Gazeta Do Povo #45 - Ago23

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AGOSTO 2023 CLUBE DE REVISTAS

45ª EDIÇÃO

R E V I S T A

Apagão liga o alerta


Em 2023, robustez da rede elétrica do país caiu ao
menor nível em sete anos

O que é o anarcocapitalismo, Pedro Abramovay, o brasileiro


defendido pelo argentino que virou vice-presidente na
Javier Milei Open Society de George Soros
CLUBE DE REVISTAS

Índice
Editorial: As primárias argentinas e o fracasso do
03
kirchnerismo

Deltan Dallagnol: O Brasil vai se tornar um


10
narcoestado?

Leonardo Coutinho: Precisamos prestar atenção


21
no Equador

Em 2023, robustez da rede elétrica do país caiu


31
ao menor nível em sete anos

Anulação da condenação de Lula é precedente


37
para invalidar investigação sobre Bolsonaro

O que é o anarcocapitalismo, defendido pelo


58
argentino Javier Milei

Quem é Pedro Abramovay, o brasileiro que virou


69
vice-presidente na Open Society de George Soros

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CLUBE DE REVISTAS

O candidato à presidência da Argentina Javier Milei venceu as primárias das


eleições de 22 de outubro.| Foto: EFE/Juan Ignacio Roncoroni

EDITORIAL.

As primárias argentinas e o
fracasso do kirchnerismo
Os argentinos foram às urnas neste domingo,
no primeiro estágio da eleição marcada para o
próximo mês de outubro: as Primárias Abertas,
Simultâneas e Obrigatórias (Paso), uma prévia

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que define quem poderá se candidatar aos car-
gos que estarão em disputa daqui a dois meses
– inclusive a presidência da República. Ao con-
trário do que ocorre em países como os Estados
Unidos, em que as primárias são feitas separa-
damente por partido e envolvem apenas os fi-
liados, nas Paso argentinas o eleitor pode votar
em qualquer pré-candidato de sua escolha, e
isso faz dessas prévias um termômetro da pre-
ferência atual do eleitorado. O resultado não foi
nada animador para o peronismo de esquerda
que governa hoje a Argentina e terminou o
domingo como a terceira força política do país.

O vitorioso foi o economista libertário Javier


Milei, que concorreu sozinho como pré-can-
didato à presidência pelo grupo A Liberdade
Avança e teve 30% dos votos. Os candidatos da
frente de centro-direita Juntos Pela Mudança

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somaram 28,3%, sendo 17% da ex-ministra
Patricia Bullrich (que ganha o direito de ser a
candidata) e 11,3% do prefeito de Buenos Aires,
Horácio Rodríguez Larreta. Já o governismo até
conseguiu o segundo candidato mais votado: o
ministro Sergio Massa, da Economia, com
21,4% dos votos; no entanto, os 5,9% do advo-
gado Juan Grabois deixaram o kirchnerismo
atrás de Milei e da centro-direita. Por fim, a
disputa pela Casa Rosada ainda terá o peronista
não kirchnerista Juan Schiaretti, governador da
província de Córdoba, e a esquerdista Myriam
Bregman, pois ambos superaram o limite
mínimo de 1,5% dos votos.

Um país que ruma para o desastre


em alta velocidade não evita a
tragédia pisando suavemente no
freio. A solução não está no

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libertarianismo de Milei, mas
também não está em ajustes
tímidos como os de Macri, e muito
menos na manutenção do
kirchnerismo

O peronismo kirchnerista vinha sofrendo uma


série de derrotas nas eleições locais dos últimos
meses, perdendo o governo de províncias que o
peronismo dominava havia décadas. Mas o re-
sultado, tanto dessas votações locais quanto das
Paso, não chega a surpreender. A Argentina está
afundada em inflação descontrolada – 115% no
acumulado dos últimos 12 meses – e vive a
possibilidade de nova recessão. Como era de se
esperar, as soluções habituais da esquerda,
como controle estatal de preços, fracassaram. A
crise é tamanha que fez o presidente Alberto
Fernández abrir mão da possibilidade de tentar

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CLUBE DE REVISTAS
a reeleição; tampouco a vice Cristina Kirchner
se dispôs a entrar na disputa.

Estariam os argentinos finalmente acordando


para as consequências da escolha que fizeram
em 2019? Naquela ocasião, a disputa se dava
entre a esquerda e Mauricio Macri, o então pre-
sidente que se elegeu com plataforma liberal,
mas, no fim do mandato, terminou recorrendo
ao mesmo arsenal de seus adversários, como
congelamento de preços, para driblar a crise.
Entre os populistas autênticos e o populista de
ocasião, os argentinos elegeram os primeiros,
mesmo que a catástrofe econômica capitaneada
por Cristina Kirchner durante seus dois manda-
tos ainda estivesse fresca entre os argentinos,
mostrando como o populismo constrói nas
sociedades uma espécie de prisão mental da
qual é muito difícil escapar.

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CLUBE DE REVISTAS
A Argentina é um caso raro de país que já esteve
entre os mais ricos do mundo e afundou não por
causas externas ou catástrofes naturais, mas
pelas próprias escolhas feitas nas últimas déca-
das: populismo estatizante, gasto público des-
controlado, Estado e funcionalismo inchados.
Será impossível reverter a trajetória e voltar ao
caminho da prosperidade enquanto os argenti-
nos não atacarem essas mazelas. Macri falhou
porque quis fazer a coisa certa na intensidade
errada, optando pelo gradualismo quando a
Argentina precisava de um choque liberal; rejei-
tou privatizações, fez concessões ao funciona-
lismo, não combateu o déficit público. Como os
resultados não vieram, os eleitores negaram a
Macri uma segunda chance, inexplicavelmente
dando ao kirchnerismo uma nova oportunidade
sem que ele prometesse nada diferente do que já
havia feito para destruir a Argentina.

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CLUBE DE REVISTAS
Um país que ruma para o desastre em alta velo-
cidade não evita a tragédia pisando suavemente
no freio; é preciso agir com mais firmeza. A
solução não está no libertarianismo de Milei –
que tem propostas bastante radicais (e, talvez
por isso, impraticáveis), como extinguir o Ban-
co Central –, mas também não está em ajustes
tímidos como os de Macri, e muito menos na
perpetuação do kirchnerismo no poder. Se os
argentinos perceberam esta realidade ou se
escolheram Milei apenas para demonstrar sua
insatisfação com as forças políticas mais
tradicionais do país é algo ainda a descobrir.

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| Foto: EFE/Marcelo Sayão

OPINIÃO.

Deltan Dallagnol

O Brasil vai se tornar um


narcoestado?
Em 2016, quando eu ainda atuava como pro-
curador na operação Lava Jato, afirmei que

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algumas decisões do Supremo passavam uma
mensagem de leniência em favor da corrupção.
Afirmei ainda que eu não estava imputando
má-fé a nenhum dos ministros, mas apenas
fazendo uma análise objetiva dos efeitos que as
decisões dos ministros tinham sobre as
investigações e processos.

Isso acabou me rendendo uma punição por


“quebra de decoro” - uma expressão em que
cabe tudo que se quiser incluir para censurar
alguém que está incomodando o sistema. Nesta
semana, o procurador do Ministério Público
Marcelo Monteiro fez uma afirmação muito
parecida com a minha, mas desta vez ele se
referia não à corrupção, mas ao narcotráfico.
Disse o procurador, ao ser ouvido pela Gazeta:

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“Hoje, o Supremo Tribunal Federal atende a
todas as demandas do tráfico de drogas. É isso o
que o Supremo faz objetivamente. Eu não estou
dizendo que eles atendem porque eles querem
atender, porque eles estão em conluio com o
tráfico. Eles podem ter as melhores intenções –
aí eu já não sei, não posso ler a mente dos
ministros. Mas o que eu estou dizendo é que, do
ponto de vista objetivo – não da intenção deles,
mas do ponto de vista objetivo –, o Supremo
atende a todas as demandas do crime
organizado, em especial do tráfico”.

As semelhanças entre minha fala e a do procu-


rador são assombrosas, e ainda mais surpreen-
dente é o fato de que ambas se referem às con-
sequências de decisões do STF sobre o combate
ao crime. Há algo de podre no reino da Dina-
marca quando a Justiça serve o interesse dos

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criminosos e não o da população - e certamente
há algo mais podre ainda quando decisões
beneficiam poderosos - diga-se, por exemplo,
um presidente da Câmara - e são incoerentes
com a própria jurisprudência do tribunal.

Quando narcotraficantes e líderes de


organizações criminosas recebem um
tratamento brando da Justiça, sua atividade
ilícita, já bastante abrangente no Brasil, é
incentivada. Os brasileiros passam a temer que
o país, seguindo o caminho de outros da
América Latina, torne-se um narcoestado. Este
já existe, aliás, em certos territórios
controlados pelo crime organizado no Brasil,
em que autoridades como policiais, promotores
e juízes não entram sem autorização do tráfico,
salvo se for ministro da Justiça de Lula, pelo

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menos segundo a incrível versão que ele mesmo
sustenta.

O termo narcoestado, na definição do Fundo


Monetário Internacional, refere-se a um país
em que todas as instituições legítimas estão pe-
netradas pelo poder e pelo dinheiro de narco-
traficantes. O termo se aplica, ainda, a países
onde o “governo, mas também o Legislativo, o
Judiciário e as forças armadas são infiltrados
por cartéis ou organizações de crime transna-
cional que têm como atividade básica o
narcotráfico”.

Quando narcotraficantes e líderes de


organizações criminosas recebem
um tratamento brando da Justiça,
sua atividade ilícita, já bastante
abrangente no Brasil, é incentivada

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CLUBE DE REVISTAS
Organizações criminosas já controlam áreas
extensas em favelas e subúrbios brasileiros,
vitimando seus moradores, e há notícias de que
o PCC tem financiado candidatos e tenta se
infiltrar na Polícia, Ministério Público e
Judiciário. Essa atividade merece uma resposta
firme do Estado. Contudo, temos visto o
contrário: decisões que fortalecem o crime
organizado, como as seguintes, proferidas
recentemente pelas mais altas Cortes do país.

● A partir de junho de 2020, o STF passou a proferir


decisões limitando a atuação da polícia em
favelas, por exemplo, proibindo operações nas
comunidades na pandemia e vedando o uso de
helicópteros;

● Em maio de 2022, o STJ, argumentando que se


deve combater o “racismo estrutural”, decidiu
que é ilegal a busca pessoal (revista) de suspeitos

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justificadas por denúncias anônimas ou atitudes
“suspeitas”;

● Em fevereiro de 2023, o STJ concedeu liberdade a


um homem preso com 66 kg de maconha na sua
casa. Após a polícia abordá-lo na rua e encontrar
com ele 42 gramas de maconha, ele autorizou os
policiais a adentrarem sua casa. Ali foram
encontradas drogas, balança de precisão e
material para embalar os entorpecentes.
Contudo, o STJ entendeu que a autorização foi
dada em uma “situação claramente
desfavorável” e era, portanto, insuficiente para
justificar o ingresso;

● Em março de 2023, o Tribunal de Justiça do Mato


Grosso do Sul absolveu uma pessoa com 2
toneladas de drogas, aplicando o entendimento
de que uma denúncia anônima não é suficiente
para que esteja satisfeito o requisito de fundada
suspeita exigido para o ingresso da polícia na
residência do suspeito sem mandado judicial;

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● Em abril de 2023, o STJ devolveu os bens de luxo
do narcotraficante internacional foragido André
do Rap: um helicóptero avaliado em R$ 7,2
milhões, uma embarcação de 60 pés, avaliada em
R$ 5,2 milhões, dois imóveis de luxo em Angra
dos Reis (RJ), um Porsche Macan ano 2016,
quatro jet-skis, quatro computadores e 33
telefones celulares, por entender que decisão que
determina a prisão preventiva não autoriza a
busca e apreensão no local da prisão. As provas
do caso foram todas anuladas;

● Em maio de 2023, o STJ absolveu traficantes que


confessaram ter 257 pinos de cocaína, por
entender que a confissão ocorreu sob “estresse
policial” e por isso seria ilegal, sem que houvesse
nenhum registro ou alegação de tortura ou
maus-tratos;

● Em junho de 2023, o STF anulou a apreensão de


696 kg de cocaína feita com base numa denúncia
anônima, mais uma vez aplicando o

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CLUBE DE REVISTAS
entendimento de que a busca e apreensão só
poderia ocorrer com mandado. Os traficantes
foram inocentados;

● Também em junho de 2023, o STJ inocentou um


chefão do tráfico do PCC, que havia sido
condenado a 10 anos de prisão, porque a
abordagem policial em que foram encontrados 2
kg de cocaína teria sido “invasiva” e sem o
devido fundamento. Ocorre que o traficante,
notando a polícia, chegou a subir com sua moto
na calçada e, demonstrando nervosismo, quebrou
seu celular para evitar que a polícia visse suas
mensagens;

● Na semana passada, a 2ª Turma do STF, em um


caso que também envolvia narcotraficantes,
autorizou a participação de réus foragidos em
audiência de instrução por videoconferência,
estendendo um tapete para quem lhe estapeia a
face - que criminoso respeitará uma Justiça
assim?

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CLUBE DE REVISTAS
Há muitos outros casos e decisões que poderiam
ser mencionados. E se os precedentes dos
tribunais aplicados para colarinhos brancos
forem estendidos a narcotraficantes e chefes de
facções, as portas da cadeia serão escancaradas.
Por exemplo, se a duração da prisão preventiva
estabelecida pelo Supremo na Lava Jato for
estendida aos demais réus, dificilmente algum
narcotraficante permanecerá preso.

Investigados e réus devem ter seus direitos


garantidos na mesma dimensão em que são
protegidos nos demais países democráticos. O
“garantismo” é legítimo. Contudo, o
“garantismo à brasileira” expande a proteção
dos direitos de um modo que se passa a
perguntar se é o Direito que serve à sociedade,
ou a sociedade que está servindo a um Direito
que a coloca de joelhos diante do crime

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organizado. O direito à ampla defesa e ao devido
processo não devem significar um direito à
impunidade. É esse “direito” que é dado aos
criminosos de colarinho branco pelo
“garantismo de ocasião” de certos advogados e
julgadores, customizado para atender os
interesses do poder.

Autor: Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela


Harvard Law School e foi o deputado federal mais votado
do Paraná em 2022. Trabalhou como procurador por 18
anos, atuando em várias operações no combate a crimes
como corrupção e lavagem de dinheiro. Foi coordenador
da operação Lava Jato em Curitiba. **Os textos do
colunista não expressam, necessariamente, a opinião da
Gazeta do Povo.

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CLUBE DE REVISTAS

Fernando Villavicencio, candidato à presidência do Equador executado a


poucos dias do pleito.| Foto: STR/EFE

OPINIÃO.

Leonardo Coutinho:
Precisamos prestar atenção no
Equador

Fernando Villavicencio, candidato à presidência


do Equador, foi executado à luz do dia, diante de

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seus apoiadores e cercado por policiais que
faziam a sua proteção. Sua morte ocorreu na
véspera do 214.o aniversário da independência
de seu país e apenas 11 dias antes das eleições
para presidente e membros do Congresso. A
notícia se alastrou e, como consequência, fez o
mundo se lembrar do Equador. O que está
acontecendo no país sul-americano? Por que,
assim, tão de repente, o país chegou a este
ponto crítico de violência política?

A questão pode ser resumida em uma única


palavra: narcotráfico.

Localizado entre Colômbia e Peru, os dois prin-


cipais produtores de cocaína, o Equador foi por
muito tempo uma rota de tráfico de drogas, com
relativa tranquilidade, como foi o Brasil até a
primeira metade da década de 1990, quando

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CLUBE DE REVISTAS
deixamos de ser apenas caminho para sermos
também destino de toneladas de cocaína. O
enriquecimento dos brasileiros, com o Plano
Real, os colocou no mapa global dos consumi-
dores de drogas. Os reais que jorravam para as
mãos dos traficantes ajudaram o negócio a
crescer e avançar sobre toda a região.

A realidade do Equador se difere, obviamente,


em vários aspectos. Embora o país seja destino
das drogas, o mercado local jamais teve o poder
do brasileiro, que é o segundo consumidor glo-
bal de cocaína. A explosão de violência e a cor-
rosão da institucionalidade local podem ser
atribuídas aos efeitos colaterais dos acordos de
paz na Colômbia – que levaram dezenas de
milhares de guerrilheiros a ficarem desempre-
gados. Milhares de homens que, além de matar
sem qualquer piedade, também carregam larga

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experiência com o tráfico de cocaína – a
principal atividade econômica das Farc –
ficaram desempregados e passaram a oferecer
serviços dentro e fora da Colômbia.

O que está acontecendo no


Equador? Por que, assim, tão de
repente, o país chegou a este ponto
crítico de violência política? A
questão pode ser resumida em uma
única palavra: narcotráfico

Os seis suspeitos do assassinato de


Villavicencio, presos pela polícia equatoriana,
são colombianos.

O Equador virou um mercado de trabalho pro-


missor para esses criminosos. Antes de entregar
as armas em 2017, o Equador tinha uma taxa de

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homicídios de 5,6 por 100 mil habitantes. No
ano seguinte, a curva empinou e os números
não pararam de subir. Em 2020 já havia chegado
a 7,7 mortes por 100 mil. Em 2021, a taxa che-
gou a 14 mortes por 100 mil. No ano passado, o
Equador registrou 25,6 homicídios por grupo de
100 mil habitantes – a sexta taxa mais alta das
Américas, à frente do conturbado México.

Como se não bastasse a fartura de mão de obra


criminosa, a região passou a sofrer o assédio
direto dos cartéis mexicanos, que passaram a
lutar in loco para o controle das rotas. Cenas de
carnificina como as registradas nas lutas entre
facções de presídios do Brasil também se tor-
naram comuns no Equador. As quadrilhas
locais, cada qual alinhada com o seu cartel
mexicano, lutam ferozmente pelo controle das
rotas.

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CLUBE DE REVISTAS
O presidente esquerdista Rafael Correa
(2007-2017), que sempre fez vistas grossas
para a presença das Farc dentro do Equador e
nunca se mexeu para reprimir o avanço do
tráfico de drogas, criou as condições perfeitas
para que o crime organizado transnacional
infestasse as instituições do país. A lista de
máfias e países de origem vai do Brasil a
Albânia, passa por México e Líbano, e termina
em Estados que fazem do tráfico política, como
Cuba e Venezuela.

Villavicencio, que foi assassinado nesta semana,


recorrentemente denunciava a relação de gene-
rais equatorianos com o narcotráfico – algo
como uma versão reduzida do poderoso Cartel
de los Soles, da Venezuela chavista. Além dos
narcogenerais, Villavicencio, que também foi
jornalista e deputado, acusou juízes e

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CLUBE DE REVISTAS
ex-colegas de parlamento de fazerem parte da
extensa rede de proteção que os traficantes têm
dentro das instituições locais.

Dois dias antes de ser assassinado, ele havia


prometido apresentar provas de tais vincula-
ções. Foi executado antes que cumprisse a
promessa.

Um vídeo de origem não verificável foi postado


no Twitter (agora chamado X), com uma reivin-
dicação de autoria do crime. A gangue Los Lobos
teria cometido o crime como demonstração de
força e vingança contra o candidato que os
desafiava em público, com a promessa de
riscá-los do mapa. Uma reivindicação que não
fica de pé, segundo investigadores locais.

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CLUBE DE REVISTAS
Villavicencio não foi apenas
retirado da campanha. Ele foi
calado. Ele prometia entregar muita
gente envolvida com o crime
transnacional e a corrupção. Foi
morto para não atrapalhar os
negócios que vão muito bem em
muitos países, incluindo o Brasil

O atentado contra Villavicencio, dias antes das


eleições, deve ser entendido como uma mensa-
gem de terror, mas também de opção política.
Em 2002 e em 2006, o brasileiro PCC fez a sua
“declaração de voto” durante as eleições gerais
daqueles anos. Em 2002, planejou atentados à
bomba em São Paulo (queria explodir a Bolsa de
Valores), às vésperas do segundo turno das
eleições. Em 2006, o PCC tocou o terror em São
Paulo, na maior onda de ataques coordenados

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CLUBE DE REVISTAS
da história do país, paralisando a maior cidade
brasileira. Em ambos os casos, as investigações
comprovaram que o PCC atuou para influenciar
nas eleições. Embora as agências de checagem
não concordem, o PCC faz, sim, declaração de
voto.

Com chances de chegar ao segundo turno,


Villavicencio não era apenas uma ameaça den-
tro das regras puramente eleitorais. Ele amea-
çava a tentativa de retomada de poder por parte
dos bolivarianos liderados pelo ex-presidente
Rafael Correa, que é foragido da Justiça equato-
riana e opera sob influência de Havana, Caracas,
Pequim e Moscou. A disputa é liderada, segundo
as pesquisas de intenção de votos, por Luisa
González, pilotada por Correa, que também se
escora na lorota da tese do lawfare para se

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CLUBE DE REVISTAS
vender como vítima de uma Justiça partidária.
Lula fez escola.

Villavicencio não foi apenas retirado da campa-


nha. Ele foi calado. Ele prometia entregar muita
gente envolvida com o crime transnacional e a
corrupção. Foi morto para não atrapalhar os
negócios que vão muito bem no Equador, no
México, na Colômbia, na Venezuela, no Peru, na
Bolívia, no Brasil...

Autor: Jornalista, autor do livro “Hugo Chávez, o


espectro”, pesquisador e comentarista sobre segurança e
relações internacionais. Escreve semanalmente, desde
Washington, D.C. **Os textos do colunista não expressam,
necessariamente, a opinião da Gazeta do Povo.

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| Foto: Nicolas Thomas/Unsplash

APAGÃO

Em 2023, robustez da rede elétrica


do país caiu ao menor nível em sete
anos
Por Fernando Jasper

A robustez da rede básica de energia do Brasil –


isto é, a capacidade de suportar contingências

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CLUBE DE REVISTAS
sem interrupção no fornecimento – caiu neste
ano ao menor nível desde 2016, indicam dados
do Operador Nacional do Sistema Elétrico.

Conforme o ONS, o Sistema Interligado Nacio-


nal (SIN) registrou 1.651 perturbações de janeiro
a agosto, das quais 123 (7,5% do total) resulta-
ram em algum corte de carga – isto é, inter-
rupção de fornecimento.

As outras 1.528 interrupções (92,5% do total)


não resultaram em corte de carga. Assim, o
índice de Robustez da Rede Básica (RRB) é de
92,5% no acumulado do ano.

Trata-se do menor índice para os oito primeiros


meses do ano desde 2016, quando a RRB no
acumulado de janeiro a agosto foi de 91,7%.

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CLUBE DE REVISTAS
A série histórica de perturbações no SIN
disponível no site do ONS tem início em 2012.
Tanto no intervalo janeiro-agosto quanto no
acumulado dos 12 meses do ano, o índice de
robustez ficou abaixo de 90% de 2012 até 2016.

De 2017 em diante, o índice superou a marca de


90% em todos os anos, com destaque para os
picos de 2018 (robutez de 94,9% até agosto e
94,7% no ano todo) e 2022 (94,1% até agosto e
93,9% no ano todo).

Há duas ressalvas aí. A primeira é que os dados


de 2023 ainda não computam o apagão desta
terça-feira (15). E a segunda é que eles tendem a
sofrer novas modificações até o encerramento
do mês, incluindo novas perturbações com ou
sem corte de carga, o que naturalmente pode
afetar o índice de RRB.

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CLUBE DE REVISTAS

Ano Índice de robustez (jan-ago)


2012 89,1%
2013 88,1%
2014 89,8%
2015 88,3%
2016 91,7%
2017 92,8%
2018 94,9%
2019 93,4%
2020 93,2%
2021 92,7%
2022 94,1%
2023 92,5%

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CLUBE DE REVISTAS
Apagão desta terça foi o primeiro de grande
porte em 2023

Até o apagão desta terça, que derrubou 19,1 mil


MW do sistema interligado entre 8h30 e 8h40, o
país não havia registrado nenhum corte igual ou
superior a 1 mil MW no acumulado do ano.

Uma carga de 1 mil MW corresponde ao con-


sumo de cidades como Cascavel (PR), Brasília e
Fortaleza. Tanto em 2022 quanto em 2021, o
país havia registrado somente um corte de 1 mil
MW ou mais em todo o ano.

Os números foram maiores nos anos anteriores.


Na série do ONS, iniciada em 2022, os anos com
mais apagões dessa proporção foram 2016, com
sete ocorrências, e 2012, com cinco.

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CLUBE DE REVISTAS

Ano Cortes de Cortes de Cortes de


100 MW 500 MW 1.00 MW
ou mais ou mais ou mais
2012 82 11 5
2013 81 4 2
2014 84 8 2
2015 106 12 3
2016 69 10 7
2017 65 6 1
2018 34 4 3
2019 60 3 2
2020 56 7 2
2021 47 5 1
2022 40 1 1
2023 24 2 0
*Até agosto. Não inclui dados de 15/8

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Jair Bolsonaro é investigado por gastos com cartão corporativo, cartão de vacina
e agora joias. | Foto: Elaine Menke/PL

CASO DAS JOIAS

Anulação da condenação de Lula é


precedente para invalidar
investigação sobre Bolsonaro
Por Renan Ramalho

O mesmo motivo que levou os ministros do


Supremo Tribunal Federal a anular as

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CLUBE DE REVISTAS
condenações do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, em 2021, poderia ser usado, em tese, para
invalidar as investigações sobre as joias recebi-
das pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Assim
como o petista teve os processos por corrupção
enterrados por alegada incompetência da 13ª
Vara Federal de Curitiba para investigá-lo,
Bolsonaro também poderia apontar que não
cabe a Alexandre de Moraes, do STF, esquadri-
nhar um suposto desvio de joias recebidas
quando ele ocupava a Presidência.

O caso passou a ser investigado no conhecido


inquérito das “milícias digitais”, aberto de
ofício por Moraes em 2021 em substituição ao
dos “atos antidemocráticos”, arquivado a
pedido da Procuradoria-Geral da República.
Inicialmente, o principal alvo da investigação
era o jornalista Allan dos Santos, que, no

38
CLUBE DE REVISTAS
entanto, nunca foi denunciado e cuja extradi-
ção, dos Estados Unidos para o Brasil, nunca
avançou. A mesma investigação, contudo, já
abarcou os mais diversos fatos e alvos: conver-
sas de empresários antipetistas em grupo de
WhatsApp; questionamentos do ex-secretário
da Receita Marcos Cintra sobre o sistema elei-
toral e críticas de executivos do Google ao
projeto de lei das “fake news”, defendido por
Moraes.

Só recentemente, após deixar o mandato,


Bolsonaro tornou-se um alvo direto, a partir de
uma devassa autorizada por Moraes nos dados
telemáticos e bancários do tenente-coronel
Mauro Cid, ex-ajudante da Presidência. Ini-
cialmente, Cid era investigado no inquérito pelo
fato de ter ajudado Bolsonaro a divulgar um
inquérito da Polícia Federal sobre a invasão

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CLUBE DE REVISTAS
hacker ao Tribunal Superior Eleitoral em 2018. A
Procuradoria-Geral da República (PGR), que
representa o Ministério Público no STF, não viu
crime e recusou-se a apresentar uma denúncia
no caso.

Depois, com base nas comunicações de Cid,


Moraes passou a investigá-lo por outro assun-
to, não diretamente relacionado às redes sociais
(objeto inicial do inquérito das “milícias digi-
tais”): transações financeiras que efetuava para
pagar contas da família de Bolsonaro – até o
momento, também não houve denúncia por
parte da PGR. Com base em e-mails e conversas
pelo celular, Cid passou a ser investigado por
fraudes em cartões de vacinação de sua família,
no de Bolsonaro e no da filha do ex-presidente,
Laura – apesar de ter provas, a PGR também
não fez denúncia.

40
CLUBE DE REVISTAS
O cerco se fechou de vez contra Bolsonaro na
revelação, na semana passada, de que Cid, seu
pai, o general Mauro Lourena, e outros auxilia-
res tentaram vender, nos EUA, esculturas, um
relógio, abotoaduras, uma caneta, um rosário
islâmico e um anel, presenteados pelos árabes a
Bolsonaro. No entendimento da PF e de Moraes,
os itens deveriam ter sido incorporados ao pa-
trimônio público e, por isso, a tentativa de
apropriá-los e de fazer dinheiro com eles con-
figuraria peculato (desvio de bens públicos) e
lavagem de dinheiro.

Investigações e competências

O primeiro problema, notado por observadores,


é a falta de ligação do caso com as tais “milícias
digitais”, descritas por Moraes e pela PF como
uma “organização criminosa voltada à criação,

41
CLUBE DE REVISTAS
publicação e difusão de mensagens atentatórias
ao Estado Democrático de Direito” ou com “o
objetivo de assegurar vantagens financeiras
e/ou político partidárias aos envolvidos”. A
amplitude do objeto viabilizou que se abarcas-
sem assuntos tão diversos na investigação.

Outro problema, no caso das joias, é que desde


março, outra equipe da Polícia Federal, em São
Paulo, já investigava a tentativa de Bolsonaro
ficar com presentes recebidos na Presidência.
Na época, foi revelado que, em 2021, o ex-mi-
nistro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e
alguns assessores, retornando de uma viagem
aos Emirados Árabes, tentaram passar pela
alfândega do aeroporto de Guarulhos com joias
destinadas à ex-primeira-dama Michelle
Bolsonaro. A investigação criminal foi deter-
minada pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, e

42
CLUBE DE REVISTAS
ficou a cargo da Delegacia Especializada de
Combate a Crimes Fazendários da PF, na mesma
cidade.

Por esse motivo, aliás, a PGR se posicionou con-


tra a operação, na semana passada, contra
Mauro Cid, seu pai, e contra o advogado
Frederick Wassef. O órgão pediu a Moraes que o
caso fosse enviado ao juiz da 6ª Vara Federal de
Guarulhos, e pediu que o ministro autorizasse
que os policiais que investigaram o caso para ele
atuassem com os outros que já investigavam o
caso em São Paulo. Na terça-feira (15), a pedido
do MPF local, a vara de Guarulhos enviou para o
STF as investigações que lá tramitavam. Os
papéis devem chegar nos próximos dias, mas
não se sabe ao certo, ainda, se eles vão também
para Moraes.

43
CLUBE DE REVISTAS
Na semana passada, o ministro rejeitou a re-
comendação de deixar o caso na primeira ins-
tância e, para justificar o domínio sobre a
investigação, apresentou até um gráfico que
mostraria como estaria tudo estaria ligado (veja
abaixo). Assim, para Moraes, a mesma organi-
zação criminosa que produziria “ataques vir-
tuais” a opositores, às instituições, urnas ele-
trônicas e ao processo eleitoral, também teria
tentado dar um golpe de Estado, atacar as va-
cinas contra a Covid, e usar a estrutura estatal
para obter vantagens, entre as quais o cartão
corporativo, a inserção de dados falsos em
cartões de vacinação e, por fim, o desvio de
“bens de alto valor patrimonial entregues por
autoridades estrangeiras”.

Nos últimos anos, com o fim de reduzir o poder


de fogo da Operação Lava Jato, o STF passou a

44
CLUBE DE REVISTAS
refinar sua jurisprudência sobre como definir a
competência de um juiz para analisar situações
diferentes. Em 2015, isso ocorreu com um pe-
dido da presidente do PT, Gleisi Hoffmann, para
retirar do então juiz Sergio Moro uma investi-
gação sobre repasses que ela e o ex-marido
Paulo Bernardo teriam recebido de uma pres-
tadora de serviços do Ministério do
Planejamento.

Como o episódio não tinha nada a ver com a


Petrobras, a Corte resolveu remeter o caso para
a Justiça Federal de São Paulo, no caso de inves-
tigados que não tinham foro privilegiado. Além
disso, o STF transferiu a investigação contra
Gleisi, então senadora, do ministro Teori
Zavascki, na época relator da Lava Jato no STF,
para Dias Toffoli. Firmaram-se ali algumas
teses que passaram a prevalecer em várias

45
CLUBE DE REVISTAS
decisões posteriores que transferiram para
outros juízes várias investigações inicialmente
aportadas na 13ª Vara de Curitiba.

Uma delas determina que o critério inicial para


a definição de competência é o local onde o cri-
me foi cometido. Por isso, os processos que
levaram à condenação de Lula foram transferi-
dos de Curitiba para Brasília. E por isso também
a investigação sobre as joias de Bolsonaro foram
iniciadas, em março, pela PF em Guarulhos.

Outro critério óbvio é a existência, ou não, de


foro por prerrogativa de função, nome técnico
do foro privilegiado. No caso de Bolsonaro, não
existe mais, muito menos para os demais
investigados no caso das joias, que nunca
tiveram.

46
CLUBE DE REVISTAS
“O STF não tem competência para apreciar a
questão. O ex-presidente não tem prerrogativa
de foro. E nenhum dos investigados tem. Ainda
que algum deles tivesse, o STF vem decidindo
pelo desmembramento do processo em relação
a quem não tem prerrogativa de foro e remessa
ao juízo competente, mantendo o foro privile-
giado apenas para aqueles que o têm. Vários os
precedentes nessa linha”, diz o desembargador
aposentado e ex-presidente do Tribunal de
Justiça de São Paulo Ivan Sartori.

Um critério secundário para aferir a competên-


cia, esclarecido pelo STF, é a prevenção. Em
síntese, é a possibilidade de concentração, num
só juiz, de vários processos com objeto seme-
lhante, desde que ele seja competente para a
causa. “Nos termos do art. 70 do Código de
Processo Penal, a competência será, de regra,

47
CLUBE DE REVISTAS
determinada pelo lugar em que se consumar a
infração”, disse Toffoli na época, acrescentando
que um juiz só poderia supervisionar uma
investigação sobre um fato novo descoberto se
houvesse conexão com o fato inicial apurado.

“A conexão intersubjetiva ou instrumental de-


corrente do simples encontro fortuito de prova
que nada tem a ver com o objeto da investigação
principal não tem o condão de impor o unum et
idem judex [uma e mesma jurisdição]. O sim-
ples encontro fortuito de prova de infração que
não possui relação com o objeto da investigação
em andamento não enseja o simultaneus pro-
cessus”, registrou o ministro em seu voto,
citando um precedente de 2014, de Luiz Fux.

Toffoli deu um exemplo, para reforçar seu


argumento pela prevalência do critério

48
CLUBE DE REVISTAS
territorial para fixação de competência. “O fato
de um juiz de um foro em que encontrado um
cadáver ser o primeiro a decretar uma medida
cautelar na investigação não o torna prevento,
nos termos do art. 83 do Código de Processo
Penal, para a futura ação penal caso se apure
que o corpo tenha sido apenas ocultado naquela
localidade e que o homicídio, em verdade,
tenha-se consumado em outra Comarca.

Nessa hipótese, prevalece o forum delicti


commissi (foro do lugar da infração), critério
primário de determinação da competência, pois
a prevenção não pode se sobrepor às regras de
competência territorial”, afirmou. Ou seja, em
uma analogia ao caso de Bolsonaro, o local do
suposto crime seria São Paulo e não Brasília.

49
CLUBE DE REVISTAS
Em 2021, Edson Fachin se valeu do mesmo
entendimento para anular as condenações de
Lula, citando a decisão de 2015 em favor de
Gleisi e várias outras posteriores em benefícios
de políticos e empresários inicialmente proces-
sados em Curitiba. “As regras de competência,
ao concretizarem o princípio do juiz natural,
servem para garantir a imparcialidade da atua-
ção jurisdicional: respostas análogas a casos
análogos”, afirmou o ministro. As condenações
de Lula caíram porque o que ele teria recebido
das empreiteiras não seria fruto apenas dos
contratos delas com a Petrobras (objeto da Lava
Jato), mas com diversos outros órgãos e
estatais.

Segundo Ivan Sartori, “não existe inquérito sem


prazo de término e com alcance prospectivo”,
referindo-se ao inquérito das milícias digitais.

50
CLUBE DE REVISTAS
“O caso das joias já estava sob o juiz natural [em
Guarulhos]. Portanto, o STF não poderia
examinar o caso, com a devida vênia. Esse in-
quérito [das milícias digitais] tem alcance inde-
finido e tem sido utilizado de forma flexível”,
critica.

Casos diferentes?

Por outro lado, há advogados que entendem que


os casos de Lula e Bolsonaro são diferentes.

Na Lava Jato, discutia-se se a conexão probató-


ria, ou seja, a ligação entre as provas coletadas
ao longo das fases da operação, justificava a
manutenção de todas as investigações com
Sergio Moro. Inicialmente, o Tribunal Regional
Federal da 4ª Região (TRF4) e o Superior Tribu-
nal de Justiça (STJ) entendiam que fazia sentido

51
CLUBE DE REVISTAS
concentrar os casos em Curitiba, uma vez que a
descoberta de uma prova em determinada fase
levava a outra, e assim por diante. Mas o STF
depois considerou que não, uma vez que,
embora houvesse operadores comuns em casos
de corrupção, os órgãos, empresas e negócios
envolvidos eram distantes entre si.

No caso de Bolsonaro, boa parte das provas fo-


ram colhidas junto a Mauro Cid, e se relacionam
a como ele auxiliava o ex-presidente em diver-
sas atividades suspeitas. A conexão probatória,
nesse caso, é mais simples de ser aferida, pela
amplitude e complexidade menor dos atos e
situações investigadas, afirmam alguns espe-
cialistas. Ainda assim, permanece a dúvida
quanto à competência do STF para investigar
pessoas sem foro privilegiado e casos sem
relação direta com os “ataques” à Corte.

52
CLUBE DE REVISTAS
Outra diferença é que o caso de Bolsonaro vem
sendo investigado no próprio STF e dificilmente
os atuais ministros anulariam os atos de um
colega, Alexandre de Moraes. No caso de Lula, a
maioria invalidou decisões de Moro, um juiz de
primeira instância que já não gozava de
prestígio dentro da Corte.

Desde a deflagração da operação, na sexta-feira


(11), a defesa de Bolsonaro ainda não se mani-
festou sobre a condução de mais esse caso por
Alexandre de Moraes.

A reportagem entrou em contato com os advo-


gados do ex-presidente para questioná-los
sobre a possibilidade de questionar a compe-
tência do STF e de Moraes, inclusive para anular
as provas colhidas e que vierem a ser incorpo-
radas à investigação por autorização do

53
CLUBE DE REVISTAS
ministro. Não houve resposta até o momento. O
espaço segue aberto.

Lula e Dilma também tiveram problemas com


presentes

Não é apenas a dúvida sobre a competência para


investigar que aproxima os casos de Lula e
Bolsonaro. O próprio objeto da atual investiga-
ção – o caráter público ou privado dos presentes
recebidos durante o mandato – também trouxe
problemas para o atual presidente.

Entre 2016 e 2019, ao fiscalizar os presentes


recebidos pela Presidência de 2003 a 2016, o
Tribunal de Contas da União (TCU) constatou
que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
se apropriou de 434 objetos dados ao Brasil por
chefes de Estado estrangeiros durante seus dois

54
CLUBE DE REVISTAS
primeiros mandatos. A ex-presidente Dilma
Rousseff, por sua vez, tomou para si 117 itens.

No início da fiscalização, em 2016, o órgão


determinou que a Presidência, então ocupada
pelo ex-presidente Michel Temer (MDB),
identificasse com quem e onde estariam 568
presentes dados a Lula e 144 recebidos por
Dilma, de modo que fossem incorporados ao
patrimônio público da União. Com base em
dados consolidados pela Presidência, os
números depois foram revistos.

No mesmo ano, 132 presentes dados a Lula


foram encontrados pela Polícia Federal num
cofre do Banco do Brasil no centro de São Paulo;
21 de maior valor foram depois confiscados pela
Presidência. Em 2019, no final da auditoria, o
TCU registrou que 360 presentes recebidos por

55
CLUBE DE REVISTAS
Lula foram localizados no Galpão do Sindicato
dos Metalúrgicos do ABC, e foram
transportados de volta para Brasília. Outros 74
não foram localizados.

Já os presentes recebidos por Dilma foram en-


contrados num Galpão da Cooperativa dos Tra-
balhadores Assentados na Região de Porto
Alegre, em Eldorado do Sul (RS). No local, no
entanto, não foram localizados 6 dos 117
presentes identificados – segundo represen-
tantes da ex-presidente, eles teriam ficado nas
dependências da Presidência.

O relatório não detalhou o que eram esses pre-


sentes, mas alguns itens – esculturas, maque-
tes, espadas e uma coroa – foram incorporados
à União após uma decisão judicial. Lula ainda
tenta reaver esses bens. Ele acionou a Justiça

56
CLUBE DE REVISTAS
Federal para anular o resultado da fiscalização
do TCU e resgatar os 21 presentes confiscados
pela Presidência.

Alegou que, durante seu governo, um órgão


distinguia quais presentes deveriam ir para o
acervo privado e quais eram públicos. No fim do
mandato, os primeiros foram para cofres do
Banco do Brasil e os demais deixados nos
palácios do Planalto e da Alvorada.

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CLUBE DE REVISTAS

Candidato à presidência da Argentina, Javier Milei é um “ancap” convicto.| Foto:


EFE/Juan Ignacio Roncoroni

FILOSOFIA POLÍTICA

O que é o anarcocapitalismo,
defendido pelo argentino Javier
Milei
Por John Lucas

Vencedor das primárias argentinas, realizadas


no último domingo (13), Javier Milei “semeou”

58
CLUBE DE REVISTAS
na grande imprensa uma palavra até então mais
restrita às bolhas políticas da internet:
anarcocapitalismo.

Milei se considera anarcocapitalista, ou ancap,


como também são conhecidos os entusiastas
dessa vertente, digamos, mais radical do pensa-
mento liberal. Em linhas bem gerais, trata-se de
um sistema filosófico, político e econômico cu-
jos princípios incluem a liberdade individual, a
propriedade privada, o livre mercado e, acima
de tudo, a eliminação total do estado.

Ou seja, é uma espécie de libertarianismo levado


às ultimas consequências, em que todos os
aspectos da sociedade devem ser privatizados –
incluindo a administração pública, a polícia e
até a justiça.

59
CLUBE DE REVISTAS
Mais do que uma escola de pensamento, o anar-
cocapitalismo hoje em dia se configura como
um movimento, quase uma contracultura de
direita (com seus institutos, livros, influencia-
dores e canais de discussão e divulgação). O
governo do ex-presidente Jair Bolsonaro contou
com vários ancaps em suas fileiras, e nas redes
sociais é possível identificar uma quantidade
significativa de jovens que aderiram a essa
corrente.

O economista e filósofo norte-americano


Murray Rothbard (1926-1995), ligado à Escola
Austríaca, é considerado o principal teórico do
anarcocapitalismo e responsável pela criação do
termo. Mas nomes como Hans-Hermann
Hoppe, Stephan Kinsella, David D. Friedman,
Robert Nozick, Ayn Rand e o casal Morris e
Linda Tannehill também contribuíram ou são

60
CLUBE DE REVISTAS
influências decisivas para o desenvolvimento
das ideias ancap. A seguir, elencamos alguns
tópicos elucidativos para os não iniciados no
movimento.

Anarquia?

Para muitos críticos, especialmente os de es-


querda, a simples ideia de conectar os conceitos
de anarquismo e capitalismo é bisonha – como
se os ancaps juntassem alhos e bugalhos, des-
controle e rigor. É o típico erro de quem não faz
a lição de casa direito. Os dois sistemas compar-
tilham, em suas nomenclaturas, a raiz “anar-
co", derivada do grego “anarkhos” (“sem go-
verno”), que não tem nada a ver com bagunça
ou desordem.

61
CLUBE DE REVISTAS
O anarcocapitalista defende a existência de uma
sociedade com instituições, cooperação e go-
vernança. Porém, diferentemente do anarquista
clássico, o ancap crê que a propriedade privada
é a principal garantia da liberdade dos
indivíduos.

Diferença entre anarcocapitalismo e


libertarianismo

As duas correntes têm em comum a ênfase na


liberdade individual, na propriedade privada e
no livre mercado. Mas enquanto os ancaps de-
sejam que todas as funções do Estado sejam
realizadas por entidades particulares, os liber-
tários tendem a aceitar um governo mínimo,
capaz de proteger os direitos básicos e
necessários.

62
CLUBE DE REVISTAS
Costumes e questões morais

Em geral, os anarcocapitalistas não entram em


discussões de fundo moral. Liberdade, auto-
nomia e responsabilidade pessoal estão entre os
pilares do movimento. Um ancap pode até ser
contra o uso de drogas, os casamentos homoa-
fetivos ou a mudança de gênero – mas jamais
vão apoiar a intervenção estatal em qualquer
um desses assuntos. A única exceção diz res-
peito ao aborto. Enquanto alguns entendem que
a prática é uma decisão da mulher (conside-
rando a ideia de “propriedade corporal”),
outros veem a interrupção da gravidez como
uma violação dos direitos individuais de um ser
humano em potencial.

“Se você colocar quatro libertários em uma sala


para debater, o único ponto que vai gerar dis-

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CLUBE DE REVISTAS
córdia é o aborto”, diz Raphaël Lima, empre-
endedor, criador do canal ‘Ideias Radicais’ (com
mais de 650 mil inscritos no YouTube) e uma
das figuras que mais influenciam os ancaps
brasileiros – ainda que prefira ser chamado de
libertário.

Administração de grandes crises

Sem um governo central, é possível resolver ou


conter problemas como desastres naturais e
epidemias? Para os ancaps, essa lacuna deve ser
preenchida com coordenação e cooperação.
Empresas, comunidades, organizações
voluntárias e indivíduos podem se unir para
organizar ações, compartilhar recursos e definir
acordos em prol das áreas e pessoas afetadas.
Um ponto controverso, aqui, é a dependência
das agências de seguros privadas – em um

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CLUBE DE REVISTAS
sistema anarcocapitalista, elas seriam
fundamentais para diminuir riscos e prejuízos.

A ciência em xeque

Os anarcocapitalistas têm posições variadas


com relação a temas polêmicos envolvendo a
ciência, como a existência de uma crise climá-
tica e a eficácia das vacinas e dos lockdowns.
Eles creem, por exemplo, que a poluição é uma
agressão e uma invasão à propriedade privada
(“Quem mais joga esgoto nos rios é o próprio
Estado”, comenta Raphaël Lima). No entanto,
não compactuam com a teoria do apocalipse
ambiental a médio ou curto prazo.

Quanto às vacinas, o grupo já se mostra bem


mais dividido, e muitos influenciadores ancap
admitem publicamente não ter recebido nem a

65
CLUBE DE REVISTAS
primeira dose do medicamento contra a
Covid-19. Mas todos, claro, são enfaticamente
contra qualquer tipo de imunização obrigatória.

O que isso tem a ver com Bitcoin?

Tudo. Por circularem em redes descentraliza-


das, independentes de bancos ou governos, as
criptomoedas vão diretamente ao encontro dos
princípios de autonomia valorizados pelos
ancaps. Além disso, possibilitam a privacidade
nas transações e, ao menos em tese, possuem
caráter deflacionário (entre outros motivos, por
não estarem submetidas à manipulação da
oferta monetária operada pelo Estado).

66
CLUBE DE REVISTAS
Principais questionamentos

As preocupações mais comuns com relação ao


anarcocapitalismo dizem respeito à falta de
proteção para as comunidades mais vulneráreis
e ao meio ambiente, à facilidade da criação de
monopólios econômicos e ao risco de não haver
mais ordem social e justiça. Para os que não
acreditam na viabilidade dessa filosofia, há uma
imensa desconexão entre os ideais ancap e a
complexidade e o desafios práticos da vida
contemporânea.

Utopia x realidade

Ainda não existem exemplos concretos de


países, cidades ou territórios realmente
anarcocapitalistas – o que, para muitos, é o
suficiente para classificar esse sistema como

67
CLUBE DE REVISTAS
um delírio utópico. Libertários como Raphaël
Lima, no entanto, contestam o uso dessa ex-
pressão. “Se a definição de utopia é uma socie-
dade planejada e idealizada, o anarcocapitalis-
mo se coloca totalmente como o contrário disso.
Ele é uma antiutopia, pois não quer desenhar ou
impor um modelo para o futuro”, afirma.

“Outra definição de utopia é algo que nunca vai


se realizar. Mas se você pudesse voltar no
tempo, em 1512, e perguntar para uma pessoa se
um dia a escravidão acabaria, ela com certeza
iria te achar um maluco, porque não entraria na
cabeça dela que isso pudesse vir a acontecer”,
conclui.

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CLUBE DE REVISTAS

Pedro ao lado do atual ministro da Justiça, Flávio Dino| Foto: Reprodução

PERFIL

Quem é Pedro Abramovay, o brasileiro


que virou vice-presidente na Open
Society de George Soros
Por Omar Godoy

Uma das figuras mais influentes do debate pú-


blico brasileiro nos últimos anos circula entre
autoridades e é amigo de famosos, mas

69
CLUBE DE REVISTAS
continua desconhecido para a grande maioria
do público. Pedro Abramovay, recentemente
alçado ao posto de vice-presidente da poderosa
Open Society Foundations, construiu sua car-
reira tentando tornar o Brasil um país mais pró-
ximo do que os progressistas dos Estados
Unidos desejam para a própria nação. Em certa
medida, ele tem conseguido.

Filho do sociólogo e professor da USP (Univer-


sidade de São Paulo) Ricardo Abramovay, Pedro
nasceu na capital paulista em 1980. Ele estudou
no tradicional colégio Santa Cruz e cursou Di-
reito na mesma universidade em que o pai
lecionava. Lá, foi coordenador do Centro Acadê-
mico 11 de Agosto. As conexões do pai e os vín-
culos políticos formados no movimento estu-
dantil ajudaram: quando se formou, em 2002,

70
CLUBE DE REVISTAS
ele já era assessor do gabinete da então prefeita
de São Paulo, Marta Suplicy.

Pedro Abramovay tem pesadelos até hoje com


sua passagem pela Faculdade de Direito mais
tradicional do Brasil o motivo: o machismo.
“Uma parte significativa do meu machismo — e
todos os dias eu tento me livrar dele — eu
adquiri na Faculdade de Direito da USP. Sério.
Difícil descrever o nível de machismo daquele
lugar e ainda hoje me assombra pensar como eu
era conivente com isso", ele escreveu, quase
duas décadas depois de se formar.

A passagem pela prefeitura paulistana não du-


rou muito. Pedro Abramovay chegou a Brasília
junto com Luiz Inácio Lula da Silva, que tomou
posse pela primeira vez em 2003. Aos 23 anos, o
jovem passou a ser assessor jurídico da

71
CLUBE DE REVISTAS
liderança do governo no Senado. Seu chefe era
Aloizio Mercadante (PT-SP).

Outro nome do PT paulista, José Eduardo


Cardozo, foi quem o levou para o governo fede-
ral: Abramovay foi assessor especial do Minis-
tério da Justiça, secretário de Assuntos Legisla-
tivos do Ministério da Justiça e Secretário Na-
cional de Justiça. Foi a sua indicação para este
cargo que o trouxe mais perto dos holofotes.
Também por isso ele foi obrigado a pedir de-
missão pela primeira vez. Abramovay declarou,
em entrevista ao jornal O Globo, ser favorável à
descriminalização das drogas não apenas para
os usuários mas também os pequenos trafican-
tes. A essa altura ele acabara de ser indicado por
Cardozo para chefiar a Secretaria Nacional de
Políticas sobre Drogas. Acabou sem o novo
cargo e sem o antigo também.

72
CLUBE DE REVISTAS
Em 2017, Abramovay concluiu um doutorado
em Ciência Política pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. O tema da tese: o processo de
aprovação do Marco Civil da Internet, do qual
ele participou enquanto estava no governo. A
passagem mais interessante da publicação é a
dedicatória, em que Abramovay revela não con-
seguir deixar a militância de lado nem mesmo
quando faz uma declaração de amor à esposa:
“Essa aliança, forjada no amor, que a gente
construiu, se consolida no desejo mútuo de lu-
tar, juntos, por um mundo mais justo e soli-
dário” anotou, logo após agradecer a compa-
nheira por cuidar da filha pequena para que ele
se dedicasse ao doutorado.

Depois de deixar o governo, Abramovay ocupou


um cargo de direção na Avaaz (organização que
promove petições online a favor de causas de

73
CLUBE DE REVISTAS
esquerda) e deu aula na Fundação Getúlio
Vargas antes de ingressar na Open Society, em
2013. Na organização fundada pelo bilionário
George Soros, ele chefiou o escritório para a
América Latina e o Caribe.

Agora, dez anos depois, em meio a uma


reestruturação no comando da Open Society,
Pedro passou a ser um dos três vice-presidentes
da entidade. Agora, ele vai ajudar a desenhar a
estratégia global da entidade, que teve um
orçamento de US$ 1,5 bilhão [R$ 7,4 bilhões na
cotação atual] em 2021.

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CLUBE DE REVISTAS

Imagem de arquivo datada de 31 de janeiro de 2012 mostra Pedro Abramovay (à


direita), então diretor de Campanhas da Avaaz, apresentando ao líder de Sani
Isla, Patricio Jipa, os resultados da solicitação de apoio à comunidade, de cerca de
850.000 pessoas de todo o mundo que aderiram a uma campanha na internet
que pedia ao então presidente do Equador, Rafael Correa, que não houvesse
exploração de petróleo no território da comunidade indígena, na Amazônia
equatoriana. EFE/José Jácome

Pauta importada

A agenda progressista é, com frequência, con-


fundida a causa socialista. Mas há diferenças
importantes. Para os progressistas, o objetivo

75
CLUBE DE REVISTAS
não é a expropriação dos meios de produção e a
instalação de um regime que centralize a gestão
da economia.

Na verdade, o próprio Soros, nascido na Hun-


gria, fomentou a oposição aos soviéticos no
leste europeu. Abramovay, por sua vez, já
criticou o regime da Venezuela. “Um regime
autoritário que deve ser condenado por quem
preza pelo respeito aos direitos humanos”, ele
escreveu, em 2018.

O progressismo de Soros e Abramovay concen-


tra energias em outros temas: a agenda cultural
(na concepção ampla do termo), especialmente
no que diz respeito a raça, gênero, drogas e
“direitos humanos.”

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CLUBE DE REVISTAS
“Pedro Abromavay que jamais escreveu qual-
quer coisa realmente original em toda sua
vida”, afirma Eduardo Matos de Alencar, doutor
em Sociologia, presidente do Instituto Arrecife e
autor do livro De quem é o Comando. Para ele, a
agenda vendida (ou comprada) pela Open
Society no Brasil destoa da tradição da esquerda
brasileira — mesmo a esquerda acadêmica, que
tende a ser mais aberta a novidades intelectuais.

“Há algo de artificial nisso. Temas tradicional-


mente caros para a academia brasileira como
desigualdade, pobreza, mundo do trabalho,
cultura popular e mesmo participação demo-
crática têm ficado cada vez mais esquecidos”,
analisa.

Alencar enxerga o advento do "capitalismo


woke" como um marco da aproximação entre a

77
CLUBE DE REVISTAS
elite empresarial (da qual George Soros é parte)
e grupos militantes à esquerda. Há não muito
tempo, Soros seria visto como um vilão — o
bilionário que fez fortunas com especulação
financeira e agora tenta influenciar governos.
Hoje, ele é tido como um aliado porque abre o
cofre para financiar ONGs mundo afora.

Não há nada que possa parar uma ideia cujo


tempo chegou, diz a frase atribuída (de forma
imprecisa) ao francês Victor Hugo e citada por
políticos de tempos em tempos. A função de
Pedro Abramovay na Open Society Foundations
é fazer esse tempo chegar. Como? Injetando
dinheiro e mais dinheiro e organizações que as
defendam.

Sob a supervisão de Abramovay, a Open Society


aplicou centenas de milhões de reais no Brasil

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CLUBE DE REVISTAS
nos últimos anos (apenas em 2021, foram R$107
mihões). Grande parte dos recursos vai para
organizações que promovem a liberação das
drogas, o abrandamento das penas a crimino-
sos, a legalização do aborto e a promoção da
agenda LGBT e a “defesa dos direitos
humanos.”

Os critérios, entretanto, não parecem se aplicar


de maneira uniforme. Os mais de mil presos
pelos atos de 8 de janeiro — muitos dos quais
nem chegaram perto da Praça dos Três Poderes
— não receberam apoio das entidades financia-
das pela Open Society. Neste caso, a defesa do
desencarceramento sumiu de cena.

“A diferença de tratamento é clara: se o grupo


supostamente perseguido for alinhado ideo-
logicamente com essas instituições, elas

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prestam total apoio. Se forem grupos com pen-
samentos diversos do progressismo financiado
pela Open Society, não há qualquer apoio”, cri-
tica o advogado Ezequiel Silveira, que repre-
senta alguns dos presos no 8 de janeiro.

Conflitos de interesse

A participação ativa da fundação em território


nacional aumentou a influência de Abramovay e
gerou situações delicadas — embora, por não
serem públicos, os recursos possam ser dis-
tribuídos como a Open Society bem entender.

Desde 2017, o Instituto Clima e Sociedade re-


cebeu aproximadamente R$ 15,3 milhões da
Open Society. Por sua vez, o Instituto repassou
R$ 4,2 milhões ao Imaflora, uma ONG que tem

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Ricardo Abramovay — pai de Pedro — como
presidente do seu conselho diretor.

Ricardo Abramovay também já participou de


pelo menos um evento do Instituto Update, que
recebeu R$ 2,7 milhões da Open Society desde
2017.

A Open Society também doou cerca de R$ 5


milhões ao governo do Maranhão em 2020,
durante a pandemia. À época, o governador do
Estado era Flávio Dino, atual ministro da Jus-
tiça. A organização de George Soros financia
ainda o Instituto Marielle Franco, comandado
pela hoje ministra da Igualdade Racial, Anielle
Franco. No ano passado, Dino e Anielle compa-
receram ao lançamento de um livro escrito por
Abramovay (na ocasião, o homem forte da Open
Society demonstrou ser uma pessoa ousada ao

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vestir uma espalhafatosa camiseta florida num
evento noturno a 12 mil quilômetros do Havaí.)

A quarta capa do livro tem apresentações de


Lula e Fernando Henrique Cardoso. Abramovay
pode não ter ideias originais. Mas ele certamen-
te sabe fazer amizades.

Metamorfose da esquerda

A trajetória de Abramovay é reveladora da mu-


dança pela qual a esquerda brasileira passou nas
últimas duas décadas. Tendo conseguido o seu
primeiro emprego graças ao PT —- fundado por
operários e com uma forte ligação com um
braço Igreja Católica —, ele ajudou a mover foco
de assuntos econômicos para outros temas,
como a liberação das drogas e do aborto, o
“desencarceramento”, a agenda LGBT e o

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combate ao "racismo estrutural." Uma cópia da
esquerda americana.

Em 2008, por exemplo, Abramovay publicou um


artigo defendendo que o STF legalizasse o abor-
to. O argumento é construído sobre referências
dos Estados Unidos. Em 2012, em outro artigo, o
alvo era a proibição das drogas. Na visão dele,
proibir o consumo de entorpecentes como o
crack fere a democracia. “O desenvolvimento e
a implementação das atuais políticas de drogas
produzem sérios danos à democracia, não
apenas (...) pela falta de accountability possível
em uma política pública que se constrói na
lógica da guerra e não na busca dos objetivos
realizados, mas, como se verá, pela supressão
que se faz da possibilidade de debate público no
tema”, ele afirmou. Sem explicar bem o porquê
nem analisar os argumentos a favor da

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proibição, ele escreveu que "a insensatez da
política de drogas atinge diretamente a garantia
a direitos fundamentais.”

Credenciado pelo currículo e pelo diploma de


doutor, Pedro Abramovay distribui opiniões
todo o tempo, sempre com convicção. A mesma
convicção de quem um dia sustentou que um
assassino era um homem inocente. “Cesare
Battisti não matou ninguém. Tenho essa con-
vicção. Eu li o processo todo. De cabo a rabo.
Várias vezes”, disse ele em 2017.

Abramovay não foi apenas um espectador nesse


caso: ele foi um dos responsáveis diretos pela
decisão em que o então ministro da Justiça,
Tarso Genro, concedeu refúgio a Battisti.

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Em 2019, entretanto, o italiano confessou ter
cometido quatro assassinatos quando atuava
em um grupo terrorista de esquerda. Até Lula,
que raramente faz mea culpas em púbico, disse
estar arrependido. Pedro Abramovay se disse
“decepcionado” por ter sido “enganado” por
Battisti, mas em seguida insistiu que a Justiça
da Itália — que já vivia sob um regime demo-
crático — “era claramente carregada de
perseguições políticas.”

Compositor amador

Enquanto desencarcerava terroristas e tenta


assegurar o direito ao uso de entorpecentes,
Pedro Abramovay achou tempo para dar vazão
ao seu lado artístico. Ele escreveu e produziu um
álbum em parceria com o irmão Juliano, que é
músico profissional. O disco combina

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construções melódicas interessantes com letras
carregadas de ideologia. Por exemplo: uma das
músicas, gravadas pelo ex-titã Paulo Miklos,
ensina que um homem pode ser mulher e
vice-versa:

“Ela faz xixi em pé

Ele é dono de casa

Ele adora ir no balé

Ela conserta o que vaza”

(,,,)

"Somos mais que cromossomos

Cada um é o que quiser

Somos mais que cromossomos

Ela é homem, ele é mulher"

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A música alcançou 67 visualizações em quatro
anos no YouTube.

Aliás, Abramovay trabalhou com Manoela


Miklos, filha do cantor, na Open Society.
Amizades.

O insucesso musical não deve abalar


Abramovay. Na sua ocupação principal, ele tem
resultados a apresentar. Em 2011, foi demitido
de um governo de esquerda por ser a favor da
liberação das drogas. Em 2023, quando ele
assume a vice-presidência da Open Society, o
Supremo Tribunal Federal caminha para
legalizar a maconha.

Na lista de amicus curiae ouvidos na ação,


aparecem sete entidades financiadas pela Open
Society (Viva Rio, Instituto Brasileiro de

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CLUBE DE REVISTAS
Ciências Criminais, Instituto de Defesa do
Direito de Defesa, Instituto Sou da Paz,
Conectas Direitos Humanos, Iniciativa Pública
por uma Nova Política sobre Drogas e Instituto
Terra, Trabalho e Cidadania).

O que não conseguiu no governo, Abramovay


deve conseguir pela via judicial. E, se depender
dele, é apenas o começo. “Restringir apenas a
maconha é muito limitado. No caso de outras
drogas, é fundamental que não se trate mais
usuários como criminosos”, ele escreveu, logo
após o voto do ministro Alexandre de Moraes.

A Gazeta do Povo procurou a Open Society com


perguntas sobre a atuação de Pedro Abramovay.
Em nota, o diretor global de Comunicação da
Open Society, Mark Arena, afirmou que "a
carreira profissional de Pedro Abramovay tem

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sido consistentemente marcada pela defesa da
democracia e dos direitos humanos."

Segundo Arena, o período em que ele esteve à


frente do programa para a América Latina e o
Caribe foi marcado pelo enfrentamento aos
efeitos da pandemia e o combate às fake news,
ao feminicídio e à violência policial contra os
mais vulneráveis. "Temos orgulho de anunciar
sua nomeação como nosso vice-presidente de
programas".

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PARA SE APROFUNDAR

● Energia nuclear vê hora de superar tabus e


virar opção estratégica para o Brasil

● TV PT pode violar isonomia entre os partidos


e causar desequilíbrio eleitoral

● Fundo internacional da Amazônia pode levar


dinheiro do Ocidente para a ditadura da
Venezuela

● Na contramão da promessa, desigualdade


social deve persistir no governo Lula 3

● As principais frases de Lula passando pano


para Ortega, Maduro, Chávez e Fidel

● Como seria a dolarização da Argentina,


proposta por Javier Milei

● Mulher de Zanin atua em 14 casos no STF;


ministros discutem fim do impedimento em
ações de parentes

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