A Felicidade Na Ética A Nicômacos

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA - UESB

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


COLEGIADO DO CURSO DE FILOSOFIA - CCF
LICENCIATURA EM FILOSOFIA

PROFESSOR CURSO DISCIPLINA SEMESTRE ADICIONAIS


Jasson Martins Filosofia História da filosofia antiga 2024.1 Complemento

A FELICIDADE NA ÉTICA A NICÔMACO


1. INTRODUÇÃO

Aristóteles (384-322 AEC) é um filósofo da antiguidade grega, discípulo de Platão


durante quase 20 anos. Após deixar a Academia ele se distancia da filosofia platônica e a
critica em três pontos essenciais: a teoria das ideias, o método dialético e o regime político
ideal.
Para Aristóteles, a felicidade é a finalidade última da filosofia. A sua noção de
felicidade é o centro de sua filosofia e teve uma grande influência no curso da história das
ideias. Esta concepção de felicidade permite analisar aquilo que é possível exigir da política
e qual é seu papel na procura da felicidade dos cidadãos. A felicidade é uma noção estudada
especialmente nos livros I e X de sua obra Ética a Nicômaco, uma obra que continua como
referência quando o assunto é a vida boa e feliz.
A ética é considerada por Aristóteles como o coroamento da filosofia, para a qual o
conhecimento do mundo sensível é apenas um meio em vista deste fim último. Ele procura
responder, com esta obra, questões fundamentais como estas: qual é o sentido da vida
humana? Em que medida viver bem equivale a ser feliz? Ele não tem dúvida: a filosofia é a
atividade que permite a melhor das vidas.
No que segue abaixo, de modo muito breve, pretendo caracterizar a noção de
felicidade para Aristóteles, mostrando de que modo ele legitima o seu ponto de vista,
através de um estudo de seu método. Após essa exposição, pretendo destacar as noções-
chaves que permitem a compreensão da felicidade em consonância com a atividade
filosófica.

2. A FELICIDADE COMO SOBERANO BEM

No livro I da Ética a Nicômaco, Aristóteles expões, inicialmente, as opiniões de seus


predecessores sobre a felicidade. Ele utiliza o método dialético, ponto de partida de sua
filosofia quando o tema exige uma investigação científica. Ele introduz seu objetivo com esta
frase: “Toda a perícia e todo o processo de investigação, do mesmo modo todo o
procedimento prático e toda decisão, parecem lançar-se para um certo bem” (Aristóteles,
2017, 1094a1).
O que ele pretende? Ele pressupõe que há uma finalidade intrínseca em todas as
atividades humanas. Se não há uma finalidade podemos querer sem jamais querer nada, o
que seria um absurdo, pois o querer é sempre quer algo. Segundo o autor, há duas espécies

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de fins: os fins que queremos em vista de outras coisas e os fins que queremos por eles
mesmos. É preciso pensar o bem como aquilo que, para cada atividade, é um fim. Há bens
secundários, intermediários, que ajudam o indivíduo a procurar um bem superior. Estes
bens intermediários são instrumentos ou etapas, que precisamos, por vezes, percorrer para
atingir o bem absoluto.
Se é assim, deve, portanto, existir um fim que queremos por si mesmo e que englobe
todos os outros fins que procuramos atingir. Aristóteles apresenta, assim, uma hierarquia:
de etapa em etapa, cada um progride rumo a um fim, que torna-se, em seguida, um meio
para um fim superior, este fim último (em si) pode ser considerado o bem. Aristóteles parte,
portanto, de uma premissa a priori segundo a qual, se existe um único bem em vista do qual
procuramos todos os outros bens e que o procurarmos por ele mesmo e não em vista de
outra coisa, este é nomeado o “bem supremo”.
O método dialético é o acordo entre felicidade e soberano bem. A partir desta
premissa, Aristóteles fará uma constatação empírica: um tal bem existe e este bem é a
felicidade. De passagem, ele critica igualmente a definição do bem segundo Platão: se o bem
fosse algo transcendente, não poderíamos jamais realizá-lo. O que interessa a Aristóteles é
um bem humano, quer dizer, alguma coisa que podemos atingir. Para atingir a felicidade,
não se trata, portanto, mais de abandonar a condição humana para chegar ao mundo
inteligível (a exemplo de Platão), mas é preciso atingi-lo enquanto ser humano neste mundo
e nesta vida.
A primeira constatação de Aristóteles é que há um acordo unânime sobre o fato que
este fim é a felicidade. Esta observação, à medida que surge da opinião comum, permite e
exige o método dialético. A felicidade, com efeito, é desejável em si e não existe outro fim
superior. Ela possui, então, um caráter definitivo, perfeita e completa, permitindo, assim,
justificar todas as outras ações. Dito de outro modo, a felicidade é autônoma, ele é suficiente
a ela mesma. Esse ponto é importante visto que ele permite a Aristóteles tornar
independente o soberano bem, logo, a vida do sábio, uma vez que ser feliz é sinônimo de
bastar a si mesmo. Assim, através da identificação da felicidade com o soberano bem, este é
caracterizado como independente e autossuficiente. Por isso a crítica dirigida por
Aristóteles ao vulgo, em defesa do sábio.
O método dialético permitiu, portanto, identificar a felicidade com o soberano bem,
mas ele vai também esclarecer o problema que diz respeito a natureza da felicidade, uma
vez que sobre isso as opiniões são divergentes. Com efeito, o que Aristóteles comenta, em
seguida, é que sobre a natureza da felicidade, o sábio e o vulgo não estão de acordo. Isso se
deve ao fato de que a felicidade é sempre desejável à medida que visa suprimir uma
carência, que difere de indivíduo para indivíduo e também para um indivíduo de um tempo
e outro. Isso ocorre, segundo Aristóteles,

Tanto a maioria como os mais sofisticados dizem ser a felicidade, porque supõe que ser
feliz é o mesmo que viver bem e passar bem. Contudo, acerca do que possa ser a
felicidade estão em desacordo e a maioria não compreende o seu sentido do mesmo
modo que o compreendem os sábios [...]. Para quem está doente é a saúde, para quem é
pobre, a riqueza (Aristóteles, 2017, 1095a 20ss).

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A saúde ou a doença não são um bem supremo, pois, uma vez satisfeita esta carência,
o indivíduo deslocaria o seu desejo rumo a um outro fim, que tornar-se, por sua vez, a
encarnação da felicidade. É, portanto, através do que não possui que senso comum (vulgo)
costuma imaginar a felicidade e essa representação lhe é necessária: ao centrar a sua
vontade sobre um objetivo específico e mais “concreto”, ele se sente satisfeito, se iludindo
sobre a felicidade ao alcance da mão.
Segundo Aristóteles, essas diferenças são frutos dos modos de vida diferentes. Com
efeito, a felicidade possui uma estreita relação com o gênero de vida que cada um vive.
Aristóteles distingue três tipos de vida, logo, três tipos de bens, cada um deles favorece uma
inclinação rumo a uma maneira particular de entender a felicidade: a vida de fruição dos
prazeres materiais, a vida política e a vida intelectual.

... a maioria dos homens e os mais vulgares de todos supõe que o bem e a felicidade são o
prazer; é por esse motivo que escolhem de bom grado uma vida dedicada à sua fruição.
Há, então, três formas principais de viver a vida: aquela que foi agora mencionada; em
segundo lugar, a que é dedicada à ação política e, em terceiro lugar, a que é dedicada à
atividade contemplativa (Aristóteles, 2017, 1095b 16-20).

De início, a maioria das pessoas acha que a felicidade é sinônimo de prazer. A


satisfação dos sentidos em vista de um fim em si que estas pessoas se esforçam para atingir,
não conhecem os valores mais altos. Todavia, pensar nos gozos materiais como o soberano
bem para o ser humano é, segundo o autor, incompleto e mesmo falso, visto que tais
fruições não representam um fim com potencial de se transformar em meio para um fim
superior. Importante reter, nesse contexto, em oposição ao que afirmará as principais
religiões, que as posses materiais não são condenadas. Aristóteles reconhece, efetivamente,
que a felicidade é muito difícil de adquirir para aqueles que carecem de alguns bens
essenciais, tais como a riqueza, o sucesso político, uma família, a beleza, etc. É por isso que
Aristóteles não condena a riqueza, uma vez que ela pode facilitar o acesso à felicidade.
Em segundo lugar, os homens que se dedicam à ação política costumam gozar de
felicidade na glória de suas conquistas. A honra é, para aqueles que conduzem uma vida
ativa na cidade, uma recompensa sonhada por causa de suas ações e fatos dignos de elogios.
Chegada a esta concepção de felicidade, Aristóteles observa que as honras estão de acordo –
o que vai ao encontro da ideia que é uma aquisição pessoal – e depende apenas da pessoa
que a possui. Assim, esta glória tão desejada se parece a uma prova das capacidades de
alguém, dada à comunidade para que ela lhe reconheça o mérito; é um percurso orientado
rumo ao exterior para confirmar as virtudes atualizando-as.
Em terceiro lugar, para aqueles que levam uma vida contemplativa, dedicada à
procura da verdade e da ciência, a felicidade reside no “conhecimento dos princípios”. Esse
modo de vida, que é aquele dos sábios será desenvolvido mais tarde na argumentação (no
livro X).
Elemento comum às três espécies de filosofias descritas pelo autor é o fato de que
aqueles que o provaram o transforma em um bem em si. Resta saber qual dentre estes
modos de felicidade podem ser, de fato, considerado um bem em si ou soberano bem.

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3. A NATUREZA DA FELICIDADE

É possível fazer uma hierarquização dos bens? O pensamento deve fazer uma
hierarquização dos bens. Para resolver o problema sobre a natureza da felicidade,
Aristóteles examinará se há uma hierarquia dos bens em vista da felicidade. Sabemos, de
início, que existe bens que tem por finalidade outra coisa que não eles mesmos, por
exemplo, a riqueza. Esse gênero de bens é o mais baixo. Existe também os bens que são um
fim em si mesmos. Encontramos aqui três modos de vida citados acima: vida material, vida
política e vida contemplativa. Nestes três modos de vida, nós encontramos fins que são fins
em si mesmos. Com efeito, o prazer, as honras e a verdade são bens que nós queremos por
aquilo que são e não em vista de outras coisas. É esta semelhança que explica nosso possível
erro quanto à natureza da felicidade.
Aristóteles, a partir desse ponto, mostrará em que a vida contemplativa é superior
aos outros dois modos de vida possíveis, que são aqueles do vulgo e do homem político.
Para a vulgo, a felicidade se situa no prazer. Isso coloca, então, o problema quanto à
coerência com a definição da felicidade visto que o prazer depende de alguma coisa de
exterior que não é necessariamente um bem em si. Do mesmo modo, as honras não
dependem de nós, nós as recebemos mas nós não estamos no controle. A vida
contemplativa, que é a vida dos sábios, se distingue dos outros dois modos anteriores à
medida que ela possui um caráter permanente, contínuo e independe.
Para consolidar a ideia precedente sobre a superioridade do pensamento enquanto
atividade, Aristóteles descreve quais são as características e em que o pensamento é
atividade por excelência da vida humana, à diferença dos outros bens nomeados acima
(prazer, honra e virtude). Inicialmente, esta atividade é a mais alta e a mais agradável, à
medida que ela representa o melhor da sabedoria. É igualmente a mais contínua uma vez
que somos capazes de pensar continuamente mas não agir continuamente. É, além disso, a
atividade mais independente visto que ela tem seu prazer próprio e não em outros fins fora
dela mesma, o que o torna inutilizável para os humanos. Aquele que medita, com efeito, não
tem necessidade de nada, ao contrário, as coisas materiais são obstáculos ao livre curso de
seu pensamento (Cf. EN I, 1177a20).
A atividade intelectual tem, além do mais, um caráter divino (Cf. EN I, 1178b10). A
prova é que todas as ações humanas (exceto a meditação) parecem ser indignas dos deuses.
Aristóteles conclui que a atividade dos deuses deve ser de natureza meditativa. O autor, no
entanto, especifica que isso não significa que devemos nos limitar a pensar enquanto seres
humanos. É preciso buscar, portanto, se aproximar do divino uma vez que se comportar
como imortal é a ação mais elevada dentre todas as ações. A felicidade atingida se situa,
assim, na atividade meditativa e na perfeição do ato. É a razão pela qual o homem deve agir
de maneira racional, mas igualmente conforme à virtude.
Qual a função própria do homem? Para demonstrar a superioridade desta vida,
enquanto procura da verdade, Aristóteles se interroga sobre o que constitui a essência
própria do ser humano (Cf. EN I, 1097b23). A esta pergunta ele responderá que é a
atividade da alma enquanto ela é conforme a razão. Para legitimar sua resposta, Aristóteles
expõe seu raciocínio. De início, para conhecer o fim supremo de um ser é preciso conhecer

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sua função específica (Cf. EN I, 1097b25). Por exemplo, o fim último do olho é ver bem. A
função própria de um ser é, portanto, o fato de realizar, excelentemente, sua natureza. É
preciso, portanto, encontrar aquilo que no homem constitui a sua especificidade. É a
realização desta função que vai permitir atingir a felicidade.
A partir daí, nós podemos concluir que a felicidade não pode ser o prazer, pois as
sensações são afetos corporais partilhados com todos os animais. Para Aristóteles, o que
distingue o ser humano dos outros seres vivos é o que os tornam capazes de obter a
felicidade. O autor da Ética a Nicômaco afirma que a obtenção ocorre através de “... uma
certa forma de vida ativa inerente na dimensão da alma que no Humano é capacitante de
razão” (Aristóteles, 2017, I, 1098a2ss), ou seja, a vida ativa, aquela própria do ser dotado de
razão, distingue-se dos demais. A diferença específica entre os homens e os outros seres
vivos provém, portanto, da alma racional do homem, qualidade que os demais animais não
possuem. O fim supremo do ser humano é, portanto, a atividade racional. Sua função
própria é pensar.
No entanto, para atingir a felicidade não é suficiente pensar. Se fosse suficiente
pensar a felicidade não seria apenas um estado mas se identificaria com a sabedoria. De
fato, a felicidade não é apenas um estado, mas a atualização deste estado, a realização da
função própria do ser humano. Não basta apenas possuir a razão, presente em cada ser
humano, mas cada um deve agir segundo ela. Aristóteles afirma, efetivamente, que não se
trata de uma simples disposição, um simples estado, visto que isso não daria ocasião para
realizar nenhum bem. A felicidade está, em cada ser pensante, em potência. O autor fornece
como exemplo os jogos Olímpicos: “... não são coroados os mais admiráveis nem os mais
fortes, mas os que disputam a vitória” (Aristóteles, 2017, I, 1099a5). O mesmo se aplica à
felicidade: ela é obtida por aqueles que agem na vida conforme a sua função própria.

4. A FUNÇÃO DA VIRTUDE NO ACESSO À FELICIDADE

Para saber qual o papel da virtude no acesso à felicidade, é preciso, de início,


constatar que esta é um ato. A virtude é uma disposição natural no homem que, por sua vez,
precisa exercê-la para possui-la. A virtude não é nem um puro conhecimento, nem uma pura
ação isolada, mas um hábito, uma disposição estável e durável da vontade, adquirida
através da prática do agir correto (reflexão apresentada no livro II da Ética a Nicômaco). É,
portanto, apenas ao exercer a virtude, através das ações, que o ser humano pode tornar-se
virtuoso. Ela não é, com efeito, natural como ação e a prova é a constatação da possível
existência, no homem, de seu oposto, o vício (Cf. EN I, 1103a25-30). Esta é a razão pela qual
a felicidade não é uma simples sabedoria, mas se revela através da ação virtuosa.
A virtude é definida na Ética a Nicômaco como sendo o justo meio determinado pelo
ser humano prudente: é a famosa doutrina da mesotés, ou seja, da justa medida, do justo
meio (descrita no livro III). Todavia, não é possível conceber a virtude como meio, mas
como um “cume” entre dois extremos. A palavra grega correspondente é “areté”, que
significa a excelência. A virtude seria a excelência de uma qualidade própria, quer dizer, a
excelência específica de cada ser. O contrário seria, então, a mediocridade.

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A virtude, que conduz à felicidade através do prazer e do bem, não é nem uma paixão,
nem um poder: ela é, essencialmente, um hábito. No entanto, para ser de fato completa, ela
deve ser voluntária, seguir a escolha ou preferência que resulta da deliberação. A intenção
reta concede à ação o seu valor moral. A virtude é, portanto, uma ciência, mas ela só pode
ocorrer na ação.
Por que a virtude é essencial à felicidade? Aristóteles afirma no livro I da EN que a
virtude é essencial para a felicidade enquanto uma tarefa que pertence a um indivíduo e à
seu homólogo virtuoso (Cf. EN I,1098a10). Ele fornece como exemplo o citarista em
comparação com o bom citarista. O ofício do citarista é tocar a cítara mas aquele do bom
citarista é tocar bem o referido instrumento. A superioridade atribuída pela virtude a uma
espécie se acrescenta, portanto, ao seu ofício. Mas porque, então, Aristóteles faz da virtude
uma condição necessária para a felicidade? Parece, com efeito, que o pensamento atualizado
(= pensamento em ato) poderia ser suficiente para que o homem realize sua função própria
e seja feliz. Segundo o autor, esta atividade e apenas ela não permite atingir o bem. É
preciso, para que suas obras sejam belas e perfeitas, que elas traduzam sua virtude.
Em outros termos, a atividade racional determina o humano, mas não o bem ou a
virtude. Está fora de questão perguntar à razão pura aquilo que é o bem. Por conseguinte, o
ofício do homem é viver de maneira conforme à sua razão e se ele realiza bem o seu dever,
então, a obra será bela e ele atingirá a felicidade. A definição do bem comporta, portanto,
um gênero (que é a atividade racional) e uma diferença específica (o fato que a atividade
exercida traduza a virtude). O gênero diz em que medida o bem é coisa propriamente
humana e a diferencia, daquilo em que esta coisa humana é especificamente um bem. A
sabedoria, por sua vez, é a tradução da felicidade, pois ela é a atividade meditativa
acompanhada da virtude. O sábio, em termos gerais, é aquele que vive uma vida razoável,
não aquele que apenas reflete.
A relação entre virtude e felicidade consiste, portanto, no fato de que há uma
identificação entre bem preferível em si e a essência do homem. A virtude é a excelência do
homem, uma vez que ela está intrinsecamente ligada à felicidade e que é ela também
especificamente humana enquanto idêntica à atividade da alma. A virtude própria do ser
humano é pensar corretamente: apenas um ser intelectualmente ativo e virtuoso pode
atingir a felicidade.

5. A RELAÇÃO ENTRE FELICIDADE E PRAZER

O prazer tem também um papel importante na constituição da felicidade. O prazer


não é somente idêntico com aquilo que o vulgo procura, mas como alguma coisa de inerente
à atividade que permite ao homem realizar sua humanidade. O homem deve experimentar o
prazer através de sua ação. O homem virtuoso, com efeito, não é constrangido a agir para
sentir prazer mas sente um certo tipo de prazer ao agir bem. No homem virtuoso, a parte
racional bem como a parte irracional da alma tende a querer fazer o bem. É importante
precisar que, embora para os judeus e para os cristãos o prazer é algo suspeito, a concepção
grega é, em geral, favorável ao prazer. Ter isso em mente é importante uma vez que implica
que os ditos prazeres da carne não são especificamente concebidos como “pecados”.

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A ética de Aristóteles concede, portanto, uma dignidade ao prazer, embora ela tome,
todavia, uma distância dos hedonistas puros, notadamente Eudoxo, que “... pensava que o
prazer era o bem” (Aristóteles, 2017, X, 1172b9/10). O prazer e a felicidade possuem
características comuns, mas a felicidade não se reduz ao prazer; ela pode, eventualmente,
integrar certos prazeres a título de componente importante, mas não decisivo.
Na primeira parte do livro X da Ética a Nicômaco, Aristóteles fará uma análise interna
do que é o prazer: o prazer carrega em si mesmo a sua própria plenitude. Ele não é
resultado de uma carência, à diferença da Ideia defendida por Platão. Para Aristóteles o
prazer é a expressão da perfeição do ato. Desde que uma atividade é plenamente realizada,
esta é acompanhada de prazer. O prazer é, por isso, o coroamento da atividade perfeita,
expresso através de um sentimento de completude. Desta maneira, o prazer e a atividade se
reforçam mutuamente: enquanto o aperfeiçoamento da atividade produz o prazer, o prazer
reforça o aperfeiçoamento da atividade.
É nesse contexto que Aristóteles passa em revista os diferentes sentidos do qual é
dotado o ser humano. Ao descrever os prazeres especificamente humanos continua
descrevendo e diferenciando os diversos tipos humanos. A partir deste exame, ele passa a
interrogar os prazeres dignos de serem integrados à felicidade, sabendo que nem todos os
tipos de prazeres possuem a mesma positividade. Não devemos perder de vista, nesse
exame, aquela definição de felicidade: a felicidade é o bem soberano que não tem
necessidade de nada para ser completa, que é inteiramente suficiente a si mesma e que é
adquirida através do exercício que melhor expressa a essência do ser humano. Dito isso, o
prazer é essencialmente a contemplação, a theoria.
É importante levar em conta este outro aspecto: o conhecimento puro não é uma
atividade intelectual fria e abstrata. Ao contrário, é uma atividade agradável por ela mesma
e que constitui uma fruição. Se raciocinarmos aristotelicamente chegaremos a seguinte
conclusão: o mais humano dos prazeres está ligado à atividade da alma, através de sua
forma racional. É o vulgo que “imagina”, partindo de uma concepção vulgar de felicidade,
que o prazer é precisamente a ausência de razão.
O que é o prazer? O prazer é o tema da discussão do livro VII (livro consagrado à
akrasia, que podemos traduzir como ausência de domínio de si) e do livro X. Parece
essencial realizar um exame sobre o prazer, de início, porque ele comporta, mesmo no nível
do senso comum, características que são próprias do soberano bem e é preciso, por isso,
evitar toda ambiguidade que poderia levar a considerar o prazer como a finalidade do
gênero humano. Com efeito, no final do livro I, Aristóteles indicou as diferentes
características da felicidade, deixando claro que o prazer possui estas mesmas
características, quer dizer, em um primeiro momento, o prazer é algum bem preferível.
Isso ocorre porque o prazer, em boa medida, possui alguma coisa de natural. À
medida que ele faz parte da constituição do ser humano ele poderia, portanto, corresponder
à sua função própria, ou seja, ser o soberano bem. Uma outra característica e que é ainda
mais danosa quanto à essência da definição do soberano bem, é a o fato que o prazer é um
fim último: o ser humano procura o prazer sem visar outra coisa. Em si mesmo, o prazer é
algo preferível, natural e um fim em si. Estas características são também aquelas do

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soberano bem. A questão que é preciso responder, então, é a seguinte: se ele não é o
soberano bem, como ele está ligado aquele?
Responder essa pergunta implica relacionar o prazer e a felicidade. Em termo
interrogativo: qual a importância do prazer no acesso à felicidade? A atividade própria do
homem e que é, então, seu fim último, não é o prazer embora este seja inerente a esta
atividade (Cf. EN X, 1774b14). A ligação entre prazer e felicidade não é, portanto, de
identidade mas de relação. Seguindo o raciocínio de Aristóteles, fica claro que a atividade
correspondente à felicidade é uma atividade que comporta um prazer constante. Somente a
atividade intelectual pode buscar e fruir um prazer contínuo. O oposto também é
verdadeiro: os prazeres ligados ao corpo chegam ao fim, depois de um tempo. O prazer
experimentado pela atividade intelectual é o mais estável e o mais forte. A autossuficiência é
um aspecto fundamental do prazer intelectual à medida que ele não tem necessidade de
outra coisa que não ele mesmo para existir. O resultado é esse: se a atividade é
acompanhada de prazer, a vida do homem virtuoso será agradável e feliz.
Percebe-se, portanto, que o prazer da atividade intelectual é o ponto mais elevado de
uma hierarquia dos prazeres. Do mesmo modo, todos os outros prazeres devem ser
compatíveis com esta atividade. Todos os prazeres, conforme às virtudes cardeais, são bens
(por exemplo o prazer da arte ou da amizade). Aristóteles não condena, portanto, as
tendências naturais do corpo, a exemplo do comer bem ou beber bem, mas isso deve ser
realizado sem excesso e nos limites da temperança. Quando Aristóteles fala de sabedoria
(sophia), ele sintetiza neste termo tudo, quer dizer, a virtude como excelência, o ato
propriamente humano, a autonomia do soberano bem e a felicidade do conhecimento.
Se a função própria é alguma coisa de natural mas só se realiza a partir de um
encadeamento, o prazer que deriva da função própria não é realizado de maneira imediata
mas acompanha a realização da virtude que é própria do ser humano. O homem excelente
possui o critério da virtude e do prazer visto que ele, ao realizar a sua humanidade,
participa do verdadeiro prazer humano que é o prazer próprio à sua função própria. Do
mesmo modo, o prazer realiza a função, qual seja, ele é um complemento do ato perfeito e
não seu fim. Dito de outro modo, o prazer não é o fim do ato mas se soma à perfeição do ato.
A duração do prazer é igual à duração da atividade que o provoca.

6. QUAIS SÃO AS ATIVIDADES VIRTUOSAS?

Para atingir a felicidade, o ser humano virtuoso deve, portanto, realizar sua função
própria que é a atividade da razão. Mas qual é essa atividade da razão? Aristóteles expõe
duas maneiras de exercê-la: quando a razão se entrega ao conhecimento puro (exercendo a
dimensão teórica da atividade racional); quando a razão se realiza regulando a ação do ser
humano no mundo (exercendo a sua dimensão prática). Na dimensão prática, a própria ação
se divide em produtiva (poiesis) tal como ocorre nas artes técnica e em ação pura (práxis)
mais nobre e que tem seu fim em si mesma. A felicidade consiste, portanto, essencialmente,
em duas atividades: a contemplação do verdadeiro (a ação pura regulada pela razão) que se
manifesta na amizade. Contemplação e amizade são duas atividades que devem ser
realizadas segundo a virtude.

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A amizade. De início, é através da amizade que o ser humano pode exercer sua
faculdade racional em tudo sendo bom. A amizade, enquanto condição necessária para a
felicidade é, com efeito, uma tese central da Ética a Nicômaco, desenvolvida no livro IX. O
homem é um animal político, como o definiu Aristóteles: isso significa que o ser humano,
por sua própria natureza, é um ser sociável e social, ele não poderia encontrar sua felicidade
constrangendo a sua natureza. A realização da sua vida moral se concretiza na relação com
o outro.
Dada a sua importância para a realização humana, Aristóteles define a amizade como
sendo uma relação de afetação recíproca entre dois adultos iguais e semelhantes em que
cada um se beneficia da virtude um do outro. A amizade se funda sobre a ideia de passar
tempo juntos e viver juntos uma vez que isso exige que nós partilhemos pensamentos e
percepções. É assim que o ser humano exerce sua função própria, à medida que realiza a
sua faculdade racional, através das relações que ele mantém com o outro. Em síntese, o
pressuposto é esse: alguém que vive com seus amigos tende a realizar, com eles, tarefas que
são próprias à realização do ser humano.
Uma vez que o indivíduo não é autossuficiente, com seus amigos ele pode atingir uma
espécie de completude, de realização. É a amizade que vai completar a justiça
ultrapassando-a, a justiça sendo a virtude na qual todas as outras são subordinadas.
Aristóteles inicia o livro VIII com esta afirmação sobre a amizade: “De fato, trata-se de uma
certa excelência, ou algo de estreitamente ligado à excelência; além disso, é do que mais
necessário há para a vida” (Aristóteles, 2017, VIII, 1155a1-2). A amizade é, portanto, uma
condição necessária para a felicidade.
Nós percebemos, então, que a ética tem como complemento natural a política. O
homem, enquanto ser social, só encontrará sua plena realização no meio social. Somente aí
ele poderá realizar a virtude e a felicidade em ato. O interesse da cidade e do cidadão estão,
então, plenamente de acordo.
A contemplação. A segunda maneira de atingir a felicidade é através da contemplação
da verdade. É a felicidade mais sólida, uma vez que é uma garantia contra todas as
inconstâncias e as mediocridades da vida. A contemplação da verdade é, portanto, o gênero
de vida do sábio, o único gênero de vida que o aproxima o ser humano da divindade. No
livro X da Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma que a felicidade reside na contemplação
(theoria), que é a mais alta atividade (práxis) e que permite realizar o que há de mais alto no
ser humano, o intelecto (nôus), através do conhecimento. Esta atividade possui seu prazer
nela mesma, independente das demais coisas e seu prazer é o mais forte. Mas, segundo
Aristóteles, esta atividade contemplativa só pode ser um ideal que o ser humano procura
atingir.
A dimensão da atividade presente na felicidade vai lhe dar um aspecto que é uma de
suas características fundamentais. A felicidade é independente das outras coisas, no sentido
em que ela depende unicamente de nós mesmos. A estabilidade da felicidade se atém,
portanto, à atividade permanente do indivíduo e não nos acasos da sorte. É, com efeito,
através de suas ações que o ser humano torna-se virtuoso e que ele pode, assim, atualizar,
de maneira perfeita, sua finalidade própria. A felicidade pode, com efeito, existir sem um
prazer constante. O homem, mesmo face ao infortúnio, pode agir de maneira virtuosa, nada

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o constrange a agir de tal maneira. Quaisquer que sejam as circunstâncias, o homem pode
sempre agir da melhor maneira possível e, portanto, ser feliz. A felicidade é a atividade
própria da alma virtuosa, cuja expressão concreta é a amizade.

7. CONCLUSÃO

A felicidade humana, que é o fim último da atividade filosófica, é obtida através da


realização, pelo homem, de sua finalidade própria, a atividade racional. À diferença da
atividade racional, o exercício da virtude não é próprio a todos os homens, mas é isso que
vai permitir o aperfeiçoamento desta atividade. O que resulta da reflexão sobre a felicidade
a partir de Aristóteles é isso: o homem é o mestre de sua ação. Ele é o único responsável por
sua felicidade. Outra conclusão pode ser assim expressa: a verdadeira felicidade não pode
desaparecer em função das circunstâncias.
Essa reflexão pressupõe que a felicidade humana, no interior da história e no tempo,
é possível. É uma reflexão que não se confunde com as promessas de uma felicidade futura e
fora do tempo. Para Aristóteles, o ser humano, para ser feliz, deve agir conforme à sua
natureza e de maneira virtuosa. Enquanto causa primeira de sua felicidade através de sua
ação, o homem não pode, portanto, exigir que o poder político o faça feliz.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017.

Bibliografia

AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2008.

BRÜLLMANN, Philipp. A teoria do bem na “Ética a Nicômaco” de Aristóteles. São Paulo: Loyola,
2013.

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