Aspectos Da Biografia (Revisado) - Final
Aspectos Da Biografia (Revisado) - Final
Aspectos Da Biografia (Revisado) - Final
André Maurois
A Sir Joseph Thomson,
Master of Trinity College, Cambridge
SUMÁRIO
NOTA DO TRADUTOR
APRESENTAÇÃO
CAPÍTULOS
1. A biografia moderna
2. Da biografia como obra de arte
3. Da biografia considerada como ciência
4. A biografia como meio de expressão
5. A autobiografia
6. A biografia e o romance
NOTA DO TRADUTOR
Este livro é tirado de um ciclo de conferências dado por Maurois em Trinity College,
Cambridge, na Inglaterra. A oralidade da situação original de enunciação transparece no livro: assim,
o autor se refere frequentemente a “vocês”, seu público. No geral, quando opõe “nós” a “vocês”, ele
se refere à França e aos franceses pelo primeiro, à Inglaterra e aos ingleses pelo segundo. Da mesma
forma, “aqui” é sempre a Inglaterra.
As numerosas citações que atravessam o livro são, no original, traduções do próprio Maurois
de obras (em sua maioria inglesas, mas também russas e francesas). Ele raramente cita a referência
completa e precisa da fonte, e suas traduções são frequentemente muito livres, e, logo, aproximativas.
Na tradução para o português, fizemos a escolha de não “corrigir” suas traduções, dando prioridade
à tradução do espírito de Maurois – e não dos autores que ele cita.
Quanto às referências em si, sempre que um livro existe em tradução lusófona, o título aparece
em português – nos casos em que não há tradução lusófona, o título aparece no original, seguido da
tradução entre parênteses e aspas. Como as edições não são (ou são muito raramente) mencionadas
por Maurois, não buscamos reconstituí-las – o que implicaria um trabalho histórico bastante árduo de
reconstituição da biblioteca do próprio Maurois.
Apesar dessa escolha, as seguintes edições, apresentadas em ordem cronológica, foram
consultadas para verificar e comparar as traduções das citações: Herbert Spencer, An Autobiography
(New York: D. Appleton and Company, 1904); Paul Valéry, Introdução ao Método de Leonardo da
Vinci (trad. José Martins Garcia, Lisboa: Ed. Arcádia, 1979); E.-M. Forster, Aspects of the Novel (San
Diego, New York, London: A Harvest Book – Harcourt Inc., 1985); E.-M. Forster, Aspectos do
Romance (trad. de Sérgio Alcides, São Paulo: Editora Globo S.A., 2003); Lytton Strachey, Rainha
Vitória (trad. Luciano Trigo, Rio de Janeiro: Ed. BestBolso, 2015); Liev Tolstói, Guerra e Paz (trad.
Rubens Figueiredo, São Paulo: Companhia das Letras – Ed. Schwartz S.A., 2017).
APRESENTAÇÃO
Biografia – a meio caminho entre ciência e estética
Gustavo de Castro1
1.
1
Professor da Universidade de Brasília (UnB).
pessoal, psíquica, simbólica, passando pela social, política, filosófica, histórica, antropológica, até a
educativa e clínica. Como bem observa François Dosse (2015, p. 56), a visão de Maurois acerca da
biografia se encontra “a meio caminho entre o desejo da verdade, que depende de um procedimento
científico, e sua dimensão estética, que lhe empresta valor artístico.”
As considerações de Maurois (busca da verdade e compreensão da complexidade), implicam
uma dimensão de conhecimento mesclada ao autoconhecimento. Elas permitem ao biógrafo exercitar-
se em uma concepção prévia de ser humano. Tal concepção será projetada depois pelo biógrafo tanto
na seleção dos personagens, na escolha dos fatos, como na ordem do relato. Da mesma forma, a
biografia permite ao leitor a imersão na narrativa, no mito, na imagem, no imaginário, no personagem
narrado; permite extrair uma visão de ser humano e, quem sabe, uma aprendizagem e um modo de
ser.
Livros teóricos sobre biografia, como o de Maurois, seguem sendo – passado mais dois mil
anos de história –, raros no campo dos estudos, em que pese os volumes publicados nos últimos vinte
anos. Neste sentido, este Aspecto da biografia foi um dos primeiros a permitir organizar, pensar e
ampliar os pressupostos e os dilemas de área. Um desses dilemas aparece justamente neste livro, que
Maurois chama de “dilema do biógrafo”. Ou seja, a biografia deve fazer do homem um sistema claro
ou deve renunciar por completo a torna-lo um sistema e, apenas, compreendê-lo. Forçosamente,
qualquer relato biográfico contém uma verdade e uma visão de mundo, e esta se verá confrontada e
implicada tanto nas estruturas narrativas escolhidas como nas operações de seleção do material. Ela
é mais uma visão do biógrafo ou é mais a vida que seu personagem viveu?
Caso queira enquadrar o personagem dentro de um sistema, o biógrafo incorre em um
equívoco, pois nenhuma vida vivida goza de um estatuto fechado e definitivo ou de um
enquadramento sistêmico e modelar; ao passo que, ao ser organizada dentro de uma narração, ao se
passar do âmbito de vida vivida para a vida escrita, nenhuma experiência deixa de aparentar um
sentido. Qualquer que seja a escolha, o resultado será senão falso, meramente aproximado. Entre o
vivido e o narrado estabelece-se uma brecha e um fosso, onde não é possível falar de uma unidade
biográfica. Assim, o gênero será refém de uma pulverização infinita de facetas, possibilidades e
incertezas. Tais incertezas demonstram a natureza complexa da biografia e a aproxima da
fenomenologia.
Para Maurois, qualquer biografia pode ser entendida como uma obra de arte em que o papel
do biógrafo é sobretudo acompanhar as mudanças que ocorrem nas personagens. A história e os fatos
importam apenas na medida em que podem explicar as mudanças que ocorrem nas personagens.
Aos longos dos anos, a biografia tornou-se um meio de expressão para historiadores, escritores,
jornalistas, educadores, cientistas sociais, antropólogos, terapeutas, enfim, está acessível a qualquer
pessoa que tenha interesse em contar, escutar e compreender uma história de vida. Tal narração
recoloca a vida face a um conjunto de problemas, posições, perspectivas, visões de mundo,
entendimentos, compreensões e saberes.
2.
Nascido em 26 de julho de 1885, como Émile Salomon Wilhelm Herzog, em uma família
judia que se instalou na Alsácia, André Maurois adotou como pseudônimo o nome de uma aldeia do
norte de França, "Maurois", que depois se tornou seu nome legal em 1947, para se sentir integrado à
cultura francesa e para se livrar de uma história familiar.
Na biografia de Lionel Gossman, André Maurois (1885–1967): Fortunes and Misfortunes of
a Moderate, publicada em 2014, fica claro como ele decidiu assumir e mudar o curso de seu destino.
Sua família tinha se fixado em Elbeuf, perto de Rouen, na Normandia, após a anexação alemã em
1871, e queria que ele se tornasse herdeiro e administrador de uma grande fábrica de tecelagem com
400 trabalhadores. No entanto, ele preferiu outro caminho.
O menino cresceu em um ambiente austero, burguês e empreendedor, onde os meios silêncios
dos pais operavam em conjunto a gestos ambíguos, no revelar e esconder, no dizer e ocultar, no
simular e dissimular, em gestos calculados e palavras medidas. Em suas Mémoires (1970), publicadas
após a sua morte, explicou as razões de seu interesse pela biografia: “Meu pai, sempre pudico, e
minha mãe, sempre discreta, nos envolviam em tristes reticências e reservas inexpressivas... Nada se
confessava e, por esta razão, tudo adquiria uma importância desmesurada. Eu acreditei durante muito
tempo nas virtudes do silêncio, agora compreendo as virtudes liberadoras da confissão” (MAUROIS,
1970, p. 106).
O menino cresceu leitor voraz, sobretudo amante da literatura inglesa. Durante dez anos,
dedicou-se a ajudar a família na administração da fábrica de tecelagem. Após o ensino médio, foi
aprovado em Letras e tornou-se aluno do filósofo Alain (Émile-Auguste Chartier – 1868-1951), a
quem atribuiu o apoio para seu destino literário e sua orientação estética. A partir daí, Maurois
escolheu a carreira literária e abandonou a administração da fábrica.
Sua primeira esposa, Jane-Wanda de Szymkiewicz (1892-1923), “Jeanine”, era filha de um
conde polonês e se casou com ele aos 17 anos. Com ela, Maurois teve três filhos, dois meninos e uma
menina, que batizou com o nome de Michelle. Aos 29 anos, explodiu a Primeira Guerra Mundial, em
1914, quando ele se tornou oficial intérprete numa unidade escocesa do exército britânico, oficial de
ligação da British Expeditionary Force (BEF), na França e na Flandres. Findada a Guerra, em 1918,
publicou seus primeiros livros: O Silêncio do Coronel Branbles (Les Silences du colonel Bramble),
baseado em suas experiências como soldado junto aos ingleses e Os discursos do dr. O'Grady.
Em Paris, em 1924, conheceu Simone de Caillavet, que se tornaria sua segunda esposa. A esta
altura, a escolha pela literatura, a história e a biografia já definiam sua sensibilidade profissional e
formavam sua personalidade de escritor. Marcado pela discrição da mãe e a capacidade de trabalho
do pai, escreveu e publicou muito: setenta e três livros, sendo dez romances e quinze biografias.
Assim, ano após ano, foi emplacando um best seller atrás do outro, ao ponto de Climats (1928) vender
mais de dois milhões de exemplares só na França.
Como biógrafo, Maurois teve o cuidado de usar apenas fatos verificados ou aceitos pela
história e pela crítica literária. Tal forma de pesquisa marcará o seu estilo, que prezará pelas formas
breves, a polidez, o ceticismo e a ironia, e também pela simpatia e compassividade. Apostará nos
perfis literários, históricos e políticos. Começou com Ariel, em que contou a vida de Shelley, em 1923,
continuou com a vida de Disraeli (1927), Lord Byron (1930), Turgenev (1931), Marechal Lyautey
(1931), Eduardo VII (1933), Chateaubriand (1938), Marcel Proust (1949), George Sand (1951), Cecil
Rhodes (1953), Victor Hugo (1954), Alexandre Dumas (1957), Alexander Fleming (1959), Adriana
de La Fayette (1961), e, finalmente, aos oitenta anos, Honoré Balzac (1965). Dedicou ainda estudos
a Dickens (1927), Voltaire (1935), Alain (1951), além de pequenos retratos dedicados a Frédéric
Chopin, Eisenhower, Franklin, Washington e Napoleão.
Transitou por muitos gêneros: histórias ilustradas para crianças entre 1928 e 1961; uma
aventura de ficção científica: La Machine à lire les pensées (1937); contos sobre moral, tópicos
literários e políticos em La Conversation (1927), Un Art de vivre (1939), Cinq visages de l'amour
(1942); ironia e humor em Cours de bonheur conjugal (1951), Lecture, mon doux plaisir (1960) até
roteiros e guias turísticos. Na companhia do filho Gérald, fotógrafo, elaborou guias sobre Malta
(1935), Londres (1936), Holanda (1955) e Rio de Janeiro (1952), cidade que visitou em uma turnê
literária pela América em 1951. Escreveu ainda um roteiro turístico sobre a região de Périgord (1955),
na França, onde Simone de Caillavet, sua segunda esposa, tinha herdado uma casa de campo. Além
disso, produziu histórias ilustradas sobre a Inglaterra (1937), França (1947), Estados Unidos (1943-
1944) e Alemanha (1965).
Escreveu um grande número de prefácios de obras de outros escritores; ensaios sobre as
questões de ciência, filosofia e economia, incluindo especulações sobre um futuro tecnológico dos
telefones. Maurois ainda encontrou tempo para escrever inúmeros artigos para jornais e revistas2; e
dois livros de memórias em tom autobiográfico em que lembrou os pais, os casamentos, as viagens,
o grande número de gente que conheceu e a escritura de suas biografias. Em suas memórias oferece
um relato da vida pública visto a partir de um observador culto e liberal. Se tornou também professor
2
Como os jornais: Le Figaro, Combat, The New York Times e San Francisco Chronicle; e as revistas: Nouvelles
Littéraires, Revue Hebdomadaire, Nouvelle Revue Française, Revue des Deux Mondes, La Table Ronde, France
Ilustrator, Samedi Soir, Neue Rundschau, Atlantic Monthly, The Living Age, The Saturday Review, The Yale Review,
Collier’s Weekly, Life, Redbook Magazine e Vanity Fair, entre outras.
visitante em Princeton a partir de 1930, e, em 1938, o reitor daquela universidade, Christian Gauss,
disse que a versatilidade literária de Maurois era comparável a de Balzac.
André Maurois foi um dos escritores mais respeitados de seu tempo, seus livros eram
imediatamente traduzidos, publicados e vendidos as centenas de milhares de cópias na Grã-Bretanha,
América e Alemanha, tamanha era sua aceitação pública. Ele também foi um dos escritores mais
populares e produtivos de seu tempo. Foi tão popular que a partir 1933, com a ascensão dos regimes
fascistas na Europa, proibiram a sua leitura pelo fato de ser judeu. Além de biógrafo, romancista,
ensaísta, professor, leitor voraz e contador de histórias, tornou-se membro da Academia Francesa,
eleito em 23 de junho de 1938. Morreu em 9 de outubro de 1967, em Neuilly-sur-Seine, aos 82 anos.
3.
François Dosse (2015) observa que a arte biográfica de Maurois descrita em Aspectos da
biografia se estrutura a partir de dois cânones, sempre a meio caminho entre a ciência e a arte. O
primeiro desses cânones é a obediência a uma ordem cronológica da narrativa. Ela permite conservar
a atenção do leitor na expectativa da intriga da história; o futuro do biografado vai se apresentando
pouco a pouco, progressivamente. O que dá o caráter romanesco é justamente esta expectativa de
futuro colocada para o leitor. Sem dúvida, há algum artifício no fingir ignorar o que virá em seguida.
O leitor é convidado, como no romance clássico, a partilhar os medos, as incertezas e os sofrimentos
do personagem.
O segundo cânone da arte biográfica para Maurois é não esquecer demais o personagem,
nunca fazê-lo desaparecer no pano de fundo da narrativa. Citando Edmund Gosse, diz: “Não há erro
maior do que tentar escrever o que chamávamos de A Vida e a Época de um homem”. O biógrafo fará
sua escolha na massa de documentos que tem à disposição, e deve ter o cuidado de não se abarrotar
com material inútil. Deve ter discernimento e valorizar os fatos significativos que às vezes parecem
elementos marginais: “os menores detalhes são frequentemente os mais interessantes”.
Para ele, é na busca de detalhes anedóticos e reveladores da personalidade do biografado que
se constitui o fascínio e o sentido da biografia. A arte da biografia relaciona-se, portanto, a arte do
romancista: “Um biógrafo, assim como um romancista, deveria ‘expor’ e não ‘impor’”. A partir da
esfera da obra de arte: “A realidade dos personagens da biografia não os impede de ser sujeitos de
uma obra de arte.”. O biógrafo é comparável a um retratista, que faz suas escolhas sem empobrecer
o que há de essencial a imagem.
As ideias expostas acima por François Dosse (2015, p. 56) sobre Maurois mostram sua
habilidade e sagacidade de discernir conceitualmente a experiência. Neste sentido, nomeia-o,
igualando-o a Stefen Zweig, de “romancista-biógrafo”. Dosse concorda com Dominique Bona para
quem tais autores podem ser definidos como “biógrafos de alma a alma”, uma vez que estão focados
em capturar e transmitir a “alma” de seus personagens. A biografia, neste sentido, é vista como uma
obra mista, composta de sabedoria, história e literatura; um retrato da vida interior do indivíduo. Pode-
se dizer, por fim, que este Aspectos da biografia pode ser compreendido como um livro aglutinador
de práticas, savoir-faire, imaginários, conhecimentos, ao passo que liberador de confissões, meio de
aprendizagem para biógrafos, estudiosos e leitores.
Referências
CABALLÉ, Anna. El saber biográfico – Reflexiones de taller. Oviedo: Ediciones Nobel, 2021.
DOSSE, François. O desafio biográfico. Trad. Gilson Cézar Cardoso de Souza. São Paulo: Edusp,
2015.
GOSSMAN, Lionel. André Maurois (1885–1967): Fortunes and Misfortunes of a Moderate. New
York: Palgrave Macmillan, 2014.
MAUROIS, André. Mémoires. Paris: Flammarion, 1970.
Este livro é composto de seis conferências pronunciadas em Trinity College, Cambridge, em
maio de 1928, para a fundação Clark. O escritor E.-M. Forster, que tinha dado essa aula no ano
anterior, tinha escolhido o tema: “Aspectos do Romance”. Eu tentei, em seguida, tratar de um tema
complementar e, seguindo seu exemplo, tentei não contar a história de um gênero. O leitor que
gostaria de ler tal apresentação a encontraria no livro de Waldo H. Dunn: English Biography
(“Biografia Inglesa”), ou no de Harold Nicolson: Development of English Biography
(“Desenvolvimento da Biografia Inglesa”), ou ainda, sob uma forma um tanto breve, porém excelente,
na pequena brochura do professor Cross, da Universidade de Yale: From Plutarch to Strachey (“De
Plutarco a Strachey”).
CAPÍTULO PRIMEIRO
A biografia moderna
E.-M. Forster, que foi, no ano passado, o meu predecessor, começou suas Clark Lectures
invocando a Clark, primeiro para lhe pedir que propagasse sobre a assembleia sua honestidade e sua
íntegra erudição, em seguida para lhe pedir que outorgasse ao orador um pouco de inatenção, pois,
dizia, “eu não me atenho de forma muito rígida às condições indicadas: ‘Período ou períodos da
literatura inglesa’. Essas condições, ainda que pareçam liberais, e ainda que de fato o sejam, não
convêm exatamente ao tema que nós escolhemos”.
Quanto a mim, eu gostaria de começar por uma invocação a Forster, agradecendo-lhe por ter-
me mostrado o caminho e por ter-me dado o exemplo da indisciplina. Sem ele, eu talvez houvesse
tentado traçar um quadro erudito e cronológico da história da Biografia na Inglaterra. Teria-lhes dito
que, por volta do ano 690, Adomnano, santo e historiador irlandês, escreveu The Life of Saint
Columba (“A Vida de São Columba”), que foi muito louvada e da qual diz-se que foi o mais completo
trabalho biográfico da literatura europeia, não somente naquele período, mas também através toda a
Idade Média. Daí, eu teria passado à Vida do Rei Alfredo, escrita por Asser que, pelo que sei graças a
seus comentadores, fala muito naturalmente de tudo, menos de seu herói, o que o torna o antepassado
e precursor da maioria dos biógrafos modernos. Teria feito uma conferência sobre Walton e sobre
Johnson. Teria, em seguida, chegado a Boswell, dizendo que criou a biografia moderna, o que teria
sido um erro, mas um erro disfarçado de evidência devido a uma longa antiguidade. Eu teria composto
um elogio sem reservas de Boswell, de sua inteligência e da fineza de sua psicologia. Teria zombado
daqueles que o tomaram por um tolo e teria citado a frase: “Um homem mais sábio que Macaulay,
James Boswell.” Ou talvez eu tivesse, pelo contrário, negado o talento de Boswell, e tentado mostrar
que aquilo que viemos a considerar como engenhosidade, não passa de uma enorme ingenuidade que,
por sua simplicidade, deleita o nosso orgulho. Numa conferência sobre a biografia vitoriana, eu teria
tecido elogios a Moore e a Lockhart; teria falado do Macaulay de Trevelyan; do Dickens de John
Forster; do Goethe de Lewes; e, no mesmo movimento, teria reabilitado Froude. Finalmente, uma
última conferência sobre Strachey, Nicolson e seus imitadores teria completado um sobrevoo da
biografia inglesa. Eu não lhes teria ensinado nada, porque vocês sabem tudo isso melhor do que eu,
mas talvez tivesse dado a mim mesmo a tranquilidade de espírito de um homem que seguiu as regras.
Sim, eu teria preparado essas conferências com uma fácil monotonia se não tivesse lido
Aspectos do Romance. Mas, tendo lido Forster, e especialmente a bela comparação que traça entre a
erudição autêntica, que é e sempre foi a honra desta Universidade, e a pseudoerudição, que não passa
de uma vã paródia da primeira, pensei que, já que as circunstâncias não haviam feito de mim um
erudito profissional, eu devia evitar o ridículo de brincar de pseudoerudito.
No último mês de janeiro, no entanto, eu quase cedi à tentação. “Sim, pensei, Cambridge
inteira sabe dessas coisas, mas talvez seja possível renovar, dar nova forma a uma matéria já tão
usada.” E, sem encontrar outra maneira de tratar do tema, cansado de nadar, e desajeitado, estava
prestes a me abandonar às correntes cronológicas quando, por volta do fim do mês, fui resgatado pelo
Sr. Harold Nicolson. O Sr. Nicolson, que é, por sua vez, um autêntico erudito, publicou neste ano um
pequeno livro que chamou de The Development of English Biography (“O Desenvolvimento da
Biografia Inglesa”), no qual fez exatamente o que eu me propunha a fazer. E o fez com uma perfeição
tal que não me restava uma só palavra a acrescentar, e, desta vez, a bem ou a mal, tive que abandonar
os caminhos fáceis, abrir mão da Vida de São Columba, da de Alfredo o Grande, e buscar outra forma
de apresentar-lhes a biografia. De qualquer forma, o que nos interessa, tanto a mim quanto a vocês,
não é uma enumeração de todas as obras que foram dedicadas à narração de existências humanas ao
longo dos dois mil anos em que existiram ingleses e em que escreveram. Não se trata apenas de um
problema histórico; trata-se inteiramente de um problema ético e de um problema estético.
Existe uma biografia moderna? Trata-se de uma forma literária diferente da biografia
tradicional? São legítimos os métodos que ela seguiu, ou devemos, pelo contrário, abandoná-los? A
biografia é uma arte, ou uma ciência? Ela pode ser, como o romance, um meio de expressão, uma
libertação para o autor ou para o leitor? Estes são alguns dos problemas que poderemos explorar
juntos, tomando, por fidelidade ao espírito desta fundação, os nossos exemplos na literatura inglesa.
Em primeiro lugar, existe um tipo de biografia que podemos chamar de moderna e que se
distingue, de forma constante e definida, das biografias escritas antes de nossa época? Esta é uma
questão a respeito da qual a Inglaterra literária se encontra atualmente um tanto dividida. A palavra
“moderna” perturba, aqui*, um grande número de mentes excelentes. Os movimentos literários, assim
como os movimentos políticos, são oscilatórios. Após uma crise de antivitorianismo, o pêndulo,
naturalmente, voltou a cair.
Em 1918, o Sr. Lytton Strachey escreveu:
A arte da biografia parece ter atravessado, na Inglaterra, um triste período… Quem não
conhece os dois grandes volumes através dos quais temos o costume de celebrar os mortos?
Com sua massa de documentos mal digeridos, seu estilo negligenciado, seu tom de panegírico
entediante, sua lamentável falta de discernimento, de desapego, de propósito? Para nós, eles
* *
N.d.T.: “Aqui”, no contexto desta obra, se refere à Inglaterra.
são tão familiares quanto o cortejo dos agentes funerários. Têm o mesmo ar de lenta e
mortuária barbárie.
Tal sentença fora, na época, aprovada na Inglaterra pela maior parte daqueles que a liam. Será
que ainda seria o caso em 1928? Creio que não. Dentre os críticos ingleses, os mais avançados hoje
louvam com erudita faceirice a engenhosidade, a abundância ingênua dos grandes biógrafos
vitorianos, e afirmam alegremente que, afinal de contas, seus métodos eram os mais sãos.
No entanto, a reação fora, sem dúvida, útil. Os contemporâneos da rainha Vitória tinham
criado convenções com base nas quais uma sociedade estável, e talvez feliz, tinha vivido. Essa
estabilidade e felicidade fizeram com que se duvidasse da utilidade das convenções, e toda uma
geração mais jovem tinha se acostumado a tratá-las como vestígios vãos e um tanto cômicos. Ora,
como todas as coisas humanas, elas eram, ao mesmo tempo, admiráveis e cômicas. Era certo que a
admiração tivesse sua vez, e viesse se misturar ao humor.
Mas nós podemos admirar com muita sinceridade as qualidades de um tipo de biografia e, no
entanto, admitir que exista outro. Leiam uma página de uma biografia vitoriana, e leiam em seguida
uma página de Strachey. Verão imediatamente que têm diante de si dois tipos de livros muito
diferentes. Um livro de Trevelyan ou de Lockhardt, ainda que possa ser muito bem-feito, é antes de
tudo um documento; um livro de Strachey é antes de tudo uma obra de arte. Sem dúvida, Strachey é
também um historiador exato; mas ele soube fazer com que sua matéria coubesse numa forma perfeita,
e, para ele, o essencial foi essa forma.
O que vale para os grandes historiadores de cada uma dessas duas épocas também vale para
autores mais medíocres que, tentando explorar um triunfo literário, acreditaram poder escrever obras-
primas pela simples aplicação de procedimentos. O Sr. Desmond MacCarthy escreveu:
O método de Macaulay logo fora descreditado por imitadores que não tinham, para sustentá-
lo, o conhecimento do primeiro. Tampouco o Sr. Lytton Strachey foi abençoado em sua
prosperidade literária, pois a maioria de seus admiradores macaqueiam seus métodos sem
compreender sua discrição. A forma cuja moda ele iniciou exige o mais fino tato literário e
as mais minuciosas pesquisas.
Mas, ainda que muitos imitadores, sejam vitorianos ou modernos, apresentem o caráter
comum de serem escritores deploráveis, eles ainda formam duas espécies muito distintas. Uma
biografia vitoriana ruim é uma massa amorfa de material mal digerido. Uma biografia moderna ruim
é um livro de um brilho falso, animado por um espírito que quer ser irônico e só sabe ser cruel, sem
profundidade. Boa ou ruim, existe uma biografia moderna.
Podemos nos perguntar a partir de que momento a antiga biografia deixou de existir, e nasceu
a biografia moderna. Virginia Woolf e Harold Nicolson concordam mais ou menos quanto à data da
mudança. Harold Nicolson dá 1907. Virginia Woolf pensa poder afirmar que, em dezembro de 1910,
ou por volta dessa data, o caráter humano mudou.
Ela escreve:
Não afirmo que numa bela manhã, saiu-se ao jardim e viu-se que uma rosa havia
desabrochado ou que uma galinha havia posto um ovo. A mudança não foi assim tão súbita e
definida. Mas ainda assim houve uma mudança. Admitamos que ela date aproximadamente
do ano 1910. Encontramos seus primeiros sinais nos livros de Samuel Butler, especialmente
em The Way of All Flesh (“O Caminho de Toda Carne”); as peças de Bernard Shaw
constituem outros exemplos. Na vida podemos observar a mudança, para usar um exemplo
familiar, no caráter de nossas cozinheiras. A cozinheira vitoriana vivia nas profundezas da
terra, como um monstro formidável, silencioso, obscuro; a cozinheira georgiana é uma
criatura de sol e de ar livre. Querem exemplos mais importantes desse poder de mudar que a
raça humana possui? Todas as nossas relações tornaram-se diferentes: as relações entre
mestres e servos, entre maridos e mulheres, pais e filhos, e quando as relações humanas
mudam, mudanças acontecem ao mesmo tempo na religião, nos costumes, na política, na
literatura. Admitamos que uma dessas mudanças aconteceu por volta do ano 1910.
Texto sedutor e provocador ao mesmo tempo. “Você não vê, respondem muitos ingleses, que
a própria precisão desse paradoxo é uma prova de sua absurdidade? Não, a natureza humana não
mudou; ela não pode mudar. Os afetos humanos são os mesmos. As relações entre mestres e servos,
entre pais e filhos sofrem modificações aparentes, temporárias, mas logo causas mais profundas
restabelecem as relações necessárias. O que mudou é superficial, e é justamente porque você
negligencia os elementos profundos e duráveis, preferindo uma leve transformação superficial, que
você escreve romances estranhos, biografias cruéis, injustas e estéreis.”
Tendo grande admiração por Virginia Woolf, admito sem custo que sua atitude é, no texto que
citamos, voluntariamente paradoxal. Mas um paradoxo não é sempre um erro. Sem dúvida, a natureza
humana só muda lentamente; isso não impede que haja na história da humanidade alguns períodos
raros em que, num tempo muito curto, realizaram-se imensas revoluções. Podemos tomar como
exemplo a passagem do pensamento livre dos filósofos gregos ao pensamento teológico da Idade
Média, ou ainda, na época de Bacon e de Descartes, a passagem do pensamento teológico aos
primeiros pensamentos científicos e positivos. Assim, ao que parece, na Inglaterra assim como em
outros lugares, por volta do começo do século XX, a humanidade passou por um desses períodos de
revolução intelectual. Que traços nos permitirão reconhecer este período, que foi o nosso?
O biógrafo vitoriano era dominado pela ideia de virtude. Nobres, castos, severos, é assim que
os heróis vitorianos nos são apresentados. A estátua é sempre maior do que realmente era,
com seu chapéu de forma e redingote, e a maneira de apresentá-la se torna cada vez mais
desajeitada e cada vez mais trabalhosa.
Os costumes e a família se uniam para impor esse tratamento convencional. William Roscoe
Thayer afirma:
Nos Estados Unidos, no século XIX quando morria um cidadão notável, advogado, juiz,
comerciante ou escritor, era considerado como uma evidência que seu pastor, se pastor
houvesse, escreveria sua vida, a menos que se preferisse sua mulher, sua irmã ou sua prima
para realizar o trabalho.
Mas, nas velhas biografias vitorianas, a qualidade mais apreciada pelas famílias dos heróis
era o respeito do decoro. A vida privada do homem, suas ocupações cotidianas, suas fraquezas,
suas loucuras, seus erros, deviam ser silenciados. Se sua vida havia sido notoriamente
escandalosa, só deviam ser feitas vagas alusões aos escândalos3.
“Que direito, diz Tennyson, tem o público de conhecer as loucuras de Byron? Byron lhe deu
belos versos, e o público deveria se contentar com isso.”
Uma massa de informações era posta à disposição do autor: cartas, cadernos, diários; mas
tanta generosidade o obrigava a um lealismo estrito. Ele era obrigado a mostrar-se discreto e elogioso.
Quando havia uma viúva, ela vigiava ao mesmo tempo o retrato de seu marido e a atitude que ela
própria queria ver-se atribuir para a posteridade. Os resultados são deveras conhecidos. “Livros tão
recheados de virtude, diz um escritor, que comecei a duvidar da existência de qualquer virtude.”
De repente, naquela tranquila abadia onde acumulavam-se monumentos recobertos por
pesados tecidos, Strachey introduziu sucessivamente o Eminent Victorians (“Vitorianos Eminentes”)
e a Rainha Vitória. Ao lado das estátuas de pedra do século XIX, essas esculturas de barro irônicas,
graciosas, surpreenderam e encantaram. Tudo ali era diferente da tradição do gênero. Os biógrafos
vitorianos haviam contado a vida de heróis que admiravam sem reservas; eles os haviam escolhido
por causa dessa admiração. Strachey parecia ter escolhido os seus porque não os admirava sem
reservas. “A escolha de um ponto de vista, escreveu num artigo recente, não implica de maneira
alguma a simpatia. Poderíamos quase dizer que ela implica o contrário. É no mínimo curioso observar
que em muitos casos grandes historiadores travaram uma guerra aberta contra seus objetos.” E ele
mostra que Gibbon, um dos seres mais civilizados que já existiram, escolheu escrever a história de
uma época bárbara, e que Michelet, republicano e romântico, não fez história mais louvável do que a
do século de Luís XIV. A observação se aplica perfeitamente ao próprio Strachey. Ele escolheu a
época vitoriana porque seu espírito reage com força contra o vitorianismo. Ele não é mais um escultor
de monumentos fúnebres, é um pintor perfeito de retratos póstumos, levemente (Ó! quão levemente)
caricaturais.
3
C. Trueblood.
O método de Strachey não é nem um pouco pesado. Ele não critica, ele não julga, ele expõe.
Seu método é o dos grandes humoristas. O autor nunca aparece como tal. Ele caminha por trás da
rainha, por trás do cardeal Manning, por trás do general Gordon; ele imita seus gestos, seus tiques de
linguagem, e, assim, obtém excelentes efeitos cômicos.
A sua imitação dos costumes da rainha, realçando, como ela, todas as palavras de uma frase,
escrevendo, como ela, “lord M…” em vez de “lord Melbourne”, “Caro Alberto” em vez de “o príncipe
Alberto”, todos esses detalhes criam uma imagem muito natural e muito humana. A citação de um
documento oficial chega a produzir, por vezes, um efeito cômico um tanto cruel. Por exemplo, quando
fala da construção do Albert Memorial, Strachey não afirma que o monumento é feio; ele
simplesmente o descreve como é, e cita as palavras do próprio arquiteto.
Quando esse método é empregado por Lytton Strachey, por Nicolson, e por alguns outros, ele
produz excelentes livros porque seus autores são artistas bons demais para não sentir o quanto é
importante que uma deformação artística seja delicada e moderada. Se, pelo contrário, ele for aplicado
por escritores sem simpatia pelo ser humano e sem penetração psicológica, acontece que ele produza
apenas efeitos cômicos um tanto baixos. Alguns dos discípulos de Strachey, sem possuir seu profundo
conhecimento dos fatos e dos homens, simplesmente aplicaram suas receitas. Em vez de escolher,
como heróis biográficos, “grandes homens, para que possamos imitar suas virtudes, eles se
contentaram com homens desprezíveis, para que possamos rir de suas loucuras”. Alguns desses livros
nos tornam nostálgicos da antiga Life and Letters (“Vida e Cartas”) em dois volumes, que, no fim de
contas, era uma obra erudita muito útil, e o leitor é muitas vezes justamente excedido por “esse jeito
insolente de puxar leões mortos pela barba”*.
Mesmo empregada com arte, com moderação, com gosto, a atitude do biógrafo moderno foi
frequentemente condenada, e condenada por mentes importantes. Críticos e historiadores
profissionais afirmaram:
Talvez os personagens tradicionais que nos haviam sido descritos, o Wellington da lenda
inglesa, o Washington da lenda americana, não fossem verdadeiros. É possível, mas de que
nos importa? Nem toda verdade precisa ser dita. Frequentemente nós sabemos, a respeito de
nossos amigos vivos, histórias cruéis que preferimos não contar. Por que mostraríamos menos
lealismo para com os nossos amigos mortos e os grandes homens? Eles com certeza não eram
perfeitos; com certeza havia uma parcela de lenda no retrato demasiado belo que deles se
havia pintado. Mas essa lenda não inspirava grandes coisas? Ela servia de exemplo para
homens fracos, e os elevava além de si mesmos.
E será que ela era mesmo assim tão falsa? Frequentemente as ações de um homem são maiores
do que ele. Dirão: homem algum é grande para seu criado de quarto. Isso não é a prova de que não
existem grandes homens; é a prova de que existem poucos grandes criados. Podemos encontrar e
* *
N.d.T.: Expressão inglesa, originalmente “Hares may pull dead lions by the beard” (lit.: “Lebres podem puxar leões
mortos pela barba”). Como Maurois escolheu uma tradução literal para o francês, mantivemos a mesma escolha. Um
equivalente em português seria: “cão mordido, todos mordem”.
contar, a respeito de um escritor genial ou de um político, anedotas que o diminuem, mas será que ele
realmente era mais próximo do homem ordinário assim desvendado do que do herói que todo um
povo pensava ter visto? O herói talvez não passe de uma máscara, mas a máscara não pode se tornar
a pessoa verdadeira? Foi o Sr. Max Beerbohm que contou, em seu Happy Hypocrite (“Feliz
Hipócrita”), a história de um devasso que, para seduzir uma jovem moça, veste uma máscara de jovem
rapaz inocente, e cujo rosto acaba se tornando similar à máscara. “Plutarco mentiu” escreveu, após a
guerra, um brilhante panfletário francês. Talvez seja verdade, mas será que não foi uma coisa boa que
Plutarco tenha mentido tão bem?
Para trazer uma resposta a essa questão da lealdade para com o herói, poderíamos citar o Dr.
Johnson: “O valor de qualquer história, diz, depende de sua verdade. Uma história é o retrato de um
indivíduo, ou da natureza humana no geral. Se for falso, ele não retrata nada.” Sem dúvida pode haver
casos em que dizer a verdade é custoso, seja por respeito a um amigo morto, seja porque ofenderia
uma mulher ou crianças ainda vivas. Nesses casos, a solução é simples. Não se deve escrever tal vida.
Se a escrevemos, temos que escrevê-la verdadeira.
No que diz respeito ao exemplo, ao valor da lenda para a formação do caráter do leitor, seria
fácil para Strachey se defender. Decerto é excelente propor grandes exemplos aos homens, e
particularmente aos jovens, mas eles só procurarão imitá-los se os modelos forem verossímeis. A
biografia elogiosa sistemática não possuía valor educativo algum porque ninguém mais acreditava
nela. Toda uma geração criada no respeito da verdade científica exigia, para se entregar ao entusiasmo,
a sinceridade do biógrafo. Ademais, a grandiosidade de um caráter nos toca ainda mais na medida em
que, por outro lado, nós o sentimos humano e próximo de nós. Se um ser que possui nossas fraquezas
alcançou, pela força de sua vontade, a santidade ou a glória, nos sentimos encorajados e talvez
melhorados. Mas quem gostaria de imitar as atitudes de uma estátua de pedra?
Além do mais, seria falso dizer que um método como o de Strachey elimina toda grandeza de
seus heróis.
O general Gordon que ele nos deu, e até mesmo seu príncipe Alberto, são personagens que
possuem certa nobreza e que pelos quais temos simpatia. No caso da rainha Vitória, talvez Strachey
tenha começado o livro com intenções irônicas, mas o terminou com um retrato pleno de majestade
e de ingênua poesia. Foi um de vocês que, em outra ocasião, me disse que o fenômeno mais notável
da biografia moderna é a conquista de Strachey pela rainha Vitória. Strachey não mostrou que o herói
é um homem ordinário, mas sim que um homem ou uma mulher ordinários podem se tornar um herói
ou uma heroína. Acredito que essa ideia seja reconfortante para o leitor comum. Se eu fosse um dos
heróis de Strachey, preferiria ser amado pelo que realmente fui, uma mistura de qualidades e defeitos,
do que por ter tido uma alma bela demais e que na verdade nunca fora minha.
Walt Whitman pronunciou belas palavras sobre o assunto:
Eis, por exemplo, Abraham Lincoln… Conta-se dele todo tipo de histórias, algumas
verdadeiras, outras apócrifas; e ainda volumes inteiros de histórias (decentes e indecentes)
lhes são atribuídas: histórias verdadeiras, histórias falsas, e assim Lincoln chega até nós mais
ou menos falsificado. E no entanto, eu sei que o herói é, afinal de contas, maior do que
qualquer realização…, sem dúvida alguma…, da mesma forma que todo homem é maior do
que seu retrato, uma paisagem maior do que o quadro que a representa e os fatos maiores do
que qualquer relato que deles possamos conhecer. Penso com frequência que cada homem
deve ter sido tão diferente do homem que encontramos nos mitos, nos mitos em que
esquecemos, ou explicamos mal, as circunstâncias, os incidentes, o ímpeto, a atração de
momentos concretos. É difícil extrair a personalidade real de um homem – de qualquer
homem – dessa massa caótica, desses escombros históricos.
E o homem que foi para Whitman o que Boswell foi para Johnson, Traubel, observa o seguinte:
Whitman me disse uma noite, como havia dito antes: ‘ – Um dia você escreverá sobre mim;
tome o cuidado de escrever honestamente: o que quer que faça, não me embeleze. Ponha por
escrito todas as minhas injúrias, meus infernos e minhas danações.’ E acrescentou: ‘ – Eu
detestei tanto a biografia na literatura por não ser verdadeira… Veja nossas figuras nacionais:
como são estragadas por mentirosos, por gente que crê poder embelezar o trabalho de Deus
todo-poderoso, que põe um toque a mais aqui, outro lá, e novamente aqui, e lá mais uma vez,
até que o homem verdadeiro tenha se tornado irreconhecível.’
Whitman tinha razão: o biógrafo que crê poder embelezar o trabalho da natureza corrigindo o
que há de ridículo nos grandes homens, omitindo uma carta de amor escrita num momento de fraqueza,
negando uma mudança de campo ou de doutrina, esse biógrafo mutila, desfigura e, em última análise,
diminui seu herói. Só é mais perigoso o biógrafo que negligencia ou elimina elementos de beleza, de
grandeza moral de seu personagem.
Tentamos definir o primeiro traço da biografia moderna: a busca intrépida pela verdade. Mas
o gosto da verdade seria uma fórmula insuficiente para caracterizar ao mesmo tempo a biografia
moderna e a nossa época, porque não é a primeira vez que uma humanidade cética se recusa a aceitar
uma verdade deformada. O mesmo aconteceu na época dos gregos, assim como na do Renascimento,
e, no entanto, o tipo de biografia que nos interessa não foi produzido nessas épocas. Os personagens
de Plutarco ou os de Vasari, grande biógrafo dos pintores do Renascimento, nunca são homens
completos, homens verdadeiros. Por quê?
Parece que os escritores do nosso tempo têm, mais do que as mentes que os precederam, o
senso da complexidade e da mobilidade dos seres humanos, e menos do que elas o senso de sua
unidade. Essa atitude pode ser explicada, por um lado, pelo ressurgimento das velhas filosofias da
mobilidade em Bergson e seus discípulos; por outro lado, pelos progressos da física e da biologia
modernas que, por trás das construções relativamente simples que havíamos edificado outrora (no
tempo em que o átomo e a célula pareciam ser unidades indivisíveis que compunham os corpos),
descobriram novos universos, infinitamente pequenos, mas tão complexos quanto aquele em que se
encontram.
Neste ponto, o psicólogo imitou o físico. Também pensávamos ter descoberto, na mente
humana, átomos indivisíveis. Havíamos definido caráteres e sentimentos; tal homem era bom, tal
outro mau; Dickens era o homem do lar e Byron o Dom Juan. Por trás dessas construções simples, o
historiador moderno busca a rede quase invisível e, no entanto, presente que as sustenta. Assim que
observa com um pouco de profundidade, ele descobre uma vida misteriosa e muitas vezes ignorada
daquele que a viveu, daquele em que ela existiu.
Sem dúvida levamos longe demais o sistema de Freud, e talvez tenhamos dado espaço demais
ao inconsciente, termo aliás mal definido, na explicação de um caráter, isso tudo às custas da vontade
e da liberdade humanas. Mas entendemos que um ser humano, um evento humano são amálgamas
mais complexos do que havíamos pensado até então. Assim como, para explicar fenômenos
observados na física, é preciso imaginar átomos como sistemas de elétrons girando em torno de um
núcleo central, para compreender um indivíduo é preciso ver que ele é feito de personalidades
múltiplas, que, dentro dele, ora se encontram todas ao mesmo tempo, ora se sucedem. Há não somente
o personagem real, que já é difícil de definir, aquele que pensamos entrever quando nós mesmos nos
examinamos sinceramente, mas há também aquele que há pouco chamamos de máscara, e que no
caso de Disraeli, por exemplo, era o cínico indiferente a tudo, enquanto o homem real era um tímido.
Há o personagem tal qual o veem os outros e que varia de acordo com as testemunhas, porque nós
livramos a cada um de nossos amigos uma nova face de nosso caráter. O Byron descrito por Shelley
não era aquele descrito por Trelawny, nem o de Lady Blessington, nem o de Claire Clairmont, e isso
sem que a sinceridade tenha faltado a nenhum deles. “Se estou me contradizendo? pergunta Walt
Whitman. Muito bem, estou me contradizendo, contenho multidões.”
O homem moderno crê ser impossível compreender o que quer que seja da psicologia do ser
humano sem examinar suas diferentes faces e sem buscar o infinitamente pequeno. No romance
francês, Proust nos livrou essa análise detalhada, e creio que ele exerceu grande influência sobre os
romancistas ingleses. Em história, admitimos todos que os eventos que outrora explicamos como
devidos a uma causa simples ou a um grande personagem são, na realidade, a soma de pequenos atos
e pequenas vontades. Vejam por exemplo o quanto os teóricos da revolução americana e da guerra de
Independência se transformaram em alguns anos. Na biografia, reconhecemos que um homem não é
um bloco de virtudes e de vícios, que não se trata de julgá-lo moralmente, e que ademais ele não é o
mesmo desde a adolescência até a velhice. Em Proust, o personagem de Saint-Loup possui, no
começo, um belo caráter, e acaba se tornando próximo de seu tio monstruoso, o Sr. de Charlus; da
mesma forma é possível que Disraeli, tendo começado a vida com graves defeitos de caráter, a termina
numa serenidade que não é desprovida de grandeza, ou de beleza.
Não devemos dizer que nós sempre soubemos que o homem é um ser complexo. Com certeza
um Montaigne na França, ou um Shakespeare na Inglaterra conhecem tanto quanto Proust a
complexidade humana, mas, em seguida, por um lado, a Reforma restringe as possibilidades de
transformação das pessoas com a ideia de predestinação; por outro, na França, os psicólogos clássicos
do século XVII, ao construir caráteres abstratos, os concebem necessariamente mais simples do que
realmente eram. Comparem, por exemplo, a complexidade das nuances de um personagem como
Hamlet à relativa simplicidade dos personagens de Corneille. Nicolson notou com razão a influência
destrutiva dos moralistas franceses do século XVII e, de forma geral, da moda dos “caráteres” sobre
a bibliografia. Ele escreve:
A influência dessa psicologia clássica que precisava, por motivos morais, admitir que o
homem não muda se prolongou durante todo o século XVIII e até mesmo grande parte do século XIX.
O romântico byroniano se entrega à fatalidade de seu caráter. Um personagem como Byron nos
surpreende porque tem tão pouca consciência das causas reais de seus sentimentos. Ele não se analisa;
não tenta, como Meredith, transformar seu caráter; ele o aceita, mas acredita ser homogêneo, o que é
falso. Só muito mais tarde, com os grandes russos e particularmente Dostoiévski, começa a reaparecer
a ideia de uma multiplicidade viva dentro de uma mesma alma. Até que a análise de Proust reduza a
pó a ideia de personalidade. Desde a análise proustiana, parece que só restam, para se reconhecer um
homem, seu nome, seu corpo, sua roupa e alguns tiques externos. Por baixo se desenvolve a realidade,
ou seja, uma sucessão de estados e de sentimentos simultâneos mas desligados, e que fazem com que
o homem se torne próximo das colônias de animais marinhos que vivem nos fundos dos mares. Ele é
uma colônia de sentimentos, um polipeiro de pessoas diversas4.
Essa imagem do homem é justa? Nenhuma imagem do homem é justa. O que é verdade a
respeito do homem, assim como de todos os fenômenos naturais, é que ele obedece a vários ritmos.
Ora se encontra particularmente consciente de sua complexidade; ora, pelo contrário, compreende
que só é válido enquanto ser social se puder impor em si uma unidade, ainda que seja artificial. Neste
4
Sobre esse tema, ler Ramón Fernández: Messages (“Mensagens”) (N.R.F.) e Introduction à l’étude de la
personnalité (“Introdução ao estudo da personalidade”) (Au Sans Pareil).
momento preciso da história, é o sentimento de complexidade que domina, e podemos indicar, como
um segundo traço moderno, a preocupação com a complexidade da pessoa.
Resta um terceiro. Não creio que o homem moderno busque numa biografia exatamente a
mesma coisa que nela buscava o homem do século XVII. O homem clássico, prisioneiro de uma
doutrina religiosa e moral mais estrita, solidamente sustentado por ela, buscava acima de tudo nos
livros que lia uma confirmação de sua atitude. Daí o seu gosto pelos tratados de moral, pelos
pensamentos, pelas biografias no estilo de Plutarco. O homem moderno é mais inquieto. Solicitado
por seus instintos, desprovido em muitos casos de crenças fortes que possam ajudá-lo a resisti-los,
perturbado por seus hábitos analíticos, ele quer, em suas leituras romanescas ou históricas, encontrar
companheiros de inquietude. As lutas que ele trava, as longas e sofridas meditações às quais se livra,
ele gostaria de acreditar que os outros as conhecem, e agradece às biografias mais humanas por lhe
mostrar que até mesmo o herói foi um ser dividido. Platão quis que uma alma humana estivesse
sempre esquartejada entre dois cavalos, um branco, o outro negro, que a puxam, um para o alto, o
outro para a baixeza de sua natureza. A humanidade, durante alguns séculos, tinha feito o esforço de
esquecer a existência do corcel negro. Talvez nossa época negue com excesso de leveza a do cavalo
branco, mas o bom biógrafo me parece ser aquele que sabe ver o branco e o negro, e que mostra como
um homem, tendo que conduzir esse par tão difícil, pode, com dificuldade, conseguir fazê-lo. “A
biografia, diz Nicolson, é uma preocupação, um consolo, não da certeza, mas da dúvida.” Isso me
parece profundo e verdadeiro. Ora, nós estamos em uma época de dúvida, e é por isso que gostamos
de buscar na vida dos grandes homens a prova de que eles também duvidaram e, apesar disso,
conseguiram agir.
Acredito que tenhamos, agora, evidenciado os traços essenciais da biografia de nossa época.
Por motivos que tentamos explicar, nós pedimos ao historiador a verdade purificada de todo
sentimento, e acreditamos encontrar essa verdade nos inconstantes aspectos de uma personalidade
complexa. Examinemos agora se é possível conciliar essas duas exigências em nossas mentes. A
preocupação com a verdade supõe um aparelho completo de documentos; será que devemos temer
que a personalidade se afogue em meio a tal massa? A busca pela verdade histórica é uma obra erudita;
a busca pela expressão de uma personalidade é mais uma obra artística; é possível fazer os dois ao
mesmo tempo? Harold Nicolson, que não acredita na biografia obra de arte, pensa que não. Ele pensa
que sempre haverá conflito entre o conteúdo e a forma, e que se for preciso sacrificar um dos dois, é
melhor que seja a forma. Virginia Woolf também se preocupa com essa questão:
‘O objeto da biografia’, dizia sir Sidney Lee, que talvez tenha lido e escrito mais Vidas do
que qualquer outro homem de sua época, ‘é a transmissão verídica de uma personalidade.’
Frase alguma nos parece levantar de forma mais clara o problema duplo da biografia tal qual
ele se apresenta a nós hoje. De um lado está a verdade; do outro, a personalidade. E se
pensarmos a verdade como algo sólido como o granito; a personalidade como algo intangível
como o arco-íris; se ponderarmos que a finalidade da biografia é de reunir os dois aspectos
em um todo sem que a costura fique visível, admitiremos que o problema é difícil e não nos
surpreenderemos se, em sua maior parte, os biógrafos não conseguirem resolvê-lo. Porque a
verdade de que fala sir Sidney, a verdade que a biografia exige, é a verdade em sua forma
mais dura, mais resistente; é a verdade como a encontramos no British Museum; é a verdade
de que todo vapor de falsidade foi expulso pela pressão da pesquisa. Só quando tal verdade
fora estabelecida é que sir Sydney condescendia em utilizá-la para construir um monumento.
E ninguém pode negar que as massas de fatos sólidos que ele acumulou, seja aquela que
chamou de Shakespeare, ou a que chamou de Rei Eduardo VII, são dignas de todo o nosso
respeito, porque há virtude na verdade. Ela tem um poder quase místico. Como o rádio, ela
parece capaz de deixar escapar sem fim elementos de energia ou átomos de luz. Ela estimula
a mente como ficção alguma, por mais hábil, por mais colorida que seja, pode estimulá-la.
Sendo a verdade assim, eficaz e suprema, só podemos explicar o fato de que a Vida de
Shakespeare, de sir Sidney, seja tão tediosa, e sua Vida de Eduardo VII tão ilegível, se
supormos que, ainda que ambas sejam carregadas de verdade, ele não soube escolher aquelas
verdades que transmitem a personalidade. Para que a luz da personalidade possa brilhar
através deles, é preciso que os fatos sejam manipulados. Alguns devem ser mais bem
iluminados, outros deixados na sombra e, no entanto, nesse processo, nada devem perder de
sua integridade.
Sim, é verdade. Parece que a preocupação com a verdade e o desejo da beleza sejam
necessidades contraditórias. Nas conferências por vir, nós trataremos, se estiverem de acordo, da
“Biografia considerada como obra de arte”, e da “Biografia considerada como ciência”, e espero
poder mostrar-lhes que a arte e a ciência podem se reconciliar. Um grande livro científico, se for um
êxito perfeito, é uma obra de arte. Um belo retrato é, ao mesmo tempo, um retrato fiel e uma
transposição artística da realidade. É exato que a verdade tem a solidez da rocha, e que a personalidade
tem a leveza do arco-íris, mas Rodin, e antes dele os escultores gregos, conseguiram por vezes dar ao
mármore as curvas fugidias e as luzes inconstantes da carne.
CAPÍTULO SEGUNDO
Da biografia como obra de arte
Se, para contemplar nossa própria vida, nós pudéssemos fazê-lo do ponto de vista do artista,
nossa vida nos traria certamente as maiores alegrias estéticas. Nunca um romancista, nunca um
biógrafo poderá mostrar-nos nuances de sentimentos tão refinadas quanto as que observaríamos ao
contemplar nossos próprios amores, nossa ambição, nossos ciúmes, nossa felicidade. Mas nós somos
incapazes de observá-los no momento em que estamos vivendo essas emoções. Elas são fortes demais
e não dão disponibilidade à inteligência estética. Talvez fosse mais fácil sentir uma emoção artística
vendo as vidas daqueles que frequentamos; mas nós temos quase sempre em relação a eles
sentimentos de afeição ou, pelo contrário, de antipatia, e o vigor desses sentimentos nos impede, aqui
também, de observá-los com desapego.
É o que a Srta. Jane Harrison explica tão bem em seu livro Ancient Art and Ritual (“Arte e
Ritual Antigos”):
Para vivenciar uma coisa enquanto obra de arte, precisamos renunciar por um momento a
qualquer desejo de ação. Precisamos nos livrar do medo e da agitação da vida real.
Precisamos nos tornar espectadores. Por quê? Por que não podemos, ao mesmo tempo, viver
e assistir? O fato de que não podemos é evidente. Se virmos um amigo se afogar, não veremos
a delicada curva descrita por seu corpo ao cair dentro d’água, nem os jogos de luz sobre as
ondas da superfície enquanto desaparece. Seríamos estetas monstruosos e desumanos se o
fizéssemos. E novamente, por quê? Não faria mal algum ao nosso amigo se apreciássemos a
beleza da curva e a luz do sol e, ao mesmo tempo, lhe jogássemos uma corda. Mas o fato é
que não podemos observar a curva e a luz, porque todo o nosso ser está concentrado na ação,
no resgate. Nós sequer podemos sentir plenamente, naquele momento, a nossa própria dor e
a perda que vamos vivenciar.
De que precisamos então para que uma vida humana possa nos trazer os prazeres da arte?
Primeiro é preciso que ela seja tão pouco ligada à nossa que, ao contemplá-la, não sentimos nenhuma
necessidade de agir, nenhum sentimento moral, e para isso a melhor forma talvez seja de saber que
ela é irreal, como é o caso quando lemos um romance. Se fossemos David Copperfield e estivéssemos
casados com Dora, tratar-se-ia de uma situação patética, cuja beleza nós não experimentaríamos. No
romance, nós a contemplamos como um naufrágio num quadro, sem sentir a necessidade de nadar e
de se agarrar às plantas mais próximas.
Alguns romancistas matam o prazer estético forçando o leitor a escolher um lado, porque
pretendem resolver por si sós os problemas morais que seus livros levantam. Mas os melhores
romancistas sabem bem que não é essa a tarefa do artista. Tchekhov, por exemplo, escreve a seu amigo
Suvorin: “Você está confundindo duas coisas: resolver um problema e levantar corretamente um
problema. Apenas a segunda é obrigatória para o artista. Em Anna Karenina, nenhum problema é
resolvido, mas o livro traz plena satisfação porque todos os problemas são bem levantados.”
Mas essa não é a única razão pela qual um romance parece tornar mais leve o fardo de nossos
próprios sentimentos, de nossos próprios afetos. Um personagem de romance é simplificado e
construído. Nós conseguimos compreendê-lo. Na vida real, os seres vivos são enigmas perigosos;
suas ações são imprevisíveis; seus pensamentos parecem penetrá-los, e deixá-los com uma rapidez
que confunde; nesse caos, é muito difícil para a inteligência encontrar seu caminho. Estamos diante
de nossos amigos, de nossos inimigos, como diante de dramas infinitamente complexos cujos finais
não conhecemos, cujos finais nunca conheceremos. Um personagem de romance, pelo contrário, é
feito daquilo que o autor quis colocar nele: criado por uma inteligência humana, ele é acessível a uma
inteligência humana. Não se trata mais daquela divina e inesgotável multiplicidade, mas sim de uma
simplicidade relativa e humana. É claro que um personagem pode ser complexo (nos romances
modernos, é quase sempre o caso), mas até essa complexidade é ordenada, e é possível apreendê-la.
Imaginem Uma Passagem para a Índia, de Forster; seus personagens são cheios de nuance; ele quis
e conseguiu nos mostrar as delicadas diferenças que separam os modos de pensar de um europeu e de
um asiático. No entanto, seu livro é claro; muito mais do que a misteriosa Índia, feita de milhões de
seres e em que poderíamos vaguear durante anos sem compreendê-la. A matéria da arte é uma imagem
da realidade longínqua o suficiente para nos livrar do desejo de agir, e ao mesmo tempo ordenada por
uma mente humana. Voltamos aqui à eterna frase de Bacon: Ars est homo additus naturæ*.
Ora, esses dois traços necessários de toda atividade estética (a trégua moral e a reconstrução
da natureza pelo homem) são muito embaraçosos para nós que hoje queremos tratar da biografia
considerada como obra de arte, porque parecem proibi-la, como a história, de entrar no domínio da
arte.
Em primeiro lugar, porque eles existiram, os personagens da biografia não são, tanto quanto
os do romance, feitos para nos livrar da necessidade de agir e de julgar. Não sentimos a mesma
necessidade de julgar Anna Karenina ou Becky Sharp, porque os seres aos quais trouxeram sofrimento
são, também, personagens de um romance. Mas se lermos uma vida de Byron, pensamos que
realmente existiu uma verdadeira lady Byron, uma verdadeira lady Caroline Lamb, e nossos
sentimentos morais são estimulados, às custas de nossos sentimentos estéticos. Isso é ainda mais forte
quando se trata de um homem de Estado. Num inglês que lê a vida de Gladstone ou de Peel, os
sentimentos políticos e históricos são naturalmente provocados e não permitem o desapego necessário.
Mas essa objeção, que não deixa de ter uma certa força, se aplicaria acima de tudo ou à vida
de personagens ainda vivos, ou à de personagens que acabam de desaparecer. Assim que o herói está
morto, e morto há tempo o suficiente para que o leitor não tenha o sentimento de que o que está lendo
pode ferir uma mulher ou uma criança ainda viva, um véu singular de paz e de serenidade se estende
*
N.d.T.: literalmente, “A arte é o homem somado à natureza”.
sobre o quadro já concluído. A morte é o maior dos artistas; quando ela passa, os sentimentos se
acalmam.
Talvez a biografia tenha até mesmo uma vantagem estética sobre o romance; quando lemos a
biografia de um personagem muito conhecido, sabemos com antecedência quais serão as peripécias
essenciais e o desfecho. Poderíamos pensar, em primeiro lugar, que isso prejudica o interesse
suscitado pelo livro : se ele for bem-feito, o efeito é exatamente o contrário. Tudo acontece então
como no teatro. Quando assistimos a uma tragédia, sabemos muito bem que, no final, César vai ser
assassinado por Brutus, assim como sabemos bem que Lear vai enlouquecer, mas o lento andamento
do drama na direção desses acontecimentos já esperados dá a nossa emoção a grandeza poética que a
ideia sempre presente do Destino traz à tragédia grega. Assim, ao ler uma vida cujos acontecimentos
e desfecho nos são conhecidos, parece que caminhamos numa paisagem já conhecida, recuperando
lembranças e completando-as. Sem surpresas, a tranquilidade de espírito com a qual efetuamos essa
caminhada favorece a atitude estética5.
A beleza trágica é ainda maior quando a vida tem um final infeliz. O Sr. Laurence Housman
nos relata uma conversa de Oscar Wilde, na qual explica que uma vida, para ser bela, tem que se
terminar por um fracasso, e ele dá como exemplo a de Napoleão, mostrando que se não tivesse
existido o episódio de Santa Helena, ela perderia todo valor trágico. Não podemos deixar de pensar
que a própria vida de Wilde deve à catástrofe que a encerrou quase todo seu interesse. As vezes o
fracasso é menos visível. No caso de lord Beaconsfield, o observador superficial fica com a impressão
de uma vitória maravilhosa; todos os desejos da infância são realizados na velhice. Porém, o fracasso
intelectual é crítico. Observem a diferença entre o sonho político de Disraeli na época da Inglaterra
ainda jovem e os resultados realmente alcançados pelo primeiro ministro já velho, e experimentarão
um sentimento da vaidade de toda ação que não é um sentimento moral, mas sim um sentimento
estético.
A realidade dos personagens da biografia não os impede de ser sujeitos de uma obra de arte.
Resta, no entanto, uma segunda objeção. Nós dissemos que o caráter essencial das obras de arte é o
de serem sujeitos naturais reconstruídos por uma mente humana. Ars est homo additus naturæ. É
preciso que a ação da mente possa se exercer. Ora, nós compreendemos muito bem como um
romancista constrói seus personagens: ele os forma com sentimentos que comandam uns aos outros
como engrenagens de uma máquina bem-feita; se o romancista for engenhoso, a máquina é tão bem
recoberta de carne que se torna quase invisível, e, no entanto, ela é uma máquina e o mais complexo
herói de romance é infinitamente menos complexo do que o mais simples dos homens. Nós
compreendemos mal como seria possível construir um personagem histórico sem deformá-lo. O
5
Ver Alain, Système des Beaux-Arts (“Sistema das Belas Artes”) (sobre a tragédia).
personagem foi o que foi. Não podemos mudá-lo. Considerem Ruskin, ou Gladstone: cada um deles
foi um ser tão real quanto nós mesmos, quanto nossos amigos; cada um deles foi para aqueles que os
conheceram um enigma diante do qual passaram toda uma vida, sem poder estabelecer uma ordem
clara numa massa excessivamente abundante de observações e de imagens. Qual é o dever do biógrafo?
Tentar recriar aquele enigma vivo? Mas o enigma era feito de tantos detalhes acumulados, que seria
preciso uma vida humana para esgotá-lo. Ele deve, então, agrupar os detalhes, como num retrato bem
desenhado? Montar uma máquina inteligível? Nesse caso, ele se afasta do ser real. “Parece-me, diz
Gilbert Mauge, que há na vida ainda fresca, quase não vivida, uma loucura extraordinária que
desaparece à medida que os anos passam e que os biógrafos, dela se apropriando, compõem sistemas
frios e revoltos que chamam de Henrique II ou Luís XIII.” Fazer do homem um sistema claro e falso,
ou renunciar inteiramente à sua sistematização e compreensão, esse parece ser o dilema do biógrafo.
Esse raciocínio é forte, mas ele também prova a impossibilidade de pintar uma paisagem ou
um rosto reais, porque o rosto é móvel demais, a paisagem é feita de nuances excessivas, de excessiva
diversidade de formas. Porém, é possível pintar um retrato, uma paisagem que sejam, ao mesmo
tempo, fiéis e belas. O biógrafo deve, assim como o pintor retratista e o paisagista, isolar o que há de
essencial no conjunto considerado. Através dessa escolha, e se for capaz de escolher sem empobrecer,
ele realiza exatamente a obra de um artista.
A primeira de suas escolhas é a do sujeito. Um pintor de paisagens não se senta em qualquer
lugar. Ele para diante de uma paisagem natural, dizendo: “Aquilo cabe bem, se enquadra bem…”
Alguns dos grandes impressionistas caminhavam com um quadro com o qual testavam os diversos
elementos da paisagem, antes de escolher aquela que tentariam pintar. O biógrafo também precisa
caminhar com um quadro em mãos, e a escolha do sujeito talvez seja para ele a etapa mais importante.
Há vidas que são naturalmente belas e, de certa forma, seja por acaso ou por um dinamismo interno
ao ser, que são feitas como obras de arte espontâneas. As vezes elas apresentam certa simetria
misteriosa que, se for dissimulada sob uma massa suficiente e rica de carne, dá sua beleza às obras
humanas. A vida de Shelley, por exemplo, é uma composição natural maravilhosa; ela se organiza em
torno de duas mulheres, Harriet, e Mary Godwin; cada uma delas corresponde a um estado diferente
da vida moral de Shelley, e ele é atraído por cada uma delas por sentimentos bastante próximos. A
catástrofe que encerra sua vida acontece na extrema juventude, e antes que a variedade excessiva dos
acontecimentos da idade adulta pudesse arrancar ao personagem a sua admirável simplicidade. Byron
é um herói muito mais difícil: um romancista não se permitiria construir uma vida tão carregada de
incidentes quanto a sua. Ora, ela também tem sua unidade secreta; seria apropriado encontrá-la.
Sir Sidney Lee disse, sobre essa questão da escolha, que o tema de uma biografia “tem que ter
uma certa grandeza”. Poderíamos argumentar que a vida de todo ser humano é interessante e que, se
um biógrafo fosse capaz de analisar todos os pensamentos que atravessaram a mente de um obscuro
mendigo, a análise poderia vir a ser mais bela e mais rica do que uma vida de César. Sterling, ao qual
Carlyle dedicou dois volumes, não era um personagem muito conhecido, e Carlyle o sabia. Vocês
lembram da conclusão:
Tudo o que resta, de forma tangível, das atividades de John Sterling neste mundo são dois
pobres volumes… Um memorial sem grande pretensão que não pensa ter alcançado a
grandeza, mas que mostra simplesmente, tristemente, que havia ali uma promessa de
grandeza. Como outras vidas do mesmo tipo, como todas as vidas, esta é uma tragédia.
Grandes esperanças, nobres esforços. Por baixo das dificuldades e dos obstáculos sempre
crescentes, uma nobreza sempre nova de valentes esforços, e, como resultado, a morte…
Uma vida que não pode forçar a atenção do mundo e que, no entanto, modestamente, a solicita
e, talvez, se a estudarmos bem, recompensará àqueles que lhe darão atenção.
Os biógrafos supõem que só a vida dos grandes homens poderia nos interessar. A arte
desconhece tais considerações. Aos olhos do pintor, o retrato de uma mulher desconhecida,
por Cranach, tem tanto valor quanto o retrato de Erasmo. Não é graças ao nome de Erasmo
que esse quadro é inimitável. A arte do biógrafo seria a de dar tanto valor à vida de um pobre
ator quanto à vida de Shakespeare. É um instinto baixo que nos leva a notar prazerosamente
o encurtamento esternomastoideo do busto de Alexandre, ou a mexa da testa de Napoleão. O
sorriso de Mona Lisa, de quem nada sabemos (talvez seja um rosto masculino), é mais
misterioso. Uma careta desenhada por Hokusai leva a meditações mais profundas. Se
experimentássemos a arte pela qual Boswell e Aubrey se distinguiram, decerto não
deveríamos descrever minuciosamente o maior homem de nosso tempo, ou apontar a
característica dos mais ilustres do passado, mas contar com a mesma preocupação as
existências únicas dos homens, que tenham sido divinos, medíocres ou criminosos.
Apesar do grande charme dessa passagem, não penso que as ideias que ele expressa sejam
justas. O próprio da vida dos desconhecidos, é que ela deixa poucos rastros, a não ser que imaginemos
um gênio que tenha escrito cartas admiráveis e que não as tenha publicado. Mas então, ao publicá-
las, fazemos com que entre na categoria dos grandes escritores. A escolha do romancista é
completamente diferente da do historiador. O romancista não se comprometeu a ser verídico e a
utilizar apenas documentos ou ações verdadeiras. Portanto, ele tem o direito de analisar um
personagem desconhecido, medíocre, e de fazer com que fale, com que medite. Mas e o infeliz
biógrafo, o que ele pode dizer do homem que não deixou nem cartas, nem diário, nem testemunhos
de amigos, nem marcas de suas ações? Em um só caso lhe é dada essa escolha: aquele em que conta
a vida de um personagem com o qual viveu. É certo que um Boswell poderia ter “boswelizado” tal
amigo desconhecido, assim como boswelizou o Dr. Johnson, mas é extremamente provável que o
resultado tivesse sido menos interessante.
Há outro argumento em favor da escolha de homens que tiveram um papel histórico ou
artístico importante, é que justamente a expressão “representar um papel” é aqui mais do que uma
metáfora. Um homem que exerce uma função elevada, seja a de rei, a de general ou a atitude particular
que impõe ao poeta o respeito de sua arte, acaba representando realmente um papel, ou seja, sua
personalidade perde um pouco da obscura complexidade que é o próprio de todos os homens e adquire
uma unidade que não é artificial. Um grande homem (e muitas vezes até mesmo um rei que não é um
grande homem) acaba sendo modelado por sua função; ele tenta, inconscientemente, fazer de sua
própria vida uma obra de arte, tornar-se o que o mundo quer que ele seja, e adquire, não contra sua
vontade, mas apesar de si mesmo e independente de seu valor real, certa qualidade de estátua que faz
dele um bom modelo para o artista. Não pensem que Strachey escolheu a rainha Vitória por acaso; se
a rainha Vitória não tivesse sido rainha, ela talvez tivesse sido uma idosa curiosa, mas não teria a
estranha e sutil poesia que nela produz a mistura da qualidade tão mediana da mulher com a unidade
necessária da rainha.
Suponhamos agora que o sujeito tenha sido escolhido. Será que nós podemos indicar algumas
regras que permitirão ao biógrafo não trabalhar em vão e, respeitando escrupulosamente a verdade
científica, se aproximar da arte do romancista? Muitos historiadores pensam que não; alguns o
disseram de forma severa, mas um certo Lytton Strachey certamente acredita que seja possível e o
demonstra, à moda de Diógenes, realizando-o. Tentarei descobrir, junto com vocês, algumas dessas
regras.
A primeira é, creio eu, a de sempre seguir a ordem cronológica. Este não era o costume dos
biógrafos antigos. Plutarco começa contando as ações de seus heróis, e reúne no final de uma vida as
anedotas que dizem respeito a seu caráter. Estranho método, pois, durante todo o relato, ele priva o
leitor do interesse fomentado pelo conhecimento íntimo do herói. O exemplo de Plutarco foi seguido
durante muito tempo, e aliás, trata-se de um caso notável de imitação, já que não vemos nenhum outro
motivo para explicar que o Dr. Johnson e muitos biógrafos vitorianos tenham reunido no fim de uma
vida o que chamam de “Traços pessoais de caráter”. Até mesmo o Dictionary of National Biography
(“Dicionário da Biografia Nacional”), tão bem-feito, tão importante de outros pontos de vista, aceita
como regra imutável a seguinte ordem: primeiro os Fatos, depois o Caráter.
Acredito que seja muito difícil fazer com que o leitor se interesse por fatos que não são
apresentados em sua ordem normal. O que dá a uma vida seu interesse romanesco é justamente a
expectativa do futuro, é que a cada dia nos encontramos na beira de um abismo que é o Amanhã sem
imaginar o que nele encontraremos. Mesmo quando o homem é ilustre e o leitor sabe muito bem que
o destino do herói é de se tornar em seguida um grande general ou um grande poeta, parece um tanto
absurdo dizê-lo desde a primeira frase de um livro. Por que começar uma biografia como Forster
começa a de Dickens? “Charles Dickens, o romancista mais popular deste país e um dos maiores
humoristas que a Inglaterra já produziu, nasceu em Portsea na sexta-feira dia 7 de fevereiro de 1812.”
Não, nenhum romancista popular, nenhum grande humorista nasceu. O que nasceu no dia 7 de
fevereiro de 1812 foi um pequeno bebê, assim como um pequeno bebê nasceu no dia em que nasceram
Wellington ou Shakespeare.
Devemos então fingir ignorar aquilo que sabemos perfeitamente? Devemos fingir, no começo
da vida de um grande general, que esquecemos toda a sua carreira? Para falar a verdade, eu acredito
que sim. Trata-se talvez de um artifício, mas na palavra artifício, encontramos a palavra arte. O autor
de uma tragédia não nos diz, desde o primeiro verso, qual será o desfecho. O autor de uma biografia
sabe que o leitor conhece o desfecho. Ele não precisa produzi-lo de forma grosseira desde a primeira
página. Deve começar com simplicidade, sem desejo de brilhar, sem outra preocupação do que a de
colocar o leitor na atmosfera que lhe permitirá compreender os primeiros sentimentos do herói
crescente.
Talvez sintamos uma necessidade mais ardente de desenvolvimento cronológico do que os
biógrafos antigos porque acreditamos menos do que eles na existência de caráteres imutáveis. Vemos
a evolução do espírito individual como a evolução de uma raça. Acreditamos que um caráter só se
forma lentamente, através do contato com seres e acontecimentos. Um caráter que permaneceria
idêntico a si mesmo em cada momento da vida de um herói é, para nós, uma construção abstrata da
mente. Não se trata de uma realidade. Nosso ponto de vista é aquele que miss Lowell indica no
começo de sua biografia de Keats: “Meu objetivo foi dar ao leitor a impressão de estar vivendo com
Keats, de sofrer as mesmas influências que ele, de evoluir em seu círculo, observando a chegada dos
poemas à medida em que, dia após dia, eles nascem para a experiência.”
É difícil fazer de uma biografia uma obra de arte sem mostrar acontecimentos e personagens
se desenvolvendo progressivamente na alma do herói e ao mesmo tempo que ele. Não acredito que
seja permitido, numa biografia de Byron, por exemplo, retratar Shelley antes do momento em que se
encontraram, e é desejável que seu retrato seja parecido com o que ele foi aos olhos de Byron naquele
momento. Um dos aspectos essenciais da vida é a transformação lenta, na mente de cada um de nós,
do personagem dos nossos amigos. Um ser que pensávamos perfeito de repente nos parece infalível.
Foi o caso, por exemplo, de Godwin para Shelley; o de Disraëli para John Manners. O biógrafo não
antecipa as descobertas de seu herói. Nada é mais propício à destruição de um movimento do que
escrever, por exemplo: “Apesar de a primeira impressão ter sido favorável, mais tarde ele viria a
descobrir que…” E.-M. Forster, a partir do filósofo francês Alain, explicou-lhes, em suas conferências
sobre o romance do ano passado, que a questão do “ponto de vista” é muito importante na construção
de um romance. Ela traz consigo três soluções: ou ver tudo através do herói, ou ver a ação
sucessivamente através de cada um dos personagens, ou adotar o ponto de vista do demiurgo e fazer
com que a ação seja dominada pelo próprio romancista.
Para a biografia, eu prefiro claramente o primeiro método, mas compreendo a necessidade de
assumir, às vezes, o posto de observação infinitamente distante para mostrar como a personalidade
do herói se reflete nos espelhos imperfeitos que são aqueles que o frequentam.
Em particular, os grandes acontecimentos históricos ligados à vida de um homem de Estado,
ou de um general, não devem ser tratados numa biografia como numa história. O verdadeiro sujeito
do biógrafo, quando escreve a vida de Napoleão, é o desenvolvimento sentimental e espiritual de
Napoleão; a história deve figurar como pano de fundo, na medida em que é necessária para
compreender esse desenvolvimento, e é preciso tentar transmitir a imagem que tem dela o imperador.
Considerem um fato simples, como a batalha de Austerlitz; numa história propriamente dita, ela pode
e deve ser descrita em cada um de seus aspectos; numa biografia de Napoleão, ela precisa ser a batalha
que Napoleão concebeu e vivenciou. Desse ponto de vista, a batalha de Waterloo descrita por Fabrício
no começo da Cartuxa de Parma é um belo exemplo.
O Sr. Edmund Gosse escreveu, com razão:
As grandes perspectivas históricas não têm lugar numa bibliografia e não há erro maior do
que tentar escrever o que chamávamos de A Vida e a Época de um homem. A história trata
de fragmentos do quadro amplo dos acontecimentos. Ela deve começar sempre de forma
abrupta e terminar em meio a existências inquietas, todas mergulhadas em múltiplos
processos. Ela deve tratar sempre e com imparcialidade de um grande número de pessoas. A
biografia, pelo contrário, é um estudo nitidamente definido por dois acontecimentos: um
nascimento e uma morte. Ela preenche a tela inteira com uma só figura e os outros
personagens, por mais importantes que sejam por si sós, devem sempre estar subordinados
ao herói central.
Outra característica da obra de arte é a escolha dos detalhes. Um intelectual puro pode
acumular a respeito de uma questão um número enorme de fatos, e indicá-los todos sem ter que
escolher. Para falar a verdade, eu acredito que, se for um grande intelectual, ele escolhe desde o
começo, define linhas gerais e faz uma obra de artista. O biógrafo artista deve, antes de tudo, poupar
seu leitor de todos os materiais inúteis. Ele tem o dever de ler tudo porque corre o risco, se não ler
tudo, de negligenciar um detalhe importante ou de acreditar ser verdadeiro um fato cuja falsidade é
provada por outros documentos; mas, uma vez estabelecido o seu andaime e construída a sua casa,
ele desmantela o andaime e se esforça de só apresentar ao leitor uma casa firme.
A biografia não consiste, creio eu, em dizer tudo o que sabemos, se não qualquer livro se
tornaria tão longo quanto a vida, ela consiste em levar em consideração tudo o que sabemos e escolher
o essencial. É claro que, ao fazer essa escolha, o biógrafo é muitas vezes levado a enfatizar um aspecto
do personagem que aprecia ou com o qual se identifica mais.
Por isso, às vezes, o herói é deformado pelo biógrafo artista. Mas será que o biógrafo
desajeitado deforma menos pela desordem de seus documentos, pela ausência de “valores” (no
sentido dos pintores*), que fazem de um rosto admirável um retrato chato?
Nessa eliminação do inútil, o biógrafo não pode perder de vista que os menores detalhes são
frequentemente os mais interessantes. Tudo aquilo que pode dar uma ideia do aspecto de um homem
como realmente era, o tom de sua voz, a forma de conversar, é essencial. Nunca se deve perder de
vista o papel do corpo na ideia que formamos do caráter daqueles que conhecemos. Um homem é
antes de tudo, para nós, um certo aspecto físico, um certo olhar, gestos familiares, uma voz, um sorriso,
expressões que são habituais para ele; é tudo isso que devemos reconhecer no homem que só nos é
apresentado em livro. Nada é mais difícil para o historiador. A pessoa que os documentos lhe
transmitiram é acima de tudo uma pessoa abstrata, conhecida apenas por sua ação social. Se ele não
souber, por baixo das nuvens de papéis, de discursos e de ações, fazer com que percebamos um ser
de carne, ele falhou.
Marcel Schwob escreve:
A ciência histórica nos deixa incertos quanto aos indivíduos. Ela só revela os pontos
pelos quais são ligados às ações gerais. Ela nos diz que Napoleão estava doente no dia de
Waterloo, que é preciso atribuir a excessiva atividade intelectual de Newton à continência
absoluta de seu temperamento, que Alexandre estava bêbado quando matou Clito e que a
fístula de Luís XIV pode ter sido a causa de algumas de suas resoluções. Pascal pensa no
nariz de Cleópatra (e se ele tivesse sido mais curto?), ou no grão de areia na uretra de
Cromwell. Todos esses fatos individuais só têm algum valor porque modificaram
acontecimentos, ou porque poderiam ter desviado a sequência dos acontecimentos. São
causas reais ou possíveis. É preciso deixá-los aos intelectuais.
A arte é o oposto das ideias gerais, ela só descreve o individual, só deseja aquilo que
é único. Ela não classifica; ela desclassifica. Se acharmos divertido, nossas ideias gerais
podem parecer com aquelas que ocorrem em Marte, e três linhas juntas formam um triângulo
em qualquer lugar do universo. Mas observem a folha de uma árvore, com suas nervuras
caprichosas, seus tons variados pela sombra e pelo sol, a dilatação causada pela queda de
uma gota de chuva, a picada que nela deixou um inseto, o rastro prateado de um pequeno
caracol, a primeira douradura mortal que marca o outono; procurem uma folha exatamente
igual em todas as grandes florestas terrestres; eu os desafio. Não há ciência do tegumento de
um folíolo, dos filamentos de uma célula, da curvatura de uma veia, da mania de um hábito,
dos vícios de um caráter. Que tal homem tenha tido o nariz torto, um olho mais alto do que o
outro, a articulação do braço nodosa; que tenha tido o costume de comer um peito de frango
a tal hora do dia, que tenha preferido uma malvasia a um Château Margaux, tudo isso não
tem paralelo algum no mundo. Assim como Sócrates, Tales poderia ter dito: Gnôthi seauton*,
mas ele não teria coçado a perna na prisão da mesma forma antes de tomar a cicuta. As ideias
dos grandes homens são o patrimônio comum da humanidade: cada um deles só possuiu
realmente as suas estranhezas. Um livro contendo a descrição de todas as anomalias de um
homem seria uma obra de arte comparável a uma estampa japonesa em que vemos
eternamente a imagem de uma pequena lagarta avistada numa hora precisa do dia.
* *
N.d.T.: também conhecidos como valores tonais, definem o grau de intensidade de luz ou de sombra sobre uma
cor.
* *
N.d.T.: Trata-se da famosa inscrição de Delfos, repetida por Sócrates: “conhece a ti mesmo”.
O que dá valor a Aubrey e a Boswell é o fato deles terem tido gosto pelos detalhes. Boswell
nos deu uma ideia perfeita daquele que poderia ter sido o tom de Johnson. Marcel Schwob se deleita
de que Diógenes Laércio
…diz que Aristóteles carregava consigo, na região do estômago, uma bolsa de couro cheia
de óleo quente e que, após a sua morte, uma grande quantidade de vasos de barro foram
encontrados em sua casa. Nunca saberemos o que Aristóteles fazia com toda aquela olaria. E
esse mistério é tão agradável quanto o mistério ao qual Boswell nos entrega, do uso que tinha
Johnson para as cascas secas de laranja que tinha o costume de conservar nos bolsos.
Aubrey conta que Spencer era um homem pequeno, tinha cabelos curtos, vestia um pequeno colarinho
e pequenos punhos; que Erasmo não gostava de peixe e que nenhum dos criados de Bacon ousava
vestir botas de couro espanhol, porque Bacon sentia imediatamente o cheiro do couro de bezerro, que
achava desagradável. É impossível compreender o 18 Brumário sem saber que, naquele dia, Napoleão
sofria de erupções cutâneas e tinha se coçado, deixando seu rosto ensanguentado e explicando o erro
dos granadeiros.
Nada é mais delicioso, quando escrevemos uma biografia, do que caçar tais detalhes vívidos
em memórias e cartas. As vezes lemos centenas de páginas sem encontrar nada além de ideias gerais,
logo falsas. E, de repente, a vida aparece na volta de uma frase e o leitor fiel a captura. Que alegria
descobrir, por exemplo, que Orsay gargalhava com uma voz alta, dizendo: “Ha! Ha!” e apertando
forte demais a mão de seus amigos. Strachey é admirável nessa brincadeira; ele sabe que a pequena
Vitória, durante a infância, aprendia da baronesa de Spath a fazer pequenas caixas de papelão
decoradas com papel dourado e flores pintadas. Ele nota que o diário de Vitória parece ter sido escrito
por uma criança, mas que suas cartas parecem ter sido a obra de uma criança corrigida por uma
governanta. Ele nos faz imaginar um fim de tarde em Windsor, o grupo em volta da mesa redonda, e
os álbuns de gravura da rainha, enquanto o príncipe joga intermináveis partidas de xadrez com três
de seus cavalheiros. Ninguém teve mais consciência da importância do detalhe verdadeiro do que o
herói da melhor das biografias, o próprio Dr. Johnson:
Vemos nessa passagem que Johnson entreveu muito bem o que pode vir a ser um certo tipo de
biografia, aquele que Strachey realizaria mais tarde. Aliás, quando lemos as Vidas dos poetas, pelo
próprio Johnson, o estilo “stracheyano” da maioria delas nos surpreende. Na verdade, bastaria dar a
parte do livro o título Eminent Jacobeans (“Jacobinos Eminentes”), e a outra Eminent Augustans
(“Augustinos Eminentes”), para fazer dele um livro moderno. Milton é tratado de forma muito mais
severa por Johnson do que o cardeal Manning por Strachey. “Milton logo decidiu repudiá-la por
desobediência, e sendo o tipo de pessoa que encontra facilmente argumentos para justificar seus
ímpetos, publicou uma Doutrina e disciplina do divórcio.” Johnson é repleto de comentários do tipo.
Será que eu deveria admitir aqui que, enquanto obra de arte, eu prefiro o Eminent Victorians
(“Vitorianos Eminentes”)? O julgamento moral em Johnson intervém com um vigor que é divertido,
mas que prejudica o efeito do texto, ou, pelo menos, o altera. “A brutalidade de suas invetivas, escreve
ele a respeito de Milton, só é igualada pela vulgaridade de sua lisonja.” Forma de julgamento dura
demais, ao meu ver, para um biógrafo a respeito do sujeito de sua biografia. A objetividade, o
desapego são virtudes estéticas supremas. Um biógrafo, assim como um romancista, deveria “expor”
e não “impor”. Uma grande vida bem contada sempre sugere uma filosofia de vida, mas ela não tem
nada a ganhar com a expressão dessa filosofia.
É possível que uma biografia tenha um valor poético? Eu acredito que sim. A poesia, no
sentido amplo da palavra, me parece ser uma recriação, uma transformação da natureza numa coisa
bela e inteligível pela introdução de um ritmo. No caso da poesia propriamente dita, esse ritmo é
constituído pela forma do verso e pela rima; no caso da música, pelo tema; em um livro, pela volta,
em intervalos mais ou menos distantes, dos temas essenciais da obra. Uma vida humana sempre é
feita de um certo número desses temas; quando estudamos uma delas, logo os temas se impõem com
uma força singular. Na vida de Shelley, o tema da água domina toda a sinfonia. Encontramo-lo
sonhador, em sua juventude, na beira de um rio em Eton; mais tarde, ele lança barcos de papel, frágeis
e simbólicos, num rio; grande parte de sua vida se passa em barcos; sua primeira mulher, Harriet,
morre afogada, e a imagem da morte em meio às ondas assombra o leitor muito antes do
acontecimento real, como se o Destino tivesse conduzido Shelley desde a infância à baía de La Spezia.
Na vida de Disraeli, há o tema das flores, que ora toma a forma de um vaso de gerânios enviado
pela irmã, ora a das prímulas da rainha; há o tema do Oriente, resplandescente e claro, que soa como
uma fanfarra em sua adolescência, cujos metais lentamente se atenuam e que, na hora da morte, não
passa de um ruído longínquo encoberto por violinos ingleses; e há o tema antagônico da chuva, a
terrível chuva inglesa que não mede esforços para afogar aquela luz oriental, excessivamente vívida,
e que acaba triunfando; a chuva, que primeiro faz fugir os cavaleiros enlameados do torneio de
Eglinton, a chuva que submerge a Peel e que desempluma os pavões de Hughenden, e que acaba
levando o próprio bruxo ensolarado.
Strachey soube se tornar mestre dessa grande poesia da vida, e eu conheço poucos textos mais
belos do que as últimas páginas de Rainha Vitória, em que ele nos mostra todos os temas da vida da
rainha reunidos, atravessando seu espírito agonizante:
…os bosques primaveris de Osborne, repletos das prímulas de lord Beaconsfield; as roupas
extravagantes e os ares de grandeza de lord Palmerston; e o rosto de Alberto à luz verde da
lâmpada; e o primeiro cervo de Alberto em Balmoral; e Alberto em seu uniforme azul e
prateado; e o barão surgindo pela porta; e lord M. chegando em Windsor, enquanto as gralhas
crocitam entre os olmos; e o arcebispo de Canterbury ajoelhado diante dela ao amanhecer; e
os pios de peru do rei defunto; e a voz suave do tio Leopoldo em Claremont; e Lehzen com
seu globo terrestre; e as penas do vestido de sua mãe acariciando seu rosto; e um velho relógio
automático de seu pai numa estojo de tartaruga; e um tapete amarelo, e um amigável folho
de musselina; e as árvores, e o gramado em Kensington.
Essa página evoca a marcha fúnebre de Siegfried, os temas da Tetralogia que voltam velados
de crepe no fim do Crepúsculo dos Deuses. O espírito experimenta uma poesia melancólica nesse
rápido sobrevoo do passado. Colhemos em um pobre ramo as flores, as raras flores que perfumaram
uma existência e as oferecemos aos Destinos cumpridos. É o último refrão de uma canção moribunda,
a última estrofe de um poema concluído. Aqui, o biógrafo está de igual para igual com o grande
músico, e com o grande poeta.
CAPÍTULO TERCEIRO
Da biografia considerada como ciência
Não podemos imaginar duas visões mais diferentes da história do que as de Froude e de
Nicolson. Froude não acredita na verdade histórica. Ele cita com aprovação a observação de
Talleyrand: “Nada se agencia tão facilmente quanto os fatos.” Ele escreve: “A mais perfeita história
da Inglaterra se encontra, a meu ver, nas peças históricas de Shakespeare.” Em outro texto, ele
imagina a si mesmo, junto a outros historiadores, se apresentando diante de um tribunal encarregado
de examinar sua obra; seus juízes possuem um líquido mágico que apaga tudo o que é falso em seus
livros; página após página, capítulo após capítulo desaparecem, deixando subsistir cá e lá apenas uma
ou outra apreciação, no geral aquela que havia sido formulada com menos cuidado e que os críticos
haviam atacado com maior violência.
Mas Harold Nicolson se impõe corajosamente contra Froude:
A pergunta que nos interessa hoje é a seguinte: Existe, na biografia, uma verdade científica?
A questão se divide naturalmente, a meu ver, em dois. Em primeiro lugar, é possível saber a verdade
sobre um homem? Em seguida, em que medida podemos descobrir a verdade sobre uma época ou um
período contando a história de um homem?
De que elementos dispomos para descobrir a verdade sobre um homem? Em primeiro lugar,
os livros daqueles que, antes de nós, escreveram sobre ele. É preciso lê-los com muito cuidado, mas
preferir, sempre que estiverem disponíveis, os documentos originais. Nada substitui a impressão
pessoal que temos ao entrar em contato direto com as cartas, com o diário de um homem. Quem nos
fala deles já os deformou. É como na vida; encontramos dez testemunhas que nos descrevem o mesmo
homem; cada uma tem uma opinião a seu respeito; aquelas que nunca o viram fabricaram uma lenda;
aquelas que o encontraram só se lembram de uma anedota, e o aspecto que o homem adquiriu durante
um instante se torna para elas todo o homem. Em seguida, quando nos encontramos diante do rosto
verdadeiro, quando descobrimos o homem em si, ficamos maravilhados de ver o quão pouco, por
exemplo, o verdadeiro Poincaré se parece com o Poincaré lendário. Esperávamos um rosto de legista,
severo, geométrico. Encontramos olhos suaves, um olhar quase cândido.
A mesma coisa acontece no que diz respeito ao passado. Só podemos entrar em contato com
ele através dos textos, e o contato é imperfeito. E, no entanto, como os textos escritos pelo próprio
homem têm um som, uma nuance particular que não subsiste em paráfrase alguma! Lembro-me de
minha surpresa quando li pela primeira vez o diário de Byron, em Ravena. Ali, finalmente compreendi
o que biógrafo algum me havia mostrado, Byron em frente a sua lareira:
Eu daria com muito gosto a vida de Byron de Moore, Elze, Edgcumbe e todos os outros, até
mesmo a de Trelawny, em troca dessas poucas páginas de diário.
Sim, essa nota particular que toda alma humana emite e que é deliciosa de se ouvir, quando
ressoa completamente pura, é nos documentos originais, e apenas neles, que devemos buscá-la. Mas
em que medida os próprios documentos originais nos livram a verdade? Em muitos casos eles são
raros; a maioria dos homens não tem um diário, e a maioria dos modernos escrevem poucas cartas.
Entre aqueles que tiveram um diário, é raro encontrar alguém que o tenha mantido a vida toda. O
diário representa momentos excepcionais, e a tentação de ver neles a representação de toda uma vida
é perigosa. A tentação é ainda mais falsa na medida em que a ideia de ter um diário só vem em
momentos de crise; segui-la leva a negligenciar o aspecto habitual e normal de nosso sujeito.
Em seguida, ainda que consideremos apenas os períodos para os quais temos um diário, como
ter certeza de que ele representava então exatamente o pensamento do homem que o escrevia? Alguns
diários são escritos para a posteridade; o autor adota uma atitude e imagina com complacência o efeito
dessa atitude sobre o leitor. Mesmo quando é escrito para não ser lido, é frequente que o escritor pose
para si mesmo. Ele imaginou certa atitude, aprecia sua beleza e aproveita o prazer estético de exagerá-
la. Todo memorialista é um autor, quer queira, quer não; o eu que fixa sobre o papel se desliga dele
mesmo; ele o contempla à distância, às vezes aterrorizado, às vezes admirado, mas, nos dois casos,
com um desapego estético que dá grande valor literário a muitos diários, mas que, ao mesmo tempo,
destrói de forma singular o seu valor enquanto documento psicológico. O caso mais favorável é o de
um homem como Pepys, que registra acima de tudo os fatos e que não está à mercê do demônio
moderno da vida interior. É claro que um psicólogo pode aproveitar até mesmo um diário deformado
pelos motivos que acabamos de dizer, interpretando-o à luz de outros documentos, mas trata-se de
um trabalho muito delicado, que releva da inteligência artística muito mais do que do método
científico.
Direi o mesmo das correspondências e das conversas relatadas por testemunhas. É claro que
todas elas são documentos importantes, inapreciáveis, mas, novamente, com a condição de que sejam
interpretadas por uma imaginação criativa. Elas são quase sempre contraditórias; cada homem, cada
mulher apresenta aos outros aspectos muito diversos de si. O Shelley que escreve a Godwin não é o
mesmo homem que o Shelley que escreve a miss Hitchener ou a Hogg. O Byron que escreve a lady
Melbourne é um cínico; o Byron que conversa com lady Blessington é quase um sentimental. É
verdade que a correspondência com lady Melbourne não é do mesmo ano que as conversas com lady
Blessington, e é claro que o tempo influencia essa transformação psicológica, mas também existe um
fato mais geral e que cada um de nós conhece bem: nós nos modelamos, por um mimetismo
involuntário, ao que o interlocutor espera de nós. Byron escreve na contracapa de um exemplar de
Corinne que pertence à condessa Guiccioli:
Sinto que existo aqui, e, temo eu, doravante só existirei para os objetos que você escolher.
Você é a mestra de meu destino. Eu lhe amo e você me ama; ao menos é o que diz, e você
age como se me amasse, o que é de qualquer forma um grande consolo. Mas eu faço mais do
que lhe amar, eu não posso deixar de lhe amar.
E, na mesma semana, a respeito de Teresa Guiccioli, ele escreve a Hobhouse: “Não posso dizer que
não sinto a degradação. Melhor ser um caçador ou qualquer outra coisa, do que ser o portador de
leque de uma mulher!… E agora, eu sou um cavaleiro servo. Meu Deus! Que sensação estranha!”
Musset, réplica francesa de Byron, ao mesmo tempo em que escreve a George Sand: “A
posteridade repetirá nossos nomes como aqueles dos amantes imortais que, de dois, têm um só nome,
como Romeu e Julieta, como Heloísa e Abelardo”, resguarda sentimentos que lhe permitirão em
seguida escrever:
Em Byron ou Musset, homens inconstantes, essas impressões são, sem dúvida, sinceras, e
exprimem aspectos diversos de ambos. Em outros casos, a carta pode ser a obra de um hipócrita e
não exprimir nada de seus sentimentos. É o caso do admirável Godwin; se lermos as cartas de Godwin
a Shelley, ou suas cartas a Edward Bulwer Lytton, isolando-as daquilo que sabemos de sua vida e de
seus costumes, teremos a impressão de que é um santo: grande erro. Logo, todos esses documentos
pessoais, ainda que sejam deveras preciosos, só têm valor na medida em que os confrontamos uns
aos outros, e todos eles a uma imagem completa do personagem. Essa confrontação, quando é
possível, nos revela fraquezas, mentiras, erros, e esclarece maravilhosamente um herói, porém, uma
vez mais, ela é uma obra de artista mais do que de erudito.
Logo, parece possível, e muitas vezes fácil, encontrar o homem por baixo dos personagens.
Construímos um Dickens a partir de David Copperfield, um Meredith segundo Evan Harrington, um
Stendhal segundo Fabrício e Juliano, uma infância de Balzac a partir da de Félix de Vandenesse. Isso
tudo parece verdadeiro, mas é muito perigoso. Thomas Hardy dizia, folheando um livro sobre si
mesmo, a um convidado:
Por que as pessoas não tomam mais cuidado quando querem deduzir fatos biográficos ou
semi biográficos da obra de um autor? As pessoas tinham o costume de dizer que David
Copperfield era Dickens. Ele não era Dickens. O Sr. Hedgcock usa continuamente meus
romances para descrever meu caráter. A dissecação de meu caráter já não seria de muito bom
gosto enquanto ainda estou vivo, ainda que fosse verdadeira. Mas ela é baseada em
personagens e incidentes de romances que são pura invenção. O grande pecado do Sr.
Hedgcock, que consiste em seguir os romances de um escritor, o leva a numerosas
inexatidões. Ele diz, por exemplo, que eu fui criado falando um dialeto local. Eu não o falava;
eu o conhecia, mas ninguém o falava em minha casa. Minha mãe só o usava para conversar
com os camponeses, ou meu pai com seus operários. Seu relato de minha educação é repleto
de erros. Ele diz que eu fui criado numa escola primária e que não tive uma educação clássica.
Eu só frequentei a escola primária até os dez anos, e aprendi o latim na escola desde os doze.
Ele também diz que eu aprendi as línguas clássicas por correspondência, enganado por sua
falsa identificação entre eu e meu herói, Smith. A mesma fonte de erros o leva a atribuir-me
a repugnância pela arquitetura de outro de meus heróis. Quando me confunde com Smith, ele
comete alguns de seus piores erros. A descrição física de Smith não coincide nem um pouco
com a minha. Seu pai não parecia nem um pouco com o meu. O pai de Smith seria um homem
de Weymouth, se fosse baseado em uma pessoa real, o que não era o caso. Em outra página,
ele me identifica a Springrove, e novamente a Clym…
Quando nós mesmos escrevemos romances, entendemos muito bem Thomas Hardy. Um
personagem de romance não é feito com toda a personalidade do autor, mas com um fragmento
frequentemente muito limitado de seu eu. Por Proust ter escrito páginas admiráveis sobre o ciúme, eu
não me permitirei concluir que Proust, principalmente no fim de sua vida, era ciumento. Basta ter
experimentado um sentimento com certa intensidade durante alguns dias, durante alguns minutos para
ser capaz de descrevê-lo. Muitas vezes basta tê-lo descrito para deixar de experimentá-lo; a obra age
então como uma liberação. Talvez (não sei; é uma hipótese), talvez devêssemos dizer: Meredith
zombou do egoísta porque era um egoísta, e Meredith deixou de ser um egoísta porque escreveu o
Egoísta.
Inclusive, um personagem de romance não é inventado por um autor que, voltado para si
mesmo, encontra tudo em si; um romancista é um homem que conhece outros homens, que caminha
pelo vasto mundo. Ainda que encontre a primeira armação de seu herói em si mesmo, ele encontra
nos outros os inúmeros traços que alimentarão esse personagem central e que lhe darão vida. Se nós,
biógrafos, aceitarmos esse personagem central como sendo a própria imagem do autor, nós nos
exporemos a erros graves. Mais ainda, muitas vezes acontece que um escritor componha uma obra
para dar-se de presente, por meio dela e num mundo imaginário, aquilo que a vida real lhe recusou.
(Exemplo: no caso de Dickens, o casamento de David com Agnes.) Nesse caso o romance não é
autobiográfico, ele é exatamente o contrário, e só podemos utilizá-lo e transformá-lo em documento
por um caminho muito indireto. Por fim, acontece que um autor seja formado por sua obra mais do
que ele a forma, e que se torne de certa forma seu escravo. Para Byron, o humor Childe-Harold existiu,
mas foi um humor passageiro. No entanto, o público, por sua vez, não aceita que seu autor favorito
não se pareça com a obra; ele exerce uma pressão enérgica mas suave para fazer com que o autor
caiba no molde do personagem; quando o personagem é sedutor, quando parece agradar, quando atrai
as mulheres, o autor se deixa levar. O papel do biógrafo é tomar cuidado e explicar menos Childe-
Harold por Byron do que Byron por Childe-Harold.
Os historiadores da literatura franceses acabam de se dar conta de um excelente exemplo dos
erros induzidos por esse método, até mesmo nos casos que pareciam mais claros. Todo mundo
acredita que a inspiração de O Lírio no vale, de Balzac, havia sido sua primeira amante, a Sra. de
Berny. Um livro que acabou de sair, Balzac mis à nu (“Balzac desnudado”), do Sr. Charles Léger,
apresenta novos documentos, mostrando que o modelo de Balzac nesse caso específico foi a condessa
Guidoboni-Visconti. Quando Balzac escrevia à Sra. Hanska, que estava no estrangeiro: “Ó! você não
sabe o que é, três anos de castidade”, todo mundo em Paris sabia de seus laços com a Sra. Guidoboni-
Visconti, com quem teve, em 1836, um filho6.
Há, no entanto, um caso em que acredito (mas é possível que me engane) que não haja grande
perigo em supor que a obra foi em grande parte inspirada pela vida, é o caso em que encontramos o
mesmo personagem com nomes diferentes em todas as obras de um mesmo autor. Isso é impactante
em Balzac, onde Fabrício, Juliano Sorel e Luciano Leuwen são exatamente o mesmo homem; homem
que não é aquele que Stendhal foi, mas que evidentemente é aquele que Stendhal gostaria de ter sido.
Esses personagens não têm valor autobiográfico, mas têm um grande valor explicativo. Da mesma
forma, quando, nos dois primeiros romances de Disraeli, Vivian Grey e Contarini Fleming,
encontramos nos dois heróis a mesma juventude, a mesma briga numa escola, descrita com quase os
mesmos termos, me parece (mas não o afirmo!) que temos o direito de concluir que se trata de uma
verdadeira obsessão, e que o relato não seria tão vivo se não fosse verdadeiro7. Eu diria o mesmo da
infância de Dickens, e até mesmo com mais certeza, porque temos o testemunho de John Forster, ao
qual Dickens havia confessado a natureza autobiográfica de David Copperfield, o que quer que
Thomas Hardy diga a esse respeito.
Acrescentemos que, sem dúvidas, precisamos acreditar mais na qualidade autobiográfica dos
romances escritos na extrema juventude do que na dos romances escritos na maturidade. É muito
mais difícil para um jovem de vinte anos não se contar; mesmo quando escreve um romance, ele é
um poeta lírico; o sentimento verdadeiro brilha apesar dele mesmo; a censura que, no adulto, funciona
de forma severa e interrompe muitos sentimentos por serem julgados ridículos, perigosos ou
medíocres ainda não se instalou no adolescente. Mas vocês viram o quanto são limitados os casos em
que é permitido usar a obra de um autor e o quanto, mesmo nesses casos, nós nos expomos a erros
graves ao fazê-lo.
6
Isso também, naturalmente, deixará um dia de ser verdade.
7
Uma inglesa, cujo bisavô foi condiscípulo de Disraeli, afirma que essa hipótese verossímil é falsa e que Disraeli foi
feliz e respeitado na escola.
Que elementos nos restam então para descobrir a verdade? Um documento de grande valor:
as memórias dos contemporâneos. É nelas que devemos caçar as pequenas imagens infinitamente
preciosas que nos mostram o que o nosso herói foi para aqueles que realmente o encontraram. Quando
a testemunha é inteligente, quando sabe ver, é esse o tipo de documento mais útil. Onde conheceremos
melhor Luís Filipe do que na curta nota escrita por Victor Hugo após ter visitado o Rei? Que melhor
retrato do velho Disraeli do que aquele que o Sr. Hyndman escreveu, após uma visita, em seu Record
of an Adventurous Life (“Registro de uma Vida Aventurosa”)?
Mas aqui, novamente, é preciso comparar e ponderar, porque as impressões dos
contemporâneos sobre o mesmo homem podem ser muito diferentes. Acabamos voltando sempre à
mesma ideia; incapazes de encontrar em lugar algum os elementos de uma verdade propriamente
científica, somos obrigados a nos livrar a uma espécie de imaginação psicológica e, em muitos casos,
a verdade sobre um fato preciso é impossível de determinar. Dou-lhes dois exemplos. Vocês
conhecem a história da carta enviada por Shelley a Byron para se inocentar das acusações da
camareira Elise; vocês sabem que essa carta, destinada a ser transmitida aos Hoppner, foi encontrada
em meio aos documentos de Byron após sua morte. Duas hipóteses são plausíveis: a) Byron nunca
enviou a carta; b) Byron enviou a carta, e os Hoppner a retornaram. Na primeira hipótese, Byron se
comportou mal; na segunda, ele fez exatamente o que deveria. Qual das duas é verdade? Só Pirandello
poderia nos dizer: Cosi e se vi pare*.
Outro exemplo do mesmo tipo: a carta de Disraeli a Peel, que ele negou na Câmara dos
Comuns. Será que ele tinha esquecido de sua existência enquanto falava? Se for o caso, ele é inocente.
Não tinha esquecido? Então ele é ao mesmo tempo mentiroso e loucamente desajeitado, pois tudo
levava a pensar que Peel conservaria tal carta. Na verdade, quanto mais nos debruçamos sobre os
fatos, mais vemos que a biografia não é como a física ou a química; em todas as ciências que tomam
por objeto as relações dos corpos entre si, a experiência é possível porque podemos regular essas
relações; se não conseguirmos ver direito o que acontece quando misturamos sódio e água, basta
recomeçar e observar melhor da segunda vez. Mas o próprio da biografia é tratar do indivíduo e do
instantâneo. Houve um minuto, um segundo em que Byron tomou uma decisão a respeito da carta
aos Hoppner, e em que fez um gesto que foi ou o de jogá-la numa gaveta, ou o de colocá-la num
envelope endereçado. Momento impossível de recuperar, experiência única que não reveremos; logo,
impossibilidade de usar tudo aquilo que constitui a essência do método científico.
Para a Sra. Pailleron,
*
N.d.T.: O nome original da peça de Pirandello contém um acento que não consta no original de Maurois (“Cosi è
(se vi pare)”), acento que muda o sentido da frase. A citação errônea de Maurois daria, literalmente, “Assim, e se
lhe agrada”. O nome original da peça: “Assim é (se lhe agrada)”. A tradução lusófona da peça é: “Assim é (se lhe
parece)”.
O trabalho de historiador é um trabalho terrível. Como exercê-lo com alguma
segurança? E, em primeiro lugar, nós sabemos alguma coisa?
Vocês se apoiam numa tradição oral? Quem lhes garante a veracidade daqueles que a
transmitem? A menos que conheçam a honestidade de sua memória, de sua independência,
acrescento de sua falta de imaginação, vocês correm graves riscos. Vocês consultam outros
pesquisadores? Pensem em verificar seus textos. Usam documentos de família, cartas, papéis
que, por sua vez, não mentem? Estabelecem a partir deles sua própria opinião, escolhem um
lado? Pouco tempo depois, no entanto, eis outros documentos, que contêm novas revelações;
vocês pensavam que seu herói era honesto, e ele foi honesto na juventude, mas acabou na
prisão; descreveram-no castanho, esbelto, ereto, e descobrem que era corcunda. Ele era
constante na amizade? Vocês pensaram que sim. E ele foi, de fato, constante no momento
exato que vocês escolheram para representá-lo, mas no dia seguinte, ele traiu: seu livro cai
por água a baixo. Vocês juraram ao leitor que aquele homem foi fiel no amor. Vocês não
tiveram suas cartas entre as mãos? Nelas, ele dizia: “Estou só, não vejo mulher alguma, vivo
numa célula, que vida lúgubre, que tristeza!” Vaidade! Ele não sente tristeza alguma, ele fica
tão pouco sozinho que vocês acabam de descobrir que, naquele momento preciso, ele se
tornara pai de um menino… Que, além disso, ele tem uma correspondência com duas damas
que visitam caridosamente, de vez em quando, o eremita: desânimo do historiador, decepção,
incerteza do pesquisador, que nem na morte pode confiar e dizer: “Esse homem dorme há um
século, não tememos surpresas.” Na verdade sim, sempre há surpresas, tantas surpresas na
morte quanto na vida, e quanto mais demoram a chegar, mais são cruéis.
Examinem o caso de Carlyle e de sua mulher. Primeiro, ele foi descrito pelo historiador Froude.
A tese de Froude: Jane Carlyle foi uma mulher incompreendida, refinada, infeliz, obrigada por um
Carlyle egoísta e dispéptico a levar uma vida de criada, a ser traída assim que a glória viesse a oferecer
a seu marido outras amantes. Leiam agora o livro que miss Drew acaba de publicar sobre Jane Carlyle.
Sua tese é exatamente o contrário. Ela afirma:
É impossível não admirar a doçura, a lealdade de Carlyle para com ela… Ela é muitas vezes
tagarela, agressiva, amarga, sem nenhum motivo profundo… Naturalmente, quando ela foi
desagradável com ele, ela sempre se arrependeu, mas ele nunca perdeu a paciência,
assegurando-a de que ficava feliz em ouvi-la fazer “seus pedacinhos de reclamação”
livremente; porque ele podia compreender tudo o que podia fazê-la sofrer e simpatizar com
ela, desde que ela quisesse confiar nele e acreditar em seu amor… Jane Carlyle sofreu a vida
toda de um amor excessivo pelo drama. Talvez porque sentia ao mesmo tempo uma
necessidade de criação artística e uma incapacidade de criar. Então, como não sabia escrever,
ela fazia da própria vida um romance.
Eis duas teses muito diferentes. Ora as duas se apoiam em excertos de cartas, todos exatos,
todos convincentes. Em parte, a diferença de apreciação vem de que Froude era um homem e amava
sua heroína, enquanto miss Drew, mulher, tem mais simpatia natural por Carlyle. Mas, seja por esse
motivo ou por outro, sempre voltamos à mesma conclusão: em história, é impossível alcançar uma
verdade científica8.
Sim, eu sei, disseram-nos: “Vocês terão biografias médicas; terão estudos sobre secreções
internas; terão biografias baseadas em Freud.” Será que seria interessante? E, antes disso, como é que
nós as teremos? O que sabemos da história medical dos grandes homens do passado? O que saberemos,
no futuro, daqueles do presente? Quem se preocupa neste momento em conservar anotações sobre as
8
Exemplo recente. Acabamos de descobrir cartas de Shelley a sua primeira mulher, cartas que provam a inocência de
Harriet, muitas vezes questionada pelos biógrafos de Shelley, inclusive por mim.
secreções internas de Einstein? Quem estuda as glândulas endócrinas de Paul Valéry? Quem conserva
os sonhos de Bertrand Russell, para permitir que os biógrafos freudianos os interpretem mais tarde?
Ora, se todos esses elementos não forem conservados durante a vida de um indivíduo, eles também
serão únicos, irreversíveis, e nunca serão reencontrados. Suponham que o estudo científico do homem
se desenvolva, que nos acostumemos a constituir, a respeito dos grandes homens, dossiês muito
completos do ponto de vista físico-químico e biológico, como adivinhar que um homem vai ser
grande? Quem vai escolher, na adolescência, os sujeitos observados? Até mesmo se aceitarmos que
seja possível constituir uma burocracia medical gigantesca, e que cada um de nós tenha um
formidável dossiê conservado em algum ministério da higiene, vocês realmente acreditam que essa
será a verdade humana que buscamos?
Pensem em sua própria vida. Suponham que, dos Campos Elísios, vocês possam contemplar
o trabalho de seus biógrafos. Vocês gostariam que eles se debrucem sobre sonhos e estatísticas? “Mas
não era eu, dirão, essas coisas só interessavam a meu médico.” Vocês gostariam de vê-los folhear seus
livros e deduzir que cometeram atos que lhes são totalmente estranhos? “Não sou eu, diriam, são os
produtos de minha imaginação.” Gostariam de vê-los escolher frases em suas cartas? “Essa mesmo?
diriam… Mas eu não acreditava numa só palavra enquanto a escrevia!” Eles abririam então
indiscretamente seus diários, e vocês murmurariam tristemente: “Por que tratar desses quinze dias em
que eu atravessei uma crise de loucura?”
A verdade sobre suas próprias vidas? Seria muito difícil descrevê-la, até mesmo para vocês.
É uma mistura confusa de ações, pensamentos, sentimentos, muitas vezes contraditórios, e, no entanto,
existe uma unidade que é como uma espécie de tom musical. Suas vidas são escritas em ut menor, ou
em sol maior. Vocês o sentem, teriam muita dificuldade em exprimi-lo, e no fundo é assim que
gostariam que suas biografias fossem escritas, com esforço, com prazer, com hesitação, com retoques,
com uma grande preocupação pela verdade também, mas ao mesmo tempo com a verdade dos fatos
(contanto que o pobre biógrafo possa alcançá-la) e com essa verdade mais profunda que é a verdade
poética.
Creio que não possamos fazer para os grandes homens mais do que aquilo que gostaríamos
que fizessem para nós mesmos. A verdade? Sim, devemos persegui-la com toda nossa alma. Deveria
ser a divisa de todo historiador. Com toda nossa alma, ou seja, com toda nossa atenção, com todo
nosso respeito, com toda nossa inteligência, mas também com as faculdades de divinação artística
que possamos possuir. Querer estabelecer um paralelismo rigoroso demais entre as ciências exatas e
as ciências históricas seria perigoso e vão. “Podemos conhecer a verdade sobre um homem?”,
perguntávamos no começo. Não: podemos tentar fixar as nuances inconstantes, fazer soar essa nota
única e verdadeira, mas é uma verdade completamente diferente daquela que buscam o químico ou o
físico.
Essa é a nossa resposta à primeira pergunta.
Vamos agora à segunda. Em que medida é possível estudar uma época histórica escrevendo a
vida de um homem? Em que medida é verdadeiro fazer de um homem o centro de uma época? Morley
levanta o problema perfeitamente no começo de sua Life of William Ewart Gladstone (“Vida de
William Ewart Gladstone”):
Qualquer leitor será capaz de ver que a maior de todas as dificuldades de meu trabalho
foi, talvez, a de traçar a fronteira entre a história e a biografia; entre o destino da comunidade,
e os feitos, pensamentos e objetivos do indivíduo que teve um papel tão profundo na vida
dessa comunidade.
No caso dos homens de letras, essa dificuldade, felizmente para os autores de
biografias e para nosso próprio prazer, é inexistente. Mas quando o sujeito é um homem que
foi quatro vezes o chefe do governo, e não um primeiro-ministro fantasma, mas um ditador,
um homem que foi primeiro-ministro durante mais tempo do que qualquer outro homem de
Estado durante todo o reino da Rainha, como poderíamos contar a história de seus trabalhos
sem amplas referências aos acontecimentos aos quais ele presidiu e cuja história foi feita por
ele?
O biógrafo toma um indivíduo como o centro, faz com que os acontecimentos comecem e
terminem com ele, e com que girem todos em torno dele. A biografia é para a história como o sistema
de Galileu, que só considera um planeta em função do conjunto dos astros. Essa atitude arbitrária
condena a biografia enquanto obra histórica? Não, porque a história não pode, como a física, examinar
o que acontece num sistema fechado, ou seja, todas as histórias são, também, limitadas
arbitrariamente. Escrevemos a história da França fazendo com que a Europa gire em torno da França,
assim como o autor de uma Vida de Wellington faz girar a Inglaterra em torno de Wellington. Se
acreditarmos em Plutarco, veremos a Grécia e Roma guiadas por trinta forças de vontade inteligentes,
o que é evidentemente absurdo e contrário à vida normal dos povos. Para o determinismo histórico
de um Karl Marx, por exemplo, a simples intenção de escrever uma biografia é um pecado contra a
verdade, mas os marxistas cometeram esse pecado ao escrever biografias de Karl Marx e de Lenin.
Isso sem dúvida significa que tal pecado é inevitável.
A deformação imposta à história será maior na medida em que o próprio indivíduo é maior.
Tomemos um exemplo da antiguidade9. A história dos tempos de Alexandre só nos é conhecida pelas
biografias, a de Plutarco e a de Arriano. A consequência é que esse fragmento da história sempre foi
tratado de forma incompleta. Obcecados pela imagem de Alexandre, os historiadores negligenciaram
a análise da evolução da Macedônia, e de como esse Estado devia à civilização grega tudo o que fazia
9
Sobre esse tema, eu devo sugestões preciosas ao Sr. Jean Prévost. Ver também, para uma teoria marxista da história,
o notável e curto livro de A.-L. Rowse: On History (“Sobre a História”).
sua força: a indústria, a marinha, os armamentos; e não aquilo que lhe trazia felicidade: a liberdade
individual, a cultura estética. A Macedônia foi, diante do resto da Grécia, o que a América é hoje
diante da Europa. É isso que explica o Império Macedônio, e ele se dissociou por si só quando viveu,
junto à decadência da cultura, a de seus costumes. A obsessão pelo personagem de Alexandre também
impediu o historiador de aprender sobre o Império Persa antes da queda. Esse império não tinha poder
militar algum, como mostra a retirada dos Dez Mil, e, como parece ter tido poucas dissensões internas,
precisamos supor uma prosperidade pacífica muito grande, que a ideia helênica e plutarquiana da
conquista civilizadora de Alexandre voluntariamente negligenciou. Ou seja, o erro do biógrafo (erro
devido ao próprio gênero da biografia) terá sido o de esconder os povos por trás de um homem e de
apresentar um homem como causa necessária e razão suficiente de acontecimentos que o excedem.
Se derivássemos toda a história das biografias, pensaríamos que ela é feita por indivíduos que
se opõem e cujas lutas criam os acontecimentos. A oposição entre Gladstone e Disraeli, muito
tentadora para um biógrafo, só é importante se mostrarmos, por trás dela, a oposição profunda entre
os Puritanos e os Cavaleiros que, em meio às massas inglesas, lhes correspondiam. O amador de
biografias, por sua vez, conseguiria constituir uma história sem continuidade no tempo e sem unidade
em sua evolução, o que resultaria, por causa da necessidade de homens representativos, em uma moral
emersoniana e uma política cesariana.
Pelo contrário, observem o quanto é rico em unidade e, eu diria, em beleza um fragmento da
história durante o qual não tivemos biografias, e cujas biografias tiveram que ser tiradas
exclusivamente da história, como a guerra do Peloponeso. Aqui, narração pessoal alguma vem
estragar a objetividade de Tucídides, mas a própria ingenuidade de tal elogio mostra o quanto ele é
falso. O acordo completo que se criou entre os historiadores a respeito da guerra do Peloponeso seria
destruído se existisse, por exemplo, uma biografia de Cleón escrita por um historiador democrata.
Como sempre, é difícil tirar uma regra disso tudo. Em alguns casos, é verdade dizer que a
ação pessoal de um homem transformou a vida de um país. Entre 1800 e 1815, a vida da França é
fortemente ligada à de Napoleão10. Pelo contrário, no caso da rainha Vitória, Strachey foi prudente
ao fazer de seu livro um retrato pessoal em vez de um amplo quadro histórico. A influência da Rainha
sobre a política inglesa foi relativamente importante, mas ela foi apenas um fator em meio a tantos
outros.
É interessante observar nosso próprio tempo, porque nele podemos ver a história sendo
formada. Em ao menos dois casos eu pude constatar que a ação pessoal de um homem, o seu caráter,
podem se tornar causas determinantes de fenômenos históricos gerais. O primeiro foi a criação do
10
O Sr. Trevelyan escreveu um ensaio: If Napoleon had Won the Battle of Waterloo (“Se Napoleão tivesse ganhado a
batalha de Waterloo”). A tese de Rowse e dos escritores marxistas é que essa vitória não teria mudado muito a história
do mundo. Para a tese contrária, ler a Ucronia de Renouvier, livro muito belo, infelizmente pouco conhecido.
Marrocos francês por Lyautey. Aqui, vimos com uma perfeita limpidez um país que, modelado por
um homem, se tornou a imagem aumentada da mente desse homem. O segundo foi a reconstrução
financeira da França pelo Sr. Poincaré em 1925. Mas, nos dois casos, o homem de Estado e o fundador
de um império só ocupam o centro do quadro durante um tempo bastante curto. Vê-los como figuras
centrais durante toda sua vida seria artificial. O biógrafo não deve brincar demais de historiador. Os
objetos que perseguem são diferentes. A biografia é a história da evolução de uma alma humana; para
ela, a história precisa ser aquilo que, para o retratista, é o fundo sobre o qual coloca o modelo.
Vocês não acham curioso ver a imagem do retratista se impor quando falamos do biógrafo? E
essa semelhança não poderia nos ajudar a responder à pergunta que levantamos no começo dessa
conferência? “A biografia deve ser uma ciência?”, nos perguntávamos. Perguntemo-nos também se o
retratista deve ser um erudito. A resposta é demasiado evidente: o retratista deve ser um homem
honesto, buscar a semelhança e conhecer bem a técnica de sua arte, mas o objeto que propõe a si
mesmo é a pintura de um indivíduo, e só existe ciência daquilo que é geral. E a nossa resposta
coincide aqui com a de Strachey:
Que tenha sido possível não apenas levantar, mas até mesmo discutir seriamente a questão
de saber se a história é uma arte é certamente uma das curiosidades da humana loucura. O
que mais ela poderia ser? É evidente que a história não é uma ciência. É evidente que a
história não é uma acumulação de fatos, mas a sua narração. Os fatos que se referem ao
passado, se forem reunidos sem arte, são compilações, e as compilações podem, sem dúvida,
ser úteis, mas elas não são história mais do que manteiga, ovos, salada e salsa são uma
omelete.
CAPÍTULO QUARTO
A biografia como meio de expressão
* *
N.d.T.: no capítulo anterior.
se essa forma de concebê-la é legítima e não corre o risco de lesar a verdade. Não vemos muito bem
porque ela não seria legítima. Dissemos que, no caso do romancista, muitas vezes ele consegue se
exprimir de forma completamente indireta, e através de personagens que atravessam acontecimentos
muito distantes dos que ele mesmo atravessou. Por que o biógrafo não poderia alcançar esse mesmo
poder de expressão através de personagens que realmente viveram? Por que ele não se sentiria tão
comovido pelo caso de Byron quanto pelo de Evan Harrington?
Na verdade, Meredith viveu sentimentos muito fortes a respeito de personagens reais, e isso
ele nos mostrou pintando Mrs. Norton em Os Três Amores de Diana, e Lassalle em The Tragic
Comedians (“Os Trágicos Comediantes”). Entre romances desse tipo e a biografia propriamente dita,
as diferenças são muito pequenas.
Eu posso, agora, pedir-lhes a permissão de cometer um crime contra seus costumes e de fazer
uma confissão pública? Estou ciente da dificuldade de tal empreendimento. Sei que nada é mais
desagradável em qualquer lugar do mundo do que falar de si ou de suas obras, que nada é menos
inglês e que, inclusive, até mesmo fora da Inglaterra, nada é mais perigoso. Se admitirmos estar
satisfeitos de nossas obras, ostentaríamos um orgulho insuportável; se falarmos delas com humildade,
todas as almas rasas logo suspeitarão que essa humildade é falsa. E, no entanto, apesar do perigo, eu
me vejo obrigado a arriscá-lo, porque, como preciso de exemplos, acredito apesar de tudo que seja
mais razoável tentar mostrar-lhes o mecanismo que levou à ação um homem que penso conhecer, em
vez de um mecanismo que conheço pouco e que seria mais difícil demonstrar.
Logo, tentarei mostrar-lhes brevemente como fui levado a escolher como temas a vida de
Shelley, e, depois, a de Disraeli. À primeira vista, pode parecer bastante estranho para um francês,
que nunca tinha sido preparado aos estudos ingleses, escrever uma Vida de Shelley. Ele não podia ter
a pretensão de trazer documentos novos; não podia contar essa bela história melhor do que já tinha
sido feito, com grande perfeição, por Dowden. Ele realmente sentia a necessidade imperiosa de
escrever essa vida? E quais eram os mecanismos internos que explicavam tal desejo?
Quando li, pela primeira vez, uma breve Vida de Shelley, senti uma emoção vívida. Explico:
acabava de sair do ensino médio, com ideias políticas e filosóficas que representavam bem,
transpondo-as naturalmente à nossa época, as ideias que haviam sido as de Shelley e de seu amigo
Hogg, na época em que chegavam a Londres. Então, bruscamente, obrigado pelas circunstâncias a
agir, percebi que minhas ideias entravam em conflito com minhas experiências. Eu quis aplicar, em
minha vida sentimental, sistemas racionais que havia formado de maneira abstrata através do estudo
dos grandes filósofos; mas encontrei por toda parte uma matéria viva e sensível que não se submetia
a minha lógica. Causei sofrimento, e sofri. Estava irritado contra o adolescente que havia sido, e
indulgente, porque sabia que ele não podia ter sido diferente. Eu desejava simultaneamente expô-lo,
condená-lo e explicá-lo. Ora, Shelley havia atravessado fracassos que me pareciam mais ou menos
de mesma natureza que os meus; sua vida tinha, naturalmente, cem vezes mais grandeza e graça do
que a minha, mas eu sabia que, nas mesmas circunstâncias que ele, na mesma idade, eu teria cometido
os mesmos erros. Ao orgulho e às certezas da adolescência sucedia em mim uma vívida necessidade
de compaixão, e, aí também, eu encontrava traços de Shelley tal qual havia sido no fim, após a perda
de seus filhos. Sim, realmente, me parecia que contar essa vida seria de certa forma, para mim, uma
liberação.
Veio-me primeiro a ideia de tentar fazer dessa vida real um romance, de transpor a ideia de
Shelley, de Harriet e de Mary na vida moderna. Cheguei até a escrever o romance; ele não era bom,
e eu continuei a ser atormentado por meu Shelley. Pouco a pouco, eu li tudo o que ele havia escrito
sobre si, todas as suas cartas, todas as de seus amigos, e, finalmente, me aventurei. Eu tive razão?
Isso eu não sei; creio que não; já não gosto muito do livro; ele foi estragado por um tom irônico que
vem (hoje percebo) de que essa ironia era dirigida contra mim mesmo. Eu queria matar em mim o
romântico; para fazê-lo, eu o ridicularizei em Shelley, mas o ridicularizava ao mesmo tempo em que
o amava. Bom ou ruim, o livro foi escrito com prazer, com paixão, e eu suponho que vocês estão
começando a entrever o que eu quero dizer com a biografia considerada como meio de expressão.
O romantismo de Shelley era o romantismo de um rapaz muito jovem. Mas o que acontece
com o romântico que não morre antes dos trinta na baía de La Spezia? Como é que ele consegue
reconciliar os sonhos de sua juventude com a vida de ação que, quase sempre, é forçado a levar na
maturidade? Esse era o problema que me perturbava então, e eu estava à procura de um herói que me
permitisse tratar o problema da mesma forma. Um dia, eu li em Maurice Barrès que a vida mais
interessante do século XIX havia sido a de Disraeli. Eu a conhecia um pouco, mas mal. Li sua Vida
escrita por Froude, e a de Monypenny e Buckle, em seguida a maioria das memórias da época, e
finalmente as cartas e romances do próprio Disraeli. Quanto mais eu lia, mais sentia que podia
encontrar ali um herói que me interessaria apaixonadamente. Era um personagem novo para mim, o
romântico que é ao mesmo tempo um homem de ação, que foi bem-sucedido no sentido temporal da
expressão, mas que fracassou no sentido espiritual, e que morreu, romântico impenitente, mas não
vitorioso.
Eu não gostava de Disraeli jovem, com suas correntes de ouro, seus casacos extravagantes,
sua ambição. Mas tinha muita simpatia por Disraeli descobrindo a resistência de um mundo hostil,
por Disraeli tão grosseiramente atacado por adversários tão medíocres, por Disraeli tenaz e nunca
resignado, por Disraeli marido afetuoso de Mary Ann e amigo fiel de John Manners, e sobretudo por
Disraeli velho, de corpo frágil e de coração tão jovem. Eu tinha a impressão de ter aprendido através
dele, sem tê-lo vivido, o que são a velhice e a morte que se aproxima, aprendizagem difícil e
necessária. Ao mesmo tempo, eu tinha a impressão de poder exprimir, através dele, uma doutrina
política que era exatamente a que eu buscava, quero dizer o conservadorismo popular, mistura de um
grande respeito pela tradição, por aquilo que foi conquistado pela humanidade no passado, com uma
preocupação pelo bem-estar de todos e um desejo de reformar a ordem estabelecida. Sem poder, por
múltiplos motivos, levar uma vida de ação política, eu encontrava um prazer entusiasmado em
participar dessa luta sob a máscara de uma figura que me inspirava simpatia. Aqui, novamente, vocês
vislumbram, creio eu, o que eu quero dizer com a biografia considerada como meio de expressão.
Posso confessar do que eu gostaria agora? Estudar, sob uma terceira aparência, a reconciliação
de um romantismo de juventude mal curado com a perfeita serenidade de uma filosofia mais pura.
Esse combate, sob que máscaras seria apropriado travá-lo? Vejo duas possibilidades: Goethe e
Meredith. Goethe começa a vida com Werther, ou seja, em plena loucura romântica, para alcançar, já
em seu declínio, um certo equilíbrio. Quanto a Meredith, o que vejo nele de profundamente
interessante, é que ele é o homem que tentou refazer seu caráter através de suas obras, e que quase
conseguiu. Sim, creio que uma Vida de Meredith, escrita desse ponto de vista, poderia ser um livro
profundamente interessante de escrever e uma lição maravilhosa para seu autor.
Uma vez mais peço-lhes desculpa por ter exposto memórias e projetos pessoais. A biografia
considerada como meio de expressão, é aquela cujo sujeito foi escolhido pelo autor para responder a
uma necessidade secreta de sua natureza. Ela será escrita com uma emoção mais natural do que
qualquer outra, porque através dos sentimentos e aventuras do personagem serão expressos os
sentimentos do próprio biógrafo: ela será, de certa forma, uma autobiografia disfarçada de biografia.
Ou, pelo menos, ela seria, no “caso limite” em que a vida do herói coincidiria com a do escritor.
Notem que isso não é possível. Em primeiro lugar, o herói é sempre maior do que o biógrafo. Em
seguida, um biógrafo nunca vê todo seu caráter naquele de um personagem histórico. É apenas um
aspecto, e muitas vezes um aspecto fugidio, muito limitado de seu caráter.
No entanto, não é preciso viver um sentimento durante muito tempo para reconhecê-lo. Para
descrever um país ou um grupo social, não é preciso passar a vida toda nele; pelo contrário, aqueles
que se contentaram de atravessá-lo muitas vezes relatam impressões mais frescas, mais vívidas.
O biógrafo de Byron não precisaria ser, como o próprio Byron, um Dom Juan. Não é
necessário que tenha conquistado uma lady Caroline Lamb, uma lady Oxford, uma Guiccioli. Ele não
precisa ter abandonado uma mulher, ou fugido para o estrangeiro. Felizmente para ele, ele não precisa
adotar uma atitude byroniana. Mas seria apropriado que, ainda que por muito pouco tempo, ele tenha
conseguido um dia entender que essa atitude é humana. O biógrafo de William Morris não terá a
generosidade de William Morris, mas tentará compreender William Morris, à luz da memória dos
melhores momentos de si mesmo.
Mas, que se trate de um caráter inteiro, ou de aspectos fugidios e limitados desse caráter, o
problema é o mesmo. Será legítimo usar da observação indireta dessa forma? Será legítimo usar
memórias de nossos próprios sentimentos para interpretar, explicar aqueles de um personagem
histórico? Não corremos o risco, ao utilizar um personagem diferente, que é o nosso, como
“testemunha-cobaia”, de deformar a imagem daquele cuja vida queremos escrever?
Prevejo aqui críticas terríveis. Todos aqueles que acreditam na história como coleta de fatos
só podem considerar aterrorizados tal concepção. O que diria o Sr. Gradgrind? Nós todos conhecemos
Thomas Gradgrind, biógrafo:
Se o Sr. Gradgrind estivesse só, talvez eu não ficaria com tanto medo dele; mas vejo com
apreensão e melancolia, no mesmo campo que ele, ainda que tão diferente, o charmoso Sr. Nicolson,
que, certamente, também desaprovaria minhas palavras. “Subjetividade inadmissível”, diria o Sr.
Nicolson. Sim, certamente, subjetividade inadmissível. Ora, ainda que faça pouco-caso da opinião do
Sr. Gradgrind, a do Sr. Nicolson me importa, e eu gostaria de tentar convencê-lo.
Na verdade, eu não o temo tanto, porque sei muito bem que ele mesmo, e nos melhores trechos
de sua obra, foi “muito inadmissivelmente subjetivo”, e como poderia ter sido diferente? Nós
queremos compreender os seres humanos de uma forma completamente diferente da que utilizamos
para compreender os movimentos dos elétrons ou dos pássaros. Por quê? Porque sabemos que
dispomos, para essas pesquisas mais delicadas, de um instrumento mais perfeito, que é a confrontação
dos sentimentos do outro com os nossos próprios sentimentos. Vocês lembram da admirável
Introdução ao Método de Leonardo da Vinci, do Sr. Paul Valéry? Trata-se ao mesmo tempo da crítica
e da mais refinada justificação de todas as biografias um pouco sutis. “Nós pensamos, diz Valéry, que
um homem pensou, e podemos discernir em suas obras esse pensamento que vai de nós até ele;
podemos refazer esse pensamento à imagem do nosso.”
Eis de fato toda a verdade; nós podemos refazer um pensamento à imagem do nosso, e não
dispomos de aproximadamente nenhum outro meio de refazer um pensamento. Valéry explica em
seguida muito bem que por isso mesmo é fácil para nós reconstituir um homem ordinário, cujas
motivações e ideias foram aproximadamente as nossas, enquanto que, quando se trata de um homem
que se distinguiu em algum ponto, temos muito mais dificuldade em nos representar a cadência de
sua mente. Ele explica em seguida que, tendo criado do zero a ideia de um gênio, ele buscou o nome
que lhe seria mais adequado, e que nome algum lhe pareceu mais adaptado ao homem que havia
concebido do que o nome de Leonardo da Vinci. Logo, para Valéry, o personagem se reduz a uma
coincidência, mas ele vê o modelo de uma vida intelectual como superior a uma série de anedotas
duvidosas, de comentários, de cartas e de datas. “Tal erudição, diz, apenas conduziria à falsificação
da intenção inteiramente hipotética deste ensaio. Eu não a desconheço, mas é acima de tudo
importante que eu não fale dela.”
Trata-se de um caso extremo, aquele que seria o nosso se disséssemos, por exemplo: “Quero
escrever a história de um romancista que forja a própria pessoa moral através de seus romances.
Acontece que esse romancista se chama George Meredith. Mas é uma simples coincidência, e o que
realmente nos interessa, é um romancista teórico e não George Meredith, o homem.” É preciso ser
Valéry para ter a ousadia de levantar a questão da história de forma tão abstrata, mas todo biógrafo
que busca a si mesmo se aproxima um pouco, quer queira, quer não, de um estado de espírito análogo.
Um jovem escritor francês, ao qual um editor pedia uma Vida para uma coleção de biografias,
respondeu: “Com prazer, mas eu não conheço a história. Escolha você um personagem. Peço apenas
que seja um homem ou uma mulher que sempre tenha tido o desejo de imprimir em sua vida uma
certa direção, e que também sempre se tenha deparado como que com uma porta fechada.” Aqui,
novamente, encontramos em seu estado puro a necessidade de exprimir que fará com que o sujeito
escolhido seja penetrado por esse sentimento subterrâneo, que talvez seja o único capaz de uma obra
de arte.
Acreditem, eu vejo muito bem o quanto esse tipo de biografia poderia se tornar perigoso. Por
desejo de se exprimir, de se explicar, por simpatia ou antipatia por um personagem (porque o
sentimento forte pode ser de antipatia, vide Strachey), o biógrafo ardoroso corre o risco de desfigurar
involuntariamente a verdade histórica. Se o fizer, o gênero é condenado, e Nicolson tem razão:
“Subjetividade inadmissível”. Acima de tudo, a história (ou o que acreditamos saber dela) deve ser
respeitada. Publicar uma biografia, anunciá-la como biografia, não como romance, é anunciar fatos
verídicos, e um biógrafo deve ao seu leitor a verdade antes de tudo. Ele não tem o direito de construir
um herói de acordo com seus desejos ou necessidades. Ele não tem o direito de inventar conversas,
incidentes. Ele não tem o direito de omitir certos fatos porque tornam suas construções psicológicas
difíceis, mas parece possível, em alguns casos (aliás, casos raros), se a escolha for boa e adaptada à
natureza do autor, que o biógrafo possa exprimir alguns de seus próprios sentimentos sem deformar
os de seu herói.
Mas essa identidade entre os dois temperamentos é naturalmente pouco comum, e poucos
heróis se prestam a tal tratamento. É difícil imaginar o homem que escreveria com esse método a vida
do duque de Wellington, e ainda menos a de Henrique VIII. Mas ainda que essa adaptação total, essa
confusão entre o autor e o herói sejam raras, acredito que seja quase impossível escrever uma
biografia sem que, de certa forma e em certos momentos, o biógrafo faça o esforço de sentir o mesmo
que seu herói. Sem isso, como ele compreenderia? Já na antiguidade, Tito Lívio havia afirmado a
regra: Antiqua scribenti antiquus fit animus*. A alma daquele que escreve uma Vida de Carlyle se
torna, pelo menos momentaneamente, parecida com a de Carlyle. Se ele for incapaz de tal inteligência
sentimental, escreverá um Carlyle detestável. Há, e deve haver, em toda verdade psicológica uma
porção de divinação. Não é possível compreender porque Byron não gostava de lady Caroline Lamb
usando apenas a razão crítica; é preciso, por meio de longas leituras, por uma grande familiaridade
com suas cartas, construir em si reações mais ou menos semelhantes às de Byron e, de repente, o
personagem se iluminará por dentro, porque, durante um instante, mesmo curto, ele coincidirá
conosco.
“Ah! Como esse método ainda é perigoso!” dirão os historiadores. Nós sabemos bem. Ele é
muito perigoso; ele requer que o utilizemos com uma prudência infinita, com uma honestidade
perfeita, com um desejo firme de nunca alterar um fato. A seu favor, só existe um argumento, mas ele
é todo-poderoso: é que não existe outro método. Podemos compreender um fato científico pela análise
e pela síntese; não podemos compreender um ser humano esgotando todos os seus detalhes, porque
um ser humano representa uma complexidade infinita e, ainda que tivéssemos centenas de anos diante
de nós, nunca esgotaríamos essa complexidade. É preciso compreender por golpe de Estado.
O prazer real que hoje o leitor inteligente encontra na biografia não é causado, no geral, por
uma energia de pensamento muito ativa. Suas reações são provocadas por lentos processos
de identificação e de comparação. Ele se identifica com certos personagens e compara seus
próprios sentimentos e suas próprias experiências com as deles. Esse processo, como diz lord
Oxford, ocasiona prazeres reais.
*
N.d.T.: lit., “escrevendo o antigo, tornei-me uma alma antiga”. A citação está incompleta, e está inserida, no
original, numa frase mais completa (ver Ab Urbe Condita Libri, 43.13.1-2).
juventude de Disraeli, o quanto a vida de César ou a dos grandes homens de ação religiosos (até
mesmo a de Loyola) influenciaram sua formação.
Se pensarmos em nós mesmos, que, creio eu, somos em nossa maioria seres desprovidos de
ambição em cujas almas as grandes vidas políticas não fazem vibrar cordas em uníssono, nós
podemos constatar, ainda assim, influências morais exercidas pela leitura de Vidas. Essa influência é
muitas vezes boa, porque os homens cujas vidas escrevemos são quase sempre homens superiores à
média e que nos carregam, acima das preocupações medíocres da existência, para uma região de
criação mais livre e de pensamento mais elevado. Após ter lido a vida de Beethoven, ou a de Ruskin,
ou a de Goethe, nós naturalmente não nos sentimos iguais a esses grandes homens, mas, ainda assim,
descobrimos que existe em toda alma um personagem que entende e que aprova as mais nobres de
suas atitudes. Nós pensamos que neles também esse pedacinho de grandeza talvez estivesse, no
começo, perdido numa selva de desejos e de sentimentos contrários. Pensamos que basta, talvez,
cultivar esse cantinho de terra, impedir que as ervas daninhas o invadam, para primeiro conseguir
salvá-lo, e depois estendê-lo. Assim como somos melhorados pela leitura dos grandes romances, de
Guerra e Paz, ou de Middlemarch, ou de Mrs. Dalloway, somos melhorados pela leitura das grandes
Vidas.
Por isso, quer queiramos, quer não, a biografia é um gênero que trata da moral mais do que
qualquer outro em literatura. Com certeza, como acabamos de afirmar, o romance também desperta
sentimentos fortes; toda obra de arte, enquanto suscita emoções e, através delas, desejos de ação, trata
da moral. Mas a biografia é muito mais próxima, porque a credibilidade da narrativa, a certeza que o
leitor sente quanto à existência real dos seres de que falamos, fazem com que a influência seja maior.
Uma criança que lê Oliver Twist diz: “Que menininho excelente, esse Oliver Twist”, mas será que ele
acredita realmente que um ser humano possa ser tão perfeito e permanecê-lo em meio a tantas
aventuras? Um jovem francês que lê os feitos de Jean-Bart, ou um jovem inglês que lê os de Nelson,
sabe que suas histórias são verdadeiras. A emoção talvez seja menos vívida do que na leitura de um
romance, mas a influência sobre a ação é mais forte.
Aliás, essa influência não é sempre boa. As leis da imitação psicológica fazem com que um
ser humano imite um outro, mesmo que não aprove suas ações. Da mesma forma que é melhor evitar
laços com amigos cuja vida é condenável, porque, como se diz, “o exemplo é contagioso”, da mesma
forma creio que seja preciso evitar, através da leitura, laços com personagens perigosos. Todo homem
que empreende uma biografia, ainda que seja o mais amoral dos escritores, ainda que tenha horror da
palavra “moral”, propõe, quer queira, quer não, uma regra de vida fundamentada em exemplos
individuais. Tenho certeza de que na França, nos próximos anos, vamos assistir ao desenvolvimento
de um fenômeno cujos primeiros traços estou começando a perceber: o renascimento dos sentimentos
românticos. Atualmente, muitas Vidas são escritas na França. O público as lê com muito gosto. Ora,
escrevemos principalmente as vidas dos grandes românticos, porque essas vidas são as mais ricas em
dramas sentimentais. Com certeza, essas leituras exercem uma influência sobre uma geração que, no
fim da guerra, possuía de forma inconsciente todos os elementos do romantismo, assim como a
geração de 1815.
Se o leitor só imitasse nos grandes homens aquilo que faz sua grandeza, essa influência seria
apenas excelente, mas infelizmente não é sempre assim. Em seus Pensamentos, Pascal dá a razão
dessa imitação do “menos bom”:
O exemplo da castidade de Alexandre não faz tantos continentes quanto o de sua embriaguez
fez intemperados. Não há vergonha em não ser tão virtuoso quanto ele, e parece perdoável
não ser mais vicioso do que ele. Julgamos não ter todos os vícios do comum dos homens
quando nos vemos nos vícios dos grandes homens; e, todavia, não nos damos conta que nisso
eles fazem parte do comum dos homens. Apegamo-nos a eles pela ponta pela qual se apegam
ao povo, pois, por mais elevados que sejam, unem-se ao comum dos homens por algum lugar.
Não estão suspensos no ar, inteiramente abstraídos de nossa sociedade, não, não. Se são
maiores do que nós, é que têm a cabeça mais elevada; mas têm os pés tão baixos quanto os
nossos. Estão todos no mesmo nível e se apoiam na mesma terra; e, por essa extremidade,
eles são tão baixos quanto nós, quanto os menores, quanto as crianças, quanto os bichos.
Uma ideia importante é a de que, por mais que a vida contada seja a de um homem de grande
caráter, e ainda que o leitor que a leia seja digno de compreender esse caráter, uma biografia sempre
faz sobressair uma moral individualista, e nunca uma moral social. Os indivíduos que tiveram
influência o suficiente na história política ou literária para se tornar sujeitos de biografias geralmente
alcançaram tal resultado cuidando apenas de si ou de suas obras. Isso é notável nas biografias dos
grandes escritores. Mesmo quando se trata de um homem aparentemente muito sociável, como
Dickens, logo vemos que seu egoísmo foi terrível. Bastava que o livro que estivesse escrevendo
avançasse mais devagar, parecesse menos bom, para que acusasse a família, o lugar em que se
encontrava, e para que fosse preciso partir, não daqui a oito dias, não daqui a dois dias, mas desde já.
Examinem imparcialmente a vida de um Tolstói, iluminando-a com os relatos dos filhos e com a
autobiografia da condessa Tolstói, e verão que, nesse caso também, o desenvolvimento invasor de
uma personalidade forte foi sem limites. O resultado natural é que o leitor, por pouco que acredite ter
certa engenhosidade em uma especialidade qualquer, se vê guiado, pela leitura das grandes vidas, na
direção de uma necessidade de independência e do desprezo das regras sociais de civilidade.
Ainda mais que, mesmo no caso dos homens que foram modestos, tranquilos, que tiveram
pouca ambição, como Pasteur, por exemplo, ou Darwin, a biografia retem sobretudo os atos pelos
quais eles se diferenciavam dos outros, e dá a eles certo relevo que os homens comuns não possuem
e que, sem dúvida, eles mesmos não possuíam para aqueles que os conheciam.
Leiam as Vidas oficiais de Herbert Spencer; vocês não encontrarão aquele velho estranho, tão
ocupado em retocar com tinta vermelha as flores de seu tapete, como o descreveram as duas
solteironas charmosas com que ele passou vários anos no fim de sua vida, e que escreveram Home
Life with Herbert Spencer (“Vida Caseira com Herbert Spencer”).
Eu sei que se pode responder: “É melhor que seja assim. De que nos importa, se quisermos
julgar uma filosofia, e até mesmo uma filosofia, saber que ele dava grande importância à cor de seu
tapete ou à espessura de suas meias?”
Eu não sei. É sempre perigoso dar como exemplo de uma vida possível uma vida tornada irreal
por um número excessivo de omissões. Decerto eu acredito que a verdade a respeito de um homem
seja sobretudo feita daquilo que faz sua grandeza, mas acredito que não deveríamos sempre
negligenciar aquilo que faz sua pequenez, porque a verdadeira grandeza, muitas vezes, é feita de
pequenezes dominadas.
Resumamos agora a ação moral da biografia. Ela desperta em nós o sentimento de grandeza;
ela inspira confiança mostrando a força do indivíduo; ela pode trazer o perigo de sempre excitar sem
nunca acalmar. Todavia, ela sabe mostrar, junto aos acontecimentos trágicos da vida, a calma e o
esquecimento que seguem, além das grandes ambições, a vacuidade das realizações; ela também pode
apaziguar. Há ao mesmo tempo uma grande beleza e uma grande doçura na imagem do velho Ruskin
sentado em frente à janela, observando vagamente as nuvens e murmurando: “Beautiful… beautiful…”
O biógrafo que, como Strachey, sabe transmitir através da narração dos fatos a ideia poética do destino,
a do tempo que escapa, a da humildade da condição humana, nos traz uma suavidade secreta.
Para exprimir corretamente essa moral, que é a maior de todas, é preciso acima de tudo que o
biógrafo nunca pense na moral. “Em 1840, diz Nicolson, a gravidade moral interveio novamente e a
arte da biografia declinou, até 1881.” Isso é verdade; todo biógrafo deveria escrever, na primeira
página de seu manuscrito: “não julgarás.” O juízo moral pode ser sugerido; assim que é expresso, o
leitor é trazido de volta ao mundo da ética e escapa do da estética.
Lytton Strachey, em um artigo notável sobre Carlyle, mostra que o desejo de ser um profeta
prejudicou muito o valor de Carlyle como historiador.
Sim, toda preocupação moral, numa obra de arte qualquer, que se trate de um romance ou de
uma biografia, mata a obra de arte. Assim que temos algo a provar, nós não provamos nada. Isso não
impede que grandes temas morais impregnem a obra. Pensem uma vez mais nos dramas líricos de
Wagner; não podemos dizer que a Tetralogia prova o que quer que seja, mas ela é atravessada por
grandes temas: a Servidão do Ouro, a Redenção pelo Amor, temas tornados ainda maiores por essa
língua ao mesmo tempo confusa e clara que é a música. Acredito que o mesmo poderia acontecer
numa grande biografia inspirada e sustentada por fortes sentimentos. É proibido que se proponha um
objetivo moral, mas é belo que, vez ou outra, ouçamos soar nela o trompete do Destino.
CAPÍTULO QUINTO
A autobiografia
Quando começa uma série de conferências sobre um único assunto, o orador busca uma ideia
central que possa, ao longo da série, servir de fio condutor. Após ter girado em torno do assunto, após
tê-lo abordado desde ângulos muito diferentes, ele acaba distinguindo aquilo que faz sua unidade. A
série se torna então como um desses grandes parques no centro dos quais se encontra um castelo. O
parque é bem desenhado; todas as alamedas convergem no centro de uma estrela. Primeiro, quando
entramos por uma pequena porta, não sabemos que direção tomar; atravessamos uma, duas, três
alamedas; vemos então que todas elas sugerem a existência de um centro invisível, e o traçado do
conjunto aparece. Acredito que seja o ponto em que estamos agora. Nós abordamos a Biografia pela
alameda “obra de arte”, pela alameda “meio de expressão”, pela alameda “ciência”; vemos que todas
nos conduzem a um ponto central: É possível saber a verdade sobre um homem? Até agora, a resposta
pareceu ser negativa. Resta um caso em que há alguma esperança: o da autobiografia.
“É por si mesmo que a vida de todo homem poderia ser escrita da melhor forma”, diz o Dr.
Johnson. O grande doutor teria razão? Sem dúvida, ao que parece, cada homem conhece com
suficiente exatidão os fatos da própria vida, e bastaria ser honesto para contá-la por inteiro. Em
particular, parece que, se sua vontade for a de escrever uma biografia psicológica, ele também pode,
melhor do que ninguém, reconstituir seus movimentos internos, os motivos de seus atos, e, mais ainda,
os segredos dos atos que ele gostaria de ter realizado, e cuja realização não foi possível devido às
circunstâncias. Essa é a primeira aparência. Se refletirmos mais longamente, veremos que há motivos
para ter sérias reservas. Várias causas podem tornar inexato ou falso o relato autobiográfico:
1° A primeira é o esquecimento. Quando queremos escrever a história de nossa vida, a maioria
de nós se dá conta de que esqueceu grande parte dela. Para muitos, a infância é completamente abolida.
No meu caso, até os sete ou oito anos, eu tenho apenas algumas raras lembranças; elas se dão como
pequenos quadros isolados, cercados por todos os lados da obscura praia do esquecimento. Talvez
seja, no meu caso, uma enfermidade pessoal, já que alguns autores parecem ter as mais longínquas
lembranças. Tolstói lembrava muito bem da impressão que teve quando, aos seis meses, foi colocado,
na hora do banho, numa bacia de madeira; ele lembrava do cheiro da madeira ensaboada, e da
sensação escorregadia e gordurosa sob seus pés. Sir Edmund Gosse, em Pai e filho, tem lembranças
precisas e evidentemente verídicas da própria infância. Goethe se lembra muito bem das caminhadas
infantis sobre os muros de Frankfurt; é curioso notar que, no seu caso, a criança já tinha o sentimento
de apreciar mergulhar em mil vidas diversas, e que, ao observar naqueles momentos os pequenos
jardins dos burgueses de Frankfurt, ele tinha impressões que já eram as de um “homem de letras”.
Anthony Trollope descreve admiravelmente suas impressões de aprendiz de sete anos:
Lembro-me bem do Dr. Butler, diretor da escola, me parando na rua e perguntando, com
todos os relâmpagos de Júpiter em suas sobrancelhas e todo o trovão em sua voz, se era
possível que a escola de Harrow fosse desonrada por um moleque tão terrivelmente sujo
quanto eu. Ó! O que senti naquele momento! Mas meus sentimentos não eram visíveis.
Decerto eu estava sujo, disso não duvido, mas acredito que ele tenha sido cruel.
Trollope se lembra desse sentimento porque ele foi muito vívido, e é frequente que a infância
apareça ao homem como uma série de episódios raríssimos, aqueles que produziram uma impressão
tão violenta que o choque nervoso ainda nos sacode, anos depois. É por isso que as infâncias dos
tempos de guerra ou de revolução deixam lembranças mais ricas do que as infâncias calmas e felizes.
Na autobiografia de Benjamin Haydon, vemos a forte impressão que a Revolução Francesa deixou
nele e como, por volta de 1794, os meninos ingleses brincavam de cortar vinte e cinco vezes por dia
a cabeça de Luís XV com guilhotinas em miniatura.
Às vezes, as lembranças são de segundo grau. Nossos pais ou avós nos contaram nossa própria
infância, e nossas lembranças são na realidade lembranças de seus relatos. Herbert Spencer, que,
enquanto escrevia a autobiografia, tentava observar a si mesmo de forma erudita, afirmou com razão:
No que diz respeito aos incidentes da infância, minhas lembranças tomaram essa forma
secundária que, acredito, elas quase sempre tomam numa idade já avançada. Lembro-me
simplesmente de que houve um tempo em que eu me lembrava. Eu tinha uma irmã mais nova,
Louise, um ano mais jovem do que eu, que morreu aos dois anos. Nossas brincadeiras no
jardim imprimiram em mim imagens pálidas que sobreviveram por muito tempo. Por muito
tempo também sobrenadou em mim a lembrança de ter me perdido numa cidade em que me
encontrava em busca da casa de amigos de que gostava muito, e o resultado foi que o
pregoeiro público foi enviado à minha procura. Mas a memória mais vívida de minha infância
é a de ter sido deixado só pela primeira vez. Todo mundo tinha saído, menos a ama que
cuidava de mim. Ela aproveitou a ocasião para sair também, trancando a porta e me deixando
só. Ora, uma noite por semana – e aconteceu que foi naquela noite – o costume era de fazer
soar um carrilhão na igreja de Todos os Santos, em Derby. Enquanto eu sofria o mártir
daquela primeira solidão, os sinos soavam alegremente, e o efeito foi o estabelecimento em
mim de uma associação tão forte que durante a primeira parte de minha vida, e até mesmo na
adolescência, eu não podia ouvir aqueles sinos sem experimentar um sentimento de tristeza.
Sim, o que nos resta de nossa infância, são coisas tão pequenas quanto essas, sentimentos
confusos misturados a associações cujas causas se tornaram obscuras. Isso é insuficiente para explicar
o indivíduo já tão complexo que somos aos seis ou sete anos de idade. Da imensa aquisição de
vocabulário, de ideias, de sentimentos, de nossa aprendizagem do mundo exterior, das imagens
sucessivas da sociedade que se formam em nosso espírito infantil, nós não conservamos quase nada.
Por isso, a autobiografia da infância é quase sempre medíocre e falsa, mesmo quando o autor é sincero.
Aliás, essa é uma razão para apreciar particularmente as lembranças daqueles que tiveram a
sorte de conservar uma imagem fiel desse período de suas vidas. Já citei a infância de Tolstói. Maurice
Baring descreveu a sua de maneira charmosa em The Puppet Show of Memory (“O Teatro de
Marionetes da Memória”), e eu também aprecio infinitamente as primeiras páginas da bela
autobiografia Apostate (“Apostáta”), de Forrest Reid.
O mecanismo do esquecimento funciona ao longo da vida toda. Nossos esquecimentos não
são mais tão completos quanto os da infância, porque o indivíduo adulto está instalado num quadro
social, o que prende suas lembranças a realidades fixas que o rodeiam e que permanecem. Todavia,
se for deslocado, desenraizado, ele pode esquecer, muito honestamente, regiões inteiras de sua vida.
Mesmo nos casos em que se lembra, a memória é incompleta. Suponhamos, por exemplo, que eu
tente evocar a mobilização do mês de agosto 1914. Eu tenho, é verdade, algumas imagens, mas o que
elas representam? Talvez alguns minutos. Todo o resto, as longas horas de espera e de angústia se
esvaíram para sempre. Nós percebemos todo o nosso poder de esquecimento quando encontramos
anotações um pouco detalhadas que tomamos a respeito de acontecimentos que presenciamos. Então,
através da leitura de nossas próprias lembranças, as imagens de fato ressurgem. Mas vemos que, se
não tivéssemos conservado esse testemunho escrito, teríamos composto um relato não somente
incompleto, mas inexato.
É por isso que devemos dar um valor singular às memórias associadas a diários, como é o
caso, por exemplo, da autobiografia de Haydon de que falamos agora há pouco. O diário puro pode
parecer fastidioso pela monotonia da forma, mas os fragmentos de diário inseridos numa narrativa
orgânica lhe dão uma autenticidade notável. Aliás, é provável que muitas das grandes memórias
tenham sido escritas com a ajuda de antigos diários. Não podemos conceber, por exemplo, como o
cardeal de Retz, após quinze ou vinte anos, teria escrito suas memórias, reproduzindo conversas
inteiras entre ele e a rainha, entre ele e Mazarin, se não tivesse utilizado seu próprio diário e, no que
diz respeito às sessões do Parlamento, os registros da companhia.
Nós esquecemos especialmente os nossos sonhos. Muitas vezes, nós os esquecemos alguns
minutos antes do despertar. De uma autobiografia honesta, eles são inteiramente ausentes, e, no
entanto, nossas vidas, nossos pensamentos são feitos, em parte, do material dos sonhos. Na verdade,
tanto os sonhos quanto a realidade faltam aos nossos relatos, porque nossos dias e noites são
compostos por uma infinidade de imagens e sensações, e o infinito é, por definição, inesgotável.
James Joyce escreveu as oitocentas densas páginas de seu Ulisses para contar um só dia de homem,
e ele ainda está longe de ser completo. O que dizer da autobiografia que contém os vinte mil dias de
uma vida em um ou alguns volumes?
2° Uma segunda causa de deformação é o esquecimento voluntário por razões estéticas. Se
um autobiógrafo for ao mesmo tempo um escritor de talento, ele será tentado, quer queira, quer não,
a fazer do relato de sua vida uma obra de arte. Para conseguir fazê-lo, seus materiais, mesmo
selecionados pelo divino esquecimento, ainda são numerosos demais. Tomem um diário como o de
Pepys. Ele é muito divertido, e nós todos o afeiçoamos por mil razões que não são razões literárias.
Para fazer dele uma obra de arte, seria necessário apagar muita coisa. Isso também é verdade do diário
de Amiel. Só um diário muito curto pode ter ao mesmo tempo o charme do candor cotidiano e o
charme artístico que a unidade da personalidade do escritor oferece a um relato. É o caso, por exemplo,
do admirável diário de Byron em Ravena, que acaba de ser publicado por lord Ernle. Mas o diário de
Ravena é a história de alguns dias. A lassitude e o desprezo de Byron não permitiram que escrevesse
toda sua vida dessa forma. É provável que as memórias publicadas por Moore fossem memórias
formais, construídas graças a esquecimentos apropriados e necessários.
Herbert Spencer disse muito bem que, durante a vida toda, a memória deixa para lá, constrói,
elimina, transforma a verdade, sem dar espaço algum à vida cotidiana, aos acontecimentos simples,
aos períodos desprovidos de acidentes, que, no entanto, formam o essencial de toda existência humana.
Ele afirma:
Observação refinada e profunda, que confirma aquilo que dizíamos sobre a moral demasiado
individualista que se revela em toda biografia. Ao ler a vida de um homem, temos a impressão de que
essa vida foi muito mais interessante, muito mais extraordinária do que a nossa. E isso é, em parte,
verdade, porque se trata de um grande homem, mas só em parte, porque aqueles acontecimentos tão
notáveis só preencheram talvez algumas horas da vida do herói, enquanto o resto de sua vida é mais
ou menos semelhante à nossa. A memória é um grande artista; ela escolhe, mas escolhe bem demais;
para cada homem, para cada mulher, ela faz da lembrança da própria vida uma obra de arte e um
documento falso.
3° A autobiografia não deforma somente através do esquecimento. Ela deforma também pelo
efeito da censura natural que a mente exerce sobre aquilo que é desagradável. Voltemos ao relato da
infância; quando ela foi infeliz ou vergonhosa, é quase impossível que seja contada com sinceridade.
Lembramo-nos dos fatos quando desejamos nos lembrar deles; relegamos ao esquecimento aqueles
que nos feriram; conscientemente primeiro, nós os transformamos; fazemos um relato um pouco mais
belo, um pouco mais vívido, um pouco mais animado do que o acontecimento real. O sucesso que tal
relato obtém nos encoraja a embelezá-lo. Pouco a pouco, acabamos nos lembrando do relato e não do
acontecimento, e, de boa-fé, a obra de nossa imaginação substitui as imagens sempre mais pálidas de
uma realidade desaparecida. Nada mais surpreendente do que encontrar notas tomadas por nós no
momento em que ocorria um acontecimento e compará-las com a lembrança que ele em seguida se
tornou para nós. Como exemplo de uma infância inconscientemente deformada por uma curiosa
vergonha, podemos citar a de Disraeli, que, em todos os fragmentos autobiográficos que ele nos
deixou, afirma que sua família vinha de Veneza, enquanto ela na verdade vinha de uma cidade
pequena, Forli. Mas Veneza lhe agradava pelo brilho do nome, da história, pela beleza de seus palácios,
pelos ouros e as pombas da praça de São Marcos, e a substituição havia sido feita em sua mente, sem
dúvidas contra sua vontade.
“Swinburne, disse o Sr. Harold Nicolson, não negligenciava, ocasionalmente, ornamentar sua
árvore genealógica com alguns ancestrais decorativos, mas puramente fictícios.” Ele falava dos
glóbulos franceses de seu sangue, explicava que esses glóbulos vinham de uma Polignac* e até mesmo,
quando estava particularmente inspirado, do marquês de Sade. Nada disso era verdade, assim como
não era verdade o fato de que o cardinal de Retz fora de família “ilustre e antiga”, como afirma em
suas memórias. Mentiras ingênuas, e um tanto comoventes; mentiras, todavia, e deformação.
4° Uma forma diferente de censura é exercida pelo pudor. Poucos homens tiveram a coragem
de dizer a verdade sobre sua existência sexual. Podemos, é claro, citar Rousseau, que, em duas ou
três passagens, foi extremamente intrépido. Mas podemos nos perguntar se, no caso de Rousseau, não
há uma espécie de exibicionismo que o leva a exagerar suas lembranças sobre tais assuntos. Em todo
caso, seu exemplo prova que tais confidências nos são custosas. Lendo-as, nos lembramos da terrível
ideia de Swift de um parlamento de homens nus; quer queiramos, quer não, o homem vestido, o
homem civilizado, tornou-se mais verdadeiro para nós do que o homem nu. Agradecemos a Benjamin
Constant, que nos conta seus amores em seu Cahier rouge (“Caderno Vermelho”), por contá-los de
modo casto. É melhor, em assuntos do tipo, sugerir do que descrever. Os sentimentos e os
acontecimentos é que são individuais e raros, a fisiologia é banal.
Aliás, como o autobiógrafo poderia dizer a verdade sobre tais questões? Se ele escreve, é
porque é um artista, porque sente, como todo artista, uma necessidade de evasão. Ora, para que um
relato constitua uma verdadeira evasão, é preciso que seja para o autor o pretexto de uma vida mais
conforme aos seus desejos do que sua vida verdadeira. Para se dar essa vida, ele fará como o
romancista: ele a criará. A única diferença para com o romancista, é que ele a criará dizendo (e talvez
acreditando) que é realmente a sua, enquanto o romancista tem consciência de sua criação. “O
primeiro impulso do artista, escreve Forrest Reid, vem do descontentamento e sua arte é como uma
queixa para alcançar os Campos Elísios.” “Posso prometer que vou lhes apresentar o mundo real e as
pessoas que nele viveram, sem um só farrapo de disfarce, mas sei que não posso manter minha
promessa.”
5° E a memória não faz só esquecer, seja pelo simples efeito do tempo, ou por censura
voluntária, mas sobretudo ela racionaliza; ela cria depois de tal acontecimento os sentimentos ou as
ideias que poderiam ter sido a causa do acontecimento, mas que na verdade foram inventados por nós
após o acontecimento em si, que foi obra do acaso. Em muitos casos, encontramos motivos nobres e
* *
N.d.T.: antiga família da nobreza francesa.
heroicos para atos que realizamos sem querer, sem saber. É verdade que César quis atravessar o
Rubicão? Napoleão com certeza não quis o 18 Brumário. Leiam as memórias dos generais e
comparem, com uma batalha real, a bela e clara construção que uma batalha se torna nas memórias
daquele que a conduziu. Todos nós vimos batalhas. Antes do começo da ação, havia um plano claro,
etapas sucessivas, desejadas e desenhadas pelos estados-maiores. Uma vez que ela começou, pessoas
vão, vêm, correm, linhas telefônicas são cortadas, tropas se dispersam e o relato sincero seria o de
uma terrível angústia intelectual. Mas as memórias do general dirão: “Então, eu surgi da floresta e
decidi atacar o flanco esquerdo do inimigo.”
O mesmo acontece na vida política. O tom de voz de um interlocutor e a qualidade de uma
conversa influenciam uma decisão; muitas vezes, sentimentos como o amor ou a amizade
transformam todas as atitudes de um homem: ele muda de partido político porque se casou com uma
mulher que não compartilha suas antigas ideias, ele se converte, ele renova sua filosofia. Como
Auguste Comte, ele faz da mulher o centro de seu sistema porque Clotilde de Vaux passou por sua
vida; se for economista, ele transforma os números e faz com que as estatísticas digam aquilo que
agrada aos seres que lhe são caros.
Quando passa a crise, ele olha para trás, racionaliza, e diz: “Eu sou socialista, sou positivista,
sou conservador… O andamento de minhas ideias foi o seguinte. Tal raciocínio me convenceu.” Mais
tarde, na velhice, ele se encontra em presença (se examinar o passado) de todas as crises sucessivas,
incoerentes, contraditórias e, sem poder suportar a ideia de não mais se compreender, ele faz da
própria vida um sistema e o organiza para que o sistema seja coerente.
Examinemos o caso de Rousseau; ele é importante porque as Confissões foram um dos
exemplos que inspiraram em outros homens o desejo e a coragem de escrever uma autobiografia.
“Planejo uma empreitada de que nunca houve exemplos e que não terá imitadores.” No caso de
Rousseau, possuímos ao mesmo tempo uma confissão que seu autor pretendeu sincera ao ponto da
humildade, e, como meios de verificação, uma correspondência prolongada. Ora, se confrontarmos a
correspondência às Confissões, encontraremos que, no que diz respeito aos primeiros anos, Rousseau
exagerou suas gafes e sua lentidão mental; suas cartas são muito mais inteligentes do que teriam sido
as do jovem rústico que ele descreveu nas Confissões. Por quê? Talvez ele quisera criar um laço entre
sua mente e a humildade de sua condição. Além disso, Rousseau, aos cinquenta anos, é independente,
republicano, e deseja encontrar no jovem rapaz que fora os primeiros traços dessa independência. Ora,
na verdade, até os vinte e cinco anos, ele não passou de um lacaio maleável, muito desajeitado e
cândido, mas sem nenhuma rigidez de princípios. Nas Confissões ele omite absolutamente (coisa que
aparece com clareza em suas cartas) que foi uma denegação de justiça do embaixador sob o qual era
secretário que o levou à selvageria e à liberdade. Se seu chefe tivesse sido inteligente, nós sem dúvida
não teríamos Rousseau, mas isso, Rousseau não pode admitir. Ele o admite tanto menos que as
Confissões “são menos uma autobiografia desinteressada do que um memorial justificativo11”.
6° Uma última causa da falta de sinceridade nas autobiografias é a necessidade muito legítima
de proteger aqueles que foram nossos companheiros ou cúmplices nas ações que descrevemos. Ainda
que tenhamos decidido revelar tudo de nossas vidas, nós não temos o direito de decidir revelar tudo
das dos outros, ou, pelo menos, não acreditamos ter esse direito. Admitiríamos que lord Byron tenha
escrito uma confissão. Admitiríamos com dificuldade, no entanto, que lord Byron tenha escrito, de
forma direta e não romanesca, a confissão de Caroline Lamb.
Há, no entanto, exemplos de autobiografias que são satisfatórios em todos os aspectos. Vocês
possuem uma na Inglaterra, que foi publicado enquanto seu autor ainda estava vivo. Trata-se de Pai
e filho, de Edmund Gosse. Nela, o motivo que levou Sir Edmund Gosse a escrever parece ser o motivo
habitual do romancista: um desejo de liberação, de livramento. Mas o tom é tão justo, os retratos tão
fiéis, a imparcialidade tão grande, que em momento algum o leitor fica chocado. Pai e filho é a prova,
e uma das raras provas, de que um livre exame de si mesmo é possível.
Indiquemos desde já as razões pelas quais esse êxito foi possível. Pai e filho é uma biografia
espiritual, trata-se da história do desenvolvimento das ideias de um homem, de sua inteligência. Este
também é o caso de um livro que possui o charme, e às vezes lembra o tom, de Pai e filho: a
Autobiography of Mark Rutherford (“Autobiografia de Mark Rutherford”). Raramente um homem
11
Jean Prévost.
falou com tanta naturalidade de sua vida religiosa, do nascimento de suas dúvidas, de suas ideias
sobre o amor e sobre a morte. É verdade que a autobiografia aqui foi levemente disfarçada, e que a
história de Mark Rutherford difere um pouco da de William Hale White, seu criador. Mas só os fatos
são diferentes, e a confissão espiritual é autêntica. Aqui também o êxito é perfeito.
E se explorarmos agora as autobiografias póstumas, nos daremos conta imediatamente que as
únicas que são autênticas são aquelas em que o autor se contenta em descrever esse andamento do
espírito. Vocês têm John Stuart Mill, Newman, Gibbon, e (com um pouco menos de perfeição)
Herbert Spencer; nós temos as Recordações de Infância e de Juventude de Ernest Renan. Por que
essas autobiografias intelectuais são superiores às outras? Em primeiro lugar, creio eu, porque tudo o
que diz respeito à vida do espírito é, ao menos em aparência, muito mais consciente do que o resto de
nossa existência; em seguida, porque temos menos pudor intelectual do que pudor sentimental ou
sensual. Podemos ter vergonha de algumas de nossas ações, de alguns de nossos sentimentos;
raramente temos vergonha de nossas ideias. Quase sempre acreditamos que os processos pelos quais
chegamos a uma posição intelectual são legítimos. Se não acreditássemos nisso, nossa forma de
pensar seria outra. Daí, por exemplo, a tranquila nobreza de um livro como a autobiografia de J. S.
Mill. Nenhum acontecimento. Parece que toda uma vida se passou a perseguir um pensamento justo.
A imparcialidade do autor é rigorosa. Quando encontra um homem diferente de si, ele o julga com
uma admirável serenidade. Não quero citar textos que vocês conhecem melhor do que eu; apenas
gostaria de ler algumas linhas a respeito de Carlyle; Mill não o apreciava, não tinha disposição para
compreendê-lo, e, no entanto, eis o que diz:
Eu não me considerava competente para julgar Carlyle. Sentia que ele era um poeta, e que eu
não; que ele era um homem da intuição, o que eu não era; que, como tal, não somente ele via
muitas coisas muito antes de mim, mas ele também podia ver muitas coisas que não eram
visíveis para mim*, mesmo depois que me houvessem sido indicadas. Eu sabia que não podia
dar a volta ao homem, e que nunca poderia ter certeza de enxergar além dele. Logo, nunca
tive a pretensão de julgá-lo até que ele me fora interpretado por um terceiro, que era superior
a nós dois, que era mais poeta do que ele, mais pensador do que eu, cuja natureza englobava
a sua e muito mais além.
A única objeção que poderíamos fazer a um livro como o de John Stuart Mill seria a seguinte:
não é artificial, isolar dessa forma o desenvolvimento intelectual de um homem? Mas nós podemos
responder que não é artificial no caso de alguns homens para os quais a vida da inteligência é tudo.
O caso de Spencer é um pouco diferente. Spencer quis não somente escrever uma
autobiografia intelectual como a de John Stuart Mill, mas, ao mesmo tempo, oferecer um documento
científico sobre um personagem que considerava como o mais interessante de seu tempo, e que era
ele mesmo:
* *
N.d.T.: A tradução original de Maurois diz “para ele”, mas o original de Mill diz “para mim”.
Penso que uma história natural de mim mesmo acompanharia de modo útil os livros que
foram a principal ocupação de minha vida. Nos capítulos a seguir, eu tentei oferecer essa
história natural. É improvável que eu tenha conseguido completamente, mas talvez o tenha
feito parcialmente. Em todo caso, uma verdade importante se tornou clara – para a gênese de
um sistema de pensamento, a natureza emocional é um fator importante: talvez tão importante
quanto a natureza intelectual.
Essas poucas linhas são muito notáveis. A expressão “natural history of myself” precisa ser
retida, e, de fato, constituiria um ideal possível de autobiografia, se pudéssemos realizar tal história
natural de nós mesmos.
No entanto, vejam o quanto, mesmo no caso de Spencer, essa história natural está longe de
ser imparcial. Spencer é repleto dos mais louváveis escrúpulos; ele se pergunta longamente se
podemos, numa autobiografia, falar bem de nós mesmos, porque, por um lado, diz ele, se o escritor
negligenciar os incidentes que marcaram os progressos de seu caráter e de seu sucesso, tal omissão
diminuiria o valor do relato.
Por outro lado, como eles lhe trazem uma espécie de honra, o fato de mencioná-los pode
aparecer como um sinal de vaidade, ainda que possa resultar simplesmente do desejo de
apresentar completamente o sujeito, ou do sentimento que, contra as dívidas de sua conta, é
justo apresentar os créditos. Então, o que fazer? À primeira vista, parece possível, para aquele
que narra a própria vida e esboça o próprio retrato, ser verídico. Mas, na verdade, é impossível.
E, de fato, apesar de tanta consciência, não podemos deixar de pensar que Spencer falou bem
demais de si mesmo. O sentimento de ser oprimido pela personalidade dos outros, assim que ela tende
a inchar ou a se estender, é tão forte em cada um de nós, que é quase impossível ouvir um homem
falar de si sem sentir uma forte impressão cômica; é injusto, até mesmo absurdo, mas é assim. Não
há, na realidade, nada de cômico na passagem que vou ler, e, no entanto, não podemos ouvi-la sem
sorrir:
É provável que muitos leitores das páginas anteriores tenham sido impressionados pela
heterogeneidade de minhas ocupações mentais e de meus centros de interesse… Os produtos
de minha ação mental se estendem da gênese de ideias religiosas ao escape de um relógio; da
circulação das plantas a uma cama para inválidos; da lei da simetria orgânica às máquinas de
repassar; de doutrinas metafísicas a uma agulha de encadernação; de uma classificação das
ciências a uma vara de pesca aperfeiçoada; da Lei da Evolução geral a uma melhor maneira
de preparar moscas artificiais.
É cômico ver um homem se perguntar, com ansiedade e seriedade, de onde vem a admirável
faculdade de exposição que possui sem saber o porquê:
Foi-me dito que eu tenho uma faculdade de exposição muito rara, que expresso minhas ideias,
meus raciocínios e minhas conclusões com uma clareza e uma coerência que não são comuns.
De onde vem essa faculdade? Meu avô passou a vida toda ensinando, e meu pai também
passou a vida ensinando. Ninguém negará meu gosto pela crítica. Ao mesmo tempo em que
expunha minhas próprias opiniões, passei muito tempo expondo os erros dos outros. E, se
esse é um traço de meus escritos, é ainda mais um traço de minhas conversas. A tendência a
encontrar as faltas dos outros é, em mim, dominante, desagradavelmente dominante. De onde
me vem esse hábito? Sua origem é a mesma de antes. Enquanto metade do tempo de um
professor ele passa expondo, a outra metade, ele passa criticando, detectando erros feitos
pelos que recitam lições, corrigindo exercícios, ou verificando cálculos; e o poder moral e
intelectual necessário para fazê-lo é reforçado por uma impressão de dever cumprido.
Permitam-me acrescentar que, em mim, o senso do dever, também, leva à crítica; porque
quando, ocasionalmente, eu consigo me impedir de comentar um erro de linguagem ou de
ação, eu tenho um sentimento de desconforto, como se tivesse deixado de fazer uma coisa
que deveria ter sido feita; a tendência hereditária está se tornando um instinto automático.
Notem que, aqui, Spencer tenta ser severo consigo mesmo; mas Proust, com razão, observou
que quando pensamos ser extremamente duros para com nós mesmos, ainda assim o somos muito
menos do que os outros. Ficaríamos atordoados se pudéssemos acessar a imagem de nós que
formaram os outros. Algumas frases que dissemos, e que parecem completamente naturais, são vistas
e comentadas como provas de egoísmo ou estupidez. Nossas ações são interpretadas de forma
complicada, e muitas vezes falsa. Felizmente, nós não o sabemos, se não, não ousaríamos mais falar
ou agir; mas quando tentamos traçar para os outros um retrato de nós mesmos, não devemos ficar
surpresos se eles não o acharem parecido.
Spencer quis escrever uma História natural; outros autobiógrafos quiseram fazer uma obra
literária. Às vezes, em Thomas de Quincey, por exemplo, o cuidado com a escritura prejudica a
simplicidade da obra. No caso de Gibbon, aceitamos com muito gosto o estilo nobre e as frases
admiravelmente equilibradas, mesmo nos momentos de emoção, porque esse equilíbrio parece fazer
parte da própria personalidade de Gibbon. Nos piores momentos, a frase formava, em seus escritos,
um só corpo com a vida; ela provocava sentimentos e paixões, as acalentava com a lenta ondulação
de suas ondas constantes e majestosas, e, sem dúvida, as apaziguava. O leitor de Gibbon não pode
deixar de sentir simpatia por um escritor que tinha encontrado em sua obra o bem soberano. A
autobiografia de Gibbon tem uma grandeza ingênua que faz dela um dos livros mais charmosos da
literatura inglesa. Mas ainda assim, ela não é aquilo que buscamos, ou seja, uma imagem perfeita do
homem. É uma imagem de um ser excepcional, de um técnico que cuida apenas de sua técnica. Quem,
então, nos dará o homem por inteiro? Para falar a verdade, entre os autobiógrafos, ninguém.
Goethe teve a sabedoria de dar à autobiografia o título: Poesia e Verdade. E, de fato, é quase
impossível que o relato de nossa vida não seja uma mistura de poesia e de verdade. Nossa vida é tão
preciosa para nós… Aqueles pobres acontecimentos, tão simples, tão ordinários, como não seriam
importantes para nós, mais importantes do que todo o resto, já que inspiraram em nós emoções tão
vivas? Sabemos que não teremos nada no mundo além desses quarenta, sessenta anos; gostaríamos
que fossem belos, ou, pelo menos, que tivessem contido alguns momentos raros e perfeitos. Quando
a vida real não nos deu tais momentos, nós os criamos, os reconstruímos, ou seja, no sentido forte da
palavra, somos poetas.
Os retratistas sabem bem que um modelo nunca se contenta com seu retrato, ao passo que
acha excelentes os retratos dos outros que encontra no mesmo ateliê. Trata-se de vaidade repreensível?
Não. É que esse rosto (que é o nosso), nós o vimos mil vezes nos espelhos, nos olhares dos outros,
em nossa própria imaginação. Sabemos que é imperfeito. Sabemos que é feio. Mas sempre esperamos
que, por algum milagre, ele traduzirá com fidelidade a boa vontade desajeitada e vã que se encontra
em cada um de nós.
A mesma coisa acontece com os retratos morais. A mais severa autobiografia não passa de
uma defesa. “Que eu ou que qualquer outro homem possa dizer tudo sobre si mesmo, eu afirmo, diz
Trollope, que é impossível. Quem suportaria confessar uma ação baixa? E quem, mundo afora, nunca
cometeu uma?” E não pensem encontrar uma objeção a Trollope entre os cínicos, no cardeal de Retz,
por exemplo, que diz aos monges escandalizados aos quais recita suas memórias: “Ora, vamos, eu fiz
isso, logo, não há vergonha em dizê-lo.” Porque o próprio Retz ainda está se defendendo, assim como
Rousseau, assim como Gide.
Uma vez mais nós perseguimos, e uma vez mais não alcançamos nossa caça: a verdade.
Veremos, na última conferência, se ela não se refugiou no romance.
CAPÍTULO SEXTO
A biografia e o romance
Durante cinco horas, nós perseguimos, juntos, uma sombra que fugia diante de nós: a verdade
do homem. Nós nos perguntamos se a biografia podia alcançá-la; pareceu-nos que ela não tinha essa
possibilidade. Cada vez que acreditávamos pôr a mão no ombro transparente do fantasma, ele se
dividia em dois outros, que fugiam por sendas diversas, em direções opostas. De um lado corriam os
atos, a vida visível do personagem, incarnada em documentos, em testemunhos; sabíamos que ele
viajara, que encontrara tal mulher, que pronunciara tal discurso. Do outro lado, havia a vida interior,
e era sobretudo ela que se esvanecia assim que pensávamos tê-la alcançado. Às vezes, ela parecia se
materializar sob a forma de diários, de cartas, mas logo esses documentos se tornavam suspeitos.
Sentíamos que, por trás deles, em lugares mais profundos, nós deveríamos ter encontrado outra coisa.
Uma outra coisa que conhecemos em nós mesmos. A corrente contínua dos pensamentos, das imagens
furtivas que atravessam o espírito, as intenções e os arrependimentos. Que lamento! Como conhecê-
los? Quando se trata de um ser defunto, cujos ossos repousam num caixão de madeira, ou as cinzas
numa urna, imagens e pensamentos desapareceram para todo o sempre e as pesquisas mais pacientes
já não revelarão nada além de poeira.
Muito mais do que isso, quando, por acaso, a coincidência revela, ao mesmo tempo, os atos e
as intenções de nosso herói, constatamos que eles se contradizem. Ainda que houvéssemos sido
severos com os atos, a ingenuidade das intenções nos desarma. Chegamos a pensar que, nos casos em
que conhecemos apenas os atos, é quase impossível interpretá-los. Vocês conhecem a história de
Rossetti, que, fortemente arrependido de sua conduta egoísta em relação à mulher, decidiu, como
forma de punição, enterrar na tumba da mulher defunta os poemas que havia composto desde o
casamento e que eram para ele o símbolo da culpabilidade. Ele temia ter sacrificado um ser real à sua
arte, e queria castigar-se destruindo a obra. Vocês também sabem que, alguns meses depois, sofrendo
por não conseguir se lembrar de seus poemas, desejando fervorosamente recuperá-los, Rossetti não
resistiu à tentação de mandar reabrir a tumba e de reaver seu manuscrito. Trata-se de uma terrível
anedota. Um romancista poderia fazer dela uma crônica emocionante, mostrando o que se passa na
alma de Rossetti durante esse período de tentação, e, depois, de execução12. Mas que poder tem o
biógrafo? Como ele sabe pouco… Em que Rossetti estava pensando, exatamente? Quais eram seus
sentimentos no momento em que havia feito o primeiro gesto (o de enterrar o manuscrito)? Quais
eram seus sentimentos no momento em que tomara a terrível decisão? Nós não sabemos; nós nunca
saberemos.
12
Na verdade, o Sr. Edmond Jaloux escreveu essa crônica.
O biógrafo não pode imaginar sem agitação qual teria sido sua interpretação se um documento
(que poderia muito bem ter desaparecido) tivesse realmente desaparecido. Shelley abandona sua
mulher, Harriet, e foge com Mary Godwin; eis o fato. Acontece que nós sabemos, por diversos
testemunhos, que naquele momento ele suspeitava Harriet de infidelidade; é a explicação e a desculpa
de sua conduta. Mas, se não tivéssemos esses testemunhos (o que é perfeitamente concebível), como
a conduta de Shelley nos pareceria incoerente e cruel13.
Na biografia, os seres só vivem na medida em que outros os viram e tomaram nota de suas
ações. A velha filosofia idealista dizia: “Ser, é ser percebido.” Um herói de biografia também só existe
através dos diversos esboços desenhados pelas testemunhas ou por ele mesmo, e parece que não existe
um ser real por baixo de todas essas aparências. E, no entanto, nós sabemos bem que o ser real também
existe, porque sabemos que nós existimos. Mas onde encontrar esse ser real? Que caçador soube
perseguir duas sombras ao mesmo tempo? O biógrafo? Parece que não. Mas talvez o romancista.
De fato, o romancista pode se colocar na situação que permite perceber ao mesmo tempo os
dois pontos de vista. Considerem, por exemplo, o caso de um soldado que, durante um ataque, em
vez de avançar, fica escondido numa cratera de obus, e que só se junta aos camaradas um pouco
depois, quando a barragem de artilharia já acabou. Se for descoberto por um oficial, será considerado
como um covarde e, se sua conduta for, mais tarde, conhecida por seu biógrafo, o soldado entrará
para a história como um ser em que falta coragem. Se o retardatário não for descoberto, o ato, para o
biógrafo, desaparece pura e simplesmente. Mas para si mesmo, é possível que, no fundo, o nosso
soldado estivesse repleto de intenções corajosas. Ele não foi um covarde, ele queria avançar; seu
corpo se recusou, e o forçou, de certa forma, a ficar escondido. Isso, é possível para o romancista
sabê-lo; ele pode conhecer também a opinião do oficial, e pode expressar ambos. Todavia, o
testemunho completo da vida só existe se possuirmos ao mesmo tempo o testemunho do espectador
e aquele do agente, e se (como diz Ramón Fernández) “compensarmos uns pelos outros os erros do
espectador e os do agente, porque o agente é sempre mais ou menos traído por seus sentimentos, e o
espectador é enganado pelos atos”. O agente sempre pensa: “Eu fiz o melhor que pude.” O espectador
pensa como o poeta:
13
Eu já indiquei acima que, justamente (e mais de um ano após essa conferência), novos documentos tornaram
verossímil a inocência de Harriet e fizeram Shelley parecer culpado.
*
N.d.T.: literalmente: “É claro que ele fez aquilo pelo melhor dos motivos;/por que outro motivo ele poderia tê-lo
feito?/Mas ele realmente o fez? Esse é o teste./Não quero saber mais.”
Quanto ao romancista, ele pode apresentar o dossiê completo. Ele nos dá, ao mesmo tempo, a
opinião do agente sobre si mesmo, a opinião do espectador sobre o agente e
uma terceira opinião composta das duas primeiras, que não é um julgamento sobreposto, mas
o próprio ato de criação… Se observarmos de perto, veremos que um personagem de romance
só existe se houver correspondência entre sua vida interior e sua vida aparente, uma
comandando a outra, ou as duas sendo criadas simultaneamente, de acordo com as
preferências e as possibilidades do romancista14.
A história é desprovida de conteúdo porque ela se condena a aceitar os sentimentos que cada
um confessa. Ela se move numa ordem abstrata, e a vida real dela escapa. Por um lado, ela
coleciona todos os pedaços de machado, ainda que sejam parecidos; por outro, quando não
encontra machados, ela afirma que eles não existem, coisa que não foi provada.
Nas conferências do ano passado, E.-M. Forster mostrou muito bem a diferença entre um
personagem de romance e um personagem de biografia:
14
Fernández.
O historiador trata das ações e dos caráteres dos homens somente na medida em que
pode deduzi-los de seus atos. Ele se dedica aos caráteres tanto quanto o romancista, mas só
pode conhecer a existência do caráter quando ele se dá a ver na superfície. Se a rainha Vitória
não tivesse dito: “Não estou rindo”, seus vizinhos de mesa não saberiam que ela não estava
rindo, e seu tédio não teria sido anunciado publicamente. Talvez ela tivesse franzido a
sobrancelha, de tal forma que pudéssemos deduzir seu estado de espírito; os olhares e os
gestos também são testemunhos históricos. Mas se ela tivesse ficado impassível, quem teria
adivinhado? Uma vida escondida é, por definição, escondida; uma vida escondida que volta
a aparecer nos sinais externos não está mais escondida. Ela entra no reino da ação. A função
do romancista é revelar a vida escondida na fonte, dizer a respeito da rainha Vitória mais do
que é possível saber, e produzir, assim, um personagem que não é a rainha Vitória da História.
Vocês me permitiriam acrescentar: que não é a rainha Vitória da História, mas que se parece
mais com a rainha Vitória do que a rainha Vitória da História?
“Para se ter uma ideia mais verdadeira da importância e do sentido da era revolucionária e
napoleônica, é preciso abandonar os historiadores em prol dos romancistas, ler Guerra e Paz, de
Tólstoi, e Os Dinastas, de Hardy”, escreve o Sr. Rowse, e é quase verdade. Digo “quase”, porque
Tólstoi não entendeu a grandeza tão real, tão humana de Napoleão, mas soube fazer do imperador
Alexandre, do próprio Napoleão, de Kutúzov, seres vivos. Com que artifício? Primeiro, porque eles
são vistos através dos heróis do romance (Boris, o príncipe Andrei), com os quais nos identificamos.
Em seguida, porque Tolstói, que é um visionário, sabe, a cada instante, quais são os gestos e as
expressões dos rostos de seus heróis históricos. É verdade que esses gestos e expressões são, também,
fatos históricos. Sim, mas apenas quando são conhecidos. Que historiador, por exemplo, teria o direito
de escrever, da mesma forma que Tólstoi, o seguinte relato da visita de Napoleão ao exército russo?
“– Sire, peço licença para conferir a Legião de honra ao mais valente de seus soldados”,
disse uma voz clara, destacando cada sílaba. Era o pequeno Bonaparte quem falava, fitando,
de baixo para cima, diretamente os olhos do czar, que, escutando com atenção, sorriu,
aprovando com um movimento da cabeça.
“– Àquele que se portou com mais valentia nessa última guerra!” acrescentou
Napoleão, com uma tranquilidade e segurança revoltantes para Rostóv, e percorrendo com
os olhos os soldados alinhados, que apresentavam armas e fixavam, imóveis, a figura do czar.
“– Vossa Majestade permitiria que eu peça a opinião do coronel?” disse Alexandre,
dando alguns passos na direção do príncipe Kozlóvski, comandante do batalhão. Bonaparte
descalçou com dificuldade a luva de sua pequena mão branca, e como ela rasgou, jogou-a
fora. Um ajudante de ordens precipitou-se para a frente e apanhou a luva.
… Napoleão virou imperceptivelmente a cabeça para trás, e estendeu a pequena mão
roliça, como se quisesse apanhar alguma coisa. Os membros de sua comitiva, adivinhando
no mesmo instante o seu desejo, se agitaram, sussurraram, passaram um objeto de um para o
outro, e um pajem, o mesmo que Nicolas tinha visto na casa de Boris, precipitou-se para
frente e, inclinando-se com respeito, pôs sobre a mão estendida uma cruz com uma fita
vermelha. Napoleão a apanhou sem olhar e se aproximou de Lázariev, que, de olhos
arregalados, continuava obstinadamente a fitar seu imperador. Voltando-se para o czar para
demonstrar que o que estava prestes a fazer, ele o fazia para ele, Napoleão tocou, com a mão
que segurava a cruz, um botão do soldado, como se bastasse o seu único toque para tornar
para sempre feliz, recompensado e distinguido o valente soldado.
Um biógrafo não poderia ter dado uma impressão tão vívida do imperador; documento algum
permitiria ao biógrafo mostrá-lo estendendo a pequena mão roliça, ou se voltando para o czar, exceto
na circunstância em que uma testemunha tivesse anotado para ele tais atitudes ou gestos. Mas, em
quase todos os grandes momentos, faltam testemunhas que souberam olhar.
O mesmo vale para Kutúzov quando Dórokhov, durante uma revista de tropas, diz ao general:
“Peço que me deem a chance de expiar minha culpa e demonstrar minha lealdade ao imperador e à
Rússia.”
Kutúzov lhe deu as costas e caminhou rumo à carruagem, franzindo o rosto. Essas
frases banais, sempre as mesmas, o entediavam e cansavam.
Para quê, pensava, responder com o mesmo refrão? Para quê essas velhas e eternas
repetições?
Duas frases apenas, mas duas frases que nos fazem compreender toda a serenidade
desesperada do velho homem, seu cansaço frente a monotonia da vida, duas frases que teriam sido
proibidas a um historiador, porque não possuiria documento algum para justificá-las.
Eis constatações pouco encorajadoras para o biógrafo. É preciso, então, que ele reconheça sua
derrota diante do romancista? Ele poderia, em alguns pontos, aproveitar a experiência do romancista
e tentar utilizar sua técnica? E ele não possui, por sua vez, algumas vantagens que o romancista não
possui? Eis as questões que eu gostaria que levantássemos juntos hoje, retomando um por um e
examinando, do ponto de vista do biógrafo, os diferentes assuntos tratados no ano passado por Forster,
que os observou do ponto de vista do romancista. Forster começou falando longamente do que chama
de Armação de um romance, ou, se preferirem, a forma típica do esqueleto que, dando ao romance
uma forma simples, faz dele uma obra de arte inteligível.
À primeira vista, o biógrafo parece, neste ponto, estar numa situação muito mais difícil do que
o romancista. Exceto nos muito raros casos em que escreve a história de um homem cuja existência,
por acaso, já se encontrava construída, ele é obrigado a aceitar uma massa informe, feita de pedaços
disparates prolongados em todos os sentidos por penínsulas de acontecimentos que não levam a lugar
algum. Em todas as vidas existem desertos. Ora, é preciso representar o deserto para dar uma ideia
justa e completa do país. É verdade que às vezes os longos períodos monótonos e vazios, por contraste,
dão vida às cores dos períodos mais animados. Balzac não tinha medo dos desertos em seus romances.
Mas nunca o biógrafo terá a sorte de encontrar uma existência perfeitamente concentrada em torno
de um sentimento único, como a do pai Grandet, ou a do pai Goriot, ou ainda a do Sr. de Charlus.
Logo, o biógrafo tem muito mais dificuldade em compor do que o romancista.
Mas há uma compensação: ser obrigado a receber, do real, as formas já prontas da obra é
quase sempre, para o artista, uma força. É árduo, torna o trabalho mais difícil: ainda assim, é dessa
luta entre uma matéria resistente e um espírito que a obra-prima é formada. Michelangelo e os outros
grandes escultores do Renascimento recebiam, de seus mecenas e tiranos, blocos de mármore de
formas muitas vezes estranhas, e deviam, por ordem, utilizá-los. Ora, foi muitas vezes dessas formas
estranhas que nasceram as mais belas atitudes; a resistência da pedra tinha forçado o artista a inventar.
Devemos algumas das mais belas descobertas de imagens à imposição das formas rígidas do verso
clássico15. O infortúnio de certos romances é o de terem sido construídos com excessiva liberdade.
Podendo modelar seus personagens de acordo com suas vontades, o romancista fez deles seres
abstratos, destinados a servir uma tese ou a ocupar um lugar no arranjo geométrico de um quadro
preconcebido. É assim que surge o que Forster chamava de modelo “ampulheta” do Thaïs, de Anatole
France, que é justamente um exemplo de romance muito inteligente, mas um pouco destro demais.
Depois dos livros malfeitos, o que há de mais perigoso são os livros bem-feitos demais. Ora,
o livro bem-feito demais nasce do excesso de liberdade. Notem, se estudarem a história do romance
na Inglaterra ou em qualquer outro lugar, que muitas vezes os melhores romancistas se impõem certas
obrigações, e vão buscar, na vida real, situações e documentos, assim como o biógrafo. Meredith
emprestou muitos de seus personagens ao real; Tolstói, em Guerra e Paz, usou a história de sua
família; Maurice Baring me contou que a personagem de Cat’s Cradle (“Berço do Gato”) foi tirada
do registro necrológico de uma senhora no jornal. Gide, em Os moedeiros falsos, indica que prefere
aceitar um acontecimento existente, em vez de construí-lo a priori.
Acredito que séries de acontecimentos emprestadas à realidade, e em seguida transformadas
pela arte do romancista, sempre parecerão mais verdadeiras do que acontecimentos completamente
inventados. A loucura da verdade é admirável, quase inimitável, e é preciso ser um gênio para ser tão
ousadamente absurdo quanto Deus. Mas o romancista, ainda que aceite da vida combinações de
acontecimentos que servem seus propósitos e suas inclinações, tem sempre a possibilidade de excluir,
com um golpe de bisturi, tal tumor de acontecimentos parasitas, enquanto o biógrafo é obrigado a
aguentar sua doença. Naturalmente, ele pode compor, se não deixaria de ser um artista, mas ele o faz
manipulando a luz, como o pintor, ou as rimas, como o poeta.
Passemos agora ao que Forster chama de story, a história. Ele explica, e com razão, que a
primeira qualidade de um romance é forçar o leitor a desejar e esperar os acontecimentos seguintes.
“Sherazade só sobreviveu, diz Forster, porque seu terrível marido queria saber o que aconteceria em
seguida.” Sherazade teria sobrevivido se tivesse escrito biografias? Uma biografia forma uma história
tão contínua, tão interessante quanto um romance? Isso depende dos temas escolhidos. A história de
Disraeli apresenta exatamente todos os aspectos de um conto das Mil e uma noites. É um conto,
porque a confiança e a audácia acabam triunfando; a fada madrinha está presente, na forma da rainha
15
Ver Alain: Système des Beaux-Arts (“Sistema das Belas Artes”).
Vitória, e até mesmo, assim como na Bela adormecida, a assembleia completa das fadas: a fada Mary-
Ann, a fada Sra. Austen, lady Dorothy Nevill, lady Chesterfield, lady Bradford. Sim, acredito que
com Disraeli, Sherazade poderia ter sobrevivido.
Com uma vida de Meredith, é certo que ela teria sobrevivido. Aqui, a vida é apaixonante como
um romance, e até mesmo construída como um romance: a infância na loja do alfaiate; o primeiro
casamento, que falhou; o amor romanesco e puro por uma jovem, Janet Duff-Gordon; enfim o
segundo casamento, que deu certo, e a serenidade. Sim, com certeza, com uma vida de Meredith,
Sherazade teria sobrevivido. Em outros casos, pelo contrário, a vida é terna, ela passa sem grandes
surpresas e não parece feita para reter o interesse do leitor. Algumas vidas, que contêm episódios
interessantes, contêm poucos demais, e são monótonas demais para se prestar à narração contínua.
Considerem um personagem como Mrs. Siddons. À primeira vista, pensamos: “Como ela seria
interessante!” Achamos algumas cenas pitorescas. O personagem em si é belo. Em seguida,
constatamos que das vidas de Mrs. Siddons que foram escritas, todas são mornas, porque a monotonia
da vida de atriz era grande.
Há biografias entediantes; é preciso tomar cuidado para não escrevê-las. Mas também é
verdade que existem romances entediantes, e romancistas que os escreveram.
Passemos aos personagens. Forster explica que é preciso distinguir cuidadosamente o homem
do romance do homem real, que se tratam de duas espécies distintas, o Homo Sapiens e o Homo
Fictus.
“O Homo Fictus é mais escorregadio do que seu primo… Podemos, todavia, indicar alguns
de seus traços. Ele geralmente nasceu; é capaz de morrer; precisa de pouca comida e sono; ele se
ocupa incansavelmente de relações entre os homens.” O Homo Fictus só pensa no amor. O Homo
Sapiens passa a maior parte de seu tempo comendo e trabalhando, e só se ocupa do amor uma ou duas
horas por dia (quando se ocupa dele).
O Homo Biographicus é uma terceira espécie. O que o distingue dos dois outros, é que ele age
muito mais. O Homo Sapiens, o homem real, às vezes passa dias inteiros vagueando, perdendo-se em
vagos devaneios; ele joga golfe; ele joga conversa fora com amigos. O Homo Biographicus está
sempre agindo: ele escreve cartas, governa impérios, ou tenta governá-los, busca seduzir mulheres,
ou as abandona; é um ser incrivelmente ativo.
Seu modo de expressão é muito diferente daquele do Homo Fictus, ainda que tenham algumas
semelhanças em outros aspectos. O Homo Fictus fala muito, ou medita num discurso interno que (por
um milagre próprio ao romance) nós escutamos quando ocupamos, junto ao romancista, o
observatório de Deus. O Homo Biographicus, por sua vez, fala muito pouco com seus próximos, e
nunca pensa quando está só. Ele escreve cartas e, muitas vezes, um diário. Se não escrever cartas ou
um diário, ele é condenável, e aliás deixa de existir. É verdade que o Homo Sapiens também escreve
cartas, mas suas cartas não são importantes. Muitas vezes, ele não acredita no que escreve. Quando o
Homo Biographicus escreve uma carta, ele sempre pensa aquilo que escreve, ou, pelo menos, é o que
dizem aqueles que se interessam no assunto.
O Homo Biographicus é tratado com muito mais severidade do que o Homo Sapiens. O Homo
Sapiens se contradiz constantemente, ama sucessivamente ou simultaneamente várias mulheres,
começa a vida como anarquista e termina como conservador, ou segue o caminho inverso. Nós o
perdoamos porque não descobrimos sua carreira num só olhar; nós o vemos mudar de forma
insensível, o que faz com que nos acostumemos às nuances sucessivas. O Homo Biographicus se
encontra reunido, em duzentas ou trezentas páginas, sob o olhar de juízes cruéis, e é considerado
culpado assim que se contradiz. Quando, como Chateaubriand, ele escreve no mesmo dia três cartas
de amor a três mulheres diferentes, nós o julgamos pérfido, transeunte. Como podem ver, sua
existência é difícil.
Acrescentem que ele talvez seja como os grandes répteis do Mesozoico; é uma espécie
ameaçada de extinção. Ele era feito, como já vimos, sobretudo de correspondências e de diários; ora,
a vida moderna tende, tanto por sua agitação quando pelos meios de comunicação mais rápidos que
ela oferece, a suprimir todo o papel escrito que forma a carne e o sangue do Homo Biographicus.
Hoje, a vida mais romântica acontece por telefone. Um Byron e uma Caroline Lamb modernos sem
dúvidas não deixariam rastro algum de seu conflito. Só o homem de Estado ainda escreve, para “fixar
as responsabilidades”, mas ele escreve com máquina, e já vimos (numa biografia do presidente
Wilson) um autor obrigado, para ilustrar seu livro, a publicar notas datilografadas. Na verdade, a vida
do Homo Biographicus parece precária.
E ainda assim, e ainda assim… quando ele é bem cuidado, o Homo Biographicus pode viver.
Ele é como aquelas plantas delicadas e que precisam de mil cuidados mas que, se lhes dermos tais
cuidados, nos recompensam pela graça de sua folhagem e pela beleza de suas flores. Quando o Homo
Biographicus cai entre as mãos de um médico hábil, o médico pode, por meio de injeções apropriadas,
comunicar-lhe a vida interior tão característica do Homo Fictus sem prejudicar a verdade.
Será necessário, para terminar, tentar escrever um Plutarco ou o Futuro da Biografia? Posso
confessar que, ao meu ver, o futuro não será tão diferente do presente? Não existe progresso em
literatura. Tennyson não é maior que Homero, Proust não é maior que Montaigne, Strachey não é
maior que Boswell. Eles são diferentes. Seria melhor dizer que a literatura segue uma cadência rítmica
do que uma linha contínua. Nós atravessaremos novos períodos de certeza religiosa e social, em que
escreveremos poucas biografias íntimas, mas muitos panegíricos. Voltaremos em seguida a períodos
de dúvida e de desespero, em que a biografia voltará a aparecer como uma confidência reconfortante.
Independente da forma que a biografia do futuro tomará, ela será sempre um gênero difícil.
Dela exigimos os escrúpulos da ciência e os encantamentos da arte, a verdade sensível do romance e
as mentiras eruditas da história. É preciso, para dosar essa mistura instável, muita prudência e tato.
Carlyle disse que uma vida bem escrita é quase tão rara quanto uma vida bem empregada. Aqui,
Carlyle aparece tanto como crítico otimista quanto como moralista pessimista. Uma vida bem escrita
é muito mais rara do que uma vida bem empregada. Mas, ainda que o gênero seja muito difícil, ele
merece que lhe dediquemos nossos trabalhos e nossas emoções. O culto aos heróis é tão velho quanto
os homens. Ele lhes propõe exemplos elevados, mas não inacessíveis, surpreendentes, mas não
incríveis, caráter duplo que faz desse culto a mais persuasiva das formas de arte, e a mais humana das
religiões.