Cruzes, Plumas e Batuques - Festas Públicas

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CDU 398.

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CRUZES, PLUMAS E BATUQUES: FESTAS PÚBLICAS


E COLONIZAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA

Rita de Cássia B. de Araújo

Festas públicas: integração cultural e dominação

Ao lançar-se na aventura que representaram as navegações


ultramarinas, nos séculos XV e XVII, Portugal o fez movido por fortes interesses
políticos, econômicos e religiosos. Em nome de Cristo e da expansão da
Santa Fé Católica pelos quatro cantos do mundo - Europa, África, Ásia e
América - novos territórios, povos e mercados foram conquistados e
incorporados à órbita do poder e da influência cultural européia.
A colonização da América portuguesa, espaço colonial não valorizado
inicialmente, realizou-se de um modo específico, distinto daquele aplicado às
conquistas no Oriente e na África, onde o lucro mercantil era imediato. Na
América, o lucro seria mediato. Não bastava estabelecer postos de comércio:
era necessário ocupar e povoar o novo e vasto território, implantando fora-ias
de exploração econômica lucrativas e permanentes.
Para o sucesso do empreendimento colonial nos trópicos, além de
todo o aparato jurídico, político, militar, administrativo e religioso transplantado
da metrópole, muito concorreram as missões das ordens religiosas, da
Companhia de Jesus em especial. Imbuídos da missão de cristianizar os índios
americanos, no final de março de 1549, desembarcou o primeiro grupo de
jesuítas na Baía de Todos os Santos. Amesma nau, que os conduziu, trouxe
também a comitiva de Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil.
Contudo, entre religiosos e agentes civis e militares enviados da metrópole,
os jesuítas não foram os únicos responsáveis pelo estabelecimento de contatos
e de formas de relações sociais mais estáveis entre os portugueses e índios.
Ao chegarem, já havia vida organizada e produtiva em alguns raros pontos

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Cruzes. Plumas e Batuques: Festas Pilbik as e Coloniwç'õa no Américo Portuguesa

da colônia, a exemplo da capitania de Pernambuco, que tinha por donatário


Duarte Coelho.
A percepção do europeu sobre o índio americano e, conseqüentemente,
sobre o estatuto teológico e jurídico no qual este deveria ser enquadrado,
longe estava de ser consensual entre os colonizadores: religiosos das mais
diversas ordens, autoridades civis e militares, colonos proprietários de terra
ou simples moradores divergiam em seus pontos de vista. Estava em discussão
a própria natureza do gentio, se humana ou animal, se era ou não dotado de
alma; questão formalmente resolvida com a bula papal de 1537, que
reconheceu a natureza humana do gentio americano. Conflitos envolvendo
ordens religiosas rivais, ou ainda, jesuítas, de uni lado, e colonos, de outro -
estes últimos insistindo na necessidade de utilizar o índio como mão-de-obra
escrava ou defendendo seu extermínio - foram freqüentes ao longo dos
primeiros séculos de formação colonial. Conflitos que, muitas vezes, exigiram
um empenho efetivo do rei, no sentido de solucioná-los ou, ao menos, de
tentar apaziguar os ânimos acirrados.'
Na concepção dos padres da Companhia de Jesus, os índios eram
dotados de "Graça", passíveis, portanto, de serem trazidos da barbárie em
que viviam à luz divina. O padre Manuel da Nóbrega, primeiro provincial da
Companhia de Jesus na América, no Diálogo da conversão do gentio, escrito
em 1553, afirmou que os índios eram homens, criados à imagem e semelhança
de Deus e que possuíam alma. Estavam, assim, aptos a serem instruídos nas
letras e convertidos na fé, em direito e em fato, como muitos já o haviam
sido, principalmente, os meninos. Nóbrega, no auge de seu otimismo, declarou
que os índios apresentavam-se como "papel branco", neles se podendo
escrever o que melhor aprouvesse? A prática missionária, entretanto,
contrariaria sua impressão inicial, revelando a resistência do índio em assimilar
preceitos e costumes europeus e cristãos.
Ao entendimento do índio, como ser passível de cristianização,
contrapunha-se a visão do bispo D. Pero Fernandes Sardinha, com quem
Nóbrega se indispusera e para quem os índios não passavam de bárbaros
gentílicos, dificilmente recuperados e cristianizados. O também jesuíta

1 A legislação portuguesa procurou regular as relações e estabelecer um padrilo de convivência entre colonos e índios.
Em 1570,D. Sebastião proclamou a liberdade doindiOamericano. Sobre osindioseas 'Lei sde suaLiberdade',ver
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Ruí-es da fa,t açdo adrnimçi,cit,w do B,zvi/. Rio de Janeiro: Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, Conselho Federal de Cultura, 1972, tomo 1, p. 321.337.
2 LEITE, Serafim, Suma /drM,vce, do cornpaohio de Jesus "o Bra.ri/. assiviéncio de Pariu,cat: /549-
/760. Lisboa: Junta de Ultramar, 1965, p. 59-60. Para uma análise das convenções retóricas e
teo[ógico . políticas das cartas brasileiras do padre Manuel da Nóbrega. ver HANSEN, João Adolfo. O
nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil —1549-1558. Rett/nst.Esi.Bras.,São Paulo,38:87-119,1995.

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Rita de Cássia E. de A/alUo

José de Anchieta, por sua vez, embora reconhecesse nos índios potencial
para serem catequizados e, obediente aos princípios teológico-políticos da
Companhia, perseverasse em suam i ssão evangélica, registrava em cartas o
desânimo que temporariamente o abatia em relação aos frutos do trabalho:
"Têm capacidade para se converter, mas obsta a sua malícia e maus costumes,
e são tão feros e indômitos que parecem mais próximo da natureza das feras
que da dos homens."'
Todo o embate caloroso em tomo da conversão espiritual do gentio
era expressão particularizada de uma questão maior, que desafiava o reino
de Portugal nos idos dos séculos XVI e XVII: ocupar e manter sob seu
domínio as novas possessões coloniais. Isto implicava definir estratégias de
conquistas e de conceber, na prática histórica-cotidiana, e para além dela,
novas formas de relacionamento e de dominação entre colonizadores e
colonizados.
Com o intuito de se aproximarem e de granjearem a confiança dos
gentios e dos colonos, num primeiro momento, e dos escravos africanos,
cuja presença na estrutura socioeconômica se intensificaria no correr dos
séculos, os jesuítas procuravam atualizar, na colônia, métodos de conversão
• prescritos pela Companhia. Os fundamentos organizacionais da ordem

requeriam de seus seguidores disciplina, moderação e perseverança. Quanto


aos métodos da catequese, a persuasão, o proceder "paternalmente" e "sem
modos que [cheirassem] a império"4 estavam acima de qualquer outro recurso.
O uso da força física, ainda que reconhecido e recomendado pela Igreja
para corrigir determinadas faltas, não deveria ser empregado pelas mãos dos
próprios missionários. Para isso, havia os representantes do poder temporal.
O sucesso da conversão espiritual dos gentios e sua integração à ordem
social e política, que se buscava implantar, dependiam de algumas medidas
fundamentais a serem implementadas pelos padres da Companhia de Jesus.
Medidas radicalmente contrárias à formação social e econômica dos grupos
indígenas e às suas tradições culturais, as quais, se vistas com a consciência
democrática e o olhar antropológico atuais - que não era o caso dos
conquistadores - ou mesmo, pensando naqueles que foram suas vítimas,
revelam-se em toda sua arbitrariedade e violência. O programa de ação da
Companhia recomendava mantê-los reunidos em aldeias, onde pudessem
ser vigiados e controlados; e proibia práticas consideradas bárbaras, graves
e absolutamente intoleráveis para a Igreja Católica: a poligamia, a antropofagia,
a nudez após o batismo, e sua religião, logo traduzida por feitiçaria.
3 LEITE. Serafim. op, cit. p. 60.
4 As expressões esio em LEITE, Serafim - op. cit., p. 74-5.

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Cn.'zes, Plumas e Batuques: Festas Públicas e Colonização ,zoA mérito Portuguesa

A persuasão, como foi dito, deveria ser a base do trabalho da missão.


A vivência cotidiana com os grupos sociais e etnias, que constituíam a incipiente
vida social da colônia, pouco a pouco foi revelando aos padres outros meios
de conquista, tanto ou mais eficazes que aqueles universalmente prescritos
pela Companhia. Os padres perceberam o quanto os gentios eram afeiçoados
à música e ao canto, e procuraram fazer, dessa inclinação, o mais intenso e
frutífero uso a favor de sua empresa. Ao ler e escrever, não tardaram os
jesuítas a acrescentar o ensino do canto, da música - em que predominou a
flauta - da dança e da representação teatral, com destaque para os autos-
hieráticos.' Testemunho do largo uso dos meios de conversão acima apontados
encontra-se nas Cai-tcisjesuít/cas, particularmente num registro deixado pelo
padre Antônio Franco, sobre a ação missionária de Nóbrega em Pernambuco,
nos anos de 1551e 1552:
Vendo ele que os Brasis se levavam muito do canto, fez ordenar cm solfas as
orações e mistérios da Fé. cousas que os Indios muito gostavam e teve esse santo
artifício efeitos mui notáveis; e aos meninos do seminário que as cantavam tinham
os Ind ios tanto respeito que punham neles os olhos como em coisa sagrada!

A produção teatral dos jesuítas é igualmente exemplar em termos de


estratégia de conquista, na qual ouso da força física não assumiu o papel
preponderante. Visava muito mais instituir formas de vida associativa e de
pensamentos ou sentidos sociais comuns entre os vários grupos étnicos e
categorias sociais, que davam existência concreta a um espaço histórico e
social particular da vasta colônia. Em 1586, porexemplo, nacapital do Espírito
Santo, teve lugar o drama "Na vila da Vitória", cuja autoria é atribuída ao
padre José de Anchieta. Neste espetáculo, a capitania do Espírito Santo, a
cidade de Vitória e o seu protetor, São Maurício, apareciam personificados e
estavam sob ameaça de inimigos comuns, Lúcifer e Satanás.' Além dos
conteúdos religiosos e morais contidos no texto, o auto buscava oferecer ao
público, formado em sua maioria de colonos, a representação de uma unidade
política e social que se estava querendo formar, em um espaço territorialmente
definido.

5 O Regulamento das Aldeias do Brasil, daCnmpanhiadeJesus, datado de 1586, § 1 [,[ornava obrigatório oque
já era praticado desde 549: "Ha,'endo memnosde escala, ensi,,em-se por espaço de lioni e meia; assim de memlui
como á tome, afere escreve'; e depois disto, co/tu,'; aos que parecer que têm habilidade para isso.' Sobre o tema,
ver LEITE, Serafim. A música nas Escolas Jesuíticas do Brasil no século xvt. co/cura, Rio de Janeiro, o. 2,jan.
/ abr. 194?, p. 28.
6 NOBREGA, Manoel da. cartas do Brasil. 1549-1568. Belo Horizonte: ltatiaia: São Pauto: Editora da
Universidade de São Paulo, 1988, p. 38. (Cartas jesuiticas: 1).
7 CACC1AGLIA, Mário. Pequena História elo teu,? no Bra.ri/. Quat;'o séculos e/e/cairo no Brasil.São Paulo:
T. A. Queiroz: Editora da Universidade de São Pauto, 1986, p. 13-4.

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Rito de Cóssicr8. deÀ,'ewfro

No ano da fundação da cidade do Salvador, em 1549, foram realizadas


as cerimônias religiosas públicas do Corpo de Deus e do Anjo Custódio -
festas de grande importância para os da metrópole, consagradas pela tradição
e tornadas obrigatórias pela legislação portuguesa. Os padres da Companhia
incorporaram-se aos festejos, cuja celebração, particularmente naquele ano,
foi uma espetacular demonstração político-religiosa da fundação do Governo-
geral do Brasil, havendo exercido grande atração sobre os índios:
A 20 de Junho já se celebra o Corpo de Deus. Festas de igreja e de arraial.
procissão solene, salvas de artilharia, ruas enramadas e 'danças e invenções á
maneira de Portugal'. Um mês depois. outra festa, a do Anjo Custódio: missa
solene celebrada por Nóbrega, canto coral e procissão grande música a que
respondiam as trombetas'.'

Nas festas e procissões religiosas, as medidas de integração cultural,


adotadas pelos padres e uma das marcas da ação missionária jesuítica na
colônia, tornavam-se particularmente visíveis. Maracás e taquaras,
instrumentos musicais da cultura indígena, misturavam-se às flautas, gaitas,
nêsperas, ferrinhos, pandeiros com soalhas e até algum "tamborileiro e
gaiteiro"Y Durante as exibições, as danças dos gentios, com suas plumagens
e adereços, arcos e pinturas corporais, contemporizavam com divertimentos
vindos da corte: os tiros, as danças, os jogos de argolinha, a representação
de autos. Fernão Carditn, em 1583, numa aldeia da Bahia, assistiu à
apresentação de danças e músicas protagonizadas pelos meninos índios:
em uma delas lhes ensinam a cantar e têm seu coro de cantos e flautas para suas
festas, e fazem suas danças à portuguesa, com tamborins e violas, com muita
graça como se fossem meninos portugueses; e quando fazem estas danças põem
uns diademas na cabeça, de penas de pássaros de várias cores, e desta sorte fazem
também os arcos, empenam e pintam o corpo, e assim pintados e mui galantes a
seu modo fazem suas festas muito aprazíveis, que dito contento e causam devoção
por serem feitas por gente indômita e bárbara, mas por bondade divina e diligência
dos Nossos. 'feitos já homens políticos e cristãos'."'

Desde meados do século XVI à segunda metade do XVIII, período


em que atuaram no Brasil, as missões jesuíticas foram alvo de conflitos e
controvérsias, as quais se estenderam para além daquele que foi o seu tempo
8 LEITE, Serafim, op. cá, p. 123.
9 Em estudo sobre a introdução e adoção da música instrumental pelos jesuítas, escreveu Serafim Leite: "Na
e.rctir,rdo e/os Meninos eh/elos aos arredores e/a Bahia ,'iram e ao viram os maracá, e as taquaras Clamas e
trombetas) das luchos. A/tio iam» fia/a as .ruhs/ituir Come) fia/a as supera': pediram der Lisboa, flautas. gaitas,
nésperas,ferrin/ie)s coar argo/miras e/entro, pm;e/ei, os com soa/lias. e.re viessem a/gan.r tamborileiros e gaiteiros,
com é/es bhi sega/o e Pe, iveibrega e) conquista elos sertões ....LUTE, Serafim. A m,lsiee, nas Escolas Jesa/ticas
...p. 31
lO Citado por LEITE, Serafim. Suma hntefrice,... p. 67.

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Cruzes, Plumas e Batuques; Festas Públicas e Colonização izaÀ mérica Portuguesa

presente e cravaram-se na historiografia brasileira. Nesta última, as polêmicas


se estabeleceram inclusive em relação às festas e ao uso religioso, político e
ideológico que delas fizeram os missionários. Na opinião de Serafim Leite,
jesuíta, estudioso e grande entusiasta da obra da Companhia de Jesus no
Brasil, as festas religiosas coordenadas pelos padres, nas quais manifestações
das culturas portuguesa e indígena iam sendo mescladas, produziram
verdadeiros "frutos de civilização".
Gilberto Freyre, em clássico estudo dedicado à formação da família
patriarcal brasileira, mostrou-se extremamente crítico em relação aos jesuítas.
Seu pensamento, sobre o processo de cristianização dos índios pelos
missionários, pode ser resumido deste modo: interessava aos religiosos, e ao
reino como um todo, conservar a raça indígena, destruindo, porém, a sua
cultura, para vê-los "aos pés do Senhor", domesticados para Jesus. Se, do
ponto da vista da Igreja, os padres agiram com heroísmo e com extrema
lealdade aos seus ideais; sob outro prisma, foram "puros agentes europeus
de desintegração de valores nativos". Concluiu, então, que sua influência foi
tão deletéria quanto a dos colonos) t Apesar disso, reconheceu que a eles se
deveu o fato de os índios do Brasil não haverem sido escravizados ou
fisicamente massacrados, como os nativos africanos o foram. E mais:
O próprio sistema jesuítico - talvez a mais eficiente força de cristianização
técnica de cultura moral e intelectual, a agir sobre as populações indígenas: o
próprio sistema jesuítico. no que logrou maior êxito no Brasil dos primeiros
séculos foi na parte mística, devocional e festiva do culto católico. Nacristianização
dos caboclos pela música, pelo canto, pela liturgia, pelas procissões, festas,
danças religiosas, mistérios, comédias; pelas distribuição de verônicas com agnus-
dei que os caboclos penduravam no pescoço, de cordões, de fitas e rosários; pela
adoração de relíquias do santo Lenho e de cabeças das Onze Mil Virgens. Elementos,
muitos desses, embora a serviço da obra de europeização e de cristianização,
impregnados de influência animística ou fetichista vinda talvez da África. 12

A moral católica foi o principal critério utilizado pelos jesuítas para


selecionar os elementos e manifestações da cultura indígena que poderiam ou
não, ser praticados, aceitos e exibidos nos espaços ditos públicos das cidades,
vilas e aldeias coloniais, desde que integrados de alguma forma às expressões
da cultura européia. Deste modó, consentiram aos índios o direito de executar
suas danças e ritmos nas festividades, mas desligados inteiramente do contexto
e significados originais e destituídos das práticas consideradas perniciosas e
ameaçadoras à ordem pública e aos bons costumes:
FREYRE, Gilberto. casa -grande & .ren:a/a: formação da família hra.ri/eire, ro/) a reqi'ne (/(z ecoi,ofYiia
pan-/arcal. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, t989, p. 147-8; 110.
12 td. ibid. p. 52-3.

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os padres não suprimiram as danças indígenas, pondo-lhes apenas limite horário,


aos sábados à noite, para que, não tanto pelas danças corno pelo caxixi', 'cauim'
ou outras bebidas inebriantes, os Indios não ficassem incapazes para a vida social
ou assistência aos actos do culto no domingo pela manhã.13

O sucesso do empreendimento colonial, contudo, do qual os


missionários e demais autoridades portuguesas eram agentes e mentores,
dependia da construção de uma sociedade estável e lucrativa nos trópicos.
Assim, ao lado das relações sociais de produção básica e da implantação de
um como político-administrativo de modelo Antigo Regime, criou-se todo
um conjunto de instituições civis, religiosas, militares e paramilitares, por meio
do qual as categorias sociais foram hierarquicamente organizadas, com cargos,
títulos e patentes, particularizadas por insígnias, estandartes e indumentárias,
a cada qual cabendo direitos e deveres definidos por lei ou pelo antigo costume.
Essas instituições seguiram, no geral, o modelo das já existentes na
metrópole, sendo adaptadas às condições históricas particulares da colônia.
Tinham por principal função organizar e integrar, na ordem colonial escravista,
os grupos sociais e étnicos que habitavam a colônia, especialmente nas vilas
e cidades, onde o controle social da população e, especialmente, sobre os
negros escravos e homens livres de cor era bem mais difícil de ser exercido
do que nas grandes propriedades de terra.' 4 E o faziam de um modo
específico, por categoria profissional, por associações religiosas ou segundo
critérios étnicos, de origem ou de sangue, hierarquizando-os conforme os
valores políticos, sociais, morais e raciais próprios da época. Organizaram-
se as corporações de ofícios, as confrarias e irmandades religiosas leigas de
brancos, de índios, as dos negros e as dos mulatos. Milícias e corporações
militares - algumas específicas a uma raça ou estamento, como o Terço dos
Henriques, representativo dos homens pretos, ou o Regimento de Infantaria
dos Nobres, o Regimento de Milicianos dos Pardos, todos estes guarnecidos
em Pernambuco na segunda metade do XVIII. Ainda entre os corpos
paramilitares de matriz étnica, encontravam-se a Nação dos Ardas do Botão
da Costa de Mina, a Nação Dagomé, a Nação da Costa Suvaru e outros.
Instituíram os cargos de governadores dos crioulos, negros e mulatos, os reis
e rainhas dos índios e ditos dos pretos, dentre outros.
Tiveram as aldeias de índios suas próprias confrarias religiosas, as
primeiras datando de 1573 e 1574: a irmandade do Santíssimo Sacramento

13 LEITE, Serafim. Suma /i,:rM'lca ... p. 66.


14 Ver, BASTIDE, Roger. As,e/fqMesefica,wrnoB;wsU 3. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1973, p.
74 e seguintes. -

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e a de Nossa Senhora das Almas do Purgatório, ambas na Bahia. No Colégio


do Rio de Janeiro, houve uma confraria da escravaria índia, fundada em 1586,
cuja festa dos Reis Magos assumiu extraordinárias proporções. Sua
congênere, tio Espírito Santo, alcançou iguais pompas e brilho:
Todavia na Capitania do Espírito Santo, não já para moradores, mas para a sua
escravaria índia, existia na igreja da Companhia a Confraria dos Reis Magos,
quando por aípassaram em 15840 visitador Cristóvão Gouveia e Fernão Cardim.
Os índios para festejar os ilustres hóspedes, "vieram um domingo com seus
alardes, à portuguesa e a seu modo, com muitas danças, folias, bem vestidos, e o
seu rei' e rainh&, ricamente ataviados, com outros principais e confrades da dita
confraria. Fizeram no terreiro da igreja caracóis, abrindo e fechando com graça,
por serem mui ligeiros e os vestidos não carregavam muito a alguns porque não os
tinham". Fez-se-lhes a pregação e o visitador agradeceu, deitando relicários ao
pescoço do 'rei, da rainha e principais'.'3

O empenho das autoridades portuguesas, civis e religiosas, em enquadrar


os segmentos sociais e grupos étnicos dominados, nas normas e hierarquia
da sociedade colonial, e de exercer um efetivo controle social sobre os
mesmos, pode ser visto em outro registro retirado das mesmas Canos
jesmíl/cas, referente aos escravos da terra e aos de origem africana. Em
1552, decorridos poucos anos da chegada dos primeiros cativos negros ao
Brasil, a capitania de Pernambuco já contava com uma confraria de Nossa
Senhora do Rosário. Alguns escravos "de Guiné" e outros nativos, iniciados
nos preceitos e rituais católicos - ao menos no plano da exteriorização da fé
- freqüentavam missa aos domingos e dias de festa e participavam das
procissões religiosas. O padre Antônio Pires elogiava a boa ordem em que
se mantinham durante o préstito, em que muito se distinguiam dos brancos,
dos juízes, meirinhos e almotáceis, que se "não podiam metter em ordem,
sempre faliando". Quanto aos escravos, especialmente os índios, "iam em
tanta ordem e tanto concerto. uns tras outros com as mãos sempre alevantadas.
dizendo todos: 'Orapronobir', que faziam grande devoção aos Brancos e
em tanto que os Juizes lhe dão em rosto com os Escravos"."
As irmandades religiosas dos homens de cor, principalmente as do
Rosário dos pretos, costumavam eleger seus reis e rainhas negros, prática,
aliás, implementada em outras possessões do reino e no próprio mundo ibérico.
Em Pernambuco, encontram-se informações sobre a instituição do rei e da

15 LEITE, Serafim. Santa histórica, p. 128.


16 NAVARRO, Azpilcueta e outros. Curtas o,wI.ras; 1550-1568. Belo Horizonte: ltatiaia; São Paulo: Editora da
UniveNidadede São Paulo, 1988,p_ 149-150. (Cartas jesuíticas: 2).

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Rita de Cássia B. deAraio

rainha do Congo desde, pelo menos, a segunda metade do século XVII. Em


suas Memórias, Urbain Souchdu de Rennefort recorda haver presenciado
uma festa dos negros no dia 10 de setembro de 1666, quando, após a missa,
"cerca de quatrocentos homens e cem mulheres, elegeram um rei e uma rainha
[e] marcharam pelas mas cantando, e recitando versos poreles improvisados,
precedidos de atabaques, trombetas e pandeiros". Os negros apresentaram-
se ricamente vestidos, trazendo correntes de ouro e brincos de ouro e pérola.
Um outro registro, os Manuscritos da igreja de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos do Recife, cujas anotações iniciaram-se em 1674, informa sobre
a eleição do rei e juizes dos Angolas, rei ejuízes dos Crioulos e rainha das
Angolas e dita das Crioulas para os anos de 1674 e 1675.17
A corte do rei negro, espelhada no modelo da monarquia portuguesa,
compunha-se de secretários de estado, mestre de campo, arautos, damas de
honor e açafatas; além de um serviço militar em que constavam marechais,
brigadeiros, coronéis e outros. E mais:
tinham esses reis o tratamento de dom, entre a sua gente, e exerciam sobre ela
uma cena ascendência política, chamando-a ao cumprimento de seus deveres e
contendo-a em suas desordens, pois eram muito respeitados, e recebiam mesmo
do poder público um certo apoio garantidor de suas regalias majestáticas."

As cerimônias de coroação dos reis e rainhas do Congo - das quais


derivaram os maracatus nações, ainda hoje existentes em Pernambuco —eram
realizadas com muita pompa em frente às igrejas do Rosário, de São Benedito

17 Dentre os eleitos, seis vinham registrados como escravos e identificados pelo nome dos proprietários a que
pertenciam: "Rey dos Angolas Antonio Carvalho escravo de Agostinho Carvalho pagou 4$040" etc. Manuscritos
da igreja de Nossa Senhora do Rosáriodos Homens Pretos do Recife. tn: SILVA, LeonardoDantas (org.). Alguns
dx.'umentospaaialdrtáriadaesc,-at'idãn. Recife: FUNDAJ: Editora Massangana, 193 8.p. 123-2(X). Asflenu»ias,
de Urbain S. Rennefort, foram citadas por PEREIRA DA COSTA, E A. Anais pernamhucana.r, 2. ed. Recife:
FUNDARPE, 1983-1985, v. lO, p. 408.
IS PEREIRADACOSTA,EA. Ealk-laiepernamhncano. 1 edição autónoma. Recife: Arquivo Público Estadual.
1974, p. 222.(Ediçãoorigioalde l)8,publicadanaRev. lnst. Hisi. Geog. Peru.). Estudos analisando asmudanças
na estrutura do poder colonial —e, posteriormente, nado nacional—relacionando-as a possíveis modificações no
ritual de coroação dos reis de Congo, na capitania de Pernambuco e no prazo da longa duração histórica, ainda estão
por se fazer. Sobre o lema, ver, KOSTER, Henri. Viagens ao anuleste do Brasil. 2. ed. Recife: Secretaria de
Educação Cultura,, 1978, p. 276-7. GUERRA-PEIXE. MaiwcalnsdoRec-fr.São Paulo, Rio deiaoeiro: Irmãos
Vttale: Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980; SILVA, Leonardo Dantas. A instituição do Rei de
Congoe sua presença nos maracatus. In: SILVA, Leonardo Damas (org.). E,rmelas,rahreacscraivdüa negra. p. 13-
56. Vertambém, Décadas do Rosáriodos Pretos. Documentosda irmandade, tu: SILVA, Leonardo Dantas(org.).
Alguns c/ocumentosp.-nw a li/ruiria da escraivdõo. p. 93-122: TORRES, Claudia Viana. Uni ,'ei,,ado de negros
em um E.rtad.-, de brancos: ai ganiraçr es de escrat'os urbaoos em Rec(fenojinnl.-/o .rKca/o X Vi//e início da .récu/o
XIX ç'J 771.18/3'). Dissertaçãode Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1997; MAC CORD,
Marcelo. /1/ei arQuia e conflito entre frmáos do Rosário dor prelos no Recife (1848 187.?). Projeto de pesquisa,
Programa de Pós-Graduaçãoem HistóriaSocial doTrabalho, Universidade Estadual deCampina.s, 1998: SILVA,
Luís Geraldo. Da festa á .redi?õo: ,rociabilitlade, etnia e coa/ri/e sacia/na América par ugliesu (/776-18/4).
Comunicação apresentada no seminário Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. São Paulo, Universidade
de São Paulo, Departamento de Hist6ria, 6 a 11 de setembro de 1999.

CL & Ti'óp. Reei/ v28, a. Zp. 161 -1S1.ju/idez., 2000 169


Cwzes, Plumas e Batuques: Festas Públicas e Colonização naA mérica Ponuquesa

e de outras congêneres dos homens de cor. Recebendo tratamento de


majestade, alteza e senhoria, a autoridade dessas realezas estendia-se para
além da esfera religiosa, exercendo influência sobre os negros da 'nação' ou
etnias que representavam, ou sobre os negros de uma dada comarca ou
distrito paroquial. Além do caráter lúdico e religioso para os indivíduos negros
que as protagonizavam, sendo a instituição e a festa em si espaços de recriação
de identidade coletiva e de intensa sociabilidade; possuíam, de acordo com a
lógica de poder colonial, uma função administrativa e mesmo repressiva, de
reposição da 'boa ordem pública'.
Corporações profissionais urbanas, formadas por negros escravos e
homens livres de cor, foram igualmente instituídas. No Pernambuco da segunda
metade do século XVIII e primeiras décadas do XIX, os governadores dos
pretos, e demais cargos que lhes eram hierarquicamente subordinados -
generais, capitães-generais, marechais, brigadeiros, coronéis dentre outros -
costumavam ser eleitos entre os membros de uma mesma categoria
profissional: marisqueiros, pescadores, canoeiros, curtidores, carregadores
de açúcar, capineiros etc. Assim como os reis do Congo, tinham os postos
reconhecidos e patenteados pelo governador da capitania - que, por sua
vez, os recomendava ao rei do Congo ao qual estavam subordinados - para
bom desempenho dos quais gozavam de certas prerrogativas e regalias.` O
livro de registro de missa da Irmandade do Rosário de Santo Antônio fazia
referência ao Vice-Rei e Governador dos Capineiros, que, desde 1763, tinha
autoridade sobre os negros que trabalhavam na "praça da Polé, Cinco Pontas,
rua da Praia, Quatro Cantos, Boa Vista e Cidade de Olinda."2°
Organizados e estratificados nas várias corpora ções, os grupos e
indivíduos participavam das festas e cerimônias públicas que tinham curso
nas cidades e vilas coloniais. A decisão de realizar festas reais - que
celebravam algum acontecimento marcante na vida da família real ou do reino
- e as grandes festas de igreja não era um ato espontâneo da comunidade.
Algumas cerimônias estavam prescritas na legislação portuguesa e deveriam

19 PEREIRA DA COSTA. F. A. 0/7. ciL, vr lo, p. 243. Como exemplo de uma dessas patentes: AntõnioDuarte,
19 de novembro de 1791, govemadordos Canoeiros do Recife e Olinda, acrescentando o governador de Pernambuco:
pelo que ordeno ao Rei do Congo da referida Vila do Recife que portal o reconheça e estime e lhe confirma a posse
e juramento do estilo, do que fará assento nas costas deste ...'." Citado por MELO, José António Consalves de.
Alguns aditamentos e correções. In: PEREIRA DA COSTA, F. A. Anais penzcmhuca'w.r, v. LO, p. DM.
20MELLO,José Antônio Gonsalves de. Alguns aditamentos correções. In: PEREIRA DA COSTA, F. A.
v. lO, p. DX.

170 CL c Tip Recife, s'. 28, n. Zp. 161- Mi, ju/./deat. 2000
Rita de CássiaS. deAra4io

ser executadas anualmente, a exemplo das citadas festas do Como de Deus


e do Anjo Custódio, assim também a procissão de Nossa Senhora, a que
estavam obrigados os juízes e vereadores."
Festas de motivação circunstancial, não previstas no calendário católico,
eram muitas vezes ordenadas pelo próprio rei e envolviam uma série de
instâncias dos poderes governamental e eclesiástico. Por lei, os moradores,
que distassem até uma légua ao redor da vila ou cidade que as promoviam, e
as corporações estavam obrigados a delas participarem com iluminação,
ornamentos, alegorias e carros triunfais, jogos e comédias, danças ou alguma
outra função festiva definida pelo costume ou pela legislação, sob pena de
multa. Participação, portanto, que implicava gastos pessoais, das associações
ou dos cofres públicos.
As festas públicas, civis e religiosas, eram concebidas como verdadeiros
espetáculos nos quais a sociedade era, ela própria e a um só tempo,
protagonista e espectadora. Nessas cerimônias, indivíduos e grupos se viam
representados socialmente e reconheciam uns aos outros em suas respectivas
posições e papéis hierárquicos. Trajes, insígnias, ornamentos e adereços, a
própria função artística exibida, a posição no cortejo, a data e o local da
apresentação, previamente delimitados e conhecidos, eram indicativos do
statusocupado pelo indivíduo ou grupo na sociedade colonial escravista.
Porém, sob o brilho, animação e a aparência de boa ordem com que
costumavam se realizar os festejos, havia toda uma complexa trama de
interesses, jogos de poder e de influência que se desenrolava nos bastidores
da festa. Tensões que expressavam disputas particulares ou conjunturais por
cargos, títulos e privilégios reinóis; assim também, rivalidades entre vilas e

21 Eis o texto das Ordenações: "... mandamos aos Juizes e Véreadores, que em cada hora aos dous dias do
mez de Julho ordenem uma procissão solemne á honra da visitação de Nossa Senhora. E assi mesmo farão em cada
hum anno no terceiro Domingo do mez de Julho outra procissão sol emne, porcommemoração do Anjo da Guarda,
(...). As quaes Procissões se ordenarão e farão com aquelia festa e solemnidade, com que se faz adoCorpo de Deos:
para as quaes e para quasquer outras, que de antigo se costumaram fazer, ou para outras, que Nós mandamos fazer,
ou forem ordenadas dos Prelados, Concelhos e Cantaras, não serão constrangidos vira eltas nenhuns moradores do
termo de alguma cidade, ou villa, salvo os que morarem ao redor huma legoa. E os ditos Véreadores não levarão dos
bens do Concelho dinheiro, nem percalço algum, por fazerem as ditas Procissões, ou irem nellas. E não consentirão
oellas mascaras, não sendo ordenadas para provocar a devoção. E a pessoa, que nas ditas Procissões, forem per
qualquer dos modos acima defesos, pa g ará de cadea mil réis, ametade para oconcelho, eaoutra para quem accusar,"
Oz/enaç.ões FY/,2n'na g tio Reino defto,iuga/, Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa. Lisboa:
Fundação CalousteGulbenkian, 1985. (ediçãofoc-sfm/tedaedição feita por Cãndido Mendes deAlmeida, Rio de
Janeiro, 1870), Livro 1, Tit. LXVI, § 48. As Câmaras tiveram esta obrigação até 12 de outubro de 1828. ver
também, ALMEIDA, Fernando Mendes de. O foiclorenas Ordenações do Reino. Revista do Arquivo Municipal,
São Paulo, v. LVI, p. 5-126, 1939; ver p. 50 64.

o: &T6p.Recife, v. 28,'t 2,12. I6J- Mi, jií/./dc, 2000 171


Cruzes, Plumas e lia/tiques: Festas Públicas e Colonização nuA mérica Porti(qnesa

cidades ou conflitos envolvendo interesses contraditórios entre a metrópole e


a colônia.22
Os espaços públicos da cidade, ruas e praças, pátios e adros das
igrejas, onde a multidão se aglomerava, eram as arenas em que costumavam
transcorrer os vários eventos festivos. Havia, entretanto, algumas funções
que se passavam em recintos fechados, reservados aos membros da elite do
lugar—governadores, membros do alto clero, magistrados, homens bons e
damas da aristocracia - como as óperas e comédias, os banquetes, saraus e
jogos eqüestres.
Acontecimentos públicos consentidos, mais que isto, ordenados, as
festividades que se passavam nos espaços abertos das cidades e vilas coloniais
expressavam, entre outras coisas, o desejo das autoridades civis e eclesiásticas
de exercer pleno controle sobre a sociedade. Representavam, assim, do ponto
de vista do colonizador, o ideal da sociedade ordenada, hierarquicamente
organizada e funcional. Mas falavam, também, do tanto de riqueza, de ouro,
prata e moeda circulante na cidade, e não apenas para os que a elas assistiam,
mas, relatadas por escrito, comunicavam aum público bem mais amplo e
distanciado tio tempo e no espaço sobre a existência daquela comunidade.23
Em Olinda, no dia 31 de julho de 1611, a chegada da primeira estátua
de Santo Ignácio foi motivo de demonstrações de regozijo público para os
habitantes da cidade. As ruas "juncaram-se de ramos verdes, as casas e
janelas ornaram-se de tapetes, nas paredes distribuíram-se ramagens de
palmeira e pinturas dos heróis da santidade dispostas com arte." A riqueza e
complexidade da solene procissão, saída da igreja da Misericórdia, atestavam
a prosperidade alcançada pela capitania de Pernambuco com a exploração
da cana-de-açúcar, já nos primeiros anos do século XVII. Demonstravam,
também, a existência de uma vida urbana organizada e dinâmica, modelada
segundo padrões societários do Antigo Regime europeu:
Iam à frente soldados, vestidos elegantemente de sêda, e de estandartes
desfraldados. Seguiam-se os oficiais mecânicos com as suas bandeiras e as mais

22 As disputas entre Olinda e Recife, no período que nsargeia a Guena dos Mascate,, ilustram bem a questão. Ver
MELLO, José Antônio Gonsalves de. O quinto volume dos Anais. lo; PEREIRA DA COSTA, E A. Anais
peiz,nmhucenmr, v. 5, p. XVIII; e MELLO. EvaldoCabral de. A .romhradtzçmaomhos.'nob,rsdou/tn/m,7sda19.r,
Pernombuco.I666-I 715. São Pauto: Companhia das Letras, 1995, p. 386. Para outros tipos de conflitos, ver,
VERSIANI, Carlos. As Cartas Chilenas e as festas de 1786 en, Vila Rica (A história oculta sob os versos de
Gonzaga). Rev. hist. Est. Bras. São Paulo, n. 38, p. 43-68. 1995: KANTOR, [ris. Notas sobre aparência e
visibilidade social nas cerimônias publicadas em Minas seecentisia, Pós'II/sió,ia, Rer,.ria 1/e Pá r-Gra-Juaçõo em
IlIsió,ia. Assis, v. 6, 1998, p. 163174.
23 Relações de várias festas banocas coloniais encontram-se reunidas na preciosa coleção de documentos recolhidos
por CASTELLO, José Aderaldo. O moi/me/fio acai/emiciria no Dias,!, volumes publicados pelo Conselho
Estadual de Cultura, do Estado de São Paulo, entre 1969 e 1978.

172
CLcC'T-óp.Rec(fe, v.28,,t2.p.161-JSJ,ju/idez..2000
Rita de Cássia B. deArcúja

irmandades de Pernambuco, com vestes também de sêda, com seus distintivos


diversos e com as suas 18 cruzes de prata e ouro: depois os padres. revestidos de
dalmáticas, e o Reitordo Colégio com mais dois, debaixo do palio. Carro triunfal.
matizado de sêdas e flores, construído comjeito e arte: no cimo dêle, a estátua de
Santo Inácio, irradiante de majestade e beleza. A seu lado, Anjos: a seus pés a
Heresia, a Idolatria e o Pecado, inimigos do Gênero Humano.24

Impregnadas de símbolos da cultura do Velho Mundo católico, mas já


incluindo representações inspiradas na sociedade local, a procissão seguia
seus passos. exibindo "côro de música", carro triunfal com representações
da Fé, Conversão das Almas, Zelo e Amor Divino, "orquestra de flautas e
instrumentos de corda", saudações em versos, em que recordavam fatos da
vida de santo Inácio, entremeados de cantos. Em carros ornamentais, as
figuras da América, Ásia, Europa e África uniam seus louvores aos de
Pernambuco na glorificação do santo. Exibiram-se outros carros,
representando o Colégio, a Igreja e a Vila de Olinda. As festas findaram com
as cerimônias no interior do templo.
No ano de 1666, o governador Jerônimo de Mendonça Furtado
ordenou que fossem organizadas festas públicas na cidade do Recife, em
honra do marquês de Montevergne, comandante da frota francesa ancorada
no porto e que estava de passagem para as Índias. A documentação
bibliográfica disponível pouco informa sobre esses festejos, a não ser que
foram disputados jogos de argolinhas, justas e outros divertimentos que
compunham as antigas cavalhadas. Acerca do comandante francês, sabe-se
que ele assistiu às festas e eleições dos reis dos pretos do Recife, no domingo,
10 de setembro deste mesmo ano, já referidas anteriormente.25
Ainda em Pernambuco, as cidades de Olinda. Recife e algumas outras
vilas da capitania organizaram festejos públicos em ação de graça pela
recuperação de S. M. Dom José 1, no ano de 1759. Iniciadas a 3 de junho,
prolongaram-se com intervalos de alguns dias até 29 de outubro. Participaram
autoridades civis, eclesiásticas e militares, notando-se a presença de dois
Mestres-de-Campo dos índios, um dos homens pardos e uni dos pretos,
estes últimos com os respectivos Terços. As irmandades e confrarias religiosas
de brancos, negros e pardos encarregaram-se de promover as festividades.
Os músicos, homens pardos da igreja de N. S do Amparo, da cidade de

24 LEITE, Serafim. A música nas escolasjesuíricas no Brasil. p. 30.


25 "... depois da missa, cerca de quatrocentos homens e duzentas mulheres desfilaram pelas ruas mascarados,
cantando e dançando músicas que eles mesmos haviam composto, ao som de cometas e tamborins, vestindo roupas
dos patrões, levando colares de ouroe pérolas. MONTEVERGNE, M. de. /WrIoú-edes/neJesOr/eoia/es. Paris,
1668. Apud CACCIAGLIA, Mário. Op. cit. Ver também, PEREIRA DACOSTA, E A.Ànen:rpeiwcmbuccnai v.
3, p. 162, para as cavalhadas: e v. lo, p408, para afesta dos pretos.

C/&T14',.Rec,je. t28,itZp.16J-J8Jjiil./eJez,2OfÀO 173


Cruzes, Plumas e Batuques: Festas Públicas e Colonização ucA mér cc Portuguesa

Olinda, destacaram-se pelo canto, com suas afinadas e educadas vozes em


soltas. No dia 19 de agosto, os pretos da cidade, na sua igreja de N. S. do
Rosário, ofereceram missa cantada com Te-Deum. O Terço dos Henriques
esteve presente. A noite, houve festas e júbilos .21
Entretanto, a grande solenidade oferecida pelos negros aconteceu no
dia 14 de outubro, no Recife, na festa de N. S. do Rosário. Ao narrar os
festejos, o Bispo de Pernambuco. Francisco de Xavier Aranha, acrescentou
à descrição propriamente dita o comentário de terem os negros escolhidos o
último lugar. Não tanto por ser este "próprio de seu estado, mas para melhor
observarem ações dos brancos com nobre desejo de as imitar". Ao som de
bélicos e músicos instrumentos, marchou o Terço dos Henriques para o pátio
da igreja. "Fez-se a festa com toda aquela grandeza e pompa q' cabia no
possível. E q' pedia o zelo mais empenhado nesta ação de graça". A tarde,
saíram em procissão pelas principais ruas, cantando o terço da Senhora ao
som de "músicos instrumentos". As celebridades finalizaram-se com um "]è-
Deum q' se cantou a quatro coros sonoros, e suavíssimas cadências".

"Folga negro, branco não vem cá!"

As festas, antes de tudo diversão coletiva e pausa do trabalho cotidiano,


ocorriam também numa outra dimensão que não a referida; esta que se passava
em forma de espetáculo público e ao ar livre, do qual participavam todos os
estados e corporações hierárquicos formadores da unidade social e política.
Festas representativas da ordem, impregnadas de intenção e significados
políticos e religiosos em cada gesto, símbolo, emblema e função exibidos.
Voltando aos objetivos teológico-políticos da Companhia de Jesus, as
festas deveriam comunicar a generosidade dos governantes para com seus
governados e, principalmente, dos senhores de terras e de escravos para
com seus cativos. Para os jesuítas, seguidores dos ensinamentos de Aristóteles
e de S. Tomás, a relação senhor e escravo era, mais que justa, uma relação
divina, resultante do pecado original de Adão e Eva. Quanto aos negros,
descendentes de Cam, sua servidão era vista como 'natural', decorrente do
pecado cometido por aquele seu ancestral. O domínio e senhorio sobre os
escravos deveriam, contudo, ser exercidos tendo por base a razão e a piedade
cristã, que recomendavam moderação no trato com os escravos.

26 As informações sobre esta festa se encontram em LANGE, Francisco Cure. 'Documentação musical pernambucana.
&n-rocau Belo Horizonte, n. 9, 1977, p. 6-31.

174 Ci. c Tróp. Recife, v28, ii. 2o. 161- 181,ju/idez., 2000
Rita de CóssiaB. deA;a4jo

Jorge Benci .jesuíta italiano chegado ao Brasil na segunda metade do


século XVII, refletindo sobre a sociedade escravista colonial à luz do
Evangelho, propôs uma série de normas cujo objetivo era o de instruir os
senhores no tratamento adequado dos escravos. Sua obra, Economia cri lã
dos senhores no go verno dos escravos, foi concebida, segundo o próprio
autor, como um conjunto de "regra, norma e modelo, por onde se devem
governar os senhores Cristãos para satisfazerem às obrigações de verdadeiros
senhores". Tratava-se ainda, de acordo com o estudo que acompanha a
reedição de sua obra, de "uma tentativa ... de regular a relação senhor-
escravo."27
Ao referir-se à quarta obrigação dos senhores para com os servos -
"dar o trabalho aos servos, para que com o ócio se não façam insolentes" -
Benci afirmou existir senhores que pecavam neste ponto. Pecavam por defeito
aqueles que deixavam os escravos viverem ociosos; e, por excesso, aqueles
que os oprimiam com trabalhos superiores às suas forças ou demasiadamente
continuados?8 De acordo com os fundamentos teológicos da Igreja Católica,
o guardar domingos e dias santos era não só um dever dos senhores para
consigo próprio e para com sua família, como uma de suas obrigações para
com os escravos, como bem expressa o trecho a seguir:

Para os miseráveis escravos, que andam em roda viva de trabalho, ratigando o


corpo, gemendo e anelando 110 serviço de senhores, foi mui necessário que Deus
inslituísse festas, para que tivessem dia certo, em que desobrigados da pensão do
trabalho descansassem os corpos enfraquecidos dos dias de fazer!9

Interessados em extrair o máximo da força de trabalho dos seus


escravos, muitos senhores desconsideravam estas regras, e alegavam, entre
outras razões, que os escravos, quando folgados e ociosos, desmandavam-
se em vícios. Entregavam-se "ao vinho ou a danças e bailes desonestos ou
fazem pendências, em que ou ferem ou saem feridos, ou cometem outros
semelhantes gêneros de maldades".' O jesuíta contra-argumentava, dizendo,
em primeiro lugar, que este tipo de vício não era exclusivo dos negros, pois
muitos brancos e livres neles incorriam. Em segundo lugar, havia meios de os

27 BENCI, Antônio. Econamia cr/sfõ das seu/ares 1,0 ça'e,wa das escravos. Estudo preliminar de Pedro de
Alcântara Figueira e Claudine i M. M. Mendes. São Paulo: Editorial Grijaldo, 1977,p.49 e 9, respectivaniente.
(12w-rim//e da edição de 1700).
28 Id. ibid. p. 171.
29 Id. ibid. p. 189.
30 Id. ibid. p. 192.

CL &Tróp.Recffe, v28,t2,p.JÓJ-J3J,jn/Jdez.,2OOO 175


Cruzes, Plumas e Batuques: Festas Públicos e Colonização 'zaA ,nérica Portuguesa

senhores desviar os cativos do pecado, mandando-os à missa, à doutrina, à


pregação e a outros exercícios de piedade e religião.
Um outro depoimento exemplar do pensamento cristão, no contexto
da ordem social escravocrata, encontra-se em cultura e opulência do Brasil,
dojesuítaAntonil, publicado em 1711. As horas de folgados negros escravos
e seus brinquedos deveriam ser-lhes assegurados, desde que autorizados
pelos superiores e realizados de forma ordeira, pacífica e honesta:
Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do cativeiro, é
querê-los desconsolados, e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto não
lhes estranhem os senhores o criarem seus Reis, cantar e bailar por algumas horas
honestamente em a]guns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde
depois de terem feito pela manhã suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de
São Benedito, e do Orago da Capela dos Engenhos. sem gastos dos Escravos,
acudindo o Senhor com sua liberalidade aos Juízes, e dando-lhes algum prêmio de
seu continuado trabalho, porque se os Juízes e Juízas da Festa gastar do seu, será
causa de muitos inconvenientes, e ofensas de Deus, por serem poucos os que
podem licitamente ajuntar.3'

Os governadores de Pernambuco da segunda metade do século XVIII


- período para o qual a documentação permite falar com segurança -
procuraram fazer uso dos preceitos católicos, que recomendavam aos
senhores uma certa tolerância em relação aos folguedos dos negros. No
entanto, as autoridades governamentais portuguesas depararam-se com novos
problemas, pois tratava-se de aplicar tais recomendações ao espaço público
urbano, onde a relação senhor-escravo mantinha algumas especificidades se
comparada à dos domínios das fazendas e engenhos. Nas vilas e cidades, as
tarefas e serviços diários executados pelos escravos peniiitiam-lhes urna
mobilidade bem maior do que a possível de se estabelecer no campo. E os
ajuntamentos de negros, para realização dos batuques e de outros brincos de
rua, eram realizados longe do olhar direto e vigilante dos seus respectivos
senhores. As formas de controle social sobre os escravos nos espaços públicos
urbanos exigiam um tratamento próprio, além do que envolviam e mobilizavam
múltiplos interesses e forças políticas.
O episódio no qual esteve envolvido o governador José César de
Menezes, no poder da capitania entre 1774 e 1787, e a polêmica que se
travou em seguida - envolvendo diversas autoridades civis e religiosas,
metropolitanas e coloniais - mostram algumas das contradições políticas,

31 ANTONIL, Andréloào. cutmrceopu/Mc/ailnB/wr//. Recife: Museu do Açúcar, 967, p. 28 (fac-.rrnz//eda


edição de 171 1).

176 Ci. & Tróp.Recqje, v 28,n. 2,p. 161 -181.jul./e/ez., 2009


R/cde Cdss/cB. de, Aro 4/o

sociais e ideológicas vividas no espaço urbano colonial, tendo os bailes dos


negros como epicentro.
No entender daquele governador, não havia razão para as danças dos
negros serem proibidas, pois os escravos "mantidos em um cativeiro pesado
desesperariam, se não tivessem no domingo aqueile divertimento e se
lançariam a distúrbios mais sensíveis se 1h 'os não permitissem ...". Em ofício
enviado ao Ouvidor da Comarca de Olinda, Antônio José Barroso Pereira
de Miranda Leite, em 1778, José César de Menezes ordenou-lhe que
libertasse os pretos, presos por haverem realizado suas danças. Ele próprio
havia concedido-lhes licença para fazerem seus bailes nos arrabaldes do Recife,
"não só por não ser cousa que eu inovasse, como também pelo antiquissimo
costume em que se achavão, facultado pelos meos Exmos. Antecessores e
aprovado por todo o povo dessa Praça".32
Entretanto, tal postura rendeu-lhe uma denúncia no Tribunal da
Inquisição, feita possivelmente pelo frei Constantino de Parma, prefeito dos
Capuchinhos do Convento da Penha, no Recife. Este 'barbadinho' fora um
dos "clérigos fanáticos" que, durante uma manifestação religiosa e festiva
ocorrida no Recife, no ano de 1779, havia invadido as casas dos pretos e
quebrado seus instrumentos de diversão - "como se esta terra não tivesse
Governo, nem Bispo, nem Ministros", escreveu, indignado, o governador.
Acrescentou, ainda, possuir "o coração inteiramente católico", e que jamais
consentiria que os missionários usassem da força em lugar da persuasão.
Justificava sua posição, inclusive perante o Tribunal da Inquisição, baseado
na antigüidade do costume e na idéia de que as danças dos pretos - que, na
sua opinião, não conservavam traço algum dos seus ritos gentílicos,
constituindo-se em simples diversão e alívio do cativeiro— ajudavam a manter
a ordem pública.
Afim de deliberar sobre ocaso, o secretário dos Domínios Ultramarinos,
Martinho de Mello e Castro, recorreu ao parecer do Conde de Povolide,
que havia governado Pernambuco de 1768 a 1769. Numa extensa carta
dirigida ao ministro Martinho de Mello e Castro, respondeu-lhe que, no seu
modo de entender, havia duas modalidades distintas de bailes. Uma tolerável,
em que os negros "divididos em nações e coni instrumentos próprios a cada

32 MELLO, José Amônio Gonsalves de. "Um governador colonial e as seitas africanas'. In; Silva, Leonardo Damas
(org.). Esimíar sabre o escravi^/ãa 1/eRra. Recife; FUNDAJ -Editora Massangana, 1988, vI, p. 360. Artigo
originalmente publicado noDkiradeflenrnrnhuca, ern22dejaneïro de 1950. Trechosda documenlaço pertinente
furam primeiramente publicados por PEREIRA DA COSTA, F. A. Ãnaü pernombuamar ... v. 6, p. 381-383.
33 "Cana de José César de Menezes ao arcebispo de Lacedomnia". trecho reproduzido por SILVA, Luis Geraldo.
op. cit., p.I4.

Ci. Tróp. Recife, v 28. ir 2,,,,. 161- 181, ju/./deL, 2000 177
Cruzes, Plumas e Batuques: Festas Públicas e Colonização naA mér/ca Poduguesa

uma dançam e fazem voltas como arlequins, e outros dançam com diversos
movimentos do corpo, que, ainda que não sejam os mais inocentes, são como
os fandangos de Castela e fôfas de Portugal, e lunduns dos brancos e pardos
daquele país".
Havia, entretanto, uma outra modalidade de baile que julgava ser "de
uma total reprovação". Eram os bailes que os negros da Costa da Mina
realizavam às escondidas, em casa ou roças, "com uma preta mestra, com
altar de ídolos, adorando bodes vivos, e outros feitos de barro, untando seus
corpos com diversos óleos ou sangue de galo, dando a comer bolos de
milho depois de diversas bênçãos." Bem informado sobre os ritos religiosos
africanos praticados nos domínios coloniais, o conde também estava ciente
da penetração que alcançavam não apenas entre os negros "rústicos", também
entre "aqueles que não pareciam tão rústicos", como frades e clérigos. Muitos
destes últimos foram encontrados entre os freqüentadores dos cultos africanos,
por ocasião dos cercos que o governador ordenava aos locais onde
costumavam reunir-se. Eram, então, severamente punidos: presos e trazidos
à presença do governador, que os reenviava aos prelados para que os
castigassem. Quantos aos negros, além de punidos com rigorosos açoites,
obrigava os senhores a os venderem para outra praça?4
Em carta datada de 4 de julho de 1780, o ministro Martinho de Mello
e Castro ordenava ao governador José César de Menezes que não permitisse,
de modo algum, as danças supersticiosas e gentílicas dos negros. Quanto às
primeiras, poderiam ser toleradas, "com ohm de evitar com este menor mal
outros males maiores, deve Vossa Senhoria, contudo, usar de todos os meios
suaves para ir desterrando pouco a pouco um divertimento tão contrário aos
bons costumes"."
Sinais de que teriam ocorrido mudanças nas atitudes dos governadores
frente aos rituais religiosos e a outras práticas culturais dos negros, de que o
episódio acima descrito seria um marco, como sugeriu o historiador José
Antônio Gonsalves de Mello, precisariam ser melhor investigados mediante
o reexame da documentação.` A documentação indica que José César de
34 PEREIRA DA COSTA, F. A. Anmrpe/vurn!b,IcÜI/os .. . v. 6. p. 381-382.
35 PEREIRA DA COSTA, E A. EaIk-/crepeinamhticc;'o ....p. 214, Em Lisboa e por uma légua ao seu redor,
os bailes e ajuntamentos de escravos ou de pretos forros estavam proibidos desde 1559. Leis &Pwi-'agw#es e
Repertório dos Ordenaçües de Dmwtet'tm,esdoLiõo. Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. (edição fac-sim//e da edição princeps das Leis Extravagantes
impressa em 1569). Na colônia, a proibição já existia, "mas dependia da maior ou menor liberalidade das
autoridades.' MELLO, José Antônio Gonsalves de. Alguns aditamentos ecorreçôes. In: PEREIRA DA COSTA.
E. A. Anuir pernombeiccmo.r ... v. 6, p. Dctlt.
36 MELLO, José Antônio Gonsalves de. tfmo p 'enwdorco/onio/... p. 363.0 trabalho em curso de Luis Gemido
Silva, já citado, promete lançar novas luzes sobre o tema.

178 CL J Tróp. Recjfe, v. 28. a. 2,p. 161 -181, jul./dez., 2000


Rito de CássiaS deAra4io

Menezes pareceu assimilar as novas ordens régias, pois, escrevendo ao


Capitão-Mor de Goiana, Gregório José da Silva, em 19 de janeiro de 1781,
dizia: "que os batuques dos pretos não deixam de ser nocivos, ordeno a
vossa Mercê que pouco a pouco os faça extinguir para cessarem ... as
desordens que destes resultam .1117 Em ofício datado de 10 de novembro de
1796, seu sucessor. D. Tomás José de Mello, escreveu ao comandante militar
de Goiana a respeito dos batuques, que os negros dos engenhos daquela vila
costumavam praticar nos dias santos e nas ruas. Dizia-lhe que não deveriam
ser privados de tais funções, 'porque para eles é o maior gosto que podem
ter em todos os dias de sua escravidão ". Era necessário, porém, advertir-
lhes constantemente para não provocarem distúrbios, o que daria motivo a
severos castigos.38
No início do século XIX, refletindo sobre a experiência da Bahia, o
Conde dos Arcos procurou definir aquela que, no seu entender, deveria ser a
política das autoridades portuguesas frente aos batuques dos negros e as
razões para adotá-la:

Batuques olhados pelo governo são uma cousa, e olhados pelos particulares da
Bahia são outra diferentíssima. Estes olham para os batuques como para um ato
ofensivo dos direitos dominicais, uns porque querem empregar seus escravos em
serviço útil ao domingo também, e outros porque os querem ter naqueles dias
ociosos na sua porta, para assim fazer parada de sua riqueza. O governo, porém,
olha para os batuques como para um ato que obriga os negros, insensível e
maquinalmente de oito em oito dias, a renovaras idéias de aversão recíproca que
lhes eram naturais desde que nasceram, e que todavia se vão apagando pouco a
pouco com a desgraça comum; idéias que podem considerar-se como o Garante
mais poderoso da segurança das grandes cidades do Brasil, pois que se uma vez as
diferentes Nações da África se esquecerem totalmente da raiva com que a natureza
as desuniu, e então os de Agomés vierem a ser irmãos com os Nagôs, os Gêges
com os Haussas. os Tapas com os Sentys, e assim os demais: grandíssimo e
inevitável perigo desde então assombrará e desolará o Brasil. 13 quem duvidará
que a desgraça tem o poder de fraternizar os desgraçados? Ora, pois, proibir o
único traço de desunião entre os negros vem a ser o mesmo que promover o
Governo indiretamente à união entre eles, do que não posso ver senão terríveis
conseqüências.39

Postura distinta adotou o governador de Pernambuco e contemporâneo


do Conde dos Arcos, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, em relação
às manifestações religiosas e festivas dos negros praticadas no Recife e

37 Citado por SILVA, Luís Geraldo. op. cii, P. 16.


38 PEREIRA DA COSTA, E A. 4,;akpernnmbz,cemas ... v. 6, p. 382.
39 RODRIGUES, Nina. O.rafrfcanosndflra.r//. 7,ed. São Pauto: Ed. Nacional: Brasilia; Ed.da tiniversidadede
Brasilia, 1988, p. 156; reproduzido também por BASTIDE, Roger. As,et/gMe.r-icwws no & yjs//. p. 80-1.

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arredores e às suas formas tradicionais de vida associativa. Já em 1804,
quando assumiu o governo da capitania, deixou de emitir cartas patentes aos
negros e recolheu as que haviam sido distribuídas anteriormente.` O
governador mostrava-se extremamente cauteloso em relação aos grandes
ajuntamentos de negros, em especial, aos noturnos. Em 1815, repreendeu o
Ouvidor de Olinda, Antônio Carlos de Andrada Machado e Silva, por haver
sido condescendente com os negros e seus ritos: era preciso muita cautela. O
governador tinha em mente os exemplos recentes de revoltas e sedição
ocorridos no Haiti e, mais proximamente, na Bahia, a tentativa de levante dos
negros do Recife, programada para o dia 29 de maio de 1814, e a possibilidade
de um novo levante nas Alagoas.
As prováveis mudanças no modo de as autoridades governamentais,
metropolitanas e locais, conceberem e se comportarem frente às
manifestações culturais, aos ajuntamentos e às corporações de negros, não
podem ser compreendidas sem que sejam levados em conta determinados
aspectos do período: a difusão do pensamento iluminista em Portugal e sua
influência sobre as práticas políticas efetivas na metrópole e na colônia, das
quais a expulsão dos jesuítas, a política pombalina de libertação e de
integração da população indígena, retirando-a da tutela religiosa dos
missionários, e a desconfiança quanto ao excessivo número de associações
leigas no Brasil são exemplos. As transformações havidas na sociedade local,
com a intensificação do processo de urbanização do Recife, o crescimento
da camada social formada por homens livres de cor, a difusão das idéias
liberais na colônia e o reordenamento das forças políticas são fatores igualmente
importantes a serem analisados.
Não apenas os batuques e ajuntamentos de negros passavam a exigir
uma maior cautela das autoridades governamentais - receosas de que
eclodissem movimentos políticos e revoltas de graves e incontroláveis
conseqüências na América portuguesa - entre a segunda metade do século
XVIII e primeira do século XIX. Governantes e pensadores ilustrados
portugueses defendiam o estabelecimento de uma nova relação entre Estado
e Igreja, ficando a atuação desta última mais restrita às questões puramente
espirituais. Condenavam igualmente a exteriorização pública da fé, defendida
pela Igreja Católica desde os tempos da Reforma, considerada poreles prática
excessiva e nociva aos bons costumes e à moral católica, sendo favoráveis a

40 Provisões Régias, de 24 de Março de 1802, proibiram aos governadores passarem unia série de patentes, por
entenderem estar havendo abuso no uso de tais concessões, ver carta de Caetano Pinto de Miranda Montenegro
enviada à Cone, em 1812, apud TORRES, Claudia Viana. Op. cit. p. 71-72.

180 Ci. tf T,'óp.Recffe,i::2&n.2.p.Jó1-J8I.j1/t/deZ,2000


um comportamento mais contrito por parte dos fiéis. Em 1777, Pombal
criticava "o grande número de dias Santos e Procissões em Portugal " , mais
depravador que reparador da moral do povo católico português. Em
Pernambuco, no ano de 1815, Caetano Pinto de Miranda Montenegro
• procurava por em prática as novas recomendações para as festas religiosas.
Sobre umas festas que os habitantes de Olinda pretendiam realizar, dizia ser
importante "conseguir que ( ... ) não se misturarem nas festas cousas profanas
com divinas". Quanto ao culto, gostaria de vê-lo praticado "com a maior
pureza e santidade, cuidando-se mais em gravar nos corações os princípios
da verdadeira morai do que em distraí-los com aparatos profanos, com os
quais e com algumas práticas minunciosas, muitas vezes o povo ignorante
julga ter cumprido os deveres da Religião." 4'
A onda de mudança atingia, também, os significados e funções sociais
e políticas assumidos pelas festas públicas no Antigo Regime. Redefinia o
lugar por elas ocupado ao longo do processo de implantação e consolidação
do sistema colonial, bem como sua forma de organização e custeio. As festas
públicas, com seu brilho, pompa, zelo e exibição de símbolos e alegorias, de
poder e riqueza, constituíram, talvez, a expressão mais visível do mundo novo
que, efetivamente, se estava a construir nos trópicos. As diversas corporações
que lhe davam vida, as formas de sociabilidade que se estabeleciam no interior
das mesmas e entre umas e outras, a oportunidade de construção de
identidades coletivas - que se definiam no confronto entre as semelhanças e
diferenças, alianças e conflitos - e a busca da construção e difusão de um
imaginário social comum, estas provavelmente foram a grande dádiva das
festas ao empreendimento colonial.

41 "Cana aoDr.Ouvidoroeral daComarcadeOliridaem respostaaum ofTcio".em24.12.1815, citada por SILVA,


Luis Geraldo. op. cit., p. 17. Cilada também por TORRES, Claudia Viana, op. cit. p. 74-75.

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