suas opiniões e, durante o jantar, conversava com os
pais de Sacha e dizia que, hoje em dia, para as crianças, não é fácil
estudar no ginásio, mas que, apesar de tudo, o curso clássico é
melhor do que o técnico, pois, depois do ginásio, todos os
caminhos estão abertos: o aluno pode ser médico, pode ser
engenheiro.
Sacha começou a frequentar o ginásio. Sua mãe partiu para a
casa da irmã, em Khárkov, e não voltou mais; todo dia, o pai saía de
casa para examinar rebanhos, num lugar ou outro, e acontecia de
ficar fora por dois ou três dias seguidos, e Ólienka tinha a
impressão de que tinham abandonado Sacha por completo, que o
menino era um peso na família, que ele ia morrer de fome; ela o
trouxe para morar em sua casa, no pavilhão anexo, e montou um
pequeno quarto para ele.
E agora já faz seis meses que Sacha mora com ela, no pavilhão
anexo. Toda manhã, Ólienka entra no quarto do menino; ele dorme
profundamente, o braço dobrado por baixo da bochecha, mal
respira. Ólienka tem pena de acordá-lo.
— Sáchenka — diz, em tom de lástima. — Levante, pombinho!
Está na hora de ir para o ginásio.
Sacha levanta, troca de roupa, reza, depois senta à mesa para
tomar chá. Bebe três copos, devora dois grandes búbliki e meio pão
francês com manteiga. Ainda não acordou por completo e, por isso,
não está de bom humor.
— Mas, Sáchenka, você não decorou bem a fábula — diz
Ólienka, e olha para o menino como se ele fosse partir para uma
longa viagem. — Estou tão preocupada com você. Precisa se
esforçar, pombinho, estude… Obedeça aos professores.
— Ah, me deixe em paz, por favor! — diz Sacha.
Depois, lá vai ele pela rua, para o ginásio, pequenino, mas com
um boné muito grande e a mochila nas costas. Atrás dele, em
silêncio, caminha Ólienka.
— Sáchenka-a-a! — ela chama.
O menino olha para trás, e ela enfia na sua mão uma tâmara ou
um caramelo. Quando entra na travessa onde fica o ginásio, Sacha
sente vergonha de ter atrás de si uma mulher alta, gorda; vira para
trás e diz:
— Tia, vá para casa, agora vou sozinho.
Ólienka para e fica olhando para ele, atenta, sem piscar, até o
menino desaparecer na entrada do ginásio. Ah, como ela o ama! De
todas as suas antigas afeições, nenhuma foi tão profunda, nunca sua
alma se entregou com tanta devoção, abnegação e contentamento
como agora, quando dentro dela, mais e mais, se inflamava o
sentimento maternal. Por aquele menino de outra família, pelas
covinhas em suas faces, pelo seu boné, ela sacrificaria toda sua vida,
e sacrificaria com alegria, com lágrimas de ternura. E por quê? Ora,
quem vai saber por quê?
Depois de acompanhar Sacha até o ginásio, ela volta para casa
em silêncio, satisfeita, serena, transbordante de amor; seu rosto,
que rejuvenesceu nos últimos seis meses, brilha e sorri; quem
cruza com ela, na rua, sente uma satisfação e lhe diz:
— Bom dia, queridinha Olga Semiónovna! Como tem passado,
queridinha?
— Hoje em dia, o estudo no ginásio é muito difícil — diz ela, no
bazar. — Não é brincadeira, ontem mesmo, na primeira série,
deram uma fábula para decorar, uma tradução do latim e um
problema… E para um menino tão pequeno, como pode?
E começa a falar sobre os professores, as lições, os livros de
estudo — as mesmas coisas que Sacha lhe diz.
Depois das duas horas, os dois almoçam juntos, à tardinha,
fazem juntos a lição de casa e choram. Ao pôr Sacha na cama, ela
benze o menino e reza em voz baixa por muito tempo, depois vai
deitar, e devaneia sobre um futuro distante e nebuloso, quando
Sacha, concluído seu curso, será médico ou engenheiro, terá uma
grande casa própria, cavalos e um coche, vai casar e ter filhos… Ela
adormece, continua com os mesmos pensamentos e, dos olhos
fechados, lágrimas descem pelo rosto. A gatinha preta se deita
junto a ela, de lado, e ronrona:
— Mur… mur… mur…
De repente, uma batida forte no portão. Ólienka desperta e, com
o susto, nem consegue respirar; o coração bate com força. Passa
meio minuto e vem outra batida.
“É um telegrama de Khárkov”, pensa ela, e o corpo todo começa
a tremer. “A mãe quer que Sacha vá morar com ela, em Khárkov…
Ah, meu Deus!”
Ólienka se desespera; a cabeça, as pernas, os braços ficam
gelados, parece que não existe no mundo ninguém mais infeliz do
que ela. No entanto, passa mais um minuto e se ouve uma voz: é o
veterinário, de volta de algum clube.
“Ah, graças a Deus”, pensa.
Pouco a pouco, aquele peso vai deixando seu coração, ele se
torna leve outra vez; Olga se deita e pensa em Sacha, que está
dormindo profundamente no quarto vizinho e fala, de vez em
quando, num delírio:
—Você vai ver! Vá embora! Não bata em mim!
1899
A Nova Datcha
II
IV
1899
A dama do cachorrinho
II
Passou uma semana, desde que se conheceram. Era feriado. Nos
quartos, estava abafado e, nas ruas, a poeira se erguia em
turbilhões, fazia voar os chapéus. O dia inteiro dava vontade de
beber, Gúrov ia muitas vezes ao quiosque à beira-mar e convidava
Anna Serguéievna para tomar um refresco ou um sorvete. Não
havia para onde fugir.
À noitinha, quando o vento amainou um pouco, os dois foram ao
porto para ver a chegada de algum navio. Muitas pessoas iam
passear no cais; estavam à espera de alguém, levavam buquês de
flores. E, ali, duas peculiaridades da multidão elegante de Ialta
chamavam nitidamente a atenção: as senhoras de idade vestiam-se
como jovens e havia muitos generais.
Por causa do mar agitado, o navio chegou tarde, depois do pôr
do sol, e teve de fazer muitas manobras antes de atracar. Anna
Serguéievna observava o navio e os passageiros através de um
lornhão, parecia à procura de algum conhecido e, quando se virou
para Gúrov, seus olhos brilhavam. Ela se mostrou muito falante,
suas perguntas vinham entrecortadas e ela mesma logo esquecia o
que acabara de perguntar; depois, perdeu o lornhão no meio das
pessoas aglomeradas.
A multidão elegante dispersou-se, já não havia mais ninguém no
cais, o vento cessara de todo, mas Gúrov e Anna Serguéievna
continuavam ali, como se esperassem que mais alguém fosse
desembarcar. Agora, Anna Serguéievna estava calada, cheirava as
flores, sem olhar para Gúrov.
— O tempo melhorou à noite — disse ele. — Para onde vamos
agora? O que acha de irmos a algum lugar?
Ela não respondeu.
Então, Gúrov olhou fixamente para ela e, de súbito, abraçou-a e
beijou-a nos lábios, foi envolvido pelo aroma e frescor das flores e,
na mesma hora, olhou em volta, receoso: alguém não teria visto?
— Vamos para o seu quarto… — disse ele, em voz baixa.
E os dois caminharam depressa.
O quarto estava abafado, cheirava a perfumes que ela comprara
numa loja japonesa. Gúrov, ao olhar para ela, agora, pensou: “Cada
encontro que acontece nesta vida!”. De seu passado, ele guardara a
lembrança de mulheres despreocupadas, alegres, contentes com o
amor, agradecidas a ele pela felicidade, embora muito breve; e
também de outras mulheres, como sua esposa, por exemplo, que
amavam sem sinceridade, entre conversas supérfluas, de modo
afetado, com histeria, e sua expressão dava a entender que não se
tratava de amor, de paixão, mas sim de algo mais importante; e
também a lembrança de duas ou três mulheres muito bonitas, frias,
em cujo rosto, num lampejo, surgia uma expressão de ave de
rapina, o desejo imediato de tomar para si, de arrancar da vida mais
do que a vida podia oferecer, e já não estavam na primeira
juventude, se revelavam caprichosas, insensatas, autoritárias, pouco
inteligentes e, quando o sentimento de Gúrov esfriava, a beleza de
tais mulheres lhe despertava ódio e as rendas de suas roupas de
baixo pareciam escamas.
Porém, desta vez, persistia sempre a mesma timidez, o
acanhamento da juventude inexperiente, uma sensação de
constrangimento; sem falar numa constante impressão de
desconfiança, como se alguém, a qualquer minuto, fosse bater à
porta. Anna Serguéievna, a “dama do cachorrinho”, tratava o que
havia ocorrido como algo especial, muito grave, equivalente à sua
queda — assim parecia, e aquilo era estranho e inoportuno. Suas
feições se abateram, perderam o viço, os cabelos compridos
pendiam tristes nos lados do rosto e ela afundou em pensamentos,
numa atitude tristonha, como a pecadora de uma pintura antiga.
— É ruim — disse ela. — Agora, o senhor vai ser o primeiro a
não me respeitar.
Sobre a mesa do quarto, havia uma melancia. Gúrov cortou um
pedaço e se pôs a comer, sem pressa. Haviam passado, pelo menos,
meia hora em silêncio.
Anna Serguéievna estava comovente, exalava a pureza, o decoro,
a ingenuidade de uma mulher que viveu pouco; uma vela solitária,
acesa sobre a mesa, mal iluminava seu rosto, porém se notava que
tinha a alma aflita.
— Mas por que eu deixaria de respeitar você? — perguntou
Gúrov. — Você não sabe o que está dizendo.
— Que Deus me perdoe! — exclamou ela, e seus olhos se
encheram de lágrimas. — É horrível.
— É como se você estivesse pedindo desculpas.
— Mas como é possível me desculpar? Eu sou uma mulher
ruim, baixa, desprezo a mim mesma e nem estou pensando em
desculpa nenhuma. Não foi o meu marido que eu traí, eu traí a mim
mesma. E não foi só agora, já estou traindo há muito tempo. O meu
marido talvez seja um homem bom, honesto, mas ele é um lacaio!
Eu não sei o que ele faz, não sei em que trabalha, só sei que é um
lacaio. Quando casei, eu tinha vinte anos, a curiosidade me
atormentava, eu queria algo melhor; afinal, existe outra vida, eu
dizia para mim mesma. Eu tinha vontade de viver! Viver e viver… A
curiosidade queimava dentro de mim… O senhor não entende,
mas, juro por Deus, eu já não conseguia me controlar, alguma coisa
estava acontecendo comigo, era impossível me conter, eu disse
para o meu marido que estava doente e vim para cá… E aqui fiquei
andando o tempo todo, para um lado e para outro, como num
estado de embriaguez, como uma louca… e agora me tornei uma
mulher vulgar, que não vale nada, que todos podem desprezar.
Gúrov já estava farto de ouvir, irritado com o tom ingênuo, com
o remorso, tão inesperado e inoportuno; não fossem as lágrimas
nos olhos, poderia pensar que ela estava brincando ou
representando um papel.
— Eu não entendo — disse em voz baixa. — O que você quer?
Ela escondeu o rosto no peito de Gúrov e apertou-se contra ele.
— Acredite, acredite em mim, eu suplico… — disse. — Eu amo
a vida honesta, pura, o pecado me dá repulsa, eu mesma não sei o
que faço. As pessoas simples dizem: foi o diabo que me tentou. E
agora também posso dizer de mim mesma que o diabo me tentou.
— Chega, chega… — balbuciou Gúrov.
Mirava aqueles olhos imóveis e assustados, a beijava, falava com
ela baixinho e carinhosamente e, pouco a pouco, ela foi se
acalmando, até que a alegria retornou; os dois se puseram a rir.
Mais tarde, quando saíram, não havia mais ninguém na calçada à
beira-mar, a cidade, com seus ciprestes, parecia completamente
morta, mas o mar ainda roncava alto, batia com força na margem;
uma barcaça balançava nas ondas e, nela, uma lanterna cintilava
sonolenta.
Encontraram um coche de praça e seguiram para Oreanda.[80]
— Agora há pouco, na recepção, eu descobri o seu sobrenome:
no quadro de registros, está escrito Von Dideritz — disse Gúrov.
— Seu marido é alemão?
— Não, ele teve um avô que era alemão, parece, mas ele mesmo
é ortodoxo.[81]
Em Oreanda, sentaram-se num banco perto de uma igreja,
olharam para o mar, lá embaixo, e ficaram em silêncio. Em meio à
névoa da manhã, mal se via Ialta, nuvens brancas pairavam imóveis
sobre os cumes das montanhas. As folhas das árvores nem se
mexiam, cigarras cantavam e o rumor do mar, que vinha lá de
baixo, surdo e monótono, falava de repouso, do sono eterno que
nos aguarda. Era o mesmo rumor que subia do mar quando Ialta e
Oreanda não existiam, que se ouve agora e que também vai ser
ouvido, surdo e indiferente, quando nós mesmos já não existirmos.
Nessa constância, nessa completa indiferença em relação à vida e à
morte de cada um de nós, se esconde, talvez, a garantia de nossa
salvação eterna, do incessante movimento da vida sobre a terra, do
aprimoramento contínuo. Sentado junto àquela jovem, que, ao
nascer do sol, parecia tão bonita, apaziguado e embevecido diante
daquela cena de conto de fadas — o mar, a montanha, as nuvens, o
céu vasto —, Gúrov refletiu que, no fundo, pensando bem, tudo é
belo neste mundo, tudo, exceto aquilo que nós mesmos pensamos
e fazemos, quando esquecemos os fins elevados da existência e a
própria dignidade humana.
Alguém se aproximou — devia ser um guarda —, olhou um
pouco para eles e foi embora. E aquele pormenor pareceu muito
misterioso, e também bonito. Via-se que estava chegando um navio
de Teodósia,[82] iluminado pelo sol nascente, já com as luzes
apagadas.
— A relva está com orvalho — disse Anna Serguéievna, depois
de um silêncio.
— Sim. Está na hora de ir para casa.
Voltaram para a cidade.
Depois disso, sempre ao meio-dia, os dois se encontravam à
beira-mar, almoçavam juntos, jantavam, passeavam, admiravam o
mar. Ela se queixava de dormir mal, de ter palpitações no coração,
fazia sempre as mesmas perguntas, atormentada ora pelo ciúme,
ora pelo temor de que ele não a respeitasse o bastante. E muitas
vezes, no parque público ou no jardim, quando não havia ninguém
perto, de repente, ele a puxava para junto de si e a beijava com
paixão. A completa ociosidade, aqueles beijos à luz do dia, cercados
de cautela e do receio de que alguém os visse, o calor, o cheiro do
mar e seu brilho constante aos olhos das pessoas ociosas, elegantes,
bem alimentadas, pareciam rejuvenescer Gúrov; ele dizia para
Anna Serguéievna que ela era bonita, que era sedutora, que ele
estava desesperadamente apaixonado, que não se afastaria dela nem
um passo, e muitas vezes ela se punha pensativa, sempre pedia para
ele confessar que não a respeitava, que não a amava nem um pouco,
que nela só via uma mulher vulgar. Quase toda noite, já tarde, eles
saíam da cidade rumo a um lugar qualquer, a Oreanda ou à cascata;
e o passeio era um sucesso, as impressões eram sempre belas,
grandiosas.
Estavam à espera do marido. Porém chegou uma carta em que
ele avisava ter alguma enfermidade nos olhos e implorava que a
esposa voltasse o quanto antes. Anna Serguéievna apressou-se.
— É bom mesmo que eu vá embora — disse para Gúrov. — É o
destino.
Ela partiu num coche e ele a acompanhou. Viajaram um dia
inteiro. Quando ela tomou seu assento no vagão do trem expresso e
quando soou o segundo apito, ela disse:
— Venha cá, deixe-me olhar para o senhor mais uma vez…
Quero olhar mais uma vez. Assim.
Ela não chorou, mas estava triste, parecia doente e o rosto
tremia.
— Eu vou pensar no senhor… vou lembrar — disse. — Que
Deus o proteja, cuide-se. Não pense mal de mim. Vamos nos
despedir para sempre, assim tem de ser, porque jamais deveríamos
ter nos conhecido. Então, que Deus o proteja.
O trem partiu depressa, suas luzes logo desapareceram e, num
minuto, já não se ouvia mais nada, como se tudo tivesse sido
arranjado, de propósito, a fim de interromper rapidamente aquele
doce devaneio, aquela loucura. E Gúrov, sozinho na plataforma,
enquanto olhava para a escuridão ao longe, ouvia o piar dos grilos e
o zumbir dos fios de telégrafo com a sensação de alguém que
acabou de acordar. E pensou que em sua vida ocorrera mais um
incidente, ou mais uma aventura, que também aquilo havia
terminado e, agora, só restariam recordações… Estava comovido,
triste, sentia um ligeiro remorso; pois aquela mulher jovem, que
agora ele nunca mais veria, não fora feliz com ele; Gúrov tinha sido
amável, afetuoso, entretanto, na maneira de tratá-la, em seu tom de
voz e em seus carinhos, se esgueirava, como uma sombra, uma
zombaria sutil, a crua arrogância de um homem feliz, que, ainda
por cima, tinha quase o dobro da idade da mulher. O tempo todo
ela o chamava de bom, extraordinário, elevado; estava claro que,
aos olhos dela, Gúrov parecia muito diferente do que era na
realidade e, portanto, sem querer, ele a havia enganado…
Ali na estação, já se sentia o cheiro do outono, a noite estava um
pouco fria.
“Está na hora de eu também partir para o norte”, pensou Gúrov,
ao sair da plataforma. “Está na hora!”
III
IV
1899
No barranco
II
III
É
— Como assim? Pode-se investigar. É uma coisa à toa, é possível
sim.
Chegou o dia do casamento. Fazia frio, mas era um claro e alegre
dia de abril. Desde manhã cedo, carroças puxadas por dois ou três
cavalos, enfeitados com fitas coloridas nos arcos e nas crinas,
percorriam Ukléievo ao som de suas campainhas. Nos salgueiros, as
gralhas grasnavam assustadas com tamanha agitação e os
estorninhos cantavam sem parar com tal alarido, como se
estivessem contentes de haver um casamento na família dos
Tsibúkin.
Em casa, sobre as mesas, já se viam peixes compridos, pernis e
aves recheadas, caixas de anchovas, diversos alimentos salgados e
marinados, uma infinidade de garrafas de vodca e vinho e, por toda
parte, o cheiro de chouriço defumado e lagostins avinagrados. O
velho andava em torno das mesas, batendo com os saltos no chão,
enquanto afiava uma faca na outra. Volta e meia, chamavam Varvara
aos gritos, exigiam algo, e ela, com ar desnorteado e respiração
ofegante, corria para a cozinha, onde, desde o raiar do dia,
trabalhavam o cozinheiro de Kostiukóv e a cozinheira particular dos
Khrímini Jovens. Aksínia, de cabelo frisado, sem vestido, mas de
espartilho, calçada em suas botinhas novas e rangentes, correu pelo
pátio como um tufão e apenas se viram, de relance, o peito e os
joelhos nus. O barulho era enorme, ressoavam pragas e palavrões;
os pedestres se detinham em frente aos portões escancarados e, em
tudo, pressentiam os preparativos de algo extraordinário.
— Foram buscar a noiva!
As sinetas das carroças tilintaram com força e, depois,
emudeceram ao longe, fora do povoado… Depois das duas horas, o
povo acorreu: de novo, ouviram-se as sinetas das carroças, estavam
trazendo a noiva! A igreja estava cheia, o candelabro brilhava, todo
aceso, o coro cantava, seguindo a partitura, como desejava o velho
Tsibúkin. O brilho das luzes e os vestidos claros ofuscaram Lipa, a
moça tinha a impressão de que os cantores, com suas vozes
possantes, golpeavam sua cabeça como martelos; as botinhas e o
espartilho, que ela vestia pela primeira vez na vida, a oprimiam e o
rosto tinha a expressão de quem acabara de acordar de um desmaio
— ela olha em volta e não compreende. Aníssim, de sobretudo
preto, com um cordão vermelho em lugar de gravata, se mostrava
pensativo, olhava para um único ponto e, quando os cantores
ergueram as vozes poderosas, fez depressa o sinal da cruz. Sua alma
estava comovida, ele tinha vontade de chorar. Conhecia a igreja
desde a primeira infância; naquele tempo, a mãe, já falecida, o
levava ali para comungar; na época, ele cantava no coro com os
meninos; cada recanto e cada ícone estavam gravados na memória.
Agora, Aníssim vai casar, precisa casar, é o costume. Mas ele já
nem pensa no assunto, é como se não se lembrasse daquilo, tinha
esquecido seu casamento por completo. Lágrimas o impediam de
ver os ícones, sentia um peso no coração; ele rezava e rogava a
Deus que os infortúnios inevitáveis, prestes a se desencadearem
sobre ele, mais dia, menos dia, de alguma forma passassem ao
largo, como as nuvens de tempestade que, na temporada de seca,
passavam ao largo do povoado, sem deixar cair nem um pingo de
chuva. E tantos pecados já se acumulavam no seu passado, tantos,
tantos pecados, e tudo tão irremediável, tão insolúvel, que, de certo
modo, chegava a ser um despropósito pedir perdão. Porém ele
pedia o perdão e até soluçava alto, mas ninguém dava atenção
àquilo, pois achavam que Aníssim tinha apenas bebido demais.
Ouviu-se um alarmado choro de criança.
— Mãezinha querida, me tire daqui, seja boazinha!
— Silêncio aí! — gritou o sacerdote.
Quando saíram da igreja, a caminho de casa, o povo correu atrás;
perto da mercearia, junto ao portão e no pátio, também havia muita
gente. Vieram camponesas para cantar louvores. Assim que os
noivos atravessaram a soleira da casa, os cantores, que já estavam a
postos na entrada, com suas partituras em punho, esbravejaram
com toda a força; músicos, trazidos da cidade especialmente para a
ocasião, começaram a tocar. Já estavam servindo o vinho
espumante do Don, em taças altas, e o carpinteiro e mestre de
obras Ielizárov, velho alto e magro, de sobrancelhas tão espessas
que mal dava para ver seus olhos, disse, voltando-se para os recém-
casados:
— Aníssim e você também, minha criança, amem um ao outro,
vivam segundo os preceitos de Deus, crianças, que a Rainha do
Céu não há de abandonar vocês. — Apoiou o braço sobre os
ombros do velho e soluçou. — Grigóri Petróvitch, vamos chorar,
chorar de alegria! — exclamou, com vozinha aguda e, na mesma
hora, de repente, gargalhou e prosseguiu, em estrondosa voz de
baixo: — Ho-ho-ho! E essa sua nora é bonita! Quer dizer, ela tem
tudo no lugar, tudo é lisinho, tudo encaixa, o mecanismo todo está
em boas condições, tem muito parafuso aí.
Ele havia nascido na província de Iegórievsk, mas desde muito
novo trabalhava nas fábricas de Ukléievo e na administração da
província e passara a vida ali. Fazia tempo que era conhecido como
um velho magro e espigado, tal como era agora, e já fazia tempo
também que o chamavam de Muleta. Talvez por ter passado mais
de quarenta anos trabalhando nas fábricas apenas em reformas e
obras, ele julgava qualquer pessoa ou objeto apenas pelo aspecto da
solidez: avaliava se estava precisando de reforma. E, antes de
sentar-se à mesa, ele experimentava algumas cadeiras para ver se
eram firmes, da mesma forma como apalpava um salmão.
Depois do espumante, todos se puseram sentados à mesa. Os
convidados conversavam, arrastando as cadeiras. O coro cantava na
entrada, os músicos tocavam e, ao mesmo tempo, do lado de fora,
as camponesas cantavam louvores, tudo a uma só voz — e havia
uma espécie de barafunda terrível, selvagem, dos sons mais
diversos, que fazia a cabeça rodar.
Muleta girava para lá e para cá, sentado em sua cadeira, e dava
cotoveladas nos vizinhos, não deixava os outros falarem e ora
chorava, ora ria.
— Crianças, crianças, crianças… — balbuciava ligeiro. —
Aksiniúchka, mãezinha, Varvaruchka, vamos viver todos em paz e
concórdia, minhas machadinhas adoradas…
Ele não costumava beber e por isso, daquela vez, se embriagara
com um cálice de bíter inglês. Aquele bíter repugnante, feito sabe-
se lá de quê, deixava atordoado qualquer um que o bebesse, com o
efeito de uma pancada na cabeça. A língua começava a enrolar.
Havia gente do clero, empregados das fábricas e suas esposas,
comerciantes e taberneiros de outros povoados. O chefe e o
escrivão do distrito, que trabalhavam juntos havia catorze anos e,
durante todo aquele tempo, não haviam assinado sequer uma folha
de papel, não haviam deixado uma só pessoa sair da sede da
administração provincial sem cometer alguma fraude ou ofensa,
agora estavam sentados lado a lado, ambos gordos, cevados, e
pareciam a tal ponto impregnados de falsidade que até na pele do
rosto traziam algo de peculiar e fraudulento. A esposa do escrivão,
magricela e vesga, havia levado todos os filhos e, como uma ave de
rapina, espreitava os pratos, agarrava tudo que aparecesse ao
alcance das mãos e metia nos bolsos, para si e para os filhos.
Imóvel, sentada, Lipa mantinha, o tempo todo, a mesma
expressão que mostrara na igreja. Desde que fora apresentado à
noiva, Aníssim não havia trocado nenhuma palavra com ela e por
isso, até agora, não sabia como era sua voz; e naquele momento,
sentado a seu lado, ele se mantinha calado e bebia o bíter inglês,
porém, quando se embriagou, começou a falar, dirigindo-se à tia,
sentada na sua frente:
— Eu tenho um amigo chamado Samoródov. É uma pessoa
especial. Um cidadão pessoalmente honrado, ele sabe conversar.
Mas adivinho o que ele está pensando e ele sente isso. Por favor,
vamos beber à saúde de Samoródov, titia!
Varvara não parava de andar à volta da mesa, servindo os
convidados, exausta, desnorteada e visivelmente satisfeita por
haver tanta comida e por tudo ser tão farto — naquela hora,
ninguém poderia criticar nada. O sol se pôs e o almoço prosseguia;
já nem se dava conta do que estavam comendo, bebendo, era
impossível distinguir o que diziam e só de vez em quando, nos
momentos em que a música cessava, se ouvia com nitidez que
alguma camponesa gritava, lá fora:
— Sugaram o nosso sangue, seus carrascos, que a desgraça caia
sobre vocês!
À noite, houve música e dança. Os Khrímini Jovens trouxeram
sua bebida e um deles, quando dançavam a quadrilha, segurou uma
garrafa em cada mão, com a taça presa na boca, e aquilo divertiu a
todos. No meio da quadrilha, de repente, puseram-se a dançar de
cócoras;[91] toda de verde, Aksínia passava como um lampejo, e a
cauda do vestido chegava a fazer vento. Alguém pisou na barra do
seu vestido, e o Muleta gritou:
— Olhem, arrancaram o rodapé! Crianças!
Aksínia tinha olhos cinzentos e ingênuos, que raramente
piscavam e, no rosto, o tempo todo, dançava um sorriso também
ingênuo. Naqueles olhos que não piscavam, na pequena cabeça,
erguida sobre o pescoço comprido, e em seu talhe esguio, havia
algo de serpente; sorrindo, verde e com o peitilho amarelo, ela
olhava fixo para quem passasse por ali, como uma víbora na
primavera, no meio do centeio novo, de cabeça esticada e erguida.
Os Khrímini a tratavam com toda a liberdade e era bem visível que,
fazia algum tempo, Aksínia já era íntima do mais velho deles.
Porém o surdo não percebia nada, nem olhava para a esposa; ficava
sentado, de pernas cruzadas, comia nozes e as trincava entre os
dentes com tamanho ruído que parecia dar tiros de pistola.
Foi então que o velho Tsibúkin em pessoa foi para o meio do
salão e sacudiu um lenço no ar, dando o sinal de que ele também
queria dançar de cócoras, à moda russa, e na casa toda, bem como
do lado de fora, um clamor de aplauso atravessou a multidão:
— Até ele vai dançar! Até ele!
Era Varvara que dançava, enquanto o velho apenas sacudia o
lenço no ar e roçava no chão ora um salto, ora outro, mas as pessoas
lá de fora vieram espiar pelas janelas, debruçadas umas nas outras,
estavam maravilhadas e, por um minuto, lhe perdoaram tudo — sua
riqueza e seus ultrajes.
— Muito bem, Grigóri Petróvitch! — gritavam na multidão. —
Vamos, força! Está vendo, você ainda é capaz de dançar! Ha-ha!
Tudo acabou tarde, depois de uma da madrugada. Cambaleante,
Aníssim despediu-se de todos os músicos e cantores e, a cada um,
deu de presente uma moeda nova de cinquenta copeques. O velho,
sem titubear, mas mancando um pouco de uma perna, despediu-se
dos convidados e, a cada um deles, disse:
— O casamento custou dois mil.
Quando se dispersaram, viu-se que alguém havia trocado o belo
casacão novo de um taberneiro de Chikalova por outro já velho e,
de repente, Aníssim ficou vermelho e começou a gritar:
— Espere aí! Eu vou achar, agora mesmo! Eu sei quem roubou!
Espere aí!
Saiu correndo para a rua, abalou no encalço de alguém;
seguraram-no, embriagado, vermelho de raiva, todo molhado,
puxaram-no pelo braço para dentro do quarto, onde a tia já estava
despindo Lipa, e fecharam a porta.
IV
VI
VII
O velho foi à cidade e voltou pouco depois. Alguém contou para
Aksínia que ele tinha ido ao cartório a fim de redigir um
testamento, e que Butiókino, aquela mesma propriedade onde ela
cozia tijolos, seria herdada pelo neto Nikífor. Foi o que lhe
comunicaram pela manhã, quando o velho e Varvara estavam
sentados junto à varanda, debaixo de uma bétula, e tomavam chá.
Aksínia trancou a mercearia, tanto a porta da rua como a dos
fundos, reuniu todas as chaves que estavam com ela e atirou-as aos
pés do velho.
— Eu não vou mais trabalhar para vocês! — gritou bem alto, e,
de repente, desatou a chorar. — A verdade é que na casa de vocês
eu não sou uma nora, mas uma empregada! Todo mundo zomba, e
vivem dizendo: “Olhem só que empregada os Tsibúkin
arranjaram!”. Mas não vim aqui para prestar serviços! Eu não sou
mendiga, não sou nenhuma vagabunda, tenho pai e mãe.
Sem enxugar as lágrimas, ela cravou no velho os olhos
rancorosos, vesgos de raiva, banhados de lágrimas; tinha o rosto e o
pescoço vermelhos e tensos, pois estava gritando com todas as
forças.
— Não quero mais servir ninguém aqui! — prosseguiu. — Eu
me matei de trabalhar! Trabalhar, trabalhar, ficar todo santo dia
nesta mercearia, correr para lá e para cá de madrugada atrás de
vodca, isso fica para mim, mas quando se trata de dar a terra, aí fica
tudo para a mulher do condenado aos trabalhos forçados e para o
seu capetinha! Lá, ela é a dona, a patroa, e eu sou a empregada! Dá
logo tudo para ela, dá de uma vez, para essa mulher de presidiário,
quero que ela se entale com a sua terra, eu vou para minha casa!
Encontre outra palerma para o meu lugar, seus carrascos
desgraçados!
Em toda sua vida, o velho nunca havia insultado nem castigado
os filhos e nem sequer em pensamento admitia que alguém da
família pudesse lhe dizer grosserias ou faltar com o respeito;
naquele momento, ele ficou muito assustado, correu para dentro de
casa e escondeu-se atrás de um armário. Varvara estava tão perplexa
que nem conseguia se levantar, limitava-se a abanar as mãos no ar,
como se quisesse defender-se de abelhas.
— Ai, mas o que é isso, meu Deus? — balbuciava, horrorizada.
— O que é isso que ela está gritando? Ai-ai-ai… O povo vai ouvir!
Fale mais baixo… Ai, fale mais baixo!
— Já deram Butiókino para a mulher do condenado aos trabalhos
forçados — continuou a gritar Aksínia. — Agora, podem dar tudo
para ela: de vocês, eu não preciso de nada! Por mim, quero que se
danem! Todos aqui são da mesma corja! Já cansei de tudo isso, para
mim chega! Espoliaram todo mundo, a pé ou a cavalo, velhos ou
jovens, roubaram todo mundo, são uns bandidos! E quem é que
vendia vodca sem licença? E o dinheiro falso? Entupiram os cofres
de dinheiro falso e agora já não precisam mais de mim!
Perto dos portões escancarados, a multidão já havia se
aglomerado e olhava para dentro.
— Pois que todo mundo escute! — gritou Aksínia. — Eu vou
mesmo cobrir vocês de vergonha! Quero mais é que vocês
queimem até as cinzas de tanta vergonha! Vocês ainda vão ter de se
jogar aos meus pés! Ei, Stiepan! — Chamou o surdo. — Vamos para
casa agora mesmo! Vamos para a casa do meu pai e da minha mãe,
porque não quero morar com gente condenada à prisão! Pegue suas
coisas!
No pátio, as roupas brancas estavam penduradas nos varais;
Aksínia foi arrancando dali suas saias e blusinhas, ainda molhadas, e
jogando tudo nos braços do surdo. Depois, enfurecida, desvairou a
correr pelo pátio, em volta da roupa branca, arrancou todas as
roupas dos varais e, o que não era seu, ela atirava no chão e
pisoteava.
— Ai, pelo amor de Deus, sosseguem essa mulher! — gemia
Varvara. — O que deu nela? Deem logo Butiókino para ela, deem
essa terra de uma vez, pelo amor de Cristo no Céu!
— Puxa, que mulhe-e-er! — diziam no portão. — Olhem só, que
mulhe-e-er! Está mesmo possessa!
Aksínia correu para a cozinha, onde era hora de lavar roupa. Lipa
cuidava sozinha do trabalho, enquanto a cozinheira tinha ido ao rio
para enxaguar a roupa branca. Junto ao fogão, o vapor subia da tina
e do caldeirão, a cozinha estava abafada e turva de fumaça. No chão,
ainda havia um monte de roupa branca para ser lavada e, bem perto,
deitado sobre um banco, espichando as perninhas vermelhas,
estava Nikífor, de modo que, se caísse, não iria se machucar. Lipa
tinha acabado de retirar do monte de roupa suja uma blusinha de
Aksínia e colocado dentro da tina e, exatamente na hora em que ela
entrou, estava estendendo a mão para pegar, sobre a mesa, uma
vasilha com água fervente…
— Me devolva isso aqui! — gritou Aksínia, olhando com ódio
para Lipa, e arrancou a blusinha da tina. — Nem pense em tocar
suas mãos na minha roupa branca! Você é a mulher de um
presidiário e precisa saber qual é o seu lugar, quem você é!
Lipa olhava para ela, espantada, sem compreender, mas, de
repente, captou o olhar que Aksínia lançava sobre o bebê e, de
súbito, compreendeu, e gelou de pavor…
— Você tomou a minha terra, então olhe o que eu vou lhe dar!
Dito isso, Aksínia agarrou a vasilha com água fervente e
despejou em cima de Nikífor.
Em seguida, ouviu-se um grito como jamais se ouvira em
Ukléievo e ninguém acreditou que uma criatura miúda e frágil
como Lipa pudesse gritar assim. E, de repente, o pátio ficou em
silêncio. Aksínia entrou na casa, calada, com seu sorriso ingênuo de
antes… O surdo andava para lá e para cá pelo pátio, carregando nos
braços um monte de roupa branca, e depois, calado, sem pressa,
começou a pendurar de novo a roupa nos varais. E, até a cozinheira
voltar do rio, ninguém se atreveu a entrar na cozinha e ver o que
havia acontecido.
VIII
IX
1900
Nas festas de Natal[95]
1900
O bispo
II
III
IV
III
IV
V
Chamaram um coche de praça. Já de chapéu e casaco, Nádia subiu
ao primeiro andar para, uma vez mais, ver sua mãe, ver tudo o que
era seu; deteve-se um momento em seu quarto, perto da cama,
ainda quente, observou bem e, depois, sem fazer barulho, entrou
no quarto da mãe. Nina Ivánovna dormia, o quarto estava em
silêncio. Nádia beijou a mãe e arrumou seus cabelos, permaneceu
ali cerca de dois minutos… Em seguida, sem pressa, desceu
novamente.
Lá fora, chovia forte. O coche, com a capota abaixada, todo
molhado, aguardava junto à varanda.
— Não tem lugar para você, Nádia — disse a vovó, quando a
criada começou a arrumar as malas no coche. — E, afinal, de onde
vem toda essa vontade de ir à estação com um tempo desse? É
melhor ficar em casa. Nossa, olhe só que chuva!
Nádia queria dizer algo e não conseguia. Então, Sacha acomodou
Nádia sentada no coche e cobriu suas pernas com a manta. Em
seguida, sentou-se a seu lado.
— Boa viagem! Que Deus abençoe! — gritou a vovó, da varanda.
— Sacha, escreva de Moscou para nós!
— Está certo. Adeus, vozinha!
— Que a Rainha do Céu o proteja e guarde!
— Puxa, que tempinho! — exclamou Sacha.
Só então, Nádia desatou a chorar. Agora, para ela, estava claro
que iria embora dali, a todo custo, algo em que, apesar de tudo,
ainda não acreditava na hora em que se despediu da avó e quando
olhou para a mãe. Adeus, cidade! E, de repente, de uma só vez,
tudo lhe veio à memória: Andrei, o pai dele, o quadro novo, a dama
nua com a jarra; e tudo aquilo já não assustava, não oprimia, parecia
ingênuo, diminuto, e ia ficando para trás, cada vez mais distante.
Quando tomaram seu assento no vagão e o trem partiu, todo aquele
passado, tão vasto e tão grave, se encolheu em uma bolinha, e
desdobrou-se à sua frente um futuro imenso, largo, que até então
era quase imperceptível. A chuva batia na janela do vagão, só se via
um campo verde, postes telegráficos e pássaros pousados nos fios
passavam em lampejos e, de repente, a alegria cortou sua
respiração: Nádia se deu conta de que partia rumo à liberdade,
estava indo embora para estudar, e de que era o mesmo que, em
outros tempos, se chamava de “fugir para os cossacos”.[112] Ela ria,
chorava, rezava.
— Tudo be-e-em! — dizia Sacha, com um risinho. — Tudo be-e-
em!
VI
1903
ANTON TCHÉKHOV nasceu em 1860 em Taganrog, um porto no
Mar de Azov, na Rússia. Após receber uma educação clássica em
sua cidade natal, mudou-se para Moscou em 1879 para estudar
medicina, diplomando-se em 1884. Ainda nos tempos de faculdade
conseguiu sustentar sua família graças a histórias humorísticas,
contos e esquetes publicados com enorme sucesso em diversas
revistas e jornais. Estreou em livro em 1886, e no ano seguinte já
receberia o prêmio Púchkin pelo seu segundo livro. Suas histórias
mais famosas foram escritas depois que retornou da temerária
viagem à Sacalina. A montagem por Stanislávski de sua peça A
gaivota, de 1898, consolidou sua fama no teatro, gênero em que
deixou alguns dos mais importantes textos da história, como Tio
Vânia, Três irmãs e O jardim das cerejeiras. Com a saúde debilitada
após contrair tuberculose, mudou-se para Ialta, onde entrou em
contato com Tolstói e Górki, e seria nessa cidade na costa do Mar
Negro que passaria o resto de seus dias. Em 1901 casou-se com
Olga Knipper, atriz do Teatro Artístico de Moscou. Morreu em
1904.
capa
Fernanda Ficher
obra de capa
The Gang (2021), de Guim Tió
preparação
Leny Cordeiro
revisão
Paula Queiroz
Gabriela Rocha
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ISBN 978-65-5692-466-3
CDD 890
22. Gatinha.
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28. João, 5,28: “Não vos admireis com isto: vem a hora em que
todos os que repousam no sepulcro ouvirão sua voz”.
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42. Intelectualidade, a camada instruída da sociedade. Por vezes, denota sua vanguarda
política.
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79. Pronúncia tida como mais moderna, por ser mais próxima da
forma ocidental do nome.
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90. Nome árabe, significa “o eleito”. Era muito usado para designar
a principal autoridade local em países árabes.
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95. Em russo, sviátki. Trata-se dos doze dias entre o Natal e o dia 6
de janeiro.
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