Cruzes, Plumas e Batuques - Festas Públicas
Cruzes, Plumas e Batuques - Festas Públicas
Cruzes, Plumas e Batuques - Festas Públicas
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& Tróp. Rec(/e, v 28, ti. 2.p. 161 - 181,jíil./dez, 2000 161
Cruzes. Plumas e Batuques: Festas Pilbik as e Coloniwç'õa no Américo Portuguesa
1 A legislação portuguesa procurou regular as relações e estabelecer um padrilo de convivência entre colonos e índios.
Em 1570,D. Sebastião proclamou a liberdade doindiOamericano. Sobre osindioseas 'Lei sde suaLiberdade',ver
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Ruí-es da fa,t açdo adrnimçi,cit,w do B,zvi/. Rio de Janeiro: Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Conselho Federal de Cultura, 1972, tomo 1, p. 321.337.
2 LEITE, Serafim, Suma /drM,vce, do cornpaohio de Jesus "o Bra.ri/. assiviéncio de Pariu,cat: /549-
/760. Lisboa: Junta de Ultramar, 1965, p. 59-60. Para uma análise das convenções retóricas e
teo[ógico . políticas das cartas brasileiras do padre Manuel da Nóbrega. ver HANSEN, João Adolfo. O
nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil —1549-1558. Rett/nst.Esi.Bras.,São Paulo,38:87-119,1995.
José de Anchieta, por sua vez, embora reconhecesse nos índios potencial
para serem catequizados e, obediente aos princípios teológico-políticos da
Companhia, perseverasse em suam i ssão evangélica, registrava em cartas o
desânimo que temporariamente o abatia em relação aos frutos do trabalho:
"Têm capacidade para se converter, mas obsta a sua malícia e maus costumes,
e são tão feros e indômitos que parecem mais próximo da natureza das feras
que da dos homens."'
Todo o embate caloroso em tomo da conversão espiritual do gentio
era expressão particularizada de uma questão maior, que desafiava o reino
de Portugal nos idos dos séculos XVI e XVII: ocupar e manter sob seu
domínio as novas possessões coloniais. Isto implicava definir estratégias de
conquistas e de conceber, na prática histórica-cotidiana, e para além dela,
novas formas de relacionamento e de dominação entre colonizadores e
colonizados.
Com o intuito de se aproximarem e de granjearem a confiança dos
gentios e dos colonos, num primeiro momento, e dos escravos africanos,
cuja presença na estrutura socioeconômica se intensificaria no correr dos
séculos, os jesuítas procuravam atualizar, na colônia, métodos de conversão
• prescritos pela Companhia. Os fundamentos organizacionais da ordem
5 O Regulamento das Aldeias do Brasil, daCnmpanhiadeJesus, datado de 1586, § 1 [,[ornava obrigatório oque
já era praticado desde 549: "Ha,'endo memnosde escala, ensi,,em-se por espaço de lioni e meia; assim de memlui
como á tome, afere escreve'; e depois disto, co/tu,'; aos que parecer que têm habilidade para isso.' Sobre o tema,
ver LEITE, Serafim. A música nas Escolas Jesuíticas do Brasil no século xvt. co/cura, Rio de Janeiro, o. 2,jan.
/ abr. 194?, p. 28.
6 NOBREGA, Manoel da. cartas do Brasil. 1549-1568. Belo Horizonte: ltatiaia: São Pauto: Editora da
Universidade de São Paulo, 1988, p. 38. (Cartas jesuiticas: 1).
7 CACC1AGLIA, Mário. Pequena História elo teu,? no Bra.ri/. Quat;'o séculos e/e/cairo no Brasil.São Paulo:
T. A. Queiroz: Editora da Universidade de São Pauto, 1986, p. 13-4.
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Ci. & Tróp.Rec7e, : 28, n. 2p. IóJ-181,jul./dez.. 2000
^a de Cóssiofi. deAra4/o
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Ci. Tróp. Recife, v 28,n. 2,12. 161- 181,julía'ez., 2000
Rita de Cássia B. deAraio
17 Dentre os eleitos, seis vinham registrados como escravos e identificados pelo nome dos proprietários a que
pertenciam: "Rey dos Angolas Antonio Carvalho escravo de Agostinho Carvalho pagou 4$040" etc. Manuscritos
da igreja de Nossa Senhora do Rosáriodos Homens Pretos do Recife. tn: SILVA, LeonardoDantas (org.). Alguns
dx.'umentospaaialdrtáriadaesc,-at'idãn. Recife: FUNDAJ: Editora Massangana, 193 8.p. 123-2(X). Asflenu»ias,
de Urbain S. Rennefort, foram citadas por PEREIRA DA COSTA, E A. Anais pernamhucana.r, 2. ed. Recife:
FUNDARPE, 1983-1985, v. lO, p. 408.
IS PEREIRADACOSTA,EA. Ealk-laiepernamhncano. 1 edição autónoma. Recife: Arquivo Público Estadual.
1974, p. 222.(Ediçãoorigioalde l)8,publicadanaRev. lnst. Hisi. Geog. Peru.). Estudos analisando asmudanças
na estrutura do poder colonial —e, posteriormente, nado nacional—relacionando-as a possíveis modificações no
ritual de coroação dos reis de Congo, na capitania de Pernambuco e no prazo da longa duração histórica, ainda estão
por se fazer. Sobre o lema, ver, KOSTER, Henri. Viagens ao anuleste do Brasil. 2. ed. Recife: Secretaria de
Educação Cultura,, 1978, p. 276-7. GUERRA-PEIXE. MaiwcalnsdoRec-fr.São Paulo, Rio deiaoeiro: Irmãos
Vttale: Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980; SILVA, Leonardo Dantas. A instituição do Rei de
Congoe sua presença nos maracatus. In: SILVA, Leonardo Damas (org.). E,rmelas,rahreacscraivdüa negra. p. 13-
56. Vertambém, Décadas do Rosáriodos Pretos. Documentosda irmandade, tu: SILVA, Leonardo Dantas(org.).
Alguns c/ocumentosp.-nw a li/ruiria da escraivdõo. p. 93-122: TORRES, Claudia Viana. Uni ,'ei,,ado de negros
em um E.rtad.-, de brancos: ai ganiraçr es de escrat'os urbaoos em Rec(fenojinnl.-/o .rKca/o X Vi//e início da .récu/o
XIX ç'J 771.18/3'). Dissertaçãode Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1997; MAC CORD,
Marcelo. /1/ei arQuia e conflito entre frmáos do Rosário dor prelos no Recife (1848 187.?). Projeto de pesquisa,
Programa de Pós-Graduaçãoem HistóriaSocial doTrabalho, Universidade Estadual deCampina.s, 1998: SILVA,
Luís Geraldo. Da festa á .redi?õo: ,rociabilitlade, etnia e coa/ri/e sacia/na América par ugliesu (/776-18/4).
Comunicação apresentada no seminário Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo, Universidade
de São Paulo, Departamento de Hist6ria, 6 a 11 de setembro de 1999.
19 PEREIRA DA COSTA. F. A. 0/7. ciL, vr lo, p. 243. Como exemplo de uma dessas patentes: AntõnioDuarte,
19 de novembro de 1791, govemadordos Canoeiros do Recife e Olinda, acrescentando o governador de Pernambuco:
pelo que ordeno ao Rei do Congo da referida Vila do Recife que portal o reconheça e estime e lhe confirma a posse
e juramento do estilo, do que fará assento nas costas deste ...'." Citado por MELO, José António Consalves de.
Alguns aditamentos e correções. In: PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais penzcmhuca'w.r, v. LO, p. DM.
20MELLO,José Antônio Gonsalves de. Alguns aditamentos correções. In: PEREIRA DA COSTA, F. A.
v. lO, p. DX.
170 CL c Tip Recife, s'. 28, n. Zp. 161- Mi, ju/./deat. 2000
Rita de CássiaS. deAra4io
21 Eis o texto das Ordenações: "... mandamos aos Juizes e Véreadores, que em cada hora aos dous dias do
mez de Julho ordenem uma procissão solemne á honra da visitação de Nossa Senhora. E assi mesmo farão em cada
hum anno no terceiro Domingo do mez de Julho outra procissão sol emne, porcommemoração do Anjo da Guarda,
(...). As quaes Procissões se ordenarão e farão com aquelia festa e solemnidade, com que se faz adoCorpo de Deos:
para as quaes e para quasquer outras, que de antigo se costumaram fazer, ou para outras, que Nós mandamos fazer,
ou forem ordenadas dos Prelados, Concelhos e Cantaras, não serão constrangidos vira eltas nenhuns moradores do
termo de alguma cidade, ou villa, salvo os que morarem ao redor huma legoa. E os ditos Véreadores não levarão dos
bens do Concelho dinheiro, nem percalço algum, por fazerem as ditas Procissões, ou irem nellas. E não consentirão
oellas mascaras, não sendo ordenadas para provocar a devoção. E a pessoa, que nas ditas Procissões, forem per
qualquer dos modos acima defesos, pa g ará de cadea mil réis, ametade para oconcelho, eaoutra para quem accusar,"
Oz/enaç.ões FY/,2n'na g tio Reino defto,iuga/, Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa. Lisboa:
Fundação CalousteGulbenkian, 1985. (ediçãofoc-sfm/tedaedição feita por Cãndido Mendes deAlmeida, Rio de
Janeiro, 1870), Livro 1, Tit. LXVI, § 48. As Câmaras tiveram esta obrigação até 12 de outubro de 1828. ver
também, ALMEIDA, Fernando Mendes de. O foiclorenas Ordenações do Reino. Revista do Arquivo Municipal,
São Paulo, v. LVI, p. 5-126, 1939; ver p. 50 64.
22 As disputas entre Olinda e Recife, no período que nsargeia a Guena dos Mascate,, ilustram bem a questão. Ver
MELLO, José Antônio Gonsalves de. O quinto volume dos Anais. lo; PEREIRA DA COSTA, E A. Anais
peiz,nmhucenmr, v. 5, p. XVIII; e MELLO. EvaldoCabral de. A .romhradtzçmaomhos.'nob,rsdou/tn/m,7sda19.r,
Pernombuco.I666-I 715. São Pauto: Companhia das Letras, 1995, p. 386. Para outros tipos de conflitos, ver,
VERSIANI, Carlos. As Cartas Chilenas e as festas de 1786 en, Vila Rica (A história oculta sob os versos de
Gonzaga). Rev. hist. Est. Bras. São Paulo, n. 38, p. 43-68. 1995: KANTOR, [ris. Notas sobre aparência e
visibilidade social nas cerimônias publicadas em Minas seecentisia, Pós'II/sió,ia, Rer,.ria 1/e Pá r-Gra-Juaçõo em
IlIsió,ia. Assis, v. 6, 1998, p. 163174.
23 Relações de várias festas banocas coloniais encontram-se reunidas na preciosa coleção de documentos recolhidos
por CASTELLO, José Aderaldo. O moi/me/fio acai/emiciria no Dias,!, volumes publicados pelo Conselho
Estadual de Cultura, do Estado de São Paulo, entre 1969 e 1978.
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CLcC'T-óp.Rec(fe, v.28,,t2.p.161-JSJ,ju/idez..2000
Rita de Cássia B. deArcúja
26 As informações sobre esta festa se encontram em LANGE, Francisco Cure. 'Documentação musical pernambucana.
&n-rocau Belo Horizonte, n. 9, 1977, p. 6-31.
174 Ci. c Tróp. Recife, v28, ii. 2o. 161- 181,ju/idez., 2000
Rita de CóssiaB. deA;a4jo
27 BENCI, Antônio. Econamia cr/sfõ das seu/ares 1,0 ça'e,wa das escravos. Estudo preliminar de Pedro de
Alcântara Figueira e Claudine i M. M. Mendes. São Paulo: Editorial Grijaldo, 1977,p.49 e 9, respectivaniente.
(12w-rim//e da edição de 1700).
28 Id. ibid. p. 171.
29 Id. ibid. p. 189.
30 Id. ibid. p. 192.
32 MELLO, José Amônio Gonsalves de. "Um governador colonial e as seitas africanas'. In; Silva, Leonardo Damas
(org.). Esimíar sabre o escravi^/ãa 1/eRra. Recife; FUNDAJ -Editora Massangana, 1988, vI, p. 360. Artigo
originalmente publicado noDkiradeflenrnrnhuca, ern22dejaneïro de 1950. Trechosda documenlaço pertinente
furam primeiramente publicados por PEREIRA DA COSTA, F. A. Ãnaü pernombuamar ... v. 6, p. 381-383.
33 "Cana de José César de Menezes ao arcebispo de Lacedomnia". trecho reproduzido por SILVA, Luis Geraldo.
op. cit., p.I4.
Ci. Tróp. Recife, v 28. ir 2,,,,. 161- 181, ju/./deL, 2000 177
Cruzes, Plumas e Batuques: Festas Públicas e Colonização naA mér/ca Poduguesa
uma dançam e fazem voltas como arlequins, e outros dançam com diversos
movimentos do corpo, que, ainda que não sejam os mais inocentes, são como
os fandangos de Castela e fôfas de Portugal, e lunduns dos brancos e pardos
daquele país".
Havia, entretanto, uma outra modalidade de baile que julgava ser "de
uma total reprovação". Eram os bailes que os negros da Costa da Mina
realizavam às escondidas, em casa ou roças, "com uma preta mestra, com
altar de ídolos, adorando bodes vivos, e outros feitos de barro, untando seus
corpos com diversos óleos ou sangue de galo, dando a comer bolos de
milho depois de diversas bênçãos." Bem informado sobre os ritos religiosos
africanos praticados nos domínios coloniais, o conde também estava ciente
da penetração que alcançavam não apenas entre os negros "rústicos", também
entre "aqueles que não pareciam tão rústicos", como frades e clérigos. Muitos
destes últimos foram encontrados entre os freqüentadores dos cultos africanos,
por ocasião dos cercos que o governador ordenava aos locais onde
costumavam reunir-se. Eram, então, severamente punidos: presos e trazidos
à presença do governador, que os reenviava aos prelados para que os
castigassem. Quantos aos negros, além de punidos com rigorosos açoites,
obrigava os senhores a os venderem para outra praça?4
Em carta datada de 4 de julho de 1780, o ministro Martinho de Mello
e Castro ordenava ao governador José César de Menezes que não permitisse,
de modo algum, as danças supersticiosas e gentílicas dos negros. Quanto às
primeiras, poderiam ser toleradas, "com ohm de evitar com este menor mal
outros males maiores, deve Vossa Senhoria, contudo, usar de todos os meios
suaves para ir desterrando pouco a pouco um divertimento tão contrário aos
bons costumes"."
Sinais de que teriam ocorrido mudanças nas atitudes dos governadores
frente aos rituais religiosos e a outras práticas culturais dos negros, de que o
episódio acima descrito seria um marco, como sugeriu o historiador José
Antônio Gonsalves de Mello, precisariam ser melhor investigados mediante
o reexame da documentação.` A documentação indica que José César de
34 PEREIRA DA COSTA, F. A. Anmrpe/vurn!b,IcÜI/os .. . v. 6. p. 381-382.
35 PEREIRA DA COSTA, E A. EaIk-/crepeinamhticc;'o ....p. 214, Em Lisboa e por uma légua ao seu redor,
os bailes e ajuntamentos de escravos ou de pretos forros estavam proibidos desde 1559. Leis &Pwi-'agw#es e
Repertório dos Ordenaçües de Dmwtet'tm,esdoLiõo. Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. (edição fac-sim//e da edição princeps das Leis Extravagantes
impressa em 1569). Na colônia, a proibição já existia, "mas dependia da maior ou menor liberalidade das
autoridades.' MELLO, José Antônio Gonsalves de. Alguns aditamentos ecorreçôes. In: PEREIRA DA COSTA.
E. A. Anuir pernombeiccmo.r ... v. 6, p. Dctlt.
36 MELLO, José Antônio Gonsalves de. tfmo p 'enwdorco/onio/... p. 363.0 trabalho em curso de Luis Gemido
Silva, já citado, promete lançar novas luzes sobre o tema.
Batuques olhados pelo governo são uma cousa, e olhados pelos particulares da
Bahia são outra diferentíssima. Estes olham para os batuques como para um ato
ofensivo dos direitos dominicais, uns porque querem empregar seus escravos em
serviço útil ao domingo também, e outros porque os querem ter naqueles dias
ociosos na sua porta, para assim fazer parada de sua riqueza. O governo, porém,
olha para os batuques como para um ato que obriga os negros, insensível e
maquinalmente de oito em oito dias, a renovaras idéias de aversão recíproca que
lhes eram naturais desde que nasceram, e que todavia se vão apagando pouco a
pouco com a desgraça comum; idéias que podem considerar-se como o Garante
mais poderoso da segurança das grandes cidades do Brasil, pois que se uma vez as
diferentes Nações da África se esquecerem totalmente da raiva com que a natureza
as desuniu, e então os de Agomés vierem a ser irmãos com os Nagôs, os Gêges
com os Haussas. os Tapas com os Sentys, e assim os demais: grandíssimo e
inevitável perigo desde então assombrará e desolará o Brasil. 13 quem duvidará
que a desgraça tem o poder de fraternizar os desgraçados? Ora, pois, proibir o
único traço de desunião entre os negros vem a ser o mesmo que promover o
Governo indiretamente à união entre eles, do que não posso ver senão terríveis
conseqüências.39
C,: & 7249. Rec(/è, i'. 28,,;. 2,p. 120 - 181,j2il.It, 2000 179
arredores e às suas formas tradicionais de vida associativa. Já em 1804,
quando assumiu o governo da capitania, deixou de emitir cartas patentes aos
negros e recolheu as que haviam sido distribuídas anteriormente.` O
governador mostrava-se extremamente cauteloso em relação aos grandes
ajuntamentos de negros, em especial, aos noturnos. Em 1815, repreendeu o
Ouvidor de Olinda, Antônio Carlos de Andrada Machado e Silva, por haver
sido condescendente com os negros e seus ritos: era preciso muita cautela. O
governador tinha em mente os exemplos recentes de revoltas e sedição
ocorridos no Haiti e, mais proximamente, na Bahia, a tentativa de levante dos
negros do Recife, programada para o dia 29 de maio de 1814, e a possibilidade
de um novo levante nas Alagoas.
As prováveis mudanças no modo de as autoridades governamentais,
metropolitanas e locais, conceberem e se comportarem frente às
manifestações culturais, aos ajuntamentos e às corporações de negros, não
podem ser compreendidas sem que sejam levados em conta determinados
aspectos do período: a difusão do pensamento iluminista em Portugal e sua
influência sobre as práticas políticas efetivas na metrópole e na colônia, das
quais a expulsão dos jesuítas, a política pombalina de libertação e de
integração da população indígena, retirando-a da tutela religiosa dos
missionários, e a desconfiança quanto ao excessivo número de associações
leigas no Brasil são exemplos. As transformações havidas na sociedade local,
com a intensificação do processo de urbanização do Recife, o crescimento
da camada social formada por homens livres de cor, a difusão das idéias
liberais na colônia e o reordenamento das forças políticas são fatores igualmente
importantes a serem analisados.
Não apenas os batuques e ajuntamentos de negros passavam a exigir
uma maior cautela das autoridades governamentais - receosas de que
eclodissem movimentos políticos e revoltas de graves e incontroláveis
conseqüências na América portuguesa - entre a segunda metade do século
XVIII e primeira do século XIX. Governantes e pensadores ilustrados
portugueses defendiam o estabelecimento de uma nova relação entre Estado
e Igreja, ficando a atuação desta última mais restrita às questões puramente
espirituais. Condenavam igualmente a exteriorização pública da fé, defendida
pela Igreja Católica desde os tempos da Reforma, considerada poreles prática
excessiva e nociva aos bons costumes e à moral católica, sendo favoráveis a
40 Provisões Régias, de 24 de Março de 1802, proibiram aos governadores passarem unia série de patentes, por
entenderem estar havendo abuso no uso de tais concessões, ver carta de Caetano Pinto de Miranda Montenegro
enviada à Cone, em 1812, apud TORRES, Claudia Viana. Op. cit. p. 71-72.