Bhikkhu Anālayo - Sattipahatana

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 107

Meditação Satipaṭṭhāna:

Um Guia Prático
Bhikkhu Anālayo
Tradução: Fernando C. Montero
Publicado originalmente: Satipaṭṭhāna meditation, a
practice guide, Cambridge: Windhorse Publications, 2018
© 2022 Editora Lúcida Letra
Como um ato de Dhammadāna, Bhikkhu Anālayo
renunciou ao pagamento de royalties por este livro.
Quando baseados na virtude, estabelecidos na virtude,
cultivamos os quatro satipaṭṭhāna e podemos, então,
esperar o crescimento nos estados saudáveis, seja de dia
ou de noite, sem nenhum declínio (SN 47.15).
Introdução
Este é o meu terceiro livro sobre o tema da meditação satipaṭṭhāna. O primeiro
livro, Satipaṭṭhāna, The Direct Path to Realization (2003), foi uma tentativa de
pesquisar e recolher material relevante para uma compreensão do Satipaṭṭhāna-
sutta. Poderia ser comparado à construção dos alicerces para a edificação
de uma casa. Nessa obra, tentei compreender melhor vários pormenores. No
entanto, de uma forma ou de outra, ainda me faltava o quadro geral. Afinal de
contas, era apenas uma fundação.
O segundo livro, Perspectives on Satipaṭṭhāna (2013), publicado dez anos mais
tarde, foi construído sobre essa fundação. Podia ser comparado com as paredes
da casa. Ao estudar os paralelos chineses ao Satipaṭṭhāna-sutta, consegui
identificar as contemplações que formam o núcleo comum deste discurso
nas suas várias versões. Isto permitiu-me ter uma visão maior e melhor sobre o
que seria o satipaṭṭhāna.
Com o presente livro, volto à versão pāli do Satipaṭṭhāna-sutta. A minha
exploração é inteiramente dedicada à prática real de satipaṭṭhāna, informada
pelos detalhes previamente recolhidos e pelo quadro geral, à medida que
emergem de um estudo de material relevante dos primeiros discursos. Em
termos do meu símile da casa, o que agora apresento é o seu telhado, o seu
pináculo. Dos três livros, este é também o que mais diretamente se dirige aos
praticantes. Neste livro dispenso totalmente as notas de rodapé, bem como as
referências aos estudos de outros.
Utilizo citações no própio texto para me referir a passagens relevantes dos
discursos em pāli e às minhas próprias obras, através da data de publicação e
página, para permitir aos leitores acompanharem pontos de interesse
específicos. Para facilitar o rastreio de uma passagem relevante de um discurso
em pāli, uma lista de citações ao final do livro dá referências cruzadas à página
(Índice Remissivo). Para marcar citações do Satipaṭṭhāna-sutta por mim
traduzidas, emprego itálico, semelhante ao procedimento que adotei em outras
publicações recentes (Anālayo 2016 e 2017c). Nas passagens traduzidas,
substituo as referências a um bhikkhu por "um/uma"1, de modo a deixar claro
que as instruções não se destinam apenas aos monásticos masculinos.
A minha preocupação geral nas páginas seguintes é fornecer sugestões e
inspiração para a prática da meditação propriamente dita. O livro vem com
arquivos de áudio que oferecem instruções de meditação, que podem ser
livremente baixados da página da editora
emhttp://agamaresearch.dila.edu.tw/bhikkhu analayo-meditation-instructions.
Para cada uma das sete contemplações abordadas neste livro há gravações de
áudio com instruções de meditação guiada que se constroem gradualmente uma
sobre a outra.
Recomendo a utilização do livro e das gravações para desenvolver a prática
passo a passo. Isto pode ser feito, por exemplo, ao longo de um período de sete
semanas. Nos discursos antigos, o número sete funciona como símbolo de um
ciclo completo de tempo. Em preparação para este ciclo de auto treinamento,
recomendo a leitura dos dois primeiros capítulos. Após tal preparação, talvez a
cada semana seja possível encontrar um tempo para estudar um dos capítulos
sobre as sete contemplações principais, e durante os dias seguintes da semana
cultivar a sua prática real. Desta forma, a par de quaisquer
outras responsabilidades que possamos ter, seria possível completar um curso
de auto treinamento em um período de sete semanas.
Após este curso de treinamento, poderíamos então deixar a prática dos quatro
satipaṭṭhāna tornar se cada vez mais uma parte integrante da nossa vida. O
padrão básico da prática da atenção plena mantém se: estar no presente, saber
o que está acontecendo, e proceder de acordo.
1N.T. - em inglês o artigo usado é "one" pois, diferente do português, pode ser
atribuído tanto a um substantivo masculino ("um") como feminino ("uma").
1. Atenção plena
Uma base indispensável para qualquer prática satipaṭṭhāna é uma clara
compreensão do que é realmente a atenção plena. O importante, em primeiro
lugar, é reconhecer que existem várias noções do que seja a atenção plena.
Diversas noções desta qualidade podem ser encontradas não só entre várias
tradições Budistas, mas também entre os envolvidos com o seu emprego clínico.
Cada um destes entendimentos tem o seu próprio valor e significado (Anālayo
2017a: 26). A seguir, vou apresentar a minha própria compreensão de uma
destas concepções da atenção plena, nomeadamente a forma como sati é
descrita e refletida nos discursos do Budismo antigo. Ao longo deste livro, utilizo
"atenção plena" e "consciência" como traduções intercambiáveis de sati.
Atenção plena e memória
A definição padrão de atenção plena nos discursos traz o tema da memória
(Anālayo 2003: 46ss, 2013: 30ss e 2018b). Afirma que quem está atento é capaz
de lembrar do que foi feito ou dito há muito tempo. À primeira vista, isto pode
dar a impressão de que a atenção plena deve ser equiparada à memória.
No entanto, em uma reflexão mais apurada, tal equação não funciona. O
problema é que as distrações durante a prática da meditação envolvem
frequentemente alguma memória do passado. É uma experiência comum sentar-
se com a firme intenção de estar atento, para apenas descobrir que, mais cedo
ou mais tarde a mente desviou-se para algum evento do passado. O surgimento
de tais memórias transitórias é claramente um caso da perda da atenção plena,
ainda que isso implique em recordar algo que foi dito ou feito ou há muito tempo.
A atenção plena também pode ser perdida quando imaginamos que algo possa
acontecer no futuro. Embora isto não envolva recordar o que foi feito ou dito há
muito tempo, o devaneio sobre o futuro ainda diz respeito a aspectos da
memória, tais como a memória operacional e a memória semântica. A
experiência de tais distrações durante a meditação torna claro que a atenção
plena não pode ser apenas uma forma de memória (Anālayo 2017a: 26ff).
Uma vez que se tornou claro que uma equação tão simples não funciona, outra
explicação tem que ser encontrada para se avaliar a relação entre a atenção
plena e a memória. A minha sugestão aqui para compreender essa relação é
que a presença da atenção plena melhora e fortalece a memória. A
plena consciência do momento presente tornará mais fácil recordar depois o
que aconteceu. Além disso, se a atitude receptiva da atenção plena for
estabelecida no momento da recordação, será mais fácil encontrar a informação
necessária na mente. Desta forma, a atenção plena pode ser compreendida
tanto como facilitadora do recolhimento da informação a ser lembrada, como
também da posterior recordação bem sucedida dessa informação.
A necessidade de compreender a atenção plena e a memória como duas
qualidades intimamente inter-relacionadas que, ao mesmo tempo, não são
idênticas uma à outra, é relevante para a prática. Talvez o aspecto mais crucial
da prática da atenção plena seja permanecer no momento presente. Isto é o
que realmente conta e porque é tão importante distinguir claramente entre a
atenção plena e a memória. Na meditação Satipaṭṭhāna não se trata de recordar
algo do passado, mas de se estar plenamente no momento presente.
Esta distinção vital pode, até certo ponto, ser perdida de vista com a
compreensão da atenção plena na tradição dos comentários Theravāda. Os
comentários consideram que a atenção plena é uma qualidade mental que é
invariavelmente saudável. Os discursos, no entanto, reconhecem claramente
que pode haver tipos errados de atenção plena, micchā sati (Anālayo 2003: 52
e 2013: 179). Estes dificilmente poderiam ser considerados saudáveis. No
entanto, um discurso no Satipaṭṭhāna-saṃyutta apresenta os
quatro satipaṭṭhāna como um acervo do que é saudável (SN 47.5; Anālayo 2013:
179). Em outras palavras, a atenção plena em si não é necessariamente
saudável, mas quando é cultivada sob a forma dos quatro satipaṭṭhāna, então
tal prática torna-se de fato algo definitivamente saudável.
Um problema no entendimento dos comentários, segundo o qual a própria
atenção plena é invariavelmente saudável, é que a contemplação de um estado
mental não saudável se torna retrospectiva.
Isto porque, de acordo com o entendimento nos comentários, qualidades
saudáveis e não saudáveis não podem existir simultaneamente no mesmo
estado mental. Por isso, torna-se impossível para um tipo de atenção plena que,
por definição, é saudável, coexistir com uma condição mental não saudável,
como a luxúria ou a raiva.
Isto não reflete o que emerge dos discursos antigos. As instruções na meditação
satipaṭṭhāna indicam estar consciente da luxúria ou raiva, por exemplo, ou de
qualquer um dos cinco obstáculos no momento em que estão presentes na
mente. Deste ponto de vista, a atenção plena pode de fato manter-se quando
uma condição mental não saudável está presente. É precisamente quando a não
saudável se manifesta que a atenção plena deve estar presente. As
repercussões saudáveis do satipaṭṭhāna não implicam, portanto, em impedir que
certas condições mentais sejam objetos potenciais de observação direta com
atenção plena no momento presente. Pelo contrário, a questão é apenas que tal
contemplação tem repercussões saudáveis. Tal compreensão ajuda a preservar
um aspecto chave da concepção de atenção plena no Budismo antigo, que é
estar plenamente consciente do que está acontecendo neste momento.
O tipo de presença atenta a ser cultivada é semelhante à forma como tentamos
estar alertas e atentos a algo que ocorre e que temos de nos lembrar mais tarde.
Ao percorrer um caminho pela primeira vez com a ajuda de um guia, por
exemplo, sabendo que na próxima vez teremos de encontrar o caminho por nós
mesmos, faremos um esforço para reparar e recordar claramente onde virar. É
este mesmo esforço ou "diligência" (a minha tradução preferida para ātāpī) que
podemos aplicar a qualquer coisa que aconteça. Sem saber o que deveremos
recordar mais tarde, a tarefa é invariavelmente estar plenamente
presente, plenamente aqui e plenamente consciente.
Voltarei ao significado da conotação da memória para uma apreciação da
atenção plena no Capítulo 9, sobre os fatores do despertar (ver abaixo p. XX).
Cultivando a atenção plena
Outro aspecto da concepção de sati no Budismo antigo é que a atenção plena é
uma qualidade mental que devemos trazer à existência. A atenção plena tem
que ser estabelecida; não é apenas uma qualidade que está sempre presente
em qualquer tipo de experiência (Anālayo 2017a: 27s). Isto marca a diferença
entre a atenção plena e a consciência. A consciência, como um dos cinco
agregados, é um processo de conhecimento continuamente presente. Isto não
significa que a consciência seja permanente, mas apenas que o fluxo de
alternância dos momentos de consciência está continuamente presente. Sem
este fluxo do conhecer, não estaríamos experienciando.
Quer estejamos atentos a um objeto de meditação ou apanhados num sonho ou
fantasia, o fluxo de consciência está sempre presente. O mesmo não se aplica
à atenção plena. De fato, a noção de que existe uma forma de consciência
constantemente presente que precisa ser reconhecida e que se iguala à
mente liberada, não se coaduna com a noção de atenção plena (ou de
consciência) do Budismo antigo. Tal noção, que aparentemente é o resultado do
desenvolvimento complexo a partir do discurso que contrasta a mente luminosa
(mente liberada) com as suas contaminações casuais (AN 1.6.1; Anālayo
2017b), é contrária à ênfase recorrente do Satipaṭṭhāna- sutta na
impermanência, encontrada na parte do discurso a que gosto de me referir como
o "refrão".
Embora a atenção plena exija cultivo, sendo uma qualidade que precisa ser
estabelecida, tal cultivo não se desenvolve à força. Aqui pode ser útil destacar
que a palavra sati na língua pāli é feminina. A minha sugestão seria relacionar-
se com sati, com a atenção plena, como uma qualidade feminina. Desta forma,
sati pode ser entendida como uma assimilação receptiva com o potencial de
gerar novas perspectivas.
Logo, a partir do momento em que acordamos de manhã, a nossa boa amiga
sati já pode estar presente, como se nos esperasse. Ela está pronta para nos
acompanhar durante o resto do dia, encorajando nos a estar receptivos e
abertos, suaves e compreensivos. Ela nunca fica chateada quando, por acaso
nós a esquecemos. Assim que nos lembramos dela, ela estará bem ali, para
juntar-se a nós novamente.
Visualizar a prática em termos de uma volta à presença de uma boa amiga, ajuda
a evitar confundir sati com um tipo forçado de hiper-atenção que requer esforço
tenso a fim de ser mantida. Em vez disso, estar na sua presença nos traz os
sabores de uma receptividade aberta e de uma suave atenção ao que quer que
se esteja acontecendo.
Atenção plena e conceitos
Uma vez estabelecida desta forma, a atenção plena pode coexistir com o
emprego de conceitos. De fato, as instruções no Satipaṭṭhāna-sutta, cuja função
é precisamente ajudar a estabelecer a atenção plena, claramente encorajam o
uso sábio dos conceitos. Por vezes, o discurso apresenta estes conceitos
entre aspas, deixando claro que se trata de uma forma de verbalização mental.
Compreendo isto como indicação da qualidade do claro conhecimento,
sampajañña, em relação ao que se tornou evidente pela atenção plena bem
estabelecida.
O impulso de satipaṭṭhāna para a libertação não requer que se mantenha a
mente livre de conceitos. A tarefa principal é cultivar uma mente livre, mesmo na
presença de conceitos. O caminho para essa liberdade baseia-se na utilização
hábil de certos conceitos, nomeadamente aqueles que desencadeiam o insight.
Em outras palavras, a nossa atitude em relação a conceitos e pensamentos é
melhor orientada pela distinção entre tipos não saudáveis e saudáveis. Embora
tenhamos que ter cuidado para não confundir a prática real com o simples
pensamento sobre a prática, pensamentos saudáveis e conceitos podem
servir como um instrumento para o progresso, e sob a forma de clara
compreensão são uma dimensão integral da meditação satipaṭṭhāna.
A informação obtida por sampajañña, clara compreensão, pode ser ilustrada pelo
exemplo do fermento, devido ao qual a massa da prática da atenção plena pode
crescer no pão do insight libertador. Sem o fermento, da massa resultará apenas
em um pão achatado. O fermento por si só, no entanto, não será de modo algum
nutritivo. É do cultivo da atenção plena em combinação com a quantidade certa
de fermento do claro saber que o pão saboroso e nutritivo do insight resultará.
Quanto ao papel dos conceitos, também é preciso ter em mente que uma
distinção entre conceitos e realidades últimas não se encontra nos discursos do
Budismo antigo. Para aqueles que praticam de acordo com a metodologia dos
comentários tradicionais do Theravāda, esta distinção é de considerável
importância e tem os seus benefícios práticos. Contudo, para o tipo de prática
que aqui apresento, seria útil pôr de lado este modo de pensar.
Nos discursos antigos, a tranquilidade e o insight não se distinguem conforme
nosso objeto de meditação seja um conceito ou (o que é considerado como
sendo) uma realidade última. De fato, a tranquilidade e o insight nem sequer são
entendidos como práticas de meditação separadas. Pelo contrário, são
qualidades complementares do cultivo meditativo (Anālayo 2017a: 88ss e 173s).
Algumas práticas podem enfatizar uma ou outra das duas, e ainda em outras, a
tranquilidade e o insight podem ser cultivados em conjunto. A única realidade
última reconhecida no Budismo antigo é o Nibbāna. Esta é a única experiência
em que os conceitos não têm de fato lugar. Para o caminho que conduz a este
ponto culminante, a experiência de Nibbāna, no entanto, os conceitos são
ferramentas úteis.
A necessidade de conceitos está também, em certa medida, implícita numa
passagem do Mahānidāna-sutta, que descreve a experiência como envolvendo
uma relação de condicionamento recíproco entre consciência e nome-e-forma
(DN 15; Anālayo 2015: 107f). Aqui "nome" significa as atividades mentais
responsáveis pela designação conceitual e "forma" para a experiência da matéria
por via da resistência. Ambas juntas são conhecidas pela consciência. Do ponto
de vista da epistemologia no Budismo antigo, o conhecimento da matéria não
pode ter lugar sem um nome, sem pelo menos alguma informação mínima de
conceitos. Apenas matéria morta em relação com matéria morta ficará livre
de conceitos. Mas para que nós possamos cultivar o insight da verdadeira
natureza dos fenômenos materiais, alguma forma de contato com designação é
requerida.
No caso da contemplação do corpo no primeiro satipaṭṭhāna, por exemplo, a
tarefa não consiste em chegar a uma experiência final verdadeira do corpo que
deixe para trás todos os conceitos. Em vez disso, a tarefa é ver através de
conceitos ilusórios com a ajuda de conceitos sábios. Isto ocorre através do
cultivo da clara compreensão em conjunto com a atenção plena. Em suma, não
só a atenção plena no Budismo antigo pode coexistir com o uso de conceitos,
mas a meditação satipaṭṭhāna também tem que empregar conceitos de modo a
levar à libertação.
Atenção plena e receptividade
Outro aspecto significativo da atenção plena é aquilo a que gosto de me referir
como amplitude de mente. Com amplitude de mente refiro-me a uma mente
aberta e a uma atitude amplamente receptiva. Este tipo de receptividade aberta
pode ser ilustrado com a ajuda do símile do pastor de rebanhos encontrada no
sutta Dvedhāvitakka-sutta (MN 19). Este símile descreve um pastor de rebanhos
na Índia antiga em duas situações. Na primeira situação, as plantações estão
maduras. O pastor de rebanhos tem que olhar as vacas com muita vigilância
para evitar que elas se desviem e comam as culturas maduras.
Contudo, uma vez colhidas, o pastor pode relaxar e apenas observar as vacas à
distância. Tudo o que ele tem que fazer é estar ciente de que "lá estão as vacas".
Para esta observação à distância, o símile utiliza o termo sati (Anālayo 2003: 53
e 2014a: 87). Imagino o pastor sentado relaxado na raiz de uma árvore
e observando as vacas pastando em vários locais. Tudo o que ele tem que fazer
é estar ciente delas a partir de uma certa distância.
(imagem)
Não é preciso dizer que o pastor não se iluminará pelo simples fato de estar
consciente das vacas. É necessário, para isso, mais do que estar atento. É aqui,
precisamente, que a clara compreensão, sampajañña, entra para plantar as
sementes da sabedoria no solo fértil da observação atenta. Em termos do meu
símile anterior, sem o fermento da clara compreensão, a massa da prática da
atenção plena só resultará em um pão achatado. A sábia informação
proporcionada pela clara compreensão marca a diferença em relação à atenção
plena do pastor. Embora falte ao pastor a parte crucial da sabedoria, observar
as vacas à distância é, no entanto, uma boa ilustração da receptividade e
amplitude da mente que considero ser uma dimensão importante da atenção
plena.
O símile do pastor de rebanhos não é o único a transmitir esta ideia. Outro
discurso relevante é o Mahātaṇhāsaṅkhaya-sutta, que relaciona um estreito
estado de mente com o estar sem atenção plena do corpo. No entanto, um
estado mental amplo, até mesmo sem limites, ocorre com a atenção plena do
corpo estabelecida (Mn 38; Anālayo 2014a: 87 e 2017a: 40). Neste caso,
atenção plena do corpo está claramente relacionada com um amplo estado
mental.
A importância desta amplitude da mente reside na abrangência de visão que
resulta de tal atitude de mente aberta. É como tirar uma fotografia com uma
lente grande angular. Uma abertura angular tão ampla permite que exista um
espaço na mente para diferenças, uma ao lado da outra. A amplitude
mental resultante contrasta com a estreiteza mental de se estar firmemente
convencido de que a nossa visão ou compreensão particular é a única correta.
Isto não significa que não possamos ter uma opinião. Significa, contudo, que as
nossas opiniões pessoais são vistas pelo que são: apenas opiniões, que podem
ou não serem corretas. Aprendemos a dar espaço para que a diversidade se
manifeste sem supressão ou negatividade.
Com um pouco de observação atenta, nós podemos notar facilmente quão
espaçosa e permissiva a mente pode ser quando estamos abertos a diferenças
e variedade, e quão estreita e limitada a mente pode tornar-se quando somos
injustos e julgadores. A consciência desta diferença pode servir como um bom
sinal para percebermos quando a mente muda de uma condição de abertura
para uma fechada.
Combinar uma atitude de abertura mental com estar plenamente no momento
presente requer alguma forma de ancoragem. Comumente a atenção plena se
perde e a mente sucumbe a algum tipo de distração ou fantasia. O desafio aqui
é encontrar uma âncora que sustente a continuidade da atenção plena sem
perder as qualidades de uma mente aberta e receptiva. Em outras palavras, a
ancoragem deve ser estabelecida sem introduzir um foco demasiadamente forte
e sem uma atitude de muita interferência e controle.
Na minha experiência pessoal, descobri que a ferramenta mais útil para enfrentar
este desafio e manter o tipo de atenção mencionada no Mahātaṇhāsaṅkhaya-
sutta, é a atenção plena do corpo. Em termos simples, a atenção plena do corpo
significa uma forma de atenção que se relaciona com aspectos do corpo ou com
o corpo como um todo. Não é preciso dizer que ambos os modos estão
interrelacionados. Tomar consciência de partes do corpo reforça a consciência
sobre todo o corpo, tanto quanto a consciência do corpo todo conduz facilmente
à consciência das suas diferentes partes. Entretanto, dada a necessidade de
evitar um foco demasiadamente forte, o modo de atenção plena do corpo que se
recomenda para servir de âncora é a consciência sobre todo o corpo físico.
Atenção plena às posturas corporais
A atenção plena sobre todo o corpo pode ser relacionada a duas contemplações
no Satipaṭṭhāna-sutta, que descrevem, estar consciente das posturas corporais
e ter clara compreensão das atividades corporais (MN 10). As instruções para a
primeira destas duas contemplações são as seguintes:
Ao caminhar, sabe-se "Estou caminhando"; ou quando se está de pé, sabe-se:
"Estou de pé"; ou quando se está sentado, sabe-se: "Estou sentado";
ou quando se está deitado, sabe-se: "Estou deitado";
ou, independentemente da posição do corpo, sabe-se de acordo.
A passagem não fala em executar qualquer uma destas posturas de uma forma
especial, como fazer meditação andando em câmara lenta, mas apenas
conhecer as posturas do corpo tal como ocorrem naturalmente. A meu ver,
mostra a sensação de continuidade da consciência do corpo combinada à
clara compreensão da postura. É algo natural, não artificial; de fato, a
naturalidade ajuda a evitar a entrada no modo de piloto automático. Isto pode
facilmente acontecer quando treinamos para fazer algo invariavelmente da
mesma forma. O caminhar natural é também o que eu recomendo para essa
meditação, descansando na consciência de todo o corpo durante o processo de
caminhar. Quando caminhamos, apenas caminhamos com todo o nosso ser.
A capacidade de saber se o corpo está em uma destas quatro posturas baseia-
se no que a psicologia clínica chama de consciência proprioceptiva. O termo
"propriocepção" refere-se à capacidade de sentir a posição do corpo e dos seus
movimentos. Mesmo de olhos fechados, somos capazes de conhecer a
posição do nosso corpo através deste tipo de habilidade. Esta sensação de
presença física proporciona uma noção facilmente acessível do "aqui", e a
própria atenção plena nos mantém no "agora". Assim, a atenção plena do corpo
pode combinar dimensões espaciais e temporais, o que facilita a nossa presença
plena no aqui e no agora.
Durante a vida cotidiana, esta sensação de presença física não é normalmente
notada. No entanto, rapidamente chega à presença da atenção quando o
equilíbrio do corpo se perde. O cultivo meditativo da sensação de presença
física pode acontecer quando se está consciente do corpo em qualquer postura.
Isto requer permitir que esta capacidade natural de consciência proprioceptiva
se torne um aspecto reconhecível da nossa experiência. Desta forma, esta
sensação não é ignorada, como habitualmente acontece, nem ocupa todo o
campo da atenção, como no caso em que ocorre a perda do equilíbrio corporal.
O cultivo meditativo não deve estar excessivamente preso ao corpo, mas sim
relaxado na presença de todo o corpo. A frase que costumo utilizar para
introduzir o sabor desta prática é: "Estamos conscientes do corpo na postura
sentada e deixamos a mente repousar no corpo tal como o corpo repousa na
almofada".
Devidamente cultivada, tal atenção plena do corpo resulta no senso de se estar
firmemente enraizado no corpo; é uma consciência corporificada. Tal
consciência não precisa interferir em outras tarefas e atividades. Em vez disso,
pode acompanhá-las. Para conseguir, é preciso treino. A tendência natural
da mente é focalizar ou ignorar. A consciência proprioceptiva pode ser
empregada para cultivar o caminho do meio entre estes dois extremos.
O cultivo do caminho do meio surge através de uma abordagem gradual, e não
através da mera força da vontade. Uma vez que o potencial de foco e equilíbrio
da atenção plena do corpo tenha se tornado assunto da experiência pessoal,
torna-se mais fácil regressar ao corpo mesmo em meio às mais difíceis
situações. O corpo está sempre lá, e a atenção plena voltando a ele pode servir
quase como um dispositivo portátil de meditação, prontamente à mão em
qualquer situação. Basta tomar consciência de alguma parte do corpo e, a partir
dessa porta de entrada, permitir que a atenção plena envolva todo o
corpo, possibilitando que a mente descanse nessa consciência envolvente
como um ponto de referência. O simples ato de se tornar consciente da
presença do corpo pode transformar os mais aborrecidos tipos de situação em
oportunidades para a prática. Preso em um engarrafamento, sentado na sala de
espera do médico, de pé numa longa fila de espera de controle de passaportes,
qualquer cenário pode ser transformado pela atenção plena do corpo. Tal é o
poder do caminho do meio entre o foco exclusivo e a distração. As vantagens de
cultivar este caminho do meio são a estabilidade e a continuidade da atenção
plena. Permite unir a lacuna entre a meditação formal durante um retiro, o
período sentado, e as atividades diárias. Isto é decisivo. Para que a prática da
meditação floresça verdadeiramente, o sentar-se formal e a vida cotidiana têm
que evoluir em um todo integrado, cada um apoiando o outro. Isto pode ser
atingido encontrando uma forma de manter a atenção plena,
independentemente do que for preciso fazer. Quando circunstâncias exteriores
dificultam a continuidade da atenção plena, pode ser útil utilizar uma frase da
parte do Satipaṭṭhāna-sutta a que chamo o "refrão". A parte relevante diz: "a
atenção plena de que "existe o corpo" é estabelecida". Recordar a frase "existe
o corpo" (atthi kāyo, em pāli) pode ajudar a restabelecer a atenção plena do
corpo e a apoiar a sua continuidade. O mesmo tipo de frase também pode ser
usado para os domínios de outros satipaṭṭhāna. Se a situação em questão der
origem a sensações proeminentes, por exemplo, a frase mental a ser usada
poderia ser "existe sensação", atthi vedanā. Uma boa maneira de se ter uma
noção prática do que significa cultivar a consciência corporificada seria dar um
passeio numa floresta. Caminhando na floresta, podemos apenas caminhar na
floresta? É possível estar plenamente presente no momento de caminhar? Por
enquanto, podemos deixar para trás todas as nossas preocupações e deveres,
os nossos papéis e identidades, bem como o sempre ativo comentador mental
interno? Ao caminhar na floresta, será que podemos apenas saber que estamos
caminhando? Com base no enraizamento resultante do ato de caminhar,
podemos permitir que a mente esteja bem aberta e receptiva à beleza da
natureza à nossa volta?
Estabelecer a continuidade da consciência nas quatro posturas constrói a base
para o próximo exercício descrito no Satipaṭṭhāna-sutta, que é a clara
compreensão em relação a várias atividades corporais. Neste contexto, a clara
compreensão refere-se a um sentido geral de adequação e propriedade.
A mesma qualidade também ocorre na parte do discurso a que gosto de chamar
de "definição". Nesse contexto, a clara compreensão parece ter um propósito
mais específico, que entendo ser especificamente para servir de lembrete da
natureza mutável de todos os aspectos da experiência. Em termos do meu
símile anterior, a clara compreensão mencionada na definição é o fermento
necessário para o pão do insight.
Atenção plena às atividades corporais
As instruções no Satipaṭṭhāna-sutta para o tipo de clara compreensão que é
relevante para as várias atividades corporais, seguem da seguinte forma:
Quando se vai para a frente e se regressa, age-se com clara compreensão;
quando se olha para a frente e para longe, age-se com clara compreensão;
quando se dobra e se estende [os membros], age-se com clara compreensão;
quando se veste o manto exterior e [outros] mantos e [se carrega]
a tigela, age-se com clara compreensão;
quando se come, se bebe, se consome comida, e se experimenta, age-se com
clara compreensão;
quando se defeca e urina, age-se com clara compreensão;
quando se caminha, se está de pé, se senta, se adormece, se acorda, se fala, e
se mantém em silêncio, age-se com clara compreensão.
Aspectos desta descrição relacionam-se em particular com o estilo de vida
monástico. Mas ao compreender os mantos como uma forma representativa das
roupas em geral e a tigela sendo qualquer ferramenta, a descrição pode também
ser relacionada com a prática leiga. A clara compreensão (sampajañña) tem a
sua base na presença da atenção plena. Só quando estivermos conscientes do
que estamos fazendo é que podemos fazê-lo com clara compreensão. As
atividades descritas são: ir a algum lugar e olhar para algo, mover os nossos
membros de uma forma ou de outra, vestir as nossas roupas, comer e beber,
defecar e urinar, dormir e acordar, até mesmo falar e ficar em silêncio. É evidente
que o exercício se destina a abarcar todos os tipos de situações possíveis. Em
outras palavras, qualquer situação ou atividade pode, em princípio, tornar-se
alimento para a atenção plena e a clara compreensão.
Ao virar-se para olhar para algo, o Buda é descrito como virando-se com todo o
seu corpo, semelhante a um elefante. Isto exemplifica uma dedicação total a
uma ação. Podemos comer com todo o nosso corpo? Poderemos obedecer aos
chamados da natureza com todo o nosso corpo? Trazer esta plenitude de ser
para qualquer atividade tem um potencial considerável. Nos torna mais vivos.
Aprendemos a cultivar a alegria sutil de estarmos plenamente no momento
presente, através desta consciência corporificada.
Ao acordarmos de manhã, podemos começar imediatamente por estarmos
conscientes do corpo todo. Antes de iniciarmos qualquer atividade, usamos
alguns momentos apenas para estarmos cientes do corpo deitado na cama.
Levantar-se então envolve outras três posturas: inicialmente deitados,
nos sentamos, ficamos em pé e depois andamos. Desta forma, podemos
começar o dia checando a consciência do corpo inteiro nas quatro posturas, o
que nos permitirá continuar o dia com uma boa base corporal para a atenção
plena. Tendo estabelecido uma tal fundação, torna-se mais fácil regressar à
atenção plena ao longo do dia até chegar a hora de descansar novamente. A
essa altura, passamos pelas mesmas quatro posturas em ordem inversa:
caminhamos para chegar à cama, paramos ao seu lado, sentamos sobre ela e
nos deitamos. Tudo isto pode ser feito com uma consciência do corpo inteiro,
até que adormecemos.
Provavelmente, a mais desafiadora das atividades mencionadas acima é falar.
Proponho que se compreenda aqui a fala como qualquer tipo de comunicação,
seja por e-mail ou internet. A mente pode ficar tão ativa e envolvida nestas
atividades que facilmente nos esquecemos da atenção plena do corpo.
Para retomá-la, basta voltar-se para dentro e tornar-se consciente do corpo.
A consciência de todo o corpo pode, em princípio, permanecer presente no fundo
de qualquer atividade, incluindo mesmo a mais aquecida discussão. No entanto,
uma discussão acalorada é provavelmente uma situação bastante desafiadora
e não é o melhor lugar para se começar este tipo de prática. Seria preferível
trazer gradualmente a atenção plena às atividades e situações diárias, a fim de
evitar frustrações que minem a nossa dedicação a esta dimensão tão importante
da prática. O mundo exterior oferece-nos um campo de ensaio onde podemos
verificar e amadurecer os insights adquiridos na meditação formal. Temos que
evitar de criar uma divisão rígida entre a meditação formal e as atividades
ordinárias. Mas é melhor não ver este campo de teste no mundo exterior como
uma espécie de exame em que passamos ou fracassamos. Em vez disso, é
preferível visualizá-lo mais como um parque para brincar onde podemos
experimentar táticas diferentes para saber o que funciona para nós. Desta
perspectiva, é melhor abordarmos as situações cotidianas com um relaxado
sorriso interior, considerando o que quer que ocorra como uma oportunidade
para testar diferentes formas de estar com sati.
Para começar, podemos apenas tentar estar atentos, de vez em quando (sem
almejar imediatamente uma continuidade ininterrupta), ao ouvirmos ou lermos
as comunicações dos outros. A audição ou a leitura são em si mesmas
atividades mais passivas e, portanto, mais facilmente podem ser combinadas
com a atitude receptiva e não interferente de sati. Fundamentados na
consciência do corpo todo, tentamos nos manter equilibrados e conscientes do
que os outros estão expressando. Cada momento em que estamos atentos é
um ganho, e assim damos mais um passo na direção certa. Não há
necessidade de nos repreendermos por aqueles momentos em que a atenção
plena se perdeu. Distração e ser capturada é uma tendência natural da mente,
mas cada simples passo dado na direção correta irá lentamente enfraquecer
esta inclinação.
Experimentar durante algum tempo adornar nossas vidas, passo a passo, com
a beleza dos momentos de atenção plena corporificada, produzirá benefícios
claramente evidentes à nossa capacidade de compreender e interagir melhor
com os outros. Também nos tornamos melhores na distinção entre o que os
outros expressam e como isto é colorido pelos nossos próprios comentários,
como os nossos preconceitos tendem a interferir mesmo quando apenas
ouvimos ou lemos. Isto, por sua vez, faz-nos notar como a nossa própria mente
quer reagir. Com o crescimento deste entendimento, sentiremo-
nos suficientemente fortes para ampliar ainda mais a prática, tentando estar com
atenção plena mesmo quando estamos reagindo, seja escrevendo uma
mensagem ou dizendo algo. Ao entrar nesta arena mais desafiadora, que é mais
uma dimensão do nosso treino em meditação, pode ser útil fazer uma respiração
de forma consciente que nos reconecte à nossa experiência corporal antes de
começarmos a escrever ou a falar. Pouco perceptível aos outros, esta breve
reconexão, com ancoramento consciente no corpo, pode servir como um
interruptor interior para pôr em funcionamento a nossa atitude meditativa. Esta
atitude meditativa pode tornar qualquer experiência, seja no local de trabalho ou
em casa, numa dimensão integral do nosso progresso no caminho.
Benefícios da atenção plena do corpo
O cultivo gradual desta capacidade eventualmente proporciona uma forte
âncora; pode oferecer uma base poderosa para enfrentar qualquer tipo de
desafio com sati. De modo que nunca estaremos sozinhos enquanto sati estiver
conosco. Sua presença garantirá que fiquemos equilibrados e centrados,
ajudando-nos a considerar plenamente a informação relevante antes de reagir,
permitindo-nos monitorar como reagimos e identificar qualquer perda de
equilíbrio ao longo do caminho.
Sempre que nos esquecemos de sati e somos capturados por algum tipo de
distração, o que se faz necessário é apenas um momento de alegre
reconhecimento. Não é necessário desapontamento ou sensação de fracasso,
nem ficarmos chateados com nós mesmos. Uma alegre percepção de que a
mente se desviou é bem adequada. Isto é natural, esta é a tendência da mente.
Mas aqui está a nossa boa amiga, sati, pacientemente à espera de voltarmos e
estarmos com ela novamente. E estar com ela é tão agradável, tão calmo, tão
amplo; é muito mais atraente do que qualquer tipo de pensamento, reação, ou
devaneio com os quais podemos entreter nossa mente.
Com este tipo de atitude aprendemos a praticar a atenção plena do corpo com
sabedoria, cientes de que não seria hábil ficar tenso com a ideia: "Devo estar
atento ao corpo sem qualquer tipo de interrupção". Isto poderia, de fato, ser um
reflexo da crença equivocada de que estamos em pleno controle. Do ponto
de vista do pensamento do Budismo antigo, um fator chave em tudo o que
fazemos é volição ou intenção. Mas a nossa volição funciona dentro de uma
rede ampla de causas e condições. Pode influenciar as coisas, mas não as pode
controlar completamente.
Aplicada à experiência da distração, a nossa responsabilidade é estabelecer a
intenção de estar atento e regressar a essa intenção sempre que percebermos
que a atenção plena se perdeu. Assim cumprimos a nossa tarefa. Se, no entanto,
a mente está totalmente distraída, isso se deve a outras causas e condições
que influenciam a situação atual. Simplesmente não estamos em pleno controle
de nossa própria mente. Ao percebermos isto, chegamos à conclusão de que a
melhor meta a atingir é um equilíbrio harmonioso entre o nosso esforço para
viver no momento presente e a resistência natural causada pelas tendências da
nossa mente e das circunstâncias exteriores. Em vez da expectativa pouco
razoável de que toda essa resistência seja aniquilada de uma vez por todas para
que possamos nos qualificar como um "bom meditador", estabelecemos um
equilíbrio harmonioso, em que o reconhecimento da manifestação de qualquer
resistência é abordado com um alegre esforço, suficiente para voltarmos
gentilmente para casa no aqui e agora. Desta forma, em vez de transformarmos
o cultivo da atenção plena numa tarefa estressante e exigente, vemos sati como
uma boa amiga a qual regressamos, com quem gostamos de passar o máximo
de tempo possível.
Este regresso à atenção plena pode tornar-se uma expressão prática da noção
que surge nos discursos, de que os quatro satipaṭṭhāna nos oferecem um refúgio
(SN 47.9 ou 47.14; Anālayo 2003: 276 e 2013: xiii e 1n3). Cultivada desta forma,
a atenção plena corporificada proporciona uma âncora e um refúgio durante
todo o dia, até o momento em que adormecemos. Pode estar conosco
novamente logo na manhã seguinte, assim que acordamos. Ela está sempre lá
com as suas belas qualidades de receptividade e aceitação, permitindo que a
nossa mente seja ampla e espaçosa. Firmemente ancorados no
momento presente, podemos estar cientes de tudo o que acontece, da vantajosa
posição de estar em repouso na consciência do corpo todo.
A ideia de uma âncora ou de uma base estabelecida pela atenção plena do
corpo, vem à tona num símile que descreve seis diferentes animais que estão
ligados (SN 35.206; Anālayo 2003: 123 e 2013: 55s). Cada um dos animais luta
para seguir em uma direção particular. O mais forte puxa os outros até que
se cansa e outro assume. Isso ilustra a fragmentação de nossa experiência
pelas seis portas dos sentidos, enquanto a atenção plena do corpo não está
estabelecida. Continuamos sendo puxados daqui para lá, dependendo de qual
porta dos sentidos exerce a maior força para nos levar junto.
Estabelecer a atenção plena do corpo é como plantar firmemente um forte poste
no solo. Por mais que os seis animais lutem para ir em uma direção ou outra,
eles não serão mais capazes de puxar os outros por estarem amarrados àquele
poste forte. Mais cedo ou mais tarde, eles desistirão de puxar e apenas
se sentarão ou deitarão ao lado do poste.
Isso ilustra o poder da atenção plena do corpo. Ela permite experimentar o que
é agradável e o que é desagradável em qualquer uma das seis portas dos
sentidos, sem ser puxado junto. Essa habilidade é particularmente fundamental
para lidar com as situações da vida cotidiana. Pode ser bastante
cansativo segurar as guias dos seis animais. É mais sensato estabelecer o poste
firme da atenção plena do corpo para cuidar dos seis animais. Desta forma,
podemos evitar sermos consumidos por eles.
Durante a prática, somente voltamos à sensação da presença corporal, à
consciência proprioceptiva, logo que percebemos que estamos sendo puxados
para longe. Na preparação para situações desafiadoras, nós nos asseguramos,
em primeiro lugar, de que estamos conscientes da presença do nosso corpo.
Da vantajosa posição da atenção plena corporificada, nos tornamos capazes de
enfrentar bem os desafios. Isso reflete a dimensão protetora inerente ao
estabelecimento da atenção plena (Anālayo 2013: 24ss).
A centralização que resulta desta forma de prática vem à tona em outro símile.
Ele descreve uma pessoa que tem que carregar uma tigela cheia de óleo até a
borda, no meio de uma multidão. A multidão está assistindo a uma apresentação
de dança e canto de uma linda garota (SN 47.20; Anālayo 2003: 122 e 2013:
56f). Visualizando esse símile no antigo contexto indiano, imagino que a pessoa
está carregando a
tigela de óleo na cabeça e que a multidão está tentando chegar bem perto da
apresentação de dança para vê-la bem, talvez até mesmo se movendo para
frente e para trás no ritmo da música. O símile diz também que atrás da pessoa
que carrega o óleo está alguém com uma espada desembainhada. O
espadachim está pronto para cortar a cabeça do portador da tigela assim que
um pouco de óleo for derramado. Para sobreviver a essa situação desafiadora,
o portador da tigela com óleo deve ter muito cuidado para não se distrair.
A atenção plena do corpo fornece a concentração necessária para sobreviver até
mesmo na situação mais perigosa e desafiadora. Alinhada com a imagem de
carregar uma tigela cheia de óleo na cabeça, a sensação de centramento
corporal pode ser experimentada, por exemplo, carregando um livro grosso
em nossa cabeça. Felizmente ninguém vai cortar nossas cabeças se o livro cair
no chão. Fazer uma experiência desse tipo pode ajudar a ter uma noção de
centramento no corpo que, para mim, é uma nuance relevante deste símile.
Um aspecto fundamental do potencial da atenção plena do corpo é prover um
tipo de ancoragem que garante a continuidade da atenção plena sem introduzir
um foco muito forte. Esta é a vantagem da consciência do corpo inteiro sobre
uma forma de atenção plena que usa um objeto mais reduzido, o que pode
facilmente resultar em um foco muito forte e, portanto, na perda da consciência
da situação geral.
Um símile no Kāyagatāsati-sutta explica a relação entre estados benéficos que
levam ao conhecimento e a atenção plena do corpo (MN 119; Anālayo 2013:
60). Essa relação é semelhante à que existe entre vários rios e o oceano. O
oceano inclui todos os rios. A mesma inclusão ocorre por meio da atenção plena
do corpo.
Imagine-se em uma praia, olhando para o oceano. É tão vasto e amplo. De uma
maneira semelhante, a atenção plena do corpo pode funcionar como um largo
recipiente, aberto aos vários rios de nossas atividades. Fornece um ponto de
referência central e apoio, sem interferir na atividade que estamos fazendo.
Também ajuda a unir o que quer que façamos em uma prática contínua, em que
todas as nossas atividades acontecem na companhia de nossa boa amiga, a
atenção plena do corpo. Sua presença é o único sabor que pode vir a impregnar
todas as nossas práticas e atividades. O oceano tem um único sabor, que é
o sabor do sal (AN 8.19; Anālayo 2013: 251). Da mesma forma, a atenção plena
do corpo continuamente estabelecida pode fazer com que todas as nossas
experiências adquiram um único sabor, o sabor do progresso para a libertação.
Outro símile compara a atenção plena a um hábil cocheiro (SN 45.4; Anālayo
2013: 37). Assim como um bom motorista, aprendemos a dirigir o veículo de
nossas atividades em qualquer tipo de tráfego sem colidir ou sofrer um acidente.
O Kāyagatāsati-sutta ilustra, com vários símiles, a capacidade de evitar
tal acidente, que equivaleria a cair nas mãos de Māra (MN 119; Anālayo 2003:
123 e 2013: 60). Esses símiles
retratam o fogo que se faz facilmente com lenha seca, a água que se despeja
facilmente em um pote vazio e uma pedra que, ao ser lançada, facilmente
penetra em um monte de argila úmida. Da mesma forma, Māra facilmente terá
uma oportunidade para dominar aqueles que não cultivaram a atenção plena do
corpo, colocando-os no fogo como se fossem lenha seca, enchendo-os como a
um pote vazio ou atirando algo que lhes penetre.
Quando a atenção plena do corpo é cultivada, no entanto, Māra não tem mais
essa oportunidade. Estar com a atenção plena do corpo se compara à madeira
úmida que não queima, a um pote cheio que não pode conter mais líquido ou a
uma sólida porta na qual uma bola de luz é lançada sem efeito algum.
Estas imagens mostram como a atenção plena do corpo pode servir como uma
forma de proteção. Quando estamos enraizados na consciência do corpo inteiro,
objetos sensualmente atraentes não colocam facilmente fogo na mente. A
consciência do corpo pode produzir uma sensação de contentamento
interior como uma fonte de alegria e, estando preenchidos por tal alegria, não
seremos como um pote vazio que
absorve qualquer coisa que surge apenas para se sentir cheio. O que quer que
os outros possam atirar em nós, irá apenas ricochetear, em vez de penetrar.
A atenção plena do corpo é o centro do tipo de prática que apresentarei nas
páginas seguintes. É aqui onde começamos, continuamos e concluímos:
mantendo uma âncora somática no aqui e agora, através da consciência
corporificada, que serve como suporte para uma atitude mental ampla, aberta e
receptiva. Nossa consciência está totalmente no momento presente, sendo de
suma importância para nós sermos capazes de lembrar isso. Com atenção
plena, estamos amplamente abertos e receptivos a tudo o que se manifesta em
qualquer uma das seis portas dos sentidos. Estamos enraizados e aterrados na
realidade física sentida pelo corpo todo. Isso serve como um recipiente para
todas as nossas práticas, semelhante ao oceano. Essa é a beleza e o potencial
da atenção plena do corpo.
Resumo
A atenção plena não é dada como existente em qualquer experiência, ela requer
muito mais, o cultivo intencional. Durante esse cultivo, a atenção plena pode
coexistir com o uso de conceitos; na verdade, a informação fornecida por meio
do sábio uso de conceitos é de importância crucial para a
meditação satipaṭṭhāna. Nesta prática do satipaṭṭhāna, a atenção plena está
focada no que está presente, não na recordação de assuntos do passado. A
conotação de sati como memória pode ser considerada para transmitir a noção
de que a postura aberta e receptiva da atenção plena deve ser tal que, mais
tarde, seríamos capazes de lembrar facilmente o que aconteceu. A fim de
fornecer uma âncora para uma atitude de receptividade, de mente aberta,
recomenda-se a atenção plena de todo o corpo.
2. Satipaṭṭhāna
Na introdução, mencionei que, apesar da quantidade de detalhes que consegui
reunir no decorrer da minha pesquisa publicada no Satipaṭṭhāna, The Direct
Path to Realization, sentia que não compreendia o quadro geral. Os diferentes
exercícios sob o título da contemplação do corpo e da contemplação dos
dharmas pareciam muito complexos para que eu pudesse ter uma noção clara
da potência desses dois satipaṭṭhāna.
Quatro satipaṭṭhāna
Outra pedra no caminho, era a de que todos os quatro satipaṭṭhāna estão
combinados em uma única prática unificada no Ānāpānasati-sutta (MN 118;
Anālayo 2003: 133ss, 2013: 227ss, e 2019). Baseada na respiração, um
fenômeno corporal, uma progressão de meditação que, sem emendas leva de
um satipaṭṭhāna para o próximo.
Não conseguia ver como uma progressão similar poderia ser alcançada através
do Satipaṭṭhāna sutta. Examinando as contemplações listadas no discurso, não
ficou evidente como elas poderiam ser desenvolvidas em uma forma contínua
de prática que, mostrasse a mesma continuidade evidente vista no Ānāpānasati-
sutta. Desta forma, me pareceu natural que, o satipaṭṭhāna tendesse a ser
ensinado com base na seleção de um ou talvez dois satipaṭṭhāna, sem cobrir
todos os quatro.
Os quatro esforços corretos, por exemplo, correspondem ao sexto fator do nobre
caminho óctuplo, claramente se constroem uns sobre os outros e se completam.
O mesmo vale para as quatro absorções, listadas regularmente nas descrições
da concentração correta como o oitavo fator. Não era capaz de enxergar como
os quatro satipaṭṭhāna, sendo o sétimo fator, pudessem ser praticados da mesma
forma, construídos uns sobres os outros de uma forma complementar.
Poderia haver uma maneira de reunir todos os quatro satipaṭṭhāna em um modo
de prática contínua e unificada? Poderia ser possível desenvolver uma
continuidade, com cada satipaṭṭhāna construído sobre o próximo, completando-
se um ao outro? Existe, ao mesmo tempo, um modo simples de prática
que pudesse ser aplicado em qualquer situação? Essas questões estavam
muito presentes em minha mente.
A solução surgiu por meio de um estudo detalhado dos paralelos chineses. Este
é o tópico do meu segundo livro, Perspectives on satipaṭṭhāna [Perspectivas
sobre satipaṭṭhāna]. Em princípio, os discursos encontrados nos Āgamas
chineses reivindicam tanto quanto os discursos em pāli, serem um
registro autêntico dos ensinamentos do Buda e de seus discípulos (deixando de
lado os erros de tradução). Colocando o Satipaṭṭhāna-sutta lado a lado com seus
dois paralelos chineses me permitiu descobrir o que há de comum entre eles e
também suas diferenças.
Embora os próximos capítulos sejam baseados na versão em pāli, a perspectiva
comparativa que obtive ao estudar os paralelos chineses mostra a minha
abordagem. Visto que este livro é predominantemente destinado a ser um guia
para a prática da meditação, não mencionarei todas as variantes dos paralelos.
As informações relevantes a esse respeito podem ser encontradas em minhas
outras publicações, às quais sito no decorrer da minha discussão.
Também quero mencionar, que o uso de comparações entre versões paralelas,
não significa que, o que não é encontrado em todas as versões deva ser
rejeitado. É como posicionar peças diferentes diante de nossos olhos,
posicionando-as mais à frente ou mais atrás. Em outras palavras, aqueles
exercícios que são comuns às versões paralelas podem estar em primeiro plano
e podem se tornar mais proeminentes como expressões de um determinado
satipaṭṭhāna. Outros exercícios não encontrados em todas as
versões simplesmente ficam um pouco mais em segundo plano.
Contemplação do corpo
Desse posicionamento, três exercícios surgem como uma base comum da
contemplação do corpo. São as contemplações das partes anatômicas, dos
elementos e de um cadáver em decomposição. Entendo que essas três
significam o cultivo do insight nas três dimensões da natureza do corpo. A
primeira desconstrói as projeções da beleza e da atração sexual sobre o corpo
(seja ele nosso ou de outras pessoas). A segunda revela a natureza vazia da
existência material manifestada no corpo (bem como fora dele). A terceira
nos traz a mortalidade do corpo (seja a nossa ou a de outras pessoas).
Uma abordagem alternativa para a terceira contemplação poderia ser
contemplar os estágios de decomposição de um cadáver para destacar a falta
de beleza inerente do corpo. Uma vez que este tópico já foi coberto pela
contemplação da anatomia, tendo em vista a importância de olhar para a nossa
própria morte, porém, minha abordagem para este exercício é cultivá-la como
um indicador da mortalidade.
Com as três contemplações das partes anatômicas, dos elementos e de um
cadáver em decomposição, o primeiro satipaṭṭhāna torna-se claramente uma
forma de cultivar o insight sobre a natureza do corpo. Em outras palavras, a
tarefa aqui não é tanto usar o corpo para cultivar a atenção plena, mas sim usar
a contemplação satipaṭṭhāna para cultivar uma diminuição do apego ao corpo.
O impulso básico da contemplação do corpo também surge de um discurso no
Satipaṭṭhāna saṃyutta, que recomenda que o satipaṭṭhāna seja ensinado a
iniciantes que acabaram de se ordenar (SN 47.4; Anālayo 2003: 271 e 2013:
159). No caso do primeiro satipaṭṭhāna, os iniciantes devem praticar de forma
que entendam o corpo como ele realmente é (yathābhūta). Aqueles mais
avançados no treinamento continuam a mesma prática para atingir uma
compreensão penetrativa (pariññā) do corpo. Os totalmente despertos ainda
cultivam a contemplação do corpo; eles o fazem livres de qualquer apego a ele.
A relevância do cultivo desta contemplação, desde o iniciante até um arahant
livre do apego, se aplica de forma semelhante aos outros três satipaṭṭhāna. No
caso do corpo, então, de uma perspectiva prática, a tarefa é de fato entender
como ele realmente é. Tal entendimento torna-se cada vez mais penetrante,
resultando na erosão gradual de todos os apegos ao corpo.
Isso não quer dizer que usar o corpo para cultivar a atenção plena não tenha
importância. Pelo contrário, esta é uma dimensão essencial da prática. Na
verdade, exercícios como a atenção plena nas quatro posturas e a clara
compreensão das atividades corporais têm um potencial extraordinário. Muito
do que eu disse no capítulo anterior é precisamente sobre esse potencial. A fim
de cultivar o satipaṭṭhāna de tal forma que se torne o caminho direto para a
libertação, o tipo de insight que pode ser desenvolvido com essas três
contemplações do corpo oferece uma contribuição importante.
Contemplação dos dharmas
A contemplação dos dharmas também mostra diferenças substanciais (na
contemplação das sensações e da mente, os paralelos são bastante próximos
um do outro). O que permanece como o núcleo comum dessa contemplação no
Satipaṭṭhāna-sutta e nos seus dois paralelos do discurso chinês é o cultivo dos
fatores do despertar. Acrescentei a isso também a contemplação dos
obstáculos, visto que é encontrado em duas versões e referido na terceira. O
cultivo dos fatores do despertar requer em primeiro lugar reconhecer
os obstáculos, e depois superá-los, pelo menos em suas manifestações mais
grosseiras.
A impressão que se tem ao juntar os fatores do despertar com os obstáculos, é
que a contemplação dos dharmas consiste em monitorar as qualidades mentais
que obstruem e aquelas que conduzem ao caminho da libertação. Em outras
palavras, a contemplação dos dharmas é sobre o tipo de mente em que
o despertar pode ou não ocorrer.
Essa perspectiva ajudou a construir uma ponte entre a contemplação dos
dharmas nos dois suttas. No Ānāpānasati-sutta, a tarefa é cultivar perspectivas
de insight junto com a consciência da natureza inconstante da respiração. Essas
perspectivas de insight devem contemplar a impermanência, o desapego,
a cessação e o deixar ir. De forma semelhante, no Satipaṭṭhāna-sutta o cultivo
dos fatores do despertar para que eles cumpram seu potencial, dependem dos
temas do desapego e da cessação, culminando no deixar ir. Dessa forma, lendo
lado a lado as seções sobre a contemplação de dharmas no Satipaṭṭhāna-sutta
e no Ānāpānasati-sutta indicam as qualidades mentais e insight que são
particularmente úteis para a realização do Nibbāna.
Sete contemplações
A compreensão da potencia básica de cada satipaṭṭhāna, me ajudou a resolver
as dúvidas que tinha. O restante deste livro é dedicado a descrever como, na
prática da meditação, uma continuidade perfeita de todos os quatro satipaṭṭhāna
pode ser alcançada. Isto ocorre, progredindo-se através destes sete tópicos:
o anatomia,
o elementos,
o morte,
o sensações,
o mente,
o obstáculos,
o iluminação (fatores).
Os três primeiros cobrem a contemplação do corpo, o quarto e o quinto
correspondem à contemplação das sensações e da mente, e os dois últimos
são modos de contemplação dos dharmas. A perspectiva proporcionada nessa
forma pelo estudo comparativo tem um precedente no Abhidharma do
Theravāda. O Vibhaṅga, apresenta uma versão ainda mais curta de satipaṭṭhāna.
As partes anatômicas para a contemplação do corpo e apenas os obstáculos e
os fatores do despertar para a contemplação dos dharmas (Vibh 193; Anālayo
2003: 121 e 240 e 2013: 53 e 175). Ao omitir alguns dos exercícios mencionados
no Satipaṭṭhāna-sutta e, focar naqueles que são comuns a todas as versões não
implica em qualquer forma de desvalorização. O objetivo é
simplesmente permitir um foco no que parece mais essencial. O modo de prática
apresentado neste livro também cobre aspectos e temas centrais dos exercícios
que não estão explicitamente incluídos.
Uma das práticas não colocada aqui são os quatro passos da atenção plena na
respiração que, no esquema de dezesseis passos do Ānāpānasati-sutta,
corresponde à contemplação do corpo. Em relação à contemplação do cadáver
apresentado aqui, as instruções incorporam a consciência do processo da
respiração como uma lembrança da mortalidade. Desse modo, dirigir a atenção
plena para a respiração ainda faz parte da contemplação do corpo, embora não
seja um exercício por si só e não envolva os dezesseis passos.
Da mesma forma outra inclusão aqui implícita se aplica à contemplação das
posturas corporais e da clara compreensão das atividades corporais. Conforme
mencionado no capítulo anterior, a essência desses dois exercícios surge
naturalmente devido à importância central dada à atenção plena de todo o corpo
no modo de prática descrito aqui.
Semelhante às três contemplações do corpo que não estão incluídas aqui, três
contemplações de dharmas do Satipaṭṭhāna-sutta também não estão na lista de
sete tópicos acima. Uma delas diz respeito ao direcionamento da atenção plena
para a natureza impermanente dos cinco agregados. Tal consciência
se desenvolve naturalmente com minhas instruções para os três primeiros
satipaṭṭhāna. Com a contemplação da mente, essas instruções culminam em
uma experiência meditativa abrangente da natureza impermanente de todos os
aspectos da experiência; corpo, sensações, percepções, pensamentos e
estados mentais. O resultado concreto de tal prática é bastante semelhante à
contemplação do surgimento e desaparecimento dos cinco agregados descritos
no Satipaṭṭhāna-sutta.
O principal modo de prática que recomendo adotar depois de ter trabalhado com
os exercícios específicos é a consciência aberta ao que aparece em qualquer
porta dos sentidos, com base na atenção plena do corpo inteiro. Isso preenche
os elementos centrais da contemplação das seis esferas dos sentidos, conforme
descrito no Satipaṭṭhāna-sutta, que esta particularmente relacionada em captar
a atenção para a força dos grilhões na experiência dos sentidos.
As quatro nobres verdades, embora não sejam colocadas aqui, fundamentam a
abordagem dos quatro satipaṭṭhāna descritos aqui. Voltarei a esse tópico na
conclusão (veja abaixo a pág. XXXss), já que para apreciar essa correlação, é
requerida familiaridade com os detalhes da implementação dos
quatro satipaṭṭhāna que apresento nos capítulos a seguir.
Atenção plena na vida diária
A progressão através das sete práticas converge para um elemento de
simplicidade: atenção plena de todo o corpo. Visualizo esta prática como uma
roda, a qual me refiro como “a roda da prática”. Ela tem sete raios, as sete
contemplações do satipaṭṭhāna: três raios referentes ao corpo, ao se contemplar;
as partes anatômicas, os elementos e um cadáver em decomposição, e um raio
para cada uma das contemplações; das sensações, dos estados mentais, dos
obstáculos e dos fatores do despertar. O centro desta roda é a atenção plena
do corpo.
A atenção plena do corpo como centro da roda é a porta de entrada para um
modo simples de prática que pode ser realizado em qualquer situação. O que
quer que façamos, o corpo está aqui. Estar consciente do corpo da maneira que
recomendo aqui é percebê-lo através das suas sensações, senti-lo. Estar ciente
dessa sensação, da presença corporal, ocorre em um estado mental de
consciência do momento presente. Cada momento cultivando esta prática e
relacionando-a de alguma forma ao insight, é mais um passo à frente pelo
caminho da libertação, refletindo o impulso principal do quarto satipaṭṭhāna.
Em suma, em qualquer situação, podemos simplesmente focar em algum
aspecto do corpo, voltando assim à presença do corpo. Estar consciente da
mente que conhece essa presença do corpo na vida diária, é o estabelecimento
da tridimensionalidade dos três primeiros satipaṭṭhāna. A quarta dimensão vem
através da consciência de que tudo o que acontece é um processo de mudança,
é impermanente. O tempo, de alguma forma, é a nossa concepção de mudança.
Passado, presente e futuro são o que mudou, o que está mudando e o que
mudará. Medir o tempo em unidades, por mais útil que possa ser, vem às vezes,
com uma tentativa de controlar a mudança. No entanto, ao final, invariavelmente
descobrimos que a mudança está fora de nosso controle. Dessa maneira,
acabamos controlados por nossas próprias conceituações de tempo. O tempo
torna-se algo que nunca é suficiente. Sob a pressão do tempo, com estresse,
estamos sempre “sem tempo”. O simples fato de se ter consciência da mudança,
desta característica de toda a nossa experiência, nos ajuda a contrariar essa
tendência. Diminue nossa tentativa inconsciente de querer controlar as
mudanças e nos livra de levar o tempo muito a sério. Nos torna
menos vulneráveis ao estresse relacionado ao tempo.
Combinar os aspectos centrais de todos os quatro satipaṭṭhāna em um único e
simples modo de prática facilita a manutenção da continuidade entre as
contemplações detalhadas do satipaṭṭhāna, geralmente praticadas durante a
meditação formal, e as situações cotidianas. A consciência básica desses quatro
domínios da meditação satipaṭṭhāna na vida diária pode, de acordo com a
situação e nossas necessidades pessoais, levar a um olhar mais atento a
qualquer um deles. Sentir o corpo pode levar ao exame de outras sensações,
se isso for apropriado. A consciência do momento presente, oferece uma
porta de entrada fácil para reconhecer a condição da nossa mente, caso
precisemos. A orientação para o despertar, como força motriz central da
contemplação dos dharmas, junto com a consciência da mudança, pode
relacionar os ensinamentos de uma ou de outra forma a tudo o que acontece.
O cultivo da consciência de todo o corpo pode ser combinado com um foco
ocasional. Um exemplo poderia ser ouvir a uma orquestra tocando música.
Dentro dessa performance, um solo acontece. A música do solista se destaca
contra o pano de fundo do silêncio dos demais instrumentos. A mesma atuação
do solista seria diferente se os outros membros da orquestra não estivessem
presentes.
(imagem)
Essa sensação de suspense, à espera que os outros membros da orquestra se
juntem, já não estaria presente.
Do mesmo modo, com a perspectiva da vasta e aberta receptividade da atenção
plena que tem sua base no corpo, concentrar-se em um único ponto tem o seu
lugar. A única exigência é que este foco permaneça fundamentado em uma
consciência compreensiva da situação como um todo, ao invés de ficar em
oposição a ela. Não é necessário que os outros membros da orquestra saiam do
palco quando o solista tocar. É a sua presença muito silenciosa, que melhora a
atuação do solista. Da mesma forma, não há necessidade abandonar a
consciência do corpo inteiro tão logo decidamos concentrar-nos num
aspecto particular da experiência. Com a prática, se torna cada vez mais fácil
concentrar-se sem perder o quadro geral.
A definição e o refrão
De acordo com uma parte das instruções do Satipaṭṭhāna-sutta da qual gosto de
me referir como a "definição", praticar cada um dos quatro satipaṭṭhāna requer
realizar quatro qualidades: o diligência,
o clara compreensão,
o atenção plena,
o livre de desejos e de descontentamento (literalmente: ganância e tristeza) em
relação ao mundo.
A qualidade da atenção plena na prática que apresento aqui é, em particular,
atenção plena baseada na consciência proprioceptiva do corpo. Um aspecto
primário da diligência é o esforço para estar no momento presente em suas
dimensões interna e externa com um interesse contínuo. A qualidade de
clara compreensão vem ao primeiro plano por meio do reconhecimento da
natureza inconstante do momento presente. Isso nutre as sementes do insight
sobre a impermanência, que constroem a base para o insight sobre dukkha e o
não-eu. Este insight é precisamente o que nos permite ficar cada vez mais livres
de desejos e descontentamento em relação ao mundo.
A relevância da impermanência para cada um e para todos os satipaṭṭhāna
emerge de outra parte das instruções, que gosto de chamar de “refrão”. No caso
da contemplação do corpo, isso segue da seguinte forma (MN 10):
Em relação ao corpo, permanecemos contemplando o corpo internamente, ou
em relação ao corpo permanecemos contemplando o corpo externamente, ou
em relação ao corpo permanecemos contemplando o corpo interna e
externamente.
Ou, permanecemos contemplando a natureza do surgimento no corpo, ou
permanecemos contemplando a natureza do surgimento e do desaparecimento
no corpo.
Ou a atenção plena de que “há um corpo” é estabelecida nele mesmo, por causa
do simples conhecimento e da atenção plena contínua.
E permanecemos independentes, não nos apegando a nada no mundo.
Os seguintes quatro domínios surgem da prática do satipaṭṭhāna:
o contemplar internamente, externamente e de ambos,
o contemplar a natureza do surgimento, desaparecimento e de ambos,
o estabelecimento da atenção plena apenas para saber e estar atento,
o ser independente, sem se apegar a nada.
Interno e externo
As implicações da referentes à prática interna e externa não são imediatamente
óbvias. Várias interpretações foram propostas (Anālayo 2003: 94–102). O que
permanece certo é que esta parte do refrão aponta para a necessidade de
sermos compreensivos no nosso cultivo do satipaṭṭhāna.
A interpretação que, faz mais sentido do ponto de vista prático é considerar
“externo” como referindo-se a outros. Nosso próprio corpo é feito de partes
anatômicas e elementos, e após a morte, passará pelos estágios de
decomposição de um cadáver. O mesmo acontece aos corpos de outras
pessoas. Reagimos a certas experiências com sensações agradáveis,
desagradáveis ou neutras (a última é mais literalmente “não dolorosa-não-
agradável”, adukkhamasukha) e os outros também. Experimentamos
certos estados mentais, incluindo os obstáculos e fatores de iluminação e os
outros também. Embora ser capaz de sentir diretamente as sensações e os
estados mentais de outras pessoas exigiriam poderes telepáticos, pelo menos
um grau básico de reconhecimento pode ser alcançado por meio da observação
externa (DN 18; Anālayo 2003: 96f e 2013: 17f). É possível compreendermos
pela expressão facial, postura corporal e tom de voz se outra pessoa está
experimentando sensações agradáveis, desagradáveis ou neutras. É
igualmente possível, por meio dessa observação externa, ter uma ideia do
que provavelmente está acontecendo na mente de outra pessoa.
O cultivo sustentado da consciência de todo o corpo tem um benefício a mais a
oferecer. Um resultado natural do aumento da atenção dada à nossa postura e
atividades corporais é que as dos outros também recebe mais atenção do que
o normal. Isto nos torna mais facilmente conscientes do que os
outros comunicam através dos seus corpos. Às vezes, mais do que é dito, isso
pode ser um guia melhor para saber o que está acontecendo aos outros, no
nível das sensações e no mental. Desse modo, a prática da atenção plena do
corpo pode se tornar uma ferramenta útil para uma melhor compreensão e
interação com outras pessoas.
Adotar a interpretação proposta da qualificação “externo” como referindo-se a
outros, implica em compreender qualquer fenômeno contemplado do ponto de
vista de suas manifestações internas e externas. Ao mudar do interno para o
externo, aprendemos cada vez mais a ampliar nossa perspectiva de ver apenas
o nosso próprio ponto de vista subjetivo para levar em conta os pontos de vista
dos outros. Quando surgem conflitos interpessoais, aprendemos a ter
consciência não apenas de nossas necessidades, do que gostaríamos que
acontecesse e de onde sentimos que fomos injustiçados, mas também de como
a situação se apresenta aos outros. Quais são suas necessidades? De que
forma eles acham que foram injustiçados? O que eles gostariam que
acontecesse? Cada vez mais compreendemos as muitas maneiras pelas quais
as outras pessoas são afetadas pelo que fazemos e dizemos. Dessa forma, a
meditação formal e a atenção plena na vida diária se fundem perfeitamente, com
base na presença da atenção plena do corpo. A atenção plena do corpo forma
um pano de fundo para qualquer coisa que aconteça, construindo uma
ponte entre a prática sentada e as várias atividades.
A contemplação externa desse tipo seria mais relevante para a vida cotidiana do
que uma questão da meditação formal. Mesmo um monástico Budista vivendo
em reclusão terá que sair diariamente para esmolar comida e se juntar à
comunidade monástica a cada quinzena para a recitação do código de
regras (Anālayo 2017a: 37f). Assim, as ocasiões para tal contemplação externa
se manifestam naturalmente muito mais para o praticante leigo do mundo
moderno.
A dimensão externa no cultivo da atenção plena dá uma importante contribuição
para o crescimento do insight. Ao final, o que leva à transformação é o grau de
cada insight. Para que isso aconteça, os insights obtidos durante a meditação
formal precisam ser aplicados à vida diária. Eles devem ser colocados à
prova ao enfrentar as vicissitudes e desafios que ocorrem fora do isolamento da
meditação formal e do retiro. Tal teste nos permitirá discernir o verdadeiro valor
de qualquer insight e garantir que ele se torne tão enraizado dentro de nós, por
meio de uma aplicação repetida, que de fato efetue uma transformação
substancial e duradoura.
Outro aspecto da distinção entre meditação satipaṭṭhāna interna e externa é
reforçar uma relação mostrada no capítulo anterior entre atenção plena e
amplitude da mente. É precisamente uma visão de grande angular, cultivada
desta forma, que naturalmente leva a contemplar qualquer fenômeno particular,
de ambas as perspectivas combinadas: interna e externamente. Tomando o caso
da raiva por exemplo: como me sinto quando fico com raiva? Como os outros
se sentirão quando ficarem com raiva? Como me sinto quando os outros ficam
com raiva de mim? Como os outros se sentirão quando eu ficar com
raiva deles?
Só quando levamos em consideração essas perspectivas complementares é que
realmente entendemos como a raiva é dolorosa. Visto que a dimensão externa
da manifestação da raiva mais provavelmente aparecerá fora da meditação
formal, outro ponto do último capítulo vem à tona novamente aqui. Esta é a
necessidade urgente de desenvolver uma forma de prática que permita trazer as
qualidades da observação atenta para a vida diária. Para a meditação
satipaṭṭhāna, as atividades e interações diárias são campos de treinamento
fundamentais
No entanto, as instruções mencionam primeiro o “interno” e depois o “externo”.
Isso dá a impressão de que a familiaridade com o fenômeno contemplado deve,
antes de tudo, ser estabelecida em relação a nós mesmos, antes de contemplá-
lo em sua dimensão externa. Em outras palavras, a necessidade urgente de
trazer a atenção plena para a vida diária não deve se ser uma desculpa para
negligenciar as sessões formais. Em primeiro lugar, estabelecemos algum grau
de competência interna e, em seguida, estamos prontos para sair pelo mundo.
Tendo saído para o mundo, voltamos novamente à almofada de meditação, para
aprofundar ainda mais nossa prática, e assim por diante.
Um símile que pode ser usado para ilustrar a progressão das dimensões internas
para as externas da prática da atenção plena, descreve a cooperação entre dois
acrobatas (SN 47.19; Anālayo 2003: 276, 2013: 244ff e 2017a: 13ff). Os dois
acrobatas precisam ter o cuidado de estabelecer, antes de tudo, seu
próprio equilíbrio. Com base nesse equilíbrio interno, eles serão capazes de
cuidar um do outro e ter um bom desempenho. Da mesma forma, a prática
interna do satipaṭṭhāna constrói a base indispensável para ser capaz de
permanecer estabelecido em satipaṭṭhāna ao lidar com os outros. Desse modo,
encarar o mundo exterior naturalmente levará a níveis cada vez maiores de
paciência e gentileza, precisamente por meio do fundamento estabelecido na
prática da atenção plena.
Embora avançar do interno para o externo ofereça uma progressão significativa,
isso não significa que seja, em princípio, impossível ir do externo para o interno.
Um caso conhecido por mim ilustra isso. Uma mulher tinha um bebê com grave
deficiência, entre outros problemas, era cego e surdo. Cuidando de seu filho por
muitos anos, ela aprendeu a prestar muita atenção a tudo o que a criança parecia
experienciar no nível corporal, emocional e mental. Quando ela mais tarde veio
fazer um curso de satipaṭṭhāna, imediatamente sentiu que estava em um terreno
familiar. Seu filho, de certa forma, já havia lhe ensinado sobre os três primeiros
satipaṭṭhāna. Tendo já desenvolvido familiaridade com a dimensão externa
da prática da atenção plena, foi fácil para ela explorar a dimensão interna, bem
como ampliar sua perspectiva, proporcionada pelo quarto satipaṭṭhāna.
A formulação desta primeira parte do refrão vem com uma dupla referência ao
corpo: em relação ao corpo, permanecemos contemplando o corpo. O mesmo
é válido para os outros três satipaṭṭhāna. Uma duplicação semelhante também
é encontrada em relação às contemplações individuais às quais voltarei nos
próximos capítulos. Essa duplicação nos mostra que, de toda a gama de
fenômenos corporais, casos específicos são selecionados para uma
observação mais detalhada. Desta forma, o refrão assim como os exercícios
individuais, compartilham uma preocupação com aspectos específicos. Para
voltar ao meu exemplo anterior, a raiva é um estado mental particular. Para
compreender esse estado, é necessário reconhecer claramente a presença ou
ausência de raiva nas suas manifestações, interna e externa.
A relação entre as contemplações do satipaṭṭhāna individuais e a atenção plena
do corpo na vida diária, pode ser ilustrada com o exemplo de uma flor de lótus.
Quando o sol brilha, as pétalas se abrem e toda a beleza da flor e sua fragrância
se manifestam. Isso representa a experiência e a profundidade da prática, na
meditação formal, ao trabalhar com as contemplações individuais, explorando a
dimensão interna do satipaṭṭhāna. Em outras ocasiões, as pétalas se fecham e
ainda vemos as partes externas da pétala, mas não sentimos mais a fragrância.
Isso significa atenção plena na vida diária, o que nos dá a oportunidade de
explorar a dimensão externa do satipaṭṭhāna. Aberta ou fechada, permanece a
mesma flor. Da mesma forma, o interno e o externo se complementam. Ao
mesmo tempo, há uma diferença entre experimentar algo diretamente dentro de
nós e a sua observação externa. Do mesmo modo, quando as pétalas se
fecham, toda a beleza do lótus torna-se mais interna. Somente quando as
pétalas se abrem, experimentamos toda a fragrância do lótus e isso representa,
o sabor diferente da experiência interna direta.
À medida que a prática avança, a distinção entre o interno e o externo se dissolve
e nós começamos a contemplar “interna e externamente”. Isso serve para
esclarecer que a distinção entre os modos de prática “interno” e “externo” não é
para encorajar a construção de uma clara dicotomia, a criação de
dois compartimentos estanques independentes entre si. As fronteiras do interno
com o externo e vice-versa; simplesmente se referem às partes do continuum
realizada "interna e externamente", estaremos apenas cientes da manifestação
de "raiva", independentemente de onde ela esteja, interna ou externamente.
Visto que o modo externo de satipaṭṭhāna tende a ser o mais proeminente na
prática na vida diária, e o interno na meditação formal, a união dos dois, com a
contemplação feita "interna e externamente" exemplifica o fato de que, em
princípio, não é preciso haver um conflito entre esses dois modos. Uma vez que
a atenção plena esteja bem estabelecida, a meditação formal permeia as
atividades diárias e as transformam. As atividades diárias, por sua vez,
oferecem uma pedra de toque e campo de treinamento para qualquer insight
que tenha surgido na sessão formal, se aprofunde em um nível muito pessoal
e prático. Essas duas dimensões fazem parte de um continuum de prática. Vê-
las assim, ajuda a discernir o único fio da atenção plena do corpo que pode uni-
las em um todo harmonioso.
Com a prática sustentada, o que nos chega do domínio do externo, não precisa
mais ser experienciado como uma perturbação, mas pode ser harmoniosamente
integrado como alimento para nossa atenção. Mesmo fora da meditação formal,
a atenção plena pode permanecer tão bem estabelecida que notamos
claramente o que acontece internamente, como reagimos no nível mental. Com
o satipaṭṭhāna cultivado interna e externamente, tudo começa a fazer parte de
uma prática contínua e ficamos cada vez mais e mais à vontade com as
vicissitudes da vida, como se fôssemos peixes na água.
A natureza do surgir e do desaparecer
O segundo domínio do refrão não tem a duplicação de referência ao corpo (ou
sensações, mente e dharmas). Isso nos mostra que a prática agora se move de
aspectos particulares para o que há de comum. Todos eles têm a natureza do
surgir e do desaparecer. Aqui, a tarefa é reconhecer o caráter do processo
de todos os aspectos da experiência. Perceber quando a raiva surge, leva a
perceber quando ela desaparece. Por ter reconhecido a presença e ausência
de um estado mental individual como a raiva, passamos a apreciar que, a
natureza do surgimento de estados mentais tem seu complemento na natureza
de seu desaparecimento (o mesmo vale para o corpo, sensações ou dharmas).
Todos eles compartilham a natureza do surgir e do desaparecer.
Esta parte do refrão é de significado considerável, ele aponta para uma
experiência direta da natureza impermanente de todos os aspectos da
experiência. Talvez seja por essa razão que um discurso no Satipaṭṭhāna-
saṃyutta mostra uma distinção entre satipaṭṭhāna e o cultivo (bhāvanā) de
satipaṭṭhāna (SN 47.40; Anālayo 2003: 104). As quatro contemplações do corpo,
sensações, mente e dharmas são satipaṭṭhāna, formas de “estabelecer a
atenção plena”. O “cultivo” destes quatro modos de estabelecer a atenção plena
ocorrem por meio da contemplação da natureza do surgimento, do
desaparecimento e de ambos em relação a cada um dos quatro. Em outras
palavras, a base estabelecida com a atenção plena do corpo, sensações, mente
e dharmas deve levar ao cultivo do insight sobre a impermanência, a fim de
realizar o potencial libertador da prática da atenção plena.
É de significado prático adicional que as instruções falem sobre contemplar a
natureza do surgimento, a natureza do desaparecimento e a natureza do
surgimento e desaparecimento. Entendo que isso significa, que as instruções
podem ser realizadas, mesmo se perdermos o momento real do surgimento
ou o momento real do desaparecimento. Devido à rapidez de tais momentos,
não é fácil ficar atento quando isso acontece. De um ponto de vista prático,
essas instruções podem ser entendidas como abrangendo também a percepção
retrospectiva de que um determinado fenômeno surgiu, está presente, ou
então, nesse meio tempo ele passou e não está mais presente. Isso bastaria
para perceber que esse fenômeno é de fato da natureza de surgir e
desaparecer, mesmo que não fosse possível capturá-lo exatamente
no momento em que surgiu ou quando desapareceu.
Assim como com as dimensões interna e externa da prática, aqui também os
termos “surgimento” e “desaparecimento” não refletem uma dicotomia
fundamental, mas antes se referem a dimensões em um continuum de
experiências que mudam. A prática prossegue desde o mais facilmente
percebido, surgimento das coisas, até a observação do seu desaparecimento,
garantindo assim que não nos acomodaremos em uma autocomplacência
confortável sobre a sutileza agradável das coisas que surgem, mas
também levaremos para casa o aspecto consideravelmente menos agradável
da impermanência, ou seja, as coisas passam, mais cedo ou mais tarde chegam
ao fim.
Essas duas dimensões convergem na consciência da mudança contínua, com o
“surgimento e desaparecimento” de todos os aspectos da experiência. A
perspectiva média da mente destreinada é focar no que surge, o que é novo e
fresco, enquanto o que é velho, passa e cessa é evitado. Mudar de
"surgindo" para "desaparecendo" ajuda a combater esse desequilíbrio de
perspectiva. Uma vez que o equilíbrio tenha sido estabelecido, o objetivo final é
ver os dois aspectos como partes de um continuum. Em suma, sem qualquer
exceção, o corpo, as sensações, os estados mentais e os dharmas são
fenômenos que mudam, eles surgem e desaparecem. Desse modo, o insight
genuíno, de natureza penetrante, de como se processa a experiência torna-se
firmemente estabelecido.
Essa consciência de mudança vem com uma seta, apontada em direção ao
vazio. Vendo o surgimento e o desaparecimento dos fenômenos, aprendemos
cada vez mais a nos soltar, no sentido de não mais nos apegarmos a uma coisa
ou outra como algo que “é” (ou “não é”). É impossível apontar para algo como
uma entidade autossuficiente e independente que exista por si própria. Tudo é
simplesmente um surgimento e um desaparecimento. Quão sem sentido é
tentar apegar-se a fenômenos mutáveis. Como é sem sentido lutar e brigar.
Como é sem sentido tentar impor o controle e ter tudo exatamente
como queremos. Afinal, mesmo se tivermos sucesso, tudo em breve mudará
novamente.
De certa forma, o primeiro e o segundo domínio do “refrão” podem ser
considerados os fundamentos da nossa experiência do satipaṭṭhāna. As
contemplações internas e externas cobrem a dimensão espacial dos fenômenos
contemplados, surgindo e desaparecendo cobrem a dimensão temporal de sua
constante mudança.
Sendo só atento
O terceiro domínio da prática mencionado no refrão, diz respeito a estar atento,
apenas pelo bem, do conhecimento e da atenção plena. Na prática, sugiro
implementar isso passando do trabalho com os exercícios individuais para uma
forma menos estruturada de meditação. Apenas relaxamos com a consciência
aberta a tudo o que acontece, sem escolher ou rejeitar. Como mencionado no
capítulo anterior, estamos apenas receptivos e atentos de que “existe o corpo”,
“existe a sensação”, “existe a mente” e “existem os dharmas”. Isso é semelhante
ao pastor que está apenas atento de que as vacas estão ali. Tal prática, no
entanto, difere da consciência do pastor na medida em a visão abrangente
previamente estabelecida do interno e externo, bem como no insight
fundamental sobre a impermanência. Isto é mencionado no refrão pouco antes
desta passagem. Também se baseia em outras dimensões do insight,
desenvolvidas com os exercícios individuais.
Desta forma, parece haver um lugar para a “atenção pura” no Satipaṭṭhāna-sutta
(Anālayo 2017a: 25f e 2018a). Mas este lugar surge depois que uma visão
meditativa abrangente e um insight experiencial sobre a impermanência foram
cultivados e estabelecidos. Para recapitular, a contemplação satipaṭṭhāna
começa cultivando um claro entendimento do domínio interno do corpo,
sensações, etc., e então complementa isso cobrindo também o domínio externo.
Ambos juntos, levam a um nível de compreensão que ultrapassa o contraste
dualista entre o eu e os outros, envolvendo uma mudança, ao se ver a
natureza geral que todos compartilhamos, independentemente de se manifestar
interna ou externamente. Tal maneira de ver as coisas, do ponto de vista geral,
leva a perceber em particular, sua natureza de surgir e também sua natureza de
desaparecer. Em linha com a mudança de interno ou externo para interno
e externo, há uma mudança, do surgimento e desaparecimento, para a visão
contínua da impermanência.
Com o insight bem estabelecido no que diz respeito ao espaço e às dimensões
temporais da experiência meditativa, é desta forma que a prática de apenas
estar atento tem seu devido lugar. Ela pode desenvolver seu potencial
transformador porque se baseia no entendimento e no insight. Este trabalho
de base garante que, a atenção pura, não caia na armadilha da atenção plena
do pastor, que apenas observa sem qualquer compreensão mais profunda.
Para apreciar este terceiro domínio de prática, acho útil ter em mente que as sete
contemplações individuais não mencionam a atenção plena em suas descrições
das atividades meditativas a serem realizadas. As instruções são para “saber”
(pajānāti). Com as partes e elementos anatômicos, a pessoa “examina”
(paccavekkhati), e com a contemplação de cadáveres, a pessoa “compara”
(upasaṃharati). A atenção plena é mencionada como o primeiro dos fatores do
despertar, mas também neste caso, a tarefa real é que se “saiba”.
Isso implica que, no presente contexto, sati não é tanto algo que fazemos, mas
sim algo que somos. Conforme mencionado brevemente no capítulo anterior, as
diferentes contemplações no Satipaṭṭhāna-sutta servem para estabelecer a
atenção plena. O que fazemos é saber, examinar e comparar. Todas
essas atividades contribuem, convergem e têm como base ser atento. Aqui, a
atenção plena não representa uma atividade, mas sim uma qualidade. Esta
qualidade única permanece por trás de cada um dos exercícios e ao mesmo
tempo forma sua consumação.
Além de sua ocorrência na definição, como uma das qualidades fundamentais
para a meditação satipaṭṭhāna, é na nesta parte do refrão que a atenção plena
é explicitamente mencionada. Com esta terceira parte do refrão, praticamos
para estar continuamente atentos. Comparada aos dois domínios anteriores do
refrão, este indica, permanecer simplesmente atentos ao desdobramento natural
da experiência meditativa.
No pāli original, os três primeiros domínios do refrão estão conectados entre si
por meio da partícula disjuntiva vā, “ou”. Entendo que isso mostra que esses
três são modos alternativos de prática. Ao mesmo tempo, a sequência de
apresentação parece sugerir que essas três alternativas se constroem uma
sobre a outra em uma progressão natural. Essa progressão natural prossegue
desde o estabelecimento de sua abrangência, por meio do reconhecimento da
mudança, até apenas, estar atento.
Estabelecendo-se independentemente
A parte final do refrão não vem mais com a partícula disjuntiva “ou”, mas sim com
a partícula conjuntiva ca, “e”. Este é um dos quatro domínios relevante para
qualquer tipo de meditação satipaṭṭhāna: não se apegar a nada no mundo. É a
essência da prática. Aqui, o “mundo” é o mundo da experiência. A questão crucial
com relação a este mundo não é “ser ou não ser”, mas “se apegar ou não se
apegar”.
Experimentar um momento da independência descrita aqui é uma amostra da
liberação. Este é o objetivo para o qual estamos treinando, a medida do
progresso. O que realmente conta não são as experiências especiais, por mais
profundas que possam parecer. O que realmente importa é o grau em
que podemos viver sem apego a nada.
Com a atenção plena do corpo como o centro e as sete contemplações como os
raios da roda da prática, estabelecendo-se independentemente, sem se apegar,
é o aro externo. Onde quer que o aro toque o solo, representa o que está
acontecendo no momento presente, é precisamente neste ponto
que precisamos permanecer sem o apego. Essa ausência de apego, tem o cubo
da roda como sua fonte de força e os sete raios como seu suporte. Enquanto a
roda continua avançando no caminho da liberação, onde quer que o aro toque
a realidade externa, a tarefa permanece a mesma: não se apegue a nada!
Os quatro domínios do refrão e as quatro qualidades mencionadas na definição
podem ser combinados. Contemplar o interno e o externo exige um esforço
diligente. Reconhecer o surgimento e o desaparecimento exige uma clara
compreensão. Estar atento encontra sua expressão mais eloqüente quando
estamos atentos apenas para saber e estar atentos. Ficando livre de desejos e
descontentamento em relação ao mundo corresponde à estabelecer-se
independentemente, sem se apegar a nada.
Os principais aspectos da meditação satipaṭṭhāna que emergem da combinação
da definição e do refrão podem ser resumidos da seguinte forma:
o contemplar com diligência interna e externamente;
o claro saber do surgimento e do desaparecimento;
o estar atento apenas por causa da compreensão e da atenção plena;
o permanecer livre de desejos e descontentamento para estabelecer-se
independentemente, sem se apegar a nada.
Um resumo adicional para a esta prática, poderia ser simplesmente: "mantenha-
se calmo, conhecendo as mudanças." Aqui, “manter” reflete diligência em
explorar as dimensões internas e externas da prática. A necessidade de
permanecer livre de desejos e descontentamento, e a capacidade
de estabelecer-se independentemente sem apego, são resumidas na
qualificação “calmo”. A atenção plena, apenas para estabelecer-se
contínuamente com atenção plena, fornece a base para a clara
"compreensão", como uma qualidade geral relevante para todas as práticas de
satipaṭṭhāna que têm como principal tarefa o reconhecimento de que tudo o que
é experimentado é uma manifestação de “mudança”. Dessa forma, “manter com
calma a compreensão das mudanças” pode servir como um princípio, um guia
simples, para a prática de satipaṭṭhāna, e o objetivo de tal prática seria: “nunca
se apegue a nada”.
Resumo
Com base no estudo comparativo dos discursos antigos, sete contemplações
emergem como o núcleo da meditação satipaṭṭhāna. Estes podem ser
combinados em um modo contínuo de prática, comparável à progressão
meditativa do Ānāpānasati- sutta. Os quatro satipaṭṭhāna podem também ser
usados em situações da vida diária. Tornar-se consciente do corpo ao sentir
suas sensações, tendo como base um estado mental no qual a atenção plena
está bem estabelecida, pode servir para ativar os três primeiros satipaṭṭhāna. O
quarto entra em seu devido lugar, quando tudo o que é experimentado se torna
uma ocasião para o cultivo do insight libertador, podendo assumir a forma de
notar a natureza impermanente de tudo o que está acontecendo.
Os principais aspectos da prática de satipaṭṭhāna, descritos na “definição” e no
“refrão” do Satipaṭṭhāna-sutta, podem ser resumidos como apontando para a
necessidade de combinar uma exploração diligente das dimensões internas e
externas da situação em questão, com a clara compreensão de sua natureza
impermanente. Dessa forma, a atenção plena pode ser praticada por si mesma,
de modo que permaneçamos livres de desejos e de descontentamento e, assim,
vivamos independentemente, sem nos apegarmos a nada.
3. Anatomia
O primeiro dos sete raios da roda da prática satipaṭṭhāna descrita neste livro
aborda a constituição anatômica do corpo. As instruções no Satipaṭṭhāna-sutta
são as seguintes (MN 10):
Examina-se este mesmo corpo, para cima desde a planta dos pés e para baixo
desde o topo do cabelo, envolvido pela pele e cheio de vários tipos de
impurezas: “Neste corpo há cabelo na cabeça, pelos no corpo, unhas, dentes,
pele, carne, tendões, ossos, medula óssea, rins, coração, fígado, diafragma,
baço, pulmões, intestino, mesentério, conteúdos no estômago, fezes, bile,
catarro, pus, sangue, suor, gordura, lágrimas, gordura, saliva, muco, óleo nas
articulações e urina. ”
Esta e as outras duas contemplações corporais retomadas nos próximos dois
capítulos, ajudam o cultivo de maneiras de se relacionar com o corpo sem
apego. Em outro texto, discuti com mais detalhes a forma como a teoria da
meditação no Budismo antigo mostra um conjunto de perspectivas sobre o
corpo (Anālayo 2017a: 43ss). A desconstrução da percepção do corpo como
sensualmente sedutor, enfatizada no presente exercício, não é a única
perspectiva. Ela é complementada pela prática da atenção plena do corpo, como
uma forma neutra de se relacionar com o corpo e como experiência do corpo
permeado pelo extâse e felicidade durante a absorção.
A natureza do corpo
O elemento de avaliação no presente exercício é melhor compreendido tendo
como pano de fundo estas perspectivas complementares. No trecho traduzido
acima, esta avaliação manifesta-se na atenção dirigida ao corpo como sendo
“impuro” (asuci), que também poderia ser traduzido como “sujo”.
Para compreender este tipo de qualificação, pode ser útil recorrer a uma
recordação padrão praticada pelos monásticos em relação aos seus mantos
(Anālayo 2017a: 47). Essa lembrança chama a atenção para o fato de que os
mantos se sujam pelo contato com nosso corpo. Pensando bem, isso
acaba sendo verdade. Mantos e a roupa de cama ficam sujos com o uso, e a
principal fonte dessa sujeira é o nosso próprio corpo. Embora este seja um
aspecto do corpo físico a que, na sociedade contemporânea, não costumamos
prestar atenção, dificilmente pode ser negado. Na verdade, o principal objetivo
deste exercício é precisamente questionar a maneira como nos acostumamos
a nos relacionar com os corpos humanos.
Uma qualificação alternativa do mesmo tipo de exercício nos mostra o corpo
como sendo “não bonito” (asubha). O significado dessa qualificação no contexto
atual é a noção de beleza como algo que é sexualmente atraente e sedutor. É
o tipo de beleza que desperta o desejo de tocar, beijar e fazer sexo. O objetivo
do exercício não é questionar a beleza estética em geral. Na verdade, em um
discurso no Saṃyutta nikāya, o Buda elogia a beleza física de um monge que
ele vê naquele momento (SN 21.5; Anālayo 2017a: 52). Essa passagem mostra
claramente que não há problema com a beleza em si. O problema está
muito mais no desejo sensual.
Apenas uma minoria dos seres humanos se encaixa no molde rígido das
expectativas modernas de beleza física. É simplesmente injusto que a maioria
dos seres humanos seja discriminada porque é muito gorda ou muito magra,
muito baixa ou muito alta, porque tem esta ou aquela cor de pele. Todos os
seres humanos devem, em princípio, ter o mesmo direito de aceitação e
respeito, independentemente da forma de seu corpo. A discriminação racial é
particularmente prejudicial. Afinal, a pele é apenas pele, qualquer que seja sua
cor. Não carrega nenhuma implicação sobre a pessoa em si, se a pessoa é
inteligente ou não, honesta ou não.
Sensualidade
A discriminação racial não é a única questão. O desejo sexual pode realmente
sair do controle e levar a coisas horríveis, como estupro, pornografia infantil e
assim por diante. Esses exemplos devem deixar claro que o desejo sexual não
pode ser simplesmente comparado ao amor. O estupro, por
exemplo, definitivamente não é uma forma de amor. Pelo contrário, é uma forma
perigosa de doença mental que inflige imensos danos de forma brutal. Há
momentos em que o estuprador até mata a vítima. Isso é exatamente o oposto
ao amor.
À parte dessas manifestações extremas de desejo sensual, parece bastante
apropriado restringir ou eliminar o desejo sexual quando ele ocorre em situações
inapropiadas. Alguém pode experimentar o surgimento do desejo sensual em
relação ao parceiro de seu melhor amigo, por exemplo. Seria útil, em
tal situação, ser capaz de apagar a chama da luxúria no início, quando isso
ainda é administrável. Se não for controlada, a pequena chama pode se tornar
um incêndio, que queima a nós e aos outros. Lembrar a nós mesmos que o
corpo é uma combinação de partes anatômicas pode ajudar a fazer uma
avaliação da realidade, a distinguir o que realmente está ali do que a mente faz
com isso.
As desvantagens do desejo sensual encontram ilustração em vários símiles no
Potaliya-sutta (MN 54; Anālayo 2013: 74ff). Um símile compara o ato de
entregar-se à sensualidade a carregar uma tocha acesa contra o vento, em que
o carregador se queimará. Deixar-se levar pela sensualidade é como carregar
uma tocha acesa sem habilidade, de tal forma que nos queimamos. A questão
não é a busca do prazer em si; de fato, o símile não diz que, em princípio, há
algo errado em usar uma tocha. O problema é segurar a tocha na direção
errada. Aplicado à busca de prazer, o problema é, similarmente, a direção errada,
a indulgência sensual.
As imagens do fogo também aparecem no Māgandiya-sutta (MN 75; Anālayo
2013: 73). Este discurso descreve um leproso que cauteriza suas feridas no
fogo. Mesmo que a cauterização lhe cause alívio temporário, acaba por piorar
seu estado. O mesmo acontece com a sensualidade. Quanto mais
formos indulgentes, mais forte o desejo sensual se tornará. Em contraste, um
leproso curado não vai mais querer chegar perto do fogo. Ele até mesmo
resistirá com todas as suas forças, se for forçadamente arrastado ao fogo. Isso
ilustra alguém que deixou para sempre o fogo do desejo. Tal pessoa não vai
querer ser indulgente com a sensualidade, simplesmente porque os prazeres
sensuais perderam completamente a sua antiga atração.
Outra comparação no Potaliya-sutta descreve um cachorro faminto roendo um
osso, incapaz de satisfazer sua fome. A indulgência sensual, do mesmo modo,
é incapaz de produzir uma duradoura satisfação. Assim como o sabor do osso
parece promissor ao cão, também a busca da sensualidade parece promissora.
No entanto, ambos falham em cumprir sua promessa.
Outro símile, no mesmo discurso, descreve um pássaro que conseguiu um
pedaço de carne e é perseguido por outros pássaros que tentam pegá-la. Se a
ave não largar o pedaço de carne, corre o risco de ser ferida ou mesmo morta
pelas outras aves. Esse símile ilustra a competição entre aqueles que buscam
a gratificação sensual. Podemos pensar em dois homens apaixonados pela
mesma mulher que podem, até mesmo, chegar a se matar.
A atração sensual está intimamente relacionada ao nosso próprio senso de
identidade. Isso aparece em um discurso no Aṅguttaranikāya (AN 7.48; Anālayo
2013: 71). O discurso descreve como um homem tende a se identificar com seu
senso de masculinidade e a encontrar alegria nisso, assim como uma
mulher tende a se identificar com seu senso de feminilidade e a encontrar alegria
nele. Tendo se identificado com a masculinidade interna, o homem busca a
feminilidade fora dele, assim como a mulher, tendo se identificado com a
feminilidade interna, busca a masculinidade fora dela. Desse modo, o anseio
pela união sexual os impede de transcender os estreitos limites de seu senso
de identidade. Embora não seja explicitamente mencionado, este discurso
também pode ser aplicado ao caso de desejos sensuais pelo mesmo sexo.
O princípio básico, que abre o caminho para a liberdade, é o de abandonar o
senso de identidade limitado e limitador, que alimenta o desejo sensual.
O presente exercício oferece um treinamento para alcançar tal liberdade.
Envolve uma mudança na percepção, distante da noção padrão do corpo
humano sexualmente atraente com que nossa sociedade nos treinou
amplamente. Pense em todo o tempo e recursos investidos para embelezar e
adornar o corpo. Isso é uma grande perda de tempo e recursos, que poderiam
ser usados para melhores propósitos. Tudo o que é necessário é emergir da
obsessão do corpo como sexualmente atraente. Manter o corpo limpo e em
bom estado de funcionamento é muito mais simples e apropriado.
Rigorosamente falando, o desejo sensual cai sob o domínio dos cinco
obstáculos. No entanto, vale a pena dizer aqui, o desejo, como tal, não é
necessariamente um obstáculo. O desejo de nos desenvolver e de progredir no
caminho é certamente recomendável. Não há dúvida sobre isso. O problema dos
desejos sensuais é simplesmente a crença equivocada de que a verdadeira
felicidade pode ser encontrada gratificando os sentidos. Com o progresso na
prática, torna-se cada vez mais claro que vale a pena cultivar a mente de forma
a dar origem à alegria e felicidade saudáveis. A alegria e a felicidade
experimentadas durante profunda concentração ou insight estão enraizadas em
uma condição da mente que está distante do desejo sensual. A principal função
do presente exercício é facilitar essa seclusão. É um remédio, uma cura que
permite a experiência de uma maior e mais refinada felicidade, a qual jamais
alcançaríamos por meio da indulgência dos sentidos. De certa forma, oferece
uma mudança no desenvolvimento da intimidade interior, em vez de embarcar
na busca da intimidade por meio da união sexual externa.
O símile
Como já foi mencionado na seção anterior, a contemplação das partes
anatômicas como impuras ou sujas, ou como desprovidas de beleza, não é uma
forma de atenção plena em si mesma. Em vez disso, é um “exame”. Essa
diferença precisa ser mantida em mente. O elemento investigativo, introduzido
neste exame, não é uma forma de atenção plena em si; é uma prática que visa
estabelecer uma postura equilibrada de atenção plena. O tópico de equilíbrio e
liberdade do desejo e aversão vem à tona no símile que acompanha este
exercício no Satipaṭṭhāna-sutta:
É como um homem de boa visão que abriu um saco de boca dupla cheio de
diferentes tipos de grãos, como arroz negro, arroz vermelho, feijões, ervilhas,
painço e arroz branco, que ele examinaria: “Isso é arroz negro, isso é arroz
vermelho, esses são feijões, essas são ervilhas, isso é painço e isso é arroz
branco ”.
Olhar para vários grãos em tal saco, aparentemente usado para semear,
dificilmente provocaria uma reação. Não pensaríamos no arroz ou feijão como
algo sexy, nem gostaríamos de inventar maneiras de embelezá-los. Eles são
simplesmente arroz ou feijão.
O objetivo deste exercício é cultivar uma atitude semelhante em relação às
diferentes partes do corpo. Na verdade, a lista das partes anatômicas inclui
aspectos do corpo humano que geralmente são considerados atraentes, como
cabelo, unhas, dentes e pele. Ao lado disso, há partes que geralmente
são consideradas nojentas, como fezes, bile, catarro, pus, sangue e assim por
diante. No Madhyama-āgama paralelo ao Satipaṭṭhāna-sutta, a instrução é
contemplar o corpo “de acordo com o que é atraente e o que é repulsivo”,
observando assim explicitamente que a lista das partes anatômicas compreende
ambos os aspectos (Anālayo 2013: 63). A tarefa é sair da atração e do nojo,
aprendendo a perceber as partes do corpo com a mesma atitude que teríamos
ao olhar para vários grãos.
Esta contemplação pode ser combinada com um reconhecimento da
funcionalidade de cada parte. Tal aspecto da prática é mencionado de uma
forma explícita no Ekottarika-āgama paralelo ao Satipaṭṭhāna sutta, que
apresenta a lista das partes anatômicas, encorajando a contemplação “deste
corpo de acordo com sua natureza e funções, da cabeça aos pés e dos pés à
cabeça” (Anālayo 2013: 64). É importante ter um corpo humano saudável para
poder praticar o caminho. É importante ter isso em mente, pois
desenvolver aversão ao corpo ou não cuidar dele quando está doente também
pode se tornar um obstáculo para o progresso em direção à libertação, assim
como é o caso da indulgência sensual.
Uma simplificação prática
Para a prática deste exercício, gostaria de apresentar uma simplificação. Esta
simplificação envolve resumir as diferentes partes anatômicas em três partes.
São elas: pele, carne e ossos. A ideia para esta simplificação me veio do
Sampasādanīya-sutta (DN 28; Anālayo 2013: 72). A passagem relevante
descreve uma progressão da contemplação das partes anatômicas para o estar
atento apenas dos ossos, deixando de lado a pele e a carne. Isso implica que a
lista das partes anatômicas pode ser resumida nesses três aspectos.
A simplificação que estou propondo aqui é apenas um ponto de partida,
deixando livre para cada praticante mudar, depois, para uma contemplação mais
detalhada.
Recomendo, para começar, o modo de prática em forma de varreduras pelo
corpo. Uma varredura para tornar-se consciente da pele, outra para tornar-se
consciente da carne, e uma terceira para consciência dos ossos.
Como pano de fundo para as varreduras, gostaria de dizer algumas palavras
sobre a relação entre um mapa e realidade na meditação. Nossa experiência
meditativa é condicionada por ambos. Os ensinamentos passados por
transmissão oral são mapas para serem usados na prática. A aplicação
desses mapas à realidade experienciada na meditação torna-se o cultivo mental
(bhāvanā). Os mapas são realmente importantes, mas são apenas ferramentas.
Eles são semelhantes a uma jangada, que é útil para a travessia, mas depois
pode ser descartada. O uso de um mapa como tal não é um problema, desde
que tenhamos certeza de que esse mapa está de acordo com a realidade. Em
outras palavras, usar um mapa não significa dar rédea solta a qualquer tipo de
imaginação. Em vez disso, certificamo-nos de que o nosso mapa está de acordo
com a realidade. Esse mapa tem o potencial de nos levar ao conhecimento e à
visão das coisas como realmente são (yathābhūta).
Usar conceitos como auxílio para o cultivo do insight funciona bem, desde que
nosso mapa geral esteja de acordo com a realidade. Não só funciona bem;
conceitos são realmente necessários. Sem o uso de qualquer conceito,
dificilmente saberíamos que existem “pele”, “carne” e “ossos”. Nem mesmo
seríamos capazes de saber que “há um corpo”.
Em relação à exatidão do mapa, o fato de o corpo humano possuir as partes
anatômicas listadas nas instruções é indiscutível. O mesmo se aplica à
proposição de que o corpo tem pele, carne e ossos. Dificilmente pode haver
qualquer dúvida sobre a precisão deste mapa particular, visto que apenas as
partes anatômicas estão envolvidas, deixando de lado a avaliação destas como
impuras, por enquanto.
Ao fazer uma varredura do corpo dando atenção à pele, carne ou ossos, não é
essencial ser capaz de sentir todas e cada parte distintamente. Na verdade, a
listagem no Satipaṭṭhāna-sutta não é abrangente. Em outras seções os
discursos refletem sobre a atenção no cérebro, por exemplo, que não é
mencionado nas instruções para contemplar as partes anatômicas do corpo.
Somente em tradição posterior é que o cérebro passa a ser adicionado à lista
(Anālayo 2003: 147n119, 2013: 67 e 2018c: 152).
Quaisquer que sejam as partes anatômicas selecionadas para contemplação, já
sabemos que estão no corpo. Portanto, não há necessidade de realizar um
projeto de pesquisa pessoal com o objetivo de provar sua existência e certificar
o nosso mapa. Ao invés disso, estamos apenas tentando cultivar uma noção
geral da constituição de nosso corpo. É suficiente saber que este corpo é feito
de pele (incluindo cabelos e unhas), de carne (composta por músculos, tendões
e órgãos) e de ossos (cobrindo também os dentes).
Como preparação, poderíamos simplesmente tocar nosso rosto com as mãos
para sentir a pele. Então poderíamos tocar as gengivas com a língua e sentir a
carne. Em seguida, poderíamos mover a mandíbula inferior de um lado para o
outro, para frente e para trás, para ter uma noção dos ossos. Tudo isso deve
estar ao alcance da experiência pessoal de cada um de nós.
Apenas isso é suficiente como ponto de partida. Durante o escaneamento do
corpo, às vezes podemos ter uma sensação real da localização física de
algumas de suas partes; podemos senti-las. Mas, mesmo sem uma sensação
distinta, é suficiente saber que elas estão lá. O objetivo deste exercício
é alcançado apenas pelo saber, sem a necessidade de nos cansarmos para
obter uma sensação distinta.
Para este exame, sugiro começar com a cabeça e descer até os pés para
contemplar a pele. Para a carne, sugiro subir dos pés à cabeça, e novamente
para os ossos, da cabeça aos pés. Esta é apenas uma maneira de se fazer, e
os praticantes devem se sentir livres para mudar e ajustar de acordo com
suas preferências pessoais (uma alternativa para aqueles que não se sentem
confortáveis com o método de varredura seria, por exemplo, direcionar a
consciência para a totalidade da pele, depois da carne e depois dos ossos, de
todo o corpo).
Durante cada varredura, mesmo que haja um claro foco na pele, carne ou ossos,
seria ideal se esse foco viesse junto com uma noção geral da presença do corpo
todo. As três varreduras, da pele, da carne e dos ossos, envolvem uma
progressão do mais externo para o mais interno. Isso gradualmente constrói
uma percepção mais tridimensional de nosso próprio corpo como um todo. Essa
tridimensionalidade, por sua vez, fornece uma base espacial sólida para a
consciência do corpo inteiro, como uma ferramenta para a manutenção da
atenção ao momento presente.
Um método detalhado
Baseado em uma familiaridade com esta abordagem simplificada, de uso apenas
da pele, carne e ossos como o começo do exercício, uma varredura detalhada
pode ser desenvolvida, levando em consideração todos os itens mencionados
no discurso. A seguir, apresento uma maneira pela qual isso poderia ser
feito. Por ser combinada com a varredura, a ordem dos órgãos difere da lista do
Satipaṭṭhāna-sutta.
Ao fazer a primeira varredura, inicialmente nos tornamos conscientes dos
cabelos e, em seguida, nos voltamos para a pele na área da cabeça. A atenção
dada à pele da região facial pode ser acompanhada pela observação da
oleosidade que lubrifica a pele em geral, juntamente com a eventual
manifestação de pus, evidente na formação de espinhas, na testa ou
bochechas. Os olhos em particular podem ser uma ocasião para notar as
lágrimas, as narinas para notar o catarro e a boca para notar a saliva. Descendo,
a atenção pode ir para os pelos do corpo, que são especialmente proeminentes
nas axilas, bem como mais tarde, quando alcançamos à área genital. Os
mesmos locais também podem ser usados para o suor, que se manifesta com
destaque particular nas axilas e na área genital, com a consciência de que a
transpiração ocorre através de todos os poros do corpo. Ao chegar à pele das
mãos, e posteriormente à dos pés, notam se as unhas. Ao atingir as nádegas, a
atenção dada à pele pode vir em conjunto com a observação da gordura
subcutânea.
[imagem]
Durante a segunda varredura, a partir dos pés, a percepção da carne pode
também ser combinada com a observação dos tendões. Ao se começar pelos
pés, eles são bastante evidentes. Ao atingir a área genital, a bexiga contendo
urina e os intestinos contendo fezes podem receber atenção específica.
A contemplação pode prosseguir para o mesentério, os rins, o baço, o conteúdo
do estômago e o fígado com sua bile. Em seguida, vêm o diafragma e os
pulmões, que podem estar relacionados à manifestação de muco. Ao olhar para
o coração podemos observar o sangue que ele bombeia por todo o corpo.
A contemplação continua com as partes de carne e os tendões nos braços,
assim como na cabeça.
A terceira varredura pode começar com os ossos do crânio e os dentes e, em
seguida, passar para a medula óssea e os ossos do restante do esqueleto. Ao
chegar a uma articulação entre dois ossos, o óleo das articulações também pode
ser notado.
Essa é apenas uma das formas possíveis de realizar um exame detalhado, com
base nas partes anatômicas listadas nas instruções, embora em uma sequência
diferente. Talvez esta sugestão possa servir como um ponto de partida para que
cada praticante desenvolva um modo de contemplação que melhor se adapte
às necessidades e preferências individuais. Em geral, porém, minha
recomendação é começar primeiro usando apenas a pele, a carne e os ossos.
Isto é suficiente para o objetivo da prática.
De olho no equilíbrio
No que diz respeito a avaliar a questão - se o corpo é de fato impuro, sujo ou feio
-, para muitos praticantes não é tão evidente e aceitável quanto o fato de ser
feito dessas várias partes anatômicas. Enquanto um mapa baseado nessas
partes dificilmente pode ser questionado, a avaliação depende de nossa
análise pessoal, se deve ou não se tornar parte do mapa usado para a prática.
Portanto, deixo para cada praticante decidir até que ponto um elemento de
avaliação é apropriado. Embora uma versão sólida do elemento de avaliação
seja bastante apropriada para os monásticos dedicados a uma vida de celibato,
o mesmo não se dá para um praticante leigo que vive a vida familiar. No entanto,
de acordo com os discursos, vários discípulos leigos foram praticantes bem-
sucedidos de satipaṭṭhāna (Anālayo 2003: 275). Tendo em vista a diversidade de
contextos dos quais os praticantes podem vir, parece melhor permitir diferentes
modalidades deste exercício.
Um importante ponto de partida para esta prática é o reconhecimento atento do
tipo de relação que temos com o nosso próprio corpo. Se esta relação é de
aversão para com o corpo, é importante evitar fazer algo que reforce ainda mais
essa aversão. Se já tendemos a sentir-nos frustrados ou mesmo
deprimidos porque o nosso corpo não satisfaz os padrões atuais de beleza física
e atração, seria insensato empregar a avaliação. Em vez disso, podemos
chamar a atenção apenas para o fato de o corpo ser constituído por pele, carne
e ossos, que desempenham a sua função independentemente do que a
sociedade considera ser uma boa aparência. Assim, a abordagem adequada
seria fazer o exame apenas para despertar uma atitude de equilíbrio,
semelhante a olhar para vários grãos. Uma reflexão segundo as linhas de não
apego será apropriada, especialmente para praticantes que tenham uma
relação negativa com o próprio corpo. Afinal de contas, é apenas pele, carne e
ossos.
Não há qualquer problema em se decidir por esta opção. Pelo contrário, é uma
parte essencial da prática adequada de atenção plena reconhecer claramente
onde estamos e para onde queremos ir. Este monitoramento atento, pode levar
à percepção de que atribuir uma avaliação não se ajusta à nossa situação atual.
O tipo de meditação satipaṭṭhāna que estou apresentando abrange três
diferentes contemplações do corpo. Isto deixa espaço para que cada praticante
escolha à qual destas três deve dar mais ênfase. É perfeitamente correto
abordar esta contemplação do corpo específica de uma forma suave. Não
há necessidade de nos forçarmos a fazer algo que não se revele benéfico.
O mesmo se aplica ainda mais se formos vítimas de abuso ou de outros traumas
relacionados com o corpo. Neste caso, antes de tudo é preciso encontrar uma
maneira de habitar o corpo sem dar origem à negatividade. O emprego de uma
avaliação que aumenta a negatividade seria contraproducente e poderia até ser
prejudicial. Em tal situação, é apropriado optar apenas pela prática simples de
estar atento à pele, carne e ossos, junto com um monitoramento contínuo de
como isso afeta nosso relacionamento com o corpo. Com base nessa análise
contínua por meio da atenção plena, seremos capazes de decidir
como proseguir.
Às vezes, até pele, carne e ossos podem ser demais. Talvez seja melhor
começar apenas com os ossos, estar atento somente ao esqueleto, que em
geral não é uma área carregada emocionalmente e ao mesmo tempo permite
nos centrar e habitar o corpo. Alternativamente, também pode ser uma
opção trabalhar apenas com uma parte do corpo que pareça segura. Isso
poderia ser, por exemplo, os pés. Assim, direcionamos a atenção apenas a essa
parte do corpo para o escaneamento e então, gradual e suavemente,
expandimos para outras partes, na medida em que também comecem a parecer
seguras.
O objetivo geral da prática é chegar a uma atitude equilibrada e saudável em
relação ao corpo, uma atitude que seja tão livre do desejo sensual quanto da
aversão ou repulsa. Portanto, o grau em que um modo de avaliação é introduzido
depende de monitorarmos com atenção onde estamos no momento, e o que é
necessário para criar o equilíbrio.
Com base em tal avaliação, alguns de nós podem se sentir prontos para
enfrentar uma tendência à obsessão sensual em relação ao corpo. Nesse caso,
seria apropriado incluir uma avaliação. Podemos usar a terminologia encontrada
no discurso - “impuro” ou “sujo” -, ou então “não sexualmente atraente”.
Para aqueles que desejam ir ainda mais longe, ofereço aqui algumas sugestões
adicionais. Mas deve ficar claro que isso só se destina àqueles que realmente
querem enfrentar de frente o desejo sexual. O mesmo vale para a leitura dos
próximos dois parágrafos, que alguns leitores podem preferir pular.
Uma forma de fortalecer o impacto dessa prática é ter em mente, durante o
primeiro escaneamento relacionado à pele, que a pele externa é matéria morta.
A parte externa da pele é composta de células mortas que continuam a
descamar. O corpo exala gordura que mantém as células mortas no lugar.
Essa mistura de células mortas da pele e gordura atrai bactérias. Cada
centímetro quadrado de nossa pele é uma fonte de alimentação para milhões
de bactérias. Logo abaixo desta base de alimentação de bactérias, conforme as
coisas se tornam vivas, aparece o sangue.
Outra forma de fortalecer o impacto desta meditação pode ser introduzindo um
exercício encontrado no Ekottarika-āgama, paralelo ao Satipaṭṭhāna-sutta, e
também em um discurso em pāli (AN 9.15; Anālayo 2013: 40f). Este exercício
chama a atenção para os líquidos sujos que saem dos nove orifícios do corpo.
São eles: os olhos, as orelhas, as narinas, a boca, a uretra e o ânus. Os olhos
liberam muco, os ouvidos a cera, as narinas catarro, da boca saem a bile e a
baba, a urina da uretra e as fezes do ânus. Durante a varredura, ao passar por
cada orifício, podemos por um momento nos dar conta de sua secreção
específica. Este modo de prática tem alguma sobreposição à abordagem
detalhada descrita anteriormente. Difere na medida em que se percebe
especificamente os líquidos exalados pelo corpo.
Qualquer que seja o modo de prática com que nos sentimos mais confortáveis,
é de crucial importância que leve ao equilíbrio. Um discurso no Saṃyutta-nikāya
relata o episódio em que um grupo de monges exagerou neste exercício. Tendo
se engajado nesse tipo de prática sem sabedoria e sem uma compreensão
adequada de sua finalidade, eles cultivaram aversão aos seus próprios corpos a
ponto de vários deles se suicidarem (SN 54,9). Em outro texto estudei esse
episódio em detalhes, descobrindo que o relato pāli mostra sinais de aumento e
exagero posteriores (Anālayo 2014b). Deixando de lado aparentes exageros, no
entanto, a história como tal ainda serve como um forte aviso. Este tipo de prática
nunca deve desequilibrar a mente. Dessa forma, já a primeira das
contemplações do corpo exige que se dê alguma atenção à condição de nossa
própria mente, um tópico que se tornará particularmente proeminente com
o terceiro satipaṭṭhāna.
Manter o equilíbrio é fundamental para toda meditação satipaṭṭhāna. A tarefa da
atenção plena é precisamente supervisionar e monitorar a maneira como a
prática nos afeta. Se fecharmos os olhos para as repercussões negativas de
nossa prática de meditação, isso é na verdade uma perda da atenção plena.
De certa maneira, perdemos um ponto principal da prática de satipaṭṭhāna. Se
a contemplação das partes anatômicas levar à negatividade ou a uma sensação
de aversão em relação ao corpo, a presença da atenção plena pode nos alertar
imediatamente para a perda de equilíbrio. Nós contrabalançamos alternando
para a atenção plena do corpo como nossa boa amiga, deixando de lado
qualquer forma de avaliação que estivéssemos usando neste momento. Desta
forma, gradualmente aprendemos a viver com independência, sem nos apegar
a nada.
Outra dimensão do equilíbrio da prática diz respeito à sua aplicação interna e
externa. A contemplação das partes anatômicas começa com o nosso próprio
corpo. Uma vez que isso estiver bem desenvolvido, o entendimento básico
obtido dessa maneira (combinado com qualquer avaliação que decidimos
adotar) pode então ser aplicado aos corpos de outros. Isso eventualmente leva
a uma compreensão abrangente da natureza do corpo humano, seja ele nosso
ou de outras pessoas.
Da varredura à prática aberta
Além de servir de base para qualquer modo de avaliação que decidimos adotar,
o escaneamento gradual do corpo tem a função de recolher a mente. É
particularmente útil quando a mente está distraída. O proceder passo a passo,
movendo-se em sequência de uma parte do corpo para a próxima, ajuda a mente
a manter-se engajada na prática da meditação. Torna mais fácil, também,
perceber quando a mente se dispersou. Podemos começar com a cabeça,
passar para o pescoço e, de repente, descobrir que já atingimos os pés. Algo
está faltando. Devido ao procedimento sequencial da varredura, torna-se mais
fácil perceber quando a mente se dispersou.
No início, seria útil fazer essas varreduras lentamente para se acostumar com
esse tipo de prática. Mas com a familiaridade aumentando, elas podem ser feitas
às vezes mais rapidamente. No início, podemos fazer dos braços e das pernas
individualmente, mas depois os dois braços ou as duas pernas podem ser feitos
simultaneamente. Desnecessário dizer que fazer ambos os membros
simultaneamente não é um indicador de competência. Mesmo depois de muita
prática do exercício, é provável que ainda consideremos benéfica a varredura
lenta, simplesmente porque permite que a mente saboreie mais plenamente
a contemplação. Ao final das contas, tudo depende do estado de espírito
presente e de nossas preferências. Reconhecer o modo mais apropriado de
praticar em cada momento é tarefa da atenção plena e da clara compreensão.
A genuína meditação satipaṭṭhāna não trata de, estoicamente, repetir a mesma
coisa de novo e de novo, a ponto de a mente ficar embotada. Em vez disso,
requer vigilância constante sobre o estado de nossa mente. Como está a mente
agora? O que ela requer?
Quando a mente tende à distração, pode ser melhor proceder devagar e com
muito mais detalhes ao fazer a varredura. Quando a mente está concentrada,
pode ser melhor mover-se mais rapidamente. Não há uma maneira certa de
praticar, que seja aplicável a todos os momentos. Em vez disso, a forma correta
de contemplar surge quando se compreende claramente o que é necessário em
um determinado momento.
Depois de fazer as varreduras, sejam elas lentas ou rápidas, passamos
simplesmente a estar conscientes do corpo na postura sentada, como
constituído de pele, carne e ossos. Com a continuidade de nossa atitude de
desapego, tornamo-nos prontos para nos abrir, para estarmos concientes
apenas do momento presente, do jeito que ele se manifesta. Tendo estabilizado
a mente por meio das varreduras e introduzido uma dose saudável de
desapego, passamos para um modo de prática não direcionado. A
plena atenção está firmemente enraizada no corpo e ficamos receptivamente
abertos a tudo o que se manifesta em qualquer um dos sentidos. Estamos
totalmente presentes e atentos a qualquer coisa que se manifesta, concientes
disso como um fenômeno em mudança. Essa é a diferença da atenção plena do
pastor: o reconhecimento da impermanência. Vale para o corpo, cuja
constituição anatômica continua a mudar o tempo todo. Vale também para
qualquer coisa que experimentamos; tudo o que acontece é um processo, uma
corrente, um fluxo. Conscientes da mudança em todas as dimensões de nossa
experiência, estamos plantando sementes de sabedoria e insight que
amadurecerão na libertação de toda a sensualidade e dos estados não
saudáveis.
Tão logo reconhecemos que ocorreram distrações, sorrindo voltamos ao
momento presente. Com distrações mais curtas, voltamos a descansar com a
consciência aberta no aqui e agora, voltando à presença de nossa boa amiga
sati. Ela está sempre lá, pronta para estar conosco. No caso de distrações mais
longas, pode ser oportuno retomar as varreduras do corpo. Proceder mais uma
vez através da pele, carne e ossos nos ajudará a recuperar a continuidade da
atenção plena.
Quando chegar a hora de passar para a meditação andando, o mesmo
conhecimento do corpo como constituído de pele, carne e ossos pode continuar.
É semelhante à consciência de todo o corpo na postura sentada após a
conclusão das três varreduras. Da pele, carne e ossos sentados, passamos para
a pele, carne e ossos caminhando ou, então, apenas os ossos caminhando.
Com base na atenção aos aspectos do corpo caminhando, a meditação
andando pode levar a um senso geral de todo o corpo combinado com
uma abertura da consciência para tudo o que se manifesta em qualquer porta
dos sentidos. A essência da contemplação das partes anatômicas é inculcar
uma atitude de desapego em relação ao corpo e cultivar o enraizamento da
atenção plena no corpo. A mesma atitude e enraizamento podem ser levados da
posição sentada para o caminhar e, eventualmente, para qualquer atividade a
ser realizada.
No símile da roda que uso para ilustrar essa abordagem da meditação
satipaṭṭhāna, o primeiro discurso sobre a contemplação das partes anatômicas
faz contribuições distintas tanto para o centro da roda quanto para o aro externo.
A contribuição feita para o centro da atenção plena do corpo é que, devido à
varredura gradual através de diferentes partes do corpo em ordem sequencial,
desenvolvemos uma sensação distinta do corpo como um todo. Isso serve para
enraizar a atenção plena com mais firmeza no corpo. A contribuição ao aro
externo de estabelecer-se de forma independente sem se apegar a nada,
está no cultivo do desapego em relação à aparência externa do corpo.
Resumo
A contemplação da constituição anatômica do corpo vem com um modo de
avaliação que precisa ser cuidadosamente ajustado à nossa situação e
necessidades pessoais. O principal objetivo do exercício é gerar o desapego, de
forma que diferentes partes do corpo possam ser consideradas com a mesma
atitude que teríamos ao olhar para vários grãos. Para fins práticos, a listagem
das partes anatômicas pode ser simplificada empregando apenas as três
categorias: pele, carne e ossos. Isso pode ser explorado com a ajuda da
varredura do corpo, que ao mesmo tempo serve para enraizar a atenção plena
firmemente no corpo.
4. Elementos
A contemplação dos quatro elementos é o segundo raio da roda da prática que
apresento aqui. Aqui estão as instruções relevantes do Satipaṭṭhāna-sutta (MN
10):
Examinamos este mesmo corpo na posição que estiver e na condição que
estiver, por meio dos elementos: “Neste corpo estão o elemento terra, o
elemento água, o elemento fogo e o elemento vento”.
Os elementos como qualidades
No pensamento do Budismo antigo, os elementos representam qualidades. Um
discurso no Aṅguttara nikāya descreve como um praticante habilidoso pode
considerar uma árvore como uma manifestação de cada um dos quatro
elementos (AN 6.41; Anālayo 2003: 150n138). Por mais sólida que pareça, uma
árvore não é apenas uma manifestação do elemento terra. Da mesma forma,
pode ser vista como uma manifestação do elemento água, do elemento fogo ou
do elemento vento. A razão é que cada uma dessas qualidades está presente
na árvore. Além da madeira, há seiva e temperatura, e o movimento ocorre
dentro dela. Isso ilustra a orientação das primeiras análises Budistas da matéria
em elementos, que dizem respeito a meras qualidades; não postula uma forma
de essencialismo ou atomismo.
Como qualidades, o elemento terra representa os princípios de dureza,
resistência e rigidez. O elemento água, a liquidez, umidade e coesão. O
elemento fogo, o domínio da temperatura, manifestando-se em diferentes graus
de calor e frio. O elemento vento, o princípio de movimento, vibração e
oscilação.
Para se ter uma noção de cada um desses elementos, poderíamos cerrar os
dentes para sentir a dureza como uma manifestação do elemento terra. O
elemento terra é encontrado por todo o corpo, mas é particularmente evidente
nos ossos. Em seguida, poderíamos juntar saliva em nossa boca e engoli-la.
Então, notamos como a secura em nossa boca vai gradualmente sendo
substituída pela umidade conforme a saliva novamente se acumula. O elemento
água é encontrado por todo o corpo, é mais evidente nos líquidos corporais.
Esfregando ambas as mãos, podemos sentir o calor. O elemento fogo é
encontrado por todo o corpo, é evidente no nível da pele. Respirando fundo,
estamos conscientes do movimento e do oxigênio. O elemento vento é
encontrado por todo o corpo, mas é evidente no movimento constante da
respiração entrando e saindo do corpo.
Tradição posterior, relata que o elemento água não pode ser experimentado
diretamente. Embora um corpo humano adulto consista em até 60 por cento de
água, dos quatro elementos este é difícil de sentir. No entanto, eu diria que o
exercício sugerido acima com relação à saliva mostra que é possível ter uma
sensação distinta da umidade, como uma manifestação do elemento água. O
mesmo se aplica à sensação de outros líquidos corporais, como suor, lágrimas,
urina, etc. Além dos líquidos corporais, outra experiência que aponta na mesma
direção é quando nos sentamos em um assento e, não percebemos que estava
molhado. A umidade gradualmente penetra em nossas roupas até chegar à pele
de nossas nádegas, nesse momento de repente percebemos: “Oh não, isso está
molhado!” Eu considero isso uma experiência direta do elemento água.
Em um sentido mais amplo, o elemento água representa o princípio da coesão.
Isso pode estar relacionado à formação de ligações de hidrogênio entre as
moléculas. As ligações de hidrogênio também ocorrem nas proteínas e no DNA.
Isso realmente faz com que pareça significativo ver o elemento água como um
exemplo de conexão, a união das partes em oposição ao seu desagregamento.
Roupas molhadas grudam no corpo, papel molhado gruda na parede e assim
por diante.
Semelhante à contemplação das partes anatômicas, neste caso, não é
necessário que nos esforcemos para sentir nitidamente cada um dos aspectos
da manifestação dos quatro elementos no corpo. O mapa que usamos para
nossa prática está de acordo com a realidade. A matéria é, de fato, composta
de algum grau de solidez, algum grau de coesão, tem alguma temperatura e
está em constante movimento interior. Dificilmente pode haver qualquer dúvida
sobre a precisão deste mapa. Uma vez que este mapa está de acordo com a
realidade, não é necessário realizarmos um esforço elevado para verificar sua
exatidão em
cada parte de nosso corpo. É suficiente, para nossos propósitos, combinarmos
a consciência do corpo com o conhecimento do mapa.
A contemplação dos elementos pode ser comparada a receber um pacote
destinado a outra pessoa. Não há necessidade de abrir o pacote e examinar seu
conteúdo. Basta olhar o distinatário, perceber que esse pacote não é meu e
devolvê-lo ao carteiro. A idéia central da contemplação dos elementos é
perceber que nenhum deles pode verdadeiramente ser considerado “meu”.
Assim como não precisamos pesquisar o conteúdo de um pacote que não nos
pertence, também ocorre o mesmo com os elementos. Não há necessidade de
procurar por todo o corpo cada um deles. Também não há necessidade de
analisar uma sensação particular na tentativa de determinar a qual elemento ela
corresponde. A contemplação é sobre os quatro elementos que juntos formam
a realidade física do corpo, independentemente de como e de que maneira sua
inter-relação se manifesta. Basta saber que, por mais que os elementos se
manifestem, eles não são meus; eles são vazios de um eu. A essência da prática
é simplesmente deixar de sentir o corpo como algo pessoal e aprender a se
relacionar com ele sem apego.
Uma abordagem prática
Para esta prática, sugiro usar o mesmo método de varredura já empregado para
a contemplação das partes anatômicas. Começando pela cabeça, descemos
até os pés, contemplando o elemento terra. Durante esta varredura, ficamos
conscientes de todo o corpo impregnado pelo elemento terra, com atenção
especial para o esqueleto, pois ele é a manifestação mais proeminente do
elemento terra. Para o elemento água, sugiro subir dos pés à cabeça, e
novamente da cabeça aos pés para o elemento fogo e, finalmente, outra vez
dos pés até a cabeça para o elemento vento. A cada vez, temos consciência de
que todo o corpo está permeado pelo elemento contemplado.
Ao mesmo tempo, podemos notar que o elemento água é particularmente
proeminente nos líquidos corporais encontrados nas partes carnais do corpo. O
elemento fogo é bastante evidente ao nível da pele, pois esta parte do corpo é
especificamente sensível à temperatura. O elemento vento é
especialmente perceptível no processo da respiração.
À medida que praticamos dessa forma, o corpo procura os elementos baseados
na varredura feita para as partes anatômicas. Até certo ponto, os elementos
terra, água e fogo correspondem à distinção anterior da anatomia do corpo em
ossos, carne e pele. A diferença é que, durante a prática anterior, havia um foco
mais forte nos ossos, destacando-se de forma clara do resto do corpo. Ao
contemplar o elemento terra, os ossos se tornam uma dimensão
consideravelmente mais integral de todo o corpo. O mesmo se aplica à carne e
à pele.
Além desses três, um novo aspecto da prática entra em cena com o elemento
vento, representando qualquer movimento do corpo ou dentro dele. O
movimento se manifesta com um destaque particular na respiração. Assim como
a pele, a carne e os ossos de certa forma constroem uma ponte entre as
partes anatômicas e os elementos, também a respiração constrói uma ponte
entre os elementos e a terceira contemplação do corpo, a ser estudada no
próximo capítulo.
Com relação à experiência da respiração, recomendo que cada praticante decida
onde e de que maneira a respiração pode mais facilmente ser sentida. Alguns
preferem observar o processo da respiração prestando atenção às sensações
abaixo das narinas e acima do lábio superior. Outros preferem o interior
das narinas ou a parte posterior da garganta. Outros olham para o movimento
diferenciado na região do peito ou a expansão e a contração do abdômen.
Outros ainda preferem estar conscientes da respiração sem focar em um local
específico.
Para a prática que apresento aqui, nada disso importa. O que funcionar melhor
para nós, para termos uma noção clara da diferença entre inspirar e expirar é a
maneira certa de proceder. O único ponto a ser mantido em mente é que a
respiração é mais bem experienciada como parte da atenção ao corpo todo. Ela
sozinha, não deve se tornar o objeto de um foco total.
Além do processo de respiração, o impacto do elemento vento também se torna
aparente quando notamos leves movimentos de vários tipos ocorrendo no
corpo. Em um nível mais sutil, o corpo está em contínuo movimento, e a maior
parte disso acontece sem nossa intenção consciente; na verdade,
geralmente nem percebemos isso. Essa descoberta já serve como um indicador
para a principal dimensão do insight da contemplação dos elementos, que é a
natureza vazia do corpo.
Ao mudar da meditação sentada para a meditação andando, a consciência
cultivada anteriormente de pele, carne e ossos, pode ser mantida, vendo cada
uma como uma exemplificação proeminente dos três primeiros elementos, terra,
água e fogo. O quarto elemento o vento, naturalmente se torna evidente
no próprio fato de que o corpo agora está se movendo em vez de parado.
Enquanto a contemplação da constituição anatômica do corpo durante a
meditação andando está particularmente preocupada com o desapego, com os
elementos, a atenção muda para a natureza vazia da experiência do andar. Nós
nos treinamos para abrir mão de qualquer identificação com o corpo que anda.
A essência de tal prática poderia ser resumida com a injunção: "caminhe sem
(qualquer noção de) um caminhante!"
O símile
O propósito da contemplação dos elementos encontra ilustração em um símile
no Satipaṭṭhāna-sutta, que segue da seguinte forma:
É como um açougueiro habilidoso ou um aprendiz de açougueiro que, tendo
matado uma vaca, fosse sentar-se em uma encruzilhada com ela cortada em
pedaços.
[imagem]
É notável que o exercício bastante desafiador de desconstruir a noção da beleza
do corpo por meio da contemplação das partes anatômicas use a ilustração
comparativamente suave de um saco cheio de grãos. Em contraste, este
exercício vem com esta horrível descrição de uma vaca abatida. Tendo em conta
o grande respeito às vacas na Índia antiga, e a ênfase entre os praticantes,
como os jainistas, em não matar nenhum ser vivo, este exemplo parece
intencionalmente chocante.
A implicação deste símile torna-se particularmente evidente no Ekottarika-āgama
paralelo ao Satipaṭṭhāna-sutta. Esta versão descreve como, quando o
açougueiro cortou a vaca, ele vê várias partes da vaca como: “estes são os pés”,
“isto é o coração”, “estes são os tendões” e “esta é a cabeça ”(Anālayo
2013: 82). Ou seja, o que antes para ele era uma “vaca”, agora virou pedaços
de carne à venda. A apresentação no paralelo Ekottarika-āgama está de acordo
com o entendimento do comentário pāli (Anālayo 2003: 151).
Assim como o açougueiro corta a vaca em pedaços de carne, da mesma forma
podemos cortar em pedaços o apego a um senso de identidade. Suponho que,
as fortes matizes transmitidas pelo símile visam enfatizar a necessidade de
concretizar esta prática até sua conclusão bem-sucedida. O apego a um
senso sólido de identidade é, na verdade, o principal culpado por uma ampla
gama de problemas e aflições. A tarefa é deixar para trás a noção de “meu
corpo” como uma unidade compacta que pode ser possuída e que é
substancialmente diferente de outros corpos. Em vez disso, deve ser visto
apenas como uma combinação dos quatro elementos, semelhante neste
aspecto a todas as outras manifestações da matéria.
A natureza vazia da matéria
Todas as formas de discriminação, com base no sexo ou raça, podem ser
cortados contemplando os elementos. Todos nós somos compostos dos
mesmos elementos. Uma vez que isso é realizado, as distinções materiais entre
os seres humanos são reveladas como vazias de qualquer substância
verdadeira. De acordo com a física quântica, este corpo é, em sua maior parte,
apenas espaço vazio. A diferença física entre a bela e jovem modelo no palco e
o velho mendigo à beira da estrada é tão mínima que chega a ser
insignificante. Como essa diferença pode ser verdadeiramente significativa? O
que há para nos identificar como membros de um determinado grupo, com
certas marcas físicas consideradas diferentes das de outro grupo com
outras características físicas?
Não são apenas as alegadas diferenças entre os seres humanos que podem ser
cortadas com este exercício. Todo o mundo material é feito desses quatro
elementos. Seja dentro ou fora deste corpo, existe apenas terra, água, fogo e
vento. A diminuição gradual da suposição de uma diferença substancial entre
as manifestações desses elementos internamente como “eu” e externamente
como “outros” mina o próprio fundamento sobre o qual o desejo e o apego
dependem.
O Mahāhatthipadopama-sutta relaciona os quatro elementos internos com suas
contrapartes externas encontradas na natureza (MN 28; Anālayo 2003: 152).
Ambas as manifestações, internas e externas dos elementos são igualmente
impermanentes. Eles compartilham estar sujeitos à mesma lei de mudança. Isso
coloca um foco adicional na impermanência.
A contemplação dos elementos pode naturalmente levar dos elementos internos
dentro do corpo para manifestações externas dos elementos fora do corpo,
culminando em uma apreciação de sua natureza impermanente. Tendo
procedido da cabeça aos pés, experimentando a dureza do elemento
terra internamente, podemos por um momento sentir a dureza do solo em que
estamos sentados, como um exemplo da dureza de toda a matéria ao nosso
redor. Na preparação para a próxima varredura, podemos notar a falta de
separação entre o assento de meditação e nossas nádegas. Embora neste caso
a falta de separação seja devido à pressão do peso do corpo, a sensação de
conexão com a almofada de meditação requer a coesão do elemento água nas
partes do corpo que tocam a almofada de meditação. Portanto, parece possível
tomar essa conexão fisicamente sentida com o solo como um exemplo da
coesão responsável para que as partículas materiais deste corpo simplesmente
não se desintregem em partículas desconexas de poeira.
Ao começar a varredura para o elemento fogo, podemos perceber brevemente
a sensação da temperatura externa ao redor da área da cabeça (ou apenas o
rosto se a cabeça estiver coberta por roupas), antes de passarmos a
experimentar as manifestações do elemento fogo dentro do corpo. Com o
elemento vento, poderíamos ampliar nossa perspectiva de sentir a respiração
dentro do corpo, para observar como o ar vem de fora e, na expiração, vai para
fora. A sugestão aqui não visa encorajar o acompanhamento da respiração
quando ela sai do corpo, mas apenas ampliar nossa perspectiva de forma que a
dimensão externa também seja englobada.
Prestando atenção brevemente a essas dimensões externas sem permitir que
elas nos distraiam da prática atual de estar no corpo, a interdependência entre
o corpo e a natureza externa torna-se mais uma questão de experiência pessoal.
O estreito senso de individualidade pode se dissolver na vastidão da natureza
ao nosso redor. De certa forma, olhar para a natureza externa, pode parecer
como se estivéssemos nos olhando no espelho. Tudo o que existe interna e
externamente são apenas os elementos. Aprendemos ao nos tornar parte de
algo maior, a superar as limitações de nosso senso fixo de identidade corporal.
O corpo é apenas parte da natureza; é feito desses quatro elementos, assim
como o resto da natureza lá fora. Este corpo realmente não nos pertence;
pertence à natureza, foi emprestado da natureza e, eventualmente, retornará à
natureza quando os quatro elementos se desfizerem na hora da morte.
Nossa existência depende inteiramente do mundo exterior, e ambos são
meramente processos de mudança. A divisão que criamos entre os elementos
do corpo, como algo que “eu sou” e, as manifestações dos elementos fora deste
corpo substancialmente diferente do “eu sou” está sendo questionada. Em
que ponto exatamente podemos considerar que o alimento se tornou “meu
corpo”: é quando o tenho na colher, na boca, quando mastigo ou quando o
engulo? Em que momento perde o direito a essa qualificação: quando sai do
estômago, quando passa do intestino delgado para o grosso ou apenas quando
é excretado?
Além disso, a suposição de acreditar que estamos no controle, evidente na
tendência de buscar possuir coisas materiais, está da mesma forma sendo
questionada. Na verdade, os elementos não são algo que possamos controlar
ou possuir de forma permanente.
A sensação de ser diferente da natureza externa, em combinação com o conceito
de propriedade e controle, é o principal culpado de muitos problemas. A
destruição do meio ambiente, a poluição e as mudanças climáticas adquiriram
dimensões que ameaçam a própria sobrevivência da raça humana. Já é hora de
percebermos que não podemos continuar a viver dessa maneira. A
contemplação dos elementos pode dar uma contribuição substancial para o
aprofundamento dessa compreensão. Os elementos internos e externos não são
diferentes em princípio. Eles fazem parte de uma única continuidade. É
nossa responsabilidade cuidar da natureza externa tanto quanto cuidamos de
nosso próprio corpo. A contemplação dos elementos oferece uma entrada
conveniente para o que poderia ser considerada a dimensão mais central de
Insight no pensamento do Budismo antigo: não-eu (anattā). O mesmo poderia,
de outra forma, ser compreendido com o termo “vazio”, no sentido de que tudo
é vazio de um eu. O termo “eu” em tais contextos pode ser mal interpretado. A
afirmação de que não existe um eu não significa que não existe absolutamente
nada. “Eu” aqui se refere a uma entidade permanente e substancial, algo que é
capaz de exercer o controle completo. Tal entidade não pode ser encontrada em
nenhum aspecto da experiência. No Budismo antigo, o vazio, se trata disso. Na
verdade, o vazio no Budismo antigo significa estar vazio de alguma coisa. O
corpo está vazio de um eu permanente que está no controle. É exatamente por
isso que o corpo nem sempre é do jeito que queremos, porque fica doente e
acaba morrendo. A negação de uma entidade permanente e autossuficiente
difere do uso de um termo como “si mesmo”. Isso pode ser esclarecido com a
contemplação dos quatro elementos. Sabemos pela física quântica que a
matéria é, em última análise, apenas processos de energia interagindo uns com
os outros em uma grande quantidade de espaço. Não há nada substancial ou
permanente. Tudo é apenas uma corrente, um fluxo constante, sob a influência
de causas e condições. No entanto, isso não significa que
podemos simplesmente atravessar uma parede. A parede está definitivamente
ali à nossa frente e, não importa o quão exaustivamente tenhamos estudado a
física quântica, se tentarmos atravessá-la, vamos bater a cabeça.
O ensino sobre o vazio ou não-eu é semelhante. Certamente não nega o senso
subjetivo de continuidade ou a influência do carma. A questão é apenas que tal
continuidade não se deve a algum núcleo sólido, imutável e substancial dentro
de nós. Em vez disso, é devido a um processo de causas e condições. O outro
lado da moeda do vazio é a condicionalidade. Em outras palavras, o aparente
nada do vazio é preenchido por causas e condições.
Isso, por sua vez, está relacionado ao fato de que não há mono-causalidade
encontrada em algum lugar. O que quer que haja, resulta de uma interação de
uma série de causas e condições. Algumas dessas causas e condições estão
dentro da nossa esfera de influência. Outros operam fora dela.
Podemos influenciar as coisas, mas não temos controle total. Ficando apenas
dentro dos limites de uma única vida, deve ser óbvio que o que fizemos no
passado influencia o que somos no presente. O que aprendemos na escola e
depois, é o que nos permite agora realizar as tarefas nas quais estamos
engajados. O aprendizado anterior é nosso “ato cármico” e nossas habilidades
atuais são seus “frutos cármicos”.
Como padrão geral, o egoísmo e a crueldade levam ao sofrimento, assim como
a bondade e a generosidade levam à felicidade. Os resultados nem sempre se
manifestam na hora, assim como um único dia de aprendizado na escola não
resulta imediatamente na obtenção de um emprego. Com efeito, nem tudo o que
se aprende na escola será de uso futuro. No entanto, existe uma tendência geral
para que a aprendizagem e o estudo conduzam a melhores empregos.
Novamente, nem todo ato de egoísmo e crueldade resultará imediatamente em
sofrimento, e nem todo ato de bondade e generosidade, produz felicidade
instantânea. Ainda assim, existe uma tendência geral para que o egoísmo e a
crueldade tenham resultados negativos para nós e para os outros, assim como
a bondade e a generosidade tendem a ter resultados positivos. Nada disso entra
em conflito com o ensino do não-eu ou do vazio, assim como a física quântica
não entra em conflito com a experiência da solidez das paredes.
Não há conflito, o ensino sobre a vacuidade tem até uma relevância direta para
o contraste entre crueldade e bondade. A crueldade e toda uma gama de
reações não saudáveis têm seu fundamento no egoísmo. Na medida em que o
insight sobre a vacuidade é capaz de desconstruir o egoísmo, o espaço mental
se abre para o crescimento da bondade e de outras atitudes mentais saudáveis.
Assim como a condicionalidade é o outro lado da moeda do vazio de uma
perspectiva funcional, também de uma perspectiva afetiva os brahmavihāras
são o florescimento natural que surge quando uma diminuição do egoísmo é
provocada por meio do insight sobre o vazio.
Isso, mostra que o vazio não nos torna disfuncionais. Ao contrário, na medida
em que somos capazes de deixar ir o fardo do ego e da auto-referência, nos
tornamos mais funcionais e melhores para fazer o que temos que fazer. Dessa
forma, cultivar o insight sobre a vacuidade é muito diferente de uma tendência a
se dissociar e se desconectar. É exatamente o oposto disso. Assim como a
equanimidade está no polo oposto da indiferença, o insight genuíno na
vacuidade está muito longe de ser escapismo.
Devido à ênfase dada ao longo da prática a uma forma corporificada de atenção
plena como o ponto de referência central, uma base útil foi estabelecida para
combater qualquer tendência à dissociação. Se tal tendência se manifestar, isso
exige maior ênfase na presença corporificada da mente. Isso garantirá que o tipo
de vazio cultivado seja genuíno, que se manifestará por meio do florescimento
natural dos brahmavihāras.
Durante a atual contemplação dos elementos, a condicionalidade pode ser
explorada na prática, em termos da dependência de nosso próprio corpo aos
elementos externos. Este corpo é inteiramente dependente de fora, de um
suprimento adequado dos quatro elementos. Ele pode sobreviver sem
receber suprimentos do elemento terra na forma de alimento por alguns meses,
no máximo. Nosso corpo pode sobreviver sem o fornecimento do elemento
água, na forma de bebidas, por apenas alguns dias. Ele pode sobreviver sendo
privado do elemento fogo na forma de calor, como quando nu, no inverno frio ao
ar livre, apenas por algumas horas. Ele pode sobreviver sem o fornecimento do
elemento vento na forma de oxigênio, apenas por alguns minutos. Nosso corpo
é totalmente dependente desses quatro elementos. Destes quatro, o elemento
de que mais precisamos é ao mesmo tempo o mais efêmero dos quatro:
o elemento vento na forma do movimento do ar que entra e que sai. Essa
dependência revela a precariedade de nossa existência física.
Essa precariedade não é algo que afeta apenas a nós mesmos. É uma situação
difícil que compartilhamos com todos os outros seres vivos. Desta forma, a
compreensão do vazio e da condicionalidade é naturalmente acompanhada por
uma abertura do coração à compaixão.
Os elementos e o equilíbrio mental
Um discurso no Aṅguttara-nikāya relaciona os elementos ao equilíbrio mental de
uma pessoa totalmente desperta (AN 9.11; Anālayo 2013: 94f). O arahant
Sāriputta havia sido falsamente acusado por outro monástico. A fim de esclarecer
a falsa alegação, Sāriputta descreveu sua atitude mental,
garantindo implicitamente aos outros que ele não seria capaz de fazer aquilo,
do qual era acusado. Esta descrição compara sua atitude mental com a terra.
Assim como a terra não reage com nojo quando algo sujo é jogado sobre ela,
também a mente de um arahant não pode reagir com raiva e aversão.
Novamente, a água não reage se algo sujo for jogado nela. O fogo não reage
quando algo nojento é queimado nele. O vento não reage com repulsão sobre
as coisas, nas quais sopra. Aconteça o que acontecer, os elementos não
levam para o lado pessoal. Da mesma forma, a mente de um arahant está livre
de aversão e irritação; não leva as coisas para o lado pessoal.
Este episódio nos convida a usar as manifestações naturais dos elementos
externos na natureza como uma exemplificação da estabilidade interna da
mente. Dessa forma, a recordação dos elementos pode servir de inspiração para
cultivar a ausência de reatividade característica de quem percorreu o caminho
até a sua completude.
Uma perspectiva semelhante emerge do Mahārāhulovāda-sutta (MN 62; Anālayo
2003: 152). As instruções dadas neste discurso começam descrevendo os
elementos, com o elemento terra e o elemento água cobrindo as mesmas partes
anatômicas que também estão listadas no exercício do capítulo anterior. Os dois
elementos, fogo e vento, encontram exemplificação em várias manifestações de
calor e movimento, respectivamente. Além desses quatro elementos, o discurso
também traz o elemento espaço. Em cada caso, a tarefa é passar de um
reconhecimento das manifestações internas de qualquer um dos elementos
para uma consciência de suas manifestações externas na natureza. Para
cultivar o desapego em relação a cada elemento, a instrução final é
invariavelmente que o elemento deve ser considerado como não sendo, eu
ou meu.
O discurso segue descrevendo um modo de meditação que assemelha-se à
atitude do arahant Sāriputta na passagem mencionada anteriormente. A
recomendação é cultivar um estado mental como a terra, que não reaja com
nojo quando algo sujo é jogado sobre ela. À medida que praticamos desta forma,
a dicotomia entre o prazer e a dor não será mais capaz de dominar a mente. Da
mesma maneira, as instruções continuam para os elementos água, fogo e vento.
Em cada caso, deve-se cultivar um estado mental que se assemelhe ao
respectivo elemento, como resultado, o prazer e a dor não mais dominarão a
mente. O elemento terra também pode ser usado para exemplificar nosso
enraizamento naquilo que é saudável e produtivo para o nosso bem-estar e para
os outros. Novamente, de forma similar à água, que adapta a sua forma por
onde flui, também nós, podemos treinar para sermos flexíveis e adaptáveis
às circunstâncias externas. Assim como o fogo fornece calor para aqueles que
estão tremendo de frio, também podemos oferecer o calor de nosso coração
para os solitários e desolados. Comparável ao vento que continua se movendo,
da mesma forma, continuamos progredindo no caminho da libertação. Desta, ou
de qualquer outra forma, os quatro elementos podem ser empregados como
metáforas para as qualidades mentais a serem cultivadas.
O elemento espaço
Por último, no Mahārāhulovāda-sutta temos o elemento espaço. Aqui não se
trata mais de não reagir às coisas sujas e nojentas. Em vez disso, a instrução é
desenvolver a mente como o espaço, não estabelecida em nenhum lugar.
A percepção do espaço cultivada desta forma, de certa forma, resume a
compreensão do vazio que pode ser desenvolvida com a ajuda dos elementos.
Como mencionado anteriormente, a matéria é, em sua maior parte, apenas
espaço. O espaço está sempre aí, em qualquer situação. Basta apenas um
momento para prestar atenção e percebê-lo. Isso é muito útil quando,
confrotados com outras pessoas, há forte reação. Qualquer que seja a sujeira
que possa ser jogada em nós, apenas um momento de atenção dado ao espaço
entre nós e o (s) outro (s), e para o espaço ao nosso redor, pode nos ajudar a
manter o equilíbrio da mente (Anālayo 2017c: 196) . Olhar para o espaço permite
que a mente se torne espaçosa e evita que ela se contraia, tornando-se estreita
e confinada. De certa forma, o espaço simplesmente não deixa um ponto
de ancoragem sólido para as reações dos outros ou para nossa própria
reatividade. Em termos do desafio apresentado pelos obstáculos e outros
problemas, ao invés de levar a uma perda de tempo e energia ao se engajar na
batalha, pode-se deixá-los, simplesmente dissolverem-se. Do ponto de vista
privilegiado, desse espaço mental, somos muito mais capazes de lidar com
eficiência com qualquer problema que tenha se manifestado.
O cultivo da percepção do espaço pode ser realizado pelos elementos.
Avançando de forma gradual, na sequência em que os elementos são descritos
no discurso. Seguindo o modo de contemplação descrito acima, a mudança do
elemento terra para o elemento água neste corpo pode ser acompanhada
pelo reconhecimento de que é por causa da coesão que este corpo não se
desintegra em pó. Sem o princípio da coesão, o chão aparentemente tão sólido
em que nos sentamos seria como areia movediça. Em outras palavras, o
elemento terra depende do elemento água; não pode existir sem ele. A própria
qualidade da solidez depende da qualidade da coesão.
No caso da transição da água para o fogo, uma reflexão semelhante pode ser
realizada. Para que a água desempenhe sua função coesiva, ela precisa estar
na temperatura certa. Se estiver muito fria, a água congela e se torna
quebradiça; se estiver muito quente, evapora. Para que a água desempenhe sua
função coesiva em um corpo vivo, é crucial que esse corpo seja mantido dentro
da faixa de temperatura apropriada.
A menos que essa faixa de temperatura seja mantida, o corpo irá morrer e
desintegrar-se. Sem a temperatura adequada, a qualidade de coesão não será
capaz de cumprir sua função. Desta forma, o elemento água neste corpo
depende do elemento fogo.
Em relação à transição do fogo para o vento, a temperatura é simplesmente o
resultado do movimento. Sem movimento, não haveria qualquer manifestação
de fogo. O movimento, por sua vez, depende do espaço. Sem espaço, o
movimento dificilmente poderia ocorrer. Desta forma, os quatro elementos
podem ser contemplados como dependentes uns dos outros de tal forma que
conduzem à percepção do espaço.
Esse modo de prática ajuda a diminuir o apego rapidamente. A natureza
insubstancial do corpo torna-se uma experiência palpável, pessoal e direta, e as
descobertas da física quântica, que à primeira vista podem parecer muito
distantes de nossa experiência subjetiva do corpo, fazem cada vez mais sentido.
Prática aberta
Depois de ter explorado os elementos por meio das quatro varreduras, passamos
apenas a ter consciência do corpo, na postura sentada, feito de terra, água, fogo
e vento. Com base na diminuição gradual da identificação com o corpo, estamos
prontos para nos abrirmos para a consciência da natureza vazia do momento
presente, seja qual for a maneira como ele se apresente. Passamos para um
modo de prática não direcionado. A atenção plena permanece firmemente
enraizada no corpo e permanecemos amplamente abertos para tudo o que se
manifesta em qualquer um dos sentidos, experienciados como fenômenos
que mudam. A prática resultante é mais ou menos como olhar para a água que
corre em uma pequena corrente ou rio. Devido ao rápido fluxo da água, não
somos realmente capazes de discernir os pequenos detalhes. Em vez disso, o
que se vê com destaque é um fluxo constante.
No caso de distrações mais curtas, comparáveis a encontrar alguém na estrada
e apenas trocar cumprimentos, simplesmente voltamos a estar com nossa boa
amiga sati. No caso de distrações mais longas, semelhantes a encontrar alguém
na estrada e sentar para ter uma longa conversa, podemos retomar
a contemplação dos elementos. Antes de fazer isso, por um momento
discernimos a natureza vazia de qualquer pensamento, memória ou fantasia
que tenha causado a distração. O corpo composto dos quatro elementos é
vazio, assim como a mente pêga em alguma distração também é vazia.
O exercício anterior de contemplar a anatomia do corpo já impregnou nossa
prática com uma sensação de desapego. Com base nisso, o presente exercício
nos infunde uma sensação de liberdade de identificar, de agarrar este corpo,
como sendo meu.
Em termos do símile da roda que ilustra essa abordagem da meditação
satipaṭṭhāna, a contemplação dos elementos continua uma tarefa já iniciada
pela contemplação das partes anatômicas, e está enraizada na firme atenção
plena do corpo. Com a contemplação dos elementos, o processo da respiração
recebe uma atenção adicional como parte da consciência de todo o corpo. Isso
serve para fortalecer ainda mais o tipo de enraizamento na consciência de todo
o corpo, que forma o centro da roda da prática. Olhando ao processo da
respiração como parte integrante da consciência de todo o corpo, oferece um
ponto de referência conveniente para não se perder e sucumbir às distrações ao
mudar para a consciência aberta. A contribuição da contemplação dos
elementos para o aro externo, é uma diminuição gradual da identificação com o
corpo. Isso vem junto com uma valorização cada vez maior de nossa
conexão com os outros e com o meio ambiente, o que, por sua vez,
naturalmente dá origem à compaixão.
Resumo
Os quatro elementos terra, água, fogo e vento representam qualidades. Isso
pode ser experienciado com as varreduras pelo corpo, discernindo a presença
de solidez, coesão / umidade, temperatura e movimento dentro de nosso corpo.
O impulso principal dessa contemplação é obter um insight sobre a natureza
vazia do corpo e sua inter-relação intrínseca com a matéria fora dele. Essa
percepção da natureza vazia de todos os aspectos da existência material pode
servir de base para a abertura do coração e o estabelecimento do equilíbrio
interior diante de qualquer desafio.
5. Morte
O terceiro raio da roda da prática aqui apresentada, e a última das três
contemplações do corpo, retoma os estágios da decomposição por que passaria
um cadáver se fosse deixado ao ar livre. As instruções no Satipaṭṭhāna-sutta
são bastante longas, apresento aqui, apenas uma versão abreviada (MN 10):
Como se alguém visse um cadáver largado em um cemitério que está a um, dois
ou três dias morto, inchado, lívido e com líquidos escorrendo, e alguém
comparasse esse corpo com o dele: “Este meu corpo também é da mesma
natureza, vai ser assim, meu corpo não está isento desse destino. ”
E novamente como se fosse um cadáver jogado em um cemitério que está
sendo
devorado por corvos, falcões, abutres, cães, chacais ou vários tipos de vermes
...
um cadáver jogado em um cemitério, um esqueleto com carne e sangue, mantido
unido pelos tendões ...
um esqueleto sem carne, manchado de sangue e mantido unido pelos tendões
...
um esqueleto sem carne nem sangue, mantido unido pelos tendões ...
ossos desconectados, espalhados em todas as direções, aqui um osso de mão,
em outro lugar um osso do pé, em outro lugar um osso da canela, em outro lugar
um osso da coxa, em outro lugar um osso do quadril, em outro lugar uma
espinha dorsal e em outro lugar um crânio ...
um cadáver jogado em um cemitério, os ossos branqueados, da cor de conchas
...
ossos amontoados, com mais de um ano ...
ossos apodrecidos e se desfazendo em pó, e compara este corpo com o dele:
“Este corpo também é da mesma natureza, será assim, meu corpo não isento
desse destino.”
As instruções falam em “comparar” nosso próprio corpo aos diferentes estágios
de decomposição pelos quais um cadáver passaria se fosse deixado ao ar livre.
Semelhante às partes anatômicas, a contemplação por si só, não é apresentada
como uma forma de atenção plena. Na verdade, neste caso, o exercício parece
envolver alguma forma de visualização. O texto apresenta os diferentes estágios
de decomposição com a frase “como se olha a um cadáver”. A formulação em
pāli deixa a porta aberta para a imaginação, não é preciso lembrar
necessariamente o que vimos.
A forma como esses diferentes estágios de decomposição é apresentado nos dá
a impressão de que podemos escolher apenas um deles, ou alternativamente,
proceder passo a passo através de toda a série. O propósito desta
contemplação parece ser duplo. Uma direção para fazer essa prática torna-se
evidente no Mahādukkhakkhandha-sutta (MN 13; Anālayo 2003: 153f e 2013:
101f). O discurso contrasta o prazer de se ver uma linda e atraente jovem com
sua condição depois da morte, seu corpo passando pelos estágios
de decomposição de um cadáver, correspondendo aos descritos no
Satipaṭṭhāna-sutta. Esse modo de compreensão tornaria o presente exercício
semelhante em sua orientação básica à contemplação das partes anatômicas.
Recordação da morte
Um caminho alternativo para fazer essa prática, que é a abordagem que
apresentarei aqui, é fazer essa contemplação como uma reflexão sobre a
mortalidade do corpo. Na minha opinião, este é um tópico de tanta importância
que eu definitivamente quero incluí-lo no modo de prática que eu mesmo faço e
ensino. Se me pedissem para recomendar apenas uma única prática de
meditação, provavelmente optaria pela recordação da morte. Isso se deve ao
seu poder transformador.
Em nossa sociedade moderna, nós nos acostumamos a evitar a verdade da
morte. Os diferentes mecanismos de defesa empregados para ignorar nossa
própria mortalidade e a dos outros foram estudados detalhadamente na
psicologia clínica. Uma série de publicações está disponível sob o título "Teoria
do Manejo do Terror" ("Terror Management Theory" (TMT)). Essa é a teoria que
explica como os seres humanos manejam seu terror existencial.
Os seres humanos compartilham com os animais o instinto de autopreservação.
No caso do ser humano, esse instinto assume um papel especial porque
sabemos que a morte é inevitável. A combinação do impulso instintivo para a
autopreservação e o conhecimento da inevitabilidade da morte cria o
potencial para o terror paralisante. Assim que a morte entra no campo de
atenção, os seres humanos tendem a reagir com vários mecanismos de defesa.
Os mais comuns são tentar se distrair ou então empurrar o problema da morte
para um futuro distante.
Como consequência da conscientização de sua mortalidade, o ser humano
tende a se apegar fortemente a seus pontos de vista e senso de identidade
como forma de se defender da sensação de estar sendo ameaçado. O simples
fato de se lembrar brevemente da verdade da morte, faz com que as
pessoas reajam de maneiras mais limitadas e tendenciosas, como formas de se
defender da realidade de sua própria mortalidade.
A busca por libertação do futuro Buda, começa com o insight sobre sua própria
mortalidade como uma das dimensões centrais de dukkha (junto com a doença
e a velhice). Um discurso no Aṅguttara-nikāya relata sua reflexão de que outros,
ao ver alguém morto, tendem a sentir repulsa, ignorando o fato de que eles
próprios estão sujeitos ao mesmo destino (AN 3.38; Anālayo 2017c: 5ss). O
futuro Buda percebeu a inadequação desse tipo de reação. Ele permitiu que a
verdade de que ele próprio estava sujeito ao mesmo destino penetrasse em sua
mente. Como resultado, toda a sua intoxicação por estar vivo desapareceu.
De acordo com o Ariyapariyesanā-sutta (MN 26; Anālayo 2013: 109f e 2017c:
8ff), juntamente com as manifestações de dukkha como velhice e doença, o fato
da morte motivou o futuro Buda a embarcar em sua busca pelo despertar. Tendo
alcançado o despertar com sucesso, o Buda proclamou que havia realizado o
imortal. Esta não é alguma forma de imortalidade. Seu corpo ainda estava sujeito
a morrer. Mas ele não era mais afetado pela morte, fosse a morte dele ou a de
outros. De acordo com o pensamento do Budismo antigo, a liberdade da morte
pode ser realizada ainda quando vivos.
A realização do futuro Buda de que estava sujeito ao mesmo destino da morte,
o levou a se engajar na busca do que nos leva além da morte. O Satipaṭṭhāna-
sutta encoraja a reflexão de que somos de fato “da mesma natureza” e “seremos
como aquele” cadáver em vários estágios de decomposição. “Não
estamos livres desse destino”. Essas formulações podem ser empregadas para
refletir regularmente sobre nossa própria mortalidade e, assim, construir uma
base para aplicar esse entendimento durante essa contemplação.
Uma abordagem prática
Nessa prática podemos tomar como ponto de partida a imagem de um esqueleto.
Este seria o “esqueleto sem carne e sangue, mantido unido pelos tendões” dos
diferentes estágios de decomposição descritos acima. Para começar, podemos
simplesmente trazer à mente a imagem de um esqueleto (ou outro estágio de
decomposição de nossa preferência). A imagem mental do esqueleto pode ser
ainda mais fortalecida, se nossa consciência de todo o corpo, praticada ao longo
de todos os diferentes exercícios descritos neste livro, for realizada de tal forma
que o esqueleto seja proeminente. Isso tem como base a prática que fizemos
para os dois primeiros exercícios de satipaṭṭhāna, com a contemplação das
partes anatômicas, exploramos os ossos do esqueleto e, com a contemplação
do elemento terra, estávamos, em certa medida, ainda cientes do esqueleto,
como parte de nossa consciência da solidez de todo o corpo. A principal
diferença agora é que, em vez de ficarmos cientes do esqueleto por meio de
uma varredura gradual, estamos simplesmente conscientes do esqueleto
inteiro, dentro de nosso corpo, algo com o qual já estamos familiarizados.
Desse modo, o que foi apresentado como objeto com a ajuda de uma imagem
mental do esqueleto, agora torna-se o sujeito da contemplação por estar
diretamente relacionado ao esqueleto em nosso próprio corpo vivo. Como
resultado disso, o fato da morte se torna palpável, minha morte. Isso pode servir
para atualizar a reflexão de que “este corpo também é da mesma natureza, será
assim, não está livre desse destino”.
Desnecessário dizer que, no momento da contemplação, nosso próprio corpo
ainda está vivo, ao passo que em um corpo morto não existe qualquer sensação
dos estágios de decomposição pelos quais ele passa. Portanto, este exercício é
para fazer uma comparação, não é para imaginar como é, quando nosso próprio
corpo se desmancha. O propósito é de apenas enfatizar o fato, nosso próprio
corpo irá se decompor após a morte, mas que a decomposição em si não é algo
que pode ser experenciada.
Para aqueles que desejam realizar a contemplação de uma forma que incorpore
toda a descrição no Satipaṭṭhāna-sutta, todos os diferentes estágios da
decomposição podem ser introduzidos na prática. Eu pessoalmente
recomendaria começar trabalhando apenas com um único estágio, o esqueleto.
Com base nisso, aqueles que desejam fazer isso podem expandir a prática para
cobrir todos os diferentes estágios de decomposição descritos no discurso. A
seguir, esbocei brevemente uma maneira pela qual isso poderia ser feito. Para
os leitores que são relativamente novos em contemplar a mortalidade e os
estágios de decomposição, pode ser preferível pular o próximo parágrafo, pois
a descrição dada nele pode ser um tanto perturbadora.
Visualizando nosso próprio corpo como tendo acabado de morrer, podemos
imaginá-lo gradualmente começando a inchar e tornar-se lívido, purulento e
perdendo líquidos. As enzimas digestivas começam a comer o estômago e os
olhos ficam inchados. Corvos vêm comer os olhos. As narinas e a boca ficam
cheias de larvas que passam a comer a língua e outras partes carnudas. As
larvas fazem seu caminho, para comer o cérebro. Gaviões e abutres arrancam
o coração e os intestinos, enquanto cães e chacais mordem os órgãos genitais
e mastigam os membros. Qualquer carne remanescente no corpo, depois
que diferentes animais se banquetearam, apodrece. Eventualmente, apenas os
ossos do esqueleto manchados de sangue permaneceram.
[imagem]
Os tendões que mantinham os ossos do esqueleto juntos se decompõem e os
ossos individuais se espalham aqui e ali. Os ossos espalhados desbotam,
apodrecem e gradualmente se transformam em pó. O modo de prática sugerido
aqui envolve claramente um elemento de imaginação visual. Como mencionado
acima, a formulação usada nas instruções do Satipaṭṭhāna-sutta fala da
comparação do nosso corpo com o que veríamos em um cemitério, o que deixa
aberta a porta para um elemento da imaginação visual.
A avaliação de até que ponto essa imaginação visual é bem-sucedida e
apropriada, pode ser determinada observando se ela afeta nosso senso de
identidade e propriedade do corpo. A parte em que os animais comem várias
partes do nosso corpo pode ser particularmente eficaz a este respeito.
Uma dimensão relacionada pode ser cultivada quando somos picados por
mosquitos e carrapatos. Além da coceira, o que também dói é a sensação
indesejável de que nosso corpo é alimento para os outros. Ao contemplar que
este é fatalmente nosso destino final, podemos diminuir e, eventualmente
superar completamente essa picada adicional.
Outra etapa interessante no processo de decomposição do cadáver ocorre
quando o esqueleto se desintegra. Enquanto o esqueleto ainda estiver mantido
unido por tendões, enquanto ele ainda for, em certa medida, uma unidade
compacta, ele se parecerá com uma pessoa. Uma vez que os tendões
se decompõem, no entanto, os ossos espalhados não dão mais origem à
percepção de uma pessoa. Isso é semelhante ao sentido transmitido pelo símile
do açougueiro, mencionada no capítulo anterior, quando a vaca abatida se
transforma em pedaços de carne.
Uma observação relacionada poderia ser cultivada quando cabelos e unhas
estão sendo cortados. Mesmo que ambos ainda no corpo, já sejam matéria
morta, eles ainda são percebidos como um aspecto integral de “nosso” corpo.
Isso muda rapidamente ao serem cortados e descartados.
A recomendação para observar se há dor, é de relevância geral para a meditação
satipaṭṭhāna, e o presente exercício é uma ocasião particularmente útil para
explorar a dor. Para estabelecer-nos independentemente e não nos apegarmos
a nada, é útil identificar nossas dependências e aquilo a que nos apegamos.
Sempre que dói, onde quer que haja agitação, é aí que aparecem as
dependências e o apego. É bem aí que se manifesta a oportunidade de
gradualmente, deixá-los ir.
A respiração e a impermanência
Para encorajar ainda mais o enfrentamento da morte com esta contemplação,
recomendo que outro exercício seja combinado com a visão de um cadáver em
decomposição. Esta é a recordação da morte baseada na respiração. Embora
isso claramente não faça parte do esquema do satipaṭṭhāna, tal recordação é
descrita em dois discursos no Aṅguttara-nikāya (AN 6.19 e AN 8.73; Anālayo
2016: 200ss).
O Buda estava examinando como alguns de seus discípulos praticavam a
recordação da morte. As diferentes formas de prática que eles descreveram
baseavam-se em afastar a morte para longe. Em vez disso, o Buda recomendou
que a morte fosse trazida diretamente para o momento presente. Devemos
estar cientes de que podemos morrer agora, após a próxima respiração. Como
prática relacionada à alimentação, também poderíamos estar cientes de que
podemos morrer após comer o próximo pedaço. O impulso
dessa recomendação está muito de acordo com as descobertas da Teoria de
Manejo do Terror. O principal mecanismo de defesa contra a ameaça de
mortalidade é precisamente empurrar a morte para um futuro distante.
A contemplação do cadáver em decomposição pode ser realçada sendo
combinada com a consciência de que a presente respiração pode ser a última.
Antes de entrar nos detalhes da prática, entretanto, preciso mencionar que
aqueles com problemas respiratórios ou com tendências suicidas não devem
fazer esta prática. Além disso, uma recomendação para qualquer pessoa que
estiver realizando a recordação da morte, é fazê-lo com muito cuidado e de
forma gradual. A título de ilustração, imagine ganhar um carro muito potente logo
depois de tirar a carteira de motorista. Seria uma grande tolice dirigir esse carro
em alta velocidade numa estrada movimentada. Da mesma forma, com o
presente exercício, é importante não avançar muito rapidamente. A sabedoria
genuína é o resultado do cultivo e do crescimento graduais, não apenas tentar
abrir caminho o mais rápido possível.
Um discurso no Aṅguttara-nikāya compara o treinamento tríplice, moralidade,
concentração e sabedoria, a um fazendeiro que planta sua safra e a rega no
tempo certo (AN 3.91; Anālayo 2003: 253). Isso é o tudo o que o fazendeiro pode
fazer, não consegue forçar a safra a amadurecer. A mesma atitude paciente, de
plantar as sementes da sabedoria e, cultivar as sementes do insight, regando-as
no tempo certo por meio da prática da meditação, é apropriada para o presente
exercício (bem como para satipaṭṭhāna em geral).
Nós fazemos o que é necessário e, permitimos que, o que plantamos amadureça
gradualmente e, por fim, dê seus frutos libertadores. Em contraste, tentar forçar
nosso caminho pode facilmente se tornar uma afirmação do ego e, assim, ir
contra o equilíbrio apropriado para o crescimento genuíno do insight.
Essa atitude de força, também entraria em conflito com o insight sobre o não-
eu, cultivado com a prévia contemplação dos elementos.
Tornar-se consciente da respiração refere-se a uma manifestação do elemento
vento que já contemplamos na etapa final da contemplação dos elementos. O
elemento do qual o corpo urgentemente depende para sua sobrevivência é
justamente o elemento vento (na forma de suprimento de oxigênio), o mais
efêmero dos quatro elementos. Desse modo, a contemplação dos elementos já
nos alertou para a precariedade da existência do corpo.
Continuamos com o mesmo tema, combinando a consciência do fluxo constante
de oxigênio para dentro e para fora com o reconhecimento de que a
sobrevivência do corpo depende inteiramente da continuidade ininterrupta
desse suprimento de oxigênio. A respiração é o que nos conecta à vida. Com
esta forma de prática, estamos nos conectando com aquilo que nos conecta à
vida. Essa conexão nada mais é do que um fluxo, o surgimento de um fluxo de
ar que se transforma, e seu desaparecimento. É totalmente impermanente e
insubstancial. Nosso corpo depende inteiramente desse processo de respiração
em constante mudança. Como esse corpo pode ser permanente? Isto é
impossível.
O presente exercício é particularmente adequado para explorar a natureza do
surgimento e do desaparecimento em relação ao corpo. Este é o segundo
aspecto mencionado no refrão, que se baseia nas dimensões internas e
externas da prática mencionadas anteriormente no refrão. Estas já foram
explorados com as partes anatômicas e os elementos. Na verdade, as
dimensões interna e externa são tão evidentes quando contemplamos os
elementos que dificilmente as podemos perder. O mesmo vale para
a impermanência em relação ao presente exercício. É tão evidente que
dificilmente passa despercebida.
A impermanência também é relevante para a contemplação das partes
anatômicas e dos elementos, assim como as dimensões interna e externa da
prática também se aplicam a este exercício. A morte de outras pessoas pode,
para alguns praticantes, tornar-se uma porta de entrada natural para a
recordação da morte. Ao seguir esse modo de abordagem, no entanto, ainda
valeria a pena nos certificar que isso não se torne uma forma de evitar o
enfrentamento de nossa própria morte.
A prática atual envolve dar atenção total à importância da impermanência, ao
fato de que a impermanência significa que esse mesmo corpo mais cedo ou
mais tarde morrerá. É por essa razão que este exercício pode se tornar um
modo particularmente poderoso de implementar a instrução contida no refrão
para contemplar a natureza do surgimento e do desaparecimento. A continuidade
do corpo, que tão facilmente é dada como certa, depende inteiramente do
constante surgimento e desaparecimento da respiração. E a própria respiração
é tão impermanente, nada mais do que um fluxo mutável.
Esta dependência da respiração exemplifica ao mesmo tempo a natureza vazia
do corpo, que já se tornara aparente com a contemplação dos elementos. É
claro que estamos, até certo ponto, no controle do corpo; tomamos decisões ao
mover seus membros ou posicioná-lo desta ou daquela maneira.
Existe naturalmente uma sensação de um grau temporário de propriedade e
identidade. Somos capazes de distinguir entre nosso próprio corpo e o de outra
pessoa. Mas esse controle e propriedade são limitados; eles operam dentro de
uma rede de condições das quais várias estão fora do alcance do nosso controle
total e da nossa propriedade. Não temos o controle completo e único e sobre o
corpo, caso contrário, o corpo seria apenas da maneira que queremos. Nunca
ficaria doente e certamente não morreria. Também não somos os únicos e
verdadeiros donos deste órgão. Conforme mencionado no capítulo anterior,
elementos tomados de fora na forma de alimentos e bebidas, em algum
momento durante esse processo são experienciados como tendo se tornado
“meus”. Em breve parte dessa ingestão se transforma em fezes e urina a serem
descartadas, e o que quer que permaneça no corpo definitivamente deixará com
a morte a esfera de nosso senso de propriedade. Dessa forma, a morte serve
para esclarecer as implicações da natureza impermanente e vazia do corpo.
Chegará um momento em que a respiração deixará de fluir e este corpo morrerá.
Se fosse deixado ao ar livre, passaria pelos estágios de decomposição de um
cadáver descrito no Satipaṭṭhāna-sutta. Tendo recordado qualquer imagem
visual de um cadáver que decidimos adotar, a cada respiração podemos
nos tornar conscientes de que esta pode ser a última. Surge a percepção de
que podemos morrer agora mesmo e a degradação gradual de nosso próprio
corpo começaria. Não podemos ter certeza de que a nossa respiração
continuará além do momento presente. Uma vez que essa incerteza é vista, não
consideraremos mais a respiração como certa.
Para a prática, recomendo relacionar esse tipo de consciência à inalação. A cada
expiração, podemos, cultivar uma atitude de relaxamento e de deixar ir,
treinando a melhor maneira de enfrentar o momento da morte. Com esses dois
modos, torna-se possível ajustar a prática às nossas necessidades pessoais.
Os ajustes podem ocorrer dando mais atenção às inspirações ou às expirações.
Isso não significa alterar a natureza ou a duração da respiração de forma
alguma. Respirar continua sendo, respirar naturalmente. A questão é apenas
para onde direcionar a atenção mental.
Às vezes, pelo fato da nossa própria mortalidade não penetrar em nossa mente,
podemos dar mais ênfase às inalações e também ao fato de que esta pode ser
a nossa última respiração. Outras vezes, a mente pode ficar agitada. Ao
tomarmos consciência disso, damos mais ênfase às exalações, ao deixar ir e
ao relaxamento. Desta forma, torna-se possível ajustar a prática de tal forma que
o progresso pode ser alcançado ao mesmo tempo que mantemos o equilíbrio
da mente.
Encarar nossa própria mortalidade por meio da prática que gosto de chamar de
“morte-respiração”, relacionando a certeza da nossa própria morte à experiência
da respiração, é enfrentar a ignorância de frente.
Há poucas coisas a mais que os seres humanos gostariam de ignorar além de
sua própria morte. Isso explica os mecanismos de defesa identificados por
pesquisas relacionadas à Teoria de Manejo do Terror. Portanto, não é de todo
surpreendente que esse tipo de prática de meditação provoque reações. Não
seria razoável esperar que as coisas apenas corressem bem.
A natureza desafiadora desta prática recebe algum amortecimento por meio do
trabalho preparatório feito com as duas anteriores contemplações do corpo. O
cultivo do desapego por meio da contemplação das partes anatômicas facilita a
diminuição da identificação com o corpo, cuja natureza vazia se revela pela
contemplação dos elementos. Os dois exercícios juntos geram uma atitude em
relação ao corpo que é menos dominada pelo apego e pelo senso de
propriedade. Isso, por sua vez, prepara o terreno para sermos capazes de
enfrentar diretamente o fato de que esse corpo acabará por se
desintegrar; certamente não está isento desse destino.
Ainda assim, a prática provavelmente levará a reações. Um tipo comum de
reação é o embotamento mental e a falta de clareza. É quando a ignorância
manifesta sua força ilusória. Nessas ocasiões, a mortalidade simplesmente
falha em penetrar na mente. As reflexões mentais parecem apenas frases
vazias e o exercício parece sem sentido. É útil observar que isso é exatamente
o que esperamos. As forças da ignorância por muito tempo, controlam a mente.
Não se pode esperar que eles cedam imediatamente e simplesmente
desapareçam. Em vez disso, é necessário um constante esforço e uma
abordagem gradual para diminuir e eventualmente sair desse tipo de
ignorância.
Uma ferramenta útil a esse respeito é dar importância a estar no momento
presente. Isso neutraliza a tendência da ignorância de transformar a prática em
algo feito automaticamente ou de forma mecânica. A abertura para a natureza
mutável, da experiência do momento presente, nos ajuda a sair do modo de
piloto automático. Uma vez que isso tenha sido alcançado, a consciência da
fragilidade do momento presente pode
ser introduzida por meio da lembrança de nossa dependência da respiração.
A reflexão de que a próxima respiração pode ser a última pode ser ainda mais
reforçada com a colocação de outra reflexão: “Mesmo que esta respiração não
seja a última, é certamente uma respiração mais perto da morte. ” Não sabemos
quando a morte vai acontecer, mas sabemos que certamente acontecerá. A
cada respiração, estamos definitivamente nos aproximando da hora de nossa
morte. Esta respiração agora é uma “respiração a menos” até que
eventualmente estaremos completamente “sem ar”.
Não há nada de surpreendente nisso: a mortalidade é o presente de aniversário
que todo corpo humano recebe bem no momento em que passa a existir. No
entanto, é preciso muita coragem e esforço para enfrentar o que a maioria dos
seres humanos foge: a morte é certa. Outra ferramenta, a ser usada
com cuidado e moderadamente, é prender a respiração. Nós expiramos e não
inspiramos novamente por um tempo. Prendendo brevemente a respiração
dessa maneira, logo notamos a urgência de inspirar novamente. Isso nos ajuda
a lembrar da precariedade de nossa existência física e da incerteza de sermos
capazes de respirar uma próxima vez.
Prender a respiração não deve se tornar uma forma contínua de prática. Em
outras palavras, esta sugestão não pretende encorajar alguma forma de
retenção da respiração. Fazer isso, corre-se o risco de perder de vista uma das
principais características da prática da atenção plena, que é a observação
imparcial. Em relação à respiração, a tarefa é observá-la como ela é, ao invés
de influenciá-la de alguma forma. Prender a respiração uma vez é como um
despertador, cujo objetivo é nos acordar. Não faria sentido que o despertador
tocasse o tempo todo. Ele cumpriu sua função assim que acordamos. Da mesma
forma, segurar a respiração uma vez, nos desperta para a precariedade da
nossa existência. Continuamos a cultivar a consciência dessa precariedade com
a respiração normal como ela ocorre naturalmente, sem interferir nela.
O tipo oposto de reação sob a influência da ignorância é o medo e a agitação:
“Isso é demais, eu não sou capaz de lidar com isso!” Sempre que isso acontece,
imediatamente damos ênfase ao deixar ir e ao relaxamento. Ao acalmar a mente
e tranquilizar-nos de que somos capazes de enfrentar a verdade de
nossa própria mortalidade, a tendência de ficar agitado pode ser vencida
gradualmente.
Enfrentando a mortalidade
O Dhātuvibhaṅga-sutta refere-se ao tipo de sensação experimentada por um
praticante realizado perto da morte, como uma categoria própria, encorajando
sua contemplação da mesma forma que os três tipos de sensações vistas no
segundo satipaṭṭhāna (a ser discutido no Próximo Capítulo). O padrão é, ao sentir
um certo tipo de sensação, sabe-se: “Eu sinto esse tipo de sensação”. Aqui,
esse padrão é aplicado para se classificar como, “terminando a vida”
(jīvitapariyantika; MN 140).
Quem esteve muito perto da morte, conhece o tom afetivo diferente de se estar
à beira da morte. A intensidade e a presença total da mente, que às vezes vem
com uma diferente noção de tempo, como se tudo estivesse em câmera lenta.
Com a prática sustentada de recordar a morte da maneira descrita acima, essa
intensidade e a presença total podem, às vezes, acompanhar nossa meditação
de enfrentar a própria mortalidade. Uma diferença distinta, entretanto, é que as
sensações dolorosas de angústia e medo estão sendo substituídas por
sensações neutras de equilíbrio mental.
Tendo assim experimentado diante da morte, nos dá uma contribuição
substancial não apenas para o momento real de morrer, mas também para a
vida cotidiana. Ter aprendido a enfrentar a morte com equilíbrio nutre uma paz
interior que permanece inabalável pelas vicissitudes da vida. Tudo o que
é necessário para obter essa vantagem da imperturbabilidade interior é o
esforço sustentado na prática meditativa de enfrentar nossa própria
mortalidade.
Em algum ponto incerto no futuro, teremos que enfrentar a morte de qualquer
maneira. Isso é certo. Quem sabe quais serão as condições nesse momento?
Podemos estar doentes e com dor, cercados por outras pessoas que estarão
chorando e perturbadas, com coisas inacabadas pairando no ar e preocupações
sobrecarregando nossa mente. Se não nos prepararmos, será muito difícil
enfrentar a morte em tal situação.
A hora de se preparar para a morte é aqui e agora. Quando mais poderia ser?
Assim como não começamos a estudar apenas no dia da prova e também não
começamos a treinar apenas no dia da competição, da mesma forma não é uma
boa ideia esperar a hora de morrer para nos prepararmos. Tais preparações são
melhor feitas com antecedência, quando estivermos razoavelmente saudáveis e
formos capazes de nos aproximar gradualmente da nossa mortalidade.
Aprendendo a enfrentar nossa mortalidade passo a passo, estamos treinando a
arte de morrer. Treinar a arte de morrer é, ao mesmo tempo, treinar a arte de
viver.
A recordação da morte não é apenas uma preparação para morrer, mas também
uma forma de se tornar plenamente vivo. Estar consciente da nossa própria
mortalidade e de outras pessoas torna inequivocamente claro que o momento
presente é o único momento em que podemos viver. Enfrentando a nossa
própria sombra da morte, em vez de fugir dela, nós gradualmente nos tornamos
inteiros. Na verdade, este é um processo de cura, permitindo que a morte se
torne parte integral de nossa vida. A morte é inseparável da vida; ignorando sua
existência, nunca poderemos viver plenamente.
A consciência de nossa mortalidade também nos incentiva a estar
completamente presentes com aqueles que encontramos. Quem sabe: posso
morrer ou a pessoa à minha frente pode morrer. Portanto, deixe-me fazer o
melhor uso do momento presente, dando toda a minha atenção a quem eu
encontrar. Deixe-me estar com eles no máximo da minha capacidade, se a
morte nos separar, não haverá arrependimentos. Não haverá nada deixado por
dizer, algo que eu devesse ter falado, nada deixado por resolver que eu
preferisse ter esclarecido e, o mais importante de tudo, nada mais a perdoar que
eu devesse ter perdoado ou pedido desculpas.
A recordação da morte esclarece nossas prioridades na vida. Diante da nossa
mortalidade, como devemos viver nossa vida de maneira que possamos morrer
sem arrependimentos? Como um exercício de apoio para essa reflexão,
recomendo levar a morte para dar um passeio solitário. Durante essa
caminhada, poderíamos refletir sobre o que aconteceria se não voltássemos
desta caminhada. O que aconteceria com nossos bens, amigos e parentes,
nosso papel e função na sociedade?
Refletindo dessa forma, aprendemos cada vez mais a deixar de nos apegar aos
bens, com a compreensão de que, de qualquer forma, não podemos tê-los para
sempre. Perdoamos prontamente aqueles que nos ofenderam e nos dispomos
a nos desculpar rapidamente sempre que magoamos outras pessoas.
Aprendemos a abandonar a tendência de tentar manipular ou forçar os outros a
ser ou agir da maneira que desejamos.
Se eu morresse agora, eles fariam as coisas à sua maneira de qualquer jeito.
Então, darei a eles meu apoio e orientação de maneira aberta, sem tentar forçá-
los a fazer as coisas do meu jeito e sem criar dependências. Refletir dessa forma
diminui nosso apego ao nosso papel, trabalho, e função dentro de nossa rede
social. Fazemos o nosso melhor, sem depender muito dos resultados e com a
clara compreensão de que mais cedo ou mais tarde as pessoas continuarão
sem nós. Nossas prioridades tornam-se claras. O que é que eu realmente quero
fazer antes de seguir em frente? O que realmente importa para mim?
O poder transformador da recordação da morte faz com que valha a pena dedicar
tempo à sua prática e cultivo, seja na meditação formal, nas atividades diárias,
ou na forma de reflexão. A lembrança de nossa mortalidade pode ser apoiada
por lembretes repetidos durante o dia a dia. Ver atropelamentos ou passar por
um cemitério pode servir como avisos diretos da morte. Além disso, estamos
cercados por tantas coisas que foram projetadas e fabricadas por outras
pessoas que já morreram. Uma vez que estejamos dispostos a prestar atenção
à morte, uma ampla gama de possíveis lembretes aparece. Cada ato de
tal recordação é mais um passo para combater a ignorância, a tendência
arraigada de ignorar nossa própria morte. Cada um desses passos contribui
para nos aproximarmos gradualmente da realização do imortal.
Além disso, dar atenção apenas ao esqueleto pode ser feito durante várias
atividades. Passando da meditação sentada para a meditação andando,
permanecemos conscientes do esqueleto. Andando como um esqueleto,
ficando em pé como um esqueleto, comendo como um esqueleto, deitado para
descansar como um esqueleto; não há limite para as atividades que podem ser
realizadas com a consciência do nosso próprio esqueleto. Praticando dessa
forma mantém vivo o fato de nossa mortalidade.
A consciência do esqueleto pode, de fato, ser usada como um resumo
conveniente de todas as três contemplações do corpo. Com o esqueleto, todas
as partes sexualmente atraentes se foram e não teríamos nenhum desejo
sensual por ele. Da mesma forma, todos os marcadores de identidade sumiram.
É quase impossível reconhecermos a identidade de um esqueleto específico,
deixando pouco espaço para considerá lo como “eu” ou “meu”. Combinado com
o uso do esqueleto como um lembrete da mortalidade, esse modo único de
atenção pode ativar os temas centrais de todas as três contemplações do corpo.
Os elementos e a morte
Outro modo de prática relaciona a recordação da morte aos elementos. Isso
pode ser feito visualizando os estágios da morte. No início, quando a morte se
aproxima, o corpo fica pesado e o controle sobre seus membros é gradualmente
perdido. Os agonizantes podem tentar remover seu cobertor (se ainda
puderem fazer isso) para aliviar a sensação geral de estar sendo oprimido por
algum peso. Este é o estágio em que o elemento terra começa a se desintegrar.
Aqueles que cuidam dos agonizantes podem notar sua crescente incapacidade
de se mover. Além disso, ao tentar levantar, eles podem descobrir que se sentem
mais pesados. Isso porque com a desintegração do elemento terra a estrutura
do corpo perde sua solidez. Portanto, torna-se mais difícil erguer e mover uma
pessoa que atingiu esse estágio da morte.
No próximo estágio, a pessoa que está morrendo perde o controle sobre os
líquidos corporais. Este é o início da desintegração do elemento água. A boca
fica seca e a pessoa fica com sede. Observadores externos podem notar água
saindo dos olhos e gotas de urina saindo da uretra. Às vezes, os
moribundos podem abrir a boca e esticar a língua como se quisessem beber.
No próximo estágio, o elemento fogo começa a se dissolver. O corpo começa a
perder sua temperatura. Uma sensação de frieza se move da ponta dos dedos
dos pés e dos dedos gradualmente em direção ao coração. Quem está ao lado
do moribundo pode notar que os pés e as mãos ficam azulados e às vezes a
pessoa começa a tremer. Enquanto no momento da dissolução do elemento terra
os moribundos podem tentar remover seu cobertor, neste estágio eles preferem
ser cobertos para evitar a perda de calor.
A fase final vem com a dissolução do elemento vento. A pessoa que está
morrendo experimenta uma grande dificuldade de inspirar a quantidade
necessária de oxigênio. As inalações são visivelmente mais curtas e tensas, as
exalações mais longas e fracas. Todo o processo de respiração torna-se cada
vez mais e mais difícil, até que, com uma última expiração, cessa
completamente.
Visualizar a nós mesmos passando por esses estágios da morte pode se tornar
uma maneira poderosa de cultivar a recordação da morte. Ao mesmo tempo,
oferece uma preparação útil para a hora da morte. Claro, podemos morrer
repentinamente em um acidente. Mas é provável que os eventos que levarão à
nossa morte passem por esses estágios. Familiarizar-nos com eles por meio da
prática meditativa e da lembrança ajuda a reconhecer o que está acontecendo
e a enfrentá-la com uma mente equilibrada. Também ajuda a reconhecer o que
outras pessoas podem estar passando na hora da morte e nos permite saber
como elas podem ser melhor assistidas.
Prática aberta
A contemplação das partes anatômicas imbuiu nossa prática com uma sensação
de desapego, e a contemplação dos elementos infundiu em nossa prática um
sabor de liberdade de identificação. Com base nisso, a contemplação da morte
estabelece uma poderosa percepção da impermanência por meio
do reconhecimento de nossa própria mortalidade. Com base na fundação
estabelecida por essas três contemplações do corpo, passamos para um modo
de prática não estruturado, abrindo a visão de nossa consciência para tudo o
que acontece no momento presente. Procedendo dessa forma,
estamos gradualmente nos aproximando da experiência do imortal.
Enquanto a contemplação das partes anatômicas e elementos enraizou a
atenção plena no corpo, a contemplação da morte nos estabelece firmemente
no momento presente, o único momento em que podemos realmente viver. Esta
é a contribuição da contemplação da morte feita para o centro da roda
da prática: tornar-se plenamente vivo no momento presente. A contribuição feita
ao aro da roda é uma diminuição substancial do apego e do querer segurar, por
meio da compreensão de que teríamos que soltar de qualquer maneira quando
morrêssemos. Aprendemos a enfrentar o terror de nossa própria mortalidade, o
ponto principal da impermanência.
Isso nutre substancialmente nossa capacidade de estabelecer-nos
independentemente, sem nos apegar a nada.
Resumo
A contemplação de um cadáver em decomposição pode ser empregada para
revelar a falta de beleza inerente do corpo ou então sua mortalidade. Para
implementar esta segunda alternativa, podemos combinar a imagem mental de
um esqueleto (ou de outro estágio de decomposição) com a consciência
da respiração, tendo em mente a incerteza de ser capaz de respirar uma
próxima vez.
Essa contemplação é melhor empreendida com um olhar intenso e equilibrado.
Pode-se empregar atenção às inspirações ou às expirações para se manter o
equilíbrio. A atenção às inalações pode ser associada à recordação de nossa
mortalidade para fortalecer a prática, enquanto a atenção às exalações pode vir
com uma atitude de relaxamento e deixar ir para acalmar a mente se ela ficar
muito agitada.
Realizada de maneira equilibrada, mas sustentada, essa prática ajuda a
enfatizar o fato inegável de que a morte é certa e que, em princípio, poderia
acontecer agora mesmo. Aprendendo dessa maneira e permitindo que a morte
faça parte da nossa vida, as nossas prioridades tornam-se mais claras e
aprendemos a viver mais plenamente no presente.
6. Sensações
O quarto raio da roda da prática apresentada aqui e ao mesmo tempo, o segundo
satipaṭṭhāna, é a contemplação da sensação. O termo pāli para sensação é
vedanā, que significa o tom sensível ou a qualidade hedônica da experiência,
sua tonalidade. O termo vedanā não se refere a emoções. As emoções são
um fenômeno mais complexo e encontrariam uma melhor colocação sob a
rubrica de estados mentais, que é o tópico do próximo satipaṭṭhāna.
A primeira parte da instrução para contemplação das sensações procede da
seguinte forma (MN 10):
Ao sentir uma sensação agradável, sabe-se: “Sinto uma sensação agradável”;
ao sentir uma sensação dolorosa, sabe-se: “Sinto uma sensação dolorosa”;
ao sentir uma sensação neutra, sabe-se: “Sinto uma sensação neutra”.
Os três tipos de sensação mencionadas na instrução são mais bem vistas como
parte de uma faixa contínua do que é sensivelmente conhecido, um espectro
que varia dos tons mais agradáveis aos mais dolorosos. Em algum lugar na
parte intermediária desta gama de experiências sentidas, há uma área que
é literalmente “não dolorosa e não agradável” (adukkhamasukha). Cada
praticante precisa demarcar precisamente essa área por meio da observação
atenta. A prática contínua da contemplação das sensações deixará claro quais
tipos de sensações são melhor consideradas como sendo nem dolorosas o
suficiente para serem capazes de levar a qualquer aversão, nem agradáveis o
suficiente para desencadear qualquer desejo. São as desses tipos que podem
ser considerados “neutras”, e a gama de experiências sentidas em cada um dos
lados desse espectro podem ser classificadas como sensações “agradáveis” e
“dolorosas” (ou pelo menos “desagradávéis”).
A atenção dada às sensações neutras ajuda a evitar uma distinção dualística
entre sensações dolorosas e agradáveis, como se esses fossem dois
fenômenos totalmente distintos. Em vez disso, o prazer e a dor são dimensões
de um continuum da experiência sensorial, sendo o meio, nem distintamente
agradável nem doloroso.
Sensação e reatividade
A principal tarefa com a contemplação da sensação é fazer a nós mesmos a
pergunta: "Como você se sente?" Essa pergunta precisa ser feita com o
interesse sincero e genuíno de realmente querer saber. A razão pela qual essa
investigação carrega tanto significado é que geralmente a contribuição sensível
da sensação leva diretamente a uma reação.
Ao experimentar sensações agradáveis, a tendência é reagir com desejo e
apego, querendo manter o prazer e ter mais dele. Com sensações dolorosas, a
tendência da mente é reagir com aversão e irritação, querendo que pare e
desapareça, e nunca mais ocorra. No caso das sensações neutras, a mente
tende a ficar entediada e procurar alguma distração mais divertida. Sensações
neutras não prometem algo novo e excitante, portanto, estimulam facilmente a
tendência à ignorância, a ser literalmente ignoradas.
A contemplação da sensação ilumina, com a luz da consciência, essas
tendências arraigadas. Substitui a ignorância da reação automática pelo claro
reconhecimento. Treinamos a nós mesmos, a não ignorar o impacto da
dimensão sensível da experiência. Isso pode oferecer ajuda substancial em
situações cotidianas. Ter aprendido a estar consciente da dimensão sensível da
experiência, torna mais fácil detectar o que está acontecendo na mente em um
estágio inicial. Esses acontecimentos mentais geralmente começam no nível
sensível, quando uma sensação particular leva a subsequentes reações e
proliferações inábeis. Uma vez que a atenção plena é estabelecida no nível da
sensação, torna-se possível reconhecer uma reação não saudável antes que
ela tenha adquirido força total. O reconhecimento em um estágio tão inicial
torna possível cortar essa reação pela raiz.
Além disso, se a atenção plena não foi rápida o suficiente para captar as coisas
em um estágio inicial, mesmo em qualquer momento posterior na trajetória de
construção da negatividade mental, o foco na sensação nos ajuda a nos trazer
de volta a um elemento de simplicidade no momento presente. O
impulso sensível da sensação opera durante qualquer estágio de elaboração
mental. Seu reconhecimento atento oferece uma porta para desenredar sua
complexidade. Com base neste tipo de ancoragem, torna-se mais fácil cultivar
uma resposta adequada para o que estiver acontecendo, no nível interno e no
externo. Esse potencial notável explicaria por que as sensações foram
selecionadas como tópico de todo um satipaṭṭhāna, entre o corpo e os estados
mentais. O presente exercício, de fato, direciona a atenção para um elo crucial
na originação dependente (paṭicca samuppāda). A sensação é o lugar onde o
desejo pode surgir. De certa forma, a sensação é o que faz o mundo girar. Mas
não precisa ser assim. Embora o desejo possa se manifestar em resposta à
sensação, ele não precisa se manifestar. Por meio do reconhecimento
consciente, torna-se possível evitar o surgimento do desejo.
A velocidade com que as sensaçãos geralmente levam a uma reação pode ser
apreciada imaginando se um estágio anterior na evolução da espécie humana.
Imagine um Neandertal dobrando uma esquina na selva e de repente vendo
algo à sua frente. Em uma fração de segundo, uma decisão deve ser tomada.
Isso é algo que eu posso comer ou isso é algo que pode me comer? A velocidade
da decisão entre lutar ou fugir é crucial para a sobrevivência. A sensação oferece
uma contribuição importante para a tomada de decisões rápidas. No entanto, na
média das situações de vida nos dias modernos, a velocidade dessa
reatividade desencadeada pela sensação pode ter consequências prejudiciais.
Pode nos levar a maneiras de agir e reagir que não teríamos escolhido se
tivéssemos tido tempo suficiente para uma reflexão lúcida. Acendendo a luz da
consciência sobre as sensações, podemos aprender a fazer uma pausa com
atenção plena e nos tornarmos cientes de seu impacto antes de sermos levados
por nossas reações.
Uma abordagem prática
Na prática, sugiro novamente usar a varredura do corpo. Durante as varreduras
anteriores, a tarefa era estar consciente das partes anatômicas ou dos
elementos do corpo. Isto se baseou na combinação do mapa do nosso
conhecimento sobre a constituição do corpo, com o sentir do corpo. Com o
presente exercício, essa mesma sensação do corpo durante a varredura pode
ser usada para voltar a atenção mais para dentro, em direção à própria
sensação.
Um exemplo para ilustrar esse olhar mais interior, seria voltarmos nossa atenção
por um momento para a experiência de segurar este livro em nossas mãos.
Tocando o papel do livro, podemos conhecer o material de que é feito. Nesse
caso, a atenção é direcionada para o objeto nas nossas mãos. A
mesma experiência também pode ser feita na outra direção, estando consciente
do ato de tocar. Nesse caso, a atenção é direcionada para as mãos. Da mesma
forma, com a contemplação da sensação, o mesmo tipo de exame é usado para
explorar o que o corpo sente.
Para começar, primeiro podemos fazer varreduras de sensações específicas.
Com uma primeira varredura da cabeça aos pés, poderíamos explorar em
particular a ocorrência de qualquer sensação agradável em algum lugar na
superfície ou no interior do corpo. Durante uma segunda varredura dos pés
à cabeça, podemos ver se alguma sensação dolorosa se manifesta em qualquer
parte do corpo. Uma terceira varredura da cabeça aos pés pode ser feita para
descobrir quaisquer sensações neutras dentro ou por fora do corpo. Com base
na crescente familiaridade com os três tipos de sensações, podemos às vezes
achar mais conveniente combinar as três em um único modo de presenciar as
sensações. Quaisquer que sejam as sensações que encontremos durante uma
varredura, sejam essas sensações de suavidade ou aspereza, latejante ou com
pulsos, pressão ou leveza, tensão ou relaxamento, ou qualquer outro tipo, não
há necessidade de nos envolvermos com os detalhes de suas manifestações
individuais. Só damos importância ao seu tom hedônico, à sua qualidade
sensível. Em suma, apenas reconhecemos se elas são experimentadas como
agradáveis, desagradáveis ou neutras.
Depois de fazer essa varredura, ficamos conscientes do corpo todo na postura
sentada e da manifestação de qualquer sensação desses três tipos. Com a
ocorrência de alguma sensação, apenas continuamos percebendo seu tom
sensível
Tendo explorado a manifestação das sensações dentro e por fora do corpo,
continuamos abrindo o panorama de nossa consciência para perceber qualquer
tipo de sensação, mesmo aquelas que não têm um impacto proeminente no
nível somático. Ao ouvir um som, por exemplo, podemos notar o tom sensível
que acompanha nosso reconhecimento e processamento mental daquele som.
Isso também vale para os outros sentidos. Dessa forma, aprendemos a estar
continuamente atentos à dimensão sensível de nossa
experiência. Além disso, passamos a distinguir mais claramente se uma
sensação em particular, começou no nível corporal ou por causa de uma
avaliação mental.
A contemplação das sensações pode se tornar uma ferramenta poderosa para
iluminar a consciência sobre os eventos mentais. Esse potencial reside na
relativa simplicidade do tom sensível das sensações, em comparação com o
caráter comparativamente mais complexo de outros aspectos da atividade
mental. Tentar permanecer consciente enquanto a mente está envolvida em
alguma atividade de pensamento é mais fácil de dizer do que fazer, pois o
pensamento facilmente nos atrai e logo nos encontramos imersos
no pensamento, em vez de observá-lo. No entanto, a meditação satipaṭṭhāna
não é algo a ser realizado apenas na ausência de pensamento. Ao contrário,
precisa abranger todas as situações possíveis, seja na prática formal, ou ao se
mover pelo mundo. A menos que aprendamos de alguma forma a permanecer
atentos enquanto a mente está ativa, como seremos capazes de levar nossa
prática de atenção plena para a vida diária? Portanto, aprender uma maneira de
estar atento, enquanto a mente está ocupada com pensamentos é um requisito
importante.
As sensações oferecem um campo de treinamento conveniente. Devido à sua
simplicidade, as sensações são como uma alça que podemos usar para
vivenciar a complexidade dos eventos mentais sem nos envolvermos neles.
Dessa forma, quando a mente está envolvida no pensar, talvez até mesmo com
reações emocionais, isso não precisa ser considerado como um obstáculo à
prática. Em vez disso, pode se tornar uma oportunidade de treinarmos uma
habilidade de considerável importância, a capacidade de permanecer
conscientes do tom sensível básico da experiência do momento presente. Essa
sintonia no nível sensível fornece uma base; pode servir como uma âncora que
evita que sejamos levados pelo que está acontecendo.
Dos três tipos de sensação, o tipo neutro é geralmente ignorado. Ao se deparar
com esse tipo de experiência monótona, a tendência da mente destreinada é
mudar rapidamente para outra coisa, sair em busca de algum tipo de distração.
A incapacidade de estar apenas com as sensações neutras pode
ser responsável por uma tendência de dramatizar tudo o que acontece e revestir
a experiência com uma camada de gostos e desgostos. Qualquer coisa pode
servir de alicerce para intensificar a tonalidade sensível do que está acontecendo
conosco, seja do lado agradável ou desagradável, desde que desencadeie
a excitação das sensações fortes e nos tire da suavidade das neutras. Os
resultados inevitáveis de dar rédea solta a essa tendência são percepções
tendenciosas e reações desequilibradas, em suma: a ignorância está em pleno
andamento. Como forma de contrariar esse potencial das sensações neutras de
ativar o drama da ignorância, podemos fazer um esforço consciente para
permanecer atentos às sensações neutras, não mais as ignorando.
Às vezes, porém, também pode acontecer de não sermos capazes de sentir
nenhuma sensação, nem mesmo as neutras. Nesse caso, simplesmente
observamos isso. Semelhante às varreduras do corpo, onde não era necessário
experimentar distintamente cada parte ou elemento anatômico em cada parte do
corpo, da mesma forma, a realização bem-sucedida desta contemplação,
também não depende de sermos capazes de sentir distintamente as sensações
em cada parte do corpo. O objetivo da prática é compreender como
as sensações afetam a mente. Para atingir esse propósito, é suficiente
experimentar algumas sensações de diferentes tipos. Não é necessário
resolver, áreas em branco do corpo, para se ter uma experiência das sensações
totalmente abrangente.
O impulso das sensações
O impacto das sensações na mente pode ser explorado particularmente quando
encontramos sensações desagradáveis ou dolorosas. Algumas delas podem ser
causados por dores crônicas. Nesses casos, simplesmente observamos a
sensação e prosseguimos nossa varredura. Se essa dor se tornar forte,
criamos um espaço ao redor dela tendo consciência de todo o corpo, em vez de
nos concentrarmos apenas na dor. Às vezes, pode ser útil observar se há outras
partes do corpo que não estão com dor. Isso nos ajuda a permanecermos
equilibrados.
Outras sensações desagradáveis ou dolorosas encontradas durante a varredura
podem ser simplesmente devido à postura sentada, ou então alguma coceira.
Nesses casos, a prática pode ser mais focada na dor. A recomendação é ficar
um pouco com a sensação dolorosa, observando a sensação
desagradável ou a coceira junto com o estímulo que se manifesta na mente. O
objeto da observação é o estímulo da sensação, clamando por nossa atenção
e para que uma reação aconteça, para que alguma ação seja realizada para
parar a coceira ou a sensação desagradável.
A tarefa aqui não é sentar com uma dor excruciante. Não estamos tentando
transformar satipaṭṭhāna em uma prática ascética. A tarefa é apenas observar
um pouco as sensações desagradáveis e sua condicionalidade. Observamos as
sensações desagradáveis para entender como eles afetam a mente. Isso
oferece uma oportunidade para desenvolver nossa própria experiência pessoal
e direta da originação dependente. Tudo o que precisamos é perceber esse
estímulo.
Depois que o impulso for percebido, estamos livres para agir. Nos coçamos ou
mudamos nossa postura, de acordo com o que a situação exige. Percebemos
as agradáveis sensações de alívio e a reação mental de querer que esse prazer
perdure. Desnecessário dizer que as sensações agradáveis podem pressionar
a mente tanto quanto as sensações desagradáveis. A recomendação é apenas
começar a explorar o impulso das sensações, com a dor, pois isso oferece uma
ocasião facilmente acessível e evidente para tal exploração. Uma vez
compreendido, este estímulo, pode ser percebido com qualquer tipo de
sensação, às vezes talvez até percebendo o impulso sutil das sensações
neutras por algo mais interessante.
Com a prática contínua de observar esse impulso, eventualmente a experiência
de cada um dos três tipos de sensações vem junto com a consciência de sua
respectiva tendência. A sensação agradável tende a atrair, a sensação
desagradável tende a despertar resistência e a sensação neutra tende a
desencadear a busca por outra coisa que seja menos tediosa. Nossa apreciação
da relação das sensações com as tendências subjacentes se aprofunda. Isso,
por sua vez, nos faz perceber o notável grau em que nossas avaliações
e reações aparentemente tão bem fundamentadas são, na verdade,
influenciadas pelo tom sensível do tipo de sensação experimentado. O aumento
da familiaridade com as manifestações internas do impulso exercido pelas
sensações naturalmente leva a notar o mesmo também externamente, quando
se manifesta nos outros. Tal observação revela até que ponto outros seres
humanos também estão sob o domínio das sensações em suas percepções e
ações subsequentes. Ser capaz de perceber tal influência pode ser de grande
ajuda nas comunicações e interações com outras pessoas.
Retornando à prática formal de meditação, após a varredura do corpo, passamos
a estar cientes de quaisquer sensações que se manifestem, independentemente
de sua manifestação ter um impacto evidente no corpo ou não. Algumas
sensações dificilmente afetam o corpo, portanto sua observação atenta
precisa ocorrer dentro do reino da mente. Qualquer que seja o tipo de sensação
que se manifeste, a tarefa consiste em estar consciente da dimensão sensível
da experiência do momento presente. Sempre que essa experiência sensível
vier com um impulso particularmente proeminente, tentaremos notá-lo.
A vantagem em cultivar a consciência das sensações, está em conhecer e
reconhecer que ela atua como intermediária entre o corpo e a mente. As
sensações podem ser visualizadas como um mensageiro entre o que acontece
no corpo e o que ocorre na mente. Ou então as sensações podem ser
consideradas uma interface entre o corpo e a mente. Por meio das sensações,
os estados mentais podem afetar a condição do corpo, da mesma forma que,
por meio das mesmas sensações, a condição do corpo tem seu impacto na
mente (Anālayo 2013: 121f). Isso talvez explique porque um discurso no
Satipaṭṭhāna-saṃyutta estipula o cultivo de todos os quatro satipaṭṭhāna para
uma compreensão penetrativa (pariññā) dos três tipos de sensação (SN 47,49).
Embora esses três tipos sejam considerados em detalhes apenas com
a contemplação da sensação, aparentemente o esforço cooperativo feito com a
ajuda do cultivo dos outros três satipaṭṭhāna coloca a exploração feita com o
segundo satipaṭṭhāna em seu contexto apropriado. Isso garante que o insight
resultante realmente se torne penetrante.
As sensações são condicionadas e condicionantes ao mesmo tempo. Elas são
condicionadas pelo tipo de contato que as levou a surgir. Pode ser pelo contato
do toque no corpo. Mas também pode ser pelo contato em outra porta dos
sentidos, ou pela porta da mente, quando se tem um pensamento ou
ideia particular.
A variedade das sensações não vem apenas do tipo de contato que leva ao seu
surgimento. Suas manifestações também diferem. As sensações tendem a
afetar tanto o corpo como a mente. Mas elas o fazem em graus diferentes. A
sensação da experiência de um estado mental, como a raiva, tem um
componente corporal mais forte (tensão física, expressão facial etc.) do que as
sensações que surgem em outros estados mentais como por exemplo a
vaidade.
Em vista dessa variedade, é importante cultivar a contemplação das sensações
de uma maneira abrangente. Ao contemplar apenas as sensações que se
manifestam como sensações físicas corresse o risco de perdermos as
sensações que aparecem em estados mentais que não têm uma relação
proeminente com sensações corporais facilmente identificadas. Essa restrição
da contemplação, apenas às sensações que se manifestam como sensações
corporais, estreitaria de uma forma significativa o escopo do presente
exercício este então, perderia uma parte substancial de seu potencial de
liberação.
O corpo e a dor
As sensações corporais são uma área proeminente para esta contemplação. A
prática sustentada da varredura corporal com atenção às sensações revela em
um grau surpreendente, que o corpo é uma fonte constante de dor. Sentado em
meditação, mais cedo ou mais tarde a dor no corpo nos força a mudar
de postura. Mesmo a postura deitada não pode ser mantida por longos períodos
sem que, eventualmente, cause dor e a necessidade de se virar e mudar a
posição do corpo.
Além da dor inerente ao corpo ficar imóvel em qualquer postura, existe a irritação
causada pela temperatura externa. Agora está muito quente, logo estará muito
frio. Uma necessidade constante nos obriga a ajustar as roupas ou a ligar o
ventilador ou o aquecimento, para evitar que este corpo dê origem ao
desconforto causado pela temperatura.
Outra dimensão da mesma situação é a necessidade de comida e bebida. Tanto
tempo, atenção, e recursos são gastos nos abastecendo do que gostamos de
comer e de beber. Gratificar, criar e reforçar essas preferências tanto em nós
como em outras pessoas, recebe muita atenção e publicidade. Mas a verdade
é que temos que comer e beber, simplesmente para evitar o desconforto da
fome e da sede. Quando esse desconforto é tratado com sucesso, pelo menos
por um curto período, o resultado inevitável é a necessidade de defecar e urinar.
Deixar de fazer isso se tornará mais uma fonte de desconforto. Do restaurante
ao banheiro, tudo isso são apenas instalações para o alívio da dor.
Respirar fundo é tão agradável. Por que é? Porque por um momento a procura
constante do corpo por oxigênio foi satisfeita. Temos que respirar para evitar a
dor da falta de oxigênio. Contemplar as diferentes dimensões da dor do corpo,
também pode estar relacionado aos elementos, segundo raio da roda da prática.
A dor fundamental do corpo em qualquer postura devido à pressão do peso do
corpo, juntamente com a necessidade de comer e defecar, é uma forma de dor
corporal que reflete o impacto do elemento terra. A necessidade de beber e
urinar está relacionada ao elemento água. A necessidade de manter o corpo em
uma determinada temperatura indica o elemento fogo. Dos vários movimentos
corporais, a necessidade de respirar é um exemplo particularmente proeminente
do potencial da dor relacionado ao elemento vento. Além de seu lugar na
contemplação das sensações, a dor sutil e constante inerente a ter um corpo
pode se tornar um exercício por si só. Basta observar a quantidade de tempo e
atividades gastas ao longo do dia, apenas para manter o corpo em uma condição
menos dolorosa: dormir, comer, beber, vestir, lavar-se e assim por diante.
Este tipo de contemplação ou reflexão pode levar a uma notável transformação
de nossa atitude em relação ao corpo. Não tem apenas o efeito moderador na
busca dos prazeres corporais, em suas várias formas, mas também pode ser de
grande ajuda no caso de doença. A sensualidade e a doença do corpo são, na
verdade, as duas faces da mesma moeda. Na medida em que nos apegamos ao
corpo por meio da busca do prazer sensual, na mesma medida sofreremos
quando o corpo estiver doente e com dor.
Outro aspecto da mesma prática é que, muitas vezes a experiência da doença e
da dor, vem com a implícita suposição de que de alguma forma temos direito à
saúde. De alguma forma, parece quase injusto, ficar doentes e sentir dor. A
avaliação adequada da verdadeira natureza do corpo, como algo
que naturalmente dá origem à dor, ajudará a nos livrar dessa suposição absurda.
É natural que o corpo cause dor. Não há nada de injusto ou mesmo
surpreendente nisso. Essa compreensão torna mais fácil enfrentar qualquer dor
no corpo com serenidade mental.
A experiência física da dor geralmente vem em combinação com a dor mental,
de angústia e preocupação, causada pela dor no corpo. O Salla-sutta ilustra
essa situação com o exemplo de ser atingido por flechas (SN 36.6; Anālayo
2013: 120f e 2016: 27ss). Quando sentimos dor física e não deixamos que
esta cause aflição mental, somos semelhantes a alguém que é atingido por
apenas uma flecha. Reagir com angústia e preocupação, no entanto, é como
ser atingido por outra flecha. Com a atenção plena presente, essa flecha
adicional e desnecessária pode ser evitada. As sensações experimentadas irão
literalmente “terminar no corpo” (kāyapariyantika), ao invés de levar a
sensações adicionais, causados pela reação mental. Isso pode se tornar uma
abordagem experiencial direta para a visão correta nos termos das
quatro nobres verdades. Estar mentalmente aflito pela experiência da dor é uma
manifestação óbvia da primeira verdade de dukkha. A segunda flecha de
angústia e preocupação mental, surge devido ao desejo de não sentir dor,
exemplificando o ensinamento da segunda verdade sobre a função do desejo. A
situação de experimentar apenas a primeira flechada, sem qualquer reação
mental de angústia e de preocupação, nos mostra a terceira verdade a respeito
da liberdade (pelo menos momentânea) de dukkha. A prática da atenção plena
às sensações, pode servir como o caminho prático, para alcançar maiores graus
de liberdade da angústia e da preocupação, em relação à experiência física da
dor.
Os discursos antigos reconhecem claramente que a atenção plena oferece uma
ferramenta poderosa para enfrentar as sensações, dolorosos de uma doença.
Um discurso no Saṃyutta-nikāya relata que Anuruddha, um discípulo eminente,
dotado de excepcional habilidade concentrativa, enfrentou a dor de uma doença
grave apenas com atenção plena (SN 52.10; Anālayo 2013: 135 e 2016: 53).
Outro discurso relata que o próprio Buda empregou a atenção plena quando
doente (SN 1.38; Anālayo 2016: 61). Ambos os casos são notáveis porque o
Buda e Anuruddha poderiam, em vez disso, ter usado seus poderes
de concentração para suprimir a experiência de dor. Em vez de apenas suprimir,
os dois optaram por enfrentar a dor com atenção plena. Isto é para mostrar o
poder inerente à contemplação das sensações, quando são dolorosas.
A mente e a alegria
Além de perceber a dor inerente e sutil de se ter um corpo, a prática sustentada
desta contemplação também revelará outra sensação. Felizmente, este é
agradável. É a alegria, muito sutil, de estar no momento presente. Perceber essa
alegria sutil, contrabalança a descoberta da dor inerente de se ter um corpo.
Ambos os tipos de sensações normalmente não são percebidas. Leva tempo e
prática para reconhecê-las.
As sensações agradáveis e sutis de estar no momento presente são facilmente
perdidas por causa da tendência da mente para a distração. Outra razão de
sermos incapazes de perceber esse tipo de sensação agradável é a de usarmos
muita energia e nos esforçarmos demais. A tensão resultante na mente
impede que surja a alegria sutil de estar no momento presente. Ser capaz de
notar essa alegria sutil oferece um feedback direto sobre o ponto de equilíbrio,
entre ficar muito frouxo tendo como resultado a distração, ou muito tenso, tendo
como consequência a contração. Assim como um alaúde cujas cordas não estão
nem muito tensas nem muito soltas produzirá um som melodioso (AN 6.55;
Anālayo 2003: 38), a mente estando em uma condição de equilíbrio, também
produzirá o som melodioso da alegria sutil.
Uma vez que este tipo de sensação agradável for reconhecida, ele estará, em
princípio, acessível em qualquer situação. Mesmo a tarefa mais entediante pode
se tornar uma ocasião para experimentar uma alegria sutil, desde que a tarefa
seja realizada com a consciência bem estabelecida no momento presente.
O mesmo vale para a espera no dentista, preso em um engarrafamento, parado
em uma fila; não há fim para as oportunidades de voltar ao momento presente
e transformar algo que poderia facilmente ser experimentado como
desagradável em uma ocasião para o surgimento de sensações saudáveis e
agradáveis.
Cultivar conscientemente a presença desse tipo sutil de sensação agradável,
pode ajudar muito a contrariar a tendência inerente da mente à distração. Afinal,
a razão mais importante para a ocorrência de distrações é a busca da mente
por algo mais divertido e prazeroso. Ao unir nossa prática de meditação
à experiência dessa alegria refinada de estar no momento presente, a mente
tende naturalmente a permanecer com a prática aqui e agora, em vez de partir
em busca de outra coisa. Portanto, eu recomendo fazer o reconhecimento da
sensação agradável sutil que surge de estar no momento presente, tanto
quanto possível, uma linha de base para a prática do segundo satipaṭṭhāna.
Uma vez que surge, esse tipo refinado de sensação ela pode ser observada de
forma razoavelmente contínua (contanto que permaneçamos atentos ao
momento presente, é claro). Desta forma, a contemplação da sensação, além de
seus outros múltiplos benefícios, também traz uma recompensa imediata em
relação à tarefa principal da meditação satipaṭṭhāna: ajudar-nos a permanecer
com a consciência no aqui e no agora. Estando estabelecidos neste ponto de
observação, básico e vantajoso, do momento presente, torna-se fácil notar
quando às vezes surgem outros (e geralmente mais fortes) tipos de sensação,
que podem então se tornar o objeto da mente em uma prática abrangente do
segundo satipaṭṭhāna.
Uma realização central que emerge da tarefa da contemplação das sensações,
conforme descrito acima, é o insight do potencial sensível do corpo e da mente.
A maneira como isso pode ser discernido no nível das sensações: manter o
corpo imóvel leva a sensaçãos dolorosos, mas manter a mente imóvel leva
a sensações agradáveis. Esse contraste notável ressalta o fato de que é
simplesmente muito mais significativo buscar a felicidade saudável que se
origina na mente do que buscar a felicidade sensual por meio do corpo.
Afinal, a felicidade é mental; ele se origina na mente. Buscar a felicidade por
meio do corpo é uma espécie de desvio. É muito mais simples buscar a
felicidade por meio da mente, cultivando o que é saudável. Não é apenas mais
direto, mas também tem uma chance muito maior de sucesso, porque fazer isso
está de acordo com a tendência natural de estabeler a mente no que é saudável,
para dar origem à alegria. Por último, mas não menos importante, buscar a
felicidade por meio dos prazeres dos sentidos do corpo nos manterá em
contínuo cativeiro, mas buscar a felicidade por meio do estabelecimento de uma
condição saudável da mente nos levará, em vez disso, à liberação.
Visão correta
A compreensão de como nossa busca pela felicidade deve ser mais bem
direcionada é uma questão de visão correta. Ver as coisas corretamente fornece
a orientação fundamental para seguir um curso de ação que pode levar à
felicidade duradoura.
A visão correta, como entendimento das quatro nobres verdades, desenvolve-se
das duas primeiras, relacionadas com o reconhecimento de dukkha e sua causa,
para a terceira e quarta verdades. Elas estão relacionadas com o
reconhecimento da possibilidade de ser livre de dukkha e o caminho que leva a
essa liberdade, que é o nobre caminho óctuplo. Essa mudança da primeira e
segunda para a terceira e quarta verdades avança do que é negativo para o que
é positivo. As duas dimensões da contemplação das sensações que acabamos
de descrever, envolvem uma mudança semelhante. Essa mudança progride
da compreensão de que existe uma dor sutil inerente a ter um corpo, cujo alívio
é a força motivadora por trás de muitas de nossas atividades, para o
reconhecimento da alegria sutil de se estar no momento presente. Tal
paralelismo apóia um ponto já exposto acima, no qual, a contemplação da
sensação oferece uma porta para tornar a visão correta por meio das quatro
nobres verdades, uma questão de experiência pessoal direta.
Sensações mundanas e não mundanas
Além do reconhecimento das sensações como sendo agradáveis, desagradáveis
ou neutras, as instruções no Satipaṭṭhāna-sutta seguem para outra distinção. A
forma como isso é lido no original me dá a impressão de que toda a instrução
envolve um procedimento em duas etapas. O primeiro estágio requer apenas
o reconhecimento dos três tons sensíveis básicos. Este tem sido o tópico
explorado até agora. Uma vez que algum grau de familiaridade com esse tipo
de prática tenha sido alcançado, o segundo estágio entra em ação. Aqui estão
as instruções:
Ao sentir uma sensação prazerosa mundana, sabe-se: “ Sinto uma sensação
prazerosa mundana”; ao sentir uma sensação prazerosa não mundana, sabe-
se: “Sinto uma
sensação prazerosa não mundana”; ao sentir uma sensação de dolorosa
mundana, sabe se: “Sinto uma sensação dolorosa mundana”; ao sentir uma
sensação dolorosa não mundana, sabe-se: “Sinto uma sensação dolorosa não
mundana”; ao sentir um sensação mundana neutra, sabe-se: “Sinto um
sensação mundana neutra”; ao sentir um sensação neutra não mundana, sabe-
se: "Sinto um sensação neutra não mundana."
A distinção entre mundano e não-mundano envolve termos em pāli que,
traduzidos mais literalmente, distinguem entre sensações relacionados à carne
(āmisa) e aqueles não relacionados a ela. Suponho que essa distinção se
destina a introduzir uma dimensão ética na prática, que pode funcionar
como uma orientação para a contemplação dos estados mentais. Em suma, a
sensação mundana dos tipos agradáveis, desagradáveis e neutras surgem
quando a mente está com luxúria, raiva ou delusão.
As sensações não mundanas dos mesmos três tipos sensíveis, vêm com uma
mente que está pelo menos temporariamente livre da influência da luxúria, da
raiva e da delusão.
De certa forma, teria sido mais direto falar apenas das sensações saudáveis e
não saudáveis. No entanto, em seu uso geral, a distinção entre saudável
(kusala) e não saudável (akusala) tem uma relação próxima com intenções e
atividades intencionais. As sensações, entretanto, não são por si só uma
questão de intenção. Enquanto as percepções e formações volitivas se
relacionam diretamente com a intenção e são passíveis de treinamento mental,
as sensações e a consciência são mais o resultado da situação criada
pela percepção e pelas formações volitivas. Essa diferença básica pode muito
bem ser a razão pela qual os discursos relacionam a sensação e a consciência
aos objetos dos sentidos, enquanto a percepção e as formações volitivas estão
relacionadas à porta dos sentidos (Anālayo 2003: 204). Em outras
palavras, sensação e consciência estão mais do lado receptivo da experiência
e, portanto, menos suscetíveis à influência direta da intenção. Isso pode explicar
por que, em vez da distinção mais familiar entre o que é saudável e o que é não
saudável, para a contemplação das sensações, foi empregada a distinção
menos comum entre o que é mundano e o que não é mundano.
A introdução da distinção entre sensações mundanas e não mundanas pode ser
ainda mais apreciada à luz do próprio progresso do Buda para o despertar. De
acordo com o Mahāsaccaka-sutta, durante o seu período de ascetismo, o futuro
Buda experimentou uma dor excruciante, mas essa dor não subjugou sua
mente. Da mesma forma, ao cultivar as absorções antes de seu despertar, ele
foi capaz de experimentar a alegria e a felicidade da concentração profunda sem
que sua mente fosse dominada por isso (MN 36; Anālayo 2017c: 92).
No caso do Buda, garantir que a mente não fosse dominada pelas sensações
era parte integral de seu constante monitoramento sobre o que estava fazendo.
Tal monitoramento era necessário, pois ele não tinha certeza sobre qual
caminho e prática o levariam ao despertar. Portanto, ele tinha que
continuar monitorando o que estava acontecendo, a fim de ser capaz de avaliar
se o que estava fazendo resultava em progresso, na direção ao objetivo final, a
libertação. Suponho que tal monitoramento, por si só talvez seja apenas o
resultado de sua prática sem a orientação de um professor, acabou por ser tão
benéfico que, ao ensinar os outros, ele decidiu dar-lhe uma posição de destaque
na forma da meditação satipaṭṭhāna.
Ao monitorar o impacto das sensações na mente, ele desenvolveu uma
avaliação distinta da natureza das sensações. A atitude média da mente
destreinada é buscar o prazer e evitar a dor. O ascetismo é baseado no
reconhecimento de que essa atitude leva à servidão. A alternativa defendida
pelos seguidores
do ascetismo é exatamente o oposto: busque a dor e evite o prazer. Por sua
própria experiência com a indulgência sensual em sua juventude e com a dor
autoinfligida durante seu ascetismo, o Buda foi além de ambas as atitudes. Ele
percebeu que algumas formas de prazer são recomendáveis e outras devem
ser evitadas. Novamente, algumas formas de dor são recomendáveis e outras
devem ser evitadas (MN 70; Anālayo 2017c: 74ff). Essa compreensão envolve
uma mudança significativa de perspectiva, em que as sensações são avaliadas
de acordo com as suas repercussões, ao invés de serem avaliadas pelo seu
tom sensível. A descoberta dessa perspectiva diferente, indica a distinção
introduzida nas instruções do Satipaṭṭhāna-sutta entre sensações mundanas e
não mundanas.
O Cūḷavedalla-sutta se baseia nesta distinção básica entre o tom sensível de
uma sensação e suas repercussões. O discurso apresenta a primeira absorção
como exemplo de sensações agradáveis que não estimulam o desejo sensual.
A quarta absorção exemplifica sensações neutras que não estimulam
a ignorância. Desejar a libertação exemplifica sensações desagradáveis que
não estimulam a aversão (MN 44; Anālayo 2013: 127f).
Dessa forma, as sensações agradáveis do tipo mundano são aquelas
relacionadas à sensualidade. Aquelas do tipo não mundano, são a alegria e a
felicidade da concentração profunda. Ainda mais não mundano do que isso,
entretanto, é a felicidade da liberação (SN 36.29; Anālayo 2003: 158n9). O
princípio por trás desse tipo de apresentação é que as sensações agradáveis
mundanas são aquelas que levam a um aumento do desejo sensual. Em vez
disso, sensações agradáveis não mundanas levam a uma diminuição do desejo
sensual. A felicidade da concentração profunda na verdade diminui o interesse
pela sensualidade. Uma mente que está totalmente liberada está para sempre
livre do desejo sensual. Conseqüentemente, a alegria da liberação é o tipo
supremo de sensação agradável não mundana.
Sensações desagradáveis de tipo mundano seriam aquelas decorrentes da
privação de prazeres sensuais. Com relação às sensações desagradáveis do
tipo não mundano, o Cūḷavedalla-sutta descreve como tais sensações surgem
devido ao desejo de liberação. Isso mostra que, em princípio, não há nada de
errado com o desejo ou a aspiração de alcançar a libertação. O reconhecimento
de ainda não ter atingido a meta pode ser útil para despertar a energia
necessária para um futuro progresso. No entanto, isso precisa ser manejado
adequadamente para não exagerar. Quando essa aspiração nos leva à
depressão e à frustração excessiva, pode se transformar em um obstáculo.
Relacionado ao tópico das sensações desagradáveis que pertencem ao tipo não
mundano, existem ocasiões em que reconhecemos que nós falhamos em seguir
nossos próprios padrões de conduta e comportamento. Pode ser muito útil nos
lembrarmos de que essas experiências são parte integrante do caminho.
Aprender a suportar com paciência as sensações desagradáveis que surgem
nessas ocasiões contraria a tendência natural de evitar esse desprazer
simplesmente ignorando nossas próprias falhas. Se essa tendência é deixada
com o curso livre, o resultado final pode muito bem ser, fingir que somos
melhores do que realmente somos. Isso seria de fato um obstáculo para um
futuro progresso. O reconhecimento honesto de nossas próprias contaminações
e falhas é uma base indispensável para sermos capazes de fazer algo a respeito
delas. Sensações não mundanas do tipo desagradável claramente têm seu
lugar. Isso não significa que devemos permitir a autodepreciação. Como em
todos os outros exercícios de satipaṭṭhāna, a tarefa é manter o equilíbrio. A
ferramenta para alcançar esse equilíbrio é sempre a atenção plena.
A observação atenta nos oferece feedback assim que estivermos em
desequilibrio.
Sensações neutras do tipo mundano podem ser quando estamos pelo menos
momentaneamente saciados pela sensualidade e nosso interesse em mais
indulgência não é mais estimulado, pelo menos por enquanto. Pense em comer
até se fartar e, então lhe oferecem outro prato delicioso. As sensações
que surgem neste momento serão substancialmente diferentes das sensações
experimentadas ao ser oferecido o mesmo prato delicioso em um momento em
que estamos realmente com fome. O ponto-chave aqui é que a reação neutra
não é o resultado do insight, mas sim um tipo de indiferença que permanece
dentro do domínio da ignorância.
Um exemplo proeminente de sensações não mundanas neutras seria a quarta
absorção. À mesma categoria pertencem outras sensações neutras,
experimentados durante a meditação ou então como resultado de um insight
que leva à equanimidade.
O contraste entre sensações neutras mundanas e não mundanas também pode
ser visto da perspectiva do Saḷāyatanavibhaṅga-sutta (MN 137; Anālayo 2003:
172 e 2013: 131). Esse discurso descreve uma hierarquia de sensações a serem
cultivadas, onde o tom hedônico neutro vivenciado com o cultivo do
insight se destaca como supremo. Tendo em vista a tendência das sensações
neutras de dar origem ao tédio, devido à sua natureza branda, apreciar a
superioridade desse tipo particular de sensação neutra, pode ajudar a manter o
ímpeto da prática da meditação durante os períodos de retiro. Em outras
palavras, é natural que às vezes a mente ache a meditação intensiva entediante
e vá em busca de outra coisa para estimular o interesse. No entanto, do ponto
de vista dos ensinamentos, são precisamente as sensações neutras
experienciadas ao se ver a natureza impermanente dos fenômenos que formam
o próprio ápice da experiência das sensações; é precisamente esse tipo de
experiência que deve ser cultivada.
Impermanência
Tendo praticado a contemplação das sensações por algum tempo, outra
característica se torna cada vez mais proeminente, a natureza mutável das
sensações. Onde antes observamos que surgiu uma sensação de um
determinado tom hedônico, mais cedo ou mais tarde descobrimos que ela
passou. Com esse constante surgimento e desaparecimento, de certa forma,
toda sensação é uma mensageira da impermanência. As sensações são tão
efêmeras, elas são como bolhas na superfície da água durante a chuva (SN
22.95; Anālayo 2003: 206). Eles estão constantemente surgindo e
desaparecendo. Sua natureza impermanente torna as sensações uma
ferramenta conveniente para o cultivo de um insight mais profundo da
impermanência. Por meio deste exercício, este insight torna-se uma experiência
palpável e diretamente sentida. Sentimos impermanência. Sentir a
impermanência torna indubitavelmente claro que o prazer e a dor não duram
para sempre. Experimentar isso diretamente por nós mesmos corrói
gradualmente a tendência das sensações desencadearem reações fortes.
A apreciação da natureza mutável das sensações requer um esforço intencional.
De certa forma, com a anterior contemplação do corpo, de um cadáver em
decomposição, a verdade da impermanência dificilmente pode ser perdida. Mas
tanto com sensações quanto com estados mentais, a impermanência precisa
ser ativamente encorajada para prosseguir com a prática de acordo com o que
foi estipulado no
refrão do Satipaṭṭhāna-sutta. De acordo com o refrão, a tarefa é contemplar a
natureza do surgimento e do desaparecimento.
Uma vez que estejamos estabelecidos nessa sensação, nessa sensação da
impermanência, os pensamentos não precisam mais ser vistos como uma
distração da contemplação das sensações. Contanto que permaneçamos
enraizados na consciência de todo o corpo e sintonizados com essa sensação
de mudança, sentida diretamente, os pensamentos podem ser deixados como
são. Não há necessidade de forçá-los a sair da mente para poder contemplar
as sensações. Se simplesmente os deixarmos como são, sem nos envolvermos
com eles, eles perderão gradualmente o poder de distrair a mente.
Eventualmente, eles podem simplesmente passar a fazer parte de uma
experiência abrangente de impermanência.
A mesma experiência abrangente de impermanência continua da meditação
sentada para a meditação andando. Durante o caminhar, pode-se prestar
atenção às sensações relacionadas a essa atividade. Podem ser as sensações
do toque nas solas dos pés, as sensações nas pernas ou em todo o corpo. Ao
se estar consciente das várias sensações, podemos dar uma atenção especial
à sua impermanência. Desta forma, a sensação de mudança torna-se uma
prática contínua.
As sensações são como ventos que vêm de diferentes direções (SN 36.12;
Anālayo 2003: 160 e 2013: 132). Assim como seria sem sentido lutar contra as
vicissitudes do clima, da mesma forma não faria sentido lutar contra as
vicissitudes das sensações. A melhor atitude é simplesmente deixar as
sensações e os ventos passarem. Ambos podem seguir seu curso natural, ao
saber que mudarão de qualquer maneira.
Cultive a mente
Como o céu vazio,
Permita que o vento das sensações
Simplesmente passe.
Em termos do símile da roda, a contribuição feita pela contemplação da
sensação para o centro da roda é enraizar a atenção plena no corpo, ainda mais
firmemente, focando no conhecimento da sensação do corpo e combinando-o
com a alegria de se estar no momento presente. Além disso, essa sensação
da presença do corpo, é uma indicação para a o fato da impermanência. A
contribuição feita ao aro da roda é uma sensação cada vez mais profunda do
desapego.
[imagem]
É fútil apegar-se a sensações que são tão efêmeras e em constante mudança.
A tendência de reagir às sensações dando origem ao desejo é neutralizada e
progressivamente enfraquecida. A busca por prazeres sensuais através do
corpo revela-se sem sentido. Não é apenas inútil, mas também um verdadeiro
perigo. Esse perigo torna-se particularmente evidente quando o corpo adoece e
sente dores. Na medida em que nos apegarmos às sensações corporais
agradáveis durante nossas prévias buscas da sensualidade, seremos afligidos
por sensações corporais desagradáveis quando a doença se manifestar.
Prática aberta
Com base no insight cultivado com as três contemplações do corpo e as
informações fornecidas pela exploração consciente das sensações, passamos
para um modo de prática não direcionado. Enraizados na consciência de todo o
corpo e com a continuidade daquela percepção da sensação da impermanência,
nos abrimos para o momento presente de qualquer maneira que ele se
manifestar. Estamos cientes de que “há sensação” (atthi vedanā), que pode
assumir a forma de experimentar nosso enraizamento na consciência de todo o
corpo por meio das sensações. Desse modo, continuamos avançando no
caminho da libertação de toda reatividade prejudicial em relação às sensações.
Quando notamos que a mente se distraiu, sorrindo reconhecemos que a mente
divagou e então tentamos identificar o tom da sensação. Qual foi o tom sensível
predominante do pensamento, experiência, memória ou fantasia que levou à
distração? Foi agradável, desagradável ou neutro? Tal reconhecimento do tom
predominante da sensação pode oferecer suporte para a contemplação da
mente, o próximo satipaṭṭhāna, em particular em relação à necessidade de
discernir manifestações de luxúria, raiva e delusão. Voltarei a esta relação entre
o segundo e o terceiro satipaṭṭhāna no próximo capítulo.
Do ponto de vista do insight, uma contribuição importante feita pela
contemplação da sensação é a de oferecer uma realização direta e pessoal do
princípio da originação dependente. De certa forma, o elo final da originação
dependente já se tornou evidente com a contemplação prévia da morte. Ao
contemplar a morte, treinamos a nós mesmos para não reagir com tristeza e dor
que geralmente vêm entrelaçadas com a experiência da morte. Esse tipo de
treinamento nos mostra implicitamente o desejo e o apego, ou seja, o desejo de
não ser tocado pela morte e o apego à vida.
Com base na consciência da mortalidade do corpo como uma manifestação
notável de dukkha, este exercício se transforma em uma conjuntura crucial na
série de ligações que levam à originação dependente de dukkha. Isto é o
surgimento do desejo, na dependência da sensação. O impulso nítido exercido
sobre a mente pela sensação torna evidente por que a ligação entre sensação
e desejo é tão importante. É no contexto da originação dependente, que a
atenção plena pode fazer uma grande diferença.
Resumo
Os três tipos de sensação podem ser explorados com a ajuda das varreduras
pelo corpo, que devem levar a uma percepção abrangente de qualquer
sensação, incluindo aquelas mentais que não têm um componente corporal
claramente perceptível. Perceber o impulso da sensação, para que alguma
reação ocorra, revela o impacto do condicionamento da mente. A contemplação
sustentada revela que o corpo é uma fonte
recorrente de sensações dolorosas, ao passo que a mente estabelecida no
momento presente produz um tipo sutil de sensação agradável. Qualquer
sensação, pode servir como uma porta de entrada para a experiência direta da
impermanência.
7. Mente
O quinto raio da roda da prática, correspondente ao terceiro satipaṭṭhāna, é a
contemplação dos estados mentais. A primeira parte das instruções dadas no
Satipaṭṭhāna-sutta procede da seguinte forma (MN 10):
Sabe-se que uma mente com luxúria é “uma mente com luxúria”;
ou sabe-se que uma mente sem luxúria é “uma mente sem luxúria”;
ou sabe-se que uma mente com raiva é “uma mente com raiva”;
ou sabe-se que uma mente sem raiva é “uma mente sem raiva”;
ou sabe-se que uma mente com delusão é “uma mente com delusão”;
ou sabe-se que uma mente sem delusão é “uma mente sem delusão”;
ou sabe-se que uma mente contraída é “uma mente contraída”;
ou sabe-se que uma mente distraída é “uma mente distraída”.
Embora, eu irei considerar em detalhes os estados mentais individuais
mencionados acima, no início eu gostaria de observar que o ímpeto principal da
presente contemplação pode ser resumido como um monitoramento interno
contínuo com a pergunta: "como está a mente?" O que quer que aconteça lá
fora, onde normalmente vai toda a nossa atenção, torna-se secundário sob essa
perspectiva. O que realmente conta é como a mente reage a isso. É isso que
precisamos continuamente observar. É esse conhecimento da nossa própria
mente que é o principal tema do presente satipaṭṭhāna, os estados mentais
listados acima servem como auxiliares ou exemplificações.
Luxúria, raiva e delusão
Os três primeiros estados mentais nas instruções acima, referem-se à presença
e ausência de luxúria, raiva e delusão. Sugiro dar ênfase especial a esses três
durante esta prática. Sempre que ocorre uma distração, ela pode envolver
alguma forma de desejo ou luxúria ou estar relacionada à presença de algum
grau de aversão ou raiva. A terceira alternativa é quando a mente está apenas
vagando por aí, uma condição de distração que não é tingida pela luxúria ou
raiva. Essa condição da mente pode ser considerada uma manifestação
da delusão. A delusão também está por trás da luxúria e da raiva. É preferível
empregar a delusão como um complemento.
A familiaridade com a presença ou ausência de luxúria, raiva e delusão interior,
por sua vez, facilitará o reconhecimento das mesmas externamente, quando tal
presença ou ausência se manifestar em outras pessoas. Tal reconhecimento
pode apoiar-se na expressão facial, tom de voz ou postura corporal
como indicadores da condição mental de outra pessoa (Anālayo 2003: 97 e
2017a: 37n39).
O emprego dessas três categorias ajuda a construir uma ponte a partir da
contemplação das sensações do tipo mundano. Quando a luxúria está presente
na mente, é provável que venha acompanhada de sensações agradáveis
mundanas. Da mesma forma, quando a raiva surge, é provável que tal
surgimento
seja acompanhada por sensações dolorosas mundanas. Quando a delusão
surge, por sua vez, é provável que sensações mundanas neutras estejam
presentes na mente.
Trabalhar com esse relacionamento pode oferecer um suporte considerável para
o reconhecimento do surgimento desses estados prejudiciais. Esse
reconhecimento tem a ver com uma tarefa básica exigida pela contemplação
dos estados da mente. Essa tarefa é ver, através de uma determinada linha
de pensamento e suas associações relacionadas, a fim de discernir a corrente
mental implícita. Para o reconhecimento consciente de nosso atual estado
mental, o requisito é, acima de tudo, um reconhecimento claro, sem se envolver
nos detalhes do que esteja ocorrendo em qualquer linha de pensamento
e associações relacionadas. Uma vez que muitas vezes são precisamente
esses detalhes que nos deixam fisgados e pegos em uma cadeia particular de
pensamentos, alcançar tal reconhecimento é mais facilmente dito do que feito.
Reconhecer o tom da sensação da nossa experiência oferece ajuda para essa
tarefa. Ele fundamenta a consciência na realidade sensível do momento
presente e, assim, chama a atenção para nosso envolvimento subjetivo em tudo
o que está acontecendo. Dessa forma, aprendemos a prestar atenção
à condição básica da mente, e não aos detalhes específicos.
Isso é de considerável importância, uma vez que os seres humanos são bem
capazes de permanecer imersos em seus pensamentos, ao mesmo tempo que
ignoram completamente a condição emocional básica do correspondente
estado mental. A história está repleta de exemplos de ações incrivelmente cruéis
que tiveram sua base no fascínio exercido por um ideal político ou religioso
particular, levando a uma dissociação completa de qualidades básicas como
bondade e compaixão (às vezes em combinação com relegar a
alguma autoridade superior a responsabilidade pelo mal infligidos a outros).
Outros exemplos de eventos não menos atrozes mostram o lado oposto da
mesma moeda, quando chafurdar nas emoções ocorre em
completa dissociação das capacidades racionais da mente. A presente prática
trabalha contra essa tendência de dissociação, com base no fundamento da
consciência do corpo e, no claro reconhecimento do tom da sensação da
experiência.
Isso, por sua vez, traz à tona o significado dos três satipaṭṭhāna explorados até
agora e a importância de praticá-los em conjunto, em vez de isolados um do
outro. É precisamente por meio do trabalho preparatório feito até agora no
domínio somático e sensível que o presente satipaṭṭhāna adquire todo o
seu potencial. A atenção plena cultivada dessa forma pode ser visualizada como
a abertura dos canais de comunicação entre esses diferentes domínios. Oferece
a nós mesmos, um ponto de integração das dimensões racionais e emocionais.
Isso ocorre dando a cada um deles uma escuta igual, de modo que
ambos possam dar sua contribuição para uma avaliação completa de uma
situação particular e para encontrar a resposta apropriada para ela. Desta forma,
intuição e raciocínio chegam a um ponto de equilíbrio, com base no suporte
fornecido pela atenção plena. Isso resulta da dinâmica da prática, inerente aos
três primeiros satipaṭṭhāna.
A contribuição específica feita pelo terceiro satipaṭṭhāna a esse respeito é a
identificação adequada da condição real de nosso estado mental, com uma
abordagem direta para o reconhecimento honesto e, a tomada de
responsabilidade pelo que acontece dentro de nós. Em termos práticos, isso
pode assumir a forma de um check-in periódico para ver como a mente está no
momento. Mudando da tendência arraigada de dar toda a atenção aos objetos
da experiência, em vez disso, dirigimos alguma atenção às repercussões da
experiência desses objetos no domínio interno de nossa mente.
De certa forma, estamos tão acostumados a nos concentrar no que está
acontecendo do lado de fora ou no que estamos empenhados em fazer que
nosso campo mental de visão passou a se assemelhar ao campo de visão
restrito de nossos olhos físicos. O padrão básico é dar toda a atenção ao que
está bem à nossa frente. Ou então, se algo realmente forte surge no domínio
emocional, o feixe estreito de foco muda para isso; nós viramos para dentro, por
assim dizer, e tudo o mais é completamente esquecido.
Mas essa gama restrita de visão mental é um hábito, mais do que uma
necessidade. A mente não é similar e limitada por natureza, aos olhos humanos.
Realizar esse potencial requer um passo atrás, de um foco de atenção muito
estreito, permitindo que nossa consciência se torne mais abrangente. Desta
forma, aprendemos a aperceber o como da experiência ao lado do seu o que.
No nível subjetivo, discernimos as repercussões mentais do que está
acontecendo, um discernimento que de forma alguma inibe nossa capacidade
de perceber e interagir com o que está acontecendo lá fora. Na verdade, a
amplitude mental obtida melhora tanto nossa assimilação de informações
quanto nossa capacidade de lidar com o que quer que tenha ocorrido de uma
maneira apropriada.
Um treinamento básico para expandir o alcance de nossa visão mental foi
introduzido gradualmente através dos exercícios de satipaṭṭhāna anteriores,
onde com a contemplação das partes anatômicas e dos elementos já
ultrapassávamos a percepção média do corpo, envolvida principalmente com
sua aparência superficial, olhando agora para seus aspectos mais internos.
Com a contemplação da sensação, aprendemos a nos voltar para dentro, depois
de sentir o corpo, tornamo-nos conscientes daquilo que sente o corpo. Agora, a
tarefa é continuar na mesma direção, ao interior, prestando atenção àquilo que
conhece o corpo e àquilo que conhece as sensações.
No exemplo de segurar este livro nas nossas mãos, usado no capítulo anterior,
a atenção passou da sensação do toque do livro para sentir as mãos que o
tocam. Em consonância com o teor geral do presente satipaṭṭhāna, a atenção
pode agora se voltar mais para dentro, para aquele que conhece a experiência
de segurar este livro em nossas mãos: a mente.
O alargamento obtido no âmbito da atenção meditativa, por incluir o estado atual
de nossa própria mente, é de importância fundamental para a meditação
satipaṭṭhāna. Ele estabelece a base para o presente e o próximo satipaṭṭhāna,
a contemplação dos dharmas relacionados com os obstáculos e os fatores
do despertar. Cultivar a capacidade de monitorar o que se passa interiormente,
de reconhecer claramente a condição de nossa própria mente, é indispensável
para poder explorar plenamente o potencial desses dois satipaṭṭhāna.
De certa forma, o mesmo é necessário para toda meditação satipaṭṭhāna, pois
precisamos monitorar como o que fazemos, afeta a nossa mente. Isso já ficou
claro com o primeiro exercício, a contemplação das partes anatômicas. A
história do suicídio de monges devido à prática desequilibrada dessa
contemplação serve como um forte alerta sobre os perigos de não observar o
que acontece na mente (ver pág. XX acima).
A necessidade de se voltar para dentro para verificar a condição real da mente
é mais ou menos como ler um livro interessante com a consciência de que logo
teremos um encontro com um bom amigo. Durante a leitura, temos em mente a
passagem do tempo. Podemos olhar regularmente para um relógio apenas para
ter certeza de que não perderemos o horário do encontro. Isso não precisa ser
algo estressante ou perturbador, mas pode ser simplesmente uma maneira
relaxada de manter a passagem do tempo em nossa consciência periférica
enquanto se aprecia o livro. Da mesma forma, a consciência periférica pode,
de uma maneira relaxada, observar como as coisas estão se desenvolvendo
internamente, monitorando a condição de nossa mente.
No contexto de uma descrição sobre o caminho gradual, a contemplação dos
estados mentais de outros encontra ilustração ao se olhar para um espelho (DN
2; Anālayo 2014a: 80).
(IMAGEM)
Em relação a nós mesmos, isto ilustra bem a prática atual: segurar o espelho da
atenção plena dentro de nós, a fim de ver claramente neste momento, o reflexo
de nosso própio estado mental. Esse ato de verificar introspectivamente a
condição de nossa mente pode ser comparado a ficar de olho no
espelho retrovisor enquanto dirigimos. Isso nos ajuda a ver toda a situação do
tráfego, em vez de apenas o que está acontecendo à frente. Da mesma forma,
olhamos no espelho retrovisor interno para ver como a mente se relaciona com
o que quer que esteja acontecendo. Novamente, comparando a usar um espelho
para verificar se nossa aparência corporal está limpa ou suja, da mesma forma
olhamos no espelho da atenção plena para verificar a condição de nossa
aparência mental.
Assim como perguntamos aos outros: “Como vai você?”, Continuamos a nos
perguntar: “Como está a mente?” Expresso em termos das três categorias de
contemplação da mente mencionadas acima: "como está a mente, está com
luxúria ou sem luxúria, com raiva ou sem raiva, com delusão ou sem delusão?"
A atenção plena às sensações é de particular ajuda no reconhecimento de
pensamentos não saudáveis antes que eles adquiram força total. Conforme
mencionado no capítulo anterior, esse reconhecimento em um estágio inicial da
formação de pensamentos não saudáveis, torna possível eliminá los pela raiz.
Em um estágio inicial, os pensamentos e associações não saudáveis ainda não
estão em plena amplitude. O grau de nossa identificação ainda não é tão forte
como eventualmente se tornará se eles persistirem. Isso torna mais fácil sair do
pensamento, deixá-lo ir e, mudar o curso da mente.
Imagine uma bola de neve rolando morro abaixo. Será mais fácil mudar seu
curso ou pará-la se a pegarmos perto do topo do morro. Depois que ela se for
ladeira abaixo e, se tornar maior e mais rápida, será muito mais difícil interceptá-
la. O curso da mente é semelhante.
Ativar esse potencial requer a disposição de olhar para nossas próprias
deficiências. Este é outro tópico já abordado no capítulo anterior, a importância
de aprender a suportar com paciência o reconhecimento de qualquer falha que
não estiver de acordo com nossos próprios padrões. As sensações
experienciadas nessas ocasiões são, provavelmente, sensações do tipo
desprazerosas. Essas sensações assumem uma dimensão não mundana
porque têm o potencial de nos levar adiante no caminho. Se iludir como meio de
evitar o desprazer de ver nossas próprias deficiências, permanece
diametralmente oposto a todo o impulso de progresso no caminho da meditação
satipaṭṭhāna.
A importância do reconhecimento honesto e claro aparece no Anaṅgaṇa-sutta
(MN 5; Anālayo 2013: 160f). O discurso enfatiza a importância de reconhecer
claramente a presença de uma impureza como um pré-requisito indispensável
para sermos capazes de fazer algo a respeito. Se não houver
reconhecimento, nos falta o fundamento para sair dessa condição prejudicial.
A ausência de impurezas
O Anaṅgaṇa-sutta dá importância ao reconhecimento da ausência de impurezas.
Este princípio também está na base das instruções para a contemplação da
mente no Satipaṭṭhāna-sutta. Depois de mencionar a necessidade de
reconhecer um estado mental com luxúria, por exemplo, as instruções
continuam: "conhece se uma mente sem luxúria como sendo‘ uma mente sem
luxúria ’.” O mesmo se aplica à raiva e à delusão. A ausência de luxúria, raiva e
delusão é também uma questão a ser conhecida como também a sua
presença. Desse modo, o que está ausente torna-se presente por meio do
reconhecimento da sua ausência.
A necessidade de reconhecer a presença e a ausência também está implícita na
instrução do refrão de, contemplar o surgimento e o desaparecimento. Tendo
percebido que a luxúria ou a raiva surgiram, por exemplo, a tarefa é notar
quando subsequentemente, a luxúria e a raiva desaparecem. Isto se
aplica também aos estados mentais das duas contemplações dos dharmas, os
obstáculos e os fatores do despertar. Em toda a consciência de que um estado
mental surgiu, encontra-se o complemento da de seu
eventual desaparecimento. Os dois combinados deixam claro qual é de fato a
natureza de qualquer estado mental, surgir e desaparecer.
É de considerável importância que a necessidade, evidente na lista de estados
mentais, bem como no refrão, de dirigir a atenção para o desaparecimento de
um estado mental impuro não seja negligenciada. A tarefa da atenção plena não
é a de apenas ver uma impureza. Envolve também dar atenção à ausência da
impureza. Podemos saborear a condição da mente nessas ocasiões, sentir sua
textura e familiarizar-nos com ela. Podemos experimentar por nós mesmos,
como essa condição é muito mais agradável quando comparada a um estado
mental contaminado. Familiarizar-nos com a diferença entre a presença e
a ausência de impurezas, em termos de textura e sabor da mente, tornará
intuitivamente claro por que esta última é preferível à primeira.
A mente é como uma criança ou um filhote de cachorro. Ela precisa ser
encorajada a fazer o que queremos. Imagine chamar um cachorro ou uma
criança pelo nome e depois bater nela, porque antes ela fez algo errado. Faça
isso algumas vezes e o cachorro e a criança aprenderão a não vir quando
chamados. Da mesma forma, se continuarmos batendo em nós mesmos,
ficando frustrados e aborrecidos a cada vez que uma impureza se manifestar na
mente, corremos o risco de treinar a mente de tal forma que, eventualmente, ela
não reconhecerá mais uma impureza.
Se quisermos que o filhote de cachorro ou a criança, apareçam quando forem
chamados, é melhor darmos a eles alguma recompensa. Por que não nos
recompensar por um estado mental puro? Regozijar-se na ausência das
impurezas é uma ferramenta poderosa que possibilitará um progresso rápido no
caminho para a liberdade permanente.
Isso não significa fechar os olhos às impurezas. Devem ser reconhecidas
honestamente, mas de preferência sem aversão. É possível perceber que uma
impureza está na mente e, sorrir. Sorrimos com a tendência da mente de fazer
o oposto do que queremos que ela faça. Sorrimos sabendo que
estamos percorrendo um caminho gradual e que não seria razoável esperar que,
assim que nos sentemos para meditar, a mente apenas faça o que queremos.
Praticadas as quatro contemplações anteriores, é provável que, neste estágio da
meditação satipaṭṭhāna, o tipo de mente que estaremos experimentando seja,
pelo menos momentaneamente, sem luxúria, sem raiva e talvez até sem
distrações deludidas. É bom reconhecer isso. Esse reconhecimento pode, por
sua vez, levar à alegria, pela condição de liberdade temporária, da luxúria, da
raiva ou da delusão. Embora as raízes das impurezas ainda estejam na mente,
pelo menos essas impurezas não estão se manifestando no nível superficial.
Isso é motivo suficiente para regozijo. Ao nos alegrarmos dessa
forma, concedemos aos tipos saudáveis de felicidade o lugar que eles merecem
no caminho gradual para a liberação. A importância da alegria e felicidade desse
tipo é claramente reconhecida nos primeiros discursos.
De acordo com o Kandaraka-sutta, por exemplo, o progresso no caminho gradual
envolve um refinamento progressivo para os tipos não sensuais de felicidade
(MN 51; Anālayo 2003: 167).
Despertar intencionalmente a alegria, ao perceber que a mente está
temporariamente livre, vai ajudar muito no caminho do fortalecimento da
tendência da mente em permanecer no reino do que é saudável. Também serve
para inspirar a prática.
Cultivar o hábito de regozijar-se com as condições saudáveis da mente, tornará
a meditação muito mais atraente, algo que esperamos ansiosamente, em vez
de ser algo feito somente por um senso de obrigação. Além disso, também
oferece um aperitivo do objetivo final. O objetivo final é a purificação da mente
de todas as impurezas. Em vez de permanecer com um conceito abstrato,
através do reconhecimento da condição prazerosa da mente que, está
temporariamente livre das impurezas, podemos ter uma experiência direta do
objetivo de nossa prática.
Quanta alegria, haverá
Quando a mente estiver livre
Mesmo que apenas
Temporariamente.
Contraída e distraída
Além de mencionar a luxúria, a raiva e a delusão, a primeira parte das instruções
distingue entre um estado mental contraído e um estado distraído. As
implicações de uma mente contraída são questionáveis (Anālayo 2003: 178).
Um modo de interpretação seria supor que, neste caso, ambos os estados
mentais são prejudiciais. Nessa interpretação, uma condição mental contraída
pode ser o resultado de preguiça e do torpor ou então o resultado de se ter a
mente limitada, ou contrair-se mentalmente por medo ou aversão. A distração
pode então se referir a qualquer condição dispersa da mente.
Alternativamente, esse par poderia ser interpretado de acordo com o padrão
geral na lista de estados mentais no Satipaṭṭhāna-sutta, envolvendo um
contraste entre um estado positivo e um negativo, ou entre uma condição mental
superior e uma inferior. Seguindo esse modo de interpretação, o presente par
envolveria a diferença entre uma mente que não está distraída, no sentido de
estar concentrada, e uma mente que está distraída. Embora, em minha opinião,
a terminologia real torne a primeira interpretação mais provável, eu deixaria para
cada meditador decidir qual dessas duas interpretações parece
mais significativa para a prática.
Qualquer que seja a interpretação que adotemos, não há dúvida de que esta
parte das instruções exige a identificação do que seja, a condição de distração
mental. O desafio aqui é que as distrações às vezes podem ser bastante sutis
e, muitas vezes, também bastante atraentes. Por esse motivo, é
particularmente importante nos atermos ao elemento do reconhecimento
consciente. Isso requer resistir à tentação de nos deixar levar pela condição
prazerosa (pelo menos momentaneamente) de uma mente distraída. Para
um progresso genuíno para a liberação, até mesmo a distração sutil precisa ser
reconhecida pelo que é: uma condição da mente que desvia nossa atenção e,
portanto, não conduz ao nosso crescimento meditativo.
Estados superiores da mente
Os quatro pares restantes nas instruções estão menos preocupados com as
impurezas. Aqui está a passagem relevante:
Ou alguém conhece uma mente que se tornou grande sendo; “uma mente que
se tornou grande”; ou alguém conhece uma mente que não se tornou grande
sendo; “uma mente que não se tornou grande”; ou sabe-se que uma mente
superável é; “uma mente
superável”; ou sabe-se que uma mente insuperável é; “uma mente insuperável”;
ou sabe se que uma mente concentrada é; “uma mente concentrada”; ou sabe-
se que uma mente não concentrada é, “uma mente não concentrada”; ou sabe-
se que uma mente liberada é
“uma mente liberada”; ou sabe-se que uma mente não liberada é "uma mente
não liberada".
Os quatro termos mencionados na segunda metade das instruções referem-se
a uma mente que se tornou:
o grande (ou não),
o superável (ou não),
o concentrada (ou não),
o liberada (ou não).
A qualificação “grande” empregada para a primeira delas, também é usada para
o cultivo dos brahmavihāras (Anālayo 2003: 179 e 2015: 55f). Em um sentido
mais geral, essa categoria poderia ser considerada como uma indicação da
abertura do coração. Além disso, uma mente que se tornou grande também pode
surgir por meio de outros modos de cultivar a tranquilidade. Ainda assim, sugiro
incluir este antes do título do terceiro termo, a mente que está “concentrada”, a
fim de ser capaz de associar significados distintos a essas diferentes categorias
quando aplicadas na prática.
O segundo par mencionado na instrução diz respeito à mente que é superável
ou insuperável. Dentro do reino da realização da absorção, uma condição
insuperável da mente será alcançada com a realização da absorção mais
elevada (Anālayo 2003: 179). Em um sentido geral, entretanto, eu
consideraria este par apontando para a habilidade de reconhecer se uma
experiência meditativa particular pode ser levada adiante. Em outras palavras,
seja o que for que esteja acontecendo agora em nossa meditação, isso tem o
potencial de nos levar a algo mais elevado? Ou já chegamos ao que é possível
nesta sessão particular ou curso de prática da meditação? Além disso, a
categoria de uma mente superável também se encaixaria no caso dos
obstáculos, que podem e devem ser superados.
O terceiro termo menciona uma mente que está concentrada ou não
concentrada, o que poderia ser proveitosamente entendido como se referindo
ao monitoramento da atenção plena necessária para o aprofundamento da
tranquilidade e a eventual obtenção da absorção. A atenção plena está, de
fato, presente em toda a obtenção de absorção, onde se torna particularmente
proeminente com a terceira e a quarta absorções (Anālayo 2017a: 150).
Relevante para esta, bem como para as duas categorias anteriores, é a atitude
analítica tão proeminente na teoria de meditação do Budismo antigo (Anālayo
2003: 180f). Em vez de se deixar levar por uma experiência particular de
meditação, a tarefa é reconhecer o grau de concentração alcançado e
quais fatores mentais estão presentes neste estado mental. Em outras palavras,
quando durante a prática a mente tende a níveis mais profundos de
concentração, simplesmente acompanhamos esse desenvolvimento natural
com um monitoramento atento. Os estados mais profundos de tranquilidade são
parte integrante do caminho, desde que sua natureza impermanente e, em
última análise, insatisfatória seja claramente compreendida e desde que a
identificação ou mesmo a reificação de tais experiências seja evitada.
O último par nas instruções do Satipaṭṭhāna-sutta distingue entre uma mente que
está liberada e outra que não está liberada. No sentido mais elevado, isso se
refere ao conhecimento retrospectivo de um arahant que realiza que a mente foi
totalmente liberada (Anālayo 2003: 180). O mesmo termo também pode ser
relacionado ao cultivo da tranquilidade, no sentido de a mente ser liberada de
obstruções para a obtenção da absorção. Visto que a absorção já foi abordada
com o rótulo da mente concentrada, prefiro usar o rótulo atual em relação ao
cultivo do insight. Minha sugestão seria verificar se a mente foi pelo
menos temporariamente liberada do self. Podemos meditar sem o ego na
primeira página, sem construir o sentido autorreferencial de um meditador que
se apropria da experiência meditativa como algo a ser possuído e de sua
propiedade? Pode-se permitir que a idéia de um eu, fique suspensa durante
nossa prática?
Desta forma, de acordo com o modo de interpretação apresentado aqui, as
quatro categorias introduzidas nesta parte do discurso, poderiam ser
empregadas com as seguintes implicações práticas: a mente que se tornou
grande (ou não) refletiria uma abertura do coração, tal como alcançada com
os brahmavihāras. A mente superável (ou insuperável) apontaria para o
reconhecimento de que a meditação pode avançar mais. A mente que se tornou
concentrada (ou não) envolveria monitorar o aprofundamento da tranquilidade
mental para alcançar a absorção. A mente que se libertou (ou não) refletiria a
ausência de identificações e do sentido de um self.
Essas são apenas minhas sugestões. Os praticantes devem se sentir livres para
ajustá-las de acordo com sua compreensão e preferências pessoais. Seja qual
for a interpretação que preferirmos, quando sobrecarregada por um obstáculo,
a mente é claramente estreita e não grande, bem como nem concentrada nem
liberada. Como já mencionado acima, é definitivamente superável. A tarefa do
próximo satipaṭṭhāna é precisamente explorar as condições que nos ajudem a
sair de um obstáculo, a superá-lo e, assim, permitir que a mente se torne grande,
mais concentrada e mais liberada do que era quando o obstáculo ainda
estava presente.
De certa forma, as qualificações da mente como grande, concentrada, liberada
e mesmo insuperável, listadas nas instruções para o presente satipaṭṭhāna,
refletem o papel da atenção plena no monitoramento do progresso da nossa
meditação. Um elemento crucial a ser mantido em mente para
tal monitoramento, que pode variar desde a identificação e superação de um
obstáculo até a experiência de níveis profundos de concentração e insight, é
que o progresso na meditação satipaṭṭhāna não é apenas sobre ter experiências
especiais. Experiências especiais certamente têm seu lugar, mas não são o
objetivo em si. O objetivo é a transformação interior. Mesmo a experiência de
uma absorção ou de um estágio de iluminação, tem seu verdadeiro valor na
medida em que produz uma transformação interior duradoura. A prática da
meditação deve resultar em uma melhora na maneira como somos, como nos
relacionamos com os outros e como lidamos com as circunstâncias externas.
Essas mudanças internas são mais importantes do que se apropriar de
experiências espetaculares como indicadores de nossa experiência meditativa.
Nesse contexto, também pode ser relevante notar que no pensamento do
Budismo antigo a distinção entre caminho e fruto difere da maneira como esses
termos são usados em tradições posteriores. Caminho e fruto não são apenas
dois momentos mentais que se sucedem imediatamente. Em vez disso,
o caminho cobre toda a trajetória de até anos de prática e seu fruto pode ser
encontrado na transformação pessoal, na erradicação de grilhões e impurezas.
Isso investe a experiência meditativa real, de um peso um pouco menor do que
quando alguém é influenciado pela perspectiva do caminho e fruto de
tradição posterior.
Abertura do coração
De particular importância em relação a essa transformação pessoal, acredito, é
uma genuína abertura do coração para as qualidades de bondade e compaixão.
Em minha opinião pessoal, essa abertura do coração é uma medida melhor para
avaliar o progresso em nossa prática do que ter experiências extraordinárias. A
fim de encorajar esta dimensão da prática e também como uma forma de
espelhar a busca inabalável do próprio Buda pelo despertar, sugiro introduzir um
elemento formal para definir nossa intenção no início de cada sessão formal.
Esta poderia ser uma aspiração como: “Que eu possa progredir no caminho da
libertação, para meu próprio benefício e para o benefício dos outros”.
Evocar tal aspiração oferece a oportunidade de introduzir no caminho o fator da
intenção correta. Desnecessário dizer que, para que a meditação satipaṭṭhāna
produza todo o seu potencial, ela precisa estar situada dentro do contexto do
nobre caminho óctuplo.
Formular nossa motivação no início da meditação formal fornece um ponto de
referência para o curso de nossa prática. Ela define claramente a direção que
desejamos seguir. Incluir uma disposição altruísta deste tipo, neste ponto de
referência, é particularmente benéfico. Não apenas encoraja a abertura do
coração para a compaixão, como também fornece força em tempos difíceis. Dito
de forma simples, não estamos apenas praticando para nós mesmos; também
estamos praticando para o benefício dos outros. A consciência dessa dimensão
externa de nossa prática de meditação torna mais fácil resistir a qualquer ataque
de dúvida e frustração. Perder a dimensão compassiva traz o risco de
transformar a prática da meditação em um empreendimento autocentrado.
Meditar apenas para nosso próprio benefício torna mais difícil manter a prática
em momentos de dificuldade.
Estritamente falando, a compaixão não faz parte da meditação satipaṭṭhāna. Ela
se enquadra no fator do caminho da intenção correta na forma da intenção de
evitar o que é prejudicial aos outros (e para nós mesmos). Embora não seja
explicitamente mencionada no Satipaṭṭhāna-sutta, a compaixão tem sido uma
corrente implícita nos exercícios anteriores.
A contemplação das partes anatômicas se opõe diretamente à tendência de
luxúria sensual que ao ficar fora de controle, leva a coisas horríveis como estupro
ou abuso infantil. Isso é exatamente o oposto de bondade e compaixão.
A contemplação dos elementos, sem dúvida, tornou claro que somos uma parte
inseparável da natureza externa. A discriminação contra outras pessoas devido
à raça ou constituição física torna-se sem sentido quando percebemos que
somos todos feitos dos mesmos elementos. Essa realização nos facilita a ter
mais compaixão e a cultivar uma preocupação genuína com o meio ambiente.
A lembrança da morte incentiva a disposição de perdoar e pedir desculpas. O
tempo é muito curto para guardar rancor ou prolongar desnecessariamente um
conflito. Além disso, tendo aprendido a enfrentar nossa própria mortalidade nos
permite ser de real ajuda à outras pessoas que estão de luto ou morrendo.
Com a fundação construída por essas três contemplações do corpo, a
contemplação das sensações leva naturalmente a um aumento da sensibilidade
ao que acontece no nível sensível. Com base nessa fundação, a contemplação
da mente em sua dimensão interna (e ainda mais em sua externa) pode se
tornar uma ocasião para uma genuína abertura do coração. Na imagem do lótus
que gosto de usar para ilustrar a meditação satipaṭṭhāna (ver acima na página
(XX) e abaixo na página (XX)), a compaixão é como as sementes encontradas
dentro deste lótus.
Uso hábil de rótulos
Em termos da prática, vale ressaltar que as instruções para contemplação de
estados mentais, assim como as instruções em outras partes do discurso,
envolvem o uso de rótulos. Certamente não é o caso que, a meditação
satipaṭṭhāna, ocorra com a ausência de conceitos. Isso se relaciona com o tópico
da coexistência de atenção plena com os conceitos (ver pág. (Xxx) acima) e a
relação entre um mapa e a realidade (ver pág. (XXx) acima). Neste caso, as
instruções são formuladas de tal forma que implicam em algum grau
de verbalização mental. A referência a uma mente com raiva, por exemplo, é
seguida pela partícula iti, que em pāli marca o fim de uma citação. A implicação
clara é que um rótulo conceitual explícito deve ser empregado a fim de aguçar
a clareza do reconhecimento, quase como se disséssemos mentalmente a nós
mesmos: “raiva”.
Ao mesmo tempo, no entanto, a meditação satipaṭṭhāna não é sobre rotulagem
incessante. O uso de um rótulo para fins de reconhecimento claro é melhor
precedido por apenas permanecer na consciência da textura da mente,
saboreando sua condição e sabor. Dessa forma, fazer brevemente um rótulo,
pode funcionar de maneira semelhante a verificar rapidamente uma bússola
durante uma caminhada, a fim de garantir que ainda estamos indo na direção
certa. Isso muitas vezes é o suficiente, sem a necessidade de verificar
continuamente a bússola e também consultar o mapa da estrada para estudá-lo
em detalhes repetidamente.
Uma passagem relevante para avaliar a necessidade de se tomar cuidado com
a atividade excessiva do pensamento pode ser encontrada no Dvedhāvitakka-
sutta (MN 19; Anālayo 2013: 146ss). O discurso descreve como, antes de seu
despertar, o futuro Buda dividiu seus pensamentos em dois tipos: aqueles
que são saudáveis e os, não saudáveis. Esta distinção básica está por detrás
dos primeiros estados mentais listados no Satipaṭṭhāna-sutta. Ao contrário do
caso dos pensamentos não saudáveis, com suas contrapartes benéficas, o
futuro Buda não via perigo em ter tais pensamentos. No entanto, ele também viu
que o pensamento excessivo cansa o corpo e a mente e, se torna um obstáculo
para o aprofundamento da concentração.
O mesmo se aplica ao satipaṭṭhāna. O uso da rotulagem é uma ferramenta útil,
mas não deve ser usada em demasia. A rotulagem excessiva cansa o corpo e a
mente e se torna um obstáculo ao aprofundamento de nossa prática. Em vista
disso, gostaria de sugerir uma simplificação da lista de estados mentais dada
nas instruções para o presente satipaṭṭhāna. De certa forma, o reconhecimento
de qualquer um dos estados mentais mencionados nas instruções depende da
presença da atenção plena, que no modo de prática que estou apresentando
aqui é uma forma corporal de atenção plena. Por esta razão, parece-me sensato
usar o simples reconhecimento de que tal atenção plena continua presente ou
se foi perdida, como um resumo, da contemplação da mente. Esse resumo pode
até ser empregado às vezes quando trazer mais rótulos pode cansar a mente e
atrapalhar o fluxo da prática meditativa. Com base neste modo sucinto,
em outras ocasiões, mais rótulos podem ser trazidos, conforme for apropriado.
Uma mente na qual a atenção plena está bem estabelecida tem um sabor e uma
textura distintos, como ser aberta, receptiva, flexível, viva, centrada, clara e
calma. Familiarizar-nos como nossa mente realmente se sente quando estamos
atentos, nos ajuda a reconhecer essa condição, mesmo sem a necessidade de
rótulos. Também nos permite perceber rapidamente quando estamos sujeitos a
uma perda da atenção plena, quando a mente começa a se fechar, tornando-se
um pouco menos receptiva, ligeiramente contraída, um tanto automática, em
vez de estar realmente viva para o que está acontecendo, não mais totalmente
centrada, um tanto confusa e não tão calma quanto antes. Percebendo tais
marcas de uma iminente perda da atenção plena, torna-se mais fácil reagir
rapidamente e tomar as medidas necessárias para voltar a ter uma base
adequada com a presença da atenção plena.
Estar bem fundamentado na presença da atenção plena é um requisito
indispensável para o progresso na meditação. A atenção plena serve para
monitorar o despertar e o equilíbrio dos fatores de absorção ao cultivar a
tranquilidade e dos fatores de iluminação ao cultivar o insight. Em ambos os
casos, sem uma base na atenção plena, a prática não desenvolverá todo o seu
potencial. Portanto, qualquer tempo que investirmos em nos familiarizar com o
sabor e a textura própios de uma mente, na qual a atenção plena está bem
estabelecida, aprender como promover tal condição mental e tomar cuidado com
sua perda, é um investimento de tempo que irá beneficiar nossa prática de
meditação de várias maneiras.
Prática aberta
O mesmo fundamento continua ao se mudar para a consciência aberta. A
familiaridade com a textura da mente na qual a atenção plena é estabelecida
facilita nossa consciência de que “aí está a mente”. Enraizados na consciência
de todo o corpo, estamos conscientes da natureza impermanente dos
fenômenos de qualquer maneira que se manifestem no momento presente. O
simples reconhecimento de que ainda estamos com a mente no caminho certo,
serve como um elemento de contínuidade durante nossa meditação
satipaṭṭhāna. O sentido distinto da presença da atenção plena no corpo, pode se
tornar uma linha de base para o terceiro satipaṭṭhāna, no sentido de possibilitar
um modo contínuo de contemplação da mente. Essa prática básica, por sua vez,
fornece uma base sólida para sermos capazes de reconhecer qualquer um dos
outros estados mentais, listados no discurso, como e quando eles se
manifestarem. Desse modo, assim como a presença contínua da consciência
proprioceptiva pode nos alertar para qualquer perda de equilíbrio corporal, a
presença contínua da atenção plena no corpo, pode nos alertar para qualquer
perda de equilíbrio mental.
Quando distrações substanciais ocorrerem, as três primeiras categorias podem
ser empregadas assim que a distração for reconhecida. O que pode ser uma
distração considerável, pode ser ilustrado com o exemplo de encontrar alguém
na estrada, já mencionado acima (veja acima p. (XX)). Se nesse tal
encontro houver apenas uma breve saudação, após a qual seguiremos em
frente, então não precisa ser considerado uma distração substancial. Mas se
nos sentarmos para conversar, isso o qualificará como uma grande distração.
No caso de distrações substanciais, uma vez que nos damos conta, podemos
olhar para trás e tentar discernir se experimentamos luxúria, raiva ou delusão,
idealmente também reconhecendo o tom da sensação dessa experiência.
Devido a esse reconhecimento atento, a luxúria, a raiva ou a delusão
podem simplesmente desaparecer. No entanto, por um curto período, ainda
poderíamos ficar atentos à recorrência desses estados. Tal vigilância seria uma
forma de reconhecer sua ausência, e regozijar-se com sua ausência ajudaria
muito a prevenir a sua recorrência.
Se, durante a prática, descobrirmos que a mente volta repetidamente a
pensamentos coloridos pela luxúria e pela raiva, podemos nos ajustar a essa
situação dando um pouco mais de importância à impermanência em nosso
modo principal de prática. A consciência da impermanência, especialmente
em relação a sensações agradáveis e desagradáveis, torna mais fácil evitar
reagir com desejo e aversão. Se nossa mente, em vez disso, cair repetidamente
em distrações deludidas, podemos como nosso principal modo de prática dar
mais importância a estarmos plenamente vivos, no momento presente. A sutil
alegria de estar no momento presente evita o tipo de tédio que muitas vezes
alimenta o surgimento das distrações.
Impermanência
A prática sustentada mostrará de forma clara que, a mente muda
constantemente. Um determinado estado mental surge apenas para
desaparecer, seguido pelo surgimento de outro estado mental. Mesmo
aquele que sabe é apenas um processo. Se fosse permanente, ele estaria para
sempre congelado na condição de saber apenas uma única coisa. O próprio fato
de a mente saber coisas diferentes torna indubitavelmente claro que ela não
pode ser permanente.
Qualquer percepção ou pensamento é um mensageiro da impermanência, tanto
quanto qualquer sensação. Praticar dessa maneira cumpre as implicações da
clara compreensão (sampajañña). A passagem canônica em questão define a
clara compreensão em termos de reconhecimento da natureza
impermanente das sensações, percepções e pensamentos à medida que
surgem, persistem e depois desaparecem (SN 47.35; Anālayo 2003: 39f).
A natureza da mente em constante mudança torna evidente quando entramos
em um tipo de pensamento que preferiríamos evitar. Mesmo que nos sentemos
com a firme intenção de cultivar o que é saudável, cedo ou tarde, descobrimos
que a mente nos levou a um passeio e foi a algum lugar onde certamente não
queríamos ir. Torna-se óbvio que não controlamos nossa própria mente. A mente
é vazia, assim como o corpo.
Curiosamente, aqueles que realizaram totalmente a vacuidade por meio da
completa iluminação, também são aqueles que obtiveram controle sobre a
mente. Controlar a mente é o resultado de trabalhar habilmente as condições
mentais, por meio de um treinamento gradual. Não será alcançado
simplesmente tentando impor nossa força de vontade, na expectativa pouco
razoável de que a mente possa ser forçada a ser do jeito que queremos.
Embora não possamos forçar a mente a ser do jeito que desejamos, somos
capazes de influenciá-la cultivando as causas e condições apropriadas. A
compreensão da natureza condicionada da mente enfraquece nosso senso de
identificação com nossos próprios pensamentos, pontos de vista e opiniões.
O lado positivo dessa percepção está no insight de que a maneira como somos
agora, não é uma característica inata e imutável. Em vez disso, é o produto das
condições. As condições podem ser influenciadas e alteradas, e é precisamente
aí que entra o treinamento meditativo. As condições importantes e relevantes a
esse respeito são o tópico do quarto satipaṭṭhāna.
As perspectivas de insight que podem ser cultivadas com a contemplação da
mente, completam nossa avaliação meditativa das três características,
impermanência, dukkha e não-eu. Corpo, sensação e mente são, sem exceção,
impermanentes. O que é impermanente é incapaz de produzir
satisfação duradoura. É dukkha. De acordo com a definição dada na primeira
nobre verdade, uma das dimensões de dukkha é não conseguir o que
queremos. Isso reflete nossa incapacidade de controlar as
coisas completamente. Corpo, sensação e mente estão claramente fora da
esfera de nosso controle completo. Por essa razão, eles devem ser
considerados como desprovidos de um eu. A noção de um eu vista aqui
é precisamente sobre estar no controle total. Portanto, o que é impermanente e
dukkha deve ser vazio de um eu.
A mesma compreensão é levada da meditação sentada para a meditação
andando. Durante a caminhada, pode-se dar importância à natureza em
constante mudança da mente que está consciente da caminhada. Tal
observação pode mudar da consciência da impermanência para dukkha e,
eventualmente, para a natureza vazia de todos os fenômenos, sempre que for
oportuno. A visão abrangente do corpo, sensação e mente em suas dimensões
internas e externas, como estando sujeitos às três características chega ao seu
término neste ponto. Realizado dessa forma, o insight sobre as três
características pode se tornar nosso companheiro constante durante qualquer
atividade.
As quatro nobres verdades
O insight das três características durante qualquer atividade pode tomar como
ponto de referência o entendimento correto na forma das quatro nobres
verdades. Com a prática anterior de satipaṭṭhāna, em certo grau, esta questão
já se tornou uma experiência pessoal. Tendo verificado a relevância prática
deste esquema de diagnóstico, qualquer problema ou desafio da vida diária
pode ser abordado com a sua ajuda.
Isso pode ocorrer, em primeiro lugar, reconhecendo honestamente a dimensão
estressante ou mesmo dolorosa do problema ou desafio (primeira verdade),
seguido por discernir o grau em que nossa própria atitude, expectativa ou
perspectiva contribui para o estresse ou dor experimentada (segunda verdade).
Esse discernimento, por sua vez, deixa bem claro que um ajuste do lado de
nossa atitude, expectativa ou perspectiva tem uma boa chance de diminuir, se
não remover, o estresse ou a dor (terceira verdade). O medicamento a ser
aplicado (quarta verdade) pode, então, assumir a forma de um insight sobre as
três características. Aconteça o que acontecer, certamente é impermanente,
portanto, é dukkha de qualquer maneira, e certamente é vazio de um eu. De
acordo com o que a situação exige, a medicação pode ser por meio da ênfase
em uma das três características ou nas três em combinação. A visão correta
resultante pode ter um efeito substancialmente transformador, ao ponto de
libertar a situação de suas repercussões estressantes ou dolorosas.
Essa implementação prática da visão correta, por sua vez, constrói uma base
para a apreciação de outras dimensões do nobre caminho óctuplo. Com base
na direção, dada pela visão correta e, na dimensão compassiva da intenção
correta, torna-se inequivocadamente claro por que a fala, a ação e o meio de
vida precisam estar de acordo com essa direção. Tudo isso precisa evoluir para
se tornar um comportamento de apoio à atenção plena. A mente é comparável
a um pote, que é facilmente derrubado se não tiver suporte. A posição
necessária para firmar a mente é precisamente o nobre caminho óctuplo (SN
45.27).
A necessidade de uma base moral firme encontra expressão em vários discursos
no Satipaṭṭhāna saṃyutta. Cada um deles descreve como um monástico, que
deseja fazer um retiro e uma prática intensiva, pede instruções ao Buda. As
instruções dadas enfatizam a necessidade de purificar a conduta moral
(SN 47.3, SN 47.15, SN 47.16, SN 47.46 e SN 47.47). Estabelecido em uma
conduta moral purificada, o monástico deve então cultivar satipaṭṭhāna. Outro
discurso chega a afirmar que o ensino de moralidade do Buda é precisamente
para o cultivo dos quatro satipaṭṭhāna (SN 47.21). Do ponto de vista do Budismo
antigo, construir uma base moral sólida é claramente indispensável para o
cultivo adequado da atenção plena.
As percepções distorcidas
A contribuição feita pela contemplação da mente para o centro da roda da prática
é o conhecimento da textura específica da mente quando a atenção plena do
corpo está bem estabelecida. Além disso, neste ponto da prática, o insight sobre
a impermanência se tornou abrangente, cobrindo o corpo, as sensações e
a mente. O corpo muda, aquilo que sente o corpo muda, e aquilo que conhece
o corpo e as sensações também muda. A contribuição feita ao aro da roda é
uma diminuição gradual da identificação com a mente. Desta forma, a realização
do vazio também se torna abrangente.
Olhando para trás, para as meditações satipaṭṭhāna cultivadas até este ponto,
os primeiros cinco raios da roda cobrem um cultivo progressivo do insight. Este
progresso está relacionado às quatro distorções da percepção (vipallāsa).
Essas são as atribuições equivocadas da permanência, felicidade,
individualidade e beleza para o que na realidade, é o contrário (AN 4.49; Anālayo
2003: 25).
A contemplação das partes anatômicas enfraquece a projeção equivocada da
beleza no corpo físico. Praticar com os elementos desconstrói a suposição
errônea de um eu substancial a ser encontrado em qualquer parte do corpo.
Isso encontra seu complemento na compreensão da natureza vazia da mente
por meio do presente exercício. Dar atenção à nossa própria mortalidade traz à
tona a verdade da impermanência e, assim, enfraquece a suposição enganosa
de qualquer existência permanente do corpo. Isso também encontra seu
complemento na presente contemplação da mente, o que torna claro que todo
o domínio mental também é destituído de qualquer coisa permanente. A
contemplação da sensação traz à tona a verdadeira natureza da experiência
sentida. Isso se opõe diretamente à atribuição equivocada de felicidade ao que
de verdade e de fato não pode produzir felicidade duradoura: a busca da
sensualidade por meio do corpo. Faz isso, ao revelar uma arena mais
promissora para a nossa busca inata pela felicidade: cultivar a mente de tal
forma que ela se torne uma fonte saudável de alegria e felicidade.
Um tema básico do atual satipaṭṭhāna é a importância da mente em relação a
tudo o que acontece. Como o primeiro verso do Dhammapada proclama, a
mente é a precursora dos dharmas (Dhp 1; Anālayo 2013: 145f). Esse papel da
mente como precursora torna ainda mais importante que o monitoramento atento
de nossa condição mental seja firmemente estabelecido. O insight obtido desta
forma leva a que nos tornemos cada vez mais aptos a viver de forma
independente, sem se apegar a nada.
Resumo
O principal impulso da contemplação da mente é na direção de um reflexo
preciso da condição de nossa própria mente, comparável a olhar no espelho.
Em vez de direcionar toda a atenção para o que acontece fora, aprendemos a
ficar de olho no que acontece dentro. Aqui, talvez a condição mais importante da
mente a ser reconhecida e cultivada é a presença da atenção plena. Tal
estabelecimento de sati nos alerta para a presença ou ausência da luxúria, raiva
e delusão na mente; também permite o nosso monitoramento de níveis mais
profundos de concentração e insight. A prática contínua revela a natureza
impermanente de todos os eventos mentais, incluindo a qualidade de conhecer
a si mesmo.
8. Obstáculos
Com o sexto raio na roda da prática apresentada aqui, passamos para o domínio
do quarto satipaṭṭhāna, a contemplação dos dharmas. De certa forma, o quarto
satipaṭṭhāna é uma continuação da contemplação da mente, por meio da
seleção de estados mentais e fatores específicos: os obstáculos e os fatores
do despertar. No modo de prática apresentado aqui, as três contemplações do
corpo sob o primeiro satipaṭṭhāna têm sua contrapartida em três contemplações
relacionadas com a mente, encontradas sob o terceiro e o quarto satipaṭṭhāna.
Condicionalidade
A diferença entre o terceiro e o quarto satipaṭṭhāna é o trabalho direto com a
condicionalidade. Com a prática feita até agora, a condicionalidade surgiu com
a contemplação dos elementos e a contemplação da morte, na forma da
realização da dependência do corpo aos elementos e, em particular, da
necessidade constante de oxigênio, sua suspensão é igual ao fim da vida. A
condicionalidade então passou a ocupar o primeiro plano com o segundo
satipaṭṭhāna, ao se tornar diretamente consciente de um elo importante
da originação dependente: a sensação como a condição para o surgimento do
desejo. A condicionalidade também é uma tendência significativa na
contemplação dos estados mentais, o que logo torna evidente que não estamos
no controle nem da nossa própria mente. Em vez disso, o estado de nossa mente
é o produto de causas e condições, das quais apenas algumas caem na esfera
de nossa influência direta.
Na contemplação dos dharmas, uma parte explícita das instruções é a
exploração ativa da condicionalidade. Quais são as condições que levam ao
surgimento dos obstáculos ou dos fatores do despertar? Quais são as condições
para superar o primeiro e fomentar o segundo? Explorar atentamente essas
condições é a tarefa central da contemplação dos dharmas.
O impulso resultante dessas duas contemplações de dharmas pode, de certa
forma, ser visto como uma exemplificação da famosa frase; aquele que vê a
originação dependente vê o Dharma e aquele que vê o Dharma vê a originação
dependente (MN 28; Anālayo 2003: 186). Direcionar nossa visão meditativa para
a condicionalidade, vem neste satipaṭṭhāna com um foco específico nas
condições mentais, que levarão a um estado de equilíbrio mental, no qual a
ruptura para a iluminação pode ocorrer. O ponto convergente de todos os
ensinamentos do Dharma é a realização do Nibbāna. Assim, a combinação da
condicionalidade aplicada à prática, com a visão geral do progresso para a
iluminação, parece capturar a essência dessas duas contemplações.
Aplicada a situações fora da meditação formal, essa perspectiva pode ser
atualizada, levando-se em consideração quaisquer condições que se
apresentem em qualquer situação e, então, relacionando-as de uma forma ou
de outra aos ensinamentos libertadores. Embora nem todas as situações podem
conduzir ao cultivo dos fatores do despertar, dificilmente existe uma situação ou
experiência que não possa ser considerada do ponto de vista dos ensinamentos.
Reflexões ao longo das linhas de, por exemplo, “todas as coisas são
impermanentes” podem fornecer a entrada necessária para garantir que o sabor
do Dharma venha a permear todas as nossas experiências.
A instrução para a contemplação do primeiro dos cinco obstáculos prosegue da
seguinte forma (MN 10):
Se o desejo sensual está presente dentro, sabe-se: “o desejo sensual está
presente dentro de mim”; ou se o desejo sensual não está presente dentro,
sabe-se: “o desejo sensual não está presente dentro de mim”; e sabe-se como
surge o desejo sensual não surgido, sabe se como o desejo sensual surgido é
removido, e sabe-se como o desejo sensual removido não surge no futuro.
Este tipo de instrução se aplica a cada um dos cinco obstáculos, que são:
o desejo sensual
a raiva
a preguiça-e-torpor
a agitação-e-preocupação
a dúvida
Comparável ao procedimento de dois estágios visíveis na contemplação das
sensações, a contemplação de um obstáculo também parece avançar em dois
estágios. O primeiro estágio é o reconhecimento da presença ou ausência de
um obstáculo na mente. O segundo estágio envolve o sabor distinto da
contemplação dos dharmas na forma de uma exploração prática da
condicionalidade. Essa exploração diz respeito às condições que levaram ao
surgimento de um determinado obstáculo, às condições que podem levar à sua
remoção e às condições que podem impedir a sua recorrência.
Esse procedimento em dois estágios, pode ser convenientemente relacionado
ao fato de que um obstáculo pode se manifestar em diferentes graus de força.
No caso de ocorrência fraca de um obstáculo, o reconhecimento consciente
pode ser suficiente para que ele desapareça. Nesse caso, de um ponto de
vista prático, podemos simplesmente retomar nossa prática principal. Afinal, as
condições para seu surgimento devem ter sido bastante fracas e a condição que
levou à sua remoção foi claramente a atenção plena em si mesma.
Outras vezes, um obstáculo pode surgir com grande força. Ter consciência dele
não é suficiente. Esta parece ser a situação apropriada para avançar para o
segundo estágio da contemplação dos obstáculos. Desse modo, a presença de
um obstáculo na mente pode se tornar uma oportunidade de aprendizado.
A oportunidade de aprendizagem aqui, diz respeito à condicionalidade de nossa
própria mente, aquelas condições que levaram ao surgimento do obstáculo,
bem como as condições mais úteis para sair dele e prevenir sua recorrência.
Enfrentando um obstáculo
O tipo de atitude que recomendaria para este tipo de contemplação é semelhante
ao de um bom enxadrista. Imagine jogar xadrez com um bom amigo. Nosso
amigo acaba de fazer um movimento ameaçador, atacando nossa rainha
(gardez!). Não ficaremos com raiva por causa disso. Afinal, é apenas um jogo e
o outro jogador é nosso bom amigo. No entanto, ao mesmo tempo, queremos
vencer.
Com esse tipo de atitude, querendo vencer sem ficar com raiva, examinamos a
situação: “Deixe-me ver, como é que entrei nisso? Como é que estou agora
nesta situação de estar prestes a perder minha rainha? " Ao examinar como isso
aconteceu, ficamos atentos ao tipo de movimento que salvará nossa rainha. Em
outras palavras, tentamos identificar a condição que nos tirará dessa situação.
Para contemplar os obstáculos, recomendo o mesmo tipo de atitude. Isso
envolve quase um elemento lúdico, combinado com uma forte intenção de
vencer o jogo. Quanto mais experiencia tivermos com esse tipo de jogo, maiores
serão nossas chances de vencermos no futuro, até mesmo a ponto de evitar em
primeiro lugar, que nossa rainha seja colocada em perigo. Quando visto dessa
perspectiva, a ocorrência de um obstáculo torna-se uma ocasião para treinar
nossas habilidades, ao invés de um gatilho para frustração e autoavaliação
negativa.
Cultivando tal atitude, aprendemos a encarar os obstáculos de uma maneira
menos pessoal. O reconhecimento honesto de que um obstáculo está presente
não significa que o possuímos ou que seja “meu”. Pode ser visto apenas como
algo que se manifestou na mente, exigindo que ações apropriadas
sejam tomadas.
Considerar um obstáculo de uma forma menos pessoal não apenas alivia a
possível tensão da mente quando a presença de um obstáculo é reconhecida,
mas também ajuda em relação à sua recorrência futura. O grau em que essa
condição mental particular pode realmente funcionar como um “obstáculo”, no
sentido de obstruir nossa clareza interior, está inexoravelmente entrelaçado com
o grau de nossa identificação com
as imagens e associações que ela evoca na mente. Quanto mais nos
acostumamos a não levar isso para o lado pessoal, melhores nossas chances
de que na próxima vez que ele se manifestar não seremos
facilmente apanhados nas garras da identificação. Por isso mesmo, seremos
mais facilmente capazes de deixar de acreditar nas imagens evocadas e
perceber o que está acontecendo.
Semelhante ao caso da contemplação de estados mentais, é útil explorar a
textura da mente que está sob a influência de um obstáculo, para saboreá-la de
uma forma distinta e obter uma noção clara de seu sabor.
Conforme mencionado no capítulo anterior sobre a contemplação da mente,
quando um obstáculo está presente, nossa mente não é grande, nem
concentrada, nem liberada. No entanto, também é superável, e aprender a
superar essa condição obstrutiva levará a mente cada vez mais a se tornar
grande, mais concentrada e mais liberada. Sempre que isso acontecer, podemos
da mesma forma explorar a textura da mente na qual os obstáculos estão
ausentes, para saborear essa condição distintamente e ter uma noção clara de
seu sabor.
A rigor, a remoção de um obstáculo não é uma tarefa de satipaṭṭhāna. Em vez
disso, pertence ao reino do esforço correto. Como também mencionado no
capítulo anterior, para que satipaṭṭhāna leve ao despertar, ele precisa ser
praticado dentro da estrutura do nobre caminho óctuplo. Um discurso
no Satipaṭṭhāna-saṃyutta esclarece explicitamente que o caminho que conduz
ao cultivo de satipaṭṭhāna é o nobre caminho óctuplo (SN 47,40).
O nobre caminho óctuplo requer um reconhecimento inicial do entendimento
correto e o estímulo da intenção correta, o que leva à construção de uma base
de conduta moral em suas dimensões mental, verbal e física. Com base nessa
fundação e em um claro senso de direção por meio da visão correta, o esforço
correto está em seu devido lugar, pronto para ajudar quando a mera
contemplação atenta é insuficiente.
Desnecessário dizer que o emprego do esforço correto não existe por si só.
Requer monitoramento cuidadoso para evitar o excesso ou a insuficiência, na
sua utilização (Anālayo 2013: 183).
Desejo sensual
Como já mencionado em um capítulo anterior, o primeiro obstáculo, desejo
sensual (kāmacchanda) precisa ser diferenciado do desejo como tal (ver pág.
XX acima). O desejo (chanda) pode desempenhar funções benéficas, como o
desejo de liberação ou o bem-estar de outras pessoas. O tipo de desejo
considerado um obstáculo é a sensualidade, a busca da felicidade por meio do
sexo e da indulgência sensual.
Às vezes, o reconhecimento atento da presença do desejo sensual, ou então
uma investigação das causas que levaram ao seu surgimento, pode ser
suficiente para sair dele. Se não for esse o caso e se desejarmos responder à
ocorrência do desejo sensual permanecendo dentro da estrutura da
meditação satipaṭṭhāna aqui apresentada, o próximo passo poderia ser, dar
ênfase à natureza impermanente das sensações agradáveis. Sensações
agradáveis estão destinadas a mudar; eles não duram. Reconhecer
isso enfraquecerá a tendência de buscar a felicidade por meio da sensualidade.
As sensações agradáveis não estão apenas destinadas a mudar, mas o seu
desaparecimento também dará lugar, mais cedo ou mais tarde, ao surgimento
de sensações dolorosas. Em qualquer grau que nos apegarmos ao corpo
durante a procura da sensualidade, nesse mesmo grau seremos afligidos
quando a dor se manifestar. Ter em vista esse perigo inerente ajuda a fortalecer
nossa disposição de resistir à atração da sensualidade.
Se isso ainda não for suficiente, podemos trazer o antídoto padrão para a
presença do desejo sensual na mente, que é dar atenção à falta de atração
inerente ao que desencadeou tal desejo (Anālayo 2003: 194 e 2013: 183). No
caso do desejo sexual, seria a contemplação das partes anatômicas.
Prosseguir com as três varreduras do corpo, pele, carne e ossos dará à mente
algo para fazer e estabelecerá a atenção plena do corpo. Sua principal
contribuição, entretanto, é desenvolver uma atitude de desapego. Embora este
exercício satipaṭṭhāna seja sobre a noção da beleza física que leva à atração
sexual, ele também desperta uma sensação geral de desapego com todos os
assuntos relacionados ao corpo. Isso, por sua vez, enfraquece a base sobre a
qual a maioria de nossos desejos sensuais floresce.
Outras condições de suporte para lidar com a ocorrência frequente do desejo
sensual são a contenção dos sentidos e a moderação com a comida (Anālayo
2003: 200). Ambos, por sua vez, podem ser realizados como modos de cultivar
a atenção plena. A contenção dos sentidos tem o mesmo propósito que
a meditação satipaṭṭhāna, de acordo com a parte do discurso que gosto de
chamar de “definição”. Conforme mencionado no Capítulo 2 (ver p. XX), a
definição relaciona a meditação satipaṭṭhāna a se estabelecer, livre de desejos
e descontentamento em relação ao mundo. Da mesma forma, a contenção dos
sentidos tem o propósito de evitar o surgimento dessas duas condições. Isso
confirma que, de uma perspectiva prática, há uma sobreposição entre
satipaṭṭhāna e a restrição dos sentidos (Anālayo 2003: 60). Quando a atenção
plena é estabelecida nas portas dos sentidos, ela pode exercer sua
função protetora. Seja vendo, ouvindo, cheirando, saboreando ou tocando, em
cada caso, a atenção plena pode nos alertar rapidamente quando as
informações que chegam por uma das portas dos sentidos têm uma boa chance
de causar efeitos não saudáveis na mente. Restrição dos sentidos significa
conhecer os dados reais dos sentidos sem permitir que ocorram novas
proliferações. Essa restrição dos sentidos pode ser apoiada pela adoção de uma
conduta particular, como manter os olhos baixos e viver em reclusão. Mas não
se limita a esses modos de comportamento. Na verdade, ao sair para o mundo,
dificilmente será possível manter esse tipo de conduta.
Apenas tentar restringir a experiência dos sentidos não será suficiente por si só,
como pode ser visto no Indriyabhāvanā-sutta (MN 152; Anālayo 2017c: 192).
Um estudante brâmane propôs na frente do Buda que o cultivo das faculdades
dos sentidos envolve não ver e não ouvir. E esta foi a resposta que ele recebeu a
essa proposição, se fosse esse o caso, aqueles que são cegos e surdos
deveriam ser considerados praticantes talentosos. Em outras palavras, o cultivo
adequado da restrição dos sentidos não é apenas evitar o contato dos sentidos.
Em vez disso, requer treinamento da atenção plena. Isso pode ser apoiado
por determinados tipos de comportamento e pela seclusão. Esses são meios
para um fim, entretanto, não fins em si mesmos.
Outra maneira de evitar o surgimento do desejo sensual é cultivar a atenção
plena ao comer. A tarefa é permanecer ciente de que a finalidade da alimentação
é nutrir o corpo, não estimular as papilas gustativas. De acordo com o
Brahmāyu-sutta, ao comer o Buda experimentou o sabor da comida
sem experimentar o desejo pelo sabor (MN 91; Anālayo 2017c: 202). Este
exemplo dado pelo Buda pode servir de inspiração para cultivar a atenção ao
comer. Em particular, mastigar bem antes de engolir, para garantir que o
alimento está bem mastigado, pode se tornar tarefa para um atento
acompanhamento. Fazer isso melhorá a saúde e, ao mesmo tempo, neutralizará
a tendência de comer demais (SN 3.13; Anālayo a ser publicado a).
O potencial de cultivar a alimentação consciente e o insight que pode surgir
dessa prática são facilmente subestimados. De acordo com um discurso no
Saṃyutta-nikāya, a compreensão penetrante da comida pode levar a ir além do
desejo sensual e, portanto, além de novos renascimentos no reino sensual (SN
12.63; Anālayo 2017c: 71). Isso nos mostra que comer, pode se tornar um campo
de treinamento para o cultivo do insight libertador.
Uma abordagem que pode ser útil nesse sentido é misturar nossa comida. Nessa
forma de prática, todos os alimentos são colocados em uma tigela ou recipiente
e, em seguida, misturados um pouco. Isso tem o efeito interessante de que
alimentos naturalmente doces, como passas, por exemplo,
permanecem saborosos. Mas os doces artificiais como chocolate ou biscoitos
perdem toda a atração ao serem misturados com sopa, arroz e vegetais. A
prática de misturar os alimentos ajuda a deixar de lado os alimentos
adoçados artificialmente e a encontrar satisfação com alimentos mais naturais
e saudáveis. De uma maneira muito prática, ela mostra que a principal tarefa da
alimentação é nutrir o corpo, ao invés de satisfazer as papilas gustativas.
Para quem deseja avançar um pouco mais nesse modo de prática, existe a
opção de mastigar a comida e, antes de engoli-la, retirá-la da boca novamente
para um breve momento de inspeção. Outra dimensão relacionada é a
aparência do alimento quando sai do corpo na forma de fezes e urina. Aqui,
uma opção seria inspecionar ambos por um breve momento, suficientemente
longo para estabelecer uma conexão mental entre a aparência visual e olfativa
que o alimento ingerido tinha anteriormente e o que ele é agora e, só então dar
a descarga do vaso sanitário. Desta forma, toda a visão de comer, e da comida
pode surgir diante do olhar atento da investigação. Com isto, torna-se mais fácil
superar uma preocupação unilateral com sua aparência, antes de entrar na boca
e, com seu gosto passageiro durante os primeiros momentos de mastigação.
Afinal de contas, a obsessão por um determinado alimento se baseia
apenas nestes dois aspectos de todo o processo de alimentação do corpo.
Além disso, a investigação cuidadosa também pode ser aplicada à própria
experiência do paladar. Embora as abordagens descritas acima já tenham
revelado que a experiência do paladar corresponde

Você também pode gostar