Ioseph Ratzinger - Introdução Ao Cristianismo

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JOSEPH RATZINGER

INTRODUÇÃO AO
CRISTIANISMO
Preleções sobre o Símbolo Apostólico
HERDER
SÃO PAULO
1970
Os números entre colchetes [n] indicam o início da página na edição portuguesa de Herder –
São Paulo, 1970. Foram acrescentados a esta edição eletrônica para possibilitar a citação
acadêmica da obra. Os títulos que precedem imediatamente ao número pertencem à página
em questão. As palavras hifenizadas entre páginas diferentes foram consideradas da página
anterior. A numeração das páginas do original tem início com o prefácio. Os números do
índice correspondem ao original.

Versão brasileira de Padres José Wisniewski Filho, S.V.D., do


original alemão Einführung in das Christentum, © 1968 by Kösel-
Verlag, München.

Nihil obstat:

P. Frei Arnaldo Vicente Belli, Ofmcap. Censor

São Paulo, 26 de outubro de 1970

Imprimatur

† J. Lafayette, Vigário Geral

São Paulo, 27 de outubro de 1970

© EDITORA HERDER – SÃO PAULO – 1970

ÍNDICE
Prefácio 1
INTRODUÇÃO
CAP. I – Fé no Mundo Hodierno 7
1. Dúvida e Fé – Situação do
homem frente ao problema 7
"Deus"
2. O salto da Fé – Ensaio
provisório de uma definição da 15
essência da Fé.
3. O dilema da Fé no mundo
19
de hoje
4. Limite da moderna
compreensão da realidade e 25
topografia da Fé
5. Fé como "estar" e
35
"compreender"
6. Razão e fé 40
7. "Creio em Ti" 44
CAP. II – Forma eclesial da Fé 47
1. Preliminares à história e à
estrutura do Símbolo 47
Apostólico da Fé
2. Limite e importância do
50
texto
3. Fé e Dogma 51
4. O Símbolo como expressão
54
da estrutura da Fé
I PARTE
DEUS 63
CAP I - Prolegômenos ao Tema
65
"Deus"
1. Âmbito da questão 65
2. O reconhecimento de um
71
Deus
CAP II - A Fé em Deus na Bíblia 77
1. O problema histórico da
77
sarça ardente
2. Pressuposto intrínseco da
82
Fé em "Iahvé": o Deus dos
pais
3. Iahvé, Deus dos patriarcas e
86
de Jesus Cristo
4. A idéia do nome 93
5. As duas faces da idéia
94
bíblica de Deus
CAP III - O Deus da Fé e o Deus dos
97
Filósofos
1. Opção da Igreja antiga pela
97
filosofia
2. Metamorfose do Deus dos
102
filósofos
3. Reflexo da questão no texto
107
do "Símbolo"
CAP IV - "Creio em Deus" – Hoje 111
1. O primado do Logos 111
2. O Deus pessoal 118
CAP V – Fé no Deus Trino 121
1. Introduzindo na
122
compreensão
2. Interpretação positiva 136
II PARTE
JESUS CRISTO 149
CAP I - "Creio em Jesus Cristo seu
151
Filho Unigênito, Nosso Senhor".
I. O problema da Fé em Jesus Cristo
hoje
II. Jesus, o Cristo: Forma
fundamental da Fé cristológica.
1. O dilema da Teologia nova:
154
Jesus ou Cristo?
2. Imagem do Cristo do
159
Símbolo
3. Ponto de partida da Fé: a
163
cruz.
4. Jesus, o Cristo 165
III. Jesus Cristo – verdadeiro Deus e
verdadeiro Homem
1. Introdução ao problema 167
1
2. Clichê moderno do "Jesus
6
histórico"
9
1
3. O direito do dogma
7
cristológico
2
IV. Caminhos da Cristologia
1. Teologia da Encarnação e
da Cruz

2. Cristologia e Soteriologia

3. Cristo, "o último homem"

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1. O individual e o todo

2. O princípio do "para"

3. A lei do incógnito

4. A lei do supérfluo

5. O definitivo e a esperança

6. O primado da aceitação e a
positividade cristã
1. "Concebido do Espírito
Santo, nascido da Virgem
Maria".
2. Padeceu sob Pôncio Pilatos,
foi crucificado, morto e
sepultado.

3. "Desceu aos infernos"

4. Ressurgiu dos mortos

5. "Subiu ao céu, onde está


sentado à direita de Deus Pai,
todo-poderoso"
1. "A Igreja santa, católica".

2. "Ressurreição da carne".

PREFÁCIO

[1] * Qual é, afinal, o conteúdo e o sentido da fé cristã? Eis uma


pergunta que, hoje em dia, está cercada de uma névoa de
incerteza mais pesada do que em qualquer outro momento da
história. O observador do movimento teológico do último século
que não seja do número daqueles levianos que sempre julgam
melhor o novo, sem se dar ao trabalho de analisar, poder-se-ia
sentir lembrado da velha estória do "Joãozinho feliz". Era uma vez,
assim reza a lenda, um Joãozinho possuidor de uma riquíssima
pepita de ouro. Mas, feliz e comodista, julgou-a pesada demais,
trocando-a por cavalo; o cavalo por uma vaca, a vaca foi
barganhada por um ganso e o ganso por uma pedra de amolar;
finalmente a pedra foi lançada ao rio, sem que o dono se achasse
muito prejudicado. Pelo contrário, acreditou ter finalmente
conquistado o dom mais precioso da liberdade completa: livre da
sua pepita, livre do cavalo, da vaca, do ganso e da pedra de afiar.
Quanto tempo teria durado o seu fascínio? Quão tenebroso lhe foi o
despertar na estória de sua presumida libertação? A fábula silencia
sobre isso, deixando-o por conta da fantasia de cada leitor. O
cristão hodierno é avassalado, não raras vezes, por questões como:
a nossa teologia dos últimos anos não teria enveredado por um
caminho parecido? Não teria minimizado a exigência da fé, sentida
como pesada demais, interpretando-a, gradativamente, em
sentido sempre mais largo; sempre apenas o suficiente para poder
arriscar o próximo passo? E o pobre Joãozinho, o cristão, que [2] se
deixou levar, confiante, de interpretação em interpretação, não
acabará detendo entre as mãos, em lugar da pepita de ouro, uma
simples pedra de amolar, que poderá sossegadamente jogar no
fundo de um rio?

Certamente, tais perguntas são injustas se excessivamente


generalizadas. Porquanto, para ser justo, não se poderá
simplesmente afirmar que a "teologia moderna" em geral entrou
por um caminho semelhante. Contudo, muito menos se poderá
negar que certa mentalidade largamente espalhada apóia uma
onda que, de fato, conduz do ouro à pedra de amolar. Claro que é
impossível reagir contra essa tendência, por um simples agarrar-se
à pepita de ouro de fórmulas consagradas do passado que, em tal
caso, continuariam sendo um peso, como qualquer pedaço de
metal, em vez de conferir a possibilidade de uma verdadeira
liberdade, pelo dinamismo que lhes é inerente. Aqui se encaixa a
intenção deste livro: ele pretende ajudar a compreender de modo
novo a fé como possibilidade de um verdadeiro humanismo no
mundo hodierno; deseja analisá-la, sem trocá-la por uma pura
dissertação que dificilmente encobriria seu vazio espiritual
completo.

O livro nasceu de preleções que proferi no semestre de verão


de 1967, em Tübingen, diante de ouvintes de todas as faculdades.
O que Karl Adam, há quase meio século, realizara magistralmente
nessa Universidade com o seu "Essência do Catolicismo", deveria
novamente ser tentado agora nas circunstâncias modificadas da
geração atual. O texto foi convenientemente reformulado, quanto
à linguagem, com vistas a uma publicação em forma de livro.
Contudo, não mudei nem a estrutura, nem a extensão, limitando-
me a acrescentar as achegas científicas estritamente necessárias
para indicar o instrumental de que lancei mão na preparação das
preleções.
*
Os números entre colchetes [n] referem-se ao início das páginas da edição portuguesa
(Herder – São Paulo, 1970).

1
H. COX, The Secular City. Trad. port. A cidade do Homem, Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1968, 270.

2
Confira-se a síntese informativa da Herderkorrespondenz 7 (1962/3, 561-565 sob o título "Die
echten Texte der kleinen heiligen Thérese" (Textos autênticos de Sta. Teresinha). As nossas
citações encontram-se à pág. 564. Sua fonte principal é o artigo de M. MORÉE, "La table des
pécheurs," em Dieu vivant No. 24,13-104. MORÉE refere-se sobretudo às pesquisas e edições
de A. COMBES, principalmente Le probleme de I' "Histoire d'une âme et des oeuvres
completes de Ste. Thérese de Lisieux, Paris, 1950. Outras fontes: A. COMBES, "Theresia von
Lisieux", em Lexikon für Theologie und Kirche (LthK) X,102-104. – De A. COMBES foi traduzido
por mim Sainte Thérese de Lisieux et sa Mission, publicado pela editora "Lar Católico" sob o
título "Uma Santa na era atômica" (1961), onde se podem conferir os conceitos aqui
abordados, sobretudo à pág. 125; 138 e seguintes e 174 (Nota do tradutor).
3
O que evoca impressionantemente o texto de Sab 10,4 tão importante para a teologia da
cruz da Igreja antiga: "à terra inundada, salvou-a a Sabedoria, dirigindo o justo num lenho
desprezível". Sobre este texto na teologia patrística confira-se H. RAHNER, Symbole der
Kirche, Salzburgo, 1964, 502-547.

4
Conforme o texto alemão de H. U. VON BALTHASAR, Salzburgo, 1953, 16.

5
M. BUBER, Werke III, Munique-Heidelberg, 1963, 348.

∗ O autor se refere à Alemanha (N. da Editora).

6
Típica ilustração para essa mentalidade encontra-se, ao meu ver, em um anúncio visto há
pouco: "Você não quer comprar tradição mas progresso racional". No mesmo contexto cumpre
apontar para a realidade característica de a teologia católica, em sua reflexão sobre a
tradição, nos últimos cem anos, tender sempre mais a equiparar tradição e progresso, de
reinterpretar a idéia de tradição pelo conceito de progresso, não entendendo mais tradição
como o cabedal fixo transmitido desde a origem, mas como a força propulsora do sentido da
fé; Cfr. J. RATZINGER, "Tradition", em: LThK X, 293-299; IDEM, "Kommentar zur
Offenbarungskonstitution" em: L ThK supl. II, 498 ss e 515-528.

7
Theou oudeis eoraken popote; monogenes theos... exegesato. O verbo exegeomai significa:
ser chefe, servir de guia, de conselheiro, dar exemplo e, em sentido derivado (no texto
presente): explicar, interpretar, expor. Cristo seria, então, quem explica, interpreta, expõe
aos homens o segredo de Deus. (A. CHASSANG, Nouveau Dictionnaire Grec-Français) (Nota do
Tradutor).

8
1Jo 1,1-3.

9
Declaração que, aliás, tem valor em todo o seu sentido somente dentro do pensamento
cristão que, com o conceito de creatio ex nihilo, reduz a Deus também a matéria a qual, para
a filosofia antiga, permanece como o alógico, o elemento cósmico estranho à divindade,
marcando assim, ao mesmo tempo, o limite da inteligibilidade do real.

10
Relativamente ao material histórico veja-se a síntese em K. LÖWITH, Weltgeschichte und
Heilsgeschichte, Stuttgart 31953, 109-128, assim como a obra de N. SCHIFFERS, Anfragen der
Physik an die Theologie, Düsseldorf, 1968.

11
N. SCHIFFERS, obra citada.

12
K. LÖWlTH, obra cit., 38. Sobre a virada nos meados do século XIX, veja-se a instrutiva
pesquisa de J. DÖRMANN, "War J. B. Bachofen Evolutionist?" em: Anthropos 60 (1965) 1-48.

13
Cfr. H. FREYER, Theorie des gegenwärtigen Zeitalters, Stuttgart, 1958, sobretudo 15-78.

14
Sintomática, neste sentido, é a obra de H. Cox, já citada, bem como a "teologia da
revolução" hoje em moda; cfr. T. RENDORFF – H E. TÖDT, Theologie der Revolution. Analysen
und Materialien, Frankfurt 1968. Tendência igual também em J. MOLTMANN, Theologie der
Hoffnung, Munique 1964, 51966 e em J. B. METZ, Zur Theologie der Welt, Mogúncia-Munique,
1968.

15
O sentido do vocábulo grego Logos corresponde, de algum modo, à raiz hebraica 'mn
(amém): palavra, sentido, razão, verdade estão nele incluídos.

16
Neste contexto pode-se apontar para a importante perícope dos At 16,6-10 (O Espírito Santo
impede a Paulo de pregar na Ásia; o Espírito de Jesus não lhe permite viajar à Bitínia; e ainda
a visão com o chamado da Macedônia: "Vem e ajuda-nos!"). Este misterioso texto deveria
representar algo assim como uma primeira tentativa "teológico-histórica" para sublinhar a
passagem da mensagem para a Europa, "aos gregos", como obrigação divinamente
determinada; Confira-se a respeito E. PETERSON, "Die Kirche", em: Theologische Traktate,
Munique, 1951, 409-429.

17
Cfr. H. FRIES, Glauben-Wissen, Berlin, 1960, sobretudo 89-95; J. MOUROUX, lch glaube an
Dich Einsiedeln 1951; C. CIRNE-LIMA, Der personale Glaube, Innsbruck, 1959.

1
Obra decisiva e clássica a respeito é: Das apostolische SymboI de F. KATTENBUSCH, I, 1894;
II, 1900 (reeditada sem alterações em 1962, Darmstadt; será citada sempre: KATTENBUSCH).
Além disto, é importante J. DE GHELLINCK, Patristique et Moyen-âge I, Paris, 21949; e ainda a
visão de conjunto de J. N. D. KELLY, Early Christian Creeds, Londres, 1950; e W. TRILLHAAS,
Das apostolische Glaubensbekenntnis, Geschichte, Text, Auslegung, Witten, 1953. Breves
resumos e bibliografias ulteriores encontram-se nas patrologias, por exemplo: B. ALTANER –
A. STUIBER, Patrologie, Friburgo, 71966, 85 e ss; J. QUASTEN, Patrology I, Utrecht, 1962, 23-
29; veja-se também J. N. D. KELLY, "Apostolisches Glaubensbekenntnis" em: LThK I, 760 e ss.

2
Confira-se, por exemplo, o texto do Sacramentarium Gelasianum (Edição WILSON), 86,
citado em KATTENBUSCH II, 485, assim como, sobretudo, o texto da Traditio apostolica de
HIPÓLITO (Edição BOTTE) Münster, 21963, 48 e ss.

3
HIPÓLlTO, obr. cit. 46: Renuntio tibi, Satana, et omni servitio tuo et omnibus operibus tuis.

4
KATTENBUSCH n. 503.

5
Confira-se A. HAHN, Bibliothek der Symbole und Glaubensregeln der Alten Kirche, 31897;
nova edição, Hildesheim 1962; G. L. DOSETTI, Il simbolo di Nicea e di Costantinopoli, Roma,
1967.

6
Confira-se F. G. JÜNGER, "Sprache und Kalkül", em: Die Künste im technischen Zeitalter,
editado pela Academia Bávara de Belas Artes, Darmstadt, 1956, 86-104.

7
Confira-se J. H. EMMINGHAUS, "Symbol III", em: LThK IX, 1208 e ss.

8
Em PLATÃO a idéia de símbolo evoluiu abrangendo o ser humano: no Simpósio 191 d, anexo
ao mito andrógino, o homem é interpretado como "símbolo", como uma metade que remete
ao seu correlativo no outro: "Cada um de nós é symbolon (símbolo, metade) de um homem,
porque, como a gleba (pelo arado) fomos cortados, tornando-nos, de um, dois. Sem cessar
cada um procura o symbolon (= a sua outra metade) que lhe pertence".

9
K. RAHNER, "Was ist eine dogmatische Aussage"?, em: Schriften zur Theologie V, Einsiedeln,
1962, 54-81, sobretudo 67-72. O presente capítulo muito deve a este importante trabalho de
Rahner.

10
Veja-se o relatório da conversão de Mário Vitorino e a impressão de Agostinho nas
Confessiones VIII 2, 3-5; além disto: A. SOLIGNAC, "Le cercle milanais", em: Les Confessions
(Oeuvres de St. Augustin 14), Desclée 1962, 529-536.

1
A palavra "Criador" não figura no texto romano original. Contudo, a idéia de "criação" está
implícita na expressão "todo-poderoso" (Pantokrator).

2
G. VAN DER LEEUW, Phänomenologie der Religion, Tübingen, 21956, 103.

3
Cfr. R. MARLÉ, "Die fordernde Botschaft Dietrich Bonhoeffers", em Orientierung 31 (1967),
42-46, principalmente o texto clássico de Widerstand und Ergebund (ed. Betge), Munique,
12
1964, 182: "Gostaria de falar de Deus não nos limites, mas no meio, não nas debilidades, mas
na força, não na morte e culpa, mas na vida e na bondade do homem" .

4
P. CLAUDEL, Le soulier de Satin (ed. alemã, Salzburg, 1953, 288 e ss.), o grande diálogo
final entre Proeza e Rodrigo; veja-se também 181 e a cena antecedente com a dupla sombra.

5
Confira-se A. BRUNNER, Die Religion, Friburgo, 1956, sobretudo 21-94; R. GUARDINI, Religion
und Offenbarung I, Würzburg, 1958.

6
Cfr. J. A. CUTTAT, Begegnung der Religionen, Einsiedeln, 1956; J. RATZINGER, "Der
christliche Glaube und die Weltreligionen", em: Gott in Welt (Ed. festiva para K. Rahner) II,
Friburgo, 1964, 287-305; bem como o material em P. HACKER, Prahlada, Werden und
Handlungen einer Idealgestalt I e II, Mogúncia, 1958.

7
É suficiente mencionar a coexistência de filósofos ateus (Epicuro, Lucrécio, etc.) ao lado de
monoteístas (Platão, Aristóteles, Plotino) na antiga filosofia, uns e outros declarando-se
politeístas religiosos – realidade à qual raramente se deu o devido apreço em um sistema
unilateral de história da filosofia. Só com este pano de fundo torna-se compreensível a
atitude cristã no que ela tinha de revolucionário, identificando as orientações filosófica e
religiosa. Confira-se J. RATZINGER, Volk und Haus Gottes in Augustinus Lehre von der Kirche,
Munique, 1954, 2-12 e 218-234.

8
Texto do Sch'ma (nome dessa prece, tirado da palavra inicial: “ouve, ó Israel...”) em R. R.
GEIS, Vom unbekannten Judentum, Friburgo, 1961, 22 e s.

9
E. BRUNNER, Die christliche Lehre von Gott. Dogmatik I, Zurique, 1960, 124-135; Cfr. J.
RATZINGER, Der Gott des Glaubens lmd der Gott der Philosophen, Munique, 1960.

10
Assim há de exprimir-se o evento sob o ponto de vista do historiador. O que não fere a
convicção do crente de que esse "refundir criativo" somente era possível na forma de uma
aceitação da Revelação. O processo criativo, de resto, sempre é um processo de aceitação.
Quanto à feição histórica, veja-se H. CAZELLES, "Der Gott der Patriarchen", em: Bibel und
Leben 2 (1961), 39-49. O. EISSFELDT, "Jahwe, der Gott der Vater", em: Theologische
Literaturzeitung 88 (1963), 481-490; G. VON RAD, Theologie des AT I, Munique, 1958, 181-
188.

11
Cazelles. O. cito

12
Aqui conviria lembrar (como na nota 10) que "opção" inclui '''dádiva, recepção" e, por
conseguinte "revelação".

13
Confira-se MÁXIMO CONFESSOR, Expositio Orationis Dominicae, em: Patrologia Graeca (PG)
90,892. Para Máximo reconciliam-se no Evangelho o politeísmo pagão e o monoteísmo
judaico. "Aquele é multiplicidade contraditória sem liame; este é unidade sem riqueza
interna". Máximo considera a ambos igualmente imperfeitos e carentes de complementação. E
então ambos abrem caminho para a idéia de Deus uno e trino, que completa, pela
"multiplicidade viva e engenhosa dos gregos", a idéia monoteísta dos judeus "estreita,
imperfeita e quase sem valor em si" e "inclinada" ao perigo do "ateísmo". Assim, conforme H.
U. VON BALTHASAR, Kosmische Liturgie, Das Weltbild Maximus' des Bekenners, Einsiedeln,
2
1961, 312; cfr. também A. ADAM, Lehrbuch der Dogmengeschichte I, Gütersloh, 1965, 368.

Confira-se W. EICHRODT, Theologie des A. T., Leipzig, 21939, 92 s.; G. VON RAD, o. cito (ver
14

nota 10), 184.

Sobre origem e significado desta fórmula confira-se, sobretudo, E. SCHWEIZER, EGO EIMI...,
15

Göttingen, 1939; H. ZIMMERMANN, "Das absoIute ego eimi aIs neutestamentliche


Offenbarungsformel", em: Biblische Zeitschrift 4 (1960), 54-69; E. STAUFFER, Jesus. Gestalt
und Geschichte, Berna, 1957, 130-146.

16
Dominus noster Christus veritatem se, non consuetudinem cognominavit. De virginibus
velandis I, 1, in: Corpus Christianorum seu nova Patrum collectio (CChr), II, 1209.

17
Texto do "Mémorial", como se denomina essa cédula, em ROMANO GUARDINI, Christliches
Bewusstsein, Munique, 21950, 47 s, ibd, 23, reprodução reduzida do original; confira-se a
análise de GUARDINI, 27-61. Para completar e corrigir H. VORGRIMLER, "Marginalien zur
Kirchenfrommigkeit Pascals", em : J. Daniélou-H. Vorgrimler, sentire ecclesiam, Priburgo
1961, 371 a 406.

18
H. RAHNER esclareceu a origem do "epitáfio de Loiola" citado por HÖLDERLIN: "O epitáfio de
Loiola" em: Stimmen der Zeit, ano 72, vol. 139 (Fevereiro de 1947), 321-337: a frase origina-
se da grande obra Imago primi saeculi Societatis Iesu a Provincia Flandro-Belgica eiusdem
Societatis repraesentata, Antuérpia, 1640. À pág. 280-282 encontra-se um elogium sepulcrale
Sancti Ignatii, do qual se emprestou o lema; cfr. também HÖLDERLIN, Werke III (ed. F.
Beissner. Sonderausgabe für die Wissenschaftliche Buchgesellschaft Darmstadt), Stuttgart
1965, 346 s. O mesmo pensamento encontra-se em inúmeros textos rabínicos; cfr. P. KUHN,
Gottes Selbsterniedrigung in der Theologie der Robbinen, Munique, 1968, sobretudo 13-22.

19
KATTENBUSCH II, 526; P. VAN IMSCHOOT, "Heerscharen", em: H. HAAG, Bibellexikon,
Einsiedeln, 1951, 667-669; na 2.a edição (1968), 684, o artigo está bastante abreviado.

20
A. EINSTEIN, Mein Weltbild, editado por C. SEELIG, Zurique-Stuttgart-Viena, 1953, 21.

21
Ob. cit., 18-22. No capítulo Necessidade da cultura ética (22-24) mostra-se, aliás, um
abrandamento da ligação íntima de antes, entre conhecimento científico-natural e admiração
religiosa; a visão sobre o religioso propriamente dito parece um tanto aguçada através das
trágicas experiências passadas.

22
Citado por W. VON HARTLIEB. Das Christenturn und die Gegenwart, Salzburgo, 1953
(Stifterbibliothek, vol. 21), 18 s.

23
E. PETERSON, Theologische Traktate, Munique, 1951, 45-147: Der Monotheismus als
politisches Problem, sobretudo 52 e s.

24
L. c. 102 e ss. Igualmente importante é a observação de PETERSON, 147, nota 168: "O
conceito de "teologia política" foi introduzido na literatura por W. CARL SCHMITT, Politische
Theologie, Munique, 1922... Tentamos comprovar, com um exemplo concreto, a
impossibilidade de uma "teologia política".

À guisa de ilustração seja aduzida aqui a história do "homousios". Confira-se a síntese de A.


25

GRILLMEIER, em: LThK V, 467 s.; além disto, o resumo da história do dogma trinitário em A.
ADAM, o. cito 115-254 (veja-se à pág. 86 nota 13). Sobre o tema "Balbuciar do homem diante
de Deus" cfr. a bela estória "O balbuciar" das narrações cassídicas em: M. BUBER, Werke III,
Munique, 1963, 334.

Citado por H. DOMBOIS, "Der Kampf um das Kirchenrecht", em: H. ASSMUSSEN – W. STÄHLIN,
26

Die Katholizität der Kirche, Stuttgart, 1957, 285-307, citações 297 s.

27
H. DOMBOIS (o. cit.) chama a atenção para o fato de N. BOHR, introdutor da
complementaridade na Física, por sua vez, ter aludido à Teologia: à complementaridade da
justiça e misericórdia de Deus; Confira-se N. BOHR, Atomtheorie und Naturbeschreibung,
Berlin, 1931; do mesmo: Atomphysik und Menschliche Erkenntnis, Braunschweig, 1958. Outras
indicações e bibliografia oferece C. F. VON WEIZSACKER em seu artigo "Komplementarität",
em: Die Religion in Geschichte und Gegenwart (RGG) III, 1744 e s.
*
"Ondas", bem entendido aqui: o autor joga com a antítese de substância e relações (Nota do
tradutor).

28
B. PASCAL, Pensées, Fragment 233 (ed. Brunschvicg 137 s); tradução de M. LAROS, Pascals
Pensées, Munique, 1913, 96 s; cfr ainda BRUNSCHVICG pág. 333, nota 53, que mostra, contra
V. COUSIN (ver também LAROS pág 97, nota 1) que "s'abetir" (embrutecer-se, atoleimar-se)
significa para Pascal: "retourner à l'enfance, pour atteindre les vérités supérieures qui sont
inaccessibles à la courte sagesse des demi-savants". Com base nisto, BRUNSCHVICG pode
dizer, dentro do pensamento de PASCAL: "Rien n'est plus conforme à la raison que le desaveu
de la raison" (nada é mais racional do que a negação da razão): Pascal não fala como cético
(opinião de COUSIN) mas como crente dentro de sua convicção e certeza; cfr. ainda
VORGRIMLER l. c. 383 (ver pág. 103 nota 17 do presente livro).

29
Confira-se a respeito W. KERN, "Einheit-in-Mannigfaltigkeit", em: Gott in Welt (Festschrift
für K. Rahner) I, Friburgo, 1964, 207-239; veja-se também o que escrevi à página 85, nota 13
sobre MÁXIMO CONFESSOR.

30
Confira-se o artigo de K. RAHNER, citado à pág. 60, nota 26.

Confira-se C. ANDRESEN, "Zur Entstehung und Geschichte des trinitarischen Personbegriffs",


31

em: Zeitschrift für neutestamentliche Wissenschaft 52 (1961), 1-38; J. RATZINGER, "Zum


Personverständnis in der Dogmatik", em: J. SPECK, Das Personverständnis in der Pädagogik
und ihren Nachbarwissenschaften, Münster, 1966, 157-171.

32
AGOSTINHO, Enarrationes in Psalmos 68 s I, 5, em: CChr 39,905 (Patrologia Latina (PL) 36,
845).

33
Confira-se De Trinitate V 5,6 (PL 42, 913 s): "... In Deo autem nihil quidem secundum
accidens dicitur, quia nihil in eo mutabile est; nec tamen omne quod dicitur, secundum
substantiam dicitur... quod tamen relativum non est accidens, quia non est mutabile". Veja-
se também M. SCHMAUS, Katholische Dogmatik I, Munique, 31948, 425-432 (§ 58).

Confira a breve síntese sobre a história do conceito de átomo de C. F. VON WEIZSÄCKER,


34

em: RGG I, 682-686.

35
Citado por K. H. SCHELKLE, Jüngerschaft und Apostelamt, Friburgo, 1957, 30.

36
AUGUSTINUS, In Joannis Evangelium tractatus 29, 3 (relativo a Jo 7,16), in: CChr 36, 285.

*
Sarx: vocábulo grego = carne (nota do tradutor).

1
Paradiso, XXXIII, 127 até o fim. O texto que interessa, no verso 130 e ss: Dentro da sè del
suo colore istesso / Mi parve pinta della nostra effige / Per che il mio viso in lei tutto era
messo.

2
Assim o grupo de W. PANNENBERG; confira-se W. PANNENBERG, Grundzüge der Christologie,
Gütersloh, 21966, sobretudo a definição 23: "A tarefa da Cristologia, portanto, consiste em
fundamentar o verdadeiro conhecimento da importância de Cristo a partir de sua história...".

3
Assim na antiga Teologia liberal; cfr. sua expressão clássica em A. V. HARNACK, Das Wesen
des Christentums (nova edição de R. BULTMANN), Stuttgart, 1950.

4
Foi o que sublinhou com muita insistência A. SCHWEITZER, em sua História da Pesquisa da
Vida de Jesus, publicada em Tübingen em 1906, com o que se colocou um provisório ponto
final àqueles esforços. Seja-me permitido lembrar apenas a seguinte passagem clássica dessa
obra: "Nada há de mais negativo do que o resultado da pesquisa da vida de Jesus. Não existiu
o Jesus de Nazaré que se apresentou como Messias, que anunciou a ética do reino de Deus,
que fundou o reino dos céus na terra e que morreu para consagrar a sua obra. Trata-se de
uma figura planejada pelo Racionalismo, vivificada pelo Liberalismo e revestida de ciência
histórica pela Teologia moderna. Essa imagem não foi destruída de fora, mas ruiu por si
mesma, soterrada pelos problemas históricos reais..." (Citado conforme W. G. KÜMMEL, Das
Neue Testament, Geschichte der Erforschung seiner Probleme, Friburgo-Munique, 1958, 305).

5
Isto torna-se muito mais claro na última declaração mais detalhada de BULTMANN sobre o
problema "Jesus" : Das Verhältnis der urchristlichen Christusbotschaft zum historischen
Jesus, Heidelberg, 1960, e mais ainda nos trabalhos do seu discípulo H. BRAUN, do qual ele
bastante se aproxima na obra citada.

6
Nova edição 1950, 86. No 56-60.° milheiros (1908) em uma nota (183) HARNACK confirmou
expressamente essa frase ("nada tenho a mudar nela"), acentuando ao mesmo tempo ser
evidente que vale isto apenas para o Evangelho "como Jesus o anunciou", não "como Paulo e
os Evangelistas o pregaram".

7
Cfr. a respeito a síntese de G. HASENHÜTTL, "Die Wandlung des Gottesbildes", em: Theologie
im Wandel (Tübinger Festschrift. Schriftleitung J. RATZINGER – J. NEUMANN), Munique, 1967,
228-253; W. H. VAN DE POL, Das Ende des Konventionellen Christentums, Viena, 1967, 438-
443, trad. port. O fim do cristianismo convencional. Herder. São Paulo, 1969.

8
KATIENBUSCH II, 491, cfr. 541-562.

9
K. BARTH, Kirchliche Dogmatik III, 2, Zurique 1948, 66-69; citado conforme H. U. VON
BALTHASAR, "Zwei Glaubensweisen", em: Spiritus Creator, Einsiedeln, 1967, 76-91, citação:
89 s. Deve-se cotejar o trabalho de BALTHASAR.

10
H. U. VON BALTHASAR, o. cit. sobretudo 90. O MESMO, Verbum Caro, Einsiedeln, 1960, 11-
72, sobretudo 32 e s, 54 e ss.

11
Cfr. a observação esc1arecedora de E. KÄSEMANN, em. Exegetische Versuche und
Besinnungen II, Göttingen, 1964, 47, que chama a atenção para o seguinte: o simples fato de
João apresentar o seu Kerygma em forma de um Evangelho, tem ponderável força
comprovante.

12
Cfr. P. HACKER, Das Ich im Glauben bei Martin Luther, Graz 1966, sobretudo o capítulo
"Säkularisierung der Liebe", 166-174. Recorrendo a numerosos textos, HACKER demonstra que
o Lutero da Reforma (mais ou menos do ano de 1520) destina o amor à "vida exterior", ao uso
"com os homens", portanto ao reino profano, à hoje chamada mundanidade, ou seja à "justiça
da lei", excluindo-o, assim secularizado, da esfera da graça e da salvação. HACKER torna claro
que o plano de secularização de GOGARTEN pode com todo o direito apelar para Lutero. Está
claro que Trento devia traçar aqui uma clara linha provisória que continua valendo ali onde se
defende a secularização do amor; Sobre GOGARTEN consulte-se a apresentação e avaliação de
sua obra por A. V. BAUER, Freiheit zur Welt (Säkularisation), Paderborn, 1967.

13
Com o que, naturalmente, não quero aceitar a posteriori a tentativa já repudiada como
impossível, de uma construção histórica da fé. Trata-se aqui de comprovar a legitimidade
histórica da fé.

14
Falando-se de uma "forma de vulgarização da Teologia moderna" já está dito,
implicitamente, que os fatos são vistos diferençadamente nas pesquisas teológicas e também
de múltiplos modos, se tomados isoladamente. Contudo, as aporias são as mesmas, não tendo
valor a desculpa preferida de que não é exatamente assim.

*
Schibboleth, termo hebreu (= espiga), usado pelos galaaditas para descobrir os efraimitas (Jz
12,6). Em sentido figurado, é o mesmo que senha, distintivo de um partido ou, em nosso caso,
de uma religião. (Cfr. Der Grosse Herder: "Schibboleth"). (Nota do Tradutor).

15
W. V. MARTITZ, "yios im Griechischen", em: Theologisches Wörterbuch zum NT (ed. Kittel-
Friedrich) VIII, 335-340.

16
Cfr. H. J. KRAUS, Psalmen I, Neukirchen, 1960, 18 ss (salmo 2,7).

Cfr. o importante artigo de J. JEREMIAS, "pais theou", em: Theologisches Wörterbuch zum
17

NT V, 653-713, sobretudo 702 e s.

18
Cfr. W. V. MARTITZ, l. c. 330 55, 336.

Por isso, em fórmulas semelhantes sempre se acrescenta alguma determinação. Cfr. o


19

material em W. BAUER, Wörterbuch zum NT, Berlin, 51958, 1649 ss e em W. V. MARTITZ, o. c

20
Cfr. a respeito o importante material em A. A. T. EHRHARDT, Politische Metaphysik von
Solon bis Augustin, 2 vols, Tübingen, 1959; E. PETERSON, "Zeuge der Wahrheit", em:
Theologische Traktate, Munique, 1951, 165-224; N. BROX, Zeuge und Märtyrer, Munique,
1961.

21
Isto foi esclarecido de modo convincente por F. HAHN, Christo1ogische Hoheitstitel,
Gõttingen, 31966, 319-333; além disto, as importantes considerações de J. JEREMIAS, Abba,
Studien zur neutestamentlichen Theologie und Zeitgeschichte, Göttingen, 1966, 15-67.

22
J. JEREMIAS, l.c. 58-67 em que ele corrige a sua opinião anterior segundo a qual Abba seria
o simples balbuciar de criança, em: Theologisches Wörterbuch zum NT V, 984 s; sua hipótese
básica continua: para o sentimento judaico, seria irreverente e por isto impossível, chamar a
Deus com esse nome familiar. Foi algo de novo e inaudito o ter Jesus ousado dar tal passo... O
Abba com que se dirige a Deus revela o âmago da sua relação com Deus".

23
Glauben und Verstehen II, Tübingen 1952, 258. Cfr. G. HASENHÜTTL, Der Glaubensvollzug.
Eine Begegnung mit R. Bultmann aus katholischem Glaubensvertändnis, Essen, 1963, 127.

24
Quanto a esta tentativa cfr. B. WELTE, "Homousios Hemin. Gedanken zum Verständnis und
zur theologischen Problematik der Kategorien von Chalkedon", em: A. GRILLMEIER – H.
BACHT, Das Konzil von Chalkedon III, Würzburgo 1954, 51-80; K. RAHNER, "Zur Theologie der
Menschwerdung", em: Schriften zur Theologie IV, Einsiedeln, 1960, 137-155; O MESMO, "Die
Christologie innerhalb einer evolutiven Weltanschauung", em: Schriften V, Einsiede1n, 1962,
183-221.

25
Cfr. J. PEDERSON, Israel, Its Life and Culture, 2 vls. Londres, 1926 e 1940; H. W. ROBINSON,
"The Hebrew Conception of Corporate Persona1ity", em: Beihefte zur Zeitschrift für die
alttestamentliche Wissenschaft 66 (Berlin 1966), 49-62; J. DE FRAINE, Adam und seine
Nachkommen, Colônia, 1962.

26
Citado por C. TRESMONTANT, Einführung in das Denken Teilhard de Chardin's, Friburgo,
1961, 77.

27
Ibd., 41.

28
Ibd., 40.

29
Ibd., 77.

30
Ibd., 82.
31
Ibd., 82.

32
Ibd., 90

33
Ibd., 78.

34
Cfr. O. CULLMANN, Urchristentum und Gottesdienst, Zurique, 1950, 110 ss: J. BETZ, Die
Eucharistie in der Zeit der griechischen Vater II, 1: Die Realpräsenz des Leibes und Blutes
Jesu im Abendmahl nach dem NT, Friburgo, 1961, 189-200.

Recorro a seguir a pensamentos desenvolvidos em meu livrinho "Vom Sinn des Christseins",
35

Munique, 21966 e tentarei sistematizar o que foi dito lá, subordinando-o ao contexto mais
amplo da presente obra.

36
Assim resume J. R. GEISELMANN os pensamentos desenvolvidos por MÖHLER em:
Theologische Quartalschrift 1830, 582 s: J. R. GEISELMANN, Die Heilige Schrift und die
Tradition, Friburgo, 1962, 56.

37
Conforme J. R. GEISELMANN, ibd., 56; F. VON BAADER, Vorlesungen über spekulative
Dogmatik (1830), 7. Vorl., em: Werke VIII, 231, cfr. MÖHLER.

38
Cfr., a respeito, a observação de E. MOUNIER, em: L'Esprit, janeiro 1947: Certo repórter de
rádio teve a infeliz idéia de descrever o panorama do fim do mundo. Ponto culminante da
loucura: pessoas se suicidavam para não morrer. Este reflexo manifestamente irracional prova
que vivemos muito mais do futuro do que do presente. Um homem repentinamente privado do
futuro é um ser privado da vida. – Sobre o Sein des Daseins als Sorge M. HEIDEGGER, Sein und
Zeit, Tübingen, 111967, 191-196.

39
Cfr. J. RATZINGER, "Menschheit und Sttatenbau in der Sicht der Frühen Kirche", em:
Studium generale 14 (1961), 664-682, sobretudo 666-674; H. SCHLIER, Mächte und Gewalten
im N. T., Friburgo, 1958, sobretudo 23 s, 27,29. Sobre o impessoal "se": HEIDEGGER, Sein und
Zeit, Tübingen, 111967, 126-130.

40
Cfr. a instrutiva pesquisa de J. NEUNER, "Religion und Riten. Die Opferlehre der
Bhagavadgita", em: Zeitschrift für Katholische Theologie 73 (1951), 170-213.

41
No Cânon da missa, de acordo com o relato da instituição (Mc 14,24 e par.).

42
Cfr. o mito de Purusha da religião védica; veja a respeito P. REGAMEY, em: F. KÖNIG,
Christus und die Religionen der Erde. Handbuch der Religionsgeschichte, 3 vols, Friburgo,
1951, III, 172 s; Id. em: F. KÖNIG, Religionswissenschaftliches Wörterbuch, Friburgo, 1956,
470 s; J. GONDA, Die Religionen Indiens I, Stuttgart, 1960, 186. O texto principal em Rigveda
10,90.

43
Conforme H. MEYER, Geschichte der abendländlichen Weltanschauung I, Würzburgo, 1947,
231 (= ed. Bekker 993 b 9 ss).

Cfr. PH. DESSAUER, "Geschöpfe von fremden Welten", em: Wort und Wahrheit 9 (1954), 569-
44

583; J. RATZINGER, Vom Sinn des Christseins, Munique, 21966, 32 ss.

O tema "Lei e Evangelho" deveria ser abordado sobretudo a partir daqui; cfr. G. SÖHNGEN,
45

Gesetz und Evangelium, Friburgo 1957, 12-22.

46
K. RAHNER, Schriften zur Theologie I, Einsiedeln, 1954, 60; cfr. J. RATZINGER, "Kommentar
zur Offenbarungskonstitution", em: LThK, Ergänzungsband II, 510.
Cfr. A. DEMPF, Sacrum Imperium, Darmstadt, 1954 (reprodução não modificada da primeira
47

edição de 1929), 269-398;. E. BENZ, Ecclesia spiritualis, Stuttgart 1934; J. RATZINGER, Die
Geschichtstheologie des hl. Bonaventura, Munique 1959.

48
L. EVELY, Manifest der Liebe. Das Vaterunser, Friburgo, 31961, 26; cfr. Y. CONGAR, Wege
des lebendigen Gottes, Friburgo, 1964, 93.

49
Cfr. R. LAURENTIN, Struktur und Theologie der lukanischen Kindheitsgeschichte, Stuttgart,
1967; L. DEISS, Maria, Tochter Sion, Mogúncia, 1961; A. STÖGER, Das Evangelium nach Lukas
I, Düsseldorf, 1964, 38-42; G. VOSS, Die Christologie der lukanischen Schriften in
Grundzügen. Studia Neotestamentica II, Paris-Brüges 1965.

50
Cfr. W. EICHRODT, Theologie des AT I, Leipzig, 1939, 257: "Esses traços... em seu conjunto,
permitem concluir sobre uma imagem familiar do Salvador, na qual o povo via refletida a sua
unidade ideal. Isto confirma-se pela descoberta de uma série de declarações convergentes
sobre o rei-salvador em todo o âmbito do Oriente Médio, declarações passíveis de serem
reunidas em cenas de uma biografia sagrada, indicando ter Israel participado de um fundo
comum oriental" .

51
E. SCHWEIZER, "yios", em: Theologisches Wörterbuch zum NT VIII, 384.

52
É o que se deve objetar contra as especulações com que P. SCHOONENBERG tenta justificar
a reserva do catecismo holandês neste ponto, em seu artigo "De nieuwe Katechismus und die
Dogmen", trad. alemã em: Dokumentation des Holländischen Katechismus, Freiburg 1967
(XIV-XXXIX, sobre o nosso assunto XXXVII-XXXVIII). Fatal neste ensaio é sobretudo o equívoco
fundamental sobre o conceito de dogma, em que se baseia. SCHOONENBERG entende o
"dogma" totalmente na perspectiva dogmática jesuíta do século XIX e naturalmente em vão
procura um ato dogmatizante do magistério sobre o nascimento virginal, que seja análogo às
promulgações do dogma da Imaculada Conceição (isenção do pecado original) ou da Assunção
corporal de Maria ao céu. Deste modo chega ele ao resultado de que, quanto ao nascimento
de Jesus da Virgem, em contraposição às duas outras promulgações, não existe nenhuma
doutrina firme da Igreja. Na verdade, com semelhante afirmação a história dos dogmas sofre
total inversão, e a forma do magistério eclesiástico definitivamente firmada desde o Vaticano
I é de tal forma absolutizada, que se torna insustentável não só com respeito ao diálogo com
as igrejas orientais, mas simplesmente em si mesmo e que nem o próprio SCHOONENBERG
está em condições de sustentar. De fato, o dogma como promulgação individual e definida ex
cathedra pelo Papa é a última e a mais baixa forma de formular dogmas. A forma primitiva
com que a Igreja exprime obrigatoriamente a sua fé é o símbolo; o reconhecimento unívoco,
quanto ao sentido, do nascimento de Jesus, da Virgem, pertence, desde o início, firmemente
a todos os símbolos, sendo, assim, parte integrante do protodogma eclesiástico. Perguntar
pela obrigatoriedade do Lateranense I ou da bula de Paulo V (1555), como SCHOONENBERG o
faz, torna-se um esforço sem objetivo; a tentativa de reduzir também os símbolos a mera
interpretação "espiritual" não passaria, por conseguinte, de cortina de fumaça da história do
dogma.

*
A respeito veja-se REB XXVIII, dez 1968, o importante trabalho de G. BARAÚNA,
"Transcendência-Imanência, a difícil dialética da hora presente", págs. 810-858, sobretudo o
capitulo: "Um novo fantasma à vista?", 820 e ss.; PAULO VI, ibd. 935-937, alocução de 10 de
julho de 1968 sobre: Religião vertical e religião horizontal (nota do tradutor).

53
J. DANIÉLOU, Vom Geheimnis der Geschichte, Stuttgart, 1955, 388 s.

Politeia II, 361 e-36 a. Conforme a versão de S. TEUFFEL, em: PLATON, Sämtliche Werke II,
54

Colônia-Olten, 51967, 51; cfr ainda H. U. VON BALTHASAR, Herrlichkeit 1II/1, Einsiedeln,
1965, 156-161; E. BENZ, "Der gekreuzigte Gerechte bei Plato, im NT und in der alten Kirche",
Abhandlungen der Mainzer Akademie 1950, Heft 12.
*
Paul Claudel em seu "Chemin de Ia Croix" (Librairie de l'Art Catholique, Paris, 5) tem palavras
admiráveis na descrição desta faceta humana: "Nous ne voulons plus de Jésus-Christ avec
nous, car il nous gene... Crucifiez-le, si vous le voulez, mais débarrassez-nous de lui! Qu'on
l'emmène!" (Nota do Tradutor).

55
Cfr H. DE LUBAC, Die Tragödie des Humanismus ohne Gott, Salzburgo, 1950, 21-31.

56
Cfr. a importância do silêncio nos escritos de INÁCIO DE ANTIOQUIA: Epistola ad Ephesios
19,1: "E ao príncipe deste mundo permaneceu oculta a virgindade de Maria e o seu parto,
bem como também a morte do Senhor – três mistérios a clamar em alta voz, realizados no
silêncio de Deus"; cfr. Epistola ad Magnesios 8,2 onde se fala do logos apo siges proelton (da
palavra nascida do silêncio) e a meditação sobre o falar e o calar na Epistola ad Ephesios
15,1. H. SCHLIER oferece o fundo histórico, Religionsgeschichtliche Untersuchungen zu den
Ignatiusbriefen, Berlin, 1929.

*
Cfr a interessante e impressionante obra de ficção de C. S. LEWIS, The great Divorce em que
o poeta anglicano, recentemente falecido, descreve com mão de mestre a situação dos que
se fecharam optando pelo reino das puras impossibilidades. Lástima que ainda não existam
em português versões das obras de C. S. Lewis (Nota do Tradutor).

H. U. VON BALTHASAR, Theologie der Geschichte, Einsiedeln, 1959,31; cfr. G. HASENHÜTTL,


57

Der Glaubensvollzug, Essen, 1963, 327.

58
L. BAECK, Das Wesen des Judentums, Colônia 61960, 69.

59
2 Clem I, I s; cfr. KATTENBUSCH II, 660.

1
Cfr. J. RATZINGER, "Heilsgeschichte und Eschatologie", em: Theologie im Wandel (Tübinger-
Festschrift), Munique, 1967, 68-89.

2
Cfr. o grande trabalho de H. U. VON BALTHASAR, "Casta meretrix", no seu volume Sponsa
Verbi, Einsiedeln, 1961, 203-305; os textos citados 204-207; além disto, H. RIEDLINGER, Die
Makellosigkeit der Kirche in den lateinischen Hoheliedkommentaren des Mittelalters,
Münster, 1958.

3
Cfr. H. DE LUBAC, Die Kirche, Einsiedeln, 1968 (frances 31954), 251-282.

4
KATTENDUSCH II, 919.917-927 sobre a história da recepção do termo "católico" no
"apostolicum" e sobre a história da palavra em geral; cfr. também W. BEINERT, Um das dritte
Kirchenattribut, 2 vols, Essen 1964.

5
Sobre o problema "Igreja e Igrejas" que aqui aflora, expus meu ponto de vista em: J.
RATZINGER, Das Konzil auf dem Weg, Colônia, 1964, 48-71.

6
As considerações seguintes foram feitas em nexo estreito com meu artigo "Auferstehung" em:
Sacramentum mundi I, editado por RAHNER – DAILAP, Friburgo, 1967, 397, 402, onde há
ulterior bibliografia.

A dedicatória do livro, aos ouvintes das diversas etapas do meu


magistério acadêmico, visa já a exprimir a gratidão que sinto para
com o interesse e a participação dos estudantes, elementos [3]
decisivos dos quais surgiu o presente ensaio. Também não me
posso furtar ao reconhecimento para com o editor, Dr. Seinrich
Wild, sem cujo empenho paciente e persistente dificilmente me
teria resolvido a uma aventura que um tal trabalho, sem dúvida,
representa. Finalmente quero agradecer a todos os colaboradores
que contribuíram não pouco para a feitura desta obra.

Tübingen, verão de 1967.

Joseph Ratzinger
INTRODUÇÃO

“CREIO – AMÉM”
CAPÍTULO PRIMEIRO

Fé no Mundo Hodierno

1. Dúvida e Fé – Situação do homem frente ao problema "Deus"

[7] Quem tentar falar hoje sobre o problema da fé cristã diante


de homens não familiarizados com a linguagem eclesiástica por
vocação ou convenção, depressa sentirá o estranho e
surpreendente de semelhante iniciativa. Provavelmente depressa
descobrirá que a sua situação encontra uma descrição exata no
conhecido conto de Kierkegaard sobre o palhaço e a aldeia em
chamas, conto que Harvey Cox retomou há pouco em seu livro A
Cidade do Homem 1 . A estória conta como um circo ambulante na
Dinamarca pegou fogo. O diretor manda à aldeia vizinha o palhaço,
já caracterizado para a representação, em busca de auxílio, tanto
mais que havia perigo de alastrarem-se as chamas através dos
campos secos, alcançando a própria aldeia. O clown corre à aldeia
e suplica aos moradores que venham com urgência ajudar a apagar
as chamas do circo incendiado. Mas os habitantes tomam os gritos
do palhaço por um formidável truque de publicidade para aliciá-los
ao espetáculo; aplaudem-no e riem a bandeiras despregadas. O
palhaço sente mais vontade de chorar do que de rir. Debalde [8]
tenta conjurar os homem e esclarecer-lhes de que não se trata de
propaganda alguma, nem de fingimento ou truque, mas de coisa
muito séria, porquanto o circo realmente está a arder. Seu esforço
apenas aumenta a hilaridade até que, por fim, o fogo alcança a
aldeia, tornando excessivamente tardia qualquer tentativa de
auxílio; circo e aldeia tornam-se presa das chamas.

Cox conta esta estória como símile da situação do teólogo


hodierno e vê a figura do teólogo no clown incapaz de transmitir
aos homens a sua mensagem. Em sua roupagem de palhaço
medieval ou de outro remoto passado qualquer, o teólogo não é
tomado a sério. Pode dizer o que quiser, continua como que
etiquetado e fichado pelo papel que representa. Qualquer que seja
o seu comportamento e seu esforço de falar seriamente, sempre se
sabe de antemão que ele é um clown. Já se adivinha qual o
assunto de sua mensagem e se sabe que apenas está dando uma
representação com pouco ou nenhum nexo com a realidade. Por
isso pode ser ouvido sossegadamente, sem inquietar a ninguém
com as coisas que afirma. Sem dúvida existe algo de angustiante
neste quadro, algo da angustiada realidade em que a teologia e
formulação teológica de hoje se encontram; algo da pesada
impossibilidade de quebrar chavões do pensamento e da expressão
rotineiros e de tornar reconhecível o problema da teologia como
assunto sério da vida humana.

Contudo, talvez o nosso exame de consciência deva mesmo ser


mais radical. Talvez tenhamos de reconhecer que esse quadro
excitante – por muito verdadeiro e digno de consideração que seja
– ainda simplifica em excesso as coisas. Pois, dentro dele, tem-se a
impressão de que o palhaço, ou seja o teólogo, é quem sabe
perfeitamente que traz uma mensagem muito clara. Os aldeões,
aos quais acorre, isto é, os homens sem fé, seriam, pelo contrário,
completamente ignorantes, os que devem ser instruídos sobre o
que lhes é desconhecido. E ao palhaço, em si, bastar-lhe-ia mudar
de roupagem, retirar a [9] maquilagem – e tudo estaria em ordem.
Mas, por acaso a questão é tão simples assim? Bastar-nos-ia um
simples apelo ao aggiornamento, uma mera retirada da
maquilagem e uma reformulação em termos de linguagem do
mundo ou de um cristianismo arreligioso para recolocar tudo nos
eixos? Bastará uma mudança espiritual ou metafórica de vestes
para que os homens acorram animados e ajudem a apagar o
incêndio que o teólogo afirma estar lavrando com sério perigo para
todos? Vejo-me compelido a afirmar que a teologia de fato
desmaquilada e revestida de moderna embalagem profana, tal
como hoje surge em muitos lugares, torna muito simplória essa
esperança. Sem dúvida cumpre reconhecer: quem tenta explicar a
fé no meio de homens mergulhados na vida moderna e imbuídos da
moderna mentalidade, de fato pode ter a impressão de ser um
palhaço ou alguém surgido de um antigo sarcófago, que penetrou
no mundo hodierno, revestido de trajes e pensamentos da
antiguidade, incapaz de compreender este mundo e de ser por ele
compreendido. Todavia, se quem tentar anunciar a fé exercer
bastante autocrítica, em breve notará não se tratar apenas de uma
forma, de uma crise do revestimento em que a teologia se
apresenta. Na estranha aventura teológica frente aos homens de
hoje, quem tomar a sério a sua tarefa há de reconhecer e
experimentar não só a dificuldade da interpretação, mas também
a insegurança da própria fé, o poder arrasador da descrença
dentro de sua própria vontade de crer. Por isso quem tentar
honestamente prestar contas da fé cristã a si e a outros,
aprenderá, a duras penas, não ser ele em absoluto o mascarado ao
qual bastaria depor o disfarce para poder ensinar eficazmente aos
outros. Compreenderá que a sua situação não se diversifica muito
da situação dos outros, como talvez inicialmente tivesse pensado.
Terá consciência de que de ambos os lados estão presentes as
mesmas forças, muito embora de maneiras diversas.

[10] Para começar, no crente existe a ameaça da incerteza


capaz de revelar dura e subitamente, em momentos de tentação, a
fragilidade de tudo o que, em geral, lhe parece tão evidente.
Esclareçamo-lo com alguns exemplos. Teresa de Lisieux, a amável
santinha, aparentemente tão isenta de complexidades e de
problemas, cresceu em uma vida de completa segurança religiosa.
Sua vida, do começo ao fim, foi tão perfeitamente e
minuciosamente marcada pela fé na Igreja, que o mundo invisível
se tornara parcela do seu cotidiano; ou antes, o próprio cotidiano
seu, parecendo quase tangível e impossível de ser eliminado de sua
vida. Para Teresinha, "religião" era, de fato, um dado prévio e
natural de sua existência diária; ela manipulava a religião como
nós somos capazes de manejar as trivialidades concretas da vida.
Mas justamente ela, aparentemente tão resguardada numa
segurança sem risco, deixou-nos comovedoras manifestações do
que foram as últimas semanas do seu Calvário, manifestações que,
mais tarde, suas irmãs, assustadas, atenuariam em seu legado
literário e que só agora vieram à tona nas novas edições autênticas
e literais de sua obra. Assim, por exemplo, quando ela afirma:
"Acossam-me as reflexões dos piores materialistas." Sente a
inteligência torturada por todos os argumentos possíveis contra a
fé; o sentimento da fé parece desaparecido; ela sente-se
transportada para dentro da "pele dos pecadores" 2 . Isto é, em [11]
um mundo que parece completamente sólido e sem brechas,
torna-se visível a alguém o abismo que espreita a todos – também
a ele – sob a crosta firme das convenções que sustentam a fé. Em
tal situação não está mais em jogo apenas isto ou aquilo – assunção
de Maria ou não; confissão desse ou daquele modo –, tudo coisas
que se tornam completamente irrelevantes, porquanto trata-se
realmente do todo, do conjunto, tudo ou nada. É a única
alternativa que parece restar, e em parte alguma surge um pedaço
de chão firme ao qual se agarrar nessa queda vertiginosa para o
abismo. Somente o báratro hiante e sem fundo do nada é o que se
percebe, onde quer que se dirijam os olhares.

Paulo Claudel evoca em um quadro grandioso e convincente


essa situação do crente, na abertura do seu "Soulier de Satin". Um
missionário jesuíta, irmão do herói Rodrigo, o homem mundano,
aventureiro errante e incerto entre Deus e o mundo, é
representado como náufrago. Sua nau foi afundada por piratas. Ele
mesmo, amarrado a uma trave do barco afundado, vaga nesse
pedaço de madeira, pelas águas tormentosas do oceano 3 . O drama
principia com o seu derradeiro monólogo: "Senhor, agradeço-te por
me teres amarrado assim. Por vezes sucedeu-me achar difíceis os
teus mandamentos; senti desnorteada, fracassada a vontade
diante dos teus mandamentos. Mas hoje não poderia estar mais
fortemente atado a ti, do que o estou; e muito embora meus
membros se movam um sobre o outro, nenhum deles é capaz de
afastar-se um pouco de ti. E assim realmente estou preso à cruz; e
a cruz, à qual me vejo atado, não está presa a nada mais. Ela voga
pelo mar" 4 .

[12] Atado à cruz – e a cruz ligada a nada, vogando sobre o


abismo. Dificilmente se poderia descrever mais acurada e
exatamente a situação do crente hodierno. Apenas um madeiro
oscilante sobre o nada, um madeiro desatado parece sustê-lo e
tem-se a impressão de ser possível adivinhar o instante em que
tudo irá submergir. Um simples madeiro solitário liga-o a Deus;
mas, sem dúvida, liga-o inevitavelmente e, no final de tudo, ele
tem a certeza de que esse madeiro é mais forte do que o nada que
fervilha debaixo dele, esse nada que, apesar dos pesares, continua
sendo a força ameaçadora propriamente dita do seu presente.

O quadro apresenta, além disso, uma dimensão mais vasta que,


aliás, me parece a mais importante. Pois esse náufrago jesuíta não
está sozinho; nele se encontra como que evocada a sorte do seu
irmão; nele está presente o destino do irmão, daquele irmão que
se considera descrente, que deu as costas a Deus, por não
considerar tarefa sua a espera, mas "a posse do atingível... como
se este pudesse estar em parte outra do que onde tu, ó Deus,
estás".

É dispensável acompanharmos a trama da concepção


claudeliana: a mestria com que conserva como fio condutor o jogo
dos dois destinos aparentemente contraditórios até ao ponto em
que a sorte de Rodrigo finalmente se toca com a do irmão, quando
o conquistador termina como escravo em um navio, devendo dar-
se por muito feliz, ao ser levado por uma velha freira que, de
contrapeso, leva uma caçarola e alguns trapos. Aliás, deixando de
lado o símile, podemos voltar à nossa própria situação e dizer: o
crente é capaz de realizar-se em sua fé somente sobre o oceano do
nada; e o oceano da incerteza foi-lhe destinado como único lugar
possível de sua fé. Apesar disso, não se pode considerar o
descrente, numa falha evidente de dialética, apenas como um
incréu. Assim como até agora reconhecemos que o crente não vive
sem problemática, mas sempre ameaçado pela queda no nada,
assim é forçoso admitir [13] que também o incréu não representa
absolutamente uma existência fechada e coesa em si mesma. Por
brutal que seja o seu comportamento de ferrenho positivista que
já de há muito deixou para trás as tentativas e os embates
supranaturais, vivendo apenas no âmbito do que é diretamente
certo – jamais o abandonará a secreta insegurança de se o
positivismo está realmente com a última palavra. O crente vê-se
sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano lhe lança, sem
cessar, à boca; do mesmo modo existe a dúvida do incrédulo
quanto à sua descrença, quanto à totalidade do mundo que ele se
resolveu a declarar como o todo. Jamais conseguirá certeza plena
sobre a globalidade do que viu e declarou como o todo, mas
continuará sob a ameaça de que – quem sabe? – a fé venha a
representar e a afirmar a realidade. Portanto, como o crente se
sabe ameaçado sem cessar pela descrença, obrigado a ver nela a
sua perene provação, assim a fé representa a ameaça e a tentação
do incréu, dentro do seu universo aparentemente fechado e
completo. Em uma palavra, não existe escapatória ao dilema da
existência humana. Quem deseja fugir à incerteza da fé, há de
experimentar a incerteza da descrença que, por sua vez, jamais
conseguirá resolver sem sombra de dúvida a questão de se, por
acaso, a fé não se cobre com a verdade. Somente na recusa revela-
se a irrecusabilidade da fé.
Talvez venha a propósito aduzir neste lugar uma estória judaica
escrita por Martin Buber; nela aparece com clareza o citado dilema
da existência humana. "Um dos sequazes do iluminismo, homem
estudado, ouvira falar de Berditschewer. Foi-lhe à procura com o
fito de comprar uma discussão, como era do seu feitio, e arrasar
suas provas ultrapassadas da verdade da fé. Ao entrar no quarto do
Zaddik viu-o, de livro à mão, indo e vindo, mergulhado em
entusiásticas reflexões. Nem pareceu dar pela chegada do
visitante. Finalmente deteve-se, olhou para ele superficialmente e
disse: "E contudo, talvez seja verdade." O sábio debalde tentou
fincar pé, defendendo sua dignidade [14] própria. Não o conseguiu.
Sentiu os joelhos chocalharem, tão terrível era o aspeto do Zaddik,
tão horrível de se ouvir a sua singela frase. Mas o rabi Levi Jizchak
voltou-se completamente para ele e lhe disse, sereno: "Meu filho,
os grandes da Torá com os quais disputaste, desperdiçaram
palavras; tu te riste deles, ao te afastares. Não foram capazes de
colocar Deus e o seu reino sobre a mesa, diante de ti; eu também
sou incapaz. Mas, meu filho, reflete: talvez seja verdade." O
iluminista concentrou todas as forças para revidar; mas aquele
terrível "talvez" a ecoar sem cessar, quebrou-lhe qualquer
resistência" 5 .

Apesar da roupagem estranha, temos aqui uma descrição muito


precisa da situação do homem frente ao problema "Deus". Ninguém
é capaz de servir aos outros o cardápio de Deus e do seu reino,
nem o próprio crente pode servi-lo a si mesmo. Mas, por mais que
a descrença se possa sentir justificada com isso, permanece de pé
o horror daquele "talvez seja verdade". O "talvez" representa o
inevitável ataque ao qual se é incapaz de fugir, no qual se deve
experimentar, na recusa, a irrecusabilidade da fé. Em outras
palavras: crente e incrédulo, cada qual a seu modo, participam da
dúvida e da fé, caso não se ocultem de si mesmos e da verdade da
sua existência. Nenhum é capaz de evadir-se completamente à
dúvida; nenhum pode escapar de todo à fé. Para um, a fé torna-se
presente contra a dúvida; para outro, pela dúvida e em forma de
dúvida. Temos aí a figura fundamental do destino humano: ser
capaz de encontrar o definitivo de sua existência somente nesse
inevitável embate de dúvida e fé, de agressão e certeza. Talvez
esteja aqui o caminho para transformar em ponto de encontro, de
contato, a dúvida que preserva a um e a outro do perigo de
encapsular-se em si mesmo. Ambos estão impedidos de enrolar-se
em si mesmos; o crente é impelido para o que duvida, e [15] este
para o crente. Para um temos aí uma participação no destino do
incréu, para o outro, a forma pela qual a fé, apesar de tudo,
continua sendo um desafio.

2. O salto da Fé – Ensaio provisório de uma definição da essência


da Fé.

A figura do palhaço incompreendido e dos campesinos


despreocupados não basta para descrever a interdependência de fé
e descrença em nossos dias. Contudo, não se pode negar que ela
representa, de algum modo, um problema específico da fé. Pois a
questão fundamental de uma introdução ao cristianismo
abrangendo a tarefa de esclarecer o que significa o homem afirmar
"creio" – essa questão fundamental apresenta-se-nos carregada de
um conteúdo temporal muito preciso. Devido à nossa consciência
histórica, que se tornou parcela de nossa autoconsciência e de
nossa concepção fundamental do humano, essa questão só pode
ser posta na forma seguinte: que é e que significa a confissão
cristã "creio" nos dias de hoje, dentro das contingências da nossa
existência atual e da nossa posição presente, diante da realidade
em seu conjunto?

Chegamos assim a uma análise do texto que deverá constituir a


diretriz, a coluna mestra de todas as nossas considerações, a
saber, do "símbolo apostólico" o qual, a partir de sua origem, quer
ser "introdução ao cristianismo" e resumo do seu conteúdo
essencial. É sintomático o fato de principiar esse texto com a
palavra "creio". Claro está que, de início, abrimos mão de uma
análise deste termo dentro do seu contexto; também deixamos,
por ora, de pesquisar por que essa declaração básica "creio", em
sua forma estereotipada, surge em conexão com determinados
conteúdos e se desenvolve dentro de um contexto litúrgico. O
contexto da fórmula litúrgica com o do conteúdo molda o sentido
da palavrinha "credo", como, vice-versa, a palavrinha "credo"
sustenta e caracteriza tudo o [16] que se lhe segue e o próprio
ambiente litúrgico. Apesar disso, por ora devemos prescindir de
ambos, para enfrentar com radicalismo tanto maior e analisar
muito a fundo que espécie de atitude se intenciona quando a
existência cristã se revela, primeiro e antes de tudo, no verbo
"credo" e com isso – o que de modo algum é evidente – demarca o
cerne do crístico como sendo uma "fé". As mais das vezes supomos
irrefletidamente que "religião" e "fé" são uma e mesma coisa, e se
cobrem, podendo, por isso, qualquer religião ser definida como
"fé". O que, contudo, só se realiza, de fato, em proporção
limitada; muitas vezes as outras religiões assumem nomes
diferentes, colocando assim outros pontos de apoio que não a fé. O
Antigo Testamento, como um todo, não se apresenta sob o
conceito de "fé", mas de "lei". É primariamente uma ordem, um
teor de vida em que, sem dúvida, o ato da fé assume importância
crescente. A religiosidade romana, por sua vez, compreendeu
praticamente sob o nome de "religio" a observância de
determinadas formas rituais e de costumes. Para ela não era
decisivo que um ato de fé assentasse sobre elementos
supernaturais; tal ato poderia mesmo faltar por completo, sem que
houvesse infidelidade à religião. Por ser essencialmente um
sistema de ritos, a sua exata observância era o elemento decisivo
acima de tudo. O mesmo poderia constatar-se, perlustrando toda a
história das religiões. Mas essa alusão baste para esclarecer quão
pouco evidente é, em si, o fato de o ser cristão exprimir-se
fundamentalmente na palavra "credo", designando a sua posição
frente ao real pela atitude da fé. Com o que, aliás, a nossa
pergunta só se torna é mais premente: que atitude, afinal, se
pretende manifestar por esta palavra? E mais: por que se torna tão
difícil penetrar o nosso "eu" sempre pessoal no âmago desse
"creio"? Por que sempre nos parece, de novo, quase impossível
transferir o nosso "eu" hodierno – cada qual o seu, diverso e
separado do "eu" [17] dos outros – para a identificação com o "eu"
do "creio" tal como nos vem determinado e moldado por gerações?

Não nos iludamos: penetrar naquele "eu" de fórmulas do "credo"


assimilar na carne e no sangue do "eu" pessoal o "eu" esquemático
da fórmula constituiu sempre empresa excitante e aparentemente
impossível, em cuja realização, não raro, ao invés de perpenetrar
o esquema com carne e sangue, o "eu" acaba transformado em
esquema. E se, crentes no nosso tempo, talvez ouçamos com
alguma inveja que na Idade Média todos, sem exceção, eram
crentes em nosso país ∗ , seria bom lançar um olhar atrás dos
bastidores, olhar possível graças às conquistas da pesquisa
histórica moderna. Ela está em condições de ensinar-nos que,
também naquela época, havia a grande massa dos que iam na onda
e um número relativamente restrito dos que, de fato, penetravam
até ao âmago da fé. A história pode mostrar-nos que, para muitos,
a fé não passava de um sistema preexistente de vida, pelo qual a
fascinante aventura escondida no bojo da palavra "creio" lhes
estava, pelo menos, tão encoberta como patente. E tudo isso
apenas porque entre Deus e homem se abre um abismo infinito;
porque a feitura do homem é tal que seus olhos só podem ver
aquilo que não é Deus, permanecendo Deus sempre essencialmente
invisível, fora do campo visual do homem. Deus é essencialmente
invisível essa declaração fundamental da fé bíblica em Deus, em
oposição à visibilidade dos deuses é simultaneamente – e
sobretudo mesmo – uma declaração sobre o homem. O homem é o
ser vidente, para o qual o espaço da vida parece demarcado pelo
espaço de sua visão e percepção. Mas Deus jamais aparece e nunca
pode aparecer nesse espaço de sua visão e percepção,
determinantes da localização existencial do homem, por mais que
tal espaço seja sempre ampliado. Acredito, [18] o que é
importante, que, em princípio, essa declaração se encontra no
Antigo Testamento: Deus não é apenas aquele que, agora e de
fato, se acha fora do campo visual, podendo, contudo, ser
percebido, se fosse possível avançar; não, ele é aquele que se
encontra essencialmente fora deste campo, por mais que nossa
área visual se alargue.

Com isso, porém, só se revela um primeiro esboço da atitude


expressa pela palavrinha "creio". Ela conota um homem que não
considera como o máximo a totalidade de suas capacidades, o ver,
o ouvir e o perceber; que não considera o espaço do seu universo
balizado pelo que se encerra no seu campo visual, auditivo,
perceptivo, mas procura uma segunda forma de acesso à
realidade, forma essa que chega a encontrar aí a abertura
essencial de sua concepção do mundo. Sendo assim, a palavrinha
"credo" encerra uma opção fundamental face à realidade como tal,
não conotando apenas a constatação disso ou daquilo, mas
apresentando-se como uma forma fundamental de comportamento
para com o ser, para com a existência, para com o que é próprio
da realidade, para com a sua globalidade. Trata-se de uma opção
que considera o invisível, o absolutamente incapaz de alcançar o
campo visual, não como o irreal, mas, pelo contrário, como o real
propriamente dito, que representa o fundamento e a possibilidade
da restante realidade. É a opção de aceitar esse algo que
possibilite a realidade restante a proporcionar ao homem uma
existência verdadeiramente humana, a torná-lo possível como
homem e como ser humano. Dito ainda em outros termos: fé
significa o decidir-se por um ponto no âmago da existência
humana, o qual é incapaz de ser alimentado e sustentado pelo que
é visível e tangível, mas que toca a orla do invisível de modo a
torná-lo tangível e a revelar-se como uma necessidade para a
existência humana.

Tal atitude certamente só se conseguirá através daquilo que a


linguagem bíblica chama de "volta" ou "conversão". [19] A
tendência natural do homem leva-o ao visível, ao que se pode
pegar e reter como propriedade. Cumpre-lhe voltar-se,
internamente, para ver até que ponto abre mão do que lhe é
próprio, ao deixar-se arrastar assim para fora da sua gravidade
natural. Deve converter-se, voltar-se para conhecer quão cego
está ao confiar apenas no que os olhos enxergam. A fé é impossível
sem essa conversão da existência, sem essa ruptura com a
tendência natural. Sim, a fé é a conversão, na qual o homem
descobre estar seguindo uma ilusão ao se comprometer apenas
com o palpável e sensível. E aqui está a razão mais profunda por
que a fé não é demonstrável: é uma volta, uma reviravolta do ser,
e somente quem se volta, recebe-a. E, porque nossa tendência não
cessa de arrastar-nos para outro rumo, a fé permanece sempre
nova em seu aspecto de conversão ou volta, e somente através de
uma conversão longa como a vida é que podemos ter consciência
do que vem a ser "eu creio".

A partir daí é compreensível que a fé representa algo de quase


impossível e problemático não apenas hoje e nas condições
específicas da nossa situação moderna, mas, quiçá, de modo um
tanto menos claro e identificável, já representou, sempre, o salto
por cima de um abismo infinito, a saber, da contingência que
esmaga o homem: a fé sempre teve algo de ruptura arriscada e de
salto, por representar o desafio de aceitar o invisível como
realidade e fundamento incondicional. Jamais a fé foi uma atitude
conatural conseqüente do declive da existência humana; ela foi
sempre uma decisão desafiadora da mesma raiz da existência,
postulando sempre uma volta, uma conversão do homem, só
possível na escolha.

3. O dilema da Fé no mundo de hoje

Tomada clara a aventura encerrada no seio da fé, é inevitável


uma nova consideração, na qual se revela a agudeza [20] especial
da dificuldade de crer em relação ao homem de hoje. Ao abismo
do "visível" e do "invisível" acrescenta-se, aumentando a
dificuldade, o báratro do "outrora" e do "hoje". O paradoxo
fundamental, já por si inerente à fé, aguça-se pelo fato de
apresentar-se a fé em roupagem de outrora, e até de identificar-se
com o passado, com a forma de vida e de existência de outrora.
Todas as atualizações, chamem-se "desmitização" intelectual-
acadêmica ou aggiornamento eclesial-pragmático, em nada
mudam a situação. Pelo contrário: tais esforços reforçam a
suspeita de apresentar-se aqui, nervosamente, como hodierno, o
que, na verdade, é o passado. Essas tentativas de atualização
trazem bem à tona da consciência até que ponto é "de ontem"
aquilo que nos é apresentado; e a fé, deixando de parecer um
salto temerário, semelha-se a um salto desafiador da generosidade
do homem, do trampolim da aparente totalidade do mundo visível
para o aparente nada do invisível e incompreensível. Parece,
antes, uma pretensão, um atrevimento, querer comprometer o
hoje com o ontem, evocando-o como perpetuamente válido. E
quem desejará fazê-lo em uma época na qual, em lugar da idéia
de "tradição" se colocou o conceito de "progresso"?

De passagem, topamos aqui uma característica da moderna


conjuntura, não sem importância para o nosso problema. Em
passadas constelações espirituais o conceito de "tradição" conotava
determinado programa; surgia como elemento protetor em que o
homem podia confiar; podendo apelar para a tradição, havia
certeza de encontrar-se no lugar certo. Hoje predomina o
sentimento diametralmente oposto: tradição é o abandonado, o
meramente de ontem; progresso é a promessa explícita do ser, de
modo que o homem não se sente em casa dentro da tradição, do
passado, mas dentro do progresso e do futuro 6 . E também sob
este ponto de vista há de parecer-lhe [21] ultrapassada uma fé que
lhe vem ao encontro com a etiqueta de "tradição", incapaz de
abrir-lhe um lugar para existir, a ele que vê no futuro a sua
possibilidade e obrigação propriamente ditas. O que quer dizer que
o primário escândalo da fé, a distância entre visível e invisível,
entre Deus e não-Deus, se acha encoberto e bloqueado pelo
escândalo secundário do "outrora" e do "hoje", pela antítese de
tradição e progresso, pelo compromisso com o passado que parece
estar incluído na fé.

O fato de nem o profundo intelectualismo da desmitização,


nem o pragmatismo do aggiornamento serem capazes de
convencer, sem mais, torna evidente que também a absorção do
escândalo fundamental da fé cristã representa algo de muito
profundo que não se pode abordar, sem mais nem menos, nem por
meio de teorias, nem pela ação. Aliás, em certo sentido,
justamente aqui se patenteia o específico do escândalo cristão, a
saber, aquilo que se poderia denominar positivismo cristão, a
inamovível positividade do crístico. Eis o que tenho em mente: a fé
cristã não se ocupa somente com o eterno, como à primeira vista
poderia supor-se, com o eterno que se conservasse como algo
totalmente diverso, fora do mundo humano e do tempo; ela ocupa-
se muito mais com o Deus na história, com Deus como homem. A
fé apresenta-se como revelação, ao parecer vencer o abismo entre
eterno e temporal, entre visível e invisível, fazendo-nos encontrar
Deus como homem, o Eterno como temporal, Deus como um de
nós. Aliás, a sua pretensão de ser revelação [22] funda-se no fato
de ela ter trazido o eterno, por assim dizer, para dentro do nosso
mundo: "O que ninguém jamais viu – Ele no-lo explicou, aquele que
descansa no peito do Pai" (Jo 1,18) – Cristo tornou-se "exegese" de
Deus para os homens, quase estaria eu tentado a afirmar com base
no texto bíblico 7 . Mas contentemo-nos com o vocábulo português;
o original autoriza-nos a tomá-lo bem ao pé da letra: Jesus
realmente ex-plicou (ou seja, desdobrou, abriu) a Deus,
conduzindo-o para fora de si, ou, mais drasticamente, na primeira
carta de João: liberou-o à nossa contemplação e palpação, de
modo tal que o jamais avistado por alguém agora está ao alcance
do nosso tacto histórico 8 .

À primeira vista parece tratar-se realmente do máximo em


revelação, do limite extremo de Deus patentear-se. O salto que
até agora conduzia ao infinito parece abreviado a uma ordem de
grandeza humana possível, bastando-nos, para tanto, dar uns
poucos passos até àquele homem na Palestina, no qual o mesmo
Deus se nos revela. Mas estamos aí diante de uma estranha
duplicidade, como que dois rostos de Jano: o que parece ser, de
entrada, a mais radical revelação e, em certa medida, permanece
para sempre sendo não só uma revelação, como a revelação por
excelência, no mesmo instante se trai como a treva mais pesada e
o mais estranho disfarce. O que Deus parece trazer, em primeira
mão, para bem perto de nós, a ponto de podermos palpá-lo como
nosso semelhante, seguir-lhe as pegadas e até avaliá-las e medi-
las, tudo isto torna-se, em sentido muito profundo, base para a
"morte de Deus", que, a partir dali, há de imprimir o seu [23]
cunho irrevogável ao desenvolvimento da história e às relações
humanas com Deus: Deus ficou tão perto de nós, que o pudemos
matar e assim, ao que parece, ele cessa de ser Deus. Por isso,
vemo-nos hoje um tanto desconcertados diante dessa "revelação"
cristã e, confrontando-a com a religiosidade, sobretudo, da Ásia,
lançamos a pergunta: não teria sido muito mais simples crer no
eterno-oculto, confiando-se a ele em meditação e anseio? Não
teria sido melhor Deus deixar-nos na nossa infinita distância? Não
fora mais simples e mais realizável perceber o eternamente
incompreensível mistério mediante serena contemplação,
mediante uma fuga de tudo o que é profano, em vez de render-se
ao positivismo da fé em uma única figura, confinando a salvação
do homem e do mundo, por assim dizer, a algo como a cabecinha
de um alfinete, que mais não parece representar esse um e único
ponto fortuito? Não será a morte definitiva o fatal destino desse
Deus reduzido a um único ponto dentro de um mundo que
relativiza intolerantemente o homem e sua história a um ínfimo
grãozinho de pó no cosmos, a um ponto que só poderia ser
considerado como centro do universo pelo homem na sua
ingenuidade dos anos de infância, mas, uma vez ultrapassados
estes anos, impor-se-ia a coragem de acordar do sono, esfregar os
olhos e sacudir para longe de si um sonho louco, por lindo que
tenha sido, entrosando-se incondicionalmente no formidável
mecanismo para o qual a nossa insignificante vida está destinada,
vida que, precisamente assim, deveria encontrar um sentido novo,
na aceitação de sua insignificância?

Só com esse aguçamento total da questão e com esse enfoque


que coloca o escândalo, muito mais profundo, do "positivismo"
cristão, ou seja o "estreitamento" de Deus dentro de um único
ponto da história à frente do aparentemente secundário escândalo
do "outrora" e do "hoje", só assim tocamos o fundo da problemática
cristã da fé, tal como hoje deve ser enfrentada. Podemos crer
ainda? Não, impõe-se [24] uma pergunta mais radical: temos ainda
a liberdade de crer, ou se avoluma diante de nós um dever maior,
a saber, o dever de romper com o sonho e de colocar-se dentro da
realidade? O cristão de hoje deve perguntar-se assim; não pode
contentar-se em constatar que, afinal, é possível ainda encontrar
uma interpretação do cristianismo através de uma porção de
rodeios e subterfúgios, interpretação que não se choque com nada.
Se alhures declara um teólogo que "ressurreição da carne" quer
dizer apenas que cada um diariamente deve arregaçar as mangas
corajosamente na preparação do futuro, com certeza está afastado
o escândalo. Mas terá havido sinceridade numa tal interpretação?
Não existe uma falsidade perigosa em tais prestidigitações
interpretatórias, em tais malabarismos, com que se tenta manter
em pé o cristianismo e defendê-lo? Ou, sentindo-nos compelidos a
lançar mão de tais recursos, não estaríamos obrigados a
reconhecer que alcançamos o fim da linha? Então, não deveríamos
sujeitar-nos simplesmente à realidade concreta, sem lançar
cortinas de fumaça? Acentuemo-lo com energia: um cristianismo
assim esvaziado de sua realidade através de uma tal interpretação
significa falta de sinceridade frente às perguntas dos não-cristãos,
cujo "talvez não" afinal deveria nos urgir a nós da mesma maneira
como desejamos que eles sejam urgidos pelo "talvez" cristão.

Tentando aceitar assim a pergunta do outro como o


ininterrupto questionamento da nossa própria existência,
impossível de ser concentrado nas páginas de um tratado para, a
seguir, ser posto de lado, teremos o direito de constatar, também
aqui, a existência de uma contrapergunta. A tendência hodierna é
supor, como realidade propriamente dita, o tangível, o que se
pode provar. Mas, é permitido fazer isso? Parece caber aqui uma
pergunta mais cuidadosa: O que, na verdade, é "o real"? Será
somente o comprovado e o comprovável? Ou não será, quiçá, a
averiguação, uma determinada maneira apenas de comportamento
frente à realidade, maneira que, de modo algum, [25] pode
abranger o todo e que até conduz à adulteração da verdade e da
existência humana, sempre que for aceita como critério único da
realidade? Lançando esta pergunta, tornamos ao dilema do
"outrora" e do "hoje", aliás, postos agora frente à frente com a
problemática específica do nosso "hoje". Tentemos analisá-la com
mais clareza em seus elementos essenciais.

4. Limite da moderna compreensão da realidade e topografia da


Graças aos conhecimentos históricos de que hoje dispomos,


estamos em condições de abarcar o caminho do espírito humano,
até onde alcança o olhar; com o que podemos constatar que, nos
vários períodos da evolução do espírito, houve diversas maneiras
de colocar-se frente à realidade, por exemplo, a mentalidade
mágica ou a metafísica ou, finalmente, hoje em dia, a científica
(tendo por parâmetros as ciências naturais). Cada uma dessas
tendências humanas básicas tem relação com a fé, de um ou de
outro modo, e cada uma delas também, à sua maneira, lhe causa
estorvos. Nenhuma delas se cobre com a fé, mas também nenhuma
se conserva neutra frente à fé; cada uma delas é capaz de servir a
fé ou de lhe causar percalços. Para a hodierna mentalidade
fundamentalmente científica que plasma, sem ser perguntada, o
sentimento existencial de todos e a nós todos nos marca o lugar
dentro da realidade, é característica a limitação aos fenômenos,
àquilo que aparece e ao que deve ser manipulado. Já desistimos de
procurar o que são as coisas em si; de mergulhar na essência do
próprio ser; parece-nos infrutífera uma tal empresa; o fundo do ser
apresenta-se-nos inatingível. Acomoda-nos à nossa perspectiva, ao
visível no sentido mais amplo do termo, àquilo que cabe debaixo
dos nossos instrumentos de medir e de pesar. A metodologia da
ciência natural baseia-se nessa delimitação ao fenômeno. É o que
parece bastar-nos. Sentimo-nos aptos a manejar [26] tais meios,
criando para nós um mundo em que possamos viver como homens.
Com isso desenvolveu-se, paulatinamente, no pensamento e no
viver modernos, um conceito novo de verdade e realidade, que
domina como hipótese do nosso pensamento e da nossa expressão,
em geral sem que o percebamos, conceito, porém, que só poderá
ser dominado, se for, por sua vez, exposto ao exame da
consciência. Aqui se torna patente a função do pensamento não
científico-natural, a saber, a função de analisar o aceito ou
imposto sem consideração, e de colocar, frente à consciência, a
problemática humana de uma tal orientação.

a) O primeiro estádio: origem do historicismo. Tentemos


densenvolver, como se chegou à mentalidade acima descrita.
Constataremos, se vejo bem, dois estágios de mudança espiritual.
O primeiro, preparado por Descartes, recebeu forma em Kant e já
anteriormente, em formulação um tanto diversa, no filósofo
italiano Giambattista Vico (1688-1744) que, provavelmente, foi o
primeiro a apresentar um conceito completamente novo de
verdade e de conhecimento, tornando-se o ousado antecessor da
típica fórmula do espírito moderno, quanto ao problema da
verdade e da realidade. À equação escolástica Verum est ens – o
ente é a verdade – Vico contrapôs a sua fórmula: Verum quia
factum. O que significa: reconhecível como verdadeiro só pode ser
aquilo que nós mesmos fazemos. Essa fórmula parece-me
representar o fim da velha metafísica e o início do espírito
especificamente moderno. A revolução do pensamento moderno
contra todo o passado está presente aqui com uma precisão
inimitável. Para a Antiguidade e a Idade Média o próprio ente é
verdadeiro, isto é, reconhecível, porque Deus, o puro intelecto, o
criou; e criou-o, pensando-o. Pensar e fazer são uma única coisa
para o Espírito Criador, o Creator Spiritus. Seu pensar é um criar.
As coisas existem porque são pensadas. Por isso, para a
Antiguidade e a Idade Média, todo ser é um ser-pensado, um
pensamento do Espírito absoluto. E [27] vice-versa: porque todo
ser é pensamento, todo ser é sentido, Logos, verdade 9 . Portanto o
pensamento humano é um "pensar-depois", uma reflexão sobre o
pensamento que é o próprio Ente. Mas, o homem pode pensar na
esteira do Logos, do sentido do ser, porque o seu próprio logos, sua
própria razão é logos do único Logos, pensamento do pensamento
primitivo e original, do Espírito Criador que dispõe o ser até o
fundo de suas raízes.

Em contraste com isto, a obra do homem é considerada pela


antiguidade e pela Idade Média como ocasional e contingente. O
ser é pensamento, portanto é pensável, objeto do pensamento e
da ciência que aspira à sabedoria. A obra humana, pelo contrário,
é uma mistura de logos e de falta de lógica que, além disto, com o
passar do tempo, recai no passado. Não admite uma compreensão
completa, por faltar-lhe algo do presente, base da intuição, e algo
do logos, ou seja, do sentido duradouro. Por esta razão, o impulso
científico antigo e medieval estava convencido de que o saber
sobre as coisas humanas não passava de techne, de técnica, de
capacidade artesanal, jamais podendo alcançar o nível de uma
ciência real. Por esta razão as artes, na universidade medieval,
figuravam como preliminar à ciência propriamente dita, isto é,
àquela ciência que reflete sobre o ser, ponto de vista este ainda
firmemente defendido por Descartes, ao negar à história o caráter
de ciência. O historiador convencido de conhecer a história romana
antiga, afinal de contas saberia menos a respeito dela do que
qualquer cozinheiro romano, e saber latim não conota mais do que
o saber de qualquer doméstica de Cícero. Exatamente cem anos
mais tarde Vico inverterá as normas da verdade medieval, ainda
[28] claramente expressas por Descartes, abrindo assim a porta à
virada fundamental do espírito moderno. Começa agora aquela
atitude que traz consigo a idade "científica" – em cuja esteira
ainda nos encontramos 10 .

Pela sua importância fundamental para o nosso problema,


tentemos analisá-lo um pouco mais a fundo. Descartes considera
ainda, como certeza real, a certeza racional formal, purificada das
incertezas do factível. Contudo, já se notam prenúncios da virada
para a época moderna, quando Descartes compreende essa certeza
real essencialmente sob o enfoque do modelo da certeza
matemática, elevando a matemática à forma básica de todo o
pensamento racional 11 . Enquanto, porém, em Descartes os fatos
devem ser postos em parênteses, isto é, abstraídos, se se quer ter
certeza, Vico levanta a tese diametralmente oposta. Formalmente,
apoiando-se em Aristóteles, declara que o saber real se cifra no
saber das causas. Conheço uma coisa, conhecendo-lhe a causa;
compreendo o motivado, se souber o motivo. Mas, desse aforisma
antigo tira-se e se afirma algo completamente novo: se, para o
saber factivo se requer o conhecimento das causas, então podemos
saber verdadeiramente somente aquilo que nós mesmos fizemos,
pois só nos conhecemos a nós mesmos. O que, por conseguinte,
vem a ser que, em lugar da antiga equação "verdade – ser", entra a
nova: "verdade – facticidade"; só é reconhecível o feito, isto é,
aquilo que nós mesmos fazemos. Tarefa e possibilidade do espírito
humano não é refletir sobre o ser, mas sobre o fato, o feito, o
mundo peculiar do homem, único objeto que estamos em
condições de compreender verdadeiramente. O homem não
produziu o cosmos, que, por isto, lhe permanece impenetrável em
suas derradeiras profundezas. Só lhe é acessível um saber [29]
perfeito, comprovado, no âmbito das ficções matemáticas e da
história que representa a esfera do que o homem mesmo fez,
sendo por esta razão acessível ao seu conhecimento. No meio do
oceano de dúvidas que ameaça a humanidade após a derrocada da
velha metafísica, nos alvores do tempo moderno, redescobre-se no
fato a terra firme sobre a qual o homem pode tentar uma nova
existência. Principia o reinado do "fato", isto é, a volta radical do
homem para sua própria obra, como o único elemento que lhe é
certo.

Com isto está ligada aquela inversão de todos os valores, que


transforma a história em época realmente "nova", em
contraposição à antiga. O que antes havia sido desprezado como
não científico – a história – resta, ao lado da matemática, como a
única ciência verdadeira. O que antes parecia a única tarefa digna
de espírito livre, a reflexão sobre o sentido do ser, surge agora
como esforço vão e sem saída, ao qual não corresponde nenhuma
possibilidade científica autêntica. Assim, matemática e história
arvoram-se em disciplinas dominantes, chegando a história a
absorver, por assim dizer, o mundo inteiro das ciências,
modificando-as fundamentalmente. Filosofia torna-se um problema
da história em Hegel, e, de modo outro, em Comte, problema onde
o mesmo ser é sufocado como processo histórico; em F. Chr. Baur,
teologia torna-se história; seu caminho, a pesquisa rigorosamente
histórica que examina os eventos passados, esperando assim
alcançar o fundo das questões; Marx repensa historicamente a
economia nacional, e até as ciências naturais são afetadas por esta
tendência geral para a história: Darwin concebe o sistema dos
seres vivos como uma história da vida; em lugar da constância das
coisas criadas entra uma doutrina evolucionista, na qual todas as
coisas vêm umas das outras, permanecendo relacionadas com as do
passado 12 . Assim [30] o mundo acaba por não mais parecer uma
estrutura do ser, mas um processo cuja contínua propagação se
identifica com o movimento do mesmo ser. Ou seja: o mundo é
cognoscível, é sabível meramente como feito pelo homem. O
homem tornou-se incapaz de olhar acima de si, a não ser,
novamente, no âmbito do "fato", onde é obrigado a identificar-se
com o produto ocasional de evoluções imemoriais. Deste modo
surge uma situação muito estranha. No instante em que principia
um antropocentrismo radical, o homem nada mais é capaz de
reconhecer, além de sua própria obra, vendo-se simultaneamente
compelido a aceitar-se a si mesmo como produto ocasional, como
simples "fato". E o céu, do qual o homem parecia ter vindo,
desaba, ficando-lhe entre as mãos a terra, o pó dos fatos, terra,
pó, em que tenta decifrar, com a pá, a laboriosa história do seu
devir.

b) O segundo estádio: virada para o pensamento técnico.


Verum quia factum: este axioma que encaminha o homem para a
história como sendo morada da verdade, certamente não poderia
ser suficiente em si mesmo. Alcançou sua eficiência completa ao
ligar-se a um outro motivo que, novamente cem anos depois, Karl
Marx formulou em seu axioma clássico: "Até agora os filósofos
contemplaram o mundo; agora devem por-se a modificá-lo". Com o
que torna a ser completamente reformulada a tarefa da filosofia.
Trocada em termos filosóficos tradicionais, esta máxima diria que,
em lugar do verum quia factum – é reconhecível, é veraz o que o
homem fez e pode contemplar – entra um programa novo: verum
quia faciendum – a verdade, da qual dagora em diante se há de
tratar, é a facticidade, a capacidade de ser feito. Ou, expresso
ainda de outro modo: a verdade que ao homem cumpre manipular,
não é nem a verdade do ser, nem, em última análise, a dos seres
realizados, feitos, mas a verdade da alteração do mundo, da
formação do mundo – uma verdade dirigida para o futuro e para a
ação.

[31] Verum quia faciendum – quer dizer que o domínio do "fato"


foi substituído mais e mais, a partir do meado do século XIX, pelo
domínio do factível, do a-ser-feito e do passível-de-fazer, com o
que a preponderância da história cede lugar à techne, à técnica.
Pois, quanto mais o homem avança pela rota nova, concentrando-
se no "fato" e nele buscando certeza, tanto mais se vê obrigado a
reconhecer que o "fato", ou seja a obra de suas mãos, lhe foge
sempre mais das mãos. A comprovação visada pelo historiador,
surgida apenas no século XIX como grande triunfo da história
contra a especulação, conserva sempre algo de problemático, um
momento de reconstrução, de exegese e de equívoco, de modo
que arrastou a história, já no começo deste século, para uma
crise, tornando duvidoso o historicismo em sua orgulhosa pretensão
científica. Revelou-se sempre mais claramente a impossibilidade
do "fato" em estado puro, cercado de certeza inabalável, pois
também nele se encerram sempre o sentido e sua duplicidade.
Tornou-se sempre mais difícil ocultar que não se detinha entre as
mãos aquela certeza que inicialmente se havia esperado conseguir
da pesquisa dos fatos, dando-se as costas à especulação.

Assim impôs-se forçosamente e gradativamente a convicção de


que, em última análise, é acessível ao conhecimento humano
somente aquilo que o homem pode reproduzir quantas vezes
quiser, através da experiência. Tudo o que ele consegue perceber
apenas mediante provas secundárias torna-se passado e, malgrado
todas as provas, não é plenamente conhecível. Com isto surge o
método das ciências naturais, resultante da matemática
(Descartes) e do retorno à facticidade em forma de experiência
repetível, como único e seguro portador de certeza. Da fusão do
pensamento matemático e dos fatos resulta a nova realidade
espiritual, determinada pelas ciências naturais, do homem
moderno, o lugar novo que conota retorno [32] à realidade em sua
feição de facticidade 13 . O fato fez sair de dentro de si o factível;
o repetível é o comprovável e existe por sua causa. Chega-se ao
primado do factível sobre o fato, pois realmente de que servirá ao
homem o que meramente existiu? Querendo ser dono do seu
presente, o homem não pode encontrar sentido em ser guarda de
museu do seu próprio passado.

Com o que, como antes a história, agora a técnica cessa de ser


um degrau subordinado da evolução espiritual do homem, mesmo
conservando ainda certo ar de barbárie dentro de uma consciência
orientada expressamente para as ciências naturais. A situação
alterou-se substancialmente sob o ponto de vista da situação
espiritual em seu conjunto: a técnica deixou de ser uma exilada na
câmara das ciências; ou, mais exatamente: a câmara surge aqui
como o elemento determinante diante do qual o "senado" não
passa de residência de nobres aposentados. Técnica tornou-se
poder e possibilidade peculiar do homem. O que, até aí, estava em
baixo, passou para cima: simultaneamente torna a deslocar-se a
perspectiva: na antiguidade e na Idade Média, o homem estava
voltado para o eterno; a seguir, durante o domínio efêmero do
historicismo, para o passado; agora, o factível polariza-o para o
futuro daquilo que ele mesmo pode criar. Se antes, por exemplo,
mediante os resultados do evolucionismo, o homem constatava
resignado que, sob a luz do seu passado, não ia além de pó e mero
acaso da evolução, sentindo-se desiludido e degradado por um tal
conhecimento, isto não mais deve preocupá-lo, pois agora,
qualquer que tenha sido a sua origem, tem meios de enfrentar com
decisão o futuro, contando com recursos para transformá-lo no que
quiser; não lhe é preciso mais parecer impossível transformar-se a
si mesmo em um [33] Deus, que se encontra no fim como o
factível, o a-ser-feito, e não mais, como logos, como sentido, no
início. Aliás, isto tudo já está atuando hoje de maneira concreta
em forma de problema antropológico. Mais importante do que o
evolucionismo, que já ficou atrás de nós como algo evidente, surge
hoje a cibernética, a planificação do homem a ser re-criado
(homem novo, homem do futuro), de modo tal que, também sob o
ponto de vista teológico, a maleabilidade do homem de acordo
com o seu próprio plano, se apresenta como problema mais
importante do que a questão do passado humano embora ambas as
questões não possam ser separadas e se interdeterminem em seu
rumo: a redução do homem a um "fato" é a suposição para
compreendê-lo como "factível", a ser guiado, moldado, do seu
atual domínio, para um futuro novo.

c) A questão do lugar da Fé. Com o segundo passo do espírito


moderno, com a volta à facticidade, fracassou, simultaneamente,
uma primeira investida da teologia na resposta às realidades
novas. Pois a teologia tentou enfrentar a problemática do
historicismo, ou seja, a redução da verdade ao fato, construindo a
mesma fé como história. E, à primeira vista, poderia sentir-se
plenamente satisfeita com sua manobra. Afinal, a fé cristã, em seu
conteúdo, está essencialmente vinculada à história; as declarações
da Bíblia não têm caráter metafísico, mas factivo. Por isto, a
teologia, aparentemente, devia ser substituída pela história,
porquanto parecia realmente estar soando a sua hora: e até,
quiçá, pudesse contabilizar essa nova evolução como resultado de
seu próprio ponto de partida.

Esperança depressa abafada e desiludida pela destronização


crescente da história, substituída pela técnica. Em seu lugar vai-se
firmando um outro pensamento – os teólogos sentem-se tentados a
colocar a fé, não mais no plano do fato, mas do factível,
explicando-a como instrumento de mudanças [34] do mundo
mediante uma "teologia política" 14 . Creio que assim se repete, na
situação atual, o que a reflexão teológica já empreendera,
unilateralmente, em relação ao historicismo. Percebe-se que o
mundo moderno é determinado pela perspectiva do factível e
responde-se, transferindo a fé para o mesmo plano. Não tenho em
mente apontar meramente como irracionais ambas estas
tentativas, para não correr o risco de cometer injustiça. Revela-se,
antes, em um e outro caso, substancialmente, o que havia sido
omitido, mais ou menos, em outras constelações. Com efeito, a fé
cristã tem nexo com o "fato", movimenta-se de modo específico na
esfera da história, e não foi por acaso que historicismo e história
cresceram no âmbito da fé cristã. Indubitavelmente a fé também
tem relação com a evolução do mundo, com a formação do mundo,
com a pretensão contra a inércia das instituições humanas e contra
os que delas se aproveitam. Também seria difícil considerar acaso
o fato de ter-se desenvolvido a compreensão do mundo como
facticidade no âmbito da tradição judaico-cristã e de suas
inspirações até mesmo em Marx, muito embora imaginada e
formulada em antítese ao cristianismo. Em todo caso é indiscutível
que, em ambos os casos, transparece um pouco da verdadeira
mentalidade da fé cristã, antes excessivamente oculta. A fé cristã
tem nexo decisivo com as correntes essenciais do tempo moderno.
Com efeito o atual momento histórico apresenta a chance de
poder compreender de modo todo novo a estrutura da fé, colocada
entre o fato e o factível. "É tarefa da teologia aceitar esse convite
e essa possibilidade para descobrir e preencher os vazios deixados
pelos tempos idos.

[35] Mas, ninguém deve deixar-se arrastar a julgamentos


precipitados, como também a correr o risco de curtos circuitos.
Onde as duas tentativas citadas se tornam exclusivas, relegando a
fé, totalmente, para a esfera do "fato" ou da "facticidade", ali
desaparece sob o entulho o significado último, o sentido último de
um homem que diz: "Credo" – eu creio. Pois, ao declarar-se crente,
o homem não elabora um programa de modificação ativa do
mundo, nem adere simplesmente a uma corrente de eventos
históricos. Tentando ilustrar o meu pensamento, diria que o
fenômeno da fé não pertence à relação "saber – fazer", típica para
a constatação da mentalidade factível, mas a uma outra relação
muito diversa "estar – compreender". Parece-me que assim se
tornam visíveis duas mentalidades e duas possibilidades da
existência humana, que não se acham sem nexo mútuo e que,
contudo, devem ser distinguidas.

5. Fé como "estar" e "compreender"

Ao contrapor o par de conceitos "estar – compreender" àquele


outro "saber – fazer", aludo a uma expressão bíblica fundamental,
intraduzível, sobre a fé, cujo profundo jogo de palavras Lutero
tentara reproduzir na fórmula: "Se não crerdes, não ficareis"; mais
literalmente poder-se-ia traduzir: "Se não crerdes (se não vos
agarrardes a Jahvé), não tereis apoio algum" (Is 7,9). A única raiz
'mn abrange uma multiplicidade de sentidos cuja interdependência
e diferenciação perfaz a grandiosidade desta frase. A raiz 'mn
(amen) inclui os sentidos de: verdade, firmeza, fundamento sólido,
solo, conotando ainda: fidelidade, fiel, confiar-se, apoiar-se em
alguma coisa, crer em alguém ou alguma coisa. Deste modo a fé
em Deus surge como um apoiar-se em Deus, mediante o qual o
homem consegue base sólida para a sua vida. Com o que a fé é
descrita como adesão, como um colocar-se confiante [36] no
terreno da palavra de Deus. A versão grega (Septuaginta)
reproduziu a citada frase não somente idiomaticamente, mas
também conceitualmente, para o mundo grego, formulando-a: "Se
não crerdes, não compreendereis". Afirmou-se, por vezes, que
nesta tradução se patenteia o processo de helenização, o
afastamento do sentido bíblico original. A fé teria sido
intelectualizada: em vez de exprimir: estar postado no terreno
firme da palavra de Deus digna de fé, teria sido criado um nexo
com a compreensão e a razão, desalojando assim a fé para um
plano que, de modo algum lhe condiz. No que, talvez, haja uma
pitada de razão. Apesar disto, julgo que, em seu conjunto,
conservou-se a idéia básica, embora com os sinais alterados. "Estar
colocado", como vem indicado no texto hebraico, como conteúdo
da fé, tem algo em comum com "compreender". Dentro em pouco
teremos de refletir mais sobre isto. Por enquanto basta-nos reatar
o fio das anteriores considerações, dizendo que a fé conota uma
esfera totalmente outra do que a do "fazer" e da facticidade. É
precisamente o confiar-se ao não-feito-por-nós e ao jamais factível
por nós, que sustenta e possibilita todo o nosso agir ou fazer. Isto
significa ainda que a fé não se encontra, nem pode encontrar-se no
plano do verum quia factum seu faciendum e que qualquer
tentativa de apresentá-la ali, "em um cardápio", e de querer
prová-la no sentido do conhecimento do factível necessariamente
estaria fadada ao fracasso. Não se deve procurar nesta espécie de
estrutura de conhecimento e quem, apesar disto, ali a apresentar,
estará servindo uma coisa falsa. O penetrante "talvez" com que a
fé questiona o homem em toda parte e em todo lugar, não aponta
para uma incerteza dentro do conhecimento do factível, mas
representa o questionamento do caráter absoluto deste âmbito,
sua relativização como uma das esferas da existência humana e do
ser em geral, relativização e âmbito capazes de conservarem
apenas o caráter de algo penúltimo. Expresso em outras palavras:
nossas [37] considerações levaram-nos apenas a um lugar onde se
torna visível a existência de duas formas básicas de atitude
humana frente à realidade, das quais uma não pode ser reduzida a
outra, por se movimentarem as duas em planos completamente
separados.

Talvez venha ao caso lembrar aqui uma contraposição de Martin


Heidegger que fala do dualismo do pensamento calculador e do
pensamento reflexivo. Ambas as maneiras de pensar são legítimas
e necessárias, mas, exatamente por isto, nenhuma delas pode
dissolver-se na outra. Portanto, cumpre existam ambas as coisas: o
pensamento calculador subordinado à facticidade e o pensamento
reflexivo que busca o sentido das coisas. Nem se deixaria de dar
alguma razão ao pensador friburguense, ao exprimir o receio de
que, em uma época em que o pensamento calculador festeja
triunfos os mais extraordinários, o homem, no entanto, quiçá mais
do que nunca, esteja ameaçado pela fuga diante da reflexão, pela
superficialidade e leviandade. Pondo no centro do seu pensamento
exclusivamente o factível, corre o perigo de esquecer de refletir
sobre si mesmo e sobre o sentido de sua existência. Sem dúvida,
esta tentação é comum a todos os tempos. Assim, no século XIII, o
grande filósofo franciscano Boaventura julgava-se obrigado a
lançar em rosto aos colegas da Faculdade de Filosofia de Paris a
censura de que, tendo aprendido a medir o mundo, esqueceram a
arte de medir-se a si mesmos. Repitamos o mesmo em outros
termos: Fé, no sentido visado pelo "Credo", não é uma forma
inacabada de conhecimento, uma opinião que se possa ou deva
trocar em saber factível. É antes uma forma essencialmente
diversa de comportamento espiritual, colocada ao lado dele como
algo independente e próprio, não podendo ser a ele reduzida, nem
dele derivada. Pois a fé não se encontra no âmbito da facticidade
e do "feito", tendo embora relações com ambos, mas localiza-se na
esfera das decisões fundamentais, diante das quais o homem não
pode furtar-se nem omitir-se, decisões que, por sua [38] própria
natureza, só podem ser feitas de uma forma, forma à qual
chamamos de fé. Parece-me imprescindível destacá-lo com toda a
clareza: cada homem deve tomar posição, de qualquer forma,
dentro do âmbito das decisões fundamentais; e homem nenhum
pode fazê-lo de modo outro que não pela fé. Existe uma esfera que
não admite outra resposta senão a da fé; e precisamente esta
esfera não pode ser contornada por ninguém. Cada homem há de
"crer" de qualquer modo.

A mais impressionante tentativa de subordinar a atitude da "fé"


à atitude do conhecimento factível deve-se ao marxismo. Pois nele
o "faciendum", o "a-ser-feito", o factível cobre-se com o próprio
futuro a ser criado, e, simultaneamente, com o mesmo sentido do
homem, de modo que o esclarecimento que se realiza, e
respectivamente se aceita pela fé, é transferido para o plano do
factível. Com isto, sem dúvida, tirou-se a conseqüência extrema
do pensamento moderno; parece ter sortido efeito relacionar o
sentido do homem totalmente com o factível e até identificar um
com o outro. Contudo, a uma análise mais demorada não escapará
que também o marxismo não logrou fazer a quadratura do círculo.
Pois nem ele é capaz de tornar cognoscível o factível enquanto
sentido, mas apenas prometido, oferecendo-o à opção da fé. O que
hoje torna a fé marxista tão atraente e facilmente acessível, é a
impressão de harmonia com o conhecimento do factível que ela
desperta.
Após esta breve digressão voltemos a uma pergunta que
sintetiza tudo: que é a fé, afinal de contas? Nossa resposta poderia
ser: a fé é a forma de firmar-se o homem no conjunto da
realidade, forma irredutível ao conhecimento e incomensurável
pelo conhecimento; fé é o dar-sentido sem o que a totalidade do
homem ficaria localizada, sentido que constitui a base do cálculo e
da atividade humana e sem a qual, finalmente, não poderia nem
calcular, nem agir, porque somente é capaz disto à luz de um
sentido que o norteie. Com efeito, o homem não vive apenas do
pão da facticidade; como homem, ele vive do [39] amor, do
sentido das coisas. O sentido é o pão que lhe possibilita subsistir,
em sentido próprio, como homem. Sem a palavra, sem uma
finalidade, sem o amor, o homem chega à situação de não poder
mais viver, mesmo cercado de todo o conforto humano. Quem
ignoraria até que ponto uma tal situação de fracasso (entregar os
pontos... não poder mais...) pode surgir em meio à fartura
exterior? Ora, sentido não se deriva de saber. Querer torná-lo real
através do conhecimento da facticidade seria como a absurda
tentativa do barão de Münchhausen ao querer livrar-se a si mesmo
do atoleiro, puxando-se pelos cabelos. O absurdo deste quadro
expõe com exatidão a situação básica do homem. Ninguém está em
condições de arrancar-se a si mesmo do pantanal da incerteza, da
incapacidade de viver. Nem nos salvamos de semelhante situação,
como quiçá ainda poderia pensar Descartes com o seu cogito, ergo
sum, mediante uma série de conclusões racionais. Sentido
autofabricado não é sentido; sentido, ou seja, um solo, um pedaço
de chão sobre o qual a existência possa firmar-se e desenvolver-se
como um todo, um tal sentido não pode ser feito, só pode ser
recebido.

Tendo partido de uma análise muito geral da atitude


fundamental da fé, chegamos à forma da fé cristã. Crer
cristãmente significa confiar-se ao sentido que me sustenta a mim
e ao mundo, torná-lo a base firme sobre a qual posso ficar sem
receio. Usando um pouco mais a linguagem da tradição,
poderíamos dizer: crer cristãmente significa compreender a
existência como resposta à palavra, ao Logos que sustenta e
conserva todas as coisas. Significa dizer "sim", isto é, aceitar, ao
fato de ser-nos oferecido o sentido que não podemos criar, mas
apenas receber, de tal modo que nos basta aceitá-lo e confiar-nos
a ele. De acordo com isto, fé cristã conota a opção da aceitação
antes da feitura – com o que o "fazer" não sofre desvalorização e
muito menos é declarado inútil. Somente porque aceitamos o
sentido, também podemos "fazer". E mais: fé cristã – já o
afirmamos – significa a opção do invisível como [40] mais real do
que o visível. É declarar-se pelo primado do invisível e do real
propriamente dito, que nos sustenta e, por isso, nos autoriza a
enfrentar o visível com serena sobranceiria dentro da
responsabilidade frente ao invisível como fundamento de tudo.
Não se pode, contudo, negar que, em tais limites, a fé cristã
representa um duplo ataque contra a mentalidade que parece
dominar a situação mundial de hoje. Como positivismo e como
fenomenologismo, esta situação mundial concita-nos a limitar-nos
ao "visível", ao "fenômeno" em sentido mais vasto, estendendo
sobre o conjunto das nossas relações com o mundo real a
mentalidade fundamentalmente metodológica à qual a ciência
deve tantos dos seus êxitos. Por outro lado, como técnica, ela nos
incita a confiar no factível, esperando encontrar aí a base que nos
sustente. O primado do invisível sobre o visível, o primado do
"aceitar" sobre o "fazer" opõe-se radicalmente a esta situação. Está
aí, sem dúvida, a razão por que o salto de confiar-se ao invisível se
torna tão difícil hoje em dia. E contudo a liberdade de fazer, como
a de usar o visível mediante a pesquisa metódica, somente se toma
possível graças ao caráter transitório ao qual ambos são relegados
pela fé e pela superioridade que assim se abre.

6. Razão da Fé

Refletindo sobre tudo isto, constata-se o quão estreitamente se


interpenetram a primeira e a última palavra – o "creio" e o "amém"
–, o quão profundamente perpenetram o conjunto de cada artigo
do "credo", determinando assim a interna localização de tudo o
que entre elas se encontra. Na harmonia do "creio" e do "amém"
torna-se visível o sentido de todo o movimento espiritual de que se
trata. Anteriormente constatamos que, no hebraico, a palavra
"amém" tem a mesma raiz da qual se deriva o termo "crer"; o
confiante colocar-se sobre uma base que sustenta, não por ter sido
feita e calculada por nós, mas [41] precisamente porque não somos
capazes nem de fazê-la. Conota a entrega, a adesão ao que não
podemos nem precisamos fazer, ao fundamento do mundo, como
sentido que, por primeiro, nos patenteia a liberdade de fazer.

Contudo, o que aqui se realiza não é uma entrega cega ao


irracional. Pelo contrário, trata-se de uma aproximação do Logos,
da ratio, do sentido e, assim, da mesma verdade; porquanto,
finalmente, a base sobre que se coloca o homem não pode, nem
deve ser outra que a mesma verdade esclarecedora. E assim
tornamos a topar, e em lugar onde menos o esperaríamos, com
uma derradeira antítese entre conhecimento pela facticidade, e
fé. O conhecimento experimental, como já vimos, deve ser
positivo por sua determinação mais própria, deve limitar-se ao
dado e ao medido. Ora, conseqüência disto é que ele não indaga
mais pela verdade. Consegue os seus êxitos precisamente
renunciando à pesquisa da verdade e concentrando-se na
"exatidão" e na "concordância" do sistema, cuja idéia hipotética
deve comprovar-se através da experiência. O conhecimento pelo
factível, para dizê-lo ainda de outro modo, não pergunta pelas
coisas por si e em si, mas somente pela sua funcionalidade para
nós. A virada para o conhecimento experimental consegue-se
exatamente pelo fato de não se considerar mais o ser em si, mas
meramente em função da nossa obra. Isto significa que no
desprendimento, na separação entre o problema da verdade e o
ser, e em seu desdobramento sobre o "fato" e o "factível" (factum
et faciendum) o mesmo conceito da verdade foi substancialmente
alterado. A verdade do ser em si foi substituída pela utilidade das
coisas para nós, utilidade que se comprova na exatidão dos
resultados. E aí é certo e irretratável que somente essa exatidão
se nos comprova como calculabilidade, enquanto a verdade do
próprio ser se subtrai ao conhecimento como cálculo.

A atitude cristã do crente exprime-se na palavrinha "amém" em


que se interpenetram os significados: confiar, confiar-se,
fidelidade, [42] firmeza, base sólida, estar em pé, verdade; e isto
quer dizer que somente a verdade é o lugar em que o homem pode
firmar-se, só ela pode constituir para ele um sentido. Só a verdade
é a base adequada para o homem ficar em pé. Portanto o ato da fé
cristã inclui essencialmente a convicção de que o fundamento que
dá o sentido, o Logos sobre o qual nos colocamos, também é a
verdade, exatamente enquanto como sentido 15 . Sentido que não
fosse a verdade, seria um non-sens, um absurdo. A
inseparabilidade de sentido, fundamento, verdade, expressa tanto
no Logos grego, como no "amém" hebraico anuncia ao mesmo
tempo uma concepção cósmica inteira. Na inseparabilidade de
sentido, fundamento, verdade – riqueza vocabular que não
podemos reproduzir em nossa língua, com um termo só – que tais
palavras encerram, transparece a rede inteira de coordenadas em
que a fé cristã contempla o mundo e se lhe apresenta. E isso
também significa que a fé, em sua essência, não é um amontoado
de paradoxos cegos. Significa ainda que é loucura pretextar
mistério como desculpa para o fracasso da inteligência, como não
poucas vezes tem acontecido. Se a teologia apresenta uma série
de irregularidades, querendo não só desculpá-las, mas, se possível,
canonizá-las, apelando para o mistério, estamos aí diante de um
abuso da autêntica idéia de "mistério", cuja finalidade não é
destruir a inteligência, mas, antes, possibilitar a fé, como ato
racional. Em outras palavras: fé certamente não é conhecimento
no sentido de conhecer o factível e de sua forma de
calculabilidade. A fé jamais pode ser algo assim e se tornaria
ridícula, se tentasse estabelecer-se nestas formas experimentais.
Mas vale também o contrário: o conhecimento experimental do
factível, por natureza, está limitado ao fenômeno e ao funcional,
não representando o caminho para encontrar a verdade da qual
desistiu [43] em razão do seu método. O caminho que o homem
recebe para preocupar-se com a verdade do ser não é o
conhecimento, mas a compreensão: compreensão do sentido ao
qual aderiu. Sem dúvida devemos acrescentar que a compreensão
só se patenteia no "estar-em-pé" e não fora daí. Uma coisa não
acontece sem a outra, porque compreender significa agarrar e
conceber como tal o sentido aceito como fundamento. Creio ser
isto o sentido exato de "compreender": que aprendamos a
conceber a base sobre a qual nos colocamos, como sentido e como
verdade; que aprendamos a reconhecer que o fundamento
representa um sentido.

Assim sendo, compreender não conota contradição à fé, mas


representa os seus mais lídimos interesses. Pois o conhecimento da
funcionalidade do mundo, transmitido de modo tão grandioso pelo
hodierno pensamento técnico-científico, ainda não traz consigo
uma compreensão do mundo e do ser. Compreensão nasce da fé.
Por isto a teologia, como tratado compreensível, lógico (=
racional, intelectual-compreensivo) de Deus, é uma das tarefas
originais da fé cristã. É nesta situação que se baseia o indiscutível
direito do grego no cristão. Estou convencido de não tratar-se de
mera coincidência quando, ao realizar-se, a mensagem cristã
penetrou primeiro no mundo grego, fundindo-se ali com a busca da
compreensão, da verdade 16 . Fé e compreensão se pertencem
mutuamente não menos do que fé e estar, simplesmente porque
compreender e estar são inseparáveis. Neste sentido a versão
grega do versículo de Isaías sobre a fé e a permanência, revela
uma dimensão que não [44] pode ser retirada à frase bíblica, se
não se quer ser relegado ao âmbito do fanatismo e do sectarismo.

Aliás, é próprio do entendimento avançar sempre, além da


compreensão, até à constatação de que somos totalmente
apreendidos. Ora, se entendimento é compreensão da nossa
apreensão, isto significa que não estamos em condições de
concebê-lo novamente, porquanto nos dá o sentido pelo fato de
conceber-nos. Neste sentido é com razão que falamos de mistério,
como de uma base que nos prende e sempre nos ultrapassa, que
jamais pode ser alcançada ou ultrapassada por nós. Ora, é
exatamente na total apreensão pelo ainda não compreendido que
se processa a responsabilidade do entendimento, sem a qual a fé
seria indigna e se destruiria a si mesma.

7. "Creio em Ti"

Apesar de tudo o que se disse, ainda não foi expresso o caráter


mais profundo da fé cristã, seu caráter pessoal. A fé cristã é mais
do que opção por uma base espiritual do mundo; sua fórmula
central não diz: "Creio alguma coisa", mas: "creio em Ti" 17 . É
encontro com o homem Jesus, experimentando nesse encontro o
[45] sentido do mundo, como pessoa. Na vida de Jesus que vem do
Pai, no imediatismo e na espessura do seu trato orante, – que digo!
– contemplador com o Pai, Jesus é testemunha de Deus, através da
qual o impalpável se tornou tangível, o distante, próximo. E mais:
não se trata apenas de testemunha à qual damos fé sobre o que
ela viu em uma existência que realmente concretizou a virada do
falso destino ao de primeira plana, rumo à profundeza da verdade
inteira; não; Jesus é a presença do próprio eterno neste mundo.
Em sua vida, na irrestrição do seu ser para os homens está
presente o sentido do mundo; ele doa-se-nos como amor, que
também me ama a mim, tomando amável a vida mediante dádiva,
tão inconcebível, de um amor não ameaçado por nenhuma
transitoriedade, por nenhuma perturbação egoística. O sentido do
mundo é o "tu", naturalmente somente aquele "tu" que não é
pergunta aberta, mas o fundamento da totalidade que dispensa
outro fundamento.

Assim a fé é a descoberta de um "tu" que me carrega e me


transmite a promessa de um amor indestrutível dentro de toda a
insatisfação e da derradeira incapacidade do humano encontro, um
"tu" que não só aspira à eternidade, mas que a concede. A Fé cristã
vive do fato de não apenas haver um sentido objetivo, mas de esse
sentido conhecer e amar-me: de eu poder entregar-me a ele num
gesto de criança que sabe todas as suas perguntas bem abrigadas
no "tu" materno. Assim fé, confiança e amor, em última análise,
são uma única coisa e todos os conteúdos em torno dos quais gira a
fé são meras concretizações da reviravolta que a tudo sustenta, do
"creio em Ti" – da descoberta de Deus no rosto do homem Jesus de
Nazaré.

Naturalmente isto tudo não dispensa a reflexão, como já vimos.


[46] És tu realmente? – tal foi a pergunta nascida em negra hora do
coração do Batista, ou seja, do profeta que orientou para Jesus os
próprios discípulos e dobrou-se diante dele, como o maior, ao qual
só lhe restava prestar serviços de preparador. És tu realmente? O
crente sempre tornará a passar por esta treva na qual a
contradição da descrença o cerca como sombria e fatal prisão, e a
indiferença do mundo, que continua a rodar imperturbável como
se nada tivesse acontecido, parecer-lhe-á cruel zombaria de sua
esperança. És tu realmente pergunta que se nos impõe, não apenas
por causa da honestidade do pensamento e da responsabilidade da
inteligência, mas também de dentro da própria lei do amor que
quereria conhecer mais e mais àquele ao qual deu o seu "sim", para
mais amá-lo. És tu realmente? – todas as considerações deste livro
estão subordinadas a esta questão, girando assim em torno da
forma fundamental da profissão: "creio em Ti", Jesus de Nazaré,
como sentido (Logos) do mundo e da minha vida.
CAPÍTULO SEGUNDO

Forma Eclesial da Fé

1. Preliminares à história e à estrutura do Símbolo Apostólico da


Fé 1 .

[47] Tudo o que se disse até aqui girou em volta da pergunta


formal: Que é a fé e onde pode localizar-se no mundo do
pensamento moderno, onde pode exercer sua função? Assim
forçosamente ficaram em aberto outros problemas mais vastos
relacionados com a fé – e o conjunto quiçá se nos tenha
apresentado ainda excessivamente pálido e indeciso. As respostas
só podem ser encontradas com um olhar direto para a fé cristã em
sua feição concreta que a seguir vamos analisar, tomando por guia
o assim chamado símbolo apostólico.

Talvez seja útil fornecer alguns dados sobre a origem e


estrutura do símbolo, que contribuirão para esclarecer o "por quê"
[48] do nosso proceder. A forma básica do nosso símbolo apostólico
cristalizou-se no correr do segundo e terceiro século, em nexo com
o rito batismal. Trata-se originariamente de uma fórmula nascida
na cidade de Roma. Contudo, seu lugar interno de origem é a
liturgia, ou mais exatamente, o batismo. O rito batismal
fundamentalmente orientava-se pelas palavras de Cristo: "Ide,
fazei discípulos a todos os povos e batizai-os em nome do Pai e do
Filho e do Espírito Santo" (Mt 28, 19). De acordo com esta ordem,
o batizando ouvia três perguntas: "Crês em Deus, Pai todo-
poderoso...? Crês em Jesus Cristo, Filho de Deus...? Crês no
Espírito Santo...?" 2 . A cada uma das perguntas o batizando
respondia: "Creio", sendo, de cada vez, mergulhado na água.
Portanto, a fórmula mais antiga do símbolo realiza-se em tríplice
diálogo e está enquadrada no rito batismal.

Provavelmente ainda no correr do século II, mas sobretudo no


século III, a fórmula tríplice, tão simples, e reproduzindo apenas o
texto de Mt 28, sofreu um desdobramento em sua parte média, ou
seja, na pergunta sobre Cristo. Por tratar-se do que é tipicamente
cristão, aproveitou-se a ocasião para fornecer um resumo a
respeito da importância de Cristo para o cristão, dentro dos limites
daquela pergunta. Igualmente a terceira pergunta, a profissão da
fé no Espírito Santo, foi explicitada e desenvolvida como
declaração da fé a respeito do presente e do futuro do cristão. No
século IV estamos diante de um texto contínuo, libertado do
esquema de perguntas e respostas. A circunstância de continuar
formulado em grego torna plausível sua origem no século III, pois
no século IV a liturgia romana havia passado definitivamente para
o latim. Não demora muito e surge uma versão latina. O símbolo
da cidade [49] de Roma impôs-se rapidamente em todo espaço de
fala latina, graças à posição especial que coube à Igreja de Roma
em todo o Ocidente. O texto passou por uma série de alterações
menores; afinal, Carlos Magno apresentou, para uso em seu
império inteiro, um texto que – baseando-se no romano – recebera
sua forma definitiva na Gália; em Roma, o texto uniformizado foi
aceito no século IX. Aproximadamente desde o século V, talvez já
do século IV, surge a lenda da origem apostólica desse formulário
que muito cedo (provavelmente ainda no correr do século 5) se
concretizou na suposição de que cada um dos doze artigos, em que
fora dividido, representava a contribuição de um dos doze
apóstolos.

No Oriente permaneceu desconhecido o símbolo romano. Não


foi pequena a surpresa dos delegados romanos ao Concílio de
Florença (século XV), ao ouvirem que os orientais (gregos) não
recitavam o símbolo tido como de origem apostólica. O Oriente
jamais elaborou um texto uniforme porque nenhuma de suas
Igrejas particulares assumira posição comparável à de Roma no
Ocidente – como única "sede apostólica" nesta parte do mundo.
Para o Oriente, sempre foi característica a multiplicidade dos
símbolos que também se afastam um tanto do símbolo romano
quanto à feição teológica. O Credo romano (e ocidental em geral)
tem um cunho mais sótero-cristológico. Conserva-se, por assim
dizer, no interior do aspecto positivo da história cristã; aceita, sem
mais, o fato de Deus ter-se tornado homem para nossa salvação e
não tenta olhar para os bastidores da história indagando de suas
razões e do seu nexo com o conjunto do ser. O Oriente, pelo
contrário, sempre procurou a fé cristã em sua perspectiva cosmo-
metafísica, que se revela nos símbolos, sobretudo pelo fato de
colocar em relação mútua a cristologia e a criação do mundo,
pondo assim um nexo íntimo entre a redenção única e irrepetível,
e a criação contínua e total. Mais tarde voltaremos a mostrar como
esta visão mais larga, finalmente, começa a revalorizar-se [50]
mais acentuadamente na consciência ocidental, sobretudo graças à
influencia da obra de Teilhard de Chardin.

2. Limite e importância do texto

O esquema rudimentar da história do símbolo que acabo de dar


está a exigir uma reflexão complementar. Pois já um olhar fugaz
sobre a gênese do texto, tal como foi apresentado, mostra que
neste processo se refletem toda a tensão da história da Igreja do
primeiro milênio, o esplendor e a miséria dessa história. Quer me
parecer que também isto representa uma expressão que tem nexo
com a causa da fé cristã, deixando reconhecer a sua fisionomia
espiritual. Sem dúvida, o símbolo exprime primeiramente, por
sobre todas as divisões e tensões, o fundo comum da fé no Deus
trino. É a resposta ao apelo saído de Jesus de Nazaré: "Fazei
discípulos a todos os povos e batizai-os". É reconhecimento dele
como proximidade de Deus; dele como verdadeiro futuro do
homem. Mas, simultaneamente, já exprime o destino incipiente da
ruptura entre Oriente e Ocidente; a posição espiritual que Roma
ganhou no Ocidente como sede de tradição apostólica; a tensão
que daí surgiu para a Igreja inteira, tudo isto torna-se visível na
história do símbolo. Finalmente a forma atual desse texto exprime
a uniformização da Igreja ocidental, partindo do terreno político, e
assim a tragédia do alheamento político da fé, seu uso como
instrumento unificador do império. Ao usar esse texto, que se
impôs como "romano", mas, que nessa feição, foi trazido de fora
para Roma, encontramos presentes nele as agruras da fé
constrangida a afirmar-se em sua independência através do
labirinto das finalidades políticas. No espelho dos azares desse
texto torna-se patente como a resposta ao apelo da Galiléia se
mesclou com a ganga humana ao ingressar na história: misturando-
se com os interesses particulares de uma região, com a
alheamento dos que foram convidados à mesma [51] fé, com os
conchavos dos poderes deste mundo: o salto ousado rumo ao
infinito (ou seja: a fé) realiza-se nas miniaturizações humanas; e
também aqui, onde o homem arrisca o seu gesto mais grandioso, o
salto para além da própria sombra, rumo ao sentido que o
sustenta, também aqui não é pura e nobre grandeza, mas revela-o
como o ser discorde, grande em sua miséria e, contudo, miserável
em sua grandeza. E torna-se visível algo muito central, a saber,
que a fé tem nexo com o perdão, que deve ter tal nexo, que a fé
deseja orientar o homem vendo nele o ser que só é capaz de
encontrar-se recebendo e passando adiante o perdão, o ser
necessitado do perdão, mesmo no que tem de melhor e mais puro.

Acompanhando-se assim as pegadas deixadas pela nossa


condição humana no texto do "Credo", surge a dúvida: será
razoável basear-se em semelhante texto uma introdução ao
cristianismo, como programada neste livro? Não seria de temer
que, já de entrada, nos encontremos em terreno muito
problemático? A pergunta deve ser feita, mas quem tentar
responder, há de constatar que o símbolo representa, no essencial,
o eco fiel da fé da Igreja antiga, apesar de todas as peripécias de
sua formação, fé que, por sua vez, é o núcleo fiel da mensagem do
Novo Testamento. As discrepâncias entre Oriente e Ocidente, de
que se tratou antes, são diferenças de acentuação teológica e não
de fé. Aliás, na tentativa de compreender do que se trata,
cumpre-nos cuidar de relacionar o conjunto sempre novo com o
Novo Testamento, procurando lê-lo e interpretá-lo a partir de suas
intenções.

3. Fé e Dogma

E mais uma observação. Ocupando-nos aqui com um texto


originariamente relacionado com o rito batismal, encontramos
simultaneamente o sentido inicial de "doutrina" e de "profissão de
fé" no cristianismo e, com isto, também o sentido [52] do que,
posteriormente, foi chamado de "dogma". Vimos que o "Credo" no
rito batismal era recitado em forma dialogada, como tríplice
resposta às três perguntas: "Crês em Deus... em Cristo... no
Espírito Santo?" Acrescentemos que ele representa o membro
positivo da tríplice renúncia que o antecede: "Renuncio a Satanás,
ao seu serviço e às suas obras" 3 . Isto quer dizer que a fé se situa
no ato da conversão, na virada do ser, que dá as costas à adoração
do visível e factível para voltar-se à adesão ao invisível. A palavra
"creio" poderia ser perfeitamente substituída aqui por: "Eu me
entrego a... eu afirmo" 4 . Fé, no sentido de profissão de fé, e em
seu sentido original, não conota uma recitação de doutrinas, uma
aceitação de teorias sobre questões das quais nada se sabe e, por
isto, tanto mais fortemente se afirma algo; fé significa um
movimento da existência humana inteira. Na linguagem de
Heidegger poder-se-ia dizer que ela conota uma "virada" do homem
todo, virada que, a partir dali, estrutura sem parar a sua
existência. No processo da tríplice renúncia e da tríplice profissão,
unidas ao tríplice simbolismo da morte por imersão (afogamento) e
do tríplice simbolismo da ressurreição para uma vida nova, a fé se
torna expressão concreta daquilo que ela vem a ser: conversão,
virada da existência, volta do ser.

No processo da volta ou virada, no qual compreendemos a fé, o


"eu" e o "nós", o "eu" e o "tu" se entrosam de modo tal que
fornecem um quadro humano completo. Trata-se, por um lado, de
um processo muito pessoal, cujo íntimo insubstituível se
exterioriza no tríplice "creio" e no "renuncio" que o precede: trata-
se de minha existência, que deve converter-se, que deve
metamorfosear-se. Mas, ao mesmo tempo, com o elemento muito
pessoal, encontramos um elemento mais, que [53] se revela na
opção do "eu" como resposta a uma pergunta no jogo entre: "Crês?"
e "Creio!" Esta forma primitiva do símbolo, constando
primeiramente apenas de perguntas e respostas, parece-me
apresentar uma estrutura muito mais exata da fé do que a fórmula
simplificada e coletiva elaborada mais tarde. Querendo-se abrir
caminho até à essência da fé cristã, será certo considerar esta
forma primitiva dialogal como a mais exata elaborada pela própria
natureza da fé. Ela é mais objetiva do que o tipo de profissão em
plural (nós) formado (em contraposição ao nosso tipo no singular
"Eu creio") na África cristã e, a seguir, nos grandes concílios do
Oriente 5 . Nestes últimos aparece um novo tipo de profissão que
não mais se radica no nexo sacramental de um acontecimento de
conversão realizado eclesialmente, na concretização da virada do
ser e assim no próprio lugar originário da fé, mas origina-se da luta
dos bispos reunidos em concílio em prol da pureza doutrinal
tornando-se assim claro esse estágio preparatório da futura forma
do dogma. Em todo caso, é importante que nesses concílios não
eram ainda formuladas sentenças doutrinais, concentrando-se o
seu esforço em volta da integridade do "Credo", como esforço ou
preocupação pela maneira autêntica da conversão, daquela virada
da existência que significa ser cristão.

Isso poderia ser mostrado mais claramente na luta dramática


em torno da questão: "Quem é, quem foi Cristo?", luta que abalou
os alicerces da Igreja nos séculos IV e V. Nesta pendência não se
tratava de especulações metafísicas, incapazes de abalar aqueles
dois séculos até às bases, e até ao homem do povo. Tratava-se,
antes, da questão: que acontece, quando me torno cristão, quando
me submeto ao nome desse Cristo, afirmando-o assim como
homem-norma, como medida do humano? Que espécie de
conversão da existência, que atitude [54] para com a humanidade
assumo com isto? Que profundeza tem este processo? Que espécie
de avaliação da realidade nele se processa?

4. O Símbolo como expressão da estrutura da Fé

Encerrando esta série de considerações, destaquemos dois


pontos que resultam do texto e da história do símbolo.

a) Fé e palavra. O "Credo" é um resíduo do diálogo original:


"Crês?" – "Creio!", diálogo que, por sua vez, aponta para o "cremos"
onde o "eu" do "creio" não é absorvido, mas encontra o seu lugar
próprio. Assim na pré-história do símbolo e na sua forma primitiva
está presente a figura completa antropomórfica da fé. Torna-se
evidente que fé não resulta de alguma subtileza individualista e
solitária em que "eu" imagino alguma coisa, refletindo sozinho
sobre a verdade, livre de todos os laços. É, antes, o resultado de
um diálogo, expressão da audição, da recepção e da resposta que
orienta o indivíduo para o plural da mesma fé, através da sintonia
do "eu" com o "tu".

"A fé vem da audição", diz S. Paulo (Rom 10, 17). Afirmação


que poderia ser tomada por algo muito condicionado pela época e
susceptível de ser alterado. Há a tentação de ver aí meramente o
resultado de uma situação sociológica, de modo que, um belo dia,
em vez disto, poderia dizer-se: "A fé vem da leitura", ou "da
reflexão". Na realidade, impõe-se ver aí muito mais do que o
reflexo de determinado momento histórico. Na fórmula: "A fé vem
da audição" encontra-se uma afirmação duradoura da estrutura do
que acontece a quem chega à fé. Nela está patente a diferença
entre fé e simples filosofia, que aliás não impede que a fé
revitalize a procura filosófica da verdade. Extremando a situação,
poder-se-ia dizer que, realmente, a fé não vem da "audição", como
a filosofia se origina da "reflexão". A natureza da fé está em não
ser uma reflexão [55] sobre o que pode ser refletido e que, afinal,
estaria à disposição como resultado do meu pensamento; para a
fé, é característico que ela surge da audição, sendo aceitação do
que não se imagina, de modo que, na fé, o pensamento sempre
será, em última análise, uma reflexão sobre o que foi ouvido e
aceito.

Expresso de outro modo: existe na fé uma precedência da


palavra sobre o pensamento, que a distingue estruturalmente do
feitio filosófico. Na filosofia o pensamento precede a palavra,
porque a filosofia é produto da reflexão que, a seguir, se procura
revestir de palavras, as quais, contudo, permanecem secundárias
em comparação com o pensamento e, por isto, sempre podem ser
substituídas por outras palavras. Pelo contrário, a fé aproxima-se
de fora, sendo-lhe essencial esta qualidade de vir de fora.
Repitamos: a fé não é produto auto-imaginado, mas o que me foi
dito, que me encontra, me alicia e me compromete, como algo
não imaginado nem imaginável. É-lhe essencial a dupla estrutura
do: "Crês?" – "Creio!", a estrutura do ser chamado de fora e da
resposta. Portanto, não é anormal se, abstraindo de algumas
exceções, devemos dizer: não cheguei à fé mediante uma procura
particular da verdade, mas por uma aceitação que, por assim
dizer, me antecedeu. E fé não pode nem deve ser mero produto da
reflexão. A suposição de que a fé deveria nascer através da própria
reflexão ou imaginação e mediante uma busca puramente pessoal
da verdade, no fundo já é expressão de determinado ideal, de uma
mentalidade intelectual que desconhece o aspecto peculiar da fé,
que consiste na aceitação do que não é imaginável – aceitação
responsável, sem dúvida – em que o objeto aceito jamais chega a
tornar-se minha posse total, em que a dianteira nunca será
vencida completamente, em que, no entanto, a meta deve ser:
apoderar-se sempre mais do que foi recebido, através da minha
entrega a ele como ao maior.

Por ser assim, porque a fé não é o que inventei, mas o que me


sobreveio de fora, por isto a sua palavra não está à minha [56]
disposição, nem está sujeita à mudança, ao meu talante, mas é-
me superior e sempre está à frente, tomando a dianteira ao meu
pensamento. A figura do processo da fé está caracterizada pela
positividade do que me sobrevém, não se originando de mim e
revelando-me o que não sou capaz de doar-me. Por isto, existe
aqui uma primazia da palavra expressa sobre o pensamento, de tal
modo que não é o pensamento quem cria a sua terminologia, mas a
palavra apresentada indica a rota ao pensamento que compreende.
Com este primado da palavra e com a "positividade" da fé que aí se
manifesta, relaciona-se o caráter social da fé, que conota uma
segunda diferença frente à estrutura essencial individualística do
pensamento filosófico. Filosofia, por sua natureza, é obra do
indivíduo que, como tal, reflete sobre a verdade. O pensamento, o
pensado pertencem-lhe, ao menos em aparência, porque surgem
do próprio pensador, muito embora nenhum pensamento viva só do
que lhe é próprio, mas, ciente ou inscientemente, se complique
em numerosos entrelaçamentos. O laboratório do pensamento é o
âmago do espírito; por isto ele, inicialmente, permanece
circunscrito ao pensador, tendo estrutura individualista. Torna-se
comunicável somente secundariamente, ao revestir-se da palavra
que, aliás, de modo geral, só consegue torná-lo compreensível aos
outros de modo aproximativo. Em oposição, como vimos, a palavra
anunciadora representa o principal elemento da fé. Como o
pensamento, internamente, é apenas espiritual, a palavra
constitui-lhe a ponte de comunicação. A palavra é o modo de
estabelecer a comunicação no campo espiritual, é a forma pela
qual o espírito se encarna, isto é, se torna corpo, se torna social. O
primado da palavra significa ainda que a fé está orientada para a
comunidade do espírito, de maneira diversa do que o pensamento
filosófico. Na filosofia encontra-se, no começo, a pesquisa
particular da verdade, que, a seguir, secundariamente, procura e
encontra companheiros de jornada. Fé, ao contrário, é, primeiro,
o apelo dirigido [57] à comunidade visando a união ou unidade do
espírito pela unidade da palavra; seu sentido é de antemão social:
criar unidade de espírito pela unidade da palavra; e só
secundariamente os indivíduos encontrarão o caminho aberto para
a aventura pessoal da verdade.

Ao destacar-se na estrutura dialogal da fé uma imagem


humana, podemos acrescentar que igualmente surge ali uma
imagem de Deus. Ao homem compete tratar com Deus, quando lhe
cabe tratar com o seu próximo. A fé está essencialmente orientada
para o "tu" e para o "nós", e o homem somente consegue unir-se a
Deus através destes dois vínculos. O que, ao inverso, significa não
serem separáveis relação com Deus e relação com o outro, a partir
da mesma estrutura interna da fé; o nexo com Deus, com o "tu",
com o "nós" é mútuo, bilateral e não corre paralelo. Ainda
poderíamos formular o mesmo pensamento sob outro ponto de
enfoque: Deus quer vir ao homem somente mediante o homem;
não procura o homem a não ser no meio dos seus semelhantes.

Talvez seja possível, partindo-se daqui, tornar compreensível


um fato intrínseco à fé, que deveria parecer surpreendente à
primeira vista podendo tornar, pelo menos aparentemente,
problemático o comportamento religioso do homem. Pois a
fenomenologia religiosa – como todos podemos comprovar –
constata que no campo religioso, como nos demais domínios do
espírito humano, parece haver gradação de capacidades.
Conhecemos, por exemplo, no âmbito da música a classe de
espíritos criadores ou produtivos, a dos meramente receptivos e,
afinal, a dos amusicais; o mesmo parece dar-se na religião.
Também nela encontramos "talentos" religiosos e outros pouco
prendados; também no terreno religioso são muito raros os
elementos capazes de uma experiência religiosa e de alguma
espécie de creatividade religiosa através de uma intuição mais viva
do mundo sacral. O "mediador" ou o "fundador", a testemunha, o
profeta, ou qualquer que seja seu [58] nome, capazes de contacto
direto com o "divino" são exceções. Em contraste com esses poucos
para os quais a divindade se torna certeza evidente, encontram-se
os muitos, meramente receptivos religiosamente falando, aos quais
se recusa a experiência do "sagrado" e que, no entanto, não são
tão surdos que não sejam capazes de viver um encontro com o
divino através dos homens aos quais tais experiências são
concedidas.

E impõe-se a objeção: não deveria cada pessoa ter acesso a


Deus, se "religião" é uma realidade que interessa a cada um, e se
cada qual se sente reivindicado de maneira idêntica por Deus? Não
deveria haver plena "igualdade de chances" e a mesma certeza
patenteada a todos? Eis uma pergunta que aponta para o vazio,
como se poderá ver do nosso ponto de consideração; pois o diálogo
de Deus com os homens se desenvolve exclusivamente dentro do
diálogo dos homens entre si: a diferença de talentos religiosos que
classifica os homens em "profetas" e "ouvintes", compele-os
reciprocamente uns para junto dos outros e uns pelos outros. É
irrealizável e não-cristão o programa do Agostinho dos primeiros
tempos: "Deus e a alma – nada mais". Afinal, religião não existe no
solitário caminho do místico, mas só na comunidade do anúncio
(pregação) e da audição. Postulam-se e condicionam-se
mutuamente diálogo dos homens com Deus e diálogo dos homens
entre si. Aliás, o mistério de Deus talvez represente, desde o
início, o mais violento desafio do homem para o diálogo, desafio
que jamais leva a um resultado completo, diálogo que, por
obstruído e perturbado que seja, deixa transsoar o Logos, a
palavra por excelência, da qual todas as palavras se derivam,
tentando proferir todas as vozes em um ímpeto contínuo.

Um diálogo legítimo não se realiza entre homens que se


contentam em falar sobre alguma coisa. A fala do homem alcança
a sua peculiaridade somente ao tentar exprimir não alguma coisa,
mas a si mesmo, subindo o diálogo à comunicação. Onde tal
acontece, onde o homem se exprime a si mesmo na [59] conversa,
ali, de algum modo, se fala também de Deus, que é o tema dos
debates dos homens entre si desde a aurora de sua história. Mas
também somente onde o homem se exterioriza como objeto de sua
fala, penetra no diálogo humano, com o Logos do ser humano, o
Logos de todo ser. Eis a razão do silêncio do testemunho de Deus
onde a fala somente é técnica de comunicação de "alguma coisa".
Deus não está presente no cálculo lógico 6 . Talvez a hodierna
dificuldade de falar de Deus tenha sua origem exatamente na
crescente tendência do nosso falar para o cálculo puro, do fato de
ela assumir uma significação crescente de pura comunicação
técnica, sendo sempre menos um contacto do ser com o Logos,
contato que adivinha e palpa o fundamento de todas as coisas.

b) Fé como "símbolo". A reflexão sobre a história do símbolo


apostólico levou-nos ao conhecimento de que, na profissão de fé
batismal, estamos diante da forma primitiva da doutrina cristã e
do protótipo daquilo que hoje denominamos "dogma". No início não
existe uma série de proposições doutrinais capaz de ser citada e
reunida em um rol de dogmas. Tal idéia, que hoje quiçá se nos
imponha, deveria ser considerada como ignorância da natureza da
adesão cristã ao Deus que se revela em Cristo. O conteúdo da fé
cristã tem seu lugar fixo no contexto da profissão da fé, que, como
vimos, é adesão e renúncia, conversão, virada do ser humano para
um rumo novo de vida.

Ou dito de outra forma: doutrina cristã não existe em forma de


artigos atomizáveis, mas na unidade do "símbolo", como a antiga
Igreja chama à profissão de fé batismal. Impõe-se refletir um
pouco mais sobre a importância desta palavra. "Símbolo" vem de
"symballein", coincidir, reunir. Seu fundo é formado por antigo
costume: duas partes entrosáveis de um anel, [60] de um bastão
ou de uma taboazinha serviam de sinal de identificação para
hóspedes, amigos, mensageiros, partes de contrato. O possuidor da
metade correspondente à que estava com o outro, tinha direito de
receber algo ou de ser hóspede 7 . Símbolo é a parte que se
enquadra com a outra metade criando assim um reconhecimento e
uma unidade mútuos. É expressão e é possibilidade de união 8 .

Na denominação da profissão da fé como símbolo existe


profundo significado de sua verdadeira natureza. Com efeito, tal
foi exatamente o sentido original das formulações dogmáticas na
Igreja: reconhecimento comum de Deus possibilitando comum
adoração. Como símbolo, aponta para o outro, em uma palavra,
para a unidade do espírito. E neste sentido, como com razão
observa Rahner, a palavra "dogma" (respectivamente: símbolo)
sempre conota essencialmente uma disciplinação idiomática 9 ,
que, sob o ponto de vista puramente lógico, poderia receber outra
formulação, mas que tem o seu sentido, também como forma
idiomática: ser um concurso, um acorrer para a comunidade da
palavra crente. Não se trata de uma doutrina isolada em si e por
si, mas da forma da nossa liturgia, forma da nossa conversão, não
apenas de uma volta a Deus, mas de uma volta, de um unir-se aos
outros no rumo da comum glorificação de Deus. A doutrina cristã
só encontra seu exato lugar dentro deste nexo interno. Seria
sedutor tentar uma história da forma da doutrina cristã, partindo
do diálogo [61] batismal através do "nós" conciliar até ao anátema,
à confissão da Reforma, desembocando no dogma como afirmação
isolada. Em um tal estudo transpareceriam claramente a
problemática e a consciência diferenciada das expressões da fé.

Outra conseqüência do que foi dito: cada pessoa detém a fé


meramente como "symbolon", como fragmento imperfeito e
truncado, destinado a encontrar a sua unidade e integridade ao
unir-se com os outros: somente no "symballein", no entrosamento
com eles, pode realizar-se o "symballein", o entrosar-se com Deus.
Fé exige unidade, clama pelo co-crente. Fé relaciona-se com a
Igreja, por sua natureza. Igreja não é uma organização secundária
de idéias discrepantes; Igreja não é, no máximo, um mal
necessário; a Igreja pertence necessariamente à essência de uma
fé, cujo sentido é a confluência de uma profissão comum e de uma
comum adoração.

Essa realidade aponta ainda em outra direção: a própria Igreja,


em conjunto, tem a fé apenas como "symbolon", como metade
partida; e somente indicando para além da Igreja, para o todo, é
que essa fé corresponde à verdade. Através da infinita
fragmentação do símbolo, a fé consegue alcançar o seu Deus,
como um contínuo auto-ultrapassar-se do homem.

Com isso torna-se claro um último ponto, que nos reconduz ao


início. Agostinho conta em suas Confessiones como se tornara
decisivo para o seu próprio caminho de conversão saber que o
conhecido filósofo Mário Vitorino se havia tornado cristão, após
ter-se recusado durante muitos anos a ingressar na Igreja,
alegando já possuir em sua filosofia todos os elementos essenciais
do cristianismo, com cujos postulados básicos ele concordava 10 .
Tendo já, como suas, dentro do seu pensamento filosófico, as
idéias cristãs centrais, não lhe parecia necessária a
institucionalização de suas convicções [62] mediante uma adesão
explícita à Igreja. Como numerosos intelectuais de então e de
hoje, via Agostinho na Igreja um platonismo feito para o povo, do
qual ele não precisava como platônico lídimo. Como elemento
decisivo mostrou-se-lhe apenas o pensamento: somente quem não
conseguisse captar a verdade em sua originalidade como o filósofo
deveria entrar em contacto com ela mediante a organização
eclesiástica. Mas, Mário Vitorino, um belo dia, aderiu à Igreja,
convertendo-se de platônico em cristão. E estava aí a expressão de
suas convicções a respeito do erro fundamental em que versara. O
grande platônico compreendeu que a Igreja é algo mais e algo
outro do que uma externa institucionalização e organização de
idéias. Compreendeu que o cristianismo não é um sistema de
conhecimentos, mas um caminho. O "nós" dos crentes não é um
acréscimo secundário feito para espíritos mesquinhos, mas, em
certo sentido, é a própria coisa; a comunidade humana é uma
realidade que se situa em um plano diferente do que a mera
"idéia". Se o platonismo fornece uma idéia da verdade, a fé cristã
aponta a verdade como um caminho, e somente tornando-se
caminho, torna-se ela a verdade do homem e para o homem.
Verdade como simples conhecimento, como mera idéia conserva-se
sem força, e torna-se verdade do homem só como caminho que o
reivindica e pelo qual ele pode e deve enveredar.

Portanto, faz parte essencial da fé a profissão, a palavra e a


unidade criada pela palavra; pertence-lhe o ingresso na liturgia da
comunidade e, afinal, aquele estar-com-os-outros a que chamamos
Igreja. Fé cristã não é idéia, mas vida; não é espírito existente
para si, mas encarnação, espírito em corpo, no corpo da história e
do seu "nós". Não é mística de auto-identificação do espírito com
Deus, mas obediência e serviço: ultrapassagem do "eu", libertação
do "eu", exatamente pela aceitação do que não foi nem feito nem
imaginado por mim; libertação mediante a aceitação para o todo.
PRIMEIRA PARTE

DEUS

«Creio em Deus Pai, Todo-poderoso, Criador do céu e da


terra"

[63] O símbolo principia com o reconhecimento de Deus, que


é descrito mais detalhadamente mediante alguns predicados: Pai –
Todo-poderoso – Criador 1 . Por conseguinte, a primeira questão a
ser examinada é: o que significa a atitude do crente que se declara
por Deus? E, dentro desta pergunta, está incluída a outra: Que
quer dizer o símbolo, quando este Deus é caracterizado com
termos como: "Pai", "Todo-poderoso", "Criador"?
CAPÍTULO PRIMEIRO
Prolegômenos ao Tema "Deus"

1. Âmbito da questão

[65] Quem vem a ser "Deus", afinal? Em outras épocas tal


pergunta não constituía problema, de clara que era. Hoje ela se
nos torna uma interrogação séria. Que é que pode conotar, em
geral, a palavra "Deus"? Que realidade ela exprime e como chega
aos homens a realidade de que fala? Querendo-se seguir a pista da
pergunta com a profundeza de que hoje precisamos, seria
necessário tentar primeiramente uma análise que pesquisasse as
fontes da experiência religiosa, considerando-se, a seguir, como é
que o tema "Deus" caracteriza a história inteira da humanidade e é
capaz de desencadear nela todas as paixões até aos nossos dias –
sim, até aos dias em que o clamor da morte de Deus se ergue por
toda parte e, apesar disto, e precisamente por isto, coloca o
problema de Deus poderosamente no meio de nós.

Afinal, donde surgiu na humanidade a idéia de Deus; de que


raízes nasceu? Como compreender que o mais dispensável
aparentemente e o mais inútil dos temas para os homens se fixou e
permaneceu, apesar de tudo, como o mais angustioso dos temas da
história? E qual é a razão por que ele surge em formas basicamente
tão diversificadas? Aliás, através da aparência desordenada da
multiplicidade exterior, constata-se a existência fundamental de
três formas, que certamente [66] atravessam alterações desiguais
na figura do monoteísmo, do politeísmo e do ateísmo, como
poderíamos denominar resumidamente os três grandes caminhos
da história humana na questão de Deus. Além disso, já antes fomos
alertados que mesmo o ateísmo representa apenas um ponto final
aparente do assunto "Deus", conotando, na realidade, uma forma
de preocupação humana com o problema, capaz, até, de revelar, e
de fato, manifestando, nesta questão, um ardor apaixonado. Se
quiséssemos seguir as questões preliminares fundamentais,
deveriam ser apresentadas as duas fontes da experiência religiosa,
às quais se pode reduzir a multiplicidade de formas dessa
experiência. Sua tensão típica foi descrita pelo conhecido
fenomenólogo de religiões, o holandês van der Leeuw, na
afirmação paradoxal: na história das religiões Deus-Filho existe
antes de Deus-Pai 2 . Dever-se-ia dizer com mais exatidão que o
Deus, portador da salvação, o Salvador, existe antes do Deus
Criador, e mesmo depois desta elucidação, cumpre notar que a
fórmula não pode ser concebida em sentido de seqüência
cronológica ou temporal, para a qual não existem provas. Por mais
longe que se olhe na história da religião, o tema "Deus" surge
sempre sob as duas figuras, de Filho e Pai, de Criador e de
Salvador. A partícula "antes", portanto, conota apenas que, para a
religiosidade concreta, para o interesse existencial vivo, o
"portador da salvação" ocupa o primeiro plano, em relação ao
Criador.

Atrás dessas duas figuras, em que a humanidade representou


o seu Deus, encontram-se os dois pontos de partida da experiência
religiosa, dos quais acabamos de falar. O primeiro ponto é a
própria existência a ultrapassar-se, sem cessar, apontando para a
totalidade em uma forma qualquer, mesmo que seja a mais
complicada. E também aí temos um [67] processo de muitas
camadas – como multifacetada é a mesma existência humana.
Bonhoeffer, como é notório, declarou estar na hora de acabar com
um Deus que colocamos como "tapa buraco" na fronteira das nossas
possibilidades e ao qual invocamos logo que nos sentimos levados
ao fim da linha. Deveríamos procurar e encontrar Deus, não no
lugar da nossa miséria e do nosso fracasso, mas em meio à fartura
das coisas terrenas e no transbordamento da vida; somente assim
se comprova não ser Deus uma escapatória fabricada pelas nossas
necessidades, escapatória que se torna supérflua à medida que se
alargam os limites do nosso poder 3 . Na história da luta humana
em torno de Deus, encontramos ambos os caminhos parecendo os
dois igualmente legítimos. Tanto as agruras e misérias da vida
humana como a sua plenitude apontam para Deus. Onde os homens
experimentaram a vida em sua fartura, em sua riqueza, beleza e
grandiosidade, ali se lhes tornou presente e patente que uma tal
existência é uma existência agradecida, que, precisamente em seu
aspecto grandioso e luminoso, ela não é algo que alguém se doou a
si mesmo, mas uma dádiva que o antecede, que o recebe nos
braços de sua bondade, antes de qualquer ação sua, exigindo que
se insufle um sentido a tamanha abundância, recebendo-se assim
um sentido para a sua própria situação. E vice-versa, também a
necessidade e a pobreza sempre serviram-nos de lembrete de algo
todo diferente. A questão que se apresenta, pela nossa condição
de homens, e que, mais ainda, existe pela nossa condição de
homens é o inacabado contido dentro de nós, a fronteira que
baliza o ser-homem e que, apesar disto, representa um anseio pelo
ilimitado (mais ou menos) [68] no sentido da palavra de Nietzsche:
todo prazer anseia pela eternidade, e contudo se revela como
instante, esta simultaneidade de isolamento e desejo do ilimitado
e do aberto impediu sempre qualquer descanso do homem em si
mesmo, fazendo-o sentir que jamais pode bastar-se, só
conseguindo encontrar-se passando por cima de si e movendo-se
para o totalmente outro e para o infinitamente grande.

O mesmo pode-se demonstrar da temática da solidão e da


segurança. A solidão indubiamente é uma das raízes básicas de que
surgiu o encontro do homem com Deus. Onde o homem
experimenta a solidão, degusta ao mesmo tempo o quanto a sua
vida representa um grito pelo "tu" e quão pouco o homem é apto a
ser um puro "eu", encerrado em si mesmo. A solidão pode
manifestar-se ao homem em profundezas diferentes. Primeiro, ela
satisfaz-se com o encontro de um "tu" humano. Mas então
desdobra-se um processo paradoxal descrito por Claudel: cada "tu"
que o homem encontra, revela-se, finalmente como uma promessa
irrealizada e irrealizável 4 ; porque todo "tu", no fundo, representa
de novo uma desilusão, existindo um ponto em que encontro
nenhum é capaz de vencer a derradeira solidão: e exatamente o
achar e o ter-achado voltam a ser um retorno ao ermo, um grito
pelo "tu" real e absoluto, mergulhado nas profundezas do próprio
"eu". Mesmo agora, nem a miséria da solidão apenas, nem a mera
experiência de que comunidade alguma satisfaz de todo o nosso
desejo serão os únicos caminhos a abrir-nos para a experiência de
Deus – porquanto ele pode surgir também da alegria de estar
seguro. Justamente a plenitude do amor, do se-haver-encontrado
pode ser o portador da dádiva daquilo que não estamos em
condições nem de evocar, nem de criar, fazendo-nos saber que
assim [69] recebemos mais do que ambos (amor e encontro) nos
poderiam proporcionar. Da luz e da alegria de encontrar-se pode
raiar a proximidade do júbilo absoluto e do encontro simplesmente
presente por trás de todo o encontrar-se humano.

Com isso queria insinuar apenas de que maneira a existência


humana pode ser o ponto de partida da experiência do absoluto
que, sob este ponto de vista, é compreendido como "Deus-Filho",
como Salvador, ou mais simplesmente, como Deus relacionado com
a existência 5 . A outra fonte de conhecimento religioso é o conflito
do homem com o mundo, com as potências e os pavores com que
ali se depara. O cosmos com sua beleza e sua voragem abissal
tornou-se para o homem um campo de experiência da força que o
ameaça e, simultaneamente, o sustenta; resulta daí uma imagem
um tanto imprecisa e distante que se concretiza no semblante do
Deus-Criador, Pai.

Prosseguindo na análise desta questão, encontramos o


problema, já aduzido, das três formas do tema "Deus" –
monoteísmo, politeísmo e ateísmo. Transparece aí a unidade
liminar dos três caminhos, unidade que não pode significar nem
afirmar identidade, como se, ao cavar mais fundo, tudo se
reduzisse a uma e a mesma coisa, perdendo a sua importância as
formas anteriores. Argumentações em favor da identidade, para as
quais talvez se sinta tentada a especulação filosófica, em que,
contudo, se desprezaria a seriedade das decisões humanas,
certamente não corresponderiam à realidade. Sem que se possa
falar de identidade, um olhar mais fundo faria reconhecer que a
diferenciação dos três caminhos é diferente do que fazem supor as
três formas em que eles se manifestam: "há um Deus", "há muitos
deuses, "não há Deus". Entre as três fórmulas e a fé que elas
conotam existe uma [70] oposição intransponível, mas também
uma relação que o seu simples teor não permite suspeitar. Pois,
em última análise, as três estão convencidas da unidade e da
singularidade do absoluto, o que, aliás, poderia ser provado. O
monoteísmo acredita nesta unidade e singularidade. Mas, não
apenas ele; também para o politeísmo os inúmeros deuses aos
quais dirige sua piedade e esperança, jamais representaram o
próprio absoluto; também o politeísmo estava convencido de que,
por trás das numerosas potências, se encontra afinal, em algum
lugar, o Ser único, que o ser, em última análise, é um só ou, ao
menos, é o eterno conflito dentro de um primitivo paradoxo 6 . Por
outro lado, o ateísmo não suprimiu de modo algum a unidade do
ser pelo fato de impugnar a identificação da unidade de todo ser
pela idéia de Deus. A mais forte e ativa forma de ateísmo, o
marxismo, afirma, de modo o mais rígido, essa unidade do ser em
todos os seres, ao equiparar o ser com a matéria. Sem dúvida, o
elemento que é o próprio ser, como matéria, separa-se
completamente da antiga concepção do absoluto, ligada com a
idéia de Deus, mas ao mesmo tempo recebe traços que fazem
ressaltar claramente o caráter absoluto da matéria, tornando
assim a evocar a idéia de Deus.

Portanto, os três caminhos estão convencidos da unidade e


da singularidade do absoluto; diferem apenas na maneira como
querem que o homem deva tratar com o absoluto,
respectivamente no modo como o absoluto se coloca frente ao
homem. Falemos de modo muito esquemático: o monoteísmo parte
da idéia de que o absoluto é consciente, conhece o homem e pode
tratar com ele. Para o materialismo, o absoluto (=matéria)
apresenta-se despojado de qualquer predicado [71] pessoal, não
sendo capaz de ser posto em contacto com os conceitos de
"chamamento" e "resposta". No máximo poder-se-ia dizer que o
mesmo homem deve libertar da matéria o elemento divino,
passando a ter Deus, não atrás de si, mas em sua frente, como o
elemento ativado criativamente pelo homem e como seu próprio
futuro melhor. Finalmente, o politeísmo tem relação estreita tanto
com o monoteísmo, como com o ateísmo, porque os deuses de que
ele fala supõem a singularidade de um poder sustentador
perfeitamente concebível em um e outro sistema. Nem seria difícil
mostrar como o antigo politeísmo andava emparelhado com o
ateísmo metafísico e unido ao monoteísmo filosófico 7 .

Todas estas questões são importantes para quem deseja


seguir a pista do tema "Deus" na situação hodierna. Seria preciso
muito tempo e paciência para um estudo profundo. Baste-nos, ao
menos, tê-los aduzido. São assuntos que encontraremos mais
explicitados, ao estudar o destino da fé bíblica para cuja pesquisa
o nosso estudo nos orienta. Prosseguindo na senda do problema de
Deus, continuamos encarando a luta da humanidade em torno do
seu Deus e exposta ao âmbito inteiro da questão.

2. O reconhecimento de um Deus

Voltemos ao texto do qual tínhamos partido, a saber, à frase


do símbolo: "Creio em Deus, Pai, todo-poderoso, Criador". Frase
com a qual os cristãos professam a sua fé [72] há quase dois mil
anos, frase que procede de outra história mais antiga ainda: atrás
dela encontra-se a profissão de fé diária de Israel, cuja variante
cristã ela representa: "Ouve, ó Israel, Iahvé, teu Deus, é um único"
8 . O "Credo" cristão colheu em suas primeiras palavras o "Credo"
israelita, inclusive a luta de Israel, sua experiência da fé e seu
combate em torno de Deus, que assim se transforma em dimensão
interna da fé cristã, a qual não existiria sem luta. Muito
lateralmente damos aqui com uma importante norma da história
da religião e da fé, a saber, que fé e religião sempre se
desenvolvem e evoluem por nexos, jamais no sentido de uma total
descontinuidade. A fé de Israel, sem dúvida, representa um
elemento novo, em confronto com a fé dos povos vizinhos; contudo
não se trata de algo caído do céu, mas de uma cristalização
efetuada no embate com a fé dos outros povos, em que uma
seleção belicosa e uma re-interpretação diferente representam, ao
mesmo tempo, o elo e a mudança.

"Iahvé, teu Deus, é um único Deus", profissão fundamental


situada no âmago do nosso "Credo" é, em seu sentido original, uma
renúncia aos deuses vizinhos. É profissão no sentido pleno da
palavra, isto é, não uma constatação de uma opinião ao lado de
outras, mas uma opção existencial. Como renúncia aos deuses
significa repúdio ao endeusamento dos poderes políticos, e ao
endeusamento do "morre e torna-te" cósmico. Afirma-se que fome,
amor e domínio são as três forças que movem a humanidade.
Ampliando-se esta afirmação, pode-se constatar que as três formas
fundamentais do politeísmo são a adoração do pão, a adoração do
Eros e a divinização do poder. Os três caminhos são aberrações,
absolutizações do que não é o absoluto e, por isto, escravização do
homem. Certamente, trata-se de aberrações em que transparece
[73] alguma coisa do poder que sustenta o universo. Mas a
profissão de fé de Israel é, como foi dito, uma declaração de
guerra contra a tríplice adoração, constituindo assim um processo
de máxima importância na história da libertação do homem. Na
declaração de guerra contra a tríplice adoração, a profissão de fé
é, ao mesmo tempo, um grito de guerra contra a proliferação do
divino em geral. É a renúncia a deuses próprios (vê-lo-emos mais
tarde). Ou, expresso de outro modo, a renúncia à divinização do
que é próprio do homem, típica do politeísmo. E também é a
renúncia à própria segurança, ao medo, que tenta apaziguar o
ominoso, prestando-lhe culto; e é a adesão ao Deus único do céu,
como potência que protege tudo; significa coragem de confiar-se à
força que domina o universo inteiro, sem tomar o divino nas mãos.

A atmosfera inicial oriunda da fé de Israel não se alterou


fundamentalmente no "Credo" cristão primitivo. Também nele o
ingresso na comunidade e a aceitação do seu "símbolo" significa
uma decisão existencial de pesadas conseqüência. Pois quem
entrasse neste "Credo", simultaneamente consumiria a renúncia à
legislação do mundo do qual era parte integrante, uma renúncia à
adoração do poder político dominador, sobre o qual se baseava o
império romano, renúncia da adoração do prazer, do culto do
medo e da superstição que predominavam no mundo. Não foi por
acaso que a luta cristã se deflagrou no campo assim demarcado,
transformando-se em guerra em torno da própria forma básica da
vida pública antiga.

Creio que para a hodierna compreensão aprofundada e


atualizada do "Credo" é de importância decisiva voltar a focalizar
esses nexos. Somos levianos demais, considerando como fanatismo
de tempos antigos, e por isto fanatismo desculpável, embora
impossível hoje em dia, a atitude de recusa dos cristãos, até com
sacrifício da vida, a participar, de qualquer [74] modo, no culto
prestado ao imperador; o repúdio até das formas mais inocentes,
como a inscrição na lista dos sacrifícios, expondo a própria vida em
defesa de seus pontos de vista. Hoje distinguiríamos, em tal caso,
entre a lealdade civil indispensável e o ato realmente religioso,
tentando achar uma saída possível e tomando em conta o fato de
não poder esperar-se heroísmo de homens medianos. Quiçá
semelhante distinção seja possível em certos casos, e isto graças à
decisão que outrora fora tomada. Em todo caso é importante
acentuar que a recusa de então muito longe estava de qualquer
fanatismo mesquinho e que ela transformou o mundo de uma
maneira que só é possível pelo empenho do sofrimento. Naquelas
perseguições antigas ficou patente que fé não é brinquedo, mas
coisa séria: a fé diz: "não" e é obrigada a dizer "não" ao
absolutismo do poder político, à adoração do domínio e dos
poderosos em geral – "depôs os poderosos de seus tronos" (Lc 1,52),
quebrando assim definitivamente a pretensão totalitária do
princípio político. A afirmação: "somente há um Deus",
precisamente por não estar contaminada por nenhuma intenção
política, representa um programa de importância política decisiva:
graças ao caráter absoluto do seu Deus, que assim se inculca a
cada um e graças ao relativamento em que assim se colocam todos
os agrupamentos políticos pela unicidade ao Deus que os abrange a
todos, temos aí a única defesa definitiva contra o coletivismo e
também a supressão total de qualquer exclusivismo humano.

O que foi afirmado sobre a luta da fé contra a adoração do


poder poderia aplicar-se no terreno dos esforços pelo autêntico
amor humano, na luta contra a falsa adoração do sexo e do Eros,
fontes de escravização não menos trágica da humanidade do que o
abuso do poder. É mais do que simples metáfora, quando os
profetas descrevem a apostasia de Israel como "adultério". Os
cultos idólatras quase sempre estavam ligados à prostituição
cúltica e, assim, já a aparência externa [75] os apresentava como
adultério. Além disto, eles revelam o seu espírito. O amor
definitivo, indivisível e uno entre homem e mulher finalmente só
se realiza e se compreende na unidade e indivisibilidade do amor
de Deus. Hoje cresce o nosso conhecimento de que não se trata,
no amor, de uma dedução filosófica independente, mas de uma
realidade muito mais fundamental que resiste ou cai de acordo
com a fé em um Deus único. E compreendemos melhor que a
liberação do amor, degenerando em simpatia (ou camaradismo) do
instinto, representa a entrega do homem às fúrias desencadeadas
do sexo e do Eros, sob cuja escravidão cruel ele tomba, sonhando
ter-se emancipado. Subtraindo-se a Deus, atacam-no os deuses, e
a liberação do homem só se realiza na medida em que se deixa
livrar e cessa de apoiar-se sobre si mesmo.

Não menos importante do que o esclarecimento da renúncia


encerrada no "Credo" é compreender a afirmação nele contida; e
isto porque a renúncia só se sustenta a partir da afirmação e, a
seguir, também porque a renúncia dos primeiros séculos cristãos se
comprovou de tão grande eficiência histórica, que os deuses
desapareceram para sempre. Certamente, não desapareceram as
potências expressas nas divindades, nem desapareceu a tentação
de absolutizar todas as energias. Um como o outro pertence ao
cerne da situação humana e exprime a perene "verdade" do
politeísmo: o absolutismo da força, do pão e do Eros não nos
ameaça menos do que ao homem antigo. Porém, embora os deuses
de então continuem hoje como "forças" a tentar impor-se de modo
absoluto, deixaram tombar a máscara do divino e são obrigados a
apresentar-se em sua verdadeira profanidade. Eis aí a base da
diferença entre o paganismo pré e pós-cristão, que continua
marcado pelo dinamismo histórico da renúncia cristã aos deuses.
No vazio em que hoje nos encontramos, urge tanto mais a
pergunta: qual é o conteúdo da afirmação que a fé cristã conota?
CAPÍTULO SEGUNDO

A Fé em Deus na Bíblia

[77] Para compreender a fé bíblica em Deus é preciso seguir-


lhe a evolução histórica, desde as origens nos patriarcas de Israel
até aos escritos do Novo Testamento. O Antigo Testamento, com o
qual logicamente devemos começar, põe-nos nas mãos um fio
condutor que orienta os nossos esforços: com efeito, o Antigo
Testamento formulou sua idéia de Deus essencialmente em dois
nomes: Elohim e Iahvé. Nestas duas denominações revela-se a
segregação e a escolha feita por Israel em seu mundo religioso e,
simultaneamente, torna-se visível a opção positiva realizada em
uma tal escolha e na subseqüente conversão do eleito.

1. O problema histórico da sarça ardente

Como texto central do conhecimento de Deus no Antigo


Testamento certamente deve ser apontada a narrativa da sarça
ardente (Ex 3) em que, junto com a revelação do nome de Deus a
Moisés, se coloca a base decisiva do deus que, a partir dali,
dominará a Israel. O texto descreve a vocação de Moisés para
chefe de Israel pelo Deus oculto-revelante na chama da sarça, e a
hesitação de Moisés que exige um conhecimento claro do seu
comitente e uma clara prova de sua autoridade. Neste contexto
desenvolve-se o diálogo em torno do qual jamais cessarão as
especulações:

[78] "E Moisés disse a Deus: "Eis que eu me apresentarei aos


filhos de Israel e lhes direi: O Deus de vossos pais enviou-me a vós.
Mas se me perguntarem: "Como se chama?" Que lhes responderei?"
E Deus disse a Moisés: "SOU AQUELE QUE SOU". E acrescentou:
"Assim falarás aos filhos de Israel: EU SOU mandou-me a vós". E
Deus disse ainda a Moisés: "Assim falarás aos filhos de Israel:
Jahvé, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o. Deus de Isaac e
o Deus de Jacó enviou-me a vós. Esse é o meu nome para a
eternidade, e essa é a minha denominação para todos os séculos"
(Ex 3,13-15) (Texto da Bíblia Sagrada Ed. Paulinas, 1967).

Dentro do sentido do texto é evidente a intenção de


fundamentar o nome "Iahvé" como nome decisivo de deus em
Israel, primeiro fixando-o historicamente na origem da gênese do
povo israelita e no acontecimento da aliança, e, em seguida,
dando-lhe uma explicação do conteúdo. Este último sucede pela
redução do incompreensível vocábulo "Iahvé" à raiz "haia" (= ser).
Isto é possível dentro do resíduo consonantal hebraico. Mas, ao
menos é problemático se tal explicação corresponda
filologicamente à real procedência do termo "Iahvé": trata-se –
como tantas vezes no Antigo Testamento – de uma etimologia
teológica e não filológica. Não é o caso de pesquisar um sentido
primitivo dentro da gramática histórica, mas de realizar um
sentido, em concreto. A etimologia realmente torna-se
instrumento de um comportamento que cria um sentido. A este
esclarecimento do nome "Iahvé" pela palavra "ser" acrescenta-se
então uma segunda tentativa de esclarecer: quando se diz que
lahvé é o Deus dos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Ou
seja: a compreensão da palavra deve ser alargada e aprofundada
pela equiparação do Deus assim denominado ao Deus dos
patriarcas de Israel, que era invocado com "El" ou "Elohim".

Tentemos ver a imagem de Deus assim surgida. Primeiro, que


significa essa idéia do "ser" trazida à baila como explicação [79] de
Deus? Para os Padres vindos da filosofia grega havia aí uma
inesperada e ousada confirmação do seu próprio passado filosófico,
pois a filosofia grega considerava descoberta sua decisiva o ter
averiguado a presença oni-abarcante da idéia do ser por trás das
inumeráveis coisas com que o homem diariamente se tinha de
haver, idéia esta em que viam a mais adequada expressão da
divindade. E a Bíblia parecia afirmar exatamente o mesmo em seu
texto central sobre a imagem de Deus. Não era o caso de ver aí
uma espantosa confirmação da unidade de fé e filosofia? Com
efeito, a patrística viu revelar-se aí a mais profunda unidade de
pensamento e fé, de Platão e Moisés, de espírito grego e bíblico.
Sentiu tão completamente a identidade entre a busca filosófica e a
aceitação do que se lhe oferecia na fé de Israel, que chegou a
defender a tese de que Platão não seria capaz de chegar a
semelhante conhecimento por seus próprios recursos, tendo
seguramente conhecido o Antigo Testamento donde haurira suas
idéias. Assim o cerne da filosofia platônica indiretamente se viu
reduzido à Revelação – já que não se ousava derivar das forças do
espírito humano uma concepção de profundeza tão radical como o
platonismo.

Na realidade, o texto do Antigo Testamento ao alcance dos


Padres favorecia o desabrochar da idéia de identidade entre Platão
e Moisés, aliás com a dependência colocada, antes, do outro lado:
os tradutores do Antigo Testamento para o grego estavam sob a
influencia da filosofia grega, tendo lido e interpretado o texto
original à luz desta filosofia. Deve tê-los impressionado o
pensamento de que o espírita helênico e a fé bíblica se
entrosavam; os tradutores construíram, por assim dizer, a ponte a
ligar o conceito bíblico de Deus com o pensamento grego, ao
traduzir o versículo 14: "Sou aquele que sou" com a- frase: "Sou o
existente". Assim identifica-se o nome bíblico com o conceito
filosófico. O escândalo do nome, do Deus que se nomeia, fica
diluído no [80] oceano do pensamento ontológico; a fé casa-se com
a ontologia. Com efeito, constitui escândalo para o pensamento o
fato de o Deus bíblico ter nome. Será este fato mais do que uma
lembrança do mundo politeísta em que a fé bíblica começou a
germinar? Em um mundo que formigava de deuses, era impossível
Moisés dizer: Deus manda-me. Nem mesmo: O Deus dos pais envia-
me. Ele sabia que isto não significava nada e que iriam perguntar-
lhe: Que Deus? Mas a questão é a seguinte: ter-se-ia podido dar ao
"Ente" platônico um nome, manifestando-o como indivíduo? Ou, o
fato de poder denominar-se esse Deus não seria expressão de uma
idéia fundamentalmente diversa? E, acrescentando-se que, para o
texto, é de importância a idéia de que só se pode chamar pelo
nome a Deus, porque ele mesmo se chamou, aprofunda-se o fosso
para a idéia platônica, para o ser como ponto final do pensamento
ontológico que não é nomeado e, muito menos, se nomeia.

Então a versão grega e as conclusões patrísticas dela tiradas


basear-se-iam em um equívoco? A respeito disto não é só os
exegetas de hoje que têm o mesmo parecer, como também os
sistemáticos acentuam-no com muita força e com a exatidão que
esta questão merece, acima de todos os problemas exegéticos.
Assim Emil Brunner afirma com toda decisão que o sinal de
identidade entre o Deus da fé e o Deus dos filósofos, colocado
aqui, significa a conversão da idéia bíblica de Deus no seu oposto.
Em lugar do nome põe-se aqui o conceito, em lugar do indefinível
entra a definição 9 . Com o que se coloca em discussão a exegese
patrística inteira, a fé em Deus da Igreja antiga, a profissão e a
imagem do Deus do símbolo. Trata-se de uma queda na
helenização, da apostasia do Deus ao qual o Novo Testamento
chama de Pai [81] de Jesus Cristo, ou estará expresso aqui, sob
novos pressupostos, o que sempre é de afirmar-se?

Antes de mais, cumpre, embora mui de leve, pesquisar o


estado real exegético da situação. Que significa o nome "Iahvé" e o
que quer dizer a sua interpretação pela palavrinha "ser"? As duas
perguntas dependem uma da outra, sem que sejam idênticas.
Tentemos primeiro focalizar mais de perto a primeira delas. Ainda
estamos em condições de estipular alguma coisa sobre o primitivo
significado do nome Iahvé, partindo de sua origem lingüística? Isto
é quase impossível, porque exatamente a respeito desta origem
tateamos no escuro. Sem dúvida uma coisa pode-se afirmar
claramente: falta uma comprovação segura do nome Iahvé, antes
de Moisés, fora de Israel; e nenhuma das tentativas de descobrir as
raízes. pré-israelitas do nome convence. Sem dúvida conhecem-se,
já antes, partículas como iha, ia, iahv, contudo o pleno
desdobramento do nome Iahvé realizou-se primeiramente em
Israel, enquanto o podemos constatar hoje; parece ser obra da fé
de Israel que, não sem relação com o resto, refundiu de modo
criativo, para si, o seu próprio nome divino e desenvolveu nele a
sua própria imagem de Deus 10 .

Mas hoje existem indícios de que a formação desse nome


realmente foi obra de Moisés, que, mediante ele, carreou nova
esperança aos seus compatriotas escravizados: a formação
definitiva de um nome divino próprio e, com ele, a idéia própria
de Deus parecem ter sido o ponto de partida da gênese étnica dos
israelitas. Também sob o enfoque meramente histórico [82] pode-
se afirmar que Israel se tornou povo a partir de Deus, e
exclusivamente a partir da vocação para a esperança que o nome
divino significava, é que chegou a ser o que é. Entre as numerosas
indicações e pontos de referências para a época pré-israelita do
nome Iahvé, que dispensam um debate neste lugar, a mais bem
fundamentada e, ao mesmo tempo, objetivamente de uma
fertilidade peculiar, parece-me a observação de H. Cazelles que
chama a atenção para os nomes teofóricos (nomes de pessoas com
uma referência a Deus) no reino da Babilônia, nomes formados
com a partícula "yaun", respectivamente encerrando o elemento
"yau" ou "ya", que conota .aproximadamente "o meu", "meu Deus".
Na confusão de tipos divinos com que tinha de se haver, essa
forma aponta para o Deus pessoal, isto é, para o Deus que, voltado
para o homem, é pessoal e tem relação com as pessoas. É o Deus
que, existindo pessoalmente, tem a ver com o homem como
homem. Esta observação é digna de nota, enquanto se cruza com
um elemento central da fé pré-mosaica, a saber, com a imagem de
Deus que costumamos chamar "o Deus, dos nossos pais", com apoio
na Bíblia 11 . A etimologia proposta cobrir-se-ia assim com o que
narra a história da sarça ardente, como suposição interna da fé em
Iahvé, ou seja com a fé do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó.
Portanto, voltemos a atenção para esta figura sem a qual não é
possível desvendar o sentido da mensagem de Iahvé.
2. Pressuposto intrínseco da Fé em "Iahvé": o Deus dos pais

Na raiz etimológica e lógica do nome "Iahvé" que julgamos


reconhecer no Deus pessoal insinuado pela forma "yau", torna-se
visível tanto a escolha como a segregação que afetou a Israel em
seu ambiente religioso-histórico, como também a continuidade
com a pré-história de Israel desde [83] Abraão. Sem dúvida, o Deus
dos pais não se chamava Iahvé, mas vem-nos ao encontro como "El"
ou "Elohim". Assim os patriarcas podiam entrosar-se com a religião
de El, do seu mundo ambiente, caracterizada essencialmente pelo
cunho social e pessoal da divindade denominada El. O Deus pelo
qual optaram distingue-se religioso-tipicamente pelo fato de ser
numen personale (um Deus pessoal) e não numen locale (um Deus
local). Que vem a ser isto? Tentemos explicá-lo brevemente
partindo cada vez do ponto de saída do que se diz. Primeiro,
poderíamos lembrar-nos do seguinte: a experiência religiosa da
humanidade deflagra-se em lugares sagrados onde, por um motivo
qualquer, o todo outro, o divino, se torna particularmente
sensível; uma fonte, um roble poderoso, uma pedra misteriosa ou
um acontecimento incomum podem tornar-se ativos. Mas então,
em breve, surge o perigo de que o lugar da experiência religiosa e
a própria divindade se confundam, de modo que o homem acredite
em uma presença especial de Deus em determinado lugar, não a
supondo possível em outro – o local torna-se lugar sagrado,
habitação da divindade. Ou então, a ligação local com o divino
assim efetuada conduz, com uma espécie de fatalismo, para a sua
multiplicação: a experiência do sagrado dá-se em muitos lugares e
não em um apenas, embora o sagrado seja imaginado como
circunscrito cada vez ao seu local; por isto surge uma mulplicidade
de divindades locais que se tornam divindades próprias dos
respectivos espaços. Pode-se constatar certa sombra destas
tendências mesmo no cristianismo, entre fiéis pouco esclarecidos,
para os quais as Madonas de Lourdes, Fátima ou Aparecida são
seres diferentes e não representações da mesma pessoa. Mas
voltemos ao nosso tema. Em contraposição à tendência pagã do
numen locale, da divindade local, ou seja condicionada e limitada
localmente, o Deus dos patriarcas expressa uma determinação
completamente diversa. Não é o Deus de um lugar, mas o Deus dos
homens: o Deus de Abraão, de Isaac, de Jacó, que não está ligado
a um local, mas se acha, poderoso e ativo, em toda parte, onde se
encontre o homem. Assim chega-se a um modo todo outro de
pensar sobre Deus. Deus é visto no plano do "eu" e do "tu", não no
plano espacial. Afasta-se para a transcendência do ilimitado e,
exatamente assim, se revela como o próximo em toda parte (e não
em um local apenas), cujo poder é ilimitado. Ele não está em
alguma parte, mas encontra-se onde está o homem e onde o
homem se deixa encontrar por ele. Decidindo-se por El, os pais de
Israel realizaram uma escolha de maior transcendência: pelo
numen personale contra o numen locale, do Deus pessoal e
relacionado pessoalmente, que pensa e se encontra no âmbito do
"eu" e do "tu" e não, primariamente, em lugares sagrados 12 . Esse
traço fundamental do El permaneceu um dos elementos básicos
não só da religião de Israel, como também da fé do Novo
Testamento: um Deus pessoal é o ponto de partida da religião, um
Deus é compreendido naquele plano que se caracteriza pela
relação do "'eu" com o "tu".

A este aspecto que determina essencialmente a localização


da fé em El, cumpre acrescentar um segundo: El não é considerado
apenas como dono de personalidade própria, como Pai, Criador dos
seres, como Sábio, e Monarca; ele impõe-se sobretudo como o
Deus máximo, como a suprema força, como o que paira acima de
todas as coisas. Não é preciso destacar que também este segundo
elemento se conservou característico para a experiência bíblica
inteira de Deus. Não se opta por uma força qualquer a atuar em
um lugar qualquer, mas exclusivamente por aquela força que inclui
em si todo o poder e que sobrepuja a todas as demais dominações.

Finalmente temos de apontar para um terceiro elemento que


igualmente perdura através de todo o pensamento bíblico: esse
Deus é o Deus da promessa. Não é uma força da natureza, em cuja
epifania (revelação, manifestação) se mostra o eterno poder da
natureza, o eterno "morre e serás"; não é um Deus a orientar o
homem para o imutável bailado do cosmos, mas a apontar para o
que há de vir, para a meta de sua história, para o sentido e o fim
que são definitivos – é o Deus da esperança colocada no futuro, um
rumo que é irreversível.

Finalmente ainda resta dizer que a fé em El foi aceita pelos


israelitas sobretudo em sua forma desdobrada em "Elohim", na qual
se revela, ao mesmo tempo, o processo de metamorfose de que a
figura de El também precisava. Poderia causar espécie o fato de
substituir-se aqui o singular "El" por um termo que, propriamente,
denota plural (Elohim). Sem precisar expor os detalhes
multiformes deste processo, seja dito que foi exatamente assim
que Israel conseguiu acentuar sempre mais a singularidade do seu
Deus: um Deus único, mas supergrande, todo outro, ultrapassando
os limites de singular e plural, estando além deles. Embora não se
encontre no Antigo Testamento (pelo menos em seu estágio mais
antigo) nenhuma revelação trinitária, oculta-se neste fato uma
experiência orientadora para a doutrina cristã do Deus trino. Sabe-
se, embora sem refletir, que, por um lado, Deus é radicalmente
um, sem contudo poder ser enquadrado em nossas categorias de
singular e plural, ficando acima delas, de modo que, afinal,
também não pode ser determinado com exatidão pela categoria
"um", por mais que, na verdade, seja um Deus apenas. Na história
antiga de Israel (e também mais tarde, exatamente para nós) isto
significa que, dessa maneira, foi incorporado o legítimo problema
inerente ao politeísmo 13 . [86] O plural relacionado com o Deus
único significa: Ele é tudo que é divino.

Se quiséssemos falar adequadamente sobre o Deus dos


patriarcas, deveríamos acrescentar agora que espécie de renúncia
se acha incluída na afirmação que se nos apresenta nas formas El e
Elohim. Baste o aceno para dois nomes divinos que predominavam
no ambiente existencial de Israel. São excluídas as idéias de Deus
espalhadas entre os povos vizinhos dos israelitas sob o nome de
Baal (= o Senhor) e Melech ou Moloch (= rei). Repudia-se assim o
culto da fertilidade e a ligação local do divino que ela envolve.
Além disto, com a negação do deus régio Melech, repudia-se
determinado modelo social. O Deus de Israel não se refugia na
distância aristocrática de um rei, não conhece o despotismo
ilimitado que, naquele tempo, se ligava ao conceito de monarca –
é o Deus próximo capaz de tornar-se o Deus de cada pessoa.
Quanto se poderia dizer e ponderar sobre este ponto!...
Renunciemos a isto, para tornar ao ponto de partida, à questão do
Deus da sarça ardente.

3. Iahvé, Deus dos patriarcas e de Jesus Cristo

Iahvé é considerado o Deus dos patriarcas. Na fé em Iahvé


incluem-se todos os ingredientes que eram visados na fé dos pais,
recebendo assim um nexo novo e nova forma. Mas, onde está o
específico, o novo expresso com o vocábulo "Iahvé"? São numerosas
as respostas; não é possível transmitir com certeza o sentido exato
das fórmulas de Ex 3. [87] Contudo, destacam-se dois aspectos.
Constatamos que, para a nossa mentalidade, o simples fato de um
Deus que tem nome, surgindo como uma espécie de indivíduo,
causa escândalo. Mas, encarando mais de perto o texto, surge a
pergunta: Tratar-se-ia realmente de um nome? Tal pergunta
inicialmente parece absurda, pois está fora de dúvida que Israel
conhecia a palavra Iahvé como um nome divino. Uma leitura
atenta, no entanto, mostra que a cena da sarça ardente expõe
este nome de modo tal, que ele parece excluído como nome; em
todo caso, parece afastar-se do rol de denominações divinas, a que
primeiro parece pertencer. Escutemos com atenção! Moisés
pergunta: Os filhos de Israel, aos quais me envias, dirão: Quem é o
Deus que te manda? Qual é o seu nome? Como deverei responder-
lhes? A seguir relata-se que Deus retrucou a Moisés: "Sou aquele
que sou"; também poderíamos traduzir: "Sou o que sou". Temos aí
propriamente uma recusa; parece antes uma negação de citar o
nome, do que uma apresentação do nome. A cena toda está
envolvida como que em atmosfera de mau humor, por causa de
tamanha importunação e a resposta vem impaciente: Ora, sou
quem sou! A idéia de que aqui não se dá nome algum, mas de que
a pergunta de Moisés foi rejeitada, torna-se mais provável, através
do cotejo com os dois textos que se poderiam aduzir como
paralelos ao nosso: Jz 13,18 e Gên 32,30. No texto de Jz 13,18 um
certo Manué pergunta pelo nome do Deus que lhe aparece. Recebe
como resposta: "Por que perguntas pelo meu nome? Ele é mistério
(ou: ele é misterioso)". Não é mencionado nome algum. Em Gên
32,30 é Jacó quem pergunta pelo nome, após a luta noturna com o
desconhecido; e também ele recebe uma resposta negativa: "Por
que perguntas por meu nome?" Ambos os tópicos são muito
aparentados com o nosso texto, tanto lingüisticamente, como
estruturalmente, de modo que se tornaria difícil não aceitar entre
eles uma dependência ideal. Também aqui nota-se [88] o gesto da
recusa. O Deus com o qual Moisés trata na sarça ardente não pode
citar seu nome, da mesma maneira como os deuses vizinhos;
deuses-indivíduos ao lado de outros da mesma espécie e por isto
necessitados de um nome. O Deus da sarça não se enfileira entre
eles.

No gesto da recusa transparece um pouco desse Deus todo


outro frente às divindades. A interpretação do nome "Iahvé" pelo
verbo "ser" serve, assim, a uma espécie de teologia negativa.
Destaca o nome como nome, realizando, por assim dizer, a volta
do excessivamente conhecido (que o nome parece indicar) ao
desconhecido, ao oculto. Dissolve o nome no seio do mistério, de
modo que, no nome, se equiparam ser conhecido e não ser,
ocultamento e revelação de Deus. O nome, sinal de conhecimento,
torna-se sigla para o perene "ser-desconhecido" e "ser-inominável"
de Deus. Em vez da idéia de poder apreender a Deus, oculta-se
aqui a permanência da infinita distância. E neste sentido foi
legítima aquela evolução pela qual os israelitas evitavam mais e
mais pronunciar esse nome, usando de perífrases, de modo que, na
versão grega, ele não figura mais, tendo sido substituído pela
palavra "Senhor". Nesta evolução compreende-se mais exatamente,
sob muitos pontos de vista, o mistério da cena da sarça, do que em
muitas explicações filológicas.

Mas, com todas essas considerações só encaramos metade da


questão, pois que, em todo caso, Moisés fora autorizado a dizer:
"EU SOU mandou-me a vós" (Ex 3,14). Dispõe de uma resposta,
mesmo que seja um enigma. E não se pode, não se deve decifrá-la
um pouco mais? A exegese moderna em geral vê nesta palavra a
expressão de uma proximidade auxiliadora. Deus não se identifica
ali – como na filosofia – pela sua natureza, como é em si, mas
revela-se como um Deus para Israel, um Deus para o homem. "Eu
sou" é o mesmo que "eu estou aí!", "estou aí para vós"; acentua-se
a presença de Deus em função do bem de Israel; seu ser (sua [89]
natureza) não é explicado como um ser em si, mas como um ser-
para 14 . Aliás, Eissfeldt considera possível não só a versão "ele
ajuda", mas também "ele chama para a vida, ele é criador", e até
"ele é", e "o existente". O exegeta francês Edmond Jacob acha que
o nome "EI" exprime a vida como força, "Iahvé" como duração e
presença. Se Deus se chama aqui "eu sou", explicar-se-ia como
aquele que "é", como o ser em contraposição ao devir, como o
permanente e existente em oposição ao transitório. "Toda a carne
é como erva, e toda glória, como flor do campo... A erva seca, a
flor fenece, mas a palavra do nosso Deus permanece perene" (Is
40,6-8).

Atendendo-se a este texto, torna-se visível um nexo que, até


agora, tinha sido pouco ponderado. Para o Deutero-Isaías era uma
das idéias básicas de sua mensagem: a caducidade das coisas deste
mundo; os homens, por poderosos que aparentem ser, no fim são
como as flores que desabrocham um dia e são colhidas e secam no
dia seguinte, enquanto que, no centro desse gigantesco espetáculo
de caducidade, o Deus de Israel "é", não "devém". Ele "é" em todo o
devir e perecer. Certamente, este "é" de Deus, a pairar estável por
cima da mutabilidade do devir não se acentua sem nexo. Muito
mais é ele que, simultaneamente se aprova, se firma; ele está ali
para nós e, através do seu "estar", dá-nos firmeza em meio à nossa
insegurança. O Deus que "é", simultaneamente é um Deus que está
conosco; não é um mero Deus em si, mas o nosso Deus, o Deus dos
nossos pais.

E tornamos à pergunta feita no início das considerações sobre


a narrativa da sarça: que relação existe entre o Deus da fé bíblica
e a idéia platônica de Deus? O Deus que se identifica e que tem um
nome, o Deus que auxilia e está presente, seria algo radicalmente
diverso do esse subsistens, o ser [90] simplesmente, encantoado no
ermo silencioso do pensamento filosófico, ou...? Creio ser
necessário olhar ainda um pouco mais de perto para a idéia bíblica
de Deus e para a opinião dos filósofos, para tirar a limpo esta
questão e compreender o sentido do falar cristão sobre Deus.
Primeiramente quanto à Bíblia, é importante não isolar a cena da
sarça ardente. Acabamos de ver que ela deve ser compreendida a
partir do ambiente de um mundo saturado de deuses, no qual,
relacionando e diferenciando, ela torna visível a fé de Israel e,
simultaneamente, impulsiona o seu desenvolvimento, aceitando
como elemento racional a idéia do ser, tão rica de cambiantes. O
processo interpretativo com o qual deparamos em nossa narrativa
não terminou ali, mas foi retomado sempre de novo e desenvolvido
no correr da luta bíblica em torno de Deus. Ezequiel e, sobretudo,
o Deutero-Isaías bem mereceriam o cognome de teólogos do nome
de Iahvé, pois a partir dele desdobraram a sua pregação profética
de modo acentuado. O Deutero-Isaías, como se sabe, fala no fim
do exílio babilônico, no momento em que Israel começa a encarar
o futuro com esperança renovada. O poder babilônico,
aparentemente invencível, que havia escravizado os israelitas,
está despedaçado; Israel, tido como morto, ressurge da ruína.
Assim para o profeta torna-se idéia central opor o Deus que "é" aos
deuses que passam. "Eu, Iahvé, sou o primeiro e estou também
entre os últimos" (Is 41,4). O último livro do Novo Testamento, o
Apocalipse, repetirá o mesmo pensamento visando a dificuldades
parecidas: diante de todas as potências ele já está, e continua
estando atrás e depois delas (Ap 1,4; 1,17; 2,8; 22,13). Mas,
tomemos a Isaías: "Eu sou o primeiro, e depois deste e fora de mim
não há Deus" (44,6). "Sou eu, eu sou o primeiro, e também serei o
último" (48,12). O profeta cunhou aí uma fórmula nova na qual se
retoma o fio condutor da história da sarça e só enriquece-a de
acentos novos. A fórmula foi objetivamente [91] reproduzida de
modo certo no texto grego: "eu o sou" (ἐγώ εἰμι) 15 . Neste simples
"eu o sou" coloca-se o Deus de Israel frente aos deuses, e
identifica-se como aquele que é, em oposição àqueles que foram
destruídos e passaram. O enigmático e tão conciso "eu o sou"
torna-se o eixo da pregação do profeta, em que se manifesta sua
luta contra as divindades, contra o desespero de Israel, sua
mensagem de esperança e de certeza. Em oposição ao mesquinho
panteão babilônico e aos seus destronados ídolos, ergue-se o poder
de Iahvé, simples e sem retoques, na expressão "eu o sou" a
acentuar a sua total superioridade acima de todos os poderes
divinos e não divinos deste mundo. O nome de Iahvé, cujo sentido
assim se torna presente, avança um passo a mais no rumo da idéia
daquele que "é" em meio a toda a caducidade das coisas e
aparências, às quais não cabe nenhuma duração.

Demos um último passo que nos leve ao Novo Testamento. A


linha que coloca, sempre em crescendo, a idéia de Deus sob a luz
do conceito do ser, interpretando a Deus com o simples "eu sou",
torna a surgir no Evangelho de S. João, ou seja, no derradeiro
intérprete bíblico; João traça a síntese da fé em Jesus, fé que,
para os cristãos, representa ao mesmo tempo o último passo da
auto-interpretação do movimento bíblico. O pensamento de João
se entrosa exatamente com a literatura dos livros sapienciais e o
Deutero-Isaías; e somente com este fundo literário é que pode ser
compreendido. João eleva o "eu o sou" de Isaías à idéia central de
sua fé em Deus, mas o faz colocando-o como núcleo de sua
cristologia: processo decisivo tanto para a [92] idéia de Deus,
como para a imagem de Cristo. A fórmula que, pela primeira vez,
se destaca no episódio da sarça; que, no fim do exílio, se
transforma em expressão da esperança e da certeza frente às
divindades em derrocada; e que representa a presença
permanente de Iahvé acima de todas estas potências, essa fórmula
encontra-se agora no centro da fé em Deus, através do testemunho
prestado em Jesus de Nazaré.

A importância desse processo torna-se de uma clareza


cristalina, se atendermos ao fato de João ter retomado o núcleo da
narração da sarça, como nenhum autor antes dele, a saber, a idéia
do nome de Deus. O pensamento de um Deus que se nomeia, que
se torna invocável mediante um nome avança até o cerne do seu
testemunho prestado pelo "eu o sou". João traça um paralelo entre
Cristo e Moisés também neste sentido, descrevendo a Cristo como
o personagem no qual a história da sarça alcança o seu sentido
pleno. O capítulo 17 todo – a chamada "oração sacerdotal" e,
provavelmente, o próprio núcleo do Evangelho em geral – gira em
torno da idéia "Jesus, o revelador do nome de Deus",
apresentando-se assim como o correlativo da narração da sarça. O
tema do nome divino volta, qual ritornello, nos versículos 6, 11,
12, 26. Destaquemos apenas os dois principais: "Manifestei o teu
nome aos homens que me deste, separando-os do mundo" (6). "Eu
dei-lhes a conhecer o teu nome e dar-lho-ei a conhecer ainda, para
que o amor com que me amaste esteja neles e eu esteja neles"
(26). Cristo surge aqui como sendo a mesma sarça ardente, da qual
brota o nome de Deus para os homens. Mas, na perspectiva do
quarto Evangelho, Jesus aplica a si o "eu o sou" de Ex 3 e de Is 43;
torna-se claro ser ele próprio o nome, isto é, a invocabilidade de
Deus. A idéia do nome entra agora em uma fase nova e decisiva.
Aqui "nome" não é mais somente uma palavra, mas uma pessoa: o
próprio Cristo. A cristologia, e correspondentemente a fé em
Cristo, [93] em conjunto, é elevada a uma única interpretação do
nome de Deus e do que ele significa. Com isto alcançamos um
ponto onde, qual cúpula, se impõe uma questão que interessa o
complexo inteiro tratado sobre o nome de Cristo.

4. A idéia do nome

Após estas considerações todas, urge, finalmente, fazer uma


pergunta muito geral: que quer dizer, afinal, um nome? E que
sentido há em falar no nome de Deus? Não penso em fazer uma
análise detalhada desta questão, deslocada neste lugar, mas
apenas indicar em poucos traços o que me parece essencial.
Primeiramente podemos dizer que existe uma diferença
fundamental entre a intenção visada por uma idéia e a intenção
incluída em um nome. A idéia quer reconhecer a natureza da coisa
como tal, tal como existe. O nome, pelo contrário, não procura a
natureza da coisa, tal como existe, independente de mim, mas a
ele lhe interessa tornar a coisa nominável, invocável, criar um
nexo para com ela. Certamente também o nome deve atingir a
própria coisa, mas com a finalidade de colocá-la em relação
comigo e, torná-la, assim, acessível. Exemplifiquemos: saber que
alguém se enquadra no conceito "homem" ainda não é suficiente
para criar uma relação para com ele. Somente o nome torna-o
nominável; através do nome o outro penetra na estrutura de minha
humanidade e pode ser chamado. Portanto o nome cria o
entrosamento, a correlação com a estrutura social das relações.
Quem é considerado como mero número é rejeitado da estrutura
da co-humanidade. Ora, o nome cria a relação para com os outros.
Confere a um ser a invocabilidade que completa a coexistência
com o ser nomeado.

Mas é aqui também que se encontra o ponto de encaixe a


partir do qual deveria tornar-se claro o que acontece quando João
apresenta o Senhor Jesus Cristo como o verdadeiro e [94] vivo
nome de Deus. Nele realiza-se o que nenhuma palavra estaria em
condições de realizar. Nele alcançou a sua meta o sentido do
diálogo sobre o nome de Deus e chegou à sua concretização o que
sempre havia sido pretendido e intencionado com a idéia do nome.
Em Cristo – é o que o Evangelho deseja exprimir com esta idéia –
Deus de fato tornou-se o invocável. Com Cristo Deus entrou para
sempre na coexistência conosco: o nome não é mais simples
palavra a que nos apegamos; é carne de nossa carne e osso de
nossos ossos. Deus é um dos nossos. E assim concretiza-se
realmente o que vinha sendo intencionado com a idéia do nome
desde o episódio da sarça, a saber, na pessoa daquele que, como
Deus, é homem e, como homem, é Deus. Deus tornou-se um de
nós, portanto um portador de nome e uma presença ao nosso lado
em coexistência.

5. As duas faces da idéia bíblica de Deus

Tentando resumir tudo, nota-se a continuidade de uma dupla


componente no conceito bíblico de Deus. De um lado está o
elemento pessoal da proximidade, da invocabilidade, da
autocomunicação, que se condensa de modo sintético na
denominação, prenunciando-se primeiro na idéia "Deus dos pais, de
Abraão, de Isaac e de Jacó", e concentrando-se no conceito "o
Deus de Jesus Cristo". Trata-se sempre do Deus dos homens, Deus
com um rosto, Deus pessoal; sobre ele concentram-se a conexão, a
escolha e a decisão da fé patriarcal, de onde um longo, mas direto
caminho nos conduz ao Deus de Jesus Cristo.

Do outro lado está o fato de que essa proximidade, essa


facilidade de acesso é livre dádiva de quem paira acima do espaço
e do tempo, a nada ligado, e ligando tudo a si. O elemento do
dinamismo supratemporal é típico desse Deus; concentra-se com
crescente insistência no conceito [95] do ser, do "eu o sou", tão
enigmático quanto profundo. Israel, no avançar do tempo, tentou
traduzir, às apalpadelas, para os povos, o que é peculiar e próprio
à sua fé, partindo deste segundo elemento. Colocou o "é" de Deus
em antítese com o devir e a ruína do mundo e dos seus deuses – as
divindades da terra, da fertilidade, da nação. Contrapôs aos
deuses particulares o Deus do céu, sobranceiro a tudo, senhor de
tudo e independente de tudo. Acentuou a circunstância de o seu
Deus não ser um Deus nacional de Israel, como cada povo
costumava fazer com a sua divindade própria. Israel faz questão de
não possuir nenhum Deus próprio, mas o Deus de todos e do
universo: estava convencido de adorar o verdadeiro Deus
exatamente desta maneira. Somente se tem Deus, quando não se
dispõe de nenhum Deus próprio, confiando-se somente ao Deus que
é o Deus dos outros, exatamente como o meu, porque ambos lhe
pertencemos.

O paradoxo da fé bíblica em Deus consiste na ligação e na


unidade dos dois elementos citados, isto é, em que o ser é crido
como pessoa e a pessoa como ser; que só o oculto é acreditado
como o todo próximo; o inacessível como acessível, o um como o
um que existe para tudo e para o qual todos existem.
Interrompamos aqui a análise do conceito bíblico de Deus para
retomar o fio da questão do nexo entre fé e filosofia, entre fé e
razão, com a qual nos deparamos no princípio e que agora
voltamos a encontrar.
CAPÍTULO TERCEIRO

O Deus da Fé e o Deus dos Filósofos

1. Opção da Igreja antiga pela filosofia

[97] A opção contida na imagem bíblica de Deus devia ser


reiterada nos albores do cristianismo e da Igreja; aliás deve ser
renovada no início de cada situação nova, pois continua sendo
simultaneamente tarefa e dádiva. O anúncio proto-cristão e a fé
da Igreja primitiva encontravam-se de novo em um mundo
ambiente saturado de deuses e, por isto, diante do problema que
coube a Israel resolver na época de sua origem e no seu embate
com os poderes do tempo exílico e pós-exílico. Tratava-se
novamente de declarar que espécie de Deus, afinal, era visado
pela fé cristã. Sem dúvida a opção da Igreja primitiva tinha a
vantagem de poder apelar para toda a luta pretérita, sobretudo
para a sua fase derradeira, a obra do Deutero-Isaías e a literatura
sapiencial, para o passo dado na versão grega do Antigo
Testamento e, afinal, para os escritos do Novo Testamento,
principalmente para o Evangelho de S. João. Com a cobertura de
toda esta história, a cristandade antiga decidiu a sua escolha e a
sua purificação, concretizando-a com audácia, optando pelo Deus
dos filósofos contra os deuses das religiões. Surgindo a pergunta: a
que Deus correspondia o Deus cristão, quiçá a Júpiter ou Hermes
ou Dionísio ou a outro qualquer, a resposta era: a nenhum deles. A
nenhuma das divindades às quais fazeis preces, mas [98] única e
exclusivamente àquele Deus ao qual não rezais, àquele ser
supremo do qual falam os vossos filósofos. A Igreja primitiva
recusou decididamente o cosmos inteiro das religiões antigas,
considerando-o como ilusão e engano, e expondo a sua fé do
seguinte modo: ao proferir a palavra "Deus", não veneramos, nem
temos em vista nada de tudo isto, mas exclusivamente o próprio
ser, aquilo que os filósofos destacaram como fundamento de todo
o ser, como o Deus acima de todas as potências – somente ele é
nosso Deus. Nesse processo estão uma escolha e uma decisão não
menos decisivas e duráveis para o futuro do que o foram, em seu
tempo, a escolha de El ou iah contra Moloch e Baal e a evolução de
[99] ambos para Elohim e Iahvé, na direção da idéia do ser. A
opção assim feita conotava escolha do Logos contra qualquer
espécie de mito, ou seja, significava a definitiva desmitização do
mundo e da religião.

Teria sido certo o caminho da opção em favor do Logos


contra o mito? Para encontrar a resposta certa cumpre não perder
de vista todas as nossas considerações sobre a evolução interna do
conceito bíblico de Deus, através de cujos últimos passos já se
encontra confirmada, de fato, neste sentido, a posição do crístico
no mundo helênico. Do outro lado é mister considerar que o
próprio mundo antigo conhecia, de forma bem distinta, o dilema
entre o Deus da fé e o Deus dos filósofos. Entre as divindades
míticas das religiões e o conhecimento filosófico de Deus
desenvolveu-se, no correr da história, uma tensão sempre mais
forte contida na crítica dos mitos, feita pelos filósofos desde
Xenófanes até Platão, que se preocupava com a tentativa de abolir
o mito homérico clássico, substituindo-o por um mito novo, em
consonância com o Logos. A pesquisa atual sempre mais se
convence da existência de um paralelo extraordinário de caráter
temporal e real entre a crítica filosófica dos mitos na Grécia e a
crítica profética dos deuses em Israel. É certo que ambos partem
de hipóteses totalmente diversas, visando metas completamente
diferentes. Mas o movimento do Logos contra o mito, tal como se
deu na mentalidade grega, no esclarecimento filosófico a ponto de
acabar causando a queda dos deuses, está em paralelo intrínseco
com o esclarecimento da literatura profética e sapiencial em sua
desmitização dos poderes idolátricos, em favor do único Deus.
Ambos os movimentos convergem no Logos, apesar de todas as
antíteses. O esclarecimento filosófico e a sua mentalidade "física"
do ser desalojam sempre mais a aparência mítica, mas sem afastar
a forma religiosa da veneração dos deuses. Por isto a religião
antiga esfacelou-se totalmente no abismo entre o Deus da fé e o
Deus dos filósofos, na diástase total entre razão e piedade. Não se
conseguiu reunir ambas as coisas, já que razão e fé se afastaram
sempre mais, separando-se o Deus da fé e o Deus dos filósofos:
estava aí o descalabro interno da religião antiga. A religião cristã
não tinha a esperar destino outro, se concordasse com separação
semelhante da razão e com uma correspondente retirada para o
terreno puramente religioso, como Schleiermacher defende e
como, em certo sentido, se encontra, paradoxalmente, no grande
crítico e adversário de Schleiermacher, que foi Karl Barth.

O destino oposto do mito e do Evangelho no mundo antigo, o


fim do mito e a vitória do Evangelho, sob o enfoque da história da
filosofia, devem ser, essencialmente, explicados a partir da
relação antitética criada, em ambos os casos, entre religião e
filosofia, entre fé e razão. O paradoxo da filosofia antiga, sob o
enfoque religioso-histórico, consiste no fato de ter ela destruído o
mito, racionalmente, tentando, ao mesmo tempo, re-legitimá-lo
religiosamente – isto é: não foi revolucionária religiosamente, mas,
no máximo, evolucionária, tratando a religião como questão do
teor de vida e não como questão da verdade. Paulo descreveu
muito exatamente este processo na Epístola aos Romanos (1,18-
31), apoiando-se na [100] literatura sapiencial, usando a linguagem
profética (e respectivamente, o estilo antigo-testamentário dos
livros sapienciais). Já no livro da Sabedoria (cap. 13-15) encontra-
se a alusão a esse destino trágico da religião antiga e ao paradoxo
inerente à separação de verdade e piedade (ou fé). Paulo
reassume o que ali se disse em poucos versículos, descrevendo a
sorte da religião antiga a partir desse divórcio entre Logos e mito:
"O que de Deus se pode conhecer... é para eles manifesto, tendo-
lho Deus manifestado... Mas, conhecendo embora a Deus, não o
honraram como Deus... Trocaram a glória do Deus indefectível
pela reprodução em imagens do homem corruptível, de aves, de
quadrúpedes e de répteis... " (Rom 1,19-23).

A religião não segue a senda do Logos, mas persiste no mito


compreendido como vazio de qualquer realidade. Com isto era
inevitável a sua ruína, conseqüência do afastamento da verdade,
que levou a considerar a religião como mera institutio vitae,
simples convenção e forma de vida. Em contraste com semelhante
situação, Tertuliano descreveu a posição cristã com muita ênfase,
em frase ousada, ao dizer: "Cristo se denominou a verdade, não o
costume" 16 . Vejo aí uma das grandes frases da teologia patrística.
Está aí condensada de modo único a luta da Igreja antiga e a
tarefa permanente imposta à fé cristã, caso queira conservar-se
fiel a si mesma. A divinização da consuetudo Romana, da "origem"
da cidade de Roma, que transformava os seus costumes em norma
auto-suficiente do comportamento contrapõe-se à pretensão
exclusivista da verdade. Com isto o cristianismo colocou-se
decididamente ao lado da verdade, dando as costas a uma idéia de
religião que se satisfazia em ser figura cerimonial, [101] à qual se
podia acrescentar um sentido qualquer na fase da interpretação.

Uma indicação ainda para esclarecer o que foi dito. A


antiguidade ajeitou, afinal, o dilema de sua religião, de sua
separação da verdade do conhecimento filosófico, na idéia de três
teologias cuja existência era afirmada: teologia física, política e
mítica. Justificou a pendência de mito e Logos com a consideração
pelo sentir do povo e pela utilidade do estado na medida em que a
teologia mítica possibilitava também uma teologia política. Em
outras palavras: de fato colocou verdade contra costume, utilidade
contra verdade. Os representantes da filosofia neoplatônica deram
um passo adiante interpretando o mito ontologicamente,
explicando-o como teologia do símbolo, tentando assim colocá-lo
como mediador no caminho da exegese da verdade. Mas, cessou
realmente de existir o que só pode sobreviver graças à
interpretação. O espírito humano, com razão, volta-se para a
própria verdade e não para o que ainda se pode declarar como
concorde com a verdade por meio do método da interpretação,
usando de atalhos, de subterfúgios, muito embora não possua mais
verdade alguma.
Ambos os processos revelam algo presente em nosso
momento histórico, prenhe de preocupações. Em uma situação
onde a verdade do crístico parece em vias de desfazer-se, tornam
a delinear-se na luta em torno do cristianismo hodierno
exatamente aqueles dois métodos com que outrora o politeísmo
antigo travou o seu combate mortal e foi derrotado. De um lado,
está a retirada do âmbito da verdade da razão para uma esfera de
pura piedade, de pura fé, de simples revelação; retirada que, na
realidade, queira-se ou não, concedida ou negada, se assemelha
de maneira fatal à retirada da religião antiga frente ao Logos, à
fuga frente à verdade, para os domínios de lindos costumes ou
tradições, e frente à física, para o seio da política. Do outro lado
está o processo, [102] que eu denominaria resumidamente
cristianismo interpretativo. Aqui se desfaz, com o método da
interpretação, o escândalo do crístico e, ao tornar-se assim
inescandaloso, faz, ao mesmo tempo, de sua própria causa uma
frase dispensável, um atalho inútil para dizer o simples que aqui é
explicado mediante complicadas artimanhas interpretativas.

Ao contrário disto, a opção cristã original é completamente


outra. A fé cristã optou – já o vimos – pelo Deus dos filósofos, isto
é, contra o mero mito do costume, optou exclusivamente pela
verdade do próprio ser. A objeção contra a Igreja antiga – de que
seus membros eram sequazes do ateísmo – procedia desse
processo. Realmente, conseqüência disto foi que a antiga Igreja
repudiou o mundo inteiro da religião antiga, que declarou nada
disto aceitável, mas afastou de si tudo isto como sendo costume
vazio, que se opõe à verdade. O Deus dos filósofos que foi
conservado, não era considerado pela antiguidade como
religiosamente importante, mas apenas como uma realidade
acadêmica, extra-religiosa. O fato de só deixar este Deus e de
somente e exclusivamente declarar-se por ele foi considerado
como irreligiosidade, como negação da religião e como ateísmo.
Na suspeita de ateísmo com que o cristianismo antigo tinha de
lutar, torna-se claramente reconhecível a sua orientação
espiritual, sua opção contra a religião e contra o seu costume vazio
de verdade opção feita unicamente em favor da verdade do ser.

2. Metamorfose do Deus dos filósofos

Certamente não se pode deixar de considerar a outra face do


processo. Decidindo-se exclusivamente pelo Deus dos filósofos e,
conseqüentemente, declarando-o como o Deus ao qual se podia
rezar e que fala aos homens, a fé cristã conferiu a este Deus dos
filósofos um significado completamente novo, arrancando-o da
esfera puramente acadêmica e alterando-o [103] profundamente.
Este Deus que primeiro se apresenta como um neutro, como o
conceito supremo, arrematador, este Deus compreendido como o
puro ser ou a idéia pura, a girar eternamente fechado em si
mesmo, jamais se inclinando para o homem e para o seu pequeno
mundo, este Deus cuja pura eternidade e imutabilidade exclui
qualquer relação para com o mutável e o em-devir apresenta-se
agora para a fé como o Homem-Deus, que não é somente idéia da
idéia, eterna matemática do universo, mas ágape, dinamismo do
amor criativo. Neste sentido encontra-se na fé cristã o que Pascal
experimentou na noite em que escreveu em uma cédula, que
costurou no forro da roupa, esta frase: "Fogo, 'Deus de Abraão,
Deus de Isaac, Deus de Jacó' não 'Deus dos filósofos e sábios" 17 . Em
oposição a um Deus totalmente remergulhado no mundo da
matemática, Pascal viveu a experiência da sarça ardente,
compreendendo que o Deus, que é a eterna geometria do cosmos,
só pode sê-lo por ser amor criador, por ser sarça ardente de onde
soa um nome, com que ele penetra no mundo do homem.
Portanto, neste sentido existe a experiência de que o Deus dos
filósofos é todo diferente da imagem que eles dele fizeram, sem
cessar de ser o que eles constataram. Este Deus só se torna
realmente conhecido, quando compreendemos que, sendo a
verdade por excelência e o fundamento de todo o ser, é,
inseparavelmente, o Deus da fé e o Deus dos homens.

Para averiguar a mudança sofrida pelo conceito filosófico de


Deus em sua equiparação ao Deus da fé, basta apelar para
qualquer texto bíblico que fale de Deus. Escolhamos, a esmo, Lc
15,1-10, a parábola da ovelha extraviada e da [104] dracma
perdida. Pretexto e ponto de partida é o escândalo dos escribas e
fariseus pelo fato de Jesus assentar-se à mesa com pecadores.
Como resposta segue-se o aceno para homem que, tendo cem
ovelhas, perde uma delas, vai-lhe ao encalço, procura, encontra-a
e sente-se mais contente e alegre com isto do que com as 99 que
lhe ficaram fiéis. A estória da dracma reencontrada, que desperta
mais alegria do que o restante dinheiro jamais perdido, tende para
a mesma direção: "Haverá mais alegria no céu por um só pecador
arrependido do que por noventa e nove justos que não têm
necessidade de arrependimento" (Lc 15,7). Destas parábolas, em
que Jesus justifica e descreve a sua atuação e missão de enviado
de Deus, emerge, como assunto, com a história das relações entre
Deus e homem, a pergunta: quem é o próprio Deus?

Tentando separá-lo deste texto, teremos que dizer: o Deus


que aqui vemos apresentar-se surge, como em numerosos textos do
Antigo Testamento, muito antropomórfico, muito antifilosófico;
tem paixões como o homem, alegra-se, procura, espera, vai ao
encontro. Não é a geometria insensível do universo, não a justiça
neutra a pairar sobre as coisas, impassível diante de um coração e
dos seus afetos. É um Deus que tem coração, que ama com toda a
singularidade do amante. Assim torna-se clara neste texto a
alteração da idéia puramente filosófica, e vê-se quão longe
continuamos desta identificação do Deus da fé e do Deus dos
filósofos, o quanto somos incapazes de alcançá-la, e quanto
fracassaram a nossa idéia de Deus e a nossa compreensão da
realidade cristã.

A grande maioria dos homens de hoje continua


reconhecendo, de uma forma qualquer, a existência de algo como
"um ser supremo". Mas considera-se absurdo um tal ser ocupar-se
com os homens. Temos a impressão – inclusive os que tentam crer
– de que algo assim é expressão de um [105] antropomorfismo
simplório, de uma forma antiga de pensamento humano,
compreensível em uma situação onde o homem ainda vivia em um
mundo pequeno, no qual a terra constituía o centro de todas as
coisas e Deus nada mais tinha a fazer do que ficar olhando para
ela. Mas, pensamos, em uma época em que sabemos quão
imensamente outra é a realidade, quão insignificante é a terra no
cosmos gigantesco e quão sem importância, portanto, se apresenta
o grãozinho de pó chamado homem, em confronto com a dimensão
cósmica; em um tempo como o nosso parece-nos absurda a idéia
de um ser supremo a preocupar-se com o homem, com o seu
pequeno mundo miserável, com os seus cuidados, seus pecados e
suas boas ações. Mas pensando estar assim a falar de Deus, de
maneira muito divina, realmente pensamos nele de modo muito
humano e mesquinho, como se, para não perder a supervisão, Deus
tivesse de escolher. Imaginamo-lo como uma consciência igual à
nossa, limitada, sempre necessitada de algum ponto de apoio e
incapaz de abarcar a tudo.

Diante de tais limitações, sirva-nos de lembrete da


verdadeira imagem de Deus aquele lema com que Hölderlin
encabeçou o seu Hyperion: "Non coerceri maximo, contineri tamen
a minimo, divinum est – não ser coartado pelo máximo, deixar-se
abarcar pelo mínimo, isto é divino". Aquele espírito ilimitado,
portador da totalidade do ser, ultrapassa o "máximo" de modo tal,
que este se torna insignificante para ele; e alcança até o cerne do
mais pequeno, porque nada é pequeno demais para ele.
Exatamente esta ultrapassagem do máximo e esta extensão até ao
mínimo constituem a autêntica natureza do espírito absoluto. Ao
mesmo tempo, revela-se aqui uma inversão dos valores de máximo
e mínimo, de maior e menor, que é característica para a
compreensão cristã da realidade. Para aquele que sustenta e dilata
o universo, como espírito, o coração de um homem capaz de amar
é maior do que todas as Vias Lácteas. São ultrapassados [106] os
parâmetros quantitativos; revelam-se outras ordens de grandeza a
partir das quais o infinitamente pequeno é o verdadeiramente
compreendedor e o verdadeiramente grande 18 .

Sob este mesmo ponto de enfoque pode ser desmascarado


ainda outro preconceito. A nós nos parece evidente que o
infinitamente grande, o espírito absoluto, não pode ter
sentimentos, nem paixões, mas deve ser pura matemática do
cosmos. Irrefletidamente supomos como certo que o pensamento
puro é maior do que o amor, enquanto a mensagem do Evangelho e
a imagem cristã de Deus corrigem, neste ponto, a filosofia,
fazendo-nos cientes de que mais sublime do que o simples
pensamento é o amor. O pensar absoluto é um amar; não é um
pensar insensível, mas criativo, por ser amor.

a) Essencialmente, o Deus filosófico é apenas auto-


relacionado, um puro pensar que se contempla a si mesmo. O Deus
da fé, fundamentalmente, está marcado pela categoria da relação.
Ele é vastidão criadora que abrange tudo. Com isto surge uma
imagem do mundo totalmente nova e uma nova ordem do universo:
como possibilidade suprema do ser não se revela mais o
despreendimento daquele que só precisa de si e que está em si.
Muito mais, a maneira suprema do ser inclui o elemento da
relação. Certamente, não é mister dizer expressamente que
revolução representa para o rumo da existência humana, quando a
autarquia absoluta, fechada em si, não mais se revela como o
supremo; mas quando o supremo, [107] simultaneamente, é
relação, força criadora, que tira do nada, que conserva, que
ama...

b) O Deus filosófico é puro pensamento: em sua base está a


convicção: pensar e só pensar é divino. O Deus da fé, como
pensamento, é amor. A esta imagem está subjacente a convicção:
amar é divino. O Logos do mundo inteiro, o protopensamento
criativo simultaneamente é amor; aliás, esse pensamento é
criativo, porque, enquanto pensamento, é amor, e, enquanto
amor, é pensamento. Revela-se uma identidade original de
verdade e amor que, onde se encontrarem plenamente
concretizados, não são duas realidades paralelas ou até opostas,
mas são um só, o único absoluto. Neste lugar transparece também
o ponto de apoio da confissão em Deus uno e trino, à qual mais
tarde voltaremos.

3. Reflexo da questão no texto do "Símbolo"

No símbolo apostólico, base das nossas considerações,


exprime-se o paradoxo da unidade do Deus da fé e do Deus dos
filósofos, sobre que se apóia a imagem cristã de Deus, e isto
mediante os dois atributos "Pai" e "Dominador único" ("Senhor do
universo"). O segundo título – pantokrator em grego – aponta para
o "Iahvé Zebaoth" (Sabaoth) do Antigo Testamento, cujo significado
não é mais possível esclarecer. Traduzido literalmente vem a ser
algo como "Deus das multidões", "Deus das potências"; "Senhor das
potências ou dos exércitos" é o que se lê na versão grega da Bíblia.
Apesar de todas as incertezas sobre a sua origem, sempre se pode
afirmar que este vocábulo quer descrever Deus como o Senhor do
céu e da terra. A expressão visava, em atitude polêmica contra a
religião babilônica dos astros, apresentar a Deus como o Senhor, a
quem pertencem os astros, ao lado do qual eles não podem
subsistir como potências divinas independentes: os astros não são
deuses, mas instrumentos [108] de Deus, postos ao alcance de suas
mãos, como os exércitos à disposição do general. A palavra
pantokrator, a partir daí, tem, primeiro, um sentido cósmico e,
mais tarde, também um sentido político; descreve a Deus como o
Senhor de todos os Senhores 19 . Denominando a Deus, ao mesmo
tempo, "Pai" e "onipotente" (ou: "único Senhor") o Credo fundiu um
conceito familiar e uma idéia de poder cósmico na descrição de
Deus. Com isto exprime exatamente aquilo de que se trata na
imagem cristã de Deus, a tensão do poder absoluto e do absoluto
amor, da distância absoluta e da absoluta proximidade, do ser
simplesmente e da imediata preocupação com o que há de mais
humano no homem, o entrelaçamento do máximo e do mínimo, de
que se falou antes.

O termo "Pai", que continua totalmente aberto quanto ao seu


ponto de relacionamento, reúne, ao mesmo tempo, o primeiro
artigo do Credo com o segundo; aponta para a cristologia,
entrelaçando ambas as peças de modo tal, que o que se deve
afirmar de Deus só se torna completamente claro ao se olhar
também para o Filho. Por exemplo, o que significa "onipotência",
"absoluta soberania", torna-se claro cristãmente apenas ao pé do
presépio e da cruz. Somente ali, onde o Deus conhecido como
Senhor do universo penetra na última impotência da auto-entrega
à menor de suas criaturas, pode ser formulado, em verdade, o
conceito de onipotência em Deus. Aqui nasce também uma nova
idéia de força e um conceito novo de poder e domínio. A força
suprema revela-se no fato de poder ser paciente o bastante para
privar-se totalmente de toda a força; no fato de ser poderosa, não
através da violência, mas exclusivamente pela liberdade do amor,
que, mesmo sendo repudiada, é mais forte do que [109] os poderes
jactanciosos do mundo. Aqui, afinal, seu termo aquela correção
dos parâmetros e das que anteriormente transpareceram na
antítese entre o máximo e o mínimo.
CAPÍTULO QUARTO

"Creio em Deus" – Hoje

[111] Depois de tudo o que se disse, qual é o sentido das


palavras do Credo: "Creio em Deus", nos lábios do homem
hodierno? Quem assim fala, realiza primeiramente uma opção
entre os valores e as medidas do mundo, opção perfeitamente
clara como verdade (e, em certo sentido qualificado, até valendo
como opção pela verdade), mas que somente pode ser alcançada
na opção e como opção. Uma opção que assim se faz, também no
sentido de uma procura selecionadora entre diversas
possibilidades. O que Israel teve de completar nos albores de sua
história e a Igreja foi obrigada a repetir no início do seu caminho,
deve ser feito novamente em cada vida humana. Como, naquela
época, devia ser feita a opção contra as possibilidades chamadas
Moloch e Baal, contra o costume, em favor da verdade, assim a
profissão cristã "creio em Deus" continua sendo sempre um
processo de separação, de aceitação, de purificação e de
mudança. Somente assim pode ser mantida a confissão cristã em
um Deus, nos tempos que correm. Mas quais os rumos apontados
por este processo hodierno?

1. O primado do Logos

Fé cristã em Deus conota primeiramente a opção pelo Logos


em confronto com a matéria pura. Dizer: "Creio que [112] Deus
existe" inclui, na opção, a aceitação do Logos, isto é, do
pensamento, da liberdade, do amor, não apenas no fim, mas
também no início; que ele é a força original e envolvente de todo
o ser. Em outras palavras: a fé denota uma escolha da idéia de que
pensamento e sentido não são meros produtos ocasionais e
secundários do ser, mas, antes de todo o ser, é produto do
pensamento e até, em sua estrutura mais íntima, é pensamento. E
neste sentido a fé significa, especificamente, uma opção pela
verdade, pois, para a fé, o próprio ser é verdade,
compreensibilidade, sentido, tudo isto não representando um mero
produto acessório do ser, surgido alhures, sem poder ter uma
importância estruturadora, normativa para a totalidade do real.

Nessa opção pela estrutura espiritual do ser, que se origina


do sentido e da razão, está incluída, ao mesmo tempo, a fé na
criação. Porquanto essa fé nada mais é do que a convicção de que
o espírito objetivo, cuja presença constatamos em todas as coisas
e ao qual até aprendemos a compreender, em medida crescente,
como sendo as coisas, é imagem e expressão do espírito subjetivo;
e a estrutura ideal possuída pelo ser, possível de ser conhecida, é
expressão de um protopensamento criador, através do qual as
coisas existem.

Digamo-lo mais exatamente: na antiga expressão pitagórica


do Deus que pratica geometria, exprime-se a opinião da estrutura
matemática do ser, a qual ensina a conceber o ser como
pensamento, como estruturado racionalmente; revela-se o
pensamento de que também a matéria não é puro non-sens a
furtar-se à compreensão, mas portadora, também ela, da verdade
e da compreensibilidade, que torna possível uma compreensão
racional. Essa hipótese tornou-se particularmente densa em nossa
época, graças à pesquisa da constituição matemática da matéria,
da sua racionabilidade e aplicabilidade matemática. Certa feita
Einstein declarou, a respeito das leis da natureza, que nelas "se
revela uma razão tão sobranceira, [113] que todo o racional da
inteligência humana e da ordem humana não passa de
insignificante reflexo" 20 . O que, sem dúvida, quer dizer que todo o
nosso pensamento, de fato, é mero refletir sobre o que já foi
pensado. Nosso pensamento somente pode tentar, de modo pobre,
reproduzir aquele "ser-pensado" que são as coisas, encontrando ali
a verdade. A compreensão matemática encontrou aqui, como que
através da matemática do cosmos, o "Deus dos filósofos" – aliás
com toda a sua problemática, que se trai, quando Einstein recusa
continuamente o conceito pessoal de Deus como sendo
"antropomorfo", catalogando-o como "religião do medo" e "religião
moral", à qual contrapõe a "religiosidade cósmica" como a única
condizente, que, para ele, se concretiza "na admiração extasiada
da harmonia das leis da natureza" em uma "fé profunda na
inteligência do edifício dos universos" e no "anseio pelo
desvendamento de um, mesmo que seja, medíocre reflexo da
razão que se revela neste mundo" 21 .

Eis, diante de nós, o problema inteiro da fé em Deus: de um


lado, percebe-se a transparência do ser que, como "ser-pensado",
aponta para um pensamento, mas, simultaneamente, encontramos
a impossibilidade de relacionar esse pensar do ser com o homem.
Torna-se visível a barreira erguida por um conceito de pessoa
estreito e não suficientemente refletido, a dificultar a equiparação
do Deus da fé com o Deus dos filósofos.

Antes de tentar avançar, acrescento uma segunda declaração


semelhante, de um cientista. James Jeans disse certa vez:
"Averiguamos que o universo apresenta vestígios de uma [114]
força planificadora e controladora, que tem algo de comum com o
nosso próprio espírito individual. Enquanto o avanço hodierno nos
permite ver, não se trata de sentimento, moral ou capacidade
estética, mas da tendência de pensar de um modo que, na falta de
termo melhor, denominamos geometria" 22 . Tornamos a encontrar
fenômeno idêntico: o matemático descobre a matemática do
cosmos, o "ser-pensado" das coisas. E nada mais. Descobre apenas
o Deus dos filósofos.

Mas, será de admirar um tal fato? O matemático que


considera o mundo matematicamente, pode encontrar no cosmos
outra coisa que não a matemática? Não deveríamos perguntá-lo, se
jamais contemplou o mundo de outra maneira senão
matematicamente? Pergunto; por exemplo, se ele nunca viu uma
pereira em flor e nunca se admirou de que o processo da
fecundação, numa espécie de balé entre abelha e árvore, não se
realiza de outro modo senão mediante a flor, incluindo aí o
milagre plenamente inútil da sua beleza, que, de novo, somente
pode ser entendido pela participação e pelo empenho do que já é
belo sem nós? Se Jeans pensa que algo assim ainda não foi
descoberto naquele espírito, poder-se-á responder-lhe
serenamente: também jamais será nem pode ser descoberto pela
física, porque ela, em seu questionamento, abstrai, naturalmente,
do sentimento estético e da atitude moral, interrogando a
natureza com mentalidade puramente matemática e,
conseqüentemente, podendo enxergar exclusivamente o lado
matemático da natureza. A resposta depende sempre da pergunta.
Ora, o homem à procura de uma visão global, será antes obrigado
a dizer: sem dúvida, deparamos com matemática objetivada no
mundo. Mas muito menos deixamos de encontrar no mundo o
milagre inaudito e inexplicável da beleza, [115] ou melhor: no
mundo existem processos, que se apresentam ao espírito inquiridor
do homem sob a forma do belo, obrigando-o a reconhecer que o
matemático realizador desses processos desenvolveu sua fantasia
criativa em proporção inaudita.

Resumamos as observações enfileiradas de modo


esquemático e fragmentário: mundo é espírito objetivo;
apresenta-se-nos em uma estrutura espiritual, isto é, oferece-se
como reflexível e compreensível, à nossa mente. Daí se segue o
próximo passo. Dizer: Credo in Deum – "creio em Deus" exprime a
convicção de que o espírito objetivo é resultado de espírito
subjetivo, podendo subsistir exclusivamente como sua forma
derivada. Expresso de outra maneira: o "ser-pensado" (como o
constatamos na estrutura do mundo) não é possível sem o pensar.

Quiçá seja ainda útil esclarecer e garantir esta afirmação,


entrosando-a – novamente, apenas em traços gerais – em uma
espécie de autocrítica da razão. Após vinte e cinco séculos de
pensamento filosófico já não nos é mais possível falar
simplesmente e despreocupadamente do assunto, como se muitos
outros antes de nós não tivessem tentado a mesma coisa,
fracassando em seu intento. Além disto, se olharmos para o
montão de ruínas de hipóteses, de agudeza mental esbanjada sem
resultado e de lógica desengrenada que a história apresenta,
ameaça abandonar-nos a coragem de encontrar algo da verdade
propriamente dita e oculta, que ultrapassa o imediato. Contudo, a
impossibilidade não é tão imensa como à primeira vista poderia
parecer. Pois, apesar da quase inumerável multiplicidade de
caminhos filosóficos contraditórios, apresentam-se, em última
análise, apenas umas poucas possibilidades básicas para explicar o
mistério do ser. Poderíamos formular assim a pergunta, na qual,
afinal, tudo está incluído: Na multiplicidade dos seres individuais,
onde identificar, vamos dizer, a matéria comum do ser – qual é o
ser único [116] que se encontra atrás de todas as coisas existentes,
as quais "são"? As múltiplas respostas, apresentadas no correr da
história, podem reduzir-se a duas possibilidades fundamentais. A
primeira soaria mais ou menos assim: tudo o que encontramos é,
afinal de contas, matéria; ela é o único elemento que sobra como
realidade comprovável; portanto ela representa o ser
propriamente dito da existência – eis o caminho materialista. A
outra possibilidade aponta para rumo oposto: quem observar a
matéria até o fim, descobrirá ser ela "ser-pensado", pensamento
objetivado. Portanto, a matéria não pode ser o último elemento.
Antes dela, encontra-se o pensar, a idéia; todo o ser é,
finalmente, um "ser-pensado", tendo de ser reduzido a espírito
como protorealidade – eis o caminho idealista.

Para julgar tais hipóteses, urge perguntar mais exatamente:


Que é matéria? E que é espírito? Muito resumidamente, poderíamos
dizer: Chamamos "matéria" a um ser que não é autoconsciente de
ser, que, portanto, "é", mas não se compreende a si mesmo. Por
conseguinte, a redução de todo ser à matéria como forma original
da realidade afirma que o começo e o fundamento de todo ser são
constituídos por aquela forma de ser que não se compreende a si
mesma; e isto significa ainda que o compreender do ser surge
apenas como produto secundário e por acaso, no correr da
evolução. Com isto consegue-se, ao mesmo tempo, a definição de
espírito – que deve ser descrito como o ser que se compreende a si
mesmo, como ser que está em si mesmo. De acordo com isto, a
solução idealista da problemática do ser apresenta a imagem de
uma única consciência. A unidade do ser consiste na identidade da
consciência única, da qual os inúmeros seres são outros tantos
momentos.

A fé cristã não coincide, sem mais, nem com uma nem com
outra das duas soluções. Certamente, também a fé dirá: ser é um
"ser-pensado". Até a matéria aponta para além de si, [117] para o
pensar como o elemento anterior e mais original. Mas, em oposição
ao idealismo que descreve todo ser como momentos de uma
consciência única e envolvente, a fé cristã dirá: o ser é um "ser-
pensado" – contudo, não de forma tal que permaneça
exclusivamente como pensamento e o halo da independência se
traia ao observador atento como simples aparência. A fé cristã
conota, antes, que as coisas são "ser-pensado", originado de uma
consciência criadora, de uma criativa liberdade e que aquela
consciência criadora, a sustentar tudo, colocou o pensado dentro
da liberdade do ser próprio e independente. Nisto a fé cristã
ultrapassa qualquer idealismo puro. Enquanto este declara – como
há pouco o constatamos – todo o real como conteúdo de uma única
consciência, para a doutrina cristã o sustentador é uma liberdade
criadora, que coloca o pensado, sempre de novo, na corrente da
liberdade do próprio ser, de modo que, por um lado, ele é um "ser-
pensado" de uma consciência e, contudo, por outro lado, é
verdadeira ipseidade (é ele mesmo).

Com isto se desnuvia o cerne do conceito de criação: o


modelo, de cujo enfoque se deve compreender a criação, não é o
artífice, mas o espírito criador, o pensar criativo.
Simultaneamente, torna-se evidente que a idéia de liberdade é a
característica da fé cristã em Deus, em oposição a qualquer
espécie de monismo. A fé coloca no começo de todo o ser, não
uma consciência qualquer, mas uma liberdade criadora que torna a
criar liberdades. Neste sentido, poder-se-ia denominar, em grau
supremo, a fé cristã como uma filosofia da liberdade. Para a fé, a
explicação do real em conjunto não está em uma consciência que
abrange tudo nem em uma única materialidade; pelo contrário, à
frente da fé encontra-se uma liberdade que pensa e, pensando,
cria liberdades, transformando assim a liberdade em forma
estrutural de todo o ser.

2. O Deus pessoal

[118] Fé cristã em Deus, em primeiro lugar, é opção pelo


primado do Logos, fé na realidade do sentido criador antecedente
e conservador do mundo. Logo, enquanto fé na personificação
deste sentido, também é acreditar que o protopensamento, cujo
"ser-pensado" o mundo reproduz, não é uma consciência anônima e
neutra, mas liberdade, amor criador, pessoa. Se, portanto, a
opção cristã do Logos conota uma opção por um sentido pessoal,
criador, então ela é, ao mesmo tempo, opção pelo primado do
específico frente ao genérico. O mais elevado não é o mais
genérico, mas precisamente o especial, e, por esta razão, a fé
cristã também é, sobretudo, uma opção pelo homem como o ser
irreduzível e relacionado com o infinito. E então também aí ela
torna a ser opção pelo primado da liberdade contra o primado da
necessidade das leis cósmicas. Deste modo destaca-se, com toda a
precisão, o específico da fé cristã diante de outras formas
optativas do espírito humano. Torna-se inequivocamente claro o
lugar que homem ocupa com o Credo cristão.

E assim pode mostrar-se que a primeira opção – pelo primado


do Logos contra a matéria pura – não é possível sem a segunda e a
terceira, ou mais exatamente: a primeira opção, tomada
isoladamente, permaneceria como puro idealismo; somente o
acréscimo da segunda e da terceira opção primado do específico,
primado da liberdade – denota a linha divisória entre idealismo e
fé cristã, a qual é algo diverso do idealismo puro.

Muito se poderia dizer a respeito. Contentemo-nos com as


explicações indispensáveis, perguntando, primeiro: Que significa:
esse Logos, cujo pensamento é o mundo, é pessoa e, por
conseguinte, fé é opção pelo primado do específico contra o
genérico? A resposta, afinal, pode ser muito simples, pois, em
última análise, não significa outra coisa, senão que esse pensar
[119] criador, que constatamos como suposição e fundamento de
todo o ser, é, na verdade, um pensar consciente de si mesmo e
que conhece não só a si, mas também sabe o seu pensamento
todo. Significa ainda que esse pensar não somente sabe, mas ama;
que é criativo por ser amor; que, por não ser apenas capaz de
saber, mas de amar, colocou o seu pensamento no seio da
liberdade de um ser próprio, objetivando esse pensamento,
mergulhando-o na ipseidade. Portanto, tudo isto quer dizer que
esse pensar sabe o seu pensamento dentro de si mesmo, que o ama
e, amando, o sustenta. Com isto voltamos à expressão em cujo
rumo nossas considerações sempre voltam a abicar: não ser
coartado pelo máximo, deixar-se envolver pelo mínimo: isto é
divino.

Ora, se o Logos de todo o ser, o ser que a tudo sustenta e


envolve, é consciência, liberdade e amor, conclui-se por si mesmo
que o supremo do mundo não é a necessidade cósmica, mas a
liberdade. São de grande alcance as conseqüência. Tais premissas,
com efeito, levam à conclusão de que a liberdade, por assim dizer,
constitui a estrutura necessária do mundo, o que, novamente, quer
dizer que o mundo só pode ser compreendido como
incompreensível, que ele deve ser a incompreensibilidade.
Porquanto, sendo a liberdade o ponto supremo da construção do
mundo, liberdade que, como tal, sustenta, quer, conhece e ama o
mundo todo, segue-se que, com ela, faz parte essencial do mundo
a incalculabilidade que lhe é inerente. A incalculabilidade é uma
implicação da liberdade; jamais pode reduzir-se completamente à
lógica matemática um universo onde as coisas são assim. Mas, com
o ousado e grandioso de um mundo marcado pela estrutura da
liberdade também está implicado o tenebroso mistério do
demoníaco que nele encontramos. Um mundo criado e desejado
com o risco da liberdade e do amor, não pode ser pura
matemática. Como espaço vital do amor, ele torna-se palco das
liberdades e aceita o risco do mal. Esse mundo enfrenta [120] a
aventura da treva com vistas a uma luz maior, luz que é liberdade
e amor.

Volta a ser patente como as categorias de máximo e mínimo,


de mais pequeno e sumo, se alteram dentro de uma tal visão. Em
um mundo que, afinal, não é matemática, mas amor, o mínimo é
precisamente o máximo; o específico é mais do que o genérico; a
pessoa, o único, o irrepetível também é o definitivo e o supremo.
Em tal visão cósmica, a pessoa não é exclusivamente indivíduo, um
exemplar mimeografado mediante a simples divisão da idéia pela
matéria, mas é exatamente e em sentido pleno "pessoa". A
mentalidade grega sempre designava os inúmeros seres individuais,
inclusive os homens, apenas como "indivíduos". Eles originam-se
graças ao fracionamento da idéia pela matéria. Portanto, o
multiplicado sempre será o secundário; o próprio seria o único e o
geral. O cristão não vê no homem um indivíduo, mas uma pessoa –
parece-me que na mudança de indivíduo para pessoa se encontra a
medida completa da passagem da Antiguidade ao Cristianismo, do
Platonismo à Fé. Esse ser determinado não é, absolutamente, nada
de secundário que nos permita adivinhar, fragmentariamente, o
geral como o próprio. Como o mínimo, ele é o máximo, como o
único e irrepetível, é o supremo e o próprio.

Tira-se daí uma última conclusão. Se é verdade que a pessoa


é mais do que o indivíduo, que existe um primado do específico
sobre o geral, segue-se que a unidade não é o único e derradeiro,
mas que também a multiplicidade tem o seu direito próprio e
definitivo. Esta conclusão que, com necessidade interna, se deriva
da opção cristã conduz automaticamente a ultrapassar a idéia de
um Deus que é exclusivamente unidade. A lógica interna da fé
cristã em Deus obriga a passar por cima de um puro monoteísmo,
conduzindo-nos à fé no Deus uno e trino, sobre o qual agora
teremos de dar uma palavra conclusiva.
CAPÍTULO QUINTO

Fé no Deus Trino

[121] Com as considerações feitas até agora alcançamos um


ponto em que a fé cristã no Deus uno passa à aceitação do Deus
uno e trino, como por uma espécie de interna necessidade. Por
outro lado, não podemos esquecer que agora pisamos em terreno
onde a teologia cristã deve ter consciência de sua limitação, mais
do que até agora, por vezes, se tem dado; terreno, onde qualquer
falsa ousadia de querer saber tudo com exagerada exatidão há de
transformar-se em loucura de conseqüências imprevisíveis; terreno
em que somente o humilde reconhecimento da insciência pode
redundar em verdadeiro saber e só a atitude maravilhada diante
do mistério impenetrável pode constituir uma fé autêntica em
Deus. Amor é sempre mistério: mais do que se pode calcular e
compreender. Portanto, o próprio amor – o Deus incriado e eterno
– deve ser mistério em grau supremo: o mistério por excelência.

Contudo – apesar da inevitável discrição da razão, a única


atitude aqui indicada para que o pensamento se mantenha fiel a si
mesmo e à sua tarefa – deve-se lançar a pergunta sobre o que
significa a fé em um Deus uno e trino. Não se pode tentar agora –
como, aliás, seria necessário para uma resposta satisfatória –
seguir, passo a passo, as várias etapas de sua evolução, nem
desenvolver as diversas fórmulas pelas [122] quais a fé procurou
proteger essa verdade contra o equívoco. Umas poucas indicações
deverão bastar.

1. Introduzindo na compreensão

a) Ponto de partida da fé no Deus uno e trino. A doutrina


trinitária não se originou de uma especulação sobre Deus, de
alguma tentativa da reflexão filosófica para explicar como se teria
processado a origem de todo ser, mas foi conseqüência dos
esforços para uma elaboração de experiências históricas. A fé
bíblica primeiramente girava – no Antigo Testamento – em torno de
Deus que se lhe manifestava como Pai de Israel, como Pai dos
povos, como criador do mundo e seu Senhor. Na época da
estruturação do Novo Testamento acrescenta-se-lhe um processo
totalmente novo mediante o qual Deus se mostra sob um aspecto
até ali desconhecido: em Jesus Cristo encontramos um homem
que, ao mesmo tempo, se sabe e se revela como Filho de Deus.
Encontramos a Deus na figura do mensageiro, o qual é todo Deus e
não algum ser intermediário e que, contudo, conosco chama a
Deus de "Pai". Donde se segue um singular paradoxo: por um lado,
esse homem chama a Deus de "Pai", fala-lhe como a alguém que
lhe está próximo. Ora, se uma atitude assim não quiser passar por
puro teatro, mas por verdadeira – como condiz a Deus – ele deve
ser alguém diverso desse Pai ao qual fala e a quem nos dirigimos.
Por outro lado, ele mesmo é a concreta proximidade de Deus que
nos vem ao encontro; a mediação de Deus para nós e, exatamente,
pelo fato de ser, ele mesmo, Deus feito homem, em figura e
natureza humana é o Deus conosco ("Emmanuel"). No fundo, a sua
mediação se eliminaria transformando-se de mediação em
separação, fosse ele outro que não Deus, fosse ele um ser
intermediário. Em tal caso não nos conduziria a Deus, mas nos
afastaria dele. Segue-se daí que, como mediador, é o próprio Deus
e o "próprio homem", ambos [123] de modo real e completo. Ora,
isto significa que Deus nos vem ao encontro não como Pai mas
como Filho e irmão nosso – incompreensível e altamente
compreensível, ao mesmo tempo – revelando uma dualidade em
Deus, Deus como "eu" e "tu" em um. A essa experiência inédita de
Deus segue-se finalmente, como terceiro, o acontecimento do
Espírito, da presença de Deus em nós, em nossa vida interna. E
torna a patentear-se que esse "Espírito" não é, sem mais, idêntico
nem ao Pai, nem ao Filho, nem representa um terceiro entre nós e
Deus, mas é a maneira como o mesmo Deus se nos doa, entra em
nós, de modo que, dentro do homem e no âmago da
"interioridade", é-lhe infinitamente superior.

Portanto, constatamos que a fé cristã, no correr de sua


evolução histórica, primeiramente gira, de fato, em torno de Deus
nessa figura trina. É claro que, em breve, o homem deveria
começar a refletir como essas diferentes realidades deviam ser
relacionadas entre si. Havia de se perguntar qual seria o
comportamento das três formas de encontros históricos com Deus
em relação à própria realidade divina. A trindade das formas
divinas experimentadas seria, acaso, simplesmente sua máscara
histórica com que, fazendo diversos papéis, é sempre o mesmo
único Deus que se avizinha do homem? Essa trindade revelar-nos-ia
apenas algo sobre o homem e sobre suas diversas maneiras de
relacionar-se com Deus? Ou não faria ela transparecer algo daquilo
que é o próprio Deus em si mesmo? Hoje facilmente estaríamos
inclinados a aceitar a primeira [124] hipótese como plausível,
considerando todos os problemas como resolvidos por este
caminho. Contudo, cumpre tomar consciência da extensão do
problema, antes de embrenhar-se por um tal atalho. Ora, trata-se
de saber se o homem, em sua relação com Deus, deve haver-se
exclusivamente com os reflexos de sua própria consciência ou se
lhe é concedido elevar-se realmente acima de si e encontrar-se
com o próprio Deus. São imensas as conseqüência em ambos os
casos. Se a primeira hipótese está certa, a prece não passaria de
uma ocupação do homem consigo mesmo; a raiz de uma adoração
propriamente dita está truncada, como também a da súplica –
conseqüência, que, a seguir, mais e mais se vai avolumando. Tanto
mais fortemente se impõe a pergunta, se tal atitude, afinal, não se
baseia em certo comodismo mental, que escolhe o caminho do
menor esforço, sem fazer muitas perguntas. Porquanto, se a
segunda hipótese for a verdadeira, adoração e súplica são, não só
possíveis, mas ordenadas, isto é, são um postulado do ser humano
aberto na direção de Deus.

Quem perceber a profundeza desta questão compreenderá


também a paixão da luta que em torno dela se desencadeou, na
antiga Igreja: compreenderá que nessa luta atuaram forças outras
que não cavilações idealísticas ou culto de fórmulas, como
facilmente poderia pensar o observador superficial; terá
consciência de que a luta de então tornou a se reacender hoje,
exatamente a mesma luta do homem em torno de Deus e de si
mesmo; terá consciência de que não podemos sobreviver como
cristãos, julgando poder escolher hoje um caminho mais cômodo
do que o de outrora. Antecipemos a resposta na qual foi então
encontrada a separação entre o caminho da fé e uma vereda que
forçosamente conduziria a uma aparência de fé: Deus é como se
revela. Deus não se revela de um modo que não seja o seu. Nesta
afirmação está baseada a relação cristã com Deus; nela está
fundada a doutrina trinitária; ela é essa doutrina.

b) Motivos condutores. Como se chegou a essa decisão? No


caminho para ela três atitudes básicas foram decisivas. A primeira
poderia chamar-se o imediatismo do homem com Deus. Trata-se do
homem em relação com Cristo: nele, acessível como seu próximo,
o homem encontra o próprio Deus, não um ser híbrido que se
colocasse entre ele e Deus. A preocupação pela verdadeira
divindade de Jesus na Igreja antiga tem as mesmas raízes que o
cuidado pela sua verdadeira condição [125] humana. Somente
sendo homem real como nós, Cristo pode ser o nosso mediador; e
somente sendo Deus real como Deus, sua mediação alcança a
meta. Aliás, não é difícil de perceber que aqui está posta em
questão a atitude fundamental do monoteísmo – a identidade já
descrita do Deus da fé e do Deus dos filósofos – alçando-se aqui à
sua posição mais aguda: meta de uma piedade comprometida com
a verdade só pode estar naquele Deus que, por um lado, é o
fundamento real do mundo e, por outro, nos está completamente
próximo. Com o que já está aduzida a segunda atitude básica: a
inabalável tomada de posição na opção pela fé de que existe
somente um Deus. Em qualquer hipótese, impunha-se impedir que,
por trás do mediador, afinal, tomasse a criar-se uma região de
seres intermediários, e, com ela, uma região de deuses, onde o
homem iria adorar o que não é Deus.

A terceira atitude básica poderia ser descrita como o esforço


em tomar a sério a história de Deus com o homem. Isto é: se Deus
se apresenta como Filho que diz "tu" ao Pai, não se trata de
nenhuma encenação feita para o homem, de nenhum baile de
máscaras no palco da história humana, mas de uma expressão da
realidade. A idéia de um drama divino foi apresentada pelos
"monarquianos" na Igreja antiga. As três pessoas são três "papéis"
com que Deus se nos revela no correr da história. Aqui cumpre
lembrar que o termo "pessoa" (persona em latim e em grego
prósopon) tomou-se emprestado da linguagem teatral. Chamava-se
assim a máscara que permitia ao artista tomar-se a encarnação de
um outro. A partir destas conotações, a palavra foi introduzida na
linguagem da fé, por ela alterada até surgir a idéia de pessoa,
estranha à mentalidade antiga.

Outros, os chamados "modalistas", ensinavam que as três


figuras de Deus eram "modos" como Deus é percebido pela nossa
consciência e como ele mesmo se explica. Muito embora seja
verdade que conhecemos a Deus só na representação [126] da
mente humana, a fé cristã sustenta sempre que nessa
representação conhecemos a Deus. Mesmo sendo incapazes de
romper a estreiteza da nossa consciência, Deus é capaz de invadir
esta consciência e revelar-se-lhe. E não é preciso negar que nos
esforços monarquianos e modalistas houve notável arranque rumo
a idéia certa de Deus: a linguagem da fé acabou incorporando a
terminologia propagada por eles, na confissão das três pessoas em
Deus, em uso até hoje. O vocábulo prósopon-persona (pessoa) não
estava em condições de exprimir toda a extensão do que aqui
devia ser expresso: mas isto não é culpa sua. A ampliação dos
limites do pensamento humano necessária para elaborar
espiritualmente a experiência cristã de Deus não se realizou por si
mesma. Exigiu uma luta, para a qual também o erro trouxe suas
vantagens. E aí ela seguiu a lei fundamental, à qual está
subordinado o espírito humano em seu avanço contínuo.

c) A inviabilidade dos caminhos. Toda esta luta, tão


profundamente ramificada nos primeiros séculos, à luz do que se
disse até agora, pode reduzir-se à situação aporética (cética) de
dois caminhos, mais e mais identificáveis como não-caminhos:
subordinacionismo e monarquismo. Ambas as soluções parecem
lógicas, e ambas destroem o todo com sua simplificação tentadora.
A doutrina cristã, tal como se nos oferece na expressão: "Deus uno
e trino" denota, no fundo, a renúncia ao atalho e a permanência no
mistério insondável para o homem: na realidade, esta confissão é a
única renúncia real à pretensão de saber, que torna tão atraentes
as soluções simples com sua falsa modéstia.

O assim chamado subordinacionismo escapa ao dilema,


afirmando: o próprio Deus é um só; Cristo não é Deus, mas um ser
muito chegado a Deus. Com isto suprime-se a dificuldade, mas a
conseqüência é – como anteriormente detalhadamente
desenvolvemos – que o homem se separa de Deus, trancando-se no
provisório. Deus torna-se, por assim dizer, monarca [127]
constitucional; a fé nada tem a ver com ele, mas com os seus
ministros 23 . Quem não aceita isto, quem crê realmente no
domínio de Deus, no "máximo" dentro do "mínimo", deverá aferrar-
se à idéia de que Deus é homem, de que o ser de Deus e do homem
se entrosaram, aceitando assim, com a fé em Cristo, o ponto de
partida para a doutrina trinitária.
O monarquismo, cuja solução já foi explanada
anteriormente, resolve o dilema no rumo contrário. Também ele
aferra-se decididamente à unidade de Deus, mas igualmente toma
a sério o Deus que nos vem ao encontro, que nos aborda como
Criador e Pai, primeiro, como Filho e Salvador em Cristo, depois,
e, finalmente, como Espírito Santo. Contudo, as três figuras são
consideradas meras máscaras de Deus, que revelam algo sobre nós,
nada porém sobre Deus. Por aliciante que pareça tal caminho,
afinal, ele torna a colocar o homem exclusivamente dentro de si
mesmo, não avançando até Deus. A pós-história do
monarquianismo no pensamento moderno apenas tornou a
comprová-lo. Hegel e Schelling, em sua tentativa de explicar o
Cristianismo filosoficamente e de fazer Filosofia a partir do
Cristianismo, reataram a antiga tentativa de uma Filosofia cristã,
esperando tornar racionalmente compreensível e manejável a
doutrina trinitária, a partir daí; elevando-a à chave de uma
compreensão completa do ser, em seu supostamente puro sentido
filosófico. Evidentemente, não queremos tentar agora uma
avaliação completa destas tentativas, até agora, sem dúvida, as
mais fascinantes de aplicação racional da fé cristã. Basta apontar
como a inviabilidade, que constatamos como típica para o
monarquismo (modalismo) simplesmente volta aqui.

Ponto de partida continua sendo a idéia de que a doutrina


trinitária é expressão do lado histórico de Deus, ou seja, do modo
como Deus se manifesta na história. Desenvolvendo radicalmente
[128] esta idéia, Hegel – e de modo diverso, Schelling chega à
conseqüência de não distinguir mais esse processo da auto-
representação histórica divina do Deus que permanece, repousado,
por trás dos bastidores, mas passa agora a compreender o processo
da história como processo do próprio Deus. Então a imagem
histórica de Deus torna-se progressivo auto-devir do divino;
história é real como progresso do Logos, mas também o Logos só é
real como progresso da história. Expresso em outros termos: o
Logos – o sentido de todo o ser – nasce para si mesmo,
gradativamente, somente na história. A historização da doutrina
trinitária, incluída no monarquismo torna-se assim historização de
Deus. O que, novamente, significa que o sentido não é, sem mais,
criador da história, mas que a história se torna criadora do
sentido, passando este a criatura dela. Karl Marx contentou-se em
tirar as últimas conseqüência desta doutrina: se o sentido não
antecede ao homem, está no futuro, que o homem,
combativamente, deve tornar presente.

Ora, assim se comprova que na lógica do pensamento


monarquista o caminho da fé se perde não menos do que o
subordinacionismo. Porquanto em uma tal opinião suspende-se o
contraste das liberdades, tão essencial para a fé; suspende-se, não
menos, o diálogo do amor e sua incalculabilidade, suspende-se a
estrutura personalística do sentido cosmo-envolvente e da criatura
aberta para este sentido. Tudo isto – o pessoal, o dialogal, a
liberdade e o amor – funde-se na necessidade do processo único da
razão. Mas ainda há outra coisa a notar: o desejo radical de
penetrar na doutrina trinitária, a racionalização radical que devém
historização do próprio Logos, querendo, com o conceito de Deus,
compreender sem mistério, também a história de Deus e construí-
la em sua lógica exata exatamente esta grandiosa tentativa de
apossar-se totalmente da lógica do próprio Logos reconduz à
mitologia da história, ao mito de um Deus que se dá à luz a si
mesmo historicamente. [129] A tentativa de uma lógica total
termina em ilógica, em auto-supressão da lógica mergulhada no
seio do mito.

De resto, a história do monarquismo ainda revela um outro


aspeto que cumpre citar, ao menos brevemente: o monarquismo
recebe uma conotação positivamente política já em sua forma
primitiva e, depois novamente, em sua retomada por Hegel e
Marx: torna-se "teologia política". Na Igreja antiga o monarquismo
serve para o tentame de fundamentar teologicamente a monarquia
imperial; em Hegel torna-se apoteose do estado prussiano; em
Marx passa a ser programa de ação para um futuro feliz da
humanidade. Vice-versa, poder-se-ia notar, como, na Igreja
antiga, a vitória sobre o monarquismo denota um triunfo sobre o
abuso político da teologia: a fé trinitária da Igreja destruiu os
modelos politicamente aproveitáveis, suprimindo deste modo a
teologia como mito político e recusando o abuso da pregação para
justificar uma situação política 24 .

d) Doutrina trinitária como teologia negativa. Um olhar


complexivo sobre o conjunto constata que a forma eclesiástica da
doutrina trinitária pode ser justificada, primeiro e antes de tudo,
negativamente, como comprovante da inviabilidade de todos os
demais caminhos. Talvez seja isto a única coisa que aqui de fato se
possa fazer. Num tal caso, a doutrina trinitária deveria ser
entendida negativamente, como a única forma segura de rebater
qualquer veleidade de penetrar o mistério, como uma espécie de
código para a insolubilidade do mistério de Deus. Tornar-se-ia
problemática se tentasse, por sua vez, encaminhar-se por um
querer-saber simples e positivo. Se a trabalhosa história da luta
humana e cristã em torno de Deus prova alguma coisa, então será
que qualquer tentame de enquadrar [130] Deus no conceito da
nossa razão conduz ao absurdo. Podemos falar corretamente dele,
exclusivamente renunciando ao desejo de compreender, deixando-
o como o incompreensível. Portanto, doutrina trinitária não pode
ser uma compreensão de Deus. Ela é uma declaração de limites,
um gesto indicador, a apontar para o inominável, não uma
definição a encaixar as coisas nos fichários do saber humano; não
um conceito capaz de colocar o objeto na posse do espírito
humano.

Este caráter de indicação onde conceito se torna mero


aceno, compreensão se torna simples tentativa rumo ao
inatingível, poderia ser representado exatamente mediante as
próprias formulações eclesiásticas e por meio de sua pré-história.
Cada um dos grandes conceitos básicos da doutrina trinitária já foi
condenado alguma vez: todos eles só foram aceitos através desse
entrecruzamento com alguma condenação; tais conceitos valem
apenas enquanto são simultaneamente designados como inúteis
para assim serem admitidos, como pobre balbuciar e nada mais 25 .
O conceito persona (prósopon), como ouvimos, foi condenado uma
vez; o termo central, que no século IV se tornou estandarte da
ortodoxia, o homousios (= uma natureza com o Pai) fora
condenado no século IV; a idéia da processão tem atrás de si uma
proscrição, e assim por diante. Penso que essas condenações das
fórmulas posteriores da fé pertencem intrinsecamente a estas
mesmas fórmulas: são utilizáveis apenas pela negação e no
ilimitado caráter indireto que daí se segue: a doutrina trinitária só
é possível como teologia entrecruzada.

Ainda haveria outra observação a acrescentar. Perlustrando a


história dogmática da doutrina trinitária em qualquer tratado [131]
moderno de Teologia, temos a impressão de estar em alguma
necrópole de heresias, cujos estandartes a Teologia continua a
carregar consigo, como outros tantos troféus de vencidas batalhas.
Contudo, olhando desta maneira, não se compreende bem a
questão, pois todas essas tentativas repelidas finalmente como
aporias e, assim como heresias, no correr de uma refrega
demorada, não são meros mausoléus de pesquisas humanas
fracassadas, sepulcros nos quais nos é dado constatar quantas
vezes o pensamento falhou, restos que agora podemos contemplar
com uma curiosidade voltada para o passado – aliás sem resultado
prático. Cada heresia é, antes, um código, uma sigla a resumir
alguma verdade permanente que só subsiste unida com outras
declarações igualmente válidas, separada das quais, ela resulta em
falsa visão. Dito em outras palavras: todas essas declarações não
são tanto monumentos sepulcrais, mas, antes, pedras de uma
catedral, que, naturalmente, serão aproveitáveis se não ficarem
isoladas, mas, encaixadas no todo maior, assim como as fórmulas
positivamente aceitas só valem quando guardam consciência, ao
mesmo tempo, de sua insuficiência.

O jansenista Saint-Cyran, certa vez, exprimiu um pensamento


memorável, afirmando que a fé consiste em uma série de
paradoxos que se conservam unidos pela graça 26 . Exprimiu assim,
no terreno da Teologia, uma idéia que, na Física hodierna, integra
o pensamento científico, como lei da complementaridade 27 .
Torna-se mais e mais claro ao físico moderno que [132] não
podemos compreender as realidades dadas, por exemplo: a
estrutura da luz ou da matéria em geral, em uma única forma de
experiência, nem, por conseguinte, podemos representá-los em
uma única forma de axioma, pois não conseguimos senão captar,
focalizando de vários lados, e de cada vez, um aspeto, que não
estamos em condições de reduzir a outro. Reunidos ambos – por
exemplo, a estrutura corpuscular e a onda – hão de ser
considerados como um avanço preliminar ao conjunto, sem que se
possa descobrir um ponto de vista que abranja tudo, que, como
tal, não nos é acessível globalmente por causa da limitação do
nosso ponto de enfoque. O que se dá na esfera da Física, como
conseqüência da limitação de nossa capacidade visual, vale em
proporção incomparàvelmente maior, com respeito às realidades
espirituais e a Deus. Também neste terreno somos capazes apenas
de focalizar um único lado e perceber de cada vez um único
aspeto, que parece contradizer a outros, mas que, apesar disto,
poderá constituir uma indicação na direção do todo, porém com a
condição indispensável de ficar unido aos demais elementos que
não podem ser compreendidos nem expressos. Somente por
circunlóquios, por percepção e afirmação de diversos aspetos,
aparentemente contraditórios, conseguimos apontar para a
verdade que, não obstante, jamais se nos torna patente em sua
totalidade.

Quiçá o pensamento da Física moderna nos forneça algum


subsídio melhor do que a Filosofia aristotélica. A Física atual sabe
que se pode falar sobre a estrutura da matéria apenas pela
confrontação de variadas estimativas. Sabe que o resultado da
pesquisa da natureza depende cada vez do respectivo ponto de
enfoque do observador. Por que não poderíamos também nós
compreender, de modo todo novo, a partir daqui, que na pesquisa
de Deus não cumpre buscar um conceito último do ser, envolvedor
da totalidade, mas deveríamos estar dispostos a enfrentar e
aceitar uma multiplicidade de aspetos dependentes do ponto de
observação, que, em última análise, [133] não podemos
contemplar, mas aceitar uns dos outros, sem contribuir com o
elemento último para a expressão? Encontramos aqui a oculta
complementaridade de fé e pensamento moderno. A Física
moderna, ultrapassando a estrutura da Lógica aristotélica, pensa
assim, e isto já é resultado da nova dimensão aberta pela Teologia
cristã, de sua necessidade de pensar em complementaridade.

Quero ainda lembrar em poucas palavras dois outros subsídios


da Física. E. Schrödinger definiu a estrutura da matéria como
"embrulhos de ondas" (ou "pacotes de ondas"), apresentando assim
a idéia de um ser não substancioso, mas puramente ativo, cuja
"substancialidade" aparente, de fato, resulta da estrutura móvel de
ondas sobrepostas. No domínio da matéria uma proposta assim
devia ser altamente vulnerável fisicamente e, em todo caso,
filosoficamente. Mas, continua sendo um símile excitante da
actualitas divina, do ato puro de Deus e do fato de o mais
compacto dos seres – Deus – só poder afirmar-se em uma
pluralidade de relações que não são substância, não passando de
"ondas" * , conseguindo Deus apresentar um todo completamente
uno, formando totalmente a plenitude do ser. Mais tarde teremos
de submeter a uma análise detalhada esta idéia, já apresentada,
quanto ao sentido, por Agostinho ao desenvolver o conceito de
Ato-Existência (do tal "pacote de ondas").

Seja feita ainda uma referência a um subsídio mental das


ciências naturais: sabemos que, na experiência física, o próprio
observador se inclui na experiência, sendo este o único caminho
para alcançar o conhecimento desejado. Isto significa que nem na
própria Física existe objetividade em estado puro, que também
aqui o resultado da experiência, a resposta da natureza, depende
da pergunta que lhe é feita. Na resposta inclui-se [134] sempre
uma parcela da pergunta e do pesquisador; ela espelha não só a
natureza no que ela é em si, em pura objetividade, mas reproduz
também algo do homem, do que lhe é peculiar, uma parcela do
sujeito humano. Com as respectivas modificações, esta norma vale
aplicada ao problema religioso. Não existe o mero observador. Não
há objetividade pura. Pode-se dizer: quanto mais elevada a
posição de um objeto em relação ao homem, quanto mais tal
objeto penetra no centro do que é nosso, comprometendo o
próprio observador, tanto menos possível é o completo distanciar-
se da objetividade pura. Portanto, onde quer que se apresente
uma resposta como objetiva e desapaixonada, como declaração
que, afinal, ultrapassa as piedosas prevenções, explicando tudo
com científica objetividade: forçoso se torna dizer que o próprio
sujeito se tornou vítima de um logro. Tal espécie de objetividade
não é acessível ao homem. Ele não pode pesquisar e existir como
simples observador. Quem tenta ser mero observador não descobre
nada. Também a realidade "Deus" pode ser focalizada somente por
quem se incluir na experiência com Deus – experiência que
denominamos fé. Só entrando, consegue-se saber; só participando
da experiência, consegue-se perguntar; e só quem pergunta,
recebe resposta.

Pascal exprimiu isto em seu famoso argumento da aposta,


com uma clareza quase monstruosa e com uma agudeza que chega
a roçar as raias do suportável. O debate com o parceiro incrédulo
atingiu um ponto em que ele reconhece dever decidir-se por Deus.
Mas gostaria de evitar o salto, de possuir uma clareza matemática:
"Não existirá algum meio de iluminar a treva e suspender a
incerteza do jogo?" "Sim, há um meio e mais de um: a Sagrada
Escritura e todos os outros argumentos em favor da religião". "Mas,
tenho as mãos atadas, os lábios mudos... Meu feitio é assim, não
posso crer. Que fazer?" "'Então você confessa que a impossibilidade
de sua fé não se origina da razão; pelo contrário: a razão conduz à
fé; portanto, [135] a sua recusa tem outro motivo. Por isto não
adianta convencê-lo mais ainda, mediante um amontoado de
provas da existência de Deus; antes de tudo, impõe-se que você
combata as suas paixões. Você deseja alcançar a fé e não conhece
o caminho? Quer ficar curado da descrença e não conhece o
remédio? Aprenda daqueles que, outrora, foram acossados por
dúvidas, como você... Imite-lhes o proceder, faça tudo o que a fé
exige, como se já fosse crente. Freqüente a Missa, use água benta,
etc. Isto, certamente, o fará humilde e o conduzirá à fé" 28 .

Em todo caso, neste texto singular há um elemento certo: a


simples curiosidade neutra do espírito, que quer conservar-se fora
do jogo, jamais deixará enxergar – já em relação a outro homem e
muito mais em relação a Deus. A experiência com Deus não se
realiza sem o homem.

Como na Física e até em grau maior, vale também para o


nosso caso a norma: quem aceita a experiência da fé, recebe uma
resposta que não é mero reflexo de Deus, mas a mesma pergunta,
com e através da refração do próprio homem, nos faz saber algo
de Deus. Também as fórmulas dogmáticas – por exemplo: "uma
natureza em três pessoas" – incluem essa refração do humano. Em
nosso exemplo, elas espelham o homem dos fins da Idade Antiga, a
pesquisar e a experimentar com as categorias do seu tempo,
encontrando nelas a sua localização como interrogador. Aliás,
temos ainda de dar um passo [136] adiante: a possibilidade de
perguntar e de experimentar nos é concedida pelo fato de se ter
introduzido na experiência o mesmo Deus, de ter ele entrado nela
como Homem. Pela refração desse único Homem podemos captar
mais do que o simples homem; nele, que é Homem e Deus, Deus
revelou-se como homem, deixando-se experimentar no homem.

2. Interpretação positiva

A delimitação da doutrina trinitária no sentido de uma


Teologia negativa, que acreditamos ter exposto no que até agora
se disse, não pode significar que suas fórmulas permanecem como
afirmações impenetráveis e como complexos verbais vazios de
sentido. Podem e devem ser compreendidas como declarações que
têm sentido, que, no entanto, representam indicações no rumo do
indizível e não o seu encaixe, o seu entrosamento no nosso mundo
conceitual. Este caráter indicativo das fórmulas da fé deve receber
um derradeiro esclarecimento em três teses, à guisa de
encerramento das considerações sobre a doutrina trinitária.

1ª.Tese: O paradoxo: "Una essentia tres personæ – uma natureza


em três pessoas" está subordinado, como problema, ao proto-
sentido de unidade e multiplicidade.
O que se pretende dizer tornar-se-á facilmente
compreensível, se lançarmos um olhar atrás dos bastidores do
pensamento grego anterior a Cristo, do qual a fé cristã no Deus
uno e trino se destaca. Para a mentalidade antiga só a unidade é
divina; a multiplicidade conota algo de secundário, sendo
conseqüência do desmoronamento da unidade. A pluralidade
origina-se da decomposição da unidade, e para ela tende. A
confissão cristã de Deus como trino, como o que é,
simultaneamente, a "monas" e a "trias", a unidade simplesmente e
a [137] plenitude, denota a convicção de que a divindade se
localiza para além das nossas categorias de multiplicidade e
unidade. Por mais que, para o não-divino, ela seja uma e única,
representando com exclusividade o divino em oposição a tudo que
não é divino, na mesma proporção ela é, em si mesma, plenitude e
multiplicidade, de modo que a unidade e a pluralidade das
criaturas, ambas, na mesma medida, são imagem e participação no
divino. Não só a unidade é divina, também a multiplicidade é algo
primitivo, tendo no próprio Deus o seu fundamento intrínseco.
Multiplicidade não é apenas ruína a se originar fora da divindade;
ela começa não só pela intervenção da "dyas", da rachadura, da
fenda; não é resultado do dualismo de duas forças antagônicas,
mas corresponde à plenitude criativa de Deus que, pairando acima
da unidade e da pluralidade, a ambas envolve 29 . Por conseguinte,
só com a fé trinitária a reconhecer o plural na unidade de Deus se
conseguiu eliminar definitivamente o dualismo como princípio
esclarecedor da unidade ao lado da multiplicidade. Só por essa fé
fundamentou-se definitivamente a valorização positiva do plural.
Deus está acima do singular e do plural. Ele ultrapassa a ambos.

Há conseqüência a tirar daí. A unidade máxima para quem


crê em Deus, como uno e trino, não é a unidade da rígida
imobilidade monótona. Portanto, o modelo da unidade a ser visado
como ideal não é a indivisibilidade do átomo, a menor das
unidades, não susceptível de divisão; o protótipo mais elevado da
unidade é a unidade que desabrocha do amor. A pluri-unidade que
floresce no amor é mais radical, mais verdadeira do que a unidade
do "átomo".

[138] 2ª. Tese: O paradoxo: "Una essentia tres personæ" existe em


função do conceito de pessoa e deve ser interpretado como
implicação interna da idéia de pessoa.
Reconhecendo a Deus, sentido criativo, como pessoa, a fé
cristã vê nele inteligência, palavra, amor. A confissão de Deus
como pessoa necessariamente inclui, a seguir, o reconhecimento
de Deus como relação, como pronunciável, como fecundidade. Não
poderia ser pessoa o que é simplesmente uno, irrelacionado e
irrelacionável. Não existe pessoa na unidade absoluta. Aliás isto já
se dá nos vocábulos com que o conceito de pessoa cresceu. O
grego prósopon, literalmente: "olhar", com a partícula pros = para,
inclui a relação como seu constitutivo. Dá-se o mesmo com o latim
persona (e o português: pessoa): per-sonare: soar através, fazer-se
ouvir através, a exprimir capacidade de falar, de dialogar, de
manifestar-se. Em outras palavras: se o absoluto é pessoa, não é
absoluta unidade, porquanto a ultrapassagem da unidade está
incluída necessariamente no conceito de pessoa. Ao mesmo tempo,
contudo, somos forçados a reconhecer que a confissão de que Deus
é pessoa na modalidade da trindade, supera e vence qualquer
conceito simplório e antropomórfico de pessoa. Revela-nos, como
que em forma de sigla, que a personalidade divina supera
infinitamente o modo humano de ser pessoa, de modo que a idéia
de pessoa, por mais rico que seja o seu conteúdo, se revela como
símile insuficiente.

3ª. Tese: O paradoxo: "Una essentia tres personæ" está


subordinado ao problema do absoluto e relativo e destaca o
caráter absoluto do relativo.

a) Dogma como regulamentação de termos. Tentemos abrir


caminho ao que pensamos, mediante a seguinte consideração: se a
fé exprime a trindade de Deus na fórmula "uma natureza [139] –
três pessoas" desde o século III, uma tal disposição dos conceitos é,
em primeiro lugar, mera "disciplinação terminológica" 30 . De início,
abstraindo-se de qualquer terminologia fixa, era considerado como
firme e certo apenas o elemento do "um" e o da "trindade"; além
disto, devia encontrar expressão a completa igualdade de ambos
no domínio envolvente da unidade. Em certo sentido deve
considerar-se obra do acaso a circunstância de ambas as realidades
terem encontrado o seu revestimento verbal nos vocábulos
"substância" (ou "natureza") e "pessoa". Trata-se, em última
análise, de fazer valer ambas as realidades, não as deixando ao
arbítrio de cada um, com o perigo de poder fazer evaporar-se e
destruir-se a mesma realidade, junto com a terminologia usada
indiscriminadamente. Diante de tal situação, cumpre evitar
avanços excessivos, por exemplo, considerando tais termos como
os únicos possíveis e concluindo-se que a verdade só se poderia
exprimir assim e não de outros modos: com o que se negaria o
aspeto negativo da terminologia da doutrina de Deus, e o seu
caráter de mera tentativa.

b) O conceito de pessoa. Por outro lado, porém, cumpre


notar que este disciplinamento da terminologia significa mais do
que qualquer possível encalhe em algum vocábulo. Na luta pela
formulação do conteúdo da fé estava incluída a luta pelo próprio
conteúdo, de modo que, nas fórmulas e nos termos, por
inadequados que sejam, realiza-se um contato com a própria
realidade. Sob o ponto de vista da história da Filosofia pode-se
afirmar ter sido neste ponto que a realidade de "pessoa" passou por
um crivo muito concreto; tanto o conceito, como a coisa em si,
que se cobrem com o termo "pessoa", somente se desdobram ao
espírito humano na luta em torno da imagem cristã de Deus e em
torno do significado da figura de Jesus de Nazaré. Tentando
analisar, com estas restrições, a [140] nossa fórmula, em sua
conveniência, averiguamos que ela se impôs a partir de duas
pressões. Primeiro, estava claro que Deus é um, visto de modo
absoluto, que não existe uma pluralidade de princípios divinos.
Uma vez estabelecida esta verdade, é claro que a unidade se
encontra no plano da substância. Conseqüentemente, a Trindade,
da qual também se deve falar, não pode ser procurada neste
plano. Deve localizar-se em outro plano, no da relação, do
"relativo".

Esta conclusão é inevitável também, e sobretudo, mediante a


pesquisa na Bíblia. Ali ela torna-se clara pelo fato de Deus parecer
estar a falar consigo mesmo. Existe um "nós" em Deus – a Patrística
já o encontrou na primeira página do Gênese: "Façamos o homem"
(1,26); há um "eu" e um "tu" – a Patrística localizou-o nos salmos –
("Disse o Senhor ao meu Senhor", Sl 110,1), como também no
diálogo de Cristo com o Pai. A descoberta do diálogo no seio da
divindade levou a aceitar em Deus um "eu" e um "tu", um elemento
de relação, de diferenciação e de sintonia mútua para o qual o
conceito "pessoa" se impunha expressamente, de modo a
conquistar assim uma dimensão nova de profundidade realística,
para além dos limites de sua conotação teatral e literária, sem
perder o seu caráter vago que o tornava apto para semelhante
aplicação 31 .
A categoria da relação recebeu um significado totalmente
novo no pensamento cristão devido à idéia de que Deus, sob o
ponto de vista da substância, é um, realizando-se nele o fenômeno
dialógico, do qual resulta a diferenciação e a relação da fala. Para
Aristóteles, "relação" enquadrava-se entre os "acidentes" ou seja,
as peculiaridades ocasionais do ser que se distinguem da
substância, que é a exclusiva forma portadora da [141] realidade.
A experiência do Deus dialogizante, do Deus que não é Logos
somente, mas Dia-logos, não só pensamento e sentido, mas
conversa e palavra na correlação dos protagonistas esta
experiência destrói a divisão antiga da realidade em substância –
como o que propriamente é – e acidentes, ou seja, o mero
ocasional. E toma-se claro que o diálogo-relação se firma como
forma igualmente original do ser ao lado da substância.

Com isto estava posto o fundamento da terminologia


dogmática. Ela exprime a verdade de que Deus, como substância,
como "ser" é simplesmente um. Se, apesar disto, temos de tratar
dele na categoria de trindade, não se tenciona fazer uma
multiplicação das substâncias, mas diz-se que, no seio de Deus, do
Deus único e indivisível, existe o fenômeno do diálogo, a recíproca
inclinação de palavra e amor. O que, por sua vez, denota que as
"três pessoas" existentes em Deus são a realidade da palavra e do
amor em sua intrínseca relação recíproca. Não são substâncias,
personalidades em sentido moderno, mas são a relação, cuja pura
atualidade (= ser ato) (lembre-se do "pacote de ondas"!) não
suspende, mas determina a unidade do ser supremo. Agostinho,
certa vez, concretizou este pensamento na fórmula seguinte: "Deus
não é chamado Pai em relação a si, mas somente em relação ao
Filho; visto em relação a si ele é apenas Deus" 32 . Aqui transparece
o elemento decisivo de um modo muito belo. "Pai" é um conceito
totalmente relativo. Deus é Pai exclusivamente na relação para
com o outro; em si mesmo é apenas Deus. Pessoa é a pura relação,
nada mais. A relação não é algo que se acrescenta à pessoa, como
acontece em nós, ela existe exclusivamente como relação.

Expresso com os termos de comparação da tradição cristã,


isto quer dizer: a primeira pessoa não gera o Filho, como [142] se o
ato generativo viesse a acrescentar-se à pessoa, mas ela é o ato
generativo, de auto-doação e do transbordamento. A pessoa é
idêntica ao ato de doação. Ela é pessoa somente como este ato;
portanto, não o doador, mas o ato de doação, "onda" e não
"corpúsculo"... Com esta idéia de relacionamento em palavra e
amor, independente do conceito de substância, e não subordinável
aos "acidentes", o pensamento cristão encontrou e tocou o cerne
da idéia de pessoa, que denota algo diverso e diz mais do que o
mero conceito de "indivíduo". Tornemos a ouvir Agostinho: "Em
Deus não há acidentes, só substância e relação" 33 . Está latente aí
uma revolução da imagem do mundo: está quebrada a soberania
única do conceito de substância, descoberta a relação como
modalidade original, equivalente da realidade. Torna-se possível
debelar o que hoje se chama "pensamento objetivador"; surge um
novo plano do ser. Provavelmente teremos de dizer que a tarefa
do pensamento filosófico que flui destas realidades, nem de longe
está completa, por mais que o pensamento moderno dependa das
possibilidades aqui abertas e por mais que, sem elas, ele não seja
viável.

c) Volta ao bíblico e problema da existência cristã. Mas,


voltemos à nossa questão. Os conceitos apresentados facilmente
poderiam dar a impressão de ter sido alcançado o ponto extremo
da Teologia especulativa que, ao trabalhar os dados escriturísticos,
se afastou da S. Escritura, perdendo-se no aranhol de conceitos
puramente filosóficos. Tanto mais surpreendente é a circunstância
de esta especulação extremada tornar a conduzir diretamente ao
pensamento bíblico. Pois, no fundo, o que foi dito já está
presente, embora não em formulação e finalidade [143] idênticas,
no mundo conceitual de S. João. Tentemos uma breve alusão. No
Evangelho de S. João Jesus afirma de si: "O Filho por si mesmo não
pode fazer coisa alguma" (Jo 5,19.30). Temos a impressão de um
enfraquecimento extremo do Filho, que nada possui de seu, mas,
por que é Filho, somente pode agir com base no que ele é. Torna-
se visível a relatividade do conceito "Filho". Chamando ao Senhor
de "Filho", João o denomina de uma maneira que, continuamente,
aponta para fora e para além dele; usa um termo que conota
relacionamento essencial. Com isto, toda a sua Cristologia coloca-
se em nexo com a idéia de relação. Fórmulas como a acima citada
só servem para acentuar o seu aspeto relativo; elas despem, por
assim dizer, o que está contido na palavra "Filho", a relatividade
nela contida. Aparentemente existe certa contradição entre a
afirmação acima e a outra, também consignada em João: "Eu e o
Pai somos uma só coisa" (Jo 10,30). Ao observador mais atento não
escapará que ambas as afirmações se completam e se promovem
mutuamente. Cristo denominando-se "Filho", relacionando-se assim
e tornado relativo ao "Pai", segue-se deste fato a total relativação
de Cristo ao Pai; precisamente por não estar em si, está nele, é
continuamente um com ele: "eu e o Pai somos uma coisa só".

Para além dos limites da Cristologia, torna-se clara a


importância destes conceitos para esclarecer o sentido e o valor da
própria realidade cristã, do ser-cristão, quando João estende estas
mesmas categorias aos cristãos que se originam de Cristo. Revela-
se aí que na Cristologia se expõe o que se dá com o cristão.
Encontramos exatamente o mesmo entrelaçamento anterior das
duas séries de afirmações. Paralelamente à fórmula: "O Filho por si
mesmo não pode fazer coisa alguma", que expõe a Cristologia
como doutrina relativista, a partir do conceito de "Filho", afirma-se
dos discípulos e sequazes de Cristo: "Sem mim nada podeis fazer"
(Jo 15,5). Assim a existência cristã com Cristo coloca-se sob a
categoria de relação. [144] E paralelamente à conseqüência que
faz Cristo afirmar: "Eu e o Pai somos uma só coisa", surge a súplica:
"Para que sejam um, como nós somos um" (Jo 17,11.22). A
diferença mais digna de nota para com a Cristologia está em que a
união dos cristãos se faz em forma de súplica, na forma optativa e
não no indicativo.

Consideremos rapidamente a importância do novo rumo que


assim se definiu e se tornou claro. O Filho, como tal e na medida
em que é Filho, não é absolutamente de si e, em conseqüência, é
totalmente um com o Pai. Por não ser nada ao lado do Pai, por não
afirmar nada como seu, próprio e exclusivo, por não contrapor ao
Pai nada que seja exclusivamente seu, por não reservar nenhum
espaço restrito ao que é seu, o Filho é todo igual ao Pai. A lógica é
absoluta: se não existe nada em que ele seja apenas ele, nenhum
terreno privativo seu, o Filho coincide com o Pai, é "um" com ele.
A palavra "Filho" exprime exatamente esta totalidade de
entrelaçamento. Para João, "Filho" denota ser-de-outro; portanto,
com esta palavra define o ser desse homem como um ser oriundo
do outro, voltado para o outro, um ser totalmente aberto para os
dois lados, não conhecendo restrição alguma do próprio "eu".
Portanto, é evidente que o ser de Jesus, enquanto Cristo, é um ser
totalmente aberto, um ser "de" e "para", que não se apega a si
mesmo em nenhum ponto, e em parte nenhuma está baseado só
em si. Portanto também está claro que um ser assim é pura
relação (não substancialidade) e, como pura relação, é pura
unidade. O que assim se diz sobre Cristo, como já vimos, também
serve, à guisa de explicação, da existência cristã. Ser cristão, na
mentalidade de João, conota ser como o Filho, tornar-se filho; por
conseguinte, não se apoiar em si, não estar em si, mas viver
totalmente aberto no "de" e no "para". Isto vale relativamente ao
cristão, na medida em que é cristão. Certamente através de tais
declarações ele se tornará consciente de quão pouco cristão ele é.

[145] Parece-me que o caráter ecumênico do texto se


esclarece de um lado inesperado. Certamente, sabemos todos que
a "oração sacerdotal" de Jesus (Jo 17), da qual falávamos,
representa a carta magna de todo o esforço em prol da unidade da
Igreja. Mas, não é que, muitas vezes, nos conservamos muito na
superfície do seu conteúdo? Nossa consideração demonstra que
unidade cristã denota, primeiramente, unidade com Cristo,
possível onde cessa a acentuação do próprio "eu", substituída pela
existência simplesmente descomprometida "de" e "para". A uma
vida assim com Cristo, mergulhada completamente na
disponibilidade daquele que não queria considerar nada como seu
(veja também Fl 2,6 e s), segue-se a completa união – "para que
sejam um, como nós o somos". Toda falta de união, toda separação
baseia-se em uma carência oculta do autêntico espírito cristão, em
um apego ao que é próprio, com o que se acarreta a ruína da
unidade.

Creio não ser sem importância notar como a doutrina


trinitária invade a existência, como a afirmação – relação é igual a
pura unidade – se torna transparente quando aplicada a nós. É da
essência, da natureza da personalidade trinitária ser pura relação,
e, portanto, unidade a mais completa e absoluta. Não há
contradição nisto, o que aliás se pode perceber. E agora pode-se
compreender, melhor do que antes, não ser o "átomo" a menor
partícula indivisível 34 , possuidora da mais elevada unidade, mas
que a pura unidade real pode efetivar-se primeiro no espírito,
incluindo a relatividade do amor. Portanto, a defesa da unidade de
Deus não é menos radical no Cristianismo do que em qualquer
outra religião monoteísta; aliás, no Cristianismo essa unidade
alcança a sua grandeza completa. Ora, a essência da vida cristã é
integrada pela aceitação e pela vivência da existência como
relação, penetrando desta maneira naquela unidade que é o
fundamento sustentador da realidade. [146] Com o que deveria
estar demonstrado como uma doutrina trinitária bem
compreendida pode tornar-se o ponto central da Teologia e do
pensamento cristão em geral, de onde as demais linhas se
irradiam.

Tornemos novamente ao Evangelho de João que fornece os


subsídios decisivos. Pode-se afirmar que a linha insinuada
representa a dominante propriamente dita da sua Teologia. Ela
revela-se, ao lado da idéia do "Filho", sobretudo em dois outros
conceitos cristológicos que vamos indicar pelo menos rapidamente
para completar o assunto. Trata-se do conceito de "missão" e do
epíteto de Jesus como "Palavra" ("Verbo, Logos") de Deus. Outra
vez a teologia da missão cobre-se com a teologia do ser como
relação e a relação como modo de unidade. É conhecida a
afirmação rabínica: "O enviado de um homem é como ele mesmo"
35 . Jesus surge em João como o enviado do Pai, e nele se cumpre
tudo que os outros mensageiros conseguiram apenas
assintoticamente: Jesus empenha-se de fato em ser o enviado; ele
é o único mensageiro que representa o outro, sem meter de
permeio nada dos seus próprios interesses. E assim, como
autêntico enviado, ele é um com quem o envia. De novo, o
conceito de missão conota o ser como ser "de" e ser "para"; e o ser
é novamente compreendido como simples estar-aberto sem
restrição. E outra vez segue-se a aplicação à vida cristã: "Como o
Pai me enviou, assim eu vos envio" (13,20; 17,18; 20,21).
Subordinada essa existência à categoria de missão, também ela
passa a denotar ser "de" e "para", como relacionamento e, por isto,
como unidade. Finalmente, ainda uma observação em torno da
idéia de Logos. Caracterizando o Senhor como Logos, João colhe
um termo vastamente espalhado na mentalidade grega e judaica,
aceitando com ele uma série de conotações ligadas [147] ao
mesmo, e que são transferidas para Cristo. Contudo, talvez a
novidade que João imprimiu ao termo esteja, não por último, na
circunstância de, para ele, "Logos" não significar meramente a
idéia de uma eterna racionalidade do ser, como era compreendido
na mentalidade grega. O conceito Logos aplicado a Jesus de
Nazaré recebe uma nova dimensão. Não denota mais apenas a
perpenetração, o embebimento de todo o ser com um sentido, mas
denota determinado homem: este, aqui presente, é Logos (Verbo,
Palavra). O conceito Logos, sentido, "razão" para o grego (ratio),
transforma-se realmente em "Palavra" (Verbum). Este, aqui
presente, é Verbo; portanto ele é "fala" e assim, a pura relação do
que fala para com aqueles aos quais fala. Portanto, a teologia do
Logos, como teologia do Verbo, torna a ser abertura do ser no
rumo da idéia de relação. E torna a valer: Verbo essencialmente é
"de um outro" e "para um outro", é existência, é completamente
caminho e abertura.

Terminemos com um texto de Agostinho, que coloca o


assunto em plena luz, de modo grandioso. Encontra-se no
comentário ao Evangelho de S. João, no texto: "Mea doctrina non
est mea – minha doutrina não é minha doutrina, mas do Pai que me
enviou" (7,16). Aproveitando o paradoxo desta afirmação,
Agostinho esclareceu o paradoxo da idéia cristã de Deus e da vida
cristã. Ele se pergunta, primeiro, se não é pura contradição,
violência contra as regras elementares da lógica dizer algo como: o
meu não é meu. Mas, assim vai ele penetrando em que consiste
afinal a "doutrina" de Jesus que, simultaneamente, é e não é dele?
Jesus é "palavra", portanto é claro que sua doutrina é ele mesmo.
Tornando a ler a frase, sob este ponto de vista, eis o que Jesus
declara: eu não sou apenas eu; eu não sou meu mas o meu "eu" é
de um outro. Com o que, ultrapassando a cristologia, chegamos a
nós mesmos: Quid tam tuum quam tu, quid tam non tuum quam tu
– o que é tão teu como tu mesmo; o que é [148] tão pouco teu
como tu mesmo?" 36 O mais nosso – que realmente pertence a nós
somente – o próprio "eu" é, ao mesmo tempo, o menos nosso,
porque justamente o nosso "eu" não o temos de nós nem para nós.
O "eu" é o que mais tenho e, simultaneamente, o que menos me
pertence. Portanto, torna a romper-se o conceito de simples
substância (= do que subsiste em si), patenteando-se como um ser
racional compreende que não se pertence dentro da sua
identidade; que somente chega a si afastando-se de si,
regressando, como relacionamento, para a sua verdadeira origem.

Mediante tais ponderações não se arranca o véu de mistério à


doutrina trinitária. Contudo, é claro que, por meio delas, se abre
nova compreensão da realidade, do que é o homem, do que é
Deus. No ponto da teoria, aparentemente mais extremada, revela-
se algo de muito prático. Falando-se de Deus, descobre-se quem é
o homem. O mais paradoxal é simultaneamente o mais claro e o
mais prático.

SEGUNDA PARTE

JESUS CRISTO
CAPÍTULO PRIMEIRO
"Creio em Jesus Cristo seu Filho Unigênito, Nosso Senhor".

I. O problema da Fé em Jesus Cristo hoje

[151] A segunda parte principal do Credo coloca-nos


propriamente diante do elemento cristão fundamental – já
abordado, de leve, nas considerações introdutórias: a crença de
que o homem Jesus, um indivíduo executado na Palestina pelo ano
30, é o "Cristo" (ungido, escolhido) de Deus, e mais: é o próprio
Filho de Deus, centro e opção de toda a história humana. Parece
ousadia e tolice declarar centro decisivo da história inteira uma
figura isolada, destinada a diluir-se mais e mais nas névoas do
passado. A fé no "Logos", na razão ou racionalidade do ser,
corresponde perfeitamente a uma tendência da razão humana;
ora, neste segundo artigo do Credo realiza-se a quase monstruosa
união de Logos e Sarx * , de razão ou sentido e figura individual da
história. O sentido que sustenta todo o ser, tornou-se carne, isto é,
penetrou na história, tornando-se alguém nela; ele não é mais
apenas quem envolve e carrega a história, mas um ponto dentro
dela. De acordo com isto, o sentido de todo o ser não mais poderia
ser encontrado, de agora em diante, na intuição [152] do espírito a
elevar-se acima do individual e limitado, até alcançar o geral; não
mais existiria simplesmente no mundo das idéias a ultrapassar o
particular, refletindo-se aí apenas fragmentariamente; deveria ser
encontrado imerso no tempo, no rosto de um homem. Acorre à
memória a comovente passagem com que Dante encerra a Divina
Comédia quando, ao contemplar o mistério de Deus, no meio
daquela "onipotência de amor, que conduz, silente e harmoniosa, o
sol em seu círculo e todas as estrelas", descobre com bem-
aventurada admiração a sua semelhança, uma face humana 1 . Mais
tarde teremos de considerar a mudança do aspecto de ser para
sentido que daí resulta. Por ora constatamos que, ao lado da união
de Deus da fé e Deus dos filósofos reconhecida, no primeiro artigo,
como condição fundamental e forma estrutural da fé cristã, surge
agora uma segunda união, não menos decisiva, a saber, de Logos e
Sarx, de Verbo e Carne, de fé e história. O homem histórico Jesus
é o Filho de Deus, e o Filho de Deus é o homem Jesus. Deus
acontece para o homem mediante o homem, e até mais
concretamente: mediante aquele homem no qual se revela o
aspecto definitivo da existência humana e o qual é ao mesmo
tempo o próprio Deus.
Talvez já agora se delineiem os traços que mostram revelar-se
no paradoxo de Verbo e Carne algo cheio de sentido e em sintonia
com o Logos. Contudo, o primeiro impacto desta realidade causa
escândalo ao pensamento humano: Não nos tornamos com isto
vítimas de um tremendo positivismo? Será razoável agarrar-nos à
palhinha de um único acontecimento histórico? Poderemos ousar
fundamentar a nossa existência inteira, e até a história toda, sobre
o que não passa de pobre palha de um acontecimento qualquer a
boiar no [153] grande oceano da história? Já constitui gesto
temerário o simples fato de imaginar algo assim, que parecia
inaceitável ao pensamento asiático, e torna-se mais difícil, ou pelo
menos mais dificultado de outra forma, com as premissas do
pensamento moderno, a saber, pela maneira como agora se
transmitem os dados históricos, o método histórico-crítico. Este
método revela que na esfera do encontro com a história se
apresenta um problema semelhante ao que deparou a pesquisa do
ser e do seu fundamento no método físico e na forma científico-
natural do exame da natureza. Em considerações correspondentes
já vimos que a Física renuncia à descoberta do ser, concentrando-
se sobre o "positivo", sobre o que se pode provar; e se vê
condenada a pagar, com a renúncia à verdade; a vantagem
impressionante em exatidão, conseguida deste modo, renúncia que
pode chegar ao ponto de fazer desaparecer o ser e a mesma
verdade atrás das grades do positivo, tornando-se sempre mais
impossível a Ontologia e também a Filosofia, devendo retrair-se à
Fenomenologia, isto é, à pesquisa das aparências.

Parecida é a ameaça no campo da pesquisa histórica. A


adequação ao método da Física é levada o mais longe possível,
embora encontre os seus limites internos no fato de a História não
poder elevar-se à comprovação – centro da ciência moderna – não
poder obter a iteração, sobre a qual se baseia a certeza, singular
das comprovações científicas. Ao historiador não é dado repetir a
história passada, irrepetível, devendo contentar-se com a
comprovação da probabilidade das provas sobre as quais funda as
suas opiniões. A conseqüência dessa posição metodológica – à
semelhança das ciências naturais – é que, também na História, o
campo visual alcança exclusivamente o lado fenomenológico,
externo, do evento. Mas este lado fenomenal, isto é, exterior,
verificável em provas, é duplamente problemático, mais ainda do
que o positivismo da Física. É problemático, primeiro, por
depender do acaso [154] dos documentos, ou seja, das
manifestações ocasionais, enquanto a Física, em qualquer
hipótese, pode ter presente o indispensável lado exterior das
realidades materiais. E mais duvidoso ainda se torna porque a
manifestação humana em documentos é menos adequada do que
as manifestações espontâneas da natureza: os documentos
refletem apenas insuficientemente as profundezas humanas,
chegando mesmo a encobri-las; sua interpretação envolve,
compromete o homem e seu feitio pessoal de pensar, com energia
muito maior do que a leitura dos fenômenos físicos. De acordo com
isto, deve-se reconhecer que a imitação do método científico-
natural, na esfera da História, aumenta indubitavelmente a
certeza das conclusões, mas não se pode, também, negar que traz
consigo uma opressiva perda de verdade, que vai além daquelas
perdas ocorridas na Física. Como na Física o ser é postergado ao
fenômeno, assim, na História, passa a valer como histórico
exclusivamente o que é transmitido e oferecido por métodos
históricos. Não raras vezes esquecemos que a total verdade
histórica se esquiva ao cotejo dos dados, não menos do que a
verdade do ser se furta à experimentação. E teremos de dizer que
a história, em sentido mais exato do termo, não só se revela, mas
também se oculta. Concluir-se-á assim, por si, que a História pode
ver o homem Jesus, sem dúvida, mas dificilmente será capaz de
encontrar o seu caráter de Cristo, que, como verdade histórica não
enquadra na comprovação do que é meramente certo.

II. Jesus, o Cristo: Forma fundamental da Fé cristológica.

1. O dilema da Teologia nova: Jesus ou Cristo?

Depois de tudo isso, será de admirar que a Teologia, de uma ou


de outra maneira, tente fugir ao dilema da [155] simultaneidade
entre fé e história, tanto mais quanto mais entre ambas se levanta
a parede divisória do histórico? Constatamos hoje, cá e lá, a
tentativa de comprovar a Cristologia no plano da história, de
torná-la visível, apesar de tudo, mediante a aplicação do método
do "certo" e do comprovável 2 , ou também o propósito muito mais
singular de reduzi-la sem mais ao comprovável 3 . O primeiro não é
viável porque, como vimos, o "histórico", no sentido exato do
termo, exprime um modo de pensar que conota uma limitação
sobre o Phainomenon (o comprovável), sendo, por isto, tão pouco
capaz de produzir a fé, como a Física, de produzir o conhecimento
de Deus. O segundo não satisfaz, porque, desse modo, não se pode
abranger globalmente os eventos passados e o que realmente surge
como resultado final é a expressão de uma cosmovisão particular,
pessoal, não sendo puro resultado de pesquisa histórica 4 . E assim
a este esforço acrescentar-se-á a terceira tentativa de fugir
totalmente ao dilema do histórico, deixando-o para trás, por
supérfluo. O que já [156] se dá de modo grandioso em Hegel; e por
mais que se distinga a obra de Bultmann da de Hegel, condivide
com ela a mesma tendência. Refugiar-se na idéia ou no Kerygma
não é a mesma coisa; contudo, a diferença não é tão completa
como parecem julgar os defensores da teologia "querigmática" 5 .

O dilema dos dois caminhos – de um lado, transpor totalmente


ou reduzir Cristologia a História; de outro lado, desvencilhar-se da
História, deixando-a para trás como supérflua para a fé – este
dilema poderia ser resumido na alternativa que já perpassa a
Teologia moderna: Jesus ou Cristo? A Teologia de hoje começa por
voltar as costas a Cristo, refugiando-se em Jesus, enquanto
historicamente comprovável, para, em seguida, no ápice do
movimento, com Bultmann, virar em direção oposta, voltando de
Jesus para Cristo fuga que, todavia, no momento atual, já
recomeça a configurar uma nova debandada de Cristo para Jesus.

Tentemos acompanhar com mais atenção este vaivém da nova


Teologia, para, por seu intermediário, nos aproximarmos do
próprio assunto. Do seio da primeira tendência – fuga de Cristo
para Jesus – surgiu, no início do século, a Essência do Cristianismo
de Harnack: um livro que apresenta uma forma de cristianismo
saturada de orgulho e de otimismo racionalista, com base no qual
o Liberalismo purificou o Credo original. Uma das frases básicas
desta obra diz: "Não o Filho, mas exclusivamente o Pai pertence ao
Evangelho, como Jesus o anunciou" 6 . Quão simples, quão rico de
elementos libertadores [157] não nos parece isto! Onde a fé no
Filho criou separações – cristãos e não cristãos e cristãos de
diversos credos – a fé no Pai é capaz de unir. Onde o Filho só a
poucos pertence, o Pai pertence a todos e todos a ele. Onde a fé
cindiu, o amor pode reunir. Jesus contra Cristo significa: fora com
o dogma, retorno ao amor. O Jesus pregador, a anunciar a todos os
homens o Pai comum, tornando-os irmãos, foi transformado no
Cristo pregador que exigia fé e se transformou em dogma: e está
aqui, conforme Harnack, o elemento da decisiva ruptura: Jesus
proclamou a mensagem não-doutrinal do amor; estava aí a grande
revolução com que destruiu a couraça da ortodoxia farisaica; em
lugar do legalismo intolerante, a simplicidade da confiança no Pai,
a fraternidade dos homens e a vocação para um único amor. No
lugar disto, colocaram a doutrina do Homem-Deus, do "Filho",
pondo assim, em lugar de tolerância e fraternidade que conotam
salvação, uma doutrina salvífica que só pode denotar desgraça,
tendo desencadeado lutas sobre lutas e cismas sobre cismas. De
tudo isto segue-se, por si, a evidente conclusão: fora com o Cristo
pregado, o objeto da fé que separa; volta a Jesus pregador, o
apelo à força única do amor, sob o Pai comum, rodeado de muitos
filhos. Não se pode negar haver aí afirmações enfáticas e
dinâmicas de que não se pode abstrair facilmente. E contudo...
Harnack mal pregava a sua mensagem otimista, e já se
encontravam na soleira da porta os que iriam levar a sua obra à
cova. Na mesma época fora apresentada a prova de que o simples
Jesus, do qual Harnack falava, não passava de sonho romântico,
fata morgana do historiador, reflexo de sua sede e saudade, que se
dissolvem à medida que ele avança.

Assim Bultmann escolheu resolutamente o outro caminho: só é


verdadeiramente importante em Jesus o fato de sua existência; de
resto, a fé não se refere a hipóteses incertas sobre as quais é
impossível conseguir segurança histórica, mas [158]
exclusivamente ao acontecimento da palavra, da pregação pela
qual a existência humana abriu-se para o seu sentido. Mas, um
mero fato será mais fácil de aceitar do que um fato rico em
conteúdo? Lucrou-se alguma coisa com o afastar-se para a esfera
do secundário a questão sobre quem e o que e como era esse
Jesus, restando em seu lugar o homem ligado a um puro
acontecimento de pregação? Isto seguramente se dá porque
"prega-se", mas a legitimação e real conteúdo desta pregação
tornam-se bastante problemáticos.

Considerando tais questões, compreender-se-á por que


aumenta o número daqueles que tornam a afastar-se do puro
"querigma" e do Jesus histórico, como que emagrecido e reduzido a
fantasma que mal existe, voltando a procurar refúgio junto do
mais humano de todos os homens, cuja humanidade, dentro de um
mundo des-deificado, lhes parece como derradeiro clarão do
divino, que sobrou após a "morte de Deus". É o que se dá hoje na
teologia da "morte de Deus" a qual ensina que, embora não
disponhamos mais de Deus, nos ficou, contudo, Jesus como sinal
de confiança a animar-nos a ir adiante 7 . No meio de um mundo
esvaziado de Deus, a humanidade deve ser algo assim como o
substitutivo de Deus que já não se pode mais encontrar. Mas quão
privados de senso crítico se revelam agora os que antes se
comportaram tão criticamente a ponto de só quererem admitir
Teologia sem Deus, para não criarem aos olhos dos seus
contemporâneos progressistas a impressão de serem atrasados!
Aliás, a pergunta já devia ter sido feita antes, ao refletirmos se
não se revelava uma perigosa falta de senso crítico na intenção de
fazer Teologia – tratar de Deus-sem Deus. Não precisamos [159]
preocupar-nos com isto agora. No que toca ao nosso assunto, está
fora de dúvida que não estamos em condições de fazer voltar atrás
os últimos quarenta anos, e que nos está irrevogavelmente barrado
o retorno a um simples Jesus. É intrinsecamente absurda a
tentativa de construir um mero Jesus do qual se possa viver,
abstraindo do Cristianismo histórico e apelando apenas para a
retorta do historiador. A mera história não cria nenhuma presença,
mas constata o que houve. Por isto a romântica de Jesus é, em
última análise, tão sem futuro, e tão vazia de presente como
deveria ser uma fuga ao puro acontecimento da pregação.

Contudo não foram de todo em vão os vaivém do espírito


moderno entre Jesus e Cristo, cujas etapas principais em nosso
século tentei descrever. Creio até que se pode ver aí uma
orientação, a saber, no sentido de não ser possível um (Jesus), sem
o outro (Cristo), no sentido de ser necessário olhar continuamente
de um para o outro, porque, na verdade, Jesus só existe como o
Cristo e o Cristo só é real como Jesus. Impõe-se-nos mais um passo
adiante: em vez de qualquer reconstrução, que só pode resultar
em reconstrução, ou seja, em imagens artísticas ulteriores,
devemos tentar compreender simplesmente o que a fé nos diz, a
fé que não é reconstrução, mas presença, não é teoria, mas
realidade de viva existência. Talvez seja mais indicado confiar
mais na presença da fé atuante através dos séculos, que, em sua
natureza, nada mais é do que compreensão – compreensão do que
e quem finalmente foi Jesus – quiçá seja mais indicado confiar na
fé, do que na reconstrução que busca seu caminho fora da
realidade. Pelo menos convém tentar tomar conhecimento do que,
afinal, essa fé nos diz.

2. Imagem do Cristo do Símbolo

O símbolo, que seguimos neste livro como resumo


representativo da fé, formula sua crença em Jesus em palavras
[160] muito sóbrias: "e (creio) em Cristo Jesus". O máximo que nos
poderá despertar a atenção neste tópico é que, à semelhança da
maneira preferida pelo apóstolo Paulo, foi colocada antes a
palavra "Cristo", originariamente denotando não um nome, mas um
título ("Messias"). Ora, pode-se provar que a palavra ainda era
conhecida em sua acepção original pela comunidade romana que
formulou o nosso símbolo. A alteração para um puro nome próprio,
tal como o notamos hoje, já se havia consumado em época bem
remota. Contudo, no Credo, o termo "Cristo" ainda se emprega
como epíteto de Jesus. Contudo, a fusão com o nome de Jesus já
estava bem adiantada e nos encontramos na última etapa da
mudança de significado da palavra "Cristo".

Ferdinand Kattenbusch, o grande pesquisador do Símbolo


Apostólico, esclareceu com acerto o fato, aduzindo um exemplo no
seu tempo (1897). A guisa de paralelo, indica a expressão "Kaiser
(= imperador) Guilherme": o título Kaiser transformou-se quase em
parte integrante do nome próprio, tão inseparavelmente se
pertencem o Kaiser e o "Guilherme", Contudo, todos sabem que o
termo Kaiser não exprime apenas, nem em primeiro lugar, um
nome, mas uma função 8 , Algo de muito parecido existe na
justaposição de "Cristo Jesus" com idêntica formação: Cristo, sendo
título, também já é parte do nome primitivo do homem de Nazaré.
No processo da fusão do nome com o título, do título com o nome,
desenvolve-se algo bem diverso dos inumeráveis esquecimentos da
história, para os quais teríamos aqui mais um exemplo. Devemos,
ao contrário, ver aqui, a revelar-se, o núcleo mais profundo
daquela compreensão que a fé realizou relativamente à figura de
Jesus de Nazaré. A expressão propriamente dita desta fé é que não
se pode distinguir cargo e pessoa naquele [161] Jesus; esta
diferença aplicada a Jesus não tem razão de ser. A pessoa é o
cargo, o cargo é a pessoa. Ambos são inseparáveis: não existe uma
esfera de restrição do que é pessoal, do "eu" que se conserva de
algum modo fora da sua ação, podendo, portanto, também ficar
"fora de ação". Não há nenhuma obra sua que seja um "eu"
separado – o "eu" é a obra e a obra é o "eu".

Sempre de acordo com a evidência da fé espelhada no símbolo


– Jesus não deixou uma doutrina passível de ser separada do seu
"eu", como se podem colecionar e avaliar as idéias dos grandes
pensadores sem levar em consideração a pessoa do autor. O
Símbolo não oferece uma doutrina de Jesus. Nem sequer se chegou
a pensar numa evidente tentativa de ver nele uma doutrina,
porque o sentido fundamental presente no Símbolo atua em
direção completamente outra. E, de acordo com a declaração do
Credo, Jesus não fez uma obra capaz de se distinguir e de ser
representada como distinta do seu "eu". Compreendê-lo como o
"Cristo" significa estar convencido de que ele se entregou a si
mesmo dentro da sua palavra: não é um "eu" que fala (como
acontece conosco) – ele identificou-se com a sua palavra de modo
tal, que "eu" e "palavra" são indistinguíveis: ele é palavra. De modo
idêntico, para a fé, sua obra nada mais é do que o irrestrito
identificar-se com essa obra; ele se faz e se dá; sua obra é sua
autodoação.

Karl Barth certa vez exprimiu essa constatação da fé do modo


seguinte: "Jesus é simplesmente portador de um cargo. Portanto,
não é, primeiro, um homem e depois um encarregado de certa
tarefa... Não existe dentro de Jesus uma humanidade neutra...
Poderia ser repetida, em nome dos quatro Evangelhos, a preciosa
palavra de Paulo (2 Cor 5,16): 'e, se todavia temos conhecido a
Cristo segundo a carne, agora, porém, já não o conhecemos assim'.
Os evangelistas se mantiveram inteiramente desinteressados a
respeito de tudo o que [162] esse homem pode ter sido e ter feito
fora da sua missão de Cristo e independente de sua realização...
Mesmo quando relatam sobre a sua fome e sede, suas refeições e
bebidas, seu amor, sua tristeza, sua ira e até suas lágrimas, os
evangelistas tocam em detalhes secundários, nos quais, em parte
alguma, transparece algo assim como uma personalidade
independente da obra, com determinados interesses, inclinações e
afetos... Seu existir como homem é sua obra" 9 . Em outras
palavras, a afirmação decisiva da fé sobre Jesus está na
inseparável unidade das duas palavras "Cristo Jesus", onde se
oculta a experiência da identidade de existência e missão. Neste
sentido, realmente pode-se falar de uma "teologia funcional": a
existência inteira de Jesus é função do "para nós", mas – por isto
mesmo – a função é sua existência 10 .

Interpretando assim, afinal, poder-se-ia afirmar realmente que


doutrina e feitos do Jesus histórico, como tais, não são
importantes, bastando o simples fato – a saber, contanto que se
compreenda que tal fato conota a realidade inteira da pessoa, que
se cobre, como tal, com sua doutrina, que se identifica com sua
ação, tendo aí a sua peculiaridade única e a sua irrepetível
unicidade. A pessoa de Jesus é sua doutrina e sua doutrina é Jesus
mesmo. Portanto, fé cristã, isto é, fé em Jesus como o Cristo, é
verdadeiramente "fé pessoal". E só a partir daí é que se poderá
entender realmente o que vem a ser isto. Tal fé não é a aceitação
de um sistema, mas a aceitação de uma pessoa, que é a sua
palavra; da palavra como pessoa e da pessoa como palavra.

3. Ponto de partida da Fé: a cruz.

[163] Para maior clareza do que se disse, daremos um passo a


mais, rumo à origem do Símbolo Apostólico em geral. Hoje
podemos constatar com bastante segurança, ter sido a cruz o local
de origem da fé em Jesus como o Cristo, isto é, o local do
nascimento da fé "cristã", em geral. Jesus mesmo não se
proclamou diretamente como o Cristo ("Messias"). Esta afirmação,
para nós um tanto estranha, destaca-se, a esta altura, com
bastante clareza, do debate tantas vezes confuso dos
historiadores. Nem mesmo se poderá fugir a tal conclusão, se se
lança mão de crítica adequada frente ao precipitado processo de
subtração em voga na atual pesquisa sobre Jesus. Portanto, Jesus
não se proclamou claramente como Messias (Cristo) – quem o fez
foi Pilatos ao aderir, por sua vez, à acusação dos judeus; cedendo
à sua acusação, proclamou, nas três línguas universais de então, a
Jesus como o Rei (Messias, Cristo) crucificado. O título da
execução, paradoxalmente, passou a ser "profissão de fé", ponto
de partida e raiz da fé cristã que considera a Jesus como o Cristo:
como crucificado esse Jesus é o Cristo, o rei. Sua crucificação é
sua entronização; sua entronização é a doação de si mesmo aos
homens; é a identificação da palavra, missão e existência na
entrega desta mesma existência. Sua existência é sua palavra. Ele
é palavra por ser amor. A partir da cruz, a fé compreende sempre
mais que esse Jesus não somente fez e disse alguma coisa, mas
que nele se identificam missão e pessoa, que ele sempre é o que
diz. Para João bastou muito simplesmente tirar daí a última
conclusão: se é assim – eis o pensamento cristológico fundamental
do seu Evangelho então esse Jesus Cristo é a "Palavra"; ora, uma
pessoa que não somente tem palavras, mas que é a sua própria
palavra e sua obra é o próprio Logos ("a palavra", o "sentido", a
"razão"); que existe desde sempre e para sempre; que é o [164]
fundamento sobre o qual repousa o universo – se em alguma parte
encontrarmos uma tal pessoa, será ela aquele sentido, aquela
razão (ratio) que nos sustenta e pela qual todos subsistimos.

Eis como se desdobra a compressão a que chamamos fé: os


cristãos encontram, pela primeira vez, na cruz, a identificação de
pessoa, palavra e obra. E ali reconheceram o elemento
propriamente decisivo diante do qual o resto passa a plano
secundário. Por isto, sua profissão de fé podia reduzir-se ao
simples entrelaçamento das duas palavras "Jesus" e "Cristo" – fusão
em que tudo estava expresso. Jesus é visto a partir da cruz, cuja
linguagem é mais eloqüente do que todas as palavras: ele é o
Cristo – nada mais é preciso acrescentar. O "eu" crucificado do
Senhor representa uma realidade de tal plenitude que tudo o mais
pode ficar para trás. Em uma segunda etapa voltou-se a refletir
sobre as palavras de Jesus, a partir da sua compreensão assim
conseguida. E, admirada, a comunidade devia constatar, na
palavra de Jesus, a mesma concentração sobre o seu "eu"; que
também sua mensagem, vista de trás, é tal, que desemboca, que
reconduz sempre a esse "eu", à identidade entre palavra e pessoa.
E João podia reunir ambos os movimentos em um terceiro e último
passo. O seu Evangelho é, por assim dizer, a leitura da palavra de
Jesus feita a partir da pessoa e da pessoa a partir da palavra. João
faz "cristologia" como profissão de fé no Cristo, como mensagem
da história de Jesus e, vice-versa, faz história de Jesus como
cristologia, o que prova a plena unidade de Cristo e Jesus, que se
torna e permanece constitutiva para a posterior história inteira da
fé 11 .

4. Jesus, – o Cristo

[165] Com tudo o que foi dito, deve ter ficado esclarecido em
que sentido e até que ponto se pode acompanhar o movimento de
Bultmann. Existe algo como uma concentração sobre o fato da
existência de Jesus, uma fusão da realidade "Jesus" na fé em Cristo
– realmente, sua palavra mais autêntica é ele mesmo. Mas, não nos
teremos lançado com excessiva precipitação para além da questão
que Harnack fizera? Que aconteceu com a mensagem do Deus Pai,
oposta à cristologia, com o amor de todos os homens que
ultrapassa e vence as balizas da fé? Teria sido absorvida em um
dogmatismo cristológico? Nesta tentativa de descrever a fé da
antiga cristandade e da Igreja de todos os tempos, não teria sido
afastado e encoberto através de uma fé que esqueceu o amor,
importante elemento que se manifesta na teologia liberal?
Sabemos que se pode chegar a tal extremo e que na história, mais
de uma vez, se chegou a tal ponto. Contudo, deve-se negar
peremptoriamente que isto corresponda ao sentido daquela
profissão da fé.

Porque, quem reconhecer o Cristo em Jesus, e só nele, e


reconhecer a Jesus como o Cristo, quem conceber a total
identidade de pessoa e obra como elemento decisivo, abandonará
a exclusividade da fé e sua antítese em relação ao amor, e unirá a
ambos em um todo que torna impensável a sua separação. O traço
de união entre Jesus e Cristo, a ausência de separação de pessoa e
obra, a identidade de um homem com o ato da entrega denotam
também o traço de união entre amor e fé. Pois o "eu" de Jesus, sua
pessoa que agora avança até o centro, encontra a sua
peculiaridade no fato de este "eu" não se situar em nenhum
isolamento autônomo, mas haurir a sua total existência do "tu" do
Pai e em existir para o "vós" dos homens. Ele é identidade de Logos
(verdade) e amor, e transforma o amor em Logos, [166] em
verdade da existência humana. Portanto, a fé postulada por uma
cristologia assim compreendida, essencialmente tende a tomar-se
a abertura universal do amor incondicional. Porque acreditar em
um Cristo assim compreendido significa simplesmente tornar o
amor conteúdo da fé de modo que se possa dizer: amor é fé.

Isto corresponde ao painel que Jesus traçou na grande parábola


do juízo final (Mt 25,21-66): o encontro, a identificação de Cristo
nos últimos dos homens, nos que necessitam do nosso auxílio, é
equiparado à profissão de fé exigida pelo Senhor julgador.
Portanto, crer em Cristo é o mesmo que reconhecer como sendo
Cristo o homem que precisa do meu auxílio, tal como me vem ao
encontro; é compreender o apelo do amor como apelo da fé. A
aparente alteração do Credo cristológico na incondicionalidade do
serviço e da disponibilidade humanas, que se processa em Mt 25,
depois do que foi dito, nada mais é do que o irromper de uma
dogmática de resto já presente; de fato, é, em verdade, a
conseqüência do traço de união entre Jesus e Cristo ou seja, do
âmago da cristologia. Porque tal traço de união – repitamo-lo – é
simultaneamente o traço de união entre fé e amor. E por isto, fé
que não seja amor não é, mas apenas parece, fé cristã –
constatação que deve ser proclamada tanto contra o equívoco
doutrinal do conceito católico da fé, como contra a secularização
do amor, que se origina em Lutero, devido à exclusividade da
justificação pela fé 12 .

III. Jesus Cristo – verdadeiro Deus e verdadeiro Homem

1. Introdução ao problema

[167] Voltemos à questão cristológica em sentido mais exato,


para que o que até aqui foi afirmado não fique como mera
afirmação ou mesmo como um apelo ao que é favorável.
Constatamos que a fé cristã em Jesus o afirma como sendo o
Cristo, isto é: como aquele em quem pessoa e obra são idênticos.
Partindo daí chegamos à unidade de fé e amor. Fora de qualquer
mera idéia e de qualquer doutrina independente, a fé cristã
conduz ao "eu" de Jesus, a um "eu" que é todo abertura, todo
"palavra", todo "Filho". Também já consideramos que, com os
conceitos "palavra" e "Filho" se deve exprimir o caráter dinâmico
dessa existência, sua pura actualitas. Jamais a palavra subsiste em
si, mas vem de alguém e existe para alguém, para ser ouvida,
existe para outros. Ora, Jesus existe exclusivamente nessa
totalidade do "de" e "para". O mesmo descobrimos como sendo o
sentido do conceito de "Filho", que conota uma tensão semelhante,
entre "de" e "para". Poderíamos resumir tudo na seguinte fórmula:
a fé cristã não está relacionada com idéias, mas com uma pessoa,
um "eu", a saber, um "eu" que pode definir-se como palavra e
Filho, ou seja, abertura total.

Isso conduz a duas conseqüências nas quais se revela a


dramaticidade da fé em Cristo (no sentido de fé em Jesus como
Cristo, isto é, como Messias) e sua necessária auto-ultrapassagem
histórica até o completo escândalo da fé no Filho (como fé na
autêntica divindade de Jesus). Porquanto, se for assim, se esse
"eu" for crido como pura abertura, puro "estar (ou: ser) – para",
como existência total vinda do Pai, se ele, com [168] toda a sua
existência, for "Filho" – actualitas do puro servir – se – expresso em
outras palavras – essa existência não só tiver, mas for amor, não
deve ela ser idêntica com Deus que, somente ele, é amor? E então,
Jesus, o Filho de Deus, não seria Deus? Não estaria certo: "O Verbo
era de Deus, e o Verbo era Deus" (Jo 1,1)? Entretanto, somos
também obrigados a encarar a pergunta oposta: Se esse homem for
totalmente o que ele faz, se ele se colocar atrás do que diz, se for
completamente para os outros e, contudo, entregando-se assim,
conservar-se totalmente em si, se for quem se encontrou,
perdendo-se (Cfr. Mc 8,35), não será ele o mais humano dos
homens, a realização do humano de modo completo e absoluto?
Teríamos então o direito de dissolver a Cristologia (tratado de
Cristo) na Teologia (tratado de Deus)? Não deveríamos, antes,
reclamar a Jesus apaixonadamente como homem, praticando
Cristologia como Humanismo e Antropologia? Ou deveria o Homem
propriamente dito ser Deus exatamente pelo fato de ser homem
em todos os sentidos e Deus ser homem autêntico? Seria possível o
encontro e o completo entrelaçamento do humanismo mais radical
e da fé no Deus que se revela?

Ao meu ver estas questões, cujo impacto abalou a Igreja dos


primeiros cinco séculos, surgem naturalmente da própria fé
cristológica. A luta dramática daquelas eras em torno dessa
questão conduziu à afirmação das três perguntas nos concílios de
então. E é exatamente esta tríplice afirmação que cria o conteúdo
e dá a configuração final e definitiva ao dogma cristológico
clássico que assim apenas tentou conservar a fidelidade plena à
singela profissão de fé inicial no Jesus como o "Cristo". Em outras
palavras: o dogma cristológico desenvolvido reconhece que o
radical "ser-Cristo" de Jesus postula a filiação e que a filiação
inclui a divindade. Só interpretado assim, o dogma conserva-se
como expressão "lógica" – de acordo com o Logos – compreensível,
enquanto a falta desta congruência leva ao mito. Contudo, o
dogma reconhece com [169] não menor decisão que Jesus, no
radicalismo do seu serviço, é o mais humano dos homens, o homem
verdadeiro e, deste modo, o dogma apóia a união de Teologia e da
Antropologia, união em que, desde então, consiste o elemento
verdadeiramente excitante da fé cristã.

Mas surge de novo uma pergunta: devendo, embora, reconhecer


a irredutibilidade da lógica desenvolvida e, com isto, a
conseqüência interna do dogma, permanece decisivo o olhar para
os fatos. Não nos estamos, quiçá, elevando nos ares, nas asas de
um lindo sistema, deixando para trás a realidade, de modo que a
inquestionável lógica do sistema de nada nos serve por faltar-lhe a
base? Com outras palavras, cumpre indagar se o fundamento
bíblico e o que dele resulta mediante a indagação crítica dos fatos
nos autorizam a conceber a filiação de Jesus como o fizemos e
como o realiza o dogma cristológico. A resposta de hoje, sempre
mais firme e mais evidente, é "não", Muitos vêem na resposta
positiva uma posição pré-crítica que mal merece alguma
consideração. Em oposição a isto, queria mostrar que a resposta
positiva não só pode, mas deve ser dada, se não se quiser cair em
banalidades racionalistas ou em idéias mitológicas de filiação que
foram superadas e vencidas pela fé bíblica no Filho e pela sua
interpretação na antiga Igreja 13 .

2. Clichê moderno do "Jesus histórico"

É preciso avançar devagar. Afinal, quem foi Jesus de Nazaré?


Que consciência tinha de si? A dar crédito ao clichê que começa a
se espalhar largamente como forma de vulgarização da Teologia
hodierna 14 , os fatos ter-se-iam processado [170] mais ou menos
assim: Seria preciso imaginar o Jesus histórico como uma espécie
de mestre profético que surgiu na atmosfera escatológica e
excitada do judaísmo tardio do seu tempo, anunciando a
proximidade do reino de Deus de acordo com a situação
escatológica excitante. Sua pregação, de início, era toda
condicionada pelo tempo: Virá, em breve – agora o reino de Deus,
o fim do mundo. Contudo, Jesus acentuava o "agora" de modo tão
forte que o futuro condicionado não podia mais valer como o
elemento decisivo aos olhos do observador mais atento. Este
elemento só podia ser percebido no apelo à decisão – mesmo se o
próprio Jesus não pensasse em um futuro, em reino de Deus: o
homem torna-se todo comprometido com o presente, com o
"agora" que irrompe cada vez.

Não vamos nos deter em comentar que uma mensagem tão


vazia de conteúdo com que se presume compreender a Jesus
melhor do que ele mesmo se compreendeu, dificilmente teria
algum significado para os outros. Ouçamos antes, qual tenha sido a
continuação do caso. Por razões que não se conseguem mais
reconstituir exatamente, Jesus foi executado, morrendo como um
fracassado. Depois, de uma maneira que não é mais possível
esclarecer, surgiu a fé na ressurreição e a idéia de que ele voltaria
a viver ou, pelo menos, de que ele significava alguma coisa.
Paulatinamente, esta fé cresceu dando existência a outra idéia
que gira em uma esfera semelhante: Jesus voltaria como Filho do
homem ou Messias. O passo seguinte re-projetou essa esperança
sobre o Jesus histórico, colocando-a nos seus lábios e re-
interpretando-o de acordo. Passou-se então a declarar, como se
ele pessoalmente se tivesse anunciado como o Filho do homem ou
vindouro Messias. Em seguida – sempre dentro dos moldes do nosso
clichê – a mensagem transferiu-se do mundo semita para o mundo
helênico, [171] o que trouxe consigo consideráveis conseqüência.
No mundo judaico, Jesus era explicado mediante categorias
judaicas (Filho de Deus, Messias). Tais categorias eram
incompreensíveis para o mundo grego; portanto, lançou-se mão de
modelos de representação helênicos. Em lugar dos esquemas
judaicos de Filho do homem e de Messias, entraram as categorias
helênicas de "homem divino" ou "homem-Deus" (theios aner)
mediante as quais se tornou acessível a figura de Jesus.

Ora, o "homem Deus", no sentido grego, se destaca sobretudo


por duas características: é taumaturgo e é de origem divina. Esta
última conota uma descendência qualquer de Deus como Pai; é sua
origem semidivina, semi-humana que o torna um homem-Deus, um
homem divino. Conseqüência da aplicação da categoria de homem
divino foi que, forçosamente, se deveriam transferir para Jesus as
citadas características. Portanto, começou-se a descrevê-lo como
taumaturgo, e o "mito" do nascimento virginal foi criado pela
mesma razão. E este, por sua vez, tornou a descrever a Jesus como
Filho de Deus, porque Deus, de maneira mítica, entrou em cena
como seu Pai. Assim a interpretação helênica de Jesus como
"homem divino", unida às suas conseqüência, transforma em idéia
"ontológica" da descendência de Deus o que antes fora distintivo de
Jesus, ou seja, o acontecimento da sua proximidade com Deus. E a
fé da antiga Igreja prosseguiu nesta senda mítica até à definitiva
cristalização do conjunto, no dogma de Calcedônia com o seu
conceito da divina filiação ontológica de Jesus. Com a idéia da
divina origem ontológica de Jesus, esse concílio dogmatizou aquele
mito, cercando-o de uma abstrusa erudição a ponto de elevar a
schibboleth * da ortodoxia esta declaração mítica, invertendo assim
definitivamente o ponto de saída.

[172] O historiador vê em tudo isso um quadro absurdo que, no


entanto encontra hoje em dia multidões de adeptos. Por mim,
também abstraindo da fé cristã, estou em condições de acreditar
mais facilmente e de preferência numa hominização (encarnação)
de Deus do que na possibilidade de realizar-se um tal conjunto de
hipóteses. Lastimo não me permitir a limitação aqui imposta
descer a detalhes da problemática histórica, que exigiriam uma
pesquisa demorada e completa. Devemos (e podemos) limitar-nos
ao ponto decisivo, em torno do qual gira o nosso problema: a
filiação divina de Jesus. Abordando lingüisticamente o assunto com
cuidado, sem baralhar tudo o que se gostaria de ver interligado,
pode-se constatar o que segue.

3. O direito do dogma cristológico

a) O problema do "homem-Deus". O conceito de homem divino


ou seja de homem-Deus (theios aner) não se encontra em parte
alguma no Novo Testamento. Inversamente, na literatura antiga
(grega, etc.) não se encontra em nenhum lugar a designação "Filho
de Deus". Eis duas constatações importantes. Os dois conceitos de
modo algum dependem um do outro historicamente, nada têm em
comum, nem real nem lingüisticamente. Nem a Bíblia conhece o
homem divino, nem a Antiguidade, na esfera do homem divino,
conhece a idéia de filiação divina.. Pesquisas mais recentes
mostram, além disto, que mesmo o conceito de "homem divino"
dificilmente encontra cobertura na era pré-cristã, tendo surgido
apenas mais tarde 15 .

Mas, mesmo abstraindo disto, continua valendo que o título de


"Filho de Deus" e os nexos reais com ele expressos não podem ser
esclarecidos mediante a relação de título e idéia do homem divino:
os dois esquemas de representação, olhados historicamente, [173]
são totalmente estranhos um ao outro e jamais tiveram pontos de
contacto.

b) A terminologia bíblica e sua relação com o dogma. Na


terminologia bíblica do Novo Testamento deve-se distinguir
exatamente entre a expressão "Filho de Deus" e a simples
designação "o Filho". Para quem não procede lingüisticamente com
a devida exatidão, ambas parecem denotar a mesma coisa.
Realmente as duas têm algo de comum entre si e movimentam-se
sempre uma em direção à outra. Contudo, originariamente
pertencem a contextos totalmente diversos, têm origem diferentes
e exprimem coisas diversas.

α) "Filho de Deus". A expressão origina-se da teologia régia do


Antigo Testamento que, por sua vez, se baseia em uma
desmitização da teologia régia do Oriente, exprimindo a teologia
de escolha de Israel. Exemplo clássico de tal processo de
desmitização encontra-se no Salmo 2,7 ou seja, na mesmo texto
que se tornou um dos pontos básicos para o pensamento
cristológico. Neste verso o rei de Israel ouve o seguinte oráculo:
"Promulgarei o decreto divino. Disse-me Deus: Tu és meu filho; eu
hoje te gerei. Pede-me e dar-te-ei em posse as nações e para teu
domínio, os confins da terra". Este versículo pertence ao contexto
da entronização dos reis de Israel e origina-se, como já se disse, de
ritos de coroação arcaico-orientais, em que o rei era declarado o
filho gerado por Deus; aliás, toda a extensão da imagem de
geração só foi conservada, ao que parece, no Egito: ali o Faraó era
considerado um ser gerado miticamente por Deus, enquanto na
Babilônia o mesmo ritual já tinha sido bastante desmitizado, tendo
sido concebido como ato jurídico o pensamento de que o rei era
filho de Deus 16 .

Ao ser aceita a fórmula pela corte davídica, seu sentido


mitológico foi completamente rejeitado. A idéia de uma geração
[174] física do rei pela divindade foi substituída pelo pensamento
de que o rei se torna filho hoje; o ato gerador conota ato de
escolha por Deus. O rei é filho não porque engendrado, mas porque
eleito por Deus. Não se reivindica um processo físico, mas o poder
da vontade divina capaz de criar um ser novo. Sem tardança a
teologia inteira do povo escolhido concentra-se na idéia da filiação
assim compreendida. Em textos mais antigos, todo Israel é
chamado o filho primogênito, dileto de Iahvé (por exemplo, Ex
4,22). Na época dos reis, ao passar tal modo de falar ao monarca,
significa que nele, no descendente de Davi, está resumida a
vocação de Israel; que o rei representa Israel, reunindo em sua
pessoa o mistério da promessa, da vocação, do amor que envolve a
Israel.

E mais, diante da situação real de Israel, devia parecer


zombaria cruel a aplicação do ritual oriental aos reis de Israel, tal
como se faz no salmo. Havia sentido, quando, à entronização do
faraó ou do rei da Babilônia, se lhes declarava: "Os povos
pertencem-te por herança, o mundo é teu; governá-los-ás com
vara de ferro, quais vasos de argila poderás despedaçá-los". Tal
linguagem correspondia às pretensões de domínio mundial
daqueles monarcas. Quando um texto assim, cheio de sentido em
se aplicando aos reis do Egito ou da Babilônia, passa a ser usado
com referência ao rei de Sião, transforma-se em pura ironia, pois
os reis da terra não tremem diante dele, sendo bem o contrário o
que sucede. E o domínio mundial expresso pelos lábios de um
mísero príncipe de terceira classe, como o rei de Sião, quase
deveria parecer uma piada. Dito de outra maneira: o manto do
Salmo, tomado de empréstimo ao rito oriental, era grande demais
para os ombros do verdadeiro rei do monte Sião. Portanto, foi uma
imposição da história que transformou esse Salmo, que visto sob o
prisma do presente, devia parecer quase insuportável, e o revestiu
mais e mais de um nimbo de esperança naquele relativamente ao
qual ele de fato adquiriria todo o seu valor. Isto é: a Teologia do
rei, [175] alterada em um primeiro estágio em teologia de geração
e de escolha, em um segundo passo modificou-se em teologia de
esperança no rei que viria; o oráculo da entronização passou
progressivamente a um lema de promessa de que um dia viria o rei
no qual se tornaria realidade: "Meu Filho és tu; eu hoje te gerei.
Pede-me e dar-te-ei os povos da terra por herança".

Aqui se encaixa a nova aplicação do texto pela comunidade


cristã primitiva. Provavelmente devido à fé na ressurreição, o
Salmo foi aplicado pela primeira vez a Jesus. O acontecimento da
ressurreição de Jesus, em que a comunidade acredita, passa a ser
considerado como o momento em que o dito Salmo 2 se
concretiza. Naturalmente não é menor o paradoxo. Crer que o
supliciado do Gólgota seja simultaneamente aquele a quem tais
palavras foram ditas, parece contradição inaudita. Que significa
semelhante uso do texto? Significa que no supliciado da cruz e no
ressurgido para o olhar da fé, se vê realizada a esperança real de
Israel. Denota a convicção de que a palavra de Deus: "Meu Filho és
tu; eu hoje te gerei", foi dirigida exclusivamente ao que morreu na
cruz, ao que renunciou a todo o poder do mundo ( – e ponhamos,
como música de fundo, o tremor dos reis da terra, o destruir com
vara de ferro!); ao que deixou de lado todas as espadas e não
mandou outros à morte, como soem fazê-lo os reis do mundo, mas
enfrentou pessoalmente a morte pelos outros; ao que via o sentido
da existência humana não no poder e na auto-afirmação, mas no
existir-radical para os outros; que era, aliás, a existência para os
outros. No crucificado o crente percebe qual é o sentido daquele
oráculo, qual o sentido da eleição; não privilégio e poder para si,
mas serviço para os outros. Nele revela-se o sentido da história da
escolha, o autêntico sentido da realeza que desde sempre queria
ser ação vicária. E "representar" quer dizer: estar pelos outros,
substituí-los – o que agora recebe um sentido novo. Do
radicalmente fracassado, [176] do pendente do patíbulo, a quem
falta até um palmo de chão sob os pés, daquele cujas roupas são
objeto de jogo de azar e que chega a dar a impressão de estar
abandonado por Deus, precisamente dele vale o oráculo: "Meu
Filho és tu; eu hoje – neste lugar – te gerei. Pede-me e te darei os
povos da terra por herança e o mundo em possessão".

A idéia do Filho de Deus que, desta forma e por este caminho,


penetrou na fé em Jesus de Nazaré, na interpretação da
ressurreição e da cruz a partir do Salmo 2, não tem, realmente,
nada de comum com o conceito helenístico de homem divino, não
podendo ser explicada a partir dela. Ela representa a segunda
desmitização da idéia oriental do rei, já anteriormente
desmitizada. Representa a Jesus como o lídimo herdeiro do
cosmos, como o herdeiro da promessa na qual se cumpre o sentido
da Teologia davídica. Ao mesmo tempo, tornou-se patente que o
conceito de rei assim transferido para Jesus com O título de
"Filho", se funde com a idéia de servo. Como rei, ele é servo e
como servo de Deus, é rei. Este entrelaçamento tão fundamental
para a fé em Cristo foi preparado no Antigo Testamento quanto ao
conteúdo e na sua versão grega também quanto à terminologia. A
palavra pais, com que se nomeia o servo de Deus, também denota
"Filho". À luz do acontecimento "Cristo", este duplo sentido deve
ser o indicador da identidade intrínseca na qual ambas as coisas se
reúnem em Cristo 17 .

A passagem de Filho a servo, de glória a serviço que daí


resultou e que significava uma interpretação totalmente nova do
conceito de rei, bem como de Filho, encontrou a sua mais
grandiosa formulação na carta aos Filipenses (2,5-11), portanto em
um texto que cresceu ainda completamente no solo do cristianismo
palestinense. Aqui aponta-se para o exemplo fundamental do
sentimento de Jesus Cristo, que não conservou [177] ciosamente a
igualdade com Deus, que lhe é conatural, mas desceu às
profundezas do servo até ao completo auto-despojamento; a
palavra latina evacuatio aqui empregada indica-nos esta versão,
esta afirmação de ter-se ele "esvaziado", abrindo mão da
existência-para-si e entrando totalmente no movimento-para-os-
outros. Mas, continua o texto, precisamente nisto tornou-se o
Senhor do universo, do cosmos, e diante dele o universo faz a
prosquínese, o rito e o ato ou gesto da submissão devido
exclusivamente ao verdadeiro rei. E assim o obediente por
espontânea vontade surge como o verdadeiro dominador; o que
desceu ao fundo do auto-despojamento tornou-se, por meio deste
ato, o Senhor do mundo. O que já constatamos nas considerações
sobre o Deus uno e trino torna a se comprovar sob outro ponto de
vista: aquele que absolutamente não se apega a si, sendo pura
relação, coincide com o absoluto, tornando-se Senhor. O Senhor,
diante do qual o universo se curva, é o cordeiro imolado como
símbolo da existência que é ato puro, puro ser-para. A liturgia
cósmica, a homenagem adoradora do universo, giram em torno
deste cordeiro (Ap 5).

Mas, tornemos ainda à questão do título "Filho de Deus", e sua


posição no mundo antigo. Cumpre, com efeito, notar a existência
de um paralelo greco-romano. Ela não consiste na idéia do "homem
divino" que nada tem a ver com isto. O único paralelo antigo da
denominação de Jesus como Filho de Deus (expressão de uma
compreensão nova de poder, reino, escolha e até humanidade)
encontra-se na denominação do imperador Augusto como "filho de
Deus" (theou yios = Divi (Caesaris) filius) 18 . Realmente deparamos
aqui com a expressão exata com que o Novo Testamento descreve
a importância de Jesus de Nazaré. Somente no culto romano ao
imperador surge, na esfera do mundo antigo, com a ideologia
oriental do rei, o título "filho de Deus", que, de resto, não existe
ali e que [178] não pode existir por causa da plurissignificação da
palavra "Deus" 19 . Ele só volta a aparecer com o retorno da
ideologia oriental referente ao rei, da qual tal denominação se
origina. Em outras palavras: o título "Filho de Deus" integra a
teologia política de Roma, apontando assim, como vimos, para a
mesma relação fundamental da qual também surgiu o "Filho de
Deus" do Novo Testamento. Com efeito, ambos, embora
independentes entre si e por diversos caminhos, nasceram do
mesmo solo e se referem à mesma fonte comum. Portanto – não o
esqueçamos – no antigo oriente e na Roma imperial, "filho de Deus"
representa parcela da teologia política; no Novo Testamento, a
expressão foi metamorfoseada com outra dimensão de
pensamento, graças à alteração da teologia da eleição e da
esperança. E assim a mesma raiz fez surgirem duas coisas
totalmente diversas. No embate entre a fé em Jesus como Filho de
Deus e o reconhecimento do imperador como filho de Deus, que
em breve se tornaria inevitável, defrontaram-se praticamente o
mito desmitizado e o que permaneceu como tal. A onipretensão do
divino imperador romano não podia tolerar diante de si a teologia
do rei e do imperador modificada e que se revelava na aceitação
de Jesus como Filho de Deus. Neste sentido os martyria
(testemunhos) deviam transformar-se em martyrium, a provocação
contra o auto-endeusamento do poderio político 20 .
β) "O Filho", A autodenominação de Jesus como "o Filho"
destaca-se e distingue-se do conceito "Filho de Deus" acima
descrito, como algo inteiramente todo diverso. A palavra [179]
origina-se de outra história da língua e pertence a outra esfera
idiomática, a saber, à linguagem parabólica cifrada, usada por
Jesus na senda dos profetas e sábios de Israel. Também aqui a
palavra não ressoa na pregação para os de fora, mas deve
encontrar o seu habitat no círculo mais íntimo dos discípulos de
Jesus. Seu local de origem dever-se-á procurar na vida de oração
de Jesus; ele representa o correlativo interno do novo modo com
que Jesus se dirige ao Pai: Abba 21 . Joachim Jeremias mostrou,
mediante cuidadosa análise, que as poucas palavras que o Novo
Testamento grego nos transmitiu do original aramaico, ou seja, da
língua-mãe de Jesus, abrem de modo especial caminho ao seu
modo original de falar. Exerceram sobre os ouvintes um impacto
todo novo, caracterizando tanto o que era peculiar ao Senhor, seu
modo único, que foram conservadas literalmente; nelas como que
podemos ouvir sempre e ainda a sua própria voz.

A alocução "Abba – Pai" pertence às pouquíssimas jóias que a


protocomunidade nos conservou, não traduzidas, da linguagem
aramaica de Jesus, por ter percebido nela, de modo
impressionante, a ele próprio. Ela se distingue da expressão "Pai"
do Antigo Testamento, porquanto Abba representa uma fórmula de
maior intimidade (comparável, embora mais elevada do que a
palavra "papai" 22 ); a intimidade que lhe é inerente, excluía, no
judaísmo, a possibilidade de relacioná-la com [180] Deus; tal
aproximação não cabia ao homem. Que Jesus rezasse assim, que
falasse com Deus usando esta palavra, exprimindo uma forma nova
e toda sua de intimidade com Deus, ,eis o que a cristandade
primitiva conservava em mente conservando esta palavra com o
seu timbre original.

Ora, como já foi insinuado, esse modo de rezar encontra o seu


correlativo na autodenominação de Jesus como "Filho". Ambos
reunidos (Abba – Filho) exprimem o modo peculiar de Jesus orar,
sua consciência de Deus, à qual, embora tão reservado, permitia
que seu Círculo mais íntimo de amigos lançasse um olhar. O título
"Filho de Deus" (já o ouvimos) foi tomado de empréstimo à
messianologia judaica, representando por isto uma expressão
bastante carregada histórica e teologicamente; pelo contrário,
estamos agora diante de algo novo, infinitamente mais simples e
também infinitamente mais pessoal e profundo. Lançamos um
olhar na experiência orante de Jesus, naquela proximidade com
Deus que distingue sua relação para com Deus, da de todos os
outros homens, que, no entanto, não quer ser exclusiva, estando
capacitada a incluir os outros na mesma relação com Deus. Ela
quer, por assim dizer, assimilar os outros ao seu próprio modo de
ser para com Deus, de maneira que, com Jesus e nele, igualmente
possam dizer a Deus Abba: nenhum limite a distanciá-los, mas
aquela familiaridade, que era real em Jesus, deve envolvê-los.

O Evangelho de João colocou no centro de sua imagem de Jesus


essa autodenominação que nos Sinópticos se nos depara só em
poucos lugares (no quadro da formação dos discípulos); o que
corresponde à tendência fundamental desse Evangelho de orientar
os seus pontos de gravidade de preferência para o interior. A
autodenominação de Jesus como "Filho" torna-se o fio condutor da
descrição do Senhor; simultaneamente se desdobra o sentido da
palavra em seu raio de alcance através do ritmo do Evangelho. O
mais importante já foi dito sobre o assunto, nas considerações
sobre a doutrina trinitária; [181] portanto, bastará agora
apresentar algumas indicações que relembrem o que se disse.

João não encara o desenvolvimento de Jesus como Filho no


sentido de uma autopromoção que Jesus se tivesse feito, mas
como expressão da completa relatividade de sua existência. Situar
Jesus totalmente sob essa categoria é o mesmo que interpretar-lhe
a existência de maneira completamente relativa, que nada mais é
do que "existir de" e "existir para" e, precisamente nesta
relatividade total, identificar-se com o absoluto. Neste ponto o
título "Filho" cobre-se com o sentido de "o Verbo" (palavra) e de "o
enviado". E, ao descrever o Senhor com as palavras de Isaías "eu o
sou", João quer manifestar o mesmo pensamento, a total unidade
com o "eu o sou" resultante da doação completa. O âmago dessa
cristologia do Filho, em João, e cuja base já foi indicada nos
Sinóticos e, através deles, no Jesus histórico (Abba), está
exatamente no que inicialmente se nos tornou claro como ponto
de partida para toda a cristologia: na identidade de obra e
existência, de ação e pessoa, na total assimilação da pessoa à sua
obra e na completa identidade do agir com a mesma pessoa que
não se reserva nada, doando-se toda em sua obra.

Neste sentido é possível avançar a afirmação de que em João


nos deparamos com uma "ontologização", uma volta ao ser atrás do
fenômeno do mero acontecimento. Não se fala mais
exclusivamente da atividade, da ação, da fala e da doutrina de
Jesus, mas simplesmente se constata que, no fundo, sua doutrina é
ele mesmo. Ele, em sua totalidade, é Filho, palavra, mensagem;
sua ação toca o fundo da existência, identificando-se com ela. E
existe algo de típico nessa unidade de ser e agir. Nessa
radicalização da declaração, na inclusão de ontológico, para quem
for capaz de compreender e perceber os nexos e os bastidores, não
existe nenhuma renúncia do anterior, sobretudo nenhuma
cristologia triunfalista e glorificadora, em lugar de uma cristologia
de serviço que, por exemplo, não [182] fosse capaz de saber o que
fazer com o homem-servo crucificado, reinventando em seu lugar
um mito ontológico de Deus. Pelo contrário, quem tiver
compreendido corretamente o processo há de ver que só agora o
que dito anteriormente é entendido em toda a sua profundeza. O
ser-servo não se interpreta como uma ação por trás da qual a
pessoa de Jesus continua de pé, mas é mergulhado na existência
total de Jesus, de modo que sua própria existência é serviço. E
exatamente porque essa existência inteira é serviço, ela é filiação.
E assim, a inversão cristã dos valores alcança a meta, tornando
plenamente claro que quem se entrega completamente ao serviço
dos outros, ao total altruísmo e ao despojamento, é verdadeiro
homem, o homem do futuro, o ponto de junção entre homem e
Deus.

Agora pode-se dar o próximo passo: o sentido dos dogmas de


Nicéia e Calcedônia torna-se claro, pois eles nada mais
tencionaram do que declarar a identidade de serviço e existência
em que se revela o conteúdo total da relação "Abba – Filho".
Aquelas formulações dogmáticas não se situam no prolongamento
de idéias míticas de geração. Quem tal supõe, apenas demonstra
não ter uma idéia nem de Calcedônia nem da real importância da
ontologia, nem das declarações míticas que se lhes opõem.
Aquelas declarações não se desenvolveram a partir de idéias
míticas de engendramento, mas do testemunho de João, que, por
sua vez, representa simplesmente o prolongamento dos diálogos de
Jesus com o Pai e da existência de Jesus para os homens até à
culminância de sua entrega na cruz.

Prosseguindo dentro do mesmo contexto, não é difícil perceber


que a "antologia" do quarto Evangelho e das antigas profissões de
fé inclui um atualismo muito mais radical do que tudo que hoje se
apresenta sob a etiqueta de atualismo. Contento-me com um
exemplo, uma formulação de Bultmann quanto ao problema da
filiação divina de Jesus: "Assim como a ekklesia, a comunidade
escatológica, só é autêntica ekklesia [183] enquanto
acontecimento, assim também o ser-Senhor, a divindade de Cristo,
não passa jamais de um acontecimento" 23 . Nesta forma de
atualismo a verdadeira existência do homem Jesus conserva-se
estaticamente por detrás do acontecimento da divindade e do ser-
Senhor como a existência de um homem qualquer, sem ser tocada
por este acontecimento e somente como o ponto ocasional de
incandescência, em que ela se realiza, tornando-se, fato, para
alguém, pela audição da palavra, o encontro atual com Deus. E
assim como a existência de Jesus se conserva estática por trás do
acontecimento, assim também a existência do homem só pode ser
atingida pelo divino sempre na faixa do acontecível ocasional.
Também aqui o encontro com Deus se efetua no respectivo
instante do acontecimento, ficando a existência preservada dele.
Tenho a impressão de ver presente, em tal teologia, uma espécie
de desespero em face do que existe, que não permite esperar
possa o mesmo ser participar do ato, ou tornar-se ato.

A cristologia de João e dos símbolos vai muito além em seu


radicalismo, ao reconhecer o próprio ser como ato, dizendo: Jesus
é sua obra. E por trás disto não se encontra um homem, Jesus,
com o qual nada propriamente tenha acontecido. Sua existência é
pura actualitas do "de" e "para". Exatamente no fato de não ser
mais separável da sua actualitas, esta existência coincide com
Deus, sendo ao mesmo tempo o homem exemplar, o homem do
futuro através do qual se revela o quanto o homem ainda é o ser
futuro, ausente; o quão pouco ainda começou a ser ele mesmo.
Compreendido isto, torna-se evidente por que Fenomenologia e
análises existenciais, por úteis que sejam, não podem bastar para
a Cristologia. Elas não descem bastante a fundo porque deixam
intacto o domínio da existência propriamente dita.

IV. Caminhos da Cristologia

1. Teologia da Encarnação e da Cruz

[184] Os esclarecimentos até aqui alcançados abrem caminho


às teses fundamentais da Cristologia ainda não abordadas. Na
história da fé cristã, na reflexão sobre Jesus, desenvolveram-se
duas linhas, nascendo uma da outra: a teologia da Encarnação, que
nasceu do pensamento grego, dominando na tradição católica do
Oriente e do Ocidente, e a teologia da cruz que, vinculada a Paulo
e às formas mais antigas da fé cristã, irrompeu decididamente no
pensamento da Reforma. A primeira fala do ser e gira em torno do
fato de um homem ser Deus, com o que, simultaneamente, Deus é
homem; este fato espantoso torna-se-lhe o elemento decisivo.
Todos os demais acontecimentos posteriores empalidecem diante
deste acontecimento da identidade de homem e Deus, da
encarnação de Deus. Frente a isto o resto não pode passar de
secundário. O entrelaçar de Deus e homem surge como o
realmente decisivo, o salvífico, como o lídimo futuro do homem,
para o qual, finalmente, todas as linhas devem convergir.

A teologia da cruz, ao contrário, não quer deter-se em


semelhante ontologia; em vez disto, fala do acontecimento; segue
o testemunho inicial que ainda não indagava sobre o ser, mas
sobre o agir de Deus na cruz e na ressurreição, que venceu a
morte, e comprovou Jesus como o Senhor e a esperança da
humanidade. Dos respectivos pontos de partida resulta a tendência
diferenciada: a Teologia da encarnação tende a uma visão estática
e otimista. O pecado do homem facilmente toma a feição de uma
etapa de passagem, de importância bastante secundária. O
decisivo não é o homem no pecado, a ser curado: o que é decisivo
ultrapassa de muito a uma tal reparação do passado e, se coloca
no rumo do entrecruzar-se de homem e Deus. Em contraposição, a
teologia da Cruz conduz a uma [185] concepção dinâmico-atuante,
cosmo-crítica do cristianismo, que compreende o fato somente
como ruptura, descontínua e sempre a reaparecer, na auto-
segurança e na autocerteza do homem e das suas instituições,
inclusive da Igreja.

Quem, de algum modo, conservar diante dos olhos estas duas


grandes formas cristãs de autocompreensão, não se sentirá
tentado a sínteses simplificadoras. Em ambas as formas estruturais
básicas, teologia da Encarnação e da Cruz, estão delineadas
polaridades as quais não se podem omitir, com vistas a uma
simples síntese, sem que se perca o que ambas têm de decisivo;
devem continuar presentes como polaridades que se corrigem
mutuamente e somente permanecendo em sua relação mútua e
que apontam para o conjunto. Contudo, através das nossas
considerações deveria transparecer algo assim como a unidade
última de ambos os movimentos, unidade que tornasse a ambos
possíveis como polaridade, e impedisse que se dissolvessem como
antíteses. Constatamos com efeito que o ser de Cristo (teologia de
encarnação!) é actualitas, é saída de si, êxodo; não é um ser a
repousar em si, mas o ato do ser enviado, da filiação, do serviço. E
vice-versa: esse agir não é mero agir, mas ser; desce às raízes do
ser e identifica-se com ele. Esse ser é êxodo, transformação.
Portanto, uma teologia do ser e da encarnação bem compreendida
forçosamente desembocará na teologia da cruz, tornando-se uma
com ela; vice-versa, uma teologia da cruz, que avalie totalmente a
sua dimensão, forçosamente se tornará teologia do Filho e do ser.

2. Cristologia e Soteriologia

Do ponto assim alcançado torna-se visível o entrelaçamento de


uma antítese criada pela história, antítese aliás bastante
aparentada com a que acabamos de analisar. No correr da
evolução histórica da fé em Cristo destacou-se sempre mais o [186]
que se costumou chamar de "cristologia" e "soteriologia".
Cristologia seria a doutrina do ser de Jesus, que foi isolada sempre
mais como uma exceção teológica, transformando-se em objeto de
especulação sobre algo estranho, incompreensível e limitado
exclusivamente a Jesus. Soteriologia seria o estudo da salvação:
tendo tratado da charada ontológica, isto é como homem e Deus
poderiam ser um só em Jesus, perguntaram-se, completamente
separados do problema, o que Jesus fez e de que maneira o efeito
de sua ação nos alcança. A separação de ambas as questões, a
colocação de pessoa e obra como objeto de considerações e
tratados separados, teve como conseqüência tornarem-se ambos
incompreensíveis e irrealizáveis. Basta examinar um pouco os
tratados de dogmática para constatar quão complicadas se
tornaram as teorias sobre ambos, por ter-se olvidado que só
poderiam ser compreendidos quando juntos. Lembro apenas a
forma sob a qual a doutrina da salvação geralmente se apresenta
na consciência cristã. Baseia-se na chamada teoria da satisfação
desenvolvida por Anselmo de Cantuária no limiar da Idade Média, e
que determinou com exclusividade crescente a consciência
ocidental. Vista na sua forma clássica, não apresenta aspecto
unilateral, mas considerada na forma grosseira criada
posteriormente pela consciência geral, ela assume feição de um
mecanismo cruel que se nos afigura mais e mais irrealizável.
Anselmo de Cantuária (mais ou menos de 1033 a 1109) tinha em
mente deduzir a obra de Cristo através de razões necessárias
(rationibus necessariis), mostrando de maneira irrefutável que
essa obra se devia realizar exatamente como se realizou. Seu
pensamento poderia ser reduzido às seguintes grandes linhas: pelo
pecado do homem, cometido contra Deus, foi infinitamente ferida
a ordem da justiça e Deus ofendido infinitamente. Por trás disso se
esconde a idéia de que a medida da ofensa deve ser avaliada pelo
ofendido; outras são as conseqüências da ofensa a um mendigo e
outras a um chefe de [187] estado. O peso da ofensa varia de
acordo com o que foi atingido. Sendo Deus o infinito, também a
ofensa infligida a ele pelo pecado tem um peso infinito. O direito
assim violado deve ser restaurado, porque Deus é o Deus da ordem
e da justiça, é aliás a própria justiça. Ora, de acordo com o
tamanho da ofensa, impõe-se uma reparação infinita. Para tanto o
homem não é capaz. Tem capacidade de ofender infinitamente
(para o que a sua força é bastante), mas não é capaz de oferecer
uma reparação infinita: o que ele, o finito, oferecer, será sempre
apenas finito. Sua capacidade destruidora ultrapassa seu poder
criativo. Portanto, permanecerá uma distância infinita entre todas
as reparações que o homem tentar e a grandeza de sua culpa,
distância que ele jamais conseguirá vencer: qualquer gesto de
reparação somente lhe revelará a impossibilidade de fechar o
abismo que ele mesmo rasgou.

Então, a ordem deverá ficar para sempre destruída, o homem


eternamente encerrado no abismo de sua culpa? Neste ponto
Anselmo avança para a figura de Cristo. Eis a sua resposta: o
próprio Deus apaga a injustiça, não (como ele poderia fazer) por
meio de uma simples anistia incapaz de sobrepujar por dentro o
crime cometido, mas fazendo com que o infinito se torne homem
e, como homem, pertencente à raça dos pecadores e, no entanto,
possuidor da infinita capacidade de reparação, que está ausente
no simples homem, preste ele a necessária reparação. Assim a
redenção dá-se totalmente por graça e, simultaneamente, como
restauração do direito. Anselmo acreditava assim ter respondido à
difícil questão "cur Deus homo?", questão sobre o "por que" da
encarnação e da cruz. Seu ponto de vista imprimiu cunho decisivo
ao segundo milênio da cristandade ocidental a qual se tornou
convencida de que Cristo devia morrer na cruz para reparar a
infinita ofensa do pecado e restaurar assim a ordem abalada.
Não se deve negar que a teoria anselmiana reúne decisivos
pontos de vista bíblicos e humanos; quem a examinar [188] com
certa paciência, se convencerá disto mais facilmente. Neste
sentido, enquanto tentativa de reunir todos os elementos da
revelação bíblica em uma grande síntese, profunda e sistemática,
continuará merecendo respeito. Será difícil perceber que, apesar
de todos os recursos filosóficos e jurídicos postos aqui em ação,
permanece como linha mestra aquela verdade expressa na Bíblia
pela palavrinha "para", com a qual o livro sagrado manifesta que,
como homens, não só vivemos imediatamente de Deus, mas uns
dos outros e, finalmente, daquele único que viveu para todos? E
quem não veria que, no esquema da teoria da satisfação, continua
clara a linha do pensamento bíblico da eleição, para a qual a
escolha não representa um privilégio do eleito, mas a vocação para
existir para os outros? E o chamamento para aquele "para", ao qual
o homem serenamente se deixa levar, cessando de agarrar-se, e
ousando o salto para fora de si mesmo, rumo ao infinito, pelo qual,
e só por ele, conseguirá encontrar-se. Mas, mesmo concedendo
tudo isto, não se poderá negar que o sistema jurídico construído
por Anselmo, perfeitamente lógico em seu aspecto divino-humano,
distorce as perspectivas e pode mergulhar a imagem de Deus em
uma luz sinistra, graças à sua lógica de ferro. Ainda teremos de
voltar a este ponto, quando tratarmos do sentido da cruz. Por ora,
baste lembrar que a situação se apresentará de modo todo diverso,
se, em vez da separação na obra e pessoa de Jesus, se tornar
visível que em Jesus Cristo não se trata de uma ação separada
dele, de um ato que Deus deve exigir por estar pessoalmente
comprometido com a ordem; que não se trata – para falar com
Gabriel Marcel – do ter da humanidade, mas do seu ser. E como se
tornará outro o panorama, se apelarmos para expressão paulina
que nos ensina a compreender a Cristo como o "último homem"
(eschatos Adam: 1Cor 15,45) – como o homem definitivo a conduzir
a humanidade ao seu futuro, que consiste em ser, não homem
apenas, mas um com Deus.

3. Cristo, "o último Homem”.

[189] Atingimos aqui o ponto em que podemos tentar uma


síntese do que temos em mente com a confissão: "Creio em Jesus
Cristo, Filho unigênito de Deus, nosso Senhor". Após tudo o que se
disse até aqui, eis o que se poderia dizer em primeiro lugar: Fé
cristã crê em Jesus de Nazaré enquanto o homem exemplar – assim
poderia reproduzir-se objetivamente a expressão paulina "o último
homem" há pouco citada. Mas, justamente como o exemplar, como
o protótipo, Cristo ultrapassa o limite do "ser-homem", assim e só
deste modo ele realmente é o homem exemplar. Pois o homem
está dentro de si tanto menos, quanto mais está no outro. Volta a
si somente afastando-se de si. Só pelo outro e pelo existir no outro
ele chega a si.

O que vale, finalmente, em último e mais profundo sentido. Se


o outro for apenas alguém, pode transformar-se em autoperdição
do homem. Em última análise, o homem está sintonizado para o
outro, para o realmente outro, para Deus; está em si tanto mais,
quanto mais estiver no completamente outro, em Deus. Portanto,
ele é todo ele mesmo, se cessar de estar em si, de fechar-se em si,
de afirmar-se a si, se tornar-se a pura abertura para Deus. Dito
ainda de outro modo: o homem chega a si, ultrapassando-se a si.
Ora Jesus Cristo é o homem que se ultrapassou a si e que assim
chegou completamente a si.

O Rubicão da encarnação é transposto primeiramente pela


passagem do animal para o Logos, da mera vida para o espírito. Da
"argila" formou-se o homem no momento em que um ser não
somente "estava ali", mas estava aberto para o todo, superando a
mera presença e a satisfação de suas necessidades. Ora, este passo
pelo qual, pela primeira vez, Logos, razão, espírito penetrou neste
mundo, somente alcança a sua plena realização, quando o próprio
Logos, a razão criadora total, e o homem se entrelaçam. A
completa hominização [190] do homem supõe a hominização de
Deus; somente por meio dela foi transposta definitivamente o
Rubicão do "animalesco" para o "lógico", sendo levado à sua
máxima possibilidade aquele começo que irrompeu quando, pela
primeira vez, um ser de pó e argila, olhando para além de si e do
seu mundo ambiente, foi capaz de dizer "tu" a Deus. A abertura
para o todo, para o ilimitado, perfaz o homem. O homem é homem
pelo fato de chegar infinitamente para além de si, e, por
conseguinte, é tanto mais homem quanto menos for fechado,
limitado em si. Portanto – repitamo-lo – é homem ao máximo, e
mais, o verdadeiro homem, aquele que for o mais "ilimitado", que
não somente toque o infinito – o Infinito! – mas que seja um com
ele: Jesus Cristo. Nele a meta da hominização foi verdadeiramente
alcançada 24 .
Há, porém, ainda um segundo elemento a considerar. Até agora
tentamos compreender, a partir da idéia do "homem exemplar",
aquela primeira ultrapassagem fundamental do que é próprio, a
qual a fé conhece como determinativa para a figura de Jesus, a
saber, a que reúne, nele, o ser-homem com o ser-Deus, em uma
unidade. Contudo, já aí ressoava uma ulterior ultrapassagem.
Sendo Jesus o homem exemplar, no qual se revela plenamente a
verdadeira figura do homem, e com ele a idéia de Deus, não pode,
em tal caso, estar destinado a figurar como exceção absoluta,
como uma curiosidade, em que Deus nos demonstra o que é
possível. Em tal caso, a sua existência interessa à humanidade
inteira. O Novo Testamento torna-o reconhecível, chamando-o de
"Adão"; [191] na Bíblia o termo exprime a unidade da natureza
inteira do homem, de forma que se fala do conceito bíblico de uma
"personalidade corporativa" 25 . Ora, ser Jesus chamado "Adão"
denota que está destinado a concentrar em si a natureza inteira de
Adão. O que significa: aquela realidade, hoje em grande parte
inconcebível para nós, que Paulo denomina de "Corpo de Cristo",
representa um postulado interno dessa existência que não pode
permanecer como exceção, mas deve atrair e "concentrar em si" a
humanidade inteira (cfr. Jo 12,32).

Impõe-se reconhecer como importante mérito de Teilhard de


Chardin o ter repensado essas interligações do ponto de vista da
hodierna cosmovisão e, não obstante certa perigosa tendência para
o biológico, tê-las compreendido corretamente, em seu conjunto
e, em todo caso, tê-las tornado de novo acessíveis. Ouçamo-la! A
mônada humana "somente pode tornar-se ela mesma, se cessar de
estar sozinha" 26 . A ressoar nos bastidores deve-se, escutar a idéia
de que no cosmos, ao lado das duas ordens do infinitamente
pequeno e do infinitamente grande, existe uma terceira ordem
que determina a torrente da evolução: a ordem do infinitamente
complexo. Nela está a meta propriamente dita do processo
ascendente do devir; ela alcança o seu primeiro ponto culminante
no aparecimento da vida, para, a seguir, avançar continuamente
até aquelas formas altamente complexas que conferem ao cosmos
um novo centro: "Por mínimo e ocasional que seja o lugar ocupado
pelos planetas na história dos corpos celestes, eles formam, em
última análise, os pontos vitais do universo. [192] Através deles,
passa agora o eixo, neles se concentra, daqui por diante, a
tendência de uma evolução dirigida sobretudo para a formação de
grandes moléculas" 27 . Considerar o mundo sob o ponto de vista da
escola dinâmica da complexidade denota "uma total inversão dos
valores, uma inversão de perspectiva" 28 .

Mas tornemos ao homem. Até aqui ele representa o máximo em


complexidade. Mas, como pura mônada-homem, é ele incapaz de
representar um fim; seu próprio devir postula um ulterior
movimento de complexidade: "Não representa o homem,
simultaneamente, um indivíduo (= uma "pessoa") centrado
relativamente a si e um elemento relacionado com alguma nova e
mais alta síntese?" 29 . É o mesmo que dizer: por um lado, o homem
já é um fim que não pode mais sofrer recuo, não pode mais ser
desfeito, e, contudo, no lado-a-lado com os indivíduos, ele ainda
não chegou à meta, mas se revela como que um elemento a ansiar
pela plenitude que o envolva sem destruí-lo. Tomemos mais um
texto para ver em que direção levam tais idéias: "Em antítese com
as hipóteses ainda válidas na Física, o estável encontra-se não em
baixo – no infra-elementar – mas em cima – no ultra-sintético" 30 .
Portanto, deve constatar-se "que nada mais confere às coisas
firmeza e conexamento do que seu entrelaçamento a partir de
cima" 31 . Creio estar-se aqui frente a um pensamento muito
central: a imagem dinâmica do mundo destrói neste ponto o
conceito positivista, tão familiar a todos nós, que vê o estável
exclusivamente na "massa", na matéria dura. O mundo afinal é
construído e conectado "de cima"; isto se torna visível de uma
maneira que se parece tão [193] impressionante, pelo fato de
estarmos tão pouco familiarizados com ela.

Daqui, se abre o caminho para outro texto, visando, ao menos,


indicar a visão total de Teilhard de Chardin mediante a
justaposição de alguns fragmentos. "A energia universal deve ser
energia pensante, se na evolução ela não dever ser menor do que
as metas que serão animadas pela sua atividade. Portanto... os
atributos cósmicos de valor, com que a energia aparece envolvida
aos nossos olhos, não suprimem absolutamente a necessidade de
reconhecer-lhe uma forma transcendente de personalidade" 32 . A
partir daí pode-se compreender a meta do movimento total, assim
como Teilhard o vê: a torrente cósmica movimenta-se "na direção
de um estado incrível, quase 'monomolecular'... onde cada ego...
está destinado a alcançar o seu ponto culminante em algum
misterioso superego" 33 . Enquanto um "eu", o homem, sem dúvida,
representa um fim, mas o rumo do movimento do ser e da sua
própria existência revela-o, ao mesmo tempo, como um ente que
pertence a um "superego", que o não apaga, mas o envolve;
somente em tal fusão pode revelar-se a forma do homem futuro,
quando o "ser-homem" encontrar-se totalmente no ponto final de si
mesmo.

Deve-se reconhecer que, sob o enfoque da cosmovisão moderna


e envolvido em vocabulário por vezes de forte sabor biológico,
Teilhard conseguiu apreender o rumo da cristologia paulina,
tornando-a novamente compreensível: a fé vê em Jesus o homem
no qual – falando-se do ponto de vista biológico – foi dado como
que o próximo salto da evolução; o homem, no qual se realizou a
saída da limitada maneira do nosso ser, de uma limitação
monádica; o homem no qual personalização e socialização não se
excluem mais, mas se [194] confirmam; aquele homem em quem a
mais elevada unidade – "Corpo de Cristo", diz Paulo, e mais
radicalmente: "todos vós sois um só em Cristo Jesus" (Gál 3,28) – e
a mais sublime individualidade são um; aquele homem, no qual a
humanidade toca o seu futuro e torna-se, em grau supremo, ela
mesma, porque, por ele, toca o próprio Deus, participa dele,
alcançando deste modo a sua mais peculiar possibilidade. Partindo
daí, da fé em Cristo, verá o raiar de um movimento no qual a
humanidade dividida será integrada, mais e mais, no ser de um
único Adão, de um único "corpo" – do homem que há de vir. A fé
verá aí o movimento rumo àquele futuro do homem em que,
completamente "socializado" e incorporado em um único, o
indivíduo não será apagado, mas chegará ao seu próprio ápice.

Não seria difícil mostrar que a teologia de João indica o mesmo


rumo. Lembremo-nos apenas da palavra: "Quando eu for levantado
da terra, atrairei todos a mim" (Jo 12,32). A frase procura explicar
o sentido da morte na cruz. Ora, a cruz constitui o centro da
teologia de João, de modo que a frase indica a direção para a qual
o seu Evangelho todo quer apontar. O acontecimento da
crucificação surge aí como um fato de abertura no qual as
dispersas mônadas humanas são atraídas ao abraço de Jesus Cristo,
para o vasto espaço dos seus braços abertos, para, mediante tal
união, alcançar a sua meta, a meta da humanidade. Ora, sendo
assim, Cristo, como o homem que há de vir, não é o homem para
si, mas essencialmente homem para os outros, ele é o homem do
futuro, exatamente por ser o homem completamente aberto.
Então, o homem para si, que só deseja ficar em si, é o homem do
passado que devemos deixar para trás a fim de avançar. Em outras
palavras: o futuro do homem está em "ser-para". No fundo,
confirma-se novamente o que se constatou como sentido das
palavras sobre a filiação e, já antes, como sentido da doutrina das
três pessoas em um Deus – a indicação para [195] a existência
dinâmica, atuante que é essencialmente abertura no movimento
entre "de" e "para". E revela-se, de novo, ser Cristo o homem
completamente aberto, no qual as paredes da existência ruíram, o
homem que é totalmente "passagem" (pascha).

Com isto voltamos a estar repentinamente no mistério da cruz


e da páscoa que a Bíblia concebe como mistério de passagem.
João, que acima de tudo refletiu sobre estas idéias, encerra sua
descrição do Jesus terreno, com a imagem da existência cujas
paredes foram despedaçadas, que não conhece mais nenhum limite
firme, sendo essencialmente abertura. "Um dos soldados perfurou-
lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água" (Jo 19,34). Na
imagem do peito atravessado culmina, para João, não só a cena da
cruz, mas a história inteira de Jesus. Após o golpe da lança, que
terminou a vida terrena de Jesus, sua existência está toda aberta;
agora ele é todo "para", agora verdadeiramente não é mais um
indivíduo, mas "Adão", de cujo lado foi formada Eva, ou seja, uma
nova humanidade. Aquela concepção profunda do Antigo
Testamento segundo a qual a mulher foi tirada do lado do varão
(Gên 2,21ss), exprimindo-se assim, de modo inimitavelmente
grandioso, a sua mútua e perene interdependência e a sua unidade
– aquela história, portanto, parece ressoar aqui, ao se retomar a
palavra "lado" (pleura, em geral traduzida incorretamente pelo
termo "costela"). O lado aberto do novo Adão repete o mistério
criativo do "lado aberto" do varão: é o início de uma nova
comunidade definitiva dos homens entre si; como símbolos seus
estão aí: água e sangue, com o que João indica os sacramentos
básicos, batismo e eucaristia e, através deles, a Igreja como sinal
da nova comunidade dos homens 34 . Com isto o totalmente aberto,
que [196] sacrificou o ser como completamente recebido e passado
adiante, torna-se visível como o que ele, no mais profundo de si
mesmo, sempre foi: como "Filho". Assim Jesus, na cruz, realmente
entrou na sua hora, como afirma João. A expressão enigmática
deveria encontrar alguma luz sob este enfoque.

Mas tudo isso também mostra que responsabilidade recai sobre


as palavras a respeito do homem que há de vir – quão pouco tem
tudo isso de comum com um alegre romantismo progressista.
Porquanto ser o homem para os outros, o homem aberto e, com
isto, o homem a inaugurar um começo novo denota: ser o homem
em oblação, o homem sacrificado. O futuro do homem está
pendente da cruz – a salvação do homem é a cruz. E não há outro
caminho para chegar a si, senão deixando forçar as grades da
existência, olhando para o homem de coração atravessado (Jo
19,37), seguindo aquele que, como o perfurado, aberto, abriu o
caminho para o futuro. Isso significa, finalmente, que o
Cristianismo o qual, como fé na criação, acredita no primado do
Logos, ou seja, da razão criadora como começo e origem, acredita
nele, de modo específico, enquanto fim, o futuro, o que há de vir.
Neste olhar para o futuro está a dinâmica propriamente dita do
crístico que, no Antigo e Novo Testamento, realiza a fé como
esperança na promessa.

Fé cristã não é apenas olhar retrospectivo para o que


aconteceu, ancoragem em uma origem cronologicamente para trás
de nós. Pensar assim, resultaria afinal em romantismo e mera
restauração. Nem é apenas um olhar para o eterno; o que seria
igual a platonismo e metafísica. É, sobretudo, um olhar para a
frente, um avanço da esperança. Sem dúvida, não apenas isto: a
esperança tornar-se-ia utopia, se sua meta fosse puro autoproduto
do homem. Ela é lídima esperança precisamente porque se
encontra no sistema de coordenadas das três grandezas: do
passado, ou seja, do avanço já realizado – da presença do eterno
que conserva como [197] unidade o tempo parcelado – do futuro,
no qual Deus e mundo se tocarão mutuamente, tornando-se assim
verdadeiramente Deus em mundo, mundo em Deus, como o ômega
da história.

Sob o ponto de vista da fé cristã, poder-se-á dizer: para a


história, Deus está no fim, e está no início para o ser. Aqui se
destaca o vasto horizonte do crístico em que ele sobressai tanto da
metafísica pura, como da ideologia marxista do futuro. Desde
Abraão até ao retorno do Senhor, a fé marcha ao encontro do que
há de vir. Mas em Cristo revela-se-lhe já agora o rosto do futuro:
será o homem capaz de envolver a humanidade porque perdeu a si
e a ela em Deus. Por isto, o sinal do que há de vir será a cruz, e o
seu rosto, nesta época do mundo, será a face cheia de sangue e
coberta de feridas: o "último homem", isto é, o homem futuro,
propriamente dito, revela-se agora nos últimos homens. Portanto,
quem quiser estar ao seu lado, deverá permanecer ao lado deles
(Cfr. Mt 25,31-46).

Digressão: Estruturas do Crístico

Antes de continuar na análise dos diversos artigos do Credo que


se seguem à confissão de Jesus como o Cristo, será conveniente
deter-nos por um momento ainda. Na consideração das questões
isoladas facilmente se perde de vista o conjunto; e, exatamente
hoje, sobretudo ao tentar dialogar com os descrentes, sentimos
quão necessário se nos torna uma tal perspectiva. De permeio,
diante da situação da Teologia hodierna, poderia ter-se a
impressão de ela estar muito satisfeita com os seus progressos
ecumênicos – certamente muito dignos de louvor – a ponto de
conseguir afastar veneráveis marcos fronteiriços (naturalmente
para, via de regra, replantá-los em outro local), não dando
bastante atenção aos problemas imediatos dos homens de hoje,
que, muitas vezes, pouco representam [198] de comum com as
tradicionais questões disputadas das várias confissões. Quem
poderá, por exemplo, explicar a um curioso, com a necessária
brevidade e compreensão, o que significa "ser cristão"? Quem está
em condições de explicar ao outro, de maneira clara, por que
acredita e qual é o rumo de sua fé, qual o âmago da opção feita na
fé?

Nos últimos tempos, contudo, com o surgimento de tais


perguntas em escala maciça, passa-se não raro a diluir o crístico
em altissonantes generalidades, capazes, sem dúvida, de afagar os
ouvidos contemporâneos (cfr. 2 Tim 4,3), privando-os, no entanto,
do pábulo forte da fé, a que têm direito. A Teologia não cumpre a
sua missão, se ela gira, satisfeita, dentro de si e da sua erudição; e
equivoca-se mais ainda, ao inventar "doutrinas de acordo com o
próprio gosto" (2 Tim 4,3), oferecendo pedras em vez de pão: sua
própria loquacidade ao invés da palavra de Deus. E torna-se
imensamente grande a tarefa que assim se apresenta – entre Cila e
Caríbdis. Tentemos apesar de tudo – ou antes, por causa disto –
refletir a respeito, sintetizando a forma básica do Cristianismo em
umas poucas proposições claras. Mesmo que o resultado seja de
qualquer modo insuficiente, talvez tenha a vantagem de desafiar
outros a prosseguir no mesmo rumo, tornando-se assim um bom
subsídio 35 .

1. O individual e o todo. O primeiro escândalo fundamental


com que os homens de hoje se deparam no Cristianismo está
simplesmente na exterioridade em que o elemento religioso parece
ter-se concentrado. Escandaliza-nos o fato de Deus dever ser
transmitido por aparatos exteriores: Igreja, sacramentos, dogma
ou apenas pelo anúncio (kerygma) para o qual de bom grado
recuamos com o fato de diminuir [199] o escândalo e que, no
entanto, também constitui algo exterior. Frente a tudo isto ergue-
se a pergunta: Deus mora acaso em instituições, acontecimentos
ou em palavras? Deus, sendo o eterno, não alcançaria a cada um
de nós a partir do nosso íntimo? Pois bem, a resposta muito singela
a tudo isto é: "sim", acrescentando-se: se apenas existisse Deus e
uma soma de indivíduos, o Cristianismo não seria necessário. Deus
pode e poderia realizar, e de fato realiza sempre de novo a
salvação do indivíduo como indivíduo, direta e sem intermediários.
Deus dispensa qualquer passagem intermediária para alcançar a
alma de cada um, ali onde ele, Deus, se encontra mais no âmago
do que o próprio sujeito; nada pode penetrar mais fundo e mais
intimamente no homem do que Deus, que toca a criatura no ponto
mais íntimo da sua intimidade. Para salvar o mero indivíduo não
seria mister nem a Igreja, nem a história da salvação, nem a
encarnação e paixão de Deus no mundo. Mas precisamente neste
ponto deve inserir-se a declaração que nos conduz mais além: fé
cristã não principia do indivíduo atomizado, mas vem do saber que
não existe o mero indivíduo, que o homem, muito mais, é ele
mesmo apenas quando entrosado no todo: na humanidade, na
história, no cosmos, como lhe convém e é essencial à sua
qualidade de "espírito em corpo".

O princípio "corpo" e "corporeidade", sob o qual se acha o


homem, conota duas coisas: de um lado, o corpo separa os homens
entre si, torna-os mutuamente impenetráveis. O corpo, como
forma espacial e fechada, torna impossível um estar totalmente no
outro; traça uma linha divisória que denota distância e limite,
coloca-nos na distância um do outro, sendo portanto um princípio
dissociador. Simultaneamente, porém, a existência em corpo
necessariamente inclui história e comunidade, porquanto, se o
puro espírito pode ser imaginado como existente apenas para si,
corporeidade conota descender, originar-se um do outro: os
homens vivem uns dos outros [200] em um sentido muito mais real
e ao mesmo tempo pluriestratificado. Porque, se a descendência
se considera primeiro fisicamente (e já sob este ponto de vista
abarca desde a origem até os múltiplos entrelaçamentos do
cuidado mútuo pela subsistência), para quem é espírito, somente
em corpo e como corpo, ela significa que também o espírito – ou
seja simplesmente, o homem integral – está marcado
profundamente pela sua pertença ao conjunto da humanidade – do
único "Adão".

Deste modo, o homem revela-se como sendo aquele ente que


só pode ser enquanto for do outro. Ou digamo-lo com uma palavra
do grande teólogo tubinguense Möhler: "O homem, como ente
transitoriamente colocado em relação, não vem a si mesmo, por si
mesmo, embora também não sem si mesmo" 36 . De maneira mais
forte a mesma idéia foi repetida pelo contemporâneo de Möhler, o
filósofo de Munique. Franz von Baader, ao constatar ser tão
irracional "derivar do autoconhecimento (da consciência) o
conhecimento de Deus e o conhecimento de todas as demais
inteligências, como derivar todo amor do auto-amor" 37 . Aqui
repudia-se energicamente o princípio de Descartes que, baseando
a filosofia na consciência (Cogito, ergo sum: penso, logo existo),
determinou de maneira decisiva o destino do espírito moderno até
às formas da filosofia transcendental. Como o auto-amor não
representa a forma primitiva do amor, mas, no máximo, uma
forma derivada do mesmo; como só se chega ao que é peculiar no
amor, considerando-o como relação, isto é, como vindo de outro,
assim o conhecimento humano só é realidade [201] como ser-
conhecido, como ser-levado-a-conhecer, portanto, como vindo de
outro. O homem real não se revela, se lançarmos a sonda apenas
na solidão do "eu" do autoconhecimento, porque em tal caso se
exclui de antemão o ponto de partida da sua possibilidade de vir a
si, portanto o que lhe é próprio. Por isso, consciente e com razão,
Baader alterou o característico cogito, ergo sum em cogitor, ergo
sum: não: "penso, logo existo", mas: "sou pensado, logo existo"; o
homem e o seu conhecimento somente podem ser concebidos a
partir do seu "ser pensado".

Demos um passo adiante: ser-homem é ser-com, é participar de


todas as dimensões, não só de cada presente atual, mas de modo
tal que, em cada homem, estão presentes, passado e futuro da
humanidade, dessa humanidade que se revela como um único
"Adão" – tanto mais, quanto mais ela é considerada. Não podemos
desenvolver detalhes desta realidade. Bastem algumas indicações.
É suficiente tomar consciência de que nossa vida espiritual
depende totalmente do instrumento da língua, acrescentando-se, a
seguir, que a língua não é de hoje: vem de longe, a história inteira
teceu em torno dela e alcança-nos por seu intermédio, como a
inevitável condição do nosso presente, como sua parte integrante.
E vice-versa: o homem é a criatura que vive voltada para o futuro,
que, na preocupação, incessantemente se projeta para além do
seu momento, não sendo capaz de continuar a existir, se
repentinamente se encontrar órfão de porvir 38 . Portanto é
inevitável negar a existência do simples indivíduo, da mônada
humana renascentista, do mero ente [202] cogito-ergo-sum. Ser-
homem sucede ao homem somente naquele entrelaçamento de
história que, mediante a língua e a comunicação social, alcança a
cada um que, por sua vez, realiza a sua existência naquele modelo
coletivo onde, preteritamente, já se acha sempre incluído e que
forma o espaço da sua auto-realização. Absolutamente não é
verdade que cada homem se projete totalmente de novo, a partir
do ponto zero da sua liberdade, como o preconizava o idealismo
alemão. O homem não é uma criatura que recomeça sempre no
ponto zero; ele só é capaz de desdobrar as suas potencialidades no
entrosamento com o conjunto do ser humano que lhe é pré-
apresentado, que o caracteriza e forma.

Chegamos assim à pergunta inicial, podendo dizer: Igreja e ser-


cristão giram em torno do homem assim compreendido. Seriam
elementos sem função, se houvesse exclusivamente mônadas-
humanas, seres do cogito, ergo sum. Estão relacionados ao homem
que é "ser-com" (= participação) e que somente subsiste nos
entrelaçamentos coletivos, conseqüência do princípio da
corporeidade. Igreja e ser-cristão somente existem por causa da
história, das implicações coletivas que caracterizam o homem; é
neste plano que devem ser compreendidos. Sua razão de ser está
em prestar serviço à história, como história, e em forçar ou
modificar a prisão coletiva que forma o local da existência
humana. Conforme a Carta aos Efésios, a obra salvadora de Cristo
consistiu exatamente em obrigar a cair de joelhos os poderes e as
dominações, nos quais Orígenes, no comentário sobre esse texto,
via as forças coletivas que sufocam o homem: a força do meio
ambiente, da tradição nacional; aquele impessoal "a gente" que
humilha e destrói o homem 39 . Categorias como pecado original,
ressurreição [203] da carne, juízo universal etc., só se podem
compreender sob este ângulo, pois a sede do pecado original há de
ser procurada exatamente na teia coletiva que antecede a cada
existência individual, como fato espiritual e não em alguma
transmissão biológica entre indivíduos de resto totalmente
isolados. Falar do pecado original significa que nenhum homem
pode começar na estaca zero, em um status integritatis
(completamente intacto do toque da história). Ninguém se
encontra naquela etapa inicial sem mancha, em que lhe bastaria
desenvolver-se livremente e projetar o que tivesse de bom; cada
qual vive em uma implicação que é parte da sua existência. Juízo
universal, por sua vez, é a resposta a estes coletivos
entrelaçamentos. Ressurreição exprime a idéia de que a
imortalidade do homem só pode subsistir e ser imaginada na
coexistência dos homenes, no homem como o ser da coexistência,
como mais tarde ainda será melhor exposto. Finalmente o conceito
de redenção, como já se disse, também terá sentido somente
nesta esfera; não se refere a um destino monádico, separado do
indivíduo. Portanto, se o plano real do Cristianismo há de ser
procurado neste domínio, a que chamamos de "historicidade" na
falta de termo melhor, segue-se que podemos prosseguir
esclarecendo: ser-cristão, conforme sua finalidade primeira, não é
um carisma individual, mas social. Não se é cristão porque só
cristãos se salvam, mas é-se cristão, porque a diaconia cristã tem
sentido e é necessária para a história.

Contudo, a esta altura, segue-se um segundo passo muito


decisivo que, à primeira vista, aparenta ser uma virada para o lado
oposto, sendo, na verdade, conseqüência necessária do que foi
exposto. Porquanto, se se é cristão para participar de uma
diaconia em benefício do conjunto, isto denota, simultaneamente,
que o cristianismo vive de cada um e para cada um, exatamente
por causa deste nexo com o todo, porque a mudança da história, a
supressão da ditadura do [204] meio só pode dar-se pela
participação de cada um. Vejo aqui, salvo melhor juízo, o
fundamento daquele fator cristão incompreensível para o homem
de hoje e para as outras religiões, a saber, que no Cristianismo
tudo depende, afinal, do homem Jesus de Nazaré, crucificado pelo
seu ambiente – a opinião pública – que exatamente na sua cruz
despedaçou essa força do "a gente", o poder do anonimato, que
conserva o homem prisioneiro. Em oposição a esta força anônima
ergue-se o nome de um único: Jesus Cristo, a convidar o homem a
segui-lo, isto é: a carregar a cruz como ele, para vencer o mundo,
sendo crucificado para ele, contribuindo assim para a renovação da
história. O apelo do Cristianismo dirige-se radicalmente a cada um
em particular, exatamente por visar à história como um todo;
precisamente por isto o cristianismo adere, como um todo, a este
um e único no qual se realizou a ruptura com a derrota dos
poderes e das violências. Repetido ainda de outro modo: o
Cristianismo está polarizado para o todo, não podendo ser
compreendido, a não ser da e para a comunidade; o Cristianismo
não representa salvação do indivíduo isolado, mas o serviço em
benefício do conjunto, do qual não pode nem deve escapar:
precisamente por isto, em extremo radicalismo, ele conhece um
princípio "individual". O escândalo inaudito de que um único –
Jesus Cristo – é acreditado como a salvação do mundo, encontra,
aqui, o ponto exato da sua necessidade. O único é a salvação do
todo, e o todo recebe sua salvação exclusivamente do único, que
realmente é único e que, exatamente por causa disto, cessa de
existir só para si.

Creio que, visto assim, também se pode compreender não


existir semelhante recurso ao indivíduo nas outras religiões. O
hinduísmo não procura o todo, mas o indivíduo a salvar-se, fugindo
do mundo, a roda de Maia. Precisamente por não visar o todo, em
sua mais profunda intenção, mas desejar apenas desvencilhar o
indivíduo de sua situação perdida, o [205] hinduísmo é incapaz de
admitir outro indivíduo como importante e decisivo para a salvação
de alguém. Sua desvalorização do todo resulta, portanto, em
desvalorização também do individual, ao fazer cair o "para" como
categoria 40 .

Resumindo, eis o resultado das nossas considerações: o


Cristianismo origina-se do princípio da "corporeidade"
(historicidade), devendo ser pensado na esfera do todo, da qual
recebe o seu sentido. Estabelece, contudo, forçosamente, um
princípio do "individual", que é o seu escândalo, tornando-se,
porém, visível, agora, em sua interna necessidade e racionalidade.

2. O princípio do "para". A fé cristã solicita cada um, querendo-


o, porém, para o todo e não para si mesma; por isto a norma
fundamental da existência cristã exprime-se na partícula "para",
eis a conclusão a ser forçosamente tirada do que até agora foi
dito. Por isto, no principal dos sacramentos cristãos, que forma o
centro da liturgia, declara-se a existência de Jesus Cristo, como
existência "para muitos" e "para vós" 41 , como existência aberta
que cria e possibilita a comunicação de todos entre si pela
comunicação nele. Por isso, como vimos, completa-se e realiza-se
a existência de Cristo, como existência exemplar em sua abertura
na cruz. Portanto, anunciando e explicando a sua morte, ele pode
dizer: "Vou e venho a vós" (Jo 14,28): pela minha partida, será
derrubada a parede da minha existência que agora me limita;
assim este acontecimento representa a minha verdadeira chegada,
na qual consumo o que sou, a saber: aquele que reúne a todos na
unidade da sua existência que não é limite, mas unidade.

[207] Neste sentido a Patrística apontou para os braços do


Senhor, abertos na cruz. Vê neles, primeiro, o protótipo do gesto
orante, tal como o encontramos reproduzido nas figuras orantes
das catacumbas. Os braços do crucificado revelam-no como o
adorador, conferindo, ao mesmo tempo, uma nova dimensão à
adoração que representa o elemento específico da glorificação de
Deus: os braços abertos de Cristo são expressão de adoração
também e precisamente por exprimirem a total entrega aos
homens, como gesto do abraço, da plena e indivisa fraternidade. A
partir da cruz, a Teologia patrística encontrou, simbolicamente, o
entrelaçamento de adoração e fraternidade, e viu representada no
gesto cristão de orar a indissolubilidade do serviço aos homens e
da glorificação de Deus.

Ser-cristão denota, ao mesmo tempo, passagem do ser para si


mesmo ao ser para os outros. Com o que se esclarece o sentido do
conceito de escolha ("predestinação") que muitas vezes nos parece
estranho. Escolha não quer dizer uma preferência do indivíduo,
fechada em si, a segregá-lo dos outros, mas a admissão na tarefa
comum da qual já se falou. De acordo com isso, a opção cristã
fundamental significa a aceitação do "ser-cristão", a abjuração do
concentramento sobre o "eu" e a adesão à existência de Jesus
Cristo voltada para o todo. A mesma coisa está incluída no convite
à seqüela da cruz, que absolutamente não exprime uma devoção
particular, mas está subordinada a um pensamento básico, a saber,
que o homem, abandonando o isolamento e a tranqüilidade do
próprio "eu", saia de si, para seguir ao crucificado e existir para os
outros, mediante a crucificação do seu "eu". De modo geral, os
grandes painéis da história da salvação, que representam também
as figuras básicas do culto cristão, são expressão do princípio
"para". Pensemos, por exemplo, no quadro do êxodo clássico da
história sagrada, ou seja, da saída do Egito: tornou-se o êxodo
perene da auto-ultrapassagem. O mesma ecoa na cena da páscoa,
em que a fé formulou a nexo da mistério da cruz e da ressurreição
com o pensamento da saída da Antigo Testamento.

João reproduziu tudo isto em um quadro tomado de


empréstimo aos fenômenos da natureza. Com o que o horizonte se
amplia, para além do antropológico e do salvífico, tocando o
cósmico. O que se declara como estrutura básica da vida cristã, na
fundo já representa o cunho da mesma criação. "Em verdade, em
verdade eu vos digo: se o grão de trigo lançado na terra não
morrer, fica só, como é; mas, se morrer, produz abundante fruto"
(Jo 12,24). Já na esfera cósmica domina a lei de que a vida só
chega através da morte, mediante a autoperdição. O que se
configura deste modo na criação, alcança a seu ápice no homem e,
finalmente, no homem exemplar, Jesus Cristo que abre os portais
da vida autêntica aceitando o destino do grão de trigo,
atravessando o auto-oblação, deixando-se abrir e perdendo-se.
Partindo das experiências da história da religião que justamente
neste ponto se tocam estreitamente com as da Bíblia, poderíamos
dizer: o mundo vive de sacrifício. Encontram aqui a sua realidade e
validez os grandes mitos que declaram ter sido formado o cosmos
por meio de um proto-sacrifício e viver exclusivamente de sua
própria oblação 42 . O princípio cristão do êxodo torna-se patente
através dos símbolos míticos: "Quem ama a própria vida, perde-a;
e quem odeia a própria vida neste mundo, conservá-la-á para a
vida eterna" (Jo 12,25; cfr. Mc 8,35 par). Contudo, para terminar,
é preciso declarar que jamais serão suficientes todas as auto-
superações próprias do [208] homem. Quem somente deseja dar,
sem estar disposto a receber, quem só quer existir para os outros,
não estando pronto a reconhecer que também ele, por sua vez,
vive da dádiva inesperável e improvocável do "para" dos outros,
deturpa a autêntica maneira de ser do homem, destruindo
necessariamente o verdadeiro sentido da reciprocidade. Todas as
auto-superações, para serem produtivas, precisam da aceitação da
parte dos outros e, em última instância, da parte do Outro, que é
o autêntico Outro da humanidade inteira e, ao mesmo tempo, é o
todo unido a ela: o homem Deus Jesus Cristo.

3. A lei do incógnito. O "para" deve ser encarado como


princípio decisivo da existência humana, tornando-se o local exato
da manifestação do divino no mundo. Este fato tem ainda outra
conseqüência, a saber: o ser-todo-outro de Deus, que o homem já
é capaz de descobrir, ou ao menos de suspeitar por si, torna-se um
completo ser-outro, uma total incognoscibilidade de Deus.
Significa que o ocultamento de Deus, com que o homem conta,
assume a forma escandalosa de sua palpabilidade e de sua
visibilidade como Deus crucificado. Expresso de outro modo: tem
como conseqüência que Deus, o primeiro, o "alfa" da criação, surge
como o "ômega", como a última letra do alfabeto da criação, como
a mínima criatura na criação. Neste contexto, Lutero fala do
ocultamento de Deus sub contrario, isto é, no que parece ser o
contrário de Deus. Destaca assim a peculiaridade da forma cristã
da teologia negativa, determinada a partir da cruz, frente à
teologia negativa do pensamento filosófico. Já a Filosofia, a
reflexão própria do homem sobre Deus, conduz, à convicção de ser
Deus o todo outro, o simplesmente oculto e incomparável. "Curtas
como as vistas das aves noturnas são também as nossas vistas
diante do que é o mais luminoso em si", já afirmava Aristóteles 43 .
De fato, [209] à luz da fé em Jesus Cristo, responderemos: Deus é
o todo diferente, invisível, incognoscível. Mas, quando ele surgiu
em cena realmente assim todo diferente, tão invisível em sua
divindade, tão incognoscível, não se tratava daquela espécie de
ser-outro e de estranheza prevista por nós, e ele, de fato, ficou
desconhecido. Contudo – não deveria precisamente esta
circunstância revelá-lo como o realmente todo outro, que põe
abaixo todos os nossos cálculos de ser-outro, revelando-se assim
como o unicamente autêntico todo diferente?

De acordo com isto, através da Bíblia inteira se pode encontrar


continuamente a idéia da dupla maneira de Deus aparecer no
mundo 44 . Deus comprova-se, primeiramente e sem dúvida, na
força cósmica. A grandeza, o Logos do mundo que ultrapassa,
envolvendo-a, porém, toda a nossa imaginação, aponta para
aquele cujo pensamento este mundo é; para aquele, diante do
qual os povos são "como gotas à beira do balde", "como pó na
balança" (Is 40,15). Existe realmente o lembrete do universo sobre
o seu criador. Por mais que nos obstinemos contra os argumentos
da existência de Deus, por mais que a reflexão filosófica objete
contra seus diversos passos, e com muita razão, é um fato
irretorquível que o protopensamento criativo e sua força criadora
transluzem através do mundo e da sua estrutura ideal.

Mas aí temos apenas um modo de Deus se manifestar no


mundo. O outro sinal, que Deus estabeleceu para si, e que o
mostra mais verdadeiro no que lhe é mais peculiar, ocultando-o
tanto mais, é o sinal do vil, que, medido sob o ponto de vista
cósmico-quantitativo, é totalmente insignificante, quase um puro
nada. Aqui deveríamos citar a seqüência: [210] terra – Israel –
Nazaré – cruz – Igreja, em que Deus aparenta desaparecer mais e
mais no pequeno, revelando-se exatamente assim como ele
mesmo. Eis, primeiro, a terra, um nada no cosmos, destinada a ser
o ponto de atividade divina no universo. Eis Israel, um nada entre
as potências, destinado a ser o ponto do seu aparecimento na
terra. Eis Nazaré, outra vez um nada dentro de Israel, destinada a
tornar-se o ponto de sua vinda definitiva. Eis, enfim, a cruz, da
qual está pendente alguém – uma existência fracassada, cruz
destinada a ser o ponto onde Deus pode ser palpado. Finalmente,
eis a Igreja, a criação problemática da nossa história, pretendendo
ser o lugar duradouro da sua revelação. Sabemos hoje, e até
demais, quão pouco, mesmo na Igreja, continua suprimida a
ocultação da proximidade divina. Exatamente onde, no luxo da
renascença, a Igreja julgava poder tornar-se imediata "porta do
céu" e "casa de Deus" voltou ela a ser, e quase mais do que nunca,
o incógnito de Deus, que atrás dela quase não se podia mais
encontrar. Desse modo, o que é insignificante cósmica e
mundialmente representa o exato sinal de Deus em que se anuncia
o todo outro que, diante das nossas expectativas, volta a ser o
completamente incompreensível. O nada cósmico é o verdadeiro
tudo, porque o "para" é o específico de Deus...

4. A lei do supérfluo. Nas declarações éticas do Novo


Testamento existe uma tensão aparentemente invencível: entre
graça e ética, entre perdão total e não menos completa
reivindicação, entre completo ser-agraciado do homem que recebe
tudo de mão beijada, por ser incapaz de produzir alguma coisa, e a
não menos radical obrigação de doar-se até ao inaudito desafio:
"Sede, portanto, perfeitos, como o vosso Pai no céu é perfeito" (Mt
5,48). Nesta fascinante polaridade, se procurarmos um termo
médio de ligação, depararemos continuamente, sobretudo na
teologia paulina, mas também nos Sinópticos, com o termo
"supérfluo" (perisseuma), no qual [211] se encontra, entrelaçando-
se e interpenetrando-se o que se afirma da graça e do desejo.

Para visualizar este princípio, destaquemos aquele tópico


central do Sermão da Montanha, que ali se acha como se fora a
epígrafe e a síntese das seis grandes antíteses ("aos antigos foi
dito... Eu porém vos digo..."), mediante o qual Jesus completa a
nova redação da segunda tábua do Decálogo: O texto reza:
"Porque, eu vos digo, se a vossa virtude não sobrepujar a dos
escribas e dos fariseus, não entrareis no reino dos céus" (Mt 5,20).
Jesus declara primeiramente toda a justiça humana como
insuficiente. Quem poderia gabar-se honestamente de ter
assimilado realmente e sem reservas, até ao âmago da própria
alma, o sentido de cada exigência, tendo descido inteiramente até
suas derradeiras raízes e, muito menos ainda, de ter produzido o
supérfluo? Certamente, na Igreja há um "estado de perfeição", no
qual as pessoas se comprometem ao supérfluo, a passar além do
que é objeto de uma ordem. Mas, os que integram tal estado são
os últimos a negarem que se encontram sempre no início e se
sentem cheios de falhas. O "estado de perfeição", é na verdade, a
forma mais dramática de representar a perene imperfeição do
homem.

Quem não se contentar com esta indicação, leia os seguintes


versículos do Sermão da Montanha (5,21-48) e sentirá exposto a um
exame de consciência desalentador. Neste texto' torna-se claro o
que significa levar a sério as determinações aparentemente tão
simples da segunda tábua do Decálogo, das quais três são ali
desenvolvidas: "Não matarás. Não cometerás adultério. Não jurarás
falso". À primeira vista, parece muito fácil sentir-se justo frente a
estas exigências. Afinal, não matamos a ninguém, não cometemos,
adultério, não sentimos o peso de perjúrio algum sobre a
consciência. Mas Jesus lança uma luz forte sobre as profundezas
destes postulados; e então revela-se como o homem participa
daqueles crimes, com sua [212] cólera, sua vontade de não
perdoar, sua inveja e cobiça. Torna-se claro o quanto o homem,
com sua aparente justiça, está emaranhado no que se chama a
injustiça do mundo. Lendo com seriedade as palavras do Sermão
da Montanha, dá-se o mesmo que se acontece com alguém que
passa da apologética de um partido para a realidade. O belo preto-
e-branco em que se costuma dividir os homens, transforma-se no
pardo de um lusco-fusco geral. Torna-se evidente não existir entre
os homens o preto-e-branco; apesar de todas as gradações
distribuídas em vasta escala, encontram-se todos de algum modo
em uma luz indefinível. Usando de outra comparação, poderíamos
dizer: Reconhecendo ser possível identificar, no todo, em um
plano "macroscópico", as nuanças morais dos homens, uma
consideração quase microscópica, micro-moral oferece, também
aqui, um quadro diferenciado no qual as dessemelhanças começam
a tornar-se problemáticas; em todo caso, não se pode mais falar
de uma justiça que, além do necessário, apresenta o supérfluo.

Em se tratando do homem, portanto, ninguém estaria em


condições de entrar no reino dos céus, isto é, na região da justiça
real e plena. O reino dos céus estaria condenado a ser pura utopia.
De fato, deve continuar pura utopia, enquanto depender
exclusivamente da boa vontade do homem. Que de vezes não se
ouve dizer: bastaria um pouco de boa vontade para que tudo no
mundo fosse belo e bom. É verdade: a pitada de boa vontade
bastaria, mas a tragédia humana consiste precisamente no fato de
faltar ao homem a indispensável força para criar aquele pouco de
boa vontade. Neste caso, Camus teria razão, vendo o símbolo da
humanidade em Sísifo a tentar incessantemente levar a pedra ao
alto, condenado a deixá-la rolar sempre de novo morro abaixo? No
que toca à humana capacidade, a Bíblia mostra-se tão sóbria como
Camus, sem, contudo, deixar-se envolver pelo ceticismo. Para ela,
o limite da justiça humana, da humana capacidade em geral, é
expressão [213] de estar o homem à mercê do inquestionável dom
da graça, que se lhe oferece sem medida, abrindo-o ao mesmo
tempo, e sem o qual ele permaneceria fechado e injusto apesar de
toda a sua "justiça". Só o homem que aceita o dom pode encontrar
o caminho para si. Assim a percepção da justiça humana torna-se,
simultaneamente, indicação da justiça de Deus, cuja
superabundância se chama Jesus Cristo. Ele é a justiça de Deus
que ultrapassa de muito o necessário, justiça que não calcula, mas
que é realmente superabundante, que representa o "apesar de" do
grande amor com que ele sobrepuja o fracasso do homem.

Apesar disto, haveria um mal entendido, se se quisesse deduzir


daí uma desvalorização do homem, afirmando-se que, em tal caso,
tudo daria na mesma e qualquer procura de justiça e bondade
diante de Deus seria uma coisa sem sentido. Muito pelo contrário.
Apesar de tudo, e precisamente por causa do que se disse, fica de
pé o desafio de possuir a justiça em superabundância, já que não
se pode realizar a justiça inteira. Mas, que quer isto dizer? Não há
aí um contra-senso? Ora bem, isto quer dizer que não é cristão
quem sempre está a calcular quanto lhe compete fazer, quanto é
exatamente o bastante para apresentar-se como alguém revestido
da veste nupcial, com a ajuda, quiçá, de alguns truques
casuísticos. Nem é cristão, mas fariseu, quem se põe a calcular,
onde termina a obrigação e onde se pode conseguir méritos
excedentes, mediante um opus supererogatorium. Ser cristão não
significa fornecer determinada cota obrigatória, e, quiçá, a título
de perfeição maior, até ultrapassar o limite obrigatório. Cristão é
quem sabe que, em qualquer hipótese, vive de dádiva; que, por
conseguinte, qualquer justiça só poderá consistir em também ser
doador, semelhante ao mendigo que continua a distribuir
generosamente, grato pelo que recebeu. Não passa de injusto
quem for justo apenas, o calculista que acredita ser capaz de
conseguir para si a veste branca e nela realizar-se completamente.
[214] Justiça humana só se realizará na renúncia às suas
pretensões, e no entregar-se à generosidade frente ao homem e a
Deus. Trata-se da justiça do "perdoai, como nós perdoamos" –
súplica que se revela como a fórmula clássica da justiça humana
cristãmente concebida: consiste em passar adiante, já que cada
qual vive essencialmente do perdão recebido 45 .

Sob o ponto de vista do Novo Testamento, o tema da


"superabundância" conduz ainda a outra senda, na qual finalmente
o seu sentido fica inteiramente esclarecido. Encontramos a palavra
outra vez em nexo com o milagre da multiplicação dos pães, onde
se fala de uma "sobra" de sete cestos (Mc 8,8). Pertence à essência
da narração da multiplicação dos pães o despertar a atenção para
a idéia e a realidade do supérfluo, do mais-que-necessário. E
acorre imediatamente à lembrança o milagre parecido, da
transformação da água em vinho nas bodas de Caná (Jo 2,1-11). É
verdade que a palavra "sobra" ou "abundância" não ocorre, tanto
mais porém a coisa: o vinho conseguido pela transformação da
água, de acordo com o que informa o Evangelho, chega a uma
quantidade fora do comum para uma festa familiar: 480 a 700
litros. Ora, na intenção dos evangelistas, ambas as narrações têm
nexo com a forma central do culto cristão, a Eucaristia. Apontam
para ela como a superabundância divina, que ultrapassa
infinitamente todas as necessidades e tudo que se possa desejar
razoavelmente.

Mas ambos os eventos, pela sua relação com a Eucaristia, têm


nexo com Cristo e apontam para ele, em última instância: Cristo é
a infinita autoprodigalidade de Deus. E, como aliás o constatamos
no estudo do princípio "para", ambos apontam para a lei estrutural
da criação onde a vida esbanja milhões de germes para salvar um
ser vivo, onde um universo inteiro é esbanjado para preparar, em
um ponto, o lugar para o espírito, [215] o homem.
Superabundância é a marca de Deus na criação; pois "Deus não
calcula seus dons sob medida", como afirma a Patrística. Mas,
superabundância também é a razão exata e a forma da história da
salvação, que, afinal, nada mais é do que o acontecimento
realmente estonteante de Deus a entregar não só um universo,
mas a si mesmo, em incompreensível auto-esbanjamento, com o
fito de conduzir ao porto da salvação o grão de poeira chamado
homem. Repitamo-lo: portanto, superabundância é a definição
exata da história da salvação. A inteligência meramente calculista
eternamente achará absurdo que Deus deva gastar-se para o
homem. Só quem ama é capaz de compreender a loucura de um
amor, para o qual esbanjamento é lei, superabundância – o único
que satisfaz. Contudo, se é verdade que a criação vive da
superabundância; que o homem é aquele ser para o qual o
superabundante representa o necessário, como admirar-se que
revelação é o suficiente, e, por isto, o necessário, o divino, o
amor, no qual se realiza o sentido do universo?

5. O definitivo e a esperança. A fé cristã ensina que em Cristo


se realizou a salvação dos homens, que nele se iniciou
irrevogavelmente o futuro do homem, e assim, embora
permanecendo futuro, é contudo, perfeito, parcela do nosso
presente. Esta declaração inclui um princípio do "definitivo", de
máxima importância para a forma da existência cristã,
respectivamente para a maneira da opção existencial incluída no
ser-cristão. Tentemos elaborá-lo mais exatamente. Acabamos de
constatar ser Cristo o futuro iniciado, a já aberta fase definitiva do
homem. Na linguagem escolástica este pensamento foi expresso,
ao ser afirmado que, com Cristo, a revelação estava terminada.
Naturalmente, isto não pode significar que determinado número de
verdades tenha sido comunicado, resolvendo Deus não acrescentar
ulteriores comunicações. Significa, antes, que o diálogo de Deus
com o homem alcançou o fim colimado, no compromisso de Deus
com a humanidade em Cristo, o homem [216] que é Deus. Neste
diálogo não se tratava, nem se trata de dizer alguma coisa ou
muita coisa, mas de dizer-se a si mesmo na Palavra, no Verbo.
Assim sua intenção não alcança a meta pelo fato de haver uma
comunicação do maior número possível de conhecimentos, mas sim
quando, mediante a palavra, o amor se torna visível, tocando-se o
tu com o tu na palavra. Seu sentido não está em um terceiro, em
um contendor, mas no próprio parceiro e chama-se união. Ora, no
homem Jesus, Deus se disse a si mesmo definitivamente. Jesus é a
sua palavra e, como tal, é Deus mesmo. Revelação não termina
aqui porque Deus a encerre positivamente, mas porque chegou à
sua meta, ou, como o exprime Karl Rahner: "Nada se diz de novo,
não por haver muito ainda a dizer, mas porque tudo foi dito, tudo
foi doado no Filho do amor, no qual Deus e mundo se tornam um" 46
.

Mas, consideremos o assunto mais de perto. Eis o que se nos


revela: Cristo alcançou a meta da Revelação e, com ela, o ponto
final da humanidade, porque nele se tocam e se unem divindade e
humanidade; isto significa, ao mesmo tempo, que o alvo alcançado
não representa um limite rígido e fixo, mas um espaço aberto. Pois
a união acontecida naquele ponto único chamado Jesus de Nazaré
deve atingir a humanidade inteira, o único "Adão" todo,
transformando-o em "Corpo de Cristo". Enquanto essa totalidade
não for alcançada, enquanto ela conservar-se limitada a um ponto,
o acontecido em Cristo continuará sendo ao mesmo tempo fim e
começo. A humanidade não pode avançar mais longe e mais alto
do que Cristo, porque Deus é o mais distante e o mais sublime;
qualquer aparente progresso para além dele denota uma queda no
vazio. A humanidade não pode ultrapassá-lo – neste sentido, [217]
Cristo é o fim; mas ela deve entrar nele – neste sentido, Cristo é o
começo real.

Não nos é preciso refletir sobre o entrelaçamento de passado e


futuro, conseqüência para a consciência cristã; nem é mister
pensar que de acordo com isto, a fé cristã, voltada para o Jesus
histórico, está orientada para o futuro, para o novo Adão – sobre o
qual se concentram o futuro, O mundo e o homem, sob o ponto de
vista de Deus. Já falamos antes sobre isto tudo. Aqui trata-se de
outra coisa. O fato de já ter sido feita a decisiva determinação de
Deus a respeito do homem denota existir o elemento definitivo na
história – no enfoque da fé – mesmo se a feitura do definitivo for
tal que não exclua o futuro, mas o abra. Conseqüência disto, por
sua vez, é a necessária existência do definitivo, do irrevogável
também na vida do homem, sobretudo onde o homem encontra o
definitivo divino do qual acabamos de tratar. A confiança na
existência do definitivo, exatamente como garantia aberta do
futuro do homem, caracteriza a posição cristã total frente à
realidade: para o cristão não satisfaz nem serve o circunvolver do
atualismo que enfrenta tão somente cada momento presente, sem
jamais encontrar o definitivo. O cristão tem certeza de que a
história avança; ora, avanço, progresso exige o definitivo da
direção – eis o que distingue o cristão do movimento em círculo,
que não leva a meta nenhuma. A luta pela irrevogabilidade do
crístico foi travada na Idade Média enquanto luta contra o "terceiro
reino": após o "reino do Pai" corporificado no Antigo Testamento,
seguiu-se o segundo reino, concretizado no Cristianismo, ou seja, o
reino do Filho, superior ao primeiro, mas que, por sua vez, seria
substituído pelo terceiro reino: a era do Espírito 47 . A fé na
encarnação de Deus em Jesus Cristo não [218] admite nenhum
"terceiro reino", porque acredita no estado definitivo do
acontecido, sabendo-se, exatamente por isto, aberta para o
futuro.

Já aludimos ao fato de aí se acharem inclusas conseqüência


decisivas também para a vida do indivíduo: a fé reivindica
definitivamente o homem, não podendo ser substituída após o
reino do Pai, na infância, e o do Filho, na juventude, por uma era
esclarecida do Espírito, que só obedeça à própria razão a entregar-
se, subrepticiamente, ao Espírito Santo. Certamente, a fé tem suas
épocas e gradações, mas precisamente com isto ela representa o
fundamento durável da existência do homem que é um apenas. É
por este motivo que a fé tem expressões definitivas – dogma,
símbolo – nas quais se articula o seu aspecto definitivo interno.
Isto, porém, não quer dizer que tais formas não sejam susceptíveis
de um subseqüente abrir-se na história, sendo re-compreendidas,
do mesmo modo como o indivíduo deve aprender a interpretar a
fé, sempre de novo dentro das vicissitudes da sua vida. E isto quer
dizer que, dentro desse processo de compreensão e de
amadurecimento, não pode nem deve ser eliminada a unidade do
objeto compreendido.

Finalmente poderíamos mostrar que o aspecto definitivo da


união de dois seres humanos, que a fé vê estabelecida pelo "sim"
do amor, fundamento do matrimônio – que também este aspecto
definitivo está enraizado aqui. De fato, casamento indissolúvel só
é compreensível e realizável pela fé na indestrutível decisão de
Deus em Cristo, mediante o "matrimônio" ou as "núpcias" com a
humanidade (cfr. Ef 5,22-33). O matrimônio subsiste ou cai com
esta fé; fora dela, ele é tão impossível, como dentro da fé é
necessário. Novamente caberia dizer que esta aparente fixação
sobre a decisão [219] de um momento na vida possibilita ao
homem o progresso, a subida de grau em grau, enquanto a
contínua anulação de tais decisões o lança continuamente de volta
ao começo, condenando-o a girar em círculo que se encerra na
ficção da eterna juventude, recusando-se assim ao conjunto da
existência humana.

6. O primado da aceitação e a positividade cristã. O homem é


salvo pela cruz; o Crucificado, como o totalmente aberto, é a
verdadeira salvação do homem – já em outro contexto nos
esforçamos por tornar compreensível à inteligência de hoje essa
verdade da fé. Consideremo-lo agora, não em seu conteúdo, mas
em sua estrutura: esta exprime uma primazia da aceitação sobre a
ação, sobre a própria atuação, quando se trata do elemento
decisivo do homem. Talvez tenhamos aqui o ponto mais profundo
da divisão entre o princípio cristão da esperança e a sua
contrafação marxista. Certamente, também o princípio marxista
baseia-se em uma idéia de passividade, porquanto, de acordo com
ele, o proletariado sofredor é o salvador do mundo. Mas um tal
sofrimento do proletariado, destinado, por fim, a concretizar a
transformação em sociedade sem classes, de fato, há de realizar-
se mediante uma ativa luta de classes. Só assim o proletariado
pode tornar-se "salvador", conduzindo ao desarmamento da classe
dominante e à igualdade de todos os homens. Se a cruz de Cristo é
um sofrimento "para", a paixão do proletariado, vista
marxisticamente, efetua-se como luta "contra"; se a cruz é
essencialmente obra de um indivíduo em prol da coletividade, a
paixão proletária é essencialmente obra da massa, organizada em
partido para seu próprio benefício. Portanto, ambos os caminhos
correm em direções opostas, apesar de um ponto de contacto em
seus pontos de partida.

Por conseguinte, sob o ponto de vista cristão, o homem não se


alcança a si mesmo pelo que faz, mas pelo que recebe. [220]
Cumpre-lhe aguardar o dom do amor, e amor não se recebe de
forma outra senão como dádiva. Ninguém está em condições de
"produzi-lo" por si, sem o outro; deve-se esperá-lo, aceitá-lo como
presente. E ninguém pode tornar-se completamente homem, senão
sendo amado, deixando-se amar. O amor do homem representa, ao
mesmo tempo, a mais alta possibilidade e a necessidade mais
profunda, sendo esta necessidade simultaneamente o que há de
mais livre e de menos forçado, tendo como conseqüência depender
o homem da sua aceitação para ser "salvo". Recusando uma tal
mercê, o homem destrói-se a si mesmo. Uma atividade que se
sustente de modo absoluto, que queira realizar o ser-homem por si
mesma; com os próprios recursos, representa contradição em sua
natureza. Louis Evely formulou magnificamente esse ponto de vista
da seguinte forma:

"A história da humanidade desencaminhava-se, sofreu uma


fratura por causa da falsa idéia de Deus em Adão. Este quis ser
como Deus. Espero que nunca tenhais visto neste ponto o pecado
de Adão... Deus não o aliciava a ser como ele? Adão enganou-se
apenas no protótipo. Acreditava ser Deus um ser independente,
autônomo, a bastar-se a si mesmo; e, a fim de tornar-se como ele,
revoltou-se, mostrando-se desobediente.

Mas, ao mostrar-se como era, Deus revelou-se como amor,


ternura, transbordamento de si mesmo, como infinita
complacência em um outro. Afeição, dependência. Deus mostrou-
se obediente, obediente até à morte.

Crendo tornar-se Deus, Adão desviou-se totalmente dele.


Retraiu-se à solidão, enquanto Deus era comunhão" 48 .

Sem dúvida, tudo isto significa uma relativização das ações, da


atividade; a luta de S. Paulo contra a "justiça das [221] obras" deve
ser compreendida sob este ângulo. Contudo, é mister acrescentar
que, nessa ordenação da atividade humana como grandeza
penúltima apenas, está incluída a sua libertação interna: a
atividade do homem pode desdobrar-se na serenidade, no
desprendimento, na liberdade peculiar àquilo que é penúltimo. O
primado do receber de modo algum pretende confinar o homem à
passividade; não significa que ao homem bastaria cruzar os braços,
como o marxismo nos argúi. Pelo contrário: esse primado
possibilita realizar as tarefas deste mundo, colocando-as a serviço
do amor redentor, em espírito de responsabilidade e, ao mesmo
tempo, sem inibição e com alegre liberdade.

Deste ponto de partida ainda flui outra conseqüência. O


primado do receber inclui a positividade cristã, comprovando sua
necessidade intrínseca. Constatamos que o homem não coloca por
si o que é decisivo; esse primado há de sobreviver-lhe não como
feito por ele, não como produto seu, mas como um livre
correlativo a – doar-se-lhe. Sendo assim, segue-se que, em última
análise, a nossa relação com Deus não pode basear-se em nosso
próprio roteiro, em um conhecimento especulativo, mas há de
exigir a positividade do que nos está à frente, que nos sobrevém
como algo positivo, como algo a ser recebido. Ao meu ver,
partindo daqui, poderia realizar-se, por assim dizer, a – quadratura
do Círculo da Teologia, a saber, a interna necessidade da aparente
contingência histórica do crístico, o "deve" de sua chocante
positividade como um acontecimento que vem de fora. Pode ser
superada aqui a antítese tão acentuada por Lessing entre vérité de
fait (verdade fortuita dos fatos) e vérité de raison (verdade
necessária da razão). O casual, o exterior é o necessário ao
homem; só pelo sobrevir de fora se lhe abre o íntimo, O incógnito
de Deus enquanto homem na história "deve" ser com a necessidade
da liberdade.

[222] 7. Síntese: a "essência do cristianismo". Resumindo tudo,


podemos dizer que os seis princípios que tentamos apresentar
esquematicamente podem-se chamar como que a fórmula
arquitetônica da existência cristã, como a fórmula para a "essência
do cristianismo". Por meio deles também poderia ser retratado
aquilo que denominamos a pretensão cristã absolutista, usando de
um termo bastante ambíguo. O que ele significa revela-se
sobretudo no princípio "indivíduo", no princípio "para", no princípio
sobre o "definitivo" e no da "positividade". Nestes princípios básicos
aparece a maneira peculiar da pretensão que a fé cristã apresenta
e deve fazer valer frente à história das religiões, se quer
conservar-se fiel a si mesma.

Resta, porém, ainda uma pergunta: Tendo diante de si os seis


princípios, como os analisamos, pareceria sem complicação a nossa
sorte, tal como a dos físicos a buscarem a origem da matéria do
ser, julgando tê-la identificado nos chamados elementos. Mas,
quanto mais pesquisavam, mais elementos se tornavam
conhecidos; hoje seu número ultrapassa a casa dos cem. Esses
elementos não podiam ser o último, que, a seguir, se julgou ter
descoberto nos átomos. Mas estes, por sua vez, também
mostraram ser compostos de partículas elementares, cujo número
atualmente é tão elevado que não é mais possível deter-se neles,
mas se impõe nova arrancada para, talvez, encontrar finalmente a
matéria original. Nos seis princípios encontramos como que as
partículas elementares do crístico, mas, não haveria, por trás
deles, um núcleo único, simples, como que o germe do
cristianismo? Há, e creio que, – após o que se disse – sem perigo de
estar formulando uma simples frase sentimental, podemos afirmar
que os seis princípios, em última análise, se concentram no único e
uno princípio do amor. Digamo-lo grosseiramente e até com
equívocos: não é verdadeiro cristão o membro confessional do
partido, mas aquele que se tornou realmente [223] humano pela
sua vivência cristã. Não aquele que observa de maneira servil um
sistema de normas e de leis, apenas com vistas para si mesmo, mas
aquele que se tornou livre para a simples humana bondade.
Certamente, para ser autêntico, o princípio "amor" há de incluir a
fé. Somente assim conserva-se o que é. Porque sem a fé, que
aprendemos a encarar como expressão de uma derradeira
necessidade humana de receber e da insuficiência de todas as
próprias realizações, o amor não passará de ação arbitrária. O
amor assim, se elimina, transformando-se em autojustiça: fé e
amor condicionam-se mutuamente. Desta forma deve-se
acrescentar que no princípio "amor" está presente o princípio
"esperança" que busca o todo, ultrapassando o instante e o seu
parcelamento. Portanto, nossa análise conduz-nos de per si às
palavras com que S. Paulo indica as colunas mestras do
Cristianismo: "Agora estas três coisas são constantes: a fé, a
esperança, a caridade; mas a maior delas é a caridade" (1Cor
13,33).
CAPÍTULO SEGUNDO

Desenvolvimento da Fé em Cristo nos Artigos Cristológicos do


Símbolo

1. "Concebido do Espírito Santo, nascido da Virgem Maria".

[225] A origem de Jesus mergulha no mistério. Certamente, os


habitantes de Jerusalém objetavam contra a sua messianidade
pelo fato de, sobre ele, saber-se, "donde vem; mas, quando o
Cristo vier, ninguém sabe donde vem" (Jo 7,27). A resposta
imediata de Jesus, porém, revela quão insuficiente é este pretenso
conhecimento sobre a sua origem: "Eu não vim de mim mesmo;
mas aquele que me enviou existe na sua verdade, e vós não o
conheceis" (7,28). Sem dúvida, Jesus é natural de Nazaré. Mas, de
que adianta um tal conhecimento geográfico para identificar a sua
verdadeira origem? O Evangelho de João acentua, sem cessar, ser
"o Pai" a autêntica origem de Jesus, do qual ele procede de
maneira total e diversa de qualquer outro mensageiro.

Essa origem de Jesus, do mistério de Deus "que ninguém


conhece", é descrita pelas chamadas histórias da infância em
Mateus e Lucas, não para suprimi-la, mas precisamente para
confirmá-la como mistério. Ambos os Evangelhos, sobretudo o de
Lucas, narram o início da história de Jesus, quase totalmente com
palavras do Antigo Testamento, com o fito de, partindo do
interior, demonstrar o que ali se realiza, como [226] cumprimento
da esperança de Israel, subordinando-o à história inteira da aliança
de Deus com os homens. A palavra da saudação do anjo à Virgem
em Lucas apóia-se estritamente na saudação com que o profeta
Sofonias se dirige à definitiva Jerusalém (Sof 3,14ss), incluindo, ao
mesmo tempo, as palavras de bênção com que foram saudados os
grandes vultos femininos de Israel (Jz 5,24; Jdt 13,18 s). Portanto,
Maria é saudada como o resto sagrado de Israel, designada como a
verdadeira Sião sobre a qual se concentraram as esperanças nos
descalabros da história. No texto de Lucas, com Maria inicia-se o
novo Israel; não somente começa com ela, ela é a "filha de Sião",
cheia de graça, na qual Deus coloca o novo início 49 .

Não menos densa é a palavra central da promessa: "Virá sobre


ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te recobrirá, e por isso
também o santo que há de nascer será chamado Filho de Deus" (Lc
1,35). O olhar espraia-se, para além da história da aliança de
Israel, até à criação; o Espírito de Deus conota, no Antigo
Testamento, a força criadora de Deus; ele pairava sobre as águas
primitivas transmudando o caos em cosmos (Gên 1,2); com o seu
envio, criam-se os seres vivos (Sl 104 [103], 30). Portanto, trata-se
de uma criação nova a realizar-se em Maria: o Deus que chamou o
ser do seio do nada, implanta um novo começo no meio da
humanidade; sua palavra. torna-se carne. A segunda imagem do
nosso texto – a "obumbração com a força do alto" aponta para o
templo de Israel e para a tenda sagrada no deserto
simultaneamente ocultando e revelando a sua glória (Ex 40,34; 1Rs
8,11). Como anteriormente fora descrita qual lídima "filha de
Sião", assim surge Maria agora como [227] o templo sobre o qual
desce a nuvem em que Deus entra no seio da história. Quem se
coloca à disposição de Deus, desaparece com ele na nuvem, no
esquecimento e na insignificância, tornando-se, exatamente assim,
participante da sua glória.

O nascimento de Jesus, da Virgem, sobre o qual os Evangelhos


falam desta maneira, tornou-se incômodo para os espíritos
esclarecidos de todos os naipes, e não só de ontem. As pesquisas
das fontes minimalizam o testemunho do Novo Testamento; a
referência à mentalidade não-histórica dos antigos relega-o ao
reino dos símbolos e seu enquadramento na história da religião
comprova-o como variante de um mito. De fato, encontra-se muito
difundido no mundo o mito do nascimento miraculoso do salvador.
Reflete ele um anseio profundo da humanidade: o desejo do rude e
puro, do encarnado na virgem intocada; o anseio pelo autêntico
maternal, protetor, amadurecido e bondoso e, afinal, a esperança
a ressurgir, sempre que nasce um novo ser humano – a esperança e
alegria encarnada numa criança. Pode ser considerado provável o
conhecimento de tais mitos também em Israel; Isaías ("Eis, a
virgem conceberá...") poderia explicar-se perfeitamente como
reflexo de semelhante esperança, mesmo que deste texto não se
conclua, sem mais, que haja referência a uma virgem em sentido
estrito 50 . Se devesse ser entendido a partir de tais fontes, o texto
significaria que, por esses atalhos, o Novo Testamento teria
reassumido as confusas expectativas da humanidade centradas na
Virgem-Mãe; seguramente não se pode [228] rejeitar, sem mais,
como insignificante um tal protomotivo da história humana.

Ao mesmo tempo, contudo, é mais do que evidente que os


pontos de contacto imediatos do relato neotestamentário sobre o
nascimento de Jesus da Virgem Maria não se situam no âmbito da
história da religião, mas no Antigo Testamento. As narrações
extrabíblicas deste tipo se distinguem profundamente da história
do nascimento de Jesus, por seu vocabulário e por suas formas de
visão; o contraste central está no fato de, nos textos pagãos,
quase sempre a divindade atuar como princípio fecundante,
gerador, ou seja, sob o aspecto mais ou menos sexual, surgindo ela
daí, como o "pai" do salvador, em sentido físico. Nada disto se dá
no Novo Testamento, como vimos: a conceição de Jesus é nova
criação, não geração por Deus. Ali Deus não se torna, por exemplo,
o pai biológico de Jesus, e nem o Novo Testamento nem a Teologia
eclesiástica jamais viram nessa narrativa, ou seja, no
acontecimento por ela transmitido, o fundamento para a
verdadeira divindade de Jesus, para a sua "divina filiação". Essa
filiação efetivamente não significa que Jesus seja meio Deus, meio
homem, mas para a fé sempre foi considerado essencial que Jesus
seja todo Deus e todo homem. Sua divindade não denota uma
diminuição na humanidade: caminho seguido por Ário e Apolinário,
os grandes heresiarcas da Igreja antiga. Contra eles foi defendida,
com grande decisão, a íntegra totalidade da humanidade de Jesus,
rechaçando-se assim a fusão do relato bíblico com o mito pagão do
semi-Deus gerado pelas divindades. De acordo com a fé
eclesiástica, a filiação divina de Jesus não se funda no fato de não
haver ele tido um pai humano; a divindade de Jesus não ficaria
abalada, Se ele tivesse nascido de um matrimônio humano normal.
A filiação divina, de que nos fala a fé, não é, com efeito, um fato
biológico, mas ontológico; não um acontecimento no tempo, mas
na eternidade de Deus: Deus sempre é Pai, Filho e [229] Espírito; a
conceição de Jesus não significa o nascimento de um novo Deus-
Filho, significa que Deus, como Filho, assume a si a criatura-
homem, no homem Jesus, de modo a "ser", ele mesmo, homem.

Em tudo isto, nada se altera com duas expressões que, aliás,


poderiam enganar facilmente os menos avisados. Na narrativa de
Lucas afirma-se, em conexão com a promessa da conceição
miraculosa, que o que nascer "será chamado santo, Filho de Deus"
(Lc 1,35). Não estariam sendo interligados aqui filiação divina e
nascimento virginal, abrindo-se o caminho para o mito? E, no que
diz respeito à Teologia eclesiástica, não estaria ela falando
continuamente da filiação divina "física", traindo desta maneira
seu fundo mítico? Comecemos a responder por aqui. Sem dúvida, a
fórmula filiação divina "física" é sumamente infeliz e equívoca;
mostra que, em quase dois milênios, a Teologia ainda não logrou
desvencilhar a sua terminologia dos resíduos de sua origem grega.
"Físico" aí é tomado no sentido de physis, isto é, de natureza, na
acepção da filosofia antiga. Denota aquilo que pertence à
essência. Portanto "filiação física" quer dizer que Jesus é de Deus,
não só quanto à sua consciência, mas também quanto à natureza;
com isto o termo exprime a antítese em relação à idéia de uma
simples adopção de Jesus por Deus. Evidentemente, o ser-de-Deus,
indicado pela palavra "físico", não tem um sentido biológico-
generativo, devendo ser compreendido na esfera do ser divino e da
sua eternidade. Quer dizer que em Jesus assumiu a natureza
humana aquele que, desde a eternidade, pertence "fisicamente",
(isto é: realmente, de acordo com o ser) à tríplice-una relação do
divino amor.

Que diremos, porém, se um pesquisador tão benemérito como


E. Schweizer se manifesta sobre o nosso problema da seguinte
maneira: "Como Lucas não se interessa pelo aspecto biológico,
também não foi por ele superada a fronteira para [230] uma
compreensão metafísica" 51 ? Nesta afirmação quase tudo está mais
ou menos errado. O mais espantoso aí é a tácita equiparação de
Biologia e Metafísica. A filiação divina metafísica (essencial) é
aparentemente distorcida para origem biológica, invertendo-se
totalmente o seu significado: ela é, como vimos, precisamente o
expresso repúdio de uma compreensão biológica da origem de
Jesus, de Deus. Realmente é contristador sermos obrigados a
lembrar expressamente que a esfera da Metafísica não é a da
Biologia. A doutrina eclesiástica sobre a filiação divina de Jesus
não se situa no prolongamento da história do nascimento virginal,
mas no prolongamento do diálogo Abba-Filho e da relação da
palavra e do amor que ali vimos encontramos aberta. Seu conceito
de ser não se coloca no plano biológico, mas no do "eu o sou" do
Evangelho de João, que desenvolveu, como já vimos, neste
contexto, o radicalismo todo da idéia de Filho – um radicalismo
muito mais completo e profundo do que as biológicas elucubrações
do homem-deus do mito. Tudo isto já foi largamente considerado:
cumpria recordá-lo, porque se tem a impressão de que a aversão
atual à mensagem do nascimento virginal e ao reconhecimento
total da filiação divina de Jesus se baseia em um profundo
qüiproquó de ambos e em uma falsa ligação entre eles – em que
parecem continuar a ser considerados.

Outra questão ainda continua aberta: a do conceito de Filho na


narração de Lucas. A resposta leva-nos, ao mesmo tempo, à
questão propriamente dita que flui das considerações até agora
feitas. Se a conceição de Jesus, da Virgem, pela força criadora de
Deus, não tiver relação, pelo menos imediata, com a sua filiação
divina, qual será, afinal, o seu sentido? Nossas anteriores análises
permitem uma resposta fácil sobre o sentido da expressão "Filho de
Deus" no texto [231] da anunciação: em oposição ao simples termo
"o Filho", esta expressão pertence, como ouvimos, à teologia da
eleição e da esperança do Antigo Testamento, caracterizando a
Jesus como herdeiro autêntico das promessas, como rei de Israel e
do mundo. Ora, assim descobre-se o nexo espiritual partindo do
qual se deve compreender o nosso relato: a fé esperançosa de
Israel que, como se disse, mal se conservou isenta da influência
das expectativas pagãs sobre nascimentos miraculosos, mas lhes
insuflou uma imagem totalmente nova e lhes deu um sentido
completamente diverso.

O Antigo Testamento conhece um rol de partos miraculosos,


sempre nas encruzilhadas decisivas da história da salvação: Sara,
mãe de Isaac (Gên 18), a mãe de Samuel (1Sam 1-3) e a mãe
anônima de Sansão (Jd 13) são estéreis e qualquer esperança
humana de procriação é vã. Em todas as três dá-se o nascimento
da criança que se torna portadora da salvação para Israel, como
ação da graciosa misericórdia de Deus que torna possível o
impossível (Gên 18,14; Lc 1,37), que eleva os humildes (1Sam 2,7;
1,11; Lc 1,52; 1,48) e derruba do trono os soberbos (Lc 1,52). Linha
idêntica prossegue com Isabel, mãe de João Batista (Lc 1,7-25.36),
alcançando em Maria o seu ponto culminante e a sua meta. O
sentido da história é sempre o mesmo: a salvação do mundo não
vem do homem e da sua própria capacidade; o homem deve
aceitá-la como dádiva, e só como puro dom é que pode recebê-la.
O nascimento virginal não significa um capítulo de ascese, nem
pertence diretamente à doutrina da filiação divina de Jesus; ele é,
em primeira e última instância, teologia da graça, mensagem a
dizer-nos como nos sobrevém a nós a salvação: na singeleza do
receber como dádiva irresistível do amor que redime o mundo. No
livro de Isaías o pensamento da salvação pela força exclusiva de
Deus encontra grandiosa formulação: "Exulta, ó estéril, tu que não
deste à luz; prorrompe em júbilos e hinos, tu que não
experimentaste as dores do [232] parto; porque os filhos da
abandonada são mais numerosos do que os da casada, diz o Senhor"
(Is 54,1; cfr. Gal 4,27; Rom 4,17-22). No meio da humanidade
estéril e desesperançada, Deus estabeleceu em Jesus um novo
início que não é resultado da história, mas dádiva do alto. Se cada
homem já é algo de indizivelmente novo, mais do que a soma dos
cromossomos e do produto de determinado ambiente, uma criatura
irrepetível de Deus, Jesus representa o verdadeiramente novo, não
provindo do que é peculiar à humanidade, mas do Espírito de Deus.
Por esta razão, Jesus é Adão pela segunda vez (1Cor 15,17) – com
ele começa uma nova hominização. Em oposição a todos os eleitos
antes dele, Jesus não somente recebe o Espírito de Deus, mas,
inclusive em sua existência terrena, Jesus existe exclusivamente
pelo Espírito sendo por isto a realização de todos os profetas: o
autêntico profeta.

Em si não seria preciso lembrar que todas essas considerações


somente terão importância na suposição de que realmente se deu
o acontecimento, cujo significado elas procuram aclarar. São
interpretações de um acontecimento; suprimindo este, elas se
tornariam mero palavreado, que se deveria tachar não só de vazio
de sinceridade, mas também de desonesto. De resto, sobre tais
tentativas, por mais bem intencionadas que possam ser, paira uma
discrepância que quase estaríamos tentados a qualificar de
trágica: em um momento em que descobrimos a corporeidade do
homem com todas as fibras de nossa existência, capacitando-nos a
compreender o seu espírito exclusivamente como encarnado, como
ser-corpo e não como ter-corpo, tenta-se salvar a fé mediante a
sua total desencarnação, refugiando-se em uma região de mero
"sentido", de pura interpretação auto-suficiente, que só através de
sua ausência de realidade parece estar subtraída à crítica.
Contudo, fé cristã, na verdade, significa exatamente colocar-se ao
lado do Deus que não é prisioneiro de sua eternidade, nem está
limitado apenas ao espiritual, mas que, aqui e hoje, é [233] capaz
de atuar no meio do mundo e que atuou nele em Jesus, o novo
Adão, nascido da Virgem Maria pelo poder criador de Deus, cujo
Espírito pairou nos primórdios sobre as águas, criando do nada o
ser 52 .

Impõe-se ainda uma observação. O sentido bem compreendido


de sinal divino do nascimento virginal mostra também qual é o
lugar teológico de uma piedade mariana capaz de ser derivada da
fé neotestamentária. Não pode basear-se em uma Mariologia que
represente uma espécie de segunda edição da Cristologia – não
existe nem direito nem razão para semelhante duplicação.
Desejando-se indicar um tratado teológico, ao qual a Mariologia
possa pertencer como sua [234] concretização, o mais indicado
seria o tratado da graça, que, naturalmente forma um todo com a
Eclesiologia e com a Antropologia. Como autêntica "filha de Sião"
Maria é o símbolo da Igreja, imagem do homem crente incapaz de
chegar à graça e até a si mesmo, a não ser pela dádiva do amor –
por graça. A palavra com que Bernanos encerra o "Diário de um
cura de aldeia", – "tudo é graça" – palavra em que uma vida
aparentemente confinada à debilidade e ao fracasso se revela
como cheia de riqueza e de realização, esta palavra tornou-se
realmente acontecimento em Maria, a "cheia de graça" (Lc 1,28).
Maria não contesta nem ameaça a exclusividade da salvação por
Cristo, mas comprova-a. Imagem da humanidade que, em seu
conjunto, é expectativa, tanto mais precisando dessa imagem,
quanto mais se encontra em perigo de abandonar a esperança,
entregando-se à ação que por indispensável que seja – jamais será
capaz de preencher o vazio que ameaça o homem o qual não
encontra aquele amor absoluto a dar-lhe sentido, solução e o
realmente necessário para a vida.
2. Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado.

a) Justiça e graça. Qual é propriamente a posição que a cruz


ocupa no contexto da fé em Jesus enquanto o Cristo? Eis a questão
com que este artigo do Credo nos torna a confrontar. Nas
considerações anteriores já foram reunidos os elementos essenciais
para uma resposta, bastando-nos agora revocá-los. Nesta questão,
a mentalidade cristã está condicionada por uma idéia bastante
grosseira da teologia da satisfação de Anselmo de Cantuária, cujas
linhas fundamentais foram objeto de análise em outro contexto.
Para muitos cristãos, sobretudo para os que conhecem a fé assaz
superficialmente, a cruz parece que deva ser compreendida dentro
de um mecanismo do direito [235] lesado e reabilitado. Seria a
forma com que a justiça divina infinitamente ofendida se
consideraria reabilitada por meio de um sacrifício infinito. Tem-se
a impressão de tratar-se de uma exata igualação entre dever e
haver; ao mesmo tempo perdura a impressão de um tal
igualamento basear-se sobre uma ficção. Entrega-se,
secretamente, com a esquerda, o que naturalmente se torna a
receber com a direita. Deste modo fica envolvida por uma luz
duplamente sinistra a "infinita satisfação" da qual Deus parece
fazer questão. Observando certos textos de devocionários, não se
pode escapar à idéia de que a fé cristã na cruz vê um Deus cuja
justiça implacável exige uma vítima humana, o holocausto do seu
próprio Filho. E recuamos horrorizados diante de uma justiça, cuja
ira tenebrosa torna incrível a mensagem do amor.

Tão espalhada quanto falsa é esta idéia. Na Bíblia a cruz não


surge como um episódio no mecanismo do direito ofendido, mas,
muito pelo contrário, como expressão do radicalismo do amor que
se doa totalmente, como o episódio no qual alguém é aquilo que
faz e faz o que é; como expressão de uma vida que é
completamente ser-para os outros. Para quem observar mais
atentamente, a teologia da cruz da S. Escritura exprime
verdadeiramente uma revolução em confronto com as idéias de
reparação e salvação da história religiosa extracristã.
Naturalmente não se pode negar que, na consciência cristã
posterior, essa revolução foi largamente neutralizada e só poucas
vezes foi reconhecida em toda a sua plenitude. Nas religiões do
mundo, reparação denota geralmente a restauração do destruído
relacionamento com Deus mediante ações dos homens. Quase
todas as religiões giram em torno do problema da expiação. Elas
nascem da consciência do homem quanto à sua culpa para com
Deus e denotam a tentativa de sufocar a consciência da culpa, de
vencer a culpa por meio de ações oferecidas a Deus. A obra
reparadora com que os homens querem apaziguar [236] a
divindade e torná-la propícia, ocupa o centro da história das
religiões.

No Novo Testamento a questão quase parece o oposto. Não é o


homem que se dirige a Deus trazendo-lhe um dom propiciatório; é
Deus que vem ao encontro do homem para lhe dar. Com a
iniciativa do seu poder de amor Deus restaura o direito abalado,
transformando em justo o homem pecador, tornando vivo o que
fora morto, graças à sua misericórdia criadora. Sua justiça é graça;
é justiça atuante que endireita o homem vergado, isto é, torna-o
justo. Estamos na encruzilhada que o cristianismo traçou na
história das religiões. O Novo Testamento não afirma que os
homens aplacam a Deus, coisa que, aliás, deveríamos esperar, já
que foram eles os que erraram e não Deus. O Novo Testamento diz
que "Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo" (2Cor
5,19). Eis algo realmente inaudito, novo – o ponto de partida da
existência cristã e o centro da teologia da cruz: Deus não espera
que os culpados se apresentem e se reconciliem; vai-lhes ao
encontro e os reconcilia. Revela-se aí a verdadeira direção da
Encarnação e da Cruz.

De acordo com isto, a Cruz aparece no Novo Testamento


primariamente como um movimento de cima para baixo. Não é a
obra expiatória oferecida pela humanidade à divindade ofendida,
mas manifestação daquele insano amor de Deus que se esbanja,
lançando-se na humilhação com o fito de salvar o homem; é sua
aproximação de nós, não vice-versa. Com esta virada na idéia da
expiação, ou seja, no eixo religioso em geral, o culto cristão e a
existência inteira recebem novo rumo. Adoração realiza-se
primeiro mediante a agradecida aceitação da ação salvadora de
Deus. Por isto é com razão que denominamos Eucaristia, ação de
graças, a forma essencial do culto cristão. Nele não se apresentam
a Deus realizações humanas; consiste, antes, na circunstância de o
homem se deixar presentear; não glorificamos a Deus oferecendo-
lhe do que supostamente [237] é nosso – como se já lhe não
pertencesse desde sempre! – mas aceitando o que é dele,
reconhecendo-o, assim, como Senhor único. Adoramo-lo fazendo
cair a ficção de um domínio com que poderíamos apresentar-nos
diante dele como sócios independentes, quando na realidade nele
somente e por ele é que estamos em condições de existir. O
oferecimento cristão não consiste em dar o que Deus não teria sem
nós, mas em tornar-nos totalmente receptivos, deixando-nos levar
completamente por ele. Deixar Deus agir em nós – eis o sacrifício
cristão.

b) A cruz como adoração e sacrifício. Entretanto ainda não foi


dito tudo. Lendo o Novo Testamento do começo ao fim não se pode
abafar a pergunta: Não estaria ele descrevendo a ação expiatória
de Jesus como holocausto ao Pai, representando a cruz como
sacrifício oferecido em obediência ao Pai por Cristo? Em uma série
de textos, tem-se a impressão de um movimento ascendente da
humanidade a Deus, de modo a parecer que está retomando tudo o
que acabamos de refutar. De fato, não é possível apreender o
saldo do Novo Testamento exclusivamente com a linha
descendente. Mas, então, como harmonizar a relação das duas
linhas? Será necessário abrir mão de uma, em benefício da outra?
E, em tal caso, que norma nos autorizaria a isto? Claro que não
poderíamos agir assim sem erigir a nossa opinião pessoal em
parâmetro da fé.

Para poder avançar é mister alargar a pergunta, tentando


lançar luz sobre o ponto de partida do sentido neotestamentário
da cruz. Primeiramente cumpre lembrar que a cruz de Jesus
assumiu, aos olhos dos discípulos, o aspecto de ponto final, de
fracasso de sua empresa. Crentes de terem encontrado nele o rei
que jamais poderia ser destronado, viram-se, repentinamente,
transformados em companheiros de um condenado. Certamente,
pela ressurreição, alcançaram a certeza de que Jesus era rei, mas
deviam passar por uma longa aprendizagem até compreender para
que servia a cruz. A S. Escritura, [238] isto é, o Antigo Testamento
fornecera-lhes o meio de compreendê-lo; mediante suas imagens e
conceitos, tentaram analisar o acontecimento. Por isso, também
lançaram mão dos seus textos litúrgicos e das suas prescrições,
convencidos de que tudo o que ali se dizia, se havia realizado em
Jesus e até que, a partir dele, seria possível entender o sentido
exato daqueles textos. Deste modo, encontramos no Novo
Testamento a cruz esclarecida, entre outros, também através dos
conceitos do culto do Antigo Testamento.

A concretização mais coerente de tais tendências encontra-se


na Carta aos Hebreus que traça um paralelo entre a morte de
Jesus na cruz e rito e teologia da festa judaica da expiação,
interpretando essa morte com a festa da expiação cósmica.
Poderia resumir-se o seu pensamento mais ou menos assim:
qualquer holocausto da humanidade, qualquer tentativa de aplacar
a Deus mediante culto e rito, de que o mundo está cheio, deviam
continuar sendo inócua obra humana, porque Deus não procura
touros nem cabritos, nem o que quer que seja apresentado
ritualmente. Podem-se oferecer a Deus hecatombes inteiras de
animais; ele de nada precisa, pois tudo simplesmente lhe
pertence, e ao Senhor do universo nada se lhe dá se queimam algo
em sua honra. "Não tomarei o novilho de tua casa, nem os cabritos
de teu rebanho; pois a mim pertence todo animal da floresta, as
alimárias dos montes, aos milhares. Lembro-me de todas as aves
do céu, e tenho ao meu alcance os animais do campo. Se tivesse
fome, não o diria a ti, porque meu é o orbe e tudo o que ele
encerra. Porventura como carne de touros ou bebo sangue de
cabritos? Oferece a Deus sacrifício de louvor, e cumpre os votos
que fizeste ao Altíssimo", reza uma palavra de Deus no Antigo
Testamento (Sl 50 [49], 9-14). O autor da Carta aos Hebreus situa-
se na linha espiritual deste texto e de outros semelhantes. Acentua
a inutilidade do esforço ritual de modo mais veemente ainda. Deus
não busca touros nem bodes, mas os homens; só [239] o
incondicional "sim" do homem a Deus poderia ser a autêntica
adoração. Tudo pertence a Deus, enquanto que ao homem foi
concedida a liberdade do "sim" e do "não", do amor e da recusa; o
livre "sim" do amor é o único que Deus deve esperar – a adoração,
e o único holocausto a ter sentido. Contudo, o "sim" a Deus, pelo
qual o homem se restitui a Deus, não pode ser nem substituído
nem representado pelo sangue de touros ou bodes. "Que pode dar
o homem em troca de sua alma?" lemos em Marcos (8,37). A
resposta só pode ser: não existe nada com que o homem se possa
contrapesar.

Ora, todo o culto pré-cristão baseia-se na idéia da substituição,


da representação, tentando substituir o insubstituível; portanto,
este culto forçosamente tinha de permanecer inútil. À luz da fé em
Cristo, foi possível à Carta aos Hebreus ousar fazer um balancete
arrasador da história das religiões, balancete que devia soar como
crime horrendo perante um mundo repleto de holocaustos. Pode a
carta avançar a afirmação do completo fracasso das religiões, por
saber que em Cristo a idéia da substituição e da representação
recebeu sentido novo. Cristo, sob o ponto de vista da lei mosaica
um simples membro do laicato, não ocupando cargo algum no
serviço do culto de Israel – diz o texto – foi o único sacerdote
verdadeiro do mundo. Sua morte, sob o ponto de vista histórico,
um acontecimento puramente profano – a execução de um
sentenciado por razões políticas – realmente representa a única
liturgia da história universal; liturgia cósmica, na qual, não em um
ambiente fechado do rito litúrgico do templo, mas em público,
diante do mundo, Jesus penetrou, através do véu da morte, no
verdadeiro templo, isto é, diante da face do mesmo Deus, não
para oferecer coisas, sangue de animais ou o que quer que seja,
mas a si mesmo.

Atendamos para esta inversão fundamental que é o próprio


cerne da Carta: o acontecimento profano, sob o enfoque terreno,
é o verdadeiro culto da humanidade, porque o seu protagonista
[240] rompeu o espaço da representação litúrgica e restabeleceu a
verdade: doou-se a si mesmo. Retirou das mãos dos homens os
objetos de holocausto, pondo em seu lugar a personalidade
sacrificada, o seu próprio "eu". Se, não obstante, o texto afirma
que Jesus realizou a reconciliação pelo seu sangue (9,12), este
sangue não deve ser encarado materialmente, como um veículo
expiatório a ser medido quantitativamente, mas apenas como
concretização do amor, do qual se afirma que alcança até os
derradeiros limites (Jo 13,1). É expressão da totalidade de sua
entrega e do seu serviço; resumo do fato de Jesus não sacrificar
nada mais e nada menos do que a si mesmo. De acordo com a
Carta aos Hebreus, só e exclusivamente o gesto do amor a doar
tudo representa a reconciliação do mundo; por esta razão, a hora
da cruz é o dia cósmico da reconciliação, a verdadeira e definitiva
festa da reconciliação. Não há outro culto, não existe sacerdote
outro que não o que realizou essa festa: Jesus Cristo.

c) Essência do culto cristão. Concluímos que a essência do culto


cristão não se encontra no sacrifício das coisas, nem em alguma
substituição qualquer, como se lê repetidamente nas teorias sobre
a Missa, a partir do século XVI – segundo as quais, deste modo,
seria reconhecido o supremo domínio de Deus sobre tudo. Todas
estas considerações são ultrapassadas pelo acontecimento de
Cristo e por sua interpretação bíblica. O culto cristão consiste no
absoluto do amor, tal como podia oferecê-lo somente alguém no
qual o amor divino se tornou amor humano; consiste na forma nova
da representação incluída neste amor, a saber, que ele ocupou o
nosso lugar e nós nos deixamos tomar por ele. Portanto, significa
que nos cumpre deixar de lado nossas tentativas de justificação
que, no fundo, não passam de desculpas, colocando-nos uns contra
os outros – como a tentativa de Adão em desculpar-se foi uma
escusa e um jogar a culpa sobre o outro, finalmente uma tentativa
de acusar o próprio Deus: "A mulher que pusestes [241] ao meu
lado, ela foi quem me deu daquela árvore, e eu comi" (Gen 3,12).
Este culto exige que, ao invés de opor afirmação destrutiva, da
autojustificação, aceitemos a dádiva do amor de Jesus Cristo por
nós, que nos deixemos unir nele, tornando-nos adoradores com ele
e nele. Agora será possível responder a algumas perguntas que
ainda se apresentam.

1. Frente à mensagem de amor do Novo Testamento, hoje se


impõe cada vez mais uma tendência de identificar completamente
o culto cristão com o amor fraterno, não se querendo admitir mais
nenhum amor direto a Deus, nenhuma veneração de Deus:
reconhece-se exclusivamente o horizontal, negando-se o vertical
ou seja a relação imediata com Deus * . Depois do que se disse, não
será difícil perceber por que uma tal concepção – à primeira vista –
de aparência tão simpática, falha na questão do Cristianismo, e
com ela, no problema do autêntico humanismo. Um amor fraterno
auto-suficiente descambaria em egoísmo extremado de auto-
afirmação. Um tal amor recusa sua abertura última, sua
tranqüilidade, seu desprendimento, não aceitando a necessidade
da salvação deste amor por intermédio do único que realmente
amou bastante. Finalmente, um tal amor, apesar de toda a bem-
querença, causa injustiça a si mesmo e ao outro, porque o homem
não se realiza apenas na simpatia mútua do co-humanismo, mas
somente na reciprocidade daquele amor desinteressado que
glorifica o próprio Deus. O desinteresse da simples adoração
representa a suprema possibilidade do humanismo e sua verdadeira
e definitiva libertação.

2. Sobretudo das devoções tradicionais à paixão nasce,


freqüentes vezes, a pergunta: de que modo, sacrifício (= adoração)
[242] e dor estão interligados? De acordo com as considerações
anteriores, o sacrifício cristão nada mais é do que o êxodo do
"para", a abandonar-se a si; realizado substancialmente no homem
que é totalmente êxodo, auto-superamento do amor. Por
conseguinte, o princípio constitutivo do culto cristão é este
movimento do êxodo, com o seu rumo duplo a Deus e ao próximo.
Levando o ser-homem a Deus, Cristo introdu-lo no seio da sua
salvação. Por isto, o acontecimento da cruz é pão de vida "para os
muitos" (Lc 22,19), porque o crucificado refundiu o corpo da
humanidade no "sim" da adoração. Este acontecimento tornou-se,
assim, totalmente "antropocêntrico", por ter sido teocentrismo
radical, entrega do "eu" e, com ela, da essência do homem a Deus.
Esse êxodo do amor é o "êxtase" do homem para fora de si, no
qual, retesado infinitamente acima de si, é, como que,
despedaçado, muito além de suas aparentes possibilidades de
distensão; na mesma medida, adoração (sacrifício) conota
simultaneamente cruz, sofrimento em ser esfacelado, morte do
grão de trigo, que, somente na morte pode frutificar. Mas assim
também se torna claro que é secundário o elemento doloroso que
flui de um elemento primeiro, anterior, somente dele recebendo o
sentido. O princípio constitutivo do sacrifício não é a destruição,
mas o amor. E somente na medida em que o amor rompe, abre,
crucifica, rasga, estas atividades integram o sacrifício: como forma
do amor em um mundo marcado pela morte e pelo egoísmo.

Relativamente a este assunto existe um texto de Jean


Daniélou, referente a outro problema, mas que me parece muito
apto a aclarar mais o pensamento que aqui nos ocupa: "Entre o
mundo pagão e o Deus trino existe uma única ligação, a saber, a
cruz de Cristo. Se nos colocamos nesta terra de ninguém tentando
reatar os laços entre o mundo pagão e o Deus trino, como ainda
nos admiraríamos de somente poder fazê-lo na cruz de Cristo?
Devemos tornar-nos semelhantes a essa cruz, levá-la em nós e,
como diz S. Paulo a respeito do mensageiro [243] da fé, "levar
sempre no corpo os sofrimentos de Jesus" (2Cor 4,10). Esse
dilaceramento que é para nós a cruz, essa impossibilidade do
coração de abrigar ao mesmo tempo o amor à SS. Trindade e o
amor a um mundo alienado da trindade, eis em que consiste a
agonia do Filho Unigênito, a cuja participação somos convidados.
Ele, que carregou em si essa separação com o fito de eliminá-la e
que a eliminou exclusivamente por havê-la levado em si
anteriormente, ele envolve tudo de um extremo a outro. Sem
abandonar o seio da Trindade, Cristo estende-se ao limite extremo
da miséria humana, preenchendo todo o espaço. Esse estender-se
de Cristo simbolizado pelas quatro direções da cruz, é a misteriosa
expressão do nosso próprio dilaceramento e torna-nos semelhantes
a ele" 53 . Em última análise, a dor é resultado e expressão do
dilaceramento de Jesus Cristo, desde a sua existência em Deus até
ao inferno do "Meu Deus, por que me abandonaste?" Quem tiver a
existência assim distendida a ponto de encontrar-se
simultaneamente mergulhado em Deus e abismado nas profundezas
da criatura abandonada por Deus, deve, por assim dizer, esfacelar-
se – um tal estará realmente "crucificado". Ora, esse dilaceramento
é idêntico ao amor: é sua realização até o fim (Jo 13,1) e
expressão concreta da amplidão que o amor cria.

A partir deste ponto de vista poderia tornar-se claro o


verdadeiro fundo de uma devoção à paixão, que tenha sentido, e
tornar-se evidente como se entrosam devoção à paixão e
espiritualidade apostólica. Poderia tornar-se evidente que o fervor
apostólico, o serviço em prol do homem e do mundo se
interpenetraram com o cem e da mística cristã e da devoção cristã
à paixão. As duas coisas não se estorvam mas uma vive no âmago
da outra. Assim também deveria ter-se tornado claro que na cruz
não se trata de alguma adição de sofrimentos físicos, [244] como
se o seu valor redentivo consistisse na maior soma possível de
torturas. Como poderia Deus alegrar-se com o sofrimento de sua
criatura, ou até de seu Filho, ou mesmo ver ai a taxa com que se
devesse comprar dele a reconciliação? Bíblia e fé cristã estão
muito distanciadas de tais idéias. Não é a dor como tal que conta,
mas a vastidão do amor, desdobrando a existência de modo tal que
une o distante e o vizinho, pondo em contato com Deus o homem
abandonado por Deus. Só o amor confere rumo e sentido ao
sofrimento. Fosse outro o caso, os algozes do Calvário teriam sido
verdadeiros sacerdotes; os que provocaram a dor teriam oferecido
o sacrifício. Mas, como não dependia disto, mas daquele núcleo
que o sustenta e realiza, não foram os carrascos e sim Jesus o
sacerdote a unir em seu corpo os dois extremos separados do
mundo (Ef 2,13 s).

E com isto respondemos substancialmente à pergunta da qual


partimos: Não seria um conceito indigno de Deus representá-lo
como um Deus a exigir a morte do Filho para aplacar a sua própria
ira? A isto apenas se pode responder: De fato, assim não se pode
pensar de Deus. Mas, uma tal idéia de Deus nada tem de comum
com o conceito de Deus no Novo Testamento. Porquanto este trata
exatamente de modo inverso, do Deus que, por si mesmo, queria
ser, em Cristo, o ômega a última letra – do alfabeto da criação.
Trata do Deus que é amor em ato, o puro "para" e que, por isto,
penetra necessariamente no incógnito do último verme (Sl 22 [21],
7). Trata do Deus que se identifica com a sua criatura, pondo no
contineri a minimo, no ser apanhado e subjugado e envolvido pelo
mínimo, aquela "superabundância" que lhe confere credenciais de
Deus.

A cruz é revelação. Não revela uma coisa qualquer, mas Deus e


o homem. Descobre quem é Deus e como é o homem. Na filosofia
grega existe estranho pressentimento disto: a imagem do justo
crucificado descrita por Platão. O grande filósofo [245] pergunta
qual seria a situação, neste mundo, de um homem totalmente
justo. Chega ao resultado de que a justiça de um homem só se
torna perfeita e comprovada, caso ele tome sobre si a aparência
da injustiça, porque só então aparece que ele não segue a opinião
dos homens, mas se coloca unicamente ao lado da justiça por ela
mesma. Portanto, de acordo com Platão, o justo autêntico há de
ser um incompreendido e perseguido; aliás, Platão não receia
escrever: "Então hão de dizer que o justo, nestas circunstâncias,
será flagelado, torturado, amarrado, que os olhos lhe serão
vazados a fogo e, finalmente, após todos estes maus tratos, será
crucificado..." 54 . Este texto, escrito 400 anos antes de Cristo,
sempre voltará a comover profundamente o cristão. Na seriedade
da reflexão filosófica prevê-se que o justo perfeito no mundo deve
ser o justo crucificado; pressentiu-se aí algo daquela revelação do
homem que se realiza na cruz.

O justo perfeito, quando apareceu, tornou-se o crucificado, foi


entregue à morte pela justiça; e isto nos diz impiedosamente o
que é o homem: És de tal modo, ó homem, que não podes suportar
o justo, és de tal modo que o simplesmente amante se torna louco,
espancado, rejeitado * . Tu, como injusto, sempre precisas da
injustiça do outro, para te sentires desculpado, não podendo,
portanto, tirar proveito do justo que parece roubar-te essa
desculpa. Eis o que és. João resumiu tudo isto no ecce homo! ("eis,
isto é o homem!") de Pilatos, cujo sentido fundamental é: esta é a
situação do [246] homem. Este é o homem. A verdade do homem é
sua ausência de verdade. O verso do salmista "todo homem é um
mentiroso" (Sl 116 [115], 11) e vive alhures contra a verdade, já
trai o que vem a ser o homem. A verdade do homem consiste em
continuamente chocar-se contra a verdade; o justo crucificado
torna-se assim o espelho onde o homem se vê sem retoque. Mas, a
cruz não revela o homem apenas, e sim também a Deus: eis quem
é Deus, que se identifica com o homem até este abismo e que
julga salvando. No abismo do fracasso humano descobre-se o
abismo ainda mais inesgotável do divino amor. E assim a cruz
realmente é o centro da revelação, de uma revelação que não
comunica qualquer espécie de proposições, até então
desconhecidas, mas que nos comunica e descobre a nós,
revelando-nos perante Deus e revelando a Deus em nosso meio.

3. "Desceu aos infernos"

Talvez nenhum artigo do Credo esteja mais longe de nossa


consciência atual do que este. Ao lado dos artigos do nascimento
de Jesus da Virgem Maria e da ascensão do Senhor, este artigo é o
que mais aguça o apetite para a "desmitização", que aqui parece
poder processar-se sem perigo e sem escândalo. Os poucos textos
em que a Escritura parece falar algo a respeito (1Pdr 3,19 s; 4,6;
Ef 4,9; Rom 10,7; Mt 12,40, At 2,27. 31) são tão difíceis de
compreender, que facilmente se pode interpretá-los em muitos
sentidos. Se, de acordo com isto, o artigo for totalmente
eliminado, parece ter-se a vantagem de ficar livre de um assunto
que dificilmente se enquadra em nossa mentalidade sem que se
tenha tornado culpado de alguma infidelidade especial. Mas,
haverá realmente algum proveito nisto? Ou apenas tenta-se sair do
caminho, diante da dificuldade e do mistério da realidade? Pode-se
tentar superar problemas ou negando-os sem mais, ou
enfrentando-os. O primeiro [247] caminho é mais cômodo, mas
somente o segundo conduz adiante. Portanto, em vez de eliminar
o problema, não seria o caso de aprender a compreender que este
artigo ao qual se subordina, no correr do ano litúrgico, o Sábado
Santo, nos está particularmente próximo, constituindo de maneira
toda especial a experiência do nosso século? Na Sexta-Feira da
Paixão, de qualquer maneira, o olhar permanece cravado no
Crucificado, enquanto o Sábado Santo é o dia da "morte de Deus",
o dia que exprime e preconiza a inaudita experiência do nosso
tempo: Deus está simplesmente ausente, o túmulo encobre-o,
Deus não mais acorda, não fala mais, de modo que não é mais
preciso nem mesmo contestá-lo, bastando apenas ignorá-lo. "Deus
está morto e nós o matamos": esta frase de Nietzsche pertence
verbalmente à tradição da devoção à paixão do Senhor; exprime o
conteúdo do Sábado Santo, o "desceu aos infernos" 55 .

Em nexo com este artigo acorrem-me duas cenas bíblicas.


Primeiro, a cruel história do Antigo Testamento em que Elias
desafia os sacerdotes de Baal a impetrar da sua divindade o fogo
para o sacrifício. Fazem-no e, logicamente, nada acontece. Elias
escarnece deles, exatamente como um espírito iluminado zomba
do homem piedoso, julgando-o ridículo, quando nada acontece em
resposta à sua prece. Elias anima-os; talvez não tenham rezado
bastante alto: "Gritai mais alto; pois sendo um deus, terá
preocupações, ou ter-se-á retirado ao banheiro, ou estará
viajando; é possível que esteja dormindo e é mister despertá-lo!"
(1Rs 18,27). Lendo hoje estes motejos dirigidos aos devotos de
Baal, alguém pode sentir-se um tanto inseguro; pode-se ter a
sensação de sermos nós os que se acham naquela situação,
cabendo-nos a nós os escárnios. Nenhum clamor parece capaz de
despertar a Deus. O racionalista pode dizer-nos calmamente: Rezai
mais alto; talvez então o vosso [248] Deus desperte. "Desceu aos
infernos": quão realisticamente retrata-se aí a verdade da hora
presente, a descida de Deus ao silêncio, ao lúgubre calar-se de
quem não mais está presente.

Mas, ao lado da história de Elias e da página análoga no Novo


Testamento, na narrativa sobre o Senhor a dormir em meio à
borrasca (Mc 4,35-41 e par), também a história dos discípulos de
Emaús encontra aqui o seu lugar (Lc 24,13-35). Os discípulos
perturbados falam da morte da sua esperança. Para eles sucedeu
algo assim como a morte de Deus: extinguiu-se o ponto onde Deus
finalmente parecia ter falado. O mensageiro de Deus está morto, o
vazio é total. Nada mais responde. Mas, enquanto assim falam da
morte da sua esperança, incapazes de ver a Deus, não percebem
que em seu meio se encontra precisamente esta esperança. Que
"Deus" ou antes aquela imagem que se fizeram da sua promessa,
devia morrer, para viver tanto maior. Devia ser destruída a
imagem que fizeram de Deus, e a cuja camisa de força teimavam
em forçá-lo, para que, quase como por sobre os escombros da casa
destruída, pudessem reencontrar o horizonte e a ele mesmo que
permanece o infinitamente maior. Eichendorff formulou-o no estilo
sentimental e quase ingênuo do seu século:

"Tu és, ó Deus sereno,

Quem, lá do alto trono,

Destrói o que eu ponho,


A fim de que, sem choro,

O céu, mais claro, eu veja".

Portanto, o artigo da descida do Senhor aos infernos lembra-nos


que à revelação cristã pertence não somente o falar de Deus, mas
também o seu silêncio. Deus não é apenas a palavra compreensível
que nos vem ao encontro; ele é igualmente o abismo calado e
inacessível, incompreendido e incompreensível, que nos foge.
Certamente, no Cristianismo há um primado [249] do Logos, da
palavra a anteceder o silêncio: Deus falou. Deus é palavra. Apesar
disto, não podemos esquecer o ocultamento de Deus que jamais
termina. Somente experimentando-o como silêncio, podemos
esperar ouvir também a sua voz que clama no silêncio 56 . Através
da cruz a cristologia oferece o momento da palpabilidade do divino
amor, até para além das fronteiras da morte, no meio do silêncio e
do obscurecimento de Deus. Será de admirar se a Igreja, se a vida
de cada um é conduzida continuamente para essa hora de silêncio,
para o esquecido e desprezado artigo "desceu aos infernos"?

Ponderando isto, resolve-se automaticamente a questão sobre a


"prova escriturística" para ele; pelo menos no grito de morte de
Jesus: "Meu Deus, por que me abandonaste?" torna-se visível, qual
deslumbrante resplendor de um relâmpago em noite escura, a
descida de Jesus aos infernos. Não esqueçamos ser esta palavra do
Crucificado o verso inicial de uma oração de Israel (Sl 22 [21],2),
que resume tremendamente a miséria e a esperança desse povo
eleito e aparentemente tão abandonado por Deus. Esta prece,
brotada da miséria mais profunda da treva de Deus, termina com
um louvor à divina grandeza. Também este elemento está presente
no grito de agonia de Jesus, grito que Ernst Käsemann, há pouco,
descreveu como uma súplica a subir do inferno, como a elevação
do primeiro mandamento no deserto da aparente ausência de
Deus. "O Filho ainda conserva a fé, quando ela parece ter-se
tornado sem sentido, revelando a realidade do Deus ausente, do
qual não é em vão que falam o mau [250] ladrão e a massa
motejante. Seu clamor não se refere à vida nem ao além-vida, não
se refere a ele, mas ao Pai. Seu grito ergue-se contra a realidade
do mundo inteiro". Será preciso ainda perguntar pelo sentido da
adoração nesta hora de treva? A adoração pode ser outra coisa que
não o grito das profundezas, junto com o Senhor que "desceu aos
infernos", e que estabeleceu a proximidade de Deus no coração da
ausência de Deus?

Tentemos outra consideração para penetrar neste complexo


mistério, impossível de ser esclarecido de um lado apenas.
Primeiramente voltemos a lançar mão de um fato exegético.
Afirma-se que a palavra "inferno" não passa de reprodução errônea
de scheol (grego: hades), com que os hebreus designam a condição
após a morte, representada confusamente como uma espécie de
existência sonambúlica, mais não-ser do que ser. De acordo com
isto, o artigo denotaria que Jesus entrou no scheol, isto é, morreu.
Pode ser. Mas continua a pergunta: com isto simplificou-se o
assunto, tornou-se menos misterioso? Creio que, exatamente
agora, é que se apresenta o problema da morte. O que vem a ser
morte, que acontece quando alguém morre, tombando sob o
destino da morte? Todos temos de reconhecer o nosso embaraço
diante deste. problema. Ninguém sabe a resposta com exatidão,
porque todos vivemos aquém da morte, não lhe tendo ainda
provado o amargor. Talvez, porém, se possa tentar uma
aproximação a partir, novamente, do grito de Jesus na cruz, grito
no qual identificamos a essência do que vem a ser descida de
Jesus, participação no destino da morte dos homens. Porquanto,
nesta derradeira prece, do mesmo modo como na cena da agonia
no Horto das Oliveiras, revela-se, qual elemento mais profundo de
sua paixão, não uma dor física qualquer, mas a solidão radical, o
completo abandono. Ora, nisto manifesta-se afinal o abismo da
solidão humana em geral, do homem que, em seu âmago, está
sozinho. Essa [251] solidão, às mais das vezes camuflada, sem
deixar de constituir a verdadeira situação do homem, denota
simultaneamente o paradoxo mais profundo em relação à natureza
do homem, que não pode estar sozinho, mas carece de companhia.
Por esta razão a solidão é a causa do medo, fundada na fragilidade
do ser, destinado a existir e, não obstante, condenado ao que lhe
é impossível.

Tentemos exemplificá-lo ainda. Uma criança obrigada a


atravessar sozinha uma floresta em noite escura tem medo mesmo
se lhe provarem de modo convincente que nada existe capaz de
provocar o temor. No momento em que se vê no meio da treva,
sentindo a solidão de modo radical, eis que surge o medo, o medo
essencialmente humano, que não é temor de alguma coisa, mas
medo em si. O receio de algo concreto é inócuo em si, podendo ser
superado pelo afastamento de sua causa. O medo de um cachorro
bravo, por exemplo, elimina-se prendendo o cão. Agora, porém,
deparamos com algo muito mais profundo: cercado da solidão
última, o homem teme não uma coisa determinada; muito mais,
sente receio da solidão, experimenta o horror e a fragilidade do
seu próprio ser, impossíveis de serem vencidos racionalmente. Vá
outro exemplo: sozinho, à noite, a fazer guarda a um defunto, o
homem sentirá, de algum modo sinistro a sua situação, mesmo
estando em condições e esforçando-se em convencer-se
racionalmente de que seus sentimentos carecem de base. Sabe
perfeitamente que o morto nada lhe poderá fazer e que sua
situação talvez fosse muito mais perigosa, se ele ainda estivesse
vivo. O que desperta aqui é uma espécie toda outra de medo; não
medo de alguma coisa, mas da lúgubre solidão em si, da
fragilidade da existência, frente a frente com a solidão da morte.

Mas, sendo totalmente inoperante o argumento da falta de


objeto, como poderá ser superado um tal medo? Pois bem, a
criança perderá o medo no momento em que sua mão sentir [252]
o aconchego de outra mão amiga, em que soar outra voz falando
com ela; ou seja, no instante em que experimentar a presença de
uma pessoa bondosa. O que se encontra a sós com um defunto,
também sentirá desaparecer o receio, se houver alguém em sua
companhia, e sentir a proximidade de um "tu". Esta superação do
medo revela simultaneamente a sua natureza, a saber, que se
trata de medo de estar só, de temor de um ser que somente pode
viver com outros. O medo propriamente dito não pode ser vencido
pela razão, mas exclusivamente pela presença de um ente
amoroso.

Mas, cumpre levar mais longe ainda a nossa pergunta: Na


hipótese de existir uma solidão onde palavra alguma de outrem
consiga penetrar, transformando-a; na suposição de uma solidão
tão profunda que nenhum "tu" a alcance, estaríamos diante da
solidão e do horror total, daquilo a que o teólogo denomina
"inferno". Desta perspectiva é possível definir exatamente o
inferno: ele denota uma solidão onde a palavra do amor não tem
mais guarida, conotando com isto a fragilidade essencial da
existência. Neste contexto, a quem não acorreria a opinião de
poetas e filósofos hodiernos, segundo a qual todos os encontros
entre homens se conservam na superfície, não estando aberta a
homem nenhum a entrada ao âmago do outro? * Portanto, ninguém
pode realmente alcançar o íntimo do outro; qualquer encontro,
por lindo que seja, serve apenas para narcotizar a incurável ferida
da solidão. Deste modo, no mais fundo do nosso ser, habitaria o
inferno, o desespero – a solidão tão inevitável quão terrível.
Sartre, como se sabe, construiu a sua antropologia a partir desta
idéia. Mas também um poeta tão conciliador e otimista como
Hermann [253] Hesse deixa transparecer, em última análise, os
mesmos pensamentos:

"Estranho, andar na névoa!

Viver é solidão;

Ninguém conhece ninguém,

O só está só..."

De fato, uma coisa é certa: existe uma noite, em cujo ermo voz
alguma ecoa; há uma porta pela qual só podemos passar sozinhos:
a porta da morte. Todo o medo do mundo finalmente nada mais é
do que medo diante desta solidão. Daqui compreende-se porque o
Antigo Testamento conhece uma palavra apenas para conotar
inferno e morte, a palavra scheol: porque ambas as coisas são
idênticas para o Antigo Testamento. A morte é a solidão
simplesmente. Mas, a solidão à qual não pode chegar o amor é o
inferno.

Voltamos assim ao nosso ponto de partida, ao artigo da descida


aos infernos. Ele declara que Cristo atravessou as portas da nossa
solidão derradeira; que em sua paixão desceu ao abismo do nosso
abandono. Onde voz alguma está em condições de alcançar-nos, ali
ele se encontra. Com isto o inferno foi vencido, ou mais
exatamente: a morte, que antes era o inferno, não o é mais.
Ambas as coisas não são mais o mesmo, porque em seu centro está
a vida, porque em seu meio habita o amor. Só o excluir, o fechar-
se voluntário é inferno, ou, no dizer da Bíblia, é morte segunda
(por exemplo Ap 20,14). Mas a morte não mais é um caminho para
o seio desta solidão, as portas do scheol estão abertas. Creio que,
neste enfoque, poderão ser bem compreendidas as metáforas
patrísticas de sabor tão mitológico, que falam da libertação dos
mortos, da abertura das portas. Também tornar-se-á
compreensível o texto de Mateus, de aparência tão mítica, sobre
os túmulos que se abriram e os corpos dos santos [254] que
ressurgiram por ocasião da morte de Jesus (Mt 27,52). As portas da
morte estão abertas, desde que na morte reside a vida: reside o
amor.

4. Ressurgiu dos mortos

A ressurreição de Jesus Cristo representa para o cristão


garantia da certeza da veracidade da palavra que antes pareceria
um belo sonho: "Forte como a morte é o amor" (Ct 8,6). No Antigo
Testamento este verso está emoldurado em uma exaltação da
força do eros. Isto não quer dizer que podemos deixá-lo de lado
como exagero poético. Na ilimitada pretensão do eros, em seus
aparentes excessos e descomedimentos, de fato revela-se um
problema básico, aliás o problema por excelência da existência
humana, porquanto a essência e o paradoxo interno do amor se
traem pelo seguinte: amor exige o infinito, o indestrutível, amor é
como que um grito pelo ilimitado. Com isto, porém, coexiste o
fato de ser irrealizável um tal clamor; de o amor querer o infinito,
mas sem poder conferi-lo; de o amor fazer questão do ilimitado;
estando, porém, de fato, preso ao mundo da morte, à sua solidão e
ao seu poder destrutivo. Nesta perspectiva pode-se compreender o
que vem a ser "ressurreição". Ela é a superioridade do amor sobre a
morte.

Ao mesmo tempo, o amor é a prova do que só a imortalidade é


capaz de realizar: existir em um outro, que continuará quando eu
tiver desaparecido. O homem é um ente incapaz de viver
eternamente por si, sendo necessariamente presa da morte.
Continuar vivendo, ele, que em si mesmo não tem apoio nem
chance, só se torna possível, para falar de modo humano,
mediante sua continuação em um outro. Desta perspectiva é que
se devem encarar as declarações da Escritura sobre morte e
pecado. Porquanto, aqui se torna claro que a tentativa humana de
"ser como Deus", seu empenho para conquistar autarquia, [255]
para poder firmar-se a si mesmo e em si mesmo significa sua
morte, porque fato é que o homem não é capaz de manter-se em
si. Não reconhecendo os seus limites e, apesar disto, fazendo
questão de afirmar-se, tornando-se totalmente "autárquico" – em
que consiste a verdadeira essência do pecado – o homem entrega-
se, exatamente por isto, à morte.

Naturalmente, chegado a este ponto, o homem compreende


que sua vida não se conserva sozinha e que se lhe impõe estar nos
outros, a fim de, através deles, permanecer entre os vivos. Dois
foram os caminhos principais tentados para se alcançar esta meta.
Primeiro, a sobrevivência na própria prole: daí o fato de os povos
primitivos considerarem uma maldição o celibato e a
infecundidade que denotam o naufrágio sem esperança, a morte
definitiva. Ao inverso, o maior número possível de filhos dá chance
de sobrevivência, esperança de imortalidade e, assim, a bênção
que o homem pode esperar. Um outro caminho se abre quando
descobre o homem ser muito relativa e problemática a
sobrevivência nos filhos, desejando que de si reste algo mais.
Portanto refugia-se na idéia da glória que o fará realmente
imortal, conferindo-lhe a sobrevivência na memória dos outros.
Mas também a imortalidade pela permanência nos outros fracassa
não menos do que a primeira tentativa: o que resta não é o "eu",
mas apenas um eco, uma sombra. Portanto a imortalidade
autocriada torna-se um simples hades, um scheol: antes um não-
ser do que um ser. A insuficiência dos dois caminhos provém do
fato de não ser eu mesmo, mas apenas um eco de mim o que o
outro é capaz de conservar de mim, após a minha morte; e ainda
mais, baseia-se na circunstância de o outro, ao qual como que
confiei o meu espólio, não permanecer para sempre: também ele
há de ruir.

Isto conduz-nos ao próximo passo. Até agora vimos que o


homem não tem nenhum ponto de apoio para si mesmo, [256]
conseqüentemente podendo subsistir somente no outro; no outro,
porém, ele só se revê como sombra e não definitivamente porque
também o outro se esvai. Sendo assim, só existe um capaz de
conferir a conservação, a permanência , aquele que "é", que não
devém nem se esvai, mas que se conserva na torrente do devir e
da passagem: o Deus dos vivos, que não conserva apenas a sombra
e o eco do meu ser, o Deus, cujos pensamentos não são meras
imitações da realidade. Eu mesmo sou o seu pensamento, o qual,
por assim dizer, me ergue antes mesmo de eu ser; seu pensamento
não é a sombra posterior, mas a força original da minha existência.
Nele não só me é facultado existir como sombra, mas nele posso
existir em verdade, mais perto de mim do que tentando existir só
por mim.

Antes de retornar à ressurreição, tentemos encarar este mesmo


tema ainda sob um ângulo diferente. Podemos voltar à idéia de
amor e ao tema morte e dizer: só onde o valor do amor sobrepuja
o da morte, isto é, onde alguém está disposto a colocar a vida
atrás do amor e por causa do amor, somente ali o amor será capaz
de ser mais forte do que a morte. Para ser mais forte do que a
morte, o amor há de ser primeiramente mais do que a vida. Se
conseguisse isto não só pela vontade, mas de fato, significaria que
a força do amor se teria elevado acima da capacidade biológica,
colocando-a a seu serviço. Falando-se em termos de Teilhard de
Chardin: onde tal coisa se desse, teria lugar a decisiva
"complexidade" e "complexão"; ali também o bios (a vida) estaria
envolvido e incluído no poder do amor. Ali o amor ultrapassaria a
sua fronteira – a morte – gerando união onde a morte cria
separação. Se a força do amor ao outro fosse forte a ponto de
estar capacitada a conservar viva não só a sua memória, a sombra
do seu "eu", mas o próprio outro, teria sido alcançado um novo
degrau de vida, que deixaria para trás a esfera das mutações e
evoluções biológicas, conotando o salto a uma esfera totalmente
nova, na qual o amor não estaria mais sujeito ao bios, mas dele se
haveria [257] de servir. Um tal derradeiro grau de "mutação" e de
"evolução" não seria mais um grau biológico, mas denotaria a
escapada ao monodomínio do bios, que é, ao mesmo tempo,
domínio da morte; abriria aquele espaço, chamado zoe na Bíblia
grega, isto é, vida definitiva que deixou para trás o regime da
morte. O último degrau da evolução, de que o mundo está
necessitado para alcançar a sua meta, não teria sido realizado
dentro do biológico, mas pelo espírito, pela liberdade, pelo amor.
Não seria mais evolução, mas opção e dádiva em um.

Mas, que é que tudo isto tem de comum com a ressurreição de


Jesus? Ora, até aqui consideramos o problema da imortalidade do
homem de dois lados que, aliás, se revelam agora como facetas de
um único e idêntico estado de coisas. Dado que o homem por si
mesmo não dispõe de meios para subsistir, afirmamos que sua
sobrevivência somente poderá originar-se através de sua
continuação em vida, em um outro. E dissemos a respeito deste
"outro" que somente o amor que admite o amado em seu íntimo
estaria em condições de possibilitar essa existência em um outro.
Ao meu ver, os dois aspectos complementares espelham-se nas
duas formas de apresentar a ressurreição do Senhor no Novo
Testamento: "Jesus ressurgiu" e "Deus (Pai) ressuscitou a Jesus". As
duas fórmulas coincidem no fato de o amor total de Jesus aos
homens, amor que o levou à cruz, se completar na sua total
transferência para o Pai, tornando-se assim mais forte do que a
morte, por ser, ao mesmo tempo, totalmente sustentado por ele.

Daqui se segue um outro passo. Podemos afirmar que o amor


serve sempre de fundamento para alguma espécie de imortalidade;
inclusive em suas gradações sub-humanas o amor aponta para esta
direção, em forma de conservação das espécies. Aliás, servir de
base para a imortalidade não é algo de acidental ao amor, algo
que o amor eventualmente fizesse ao lado de outras coisas, mas
constitui a sua verdadeira natureza. Esta afirmação pode ser
invertida, significando então que imortalidade [258] sempre nasce
do amor, jamais da autarquia de quem se julga bastar a si mesmo.
Podemos até atrever-nos a afirmar que esta constatação, bem
compreendida, vale mesmo em relação a Deus, tal como o vê a fé
cristã. Também Deus é puro estar e subsistir, frente a todo o
contingente, por ser relação das três Pessoas entre si, por ser
abismar-se na reciprocidade do amor, por ser amor vivo
exclusivamente da mútua correlação. Não é divina aquela
autarquia que a ninguém conhece senão a si, afirmamos
anteriormente. A revolução na imagem cristã do mundo e de Deus,
em relação ao mundo antigo, encontramo-la no fato de ela ensinar
a compreender o "absoluto" como absoluta "relatividade", como
relatio subsistens.

Voltemos ao assunto. Amor fundamenta imortalidade e


imortalidade nasce exclusivamente de amor. Esta constatação a
que agora chegamos significa que aquele que amor por todos,
também fundou imortalidade para todos. Este é o sentido exato da
afirmação bíblica de que a sua ressurreição é a nossa vida. O
argumento de S. Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, tão
estranho à nossa mentalidade, torna-se compreensível dentro
desta perspectiva: se Cristo ressurgiu, também nós, pois neste caso
o amor é mais forte do que a morte; se não ressurgiu, nós também
não, porquanto a morte continua estando com a última palavra
(cfr. 1Cor 15,16 s). Trata-se de um assunto fundamental, por isto
tornamos a tecer outra série de considerações em torno do
pensamento paulino: amor ou é ou não é mais forte do que a
morte. Se o amor se tornou mais forte do que a morte, deve-o ao
fato de ser amor pelos outros. O que, naturalmente, significa que
o nosso próprio amor isolado não basta para vencer a morte, mas,
considerado em si, deveria continuar como um apelo não
completado. Isto quer dizer que unicamente o seu amor,
coincidente com o divino poder de vida e de amor, é capaz de
servir de base para a nossa imortalidade. Apesar disto, continua
válido que a maneira da nossa [259] imortalidade há de depender
da maneira do nosso amor. Teremos de tornar ao assunto quando
tratarmos do julgamento.

Ainda outra conclusão pode ser tirada do que foi exposto. É


evidente que a vida do ressuscitado não será uma repetição do
bios, da forma biológica da nossa vida mortal intra-histórica, mas
será zoe, vida nova, outra, definitiva; vida que ultrapassou o
espaço mortal da história da vida, sobrepujado aí por um poder
maior. Os relatos do Novo Testamento sobre a ressurreição
permitem reconhecer mui claramente que a vida do Ressuscitado
não se situa dentro da bios-história, mas fora e acima da mesma.
Naturalmente, essa nova vida comprovou-se e devia comprovar-se
na história, porquanto ela existe para a história, e anúncio cristão,
no fundo, nada mais é do que passar adiante o testemunho de que
o amor conseguiu atravessar a morte, transformando assim
fundamentalmente a situação de todos. Com tais suposições não é
difícil encontrar a hermenêutica certa para a penosa tarefa de
interpretar os textos bíblicos sobre a ressurreição, isto é, a de
conseguir clareza sobre o sentido em que eles devem ser
corretamente compreendidos. Evidentemente não podemos tentar
aqui um debate sobre os diversos aspectos deste assunto, que se
apresentam, hoje mais do que nunca, muito complexos,
principalmente pelo fato de declarações históricas – em geral
insuficientemente amadurecidas – e filosóficas irem formando um
novelo mais intrincado e, não poucas vezes, a exegese criar, para
seu uso, a sua própria filosofia, que ao não iniciado há de causar a
impressão de uma elevação do fato bíblico ao mais alto grau.
Sempre ficará muita coisa discutível em concreto, a respeito deste
assunto; contudo, não se pode deixar de reconhecer um limite
básico entre interpretação que é interpretação e adaptações
pessoais.

Antes de mais, está completamente claro que Cristo


ressuscitado não retornou à sua vida terrestre anterior, como se
afirma, por exemplo, do jovem de Naim e de Lázaro. Cristo
ressurgiu para a vida definitiva que não se subordina mais às leis
[260] químicas e biológicas, estando por isto fora da possibilidade
da morte, dentro da eternidade concedida pelo amor. Por isso os
encontros com Cristo são "aparições"; por isso, aquele do qual, dois
dias antes, se era comensal na ceia, não é reconhecido nem sequer
pelos seus amigos mais íntimos e, mesmo reconhecido, continua
estranho: ele só é visto onde concede visão; só onde abre os olhos
e o coração se deixa abrir é que se torna reconhecível neste
mundo mortal a face do vencedor da morte e, nesta face, o outro
mundo: o mundo que há de vir. Por isso é tão difícil, raiando
mesmo pelo impossível, aos Evangelhos descrever os encontros
com o ressuscitado; por isso eles balbuciam apenas, ao falar do
ressuscitado, dando a impressão de contradizer-se, ao descrevê-lo.
Na realidade, os Evangelhos revelam uma espantosa unidade na
dialética de suas informações, na simultaneidade do tocar e do não
tocar, do reconhecer e do não reconhecer, da total identidade
entre crucificado e ressuscitado, e na sua completa mudança. Os
discípulos reconhecem o Senhor e não o reconhecem; palpam-no,
mas ele é o intocável; ele é o mesmo e, contudo, é o todo outro.
Como se disse, esta dialética é sempre a mesma; mudam apenas os
recursos de estilo com que ela se exprime.

Examinemos mais de perto, sob este aspecto, o episódio dos


discípulos de Emaús, com que já nos deparamos de passagem. À
primeira vista tem-se a impressão de estarmos diante de uma
descrição totalmente terrena, maciça, como se nada restasse do
mistério indescritível que encontramos nos relatos paulinos.
Parece predominar totalmente a tendência de enfeitar, de lançar
mão de um concreto lendário, apoiada numa apologética que
busca dados palpáveis, recolocando completamente o Senhor
ressuscitado dentro da história terrena. Contudo opõe-se a isto o
seu misterioso aparecimento e o não menos misterioso
desaparecimento. Mais ainda se opõe a circunstância de ele se
conservar irreconhecível ao olhar comum. Não é possível
identificá-lo como durante a sua vida terrena. Ele se [261]
descobre exclusivamente na esfera da fé; mediante a explicação
da Escritura incendeia o coração dos dois viandantes, e à fracção
do pão abre-lhes os olhos. Temos aí a indicação dos dois elementos
fundamentais da antiga liturgia cristã a qual é integrada de liturgia
da palavra (leitura e interpretação da Escritura) e liturgia da
fracção do pão eucarístico. Assim o evangelista faz ver que o
encontro com o Ressuscitado se situa em um plano totalmente
novo; tenta descrever o indescritível, mediante o código dos
acontecimentos litúrgicos. Com isto oferece, simultaneamente,
uma teologia da Ressurreição e da liturgia: o Ressuscitado é
encontrado na palavra e no sacramento; o serviço divino é a
maneira pela qual ele se nos torna tangível e reconhecível como
vivo. Vice-versa, liturgia baseia-se no mistério pascal; há de ser
compreendida como a aproximação do Senhor a nós, a tornar-se
companheiro nosso de viagem, incendiando o coração embotado,
abrindo os olhos fechados. Cristo continua indo conosco, volta
sempre a encontrar-nos desanimados e queixosos, continua
dispondo da força para fazer-nos ver.

Naturalmente isto tudo diz apenas a metade. O testemunho do


Novo Testamento estaria falseado, se quiséssemos ficar apenas
nisto. A experiência do Ressuscitado é algo diverso do encontro
com um homem da nossa história; muito menos ainda pode ela ser
reduzida a conversas à mesa e a recordações que se tivessem
afinal condensado na idéia de que ele vive e de que a sua obra
prossegue. Uma explicação assim aplaina o evento na direção
oposta, nivelando-o à esfera humana, privando-o do que lhe é
peculiar. Os relatos da ressurreição são algo diferente e algo mais
que meras cenas litúrgicas camufladas: eles permitem ver o
acontecimento fundamental sobre o qual se ergue toda a liturgia
cristã. Testemunham um acontecimento que não brotou dos
corações dos discípulos, mas que lhes sobreveio de fora,
dominando-os, de encontro à sua dúvida, e infundindo-lhes a
certeza de que "o Senhor ressuscitou verdadeiramente". [262] O
que jazera no sepulcro não está mais lá, mas vive – é realmente
ele mesmo quem vive. O que fora arrebatado para o outro mundo
de Deus, mostrou-se entretanto ser tão poderoso que tornava
palpável ser ele mesmo quem estava diante deles; mostrou ter-se
comprovado nele mais forte o poder do amor do que o poder da
morte.

Somente tomando isto tudo tão a sério como o que fora dito
anteriormente é que se conservará a fidelidade ao testemunho do
Novo Testamento; só assim se salvará a sua seriedade cosmo-
histórica. A tentativa mais que cômoda de, por um lado, dispensar
a fé no mistério da potente atuação de Deus neste mundo, e no
entanto simultaneamente querer ter a satisfação de conservar-se
no terreno da mensagem bíblica esta tentativa conduz ao vácuo:
não satisfaz nem à honestidade da razão nem às razões da fé. Não
é possível conservar juntas a fé cristã e a "religião nos limites da
razão pura"; a opção é inevitável. Naturalmente, o crente verá
com clareza crescente quão repleta de razão está a adesão àquele
amor que venceu a morte.
5. "Subiu ao céu, onde está sentado à direita de Deus Pai, todo-
poderoso".

Falar da Ascensão, para nossa geração criticamente despertada


por Bultmann, bem como tratar da descida aos infernos denota
revelar aquela visão do mundo em três andares a que se dá o nome
de "mítica" e que se considera definitivamente superada. "Em
cima" e "em baixo" o mundo continua sendo o mesmo mundo,
regido por toda parte pelas mesmas leis físicas, acessível à
pesquisa por todos os lados. O mundo não tem pavimentos; os
conceitos "em cima" e "em baixo" são relativos, dependentes da
posição do observador. Como não existe ponto algum de referência
absoluto (seguramente, a Terra já não representa um tal ponto),
não se pode [263] mais falar de "em cima", "em baixo" – ou de "à
direita" ou "à esquerda"; o Cosmos não apresenta nenhuma direção
determinada. Ninguém, hoje em dia, contestará semelhantes
convicções. Não existe um mundo disposto, localmente, em três
andares. Aliás, teria sido este o sentido das expressões da fé
quando usou os termos "descida" aos infernos, "subida" ao céu? Sem
dúvida o material fora fornecido por aquela concepção do mundo,
o que, não obstante, não é realmente o essencial. Os dois artigos
exprimem, antes, juntamente com a fé no Cristo histórico, a
dimensão total da existência humana que não abrange três
pavimentos cósmicos, mas sim três dimensões metafísicas. Neste
sentido, é conseqüente a mentalidade, que se julga moderna,
quando elimina não só a ascensão e a descida aos infernos, mas
também o mesmo Cristo histórico, ou seja as três dimensões da
existência humana; o que resta não pode passar de pobre fantasma
policromo, sobre o qual, com razão, ninguém mais pode construir
seriamente.

Mas, qual seria o sentido real das nossas três dimensões?


Anteriormente já constatamos que a descida aos infernos
propriamente não significa alguma profundidade exterior do
cosmos, que é perfeitamente dispensável: no texto fundamental –
a súplica do Crucificado a Deus que o abandonara falta qualquer
referência cósmica. A frase nos concentra o olhar muito mais nas
profundezas da existência humana, tocando o fundo da morte, na
zona da solidão intocável e do amor recusado, abrangendo assim a
dimensão do Inferno, trazendo-a em si como sua própria
possibilidade. Inferno, existir na recusa definitiva do "ser-para" não
é uma determinação cosmográfica, mas uma dimensão da natureza
humana, é o seu fundo, até onde o inferno alcança. Mais que
nunca sabemos hoje que a existência de cada um alcança esta
profundeza. Naturalmente, porque a humanidade, em última
análise, é "um homem", esse abismo não diz respeito [264] apenas
ao indivíduo, mas interessa o corpo único do gênero humano que,
por esta razão, há de suportar esse abismo, como um todo. Pode-
se agora compreender que Cristo; o "novo Adão", tenha
empreendido a tarefa de suportar essa profundeza, não querendo
dela isentar-se em sublime intangibilidade, mas também só agora
se torna possível avaliar a recusa total do amor, em toda a sua
imensidade.

Em contrapartida, a ascensão do Senhor aponta para o outro


extremo da existência humana dilatada para cima e para baixo e
infinitamente acima de si mesma. Como anti-pólo em relação ao
isolamento radical, à intocabilidade do amor recusado, essa
existência é portadora da possibilidade do contato com todos os
outros homens, do contato com o próprio amor divino, de modo
que o "ser-homem" como que encontra o seu lugar geométrico no
seio da auto-existência de Deus. Naturalmente essas duas
possibilidades do homem, expressas nas palavras "céu" e "inferno",
são de espécie completamente diferente do que o seriam as
humanas possibilidades, e mesmo completamente diversas entre
si. O abismo a que chamamos Inferno, só o homem pode dá-lo a si
mesmo. Aliás, cumpre exprimi-lo mais fortemente: o inferno
consiste formalmente no fato de o homem não querer aceitar
nada, de querer ser totalmente autárquico. É a expressão do
trancar-se no puramente próprio. Por conseguinte, a essência
desse abismo consiste em não querer o homem aceitar, em não
querer tomar, preferindo apoiar-se completamente em si mesmo,
bastar-se a si mesmo. Atingindo a sua última radicalidade, o
homem torna-se o intocável, o solitário, o recusado. Inferno é o
"querer-ser-só-eu-mesmo", é aquilo que sucede quando o homem
se tranca naquilo que lhe é próprio. Inversamente a essência
daquilo que chamamos "céu" está na exclusiva possibilidade de se
receber, assim como alguém só é capaz de se dar o inferno. O céu,
por natureza, é não-auto-construído nem auto-construível; na
linguagem escolástica se [265] diz que o céu, como graça, é um
donum indebitum et superadditum naturæ (uma dádiva indevida e
acrescentada à natureza). Somente enquanto amor realizado é que
o céu sempre pode ser doado ao homem; mas o seu inferno é a
solidão daquele que não quer acreditar, que não se sujeita ao
estado de mendigo, encolhendo-se para dentro de si mesmo.

Somente agora se pode mostrar completamente em que


consiste o céu sob o ponto de vista cristão. Não o devemos
imaginar como um lugar eterno, supraterreno, nem também como
uma região eterna, metafísica. Cumpre afirmar estarem as
realidades "céu" e "ascensão" inseparavelmente interligadas; e
somente dentro desta interdependência é que se torna claro o
sentido cristológico, pessoal, histórico, da mensagem cristã sobre o
céu. Abordemos o assunto por outro ângulo: céu não é o lugar que,
antes da ascensão de Cristo, estivera fechado por um decreto
punitivo de Deus, para, a seguir, ser aberto, graças a uma
resolução igualmente positiva. A realidade "céu" surge antes de
tudo e principalmente mediante a união entre Deus e homem. O
céu deve definir-se como o tocar-se do ser que se chama homem
com o ser que é Deus; este entrelaçar-se de Deus e do homem
concretizou-se definitivamente em Cristo através de sua escalada
pelo bios, pela morte até à vida nova. Portanto, céu é aquele
futuro do homem e do gênero humano que eles são incapazes de se
conferirem a si mesmos, que, por conseguinte, lhes estaria
fechado enquanto confiassem apenas em si e que, pela primeira
vez foi aberto naquele homem, cujo local de existência era Deus e
através do qual Deus penetrou na natureza humana.

Por esta razão, céu sempre será mais do que um destino


individual; está em nexo com o "último Adão", com o homem
definitivo e, portanto, em nexo com o destino comum do homem.
Ao meu ver, poder-se-iam conseguir, a partir daqui, alguns
importantes subsídios hermenêuticos, que, naturalmente, neste
contexto, poderão merecer apenas uma atenção muito [266]
secundária. Um dos mais impressionantes fatos do dado bíblico que
pressionaram e movimentaram profundamente a exegese e a
teologia dos últimos 50 anos está na chamada "escatologia
próxima", ou seja, na mensagem de Cristo e dos Apóstolos se tem a
impressão de estar sendo anunciado, como iminente, o fim do
mundo. Até se pode adiantar que a mensagem do fim próximo
tenha sido, aparentemente, o cerne da pregação de Cristo e da
nascente Igreja. A figura de Jesus, sua morte e ressurreição são
colocados em relação direta com esta idéia, de modo tal que se
nos torna estranha e incompreensível. Evidentemente não
podemos deter-nos aqui em minúcias sobre o extenso emaranhado
de problemas que aqui se tocam. Mas, por acaso, com as nossas
últimas considerações não se tornou claro o caminho por onde se
há de procurar uma resposta? Descrevemos Ressurreição e
Ascensão como o definitivo entrelaçamento do ser do homem com
o ser divino que põe ao alcance do homem a possibilidade da
perpétua existência. Tentamos compreender ambas as coisas como
força do amor frente à morte e, assim, como a decisiva "mutação"
do homem e do cosmos, onde o limite do bios é rompido e se cria
um novo espaço vital. Se assim é, temos aí o início da
"escatologia", do fim do mundo. Com o superamento do limite da
morte, abre-se a dimensão do futuro para o gênero humano; aliás,
o seu futuro, de fato, já começou. Assim também se torna claro de
que modo a esperança na imortalidade do indivíduo e a
possibilidade da eternidade do gênero humano se entrecruzam e
como ambas se realizam em Cristo que tanto há de ser
denominado o "centro", como, bem entendido, o "fim" da história.

Resta ainda um ponto a ser examinado em nexo com a Ascensão


do Senhor: a doutrina sobre a Ascensão é decisiva para o além-
túmulo da existência humana, de acordo com o que expusemos;
não o é, porém, menos para a compreensão [267] do seu aquém,
isto é para compreender a questão referente ao modo como se
entrosam o além e o aquém, ou seja, é decisiva para o problema
da possibilidade e do sentido da relação do homem com Deus. Ao
refletir sobre o primeiro artigo do Credo, respondemos
afirmativamente à pergunta de se o infinito é capaz de ouvir o
finito, o eterno de atender ao temporal, lembrando que a
verdadeira grandeza de Deus está precisamente no fato de, para
ele, o mínimo não ser pequeno demais e o máximo não ser
excessivamente grande; procuramos compreender como Deus,
como Logos, não é somente a razão que diz tudo, mas também que
tudo percebe, que não exclui nada por causa de sua
insignificância. À preocupada busca dos nossos tempos
respondemos: Sim, Deus é capaz de ouvir. Mas resta ainda uma
pergunta. Alguém, acompanhando-nos o raciocínio, poderia dizer:
Está bem: Deus pode ouvir; mas sempre continua a pairar no ar
esta outra questão: Deus será capaz de atender? Ou seria a súplica,
o grito da criatura a Deus, afinal, apenas um piedoso truque para
elevar psiquicamente o homem e para o consolar, uma vez que
Deus só raramente estaria em condições de atender a fórmulas
deprecatórias? Tudo isto não serviria para movimentar de qualquer
modo, o homem no rumo da transcendência, muito embora, na
verdade, nada possa acontecer ou modificar-se com isto; pois o
que é eterno, eterno fica, e o temporal continua sendo temporal –
parece não existir passagem de uma esfera à outra? Também isto
está excluído de uma análise detalhada que exigiria um estudo
crítico muito exato dos conceitos de tempo e eternidade. Seria
preciso pesquisar o seu fundamento no pensamento antigo e a
síntese deste pensamento com a fé bíblica, encontrando-se a
imperfeição de ambas na raiz da nossa pergunta de hoje. Impor-se-
ia de novo uma reflexão sobre a relação do pensamento científico-
técnico e a fé tarefas que fogem aos limites desta obra. Portanto,
em vez de [268] respostas individuais e elaboradas, resta mostrar a
direção em que a resposta há de ser procurada.

A tendência mais comum da mentalidade de hoje é imaginar a


eternidade como algo, por assim dizer, encerrado em sua
imutabilidade; Deus é o prisioneiro do seu plano eterno, elaborado
"antes de todos os tempos". "Ser" e "devir" não se misturam.
Eternidade é concebida negativamente como ausência de tempo,
como o elemento oposto ao tempo, incapaz de influenciar o
tempo, pois assim deixaria de ser imutável, tornando-se temporal.
No fundo, tais concepções se mantém dentro de um ponto de vista
pré-cristão, em que não se tomou conhecimento da idéia de um
Deus a se revelar pela fé na Criação e na Encarnação. Supõem – o
que aqui não podemos desenvolver – o dualismo antigo, e são
expressão de um pensamento ingênuo que considera Deus à
maneira humana. Quem, pois, julgar Deus capaz de modificar o
que planejou desde a eternidade, sem o perceber mete a
eternidade no esquema do tempo, ao distinguir o "antes" e o
"depois".

Ora, eternidade não é imemorial, a existir antes do tempo, mas


é algo completamente outro, que se comporta em relação ao
tempo que passa como o seu "hoje", que lhe é realmente
"hodierno"; eternidade não está imprensada entre um antes e um
depois; ela é a dinâmica do presente em todo o tempo. Eternidade
não se encontra isolada ao lado do tempo, mas é a força a
sustentar criadoramente todo o tempo, que o abrange em seu
próprio presente, conferindo-lhe assim a possibilidade de existir.
Sendo a eternidade o hoje, igual em todos os tempos, pode
influenciar qualquer tempo.

A encarnação de Deus em Jesus Cristo, graças à qual o Deus


eterno e o homem temporal se encontram em uma única pessoa,
nada mais representa do que a derradeira expressão concreta do
domínio divino sobre o tempo. Neste ponto, Deus arrebatou o
tempo à existência terrena de Jesus, [269] absorvendo-o em si.
Seu domínio sobre o tempo ergue-se diante de nós, como que,
corporalmente. Cristo, de fato, é a "porta" entre Deus e homem
(Jo 10,9), seu "mediador" (1Tim 2,5), no qual o Eterno dispõe de
tempo. Em Jesus nós, seres temporais, estamos em condição de
falar aos temporais, nossos contemporâneos; nele, que é tempo
conosco, palpamos, simultaneamente, o eterno, porque, conosco,
ele é tempo e, com Deus, eternidade.

Embora em outro contexto, Hans Urs von Balthasar esclareceu


profundamente a importância espiritual dessas verdades. Lembra,
primeiro, que em sua vida terrestre Jesus não pairava acima do
espaço e do tempo, mas vivia do meio do seu tempo e em seu
tempo; a humanidade de Jesus que o plantou no meio daquele
tempo vem-nos ao encontro em cada página e em cada linha do
Evangelho; percebemo-la hoje mais viva e claramente do que em
outras épocas a notaram. Mas esta sua "permanência no tempo"
não é mera moldura histórica em que se possa encontrar, oculto
alhures, o eterno do seu ser propriamente dito; trata-se, antes, de
uma realidade antropológica a determinar profundamente a
mesma forma da existência humana. Jesus dispõe de tempo e não
antecipa a vontade do Pai em pecaminosa impaciência. "Por isso o
Filho, que no mundo dispõe de tempo para o Pai, é o lugar original
onde Deus dispõe de tempo para o mundo. Outro tempo que não
no Filho, Deus não tem para o mundo, mas no Filho Deus tem todo
o tempo" 57 . Deus não é o prisioneiro da sua eternidade: em Jesus
ele dispõe de tempo para nós, e, deste modo, Jesus realmente é o
"trono da graça" ao qual podemos aproximar-nos a qualquer tempo,
cheios de confiança (Hbr 4,16).

6."Donde há de vir para julgar os vivos e os mortos".

[270] Rudolf Bultmann considera como liquidada para o homem


moderno a idéia da volta do Senhor, na qualidade juiz no fim do
mundo, equiparando-a com a descida aos infernos e a subida ao
céu, como coisas míticas: qualquer pessoa está convencida de que
o mundo avança do mesmo modo como progrediu durante quase
dois mil anos após a pregação escatológica do Novo Testamento.
Uma tal purificação do pensamento parece impor-se aqui, tanto
mais, porque a mensagem bíblica neste ponto contém
indiscutivelmente fortes elementos cosmológicos, isto é, avança no
terreno que consideramos campo das ciências naturais.
Certamente, na linguagem sobre o fim do mundo, o termo "mundo"
não denota primeiramente a estrutura física do cosmos, mas o
mundo dos homens, a história humana; portanto, seu sentido
imediato é que esta espécie de mundo – o mundo humano – há de
chegar ao fim determinado e concretizado por Deus. Contudo, não
se pode negar que a Bíblia reveste esse acontecimento
essencialmente antropológico de imagens cosmológicas (e em
parte também políticas). Será difícil decidir até que ponto se trata
de imagens e até onde elas se referem ao próprio objeto.

Seguramente é viável dizer algo a respeito, partindo do


contexto mais vasto da cosmovisão da Bíblia. Ora, para a Bíblia
cosmos e homem não representam duas grandezas completamente
separáveis, como se o cosmos formasse, por exemplo, o cenário
ocasional da existência humana, a qual poderia ser separada dele,
desenvolvendo-se independente do mundo. Mundo e homem
pertencem-se necessariamente, de modo a não se poder imaginar
o homem sem o mundo e o mundo sem o homem. O primeiro é-nos
evidente, sem mais; o segundo, após as lições de Teilhard de
Chardin, também não deveria ser completamente incompreensível.
Nessa perspectiva surgiria a tentação de afirmar que a mensagem
bíblica do [271] fim do mundo e do retorno do Senhor não é pura
antropologia revestida de imagens cósmicas, nem que ela
apresenta um aspecto cosmológico ao lado de outro antropológico,
mas que, dentro da lógica interna da visão bíblica total, ela
representa a coincidência de antropologia e cosmologia na
cristologia definitiva e, exatamente ali, o fim do "mundo" que
sempre continua polarizado para esta união como meta sua, devido
à sua binário-una construção de cosmos e homem. Cosmos e
homem que sempre pertenceram um ao outro, muito embora
tantas vezes se encontrem em oposição, tornar-se-ão um, por sua
complexão no maior, no amor a envolver e ultrapassar o bios,
como dissemos antes: com isto volta a ser claro o quanto se
identificam o escatológico final e o avanço realizado na
ressurreição de Jesus; torna-se evidente que o Novo Testamento
tem razão ao apontar a ressurreição como o fato escatológico por
excelência.

Para irmos adiante cumpre desenvolver um pouco mais


claramente os nossos pensamentos. Acabamos de dizer que o
cosmos não é apenas um espaço externo da história humana, nem
uma imagem estática – uma espécie de vaso-continente onde se
encontram diversos seres que, por si, poderiam perfeitamente
estar em outro vaso qualquer. Positivamente, isto significa que o
cosmos é movimento; que não apenas existe uma história nele;
mas que ele mesmo é história. Não forma apenas o cenário da
história humana, mas ele mesmo já é "história", antes dela e com
ela. Em última análise, existe uma única história completa do
mundo, a qual mantém um rumo geral e vai "adiante" com seus
altos e baixos, nos progressos e regressos que a assinalem.
Certamente, para quem apenas considerar uma parcela, mesmo
que seja realmente grande, a história parecerá estática, sempre
na mesma rotina. Não se descobre um rumo, mas o perene girar
em torno do mesmo centro. Somente consegue percebê-lo quem
começar a observar o conjunto. Ora, no seio do movimento
cósmico, [272] o espírito, como antes o constatamos, não produto
secundário dos azares da evolução, produto sem importância para
o todo; antes, averiguamos a matéria e o seu desenvolvimento
formam a pré-história do espírito.

A fé no retorno de Jesus Cristo e na consumação do mundo nele


poderia esclarecer-se como convicção de que a nossa história
avança rumo a um ponto ômega, no qual se revelará com claridade
definitiva e meridiana que aquele elemento estável, a dar-nos a
impressão de ser como que o solo da realidade a nos suster, não é
a simples matéria inconsciente, mas que o fundamento
propriamente dito e sólido é a razão: ela conserva o ser coeso,
confere-lhe a realidade; ela é a realidade – não é de baixo, mas do
alto que o ser recebe a sua existência. A existência deste processo
da complexão do ser material mediante o espírito e do espírito
mediante a síntese em nova forma de união pode ser constatada,
em certo sentido, mesmo hoje em dia, na reformulação, quase
recriadora, do mundo, tal como se vem realizando graças à
técnica. Na manipulação do real já começam a esvair-se os limites
entre natureza e técnica, que já não é mais possível conservar a
ambos distintamente separados entre si, sem confusão.
Certamente, a analogia é duvidosa em mais de um ponto de vista.
Não obstante, tais processos preconizam uma figura do mundo, na
qual espírito e natureza não se acham simplesmente um ao lado do
outro, mas o espírito, em nova complexão, absorve em si o
puramente natural, criando assim um mundo novo, conotando ao
mesmo tempo o desaparecimento do antigo. Ora, o fim do mundo
em que o cristão acredita é completamente diferente da vitória
total da técnica. Mas, a fusão de natureza e espírito, concretizada
na técnica, possibilita-nos imaginar de modo novo em que direção
a realidade da fé no retorno de Cristo há de ser pensada: como fé
na definitiva união do real, a partir do espírito.

[273] Agora podemos prosseguir mais um pouco. Dissemos que


natureza e espírito formam uma única história a avançar
continuamente de modo tal que o espírito sempre se revele mais
do que aquilo que envolve tudo, desembocando finalmente
antropologia e cosmologia em uma única torrente. Mas, afirmar a
crescente complexão do mundo pelo espírito conota
necessariamente uma união sua em algum centro pessoal,
porquanto o espírito não é algo indeterminado, mas, onde ele
existe em sua peculiaridade, existe como indivíduo, como pessoa.
Existe algo assim como "espírito objetivo", espírito investido em
máquinas, em obras multiformes; mas em tudo isto o espírito não
se encontra em sua forma original: "espírito objetivo" sempre se
deriva de espírito subjetivo, apontando para uma pessoa, que é a
única e exclusiva modalidade existencial do espírito. Por
conseguinte, a afirmação de que o mundo avança rumo a uma
complexão pelo espírito, inclui a afirmação de que o cosmos se
dirige na direção de uma união pessoal.

Ora, isto torna a comprovar a infinita primazia do indivíduo


sobre a coletividade. Este princípio anteriormente analisado torna
a revelar-se agora em toda a sua amplitude. O mundo movimenta-
se na direção da unidade na pessoa. O conjunto recebe o seu
sentido do individual e não o inverso. Essa evidência justifica
novamente o aparente positivismo da Cristologia, ou seja, a
convicção, tão escandalosa para os homens de todos os tempos,
que considera um único como centro da história e do todo. Este
"positivismo" volta a se mostrar aqui em sua necessidade interna:
se é verdade que no desfecho se encontra o triunfo do espírito,
isto é, da verdade, liberdade e amor, então não é uma força
qualquer que consegue a vitória final; no ponto final há de se
encontrar um rosto. Então o ômega do mundo é um "tu", uma
pessoa, um indivíduo. Então a complexão total, a envolver e unir
tudo de maneira infinita, é, ao mesmo tempo, negação de [274]
qualquer coletivismo, de qualquer fanatismo da idéia pura,
inclusive de uma assim chamada idéia do cristianismo. O homem, a
pessoa, sempre conservou a sua primazia sobre a idéia.
Aqui inclui-se outra e muito importante conseqüência. Se a
vitória da ultracomplexidade final está baseada no espírito e na
liberdade, absolutamente não se trata de um caudal cósmico
neutro, mas de um princípio que inclui responsabilidade. Não
acontece automaticamente, como qualquer processo físico, mas
baseando-se em decisões. Por esta razão, o retorno do Senhor é
não somente salvação, não apenas o ômega a recolocar tudo em
seu lugar, mas também julgamento. Aliás, a esta altura, estamos
em condições até de definir o sentido do discurso sobre juízo final.
Ele nos diz que o estágio final do mundo não é resultado de um
desenvolvimento natural, mas da responsabilidade baseada na
liberdade. Do seio destas conexões também se há de procurar
compreender por que o Novo Testamento, apesar de sua
mensagem da graça, insiste em que no fim os homens serão
julgados "por suas obras", não havendo possibilidade para ninguém
de escapar a esta prestação de contas sobre a própria vida. Existe
uma liberdade que não é eliminada pela graça, mas, muito pelo
contrário, é por ela levada à sua plenitude: o destino definitivo do
homem não lhe será imposto fora de sua decisão vital. O que,
aliás, também é necessário acentuar como limite contra um falso
dogmatismo e uma segurança cristã errada quanto à vida. Só uma
tal averiguação preserva a igualdade dos homens, mantendo a
identidade de sua responsabilidade. Desde a época patrística foi e
continua sendo esta uma das tarefas decisivas da pregação cristã:
trazer à consciência essa identidade da responsabilidade,
contrapondo-a à falsa confiança no "dizer: Senhor, Senhor".

Nesse contexto não seria inútil aduzir as considerações do


grande teólogo judeu Leo Baeck, com as quais o cristão [275] não
concordará, mas cuja seriedade não o deixará indiferente. Baeck
lembra que a razão peculiar da existência de Israel se transformou
em consciência do serviço em prol do futuro da humanidade.
"Exige-se uma vocação especial, não se anuncia, porém, nenhuma
exclusividade da salvação. O judaísmo escapou à tentação de
circunscrever-se à estreiteza religiosa do conceito de uma Igreja,
fonte única da salvação. Onde não é a fé, mas a ação que conduz a
Deus, onde a comunidade oferece aos seus filhos, como sinal
espiritual de pertença, o ideal e a tarefa, ali o fato de estar na
aliança da fé ainda não pode garantir a salvação da alma". Baeck
mostra, a seguir, de que maneira esse universalismo da salvação
baseada na obra, se cristalizou sempre mais no judaísmo, para
finalmente desabrochar totalmente no "clássico": "também os
piedosos que não são israelitas participam da salvação eterna".
Ninguém será capaz de ler sem consternação o que Baeck diz a
seguir, a saber, que bastará comparar esta frase "com a descrição
que Dante apresenta do lugar da condenação, local do destino até
dos melhores de entre os pagãos, com a inflação de seus quadros
de horror, correspondentes à mentalidade eclesiástica dos séculos
antes e depois, para sentir o contraste em toda a sua agudeza" 58 .

Certamente muita coisa desta citação pode ser contestada, por


não exata; contudo vejo nela uma verdade muito séria. A seu
modo, Baeck pode esclarecer em que consiste a irremissibilidade
do artigo sobre o juízo final de todos os homens "de acordo com as
suas obras". Não é tarefa nossa analisar em detalhe como essa
afirmação pode impor-se com todo o seu peso, ao lado da doutrina
da graça. Talvez no fim de contas não se consiga fugir a um
paradoxo, cuja lógica só poderá abrir-se completamente à
experiência de uma vida de fé. Quem se confiar à fé, tornar-se-á
consciente de que existem [276] ambas as coisas: a radicalidade da
graça a libertar o homem impotente e, não menos, a seriedade
perene da responsabilidade que desafia o homem dia e noite. As
duas coisas reunidas significam que o cristão dispõe, por um lado,
da tranqüilidade libertadora e desinibidora daquele que vive da
superabundância da divina justiça e se chama Jesus Cristo. Existe
uma serenidade que conta com a certeza: em última análise nada
posso destruir do que ele construiu. Em si o homem carrega a
terrível certeza de que o seu poder destruidor é infinitamente
maior do que o seu poderio construtivo. Mas sabe igualmente que,
em Cristo, o poder de reconstruir se revelou infinitamente mais
potente. Daí decorre uma profunda liberdade, um saber sobre o
amor não arrependido de Deus, que, atravessando todas as
confusões, continua a nos querer bem. Torna-se possível fazer,
sem medo, a própria obra que perdeu o seu aspecto pavoroso, por
ter perdido o seu poder destruidor: o resultado do mundo não
depende de nós, mas está nas mãos de Deus. Mas, ao mesmo
tempo, o cristão sabe não ter sido colocado dentro de uma coisa
qualquer, sabe não ser a sua atividade um brinquedo que Deus lhe
deixa nas mãos, sem o tomar a sério. Sabe que deve responder;
que, como administrador, deve prestar contas do que lhe foi
confiado. Responsabilidade só existe onde houver um que a exige e
examina. O artigo sobre o Juízo Final mostra-nos ante os olhos de
modo inequívoco este exame final da nossa vida. Nada e ninguém
nos confere credenciais para minimizar a imensa seriedade que
paira sobre um acontecimento assim, que revela a nossa vida como
sendo caso sério, que lhe confere assim a sua dignidade.

"Para julgar os vivos e os mortos", o que, certamente, significa


que ninguém, senão ele tem o direito último de julgar. Com isto
está dito que a injustiça do mundo não retém a última palavra,
também não se afirma que ela será eliminada indiferentemente
por meio de um ato geral de graça; existe, [277] antes, uma
instância última de apelação que defende o direito para poder
realizar o amor. Um amor que destruísse o direito criaria a
injustiça, não passando assim de caricatura de amor. Verdadeiro
amor conota excesso de direito, excesso sobre o justo, nunca
porém destruição da justiça, que há de ser e permanecer a forma
básica do amor.

Naturalmente devemos nos defender também contra outro


extremo. Não se pode impugnar que o artigo sobre o juízo final se
desenvolveu, de tempos em tempos, em uma forma na qual,
praticamente, deveria conduzir à destruição da fé na redenção, e
da promessa da graça. Aduz-se, à guisa de exemplo, a profunda
antítese entre Maran atha e dies irae. O cristianismo primitivo, em
sua invocação deprecatória: "Senhor nosso, vem! Maran atha"
interpretou o retorno de Jesus como um acontecimento cheio de
esperança e de alegria, suspirando por ele como o instante da
grande realização. Para o cristão da Idade Média, ao contrário,
aquele instante surgia como o terrível "dia da ira" (dies irae)
diante do qual o homem gostaria de se desfazer em dor e terror, e
para qual olha com receio e com horror. O retorno do Cristo é
simplesmente julgamento É o dia da grande prestação de contas a
ameaçar a cada um. Em semelhante perspectiva foram esquecidos
elementos decisivos: o Cristianismo ficou reduzido praticamente
ao moralismo, privado de qualquer sombra de esperança e de
alegria, onde, porém, está a sua expressão vital mais autêntica.

Talvez se deva dizer que o primeiro impulso para essa evolução


falha, que percebe apenas o risco da responsabilidade e não a
liberdade do amor, se encontra no nosso símbolo, onde, ao menos
para quem examinar o texto em seu sentido literal, o retorno de
Cristo se apresenta totalmente centrado e reduzido à idéia do
julgamento: "donde há de vir para julgar os vivos e os mortos".
Sem dúvida, nos círculos familiarizados com o símbolo, a herança
cristã primitiva ainda estava bem [278] viva; sentia-se ainda a
palavra sobre o juízo em ligação natural com a mensagem da
graça: o fato de ser Jesus o juiz por si mesmo mergulhava o
julgamento em uma atmosfera de esperança. Permito-me aduzir
um trecho da chamada Segunda Carta de Clemente em que esta
mentalidade se revela de maneira muito clara: "Irmãos, devemos
pensar sobre Jesus Cristo como sobre Deus, como aquele que julga
vivos e mortos. Não devemos pensar em nossa salvação de maneira
mesquinha, pois pensando nela assim, também estaremos
amesquinhando a nossa esperança" 59 .

Torna-se visível agora onde está exatamente o acento do nosso


texto: não é meramente – como seria de esperar – Deus, o infinito,
o desconhecido, o eterno, quem julga. Antes, Deus confiou o
julgamento a um que, como homem, é irmão nosso. Não é um
estranho que nos julgará, mas aquele ao qual conhecemos pela fé.
O juiz virá ao nosso encontro, não como um inteiramente outro,
mas como um dos nossos, que conheceu e sofreu por dentro o "ser-
homem".

E assim, automaticamente, paira sobre o juízo a aurora da


esperança; não é apenas dia de ira, mas dia do retorno de Nosso
Senhor. Acorre a grandiosa visão de Cristo com que principia o
Apocalipse (1,19): o vidente tomba como morto diante do vulto
cheio de medonho poder. Mas o Senhor põe a mão sobre ele e
dirige-lhe a palavra que, outrora, lhe tinha dito nos dias em que
atravessavam juntos o lago de Genezaré em meio à tempestade:
"Não temas, sou eu" (1,17). O Senhor de todo o poder é aquele
Jesus, de quem o vidente se havia tornado outrora companheiro de
viagem pela fé. O artigo sobre o juízo final transfere precisamente
este pensamento para o nosso encontro com o juiz do mundo.
Naquele dia de medo, o cristão constatará, tomado de sagrada
administração, que aquele "ao qual foi dado todo o poder [279] no
céu e na terra" (Mt 28,18) fora seu companheiro de jornada nos
dias do terreno peregrinar, pela fé, e é como se ele, já agora, lhe
pusesse as mãos sobre a cabeça por meio das palavras do símbolo e
dissesse: "Não tenhas receio; sou eu". Talvez não se possa
responder mais belamente ao problema do entrelaçamento de
juízo e graça, do que mediante a idéia oculta por trás do nosso
Credo.
TERCEIRA PARTE

O ESPÍRITO E A IGREJA
CAPÍTULO PRIMEIRO

Unidade Intrínseca dos Últimos Artigos do Símbolo

[283] A afirmação central do símbolo na sua terceira parte


reza, de acordo com o texto grego: "Creio em Espírito Santo".
Portanto falta-lhe o artigo definido, tal como nos acostumamos a
vê-lo em nossas versões. O fato é de suma importância para a
interpretação do seu sentido positivo. Porquanto daí se conclui que
este artigo não foi encarado como expressão da idéia
intratrinitária, mas como expressão soteriológica. Em outras
palavras: a terceira parte do símbolo não aponta em primeiro lugar
para o Espírito Santo, como terceira pessoa na divindade, mas
como dádiva de Deus à história na comunidade dos crentes em
Cristo.

Naturalmente não está excluída aí a idéia trinitária,


relacionada com o Deus uno e trino. Nas considerações
introdutórias tivemos ocasião de ver que o Credo se originou do
tríplice interrogatório batismal sobre a fé no Pai, Filho e Espírito,
que, por sua vez, se baseia na fórmula do batismo, testemunhada
e transmitida em Mateus (28,19). Neste sentido, a forma mais
antiga de nossa fé, com a sua tríplice divisão, apresenta até uma
das mais decisivas raízes da imagem trinitária de Deus. Somente o
alargamento paulatino do questionário batismal, até formar um
texto desenvolvido do símbolo, encobriu um tanto a sua estrutura
trinitária. Então, [284] como já foi visto, foi encaixada a história
inteira de Jesus, desde a conceição até ao retorno, formando a
parte média do Credo. Com isto começou-se a encarar também a
primeira parte mais do ponto de vista histórico, relacionando-a
essencialmente com a história da criação e com a época pré-cristã.
Com isto se tornava inevitável uma compreensão histórica do texto
inteiro; a terceira parte devia ser compreendida qual
prolongamento da história de Cristo na dádiva do Espírito, isto é,
como indicação para o "tempo derradeiro" entre a vinda e o
retorno do Senhor. Com esta evolução, naturalmente, não se
suprimiu sem mais o ponto de vista trinitário, como, pelo
contrário, o interrogatório batismal não pretendia tratar de um
Deus transcendente, ausente da história, mas do Deus voltado para
nós. Neste sentido, é característica dos estádios mais antigos do
pensamento cristão uma interferência de visão histórico-
soteriológica e uma reflexão trinitária, que somente mais tarde foi
esquecida, com prejuízo para a coisa, de modo que se chegou a
uma divisão entre metafísica teológica de um Credo, de um lado, e
teologia da história, de outro: ambas passaram a apresentar-se
como totalmente alheadas uma da outra. Pratica-se ou
especulação ontológica, ou Teologia antifilosófica da história da
salvação, perdendo-se assim, de modo trágico, a unidade primitiva
do pensamento cristão. Em seu ponto de origem este pensamento
não está determinado nem de modo meramente "histórico-
soteriológico", nem puramente "metafísico", mas traz o cunho da
unidade de história e ser. Estamos aí diante de uma grande tarefa
a apresentar-se à pesquisa teológica de hoje, que volta a sofrer o
despedaçamento deste dilema 1 .

Deixemos, contudo, as considerações gerais, para indagar


concretamente o sentido do nosso texto, tal como hoje se nos
apresenta. Como acabamos de ver, ele não trata da vida intra-
trinitária, [285] mas de "Deus manifestado para fora", do Espírito
Santo como força mediante a qual o Senhor permanece presente
no meio da história do mundo, como princípio de uma história nova
e de um novo mundo. Com este rumo da declaração surgiu
automaticamente outra conclusão. Do fato de não se tratar aqui do
Espírito como pessoa intra-trinitária, mas como divino poder na
história inaugurada com a ressurreição de Jesus, resultou que, na
consciência dos orantes, interferiu crença no "Espírito" e crença na
"Igreja". Temos aqui uma aplicação prática da interferência já
constatada de Trindade e história da salvação. De novo há de ser
contabilizado ao azar da evolução posterior o fato de se terem
separado as duas interferências: tanto a doutrina da Igreja como a
do Espírito Santo sofreram com isto. Não se compreendia mais
"Igreja" sob o ponto de enfoque pneumático-carismático, mas
exclusivamente na perspectiva da encarnação, de modo
excessivamente terreno e finalmente sob o enfoque das categorias
de poder do pensamento profano. Deste modo a doutrina sobre o
Espírito Santo ficou deslocalizada; enquanto não levou uma mísera
existência em pura atmosfera piedosa, foi absorvida na
especulação geral sobre a Trindade, perdendo assim qualquer
função prática para a consciência cristã. Aqui o texto do Credo
apresenta uma tarefa muito concreta: a doutrina sobre a Igreja há
de encontrar seu ponto de partida na doutrina sobre o Espírito
Santo e seus sete dons. Mas a doutrina sobre a Igreja há de
convergir para a doutrina da história de Deus com os homens, ou
seja, da função da história de Cristo para a humanidade, como um
todo. Com isto revela-se logo a direção em que a Cristologia se
deverá desdobrar: ela não deve ser praticada como doutrina sobre
o enraizamento de Deus no mundo, a qual encara a Igreja de
maneira excessivamente intramundana, a partir da humanidade de
Jesus. Cristo continua presente pelo Espírito Santo com sua
abertura e vastidão e liberdade, que, não excluindo absolutamente
a forma institucional, contudo limita-lhe, [286] no entanto, as
pretensões, não permitindo, sem mais, que se equipare às
instituições mundanas.

As restantes declarações da terceira parte do símbolo nada


mais representam do que os desdobramentos de sua afirmação
fundamental: "Creio em Espírito Santo". Esse desdobramento
processa-se em dois sentidos. Primeiro, na palavra sobre a
Comunhão dos santos que, não fazendo parte, embora, do antigo
texto do símbolo de Roma, reproduz, contudo, um valor da antiga
Igreja. A seguir vem a palavra sobre o perdão dos pecados. Ambas
as afirmações hão de ser compreendidas como concretização da
palavra sobre o Espírito Santo, como representação da maneira
como o Espírito atua na história. Ambas têm um significado
sacramental, de que hoje mal temos consciência. Porquanto o
artigo sobre a comunhão dos santos aponta primeiro para a
comunidade eucarística que reúne, em uma Igreja única, em torno
do corpo do Senhor, as igrejas dispersas pelo mundo inteiro.
Portanto, a palavra sanctorum não se refere originariamente a
pessoas, mas denota as dádivas sagradas, o sagrado, doado por
Deus à Igreja, como liame propriamente dito da sua unidade. Por
conseguinte, Igreja não se define por seus cargos e por sua
organização, mas a partir do seu serviço divino, da sua liturgia:
como comunidade de mesa em torno do Ressuscitado, que os reúne
e une em todos os lugares. Não se pode negar que muito cedo se
passou a pensar também nas pessoas que estão ou são unidas entre
si e santificadas mediante a dádiva única e santa de Deus. Não
mais se compreendendo Igreja apenas como unidade da mesa
eucarística, começou-se a ver nela também a comunidade dos que,
devido à mesa comum, são um entre si. Em breve surgiu daí uma
dimensão cósmica conotando a idéia de Igreja como comunidade
dos santos a atravessar a fronteira da morte, reunindo entre si a
todos os que receberam o mesmo Espírito e a sua força unificante
e vivificadora.

[287] Em contrapartida, o artigo do perdão dos pecados aponta


para o outro sacramento fundamental da Igreja, o batismo; e
muito depressa desenvolve-se daí a relação com o sacramento da
penitência. Naturalmente, primeiro ergue-se o batismo como o
grande sacramento do perdão, como o movimento da conversão
transformadora. Só aos poucos uma dolorosa experiência haveria
de ensinar que o cristão, também como batizado, necessita do
perdão, de modo que o iterado perdão dos pecados no sacramento
da penitência passou a ocupar, mais e mais, o primeiro plano,
sobretudo desde que o batismo recuou para o início da vida,
cessando de ser expressão de uma conversão ativa. Mesmo assim,
continuou válido que ninguém é cristão por nascimento, mas só por
renascimento: ser-cristão realiza-se mediante a virada da
existência humana, dando-se as costas à auto-satisfação do mero
viver, e "convertendo-se". Neste sentido o batismo, como início de
uma conversão vitalícia, continua como sinal básico da existência
cristã, sinal lembrado pela palavra do "perdão dos pecados". Ora,
não se encarando o "ser-cristão" somente como uma formação
ocasional de grupos, mas como conversão para o "ser-homem"
propriamente dito, esta crença, ultrapassando o limite dos
batizados, denota que o homem não chega a si mesmo, se se
deixar levar simplesmente pela lei da sua gravidade natural. Para
tornar-se homem autêntico, há de opor-se a essa gravidade, há de
voltar-se: também as águas por sua natureza não sobem
automaticamente.

Sintetizando o que se disse, até agora constatamos que em


nosso Credo a Igreja é compreendida, a partir do Espírito Santo,
como a sua oficina no mundo. Em concreto: a Igreja é encarada
sob o enfoque dos seus dois pontos básicos: Batismo (penitência) e
Eucaristia. Esse princípio sacramental cria um conceito totalmente
teocêntrico da Igreja: no primeiro plano, não se encontra o
agrupamento de homens que ela é, mas a dádiva de Deus, que
converte os homens a uma nova existência [288] a qual eles não
são capazes de se darem, existência polarizada para uma
comunidade que o homem só pode receber como dádiva. E no
entanto, justamente esse conceito teocêntrico da Igreja é
completamente humano, completamente real: girando em volta de
conversão e união e entendendo ambas como processo intra-
histórico perene, revela o nexo humano de sacramento e Igreja.
Assim a maneira "real" de considerar (a partir da dádiva de Deus),
automaticamente traz à baila o elemento pessoal: a nova
existência do perdão conduz à coexistência com os que vivem do
perdão; perdão funda comunidade e comunidade com o Senhor na
Eucaristia conduz necessariamente à comunidade dos convertidos,
que comem todos do único e mesmo pão, para tornar-se nele "um
corpo" (1Cor 10,17), ou até "um único homem novo" (Cfr. Ef 2,15).

Igualmente os artigos finais do símbolo, sobre a "ressurreição da


carne" e a "vida eterna" devem ser compreendidos como
desdobramento da fé no Espírito Santo e no seu poder
transformante, cujo efeito derradeiro eles exprimem. Com efeito,
a perspectiva da ressurreição, em que esse conjunto desemboca,
segue-se necessariamente à fé na transformação da história,
inaugurada com a ressurreição de Jesus. Com ela, como vimos, foi
transposta a fronteira do bios, isto é da morte, e iniciada um novo
contexto: o biológico foi absorvido pelo espírito, pelo amor [289]
mais forte do que a morte. Com isto a fronteira da morte foi
fundamentalmente vencida, abrindo-se um futuro definitivo para o
homem. Esta convicção, em que se encontram a fé em Cristo e a
crença no poder do Espírito Santo, é aplicada expressamente ao
nosso futuro, nas palavras com que o Credo se encerra. O olhar
para o Ômega da história universal, no qual tudo encontrará a sua
realização, resulta, com necessidade intrínseca, da fé no Deus que
quis ser pessoalmente, na cruz, o Ômega do mundo, sua última
letra. Exatamente com isto ele fez do ômega o seu ponto central,
de modo que um dia há de revelar-se definitivamente que o amor
é mais forte do que a morte e que, da complexão do bios pelo
amor, surgirá o complexo definitivo, o estado definitivo da pessoa
e da unidade que nasce do amor. Deus tornou-se verme, última
letra no alfabeto da criação; por esta razão tornou-se a última
letra, a sua letra, com o que a história ficou orientada para o
triunfo definitivo do amor: a cruz, de fato, é a salvação do mundo.
CAPÍTULO SEGUNDO

Duas Questões Fundamentais do

Artigo sobre o Espírito Santo e sobre a Igreja

[291] As considerações feitas até aqui tentaram sublinhar a


riqueza e a vastidão dos Últimos artigos do símbolo. Ressoam aí
novamente a imagem cristã do homem, o problema do pecado e da
salvação; sobretudo, porém, neles está ancorada a afirmação da
idéia sacramental que, por sua vez, exprime o cerne do conceito
de Igreja: Igreja e sacramento estão unidos como que por um
cordão umbilical: ficam de pé ou caem juntamente. Igreja sem
sacramentos não passaria de organização vazia; e sacramentos sem
Igreja seriam ritos sem sentido e sem nexo interno. Portanto, a
primeira questão principal apresentada pelo último artigo do Credo
é sobre a Igreja; o outro grande problema indicado ali está contido
no artigo sobre a "ressurreição da carne", doutrina não menos
escandalosa para a nossa mentalidade moderna do que o foi para o
espiritualismo do mundo helênico, muito embora os motivos do
escândalo tenham sido alterados. Vamos tentar uma reflexão um
pouco mais detalhada sobre estas questões, à guisa de epílogo para
o nosso giro através do símbolo.

1. "A Igreja santa, católica”.

Evidentemente não podemos desenvolver aqui uma doutrina


completa sobre a Igreja. Abstraindo das diversas questões [292]
teológicas, técnicas, desejamos tentar concisamente descobrir a
dificuldade exata que nos barra o caminho ao pronunciarmos a
fórmula da "Igreja santa, católica", e esforçar-nos por identificar a
resposta já incluída no mesmo texto do Credo. Sem perder de vista
o que se disse antes a respeito da localização espiritual e do nexo
intrínseco dessas palavras relacionadas com a crença na poderosa
atividade do Espírito Santo na história e, por outro lado, expressas
nas palavras do perdão dos pecados e da comunhão dos santos, em
que se aponta para o batismo, a penitência e a eucaristia como
pontos arquitetônicos da Igreja, como seu exato conteúdo e sua
certa maneira de existir.

Se se conserva diante dos olhos este duplo nexo, quiçá já se


tenha eliminado muito do que nos perturba na crença na Igreja.
Apesar disto externemos o que hoje nos preocupa neste ponto. Se
formos sinceros, seremos tentados a dizer que a Igreja não é nem
santa, nem católica: o próprio Concílio Vaticano II venceu a
relutância, falando não apenas da Igreja santa, mas também da
Igreja pecadora; e se algo existe a lhe censurar, será, no máximo,
o fato de ter-se conservado hesitante demais em suas declarações,
tão forte é a impressão da pecaminosidade da Igreja na
consciência de todos. Naturalmente pode haver aí alguma
influência teológica luterana sobre o pecado e, com ela, a agir,
uma hipótese gerada de influxo de decisões dogmáticas. Mas o que
torna essa "dogmática" tão penetrante é sua concordância com a
nossa experiência. Os séculos da história da Igreja estão tão
repletos de humano fracasso, que podemos compreender a horrível
visão de Dante, ao descrever a prostituta babilônica sentada na
carruagem da Igreja, parecendo-nos também plausíveis as terríveis
palavras do bispo de Paris, Guillaume d'Auvergne (século XIII) o
qual acreditava que qualquer pessoa que visse o embrutecimento
da [293] Igreja, deveria ficar tomado de horror: "Não é mais
esposa, mas um monstro de medonho aspecto e selvageria... " 2 .

Como a santidade, também a catolicidade da Igreja parece


problemática. A túnica inconsútil do Senhor está dividida entre
partidos litigantes, a Igreja única fracionada em muitas igrejas,
das quais cada uma tem a pretensão, mais ou menos extremada,
de ser a única a ter razão. Por isto a Igreja para muitos se tornou
um real impedimento para a fé. Eles são capazes apenas de ver as
aspirações humanas pelo poder, o espetáculo mesquinho daqueles
membros seus que, afirmando serem os administradores do
cristianismo oficial, parecem constituir o empecilho máximo ao
verdadeiro espírito cristão.

Não existe teoria capaz de rebater convincentemente tais


objeções, como, naturalmente, elas, por sua vez, não nascem
apenas da razão, mas de corações amargurados, desiludidos quiçá
em sua grande expectativa, que, presa de um amor magoado e
ferido, apenas sentem a destruição de sua esperança. Portanto,
que resposta podemos dar-lhes? Em última análise, só podemos
fazer uma profissão de fé, explicando por que, apesar de tudo,
estamos em condições de amar esta Igreja, pela fé; por que
ousamos, ainda e sempre, reconhecer, através do rosto
desfigurado, a face da santa Igreja. Apesar disto, comecemos pelos
elementos objetivos. A palavra "santo", como já vimos, não denota
em primeiro lugar a santidade de pessoas humanas, mas aponta
para as dádivas divinas que distribuem santidade em meio à
miséria humana. A Igreja é chamada de "santa", não porque todos
os seus membros sejam santos, isentos de pecado – sonho a se
renovar em todos os séculos mas sem lugar no mundo vigilante do
nosso texto, sonho que exprime [294] tão comovedoramente um
anseio dos homens que jamais o podem abandonar, até que um
novo céu e uma terra nova lhes dêem o que este tempo presente
jamais lhes poderá conceder. Já neste ponto há de reconhecer-se
que os críticos mais implacáveis da Igreja em nosso tempo,
secretamente, também vivem deste sonho e, como o encaram
desiludidos, batem, a porta da casa e denunciam-no como falso.
Mas, tornemos ao assunto: a santidade da Igreja consiste naquela
força de santificação que Deus exerce nela, apesar da
pecaminosidade humana. Deparamos aqui com a precípua
característica da "nova aliança": em Cristo o próprio Deus amarrou-
se aos homens, deixou-se atar por eles. A nova aliança não se
baseia mais – no cumprimento de mútuas estipulações, mas é
presente de Deus, como graça que subsiste também contra a
infidelidade do homem. É expressão do amor de Deus que não se
deixa vencer pela incapacidade do homem, mas, apesar de tudo,
sempre volta a mostrar-se-lhe bondoso, a recebê-lo exatamente
como pecador, a voltar-se para o homem, a santificá-lo, a amá-lo.

Devido à doação jamais revogada pelo Senhor, a Igreja é


continuamente santificada por ele, sendo o lugar onde a santidade
do Senhor está presente entre os homens. Mas trata-se de
autêntica santidade do Senhor a tornar-se presente, escolhendo
sem cessar, em amor paradoxal, as mãos poluídas dos homens para
vasos de sua presença. É santidade que, como santidade de Cristo,
se irradia sem cessar no meio do pecado da Igreja. Assim a figura
paradoxal da Igreja, onde o divino tantas vezes se apresenta em
mãos indignas, onde o divino sempre está presente apenas sob a
forma do "apesar de tudo", essa figura é para os crentes um sinal
do "mesmo assim" de um amor de Deus ainda maior. O excitante
entrelaçamento de fidelidade de Deus e de humana infidelidade,
que caracteriza a estrutura da Igreja, é como que a dramática
figura da graça, mediante a qual a realidade desta graça,
enquanto agraciamento dos indignos em si, se torna presente de
modo claro na história. [295] Partindo daí, podemos dizer que a
Igreja é a figura da graça neste mundo, precisamente em sua
estrutura paradoxal de santidade e pecaminosidade.

Avancemos mais um passo. Santidade é imaginada, no sonho


humano por um mundo melhor, como isenção do pecado e do mal,
e com eles não misturada; conserva-se assim, de algum modo, uma
idéia de preto-e-branco, que elimina e condena implacavelmente a
respectiva forma negativa (que naturalmente admite muitas
maneiras de ser concebida). Na hodierna crítica da sociedade e nas
ações através das quais ela é exercida, torna-se clara demais esta
tendência que sempre acompanha os ideais humanos. Por isso, o
escandaloso na santidade de Cristo já era, para os seus coevos, o
fato de faltar-lhe totalmente esse traço julgador – não caiu fogo
sobre os indignos nem se permitiu aos zelosos arrancar o joio que
eles viam a vicejar. Ao contrário, sua santidade revelava-se
precisamente como procura dos pecadores, que Jesus atraía para
perto de si; como um misturar-se até o extremo de ele mesmo se
ter tornado "pecado", carregando a maldição da lei em seu suplício
– total comunidade de destino com o perdido (cfr. 2Cor 5,21; Gál
3,13). Jesus atraiu a si o pecado e tornou-o parte dele, revelando
deste modo o que é autêntica "santidade": não isolamento, não
julgamento, mas amor salvador. Não é a Igreja a mera continuação
desse divino compromisso com a miséria humana; não é a Igreja a
mera continuação da comunidade da mesa de Jesus com os
pecadores, do seu misturar-se com a miséria do pecado, de modo a
dar a impressão de naufragar nele? Na pecadora santidade da
Igreja, em contraste com a humana expectativa dos puros, não se
revela a verdadeira santidade de Deus que é amor, amor que não
se conserva em nobre distância diante dos puros intocáveis, mas se
mistura com a sujeira do mundo para vencê-la? Nesta perspectiva a
santidade da Igreja poderia ser outra coisa que o mútuo suportar-
se que, naturalmente, flui para todos do fato de Cristo a todos
sustentar?

[296] Confesso: para mim a santidade pecadora da Igreja tem


algo de infinitamente confortador. Pois não se deveria desanimar
diante de uma santidade imaculada, capaz de exercer influência
sobre nós exclusivamente julgando e queimando? E quem poderia
afirmar de si que não tem necessidade de ser suportado e até
sustentado por outros? E como poderia dispensar o suportar, quem
vive de ser suportado por parte dos outros? Não estaria aí a única
dádiva que ele está em condições de oferecer em troca, o único
consolo que lhe resta, por suportar assim como é suportado? A
santidade na Igreja começa com o suportar-se e conduz ao portar,
ao carregar; ora, onde não há mais o suportar, cessa o portar, e à
existência sem apoio só lhe resta cair no vácuo. Pode-se conceder
calmamente que em tais palavras se exprime uma existência
precária faz parte do ser-cristão a impossibilidade da autarquia e a
própria fraqueza: existe sempre um secreto orgulho a atuar no
fundo da crítica contra a Igreja, quando ela assume aquele
amargor de fel que hoje começa a tomar feição de gíria.
Lamentavelmente, não poucas vezes, a esse amargor associa-se um
vazio espiritual, em que não se enxerga mais a Igreja em sua forma
exata, mas se a considera apenas como uma estrutura política
utilitária, cuja organização se sente como mísera ou brutal, como
se o específico da Igreja não se localizasse para além da
instituição, no conforto da palavra e dos sacramentos que a Igreja
prodigaliza em bons e maus dias. Os crentes autênticos não dão
excessiva importância à luta pela reorganização de formas
eclesiásticas. Vivem do que a Igreja sempre é. E querendo saber o
que é a Igreja, basta dirigir-se a eles. Porquanto a Igreja
geralmente está não onde se organiza, reforma, rege, mas nos que
crêem singelamente, recebendo dela a dádiva da fé, que se lhes
torna fonte de vida. Só quem experimentou de que modo, por cima
das vicissitudes dos seus ministros e das suas formas, a Igreja
sustenta os homens, lhes dá pátria e esperança, uma pátria que é
esperança: caminho para [297] a vida eterna – só quem o
experimentou, sabe o que é Igreja em todos os tempos.

Isto não significa que se deva deixar tudo correr como sempre
foi, aceitando-o como inevitável. O suportar pode ser um processo
altamente ativo, uma luta para tornar a Igreja sempre mais
suportadora e portadora. A Igreja não vive de outro modo senão
em nós, vive da luta dos pecadores pela santidade, como,
logicamente, esta luta vive da dádiva divina sem a qual seria
irrealizável. Mas esta luta frutificará e edificará somente quando
animada pelo espírito do suportar, pelo verdadeiro amor.
Simultaneamente tocamos aqui no critério a ser aplicado sempre a
qualquer luta crítica por uma santidade melhor, critério que não só
não se opõe ao suportar, mas que é por ele exigido. Esse critério é
a edificação. Um amargor que só destrói, já se julga a si mesmo.
Uma porta fechada, sem dúvida, pode servir de lembrete a sacudir
os que ficaram do lado de dentro. Mas a ilusão de que na solidão se
possa edificar mais do que no convívio não passa de ilusão,
exatamente como a utopia de uma Igreja dos "santos" em invés de
uma "santa Igreja", que é santa porque o Senhor oferece nela a
dádiva da santidade sem merecimento 3 .

Com isto chegamos a outra palavra com que o Credo denomina


a Igreja: ela é "católica". São múltiplas as nuanças de sentido que
esta palavra traz, desde a origem. Apesar disto, pode-se constatar
um pensamento principal como decisivo desde o início: a palavra
aponta para a unidade da Igreja em dois sentidos: primeiro, para a
unidade local – somente é "Igreja católica" a comunidade unida
com o bispo, e não os agrupamentos que – qualquer que seja a
razão – se tenham dela separado. Em segundo lugar, conota-se com
ela a unidade das numerosas igrejas locais, ligadas entre si, que
não podem fechar-se [298] em si mesmas, somente podendo
continuar como Igreja se permanecerem inter-abertas, dando
testemunho comum da palavra e da comunhão da mesa
eucarística, à disposição de todos os que integram uma Igreja. As
antigas explicações do Credo confrontam a Igreja "católica" com
aquelas igrejas que existem "só em suas províncias", contradizendo
assim à verdadeira natureza da Igreja 4 .

Portanto, na palavra "católica" expressa-se a estrutura


episcopal da Igreja e a necessidade da união de todos os bispos
entre si; o símbolo não contém nenhuma alusão à cristalização
dessa unidade na sede episcopal de Roma. Sem dúvida, versaria
em erro quem concluísse daí que um tal ponto de orientação ou
convergência da unidade não passa de evolução secundária. Em
Roma, onde surgiu o nosso símbolo, muito depressa essa idéia
passou a ser considerada como evidente. Contudo, é certo que
essa afirmação não se deve contar entre os elementos primários do
conceito de Igreja e muito menos ainda encarada como seu ponto
de construção propriamente dito. Surgem antes como elementos
básicos da Igreja: perdão, conversão, penitência, comunidade
eucarística e, a partir dela, pluralidade e unidade: pluralidade das
igrejas locais que, no entanto, só se conservam igrejas pelo
entrosamento no organismo da Igreja única. – Como conteúdo da
unidade devem ser considerados, antes de tudo, palavra e
sacramento – a Igreja é una pela palavra una e pelo único pão. A
estrutura episcopal transparece como instrumento desta unidade.
Ela não existe para si, mas pertence à ordem dos meios; sua
posição pode ser descrita pela partícula "para": ela serve à
concretização da unidade das igrejas locais em si e entre si. Um
próximo estádio na ordem dos meios descreveria serviço do bispo
de Roma.

[299] Uma coisa é clara: a Igreja não deve ser pensada a partir
de sua organização, mas a organização a partir da Igreja. Ao
mesmo tempo, porém, é claro que, para a Igreja visível, a unidade
visível é algo mais do que "organização". A unidade concreta da fé
comum a testemunhar-se na palavra e na mesa comum de Jesus
Cristo pertence essencialmente ao sinal a ser erguido pela Igreja
no meio do mundo. Só como "católica", isto é, visivelmente una,
apesar da multiplicidade, a Igreja corresponde ao postulado do
Credo 5 . Cumpre-lhe ser sinal e instrumento de unidade em meio
ao mundo dilacerado, superando e unindo nações, raças e classes.
Por mais que ela sempre tenha fracassado, saibamos: já na
antiguidade foi-lhe infinitamente pesado ser ao mesmo tempo
Igreja dos bárbaros e dos romanos; na época moderna ela não
conseguiu evitar a luta entre nações cristãs e hoje continua não
logrando unir ricos e pobres em modo tal que o excesso de uns se
torne a saciação dos outros – continua irrealizado o sinal da
comunidade de mesa. Apesar disto, não se podem negar todos os
imperativos que a pretensão de catolicidade sem cessar fez e faz
soar aos ouvidos dos homens; sobretudo, porém, em vez de ajustar
contas com o passado, cumpriria colocar-nos à disposição do
presente, tentando não só professar catolicidade no Credo, mas
realizá-la pela vida em nosso mundo conturbado.

2. "Ressurreição da carne"

a) Conteúdo da esperança neo-testamentária da ressurreição 6 .


O artigo da ressurreição da carne coloca-nos em um [300] estranho
dilema. Redescobrimos a indivisibilidade do homem; vivemos com
intensidade nova a nossa corporeidade, experimentando-a como
maneira inevitável de realizar o ser único do homem. A partir
deste ponto estamos em condições de compreender de modo novo
a mensagem bíblica que não confere imortalidade à alma
separada, mas ao homem inteiro. Deste sentimento surgiu, em
nosso século, sobretudo na teologia evangélica, uma forte oposição
à doutrina grega da imortalidade da alma que, injustamente,
passou a ser considerada como pensamento cristão. Na verdade,
ela exprimiria uma dualismo nada cristão; a fé cristã saberia a
respeito de uma ressurreição dos mortos pelo poder de Deus,
exclusivamente. Mas, já surgem as objeções: a doutrina grega
sobre a imortalidade pode ser problemática, mas não será ainda
menos realizável ainda para nós a afirmação bíblica? Unidade do
homem, muito bem; mas quem seria capaz de imaginar-se uma
ressurreição do corpo, dentro da nossa hodierna cosmovisão? Uma
ressurreição deste feitio incluiria – como parece – um novo céu e
uma nova terra, exigiria corpos imortais, isentos da necessidade de
alimentar-se, postularia um estado da matéria totalmente
mudado. Ora, tudo isto não seria um absurdo completo, oposto
frontalmente à nossa concepção da matéria e ao seu modo de
proceder, algo incuravelmente mitológico?

Creio que realmente só chegaremos a uma resposta procurando


cuidadosamente as exatas intenções e sentidos da doutrina bíblica
e reexaminando as relações da Bíblia com o mundo grego; pois o
encontro dos dois pensamentos alterou ambas as concepções,
encobrindo os sentidos originais tanto de uma como de outra, em
uma visão nova que é mister remover primeiro para lhe alcançar o
fundo. A esperança na ressurreição dos mortos apresenta a forma
básica da esperança na imortalidade; daí surge no Novo
Testamento, não propriamente como idéia complementar de uma
imortalidade da alma, antecedente e dela independente, mas
como a doutrina essencial sobre o [301] destino do homem. Claro
que, no judaísmo tardio, já existia uma doutrina da imortalidade
de colorido helenístico; e aí está uma das razões para explicar por
que desde muito cedo não mais se compreendeu a pretensão total
do pensamento da ressurreição, no mundo grego-romano. Pelo
contrário, a concepção grega da imortalidade da alma e a
mensagem bíblica da ressurreição dos mortos foram consideradas
como meia resposta (semi-resposta) à questão sobre o destino
eterno do homem, somando-se ambas como mútuo aditivo. Ao que
o pensamento grego já sabia sobre a imortalidade da alma, veio a
Bíblia acrescentar a revelação de que no fim dos tempos também
os corpos seriam ressuscitados para compartilhar para sempre o
destino da alma – condenação ou bem-aventurança.

Em contrapartida, cumpre dizer que originariamente não se


tratava propriamente de duas concepções complementares;
estamos antes frente a dois modos de ver totalmente diversos, que
não podem ser adicionados, sem mais nem menos: cada um deles
apresenta suas próprias concepções do homem, de Deus e do
futuro; por isto, em si, só podemos compreender os dois pontos de
vista como tentativas em busca de uma resposta total ao problema
do destino humano. A concepção grega tem como base a doutrina
da coexistência de duas substâncias no homem, estranhas entre si,
das quais uma (o corpo) se desfaz, enquanto a outra (a alma) é
imortal por si e, por isto, continua existindo, independente de
qualquer outro ser. Com a separação do corpo, elemento estranho
à sua natureza, a alma alcançaria toda a sua individualidade. Pelo
contrário, o pensamento bíblico supõe a indivisa unidade do
homem; por exemplo, a Escritura desconhece qualquer palavra que
designe exclusivamente o corpo (separado e distinto da alma) e,
vice-versa, o vocábulo "alma" denota, às mais das vezes, o homem
inteiro, existente corporalmente; os poucos tópicos onde
transparece outro modo de ver, conservam-se oscilando entre o
pensamento grego e o hebraico, sem contudo abrir mão do modo
antigo [302] de ver. De acordo com isto, a ressurreição dos mortos
(não dos corpos!), de que fala a Escritura, trata da salvação do
homem uno, indiviso, e não apenas do destino de uma metade do
homem (talvez até secundária). Com isto fica esclarecido também
que o cerne da fé na ressurreição não consiste de modo algum na
idéia da devolução dos corpos, à qual, no entanto, a reduzimos em
nossa concepção. Isto vale, mesmo se um tal modo de descrever
seja continuamente utilizado na Bíblia. Mas, neste caso, qual seria
propriamente o conteúdo daquilo que a Bíblia com o código da
ressurreição dos mortos pretende anunciar aos homens como sua
esperança? Creio que se possa destacar este conteúdo peculiar
mais facilmente no cotejo com a concepção dualista da filosofia
grega:

1. A idéia da imortalidade anunciada pela Bíblia com o termo


"ressurreição" significa imortalidade da "pessoa", da figura una,
chamada homem. Enquanto no grego o ente típico "homem" é um
produto perecível que, como tal, não sobrevive, mas entra por dois
caminhos diferentes, de acordo com a estrutura heterogênea de
corpo e alma, na concepção da fé bíblica é exatamente o homem
que, como tal, sobrevive embora metamorfoseado.

2. Trata-se de uma imortalidade "dialógica" (= re-


suscitamento!) isto é: imortalidade não resulta simplesmente da
evidência de não poder morrer aquilo que é indivisível, mas da
ação salvadora do amante que possui poder para tanto: o homem
não pode acabar totalmente, por ser conhecido e amado por Deus.
Todo amor quer eternidade – o amor de Deus não só a deseja,
como a realiza e é. De fato, a idéia bíblica da ressurreição nasceu
da seguinte motivação dialógica: o orante sabe, pela fé, que Deus
restaurará o direito (Jó 19,25 ss; Sl 73,23 ss); a fé está convencida
de que serão participantes do cumprimento da promessa os que
sofreram pela causa de Deus (2Mac 7,9ss). A imortalidade
concebida pela Bíblia não é fruto da própria capacidade do que,
por si, é indestrutível, mas da participação [303] no diálogo com o
Criador; por esta razão ela deve chamar-se ressurreição. O Criador
tem em mira não só a alma, mas o homem a realizar-se em meio
da corporeidade da história, conferindo-lhe imortalidade; por esta
razão, ela deve chamar-se ressurreição dos mortos, ou seja, dos
homens. Cumpre notar que na expressão "ressurreição da carne" a
palavra "carne" significa o mesmo que "mundo humano" (no sentido
dialético da expressão, por exemplo: "toda a carne verá a salvação
de Deus", etc.); também no Credo o vocábulo não denota uma
corporeidade isolada da alma.

3. A ressurreição é esperada no "último dia", no fim da história,


na comunidade de todos os homens: o que demonstra o caráter
comum-humano da imortalidade do homem, relacionado com a
humanidade inteira, da qual, para a qual e com a qual cada
indivíduo viveu, tornando-se, por isto, feliz ou infeliz. Este nexo
flui por si mesmo do caráter humano-total da idéia bíblica da
imortalidade na filosofia grega. O corpo e também a história são
plenamente extrínsecos à alma; esta continua existindo liberada
de corpo e da história, sem necessitar de outro ser. Pelo contrário
a co-humanidade é constitutiva para o homem imaginado como
unidade; esta dimensão não pode ser excluída, no caso em que o
homem deva sobreviver. Assim, sob o ponto de vista bíblico,
parece resolvida a questão muito debatida, sobre a possibilidade
de uma comunidade dos homens entre si, após a morte; ela só
pode surgir com a predominância do elemento grego no início: ali
onde se acredita na "comunhão dos santos", está superada a idéia
da alma separada (anima separata dos escolásticos).

Todos estes pensamentos só puderam desenvolver-se


plenamente na concretização neo-testamentária da esperança
bíblica – o Antigo Testamento afinal deixa em suspenso a pergunta
sobre o futuro do homem. Só em Cristo, homem que "é um com o
Pai", homem pelo qual o ser humano entra na eternidade de Deus,
revela-se definitivamente o futuro do homem. [304] Somente nele,
o "segundo Adão", encontra cabal resposta a interrogação que o
próprio homem é. Cristo é o homem completo; neste sentido está
presente nele a pergunta que somos nós, homens. Mas ele é, ao
mesmo tempo, fala de Deus a nós, "palavra de Deus". O diálogo
entre Deus e homem, com seus altos e baixos desde o raiar da
história, entrou em nova fase em Cristo: nele a palavra de Deus se
tornou "carne", entrando realmente em nossa existência. Ora, se o
diálogo de Deus com o homem denota vida, se é verdade que o
parceiro dialogante de Deus tem vida justamente por ser
conversado por quem vive eternamente: significa que Cristo, como
fala de Deus a nós, é "a ressurreição e a vida" (Jo 11,25). Significa,
ainda, que a entrada em Cristo, isto é, a fé, se torna – em seu
sentido qualificado – uma entrada no ser conhecido e no ser amado
por Deus, que é imortalidade: "Quem crê no Filho, tem vida
eterna" (Jo 3,15s; 3,36; 5,24). Somente nesta perspectiva pode-se
compreender a mentalidade do quarto Evangelho que,
apresentando a história de Lázaro, quer esclarecer o leitor sobre a
ressurreição, que não é apenas um acontecimento distante no fim
dos dias, mas acontece agora pela fé. Quem crê, está dialogando
com Deus que é vida e sobrevive à morte. Com isto coincidem
também a linha "dialógica" relacionada diretamente com Deus e a
linha co-humana do conceito bíblico de imortalidade. Em Cristo
homem com efeito, encontramos Deus; mas encontramos não
menos, nele, a comunidade dos outros, cujo caminho a Deus passa
através dele e por isto passa de uns a outros. A orientação para
Deus é, simultaneamente, orientação para a comunidade dos
homens e somente a aceitação desta comunidade denota
aproximação a Deus, que não existe fora de Cristo, nem ao lado da
relação da história humana inteira e da sua humana tarefa.

Agora cai um raio de luz sobre a questão muito debatida no


tempo patrístico e, novamente, desde Lutero: o problema do
"estádio intermediário" entre morte e ressurreição: a existência
[305] com Cristo, iniciada na fé, é vida de ressurreição iniciada e,
por isto, sobrevivência à morte (Flp 1,23; 2Cor 5,8; 1Tess 5,10). O
diálogo da fé já é vida agora e não pode ser destruído pela morte.
Portanto, na perspectiva do Novo Testamento, é insustentável a
idéia do sono da morte, objeto de repetidos estudos de teólogos
luteranos e trazida à baila ultimamente pelo Catecismo Holandês.
Nem mesmo ela se justifica pela freqüente ocorrência do termo
"dormir" no Novo Testamento. A tendência espiritual do Novo
Testamento opõe-se fundamentalmente e em todos os seus livros a
semelhante interpretação que, aliás, também dificilmente
encontraria cobertura no pensamento judaico sobre a vida após a
morte.

b) Imortalidade essencial ao homem. As considerações feitas


até agora deveriam ter esclarecido algum tanto o assunto de que
em última análise se trata, na mensagem bíblica sobre a
ressurreição: seu conteúdo essencial não é a idéia de uma
devolução do corpo às almas após um prolongado intervalo; o seu
sentido é declarar aos homens que eles, eles mesmos, sobrevivem;
não por própria força, mas porque são conhecidos e amados por
Deus de maneira tal que não podem mais desaparecer. Em
contraposição ao conceito dualista da imortalidade expresso no
esquema grego de corpo-alma, a fórmula bíblica da imortalidade
pela ressurreição tende a transmitir um conceito humano-total e
dialógico da imortalidade: o essencial do homem, a pessoa,
permanece; o que amadureceu nessa existência terrena, de
espiritualidade corpórea e de corporeidade espiritualizada,
continua existindo de outro modo. Continua porque vive na
lembrança de Deus. O elemento co-humano faz parte desse futuro,
por ser o próprio homem quem há de viver, não uma alma isolada;
por isto o futuro de cada um só será completo quando se tiver
consumado o futuro da humanidade.

Mas, agora surgem diversas perguntas. A primeira é: Deste


modo, imortalidade não resultaria em pura graça, quando, na
verdade, é devida à natureza do homem, como tal? Ou [306] em
outras palavras: Não se aportaria assim a uma imortalidade
exclusiva dos bons, ou seja, a uma divisão inaceitável do destino
humano? Não estaria sendo trocada, falando teologicamente, a
imortalidade natural do homem com o dom sobrenatural do eterno
amor que o torna feliz? Precisamente para salvaguardar o
humanismo da fé não se deveria conservar a imortalidade natural,
porque uma sobrevivência concebida sob o enfoque puramente
cristológico redundaria necessariamente em miraculoso e
mitológico? A esta última questão cumpre responder
afirmativamente. Isto, no entanto, não contradiz ao nosso ponto
de vista. Também na nossa perspectiva há de se afirmar
decididamente: A imortalidade que acabamos de denominar de
"ressurreição", graças ao seu caráter dialógico, cabe ao homem,
como homem, a cada homem, não sendo nenhum elemento
"sobrenatural" acrescentado secundariamente. Contudo outra
pergunta impõe-se: O que é afinal que faz do homem um homem?
Em que consiste o elemento definitivamente constitutivo do
homem? Eis nossa resposta: Visto de cima, o distintivo do homem é
receber a palavra pronunciada por Deus, isto é, ser parceiro do
diálogo com Deus, ser o ente chamado por Deus. Visto de baixo,
quer dizer que o homem é o ser capaz de pensar Deus, aberto para
a transcendência. Não se trata de saber se ele realmente pensa
Deus, se está de fato aberto para ele, mas trata-se de averiguar
que o homem é realmente aquele ente capacitado, por si e em si,
para tal, mesmo se não o consiga realizar, quaisquer que sejam as
razões do seu fracasso.

Mas, poder-se-ia dizer: não seria muito mais simples ver a


característica do homem no fato de possuir ele uma alma imortal?
Sem dúvida, mas o nosso esforço visa exatamente trazer à luz o
sentido concreto desta constatação. As duas coisas não se
contradizem, mas exprimem o mesmo em formas diversas.
Porquanto "ter alma espiritual" significa exatamente: ser objeto de
um bem-querer especial, de um especial conhecimento [307] e
amor de Deus; ter uma alma espiritual denota: ser um ente
chamado por Deus para o diálogo eterno e, por isto, estar em
condições de conhecer a Deus e de responder-lhe. O que
exprimimos por "ter alma" em uma linguagem mais substancial,
expressamos em linguagem mais histórica e atual como "ser
parceiro do diálogo com Deus". Isto não quer dizer que seja falso o
modo de falar sobre a alma (como o afirma, às vezes hoje em dia,
um biblicismo unilateral e não crítico); esta terminologia até se
torna necessária para exprimir tudo o que se tenciona. Mas, por
outro lado, ela precisa de um complemento, se não se quiser
recair em uma concepção dualista incapaz de satisfazer à visão
dialógica e personalista da Bíblia.

Por conseguinte, ao afirmar que a imortalidade do homem está


fundamentada em sua polarização para Deus, cujo amor é o único
a conceder eternidade, não se exprime um destino especial dos
bons, mas destaca-se a imortalidade do homem como tal. Após
nossas últimas considerações é perfeitamente viável desenrolar o
mesmo pensamento do esquema corpo-alma; a sua importância e,
quiçá, indispensabilidade consiste em sublinhar o caráter essencial
da imortalidade humana. Mas é preciso voltar sempre à
perspectiva bíblica e a partir daí corrigir esse esquema para que
continue útil à visão que se abre para o futuro do homem a partir
da fé. De resto, volta a se perceber aqui que não é possível
distinguir sem mais entre "natural" e "sobrenatural": o diálogo
fundamental que constitui o homem, antes de tudo, passa, sem
interrupção, a diálogo da graça que se chama Jesus Cristo. Mas
como não poderia ser, se Cristo realmente é o "segundo Adão", a
realização propriamente dita do infinito anseio que brota do
primeiro Adão – do homem em geral?

c) A questão do corpo ressuscitado. Não alcançamos ainda o fim


de nossas perguntas. Se assim é, existirá um corpo ressuscitado, ou
tudo isso conotaria apenas um código da imortalidade [308] da
pessoa? Eis o problema que ainda nos aguarda. Não se trata de
problema novo; já São Paulo fora bombardeado pelos coríntios com
perguntas desta espécie, como o revela o capítulo 15 da Primeira
Carta aos Coríntios, em que o Apóstolo tenta responder, enquanto
possível, dentro dos limites da nossa capacidade e do mundo a nós
acessível. Muitas das comparações usadas por Paulo tornaram-se-
nos estranhas; sua resposta, em conjunto, ainda é o que de mais
amplo, de mais ousado e mais convincente se disse sobre o
assunto.

Partamos do versículo 50 que me parece ser uma espécie de


chave para o resto: "Asseguro-vos, irmãos, que a carne e o sangue
não podem conseguir o reino de Deus, nem a corrupção, a
incorruptibilidade". Ao meu ver, esta frase ocupa no nosso texto
aproximadamente o mesmo lugar que o versículo 63 do capítulo
6.° de João, os dois textos, aliás aparentemente tão distanciados
entre si, são muito mais aparentados do que se poderia perceber à
primeira vista. Diz-se em João, após acentuar-se com toda força a
real presença da carne e do sangue de Jesus na Eucaristia: "O
espírito é que vivifica, a carne para nada serve". Tanto no texto
aos Coríntios como em João trata-se de desenvolver o realismo
cristão da "carne". Em João dá-se ênfase ao realismo dos
sacramentos, isto é, ao realismo da ressurreição de Jesus e da sua
"carne" que daí nos provém; em Paulo trata-se do realismo da
ressurreição da "carne", da ressurreição dos cristãos e da salvação
que assim se concretiza para nós. Mas, em ambos os capítulos,
estabelece-se também forte contraponto a destacar o realismo
cristão como realismo que vai além da física, como realismo do
Espírito Santo, em antítese a um realismo quase físico, puramente
imanente ao mundo.

Aqui a nossa língua fracassa diante das nuanças do grego


bíblico. Nele o vocábulo soma denota o mesmo que "corpo" e,
simultaneamente, o mesmo que o "eu", a "ipseidade". Esse soma
pode ser sarx ou seja, corpo, sob a forma [309] (na maneira)
terreno-histórica, isto é químico-física; pode ser também pneuma –
"espírito", de acordo com os dicionários; na realidade, quer dizer:
o "eu", a "ipseidade" ou "identidade" que agora aparece em um
corpo palpável químico-físico, pode também aparecer
definitivamente no mundo de uma realidade transfísica. Na
terminologia de Paulo, "corpo" e "espírito" não são antitéticos, mas
as suas antíteses soariam como "corpo de carne" e "corpo à
maneira espiritual". Não é preciso tentar acompanhar agora os
complexos problemas históricos e filosóficos que se apresentam.
Em todo caso, uma coisa deveria estar esclarecida: tanto João
(6,53), como Paulo (1Cor 15,50) acentuam com todo o vigor
possível que a "ressurreição" da carne", a "ressurreição dos corpos"
não é "ressurreição dos organismos". E assim, falando na
perspectiva (a partir) do pensamento moderno, a idéia paulina é
muito menos simplória do que a posterior sapiência teológica com
suas sutis elucubrações sobre a questão se podem ou não existir
corpos eternos. Paulo não ensina, para repeti-lo, a ressurreição
dos organismos, mas das pessoas, e isto não no retorno dos" corpos
de carne", isto é, das estruturas biológicas, que ele expressamente
declara impossíveis ("o corruptível não pode tornar-se
incorruptível"), mas na conformação toda diferente da vida da
ressurreição, prefigurada no Senhor ressuscitado.

Mas, a ressurreição não teria nexo algum com a matéria? E o


"dia último" não se tornaria, assim, totalmente sem objetivo, em
favor da vida que sempre vem do chamado de Deus? Em si a
resposta a esta derradeira questão já foi apresentada em nossas
considerações sobre o retorno de Cristo. Se o cosmos é história e
se a matéria representa um momento na história do espírito, não
existe um eterno neutro estar-um-ao-lado-do-outro de matéria e
espírito, mas uma última "complexidade" na qual o mundo
encontra o seu ômega e a sua unidade. Então haverá um último
nexo entre matéria e espírito, [310] em que se consuma o destino
do homem e do mundo, mesmo se hoje nos seja impossível precisar
a espécie deste nexo. Então haverá um "último dia" em que o
destino de cada homem estará completo, porque se terá
consumado o destino da humanidade.

Meta do cristão não é uma felicidade particular, mas o


conjunto. Ele acredita em Cristo, crendo assim no futuro do mundo
e não só em seu futuro pessoal. Sabe que esse futuro é mais do
que ele mesmo pode realizar. Sabe que existe um sentido que ele
não está em condições de destruir. Mas, será isto motivo para
cruzar os braços? Pelo contrário – por saber que há sentido, pode e
deve realizar, alegre e impávido, a obra da história, mesmo com o
sentimento, na miopia de quem só vê o seu pequeno segmento de
atividade, de estar realizando trabalho de Sísifo, em que, geração
após geração, a pedra volta a ser rolada morro acima, para tornar
a escorregar, fazendo vãos todos os esforços. O crente sabe que
está "avançando" e não andando em círculo. O crente sabe que a
história não é um tapete de Penélope, sempre retecido, para
sempre voltar a ser desfeito. Talvez os cristãos também se sintam
oprimidos pelos pesadelos do temor e da inutilidade, de cujo seio
o mundo pré-cristão criou tais imagens impressionantes do medo
frente à esterilidade do trabalho humano. Mas, em seu pesadelo
ressoa salvadora a voz da realidade: "Coragem! Eu venci o mundo!"
(Jo 16,33). O mundo novo, cuja descrição, na figura da Jerusalém
definitiva, é o epílogo da Bíblia, não é nenhuma utopia, mas
certeza, para cujo encontro marchamos pela fé. Há uma salvação
do mundo – eis a confiança que sustenta o cristão e que o faz
considerar como valendo a pena, também hoje, ser cristão.

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