Cronicas
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Navilouca
livros
Navilouca
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apresenta
Eduardo Marinho
Crônicas e
pontos de vista
Navilouca
livros
A meu pai
Senti a dor que lhe impus. Lamentei cada fração dessa dor. Ninguém acredi-
tou. Eu me tornei o agressor, o ingrato, aquele que desprezou todos os esfor-
ços feitos em meu próprio benefício. Um traidor da família.
Lamentei cada grão da dor que minhas atitudes provocaram. Ninguém
viu, ninguém sabe, ninguém acredita. Durante muito tempo, minha família
de origem deixou de existir em minha vida, eu deixei de existir na vida dela.
Creio que em meu pai a dor foi mais profunda, pelas projeções a meu respei-
to que ele viu desmoronar.
Ah, meu pai! Esperei, na certeza de um dia você entender que foi mi-
nha busca por justiça, minha inconformação com a situação absurda da
nossa sociedade, o que moveu minhas atitudes. Depois de várias tentativas
de me enquadrar em alguma posição convencional – apenas para não ferir,
pois tais conquistas já não me empolgavam, ao contrário, me pareciam uma
espécie de rendição, de conformação, de injustiça.
Quando soube da sua morte, o primeiro pensamento após o choque foi
“nosso abraço foi adiado, agora só quando eu chegar do outro lado, tam-
bém”. Lá deve ser mais fácil compreender os valores que me guiaram, pois
aqui os valores sem sentido são impostos e têm base na forma, no aspecto,
no externo. Nosso entendimento talvez já se esboçasse, nos últimos tempos,
mas não seria nesse plano. A casa onde moro foi comprada por ele, em deci-
são própria e para minha surpresa, três meses antes da sua partida. Agradeci
pela casa e lhe desejei boa viagem e boa chegada. No vazio que senti naquele
dia, diante da ausência, da carência, do amor distante e pleno, escrevi na últi-
ma página de um caderno, sem pensar, apenas sentindo, muito, esse peque-
no texto de despedida e esperança que exponho mais abaixo.
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Tivemos tão pouco tempo...
e o pouco tempo que tivemos
foi sem muita intimidade.
Cresci tão distante,
fiquei tão estranho,
estivemos tão longe
tanto tempo...
O pouco que tivemos
jamais intimidade
e, no entanto,
eu o amo, tanto, tanto...”
É preciso explicar que, quando nasci, meus pais tinham, ambos, 39 anos. Nos
meus 19, quando me expus ao sol do mundo, estavam nos 59 anos. Quando
tornei a encontrá-los, os sinais do tempo eram bem marcantes, quinze anos
haviam se passado. Eu lhes ficara tão estranho que a distância permaneceu
grande – agora menos física, mais sensorial, ideológica, vibracional. A visão
de mundo desenvolvida na vivência em pleno chão da sociedade é franca-
mente rejeitada, hostilizada, negada raivosamente não só por eles, mas por
toda aquela classe, à qual eu já não pertencia.
Amor incondicional. Lamento sua visão da minha pessoa e dos meus va-
lores, mas respeito inteiramente, mesmo discordando. Não tenho verdades,
mas impressões, opiniões, intuições. O tempo se encarrega das mudanças
que não pudemos realizar e que são inevitáveis. Formar a própria visão e
opiniões é direito e responsabilidade de cada um.
Grande amor, grande respeito e vontade de encontrá-lo, quando chegar o
momento.
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Tomando as rédeas das regras
ou Declaração
No princípio era o verbo, disseram. Não acredito. No princípio nem havia ser
humano. Se é que houve algum princípio, assim como a gente entende. Eles
dizem um monte de coisas, mentiras a rodo, e nós vamos acreditando na vida
de gado. Ê boiada, luta, luta e não arruma nada. A língua escrita quer ditar as
normas pra língua falada.
A língua que manda é a falada. A escrita veio depois e anda atrás, toda
metida, dando as ordens que a gente não cumpre. A fala vai na frente, mutan-
te, dançante, flutuante, os novos chegando e formando suas mudanças, sem
levar regras em conta. A escrita vem atrás, negando, apontando erros que
com o tempo vai engolir, impotente diante da força do uso, no dia a dia. O
dicionário está cheio de palavras que foram desprezadas como ignorância. A
prática se impõe à teoria.
Recentemente, intelectuais de vários países lusófonos se reuniram
para definir regras gerais para “unificar” a língua portuguesa no mundo.
Aqui da minha ignorância eu acho um disparate essa iniciativa. Passei os
olhos nas tais regras e meu coração repeliu grande parte delas. Esses caras,
parece que não conhecem a realidade, não perdem a mania de querer im-
por de cima pra baixo o que só nasce de baixo pra cima. Deve ser a ceguei-
ra da arrogância, não sei.
Não escrevo para receber louvores acadêmicos ou qualificações literá-
rias. Escrevo na forma comum de entendimento do que me parece a maioria
dos que podem entender o que lêem (o que já é minoria, embora numerosa),
para entrar nos corações e mentes e mexer com alguma coisa lá dentro. Para
causar questionamentos e reflexões sobre a sociedade e a vida.
Enquanto as elites intelectuais arrotam regras, em sua costumeira sober-
ba e idiotia, nós vamos falando por aí, construindo a língua com o falar, inven-
tando palavras e significados, sons e expressões, com os pés na realidade, não
nos pedestais.
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Declaro meu descompromisso com as regras gramaticais. Uso a escrita
como achar melhor, meu foco é o receptor e a recepção é a parte mais impor-
tante da comunicação. Não há controle sobre a fala. Os meus escritos tentam
falar na linguagem comum, usada e entendida por qualquer um. Lido em voz
alta, quero soar como a fala e seu cantar.
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Sumário
Expectativa........................................................................................................ 11
Carta a Isnard.................................................................................................... 13
Entendendo a “estranheza”.............................................................................. 18
Crônica de estrada............................................................................................ 21
Transporte público........................................................................................... 24
Os desabrigados e os “revolucionários”.......................................................... 27
Paz em casa e pensamentos............................................................................. 29
No mundo sim, mas em si primeiro................................................................ 32
Que vencedor, que nada.................................................................................. 35
Por mim, pelo mundo, pelo ser humano........................................................ 38
A estupidez do orgulho.................................................................................... 41
Turbulência emocional..................................................................................... 43
Absurdas proibições......................................................................................... 45
Que democracia?.............................................................................................. 49
A opção é uma necessidade............................................................................. 51
Ver como é, não como nos dizem.................................................................... 54
Evolução social................................................................................................. 57
Falsa superioridade.......................................................................................... 60
Controle, contenção e vazamento................................................................... 62
Feliz ano-novo................................................................................................... 63
Correspondência com o primo........................................................................ 65
A condução do querer...................................................................................... 67
Correntes de mentiras...................................................................................... 69
O luxo como “pequeneza”............................................................................... 73
O garimpo humano.......................................................................................... 76
O espetáculo da subalternidade...................................................................... 79
Sociedade humana........................................................................................... 82
Qualidade de sentimentos, qualidade de vida, qualidade social.................... 85
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Dia do trabalho ou dos trabalhadores?............................................................ 89
Arte de “portas abertas”, em Santa Teresa....................................................... 91
Satisfação aos seguidores................................................................................. 99
Filtrado em mim, direcionado ao mundo....................................................... 103
Muda a forma, segue o conteúdo.................................................................... 106
O nascimento de Brisa..................................................................................... 109
Do alto da serra................................................................................................ 112
Ao leitor...................................................................................................... 117
10
Expectativa
JK
A
expectativa indevida é mãe de muitas frustrações. Há expectativas devi-
das, quando se confia em alguém é justo se esperar lealdade. Mas a
maioria das expectativas é indevida. Espera-se que o filho siga uma profissão,
que seja desta ou daquela maneira, ou que nunca seja de alguma forma; es-
pera-se disponibilidade, espera-se confiança, espera-se paciência, espera-se
conivência, apoio, carinho, espera-se gratidão.
Expectativa gera frustração, que gera sofrimento, que gera mais sofri-
mento. Se não esperamos, não sofremos tanto. Por que, então, esperamos
quando é indevido? Porque somos presos à visão estreita da nossa própria
pequeneza. Quando fazemos algo por alguém, por exemplo, o objetivo não
precisa ser a gratidão da pessoa, ou mesmo que ela aproveite bem o que fize-
mos. Se tivermos como objetivo apenas fazer o que nos for possível fazer,
estaremos satisfeitos ao fazê-lo, independentemente do proveito ou do reco-
nhecimento. Veremos ali uma pessoa grata ou ingrata, capaz ou incapaz de
aproveitar as oportunidades, demonstrando o que é, sem que isso nos fira.
Apenas uma lástima.
Além do mais, agir da melhor forma possível sem esperar nenhuma espé-
cie de retorno nos permite não desistir de seguir fazendo, tentando, ofere-
cendo, o que é uma alegria poder fazer, traz benefícios à saúde. Decepções
acabam nos amargurando, estragando a vida, é preciso evitá-las ou, se não for
possível, superá-las. Algumas das melhores pessoas que conheci, recebi em
casa como hóspedes, mal conhecendo. Resolvi não permitir que um ou outro
traiçoeiro me fizesse fechar as portas e parar de receber ótimas pessoas. Es-
tudando bem cada caso de engano, fui aprendendo a distinguir os sinais de
caráter – antes de depositar confiança.
Uma vez, quando andava a esmo pelo mundo, fui recebido por uma se-
nhora viúva que morava com filhos, noras, genros e netos, todos no mesmo
terreno, várias casinhas e composições familiares, a maior era a da mãe, que
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a dividia com dois filhos ainda não casados – haviam sido 18, oito não “vinga-
ram”, morreram pequenos, dois morreram adultos. Um morava numa cidade
vizinha. Cheguei no princípio da noite, pedindo pouso na varanda, a velha
estava na janela, candeeiro aceso num prego, no alto, expliquei que viajava e
só queria dormir pra seguir no dia seguinte. Ela mandou entrar, chamou os
filhos, perguntou se eu já tinha jantado. Mandou a filha fazer um prato de
comida. Fui levado para dentro, jantei o que havia nas panelas, sobrado do
jantar deles. Aos poucos foram chegando os familiares das outras casas e, em
pouco tempo, me enchiam de perguntas e respondiam as que eu conseguia
fazer. Soube que a mãe ficava na janela todo dia, esperando o filho que “su-
miu no mundo”, atrás “sabe lá Deus o de quê esse menino foi atrás”. Todos
achavam uma perda de tempo, tentavam convencê-la a abandonar o hábito,
achavam que ela ficava sofrendo à toa, mas ela se limitava a responder “ele vai
voltar, que eu sei”, baixo, olhar no escuro da noite. Quando tinham saído
quase todos e a viúva estava tirando o lampião, eu me arrisquei a perguntar
“o que a senhora fica fazendo?” “Rezando, meu fio, pra que ele seje recebido
bem, como eu lhe recebo.” “E a senhora acha que ele vai voltar nessa hora
que a senhora fica na janela?” Ela me olhou condescendente, sorriu. “Essa é a
hora que eu dei pra ele, de todo meu dia. Deus é que sabe se ele volta, mas
eu tenho que esperar aqui, todo dia.” E acrescentou, quase como para si
mesma, “é o jeito d’eu tá com ele, senão morria de sofrer”. Aí eu entendi,
senti a grandeza daquela espera, mística, interna, pacificadora. Essa mãe co-
loquei no alto de um desenho.
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Carta a Isnard
JK
C
arta escrita a um novo amigo, de 73 anos, lúcido lutador por um mundo
melhor. Aí tem um pouco da minha história.
Meu grande irmão (chamo de grande irmão ao mais velho que me inspira
respeito, como de irmãozinho ao mais novo que percebo na busca).
A visão que tenho do mundo se deve a uma série de privilégios que o
“acaso” me proporcionou. Nasci numa casa abastada, estudei em escolas
particulares até o científico – ou segundo grau, ou ensino médio –, entran-
do, depois, numa universidade pública – caminho convencional burguês de
qualificação profissional para a manutenção do patamar social.
Na minha casa era praticamente proibido questionar a situação social,
não por adesão consciente aos valores capitalistas, mas pelo exercício dos
condicionamentos planejados e implantados pelos reais poderes da socieda-
de. Desde a infância, diante das perguntas difíceis de responder, tive que
ouvir coisas como “ninguém pensa nisso”, “essas perguntas não se fazem”,
“sempre foi assim e sempre será”, “não pense nisso, trate de se preparar
para garantir o seu futuro”, “ninguém pode mudar o mundo” etc., etc., às
vezes com impaciência, “de onde esse menino está tirando essas idéias?”,
“com quem você anda conversando?”.
Entrei para o Banco do Brasil, via concurso, em Brasília, com 15 anos,
e em 10 meses pedi demissão (a primeira vez que me chamaram de louco),
angustiado pela falta de sentido daquela atividade, além da repulsa pelos
valores com os quais estava convivendo, as razões da existência dos cole-
gas, tidos como “universais”, e pela incompatibilidade pessoal com a au-
sência de sentido na vida, para mim – embora visse que fazia todo o sentido
para os outros.
Ainda na adolescência, entrei, também via concurso, na Escola Prepa-
ratória de Cadetes do Exército (encurtando a história, para não ficar ma-
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çante), para alívio da família, que já estava me estranhando. Viram nisso a
solução para minha vida, sem perceber que eu estava apenas experimen-
tando, tentando me enquadrar, por causa deles mesmos. Quando saí, no
segundo ano, a comoção familiar foi enorme. E, de novo, fui chamado de
louco. Não teve uma voz que me apoiasse a decisão.
Com a fibra adquirida nos exercícios militares, viajei de carona, dormi nos
matos, nos acostamentos, convivi com pessoas pobres. Depois, fui morar com
minha família de novo, terminei o ensino médio e entrei numa faculdade pública.
O meu meio social me constrangia. A soberba diante dos serviçais me envergo-
nhava. Eu era visto, em alguns momentos, como um cara “muito estranho”. Ten-
tava me aproximar dos porteiros, dos garçons, dos faxineiros, com simpatia e
respeito e era muito bem recebido, mas nunca como igual. Eu era apenas um
“rico” legal. Tratavam-me bem, mas sem a liberdade que usavam entre si. Reserva-
vam-me as melhores porções, avisavam-me quando estava pra rolar algum pro-
blema, preveniam-me, ajudavam-me, protegiam-me. Mas não era o que eu queria.
Eu queria igualdade.
Quando peguei a estrada, absolutamente sem dinheiro, pedindo o que co-
mer, dormindo sob marquises, em casas abandonadas, construções, ruínas,
puteiros, periferias, tinha como objetivo achar algum sentido na vida, entender
essa sociedade, alguma razão pra existência – que não fosse me garantir mate-
rialmente, possuir, desfrutar, consumir. Perguntava, conversava, aprendia, ouvia
histórias, me espantava, me emocionava, me comovia, me revoltava, me admi-
rava, me encantava. Nessa época, vivia entre os mais pobres dos mais pobres, a
marginália, os “malucos de estrada” e micróbios. Viajei de cidade em cidade,
rodei grande parte do Brasil.
Demorou anos pra ser tratado como igual pelos mais pobres, custou
muito esforço e alguns dentes.
No dia em que fui tratado com desprezo, por um membro da minha antiga
classe – não o conhecia –, eu ri. “Finalmente, perdi o cheiro, o aspecto, o as-
tral da minha origem”, foi o que pensei, orgulhoso.
Continuei me sentindo privilegiado, pois tinha informação. Mas já não pa-
recia. Aprendi a viver como mendigo, como pária, como louco, como hippie.
Aprendi os códigos dos excluídos. Aí pelo segundo ou terceiro ano de estrada,
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perdi os documentos, carteira do Banco do Brasil, do exército, de motorista, da
universidade, tinha até uma em inglês – aquilo me dava alguma proteção con-
tra a perseguição do estabelecimento social. A polícia passou a ser uma ameaça.
Percebi, aos poucos, como funciona o sistema, aprendizado que não ter-
mina, pelo menos no espaço de uma vida. Mas o básico é óbvio. O sistema está
assentado em alguns pilares. A ignorância imposta à maioria. O excesso, o des-
perdício, a ostentação dos que podem consumir. A hierarquia social baseada
no consumo e nas posses. O sentimento de inferioridade plantado no coração
das maiorias, o de superioridade, no coração dos abastados.
“Como as pessoas podem acreditar em tantos absurdos?”, questionava.
“Como não enxergam o óbvio?”
Faço uma diferença entre propaganda e publicidade. Publicidade apre-
senta produtos e estimula o consumo; propaganda forma valores, crenças,
objetivos de vida. Publicidade trata do concreto, propaganda, do abstrato.
Claro que é uma arbitrariedade minha, mas eu me sinto no direito, não sou
acadêmico, nem gostaria de ser. Quero ter os pés no chão e falar a língua da
maioria, e não me restringir a essa linguagem hermética da academia, pra
pessoas “estudadas”, intelectuais. Na minha opinião, é isso o que afasta da
população esses revolucionários de auditório, de entidades, tendências e
agremiações, que alimentam, secretamente, um tremendo desprezo pela po-
pulação, “tão ignorante”, aderindo à velhíssima prática de culpar as vítimas.
Querem conduzir as massas – já surpreendi mais de um, dizendo que minha
entidade é Oxóssi, minha tendência é heterossexual (sem preconceito) e
que, se eles querem conduzir as massas, deviam ir entregar pizzas.
Concordo que as técnicas de propaganda e publicidade são ferramentas
sem vontade própria, e que podem ser utilizadas tanto para libertar como
para aprisionar. Mas como é que têm sido utilizadas? Como é que têm sido
utilizados todos os conhecimentos guardados nas academias? Todos os recur-
sos materiais do planeta?
Reformulo, graças a você, a frase “a publicidade é uma atividade crimino-
sa”, retirando o “é” e substituindo por “tem sido”. Em Cuba há um autidór
dizendo “consuma apenas o necessário”. É possível imaginar isso no nosso
modelo de sociedade?
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As necessidades mais importantes são abstratas – afeto, integração, so-
lidariedade, utilidade ao coletivo, compreensão, o trabalho interno (e, ba-
sicamente, individual) nas grandes falhas (orgulho, egoísmo, soberba,
medo…), conscientização, desapego, a prática de compartilhar, a coopera-
tividade, o desenvolvimento do discernimento, senso de justiça e por aí
vai. Tudo no sentido da evolução humana, individual e coletiva. Mas o foco
da vida foi centrado na matéria, em benefício de uma minoria de zero vír-
gula uns por cento e na abastança de pouco mais de vinte por cento de
“qualificados” que os servem. As técnicas de propaganda e publicidade es-
tão na linha de frente, não só nos comerciais, como nos jornais, novelas,
filmes, programas de TV, de rádio, nos carros, nos ônibus, nas estações, nas
ruas, em toda parte – é um massacre.
Eu não diria que a maioria da população é idiota, imbecil, vazia. Diria que
é idiotizada, imbecilizada, esvaziada, infantilizada, via técnicas publicitárias
(agora, sim) criminosas, com a ajuda inestimável da sabotagem da educação
pública e da interferência na educação privada, por pressão dos que contro-
lam as marionetes políticas. Por que se chama os gastos públicos de “custo
social” e não de “investimento na população”? Porque está plantado no in-
consciente coletivo que “custo” precisa ser contido, cortado, diminuído ao
máximo. Investimento pressupõe retorno. E, no caso, o retorno seria uma
população educada, pensante, crítica, capaz de decidir seus caminhos e de
perceber as falácias das elites apresentadas por seu porta-voz, a mídia priva-
da. Tudo o que a classe dos dominantes não quer.
Acredito firmemente que, se cada um consumisse o que lhe fosse real-
mente necessário, o sistema capitalista ruiria, sem remédio. O socialismo se-
ria implantado por conseqüência, com base no esclarecimento do povo. Não
com esses socialistas de rei na barriga, cheios de verdades imutáveis. Esses
são uns imbecis, sabem das coisas mas, em vez de se darem ao trabalho de
esclarecer a maioria, ficam vociferando contra os que “representam” o poder
e brigando entre suas tendências de esquerda. Não tenho mais paciência,
nem interesse, nesses revolucionários. E faço o que acho que deveria ser fei-
to, a começar pela minha própria vida, seguindo a linha gandhiana de “ser-
mos a mudança que desejamos no mundo”.
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Como você pode ver, minha tendência é falar muito. Tento condensar,
mas tenho dificuldade. Às vezes consigo, como no texto “A Mídia Mente – des-
caradamente”, que está no blog e nas minhas serigrafias – das quais tiro meu
sustento. Mas olho pro texto e sinto vontade de desenvolver cada parágrafo,
pois cada um me parece um tópico a ser desenvolvido, com toda uma gama
de idéias a perfilar. Preciso trabalhar no sentido de desenvolver a capacidade
de síntese, você tem razão.
E vou terminando por aqui, pra esboçar alguma coerência com o que
acabo de dizer.
Um grande abraço, e obrigado por me ajudar o pensamento.
Eduardo.
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Entendendo a “estranheza”
JK
V
i serem divididas comigo, quando andei no nível da mendicância, refei-
ções paupérrimas. Fui abrigado no cantinho do casebre, dormi em ca-
pim fresco improvisado, sobre o chão batido. Ou pendurado nos caibros, em
redes. Sob o teto precário de ruínas, casas abandonadas, construções, com-
partilhei comidas preparadas em latas quadradas de óleo, em fogueiras im-
provisadas. Em cidades, nos acostamentos e postos nas estradas. Fui
hospedado em palafitas onde se ouve o barulho da merda batendo na água,
quando se usa a “casinha”. Vi a parte abandonada dessa nossa humanidade, a
parte enxotada dos benefícios da sociedade, escorraçada, roubada e ainda
perseguida. E vi brotar na lama fétida, sobre a qual se construiu a estrutura
social, o lírio lindo e perfumado da solidariedade, da generosidade, do altru-
ísmo inacreditável que as dores implacáveis despertam. Eu não estava ali so-
frendo por mim. Por mim, eu estava aprendendo avidamente, observando as
vivências, ainda sem entender, mas sentindo, profundamente, o que nunca
havia sentido. Sentindo o sentimento das pessoas, o sentimento dos lugares,
o sentimento do mundo e da humanidade à qual pertenço. Absorvia os códi-
gos, os valores, as fragilidades, os saberes e as sabedorias. Aprendi a admirar
o heroísmo dos desprezados, aprendi a distinguir seu caráter, a individualizá-
-los. Reconheci enormes riquezas sob a capa da miséria. Sofri com as injusti-
ças que nem os próprios miseráveis percebiam, embora as sofressem – e
aprendi que era melhor esconder meu sofrimento. Os irmãos sacaneados são
acusados por sua própria desgraça. As causas se esfumaçam no ar, com o
controle do ensino e das comunicações, com o trabalho competente de pu-
blicitários, artistas, jornalistas, entre tantas profissões utilizadas contra a
maioria, os povos, em favor de poucos.
Deve ser por isso que me causa tanto desconforto o uso, a presença, a
proximidade ou a simples visão do luxo, da ostentação, de privilégios. Áreas
privadas, seguranças, nobrezas, refinamentos, sofisticações, tudo passou a
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me parecer uma pantomima ridícula, primitiva, disfarces esfarrapados da nos-
sa desumanidade, da indiferença que somos capazes, em nossa sede de privi-
légios e superioridades que denunciam a real inferioridade de espírito. Eu
disse que me causa incômodo, não raiva. Meus sentimentos têm origem nas
situações, não nas pessoas. Essas me causam certa tristeza, por inconscientes,
por infantis, por superficiais, por iludidas.
Meu desconforto é moral, humano, pela ligação do luxo à miséria, pela
inevitável relação do privilégio com a carência. Um sentimento que não se
transfere às pessoas, mas às mentalidades, que não procura culpa, mas res-
ponsabilidades, nesta sociedade de miséria material e moral. Não é à toa a
falta de sentido na vida da esmagadora maioria. Só os mais grosseiros podem
se satisfazer com a abastança, com o usufruto, com o consumo. A insatisfação
é clara.
Não espero encontrar meus sentimentos, pensamentos e opiniões em
outras pessoas – embora, de raro em raro, aconteça. Se me desse ao trabalho
e à arrogância de condenar valores e comportamentos dos quais discordo,
viveria em conflitos pessoais, alimentaria sentimentos nocivos e desagradá-
veis e não teria tempo, nem espírito, para fazer os trabalhos que gosto e dão
sentido à minha vida.
Não posso recomendar, nem pretendo voltar às situações de miséria ma-
terial – onde, na verdade, nunca me senti, apesar dos anos e anos nestas situ-
ações. Mas não consigo ver valor no luxo, no excesso material, na ostentação
e no desperdício. A ligação do valor material ao valor pessoal é de um primi-
tivismo constrangedor. Expressões de insensibilidade, de sub-humanidade.
Fui considerado um cara estranho, incômodo ou simplesmente um cha-
to, principalmente dos 15 aos 19 anos, no meio social de classe média-alta,
onde nasci e vivi. Muitas vezes pensei que eu deveria ter alguma coisa errada,
por ter vergonha do que os demais ostentavam com orgulho. Por questionar
sentimentos de superioridade e tratamentos grosseiros contra serviçais e po-
bres em geral. Eu causava estranheza e me sentia estranho. Hoje, posso en-
tender tranqüilamente e me dar razão, na minha pouca idade, com a vivência
que hoje completa o 50º ano desse curso de vida. Entendo e me congratulo
comigo mesmo quando, aos 19, depois de ter sido militar, bancário, estudan-
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te, mergulhador, vendedor, entre outras coisas, decidi “dedicar minha vida a
refletir e causar reflexão, questionar valores vigentes e desenvolver meus pró-
prios valores”, numa sociedade em que se fabricam, se impõem e se repetem
pensamentos de laboratórios, para que ela seja como é. E saí pelo mundo,
para experimentar o que era não ter nada e procurar o sentido de uma vida
que, até então, não me parecia ter nenhum sentido. Mochila murcha nas cos-
tas, sem dinheiro nem paradeiro, sem parentes além da humanidade inteira.
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Crônica de estrada
JK
C
hovia muito. Quase não dava pra ver o outro lado da rua. Entrei enchar-
cado na rodoviária de Barra Mansa, calças arregaçadas, descalço, sandá-
lias havaianas presas na cintura, pela corda que servia de cinto e prendia, do
outro lado, um rolo de fio de “alpaca” – arame cor de prata, que eu usava
pra escrever nomes em forma de broches. Bolsa de sisal atravessada no om-
bro, mochila média às costas, cabelos longos e barba rala, tudo pingando
muito, subi as escadas que levavam ao patamar das bilheterias e parei ao
reconhecer, de longe, entre as duas figuras destacadas de verde, um conhe-
cido da escola militar. Paletó verde-oliva, botões dourados, camisa e gravata
bege, duas estrelas em cada ombro. Um eu não conhecia, o outro fora meu
colega de sala de aula e de setor na segunda companhia. Adauto. Encostei
numa pilastra ao lado do fim da escada, sorrindo. Eu sabia que ele seguiria
carreira. Imaginava toda a linha dos acontecimentos da vida dele. Terminara
a escola que fazíamos, ingressara automaticamente na academia. Foi nova-
mente bicho, calouro e veterano. Recebeu o espadim em solenidade e tor-
nou-se aspirante a oficial, por seis meses, eu acho. Daí a segundo-tenente,
por alguns anos e, automaticamente, “promoção” a primeiro-tenente. Aí,
mais anos passariam até chegar a capitão. Depois disso, o critério das pro-
moções deixa de ser automático, passa a ser “merecimento”, ou seja, relacio-
namentos, influências, “peixadas”.
Adauto ainda não me vira. Estava de lado, esperava o outro comprar as
passagens no guichê. Eu, parado junto à escadaria que acabara de subir. De
repente ele olhou direto pra mim – sem me reconhecer –, mas, como estáva-
mos distantes uns trinta metros, relanceou o olhar pro outro lado, em busca
de algo perto dele que eu pudesse estar olhando. Não encontrando, olhou
pra mim de novo, já começando a achar estranho. Ele tinha a mesma cara,
acrescentando um bigodinho fino sobre o lábio; eu estava irreconhecível
para ele. Minha vida, meus valores, minha visão de mundo, minhas buscas,
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ele não fazia a menor idéia de nada. Minha imagem, pra ele, eu sabia estra-
nhíssima, descalço, cabeludo, pingando e encarando. Na terceira olhada ele
já tinha franzido as sobrancelhas, quando chegou o outro tenente. Adauto
falou algo perto do seu ouvido e os dois me olharam. Falaram entre si, pega-
ram suas bagagens e vieram na direção da escada, agora os dois me encaran-
do. A tendência era a agressividade, mas o meu meio sorriso os desarmava.
Quando passavam a dois metros de mim, soltei baixo e melódico “Adauto”…
Ele deve ter tomado um choque, porque, com um pulo, agarrou meu braço,
gritando:
– Quem é você? QUEM É VOCÊ?
– Calma, Adauto.
– De onde você me conhece?
– Larga meu braço, Adauto.
– DE ONDE VOCÊ ME CONHECE?
– Vai me bater, Adauto? Vai me prender?
Ele se recompôs, constrangido, largou meu braço.
– Não, tudo bem, mas fala quem você é.
O outro tenente se colocara em posição de cortar uma rota de fuga, preferi
não ver.
– Sou o Marinho, da preparatória, lembra não?
Ele buscou nos arquivos mentais, ficou meio aturdido ao lembrar.
– Marinho? – Mudou o tom pra estarrecido. – Marinho?! – E, ao me
olhar de cima a baixo, foi ficando penalizado. – Marinho! – Sua expressão era
a da mais profunda desolação. – Meu Deus! O que aconteceu com você?
Como é que você caiu nessa?
Eu continuava sorrindo, tranqüilo, ele demonstrava confusão.
– Morreu alguém da sua família?
Eu ria, abertamente.
– Não, não.
– Foi mulher?
Gargalhei.
– Que isso, cara, eu tô bem, tô legal!
– Ah, não tá, não. O que aconteceu com você? Como é que cê caiu nessa?
22
– Paga uma cerveja e eu te conto.
– Eu pago, cê tem que me contar que que aconteceu.
Fomos a um boteco em frente à rodoviária, Adauto e eu, o outro ficou.
Sentados, com uma cerveja no meio, discorri para ele sobre minha trajetória
até perceber que não me enquadraria de maneira formal na estrutura social.
“Por que não seguiu carreira? Hoje seria um oficial do exército”, era sua ques-
tão. Eu lhe disse como encarava o papel dos militares na sociedade. Lembrei
de como apontamos fuzis para uma multidão desarmada. Falei que os milita-
res, com essa de não questionar ordens, não defendiam a população. Que as
Forças Armadas eram usadas pra manter privilégios da minoria rica e reprimir
qualquer revolta ou manifestação dos sabotados, da maioria. Ele não estava
preparado. Não conseguia me encarar. Eu observava seus olhos inquietos
procurando os debaixos das mesas, as laterais do boteco, enquanto eu falava
no uso dos militares para servir aos interesses da minoria dominante. De
como, em última análise, éramos jogados contra a população, espoliada das
condições básicas de existência, a favor de uma concentração absurda das ri-
quezas do país, gerando miséria, ignorância, sofrimentos sem conta para a
maior parte. Adauto não chegou à metade do primeiro copo. Alegou estar em
cima da hora, de repente, apertou rapidamente a minha mão e saiu sem pagar
a cerveja. Eu fiquei olhando aquele jovem oficial, túnica verde-oliva, botões
dourados, quepe na cabeça, atravessando a rua debaixo de chuva, em fuga.
Terminei a cerveja, paguei, fui ao andar de cima da rodoviária, comprei a
passagem pro Rio e desci à plataforma do ônibus. Para minha surpresa, Adau-
to e seu colega estavam na fila do mesmo ônibus. Quando olhei uma segunda
vez, Adauto havia sumido. Entrei na fila, no ônibus, sentei na poltrona. Quan-
do o motor foi ligado para a partida, entrou o Adauto, passou por mim com
um aceno e um sorriso amarelo e foi para o fundo do veículo.
Eu não havia dormido à noite, apaguei antes de chegar à estrada; quando
acordei, na rodoviária do Rio, era o motorista que me sacudia –“Chegou,
chegou, rodoviária!” Não havia mais ninguém no ônibus. Adauto tinha ido
embora, com seu colega e sua confusão.
23
Transporte público
JK
O
motorista, nervoso, pega minhas moedas, dá uma olhada e joga na cai-
xinha. Aperta o botão e eu passo na roleta. Ele tá acumulando passagei-
ros sem troco. Resmunga contra a falta de troco. Entra mais um com uma
nota de 20 e ele reclama, “não tem menor aí, não?” Não tinha. Mais um passa-
geiro sem troco. Ele resolve parar na esquina, desce com uma nota de 50 e
outra de 20, entra numa padaria. “Vambora, tô atrasado!” grita alguém no
fundo. O motorista, um negro de belos traços e corpo grande, saiu da padaria
na direção da banca de jornais. Mais passageiros inquietos, reclamando.
Penso na falta do cobrador. Esse cara tá dirigindo um ônibus, um coletivo
de vidas, não podia estar preocupado com o troco. Tinha que estar calminho,
no lugar dele, prestando atenção no trânsito e na entrada e saída de passagei-
ros, mais nada. A empresa economiza um posto de trabalho, sobrecarrega o
motorista e põe um trabalhador na rua. E ainda piora a qualidade do serviço,
demora mais, às vezes o cara fica parado um tempão no ponto, enquanto a
fila se forma na calçada e ele vai cobrando.
Lá vem o cara, correndo. Entra, escuta os resmungos. “Brincadeira, hein,
motorista!” “Tô com pressa, porra!” O motorista fecha a cara, “cês reclama é
de tudo! Se não tem troco, reclama, vou trocar, reclama…” “Tu tem é que
trocar antes de começar a viagem”, retruca um. “Não adianta!”, se exalta o
piloto, “eu troco e só entra passageiro com dinheiro inteiro, aí não dá!” “Que
nada, tu não tá é trabalhando direito!” “Senta aqui pra tu ver como é que é,
rapá!” Resolvo intervir.
“Ô piloto, me diz uma coisa.” O silêncio foi instantâneo. “Há quanto tem-
po tu tá sentado nessa cadeira aí, fora as paradas?” “Tô desde as seis da ma-
nhã, não saí nem pra almoçar” – era mais de uma hora da tarde. “Ainda vou
ter que dobrar, o outro motorista não veio, deram um gancho nele, não avisa-
ram o despachante e eu não vou poder sair.” “É mesmo? Vai ter que ficar até
que horas?” “Até as nove, só na linha, depois tem que ir na garagem.” Por dez
24
segundos, o silêncio me pareceu cheio de reflexões, observei as fisionomias
à minha volta, discretamente. Depois, investi de novo. “Tu não tem saudade
de um cobrador, não?” O cara riu, balançou a mão pra cima, “porra…” Con-
tinuei: “Sabia que tem um manicômio, na Baixada, só de motoristas de ôni-
bus?” Eu havia lido um artigo a respeito, tempos atrás, ficara muito
impressionado com aquilo, e passei a prestar atenção nos sinais que os moto-
ristas apresentam no cotidiano do trânsito. Ele baixou a voz, “já ouvi falar,
mas é verdade mesmo?” Senti que havia uma atenção forte no ambiente, ao
menos vários estavam ouvindo, interessados. “É, rapaz, a onda da nervosia
vem pra cima, né não? Todo dia. Se o cara se deixa levar, acaba adoecendo.”
Ele não respondeu. Olhei para o último cara que tinha falado, a agressividade
havia sumido da sua expressão. Em volta dele, vários me olhavam. “Devia ser
proibido o motorista cobrar passagem. O cara tá dirigindo um ônibus, a vida
da gente na mão dele, tinha que estar prestando atenção só no trânsito, tinha
que ter um cobrador aqui, olha o estado que o cara fica, já não basta o nervo-
sismo desse trânsito doido? Ele tinha que estar tranqüilo, pra segurança de
todo mundo aqui dentro.” Alguém completou, “e lá de fora também!” Risa-
das. Virei pro piloto, de novo, “a empresa põe algum troco, ao menos pra
começar o dia?” Ele riu: “nada, tenho que ficar correndo de um lado pra ou-
tro, no (ponto) final, às vezes não dá tempo nem de ir no banheiro”. “Sacana-
gem, contigo e com os passageiros”, concluo, “por causa de decisões de
pessoas que nem põem o pé num ônibus, só tão querendo economizar grana
pra ganhar mais dinheiro.”
Já apareciam expressões de “é isso mesmo”. “Os caras que decidem essas
barbaridades não andam de ônibus. Decidem e nem botam a cara aqui, a
gente fica se estranhando, se aborrecendo por causa da ganância desses em-
presários, enquanto nem eles nem a família deles passa pelo que eles fazem
a gente passar, tão por aí, andando de carro blindado, de carrão, quando não
é de helicóptero. Eles não vivem esse mundo nosso, não, eles vivem outro
mundo. Só que pra bancar esse mundo ricão eles vêm aqui, explorar a gente,
no nosso mundo. Donos de empresas de ônibus deviam ser obrigados por lei
a só andar de ônibus, pra saber como é, isso tinha que ser lei. Aí eu queria ver
se ia ser essa merda.” Sorrisos de concordância, o motorista lançou um olhar
25
pelo retrovisor, cheio de simpatia. Alguém ainda acrescentou: “Aí eles iam
fazer uns ônibus só pra eles”, mais risadas, o ambiente descontraiu e disper-
sou em várias conversas pelo carro.
Quando desci do ônibus, no Centro, me despedi, “valeu, piloto”, e ele,
“falou, irmão, vai com Deus”. Saí com a sensação de bom contato. Nesse
caso, a paz foi feita quando se trouxe as razões da discórdia, resolvidas em
escritórios com ar condicionado, longe da realidade das ruas e da maioria
que sofre as conseqüências, com a intenção primordial do lucro. E como é
destrutiva essa intenção, aos corpos e às almas. Ao concreto e ao abstrato.
Ao astral e ao sentimento.
26
Os desabrigados e os “revolucionários”
JK
P
ouco tempo atrás, fui chamado para uma manifestação dos desabrigados
das chuvas de abril, em Niterói – por ausência de ações preventivas e
reparatórias do poder público, que não cumpre as leis e nem o papel coletivo
para o qual foi “eleito”. Era uma favela cênica, de bambu e papelão, a ser
construída durante a madrugada na praia de Icaraí, para expor a situação
dessa parcela da população, tradicionalmente desprezada pela sociedade,
que depende dela para os serviços básicos, para o trabalho mais duro, mais
indispensável e mais mal remunerado.
Cheguei pouco depois da meia-noite, havia cerca de dez pessoas já ini-
ciando a montagem, com bambu e papelão. Minha contribuição foi pintar
umas portas e janelas, terminamos com o dia claro. A cidade acordava e a fa-
velinha, com sua vala negra, lixos espalhados, ratos e aranhas de borracha,
varais de roupas e fios “elétricos” foi notícia até fora do Brasil.
Depois me convidaram para uma reunião, no DCE da UFF. Achei estra-
nho. Área acadêmica não combina com movimento popular. A língua é outra,
a vida é outra. Os acadêmicos têm um claro sentimento de superioridade.
Uns arrogantes, outros gentis, mas sempre superiores à maioria sabotada em
educação. A universidade não assume obrigação moral com quem a sustenta.
O curso “superior” não ensina humildade. E não deu outra.
Acadêmicos – não desabrigados – falavam e tomavam notas, conduzin-
do a reunião. Natal das crianças pobres, ônibus contratados e Museu da Re-
pública. Por um instante me pareceu estar no lugar errado. Nada contra, acho
ótimo um Natal decente pra essas crianças que não têm. Mas ali, no comitê
dos desabrigados? Por que não vão procurar diretamente as comunidades?
Há muito mais crianças por lá. Além do mais, prioridade de desabrigado é
abrigo, não festa. Em seguida, um outro tomou a palavra e cobrou engaja-
mento do grupo. Que falta de respeito. Pobres acadêmicos. Em sua cegueira
orgulhosa, pensam que falta de estudo é falta de personalidade. Não perce-
27
bem que as dificuldades materiais produzem uma garra que esses doutores
não podem imaginar. Tivessem humildade e se surpreenderiam com a sabe-
doria, a resistência dessas pessoas aos golpes mais duros da vida. E percebe-
riam o quanto têm a aprender.
Alguém falou em curso de formação política. Outro levantou o braço e
mandou um “questão de ordem!” Eu levantei e saí da sala. Lá fora, tentei or-
ganizar os pensamentos. Alguma coisa estava errada. Em nenhum momento
aquelas pessoas falaram de casas. Claro, não eram desabrigados. Claro, suas
prioridades eram outras. Quais? Não sei, mas não eram casas. Parece que es-
tão querendo controlar o comitê. Gostaria de estar enganado, mas se não
estiver, a última coisa que interessa a esses acadêmicos é que se obtenham
casas para os desabrigados. Quanto mais durar o grupo, melhor pras suas
entidades e agremiações.
Se o grupo aceitar essa interferência, está perdido. Não tenho mais von-
tade de ir às reuniões, apenas às ações. Aliás, não havia nenhum desses aca-
dêmicos de partidos e siglas na madrugada, em Icaraí. E foi tudo direto, fácil,
em harmonia. Sem ninguém mandando. Quer dizer, “organizando”. Deus
me livre dessas “organizações” e da sensação de alguma coisa por trás. Inclu-
sive conseguir entrada nas diversas comunidades representadas pelos desa-
brigados do comitê.
Não quero aqui ofender ninguém, não estou acusando má-fé, até pelo
benefício da dúvida. Mas não faz sentido falar de qualquer assunto, em reu-
nião de desabrigados, que não seja a obtenção de casas para os milhares que
as perderam. O resto é perda de tempo, energia e oportunidades. Pelo menos
para os que estão sem casa.
Quem quiser conduzir massas, deveria entregar pizzas.
28
Paz em casa e pensamentos
JK
L
ouça suja. De novo, a pia lotada. Antigamente isso não acontecia. Mas
eles eram pequenos. Eu mandava, eles faziam. Depois, durante a adoles-
cência, eu já tinha que pressionar, e quem fazia ficava de cara feia. Com o
tempo, veio a resistência, deixa lá que depois a gente lava, e era um depois
que nunca chegava. O estado natural da pia da cozinha, na maior parte do
tempo, era entulhada. A não ser depois de discussões, de palavras ásperas,
de acusações e cobranças, gritos e brigas. E não era só a louça, era a limpeza
da casa, a balbúrdia dos quartos, eu tentava arrumar o meu e brigava pra que
todos se esforçassem pra isso. Eu brigava com eles, eles brigavam entre si, e
a casa, às vezes, era uma orquestra de gritos, bater de portas, barulhos de
coisas caindo ou até batendo nas paredes. Pelo que percebi, quando eu não
estava aconteciam brigas homéricas, há marcas pela casa toda. Bem, nin-
guém rolava pelo chão, se engalfinhando, não havia troca de sopapos, pelo
menos isso. Ou isso era o que eu pensava. Mas era um inferno de discussões,
ressentimentos, e foi assim, até que eles saíram, foram cuidar da vida e o
clima aqui tava impossível. Dois anos passaram, e dois estão aqui (a do meio
mora no império, aparece menos de uma vez por ano, o “racha” aconteceu
depois que ela foi), de novo, agora um pouco mais amadurecidos, a casa tem
ficado outra, e em paz, sem gritos ou insultos. O convívio está muito melhor.
No início, estava impecável. Agora, já se bagunça um pouco, são roupas es-
quecidas na sala, brinquedos que não se recolhem (ah, não tinha contado
com a neta), aparelhos ligados em vão, luzes acesas. E louça suja na pia da
cozinha. Preciso fazer um chá de alho. Eu podia reclamar, mas só ia arrumar
mal-estar. O que eu quero? A pia da cozinha limpa e arrumada, o fogão limpo
e a comida na geladeira. O que eu não quero? Raiva, grosserias e mal-estar.
Quando cheguei na cozinha, o Ravi tava perto e eu disse “pô, não sei que
dificuldade tem em lavar a louça”. “Deixa aí, depois eu lavo”, ele diz, em voz
baixa e casual, como se nunca tivesse falado isso, e sai, tranqüilo, na direção
29
da sala. Eu dou uma risadinha mais interna que externa e chego na pia. Afas-
to as coisas, pego a tábua, escolho uns dentes de alho roxo pra amassar. Po-
nho água numa panela, depois de abrir espaço entre a louça, acendo o fogo
pra ferver a água. Descasco o alho e faço virar quase uma pasta, na tábua. E
vou pensando, como eles estão melhores agora, embora ainda relaxados de-
mais, ela muito menos, mas ser mãe amadurece mais, e ainda não foi o sufi-
ciente. Mas isso se pode dizer que é uma necessidade de todo mundo. Não
tô a fim de culpar ninguém. Se quero limpo, eu lavo. Não é tanta coisa assim.
Antigamente era muito pior, cobria até a torneira, se esbarrasse caía coisa.
Essa de hoje, rapidinho, enquanto preparo o chá, fica tudo limpo. A água
ferve, eu abaixo o fogo e levo a tábua até a panela, empurrando o alho com
a colher. Percebo que se tivesse virado a tábua, o alho ficaria a três centíme-
tros da beirada e seria muito mais fácil jogar na panela. Mas havia um dese-
nho com duas retas levando, como um corredor, pra beira oposta ao cabo, e
eu conduzi o alho por ali. Lembrei de como a gente se deixa conduzir pelo
lado mais difícil, apenas por encontrar induções, criadas nessa intenção,
mesmo. É só olhar em volta e perceber a infinidade de induções plantadas
em nosso caminho e em todos os lugares e que, se analisarmos direitinho,
nos trazem, e à sociedade, um monte de problemas. É muito bom perceber-
mos essas induções e como tantas já não nos levam, quantos valores induzi-
dos já não nos fazem o menor sentido. E descobrir a profundidade desses
condicionamentos, como podem ser sutis a ponto de não percebermos o
quanto há deles em nós, nas opiniões e visão de mundo que formamos. É
preciso questionar nossas próprias idéias. Eu me deixei conduzir por dois
traços feitos em cima da tábua, indicando a “saída”, e fiz o caminho mais di-
fícil. Apago o fogo, cubro a panela com um pano dobrado e coloco a tampa
por cima. O calor vai extrair do alho o que eu preciso. Enquanto isso, lavo a
louça. Não é melhor que passar raiva? O ruim é que toda hora se deixa coisa
suja. Mas é melhor lavar ou bater boca? Lavo, tranqüilo, enquanto o alho
curte na água quente. Se eu insistisse em pressionar pra eles arrumarem as
coisas, estaria incorrendo num velho erro. Eles têm senso de justiça latente.
Acho que é só questão de tempo. Têm solidariedade, também. Às vezes tar-
dia, mas têm – e quem não erra? Lavando, não estou só fazendo ficar limpo,
30
como também mantendo o clima bom. Eles estão fazendo mais que antes,
bem mais. Não podem é ser pressionados, nisso parecem comigo. Pressão,
só de circunstâncias, não de circunstantes. A força das coisas, dos aconteci-
mentos, não de pessoas. Exemplos, não palavras. As coisas vão ficar limpas.
E o clima, tranqüilo. A vida ensina suavemente, quando a gente se dispõe a
aprender. Ou asperamente, quando a gente não se dispõe.
31
No mundo sim, mas em si primeiro
JK
Q
uando finalmente chegamos à conclusão que a vida é insatisfatória, que
as diversões não divertem, que o consumo é uma indução, o entreteni-
mento um entorpecente, os valores falsos e que fomos enganados, é surpre-
endente a mudança geral na visão de mundo.
Evidente haver um controle nos bastidores da sociedade. É evidente o
poderio econômico das associações de megaempresas de dimensões difíceis
de imaginar, capazes de interferir – e mesmo controlar – Estados, mesmo
“democráticos”.
As aspas são porque uma democracia só existe se o povo estiver bem
instruído, bem informado, bem assistido pelo Estado, o que não é, evidente-
mente, o nosso caso e o da maioria dos países. As empresas não permitem
que se invista na educação, ou seja, no povo. E as de mídia controlam a infor-
mação, com enorme poder de pressão dentro da sociedade, nas políticas pú-
blicas, na criação de leis, na formação de valores, opiniões, desejos (massacre
publicitário), no controle da população.
Às vezes surge a necessidade interna de “fazer alguma coisa”, se sentir útil
em alguma forma de mudança, pelo menos descarregando a inconformação, no
mínimo, para manter a saúde, física ou mental, pra dar sentido à vida. Há muitas
maneiras. Consistentes, inconsistentes, neutras, úteis, contraproducentes…
O fato de essa necessidade ser interna, abstrata, já sugere por onde co-
meçar o trabalho. Internamente. Em nós mesmos carregamos as falhas, os
valores, as disposições e os erros existentes no mundo, na sociedade. Alguém
pode se declarar isento dos condicionamentos impostos, da educação castra-
dora, da pressão da publicidade e do consumismo desenfreado, da tendência
à competição, de orgulhos e egoísmos? O núcleo familiar já apresenta pres-
sões. Em toda sociedade se cobra a mediocridade, o padrão. A cultura do
superficial, do supérfluo, do descartável, da fartura externa e da carência in-
terna, a razão acima do sentimento, da intuição.
32
O trabalho com o mundo externo precisa de um profundo e sincero tra-
balho interno, individual, atento, humilde e constante. Com o tempo, natu-
ralmente, quase que sem se perceber, esse trabalho começa a transbordar, e
passa a servir ao mundo, na medida da fertilidade da terra em que cai – são
sementes que brotam espontaneamente, como conseqüência da vida e do
trabalho. No meu caso, quando comecei a colocar no trabalho os pensamen-
tos e reflexões, o relacionamento com o mundo passou a ser muito mais in-
tenso. O estudo se aprofundou e as relações humanas (e reações, também)
passaram a trocar muito mais. Ensino e aprendizado se confundem. Você
passa a falar com o comportamento, com o sentimento, com o seu ser e com
o ser das pessoas. Nem precisa falar muito, as pessoas sentem, entendem,
percebem. Os encontros acontecem, sempre que preciso, por qualquer mo-
tivo. Muitas vezes, não cabe entender os porquês, por incalculáveis, mas po-
demos sentir a existência de “porquês”.
Um revolucionário, um evolucionário, qualquer um desejador de traba-
lhar por mudanças reais na sociedade e no mundo, precisa começar esse tra-
balho dentro de si mesmo, se quiser ter consistência nas ações externas.
Perseverança, serenidade, convicção e ausência de expectativas. A humildade
facilita muito o caminho. Evita a sensação de humilhação e aumenta a capaci-
dade de perceber as coisas. O orgulho, ao contrário, cega, se ofende, fere,
desequilibra. Mas é estimulado ao extremo.
Quanto ao que fazer, a vida nos dá os sinais. Se não der, imagino a
necessidade da decisão, da vontade. Mas, em geral, não vemos os sinais
que estão ao nosso lado ou aparecem pela vida. Mas muito cuidado – quan-
do, na procura, há uma vontade enorme de encontrar, acabamos achando
onde não há.
Discernimento é trabalho interno a ser desenvolvido em interação cons-
tante com o externo.
O mundo só é como é, porque consentimos que seja. Gradualmente per-
cebemos isso, gradualmente as coisas mudam. A satisfação é viver com este
sentido e não esperar a chegada neste objetivo. Na verdade, o objetivo é o
caminho. E a busca é do que podemos levar da vida. Aí, só a intuição pode
falar. Podemos melhorar nossos receptores, mas não podemos usar outros
33
que não os nossos. O trabalho interno costuma melhorar muito. Tanto os
receptores quanto os transmissores.
Somos nós, todos, a força dos que nos oprimem, os controladores do
mundo, os donos dos impérios. Sem a submissão, não há impérios. Se não
posso mudar o mundo, posso mudar minha visão de mundo, meu comporta-
mento, meus valores, meus desejos. E existir é a função. Ser da forma que eu
gostaria que todos fossem – ou viver tentando.
34
Que vencedor, que nada
JK
D
iante de uma sociedade que me obriga a conviver com situações de
fragilidade extrema e sofrimento constante, em que se aceita como ine-
vitáveis coisas como a fome, a ignorância e a miséria, onde os valores princi-
pais da vida são a propriedade, o consumo, a ostentação e se impõe a
competição como forma de relacionamento geral, preciso colocar minha vida
no sentido contrário ao das correntes dominantes. Em valores, comporta-
mentos, objetivos de vida.
É preciso descobrir, dentro de nós mesmos, os valores, os comportamen-
tos, os desejos induzidos pelos meios de comunicação de massa. O massacre
publicitário, a propaganda ideológica, a psicológica, de forma direta e indire-
ta, com técnicas subliminares, usando apelos emocionais, afetivos, todos os
recursos possíveis de tecnologia e de profundos estudos acadêmicos, é tudo
dirigido à população desinstruída pela sabotagem do ensino público ou con-
dicionada pela manipulação do ensino privado e das universidades. Esses
condicionamentos sustentam os desequilíbrios enormes na sociedade. A cul-
tura da competição nos atira uns contra os outros, nos impede a união e a
melhoria conjunta de condições. A do consumo faz o objetivo principal da
vida ser externo, consumir, desfrutar, possuir, entre a ostentação e o desper-
dício, indiferentes ao sofrimento alheio. São enormes, estratégicas e crimino-
sas mentiras. Não há competição com tamanhas desigualdades de condições.
Há covardia.
A massa dos derrotados aumenta, os vencedores formam as minorias
que se isolam em bolhas, em sua própria hierarquia de poderes. Lá no topo,
pequenos grupos restritos, os megaempresários das grandes empresas
mundiais, dos bancos internacionais e corporações financeiras, controlando
a mídia, os governos e as sociedades, interferindo e determinando políticas
públicas que favoreçam seus lucros e aumentem seu poder, em prejuízo dos
direitos básicos das populações e das obrigações principais do Estado, de-
35
terminadas pela sua lei maior – e mais estuprada pelos canalhas do po-
der –, a Constituição.
Neste sentido procuro dirigir minhas ações, meu trabalho, minha vida.
Não tenho a expectativa ingênua de ver o mundo como eu gostaria. Mas não
me é possível aderir a esses valores falsos, planejados e implantados como
reais. Enquanto pensamos e vemos o mundo como nos fazem, não percebe-
mos nossas reais necessidades, as internas, do sentimento, do entendimento,
do desenvolvimento como seres humanos. Vemos irmãos como adversários,
acreditamos que felicidade é consumir, possuir, usufruir de excessos e con-
fortos negados à maioria, sem se dar conta da grosseria, da superficialidade e
da angústia que preparamos para nós mesmos. As necessidades reais, abstra-
tas, as principais, o gostar e ser gostado, o sentimento de integração à coleti-
vidade, o equilíbrio emocional, a harmonia nas relações com o mundo, a
solidariedade, o senso de justiça, o desenvolvimento da consciência ficam
esquecidos ou reduzidos a uma fração mínima, deixando uma sensação de
vazio, de inutilidade da vida.
Em mim, existe a necessidade incontrolável de plantar ideias, valores,
sentimentos, de questionar, denunciar as mentiras em que somos envolvidos
todos os dias, os valores falsos, as necessidades artificiais, a mediocridade da
vida e a mesquinharia dos objetivos implantados. De apregoar os valores do
espírito, solidariedade, integração à coletividade, de forma amorosa e inte-
ressada no bem comum, de trabalhar pelo desenvolvimento da consciência
coletiva, ainda que de forma microscópica. E de denunciar o egoísmo da
mentalidade competitiva, a crueldade do controle sobre a sociedade por mi-
norias invisíveis e não eleitas, a estupidez da indiferença ao sofrimento e às
dificuldades de grandes parcelas da humanidade.
Não espero colher os frutos das sementes que planto. E isso não diminui
a necessidade de seguir plantando, de trabalhar na contracorrente dos condi-
cionamentos, dos valores vigentes, nocivos à maioria submetida.
A estranheza, a discriminação, a perseguição, o desprezo provocados por
esse posicionamento são, no fundo, elogios a quem não se submete e ousa
pensar com sua própria cabeça. Eu teria vergonha de aderir aos valores desu-
manos desta sociedade perversa, de ostentar riquezas como símbolo de vitó-
36
rias ilusórias. Não estou aqui pra competir. Privilégios me constrangem,
desperdícios me entristecem. Superioridade social é uma encenação ridícula,
subalternidade é uma ilusão triste.
Não compartilho dos valores dominantes. Não tenho como acompanhar
as correntes e as manadas. Sigo apenas minha própria consciência. Minha po-
breza tem sido a fonte da minha riqueza. Minha “derrota” é minha vitória. Nes-
te mundo, nesta estrutura da sociedade, teria vergonha de ser um “vencedor”.
37
Por mim, pelo mundo, pelo ser humano
JK
Q
uando fui exilado da família, como traidor, passei a considerar minha
família a humanidade inteira. E, vivendo entre os mais pobres, mais
discriminados, mais maltratados da sociedade, durante muitos anos, passei a
questionar essa estrutura social que deixa tantos dos meus parentes em situ-
ações tão injustas, de ignorância, miséria e pobreza, de exclusão, discrimina-
ção e sabotagem, desrespeito, humilhação e violência.
Como se permite tanta fragilidade sem proteção? Como se maltrata os
períodos mais frágeis da vida, a infância e a velhice? Como ficar indiferen-
te diante de tanto horror e barbárie? Como podemos, nós todos, como
grupo humano, aceitar conviver com esses absurdos sem questionar as
causas?
Não posso respeitar uma sociedade que não respeita a minha humanida-
de, que produz seu próprio câncer e usufrui dele, com avidez vampiresca.
Não posso assimilar, nem compartilhar dos seus valores, que se desmoronam
à primeira análise.
O produtivismo europeu deliberou e implantou o consumismo, por
meio de técnicas de publicidade e propaganda. O consumo e a posse foram
transformados em valores sociais máximos. A miséria é encarada como uma
lástima inevitável e inexplicável – pois é uma necessidade desse sistema per-
verso. A propriedade é símbolo de valor pessoal. Honestidade, solidariedade,
lealdade, compaixão, afetividade são qualidades para serem hasteadas em
bandeiras, formando um cenário de aparências, sem relação real com as prá-
ticas cotidianas. Deus é prisioneiro das igrejas.
O império estadunidense é o discípulo que superou o mestre – claro
que se aproveitou de um momento de fraqueza, quando o mestre estava es-
tropiado de tanta porrada que tomou, na segunda guerra mundial. E, ainda
assim, precisa da sua aliança contra os povos do mundo, em busca das rique-
zas dos seus territórios. São os impérios do norte.
38
Com suas megaempresas transnacionais, industriais e financeiras, e seu
poderio econômico e militar irresistível, interferem nos poderes locais. Infil-
tram-se em todas as áreas estratégicas dos países, através de elites locais co-
optadas e regiamente recompensadas. Sabotam todos os investimentos nas
populações, chamando-os de “custo social”. Tomam as comunicações com da
mídia privada, criminalizam todos os movimentos em defesa dos povos e
constroem valores de consumo, valores culturais e objetivos de vida, com o
massacre midiático. Seus representantes, defensores e servidores locais nu-
trem um ostensivo desprezo por seus compatriotas e uma subalternidade
igualmente ostensiva pelos senhores estrangeiros.
Colocar-se contra a corrente é despertar contra si a estranheza e a discri-
minação. É ser qualificado de louco ou nocivo, ser banido e evitado. É sofrer
o assédio das tentativas de recondução, é ser suspeito de psicopatia ou influ-
ência demoníaca. Colocar-se a favor é trair os mais fragilizados, é abrir mão da
própria dignidade, ganhar em matéria e perder em espírito, em sentimento e
moral, é escolher uma vida suja e sem sentido, fantasiada de ostentação, des-
perdício e falsa superioridade. Como os cães em grupo, sabe-se pra que lado
se arreganha os dentes e pra qual se abana o rabo e se dobra a coluna.
As opções estão postas. Eu me recuso a participar de grupos favoreci-
dos com essa estrutura, tenho vergonha de ostentação, não gosto de luga-
res com seguranças e tenho nojo das salas VIP. Não estou aqui pra curtir a
vida, estou pra ser curtido por ela.
E que ninguém pense que condeno os usufrutuários dos privilégios em
que se transformaram os direitos tomados da maioria. Os sentimentos de
superioridade, a arrogância grosseira e o usufruto excessivo cobram seu pre-
ço ali na frente, no corpo afetivo-emocional, na insatisfação permanente, nos
incômodos de consciência reprimidos, em angústias sem explicação aparen-
te. Estes beneficiários existem porque a estrutura assim o permite. Mas quem
sustenta os poderosos são os subalternos, os explorados. A submissão permi-
te a opressão. Se os explorados não colaborassem com os exploradores, a
exploração desapareceria.
Por isso a mídia se esforça tanto pra desagregar os movimentos, distorcer
a realidade, gritar contra qualquer mudança que favoreça o povo. Pra que não
39
se tome consciência da realidade, pra que se mantenha o poder econômico
no comando do mundo e das sociedades, pra que se mantenha a barbárie
contra a maioria.
Como impedir mudanças, porém, se tudo muda, até os minerais? Os
avanços ocorrem em movimentos ondulatórios e sem controle, embora haja
interferências sutis e violentas, diretas ou indiretas, para a contenção. Temos
exemplos disso, na América Latina. Enquanto a mídia vocifera, histérica, os
processos caminham com as próprias pernas. Não desanimemos, todos os
que trabalhamos por essas mudanças tão necessárias na formação da menta-
lidade, da sociedade e da própria humanidade.
Não sei quando a sociedade se tornará mais humana e solidária. Não sei
quando se tornará inadmissível um ser humano em condição de miséria, se
daqui a dez, duzentos, quinhentos ou mil anos. Sei que trabalho nesta dire-
ção, desenvolvendo valores que considero humanos a partir de dentro de
mim mesmo e, só daí, para o mundo – pois creio que, se você não vive pro-
funda e sinceramente aquilo que considera dever de todos (embora sem co-
brar de ninguém), seu ser perde a força da sinceridade e o trabalho perde
alcance – não em número, mas em profundidade.
Não trabalho para ver os resultados. Trabalho pra dar valor à minha vida.
Por mim, pelo mundo e pela minha família humana.
40
A estupidez do orgulho
JK
H
á quem baseie um sentimento de superioridade na sua posição social,
no seu degrau acadêmico ou nas riquezas de que dispõe. Ingenuidade
ou ignorância, em humanidade. Essas pessoas, diante de qualquer falha pró-
pria que se revele, ficam constrangidas, envergonhadas, sentem humilhação.
É a fragilidade que o orgulho causa. Posso sentir superioridade em quem tem
mais luz, maior compreensão ou melhores sentimentos que eu, mas nunca
por aspectos externos. E não é uma superioridade arrogante, ao contrário.
Reconhecer erros é um privilégio que nos permite trabalhar nas corre-
ções, nas superações. Aos orgulhosos só é possível reconhecer erros nos ou-
tros. Os próprios, escondem, negam, e isso os faz seguir cometendo os
mesmos erros. Enquanto o orgulho amesquinha o espírito, a humildade a
engrandece; o orgulho é estúpido, a humildade é perspicaz; o orgulho se
ofende, a humildade aprende; o orgulho acusa, a humildade compreende.
Apontar uma falha minha não me espanta, não me ofende, não me revol-
ta. Sei ter um montão delas e procuro corrigir as que posso, as que sou capaz
e as que vou me capacitando aos poucos. E não me sinto humilhado por er-
rar. Haverá alguém que não erra? Trabalhar os próprios erros nos habilita ao
trabalho na coletividade. Aliás, acho que o trabalho interno é um pré-requisi-
to para um trabalho externo eficiente, que renda frutos.
Mas um papel feio é o de apontar falhas alheias, com sentimentos destru-
tivos, raiva, desprezo, como quem tem o direito de punir, buscando ferir,
humilhar, diminuir o outro. É o papel da ignorância, de quem não reconhece
sua própria humanidade e se comporta como se não tivesse suas tendências
pra cuidar, seus próprios erros a corrigir. Um comportamento comum, o dos
acusadores.
Uma pessoa assim comete vários equívocos e leva a pior. Não consegue
enxergar o que precisa para melhorar, não pode trabalhar nas próprias falhas
e segue tropeçando nas mesmas pedras, sofrendo conseqüências sem perce-
41
ber sua responsabilidade, atribuindo a “culpa” a qualquer um ou qualquer
coisa. Acaba enxergando a realidade como lhe convém (e não como ela é) e
sofre constantes decepções. Sem entender nada e, freqüentemente, tumultu-
ando tudo à sua volta.
42
Turbulência emocional
JK
H
á pessoas que sofrem de modo ostensivo, em revolta ou desespero,
espalham e expõem seu sofrimento. Algumas vezes descarregam os
sentimentos, em desequilíbrio entre o desespero e a impotência, outras bus-
cam dividir sua dor, como que se alimentando da solidariedade ou da com-
paixão que puderem despertar. Não podem perceber as causas dentro de si,
atribuem-nas a qualquer pretexto ou à maldade do destino, sofrem os efeitos,
sem atinar com as causas. Essas pessoas têm muita dificuldade em se traba-
lhar internamente, por recusar responsabilidades próprias no que lhes acon-
tece. Tomam a si mesmas por padrão e não acreditam haver sentimentos por
trás de reações diferentes da sua. Tornam-se incapazes de avaliar os senti-
mentos das outras pessoas – a não ser que se exponham da forma espera-
da – e supõem o que lhes justifique o desequilíbrio – insensibilidade,
indiferença, sarcasmo, deboche, qualquer coisa que desqualifique a calma e a
serenidade, frente às dores.
No estado de desequilíbrio, na revolta, na depressão, a visão deturpa o
que vê. Surgem as acusações. “Se você não reage como eu reajo, então você
não sente o que eu sinto e é indiferente ao meu sofrimento”, é o que parece
ser dito. Em parte, é verdade. Não se reage do mesmo jeito, não se sente da
mesma forma. O que não quer dizer que não exista reação, ou que não haja
sofrimento.
Para essas pessoas, que atiram seus sentimentos para fora, espalhando ao
seu redor, é inconcebível a serenidade, o sentimento profundo e silencioso
de quem busca o entendimento, de quem guarda e digere a dor, pesando
causas e conseqüências, no desenvolvimento da consciência. Reconhecer a
calma e o equilíbrio seria revelar o próprio desequilíbrio orgulhoso e egoísta.
E uma das maiores dificuldades dessas figuras é assumir suas próprias res-
ponsabilidades. Estão sempre acusando as responsabilidades fora de si mes-
mas e, assim, não podem perceber que assumi-las é mais que uma opção, é
43
uma necessidade interna de cada um. E que, se não acontece, o desequilíbrio
se reflete e se repete e recrudesce nos acontecimentos da vida, nas relações
pessoais, na vida afetiva, na saúde a médio e longo prazo.
O sofrimento, às vezes, é fonte de ensinamento. Mas só com humildade,
com serenidade, com a busca profunda e sincera, dentro de si mesmo, de
causas e efeitos, de falhas e omissões, de valores e de comportamentos, se
torna possível enxergar os ensinamentos das crises, os sinais ignorados, os
avisos descartados, as conseqüências dos nossos atos. As reações intempesti-
vas, explanadas, entre a agressividade e a depressão, caracterizam pessoas
fugitivas de si mesmas. Estas se condenam uma cegueira penosa, debatendo-
-se na inconsciência, plantando espinhos e, ao esbarrar neles, acusando a
vida, o destino e os outros pelos males que criam. Não percebem a freqüên-
cia da própria vibração contaminando todo o ambiente, atingindo as pessoas
e sintonizando receptores e emissores de frequências afins. E a vida se torna
uma estrada escura e lamacenta, cheia de obstáculos, ameaças e inimigos. Ou
de ilusões vazias, se alternando com turbulências e depressões periódicas.
44
Absurdas proibições
JK
E
statísticas recentes apontaram a causa principal de morte de jovens e
adolescentes, no Rio de Janeiro. Tiros. De fuzil, escopeta, pistola, até
explosão de granada. É a “guerra ao tráfico”. Milhões de famílias vivem num
clima de terror. As armas de guerra cospem aço que fura paredes. E como nas
guerras, não se respeita ninguém. Notícias de atingidos e mortos são fre-
qüentes. Muitos são omitidos, esquecidos, apenas estatísticas. Os presos en-
chem as cadeias e aprendem a ser mais violentos, mais insensíveis, mais
brutais. Familiares e amigos passam por humilhações constrangedoras para
vê-los. A maioria pobre é tratada de modo indigno e violento pelo Estado
que, não cumprindo suas obrigações constitucionais, rouba os direitos bási-
cos de milhões e milhões, sabotando suas vidas, desperdiçando seus poten-
ciais, a consciência desarmada e entorpecida, a dignidade perdida. A
remuneração oferecida pelo tráfico encontra vasta legião de sabotados da
sociedade, seus direitos transformados em privilégios para a minoria. Somos
todos, como parte desta sociedade, coautores desses crimes. E reconhecê-lo
não me faz sentir culpa, mas responsabilidade. Em minhas posições, em
meus valores, em meus desejos, minhas ambições, minhas escolhas, enfim,
meu comportamento, dentro do todo.
A idéia de que é o usuário o “culpado” pelo tráfico, a mim, parece não
suportar uma pequena análise. Um absurdo só concebível pela ignorância ou
pela má fé. Desde que o ser humano é ser humano, desde que se conhece sua
existência como tal, sempre foram usados alteradores de consciência. Muitas
dessas substâncias são consumidas cotidianamente pela população, até mes-
mo oferecidas pela indústria farmacêutica. Quem não conhece o Lexotan – e
outros, piores ainda? O tráfico só apareceu depois da proibição. Muito de-
pois, aliás. Quando foi percebido o filão, a mina de ouro.
Quando se proíbe qualquer coisa usada normalmente, oferece-se uma
fonte de renda ilegal, sem fiscalizações, controles de qualidade, sem vigilân-
45
cia sanitária, sem regras, sem impostos, sem leis trabalhistas ou compromis-
sos sociais. O custo fica por conta de mais ilegalidade, corrupção, tráfico de
influência e armas, assassinatos de encomenda, penetração do aparelho do
Estado de todas as formas possíveis e uma série de armações criminosas.
Quando proibiram o álcool, década de 1930, nos EUA, instalou-se a má-
fia, para o tráfico e a produção ilegal de bebidas, que empesteou a sociedade,
incluindo a cúpula política, jurídica, midiática, social, do topo até a base. E os
casos de cirrose não diminuíram.
Aqui no Brasil, o tráfico está infinitamente mais impregnado na socie-
dade, em todas as camadas. E as conseqüências mais cruéis estão na base,
na ponta das cordas que partem do grande nó central e se encontram com
as ruas, nos soldados do tráfico. Estes, oriundos da miséria, na esmagadora
maioria, são os que batem de frente com as operações policiais, os que
mais morrem.
Agora mesmo estou ouvindo um tiroteio, num morro próximo. Toda a
coletividade, ali, está em risco. De duas dúzias de meninos entrevistados no
documentário Falcão, os meninos do tráfico, só um ainda vivia quando es-
treou o filme. Todos os outros haviam morrido. É um genocídio em curso.
Mais um. E, como sempre, sobre os mais pobres, os sabotados do sistema.
Seria de envergonhar qualquer membro desta sociedade, se houvesse um
mínimo de consciência social. Mas há uma enorme dificuldade neste sentido.
Os valores apregoados e estimulados pela mídia e pela cultura do consu-
mo – e do trabalho como o centro da vida – são o egoísmo, o conflito, a com-
petição, a vingança, a divisão, a solidariedade restrita, a ânsia do consumo
supérfluo, a hierarquia baseada na propriedade. De tal maneira que o valor da
vida é menor que o valor da propriedade – quem duvidar disso, compare as
estruturas operacionais das delegacias de defesa do patrimônio com as dele-
gacias de crimes contra a vida (homicídios). São sinais, e são inúmeros. A
morte de um grande proprietário é investigada com afinco, enquanto a morte
de quem nada tem é, simplesmente, deixada de lado. As exceções não desfa-
zem a regra, quem mora em comunidade pobre sabe muito bem disso.
As leis que penalizam as drogas são leis genocidas e corruptoras das ins-
tituições. E não me admiraria se estivessem dentro de uma estratégia de ex-
46
termínio de pobres e mais concentração de riquezas e poder. Os serviçais das
elites seriam poupados, assim como os funcionários públicos de baixo esca-
lão, por imprescindíveis à manutenção dos privilégios dos abastados, se pu-
desse haver controle no processo. Se é que não há.
Não reconheço no Estado o direito de tutela. A lei deve reger as relações
entre as pessoas, nunca os usos e costumes de cada um, principalmente se
não afetam outras pessoas. Não pode haver lei sobre uso de drogas, a não ser
nos casos de necessidade de tratamento. A proporção é bem pequena. Nunca
se soube de overdose de maconha, por exemplo. O que mata é a proibição,
que abre a corrupção policial, o envolvimento com bandidagem, a extorsão
de usuários, compra e venda de armas, uma relação infernal. Que, sem a
proibição, não aconteceria.
Duvido que não haja pressão para manter a proibição, feita pelos empre-
sários do tráfico – que não moram e nunca moraram em favela, ao contrário,
têm empresas pra legalizar os gigantescos lucros do tráfico, fazem doações de
campanha, monitoram seus políticos e juízes, negociam com o sistema de
segurança, “permitindo” o sucesso de algumas operações, pra mostrar na mí-
dia. O chamado “boi de piranha”, pra salvar a boiada.
Não sou a favor da maconha e das drogas. Mas sou contra as leis que pro-
íbem, porque seus resultados são desastrosos, contraproducentes, destruti-
vos, ou seja, muito piores que os males que alegam querer evitar. Como no
caso do aborto, mas aí é outra história, pra ser desenvolvida em outro escrito.
Se o objetivo fosse realmente evitar, seria preciso, no mínimo, tirar o as-
sunto da área de segurança pública. Saúde pública, apoio àqueles que se pre-
judicam com o uso, campanhas de esclarecimento, de conscientização.
Maconha tinha que ser vendida na feira, na barraca de ervas, baratinho,
como boldo, erva-de-santa-maria ou qualquer outra erva medicinal ou aromá-
tica. Inclusive porque se poderia tomar como chá, também, com menos efei-
tos nocivos que a fumaça. É ridículo achar que uma pessoa pacífica se torne
agressiva por causa da maconha. Inclusive o contrário é muito mais provável.
Já passou da hora de acabar com essa barbárie, transferindo o problema
das drogas para a alçada da saúde pública e liberando a polícia para tratar de
crimes de verdade. Isso seria o golpe mortal na bandidagem do tráfico.
47
Mesmo assim, isso não resolveria o problema da violência e da criminali-
dade, pois sua origem não está no tráfico, mas na miséria produzida pela es-
trutura social dominada pelo poder econômico e baseada na ignorância, no
consumo compulsivo e na manutenção da pobreza, da ignorância e da exclu-
são – e a ameaça implícita que esta representa à insubmissão às injustiças
institucionalizadas. O que se mostra aqui é apenas o foco mais pesado, bárba-
ro, visível e estúpido, que atinge indiscriminadamente, usuários, traficantes,
policiais e inúmeras vítimas colaterais e cuja necessidade e possibilidade de
extinção são óbvias.
48
Que democracia?
JK
O
Estado democrático é uma falácia, um engodo, uma farsa, uma frau-
de. É a ditadura do poder econômico, o domínio das estruturas so-
ciais pelo mercado financeiro e pelas grandes empresas. A administração
pública, a começar pelos três poderes, executivo, legislativo e judiciário,
está dominada pela influência de uma minoria ínfima da população, des-
viando as prioridades do Estado para os seus interesses econômicos, negli-
genciando as funções principais de servir à coletividade como um todo.
Mantém-se o povo ignorante, desinformado, desmoralizado e amedron-
tado. Ignorante, negando-lhe uma educação que mereça esse nome; desin-
formado, controlando a mídia e as comunicações, deturpando informações,
omitindo, distorcendo, de acordo com o interesse dos poucos que domi-
nam; desmoralizado, criminalizando qualquer movimento que agregue, es-
clareça, conscientize e defenda a maioria, dividindo e isolando os indivíduos
com a ideologia da competição e do consumo compulsivo através de uma
publicidade massacrante, repetitiva, insidiosa, desonesta; amedrontado, en-
tre a ameaça da exclusão social e o aparato da “segurança pública”.
Periodicamente, alimenta-se a farsa, simulando-se eleições democráti-
cas, obrigando à votação em massa, após campanhas publicitárias milioná-
rias, mentirosas, nas quais o único compromisso que se pensa em honrar é
com os financiadores dessas campanhas, esquecendo-se os eleitores. Estes
são apenas estatísticas, no loteamento dos votos.
O povo, sabotado em instrução, em informação, em consciência, em
dignidade, não consegue discernir para escolher, não percebe o jogo de
interesses ao qual é submetido. Muitos entram no jogo, negociam vanta-
gens, migalhas… e sustentam o controle do jogo. Outros, não querem
“nem saber de política”, querem é consumir, desfrutar, possuir, ostentar,
ainda que seja a própria miséria, a própria pobreza mal disfarçada, sua mé-
dia classe, sua mediocridade. São os prisioneiros da publicidade, depen-
49
dem de estímulos externos para sentirem alguma razão no existir. São a
grande maioria das pessoas.
Há outros e muitos tipos, mas poucos interessados no que fazem nossos
empregados – os políticos, executivos e funcionários públicos em cargos de
chefia – e como controlá-los e mantê-los a serviço da coletividade como um
todo, priorizando as situações de fragilidade – e não os interesses dos mais
ricos entre os mais ricos.
Que não me venham falar em democracia. A ditadura se impõe, insi-
diosa ou descarada, sobre a ignorância onde é mantida a maioria. O resto
é jogo de cena.
50
A opção é uma necessidade
JK
É
preciso reconhecer muita engenhosidade no ser humano para conseguir
construir essa parafernália psicoinfluenciadora, com tamanha profundida-
de, alcance e capacidade de mascarar minuciosamente a realidade, criando
uma realidade fictícia, na qual as pessoas se adaptam e acomodam, para manter
tudo como está. Um aparato complexo de condutores de opinião, distorcedo-
res de fatos e realidades, construtores de aparências mentirosas, mas “convin-
centes”, está instalado e em pleno funcionamento. São criadores de visões de
mundo, de valores e de desejos individuais e coletivos. Depois que descobri-
ram o caminho do inconsciente, os “donos do mundo” puderam amarrar a si-
tuação pelo maior número de lados possível, armados com a posse do
desenvolvimento tecnológico que deveria servir a todos. E invadiram as insti-
tuições, seqüestrando os Estados e os coagindo a serviço dos seus interesses,
em prejuízo das populações como um todo, apenas beneficiando algumas ca-
madas, sempre minorias, para que garantam o funcionamento do sistema de
exploração e sabotagem da maioria, de exploração e consumo dos recursos do
território, violando direitos humanos e leis ambientais para concentrar mais
poder e riquezas. Não é preciso investigar minuciosamente o interior da estru-
tura social para perceber a quem o Estado serve. Basta observar como são tra-
tadas as parcelas mais empobrecidas e as intermediárias, na base da sociedade.
Não é preciso ser nenhum gênio acadêmico. É óbvio demais.
Só que não é possível amarrar todos os lados. Há sempre pontos soltos,
brechas, rachaduras. É aí que a gente entra. Cada atividade no sentido de
quebrar as correntes de mentiras que nos prendem é útil e necessária, seja
qual for sua dimensão. Cada trabalhador que use o que tiver na mão, britadei-
ra, picareta, ponteira e marreta, martelo, lima, ácido, ferrugem, maçarico,
mesmo as unhas e os dentes. E também o carinho, o amor, a paciência, a to-
lerância e a persistência. O ódio e a violência, o insulto e a intriga são as ar-
mas do opressor. Podemos produzir armas mais criativas e bonitas, criadoras
51
de vínculos e raízes muito mais fortes e profundas. Sem esquecer que esta-
mos todos envolvidos por camadas de correntes construídas por séculos a
fio, das mais grosseiras às mais sutis. Procurando e trabalhando em nós mes-
mos, profunda e sinceramente, aumentamos o alcance e a eficiência do nosso
trabalho dentro da coletividade, além do nosso próprio desenvolvimento
humano, pessoal. A partir do indivíduo se forma o grupo. Trabalhar nossa
própria individualidade é o primeiro passo para trabalhar o coletivo.
Não é um sacrifício ou um esforço enorme fazer o que faço, produzir arte
reflexiva. É uma forma de sentir valor na existência. Sem isso, minha vida
perde sentido. É uma necessidade, não um heroísmo. Eu estava perto dos
dezenove quando resolvi dedicar a minha vida a produzir ou provocar refle-
xões, questionamentos, proposições, sempre no sentido da mudança. Isso
porque a minha vida não fazia sentido, a angústia era insuportável e eu já
começava a vislumbrar algumas razões – e são muitas. Não conseguiria assi-
milar os valores sociais apresentados como “ideais”.
Preciso trabalhar no sentido de uma sociedade que não admita situações
de indignidade, não admita fome, miséria, ignorância, carência de qualquer
tipo. Uma sociedade que priorize as situações de fragilidade, priorize os ser-
viços públicos, educação ao nível do melhor ensino, com profissionais voca-
cionados, assim como no atendimento médico – preventivo e não curativo.
Um Estado livre dos vampiros, morcegos, percevejos, pulgas, carrapatos e
outros sanguessugas que o enfraquecem, tornando-o incapaz de defender
sua população, incapaz de cumprir suas funções constitucionais e garantir os
direitos fundamentais de todos. Uma sociedade em que o valor da vida não
seja mais determinado pela propriedade privada. Em que a vida valha mais
que a propriedade.
Seria ingenuidade esperar viver numa sociedade assim. Não trabalho
para ver o resultado. Trabalho na direção do resultado que eu desejo, não
para mim, mas para todo mundo. Conheci muita, mas muita gente trabalhan-
do diretamente no aprimoramento do ser humano e da sociedade. Há pesso-
as em todos os meios, dos puteiros às instituições religiosas, das escolas
primárias aos institutos de pesquisas avançadas, das favelas aos bairros ricos,
dos “chópim center” (por incrível que pareça) aos partidos políticos, das ca-
52
deias aos condomínios, das taperas às mansões. São exceções à regra em to-
dos os lugares e tempos, pedras preciosas no cascalho humano, que
distribuem brilho em seu meio, na coletividade à sua volta, seja na profissão
que for ou em qualquer atividade. A diferença do ser humano para o garimpo
é que, no caso do ser humano, a preciosidade é contagiosa. Consciência cha-
ma consciência. Luz elimina trevas. Os acendedores estão por aí, anônimos e
atuantes, em toda parte.
Isso me dá a convicção, como se não bastassem as evidências na história
do planeta, de que o processo está em curso, um processo evolutivo contí-
nuo e inabalável, com ritmo próprio, individual e coletivo. Nessa visão, mol-
dei minha vida e meu trabalho pelo mundo. É uma necessidade minha,
pessoal e intransferível.
53
Ver como é, não como nos dizem
JK
É
preciso dar o nome devido às coisas. A forma de falar acaba criando con-
dições mentais propícias a análises tendenciosas. Erramos o caminho do
pensamento e ficamos a dar voltas, sem achar a saída.
Quando olhamos o panorama da sociedade, vemos que a “elite dirigen-
te” formal, apresentada como o “poder”, não é o que parece ser. Observan-
do seu comportamento, sem nos deixar enganar pela mídia, percebemos
que o poder real, atual e atuante, está bem acima dessa elite, no escuro das
empresas de comunicações e do aparelho do Estado. A verdadeira elite di-
rigente não é eleita pelo voto, ao contrário, elege seus subordinados e, por
meio deles, indica outros subordinados para os cargos-chave, dentro da
administração estatal. Considera seu o que é de todos, monopoliza a aten-
ção e os privilégios que o Estado pode lhes oferecer. Dispõem das verbas
públicas com a naturalidade de quem usa o que é seu, por direito de nasci-
mento ou conquista.
A chamada “elite dirigente” não passa, na verdade, de uma elite de ge-
rentes. Vê-los abanando o rabo para megaempresários e representantes de
gigantes transnacionais é um tapa na cara do cidadão.
Andamos pelas ruas recebendo multidões de recados, explícitos e su-
bliminares, dizendo que nos amam, fazem tudo pelo nosso bem-estar, que
essa é a maior razão de sua existência, tudo “especialmente para você”,
com sorrisos, gestos, cores, imagens e sons sedutores, acenando com pos-
sibilidades de destaque e consideração social, prêmios por se deixar con-
vencer e desejar o que oferecem. Tudo com o único objetivo de nos fazer
consumir o que não precisamos. Para vincular a felicidade ao consumo.
Se entramos num “chópim” a coisa se torna ridícula, absurda, carica-
ta, uma ofensa à inteligência. Mas de tal maneira bem elaborada, de tal
amplitude e profundidade é o trabalho de condicionamento cotidiano
neste sentido, que se pode ver nos olhos das pessoas o brilho da avidez,
54
da necessidade de comprar, de ter, de consumir. Tornam-se fanáticas pelo
consumo. Produzem angústias profundas, amargam tristes frustrações,
obtêm efêmeras alegrias, superficiais demais para sanar a insatisfação do
espírito humano.
55
um grau aceitável de assimilação. Como o médico que atende com amor,
mesmo em condições de trabalho horríveis.
Eu, de minha parte, ponho tudo o que posso no meu trabalho. Consumo
só o que me é realmente necessário. Nem entro em “chópim center”, que
aquilo é um insulto à minha humanidade. E duvido de tudo que a mídia
diz – falou mal, deve ser bom, falou bem, deve ser mau.
56
Evolução social
JK
A
té hoje, nas políticas oficiais, não se percebeu que violência não com-
bate violência, que se o foco principal (a miséria, a ignorância produzi-
da com a sabotagem do ensino público fundamental e médio para a maioria
da população e a desinformação espalhada pela mídia) fosse central na pro-
blemática social e prioridade nas políticas públicas, teríamos reduzido os
índices de criminalidade.
Quando houver investimento, nas políticas, de real interesse em extirpar
essa miséria que acompanha a sociedade onde quer que ela se implante, a
violência será reduzida aos casos de psicopatia ou desajustamento de qual-
quer ordem. De toda forma, instituições dedicadas ao estudo e desenvolvi-
mento de tratamentos adequados à ressocialização, ao apaziguamento, ao
ensino, ao desenvolvimento da sensibilidade e do sentimento de integração
à coletividade de forma útil e solidária, custariam menos ao Estado que a úl-
tima quebra do sistema financeiro.
Na Constituição Federal, consta que o Estado tem a função de garantir
necessidades essenciais à vida digna (alimentação suficiente, ensino de quali-
dade, moradia salubre, acesso a trabalho, ao transporte, o direito de ir e vir
etc., etc.) e o que vemos é o não cumprimento escancarado, descarado e cí-
nico, por parte do Estado, das determinações da sua Carta Magna. Ao contrá-
rio, cada organização popular a reivindicar direitos, promover manifestações
e ações pacíficas, esclarecer, conscientizar e pressionar o poder público para
cumprir a lei (!) é criminalizada na mídia e alvo do ataque das forças de segu-
rança pública, com o aparato repressivo de contenção de massa, que vem
sendo adquirido paulatinamente pelos governos, sob pressão dos interesses
privados, os mesmos financiadores das campanhas eleitorais.
Pra esses caras, é fácil pensar que armando as forças de segurança para a
guerra será possível manter a violência longe deles. Além disso, eles têm seus
próprios aparatos de segurança particular, carros blindados, batedores, heli-
57
cópteros. Não há expectativa de acabar com a violência. Devem saber que
suas empresas estão na origem e no final das razões para a barbárie. São elas
(e seu poder econômico) quem amarra o Estado para não investir na popula-
ção, chamando de custo social e exigindo cortes cada vez mais profundos.
São as empresas quem se beneficia dos salários baixos, aceitos pela pressão
do desemprego, da miséria sempre ameaçando. Condições de segurança, de
higiene, direitos trabalhistas, tudo “flexibilizado”, tudo morto.
Os políticos que fecham sem restrições com esses caras costumam odiar
os movimentos populares, atiram furiosamente a polícia pra cima deles,
abrem processos na justiça, enquanto a mídia fica histérica de ódio, transfor-
mando lutadores por justiça em bandidos nos seus pseudonoticiários. Cer-
cam favelas com muros, implantam unidades policiais dentro das comunidades
que ficam próximas aos eixos de movimentação, por onde passa a classe mé-
dia – vítimas potenciais da bandidagem. Bem, a classe média costuma formar
opinião, tem certa voz no coletivo. Se pudessem, cercariam as áreas de exclu-
são com muros como o da Cisjordânia ou de Gaza, com passagens controla-
das por guardas armados, permitindo a saída apenas dos que tiverem carteira
assinada ou comprovarem a razão da saída. E eu cada vez mais me convenço
de que esses caras – tanto os políticos quanto os seus patrões reais – sabem
a causa da miséria – e de tanto sofrimento –, sabem como se poderia acabar
com ela, mas não estão nem aí. Temem por seus privilégios e precisam exer-
cer o máximo de controle possível para mantê-los. Se possível, aumentá-los
cada vez mais.
Pra isso, avançam no Estado, o montante do dinheiro público é enorme.
Sob sua pressão, o orçamento destina uma merreca insuficiente pra educa-
ção e saúde públicas de base (para pobres), diminuindo o “custo” social e
aumentando o dinheiro público para o uso privado, sob infinitos pretextos.
Quando as situações de fragilidade forem a prioridade do Estado e da so-
ciedade, rapidamente elas serão extintas. O abandono da velhice e da infância,
as misérias material, de um lado, e moral, de outro, as situações de ignorância e
abjeção, os conflitos fundiários, a criminalidade endêmica, tudo isso será coisa
do passado, objeto de estudo nos livros de história e de espanto e horror, entre
estudantes e pesquisadores.
Sinto a chegada de novas gerações, com novos pendores e impulsos.
Cada vez mais e mais questionam os valores vigentes, o consumo compulsivo,
58
a hipocrisia da mídia privada e seu monopólio do espaço público de comuni-
cações. A mediocridade, a indiferença, a adesão aos valores absurdos tem
cobrado seu preço. Em angústia, em frustração, em revolta, em depressão. Os
que não aceitam se conformar com isso aumentam em número. Mas não se
percebe esse movimento à primeira vista, é preciso andar pelo chão da socie-
dade. E é melhor que não se perceba, mesmo. Ou o aparato do sistema pode
ser ativado – caso aqueles caras se sintam ameaçados antes da hora – e pro-
vocar muito mais sofrimento que o necessário na evolução das coisas.
Olhando lá do alto, açambarcando os continentes, pode-se perceber sig-
nificativas mudanças e importantes movimentos no equilíbrio geopolítico
entre as nações e mudanças de realidades e comportamentos, que contami-
nam os povos. O processo caminha. É preciso caminhar com ele.
59
Falsa superioridade
JK
A
credito que a repulsa e o desprezo sentido por muitas pessoas, das clas-
ses altas, pelos mais pobres e pelos miseráveis da sociedade tem ori-
gem, na maior parte das vezes, na percepção inconsciente da própria
responsabilidade, diante de existências que acusam e revelam seu egoísmo,
sua arrogância – e sua indiferença.
É da consciência incomodada, unida com o apego aos privilégios, que
parte a discriminação, a inferiorização dos pobres. Cria-se um sentimento de
superioridade humana, com base em referências sociais, acredita-se (volunta-
riamente) que a miséria e a pobreza são males inevitáveis e que a “culpa”, em
grande parte, é dos próprios pobres e miseráveis. Eles não se esforçam, são
vagabundos e não querem nada.
Essa “superioridade” é plenamente “justificada”, diante da visão su-
perficial, pela educação mais refinada, qualificada, por um padrão de
consumo bem acima da maioria, pelo acesso a um volume de informa-
ções exageradamente superior e inúmeras outras facilidades, condições
restritas a minorias tanto menores quanto mais altos forem os padrões. E
se confirma de forma irônica, pela necessidade que há de serviçais para
manutenção desses padrões. Em vez de perceber a fragilidade e depen-
dência expostas, prefere-se distorcer a realidade e apresentar a explora-
ção do trabalho mal pago como um “benefício”, o fato de “oferecer
empregos”. Esconde-se a dependência e a fragilidade, maquiada, é apre-
sentada como fortaleza – “eu pago!”
Uma fortaleza falsa e frágil, fácil de desmascarar (desde que haja inte-
resse real) com simples, leves e pacíficos golpes de consciência. Apesar do
seu aspecto indestrutível e ameaçador, a fortaleza tende a desmoronar
quando lhe retiramos o consentimento e a colaboração. É neles que a rela-
ção de superioridade/inferioridade se sustenta. Existe preparação para o
60
ataque direto, a contestação violenta. Mas não para a conscientização. E é a
consciência que, efetivamente e a partir de dentro, possibilitará a mudança
para melhor do ser humano, das suas relações pessoais, das sociedades e
das relações com o mundo.
61
Controle, contenção e vazamento
JK
A
mídia constrói sua credibilidade nos assuntos inofensivos à estrutura da
sociedade, com muita competência e profissionais de alto nível – de
qualificação e remuneração – aliados à mais alta tecnologia. Mas é implacável
e cruelmente eficiente na defesa da manutenção dessa estrutura absurda-
mente desigual, do controle pelos interesses privados das instituições públi-
cas, impedindo os Estados de investirem de verdade nas suas populações, no
desenvolvimento humano, no atendimento das necessidades básicas e no
respeito aos direitos fundamentais. Ela, a mídia, pertence às elites, não se
pode esperar outro comportamento, embora seja inaceitável a má-fé e o ci-
nismo com que, tantas vezes, a realidade é distorcida. Deve ser grande a con-
fiança na sabotagem do ensino público e no controle e direcionamento do
ensino particular. Confiam na eficiência da hipnose coletiva.
Daí a preocupação da elite e dos ricos proprietários da mídia em contro-
lar o espaço público das comunicações. Daí a criminalização das pequenas
emissoras comunitárias, alternativas, locais, de movimentos culturais e so-
ciais, que tentam abrir o espaço para a diversidade incrível das populações. É
preciso impedir a diluição do seu controle e eles se empenham com todas as
suas forças para blindar seu poder e mantê-lo.
Mas a blindagem apresenta vazamentos. Em princípio quase imperceptí-
veis, aumentam em número e volume. Vaza por todos os lados. O corpo mi-
diático principal se mantém, forte e operoso, com ares de onipotência. Mas o
processo está em curso. A cada momento surgem mais participantes, mais
vazamentos, de informações, de propostas, de denúncias. Este é o processo.
Os acendedores estão por toda parte. Acendendo suas próprias luzes,
estimulam mais e mais “acendimentos”. Este é um sentido pra dar à vida. Há
muitos outros. E na mesma direção.
62
Feliz ano-novo
JK
A
s pessoas sorriem, se congratulam, se despedem – “se eu não te encon-
trar até o ano que vem...” – como se estivesse, mesmo, acabando um
“ano”, uma realidade, e começando outro “ano”, outra realidade. Uma frontei-
ra, invisível, universal e falsa. O sentimento de que de agora em diante tudo vai
melhorar é estimulado, impelido, aumentado. Esqueça o passado, olhe o futu-
ro, tudo vai melhorar. Narcose coletiva. A mídia anuncia, festeja, faz retrospecti-
vas, os jornalistas sorriem, os comentaristas, os especialistas – tudo vai mudar.
Confraternize, comemore, veja o compacto do ano todo. O primeiro desaba-
mento foi em Angra, 50 casas foram soterradas. Sobre a mansão que despencou
da área de risco, sobre as 50 casas, não se fala. A secretaria local de meio am-
biente havia vetado a construção, mas o governador mandou liberar – afinal, os
donos eram um casal “global”, pra quem não vale a lei dos mortais comuns.
Ouça esse mesmo governador atribuir às centenas de mortos e aos milhares de
desabrigados a responsabilidade pela tragédia de abril no Rio de Janeiro. Nos
morros onde um certo prefeito, odiado pela mídia e pela cúpula social, fez as
obras de contenção, cumprindo a obrigação do poder público, não houve nada,
não desceu nem um degrau de escada. Vai no Fogueteiro pra ver. São uns crimi-
nosos, esses governantes. E se não forem, a mídia ataca.
Quem manda, continua mandando; quem finge que manda, continua fin-
gindo. O inimigo entra na sala e diz que te ama, que faz tudo pela tua felicida-
de. Afaga tua mulher. Faz bilu-bilu no bebê. E te rouba o passado, o presente
e o futuro, destrói a escola dos teus filhos, joga todo mundo contra todo
mundo, droga e convence as pessoas dos maiores absurdos. Mente e distorce
a realidade e ai de quem não acredita. O próprio meio social se encarrega de
discriminar e desqualificar os que não aceitam ser tratados como idiotas – ou
gado humano. Narcose coletiva.
A polícia vai continuar violentando os pobres, os oficiais vão continuar
maltratando os soldados. O transporte continuará consumindo um tempo
63
enorme na vida das pessoas. Os professores, que deviam ser uma classe mui-
to querida e próxima da população que lhes entrega os filhos ao preparo pra
vida, seguirão sacrificados, com problemas nervosos, salários ridículos, estru-
turas precárias, verbas reduzidas. Não interessa o ensino público – se o povo
percebe o que acontece, é revolução na certa. A mídia vai caprichar, cada vez
mais, nas mentiras, nas implantações no inconsciente, na distorção. As em-
presas vão continuar poluindo, matando índios e pobres, corrompendo as
administrações públicas em sociedade com a mídia, expulsando comunida-
des e camponeses.
Mas é ano novo, tudo vai mudar. Exerça, nessa época, os sentimentos
humanos, a solidariedade, a afabilidade, mas cuidado – são práticas muito
perigosas. Assim que passar o período das festas, tranque de novo seus senti-
mentos pra só usar com a família e os conhecidos, e olhe lá. Sua raça, a hu-
mana, não merece.
Depois que passarem as festas, volte pra sua gaiola construída com men-
tiras. Guarde os sentimentos humanos no armário da angústia, eles são uma
fantasia de uso rápido, de ocasião. Vista a angústia e, pra relaxar, consuma.
Não confie em desconhecidos, dispute todas as migalhas, seu valor é seu
preço – ou seu patrimônio. Acredite, mesmo, que tudo vai melhorar, por si
só, sem precisar fazer nada. Ignore essa gente na calçada, o mar de barracos
na baixada, os meninos do tráfico, do vale tudo ou nada.
É criada uma sensação fortíssima de mudança, para que se mantenha
tudo como está. Narcose coletiva.
Feliz ano-novo. Sorria.
64
Correspondência com o primo
JK
E
nviei o texto “Feliz Ano-novo...” ao primo Bosco. Ele vive em Mato Gros-
so e respondeu com uma pergunta. Respondi e depois, lendo o escrito,
achei que devia postar aqui. Vejamos se vale.
65
que tem outro brilho nos olhos, uma vibração pessoal diferente, uma abertu-
ra na mentalidade que as diferencia da maioria – que é tratada como gado
humano, pela mídia e pelo Estado, conduzida em seus valores, objetivos, de-
sejos e padrões de comportamento. Da mesma forma que levou tempo pra se
formar essa estrutura social, leva tempo pra reformar, muitas gerações de
instrução, de informação, de conscientização. Quem pretendeu mudar o
mundo em uma vida, ou desistiu ou morreu cedo. Bem, acho que são duas
formas de morrer.
Eu mesmo achei que não chegava aos trinta. Depois, com o tempo, per-
cebi a toada e a parte que me cabe, o acorde momentâneo que é a minha
vida. E coloquei meu trabalho a serviço dessa parte. Assim, a vida tomou co-
res e sabores que não existiam antes, quando a vida era sem gosto.
A braço ,
E duardo
66
A condução do querer
JK
A
té que ponto nossos valores e desejos são realmente nossos? Até que
ponto é nossa própria consciência e sensibilidade que criam nossos
planos e desejos, valores e razões para a existência? Somos bombardeados
com valores impostos, pelo consciente, pelo inconsciente, pelo emocional,
pelo ego, pelo sexo, pela vaidade, pelo instinto de disputa (resquício do
animalismo ancestral) ou pela insegurança social (planejada e implantada na
sociedade pelo controle do Estado e, sobretudo, através da publicidade e da
mídia, que formam, enganam e narcotizam a opinião pública para dar à bar-
bárie um aspecto de inevitável).
Foram desenvolvidas formas de criação, controle e condução do com-
portamento, da opinião e dos valores. Por acaso somos imunes ao assédio
de televisão, rádio, autidóres, folhetos, jornais, revistas, veículos e todos os
lugares e meios usados para criar desejos e influenciar o comportamento e
a mentalidade humana?
Que cada um analise seus próprios valores, objetivos e opiniões sobre
a realidade. Procurando os fundamentos, as fontes, as razões e as motiva-
ções dos próprios desejos, encontrará aí induções e influências, evidentes
ou sutis.
A sociedade é conseqüência do que somos, individualmente, dando for-
ma ao coletivo. Não é possível se orgulhar de uma sociedade que ostenta
tanta barbárie, miséria e ignorância; ilhas de fartura e ostentação, privilégios
e desperdícios para poucos, em meio a um mar de pobreza, de lutas insanas
e vidas difíceis. Uma grosseria, uma vergonha, uma insensibilidade, uma de-
sumanidade. A maioria vive entre a ansiedade, a angústia e a miséria; entre
a hipnose, a ignorância e as violências cotidianas.
É preciso questionar a sociedade, sua estrutura injusta, covarde, hipó-
crita e suicida, mas a partir de cada um de nós, dos nossos próprios con-
dicionamentos. É preciso se questionar a si mesmo, para perceber como
67
reproduzimos os comportamentos sociais induzidos, individualmente,
nas nossas relações pessoais, em nossos valores, desejos e objetivos de
vida. E o quanto perdemos com isso, no turbilhão de sentimentos em con-
flito, na adaptação da consciência, na qualidade da existência e nas rela-
ções com o mundo.
68
Correntes de mentiras
JK
J
á nascemos envolvidos em mentiras. Desde cedo nos acostumam. Bicho-
-papão, homem de areia, ladrões de crianças, figuras utilizadas pra contro-
lar crianças pequenas através do medo – tática que se estende por toda a
vida, mudando as formas. Imagens falsas, como o coelho que dá ovos de
chocolate, ou a figura da maldade e indiferença ao sofrimento em nossa so-
ciedade, a do papai noel, excrescência vestida com as cores da Coca-cola que
induz ao consumo compulsivo, na época do Natal – outra mentira, esta da
igreja cristã, pra fazer frente às festas do solstício, no norte da Europa –, en-
sinando a fazer o bem por interesse nos prêmios e evitar o mal por medo do
“castigo”, em franco egoísmo. Como fazem as igrejas cristãs, sem nenhuma
preocupação real com o próximo (falo apenas das instituições), além da teo-
ria – ou diriam aos ricos que se contentassem em ser menos ricos para que
não houvesse abandonados e explorados na sociedade.
São aceitos como naturais os abismos sociais – econômico, educacional,
informacional, de cidadania e dignidade, de direitos e oportunidades. Amar-
ga mentira. Esses abismos são artificiais, construídos a partir de cima, para
permanecer por cima. Acima mesmo dos governos, da política e da mídia,
que constrói com a maior competência as mentiras nas quais acreditamos. A
população precisa acreditar, para se deixar conduzir a sustentar e manter
todo esse esquema perverso contra si mesma.
Porque é a população quem sustenta com os impostos e trabalho, quem
constrói ruas, prédios e calçadas, quem instala, carrega, levanta, derruba,
atende, transporta, serve, limpa, cozinha, desentope, manobra, conserta e
põe a mão na massa. E é explorada e desprezada, em nossa estrutura social.
Roubada em seus direitos básicos e conduzida a desejos de consumos e pri-
vilégios impossíveis, alienada e narcotizada pela mídia. A parte mais indispen-
sável, mais necessária à sociedade, é exatamente a mais maltratada, a mais
perseguida, a mais explorada. E em caso de inconformação, reprimida com
69
desrespeito e violência. Não são claros os motivos de tanta mentira? Sem ri-
cos, a sociedade poderia ser menos injusta. Sem pobres, seria impossível. São
eles a base de apoio.
Impede-se o desenvolvimento do espírito humano, pois ameaçaria o
controle dos poucos dominantes sobre a sociedade. E as hipocrisias se-
guem, junto com a vida. A maior parte das pessoas, abestalhada entre os
entretenimentos e os desejos de consumo, tem sua atenção conduzida
pela mídia para longe da política – apresentada como um mundo incom-
preensível entre a falcatrua de muitos e o heroísmo duvidoso de poucos,
a hipocrisia de muitos e a honestidade de poucos, com algo de repulsivo,
criando um clima de assunto chato, incômodo, repetitivo, no qual é desa-
gradável pensar.
Não é à toa. Nesse mundo, o político, se manobram as marionetes do
poder, se articulam os interesses das grandes empresas, se negocia com o
patrimônio público. O poder econômico local (industriais, latifundiários e
outros empresários “de peso”), sócio menor e servidor de gigantescas trans-
nacionais estrangeiras e nativas, controla o aparato público, as instituições,
infiltra-se no Estado através das forças políticas, compradas com financia-
mentos de campanhas. A partir daí, se espalha nos poderes da república em
variadas relações, no judiciário, nas estatais, nos serviços públicos, nas em-
presas prestadoras de serviços. A coisa pública, os bens públicos, o dinheiro
público, controlados por interesses privados, fazendo fachada de democra-
cia – só se for a “cracia do demo”. Esse é o mundo dos crimes contra a hu-
manidade, do roubo dos direitos básicos à maioria da população para
privilegiar essa minoria de serviçais de luxo – que fazem pose de “superio-
res” – e gerar ganhos além da nossa imaginação para os pouquíssimos real-
mente poderosos – acima até dos Estados nacionais, a ponto de controlar as
políticas públicas. Os povos precisam estar de alguma forma narcotizados,
precisam ser ignorantes, desinformados, enganados, para se deixarem con-
duzir. Simples. Destrói-se o ensino público, controla-se o ensino particular,
domina-se a mídia e o trabalho está feito. Fácil, quando se tem o governo,
legisladores, altos postos do judiciário e a mídia na mão. E a garantia das
forças de segurança, públicas e privadas.
70
Dizem que o mundo é uma guerra, a vida é uma competição e que todos
são adversários, em suas áreas. Mentira. Somos irmãos seguindo a aventura
da vida, nos desenvolvendo e procurando formas de resolver nossos proble-
mas, solidariamente. Somos gregários, precisamos de harmonia, não de com-
petição. A mídia é que nos instiga uns contra os outros, com a idéia furada de
“vencedor” e “perdedor”. Nossa união apavora seus patrões. E a eficiência é
tanta que mesmo entre os que se dizem revolucionários se vêem esses pa-
drões de comportamentos e valores. Passar da competição à cooperação é
um degrau da evolução humana.
Dizem que felicidade é consumir, é desfrutar e usufruir de luxo e fartura.
Mentira. O mais próximo de felicidade que temos é gostar e ser gostado, é
abraçar e ser abraçado, é se sentir útil à coletividade, é beneficiar os demais e
confraternizar com todos, aprender e ensinar, ajudar e ser ajudado. A mídia
nos induz ao consumo egoísta, ao isolamento, condiciona o valor do ser hu-
mano à posse, ao poder econômico, ao nível de consumo, e as pessoas se
sentem inferiorizadas ou superiorizadas, conforme esses padrões, se enver-
gonham ou se orgulham por esses fatores externos. Induções. Os valores re-
ais são abstratos; estão no ser, não no ter.
É o consentimento geral o que sustenta essa estrutura. A crença nas men-
tiras plantadas. Acreditamos e reforçamos as correntes da nossa própria es-
cravidão. Cada um de nós consente, em maior ou menor grau, esse estado de
coisas. Cada um de nós pode começar o trabalho em si mesmo, que vai en-
contrar o que fazer, se for sincero consigo e tiver humildade pra encarar as
próprias falhas e condicionamentos. De dentro de si é que o trabalho de
mudança externa ganha força, na profundidade das raízes, da sinceridade do
sentimento. Pois é do trabalho interno que emanará a força avassaladora de
uma verdadeira revolução. Cada revolucionário precisa começar o seu traba-
lho em si mesmo. Sem isso, ou será mais um desses superficiais e arrogantes,
intolerante e conflituoso, pronto a usar os recursos convencionais dessa es-
trutura doente, ou apenas reforçará a imagem do revolucionário chato, incô-
modo e indesejável.
Ninguém pode se dizer isento de induções inconscientes. Desde peque-
nos recebemos cargas maciças de publicidade – televisão, rádio, autidórs,
71
folhetos, jornais, revistas, nos ônibus, trens, barcas, metrôs, nos telefones,
em cartazes pela rua, na repetição dos refrões das propagandas. E dali não
vêm apenas produtos e desejos de consumos. Embutidos, estão valores so-
ciais e pessoais, objetivos de vida e esperanças, criminosas mentiras detalha-
damente preparadas pelas empresas (publicitários, marqueteiros e até
psicólogos, sociólogos, pedagogos e advogados) e implantados pela mídia.
Cabe a nós destruir essas correntes, desacreditando-as dentro de nós
mesmos e, a partir daí, contagiar à nossa volta, até onde pudermos alcançar.
Nós, os que enxergam as correntes, os que não acompanham o gado e não se
deixam enganar tanto, os que nos debatemos contra as pressões e lutamos
por uma sociedade menos injusta, menos perversa e menos suicida. E mais
humana, mais solidária, mais cuidadosa e sincera com todos os seus mem-
bros. Enfim, uma sociedade livre das garras de elites, a serviço de todos.
72
O luxo como “pequeneza”
JK
A
situação de pobreza sempre me intrigou, a miséria me chocava e eu
não entendia. Sentia certo constrangimento inexplicável do meu “falar
correto”, das minhas roupas de marca, às vezes do meu tamanho, dos meus
dentes impecavelmente tratados. Não que desejasse abrir mão da minha si-
tuação. Mas por que a maioria das pessoas não tinha? Era uma sutil sensação
de injustiça sem me sentir claramente culpado, apenas constrangido com o
que pareciam privilégios nesses momentos, mas que tinham se incorporado
em mim como o mínimo necessário.
Não podia achar aquilo natural e inevitável, como me diziam e se acre-
ditava à minha volta. Na verdade, fugia-se do assunto. Eu fui muitas vezes
considerado um chato, fui evitado por vários grupos de adolescentes, fran-
camente hostilizado – não gostavam de mim. Claro que tinha minhas boas
relações, mas eram poucas e quase todas... como direi... bilaterais. Fora os
esportes coletivos, claro. Aprendi aos poucos a ficar mais calado e prestar
mais atenção – virtude que perdi de vista ao entrar na universidade e até
hoje, vez por outra e apesar da vivência, me faz falta. Na maior parte das
vezes consigo me controlar, mas nem sempre.
Quando andei no nível da mendicância e vivi do que me era dado,
encontrei gente boa e ruim em todas as classes, indiferentes e curiosos de
todos os tipos. Mas era nítida a diferença de acolhimento entre os mais
pobres dos pobres. Ali se dividem migalhas, com uma generosidade ímpar,
onde se divide. A generosidade dos ricos, no mais das vezes, é à distância.
Partilhei refeições feitas em latas de óleo sobre fogueiras, dormi sobre
capim improvisado no cantinho da tapera, pendurado em rede, em cai-
bros ou árvores, fui hospedado em palafitas sobre mangues, onde o ba-
nheiro é servido de um buraco no chão, pedaços de jornal enfiados num
prego na parede de tábua e a gente escuta o barulho da merda caindo na
água, lá embaixo.
73
Boa recepção por parte dos que dispunham de sobras me deixavam reco-
nhecido, agradecido, mas a recepção dos mais pobres me comovia. Tão pou-
co tinham, tão fácil dividiam. O dia seguinte pertencia a Deus e a luta era todo
dia, sem feriado. Também senti a fome, vivi sem abrigo, como um aluno, aten-
to, aprendendo, pesquisando à minha maneira, ouvindo as histórias, falando
meu pensamento, reparando nas reações, na linguagem, absorvendo os códi-
gos, percebendo os conhecimentos, as intuições e relações. Criei um grande
carinho pelos sabotados, pelas pessoas em situação de fragilidade, uma liga-
ção talvez moral, certamente afetiva, junto com a sensação de injustiça per-
manente, pedindo trabalho de reparação na estrutura social – a partir das
raízes individuais internas para as externas, coletivas. Nasceu uma grande
admiração pela resistência ao sofrimento, pela luta de sobrevivência, pelos
saberes e sabedorias desenvolvidos quase por conta própria. Eu os sinto par-
te de mim, do meu grupo, merecedores de mais cuidados, pelos maltratos
cotidianos impostos por essa estrutura social perversa.
Certamente é por isso que me causa certo desconforto a presença, a pro-
ximidade ou a simples visão de luxo e ostentação. Traz à lembrança imediata-
mente a situação injusta, precária e abandonada em que vivem tantas pessoas,
por um Estado que foi infiltrado e dominado por grandes empresas, as pou-
cas pessoas mais ricas, e impedido de cumprir as leis mais básicas da sua
própria constituição, na garantia de condições mínimas de vida com dignida-
de para sua população. O domínio de elites tornou o Estado criminoso, nos
seus três pretensos poderes, e o colocou a seu serviço, eliminando direitos e
roubando patrimônios públicos – o que é público é visto por essas pessoas
como “de ninguém” ou “de quem pegar primeiro”. Tenho verdadeira repulsa
por privilégios, luxos e ostentações, embora não transfira essa repulsa às pes-
soas, apenas aos seus comportamentos e à sua indiferença. Meu desconforto
é moral, causado pela situação, pela ligação direta da riqueza, da ostentação
e do luxo com a criação da miséria absoluta, da sabotagem na educação, na
informação, nos serviços públicos, com a falta de sentido na vida das pesso-
as – da miséria à pobreza e às classes intermediárias.
Estes são meus sentimentos, meus pensamentos e minha visão de mun-
do. Não pretendo declarar verdades, nem tenho a expectativa de encontrá-
74
-los em outras pessoas. Se me desse ao trabalho e à arrogância de condenar
comportamentos e valores dos quais discordo, viveria em conflitos pessoais
inúteis, alimentaria sentimentos desagradáveis e nocivos – e não teria tempo
nem espírito pra fazer os trabalhos que gosto e dão sentido à minha vida.
Não recomendo nem pretendo voltar à situação de miséria onde, na ver-
dade, nunca me senti preso. Mas não posso gostar ou desejar de luxo, de ex-
cesso material e de desperdício. Na minha visão, são expressões de grosseria
moral e espiritual, de insensibilidade, de egoísmo, indiferença, enfim, de de-
sumanidade, disfarçada com requintes de sofisticação ridículos a olhos mais
solidários, de quem se sente parte do grande grupo humano e além, da cole-
tividade planetária. Não se trata de condenar ninguém, mas de perceber com
olhos próprios e refletir sobre o que se vê.
75
O garimpo humano
JK
T
emos do “demoníaco” ao “divino” entre nós. E dentro de nós. Conheço
trevosos e iluminados, anjos e demônios. Vi anjos virarem demônios e
vice-versa, conforme as circunstâncias. Todos os males que vemos pelo mun-
do estão dentro de nós, em maior ou menor grau, como árvore frondosa ou
apenas semente, esperando a ocasião. As proporções variam do imperceptí-
vel ao impressionante, em incontáveis degraus.
A humanidade é um grande garimpo. O que aparece é lama, cascalho e pe-
dra sem valor. No meio, de raro em raro, há pedras preciosas e pepitas de ouro,
misturadas com tudo. Há quem desista, “ora, aí só tem barro, que sujeirada”,
logo de saída, ou depois de uma busca frustrante. Mas há quem se aplique, quem
procure e encontre. É preciso educar os olhos, apurar os sentidos, para perceber
uma pedra de valor, uma pepita, envolvida na lama, no cascalho humano. Não é
difícil, eu as tenho encontrado, sempre, em todos os meios e coletividades.
Claro que não são a regra geral. A sociedade será outra quando forem,
pelo menos, minoria. São exceções à regra. Muitas se dedicam a trabalhos de
conscientização, de ensino, de amparo, de apoio, de luta por melhorias de
verdade, no ser humano e na sociedade. Outras não se dedicam diretamente,
estão em toda parte, espalhadas, formando a sociedade como pessoas co-
muns, em todas as profissões. Essas iluminam onde estão, questionando,
propondo, exemplificando, sendo diferentes do “normal”. A diferença está
no olhar, na compreensão das coisas, da forma de reagir, de sentir, de atuar.
Há quem esteja buscando, quem não se conforme, quem sofra com a discri-
minação inevitável, numa sociedade na qual a mediocridade, a mesquinharia,
a conformação, a padronização ainda são as regras vigentes. Os contatos que
valem a pena cultivar, da humanidade, são as exceções. Em geral pessoas que,
quando andam com a corrente, se angustiam, sofrem. Pessoas para quem se
conformar e reprimir as necessidades internas é adoecer a vida, é se tornar
amargo, depressivo, mal-humorado, descrente de tudo.
76
Somos mesmo complexos e variados. Mas somos, também, ignorantes de
nós mesmos. Cegos de consciência, tateamos no escuro, aprendendo com a
dor, colhendo frutos que plantamos sem perceber. Aprender, essa é a tarefa.
Pra isso existimos e é o que levamos da vida. Alguns sabem disso, outros
sentem. Poucos, é claro. A maioria anda por aí, superficializada, induzida ao
desinteresse, à inércia, ao seguir as ondas, sem perceber a fonte dos seus
próprios valores, sem perceber os próprios condicionamentos, muitas vezes
no cárcere da indiferença, do egocentrismo, do apequenamento do mundo.
Essa maioria não pode entender a angústia, o vazio que assalta implacável, a
cada silêncio, a cada encontrar consigo mesmo.
A preciosidade humana tem uma característica própria, única, e é o que
me faz acreditar na diversidade infinita desse trabalho de lapidação. Diferente
da preciosidade mineral, exclusiva, a preciosidade humana contagia. Uma luz
pode acender várias, e essas passam a acender outras. A diferença entre uma
pessoa iluminada e outra ignorante não é tão abissal quanto nos parece. Em
essência, são a mesma coisa – às vezes, um leve toque produz o brilho. Taí o
trampo, esse é o trabalho. Pra mim, é isso o que faz a vida valer a pena. Apren-
der e passar, deixar os toques para que alguém os aproveite em seu trabalho/
caminho. Não espero ver tudo pronto, do jeito que sonho. Mas preciso andar
neste sentido. Não tenho a ingenuidade de plantar pra mim, planto pra dar
valor à minha vida.
Nada é estático, tudo muda. Não há milênios para trás? Também os há
para a frente. As previsões apocalípticas visam desestimular qualquer movi-
mento de mudança mais incisivo. Não há extermínio. Pode haver hecatom-
bes, sim, mas não o extermínio. E se houvesse essa possibilidade, isso seria
mais um motivo pra lutar. Sentar e se acomodar como os usufruintes aliena-
dos, não quero condenar ninguém, mas eu teria vergonha. De mim mesmo.
Prefiro tratar com pessoas que possuem algum terreno fértil em suas
consciências, com essas dá para trabalhar. E ajuda a fertilizar e desenvolver a
minha própria, que é o que eu mais preciso. As mudanças, as revoluções, se
fazem no dia a dia, internamente, sem prejuízo das lutas externas, de grupo,
dos posicionamentos, das manifestações e apoios solidários, das reivindica-
ções justas, do esclarecimento cotidiano.
77
Nem todos estão acomodados. Nem todos almejam o desfrute e o prazer
materiais como finalidade de vida. Nem todos se deixam condicionar por
uma mídia tão poderosa que forma valores, costumes, opiniões, sempre em
benefício de empresas e em detrimento do desenvolvimento real do ser hu-
mano e da sociedade. São poucos, ainda, é verdade. É um garimpo. Mas eu
percebo a formação de muitos veios, espalhados por aí.
Um veio, no garimpo de minerais, é onde se encontram grande quantida-
des de pedras, ou ouro, num lugar só, a sorte grande do garimpeiro. No meio
humano, já vi muitos veios preciosos, funcionando dentro da coletividade, de
todos os tipos, formas e qualidades. Com o tempo, fui percebendo o fenôme-
no da evolução espalhada e, aparentemente, desconectada. O trabalho está
sendo feito. Sem anúncio, sem alarde, em toda parte, em todos os níveis. Sem
que se perceba e é bom que assim seja. A estrutura dominante está pronta
pra esmagar qualquer ameaça de mudança, venha das ruas, dos grupos, dos
gritos, através do terrorismo, do combate direto ou indireto, com explosivos
ou informações. Esse grande esquema só não está preparado pra consciên-
cia. Por isso tanto investimento em entretenimento, em condução da opinião
pública, em idiotização, em infantilização pela mídia da mentalidade geral.
Assim, roubam os direitos fundamentais da maioria e atiram grande parcela
da população na ignorância, na pobreza e na miséria. O mandamento moral,
agora, é conscientizai-vos uns aos outros. Esse é o trabalho que está sendo
feito. Sem controle visível, aparentemente espontâneo.
Participar desse trabalho é necessário a muitos dos que não se conten-
tam com o que a sociedade apresenta como ideal de vida. Para os que não se
deixam enganar e se sentem parte dessa coletividade narcotizada. Para os que
não se identificam, nem se conformam com essa estrutura social injusta, me-
diocrizante, manipuladora, mentirosa e criadora de problemas para a esma-
gadora maioria. E o trabalho começa dentro. Os que se limitam a lutar por
mudanças na sociedade, a partir do externo, não desenvolvem em si a força
da mudança. Desistem ou se acomodam com a forma sem conteúdo da revo-
lução sem raízes, com verdades impostas e subalternidade cultural.
As verdadeiras exceções estão aí, é um imenso prazer e um incentivo re-
conhecê-las, vez por outra.
78
O espetáculo da subalternidade
JK
T
oda a preparação oficial e a euforia dos meios de comunicação domi-
nantes em nossa sociedade, diante da visita do “mandatário” imperial
(que não manda nada), nos oferece um panorama constrangedor. Políticos
historicamente alinhados aos interesses econômicos estadunidenses e ou-
tros nem tanto, prestam vassalagem ao poder das empresas multinacionais,
simbolizados na figura da marionete e sua família, que fazem, simbolica-
mente, uma visita “familiar” à casa dos “amigos”. Posso ver, no escuro atrás
e acima dessas figuras cênicas, as garras dos seus manipuladores, a partir
das megapetroleiras e de outras indústrias, como a de armamentos, a far-
macêutica, a de alimentos transgênicos (leia-se “monopólios de sementes
e alimentos”) etc.
Somos obrigados a assistir um show de idolatria planejada, de sujeição
moral e ideológica à tirania mundial das grandes empresas mundiais, polui-
doras constantes e violadoras dos direitos humanos e de soberanias em paí-
ses no mundo inteiro, através da bajulação ao seu preposto e família.
Seria cômico, se não fosse trágico (devido à desinstrução e à desinfor-
mação planejadas), ver esses jornalistas corruptos abanando os rabinhos,
histéricos como cães à chegada do seu dono, fazendo-nos ouvir disparates
como “neste dia tão especial dessa visita” e a referência ao motivo principal
como “o lado empresarial da visita”, divulgando o cardápio do almoço com
a presidente (eu escreveria “presidenta” se o masculino fosse “presidento”),
comentando os vestidos e salamaleques rocambolescos nos palácios, longe
do “fedor” do povo, nas cortes de ostentação e desperdício, de sujeição
econômica e cultural.
É óbvio que o motivo principal e mal disfarçado dessa incursão “diplo-
mática” é o mesmo que levou o império a invadir ilegalmente o Iraque e
armar um furdunço do Oriente Médio. Petróleo. As jazidas do pré-sal, ainda
não inteiramente divulgadas, apontam pra uma quantidade de óleo três
79
vezes maior que todas as reservas brasileiras e de melhor qualidade. Um
amigo petroleiro, que trabalha numa plataforma em alto mar, próximo ao
litoral de Santos, há dois anos, contou ver a passagem diária de navios da 4ª
Frota dos USA, desde que se descobriu o pré-sal e se reativou essa frota. A
onda que invadiu a baía de Guanabara e danificou um catamarã, segundo
consta, foi fruto de uma explosão de teste, feita no fundo do mar a partir
de um porta-aviões estadunidense.
Os pretextos da “visita diplomática” e sua encenação midiática são uma
afronta aos que pensam por si, nessa coletividade narcotizada por obra e
graça da mídia, que conta com a política da deseducação para encontrar
um povo desarmado de senso crítico. O Estado brasileiro é como um crimi-
noso que mantém seu povo refém da ignorância e entregue aos manipula-
dores da opinião pública, altamente capacitados e remunerados. Ricos de
grana, pobres de espírito. Onde está a dignidade de quem bajula os opres-
sores de seu próprio povo?
O estupro da Cinelândia pôde ser evitado (o discurso de Obama, a
marionete-mor), não pelo discernimento das autoridades locais, eufóricas
com a oportunidade de paparicar o “imperador”, mas pela própria seguran-
ça estrangeira que, diante das reações nas ruas, percebeu que isso ia dar
merda e que eles se arriscariam a matar alguns brasileiros, o que, no mo-
mento, não seria aconselhável, pois desmascararia a própria “visita diplo-
mática para o estreitamento dos laços entre os dois países (Brasil e USA)”.
Na verdade, os laços que eles pretendem apertar estão nos nossos pesco-
ços brasileiros e, por extensão, latino-americanos. E eles preferem matar
no atacado, com alta tecnologia, do que no varejo, em denunciador conflito
de rua num país dito “amigo”. Os assassinatos de varejo seletivo são traba-
lho para a CIA, como fizeram com os cientistas nucleares iranianos, pela
sucursal da CIA, o MOSSAD israelense.
Diante desse quadro, ainda temos a lastimar que os “nossos” revolucio-
nários também são estrangeiristas que pretendem aplicar, aqui, modelos im-
portados de revolução. Leninistas, trotskistas, stalinistas e demais marxistas
têm, pelo brasileiro comum, o mesmo desprezo dos imperialistas. Caem na
vala comum de responsabilizar as vítimas pela ignorância e desinteresse, pre-
80
tendem “conduzir as massas”, como quem entrega pizzas, e não fazem ne-
nhum movimento de real conscientização do povo. Têm medo de entrar nas
áreas de exclusão, a não ser através de lideranças cooptadas por suas siglas e,
absurdo dos absurdos, usam roupas, tênis e bolsas de marca. Que tipo de
“revolucionário” é esse? Respondo: é do tipo vazio de substância e cheio de
vaidades – almeja apenas a glória entre seus pares, que nem falar a linguagem
da população sabem. Esses caras mais assustam do que cativam a população.
E acabam, em seus arroubos agressivos, justificando o desenvolvimento e o
recrudescimento dos aparelhos de segurança do Estado contra o povo, prin-
cipalmente os pobres. Facilitam o trabalho da mídia em criminalizar os movi-
mentos de contestação, reivindicação, denúncia ou defesa da maioria. O
sistema adora esses “revolucionários” que, além de justificar medidas de con-
tenção, ajudam a montar um cenário “democrático”. Em Cuba eles não teriam
essa liberdade, dizem os pilantras, os elitistas e os ingênuos que se informam
pela mídia. Se não fosse uma autodenúncia, agradeceriam a esse bando de
otários, digo, a esses “revolucionários”.
O lamentável espetáculo da subalternidade dos “dirigentes” e “comuni-
cadores” da nossa sociedade me faz agradecer à pereba na perna e à enco-
menda de uma pintura (num momento em que estou em dificuldades) que,
juntos, me fizeram desisitir de ir lá na Cinelândia assistir aos acontecimentos
ofensivos à dignidade do meu país. Faltasse um dos dois e eu teria ido. Claro
que eu teria me divertido, encontraria conhecidos velhos de guerra e distri-
buiria cartazes manifestando repúdio, tanto à visita da marionete quanto à
posição colonizada dos pretensos representantes da sociedade. Mas, com
certeza, na reflexão forçada pela travessia das barcas, choraria de tristeza.
81
Sociedade humana
JK
A
gora afirmam que a humanidade está destruindo o planeta. Socializam a
responsabilidade. A natureza está sendo destruída, é verdade. Mas uns
poucos destroem muito mais que a maioria. São os que estão por trás de
grandes bancos, mineradoras gigantes e megapoluentes, monstros da cons-
trução, barragens e transposições desastrosas ao meio ambiente e às popula-
ções locais, indústrias produtoras de descartáveis, que se tornam lixo tóxico
de longa duração, indústrias químicas, as mais diversas, com resíduos conta-
minantes, sem falar nas assustadoras usinas nucleares, cujo lixo radioativo
nós ainda não temos como tratar. E vêm dizer que quem está destruindo o
planeta é o “ser humano”.
São esses poucos quem decide essa realidade, escondidos atrás e acima
do poder aparente, o político. Investem nas campanhas eleitorais e têm os
políticos como seus representantes no Estado; cooptam carreiras jurídicas,
impõem seus protegidos aos cargos-chave da nação. Controlam as institui-
ções públicas e, por extensão, os investimentos públicos. Educação, saúde,
transportes, moradia, segurança, saneamento, cultura, informação, tudo é
decidido de acordo com os interesses daqueles dominantes, menos de 0,5%
da população. Daí a falta de decência dos serviços públicos, a aparente “in-
competência” dos governantes e políticos em geral. Na verdade, estes são
muito competentes, para o que foram realmente eleitos – e é claro que não
o foram pra cumprir suas promessas de campanha.
Por isso o povo precisa estar alienado no processo, precisa acreditar que o
poder político é o verdadeiro e não perceber por que minorias desfrutam privi-
légios, ostentações e desperdícios, enquanto seus direitos, garantidos na Cons-
tituição do Estado, são negados pelo próprio Estado, sempre em benefício de
empresas, enriquecendo mais os empresários que o controlam. É a contenção
do “custo social”. Tudo em benefício das empresas, tanto maiores benefícios
quanto maiores forem as empresas. Para a população, as despesas cenográficas,
82
os restos e os custos. E aos que não se contentam, a segurança pública. Todas as
forças de segurança, militares ou não, em última análise, servem aos interesses
empresariais e à contenção dos pobres. E a mídia privada ataca, em histeria rai-
vosa, todo movimento popular que denuncie, reivindique ou conscientize.
Aliás, a mídia é o selo de ouro do esquema de controle social, a garantia
de uma população infantilizada, superficializada, desinformada, conduzida a
um modo de vida massacrante, frustrante, desumano. Com a destruição do
ensino público, sem instrução, a maioria se deixa levar, desarmada de qual-
quer senso crítico, sem perceber que sua miséria, seu sofrimento, sua angús-
tia, são o que sustenta esse sistema criminoso, essa brutal diferença entre os
mais pobres e os mais ricos. As classes médias sofrem o assédio da publicida-
de frenética, direta e indireta, gerando valores sociais, desejos de consumo,
objetivos de vida, tudo planejado e imposto de todas as maneiras por interes-
ses de domínio, lucro e poder. Valores mesquinhos, consumos e entreteni-
mentos narcotizantes e uma vida vazia de sentido.
Em suas ilhas e bolhas de luxo, excessos e ostentações, poucas pessoas
escolhem a barbárie social e a impõem aos governos e aos povos, com suas
corporações financeiras e transnacionais gigantescas, empresas “esmagado-
ras” que extraem o sangue e deixam só o bagaço. Isso lhes garante mais ga-
nhos, mais poder, mais riquezas, enquanto a maioria é roubada em seus
direitos e levada a uma existência sem dignidade, sem instrução, sem infor-
mação, sem acesso ao pleno desenvolvimento das suas potencialidades. Ao
contrário, é levada a sustentar essa estrutura com os comportamentos, valo-
res, desejos e objetivos impostos pela parafernália midiática.
Somos forçados a participar e contribuir com essa estrutura e mesmo
sustentá-la. Pela indução, aproveitando a falta de instrução, de formação e de
informação, pela imposição de valores sociais e pessoais, a partir da mídia
corporativa e pela pressão, psicológica ou física – quando as forças de segu-
rança dão a última “palavra”.
Não posso respeitar uma sociedade estruturada dessa forma. Preciso
questionar cada valor social e meu próprio, preciso duvidar de cada informa-
ção trazida por essa mídia privada/safada. E quanto mais ela se dedica a um
assunto, mais desconfio dos interesses ocultos dos poderosos da sociedade.
83
A escravidão predominante de hoje é feita com correntes preparadas
com mentiras, e nós as fazemos fortes acreditando nelas. Moldamos os valo-
res, os comportamentos, os desejos, os objetivos de vida, nos baseando em
mentiras – daí tanta angústia, tanta frustração e tanto desequilíbrio. Quando
formos percebendo isso, vamos desacreditar e as correntes serão rompidas.
Seu descrédito é a ferrugem que a corrói. O processo está em curso, mais e
mais pessoas, a cada dia, se dão conta de que estão sendo enganadas. Que
ninguém se iluda, é um processo longo e lento, embora incontrolável – mes-
mo com todo o aparato de controle. Participar dele é dar sentido à vida, na
direção de uma vida menos insatisfeita e uma sociedade que, afinal, possa
merecer com justiça o título de humana.
84
Qualidade de sentimentos,
qualidade de vida, qualidade social
JK
E
stou aprendendo a observar a qualidade dos sentimentos. Percebo cada
vez mais a importância deles em nosso pensamento, na qualidade geral
da vida e na maneira de sermos e de nos relacionarmos.
Existem todos os sentimentos, mesmo os mais bárbaros, na maioria dos
seres humanos, ainda que na forma de semente. Consigo imaginar situações
em que me tornaria – eu, que sou tranqüilo – um monstro sanguinário, em
circunstâncias específicas que prefiro não relatar, por hediondas que são. Sin-
to a necessidade de trabalho neste sentido, de observar, aprender, questionar
e influenciar os sentimentos tanto em mim mesmo quanto os que produzo
na coletividade, nos outros, dentro das minhas possibilidades, claro. Venho
me empenhando neste aprendizado.
Neste caminho há uma clareza crescente de percepções novas, o desen-
volvimento da capacidade de sentir, de perceber os sentimentos que se pro-
duzem, antes que se manifestem, e interferir neles quando é possível. Um
trabalho muito ligado à área da intuição. O saber acadêmico, racionalista,
muitas vezes nega ou despreza essa área, empobrecendo em muito os poten-
ciais da razão e do desenvolvimento realmente humano – o desenvolvimento
que vejo, a mim parece mais desumano, mais egoísta, exclusivista, excluidor
e explorador da maioria. A tendência racionalista das academias cria um sen-
timento de superioridade que as afasta das maiorias, consideradas inferiores
a partir do inconsciente, gerando de desprezo e agressividade à benevolência
e compaixão, de acordo com o caráter, com a índole pessoal. Confunde-se
falta de conhecimentos curriculares com falta de personalidade, falta de estu-
do com falta de sabedoria.
Essa tendência alimenta sentimentos desequilibrados de arrogâncias e
vaidades, de superioridades em lugar de responsabilidades, de privilégios em
85
vez de obrigações morais, que por sua vez alimentam a tendência racionalista
do pensar acadêmico, em justificativa da própria existência como elite inte-
lectual. Mas a forma como essa estrutura é utilizada sempre em benefícios
restritos a empresas, às elites e suas minorias de sustentação, as classes mé-
dias altas, me dá a sensação de planejamento, de estratégia intencional.
Bom, voltando ao assunto, observando a influência dos sentimentos no
comportamento, nas ações e reações e nos pensamentos, tenho encontrado
maneiras de, por exemplo, desarmar pessoas que se colocam em rota de co-
lisão, partindo do momento em que se manifesta o sentimento que tende ao
conflito – na fisionomia, na postura corporal, no tom de voz – e antes que
ele se manifeste em atitudes, em palavras ou atos. Na maioria das vezes, bas-
tam palavras de respeito às diferenças de opiniões e visões de mundo. Idéias
pacificadoras simples e agradáveis à maioria. Diante de um eventual insulto,
já não existe sentimento de ofensa, que é justamente o objetivo do insulto,
no caminho do conflito primário. É fácil não se deixar levar, quando se conse-
gue observar, com alguma isenção, os sentimentos envolvidos. O insulto ten-
de a morrer na boca do agressor, se não encontra o retorno esperado. O
aprendizado é proporcional à tolerância, ao interesse e ao respeito pelo ou-
tro – mesmo que este não saiba respeitar –, que criam a capacidade de ab-
sorver as lições que sempre se apresentam.
Se no âmbito pessoal podemos perceber a total influência dos sentimen-
tos na qualidade de vida e nas relações com pessoas, situações, acontecimen-
tos e contrariedades, estendendo os olhos sobre a coletividade, vemos
quanto desequilíbrio produzido pela falta de atenção, de estudo e trabalho
nesta área. Ao contrário, são estimulados os piores sentimentos, como egoís-
mo, vaidade, preconceitos, discriminações, por uma publicidade irresponsá-
vel cujo único objetivo é induzir ao consumo compulsivo, obrigatório para
alcançar algum valor social. Interesse das empresas. O ensino público foi des-
truído e o privado foi direcionado aos interesses empresariais. Os bancos e as
empresas viraram o centro do mundo, da vida, do universo. O mundo é apre-
sentado como um imenso mercado invisível abrangendo todas as áreas das
sociedades, a partir de dois troncos principais, o mercado de trabalho e o
mercado de consumo, que devem ser disputados em competição permanen-
86
te e sem tréguas por todos, em benefício de minorias numericamente insig-
nificantes, mas que concentraram, ao longo dos séculos e por dinastias, os
poderes que se impõem sobre os Estados, suas instituições e seus povos. Por
isso os serviços públicos são tão precários e áreas estratégicas como saúde e
educação se encontram em estado de barbárie. Não é por incompetência, é
intencional, é competência com os objetivos da concentração, que passa pela
desinstrução e pela desinformação da maioria.
É preciso desenvolver a observação e a influência sobre os sentimentos,
inclusive para perceber a quantidade de sentimentos induzidos pelas mídias,
pelo ensino deturpado, pela publicidade massiva e pela propaganda ideológi-
ca alienante, que distorcem a realidade e escondem as causas de tanto sofri-
mento, tanta sabotagem, tanta covardia, tanto abandono.
Quando encaramos o irmão que discorda ou que apenas caminha ao nos-
so lado como adversário, sustentamos o sistema; quando desejamos ser me-
lhores que os outros, ao contrário de sermos apenas o nosso melhor possível,
na disposição de aprender mais e sempre, sustentamos o sistema; quando
usamos marcas “de qualidade”, ignorando o trabalho escravo e a exploração
extrema, a destruição da natureza e de coletividades em áreas de interesse
econômico, o desrespeito e as violações constantes que as grandes empresas
impõem aos povos de todo o mundo, sustentamos o sistema; quando deseja-
mos situações de riqueza, sem considerar que privilégios para poucos há
muito tempo custam os direitos básicos das maiorias, sustentamos o sistema.
Somos levados a colaborar com esse sistema de exploração desmedida
do trabalho, de concentração de riqueza e poder nas mãos de minorias cada
vez menores que não se sustentariam, se não fôssemos levados a colaborar, a
consentir e a manter, massa de manobra modelada pela interferência da ide-
ologia empresarial no ensino e entorpecida por uma mídia privada dominan-
te e essencialmente empresarial.
Adotamos valores planejados e implantados mesmo no inconsciente,
com os conhecimentos da psicologia avançada dos estudos acadêmicos que
são usados em publicidade, propaganda e márquetim.
Somos convencidos de que a vida é uma competição e todos são adver-
sários; que felicidade é consumir, desfrutar de excessos, patrimônios, facili-
87
dades, confortos e garantias; que o mundo é isso mesmo e não tem jeito,
não se pode fazer nada a não ser entrar na corrente e disputar o seu espaço,
lutar por si mesmo, nunca pela coletividade. Somos levados a não ver a mi-
séria produzida por essa estrutura social desumana e concentradora, ou a
vê-la como inevitável, certamente desagradável e injusta, mas inevitável rea-
lidade que não encontra explicação, a não ser atirando a responsabilidade
sobre as próprias vítimas para justificar seu abandono à própria sorte. E não
se pensa mais nisso.
Prestando atenção aos próprios sentimentos e aos que nos rodeiam,
percebemos aos poucos suas origens, seu nascedouro, suas motivações ex-
ternas e inconscientes tornadas, então, conscientes. Ganhamos poder de
influência sobre nossos valores, desejos e objetivos de vida, gradualmente
os limpando dos condicionamentos mediocrizantes a que ninguém escapa e
que nos causam uma vida de angústias permanentes e frustrações constan-
tes, nos círculos viciosos entre o consumo e o trabalho, incluídos no consu-
mo desde o básico para a sobrevivência até as necessidades do espírito
humano – cultura, integração, afetos, sentimentos –, tudo reduzido à quali-
dade de mercadoria.
Quando conseguirmos desenvolver o sentimento da solidariedade irres-
trita, quando desejarmos do mundo apenas o necessário para viver com dig-
nidade e em harmonia com o coletivo, quando encararmos todas as crianças
como filhos comuns e todos os velhos como pais e avós comuns, quando a
prioridade social forem as situações de fragilidade, quando desenvolvermos
os próprios valores, desejos e objetivos de vida relacionados com a harmonia
social e a igualdade de oportunidades para todos, sem exceções, o sistema
desmorona sem ruído, de inanição. Pois somos nós todos que o sustentamos,
conduzidos como o burro puxa a carroça atrás das cenouras penduradas
numa vara, sem alcançar.
Sensibilizar, esclarecer, conscientizar são tarefas que ganham em força e
alcance quando partem de um trabalho interno, profundo e sincero, disposto
a reconhecer erros e corrigir rotas, a qualquer momento.
88
Dia do trabalho ou dos trabalhadores?
JK
N
o princípio era o caos. Escuro, fechado, úmido. Barulhento, cheio de
poeira e fumaça, engrenagens toscas e enormes, num descuido moíam
mãos, braços, às vezes corpos inteiros, esmagados entre rodas dentadas e
correias de transmissão. Era o princípio da revolução industrial. Os expulsos
dos campos chegavam aos centros urbanos e eram muitos. Os campos eram
cercados, os camponeses expulsos, ovelhas e algodão para a indústria de te-
cidos, legiões de miseráveis se aglomeravam nas periferias em miséria e de-
sespero. Os patrões não precisavam se importar com as condições dos
operários, a mão de obra era farta, facilmente substituível, os mutilados eram
atirados à própria sorte, ao amparo dos próximos ou à mendicância. Adoles-
centes, crianças, velhos, mulheres e homens eram massacrados pelas condi-
ções de vida e de trabalho.
Era proibida a organização dos operários e a reivindicação de condições
menos insanas era incitação à desordem. Eram escolhidos líderes de pior ca-
ráter, capatazes e cagüetes eram os olhos, ouvidos e mãos dos patrões, armas
e ferramentas de desunião, de perseguições e controle. Encontros escondi-
dos, conversas rápidas, dissimulações, persistência e a força que a resistência
ao sofrimento dá, foram se formando as organizações, os encontros, as deci-
sões e as lutas. Desde o início, o ódio, a covardia, o ataque dos privilegiados
se fez cruel e implacável, muitos foram os mortos, os banidos, os perseguidos
pelo fato de lutarem por direitos mínimos, não morrer de fome, cansaço,
acidente ou abandono.
A primeira lei estabelecendo limite ao tempo de trabalho entrou em vi-
gor num primeiro de maio. Muitas manifestações e barricadas, muitos mortos
e feridos. As bandeiras operárias eram tão freqüentemente empapadas em
sangue que o vermelho foi escolhido como símbolo das lutas por direitos.
Num primeiro de maio foi iniciada a primeira greve geral dos Estados Unidos,
que resultou no massacre de Chicago, com dezenas de mortos e centenas de
89
feridos. Quatro anos depois houve manifestações nos países europeus, nos
Estados Unidos e em alguns países da África e América Latina. Era 1890 e os
operários tinham contatos entre países. Em 91, a organização operária já co-
nhecida como Internacional Socialista decreta o primeiro de maio “Dia Inter-
nacional dos Trabalhadores”.
Impotentes para evitar, os patrões se esforçam todo ano por transformar
a data em festa, o “dia do trabalho”, com espetáculos, sorteios, premiações,
na intenção de distorcer o significado deste dia de luta dos explorados, por
condições dignas de vida e de trabalho. Dia do trabalho é todo dia. O primei-
ro de maio é o dia dos trabalhadores.
90
Arte de “portas abertas”, em Santa Teresa
JK
E
ra sábado, saí de casa pelas dez e meia, onze horas, como de costume,
pra expor meus desenhos. Fui de ônibus – às vezes vou de bicicleta,
mais rápido e mais barato, só exige mais esforço. Mas eu sabia do evento, o
bairro estaria diferente, provavelmente proibido aos que expõem nas calça-
das e paredes, cheio de guardas municipais pra impedir os expositores de
rua, como acontece todas as vezes. Os comerciantes e os artistas mais abas-
tados promovem o evento e dão um jeito de proibir a exposição na rua, pelo
menos no circuito mais freqüentado, nos eixos principais do bairro. Quando
o micro começou a subir a Almirante Alexandrino, espinha dorsal do bairro,
que começa quase nos Arcos da Lapa e vai até quase o Corcovado, fui olhan-
do as arrumações.
Cartazes, estandartes coloridos, Santa Teresa parecia uma festa, com fai-
xas, cores, desenhos, em cada loja ou ateliê, nos restaurantes. Por baixo da
aparência, eu percebia a ausência dos expositores de rua. Havia uma tirania
por trás da simpatia ostentada nos banners, cartazes, faixas e outros visuais.
Um apelo hipócrita apresentando o bairro como o suprassumo dos artistas
do Rio de Janeiro. Havia turistas e visitantes aos montes, carrões, pessoas
com roupas caras, visivelmente as classes mais ricas da sociedade. Fui che-
gando ao Largo do Guimarães, desci do ônibus, olhei a calçada, ninguém ex-
pondo. O largo estava cheio de guardas municipais, há um escritório deles ali.
A parede onde exponho, vazia, eu poderia ir direto nela, já tirando os dese-
nhos da pasta e colocando rápido. Até eles se darem conta e chegarem junto
eu teria já uns seis a dez desenhos colados e o impasse estaria criado. Mas, eu
pensava, seria entrar num clima tenso, desagradável, estar pronto pra qual-
quer conseqüência, ou seja, uma apreensão ou coisa pior. Além do mais, pen-
sava na rapaziada excluída que deveria estar, como sempre, escondida no alto
da Felício dos Santos, uma rua secundária onde passa muito pouca gente e
que a organização do evento “libera” para os expositores usuais das ruas de
91
Santa Teresa e os que vêm pro evento. Resolvi abordar os dois guardas do
lado da banca de jornais.
Na base do “com licença, boa tarde”, perguntei se eles tinham instrução
de não permitir a exposição por ali e eles, reconhecidos pela consideração,
explicaram que não podiam permitir a colocação de nenhuma mercadoria
nas calçadas. Eu expliquei que expunha desenhos ali naquela parede – e
mostrei a parede –, todo final de semana, mas sem nada na calçada. Eles fica-
ram meio confusos, “nosso trabalho é garantir a passagem nas calçadas”, e
recomendaram falar com “aquele pessoal de jaqueta escura, com o logotipo
da organização do evento”. Eu já os tinha visto, representavam a empresa
contratada para a realização. Não me agradou a idéia de falar com eles, conhe-
cedor da ideologia e dos mecanismos dessas empresas, sempre em função do
lucro, da consideração por quem tem mais grana, num desprezo franco e
profundo pelos não privilegiados, os lutadores mais pobres. Mas fui. Havia
um grupo deles no ponto de bonde, do outro lado da rua. Pela disposição,
postura corporal e expressões, dava pra ver a hierarquia entre eles.
Fui na direção de uma mulher de uns trinta e cinco anos, intermediária
entre o grupo e o chefe. Ela imediatamente me indicou uma moça mais
nova, claramente subalterna. Logo na primeira frase – “eu exponho naquela
parede ali todo sábado e domingo” – ela demonstrou ignorância e chamou
o chefe. Eu já o tinha visto antes, morador do bairro, era um chefete de
grupelho, nada importante na empresa, apenas uma cooptação pra lideran-
ça de grupo. Ele interrompeu minha fala, dizendo que não poderia expor ali,
porque ia juntar gente e poderia causar algum acidente com os carros. Era
um menosprezo pela minha inteligência, ou ele era burro, mesmo. Respondi
“ah, sim, grupos como aquele ali em frente ao bar do Mineiro” e apontei o
monte de gente bebendo e conversando na rua, em frente ao bar lotado, “ou
aquele outro”, apontei pro lado oposto, em plena Almirante Alexandrino,
“esperando pra comer no Sobrenatural, né? Tá na cara que o motivo não é
esse, né, meu irmão?”
Ele hesitou diante do óbvio, mas argumentou que no largo era diferen-
te, mais perigoso, num ridículo absurdo que confirmava minha hipótese
sobre sua inteligência. A rua estava toda lotada, de pedestres e carros, o que
92
ele dizia não fazia o menor sentido. Parei de falar e olhei bem pra ele, en-
quanto ele falava. Só o confronto, mesmo. Mas lembrei da rapaziada que
devia estar na Felício, os excluídos, e me deu vontade de estar entre eles.
Interrompi o cara, já impaciente, “onde é que tá a feira alternativa, é na Felí-
cio, mesmo?”. Ele mostrou alívio, “tá lá em cima”, e juntou os dedos da mão,
“tá bombando”, numa mentira tão descarada que parei de olhar pra ele e fui
logo, pra não responder.
A rapaziada estava tão escondida que não dava nem pra ver da Pascoal
Carlos Magno, um dos eixos do bairro, onde passa o grosso dos visitantes.
No ano anterior, pelo menos dava pra ver, aí algumas pessoas mais curio-
sas vinham olhar e atraíam as outras, virava uma feira mesmo, com gente
fazendo som, dançando, mercadorias bonitas, criativas, bancas de bom
gosto, pinga, música. Por isso eles resolveram proibir o maior pedaço da
Felício, pra que a feira não ficasse visível. É a mentalidade mesquinha da
ânsia de lucro, excluindo sempre os mais pobres, com pretextos pra es-
conder sua própria desumanidade. E se quem determina é a empresa,
quem faz cumprir é o poder público. É de dar nojo.
Tive que expor num muro desigual, mais difícil, nem tinha espaço pra
expor tudo. Mas o clima estava bom, encontrei conhecidos que só expunham
no “portas abertas”, gente de outras cidades e outros bairros, além de vários
expositores de sempre. Foi agradável, divertido, mas as vendas foram poucas.
Ficamos até escurecer. Fui pra casa aborrecido com a injustiça, todos deve-
riam ter respeitado o direito de expor decentemente.
No dia seguinte, domingo, já desci do ônibus direto pra parede no Largo
do Guimarães. Abri a pasta, fui tirando os desenhos que já estavam com a fita
crepe, pra pôr nas partes de cimento – há as portas de metal, também, mas
aí tem que cortar a fita adesiva primeiro, demora mais e eu precisava de rapi-
dez. No sexto desenho já tinha um guarda me abordando, daquela maneira
sempre “criativa”, “boa tarde, o senhor tem autorização para expor essa mer-
cadoria?” Era o guarda com quem eu havia falado no dia anterior, eu estava
disposto a um confronto “gandhiano” com as instituições privada e pública.
Expliquei que expunha naquela parede sempre, que não ocuparia a calçada,
mas exporia. Disse também que não queria faltar com o respeito, nem seria
93
agressivo com a guarda, sabia que eles cumpriam ordens, entendia perfeita-
mente que eles não tinham responsabilidade sobre elas e que seriam punidos
se não as cumprissem. Mas que eu me sentia no direito de expor ali, que uma
empresa não tinha o direito de me impedir e que, se houvesse a ordem de
apreender os desenhos, eu não reagiria contra eles, nem os insultaria. Que
cumprissem com sua consciência, pois eu cumpriria o que me dizia a minha.
Ele ficou sem saber o que dizer ou fazer, pediu pra esperar enquanto
consultava a chefia. Eu esperei ele se afastar e continuei pondo os desenhos.
O pessoal da empresa organizadora já estava se movimentando. Uma menina
paulista, logotipo no jaleco, chegou pra falar, ouviu meus argumentos, sorriu
compreensiva e, depois de olhar em torno e não ver ninguém da empresa
perto, disse “cê tá certo” e foi pro outro lado da rua, no ponto de bonde.
Vieram outros com o tal jaleco, tentando me demover, ameaçando a apreen-
são. Quando me ouviam dizendo que poderiam apreender se quisessem, “vai
ser interessante apreender desenhos a nanquim, num evento que se intitula
‘arte de portas abertas’”, ficavam furiosos e iam buscar novas instruções. Os
guardas se postaram ao lado e eu falava calmamente com eles, enquanto ia
colocando mais desenhos, com o cuidado de não expor os aquarelados, que
dão muito mais trabalho. A apreensão era uma possibilidade real, eu preser-
vava os coloridos, arriscando só os em preto e branco.
Os guardas haviam sido trazidos de áreas distantes – meu medo era que
fossem os do centro da cidade, acostumados às operações violentas de apre-
ensão em grande escala, em conflitos ferozes com os camelôs, com gases,
pancadaria, não raro tiros e pedradas. Mas eram de Guaratiba, do Recreio e
outras áreas de balneários, onde o serviço era mais pacífico e de acordo com
as funções reais da Guarda Municipal, de proteção ao patrimônio público – e
não de caça aos ambulantes. Com minha ação pacífica eles simpatizaram co-
migo, acostumados a insultos e desconsiderações, e me deram toda razão. O
pessoal da empresa, sobretudo os graduados, me olhava feio. O mesmo cara
mentiroso do dia anterior veio me cobrar, “mas ontem você foi pra lá”, e eu,
“mas não vendi, e eu não posso ficar sem vender. Não tenho, como você, um
salário pra cair na minha conta uma vez por mês”. Ele insistiu, “uma vez por
ano, o que custa não expor aqui?” Eu ri, “pra mim, custa não vender. E o que
94
custa eu expor aqui, pra sua empresa?” Ele saiu inconformado, avisando que
iriam apreender. Eu disse que preferia estar do meu lado e perder os dese-
nhos, que estar do lado da empresa e fazer o papel de repressão sobre quem
luta com dificuldades. Mas ninguém veio apreender. Em duas horas, senti
segurança e expus os aquarelados. Vendi mais que o normal.
No fim de semana seguinte (o evento acontecia em dois finais de sema-
na), eu esperava alguma ação no sentido de impedir minha exposição. Desci
um ponto antes, vim andando no meio das pessoas, o bairro novamente lota-
do. Achava que estariam à espreita pra me abordar antes de colocar o primei-
ro desenho. De longe, observei o largo. Não parecia haver nenhum esquema
pra minha chegada, ninguém junto à parede, quantidade normal de uniformi-
zados. Ao me aproximar, vi que havia uma faixa larga, esticada no exato lugar
onde eu exponho. Era uma faixa informativa, com detalhes sobre o evento,
com tamanho suficiente para ocupar todo o espaço. “Covardes”, pensei.
Parei na frente da faixa. Olhei em volta. Do outro lado do largo, um fun-
cionário da empresa me olhava, de braços cruzados. Era o que tinha ficado
mais furioso no domingo anterior. Algo se movia em meu estômago. O Largo
do Guimarães estava cheio de gente. Levantei a voz e o braço, “senhores!”,
várias pessoas me olharam. “Quero denunciar aqui a hipocrisia de um evento
que se chama arte de portas abertas, que na verdade fecha as portas pros ar-
tistas que expõem nas ruas do bairro todo final de semana!” O cara descruzou
os braços, atônito. Ficou meio desnorteado, eu continuei. “Eu exponho há
mais de dez anos em Santa Teresa, pelo menos há seis nessa parede aqui” e
batia a mão sobre a faixa, “e hoje estou impedido de expor porque não faço
parte dessa CURRIOLA que mancomuna a empresa responsável pelo evento
com a guarda municipal, que devia servir ao município, e não aos interesses
mesquinhos dos que impedem trabalhadores da arte de expor o seu traba-
lho!” O cara, depois da palavra curriola, gritada em sua direção, entrou pela
porta da administração do bairro, a subprefeitura, onde devia estar sediado o
comando da empresa. Em seguida, surgiu na porta com mais três pessoas,
duas de uniforme e uma loura baixinha e gordinha que parecia a chefe geral.
Eu levantava a pasta com os desenhos, “dentro desta pasta tem meus
desenhos, feitos a nanquim e aquarela, arte pura, e estou impedido de expor
95
pelo conluio dessa empresa com a prefeitura, impondo regras ridículas, in-
justas, que só servem aos seus interesses ignorantes e desumanos, só visam o
seu lucro e o dos abonados do bairro!” A loura começou a falar no celular,
ostensivamente, achei que pra me intimidar. “Ela não me conhece”, eu pen-
sei, rindo por dentro da minha indignação, “agora eu tô incomodando”. Pas-
sou o Jean, com seus tambores, me cumprimentou, eu me dirigi ao monte de
pessoas que estava no largo: “esse aí é o Jean, que expõe aqui no largo e hoje
está impedido de expor também! Várias pessoas que expõem aqui estão im-
pedidas porque são pessoas sem disponibilidade de grana, não fazem parte
do grupinho dos privilegiados e são desprezados pelo poder econômico que
está promovendo esse evento hipócrita! São artistas de alta qualidade, que
têm beleza e sensibilidade pra oferecer e estão excluídos do evento por se-
rem artistas de rua!” Jean parou, colocou os tambores no chão, em solidarie-
dade. Várias pessoas paravam pra ouvir, muitos apoiavam, ouvi comentários
sobre o absurdo, “portas abertas pra quem?”, eu berrava. “Portas abertas pra
quem vem gastar dinheiro, mas fechada pros artistas tradicionais no bairro!”
A loura entrava no escritório, pra aparecer logo depois de novo, olhando
pra mim e falando no celular. Gesticulava, eu não sabia se era teatro pra me
intimidar ou se ela estava armando alguma. Mas não estava nem aí. “Vou ficar
aqui denunciando a falcatrua de um evento que se diz de portas abertas,
numa afronta à inteligência, e proíbe a exposição dos mais pobres!” Várias
pessoas paravam, ouvindo, e me apoiavam. Algumas foram pedir explicações
no escritório, eu via a loura nervosa, falando e gesticulando com as pessoas
que, visivelmente, estavam achando um absurdo aquilo. Funcionários entra-
vam e saíam do escritório, celulares nas orelhas, me olhavam com ódio impo-
tente. Um deles me fez um sinal ameaçador, mas eu já estava tomado pelo
espírito guerreiro, “tô no meu direito de falar, rapaz, o que foi? Vai mandar me
prender? Eu teria vergonha de estar no seu lugar, de perseguir trabalhador a
serviço de um patrão safado e desumano! Tem algum ser humano aí?”, eu
provocava, lá do outro lado da rua e do ponto. “Se tiver tem que estar morto
de vergonha! Mas é esperar muito, o normal é cada um se importar consigo e
os outros que se fodam! Ainda mais se os outros são pobres! Cadê a humani-
dade de vocês, deixaram em casa pra fazer esse papel ridículo?” E continuava,
96
falando aos passantes, “estou denunciando aqui a hipocrisia…” O Jean já ti-
nha ido pro lugar que ele arrumou pra expor, pagando 100 reais. Mal conse-
guiu dinheiro para pagar, foi ruim pra ele.
Outros da rapaziada, ao passar, me viam ali discursando, paravam, sur-
presos. Via seus olhos brilharem, “é isso aí, Edu, resistência!” E se deliciavam
quando eu apontava o escritório da empresa, na administração da prefeitura,
“a base desse evento mentiroso, repressor, fazendo cara de bonzinho, como
a mídia, enquanto exerce seu vampirismo escondido”. Já haviam se passado
umas duas horas, eu parava por uns minutos, conversando com algumas pes-
soas, depois voltava à carga. Alguém me deu um pedaço de gengibre, acho
que Rogério, o poeta, “é bom pra garganta”, ele disse.
Iberê me convidou pra expor no muro ao lado da casa dele, a uns trezen-
tos metros de distância dali, na Almirante Alexandrino. Ele estava expondo
em seu carro, habitualmente parado em frente ao prédio onde mora, seus
mapas estrelares, fases lunares e outras mercadorias. Iberê é um cara “espa-
cial”. Os guardas foram pra cima dele também, mas ele persistiu e ficou, com
argumentos fortes. Morava ali, o carro ficava estacionado junto à calçada, ele
se recusou a tirar e ninguém pôde fazer nada. Eu lembrei que precisava ex-
por. Ali estava bom, mas eu não estava vendendo. A proibição de expor era
em toda a rua, mas quando fui pra lá, ninguém me impediu. Devem ter dado
graças por eu ter saído do Largo do Guimarães e preferiram não me perturbar
mais. Expus sábado e domingo e vendi muito bem.
Na semana seguinte, viajei ao Paraná, a convite do centro acadêmico de
geografia da UFPR – Universidade Federal do Paraná, para o evento “A geo-
grafia dos excluídos e os excluídos da geografia”. O assunto era “cultura e arte
subversivas” e eu era um dos palestrantes. Passei a semana toda e não expus
em Santa. Quando cheguei, soube que no meu lugar haviam posto banheiros
químicos, numa clara retaliação. Achei uma graça amarga. Então os serviçais
do sistema estavam me retaliando, usando os recursos hipócritas do aparato
público. “Covardes”, eu ri.
Não precisei me mover. Durante o fim de semana que não fui, os pró-
prios moradores trataram de reclamar da estupidez de colocar os banheiros
na calçada, obrigando os pedestres a passar pela rua. Então não havia um lu-
97
gar discreto, onde colocavam banheiros químicos nos eventos do largo? Por
que colocaram no meio do caminho, se o lugar usado normalmente era mui-
to mais indicado? Foram tantas as reclamações que não puderam repetir a
dose. Quando cheguei, na outra semana, não havia banheiros. Expus sem
problemas. E ironizei: “Não pude dar a eles esse gostinho, estava viajando.”
98
Satisfação aos seguidores
JK
N
este último terço de janeiro, este blogue ficou meio abandonado.
Como alguns amigos ficam admiradíssimos quando digo o número de
seguidores (detesto esse nome), comecei a sentir uma certa responsabilida-
de, uma dívida de consideração com essas pessoas, a maioria nem conheço,
mas, claramente, acompanha estas coisas óbvias que eu posto aqui. Por isso
acho que devo uma satisfação a essa rapaziada, pra que saibam o que aconte-
ce e porquê.
Eu não tinha noção da importância desse número, mas lembrei de Dia-
mantina, quando um garimpeiro que se tornou meu amigo me mostrou uma
pedra. Estávamos num bar, à noite, e comentávamos as dificuldades de so-
brevivência da maioria, quando ele me falou da sorte que tivera, na semana.
Olhou pros lados, disse que ia reformar a casa da mãe e a dele, e ainda tro-
caria de moto. Com um sorriso triunfante, tirou do bolso do casaco uma
pedra e pôs na minha mão, sempre dando umas olhadas em volta. Peguei o
diamante bruto, rolei na mão, olhando, procurando alguma coisa que o dife-
renciasse das outras pedras de cristal que via pelo chão das ruas e das estra-
das. Eu passaria por aquela pedra sem nem perceber, eu a chutaria como
brincadeira, tentando acertar alguma coisa mais na frente, só por “desfas-
tio”, como dizia minha avó. Fiz a ligação com a vida e percebi quantas vezes
se tem nas mãos algo valioso e não se percebe. Talvez exatamente por estar
na mão. Desdenhamos nossas preciosidades, até que elas se vão. Aí percebe-
mos, já tarde demais.
Bem, voltando ao assunto, no sábado, 22 de janeiro, eu expus em Santa
Teresa, até umas nove da noite, pois estou chegando mais tarde devido ao
calor do sol no lugar em que exponho. Ravi, meu filho, estava na área, ven-
dendo seu artesanato nos bares e muvucas que se formam no bairro. Conver-
sando com Jean, o rasta que faz e vende instrumentos de percussão, ali no
Guimarães mesmo, Ravi manifestou o desejo de aprender a fazer instrumen-
99
tos – assim, um desejo casual, sem nenhum compromisso com o tornar rea-
lidade essa vontade. Mas o Jean, prestativo, nos chamou à sua casa, ali perto,
pra ele ver como é. Depois de encerrarmos o “expediente”, fomos caminhan-
do até lá, Jean e sua mina, Ravi e eu.
Era uma rua que ligava a descida pra Glória ao largo do Curvelo, de pou-
ca circulação. Neste percurso surgiram, mais na frente, um cara e dois cachor-
ros, um grande e outro pequeno. O grande estava preso numa guia e na mão
do cara. O pequeno, solto, nos viu e veio na nossa direção. Não dei muita
atenção, é normal o cachorro vir dar sua cheirada de reconhecimento a cada
novidade que aparece na sua frente. Mais interessante era a arquitetura de
uma casa pela qual passávamos, no alto de uma escadaria ao lado da rua, com
a alvenaria toda trabalhada em detalhes. Nisto, ouvi um pequeno rosnado e
senti a bocada rápida, atrás da perna direita.
Surpreso, comentei, “fidaputa, me mordeu, esse vira-lata!” Levantei a cal-
ça, olhei, embaixo da batata, acima do tornozelo, um arranhão e um ponto.
Tive vontade de lhe dar uma bicuda, mas ele já estava a uma distância segura,
na calçada do outro lado da rua. Olhei pro cara, que foi logo dizendo que não
tinha nada a ver com aquele cachorro. “Cachorrinho safado, eu não tava nem
olhando pra ele. O dono deve ser um pilantra” e o cara riu, sem graça. “Cê
conhece o dono?” “Conheço.” “Sabe se é vacinado?” “É, sim.” Pela expressão
dele, achei que ele tava mentindo, que o cachorro era dele. “O cachorro pega
o caráter do dono”, arrematei. Não valia a pena confrontar o cara, já estava
mordido, mesmo, nada ia mudar isso.
Chegando à casa do Jean, perguntei se tinha água oxigenada. Não tinha.
Fui ao banheiro, lavei com sabão o arranhado, esfreguei bem. Depois, fica-
mos um tempo papeando, ele mostrava a Ravi seu material de trabalho, expli-
cava como fazia e tal. Quando saímos, Ravi foi vender nos bares e eu fui pra
casa. Como era tarde, tive que sair de Santa a pé e atravessei todo o centro do
Rio, até chegar na Praça XV, onde tem transporte pra Niterói, a noite toda.
Levei mais umas duas hora pra chegar em casa.
Aí, fui tratar da ferida. A perna havia inchado, o arranhão estava preto
e fundo, a inchação dava a ele o aspecto de uma boca sem dentes, meio
sorrindo. Tomei um susto quando vi, “caraca”, e preparei uns emplastros
100
de alho socado. Esquentei no vapor e pus em cima, três vezes. O preto foi
saindo, a cada emplastro. Quando apareceu a cor da carne, passei uns óle-
os essenciais (lavanda, tea tree), fiz um curativo e fui dormir. Mas o tempo
de demora tinha infiltrado mais fundo a infecção e eu tive muito trabalho
com aquilo, a perna inchada, a ferida crescendo, enquanto superficializava
e eu colocava emplastros de alho e folhas de saião, tomava extrato de pró-
polis e mastigava uns dentes de alho, pra reforçar o sangue. O aspecto fi-
cou assustador, mas eu já conhecia esse processo. Pra resumir, duas
semanas mancando com dor, até reverter. Encarei como um expurgo, o
momento na minha vida era agudo, emocional e afetivamente, e aquilo me
pareceu parte do processo. Algo estava sendo posto pra fora, através da-
quela ferida.
A necessidade de produzir os desenhos, de aquarelar, pra expor e arru-
mar o sustento, tomava toda minha energia. Fiquei sem inspiração pra escre-
ver. Trabalhava com a perna esticada num banco, pra doer menos, e só fazia
o essencial. Era, mesmo, um momento especial, de reflexão na vida. Final-
mente a ferida se superficializou de todo, agora já está na casca, embora ain-
da precise de cuidados, mas no caminho da solução. Já não dói tanto, só arde
um pouco, quando faço mais esforço. Mas a perna desinchada mostra o final
do processo. Olhei o blogue e me senti em falta. Por isso, inaugurei a seção
“crônicas de estrada”, postando o “encontro com Adauto”, já escrito há al-
gum tempo, na esperança de, um dia, editar um livro com essas histórias.
Valeu a ideia, de vez em quando publicarei uma crônica dessas – tenho várias
espalhadas em muitos cadernos, perdidos no meio das minhas bagunças ou
sumidos pra sempre.
Aos que acompanham a evolução deste blogue, peço um pouco de pa-
ciência, pois ele não paga minhas contas e eu preciso me dedicar ao que me
traz a merreca que eu ganho, ou seja, os desenhos, os “livrins” e outros ba-
bilaques. A web já me toma mais tempo do que eu posso, são vinte ou trinta
imeios por dia e não gosto de deixar ninguém sem resposta.
Outro dia me perguntaram se eu tinha algum sonho pessoal, em termos
materiais. Pensei um pouco e descobri qual é esse sonho: nunca mais me
preocupar com as contas e poder fazer meu trabalho totalmente dedicado a
101
ele. Diante da sociedade que me cerca, sinto uma enorme necessidade de
trabalhar no que transformei em meu lema. Sensibilizar, esclarecer, cons-
cientizar. Começando por mim mesmo e minhas grandes falhas internas.
Assim, minha vida tem sentido.
A braços a todos .
102
Filtrado em mim, direcionado ao mundo
JK
G
ostaria de poder avisar a todos. Talvez não seja possível. Desde ontem,
8 de julho de 2011, meu acesso à minha parte da net tá vedado. Ende-
reço, blogues, iutube, orcute e o escambau, a senha é recusada e nada resol-
ve. Já tentei várias formas, apesar de semianalfa internético, alguns amigos
tentaram ajudar, sem arrumar nada. Ainda vêm outros, mais feras na coisa,
mas já tô contando com o pior – e se estiver errado, melhor. Milhares de co-
municações, perto de mil endereços, boletins de notícias, informações,
idéias, arquivos preciosos, tudo sem acesso. Eu tava recebendo coisa de 50
imeios por dia, e o endereço continua no cabeçário do blogue, que tá pelos
1.900 verificadores (melhor que “seguidores”), como falar com todos, sem
acesso ao blogue? Na minha precária relação com essas tecnologias, me con-
formo com minha sorte e espero o acaso, pois tenho muito mais o que fazer.
Fiz o que pude e abri a situação aos ventos. Os que se propuseram a ajudar
virão conforme suas condições permitam, pois será um favor, já que não pos-
so pagar.
Posso tomar como um sinal, do destino, da vida, sei lá, um sinal. Faz
tempo que sinto necessidade de me dedicar ao trabalho imediato, os dese-
nhos, as frases, os textos, enfim, os papéis que ponho a circular pelo mundo
que me cerca, me toca, material e espiritual. Afinal, é o que me põe em con-
tato direto com minha matéria-prima e o destino do meu trabalho, as rela-
ções com pessoas, acontecimentos, pensamentos, comportamentos, com o
mundo, em uma troca impossível pela internet, pois tocar corpo e alma jun-
tos só é possível no contato direto. A net já deu embalo suficiente.
A primeira entrevista, em novembro de 2009, fez aparecer o blogue e deu
muito o que fazer, lançou minhas palavras no ar, causando reflexões, questio-
namentos, reações, da mesma forma que faço no cotidiano, há tantos anos,
observando a sociedade e as suas relações, refletindo e colocando no meu
trabalho. Calçadas, praças, eventos, feiras, assembléias sindicais, movimentos
103
de contestação social, em todo lugar onde se concentram pessoas de índole
reflexiva, na luta por melhoras na vida em sociedade.
Meu pensamento foi projetado longe, brotaram contatos, muitos, até ao
exagero. Contatos mais distantes geraram chamados a palestras, a ser ouvido
por coletividades reunidas, experiência nova e bastante interessante. Tenho a
impressão de encontrar um número muito maior de exceções do que antiga-
mente, as exceções eram raríssimas na multidão e chamavam muito mais a
atenção. Sentados num auditório, não se distingue tão facilmente os que pen-
sam por si e os que repetem os pensamentos planejados e impostos pelas
empresas de comunicação. É o que me parece, uma estratégia de infiltração
imperceptível, as exceções são quem tem condição pra mudar a estrutura da
sociedade, tornando-a mais humana e não permitindo situações de miséria e
ignorância. Mas voltando ao assunto, o outro lado desse alcance inesperado
é o tratamento de superioridade que recebo em algumas circunstâncias. Mui-
to difícil a resistência a olhares que atribuem um patamar superior ao pensar,
à visão de mundo, confundindo a vivência com o ser.
Se as experiências privilegiadas que pude viver deram base à formação da
minha visão de mundo, através de muita observação, reflexão e vivên-
cia – para enxergar o que hoje acho óbvio –, o resultado é maior responsabi-
lidade diante do grupo, do coletivo, da humanidade, e não ilusões de
superioridades e sabedorias, em vaidade primária, um primitivismo de cons-
ciência, um obstáculo à evolução. Mas é preciso estar atento, o sentimento de
superioridade é insinuante, adaptável, facilmente “justificável”, além de ex-
tremamente estimulado em nossa sociedade de consumo e competição, com
infinitas variações, do grotesco ao quase imperceptível, da arrogância gros-
seira à benevolência atenciosa.
Com a restrição da net, por casualidade, volto a me concentrar no traba-
lho material, à produção de desenhos, frases e textos. Nesse processo, devo
circular mais pelo mundo e viver mais a realidade cotidiana da convivência
urbana, no bairro, na metrópole, na região, no país. Saio da net pra cair no
mundo, conforme as oportunidades forem se apresentando, os trabalhos que
eu for fazendo. Perdoem os que ficarem sem resposta. O Claudemir Firmino,
que pagou antes de mandar seu endereço, apesar de eu insistir pra ele fazer
104
o contrário, na certa pensa que foi lesado. Na última comunicação, eu disse a
ele, “não adianta nada pagar, se você não mandar o endereço”. Depois disso,
não tive mais acesso. O gemeio entranhou a senha e me limou. O endereço
tá lá, com certeza. A camisa vai estar pronta, Claudemir, agora é esperar a
hora. Nem dá pra devolver a grana. Inda bem que não é muita.
A vida deu muita volta nesse pouco tempo de internet. Inevitável reco-
nhecer, no aumento de visibilidade, um crescimento no respeito e na consi-
deração por parte de pessoas de tendência reflexiva, um elemento novo com
quem já estava habituado ao desrespeito cotidiano do preconceito e do apa-
rato de segurança, por extensão de todo o serviço público. Uma demonstra-
ção de reconhecimento ao esforço de enxergar razões de ser, na vida, mais
plenas que as que são oferecidas – patrimônios, privilégios, posições sociais,
consumos, confortos –, formação que não chega ao fim, que permanece em
mutação constante. Somos o mesmo grupo, uma humanidade, dentro de um
universo mal conhecido, em constante evolução, e essa idéia começa a sair
do campo da abstração e vindo à realidade. Cada vez mais pessoas percebem
o todo ao qual pertencem e começam a questionar seus valores implantados.
Pouco a pouco, os comportamentos vão mudando, nenhum processo dá
pulo, a não ser em hecatombes naturais.
O que faço em pinturas, desenhos, frases, textos ou qualquer outra coisa
reflete apenas minha vivência e visão de mundo, minha posição diante da
sociedade que me cerca, por todos os lados. Não há mérito, há função, sem o
que minha vida perderia o sentido – a minha, bem entendido, sem cobranças
a outros. Preciso da satisfação interna em cumprir, mal e mal, o que conside-
ro minha obrigação dentro da coletividade, no todo planetário. Microscópi-
co, insignificante, mas a minha parte do processo.
Parece que devo mudar a direção do foco. Certamente formarei outra
bagagem, uma nova vivência. Que será filtrada em mim e direcionada ao
mundo. Como tenho feito, há muitos anos.
105
Muda a forma, segue o conteúdo
JK
E
ntão perdi o acesso à internet. Momentaneamente? Não sei. Tá tudo
bloqueado. Os vídeos ainda estão lá, circulando, as pessoas passam
umas pras outras. O blogue tá no ar, posso entrar como visitante, sem acesso
a trabalhar nele. Nem um comentário eu posso fazer, ou tentaria avisar desse
imprevisto. Houve quem disse que era caso pensado, roubo de senha, coisa
de ráquer. Temo ver no blogue alguma coisa que não fiz, em meu nome. Mas
não na paranóia. Relaxo, não posso fazer nada, por enquanto, e acredito que
essas coisas acontecem quando têm que acontecer, é sempre possível algum
significado por trás dos acontecimentos. Razões mais sutis, mais profundas,
além da visão imediata e superficial. Há tempos venho percebendo alguns
desequilíbrios.
A net projetou meu pensamento e minha imagem sobre uma parede gi-
gantesca e fui visto pelo mundo afora, em toda parte. Apenas por estar fazen-
do o que faço no meu cotidiano, há tanto tempo, variando apenas as formas.
Ou seja, ganhando a vida nas ruas, expondo meus trabalhos em calçadas,
praças, praias, montanhas, em encontros, festivais, em assembléias sindicais,
em movimentos sociais. Cada vez mais gente é obrigada a viver assim, do que
conseguir nas ruas, em trabalhos informais, por determinações econômicas,
o que faz toda a diferença. Eu passei por um preparo intenso pra trabalhar
assim, ainda que inconscientemente e com outras motivações, internas e pes-
soais, o que cria um sentimento quase oposto ao de quem “cai na rua”, contra
a vontade, com a sensação de ter perdido uma batalha, ou mesmo a guerra da
vida. Ter feito a opção permite atenção ao aprendizado intenso que a vivência
exposta oferece, com calma e prudência (o que nem sempre aconteceu), mas
sem depressão nem revolta, sem arrogância ou certezas, observando, refle-
tindo, formando opiniões e impressões, com uma grande vontade de apren-
der, todo o tempo. Colocar tudo no trabalho foi um procedimento
automático – eu havia, em toda a arrogância dos dezenove anos, dedicado
106
minha vida a causar reflexões, questionamentos, denunciar as mentiras apre-
sentadas como verdades que trazem tanto sofrimento às coletividades, em
benefício de um punhado, denunciar a angústia da falta de sentido das con-
venções impostas como valores sociais, a exploração da maioria, a frustração
de vidas sem substância. O que, no princípio, era mais uma explosão de revol-
ta e inconformação, foi tomando maturidade e ganhando realidade, ao mes-
mo tempo em que depurava as agressividades. Com o tempo, fui percebendo
como, muitas vezes, a agressividade bloqueia a recepção das idéias.
Um belo dia quente, no verão do Rio de Janeiro, eles chegaram com câ-
mera e microfone no Largo do Guimarães – haviam me consultado, uma se-
mana antes –, pouco depois do meio dia, eu suando, sem camisa, colando os
desenhos nas paredes e portas do casarão fechado, onde exponho nos fins de
semana. A Rona perguntava, propunha, percebia e explorava as tendências
dos assuntos. O Arley filmava o bonde, o ato de cortar adesivos e colar os
desenhos, enquadrava pessoas olhando os trabalhos, acompanhava a entre-
vista, guardava imagens daquele momento do meu cotidiano. Falei, ali, o que
estou pronto a falar em qualquer ocasião em que esteja expondo, o que po-
nho em meu trabalho, minha visão de mundo, da vida, da sociedade, das re-
lações entre coisas e pessoas e idéias e valores... os trabalhos estavam sendo
expostos, inspiravam os assuntos. “O que você sente quando pensa na políti-
ca como é exercida no contexto coletivo?” Ora bolas, raiva, claro. Eu encheria
folhas inteiras com os motivos. Não é uma raiva destrutiva, não gostaria de
fazer mal a nenhum dos responsáveis e co-responsáveis pela condução das
políticas, gostaria que eles não estivessem ali e busco os motivos pelos quais
estão. Minha raiva é mais inconformação e chamado à luta, que destruição. O
que disse, na entrevista, é o que digo e torno a dizer, principalmente através
do meu trabalho, minha visão de mundo e minhas opiniões. A câmera e o
microfone fizeram a diferença, guardaram as imagens e os sons levados à
edição que transformou quase 40 minutos em 10 e publicando no iutube.
Passei a me ver ocupado com blogues, comentários e correspondências
que não paravam de aumentar. Comecei a dedicar mais tempo à leitura, aos
boletins alternativos de notícias, a traduzir textos do espanhol, à escrita dos
meus próprios textos. Senti a responsabilidade na receptividade aos meus
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escritos e desenhos. Mas continuo a viver da venda nas ruas, das coisas que
faço com as mãos, dos desenhos, dos livrinhos, das pinturas. Essa parte, pra-
ticamente, estacionou, foi relegada a um injusto e ilógico segundo plano, o
que foi sentido na maior dificuldade de pagar as despesas. Há tempos preten-
do diminuir o tempo no computador para me dedicar à produção física, mas
a intensa correspondência, a responsa dos blogues, os boletins constantes,
notícias importantes, em espanhol, que não saem na mídia privada, pedindo
tradução, os chamados a palestras (não pagas), todo esse envolvimento pres-
sionava a continuação na web, seguia ocupando tempo demais e os proble-
mas se acumulando.
Agora, independentemente da minha vontade, estou praticamente fora
da net. A sensação de perda e impotência logo se transforma em conforma-
ção com o inevitável, em um toque pra me dedicar mesmo à produção mate-
rial que, afinal de contas, é também abstrata, pelo que produz em sentimentos,
pensamentos, reflexões, percepções e questionamentos na tarefa, sem gran-
des pretensões, de conscientização.
Há desenhos, grande número de temas, pensamentos e frases, acumula-
dos em anos de aprendizado e trocas, na busca e no trato das verdades escon-
didas atrás da realidade distorcida e das mentiras incorporadas ao arsenal do
inconsciente por técnicas de propaganda, publicidade, márquetim, campa-
nhas de desinformação, formação de valores e condicionamento, há décadas,
há séculos. Há idéias a realizar no desenvolvimento das percepções, visões de
mundo, opiniões, enfim, de mim mesmo, pois se foi do trabalho pessoal que
surgiu o trabalho profissional dedicado ao coletivo, seu desenvolvimento
anda paralelo, um é a extensão do outro e o outro é a extensão do um.
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O nascimento de Brisa
JK
“P
ô, cara, não dá pra botar um cobertor em cima dela, não?” Ela se tremia
toda na maca de metal, um lençol pequeno e finíssimo por baixo e
outro por cima, saindo da sala de parto a caminho da enfermaria. O maqueiro
pareceu envergonhado, “não dá, indigente não tem direito a cobertor”. Dian-
te do meu olhar espantado ele fez cara de que não podia fazer nada. Eu en-
tendi. Falei com ela “vou buscar um cobertor”, e saí do hospital pra casa. Não
dão cobertor pra indigente! Cambada!
Na chegada já tinha dado problema, a gente não tinha a tal matrícula,
disseram que não tinha vaga pra indigente. Depois de muita discussão eu
disse que ia fazer o parto ali fora mesmo e chamar a Tribuna da Imprensa – o
jornal de oposição – pra registrar. Fui saindo com ela, cheia de dor, seguran-
do a barriga, me olhando e falando baixinho, “cê tá maluco?”. Baixinho tam-
bém, perto do ouvido dela, eu disse “vai por mim”, e a vaga apareceu como
por encanto.
Foi o dia todo esperando, sem poder chegar perto, mandando bilhetinho
pra dar força, ficamos logo amigos dos mais pobres, faxineiros, auxiliares,
atendentes, algumas enfermeiras. Eles faziam a ligação, levavam as coisas que
eu trazia, maçã, iogurte, bilhetinhos. O de comer, ela não podia, ficou tudo
esperando na geladeira até o dia seguinte.
Passáramos a gravidez pelo Nordeste, viemos descendo de Natal aos pou-
cos, parando em várias cidades do litoral. Chegamos em Vitória no oitavo
mês, alugamos um barraco de tábua, numa encosta cheia de barracos. Deci-
dimos fazer o parto em casa, nenhum dos dois tinha a menor experiência,
depois de uma noite inteira de contrações ela começou a apagar depois que
acabava cada contração. Aí resolvemos ir para o hospital.
Cheguei em casa, espalhei na vizinhança, “nasceu, é uma menina, vim
buscar um cobertor, que no hospital eles negaram”. Juntei umas frutas, pão
integral, cobertor, toalha, sabonete, roupa limpa, escova de dentes, revistas
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em quadrinhos, caderno e caneta, os vizinhos arrumaram mais coisas, man-
daram pedaço de bolo, torta salgada, manga, roupinhas de recém-nascido
que estavam guardadas. Ia colocando tudo numa mochila, me emprestaram
uma mala preta, pequena. “Como é que você vai entrar no hospital?”, me
perguntaram, naquele horário estava fechado. Eu não tinha pensado nisso,
mas só ia pensar quando estivesse lá.
Eram por volta de onze e meia quando cheguei no hospital, a casa era
longe do centro. Tudo fechado. Algumas janelas do andar de cima estavam
abertas, poucas e de difícil acesso. Havia os postes, mas como subir com a
mala? Devia ter vindo de mochila. Fui andando em volta, procurando por onde
entrar. De repente, vi uma porta aberta, a luz acesa dentro, letreiro em cima,
emergência. Nenhum movimento. Do outro lado da rua, subi metro e meio no
poste, olhei, era um balcão em L, formando um quadrado com o canto da pa-
rede. Dentro, mesa e cadeira, com um cara sentado na cadeira inclinada, os
pés em cima da mesa, lendo um gibi. Mais ninguém. É por ali, pensei.
Cheguei sem fazer barulho, abaixando um pouco, eu não via o topo da ca-
beça dele e ele não me veria se eu não fizesse barulho. Sandálias de borracha,
passei em silêncio completo. Entrei num corredor, fui caminhando normalmen-
te, esperando ser barrado a qualquer momento e pronto pra argumentar. Mas
não apareceu ninguém. Subi a escadaria pra enfermaria da maternidade, pisan-
do leve, e passei a andar entre os aposentos, cada um cheio de camas com pa-
cientes, até que a encontrei, sentada e acordada. Ela tomou um susto quando
me viu, mas nem respondi a pergunta “como é que cê entrou?”; fui logo mos-
trando tudo o que trouxera, depois queria saber da criança, como fora o parto,
a gente pensava que era menino, “cadê”, “só vão trazer de manhã”.
Ouvimos passos e não deu tempo de nada, a enfermeira me viu, lá do
corredor, e armou o circo por mais que eu pedisse silêncio. Veio a polícia de
plantão, o médico de olhos vermelhos, tava dormindo, hein, dotô, o guarda
riu disfarçado, “vambora rapaz”, “pode deixar, eu saio por onde entrei”, “nada
disso, vai sair pela porta da frente”. Abriram aquela porta enorme, pesadona,
e eu fui pra madrugada. Nem pensei em ir pra casa, o que eu iria fazer lá? E
fui andar à toa, pra refletir. De madrugada, na praça do centro, onde expunha
meus artesanatos de dia, sentei na escada do teatro Carlos Gomes, pensativo.
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Durante toda a gravidez nos disseram que era menino. Barriga pontuda. Vi-
dentes, místicos, todos afirmavam a macheza da criança. Não houve uma voz
dizendo que era menina. Eu tinha tanta certeza que, quando a enfermeira
que ajudou no parto veio me dizer, eu ri e respondi “não, é menino”. Ela me
olhou sem entender e eu, bem calmo, “cê devia estar em outro parto, a minha
mulher é aquela loura magrinha”. Ela inclinou na minha direção, olhou den-
tro dos meus olhos, “eu sei muito bem qual é a sua mulher, eu estava no
parto dela, e é menina!”. E saiu. Fiquei sem reação.
Sentado na escada do teatro, lembrei que não tínhamos nomes de mu-
lher, só de homem. E agora? Pensava nisso, quando o vento aumentou e eu
senti frio. Olhei o alto das árvores se inclinando, me encolhi um pouco, lem-
brei das praias do Nordeste, “é, acabou o verão, essa já é a brisa do outono”.
Mal acabara de pensar e como que acendeu em letras de luz na minha cabeça,
Brisa do Outono – “esse é o nome!”
No dia seguinte, fui surpreendido com a recepção no hospital. Esse é o
cara que invadiu de madrugada. Muitos me cumprimentavam, sorriam, os es-
calões mais baixos sorriam abertamente, alguns me davam tapinhas nas costas.
Logo na entrada, “olha ele aí!” A entrada noturna era o assunto do dia. Vários
funcionários vieram me cumprimentar, fazendo comentários, ou perguntar
como tinha sido, faziam piadas. De repente, entre os sorrisos dos servidores,
uma voz de autoridade soou, acima do tom geral. Era um professor chefe,
todo mundo murchou quando ele disse “então cê acha que tem o direito de
invadir um hospital de madrugada, rapaz?” “Mais do que deixar uma mulher
que acabou de parir sem cobertor, tremendo de frio, tenho mesmo”, respondi
de pronto, no mesmo tom. E me surpreendi com o espanto geral, todos saí-
ram pra cuidar do serviço, parecia uma debandada. O mestre fechou a cara,
resmungou qualquer coisa sobre “esses caras” com os assistentes que estavam
perto dele e saiu, depois de me olhar de cima da sua superioridade social. Os
acadêmicos eram atenciosos, ao contrário dos professores, que me olhavam
com desprezo explícito e franca hostilidade. Mas depois daquilo, não se arris-
caram a falar comigo. Entre os subalternos, a simpatia voltou a ser a mesma,
longe dos superiores. Naquele dia mesmo, à tarde, pudemos ir pra casa.
Ela adorou o nome.
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Do alto da serra
JK
D
o alto da serra, eu contemplava a paisagem, recortada entre tonalida-
des de verde e salpicada de casinhas solitárias ou em pequenos gru-
pos. Descansava da subida pela estradinha sinuosa numa grande pedra, dois
carros haviam passado sem me dar a carona que eu pedia, foi coisa de três
horas de caminhada até o topo. Antes de começar a descer, resolvi parar.
Subi por umas pedras ao lado da estrada e alcancei a plataforma, de frente
pro outro lado da serra, onde eu desceria. Sabia que elas estavam por ali.
Afinal, depois de dois meses de procura e quatro de ausência, estava perto
de encontrar. A fazenda Mãe D’água era uma daquelas, lá embaixo. Sentei na
pedra, olhar solene sobre a paisagem até o horizonte montanhoso, o silên-
cio continha o murmúrio do vento frio. A expectativa do encontro me dava
estranhas sensações, misturadas com as memórias da viagem. Quatro me-
ses, Brisa devia ter crescido bastante, eu quase morria de saudades, meus
olhos enchiam de lágrimas ao lembrar da falta que eu sentia, atordoante, em
alguns momentos. Agora as lágrimas continham alegria. Eu estava chegando.
Não conhecia o lugar, nunca andara por ali, estava chegando por indicações.
E se não as encontrasse? E se as informações estivessem erradas ou elas já
tivessem ido embora, como em Vitória?
Não fosse o marroquino e talvez eu as tivesse encontrado em Salvador
ainda, onde eu as tinha deixado, quando saí pra estrada, fugindo das brigas
que se agravavam a cada dia. Saí no rumo norte, Aracaju, Maceió, Recife, João
Pessoa. A ferida no pé me obrigou a parar na Paraíba. Mergulhei o pé no mar,
dei um tempo pra amolecer, depois esfreguei com força, pra tirar os tecidos
mortos, reavivando a ferida, mas retirando o que já estava podre. Depois,
deitei na varanda de uma casa aparentemente abandonada, vidros quebra-
dos, folhas secas cobrindo o chão, muita poeira, pus o pé sobre a mochila pra
esperar a dor passar. Aí o “acaso” me enviou Marisa, médica que, sem saber
porquê, me vira ali, de longe, e resolvera me abordar e perguntar qual era o
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problema. Demorei a responder, achando que ela viera me mandar sair da
casa. Ela entrara no terreno, eu fingi que dormia, “psiu!” e eu de olhos fecha-
dos, pensando pronto, já vieram reclamar da minha presença, esperei que
fosse embora, mas ela insistia, “ei, moço, dá licença?”. Não deu certo. Levan-
tei a mão, a palma virada pra ela, “já vou sair, só entrei pra descansar um
pouco”, “não, eu não vim pedir pra sair, não tenho nada a ver com essa casa”.
Ela queria saber do meu pé. Conversamos, eu não queria ir pra hospital ne-
nhum, ela insistia. “Eles não respeitam a gente”, “não, eu conheço todo mun-
do lá, é um hospital universitário, garanto que vão te tratar com respeito”.
Eu demorei a acreditar, mas a situação me obrigava a ir, a ferida já tinha
mais de um mês, piorava nos períodos de estrada, quando chegava ao litoral
metia o pé na água salgada, e limpava a inflamação esfregando, abrindo mais
o buraco no dedão. Depois, ia pra estrada, e aí piorava de novo. Inchava a
perna, ficava difícil caminhar e eu mancava. No hospital, falaram em amputar
e eu ameacei os quatro acadêmicos de morte. Se cortassem meu corpo, seria
melhor cortar o pescoço, porque se eu ficasse vivo iria buscar um por um,
“no inferno”, se precisasse. Marisa interferia pra evitar o conflito, pedia por
mim aos acadêmicos, eles confabularam e resolveram fazer uma cauterização.
O cheiro de carne queimada tomou o ambiente, a dor era enorme, a aneste-
sia não pegava, por mais que eles aplicassem. Suportei pensando que era pra
não perder o dedo ou o pé. Quinze dias depois eu estava em Canoa Quebra-
da, a quase mil quilômetros dali, com o pé pronto pra outra.
Ali conheci o marroquino, que falava espanhol com sotaque francês e
isso dificultava sua comunicação, era difícil entender o que ele falava. Mas pra
mim, parecia fácil, eu entendia tudo e conversava com ele sempre, tocávamos
violão juntos, improvisando com bastante harmonia. Ele pretendia chegar ao
Uruguai. Vinha de Guadalupe, onde morou por um tempo. Conhecera uma
uruguaia em férias, tiveram um romance e marcaram de se encontrar no Uru-
guai. Ela fora de avião; ele tomara um barco até Belém e seguia de carona, aos
poucos. Soube que eu iria pra Salvador, a saudade estava se tornando insu-
portável, queria ver minha filha. Pediu pra viajar comigo, alegando dificulda-
de em se comunicar. Eu sabia que dois na estrada seria muito mais difícil
conseguir carona, mas topei ir com ele. Pra quê...
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Foi quase um mês de viagem, de Canoa a Salvador, dormindo nos acosta-
mentos, nos postos, abrigados em celeiros, em garagens, pendurados em ár-
vores, nas nossas redes. Acomodado na sua dificuldade de comunicação, ele
deixava todos os problemas serem resolvidos por mim. Chegando em Salva-
dor, fomos direto a Mar Grande, na ilha, onde deixara Brisa e a mãe na casa
em que morávamos. A casa havia se tornado alojamento da Sucam, o funcio-
nário não sabia nada sobre as duas. Procurei pela vizinhança, soube que ha-
viam viajado duas semanas antes. Pra onde, ninguém sabia. Voltamos a
Salvador, para procurar outros amigos, em busca de alguma informação que
indicasse o paradeiro. Ali, de repente, Freddy – era o nome do marroqui-
no – me pergunta “sabe onde podemos trocar uns dólares?” Olhei pra ele,
estarrecido. “Dólar? Você tem dólar?” Ele gaguejou, eu continuei: “Esse tem-
po todo perdido, na estrada, eu tendo que arranjar o que comer, onde dor-
mir, carona, tudo, e você tem dólar!?” Ele estava sem jeito, “são poucos, tenho
que guardar pra chegar no Uruguai...” Filho da puta, ele sabia de tudo, eu
chorava de saudades, contava pra ele, falava da minha filha. “Cara, viajar con-
tigo me atrasou, esse tempo todo na estrada, perdi minha família de vista
muito por sua causa e agora cê vem me dizer que tem dólar?” Eu estava furio-
so. Ele recebeu minha fúria, sem responder, o olhar envergonhado. “Sei onde
trocar, sim”, eu disse, finalmente. Fomos a uma funerária, na praça da Sé,
onde um gordo trocava dólares pelo preço do dia no jornal. Trocamos 50
dólares, dei as notas a ele, contei o dinheiro de volta, na frente do marroqui-
no, duas vezes. Na segunda, mostrei a ele que estava pegando a metade. Ele
esboçou reação, mas fui bem decidido, tava no meu direito, fora guia, tradu-
tor e responsável por ele. Em troca, cheguei tarde demais. Se não estivesse
satisfeito, que fosse embora, aquele dinheiro era meu e ponto final. Com ele
eu poderia me dedicar a procurar minha filha sem perder tempo com as coi-
sas da sobrevivência. Ele acabou concordando e continuamos parceiros.
A notícia mais plausível era a de que as duas tinham viajado para o Espí-
rito Santo. Tudo na base do “eu acho”, “me parece”, “tenho a impressão”.
Mas fazia sentido, a família de origem da mãe era de lá, ela dependia do meu
trabalho e não soube se virar pra sobreviver em Salvador. Fora tentar uma
carona de avião, era a última notícia, depois elas não foram mais vistas. “De-
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vem ter conseguido”, imaginei. Alguém mencionou, “eu acho que ela tava
grávida”, mas eu rechacei de imediato. A velha tendência em ver a realidade
da forma que desejamos que ela seja. Simplesmente apaguei a informação
da minha mente. E fui pra estrada, na direção de Vitória. Freddy resolveu
ficar em Salvador – e se não resolvesse eu o teria dispensado, pra viajar so-
zinho. Aquela dos dólares tinha sido demais. E eu não queria mais encosto,
viajar só era mais rápido.
No Espírito Santo, consegui mais notícias. Elas haviam estado por ali, mas
a mãe se desentendera com o pai dela e com as irmãs e fora embora. Alguns
dias depois, enviara pra irmã mais velha um número de caixa postal em Belo
Horizonte, dizendo que estava numa fazenda tipo comunidade, no interior
de Minas Gerais. Não disse onde – e Minas tem mais de seiscentas cidades.
Escrevi para a caixa postal, esperei quinze dias e nada. O que sabia era que a
fazenda, “Mãe D’água”, vendia produtos em lojas naturais da capital, mel, pão
integral, essas coisas. Fui pra lá.
Fiz uma romaria pelos naturais de BH, até encontrar indicações de onde
era a tal comunidade. Vagas indicações, com muitos erros, como pude cons-
tatar na procura. Saí da cidade na madrugada, clareando o dia consegui uma
carona num carro com dois casais jovens como eu. Contei minha história pra
eles, ia completar dois meses procurando minha família, depois de outros
dois viajando a esmo, pelo Nordeste. Eles se encantaram com a história e as-
sumiram a procura. A informação era de que a saída pra fazenda era antes do
trevo de Ouro Preto, pela BR-040, à esquerda, atrás de uma churrascaria. E
que havia uma grande placa indicativa. Entramos em todos os postos à es-
querda da estrada, até chegar o trevo, e nada. Chegávamos ao trevo e me
perguntaram, “e agora?” “Agora, cês me deixam aí no trevo e seguem viagem,
que eu me viro”. “Ah, não, nós queremos saber o fim da história”, a resposta
foi unânime. Pra eles, parecia que o fim da história era descobrir onde era a
tal fazenda. “Então pára perto desse capiau aí”, o cara caminhava pelo acosta-
mento, enxada no ombro, uma grande sacola de pano pendurada do outro
lado. O carro parou ao lado dele, “ei, amigo, sabe onde é a fazenda Mãe
D’água?”, o lavrador só balançou a cabeça, negativamente. Interferi, “compa-
de, é uma gente colorida, de cabelo comprido, cria abelha, faz pão, várias
115
pessoas morando juntas...” Os olhos dele foram se iluminando, ele disse “ah,
é a fazenda dos hippies”, e todos riram, “fica mais pra frente meia légua, tem
uma ‘praquinha’ redonda ‘ansim’, do lado de uma abertura na cerca, é só se-
guir a estradinha morro acima”. A entrada era três quilômetros depois, à di-
reita, pequenininha, longe de qualquer churrascaria ou mesmo construção.
Não tinha nada, só a estradinha que sumia na direção da serra da Moeda. Ali
nos despedimos, pra eles era o fim da história. Para mim, o começo da subida.
Agora eu olhava a paisagem, imaginava em qual grupo de casas elas es-
tariam. Olhava até o horizonte e revivia toda a procura, estava chegando, iria
ver minha filhinha, que saudade. Havia rechaçado a suspeita de gravidez
com violência, “tá maluco, rapaz, a gente nem trepava mais!”. Era verdade.
Aliás, meia verdade. Eu lembrava de uma noite... Não, não era possível. Era,
mas eu não queria que fosse. Será? A gravidez de Adhara já ia pelo quinto
mês. E eu não sabia.
O suor havia secado, vesti a camisa, levantei. Coloquei a mochila, peguei
a rede enrolada, o violão, pendurei tudo nos ombros. Dei uma última olhada
naquela beleza toda, voltei pra estrada e comecei a descer a serra.
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Ao leitor
Este livro foi composto com textos escritos nos últimos seis anos. São idéias
resultantes das observações e vivências à margem do sistema vigente, onde
vive a maior parte das pessoas que compõem nossa sociedade, com uma di-
ferença básica – eu não nasci à margem.
Não há nenhuma conclusão definitiva aqui, apenas idéias em seu ponto
atual, no caminho interminável do seu desenvolvimento – espírito, mente
e corpo se desenvolvem constantemente, do infinito passado ao insondá-
vel futuro. A noção de coletividade é básica no desenvolvimento desses
pensamentos, cujo fundamento é a busca de anunciar as injustiças e de-
nunciar suas causas, no egoísmo das elites dominantes e no condiciona-
mento dos valores sociais em torno da forma, do consumo, dos “mercados”,
expressos no trabalho de alienação da mídia e no controle dos poderes di-
tos “públicos”, pelos poderes econômicos de minoria numericamente in-
significante. A sociedade é comandada e controlada a partir dos bastidores
dos poderes instituídos, em favor das grandes empresas e em prejuízo da
grande massa da população.
Observo as poucas contestações ao sistema e suas grandes falhas. Não se
fala a língua da maioria, mas um “academês” incompreensível fora da acade-
mia. Em vez de conscientizar, pretende-se conduzir o povo, supondo-se que
essa esmagadora maioria tem condições de perceber as intenções e se deixar
levar pelas propostas socialistas, expressas de maneira hermética, raivosa, re-
petindo velhos jargões já desconteudizados pela mídia, sem entender a re-
pulsa da população sabotada e conduzida a esse vocabulário e essa maneira
de agir, arrebanhadora, intelectualmente dominante. Percebo a raridade, en-
tre os que se pretendem revolucionários, do trabalho interno, nos próprios
condicionamentos a que ninguém escapa, há gerações, há décadas. A realida-
de distorcida se impõe, a idiotização, a infantilização, a alienação, a superficia-
lização se apresentam como resultado de um trabalho minucioso, profundo,
envolvendo psicologia do comportamento, do inconsciente, através da publi-
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cidade, da propaganda e da interferência brutal em qualquer esboço de orga-
nização popular conseqüente.
Noto, também, a força que o trabalho de conscientização, de denúncia e
estímulo à formação de visão de mundo própria e independente toma, quan-
do esse trabalho começa humildemente dentro de si mesmo, nos próprios
valores, objetivos e comportamentos. De dentro para fora, as ações ganham
em consistência e contagiam com mais facilidade, pois emanam respeito pe-
las discordâncias e aguardam as condições propícias ao plantio das sementes
revolucionárias, cada uma com seu tempo e condições próprios.
Humildade é a base do trabalho revolucionário. Amor verdadeiro e am-
plo é a base do proceder revolucionário. Esses fatores, e não certezas, são
determinantes na receptividade das idéias, propostas e denúncias. Por isso
tanta insistência no trabalho interno, “profundo e sincero”, nos valores, nos
objetivos, nas concepções do mundo, no desapego às próprias idéias, a fim
de estar pronto a reconhecer erros e corrigir comportamentos, percebendo
os próprios condicionamentos e falhas, antes de apontar os do mundo.
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Navilouca
livros
Capa
Ilustração do autor, finalizada por Navilouca Livros e Editoriarte.
Diagramação e e-book
Catalogação
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CDU 821.134.3(81)-9
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