Negociacao Interpessoal
Negociacao Interpessoal
Negociacao Interpessoal
A própria individualidade das pessoas pressupõe – por princípio – interesses diferentes em termos
de conjunto. Ou seja, os interesses humanos são tão amplos, diversificados e numerosos que o
conjunto de interesses de uma pessoa, num determinado momento, tem probabilidade quase zero
de ser igual ao de outra. São tantas as combinações de interesses que é quase impossível uma
pessoa ter uma mesma combinação de interesses que outra, principalmente se imaginarmos estas
duas pessoas se encontrando. Uma mesma combinação de interesses entre duas pessoas é, portan-
to, teórica. Pode até existir, só que as pessoas poderão estar a quilômetros de distância. Se, além
disso, imaginarmos uma coincidência de momento (pessoas com mesma combinação de interesses
se encontrando num mesmo momento), a probabilidade torna-se menor ainda. Um conjunto de
interesses não é algo estático. Pelo contrário, é algo em constante mutação, principalmente se
levarmos em conta os aspectos sutis e refinados dos interesses humanos.
Na medida em que os interesses humanos diferem, as relações das pessoas de uma Sociedade
dependem sempre de alguma forma de transigência, acordo, negociação para haver equilíbrio de
interesses. Tal “equilíbrio”, definido como uma “negociação de sucesso”, ocorre quando as partes
conseguem, de alguma forma, conciliar seus interesses de forma satisfatória a ambas.
Esse tipo de negociação, que dessa forma representa uma posição de equilíbrio, pressupõe duas
condições básicas. A primeira é a liberdade. Uma negociação só ocorre quando as pessoas sentem-
se livres para relacionar-se com as outras. A segunda é o envolvimento, a não-alienação. Uma
pessoa alienada, não-envolvida, nem se dá ao trabalho de negociar: meramente deixa acontecer.
Em negociação, a liberdade também está relacionada à questão do poder, na medida em que inte-
resses diferentes podem ser forçados a se acomodarem por uso de poder e o exercício de auto-
ridade externa.
A questão da alienação, por outro lado, envolve inúmeras outras: motivação, percepção de poder
próprio, percepção de seus próprios direitos, negação de uma realidade (a da diferença de interes-
ses) e negação da importância da ação que conduza à conciliação (mesmo que parcial ou temporá-
ria) de interesses e muitos outros.
Em nosso paper, faremos alguns comentários sobre fatores relacionados à questão maior da liber-
dade e da alienação. Entretanto, em função da amplitude e importância desses temas – que mere-
ceriam trabalhos específicos, principalmente se relacionados à problemática das negociações polí-
Neste sentido, desenvolvemos o trabalho imaginando uma sociedade livre e ativa, onde o processo
de negociação se encontra presente em praticamente todos os tipos de relações entre pessoas e
nas mais diversas situações:
Na segunda parte, elaboramos um pouco mais profundamente sobre áreas que – a nosso ver –
mais significativamente podem afetar a eficácia das negociações: planejamento/estratégia/ processo
decisório.
Na terceira parte, procuramos fazer uma conclusão geral, resumindo em algumas poucas propos-
tas básicas o que deveríamos estar fazendo para que mais acordos, conciliações de interesses e
cooperação venham a ocorrer entre as pessoas, entre instituições e entre segmentos de nossa
Sociedade.
O presente trabalho procura valorizar o que efetivamente ocorre na vida real, fonte das mais
legítimas aprendizagens humanas. Além disso, para dar um foco mais claro e objetivo às contribui-
ções potenciais do projeto, escolheu-se o processo de educação e formação de pessoas como
tema de fundo da análise. Durante todo o paper, as seguintes questões estarão em pauta:
• em que aspectos precisamos educar, formar, treinar melhor visando a ter mais pessoas conse-
guindo negociar mais construtiva e eficazmente?
• por que as pessoas falham nesses aspectos específicos (objetos de análise durante o trabalho)?
Por que nosso processo educacional não cuida do desenvolvimento dessas habilidades e capa-
cidades (detectadas como relevantes ao processo de negociação)?
Dentro desse raciocínio, podemos também dizer que, ao longo do trabalho, uma dúvida maior se
contrapõe a cada comentário, em cada análise: “Não estariam os processos de educação e forma-
ção de pessoas, hoje em vigor, formando ‘contranegociadores’, ou seja, pessoas propensas a impasses,
competição, represálias e isolamento, ao invés de prepará-las para acordos, negociações nutrientes,
cooperação, ajudas desinteressadas e convivência com apoio e suporte mútuos?”.
Nesta primeira parte do trabalho, descreveremos uma negociação “real”, a partir do planejamento
até a fase de negociação propriamente dita. Ela se baseia em um tipo de simulação já realizada
muitas e muitas vezes com executivos de grandes organizações. Tomaremos aqui o exemplo de
uma delas. Os executivos foram divididos em dois grupos de oito pessoas: o primeiro grupo repre-
O relato sobre o caso Long está entremeado com comentários e observações (destacados em
itálico) que julgamos pertinentes para estimular o leitor a refletir sobre questões subjacentes ao
que acontece na realidade. O objetivo desta parte é trazer à tona aspectos relevantes da dinâmica
de uma negociação, dentro do contexto de uma situação próxima do real (na medida em que os
participantes não atuaram com script definindo o comportamento a demonstrar na reunião e
estiveram soltos para atuar naturalmente). Alguns desses aspectos relevantes apontados nessa
parte serão expandidos na Parte 2 do trabalho. Outros merecem uma atenção um pouco maior da
própria Parte 1, nos “intervalos” dos relatos. Outros só são citados para registro, com o objetivo
de apontar a presença do fator e sua influência na dinâmica e, possivelmente, nos resultados da
negociação.
Sala de reuniões de um grande escritório de advocacia. Oito pessoas presentes. Todos advogados
com um mesmo número de anos na casa. São pares: não há um líder formal no grupo. Os sócios
principais do escritório não estão presentes, mas recomendaram máxima atenção ao caso.
Dentro de pouco tempo, ainda naquele dia, eles receberão a visita de um grupo de advogados que,
em nome de um tal Paulo Setúbal, vem tratar de um problema que envolve o maior cliente do
escritório: o Laboratório Long, multinacional da indústria farmacêutica, uma das maiores operando
no país.
De acordo com a ligação telefônica recebida naquela manhã de um dos principais diretores da
Long, os advogados de Paulo Setúbal querem conversar para tentar fazer um acordo com a empre-
sa. Caso não cheguem a tal acordo, irão levar o caso à Justiça imediatamente.
“Paulo Setúbal, 35 anos, fazia um tratamento longo com um antibiótico para bronquite crônica –
o LONGICILINA – dos Laboratórios LONG. Há seis meses, a LONG descontinuou a produção
do LONGICILINA e lançou em seu lugar um antibiótico semelhante – o LONGEX. O fato de
que o LONGEX substituía o LONGICILINA foi amplamente divulgado nos 3 meses prévios ao
seu lançamento.
Paulo Setúbal passou a tomar o novo antibiótico depois de saber da “substituição” do remédio
que tomava há 2 anos. Seu médico havia aprovado a substituição.
Um mês após o início do tratamento, Paulo começou a sentir problemas ocasionais de visão
(turvamento forte por frações de segundo).
Três meses atrás, Paulo viajava à noite quando sentiu tontura e perda de visão (um pouco mais
prolongadas) e – como conseqüência – sofreu um sério acidente.
O auto, Astra ano 2002 (sem seguro), ficou completamente destruído e Paulo teve que ficar 40
dias no hospital. A recuperação será somente parcial: Paulo teve um problema sério na mão
direita (e ele é destro) e não poderá mais usá-la tão bem quanto antes. Ele terá que aprender a
usar a esquerda. Isso vai afetá-lo no trabalho (Paulo, arquiteto, desenhista de perspectivas, autô-
nomo, retirava – em média – $25.000 por mês).
Há 30 dias, foi divulgado pela imprensa que o antibiótico LONGEX causava tontura/cegueira
temporária e que o Laboratório LONG havia retirado o remédio de circulação. O Ministério da
Saúde – que tinha anteriormente aprovado o LONGEX – está investigando o caso. Vários pro-
cessos contra a LONG estão em andamento. Dois acordos já foram feitos entre a LONG e
queixosos. Um deles por $700.000 (a pessoa ficou completamente inválida) e o outro por $25.000
(um jogador do Corinthians que vai ter que ficar 6 meses parado).
O objetivo é chegar a um acordo com os advogados do Sr. Paulo Setúbal. Se esse acordo não for
conseguido, o processo vai correr pelas vias legais (isso não convém à LONG, tanto pelo risco
de a indenização ser muito grande e pela criação do precedente, como pela publicidade, que
prejudicará ainda mais a imagem da LONG provocando novos processos e até afetando a venda
de outros produtos).
• Jorge, um encorpado senhor de meia-idade, sorri com freqüência durante a leitura, como se
Paulo, aparentemente o mais idoso do grupo, comenta, com voz pausada e devagar, num tom de
alguém que pensa em voz alta: “Por que não vamos à Justiça? A indenização poderia vir a ser mais
amena. Num acordo, talvez paguemos muito mais…!”.
Poucos minutos se passaram. Mas já é possível identificarmos alguns fatores que poderão estar afetando o
processo de acordo, a negociação que terá lugar (ou não) entre os advogados da Long e os de Setúbal.
Jorge e Luiz Antonio – com uma aparente postura de “divertimento” face à situação e de ausência de
consideração positiva em relação à pessoa do envolvido, poderão afetar o “tom” da reunião e conduzir as
discussões para uma trilha inadequada. Se vierem a ser ativos durante a negociação propriamente dita,
poderão, por comportamentos que mesmo sutilmente (consciente ou inconscientemente) reflitam essa
postura de desconsideração para com Setúbal, despertar defensividade nos advogados que o representam.
Uma vez despertada essa defensividade, normalmente as probabilidades para um acordo diminuem razo-
avelmente.
O que sempre impressiona nesses casos é a crença de muitas pessoas de que conseguem esconder essa
postura/atitude (de desconsideração para com o outro) quando estão face a face com o outro lado. De fato,
muitos realmente conseguem fazê-lo com maestria. Atores quase perfeitos. “Quase” porque de alguma
forma, certamente não-racional, não-objetiva, não-consciente, o outro lado “capta” a atitude por trás do
comportamento. O interessante aparentemente é que essa própria captação não vem de imediato ao
plano consciente. Ela simplesmente gera emoções fortes. De repente, a “temperatura” da negociação
É interessante refletir sobre o mecanismo da ironia, do sarcasmo, das “agulhadas”. Quanto há de consciên-
cia do processo por parte do próprio autor das observações irônicas e dos não-verbais que refletem tais
sentimentos (será que fazem deliberadamente? Será que sentem que estão sendo irônicas?).
Também impressiona a arte do misturar ironia e sarcasmo com humor que certas pessoas desenvolvem a
níveis “elevadíssimos”.
No grupo de advogados da Long, Gilberto parece achar este tipo de “arte” algo importante a ser dominado
na profissão. E este é o outro ponto que merece ser analisado numa outra parte deste trabalho: as
qualificações percebidas como sendo importantes para a profissão e as eventuais distorções causadas por
isso. Gilberto parece ser um bom exemplo disso. Faz comentários irônicos e até muito grosseiros com um
amplo sorriso cobrindo toda sua expressão. Será que isso impacta mais negativamente ainda no outro
lado…?
Por outro lado, a postura de ausência de consideração positiva – além de causar defensividade no outro –
provoca também barreiras ao próprio entendimento de que o outro lado diz e à captação de sutilezas/
pormenores da situação. Leva também através da subestimação do outro a avaliações incorretas/inade-
quadas que resultam em estratégias erradas.
A rapidez com que Gilberto chega ao veredicto de “tudo está tão claro”, após uma rápida leitura do
memorando, indica outra área-problema que afeta consideravelmente a qualidade do processo de negoci-
ação: a superficialidade do diagnóstico da situação e a superficialidade do planejamento.
Ao final desta primeira parte, mostraremos os elementos presentes no caso da Long com grande quantida-
de de pormenores – não só em termos de diagnóstico da situação como em termos de planejamento –
para que se possa avaliar o nível de superficialidade a que nos referimos.
O importante, em termos de reflexão quanto a esse aspecto, é tentar analisar o porquê desta tendência à
• Seria uma característica cultural do brasileiro? O célebre “jeitinho” não se fundamentaria na fé de que
na hora “H” a gente dá um jeito? Daí a questão, “para que perder tempo planejando?”
• Seria um problema de habilidade não-desenvolvida? Nossas escolas não ensinam a planejar. Nem
mesmo as escolas de administração dão a devida atenção ao desenvolvimento da habilidade de
planejar, mostrando o como, fazendo praticar, dando “feedback” refinado etc. No máximo passam
conceitos que são “encostados” num canto da cabeça, provavelmente sob a etiqueta de “teorias não-
aplicáveis”. É o mesmo que explicar a uma pessoa como funciona um automóvel e esperar que ela
guie um – sem nunca ter tido aulas práticas…
• Seria um problema de “hardware”? De “circuitos” pouco elaborados que acabam simplificando tudo?
Uma máquina fotográfica em preto e branco que transforma as centenas de cores de uma paisagem
em meras dezenas de tons cinza?
• Seria algo de cunho emocional? Uma excessiva ansiedade que o impele à “fazeção” através da qual vai
conseguir aliviar sua tensão?
• Seria a cultura específica de certas organizações que impele as pessoas à ação rápida, a resultados de
curto prazo, a corridas contra o relógio? Uma cultura na qual o “fazer” é altamente valorizado e o
planejar é lucubração perigosa; portanto, algo a ser olhado com desconfiança?
• Seria um tipo de resistência psicológica em lidar com o complexo, com o ambíguo, com mudanças
contingenciais, com o emaranhado de causações, com decisões inter-relacionadas, com as incertezas,
com o risco inerente a tudo isso?
• Seria simplesmente uma postura de mínimo esforço/preguiça crônica gerada por um processo educa-
cional em que trabalhar é “penalidade”; e ociosidade e o “não precisar fazer nada” é “prêmio”?
• Seria reflexo de processos educacionais excessivamente relaxados que não desenvolvem pessoas em-
penhadas naquilo que fazem (e que se contentam com meros “mais ou menos”)?
Outro aspecto interessante a registrar, ainda sobre estes primeiros minutos da reunião dos advogados da
Long, é que tanto Gilberto como Lúcia chegam rapidamente a uma conclusão. Só que a conclusões diferen-
tes.
Gilberto “veste” rapidamente o papel de fiel e ferrenho defensor dos interesses da Long. E chega à conclu-
são de que “será fácil ganhar do oponente”. Sua postura é de competição, quase uma guerra. Seu objetivo
é derrotar o outro. Não interessa quem seja e qual a causa.
Lúcia analisa a situação e realisticamente a avalia à luz de seus próprios valores, sua própria ética, sob o
seu prisma de justiça/do certo/do errado. Primeiro, antes de qualquer coisa, deseja saber o que é justo, o
Cabe também registrar a diferença entre juízos de valor (como aquele feito por Lúcia) e diagnósticos do
tipo “será fácil derrotar o oponente”.
Lúcia teria simplesmente “sentido” ser justo indenizar Setúbal já a partir de uma primeira leitura do texto?
Esse sentimento seria resultado de algo global/gestáltico, não-racional? Em sendo esse o caso, seria válido
classificar o que ocorreu como algo superficial? Aparentemente, nesta questão, tanto no caso de Gilberto
como no de Lúcia, há margem para se discutir o assunto.
Em termos de negociação, o “feeling” que impele a ação de certas pessoas decididamente tem um peso
significativo nos resultados e merece uma atenção especial. A questão complexa aqui é: “Qual o tipo de
atenção? O que é possível fazer?”.
A questão lado direito, lado esquerdo do cérebro nos traz alguma luz a este aspecto, mas aparentemente
não é suficiente. Existe ainda um campo extenso a explorar, principalmente em termos de intuições com-
pletamente desvinculadas de informações/conhecimentos. Trata-se de um campo explorável tão-somente
em conjunto com o estudo do espírito, da alma, do mistério da própria vida.
Ainda neste trecho em análise, é interessante notar o que ocorre a partir do comentário de Lúcia (“É pagar,
e pronto!”): alguns participantes da reunião aparentemente questionam Lúcia, mas na realidade somente
o fazem quanto a um detalhe menor. Aparentemente, de forma involuntária, comungam com Lúcia quanto
à colocação maior, a de que não há dúvidas quanto à responsabilidade da Long e que será necessário
indenizar. Parece “involuntária” porque um debate profundo/elaborado/consciente colocaria em “xeque”
primeiramente, antes de qualquer coisa, a própria afirmação maior.
Sensibilidade para processos de decisão em grupo e individuais parece representar outro fator de grande
significado em se tratando de negociação. Voltaremos várias vezes a este assunto, no transcorrer deste
trabalho, na tentativa de, a partir do observado na negociação Long/Setúbal, elaborar sobre os vários
prismas através dos quais podemos “radiografar” este processo de grande relevância ao resultado de
negociações interpessoais/intergrupais.
Neste momento, o aspecto particular de processo decisório a destacar é o risco envolvido na tendência de
as pessoas iniciarem o “debate para decisão” no meio do caminho, sem questionar o que já foi percorrido
Vale também comentar que este aspecto aqui abordado está freqüentemente presente em processos
manipulativos de decisão. A tendência a que nos referimos é usada por pessoas que desejam “conduzir” o
processo visando a chegar onde querem.
Nesse sentido, o comentário de Paulo (“Ir à Justiça, ao invés do acordo, não seria melhor?”) é uma excelente
forma de começar o debate do zero. Independentemente da possibilidade (de deixar ir à Justiça), o proces-
so de questionamento da base normalmente traz à superfície inúmeros dados e raciocínios de grande valor,
tanto no processo de planejamento da negociação como na hora da negociação propriamente dita.
O começar da base depende muito de disciplina e de método. Pode ser aprendido/transformado em hábito
com excelentes resultados. Entretanto, há dois tipos de obstáculos a considerar.
O segundo tipo de obstáculo ocorre quando, não obstante o desejo de começar pela base, outros fatores
impedem a pessoa de fazê-lo. No caso de Pedro, o fator impeditivo tomará a forma de ação do grupo, como
poderá ser visto logo a seguir.
• A reflexão em voz alta de Paulo “Por que não vamos à Justiça?” é cortada por um “Não convém!” de
Virgílio, que havia permanecido em silêncio até então. “Isso não nos interessa.” completa, sem ao
menos levantar os olhos do papel no qual fazia algumas anotações.
• Numa fração de segundo, José Luiz, que estivera lendo o memorando com bastante atenção, completa
a seqüência de observações de Virgílio: “Isso eles não sabem. Eles não sabem que não nos interessa ir
à Justiça. Não sabem que estamos com medo. E isso é um trunfo nosso!”.
• Virgílio prossegue: “Podem estar forçando um acordo porque eles não querem ir à Justiça”.
• Durante alguns minutos, vários advogados falam ao mesmo tempo em conversas cruzadas/paralelas.
Alguém propõe começar discutindo a estratégia da negociação e todos concordam prontamente com
isso. Mas, logo a seguir, Gilberto coloca para o grupo: “Então, quanto a gente proporia? $350.000?”
A reunião já está aquecida. A participação é intensa; todos muito envolvidos. Outros fatores que potencial-
mente afetarão os resultados da negociação podem ser identificados claramente.
A colocação de Paulo poderia ter originado um debate rico foi relevante ao processo de negociação e aos
seus resultados. Entretanto, o comentário de uma única pessoa foi suficiente para barrá-la.
Se observarmos com cuidado o comentário de Virgílio, veremos que se trata de uma avaliação simples,
pessoal, não fundamentada. Ele não chega a explicar por que não convém ir à Justiça.
Por que Paulo não volta à carga, buscando junto a Virgílio maiores informações?
• Seria efeito dos não-verbais de Vírgilio (tom de voz, baixa consideração, nem sequer levantar os olhos
para fazer a observação) passando uma mensagem do tipo: “Seu burro! Larga mão de falar bestei-
ra!”?
• Seria receio de virar o “chato” do grupo, através de insistências que venham a segurar/retardar o
grupo?
• Estaria ele esperando apoio de outras pessoas do grupo à sua proposição (ausência de apoio signifi-
cando endosso ao “corte”?)
• Seria condicionamento à autoridade (forma “autoritária” de Virgílio intervir)?
O comentário de José Luiz, segundo o qual os advogados de Setúbal não saberiam que à Long não
interessaria ir à Justiça representa, por outro lado, uma suposição sem qualquer fundamentação: nada dá
suporte à mesma. Entretanto, ninguém contesta.
Suposições como essa de José Luiz e julgamentos sucintos, sem explicações, como o de Paulo ocorrem com
freqüência em processo de negociação. Seja em reuniões de planejamento como esta, ou nas negociações
propriamente ditas. Parece extremamente importante que tais colocações sejam questionadas: seja pelo
próprio membro da equipe, seja pelo “oponente”. Será que as pessoas deixam passar por “conveniência”?
Para não truncar o processo? Para não virar o “estraga prazeres”/ o “amargo”do grupo? Ou é a resistência
normal ao confronto? Ou então simples alienação/não-interesse/falta de envolvimento (“tanto faz…”).
Nessa mesma linha de análise, por que ninguém se opõe à interrupção do processo decidido pelo grupo,
feita por Gilberto (propõe número, quando a decisão seria de discutir primeiro a estratégia)? Por que
ninguém insiste em fazer a reunião voltar ao caminho estabelecido? Será por que existe algum tipo de
“ilegitimidade” em atuar sobre o processo? Um tipo de receita que diz que é somente o líder que pode/
deve atuar sobre processos? Ou seria mera inércia, falta de envolvimento, o evitar ser “chato” etc.?
• Virgílio coloca com vigor: “Espere aí! Nossa estratégia é de pagar o menos possível!”(Questão
da clareza do objetivo da negociação)
O impacto das habilidades interpessoais na qualidade dos processos de negociação é bastante grande. Na
medida em que temos a oportunidade de presenciar processos como o que estamos descrevendo, nos
quais é surpreendentemente freqüente o número de interrupções da fala do outro, várias pessoas falando
ao mesmo tempo, resistência a ouvir o outro, tendência a falar demais, ansiedade em colocar seu próprio
ponto de vista, baixa atenção à fala do outro, postura passiva no ouvir, falta de persistência em ir até o fim
– ao não concordar, ao não entender -, comportamentos de não consideração pela pessoa do outro,
Aparentemente, em nossa sociedade, as habilidades interpessoais não ocupam posição de destaque, não
representam uma área prioritária. Valoriza-se, por exemplo, mais o acúmulo de conhecimentos do que o
desenvolvimento de habilidades interpessoais. Os nossos programas formais de educação não contemplam
espaço/energia/atenção para o desenvolvimento dessas habilidades, embora sejam básicas, inclusive como
meio para otimizar a aprendizagem e desenvolvimento geral. Por que essa lacuna existe? Quais as causas
disto? Será por que parecem ser coisas tão naturais como respirar e andar? Será por que aparenta ser
uma sofisticação supérflua (em comparação a outras coisas mais concretas, de uso mais importante)? Será
mera falta de sensibilidade para o assunto das pessoas que teriam condições de mudar esta condição?
Será que estamos armadilhados num círculo vicioso (maioria das pessoas achando que não é algo neces-
sário por se sentirem plenamente habilitadas)?
Uma coisa é bastante evidente: na medida em que mais pessoas tiverem habilidades interpessoais desen-
volvidas a um nível adequado, haverá melhores condições para acordos e negociações mais freqüentes
(menos impasses, menos desacordos e rupturas).
Nossa observação de inúmeras situações de negociação nestes anos todos de vivência/experiência concre-
ta nos indica algumas áreas que devem merecer atenção no processo de desenvolvimento de habilidades
interpessoais: capacidade de expressar com clareza o que pensa; capacidade de expressar empaticamente
o que deseja, isto é, expressar-se usando o quadro de referência visando a assegurar a melhor qualidade de
compreensão possível (pelo outro); capacidade de fazer perguntas de forma refinada (forma adequada à
situação); habilidade de dosar sua participação evitando falar demais; objetividade na expressão, evitando
dispersão/prolixidade;capacidade de assegurar correspondência adequada entre intenção e efeito; preci-
são das colocações; “didática” nas colocações; capacidade de expressar/trabalhar emoções; habilidade de
lidar com o próprio processo de relacionamento; habilidade de ouvir proativamente (não somente de forma
passiva); habilidade de “ouvir empaticamente” (usando o referencial do outro, acompanhando o raciocínio
do outro); habilidade de observar/captar pormenores da dinâmica interpessoal; habilidades de captar não-
verbais, emoções; postura que estabeleça relações de confiança, ausência de defensividade/autenticidade/
de consideração positiva/de respeito/construtiva.
A reunião prossegue num clima de alto envolvimento, voz elevada, agressividade nas colocações.
A descrição do processo abaixo serve também para ilustrar os problemas freqüentemente verificados no
• Lúcia, quase sem ação em função da forma agressiva de Paulo intervir, olha silenciosamente
para o grupo, como a pedir ajuda. Ninguém se manifesta. Em relação ao ritmo dos debates de
até então, o silêncio absoluto – mesmo de poucos segundos – parece ser constrangedor para
todos. (Postura em relação a agressões; questão do apoio do grupo, envolvimento, “comprar a briga”
versus “intromissão”; constrangimento face ao silêncio como elemento cultural)
• José Luiz quebra o silêncio: “Bem… Vamos fazer os cálculos, só para termos uma idéia. 144 x
25… $3.600.000… Viji!” (“Estratégia” de aliviar clima de tensão e constrangimento trazendo à baila
assunto menos ameaçador, mais simples, mais objetivo?)
• Lúcia volta à questão:“Pagamos esse valor, a empresa reconhece o erro publicamente, capitaliza
em cima para ficar com uma imagem de empresa justa e…” (Persistência em voltar à discussão
mesmo após “agressão” – após breve silêncio – sem trabalhar a agressão propriamente dita. Ignorar
a agressão e prosseguir – como estratégia?)
• Gilberto interrompe, elevando a voz: “Mas não sabemos se o antibiótico realmente causa pro-
blemas! Pelo menos até que a análise do Ministério…” (Questão de debater sobre a “letra da lei”
em contraposição ao “espírito” da mesma. Qual a opinião pessoal de Gilberto, independentemente de
provas?)
• Lúcia insiste: “Nós estamos fugindo de novo do assunto! A gente precisa primeiro definir quan-
to seria justo… Isso tudo que vocês estão tentando colocar é mero argumento… Não pode-
mos acreditar nisso, de que o remédio não teve nada a ver com o acidente…” (Questão dos
padrões pessoais de Lúcia quanto ao que vem a ser justo; postura dela sobre integridade pessoal;
questão de integridade pessoal em contraposição aos valores da empresa: possíveis conflitos de inte-
resse)
• Paulo olha fixamente para Lúcia, levanta a mão e diz: “… $3.600.000?! De jeito nenhum!”
(Parâmetros próprios para definir o que seja aceitável ou não aceitável; a questão de julgar pelo
número final sem sequer explorar o que está por trás do número)
• Lúcia ainda tenta prosseguir:“Gente… Vamos assumir…” (Forma de intervir no processo do grupo:
tom de “lamentação” em contraposição a ações mais construtivas, mesmo que mais duras, formais,
sérias)
• José Luiz dirige-se ao grupo: “Então, pessoal: qual seria o valor devido?” (Tentativa de trazer uma
maior objetividade à discussão, mas ainda sobre números e não sobre a base, as razões, os fundamen-
tos)
• Paulo coloca sua posição rapidamente: “Eu acho uns 6 meses de salário, no máximo… Uns
$150.000, mais as despesas…” (“Palpite”, sem justificativas; simples opinião baseada em senso
Tanto o nível de participação (mais pessoas intervêm) como o de envolvimento (voz alta, entusias-
mo, mais vibração) parecem se elevar quando o grupo passa a tratar de números e dados objetivos.
• José Luiz, em determinado instante, volta à questão como se tivesse descoberto algo novo:
“Acho que a gente tem que entrar na negociação com um objetivo claro: não pagar nada! Afinal,
não existem provas!” (Nível de aspiração alto, desejo de chegar ao máximo. Resta saber quão
realista é o “desejo”; questão da diferença entre um “desejar muito” e a “férrea determinação de
chegar”)
• Gilberto pondera: “É… acho que eles têm muito a perder se a coisa for parar na Justiça. Será
um processo lento, muito moroso. Eu acredito que eles vão querer negociar…” (“Empatia”
conveniente, ainda centrada no que se deseja deste lado de cá; e quanto àquilo que a Long vai perder
se o caso for para a Justiça…?)
• Paulo parece entusiasmado com a idéia de nada pagar! “É isso aí… O remédio, afinal, foi apro-
vado pelo Ministério da Saúde. A imprensa é que está difamando o remédio… Não há provas
de que o remédio cause tonteiras e tudo o mais…” (Objetivo da negociação está claro? Objetivo
deste planejamento está claro? Não deveria se especular sobre qual será a reação dos advogados de
Setúbal quanto a essas questões e se preparar adequadamente? Por que as pessoas passam a fazer
planos e estabelecer objetivos sem considerar o outro?)
Novo tumulto. Novo “pingue-pongue” de número e dados objetivos (valor da fisioterapia, salário
multiplicado pelo numero de meses…)
• José Luiz arrisca: “Sabe… eu acho que eles vão pedir uns $900.000 …” (“Palpite” com base em
que fatores? Esses $900.000 serão fundamentados pelo outro em quê, especificamente?)
• Gilberto contesta:“Acho que não… Se eles souberem dos outros acordos, serão menos ambi-
ciosos. Afinal, pagamos $700.000 para invalidez permanente. Acho que eles vão pedir uns
$350.000, a metade …” (Suposições ainda muito convenientes para o seu próprio lado; questão do
“entrar no papel” distorcendo a visão do outro)
• Lúcia não concorda com Gilberto: “Acho que eles vão querer muito mais do que os próprios
700.Vai ser acima de 1 milhão…” (Maior grau de empatia com o outro levando a suposições bem
diferentes e, possivelmente, mais próximas da realidade)
• Paulo ignora os comentários e interrompe, dirigindo-se a Gilberto: “Com quanto você preten-
de começar? Com zero?” (Questão da interrupção brusca de uma discussão: baixa consideração
Risadas tensas. Alguns segundos de silêncio, como se o grupo tivesse chegado ao final da reunião.
• José Luiz parece querer reunir o que foi conversado: “Deixe-me entender o que vocês decidi-
A reunião já está terminada.Vários participantes estão se levantando. Na saída da sala, Lúcia ainda
insiste: “Quero deixar meu protesto… Estou decepcionada com a desumanidade e falta de
profissionalismo de vocês… Vocês estão simplesmente defendendo o emprego de vocês…”
• Gilberto olha Lúcia sorrindo e diz: “Não é à toa que você ainda é uma advogada júnior…!
(risadas).
• Carlos levanta os braços e ainda insiste: “Só um minutinho… Só para organizar… Quando um
estiver falando, o outro não entra no meio. Senão… Só um de nós deve falar…”
O comentário de Carlos cai, de novo, no vazio. O grupo já está se retirando…
Dentro de poucas horas, um grupo de advogados estará visitando os representantes dos Laborató-
rios Long. Eles defendem Paulo Setúbal, arquiteto de 35 anos que está semi-inválido em conseqüên-
cia de um acidente causado pelos efeitos colaterais de um remédio da Long.
Reunidos, eles planejam como conduzir o processo de negociação com os advogados da Long.
“… claramente, na Justiça, a Long vai perder. A gente já parte do princípio que a Long firmou dois
acordos. Ficamos numa situação favorável desde já…” (Percepção, avaliação do poder inerente à situ-
ação. Questão dos riscos de uma superestimação. Questão das suposições e das inferências)
• Marco, que desde o início assume a liderança da reunião, prossegue: “… a Long tem interesse
em firmar acordo, tanto que ela firmou com duas pessoas. Quer dizer… intuitivamente, a
gente até vê porque a Long está firmando acordos. Porque ela não vai querer ver o nome da
companhia destruído… imagem… escândalo… Ninguém vai querer comprar os produtos
Pela nossa experiência, os aspectos “implícitos” na maioria dos casos são fatores-chave da negociação –
acabam afetando o planejamento e a própria negociação, exatamente pela não-alocação de energia
suficiente aos mesmos (muitas vezes, pelo simples fato de serem óbvios demais, “naturais” demais). No
caso dos advogados de Setúbal, o fator-chave “FAZER O ACORDO”, óbvio demais, não foi explicitado, nem
debatido. “Fazer o acordo pelo valor máximo possível” já seria um objetivo um pouco mais elaborado se a
primeira parte da frase receber a ênfase devida. A ênfase apropriada leva a uma atitude de busca de
entendimento, conciliação de interesses, de evitar o impasse (que levaria o caso aos Tribunais). Sem uma
• Marta insiste: “Temos que definir uma estratégia…” (Preocupação pelas coisas maiores, mais bási-
cas, antes de ir aos detalhes; senso de prioridade)
• Marco retoma o comando: “É isso que nós devemos abordar nesta reunião: o enfoque: por
onde vamos trabalhar. Estamos imaginando que eles vão trabalhar a idéia de que Setúbal sabia
que dava tontura e, apesar disso… Qual vai ser o ponto de defesa que vamos usar? Temos que
ter isso claro: de que o problema é da empresa. Tinha um remédio totalmente inseguro, não
suficientemente testado, e o colocou no mercado … ” (Questão de empatia com o outro; procurar
saber como o outro irá agir para poder – a partir daí – planejar as estratégias defensivas)
• Peter, que estivera observando, calado, o desenrolar da reunião, entra no processo de “simula-
ção”: “Aí, eles vão dizer que o Ministério aprovou o remédio. E que o médico idem…”
• “A aprovação do Ministério da Saúde não significa que há isenção de responsabilidade!” retruca
Marta, já entrando no papel de defensora dos interesses de Setúbal.
• Marco elabora um pouco mais sobre a questão levantada por Peter: “O Ministério da Saúde
certamente aprova, ou desaprova, um remédio em função de uma percepção da idoneidade do
laboratório que apresenta determinados resultados. Se esses resultados estiverem falseados
por alguma razão, as aprovações estarão também, né? É o caso dessa vitamina aí que o Pelé fez
propaganda. Ela esteve aprovada com base nas informações fornecidas pelo laboratório. Algu-
mas entidades da área médica fizeram outra análise do remédio e comprovaram que a compo-
• Ivan, aparentemente impaciente quer, parece, partir logo para um debate sobre números: “O
que a gente quer? Uma indenização estática, uma indenização que reponha o salário dele, o
Astra 2002 que ele ficou sem…”
• Oswaldo completa: “40 dias, que ficou no hospital…”
• Ivan, porém, quer uma resposta específica: “Sim, mas o que a gente quer…”
• Oswaldo responde, achando óbvio: “Um carro novo, uma pensão porque o Setúbal não vai
conseguir trabalhar com a mão esquerda…”
• Marco entra firme: “Não! Eu acho que o problema tem 3 pontos: 1o é a gente se cobrir das
eventuais acusações que eles vão fazer (que o cara tava dirigindo com tonteira etc.), 2o é a
gente armar o ataque contra o laboratório, 3o é a indenização…”
• Marta tenta resumir: “Então o que a gente quer (a indenização do laboratório) corresponde a
uma soma de remunerações, um Astra novo…”
• Ivan tenta emendar: “Para conseguir isso, nós temos que nos defender e…”
• Marco complementa enfaticamente: “E temos que saber como é que vamos atacar o laborató-
rio! Não é só defendendo que nós vamos conseguir…”
• Ivan continua: “Ataca o laboratório, depois a gente passa para…”
• Marco procura fechar: “Primeiro você tem que falar sobre a reputação do laboratório. O labo-
ratório não vai se expor, entrar na Justiça. Acho que esse é o ponto básico…”
• Marco volta a enfatizar: “O objetivo único é forçar acordo!”
• Ivan parafraseia: “Forçar acordo…”
• Marta pondera, como se estivesse pensando alto: “Acordo… O que vai ser negociado no
acordo?”
• Marco procura explicar a Marta: “Forçar acordo envolve, do ponto de vista monetário, 3 ques-
tões: uma é o carro, outra é a despesa de hospital e a terceira é o prejuízo na execução do
trabalho…”
A reunião parece transcorrer tranqüila e a forma produtiva. Levantam-se várias hipóteses quanto
aos fatores que poderão vir a ser levantados pelos advogados do outro lado. Quase em um forma-
to de simulação, contra-argumentos são trabalhados pelo grupo.
Esta postura quase “autocrática” dos representantes de Setúbal, mais uma vez, ilustra a forte tendência de
as pessoas entrarem nas negociações excessivamente centradas em suas próprias posições, em seus
próprios pontos fortes, em suas próprias argumentações, em seus próprios direitos. Poucos negociadores
conseguem disciplinar-se no sentido de efetivamente procurar conhecer melhor os pontos fortes, direitos e
vantagens do outro lado.
Seria uma questão relacionada à maior/menor sensibilidade em relação ao outro? Seria uma tendência ao
egocentrismo definido pela nossa sociedade e pelo nosso processo de educação e formação? Seria resulta-
do de um conjunto de valores impregnados em nossa sociedade que conduz a uma supervalorização de si
e uma subestimação do outro (tanto em termos de poder, direitos etc. como em termos de adequação e
legitimidade de intenções)? Seria simplesmente uma tendência ao acomodamento, de fazer as coisas
superficialmente, de ficar na análise do mais imediato (o seu próprio lado), não chegando à análise do mais
distante, do mais difícil (o outro)? Seria um certo tipo de receio de enxergar-se mais cruamente em
comparação, inclusive, ao outro? Seria ainda uma crença de poder lidar com o que poderá vir do outro (na
hora da negociação) de forma criativa, engenhosa, com um “jeitinho”? Seria a crença de que sempre será
possível conduzir a negociação dentro dos nossos termos (ou seja, nós no comando da situação) e que,
portanto, haverá “campo de manobra” (mesmo porque a sensação de as rédeas estarem com o outro é
nada confortável numa negociação)? Seria a postura desenvolvida em nossa sociedade de extrema cautela
para não sermos manipulados pelos outros (e virarmos “trouxas”) que faz com que os advogados procu-
rem “forçar o acordo” (evitando, assim, entrar no jogo do outro, nos termos do outro)?
• Marta está fazendo os cálculos no papel: “Realmente, ele tem 35 anos, vamos dizer que ele se
aposenta com 60/65. Se aposentar com 65, ele tem 30 anos pela frente. Então: 25 X 30 =
$750.000, que é mais ou menos…”
• Oswaldo corrige rapidamente: “Vezes 12. Falta multiplicar por 12. Nove milhões. Você está
pedindo um absurdo, Marta… ” (Mais uma vez, uma pequena armadilha de raciocínio que é
desarmada por um companheiro…)
• Marco não acha o valor absurdo: “Só uma paradinha nas contas. Nós estamos com uma dúvida
no grupo. Acho muito importante a concepção de invalidez. É para efeito de justiça. Não é
invalidez para o trabalho. É em função da profissão que você exerce. Se o sujeito é um pianista
e perde uma mão, ele é considerado inválido para aquele seu trabalho. Aí você vê que o valor
A meta definida pelos advogados do Setúbal (6 a 6,6 milhões) parece alta, se considerarmos que eles
próprios acham que a Long estará a fim de pagar algo por volta de 100, 300 ou 500 mil. Além disso, os
números pretendidos pelos representantes do Setúbal estão fundamentados numa questão polêmica: per-
der a mão direita significa, no caso de Setúbal, invalidez parcial ou permanente?
Esta é uma questão muito importante no processo de negociação. Meras “vontades” (“seria bom…”) nada
significam em negociação, não têm força propulsiva. A forte determinação de se atingir uma meta repre-
senta um fator de grande impacto nos resultados de uma negociação. A determinação do nível da meta,
porém, define a diferença entre o “buscar um excelente negócio, o melhor” e o “buscar o máximo”. Na
primeira postura procura-se o melhor acordo. Na segunda, a conquista de “tudo o que o oponente tiver”.
Na primeira, há alguma possibilidade de impasse, mas é normalmente bastante alto o número de excelen-
tes negócios. Na segunda, há uma probabilidade bem maior de impasses (não negócios), inclusive com o
comprometimento de negócios futuros (pessoas evitando negociar com quem procura “arrancar tudo do
outro”).
As pessoas que têm alta necessidade de realização, conforme as Teorias de McClelland, definem metas
altas, porém factíveis. Correm riscos (de impasse, inclusive), porém, de forma calculada.
Por sinal, as Teorias de McClelland nos ajudam a ver o processo de negociação interpessoal à luz da
motivação. Decididamente, a proporção/predominância das três formas de necessidade (de realização,
afiliação e poder) definidas por McClelland nos ajudam a entender muitos dos comportamentos e atitudes
das pessoas em situações de negociação interpesssoal.
A necessidade de realização está intimamente ligada a resultados, desempenhos, metas elevadas e, por-
tanto, ao fator “nível de aspiração”, de grande relevância no processo de negociação interpessoal. As carac-
terísticas mais fortemente associadas às pessoas com forte necessidade de realização seriam as seguintes:
A necessidade de filiação que define a forma de se relacionar com os outros tem também significativa
relevância no processo de negociação. Na medida em que essa necessidade for muito baixa, haverá ten-
dência maior a impasses causados por fatores outros que não os objetivos (preço, condições, prazo, por
exemplo): o outro pode ficar negativamente predisposto a fazer negócio pelo fato de ser uma pessoa
extremamente fria, “pouco humana” (principalmente se o outro tiver uma necessidade de afiliação alta).
Na medida em que essa necessidade for alta, poderá haver casos em que os resultados da negociação
sejam comprometidos (necessidade de ter relação positiva, ser gostado, ser aceito, afetar busca do melhor,
evitar barganha necessária etc). As características mais fortemente relacionadas a esta necessidade seri-
am:
A necessidade de poder, mais relacionada à influência sobre os outros, têm relevância nas negociações, na
medida em que ela está ligada à questão de comando, iniciativa, liderança do processo (de negociação). Na
medida em que esta necessidade seja muito baixa, poderá haver uma tendência a uma certa passividade
na negociação (o outro tendendo a dominar as ações). Na medida em que seja muito alta, haverá tendên-
cia a um maior número de impasses (principalmente se o outro também tiver essa necessidade em níveis
significativos): o outro não querendo fazer negócio (mesmo em condições razoáveis) pelo fato de não
aceitar pressão, não gostar de ser dirigido. As características associadas à necessidade de poder seriam:
• Ivan parece achar muito alto: “Acho que devemos começar com $6.600.000…”
• Marco é incisivo:“Não. Essa é a nossa meta. Precisamos dar uma folga, para poder ceder depois.
Com quanto começamos?”
• Marta está cautelosa: “Bem… a gente tem que ter uma razão para pedir 10. Senão, a gente
vai…”
• Marco parece mais tranqüilo: “É aquela conta que você fez…”
• Oswaldo arrisca: “A gente começa com $9 milhões!”
• Peter tem dúvidas: “… mais o adicional do hospital?”
• Marco conduz o raciocínio… e os números para onde quer: “Mais o adicional do hospital
chegamos aos 10 milhões… (As despesas de hospital estariam bem abaixo de 1 milhão, a diferença
entre os 10 que Marco deseja colocar na mesa logo de início e os 9 que Oswaldo tinha arriscado.
Entretanto, ninguém contesta. É outro jogo, aparentemente. Todos sabem que Marco deseja começar
com 10 milhões e está conduzindo tudo nesse sentido… Mas, todos parecem não se importar…)
• Marta insiste na questão do embasamento dos números:“Complementação: precisamos ter em
conta que nós precisaremos usar (para pedir este valor alto) uma questão muito importante: a
nossa conceituação de invalidez. Nós vamos argumentar que o sujeito ficou inválido para o
trabalho para o qual ele foi preparado e que tem 35 anos de idade…”
• Marco concorda: “Além disso… o mercado de trabalho é muito difícil a partir dessa idade. Até
para os que são experientes. Para aqueles que vão começar uma nova carreira então…!”
• Oswaldo, ainda preocupado com o processo da negociação: “Quem vai falar? Como é que vai
ser a discussão?”
• Marta parece decidida e fala pelo grupo:“O Marco fala. Será nosso porta-voz.” (Processo decisório.
Uma pessoa decide. Os outros não se opõem. A inércia acaba decidindo.Vide “processo decisório”, na
Parte 2 deste paper)
• Marco assume o papel de porta-voz de bom grado e mostra firmeza: “Meu ponto é o seguinte:
nós temos que explorar muito a questão de que não só vamos à Justiça, como também desen-
cadear uma campanha publicitária contra o remédio que está em questão e, além disso…”
• Marta ainda parece preocupada com a possibilidade de impasse: “Eu acho que a gente deve ir
conforme o desenrolar da coisa. Não vamos entrar de sola…”
• Peter apóia: “Vamos ouvir o outro lado primeiro…” (Marco está com postura de quem vai à
guerra. Alguns advogados colegas parecem perceber isso. Além disso, também estão preocupados com
a meta alta e o próprio “lance inicial”, quase 70% acima da meta. Não obstante a preocupação com
Os primeiros instantes são formais e frios. Vários dos advogados presentes parecem estar um
pouco desconfortáveis e constrangidos. (Questão de “quebra-gelo”; preocupação em planejar formas
de criar um clima mais caloroso e menos constrangedor no início das negociações; a importância dos
primeiros momentos, que podem definir o “tom” da negociação toda)
Marco: “Bem… nós viemos, numa primeira reunião, para tratar do caso do nosso cliente, Paulo
Setúbal, vítima de um acidente causado por um remédio produzido por vocês. Sabemos que estamos
falando de um processo de negociação, de acordo, que não é único … de modo que vocês estão
Marco é interrompido por Gilberto, da Long, de forma autoritária e agressiva: “De onde o Sr. tirou
essa informação?” (O troco é dado de imediato. A sensibilidade dos advogados da Long já estava desper-
tada, em função da própria situação. Com um tipo de abertura como a de Marco… A própria pergunta é
pura reação emocional, como poderá ser visto pela própria resposta de Marco)
Marco responde, calmamente:“Dos jornais… A informação foi divulgada pela imprensa há 30 dias…
a respeito de outros problemas ocorridos com o consumo do remédio de vocês…”
José Luiz, da Long, intervém falando de forma pausada e formal:“Foi decisão de nossa empresa tirar
o remédio de circulação. Por precaução, tão somente. Não foi em função dos efeitos colaterais de
nossa medicação…” (Defensividade instalada nos advogados da Long já faz efeito; advogado José Luiz
justifica retirada do remédio da praça sem necessidade: o assunto não havia sido trazido à baila; não seria
o ponto melhor a trazer à tona neste momento)
Marco retruca: “Mas é bom lembrar que o Ministério da Saúde está investigando… está em esfera
federal…” (A carga contra a Long continua, uma após outra. A temperatura deve estar subindo rapida-
mente no lado da Long. Marco ou outros advogados de Setúbal estariam percebendo isso? Estariam
conseguindo avaliar o peso disso para o processo de negociação? Saberiam o que fazer para corrigir o
rumo e as tendências?)
José Luiz insiste: “Mas esse é um procedimento normal… O Ministério da Saúde também cumpre
o seu papel ao reinvestigar o remédio. Afinal, este remédio foi aprovado previamente por eles
mesmos…” (O argumento é bom. Mas a Long continua na defesa, tendo que explicar muito e se colocan-
do em posição vulnerável)
Marco procura fazer com que o rumo das discussões flua para onde quer:“Um momento, por favor.
Estivemos em contato com a família de uma pessoa que ficou totalmente inválida, como conseqü-
ência do remédio. Ela já recebeu uma indenização da Long. Sabemos também de um jogador do
Corinthians que também recebeu indenização… Temos o depoimento dele, por escrito, de que
Vários advogados da Long tentam interromper Marco. O clima estabelecido já é de forte competi-
ção e defensividade.
Marco insiste, eleva o tom, o volume de voz e continua: “E vai mais um esclarecimento adicional
sobre a questão da investigação… de o remédio ter sido aprovado pelo Ministério da Saúde.Vocês
sabem melhor do que nós que o Ministério da Saúde aprova um remédio com base num laudo
elaborado pela própria empresa, em confiança à idoneidade da empresa. No momento em que essa
idoneidade é colocada em xeque, em função do fato de as análises mostrarem que ou a fórmula
não é correta ou ela não foi bem testada, aí então é que se entra com o processo (do Ministério da
Saúde). Esses exames não são feitos, para cada remédio, pelo Ministério da Saúde. O que obviamen-
te não teria nem cabimento. O Ministério da Saúde normalmente aprova a partir de uma análise
feita pelo laboratório. É como aquele outro laboratório que faz uma vitamina famosa: apresentou
uma fórmula e ela foi aprovada pelo Ministério da Saúde. Mas aí alguém mostrou que o produto
estava com uma fórmula diferente… Evidentemente o remédio foi retirado do mercado… No
caso da Long, vocês fizeram 2 acordos com pessoas prejudicadas… Acho que nós poderíamos sair
da base de que vocês estão representando uma empresa que tem um problema… Nós temos uma
vítima de um remédio fabricado pela empresa de vocês… E que está inválido para o trabalho. Nós
pretendemos sair desta base para… (Questão ainda do estar excessivamente centrado em si mesmo,
sem levar em conta o outro; os argumentos são bons, mas continuam a elevar a “temperatura” do outro
lado; Marco aparentemente não chega a avaliar o efeito negativo desta subida de temperatura nos resul-
tados da negociação para o próprio Setúbal: Falta de sensibilidade? Deficiência da estratégia? Objetivos
não muito claros?)
Paulo interrompe em voz igualmente alta: “O Sr. está insinuando alguma coisa… Quero lhe dizer
que o Ministério da Saúde realiza testes em lançamentos. No caso específico, o Ministério realizou
este teste. E comprovou que a fórmula está OK. Quero dizer que qualquer desconfiança que o Sr.
queira levantar sobre a idoneidade dos nossos técnicos, dos nossos químicos… Isso não está em
jogo nesta discussão. Isso está sendo julgado pelo Ministério da Saúde…!”
Marco continua no mesmo tom: “A aprovação do Ministério da Saúde não isenta a empresa de
qualquer responsabilidade. Nós tomamos a liberdade de fazer pesquisas com médicos que estavam
aplicando o antibiótico. Os efeitos colaterais foram efetivamente comprovados em pessoas que
estavam…”
Gilberto, muito sério, interrompe Marco: “Mas o médico do Sr. Setúbal recomendou a ele tomar o
remédio!”
Marco parece irritado com a forma de Gilberto colocar seu comentário: “Isso não isenta o labora-
tório de responsabilidades!”
Gilberto retruca com firmeza: “Como não isenta também a responsabilidade do médico na reco-
mendação de um remédio…”
Neste ponto, Ivan interrompe Marco para vir em seu socorro: “Ora, vocês não colocaram na bula
os efeitos colaterais, essas tonteiras… Como o médico poderia saber?”
Gilberto olha para Ivan, hesita um pouco, mas insiste: “Mas o médico precisa saber que certos
componentes…”
Marco aparentemente percebe a hesitação de Gilberto: “O médico nada tem a ver com o proble-
ma. É responsabilidade do laboratório!…”
Marco prossegue: “Nós também temos informações de que o remédio que os Srs. lançaram no
Brasil não está à venda nos países desenvolvidos… Uma clara demonstração de que os países do 3o
mundo estão sendo usados como cobaia para os remédios…!”
Virgílio, da Long, tenta implantar o que foi combinado na fase de planejamento: “O fato é que
aconteceu um acidente automobilístico, mas não se sabe as causas do acidente. A perícia ainda não
concluiu o laudo. O resultado, portanto, ainda não chegou à nossa empresa… Aliás, estivemos em
contato, hoje pela manhã, com os técnicos de criminalística… Não tinham concluído o laudo. As
causas podem ser várias… Problemas de mecânica do carro e até outros fatores que não…”
Marco está preparado para retrucar à Long:“Nós também fizemos uma perícia! E a perícia dá todas
as conclusões.A documentação indica como causa a ingestão do remédio que provocou problemas
de visão. Como já existem 2 casos anteriores, aos quais tivemos acesso à documentação…”
Marco levanta o braço e eleva a voz. “Só para terminar! Como já temos os documentos dos 2
acordos que foram feitos… A nossa vinda aqui se propõe a tentar fazer um acordo com a empresa
de vocês – uma indenização ao nosso cliente – para que não precisemos discutir essa questão na
Justiça, com os imensos prejuízos de imagem ao laboratório.Temos informação que outros clientes,
que tiveram problemas e que não fizeram acordo ainda, vão fazer uma fundação, uma associação
para manter o caso na imprensa e não somente nos tribunais. Para evitar esse tipo de coisa… essas
pessoas não têm interesse em ficar durante longo tempo nas barras de um tribunal esperando uma
solução; a empresa de vocês, por certo, não tem interesse em ter sua imagem prejudicada no jornal
… Nossa vinda aqui é para tentar um acordo com base no que julgamos absolutamente razoável
dentro do conceito de que nosso cliente está inválido para o trabalho para o qual se preparou.
Então nossa vinda…”
Gilberto está, pelos não-verbais, impaciente: “Uma pergunta: o que vocês propõem?”
Marco não hesita ao responder: “Propomos discutir um acordo. Minha primeira pergunta aos
senhores é a seguinte:Vocês estão dispostos a discutir um acordo?”
Gilberto está cauteloso: “Não sei. Depende do que vocês estão propondo.”
Marco quer um outro tipo de resposta: “Não… vocês estão dispostos a discutir um acordo, ou
Gilberto não gosta da forma de Marco pressioná-lo: “Não assumimos qualquer culpa antes da
conclusão do processo de avaliação do remédio… Mas acho que podemos discutir, sim… Acho
que faz parte do intuito da empresa estar aberto para qualquer discussão. É por isso que estamos
sentados aqui…”
Gilberto insiste: “Sim, sem dúvida. Mas gostaria de colocar de novo: o que é que vocês propõem
como acordo, neste caso?”
Marco responde, procurando manter contato visual com todos do grupo da Long: “Nós quere-
mos… 10 milhões para nosso cliente.”
Paulo, procurando manter-se impassível, pergunta: “Vocês podem explicar como chegaram nesse
valor? Por que 10 milhões?!”
Marco procura responder, de forma didática: “Por que 10 milhões? Nós imaginamos o seguinte:
nosso cliente recebe $25.000 por mês, como produto de seu trabalho. Ele é arquiteto e está
inválido para a arquitetura…”
Marco irrita-se com a interrupção: “Eu quero terminar… Visto que sua mão direita está impossibi-
litada de executar o mesmo trabalho… Um arquiteto que seja destro, e que tenha sua mão direita
invalidada, não tem condições, aos 35 anos de idade, de aprender a desenhar com a mão esquerda.
Falamos de um pianista que perde a mão direita e que, portanto, não pode mais tocar piano…”
Paulo retruca: “Não… Um pianista usa as mãos para trabalhar e um arquiteto usa a cabeça para
trabalhar!”
Mesmo antes de Marco colocar a proposta de 10 milhões, por sinal muito superior às previsões
Aparentemente, os advogados de Setúbal querem forçar, impor seus argumentos à Long. Querem que a
Long admita sua responsabilidade total no caso, admitam serem culpados. Deveria ser esse o objetivo dos
representantes de Setúbal? O objetivo não é o de fazer um acordo? Como chegar a um acordo sem deixar
uma saída honrosa para a Long?
Nesta altura, as emoções, despertadas já desde o início e exacerbadas pelo fato de os advogados da Long
terem encontrado no jogo (de batalha de argumentações), estão provavelmente afetando a capacidade de
o grupo perceber que o processo está encaminhando para um impasse. O peso das emoções poderia ter
sido previsto durante a fase de planejamento? Isto que está ocorrendo poderia ter sido evitado através de
cuidados tomados desde o início da negociação?
Do ponto de vista estratégico, seria até possível que, depois desta entrada extremamente agressiva e
pesada dos advogados de Setúbal, contraposta por um posicionamento igualmente duro dos representan-
tes da Long (“…não há provas …não somos culpados…” o que, subjacentemente, significa “indenização
zero”), todos venham a ficar mais razoáveis (“perto da pior hipótese, qualquer coisa é melhor…”). Para
que isso ocorra, será preciso que os negociadores coloquem o objetivo maior (fazer o acordo) acima de suas
emoções e de seus interesses pessoais (“não dar o braço a torcer”, “não perder na argumentação” etc.).
Marco volta: “Então, permitam-me terminar… Quero terminar… Nosso arquiteto tinha um con-
trato com uma grande empresa para trabalhar no novo prédio… trabalho de longo prazo. Retirava
$25.000 por mês.Achamos que ele está inválido para a profissão: 35 anos de idade, 4 filhos, sustenta
a mãe… E vai ter que começar outra profissão, porque nesta… Aos 35 anos de idade, mesmo um
homem com gabarito, com formação, já começa a ter dificuldade de emprego em nosso país. Ima-
gine um outro que aos 35 anos tem que aprender uma nova profissão…”
Marco faz sinal com a mão, pedindo para prosseguir, e continua: “… uma nova profissão.
Complementando a resposta à sua pergunta original: chegamos a 10 milhões multiplicando $25.000
até o tempo de aposentadoria que calculamos aos 65 anos. Mais, evidentemente, as despesas hos-
pitalares que ele teve, médicos etc… o reembolso do carro… e mais os nossos honorários.”
Paulo pergunta, num tom irônico: “Isso significa que ele não vai trabalhar mais na vida?”
Lúcia quer continuar na linha que começara: “Salário integral? 100%? 30 anos?”
Peter, que estivera quieto, observando, completa: “Estamos sendo ainda bastante conservadores
porque, na verdade, ele tem uma carreira pela frente e, podemos imaginar, ele estaria progredindo,
em alta, com salários crescendo…”
Gilberto balança a cabeça e quase resmunga em voz alta: “Eu não consigo entender. Vocês estão
acreditando que ele vai ficar inválido, totalmente inválido…!”
Gilberto ironiza: “Então, pelos cálculos de vocês, nós estamos pagando tudo para essa profissão?”
Gilberto ainda quer prosseguir: “Ele não vai ter nenhuma remuneração, daqui pra frente?”
Peter procura ajudar: “Eu vou explicar o porquê. A remuneração que eventualmente ele possa ter,
ao desempenhar outra função é, em termos de indenização, compensada pelo corte numa carreira
ascendente. Temos aqui os trabalhos, a documentação do Paulo Setúbal. Paulo Setúbal é um arqui-
teto de carreira ascendente, que tirava $25.000 e que poderia até tirar $50.000…”
O padrão estabelecido, de um duelo de argumentações racionais continua. Nada indica que haverá mudan-
ça desse padrão visando a melhorar as perspectivas para um acordo.
Lúcia começa a se manifestar de forma coerente com sua atuação durante a fase de planejamento, não
obstante as fortes recomendações de seus colegas quanto a “não ser benevolente”, “ficar calada” etc.
Por precaução, os advogados de Setúbal tinham trazido um arquiteto para o caso de precisarem
algum esclarecimento especializado. Paulo dirigiu-se a ele:“Eu queria fazer uma pergunta:Você é um
arquiteto.Você usa as mãos para trabalhar?”
Carlos responde com tranqüilidade: “Sempre e para desenhar. Todo arquiteto, até o Oscar
Niemeyer…”
Paulo eleva a voz: “Não estou perguntando se todos usam. Eu estou perguntando especificamente
se o Sr., que dirige um escritório de arquitetura…”
Marco retorna para tirar Carlos da situação constrangedora em que se colocara: “Ora, veja o
exemplo de Oscar Niemeyer que só usa a mão direita em todos os projetos…”
Paulo ri e diz em voz alta (e em tom irônico) dirigindo-se aos seus colegas: “Eles estão queren-
do…”
Paulo continua, ainda ironizando: “Alguém que ganha $25.000 como arquiteto, pode ser considera-
do um Niemeyer?!”
Gilberto observa tudo extremamente contrariado (seus não-verbais são claros nesse sentido):“Os
senhores não querem chegar a um acordo. Os senhores não vieram para um acordo…!”
A Marco parece importante voltar aos argumentos: “Vejam bem… não estamos comparando o Sr.
Paulo Setúbal com o Sr. Oscar Niemeyer. Parece-me que, aqui, a maior parte das pessoas não é do
ramo da arquitetura, com exceção do Sr. Carlos que trouxemos aqui. No caso dos Srs., não vemos
nenhum arquiteto no grupo – só advogados… Então, vai ser difícil… Nós estamos dizendo o
seguinte: mesmo um arquiteto, muito famoso, mesmo um representante de um dos mais famosos
escritórios de arquitetura do mundo ainda usa a mão. Se ele a usa bem ou mal, se o seu produto é
de boa ou má qualidade, é uma questão irrelevante. O que nós estamos dizendo é que esse sujeito
precisa da mão para trabalhar. Independentemente da questão de um pianista trabalhar bem ou
mal, ele precisa da mão para trabalhar…”
Paulo parece irritar-se com as colocações de Marco: “Nós não temos certeza de que ele não tenha
essa habilidade… Se ele é tão inteligente quanto os senhores dizem, ele pode muito bem desenvol-
ver a habilidade de trabalhar com a mão esquerda…”
Peter esboça novos argumentos:“Existe um aspecto pessoal também… ele está psicologicamente…”
Lúcia aproveita a pergunta de Marco: “Eu posso fazer uma proposta… a gente chegou a discutir
alguma coisa nesse sentido. Também fizemos uma estimativa em termos de indenização. A gente
imaginou o seguinte…”
Marco interrompe: “O que nos agrada saber é que os senhores estão conscientes da responsabili-
dade que o laboratório tem…”
Marco ignora Gilberto, eleva a voz e termina a frase: “… que o Srs. têm com o acidente! Isso nos
parece muito claro! Ficamos muito satisfeitos, obrigado!”
Peter quer ouvir o que Lúcia tem a dizer: “Mas, de qualquer jeito, deixa ela terminar…”
Lúcia aproveita a brecha para retomar: “Com licença. Uma coisa sobre isso é o seguinte: a gente
está brigando com o Ministério da Saúde, porque ele aprovou uma fórmula nossa sem cuidado…
Nós que o tínhamos como cúmplice nesse remédio, agora não temos mais. Porém, por outro lado,
nós vamos indenizar as vítimas. Já indenizamos duas e estamos dispostos a negociar com as outras.
E, no nosso planejamento, nesse caso específico do cliente de vocês, a gente estimou que a indeni-
zação não seria por perda total. Um arquiteto tem, digamos, 60% de trabalho cerebral e 40%
manual. Então, se vocês…”
Lúcia insiste e termina: “…então, se vocês colocaram um desenhista para auxiliá-lo, ele não estaria
totalmente incapacitado para…”
Paulo intervém com voz áspera, profundamente irritado: “A Sra. está duvidando da idoneidade de
nossa empresa? A Sra. sabe exatamente o que está dizendo?!”
Paulo prossegue: “Anote o nome dela! A Sra. responderá processo criminal por isso!”
Tumulto prossegue.
Lúcia coloca a mão no braço de Paulo e diz, em tom conciliador:“ …O caso do Ministério da Saúde
é um caso que estamos tratando fora dessa discussão; é um assunto pertinente à empresa. Então
vamos voltar ao nosso caso em questão…”
Lúcia se posiciona pelo grupo: “A proposta é o que nós acabamos de falar. Indenização pelos 30
anos restantes, na base de 60%.”
Marco quer saber exatamente quanto isso representa: “A que número vocês chegaram?”
Alguns dos advogados da Long parecem surpresos com o posicionamento de Lúcia. Gilberto se
recupera a tempo e se antecipa à resposta de Lúcia: “$115.000…!”
Marco decididamente imaginava outro valor: “O quê? Qual é o valor? 60% de quê?”
Gilberto improvisa: “É… considerando as despesas hospitalares e o salário do Paulo Setúbal pelo
período em que ele ficou hospitalizado…”
Marco ainda não quer acreditar: “Isso não vale a nossa reunião! Nós estamos tratando da vida de
um homem, com uma carreira profissional brilhante… interrompida na fase ascendente… E o Sr.
me fala em $115.000…!”
Paulo retorna a argumentos já usados anteriormente: “Não está comprovado que a causa do
acidente foi nosso remédio…”
Marco interrompe: “Eu não estou entendendo o seguinte… quero voltar ao seguinte: se vocês
estão, da parte de vocês, seguros de que não têm responsabilidade, eu não entendo por que inde-
nizaram outros e estão com uma proposta de indenização também para nós… mesmo que irrisó-
ria… A companheira cometeu um ato falho aí, de dizer que não tem mais ‘cúmplices’ no remédio.
Realmente a expressão é essa mesmo: cúmplices! Porque o que o laboratório fez é um crime: está
matando uma carreira profissional brilhante, ascendente e…”
Paulo consegue entrar: “Meu senhor… eu lhe respondo… nos interessa de alguma forma sentar e
conversar com os Srs. porque o problema de imagem… os jornais… Mas, se para proteger nossa
imagem… se, para isto, a indenização tiver que ser maior que este custo de imagem….A responsa-
bilidade de botar o Sr. Setúbal na falência, na rua da amargura, porque um processo demora (o Sr.
conhece muito bem a Justiça… o Sr. sabe que este processo dura no mínimo 10 anos… ) A
responsabilidade por uma situação dessas será toda de vocês… pergunto a todos vocês: alguém
dentre vocês está disposto a sustentar o Sr. Paulo Setúbal por um mínimo de 10 anos? Alguém de
vocês?!…”
Marco ignora a pergunta de Paulo e informa: “A propósito… a associação de vítimas de seu labo-
ratório está constituída a partir desta semana. Aí então…”
Paulo se irrita mais ainda: “Não nos importa! Não é de nossa característica assumir uma culpa que
não temos! Acima de tudo está a nossa imagem, a nossa integridade… uma firma justa e honesta…”
Marco continua não deixando por menos: “Imagem e integridade postas em xeque neste caso…”
Gilberto retorna também bastante irritado: “Não senhor! O remédio foi aprovado pelos órgãos
governamentais…”
Gilberto retruca: “Tiramos por precaução… para proteger a saúde pública… Por precaução…
Esta é a norma que existe em todos os laboratórios no mundo inteiro. Toda vez que há uma
celeuma, retira-se o remédio até que se examine…”
Marco procura conciliar: “Se sentamos aqui para discutir um acordo, nos parece que uma premissa
básica já está assumida. Há uma pessoa, nosso cliente, que foi prejudicada e que é preciso ressarcir…
Os Srs., em defesa da imagem da empresa de vocês, têm também interesse em fazer acordo…”
Paulo interrompe, com voz alterada pela irritação: “O Sr. está querendo nos levar à falência… Sua
proposta é indecorosa!”
Marco já não tem esperanças de chegar a qualquer conclusão naquela reunião: “Eu proponho
voltarmos em 15 dias para discutir as bases de um acordo de 60% sobre os 30 anos…”
Marco insiste: “Um momento… vocês precisam se entender entre vocês, antes de se entenderem
conosco… a colega de vocês falou em 60% dos 30 anos de vida útil do nosso cliente… Nós
estamos dispostos a aceitar, estamos dispostos a aceitar a indenização de 60% dos 30 anos…”
Paulo é conclusivo: “Por favor… não queira levar em consideração o que nem deveria ter sido
imaginado…”
Após novo tumulto, com quase todos falando ao mesmo tempo, conclui-se que se chegou a um
impasse. Setúbal deverá levar o caso à Justiça. Não haverá acordo fora dos tribunais.
Por outro lado, os comentários entre os advogados de Setúbal são de outra natureza: “Eles vieram
Neste ponto, há um certo tipo de coerência do todo: entre o que ocorreu no planejamento de ambos os
lados e a dinâmica gerada na negociação propriamente dita, entre a atuação dos negociadores e o desfe-
cho, entre este e os comentários finais, entre estes comentários feitos depois de conhecerem o resultado e
a postura geral do antes e do durante. Há pouco a comentar neste ponto. Tudo parece se encaixar. Os
fatores que de alguma forma afetaram o processo estão identificados.
Das áreas que mais significativamente afetam os resultados de uma negociação, duas se destacam: a
de planejamento e a do processo decisório. Quanto melhor e mais refinado o planejamento e
quanto melhor elaborado e profundo o processo decisório, maiores são as probabilidades de
acordo, em termos mais próximos dos desejáveis.
Por outro lado, quando há pouco investimento de tempo e energia em planejamento, quando há
muito improviso, quando decisões são tomadas precipitadamente, as probabilidades para o impasse
aumentam, os resultados são insatisfatórios, gera-se muito desgaste e há maior possibilidade de
conflitos e rupturas.
Nesta segunda parte, discorremos sobre alguns tópicos relacionados ao tema, que parecem os
mais relevantes ao contexto deste trabalho:
“Como é possível planejar em um ambiente em que as coisas parecem mudar a cada minuto?”
“Trabalhar a forma de tomar decisões na organização? Isso é despender energia tentando segurar
o vento!”
A primeira frase é uma das mais comuns no dia-a-dia das pessoas, sejam estas donas-de-casa,
trabalhadores em geral, políticos, executivos, ou adolescentes em busca de uma carreira.
A segunda é de um executivo de alto escalão de uma das maiores organizações do mundo, com
quase 100.000 funcionários em mais de 110 países.
Essas colocações ilustram muito bem a postura da maioria das pessoas em nossa sociedade quanto
a planejar, quanto a tomar decisões de uma forma mais elaborada. No entanto, são duas áreas de
grande importância para uma série de atividades humanas. Em negociação, têm impacto bastante
significativo em muitos aspectos, como poderá ser visto subseqüentemente.
É evidente, tanto nas negociações reais como durante as simulações, a importância do planejamen-
to e do processo decisório, em termos de impacto nos resultados. Freqüentemente constatamos,
porém, que não só há resistência a planejar, a trabalhar mais refinadamente a forma de se tomar
decisões, como também há grandes deficiências em termos de conhecimentos/habilidades/capacitação
para planejar e decidir eficazmente.
Haveria uma relação entre esse tipo de ignorância e “amadorismo” com a postura inadequada?
Seria a postura uma forma de defesa para a deficiência percebida/sentida?
Aparentemente existe uma relação direta entre falta de “fluência” em planejar/decidir e resistên-
cia/posturas inadequadas.
Como áreas básicas que afetam tudo que uma pessoa faz, as habilidades para planejar/decidir
eficazmente deveriam ser desenvolvidas desde os cursos elementares, e não só dentro de uma
profissão que faz do planejamento e da decisão suas principais matérias-primas (a nosso ver de
forma artificial e distorcida). Planejamento e decisão não são áreas mais afins com administração.
“Nunca temos o tempo que gostaríamos de ter… Não podemos ter o tempo todo para planejar.”
“Planejar como manda o figurino requer tempo. Não temos esse tempo em 95% das vezes…”
São manifestações também muito freqüentemente ouvidas nas mais variadas organizações, nas
mais diferentes profissões.
Quanto de cultura também existe nas formas de as pessoas usarem o tempo de que dispõem? Por
que, em algumas sociedades, as pessoas são educadas a serem pontuais, fazerem as coisas com
bastante antecedência, usarem o tempo com parcimônia e método? Por que, em outras, tempo
representa algo a não ser levado muito a sério (“pode ser estressante….”), algo que pode ser
esticado?
As constatações através da prática e dos seminários mostram que mesmo em situações em que
um tempo certo seja alocado à tarefa certa (à prioridade adequada), há distorções na qualidade de
uso do recurso tempo: pessoas não usam todo o tempo que dispõem, usam o tempo em coisas
não-relevantes, “matam o tempo” com “dispersantes” dos mais variados tipos etc.
Aqui também temos uma área em que o problema central não está na racionalidade (”importante
administrar bem o tempo”), mas na incorporação de um hábito, uma postura, um componente
cultural.
“Vamos ser práticos. Ficar discutindo e teorizando a respeito não vai nos levar à parte alguma.
Vamos tomar uma decisão rapidamente e tocar para frente.”
“É preciso agir. Não vamos mesmo conseguir adivinhar o que o outro lado vai fazer.Vamos tentar
alguma coisa e ver o que acontece.”
É freqüente, na prática, vermos “práticos” oporem-se aos “lucubradores”. Sempre que se tenta
elaborar planos mais refinados ou procura-se elaborar melhor o processo de decisão, há resistên-
cia das pessoas ”pragmáticas” envolvidas (pares, superiores, consultores etc.).
Os pseudopragmáticos muitas vezes são pessoas que usam o “pragmatismo” para “gerenciar sua
impaciência”, seu desconforto com a ambigüidade da situação, sua aparente incapacidade de elabo-
rar uma análise do problema, sua estreiteza de visão – conseguem enxergar poucas alternativas,
seu mal-estar em não estar fazendo nada. São os “fazedores”, pessoas que precisam estar sempre
em ação, “fazendo alguma coisa”. Para estas pessoas, a observação passiva, a reflexão silenciosa, e
mesmo um processo de debate de idéias representa algo desconfortável, não-natural, difícil de
suportar por muito tempo. São pessoas que precisam estar no jogo o tempo todo, com a bola nos
pés de preferência; não conseguem ficar como espectadores de um jogo, muito menos ficar
teorizando sobre possíveis novas jogadas.
Pessoas com essas características, numa negociação, podem ser desastrosas. Podem levar uma
negociação a um impasse definitivo num piscar de olhos, através de uma intervenção mal feita
(geralmente um movimento de improviso para testar a reação do outro) ou uma reação “criativa”,
“Já basta de planejamento! Daqui para frente só vamos ficar repetitivos e patinar! Não vamos
ganhar nada com isso.”
“Acho exagerado esse tipo de cuidado. É claro que sempre se ganha alguma coisa, mas é marginal,
não vale a pena. Vamos decidir com o que temos, nunca teremos 100% dos dados…”
O que queremos, porém, destacar entre as causas da freqüente insuficiente alocação de energia ao
processo de planejamento e decisão é algo muito mais simples, pouco sofisticado. Nos referimos a
uma tendência a ir pelo mais fácil, pelo menos complexo, pelo caminho mais curto, pelo mais
rápido, pela mais cômodo e conveniente, pelo menos trabalhoso. Uma tendência que a prática
revela como sendo muito freqüente em nossa sociedade. Algo que aparece nas mais diversas situ-
ações: em casa, na escola, no trabalho, no lazer e também nas situações de negociação (mesmo
quando há muito em jogo).
Na verdade, o paradoxal aqui é que a maioria das pessoas quer resultados do tipo “loteria”. Mas, na
medida em que é preciso trabalhar muito duro para chegar lá, os padrões baixam com incrível
rapidez.
Esta é outra área a ser objeto de análise quanto ao processo de formação/educação das pessoas da
nossa sociedade. O que é preciso fazer para formarmos mais pessoas persistentes, que não cedam
perante à dificuldade das situações, que apliquem energia proporcional à complexidade das situa-
ções de negociação (e outras tão relevantes quanto) ao invés de rebaixarem suas aspirações? O
que é preciso fazer para formarmos mais pessoas voltadas à busca de excelência, ao invés de
“simples contentes” com o mais ou menos?
Estas questões obviamente trazem em si aspectos de caráter ético e político, que merecem ser
debatidos. Do ponto de vista, porém, da eficácia do processo de negociação, são aspectos de
grande relevância, principalmente se levarmos em conta que aquelas características de persistência,
busca do melhor, estão fortemente presentes na cultura de outros países com os quais negociamos
com uma intensidade cada vez maior.
“Prefiro planejar e tomar decisões isoladamente. Outras pessoas mais atrapalham do que ajudam.
Além disso, há muito desperdício de tempo.”
“Outras pessoas me estimulam: envolvo-me mais, penso melhor, produzo mais idéias. Isso tudo,
fora as idéias e as contribuições dos outros. O planejamento torna-se mais rico, cobre melhor as
várias facetas do problema e produz decisões de melhor qualidade.”
Essas duas afirmações mostram partes diferentes da realidade em pólos opostos. Entretanto, mais
freqüentemente, a realidade mostra as pessoas cada vez mais envolvidas em processos grupais de
planejamento e decisão. Os vários campos de atividade tornam-se mais complexos a cada dia e
estabelecem entre si elos de ligação intrincados, quando não se superpõem significativamente.
Neste ambiente em que processos grupais ficam cada vez mais necessários, torna-se importante
Isso significa que é preciso que os processos de planejamento e decisão em grupo consigam alavancar
ao máximo os benefícios normalmente associados aos mesmos; ao mesmo tempo em que os
problemas (dispersão, raciocínio interrompido, censura à criatividade, desgaste, desperdício de tempo
etc.) sejam neutralizados ou, no mínimo, canalizados para trilhas que os transformem em oportu-
nidades de melhoria/contribuição aos resultados.
Poucas pessoas estão treinadas adequadamente para atuar eficazmente em grupo, muito menos
em “grupos difíceis” (compostos por pessoas altamente questionadoras, críticas, agressivas, com
muitas “prima – donas” etc. que tenham por pauta assuntos complexos, envolvendo muita subjeti-
vidade e gerando muita polêmica e discussão).
O ideal é que, ao planejar uma negociação, o objetivo a ser por ela atingido seja precisamente
definido, não só em termos do que ele deve ser, como também em termos do que ele não deve ser.
Em debates “teóricos”, a afirmação acima será provavelmente aceita sem contestações: “Definir o
objetivo primeiro é básico.” Contudo, na realidade, o que se vê com bastante freqüência é que as
pessoas envolvidas no processo de planejamento de uma negociação partem rapidamente para
soluções, para ações necessárias, para o próprio desenho da estratégia e do que é preciso fazer,
sem investir tempo suficiente para um esclarecimento preciso do objetivo.
Comumente, as pessoas planejam as negociações com uma idéia tão somente genérica do objetivo.
É como se imaginássemos, numa competição de arco e flecha, pessoas atuando sem ver o tablado
do alvo (muito menos o centro do alvo), mas em função de uma vaga noção sobre a “região” do
terreno em que o alvo estaria posicionado…
A realidade mostra que, em função desta falta de clareza do objetivo, muito do esforço de planeja-
mento é desperdiçado. Perde-se muito tempo e, muitas vezes, o planejamento é conduzido para
um lado inadequado, gerando estratégias, táticas e ações até prejudiciais em relação ao objetivo
certo.
Aparentemente, esta tendência de não investir tempo para delimitar o objetivo com clareza é
gerada por uma subestimação da complexidade do próprio processo de se definir objetivos. Existe
um “preconceito” de que definir objetivos é algo simples. É algo que parece muito lógico, que está
sempre muito claro e que não dá margem a dúvidas:“uma vez colocado o problema, o objetivo está
definido já automaticamente…”
Além disso, isso que se observa na realidade está também fundamentado na tendência mais ampla
de “operar no grosso” e na tendência de contentar-se com o “mais ou menos” (vide 2.4.). Outro
fato freqüentemente observado na prática é que as tentativas de precisar melhor o objetivo são
vistas como “perdas de tempo” pelas pessoas “pragmáticas” presentes no grupo (preconceito do
tipo “o importante é investir tempo na definição do que fazer, do programa de ação…” (vide 2.3.).
Além desses fatores é preciso destacar alguns pontos que poderíamos relacionar ao processo
educacional, de formação: até que ponto essa tendência de “passar por cima dos objetivos” não
estaria ligada a um tipo de falta de disciplina? Não estaria nosso processo educacional privilegiando
excessivamente a aquisição de conhecimentos, deixando de lado áreas importantes como a do
desenvolvimento de posturas, atitudes (disciplina ao atacar um problema/uma tarefa/evitar
Negociações são conduzidas por indivíduos que quase sempre representam interesses “institucionais”
(os interesses do cliente, no exemplo dos advogados do “Caso Long”, descrito na Parte 1 deste
trabalho; os interesses da organização, no caso de executivos, representantes; os interesses da
família, no caso da pessoa que negocia a compra de uma casa, e assim por diante).
No primeiro, o conflito ocorre em nível dos objetivos; no caso Long, por exemplo, seria o interesse
de o advogado conseguir o valor máximo de indenização para o cliente Setúbal, mesmo que leve
tempo, suponhamos, contraposto à sua necessidade pessoal premente por dinheiro (acordo me-
nor mas rápido, viabilizaria os 20% de honorários de forma igualmente rápida).
Outro exemplo seria a questão da reputação dos advogados, se fizerem um acordo mal feito. O
suborno dos advogados seria um caso típico de exploração do conflito de interesses inerentes à
situação descrita no caso Long.
Neste primeiro plano, em que está em cena o objetivo pessoal do ser humano, do negociador, em
contraposição aos objetivos institucionais, o fator-chave que regula o conflito é representado pela
ética pessoal do negociador, seus valores, sua moral, seus princípios.
Neste plano, o fator-chave que poderia regular o conflito entre os objetivos pessoais e os da
negociação seria uma alta sensibilidade do negociador em perceber o surgimento desses interes-
ses/objetivos pessoais momentâneos associada a uma férrea disciplina para – em momento algum
– esquecer (“ficar cego”) ou rebaixar a importância ao objetivo maior da negociação. Obviamente,
existe forte relação entre o tipo de personalidade do negociador e sua susceptibilidade em relação
à dinâmica do processo e àquilo que o “oponente” faz (provocando reações do tipo que descreve-
mos acima). Trata-se de um assunto que pode, pela sua profundidade e amplitude, merecer um
estudo à parte (relação entre personalidade e tendência a acordos ou impasses).
Já verificamos, no item anterior (2.6.1), que é fundamental que haja uma consciência muito clara
dos objetivos que se pretende alcançar na negociação. Igualmente importante é a consciência dos
objetivos pessoais envolvidos no processo.
Na prática, tanto os objetivos maiores como os objetivos pessoais não são trabalhados adequada-
mente. Os objetivos pessoais acabam afetando negativamente tanto o processo de planejamento
(da negociação) como o da própria negociação, exatamente em função de não serem trabalhados
adequada e profundamente.
Aparentemente, existe um certo “tabu” na própria admissão de que os objetivos pessoais possam
estar envolvidos no processo. É isso que faz com que, muitas vezes, as pessoas hesitem em trabalhar
os conflitos entre os objetivos pessoais e os institucionais, a seu próprio nível, ao nível de seu grupo.
Ainda mais “tabu” parece ser a questão do tratar desses objetivos pessoais, de forma aberta, com
outras pessoas, principalmente se essas pessoas forem os próprios “oponentes” na negociação.
Observamos que as pessoas que conseguem tratar, a seu próprio nível, e trabalhar com os outros,
inclusive com os “oponentes”, de forma aberta, o conflito inerente entre objetivos pessoais e
Ao trabalhar com objetivos muito vagos, é também natural que haja uma certa mistura entre o
objetivo maior da negociação e os objetivos periféricos (desejáveis, úteis, interessantes, bem-vin-
dos, complementares, suplementares, ou qualificações outras nessa linha). Ainda há os “poluentes”,
ou seja, os pseudo-objetivos (não são sequer desejáveis) que representam fatores dispersantes e
obviamente prejudiciais ao processo de negociação. Estes afetam mais significativamente as pessoas
que já apresentam uma maior tendência à dispersão e sem qualquer grau de disciplina pessoal.
• quando o objetivo não é trabalhado refinadamente, quando está genérico e vago, há grande
probabilidade de dispersão de energia em objetivos periféricos, com prejuízo ao objetivo mai-
or (virtualmente desconhecido);
• existe também uma maior probabilidade de se trabalhar, na negociação, visando a um (ou al-
guns) objetivo periférico, deixando-se completamente de lado o objetivo maior. Na Long, seria
o caso de se lutar pelo reembolso de todas as despesas incorridas (hospital, carro danificado,
fisioterapia etc.), esquecendo-se por completo do conceito de indenização. Sem uma correta
hierarquização dos objetivos, há também descontrole do processo em função de uma outra
A terceira tendência está associada, por sua vez, em parte, à falta de precisão do objetivo. Entretan-
to, a tendência de “querer tudo” pode também refletir a insegurança do negociador. Como o
negociador não sabe exatamente qual o objetivo principal, ele precisa conseguir tudo para se
proteger (do risco de não chegar ao “sucesso”).
Na prática, nota-se uma tendência à não-consideração dos objetivos de longo prazo nos processos
de planejamento das negociações. Há uma preocupação muito maior pelo curtíssimo prazo, pelo
imediato, pelo concreto.
Uma das causas dessa tendência à não-consideração de objetivos de longo prazo parece estar
ligada a um ceticismo generalizado quanto ao que possa ocorrer no futuro, não só em termos
daquilo que se pode esperar do outro (caso de negociar com base em promessas), mas também
em relação à efetiva realização dos planos de longo prazo (“…nunca dão certo…”).
No caso de ceticismo quanto a promessas feitas pelo “oponente” numa negociação, há aparente-
mente dois fatores presentes.
O primeiro está relacionado à confiança – que pode variar caso a caso. Na medida em que se confia
no outro, seria possível negociar com base em promessas. Entretanto, na prática, mesmo que haja
grande confiança no outro, pode ainda persistir um certo desconforto e ceticismo em negociar
sobre promessas, uma vez que não exista convicção de que o outro conseguirá cumprir o que está
prometendo (regras do jogo no mercado sendo alteradas, regras na organização ficando mais
“duras”, superiores como barreira etc.).
No caso do ceticismo em relação à realização dos planos de longo prazo, temos um tipo de círculo
vicioso: na medida em que os processos de planejamento não recebem a devida atenção e os
planos são de baixa qualidade, a probabilidade de sucesso (plano dar certo) torna-se naturalmente
baixa. Na medida em que os planos não dão certos, as pessoas passam a ficar céticas, passam a não
acreditar na possibilidade de se planejar a longo prazo.
Além disso, o ceticismo em planos de longo prazo é causado também por um excesso de mudan-
ças nas “regras do jogo” em nossa sociedade. Essa “transiência” das regras gera insegurança e uma
forte sensação de que é inútil planejar com base em regras que poderão ser alteradas a qualquer
momento, sem a devida participação das partes envolvidas e sem qualquer forma de negociação e
acordo.
E quanto à própria instabilidade das regras do jogo: não seriam as regras frágeis por não terem sido
desenhadas com o devido cuidado, planejadas com a devida profundidade e refinamento, com o
devido tempo? Não teríamos aqui um outro tipo de círculo vicioso?
Pontos importantes para reflexão nesse sentido estariam encerrados nas seguintes questões:
Negociações que envolvem objetivos de longo prazo (muitas das negociações de cunho político e
social envolvem objetivos de prazos bastante longos) não seriam só possíveis dentro de um clima
de confiança, credibilidade em relação aos compromissos, estabilidade de regras e planejamento
refinado e cuidadoso? Como fazer com que a sociedade tenha uma massa critica de pessoas com
esses valores, essas capacidades? Não estaria, também, neste caso, o processo de educação e for-
mação na base de tudo?
A definição de estratégia, isto é, da forma pela qual se conseguirá chegar a um objetivo, é parte
importante do processo de planejamento da negociação, tendo grande impacto nos resultados da
mesma. As estratégias devem ser claramente diferenciadas dos processos de manipulação. De um
lado, podemos ter estratégias mais autênticas, legítimas e que não afetam a relação de confiança
entre os negociadores. De outro, as “manobras” que poderíamos classificar como manipulativas, as
quais normalmente despertam forte defensividade nas pessoas.
O que se constata, na realidade, é que não há uma classificação muito clara na cabeça das pessoas
em relação àquilo que é autêntico e o que é manipulativo. Essa é a primeira área do problema, e
talvez a fundamental.
O que aparentemente está por trás dessa tendência à manipulação mais uma vez são dados cultu-
rais, que definem uma dinâmica de relações sociais que “legitimam” processos de relacionamento
do tipo jogo, evitando relações mais autênticas, mais verdadeiras e naturais.
Posturas de consideração positiva em relação aos outros, de confiança, e uma atitude básica de
autenticidade, isenta de defensividade, parecem representar fatores importantes no processo de
formulação de estratégias de negociação legítimas, sem qualquer traço de manipulação.
Esta nossa sociedade formando pessoas com esse tipo de postura, ou, pelo contrário, estamos
desenvolvendo indivíduos permanentemente “em defesa”, que não confiam em ninguém, e que,
portanto, precisam usar, o tempo todo, processos manipulativos de relacionamento? Não estaria
um processo de formação de pessoas “na defesa”, sob uma bandeira de “necessidade de sobrevi-
vência”, formando mais um tipo de círculo vicioso?
Numa negociação, inúmeros fatores afetam os resultados, conforme apontado na primeira parte
deste trabalho, na qual descrevemos o Caso Long. Além dos dados de conteúdo (responsabilidade
do laboratório, problemas dos efeitos colaterais, o envolvimento do médico, a aprovação do Minis-
tério, o tempo de recuperação do prejudicado etc.) que inegavelmente tem seu peso na negocia-
ção, dois outros devem aqui ser destacados, em função de sua relevância: o processo da negociação
(ou seja, a forma da negociação, a dinâmica de interação, comunicação, relacionamento entre as
partes que negociam) e a forma em lidar com as emoções que estão presentes/são geradas na
negociação.
Como pode ser constatado na descrição do caso Long, os itens de conteúdo recebem atenção
preponderante. Os aspectos de processo e a dinâmica das emoções (detecção da carga emocional
inerente à situação, expectativa quanto às emoções que poderão ou não ser geradas durante as
discussões etc.) recebem pouquíssima atenção na fase de planejamento. Quando são trazidos à
tona, são tratados com superficialidade, recebendo quase nada de energia e tempo.
Durante a negociação propriamente dita, mesmo quando fatores de processo estejam afetando
primordialmente o andamento da negociação, eles não são trabalhados. Igualmente, as emoções
que surgem não são trabalhadas adequadamente (freqüentemente sequer são trabalhadas), embo-
ra possam até estar levando a negociação a uma situação de impasse (bem representada, ilustrada,
no Caso Long).
Quanto aos aspectos de processo, aparentemente o problema que vemos na prática (pouca aten-
ção, o não trabalhar) está associado a dois fatores, relacionados entre si. O primeiro seria uma falta
de capacidade básica de “enxergar” o próprio processo.As pessoas normalmente não estão treina-
das para enxergar, detectar, sentir itens de processo presentes na dinâmica interpessoal, intergrupal.
Além disso, sequer são educadas para saber o que são (os itens de processo). Em não sabendo o
que é o processo e quais são considerados itens de processo, naturalmente fica difícil enxergá-los.
Em não sabendo o que é, e não enxergando, torna-se difícil também atribuir a devida importância
ao fator. O segundo fator, decorrente, é representado pela hierarquização inadequada de itens de
processo em relação a itens de conteúdo (“processo é algo meramente secundário, periférico,
complementar; importante e primordial são os dados do problema, as justificativas, as argumenta-
ções…”).
Quanto às emoções, nota-se na prática uma grande resistência a tratar das mesmas com naturali-
dade. As pessoas normalmente não estão à vontade para lidar, trabalhar as emoções presentes nas
Negociações são planejadas e realizadas tendo por “pano de fundo” uma gama bastante ampla de
informações. Muitas dessas informações são objetivas e de acesso relativamente fácil (no caso
Long, são as informações sobre o estado do carro após o acidente, laudos médicos, conta do
hospital, laudo de aprovação do remédio pelo Ministério etc.). Outras, embora objetivas, são de
domínio de somente uma das partes (erro na formulação do remédio, forma usada para obter a
aprovação do Ministério, pelo lado da Long; condições de Setúbal na hora do acidente, eventual
erro na dosagem recomendada, velocidade do carro, cauda efetiva do acidente, pelo lado do recla-
mante).
Além das informações objetivas, há outras mais subjetivas e menos definitivas. É o caso da opinião
de um determinado médico sobre as condições de Setúbal após o acidente: grau de recuperação
da mão direita, por exemplo. Um outro médico poderia avaliá-las de forma diferente. Informação
mais difícil ainda de se determinar com objetividade (que leve a consenso) seria o grau do impacto
psicológico do acidente (e da semi-invalidez resultante) sobre Setúbal.
Uma outra categoria de informação seria aquela que engloba informações em nível de desejo, inten-
ções, nível de aspiração. Essas informações, no exemplo da Long, seriam representadas pelas respos-
tas a questões do tipo: O que seria para o nosso cliente uma indenização satisfatória, aceitável? E o
que seria considerado excelente? O que seria insatisfatório? O que seria visto como inaceitável,
intolerável? O que nós, advogados, estamos querendo para Setúbal? Seriam dados altamente relevan-
tes para a negociação, mas que não são muito fáceis de se determinar. Dependem de muita discussão,
muito trabalho, inclusive em nível de uma reflexão introspectiva – às vezes bastante profunda.
O outro lado da categoria de informações acima seria a informação que o negociador gostaria de
ter sobre quais seriam as intenções, desejos, níveis de aspiração do outro. Podem até ser obtidas de
A “qualidade” das suposições, em casos como o mencionado acima, irá depender da capacidade do
negociador em entender o outro, pelo prisma do outro, tentando “ser” o outro. Caso contrário, as
suposições serão meras projeções dos desejos e características do próprio negociador num tipo
de “pseudo-empatia” (“Eu, na situação em que ele está…”).
Parece óbvio que é praticamente impossível idealizar estratégias de negociação eficazes, sem uma
excelente base de informações. Estratégias de sucesso são geradas na medida em que todas as infor-
mações objetivas relevantes sejam efetivamente obtidas, todas as informações subjetivas sejam ade-
quadamente suportadas, embasadas dentro do possível, as informações ao nível de desejo, intenções
sejam checadas, repensadas e contrachecadas antes de serem consideradas como “definitivas” (e
servirem de “parâmetro oficial” para a negociação). E também na medida em que suposições de alta
qualidade venham a ser feitas sobre prováveis desejos, intenções e necessidades do outro.
Embora pareça óbvia a estreita e direta relação entre qualidade da estratégia/resultado da negoci-
ação e o nível de informações (quantidade e qualidade), na prática (o caso Long é uma boa ilustra-
ção do que ocorre freqüentemente no dia-a-dia), é mais comum constatarmos o seguinte quadro:
• Mesmo as informações objetivas, de acesso relativamente fácil, não são todas elas obtidas.
(Tendência de ir pelo mais fácil? Tendência do contentar-se com o mais ou menos? Subestimação da
situação e/ou do “oponente”? Achar que é coisa simples e que, portanto, não deve receber energia e
atenção excessivas?).
• Poucos sequer cogitam em procurar obter informações objetivas que são de domínio do ou-
tro. (Suposição de que, por serem de domínio de outro, não poderiam ser obtidas de forma legítima?
Tendência generalizada à introspecção, receio de interagir com o outro? Mais uma vez, o contentar-se
com o “mais ou menos”?)
• Tendência de se trabalhar mais intensamente os dados objetivos. Menor propensão em identi-
ficar e trabalhar os dados subjetivos (muitas vezes, nem sequer são considerados). (Preconceito
de que em negociações deve-se trabalhar sobre dados objetivos, tão-somente? Desconforto em lidar
com dados subjetivos que são, por natureza, mais polêmicos e de difícil consenso? Simplesmente, uma
questão de conveniência, de começar pelo mais fácil, evitar o mais difícil?)
Também nestes aspectos, aqui abordados, é possível dirigir nossos questionamentos para o nosso
processo de formação e educação, uma vez que todas as tendências aqui observadas podem ser
revertidas, aumentando consideravelmente o potencial de realização de acordos e conciliações de
interesses em nossa sociedade.
• raciocinar certo: obviamente, erros de raciocínio podem ser fatais numa negociação;
• raciocinar refinadamente: racionar certo, mas de forma excessivamente simples, linear e até
mesmo grosseira traz dois tipos de problema. O primeiro é o da supersimplificação do proble-
ma (seria como resolver uma equação de física nuclear com contas de aritmética elementar);
há questões em negociações, que só conseguem ser resolvidas através de raciocínios bastante
complexos/refinados. O segundo é o da contraposição desse raciocínio supersimplificado ao
do “oponente”, altamente refinado, que pode gerar para o negociador inúmeros tipos de pro-
blemas e desvantagens.
É importante também fazer referência aos elementos que são processados pelo raciocínio das
pessoas. Há casos de pessoas que conseguem pensar certo, de forma refinada e criativa, mas que
não conseguem captar todos os elementos que estão presentes no problema (os que têm poten-
cial de afetar os resultados). É, por exemplo, o caso do negociador de Setúbal, no caso Long,
bastante inteligente, mas que simplesmente deixa de levar em conta, por exemplo, os aspectos
afetivos envolvidos no problema. Em resumo, a pessoa pode ter problema com os mecanismos de
captação de “inputs” e isso representa o elemento mais significativo a comprometer a qualidade
das soluções geradas pelo seu processo de raciocínio (mesmo que este seja excelente, como
potencial).
Em relação a esta questão do raciocínio, notamos na prática, no dia-a-dia das negociações, inúme-
ros pontos que merecem ser comentados neste trabalho.
O segundo ponto diz respeito à questão do raciocinar refinadamente. Na prática, nota-se que há
uma tendência maior a processos de raciocínio lineares, simples. Seria isso resultado da necessida-
de de uma “universalidade mínima” em termos de formas de pensar para que haja diálogo? Seria
isso resultado de um traço cultural de desconforto em relação à ambigüidade (raciocínios refina-
dos exigem capacidade maior para lidar com ambigüidade, na medida em que se lida com uma
quantidade maior de variáveis, aumentando assim a probabilidade de ocorrência de um maior
número de equações a resolver)? Seria simplesmente uma tendência cultural, do tipo “por que
complicar”? Ou do tipo “por que tanto trabalho?”
Uma negociação tenderá a ser mais eficaz quanto melhor for seu planejamento, conforme pude-
mos demonstrar em vários pontos deste trabalho. Entretanto, não basta que se planeje tão-somen-
te a negociação em grandes linhas. É fundamental planejar com refinamento e profundidade a ação,
ou seja, o momento da negociação: onde deverá acontecer a negociação, quem deve participar de
nosso lado, ao encontro deve preceder algum tipo de preparação (um telefonema enfatizando
algum aspecto, criando o “clima certo” etc.), como deverá ser o “layout” da sala, quem deve falar,
como devem ser os primeiros minutos, algum tipo de “quebra-gelo”, como as pessoas deverão ser
apresentadas, como a questão será introduzida, quem deverá fazer a introdução, o que evitar, o que
enfatizar, quem pede “intervalo” para reavaliar a situação, em que seqüência apresentar os argu-
mentos, o que fazer em reação aos argumentos do outro, e muitas outras questões.
Na prática, o planejamento da ação não recebe atenção e energia devidas. Num extremo, notamos
planejamentos de ação que incluem até ensaios com vídeo/fita, participação de consultores e espe-
cialistas, e análises com o auxílio de computadores. No outro, notamos uma grande maioria de
situações em que praticamente inexiste qualquer forma de planejamento de ação. É como se fosse
normal que os processos de planejamento da negociação parem tão logo haja a concepção de
estratégia.
Esta tendência a não planejar devidamente a ação está associada a vários fatores já analisados
anteriormente neste trabalho (tendência das pessoas a ir pelo mais fácil, de se contentar “com o
mais ou menos”, falta de persistência etc.). Especificamente em relação ao planejamento da ação,
existe um outro fator a ser comentado. Nota-se, na prática, uma tendência a considerar o “execu-
tar” como algo “não-nobre”, se comparado ao processo de ter idéias, idealizar estratégias, criar
soluções. Seria essa tendência uma das principais causas do baixo investimento de energia e tempo
em planejamento da ação? Aparentemente, uma nova área a merecer atenção nos processos de
formação e desenvolvimento: a devida valorização ao concretizar, ao “dar forma”, ao implantar, ao
fazer – sem dúvida uma fase de excepcional importância nos processos de negociação.
Na verdade, um plano traz, embutido em si, um grande número de decisões significativas, relevantes
aos resultados da negociação.
O segundo, de certa forma relacionado ao anterior, é que pouquíssimas alternativas são levadas em
conta ao se tomar decisões durante a elaboração de um plano. Há uma tendência a se “adotar”
rapidamente a primeira solução trazida à mesa. (Seria um tipo de ansiedade e tensão relacionado a
uma “necessidade” de prosseguir rapidamente em direção ao item seguinte?). Isso faz com que riscos
sejam mal calculados, contingências não sejam estabelecidas (“caso isto não ocorra do jeito que
estamos imaginando, qual seria o caminho a seguir?”) e soluções alternativas não sejam pensadas
antecipadamente (com uma natural alocação de energia e tempo na busca “do melhor”). A conse-
qüência disto é que na hora crucial da negociação propriamente dita, há muito improviso e preci-
pitação, com sério comprometimento da qualidade das decisões e, obviamente, dos resultados da
negociação.
Um programa que viria a ajudar o negociador nos aspectos aqui abordados seria sensibilizá-lo
fortemente em relação à dinâmica sutil do “ir tomando decisões” (por indivíduos e grupos), ou seja,
capacitá-lo a “enxergar” as decisões que vão sendo tomadas, sejam em reuniões de planejamento
ou durante as próprias negociações. O outro aspecto, o da ansiedade e tensão, é menos facilmente
trabalhável através de programas tradicionais de formação e educação, uma vez que ele está rela-
cionado a aspectos culturais, ao modo de vida em geral que prevalece em nossa sociedade e ao
clima gerado pelas “instituições” à volta das pessoas envolvidas. Um assunto que, certamente,
mereceria um trabalho à parte.
CONCLUSÃO
No nosso dia-a-dia, muito mais freqüentemente do que nós próprios imaginamos, interrompemos
negociações em andamento ou incorremos em impasses, muitos deles definitivos. Freqüentemente
sequer damos inicio à negociação, por supor que não haverá acordo.
Os comentários ao longo do trabalho procuraram focar os fatores relevantes à eficácia das nego-
ciações sob um aspecto básico: se o fator está recebendo atenção adequada nos processos de
formação e educação vigentes em nossa sociedade.
Nesse sentido, podemos afirmar que nossos processos de educação e formação não só – em
vários aspectos– apresentam omissões e deficiências sérias (em termos dos fatores relevantes à
negociação), como, em outros aspectos, apresentam distorções significativas, a ponto de questio-
narmos se não estamos formando pessoas para gerarem impasses e não acordos. (Não estaríamos
contínua e persistentemente formando – a cada dia – pessoas mais competitivas, mais belicosas,
mais agressivas, mais desconfiadas, mais defensivas, mais manipulativas, mais dissimuladas, mais ego-
ístas – excessivamente centradas em seus próprios interesses, sem qualquer preocupação com os
outros, com a comunidade, com a sociedade?)
Não obstante tais constatações, é forte nossa convicção de que o quadro possa ser melhorado
consideravelmente:
• É efetivamente possível fazer com que mais pessoas desenvolvam uma postura geral de busca
sincera e honesta de acordos legítimos, nos quais haja máximo respeito aos direitos e interes-
ses de todas as partes envolvidas.
• É efetivamente possível fazer com que as pessoas se desenvolvam confiando mais umas nas
outras, sendo mais autênticas, sem defensividade e respeitando o próximo (sempre e acima de
tudo) como ser humano, independentemente das circunstâncias e das situações em que se
encontrem.
• É efetivamente possível fazer com que muito mais pessoas em nossa sociedade desenvolvam
habilidades humanas refinadas que venham a otimizar as probabilidades de entendimento e
conciliação de interesses.
Trata-se de um grande desafio. Mas um desafio que pode e deve ser enfrentado. O esforço neces-
sário será, obviamente, muito grande. Mas o retorno será, sem dúvida, de excepcional valor para a
sociedade como um todo e para cada indivíduo em particular: uma sociedade mais harmoniosa na
qual as diferenças de interesses sejam trabalhadas com grande naturalidade através de negociações
legítimas, autênticas e que venham a gerar benefícios para todos os envolvidos. AK
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