FERREIRA Arcangelo Tese
FERREIRA Arcangelo Tese
FERREIRA Arcangelo Tese
Belém – Pará
2020
ARCÂNGELO DA SILVA FERREIRA
Belém – Pará
2020
ARCÂNGELO DA SILVA FERREIRA
Banca Examinadora:
__________________________________________________
Dr. Aldrin Moura de Figueiredo (Orientador)
___________________________________________________
Dra. Magda Maria de Oliveira Ricci (UFPA) - Membro
___________________________________________________
Dra. Maria de Nazaré dos Santos Sarges (UFPA) - Membro
___________________________________________________
Dr. Marcos Frederico Aleixo Krüger (UEA/UFAM) – Membro
____________________________________________________
Dr. Heraldo Márcio Galvão Júnior (UNIFEESPA) - Membro
Belém – Pará
2020
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo
com ISBD Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Pará
Gerada automaticamente pelo módulo Ficat, mediante os dados fornecidos
pelo autor
À Elisangela.
1
Na tarde de 11 de novembro de 2020, minha mãe me deu a grata felicidade de estar presente, assistindo
atentamente a defesa desta tese de doutorado, por meio de videoconferência através de Google Meet, no
apartamento em que estava residindo, na cidade de Manaus (AM). Porém, infelizmente, no dia 10 de janeiro de
2021, devido as complicações causadas pelas infecções do vírus Covid-19, ela faleceu, em uma manhã de domingo,
na cidade de Parintins (AM), deixando eternas saudades. Por tudo o que ela e meu pai fizeram para que eu,
inclusive, pudesse desenvolver e defender esta tese, eu dedico esta narrativa à Terezinha de Jesus da Silva Ferreira.
Narrativa, fruto de meu trabalho intelectual. Resultado de todo amor de minha mãe, meu pai, meus irmãos dedicado
a minha pessoa. Mãe, saudades eternas!
Agradecimentos
“Foi um longo caminho até aqui”. E, na andança, necessitei da adesão de instituições e pessoas
para que eu pudesse “finalizar” minha pesquisa histórica e, entregá-la à comunidade acadêmica,
por enquanto, no formato tese de doutorado. Nessa medida, sinto a necessidade de fazer alguns
agradecimentos (convicto de que essa trajetória, apesar de marcada por algumas intempéries2,
segue, pois “a história continua...” 3). Nessa medida, sou grato:
À Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e, por extensão, aos colegas do
colegiado de História do CESP (Centro de Estudos Superiores de Parintins), no qual atuo como
professor. À solidariedade manifestada, principalmente, nesses anos em que estive afastado, no
processo de doutoramento. Ao companheirismo dos colegas de departamento, em especial, da
professora Mônica Xavier de Medeiros, João Marinho da Rocha e Júlio Cláudio da Silva, os
quais contribuíram com o processo de minha pesquisa, ora através de uma boa conversa e
sugestão indicação de artigos entrevistas relativos aos meus estudos, ora, por meio da leitura de
parte da tese, ainda na sua feitura inicial, como fez a professora Mônica. Também agradeço às
minhas orientandas e orientando de Iniciação Científica: Patrícia de Souza Oliveira, Dayanna
Batista Apolônio, Lilian Souza dos Santos, Kethlen dos Santos Carneiro, Raiana Tavares dos
Santos, Márcia Gabriele Ribeiro Silva, Jéssica Guimarães Batalha, Ianna Paula Batista
Gonçalves, Suely Mascarenhas Gláucio, Adrian Kelly Cardoso Melo, Yapuanna Souza da
Rocha e Mouzart Guimarães Melo, pessoas que, por meio de suas pesquisas, de certa forma,
participaram, principalmente, no processo de composição de arquivos e fontes relativas ao
desenvolvimento de minha narrativa histórica. Aos alunos e alunas que, comigo estiveram à
frente do PIBID/História. Ao Gabriel Silva Gomes, envolvido com a digitalização de fontes do
Fórum de Justiça da cidade de Parintins.
2
Infelizmente, durante os anos finais da pesquisa e escrituração deste trabalho intelectual, fui acometido de três
infartos do miocárdio (20 de abril de 2019; 27 de dezembro de 2019 e 21 de abril de 2020). Felizmente, com à
força da fé divina (principalmente de familiares) e da ciência médica, resisti aos infartos. Assim, gradativamente,
pude concluir minha narrativa histórica. A vida continua, “absurdamente”, como há muito me disse Meursaut,
narrador do romance O Estrangeiro, do filósofo francês Albert Camus.
3
Aqui me reporto ao livro homônimo do historiador francês Georges Duby, discutido nos encontros realizados,
durante as aulas de Teoria e Metodologia da História, quando, com a professora doutora Magda Ricci, eu e minha
turma de doutorado do PPHIST passávamos algumas manhãs (prazenteiras) dialogando sobre “biografias
intelectuais”. Fecundas experiências compartilhadas com a referida professora e com meus colegas de turma.
À Camara Municipal de Parintins, a qual concedeu acesso a seus arquivos. À Biblioteca
Pública de Manaus. Nesta, acessei alguns arquivos, fontes: impressas e bibliográficas. Ao
Centro Cultural dos Povos da Amazônia (CCPA): acessei arquivos, essencialmente,
iconográficos, fundamentais para compor o terceiro capítulo desta tese.
À professora Eliana Ramos Ferreira. Tive a oportunidade de conhecê-la, primeiro,
através de seu vasto trabalho intelectual sobre a questão de gênero, a Cabanagem e a cultura
Afro-Brasileira, todos direcionados à história da Amazônia. Depois, quando convidada por
mim, participou de uma Semana de História no Centro de Estudos Superiores de Parintins
(CESP). No período que esteve na cidade, me incentivou a fazer o doutoramento na UFPA,
inclusive, contribuindo com sugestões ao projeto original. Eliana, posso dizer, tornou-se uma
amiga de todas as horas.
À professora do curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas, Francisca de
Lourdes Louro, pois solidariamente me concedeu material bibliográfico relativo ao meu objeto
de interesse, contribuindo para que eu corroborasse algumas conclusões sobre questões
formuladas ao longo de minha pesquisa histórica.
À professora de Literatura e Língua Portuguesa, Naiva Batista Ferreira. Prima e amiga
desde os tempos da infância e da faculdade, a quem fiz consultas, no afã da escrituração da tese,
para que eu tirasse algumas dúvidas e obtivesse informações sobre a história da literatura
brasileira. Nessa esteira, à professora, cunhada e amiga, Geizy de Castro Ferreira, também
professora de Literatura e Língua Portuguesa, informando sobre questões relacionadas à prosa
e poesia brasileira, nos meus momentos de imprecisões acerca desses temas.
Ao Programa de Pós-Graduacão em História Social na Amazônia (PPHIST) da
Universidade Federal do Pará, agradeço, primeiramente, o fato de ter ingressado no curso de
doutoramento, no ano de 2016. Abertos também às pesquisas que adotam a literatura como
objeto de interesse, agradeço aos professores que compuseram o corpo avaliador, àquele que
aprovou meu projeto de tese.
Sou grato também, às professoras e professores que fizeram parte do quadro docente do
Programa de Pós-Graduacão em História Social na Amazônia, nos dois semestres em que cursei
as disciplinas. Pois, durante os encontros acadêmicos, surgiram profícuas sugestões para o
desenvolvimento de minha tese.
O professor Márcio Couto, por meio da Disciplina O métier do historiador trouxe
sólidas sugestões acerca das diversas possibilidades inscritas no ofício dos historiadores da
Universidade Federal do Pará (UFPA), inclusive, as leitura de diversas teses, trouxe luz à minha
pesquisa.
À professora Caroline Fernandes, quando ministrou a Disciplina Seminário de Linha de
Pesquisa I: Arte, Cultura, Religião e Linguagem, oportunizou à turma um encontro acadêmico
no Museu do Estado do Pará (MEP); momento que me fez, pela primeira vez, entrar em contato
com a obra do fotógrafo paraense Luiz Braga, através da Exposição “Retumbante Natureza
Humanizada”. Desde aí, pude verificar a relação dialógica da obra desse premiado artista
paraense com a literatura do amazonense Milton Hatoum: um feliz achado para minha pesquisa.
Descoberta que, inclusive, a mim e a referida professora, rendeu a elaboração e publicação de
um artigo sobre esse entretecer das narrativas, fotográfica e literária, dos aludidos intelectuais.
À professora Nazaré Sarges (Naná), através de suas aulas na Disciplina História, Arte,
Cultura e Imagem: Belém na virada do século XIX para o XX. Nossas conversas (também por
email) e à bibliografia utilizada para discutir a história das cidades, contribuíram com o desenho
do terceiro capítulo de minha tese, pois abarca o urbano na literatura de Milton Hatoum. Nessa
perspectiva, os livros da professora, sobre a cidade de Belém, foram valorosos à minha
pesquisa. Assim como, as sugestões feitas por Naná durante me exame de qualificação.
À professora Magda Ricci, que também fez importantes recomendações quando esteve
compondo a banca para avalição de minha qualificação. Assim como às acuradas considerações
(escritas, mas também através de alguns diálogos) ao processo de minha pesquisa e
escrituração, pois no artigo final, entregue como avaliação dos resultados obtidos com sua
Disciplina Teoria e Metodologia da História, a professora teceu comentários fundamentais,
naquele texto, os quais me apropriei, como motes fundamentais, no processo da composição de
minha tese. Paralelo a isso, as aulas ministradas pela professora Magda Ricci foram basilares
para o esboço da trajetória intelectual de Milton Hatoum, inscrita no meu primeiro capítulo.
Também, o fato de ter socializado um fecundo material iconográfico com postais, selos e álbuns
trazendo registros fotográficos e gravuras sobre a cidade de Belém, na passagem do século XIX
para o século XX, utilizados, sobremaneira, na elaboração do terceiro capítulo desta tese.
Ao professor Aldrin Moura de Figueiredo, o orientador do meu projeto de tese, por meio
das Disciplinas: Seminário de Orientação (I ao VI). Aldrin contribuiu para a definição dos
caminhos de minha pesquisa e narrativa histórica. Suas leituras acuradas das primeiras versões
dos capítulos da tese e, por extensão, as orientações auxiliaram, sobremaneira, nas veredas do
pensar, fazer historiográfico, sob a égide da “história social da cultura e da linguagem”, pois,
busquei adentrar nesse campo. Meu olhar sobre a obra de Milton Hatoum apresenta algumas
direções tomadas a partir das conversas que tive com Aldrin, acerca, essencialmente, do
problema que gira em torno do “lugar da fala” dos personagens narradores dos romances do
escritor amazonense; do imaginário da cidade, registrado na literatura de ficção, porém,
inexistente na História da cidade de Belém e Manaus. Enfim, essa busca de uma abordagem
“desde a história”, a partir da literatura e da fotografia nasceu, nos diálogos com Aldrin, em
suas aulas, e nos momentos de orientação do projeto de tese (um deles, inclusive, por telefone,
pois estávamos em confinamento, devido a pandemia de Covid-194). Ao Aldrin, minha eterna
gratidão.
À turma de 2016, colegas de caminhada, agradeço à hombridade e o companheirismo.
Pois, eu, vindo de um outro estado, fui bem recebido. Testemunho disso foi a ótima relação
estabelecida. Desde os debates acadêmicos, durante nossos encontros nas manhãs e tardes
(semanais) no Laboratório de História do PPHIST, durante os dois semestres de aulas, até as
conversas, mais descontraídas, em espaços de lazer e sociabilidade da cidade de Belém (como
o Mercado do Ver-O-Peso, as Docas e o ontológico bar The Beatles) colegas como Geraldo,
Fernando, Osimar, Anndrea, Adriane, André, Dani, Heraldo dividiram alegrias e angústias,
acompanhadas da boa cerveja paraense, assai e peixe frito... Experiências compartilhadas,
arquivadas nas camadas das minhas memórias. Lembranças que, oportunamente, vem à baila.
Colegas, que comigo fizeram/fazem parcerias acadêmicas profícuas. Conjuntamente já
participamos de algumas publicações de livros e capítulos de livros. Nessa medida, à turma de
2016, sólidas amizades foram construídas durante o curso.
Aos colegas que, relativamente, colaboraram com o desenvolvimento de minha
pesquisa. Àquelas pessoas que, oportunamente, permitiram com que eu acesse determinadas
fontes históricas, inscritas em seus arquivos particulares.
Para a composição do primeiro capítulo desta tese a colaboração de meu ex-aluno, e
amigo, Maurílio Saião, foi capital, pois, de seus arquivos vieram fontes colhidas na Biblioteca
4
A pandemia causada pelo vírus Covid-19. Os primeiros registros de casos de pessoas adoecidas pela síndrome
respiratória aguda grave 2, ocorreu em Wuhan, na província de Hubei, na China, em 1 de dezembro de 2019, sendo
o primeiro caso reportado em 31 de dezembro do mesmo ano. Desde aí, a doença ganhou proporções globais.
Devido a sua capacidade de contágio, e por extensão, seus índices elevados de mortandade, a Organização Mundial
de Saúde (OMS) orientou para que a população mundial, irrestritamente, ficasse em isolamento. O ano de 2020,
no Brasil, foi atípico e insólito. No momento do relato que fiz, lembrando da conversa que tive, por telefone, com
o professor Aldrin, estávamos em lockdow em quase todo o Brasil. Quando escrevia os meus “Agradecimentos”
(setembro de 2020), havia o perigo de uma “segunda onda” pandêmica. No ano de 2020, os estados do Pará e
Amazonas tiverem casos alarmantes de doenças e mortes, devido ao Covid-19. A história do tempo presente já
revela a peculiaridade desses anos sombrios. Destacando, por sinal, os descasos da Presidência da República do
Brasil, essencialmente, através dos discursos e postura política do, então, presidente Jair Messias Bolsonaro.
Considerado, por um segmento de brasileiros como um “genocida”. Conforme, registros históricos,
principalmente, por meio de fontes jornalísticas, impressas e eletrônicas, a palavra “genocida”, relacionada a
imagem do presidente Bolsonaro é, inscrita, não somente nos jornais brasileiros, mas, significativamente, nos mas
medias internacionais: The New York Times: “Jair Bolsonaro coloca em risco a saúde de brasileiros e da
democracia”. Este é o título do artigo do especialista em política latino-americana, publicado no referido jornal
(coluna Opinião) em 26 de março de 2020. Em 29 de março de 2020, Katy Watson, repórter responsável em cobrir
notícias sobre a América do Sul, assina um artigo, inscrito no jornal da BBC de Londres, o qual traz o seguinte
enunciado: “Enquanto o mundo tenta desesperadamente enfrentar a pandemia do coronavírus o presidente
brasileiro está fazendo o seu melhor para minimizá-lo”. 2020, uma ano sofrível!
Pública de Manaus. Com a ajuda de Maurílio, em uma de minhas visitas nessa instituição,
encontrei o primeiro livro de Milton Hatoum: uma raridade, pois já se encontra esgotado; raras
são suas cópias. Nessa ocasião, pedimos a autorização para digitalizá-lo. Maurílio, me forneceu
uma importante fonte impressa, a qual consta um dos primeiros artigos de Milton Hatoum,
publicados em um jornal de São Paulo, imediatamente após ao lançamento do romance Relato
de um certo Oriente, o qual utilizei para iniciar a narrativa do primeiro capítulo.
Daniel Rodrigues de Lima, também ex-aluno e amigo (atualmente mestrando no
Programa de História Social na UFAM), jovem competente pesquisador do Amazonas no
período republicano, abriu seus arquivos para que eu pudesse acessar fontes diversas,
essencialmente, os álbuns e fotografias que utilizo no capítulo terceiro desta tese. Ao Daniel,
também, devo a leitura e algumas sugestões relativas ao referido capítulo.
Meu grande amigo (que por sinal foi meu aluno, quando fui professor do Ensino Médio)
Thiago Roney. Companheiro das horas felizes e difíceis. Doutorando em Literatura
(UFAM/UnB), estudioso da obra de Walter Benjamin. Com Thiago, fiz inúmeras discussões
sobre a acepção de História em Benjamin, nessa perspectiva, me indicou vasta bibliografia.
Também, foram promissoras nossas conversas sobre o conceito de alegoria formulada pelo
filósofo alemão. Ao Thiago agradeço sua hombridade e, por extensão, o fato de socializar suas
reflexões, não somente acerca do pensamento de Walter Benjamim, mas também, sobre Jacques
Rancière.
Ao Vinícius Alves do Amaral, (ex-aluno de graduação, atualmente doutorando em
História na UFF), e pesquisador da trajetória histórica de Arthur Cesar Ferreira Reis. Com
Vinícius, obtive algumas informações sobre o contexto do regime militar brasileiro no
Amazonas. Sempre de forma solícita, pacientemente, atendeu demandas relativas à minha
pesquisa histórica, indicando e/ou socializando arquivos e fontes, referências etc. Com ele
também, fiz ótimas parcerias acadêmicas ao longo desses anos de investigação.
À Adriane dos Prazeres, quem, de maneira solidária, encaminhou pelo correio livros
relativos à história e historiografia do Pará e da cidade de Belém. Grande incentivadora de meu
trabalho de pesquisa.
Ao Lucas Montalvão Ribeiro, doutorando em História Social na Universidade de São
Paulo (USP), pela indicação de fontes cartográficas.
Ao Heraldo Galvão, colega de doutoramento, com quem tive a felicidade de elaborar
alguns artigos e capítulos de livros, agradeço-o, especialmente, pois, foi, dentre os colegas
citados, quem mais de perto acompanhou o processo da pesquisa e elaboração de minha
narrativa histórica. Dividindo experiências de pesquisas, realizadas na Amazônia e em Paris
(onde ele cursou o doutorado sanduíche). Um amigo paulistano que encontrei em Belém, nessas
voltas que a vida traz.
À Graça Luzeiro que de forma solidária, tirou algumas horas de seu tempo para
solidariamente arrumar a formatação final (Normas/Técnicas) do texto.
Às minhas queridas irmãs, Auxiliadora (graduada em Letras e mestre em Teoria
Literária): apesar de seus inúmeros afazeres, pacientemente, leu, cuidadosamente e
gradativamente, os capítulos de minha tese, fazendo as correções, não somente ortográficas e
de sintaxe, mas também sugerindo algumas reflexões teóricas. Mana, obrigado, pelo carinho,
amizade e dedicação na leitura e sugestões à tese. E “Peta”, Maria do Perpétuo Socorro Ferreira
Stucchi, que mesmo distante (Itália) me socorreu com as suas traduções em inglês. Cristina,
que concedeu um pouco de seu espaço físico e de seu tempo para conversas descontraídas e
analíticas, do eu do ser.
À minha filha Teresa Maciel Ferreira, finalista do curso de Letras, na Universidade
Federal do Amazonas, pois, com carinho, paciência e dedicação, fez sugestões para que eu
pudesse tecer correções, referentes a questões ortográficas, de coesão, coerência no primeiro
capítulo deste trabalho. Obrigado, filha. À Olga, acadêmica do curso de Ciencias Socias, filha
caçula, a qual, oportunamente, indicou artigos, notícias, e matérias relativas à trajetória
intelectual do escritor Milton Hatoum. Obrigado, filha, pela atenção e carinho para comigo e
para com o meu ofício. À Elisângela Maciel, a qual esteve do meu lado nesses anos 25 anos e,
apesar de suas inúmeras demandas acadêmicas, religiosas e familiares, ouvia minhas inúmeras
angústias, com paciência, doando seu tempo e sua palavra de alento. Sugerindo leituras, tecendo
considerações sobre minhas hipóteses de trabalho. Historiadora que admiro muito. A ela sou
grato pelo fato de ter acompanhado parte de minha vida pessoa e acadêmica, meus sucessos e,
essencialmente, agradeço o fato de ter ficado do meu lado nos momentos alegres e difíceis
(como quando, adoecido, necessitei parar minhas atividades de pesquisa e escrituração para
me recuperar de três infartos do miocárdio). Às minhas filhas e a “Eli” guardo, guardarei uma
imensa e eterna gratidão, amor e amizade.
Aos meus irmãos e irmãs: Marcela, Amilcar, Gilmar, Auxiliadora, Cristina, “Peta”,
Ainsten, [assim, como aos sobrinho(a)s e cunhado(o)s sempre com uma palavra de incentivo e
força espiritual]. Insones e prontos para oferecer força, peculiaridade inscrita em nossa clã.
Amor, amizade que cultivamos no chão histórico onde residem os ensinamentos de nossos pais,
Francisco e Terezinha. Porto seguro.
Saudoso pai, amada mãe o resultado dessa caminhada tem suas bases no compromisso
que dedicaram aos seus filhos. Incentivando-os à busca do conhecimento. É fruto e produto do
amor gestado, alhures, no ceio de nossa clã.
Enfim, sem a colaboração, afetividades e compromissos acadêmicos das Instituições
(elencadas acima), amigas e amigos, de dentro e fora do convívio familiar, eu não teria
“concluído” a minha caminhada até aqui. Longa, árdua. Marcada por problemas de toda ordem,
por conflitos, angústias. Mas também por instantes prazenteiros. Como este que estou vivendo
ao escrever os meus “Agradecimentos”.
De dentro desse coração, já um tanto quanto cansado [e necrosado] eu, gostaria de deixar
dito, sinceramente, com muito amor no peito: Muito, muito, muito obrigado! 5
5
Também agradeço a Billy Joel, Elton John, Arnaldo Antunes, Dona Onete, Raimundo Soldado, Chico da Silva,
Mallu Magalhães, Bach (especialmente através da “Sonata No..4”), artistas que, por meio da música, me fizeram
companhia nos momentos de escrituração da tese.
Epígrafe
“(...), falei do passado como se quisesse traduzir coisas difíceis, mas o passado é quase
intraduzível: melhor sonhá-lo, ou inventá-lo”
Milton Hatoum
[Pontos de Fuga, 2019]
RESUMO
O objeto de interesse desta tese é a obra literária do escritor amazonense Milton Hatoum,
essencialmente, a novela Órfãos do Eldorado. A pesquisa procurou se inserir no campo da
história social da cultura e da linguagem. Nessa perspectiva, organiza a narrativa através de três
frentes de abordagem. A primeira, tece um esboço da trajetória intelectual de Milton Hatoum,
elucidando suas vivências e experiências nas cidades de Manaus, Brasília, São Paulo, Barcelona
e Paris, verificando, suas principais matrizes intelectuais e imagéticas, construídas através dos
contatos com a literatura brasileira e estrangeira. Para tanto, a análise parte do tempo do
enunciado, inscrito nas obras do referido escritor, para alcançar um determinado diálogo desses
enunciados com o chão histórico, vivenciado por Hatoum quando de suas experiências (sociais,
políticas e culturais) ocorridas durante as passagens do escritor pelas mencionadas cidades. A
outra frente de abordagem, verifica e analisa a ideia de história na literatura de Milton Hatoum.
Nessa esteira, levanta a hipótese da intrínseca relação dialógica da obra literária do escritor
amazonense com a concepção de história inscrita no pensamento do filósofo alemão Walter
Benjamin. Pois tanto Benjamin como Hatoum assumem compromisso com a fundamentação
de uma narrativa à contrapelo. Elucidando, assim, a trajetória dos sujeitos que estiveram na
história, porém, muitas das vezes aparecem de forma subsumida na Historiografia. A tese
defende a hipótese de que a novela Órfãos do Eldorado assume um compromisso de refutar um
monumento histórico: o mito viajante da cidade encantada, Eldorado. Nas curvas da narrativa
de Hatoum, é possível afirmar que adotando-o como alegoria (a partir das definições de Walter
Benjamin para este conceito), o mencionado escritor utiliza a imagem do Eldorado para propor
uma outra história da Amazônia, no período que abarca os anos de 1890 a 1945, temporalidade
inscrita na novela Órfãos do Eldorado. A terceira e última frente de abordagem, verifica e
analisa as representações do urbano na literatura de Milton Hatoum, com destaque para o
imaginário de três cidades amazônicas: Manaus, Parintins e Belém. Tecendo comparações entre
as representações oficiais das referidas cidades, inscritas nos registros fotográficos, organizados
através de álbuns e postais oficiais com as imagens inscritas no imaginário de Milton Hatoum,
a tese compreende que o escritor amazonense surge, por meio de sua escrita criativa, como um
espectador emancipado diante das fotografias elaboradas para se perpetuar uma determinada
memória canônica das mencionadas cidades amazônicas.
Palavras-Chaves: Milton Hatoum; Walter Benjamin; História & Literatura; Manaus; Parintins;
Belém do Pará.
ABSTRACT
The topic of interest of this thesis is the literary work of the Amazonian writer Milton Hatoum,
particularly the novel Órfãos do Eldorado . The research carried out pertains to the fields of
social history, culture and language and the narrative is organized into three parts. The first
drafts an outline of Milton Hatoum’s intellectual path, elucidating his life and experiences in
the cities of Manaus, Brasília, São Paulo, Barcelona and Paris, and examining imagery that
influenced him and his main intellectual sources, built up through exposure to both Brazilian
and foreign literature. The analysis begins from the point in time inscribed in the fiction
narrative of the author, to establish a dialogue with Hatoum’s real life experiences (social,
political and cultural) which occurred during his stay in the aforementioned cities. The second
part examines and analyses the idea of history in the literature of Milton Hatoum. On this point,
a hypothesis is raised about the intrinsic dialogical relationship of the literary work of the
Amazonian writer with the concept of history as seen in the thought of the German philosopher
Walter Benjamin. Both Benjamin and Hatoum commit to a narrative which goes against popular
belief, thus clearing up the life stories of historical figures who often appear inaccurately
documented in history. The thesis defends the hypothesis that the novel Órfãos do Eldorado
refutes an historical monument: the widespread myth of the enchanted city, Eldorado . Through
Hatoum’s narrative, it is possible to affirm that by adopting it as an allegory (with reference to
Walter Benjamin’s definition of this concept), the writer in question uses an image of Eldorado
to propose another history of the Amazon , in the period spanning 1890 to 1945, the temporality
used in the novel Órfãos do Eldorado. The third and last part looks at the representations of the
urban in the literature of Milton Hatoum, highlighting the imaginary in three Amazonian cities:
Manaus, Parintins e Belém. By virtue of official comparisone of the aforementioned cities,
evident in the photographic records of Milton Hatoum's imagination, namely albums and
official postcards. the thesis betrays an emacipated spectador intent in continuing a certain
traditional image of theses amazonian cities through his own creative writing.
Key Words: Milton Hatoum; Walter Benjamin; History and Literature; Manaus; Parintins;
Belém of Pará .
.
LISTA DE FIGURAS
Introdução
Aqui reside o fruto de minha pesquisa gestada desde o início da segunda década do século
XXI, quando iniciei os estudos sobre a obra de Milton Hatoum. 7 Desse começo algumas das
problematizações e hipóteses foram trazidas para meu projeto de tese original. A percepção
mais acurada sobre a unissonância entre as narrativas do mencionado escritor amazonense com
operações historiográficas infundidas na/sobre a Amazônia. O desejo de verificar as relações
existentes entre o regime de verdade inscrito na literatura de ficção com o regime de verdade
elaborado através do saber histórico foi, em princípio, o mote da investigação que culminou na
tese que agora chega às mãos das pessoas leitoras.8 Herdei de minhas experiências vividas com
os estudos nessa fronteira, a convicção de que o “discurso do historiador e do romancista
coincidem mais do que se diferenciam” 9: ambos selecionam elementos do real, combinam esses
elementos através de um relato; sabem que tais narrativas urdidas se tornam uma fratura da
realidade parcial. Contudo, o romancista estrutura a obra literária com o propósito de revelar e
desnudar a verossimilhança para assegurar a lógica interna do enredo. Dito corretamente, o
regime de verdade da literatura de ficção encontra sua essência no tempo do enunciado,
6
HARTOG, François. Regime de historicidade: presenteísmo e experiências do tempo. – Belo Horizonte :
Autêntica Editora, 2013. p.37.
7
FERREIRA, Arcângelo da Silva. A narrativa de uma cidade encantada ou A alegoria de uma tragédia histórica.
In.: Cadernos do CEOM. Memórias rurais e urbanas – v. 28, n.42 (Junh/2015) – Revista on-line:
http://bell.unchapeco.edu.br/revistas/index.php/rcc p. 7 a 13.
8
No decorrer de minha narrativa histórica, não adotarei a expressão “o leitor”, “a leitora” porque estou
considerando as identidades e alteridades relativas as possíveis experiências de leitura desta tese.
9
ROCHA, João Cezar de Castro. “Apresentação: Roger Chartier e os estudos literários”. In.:
_________________________ (org.). Roger Chartier – a força das representações: história e ficção – Chapecó,
SC : Argos, 2011. p. 1.
19
10
FILHOLINE, Jorge; BASTONI, Júlio; ANDRADE, Vinícius de. Milton Hatoum: “Ainda considero a literatura
como uma aventura da imaginação e do conhecimento”. Disponível em htps://livreopiniao.com/2014/10/Milton-
natoum-ainda-considero a-literatura-como-uma-aventura-da-imaginação-e-do-conhecimento. Acessado em
13/06/2018 às 12:00.
11
ROCHA, João Cezar de Castro. “Apresentação: Roger Chartier e os estudos literários”. In.:
_________________________ (org.). Roger Chartier – a força das representações: história e ficção – Chapecó,
SC : Argos, 2011, p. 13.
12
Idem, p. 14.
13
CHALHOUB, Sidney e Pereira, Leonardo Affonso de Miranda. “Apresentação”. In.:
___________________________________________________ (orgs.). A História contada: capítulos de história
social da literatura no Brasil – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p.13.
14
Esta categoria, decerto, herdeira da sociologia de Durkheim e Mauss, será usada nesta tese a parir das acepções
de Roger Chartier (História Cultural: entre práticas e representações, Difel, 1985) e Carlo Ginzburg (Olhos de
Madeira : nove reflexões sobre a distância, Companhia das Letras, 2001), quando demandada.
20
elementos reunidos para desenhar a realidade parcial (fictícia) locada no imaginário de Hatoum.
Mas também pretendo compreender determinada realidade parcial (histórica) através da seleção
de fontes diversas, dentre estas a referida novela. O diálogo com estes vestígios gerou a
estruturação de minha narrativa (histórica). Vale reafirmar: considerando o rigor estabelecido
pelas instâncias de legitimação extratextual, porque “a escrita histórica se constrói em função
de uma instituição cuja organização parece inverter: com efeito, obedece as regras próprias que
exigem ser observadas por elas próprias”. 15
“Narrativa de uma cidade encantada ou alegoria de uma história trágica: diálogos entre
História & Literatura em Órfão do Eldorado, de Milton Hatoum”, consiste no tema dessa
investigação. Abarca o campo temático relativo aos domínios da História, Literatura, Cultura e
Linguagem. Nessa medida, elucido as condições de possibilidade da literatura de ficção: torna-
se aqui indício para o processo de compreensão das transformações ocorridas no período de
1890-1945, minha delimitação temporal, portanto. Assim, no tempo da urdidura da narrativa
imaginária averiguo a relação dialógica entre as condições histórica, objetivas e subjetivas, as
quais suscitam no narrador os motes para articular seu enredo. Aparece então a primeira
hipótese (aparecerão aleatoriamente nessa introdução e ao longo dos capítulos): Hatoum,
adotando o ponto de vista de uma (his)estória “a contrapelo” 16, acabou por urdir uma narrativa
trágica: a epopeia amazônica de uma família em processo de degradação. 17
15
CERTEAU, Michel de. A escrita da história; tradução de Maria de Lourdes Menezes; revisão técnica de Arno
Vogel. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 66.
16
À luz das reflexões de Walter Benjamin sobre o conceito de história. Importante a reflexão a partir dos tópicos
do confronto da história na modernidade urbana, como nos ensaios críticos sobre a leitura da história a partir de
Benjamin em Hollis Clayson and André Dombrowski (eds.). Is Paris still the capital of the nineteenth century?:
essays on art and modernity, 1850-1900. London : Routledge, Taylor & Francis Group, 2016.
17
Construindo sua literatura para mostrar o processo de degradação de uma família de barões da borracha, Hatoum
também abre o debate para a capacidade que a arte literária possui de chamar a atenção para o “desencantamento
da arte”. Nesse medida, convém verificar a possibilidade da obra de Hatoum dialogar com as reflexões de Rainer
Rochlitz, isto é, O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin, visto que nesta obra o referido autor
traz à baila as preocupações do filosofo alemão sobre as tomadas de posição da filosofia a partir da crítica política
da obra de arte autêntica. Esta que apresenta os signos históricos para a salvação possível do passado, promovendo
assim a justiça histórica. Conferir: Rochlitz, Rainer. Le désenchantement de l'art: la philosophie de Walter
Benjamin. Paris: Gallimard, 1992.
21
18
A narrativa está estruturada nos relatos de Arminto Cordovil, neto de Edílio Cordovil e filho de Amando
Cordovil. A partir das memórias fraturadas do personagem narrador, Milton Hatoum conta como uma família
enriquecida através da economia da borracha, experimentou o trágico processo de degradação econômica, social
e emocional. Conjecturo que o sobrenome Cordovil alude ao sujeito histórico José Pedro Cordovil: no contexto
do período colonial, foi um dos primeiros administradores da atual cidade de Parintins, conforme o livro As origens
de Parintins, do historiador Arthur Cesar Ferreira Reis. A obra foi publicada originalmente em 1967. É possível,
portanto, que Hatoum tenha visitado esta narrativa histórica.
19
Á luz das análises de György Lukács trata-se de um heroi problemático. Para o referido autor no século XX “o
heroismo tornou-se polêmico e problemático; ser herói não é mais a forma natural de existência da esfera
essencial.” (LUKÁCS, 2000: 41).
20
Inscrita na Antiguidade Clássica, é concebida em versos com o propósito de narrar de forma grandiosa à glória
de heróis reais e lendários. Tais narrativas tinham o interesse de educar a Humanidade. A ação dos
personagens/heróis é inserida num determinado tempo e espaço, por isso a epopeia constitui-se num gênero
narrativo. Contudo, me apropriando das reflexões de Lukács, afirmo que Hatoum constrói uma epopeia moderna,
caracterizada, essencialmente, pela idiossincrasia de seu personagem central, como já foi elucidado em nota
anterior.
21
Decerto a natureza desta pesquisa, considerando como principal fonte a novela Órfãos do Eldorado, procura
estabelecer cruzamentos entre o tempo da escrituração da obra literária com o tempo do enunciado da referida
prosa de ficção. Já no primeiro capítulo esta discussão se faz presente.
22
Assim como Walter Benjamin assevera no escrito: Sobre o conceito de história. A crítica ao historicismo alemão
feita por Walter Benjamin em 1940, nas suas teses Sobre o conceito de História, expõe uma nova leitura do mundo,
com base nas experiências do passado acolhidas pelo presente, em que se vislumbra o conceito de “redenção
messiânica” a partir da auto apresentação da verdade histórica no particular, no diferente, em suma, naquilo que é
marginal ao sistema. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre a literatura e a história
da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet, Prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987;
Idem, Teses Sobre o Conceito da História. In: LÖWY, Michael. Alarme de Incêndio: uma Leitura das Teses Sobre
o Conceito de História. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
22
23
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200
a 212. De acordo com o referido historiador, nos elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva, estão
os acontecimentos “vividos por tabela”: “São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que,
no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se
participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos
que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo.” (p. 201).
24
MOTTA, Márcia Maria Menendes. “História, memória e tempo presente”. In.: CARDOSO. C. F. e VAINFAS,
Ronaldo (orgs.). Novos domínios da História. – Rio de Janeiro : Elseviier, 2012, p. 25.
25
Tomo emprestado aqui a expressão do professor Aldrin Moura de Figueiredo quando fazia considerações sobre
as peculiaridades da narrativa de Milton Hatoum em um profícuo diálogo ocorrido com as professoras Magda
Ricci e Nazaré Sarges, durante meu exame de qualificação realizado no dia 27 de fevereiro de 2018.
26
Em Órfãos do Eldorado está em jogo as memórias do protagonista narrador: Arminto Cordovil.
27
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social; tradução Monique Augras; edição Dora Rocha. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 203.
28
LE GOFF, Jacques. “Memória”. In.: ________________ História e memória; tradução Bernardo Leitão... [et.
Al. ]. – 5ª ed.. – Campinas, SP : Editora da Unicamp, 2003. p. 471.
29
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio; tradução de Dora Rocha Flaksman. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 2. N. 3, 1989, p.4.
30
NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares; tradução Yara Aun Khoury. Projeto
História, São Paulo, (10), dez. 1993. p. 27.
23
31
Cidades amazônicas. Contudo, nos mais recentes romances, A noite da espera (2017), e Pontos de Fuga (2019)
primeiro e segundo volumes, respectivamente, da trilogia O lugar mais sombrio, Hatoum deixa transparecer
imaginários das cidades de São Paulo, Brasília e Paris.
32
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro,
Porto Alegre. 2ª ed. – Porto Alegre. Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 8.
33
PESAVENTO, 2002, p. 9.
34
PESAVENTO, 2002, p. 11.
35
MUAD, Ana Maria; LOPES, Marcos Felipe de Brum. “História e fotografia”. In.: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História – Rio de Janeiro : Elsevier, 2012, p. 263.
24
36
Idem, p. 280.
37
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado; tradução Ivone C. Benedetti. – São Paulo : Editora WMF
Martins Fontes, 2012, p 7
38
Idem, p. 103.
39
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro,
Porto Alegre. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2002, p. 10.
40
Como exemplo, a edificação do Parque Jéfferson Perés, inaugurado em 01 de setembro de 2009 e concebido
como uma homenagem a Belle Époque manauara.
41
HATOUM, Milton. “Manaus, o impasse da Modernidade”. In.: DIAS, Edineia Mascarenhas. A Ilusão do Fausto
– Manaus 1890-1920, 2ª Edição – Manaus: Editora Valer, 2007.
42
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras
Escolhidas. volume 1; tradução Sérgio Paulo Rouanet; Prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 1ª edição. São Paulo :
Editora Brasiliense, 1985. p. 225.
25
se desviar dessa concepção de cultura. Por isso, acrescento mais uma hipótese: a novela,
publicada em 2008, foi urdida para refutar a versão laudatória acerca da Memória,
essencialmente sobre um período que se convencionou chamar de belle époque. Desta forma,
na referida prosa de ficção o literato assume compromisso com uma versão crítica sobre as
memórias que, historicamente, foram/são divulgadas sobre à Amazônia. Vale dizer, há muito à
margem da História e Historiografia brasileira. Com efeito, ao transcender a realidade pela
linguagem, o referido escritor, busca uma verdade inscrita no tempo de suas narrativas, mais
forte que a realidade externa: denunciadora dos fantasmas do tempo; provocadora porque abre
fendas para que vozes emudecidas passem a falar desde as suas lembranças e memórias
fraturadas. Sua prosa de ficção, portanto, atribui poder a determinadas vozes até então
silenciadas, enunciadoras de memórias insurretas. Aquelas, antes subterrâneas, à baila tornam-
se protagonistas de um tempo fictício. Este, fecundo de indagações no/para as temporalidades
históricas. 43 Nessa perspectiva, uso, em algumas passagens de minha narrativa histórica, a
oralidade de determinadas pessoas, as quais entrevistei, oportunamente. Oralidades, que
suscitam lembranças, ora, relativas às representações e imaginários de cidades como, por
exemplo, Parintins, seus mitos e lendas, esses que emergem do fundo dos rios, mas também da
memória de seus habitantes; ora de reminiscências acerca da convivência com o escritor
amazonense em estudo, para perceber suas peculiaridades: como literato, e como professor.
Vestígios de as trajetória intelectual. Recupero também, fragmentos de depoimentos de
Hatoum, registrados em conferências, publicadas em mídias especializadas, mas também, por
meio de uma espécie de “entrevista pública” que eu fiz com ele, em uma das vezes que o literato
esteve em Manaus, para o lançamento de um dos seus romances. É preciso dizer, enfim, que
não utilizo a oralidade como método, mas como exemplo, indício para meus argumentos nesta
tese.
Chegou o momento de apresentar minhas problematizações: 1. Quais os conectores da
relação fronteiriça entre a narrativa literária assentada na novela Órfãos do Eldorado com
narrativas historiográficas relativas à Amazônia? 2. Onde residem as possibilidades de se pensar
e fazer parte da história da Amazônia através da transfiguração de eventos culturais e históricos
aflorados da literatura de ficção aqui estudada? 3. Como Hatoum se apropria das acepções
43
PORTELLI, Alessandro. História Oral e Poder. Mnemosine. Vol. 6. nº 2. p 2-13 – Artigos, 2010. Na página três
desse artigo lembro que o referido pesquisador faz uma afirmação relativa às minhas reflexões sobre o valor que
Milton Hatoum revela à palavra oral, matéria prima de sua literatura e, igualmente, do trabalho historiográfico do
pesquisador italiano do qual estou me referindo: “Buscamos, fontes orais porque queremos que essas vozes – que,
sim existem, porém, ninguém as escuta, ou poucos as escutam – tenham acesso à esfera pública, ao discurso
público, e o modifiquem radicalmente”.
26
memória, história, esquecimento para construir seus imaginários sobre cidades amazônicas e
nelas representar os conflitos sociais, essencialmente, elucidados por meio da trajetória
histórica de determinadas famílias e/ou personagens, nas palavras dele, “fraturadas” 44? 4. Onde
se estabelecem as mediações de Hatoum para com os folcloristas, contistas, romancistas,
cronistas, ensaístas, viajantes, estes também construtores de determinadas memórias e
imaginários sobre as cidades de Manaus, Parintins e Belém? 5. Como perceber e analisar tais
polifonias afloradas da novela Órfãos do Eldorado: qual biblioteca reside nas “vozes das
páginas”45 escritas pelo romancista amazonense, suas matrizes intelectuais e imagéticas,
portanto?46
Para a resolução das referidas indagações foram manipuladas, além da novela de Hatoum,
outros tipos de fontes: fotografias, encontradas no Acervo Digital do Centro Cultural dos Povos
da Amazônia (ADCCPA), alguns jornais, acessadas a partir do Acervo Digital do Arquivo da
Biblioteca Nacional. Documentos dos acervos da Câmara Municipal da cidade de Parintins.
Análogo às essas fontes manejo as iconográficas - fotografias relativas à temporalidade
recortada 1890-1945, encontradas em Álbuns publicados pelos estados do Amazonas e Pará,
elaborados no período histórico em estudo, localizados nos dois acervos mencionados linhas
acima, assim como em acervos virtuais. No que tange às fotografias de Parintins, os acervos
acessados são os particulares. No contexto de minha pesquisa, acervos públicos direcionados à
memória iconográfica inexistiam. Por isso, acessei os acervos particulares. Ademais, vale a
denúncia: inexistem instituições voltadas à preservação de documentos relacionados à história
e memória de Parintins por parte, essencialmente, da Prefeitura do Município. Há, sim, um
trabalho realizado pelas Universidades (UFAM e UEA), através de seus projetos de pesquisa,
e constituição de Laboratórios.
44
Hatoum afirma que a inquietação, a ineficiência e deslocamento social do personagem suscita a perspectiva de
uma vida solitária ou de uma vida fraturada. Esse drama social, familiar é abordado por ele através da memória,
“deusa tutelar da literatura”. Conforme entrevista do escritor acerca do romance A noite da Espera, originalmente
publicado em 2017. A entrevista foi gravada em 16 de outubro de 2017, concedida à Juliana Domingues do Nexo
Jornal, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=RpRrVL9MrA&feature=youtu.be acessado em
05/06/2018 às 13:36.
45
CHARTIER, Roger. “Uma trajetória intelectual: livros, leituras, literaturas”. In.: ROCHA, João Cezar de Castro
da (org.). Roger Chartier – a força das representações: história e ficção – Chapecó, SC : Argos, 2011. Aproprio-
me aqui das reflexões de Roger Chartier quando assevera que a metáfora das vozes das páginas é profícua para a
pesquisa sobre livros, leituras e literaturas.
46
Acerca das matrizes intelectuais e imagéticas de Hatoum foi de suma importância o diálogo que tive com a
professora Magda Ricci a partir das considerações feitas sobre o artigo, de minha autoria, Órfãos do Eldorado
como campo de possibilidades para a micro história, articulado como produto final relativo à disciplina Teoria e
Metodologia da História, no primeiro semestre de 2016. As contribuições feitas pela referida professora quando
ocorreu meu exame de qualificação, no primeiro semestre de 2018.
27
tópico deste capítulo. Onde narro sobre as experiencias e vivências de Milton Hatoum nas
cidades por onde passou: Manaus, Brasília, São Paulo, Barcelona, Paris, essencialmente.
Demonstro que a trajetória, nessas cidades, contribuiu para que Hatoum compartilhasse
determinadas experiências, as quais ele traduz, de certa forma, através de sua escrita criativa,
sua literatura.
Já no segundo capítulo: Raízes, escombros e ruínas do “Eldorado”: o sentido de história
na literatura de Milton Hatoum , primeiro busco o dialogismo (entre suas narrativas de ficção,
mas também entre o tempo do enunciado e o tempo da urdidura). Desenho que é esboçado a
partir, relativamente, dos estudos de Robert Darnton.47 Faço algumas conjecturas acerca do
processo de apropriação de determinadas matrizes intelectuais e imagéticas utilizadas pelo
escritor para elaborar a sua obra, elucidando a novela Órfãos do Eldorado: as possíveis leituras
das literaturas deixadas pelos cronistas dos séculos XVI, XVII e XVIII e naturalistas do século
XIX, assim como outras literaturas relativas ao mito viajante da cidade encantada: Eldorado.
Nessa esteira, problematizo o sentido de história na referida novela. verifico e analiso,
essencialmente, o sentido da história inscrito na novela Órfãos do Eldorado. Argumento que
há uma determinada relação dialógica entre o conceito de história na acepção do filósofo alemão
Walter Benjamin [Teses sobre o conceito de história] com a referida obra do escritor
amazonense. A chave de leitura para tanto é a tomada de posição de Milton Hatoum sobre o
mito viajante Eldorado. Considerando também que “o mito é um passado que é um futuro
disposto a se realizar num presente” 48, conjecturo que, com Benjamin, Hatoum adota o referido
mito como uma “alegoria”. Refutando assim, sua representação simbólica, portanto, monolítica,
monumental. Ao usar Eldorado como “alegoria”, Hatoum penetra nas diversas camadas dessa
memória para construir uma narrativa trágica, a qual comporta parte da história da Amazônia.
Nessa perspectiva, a contra pelo de histórias e memórias que exaltam a belle époque. Pois o
mito do Eldorado elaborado no passado é constantemente ressignificado ao longo de diversas
temporalidades, através de uma memória e uma história (atrelada a ordem dos discursos, dos
valores, poderes vigentes). Tomando Eldorado como “alegoria”, Hatoum, refuta sua imagem
de monumento e adota-a como um documento a ser problematizado. Assim, cata entre seus
escombros, suas ruínas, determinados indícios, raízes para a elaboração de uma narrativa que
“rema contra a correnteza histórica dos rios”[só para usar uma imagem análoga aos arquétipos
47
Faço esse exercício tendo como referência, de certa forma, a proposta metodológica utilizada por Robert Darnton
através do ensaio “Os trabalhadores se revoltam: O Grande Massacre de Gatos na Rua Saint-Severin”. In.:
DARTON, Robert. O massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa; tradução de Sonia
Coutinho. – Rio de Janeiro: Graal, 1986.
48
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 69.
29
Seguindo essa vereda a mim foi possível a problematização da novela Órfãos do Eldorado
como a narrativa de uma cidade encantada ou alegoria de uma história trágica.
No terceiro capítulo: A polifonia das representações: imaginário de cidades amazônicas
em Órfãos do Eldorado, elucido a visão do urbano na literatura de Milton Hatoum. Para tanto,
me aproprio de vários estudos que comportam a fronteira História, Literatura e Fotografia,
principalmente, as reflexões de Jacques Rancière (O espectador emancipado). Com ele
argumento que Milton Hatoum é um “expectador emancipado” diante das fotografias que,
possivelmente, tenha acessado como recurso imagético para elaborar a novela Órfãos do
Eldorado. Assim, o escritor usa as fotografias como “imagens pensantes”. Nessa esteira,
argumento que, como Marcel Proust, Hatoum usa fotografia como metáfora da memória para,
por meio da técnica do instantâneo, por exemplo, apresentar imagens insurretas do urbano, se
comparadas às imagens produzidas para compor álbuns oficiais, muito utilizados como veículos
de propaganda dos governos (Amazonas e Pará), Álbuns oficiais, preocupados em eternizar um
tempo e uma memória laudatória. As representações da cidade na literatura de Hatoum são
totalmente avessas às imagens cidade moderna (me refiro à Manaus e Belém), forjada que são
no afã da ideologia do progresso, do discurso arquitetônico da civilização trazida pelos
paradigmas europeus. Nessa medida, as imagens do urbano em Hatoum pretendem “dignificar
o anônimo”. Tornam-se assim, mônadas: suscitam indícios de rupturas com uma determinada
ordem social, política, cultural imposta pela Modernização. Hatoum quer mostras as outras
cidades que se constroem/ construíram na Cidade. Na primeira secção: Fotografia e Literatura
e as visões do urbano na obra de Milton Hatoum, apresento a afinidade de Hatoum com a
fotografia. Tomando como exemplo imagens inscritas em seus romances. Para argumentar que
na novela Órfãos do Eldorado estão representadas três cidades amazônicas. Busco assim,
através das fotografias, gravuras, desenhos e da literatura dos viajantes e da narrativa de ficção
de Milton Hatoum a polifonia das representações dessas três cidades amazônicas. No segundo
tópico: Manaus: a cidade das ilusões, verifico um certo dialogo da literatura de ficção de Milton
Hatoum com a história e a historiografia da cidade. Argumento que as imagens da cidade
imaginária de Hatoum, de certa forma, dialogam com a história social das cidade de Manaus.
Uso um Álbum oficial para comparar as imagens oficiais e as imagens inscritas na novela de
Hatoum. Apresento um conceito, por mim formulado: “narrativa fotográfica da literatura de
ficção [de Milton Hatoum]”para problematizar a “fotografia antiga”. Assevero que, assumindo
o papel de expectador emancipado, Hatoum observa Manaus como uma cidade das ilusões,
fundamentalmente, na passagem do século XIX para XX. Parintins: a cidade anfíbia, consiste
na terceira secção. Aqui, desde a literatura de ficção, passeio pelas representações deixadas nos
31
relatórios dos naturalistas do século XIX até à historiografia clássica [e aqui estou considerando
o trabalho do historiador Arthur C. F. Reis – As origens de Parintins] para verificar quais as
matrizes intelectuais e imagéticas, as quais, possivelmente, Milton Hatoum tenha acessado para
construir a ambiência da cidade de Vila Bela (no plano do enunciado), Parintins (no plano
histórico). Uso indícios cotejados em documentos primários, acessados em alguns arquivos da
cidade de Parintins. Também fotografias inscritas em relatórios de viagens e de arquivos
particulares organizados durante a pesquisa. Cabe destacar nessa seção a discussão que faço
sobre o personagem central da novela Órfãos do Eldorado: Arminto Cordovil. Pois, o
sobrenome Cordovil é indício para se buscar uma reflexão histórica e historiográfica sobre a
cidade de Parintins. Assim, Arminto Cordovil (da ficção) pode ser problematizado como
alegoria de José Pedro Cordovil (da história), o militar corrupto e agente da violenta exploração
da mão de obra indígena, no contexto do governo de D. Maria I, a louca. No último tópico do
terceiro capítulo: Belém: a Cidade Velha, dei ênfase aos espaços de memória e sociabilidade
construídos durante o contexto da bela época. Percebo as imagens da cidade histórica de Belém
– a Cidade Velha – Cruzo a narrativa de ficção de Milton Hatoum com imagens de Álbuns e
cartões postais, produzidos por veículos oficiais do estado do Pará. Destaco a imagem de uma
Belém contraditória e segregada. Aí também verifico o diálogo da narrativa de ficção de Milton
Hatoum com os relatórios dos naturalistas, a iconografia da cidade e com a historiografia
atualizada sobre a história social da cidade de Belém. Nesse sentido, destaco os estudos de
historiadoras e historiadores impressos, essencialmente, em duas coletâneas: Belém do Pará,
história cultura e cidade: para além dos 400 anos e Os oitocentos na Amazônia: política,
trabalho e cultura (organizadoras: Maria de Nazaré Sarges e Franciane Gama Lacerda). Destas
coletâneas usei vários ensaios para pensar e fazer um esboço de parte da história da cidade de
Belém, a partir do diálogo com a novela Órfãos do Eldorado de Milton Hatoum.
Em suma, na esteira do que sugere François Hartog, utilizado como epígrafe dessa
introdução, sobre o ofício do historiador, enveredo pelas sendas da literatura de ficção: sair da
zona de conforto, e lidar com a questão da temporalidade, através de uma relação menos
enclausurada. 49 Perpasso o tempo histórico, e o do enunciado. Entrelaço o enredo ficcional ao
historiográfico. E, nessa relação fronteiriça, procuro valorizar o enlace entre Clio e Caliope.
Aqui, está o esboço dos caminhos trilhados nas veredas da literatura e da história: condições de
possiblidade para a concretização dessa narrativa que, pela força dos limites da operação
49
BURKE, Peter. “A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa”. In. ____________. A escrita da
história: novas perspectivas (org.); tradução de Magda Lopes. – São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1992, p. 347.
32
50
Meu desejo original seria escrever um ensaio...
33
PRIMEIRO CAPÍTULO
Nos caminhos de Milton Hatoum
Para mim a literatura dá sentido à minha vida. São poucas coisas que dão sentido à
nossa vida e das poucas coisas a literatura é das mais importantes. Escrevo com desejo,
com paixão. Eu escrevo à mão de manhã cedo. Eu sei a que horas eu começo a
escrever, mas não sei a que horas vou parar. Eu levo muito a sério a literatura, mas eu
mesmo não me levo a sério. Não tenho a pretensão de ser um escritor representativo
ou das academias. Não tenho nenhuma pretensão ao pedestal, nem à respeitabilidade.
O escritor que se leva muito a sério se torna um pouco patético. Não tenho essa
pretensão. 51
51
EL GEBALY, T. M. A. “Milton Hatoum: ‘não há tantos tradutores de língua portuguesa’”. In. : Revista Crioula.
Maio de 2010 – Nº 7. Disponível em http: // www.revistas.usp.br/crioula. Acessado em 14/10/2017 às 02:13H.
52
Procuro fazer o que proponho através na esteira das reflexões inscritas na seguinte obra: BAKHTN. M.M.
Problemas da poética de Dostoiévski; tradução de Paulo Bezerra. 4ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
34
É como se aí estivesse implícito que escrever é um ato do trabalho intelectual, mas também de
desejo. 53
O que desenho aqui, para usar uma imagem relativa às minhas intenções, pode ser
comparada como a tela que um possível artista plástico [amador] pretendeu fazer; pois, a partir
de um projeto original, o “quadro” que agora chega aos olhos das pessoas, atingiu apenas a fase
mais incipiente dessa pintura: o esboço do desenho. Trago a imagem lembrando das palavras
de Bourdieu: é uma quimera querer tecer a biografia de qualquer sujeito histórico. Fiz,
simplesmente, um “esboço da trajetória intelectual” de Milton Hatoum. Nele, constam lacunas.
À luz das palavras precisas do sociólogo Pierre Bourdieu, que tanto contribuiu ao saber
histórico, penso que: “[...], tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de
uma sequência de acontecimento com significados e direção, talvez seja conformar-se com uma
ilusão teórica, uma representação comum da existência [...]. 54 Pois, como afirma, também, o
filósofo francês Albert Camus: a vida é um absurdo. 55 Por isso, é impossível desenhar os seus
rumos de forma linear, pois, todas as vidas são descontínuas. Assim, estarão entrelaçados nesse
e nos outros capítulos os conceitos de verossimilhança, memória (e esquecimento), oralidade,
história. Estes, talvez sejam amálgamas da narrativa, a qual esbocei; na acepção de que “(...), a
história aposta na descontinuidade, visto que, ela é ao mesmo tempo, registro, distanciamento,
crítica e reflexão; (...).” 56 “A memória não é confiável, assim, como a história, que deixa de ser
tomada como exatidão e passa a ser admitida por suas versões, ambiências, disparidades”. 57
Sinto a necessidade iniciar minha história sobre a trajetória de Milton Hatoum por meio
de um relato inscrito nas páginas de um determinado jornal paulistano. Assim, as pessoas
leitoras compreenderão, inclusive, o porquê do enunciado do subtítulo deste segmento. Nas
páginas que seguem, recorro à fonte, a qual me reporto.
O tempo era estável naquela manhã de sábado na cidade com maior número de habitantes
da América do Sul. 58 Abrindo o impresso O Estado de São Paulo as pessoas que liam suas
53
No dia 10 de abril de 2020, na conjuntura em que o Brasil e o mundo estava vivendo a experiência do
confinamento devido ao problema da pandemia provocada pelo covide-19 (o novo corona vírus), Hatoum postou
em seu story do instagran parte de uma conversa na qual ele fazia essa afirmação: “ a leitura é um ato de prazer”.
Quando a tese demandar, estarei, também, recorrendo a determinados registros, os quais considero pertinente à
minha narrativa histórica, inscritos nas às redes sociais de Milton Hatoum.
54
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In.: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta M. (orgs). - 8ª ed. -
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, 2006.
55
CAMUS, Albert; RUMJANECK, Valerie. O estrangeiro. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1999.
56
MOTTA, Márcia Maria Menendes. “História, memória e tempo presente”. In.: CARDOSO, Ciro F.;
VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da história – Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 25
57
AZEVEDO, Véra Lúcia de. A dispersão da memória e da escrita em Milton Hatoum e Lobo Antunes. –
Niterói: Editora da UFF, 2016, p. 10.
58
De acordo com informações sobre a previsão do tempo inscrita na página 30 do jornal A folha de São Paulo do
dia 19 de outubro de 1991.
35
O referido livro de poemas ficara perdido nas brumas espessas do tempo. Seus passeios
pelas trilhas da arte literária iniciaram na adolescência, em Manaus, sua cidade natal. Mas foi
em Brasília, nas folhas do jornal Correio Braziliense, em 1969, que ele publicou seu primeiro
poema: um protesto a Guerra do Vietnã. Nesse testemunho do dia 19 de outubro de 1991, fora
revelada parte de sua trajetória intelectual, inclusive, contando sobre o processo de criação do
59
NETTO, José Paulo. “Em busca da contemporaneidade perdida: a esquerda brasileira pós-1964”. In. MOTA,
Carlos Guilherme (organizador). Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000): a grande transição.
3ª ed. – São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2013, p. 239.
60
Na “Apresentação” de seu livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro, publicado pela editora Contexto
(SP), lançado, originalmente, em 2020, buscando uma definição para o referido regime, o historiador Marcos
Napolitano assevera (p. 12): “Trata-se de um regime complexo, muitas vezes aparentemente contraditório em suas
políticas, que mobilizou vários tipos e graus de tutela autoritária sobre o corpo político e social, articulando um
grande aparato legal-burocrático para institucionalizar-se, aliado à violência policial-militar mais direta”. Nessa
direção, com ele, adoto a seguinte convicção, inscrita na página 11 do mesmo documento: “[...], não endosso a
visão de que o regime político [...] tenha sido uma ‘ditadura civil militar’ ainda que tenha tido entre seus sócios e
beneficiários amplos setores sociais que vinham de fora da caserna, pois os militares sempre se mantiveram no
centro decisório do poder”.
61
NETTO, 2013, p. 240.
62
São Paulo é conhecida como terra da garoa porque as chuvas com partículas mais finas de água, as garoas,
costumavam ser dos meses de março a junho. Contudo, é bem provável que nos anos de 1990, as modificações
causadas a partir das transformações do espaço urbano, na referida cidade, terem provocado a escassez dessas
águas que, inclusive, foram inspiração para músicos, escritores.
63
PIZA, Daniel. “Perfil Milton Hatoum”. In.: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de. (org.) Arquitetura da memória:
ensaios sobre os romances Dois irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte. – Manaus : Editora da
Universidade Federal do Amazonas/ Uninorte, 2007, p.p. 15 e 16. Adiante esse evento será retomado.
36
livro Relato de um certo Oriente, seu primeiro romance publicado no Brasil. Passo significativo
para tornar-se um escritor mundialmente conhecido. Nesse texto, Milton Hatoum, deixava
transparecer determinadas especialidades de seu processo criativo. “Mil e uma noites em busca
de um estilo” é, portanto, pleno de indícios quanto a essa averiguação.
Com efeito, para esse primeiro livro, depois de pelo menos três projetos de romance,
gestados desde sua passagem por São Paulo, Hatoum afirma que partiu da ideia de urdir um
texto lírico, na qual diversas vozes narrativas em primeira pessoa iriam se alternar. Por sinal, o
leitor atento ao Relato de um certo Oriente percebe sinais da ideia a qual o escritor se refere
nas páginas finais do referido livro, quando Hatoum, evidenciando uma de suas peculiaridades
literárias – o fato de no próprio enredo de seus livros deixar transparecer os processos de criação
e elaboração de suas obras, suscitando certa metalinguagem – inscreve:
Confesso que as tentativas foram inúmeras e todas exaustivas, mas ao final de cada
passagem, de cada depoimento, tudo se embaralhava em desconexas constelações de
episódios, rumores de todos os cantos, fatos medíocres, datas e dados em abundância.
Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então
surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto
que minava a sequência de ideias. E isso me alijava do ofício necessário e talvez
imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado
pelo acaso. 64
Noutro lugar, Hatoum deixou registrado que um dos vetores da literatura é a ambiguidade:
“É isso que o livro insinua. É o mistério em torno desse Oriente que está um pouco nebuloso, e
ainda não se sabe qual é o Oriente do romance.” 65 É sabido que o escritor levou um longo
período para estruturar esse coral de vozes que, a propósito, vaza um entrelaçamento das falas
de suas personagens, como o fragmento acima desenha. Apesar de ter sido um livro premiado
não atingiu muitos leitores, ficou mais no plano das academias, posto que: “É mais difícil de
ser lido; o leitor tem que descobrir a voz da personagem e quem está falando”. 66 Depreende-
se dessa perspectiva o valor da narração oral na literatura de Hatoum: “(...), a cultura do Outro
estava delineando-se por um outro caminho, talvez o mais fecundo para mim: o da narração
oral”. 67 Ao lado dessas vozes em conversação, o entrelaçamento cultural entre o Oriente e o
Amazonas. Aí o literato deixava vazar sua relação afetiva com a cultura árabe-amazonense,
64
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. – 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 147.
[Edição de Bolso].
65
EL GEBALY, T. M. A. “Milton Hatoum: ‘não há tantos tradutores de língua portuguesa’”. In. : Revista Crioula.
Maio de 2010 – Nº 7. Disponível em http: // www.revistas.usp.br/crioula. Acessado em 13/10/2017 às 23:29H.
66
EL GEBALY, 2010 - Nessa entrevista Hatoum assevera: “Às vezes, você nem precisa ter muitos leitores, se os
seus leitores forem fiéis e gostarem de literatura [...]. O que mais me entusiasma é ter bons leitores. Acho que isso
é mais importante.”.
67
HATOUM, Milton. “Escrever à margem da História” – texto da participação do autor em 4 de novembro de
1993 no seminário de escritores brasileiros e alemães, realizado no Instituto Goethe, São Paulo, p. 1. Disponível
em http/revistas.pucsp.br/index.php/fornteiraz/article/viewFile/12593/9167. Acesso em 14/10/2017 às 04:13H.
37
marcada por sua ancestralidade, pois se considerada suas vivências desde a infância, na casa,
no ambiente familiar “(...) o pequeno Oriente que me cercava (e do qual emanavam códigos
visíveis e invisíveis) foi decisivo”. 68
Mas seu desafio mais intricado fora romper com os limites das constantes representações
hiperbólicas e exóticas sobre o Oriente e a Amazônia. Para tanto, segundo ele, diversas leituras
posteriores lhes “permitiram aprofundar a compreensão de dois mundos complexos e distintos”.
69 Necessário se fazia romper aquelas representações do Oriente como enigmático e misterioso,
pujante na literatura de viagem que determinados escritores como Gerard Nerval 70
reproduziam, por exemplo. Irromper com visões etnocêntricas igualmente, onde “o projeto
literário serve ao expansionismo colonial. Por isso, alguns desses textos não estão isentos de
distorções, de observações negativas sobre o mundo em que transitam os narradores.” 71
Hatoum, em face da diversidade literária sobre o Oriente, como afirma, degustou aquilo que lhe
dera prazer. Foi, portanto a leitura de Viagem ao Oriente, de Nerval e As mil e uma Noites que
lhe deu chaves importantes para compreender o valor simbólico dos ecos de uma determinada
voz de um narrador, mesmo depois de sua morte. Noutro lugar de escrita o escritor amazonense
afirma que a literatura hispano-americana lhe fez também conhecer o Oriente imaginário, em
especial: “O que mais me impressionou na obra de Borges, antes mesmo de me deslumbrar com
o Oriente que ele comentava e inventava em seus ensaios e ficções, foi a linguagem, uma
linguagem que combina imaginação e exatidão, ou exatidão e imaginação”. 72 E ainda:
68
HATOM, 2017, p. 2.
69
HATOUM, Milton. “Depoimento: Mil e uma noites em busca de um estilo”. In.: Jornal O Estado de São Paulo,
sábado, 19 de outubro de 1991, no caderno de Cultura. Número 584. Ano VIII – Página 3.
70
Literato francês, nasceu em Paris, 1808. Morreu na mesma cidade em 1855. A riqueza crítica costuma associá-
lo ao Romantismo.
71
HATOUM, Milton. “Depoimento: Mil e uma noites em busca de um estilo”. In.: Jornal O Estado de São
Paulo, sábado, 19 de outubro de 1991, no caderno de Cultura. Número 584. Ano VIII – Página 3.
72
HATOUM, Milton. “Prefácio: Passagem para um certo Oriente”. In. BRUNN, Albert von. Milton Hatoum :
entre Oriente e Amazônia. Tradução : Rafael Rocca dos Santos. – São Paulo : Humanitas, 2018, p. 13.
73
Mayer André Marcel Schwob (1867-1905), escritor simbolista francês, conhecido por seus contos e influência
literária sobre a obra de Jorge Luiz Borges e Roberto Bolaño. A riqueza critica já o chamou de precursor do
surrealismo.
38
viagem de Ilbn Batutta 74, a narrativa lírica e erótica de Ahmed Tifachi 75 e Nafzawi76,
a mística mulçumana de Ibn Al Farid e outros textos com os quais alguns poetas e
romancistas espanhóis vêm mantendo um diálogo fecundo. 77
O Relato de um certo Oriente inscreve também, outra relação com a Amazônia: uma
representação na qual a cultura e as personagens são elucidadas de forma pujante. Refutando,
assim, com uma tradição literária em que o espaço é privilegiado. Hatoum se desliga da ideia
de Amazônia como inferno verde. 78 Por suas palavras, o espaço “é antes objeto de reflexão do
que cenário a ser protagonizado”. 79 Outra marca de Hatoum gira em torno de sua acepção
acerca do matiz regionalista na literatura; o que já está posto desde aquele livro de poemas,
mencionado linhas acima; abordado com certa ênfase linhas mais abaixo deste capítulo. Dito
corretamente, para Hatoum narrar sobre a Amazônia não precisou usar o mesmo recurso de
alguns escritores regionalistas: “reproduzir a fala cabocla”. 80 De tanto procurar um tema, uma
fatalidade diretamente relacionada à perda drástica de um exímio contador de história, figura
significativa na vida de Hatoum, fará com que o literato perceba que a trajetória de seus
ancestrais, da qual ele fazia parte, era um palimpsesto do qual, através da latente reminiscência,
74
Ilbn Batutta (1304-1368/1369), mulçumano beber marroquino, estudioso que viajou por inúmeros lugares
durante sua vida. Destinando a maior parte dessas viagens para conhecer o mundo islâmico e não islâmico (Ásia
Central, Sudeste Asiático, Índia e China). Os registros dessas viagens estão em dois livros: Um presente para
aqueles que contemplam as maravilhas das cidades e As maravilhas da Viagem. Relativo a essas literaturas
conferir: SILVA, Bruno Rafael Veras de Moraes e. Viagem e alteridade: a construção do “outro” na Rihla de Ibn
Battuta. – séc. XIV. Recife, Ed. UFPE, 2013.
75
Ahmed Tifachi ou Ahmad al-Tifashi (1184-1253), poeta árabe, antologista, musicólogo e geólogo. Uma de suas
obras mais conhecidas é As delícias de copas ou o que não é encontrado em nenhum livro. Cf. J.Ruska e O. Kahl,
"Tifashi" em The Encyclopaedia of Islam, 2ª edição, ed. por H. Gibbs, B. Lewis, Ch. Pellat, C. Bosworth et al., 11
vols. (Leiden: EJ Brill, 1960-2002), vol. 10, pág. 476
76
Muhamm Al-Nafzawi (1300-1450), Xeique islâmico, autor do livro O Jardim perfumado do prazer sensual (Al-
rawd al-'âtir fî nuzhat al-khâtir). O livro apresenta opiniões sobre quais qualidades os homens e mulheres devem
ter para serem atraentes, dá conselhos sobre técnicas sexuais, avisos sobre saúde sexual e receitas para remediar
doenças sexuais. Possui uma seção sobre a interpretação de sonhos e, intercaladas com estas, há uma série de
histórias que pretendem dar contexto e diversão. De acordo com a introdução da tradução de Colville em inglês,
Muhammad ibn Muhammad al-Nafzawi provavelmente escreveu O Jardim Perfumado em algum momento entre
1410 e 1434. Sheikh Nefzawi, nome completo Abu Abdullah Muhammad ben Umar Nafzawi, nasceu na região
de Nefzawa, no sul da atual Tunísia e, por volta de 1420, ele compilou a pedido do governante Hafsid de Túnis,
Abû Fâris `Abd al-`Azîz al-Mutawakkil, o famoso livro e com ele ganhou grande reputação no mundo árabe. Al-
Nafzawi, Muhammad Ibn Muhammad. Sacred Sexuality: The Perfumed Garden of the Shaykh Nefwazi. Tradução
de Richard Burton. New York: Bibliotech Press, 2013.
77
HATOUM, 2018, p. 15.
78
FERREIRA, Arcângelo da Silva. “Na vaga claridade do luar”: História & Literatura do Movimento Madrugada
na cidade de Manaus (1954-1967). – Curitiba : Appris Editora, 2020. Nessa obra verifica-se o conceito de “inferno
verde” a partir do livro de contos com título homônimo, elaborado pelo escritor Alberto Rangel. Essencialmente
no conto “Maibi”, o referido literato, através de evidente influência das reflexões de Euclides da Cunha, acerca de
suas interpretações sobre a relação Cultura e Natureza na Amazônia da passagem do século XIX para o século
XX, aponta para um certo “determinismo geográfico”, um “geografismo”, quando afirma que as relações
socioeconômicas inscrevem o trabalhador (seringueiro) na ambiência inóspita da floresta amazônica, onde o
homem (o referido trabalhador, seringueiro) é engolido pela Natureza. Daí, o conceito de “inferno verde”.
79
HATOUM, 1991, p. 3.
80
HATOUM, 1991, p. 3.
39
ele deveria recorrer para construir e reconstruir a sua obra literária. Nas curvas das metáforas
dessas mil e uma noites, afloradas das lembranças de seus ancestrais, Hatoum encontrou seu
estilo. Muitos anos depois ele deixaria registrado em seu segundo romance que “cedo ou tarde,
o tempo e o acaso acabam por alcançar a todos”. 81 Ficara claro, assim, como o literato
menciona em outro depoimento que “a literatura não é apenas entretenimento, não é apenas
diversão. É um dos modos de ver o mundo de forma complexa, oblíqua, e não direta. [...].
Literatura exige reflexão [...].” 82 Dito isto, como “arquitetar” um esboço da trajetória
intelectual de Milton Hatoum? Em princípio recorrendo aos vestígios deixados no tempo.
Preposição que me fez recordar do estudo de Carlos Antônio Aguirre Rojas; ao propor
uma biografia de Fernand Braudel sugere algumas chaves das quais pretendo apropriar-me para
tecer, mesmo que de forma incipiente, um esboço da biografia intelectual do escritor
amazonense Milton Hatoum. Delinear algumas das “experiências vividas” pelo escritor desde
as vivências no meio familiar. O próprio Braudel afirmava não existir “um só personagem que
não deva ser captado em seu tempo e em seu meio”. 83 E para Walter Benjamin “ninguém morre
tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si”.84 Com efeito, a biografia, se sabe, enfrenta
a problemática indivíduo/sociedade, como assevera Aguirre Rojas:
Isto me faz ponderar, inicialmente, sobre como a obra de Hatoum dialoga com a realidade
histórica, assim como a realidade histórica se inscreve na urdidura de Milton Hatoum?
Perguntas que culminam, essencialmente, em outro problema: qual a relação do referido escritor
com o passado e como este interpreta a história? Interrogações que me fizeram chegar à
Manaus, capital do Amazonas. Não que esta cidade responda todas as questões, mas porque
percebi que aonde Milton Hatoum for ele leva o lugar onde viveu uma parte significativa de
81
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. – São Paulo : Companhia das Letras, 2000, p. 259.
82
SERRÂO, Cláudia Maria. Milton Hatoum fala sobre o processo de constituição do livro Dois Irmãos e suas
relações editoriais. Disponível em https://livreopiniao.com/2017/02/07milton-hatoum-fala-sobre-o-processo-de-
constituição-do-livro-dois-irmãos-e-suas-relações-editoriais. Acesso em 18/10/2017 às 16:40h.
83
BRAUDEL, Fernand. George Gurvitch ou la discontinuité du social, 1953, apud. AGUIRRE ROJAS, Carlos
Antônio. Braudel, o mundo e o Brasil; tradução de Sandra Trabucco Valenzuela. – São Paulo : Cortez, 2003, p.1.
84
BENJAMIN, 1985, p. 212
85
AGUIRRE ROJAS, 2003, p. 11.
40
sua vida, como um de seus personagens, Arminto Cordovil, aqui pensado como alter ego do
autor, observa: “(...), isso aí revela também o meu próprio movimento de sair de Manaus e
voltar para Manaus. De sair do seu lugar e voltar para seu lugar (...).86 Penso que, por isso,
Arminto Cordovil, protagonista da novela Órfãos do Eldorado, em uníssono a epígrafe de
Guimarães Rosa: “Eu sou donde nasci. Sou de outros lugares”, a qual Hatoum usa no livro
Cinzas do Norte, lança mão de sutil ressignificação quando observa: “porque, se fores embora,
não vais encontrar outra cidade para viver. Mesmo se encontrares, a tua cidade vai atrás de ti”.
87 Nessa esteira, o imaginário da cidade registrado nos seus romances, novela, contos e crônicas
pode ser compreendido como uma espécie de “espelho de uma sociedade”. 88 Sociedade crível,
decerto, abstraída da transfiguração de outra sociedade, a “imaginária” configurada na
determinação89 do chão histórico, no tempo em que nasce a escrita criativa, os enunciados de
Milton Hatoum. O que quero propor é que as vivências e nestas a trajetória intelectual deste
escritor foi tecendo-se através de experiências90 culturais e políticas as quais fizeram dele, um
artista preocupado com as representações sobre a Amazônia. Para ele a história –
fundamentalmente da Amazônia - precisa ser compreendida na sua alteridade.91 Por isso busca
a outricidade, “[...], procurando esse outro que é ele mesmo. E nada pode trazê-lo de volta a si,
exceto o salto-mortal: o amor, a imagem, a Aparição”. 92
86
LEAL, Cláudio. Hatoum: a literatura é a arte da paciência – entrevista. Disponível em:
terramagazine.terra.com.br. Publicado quarta-feira, 19 de setembro de 2007, 13H51. Acessado em 19/09/2017 às
16:56h.
87
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo : Companhia da Letras, 2008, p. 97.
88
A partir de uma observação feita pelo professor Márcio Couto Henrique sobre um ensaio produzido como
produto da disciplina O Metier do Historiador, ministrada no primeiro semestre de 2016, considero que a ideia de
"espelho de uma sociedade", aqui manipulada, não implica na noção de reflexo, como se a obra do autor refletisse
a sociedade, não soa, portanto, como um movimento mecânico, que nega o diálogo, o dinamismo da relação do
autor/obra com seu tempo e lugar. Decerto, como me fez verificar a professora Magda Ricci, através das aulas de
Teoria e Metodologia da História, ministradas no período referido acima, procuro pensar na direção de Febvre,
quando reescreveu a história de Lutero, de Duby, aos construir a peculiaridade da cavalaria através de seu
Guilherme, o marechal; em Le Goff, ao pensar e reescrever as trajetórias de São Luís e São Francisco de Assis,
lógico, guardadas as devidas proporções deste esboço biográfico que estou procurando desenhar.
89
Aqui estou, de certa forma, pensando com Raymond Williams, ao me debruçar na leitura da seguinte passagem
da obra Marxismo e Literatura, publicada em 1979, através da Editora Zahar: “ Na prática, a determinação não é
nunca apenas a fixação de limites, mas também a existência de pressões. É também esse o sentido de ‘determine’
em inglês: determinar que se faça alguma coisa, ou estar disposto (dertemined) a fazê-la, é um ato de vontade e
propósito.” (p. 91).
90
Estou adotando os conceitos de vivência e experiência dos revisionistas do marxismo, como por exemplo, Walter
Benjamin, no seu escrito Teses sobre História, e E. P. Thompson, no seu livro Miséria da Teoria: um planetário
de erros.
91
FERREIRA, Arcângelo da Silva; OLIVEIRA, Patrícia de Souza. “Mito, memória e história: nos caminhos de
Órfãos do Eldorado” In. : FERREIRA, Arcângelo da Silva... [et. al.]. (orgs.). Pensar, fazer e ensinar: desafios
para o ofício do historiador no Amazonas. – Manaus (AM): UEA Edições; Valer, 20015.
92
PAZ, Octácio. O arco e a lira. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 141.
41
Em suma, ficou posto, assim que Literatura e História, guardam, portanto, fronteiras
móveis. Dito isto, convido as pessoas que acompanham minha narrativa para adentrarem na
próxima seção deste capítulo inicial. Vamos a ela?
1.2 A profícua relação com intelectuais paraenses: Edineia Mascarenhas, Benedito Nunes
e Luiz Braga
Quando leitoras e leitores receberam em suas mãos a primeira edição do livro A ilusão do
Fausto, de Edineia Mascarenhas, verificaram que o livro ganhou o prefácio do escritor
amazonense Milton Hatoum. Como adiante elucidarei, o referido literato naquela década era
professor de literatura brasileira da Universidade do Amazonas, instituição em que a
historiadora paraense também pertencera 93. Com já foi mencionado iniciavam os anos de 1990,
nessa conjuntura Hatoum já havia publicado seu primeiro romance, Relatos de um certo Oriente
- ganhador de um dos prêmios mais importantes no que tange à literatura de ficção, no Brasil 94.
Edineia, naquele dia vivenciou a experiência de ver sua dissertação de mestrado adaptada para
livro, concretizada pela Editora Valer95 quando “mais um lançamento movimenta o mercado
literário em Manaus”. 96
“Manaus: o impasse da modernidade” foi o título que o literato deu ao mencionado
prefácio. Este evento inscrito na história social da cultura da cidade de Manaus é, decerto, bom
para pensar. O escritor argentino Jorge Luiz Borges, em sua conferência La poesia asseverou
que literatura é imagem, pois “el concepto de que el linguaje es um hecho estético”. 97 Talvez,
por meio de determinada experiência compartilhada, Hatoum ao urdir o texto, do qual me
reporto, tenha deixado os indícios do imaginário da cidade e, por extensão, das representações
93
Quando o livro da mencionada historiadora é publicado ela já havia se aposentado como professora mestre da
UA que é considerada, historicamente, como a primeira Instituição de Ensino Superior do Brasil. Criada em 17 de
janeiro de 1909, como Escola Universitária Livre de Manaós. Em 1962, é criada como Fundação Universidade
do Amazonas, mas instalada somente em 1965. E em 2002 é denominada Universidade Federal do Amazonas.
94
Com esse romance, publicado originalmente em 1989, na 32ª premiação do Jabuti, o escritor ganhou o prêmio
de literatura de ficção, o evento ocorreu em 1990. Na 44ª premiação, ocorrida em 2001, ganha o segundo Jabuti
com o romance Dois Irmãos e em 2006, com o livro Cinzas do Norte, durante a 48ª premiação, pela terceira vez
leva o prêmio de melhor romance de ficção.
95
A Editora Valer, criada em 1990, manteve também uma livraria que fechou suas portas em 2015, devido à crise,
conjuntural, que contribuiu com falência de muitas livrarias físicas. Nos seus 25 anos de existência a livraria
priorizou a publicação de autores amazonenses e temas regionais. Realizou também a “Quarta Literária”, durante
19 anos e o Flifloresta – Festival Literário na Floresta, ocorrido em 2008.
96
De acordo com o Jornal do Comércio, de 5 de março de 1999, o referido livro foi lançado na mesma data em
uma cerimônia ocorrida às 19h no Espaço Cultural Valer.
97
BORGES, Jorge Luis. “La poesia”. In.: _________________Siete Noches. México : Fondo de Cultura
Econômico, 1981, p. 36.
42
sobre a Amazônia, os quais ele iria novamente trazer à baila através de um de seus livros,
publicado originalmente anos mais tarde. Por outras palavras, quiçá seja possível conjecturar:
o prefácio que Hatoum elaborou para a obra de Mascarenhas é indício para a narrativa que iria
ser publicada originalmente dezoito anos mais tarde, isto é, a novela Órfãos do Eldorado 98. O
mencionado prelúdio é mote para a averiguação de certos vestígios acerca da relação dialógica
entre a literatura de Hatoum com as ciências sociais, aí especificamente, a História e a
Historiografia. Adiante um trecho:
O grifo é meu. Com ele é possível ponderar que a memória e a história presentes na
Historiografia e produzidas anteriormente aos estudos de Edineia Mascarenhas, no que diz
respeito à história da mencionada cidade amazônica, deixam nas sombras personagens
excluídos. Ao elucidar a outra face da cidade de Manaus, Mascarenhas “impôs-se a tarefa de
questionar muitas histórias sobre Manaus do fim-de-sècle.” 100. Olhando, uma vez mais as
palavras de Hatoum, e procurando verificar o quanto a narrativa histórica mantem relação
fronteiriça com a narrativa literária, penso no conto O Aleph, o que me induz a compreender,
conforme o que esta investigação propõe alcançar, que a literatura é “o lugar onde estão, sem
confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos”. 101 Jorge Luis Borges
também me faz imaginar uma alegoria: representação do ofício do historiador, na sua
comparação ao trabalho do literato.
Tal imagem consiste numa transfiguração: um quarto escuro, de porta única e sem janelas
- somente com poucas fissuras no telhado por onde adentram escassos feixes de luz. Ao
pesquisador é destinado pouquíssimo tempo para entrar, movido pelo desejo de seguir os rastros
para impetrar os fios que possam lhe aproximar da realidade social, inscrita no tempo pretérito.
98
O leitor desta investigação histórica verificará que me aproprio inúmeras vezes de conjecturas.
99
HATOUM, Milton, “Manaus: o impasse da modernidade” – Prefácio (p.12) – In. DIAS, Edineia Mascarenhas.
A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920. – Editora Valer, 1999.
100
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Resenha do livro A Ilusão do Fausto” (p. 1) In.: Revista Brasileira
de História. V. 21. N. 40. São Paulo, 2001. Acesso em http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882001000100014
no dia 17.07.2017 às 01:03H.
101
BORGES, Jorge Luiz. “O Aleph”. In.: Obras completas de Jorge Luiz Borges. Volume 1. São Paulo: Globo,
1999, p. 55.
43
A incerteza lhe aguarda na procura de pistas nesta zona de sombra na qual se propôs tatear.
Ora, em muitos arquivos escuros Mascarenhas talvez possa ter igualmente ingressado para
colher, depois selecionar, catalogar fontes e, após, acurada análise, perceber as tensões sociais,
no contexto que sua pesquisa histórica abarca. Como ela mesma assevera, um problema
evidente é a bruma espessa imposta por um conhecimento há muito “oriundo de um mundo
exterior, sem a compreensão das condições concretas do homem da região, suas diferenças e
especificidades”. 102 Os monumentos edificados na passagem do século IX ao XX são as marcas
do projeto civilizatório deixadas no tempo, representam registros desse conhecimento exterior,
evidente, inclusive, no traçado urbano das principais capitais brasileiras, à época, erguidas.
Manaus, assim como Belém, foi exemplo clássico.
Eis a zona de sombra: a memória social solidificada na pedra que edifica o discurso
urbanístico. No desenho da arquitetura de uma reminiscência que tem a pretensão de registrar
a História dos vencedores. Hatoum, nas curvas do exórdio que estou utilizando como fonte,
demonstra, com Mascarenhas, a preocupação de narrar outra história, a dos vencidos. Nessa
medida, é possível verificar certa convergência do escritor e da historiadora acima
mencionados, quando examino que a cidade “é feita das relações entre as medidas de seu espaço
e os acontecimentos do passado”.103 Pois, o que faz Mascarenhas analisar as transformações da
cidade de Manaus, ocorridas nos anos de 1890-1920, decerto, é a permanência histórica que
mensura seu traçado urbano. E, assim, portanto, a segregação social: “Como se sabe, a
opulência econômica gerada pelo extrativismo concentrou-se nas mãos de poucos. Também, a
cidade embelezada serviu para um punhado de privilegiados”. 104
Milton Hatoum sinaliza
afinidade com o pensar e o fazer historiográfico apropriando-se da categoria tempo como chave
de leitura fundamental para a acepção do conceito de história problema105, o qual Mascarenhas
lança mão para delinear sua análise. Veja, pessoa leitora, no indício abaixo:
Embora este ensaio análise em profundidade uma época determinada, o leitor atento
é convidado a pensar na cidade atual, pois não podemos entender o presente sem
compreensão aguda do passado. Um século depois do fausto da borracha, questões
referentes à habitação, saúde, educação e ao transporte urbano emergem não apenas
como problemas urbanos, mas sobretudo como ausência ou falha de uma política
voltada para a população mais desfavorecida. Esta constitui a grande maioria da
população manauara que continua segregada, abandonada, e, por que não dizer,
aviltada. Hoje o cenário político e econômico é outro, muito mais complexo em suas
particularidades regionais e nacionais, ligadas, por sua vez, à trama de interesses
102
DIAS, Edineia Mascarenhas. A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920. – Editora Valer, 1999, p. 11.
103
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainard. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo:
Folha de São Paulo, 2003, p. 15.
104
HATOUM, 1990, p. 12.
105
Aporte formulado pela primeira geração dos Annales.
44
A memória é o único desafio do passado, de prestar contas com ele, seja através de
uma imagem, de uma história oral e escrita. É como se, diante de uma ruína a gente
tentasse imaginar a casa antes de sua demolição ou destruição: quem morava ali, como
e que tempo viveram aquelas pessoas, como eles se relacionavam entre si, etc. o ponto
106
HATOUM, Milton, “Manaus: o impasse da modernidade” – Prefácio (p.12) – In. DIAS, Edineia
Mascarenhas. A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920. – Editora Valer, 1999.
107
Publicado originalmente, pela Companhia das Letras, em 2008, a análise da novela como fonte para o saber
histórico será problematizada, mais acuradamente, nos capítulos posteriores.
108
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história” In.: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Obras Escolhidas, volume 1. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio: Jaenne
Marie Gagnebin, 3ª edição – São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 224.
109
MASCARENHAS, 1990, p. 18
110
O mais recente romance de Milton Hatoum A noite da espera, originalmente lançado em 2017, é também
dedicado à memória de Benedito Nunes.
45
111
NUNES, Benedito & Hatoum, Milton. Crônicas de duas cidades: Belém – Manaus. – Belém: Secult, 2006, p.
25
112
BENJAMIN, 1987, p. 226.
113
Verifiquei que Benjamin viu pela primeira vez o quadro em uma passagem por Berlim, onde estava exposto.
Quando da sua venda, na Galeria de Hans Goltz de Munique, fez uma visita a seu amigo Gershom Scholem, em
1921, comprou o quadro e pediu para que o amigo guardasse até obter um apartamento em Berlim. Consigo levou
a obra quando foi para o exílio em Paris, 1935. 1940: decidido a fugir do nazismo, e com destino aos Estados
Unidos, deixou o Angellus aos cuidados de George Batalille. Foi a ultima vez que viu o quadro, pois em Port Bou,
encalhado o trem onde estava e ameaçado de ser devolvido à Gestapo, Benjamin cometeu o suicídio. Contudo, o
quadro chega às mãos do filósofo Adorno, o qual já estava morando em Nova York. Este filósofo, então, levou a
obra até Israel Museum, em Jerusalém. Ali Angellus Novus ainda está exposto ao público. (MATE, 2011, pp. 2016
e 2017).
114
MATE, Rayes. “O anjo da história ou por que o que para nós é progresso para o anjo é catástrofe”.
In.:__________ Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “sobre o conceito de história”;
tradução Nélio Schneider. São Leopoldo, RS : Ed. UNISINOS, 2011, p. 211.
115
BENJAMIN, 1987, p. 229.
116
No segundo capítulo desta tese pondero sobre o sentido da história na literatura de Milton Hatoum.
46
Esses viajantes não percebem, ou talvez não pudessem perceber o fosso existente entre
o desenvolvimento do capitalismo nos centros europeus mais avançados e a sua
periferia mais distante. O mesmo anseio pela modernidade marcará a tônica dos
discursos dos administradores e políticos do Amazonas durante o apogeu da borracha.
Essa concepção de um urbanismo planejado e higienizado excluía uma tradição dos
povos nativos. 117
117
NUNES & HATOUM, 2006, p. 52.
118
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. – São Paulo : Companhia das Letras, 2005, p. 145.
119
Na rua Barroso – localizada bem no centro da Manaus antiga - , por exemplo, quando eu era graduando do
curso de História e morador da Casa do Estudante Universitário do Amazonas (CEU-AM), presenciei a derrubada
de duas centenárias mangífera índicas, nome científico das populares mangueiras, o que me fez escrever o conto
“Clarissa na cidade”, publicado originalmente no livro A sombra e sues duplos, em 2015, pela editora Thisanura
– edições de rua. Adiante um fragmento do conto: “Preciso voar fora desse céu. Esconder-me no vão dos telhados
dos Correios. Aqui resido porque ontem, quatro de novembro de mil novecentos e noventa e seis, aproximadamente
às dezoito horas e trinta minutos, a Bemol assassinou minhas amigas. Ficou o que elas me contaram antes de morrer
[...]: eram frondosas, ancestrais de asiáticas seiscentistas. Alimentavam invisíveis meninos na multidão das ruas
frenéticas. Quebravam, de propósito, os vidros dos carros barulhentos, jogando seus frutos. E abraçavam bêbados,
notívagos quando, descidos da vida, paravam para jorrar água e espuma quente em seus pés de caule sólido”
(Ferreira, 2015, p. 27).
47
excludente”. 120 Com efeito, “a modernidade de Manaus foi, na verdade, efêmera e para poucos.
O senso comum de que a cidade foi uma réplica equatorial de Paris parece exagerado”. 121
Apesar disso, as cidades amazônicas, para muitos, são percebidas de forma exagerada, como
observa Hatoum:
Ele, o fausto, no devir enfraqueceu. O porvir assistiu seu declínio, ou melhor, sua fuga.
Mas a aura na qual ele se envolveu foi tão forte, historicamente, ao ponto de Hatoum apresentar
elementos que sinalizam para a denúncia desse traçado anacrônico, o qual insiste em desenhar
a Amazônia, os monumentos de suas cidades, através de rabiscos hiperbólicos. Para Hatoum,
Manaus é uma espécie de mímica turva de Paris, desde sua arquitetura. Nessa medida,
perpassada as temporalidades os velhos projetos urbanísticos abraçam-se com os supostamente
novos. A estrutura destes, alude para balizas alicerçadas numa certa tautologia: “a Natureza
ainda não encontrou seu lugar na urbs”. 123 Como alguém que experimentou uma cidade
engolida pela Cidade idealizada pelo desrespeito a alteridade local, Hatoum grafa seu desabafo:
Sem laivos de nostalgia, penso que as metamorfoses por que passou a cidade nas
últimas décadas emitem signos sombrios. O que restam dessas ruinas de um passado
tão recente, apagando abruptamente, brutalmente?
Reminiscências... Passeios ao léu em busca de imagens porque a cidade tornou-se,
para mim ‘imagem do pensamento e do inconsciente’.
Tornou-se, enfim, um texto em andamento, páginas sempre reescritas, palimpsesto a
ser desvelado pelo vão da imaginação e da memória. 124
Na citação reside “a comparação diante da ruína e o desejo de que o passado não se torne
um pretérito mais que perfeito”125. E, novamente me aproprio de grifos para chamar a atenção
120
NUNES & HATOUM, 2006, p. 55.
121
NUNES & HATOUM, 2006, p. 58.
122
NUNES & HATOUM, 2006, pp. 61 e 62.
123
NUNES & HATOUM, 2006, p. 62.
124
NUNES & HATOUM, 2006, p. 70.
125
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Prefácio. In.: NUNES, Benedito & HATOUM, Milton. Crônicas de duas
cidades: Manaus – Belém. Belém : Secult, 2006, p.7.
48
das pessoas que continuam lendo esta narrativa. Beatriz Sarlo ao verificar as imagens inscritas
na literatura de Jorge Luis Borges, argumenta que para o escritor argentino a representação do
real é impossível, por isso, a originalidade de sua poética reside na intertextualidade: na
escrituração do texto a partir de diversos outros textos surgidos da leitura inúmera. Acepção
que Borges talvez tenha desenvolvido desde os seis anos de idade quando adentrou pela
primeira vez na biblioteca de seu pai.126 Sendo assim, em Borges também reside a ideia do
palimpsesto, tecido pelo movimento do imaginário, nato de lembranças guardadas no
inconsciente, posto que na “busca conflitante de um passado na inquietante cidade presente,
desaparece na serenidade de sua escrita”. 127 Considerando as experiências compartilhadas,
arrisco em dizer que na citação retirada da crônica sobre a cidade de Manaus, escrita por
Hatoum, há convergência com as acepções de Jorge Luis Borges. Em suma, para os
mencionados escritores, na perspectiva da constante busca do passado, a cidade vem como um
texto urdido e reescrito. Daí a memória se constituir como eficaz recurso. Esse poeta e contista
argentino é, de fato, uma inspiração para Hatoum, pois, como ele afirma: “em 1982, quando
ainda morava na França, decidi seguir um conselho de Borges: é melhor deixar que um tema
nos procure ao invés de persegui-lo com obstinação”. 128 As pessoas leitoras percebem que as
acepções de Hatoum sobre a Amazônia e, por extensão, a história e memória de sua cidade natal
são peculiares.
Fecundas são, por exemplo, as imagens que compõem as capas dos livros de Hatoum:
antecedem as representações acerca da acepção do literato sobre a Amazônia. Pelo menos nas
capas das primeiras edições dos livros Relato de um certo Oriente, Cinzas do Norte, A cidade
Ilhada e Órfãos do Eldorado estão fotografias produzidas pelo paraense Luiz Braga, arquiteto
de formação, como Hatoum. Meu argumento; ambos, através da peculiaridade de suas artes,
narraram uma espécie de “micro-história da Amazônia”. “Fui apresentado há alguns anos ao
Milton pelo artista Rubens Matuck em SP. De lá pra cá temos mantido uma amizade fraterna,
inclusive ele já escreveu um texto sobre meu trabalho”. 129 As imagens colocadas nas capas dos
livros de Hatoum são o testamento desta amizade. Contudo, elas traduzem, também, o lugar
desses artistas no campo de poder inscrito no campo cultural em que estão inseridos. Noutros
termos, tornaram-se mediadores culturais. A acepção de arte relativa às suas obras revela o
126
SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008.
127
LOURENÇO, Clediane; Makowiecky, Sandra. Possíveis concretos: a Buenos Aires de Jorge Luis Borges.
Disponível em www.anpap.org.br. Acesso em 17/08/2017 às 16:37 hs.
128
Jornal O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1991, Caderno Cultura; número 584, Ano VIII, p. 3
129
Entrevista, gentilmente, concedida por Luiz Braga em fevereiro de 2017 (via e-mail). A partir de agora
quando me referir a ela usarei: BRAGA, 2017.
49
diálogo entre o olhar de quem utiliza as narrativas (fotográfica e literária) para tecer
representações sobre a realidade social, com o propósito de colocar questões nos receptores de
suas respectivas obras. Inclusive, essa afirmação é corroborada no significativo depoimento de
Milton Hatoum, que utilizo abaixo, sobre o valor da obra fotográfica de Luiz Braga, quando
esta é agregada à obra literária elaborada pelo escritor amazonense:
(...) a foto do interior de uma casa antiga, com retrato de um casal de velhos na parede,
que é a foto do Luiz Braga do Relato de um certo oriente, ela vai além, quer dizer, ela
tem o poder conotativo e denotativo ao mesmo tempo, certo? A foto da capa do Cidade
Ilhada, que é do Luiz Braga, também tem alguma coisa que vai além daquele barco,
daquelas redes, onde as pessoas estão dormindo. Aquele barco, ele está andando, ele
está no tempo ali, no tempo da Amazônia. 130
Pertinente também reproduzir as imagens das capas dos livros mencionados por Hatoum.
Respectivamente, foram adaptadas das seguintes fotografias Interior Palacete Pinho (1977) e
Barco em Santarém (2007):
130
Entrecho retirado das respostas às perguntas que fiz a Milton Hatoum sobre a relação de sua obra à obra de
Luiz Braga, quando o escritor amazonense esteve em Manaus, em 06 de dezembro de 2019, para lançar o seu livro
Pontos de Fuga. Esse evento ocorreu em uma tarde de sexta-feira no auditório da Escola Superior de Tecnologia
(EST) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
131
Vale dizer que a edição original do referido livro, 1989, mantinha outra imagem na capa.
50
Fiz esses grifos com o propósito de suscitar a convergência entre as narrativas de Braga
e Hatoum, essencialmente, quando li o prefácio que o escritor elaborou à obra do fotografo.
Neste percebi que o que mais chama a atenção do literato é, de fato, a simplicidade inscrita nas
fotografias do paraense. 134 Olhando para o referido prefácio, conclui, com a professora Caroline
Fernandes, que:
132
Verificar: BELTING, Hans. Antropología de la imagen; traducido por Gonzalo Maria Vélez Espinosa. 1ª
Edição. – Buenos Aires, 2007.
133
BRAGA, 2017.
134
Consegui O prefácio “Desenhos do Olhar: fotografias de Luiz Braga”, escrito por Milton Hatoum e gentilmente
cedido pelo fotógrafo paraense, via e-mail (neste documento não há registro do local onde o texto foi publicado,
originalmente, tampouco, a datação de sua escrituração). Mais tarde, verifiquei que o referido texto consta no
livro de Luiz Braga: Crônica fotográfica do universo mágico no mercado Ver-o-Peso. 1ª Edição. São Paulo.
Modernsign, 2008.
51
[...], há uma verdade íntima no olhar de Braga. Beleza que fura a palidez da memória
estereotipada. O tempo de Braga é prazenteiro, porque lento: perde-se nos devaneios.
Valoriza a moleza do gesto, o jeito de viver da cultura e da história amazônica. Os
registros do trabalho humano, que o fotógrafo faz, são testamentos de um tempo longo
onde reside a permanência de uma tradição pautada nas marcas deixadas pela gente
subsumida. Desta forma, há humanidade até mesmo em imagens sem a presença de
figuras humanas: Braga elucida, assim, os indícios dessa cultura simples. No olhar de
Braga existe a impressão de uma etnografia do cotidiano que o fotógrafo anota
pacientemente. 135
135
FERREIRA, Arcângelo da Silva & FERNADES, Caroline. “Arquitetos da memória e as cidades encantadas:
literatura e fotografia na Amazônia de Milton Hatoum e Luiz Braga”. In.: FERREIRA, Arcângelo da Silva... [et.
al.]. Nas curvas do tempo: História e historiografia na Amazônia em debate (v. 2). Manaus -AM: Editora UEA,
2018, p. 168-169.
136
Em uma aula realizada no Museu do Estado do Pará no ano de 2016, em Belém, da disciplina Seminário de
Linha de Pesquisa II, ministrada pela professora Caroline Fernandes, quando levou sua turma de doutorado para
visitar a exposição Luiz Braga, retumbante natureza humanizada.
52
janela de madeira, pende a transparência sensual da renda. Aqui do lado de dentro faz
calor, como as noites mornas da Amazônia. 137
Argumento que esta imagem ao se inserir na capa da primeira edição do livro Órfãos do
Eldorado apresenta uma das chaves de leitura da novela, posto que por meio desta fotografia é
possível imaginar, após a primeira leitura da obra, Florita, personagem feminina de Milton
Hatoum, observando o rio Amazonas a banhar cidades anfíbias da Amazônia, lembrando
Dinaura, menina órfã que preferiu morar no fundo das águas, no encante: a cidade conhecida
como Eldorado. Inscrita na capa do terceiro romance, Cinzas do Norte, que veio ao público em
2005, como já mencionei, está a fotografia Babá Patichouli. Sobre a imagem, o fotografo relata:
Babá marca o início de minha jornada pela cor do crepúsculo amazônico e as misturas
de luzes. Foi feita num fim de semana de férias com a família na Ilha de Mosqueiro.
137
FERREIRA, Arcângelo da Silva & FERNADES, Caroline. “Arquitetos da memória e as cidades encantadas:
literatura e fotografia na Amazônia de Milton Hatoum e Luiz Braga”. In.: FERREIRA, Arcângelo da Silva... [et.
al.]. Nas curvas do tempo: História e historiografia na Amazônia em debate (v. 2). Manaus -AM: Editora UEA,
2018, p. 165-166.
138
BRAGA, 2017.
53
Não foi uma foto produzida, com modelos, etc. Um flagrante que ficou meses na
gaveta pois no início estranhei a cor esverdeada (tecnicamente um defeito) e depois
foi assumido e se transformou num ícone de meu processo/técnica. Hoje mais maduro
vejo que ali estávamos eu e minha querida madrinha representados. 139
Isso posto, penso ser pertinente verificar os acontecimentos vividos pelo literato, no
contexto de sua ambiência familiar, considerando, assim, alguns registros sobre a infância e a
adolescência, indícios relacionados às experiências vividas por Hatoum. Dizendo corretamente,
é o momento de utilizar outros sinais, inclusos na trajetória intelectual de nosso literato.
139
BRAGA, 2017.
54
A família de Hatoum esteve pela primeira vez no Brasil no início do século, quando
seu avô foi para Xapuri (AC) animado pelo milionário ciclo da borracha (sic) e depois
de 11 anos voltou para Beirute, Líbano. Contou histórias do Brasil para o pai de
Milton, que, durante a Segunda Guerra, também decidiu ir para o Acre e, mais tarde,
se instalou em Manaus como comerciante, tal como outros libaneses, sírios e judeus
marroquinos que vieram ‘fazer a América’ – uma outra América – no Norte do Brasil.
140
É, portanto, ouvindo as experiências de viagens do avô que, em parte, Hatoum obtém seus
motes para a composição de seus personagens e enredo de seus romances e da novela que estou
me apropriando como fonte histórica. Ora, basta ler as primeiras páginas de Órfãos do Eldorado
para perceber que a memória é central nesta narrativa de Milton Hatoum. Aliás, em todas as
suas obras ela é indispensável. Averiguei também que seus ancestrais foram peritos contadores
de histórias. 141 Reafirmando o que venho dizendo, os relatos dos ancestrais de Hatoum ecoam
significativamente em sua literatura. Durante sua infância a voz e o imaginário do imigrante
são inventivos, havia fantasia, contudo, contextualização nas histórias de seus avós. Por sinal,
quando seu avô libanês contava suas histórias ele também relatava acerca de suas relações
comerciais, a sociabilidade com os moradores das várzeas, por onde seu regatão passava,
detalhava sobre a peculiaridade e localidade dos rios, relatos contagiantes ao ponto de detalhar
o encanto das florestas, a etnografia dos povoados, a especialidade de etnias indígenas, o jeito
da cultura hibrida o fluxo entre cidade e campo. “Quer dizer, falava dessa vida entre Manaus e
o interior, da história dele. Falava desse mundo em trânsito, entre a cidade e a floresta, com
suas peculiaridades culturais e econômicas”. 142
Por certo, o depoimento do escritor revela outra de tantas experiências vividas, aquelas
que brotam no bojo da ambiência familiar, na herança de sua ancestralidade. Vivência que
influenciou determinada perspectiva histórica presente em sua literatura. Tramas que parecem
140
PIZA, Daniel. Perfil Milton Hatoum. In.: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de. (org.). Arquitetura da Memória:
ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte. – Manaus : Editora da
Universidade Federal do Amazonas/Uninorte, 2007, p. 19.
141
LEAL, Bruno Avelino. Nas trilhas de Milton Hatoum: um breve estudo de uma trajetória intelectual.
Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Amazonas/UFAM, 2010.
142
KASSAR, Álvaro. “A pátria sem fronteiras”. Jornal da Unicamp, Campinas, junho de 2001 - ano XV – n.
163; Disponível em http: //www.unicamp.br/unicamphoje/ju/jun201/unihojeju163pg18html. Acesso em
16.07.2017, às 19:17h.
55
fazer eco às palavras de Raymond Williams quando, ao buscar a relação do campo e a cidade
na história e na literatura me fez observar particularidades, pois “a vida do campo e da cidade
é móvel e presente: move-se ao longo do tempo, através da história de uma família e um povo;
move-se em sentimentos e ideias, através de uma rede de relacionamentos e decisões”. 143
Arrisco em comparar aqui, pois, assim como aconteceu com Milton Hatoum, as idas e vindas
do campo às cidades, fez o aludido historiador inglês, como ele mesmo afirma, ter aprendido:
(...) sob muitas formas, os aspectos dessa história, as ideias e as imagens, na sociedade
e na literatura que foram as primeiras a experimentar, mas a fundo, uma mudança que
depois se tornaria universal, ou pelo menos seria proposta como modelo de
desenvolvimento universal. Isso deixou em minha mente toda espécie de
questionamento e complexidade, e precisei recriar essa experiência lentamente, em
mim mesmo e na literatura, a fim de recuperar o presente e o futuro através de uma
compreensão diferente de um passado que nos deu forma e nos fascina. 144
143
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura; tradução Paulo Henriques Britto. –
São Paulo : Companhia das Letras, 2011, p. 21.
144
WILLIAMS, 2011, p. 497.
145
MOTA, Márcia Maria Menezes. História e memória e tempo presente. In: CARDOSO, C. R. Novos domínios
da história. RJ: Elsevier, 2012, p. 26.
146
HATOUM, Milton. “Águas encontradas”. Correio Braziliense. Disponível em
http:/www.miltonhatou.br.conet/upload/2011/03/%c3%81guasencontradascorreioBraziliense2002jpg. Acesso em
20/07/2017, às 14:33h.
147
HATOUM, 2017.
56
brasileira como Os Sertões, de Euclides da Cunha, O Ateneu, de Raul Pompéia,148 Esaú e Jacó,
de Machado de Assis, Quarup, e Vidas Secas, de Antônio Callado e Graciliano Ramos,
respectivamente. Fato que demonstra a dimensão de seu contato com a literatura desde cedo.
Por isso, décadas mais tarde, como escritor legitimado, “no conjunto de seus romances estão os
ecos de José de Alencar, (...), de Flaubert, de José Lins do Rego, (...), das tragédias gregas, da
Bíblia...” 149 Dom Pedro II, nessa conjuntura, era um colégio rigoroso, no qual, com Hatoum,
os estudantes participavam disciplinarmente de marchas cívicas, trajando fardamento
impecável desde as rígidas gravatas, com as quais perfilavam sob o sol manauara. 150 Ainda
sobre as experiências vividas no referido colégio, assim Hatoum faz observação sobre a cultura
escolar:
Imagem peculiar. Remete novamente ao valor que tem a memória na busca dos
acontecimentos perdidos no tempo. Suscita determinados sentimentos aferidos das condições
148
Inclusive, em um depoimento publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 19 de outubro de 1991, na página
3 (Caderno de Cultura) o escritor afirma que a leitura de O Ateneu, nos tempos de ginásio possibilitou que, anos
mais tarde quando morava na França, desenvolvesse um projeto relacionado à escrituração de um romance onde
enfocava a vida de um grupo de ginasianos nos anos de 1960, em Manaus, recriando a transição da infância à
adolescência no micro mundo do liceu Dom Pedro II, mas logo o projeto foi guardado, posto que outras
experiências vividas oportunizaram a concretização de seu primeiro romance de ficção: Relato de um certo
Oriente.
149
MELLO, J. A. Percurso para a utopia: o Eldorado de Milton Hatoum. In. Revista Letras, Curitiba, N. 86,
Jul./Dez. Editora UFPR, 2012, p. 12.
150
PIZA, Daniel. “Perfil Milton Hatoum”. In. CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da
memória: ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton
Hatoum. – Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas / Uninorte, 2007.
151
Vale dizer, se considerada a história social da cultura da cidade de Manaus, a referida praça representa um
espaço de memória, posto que, conforme a dissertação de mestrado “Na vaga Claridade do Luar”: Movimento
Madrugada – História e Literatura (1954-1964), de minha autoria, na madrugada de 22 de novembro de 1954, aí
nascia o Movimento do Clube da Madrugada, influenciado pela terceira geração do Movimento Modernista
ocorrido no Brasil. É perceptível, através da análise do Manifesto Madrugada, elaborado pelos sócios do
mencionado clube, a defesa de uma literatura mais modernizante, portanto, questionadora das amarras, heranças
europeias, essencialmente, o positivismo, no campo da ciência, e do simbolismo e parnasianismo, no campo das
artes, influenciadoras dos literatos amazonenses desde a Belle Époque. É possível conjecturar que a relação
dialógica entre Natureza e Cultura, presente na literatura de Hatoum são convergentes com aquelas desenhadas
pela literatura produzida pelos poetas, contistas, cronistas e romancistas oriundos do Movimento Madrugada. Em
suma, observei que as criticas as imagens hiperbólicas, ao exotismo acerca da Amazônia já se faziam presente nas
expressões artísticas do Movimento do Clube da Madrugada. Um dos mais ilustres representantes desse
movimento sócio cultural e, também, educativo foi o poeta premiado, autor de Frauta de Barro, Luiz Bacellar.
152
NUNES, Benedito; HATOUM, Milton, Crônica de duas cidades: Belém – Manaus, - Belém : Secult, 2006, p.
63.
57
de possibilidade entrelaçadas a partir das relações entre o espaço urbano e a Natureza viva em
lugares de memória onde Hatoum viveu sua juventude. Faz o escritor revelar, de certa forma,
determinadas matrizes intelectuais, as quais trazem à baila o imaginário da cidade representado,
fecundamente, em sua obra. Essa cidade ficou no passado. Tempo pretérito que procura salvar
por meio de suas reminiscências. Assim ele relata, em frações, algumas de suas experiências
vividas em Manaus:
Eu ia ao prostíbulo, ia para a noite, para o futebol de várzea, tinha brigas homéricas.
A cidade para mim não era uma ameaça, eu a dominava. Como estudei em escola
pública, tinha contato com classes sociais diferentes. Filhos de lavadeiras e
empregadas, filhos de desembargadores, uma sociedade mais diferenciada estava em
contato comigo. Entrei em mansões e em palafitas, sabia como viviam meus amigos
porque brincava com eles. Isso foi fundamental. São dados da minha vida que me
ajudaram a entender e a vivenciar mais a sociedade. 153
153
Revista História da Biblioteca Nacional. Edição nº 122 de novembro de 2015. É provável que para a composição
de algumas tramas, personagens, ambiências, enredos presentes no livro de contos A cidade Ilhada, Hatoum tenha
partido das experiencias da infância e juventude, as quais suscitam comparação entre o relato concedido à revista
aqui utilizada e os contos do respectivo livro o qual menciono.
154
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. – São Paulo : Companhia das Letras, 2005, p. 192
155
Idem.
156
Aurélio Michiles, Carlito Michiles, Cláudia Silva, Enéias Valle, Franca Moss, Hernneman Bacellar, Ilton
Oliveira, Milton Hatoum, Narciso Lobo, Plínio Jr., Regina Farias. – Reproduzido de uma nota de pé de página do
artigo de onde estou usando este depoimento. Na próxima nota registro a referência completa.
58
Essa afinidade com as artes, evidenciada quando estudante no Colégio Pedro II, já aflorava na
infância, pois o escritor revela que desde cedo possuía pretensões no campo das artes: “gostava de
desenhar, imitava Picasso. (...). Era também fascinado por Gaudí”. 160
Isso, inclusive, aparece no seu
Relato de um certo Oriente quando a narradora principal deixa transparecer seus pensamentos, sobre a
escrituração de uma missiva que seria endereçada a seu irmão que mora na Espanha: “Como contar a
essa gente o teu fascínio exagerado por Gaudí, o poema que dedicaste à Sagrada Família, o esquisito
sabor da horchata ou aquele crepúsculo em Lloret del Mar?”. 161 Representado também no tempo da
157
MICHILES, Aurélio. “E tu me amas?”. In.: Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-
Graduacão em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n.1 (2000-). –
Manaus: Edua/Capes, 2000, p. 10.
158
MICHILES , 2000, p. 10. – o referido autor, contemporâneo de Milton Hatoum, corrobora essa memória:
“Resolvemos, então, editar um jornal estudantil, “O Elemento 106”, uma metáfora para dizer que éramos muitos
“especiais” (sic) – o mais novo elemento químico da natureza.”
159
Revista História da Biblioteca Nacional. Edição nº 122 de novembro de 2015.
160
Revista História da Biblioteca Nacional. Edição nº 122 de novembro de 2015.
161
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 121.
(edição de bolso).
59
narrativa de seu terceiro romance, Cinzas do Norte, onde Mundo162, é artista instigado desde a infância:
“Foi o primeiro desenho que ganhei dele: um barco adernado, rumando para um espaço vazio” 163, lembra
Lavo, o narrador de Cinzas do Norte. Essa permanente busca foi gradativamente enveredando para o
mundo das letras. Como ele afirma, “(...) durante muito tempo eu li mais poesia do que prosa. Eu queria
ser poeta”. 164
Como mencionado, linhas acima, o poema do qual o escritor se reporta foi escrito aos 16
anos. Com ele ganhou um concurso do jornal Correio Braziliense, em 1969.
Nessa conjuntura já estava residindo na capital do Brasil, quando aos quinze anos, juntamente
com dois amigos, migrou para estudar na escola de formação da Universidade Federal de Brasília. Em
uma de suas entrevistas relata que os anos de 1968, 1969 foram difíceis, devido à efervescência do
regime totalitário, “depois me mudei para São Paulo, onde vivi dez anos, para então viajar novamente,
dessa vez para o exterior, [...], fugir do regime totalitário. Minha geração não aguentava isso aqui na
época da ditadura”. 165 Percebe-se em quase todos os depoimentos já registrados, sobre a primeira
vivência longe de sua cidade natal, a experiência traumática. 166
O momento histórico em que Hatoum sai da cidade, em que viveu relativamente livre sua
infância e parte da juventude, é significativo. Havia por um lado toda aquela representação
relacionada à construção de Brasília, à luz de um governo desenvolvimentista, deixando no ar
aspirações de progresso e democracia. Nessa conjuntura a classe média brasileira parece ter
adotado como horizonte de expectativa o “slogan de sucesso: 50 anos em 5”. 167 Porém,
imediatamente depois, a imposição de outro regime, opressor e violento: a ditadura militar
brasileira, ceifando, assim, muitos projetos juvenis. Este período transitório deixou marcas que
irão implicar na trajetória intelectual de Milton Hatoum.
Conforme os registros deixados pelo escritor, publicados em fontes impressas, os projetos
ocorridos durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek fascinaram os jovens de classe
média, essencialmente, devido às apologéticas representações das propagandas políticas
divulgadas pelos veículos midiáticos, inclusive asseverando sobre os benefícios que Brasília
traria à Amazônia. Com Hatoum não foi diferente, pois, como se observa: “o urbanismo e a
162
Mundo é o codinome de Raimundo, personagem protagonista deste romance.
163
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. – São Paulo : Companhia das Letras, 2005, p.12.
164
CASARIN, Rodrigo. Milton Hatoum, da literatura à política. (entrevista). Disponível em revistasentido.com.
acesso em 20/09/2017 às 18:18h.
165
PINTO, Júlio Pimentel; IEGELSKI, F. ; CIARELLI, S. “Entrevista com Milton Hatoum”. Intelligere, Revista
de História Intelectual, São Paulo, v.2, n.2 [3], p.2-10. 2016. Disponível em http:revista.usp.br/revistaintelligere.
Acesso em 20/07/2017 às 13:15h.
166
KASSAR, Álvaro. “A pátria sem fronteiras”. Jornal da Unicamp, Campinas, junho de 2001 - ano XV – n.
163; Disponível em http: //www.unicamp.br/unicamphoje/ju/jun201/unihojeju163pg18html. Acesso em
16.07.2017, às 19:17h.
167
FICO, Carlos. “O Brasil no contexto da Guerra Fria: democracia, subdesenvolvimento e ideologia do
planejamento (1946-1964)”. In. MOTA, Carlos Guilherme (organizador). Viagem incompleta. A experiência
brasileira (1500-2000): a grande transição. 3ª ed. – São Paulo : Editora Senac São Paulo, 2013, p. 176.
60
arquitetura exerceram um fascínio na minha geração, mais que isso, a fama e o prestígio da
UnB e do Colégio de aplicação era mais do que um sonho no mormaço amazônico”.168
Para o literato, sair do passado infantil e adolescente foi uma drástica ruptura, um trauma
dilacerante. Deixar a cidade de Manaus, conforme afirma, apesar de ter sido um privilégio, “não
anula o sentimento de perda e abandono do que fica para trás, no tempo e no espaço”. 169 Ao
contrário da sua infância em Manaus, a vivência na capital federal vaza indícios traumáticos,
presente em suas lembranças. Experiência vivida, decerto, marcante em sua trajetória
intelectual. A solidão do cerrado foi angustiante, pois, abandonou o paraíso da infância. Paraíso
que passou a residir na camada mais distante da memória, posto que: “em Brasília comecei a
pensar no passado ainda recente, sem saber que na minha memória giravam os temas e
problemas que, duas décadas depois, iriam dar corpo ao meu trabalho ficcional”. 170 Com efeito,
as experiências vividas em Brasília viriam à lume com a publicação do romance A noite da
Espera: “Parece que o medo governa todo mundo... e governa com terrível eficiência”. 171
Aspectos dessa trajetória são narradas na seção abaixo.
Ao falar sobre o processo de adaptação em Brasília, Hatoum afirma que quando chegou
foi acometido de um estranhamento. Pensava na explícita diferença entre a cidade de Manaus
e a cidade utópica que, naquele momento, se deparou. Dizendo corretamente, do passado
ficaram as reminiscências de uma cidade histórica; no chão do presente, o qual ele passou a
pisar, uma cidade do futuro, porém, insólita aos seus olhos de migrante inexperiente. Mas havia
o caldo cultural e político. Nesses, gradativamente, o jovem Hatoum começou a se integrar.
Vale a pena a citação adiante. Nela consta indícios significativos das experiências vividas por
Hatoum em Brasília:
(...), a História política do país estava ali latejando na praça dos Três Poderes, por
onde eu passava todos os dias a caminho do CIEM. Este colégio, que hoje é um
ambulatório, foi a extensão do meu quarto. Para os que vinham de fora e de muito
longe, o CIEM foi um laboratório de ciências e artes. Dessa estufa nasceu um pouco
de tudo: das horrendas ervas daninhas (coloridas e venenosas) aos jequitibás do
cerrado, que depois cresceram e se espalharam por todo Brasil. Eu tentava compensar
a brutalidade da vida política com o aprendizado, as leituras na biblioteca da UnB, as
conversas com professores as discussões intermináveis no bar Beirute. A militância
estudantil e a consciência política, que eram tênues em Manaus, foram acirradas em
168
HATOUM, Milton. “Águas encontradas”. Correio Braziliense. Disponível em
http:/www.miltonhatou.br/wp.conet/upload/2011/03/%c3%81guasencontradascorreioBraziliense2002jpg. Acesso
em 20/07/2017, às 14:33h.
169
Idem.
170
PINTO, Júlio Pimentel; IEGELSKI, F. ; CIARELLI, S. op. cit.
171
HATOUM, Milton. A noite da espera . – 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2017, p.137
61
Convido as pessoas leitoras para observarem alguns aspectos desse relato. O primeiro
aspecto a se considerar é a experiência vivida no Centro Integrado do Ensino Médio, escola
associada ao projeto pedagógico da UnB, na qual o jovem Hatoum estudou dos quinze aos
dezoito anos. Nesse colégio frequentado pela elite, o acesso para os que não eram de Brasília
dava-se através de um exame, diferentemente daqueles filhos ou apadrinhados de políticos, que
não precisavam realizar esse mini vestibular: “os que vinham de fora tinham que fazer exame,
[...], os filhos dos políticos e dos ministros, não, eles simplesmente entravam”. 173 Hatoum
lembra que alguns de seus colegas de turma iam à escola em carros oficiais. Ai já residia
explícita discrepância social.
Outro aspecto é a relação com a mobilização política. Apesar do ativo movimento
estudantil, e das acirradas disputas pela direção do grêmio do CIEM, essa experiência fez
Hatoum assumir peculiar postura, aporética, diante da política partidária. Entretanto, não
deixando de se mobilizar. Inclusive, em uma entrevista, comparando os acontecimentos
políticos de Brasília, no contexto em que era estudante secundarista aos ocorridos entre os anos
de 2015 e 2016, essencialmente àqueles que culminaram no impeachment da presidente Dilma
Rousseff, o literato afirma: “coisa mais condenável, nem os jornalistas, nem os intelectuais,
nem os professores, podem se calar, acho que as pessoas têm que se posicionar contra isso”. 174
Esse depoimento representa, de fato, a postura de intelectual, por um lado, ativo politicamente,
por outro desatrelado de políticas partidárias: “eu procuro interferir de modo mais ou menos
literário, mais ou menos sutil nas minhas crônicas. Por exemplo, não pude calar diante da
declaração fascista de Bolsonaro”. 175 Nessa esteira, acima de tudo o literato não pode se deixar
aprisionar por determinadas amarras institucionais e partidárias. Segundo ele:
172
HATOUM, Milton. “Águas encontradas”. Correio Braziliense. Disponível em
http:/www.miltonhatou.br/wp.conet/upload/2011/03/%c3%81guasencontradascorreioBraziliense2002jpg.
Acesso em 20/07/2017, às 14:33h.
173
PINTO, Júlio Pimentel; IEGELSKI, F. ; CIARELLI, S. op. cit.
174
PINTO, Júlio Pimentel; IEGELSKI, F. ; CIARELLI, S. op. cit.
175
PINTO, Júlio Pimentel; IEGELSKI, F. ; CIARELLI, S. op. cit. - Aqui o escritor está refutando a declaração do
deputado federal Jair Bolsonaro (Partido Social Cristão), quando da votação na Câmara dos Deputados sobre o
afastamento da presidente Dilma Rousseff, pois o referido deputado dedicou seu voto a favor do impedimento a
um dos torturadores do regime militar brasileiro, ou seja, o coronel Brilhante Ustra. Adiante coloco um trecho do
discurso retirado da fonte www.bbc.com/portuguese/notícias/2016/04/16415_bosonaro_ongs_oab_mdb: “Pela
62
Então, em uma certa perspectiva, o escritor, a princípio, não deve ser leal nem à
religião e nem a partidos. O escritor é basicamente um solitário, um intelectual que
não se sente disposto quando não se sente livre para criticar aquilo que está errado –
que ele acha que está errado – e, assim, acaba se tornando um solitário. 176
As pessoas leitoras que chegaram até aqui percebem nas palavras de Hatoum indícios da
acepção de Edward W. Said quando assevera que “o principal dever do intelectual é a busca de
uma relativa independência [...]. Daí minhas caracterizações do intelectual como um exilado e
marginal, como amador e autor de uma linguagem que tenta falar a verdade ao poder”. 177 Em
um dos primeiros depoimentos sobre a publicação de seu livro A noite da espera, o qual aborda,
em uma de suas ambiências, o cenário político de Brasília na conjuntura em que o escritor foi
estudante secundarista, Hatoum volta a afirmar que não foi um militante aguerrido. Assim como
o narrador desse romance de formação, Martim que prefere a arte poética. 178 Depreende-se daí
que sua arma é a literatura de ficção. Nessa direção, Hatoum argumenta sobre o valor da
literatura às análises de conjuntura. Os leitores podem verificar essa assertiva no depoimento
colocado na próxima citação:
Não é preciso ser um grande observador para perceber que uma faixa considerável da
classe média brasileira não tem acesso, não está interessada na literatura. Que tipo de
formação educacional eles tiveram? Pensa um pouco: alguém que tenha lido Os
sertões, ou Vidas secas, não pode erguer uma faixa escrita “Somos milhões de
Cunha”. 179 A pessoa que faz isso, a pessoa que se cala diante dessa barbaridade,
diante da desfaçatez, é uma pessoa que, de fato, não tem a mínima compreensão do
Brasil. A compreensão de seu país passa também pela leitura da ficção e da poesia.
180
memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Roussef, pelo exército de Caxias, pelas
Forças Armadas, pelo Brasil, acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”.
176
PINTO, Júlio Pimentel; IEGELSKI, F. ; CIARELLI, S. op. cit.
177
SAID, Edward W. Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993; tradução Milton Hatoum. –
São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 15.
178
De acordo com, Ruan de Souza Gabriel no artigo “Milton Hatoum o arquiteto do tempo”. Disponível em:
época.globo.com/cultura/2017/10/milton-hatoum-o-arquiteto-do-tempo. Acesso em 23/10/2017, às 08:42h.
179
O escritor está se reportando aos cartazes que pessoas carregavam em campanha a favor da permanência do
deputado federal Eduardo Cunha, quando acusado de corrupção, acabou sendo impedido de permanecer no cargo.
Esse episódio político, a cassação, ocorreu no dia 12 de setembro de 2016.
180
PINTO, Júlio Pimentel; IEGELSKI, F. ; CIARELLI, S. op. cit.
63
se for possível falar desta sensação nos tempos em que se vivia sob a égide de um Estado de
exceção. Na memória de Hatoum reside um passado em ruínas:
[...], o clima político, pesado e sufocante derrotou muita gente. Alguns amigos e
conhecidos partiram de Brasília nos anos 70, outros ainda jovens, partiram para
sempre. A imagem de tanques e veículos militares invadindo o campus ainda é
recorrente. 181
181
HATOUM, Milton. “Águas encontradas”. Correio Braziliense. Disponível em
http:/www.miltonhatou.br/wp.conet/upload/2011/03/%c3%81guasencontradascorreioBraziliense2002jpg. Acesso
em 20/07/2017, às 14:33h.
182
Jornal da Biblioteca Pública do Paraná. “Um escritor na biblioteca: Milton Hatoum”. Disponível em
http:/www.candido.bpp.pr.gov.br/modulares/conteudo/conteúdo?conteudo=142. Acesso em 16.07.2017 às
19:11h.
183
Jornal da Biblioteca Pública do Paraná. “Um escritor na biblioteca: Milton Hatoum”. Disponível em
http:/www.candido.bpp.pr.gov.br/modulares/conteudo/conteúdo?conteudo=142. Acesso em 16.07.2017 às
19:11h..
184
Jornal da Biblioteca Pública do Paraná. “Um escritor na biblioteca: Milton Hatoum”. Disponível em
http:/www.candido.bpp.pr.gov.br/modulares/conteudo/conteúdo?conteudo=142. Acesso em 16.07.2017 às
19:11h.
185
EL GEBALY, T. M. A. “Milton Hatoum: ‘não há tantos tradutores de língua portuguesa’”. In. : Revista Crioula.
Maio de 2010 – Nº 7. Disponível em http: // www.revistas.usp.br/crioula. Acessado em 13/10/2017 às 23:29H.
64
prazeroso hábito. 186 Este que levou à Brasília ao fazer da biblioteca do CEMI uma espécie de
extensão do seu quarto. Nesse colégio o literato teve a oportunidade de ler “bons livros,
orientado por ótimos professores, os debates intelectuais em sala de aula. [...]. E, é claro sob o
céu do planalto no coração do Brasil, a leitura dos versos de Drummond (...): ‘A tarde talvez
fosse azul. /não houvesse tantos desejos”. 187 Assim, a passagem por Brasília foi curta, porém
é necessário relativizar essa escala de tempo, posto que se considerar a experiência vivida pelo
jovem Hatoum, a referida temporalidade se espraia significativamente. Para ele, a vivência de
dois anos, no bojo da efervescência intelectual e política da capital federal, no final dos anos de
1960, lhe fez amadurecer “uns dez anos”. 188 Anos mais tarde Hatoum deixava registrado: “em
Manaus, os acontecimentos políticos gerados pelo regime militar chegaram com fraca
ressonância. Em Brasília e depois em SP, esse eco tornou-se presença: arbítrio e violência”. 189
Como já se deixou transparecer:
A política deixou marcas em Hatoum e em sua ficção. Até 1968, quando se mudou
para Brasília, levava o que chama de uma vida provinciana, estudando, farreando e
até cantando serestas de todos os gêneros musicais sob encomenda. O seresteiro
manauara estava em Brasília no auge do regime militar, quando o governo baixou o
AI-5. Lia ‘Sartre, Camus, Graciliano’, escrevia crônicas políticas e participava do
movimento estudantil. Mas Brasília não ajudava: ‘Era o oposto de uma cidade como
Manaus, que nos anos 60 era belíssima. Em Brasília faltavam vizinhos, e a atmosfera
da época era de delação e violência.’ 190
Circunstância que lhe fez passar um breve período nessa urbe, para onde rumou, conforme
perceberão adiante. Talvez, mesmo convicto de o futuro ser uma falácia, por sinal, “essa falácia
que persiste”, 191 partiu para São Paulo, em busca da concretização de novos projetos. Da
“cidade do futuro” migrou para a cidade industrial. Talvez sonhasse traçar desenhos e deixar
seus registros através de obras edificadas com pedra, cimento e ferro, por um lado, como o fez
Yaqub, no tempo da narrativa do segundo romance de Hatoum. Contudo, a literatura continuou
186
Jornal da Biblioteca Pública do Paraná. “Um escritor na biblioteca: Milton Hatoum”. Disponível em
http:/www.candido.bpp.pr.gov.br/modulares/conteudo/conteúdo?conteudo=142. Acesso em 16.07.2017 às
19:11h.
187
HATOUM, Milton. “Águas encontradas”. Correio Braziliense. Disponível em
http:/www.miltonhatou.br/wp.conet/upload/2011/03/%c3%81guasencontradascorreioBraziliense2002jpg. Acesso
em 20/07/2017, às 14:33h.
188
HATOUM, Milton. “Águas encontradas”. Correio Braziliense. Disponível em
http:/www.miltonhatou.br/wp.conet/upload/2011/03/%c3%81guasencontradascorreioBraziliense2002jpg.
Acesso em 20/07/2017, às 14:33h.
189
Jornal O Estado de São Paulo, sábado, 19 de outubro de 1991, Caderno de Cultura. Número 584 – Ano VIII,
p. 3.
190
PIZA, Daniel. “Perfil Milton Hatoum”. In. CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória:
ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. –
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas / Uninorte, 2007, p. 18
191
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. – São Paulo : Companhia das Letras, 2000, p. 263.
65
a compor o seu horizonte de expectativas. Por isso, nos anos de 1970 morou em São Paulo,
onde cursou Arquitetura na USP. A paralela afinidade com a arte literária lhe fez escrever
muitos contos, e outros gêneros. Contudo, nenhum publicado, como ele observa:
Eu tentei muito, durante mais de 10 anos, sobretudo na década de 70, quando morei
em São Paulo e na Espanha. Tentei escrever um romance político, mas não deu certo.
Não era um romance, não era ficção. Estava mais para crônica, era uma coisa que está
muito em moda, que hoje chamaria de jornalismo adaptado. Precisei de muito tempo
para publicar algo. 192.
E ainda:
Olha, eu tentei a poesia. Meu primeiro poema foi publicado quando eu tinha 16 anos
e morava em Brasília, entre 1968 e 1969. Escrevi um poema-protesto contra a Guerra
do Vietnã (ri). E foi publicado no Correio Braziliense. Eu me lembrei disso há poucos
anos, quando voltei a Brasília. Escrevi textos poéticos, poemas em prosa, no livro
Imagens e Palavras (fiz os textos e três fotógrafos publicaram fotografias). E tentei
alguns contos, nos anos 70, quando morava em São Paulo. Mas tudo saiu meio torto.
[...]. 193
Perpassados anos posteriores a esses eventos relatados por ele, verifiquei outro episódio
artístico, significativo na trajetória intelectual de Hatoum, inclusive, mencionado no fragmento
da entrevista que usei linhas acima: em novembro de 1979 ao lado de Isabel Gouvêa, João Luiz
Musa, Sônia Silva Lorenz, fotógrafos paulistas, Hatoum publicou seu primeiro livro. Fruto de
experiências vividas através de uma aventura: “viajou pelo rio, por Belém e Manaus há três
anos, colhendo e anotando impressões. O resultado foi um livro Amazonas, palavras e imagens
194.
de um rio entre ruínas” No dia 27 de novembro daquele ano quando, em Ipanema, o livro,
editado pelos autores e pela Livraria Diadorin, foi festejado em sua noite de autógrafo, na
Livraria Mourinho. Para aguçar o desejo do possível público leitor, a fonte impressa deixava o
seguinte registro sobre o conteúdo do livro:
192
KASSAR, Álvaro, 2001.
193
LEAL, Cláudio. Hatoum: a literatura é a arte da paciência – entrevista. Disponível em:
terramagazine.terra.com.br. Publicado quarta-feira, 19 de setembro de 2007, 13H51. Acessado em 19/09/2017 às
16:56h. Ainda a pouco, na mesma data e horário da pesquisa supra, quando estava escrevendo esse capítulo recebi
uma mensagem de minha filha, Olga, via rede social, dizendo que a editora Companhia das Letras acabou de lançar
a pré-venda do mais novo livro de Milton Hatoum. Trata-se do primeiro volume da série “O lugar mais sombrio”,
“A noite da espera”. Ambientado na cidade de Brasília, retrata a formação, cultural e política de um grupo de
jovens, nos anos de 1960-70. Exatos nove anos após a publicação de Órfãos do Eldorado, pela mesma editora.
194
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, terça-feira, 27 de novembro de 1979, página 2 do Caderno B.
66
grafia da luz, através da subjetividade dos seus colegas coautores. Penso que é válido mostrar
a imagem colocada na primeira capa do livro, aqui digitalizada do volume encontrado na
Biblioteca Pública da cidade de Manaus:
As pessoas dotadas de finura observam melhor e com mais cuidado as coisas, mas
comentam o que vêem e, a fim de valorizar sua interpretação, persuadir, não podem
deixar de alterar um pouco da sua verdade. Nunca relatam pura e simplesmente o que
viram, e para dar crédito a sua maneira de apreciar, deformam e ampliam os fatos.
195
195
MONTAIGNE, Michel Eqquem de. “Dos canibais”. In.: Ensaios. 2ª ed. Brasília, Editora Universidade de
Brasília, Hucitec, 1987, p. 258.
196
COSTA, Hideraldo. Cultura, Trabalho e Luta Social na Amazônia. Discurso dos Viajantes – Século 19. Manaus
: Editora Valer e Fapeam, 2013.
197
FERREIA, Arcângelo da Silva. “Do espaço à personagem”. In Revista Travessias Ed. XIV. Disponível em
[email protected] e www.unioest.br/travessisas, p. 382. Acesso em 15/09/2017 às 06:22h.
67
uma representação à contrapelo da narrativa hiperbólica, pois vai além dos limites do
determinismo geográfico em questão. O horizonte de expectativa parece ser outro: o
mencionado homem, a propósito quase subsumido na imagem, induz-me a conjecturar que sua
presença permite pensar sobre a relação dialógica entre a natureza e a cultura.
O ângulo no qual a câmera dos fotógrafos enquadra a imagem traz à baila um campo de
possibilidades. Esse que remeteu a Montaigne, um dos primeiros pensadores europeus a propor
um olhar antropologicamente construído, essencialmente sobre culturas sul-americanas. No
entanto, a etnologia elaborada pelo filósofo francês foi veementemente obstada por seus pares
à luz da justificativa que fundamentava os projetos civilizatórios ocidentais vigentes à época da
reflexão inscrita no fragmento aqui abstraído. 198 Pensando assim, argumento que a imagem de
capa, do primeiro livro de Hatoum, questiona o axioma “o rio comanda a vida”. 199 Ora, o
movimento, no sentido inverso do tempo do relógio, no qual o homem direciona sua canoa,
elucida aquela alteridade há muito escondida, reivindicada nas entrelinhas do fragmento
retirado do livro de Montaigne. Sugiro, inclusive, que o terceiro romance de Hatoum, Cinzas
do Norte, é emblemático no que tange às críticas direcionadas à visão dos cronistas dos séculos
XVI ao XVIII e naturalistas do século XIX sobre a Amazônia. Por outras palavras, à poética
“cartão-postal”. Penso que o indício abaixo corrobora o que afirmo:
Agora, Arana transformava toras de mogno em animais enormes, que nem metiam
medo, nem surpreendiam, nem emocionavam. Suas telas, que traziam paisagens com
caboclas e índias nuas, a pele acobreada e um sorriso complacente, eram pastiches
pobres de Gauguin e das pinturas do salão nobre do Teatro Amazonas. A técnica não
era menos impecável que o exotismo. Num dos quadros, uma plateia de índios
extasiados assistia a uma ópera. 200
Alguns anos antes, como eu estou tentando desenhar aqui, os primeiros ecos dessa
denúncia, através de metáforas, surgiam nos versos do poeta e nas imagens dos fotógrafos,
posto que, desde a capa do primeiro livro de Hatoum memórias e histórias subsumidas suscitam
desse tempo das águas do rio Amazonas. Águas que vazam culturas diversas, inscritas nas
ruínas do passado. Nessa medida, às pessoas que pacientemente seguem lendo, apresento alguns
versos de Hatoum, retirado desse livro no qual ele surge, no campo da literatura, como um
jovem poeta:
Braçadas.
A travessia morna
o mago horizonte: lago
198
PINTO, Renan Freitas. A viagem das ideias. Manaus : Editora Valer/Prefeitura Municipal de Manaus, 2006,
p. 17.
199
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1973.
200
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. – São Paulo : Companhia das Letras, 2005, p 227.
68
Miragem.
Vogar sobre o vácuo,
eclodir, de bruços rachar o baço,
fulminar com goivas o vago
Verdugo.
E ainda:
201
Quem entra no escritório de Milton Hatoum, em Vila Madalena – SP, na casa onde reside atualmente, verifica
que o escritor mantém entre seus livros o A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, ali repousando
“sobre uma das duas mesas de madeira”, conforme o texto Milton Hatoum, o arquiteto do tempo, escrito por Ruan
de Souza Gabriel, para a revista Época, sobre o mais recente livro do escritor amazonense, o romance A noite da
Espera. Disponível em: época.globo.com/cultura/notícia/2017/10/milton-hatoum-o-arquiteto-do-tempo.html.
Acesso em 21/10/2017, às 16:03h.
202
No tempo da narrativa do mais recente romance A noite da espera há constante alusão ao pensamento dos
filósofos supracitados. Isso me levou a conjecturar, obviamente, que Hatoum consumiu os, já clássicos, A náusea,
O Muro (de Jean Paul Sartre) e O Estrangeiro (Albert Camus), bem difundidos na conjuntura da publicação de
seu primeiro livro. Adiante um entrecho: “O curso de uma vida depende de certas decisões. Nem toda decisão é
sábia, mas cada ato da vida é uma escolha mais ou menos consciente; às vezes, inconsciente.” (In.: HATOUM,
Milton. A noite da Espera. – 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2017, p. 101.). Argumento que o referido
fragmento suscita a matriz intelectual existencialista porque ressignifica axiomas colocados no enredo dos livros
citados nas linhas acima, dessa nota de pé de página.
203
HATOUM, Milton. “Amazônia: um ciclo de sono e violência ou Motocu, o demônio, cumpriu sua missão”.
In.: ______________ et al. Amazonas: Palavras e imagens de um rio entre ruínas. São Paulo : o Autor; coedição
Livraria Diadorim, 1979, p. 5.
69
indícios dessa denúncia. Esta que iria se tornar uma peculiaridade, se observado o conjunto de
sua obra, posteriormente elaborada. Ora, desde seu primeiro livro, Hatoum vem expondo seus
posicionamentos contrários ao histórico processo de destruição da Amazônia. Isso me fez lembrar que:
O homem é um animal político, nós o sabemos desde Aristóteles. Mas ‘ser político’
significa que deve se expor, em todos os sentidos desse termo: expor-se à contradição
dos outros pontos de vista, expor-se para se tornar visível em todas as suas tomadas
de posição, expor-se aos perigos inerentes a tal postura. 204
204
DIDI-HUBERMAN, Quando as imagens tomam posição – O olho da história, I; tradução Cleonice Paes Barreto
Mourão. – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2017, p. 114 – grifos do autor
205
HATOUM, Milton. Milton Hatoum fala sobre a importância das Universidades (entrevista de Mauro Malin a
Milton Hatoum). Acesso: redeglobo.globo.com. acessado em 15/05/2020, às 20:37H.
206
HATOUM, Milton. Milton Hatoum fala sobre a importância das Universidades (entrevista de Mauro Malin a
Milton Hatoum). Acesso: redeglobo.globo.com. acessado em 15/05/2020, às 22:26H.
207
LEAL, Bruno Avelino. Nas trilhas de Milton Hatoum: um breve estudo de uma trajetória. Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), 2010.
208
Fragmento extraído das credencias inscritas no primeiro livro de Hatoum (p. 6).
70
Como narrei anteriormente, foi na Europa que Hatoum inicia a escrituração do romance
que viria a se tornar seu livro de estreia na literatura brasileira, Relato de um certo Oriente:
iniciado na Espanha e terminado no Brasil. Lembrando dessas experiências, ele afirma: “eu
quis pular o muro e fui morar fora do Brasil, nos anos 80, percebi que a distância me ajudou a
pensar de outra forma meu passado, minha família, o Brasil. [...]. Percebi que tinha matéria para
um romance.” 210 As experiências vividas na Europa são significativas:
Um ano na Espanha e três na França foram marcados pelo estudo das literaturas
hispano-americanas e francesas. (...). Hatoum sempre mostrou mais interesse pela
arquitetura textual de autores como Carpentier, Juan Carlos Onetti, Mario Vargas
Llosa, Lezama Lima, Juan Rulfo, Julio Cortazar, Gabriel Garcia Marquez. Sua obra
não partilha o barroquismo da maior parte desses autores, mas tem alguns pontos em
comum com a descrição de uma vida em clã de seus efeitos no tempo. 211
209
CASARIN, Rodrigo. Milton Hatoum, da literatura à política. (entrevista). Disponível em revistasentido.com.
Acesso em 21/09/2017 às 12:17h.
210
LEAL, Cláudio. Hatoum: a literatura é a arte da paciência – entrevista. Disponível em:
terramagazine.terra.com.br. Publicado quarta-feira, 19 de setembro de 2007, 13H51. Acessado em 21/09/2017 às
14:35h.
211
PIZA, Daniel. op.cit. 2007, p. 16.
71
Ressalte-se na citação acima que, ao longo de sua trajetória nas capitais brasileiras e
europeias, Hatoum tornou-se um intelectual atento à história da literatura dos países por onde
habitou. Essa peculiaridade contribuiu para que seja considerado, pela crítica especializada, um
romancista influenciado pela literatura mundial. Mais ainda: mistura o local com o universal,
fazendo assim “uma revisitação do regionalismo, a qual possibilitou que ele renovasse um
gênero e uma perspectiva ainda necessários para o país”.212
Nessa esteira, as pessoas leitoras irão perceber que o escritor amazonense saiu do Brasil
como incipiente poeta e aspirante a contista. Contudo, as experiências vividas através de suas
andanças contribuíram, de forma significativa para fazer-se romancista. Por suas palavras: “[...].
Sou muito lento, meu ritmo é muito amazônico. A minha maior herança, minha amazonidade
está na meditação, na lentidão e no absoluto desprezo pela pressa”. 213
É fecundo esse depoimento, pois tenciona com a permanente ideia de que as culturas
inscritas na Amazônia guardam, historicamente, a indolência, se comparadas ao peculiar ritmo
civilizatório. Mas, se tais atitudes podem revelar, aos olhos de outrem, o signo do atraso, por
ser lento, essencialmente, surge, com Milton Hatoum, como eficaz e inteligente mecanismo de
invenção do cotidiano no processo de sua criação literária. Como se ele se permitisse
“capitalizar vantagens conquistadas, preparando expansões futuras e obter assim para si uma
independência em relação à variabilidade das circunstâncias. [...] um domínio do tempo pela
fundação de um lugar autônomo”. 214 Foi, portanto, a vivência europeia que possibilitou
Hatoum trazer à baila um dos mais significativos motes para a literatura de ficção que, desde
então, passou a produzir: a memória. Mote para seu primeiro romance. Uma vez mais recorro
ao processo de criação de Relato de um certo oriente:
212
MELLO, J. A. Percurso para utopia: o Eldorado de Milton Hatoum. In. Revista Letras, Curitiba, N. 86,
Jul./Dez. Editora UFPR, 2012, p. 18.
213
Idem.
214
CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano : 1. Artes de fazer; 15 ed. tradução de Ephraim Ferreira Alves.
– Petrópolis, RJ : Vozes, 2008. p. 99.
215
CARPEGGIANI, Schneider. “Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum, completa 25 anos”. In.:
Suplemento Cultural do Diário do Estado de Pernambuco nº 14 – Outubro 2104. Disponível:
www.suplementoculturalpernambuco.com.br. Acesso: 24/09/2017 às 01:02h.
72
Parece que esse depoimento de Hatoum remete ao registro deixado pela personagem que
amálgama o coro de vozes, através de uma missiva, inscrito no Relato de um certo Oriente: “a
vida começa verdadeiramente com a memória...”.216 De fato, foi recorrendo à memória de seus
ancestrais que ele atinge o reconhecimento no mundo das letras. Como ele mesmo afirma: “é
preciso deixar passar o tempo, esquecer o que passou pra que a memória reconstrua pela
linguagem o que poderia ter ocorrido”. 217 Paralelo a isso, reitero que a decisão do escritor
amazonense, no que diz respeito a estrutura narrativa de seu primeiro romance, a qual foi
inspirada na reminiscência de seus ancestrais, deveu-se a notícia trágica que chegou até ele
quando residia fora do Brasil: “(...) a morte de um familiar, velho contador de histórias orientais
durante minha infância”. 218 Episódio que fez Hatoum redefinir as veredas por onde sua
literatura, a partir de então, iria trilhar: “Para alguns escritores, o desejo de mediar o mundo
pela linguagem escrita nasce de uma ausência, de um certo inconformismo face a realidade”.
219
Relato de um certo Oriente foi se delineando em diversas cidades europeias, para ser
finalizado em Manaus, quando Milton Hatoum fazia aulas na Universidade Federal do
Amazonas. Na peculiaridade de seu ofício de escritor, urdiu o livro, primeiramente, à mão
“entre Barcelona, Madri, Paris e Manaus. Depois datilografei e terminei em 1986 ou no começo
de 1987”. 220 Decerto, foram motivos financeiros que fizeram com que Hatoum retornasse à
cidade de Manaus. Assim, no início dos anos de 1980 torna-se professor da Universidade
Federal do Amazonas ministrando aulas na disciplina de Língua e Literatura Francesa. Período
que inicia em 1984 e finaliza em 1998, quando também foi professor visitante por alguns
semestres em Universidades estrangeiras, como, por exemplo, Berkeley, na California, Yale e
Stanford, nos Estados Unidos da América. Como ele afirma:
Quando eu fui dar aula nos Estados Unidos, eu tinha publicado o Relato de um certo
Oriente, que por sorte foi muito traduzido. O meu editor, Luiz Schwarcz, gostou muito
do romance. Naquela época eu não tinha agente literário, ele levou o livro para a Feira
de Frankfurt, convenceu um editor americano a publicá-lo – é muito difícil entrar nos
Estados Unidos. Na França, não, houve interesse de alguns editores, na Alemanha
também. Com esse livro, nos Estados Unidos, como eu era professor – eles gostam da
combinação do escritor com professor ou escritor que topa falar sobre literatura – tive
216
HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. – 1ª edição [de bolso]. – São Paulo : Companhia das Letras,
2008, p. 19.
217
Jornal O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1991, nº 584, ano VIII, p. 3. Caderno Cultura; seção
Depoimento.
218
Jornal O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1991, nº 584, ano VIII, p. 3. Caderno Cultura; seção
Depoimento.
219
Jornal O Estado de São Paulo, 19 de outubro de 1991, nº 584, ano VIII, p. 3. Caderno Cultura; seção
Depoimento.
220
SERRÃO, Cláudia Maria. Milton Hatoum fala sobre o processo de constituição do livro ‘Dois irmãos’ e suas
relações editoriais. Disponível em: https:livreopiniao.com. acessado em 15/10/2017 às 09:54h.
73
221
HATOUM, Milton. Milton Hatoum fala sobre a importância das Universidades (entrevista de Mauro Malin a
Milton Hatoum). Acesso: redeglobo.globo.com. acessado em 15/05/2020, às 20:37H.
222
Inclusive, se considerados os métodos da literatura comparada, no mais recente livro do escritor amazonense,
A noite da Espera, é patente a forte influência de Flaubert na composição, principalmente, desse romance ao
clássico Educação Sentimental, do referido escritor francês.
223
LEAL, Bruno Avelino. Nas trilhas de Milton Hatoum: um breve estudo de uma trajetória intelectual.
Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Amazonas/UFAM, 2010.
224
Aqui um entrecho: “Emma tomou a seu serviço uma mocinha de 14 anos, órfã e de fisionomia serena. Proibiu-
a de usar toucas de algodão, ensinou-a a tratá-la de Madame, a trazer um copo d’água num pires, a bater nas portas
antes de entrar, a passar, a engomar, e ajudá-la a vestir-se, com a intenção de fazer dela sua camareira. A nova
empregada obedecia sem discutir para não ser despedida; e como Madame, habitualmente, não fechava o guarda-
comida, Félicité, todos as noites, apanhava um pouco de açúcar, que comia, sozinha, na cama, depois de rezar”
(In.: FLAUBER, Gustave. Madame Bovary; tradução Sérgio Duarte. [Ed. Especial] – Rio de Janeiro : Nova
Fronteira, 2017, pp. 74 e 75). Outra menção à Flaubert pode-se perceber no enredo do romance de Hatoum, A noite
da espera, publicado originalmente em 2017, essencialmente no seu capítulo 12.
74
Olhando as palavras de Hatoum eu digo que aí estão reveladas suas diversas experiências
compartilhadas, pois que essa literatura estrangeira iria se juntar à tradição literária brasileira
que, como já foi mencionado, lhe acompanha desde os tempos de estudante no Ginásio
Amazonense Pedro II. A literatura francesa, por certo, é prometeica à prosa de ficção de
Hatoum:
Tudo, primeiro, está em Marcel Proust, cuja imagem da mãe que beija o filho antes
do sono é usada em Relato. Dos franceses, Hatoum cita também Flaubert (...) e
Stendhal. E há ainda Joseph Conrad, com sua escrita que trafega da ação à reflexão
no cipoal do choque de culturas. Hatoum faz o mesmo em sua ficção, sem o tom
grandioso – o contraste moral com a natureza – que existe em Conrad. Apesar de
muitas dessas leituras, nacionais e internacionais, sugerirem um gosto pelo épico,
Hatoum não o adota em sua ficção. ‘O romance nasceu da fragmentação do épico. Põe
a história em perspectiva, mas com objetividade e com desencanto’, diz. “O romance
é uma busca de sentido num mundo que, ao final, não tem sentido.’. 227
225
HATOUM, Milton. “Laços de Parentesco: Ficção e Antropologia”. In.: Raízes da Amazônia. Ano I – V.1 - , nº
1 , 2005 – Manaus INPA, 2005. p.p. 86 e 87.
226
Revista Magma – USP. “Entrevista com Milton Hatoum”. In.: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de. Arquiteto
da memória: ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton
Hatoum. – Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/UNINORTE, 2007, p. 29. É válido dizer que
o livro Trois contes, foi traduzido por Milton Hatoum e Samuel Titan Jr, o qual faz o prefácio da publicação
realizada pela editora Cosac & Naify em 2004.
227
PIZA, Daniel. op. cit, 2007, p. 17.
228
LEAL, Bruno Avelino. Nas trilhas de Milton Hatoum: um breve estudo de uma trajetória intelectual.
Dissertação apresentada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Amazonas/UFAM, 2010.
75
com a escrita, o manuseio cuidadoso com a palavra”. 229Há semelhanças: “Flaubert não
pretende escrever ‘belo’ ou ‘bonito’, mas ‘certo’. [...]. Para dar determinado sentido, só pode
haver uma determinada palavra, que é preciso descobrir. [...]. E Flaubert é, realmente, o maior
artista em toda a história da ficção em prosa”. 230 Seria Hatoum um dos poucos discípulos do
autor de Madame Bovary? Talvez a resposta seja óbvia, se considerarmos que Hatoum, também
é um escritor que, para criar um romance, leva um longo período na lida com essa busca da
palavra certa [dez anos, pelo menos]. Quando os críticos se reportam a criação do romance do
literato francês em questão afirmam: “Qualquer um não tem o temperamento de poder
enclausurar-se em Croisset, como um monge no deserto, para elaborar obra daquelas”. 231
Talvez por isso, Alfredo Bosi encontra convergência entre Hatoum e Flaubert nessa
peculiaridade de ambos: a “busca da palavra justa (‘escrita apurada’)”. 232 Ora, a epígrafe usada
nesse capítulo é o testamento da semelhança entre o ofício do escritor amazonense se
comparado ao francês.
Retomando o que estava contanto anteriormente: a passagem do escritor pela
Universidade Federal do Amazonas deixou alguns vestígios na memória de professores e alunos
que conviveram com ele. Depreende-se daí que no período que fez aulas na referida instituição
ele deixou a impressão de ter sido uma pessoa que primava por um método mais aberto,
libertário, conforme os depoimentos registrados abaixo:
229
CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de. “Introdução”. In.: _______________________________ (org.).
Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte.
– Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/Uninorte, 2007, p. 11.
230
CARPEATUX, Otto Maria. “Prefácio”. In.: FALUBERT, Gustave. Madame Bovary; tradução Sérgio Duarte.
{Ed. Especial] – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2017, p. 13.
231
Idem, p. 15.
232
MELLO, J. A. O percurso para utopia: o Eldorado de Milton Hatoum. In. Revista Letras, Curitiba, N. 86,
Jul./Dez. Editora UFPR, 2012, p. 14.
76
E,
[...] simples, atencioso e sem ambição. [...]. Nossos contatos eram esporádicos, nos
corredores do Instituto de Ciências Humanas e Letras, [...]. Milton ministrava aulas
sempre à noite, quando os departamentos do Curso de Letras estavam sempre
esvaziados, daí os contatos esporádicos acontecerem na cantina, no pouco espaço do
cafezinho, [...], mas nas poucas conversas Milton sempre manifestava duras críticas à
falta de liberdade no país e professava seu espírito libertário. [...]. Das conversas que
tinha com alunos do Milton, as referências ao seu trabalho eram sempre elogiosas ao
seu trabalho didático e abrangentes à sua pregação da liberdade. 234
233
Conforme depoimento gentilmente concedido, via WhatsApp, no dia 16 de julho de 2019, pelo professor do
IFAM – Instituto Federal do Amazonas, Washington Luiz Alves da Silva, o qual foi aluno do curso de Letras da
UFAM, quando Milton Hatoum atuou como professor. [os grifos são meus, servem para indicar peculiaridades na
prática pedagógica de Hatoum, conexas a determinados enunciados presentes em sua escrita criativa.
234
Conforme depoimento gentilmente concedido, via e-mail, no dia 15 de julho de 2017, pelo professor
Odenildo Sena, do Departamento de Letras da Universidade Federal do Amazonas.
235
Inclusive, o romance A noite da espera, originalmente lançado em 2017, entre outras pessoas é dedicado a
Davi Arrigucci Jr.
236
SERRÃO, Cláudia Maria. Milton Hatoum fala sobre o processo de constituição do livro ‘Dois irmãos’ e suas
relações editoriais. Disponível em: https:livreopiniao.com. acessado em 15/10/2017 às 09:54h.
77
Foi humilhado no centro da praça das Acácias, esbofeteado como se fosse um cão
vadio à mercê da sanha de uma gangue feroz. Seu paletó branco explodiu de vermelho
e ele rodopiou no centro do coreto, as mãos cegas procurando um apoio, o rosto
inchado voltando para o sol, o corpo girando sem rumo, cambaleando, tropeçando nos
degraus da escada até tombar na beira do lago da praça. Os pássaros, os jaburus e as
seriemas fugiram. A vaia e os protestos de estudantes e professores do liceu não
intimidaram os policiais. Laval foi arrastado para um veículo de Exército, e logo
depois as portas do Café Mocambo foram fechadas. Muitas portas foram fechadas
quando dois dias depois soubemos que Antenor Laval estava morto. Tudo isso em
abril, nos primeiros dias de abril. 239
237
No tempo do enunciado desse romance Omar é irmão gêmeo de Yaqub. O enredo gira em torno da permanente
querela entre ambos.
238
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. – São Paulo : Companhia das Letras, 2000, p. 35.
239
Idem, p.p. 189-1990.
240
EL GEBALY, T. M. A. “Milton Hatoum: ‘não há tantos tradutores de língua portuguesa’”. In. : Revista Crioula.
Maio de 2010 – Nº 7. Disponível em http: // www.revistas.usp.br/crioula. Acessado em 13/10/2017 às 23:29H.
241
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. – São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 212.
78
242
Aproprio-me do conceito de representação colocado por Carlo Ginzburg no ensaio “Representação: a palavra,
a ideia, a coisa”. In. : GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira : nove reflexões sobre a distância; tradução de
Eduardo Brandão. – São Paulo : Companhia das Letras, 2001, p. 103.
243
CHARTIER, Roger. O passado no presente. Ficção, história e memória. In.: _______________ - a força das
representações: história e ficção / João Cezar de Castro Rocha (Org.) – Chapecó, SC : Argos, 2011, p. 117.
244
Poeta desenhista, pintor, gravador e compositor nascido em 28 de novembro de 1757 e falecido em 12 de
agosto de 1827, na Inglaterra.
79
245
COUTINHO, Mário Alves; GONÇALVES, Leonardo. William Blake: Humano, Demasiado Humano –
Prefácio – BLAKE, William. Canções da Inocência e da Experiência: revelado os dois estados opostos da alma
humana. edição bilingue; tadução, prefácio e notas Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves. Crisálida :
Belo Horizonte, 2005, p. 11.
246
E. P. Thompson no clássico A formação da classe operária inglesa (essencialmente no seu segundo volume)
verifica o antinomianismo como um amalgama da sociedade inglesa . Estudo que rendeu trabalho amplo sobre a
temática relacionada ao poeta inglês do século XVII William Blake, como, por exemplo, a obra – ainda não
traduzida para a Língua Portuguesa – Witness Against the Beast: William Blake and the moral law, ou seja,
Testemunha contra a besta: William Blake e a lei moral.
80
mão de citações. Adiante, retiro um entrecho onde está representada uma digressão do homem
do Subsolo:
um romance precisa de herói, e, por acaso foram acumulados intencionalmente todos
os traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo isto dará uma impressão
extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida,
todos capengamos, uns mais outros menos. Desacostumamo-nos mesmo a tal ponto
que sentimos por vezes certa repulsa pela ‘vida viva’, e achamos intolerável que
alguém a lembre de nós. 247
No cais, fui cercado por vendedores de objetos deixados pelos americanos durante a
Segunda Guerra. Não comprei nada. Ninguém reconheceu um Cordovil do passado.
Eu até podia estar na pele de um dos marreteiros; a diferença é que minha história era
outra. Mas isso não é tudo? Por vingança e por prazer pueril eu tinha jogado fora uma
fortuna. E olha só: não me arrependo. 248
O grifo é meu. Ele vem com o propósito de arriscar em afirmar, novamente, que Hatoum
propõe a relação dialógica entre os seus romances. Seus personagens através de suas diálogos
247
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo; tradução, prefácio e notas de Boris Schnaiderman – São Paulo:
Editora 34, 2009 (6ª edição), p.145-146 [grifos do autor].
248
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 100-101
249
BEZERRA, Paulo. “Prefácio: Uma obra à prova do tempo”. In.: BAKHTIN, MIKHAIL Mikhailovitch.
Problemática da poética em Dostoiévski; tradução de Paulo Bezerra. – 4 ed. – Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008. p. X.
81
250
ADORNO, Theodor W. “Sobre a ingenuidade épica”, In.: _________________. Notas de literatura; tradução
e apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003.
251
Talvez seja plausível argumentar sobre o dialogismos em Hatoum, pois na leitura minuciosa de suas narrativas
percebe-se personagens que fluem entre um romance e outro por meio de seus diálogos; os enredos, as narrativas
se entretecem, onde uma estória interpenetra na outra, constituindo, assim, o que eu estou argumentando como
uma epopeia moderna [amazônica]; terei a oportunidade de suscitar esta hipótese no próximo capítulo.
82
CAPÍTULO II
No final de 2017, Milton Hatoum, através da editora Companhia das Letras, trazia à lume
o romance A noite da Espera. O primeiro da série O lugar mais sombrio. A referida narrativa
faz alusão a contextos históricos e ambiências, guardadas nas reminiscências do escritor se
consideradas as experiências vividas em Brasília, São Paulo, Barcelona e Paris: onde se
entrelaçam a trama, o enredo e as personagens. Como disse no primeiro capítulo, quando
Hatoum era muito jovem, migrou da capital do Amazonas para o Distrito Federal. Depois, foi
para São Paulo. Mais tarde, viajou para Europa, com passagem por Espanha e França. Levando
em consideração essas vivências, é valido dizer: no livro A noite da Espera, Hatoum lança mão
da verossimilhança nuançada na realidade social 253 na qual, quando estudante, esteve inserido.
O livro demandou dez anos, no processo de sua criação. Conjecturo que das anotações feitas
nos anos de 1960 e 1970, a versão definitiva começa a ser escrita em 2007 e, vai a público em
2017. A narrativa conta a história de uma tribo urbana (de estudantes secundaristas),
ambientada em Brasília. Esse romance entretece duas temporalidades, a da escrituração da
obra 254 e a do enunciado, amalgamadas pelo aspecto político, pois “(...) a política podia estar
252
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In.: ________________. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin –
8ª Ed. revista – São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 245. [A citação corresponde a VIII]. tese.
253
realidade social: construção simbólica desenvolvida por uma determinada sociedade.
254
Para a elaboração desse romance Hatoum faz anotações que iniciam na conjuntura das décadas de 1970 e 1980,
retomadas na segunda década dos anos 2000. Considerar, portanto, o tempo da escrituração da obra, é perceber as
83
influências de dois períodos políticos bastante significativos na vida do escritor, e por extensão dos brasileiros: A
ditadura militar brasileira e o período posterior ao impeachment da presidente Dilma Rousseff e,
subsequentemente, à eleição e primeiros anos de governo do presidente Jair Messias Bolsonaro. Segundo Hatoum,
em seus depoimentos, “a partir de 2018, o clima, o ambiente político ficou muito pesado” – transcrição feita a
partir de depoimento postado na sua rede social instagram [story], postado em 10 de abril de 2020.
255
HATOUM, 2017, p. 69.
256
HATOUM, Milton. A noite da espera. – 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2017, p. 99
257
Jornal Correio Brasiliense. Milton Hatoum lança ‘Pontos de Fuga’ segunda parte de trilogia. Seção Diversão e
Arte do Jornal Correio Brasiliense, disponível: http:wwwcorreiobrasiliense.com – acesso: 04/11/2019.
258
A riqueza crítica sobre o conjunto da obra de Milton Hatoum, assim como algumas declarações do referido
autor sobre sua estética literária são convergentes acerca das conclusões que giram em torno dos romances Dois
irmãos, Cinzas do Norte e os mais recentes A noite da Espera e Pontos de Fuga: sofrem significativa influência
da obra de Gustave Flaubert, qual seja, Educação Sentimental. Crédito sobre o francês, que, inclusive, de certo
modo, já foi mencionado no primeiro capítulo desta pesquisa.
259
Como já foi elucidado no primeiro capítulo desta tese, existem alguns indícios para se argumentar que a trilogia
O lugar mais sombrio, decerto, tem origem no esboço do primeiro projeto de romance escrito por Hatoum no
84
o livro se reporta à angústia da perda, da ausência, da saudade, da distância. Para tanto, Hatoum,
na perspectiva de representar essas drásticas sensações, se apropria dos sentimentos inscritos
em determinados poemas de Fernando Pessoa, deixando, assim, transparecer um indício, acerca
de suas matrizes intelectuais260: E, por extensão, considerando as preposições de Bakhtin,
acerca de Dostoiévski: “o autor participa do diálogo, em isonomia como as personagens, mas
exerce funções complementares muito complexas, uma espécie de correia de transmissão entre
o diálogo ideal da obra e o diálogo real da realidade”. 261 Isto pode ser ponderado, a partir da
imagem citada adiante:
Penso na minha infância com meu pai, ao lado dele; penso na minha ida a Brasília, a
primeira de tantas viagens: São Paulo, Rio, Santiago, o deserto do Norte Grande
chileno, Nazca, Lima. Nenhum céu nos abriga. Sempre partir, sem encontrar o que
mais se busca. Partir e voltar ao lar, “como quem ainda é amado na aldeia
antiga,/Como quem roça pela infância morta em cada pedra de muro...”. 262
período em que morava em São Paulo. Tal manuscrito consiste em um material fecundo para a composição da
referida trilogia, portanto.
260
Como já estou apresentando, desde o primeiro capítulo desta tese, evidentemente, sem a pretensão de indicar
todas, pois, não teria fôlego, para tanto.
261
BEZERRA, Paulo. “Prefácio: Uma obra à prova do tempo”. In.: BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de
Dostoiévski; traduão de Paulo Bezerra. -4ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. XI.
262
HATOUM, Milton. Pontos de Fuga. 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2019, p. 296
263
CAMPOS, Álvaro de. “Passagem das horas”. In.: _________________. Livro de Versos. Fernando Pessoa.
(Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Estampa, 1993, p. 46.
85
Por isso, Hatoum adota um fragmento da narrativa de Álvaro de Campos para sugerir: o
sentimento que esse poema expressa é semelhante ao sentimento de Martin e, por extensão, aos
sentimentos dele, Hatoum, jovem estudante exilado na França. Enfim, “Passagem das horas”,
ao ser mencionado por Martin, no enredo de Pontos de Fuga, como parte de uma lembrança de
um fato ocorrido ano de 1979, pode ser adotado como um testemunho histórico, relativo às
matrizes intelectuais, as experiências compartilhadas por Milton Hatoum ao longo de sua
trajetória no exilio. Paralelo a esse argumento, é razoável afirmar que “todo texto se reporta a
outros textos, todo discurso remete a outros discursos”. 265
Não é demais reafirmar que essa característica migratória do literato possibilitou
determinadas condições objetivas para que, a partir de 1989, ano da publicação de Relato de
um certo Oriente, ele se tornasse um escritor legitimado, pois:
(..), estreia com um romance [Relato de um certo oriente, 1989] de ambição universal
e traços líricos, escreve na sequência dois romances [Dois irmãos, 2000 e Cinzas do
Norte, 2005] permeados por traços dramáticos, em diálogo mais evidente com
questões locais brasileiras, e, em uma espécie de volta ao começo, publica em 2008
uma novela [Órfãos do Eldorado] em que convivem utopia, lirismo e universalismo.
266
264
FRANCOIS, Frédéric. “ ‘Dialogismo’ e romance ou Bakhtin visto através de Dostoiévski”. In.: BRAIT, Beth
(org). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. – B179 2ª ed. rev. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005,
p. 197
265
FRANCOIS, 2005, p. 190.
266
MELLO, 2012, p. 13 (E como já foi abordado em, 2017 e 2019, publica-se, originalmente, A noite da Espera
e Pontos de Fuga)
267
OLIVEIRA, Marly de. João Cabral de Melo Neto: “Breve introdução a uma leitura de sua obra”. In.; MELO
NETO, João Cabral de. Obra completa : volume único; organização Marly de Oliveira. – Rio de Janeiro : Nova
Aguiar, 1994, p. 23.
86
é, A escola das facas (1979 ) e Auto do frade (1982). Do primeiro livro, reproduzo um poema:
“A voz do canavial”, para um breve comentário, averiguando similitudes entre à poética do
pernambucano à prosa do amazonense:
Os versos, acima impressos, registram uma memória que se expande em outras memórias
suscitando um movimento no tempo e no espaço: a voz do canavial pernambucano parece
traduzir a voz do mundo. Assim, o local vaza o universal; e isso se percebe no som das palavras
que brotam das folhas do jornal, quando as páginas se dobram, no ato da leitura do eu lírico,
provavelmente, em um dos espaços de sua casa, trazendo as notícias; a constância do vento,
insone, amalgamando uma imagem na outra; e, essencialmente, a representação do trabalho,
essa instituição universal, motor material e cultural da história. Percebe-se, então, que ao falar
de um canavial pernambucano, João Cabral de Melo Neto, consegue cantar o sentimento do
mundo. Assim como Melo Neto, Hatoum, através das visões do urbano, por exemplo, entretece
o regional no universal.
A citação retirada de Pontos de Fuga, utilizada acima, é um indício do que estou
afirmando. Nela coloca-se a intertextualidade, característica da interpenetração entre a literatura
de Hatoum e seu diálogo com a literatura universal, por um lado. Por outro, o fragmento
representa essa costura entre o regional e o universal através do jogo de escalas proposto por
suas visões do urbano. 269 Como o escritor amazonense afirma, seu imaginário está diretamente
relacionado às suas experiências e vivências: “Para onde vou levo esse rio 270 dentro de mim.
Quando vou a certos lugares de São Paulo [por exemplo], tenho a sensação de estar em bairros
de Manaus. No meu imaginário, as cidades brasileiras se misturam o tempo todo”. 271
268
MELO NETO, João Cabral de. A escola das facas. In.:______________________. Obra completa : volume
único; organização Marly de Oliveira. – Rio de Janeiro : Nova Aguiar, 1994, p. 419.
269
As visões do urbano no imaginário de Milton Hatoum é um tema de interesse, abordado no terceiro capítulo
desta tese.
270
O rio o qual o autor se refere é o Negro. Maior afluente da margem esquerda do rio Amazonas.
271
HATOUM, Milton. Escritor manauara leva o rio dentro de si (entrevista de Heloísa Lupinacci a Milton
Hatoum). São Paulo: Caderno Turismo. Folha de São Paulo, 9 jun. 2003, p. F 10. Apud. FANTINI, Marli. “Hatoum
87
Uma prova a mais de que a poesia de João Cabral de Melo Neto é fonte para Hatoum são
as escolhas que o escritor amazonense faz. Pois em Pontos de Fuga constam, como terceira
epígrafe, quatro versos do poema “Fabula de um arquiteto” do referido poeta pernambucano.
Iniciando o capítulo oito do seu romance Pontos de Fuga, Hatoum, relata indícios das
experiências de Martin, personagem narrador, que, para sobreviver no exílio, como também fez
Hatoum, trabalha como tradutor e professor de francês. 272 A subsequente citação é eficaz para
se perceber uma relação dialógica da ficção do escritor amazonense com a poética do literato
pernambucano:
Paris, fim do inverno, 1979.
Seis e dez. Apesar do frio, abri um pouco a janela, o cheiro no estúdio é insuportável.
Tento fazer uma versão francesa de “Tecendo a manhã”, meu aluno de Neuilly-sur-
Seine se interessou pela poesia brasileira, pinçou esse poema belíssimo e cabeludo do
João Cabral de Melo Neto, e ainda me pediu um comentário, promessa de uma ótima
gorjeta. 273
Relativo à imagem supra, obviamente, pode-se conjecturar que até mesmo antes do ano
de 1966, quando foi originalmente, publicado o livro A educação pela pedra, no qual consta o
poema “Tecendo a manhã”, Hatoum, já era leitor do poeta pernambucano. Aliás, posso até
arriscar em dizer que o trabalho intelectual de João Cabral de Melo Neto, orientou [quiçá
orienta] ao ofício de Milton Hatoum, pois ambos escolheram a arquitetura como profissão
acadêmica, e, talvez, por isso se destacaram, até o momento, pelo fato de inscreverem no centro
de seus processos criativos a constante busca de uma “arquitetura da memória”.274 Tanto Cabral
como Hatoum, encontram na memória a chave para a construção da arte literária. Sobre a
influência da obra de João Cabral de Melo Neto no processo criativo de Milton Hatoum voltarei,
brevemente, em alguns momentos desse capítulo, portanto.
Como estou elucidando, as narrativas de Hatoum adotam matrizes intelectuais e
imagéticas que abarcam influências diversas, inclusas nas tradições da literatura brasileira e
estrangeira. 275 Sutis são as suas experiências com a tradição oral e o diálogo constante com
& Rosa: Matrizes, mesclas e outras misturas”. In. CRISTO, Maria da Luz Pinheiro (org.). Arquitetura da memória:
ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. –
Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas / UNINORTE, 2007, p. 142. [os grifos são meus, a
propósito, estão aí para elucidar os meus argumentos].
272
Algumas experiências de Hatoum como professor e tradutor no exterior são abordadas no seguinte trabalho:
LEAL, Bruno Avelino. Nas trilhas de Milton Hatoum: um breve estudo de uma trajetória intelectual. Dissertação
apresentada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas/UFAM, 2010.
273
HATOUM, Milton. Pontos de fuga. – 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2019, p. 59.
274
Peculiaridade que também será verificada na comparação das trajetórias de Milton Hatoum e Luiz Braga, dois
arquitetos de formação que se transformaram também em arquitetos da memória. Hatoum, através da literatura,
Braga através da fotografia. Isto será abordado em seção deste capítulo.
275
A indicação das matrizes intelectuais e imagéticas é um dos objetivos de minha pesquisa; portanto, esta
abordagem será constante nas curvas dos três capítulos desta tese.
88
literatos brasileiros, por exemplo, Guimarães Rosa. Relativamente a este, o escritor amazonense
constrói personagens significativamente marcantes, Emile, de Relato de um certo Oriente, é um
emblemático exemplo. Pois, carrega uma peculiaridade: a representação do processo de
transculturação, isto é, a transformação, a partir do contato entre culturas. Isto aproxima
Hatoum de Rosa, visto que essa transculturação se elucida na personagem Riobaldo, narrador
do romance Grande Sertão Veredas, do escritor alagoano. Conjecturo, portanto, que tanto
Emile, como Riobaldo “é [são] legítimo [e legítima] transculturador [e transculturadora] que,
por sua vez, efetua a mediação entre ‘duas urbes culturais desconectadas: o interior-regional e
o exterior-universal”. 276
Outra matriz frequente na obra e na trajetória histórica de Hatoum, talvez desde os tempos
em que era estudante em Brasília, é o poeta mineiro Carlos Drumond de Andrade. Uma pista
disso é, obviamente, a citação que Hatoum utiliza como epígrafe de seu segundo romance, Dois
irmãos:
A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou envias de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista no mundo
seus imponderáveis [...].
No plano da literatura estrangeira, muitos aparecem como fonte para Hatoum. Talvez, o
mais evidente é Gustave Flaubert, a quem o próprio Hatoum já assentiu inúmeras vezes, em
seus depoimentos, ser um devedor, como já foi debatido no primeiro capítulo desta tese, com
efeito. Literatos hispano-americanos, como Jorge Luiz Borges, destacam-se como fontes
significativas de Hatoum, pois, “foi a linguagem, uma linguagem que combina imaginação e
exatidão, ou exatidão na imaginação”277 que, desde as primeiros contatos com o escritor
argentino, chamou a atenção de Hatoum. A obra de Hatoum é fascinante, principalmente,
porque acompanha as experiências compartilhadas e as vivências: “combina a melhor tradição
moderna (desde Proust até Autran Dourado, ou seja, a cultura dominante) e outras tradições
árabes e subalternas que às vezes oferecem novas imagens dentro da cultura hegemônica’ ”. 278
Assim, o uso dos relatos orais, converge a narrativa do amazonense a escritores, qual Marcel
276
FANTINI, Marli. “Hatoum & Rosa: Matrizes, mesclas e outras misturas”. In. CRISTO, Maria da Luz Pinheiro
(org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do
Norte de Milton Hatoum. – Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas / UNINORTE, 2007, p. 131.
277
BRUNN, Albert von. Milton Hatoum: entre Oriente e Amazônia. Tradução: Rafael Rocca dos Santos. – São
Paulo : Humanitas, 2018, p. 11-12.
278
WILLIAMS, Raymond. L. “A ficção de Milton Hatoum e a nova narrativa das minorias na América Latina”.
In.: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de. (org.) Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois irmãos,
Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte. – Manaus : Editora da Universidade Federal do Amazonas/
Uninorte, 2007, p. 170.
89
Proust. Este que, como será abordado no terceiro capítulo desta tese, parece ter influenciado
Hatoum, também, sobre a importância da fotografia como “metáfora da memória”. O escritor
amazonense dialoga com muitos escritores das minorias, os quais relacionam a identidade do
clã à tradição oral. 279
Nos romances e outros gêneros literários utilizados por Hatoum, é perceptível uma
escolha, diria política: a elucidação da voz narrativa surgindo desde baixo, posto que, na maioria
de suas obras, é dos escombros, das ruínas, do espaço da segregação que brotam as vozes que
narram. Isso se espraia do plano da imaginação e ganha a realidade, muita das vezes. Pois uma
parte de Hatoum é aquilo que seus livros revelam por meio da ficção. A outra parte, dentre
diversas outras, se manifesta através de seus inúmeros depoimentos. Nestes, por vezes pululam
uma determinada postura política. É possível verificar esse caráter quando se reporta ao público
leitor, também, por meio de sua oratória. Por falar nisto, em uma breve passagem pela cidade
de Manaus, quando veio divulgar seu romance Pontos de Fuga, num auditório com a maioria
de estudantes e professores do curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA),
após a fala de Hatoum, a pessoa que estava mediando a mesa redonda, naquela ocasião,280
oportunizou o momento para rodadas de perguntas, surgiram muitos questionamentos, dentre
estes os seguintes: “Qual tribo tu frequentavas quando jovem, em Manaus, em Brasília, em São
Paulo, por exemplo? E agora, a que tribo tu pertences?”281
Assim, Hatoum respondeu:
As tribos? Ah! Eu sou da tribos dos.. dos anarquistas, dos doudivanos, dos comunistas,
dos desgarrados, das feministas, dos antirracistas. Essa é minha tribo. [aplausos].
Portanto, eu sou odiado por alguns. Vocês devem imaginar por quem, mas isso não
me preocupa nem um pouco, nem um pouco. 282
Penso que essa reposta é, decerto, um testemunho das escolhas políticas que acompanham
Hatoum desde os tempos de juventude. Se consideradas suas vivências e experiências, percebe-
se em seus romances a polifonia entre os narradores/narradoras e o autor implícito, inscrito na
estrutura das narrativas. Pois nos dois mais recentes romances, por exemplo, as imagens
279
Essa peculiaridade de Milton Hatoum é analisada pelo historiador da cultura Raymond Williams, no ensaio “A
ficção de Milton Hatoum e a nova narrativa das minorias na América Latina”. In.: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro
(org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do
Norte de Milton Hatoum. – Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas / UNINORTE, 2007.
280
Mediou a mesa a Profª. Drª Juciane dos Santos Cavalheiro, do departamento de Letras da Universidade do
Estado do Amazonas e, a época, Pós-Doutoranda, no Programa de Pós-Graduação da UnB, em Milton Hatoum.
281
A pergunta foi feita por mim no auditório da Escola Superior de Tecnologia (EST) da Universidade do Estado
do Amazonas (UEA), em Manaus, na tarde de 06 de dezembro, sexta-feira.
282
HATOUM, Milton. Fragmento de depoimento gravado em Manaus, na tarde de 06 de dezembro de 2019, sexta-
feira. no auditório da Escola Superior de Tecnologia (EST) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA),
quando o escritor fez palestra de lançamento de seu romance Pontos de Fuga.
90
representadas no tempo do enunciado dizem muito sobre o tempo histórico em que viveu o
literato amazonense nas décadas de 1960 e 1970, tanto no Brasil, como no exterior.
Coloquei os grifos na citação acima com o propósito de verificar a conjuntura em que
essa fala é articulada, o ano de 2019. Ora, nesse chão histórico, é peculiar uma determinada
evidência relativa à tomada de posição política da grande maioria de intelectuais brasileiros;
inclusive àqueles que, há muito viviam no ostracismo por opção, como, por exemplo, Ruadan
Nassar. 283 Ao lado desses intelectuais, Hatoum se dispõe. Seus depoimentos, no Brasil e no
exterior, são contundentes. Adiante reproduzo fragmentos de uma destas declarações, feita na
França, em 2018:
A eleição de Bolsonaro foi uma derrota brutal, e para a cultura acima de tudo. Fomos
derrotados pela extrema direita, não é trivial, mesmo que a impressa brasileira por
desonestidade intelectual, não diga que Bolsonaro é de extrema direita. Apelamos
mais uma vez a solidariedade da França, que acolheu muitos exilados, durante
ditaduras na América Latina. [...]. A vitória de Bolsonaro liberou o racismo, o
machismo e a homofobia. Ele fala de pessoas negras como se fossem animais; ele
disse que preferia morrer a ter um filho gay e tacitamente admite estupro [...]. Ser
escritor em um país onde o presidente tem como seu livro de cabeceira as memórias
de um torturador da ditadura, é loucura! [...]. Bolsonaro não se importa com a cultura.
Ele é um homem sem educação, vulgar, de terrível ignorância. Seu governo é anti-
intelectualista por princípio. [...]. 284
283
Premiado escritor brasileiro, autor de Lavoura Arcaica, Um copo de cólera, Menina a caminho, “Safrinha”.
Professor de Hatoum no período em que estudou na USP. Este escritor também é uma significativa matriz
intelectual para a obra de Milton Hatoum. E, conforme declarações de Hatoum, um fecundo leitor de seus textos
ainda no formato manuscrito.
284
HATOUM, Milton. “Milton Hatoum: a vitória de Bolsonaro libertou o racismo, o machismo, a homofobia”.
(entrevista de Chatal Rayes a Milton Hatoum). http//:www.liberation.fr – publicado em 11 de dezembro de 2018;
acessado em 14/04/2020; às 19:13H. A entrevista foi concedida na oportunidade em que Hatoum esteve na França
para receber o prêmio Roger Caillois de Literatura Latino Americana, ocorrido em 13 de dezembro de 2018.
91
de classe, na acepção de Pierre Bourdieu.285 Evidências dessa afirmação, constam nos romances
Dois irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e A noite da Espera (2017) [para ficar somente
nesse gênero literário] os quais, respectivamente, representam, no tempo de seus enunciados,
as experiências políticas de Hatoum, no ensino secundário, em escolas públicas: em Manaus e
Brasília; também recuperam um imaginário das lutas estudantis, nas quais o autor esteve
envolvido, no contexto da ditadura militar brasileira, quando cursou o ensino médio na escola
de formação da UnB. No romance Pontos de Fuga, já foi tido, é possível tecer conjecturas sobre
o processo de formação do caráter político de Hatoum no âmbito de sua graduação na
Universidade de São Paulo (USP).
A conexão com a escola e com o ensino público, talvez, seja uma peculiaridade para se
notar, brevemente, duas questões inseridas nos romances de Hatoum. Primeiro a constante
preocupação de, através de suas obras, dar condições de possibilidade para que a história
ensinada apresente nuances divergentes ao ensino da história tradicional. Segundo, construir
uma narrativa para, quando for adotada como fonte de análise [nos mais diversos campos do
saber – mas aqui estou pensando na História e Ensino da História] traga problematizações às
metodologias no processo de ensino/aprendizagem acerca do significado do tempo passado e,
por extensão, a leitura de contexto do tempo presente. A propósito de meus argumentos, faço
uma breve divagação. Para tanto, me aproprio de um fragmento da narrativa que serve de fonte
de história, essencial, para esta tese. Trata-se de uma passagem da novela Órfãos do Eldorado,
publicada, originalmente, em 2008, onde o narrador, Arminto Cordovil, lembra das memórias
de seus ancestrais:
Amando contava com atos heroicos de Edílio: a coragem como ele e seus soldados
derrotaram mais de trezentos revoltosos na batalha do Uaicurapá. Mas outras vozes
desmentiam esse heroísmo, diziam que em 1839 Edílio havia comandado um
massacre contra índios e caboclos desarmados. Depois dessa matança, ele tomou
posse de uma área imensa na margem direita do Uaicurapá. Um sobrevivente deve ter
gravado os crimes do tenente-coronel Edílio Cordovil no tronco de uma árvore
secular. Amando queria escrever um livro, “Façanhas de um civilizador”, uma elegia
ao pai dele, um dos líderes da contra-revolta. Não escreveu nada, os cargueiros
sugaram toda a sua energia e tempo. 286
285
BOURDIEU, Pierre. “Campo do Poder, Campo Intelectual e Habitus de Classe”. In.: A Economia das trocas
simbólicas. – 5ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2001.
286
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. – São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 71.
287
Conjecturo que no conjunto da obra de Milton Hatoum se sugere um determinado tipo ideal de pessoa leitora:
aquela que se propõe fazer leituras a contra pelo. Corroborando, assim, com a refutação da concepção tradicional
da História da Amazônia e, por extensão, do Brasil.
92
interpretação da história contrária aos padrões tradicionais. Para ele, não vale mais a pena
reproduzir a História, mas, ao contrário disso, abrir chaves para histórias, estas nascidas a partir
das ruínas do passado: onde brotam mônadas. Por isso, as outras vozes narradoras, subversivas,
à voz da personagem que representa a memorialística reacionária, oficial, sugeridas no entrecho
acima pelo autor implícito, suscitam, igualmente, outras formas de interpretação da efeméride
vinda à lume – a Cabanagem (1835-1845) 288. Assinto, portanto, que essa ideia de história
inscrita em suas obras, se edificou no bojo de seu habitus de classe 289, essencialmente, no
âmbito da cultura escolar em que Milton Hatoum experimentou. Pois, aí, vivenciou a leitura de
clássicos da literatura nacional e estrangeira, as quais apresentam narrativas que se contrapõe à
História Oficial. Hipótese que, de certa forma, procurarei argumentar também ao longo do
primeiro capítulo. 290 Ora, um escritor se faz através das formas socialmente herdadas, por meio
das notações e convenções, igualmente, socialmente herdadas e ainda vivas, de lado a lado, às
experiências e consciências continuadas e construídas no âmbito cultural e social em que se
insere gradativamente. 291
Como Hatoum afirma:
288
Sobre a Cabanagem, oportunamente, indico dois trabalhos importantes: RICCI, Magna. “Passos imperiais e
(des)compassos cabanos: Belém e sua ‘índole’ – 1800-1840”. In.: SARGES, Maria de Nazaré; LACERDA,
Franciane Gama (orgs). Belém do Pará: história, cultura e cidade: para além dos 400 anos. 2. Ed. ver. E ampl. –
Belém: Açaí, 2016, o qual verifica a ação dos cabanos na cidade de Belém. Cf. BARRIGA, Letícia Pereira. Entre
leis e baionetas: independência e Cabanagem no médio Amazonas (1808-1840). Dissertação (Mestrado) –
Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História
Social, Belém, 2014. – A autora verifica a expansão da Cabanagem para o médio Amazonas. Sobre a presença dos
Cabanos na cidade de Parintins e adjacências as pesquisas ainda estão incipientes. Há evidências inscritas na
memória social de antigos habitantes da referida cidade acerca da presença dos cabanos na comunidade do
Uaicurapá. Talvez tenham sido tais evidências, e possíveis outras, utilizadas por Hatoum para elaborar o
imaginário sobre a Cabanagem inscrito na citação retirada da novela Órfãos do Eldorado. Para uma consulta sobre
os cabanos na memória de habitantes de Parintins verificar: ANDRADE, Renan Jacauna; FERREIRA, Arcângelo
da Silva Ferreira. Lembranças de uma luta social: a Cabanagem no imaginário parintinense. Trabalho de
Conclusão de Curso. História (CESP/UEA), 2014.
289
BOURDIEU, Pierre. “Campo do Poder, Campo Intelectual e Habitus de Classe”. In.: A Economia das trocas
simbólicas. – 5ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2001, p. 183-202. Não de forma metódica, mas talvez
o leitor perceba, ao logo da leitura desse capítulo, que procurei responder algumas indagações a partir das
preposições colocadas pelo referido sociólogo ao buscar adentrar nas veredas intelectuais trilhadas por Milton
Hatoum: Qual o lugar da obra do escritor amazonense no campo ideológico e intelectual em que está inserido?
Onde residem suas tensões, se considerados seus posicionamentos político e estético? Qual o conjunto de fatores
que ajudam a compreender sua inserção no campo ideológico no campo intelectual. Nessa perspectiva, onde reside
sua tomada de consciência no que tange a sua condição de classe? Qual seu lugar, como intelectual, no campo do
poder? Se não de forma direta, estas questões, mas de forma latente, amalgamam minhas reflexões.
290
Conferir esse debate também em: FERREIRA, Arcângelo. “O imaginário de Hatoum: campo de possibilidade
para o saber histórico e para o ensino de história”. In,: MONTEIRO, Solange Aparecida de Souza Monteiro.
Filosofia, política, educação, direito e sociedade 2. – Ponta Grossa (RN): Atena, 2019. - Nesse ensaio faço um
relato de experiência sobre a utilização da novela Órfãos do Eldorado em uma oficina voltada à História e ao
Ensino de História.
291
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Tradução de Waltensir Dutra. Zahar Editores. Rio de Janeiro,
1979, p.192
93
A literatura é uma forma de conhecimento. Ela não explica nada, nem deve explicar.
O romance não deve ser didático, nem explicativo. Ele tem que interrogar sobre o
mundo. Mas o romance é uma forma de conhecimento. Eu mesmo, na minha
juventude, quando li trechos de “Os Sertões”, ou quando li “Vidas Secas”, ou quando
li “O continente”, do Érico Verissimo, descobri um outro Brasil. Eu achava que o meu
mundo era aquele mundo superlativo da Amazônia – os amazonenses têm esse
orgulho, essa ideia de que tudo é grandioso, fenomenal, hiperbólico - , mas existia o
Brasil de carências, carência de água, carência de tudo, de saber. E isso eu descobri
pela literatura quando eu estava em Manaus. 292
E Hatoum é sabedor disso, pois, como procuro expor e problematizar em meu estudo, o
escritor amazonense, por meio de seus romances, novela, essencialmente, a que eu uso como
corpus de análise,[Órfãos do Eldorado], é visível o valor que ele atribui à literatura e à história:
ambas se entretecem e são vetores para a compreensão da realidade social, assim, como para a
crítica social e histórica. As pessoas leitoras perceberão, ao longo de minha narrativa, que por
algumas vezes eu assinto, na esteira de Walter Benjamin, que Hatoum, através da sua arte
literária, procura fazer justiça histórica [adiante isto será discutido mais detalhadamente].
Dito isto, volto àquela ocasião do evento mencionado supra [na cidade de Manaus].
Lembro que Hatoum foi indagado sobre um possível reconhecimento público em sua cidade
natal, assim, respondeu; o retorno traz mais sinais do seu perfil político, como procuro indicar
após a transcrição subsequente:
Eu prefiro que nem haja isso porque no dia que fizerem um nome de uma rua eu vou
desconfiar [risos do escritor] não só da rua, como da minha obra também. Se quiserem
ligar meu nome ou alguma coisa à minha cidade que essa relação seja com a escola
pública, porque eu devo tudo a escola pública [aplausos] e na verdade eu nunca
consegui falar, dar uma palestra para professores da escola pública de Manaus,
municipal, já fiz isso em vários lugares. O último, em São Paulo, tinha mais de
trezentas pessoas do ensino público de São Paulo, convidado pela Prefeitura de São
Paulo, pela Secretaria de Educação. Enfim, em Manaus eu nunca fui convidado, eu
acho que nenhum ou poucos escritores foram convidados pra falar. Não é sobre
política, porque eu não gosto de falar de política. Eu gosto de falar de literatura, vocês
perceberam. Mas, eu não sei, eu acho que não interessa também ao poder, sabe:
convidar um escritor pra falar. E no entanto, eu sou tão inofensivo. O que que eu ia
falar com os professores, eu ia falar das minhas leituras, da minha formação, do
Graciliano Ramos. De como que eu conheci profundamente o Brasil, através da
292
HATOUM, Milton. Milton Hatoum fala sobre a importância das Universidades (entrevista de Mauro Malin a
Milton Hatoum). Acesso: redeglobo.globo.com. acessado em 18/05/2020, às 16:57H.
293
GINZBURG, 2007, p. 174.
94
literatura, na minha juventude porque nem havia televisão. Mas não me recinto não
porque eu acho que a pior coisa, eu devo ter muitos vícios, mas uma virtude eu tenho:
eu acho que nunca me ressenti. Mas que eu tenho bons leitores, e não são poucos,
aqui, eu tenho. E disso eu me orgulho, muito. 294
O indício é prenhe do matiz político. Apesar de ele ter afirmado que não iria falar de
política, caso fosse convidado para fazer uma palestra em uma das escolas públicas da cidade
de Manaus, que iria falar de seu processo criativo, das suas influências intelectuais, essa fala,
em si, vaza uma postura extremamente política, uma determinada afinidade com o tipo ideal de
intelectual formulado pelo crítico literário e cultural Edward W. Said. Num certo sentido a
postura do escritor amazonense converge com os posicionamentos políticos do pensador norte-
americano: ambos usam suas obras para questionar a ordem dos valores vigentes, contudo, não
se atrelam, no que tange a militância partidária, às entidades políticas. Entretanto, não se
consideram apolíticos, qual Martin, a personagem narradora da trilogia O lugar mais sombrio.
Sobre essa afinidade com Said, lembro as pessoas leitoras, que já fiz menção no primeiro
capítulo, e mencionarei, brevemente, no próximo segmento desse capítulo.
No momento, assinto que Hatoum revela seu posicionamento político através do ato de
escrever. Suas obras também buscam uma determinada escolha. Lembrando de um dos estudos
do russo Mikhail Bakhtin295, eu diria que a problemática da poética de Hatoum se relaciona
também com o peculiar sentido que suas narrativas trazem à história. A obra do escritor
amazonense Milton Hatoum, mantem determinadas peculiaridades que podem ser observadas,
por exemplo, através de uma relativa dialógica, entre as experiências históricas, inscritas na sua
trajetória intelectual. E isto diz respeito à subjetividade. A relativa intertextualidade, no bojo
das narrativas elaborada pelo autor, assim como entre determinados personagens, tramas,
imagens que se interpenetram nos romances, novelas, crônicas, contos escritos pelo autor.
Peculiaridades que me remetem aos estudiosos de Bakhtin, quando ponderam: “[...], o
dialogismo [...] define o texto como um ‘tecido de muitas vozes’ ou de muitos textos e
discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si
no interior do texto. [...].”296 Especialidade inerente à escrita criativa de Hatoum. Esta é visível
nos mais recentes romances do escritor amazonense. Há um determinado dialogismo entre seus
romances. Por isso, necessário se faz perceber, mais de perto, algumas amostras intertextuais
294
Entrecho retirado das respostas às perguntas feitas a Milton Hatoum quando ele veio à cidade de Manaus em
06 de dezembro de 2019, lançar o seu livro Pontos de Fuga. Esse evento ocorreu em uma tarde de sexta-feira no
auditório da Escola Superior de Tecnologia (EST) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
295
BAKHTN. M.M. Problemas da poética de Dostoiévski; tradução de Paulo Bezerra. 4ª ed. – Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008.
296
BARROS, Diana Luz Pessoa de. “Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso”. In.: BRAIT, Beth. (org.).
Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2ª ed. rev. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005, p.33.
95
inscritas nas narrativas de Hatoum. Assim como os diálogos que se fazem ecoar entre
personagens que atravessam os romances. O exemplo mais evidente é, como já foi colocado
aqui, Martin, pois ele, obviamente é o amalgama da narrativa que costura o enredo da trilogia
O lugar mais sombrio. Contudo, Hatoum já vem inserindo imagens e personagens que pululam
entre suas narrativas e, por extensão, emitem discursos que se interpenetram entre os seus
romances. Linhas adiante, noutra seção, abordarei essa problemática.
Nesse momento, abro espaço para falar brevemente de um debate que, decerto, será
retomado, minuciosamente na seção subsequente: a ponderação em torno do sentido da história
em Hatoum. Ora, é uma das peculiaridades do mencionado escritor elucidar as narrativas a
partir de vozes que brotam res do chão [pra também usar um termo do historiador italiano
Giovanni Levi], oriundas das lutas dos silenciados; as quais suscitam um convite à reflexão
sobre a busca da justiça, da consciência, históricas. Senão, observem estes fragmentos: “Parece
que o medo governa o mundo... e governa com terrível eficiência”297, “sem a memória dos
outros eu não poderia escrever”. 298 Eis um exemplo onde está representado o sentido de
história, inscrito na literatura de ficção, de Milton Hatoum. Sentido que aparece desde o seu
primeiro livro: Amazonas, palavras e imagens de um rio entre ruínas, o qual já foi mencionado
no primeiro capítulo desta tese, mas que por aqui retomarei.
Reunindo determinados conhecimentos a partir de acontecimentos passados, através da
observação consciente, pela reflexão299, Milton Hatoum reuniu algumas experiências políticas,
construídas através de suas vivências, essencialmente, intelectuais. Para ele, a memória é um
amalgama por onde vazam todas as suas experiências compartilhadas, estas, onde ele remonta
as ruínas, deixadas nos escombros do Tempo. Para ele, ainda, o medo é uma sensação, por onde
pode ser representado um período de longa duração. E esta reflexão é suscitada através de sua
mais recente trilogia. Como ele deixa evidente em seus depoimentos, reproduzidos nesta tese;
também nas imagens que constrói através de sua poética. No fragmento abaixo, por exemplo,
Martin, espera por sua mãe. Essa passagem pode ser interpretada como a alegorias política de
um tempo. Tempo em que a liberdade era, constantemente, aguardada:
No quarto do Grande Hotel em Goiânia terminei a leitura, fiz anotações e passei o
resto da noite numa quase vigília, à espera da mulher que bateria à porta e dormiria
ao meu lado. A crença de que a qualquer momento ela chegaria dificultou meu sono,
eu emergia assustado de um cochilo e via o rosto da minha mãe num lugar sombrio
do quarto, ou deitada na cama, o corpo quieto e frio como o de uma morta; essas
297
HATOUM, 2017, p. 137.
298
HATOUM, 2017, p. 71.
299
WILLIAMS, Raymond. “Experiência”. In.: ___. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade;
tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. – São Paulo: Boimtempo, 2007, p. 172.
96
300
HATOUM, 2017, p. 98.
301
TEZZA, Cristovão. “A construção das vozes no romance”. In.: BRAIT, Beth (org). Bakhtin, dialogismo e
construção do sentido. – B179 2ª ed. rev. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005, p.210.
97
“[...], sem a memória dos outros eu não poderia escrever”. 303 É sabido que Milton Hatoum
utiliza a memória como amálgama de seus enredos. Desta forma, o autor costura o seu
imaginário. Entretece determinados espaços, paisagens, personagens as quais atravessam seus
poemas, romances, novelas, contos, crônicas. Perceptíveis são os percursos que suas
personagens fazem entre as narrativas onde estabelecem relações dialógicas. Constatação que,
de certa forma, pode ser empregada para corroborar a hipótese que, como já se sabe, atravessa
minha investigação histórica: desde seu primeiro livro, Hatoum pretende suscitar uma outra
história da Amazônia, partindo da oralidade e da memória, recortando um período que abarca
os anos finais do século XIX até a oitava década do século XX (levando-se em consideração
toda sua obra, inclusive a mais recente trilogia, a qual abarca as décadas de 60, 70 e 80 do século
passado). Nesta seção, busco observar essa peculiaridade, dialógica e intertextual inscrita nas
narrativas de Hatoum, visto que, ao que parece, também na obra do literato amazonense, “[...].
Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina e nada resolve. Duas vozes são o
mínimo de vida, o mínimo de existência”. 304
Conforme as oportunas palavras do russo Mikhail Bakhtin eu recorro ao livro de estreia
de Hatoum, Amazonas: palavras e imagens de um rio entre ruínas, o qual já referi no capítulo
inicial desta tese. Livro, onde consta polifonia a partir da relação dialógica entre vozes
representadas nos poemas. Na esteira dos estudiosos do, anteriormente mencionado, filósofo,
linguista, crítico de arte etc., considero que nesse “diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso,
existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma
sociedade.” 305. No poema do escritor amazonense, que linhas mais abaixo lançarei mão, ocorre
302
Na esteira deste conceito [dialogismo], formulado a partir da riqueza crítica sobre a obra de Dostoievski,
essencialmente, pelo historiador da linguagem Mikhail Bakhtin, procuro a relação dialógica entre as narrativas de
Hatoum, na intenção de comprovar a hipótese ancorada na ideia de que o referido escritor entretece enredos,
através de imagens e personagens que migram de uma narrativa na outra. Assim, penso que o escritor pretende
desenvolver uma tessitura marcada pela descontinuidade, mas também pela continuidade, na pretensão de elaborar
aquilo que estou chamando de epopeia moderna. Desde o lançamento de seu segundo romance, esse recurso se
apresenta nas sutilezas e peripécias de sua escrita criativa. Pois, como vou argumentar, ancorado nos estudos que
reviso, todas as obras que vem após o romance Relato de Um certo Oriente, apresentam fios e rastros, marcados
por uma polifonia que estende elos entre memórias, as quais entretecem as narrativas de Hatoum, pois o literato
amazonense é, decerto, herdeiro da tradição técnica literária que se espraia desde a obra clássica As mil e uma
noites. É o que pretendo argumentar nesta seção, portanto.
303
HATOUM, 2017, p. 71.
304
BAKHTIN, 2008, p. 293.
305
BRAIT, Beth. “Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem”. In.: ___________. (org.)
Bakhtin. Dialogismo e construção do sentido. – 2ª ed. rev. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005, p. 94.
98
a polifonia. O diálogo entre vozes, representadas através das configurações do eu lírico, inserido
no contexto da narrativa do poema, do autor-criador da obra (Hatoum) e das vozes de
determinados discursos ideológicos balizados na ideia de progresso à Amazônia. Colóquio,
portanto, que insere no centro do debate, lembranças, memórias e histórias que giram em torno
do emblemático rio Amazonas. Este que comporta muitos alvitres, emitidos através de vozes
subsumidas, dos sujeitos que ficaram silenciados nos discursos oficiais do poder. A recorrência
das palavras e das imagens [as fotografias que retratam a sociedade, a natureza e a cultura, ao
longo do rio Amazonas], são os argumentos que Hatoum, e as pessoas coautoras do seu primeiro
livro, utilizam, para remover dos escombros, as ruínas onde se encontram história, lembranças
e memórias do rio Amazonas, seus fios e rastros, portanto. Assim, o poema canta outras
histórias desse rio em ruínas: as anônimas. Perspectiva latente na obra de Hatoum, pois em seu
segundo romance ele registrou: “nenhum passado é anônimo” 306.
Assim como na conjuntura atual, no ano da publicação original do livro (1979), a região
amazônica já estava ameaçada pelos interesses do capitalismo internacional atrelado à política
entreguista nacional, balizado na constante voz desse discurso que se reveste da ordem
estruturada, historicamente, através dos projetos de colonização, neocolonização, imperialismo,
globalização etc. da Amazônia. 307 Observem a polifonia na qual estou me referindo:
306
HATOUM, 2006, p. 125.
307
Não é demais reafirmar que o projeto de ocupação e monopólio da região amazônica tem início no século XVII,
1616, pra ser mais exato, motivado por uma questão militar: a coroa Portuguesa necessitou montar suas bases
geopolíticas e culturais devido às investidas dos franceses, ingleses e espanhóis à região que, no referido contexto,
pertencia, conforme o Tratado de Tordesilhas (1494), ao reino de Portugal.
308
Estes primeiros versos indicam a fala do eu-lírico, este personagem narrador inscrito no poema. As
interrogações feitas, logo na primeira estrofe do poema, mostram uma perspectiva relativa à “história
problemática”, peculiaridade da literatura de Hatoum, desde o seu primeiro livro [como venho argumentando nesta
tese]. Nessa medida, estes versos remetem às reflexões de Mikhail Bakhtin, acerca do discurso em Dostoievski,
especificamente, àquilo que o russo denomina “discurso monológico”. Pois, o eu-lírico, do poema de Hatoum
dialoga com os fatos, questionando-os, induzindo sobre estes, tirando determinadas conclusões. Bakhtin, faz essa
discussão quando verifica o discurso monológico de Raskólnikov, personagem de Dostoievski. No que tange ao
poema de Hatoum, quando o eu-lírico fala do rio, ao mesmo tempo, ocorre os discursos: monológico, polifônico e
o dialogismo. Dizendo em outros termos, percebe-se um discurso de si, consigo mesmo, paralelo a isto, diversas
vozes de sujeitos históricos que narram sobre suas existências relativas ao cotidiano do rio Amazonas e, ainda a
relação dialógica, entretecendo experiências e vivências através dos diálogos que se cruzam. Estou usando a 5.
Edição do livro Problemas da Poética de Dostoiévski de Mikhail Bakhtin; tradução direta do russo, notas e prefácio
de Paulo Bezerra. Publicado pela Editora Forense Universitária, do Rio de Janeiro, no ano de 2013. Mais
especificamente as ponderações feitas pelo russo, localizadas na página 275.
99
Ecos,
do teu erótico verbo. 309
E para corroborar meu argumento, vejo a necessidade de reproduzir uma das imagens do
referido livro (p.15):
309
HATOUM, et. al., 1979, p.8. Novamente lembrando das reflexões de Mikhail Bakhtin sobre os Problemas da
poética de Dostoiévski, o poema de Milton Hatoum, emitem a voz penetrante do Outro: discurso que revela as
lutas cotidianas, as aspirações revolucionárias, o erotismo, por sinal: “discurso penetrante capaz de interferir ativa
e seguramente no diálogo interior do outro, ajudando a reconhecer sua própria voz”. Estou usando a 5. Edição do
livro Problemas da Poética de Dostoiévski de Mikhail Bakhtin; tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo
Bezerra. Publicado pela Editora Forense Universitária, do Rio de Janeiro, no ano de 2013. O trecho foi retirado da
página: 281.
100
Essa fotografia me fez lembrar das palavras de Milton Hatoum registradas noutro trabalho
do escritor amazonense: “ Aqui, fato e ficção se entrelaçam como fibras de uma palmeira que
tecem um jamachi”. 311 A menina e sua ancestral, juntas para uma longa viagem iniciada na
cidade de Belém, que se espraiará até Manaus – banhada pelo rio Nego, onde, nesse trajeto,
navegariam pelo rio Amazonas, um dos maiores do planeta Terra, o qual ganhou,
historicamente, muitas denominações. 312 Olhares, da criança e sua antepassada, semelhante ao
olhar de Halim, significativa personagem de Dois irmãos, romance que Hatoum iria escrever
mais de vinte anos após essa profícua viagem: olhar “procurando a serenidade nas águas que
espelhavam nuvens brancas imensas”. 313
310
Fotografo professor. Nasceu em 1951, em São Paulo. Em 1974, forma-se em engenharia de produção pela
Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP). No centro acadêmico da Poli/USP, organiza o
laboratório de fotografia. Nos anos de 1978 a 1982, atua no laboratório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP (FAU/USP). A relação dialógica de Hatoum com a fotografia, o que demonstro no terceiro capítulo de
minha tese, deve muito a amizade que ele manteve com Musa. Pois, quando o literato estudou na faculdade de
Arquitetura da USP, participou das atividades desenvolvida no laboratório de fotografia, aquela conjuntura
organizado pelo referido fotografo. .
311
HATOUM, Milton. “Laços de parentesco: Ficção e Antropologia”. Raízes da Amazônia, Ano I – V.1 -, nº 1-,
2005 – Manaus INPA, 2005, p. 84.
312
Fora do território brasileiro, Apurima, Ene, Tambo, Ucayali, entre outros. No Brasil, adota os seguintes nomes:
Solimões, Negro, Amazonas.
313
Hatoum, 2000, p.183.
101
Fiz duas longas viagens ao Alto rio Negro. A primeira, em 1976, com um grupo de
amigos da FAU-USP: uma viagem de barco, de Manaus a Camanaus, próximo de São
Gabriel da Cachoeira. Viajamos durante um mês inteiro, conhecendo os povoados do
rio Negro, conversando com ribeirinhos, índios, missionários, pescadores. Três anos
depois, antes de passar uma longa temporada na Europa, voltei sozinho àquela região.
Tinha em mente escrever um longo artigo sobre a “aculturação” de algumas tribos, a
relação entre os Macu e os Tucano, a presença de missionários, militares garimpeiros
etc. Passei algum tempo entre São Gabriel da Cachoeira, Cucuí e Iaureté, e me deparei
com um mundo complexo, que as minhas leituras etnográficas não bastavam para
explicar. No fim, não escrevi o artigo, e voltei deprimido com a situação desses povos
espoliados material e simbolicamente por religiosos, militares, comerciantes e
abandonados pelo poder público. O fato é que essa última viagem ficou viva na minha
memória, e até hoje as anotações de campo, as observações de um leigo sobre uma
região que sempre me atraiu. Afinal, o rio Negro diz muito para mim, desde a infância:
é o rio que banha minha cidade, cujo nome ( Manaus) e boa parte de sua população
são originários de povos indígenas. 316
É visível que Hatoum elabora a construção de seu olhar multifacetado sobre a sociedade,
a natureza e a cultura amazônica, primeiro, através das experiências de leitura oportunizadas,
essencialmente, pelos relatos dos cronistas (séculos XV ao XVIII) e naturalistas (século XIX)
europeus, os quais estão frequentes em sua prosa de ficção, como verificarei, alguns indícios,
no terceiro capítulo desta tese. Contudo, por meio das vivências, in loco, o literato manauara,
também fez seus registros etnográficos ( mesmo que de forma amadora) 317: quando se deparou
314
HATOUM, 2005, p. 83.
315
BAKHTIN, 2008, p.218.
316
HATOUM, 2005, p. 85.
317
No capítulo 4 do livro Nenhuma Ilha é uma Ilha: quatro visões da literatura inglesa, do historiador italiano
Carlo Ginzburg; tradução de Samuel Titan Jr., publicado pela Companhia das Letras (SP), 2004, mais
102
com realidades pouco vistas nos livros que havia lido. Assim, tocado pela história e memória,
relativas à trajetória da região a qual é, também, originário, parece ter adotado, como um dos
propósitos de seu projeto literário, a representação das vozes subsumidas nas brumas do tempo.
Fios que desenham os rastros da história que acompanha o percurso e o movimento das águas
dos rios amazônicos. Rios (o Negro, o Amazonas, por exemplo.) que servem de mote para a
composição das narrativas imaginárias do escritor e, por extensão, águas que vazam essa
polifonia, guardada nas lembranças das populações das várzeas e aquelas que se fixaram nos
ecossistemas de terra firme, “autóctones”318 ou não (como a família de Hatoum, descendente
de libaneses), inúmeras e diversas, existentes na Amazônia: “[...] eu me lembro, sempre tive
sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia de rio.”. 319
Observando a obra de Hatoum, desde seus primeiros projetos literários, latente já estavam
evidências da sua polifonia, a qual ele projetava suscitar. Não sem sentido, a relação dialógica
com o Outro foi/é uma constante preocupação inscrita na arte literária do escritor em estudo.
Ora, “o olhar e o ouvir de Nael [narrador de Dois irmãos, por exemplo] estão completamente
voltados para o outro. [...]. E sua procedência será o que ecoar disso, [...].320 Para corroborar
essa hipótese, reproduzo a voz do narrador do segundo romance de Hatoum (que por sinal é
uma continuidade do romance Relato... 321), Dois Irmãos:
especificamente na página 105, consta uma reflexão, significativa, acerca da experiência da escrita de Bronislaw
Malinowski, sobre os registros de seus apontamentos em diário de campo, quando fez a etnografia que resultou no
clássico: Argonautas do Pacífico Ocidental. Diz o historiador: “Deve ter sido justamente a experiência da escrita
do diário que o ajudou a reconhecer o papel desempenhado pela teoria na interpretação de dados dispersos,
transformando-os em fatos dotados de significados”. Usando esse episódio, conjecturo que as experiências de
Hatoum, no que tange ao exercício de observação e escrituração de determinados apontamentos sobre a vida
cotidiana dos indígenas, no Alto rio Negro, foi fecunda no processo de sua escrita criativa. A composição da
personagem Domingas (Dois Irmãos) e Dinaura (Órfãos do Eldorado) corresponde a um testamento histórico
desta afirmação, em suma.
318
Várzea e terra firme, são os dois ecossistemas, predominantes, na região Amazônica desde o processo de
ocupação das primeiras sociedades. Considerando as conclusões acerca da idade do homem americano, inexistiram
populações originárias do continente americano, conforme os estudos arqueológicos, e etnohistóricos,
principalmente. Nesse sentido, os primeiros habitantes são oriundos de processos migratórios vindos da África,
Ásia, Oceania. Daí a colocação das aspas na palavra autóctone. Sobre esse debate, verificar as pesquisas de
Antônio Porro e Eduardo Góes Neves.
319
HATOUM, 2006, p. 67.
320
LEÃO, Allison. “A narrativa poética em Dois Irmãos – lugar de intercâmbio entre suportes arquivísticos”. In.:
Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-Graduacão em Sociedade e Cultura na Amazônia
da Universidade Federal do Amazonas, Ano 1, n. 1 (2000-). – Manaus: Edua/Capes, 2000, p. 27.
321
O professor Marcos Frederico Krüguer Aleixo, num ensaio minucioso, o qual nas próximas linhas, vou me
apropriar, afirma que, Hatoum, apoiado na tradição literária que utiliza a técnica narrativa chamada mise-em-
abime, a mesma adotada no livro As mil e uma noites, isto é, a narrativa em abismo, insere inúmeras narrativas na
estrutura de seus romances. Assim como, a narrativa de um romance interpenetra na narrativa de outros romances,
numa constante intertextualidade. Nessa medida, “Não se pode compreender o Dois Irmãos, em profundidade,
sem o Relato. (ALEIXO, 2007, p. 182), só para citar os dois primeiros romances elaborados por Hatoum, os quais
foram objetos de interesse no referido ensaio. Este mesmo crítico, verifica a originalidade de Hatoum, a partir,
evidentemente, da influência de Mil e uma noites. Dito corretamente, no Relato... a cada capítulo Hatoum apresenta
uma voz narrativa, a qual Aleixo classifica como relato em mosaico. Já no Dois irmãos ocorre a narrativa em
103
Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo. A origem: as
origens. Meu passado, de alguma forma palpitando na vida dos meus antepassados,
nada disso eu sabia. Minha infância, sem nenhum sinal de origem. É como esquecer
uma criança dentro de um barco num rio deserto, até que uma das margens acolhe.
Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quando
eu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvidas, talvez pensando que um dia eu
pudesse descobrir a verdade. 322
O entrecho acima evidencia o debate sobre as origens das populações que, historicamente,
compõe/compuseram a sociedade e a cultura da Amazônia; a ênfase à polifonia. Nessa medida,
também é possível adotar Nael como uma evidência histórica do projeto literário de Hatoum.
Pois pode-se conjecturar que a criação dessa personagem narradora do enredo de Dois irmãos,
é uma testemunha a mais do processo de “dignificação do anônimo” no tempo do enunciado,
e, por extensão, no tempo da escrituração do romance, a testemunha de uma época. Voz pela
qual, o escritor-criador, também fala. Nael, inclusive, traz a lume a relação dialógica, a qual
estou me referindo. Assim: “Embora haja vários narradores que se expressam através de um só
– Nael -, [...]. Digamos que é narrativa em afluência, numa metáfora expressiva do sistema
hídrico da região amazônica”.323 Como se Nael fosse o rio Negro, em sua calha principal,
descendo do “[...] noroeste para o sudeste. Os afluentes e subafluentes são virtuais” 324
[representados por cada uma das personagens, por meio de seus relatos memorialísticos,
relembrados por Nael]. Para o crítico que, nesse momento, estou lançando mão, no romance
Dois irmãos, até mesmo o espaço, onde a história é ambientada, isto é a Amazônia, emite sua
voz narrativa. Assim como
Contudo, como faz lembrar outro crítico, “[...] o espaço a gente ouve com os olhos. Nael,
pelo menos, percorre o espaço com os olhos”. 326 Diante de tais considerações, eis, outros
exemplos da polifonia verificada na obra de Hatoum. Paralelo a isso, é posta a questão da
afluência, conforme Aleixo. Esta, por sinal, será abordada adiante. Face às duas técnicas narrativas, adotadas por
Milton Hatoum, apresentada na análise de Aleixo, é possível utilizá-las como evidência para corroborar minhas
afirmações sobre o projeto literário do escritor amazonense: a representação da polifonia, da significação das
personagens anônimas, por meio da elucidação de suas vozes.
322
HATOUM, 2006, p. 54.
323
ALEIXO, Marcos Frederico Krüger. “ O mito de origem em Dois irmãos”. In.: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro
de (org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances: Dois Irmãos, Relatos de Um certo Oriente e Cinzas
do Norte de Milton Hatoum. – Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas / UNINORTE, 2007, p.186.
324
ALEIXO, 2007, p. 187.
325
ALEIXO, 2007, p. 188 e 189.
326
LEÃO, 2005, p. 28.
104
identidade. Igualmente cara, nos romances de Hatoum. Para tanto, novamente, recorro às
palavras do professor Marcos Frederico Krüger Aleixo, acerca dos dilemas da personagem
Nael:
O fato de Nael ( o narrador principal) não saber quem é seu pai – Omar ou Yakub? –
leva-nos a outra ordem de considerações. Nael não sabe sua origem pelo lado paterno.
De quem é filho? Ele é um Édipo amazônico, porém, ao contrário do grego, ele não
tem nenhuma falsa verdade. Ele não pensa ser filho de Pólibo. Ele não sabe que é seu
pai.
E temos, então, a decifração de um enigma da Esfinge. Se Nael, como vimos, é o rio
Negro, ou seja, uma região importante na História do Amazonas, significa que nós
também não sabemos nossa origem. Somos o quê? Índios, renegando, através do
cristianismo, nossa cultura? Somos brancos? Portugueses? Libaneses?
Desconhecemos nossa verdadeira face, nosso ser. Por não sabermos quem é nosso pai
e por possuirmos uma mãe descaracterizada, desconhecemos nossa origem e, mais
que isso, nosso verdadeiro significado no mundo. 327
Parece que tanto nas Histórias Oficiais, como nas fictícias, acerca da Amazônia, os/as
heróis/heroínas e os/as anti-heróis/anti-heroínas guardam dilemas, semelhantes ao de Nael. À
luz das palavras de Aleixo pode-se pensar que Hatoum, por meio de suas narrativas de ficção,
alude uma, também cara, problemática histórica, a qual, a historiografia oficial tratou de forma
indiferente. 328 Nessa perspectiva, como estou argumentando desde o início de minha narrativa
histórica, ao colocar essa questão no centro de seu enredo, o escritor-criador também emite sua
voz, contribuindo, portanto, com a narrativa historiográfica, pois aqui a utilizo como fonte para
o pensar, o saber histórico. Possibilitando, assim, que o historiador, aberto à literatura como
manancial profícuo, possa lançar mão das narrativas de Hatoum para buscar as vozes anônimas,
ruínas da memória de personagens históricas, representadas por personagens fictícias. Tais
suscitam trajetórias inscritas no passado: revelam a permanência de um tempo longo, pois a voz
do Outro da história ainda se perde num determinado laconismo. O Outro da história, por meio
da ficção de Hatoum, sugestiona essa voz dissimulada, no tempo e no lugar onde traçaram suas
trajetórias, como a história de Domingas:
[...]. a cunhantã mirrada, meio escrava, meio ama, “louca pra ser livre”, como ela me
disse certa vez, cansada, derrotada, entregue ao feitiço da família, não muito diferente
das outras empregadas da vizinhança, alfabetizadas, educadas pelas religiosas das
327
LEÃO, 2005, p. 191.
328
FREIRE, José Bessa. “A transmissão da Experiencia”. Resumo do artigo “De fala boa ao português na
Amazônia brasileira”, publicado na Revista Ameríndia, nº B, 1983 – pp 39 a 83 – CNRS – Paris. In.:
________________ (et.al.) Amazônia Colonial (1616-1798). 4ª edição revisada e ampliada. Editora Metro Cúbico.
Manaus, 1994, p. 35. Aqui é discutido a problemática da identidade étnica, social e histórica do amazonense [e por
que não dizer dos habitantes da Amazônia?]. O autor conclui acerca de sua peculiaridade: um desfibrado,
incoerente, atravessado entre o mundo do colonizador e do colonizado. Silenciado pela ordem do discurso oficial,
inscrita na História e Historiografia tradicionais.
105
missões, mas todas vivendo nos fundos da casa, muito perto da cerca ou muro, onde
dormiam com seus sonhos de liberdade. 329
[...]. Caminhamos até o porto da Catraia e embarcamos num motor que ia levar uns
músicos para uma festa de casamento à margem do Acajatuba, afluente do rio Negro.
Durante a viagem, Domingas se alegrou, quase infantil, dona de sua voz e do seu
corpo. Sentada na proa, rosto ao sol, parecia livre e dizia para mim: “Olha as batuíras
e as jaçanãs”, apontando esses pássaros que triscavam a água escura ou chapinhavam
sobre folhas de matupá; apontava as ciganas aninhadas nos galhos tortuosos dos
329
Aqui estou observando que Domingas, provavelmente, seja uma personagem elaborada a partir das experiências
relativas à “pesquisa de campo” etnohistóricas e antropológicas e, por extensão, a utilização de seus “registros
etnográficos” que fez quando esteve viajando pelo rio Negro.
330
GINZBURG. Carlo. “Prefácio à edição inglesa”. In.: ______________ O queijo e os vermes: o cotidiano e as
ideias de um moleiro perseguido pela inquisição; tradução Maria Betânia Amoroso; tradução dos poemas José
Paulo Paes; revisão técnica Hilário Franco Jr. – São Paulo : Companhia das Letras, 2006, p. 9. Conferir também:
CORDEIRO JUNIOR, Jussaty Luciano. O imbricamento entre vozes e ecos da cultura popular e da cultura erudita
[manuscrito]: um estudo sobre o dialogismo na obra “O queijo e os vermes” de Carlo Ginzburg – 2008 –
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras.
331
GINZBURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo”. In.: ____________. O fio e os rastros: verdadeiro,
falso, fictício; tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007,
pp. 280-293. pp 280-293. Assim como os historiadores - que usam o método da História Cultural, como Ginzburg,
o qual recupera por meio da oralidade, oriunda das vozes que vem das minorias, aquelas que estão por trás dos
discursos dos agentes do poder, estes que produzem os discursos oficiais, quase sempre materializados nos
documentos escritos, oficiais - Hatoum, o artista-criador (que assume uma postura de historiador, pois também
lida com a memória e assim, faz sugestões à história, contudo a uma outra história, a às avessas) desenha a
personagem Nael como se ele fosse um sujeito que reuni os fios e os rastros de uma história latente. Quando ele
revela as lembranças de sua mãe, por exemplo, ele elabora uma memória que se estende nas fissuras de uma
História que, há muito optou por esconder a trajetória desses sujeitos que necessitam falar, porém, há muito tal
oportunidade foi negada. Nael, assim, traz a lume a história do Outro. Dizendo corretamente, desse Outro que,
historicamente, reside esse Eu: Nael. Pois, ele é também um dos fios, por onde se tece os rastros das histórias
desses inúmeros sujeitos silenciados no discurso do poder. Porém, na polifonia de Hatoum, como estou argumento,
ouvem-se as vozes dos anônimos.
332
LEÃO, 2000, p. 27.
106
aturiás e os jacamins, com uma gritaria estranha, cortando em bando o céu grandioso,
pesado de nuvens. Minha mãe não se esquecera desses pássaros: reconhecia os sons e
os nomes, e mirava, ansiosa, o vasto horizonte rio acima, relembrando o lugar onde
nascera, perto do povoado de São João, na margem do Jurubaxi, braço do Negro,
muito longe dali, “O meu lugar”, lembrou Domingas. Não queria se afastar do pai e
do irmão; ajudava as mulheres da vila a ralar mandioca e a fazer farinha, cuidava do
irmão menor enquanto o pai trabalhava na roça. A mãe dela... Domingas não se
lembrava, mas o pai dizia: tua mãe nasceu em Santa Isabel, era bonita, dava risadas
alegres, nas festas do ajuri e nas noites dançantes era a mais bonita de todas. Um dia
bem cedinho, o pai saiu para cortar piaçaba e colher castanha. Era junho, véspera de
São João, a canoa com a imagem do santo se aproximava do rio, os gambeiros batiam
tambor, cantavam e pediam esmola para São João. O povoado de Jurubaxi já se
animava com rezas e danças, e das vilas vizinhas e até mesmo de Santa Isabel do rio
Negro chegavam caboclos e índios para o festejo. Os sons do tambor foram abafados
por grunhidos, e então Domingas viu um porco-do-mato esperneando, tremendo,
sufocado, com baba no focinho, o caldo venenoso de mandioca brava. “um homem
jogou água fervente e deu umas cacetadas na cabeça do bicho e depois arrancou os
pelos para ser moqueado”, contou Domingas. “corri para dentro da tapera, onde meu
irmão brincava. Fiquei ali, arrepiada de medo, chorando... Esperei meu pai... ele
demorou... Ninguém sabia de nada”.
Não houve festa pra ela. O pai tinha sido encontrado morto num piaçabal. Ainda se
lembrava do rosto dele, do enterro no pequeno cemitério, na outra margem do
Jurubaxi. Não se esquecia da manhã que partiu para o orfanato de Manaus,
acompanhada por uma freira das missões de Santa Isabel do rio Negro. [...]. 333
333
HATOUM, 2000, pp. 74-75.
334
MACIEL, Benedito do Espirito Santo Pena. “Entre os rios da memória: história e resistência dos Cambeba na
Amazônia brasileira”. In.: SAMPAIO, Patrícia Melo; ERTHAL, Regina de Carvalho (org.). Rastros de memória:
histórias e trajetórias das populações indígenas da Amazônia. – Manaus EDUA, 2006, p. 211.
107
mãe Domingas, Nael busca saber sobre sua origem, origens; Hatoum coloca uma pergunta à
recepção de Dois irmãos: qual o lugar dos indígenas na história da Amazônia? Questão que,
com Hans Robert Jaus, argumento, faz da literatura de Hatoum um acontecimento 335. A ênfase
a esse debate perpassa temporalidades e, senão o contrário, continua indagando a sociedade
leitora, a qual se depara com a trágica história dessa menina indígena e órfã: “Domingas serviu;
e só não serviu mais porque a vi morrer, quase tão mirrada como no dia em que chegou em
casa, e, quem sabe, ao mundo”336, relembra e escreve Nael.
Como estou falando sobre personagens e lugares de memória, e suas relações com a
problemática da polifonia, convém dar continuidade ao debate. No romance Relato de um certo
oriente, aparece uma imagem que é frequente no conjunto da obra de Milton Hatoum. Dito
corretamente, ela surge nas dobras da intertextualidade que o autor-criador elabora e reelabora
para compor as suas narrativas: guarda lembranças, ponto de partida para o entrelaçar dos
enredos do escritor amazonense. Abaixo reproduzo o entrecho:
[...]. Contar ou cantar não apaga a nossa dor? [...]. Espero Macucauá cantar no fim da
tarde. Ouve só esse canto. Aí a nossa noite começa. Estás me olhando como se eu
fosse um mentiroso. Mesmo olhar dos outros. Pensas que passaste horas nesta tapera
ouvindo lendas? 338
335
Pois, conforme o autor referenciado (Jauss), a literatura torna-se acontecimento histórico quando consegue
provocar a recepção (a riqueza crítica) no contexto em que a obra literária foi publicada, isto é, seu chão histórico
original. Mas, também, posteriormente. Nesse sentido, quando as indagações, os questionamentos, colocados pela
obra, perpassam temporalidades e, por extensão, de alguma forma, afrontam as estruturas sociais e culturais, ao
longo do tempo. Em suma, assinto que, assim como a obra de Machado de Assis (por exemplo), trouxe
questionamentos significativos a problemática da escravidão, (como é o caso da obra Helena que coloca como
essencial o debate sobre o tempo e a ordem saquarema), Hatoum, através de suas obras, questiona,
semelhantemente, o lugar, o papel e a condição de determinadas minorias sociais, culturas subsumidas, na História
do Brasil, mas, essencialmente, da Amazônia. A personagem Domingas, de Dois irmãos, reafirmo pela enésima
vez, é um exemplo emblemático, referente a essa afirmação.
336
HATOUM, 2000, p. 65.
337
HATOUM, 2008, p. 28
338
HATOUM, 2008, p. 103.
108
Talvez por esquecimento, ele omitiu algumas cenas esquisitas, mas a memória
inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado. Certa vez tentei fisgar-lhe uma
lembrança: não recitava os versos do Abbas antes de namorar? Ele me olhou, bem
dentro dos olhos, e a cabeça se voltou para o quintal, o olhar na seringueira, a árvore
velha, meio morta. E só silêncio. Perdido no passado, sua memória rondava a tarde
distante em que o vi recitar os gazais de Abbas. Era um preâmbulo, e Zana se excitava
com aquela voz grave, cheia de melodia, que devia tocar a alma dela antes da loucura
dos corpos. Omissões, lacunas, esquecimento. O desejo de esquecer. Mas eu me
lembro, sempre tive sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá
em que praia de rio. 340
É como se a memória se tornasse um portal por onde migram as personagens, estas que
revelam, uma Amazônia oriental por meio das vozes de dois imigrantes árabes: Hakim e Halim.
Estes, que, saídos do plano histórico, chegam até o plano do imaginário para configurarem-se
como guardiões das memórias de um remoto passado e suas ruínas. Onde Hatoum vai buscar,
por entre os escombros do silêncio, as histórias de longínquas pessoas. As mesmas que
alimentam o imaginário que nutrem a prosa de ficção do autor. Uma polifonia, transfigurada no
espaço de memória relacionada à metáfora do sabor, do cheiro do tempero árabe, se misturando
ao tempero amazônico. Sabores que alimentam vozes pretéritas, alento para a escrita criativa,
desse escritor-criador em questão, quando narra sobre o Outro, na ambiência do restaurante
Biblos, de um certo imaginário, nascido de um determinado chão histórico... Aí a polifonia se
entretém:
Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios
e judeus marroquinos que moravam na praça Nossa Senhora dos Remédios e nos
quarteirões que a rodeavam. Falavam português misturado com árabe, francês e
espanhol, e dessa algaravia surgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um
vaivém de vozes que contavam um pouco de tudo: uma dor ainda viva, uma paixão
ainda acesa, a perda coberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as
339
As histórias contadas por seus avós, semelhante ao que ocorreu com escritores hispano-americanos, como é o
caso de Gabriel Garcia Marques, que elaborou Cem anos de Solidão, a partir das histórias contadas por seus
ancestrais, faz Hatoum inserir em seus romances essa imagem onde um personagem ouve e outro conta sobre o
seu passado em baixo de uma arvore e/ou às margens de um rio (arquétipos, significativos relativos à região
Amazônica). Inclusive, o enredo que estrutura a novela Órfãos do Eldorado, historicamente é gestado a partir de
uma história que Hatoum ouve de um de seus avós, embaixo de uma árvore em um determinado dia de sua infância,
como será discutido, mais minuciosamente, em uma das seções desse capítulo.
340
HATOUM, 2006, p. 67.
109
341
HATOUM, 2000, p.p. 47-48.
342
GINZBURG, Carlo. “Sinais: Raízes de um paradigma indiciário”. In.: _______________. Mitos, emblemas,
sinais: morfologia e história; tradução: Federico Carotti. – São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 177.
343
Ademais, como já foi inúmeras vezes mencionado em diversos trabalhos, o escritor Milton Hatoum, um sujeito,
descendente de árabes, nascido em Manaus, influenciado por diversas culturas e, por extensão, pela literatura
universal, pode ser representado como a síntese de tudo isso. Ele é fruto e produto desse processo conflitivo, entre
choques e encontros de diversas culturas, ocorrido desde o advento da colonização, e acalorado na passagem do
século XIX para o século XX, chão histórico de seus antepassados.
110
são, decerto, as sensações do artista Mundo, personagem de Cinzas do Norte, terceiro romance.
Como fez o francês Marcel Proust, no seu Em busca do tempo perdido, o escritor amazonense,
recorre aos odores, como metáforas da reminiscência:
[..]; então senti, pela primeira vez em Londres, alguma coisa íntima: um cheiro que só
o porto quente e úmido da infância exala. Um pedaço das Antilhas e da Amazônia se
espalhava nos pequenos empórios e nas tendas que vendiam quiabo, farinha de
mandioca, azeite-de-dendê, melancia... 344
344
HATOUM, 2005. p.242.
345
HATOUM, 2005, p. 305.
346
Fecundas fontes de história, por sinal. Nesse sentido, a representação desse tipo de gênero nas narrativas, por
si só, já sugere essa implícita percepção de Hatoum sobre o saber histórico. Saber que, também, se faz entre
fissuras, fragmentos e silêncios deixados no tempo.
111
347
ALEIXO, 2006, p. 212.
348
HATOUM, 2017, p.11.
112
Quando se recorre às narrativas inscritas nesses dois relatos fraturados, acima citados (A
noite da Espera, Pontos de Fuga), mas também noutro (Cinzas do Norte) percebe-se uma
determinada continuidade, emitida pelas vozes das personagens, pela voz do autor-criador.
Vozes plasmadas pelo tempo histórico. Este que, na polifonia inscrita na obra de Hatoum,
também jacula sua fala. Mas, com o literato amazonense, a fala é avessa a ordem do discurso
opressor, vem a contrapelo. Mundo, Martin, assim, tornam-se a representação alegórica da
busca da liberdade, face a clausura amarga de uma temporalidade opaca. E Hatoum, no tempo
da escrituração, recorre à memória de um tempo passado, a partir das angústias que ele começa
a viver no presente, pois aquele tempo pretérito se assemelha como o tempo da urdidura,
principalmente, de quando elabora os dois volumes de A noite da espera [já se colocou essa
problemática, inclusive, no primeiro capítulo desta tese]. A memória, portanto, faz sentido
diante de inúmeros indivíduos que ficaram esquecidos nas sombras desse tempo sombrio.
Tempo que insiste em dissimular sua Voz [em maiúsculas porque autoritária, opressora], atrás
do forjado esquecimento.
Na cidade estrangeira, de gargalhadas e vozes que até parecem não ser verdadeiras, por
causa do estranhamento do jovem exilado, sozinho e distante de seus amigos, familiares,
amores, como inúmeros, se faz necessário, sim, buscar sentido e luz à memória, à memória,
gestadas nas lembranças. Não deixar que o frio conjuntural do tempo e do lugar, estrangeiro,
traga obstáculos para que essas histórias deixem de ser contadas. Mesmo que desde o final, pelo
avesso, lançando-se mão de um método remissivo. Pois: “A incompreensão do presente nasce
fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em
compreender o passado se nada se sabe do presente.” 350 Afinal o passado tem vozes, muitas
dessas quase sempre silenciadas. Uma vez mais, Hatoum está buscando, por meio de suas
narrativas entretecidas, dignificar os rastros, os ruídos, as ruínas, os brados. Enfim, vozes das
personagens anônimas.
Ainda falando sobre a relação dialógica entre Cinzas do Norte e a trilogia O lugar mais
sombrio, vale colocar em destaque a figura da personagem do coronel Zanda, O fato desta
personagem vazar as duas narrativas suscita, obviamente, algumas conjecturas.
349
HATOUM, 2019, 310.
350
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício de historiador; prefácio, Jacques Le Goff;
apresentação à edição brasileira, Lilia Moritz Schwarcz; tradução, André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2001, p. 65.
113
O coronel Zanda, aparece umas poucas vezes em A noite da Espera e Pontos de Fuga.
Isso tem um propósito no dialogismo de sua obra, portanto: representar as redes de ligações
existentes entre os militares, desde Amazônia (Manaus) até o restante do Brasil (mais,
especificamente, Brasília). Nos traços do relato, emitido por Lavo, narrador de Cinzas do Norte,
Hatoum faz uma espécie de caricatura da elite que, provavelmente, compunham o poder social,
econômico e político na cidade de Manaus. Aí, portanto, estão três personagens, as quais irei
me ater – mostrando traços de suas especificidades, conforme suas trajetórias, elucidando
aspectos, essencialmente políticos - , incluindo, é claro, o coronel Zanda:
351
HATOUM, 2005, p. 46
352
No que se refere ao romance Cinzas do Norte, diria obscura, como uma cultura estranha, por ser tão abstrusa,
pela força das circunstâncias políticas, no passado, mas também, no momento da urdidura desse romance. Talvez
essa imagem elaborada por Milton Hatoum, nela, seus diálogos, emitam vozes, dizendo: as informações sobre as
ações opressoras e violentas dos gestores do regime militar brasileiro nem sempre foram revelados (o que é
verossímil e verdadeiro, pois, tais agentes foram/são protegidos por um silêncio seletivo. Neste, consta uma
memória, oficial, a qual dissimulada eventos. Daí a ironia, o propósito desse diálogo de Mundo e Lavo, elaborado
pela literatura de Milton Hatoum.
353
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa; tradução
de Sonia Coutinho. – Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.106.
114
(vários deles) podem ser identificados com pessoas da vida real[...]”. 354 Porém, as trajetórias
das pessoas da vida real, obviamente, tomam rumos diferentes dos caminhos trilhados pelas
personagens criadas através do imaginário de Hatoum. Mas, as personagens representam uma
determinada temporalidade histórica, por meio da alegoria que representam no tempo do
enunciado, como faz lembrar Sandra J. Pesavento [debate já posto desde a Introdução desta
tese]. Nessa medida, é provável que a personagem de Jano tenha sido composta por Hatoum
para configurar o tradicional poder dos membros da família J.G. Araújo Jorge, um dos “dono
do poder” 355 do Amazonas. Mantenedor de um vasto patrimônio material, na cidade de Manaus
e no interior, como por exemplo o lugar conhecido como “Vila Amazônia”. Lugar, inclusive,
bem evidente, no romance Cinzas do Norte [capítulo quarto]. Não é demais, verificar que a
tradição dessa riqueza empresarial familiar inicia no século XIX e se espraia, pelo menos, até a
quinta década do século XX, remontando, assim, a trajetória empresarial da firma Araújo Rozas
& Irmão, onde se deu início a história da riqueza e do poder de J. G. Araújo, pois:
Araújo Rozas & Irmão utilizar-se-ão das condições típicas desse sistema mercantil
regional [aviamento] para implantarem um controle eficaz sobre o comércio e o
crédito, que são dois lados da mesma moeda. Segundo Weinstein a casa aviadora
trabalhava como representante legal e financeira de seu cliente criando um sistema
mercantil baseado nos vínculos de endividamento. O negociante detinha o monopólio
comercial praticando preços abusivos apropriando-se de um excedente adicional.
Criava-se assim um círculo vicioso do endividamento que era tolerado pelos aviados
como única forma de ter acesso as mercadorias.
[...] o processo de acumulação, que deu base a Araújo Rozas & Irmão, aconteceu
através do controle do comércio e do crédito possibilitados pelo conhecimento dos
padrões internos de distribuição baseados num processo de relações mercantis
tradicionais no âmbito de uma economia regional. É nossa opinião que o “bom” da
economia gomífera veio acelerar esse processo de acumulação, mas não substituí-lo.
354
ALEIXO, 2006, p. 211.
355
Com base nas reflexões do historiador Almir de Carvalho Júnior, conjecturo que J. G, de Araújo Jorge, fruto e
produto do século XIX, obviamente, é herdeiro de uma tradição que perpassou temporalidades. “Dono do poder”
[só para usar uma expressão de Raimundo Faoro] porque sua influência era constituída através de elos que abarcam
os âmbitos da política, economia, atingindo, assim, um significativo prestígio sociocultural no Amazonas e,
essencialmente, na cidade de Manaus. A representação desse poder se inscreve, constantemente, nos romances de
Hatoum, onde a Amazônia está ambientada. A título de exemplo, cito uma emblemática passagem do romance
Dois irmãos (2000, p. 83), onde Hatoum faz menção à família dos Reinoso, riquíssima, por sinal: “Zana se deixava
impressionar com o passado de Estelita. O avô dela, um dos magnatas do Amazonas, aparecera na capa de uma
revista norte-americana que a neta mostrava para todo mundo. Mostrava também as fotografias das embarcações
da firma, que havia navegado pelos rios da Amazônia vendendo de tudo aos ribeirinhos e donos de seringais”. Aí,
portanto, reside a representação do poder, do prestígio e da influência, construída historicamente, a qual, através
da memória social, e oficial, mas também das experiências de Hatoum [durante sua infância e parte da juventude
teve a oportunidade de observar o modus vivendi da referida família] é ressignificada, por meio da literatura. Estou
falando da herança deixada por J. G. de Araújo Jorge. Personagem real que aparece em Dois irmãos, ai citado,
mas também em Cinzas do Norte, configurado na personagem Jano.
115
[...] - vindo de Portugal – então com 17 anos, a chega de Bernardo Gonçalves Araújo
que, em Manaus, trabalhou para um comerciante português chamado Silva. Em 1865,
com a ajuda de um amigo (Nuno Brasil) consegue local casa, mercadoria e crédito
para abrir um comércio no ramo de panificação. [...], Bernardo chamou seu irmão,
José Gonçalves de Araújo, de Estela, Conselho de Póvoa de Varzim, Portugal. Parece
ter chamado também outro parente homônimo de José Gonçalves de Araújo, fazendo
com que esse acrescentasse Rozas ao nome. A atitude de trazer parentes de Portugal
foi repetida por José Rozas, chamando em 1871, Joaquim Gonçalves de Araújo. [...],
com apenas 15 anos, parte para aventuras de penetrar a selva empreendendo uma
viagem ao alto Rio Negro e, finalmente, em 1877, associa-se ao irmão abrindo a
Araújo Rozas & Irmão. 356
Eis, portanto, alguns indícios da trajetória histórica dessa herança [de poder político e
riqueza material] usufruída por J. G. de Araújo Jorge. Sujeito que, como já mencionei no
primeiro capítulo desta tese, faz parte da memória de Hatoum, porque, de fato, conviveu com
seus ancestrais, comerciantes libaneses, na Manaus dos anos da infância e adolescência do
escritor (essencialmente, 1940-1950).
Já o coronel Zanda é a representação de Jorge Teixeira de Oliveira. “Ambos, o homem
da ficção e o ‘personagem real’ devastaram a cidade de Manaus, em sonho alucinado de
progresso”. 357 Natural do Rio Grande do Sul (1921), mais especificamente o município de
General Câmara. Em 1942, inicia a carreira militar, passando pela Academia das Agulhas
Negras. Em 1947 torna-se aspirante do Exército. Em1966, tenente-coronel. Frequentou a Escola
das Américas, nos EUA. Também no ano de 1966, na cidade de Manaus, é o responsável pela
criação do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), comandou-o até 1971. Nessa
conjuntura atuou na ofensiva contra a Guerrilha do Araguaia (1967-1974), propósito, essencial,
do CIGS. Teixeira também fundou o Colégio Militar de Manaus, dirigindo-o até 1973. 358 As
fontes, por mim visitadas, demonstram que Jorge Teixeira, na Amazônia, assumiu papel
estratégico, durante o regime militar brasileiro:
356
CARVALHO JÚNIOR, 1993/1994, p. 236.
357
ALEIXO, 2006, p. 211.
358
Sobre a trajetória política de Jorge Teixeira recomendo a leitura do artigo de Cátia Franciele Sanfelice de Paula,
inclusive, a ele me reporto nas linhas que seguem.
116
Para corroborar tal relato, reproduzo uma imagem, bastante emblemática, referente às
transformações urbanísticas que ocorreram nos anos de 1970. É, portanto, reminiscente a ponde
de Educandos – um dos símbolos dessa acepção de modernidade, alavancada à urbe, a qual
grifei no indício aí extraído como prova histórica, qual a fotografia que agora me aproprio e
reproduzo adiante:
359
PAULA. Cátia Franciele Sanfelice de. “Jorge Teixeira: apontamentos sobre sua trajetória política e sua relação
com a Igreja Católica no Estado de Rondônia (1979-1985)”. In. UGARTE, Auxiliomar Silva; QUEIRÓS, César
Augusto Bubolz (orgs.). Trajetórias políticas na Amazônia Republicana. – – Manaus: Editora Valer, 2019, p. 276.
360
Jornal do Comércio. “Um ano de governo Jorge Teixeira”. Manaus – quinta-feira, 15 de abril de 1976, p.1.
117
Ele me levava para um boteco na ponta da Cidade Flutuante. Dali podíamos ver os
barrancos dos Educandos, o imenso igarapé que separa o bairro anfíbio do centro de
Manaus. Era a hora do alvoroço. O labirinto de casas erguidas sobre troncos
fervilhava: um enxame de canoas navegava ao redor das casa flutuantes, os moradores
chegavam do trabalho, caminhavam em fila sobre as tábuas estreitas, que formavam
uma teia de circulação. Os mais ousados carregavam um botijão, uma criança, sacos
de farinha; se não fossem equilibristas, cairiam no Negro. Um outro sumia na
escuridão do rio e virava notícia. 361
361
HATOUM, 2000, p. 120.
362
No Amazonas, na sua capital, isto é permanente. Testemunho histórico desta continuidade pode ser observado
através da implementação do projeto arquitetônico e habitacional que retirou famílias de determinadas
espacialidades urbanas através do projeto denominado Prosamim.
118
Portanto, uma questão de ordem social, cultural, política e histórica. Ordem herdada de
governos anteriores ao regime militar brasileiro364. Tampouco, projetos como “Grande
Manaus” não conseguiram resolver. Pois, tais problemas de saneamento básico, são históricos.
Assim, se espraiaram nos anos subsequentes. Coronel Zanda, da ficção; Jorge Teixeira de
Oliveira, da realidade social, são, de tal modo, agentes desse processo de modernização da
cidade.
Zanda, como frisei anteriormente, migra entre alguns romances de Milton Hatoum. Leva
sua representação, sua voz, a qual surge nas dobras, curvas, das narrativas. Contudo,
significativa voz. Ora, ele, no plano do enunciado dos romances Cinzas do Norte e nos dois
volumes da trilogia O lugar mais sombrio é a incorporação do regime militar brasileiro, em
voga, como já elucidei. Regime, que também surge em Dois irmãos: “Eu não queria sair de
casa, não entendia as razões da quartelada, mas sabia que havia tramas, movimento de tropas,
protestos por toda parte. Violência. Tudo me fez medo.”365Como deixa dito a voz de Nael.
Ocorre que dezessete anos, depois da publicação do mencionado romance, o mesmo chão
histórico amalgama a estrutura do romance A noite da espera, ambientado, essencialmente, em
Brasília:
A primeira bomba de gás caiu perto do corpo de Lázaro, a fumaça me cegou por um
instante, consegui tocar as costas de Dinah, mas fui empurrado e caí; quando levantei,
os estudantes se dispersavam aos tropeções na fumaceira de outras bombas de gás,
não vi Dinah nem o Nortista, corri num ritmo tão veloz que mal sentia minhas
pernas. 366
Assinto que esse chão histórico inscrito nas experiências e vivências de Hatoum faz-se
representar por meio do dialogismo de sua obra, obviamente. Ouçam, portanto, vozes extraídas
do romance, acima citado. De fato, um registro fictício: fecunda fonte, porque suscita relação
dialógica com a história do Brasil, no contexto do regime militar brasileiro:
[...].
363
Jornal do Comércio. “Um ano de governo Jorge Teixeira”. Manaus – quinta-feira, 15 de abril de 1976, p.1.
364
Sobre o contexto anterior, recomendo o livro: “Na vaga claridade do luar”: História & Literatura do
Movimento Madrugada na cidade de Manaus (1954-1967), do historiador Arcângelo da Silva Ferreira, publicado
pela editora Appris, Curitiba, 2020.
365
HATOUM, 2000, p. 199.
366
HATOUM, 2017, p. 123. [O grifo é meu. Adiante, voltarei à problemática relativa ao nome da personagem aí
elucidado].
119
“Coronel Zanda...” disse o gaúcho. “Quem é esse teu querido milico infalível?” Qual
é a estirpe desse machão? Ou será uma bichona enrustida?”
“É assim que tu tratas o futuro prefeito de Manaus?”
“Os golpistas de 64, civis e militares, Áurea. Machões empertigados... e alguns
psicopatas. O marechal Castelo Branco era um macho letrado. Um intelectual
carrancudo, com um vago ideal democrático, mas foi garroteado pelos truculentos da
caserna. O marechal Costa e Silva era um machão triste, de índole feroz e vingativa.
Um verdadeiro cavaleiro do Apocalipse da Ordem Militar de Cristo. E esse general
Médici, a matança... ele é capaz de mandar arrancar os olhos dos torturados, só para
impedir que eles chorem de tanta dor”.
Cuidado, Galindo”, advertiu a Baronesa, “em Brasília até os jarros escutam.”
[...]. 367
Não vou tecer uma resenha do livro a partir do referido episódio. Teria que incorrer em
uma digressão, talvez inútil, pois convém remeter as pessoas à leitura do primeiro volume da
referida trilogia. O propósito aqui é reproduzir o diálogo entre as personagens que aí aparecem
para corroborar meus argumentos acerca do papel significativo do dialogismo inscrito na obra
de Milton Hatoum. Não sem sentido, surge, nesse diálogo, a menção ao coronel Zanda. A
mesma personagem do romance Cinzas do Norte. Tal representação, por um lado, confirma a
perspectiva do projeto literário de Hatoum: elaborar narrativas que entretecem seus romances
[ressignificando a técnica literária utilizada em Mil e uma noites, reafirmando]. Por outro,
construir elos entre ficção e história, verossimilhança e realidade social. Zanda é uma alegoria
de Jorge Teixeira de Oliveira, portanto. O militar gaúcho, prefeito interventor da cidade de
Manaus nos anos de 1970. Usando novamente da ironia, o escritor-criador, por meio da
(es)história contada, através da fala do jovem estudante Martim, desenha um quadro verossímil
da peculiaridade de Zanda (Jorge Teixeira) e dos governos militares. Essencialmente, de suas
estratégias, projetos políticos no que se refere à região amazônica.
Assim, a trajetória de Martim, configura-se em um dos fragmentos das memórias de
Hatoum. Memórias que trazem à lume as experiências de seu peculiar envolvimento nas lutas,
inscritas no bojo do movimento estudantil [o que, em parte, já foi mencionado no primeiro
capítulo desta tese]. Nesse sentido, Nortista, personagem que, de certa forma, representa um
rastro da Amazônia, de Manaus, em um enredo que faz raríssimas menções sobre a Amazônia,
porque, tanto A noite da espera (romance ambientado em São Paulo (poucas cenas) e Brasília
(maior parte do enredo), quanto Pontos de Fuga, onde consta cenas, na sua grande maioria, em
São Paulo (e algumas em Brasília, Paris e cidades da América Latina), a personagem do Nortista
é secundária. Porém, se faz presente, de forma significativa, para que a referida trilogia
mantenha uma relação dialógica com as outras obras, totalmente ambientadas na Amazônia.
Para que esse argumento se corrobore, adiante reproduzo uma cena, em que a personagem
367
HATOUM, 2017, pp. 142-143.
120
Nortista reproduz uma reminiscência, inscrita em uma missiva enviada à personagem central
da referida trilogia, Martim:
No referido fragmento consta relação dialógica, a qual pode ser verificada através de três
ângulos de análise. O primeiro sugere a necessidade de o escritor-criador inserir uma
personagem originária da Amazônia, Manaus, para conectar a narrativa da referida trilogia com
as narrativas, anteriormente elaboradas e reveladas, através de Órfãos do Eldorado, Cinzas do
Norte, Dois Irmãos e Relato de um certo Oriente, por exemplo. Paralelo a isso, o chão histórico
das narrativas, pois se fazem presentes no segundo, terceiro e neste acima, que agora cito. Por
outro ângulo, percebe-se nessa memória, relatada por meio da carta da personagem Nortista, a
lembrança de um episódio trágico: a morte, por acidente, de uma criança, surda muda: “[...]
Soraya Ângela era minha companheira”. 370 Ocorre que a mesma cena aparece no primeiro
romance de Milton Hatoum, reproduzido abaixo através do entrecho retirado da edição de
bolso:
Sob a luz intensa do sol todos pareciam de bronze, apenas destoavam o florido da saia
de Emilie e a mancha vermelha que ainda se alastrava ao longo do lençol transbordado
em casulo, a cabeça tal um gorro grená, ou um vermelho mais intenso, mais
concentrado, como se a cor tivesse explodido ali, numa das extremidades do corpo.
Foi uma das imagens mais dolorosas da minha infância; talvez por isso tenha insistido
em evocá-la em duas ou três cartas que te escrevi; na tua resposta me chamavas de
privilegiada, porque esses eventos haviam acontecido quando eu já podia, bem ou
mal, fixá-los na memória. 371
368
Menção ao poema “Tu? Eu?” de Carlos Drummond de Andrade. Diante dos sinais, inscritos nos depoimentos
e na literatura de Hatoum, suscitam a seguinte conjectura: desde a juventude, o escritor amazonense se tornou
leitor voraz do referido poeta mineiro. Nesse sentido, essa experiencia compartilhada aparece e reaparece nas obras
do literato amazonense, principalmente, é bem marcante em sua trilogia. Pois, no tempo do enunciado,
principalmente, nas décadas de 1960 a 1980, Drummond era bastante visitado entre os estudantes envolvidos, de
alguma forma, com projetos de mudança social, política e cultual para o Brasil. E, Hatoum, era, evidentemente,
um dentre esses os jovens que, adotavam os poemas de Drummond como uma bandeira de luta política e
existencial.
369
HATOUM, 2017, p. 84 e 87.
370
HATOUM, 2008, p. 11. A citação se reporta a neta surda-muda de Emilie. Soraya Ângela é, portanto, filha
bastarda de Samara Délia. Vale dizer que o fato de ser uma filha bastarda consiste em um dos cismas familiar, o
qual mobiliza a trama do enredo de Relato...
371
HATOUM, 2008, pp. 18-19.
121
Vejam, o recurso que Hatoum utiliza para armar e amarrar o dialogismo de sua obra.
Tanto em Pontos de Fuga, como em Relato... a reminiscência funda-se na memória trazida por
uma carta [estou me reportando à morte da menina surda-muda]. Na missiva de Nortista, há a
indicação da amizade de sua mãe, manauense, provavelmente, com a personagem Emilie, mãe
adotiva da narradora de Relato... É, por meio de uma carta que a narradora de Relato... lembra
do passado trágico envolvendo o episódio da morte de Soraya Ângela. É, lançando mão de uma
carta, que a personagem Nortista, insere o relato da morte da criança de Manaus, no bojo de
outro relato: esse sobre a opressão do regime militar brasileiro aos estudantes em Brasília. A
chuva, uma manifestação da natureza que se faz presente no inverno da região amazônica, foi,
desta forma, uma metáfora da memória. Memória que trouxe o elo entre os dois romances,
Pontos de Fuga e Relato de um certo Oriente. Episódio trágico, guardado na lembrança de
personagens que, através de seus relatos, migram de um enredo a outro, na obra de Milton
Hatoum.
Outra personagem que, dentre tantas alcunhas, é conhecido como Heródoto, corresponde,
na realidade a Arthur César Ferreira Reis, o primeiro interventor do regime militar brasileiro
no Amazonas. Responsável por um episódio histórico, como afirmei linhas mais acima,
registrado na memória coletiva e social da cidade de Manaus: à destruição da Cidade
Flutuante 372. Inclusive a representação desse acontecimento aparece numa das cenas do
romance Dois irmãos:
372
É frequente a imagem da Cidade Flutuante nos romances de Hatoum. Conjecturo que a trajetória histórica do
referido espaço urbano, alternativo, é marcante também na trajetória histórica da família de Hatoum. Outra
conjectura é que as imagens elaboradas pelo autor, por meio de sua literatura do urbano, são relativas à “memória
por tabela” (conceito explicado desde a Introdução desta tese), a qual o escritor amazonense recupera dos relatos
contados e recontados por seus ancestrais. Adiante, reproduzo uma imagem da Cidade Flutuante – e a sugestão de
sua importância à existência, à vida cotidiana dos ancestrais do autor amazonense, representados na personagem
descrita nesse fragmento - , inscrita no romance de estreia de Hatoum, Relato...(2008, p. 31, da edição de bolso. –
Companhia das Letras): “Todos se reuniam na copa do casarão rosado, com a exceção de meu pai, que se ilhava
no quarto ou ia passear na Cidade Flutuante, onde ele entrava nas palafitas para conversar com os compadres
conhecidos, com os caboclos recém-chegados do interior, e depois caminhavam até o porto para visitar armazéns
e navios”. (grifo meu).
373
HATOUM, 2000, p. 211.
122
Para elucidar o que pretendo expor, convém, reproduzir uma imagem da referida cidade:
É possível o entretecer das duas narrativas, a fotográfica e a literária. Pois, nestas parece
residir a representação dos sentimentos de sujeitos que construíram suas trajetórias, na
ambiência da mencionada Cidade Flutuante. A lembrança de Halim, sobre o episódio
supracitado, descrito por Nael, é, decerto, uma vereda que Hatoum trilhou, através da ficção
para que a literatura dialogasse com a realidade. O imaginário da cidade elaborado por Hatoum,
lá, inscrito como parte do capítulo sete do romance Dois irmãos, é fecundo para se verificar e
analisar a necessidade de uma determinada política habitacional aplicada, radicalmente, pelo
regime militar brasileiro, na cidade de Manaus. Ora, a desativação daquela estrutura
habitacional elaborada a partir das peculiaridades de uma determinada geografia e cultura
popular, portanto, marginal aos olhos da nova ordem que começava a se estabelecer na cidade,
no Amazonas, no Brasil, foi um projeto planejado e concretizado durante o governo de Arthur
César Ferreira Reis, o qual “chefiou o governo do Amazonas, em junho de 1964, iniciado pelo
marechal-presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, após a instalação do regime
militar”374, personagem real, que, na obra de Hatoum ganha a alcunha de Heródoto. Ora, é
sabido, na envergadura do pensamento social e da historiografia, acerca da Amazônia que: “Não
esquecendo a postura autoritária de Arthur Reis, fica nosso compromisso, menos em julgá-lo,
374
UGARTE, Auxiliomar Silva. “Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993): Um ‘déspota esclarecido’ da Amazônia
brasileira?”. In.: ________________________; QUEIRÓS, César Augusto Bubolz. . Trajetórias políticas na
Amazônia Republicana. – – Manaus: Editora Valer, 2019, p.166.
123
o que já foi feito por seus contemporâneos, desafetos ou não, mas compreendê-lo como um
homem de ideias e homem de ação” .375 Nessa medida, representante, na sua geração, da
concepção tradicional da História da Amazônia/Amazonas. Por isso, talvez a ironia inscrita na
fala da personagem de Hatoum: as datas das efemérides, Heródoto sabia de cor.376 O mandato
de Reis, como governador interventor do Amazonas, “se realizou no período de 27 de junho de
1964 a 31 de janeiro de 1967”. 377 O período faz verificar: com Hatoum, ficção e fato guardam
relações fronteiriças. Corroboro isto, lançando mão de um determinado documento histórico,
oficial:
Dentro dos grandes objetivos do Plano de Desenvolvimento Econômico e Social para
o biênio 1965/1966, inseriu-se a política habitacional, que visa estimular a construção
de moradias próprias, destinadas a abrigar classes menos favorecidas.
O problema habitacional mais se fazia sentir na capital do Estado, através da Cidade
Flutuante, que se localizava nas proximidades do porto de Manaus, ou seja, na entrada
da cidade. Levantamentos efetuados, revelaram a existência de 2.500 casa flutuantes.
Essas habitações não apresentavam as mínimas condições de conforto e higiene aos
seus usuários, além de constituírem um grave problema de ordem social.
Sentindo a necessidade de resolver esse difícil problema, o Governo Revolucionário
extinguiu a cidade flutuante e, ao mesmo tempo, elaborou um programa de construção
de 2.000 casa populares, a cargo da Secretaria de Viação e Obras públicas, dos quais
concluiu 130 unidades. 378
375
UGARTE, 2019, p. 173.
376
Isto parece uma ironia barata. Contudo, não é. Pois torna-se um indício significativo da acepção de história do
escritor amazonense. Esse pequeno fragmento localiza Hatoum como um contundente crítico da história como
mestra da vida, por exemplo, elucidando que, sua narrativa se aproxima da perspectiva das história vista de baixo.
Daí ele, elucidar o Outro, este anônimo da História oficial. Nessa medida, não deixando de considerar que literatura
almeja a verossimilhança e, a história, a busca da verdade, é possível dizer que a obra de Hatoum é profusa para
se pensar e fazer um saber relativo a perspectiva da história social da cultura. Portanto, não sem sentido, Mundo,
através do narrador Lavo (Cinzas do Norte), e, por extensão, do escritor-criador, Milton Hatoum, tem um propósito
ao ironizar as peculiaridades da personagem Heródoto: sugerir uma ferrenha crítica a história laudatória.
377
UGARTE, 2019, p. 166.
378
REIS, Arthur César Ferreira. Como Governei o Amazonas – Relatório dos dois anos e seis meses de meu
mandato como governador do Estado do Amazonas, no período de 27 de junho de 1964 a 31 de janeiro de 19670.
Manaus – Amazonas. Secretaria de Impressa e Divulgação. Janeiro de 1967, p. 121.
124
Aquela imagem, inscrita em Dois Irmãos, a qual me remeteu à figura de Reis, por sinal,
um episódio cruel aos olhos de Halim, emblemática personagem de Hatoum, guardião de uma
memória que nasce na realidade e alimenta a imaginação do escritor, faz, como já afirmei,
observar o elo dialógico entre Clio e Caliope380. Reside aí, portanto, alguns indícios do
dialogismo na obra do referido escritor amazonense.
De tal modo, me reportando à riqueza crítica assinto que, por meio dos poemas, romances,
novelas, crônicas, os narradores de Hatoum [assim como este escritor-criador] parece querer
“puxar conversa também conosco”.381 Ocorre, assim, o dialogismo endógeno e exógeno à obra
do literato amazonense, como busquei desenhar aqui. Colocado tais argumentos, é o momento
de enveredar por outra trilha: o debate sobre o sentido da história, inscrito na literatura de Milton
Hatoum. O que farei na próxima seção desta tese.
379
AMARAL, Vinícius Alves do. “Vicissitudes de um Heródoto caboclo: Arthur Reis e a ditadura civil-militar em
Manaus (1964-1966)”. In.: Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduacão em História da
UFMG. V5, n.3 (set./dez, 2013) – Belo Horizonte: Departamento de História, FAFICH/UFMG, 2013, p. 126.
380
Na mitologia grega, Clio configura a deusa da História e Caliope, deusa da Literatura.
381
MENEZES, Roniere. “Milton Hatoum, cronista brasileiro”. In.: HATOUM, Milton. Sete crônicas de Milton
Hatoum. – Belo Horizonte, MG : Páginas Editora. 2020, p. 16.
125
382
Agelus Novus é uma criação do artista plástico Paul Klee (1879-1940), que além de pintor foi poeta; suíço, de
nacionalidade alemã; segundo a crítica de arte, o conjunto de sua obra tem significativas influências do
expressionismo, cubismo e surrealismo. O quadro Agelus Novus foi originalmente publicado em 1920 e comprado
por Walter Benjamin em 1921; como venho verificando, desde o primeiro capítulo desta tese, foi apropriado pelo
filósofo como uma imagem emblemática da concepção de história por ele formulada. Inicio esse capítulo com a
imagem porque a partir dela formulo uma hipótese, a qual norteou a composição desse capítulo e, por extensão
dessa tese.
383
LANGER, Johnni. “O mito do Eldorado: origem e significado no imaginário Sul-Americano (Século XVI)”.
Revista de História 136; FFLCH-USP; 1º semestre de 1997, p.39
384
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In.: ________________. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª
Ed. revista – São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 45-46: Tese IX: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus.
Nele está desenhado um anjo que parece estar na iminência de se afastar de algo que ele encara fixamente. Seus
olhos estão escancarados, seu queixo caído e suas asas abertas. O Anjo da história deve ter esse aspecto. Seu
126
semblante está voltado para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as arremessa a seus pés. Ele gostaria de deter-se para
acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com
tanta força que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual
ele volta as costas, enquanto o amontoado de ruínas diante dele cresce até o céu. É essa tempestade que chamamos
progresso.” [grifos do autor].
385
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In.: ________________. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin –
8ª Ed., revisada – São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 244.
386
Lucien Febvre, historiador francês, da primeira geração da Escola dos Annales, autor do, já clássico, Combates
pela História. No referido livro, página 24, da edição portuguesa de 1989, pela Editoria Presença, lançado
originalmente em Lisboa, consta a assertiva, significativa aos meus propósitos nesta tese. Daí seu registro, aqui:
“História ciência do Homem, e então os fatos, sim: mas, são os factos humanos: tarefa do historiador: encontrar
os homens que os viveram, e deles os que mais tarde aí se instalaram com as suas ideias, para os interpretar. [...].
Os textos, sem dúvida: mas todos os textos [...], um poema, um quadro, um drama: documentos para nós,
testemunhos de uma história viva e humana, saturados de pensamento e de ação me potência”. [grifos, tal como
no original].
127
“Sobre as montanhas
Da Lua,
Pelo Vale da Sombra,
“Cavalgue, cavalgue, sem medo”
Respondeu a sombra em segredo
“Se você busca o Eldorado”387
387
Disponível em https://estudiorealidade.blogspot.com/2009/02/eldorado-poema-de-edgar-allan-poe.html.
Acessado em 28/08/2020. Às 20:53.
128
[...].
Escreve-se uma página de coragem na colonização brasileira, em que a percentagem
maior cabe ao seringueiro, ao homem do nosso interior, incapaz de recuar até a
agressividade de nossa natureza, na segregação dos altos rios ou nos prejuízos
enormes das enchentes. Certamente, como Vossa Excelência bem sabe, é o início do
plano, a arrancada para melhores dias no Amazonas, a passagem da fase aventureira
para a localização permanente do trabalhador, alicerçado à agricultura e à família
[...].
O recurso econômico dos negócios, no Amazonas, decorre, em alto gráu (grau), das
providências do Governo, através dos convênios, das autarquias, do financiamento,
do povoamento e do transporte. É compreensível que se vá processando a estruturação
para o após guerras, pela melhor compreensão dos particulares aos benefícios que lhes
proporcionou a Nação. Si (se) diminuírem, devem ser substituídos por iniciativas
firmadas à própria organização econômica do Estado de tal modo que não
desapareceram as providências atuais.
[...]. 389
388
No terceiro capítulo desta tese, apresento algumas representações das transformações ocorridas nas cidades de
Manaus e Belém, durante à Belle Époque, a partir da historiografia especializada e, essencialmente, da literatura
do urbano presente na obra de Milton Hatoum.
389
Interventoria Federal do Estado do Amazonas. EXPOSICÃO. Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Getúlio
Vargas, presidente da República. Por Alvaro Maia, Interventor Federal. (Maio de 1943-Junho de 1944), 1944,
D.E.I.P., MANAUS-AMAZONAS, pp. 4-5.
129
Os grifos colocados, por mim, na citação, são para elucidar o retorno, naquela conjuntura,
do sonho do Eldorado, esse mito que atravessa territórios e perpassa temporalidades. Aliás, o
projeto da Zona Franca de Manaus, sutilmente, corroborou a ideia de progresso à Amazônia,
trazido pelo regime militar brasileiro. Aí, havia um propósito dos governos militares: impedir
o avanço da ideologia e das articulações políticas, atreladas ao comunismo, na região [afinal
eram anos de guerra: “Guerra Fria”]. Ora, àquela conjuntura, dinamizar as relações
socioeconômicas de produção capitalista, através do advento de um Distrito Industrial,
instalado na cidade de Manaus estava na ordem do dia do regime militar brasileiro. Desta forma,
esse novo Eldorado, a Zona Franca de Manaus, foi trazida à lume. Afinal, ao que tudo indica,
“ a cidade de Manaus sempre viveu de ilusões”. 391
O século XXI, em Manaus, ainda comporta uma tradição herdeira dos idos da Cidade
Flutuante: as habitações construídas às margens dos igarapés que resistiram, historicamente,
apesar da significativa transformação urbana que a urbe sofreu desde o advento da Belle
Époque. Na perspectiva de resolver essa histórica questão urbana, o governo do Amazonas,
àquela conjuntura, tomou emprestado, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
duzentos milhões de dólares, o que instigou uma corrida das empreiteiras, pois “Construtores
querem obras de igarapés”. 392 Portanto, apregoava o jornal:
390
BATISTA, Djalma. O complexo da Amazônia – Análise do processo de desenvolvimento. 2ª ed. Manaus:
Editora Valer, EDUA e INPA, 2007, p. 345.
391
SOUZA, Márcio. A expressão amazonense – do colonialismo ao neocolonialismo. – Manaus: Editora Valer,
2003, p.187.
392
Jornal do Comercio, Manaus, sexta-feira, 28 de maio de 2004, p.4. [Caderno de Economia].
393
Jornal do Comercio, Manaus, sexta-feira, 28 de maio de 2004, p.4. [Caderno de Economia].
130
394
Muito distante das reflexões feitas, no bojo do pensamento social da Amazônia. Leandro Tocantins, por
exemplo, através do seu trabalho intelectual “Arquitetura e paisagismo na Amazônia”, inscrito no final de seu O
rio comanda a vida, reflete sobre a necessidade de uma arquitetura local, esta que considera as peculiaridades das
culturas da região Amazônica. Conjecturo que, o arquiteto, Milton Hatoum, no bojo de sua literatura, dialoga com
as teses de Leandro Tocantins. Desta forma, refuta as “transformações” trazidas, historicamente, por projetos
arquitetônicos, estilo Prosamin, à Manaus. Pois, críticas ao desenho arquitetônico da referida cidade é constante
em suas obras, elucidativamente, em Cinzas do Norte.
395
Parque urbano, localizado no centro da cidade de Manaus, entre as avenidas Sete de Setembro e a rua Lourenco
da Silva Braga, próximo do Palácio Rio Negro. A ideia arquitetônica original relativa a criação do Parque se
enquadra nos objetivos do Prosamin: ocupar uma área de igarapés. Na conjuntura em que o a obra foi construída,
o referido espaço urbano era considerado, pelo governo do Amazonas, uma área de conflitos sócio-políticos, pois,
comportava pessoas ligadas aos movimentos de ocupação de lugares públicos e, por extensão moradores de rua
em situação de risco. Nesse sentido, com a justificativa de embelezar essa parte da cidade, o governo do Amazonas
erigiu o referido Parque. O nome da obra é uma homenagem a Jefferson Péres (1932-2008), figura pública ligada
a movimentos culturais ocorridos no Amazonas (O Movimento do Clube da Madrugada (1954-1967) e à política
partidária (regional e nacional), sendo, inclusive, senador da República brasileira, pelo estado do Amazonas, no
período de 1995 a 2008). Era membro do Partido Democrático Trabalhista (PDT).
131
viajante, Eldorado, este símbolo canônico, e como já foi dito, constantemente usado e
manipulado por uma Memória e História oficial, como um documento a ser problematizado.396
Dizendo corretamente, aquiesço que o escritor amazonense, por meio de sua escrita
criativa, problematiza o mito viajante do Eldorado: coloca-o em questão. Por isso, penso que a
novela Órfãos do Eldorado, tem um enredo contundentemente fecundo, porque, nas dobras de
sua tessitura consta uma significativa representação: o processo de ruína do Eldorado. Traz a
lume, assim, condições de possibilidade para reflexões sobre as outras faces da história da
Amazônia. Portanto, uma tomada de posição, nos campos da arte e da política, acompanha a
obra do literato amazonense, como estou afirmando aqui, pela enésima vez. Por sinal, a obra
que Hatoum está construindo, como estou argumentando, busca um alento no sentido da
história, a meu ver, no pensamento do filósofo e crítico de arte, alemão, Walter Benjamin.
Para trazer a lume meu argumento me reporto a um entrecho, retirado do terceiro romance
do escritor em questão, Cinzas do Norte:
396
Me aproprio de dois conceitos: “Documento”, “Monumento”, a partir das reflexões de Jacques Le Goff,
inscritas na obra História e Memória [5ª edição, editora da UNICAMP, 2003]. Para o historiador francês,
Monumento: “tem como característica o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das
sociedades históricas (é um legado à memória coletiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima
são testemunhos escritos” (p. 526); cabe ao historiador, no seu ofício, transformar o Monumento em Documento;
isso ocorre quando o Monumento é colocado em questão, refutado; para tanto, é preciso desvendar os seus
significados, as ideologias, intenções (de toda ordem), evidentes, mas, principalmente, subsumidas nas formas de
uso, representações, imaginários, adotados pelo poder instituído, em uma determinada sociedade, ao longo das
temporalidades históricas; verificar o porquê de determinado Monumento continuar inscrito na Memória (coletiva)
e, por extensão na História (essencialmente por meio de sua versão laudatória) de uma determinada sociedade,
cultura. A discussão sobre Documento/Monumento, portanto, aparecerá com frequência nesta tese. Nesta tese, a
partir da análise do conteúdo histórico da literatura de ficção de Milton Hatoum, argumento que, de certa forma o
literato se apropria da perspectiva do historiador [aqui tomo como parâmetro os estudos feitos sobre a obra de
Machado de Assis, por alguns pesquisadores, como, por exemplo, John Gledson, Roberto Schwarz, Sidney
Chalhoub, Jefferson Cano].
397
HATOUM, 2019, p. 154. [os grifos são meus].
132
Novus. Afirmo isto, ao observar os comentários de um dos estudiosos do filósofo alemão, aqui
mencionado:
O paradoxo do anjo é que, embora os seus sentimentos o levem a incrementar o
lamento, ele continuará dando as costas ao sofrimento que deixa para trás. Se a história
tivesse um anjo, deveria ser como este: lúcido e imponente. E o que vemos nós? O
mesmo que o anjo, mas o interpretamos de outra maneira. Vemos os destroços que a
história causa e entendemos que são acontecimentos inevitáveis de um projeto que,
no seu conjunto, está bem. O que para o anjo é uma trama catastrófica para nós é
incidência menor que pode ser integrada num conjunto que tem sentido. Ele
[Benjamin] está falando desde o princípio do progresso; e o olhar do anjo revelou-o a
nós como algo animado por uma lógica catastrófica. A conclusão é que temos que
considerar o progresso como catástrofe se realmente queremos escapar do seu
encantamento. 398
Reflexão que me fez argumentar o seguinte: para colocar uma questão nesse
encantamento [o progresso configurado na imagem do Eldorado], o qual vem ocorrendo num
processo de longuíssima duração, atingindo, assim, as estruturas material e mental das
sociedades amazônicas, que Milton Hatoum ergue sua obra literária.
Nessa esteira, só para deixar mais evidente, aqui, busco o conteúdo histórico inscrito na
novela Órfãos do Eldorado.
Na intenção de corroborar minha abordagem, tomo como parâmetro alguns estudos já
desenvolvidos no Brasil relativos à perspectiva do enlace História & Literatura. Por exemplo,
ao problematizar a escrita criativa de Machado de Assis, Sidney Chalhoub demonstrou os
segredos inscritos no livro Helena, o romance . Com o propósito de refutar determinadas
interpretações de uma parte da riqueza crítica que gira em torno das análises dessa obra, o
mencionado historiador propõe uma questão de ordem metodológica:
Ora, enquanto uma boa parte dos teóricos de Machado afirma que ele havia construído
uma personagem presa às amarras do ‘tempo saquarema’, o referido historiador
encontrou indícios para considerar o caráter contundente dessa personagem. Análogo
a isso, defendeu a tese de que Machado de Assis idealizou Helena, a obra, como
alegoria política de uma época. Lendo a obra à contrapelo, como Machado de Assis
desejaria, o leitor atento percebe, nos enunciados de Assis, enunciações sediciosas nas
ideias e práticas de sua revolucionária Helena, a personagem. Figura feminina
questionadora da ordem de valores vigentes e, portanto, abolicionista. Chalhoub faz o
leitor perceber que por meio de Helena, Machado de Assis se posicionou a favor da
Lei do Ventre Livre, usando a Literatura para pensar e fazer a História de seu tempo.
399
398
MATE, Reyes. 2011, p.p.205-206.
399
FERREIRA, Arcângelo da Silva; OLIVEIRA, Patrícia de Souza. “Mito, memória e história: nos caminhos de
Órfãos do Eldorado” In. : FERREIRA, Arcângelo da Silva... [et. al.]. (orgs.). Pensar, fazer e ensinar: desafios
para o ofício do historiador no Amazonas. – Manaus (AM): UEA Edições; Valer, 20015, p. 169.
133
reside em um tempo marcado por influências de toda ordem. Para se desenhar a interpretação
sobre a peculiaridade do enredo presente na ficção imaginada pelo autor é necessário localizá-
la em seu tempo de criação, mas também visualizar como, ao perpassar as temporalidades, a
obra continua suscitando indagações à sociedade400. Portanto, os motes de uma obra,
obviamente, são elaborados na relação temporal, a partir do chão histórico em que está plantada
a sua escrituração.401 Paralelo a essa questão de método, Sidney Chalhoub percebeu que
Machado de Assis, escreveu Helena para contar uma outra história do Brasil oitocentista, em
um período que já estavam postos, na arena política, germes de rupturas de um sistema
fissurado. Com Helena, o romance, percebe-se, por meio da análise do historiador mencionado,
uma Helena, a personagem, questionadora dos valores vigente, no final do século XIX, mais
especificamente, uma mulher contestadora do sistema escravista e, por extensão, do aparelho
monarquista. Assim, Chalhoub corrobora a convicção de outro crítico de Machado, o qual
assevera que: “[...], resta reconhecer ao enredo de Helena uma poesia inesperada e brasileira,
nascida talvez na conjunção da forma romântica e do conflito paternalista”. 402 A breve
digressão acima aponta pesquisadores, como Roberto Schwarz e Sidney Chalhoub, entre outros,
os quais ajudam a “desvendar nos romances de Machado uma interpretação do sentido das
transformações históricas de sua época”. 403 O grifo é meu e vem, a propósito, para elucidar
minhas intenções ao me debruçar na obra de Milton Hatoum. Igualmente, pretendo verificar
como a novela Órfãos do Eldorado, suscita determinadas transformações, por um lado, no
tempo do enunciado da novela, por outro, verificar, em linhas gerais as interferências do tempo
da escrituração na composição da referida novela [o que, me parece, já deixei claro, linhas
acima]. Assim, procuro:
400
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução Sérgio Tellaroli.
– São Paulo : Editora Ática S. A., 1994.
401
CHALHOUB, Sidney e Pereira, Leonardo Affonso de Miranda. “Apresentação”. In.:
___________________________________________________ (orgs.). A História contada: capítulos de história
social da literatura no Brasil – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
402
SCHWARTZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro. – São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, p.149.
403
CANO, Jefferson. “Machado de Assis, historiador”. In.: CHALHOUB, Sidney e Pereira, Leonardo Affonso de
Miranda (orgs.). A História contada: capítulos de história social da literatura no Brasil – Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998, p. 37.
404
BENJAMIN, 1985, p. 231.
134
O poema de William Blake traz memórias distantes, estas que, por um lado suscitam uma
determinada conjuntura histórica, mas que, por outro lado, perpassou temporalidades. Os ecos
das vozes dos limpadores de chaminés, de alhures, chegou nos ouvidos de Thompson, assim
como suas experiências aos olhos aguçados do referido historiador, através do eu lírico (o
narrador do poema) elaborado por William Blake. Parece não haver dúvidas, a literatura narra
a trajetória histórica dos operários em formação. Tais indícios inscritos no imaginário de
Willian Blake, ao lado de outros (de outras naturezas), contribuíram, sobremaneira para que E.
P. Thompson pensasse um sentido de história sobre a trajetória e, por extensão, a formação da
classe operária inglesa. Analisando diversas fontes originais, entre estas as fontes literárias, 407
buscando o sentimento da época que, por exemplo, os poemas foram elaborados, Thompson,
405
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, 2: a maldição de Adão; tradução de Renato Busatto
Neto e Cláudia Rocha de Almeida. 5ª ed. – Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2020, p. 246.
406
BLAKE, William. ”O limpador de chaminés”. In.: ______________. Canções da Inocência e da Experiencia.
Revelando os dois estados opostos da alma humana. Edição bilíngue; tradução, prefácio e notas Mário Alves
Coutinho e Leonardo Goncalves, Crisálida. Belo Horizonte, 2005, p. 41).
407
Principalmente no volume 2 da obra A formação da classe operária inglesa: A maldição de Adão.
Peculiarmente no capítulo 5: “Padrões de experiências”. Estou me reportando 3ª edição da Editora Paz e Terra,
publicado em 2020.
135
percebeu que: “A classe operária não surgiu tal como o sol, numa hora determinada. Ela estava
presente ao seu próprio fazer-se”408
Balizado nesses estudos, observo como Milton Hatoum lança mão da oralidade, para
remover uma antiga memória: a de seu ancestral avô. Memória que se tornou fecunda ao
processo criativo da referida obra. Como o mito viajante, Eldorado, é essencial para a
compreensão da estrutura narrativa da novela, devido ao seu valor alegórico. Ora, já foi dito
muitas vezes aqui que a Literatura é fonte fecunda à História: “o valor da literatura não está em
conferir os dados do real com o texto de ficção e assim atestar a sua verdade. Sua estratégia é
falar daquele real pela via do simbólico (...). 409 Sendo assim, Órfãos do Eldorado, a novela,
pode ser interpretada como alegoria de um período histórico: a “Era da borracha na
Amazônia”. 410
Nesse sentido, a utilização da imagem do mito viajante Eldorado, a propósito, vaza, na
estrutura da narrativa, condições de possibilidade para a interpretação do sentido das
transformações políticas, socioeconômicas, culturais e históricas do referido período, inscritas
na novela. Ao utilizar a imagem de Eldorado, Milton Hatoum, na esteira de Walter Benjamin,
uma de suas matrizes intelectuais, concebe alegoria como “uma reabilitação da temporalidade
e da historicidade em oposição ao ideal de eternidade que o símbolo [Eldorado] encarna”. 411
Em suma, Hatoum lança mão da novela Órfãos do Eldorado para refutar a laudatória ideia de
História, inscrita nessa temporalidade: 1890-1945. Período em que reside o que se
convencionou denominar Idade de Ouro da história da Amazônia.
Assim, no tempo do enunciado da referida novela, procuro seguir os rastros de Arminto
Cordovil [personagem já descrito na Introdução e retomado de forma mais elucidativa no III
capítulo desta tese], sua busca do Eldorado. Já no tempo da escrituração da novela, conjecturo
que Hatoum usa a imagem do Eldorado para suscitar uma tomada de posição política relativa
a um determinado sentido de história que ele, o literato amazonense, pretende remontar. Ora,
usei esses grifos, para argumentar que ao adotar a imagem do Eldorado como uma alegoria,
Hatoum também se aproxima das reflexões do francês Georges Didi-Huberman, quando este
assevera que:
408
THOMPSON. E. P. “Prefácio”. In.: _____________. A formação da classe operária inglesa, vol 1.: a a árvore
da liberdade; tradução de Denise Bottman. – 10 ed. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019, p. 9.
409
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “A temporalidade da perda (leitura de O retrato de Érico Verissimo)”. In.:
______________________ (org.) Leituras cruzadas: diálogos da história com a literatura. – Porto Alegre : Ed.
Universidade/ UFRGS, 2000, p. 44-45.
410
Compreendendo um recorte temporal que abarca duas fases: 1890-1913 e 1935-1945. Ambas estão
significativamente relacionadas ao extrativismo da borracha na Amazônia. Primeiro, relativo à Belle Époque,
depois à Batalha da Borracha.
411
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. – São Paulo : Perspectiva, 2011, p.31
136
Dar a ver é sempre inquietar o que ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma
operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo
olhar traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo
momento julgar-se o detentor.”412
Como se nota, na essência do entrecho supra, a sugestão é que por meio do olhar subjetivo
de Hatoum determinados acontecimentos dissimulados pelas brumas do tempo pretérito sejam
trazidos à baila. Por isso, assinto que Hatoum convida seus leitores e leitoras a acompanharem
às nuances de uma outra história assentada em sua ficção, posto que, na esteira de Walter
Benjamin, Hatoum parece reafirmar, uníssono: o inimigo não parou de vencer. Argumento que
o literato amazonense, propõe a leitura desse mito viajante para contar acerca da alegoria de
uma história trágica 413, elaborada a partir das ruínas do Eldorado.
Daí, também me reportar a tese V de Walter Benjamin 414 para conjecturar que Hatoum
pretende, através de suas experiências com o trabalho intelectual, salvar o passado [inscrito nas
memórias dos vencidos], pois este é, talvez, o principal objetivo de seu projeto literário. É em
torno desse projeto que o referido literato se volta para o processo de escrituração de sua obra.
Assim, a problematização de uma determinada memória atrelada ao poder, assim como a
percepção daquilo que vou afirmar, aqui, como história vista de baixo [aspectos que podem ser
visualizados na estrutura da narrativa da novela Órfãos do Eldorado] tornam-se propósitos
significativos relativos ao aspecto literário e político de Hatoum. Nessa perspectiva, a imagem
do Eldorado, é percebida, na literatura de ficção de Hatoum, como um documento para a
história, por onde vazam vozes silenciadas, qual ruínas esquecidas nos escombros do tempo. 415
Uma alegoria, portanto. Ora, nessa acepção, alegoria é o que se expressa no drama e, por isso,
revela a história, através de uma narrativa a contrapelo: a novela Órfãos do Eldorado.
Reafirmo, o mito do Eldorado foi apropriado, assim, como um vestígio para se remontar
a história: “(...), isto é, dispor todas as coisas trabalhando nas clivagens do tempo,
desconstruindo-o como um cineasta constrói sua fábula redispondo seus rushes”. 416 Assim, as
412
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha; prefácio de Stéphane Huchet; tradução de Paulo
Neves. – São Paulo: Editora 34, 2010 (2ª Edição), p. 77.
413
Narrativa verossímil do processo de degradação de uma rica família, três gerações de representantes dos “donos
do poder” atrelados à economia da borracha na Amazônia, qual a família que originou e estruturou o poder político-
econômico sociocultural da família J. G. Araújo, no plano histórico.
414
BENJAMIN, 2012, p. 243. “Tese IV : A verdadeira imagem do passado passa voando. O passado só se deixa
capturar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento de sua conhecibilidade. ‘A verdade jamais
nos escapará’ – essa frase de Gottfried Keller indica, na imagem da história do historicismo, exatamente o local
em que o materialismo histórico o esmaga. Pois é uma imagem irrecuperável do passado que ameaça desaparecer
com cada presente que não se sinta visado por ela”.
415
BENJAMIN, 2012, p. 243.
416
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição – O olho da história, I; tradução Cleonice
Paes Barreto Mourão. – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2017, p. 172.
137
pessoas leitoras desta tese verificarão que busco os nuances simbólicos do mencionado mito,
construídos historicamente, para indicar as intenções de Hatoum. O que me fez reportar às
reflexões do historiador Paul Vayne:
... o mito não é uma essência, mas um quarto de desejo, e a razão, por sua vez,
dispersa-se em mil pequenas racionalidades arbitrárias. Ele não é a oposição entre a
verdade e a ficção, que aparece como secundária e histórica; a distinção entre o
imaginário e o real não o é menos. As concepções menos absolutas da verdade como
simples ideia reguladora, ideal da pesquisa, não podem servir de desculpa para a
amplidão adquirida por nossos palácios de imaginação, que tem a espontaneidade das
produções naturais e provavelmente não são nem verdadeiros nem falsos. Eles
também não são funcionais nem todos são bonitos; contudo, têm um valor raramente
mencionado, do qual só falamos quando não sabemos dizer exatamente qual é o
interesse de uma coisa: eles são interessantes, pois são complexos. 417
Buscando uma relação dialógica entre as palavras de Paul Vayne, inscritas na referida
citação e o enunciado de Johnni Langer [colocado antes, nas linhas iniciais deste segmento],
penso que o mito guarda projetos de poder e desejos, que podem se reinventar ao longo do
tempo. Através da memória coletiva, a qual, nascida em determinados contextos, viajam por
gerações. Versões mitológicas se tornam vetores para a perpetuação das estruturas, desde as
mais evidentes às mais escondidas; as mentais, por exemplo. O mito do Eldorado é um exemplo
emblemático dessa preposição. É sobre a representação dele, na obra de Milton Hatoum, que
aqui procuro traçar um percurso.
O que me leva a perguntar: como surgiu o projeto de criação da novela Órfãos do
Eldorado? Após eu fazer uma breve contextualização sobre a estrutura narrativa da referida
novela, busco responder à questão, aí, formulada. Com se verificará adiante.
Muitos anos depois da publicação de Cinzas do Norte, Milton Hatoum lançaria sua
primeira novela, Órfãos do Eldorado. Considerando sua verossimilhança, é possível sinalizar
alguns aspectos na estrutura narrativa da obra em questão:
Primeiro, o trágico processo de degradação da família Cordovil: Edílio (o avô), Amando
(o pai), Arminto (o filho) – uma representação do processo de retração da economia da
borracha, ocorrida, significativamente, no início dos anos de 1910 até o início dos anos de 1930,
depois desde 1945 até o final dos anos de 1960. Adiante reproduzo um fragmento retirado da
novela de Hatoum, a qual, representa, no plano do enunciado, o momento crucial do processo
de declínio da família Cordovil:
[..]. Mas, a pior notícia chegou num telegrama do gerente da empresa: Naufrágio
Eldorado no Pará. Venha pra Manaus com urgência.
417
VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos?: ensaio sobre a imaginação constituinte; tradução
Mariana Echalar. – 1.ed. – São Paulo: Editora da Unesp, 2014, pp. 188-189.
138
No fim da praça, parou, e as mãos cruzadas agarraram o ombro, como se ele abraçasse
o próprio corpo. Dobrou as pernas lentamente e ficou de joelhos. A cabeça brilhava
no canto da praça. O homem ia cair de boca, mas ele se contorceu, massageando seu
peito. Depois, o único abraço, no meu pai morto. O homem que eu mais temia estava
nos meus braços. Quieto. Eu não tinha força para carregá-lo sozinho. Em pouco
tempo a cidade despertou, e os curiosos cercaram o corpo.
Por desígnio dos meus argumentos, os grifos, por mim colocados, proferem uma
sugestão: está posto nessa imagem a morte alegórica de um tempo e, por extensão, a fragilidade
de todo e qualquer desejo de reerguê-lo. Não havia mais jeito, as balizas, os vínculos, os projetos
estavam findados. Outro tempo, com ele rupturas emergiam. Portanto, a falta de alternativa de
Arminto Cordovil, diante da morte de seu pai, é, decerto, uma analogia à ruptura histórica na
Amazônia, iniciada nos anos de 1910 – as fraturas na Belle Époque -, por um lado. E, por outro,
no plano do enunciado, o começo da trajetória trágica da família Cordovil, posto que, a referida
morte, é um dos acontecimentos que deixa Arminto Cordovil, a personagem protagonista, livre
para fazer de sua trajetória uma outra história: “(...). Não me interessava o sonho de Amando
nem a linhagem dos Cordovil. (...)”. 419
Segundo, a questão edípica, marcada pelo conflito entre Amando (pai) e Arminto (filho)
– causada pela morte da mãe deste, esposa daquele, obviamente, no momento do parto: “Tua
mãe te pariu e morreu” 420. O eterno conflito entre pai e filho é, de certa forma, uma questão
418
HATOUM, 2008, p.p. 53-54
419
HATOUM, 2008, p. 57.
420
HATOUM, 2008, p. 16.
139
421
HATOUM, 2008, p. 14.
422
Personagem indígena, acerca da qual, à luz das famosas peripécias de Machado de Assis, Hatoum deixa
transparecerem dúvidas: seria a grande paixão de Arminto sua irmã bastarda? Seria Dinaura, “a mulher de duas
faces” amante de Amando, seu pai?
423
SANTOS, Eloína Monteiro dos. A Rebelião de 1924, em Manaus. 1ª ed. Manaus: Editora Valer, 2001.
424
SANTOS, Eloína Monteiro dos. Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia. 1ª ed. Manaus: Editora Valer,
1998.
140
emblemáticos, fruto e produto das intenções do governo Vagas à região, é o famoso “Discurso
do rio Amazonas”, proferido no dia 10 de outubro de 1940, no Ideal Clube [espaço de
sociabilidade da elite amazonense] “às classes conservadores” (como frisa o documento
oficial). O discurso do presidente aflora o plano político-econômico que fundamentou parte dos
Acordos de Washington:
425
Propaganda amazonense. Visita do presidente Vargas e as esperanças de ressurgimento do Amazonas.
Imprensa Pública. Manaus, 1940, p.15
141
426
SANTOS, Eloína Monteiro dos. Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia. 1ª ed. Manaus: Editora Valer,
1998. – conforme a referida obra, Álvaro Maia é considerado um “liderança cabocla” devido a sua peculiaridade
política: desejou constantemente reeditar a Belle Époque no Amazonas, no contexto dos anos de 1940-1950, e isto
se reflete, no plano da realidade, isto é seus projetos políticos de modernização para o Amazonas; no plano da
ficção, sua vasta obra literária. Também por ser um defensor e representante do glebarismo, tomando como
referência um suposto herói indígena: Ajuricaba. Em seus discursos, afirma que Ajuricaba deveria servir de
referência política à juventude amazonense.
142
sociabilidade: Praça General Osório. Lugar de lazer e cultura até os anos de 1964. Pois a partir
do golpe militar, o referido espaço se transformaria na Escola Militar de Manaus.
Voltando à novela Órfãos do Eldorado, para eu contar sobre o percurso de alguns
aspectos do processo de elaboração da novela de Hatoum, reproduzo um depoimento atinente
às experiências vividas desse escritor relativas aos motes para a sua escrita criativa. Nota-se,
nesse depoimento, que o escritor procura, nos rastros das memórias, indícios para tecer seus
enredos. Após a citação faço uma breve digressão sobre a relação memória/história:
Num domingo de 1965, quando ainda não havia TV no Amazonas, meu avô me
chamou para almoçar na sua casa. (...), depois de comer os quitutes preparados por
minha avó, ele me convidaria para conversar à sombra de um jambeiro. Na verdade,
era um monólogo que eu interrompia apenas para perguntas. Naquela tarde, meu avô
me contou uma das histórias que ouviu em 1958, numa de suas viagens ao interior do
Amazonas. 427
427
HATOUM, Milton. “Posfácio”. In.: Órfãos do Eldorado. São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 105.
428
GINZBURG, 2007.
429
GINZBURG, Carlo. “O inquisidor como antropólogo”. In.: ____________. O fio e os rastros e os astros :
verdadeiro, falso, fictício; tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. – São Paulo: Companhia das
Letras, 2007, p. 285.
143
430
Do depoimento de Milton Hatoum concedido a Schneider Carpeggiane, publicada em outubro de 2014 no
Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. Aí Hatoum afirma que “a memória é a deusa tutelar da
literatura”.
431
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa (1): A intriga e a narrativa histórica; tradução Cláudia Berliner; revisão
de tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar; introdução Hélio Salles Gentil. – São Paulo : Editora WMF
Martins Fontes, p.93. [o grifo é do autor].
432
MATTOS, Marcelo Badaró. “Cultura”. In.: _____________________. E. P. Thompson e a tradição de crítica
do materialismo. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012, pp 117.
433
BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício de Historiador; prefácio de Jacques Le
Goff; apresentação à edição brasileira, Lilia Moritz Schwarcz; tradução, André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
434
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. – tradução: Alain François [et al.]. – Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p. 26
435
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa (1): A intriga e a narrativa histórica; tradução Cláudia Berliner; revisão
de tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar; introdução Hélio Salles Gentil. – São Paulo : Editora WMF
Martins Fontes, p. 129.
144
Procurei elucidar, às pessoas leitoras desta tese, o eu lírico dos poemas e as personagens
narradoras dos romances, novelas, crônicas de Milton Hatoum representam aqueles sujeitos
subsumidos na história. Talvez porque ele também conceba que, alegoricamente,
simbolicamente “toda a história do sofrimento clama por vingança e pede narração”. 436 Sem
esquecer, então, que a narrativa de Hatoum parece fazer eco também ao trabalho intelectual e
ao posicionamento político do historiador E. P. Thompson, o qual, as vezes assumia “posições
‘embaraçosas’ lembrando muitas vezes o que se quer esquecer” 437 ao sistema e à ordem que
insiste em deixar nas sombras do tempo a história dos vencidos. E, por extensão à postura
intelectual de Edward Said, quando este assevera que:
o que devemos ser capazes de dizer é que os intelectuais não são profissionais
desnaturalizados pela subserviência a um poder cheio de falhas, mas – repetindo – são
intelectuais com uma posição alternativa e mais integra, que lhes permite, de fato,
falar a verdade ao poder.
O grifo é meu. Ele serve para elucidar mais um de meus argumentos: todas as narrativas
de ficção elaboradas por Hatoum procuram falar a verdade ao poder. Tomada de posição que
lhe aproxima das convicções intelectuais benjaminianas: “é preciso escovar a história a
contrapelo, isto é, atentar para o desprezado pela história canônica, olhar o outro lado do
espelho, fixar-nos no lado oculto da realidade.”438
Dito isto, a partir deste instante elucidarei um evento, inscrito no tempo presente,
relativamente contemporâneo à escrituração de minha narrativa historiográfica: quando Milton
Hatoum, usando de sua oralidade, contou ao público como o passado é fecundo de imagens,
aquelas que brotam do solo das lembranças, estas as quais enredam as memórias. 439
No Festival Literário ocorrido na cidade de Paraty, em 2009 (FLIP) 440, numa mesa-
redonda dividida com o cantor, compositor e escritor Chico Buarque de Holanda441, o literato
amazonense Milton Hatoum após ler trechos da novela Órfãos do Eldorado falou acerca do
436
RICOEUR, Paul. op. cit. p. 129.
437
MATTOS, Marcelo Badaró. E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. – Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2012, p. 15.
438
MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin “Sobre o conceito de
história”; tradução Nélio Schneider. – São Leopoldo, RS : UNISINOS, 2011. p.185.
439
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. – tradução: Alain François [et al.]. – Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007, p. 26.
440
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RNK9RAZZ1_Q
441
Chico Buarque de Holanda foi convidado para comentar acerca do processo criativo do romance Leite
Derramado. Segundo o mediador, a mesa foi dividida com Milton Hatoum (chamado para comentar sobre Órfãos
do Eldorado), principalmente, porque os dois livros são narrativas que abordam temáticas semelhantes. De fato,
ambos tratam da problemática da memória, onde os protagonistas são personagens masculinos que recorrem às
suas lembranças para relatarem a história de gerações e, por extensão, de suas respectivas cidades.
145
processo de criação desta obra. Afirmou que fez a novela encomendada por uma editora
escocesa Canongate. Livro que iria compor uma coleção chamada Miths. Segundo o escritor, a
narrativa foi criada a partir de uma história que ouvira quando tinha, talvez, uns doze ou treze
anos, e vivia em Manaus. Um enredo, que há muito ficou latejando em sua memória. Memória,
transmitida pela oralidade de seu ancestral, a qual é relatada no Posfácio à novela Órfãos do
Eldorado, como as pessoas leitoras puderam verificar, anteriormente, através de citação de um
entrecho do posfácio. Na mencionada mesa-redonda, Hatoum afirmou que durante a escrita e
reescrita do livro, devido às limitações das páginas colocadas pela editora escocesa442, acabou
optando pelo gênero novela. Fez desta forma, um recorte trágico, intenso onde retrata a vida
de poucos personagens. Deixando nas curvas da trama algo incógnito, inaudito, que aos poucos
se revela para trazer uma mudança repentina na narrativa. Convido as pessoas, que estão lendo
estas linhas, para voltarem seus olhos novamente à citação que estou me referindo (caso sintam
a necessidade). Pois ancorado nas palavras de Hatoum, estas que acabei de considerar, afirmo:
Órfãos do Eldorado foi um título que surgiu a partir da relação que o autor tinha com aquela
história, guardada em sua memória, desde a juventude. Ademais, “era uma história de amor,
com um viés dramático, como ocorre quase sempre na literatura e, na vida”. 443 Nessa
perspectiva, chama atenção o título do livro: vaza muitos significados.
Em sua comunicação Hatoum elucida: os personagens principais, Arminto Cordovil e
Dinaura são órfãos, porque, obviamente, perdem seus pais, mas essa orfandade é também
alegórica, visto que à narrativa do escritor amazonense resida uma fecunda crítica. Dito em
outros termos, à Memória e à História da trajetória dos grupos humanos da Amazônia há eterna
saudade de um período considerado áureo localizado na camada mais festejada do tempo
passado, a efeméride “Era da borracha”. Eldorado é também o nome que Amando Cordovil,
pai do protagonista do enredo, dá a um cobiçado navio, o qual simboliza o poder político e
econômico: “vi o cargueiro alemão uma única vez, de madrugada, depois de uma noitada num
cabaré barato da rua da Independência. Sentei no cais flutuante e li a palavra branca pintada na
proa: Eldorado”. 444 Embarcação, que no decorrer da narrativa naufraga: “mas a pior notícia
chegou num telegrama do gerente da empresa: Naufrágio Eldorado no Pará. Venha para Manaus
com urgência”. 445 Problemático porque, como afirmei, a história dos Cordovil “(...) dependia
442
O que, segundo ele, o incomodou bastante. Neste evento afirmou que nunca mais faria um livro encomendado.
443
HATOUM, Milton. “Posfácio”. In.: Órfãos do Eldorado. 1ª Edição. Companhia da Letras : São Paulo, 2008.
p.105.
444
HATOUM, 2008, p. 21.
445
HATOUM, 2008, p. 53.
146
daquele cargueiro navegando no Amazonas”. 446 Mais uma alegoria do escritor. Aqui, a alegoria
de uma história trágica, desenho da ruína de uma época. Este conjunto de significados girando
em torno do Eldorado “(...) evoca também um mito amazônico: o da Cidade Encantada”. 447
O evento descrito nas linhas acima chama a atenção para as escolhas que Milton Hatoum
fez, relacionadas à criação da referida novela. Traz à baila a historiografia almejando a
compreensão de representações inclusas ao mito viajante da Cidade Encantada. A história que
havia chegado aos ouvidos do escritor, quando jovem, já estava colocada desde os relatos dos
cronistas do século XVI, como, por exemplo, Altamirano e Acuña. 448 No referido Posfácio da
novela Órfãos do Eldorado, Hatoum afirma que:
Mito que atravessou mares, transcorrendo culturas. No século, mencionado pelo escritor,
a Amazônia tornou-se palco do imaginário europeu, pois sofreu transculturação a partir do
contato com o imaginário dos grupos humanos que aqui habitavam. Nesse contexto o mito do
Eldorado sofreu modificações. Tudo parece ter iniciado com a crença do “Príncipe Dourado”,
um homem vestido de ouro, mais tarde simulado como um reino, uma região. Manoa era sua
capital, às margens de um lago salgado. No mesmo século, Eldorado é transportado para
diversas regiões: Nova Granada, Venezuela, Rio Amazonas, onde se encontrava a etnia
Omágua. 450
Verificando tais eventos constata-se que as cidades encantadas são herdeiras de mitos
viajantes, que refluem valores e concepções alienígenas inscrevendo-se na diversidade das
culturas locais. Como deixa posto, o literato, em sua novela: durante o século XVI os
colonizadores “buscavam o ouro do Novo Mundo numa cidade submersa chamada Manoa. Essa
era a verdadeira cidade encantada”. 451 Este fragmento é, decerto um indício para conjecturar
que o escritor amazonense, provavelmente, além de fazer passeios pelos bosques da literatura,
446
HATOUM, 2008, p. 30.
447
HATOUM, 2008, p. 105 – do Posfácio.
448
UGARTE, Auxiliomar Silva. “Margens Míticas: A Amazônia no Imaginário Europeu do Século XVI”. In.:
DEL PRIORE, Mary, GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Os senhores dos rios. – Rio de Janeiro : Elsevier,
2003.
449
HATOUM, 2008, p. 106.
450
UGARTE, Auxiliomar Silva. “Margens Míticas: A Amazônia no Imaginário Europeu do Século XVI”. In.:
DEL PRIORE, Mary, GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Os senhores dos rios. – Rio de Janeiro : Elsevier, 2003.
451
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. Companhia da Letras : São Paulo, 2008. p. 99.
147
também os fez pelos da historiografia atualizada, aquela inscrita no campo da história cultural,
do imaginário, das representações e das mentalidades. Ora, os recentes estudos acerca dos
registros deixados pelos cronistas destacam o processo da construção e, consequentemente,
permanência de uma mentalidade acerca da concepção da cidade encantada, como se pode
constatar no entrecho adiante:
Assim, desde a expedição de Orellana, como está posto na fonte supra, Eldorado é
constante. Mais, significativo: fomenta as expedições ocorridas durante os século XVI e XVII
à Amazônia, por sinal, a referida cidade encantada se insere nesse processo de dominação dos
países europeus sobre a região, um estímulo a mais no processo de ocupação visando a
conquista. O fragmento também elucida a continuação de um imaginário que, a cada expedição,
era fortalecido. É visível aí a peculiaridade complexa do viajante: moderno, porque pisando em
um determinado chão histórico, porém, medievo porque intrinsecamente laçado pela leitura
fantástica do mundo. Ademais, estando no âmbito da estrutura do imaginário, as representações
fantásticas não atravessaram somente oceanos e mares: perpassaram temporalidades.
Testemunho disto é, como foi dito, a tenacidade do mito ao qual o historiador se reporta.
Nessa perspectiva, é provável também que Hatoum tenha verificado as representações do
Eldorado por meio do imaginário material, produzido no século XVI, mais precisamente os
mapas dessa época. Por exemplo, o de Jodocus Hondius 453, cartógrafo da viagem de Sir Walter
Raleigh:
452
UGARTE, op. cit., p. 20.
453
Nascido em Flandres, porém cresce na cidade de Ghent, onde aprende a gravação de mapas. Em 1584,
perseguições religiosas motivam sua fuga para Londres, onde constrói uma rede de relações com geógrafos,
cientistas e exploradores. Por volta de 1593, retorna para Amsterdã, torna-se impressor e comerciante de mapas.
Quando morre, em 1612, já havia se legitimado como cartógrafo, principalmente, por ter feito aperfeiçoamentos
no “Atlas” de Gerard Mercator. (http://www.cartografiahistórica.usp.br).
148
Figura 12: HONDIUS, Jodocus. Nieuwe caerte van het Wonderbaer ende Gondrjcke Landt Guiana [1598] (Mapa
gravado a cores, ornamentado, tamanho original 36,5 x 52cm. Localização: Biblioteca Nacional (Brasil) –
Cartografia. ARC.030,02,032
Sir Walter Raleigh era um fidalgo inglês, comandou a mais famosa expedição, ocorrida
no século XVI à Amazônia. Através da publicação de seu A descoberta do grande, rico e belo
Império da Guiana, com uma relação da grande e dourada cidade de Manoa, a qual os
espanhóis chamam de El Dorado, talvez o relato mais eficaz no que diz respeito à propagação
do mito do Eldorado, visto que sua difusão parte da Inglaterra, portanto, fora, do epicentro
europeu (Espanha e Portugal) à época, o viajante afirmou que no norte do rio Amazonas existia
o império guiano, sua capital era Manoa, esta destacava pela grandiosidade material e
geográfica, superando qualquer cidade do mundo naquele contexto.454
No mapa supra é possível localizar o lago Manoa e o Eldorado, próximos ao Rio das
Amazonas. Nessa medida, Hatoum e os historiadores que pesquisam sobre o referido mito
demonstram que esse imaginário mental se consolidou num processo de constante
ressignificação, plurilinguismo e dialogismo entre culturas. Nesse sentido, os indícios deixados
pelos cronistas do século XVI revelam a viagem e a transculturação do mito da cidade
454
UGARTE, Auxiliomar Silva. “Margens Míticas: A Amazônia no Imaginário Europeu do Século XVI”. In.:
DEL PRIORE, Mary, GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Os senhores dos rios. – Rio de Janeiro : Elsevier,
2003, p. 27 e 28.
149
encantada. Mito, que ao cabo de muitos séculos, tornou-se parte da memória coletiva dos grupos
humanos que habitaram e habitam as cidades da Amazônia. Portanto, a leitura cuidadosa da
novela aqui usada como fonte é um campo de possibilidades para se “ouvir a voz por trás do
texto, (...).”. 455
Com efeito, o literato amazonense utiliza esta oralidade, por exemplo, quando se reporta
ao conjunto de crenças e manifestações religiosas que inundam o imaginário das populações
locais, conforme investigo linhas abaixo. Esta peculiaridade abre fendas para examinar a
relação dialógica da narrativa de Hatoum com os domínios da Antropologia e da História. Nessa
perspectiva, a narrativa apresenta veredas relacionadas às peculiaridades dos registros
etnográficos. Desta forma, a novela Órfãos do Eldorado suscita um “trabalho de campo”
revelador das práticas e representações que giram em torno das crenças norteadoras das culturas
populares existentes na Amazônia. A fé em um mundo melhor, sem sofrimento, sem desgraça
existente na região. Uma “cidade sem mal” herdeira da cultura tupinambá é constante na
referida literatura de ficção, como procurarei abordar linhas mais abaixo.
Voltando aquela fonte de história que eu utilizava anteriormente, verifiquei que nos seus
Agradecimentos, Hatoum afirma:
Embora esta ficção não se refira diretamente aos índios ou à cultura indígena, a leitura
do ensaio A inconstância da alma selvagem, de Eduardo Viveiros de Castro, foi
importante para a compreensão dos Tupinambá da Amazônia e para refletir sobre este
romance. 456
Por sinal, como já foi elucidado antes, em suas obras, Hatoum reconstitui o imaginário
indígena, materializado em suas personagens, quase sempre femininas: Domingas e Dinaura,
por exemplo, para citar somente as obras Dois Irmãos e Órfãos do Eldorado. Paralelo a isto,
relatos sobre mitos indígenas. Alguns, extremamente eróticos. Vejam este entrecho:
Lembro também da história de uma mulher que foi seduzida por uma anta-macho. O
marido dela matou a anta, cortou e pendurou o pênis do animal na porta da maloca.
Aí a mulher cobriu o pênis com barro até ficar seco e duro; depois dizia palavras
carinhosas para o bichinho e brincava com ele. Então o marido esfregou muita pimenta
no pau de barro e se escondeu para ver a mulher lamber o bicho e sentar em cima dele.
Diz que ela pulava e gritava de tanta dor, e que a língua e o corpo queimavam que
nem fogo. Aí o jeito foi mergulhar no rio e virar um sapo. E o marido foi morar na
beira da água, triste e arrependido, pedindo que a mulher voltasse para ele. 457
455
OBELKEVICH, James. “Provérbios e história social”. In.: BURKE, Peter e POTEER, Roy (orgs.). História
social da linguagem; tradução Álvaro Attnher. – São Paulo : Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 43.
456
HATOUM, Milton. “Agradecimentos”. In.: Órfãos do Eldorado. Companhia da Letras : São Paulo, 2008, p.
107 – afirma “romance”, mas na verdade, como ele mesmo deixa claro no evento referido anteriormente trata-se
de uma novela.
457
HATOUM, 2008, p. 12.
150
Aqui é patente a influência das anotações etnográficas e etnológicas sobre mitos eróticos,
como o escritor afirma nos seus Agradecimentos: “usei livremente algumas poucas narrativas
indígenas e passagens dos livros de Betty Mindlin, Candace Slater e Robin M. Wright sobre
mitos da Amazônia brasileira”. 458 Slater, pesquisando acerca do processo e desencanto da
imaginação amazônica, no contexto da festa do boto (um encantado), lança mão da oralidade
de um homem de 57 anos, residente no interior da cidade de Parintins: “Acho que o Encante é
como outro planeta. Pois o santo tem milagre, mas o encanto tem mistério”. 459 Mindlin, por
sinal, reúne significativas histórias, “girando sempre em trono do tema do amor, são
representadas segundo os povos dos narradores: Macurap, Tupari, Ajuru, Jabuti, Arikapu e
Aruá, todos de Rondônia. São seis povos que falam línguas diferentes e tem tradições
distintas”.460 No referido livro a antropóloga afirma:
Pequenas sociedades das aldeias da mata brasileira nos dão um bom material para
quebrar a cabeça nessa direção. As histórias são surpreendentes, modernas, e
poderiam ser o núcleo de romances contemporâneos. Algumas, inclusive, poderiam
ser escolhidas como símbolos, exemplares do drama amoroso. Velhos temas: a
sedução; a relação mãe-filha, de competição ou solidariedade; a solidão erótica; a
voracidade; o sonho do amor aventureiro, para não dizer romântico; a mulher ou o
homem encantados, encontrados no meio da floresta ou no fundo das águas; o incesto,
o amor criminoso; os amantes que se opõem e se matam; a viuvez e a figura do morto;
a violência e a vingança; e assim por diante.461
A propósito, os grifos são meus. Estes corroboram o testemunho de Hatoum no que diz
respeito a utilização de relatos orais colhidos de histórias compiladas por determinados
antropólogos brasileiros e estrangeiros, estudiosos das culturas indígenas viventes na
Amazônia, posto que se analisada a fundo, é provável que aquela pequena história mitológica
criada por Hatoum, citada anteriormente, tenha sido adaptada do livro Moqueca de Maridos...,
da antropóloga Betty Mindlin. Desta reunião de narrativas orais, Hatoum pode ter usado os
mitos eróticos “A mulher do anta” 462, “O sapo, Tororõi”463 e “O pinguelo de barro” 464, pois,
reafirmo, destes, há ecos no relato, qual citei, elaborado pelo escritor amazonense.
De volta ao tema da cultura tupinambá, conjecturo que Hatoum utilizou aspectos
relacionados à crença propalada pelos caraíbas – xamãs profetas –acerca da busca da terra-
458
HATOUM, 2008, p. 107.
459
SLATER, Candace. “O boto como encantado”. In.: _______________. A festa do boto: transformação e
desencanto na imaginação amazônica; tradução Astrid Figueiredo. – Rio de Janeiro: Funarte, 2001, p. 203. A fala
transcrita é utilizada como epigrafe do sexto capítulo da referida obra.
460
MINDLIN, Betty e narradores indígenas. Moqueca de maridos: mitos eróticos. – Rio de Janeiro: Record:
Rosa dos Tempos, 1997, p.18.
461
Idem, p. 17-18.
462
Idem, p. 79 a 81.
463
Idem, 157 a 158.
464
Idem, 130.
151
sem-mal. Crença que, conforme especialistas, pode ter relação com outra peculiaridade dos
Tupinambá: o processo migratório. Percorrendo às pesquisas históricas e etnohistóricas
percebe-se pontos de vista divergentes quanto a esta peculiaridade da referida etnia. Alguns
afirmam que o movimento de busca da terra-sem-mal é contemporâneo ao processo de
ocupação do Novo Mundo pelas populações europeias, outros, divergem afirmando que a
migração faz parte de uma permanência que viria de alhures. Diante disso, observa-se que,
paralelo a essa espécie de procura do paraíso na Terra, esse mote migratório pode ter relação à
demanda de conflitos com os colonizadores. É consenso na narrativa de cronistas navegadores
do rio Amazonas: primeiro, o ponto de partida dos Tupinambá, isto é, a costa oriental daquilo
que viria a ser o Brasil; segundo, os indígenas estariam fugindo da opressão europeia.
Constatação corroborada pelas fontes escritas, pois “no início do século XVII, os cronistas
encontraram os Tupinambá no Maranhão, no Pará e na ilha de Tupinambarana, médio
Amazonas.”. 465
A cultura Tupinambá, por sinal, foi responsável pela organização de santidades
indígenas, primeiro movimento, significativo, de refutação do processo civilizatório imposto
pelo sistema colonial na América portuguesa. Apropriando-se de traços do cristianismo os
caraíbas articularam levas de indígenas, migrantes em fuga de uma terra dos males sem fim –
trazidos pela escravidão e doenças europeias - à busca da terra-sem-mal – Paraíso presente no
imaginário religioso dos Tupinambá. 466 Ademais, “(...) os karaiba mostraram-se, em diversas
ocasiões, opositores ferrenhos dos padres, não poucos destes personagens apropriaram-se do
discurso cristão, desafiadora ou oportunisticamente”. 467
Esse processo migratório iria trazer os indígenas até a cidade de Parintins,468 “ quando
fugindo às perseguições, que sofreram no Peru, voltavam a ocupar, a região de onde haviam
saído e que tinha o nome de Maracá”. 469 Seja dito de passagem, com o memorialista aí citado:
os Tupinambá saíram da ilha Tupinambarana já no séc. XVIII e fixaram-se nos seus arredores,
mais precisamente às margens do rio Uaicurapá. 470 Durante as explorações do rio Amazonas se
465
FAUSTO, Carlos. “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: da etnologia como instrumento crítico de
conhecimento etno-histórico”. In.: Cunha, Manuela Carneiro (org.) História dos índios no Brasil. São Paulo, Cia
das Letras, 2006, p. 383.
466
VAINFAS, Ronaldo. “Santidades ameríndias”. In.: A heresia dos índios: cotidiano e rebeldia no Brasil
colonial. – São Paulo : Companhia das Letras, 1995, p.p. 46-50.
467
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios antropológicos. São
Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 211.
468
Cidade localizada no Baixo rio Amazonas.
469
BITTENCOURT, Antônio C. R. Memória do município de Parintins: estudos históricos sobre sua origem e
desenvolvimento moral e material. Manaus: Edições, Governo do Estado do Amazonas / Secretaria de Estado da
Cultura, Turismo e Desporto, 2001, p. 13.
470
Há alguns quilômetros da Ilha de Parintins.
152
verificou a existência de ilhas à margem direita do referido rio. Nesse contexto, a ilha habitada
pela etnia Tupinambá receberia a denominação de Tupinambarana. Ainda, conforme as
conclusões de Bittencourt, os Tupinambá, chegados do território sul da América portuguesa,
temendo a escravidão, se estabeleceram na atual cidade de Parintins. Porém, a expansão do
processo lusófono, de ocupação e exploração da Amazônia, induziu a saída da referida etnia da
ilha Tupinambarana, pois temiam a escravidão.
O historiador Arthur Cesar Ferreira Reis também é contundente:
Tupinambarana – o núcleo instalado na ilha desse nome, em 1796, foi organizado pelo
capitão de milícias José Pedro Cordovil[...]. 471 Cordovil operou, inicialmente, com os
Maués e Sapupés, a que em 1798 vieram incorporar-se os Paravianas e os Uapixanas.
Participantes de uma rebelião que ensanguentou as praias do Rio Branco, vencidas,
aquelas tribos indígenas foram distribuídas por vários sítios da Capitania, numa
dispersão que valia como medida punitiva. O grupo de Tupinambarana, era um dos
castigados. 472
Por sinal, estes registros, de certa forma, podem ser relacionados com os estudos do
etnohistoriador Carlos Fausto, mencionado anteriormente, visto que suscite o peculiar
movimento migratória da etnia Tupinambá: elucida tensões, choque de culturas, no bojo do
processo de colonização. Nessa esteira, na segunda edição do livro Clarões de Fé no Médio
Amazonas, Dom Arcângelo Cércua, outro pesquisador diletante, compromissado com a
trajetória da missão católica no Médio rio Amazonas, também faz menção a etnia Tupinambá:
Mas que índios eram esses antigos moradores de Parintins e seu território? Na opinião
de Maurício Henriarte (DESCRIPÇÃO DO MARANHÃO, p. 162/225), os primeiros
moradores foram os índios ARATU, APOCUITARA, YARA, GOGUI, CURIATÓS.
Num segundo tempo estes foram subjugados pelos TUPINAMBÁS, que vinham da
faixa atlântica do Brasil, fugindo da conquista dos portugueses. O movimento
migratório dos Tupis em 1600 tornou-se um verdadeiro êxodo. Entretanto, parece que
os Tupis de nossa região vieram em boa parte pelo Madeira e pelo Centro. Gostaram
da ilha, conquistaram seus naturais e os avassalaram. Depois com o tempo houve a
fusão por meio dos casamentos. Mas segundo Acunã, eles exterminaram muitos
moradores e continuaram a tratar os restantes em caráter senhorial, apesar do
intercasamento. 473
Observando a citação supra, relativa à digressão feita acima sobre a etnia Tupinambá,
cabe a provocação: seria Parintins a “terra sem mal” dos Tupinambá? Apesar de ser perigoso
afirmar, no plano histórico, que Parintins foi a cidade encantada dos Tupinambás, pode-se
471
Esta evidência histórica, a menção ao sobrenome Cordovil, entretece a narrativa histórica à narrativa literária
inscrita na novela Órfãos do Eldorado, visto que seu personagem principal também recebe o mesmo sobrenome.
No terceiro capítulo observo essa relação dialógica: o Cordovil inscrito nas fontes, documentos oficiais, históricos
e o Cordovil, transfigurado através da literatura de Milton Hatoum.
472
REIS, Arthur Cézar Ferreira. As origens de Parintins. – Manaus : Editado pelo Governo do Estado do
Amazonas. – Secretaria de Imprensa e Divulgação. – Palácio Rio Negro, 1967, p. 9.
473
CERQUA, Dom Arcângelo (bispo prelado de Parintins). Clarões de fé no Médio Amazonas. (A prelazia de
Parintins no seu jubileu de prata). Manas : Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1980, p. 12-13.
153
conjecturar: é bem possível que as referências que utilizei para verificar o processo de migração
dos Tupinambá até Parintins ou, até mesmo outras com o mesmo tipo de abordagem, podem ter
sido consultadas pelo escritor Milton Hatoum, tornando-se, assim, matrizes intelectuais e
imagéticas, as quais, contribuíram, e muito, com a escrita criativa de Hatoum.
Conjecturo porque, para o narrador de Hatoum, a cidade encantada era:
uma cidade que brilhava de tanto ouro e luz, com ruas e praças bonitas. A Cidade
Encantada era uma lenda antiga, a mesma que eu tinha escutado na infância. Surgia
na mente de quase todo mundo, como se a felicidade e a justiça estivessem escondidas
num lugar encantado. Ulisses Tupi queria que eu conversasse com um pajé: o espírito
dele podia ir até o fundo das águas para quebrar o encanto e trazer Dinaura para o
nosso mundo. Sugeriu que eu fosse atrás de dom Antelmo, o grande curandeiro xamã
de Maués. Ele conhecia os segredos do fundo do rio e podia conversar com Uiara,
chefe de todos os encantados que viviam na cidade submersa. 474
Nessa narrativa percebe-se, por um lado, certa busca de um tempo perdido. Tempo
imaginário presente na memória coletiva dos habitantes da Amazônia. Por outro, a feição das
crenças nos encantados, a partir do imaginário das populações que habitam a região. E nesta
para aquilo que os antropólogos, como Heraldo Maués anotam e categorizam como pajelança
indígena. Assim, vejo nas linhas subsequentes a representação dos encantados.
De acordo com os estudos mais recentes a pajelança indígena é fruto e produto de crenças
ancestrais dos Tupinambá, a qual se apropria, primeiramente, dos dogmas católicos e,
posteriormente, do conjunto de crenças e lendas portuguesas. Mais tarde sofre influência das
religiões africanas (mina, umbanda, candomblé) e do espiritismo kardecista europeu. Portanto,
a pajelança indígena assume uma peculiaridade sincrética, pois, paralelo à apropriação de
elementos de culturas externas, também acaba por influenciar as religiões com as quais manteve
contato ao longo de sua trajetória histórica. 475 Por outro lado, a figura do curandeiro xamã é um
indício para outra prática e representação da pajelança, isto é, a pajelança cabocla ou rural.
Dito corretamente,
uma forma de xamanismo, já que seu principal oficiante, o pajé curador, mantém um
contato íntimo com as entidades sobrenaturais (os caraúnas), que se apoderam de seu
corpo, incorporando-se nele, durante as sessões públicas ou privadas, na maior parte
dos casos destinados à cura de doentes. 476
474
HATOUM, 2008, p. 64.
475
MAUÉS, Raymundo Heraldo & VILLACORTA, Gisela Macambira. “Pajelança e Encantaria Amazônica”. In.:
PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados; textos de André
Ricardo de Souza et al. – Rio de Janeiro: Pallas, 2004.
476
Idem, p. 49.
154
A pajelança cabocla se motiva na crença dos encantados. Seres invisíveis que habitam o
encante: morada subterrânea ou aquática das referidas entidades. Os registros etnográficos, dos
mencionados antropólogos, a partir de trabalho de campo em regiões amazônicas anotam três
formas de encantados: os bichos do fundo 477, os oiaras 478 e os caruanas. 479 Na trama elaborada
por Milton Hatoum, como se percebe em fragmentos supracitados, Dinaura, indígena a qual
Arminto Cordovil apaixona-se, desaparece ao ponto de todos afirmarem que ela foi levada para
morar no encante: a cidade localizada no fundo do rio. Apelo uma vez mais à narrativa de
Hatoum para demostrar o imaginário balizado no conjunto de crenças amazônicas, os quais
envolvem a personagem narrador da novela de Hatoum: “No porto de Vila Bela, alguém
espalhou que a órfã era uma cobra sucuri que ia me devorar e depois me arrastar para uma
cidade no fundo do rio. E que eu devia quebrar o encanto antes de ser transformado numa
criatura diabólica”480 , assente Arminto Cordovil, no plano do enunciado da novela em estudo.
Esse registro etnográfico me faz lembrar a famosa lenda da Cobra Norato. Recorrendo
aos registros do Vale Amazônico encontra-se uma narrativa corroborando que ao banhar-se nas
águas entre os rios Amazonas e Trombetas uma mulher engravidou. Mais tarde dá à luz a
gêmeos, feitos serpentes escuras. A memória coletiva as conhece como Maria Caninana e
Honorato. Como eram bichos anfíbios, logo a mãe as joga no paraná do Cachoeri. Honorato,
de temperamento bondoso, às vezes fazia visitas à mãe. À noite transformava-se num moço
bonito, sempre vestido de branco, aproveita as festas para dançar e enamorar moças. Já
Caninana, de natureza violenta, torna-se temida por navegadores e pescadores, famosa por
alagar embarcações e matar os náufragos. Em meio a uma relação conflituosa, Honorato mata
Caninana. Na cidade de Cametá, Honorato, faz amizade com um soldado, revela seu encanto e
pede para ele ajudar-lhe a se desencantar. Assim o soldado fez: colocou dois pingos de leite na
boca da cobra e deu uma cutilada com ferro virgem na cabeça da serpente escura. Feito isto,
Honorato e seu amigo soldado queimaram a pele da cobra que durante os dias tomava o corpo
do encantado. 481
Ainda nessa perspectiva antropológica relativa ao “trabalho de campo” é mister verificar
a significativa contribuição da memória coletiva, pois que convergem com determinadas
477
Aquáticos, se manifestam na forma de jacarés, cobras, peixes e botos.
478
Terrestres tomam a forma humana para persuadir as pessoas e levarem para o fundo dos rios.
479
Incorporam nas pessoas que “se agradam” ou naquelas quem tem o “dom” e, principalmente, nos próprios pajés
(xamãs), tomando seus corpos para praticarem o bem e curarem os doentes.
480
HATOUM, 2008, p. 35.
481
PINTO, Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra. Cultura e Ontologia no mito da cobra encantada. Manaus :
Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2012, p. 53.
155
lembranças fantásticas, inscritas na estrutura mental dos habitantes da cidade de Parintins, por
exemplo. Ouvindo tais oralidades, é possível conjecturar que Milton Hatoum também tenha
passeado pelos bosques da memória dos atuais habitantes da antiga Vila Bela, Ilha de
Tupinambarana: “Parintins, eu pesquisei muito. Eu fui à Parintins várias vezes, eu fiquei lá. Eu
encontrei o nome da personagem nas ruas de Parintins, a Dinaura. O nome que eu precisava e
não encontrava [...]”. 482 Ora, no conjunto de crenças amazônicas são os bichos, também
encantados, que levam para o fundo das águas os seres humanos. Somente o espírito de um pajé
pode viajar até o encante para assim, libertá-los do encantamento. Inclusive sobre as constantes
recorrências a um pajé, que residia distante da cidade, a qual era solicitado para tirar os feitiços,
“principalmente àqueles envolvendo a figura de botos e cobras” 483 denominado “’sacaca’: mais
conhecido da cidade (o termo se refere ao tipo mais poderoso de pajé, do qual se diz poder
viajar de corpo e alma até o fundo do rio)”. 484 Assim, convido as pessoas leitoras a ouvir a voz
da senhora Terezinha (codinome “Teca”), na perspectiva de “incorporar sua subjetividade, sua
imaginação, sua arte verbal, no mesmo tecido de um texto dialógico no qual a voz do historiador
é somente uma das vozes, e não necessariamente a mais autorizada”485:
482
HATOUM, Milton. Fragmento de depoimento gravado em Manaus, na tarde de 06 de dezembro de 2019,
sexta-feira. no auditório da Escola Superior de Tecnologia (EST) da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA), quando o escritor fez palestra de lançamento de seu romance Pontos de Fuga. Na oportunidade, fiz
indagações sobre o processo de pesquisa e elaboração da novela Órfãos do Eldorado. Portanto, o entrecho
utilizado acima é relativo à resposta acerca da pergunta sobre as imagens da cidade de Parintins inscritas na
referida novela.
483
Teresinha de Jesus da Silva Ferreira, é dona de casa, nascida em 03 de março de 1933. A entrevista a mim
concedida, ocorreu em setembro de 2013, no jardim de sua residência à Rua Amazonas, 1616, centro da cidade de
Parintins. Vale deixar registrado que a referida senhora é minha querida mãe. A quem, também, dedico essa
pesquisa.
484
SATER, Candace. A festa do boto: transformação e desencanto na imaginação amazônica. tradução de Astrid
Figueiredo. Rio de Janeiro: Funarte, 2001, p. 216.
485
PORTELLI, Alessandro. “A entrevista de história oral e suas representações literárias”. In.: Ensaios de
história oral. Seleção e tradução de Fernando Luiz Cássio e Ricardo Santhiago. São Paulo: Letra e Voz. 2010, p.
2016.
486
Comunidade (localizada na periferia de Parintins) na qual a senhora Terezinha passou sua infância e parte da
juventude. Ganhou esse nome por esta localizada na margem do rio Parananema, um dos afluente do Rio
Amazonas.
156
marido dela prendia ela na casa pra ela não sair, que quando ela saia ela se jogava
n’água mesmo. Era preciso chamar os vizinhos para ajudar... Aí eles trancavam ela na
casa, era assim, de taipa. Ela subia ia abrir a palha lá em cima pra enxergar o Primião,
no rio, a casa deles era na beira do rio... Só o que eu sei dessa história, depois o marido
dela vendeu o terreno pra vir pra cidade pra ela poder ficar boa. Ela ficou muito, muito
doida. Só isso que sei. 487
487
FERREIRA, Arcângelo da Silva; OLIVEIRA, Patrícia de Souza. “Mito, Memória e História: nos caminhos de
Órfãos do Eldorado”. In.: FERREIRA, Arcângelo da Silva [et.al.]. Pensar, fazer e ensinar: desafios para o ofício
do historiador no Amazonas. – Manaus (AM): UEA Edições; Valer, 2015, p.173. - Fragmento do depoimento da
Senhora Terezinha de Jesus da Silva Ferreira, concedido em sua residência, na cidade de Parintins, no dia 22 de
setembro de 2013. O entrecho consta na referida página do livro indicado.
488
Este imaginário do urbano: Parintins como “cidade anfíbia”, inscrito em Órfãos do Eldorado, ganhara um
tópico no terceiro capítulo desta tese.
489
HATOUM, 2008, p. 41.
157
Por vingança e por prazer pueril eu tinha jogado fora uma fortuna. E olha só: não me
arrependo.
Mostrei o mapa a um prático experiente e disse a ele que procurava um povoado na
Ilha de Eldorado. 490
Dizia que tinha se afastado do marido porque ele vivia caçando e andando por aí,
deixando-a sozinha na Aldeia. Até o dia em que foi atraída por um ser encantado.
Agora ia morar com o amante, lá no fundo das águas. Queria viver num mundo
melhor, sem tanto sofrimento, desgracia. 493
490
HATOUM, 2008, p. 101.
491
HATOUM, 2008, p. 31.
492
HATAOUM, 2008, p. 11.
493
HATOUM, 2008, p. 11.
158
mitos universais494, Milton Hatoum busca imagens da literatura também universal. Nessa
medida, conjecturo que Hatoum parte de uma imagem, retirada de uma obra clássica para tecer,
através de seu imaginário, a trajetória histórica de Arminto Cordovil, este que na busca de seu
amor, se viu perdido em uma floresta escura, enigmática como o encante; labiríntica, como o
emaranhado dos rios amazônicos. A imagem, que segundo minha hipótese, serve de matriz para
o escritor amazonense, reproduzo adiante:
É Dante Alighieri nos versos iniciais do “Inferno”, primeiro livro de A Divina Comédia.
A riqueza crítica sabe: esta obra se trata de uma epopeia clássica. No tempo de seu enunciado,
em linhas gerais, representa a busca do herói (Dante), que contando com a ajuda de um poeta
romano, Virgílio, inicia uma conturbada trajetória em busca de sua amada: Beatriz. Ora, essa
representação me fez ponderar que o narrador de Hatoum, Arminto Cordovil, parece viver
experiências semelhantes ao eu lírico de “Inferno”. Ambos narram suas ações e feitos
memoráveis, lendários, mas também históricos, os quais alegoricamente estão relacionados a
uma determinada coletividade. A diferença é que a epopeia de Arminto Cordovil comporta uma
peculiaridade: trata-se de uma narrativa à contrapelo, pois a personagem de Hatoum, a propósito
das intenções do autor-criador, é um anti-herói, como procurei evidenciar neste segmento. Para
corroborar meus argumentos, reproduzo imagens relativas à peculiaridade da epopeia às
avessas de Arminto Cordovil, desenhada, na escrita criativa do escritor amazonense:
Ulisses Tupi me levou para lá. Era uma freguesia depois da boca do Espírito Santo.
Na praia do Arari, Ulisses amarrou o cabo da lancha no tronco de uma árvore. Uma
fileira de canoas velhas, apoiadas em forquilhas cravadas na areia. Ninguém na porta
das taperas cobertas de palha.
Cadê a moça, [...]?
Paciência, disse Ulisses, apontando uma ave. Era uma cigana no céu branco de tanta
luz.
E,
Segui o vôo pesado da ave até a mata alagada. Ouvi Ulisses dizer o nome de um
pássaro e imitar seu canto. Deitei na proa e fechei os olhos, mareado pelo banzeiro de
um barco. Dinaura apareceu no sonho com o mesmo vestido de chitão. Os olhos de
feitiço, um pouco rasgado, e escuros, cortados da noite. Comecei a conhecer o rosto
de Dinaura, e senti o que não havia sentido nos namoros da juventude. [...].
494
KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. – Manaus: Editora Valer/Governo do Estado do
Amazonas, 2003. Nesta obra o autor argumenta que determinados mitos amazônicos possuem na sua estrutura
peculiaridades relativas a mitos greco-romanos, por exemplo.
495
ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: inferno; tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. – São Paulo: Ed. 34,
1998, p. 25
159
Uma vez mais os grifos são meus. Eles estão aí, primeiro para indicar uma determinada
intertextualidade entre os versos supracitados de Dante e a prosa de Hatoum: ambos indicam
uma viagem complexa em busca da mulher amada. Dinaura, personagem Arminto Cordovil e
Beatriz, personagem Dante. Ao denominar, o ajudante de Arminto Cordovil, de Ulisses Tupy,
Hatoum almeja ressignificar, talvez a personagem mais representativo dentre as epopeias
clássicas: Ulisses, personagem de Homero em A Odisseia. Contudo, na escrita criativa de
Hatoum, Ulisses parece incorporar Virgílio, personagem que ajuda Dante a encontrar Beatriz.
Em suma, conjecturo que através da verificação das referidas personagens, aí configuradas na
novela Órfãos do Eldorado é possível afirmar que: as epopeias clássicas serviram de matrizes
intelectuais à escrita criativa de Milton Hatoum; o escritor parte deste gênero literário para
compor sua epopeia às avessas, ou seja, a sua narrativa de uma cidade encantada ou alegoria
de uma história trágica. Pois, o fato de Hatoum, inventar uma “epopeia amazônica”, com
características de epopeia moderna, balizada nas reflexões de Lukács [como já frisei em outros
lugares desta tese] corrobora, uma vez mais, o sentido de história inscrito na novela Órfãos do
Eldorado: uma história a partir das mônadas encontradas nos escombros, ruínas do tempo, do
enunciado e, por extensão, da escrituração da mencionada novela: o tempo histórico.
No próximo, e último, capítulo desta tese, verifico, alguns nuances da passagem de
Arminto Cordovil, em três cidades amazônicas: Manaus, Parintins e Belém. Portanto, um breve
percurso sobre o processo criativo de Hatoum (condições objetivas, subjetivas), sobre a história
das três cidades (através do imaginário do literato) e acerca da epopeia desse personagem
degradado (alegoria de uma época).
160
CAPÍTULO III
Da polifonia das representações496: imaginário das cidades de Manaus, Parintins e Belém
em Órfãos do Eldorado
[...], até a minha juventude a primeira juventude nos anos 60 _ Manaus era uma cidade
vamos dizer, cortada por igarapés, em Tupi significa rio estreito – caminhos de águas.
E esses igarapés em Manaus em Belém, cidades Amazônicas eles tinham, vamos
dizer, um significado muito forte, não só visual mas também, de lazer. As pessoas iam
aos balneários públicos e particulares que havia balneários públicos, iam se banhar
iam ficar lá, jogando futebol, nadando, tinha cachoeira [...]. 497
496
Para dar título a este capítulo, não sem sentido adoto a expressão “polifonia das representações”, pois a intenção
é desenhar o capítulo através de três aspectos, os quais nortearam minha narrativa histórica: 1º) perceber a tomada
de posição das fotografias, as quais me aproprio para representar as cidades de Manaus, Parintins e Belém; 2º) a
condição de espectador emancipado, do escritor Milton Hatoum diante de fotografias antigas, estas que
possivelmente usou como mote para o seu processo criativo; 3º) a refutação dos monumentos (imagens canônicas
das referidas cidades) e a adoção de tais fontes históricas como documentos (a partir da peculiaridade da “visão do
urbano” inscrita na literatura de ficção de Milton Hatoum, essencialmente, a novela Órfãos do Eldorado. Ouvindo
as vozes emitidas da fotografia e da literatura procuro, portanto, construir um determinado saber sobre parte da
história de três cidades amazônicas, tendo como fonte principal o imaginário de Milton Hatoum.
497
Fragmento da Palestra proferida por Milton Hatoum aos alunos e alunas da Faculdade de Arquitetura da
Universidade de São Paulo (FAU). Transcrita e gentilmente cedida pela professora, da Universidade do Estado do
Amazonas, Francisca Lourdes de Souza Louro. (transcrição em vias de publicação).
161
“Já não é simplesmente a literatura que constrói seu tornar-se-pintura imaginária nem a
fotografia que evoca a metamorfose literária do banal. São os regimes de expressão que se
entrecruzam e criam combinações singulares de trocas, fusões e afastamentos”. 499
Escolhi iniciar me reportando ao pensador Jacques Rancière, a propósito das intenções deste
capítulo: entretecer a narrativa fotográfica à literária e vice-versa. Observar a relação dialógica
nas visões: fotográfica e literária do urbano.
A propósito de tais intenções, a fotografia colocada acima, publicada, originalmente, no
ano de 1929, retrata a Ponte Benjamin Constant: símbolo de um novo desenho arquitetônico
projetado à cidade. Esta imagem parece revelar uma pulsão, uma luz sob um momento
espetacular: a urbe começa a se preparar para “esquecer” suas canoas (herança do passado
indígena); sobre o igarapé ergue-se a ponte majestosa. O animal, resquício da antiga cidade
498
Fotografia retirada do Álbum Municipal de Manaós. Elaborado na Administração do Prefeito Araújo Lima
sendo Presidente do Estado o Exmo. Sr. Dr. Ephigênio de Salles, Amazonas-Brasil, 1929.
499
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado; tradução Ivone C. Benedetti. – São Paulo : Editora WMF
Martins Fontes, 2012, p. 119.
162
bucólica, torna-se um abstruso, pois, a objetiva faz notar o bonde elétrico: símbolo desse tempo
transitório. Ora, esse registro fotográfico suscita a essência da modernidade. 500 Esta, que Jauss,
lembrando das reflexões de Charles Baudelaire, define como sendo transitória, fugidia,
eventual, porém, eterna, imutável; dúbia portanto. 501 A representação da referida edificação
arquitetônica, ao lado de algumas outras que neste capítulo aparecerão, por meio da fotografia
e da literatura, é simbólica, pois, busca consolidar um dos legados deixados por um projeto
civilizatório à Amazônia. Por sinal, plano já sugerido antes mesmo do boom da borracha, como
é cotejado nas palavras dos Agassiz:
Há, essencialmente, nos meus grifos feitos à citação supra, uma determinada visão
futuristas dos viajantes que por Manaus passaram na década de sessenta do século XIX. Nesse
sentido a imagem representada na fotografia supra é, de certa forma, a constatação da realidade
vislumbrada pelos referidos naturalista. Porém, por outro ângulo de olhar, suscita a maneira
abrupta, no qual o espectro da Belle Époque se inseriu. Como foi dito, essa fotografia apresenta
as peculiaridades da modernidade: elucida indícios de resistências culturais, mesmo que nas
sombras da grafia da luz. Esta peculiaridade faz observar que:
500
Me aproprio da reflexão de Hans Robert Jauss, retirada do ensaio “Tradição literária e consciência atual da
modernidade”, inscrito na coletânea organizada por Heidrun Kriegger Olinto, (onde, na nota 304, abaixo colocada,
está posta a referência completa), para pensar o sentido de moderno e modernidade: “[...], se desenvolve através
das mudanças históricas da consciência da modernidade, e reconhecemos a sua potência histórica criativa, quando
surge a oposição determinada – a ‘despedida’ de um passado pela autoconsciência histórica de um novo presente”
(p. 50).
501
JAUSS, Hans Robert. “Tradição literária e consciência atual da modernidade”. In.: OLINTO, Heidrun Krieger
(org.). Histórias de Literatura: as novas teorias alemãs. – São Paulo: Editora Ática S. A., 1996, p. 79.
502
AGASSIZ, Louis e Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865-1866; tradução de João Etienne Filho, apresentação
de Mario Guimarães Ferri. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1976, p.
127.
163
atrasado, em geral identificados nos hábitos e nas tradições populares de uma cidade
que insistia em ainda mostrar seu lado primitivo de antiga tapera.503
503
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus(1899-
1925). 3.ed. – Manaus: FUA, 2015, p. 56.
504
COSTA, Deusa. Quando viver ameaça a ordem urbana – Trabalhadores de Manaus (1890/1915). Manaus:
Editora Valer e Fapeam, 2014, p. 37
505
Para construção desse capítulo foi de grande valor as reflexões de Georges Didi-Huberman e Jacques
Rancière, como as pessoas leitoras perceberam ao longo da narrativa.
506
Porém, advirto as pessoas leitoras que as imagens do urbano na novela Órfãos do Eldorado são relativamente
ínfimas, por isso, lancei mão das orientações inscritas no método indiciário; assim, pude trazê-las à lume.
164
escritor. Faz ponderar, inclusive, sobre a influência de determinados vestígios culturais colhidos
das vivências e experiências nas cidades de Barcelona e Paris, por onde habitou,
temporariamente, o literato. Isso remete a determinadas problematizações: como esses
episódios tornam-se influentes no processo de criação das narrativas imaginárias sobre as
representações das cidades na obra do escritor? Quanto a isso, elucidativo, por exemplo, é o
entrecho adiante:
Antes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em Barcelona, entre a
Sagrada Família e o Mediterrâneo, talvez sentado em algum banco da praça do
Diamante, quem sabe se também pensando em mim, na minha passagem pelo espaço
da nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954. 507
Uma cidade não é a mesma cidade se vista de longe, da água: não é sequer cidade:
falta-lhe perspectiva, profundidade, traçado, e sobretudo presença humana, espaço
507
HATOUM, Milton. Relato de Um certo Oriente. – 1ª ed, - São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 10.
508
HATOUM, Milton. Dois irmãos. – São Paulo : Companhia das Letras, 2006, p.197
509
Nesse romance, estou me reportando às representações/alegorias que podem ser analisadas através do debate
entre as personagens, artistas plásticos, Mundo e Arana sobre a obra Campo de cruzes, idealizada como um
protesto aos projetos arquitetônicos erguidos à revelia das questões socioambientais e culturais surgidos no
contexto do regime militar brasileiro. (pp. 147 e 148).
510
Amazonas: palavras e imagens de um rio em ruínas, publicado originalmente em 1979, onde consta uma
reunião de poemas, como as pessoas que estão lendo já observaram no capítulo I.
165
vivo da cidade. Talvez seja um plano, uma rampa, ou vários planos e rampas que
formam ângulos imprecisos com a superfície aquática. 511
Caminhando pelas calçadas da cidade de Manaus, com suas árvores frondosas. Chamava-
lhe a atenção as cores e a imponência das edificações luxuosas, os jardins largos das praças
públicas. O brilho das luzes, gente falando nas cabines, ao telefone, meninos vendendo jornais
por todo lado, os jovens nas filas dos cinemas, senhores, senhoras, de finos trajes, entrando nos
teatros. “Florita me levava ao porto flutuante e ao aviário da praça da Matriz, depois andávamos
pela cidade, víamos os cartazes dos filmes do Alcazar e do Polytehama, e voltávamos para a
511
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 111.
[Mister verificar nesse indício, possivelmente, como já foi afirmado no capítulo primeiro, uma de suas matrizes
intelectuais: Ítalo Calvino].
512
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura; tradução
Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. revista – São Paulo: Brasiliense, 2012.
513
Se considerados os recortes cronológicos pressupostos nas representações do tempo histórico, ressignificados
pelo escritor amazonense, através do tempo do enunciado inscrito nos enredos de seus poemas, romances, novela,
contos, crônicas, conjunto de sua obra, portanto.
166
chácara no fim da tarde. 514 Através da apropriação da narrativa crível, de Milton Hatoum,
percebem-se representações das experiências cotidianas, na cidade de Manaus (no período
1890-1913). O entrecho acima parece alegórico à Belle Époque, como se o relato vislumbrasse
uma antiga fotografia da cidade de Manaus. Semelhante àquelas elaboradas como objeto
canônico de arte, qual essa abaixo:
514
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado... 2008, p.17-18.
515
Fotografia retirada do Álbum Municipal de Manaós. Elaborado na Administração do Prefeito Araújo Lima
sendo Presidente do Estado o Exmo. Sr. Dr. Ephigênio de Salles, Amazonas-Brasil, 1929.
516
ELMIR, Cláudio Perreira. “O’ enredo como categoria e como método de análise”. In.: MALERBA, Jurandir
(organizador). História & narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica, 2016, p. 194.
167
Pois, “a fotografia está de tal modo enraizada em seu espírito que mesmo certos
panoramas parisienses aparecem-lhes sob forma de provas fotográficas.”520 Com efeito, “desde
a metade do século XIX, a fotografia era notada, conhecida e reconhecida por protagonistas da
literatura”. 521 Na obra proustiana, as metáforas, essenciais à linguagem, são, com frequência,
análogas aos instrumentos ópticos “como que a manifestar o fascínio que eles despertavam
pelas novas possibilidades que ofereciam para a percepção do ‘mundo real’”. 522 Como me fez
observar Estela Sahm, a partir da leitura do livro que acabo de fazer menção: a obra de Proust
seria como um equipamento fotográfico, com vidros de aumento, através dos quais, as pessoas
releriam a si mesmas. Tipo àqueles instrumentos ópticos oferecidos aos fregueses de Cambray,
a cidade inscrita na obra monumental de Marcel Proust. 523
517
SOULAGES, Francois. Estética da fotografia: perda e permanência; tradução de Iraci D. Paleti e Regina
Salgado Campos. – São Paulo : Senac. São Paulo, 2010, p. 267.
518
BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia. 3ª ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.
19.
519
Idem, p. 99
520
BRASSAÏ. Proust e a fotografia; tradução, André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005, p. 123.
521
SOULAGES, Francois. Estética da fotografia: perda e permanência; tradução de Iraci D. Paleti e Regina
Salgado Campos. – São Paulo : Senac. São Paulo, 2010, p. 267.
522
SAHM, Estela. Bergson e Proust: sobre a representação da passagem do tempo. – São Paulo : Iluminuras,
2011, p.16.
523
Em “ O tempo redescoberto”, página 280, do volume 7 do Em busca do Tempo perdido, na tradução de Lúcia
Miguel Pereira, Editora Globo, 2004, conforme Estela Sahm, encontra-se o fragmento no qual Proust compara seu
livro a “uma espécie de vidro de aumento, como os que oferecia a um freguês o dono da loja de instrumentos
ópticos em Cambray [...].”.
168
Essas evidências reportam ao fato de Marcel Proust ser uma das matrizes intelectuais de
Milton Hatoum: “Tudo, primeiro, está em Marcel Proust, cuja imagem da mãe que beija o filho
antes do sono é usada em Relato.” 524 Por esse ângulo, em Proust o ofício do fotógrafo
assemelha-se ao ofício do escritor:
[...] como as imagens e reminiscências ressuscitadas permanecem frágeis, o grande
truque, tanto no laboratório fotográfico como no domínio da escrita, é mobilizá-las,
solidificá-las. Para o escritor, o equivalente do hipossulfito que fixa as imagens e ,
segundo Proust, a perfeição, a justeza da expressão, o ‘estilo’. 525
524
PIZA, “Perfil Milton Hatoum”. In. CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória: ensaios
sobre os romances Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. – Manaus:
Editora da Universidade Federal do Amazonas / Uninorte, 2007, p. 17.
525
BRASSAÏ. Proust e a fotografia; tradução, André Telles. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005, p. 157.
526
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 1ª ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 18. [os
grifos são meus].
527
BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia. 3ª ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p.
92.
528
MUAD, Ana Maria; LOPES, Marcos Felipe de Brun. “História e Fotografia”. In.: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo : Novos domínios da história. – Rio de Janeiro : Elsevier, 2012, p. 279.
169
Esse gosto de Milton Hatoum pela fotografia, como as evidências indicam, surge também,
em determinados depoimentos, cotejados nas mídias eletrônicas e impressas. Como, por
exemplo, quando lembra do período que da faculdade de Arquitetura na FAU:
“Tinha laboratório de fotografia. Convivi com os fotógrafos João Musa e Cristiano Mascaro.
Com João Musa eu fiz um livro de poesia, ele publicou fotos da Amazônia com mais dois
fotógrafos, e eu cometi a imprudência de escrever alguns poemas” 529, ironiza Hatoum. Nessas
palavras concedidas ao Jornal Rascunho:
Assim, “[...] há sempre um estigma, uma marca inextirpável da angústia que até mesmo
a fotografia perpetua”. 531 Essa afinidade com a fotografia, decerto, está evidente na trajetória
histórica e intelectual de Milton Hatoum. Eis o depoimento adiante:
[...]. A fotografia pode ser um documento histórico. Ela pode ser um documento
individual. Mas ela pode também, falar, vamos dizer, profundamente da história. [...].
Eu escrevi o prefácio pro livro de um fotógrafo carioca que morou muito anos em
Manaus, o Andreas Valentin, não sei se alguém ouviu falar dele. E, é um livro sobre
um grande fotógrafo alemão que morou em Manaus durante o ciclo da borracha, o
George Huebner. E o Andreas foi pra Alemanha, Visitou Dresden, visitou as cidades
de onde ele [o fotógrafo alemão] vinha e escreveu um livro muito bonito sobre o
Huebner que foi um dos maiores fotógrafos europeus no Brasil. Ele tinha um ateliê
fotográfico aqui em Manaus. E às vezes a gente nem sabe disso, né. Muita gente nem
sabe dessas, dessas riquezas mesmo, do olhar europeu. Então, a fotografia sempre,
vamos dizer, me interessou. E o meu primeiro livro, foi um livro de poesia,
infelizmente tá esgotado, ele nunca mais vai ser editado. Infelizmente não será mais
lido, foi um livro de poemas com fotos da Amazônia, de 78 ou 79, não me lembro
bem. Eu já tinha esse interesse. Agora, o que, o que a foto pode ser? Pode ser uma
denúncia: uma foto de um incêndio na floresta. Ela pode denunciar um fato, um crime,
não é mesmo? [...]. 532
529
HATOUM, Milton. Milton Hatoum fala sobre a importância das Universidades (entrevista de Mauro Malin a
Milton Hatoum). Acesso: redeglobo.globo.com. acessado em 15/05/2020, às 22:04H.
530
REBINSKI, Luiz. Fim da espera: Milton Hatoum fala sobre o processo criativo de “A noite da espera”, que
marca seu retorno ao romance após nove anos. Disponível em: http://rascunho.com.br/27921-2/. Acessado em
09/03/2019 às 12:31H.
531
HATOUM, Milton. Relato de Um certo Oriente. – 1ª ed, - São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 70
532
Entrecho retirado das respostas às perguntas que fiz a Milton Hatoum acerca do valor da narrativa fotográfica
no processo da escrita criativa do referido escritor, quando ele veio à cidade de Manaus em 06 de dezembro de
2019, lançar o seu livro Pontos de Fuga. Esse evento ocorreu em uma tarde de sexta-feira no auditório da Escola
Superior de Tecnologia (EST) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
170
quais representam a transformação arquitetônica pela qual Manaus está vivenciando, o olhar do
fotografo captura, também, o vai e vem dos transeuntes, estes que contribuíram com o processo
de reinvenção da referida urbe. A foto, adotando determinados referentes, portanto, instiga o
espectador a perceber a dialética entre o projeto civilizatório, importado da Europa, e os
habitantes que no afã da cidade moderna, se metamorfoseiam à luz dos filtros vigentes àquela
ordem social.
Figura 15: “George Huebner, Av. Eduardo Ribeiro, Cartão Postal, c. 1920. Acervo Museu da Imagem e
do Som do Amazonas. Repara-se o erro de grafia, ‘Avenido’, indicando que a imagem possa ter sido
realizada no exterior”.533
Nessa medida, registro oral reproduzido acima da fotografia, corrobora o que venho
afirmando: desde seu primeiro livro Hatoum utiliza a fotografia como um recurso peculiar para
a elaboração de sua obra e, por extensão, para pensar a memória e a história de cidades
amazônicas. Paralelo a isso, nas palavras do escritor articulo outro argumento: a trajetória do
referido botânico naturalista, alemão, George Huebner, à cidade de Manaus, no contexto do
boom da borracha, provavelmente, trouxe material criativo para que Hatoum pudesse inventar
a personagem fotógrafo, alemão, inscrito em seu primeiro romance. Acerca disso, faço algumas
533
VALENTIN, Andreas. A fotografia de George Huebner. – Rio de Janeiro: Nau Editora, 2012, p. 189. Vale
informar que a reprodução da imagem retirada da referida referência é uma fotografia da foto de Huebner feita
pela historiadora Elisângela Maciel, em 14 de março de 2020, feita especialmente para esta tese.
171
menções linhas adiante. Antes, a propósito, reproduzo algumas palavras de Hatoum sobre a
trajetória e o trabalho do referido fotógrafo:
Atada num cinturão de couro, pendia de sua cintura uma caixa preta; os que a viam
de longe pensavam tratar-se de um coldre ou cantil, e ficavam impressionados com a
sua destreza ao sacar da caixa a Hesselblad e correr atrás de uma cena nas ruas, dentro
das casas e igrejas, no porto, nas praças e no meio do rio. Possuía, além disso, uma
memória invejável: todo um passado convivido com as pessoas da cidade e do seu
país pulsavam através da fala caudalosa de uma voz troante, acoitando o silêncio do
quarteirão inteiro. Mas a memória era também evocada por meio de imagens; ele se
dizia um perseguidor implacável de ‘instantes fulgurantes da natureza humana e de
paisagens singulares da natureza amazônica’. Há tempos ele se dedicava à elaboração
de um ‘acervo de surpresas da vida’: retratos de um solitário, de um mendigo, de um
pescador, de índios que moravam perto daqui, de pássaros, flores e multidões.” 538
534
HATOUM, Milton. “Prefácio”. In.: VALENTIN, Andreas. A fotografia amazônica de George Hubner. Rio de
Janeiro: Nau Editora, 2012, p. 11 e 13.
535
Idem, p. 71.
536
Idem, p. 52
537
Idem, p. 55.
538
Idem, p. 53
172
539
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado; tradução Ivone C. Benedetti. – São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012, p. 9.
540
Idem, p.10.
541
Ibidem, p. 103.
173
“No entanto, [às fotografias] não basta olhar, é fundamental estranhar”. 543 Assim,
argumento que diante das fotos da Belle Époque, motes para visão literária do urbano inscrita
na novela que, aqui, serve como fonte de história, Hatoum, por meio de determinados
fragmentos, inscritos em sua prosa poética, faz do registro imagético oficial uma imagem
pensante. Lembra, portanto, que “a Fotografia sempre [...] espanta, com um espanto que dura
e se renova, inesgotavelmente”. 544
Nessa medida, reforço, optei em utilizar um movimento no qual, nas linhas que seguem,
a narrativa fotográfica será comparada, gradativamente, à narrativa literária, procuro
estabelecer condições de possibilidade, as quais oportunizem uma análise acerca das
representações da cidade. Assim, uso uma noção, aqui concebida como narrativa fotográfica
da literatura de ficção: formulada para verificar e analisar os sentidos inscritos nas imagens
visuais afloradas na/da literatura de Milton Hatoum. Sendo assim, algumas ponderações
norteiam esse movimento de análise: Primeiro, qual é o referente da fotografia? 545 Como a
narrativa fotográfica da literatura de ficção (de Hatoum), problematiza a imagem visual, a
partir do referente fotográfico? Qual o sentido de história emitido nas duas representações (a
fotográfica e a literária)? Na esteira de minhas argumentações, adiante apresento a primeira
imagem visual,546 seguidas de outras, necessárias a narrativa histórica aqui desenvolvida:
542
BAZIN, André. O que é cinema. Tradução: Eloísa Araujo Ribeiro / Apresentação e apêndice: Ismail Xavier,
São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 32
543
MUAD; LOPES, 2012, p. 280
544
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia; tradução Júlio Castañon Guimarães. – [7. ed] –
Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2018, p.71. [grifos do autor].
545
Idem (p. 67): “chamo de ‘referente fotográfico’, não a coisa facultativamente real a que remete uma imagem
ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a qual não haveria
fotografia. [...], na Fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla posição conjunta: de realidade e
de passado. E já que essa coerção só existe para ela, devemos tê-la, por redução, como a própria essência, o noema
da Fotografia. O que intencionalizo em uma foto (...) não é nem a Arte, nem a Comunicação, é a Referência, que
é a ordem fundadora da Fotografia”. [grifos do autor].
546
A fotografia está inscrita no Álbum do coronel Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt. Conforme a obra do
memorialista Agnello Bittencourt, Dicionário Amazonense de biografias: vultos do passado, publicado,
originalmente em 1973, na cidade do Rio de Janeiro pela editora Conquista: Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt,
foi governador do Estado do Amazonas (desde 23 de julho de 1908 até 22 de dezembro de 1912, quando foi
174
O que essa fotografia antiga narra? Uma certa complexidade do real social? Uma
transmutação do tempo? A dança imóvel de um período efêmero? Parece mesmo fluido o
conceito: a foto antiga, apesar de pinçar, à memória, um episódio no percurso descontínuo da
vida banal, não consegue assegurar um estático sentido à história das pessoas aí retratadas. Os
olhares, os gestos, as posições, as indumentárias, as distâncias e as proximidades dos corpos,
os gêneros, os matizes (das roupas, mas, essencialmente, da pele), em suma, a diversidade
(socioeconômica e cultural) revelam aos olhares do presente os diversos sentidos que esse
desenho do olhar pretérito deixou registrado, desde as escolhas que giram em trono da
deposto, nas palavras do biografo: “por um golpe de quartel” (p. 80, da referida obra). O referido álbum, portanto,
provavelmente, fora elaborado, como registro de sua passagem pelo governo.
547
Imagem reproduzida a partir do livro A Grande Crise (1908-1916) do memorialista Antônio José Solto
Loureiro. Obra publicada, originalmente, em 1985, em Manaus, através da T Loureiro & Cia. A fotografia está
inscrita na Seção “Documentário Fotográfico”, exatamente, na página 270.
175
elaboração, técnica, estética da referida fotografia. A imagem visual supra suscita a peculiar
relação entre o pesquisador e o fotografo, pois:
Ora, “seja o que for o que ela dê a ver a qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre
invisível: não é ela que vemos”. 549 Esses fragmentos advertem que a fotografia antiga, através
dos instrumentos do pesquisador, abre-se, liberta os seus significados, tantos quantos os olhares
aguçados possam emergir. Acompanhar o movimento da objetiva, buscar os referentes da
imagem, as intenções inscritas do chão histórico, o qual a fotografia foi elaborada. Há um
movimento na fotografia que se faz protagonista. E esse movimento torna-se chave de leitura
para se compreender qual a relação da foto antiga com as temporalidades: aquela do momento
exato da foto e a outra, a que revela lembranças, memórias e histórias na conjuntura da
interpretação da imagem visual. A fotografia antiga, aberta pelo pesquisador, desvela a ilusão
do imediato. A referida imagem, por exemplo, “possibilita recarregar de sentido a visão de um
outro tempo da cidade. E, a partir desse referencial, podemos medir a consciência de nossas
existências”.550
Pensando nessas preposições, cabe a recorrência às imagens, afloradas da narrativa
fotográfica da literatura de ficção de Milton Hatoum. Percebe-se adiante, a utilização da
técnica do instantâneo. O fragmento abaixo, assim, serve como um modelo desse gênero, pois
aí reside, pelo menos cinco instantâneos, como se o escritor, encarnado no narrador estivesse
sob posse de uma máquina fotográfica, atento aos registros de cenas, as quais seu olhar se
propõe desenhar; em suma, torna-se um espectador que, nesses instantes, quer registrar seus
questionamentos:
Andei de bonde pela cidade, vi palafitas e casebres no subúrbio e na beira dos igarapés
do centro, e acampamentos onde dormiam ex-seringueiros; vi crianças ser enxotadas
quando tentavam catar comida ou esmolar na calçada do botequim Alegre, da Fábrica
548
HOLANDA, Lourival. “A lição das coisas”. In.: PINHEIRO, Geraldo Sá Peixoto (org,). Amazônia em
Cadernos: História em novos cenários. Universidade do Amazonas – Museu Amazônico. V2 Nºs 2/3 dez.
1993/1994, p. 113.
549
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia; tradução Júlio Castañon Guimarães. – [7. ed] –
Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2018, p. 15.
550
Idem, p. 113.
176
Paralela à citação supra, oportuno uma vez mais recorrer à fotografia de George Huebner,
significativa a meus argumentos subsequentes:
Figura 17: “George Huebner, Rua Municipal. ‘Álbum do Amazonas 1910-1902’. Coleção Ana Maria
Daou, Rio de Janeiro”. 552
551
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. – São Paulo : Companhia das Letras, 2008, p. 57.
552
VALENTIN, Andreas. A fotografia de George Huebner. – Rio de Janeiro: Nau Editora, 2012, p. 189. Vale
informar que a reprodução da imagem retirada da referida referência é uma fotografia da foto de Huebner feita
pela historiadora Elisângela Maciel, em 14 de março de 2020, feita especialmente para esta tese.
553
GUINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios; tradução de
Antônio Narino. – Lisboa : DIFEL, 1989, p. 180.
177
múltiplos ângulos. Tantos quantos o estranhamento instiga: por vezes rastros escondidos nos
lugares mais silenciosos da imagem canônica. Aparecem determinados lugares de memória: os
quais, o tempo do enunciado representa na peculiaridade da ambiência elitista, permanente nas
memórias do tempo histórico aí retratado. Entretanto, apesar das ausências que esses lugares
também possam representar à trajetória histórica das culturas subterrâneas, Hatoum, a
contrapelo das narrativas oficiais, prefere suscitar a tragédia banal. Descreve a história de
transeuntes, obstados pelo valor de troca que a urbe impõe.554 Desenha a peleja cotidiana
inscrita nos embates pela sobrevivência. Vivências urdidas nas experiências de pessoas que,
desde a infância, não escapam ao jogo do poder, o qual estrutura a ordem social vigente, na
conjuntura representada. O que me fez lembrar que “uma sociedade se constrói sobre o silêncio
e a exclusão do outro e a de noção de um selvagem interno”.555 Porém, no que tange a cidade
de Manaus, no contexto da Belle Époque, como a historiografia atualizada alude, esse projeto
civilizatório parece que não teve “força suficiente para impedir que populares continuassem
morando enquistados nos espaços que estavam sofrendo maior intervenção ‘modernizadora’
por parte do poder público”. 556
Talvez, por isso, na cidade imaginária de Hatoum, os tensionamentos são registrados: as
matrizes da pobreza aparecem em perspectiva. O paradoxo social vem à lume: à margem da
fábrica de alimentos, pessoas esmolando. Os espaços de repressão como alternativa para as
supostas anomalias sociais. Ora, na ordem do dia da Belle Époque manauara, também “é preciso
curar a cidade, por bem ou por mal, pelo conselho e bom exemplo ou pela violência”. 557
Entretanto, no chão imaginário dessa cidade, retratada a partir de uma determinada conjuntura
histórica e marcada pela segregação social, a narrativa de Hatoum permite a dignificação do
anônimo: as memórias e as histórias dos sujeitos subsumidos vem à baila. Portanto,
considerando o referente fotográfico (através desse movimento comparativo, aqui adotado e,
considerando ainda a primeira fotografia), a narrativa imaginária de Hatoum, alude a noção de
punctum: essa “picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de
554
LEFBRVRE, Henry. O Direito à Cidade. – 1ª ed. São Paulo : Moraes, 1991.
555
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. – São Paulo
: Companhia Editorial Nacional, 2001, p.12. [a autora usa o itálico para destacar três conceitos formulados por
Michel de Certeau].
556
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus(1899-
1925). 3.ed. – Manaus: FUA, 2015, p. 65.
557
Idem, p. 14. [O grifo é da autora].
178
dados. O punctum de uma foto é esse acaso que nela, me punge (mas também me mortifica, me
fere)”. 558
A imagem delineada pela narrativa imaginária do escritor é subversiva, se comparada à
imagem retratada abaixo: aí, reside um sentido de história peculiar à noção de ordem social que
o Álbum, no qual esse e outros registros visuais se inscreve, emite. Convido à leitura dessa
imagem visual, a partir de agora:
558
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia; tradução Júlio Castañon Guimarães. – [7. ed] –
Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2018, p. 29.
559
Fotografia retirada do Álbum Municipal de Manaós. Elaborado na Administração do Prefeito Araújo Lima
sendo Presidente do Estado o Exmo. Sr. Dr. Ephigênio de Salles, Amazonas-Brasil, 1929.
560
LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In.: História e Memória; trad. Bernardo Leitão (et.al.).
Campinas: Unicamp, 2003, p. 538.
179
561
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. – São Paulo
: Companhia Editora Nacional, 2001, p. 25
562
MUAD; LOPES, 2012.
563
SOULAGES, 2010, p. 274.
564
Respectivamente representados pelo “Dr. Leopoldo Amorim da Silva, Dr. Raimundo Chaves Ribeiro e Dr.
Adriano Jorge” (este último, àquela conjuntura, também assumia o cargo de “Eminente presidente da Academia
Amazonense de Letras”). O Álbum estampava nas suas primeiras páginas a fotografia das referidas pessoas.
565
Quanto a esse aspecto, no seu prefácio ao livro A História Nova, o historiador Jacque Le Goof, se reporta à
obra clássica de Marc Bloch, Apologia da história ou o ofício do historiador, e adverte: à produção do saber
histórico é essencial compreender as relações entre presente e passado (p. 34). Porém, obviamente, essa questão
de método, como se percebe, não se inscreve na ideia de história inscrito na apresentação do Álbum em estudo.
180
Cidade de Manaus 1848-1948 celebra a laudatória história dos vencedores. Nessa perspectiva,
a imagem por si só, congelada, é ineficaz e inútil, pois necessita da narrativa, porque, “sem a
palavra, a imagem fotográfica nos escapa, ela é impensável. É por essa razão que a literatura
vai se tornar, às vezes, a serva (e dialeticamente a senhora) da fotografia”.566 Ademais:
Com isso, percebe-se que a fotografia vaza um tempo pretérito, mesmo que esse passado
seja o imediato instante em que o dedo do fotografo aperta o disparador da objetiva. Pois nesse
fragmento do devir, elucidado pela luz da fotografia, inscrevem-se sinais de uma época. Indícios
que, por vezes fazem da imagem visual “uma ferida: vejo, sinto, portanto, noto, olho e
penso”. 568 Desta forma, a fotografia captura, num tempo/espaço, memórias representadas nos
vestígios nela registrados, a partir da sua apropriação como fonte histórica. Considerando tais
fundamentos, como assinalei anteriormente, apresento, adiante, outra foto, significativa ao
processo de minha narrativa histórica. Conexa a essa fotografia, a qual reproduzo mais abaixo,
está uma narrativa herdeira do período1890-1913: “a elite divertia-se: temporadas líricas no
Teatro Amazonas, saraus artístico-musicais e etílicos, no Club Internacional e no Ideal Club,
jogos e bebidas no Hotel Cassina, alta prostituição na Pensão da Mulata e em outros cabarés
[...].” 569 Ora, “a pressão moralizante recaia quase que exclusivamente aos bordéis populares e
a figura do imigrante, principalmente o nordestino”. 570 Pois, à parte central da urbe, ocorreu
uma insólita ruptura cultural!: “Manaus despiu-se de suas vestes indígenas, [...] trocou
perfumes de flores e raízes silvestres por sofisticados frasquinhos parisienses, desprezou seus
aluás e o saboroso guaraná por bourbons franceses e pelo schopp alemão.” 571 Eis a fotografia:
566
Idem, p. 49.
567
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. – 5ª ed. – São Paulo: Ateliê Editorial, p.46, 1980.
568
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia; tradução Júlio Castañon Guimarães. – [7. ed] –
Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2018, p.26
569
COSTA, Selda Vale da. Eldorado das ilusões. Cinema & sociedade: Manaus (1897/1935). Manaus: Ed. da
Universidade do Amazonas, 1996, p. 24
570
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus(1899-
1925). 3.ed. – Manaus: FUA, 2015, p. 61
571
COSTA, Selda Vale da. Eldorado das ilusões. Cinema & sociedade: Manaus (1897/1935). Manaus: Ed. da
Universidade do Amazonas, 1996, p. 21.
181
Figura 19. Teatro Amazonas, ao centro o monumento, comemorativo a abertura dos Portos as Nações Amigas
(século XIX). 572
572
Fotografia retirada do Álbum Municipal de Manaós. Elaborado na Administração do Prefeito Araújo Lima
sendo Presidente do Estado o Exmo. Sr. Dr. Ephigênio de Salles, Amazonas-Brasil, 1929.
573
JOBIM, Anísio. “A cidade da Barra do Rio Negro”. In.: Álbum da Cidade de Manaus 1848-1948, organizado
e publicado durante a administração do prefeito Raimundo Chaves Ribeiro, p. 9. Cabe parênteses sobre a história
da cidade, pois o fragmento supracitado demanda uma brevíssima digressão: sendo a sede da Comarca do Rio
Negro, Manaus dependia política e economicamente da Província do Grão-Pará até a criação da Província do
Amazonas, em 1850. Conforme outro fragmento do texto de apresentação do Álbum - porém, não registrado na
citação acima - em 1848, pela lei de 24 de outubro do referido ano, a Assembleia Paraense elevou a vila de Manaus
à categoria de Cidade da Barra do Rio Negro.
182
574
No livro Viagem Incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). - A grande transição, publicado,
originalmente no ano 2000 (SP), pela editora Senac, o historiador Carlos Guilherme Mota afirma que o projeto de
Independência do Brasil e, por extensão, de formação da identidade nacional, obviamente, não se completou
durante os impérios de D. Pedro I, tampouco, no de D. Pedro II. Nessa medida, o saber produzido pela Literatura
e Historiografia (brasileiras) atesta muito bem essa comprovação (vide, por exemplo e respectivamente
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928), de Mario de Andrade e A Formação do Brasil Contemporâneo
(1942) de Caio Prado Júnior, pois ambos continuam trazendo à baila esse debate: o problema histórico que gira
em torno da completude da independência (socioeconômica e político-cultural) do Brasil; da identidade nacional.
No que diz respeito a história da Amazônia, Arthur Cezar Ferreira Reis, no artigo “A incorporação da Amazônia
ao Império” [inscrito no volume 1, nº 2 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1950)], coloca
uma questão: “Ora, sendo a Amazônia um foco rico de lusitanidade, constituindo uma unidade política distante do
Brasil, como explicar sua incorporação do Império?” (p. 174). Questão, segundo ele, colada a outro problema: a
miscigenação; esta predominantemente incentivada pelo poder público desde o processo de ocupação/colonização
da Amazônia (século XVII). Por isso, em 1820/22, existia na região uma população segregada, cultural, social,
econômica e politicamente. Nesse sentido, pensar o processo de Independência do Brasil, (como se espraiou até à
Amazônia?), assim como, pensar a formação de uma identidade nacional brasileira, é considerar também o papel
significativo da população miscigenada, suas ideias, ações, projetos de toda ordem, os quais contribuíram e muito,
com a Independência do Brasil e, por extensão da Amazônia. Assim, a miscigenação é também uma questão para
se refletir, inclusive, a partir das teses apresentadas pelo historiador Capistrano de Abreu, através do clássico
Capítulos de História Colonial (1907). Em suma, não é demais afirmar, com o referido historiador da sociedade,
que no Brasil existem identidades nacionais, fruto e produto dos “brasis”; estes inscritos no Brasil.
575
Uma evidência emblemática da acepção de história laudatória, é o verbete que traz à lume a história de
Ajuricaba. O Álbum... no conjunto de imagens visuais, estampa na sua sétima página a representação (no formato
de desenho) de Ajuricaba com o seguinte texto: “Diz a história da Amazonia (sic) que Manaus era o nome de uma
tribu indígena (sic), que primitivamente, dominava o vale do Rio Negro, Ajuricaba, que a ela pertencia chefiou a
celebre Confederação Amarina da Amazonia (sic) que fez perigar o domínio lusitano nestas partes do Novo
Mundo. Ajuricaba caiu prisioneiro, conduzido acorrentado numa canoa, para um veleiro português, onde seria
levado para a Côrte, o guerreiro índio, altivo e nobre, atirou-se, com seus grilhões a voragem das águas. Preferiu
morrer, a viver como escravo, os seus feitos, revestidos todos de grandes heroísmo e denunciadores de profundo
sentido nativista, atravessou o tempo e para os filhos do Amazonas, Ajuricaba tornou-se um símbolo”. [os grifos
são meus: elucidam a história dos heróis em detrimento da história das massas].
183
sejam as relações com a vida real dos indivíduos, mostram-nos os sentimentos e reações que os
autores consideravam plausíveis num determinado período”. 576 Para o que estou buscando
argumentar, a novela de Hatoum, é fecunda porque reúne indícios subversivos à ordem
simbólica, quando comparada às imagens visuais que o referido documento oficial seleciona
objetivando perpetuar as efemérides. Com o literato a história dos subsumidos vem à lume:
“Chegava gente de muitos países e de todos os cantos do Brasil. O problema eram os pobres, o
governo não sabia o que fazer com eles. As praças amanheciam com famílias que dormiam
sobre jornais velhos [...]”. 577 Nesse sentido, à narrativa imaginária de Hatoum a memória, a
história, são crucias para a busca, nas dobras do tempo pretérito, de uma Manaus inscrita nas
sombras da grafia da luz. Imagem que me faz retornar a historiografia atualizada, elucidativa
ao processo de expansão da referida cidade, demandada, pela abrupta inserção de classes
populares advindas com a demanda de trabalhadores para a extração do látex ou para a
construção de obras públicas na capital do Amazonas:
[...], tanto o preço elevado do solo urbano, após 1890, quanto a adoção das posturas
públicas incentivou o deslocamento dos novos habitantes – cearenses em sua maioria
– para locais mais afastados, como Cachoeirinha, o Mocó, São Raimundo, Educandos,
Vila Municipal, Plano Inclinado, Flores e adjacências, fazendo a cidade avançar cada
vez mais sobre a floresta.578
576
DAVIS, Natalle Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp 17 e 18.
577
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das letras, 2008, p. 22.
578
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus(1899-
1925). 3.ed. – Manaus: FUA, 2015, p.60.
579
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. “Na contramão da história: mundos do trabalho na cidade da borracha
(Manaus, 1920-1945)”. In.: Canoa do Tempo: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Amazonas, vol. 1, n.1 (2007- ). – Manaus: Editora da Universidade Federal do
Amazonas, 2007, p.p. 19-20.
184
conflitiva, tensa [...]”.580 É, portanto, com esta convergência histórica que a visão literária do
urbano, inscrita na escrita criativa de Milton Hatoum, dialoga. Assim, Hatoum, faz das imagens
mecânicas - os registros da cidade moderna, essencialmente projetadas nas fotografias -
imagens pensantes. Tomando posição como um espectador emancipado. Na mesma proporção
inventa uma história, uma narrativa imaginária, mostrando os sentimentos da cidade através de
seus personagens. “Vejam”, por exemplo, o juízo abaixo, na objetiva de Arminto Cordovil,
personagem principal da novela Órfãos do Eldorado:
[...], alguma coisa perturbou a cidade. O movimento portuário diminuiu. Não era a
guerra na Europa, a Primeira Guerra. Ainda não. Eu via as pessoas irritadas,
revoltadas. Tudo parecia absurdo e violento. Em pouco tempo o humor de Manaus se
alterou. Li nos jornais um desabafo do meu pai: reclamava dos impostos absurdos, do
valor das taxas alfandegárias, do péssimo funcionamento do porto, da balbúrdia na
nossa política. 581
Ora, a partir da primeira década do século XX, “a exportação da borracha despencou”. 583
Por sinal, as evidências da referida conjuntura traduzem descontentamentos relativos à política
econômica em vigência. A Lei Orçamentária n.º 710 de 19 de outubro de 1912, por exemplo,
é alvo de questionamento:
580
COSTA, Deusa. Quando viver ameaça a ordem urbana – Trabalhadores de Manaus (1890/1915). Manaus:
Editora Valer e Fapeam, 2014, pp. 111-112.
581
HATOUM, 2008, p. 23.
582
BENTES, Dorinete. Outras faces da história: Manaus: !910-1940. – Manaus: Rego Edições, 2012, p. 41
583
HATOUM, 2008, p. 48.
185
[...], foi orçada a receita e fixada a despesa do Estado para o actual exercício. Essa
Lei, Srs. Representantes, feita ás pressas, sem o devido cuidado e sem um exame
minucioso por parte do Poder Executivo, antes de propô-la, é uma Lei não assentada
em bases prováveis, parecendo-me inexequível e absurda. Um ligeiro exame por mim
feito ácerca do assumpto, trouxe no meu espírito a necessidade inadiável da revisão
quase total do orçamento, como uma medida de salvação pública. 584
584
Mensagem lida perante o Congresso do Amazonas na abertura da Primeira Sessão Extraordinária da oitava
legislatura pelo Exm. Snr. Dr. Jonathas de Feitas Pedrosa, Governador do Estado em 26 de fevereiro de 1913.
585
GUINZBURG, Carlo. “ Paris, 1647: um diálogo sobre ficção e história“. O fio e os rastros: verdadeiro, falso,
fictício; tradução de Rocha Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.82.
586
HATOUM, 2006, p. 18. Essa preocupação com o contexto histórico, plasma do tempo que estrutura os enredos
de Hatoum, é trabalhado em todos os seus romances. Por meio destes, há condições de possibilidade para se
conjecturar, por exemplo, sobre as mentalidades inscritas nas referidas conjunturas. Em Dois Irmãos, o escritor
menciona as agruras ocorridas na cidade de Manaus durante o período da II Guerra Mundial, as angustias pelas
quais as populações passaram: “Foram assim durante os anos da guerra: Manaus às escuras, seus moradores
acotovelando-se diante dos açougues e empórios, disputando um naco de carne, um pacote de arroz, feijão, sal ou
café. Havia racionamento de energia e um ovo valia ouro.”.
186
Figura 20: detalhe da cidade de Parintins, em 1858, vista do rio Amazonas 588
587
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. “Nos meandros da cidade: cotidiano e trabalho na Manaus da borracha, 1880-
1920”. In.: Canoa do Tempo: Revista de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas, vol.
1, n. 1 (2007- ). – Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007, p. 54.
588
ANDRADE, Moacyr. Manaus: ruas, fachadas e varandas. Manaus, Humberto Calderaro, 1985.
589
ANDRADE, 1985, p. 50.
590
Estou me reportando as reflexões do filósofo e historiador da Arte, Georges Didi-Huberman, essencialmente a
partir do livro Quando as imagens tomam posição: o olho da história, I.
187
peculiaridade anfíbia dessa cidade; a relação dialógica com o rio; este que se constituiu histórica
e antropologicamente como o referente à construção das identidades amazônicas.
É, portanto, isto que será abordado nas linhas que seguem.
“[...], na beira dos rios, Vila Bela era uma cidade anfíbia”. 591 Como se nota, o uso do
elemento água, aqui afigurado em rio, suscita a principal peculiaridade de Vila Bela. E posso
até arriscar em dizer que o rio, suas águas, serve como metáfora das memórias, pois são essas
águas que fortalecem os sentimentos de pertença e identidade, nos viventes das cidades
amazônicas. Isto, a propósito, é bem recorrente na literatura de Milton Hatoum. Obviamente, o
rio é uma referência significativa à Vila Bela, onde a novela Órfãos do Eldorado é, em parte,
ambientada. Nessa fórmula, a menção aos sentimentos de pertença aponta, igualmente, para um
atilamento antropológico. Em Órfãos do Eldorado, os rios, as aves (que vivem nos ecossistemas
de várzea), a noite, amazônicos, são evidenciados, também, como metáforas do tempo, da
história e da memória. Assim, necessário faz-se deixar Arminto Cordovil, personagem principal
de Órfãos do Eldorado, a novela, se pronunciar:
[...] passo a tarde de frente para o rio. Quando olho o Amazonas, a memória dispara,
uma voz sai da minha boca, e só paro de falar na hora que a ave graúna canta.
Macucauá vai aparecer mais tarde, penas cinzentas, cor do céu quando escurece.
Canta, dando adeus à claridade. Aí fico calado, e deixo a noite entrar na vida. 592
Percebe-se, é por meio da natureza que se inicia a narrativa. Diante do rio a história de
Arminto Cordovil é inaugurada e finalizada quando Macucauá ecoa. O rio Amazonas vaza aqui
sua força polifônica. Essas inúmeras vozes que o tempo guarda e que as lembranças aguçam.
Mas, é preciso estar diante dele e olhá-lo profundamente. Como quem olha para sua própria
história. Olhar e lembrar para não incorrer na amnésia e deixar o esquecimento penetrar na vida.
Isso faz ver o quanto os sentidos são cruciais à memória. Um comportamento, um gesto, um
hábito aguçam lembranças. 593 No entrecho que retirei da novela de Hatoum, no plano de seu
enunciado, o rio é o catalizador da subjetividade de Arminto Cordovil: por onde reconquista
sua memória. Dito corretamente, o Amazonas, - rio que impressiona, historicamente, os
591
HATOUM, 2008, p. 53.
592
HATOUM, 2008, p. 14.
593
ARCE, Bridget Christine. “Tempo, sentidos e paisagens: os trabalhos da memória em dois romances de Milton
Hatoum”. In.: CRISTO, Maria de Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória: ensaios sobre os romances
Dois irmãos, Relato de um certo Oriente e Cinzas do Norte de Milton Hatoum. Manaus: EDUA: UNINORTE,
2007, p. 230.
188
sujeitos que por ele navegaram: “este rio não parece um rio; a corrente geral, neste mar de
água doce, mal é perceptível à vista e mais se parece com as vagas dum oceano que com o
movimento dum curso de água do mediterrâneo” 594 - , nessa representação, portanto, é o
principal indutor das reminiscências.
Iniciei esta parte do capítulo fazendo uma digressão com o propósito de argumentar:
provavelmente, o imaginário da cidade de Parintins, a Vila Bela de Hatoum, foi elaborado pelo
escritor a partir das diversas leituras sobre documentos históricos, deixados ao longo dos
séculos, as quais, demandadas, necessário fazer algumas conjecturas, na esteira, obviamente,
do método indiciário e, por extensão, da imaginação histórica. Vale reafirmar, assim, que o
escopo dessa seção é continuar buscando os regimes de expressão da narrativa literária e
fotográfica. Porém, praticamente inexistem álbuns fotográficos oficiais retratando a cidade de
Parintins. Assim, usarei imagens reunidas a partir de determinados arquivos pessoais,
essencialmente, e públicos, raramente, os quais organizei ao longo da pesquisa sobre esta
cidade. E, utilizo outros tipos de fontes: relatos de alguns memorialistas e estudos de cientistas
sociais. Ao lado disso, quando demandado, farei recorrências aos apontamentos, legados dos
naturalistas a partir de suas viagens pelo rio Amazonas, durante no séculos XIX 595, visto que
no tempo do enunciado da novela de Hatoum, corpus de minha análise, a ambiência da cidade
de Vila Bela, em um determinado período, está relacionada ao referido século. A proposta,
então, é entretecer, o tempo histórico sobre a cidade de Parintins, a partir do olhar dos viajantes
naturalistas, com o tempo do enunciado inscrito em Órfãos do Eldorado, com o propósito de
conjecturar sobre determinadas matrizes intelectuais usadas pelo escritor amazonense para
constituir personagens e o imaginário da cidade de Parintins (histórica), através de Vila Bela
(fictícia). Nessa medida, levanto a hipótese de que Milton Hatoum parte de evidências, indícios
históricos para construir o perfil de seu personagem principal, Arminto Cordovil, e as
peculiaridades da cidade de Vila Bela. Para tanto, o relato dos viajantes, que por essa cidade
passaram no século XIX, foi de fundamental importância para a escrita criativa do autor em
estudo. Observo aqui a possível relação dialógica da narrativa de Hatoum com alguns registros
iconográficos. Desta forma, cotejo evidências históricas para perceber relações com imagens
de Vila Bela, a cidade imaginada pelo escritor amazonense. Dito isto, retomo o percurso de
minha narrativa histórica. Volto às representações da cidade de Parintins. Por sinal, a
594
AGASSIZ, 1975, p. 107.
595
Uso também um aspecto do relato de Alexandre Rodrigues, datado, originalmente, do século XVIII.
189
denominação “Vila Bela”, também foi construída historicamente: a cidade está nas
representações escritas e iconográficas, como procuro demonstrar adiante.
Um certo viajante passando pela cidade de Parintins afirmou: “ [...], deviam estar
mergulhados num sono profundo; eram quatro da tarde e suas janelas estavam hermeticamente
fechadas, [...].” 596 Seria uma cidade fantasma, ou esse aspecto da cultura local, o ato milenar
de priorizar mais horas para o lazer e menos para o trabalho, herança indígena, estaria chocando
o estrangeiro que, naquele instante, passara próximo daquela ilha, à margem do rio Amazonas?
Relativo a essa peculiaridade, o viajante europeu, elabora um desenho, por sinal, iconografia
fecunda, ao que pretendo nesse estudo:
Imagem 21: detalhe da antiga Villa Bella da Imperatriz (1852), a qual passou a ser denominada de cidade de
Parintins em 1880597.
Eis a representação da cidade anfíbia, visto que, essencialmente conectada por meio do
rio, daí constrói sua identidade. Indícios inscritos na gravura vazam essa especificidade: acena
596
MARCOY, Paul Viagem pelo Rio Amazonas. Tradução, introdução e notas de Antônio Porro. 1ª edição em
português. Manaus: Edições do Governo do Estado do Amazonas, Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e
Desporto e Editora da Universidade do Amazonas, 2001, p. 212.
597
A gravura foi extraída da página 210 da referência citada na nota anterior. Na “Introdução” consta um
esclarecimento importante de Antônio Porro sobre a riqueza iconográfica inscrita nessa obra: “As ilustrações do
livro de Marcoy constituem um repertório valioso da iconografia oitocentista sul-americana. Das 626 gravuras da
obra original, cerca de 80 correspondem à Amazônia brasileira e metade delas, incluindo todas as vistas das cidades
e povoados ribeirinhos e todas as de interesse etnográfico, histórico e arqueológico, acham-se reproduzidas nesta
edição. Marcoy conseguiu salvar de seus naufrágios fluviais e levar para França grande quantidade dos desenhos
e aquarelas, de cujo paradeiro não se tem notícia, mas que foram reproduzidos pelo famoso desenhista e gravador
Eduard Riou, ‘d’après ses riches albums et sous ses yeux’, como esclarece a primeira edição do Voyage. Riou
(1833-1900) tornou-se conhecido e apreciado pelas ilustrações de numerosos livros de viagens, entre eles o de
Auguste Biard também sobre a Amazônia (Deux années au Brésil, Paris 1862) e de obras de Júlio Verne.” (p. 14).
Vale informar que a reprodução da imagem retirada da referida referência é uma fotografia da gravura, feita pela
historiadora Elisângela Maciel, em 14 de março de 2020, feita especialmente para esta tese.
190
para o trabalho da pesca. Por isso, suscita a importância significativa do movimento das águas
e dos ventos para os habitantes da referida cidade. As canoas e as vigilengas, com suas velas
murchas, são decerto, os veículos originais de transporte, principalmente, mas também para
atividades de lazer e trabalho pesqueiro. Na margem, casas simples, a floresta ao fundo e no
céu, as efêmeras nuvens fazem menção a uma determinada hora cáustica. Nesse primeiro plano,
pulula a representação dum tempo quieto, nessa cidade amazônica. Esses registros estão
inscritos no relatório de viagem de Paul Marcoy 598. Acerca de sua passagem por Vila Bela da
Imperatriz, atual cidade de Parintins, nos anos cinquenta do século XIX, a propósito de minhas
intenções nesse estudo, retirei o seguinte relato:
598
Na “Introdução” da obra referida na próxima nota, Antônio Porro faz alguns esclarecimentos relativos à
biografia de Paul Marcoy: “Nascido em Bordéus em 1815, Laurent Sanint-Cricq, porque era este o seu verdadeiro
nome, era filho de um abastado comerciante que enviou, ainda jovem, entre 1831 e 1834, às Antilhas em missão
de negócios. Sem interesse, porém, pela atividade paterna, ao voltar a Bordéus Saint-Cricq dedicou-se ao
jornalismo e à crítica de arte, além de expor seus próprios desenhos. Alguns anos depois (Chaumeil sugere em
1849), viajou para a América do Sul, onde ficaria até 1846 no Chile, na Bolívia e principalmente no Peru, que
conheceu em sucessivas e demoradas viagens de exploração. Em meados de 1846, partindo do litoral daquele país,
decidiu empreender a travessia do continente para chegar a Belém do Pará. De regresso a Paris, passou os anos
seguintes escrevendo os seus relatos de viagem a partir das anotações, mapas, desenhos e aquarelas que, junto com
uma respeitável coleção de espécimes botânicos, havia trazido consigo. Entre eles a sua obra maior, o Voyage
(...).”. (p. 2).
599
MARCOY, Paul Viagem pelo Rio Amazonas. Tradução, introdução e notas de Antônio Porro. 1ª edição em
português. Manaus: Edições do Governo do Estado do Amazonas, Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e
Desporto e Editora da Universidade do Amazonas, 2001, p. 211-212. Utilizando os estudos de Lourenço da Silva
Araujo Amazonas, isto é, Dicionário Topográfico, histórico, descritivo da Comarca do Alto Amazonas, na sua
edição de 1984 (Recife: Meira Henriques Nova edição fascimilar; Manaus: Associação Comercial do Amazonas
– “Coleção Hiléia Amazônica, 1 -), Antônio Porro, acerca da “Introdução” à obra de Paul Marcoy, elabora uma
nota para esclarecer que “Vila Nova da Rainha, depois Vila Bela, depois Tupinambarana e finalmente Parintins,
foi ‘fundada em 1796 por José Pedro Cordovil com indígenas Sapopés e Maués, a que se adicionarão em 1798
Paraviánas e Uapixánas e, em 1803, Mundurucús (Amazonas 1984, p. 198), a referida nota consta na página 231
do livro de Paul Marcoy.
191
600
Desde o século XVII, quando através da Lei de 10 de setembro de 1611, cria-se o sistema de capitães-de-aldeia,
vigente na Amazônia a partir de 1616.
601
Com a Lei de 01 de abril de 1680, a qual estabelecia o fim da escravidão indígena ocorreu o retorno do controle
da força de trabalho indígena aos jesuítas. A vigência da referida lei durou quatro anos. Em 1686, no dia 21 de
dezembro de 1686, foi criada a Lei a qual estabeleceu o sistema administrativo denominado Regimento das
Missões.
602
FERREIRA, Arcângelo da Silva; SILVA, Márcia Gabrielle Ribeiro. “Encantos, encontros, desencontros dos
terreiros com a Cidade: afro religiões em Parintins”. In.: MORGA, Antônio Emílio (org.). História, sentimentos,
cidades e desencontros. Manaus: EDUA, 2016, p. 58-59.
603
UGARTE, Auxiliomar Silva. “Alvores da conquista espiritual do alto Amazonas (século XVI-XVII)”. In.:
SAMPAIO, Patrícia Melo; ERTHAL, Regina de Carvalho (org.). Rastros de memória: história e trajetórias das
populações indígenas na Amazônia. – Manaus: EDUA, 2006. Nesse estudo o historiador mencionado faz
minuciosa pesquisa sobre o papel das missões franciscana e jesuíta como instituições de fronteira no processo de
ocupação espanhola e portuguesa na região do Alto Amazonas. Destaca o significado da catequese como
tecnologia importante para a colonização do imaginário, essencialmente, da etnia Omágua, à época considerada a
mais “civilizada”, se comparada com as outras.
604
Durante os anos de 1757 a 1759, as antigas aldeias e missões foram elevadas a categoria de Vilas e Lugares
com denominações portuguesas.
605
PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Apresentação”. In.: ______________________ (org.). Leituras cruzadas:
diálogos da história com a literatura. – Porto Alegre : Ed. Universidade/UFRGS, 2000, p. 7.
192
literária). Nessa medida, buscar determinadas matrizes, as quais Hatoum pode ter utilizado para
compor seu personagem.
Ora, em um de seus depoimentos Milton Hatoum faz o seguinte relato:
Peço licença para deixar a reflexão sobre esse escólio, por enquanto. Retomo-o linhas
adiante. As peculiaridades de Pedro Cordovil, também são anotadas pelo historiador Arthur
606
Fragmento extraído do podcast Milton Hatoum – Escritores-Leitores/Itaú, publicado em: 31/10/2019 – 11:00H.
607
SAUNIER, Tonzinho. “Homens e mulheres que fizeram a História de Parintins”. In.: _________________.
Parintins: Memória dos Acontecimentos Históricos. – Manaus: Editora Valer/ Governo do Estado do Amazonas,
2003, p. 77.
193
Cézar Ferreira Reis. Por sinal, o perfil do referido personagem histórico feito por esse
historiador baliza as conclusões do memorialista citado anteriormente. Através da narrativa
histórica de Reis, vê-se um corrupto administrador disposto a burlar a ordem dos valores
(morais, materiais) vigentes, à época, estabelecidos na Capitania de São José do Rio Negro. 608
Mas, para o que estou procurando argumenta, é o momento de reproduzir o relato do referido
historiador, primeiro sobre a cidade de Vila Nova (atual Parintins):
Vila Nova, primeira pousada para quem entrava na Capitania vindo pelo Amazonas,
era um sítio ótimo para a vigilância de embarcações que conduziam os gêneros de
comércio. O posto de Serpa não produzia os efeitos desejados. Por trás da vila
passavam embarcações, fugindo do fisco à severidade dos dízimos cobrados pelo
Estado. 609
De acordo com Reis, Vila Nova guardava uma função estratégica, pois se constituía num
lugar importante para a monitoração de possíveis desvios dos gêneros de comércio, assim como,
das pessoas que tentavam burlar a cobrança dos impostos. Nem Serpa (atual cidade de
Itacoatiara), possuía um posto de vigilância tão eficaz quanto o de Vila Nova, considera o
historiador. Apesar de Reis elogiar Vila Nova, esse testemunho histórico vaza uma evidente
permanência no processo de colonização lusófono, iniciado desde o século XVII, na região
amazônica: a constante preocupação em se manter a ordem, visto que eram frequentes os
conflitos em torno das riquezas produzidas na região, tanto relacionadas a produtividade dos
gêneros de comércio “[...], pois era viva a atividade dos colonos no trato da terra, na criação de
rebanhos, na extração de produtos naturais, as famosas ‘drogas do sertão’, na movimentação de
pequenas manufaturas, [...]” 610, assim como as inquietações acerca das querelas pelo controle
da força de trabalho indígena. É, portanto, no centro dessas contendas administrativas que está
representado o papel histórico de José Pedro Cordovil, na referida narrativa de Reis sobre as
origens de Parintins:
Não se fazia, no povoado a agricultura que a todo momento as Cartas Régias, os
Alvarás e as Decisões do Conselho Ultramarino e as Circulares do Governadores
aconselhavam ou mesmo determinavam. José Pedro Cordovil, desprezando as
advertências oficiais, atirava-se ao comércio dos produtos naturais utilizando-se
violentamente do braço nativo.
Consequência imediata foi a fuga do gentio, a decadência do povoado, de outro lado,
Cordovil, gênio irrequieto, incidentava por tudo e com todos, criando-se na região,
um ambiente de restrições, de hostilidades mesmo. 611
608
Criada em 1755,
609
REIS, Arthur Cézar Ferreira. As origens de Parintins. – Manaus : Editado pelo Governo do Estado do
Amazonas. – Secretaria de Imprensa e Divulgação. – Palácio Rio Negro, 1967. p, 14.
610
REIS, 1967, p. 7.
611
REIS, 1967, p. 9.
194
Essa História elaborada por Arthur Reis, a partir da documentação oficial referente aos
aspectos administrativos de Vila Bela, edifica um Cordovil desobediente à ordem estabelecida
pelo sistema colonial português. A personagem, por sinal, é relacionada diretamente a
determinados acontecimentos prejudiciais ao projeto lusofono: Em 1805, motivado pelos maus
tratos do “capitão de milícias” (como Reis identifica sua patente militar), levas de nativos
aldeados em Vila Nova, abandonam-na, naquela conjuntura, Missão para organizar lugares de
resistências como, por exemplo, mocambos. Em 1806, Cordovil lavra um motim em Maués,
“do mesmo modo porque explorava o nativo, viciava-o alcoolizando-o”. 612 Nesse mesmo ano
há notícias de que Cordovil havia encontrado regiões de minério, explorando-as ilicitamente.
Com Reis vê-se um sujeito disposto a lutar por seus interesses, mesmo se à ordem vigorante
seus negócios fossem considerados transgressores.
Vale lembrar que a Amazônia vivia sob a égide da Carta Régia de 12 de maio de 1798,
criada durante o governo de Dona Maria I (codinome: a louca), a qual havia extinguido o
Diretório dos Índios. E as preocupações da Coroa portuguesa giravam em torno da organização
do Corpo de Milícias e do Corpo de Trabalhadores 613, nos quais eram direcionados a mão de
obra indígena. Contudo, as tensões relativas ao controle da força de trabalho indígena e da
produção extrativista percorriam as temporalidades. Arthur Reis, inclusive, relata o fato da
necessidade de um religioso, Frei José das Chagas, ter sido convocado para tentar colocar ordem
nos problemas administrativos causados pelas intrigas de Pedro Cordovil, pois, segundo o
historiador, ele estava prejudicando a “incorporação do gentil que precisava ser tratado
cordialmente de modo a compreender a utilidade dos hábitos novos, da sua educação nos
moldes da ordem ocidental. Um largo programa de fraternidade”. 614 Desta forma, na escrita da
história de Arthur Reis, Frei José das Chagas representa a ordem, Pedro Cordovil, a desordem.
Essa oposição, por sinal, motiva Reis a buscar um sentido para essa história sobre as origens de
Parintins. Possível ponderar sobre isso quando o historiador erige, por exemplo, essa fecunda
imagem da trajetória histórica de Vila Nova:
A vida da Vila Nova, iniciada em meio aos incidentes que conhecemos hoje graças às
peças que iluminam esta memória, prosseguiu sob a mesma agitação: de um lado Frei
612
REIS, 1967, p. 13.
613
Sistema administrativo estruturado para controlar a força de trabalho indígena através de duas fases distintas
de suas trajetórias de vida. Enquanto estivessem capazes fisicamente de suportar o trabalho deveria ingressar no
Corpo de Trabalhadores; comprometida a eficácia ao desenvolvimento do trabalho pesado, deveria ingressar no
Corpo de Milícias, com direito a recebimento de: soldo, farda e água ardente. Vale considerar que a estratégia da
coroa Portuguesa, ao banir o Diretório do Índios e implementar o Corpo de Trabalhadores e Milícias era de
disciplinar e, por extensão, controlar o monopólio da força de trabalho indígena.
614
REIS, 1967, p. 10.
195
José das Chagas, energia, espírito bem intencionado, organização; de outro, Cordovil,
desassossegado, prejudicial. 615
Muita gente conhecia meu nome, todo mundo tinha ouvido falar da riqueza e da fama
do meu pai, Amando, filho de Edílio. Estás vendo aquele menino pedalando um
triciclo? Um picolezeiro. Assobiando, sonso. Vai se aproximar de mansinho da
sombra do jatobá. Antes, eu podia comprar a caixa de picolés e até o triciclo. Agora
ele sabe que eu não posso comprar nada. Aí, só pirraça, vai me encarar com olhos de
coruja. Depois dá uns risinhos, sai pedalando, e lá perto da igreja do Carmo ele grita:
Arminto Cordovil é doido. Só porque passo a tarde de frente pro rio.
Na Vila Bela de Hatoum Arminto Cordovil carrega uma trajetória semelhante a de Pedro
Cordovil. Seria o momento de voltar, novamente, a leitura dos apontamentos do memorialista
supracitado (Tonzinho Saunier) para se perceber determinadas convergências entre os perfis do
sujeito histórico e do personagem fictício. Ambos tiveram certos prestígios, privilégios.
Contudo, devido ao prazer pueril, perderam suas riquezas materiais e suas representações no
bojo da história, da memória e da sociedade. Ficaram as lembranças dos tempos abastados e as
marcas de suas idiossincrasias: ambos terminam seus dias de maneira degradada; paupérrimos,
perambulando pela cidade à margem da ambiência luxuosa. No final de suas vidas, devido às
escolhas que fizeram, Fausto os havia abandonado.
Como se percebe, O Cordovil fictício, de Hatoum, se apropria da trajetória do Cordovil
de carne e osso, histórico, cotejado, essencialmente, dos apontamentos dos diletantes, viajantes
naturalistas, assim como da Historiografia Regional (da qual utilizei, o emblemático relato de
615
REIS, 1967, p. 13.
616
KOSELLECK, Reinhart. “Introdução”. In.: __________________... [et al.]; O conceito de História; tradução
René E. Gertz; - 1. Ed.; 1. reimp. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2016, p. 38.
196
Arthur Cézar Ferreira Reis). Vale dizer, a propósito dos meus argumentos, que, ao contrário da
versão histórica tradicional sobre a figura de Pedro Cordovil, com Hatoum, Arminto Cordovil
é composto para que as pessoas leitoras de Órfãos do Eldorado percebam que o referido
personagem, como já foi dito em capítulo anterior, é uma chave de leitura, uma condição de
possibilidade, para se pensar e fazer a narrativa de uma história trágica: aquela, dissimulada
pelas representações do Eldorado (versão tradicional da História/Historiografia), que abarca,
principalmente, a denominada Belle Époque. Em suma, a narrativa de ficção de Milton Hatoum
parece se apropriar do perfil histórico de Pedro Cordovil como uma matriz intelectual para que
o escritor delineei o seu personagem Arminto Cordovil, visto que em Órfãos do Eldorado, ele
é a alma do romance: um indício para se conjecturar sobre o sentido da história que a novela
suscita. No bojo dessa discussão é pertinente ouvir a fala de Hatoum, quando indagado sobre
os caminhos que trilhou para compor seu personagem principal:
Eu voltei três vezes pra Parintins, pra escrever esse livro, e uma sobrinha minha fez
uma pesquisa num arquivo. Eu pedi pra ela ver quais eram os casos de corrupção da
antiga intendência municipal e ela disse “ih, tio, só tem loucura aqui!”, muito caso
de..., vem de muito tempo isso, né. E o Cordovil eu encontrei sim no livro do Arthur
Reis, mas nas estátuas que tem em Parintins, e foi o cara que matou muito índio. Ele
foi um criminoso e é referenciado na cidade, não é mesmo, como muitos criminosos
são referenciados [...]. E esse eu achei o nome perfeito, Cordovil, pra esse caso, porque
nesse sobrenome existe, vamos dizer, a cordialidade, do cor, do cordato e a vilania,
do vil. É o sobrenome que junta os estremos, vamos dizer assim, ou os opostos. Porque
ele não é totalmente vil, ele é bom pro povo, da cidade dele, como muitos populistas
são, né, hoje em dia, pessoas boas... 617
A propósito de minha narrativa, abaixo reproduzo uma imagem do busto de José Pedro
Cordovil. A imagem não representa a realidade, obviamente, mas uma menção simbólica
àquele que teria sido uma espécie de fundador, administrador, de acordo com a memória
coletiva da cidade, corroborada pela Memória e História oficial do município. Esta, inclusive
que volveu a edificação desse busto de cimento e pedra. As pessoas leitoras irão notar, por
certo, quando olharem para a imagem, marcas do descaso para com o referido patrimônio,
alhures erguido na cidade de Parintins. A Prefeitura e a Câmara do referido município,
infelizmente, ao que tudo indica, mantiveram-se, após a segunda década do século passado,
omissas à história patrimonial e pública da cidade, visto que, na Praça Eduardo Ribeiro, notório
local onde foi erguido o busto que simboliza a figura de José Pedro Cordovil, antes também foi
construído o prédio da Prefeitura do município; vale dizer, uma das primeiras edificações
617
Entrecho retirado das respostas às perguntas que fiz a Milton Hatoum sobre a novela Órfãos do Eldorado,
quando ele veio à cidade de Manaus em 06 de dezembro de 2019, lançar o seu livro Pontos de Fuga. Esse evento
ocorreu em uma tarde de sexta-feira no auditório da Escola Superior de Tecnologia (EST) da Universidade do
Estado do Amazonas (UEA).
197
618
Conforme as informações inscritas no endereço eletrônico https://www.parintinsamazonas.com.br, acessado
em 05/03/2020, às 01:12H.
619
LE GOFF, Jacques. “Documento/ Monumento”. In.: ________________. História e Memória; tradução
Bernardo Leitão... [et al.]. – 5ª ed. – Campinas, SP; Editora da UNICAMP, 2003, p. 526.
620
MENESES, José Newton Coelho. “Todo patrimônio é uma forma de história pública”. In.: MUAD, Maria;
SANTIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (Orgs.). Que história pública queremos? – São Paulo (SP):
Letra e Voz, 2018, p. 74.
198
Figura 22: Busto de Pedro Cordovil. Localizado na Praça Eduardo Ribeiro. 621
621
Foto: Maria Auxiliadora Ferreira da Costa (2020).
199
Figura 23: Antigo prédio da Prefeitura Municipal de Parintins. Localizado na Praça Eduardo Ribeiro. 622
Após essa breve digressão, a meus argumentos necessária, posso voltar ao relato oral de
Milton Hatoum, para perceber que Arminto Cordovil, é a personagem que tece o diálogo entre
a história e a literatura na perspectiva de se problematizar a memória atrelada ao poder e suas
peripécias políticas. Na esteira dessa problemática, continuo cotejando as impressões deixadas
pelos naturalistas sobre a cidade de Parintins.
Volto a ela, portanto.
Robert Avé-Lallemant, também deixou registros sobre Vila Bela da Imperatriz, antes
chamada Vila Nova da Rainha: “Prosseguimos pela margem esquerda, até defronte da cidade.
Atravessamos então, a corrente extraordinariamente impetuosa, e logo ancoramos junto à praia
da pequena cidade, para tomarmos lenha”623 Apesar de breve a descrição do referido naturalista
sobre a cidade de Vila Bela da Imperatriz, é densa e plena de indícios. Por isso, crível para se
extrair algumas distinções da referida cidade. Avistada do rio Amazonas o primeiro aspecto que
é anotado pelo naturalista é a altura da cidade se considerado o nível do referido rio, isto é 20
pés acima. O campo verde, onde aparece uma fileira de casas simples, constitui a frente da urbe,
ao fundo, por trás, a floresta. Destaca-se o quartel: casa pequena com duas aberturas na
fortificação para o disparo de armas, caso necessário. “A igreja é difícil de encontrar a princípio,
uma casa de barro, coberta de folhas de palmeira, enfeitada em cima com uma cruz e acima
622
Foto: Maria Auxiliadora Ferreira da Costa (2020).
623
AVÉ-LALLEMANT, Robert. No rio Amazonas (1859); tradução Eduardo de Lima Castro. Belo Horizonte :
Ed. Itatiaia; São Paulo : Ed. da Universidade de São Paulo, 1980, p. 89.
200
desta um falcão, símbolo do rio.” 624 O naturalista verifica a comum feição tapuia e a estável
paz do lugar, semelhante às outras cidades por onde passara. O que lhe causa estranhamento,
todavia, certa empatia é a indolência autorizada aos moradores, pois quando ocorre festa
religiosa, “no dia de S. João, porém, lhes é oferecida. E por isso essa preguiça oferecida à gente
de Vila Bela era então especialmente bela e genuinamente patriarcal. Não vi um só índio
ocupado com qualquer trabalho.” 625 Outro aspecto, no mínimo curioso ao olhar do naturalista
é o fato de tudo está aberto. Dito corretamente, os habitantes do lugar, por certo, não possuíam
a noção de vida privada que o europeu, espantado, reclamava: “Podia-se ver, até ao mais
profundo recanto das casas, todos os seus habitantes. Não possuem nada, que queiram esconder,
como também, nenhum caso doméstico, que procurem ocultar”. 626 As casas com suas portas e
janelas sempre ligadas para quem quisesse olhar ou adentrar revelavam, segundo o naturalista,
“ a mesma ingenuidade com que as crianças andavam nuas até muito crescidas, com que as
raparigas se banham na praia, [...]”. 627 Apesar de atento aos aspectos botânicos: às
convolvuláceas, acantáceas, astrocárias, magnólias, lorantáceas, Avé-Lallemant, como se
percebe, não deixou de anotar as peculiaridades do modo de viver dos habitantes de Vila Bela
da Imperatriz. A cultura doméstica no interior das moradias foi o que mais lhe chamou a
atenção: “Algumas palmeiras tucumã perto de casa, algumas galinhas e porcos e grandes postas
de pirarucu secando ao sol, além das crianças nuas, são atributos duma casa tapuia em Vila
Bela”.628 Destaca-se aí o olhar espantado à nudez das crianças, mas também dos adultos,
principalmente, das mulheres. O que vaza a reinvindicação de um certo pudor, inerente à moral
que baliza a cosmovisão do naturalista.
Em 1854/5, por duas vezes o naturalista inglês Henry Walter Bates também visitou a
cidade que, naquela conjuntura, chamou de Vila Nova. Na segunda vez, inclusive, passou oito
meses. Como os outros naturalistas, apesar do interesse em colecionar os produtos naturais do
lugar, Bates fez anotações fecundas sobre as populações nativas da referida cidade. Evidencia
idiossincrasias das etnias indígenas: a metade da população que habitavam a cidade, no
momento da observação do naturalista; suas condições sociais, econômicas e culturais. Por
sinal, na ótica do viajante, as populações indígenas já demonstram determinadas experiências,
decerto, antes alheias às suas vivências nas suas ambiências culturais de origem, por exemplo,
o exagerado consumo de cachaça. Ora, é sabido que, apesar de determinadas beberagens terem
624
AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 89.
625
AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 89.
626
AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 89.
627
AVÉ-LALLEMANT, 1980, p. 89.
628
AVÉ-LALLEMANT, 1989, p. 89-90.
201
sido utilizadas milenarmente pelas etnias indígenas, principalmente, durante seus rituais
religiosos, o consumo de aguardente, mesmo proibido em alguns períodos, foi induzido como
recurso de persuasão dos indígenas desde os processos de ocupação e colonização da Amazônia,
iniciada no século XVII, pois no século XVIII, através da Carta Régia de 1798, a referida bebida
alcóolica “passa a ser usada como arma dos colonizadores para destribalizar os índios”. 629 Outro
aspecto anotado e que chama a atenção é relativo as questões econômicas: Vila Nova direciona
quase toda sua produção ao Pará. Paralelo a isso, apesar da precária indústria extrativista e
pesqueira, e, por extensão, a peculiar organização social do trabalho - agricultura a cargo das
mulheres, pesca a cargo dos homens - o referido naturalista destaca as condições miseráveis das
populações indígenas de Vila Nova, quando comparadas, por exemplo, às de Cametá, cidade
paraense. Também, obviamente, usando como parâmetro o modo de viver europeu, Bates
registra o fato de as populações indígenas viverem em moradias precárias e distante dos
costumes civilizados. Em suma, na ótica de Henry Bates, Vila Nova é uma cidade muito inferior
há algumas outras as quais ele já havia conhecido, na sua viagem pelo rio Amazonas.
Testemunho disso, como mencionado supra, é a riqueza de seu registro etnohistóricos acerca
da referida vila. 630
Vila Nova também foi anotada por Alfred Russel Wallace, no percurso da viagem que
fez do Pará até o Amazonas e vice-versa. Ambas em 1848. Na primeira passagem mostra a
satisfação de encontrar um lugar para descansar após extenso período navegando no rio
Amazonas: “[...] chegamos a Vila Nova sãos e salvos. Era um longo caminho o que já havíamos
percorrido, e isso deixou-me deveras satisfeito”.631 Destaco das impressões do naturalista com
a cidade, primeiro, o fato de ter sido bem recebido por um religioso, conhecido dos ingleses,
pois o referido sujeito foi mencionado em outra literatura de viagem 632: “Na praia, fomos
cordialmente recebidos pelo vigário local, o Padre Torquato. Que por assim dizer intimou-nos
a ficar em casa durante o tempo em que ali tivéssemos de permanecer. Não houve como recusar
o hospitaleiro oferecimento”.633 Contudo, uma anotação feita pelo viajante inglês, por certo,
629
FREIRE, José Ribamar Bessa [et al...] A Amazônia Colonial (1616-1798); 4º reimpressão revisada e ampliada;
1ª reimpressão. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1994, p. 60
630
BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas; tradução Regina Régis Junqueira; apresentação Mário
Guimarães Ferri. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p. 116-117.
631
WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro; tradução Eugênio Amado; apresentação
Mário Guimarães Ferri. – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p.
105
632
No livro Brasil: Amazonas-Xingu, o príncipe Adalberto da Prússia, ao contar sobre sua viagem pelo Brasil,
relata que conheceu o português, o qual, no relato de Alfred Russel Wallace, é elogiado por sua hospitalidade.
Segundo nota do tradutor, Eugênio Amado, o livro do referido príncipe “constitui o volume nº 34 da Coleção
Reconquista do Brasil” (WALLACE, 1979, p.107).
633
WALLACE, 1979, p. 105.
202
Esse relato é profuso: suscita conjecturar sobre as possíveis formas de luta das etnias
indígenas no contexto das relações de poder, nas quais estavam estruturadas as camadas sociais
em Vila Nova. Apesar de, talvez, esse tipo de acontecimento ter sido corriqueiro na Amazônia
do século XIX, a atitude do “moço desertor” representa um testemunho histórico,
oportunamente anotado pelo viajante (quiçá por ter lhe causado um certo estranhamento). O
registro de uma ação isolada, porém, cabível a uma possível postura coletiva relacionada às
injustiças sociais que colonos (leigos/religiosos) cometeram às etnias indígenas. Ora, os grifos
inscritos por mim na citação ajudam a contextualizar historicamente acerca das políticas
indígena e indigenista na Amazônia. Desta forma, vale lembrar que desde o Diretória dos
Índios, seguido da Carta Regia de 1798, os indígenas, por lei não eram mais considerados
escravos. Daí, a revoltada consideração do “indignado moço” inscrito na narrativa de Wallace.
Para o indígena, a partir da ótica do naturalista, foi inaceitável a postura do comerciante, pois o
nativo carregava uma vivência a qual lhe faziam verificar que aquelas práticas violentas não
cabiam mais no chão histórico em que o indígena estava pisando, visto que não poderia ser
tratado como um escravo (as leis o amparavam, era um homem livre). Em suma, através desse
episódio, narrado pelo viajante, pode-se conjecturar que Vila Nova era um arco crescente de
tensões. No centro estava a disputa pelo controle da força de trabalho indígena.
Na segunda passagem de Alfred Russel Wallace por Vila Nova, 13 de junho de 1848, ele
reclama da rígida fiscalização: “Por ser esta a última cidade da nova província, tivemos que
634
WALLACE, 1979, p. 105-106.
203
desembarcar as bagagens e exibir nossos passaportes, como do mesmo modo que faríamos se
estivéssemos entrando num país estrangeiro”. 635 Depois assevera: “Parece que o objetivo do
Governo era o de tomar seus regulamentos o mais expensivos e aborrecidos possíveis”. 636
Apesar desses acontecimentos, Wallace sente-se satisfeito nesse retorno à Vila Bela porque
conseguiu “comprar manteiga e biscoito, verdadeiros regalos para mim, depois da escassez de
alimentos que enfrentara em Barra [Manaus]”. 637 O viajante naturalista inglês, novamente, se
reporta ao Padre Torquato: “Ele recebeu-me com a cortesia de sempre, lamentando que eu não
pudesse ficar mais tempo com ele”.638 Até presenteou Wallace com um cachorro-do-mato. Esse
último relato deixado por Wallace, quando, pela segunda vez, aportou em Vila Bela, deixou
evidências significativas. Mensuram a perspectiva do olhar do naturalista sobre a Amazônia e,
obviamente, suas vilas e lugares, habitantes, fauna flora: tudo parece exótico, qual o “curioso
animal do qual eu muito ouvira falar, mas que ainda não tivera a oportunidade de ver”. 639
Fiz essa breve digressão sobre as impressões dos naturalistas, suas experiências quando
de suas visitas à atual Parintins, durante o século XIX, para conjecturar que relatos históricos,
como os supracitados, provavelmente foram percorridos por Milton Hatoum. Possivelmente
tenham acendido no autor, por exemplo, a ambientação da cidade de Vila Bela 640. Nessa
medida, as imagens criadas pelo literato estão plenas de representações, pelas quais vazam
peculiaridades simbólicas da cidade histórica inscrita nas anotações dos referidos naturalistas.
Nessa perspectiva, convido as pessoas leitoras a olharem para essa imagem, elaborada através
da pena do escritor amazonense: “Fui até a Ribanceira e esperei na sombra da cuiarana. Vila
Bela se escondia do sol forte. Tudo parado no calor da tarde. Lembro do barulho de um barco,
ruídos de um rio que nunca dorme”. 641 Nesse entrecho que utilizei chamo a atenção para dois
indícios, dos quais penso significativos, para verificar essa afinidade do escritor amazonense
635
WALLACE, 1979, p. 236.
636
WALLACE, 1979, p. 236.
637
WALLACE, 1979, p. 236.
638
WALLACE, 1979, p. 236.
639
WALLACE, 1979, p. 236.
640
Segundo historiadores diletantes da história de Parintins: durante o período colonial e imperial a referida cidade
ganhou algumas denominações: Tupinambarana (1796), Villa Nova da Rainha (1803), novamente,
Tupinambarana (1832), Villa Bella da Imperatriz (1852) e, finalmente Parintins (1880). Existe certa controvérsia
no material reunido pelos memorialistas girando em torno do “verdadeiro” fundador de Parintins. Alguns afirmam
que a primeira denominação, Tupinambarana, foi atribuição do, então, capitão português José Pedro Cordovil,
outros refutam essa memória. Memorialistas como Tonzinho Saunier, por exemplo, no livro, já citado, sugere que
através das missões instituídas pela Companhia de Jesus, “o Pe. João Felipe Bettendorf fundou Parintins, a 29 de
setembro de 1669, com o nome de São Miguel dos Tupinambarana” (p. 19). Entretanto, inexiste a preocupação
em saber sobre a origem, fundação de Parintins, em minha tese, portanto. Como as pessoas leitoras estão
acompanhando, minhas preocupações são outras.
641
HATOUM, 2008, pp. 26-27. [os grifos são meus].
204
com as anotações dos naturalistas (e, aqui, utilizo registros feitos, originalmente, no século
XVIII). Nessa linha de raciocínio, vale dizer que a cuiarana, “É árvore esta, já há muito
conhecida dos naturalistas, e se acha no sistema de Liceu com o nome de Crescentia cujete”642;
e a “matéria, de que as índias fazem as cuias, é o fruto da árvore, que elas chamam... Cuia inha,
e os portugueses... Cuieira.” 643 Talvez por ser uma árvore tão emblemática à Amazônia e, por
extensão, aos olhos dos naturalistas, visto que glosaram, minuciosamente, como certas etnias
indígenas aproveitavam o seu fruto para produzir recipientes utilizados, principalmente, para
armazenar e ingerir alimentos: “As cuias são os pratos, os copos e toda a baixela dos índios.
Cada um tem em sua casa uma delas reservada para dar a beber, ou água, ou seus vinhos ao
principal, quando o visita, ou casualmente, ou em algum dia de convite” 644, Milton Hatoum, se
apropria da linguagem botânica dos naturalistas e de sua vivência amazônica e emaranha, em
sua prosa de ficção: “Cuiarana: árvore de flores lindas, pétalas espessas, sem palidez: amarelas,
róseas, quase vermelhas. O cheiro da flor é forte que nem perfume de rosa. E o fruto, grande e
pesado como a cabeça de um homem”. 645 A referida descrição reporta àquelas iconografias das
plantas deixadas pelos naturalistas. Como as que, oportunamente, se observa abaixo:
642
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica pela Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá. (Memória I) – Antropologia. Estudo histórico: Alfredo Brandão. Organização: Tenório Telles,
2ª edição – Manaus: Editora Valer, 2008, p. 185.
643
FERREIRA, 2008, p. 185.
644
FERREIRA, 2008, p. 188.
645
HATOUM, 2008, p. 92.
646
FREIRE, José Joaquim. [Crescentia cujete]. [S. l: s.n.], [17--]. 1 desenho, aquarela, col, imagem 32,5 x 19cm
em f. 34,5 x 24,5. Disponível em http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=1126. Acesso em
205
Figura 25: Imagem da cuieira, rio Purus (curso de água da Amazônia que percorre o território do Peru e
dos estados brasileiros do Acre e do Amazonas). 647
Outro aspecto a se observar, ainda naquela citação onde está inscrito um dos imaginários
de Hatoum sobre a “cidade anfíbia” é, novamente. a recorrência do escritor a representação que
faz do rio: muito vislumbrado pelos naturalistas, o movimento de suas águas simula o perpassar
do tempo, por extensão, da história, na qual estão inseridas as pessoas viventes na/da cidade;
rio Amazonas, esse tecido pelo qual Hatoum urde seu personagem principal, Arminto Cordovil,
um filho dessa cidade anfíbia, Vila Bela.
Por tudo isso, é oportuno ouvir o relato adiante:
28 mar. 2020. José Joaquim Rodrigues (1760-1847), nascido em Portugal, foi pintor aquarelista, desenhista,
riscador, cartógrafo. Durante os anos de 1783-1792 integrou a expedição Viagem Filosófica feita por Alexandre
Rodrigues Ferreira, ocorrida no Pará, Amazonas e Mato Grosso, no contexto do reinado de D. Maria I.
647
The City of Manaós and the Country of Robber tree: Souvenir of the Columbian Exposition, Chicago, 1893. [A
Cidade de Manaós e o País dos Ladrões: Lembrança da Exposição Colombiana, Chicago, 1893.].
648
HATOUM, 2008, p. 25.
206
É sabido “que a fotografia, partindo de uma análise histórica, tem como objetivo
primordial transmitir informações e preservar a memória individual e coletiva de determinado
grupo, espaço, tempo”. 650 Nessa perspectiva, adoto essa imagem coletada de um arquivo
particular com o propósito de verificar indícios relativos àquele diálogo entre literatura e
história. Desta forma, a cena, capturada pela grafia da luz, pode ser problematizada através da
busca das representações que a imagem guardou, no tempo: quando a proposta é observar a
referência suscitada na recordação das permanências históricas inscritas nas representações,
feitas ao longo do tempo, acerca dessa cidade amazônica. Por isso, a referida imagem é
convergente ao copioso diálogo entre memórias, ressignificadas por meio da literatura e da
fotografia. O perfil anfíbio da Vila Bela, de Hatoum, foi elaborado também através de
observações de cenas fotográficas da cidade de Parintins, semelhante a que, aqui, uso como
exemplo. Lançando mão, como presumi acima, dos relatos dos naturalistas, das representações
imagéticas, o literato em estudo, provavelmente, conceba que “ a fotografia tem a finalidade de
estabelecer uma relação entre o que realmente é verdadeiro e o que se deseja mostrar,
649
Acervo particular, organizado através da reunião de fotos antigas coletadas com moradores da cidade de
Parintins, no ano de 2017.
650
RODRIGUES, Neide de Souza Almeida. “Aspectos históricos e representações femininas nas fotografias de
casamento de Antônio Faria em Bela Vista.” In.: RIBEIRO, Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante Ribeiro
(org.) História e Cultura: práticas de pesquisas – 1ª ed. – Jundial, SP: Paco, 2017, p. 50.
207
651
RODRIGUES, 2017, p. 51.
652
RODRIGUES, 2017, p. 60.
653
KOSSOY, 2014, p. 45.
208
assim como a pessoa que fez essa foto, revelam o peculiar aspecto anfíbio destas duas cidades:
a Parintins, histórica e a Vila Bela, nascida do imaginário do escritor em estudo.
Na afiguração abaixo também é possível conjecturar, imaginar historicamente, essa
representação de Vila Bela, sob a objetiva de Arminto Cordovil:
[...] saía de madrugada pelas ruas de terra dessa cidade malcuidada, caminhava até a
Escada dos Pescadores, via o vulto de cabeças no vão das janelas, eram velhos insones
na escuridão; não sei se riam ou acenavam para mim. Próximo da floresta, via os
casebres tristes da Aldeia, ouvia palavras em língua indígena, murmúrios, e, quando
voltava pela beira do rio, via barcos pesqueiros atracados na rampa do Mercado,
barcos carregados de frutas, um vapor que descia o Amazonas para Belém. Tomava
café no bar do Mercado, depois rondava a praça do Sagrado Coração de Jesus, subia
na árvore da Ribanceira [...]. 654
654
HATOUM, 2008, p. 32.
655
HATOUM, 2008, p. 53.
656
A propósito, da representação desse descaso, no romance A ordem do dia: folhetim voador não identificado,
originalmente lançado em 1983, pela Editora Marco Zero, o escritor amazonense Márcio Souza em tom sarcástico,
faz denúncia quanto a esse tipo de descaso da administração pública (ainda hoje presente na cidade) relacionado a
falta mínima de cuidados com Parintins. Na imagem que segue a personagem principal da narrativa de Souza,
encontra dificuldades até mesmo em andar pelas ruas da mencionada urbe: “Procurando uma sombra, Vera ia
pulando por sobre as bostas de porco que floriam nas ruas de Parintins.” (SOUZA, 1983, p. 31). Quem perambula
pelas ruas dessa cidade, agora conhecida mundialmente, devido ao seu Festival Folclórico, ainda pulula entre
estercos e buracos que, permanentemente, afloram de suas vielas subsumidas e avenidas principais; histórico, esse
descaso, inserto nos imaginários de nossos legitimados escritores.
209
na fonte das narrativas históricas e das memórias, representações relativas à cidade de Parintins,
urbe histórica. O barão de Santa-Anna Nery ao publicar o seu Le Pays des Amazones: L’el
Dorado les terres a Caoutchouc acabou por corroborar a imagem de “cidade anfíbia” à
Parintins, àquela conjuntura, denominada de Vue de Parintins. É perceptível, na fotografia
abaixo e na supra, anteriormente reproduzida, que toda imagem necessita de leitura, análise:
remontar sua decupagem para interpretar seus sedimentos. Em outros termos, a tomada de
posição das imagens só se revela para além de seus “clichês linguísticos”, entretecidos nos seus
“clichês visuais”. Em suma, a peculiaridade anfíbia desta cidade amazônica é, de fato, uma
chave para se compreender as balizas das identidades pelas quais as gerações de seus habitantes
estiveram amalgamadas.
Em suma, uma vez mais assinto, lançando mão desse “jogo de escalas imagético”, as
fotografias demonstram que o rio Amazonas, suas águas, perpassadas as temporalidades,
representam o elo no desenrolar das trajetórias históricas dos habitantes dessa cidade amazônica
Na esteira desse “jogo de escalas”, acontecimentos significativos à conjuntura dos anos
de 1930-40 são mencionados em Órfãos do Eldorado. A política de governo do presidente
Getúlio Vargas à Amazônia é abordada, no imaginário de Hatoum, por exemplo. Vou me
debruçar nesse acontecimento, portanto:
657
NERY, Le Baron de Santa-Anna. Le Pays des Amazones: L’El – Dorado Les Terres a Caoutchouc. Paris –
Libraire Guillaumin et c. 14, Rue Richelieu, 14, 1899, p. 29.
210
A Segunda Guerra chegou até aqui. E pela primeira vez um presidente da República
visitou Vila Bela. Toda cidade foi aplaudir o homem na praça do Sagrado Coração.
[..]. O presidente Vargas disse que os Aliados precisavam do nosso látex, e que ele e
todos os brasileiros fariam tudo para derrotar os países do Eixo. Então milhares de
nordestinos foram trabalhar nos seringais. Soldados da borracha. Os seringueiros
voltaram a navegar nos rios da Amazônia: transportavam borracha para Manaus e
Belém, e depois os hidroaviões levavam a carga para os Estados Unidos. Os sonhos e
as promessas também voltaram. O paraíso estava aqui, no Amazonas, era o que se
dizia. O que existiu, e eu não esqueci nunca, foi o barco Paraíso. Atracou aí em baixo,
na beira do barranco. Trouxe dos seringais do Madeira mais de cem homens, quase
todos cegos pela defumação do látex. Lá onde ficava a Aldeia, o prefeito mandou
derrubar a floresta para construir barracos. E um novo bairro surgiu: Cegos do Paraíso.
Outros seringueiros ocuparam a beira do lago da Francesa e do rio Macurany, e
fundaram o Palmares. 658
658
HATOUM, 2008, p. 94-95.
659
SANTOS, E. M. Uma liderança política cabocla: Álvaro Maia. 1ª ed. Manaus: EDUA, 1998. Sobre o referido
interventor, Monteiro informa que a partir de 20 de novembro de 1930, Álvaro Maia, alinhado foi escolhido como
interventor de Vargas no estado do Amazonas. Eloína Monteiro dos Santos, afirma ser ele uma espécie de
“liderança cabocla”. Assente ainda que o referido político, nascido na cidade de Humaitá, destacou-se, devido a
três características essenciais: defendia o regionalismo, isto é o glebarismo - termo que tem sua raiz na palavra
gleba ( lugar de origem). Trata-se de um movimento regionalista, no qual estavam envolvidos políticos
e intelectuais amazonenses. Lutavam pela retomada do poder política e cultural às lideranças políticas
nascidas no amazonas. Inspirado na história oficial do índio Ajuricaba, esse movimento, ganha caráter
nativista. - ; era um conspícuo orador e estrategista político; era representante do estadonovismo no Amazonas;
211
da Amazônia. Pois na alegoria de Hatoum, a ficção transfigura a realidade, visto que estudos
históricos demonstram: posterior à Segunda Guerra Mundial, findo os acordos com o governo
norte americano, levas de nordestinos saíram dos seringais para se concentrarem em cidades
amazônicas, desencadeando, assim, problemas de toda ordem; entretanto, tais nordestino
também contribuíram com o processo de reinvenção das cidades borracheiras, em períodos
marcados pelo processo da retração econômica660
Quimera, dissimulada, através do Discurso do rio Amazonas, proferido por Getúlio
Vargas, quando de sua estada na cidade de Manaus, no início da divulgação da campanha
Batalha da Borracha:
As lendas da Amazônia mergulharam raízes profundas na alma da raça e a sua história,
feita de heroísmo e viril audácia, reflete a majestade trágica dos prélios travados contra
o destino. Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta – foram as nossas
tarefas. E, nessa luta, que já se estende por séculos, vamos obtendo vitórias sobre
vitória. A cidade de Manaus não é a menor delas. Outras muitas nos reserva a
constância do esforço e a persistente coragem de realizar. 661
escreveu muitos romances, com estes deixou representado o seu apaixonado desejo em fazer com que o Amazonas
revivesse o período “áureo da borracha”.
660
FERREIRA, Arcângelo da Silva. “Na vaga claridade do luar”: História e Literatura do Movimento
Madrugada na cidade de Manaus (1954-1967). 1ª ed. Curitiba : Appris Editora, 2020. Nessa obra analisa-se a
presença dos nordestinos na cidade de Manaus, tanto nos anos de 1920, como nos posteriores a Segunda Guerra
Mundial, a literatura de ficção elaborada nos anos de 1950, 1960 é fecunda, pois retrata a contribuição da cultura
nordestina à referida cidade. Calos Gomes, Arthur Engrácio e Benjamin Sanches, por sinal, são literatos profusos
relativos a essa temática.
661
“Discurso do Sr. Presidente Getúlio Vargas, no banquete que lhe ofereceram a Interventoria Federal e as classes
conservadoras a 10 de Outubro, na sede do Ideal Clube”. In.: Propaganda Amazonense. Visita do Presidente
Vargas e as esperanças de ressurgimento do Amazonas. Imprensa Pública. Manaus, 1940, p. 11.
662
ROCHA, Yapuanna Souza da; FERREIRA, Arcângelo da Silva. Fontes para outras histórias de Parintins
(1935-1945). Relatório de Pesquisa de Iniciação Científica/Projeto de Apoio Acadêmico (PAIC)/ Fundação de
Amparo à Pesquisa no Amazonas (FAPEAM), desenvolvido no período de 2017-2018, no Centro de Estudos
Superiores de Parintins (CESP) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
212
local, o estadual e o nacional, durante o Estado Novo. Testemunho disso, talvez, seja o entrecho
extraído do documento adiante:
A chegada dos japoneses animou a cidade; eles construíram uma vila com casas
japonesas lá na ponta do rio Amazonas, bem na boca do paraná do Ramos. Fundaram
outras colônias no rio Andirá, lá na terra dos saterés-maués, grandes agricultores.
Plantaram arroz, feijão e milho, e conseguiram a proeza de plantar juta. 665
663
Livro 35: Protocolo de Entrada da Câmara Municipal de Parintins, 1935, p. 3
664
Livro 35: Protocolo de Entrada da Câmara Municipal de Parintins, 1935, p. 1
665
HATOUM, 2008, p. 91.
213
A citação supra é mote para tecer breve digressão acerca da contribuição dos japoneses
ao Amazonas. Sumamente, quatro são as fases de imigração dos nipônicos: primeiro (1929),
com o objetivo de cultivar guaraná (planta já amanhada na região Amazônica), fixaram-se na
cidade de Maués (onde historicamente viviam/vivem uma concentração de indígenas,
predominantemente, da etnia Sateré-Maué). Na década seguinte (1931), estabeleceram-se em
Parintins, com o propósito de desenvolver produção agrícola e, essencialmente, estudar o
processo de aclimatação da juta. Passados dez anos do fim da Segunda Guerra Mundial,
chegaram na cidade de Manacapuru (1954), com a missão de produzir hortifrutigranjeiros. Com
a mesma intenção à Itacoatiara (1958). Convém compreender que a menção feita por Hatoum
a presença dos japoneses na cidade imaginária de Vila Bela (a Parintins histórica) está
relacionada a memória e a história nas quais estão inscritas a cultura japonesa na referida cidade,
visto que estudos revelam que “não é possível dissociar Parintins da juta, nem na história de
sua economia, nem no seu imaginário. A juta é a primeira e mais significativa marca da presença
dos imigrantes japoneses em Parintins” 666 A edificação de Vila Amazônia, (às margens do rio
Ramos, afluente do rio Amazonas) próxima à cidade de Parintins, por exemplo, representa a
maior influência da história e cultura nipônica à cidade. Nessa referida vila, os japoneses
erigiram: um hospital, dirigido por uma médico, cujo nome Hatoum também menciona em sua
novela: Yoshio Toda; uma escola (a qual atendia estudantes, também de Parintins); um templo,
onde era utilizado como local de reuniões, denominado Hako-kaikan; olarias, serrarias;
armazéns e habitações; sistema de esgoto (bueiro) para escoamento de água pluvial. Nessa
conjuntura, demandado pela movimentada produção de juta, o porto de Vila Amazônia era
frequentemente visitado pelos aviões catalinas. Essas peculiaridades revelam, portanto, a
significativa contribuição dos japoneses.
Porém, o advento da Segunda Guerra Mundial iria interferir drasticamente nas vivências
e experiências dos asiáticos residentes no Brasil e na Amazônia:
Foi uma lástima que essa cooperação [Japão/Brasil] tenha sido pouco a pouco
sufocada pela propaganda do ‘perigo amarelo’, já disseminada no restante do país.
Havia também as dificuldades na tentativa de aclimatação da juta, um processo lento
e cheio de tentativas e frustrações. Com a Segunda Guerra Mundial, os japoneses são
declarados inimigos do Brasil; no Amazonas, os japoneses perdem a terra cedida e o
patrimônio a ele integrado, enquanto a juta se transforma em sucesso. 667
666
SÁ, Michele Eduarda Brasil de. Presença japonesa no município de Parintins-AM. Anais do XXII ENPULLCJ/
IX CIEBJ. Universidade Federal do Paraná – UFPR – Curitiba, Brasil, 30 e 31 de agosto de 2012, p.3.
667
SÁ, 2012, p. 3-4.
214
Como se percebe esse arco de tensão imposto pela conjuntura da guerra promove uma
ruptura na vida dos asiáticos residentes no Amazonas. Em Vila Amazônia não foi diferente.
Através de uma recente pesquisa, algumas evidências inscritas na oralidade668, foi possível
constatar a influência do “perigo amarelo” atingindo diretamente os nipônicos que moravam na
mencionada vila. Essa memória traumática é emblemática, pois suscita fragmentos de
lembranças inscritas em sensações, as quais revelam práticas de perseguição indutoras do medo.
Medo ocorrido no passado, porém, relembrado quando a senhora Maria da Silva Hatta prestou
o seu depoimento:
Eu morei onze anos na Vila Amazônia. A Vila Amazônia já era uma cidade, no tempo
em que trabalhava muito japonês, e queria fazer mesmo uma cidade, pra dar
movimento, pra levantar fábricas né. Mas também não deram sorte porque
trabalharam em bocado, para todos só agricultores que vieram, chamaram os
operários, tudo era japonês (...). Começaram mas não terminaram (...). Foi o tempo
que começou guerra no Japão, o Japão ficou desgostoso, ai o J.G tomou conta; era o
senhor mais rico que tinha no Amazonas naquele tempo.
[...].
Metade foi pro Uaicurapá, metade foi pro Zé Açu... Ele não quis assim. Ele ficou e
trabalhou. (...). Ele ainda tinha raiva assim do Brasil né, porque... ninguém sabe o que
aconteceu. Numa noite, numa comunidade, ele trabalhou, quando foi numa noite ele
sentiu cheiro de uma coisa queimada. Não sei se foi curto circuito, não sei se foi
maldade né, nunca soubemos o que foi isso. Mas eu sei que pegou fogo ‘tudinho’.
Porque japonês trabalhava assim, tudo seguindo, casa também não tem diferença, tudo
emendado uma na outra, não é como aqui (...). A gente morava lá, e no sábado ia pra
Belém. Aí quando a gente chegou de manhã lá o estrago já tava feito. Só sei que meu
marido num quis mais ir, ele tinha pavor de fogo. A gente comprou essa casa aqui né,
descuidada, era feia, mas eu queria mesmo era comprar uma casa. A gente tava
desnorteado, porque tinha acontecido aquilo, aí queria essa casa, porque fica perto do
colégio, perto da beira do rio (...). A gente pensava que as pessoas não gostavam da
gente. 669
O relato supra revela segredos anônimos. Histórias que só podem ser vislumbradas
quando se reduz a escala para encontrar acontecimentos que permitem articular diferente
eventos, porém, atrelados entre si, no contexto de um longo tempo, ou de uma determinada
conjuntura. Por isso, o uso da pequena escala possibilita a reescrita de acontecimentos vividos,
os quais outras abordagens historiográficas não percebem. Um recorte em pequena escala é
capaz de perceber estruturas dissimuladas, bojo onde se inserem as articulações de vivencias e
668
É pertinente lembrar que “a oralidade e a escrita estão sujeitas a riscos opostos e complementares: a voz é
ameaçada pela impermanência e pela labilidade. A escrita é ameaçada pela permanência e pela fixidez. O discurso
oral escorre entre os dedos e deve ser consolidado, ‘congelado’, para que possamos, mesmo que de forma precária,
retê-lo. A escrita, por sua vez, coloca em nossas mãos um objeto feito de palavras tangíveis, congelados. Nada se
perde, mas nada parece se mover”. In. PROTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral, São Paulo: Letra e Voz,
2010, p. 241.
669
OLIVEIRA, Patrícia de Souza; FERREIRA, Arcângelo da Silva (orientador). Hatoum e a história: mito,
memória e cidade em Órfãos do Eldorado. Relatório de Pesquisa/ Programa de Apoio à Iniciação Científica
(PAIC), desenvolvido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPEAM), no Centro de Estudos
Superiores de Parintins (CESP), da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), coma duração de um ano (2014-
2015). A entrevista foi realizada na cidade de Parintins, na residência da senhora Maria da Silva Hatta, a qual viveu
alguns anos em Vila Amazonas.
215
experiências invisíveis. Pois, “os acontecimentos são, naturalmente, únicos, mas só podem ser
compreendidos, até mesmo em sua particularidade, se forem restituídos aos diferentes níveis de
uma dinâmica histórica” 670 Essa postura historiográfica faz-me olhar para esse relato que agora
utilizo para pensar acerca de sua fecundidade. Relativo a esse contexto de análise que se
percebem nessa evidência recolhida da oralidade, pelo menos, três aspectos relevantes acerca
da presença dos japoneses em Vila Amazônia. O primeiro é relativo à missão nipônica
direcionada ao Baixo rio Amazonas: desenvolver a produção agrícola, mais especificamente a
aclimatação da juta, a qual são os legatários. O segundo, gira em torno das circunstâncias
impostas pela Segunda Guerra, na qual colocou em lados opostos o Brasil e o Japão,
acarretando, assim, a perseguição dos japoneses no território brasileiro. No Amazonas, como
se verifica na fonte oral, os acordos internacionais entre os dois países foram interrompidos e,
por extensão, os japoneses tiveram que sair de Vila Amazônia, migrando para outras
localidades. Nessa conjuntura Vila Amazônia foi adquirida por um dos mais ricos comerciantes
do Amazonas: a Cia J. G. de Araújo S.A. 671 A mudança de patenteado, obviamente, interrompeu
a autonomia nipônica no lugar. Daí, a saída de diversas famílias como, por exemplo, a da
senhora Hatta. O terceiro aspecto gira em torno da onda conhecida como “perigo amarelo”, a
qual atingiu todo o Brasil, inclusive Vila Amazônia. No relato oral é possível conjecturar sobre
a perseguição que determinadas famílias, residentes na referida vila, sofreram: a senhora Hatta,
a partir de uma lembrança traumática, sugere que sua família pode ter sido vítima de uma ação
670
REVEL, Jacques. “Prefácio – A história rés-do-chão”. In.: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de
um exorcista no Piemonte do século XVII, prefácio de Jacques Revel, tradução Cynthia Marques de Oliveira. –
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 35.
671
Nascido em Portugal, a 14 de fevereiro de1860, faleceu em Lisboa em março de 1940, Joaquim Gonçalves de
Araujo, mais conhecido como J. G. de Araujo foi um dos mais prósperos comerciantes do Amazonas,
principalmente, na primeira fase da economia da borracha (1890-1913). A CIA J. G. Araújo S.A. (àquela
conjuntura envolvida no processamento de arroz, fabricação de farinha de mandioca, serraria etc.), através de um
leilão ocorrido em 1946, adquiriu Vila Amazônia (por cinquenta contos de reis). O referido comerciante também
é mencionado na trama do terceiro romance de Milton Hatoum: Cinzas do Norte, personalizado na figura do
comerciante “Ranulfo”. Vila Amazônia também é ambientada. Emblemático é a citação adiante: “Vila Amazônia...
o nome e o lugar sempre me atraíram. Nos fundos da chácara do Morro da Catita, essas duas palavras nuca foram
esquecidas. Tio Ran dizia que era uma propriedade grandiosa do Amazonas: um casarão com piscina no alto de
um barranco, de onde se avistavam ilhas imensas que pareciam continentes, como a Tupinambarana”. In.:
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. – São Paulo : Companhia das Letras, 2005, p. 55. Ora, conforme um dos
depoimento de Milton Hatoum, Vila Amazônia já está presente em sua vida desde menino: “Na minha infância eu
fui vizinho de uma família muito poderosa que depois se tronou decadente. Essa família tinha o único iate de
Manaus. E nós fomos, uma vez me convidaram pra ir à Parintins, visitar Vila Amazônia. Eu devia ter uns doze
anos. Quem acompanhou a viagem foi o cinegrafista dessa família, Silvino Santos. E eu não sabia quem era o
Silvino Santos, com doze anos. Ele foi filmar essa viagem. E a Vila Amazônia pertencia a essa família [J.G. de
Araujo]. Então, você vê que a minha relação com Parintins é antiga. Mas, aos doze anos eu não sabia que ia
escrever Órfãos do Eldorado, quer dizer, eu não sabia que ia escrever nada! Eu só queria viver a minha juventude
em Manaus.” (parte de um registro oral, extraído da fala de Milton Hatoum quando esteve na cidade de Manaus,
em 06 de dezembro de 2019 (sexta-feira), no auditório da Escola Superior de Tecnologia da Universidade do
Estado do Amazonas (EST/UEA).
216
absurda influenciada pela ideologia do “perigo amarelo”; dito corretamente, a casa de sua
família fora incendiada. Acontecimento dramático que provocou o medo em seu marido.
Debruçado na oralidade da senhora Hatta, com as autoras aqui citadas, concebo a
memória como “uma teia que nos envolve, absorvendo-nos tão completamente que, muitas
condições, tomamos como nossas as memorações de outrem”. 672 Assim, o processo mnemônico
abarca e integra os subsumidos, presos que estiveram às amarras das invisibilidades,
amalgamadas por estruturas que obstam, até mesmo (mas, principalmente), suas vozes, mas
também, por serem traumáticas, suas rememorações de um passado, lúgubre, as vezes
medonho. Em Órfãos do Eldorado, Hatoum, faz observar, portanto, que a memória é conflitiva;
é no plural; assim, precisam ser percebidas, pois que indicam a luta de grupos sociais em
disputas. Pois, degradado, preso na invisibilidade, nas sobras da loucura, da pobreza, as
reminiscências de Arminto Cordovil, seus relatos sobre sua vida, sobre as cidades onde viveu,
Manaus, Vila Bela, ganham poder na narrativa de Hatoum.
Arminto Cordovil também vivenciou as transformações da cidade de Belém do Pará, a
Cidade Velha, inscrita no imaginário de Milton Hatoum. É o momento de verificar essas
representações, portanto, inseridas nos bosques da ficção de Órfãos do Eldorado.
Quando Louis e Elizabeth Agassiz, suíços, passaram por Belém do Pará, por duas vezes,
na sua famosa viagem ao Brasil, ocorrida durante os anos de 1865 a 1866, apesar de muito mais
preocupados em colecionar espécies de peixes de nossa fauna aquática, pois a missão cientifica
era voltada aos interesses da ictiologia, deixaram algumas impressões sobre a referida cidade.
Importantes registros, visto que antecedem às transformações advindas do fim do
oitocentos. 673:“o tempo aqui se escoou tão calmamente que nada vejo para escrever em minhas
672
Omena, Luciane Munhoz de; GONÇALVES, Ana Teresa Marques. “Apresentação: Construindo os espaços da
memória e da materialidade na Antiguidade”. In.:__________________ - Memória e Materialidade:
Interpretações sobre a Antiguidade. - Jundiaí: Paco Editorial, 2018, p. 9.
673
Mudanças, nas estruturas, nos acontecimentos influenciadas, também, pelas descobertas feitas através das
pesquisas realizadas por uma quantidade significativa de naturalistas europeus que começaram a adentrar na
Amazônia a partir da “abertura dos portos às nações amigas”. Tais estudos, além de servirem ao desenvolvimento
da ciência, obviamente, foram eficazes para o avanço de sistemas político-econômicos e culturais, direcionados às
capitais da Amazônia, essencialmente, Manaus, no Amazonas e Belém do Pará (como, por exemplo, o sistema de
aviamento, utilizado durante o boom da borracha). Vale lembrar, por exemplo, que as investigações científicas de
Albert Russel Wallace, feitas na Amazônia foram conclusivas para as hipóteses de Charles Darwin, no que tange
a formulação de sua teoria da evolução das espécies. Paralelo a isso, às ciências humanas, os naturalistas foram
sintomáticos, principalmente, no que diz respeito ao saber antropológico quando resolveu focar seus estudos nas
ditas “sociedades primitivas” da Amazônia, através do darwinismo racial e social. Este estágio, por conseguinte,
foi importante para que mais tarde a Antropologia desenvolvesse a sua sólida epistemologia e seu objeto de
pesquisa: “a cultura na sua totalidade”, graças as conclusões de Marcel Mauss. Em suma, o material coletado pelos
naturalistas do século XIX, suas impressões sobre os grupos humanos que habitavam a Amazônia foram e ainda
217
notas”. 674 Diz a senhora Elizabeth, um tanto quanto entediada. Contudo, dias depois ela,
parecendo saudosa por deixar a cidade, afirma:
Como tal evidência poderia suscitar, historicamente o perfil de uma cidade prestes a se
transformar extraordinariamente, se comparada com a Belém dos anos de 1890, por exemplo?
No contexto histórico que ela vai ser reconstruída, seu rápido processo de urbanização faz com
que aquela vida sem novidades, a qual reclamava Agassiz, ganhasse um certo frenesi nunca
vivido antes nessas paragens. Contudo, ao lado de toda a beleza vista por Elizabeth, Agassiz
registra um lado, que para ela parece lúgubre, à cidade: a edificação de um leprosário:
emblemático para se compreender a mentalidade civilizatória que começaria a se forjar desde
a transição do tempo medievo ao moderno, pois que a criação do Asilo, da Clínica para leprosos,
loucos, respectivamente, é o testemunho de uma determinada ordem mundial à luz do progresso
que se estruturou nas principais capitais do mundo 676. Nesse sentido,
são fecundos para a produção de saberes. Contudo, convém argumentar que também foram usados para justificar
diferenças entre as civilizações (raças) consideradas avançadas (“brancas”) em relação às ditas atrasadas
(“vermelhas”, “amarelas”, “negras”). Entretanto, no século XX, principalmente após as duas Grandes Guerras
Mundiais, os estudos dos naturalistas foram alvo de um revisionismo, quando o racismo e cientificismo foram
contestados. Esse movimento de reflexão crítica, decerto, contribuiu com o advento do relativismo cultural e, por
extensão, com pesquisas relacionadas a perspectiva da história social e cultural. Assim como aos estudos relativos
às teses acerca da (de)colonização, em voga na atualidade.
674
AGASSIZ, Louis e Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865-1866; tradução de João Etienne Filho, apresentação
de Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p.
230.
675
AGASSIZ, 1975, p. 235.
676
FAUCALT, Michel. A história da loucura na Idade Média Clássica. 4ª Ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A.,
p. 6. 1978.
218
Proporções, de tempo e espaços, guardadas, em Belém essa episteme não foi diferente.
Assim, é pertinente, acerca do leprosário mencionado por Agassiz, uma breve digressão, da
qual me aproprio por meio da transcrição de um recente registro áudio visual, que, apesar de
longo, o transcrito, traz indícios importantes sobre o Asilo de leprosos, por sinal, oportuno à
minha narrativa histórica. O referido registro indica a localização do leprosário no atual Bairro
do Guamá 678, através do, talvez, mais antigo documento relativo à fundação do Bairro, datado
do ano de 1728, (quando Guamá era ainda uma sesmaria assinada pelo rei de Portugal):
Nesse documento [o rei de Portugal] passava a posse para o senhor Teodoreto Soares
Pereira, com o objetivo de ocupar e explorar o território onde hoje é Bairro do
Guamá em 1746 o espaço passa a ser administrado pela Ordem dos Mercedários. Lá
passou a se chamar Fazenda do Tucunduba, onde foram instaladas plantações e uma
olaria que oferecia telhas e tijolos a cidade de Belém. Mas tarde essa propriedade foi
doada à Santa Casa de Misericórdia do Pará. No século XIX, foi construída no lugar
da antiga olaria o Leprosário do Tucunduba, um espaço de reclusão social que tinha
como objetivo tratar os doentes de hanseníase que perambulavam pelo centro da
cidade. Além disso, o objetivo era também manter esses doentes afastados da
população considerada sadia. O Asilo do Tucunduba foi inaugurado em 1816, com a
internação de cinco pacientes, mas com o passar do tempo a população do leprosário
foi aumentando e a sua estrutura precária não atendia nenhuma de suas funções. Não
havia assistência médica que garantisse o tratamento desses doentes, nem mesmo
uma estrutura física que proporcionasse o isolamento deles. Por isso, suas fugas eram
constantes. Muitos doentes iam livremente para o centro de Belém, pedir esmolas,
comercializar frutos que eles vendiam aos redores do leprosário. Outro fator que
facilitava as fugas era a facilidade de chegar ao centro de Belém através do rio
Guamá. Com o passar das décadas a população do leprosário foi aumentado. E com
isso, as fugas. As autoridades se viram obrigadas a tomar algumas providências,
inclusiva a criação de um muro para impedir essas fugas. Na transição do século XIX
para o XX. 679.
677
FERREIRA, Arcângelo da Silva. “Representações sobre a doença e seus rituais de cura”. In.: MORGA, Antônio
Emílio. História da Saúde e da Doença. 1. Ed. – Itajaí : Casa Aberta, 2012, p. 31.
678
Um dos mais populosos Bairros de Belém do Pará, conforme o censo de 2010, com 94.610 habitantes. A grande
maioria de seus moradores estão classificados entre as Classes Baixa e Média Baixa. Neste Bairro está localizada
a Universidade Federal do Pará (UFPA).
679
SILVA, Adriane dos Prazeres; NEVES, Jennifer ; SÁ, Fernando de; NETO, Lázaro, “A História do Bairro
Guamá”. In.: Laboratório Digital de História da Universidade Federal do Pará, 1999. [inserido no You Tube em
01/07/2019. Acessado em 22/01/2020.
219
Antes de 1850, havia apenas dois bairros o da Cidade Velha, cujo centro era marcado
pela catedral, e o da Campina, que se estendia até a estrada de Nazaré. Na década de
1890 a cidade havia crescido até a estrada de São Brás, com novos bairros, ruas foram
calçadas com paralelepípedos e destacavam-se o bairro de Batista Campos como o
mais belo. 680
Essa expansão citadina atende aos desejos da elite, porém, à revelia das classes pobres. É
fato, obviamente. Talvez, devido a essa constatada permanência histórica, seja quase unânime
entre os geógrafos, filósofos, antropólogos, historiadores etc., contemporâneos, belenenses (ou
não), estudiosos da trajetória histórica da cidade de Belém do Pará a representação de uma
cidade contraditória. Dito corretamente, paralelo às riquezas que, de forma insólita, afloraram,
essencialmente no decorrer de sua “Idade de Ouro” (últimas décadas do século XIX à primeira
década do século XX), há evidências relativas a problemas sociais diversos, quase sempre
resolvidos como caso de polícia, previsto nos contundentes Código de Posturas. 681 Esse
panorama não poderia ser diferente, pois “se a infraestrutura resultava de uma armação
financeira imponente, mas frágil, a superestrutura decorrente era como fogo-fátuo passageiro,
produto de artificiosa combustão de recursos naturais”. 682 Nessa medida, restou à maioria da
população: indígenas, negros, mestiços, pobres em geral o drama da inópia. Em jornais desse
contexto são visíveis denúncias sobre a precariedade dos serviços do transporte público, os
bondes, “o lixo nas ruas, o problema da comercialização clandestina de farinha e a carência de
carne, os menores vagabundos que viviam pelas ruas fazendo algazarras ou jogando o picho, as
brigas e o estado deplorável de algumas ruas (,,,)” 683
Na publicação da Revista Amazônica, em 1883, a propósito, o literato e crítico de arte
José Verissimo, in loco, já denunciava a peculiar relação entre infra e superestrutura que,
naquele contexto moldava a realidade social existente na cidade de Belém, quando tece
680
COELHO, Ana Carolina de Abreu. “O olhar de um viajante oitocentista sobre a sua cidade: o Barão de Marajó
e a cidade de Belém da segunda metade do século XIX”. In.: SARGES, Maria de Nazaré; LACERDA, Franciane
Gama (orgs.). Belém do Pará, cultura e cidade; para além dos 400 anos. 2. ed. rev. e ampl. – Belém, Açaí, 2016,
p. 61.
681
SARGES, Maria de Nazaré; LACERDA, Franciane Gama (orgs.). Belém do Pará, cultura e cidade; para além
dos 400 anos. 2. ed. rev. e ampl. – Belém, Açaí, 2016.
682
NUNES, Benedito; HATOUM, Milton. Crônica de duas cidades: Belém – Manaus. Belém: Secult, 2006, p.
17.
683
SARGES, Maria de Nazaré. “O maestro, a cidade e a civilização nos trópicos”. In.: SARGES, Maria de
Nazaré; LACERDA, Franciane Gama Lacerda (orgs.). Belém do Pará, história, cultura e cidade: para além dos
400 anos. 2. ed. rev. e ampl. – Belém: Açaí, p. 256.
220
comparação entre determinados avanços no campo cultural entre Belém e Manaus, duas capitais
borracheiras:
Entendemos que no meio do febril movimento comercial que a riqueza nativa do vale
do Amazonas entretém não só nesta Liverpool dos Trópicos – como já lhe chamaram
– mas ainda na frutuosa cidade de Manaus, havia lugar para um jornal consagrado a
promover, direta ou indiretamente, o engrandecimento moral, e, portanto, dirigir
melhor o material da Amazônia; e que publicá-lo seria, senão um serviço que
prestávamos.
Não basta – cremos nós – produzir borracha, cumpre também gerar ideias; não é
suficiente escambar produtos, é ainda precioso trocar pensamentos; e um
desenvolvimento material que se não apoiasse num corretivo progresso moral seria,
não somente improfícuo, mas funesto, pela extensão irregular que daria aos instintos
– já a esta hora muito exagerados – do mercantilismo. 684
O que se percebe nas palavras de Verissimo é uma certa cobrança acerca das atitudes dos
“donos do poder”, belenenses; o referido escritor sugere um olhar mais atento direcionado aos
investimentos à cultura local, da qual o literato era um defensor ferrenho.685 Para ele, seria
paradoxal, por um lado a ascensão econômica, por outro o nulo investimento no
desenvolvimento intelectual: ambos deveriam alcançar o mesmo ritmo. Ao que tudo indica,
segundo o que se pode conjecturar das palavras de Verissimo, não era bem isso que estava
ocorrendo em Belém do Pará, naquela conjuntura em que ele fazia sua sutil denúncia. Em outros
termos, no passado, assim como na contemporaneidade os pensadores procuraram/procuram
mostrar os múltiplos ângulos da cidade de Belém. Ângulos onde estão entrecruzados os tecidos
da base/superestrutura.
Pois, na esteira das análises que giram em torno desse debate: “Temos então de ver,
primeiramente, como se realiza essa relação temporal entre, por um lado, a cultura dominante
e, por outro, a cultura residual ou a emergente.”686 Elucidar as experiências, significados e
valores que nascem, residem fora da cultura dominante. Porém, se imbricar na ambiência dessa
cultura. Nesse sentido, a imagem, inscrita na escrita criativa de Hatoum, que irei analisar linhas
adiante, é propositora à reflexão do entrelaçamento base/estrutura. E isso me fez lembrar as
provocações de Ginzburg, ao se reportar ao poema de Bertold Brecht: “’ Quem construiu Tebas
das sete portas?’ – perguntava o ‘leitor operário’ de Brecht. As fontes não contam nada daqueles
684
VERÍSSIMO, José. “Revista Amazônica, 1883, tomo I”. Apud. DIMAS, Antonio. INTRODUÇÃO ao livro
Cenas da Vida Amazônica de José Veríssimo. Editora WMF: Martins Fontes, 2011, p. XII.
685
Em 1883, então com 26 anos, José Verissimo criou em Belém a Revista Amazônica, a qual teve vida efêmera.
Tratava-se de uma revista cultural volvida ao desenvolvimento intelectual na Província. Antes mesmo do boom da
borracha, o escritor migrou para o Rio de Janeiro, em 1891, onde, mais tarde, morreria, aos 59 anos. No Rio,
juntamente com o escritor Machado de Assis, criou a Academia Brasileira de Letras, em 1897. Nesta fase de sua
vida, empenha-se a restauração da Revista Brasileira. Os anos que abarcam 1895-1899, segundo Antônio Dimas
(2011), correspondem a terceira fase da referida Revista, caracterizada pela forte influência do literato paraense.
686
WILLIAMS, Raymond. “ Base e superestrutura na teoria da cultura marxista”. In.: ______________-. Cultura
e marxismo; tradução André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 57.
221
pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo o seu peso”. 687 Hatoum é um desses literatos
que parecem afinados com as ênfases do referido poeta alemão. Como venho elucidando, desde
a introdução deste estudo, na sua prosa de ficção do literato amazonense são aludidos aqueles
personagens que aos olhos das fontes oficiais ficariam nas sombras.
Milton Hatoum apresenta cenas significativas. Assim, se inscrevem condições de
possibilidade para que seja possível ponderar sobre o seu imaginário à urbe belenense. Como
um espectador emancipado, já afirmado antes, o referido literato faz menção a uma cidade
diversa, não deixando, portanto de revelar, como fazem os pesquisadores contemporâneos, as
diferentes peculiaridades de Belém, na passagem do século XIX para o século XX. Elucidando,
essencialmente, os aspectos socioculturais e históricos. Pois, no tempo do enunciado da novela
Órfãos do Eldorado, mas também, durante os anos de 1870-1920, de fato, Belém tornou-se um
lugar preparado para comportar uma elite estrangeira, assim como os novos ricos forjados no
chão da referida urbe. Nascia, portanto uma nova estrutura social tecida pela dinâmica da
produção do látex, extraído da hevea brasiliense: “uma classe de homens políticos e burocratas
formada por nacionais; os comerciantes, basicamente portugueses; os profissionais liberais,
geralmente de famílias ricas e oriundos das universidades europeias.” 688 Belém volve-se, assim,
numa cidade ressignificada para uma boa parte do mundo. Mas, anos antes do mundo se voltar
para cidades como Belém do Pará e Manaus, à procura do látex, Agassiz já indicava que a
Euforbiácea (Hevea Brasilienses), isto é, a seringueira, já era explorada por populações que
habitavam, por exemplo,
687
GINZBURG, Carlo. “Prefácio à edição Italiana”. In.: O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um
moleiro perseguido pela Inquisição; tradução Maria Betânia Amoroso; tradução dos poemas José Paulo Paes ;
revisão técnica Hilário Franco Jr. – São Paulo : Companhia das Letras, 2006, p. 11.
688
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzidas a Belle Époque (1870-1912) – 3ª ed. – Belém: Paka –
Tatu, 2010, p.125.
689
AGASSIZ, 1975, p. 117.
222
Fui ao cepo por volta das 10h30 e o experimentei em Sealy. Muita gente reuniu-se ao
redor. O tronco não se fechou sobre pernas por pouco, a medida interna sendo, penso
eu, de menos de sete centímetros, mais perto dos cinco. Pusemos então um índio
robusto, que coube de forma justa. Ele conseguia mover o pé um pouco para cima e
para baixo, pois a sua perna era mais fina perto dos tornozelos. [...] Enquanto fazíamos
isso – Bernardes, Bell, Fox, Gielgud e eu – o índio começou a falar em uitoto e suas
palavras jorraram. O que disse nos foi traduzido parcialmente por Sealy e Chase.
Mostrou-nos as coxas e nádegas, exibindo largos vergões em ambas, descendo até a
parte de trás das coxas e disse que foi assim punido por não trazer o caucho. Disse
também que eram postos neste cepo, onde ficavam até morrer de fome, que morriam
ali; que muitos, que todos, tinham sido chicoteados. Muitos haviam morrido naquele
cepo. O seu semblante ferido atestava aquilo tanto como suas palavras. 692
690
Consul britânico, de origem irlandesa, que foi designado, pela coroa inglesa para investigar os maus tratos em
que estariam sofrendo diversas etnias indígenas nas regiões fronteiriças ao Brasil, Peru e Colômbia. Das viagens
nessa tríplice fronteira, e por extensão pelo alto Amazonas, durante os anos de 1910 e 1911, foram reveladas
inúmeras denúncias relacionadas a exploração, opressão, violência e, principalmente, sobre os abusos do trabalho
escravo que sofreram trabalhadores barbadianos e indígenas usados para a extração do látex. Antes de viajar para
as fronteiras dos três países, passou pelas cidades de Belém do Pará e Manaus. Contudo, não irei me reportar às
suas impressões sobre tais cidades.
691
CASEMENT, Roger. Diário da Amazônia de Roger Casement. Edição de Angus Mitchell; organização de
Laura P. Z. Izarra e Mariana Bolfarine; tradução de Maiana Bolfarine (coord.), Mail Marques de Azevedo e Maria
Rita Drumond Viana. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016, p. 137.
692
CASEMENT, 2016, p. 142.
223
violências 693, exemplo dessa minúcia impressa por meio das palavras do cônsul britânico,
supracitado. Acompanhando essa tradição literária (a poética da violência 694), obviamente,
Milton Hatoum procura representar tais transformações através de seu imaginário sobre a
cidade de Belém do Pará. Apesar de as cenas retratadas serem ínfimas, conforme determina o
enredo de sua novela.
Antes, porém, de eu acessar as imagens de Hatoum, recorro as representações de Belém,
vista do rio Pará, através das primeiras impressões de Henry Bates, que viajou pela Amazônia
durante os anos de 1848 a 1851:
693
FERREIRA, Arcângelo da Silva. “Na vaga claridade do luar”: história e literatura do Movimento Madrugada
na cidade de Manaus (1957-1967) – Curitiba, editora Appris, 2020.
694
KRÜGER ALEIXO, Marcos Frederico “Grande Amazônia: Veredas”. In: RANGEL, Alberto. Inferno Verde.
Organização Tenório Telles e estudo crítico por Marcos Frederico Krüger, 5ª ed. revisada - Manaus: Editora Valer
/ Governo do Estado do Amazonas, 2001. Por definição à “poética da violência”, uso as conclusões do professor
Marcos Frederico, na mencionada referência: representada pela literatura que vaza cenas chocantes, contudo não
pode ser condenável, pois “a questão consiste em saber se houve necessidade do relato” (p. 17).
695
BATES, 1979, p. 12
224
abrandado pelas fortes brisas marinhas, bem como a moderação das chuvas periódicas tornam
o seu clima um dos mais privilegiados da face da Terra”696. Um perfil ainda bucólico. Mas, o
naturalista já sugere o que poderia vir a ser aquele ambiente simples:
A cidade foi construída no local mais indicado para servir de porto de entrada para a
região amazônica, e com o tempo irá tornar-se provavelmente um vasto centro
comercial, já que a margem setentrional do rio principal, único local onde poderia ser
fundada uma cidade, é de muito mais difícil acesso para navios, além de ser
extremamente insalubre. 697
Também, Alfred Russel Wallace, considera o clima. Contudo, como um mote para
mencionar sobre determinados costumes, inscritos na cultura local. Na anotação abaixo, faz
considerações sobre alguns eventos noturnos das mulheres que, aos seus olhos curiosos, não
passaram despercebidos, obviamente. Daí ter demandado um tempo para tecer os referidos
registros:
Tanto quanto o experimentamos, o clima esteve excelente. [...]. Pela manhã e ao
anoitecer a temperatura era agradavelmente fresca, e tivemos quase sempre uma boa
chuva e uma aprazível brisa durante as tardes, o que era bastante refrescante, servindo
para purificar o ar. Nas noites de luar, até às oito horas, as senhoras costumam caminhar
pelas ruas, tanto na cidade como nos subúrbios, em roupas leves e sem cobrir a cabeça,
enquanto que brasileiros, em suas rocinhas, sentam-se do lado de fora das casas,
também de cabeça descoberta e em mangas de camisa, até às nove horas, sem a menor
preocupação com ares da noite e o denso sereno do trópicos, que nos acostumamos a
considerar como deveras nocivos à saúde. 698
Esses registros antecederam um período dinâmico, quando Belém volve-se numa cidade
ressignificada para uma boa parte do mundo. Não é demais reafirmar que “nos primeiros anos
do século XX, a cidade de Belém, como principal capital da borracha, vivia uma época
cosmopolita, com desenvolvimento das comunicações, do telégrafo e dos transportes marítimos
para os portos europeus e da América do Norte”. 699 Inclusive, esse movimento já se nota, um
pouco antes do boom, através das anotações de Wallace: “Durante nossa ausência [da cidade
de Belém do Pará] diversos navios haviam chegado ao porto do Pará [Belém], procedentes dos
Estados Unidos e do Rio de Janeiro”. 700 Outra evidência significativa é a iconografia produzida
no decorrer da “Bela Época”. Fecundas, nessa perspectiva, são as narrativas visuais a partir da
Baia do Guajará, inscritas “nas gravuras de Daniel Parish Kidder, Paul Marcoy, Kar Van den
696
BATES, 1979, p. 23.
697
BATES, 1979, p. 22.
698
WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro; tradução Eugênio Amado; apresentação
Mário Guimarães Ferri. – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p. 24.
699
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Os pintores e a cidade: Belém, arte e paisagem (séculos XIX e XX)”. In.:
SARGE, Maria de Nazaré; LACERDA, Franciane Gama (orgs.). Belém do Pará: história, cultura e cidade: para
além dos 400 anos. 2. ed. rev. e ampl. – Belém: Açaí, 2016, p. 26.
700
WALLACE, 1979, p. 41.
225
701
PEREIRA, Rosa Claudia Cerqueira. “Belém e o olhar estrangeiro: as narrativas visuais a partir da Baia do
Guajará”. In.: SARGE, Maria de Nazaré; LACERDA, Franciane Gama (orgs.). Belém do Pará: história, cultura
e cidade: para além dos 400 anos. 2. ed. rev. e ampl. – Belém: Açaí, 2016, p. 286.
702
A referida gravura está inscrita em MARCOY, 2001, p. 285. Vale informar que a reprodução da imagem retirada
da mencionada referência é uma fotografia da gravura, feita pela historiadora Elisângela Maciel, em 14 de março
de 2020, feita especialmente para esta tese.
703
HATOUM, 2008, p. 79.
226
transformações na estrutura arquitetônica da urbe que tanto encantou Amando ao ponto de ele
deixar a impressão de um certo delírio em seu filho Arminto que sonhava, desde então, em
conhecer aqueles lugares quase mitológicos, os quais as sensações do menino emitiam: uma
bela cidade no centro da selva, semelhante a cidade luz, europeia.
Eis o Grande Hotel. Construído em 1913, por Ricardo Salvador Fernandes de Mesquita.
Este hotel que foi um dos mais elegantes da urbe, viveu 53 anos. Nesse período, foi majestoso;
consta que até mesmo após a Belle Époque, isto é, nos anos de 1930, chamava a atenção, mesmo
das apressadas pessoas que passavam pela Avenida Presidente Vargas, onde aquela sólida
edificação parecia convidar os transeuntes a entrar para conhecê-lo. Fechou suas portas em 30
de julho de 1966. 705 É possível conjecturar que o Grande Hotel deixou, nas pessoas que alhures
lhe frequentaram, talvez, a saudosa certeza de que os prédios também representam amizades.
Assim como os lugares nos quais estes foram edificados. Sensação semelhante foi elucidada no
contexto do século XIX à uma avenida significativa, lugar de sociabilidade, através da literatura
europeia, como por exemplo, nos escritos de Baudelaire sobre a cidade de Paris, no seu livro
As flores do mal e no conto de Nikolai Gógol Avenida Niévski. Pois, já no início desta referida
literatura de ficção o narrador assevera: “Não há nada melhor do que a Avenida Niévski, pelo
menos em Petersburgo; para a cidade, ela representa tudo. E o que brilha nessa rua – a beldade
704
Belém da saudade: a memória da Belém no Início do Século em Cartões-Postais. 2ª ed. aum. rev. Belém:
Secult, 1998 – “Primeira instalação hoteleira de grande porte em Belém, construída no início da segunda década
desse século [XX]. A sua terrasse foi, por muito tempo, um dos mais importantes pontos de referência
sociocultural da cidade. Foi demolido em 1974, para dar lugar ao Hilton Hotel” (p. 223).
705
MACÊDO, Sidiana da Consolação Ferreira. “A cidade e seus lugares de comer: contextos da alimentação em
Belém”. In.: SARGES, Maria de Nazaré; LACERDA, Franciane Gama Lacerda (orgs.). Belém do Pará, história,
cultura e cidade: para além dos 400 anos. 2. ed. rev. e ampl. – Belém: Açaí, 2016.
227
de nossa capital?” 706 Diante disso, é possível sugerir que, durante a existência do Grande Hotel
é possível, provável, inclusive por meio dos estudos de Nunes e Macêdo, como se viu, que os
belenenses pudessem ver na referida edificação um símbolo da beldade da capital do Pará, como
o fazem no plano do enunciado de Órfãos do Eldorado os personagens de Milton Hatoum, isto
é, Amando e Arminto Cordovil. Na esteira de minhas conjecturas e analogias eu reproduzo uma
imagem, pertinente ao que estou afirmando:
Figura 30: Registro fotográfico de um evento oferecido ao deputado federal Bento Miranda,
no dia 26 de maio de 1914, oferecido pela redação do jornal Estado do Pará. 707
706
GÓGOL, Nikolai. Avenida Niévski; tradução: Rubens Figueiredo. – São Paulo : Cosac Naify, 2012, p.1.
707
Jornal Estado do Pará, Anno IV – Belém – Quarta-feira, 27 de maio de 1914. Consta no texto abaixo da
fotografia: “O almoço de despedida oferecido pela Redação do Estado do Pará ao Dr. Bento Miranda, no dia 26
do corrente – Da direita para esquerda, Antenor Cavalcanti, redactor; deputado Bento Miranda, diretor-gerente;
Raymundo Trindade e Valente de Andrade, redatores; Dr. Luiz Barreiros, redator-secretário; Senador Fulgêncio
Simões, redator-chefe, e Valente Lobo, redator e subgerente”. Trata-se de um evento oferecido para Bento José de
Miranda [ao que tudo indica dono do jornal], que acabara de ser eleito deputado federal. Conforme registros
(http://www.crtl.edu/content.asp?11=4&12=18f13=33. Acesso, 23/03/2020, às 12:18H), Miranda, filiado ao
Partido Republicano, foi eleito pela primeira vez para o mandato de 1915-1917, em 3 de maio de 1915, assumiu
sua cátedra no, então, Distrito Federal do Rio de Janeiro. Foi eleito e exerceu mandato de deputado pelo Pará por
quatro legislaturas. Na Câmara do Deputados permaneceu, portanto, até o ano de 1929. A fotografia, nesse sentido,
flagra uma comemoração demandada por uma pauta elitista, como era comum ao espaço de sociabilidade do
Grande Hotel.
708
NUNES; HATOUM, 2006, p. 29.
228
reproduzo acima, pois que a beleza arquitetônica do Grande Hotel reside apenas nos registros
de memória:
É bem provável que esse ícone da fisiognominia de Belém, aí descrito pelo filósofo
supracitado, seja representado nas lembranças de Amando e Arminto, no contexto do tempo do
enunciado da novela Órfãos do Eldorado, para evidenciar a opulência extraordinária daquela
capital cosmopolita, que ficou conhecida à época como “Paris Tropical”. A chegada de
inúmeros estrangeiros, ricos, à cidade demandou um majestoso desenho arquitetônico à urbe.
O Estado, à época, transforma a cidade em um lugar apto a receber, essencialmente, estrangeiros
europeus e do norte da América, interessados em investir nas oportunas redes de lucros (visíveis
e invisíveis) que a Amazônia oferecia através do advento de sua elástica goma, matéria prima,
essencial, durante o processo da industrialização, advinda da Inglaterra. Por isso, Paris é a
cidade modelo para esse processo de ressignificação da capital da Província do Pará. A elite
local contagiou-se pelo fausto: dava sentido à existência o refinamento forjado pela riqueza. 710
Insurreta, porque inovadora do modo de vida, amazônico. Opulência que deixaria, após esse
período de riqueza fugaz, um espectro às decadentes famílias aristocráticas. A belle époque,
foi, decerto, repentina e ilusória. Essa evidência historicamente obvia, faço questão de repetir
pela enésima vez. Pois o período, sim, também deixou outra marca significativa, mesmo que
dissimulada pelos efeitos pirotécnicos forjados pela pompa luxuosa do boom borracheiro. Mas,
essa outra cidade precisa vir à baila, de maneira insone, pois a justiça histórica é um caminho a
ser seguido. Ora, no contexto da belle époque belenense havia outros espaços de comer e morar
que, ao contrário da sociabilidade elitista inserta no âmbito do Grande Hotel, ocorriam inúmeros
conflitos noticiados pelos impressos. Nesse sentido, o Hotel Portugal, com efeito, aparecia com
frequência nos noticiários policiais, devido aos constantes conflitos e intrigas socioeconômicas
que o referido estabelecimento demandava:
709
NUNES; HATOUM, 2006, p. 30. [negrito de Nunes].
710
SARGES, 2010, p. 200.
229
Este Hotel, ao que parece, seria um lugar mal afamado, sendo noticiado pelo jornal,
inclusive, a morte de um hospede cearense que lá almoçava ‘regularmente’711. O
Hotel Portugal recebia imigrantes cearenses e pessoas sem muita condição financeira,
que lá hospedava-se e faziam refeições. 712
Tal citação suscita a constatação de que no contexto da belle époque belenense a urbe foi
inventada e reinventada no bojo do seu cotidiano, por vezes conflitivo, posto que “de um lado
havia um projeto modernizador pensado para a cidade de Belém, de outro lado, parte da
população nem sempre concordou ou participou efetivamente desse projeto, ou seguiu as
disposições legais dos poderes públicos”.713 Revela outras sociabilidades estabelecidas com a
chegada, “sobretudo com a seca de 1889 de cearenses, que, dessa cidade, seguiam muitas vezes
para os seringais, para áreas de produção agrícola ou mesmo permaneciam em Belém”. 714
Na imagem a seguir, extraída da literatura de ficção de Hatoum, um retrato de um instante
efêmero, no relato de Arminto, quando, finalmente, conheceu a cidade de Belém, à revelia das
promessas não cumpridas de seu pai, Amando. Ocorre aí a representação da realização de um
sonho há muito obstado, pela força das circunstâncias:
[...], eu me esbaldei no Café da Paz e nos bares da Cidade Velha; conheci o Mestre
Chico e outros boêmios e músicos que tocavam canções de pau e corda, tiravam toadas
e modinhas com flauta, violão, violino e cavaquinho. Eu pagava a bebida das noitadas
e os ingressos das operetas da trupe Chat Noir no teatro Moderno, no largo de Nazaré.
Amanhecíamos no Porto do Sal. Depois aluguei uma lancha e vi o mar pela primeira
vez. Na loja Paris n’América comprei peças de organdi suíço e de seda italiana e
francesa... 715
711
Notícia extraída por Sidiana Macêdo da página 2 do impresso O Pará, inscrita no dia 28 de dezembro de 1897.
712
MACÊDO, 2016, p. 321.
713
SARGES, Maria de Nazaré dos Santos; LACERDA, Franciane Gama. “A cidade e a floresta: urbanização e
trabalho no Pará (finais do século XIX início do século XX)”. In.: SARGES, Maria de Nazaré dos Santos; RICCI,
Magda Maria de Oliveira (Orgs.), Os oitocentos na Amazônia: política, trabalho e cultura. Belém: Editora Açaí,
2013, pp. 228 e 229.
714
SARGES; LACERDA, 2013, p. 231.
715
HATOUM, 2008, pp. 80-81.
230
Figura 31: Rua da Paciência, mas tarde modificada para rua Carlos Gomes. 716
716
Belém da saudade: a memória da Belém no Início do Século em Cartões-Postais. 2ª ed. aum. rev. Belém:
Secult, 1998, p.130
717
Belém da saudade: a memória da Belém no Início do Século em Cartões-Postais. 2ª ed. aum. rev. Belém:
Secult, 1998, p.130.
231
Por meio do relato de seu narrador protagonista, Milton Hatoum faz ver uma profusa
minúcia da cidade. Há aí, também alguns detalhes luxuosos da fisiognomonia da urbe, por
exemplo, o “teatro moderno”. Diante dessa imagem eu preciso recorrer uma vez mais a
Benedito Nunes:
O Theatro da Paz é um clássico teatro de ópera, sóbrio, mas imponente, com seis
ordens de colunas na fronteira, substituindo as sete que teve anteriormente à sua
reforma em 1905, quando delimitavam um terraço. A reforma liberou o terraço, acima
da galeria de entrada no primeiro piso, em frente à frontaria, provida de óculos que
ostentavam bustos representando as artes, vendo-se de cada lado da ordem de colunas
fronteiras, duas janelas ornadas de tímpanos. Nas partes laterais, o teto é sustentado
por colunas que caem sobre balcões, encimando portões de ferro implantados ao pé
de alongadas escadarias de mármore. 719
718
Belém da saudade: a memória da Belém no Início do Século em Cartões-Postais. 2ª ed. aum. rev. Belém:
Secult, 1998, p. 34. A “imagem do mar” banhando a cidade de Belém, decerto, é uma “licença poética” utilizada
por Milton Hatoum, pois conforme a hidrografia relativa a referida região, as águas do mar banham somente as
cidades localizadas no nordeste do Pará (Bragança, Viseu, por exemplo); a cidade de Belém, portanto, é banhada
pelos rios Amazonas, rio Maguari e o rio Guamá. A Baia do Guajará (formada através do encontro da foz dos rios
Guamá e Acará) também banha a cidade de Belém, assim como outras do estado do Pará. Porém, a imagem que
reproduzo acima (Antiga Rampa de Sacramento) pode ser adotada aqui como uma alegoria da representação do
“mar belenense”, na esteira da “licença poética” do escritor amazonense, estudado nesta tese.
719
NUNES, Benedito; HATOUM, Milton, 2006, p. 22.
232
720
Belém da saudade: a memória da Belém no Início do Século em Cartões-Postais. 2ª ed. aum. rev. Belém:
Secult, 1998, p. 148. Ao lado do Cartão-Postal está o seguinte texto: “Antigo Largo da Pólvora, por ter sido ali
instalado, no século XVIII, um depósito de pólvora. Em primeiro plano, à esquerda, O Monumento à República e
, ao fundo, a direita, o Theatro da Paz. Na foto, a praça ainda não havia passado pelo tratamento urbanístico que
seria realizado por Antônio Lemos”.
721
Belém da saudade: a memória da Belém no Início do Século em Cartões-Postais. 2ª ed. aum. rev. Belém:
Secult, 1998 – “Projeto de autoria do engenheiro militar José Tibúrcio de Magalhães, o teatro foi inaugurado em
1878, na foto a fachada original com a frontaria avançada, apoiada em sete colunas, que cobria a terrasse.
Localizado na Rua da Paz, que separa a Praça da República do atual Parque João Coelho, ainda sem a urbanização
que iria ocorrer no início do século.” (p. 182).
233
722
SARGES, 2016, p. 258.
723
SARGES, 2016, p. 253.
724
HATOUM, 2008, p. 81.
725
SARGES; LACERDA, 2013, p. 217.
726
SARGES; LACERDA, 2013, p. 217.
234
Se as pessoas leitoras voltarem novamente o olhar para a imagem produzida pela escrita
criativa de Milton Hatoum, logo perceberão que o escritor amazonense faz menção as
peculiaridades significativas da cultura popular, a qual circula pela cultura considerada erudita
e vice-versa. Reside no referido relato o rastro marcado pela influência europeia no desenho
arquitetônico da cidade paraense, herança de uma bela época, evidentemente. Contudo, Hatoum
indica um certo processo de transculturação, ressignificação de identidades não europeias, ao
longo da história da cultura belenense. Assim, nessa ínfima imagem, porém fecunda, se
inscrevem indícios para reflexões sobre as possibilidades acerca de uma história social da
cultura, no bojo do cotidiano dos “artistas populares” presentes na cidade de Belém do Pará:
727
Belém da saudade: a memória da Belém no Início do Século em Cartões-Postais. 2ª ed. aum. rev. Belém:
Secult, 1998 – “Casa comercial construída no início do século [XX], toda revestida em cantaria de pedra pré-
fabricada, importada da Europa, assim como os demais componentes construídos. Localizada na Rua de Santo
Antônio, esquina da Rua do Largo da Misericórdia (atual Praça Barão de Guajará), a loja foi, durante muitos
anos, ponto de referência da sociedade paraense, sempre com os últimos lançamentos de Paris e das principais
capitais europeias” (p. 226).
235
indícios da arte de viver dos sujeitos os quais representam as classes populares. Esta perspectiva
é propícia para se pensar sobre a trajetórias históricas, essenciais para a composição das
expressões culturais, da cidade durante as décadas finais do século XIX e décadas iniciais do
século XX: práticas e representações muita das vezes subsumidas na historiografia tradicional,
mas que, pelo menos, já constam em determinados estudos, contemporâneos, sob a égide de
uma história nova. Como faz ver, por exemplo, a pesquisadora Maíra Maia, no seu estudo sobre
Dalcídio Jurandir, pois na acepção do referido literato a cidade de Belém comporta os
sentimentos e as lutas das classes populares que se faziam presente à luz de suas mobilizações
sociais, visto que “Dalcídio Jurandir vai ao encontro da Cabanagem no século XIX para reeditar
um novo começo para a decadência do fausto”. 728
Por sinal, na imagem elaborada por Milton Hatoum, a qual estou me reportando, é
possível perceber, como já frisei antes, que as aventuras de Arminto acontecem na ambiência
da festa boêmia, no bojo da Cidade Velha. Assim “Mestre Chico” parece ser uma alegoria usada
para se representar a incidência da “cultura popular” em lugares nobres, pois a Cidade Velha
era um espaço urbano direcionado às elites. O instrumento de “corda e pau” (violão) é outro
indício, pois nos anos de 1890, “ainda pairava a marca da ‘vadiação dos negros’. Batuques de
negros e serestas ao luar consolidaram-se, no século XIX, como ambientes musicais presentes
na paisagem física e sonora de Belém”. 729 O grifo é meu. Me aproprio desse entrecho do
estudo do mencionado historiador, acerca da história da “música popular” na cidade de Belém,
com o intuito de corroborar as imagens elaboras pela escrita criativa de Hatoum à constatação
do referido historiador. Como estou afirmando, ao longo desse capítulo, as intenções de
Hatoum, por meio de seu imaginário da cidade, na esteira da historiografia contemporânea, a
qual conjecturo que ele seja um conhecedor, é vislumbrar as diversas cidades que existem na
Cidade. Nessa medida, a Belém de Hatoum é representada também através da cultura vista de
baixo. Na acepção de que “nenhum passado é anônimo.” 730 Portanto, a cena construída pelo
literato amazonense revela a sua intenção em elucidar aspectos das histórias subsumidas. Nesse
sentido, “Mestre Chico”, representado naquela imagem da cena urbana, elaborada por Hatoum
é, de fato, uma chave de leitura para verificar a frequência da boêmia seresteira nas ruas de
Belém. O Código de Posturas de 1880, da cidade de Belém, no seu artigo 107, por exemplo,
728
MAIA, Maíra. “A cidade de Belém do Grão-Pará de Dalcídio Jurandir”. In.: SARGES, Maria de Nazaré;
LACERDA, Franciane Gama Lacerda (orgs.). Belém do Pará, história, cultura e cidade: para além dos 400 anos.
2. ed. rev. e ampl. – Belém: Açaí, 2016, p. 247.
729
COSTA, Antônio Mauricio Dias da. “Os sentidos de “música popular” na Belém da primeira metade do século
XX”. In.: SARGES, Maria de Nazaré; LACERDA, Franciane Gama Lacerda (orgs.). Belém do Pará, história,
cultura e cidade: para além dos 400 anos. 2. ed. rev. e ampl. – Belém: Açaí, 2016, p.75.
730
HATOUM, Milton. Dois irmãos. – São Paulo : Companhia das Letras, 2006, p. 125
236
Desta forma, é bem provável que Hatoum acessou os estudos de Vicente Salles para
ressignificar, por meio de sua escrita criativa, a Cidade Velha, belenense, representada por seu
imaginário. Pois, como é sabido, Salles, na sua obra deixou registros significativos sobre
manifestações, peculiaridades da “cultura popular”, a exemplo, dessas evidências as quais me
731
COSTA, 2006, p.75-76, essencialmente as notas 6 e 8 de pé da referida página.
732
COSTA, 2006, p. 77.
733
COSTA, 2006.
734
SARGES, 2016, p. 262.
735
COSTA, 2006, p.78, essencialmente a nota 23 de pé da referida página.
237
reportei, por meio do entrecho retirado do estudo do historiador Antônio Mauricio Dias da
Costa.
Nessa esteira, também conjecturo que o referido literato amazonense, para representar a
cultura popular, fez investigação nos relatos de viagens daqueles estrangeiros que por Belém,
passaram e anotaram suas impressões sobre as manifestações culturais. Por isso, considerando
a metodologia que adotei aqui, de certa forma entreteci as narrativas literária e fotográfica para
elucidar a Cidade Velha, inclusa em Órfãos do Eldorado. Diante disso, para os meus
argumentos recorri aos viajantes que passaram por Belém no referido período histórico (século
XIX e XX). Com eles, estabeleci um diálogo entre as representações, impressões, deixadas
pelos estrangeiros e o imaginário do escritor amazonense Milton Hatoum. Ao lado disso, fiz
menções a alguns estudos, desenvolvidos por pesquisadores contemporâneos, acerca da
trajetória histórica da cidade, como as pessoas leitoras já perceberam nas linhas anteriores. Em
suma, o sentido da história inserto através da literatura de ficção de Milton Hatoum, ao
comportar sua imagem do urbano através da novela Órfãos do Eldorado, parece corroborar as
reflexões do saber histórico recente sobre a história da cidade de Belém, pois tanto em Hatoum
como na referida historiografia “a realidade das camadas pobres da cidade [são desveladas]
mesmo que escondidas sob a fina nuvem do espocar dos foguetes [da “Bela Época”]”. 736
736
SARGES, 2016, p. 264.
238
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chega um momento que é necessário parar o percurso narrativo. Mas, é, decerto, uma
detença repentina. Pois, oportunamente, logo, a escrita será retomada, à luz do resultado de
novas pesquisas.
Não sei se atingi um dos meus objetivos, aqui: escrever uma prosa sem osso, sem
espinhas, leve. As pessoas que se debruçarem nela, demandadas pelo exercício acadêmico ou,
quem sabe, pelo desejo de lê-la a partir de um ato de prazer, serão termômetros, mediadores
desta sugestão: a “prosa leve”.
Na convicção registrada nas palavras de Otávio Paz: “ao ler ouvimos e, ao ouvir,
vemos” 738, aqui, procurei dialogar com a ficção, a memória e a história, por meio dos ruídos da
oralidade. Chaves de leitura que abriram fendas para compreensão de parte da obra de Milton
Hatoum, essencialmente aquela relacionada à produção da novela Órfãos do Eldorado, a qual
busquei problematizar, ao longo desta tese. A literatura, portanto, foi usada como fonte de
história. Pois corroboro a acepção de que:
O romancista não demonstra nem conta: recria um mundo. Embora seu ofício seja
relatar um acontecimento – e nesse sentido se parece com o ofício do historiador -, o
que interessa não é contar o que houve, mas reviver um instante ou uma série de
instantes, recriar um mundo. Por isso ele recorre aos poderes rítmicos da linguagem e
às virtudes transmutativas da imagem. Toda sua obra é uma imagem. Assim, por um
lado, imagina, poetiza; por outro, descreve lugares, fatos e almas. Faz fronteira com a
poesia e com a história, com a imagem e a geografia, o mito e a psicologia. Ritmo e
exame de consciência, crítica e imagem, o romance é ambíguo. Sua impureza
essencial nasce de sua constante oscilação entre a prosa e a poesia, o conceito e o mito.
Sua ambiguidade e impureza decorrem do fato de ser o gênero épico de uma sociedade
baseada na análise e na razão, isto é, na prosa. 739
737
GINZBURG, Carlo. “ A áspera verdade – Um desafio de Stendhal aos historiadores”. In. _______________.
O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício; tradução de Rosa Freire d’Aguiar e Eduardo Brandão – São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p.188. Verificar também: JI, Renan. “O ator Julien Sorel”. Aletria. Belo Horizonte.
v. 28, n 1, p.163-180, 2018. Aí analisa-se a personagem e seus momentos de tensão com o panorama histórico
inscrito no romance O vermelho e o Negro de Stendhal.
738
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wcht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.325.
739
PAZ, 2012, p. 231.
239
Das narrações de ficção é possível extrair testemunhos mais fugidios, porém mais
preciosos, justamente porque se trata de narração de ficção: [...] “do mesmo modo
podemos analisar os usos e costumes do passado com base nas fantasias
representadas em seus textos”. 740
740
GUINZBURG, Carlo. “Paris, 1647: um diálogo sobre ficção e história”. In.: __________ O fio e os rastros:
verdade, falso, fictício. São Paulo : Companhia das Letras, 2007.2007, p. 84. (o grifo da citação é do autor).
741
LORIGA, Sabina. O pequeno x: da biografia à história; tradução Fernando Scheid. – Belo Horizonte :
Autêntica Editora, 2011, p. 101.
240
os indícios que suscitem suas proposições. 742 Pois, o historiador lida com “ruínas, com o
fragmentário e o relativo, cuja forma originária podemos apenas imaginar. [...]. A imaginação
aproxima o historiador do artista”. 743
Busquei uma investigação à luz da interdisciplinaridade, reivindicada desde a primeira
geração do Annales, centrada no diálogo entre Historiografia e Literatura, ancorada na
percepção de alguns clássicos. Nessa medida, para Liev Tolstói, no seu épico Guerra e Paz,
obra que, segundo Ginzburg perpetrou melhor compreensão dos jogos de escala: “a
reconstrução dos incontáveis relatos que ligavam o resfriado de Napoleão antes da batalha de
Borodin, a disposição das tropas, a vida de todos os participantes da batalha, inclusive o mais
humilde soldado”. 744 Já o literato francês Marcel Proust, através do clássico Em busca do tempo
perdido contribuiu significativamente. Parte de sua obra me fez compreender o valor da
fotografia à literatura como “metáfora da memória”. Hatoum, assim, utiliza a fotografia na sua
escrita criativa. Proust também é fecundo para o saber histórico. Pois, formula copiosa reflexão
acerca da relação presente/passado. Para Proust, se é impossível voltar fisicamente ao tempo
pretérito, é crível fazer uma “viagem de volta” através dos sentidos. Estes são vetores das
lembranças mais profusas: “(...), não lhes desperta apenas a imagem em nossa memória, mas
certifica-lhes a volta, a presença efetiva, ambiente, imediatamente acessível”.745
Ao ler Proust, inclusive, Walter Benjamin, minha referência teórica essencial nesta tese,
formulou um novo conceito de imagem, suscitando reflexões sobre a acepção de memória. Isso
lhe fez buscar perspectivas para uma verdadeira imagem do passado a partir da imagem
mnêmica. Desenhou essa teoria em um texto que deixou esboçado: Sobre o conceito de história.
746
Muito útil para o desenvolvimento desta tese. Nas dobraduras das narrativas de ficção e nos
depoimentos que pude ler, ouvir, ver percebi que o literato amazonense busca um alento nas
ideias de Benjamin. Nesse sentido, tanto as Teses sobre o conceito de história como o ensaio
O Narrador, ecoam no poema, nos contos, crônicas, romances e na novela de Milton Hatoum.
Assim, como sua postura política.
742
GINZBURG, Carlo. “Provas e possibilidades à margem de ‘Il ritorno de Martin Guerre’, de Natalie Zemon
Davis”. In.: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios;
tradução de Antônio Narino. – Lisboa : DIFEL, 1989, p. 183.
743
LORIGA, 2011, p. p. 174 e 175.
744
GINZBURG, Carlo. “Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito” In.: __________ O fio e os rastros:
verdade, falso, fictício. São Paulo : Compania das Letras, 2007, p. 266.
745
PROUST, Marcel. No caminho de Swann; tradução: Mário Quintana. – 16ª ed. – São Paulo : Globo, 1995.
(Em busca do tempo perdido; 1), p. 85.
746
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora
34, 2014, p. 164.
241
Com Walter Benjamim, Milton Hatoum se apropria da memória. Penetra, assim, nos
sedimentos mais profundos, para abrir o passado e encontrar aí uma determinada realidade
fracassada e, por isso, dissimulada nos escombros do tempo. Revela, assim, a história mais
oculta. E, com a pujança de sua escrita criativa, faz perceber que “[...], há um projeto de
esquecimento embutido na história, que, pautado na apatia, configura-se como injustiça”. 747
Em suma, com Milton Hatoum, Eldorado é uma alegoria. O escritor amazonense, cata
determinados indícios, inscritos na memória e no esquecimento, localizados nas brumas, curvas
do Tempo para, por meio de sua literatura de ficção, contar a história das ruínas, inscritas na
orfandade deixada pelo referido mito viajante.
Na esteira dessa perspectiva teórica e metodológica, uma vez mais me vem as palavras
de Otávio Paz, quando se reporta ao poema, sua poética, relacionada à história, sua narrativa:
O que caracteriza o poema é sua necessária dependência da palavra, tanto quanto sua
luta para transcendê-la. Isso permite uma indagação sobre a sua natureza como algo
único e irredutível e, simultaneamente, considerá-lo uma expressão social inseparável
de outras manifestações históricas. O poema, ser de palavras, vai além das palavras, e
a história não esgota o sentido do poema; porém o poema não teria sentido – nem
sequer existência – sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual
alimenta. 748
Nesta perspectiva procurei perceber a obra de Milton Hatoum, ao conceber sua narrativa
como uma epopeia amazônica moderna: Obra que vai além das palavras. Porém, fruto e produto
de uma conjuntura histórica, a qual traduz um determinado tempo histórico. Narrativa que
suscita nuances da outricidade subsumida nas sombras do Tempo.
747
BORGES, Thiago Roney Lira. Bom dia para os defuntos como mônada antropofágica: mítica, realismo
maravilhoso e histórico na obra de Manuel Scorza. – Manaus : 2015, p. 224. [Dissertação de Mestrado/ Programa
de Pós-Graduacão em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas].
748
PAZ, 2012, p. 191.
243
REFERÊNCIAS
1. Fontes:
REIS, Arthur César Ferreira. Como Governei o Amazonas – Relatório dos dois anos e seis
meses de meu mandato como governador do Estado do Amazonas, no período de 27 de junho
de 1964 a 31 de janeiro de 19670. Manaus – Amazonas. Secretaria de Impressa e Divulgação.
Janeiro de 1967. [Documento localizado na Biblioteca Arthur Cezar Ferreira Reis, sob
administração da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas].
“Discurso do Sr. Presidente Getúlio Vargas, no banquete que lhe ofereceram a Interventoria
Federal e as classes conservadoras a 10 de Outubro, na sede do Ideal Clube”. In.: Propaganda
Amazonense. Visita do Presidente Vargas e as esperanças de ressurgimento do Amazonas.
Imprensa Pública. Manaus, 1940. [Documento localizado nos acervos do Centro Cultural Povos
da Amazônia CCPA, sob administração da Secretaria de Cultura do Governo do Estado do
Amazonas].
1.3. Protocolo:
AGASSIZ, Louis e Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil: 1865-1866; tradução de João Etienne
Filho, apresentação de Mario Guimarães Ferri. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da
Universidade de São Paulo, 1976.
MARCOY, Paul Viagem pelo Rio Amazonas. Tradução, introdução e notas de Antônio Porro.
1ª edição em português. Manaus: Edições do Governo do Estado do Amazonas, Secretaria de
Estado da Cultura, Turismo e Desporto e Editora da Universidade do Amazonas, 2001.
NERY, Le Baron de Santa-Anna. Le Pays des Amazones: L’El – Dorado Les Terres a
Caoutchouc. Paris – Libraire Guillaumin et c. 14, Rue Richelieu, 14, 1899, p. 29.
WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelos rios Amazonas e Negro; tradução Eugênio Amado;
apresentação Mário Guimarães Ferri. – Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1979.
ROCHA, Yapuanna Souza da; FERREIRA, Arcângelo da Silva. Fontes para outras histórias
de Parintins (1935-1945). Relatório de Pesquisa de Iniciação Científica/Projeto de Apoio
Acadêmico (PAIC)/ Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas (FAPEAM), desenvolvido
no período de 2017-2018, no Centro de Estudos Superiores de Parintins (CESP) da
Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
2. Jornais 749:
Jornal O Estado de São Paulo, sábado, 19 de outubro de 1991, no caderno de Cultura. Número
584. Ano VIII – Página 3.
749
Nesta pesquisas, com exceção daquelas que o endereço eletrônico é indicado, todas as fontes impressas foram
acessadas da BNDigital/Biblioteca Nacional: https://www.bn.gov.br/explore/acervos/bndigital
245
3. Revistas Científicas:
4. Álbuns
Álbum Municipal de Manaós. Elaborado na Administração do Prefeito Araújo Lima sendo
Presidente do Estado o Exmo. Sr. Dr. Ephigênio de Salles, Amazonas-Brasil, 1929.
The City of Manaós and the Country of Robber tree: Souvenir of the Columbian Exposition,
Chicago, 1893. [A Cidade de Manaós e o País dos Ladrões: Lembrança da Exposição
Colombiana, Chicago, 1893.].
5. Cartões Postais:
6. Vídeos documentários:
SILVA, Adriane dos Prazeres; NEVES, Jdheef ; SÁ, Fernando de; NETO. Lázaro, “A História
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246
7. Documentos Iconográficas:
FREIRE, José Joaquim. [Crescentia cujete]. [S. l: s.n.], [17--]. 1 desenho, aquarela, col,
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KASSAR, Álvaro. “A pátria sem fronteiras”. Jornal da Unicamp, Campinas, junho de 2001 -
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sobre o mais recente livro do escritor amazonense, o romance A noite da Espera. Disponível
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REBINSKI, Luiz. Fim da espera: Milton Hatoum fala sobre o processo criativo de “A noite da
espera”, que marca seu retorno ao romance após nove anos. Disponível em:
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SERRÂO, Cláudia Maria. Milton Hatoum fala sobre o processo de constituição do livro Dois
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hatoum-fala-sobre-o-processo-de-constituição-do-livro-dois-irmãos-e-suas-relações-editoriais.
SILVA; NEVES; SÁ; NETO. 1999, In.: Laboratório Digital de História da Universidade
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