(329p) - Budismo - Coletânea NOVO
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Sumário
1. BUDISMO E PSICANÁLISE: Inconsciente e impermanência ....................................................................................2
2. Seu ego te serve, ou você o serve? O que o budismo e Freud dizem sobre a auto-escravidão ..........................10
3. Budismo. Perguntas & Respostas. .........................................................................................................................12
0. Sobre o Autor .....................................................................................................................................................12
1. O que é budismo? ..............................................................................................................................................20
1.1. Budismo e questões contemporâneas .......................................................................................................39
1.2. Adaptações culturais ..................................................................................................................................45
1.3. Budismo e ciência .......................................................................................................................................47
1.4. Budismo e filosofia .....................................................................................................................................52
1.5. Budismo e psicologia ..................................................................................................................................77
1.6. Budismo e saúde .........................................................................................................................................81
1.7. Budismo e crenças diversas ........................................................................................................................88
2.1. Formas de budismo...................................................................................................................................122
2.2. Hierarquia e estilos de vida ......................................................................................................................133
2.3. Compromisso ............................................................................................................................................147
3. A insatisfatoriedade do samsara .....................................................................................................................156
3.1. Apego ao eu ..............................................................................................................................................160
3.2. Aflições mentais ........................................................................................................................................163
3.3. Carma ........................................................................................................................................................171
3.4. Morte, renascimento, reinos ....................................................................................................................206
5. Ética ..................................................................................................................................................................224
5.2. Aborto, pena de morte, eutanásia, suicídio.............................................................................................243
5.3. Homossexualismo .....................................................................................................................................246
5.4. Vegetarianismo .........................................................................................................................................251
5.5. Drogas e álcool ..........................................................................................................................................256
6. Bom coração.....................................................................................................................................................259
7.1. Shamata e vipassana ................................................................................................................................270
7.2. Zen .............................................................................................................................................................278
7.3. Práticas do vajrayana ................................................................................................................................281
7.4. Práticas avançadas ....................................................................................................................................296
8. Problemas de praticante..................................................................................................................................297
9. Sabedoria .........................................................................................................................................................299
9.1 Perguntas que encobrem a sabedoria.......................................................................................................304
9.2. O resultado: Buda .....................................................................................................................................308
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Que pode haver em comum entre uma A ênfase na ação: embora tenham
tradição religiosa de 25 séculos nascida na produzido teorias complexas e arquiteturas
Índia uma sociedade de castas altamente conceituais muito sofisticadas, budismo e
hierarquizada e marcada pela visão holística psicanálise são fundamentalmente saberes
do mundo e uma prática clínica inventada ligados a práticas, formas de intervir na
na Europa há pouco mais de 100 anos, existência. Tal como a filosofia era vista na
surgida como expressão de uma cultura Antigüidade, budismo e psicanálise são hoje
laica, racional e individualista? Se instrumentos para agir no mundo, mais do
prestarmos atenção aos percursos que para simplesmente conhecê-lo. De
históricos, aos vocabulários, a práticas e ambos se poderia dizer o que o filósofo
rituais e a certos objetivos específicos francês Georges Canguilhem disse a
desses dois campos, podemos ver budismo propósito da produção de conhecimento na
e psicanálise como universos muito medicina: o pathos precede o logos. É
distintos: de um lado espiritualidade, porque sofremos que somos instados a criar
contemplação e desapego ao eu, de outro formas de descrever o eu, o mundo e a vida
teorias leigas, dispositivos clínicos e uma de modo que possamos transformar nossa
prática voltada para a ampliação da existência, tornando-a mais interessante e
capacidade normativa do sujeito. No digna de ser vivida.
entanto, um olhar mais atento perceberá
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três grandes linhas. A psicanálise, com seus Este apego é fonte de dukkha, outra marca
cento e poucos anos, também se desdobrou da existência e a primeira das Quatro
em algumas vertentes, das quais as mais Nobres Verdades – pedra fundamental do
relevantes atualmente são a lacaniana, a budismo. Dukkha tem sido traduzido como
winnicottiana e a kleiniana. sofrimento, mas a melhor sinônimo talvez
seja insatisfatoriedade. A existência é
Para a filosofia budista, tudo o que existe é inevitavelmente experimentada de forma
impermanente: pessoas, objetos, alternada como boa ou má, feliz ou triste,
experiências e sentimentos; quando promissora ou decepcionante. Tanto na
mudam as causas, os fenômenos cessam alegria como na felicidade se encontram
fontes de possíveis tristezas e dores (a
AS TRÊS MARCAS DA EXISTÊNCIA perda de um ser querido, o fim de um
amor). A experiência cíclica de satisfação e
Para o budismo, a análise da experiência de insatisfatoriedade é inevitável, já que
si, ou do eu, deve começar pela desejos e anseios surgem naturalmente
compreensão das três marcas da existência: como decorrência do contato dos sentidos
a primeira é a impermanência (anitya), ou com o mundo ao redor. Este movimento
seja, a transitoriedade e a natureza (trishna, que significa sede, ânsia) compõe a
condicionada de todos os fenômenos (do segunda das Nobres Verdades (a causa da
eu, dos objetos do mundo, de qualquer insatisfação), que é sucedida pelas duas
experiência, ou sentimento). Tudo o que outras Nobres Verdades: a percepção de
existe é impermanente devido a sua que é possível superar o ciclo de sofrimento
natureza composta, o que significa que tudo cíclico, e a compreensão do meio para
depende de causas e condições para existir. alcançar esta liberação: o Caminho Óctuplo.
Se essas cessarem, cessam também os
fenômenos. Tudo está sujeito a aparecer e Com base nestas noções fica claro que para
desaparecer. o budismo o eu, como todos os fenômenos,
não tem substância, é uma combinação de
A ausência de substância inerente, ou de vários elementos e tem uma natureza
existência independente, é a segunda condicionada, sem essência e mutável.
marca da existência (anatman), também Trata-se de uma experiência em
traduzida por não-substancialidade, não- movimento, não uma entidade
essencialidade, ou não-eu. Como temos independente. Resulta da articulação de
dificuldade em lidar com a impermanência cinco elementos, os chamados cinco
e a não-substancialidade dos fenômenos e skandhas (amontoado, pilha, coleção): a
das formas, nos agarramos a eles, forma (materialidade física do corpo), as
acreditamos e apostamos em sua sensações (causadas pelo contato com o
permanência e substância. mundo, ao qual não somos neutros), as
percepções (discriminações decorrentes
desses contatos), as formações mentais
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governado por forças que não domina, uma outras maneiras, de sugestão a
montagem mais ou menos bem-sucedida medicamentos), mas uma ampliação da
que leva o sujeito a agir no mundo, buscar normatividade do sujeito, ou seja, de sua
satisfações e lidar de alguma maneira com o capacidade de se reposicionar
desamparo, a angústia e o desejo. Ele é, subjetivamente, de ser mais espontâneo e
para usar uma expressão do filósofo Daniel criativo na vida de que desfruta, não se
Dennett, um centro de gravidade: não tem fixando excessivamente a imagens do eu,
substância, tudo nele deriva dos efeitos respostas sintomáticas ou estereotipias da
produzidos pelas interações com os outros ação que limitam e estreitam seu horizonte
aspectos significativos de sua história, com existencial.
o ambiente natural e simbólico que o
circunda, com as expectativas e desejos Este reposicionamento é alcançado na
projetados sobre ele (mesmo antes que medida em que o dispositivo analítico
tivesse nascido, no desejo inconsciente dos oferece ao sujeito as condições para que ele
pais). O eu é uma imagem (daquilo que vejo se reconheça como autor de sua própria
refletido no olhar do outro, daquilo que existência. Ao implicar-se no próprio
suponho poder causar no outro) e uma sintoma que aparecia antes como um alien
trajetória (de identificações, de estranho e desconhecido a assombrá-lo, o
configurações sintomáticas, de sujeito amplia a percepção dos vários
posicionamentos subjetivos frente aos elementos e fatores que incidiram sobre
outros) que resultam dessas interações e seu percurso pessoal, sobre o papel de suas
permitem ao sujeito projetar-se em um escolhas (conscientes ou inconscientes) na
futuro. construção do eu que ele é, da vida que
experimenta e do mundo que habita. Assim
Freud definiu a psicanálise como uma teoria ele se habilita ao desprendimento de si, a
do funcionamento subjetivo, um método de ocupar sua existência com gestos mais
investigação da vida mental e uma forma de espontâneos e menos autocentrados, mais
tratamento do sofrimento psíquico. Apesar criativos e menos auto-indulgentes. Deste
da origem médica, ele sempre recusou a ângulo, portanto, percebe-se que a
subordinação de sua criação às expectativas psicanálise e o budismo se afirmam, por
curativas da psicologia e da medicina. Em caminhos distintos, como saberes que
sua abordagem da experiência subjetiva visam a transformação da existência e como
não há lugar para uma normalidade cuja práticas que buscam a liberdade.
restituição seria o objetivo da prática INTERESSE RENOVADO
clínica. Como somos em verdade
montagens, arranjos sintomáticos mais ou Budismo e psicanálise ocupam posições
menos bem-sucedidos, o que o dispositivo diferentes no cenário contemporâneo. O
analítico pretende não é a simples redução primeiro é a religião ou prática espiritual
ou eliminação de sintomas ou do que mais se expande no mundo,
sofrimento (isto se consegue de muitas impulsionada por diversos fatores: a
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diáspora tibetana que espalhou mestres religiões ocidentais quanto com as ciências,
treinados por todo o Ocidente, o ativismo em especial as neurociências.
cosmopolita do Dalai Lama (a despeito do
cerco promovido por autoridades chinesas), A psicanálise, por sua vez, vive um
o apelo que as práticas corporais das momento de transição. Passada a década
espiritualidades asiáticas têm para culturas de 90, em que sofreu todo tipo de vaticínio
que privilegiam a atenção e o cuidado com sobre sua morte por obsolescência teórica e
o corpo, a posição não proselitista e não inutilidade prática, recrudesce o interesse
dogmática adotada pelos praticantes, a por ela, tanto do lado das neurociências
crítica às pretensões racionalistas da cultura como da psicologia do desenvolvimento e
ocidental etc. as ciências da cognição. Abrem-se para a
psicanálise territórios que haviam
Nas últimas décadas o budismo tem sido permanecido praticamente fechados
também alvo do interesse de certos ramos durante quase todo o século passado,
de ponta da ciência, em especial do campo especialmente nos países do Leste europeu
das neurociências, interessadas em e na China. Por outro lado, um
explorar a enorme riqueza de observações reposicionamento de seu lugar vem
empíricas que sustentam os conceitos ocorrendo na sociedade ocidental. Se na
budistas sobre a mente. Porém, de um cultura psicológica e da sentimentalidade
modo que não chega a ser surpreendente, o ela ocupou papel de destaque na clínica
sucesso acarreta também embaraços: em mental e no campo social, na atual cultura
muitos contextos a prática budista virou somática e das sensações esse lugar está
moda. É chique deixar-se fotografar em sendo disputado por outros dispositivos
posição de lótus e exibir em casa estátuas terapêuticos e teorias centrados no corpo e
ou imagens do seu repertório iconográfico. na capacidade de controlar, cognitiva ou
Há 25 séculos a serviço do desapego aos quimicamente, disfunções e transtornos o
objetos e ao desprendimento de si, o que possui um claro efeito dessubjetivante,
budismo se vê freqüentemente na medida em que tendem a desimplicar o
transformado em técnica de otimização do sujeito de sua experiência. Hoje a
desempenho com vistas ao sucesso psicanálise tornou-se um dos poucos
individual. O filósofo Slavoj Zizek chegou a campos nos quais os indivíduos ainda são
afirmar, provocativamente, que o budismo interpelados não como meros seres
(do mesmo modo que outras biológicos ou agentes sociais, mas na
espiritualidades orientais como o taoísmo) condição de sujeitos. Por isso ela anda, por
havia se tornado a ideologia ideal para os assim dizer, na contramão da cultura
tempos neoliberais. De qualquer modo, ele hegemônica. O que para uns pode parecer
vive hoje um processo de intensa difusão na uma perda – o fascínio social de outrora se
cultura ocidental, tem sido menos visto reduziu –, para outros é uma vantagem: a
como fenômeno asiático exótico e vem psicanálise retoma cada vez mais o caminho
dialogando cada vez mais tanto com
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da investigação clínica, fonte mais fecunda como obstáculo a ser vencido: há uma
de toda sua originalidade e interesse. “natureza búdica iluminada” na
humanidade, que precisa, por assim dizer,
O diálogo entre budismo e psicanálise ser reencontrada por meio do rompimento
jamais foi tão intenso. Nunca houve tantas do véu de aparência dos fenômenos, e não
oportunidades para exploração de suas propriamente alcançada pelo esforço de
afinidades e diferenças. E isso interessa não superação. A escola mahayana mais
só a seus praticantes, mas a todos os que se conhecida é o Zen, cujas características
voltam à ampliação da caixa de ferramentas essenciais são a recusa violenta a
(como diria Wittgenstein) para lidar com a intelectualizações e estratégias gradativas
experiência de si e suas vicissitudes. de caminho espiritual. Suas práticas
TRADIÇÕES BUDISTAS Worshippers Around fundamentais são o zazen (meditação
The World Mark Buddha's Birthday contemplativa que visa colocar o praticante
em contato direto com a realidade), o uso
Única remanescente das primeiras escolas, (na vertente Rinzai) do koans, na busca do
o budismo Theravada (“caminho dos satori (realização súbita da iluminação).
anciãos”) predomina há séculos no Sri
Lanka, Indonésia, Malásia e Sudeste O budismo Vajrayana (“veículo do
asiático. Suas principais características são a diamante”), ou budismo tântrico, é uma
ênfase na vida monástica, na disciplina extensão do Mahayana e se caracteriza pela
individual em direção à iluminação e na adoção de certas técnicas e práticas
concepção da natureza humana como próprias. Está presente no Tibete, Nepal,
obstáculo a ser ultrapassado. Butão, Mongólia e, com a diáspora
provocada pela invasão do Tibete, tem seu
O budismo Mahayana (“grande veículo”) centro em Dharamsala, norte da Índia, sede
originou-se na Índia e de lá se deslocou, a do governo no exílio, de onde o Dalai-Lama
partir do século II, para a China, onde projeta sua presença no mundo. Por se
encontrou o taoís-mo. Daí disseminou-se caracterizar por um profundo esoterismo, o
para o leste da Ásia, tendo muita força no budismo Vaj-rayana é cheio de símbolos,
Japão, Vietnã e Coréia do Sul. Em contraste imagens e práticas devocionais, além de
com o ascetismo doutrinário theravada, a ensinamentos secretos, passados direta e
tradição mahayana tem uma perspectiva oralmente pelo mestre ao discípulo. Em
mais universalista e inclusiva. Sua ênfase contraste com o Zen, algumas de suas
não está na busca individual pela práticas são explicitamente voltadas para o
iluminação, mas no esforço do bodhisatva exercício ou cultivo da compaixão como a
de se dedicar ao objetivo de iluminação de metta bhavana, uma forma de meditação
todos os seres. Outra diferença é a dirigida ao abandono de sentimentos de
concepção mahayana segundo a qual todos apego e aversão e o desenvolvimento da
os seres têm potencial para atingir a amorosidade ou da fraternidade.
iluminação. A natureza humana não é vista
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2. Seu ego te serve, ou você o serve? O que o Nossos sonhos perturbadores estão
budismo e Freud dizem sobre a auto- tentando nos dizer algo, no entanto. O ego
escravidão. Disponível em:< não é um espectador inocente. Embora
https://www.pensarcontemporaneo.com/s afirme ter no coração os próprios
eu-ego-te-serve-ou-voce-o-serve-o-que-o- interesses, na sua busca incessante de
budismo-e-freud-dizem-sobre-auto- atenção e poder, isso solapa os próprios
escravidao/#aoh=16500280207456&referr objetivos que se propõe alcançar. O ego
er=https%3A%2F%2Fwww.google.com&am precisa da nossa ajuda. Se quisermos uma
p_tf=Fonte%3A%20%251%24s&share= existência mais satisfatória, temos que
https%3A%2F%2Fwww.pensarcontempora ensiná-lo a afrouxar sua aderência.
neo.com%2Fseu-ego-te-serve-ou-voce-o-
serve-o-que-o-budismo-e-freud-dizem- Há muitas coisas na vida sobre as quais nada
sobre-auto-escravidao%2F podemos fazer – as circunstâncias de nossas
>. Acesso em: 11/11/2022. infâncias; eventos naturais no mundo
O ego é a única aflição que todos temos em exterior; o caos e a catástrofe da doença,
comum. Por causa de nossos esforços acidente, perda e abuso – mas há uma coisa
compreensíveis para sermos maiores, que podemos mudar. Como interagimos
melhores, mais inteligentes, mais fortes, com nossos próprios egos depende de nós.
mais ricos ou mais atraentes, somos
deixados de lado por uma incômoda Nós recebemos muito pouca ajuda com isso
sensação de cansaço e insegurança. Nossos na vida. Ninguém realmente nos ensina
próprios esforços de auto-aperfeiçoamento como estar conosco de maneira
nos orientam em uma direção construtiva. Há muito incentivo em nossa
insustentável, uma vez que nunca podemos cultura para desenvolver um senso de
ter certeza se alcançamos o suficiente. identidade mais forte. O amor-próprio, a
Queremos que nossas vidas sejam autoestima, a autoconfiança e a capacidade
melhores, mas estamos paralisados em de obter, de forma agressiva, as
nossa abordagem. necessidades de alguém atendidas são
todos os objetivos que a maioria das
O desapontamento é a consequência pessoas assina.
inevitável da ambição sem fim e a amargura
é um refrão comum quando as coisas não Por mais importantes que sejam essas
dão certo. Os sonhos são uma boa janela conquistas, elas não são suficientes para
para isso. Eles nos lançam em situações em garantir o bem-estar. Pessoas com um forte
que nos sentimos presos, expostos, senso de si ainda sofrem. Eles podem
envergonhados ou humilhados, parecer que estão juntos, mas não podem
sentimentos que fazemos o melhor possível relaxar sem beber ou usar drogas. Eles não
para manter a calma durante nossas horas podem descontrair, dar afeto, improvisar,
de vigília. criar ou simpatizar com os outros se eles
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Mantenho uma lista de softwares e serviços Pro captu lectoris habent sua fata libelli
que recomendo.
Não tenho muitas boas qualidades
Budista mundanas ou espirituais.
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palavras, o que equivale a um livro de 600 costumava ser uma espécie de niilista
páginas. megalomaníaco.
Verdadeiramente, não estou dizendo nada Acho que tinha uns 12 anos e li o Tao da
novo aqui. Sou apenas um papagaio que Física, que é leitura para essa idade, como
repete, com maior ou menor precisão, o Eram os Deuses Astronautas, Isaac Asimov e
que ouço. Meu único mérito é saber outras diversões sensacionalistas do tipo.
valorizar aquilo que tem valor. Mas naquele livro me impressionou algo da
descrição do taoísmo e do budismo — que
As pessoas que vieram até mim têm um eu conhecia como verbetes de enciclopédia.
carma misto, porque se interessam, em A imperfeita e pobre descrição da sabedoria
algum nível, pelo darma do Buda, mas em oriental naquele livro foi ao menos o
outro nível, não tiveram mérito de suficiente para que eu voltasse, vez após
encontrar um professor verdadeiro. Que vez, a essa temática ao longo dos próximos
estas respostas não saciem suas perguntas anos.
de forma alguma, e que todos, escritor,
leitores e questionadores, possam se Enfim, na década de noventa eu gostava de
envolver no relacionamento sagrado com ler sobre todo aquele mumbo jumbo de que
um ser de sabedoria — em carne e osso, de o Eco fala no Pendulo de Foucault, cabala,
acordo com nossa necessidade templários, essas coisas, mais Jung e, enfim,
convencional — que possa, efetivamente, Mircea Eliade. No Ioga: Imortalidade e
guiar até o resultado supremo. Liberdade li pela primeira vez o nome de
Padmasambava e de alguns dos
Padma Dorje, Abril de 2011 mahasiddhas, e logo ficou claro para mim
que o tantra, como uma tecnologia
Como você chegou ao budismo? espiritual, em particular o tantra budista,
era a coisa mais interessante e profunda do
Quando criança era aquele tipo de menino mundo. No entanto, era quase como um
que curte física e cosmologia, coisas assim, livro de aventura — com seus exageros e
e, como numa cena do filme Annie Hall, erros, e com suas descrições um bocado
ficava realmente chateado com essa fúteis — porque não há como colocar nada
história de que tudo ia se expandir em prática, ou saber como começar, tanto
indefinidamente ou se contrair de novo. pela própria natureza da leitura daquele
Mesmo que eu viesse a ser algo como livro em particular quanto pelo fato de que
Shakespeare, fizesse coisas realmente é um sistema que exige um professor vivo e
grandiosas, nada disso ia durar muito presente de alguma forma.
tempo. Para começar, a morte do sol, em 5
bilhões de anos ia atrapalhar meu caminho Então um amigo me levou para conhecer
para a fama intergaláctica. Enfim, um professor, que usou os nomes Milarepa
e Padmasambava logo na primeira palestra
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— aquela tradição de que Eliade falava de prover o darma — foi com certeza igual
existia e estava viva, e em Porto Alegre! a de Marpa para com Milarepa (com a
vantagem dela ser muito mais gentil do que
Alguns dias antes havia visto Chagdud Marpa).
Rinpoche fazendo um puja de Tara no
parque da cidade. Tudo o que eu tinha lido Depois disso participei de cerimônias e
antes não dava a dimensão da postura e fala tomei votos com vários professores. Em
dos lamas, que tratava-se de uma forma de especial Tromge Jigme Rinpoche e Lama
vida excelentemente íntegra que eu ainda Sherab Drolma. Tenho grande consideração
não havia visto em ninguém. Nada, em por todos os lamas e alunos mais antigos de
termos de um sistema de crenças ou ideias, Chagdud Rinpoche, embora não tenha sido
me pareceu remotamente tão interessante formalmente aceito como aluno por todos
quanto o budismo. Aos poucos fui me eles, os considero meus professores.
aproximando do Buda (minha conexão
inicial era com gente como Saraha e Virupa). Recebi ensinamentos públicos mais
Logo ofereci trabalho para os lamas e desde detalhados, por alguns dias pelo menos, de
então, com altos e baixos, é o que faço: vários lamas tibetanos: Sua Santidade o
servir a sanga e os lamas. Dalai Lama, Dzongsar Khyentse Rinpoche,
Jigme Khyentse Rinpoche, Sogyal Rinpoche,
Quem são seus professores? Terton Namkha Drimed Rinpoche, Khenpo
Karthar Rinpoche, Phakchok Rinpoche,
O primeiro mestre que vi em pessoa foi Sua Naten Chokling Rinpoche e Wangdor
Eminência Chagdud Tulku Rinpoche, numa Rinpoche. Esses lamas não me conhecem
prática de Tara Vermelha que ele fez em pessoalmente, e com certeza não me
público, num parque de Porto Alegre. Assisti considerariam um aluno — mas eu tenho o
sua execução cuidadosa, requintada e mérito de não ver falha alguma neles.
intensa dos mudras de oferenda e fiquei
bastante impressionado. Fiz alguns retiros Tive um contato breve, mas
com Rinpoche, e tive alguns momentos de impressionante, com alguns professores do
proximidade, embora nunca tenha trocado zen. Em particular Tokuda San — que é a
mais do que meia dúzia de palavras com ele. corporificação mais leve e dramática do
No entanto, ter estado presente no retiro espírito zen que vim a conhecer. E também
de Powa em que ele faleceu foi o ponto o impressionante Moriyama Roshi precisa
mais alto da minha vida. ser mencionado — um ensinamento
completo do darma pela mera presença. Os
Tomei refúgio formalmente pela primeira queridos Heila e Rodney Downey me
vez numa iniciação vajrayana com Chagdud apresentaram à prática de koan.
Khadro em 98. É a ela a quem ainda
respondo diretamente hoje, e sua bondade Infelizmente, com minha parca capacidade,
em me acolher e me dar trabalho — além não consigo me dedicar nem mesmo a um
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conforto. Mas eu apenas tive o mérito de vida para a maioria de nós. Desde que
encontrar algo que funciona para mim. façamos a prática diligentemente e
tenhamos o mérito de colocar as
Quais são as suas práticas? prioridades na ordem certa.
O conselho geral é que a pessoa só discuta Você estuda o budismo há quanto tempo?
suas práticas com seu professor. Em Você ainda se surpreende com os textos?
particular no vajrayana (que é o que
supostamente eu deveria praticar, pelos Desde 1998. Sim, me surpreendo bastante.
gurus com que sinto conexão), se deve Mas textos são uma parte muito pequena
manter total discrição sobre o que se faz. da minha relação com budismo.
Qual o ensinamento mais valioso que você Além disso, essa cultura de exigir constante
recebeu? entretenimento é um pouco antitética ao
darma. O darma não é chato, por si só, e a
A mim foram oferecidos dezenas de maioria dos professores é verdadeiramente
ensinamentos inestimáveis, porém não fascinante. Por outro lado, a expectativa de
recebi quase nenhum, porque sou um pote diversão constante está totalmente
emborcado, rachado e envenenado, o que distorcida pelo excesso de entretenimento
quer dizer que meu orgulho não me deixa que consumimos — entretenimento este
ouvir, o que eu eventualmente ouço eu que compete por nossa atenção com
esqueço, e o que eu não esqueço eu misturo conteúdo cada vez mais gritante.
com minhas aflições mentais e transformo
em algo que não é darma. Portanto tenho Portanto é preciso, para ouvir (e ler) o
me esforçado para ser capaz de ouvir, reter darma, desenvolver uma mente que não
e não alterar os ensinamentos. busca excitação constante. Normalmente
caímos em torpor sem excitação constante.
Ainda falta muito para você atingir a A prática de meditação visa encontrar um
iluminação? ponto de equilíbrio flexível de clareza entra
a agitação e o torpor que são nosso hábito
Não sei. Imagino que algumas dezenas ou e muitas vezes, pior ainda, são fomentados
centenas de vidas — se eu não perder o pela cultura em que vivemos.
caminho espiritual e vagar pelo samsara a
esmo por milhares de vidas, o que pode Você tem autoridade para dar respostas
acontecer... a qualquer momento. conclusivas sobre o Budismo ou apenas está
expressando suas opiniões de estudioso
Por outro lado, o que todos os meus sincero mas que podem eventualmente
professores sempre disseram em público estar erradas em alguns pontos?
para todos os seus alunos é que existe a
possibilidade da iluminação nesta mesma
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Não tenho nenhuma autoridade especial, Padma é a lótus, vinculada com a família do
mas sou lido por outros budistas e debato o Buda Vermelho, Amitaba, que por sua vez
budismo ao longo de todo o tempo que está associado à vitória sobre o apego, e à
pratico, portanto possivelmente não há sabedoria discriminativa e à fala iluminada.
nada de terrivelmente equivocado aqui. De A lótus é um símbolo comum no budismo
toda forma, se algo incomoda você — e por surgir muito branca em meio a um
mesmo o que não incomoda —, é altamente lodaçal, como a compaixão surge em meio à
aconselhável refazer a pergunta para um experiência cíclica.
professor do darma. E se você quiser me
ajudar a revisar uma resposta, por favor Dorje é "o senhor entre as pedras", isto é, o
escreva para [email protected]. diamante — é a tradução comum do termo
"vajra". Representa a indestrutibilidade e
Aconselho que todas essas dúvidas sejam inseparatividade da natureza essencial da
levadas por você a seu professor, e mente — as boas e más experiências não
avaliadas por você da forma mais são capazes de alterar suas qualidades
aprofundada possível. Minhas respostas fundamentais, que são abertura,
podem ajudá-lo a refinar pontos mais criatividade e compaixão. Representa
difíceis com seu professor e sua própria também a natureza da realidade última, o
consciência em conjunto. Esse seria um uso reconhecimento do sonho como um sonho.
excelente dessas respostas.
É um nome bastante comum na sanga, e
Por que seu nome é Padma Dorje e o que também entre os tibetanos em geral.
ele significa? Conheço mais de uma dúzia de Padma
Dorjes, inclusive dois lamas. Por si só não
Quando tomamos refúgio nas três joias representa nenhuma qualidade especial no
numa cerimônia formal muitas vezes portador do nome: essas qualidades são
recebemos um nome no darma, ligado (pela comuns a todos os seres.
língua, ou mesmo pelas palavras utilizadas)
à tradição budista específica em que Se pudesse dar só um ensinamento pra
tomamos refúgio. Os nomes em geral são sintetizar tudo que aprendeu ao longo dos
ligados a boas qualidades espirituais: essas anos qual seria?
qualidades já podemos ter, ou
simplesmente temos o potencial de Quando tudo mais parece impossível, duas
desenvolver. coisas é útil não abandonar: contemplação
da impermanência e a necessidade de
Após minha segunda ou terceira cerimônia revelar ao máximo um bom coração.
de refúgio, pedi um nome do darma a
Chagdud Rinpoche. Mas o ponto crucial é "apenas lembre o
professor".
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O que sua formação em filosofia pôde em condições sociais que criariam qualquer
contribuir para sua relação com o budismo? tipo de discussão sobre dieta.
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missa nem ouvi nenhum sermão. Tomei uns causar grande polêmica desnecessária e
passes num centro espírita com uns 10 anos contraproducente. Em todo caso, em
— percebi um ambiente calmo, até privado [email protected], para um
relaxante, cheio de gente fingindo que não não anônimo, posso responder algumas
está assustada com a perspectiva da própria dessas perguntas.
morte. Posteriormente li, com má vontade
e um olho acirradamente antipositivista, um 1. O que é budismo?
ou dois livros do Alan Kardec. Logo depois O que é budismo? Seja breve.
não dava mais tempo, porque ler sobre
ciência me parecia bem mais divertido. O Budismo é um conjunto de métodos para
atingir liberdade perante a
Você vive em um mosteiro? insatisfatoriedade e desenvolver ao
máximo as qualidades positivas. Entender e
Ao longo dos anos, por alguns períodos (o reconhecer a insatisfatoriedade e o que é
maior deles de dois anos) vivi em centros de insatisfatório é o pré-requisito essencial
darma. Nenhum deles era monástico — na para ingressar na prática budista. Em geral,
verdade até hoje conheci apenas dois se temos um pequeno entendimento e
praticantes budistas com desejo de seguir o reconhecimento destas coisas, é isso que
caminho monástico —, ainda assim, a faz com que nos interessemos pelo darma e
dedicação nestes centros era nos dá um sentido de prioridade. Através da
exclusivamente à prática espiritual. Agora própria prática do darma, aperfeiçoamos e
vivo em Porto Alegre e tento coadunar amplificamos esse reconhecimento da
alguma prática formal com um dia-dia por insatisfatoriedade e do que é insatisfatório,
vezes frenético de ocupações, por vezes buscando revelar um estado absolutamente
cheio de distração e preguiça. livre de insatisfatoriedade.
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a “budismo”, e este conjunto de tradições é maioria das outras tradições, que por isso
conhecido como Darma do Buda, “método mesmo não são chamadas de "budismo".
do Buda”. Existem miríades de escolas, Fora essa concepção filosófica do
tradições e linhagens que utilizam o rótulo significado imposto pela necessidade
Darma do Buda ou Budismo para descrever puramente argumentativa, há uma
suas atividades e ensinamentos. Estas percepção aguda de como as coisas
tradições possuem atitudes, técnicas e realmente funcionam, e o que acontece é
ensinamentos diversos, e muitas vezes ao descrito como "sofrimento"
olho desavisado pode parecer que estas (insatisfatoriedade). Este sofrimento
escolas entram em um ou outro ponto de abrange não só prováveis obstáculos e
contradição. Em alguns casos as escolas dificuldades no cotidiano, como também as
aceitam-se mutuamente como veículos — angústias imutáveis da doença, da velhice e
inferiores, superiores ou de igual valor — da morte, ou as angústias existenciais e
mas que levariam a um mesmo resultado individuais do sentimento de inadequação,
final, ou ao menos a um bom resultado incapacidade e falta de sentido. Portanto,
intermediário. Em outros casos aparece mesmo que a pessoa acredite que não
uma atitude sectária, em que escolas sofra, o que ocorre com os seres que
consideram os ensinamentos de outra ou passam por experiências boas e ruins é
de todas as outras como inadequados. De descrito pelo budismo como sofrimento,
modo geral aceita-se que todos os independentemente destes
desenvolvimentos do budismo e também acontecimentos terem uma aparência de
de outras tradições religiosas não budistas, felicidade ou qualquer outra aparência. Isto
independentemente de evidenciarem é assim porque um ser que não perceba as
algumas atitudes sectárias, servem a um coisas dessa forma, ou não queira aceitar
tipo específico de necessidade de este entendimento, independentemente
aprendizado por parte dos seres, por estes desse reconhecimento ocorrer ou não,
possuírem características diferentes. De segue vinculado a essa experiência descrita
modo geral quatro aspectos dos como "sofrimento" pelo budismo. O
ensinamentos, chamados de "quatro selos", Budismo embora mostre que o próprio
são aceitos por todas as escolas budistas: sofrimento não é eterno (caso em que não
haveria necessidade alguma de uma prática
1) Sofrimento: Alguém que que não sofra ou ou estudo espiritual, pois nenhum esforço
não perceba o sofrimento dos outros não se seria capaz de nos livrar do sofrimento, e
esforçaria em um caminho espiritual que assim cairíamos no niilismo), enfatiza a
busca o alívio do sofrimento. E este já seria percepção e o reconhecimento deste
um motivo axiomático para a ênfase que o sofrimento como pré-requisito básico para
Budismo coloca no sofrimento, já que se a a aquisição dos métodos (caminho) para
ênfase fosse dada em outra percepção os erradicar o sofrimento (cessação).
ensinamentos decorrentes disso seriam
necessariamente outros — o que ocorre na
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num sentido definitivo, satisfatório. Uma para começar — e que portanto, um dia
boa experiência nunca dura para sempre, e termina. A terceira Nobre Verdade nos
nunca estamos seguros de que uma revela o cessar da atribuição errônea de
experiência ruim não venha a surgir. expectativas, e o repousar na perfeição do
que já é, exatamente como se apresenta,
A segunda Nobre Verdade diz que a sem artificialidade.
insatisfatoriedade surge principalmente de
não reconhecermos as experiências A quarta Nobre Verdade então nos dá um
condicionadas como verdadeiramente são, método para alcançarmos este estado, o
isto é, de gerarmos uma falsa expectativa que é chamado de Nobre Caminho Óctuplo,
quanto a elas, de nos associarmos a elas de ou, podemos dizer, todos os métodos que o
uma forma errônea, tentando conseguir Buda ensinou são a quarta Nobre Verdade,
nelas o que elas nunca vão nos dar. Assim, que nos dá uma miríade de métodos de
as perseguimos incansavelmente, na produzir o entendimento e aplicação das
esperança de que a próxima seja uma três outras Verdades como um modo de
solução definitiva. Porém, a causa disso é atingir a liberdade última perante nosso
essencialmente não as vermos como hábito de procurar a felicidade no lugar
verdadeiramente são. errado.
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Num nível sutil, algumas vezes se diz que o Não, os ensinamentos são métodos para
Buda nunca deu ensinamento algum. Isto que os seres-mães alcancem o que
quer dizer que a fala do Buda é totalmente conseguirem alcançar, então o Buda ensina
voltada às necessidades dos seres, e os também métodos temporários, que não
ensinamentos surgem da própria mente estão ligados à iluminação.
destes seres ao se relacionarem com o
Buda, isto é, de suas verdadeiras naturezas. Quando eles vêm do Buda, nesse caso eles
sempre vêm da realização do Buda, mas o
Existe algum livro sagrado no budismo onde ensinamento não existe do lado do Buda, só
se tenha registrado o darma? do lado de quem o ouve: dessa forma, ele
corresponde não só à sabedoria do Buda,
Os ensinamentos do Buda foram primeiro mas principalmente à necessidade do
registrados oralmente. Cerca de 200 anos ouvinte.
depois da morte do Buda passaram a ser
compilados em textos. As versões mais Esse é um ponto muito importante, e o
antigas existentes desses textos são motivo pelo qual as escrituras budistas não
chamadas de "cânone Páli", porém existem são "reveladas", como as escrituras das
cânones (isto é, bibliotecas inteiras, religiões teístas, ocidentais e orientais. O
centenas de vezes maiores do que a Bíblia) Buda só fala de acordo com a realidade no
em todas as línguas asiáticas onde o sentido de um método para chegar a ela, e
budismo foi ensinado. esse método está invariavelmente na
dependência das capacidades dos ouvintes
O cânone tibetano tem apenas cerca de 5% — então os ensinamentos são também
de seus textos traduzidos para línguas vazios, isto é, livres e não requerem crença
ocidentais, sem quase nada traduzido irracional ou obediência, e sim
diretamente ao português até hoje. experimentação.
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Por que o budismo não é uma religião? Não há conceito de religião no budismo, ou,
até onde eu saiba, na maioria das tradições
Algumas pessoas, talvez por preconceito, e línguas orientais. Nós partilhamos com os
talvez para enfatizar um enfoque não hindus, com diferenças, o conceito de
religioso do budismo, preferem o darma. Darma é o que apoia, dá suporte, ou
desvincular da noção de religião. seja, o método que produz o resultado, ou
o próprio resultado, o estado de Buda.
Embora o budismo promova o exame crítico
de suas próprias doutrinas, e seja O budismo pode ou não ser classificado
eminentemente um método que confia, em como uma religião. Ele não é uma religião
primeiro lugar, na demonstração empírica, porque não possui escritura revelada, ou
e em segundo lugar, na inferência racional, um criador. No sentido de que há práticas
ele não está destituído de fortes noções que devocionais, nesse sentido, é possível
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a supervisão de alguém — em pelo menos que surge para os seres que reconhecem os
algumas formas de budismo — na verdade fenômenos em sua natureza pura, e o
a grande maioria delas. nirmanakaya que se manifesta na história,
como o Buda Sakyamuni, por exemplo,
Quanto à palavra "disciplina", ela se 2600 anos atrás. Os três corpos não são
encarrega apenas do que é artificial no separados, eles só surgem nessas três
caminho, isto é, daquela conduta que é formas de acordo com nossa capacidade.
treinamento pelo treinamento. Quando
falamos de ética, então estamos falando do Para os seres que precisam de um teísmo
que é natural ao caminho, do que se paternal (e quem de nós pode dizer que não
coaduna com a realidade. Ambas disciplina estará em um apuro em que só o que vai
e ética são importantes, mas a ética deveria restar é apelar para isso?) há métodos que
ser mais enfatizada. A disciplina e a ética são efetivamente produzem benefícios, como
o ponto central do hinayana, enquanto o simplesmente lembrar do Buda.
mahayana não as abandona, seu ponto Meramente recordar o Buda traz
central é a análise contemplativa incomensurável benefício, para qualquer
sistemática — e o foco do vajrayana é a um, acreditando nisso ou no Buda, ou não.
própria sabedoria, sem também, é claro
abandonar a fundação do hinayana e do No Budismo, temos aliados e protetores
mahayana. invisíveis?
Se eu tento dizer alguma coisa a Buda, pedir Nós nos relacionamos com os seres dos seis
a ajuda dele, ele me ouve? Ele sabe quem reinos, quatro dos quais não temos acesso
eu sou? Se compadece de mim pela visão. No entanto, os melhores amigos
verdadeiramente? Tem algum poder para espirituais são os professores de carne e
me ajudar? Onde ele está? osso, humanos. Os outros seres podem
ajudar ou prejudicar, mas não
O Buda deixou 84.000 métodos que podem necessariamente possuem sabedoria,
ser praticados por qualquer um que se portanto a interação com eles, por "sutis"
aplique neles. Essa foi sua grande que sejam, não é espiritual a não ser que
compaixão. Algumas formas de budismo esteja subordinada a prática espiritual.
realmente lidam com o aspecto devocional,
e de fato seria estúpido dizer que a Um problema grave que o budismo
compaixão-sabedoria do Buda não chega a tibetano, por exemplo, enfrenta, é o foco
todos. Porém, o Buda não é onipotente, se excessivo em "protetores" (entre os quais
fosse, todos já estariam iluminados. as deidades hindus são geralmente também
incluídas). Eles servem a todo tipo de
Na doutrina dos três corpos do Buda proposito mundano, como saúde e
(trikaya), há o darmakaya, que é atemporal, prosperidade — que podem, ou não, apoiar
não local e tudo permeia. O sambogakaya, a prática espiritual. Em todo caso, o
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problema é o foco excessivo, e Sua problema algum. Porém, você precisa fazer
Santidade o Dalai Lama vez que outra sua parte. A sua parte é o revelar e o criar
adverte contra a transformação da prática intimidade com sua própria lucidez, que é a
espiritual num mero pedido de favores a fonte de todos os Budas.
deidades mundanas. Na prática do tantra
essas deidades são subordinadas a deidade Por outro lado, se você se relaciona com a
central da mandala, que possui sabedoria, e sanga em todos os níveis, mesmo no nível
é inseparável do próprio praticante e do sutil, a sanga sutil pode lhe ajudar: como
lama. Quando os protetores se tornam o pessoas de carne e osso também podem.
foco de pessoas que não mantém essa Mas isto está na dependência direta de sua
inseparatividade do lama, deidade e si própria lucidez, e em segundo lugar com o
mesmo inquebrantavelmente, não há seu cultivo dessas conexões.
sabedoria na prática, e torna-se um mero
invocar de espíritos por ajuda mundana. Para que serve o budismo?
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O que o budismo pensa sobre festa, rave Buda chorou alguma vez?
etc.? Ilusões?
Não consta uma ocorrência assim, embora
Sim, claro que são ilusões. Como a prática o Buda tenha passado por grande
budista, ou o próprio Buda. Os budistas não turbulência interior quando reconheceu
monásticos podem se divertir com festas de que todos nós estamos fadados a doença,
qualquer tipo, desde que não consumam velhice, morte e nascimento. Ele fez um
álcool ou drogas (algumas escolas admitem voto de encontrar uma solução para estes
algum uso de álcool). Os monges, como quatro problemas e levar essa solução a
parte de seu treinamento monástico, todos os seres, o que ocorreu na sua
também totalmente artificial e ilusório, não experiência de iluminação e subsequentes
podem ouvir música ou dançar. ensinamentos.
Meditar ajuda a ser mais criativo? Marpa, um dos grandes lamas da tradição
tibetana, chorou quando seu filho morreu.
Não necessariamente. Gerar mérito sim, No Zen também há histórias de grandes
então a meditação, na medida em que gere mestres que choram. Em resumo, se for
mérito, pode ajudar na criatividade. Porém para o benefício dos seres, um mestre pode
se esse for o objetivo da prática, então manifestar qualquer emoção humana. Isso
estamos falando em meditação terapêutica, não quer dizer que os mestres não sintam
e não de meditação budista. compaixão, óbvio que sentem, mas eles
podem ou não manifestar isso, e isso só
Qual a importância do humor no budismo? depende do que esse exemplo pode trazer
para os seres.
Nenhuma importância particular, além de
trazer algum benefício temporário aos Consta que no velório de Shunryu Suzuki
seres, e algumas vezes ser uma forma de Roshi, um dos mestres do Zen que levou os
conectar as pessoas. É um meio hábil muito ensinamentos para os EUA, Chogyam
comum de professores budistas, que em Trungpa Rinpoche chorou abertamente —
geral têm um excelente bom humor. isso é relatado por um dos alunos de Suzuki
Através desse carisma, que é uma Roshi como uma grande liberação e licença
expressão de sua própria liberdade e para os alunos do Roshi, que estavam "se
satisfação internas, as pessoas se conectam segurando". Então além de demonstrar o
com os ensinamentos — então se torna sentimento, Trungpa Rinpoche deu um
mais meritório fazer os outros rirem, e ensinamento e "autorizou" a sanga a sentir
tornar a tradição, algo que para muitas a morte do mestre.
pessoas (devido a distorções comuns na
cultura ocidental na visão sobre o budismo), Se este mundo é um mero sonho, tudo que
pode acabar parecendo algo pesado. não está alinhado com o propósito de
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escapar dele é futilidade? Nada que está até pedir felicidade temporária, desde que
aqui presta? essa não seja prioritária.)
Budistas pedem ajuda para deuses e Se a sua motivação é apenas "não sofrer",
deusas? então, tudo bem — você não deve se
preocupar com sua nota, e a única
Não há nada de errado com isso, desde que obrigação que você deve cumprir é
fontes de refúgio não confiáveis não sejam entender a raiz do sofrimento e trabalhar
tomadas como refúgio, e desde que a nada para eliminá-la. É por isso que as pessoas
seja atribuído permanência ou que normalmente se focam apenas em
substancialidade — e em geral, se a pessoa eliminar o sofrimento — o que é um
busca liberação como prioridade, ela não se caminho budista legítimo — em certo
envolva com pedidos temporários como sentido abandonam o mundo e tornam-se
prioridade. (Em outras palavras, ela pode eremitas ou monges. Aí, nesse caso, eles só
vão se preocupar com notas baixas caso a
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direção é o único sentido que poderia haver se faz uma oferenda), e ele pode falar por
para qualquer existência singular. algum tempo sobre como praticar as seis
perfeições, por exemplo, no casamento.
Por que será que algumas pessoas Alguns casamentos assim duraram menos
maltratam tanto os animais? de 5 minutos. Algumas vezes os noivos
podem patrocinar pujas, principalmente de
Segundo o Buda, e isso é algo repetido prosperidade e longevidade — que também
frequentemente pelo próprio Dalai Lama, as podem ser patrocinadas fora do contexto
pessoas cometem maldades contra os do casamento.
outros e contra si próprias porque
desconhecem as verdadeiras causas da O casamento budista se assemelha de
felicidade e do sofrimento. alguma forma ao cristão? Exige-se
castidade? Virgindade? É para a vida toda?
Existe casamento no budismo?
Casamento, no budismo, é assunto civil, da
Em todas as culturas budistas existe o cultura. Não existe uma noção de
casamento — mas o casamento não é "sacramento", como no cristianismo. O
necessariamente um assunto religioso. O budismo se adaptou a dezenas, talvez
casamento como um "sacramento", centenas, de culturas ao longo de seus 2600
portanto, não é comum, e as cerimônias anos, que tinham maior ou menor ênfase no
budistas de casamento se originaram de casamento e nesses atributos secundários
uma necessidade das pessoas — muito — de toda forma, são irrelevantes para o
possivelmente ao comparar com os belos budismo.
casamentos católicos, ou algo assim.
O budismo está imerso em culturas que tem
Da mesma forma que você, se você é formas de família muito parecidas e muito
fazendeiro, leva um animal de carga para diferentes da cristã. Existem até mesmo
que o sacerdote abençoe, você pode levar culturas budistas onde a poligamia e a
sua esposa/esposo para ser abençoado. poliandria são comuns. (O próprio Buda,
"Casamento budista" é como consagrar ou antes de assumir a disciplina monástica, era
abençoar qualquer outra coisa. E você pode polígamo). Tudo é impermanente, portanto
fazer isso com qualquer coisa e aspecto da não existe casamento para sempre, no
sua vida: resta apenas evitar desperdiçar o máximo o que vai acontecer é um morrer
tempo do sacerdote. antes do outro. Virgindade é um valor em
algumas culturas budistas, em outras não
As cerimônias de casamento que eu tem importância alguma. É importante
presenciei são muito simples. Cada um entender que isso não é relevante para o
oferece e recebe uma echarpe do professor budismo ou para a prática budista, embora
(que é algo que se faz sempre quando se possa ter importância de acordo com a
encontra um professor, ou a cada vez que cultura, num aspecto meramente cultural.
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Já o caminho monástico tem como uma de Nenhuma boa ação em geral é obrigatória
suas definições a castidade. para alguém que tomou voto de bodisatva.
Para quem não tomou voto de bodisatva,
Ter filhos é reprovável no Budismo? Afinal, não existe nem mesmo a obrigação de
ao se ter filhos está-se gerando criaturas ajudar os outros — apenas de não os
que vão sofrer... prejudicar. Quando porém se toma o voto
de bodisatva, se faz o voto de ajudar os
O reino humano é o melhor para a prática outros. No budismo ter filhos é uma forma
que pode levar além do sofrimento, e não de ajudar um ser a ter um nascimento
se está gerando criaturas — já que não há humano, e possivelmente um caminho
"criaturas" no budismo, nem alguém pode espiritual. Mas em nenhum lugar está dito
"gerar" algo, no sentido de tirar do nada — que esta ou aquela ação meritória devem
mas apenas criando causas e condições necessariamente ser realizadas. Você deve
para um renascimento auspicioso — o realizar ações meritórias de acordo com as
renascimento mais auspicioso, que é o necessidades dos seres e sua própria
renascimento humano. capacidade. Enquanto evitar uma boa ação
pelas próprias preferências ou inclinações
Os próprios Budas, no fundo eles nascem da seja ruim, nada nos obriga a uma ação
sabedoria — mas muitas vezes eles têm, meritória em particular.
além da sabedoria transcendente, uma
sabedoria corporificada na forma de uma Um bodisatva tomado de total destemor
mãe, e a compaixão corporificada na forma não opera de acordo com inclinações
de um pai. Em outras palavras, em vez de adventícias, mas de acordo com as
pensar em trazer ao reino humano alguém necessidades que surgem. Grandes
que vai meramente sofrer, podemos aspirar bodisatvas podem até mesmo produzir o
trazer alguém que vai sofrer bem menos nascimento de uma consciência
que em outro reino, e, melhor do que isso, determinada — isto é, vão copular para
aspirar ajudar a manifestar alguém que vai conceber um determinado ser que viram,
ajudar a diminuir o sofrimento dos outros — com seu olho de sabedoria, no bardo. Assim
um bodisatva ou um buda. eles podem pensar "vou dar nascimento a
meu mestre, fulano", ou "vou tirar sicrano
Caso opte por não casar nem ter filhos serei do inferno". Há inclusive bodisatvas cuja
malvisto pelos budistas? principal prática, difícil de compreender na
nossa cultura, é engravidar grandes
O objetivo da prática budista não é ser bem- quantidades de mulheres. E o caso da mãe
visto, nem mesmo bem visto pelos budistas de Asanga e Vasubandu, que percebeu que
ou pelo seu professor ou sua sanga. Você não conseguiria ser uma grande praticante
deve buscar a virtude e ser autêntico, e não e fez aspirações para que tivesse um filho
produzir uma imagem perante os outros.
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"Não manter, pois, seres queridos, pois não Da mesma forma, se uma pessoa nos irrita,
vê-los só nos traz dor. Não se acham o método hinayana é se afastar da pessoa.
amarras naqueles sem seres bem ou mal No mahayana e no vajrayana há métodos
queridos." (Darmapada) Budistas se para gerar compaixão e utilizar essa
desapegam completamente de seus irritação no caminho.
familiares?
De toda forma todos os seres sencientes
O Darmapada é um texto ligado ao devem ser considerados nossa família
hinayana, a forma inferior de prática. No querida e próxima. Isso é comum aos três
hinayana as aflições mentais são atacadas veículos, hina, maha e vajra.
através do afastamento dos objetos que as
"produzem". Assim, se uma pessoa tem Como desenvolver-se espiritualmente
apego por sorvete de chocolate, ela não verdadeiramente, aprofundar-se em
pensa nesse sorvete, não chega perto do doutrinas autênticas e libertadoras ao
sorvete e assim por diante. ponto de poder auxiliar quem deseja, sem
deixar de pagar as contas, viajar com a
Além disso, é preciso considerar que o namorada, ajudar a mãe, estudar, trabalhar,
apego nos impede de efetivamente amar dedicar-se aos amigos?
essas pessoas, sendo algo que as reduz
como parte de nossa experiência – é o Nada disso é um impedimento, aliás, é parte
apego que aumenta nossa autoimportância da prática. A única coisa essencial para o
e que impede reconhecer o outro em sua caminho é encontrar um professor
diversidade e alteridade, e apreciá-lo de qualificado e tornar-se seu aluno. O grau de
forma incondicional. aprofundamento e o estilo de vida da
pessoa não são vinculados um ao outro,
Ainda assim, pessoas pelas quais temos mas à conexão com o guru e o próprio
carinho especial são aparentemente um carma da pessoa. Assim é imprescindível
obstáculo à prática da equanimidade. Mas gerar méritos, onde quer que se esteja.
no mahayana e no vajrayana lida-se com as
aflições mentais de outra forma. Em vez de Só é necessário mudar o estilo de vida caso
se afastar do objeto, a emoção é a pessoa, colocando as prioridades em
considerada em si mesma. Assim um ordem correta, e entendendo que ela, no
praticante do vajrayana pode ter um carro caso particular dela, não de todos ou
esporte — não é ele que determina seu qualquer um, não consegue praticar
apego. Se o carro for roubado, arranhado, e naquele estilo de vida. O melhor é não
o seguro não existir ou não cobrir, se ele mudar o estilo de vida, desde que ele não
sofrer, aí ele conhece seu apego. Se ele não seja conducente à desvirtude.
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Se não tivermos mérito, vamos acreditar em Para o mahayana, o Buda surgiu como
noções como "recursos", "distribuição" e homem nessa era pelo contexto cultural
assim por diante. Isto é, vamos estar onde surgiu, como uma manifestação que
reificando o sonho. precisa estar vinculada as expectativas dos
seres a serem treinados. Mas há uma
Qual a posição do Budismo sobre a questão infinidade de grandes praticantes mulheres,
bioética de produzir artificialmente novas bodisatvas mulheres e Budas mulheres,
espécies? considerados no mahayana.
Pode haver carma positivo, carma negativo No vajrayana, que se foca em sabedoria, a
e carma misto, ou neutro. Isso varia de mulher é claramente superior. Um dos 14
acordo com as intenções e meios daqueles samayas básicos do vajrayana é nunca
que se engajam em tais atividades, como considerar mal uma mulher, porque ela é
em qualquer outra. As únicas ações exatamente a sabedoria. Nos casais em
inerentemente negativas são aquelas união, o masculino representa compaixão e
desvirtudes de mente indistinguíveis dos meios hábeis, e o feminino, sabedoria.
próprios venenos/aflições mentais — Evidentemente, para as mulheres que
porque são irredutíveis: desejo, aversão e praticam vajrayana, o voto serve com
ignorância. relação aos homens - -mas a relação não é
simplesmente simétrica. Padmasambava
O que o budismo pensa da ecologia? claramente disse que, pelo vajrayana, a
mulher é capaz de atingir a iluminação mais
Em geral os mestres budistas rapidamente, e teve uma mulher tibetana
contemporâneos são extremamente como principal aluna, Yeshe Tsogyal.
voltados para a ecologia e redução de
impacto e consumo consciente. A maioria dos meus próprios professores é
mulher.
Um dos motivos pelos quais se toma votos
monásticos é diminuir todo tipo de impacto Há algum motivo para haver tão poucas
— interpessoal, no ambiente, em si mesmo. mestres mulheres, se compararmos com a
quantidade de homens? Seria apenas
No Budismo o homem é considerado cultural? Isso me chama atenção, pois, em
superior à mulher? geral, nas sangas há mais mulheres
praticando do que homens.
No hinayana, pelo Buda ter dado seu
exemplo como homem, houve certa No Brasil temos a principal figura no Zen, no
Vajrayana e no C'han chinês — as três são
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O budismo tem algo a dizer sobre a Como participar de competições, mas sem
preocupação das pessoas de hoje com os permitir que aflições mentais nos
problemas emocionais, de relacionamentos controlem? Quando competimos,
amorosos etc.? queremos ser superiores aos outros, não é?
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perder, mas com tornar o jogo interessante ordinárias, porém eficiência também não é
para o oponente. um valor por si só. Como nossa cultura
enfatiza demais a competição, pode ser
Quando não é assim, quando a competição adequado diminuir um tanto o valor da
se coloca como uma forma de estruturação competição de forma mais geral, para que
social — como é comum hoje em nossa retornemos a um nível de competitividade
sociedade — podemos simplesmente ser mais equilibrado.
cordiais, ter espírito esportivo, e nos
dedicarmos a ganhar, sem guardar qualquer O budismo é a favor da separação da igreja
tipo de má vontade para com os oponentes. (religião institucionalizada) e do estado?
Isso, na verdade, nos ajuda a focar a mente Caso sim, quão universal é essa tendência
e jogar melhor. Aprender a perder é no Budismo atualmente?
também importante. Isso vale para um
concurso público, por exemplo — em todos Acho que não são todas as formas de
os âmbitos onde há competitividade e budismo que seguem nessa direção, mas
estudo, de forma geral, especialmente se a em particular aquelas que querem dialogar
competição é com um grupo vasto e com o mundo moderno e continuar
diversificado, temos algo a ganhar ao nos existindo. A relação da sanga com o estado
aliar a competidores mais próximos. começou separada, e não tem motivo
Estudar juntos, por exemplo. Ao nenhum para ser melhor ou pior qualquer
guardarmos uma mente o mais livre de das circunstâncias. Existe perigo de
competitividade internamente, mais livres distorção das duas formas, mas o período
estamos para exercer nossas qualidades da atual no mundo determina que existe mais
forma mais vasta possível, e dessa forma possibilidade de liberdade e de prática
nossas chances aumentam. Podemos religiosa efetiva, mesmo budista, num
competir sem sustentar uma mente estado laico. Quando a religião se envolve
competitiva: isto é o melhor em todos os no estado, é uma perda principalmente
casos. Todos os treinamentos da mente vão para a religião, principalmente para os
ajudar a pessoa a ter mais liberdade perante religiosos, que tem que se ocupar de
nossos hábitos, inclusive a competição. miudezas de curto impacto espaço
temporal, e não da prática espiritual que
Algumas vezes começamos a competir perpassa milênios, dezenas de governos e
mesmo quando não há uma competição várias formas de governo — que dizer das
ocorrendo. pequenas picuinhas de um estado
democrático. Com a mente na vastidão e na
Por outro lado, seria também interessante profundidade, a política é como astrologia
que nossa sociedade não incentivasse a ou fofoca. É completamente abismal
competição exageradamente. Alguma considerar mestres que coadunam bem as
competição aparentemente aumenta a duas coisas, como Sua Santidade o Dalai
eficiência das buscas humanas mais Lama.
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trabalho forçado, ela possui uma liberdade Segundo o budismo, nosso próprio mundo
mental muito maior. também já esteve um pouco melhor. E pode
voltar a melhorar também. Ou pode piorar
Evidentemente, o budismo sempre foi muito. O próprio conceito de
contra utilizar animais para carga — que impermanência, junto com o conceito de
dizer de comer seus corpos? E, então o que carma, explica muita coisa.
dizer de explorar outros seres humanos, 1.2. Adaptações culturais
que são muito mais capazes de compaixão e
de fazer prática espiritual. Qual a visão budista a respeito da culpa?
De certa forma, uma pessoa que pratica o Vou assumir que você está falando do
budismo não pode nem mesmo prender sua sentimento de culpa, não de uma noção
atenção para algo neutro ou negativo por meio que jurídica de culpabilidade — de
um instante, porque ela está tirando a sua apontar responsabilidade.
liberdade de praticar naquele momento. Ela
só pode atrair sua atenção para algo No caso do sentimento de culpa, ele é
positivo para você e para todos os seres. totalmente desnecessário. Alguns
Que dizer então de desviar toda a vida da professores budistas falam em dois
pessoa para trabalhar para sua felicidade e problemas principais em seus alunos
a da sua família, sem nenhum benefício ocidentais, não tão comuns em asiáticos:
para ela ou para todos os outros seres? O baixa autoestima e sentimento de culpa —
budismo, assim, nunca defendeu a que podem estar vinculados um ao outro.
escravidão. Então são desafios novos para professores
orientais lidando com alunos ocidentais.
Se o Budismo é uma tradição superior e/ou
mais eficaz, por que vocês ainda não O que a pessoa mesma pode fazer é refletir
dominaram o mundo? na natureza das causas e condições, na sua
ignorância de causas e condições (se ela
Infelizmente o carma negativo da maioria soubesse que seria assim, ela não teria
das pessoas neste mundo permite muito agido), e assim usar isso como motivador
pouca felicidade. Porém, segundo os para grande compaixão por todos aqueles
ensinamentos budistas há mundos em que que agem motivados pelas aflições mentais,
a virtude e as raízes da virtude são causadas pela ignorância. Ao gerar essa
cultivadas extensivamente, mundos mais compaixão, ela se inclui juntamente com os
felizes — alguns inclusive sob direção outros.
budista, e que portanto permitem não só
circunstâncias gerais melhores, mas boas Por que aqui no Brasil não é tão comum os
condições para a prática espiritual que leva grupos budistas usarem músicas letradas
à iluminação. em português? Pergunto pois acho que toca
muito no interior das pessoas algumas
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músicas das tradições religiosas cristãs e mais das vezes recitar em tibetano. Práticas
sinto falta disso. sem métricas, feitas individualmente,
podem ser feitas em português sem
Falta de pessoas capazes no sentido prático, prejuízo.
liricista e musicista, que tenham realização
e sejam autênticos detentores de uma Com o tempo, quando muitos falantes do
linhagem. Vai levar uns 200 anos ao menos, português atingirem a realização, os textos,
e a forma musical dificilmente será popular, métricas e músicas vão finalmente poder
pelo menos na tradição tibetana ou no zen, ser adaptados fielmente para o português.
onde a formalidade na sala de prática é Isso deve levar um ou dois séculos.
essencial.
Estava lendo o "Livro Tibetano do Viver e do
Porque recitar mantras em tibetano? Não Morrer" de Sogyal Rinpoche, mas achei que
seria melhor recitar uma tradução? algumas coisas são muito enraizadas na
Entender o que está sendo dito não é própria cultura do Tibete, e complicadas de
importante? se entender nesse mundo ocidental de hoje.
Que interpretação posso fazer?
Não existem mantras em tibetano. Os
mantras não foram traduzidos para o Num período de transição, quando o
tibetano. Os mantras são em sânscrito, e budismo ainda não se estabeleceu bem na
cada sílaba tem uma longa explicação, nova cultura, temos que ter paciência, e até
tornando uma tradução impossível. Assim mesmo incorporar certos elementos da
os mantras são explicados, mas não cultura original.
traduzidos.
Eventualmente, depois de um par de
Já as práticas de sadhana muitas vezes são séculos, possivelmente o enraizamento é
feitas em tibetano (exceto os mantras, que suficiente para a questão cultural não ser
seguem em sânscrito) porque o tibetano um problema.
daqueles textos em particular está
impregnado das bênçãos dos praticantes do Eu mesmo, como não me sinto
passado. Além disso o tibetano é muito particularmente brasileiro, tendo desde
mais conciso do que o português, e existem criança vivido um mundo "globalizado" —
questões métricas e ligadas aos ou essencialmente norte-americano através
instrumentos musicais que tornam difícil da TV — não tenho nenhum apreço a
uma adaptação. Mas é muito importante nenhuma cultura particular. Assim, quando
saber o que se está recitando, por isso é alguma tibetanice me incomoda, eu só
fornecida uma tradução. A pessoa vai fazer lembro de tantas coisas que me incomodam
essas práticas todos os dias até o fim da na brasileirice, na norte-americanice, na
vida, então ela pode ocasionalmente cultura global moderna como ela é, e isso
estudar e relembrar em português e no naturalmente faz a paciência surgir, e a
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Que calendário os budistas usam? O problema é a noção de que algo exista "lá
fora", dentro do tempo e do espaço. Tempo
Vários. Só no Tibete uns três. e espaço só existem em função de avidia,
ignorância.
Que língua o Buda falava?
As bases epistemológicas da física são
Um dialeto próximo do páli, algumas vezes embasadas em avidia. O físico desenha seus
chamado de proto-páli. modelos e a partir dele desenha
experimentos e traça conclusões. Mas os
1.3. Budismo e ciência modelos que ele desenha são embasados
nas suas próprias concepções limitadas. Vez
Você poderia apontar o principal ponto de que outra há uma "revolução" na física,
convergência entre budismo e ciência? quando se percebe que os modelos já são
insuficientes. Você pode ler sobre isso no
A convergência é o método experimental, famoso livro de Kuhn, sobre a estrutura da
ao contrário de outras religiões onde você revolução científica.
precisa acreditar, no budismo você coloca
os ensinamentos a prova através da prática, Desde Aristóteles, o que a palavra "física"
em condições controladas, esperando obter significa mudou, e no século XX mesmo, já
os mesmos resultados de outros mudou bastante. Só na mecânica quântica
pesquisadores. Essa é a semelhança. há 5 modelos principais, contraditórios uns
com os outros, que explicam e permitem
"Não acreditem em qualquer coisa porque cálculos razoavelmente.
um sábio falou, porque se acredita em geral,
porque está escrito, porque é considerado O ponto principal é entender que o que os
divino ou porque outra pessoa acredita. Só físicos estão observando é determinado
acreditem no que vocês mesmos julgam ser pelas suas próprias condições de cognição
a verdade." É assim no Budismo? — seus hábitos, e enfim, avidia. É por isso
que ocorrem "revoluções" na física —
Foi o que o Buda disse e está registrado no porque ela é embasada em avidia.
cânone em páli, mais precisamente no Sutra
dos Kalamas. O cânone em páli é aceito por Mas, se você não for capaz de entender o
todas as formas de budismo. que significa dizer que não existe uma
realidade independente do observador.
A maioria dos cientistas aceita a Teoria do
Big Bang como válida. Segundo a maioria
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Assim, o darma não precisa se curvar Então, enquanto for uma teoria — e pode
perante o que são especulações. Sabe-se permanecer uma teoria virtualmente para
como fato coisas como a lua não ter luz sempre — e considerando que a
própria. Isso é certo. O Big Bang, por mais perspectiva budista sobre o tempo é um
aceito que seja, ainda é uma teoria. É pouco, hm, mais VASTA do que meros
especulação. Por mais próxima da realidade bilhões de anos....... não há problema. Se
que uma especulação seja, 99.999999% algo for comprovado, sobre o início do
ainda não são suficientes, é especulação, tempo (se é que algum dia surgir algo além
não é fato. Então, deixemos as de uma formalização sobre o tempo, mais
especulações de lado, nos fixemos em no sentido de uma definição bem
entender como é que a ignorância, que é adequada...) daí o budismo muda. Todo
uma qualidade da mente, produz tempo e mundo já concorda que, apesar do que o
espaço, estabeleçamos bases abidarma diz, a lua não tem luz própria. O
epistemológicas corretas, nos preocupemos budismo segue a evidência empírica acima
com o sofrimento, que nos é diretamente da inferência.
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movimentação atual dos corpos? A não capacidade de praticar algo melhor. Agora,
localidade de leis físicas, por exemplo, não a epistemologia budista, e o jeito que o
é algo comprovado, mas todos nós, budismo trata doutrinas filosóficas como o
inclusive eu, só conseguimos pensar em leis idealismo e o realismo, em debate, pode
físicas que funcionam uniformemente — ou ajudar a filosofia da ciência, eventualmente.
pelo menos variam uniformemente — de Não que isso seja relevante para o budismo
acordo com o espaço e tempo. Leis mais do que uma boa publicidade
descontínuas, leis como leis dos estados momentânea com o que parece ser mais
norte-americanos — para usar uma respeitado na contemporaneidade.
metáfora — são inimagináveis, e, com
certeza, para um físico, é indesejável pensar Quando eventualmente se diz que a Lua
nesses termos. Por enquanto, quando o tem luz própria, isso não pode ser algo
espaço se curva, nós adequamos essa espiritual e não material?
curvatura às leis — isto é, fazemos
emendas. Mas quando a física tiver uma Uma metáfora? O abidarma é uma
nova revolução, nós vamos ver um conceito categoria de textos que lida com o sentido
central como esse (não necessariamente direto. A interpretação dos textos budistas
esse) ser quebrado, e então vão mudar a segue algumas escolas, mas nenhuma delas
maioria dos modelos em várias áreas da diria que o que o abidarma está dizendo é
física. O realismo ou instrumentalismo, metafórico. Sua Santidade o Dalai Lama
dependendo da ciência, nunca são disse que o abidarma é retificável. Quando
desafiados — "isso é coisa de filósofo" era o a categoria sutra, com certeza ali seria mais
que eu ouvia na física — se os cálculos difícil admitir um erro — mas, ainda assim,
fecham, ou é porque é assim ou é porque é segundo o próprio ensinamento do Buda, se
suficiente. Mas aí não tem explicação há evidência empírica, a evidência vale mais
efetiva nenhuma, e de fato, para quem do que o suporte textual. Por sorte há
conhece, já se sabe que o papel da ciência é poucas afirmações de verificação empírica,
cada vez menos "explicar". Enquanto não é pelo menos como a entendemos hoje, na
falsificado, é aceito — é assim que alguns categoria sutra.
teóricos dizem que funciona a ciência. Mas
em geral esse "aceito" é popularmente 1.4. Budismo e filosofia
considerado muito mais do que isso, e é por
isso que as pessoas tomam a ciência como Há alguma relação entre a alegoria da
tomam a religião, por seus hábitos. caverna do filósofo Platão e o Budismo?
A maioria das críticas contra a religiosidade Segundo o budismo todas as coisas estão
o budismo até pode partilhar — embora, interligadas, então "alguma" relação existe
por compaixão, muito do budismo entre qualquer coisa com qualquer outra
pseudoteísta seja adequado de ser coisa. Se existe uma relação especialmente
ensinado, para pessoas que não tenham significativa, daí é problemático, porque
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assim, há alguma forma de manipular o meu terras puras. Algumas pessoas, por outro
sonho-realidade? lado, purificam a visão e conseguem
rapidamente se reconhecer, ainda com este
Sim, mas não pela mera vontade: este tema mesmo corpo, vivendo numa terra pura.
new age é um sintoma de transtorno Algumas pessoas, especialmente aquelas
psiquiátrico — o pensamento mágico. vivendo em centros de darma, podem dizer
da boca para fora que vivem numa terra
As escolas realistas, que acreditam numa pura (e que "lá fora" é o samsara), mas é
realidade externa separada, são verdade alguns praticantes, e em particular
consideradas inferiores. Os idealistas, para alguns professores, evidentemente
quem tudo é mente, são os intermediários. transformam onde quer que eles estejam
No ápice, o caminho do meio, "externo" é numa terra pura. A presença de alguns
aquilo sob o que não temos controle — o grandes professores é suficiente para
que inclui boa parte de nossa mente no transformar de tal maneira nossa
momento, totalmente vinculada a hábitos e percepção do sonho que somos
tendências — ao ponto de termos que naturalmente apresentados à mandala.
"querer querer" algo, para só então Algumas vezes essas bênçãos duram
começar a treinar nossa mente. Então, algumas horas, outras vezes, alguns meses
obter controle sobre a própria mente é o — e é por isso que é necessário estabilizar
primeiro passo, e isso se coaduna com essa percepção pura (o voto central do
todos os três tipos de escolas: as realistas, vajrayana) através da prática regular, de
as idealistas e as além dos extremos. forma que ela se torne ininterrupta por
vidas a fio, até a iluminação.
É fácil entender que, se, no budismo, o
resultado do carma constrói o sonho, se Porém, muito mais importante do que
você quer ter sonhos bons, você age sem manipular o sonho é o estado de lucidez que
prejudicar os outros, e, pelo contrário, os reconhece o sonho como sonho
ajudando. Assim a ética e a compaixão, ininterruptamente. Assim, como as duas
através da geração contínua de méritos, asas de um pássaro são necessárias para ele
produzem mudanças internas: maior voar, no budismo acumulamos mérito e
contentamento, felicidade; e externas: sabedoria. Não apenas uma coisa, nem
numa mesma vida a pacificação das somente a outra.
relações e o encontro de boas
oportunidades — e nas vidas futuras corpos A realidade não é consistente demais e o
e paisagens melhores. universo não é grande demais para ser um
sonho?
É claro que manipular a realidade através da
geração de méritos, dependendo de quão É "como" um sonho, o sonho da noite é uma
sólidos são nossos carmas, pode levar das analogias que se usa para explicar a
tempo — mas termina por produzir as vacuidade e a interdependência. E a
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Além disso, o fato de que o sofrimento não Não existe. Os gregos encontraram o
é natural, mas possui uma causa — uma das budismo muito depois, e se converteram. Lá
quatro nobres verdades — por si só já pelo século II antes de Cristo, em regiões na
demonstra que o sofrimento não é a Índia continental dominadas por Alexandre,
realidade última das coisas, e sim só a como a Báctria. O que os gregos antes do
realidade temporária, enganosa, século II chamam de gimnosofistas foram
corriqueira, em que normalmente, por provavelmente hindus.
confusão, estamos imersos.
Algumas vezes, devido a essa conexão com
O que você acha de Nietzsche? Como o os gimnosofistas, o ceticismo pirrônico é
budismo responde as suas criticas? comparado à madhyamaka.
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eterno retorno não é necessário ou pelo menos de acordo com Nagarjuna. Elas
menos provável? também não acontecem no presente. É
nossa ignorância que projeta a experiência
O Buda não respondeu sobre nenhuma das cíclica, que é portanto uma mera aparência,
duas afirmações, se os seres são finitos ou e uma falsidade. Nós sofremos porque
infinitos, e se o tempo é com ou sem fim. reificamos essa falsidade como real.
São duas das 14 questões que ele não
respondia. Quais eram as 14 questões que o Buda não
respondia?
Além de qualquer consideração sobre se
isso pode ou não ser sabido, se o Buda era Elas podem ser resumidas em quatro: o
ou não capaz de responder, e assim por mundo é eterno? o mundo é finito? O eu é
diante, a consideração central é que essas idêntico ao corpo? O Tatágata (o Buda)
perguntas e possíveis respostas são existe depois que morre?
irrelevantes para o método, e o método
(para atingir liberação) é mais importante Há uma cosmogonia budista?
que informação, verdade, conhecimento.
Essas coisas são subjugadas ao método Há problemas epistemológicos inerentes ao
(darma), e só nessa medida são de valor. Em falar de surgimento, mas, assim, por
outras palavras: o budismo é diversão, para explicar como surgem e
inescapavelmente não especulativo. cessam cada um dos fenômenos ilusórios
puros e impuros — dentro do escopo da
Já que o carma é uma experiência cíclica, separatividade, ou pelo menos de um uso
então é correto afirmar que todos as ações da linguagem que está no limiar entre a
e reações são previsíveis? Que sempre separatividade e a inseparatividade —, há
aconteceram e sempre acontecerão? talvez milhares de pseudocosmogonias
budistas. Cada um dos tantras tem uma
O carma não é uma experiência cíclica. O diferente, que concerne a formação da
carma é uma característica da experiência mandala no estágio de desenvolvimento.
cíclica. Ademais, a experiência é cíclica Existe um paralelismo entre a prática
porque tem altos e baixos indefinidamente meditativa do vajrayana e o que eu
alternados, não porque as exatas mesmas chamaria de pseudocosmogonias, porque
coisas se repetem (como num "eterno elas não explicam o surgimento de um
retorno"). As reações são previsíveis em mundo, mas a coemergência da sabedoria e
termos das ações, mas as ações são da compaixão.
indeterminadas. Tudo aqui diz respeito ao
sonho. O famoso exemplo da pessoa que está com
uma flecha enfiada no olho (representando
No estado desperto as coisas nunca a insatisfatoriedade do samsara) e se
aconteceram e nunca acontecerão, pelo preocupa com frivolidades, foi dado pelo
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Buda em resposta a uma pergunta sobre Se você quiser usar essa terminologia, você
cosmogonia. Então, parece, existe algo de pode claramente dizer o seguinte: o
frívolo (talvez exatamente por haverem budismo não se ocupa de contar a verdade
problemas epistêmicos inerentes) nesse sobre as coisas, mas dos métodos que
tipo de questionamento. permitem a alguém ver a verdade das coisas
por si só.
É possível "experimentar a verdade" sem
ser iluminado? Como? O budismo não se ocupa de dizer, e sim de
fornecer um método para que a pessoa
Sim, é verdade que esta sentença é possa fazer, ver, por si própria. A ideia de
composta de letras. Uma verdade como que alguém possa contar algo sobre a
essa, e muitas outras, nada tem a ver com natureza última para os outros é a base da
iluminação. O conceito de verdade não tem escola svatantrika, que é inferior a escola
interesse a não ser no sentido de que prasangika, na qual o método não tenta
devemos ser pessoas honestas e sinceras de forçar ao outro nada senão o próprio
forma a podermos beneficiar os outros. método — este modo é considerado
superior por ser mais compassivo, mais
O Budismo despreza a verdade e está mais elegante e mais acurado.
preocupado com resultados?
Mas mesmo as formas realistas do
Verdade com "v" maíusculo é meio hinayana, inferiores, não promovem uma
perigoso. A verdade, essa de que a palavra noção de verdade substancial. Isto é, a
verdade começa com v, não é de forma vacuidade e a interdependência impedem
alguma desprezível. É a base da toda e qualquer noção de verdade com "v"
honestidade e da sinceridade. Por outro maiúsculo que possa ser expressa, e toda
lado, o que o budismo despreza é a noção noção de verdade com "v" minúsculo é
de um conhecimento de lastro privado, isto meramente o modo comum, não espiritual,
é, uma fórmula interna que alguém pode de lidar com o mundo. (A verdade de que a
obter, e que com um clique, entende as palavra mundo começa com "m", esse tipo
coisas do mundo. Isso o Buda não ensinou. de verdade, não tão... emocionante...
O que o Buda ensinou é um método para quanto a "verdade da ausência de
revelar a realidade — segundo ele vivemos existência intrínseca do eu" — essa sim,
em um engano de massa com relação ao fornecida em método, não mastigada.)
que há de fato. Este o que há de fato
algumas vezes é chamado de verdade, mas O estado desperto intríseco da mente, a
essa terminologia cria confusão com o natureza de buda, não é uma verdade
nosso uso vulgar e corriqueiro da palavra absoluta?
verdade, ou com um uso meio místico do
termo. Não é nenhuma das duas coisas. Às vezes se usa a expressão "verdade
absoluta" para designar a natureza da
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Se eventualmente através da sua prática, Modos tácitos, modos sutis, modos não
ela obtém garantias da factualidade dos verbais, modos tácteis, modos gustativos,
experimentos que ela estava modos diretos. O debate é para pessoas
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Que evidência concreta você tem de que o Foi dito que a inexistência de deuses é
Budismo é uma doutrina mais ou menos comprovável pela razão. Entretanto, já vi
verdadeira e não apenas um elaborado muita gente usando o mesmo argumento a
sistema teórico sem fundamento mas capaz favor da existência de deuses (geralmente
de iludir muitas pessoas? teólogos e filósofos católicos). Poderia
aprofundar essa questão?
Minha própria prática, isto é, os
experimentos que eu próprio executei e os Segundo o budismo, existem deuses. Isto é,
resultados que verifiquei por mim mesmo. criaturas com poder e inteligência maiores
do que a humana, e que os humanos não
Levando em conta que a razão tem limites e veem. O que é incompatível com a
pode não alcançar certas verdades, você inferência e experiência budista é a
não admite a possibilidade, mesmo que existência de um criador. Isso pode ser
remota, de sua visão sobre a existência de estudado em tratados madhyamaka como o
um Deus pessoal criador e sobre a verdade Madhyamakavatara de Chandrakirti. Mas só
mais profunda do Budismo poderem estar se a pessoa tiver interesse e grande
equivocadas? disponibilidade de tempo.
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Agora, o importante, porque, independente "As duas coisas não podem ser o caso."
do mérito desses arrazoamentos, que só Talvez. Mas hoje em dia as coisas parecem
poderiam ser avaliados por eruditos, é não ser mais bem assim, com o advento das
entender que existem esforços constantes lógicas heterodoxas. O gato de Schrödinger
no budismo que demonstram como a está morto ou está vivo?
interdependência é contraditória com
criação. Isto é, pode-se até dizer que a Um problema epistêmico não é justificativa
definição de interdependência implica para valer qualquer coisa, particularmente
necessariamente a ausência de criação. do uso das palavras. No budismo a
Entendendo isso e que dedicação de experiência vem em primeiro lugar, depois
méritos exige interdependência, pode-se a inferência, mas nada disso indica ou
entender como certas crenças impedem a possibilita abuso da comunicação. Se duas
dedicação de mérito. A pessoa pode com pessoas querem dialogar, elas precisam
certeza desenvolver boas aspirações e gerar estar de comum acordo. Uma expressão tal
méritos independentemente das crenças como "círculo quadrado" não corresponde
que sustente — mas dedicação de mérito a nenhum objeto em nenhum mundo
exige sabedoria, e o reconhecimento da possível. Se você quer chamar sua banda de
realidade como ela é, além de ser rock de "círculo quadrado", nesse caso,
particularmente incompatível com algumas como nome próprio você vai ter um objeto,
visões errôneas. que em nada diz respeito aos objetos
geométricos "círculo" e "quadrado".
O budismo não pode ser tomado Quando você sabe o que é um círculo e o
separadamente, em parte, e apropriado por que é um quadrado e você quer falar de
outras tradições. Se um teísta diz que círculos quadrados, então, baby, você só
dedica méritos, então ele faz outra coisa — está usando palavras, você não está dizendo
talvez até uma coisa boa e meritória —, mas nada.
não o que o budista chama de "dedicação
de méritos", pelos motivos apresentados Para o uso da comunicação ser ético, ele
acima, que são coerentes mesmo se o precisa ser coerente. Ele não precisa ter
teísmo for possível, e for o caso — nesse uma coerência que você aceite, mas ele
mundo (um mundo impossível), a dedicação precisa ser expresso como algo coerente —
de mérito não seria possível. Então mesmo ele precisa ter essa pretensão. Muitas
que uma pessoa sustente o teísmo ela pode pessoas confundem o "além da linguagem"
entender o que é incompatível com o no budismo como desculpa para o simples
teísmo, no caso, a interdependência é irracionalismo. Duas proposições
incompatível com o teísmo — ou uma coisa contraditórias não podem ser verdadeiras
ao mesmo tempo não por nenhuma
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questão ontológica — mas pela simples estuprou. É que nem o gato de Schrödinger"
ética da comunicação entre duas pessoas. Isso é desonestidade, uso da ignorância
Lógicas que violam a não contradição para se dar bem, nem que seja para parecer
mantém outras características incomuns no que, após ter sido derrotado por uma
uso do discurso natural, e elas tem usos argumentação, a pessoa pense para si
específicos, mas não na conversa entre as própria que pode continuar se
pessoas — e, de fato, você ao falar com considerando correta.
alguém, em termos budistas, não deve usar
a própria lógica, mas a lógica do outro. Só Além disto, essa atitude gera o sectarismo e
que, se não houver lógica, e essa é uma a intolerância religiosa — porque a
possibilidade muito mais comum — que se diferença não é motivo de cordial debate,
esquiva se desculpando com a ideia de mas motivo de real separação, já que o
lógicas não tradicionais (sem nem sequer outro não é participante do discurso: não
entender o que isso implica) — , não há existe mais a possibilidade de um critério
comunicação. Não permitir comunicação é comum de diálogo. Portanto, essas são
um desrespeito. algumas das mais nefastas ideias da
modernidade, que acabam com o valor de
E, de fato, em qualquer coisa que importa, qualquer discurso, e assim acabam com o
se você usar argumentos de física quântica valor de qualquer darma que possa ser
new age, que confundem problemas expresso para benefício dos seres.
epistêmicos com "vale tudo" e mero
relativismo, quando chegar suas contas pelo Os debatedores budistas poderiam ter
correio você talvez tente ir para o universo assumido a postura de "bom, eles nem tem
paralelo onde você não deve nada. Já que os como seguir a nossa lógica", mas em
dois são iguais, e simultâneos, e a realidade Nalanda eles estudavam a lógica dos outros.
é contraditória, por que pagar contas? "Eu Estudavam a lógica das centenas de escolas
não paguei porque a realidade é hindus e usavam a lógica deles na
contraditória", você diz no banco. Um argumentação com eles. Agora, se o
assassino também cometeu ou não um oponente não tem uma lógica, então ele
crime, então porque colocá-lo na cadeia? — não é aberto para comunicação, e aí, só
ou uma pessoa lesada num ação cívil: a rezando. Felizmente é fácil entender que a
mulher sem receber pensão e o marido diz palavra "verdade" possui valor na
"doutor nós estivemos e não estivemos comunicação humana: significa sinceridade,
casados, simultaneamente, então eu honestidade. Uma pessoa precisa assumir a
escolho não estar casado, e por isso não consequência do que está dizendo, caso
preciso sustentar meus filhos". "DNA? contrário é o mesmo que falar com uma
Embora o laboratório tenha dado 99%, parede.
mesmo que fosse 100%, o estuprador
poderia ou não ter estuprado — Ademais, estritamente falando, se você
simultaneamente ele estuprou e não quer usar o experimento de pensamento de
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Schrödinger, que é uma área que por acaso criação não podem coexistir" é baseada na
eu conheço um pouco, você precisa ser mera definição de interdependência. É o
confrontado com o fato de que há 6 mesmo que dizer que um círculo não pode
interpretações da mecânica quântica que ter duas medidas de raio, já que a definição
resultam em cálculos adequados. E, se uma de círculo é pontos equidistantes do eixo. Se
delas estiver correta, todas as outras 5 não a pessoa alega como desculpa para o erro
estarão corretas — ou... então a perspectiva prova de sexta série que a geometria não
é puramente instrumentalista: a física não euclidiana ou algo assim tem um outro tipo
explica as coisas teleologicamente, muito de círculo, e quer ganhar a nota: bau-baus
menos determina critérios epistêmicos: ela para ela. Quando falamos círculo, no
simplesmente calcula corretamente ou não. contexto da linguagem ordinária, na sexta
Se o instrumentalismo é o caso, onde mais série, e assim por diante, não é de um outro
do que uma das interpretações pode ser uso da palavra. É daquele uso, naquele
utilizada, foi-se o tempo que a ciência contexto. Não se aplicar no contexto, é
determinava como as coisas são — é isso desonestidade, falta de compaixão, e assim
que as "revoluções" na física tem a dizer. Ou por diante. Para falar com os outros, que
seja: ou a física calcula e não fala da dirá beneficiá-los através da fala, é
realidade, ou ela não consegue um critério necessário partilhar o contexto.
epistêmico para determinar qual, entre
teorias contraditórias, representa a É verdade que os lamas adquirem
realidade. Isso não implica, de forma "conhecimentos" através da meditação que
alguma, que a comunicação entre as nem é possível descrever com palavras?
pessoas não funcione por seu critério óbvio:
é verdade que há um gato sobre o tapete se Sim. Não só os lamas, mas qualquer
e somente se há um gato sobre o tapete. Se praticante sério. Na verdade, até mesmo
ela me der seis caminhos para o posto, eu qualquer um de nós, quando entra em
sigo um dos seis, não os seis ao mesmo contato com um dos objetos do sentido,
tempo. Se eu preciso saber onde fica o uma bala de limão, por exemplo, só usa a
posto de gasolina, e a pessoa a quem eu expressão "sabor de bala de limão" para
pergunto deliberadamente me desvia do explicar, imperfeitamente, a experiência
posto, eu chamo essa pessoa de desonesta. direta do sabor da bala de limão. O sabor,
Da mesma forma, tergiversar para supostas ele mesmo, é impossível de descrever
dificuldades epistêmicas quando se está (perfeitamente) com palavras. Então é claro
falando de simples definições, é uma que há sensações, mundanas mesmo, não
amostra de, ou completa ignorância, ou da meditação, que são mais difíceis de
simples desonestidade. descrever — e há aquelas que podemos
dizer "indescritíveis". O próprio fato de
Uma coisa é a pessoa ser convencida, a usarmos esse adjetivo para certas
outra é ela aceitar o diálogo. Uma experiências, dele existir, evidencia o fato
proposição como "interdependência e óbvio de que estas experiências existem. É
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só uma distorção muito grande da língua, compassivas. Eu quero treinar mais e mais
uma distorção filosófica, que pode começar nelas.
a pressupor a existência apenas de
fenômenos descritíveis. A natureza da comunicação dos
ensinamentos é um dos meus tópicos
Você já teve "revelações" sobre o mundo ou favoritos, e mesmo na filosofia eu me
coisa do tipo que você não conseguiu interessava muito por Wittgenstein, que
explicar nem para si mesmo? Estas lida com o exato mesmo problema. Na
revelações devem ser compartilhadas? forma superior no budismo, que é a
prasangika madhyamaka, não se opera com
Nem pensar, se você não pode "explicar" nenhuma teoria que o "oponente" não
para si mesmo, é porque não tem nada para tenha ele mesmo proposto. Em outras
entender. Mas é muito frequente eu palavras, do lado da madhyamaka não se
entender algo que acho difícil explicar, pode guardar nenhuma substancialidade,
porque isso depende muito do que o outro não se pode fixar, muito menos apegar-se
entende das minhas palavras. Isso é muito, por nenhuma teoria própria, apenas refutar
extremamente frequente, mesmo antes do tudo o que puder ser refutado, de acordo
budismo, muito antes da meditação. com o que é apresentado. O próprio modo
de refutação utilizado é o ensinamento
Algumas vezes é até mesmo irônico, porque sobre a vacuidade, que o outro porventura
enquanto você até acredita que está pode vir a realizar, mas sempre por si
entendendo a pessoa, se ela está com mesmo, não como algo que é entregue
muitas aflições mentais, o que é bem como uma teoria mastigada.
comum, num ponto da conversa ela pode
assumir outra teoria de mundo, Então, sempre o que se fala se deve falar
incompatível com a que ela mesma para o outro, não deve existir nenhum
começou. E daí você está numa sinuca de conteúdo de conhecimento próprio,
bico, porque se você muda a argumentação privado, e isso é sabedoria.
de acordo, ela pode voltar para a primeira
teoria. Então frequentemente eu faço Se buda era perfeito, imagino que ele tinha
malabarismo com 3 ou 4 visões que a a retórica perfeita. Por que ele não
pessoa me apresenta, e que eu veria como convenceu todo mundo?
incompatíveis, mas que eu tenho que tomar
cuidado para não fazer com que ela me O carma dos ouvintes os impediu de ouvir
entenda mal, ou que ache que eu não a de forma perfeita a ausência de retórica do
entendo bem. Mas com o tempo a pessoa Buda — que é a perfeição da fala.
aprende certas habilidades de debate para
debater com quem não sabe debater. Elas Existem perguntas no budismo que faltam
são muito importantes e muito ser respondidas? Algo a que grandes
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aquele aspecto *na verdade* ele estava estar ciente dela, a isso chama-se apenas
revelando tal e tal aspecto que é oculto dele "ignorância".
mesmo" — é esse o aspecto de inconsciente
que não existe no budismo: uma rede de Por outro lado já vi alguns professores
conexões factuais e simbólicas, pessoais, conceituados, especialmente no zen, vez
onde seria talvez possível encontrar certas que outra usarem a nomenclatura. Mas não
relações ocultas do consciente da pessoa, sei até que ponto vão seus conhecimentos
que teriam ou não um efeito terapêutico se de psicologia ocidental e até que ponto eles
reveladas ou trabalhadas por um terapeuta usam o termo na acepção correta.
que as reconhecesse.
O conceito junguiano de "sincronicidade",
Nesse sentido, pode até haver simbolismo, coincidências aparentemente muito
mas, novamente, ele não é pessoal — e do significativas, se encaixa de alguma maneira
ponto de vista da prática do darma, ele é no Budismo?
irrelevante. No caso dos conteúdos de
clareza (premonitórios etc.), nesse caso ou Para alguém que detém sabedoria
não há simbolismo, ou esse simbolismo é completa, todos os fenômenos podem ser
também público. O que é importante é que vislumbrados completamente em um único
mesmo nesse segundo caso, enquanto fenômeno particular qualquer. Isso
práxis, pode haver diferença entre as corresponde aos conceitos hindu da rede de
escolas e professores. De forma geral Indra e matemático de supersimetria.
podemos dizer que não faz parte do darma
propriamente dito, e a atitude com relação Para quem tem sabedoria parcial, alguns
a esses elementos pode ser mais ou menos fenômenos podem parecer ter mais relação
aceita no contexto laico, e algumas vezes é com outros, e isso pode ser usado também
aceita como prática puramente mundana como um meio hábil.
no contexto religioso.
A noção de interdependência diz respeito a
Resumindo, alguma ideia de inconsciente como todas as coisas dependem umas das
coletivo (com restrições) pode se encontrar outras, e portanto qualquer coisa contém
em alguma tradição budista (cittamatra). qualquer outra coisa. Para tornar isso útil no
Também alguma interpretação, mas caminho espiritual, no entanto, é
pessoal e no contexto mundano, não da necessário desenvolver as qualidades
prática do darma (isto é particularmente incomensuráveis e as paramitas.
importante no contexto da meditação,
onde os conteúdos mentais específicos que Carl Jung foi um importante estudioso do
surjam não interessam). O fato de que budismo, do taoísmo e da alquimia chinesa.
exista uma dimensão inteligente que opere Para ele a supressão do ego seria prejudicial
dentro da mente da pessoa sem a pessoa ao ocidental no processo de individuação,
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Não cuidar da nossa saúde gera carma Há uma infinidade de práticas físicas no
negativo? budismo. As principais e mais acessíveis são
a circumambulação (caminhar ao redor de
Sim. E, em particular, se praticando o monumentos sagrados) e a prostração, mas
mahayana ou o vajrayana, os votos há a dança dos lamas (algumas que são
específicos contra não agredir o próprio bastante extenuantes, e cuja indumentária
corpo são mais enfatizados, e o carma pesa muito) e uma série de práticas de
negativo é ainda maior do que se praticando postura e movimento ligadas a fisiologia
o hinayana, e um não praticante produz sutil, como na hatha ioga. Porém todas
menos carma negativo ao agredir o seu estas práticas requerem alguma instrução e
corpo do que um praticante, mesmo do a recomendação de um lama. As
hinayana — porque além de ser um prostrações são em geral a primeira prática
senciente que merece cuidado, além disso de muitas pessoas.
ele é um relicário dos ensinamentos do
Buda. Budistas em geral podem praticar qualquer
esporte que não seja violento demais nem
O Budismo recomenda alguma atividade ponha em risco a saúde dele ou de outro.
física específica? O Dalai Lama pratica
algum exercício físico (como corrida, Num sujeito que esta sentindo muita dor, a
natação, futebol...)? liberdade seria em apenas reconhecer que
dor é apenas dor e por isso não sofrer pela
Sua Santidade o Dalai Lama tem mais de 70 dor? Ou conseguir erradicar a dor?
anos de idade, mas realiza 300 prostrações
por dia. É sua primeira prática pela manhã, Existem vários graus de liberdade perante a
as 4h30. Para terminar essas prostrações dor. Se a pessoa puder simplesmente evitar
em tempo hábil é necessário um a dor, porque não fazer isso? Não existe
condicionamento físico muito bom. Há nenhum sentido em deliberadamente
praticantes que fazem até mais de 2000 por sentir dor. Se a dor é inevitável, existe muita
dia. Mas em geral qualquer praticante sério diferença entre alguém que simplesmente
do vajrayana faz de 25 a 100, pelo menos. se desespera e alguém que consegue operar
Essa pratica envolve descer ao chão, sem em meio a dor. Isso pode ser treinado, como
ser tão bruscamente que possa machucar, o qualquer exército do mundo vai
que exige força nos braços (se você reparar, demonstrar. Dentro das pessoas que
todos os monges tem braços fortes) se conseguem estar com dor intensa e não
estirar completamente à frente, e então perder completamente o uso coerente de
retornar a ficar de pé. Evidentemente é uma suas mentes, existe muita diferença entre
prática e existe uma oração a ser recitada e aquele que consegue se manter ético e o
uma visualização a ser feita. que não consegue. E entre os que
conseguem se manter éticos, existe muita
diferença entre o que consegue
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desenvolver compaixão e o que não apenas uma ideologia nossa, ele está muito
consegue. Naqueles que conseguem arraigado em hábito, e esse hábito
desenvolver compaixão, existe muita engendrou estruturas fisiológicas capazes
diferença entre aquele que consegue de sentir dor. Os nossos limites corporais de
reconhecer inseparatividade-vacuidade, e o dor e prazer são artificiais, criados por
que não consegue. hábito, e bastante estreitos: existem dores
muito piores do que as que os seres
Existem muitas histórias de tibetanos humanos sentem, bem como prazeres
torturados pelos chineses, por décadas muito mais duradouros e intensos. Nossa
após a invasão — algumas delas são experiência é um bocado estreita. Mas
contadas no documentário Cry of the Snow mesmo uma experiência mais ampla ainda
Lion. Um grande lama foi amarrado a um é uma experiência condicionada.
cavalo, mas mesmo sendo arrastado pelas
pedras e quebrando alguns ossos e dentes, Ademais, existe liberdade perante qualquer
ele manteve a compaixão, e cantou, estrutura fisiológica e qualquer hábito que
enquanto pode, algumas canções de gera essas estruturas. Então, para ir além da
realização — isentando os torturadores e de dor, não basta pensar algumas coisas
fato lhes prestando homenagem como espertas e corretas, é preciso penetrar no
professores que vieram para purificar seu tecido desses hábitos e desfazê-los. Isso não
carma. Mas a maioria de nós sofre dor como é trivial, mas é possível. É possível superar
os animais: sem nenhuma capacidade de completamente o vínculo com esses hábitos
transformar isso em prática espiritual. que geram essa fisiologia e a reificação
dessa fisiologia.
Evidentemente que para alguém que pensa
que as coisas são um sonho, mas não tem Mas, se a pessoa é cética, basta ver que em
realização nenhuma da realidade das coisas situações menos limite, a liberdade
como além de um sonho, tudo é o mesmo. também está presente. Qualquer pai sabe
A dor de sonho é a única dor que se sente. que a dor da criança depende muito da
E ela é bem real para nós que reificamos as atenção que a criança dá a dor: você desvia
aparências, em especial o nosso corpo. Para a atenção da criança com um brinquedo e
alguém que alcançou a realização de ver o ela esquece e para de chorar. Esse é um
sonho como o sonho, ou algo dessa mecanismo muito óbvio que demonstra a
realização, é mais uma coisa que acontece, nossa liberdade e ausência de liberdade
e dependendo da profundidade dessa perante a dor.
realização, com que pode conseguir lidar
melhor ou pior. Tenho um diagnóstico de transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade, por isso
O importante é entender que a dor é uma tenho uma enorme dificuldade em meditar,
experiência essencialmente falsa: ela vem relaxar, me organizar e colocar coisas em
do nosso apego ao corpo. Esse apego não é prática. Existe tratamento medicamentoso
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para isso, mas será que a prática budista condições. A maioria das pessoas não vai ter
também poderia me ajudar? o menor interesse no budismo, e esse é o
maior obstáculo.
Algumas pesquisas evidenciam que sim. No
entanto é critério do seu professor dizer se Como pessoas com problemas psicológicos
no seu caso é possível já praticar meditação, (que necessitam de remédio) podem atingir
ou se o melhor é apenas o medicamento, ou iluminação? Depender de remédios não é
ambos, ou alguma outra coisa. estar preso?
O que budismo conhece sobre os A esmagadora maioria das pessoas não tem
pensamentos repetitivos, como os que interesse no darma. Entre as que tem
ocorrem no Transtorno Obsessivo- interesse, algumas não vão ter possibilidade
Compulsivo? A prática pode minimizar o de praticar — por circunstâncias diversas
sofrimento dessas pessoas? como não ter tempo, ou outras
circunstâncias que podem ser obstáculos
A prática budista serve para eliminar todo e fáceis ou difíceis de remover. Entre as que
qualquer sofrimento, mas ela se foca tem interesse e possibilidade, muitas vão
principalmente nos sofrimento mais gerais encontrar obstáculos na prática e a
e mais comuns — com sofrimentos mais iluminação vai ainda levar várias vidas.
específicos, como consertar o motor de um
carro ou transtornos psiquiátricos, o melhor As pessoas que têm doenças que impedem
é buscar uma ajuda específica. a prática do darma têm obstáculos que
podem ou não ser removidos nesta vida,
De forma geral, a prática budista pode mas que em vidas futuras poderão com
ajudar num TOC, ou até pode piorar um TOC certeza ser removidos. Assim, a pessoa
— se ela não for bem prescrita e pratica o que conseguir, e qualquer mérito
acompanhada. Isso vai depender da e conexão que ela possa obter, vai ajudar
habilidade do professor e da capacidade do ela nessa e em vidas futuras a seguir
aluno de aplicar as instruções. praticando o darma e eventualmente atingir
a iluminação.
Uma pessoa cega e surda pode praticar o
budismo? Para o budismo, qual deveria ser o destino
dos serial killers, uma vez q não há cura para
Depende de quanto ela é capaz de se a psicopatia? Deveriam pegar prisão
comunicar, e de encontrar um professor perpétua e trabalhar na cadeia?
capaz de se comunicar com ela. Se o grau de
deficiência dela não permite que ela se O Buda teve um aluno, Angulimala, que foi
comunique, então dificilmente ela vai um serial killer. Não existia, é claro, um
conseguir praticar. Mas a pessoa nem diagnóstico psiquiátrico de psicopatia
precisa ser deficiente para não ter essas naquela época. Em se tratando de muitas
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Os termos na verdade são três: prana, nadi Se não funciona conosco, com relação ao
e bindu. Ventos, canais e gotas. O estudo da apego ao eu e a reificação das aparências,
fisiologia sutil pode explicar vários tipos de porque funcionaria com ela? Se nós já
doenças e perturbações, bem como ajudar estamos acreditando em coisas absurdas o
um professor a prescrever práticas tempo todo, porque se encasquetar num
específicas. Mas em geral isto é medicina
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absurdo muito menor, comparativamente visões parciais — que não sejam Budas —
falando? podem ajudar e curar, claro que não em
todos os casos, mas em alguns casos — pelo
"Interessa o que se pode fazer pela pessoa." mérito deles e o mérito dos pacientes.
Mas o que se pode fazer pela pessoa
depende de se o demônio está lá ou não. Há O que um budista não pode fazer, em caso
conflito entre uma solução algum, é simplesmente desconsiderar o
tradicional(exorcismo) e uma sofrimento do outro porque ele não se
científica(remédios). encaixa nas nossas expectativas do que
seria real. Se tudo é falso, estamos sempre
Não depende. Ou, em outras palavras, a trabalhando com os tentáculos da falsidade
objetividade não pode ser tomada num ser — e nesse caso o método científico no seu
fracionado: "no corpo tem isso, mas ela fala mais puro e irreligioso é o melhor: o que
isso, pensa aquilo, e no fundo, pensa funciona, o que se repete, o que produz
secretamente aquilo outro". Isso é tratar de resultados, o que explica um pouco mais...
umas cinco entidades fantasmagóricas este é o melhor. E, da mesma forma que
numa mesma pessoas. O foco é uma única com o método científico, se uma premissa
entidade fantasmagórica, que inclui o que lá na base estiver corrompida, todo o
observamos e o que ela diz de si mesma. edifício cai. E, segundo o budismo,
Ignorar o que ela está dizendo, o conteúdo nenhuma premissa está assentada a priori.
de sua delusão, é exatamente o que se Tudo de que podemos falar é, num sentido
chama "falta de compaixão". Se nossas mais preciso, falso. A única que realidade
opiniões atuais são 99.9% falsas, e o nosso que possuem esses objetos — corpo,
corpo todo também é uma falsidade, com opiniões, doença, sofrimento — é relativa,
todas as doenças dentro — tudo um sonho, convencional. E só assim a compaixão e o
com alguma coerência pelo nosso mérito, consequente alívio do sofrimento são
mas com muita falta de coerência devido ao possíveis.
nosso carma negativo. Acreditar nas
próprias opiniões e no próprio corpo como Qual a visão do Budismo sobre doenças
tendo existência inerente é muito pior e mentais? Tipo Esquizofrenia e depressão
muito mais prevalente do que ser em específico...
supersticioso. O pior demônio é a crença na
existência inerente do eu, e nesse caso Cada cultura budista tem uma medicina
todos nós estamos possuídos. específica que lida com os problemas de
"vento". Diagnósticos como estes são frutos
Não há conflito, se estiver disponível, dê o da pesquisa psiquiátrica e não estão
remédio também — leve no psiquiatra! No presentes no budismo. Dentro das
budismo claramente se diz que se o medicinas tradicionais de cada país asiático
tratamento eficaz está disponível, a pessoa existem formas de tratar problemas que
deve fazer. Mesmo médicos que possuam hoje talvez fossem diagnosticados assim. Na
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visão budista, toda doença é fruto do Todas. No hinayana, por exemplo, eles vão
carma, isto é, ações negativas passadas. dizer que sexo é um grande problema. É
bastante direto. No mahayana e no
No Budismo, o órgão da inteligência é o vajrayana, em todas as linhagens, também,
cérebro ou o coração? o sexo é um tema bem comum — ou seja,
como integrá-lo (ou não integrá-lo, no caso
Depende que sentido se usa para do hinayana) na sua prática. Se a pessoa
"inteligência". Se você está falando de algo quer um kama-sutra da vida, então ela pode
como raciocínio puro, isso não existe no pegar o Tibetan Arts of Love, do Gedun
budismo. O corpo todo pensa, e todo Chopel.
pensamento é ligado a emoções. Não existe
pensamento não emotivo ou emoção não Você poderia por favor falar um pouco
pensada (embora existam sensações não sobre a paisagem (não a mental, mas a
pensadas). natural mesmo) no budismo? Qual a
importância ou o papel do contato com a
O coração, não bem o coração, mas a região natureza nas várias tradições?
ao centro do peito, é mais importante para
a prática budista do que a região dentro do Por uma questão de saúde e bem-estar, que
crânio. Mas isso não se refere a inteligência, são bons coadjuvantes à prática espiritual
a não ser se estamos falando de — principalmente para iniciantes como nós
consciência. Para o budismo a consciência, — locais aprazíveis e arejados são melhores.
um tipo de consciência que é localizável, Nos locais altos o ar é mais limpo porque as
está no peito, e não no cérebro. Mas partículas se concentram nos locais mais
basicamente, está em todo o corpo. baixos. Também soltar o foco do olho no
horizonte é bom para o olho e para a mente.
O cérebro está vinculado às consciências
dos sentidos, bem como a medula. Se Em todas as tradições budistas se tenta
alguém é vivaz, esperto, pode-se dizer que vincular a prática e os locais de prática a
a mandala de sua cabeça é límpida. Mas se locais belos e arejados. Isso não só presta
alguém é inteligente no sentido de integrar uma homenagem aos Budas — é uma
sua vida, levar uma vida íntegra, daí é a oferenda à linhagem utilizar locais
mandala do peito que é límpida. Que aliás, exaltados e belos para construir
inclui os pulmões também. representações do corpo, fala e mente dos
Budas — como facilita a prática.
A fisiologia sutil budista é um
desenvolvimento da fisiologia sutil hindu. Nas práticas avançadas, locais degradados
como os locais onde se despejava corpos na
Todas as tradições budistas possuem Índia — uma mistura de necrotério a céu
ensinamentos diretos sobre o sexo? aberto com prisão e manicômio, onde tudo
de pior se concentrava — são mais
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adequados. Locais como hospitais, prisões, parecidos é fácil, mas seguir gostando do
pontos de drogas e baixa prostituição, outro na diferença, aí é que surgem as
feiras, aglomerações populares, o centro de qualidades grandiosas.
uma cidade grande, estações de ônibus e
trens, casas assombradas, onde suicídios e Além dos ensinamentos budistas, existem
assassinatos foram cometidos, campos de outras práticas para atingir a iluminação?
concentração nazistas, cidades em ruínas
pela guerra, favelas, daí esses são locais de Pode até haver, mas desconheço. É bom
prática adequados para grandes praticantes lembrar que nem todas as práticas budistas
que querem beneficiar os seres de forma levam até a iluminação. Todos os
intensa e progredir rápido na prática ensinamentos que o Buda deu no nível do
através de locais desafiadores e hinayana não levam à iluminação. E mesmo
amedrontadores. a grande maioria dos ensinamentos
mahayana, por si só, não levam a
Da mesma forma, praticar em meio à iluminação, e sim são preliminares a
doença, ao vexame público, e assim por ensinamentos que aí sim levarão a
diante — sem que a pessoa deva é claro iluminação. Isto é, levam a iluminação mas
produzir ou ir atrás dessas coisas, de forma de uma forma indireta — a maioria deles.
alguma, só quando elas surgem Mesmo os tantras externos, eles vão levar a
naturalmente — é muito importante e iluminação, mas possivelmente quando
produz avanços rápidos. Então devemos levarem aos tantras internos. E entre os
também usar essas oportunidades de tantras internos, apenas um deles
paisagens degradadas internas para representa o próprio estado iluminado
incrementar nossa prática. atualizado, o último deles — portanto só ele
1.7. Budismo e crenças diversas leva a iluminação diretamente.
Você discorda da noção que as diferentes
tradições religiosas iluminam e ajudam a É possível atingir a iluminação com outra
entender umas às outras pelos paralelos religiões, ou filosofias?
notáveis que existem entre elas?
Primeiro é preciso examinar quais outras
Discordo de toda e qualquer noção tradições, religiosas ou filosóficas, buscam a
intolerante, e aparentemente procurar iluminação ou algo parecido. Para isso
encaixar tradições umas nas outras é bem precisamos de uma definição mais precisa
mais intolerante do que reconhecer a de iluminação — o que encontramos em
diferença e conviver com ela. alguns tratados budistas. Iluminação é a
dissolução completa e irreversível das
Claro que existem semelhanças, e é possível aflições mentais e o desenvolvimento
regozijar nelas. Mas reconhecer a diferença completo das qualidades tais como
e aceitá-la é muito mais grandioso. Afinal, compaixão e amor.
gostar do outro porque nos achamos
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É claro que, para alguém que está em busca O budismo crê, que com o cultivo do amor
da iluminação, tal tipo de comparação não e da compaixão, independentemente se há
só é difícil, mas improvável de ocorrer. ou não religião, todos chegarão no mesmo
Afinal, a pessoa, motivada por compaixão, fim, a iluminação?
está se engajando em prática espiritual, não
em religião comparada! Então não se Não, os seres podem ficar indefinidamente
considera, em geral, possível, fora do nosso perdidos no samsara, até eventualmente
caminho, obter os resultados que são encontrarem ensinamentos que os levem a
propostos pelo nosso caminho. A favor das um caminho espiritual genuíno. Existem
outras tradições se pode dizer que, em muitos caminhos espirituais falsos, e
geral, eles nem mesmo querem o mesmo também muitos caminhos espirituais que
resultado. E, além disso, em se tratando dos não levam até o final. Portanto é
resultados menores, a maioria das tradições absolutamente incerto se todos chegarão
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sem quebras, e a possibilidade de praticar seja salvo? Não é algo que eu possa fazer no
um caminho coerente, não aleatório, e que transcorrer de algumas horas, um dia ou
foi infalível para centenas de pessoas ao alguns anos — como no caso de muitos
longo dos séculos, a pessoa deveria se focar experimentos budistas...
nisso como prioridade perante qualquer
outra coisa. Se ela não tem esse mérito, Nas tradições onde eventualmente haja 1)
qualquer esforço na direção da virtude vale. treinamento da mente; 2) experimentos
Porém, se estamos falando de buscar com o treinamento da mente, daí,
intimidade com a lucidez, esses são possivelmente, como no budismo, haja
métodos bastante raros, mesmo dentro do benefícios similares. Porém, a vida é
budismo — que dirá fora dele. demasiado curta para ficar experimentando
de tudo, é preciso ter certa coerência, que
Sem uma estrutura religiosa, a pessoa se traduz como consistência. Portanto não
precisa de, pelo menos, um guru — e um há tempo para comprovar várias tradições
guru que ensine um método desvinculado — com base em experiência de seus
da tradição. Eles são raros, mas existem. próprios métodos. É possível ter uma
posição com relação a certas afirmações de
Quais seriam os resultados que se espera outras tradições com base em experiência
encontrar com o experimento budista? Não em uma delas e alguma inferência.
são resultados que se espera encontrar em
outras tradições religiosas? O mais importante é entender que as outras
religiões, e mesmo o budismo ele mesmo,
A diminuição das aflições mentais, a com sua infinita variedade, são como um
intensificação de certas qualidades, tais buffet. Não se deve bater toda a comida no
como a compaixão e o contentamento. liquidificador, e comer aquela pasta verde
— o ideal do universalismo na religião. A
Se tais resultados podem ser encontrados pessoa come o que quer, e se tem bom
em outras tradições? Bom, pouquíssimas gosto, se não quer passar mal, não mistura
tradições sequer possuem a noção de muito. Um conhecedor toma o vinho certo
treinamento da mente, e a possibilidade de com a refeição que vai combinar, e vice-
fazer experimentos. Essa é uma quase versa. Ele faz isso para que o sabor seja mais
exclusividade do budismo, por si só. Não agradável, e para que ele tenha uma
que o budismo esteja livre de propaganda experiência, em geral, mais agradável. Por
— mas a maioria das tradições é só puro autointeresse, ele não sai comendo
propaganda (e, como disse antes, não que o tudo, ou rápido demais, ou passando doce
"produto" em si não tenha seus benefícios) de leite na moqueca. Se você é imaturo
— mas você não é encorajado sequer a como uma criança, você se lambuza de
experimentar, e sim a meramente aceitar. porcarias. E a maioria das pessoas é assim
Por exemplo, o experimento do cristianismo com as tradições religiosas: uma mistura de
seria o quê? Acreditar em Jesus até que eu fast food com salgadinhos e refrigerante.
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Mas, ao contrário da alimentação, muita religião e quanto ao budismo, a não ser que,
gente ainda se orgulha de ser tão aberto a no caso do budismo, elas se restrinjam aos
qualquer religião junk. E veja bem, mesmo métodos chamados "externos".
um hamburguer saboroso — uma tradição
que tenha seu valor nutricional — se for Sendo o budismo não deísta, como ele se
comido como junk, será junk. Então essa relaciona com as religiões monoteístas e
atitude de mixórdia religiosa só vai produzir politeístas?
náusea religiosa a curto prazo e problemas
de saúde espiritual a longo prazo. Se a tradição se esforça na virtude, ela é
respeitada pelo budismo. A virtude é o que
E, falando em uma atitude mais evita o sofrimento dos seres e traz algum
metodológica, mais científica, se a pessoa tipo de benefício. A grande maioria das
quer saber se é alérgica a tomate, e não tradições, segundo o budismo, é mais
confia nos grandes laboratórios (os benéfica do que maléfica.
professores, os lamas), então ela fica sem
comer tomate por um tempo e vê se se Já que não há a figura de uma divindade, os
sente melhor. Depois ela experimenta um budistas são, tecnicamente, ateus?
pedacinho de tomate, e vê se há algum
sintoma. E, com o tempo, e comprovando o Algumas vezes as pessoas usam a palavra
laboratório por si própria, ela pode começar "ateu" para designar quem não acredita em
a confiar nos outros resultados do nada espiritual. Nesse caso, os budistas não
laboratório. são ateus. Se por ateu a pessoa quiser dizer
"não acredita num criador", então sim, os
Sendo o budismo um método, é possível budistas são ateus.
uma pessoa ser budista e judia, por
exemplo? Para o budismo, Deus existe ou poderia
existir?
Etnicamente judia, claro. Praticante do
judaísmo, bom, daí há métodos budistas Um criador, ou um ser onipotente, ou um
que ela pode usar, outros vão requerer que ser que possua um eu, ou que seja
ela tome refúgio, e portanto ela não pode inerentemente existente (exista por si só,
ter refúgio em Deus e no Buda... isso do independentemente), ou que possua
ponto de vista de ambas as religiões. Agora, simultaneamente algum grau de separação
as pessoas não compreendem bem nem a e transcendência, não é possível do ponto
religião cultural-familiar em que estão de vista do budismo. Se o Deus postulado
inseridas, muito menos uma religião tão possuir qualquer uma dessas
diversificada, profunda e pouco conhecida características, ele não só não existe como
como o budismo. Então provavelmente um fato, ele não existe sequer como uma
muitas pessoas que afirmam coisas assim possibilidade.
estão equivocadas quanto a sua própria
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Outras formas de postular um Deus que não ou deixar tão clara a posição budista. O
envolvam criação, onipotência ou budismo está muito mais preocupado com
separação (pelo menos uma das três já o benefício dos seres do que com
exclui possibilidade) são possibilidades conclusões a respeito de coisas, com
segundo o budismo. Seres de compaixão e discurso.
sabedoria plena, por exemplo, são tanto
possíveis como considerados efetivamente Aliás, essa é uma diferença essencial entre
existentes segundo o budismo. o budismo e a filosofia, pelo menos uma
vastíssima porção de filosofia. O efetivo
Existe alguma vertente do Budismo que benefício dos seres é muito mais
aceite pelo menos a possibilidade de um importante do que qualquer coisa que
Deus criador? possa ser dita.
Não. O mais próximo são os pudgala, que "A tradição budista não chega a negar a
acreditam na existência de um "eu" — mas existência de um criador, mas também não
eles não existem mais há milênios. Porém está interessada em saber quem criou o
eles são um argumento comum para dizer universo." Edward Conze. Essa afirmação
que acreditar na inexistência de um "eu" está correta?
não é uma característica essencial do
budismo. Não, a inexistência de um criador é
conclusão da inexistência de um eu e da
Agora, o que você vai encontrar são mestres inexistência de uma essência dos
muito políticos que não vão dizer muito fenômenos, ensinamentos presentes no
claramente que a doutrina budista não hinayana e no mahayana.
pode aceitar um criador. Mas com certeza
eles não vão dizer claramente o oposto. É só Conze é uma figura interessante. O volume
para não criar atrito — em algumas de traduções dele é impressionante. Ele
circunstâncias é bom. também, além de erudito, tentou praticar o
budismo, o que, para sua época, foi
Sua Santidade o Dalai Lama disse que se realmente fantástico. Ainda levará um
uma senhora idosa que pratica a virtude tempo para avaliar suas traduções à luz de
porque acredita num criador vier e traduções feitas com a colaboração de
perguntar algo sobre isso, você não deve professores budistas com realização
tentar dissuadi-la de sua crença. As únicas espiritual.
pessoas a que é lícito tentar dissuadir são
pessoas que 1) não atrelam sua prática de O Buda afirma conclusivamente em algum
virtude a essa crença; 2) estão abertas ao lugar que não existe Deus criador ou é
debate racional; se essas duas coisas não apenas algo que se consolidou nos
estão presentes é desvirtude debater isso, e ensinamentos dos intérpretes posteriores
talvez seja até desvirtude falar no assunto da doutrina?
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Se não há um criador, então não houve um Li que o aspecto "deus pessoal" aparece no
principio? Como as coisas existem? ou Amidismo japonês, o culto mahayana do
sempre existiram? Buda Amitaba. Poderia dizer alguma coisa
sobre isso?
O modo de existência ou surgimento das
coisas é irrelevante, o que conta é que Amitaba é um Buda pelo qual se tem
estamos num estado de insatisfatoriedade devoção, mas não é um criador, nem é
e precisamos de métodos para revelar o onipotente. Pela noção de ausência de eu,
estado natural, livre de insatisfatoriedade. no Japão se desenvolveu a noção de "a força
O Buda dizia que fazer perguntas assim é do outro", em contraposição ao zen, em que
como estar com uma flecha enfiada no olho a pessoa se ilumina pela "força própria".
se perguntando "de onde ela veio, que cor
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Essas formas de budismo que acreditam Bhagavati é abençoado, senhor dos mundos
num "eu" que você menciona também são é outra coisa, que não significa que ele é
não teístas? onipotente, mas que ele está com os seres
em todos os mundos, para ajudá-los.
Sim, e eles não existem mais. Eram os
pudgalavadins. Eles são só um exemplo Também, como o ensinamento do Buda é
histórico que serve para indicar que a superior a todas as outras expressões de
inexistência de um eu não é um critério ensinamentos, é chamado de "o rugido do
definitivo para distinguir entre o que é leão" — porque produz liberação. A força
budismo e não é. do Buda não está em subjugar seres, mas as
aflições mentais — dele mesmo. Através do
Na sua visão do Budismo é errado ensinamento do Buda, o rugido de leão
considerar o Buda como um avatar de proclamado por ele, os seres podem, se se
Vishnu? aplicarem, fazer o mesmo. Em outras
palavras, ele é o exemplo final de todos os
Na visão do budismo isso é um equívoco mundos possíveis.
sim. Essa é a visão hindu do Buda, que
transforma o Buda num deus com Não há nenhum tipo de onipotência no
existência inerente. Mas é algo a se dizer da budismo. A onipotência gera uma série de
nação hindu que eles incorporem o objeto contradições nas doutrinas teístas. No
de refúgio da outra religião como um deus budismo com certeza, em nenhuma forma
do seu panteão. O budismo fez isso também de budismo, o Buda tem poder
com inúmeras deidades hindus, que agora independente sobre os outros seres. Para
foram convertidas e trabalham para o ajudar, até mesmo o Buda depende do
senhor Buda, inclusive Vishnu, Brahma e mérito do outro. Se ele tivesse esse poder,
Shiva. Um dia, seguindo o caminho do Buda, ninguém sofreria. Um ser infinitamente
eventualmente eles também vão se benevolente e infinitamente poderoso não
iluminar. Podemos escolher ver esse permitiria a existência do sofrimento. Como
amálgama como sectarismo na forma de o Buda não é nem criador, nem onipotente,
"fagocitose" da crença do outro, ou como no budismo não precisamos lidar com
uma forma de respeito pela crença alheia. invenções como o livre-arbítrio, nem
Possivelmente há algo de respeitoso e algo caímos no problema de ter que explicar
de condescendente e imperialista em porque o mal (sofrimento, no caso do
ambas as atitudes. budismo) existe.
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nesse caso poderiam reconhecer que... não Uma das comprovações (e aqui não é
é bem assim. E eles chegam a muitas das indicação) mais extraordinárias da
mesmas conclusões que o budismo sobre neurologia e psicologia modernas é que a
assuntos pouco importantes, como prática de shamata aumenta a capacidade
renascimento. de empatia. Um resultado bem menos
interessante, mas também relevante, é a
Mas de fato, hindus sofisticados podem neuroplastia. Hoje estão sendo realizados
fazer o nosso não teísmo soar teísta, com os experimentos longitudinais e mais
que, por exemplo, Dzongsar Jamyang rigorosos, com meditadores iniciantes em
Khyentse Rinpoche tanto elogia. retiros longos — nos anos que virão mais
detalhes surgirão com relação a evidências
Olhando de um viés histórico, quando os científicas ligadas a esta prática.
muçulmanos destruiram a universidade de
Nalanda os desenvolvimentos do hinduísmo A questão da empatia foi demonstrada ao
ainda não tinham incorporado as últimas dar relances de fotos com expressões faciais
sofisticações do debate com os budistas — para meditadores e não meditadores, e os
em alguns séculos eles fariam isso. (É claro meditadores foram capazes de reconhecer
que o oposto também vale, isto é, os o estado mental muito mais
budistas se desenvolveram muito no debate frequentemente do que os não
com os hindus, até os muçulmanos meditadores.
acabarem com a festa usando um
argumento... de força.) E de fato, a prática de shamata no contexto
do budismo, vem vinculada a outras
A boa notícia é que a prática de shamata pequenas práticas formais, que garantem a
pode servir a qualquer um, com ou sem coerência de shamata com o todo do
crença religiosa. De fato, até para cometer ensinamento budista. A prática da tomada
desvirtude, ou ações mundanas, ela é boa. de refúgio com prostrações, por exemplo —
Uma pessoa com boa prática de shamata é e, essencial, o desenvolvimento de bodicita.
até mesmo um melhor atirador de elite, um
melhor ladrão de bancos. Ou joga Também é possível atingir o resultado do
videogames melhor. Onde quer que ela budismo sem sequer praticar shamata —
coloque a mente, ali ela vai ter mais clareza isso é algo que depende da constituição e
e estabilidade. Agora, você gastar um do mérito de cada um.
número grande de horas para dominar
atividades mundanas, e não algo como a Então, é preciso perceber que a prática de
prática de vipassana, é não ter mérito, é não shamata, por si só, não nos torna capazes de
saber dar prioridades adequadas a um reconhecer a realidade, e que portanto os
tempo de vida que deve ser considerado hindus podem estar enganados quanto a
curto. deus mesmo sendo praticantes perfeitos de
shamata.
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tem uma perspectiva quase hindu, até É possível que Jesus tenha sido um Buda, e
mesmo de vários messias, como avatares de se foi, por que não aparece nas profecias
uma deidade única — nesse caso aí cabe as budistas?
mesmas semelhanças e restrições que
ocorrem com boa parte do sistema hindu. É possível, mas talvez ele não tenha sido.
Talvez a ausência de profecias seja um
Em geral, se o debate ocorre, não ocorre em indício de que ele não era. Em geral os
termos de queridas figuras históricas, que professores budistas o consideram ao
provavelmente foram realmente santos sob menos um bodisatva.
qualquer perspectiva religiosa — mas sobre
pontos abstratos e interpretação dos O Dalai Lama aparentemente disse que
ensinamentos. entendia Jesus como a manifestação de um
Buda. Nesse caso, Jesus seria uma fonte de
No caso do próprio praticante budista que refúgio infalível?
tem conexão com Jesus pelo seu pano de
fundo cultural, nesse caso é adequado Se Jesus foi a manifestação de um Buda, há
pensar em Jesus como, ao menos, um refúgio sim. Mesmo se fosse de um
bodisatva — e também é um voto bodisatva. E além disso, no vajrayana há o
mahayana considerar os bodisatvas como voto de não pensar os bodisatvas como
Budas... nesse caso ele precisa entender menores que os Budas. Porém não é
tudo que Jesus disse como um meio hábil. necessário que ele seja (mesmo que seja o
Se ele tomar os ensinamentos de Jesus entendimento de Sua Santidade), e mesmo
muito literalmente, nesse caso ele será um que seja, não é necessário tomar Jesus em
cristão, e daí será um cristão lidando com particular como refúgio.
ensinamentos budistas — o que ele precisa
verificar em sua própria consciência. O que Mas o fato de Sua Santidade dizer isso com
ele não pode é misturar — pelo menos não certeza tem implicações para os devotos em
enquanto ele não atinge alguma realização Sua Santidade. Eu, como tomo refúgio em
(o requisito no lado budista para poder lidar Sua Santidade, agora posso considerar Jesus
com os ensinamentos, mesmo os próprios como parte desse refúgio. Mas isso é só
ensinamentos budistas, em termos de para quem toma Sua Santidade o Dalai
comparação), Lama como refúgio, não para todos os
budistas, nem mesmo para todos os
Sua Santidade o Dalai Lama tem em praticantes do budismo tibetano.
português um livro chamado O Dalai Lama
fala de Jesus onde ele analisa trechos da Buda era filho de uma virgem?
Bíblia sob a ótica budista. É uma excelente
demonstração de tolerância religiosa, boa Não. Embora a intimidade da rainha com o
política e vasto conhecimento. rei fosse deles, ninguém afirmou isso, muito
menos o Buda. Algumas vezes um mestre da
essencialmente diferente de nós — nós chance de que ele siga pelo céu. E as
temos a mesma natureza. A diferença entre profecias são interpretadas: você fica
nós e o Buda é que ele revelou essa esperando que algo corresponda àquilo que
natureza, e nós ainda não. foi dito, e essa expectativa é parte integral
da profecia.
Os seres que causam dificuldades para nós
são projeções do nosso próprio carma ruim. Como um Buda possui conhecimento sobre
Ninguém consegue prejudicar ninguém se todos os fenômenos, ele sabe tudo nos três
não existe a fragilidade criada por ações tempos. Ainda assim, as coisas não são
anteriores. A responsabilidade de todo e como são porque foram planejadas. Uma
qualquer sofrimento nosso é toda nossa, coisa de forma alguma está ligada com a
ninguém mais pode ser culpado. E nós, outra. Se determinação exigisse
como disse anteriormente, não podemos planejamento ou sequer consciência, o
sequer ser considerados culpados, porque budismo seria teísta, não é mesmo? Mas já
se soubéssemos antes, não teríamos agido ficou claro que o budismo possui carma, e
como agimos. certo sentido de determinação, e não
possui um puppet master (um fantochista,
O Buda, portanto, não é a encarnação de alguém que comanda os fantoches). E,
um princípio sobrenatural, já que esse ademais, o Buda sabe que toda
princípio é natural a todos nós. Ele é determinação ocorre dentro do sonho, e
perfeitamente bom e não tem máculas que todo o sonho é falsidade num sentido
essenciais, e a única coisa que produz o último — inclusive os próprios
sofrimento são as máculas adventícias. É ensinamentos do Buda.
como um diamante sujo de lama. A lama
nunca pode sujar efetivamente o diamante, Um Buda sendo onisciente, e querendo o
embora para nós, ele não pareça brilhante benefício dos seres, pode anunciar uma
nesse momento. É só lavar e ele está "profecia" — essa profecia não é a descrição
exatamente como novo, impecável. Nós de algo que já está planejado "desde o
lavamos através da prática dos métodos. início", e sim uma proclamação que tem
objetivo de beneficiar: quando a fé dos
Nenhum ser "malvado" é mais do que um praticantes se encontra com a intenção
diamante sujo. Se ele vier a lavar esse iluminada do Buda, surge uma bênção.
diamante, ele não vai ser diferente do Buda Dizer que o Buda "causou" através de uma
em nada. profecia que realiza a si própria pode fazer
sentido, mas isso só ocorre na
Se não há um plano, como já se sabe que interdependência daqueles que se
virão outros Budas? reconhecem na terra pura deste Buda, isto
é, o veem, de fato como um Buda e como
Tudo sempre pode dar errado, e não é certo alguém que proclama profecias.
que o sol nasça amanhã. Mas há uma boa
acontece com o igual — do igual nós já confiança de que são o melhor caminho
somos amigos. A tolerância só ocorre com o para os seus próprios resultados.
diferente, com o que não entendemos, com
o que não nos deixa em nossa zona de Dai o que um budista faz quando vê um não
conforto. Ver que a religião do outro é budista sofrendo? Ele não necessariamente
diferente é essencial para a tolerância tenta converter a pessoa ao budismo — ele
religiosa. Ter confiança na própria religião tenta entender a pessoa do lado da pessoa
também é fundamental, ou seja, a pessoa — e, se a pessoa tem, de mérito próprio, a
precisa saber que está no melhor entre capacidade de ver algo de valor no caminho
todos os caminhos possíveis. Ela só não budista, ele provê de acordo com as
precisa impor ao outro esse seu juízo. O requisições do outro. É preciso lembrar que
budismo, ao contrário do cristianismo, não no budismo não é permitido nem mesmo
é proselitista. Mesmo que nós achemos que falar do budismo sem que o outro peça, e
as pessoas em geral se beneficiariam da algumas vezes, o outro tem que pedir três
prática budista, não existe prática budista a vezes! Existem até formas mais proselitistas
que alguém possa ser convertido. A pessoa de budismo, mas todas as formas de
só segue o caminho budista porque faz budismo tem em comum que a prática
sentido, e não adianta enganar ou forçar surge da pessoa, não do outro. Isso é
uma outra pessoa a fazer o caminho budista essencialmente diferente do cristianismo,
ter sentido para ela. Não faz sentido isso. No onde acreditar, às vezes, quase basta por si
cristianismo isso só faz sentido, me parece, só.
porque acreditar em Deus e em Jesus Cristo
como uma força que provê e/ou avalia o seu Como um budista deve lidar com blasfêmias
salvamento, e que pode tudo e está sempre contra Buda?
ali para você, é imprescindível. Existem
formas de cristianismo que quase apontam É considerado desvirtude defender o Buda
um revolver para sua cabeça "se você não perante alguém que o critica sem interesse
acreditar, você está ferrado". No budismo, de diálogo. Se há interesse de diálogo, daí é
acreditar é pouco importante. Você possível debater. Não existe a noção de
acredita no Buda como você "acredita" num "blasfemo" no budismo. É apenas mais um
médico com boas qualificações. Você vai na objeto de compaixão como todos os
farmácia e toma direitinho o que ele demais, inclusive bodisatvas de 10º nível.
prescreveu — e também, se você não Em outras palavras, seres positivos ou
melhorar, o seu bom médico sempre vai negativos, todos eles, são objeto de
também dizer "olha, num caso como esse é compaixão. Só quem não é objeto de
bom pegar uma segunda opinião". Essa compaixão são os Budas totalmente
diferença essencial entre o budismo e o realizados — os outros seres todos, sem
cristianismo é que define parte da atitude, exceção, no sentido da compaixão, são
embora ambas as tradições tenham plena iguais.
família, e assim por diante. Quanto mais outro — que dirá em vidas futuras — e não
fundo se vai na meditação, portanto, menos é nada de especial; 3) renascer não é um
subjetiva ela é. O nosso fluxo ordinário é conforto, não é uma continuidade do eu,
extremamente subjetivo até mesmo para pelo contrário, e na medida que é uma
nossa percepção ordinária, isto é, achamos continuidade da ilusão do eu, é uma
isso e logo depois achamos aquilo. É mais continuidade do sofrimento; 4) o reino
que subjetivo, é quase aleatório. Já quando humano é o que mais possui oportunidade
desenvolvemos estabilidade e claridade para a prática espiritual (outros reinos mais
(abertura no "obturador"), os movimentos "sutis" não são melhores); 5) não se foca em
rápidos da mente ficam difusos, e as questões familiares, de algumas dezenas de
estruturas mais básicas, que formam certas vidas e de um círculo restrito de pessoas,
características mais globais podem ser mas no fato de que todos já foram nossa
discernidas. mãe, gato, cachorro e papagaio, são vidas
incontáveis e temos conexão com todos os
Agora, o objetivo da prática de meditação seres;
não é lembrar vidas passadas. A única
utilidade de lembrar vidas passadas, para o Pode haver mais alguns itens, mas não sou
budismo, é entender quão fúteis foram profundo conhecedor do kardecismo. Sei
nossos esforços anteriores e não cometer que é uma doutrina recente, basicamente
os mesmos erros. Isto é, se focar mais brasileira na atualidade, embasada em
urgentemente no darma, e não nas paradigmas científicos do séc. XIX e no
atividades em que temos nos focado vida positivismo da época. Não há métodos para
após vida e que não nos levaram a lugar o refino dos instrumentos epistêmicos, há o
algum. cristianismo como base de fundo, e é uma
doutrina teísta.
Então há diferença entre o renascimento ou
reencarnação (esta palavra inclusive sendo Se nós fossemos comparar o kardecismo
evitada de propósito) no budismo e no com o hinduísmo também haveriam vários
kardecismo. Há diferenças cruciais como 1) pontos a diferenciar, embora ambos
ausência da noção do eu; 2) ausência de acreditem na noção de um eu permanente.
uma evolução necessária (os renascimentos
são chamados de "experiência cíclica" no Você poderia resumir as diferenças entre o
budismo, a pessoa sempre melhora e piora, kardecismo e o budismo, além das noções
até a iluminação, quando ela não mais de renascimento/reencarnação? Alguma
renasce — no kardecismo alguém não volta semelhança?
mais como animal, por exemplo — certas
conquistas intelectuais são também A forte influência do positivismo causa uma
definitivas. No budismo é muito claro que visão teleológica da "criação". O budismo
toda conquista intelectual pode ser perdida não é teísta e não vê o samsara como uma
nesta mesma vida, de um momento para o criação senão de nossa ignorância e aflições
Talvez seja possível dizer que o espírito para Como entender, com bases budistas, a
o kardecista é meramente uma nova forma manifestação de espíritos que "baixam"
de matéria. Essa matéria não é suficiente, para se comunicarem, tão real para os
então ele precisa postular uma outra, sutil, médiums no espiritismo? Seria apenas uma
com outras características, mas manifestação ilusória da mente? Teria algo
essencialmente difícil de distinguir senão a ver com o oráculo no Budismo tibetano?
por ser "mais ideal". No budismo não existe Como fica o fenômeno da mediunidade no
conceito de matéria. Tudo é tecido de budismo?
sonho.
O oráculo no budismo tibetano é talvez
A noção de carma como expiações e semelhante a certas manifestações ditas
provações é altamente problemática no mediúnicas. Outras formas de budismo não
budismo. Se o carma tem um intermediário, possuem "mediunidade", talvez alguma
isto é, há uma maneira correta de fazer as forma japonesa, mas não estou certo. O
coisas que foi desobedecida, isso é bem Buda nunca ensinou nada, nos seus 84.000
diferente do carma "naturalista" do ensinamentos, nos sutras do tripitaka, nos
budismo, onde não há um intermediário. O sutras do mahayana, e assim por diante,
que não é ético é causar sofrimento aos sobre mediunidade.
outros, não desobedecer uma suposta
teleologia da criação ou especificações Creio que a maioria dos casos de pessoas
criadas por seres divinos ou um deus. Dessa que ouvem vozes e se relacionam com
forma, as ações ruins causam sofrimento espíritos é tratada no budismo tradicional,
não com o "objetivo de ensinar", mas especialmente no Tibete, com práticas de
dizer, para todas elas, eles existem. Só que Se você entender a prática de ética como
são objetos de compaixão, da mesma forma uma restrição, você não estará praticando o
que com os seres visíveis. budismo, e sim a obediência a regras, que
não é a prática do budismo. A prática do
Qual a explicação budista para os milagres budismo é o exame da mente e do que
que supostamente acontecem no produz benefício em maior âmbito e a mais
catolicismo? longo prazo — a partir disso se lida com os
hábitos mentais que nos levam a praticar o
Muitos podem ter acontecido mesmo. Sidis que causa sofrimento, e adotamos hábitos
são comuns em vários professores, e até que nos levem a praticar o que produz
mesmo em alguns falsos professores. Não felicidade para nós mesmos e para os
são necessariamente uma grande evidência outros.
de espiritualidade, ainda que muitos
milagres católicos possam ter acontecido Uma questão que coloca a Igreja Católica
em meio a espiritualidade honesta. em conflito com as tendências
contemporâneas é a luta contra o uso de
No budismo, como a realidade é feita de preservativos. Existe no Budismo algo que
tecido de sonho, nós podemos ter o mérito possa ser dito a favor da postura da Igreja,
de perceber uma falha na coerência desse ou ela está errada e gerando sofrimento?
sonho. E algumas vezes chamamos isso de
"milagre". E quando isso se dá em conexão Em geral eu não vi nenhum professor
com um grande praticante espiritual do budista a favor dessa posição da igreja
passado, um "santo", por exemplo, isso se católica. Mas, por outro lado, não vi tanta
dá por interdependência com a prática e indignação quanto as vezes vejo em setores
realização espiritual daquele ser. seculares.
o budismo não é uma prática de muito mais Quando você não concorda com uma
autorrestrição do que o catolicismo, por opinião religiosa, por exemplo com os
exemplo? ensinamentos católicos, é melhor discutir
com as pessoas que acreditam ou fingir que
A diferença entre a ética budista e a católica eles tem razão?
é que no budismo você pratica a virtude
porque ela é naturalmente boa para você e Cada caso é um caso. Se os envolvidos estão
para os outros seres, no catolicismo você abertos ao debate racional, o debate
pratica virtude por obediência, e porque na racional é uma boa opção. Se não há essa
visão de Deus e na perspectiva divina é bom possibilidade, existem muitas alternativas:
— e portanto não é tão naturalmente bom rezar por eles, se afastar, apenas dizer que
para você, é bom através da vontade de não concorda, e assim por diante.
outro, no caso Deus.
Budistas são idólatras?
Não existe no budismo nada análogo ao Com certeza, porém fica difícil avaliar, numa
anjo da guarda do Catolicismo? tradição vasta e alienígena, tudo que pode
ser positivo e negativo dentro do que eles
Análogo, talvez. Com algum grau de ensinam. Ou que tipo de ensinamentos,
semelhança, num sentido bem específico... vinculados a outros, no fim dão uma soma
mas bem diferente com relação a todo o positiva — e se você mexer no castelo de
resto, o yidam. O yidam é nossa própria cartas, tudo pode ruir. É o caso da senhora
lucidez, representado numa forma idosa que pratica virtude apenas porque
específica. Geralmente é a deidade que teme a deus, e possivelmente, sem deus, ela
praticamos a várias vidas — nós buscamos abandonará essa prática...
total reconhecimento com ela.
Só o que podemos fazer, enquanto no
Ela tem a ver com o anjo da guarda na exata diálogo, é tentar deixar claro o que
medida que o daimon grego tem a ver com consideramos contraproducente — se e
nossa inteligência de ação no mundo. Isto é, somente se não for contraproducende o
o yidam tem a ver com as qualidades que próprio ato de deixar isso claro.
expressaremos quando iluminados, ele é a
visão de nós mesmos como um ser perfeito. Há muitas pessoas que mantém ideologias
E em certo sentido, podemos dizer que essa que produzem sofrimento, na religião e na
visão nos protege. Mas não precisamos, e o filosofia — na publicidade — por todo lado.
melhor, é não vê-lo como algo externo, Porém se não temos meios hábeis de
separado. É nós mesmos, livres dos efetivamente transformar aquelas visões,
obscurecimentos. meramente se posicionar contra pode até
piorar a situação. Daí que a política é a arte
O que o budismo tem a dizer das práticas de central da compaixão, em termos do
certas religiões que "maltratam o corpo" discurso. A política parece exatamente agir,
em corpo, fala e mente, de acordo com a
Não somos ninguém para perdoar os Ninguém, em lugar algum, jamais é culpado.
outros. Não temos o poder de perdoar. Então o que há para perdoar? Se as pessoas
Quem nos prejudica deve ser sempre objeto soubessem as consequências de suas ações
de compaixão, e portanto, não há motivo prejudiciais, elas não as fariam, como
para culpar quem quer que seja em alguém que não tomaria o veneno se
primeiro lugar. Se percebemos que ficamos soubesse o que está escrito no rótulo. Não
com raiva, devemos é ter compaixão de nós existe maldade no budismo, apenas
mesmos também. ignorância — e ignorância não se perdoa.
Nosso remorso é importante para que Agora, reconhecer erros como erros, para si
evitemos repetir erros no futuro. mesmo e para os outros, é essencial. Sem
esperar nada em troca, muito menos um
Se não somos ninguém para perdoar os perdão que já é o estado natural das coisas,
outros, também não faz sentido pedir e ninguém pode dar a ninguém.
perdão a quem ofendemos ou
prejudicamos? Se for preciso ouvir uma confissão ou
receber algo em troca de uma confissão,
Todos os seres são objetos de compaixão. basta um totalmente neutro "tudo bem,
Não os tornamos automaticamente objetos tente não repetir". Se você tiver boa fé de
de compaixão especiais apenas porque que vai fazer bem para o ser dizer "esqueça
somos seus credores cármicos — eles isso, por mim é como se nunca tivesse
seguem sendo objetos de compaixão. Se acontecido", pode dizer algo assim. Na
locais pouco perturbadores externa e O que se quer dizer quando se diz que a
internamente — isto é, silenciosos, limpos, mente é a "joia dos desejos". Isso quer dizer
sem muito calor ou frio. que podemos realizar desejos através da
nossa mente?
Quando chega a hora de intensificar a
prática, então locais como mercados, Essa expressão surge porque todos os
hospícios, cemitérios, campos de fenômenos surgem coemergentes com o
concentração, casas assombradas, ferros- observador. Então a mente é melhor do que
velhos, pontos de drogas e prostituição, e a mítica joia que realiza desejos, ela é mais
assim por diante, são bons locais para flexível e capaz de maior transformação
certos tipos de meditação — locais sujos, ainda. Com ela é possível ser compassivo,
amedrontadores, perturbadores e por exemplo. A mente compassiva é ainda
barulhentos. Mas isso é para praticantes melhor que a joia que realiza desejos. Isso
avançados. tem um pouco esse sentido, de fazer uma
analogia com a melhor coisa que um hindu
Por experiência própria, percebi que existe antigo poderia imaginar, e dizer "olha, você
um principio que age conforme nossa treinar a sua mente e desenvolver
intenção: Algumas coisas boas ou ruins que qualidades, em particular a compaixão, é
penso se manifestam. Também posso ver ainda melhor do que ..." Hoje o que se
ou sentir algumas coisas que ainda vão usaria? Um iPad? Uma BMW? Uma coisa
acontecer. Como o budismo explica? que é melhor que todas essas coisas, uma
varinha de condão, a pedra filosofal etc.
No caso da primeira coisa (pensamento Mas isso não quer dizer que a mente opere
mágico), é totalmente autoengano. No caso de acordo com nosso desejo e produza
da segunda afirmação (clarividência), é coisas, e sim que a realidade é inseparável
muito possível que seja autoengano (ainda da mente, e reconhecer as qualidades
mais se vemos que ela veio junta com a inatas da mente é sinônimo de viver no
primeira afirmação, que é totalmente melhor dos mundos possíveis. Por outro
absurda) — mas existem alguns casos raros lado, tudo que nos é agradável ou que nos
em que a pessoa desenvolve mesmo essa fascina, é agradável e nos fascina por causa
faculdade. Isso não é importante, de todo da mente — então ela é a fonte de tudo que
modo. Muitas pessoas sem nenhuma nos liberta e aprisiona, e reconhecer sua
qualidade espiritual podem ter clarividência verdadeira natureza é descortinar a
— e os deuses e semideuses com certeza a liberdade básica que subjaz a nossas
têm — mas isso só os leva a mais fixações temporárias.
sofrimento. O que importa é desenvolver
qualidades espirituais tais como a Existe uma alquimia budista?
compaixão.
Algumas vezes os tradutores usam essa
palavra para designar certos aspectos do
vajrayana. Não sei se eles estão corretos, ou Mas, olhando de fora, sem compreensão do
mesmo se a palavra em português é usada que está sendo feito, um observador leigo
em algum sentido inequívoco em algum pode interpretar mantras como
lugar respeitado, dentro ou fora do encantações ou "spells".
contexto do darma. Não posso saber o que
você está querendo dizer por essa palavra: Oráculos como o I Ching chinês, o Urim-
só o que conheço da palavra "alquimia" são Tumim hebraico ou análogos de outras
umas ilustrações bizarras e mumbo jumbo culturas desempenham algum papel ou
de cunho junguiano. Uma coisa é certa: essa podem ter alguma utilidade no Budismo?
coisa multi comparativa e de analogias
desenfreadas, comum em certos Pessoas que praticam o budismo não são
segmentos místicos, não é muito impedidas de utilizá-los. Mipam Rinpoche,
encorajada por professores budistas. por outro lado, previa o futuro ouvindo a
conversa de um grupo de mulheres. Outro
Consta na biografia secreta de Nagarjuna mestre via o futuro no brilho do reflexo de
que ele transformou uma montanha inteira sua unha. Então, a variedade é imensa.
em cobre e depois em ouro. Isso não trouxe Todo fenômeno inclui todos os outros,
benefício nenhum aos seres, então então o meio hábil de sistemas de
Avalokiteshvara precisou intervir e mandar adivinhação é para seres relativamente
ele parar com essa bobagem. comuns, não é uma característica
propriamente budista, mas é bem comum.
Em diversas tradições o nome de um ser
tem uma ligação secreta com a essência Por outro lado, entre os seres presos no
desse ser. Existe algo do tipo no Budismo, samsara, os deuses ou devas possuem uma
de nomes serem muito importantes? capacidade limitada de ver o futuro, o que
só aumenta seu sofrimento, porque acabam
Há uma interdependência entre o nome e o vendo que seus futuros renascimentos vão
objeto nomeado, portanto uma forma de ser cheios de dificuldades — do "topo" do
gerar interdependência com o objeto, é samsara eles só podem cair para os reinos
através do nome. Buda, por exemplo, que inferiores, quando seu bom carma se esgota
significa "acordado", "lúcido". e a impermanência se interpõe. Então,
dessa forma, adivinhação pode ser um meio
Fórmulas escritas têm algum poder mágico hábil, mas também pode ser uma forma de
no Budismo? aumentar o sofrimento.
Não sei da data do Buda. Os sistemas hábeis para ajudar os seres — mas não são
astrológicos budistas pertencem as culturas propriamente coisas do escopo do budismo.
em que o budismo se desenvolveu. São
elementos culturais, e não budistas — Os budistas acreditam em bruxaria?
embora é fato de que muitos budistas
tradicionais se utilizem deles como meios Algumas vezes se usa essa palavra para
hábeis. descrever pessoas que tem poderes
mágicos, e os usam por motivações egoístas
O Budismo é compatível com algum tipo de ou aleatórias. Milarepa, o maior santo
prática mágica? tibetano, por exemplo, aprendeu a produzir
tempestades de granizo para se vingar de
Os meios hábeis são infindáveis. Por um tio. Ele assim fez desabar um prédio,
exemplo, se não adianta tentar convencer matou 30 pessoas, além de ovelhas e
alguém que se acredita possuído por um iaques, e destruiu plantações. Depois ele se
demônio de que demônios são projeções da arrependeu e praticou o darma com muito
mente, então a atividade compassiva a esforço até a iluminação, naquela mesma
fazer é um exorcismo. vida.
vinte bilhões de anos-luz cheios deles não se escapar da prisão é que a prisão foi feita."
mudaria significativamente o escopo da Jack Kerouac em sua biografia do Buda. Isto
compaixão. está de acordo com o ensinamento budista?
Então um budista pode facilmente, com Não. A primeira parte, até a segunda
relação a isto, seguir a opinião vigente da vírgula, é compatível com o hinayana. A
ciência, e mesmo que porventura ela mude segunda parte contém elementos teístas —
bastante com o passar do tempo, não muda quem é que fez a prisão? É evidente que
muito o que importa: a prática de Kerouac misturava o budismo com seu
compaixão. cristianismo — ele acho chega a dizer isso
com todas as palavras. E, naquela época, ele
O mundo que pode ser explorado com não tinha acesso a boas traduções e até
instrumentos é apenas uma fração ínfima mesmo a um professor que pudesse
das projeções possíveis com que a mente explicar o darma a ele. O Gary Snyder, o
ignorante pode se enganar. Alan Watts e o Ginsberg chegaram bem
mais perto do budismo — mas os coloquei
A regressão a vidas passadas através de na ordem de ressalvas, ou pelo menos de
processo terapêutico (por relaxamento minha preferência. O Kerouac, coitado,
profundo induzido ou hipnose) oferece algo morreu antes de poder conhecer o Trungpa
de particularmente benéfico ou danoso à Rinpoche, e acho que nem chegou a
prática? conhecer o Shunryu Suzuki Roshi. E ele
abandonou o budismo pelo cristianismo no
Não é um método testado pelos budistas. fim de sua vida. Ele tem o mérito de ter
Se for provado que não gera memórias gostado do Sutra do Diamante, na tradução
falsas, não haverá problema. Porém, ao que do Goddard, que nem é tão ruim assim: mas
tudo consta, memórias falsas são criadas. é um texto impossível de entender sem um
Então é contraproducente. professor.
Qual é a relação entre Budismo e Cabala? Falando sobre autores, quais você acha que
mais deturparam o budismo?
Creio que não exista relação.
Eu procuro ler o que é fidedigno, então eu
Até que ponto o livro "Sidarta" do Hermann não tenho um vasto conhecimento da
Hesse é baseado na vida do Buda? literatura espúria que contenha a palavra
"budismo". Ademais, para que gerar
Não tem quase nada a ver com o budismo interdependência com esses nomes?
ou a vida do Buda. Algumas vezes quando certos nomes
surgem nas perguntas, eu simplesmente os
"Apenas no nirvana existe alegria, edito: porque mencionar alguém a que não
proporcionando a fuga duradoura, pois para vale a pena nem dar publicidade ruim?
Sim, ao longo da história houve muita Depois o mahayana é ouvido por aqueles
tensão, e chegaram a haver episódios que tem a coragem de trabalhar sem cessar
dignos de vergonha. pela liberação de todos os seres.
Qual a principal diferença entre o budismo É preciso entender que as diferenças entre
mahayana e o hinayana? as formas de budismo são muito complexas.
Se dão em termos de tradição, que está
"Maha" significa grande, "hina" significa ligada ao formato cultural ou costumes
estreito. A ideia de "yanas" é mahayana, locais de um povo, ou mesmo de um único
portanto muitas vezes quando se fala mosteiro. Também em termos de linhagens,
"hinayana" esta é uma crítica mahayana: que significa uma linha discipular do Buda
ninguém dirá praticar o hinayana (a não ser até hoje, de mestre para discípulo, assim
que seja humilde e sincero, e na forma de por diante — estas formam uma árvore,
confissão - na incapacidade de praticar algo porque a maioria dos mestres, inclusive o
mais amplo). De outra forma, pode Buda, tem mais de um discípulo, a quem
acontecer que diga que a ideia de yanas é ensinam métodos diferentes. Há escolas,
algo que não pertence a sua tradição, que estão ligadas a tradição no que diz
mesmo dentro do budismo. respeito ao uso de nomenclaturas, mas que
também tornam-se mais específicas no que
É o caso do theravada, que alguns diz respeito a certos dogmas ou doutrinas
classificam como hinayana. Isso é visto filosóficas particulares, a formas de
como uma crítica ou ofensa pelos apresentação dos ensinamentos e nível de
theravadins, já que para eles o mahayana é refinamento intelectual. Enfim há os yanas,
uma invenção posterior: mesmo as escolas que são um conceito ligado apenas a
Por outro lado, quando a visão sectária e Alguns professores algumas vezes chamam
limitada surge no zen, os meios hábeis do o theravada de hinayana, o que é tomado
vajrayana são todos classificados, diga-se de como ofensivo, já que basicamente se está
passagem mais de acordo com a visão dizendo que os theravadins são limitados, e
secular, cientificista e materialista de alguma forma egoístas. Também é
moderna, do que de acordo com o zen incorreto, já que o que foi historicamente
tradicional praticado na Ásia, como rituais identificado como escolas hinayana não
um tanto bobos e desnecessários. inclui o theravada, que é uma
subramificação de uma delas, todas extintas
O importante é ter confiança no próprio hoje. Porém, o cânone Páli, por não conter
professor e levar a prática que ele propõe sutras mahayana, estritamente falando,
até o final, a iluminação. De resto, nós não não poderia ser outra coisa que não o
estamos na posição de julgar a prática dos cânone do hinayana.
outros, nem mesmo em nossa própria
sanga, que dirá em outras sangas — que O problema é que a separação em veículos
dirá de praticantes de outras formas de tem duas vertentes, ambas corroboradas
budismo, que dirá em outras religiões. pela história e pelos textos: uma sectária,
Então uma atitude de respeito e admiração onde a superioridade dos ensinamentos do
deve ser natural por qualquer um que se mahayana era demonstrada em
esforce na virtude e na prática espiritual. comparação a ensinamentos inferiores, e
outra meramente classificatória, isto é,
O que é theravada? nada no cânone Páli é negado, e de fato, são
os textos fundamentais do budismo —
aqueles que são aceitos por todas as formas
títulos — principalmente de seus próprios pouco melhor do que nós, alguém que pode
professores, que são quem está mais atento nos orientar, mas que não está próximo da
a se essas qualidades estão presentes ou perfeição, então temos um amigo
não. espiritual. E da mesma forma, até mesmo
um igual que saiba uma informação ou
É importante assinalar que praticar para outra que você não saiba, pode ser
obter o título é materialismo espiritual. chamado de "professor" em certas
Pratica-se para revelar as qualidades, e circunstâncias. Essa categorização não
atingir o estado de buda para benefício de existe formalmente na tradição budista,
todos os seres. Alguns grandes bodisatvas qualquer nome pode ser dado para
permanecem praticantes secretos, sem qualquer das categorias, mas podemos ter
título algum, sem reconhecimento algum, esses três tipos de conexão de aprendizado:
sem nenhum tipo de reconhecimento com alguém que realizou, com alguém que
público, ou mesmo fama mundana, por está no caminho há mais tempo e com
toda sua vida. Algumas vezes eles até alguém que é como nós mas que por acaso
mesmo escolhem renascer em situações chegou mais rápido na informação.
degradadas, para poder ensinar —
totalmente escondidos — em locais tais É claro que não é indicado tomar como lama
como prostíbulos, prisões e hospitais alguém que não recebeu respaldo público
psiquiátricos. da linhagem, mas embora isso não seja
indicado, isso é possível também. Mesmo as
Por outro lado, infelizmente, algumas das pessoas que recebem título de lama muitas
pessoas que se dizem lamas não tem vezes — 99% dos casos — não são fontes
nenhuma boa qualidade espiritual. Algumas totalmente confiáveis. São fontes, na
vezes elas são até desprovidas de boas maioria dos casos — não todos — bastante
qualidades mundanas. Por isso é bom confiáveis, suficientemente confiáveis. Mas
averiguar com cuidado antes de tomar a pessoa precisa, em todos os casos,
alguém como seu professor espiritual. verificar por si própria. Quando ela é capaz
de dizer "entre o Buda e essa pessoa, para
Um professor do darma pode dar mim não faz diferença" então ela encontrou
orientações para a prática particular de um lama.
cada aluno ou isso é reservado aos lamas?
O que a pessoa não pode fazer, em qualquer
Quem tomamos como guru/lama ou amigo caso, é ensinar sem receber autorização de
espiritual, ou quem pode nos ensinar o seus próprios professores. Isso é
darma, depende exclusivamente de nós particularmente verdadeiro dos
mesmos. Se vemos alguém como um Buda ensinamentos vajrayana, e bastante
ou quase Buda, ele é um lama/guru. Se o verdadeiro também com relação aos
vemos como alguém que é bastante ensinamentos mahayana e hinayana —
virtuoso, mas essencialmente apenas um
embora possa haver mais flexibilidade nos Porém, em muitas tradições budistas, talvez
últimos. a maioria delas, existem grandes
professores que não são monges.
O que é um monge? As autoridades
budistas são monges? Muitas pessoas me perguntam,
especialmente quando estou vestido com
Estritamente falando, a palavra "monge" uma saia vermelha e um manto, se sou um
não existe no budismo. Ela é normalmente monge — e algumas vezes quando digo que
utilizada para indicar um Bhikshu, alguém não sou, elas ficam tristes porque não estão
que recebeu uma ordenação completa — falando com alguém importante no
isto é, tomou todo o conjunto de mais de budismo (mesmo que eu fosse monge eu
duzentos votos. Um noviço é alguém que não teria importância alguma!)
toma um conjunto consideravelmente
menor desses votos. Ao respeitar esses Porém é preciso dizer que no budismo
votos o monge se torna digno de respeito, tomamos refúgio no Buda, no Darma e na
mesmo que não possua grande Sanga. A sanga é a comunidade de
entendimento do darma ou realização praticantes. Estritamente falando, para
espiritual. Porém, como a dedicação dos algumas escolas, só os monges são a sanga
monges é exclusiva à prática do darma, é digna de refúgio. Mas isto não é assim em
bastante comum que eles possuam todas as escolas — em algumas a sanga
erudição e um tanto comum que eles digna de refúgio é a dos "nobres", aqueles
possuam alguma realização da prática que reconheceram a vacuidade, sendo eles
espiritual. monges ou não.
Cada caso é um caso. Algumas vezes os Por exemplo, quando você passa a ser capaz
lamas antes de morrer deixam cartas bem de um ato de compaixão que não era capaz
específicas, ou mesmo apontam os pais da antes, essa é uma realização espiritual.
criança. Outras vezes eles apontam um Quando descreve-se os Bhumis, ou estágios
lama que é responsável, e esse lama usa dos bodisatvas, usa-se critérios mais gerais
todos os métodos a seu dispor para para especificar que tipo de compaixão e
encontrar essa criança. Depois essa criança sabedoria alguém atingiu. Por exemplo,
é testada, e se ela se comporta como se alguém que venceu completamente as
espera que um lama se comporte — ou aflições mentais grosseiras — esse é um
apresente sinais claros, tais como o Dalai nível particular. Qual a diferença entre
Lama, que quando bem criança encontrou a grosseiro e sutil? Uma pessoa pode ainda
dentadura do XIII Dalai Lama e disse que ter uma latência de raiva, mas o corpo dela
eram seus dentes — ela é confirmada como não reage mais e nem mesmo os
sendo o renascimento de um grande lama. pensamentos se encadeiam em termos de
Esse tipo de coisa. uma mera latência. No nosso caso, quando
"apertam nossos botões", ficamos
Sonhos podem tomar parte nesse processo, vermelhos, trememos, e assim por diante. A
como métodos de adivinhação, e visões de raiva é uma emoção grosseira no nosso caso
outros tipos. Mas isso varia de lama para porque produz reações fisiológicas, produz
lama. Em alguns casos não se consegue ações de corpo e fala — produz ruminação
encontrar o lama, ou encontra-se e no nível da mente. Para uma pessoa que
simplesmente mais capaz, ou apenas mais "ele sabe que estou cobiçando a mulher
compatível. dele", ou algo assim. Depois, com o tempo,
a mente vai ficando mais e mais
Existe um trabalho de Paul Eckman sobre transparente. Com os conteúdos expostos
expressões faciais, sobre como elas são perante a onisciência dos Budas, tudo se
universais, portanto o sentimento de corrige naturalmente, por que é como uma
desprezo tem a mesma marca facial num grande confissão.
aborígene e num alemão, por exemplo. Esse
pesquisador também analisou a capacidade Sem esse tipo de honestidade consigo
de empatia, ou seja, o quão rápido e mesmo, a pessoa não consegue fazer nem
eficientemente percebemos a emoção dos mesmo a mais simples prática, porque o
outros a partir de expressões faciais. Sabe- autoengano é tal que ela não tem nem
se que praticantes de meditação, shamata, mesmo a capacidade de olhar
por exemplo, são mais eficazes e eficientes objetivamente para seus próprios
em reconhecer as expressões dos outros. conteúdos mentais. A maioria de nós chega
Dentro de contexto, essas expressões assim no budismo, e luta por anos para
revelam, por exemplo, mentiras. Ao longo conseguir essa linha-base epistêmica, esse
do tempo, no convívio com os alunos, um grau de integridade e honestidade para
professor, pelas expressões faciais, mas consigo mesmo, que permite avaliar
também por todo o mundo onde o aluno objetivamente "sim, isto funciona, devo
está inserido, reconhece o grau de prosseguir nessa prática" ou "não, tenho
autoengano e hipocrisia do aluno. Quando que perguntar algo a meu professor". A
um aluno torna-se relativamente honesto maioria de nós passa muito tempo numa
consigo mesmo e com os outros, consegue- espécie de show autoconsciente,
se uma linha-base epistêmica, onde o que é trabalhando enormemente apenas para
falado é naturalmente reconhecido como é. manter uma imagem. As vezes só trocar
Então quando um aluno fala de sua prática, duas palavras com um professor autêntico
o professor pode inferir o que dizer, o que faz ruir milhares de autoarmadilhas.
recomendar. E não só isso, pode inferir o
quanto da prática, até agora, foi Quando um praticante sabe que atingiu a
efetivamente integrado. iluminação? Como saberei que estou livre
do samsara? Será que o simples fato de
Evidentemente, quando convivemos com reconhecer a vacuidade, de forma empírica,
certos professores, é corriqueiro parecer isso em si mesmo, já seria a iluminação?
que eles leem nossos pensamentos. Se isso
tem explicação no que eu disse acima, ou é A iluminação é exatamente o poder de
ainda mais do que isso, não sei. Mas na autorreconhecimento da iluminação — em
minha experiência pessoal é muito comum. outras palavras, a única diferença entre
Nos primeiros dias na presença de um seres sencientes comuns como nós e os
mestre assim, a pessoa pode ficar nervosa budas é que eles reconheceram sua
metafórica. Mas duas coisas que são alguns casos essa noção de tempo não faz
afirmadas sobre essas marcas são: 1) um muito sentido. Isto é, um Buda "no futuro"
Chakavartim (um monarca universal) as é visto como sempre um Buda.
possui também, e ele não é um Buda; 2)
aquele que se prostra ao Buda pelas suas O problema dessas explicações é nosso
marcas não entende o ensinamento do apego por visões históricas. Nenhum sutra
Buda. hoje em dia pode na verdade exigir
qualquer dimensão de historicidade. As
No Surangama Sutra há uma longa fontes mais antigas do páli são do ano mil, e
discussão sobre porque Ananda resolveu do mahayana, do ano 200. Ou seja: pela
seguir o Buda em primeiro lugar, e ele diz história não vai se encontrar muito
algo como "ele exalava virtude pela postura budismo.
(e demais marcas)", e o Buda se dedica,
órgão do sentido por órgão do sentido, a Passado, presente e futuro são só
desatar as concepções arbitrárias e fixações elementos da ignorância, não tem realidade
embasadas na reificação da existência efetiva.
inerente do próprio Buda e de cada uma de
suas características aparentes. Existe alguma diferença no traje e na cor
dos monges budistas, em relação a
Minha dúvida é quanto a origem histórica hierarquia, Dalai Lama, lama, monge?
dos bodisatvas que são mencionados nos
Sutras, como, por exemplo: Kannon, Não. Em geral os mantos se referem a
Kanzeon, Manjushri etc. Como eles tradição do praticante. A hierarquia
surgiram dentro do budismo, em que também não tem muito a ver com os títulos
contexto e o motivo de eles serem que você usou. Lama é um título hierárquico
mencionados nos Sutras como seres de sim, mas monge não é. É um título referente
grande realização, enquanto muitas vezes a uma ordenação, e não indica posição
Buda Sakyamuni nem aparece em certos hierárquica, embora, de uma forma geral, o
sutras? respeito pela sanga ordenada seja parte do
voto de refúgio. Entre os monges há
Normalmente eles são mencionados em hierarquia, que depende do número de
conjunto com Sakyamuni, ou outros Budas. votos tomados, então noviço,
Normalmente bodisatvas são alunos completamente ordenado, e assim por
próximos de Budas. Alguns dos sutras em diante. A pessoa não precisa fazer nada
que eles constam vêm das lembranças e especial para se ordenar com mais votos, só
experiências meditativas dos redatores, permanecer na ordem tempo suficiente.
embora alguns sutras digam ter mesmo
origem "miraculosa". No mahayana há o Há complicadores, no entanto, no Japão, no
voto de tratar bodisatvas como Budas, zen japonês, algumas vezes se usa a palavra
porque eles serão Budas no futuro — e em
monge para designar professor ou vezes são casados. Mantos laranjas são
sacerdote, implicando aí hierarquia. usados por monges em várias tradições,
principalmente no theravada, no sul da ásia,
Já Dalai Lama é o nome de uma linhagem de mas também pelos tibetanos e outras
renascimentos, que está ligada ao governo tradições. No zen se usa mantos pretos, e,
tibetano (hoje no exílio). Embora Sua algumas vezes, cinzas.
Santidade seja um lama altamente
realizado, ele não é considerado o lama O Dalai Lama usa o mesmo manto que
mais realizado dentro de sua escola ou de qualquer monge completamente ordenado
outras. Ele é um lama realizado que por na tradição gelugpa utiliza. Milarepa muitas
acaso é famoso e detém (ou deteve) uma vezes praticava nu.
posição política elevada.
O manto monástico, que o Buda próprio
Varia também de professor para professor a usava, e que é o que todos estes mantos
política quanto ao uso de roupas — algumas representam, era feito de tecidos
sangas evitam completamente o uso de degradados: fraldas, tecidos usados para
roupas exóticas no ocidente, como a sanga conter a menstruação, mortalhas. Eles eram
do Trungpa Rinpoche. Eles apenas tem a cuidadosamente lavados, cortados em
obrigação de se vestirem bem, muitas vezes quadrados e costurados, sendo tingidos
de terno e gravata. Outras permitem a com açafrão: daí a cor laranja. O vermelho
qualquer um comprar qualquer manto e surgiu com corantes mais acessíveis que o
utilizá-lo. No zen há algumas etapas até a açafrão.
pessoa obter um manto completo — que a
pessoa mesma costura. Percebo em alguns praticantes antigos uma
certa cultura da humildade, em que negam
No budismo tibetano os mantos vermelhos suas realizações. Sogyal Rinponche disse
são usados por monges. Alguns leigos os que é importante falar sobre elas, sem se
utilizam quando tomam votos temporários, exaltar, para encorajar e até orientar outros
ou durante as cerimônias. A saia e a camisa praticantes. Você concorda com isso?
são em geral diferentes para os monges,
padronizadas de acordo com o mosteiro. Sim, existe muita humildade fabricada no
Leigos que usam mantos usam uma budismo, em particular no budismo
camiseta sem estampa, de qualquer cor, e a tibetano. A pessoa essencialmente precisa
tchuba (saia) de qualquer cor. Mantos ser honesta. Depois, ela precisa manter suas
brancos são considerados elevados, para realizações em segredo até que estejam
grandes iogues, que vivem em cavernas bastante estáveis. Então, misturando esses
inóspitas, e muitas vezes não são monges. três aspectos, um ruim e dois corretos,
Mantos com as três listras (vermelha, temos no budismo, sem dúvida, os
branca, e pequenas azuis) são para iogues exemplos mais dramáticos de humildade.
de certas tradições nyingma e kagyu, que às
Quando for benéfico para os outros, é claro Além dessas credenciais, Sua Santidade é
que deve-se falar diretamente sobre as um exemplo consumado da humildade e
próprias qualidades. Melhor ainda do que calor humano — tendo sido reconhecido
isso é louvar um pouco as próprias dessa forma pela maioria da elite intelectual
qualidades, e, então, projetar os gurus para mundial que entrou em contato com ele.
a estratosfera, de uma maneira quase Além disso, ele é talvez, nesse momento no
inimaginável. Isso Sogyal Rinpoche faz como mundo, o maior porta-voz do diálogo inter-
ninguém. Ele chegou a dizer que não tem, religioso, tanto entre as diferentes religiões,
ele mesmo, muitas qualidades, mas que como entre as religiões e as outras áreas, e
porque recebeu as bênçãos de tantos mesmo dentre as diversas formas de
grandes lamas, ele até consegue entender budismo.
que haja algum benefício em meramente
estar presente no mesmo recinto com ele. O Dalai Lama já encontrou a iluminação?
Chagdud Rinpoche disse que sua própria Sua Santidade diz ele mesmo que ainda tem
capacidade de benefício era como a luz de apenas um parco entendimento
um vagalume, em comparação com a meramente intelectual da vacuidade. Sem
capacidade de benefício de Dzongsar uma realização direta da vacuidade, a
Jamyang Khyentse Rinpoche. Quando iluminação não é possível. Por outro lado
Khyentse Rinpoche então sentou em um aqueles que tem fé, entre eles eu, olhamos
trono uns 20cm mais alto do que Chagdud para Sua Santidade como não diferente de
Rinpoche, ele disse "esses grandes lamas um Buda, assim como olhamos para nossos
mais velhos, eles nos colocam nesses tronos próprios professores da mesma forma.
altos para que todos vejam como estamos
nervosos. É um teste." Se o Dalai Lama é a emanação do buda
Avalokiteshvara, então ele já não seria
O que há de especial no Dalai Lama? iluminado?
Sua Santidade o Dalai Lama é uma Avalokiteshvara é tido tanto como um Buda
emanação de Avalokiteshvara, e também é quanto como um Bodisatva, isso só
um dos mais populares e conhecidos depende da prática. Os Budas e os
professores do budismo. Sem falar que é Bodisatvas surgem de acordo com as
alguém que possui erudição inigualável, necessidades dos seres, e não pelo "seu
tendo conquistado o título de Geshe próprio lado". Portanto as características
Lharampa aos 18 anos, debatendo com que reconhecemos nos Budas são
mais de 50 dos maiores professores inseparáveis das nossas próprias
tibetanos, também sendo o líder político características. Por isso treinamos em
dos tibetanos no exílio. reconhecer nosso lama como um Buda.
benéfica perante os outros. Em outras que não são chamados de lamas. A pessoa
palavras, ela pode ser um praticante pode, para certas coisas, confiar em alunos
secreto, sem ninguém saber dessa conexão mais antigos também. Mas ela precisa
dela com a linhagem. tomar contato com um grande professor, e
depois, segundo a orientação desse grande
Agora, segundo os critérios do IBGE, se a professor, ela pode pedir pormenores e
pessoa se pensa budista, ela é budista. coisas específicas de professores pequenos
Então se a pessoa não vai seguir um critério autorizados por esse grande professor, ou
budista para se dizer budista, esse é tão pelo menos que ela seja autorizada por esse
bom quanto qualquer outro. Se, por outro grande professor a procurar (ou seja, a
lado, ela vai seguir um critério budista, já autorização tem que vir de um lado ou de
por aí ela está identificada com a tradição, e outro: ou a pessoa é autorizada a ouvir
nesse caso não há saída senão alguém, ou ela ouve alguém que é
comprometer-se com o refúgio nas três autorizado).
joias.
Em outras palavras ela precisa de um lastro
Se a pessoa não quer se comprometer com de linhagem, um professor cujas qualidades
um caminho, ela pode ainda assim obter ela quer obter, e a partir do qual ela
certo benefício de estar em contato com os descobre que outros professores ela pode
ensinamentos e o ambiente budista. ouvir. É bom pedir a seu professor mesmo
Ninguém impede as pessoas de fazerem o para ouvir professores reconhecidos, ao
contato que conseguirem. Mesmo os fazer esse pedido, você conecta com as
animais que ouvem o som da concha ou de bênçãos da linhagem. Mesmo livros é bom
outro instrumento que usamos se pedir autorização para ler. Se não for
beneficiam e criam uma interdependência possível ver detalhe a detalhe, pelo menos
que eventualmente permitirá que a pessoa precisa receber uma instrução
pratiquem o darma de forma coerente e clara sobre que forma de prática seguir, o
comprometida. que ouvir, de quem, o que ler etc. (mesmo
que de forma bem geral).
O que é um "professor" no budismo?
Precisa ser um Lama? Ou uma pessoa que Porque ter mestres?
tem contato com o Lama já serve?
Essa é uma pergunta recorrente entre
É uma pessoa autorizada pela linhagem a pessoas que tomam os primeiros contatos
dar ensinamentos. Lamas são professores com o darma e possuem uma inclinação
do budismo tibetano, outras formas de forte de livre-pensadores.
budismo tem outros títulos, por isso é mais
seguro usar a palavra neutra "professor", Segundo os ensinamentos do Buda, em que
embora no budismo tibetano também existe o princípio de que a iluminação é
algumas vezes haja professores autorizados nosso objetivo prioritário, para atingir a
Existem alguns seres que de fato não Enfim, o nível vajrayana não existe se não
precisam de mestres no seu caminho. encontramos um Buda face a face. É esse
Porém como eles estão muito próximos de método que possibilita a iluminação nesta
se iluminar, tem muito mérito, e tudo que mesma vida ou em no máximo 17 vidas.
fazem é dar exemplo para os seres com
menos mérito, eles manifestam uma grande A pressa para nos iluminarmos não é uma
linhagem de professores para benefício dos questão de materialismo espiritual, já que
seres que de fato precisam de mestres e nos iluminamos para trazer benefício aos
tenderão a seguir seu exemplo. outros, e não para benefício próprio.
No nível do hinayana, o único mestre é o Algumas vezes surge esta noção de que
Buda. Mas sem refúgio no Buda, não é todos são professores. De fato, é possível
possível atingir iluminação. No hinayana, aprender com tudo e com todos. Porém,
que é o veículo estreito, ainda existe uma isso ocorre apenas para seres de grande
forte motivação egóica, daí confia-se muito mérito. Para a maioria das pessoas como
no próprio esforço. Também nos amigos eu, com muito pouco mérito, a maioria das
espirituais (a sanga), isto é, os monges que coisas é apenas distração com a qual me
sustentam os ensinamentos. envolvo por apego ou aversão, e eu
raramente aprendo qualquer coisa que vá
No nível do mahayana temos os "amigos me ajudar no que realmente importa, que é
espirituais", que são a sanga engajada nos a iluminação.
mesmo propósito (de trazer benefícios
temporários e definitivos a todos os seres). Nas doutrinas new age parece que surge
Porém a função dos amigos espirituais não essa ideia de que aprendizados são muito
é tanto aconselhar (admoestar, encorajar) e comuns, mas essa vida de autorreferência,
sim prover exemplo — e não são apenas os onde tudo representa algum crescimento,
monges, mas também os leigos. Aqui não é a visão do darma. O darma é um tanto
novamente temos o Buda como mestre, e mais realista. A maior parte do tempo a
uma pletora de bodisatvas — mestres maior parte dos seres está perdendo
históricos e também o que chamamos de tempo, não aprendendo. Não existe
deidades, que são mestres. No mahayana, evolução numa doutrina que ensina a roda
como a motivação idealmente vai além do da vida — e a maioria das pessoas acha que
ego, confia-se muito mais na bênção dos tudo está indo, de uma forma e de outra,
budas do que no esforço próprio. No com atalhos ou não, numa direção mais
positiva. Para o budismo não. A maioria dos algo raro, fácil de perder e difícil de
seres apenas erra, anda em círculos. encontrar. Um antibiótico para uma doença
muito grave, que não podemos
Assim, é necessário muito mérito para interromper, não podemos tomar na hora
aprender mesmo uma única palavra do errada, e para o qual precisamos uma
darma, que é o que nos coloca numa receita precisa. Portanto, se para nossa
direção positiva, quanto mais para saúde automedicação é temeroso, e um
reconhecer darma em tudo e qualquer erro no remédio só pode arruinar no
coisa. máximo uma única vida, quão mais
cuidadosos em não nos automedicar e
De fato, existe um fundo de verdade em encontrar um bom médico para a condição
dizer que tudo nos aponta o darma, já que que nos aflige há infindáveis vidas, e cujos
é verdade que o darma está em todas as erros podem nos afetar por muitas vidas
coisas. futuras, deveríamos ser?
Porém, o que falta muitas vezes falta é É certo que nos sentimos mais próximos de
perceber que é muito raro que uns que de outros, mas não é por isso que
reconheçamos isto operando. não interagimos com o resto.
Nesse sentido, encontrar um único mestre De fato com o darma precisamos vencer
representa um mérito incomensurável. Boa exatamente os vedanas, essa tendência a
parte da prática diária da maioria dos preferirmos uns aos outros. Não nos
praticantes vajrayana consiste em rezar sentimos exatamente "próximos" do
para que, caso morram antes de atingir mestre. Nós nos sentimos próximos de
alguma realização qualquer, venham a pessoas que nos agradam. O mestre nem
encontrar o darma numa vida futura. sempre nos agrada.
Particularmente encontrar o lama, que é a
forma humana e viva do darma, numa vida De fato o mestre é aquele que nos faz
futura. E não só encontrar, mas reconhecer. reconhecer a igualdade entre todos os
Não vou exagerar em dizer que 80-90% da seres. Porém essa igualdade não é bater
prática budista é gerar mérito e tudo num liquidificador e separar de novo
condicionamentos positivos para que, caso em porções iguais da mesma gororoba. É
o resultado final não seja atingido, nosso tratar cada um como é melhor para todos.
fluxo mental olhe para algum símbolo do
darma e algum professor fidedigno e No caso, se tudo é igual do jeito do
"relembre" — "hm, aí tem alguma coisa que liquidificador, poderíamos ir a um hospício
eu preciso examinar". e pedir a um paciente para que faça nossa
neurocirurgia. Porém, não é essa igualdade
Na prática, para iniciantes como nós, a de que o darma fala. A igualdade do darma
atitude correta é reconhecer o darma como é, pelo contrário, tratar o paciente mental
era muito, mas era tudo que eu tinha para Algumas sangas são maiores, outras bem
comer no dia seguinte. Minha primeira pequenas. Algumas pessoas são bem
reação foi extrema raiva, aquela raiva de próximas do lama, outras só encontram o
gritar alto — raiva comigo mesmo, com lama uma vez por ano, ou algo assim. Isso
minha distração. Porém, eu tive o mérito de não significa necessariamente que umas
ter algumas fotos de lamas na parede, e no avançarão mais rápido ou menos rápido
meio do meu acesso solitário de fúria, que as outras, isso depende do
estavam ali aqueles Budas olhando para compromisso pessoal de cada um, isto é, da
mim. Então imediatamente me acalmei e ri aplicação efetiva por parte dessa pessoa,
de mim mesmo. Esses seres praticaram desses ensinamentos que ela recebeu.
muito para ter essa influência, para
despertar essa interdependência. E agora Da mesma forma, algumas pessoas de fato
nós temos o mérito de reconhecer e largam tudo e "grudam" no professor o
usufruir dessa interdependência. Isso é tempo todo. Se a pessoa tiver o mérito, isso
extraordinário, e muitas vezes vai além do é muito bom. Ter o mérito significa
que nós somos capazes de reconhecer ou conseguir lidar com todos os obstáculos que
compreender — por isso parece mágico. porventura surgirem e não se tornar um
Mas é apenas a operação do que é mais peso para o professor e para a sanga. Mas
natural, a interdependência. essa atitude não é necessária, nem é
possível, para todos. A pessoa vai sondando
Eu preciso estar próximo do meu professor? um grau de proximidade que esteja de
acordo com sua capacidade e necessidade,
Isso depende muito do seu carma. Mas e então vai ajustando o que for necessário.
algum contato pessoal é preciso, isto é, ele
e você precisam se encontrar pessoalmente Uma vez tendo estudado e praticado com
— pode ser uma entrevista rápida em meio um professor deve sempre continuar com
a um retiro de alguns dias — algumas vezes ele?
por ano, ou uma vez a cada dois anos... mas
isso varia muito, o mais importante é você Se você formalmente o requisitou como
vê-lo como seu professor e ele vê-lo como professor, só é adequado trocar com a
seu aluno — algumas vezes alguns autorização dele. Se você apenas praticou
professores não aceitam alunos tão um pouco e ouviu alguns ensinamentos —
facilmente. especialmente se você não recebeu
iniciações do vajrayana — então não há
Tenho a impressão que as sangas são problema trocar de professor. Ainda assim,
enormes. Há professores para orientar sempre é educado consultar, e não custa
tantas pessoas? É preciso "largar tudo" para nada.
ser aceito por um professor?
Um ponto importante é que você deve
evitar criticar qualquer professor que lhe
tenha dado ainda que um verso de compromisso, mas quem faz a hora é você.
ensinamento. Então mesmo que você mude Tradicionalmente devemos examinar um
de professor, é preciso manter o maior professor por 8 anos. Nos tempos atuais
cuidado e o respeito pelos professores isso nem sempre é possível, então de alguns
anteriores. meses a alguns anos é um bom período de
exame.
Como faço para conseguir um professor?
Preciso pedir para o mesmo? Ou A monja com que tenho conexão disse:
geralmente o professor pergunta quem "Pratique zazen e ponto final". Isso que
quer ser aluno? dizer que devo fazer somente essa prática e
nada mais até segunda ordem?
Não, você tem que examinar o candidato e
fazer um pedido formal. Sim. Se você quiser praticar outra coisa,
pergunte a ela.
Como é este pedido formal?
Como mestres que apresentam
Primeiro você examina o professor por um comportamentos desagradáveis, ou por
tempo, depois você pede uma entrevista, vezes que não estão de acordo com a
faz uma oferenda e diz "quero ser seu moralidade comum (como demonstrarem
aluno". Se não funcionar da primeira vez, certa promiscuidade, por exemplo) podem
pode tentar de novo. O quão formal ou o ser considerados iluminados?
quão pouco formal pode ser esse pedido vai
depender inteiramente das características No caso do comportamento de mestres,
do professor com que você quer se não somos capazes de julgar
conectar. Há professores extremamente adequadamente com base na nossa própria
formais e professores bastante informais. moralidade. O que podemos fazer é não
Mas em algum nível você vai pelo menos tomar como mestres pessoas cujo
precisar formular o pedido claramente e comportamento não aceitamos ou não
obter uma resposta, é isso que quis dizer entendemos.
com "formal".
No caso da promiscuidade, é claro que, em
Sou praticante budista, sigo os geral, quanto mais pessoas na nossa vida
ensinamentos de um professor, vou a íntima, mais difícil de evitar as aflições
palestras e retiros, participo da sanga, mas mentais. Então normalmente não
ele não me conhece, nunca nos falamos conseguimos acreditar que alguém seja
pessoalmente. Isso tem algum problema? capaz de praticar (trazer mais benefício do
que malefício) nesse contexto. É muita
Não tem problema nenhum, você está confusão com uma pessoa, imagine duas ou
verificando o professor. Num determinado uma dezena! Mas essa é exatamente a
momento é importante formar um diferença dos mestres e das pessoas
esse eu, pela ação e vontade dele, não é cristianismo — e quase todas as formas de
capaz de muita coisa nesse sentido. nova era. Mas, no budismo não é assim.
Samsara é só um engano. Ele não existe –
O que representam o Javali, o galo e a ele é um modo de existência deludida, ou
serpente que estão no centro do diagrama enganosa. É uma experiência dos seres, não
da roda da vida? é em nada real. Ele não tem propósito. Ele
tem o propósito confuso dos três venenos:
Ignorância (delusão, indiferença, preguiça), apego, aversão e indiferença –
apego (desejo egoísta, inquietação, infindavelmente um cutucando o outro e se
responsividade) e aversão (raiva, medo, produzindo, e proliferando as aflições
nojo). Eles são a origem de todas as mentais, as 84.000 insatisfações, as milhões
complicações da roda da vida, o samsara. de doenças e angústias. Samsara é a própria
falta de sentido.
O único sentido do Samsara é esforçar-se
para sair dele? Com certeza, de acordo com o budismo,
todos os seres tem o potencial de superar
Esse sentido não pertence ao samsara, esse engano: iluminarem-se, tornarem-se
portanto o samsara não tem sentido algum. Budas, reconhecerem a realidade,
encontrarem felicidade definitiva,
Se o samsara não tem nenhum sentido, compaixão incessante, sabedoria. Se todos
quem nunca encontrar a iluminação estará vão encontrar esse objetivo? Daí... bom,
fadado à infelicidade? Ou todos se devemos praticar para levar todos os seres-
iluminarão um dia? mães à iluminação, sem dúvida. Mas se
todos vão se iluminar... não é dito. Em
Sim, quem não encontrar a iluminação só algumas escolas há o conceito de seres que,
terá felicidades insatisfatórias, as que estão mesmo tendo o potencial, nunca vão
presentes no samsara. Não há felicidade revelar esse potencial. Não são todas as
verdadeira no samsara. escolas, mas o conceito existe.
Por que há tanto sofrimento no mundo, causados pela crença errônea na existência
sendo o sofrimento artificial? independente de um eu, que eles são
motivo de grande compaixão. Quando
O sofrimento advém de uma percepção vemos o sofrimento como real, temos
equivocada do mundo, da realidade. Por apenas pena. Pena coloca o outro numa
exemplo, confiamos em nosso corpo como posição inferior — é um coitado. Compaixão
fonte de felicidade — mas envelhecimento, é o reconhecimento de que, não importa a
doença e morte são inevitáveis para o situação da pessoa, existe o potencial para
corpo. Como embasamos nossa felicidade reconhecer o que está além do sofrimento,
em uma fonte não confiável, sofremos. o que existe de fato, o que é real. Portanto
Segundo o ensinamento budista existe uma compaixão é o que vê simultaneamente o
fonte confiável de felicidade, que, se não Buda em cada um, e o fato de que esse Buda
nos enganamos — reconhecendo a não é reconhecido.
impermanência, interdependência e
vacuidade — reconhecemos como uma Como a realidade pode ser naturalmente
expressão natural. Ela não depende de boa se, por exemplo, um animal precisa
condições, portanto nada que é matar, isto é, causar sofrimento a outro ser
condicionado impede essa felicidade — se vivo, para sobreviver?
ela é reconhecida. Porém, enquanto nos
envolvemos com as aparências, e não Pode parecer circular, mas se tem
reconhecemos a realidade, tomamos como sofrimento, não é realidade. Para evitar
fonte de felicidade o que não vai nos dar essa circularidade, pense: se é temporário,
felicidade, e daí o sofrimento. não é real. Assim, uma vida como animal,
não é real. É um pesadelo temporário. Da
A quantidade de sofrimento que mesma forma, todas as formas biológicas e
percebemos está vinculada diretamente à tecidos ecológicos são temporários, e
ignorância, nossa e dos seres que sofrem. portanto irreais. Isso é verdade das
Não é porque o sofrimento dos seres é condições de relativa felicidade, por
irreal, que vem de um engano, que eles duradoura que aparente ser. Se é
sofrem menos. Para o budismo, saber que o temporário, é irreal, é um sonho bom ou um
sofrimento dos outros advém de um pesadelo.
equívoco — que no fundo não passa de um
pesadelo momentâneo — não é motivo de O que são fixações? Como agir no samsara
diminuir a compaixão, pelo contrário. sem ter fixações?
Quanto mais envolvidos em sofrimentos
falsos, mais compaixão é possível. Se um Falta de flexibilidade na mente. Com menos
sofrimento fosse verdadeiro, apenas um, a fixações, mesmo o samsara é mais fácil e
compaixão não seria possível, ou pelo melhores condições são encontradas no
menos não teria por que. É exatamente próprio samsara. Uma pessoa sem
porque os sofrimentos são artificiais, flexibilidade mental pode ser
preconceituosa, fechada, difícil, e assim por palavra, pois tudo apenas é como é?
diante, coisas que a tornam desagradável Liberdade incessante?
perante os outros.
Vamos ter que ser mais específicos quanto
Com relação as fixações sutis, não é possível ao uso da palavra "eu". Quando o Dalai
permanecer completamente no samsara Lama diz "eu comi amendoins", esse eu é
sem elas. Mas isso é vantagem, já que o um "indexical", um dêitico, na forma de
samsara é só sofrimento. Evidentemente, palavra, e que se refere basicamente ao que
sem tais fixações sutis pelo samsara a você, interlocutor, entende pelo Dalai
pessoa também não terá fixações sutis pelo Lama. Quando nós dizemos para nós
nirvana, então seguirá manifestando mesmos "eu estou perdido", quando uma
benefício aos seres. situação muito grave ocorre (ou "eu sou o
3.1. Apego ao eu máximo", ou "eu me dei bem", quando as
Se o eu é não existente, quem se ilumina? coisas vão bem), esse eu extremamente
prejudicial, é um engano muito grande —
Exatamente, a iluminação não é possível ou seja, não é um "eu" que falamos apenas
enquanto há a crença de um eu. No Sutra do para informar os outros, é um "eu" que
Diamante isso fica bem claro quando Buda essencialmente reifica a nós mesmos como
pergunta a Subhuti: "você acha que em tendo uma coisa ilusória chamada "eu" (isso
algum momento guardei a concepção independe se a expressão em voz alta sai
arbitrária de que atingi algo chamado para nós ou para os outros, mas tem a ver
anuttarasamyaksambodhi (a mais perfeita e com a intenção da expressão — se é algo
completa iluminação)? Não. E é exatamente apenas informativo, para outro, ou se
por isso que pode ser chamada solidifica algo que não existe). Depois ainda
'anuttarasamyaksambodhi'". há modalidades de eu que elaboram sobre
esse engano, como "alma", "a minha
O caminho que é ensinado para alguém que identidade", "os meus gostos", "o que me
crê no eu é tal que diz "um dia você vai faz mais eu" e assim por diante. Essas
atingir a iluminação", mas esse caminho é formas de eu são simplesmente enganos
um mero expediente. A iluminação não é ordinário — com o problema de estarem
causal e não ocorre para alguém num ponto sobrepostos ao engano mais grave e o
no espaço-tempo. Ela é idêntica a sabedoria encobrimos. São erros semelhantes a
que reconhece que essas coisas são ilusões, quando erramos um cálculo, ou quando
produtos da ignorância. tropeçamos, ou nos perdemos andando de
carro — mas como se desse erro, sem nós
Então, posso dizer que não há um "eu" que sabermos, dependesse a vida de um
atinge a iluminação, pois, até mesmo este cachorrinho.
"eu" é fruto da luminosidade? E que
"iluminação" nada mais é do que uma mera Estes erros secundários são tão luminosos,
ou tão pouco luminosos, melhor dizendo,
se você tem uma cartolina enrolada que situações são adendos temporários a que
precisa usar, colocar na parede, você damos solidez.
primeiro a enrola no sentido oposto, depois
a deixa descansando num lugar plano, até A maioria das pessoas crê que são as
que ela volta a sua forma original, plana. Da situações externas que despertam as
mesma forma, no início da prática budista é emoções, porém isso é um engano, pois as
preciso colocar muito esforço em combater emoções, tanto positivas, quanto negativas,
aflições mentais e distração, mas com o são geradas a partir do nosso interior?
tempo cada vez menos esforço é preciso,
até que uma prática sem esforço é atingida. Nas pessoas infantis, isto é, a maioria de
nós, os eventos externos têm poder sobre
Mais do que isso, as aflições mentais, além os eventos internos. Nas pessoas que
de nos fazer sofrer, nos dão trabalho! Se praticam, o oposto ocorre, e isto se deve
colocássemos 1% do esforço que colocamos aos méritos e a prática de compaixão.
na direção de aflições tais como o desejo ou
a raiva, na direção da prática espiritual, O que são emoções inúteis? Toda emoção
atingiríamos a iluminação, e um estado não é legítima?
naturalmente livre de sofrimento e esforço
(o estado natural), muito rapidamente. Sob um aspecto, pode-se dizer que todas as
emoções são dukkha, insatisfação. Porém,
Uma vez um Budas não estaríamos mais em geral também chamamos de emoções
presos à condição humana? O caminho da coisas como compaixão, alegria e amor.
iluminação não seria então, basicamente, Portanto as emoções úteis são aquelas que
um caminho no qual desejamos nos libertar beneficiam a você e aos outros seres, como
de nossos sentimentos, pensamentos, a compaixão (desejar que você e os outros
desejos, muitos dos quais parecem não sofram) ou o amor (desejar que você e
inerentes à condição humana? os outros sejam felizes).
ignorância, daí é equivocado chamá-las de olho com relação as realizações dos outros,
"aflições mentais" ou mesmo "apego" ou em si só, é neutro. Quando esse olho vem
"raiva" — daí elas são as sabedorias acompanhado de uma visão errônea, então
correspondentes, no caso dessas aflições, se produz inveja, sofrimento, e assim por
"sabedoria discriminativa" e "sabedoria diante. Quando esse olho vem
como a de um espelho". acompanhado da visão mais elevada, ele é
o reconhecimento das qualidades do Buda,
Como posso combater o sentimento da o regozijo e o louvor sobre as qualidades do
inveja? Buda. Num caso pensamos "quem esse
Buda pensa que é? Ele deveria ser como
O antídoto da inveja é o regozijo pelo mérito eu", e no segundo caso pensamos "que
dos outros. Desta forma é possível partilhar inspirador! Que eu eventualmente seja
dos méritos. Portanto, de forma analítica, a como ele."
pessoa reconhece que é contraproducente
para si mesma vivenciar a vitória dos outros O Budismo tem algum ensinamento
com amargor, assim ela se dispõe a especial sobre a inveja, a que sentimos
reconhecer quando os venenos e aflições quanto aos outros e a que os outros sentem
mentais surgem e tentar evitá-los. quanto a nós?
Como com todos as outras aflições mentais, Sim, para o budismo a inveja que os outros
a prática consiste em transformar hábitos sentem de nós é um mero objeto de
arraigados através do treinamento da compaixão. Essa inveja não tem poder
mente. Treinar a mente significa prestar sobre o que quer que seja, ao contrário do
atenção aos acontecimentos mentais e que o pensamento popular, especialmente
aplicar antídotos, particularmente sem no Brasil, pode nos levar a crer.
esmorecer perante o reconhecimento de
que as aflições seguem aparecendo, e que Já nossa própria inveja é extremamente
muitas vezes não somos capazes de lidar daninha. Os três métodos para lidar com
com eles adequadamente. Reconhecemos e qualquer aflição mental são sempre 1)
lidamos o melhor possível, sem desanimar, evitar o objeto; 2) produzir um antídoto; 3)
e então, paulatinamente, hábitos negativos transmutar a aflição em sabedoria. Elas vão
podem ser transformados em hábitos em gradação de capacidade, isto é, os seres
positivos — tais como o regozijo pelo mérito de maior capacidade praticam a última, os
alheio. de capacidade intermediária a segunda, e os
seres de pouca capacidade, a primeira. Os
No nível vajrayana, certa vez um lama me antídotos para a inveja são o
ensinou que a aflição mental da inveja é contentamento com a nossa própria
exatamente a inteligência que reconhece o situação e o regozijo pela felicidade alheia,
melhor mestre. A nossa estratégia usual seja de que tipo for. Pode parecer estranho
deludida é olhar comparativamente, e esse que uma pessoa venha a aplicar um
Eu utilizo a razão para encontrar uma Então é um modo de exame sistemático que
verdade? Ou apenas "sento" e contemplo envolve surgimentos espontâneos na
isso (sem me utilizar da razão)? mente e especulação, e com base nisso
inferência e conhecimento empírico direto.
Existem dois modos de investigação no Você pode começar com qualquer coisa, e
budismo, o empírico e o por inferência. Em apenas marca um tempo determinado,
geral o modo de investigação por inferência digamos 15 min, e nesse período você vai
é considerado inferior, e uma preparação manter a postura e examinar esse tema.
para o modo empírico.
Apego ao darma não é tão ruim quanto
Quando se fala em meditar sobre um qualquer outro tipo de apego?
assunto, isso significa sentar em posição
formal de meditação, isto é, imóvel, e Não, é infinitamente melhor. O apego por si
examinar o assunto sob diversos enfoques, próprio é o pior apego, depois o apego pelos
especialmente aqueles que possuem um outros é bem melhor do que este. E o apego
impacto pessoal para você. Dessa forma é pelo darma é o melhor de todos — porque
uma combinação de um enfoque certamente o darma vai ter as ferramentas
imaginativo, especulativo, misturado com para dissipar o apego. É a diferença entre
um enfoque de inferência/racionalidade, e tentar saciar a sede com água doce ou água
empírico, na medida em que suas salgada.
experiências presentes e passadas são
trazidas como elementos principais desse Mas, você não precisa ter apego pelo
exame. darma. O melhor é praticar sem apego. Só
que, se você for ter apego, melhor ter os
Isto é, você pode pegar coisas que apegos melhores.
naturalmente surgem na sua mente
(empírico) e imaginar cenários a partir Apego aos preceitos budistas é menos ruim
desses surgimentos (especulativo). Com do que outros tipos de apego?
base nisso, você estabelece raciocínios e
conclusões. Com base nas conclusões, você Se você trocar preceitos por ensinamentos,
passa, paulatinamente, a não precisar fica melhor — preceitos são normalmente
examinar a insatisfatoriedade de algo para classificados como os itens de ética
efetivamente vivenciar essa prescritiva, em outras palavras, preceitos
insatisfatoriedade imediatamente. Em são os votos, dos quais existem os mais
outras palavras, seu engano, que causa seu variados. Por exemplo "não matar". Os
apego, vai se enfraquecendo enquanto ensinamentos, por outro lado, incluem os
hábito, e você desenvolve sabedoria de preceitos e tudo mais que é expresso em
reconhecer as coisas tais como elas termos do budismo.
realmente são, isto é, insatisfatórias.
Sim, é bem melhor que todos os outros Com um professor qualificado você aprende
apegos, até mesmo que o apego ao bem- métodos para ver diretamente essa
estar dos seres — porque não existe noção natureza. Qualquer explicação sobre o
de ensinamento budista que não leve ao sabor doce do açúcar é fútil.
bem-estar dos seres. Porém, mesmo esses
apegos são desnecessários. É possível A explicação que é útil é a de que a raiva não
praticar bem, e, aliás, pratica-se melhor sem é boa para você nem para os outros, e que
qualquer apego — tanto ao budismo é possível treinar a mente para diminuir seu
quanto ao bem dos seres. Agora, se a impacto ou evitar completamente a aflição
pessoa for escolher entre um apego mental. Isso vai ajudar você também na
qualquer e o apego pelos ensinamentos e prática de reconhecer a natureza da raiva,
pelo bem dos seres, é claro que ela deve porque você vai obter certo distanciamento
escolher os últimos. e assim vai poder observá-la, quando
receber as instruções.
Achar-se mais virtuoso do que outros é
desvirtude? Ouvi que o medo é um reflexo da raiva.
Pode explicar isso melhor?
Desvirtude é quando se prejudica outro ser
em corpo ou fala — e quando se planeja ou Medo é uma forma de raiva que se foca na
mantém má vontade contra outro em autoproteção. Quando nos sentimos
mente. poderosos, temos raiva, quando nos
sentimos fracos, sentimos medo — mas é o
Ter orgulho causa muitas desvirtudes, mas mesmo sentimento: olhar para o outro
em si não é uma desvirtude. Não que seja como uma ameaça. Mais precisamente,
bom, só que tecnicamente é uma aflição como essencialmente uma ameaça. Ao
mental, não uma desvirtude. negar a natureza de buda ao outro, e ao fato
de que ele está assumindo um papel
Achar-se mais virtuoso que os outros em negativo temporariamente, reificamos uma
geral é uma forma de orgulho. Achar-se postura e um modo de relacionamento com
mais virtuoso do que alguém, gerar os outros que vai invariavelmente produzir
compaixão, e produzir equanimidade situações semelhantes vez após vez. A
(refletir o quão semelhante a circunstância atitude correta é reconhecer três coisas:
é, mesmo que num dado momento nossa própria mente, no que ela se engana,
pareçamos estar melhores do que o outro, e no que ela está sendo levada por emoções
e como na base somos semelhantes mesmo pelas quais não tem controle; o outro como
com essa diferença circunstancial) não é Buda em potencial; o outro como um objeto
sequer não virtuoso, se for verdade. de compaixão porque não revelou sua
natureza de buda e age, temporariamente,
Qual a natureza da raiva? dominado por suas aflições — assim como
nós. Reconhecendo essas três coisas como
todos os seres acham que a agressividade mais na atitude de ativamente desejar o mal
tem um grande valor evolucionário, e é o para os outros.
único jeito de sobreviver. Nascer nesse
âmbito é bastante ruim por esse motivo — Algumas vezes a compaixão é dita "irada",
ainda mais do que pelo fato de que você quando ela tem por foco a destruição da
sofre constantemente. O pior sofrimento é negatividade. Isso nada tem a ver com ficar
valorizar a agressividade como seu modo de bravo ou ter raiva. Isso tem a ver com
sobrevivência. Seres mais felizes valorizam desejar o bem do outro ao ponto de ser
a cooperação como modo de sobrevivência. capaz de agir com energia para evitar que o
outro se prejudique ou prejudique a
Dois pontos equivocados portanto: outrem. É o oposto da agressividade, mas a
valorizar a sobrevivência, e valorizar a expressão externa pode parecer, a alguém
agressividade como valor de sobrevivência. que não entende a atividade, como a
expressão ou atitude de alguém com raiva.
Ademais, sem agressividade somos muito No entanto, fora a aparência que um
mais fortes e capazes de ser duros e diretos. desavisado pode confundir, são 100%
A agressividade basicamente mostra que diferentes.
estamos famintos, com dor, com medo —
eu vou controlar você para obter o que eu O que é moha e porque é prejudicial?
quero. Sendo objetivos com nossa situação
e a situação do outro, construímos uma Preguiça, procrastinação. É prejudicial
relação e um mundo que não está porque você não faz nada de bom para você
embasado na lei da selva. E quando a lei da ou para os outros, e assim perde muito
selva vem até nós, pelo nosso carma tempo, que é um tempo precioso, em
passado, então existe lucidez e clareza para particular se você tem conexão com o
fazer o melhor, e não somos simplesmente darma ou ao menos um renascimento
levados pelas nossas emoções. humano.
Um mestre com certa realização, mas que Indiferença é um tipo de ignorância. Pode
não tenha superado as aflições mentais, isto ser agressão passiva também. Mas a
é, que não tenha a realização equivalente a indiferença é com certeza uma forma de
de um arhat, pode ainda recair em aflições aflição mental.
mentais grosseiras.
Alguém que é ator e interpreta personagens
Já um mestre que seja um arhat ou um que apresentam aflições mentais (muitas
bodisatva de oitavo nível não tem mais vezes utilizando suas próprias "emoções
aflições mentais. Nesse caso ele não recai
escondidas" para isso) está gerando mau virtude até mesmo nas mais degradantes e
carma? difíceis condições, que dirá em condições
frívolas ou de mero divertimento.
É perigoso na medida em que a pessoa
treina em hábitos não conducentes à Torcer por um time de futebol não gera, de
virtude e à felicidade, mas é possível exibir maneira bastante irracional, emoções
qualquer emoção ou atitude e manter a perturbadoras e consequentemente carma
mente livre. A arte, como a tecnologia, pode ruim?
ser vinculada ou usada de acordo com a
virtude ou não. E ela pode ser absorvida de De forma geral, creio que gera aflições
acordo com a virtude ou não. Por isso a mentais sim. Mas é possível que um
liberdade (o poder deliberativo, o não praticante consiga integrar até mesmo isso
seguir/acumular tendências habituais) é – isto é, se divertir com o jogo sem gerar
muito mais o cerne da ética do que a aflições. Só parece ser raro.
prescrição. Em outras palavras, você não 3.3. Carma
pratica com o intuito de não matar alguém, O que é carma na visão budista?
um alguém que você nem sabe se vai ou não
aparecer, um objeto indefinido. Você É o assunto mais complicado do budismo,
pratica para obter liberdade perante seus que apenas um Buda pode entender
impulsos e tendências habituais. completamente. Há algumas diferenças
entre as noções de carma nas variadas
De forma geral, embora a possibilidade da (centenas) escolas budistas, e uma boa
prática de virtude e treinamento em hábitos diferença entre estas visões de carma e as
conducentes a virtude possa ocorrer em milhares de perspectivas hindus. Há uma
virtualmente qualquer contexto, maior diferença ainda entre a visão de
dependendo da capacidade da pessoa, ele carma budista e a de religiões novas como o
raramente ocorre. A maior parte dos atores kardecismo. Porém é difícil falar desse
e a maior parte do entretenimento arte assunto num contexto assim sem uma
produzidos são mistos, neutros ou pergunta mais específica.
negativos. Raramente são totalmente
positivos. Da mesma forma que nossa fala Carma significa ação, e implica que as ações
em geral também. Emoções inúteis que nos tem consequências. Assim é uma conexão
fazem perder tempo. causal não vinculada a natureza, num
sentido externo, como nas ciências, mas ao
Se a pessoa tem um foco na virtude, no aspecto das ações, isto é ao agente, ao
entanto, ela só precisa se afastar das indivíduo como motor intencional.
atividades que ela não consegue trazer para
o âmbito da virtude. Grandes praticantes O que é o carma segundo o budismo? É
não desperdiçam coisa alguma, e como uma justiça divina?
encontram a virtude ou a possibilidade de
De forma alguma. É uma relação impessoal É ela que define o carma, a intenção. Se a
entre causa e efeito, sem julgamentos, só pessoa tem intenção de beneficiar, e boas e
que não ocorre apenas no nível físico, mas claras razões para acreditar que aquela ação
principalmente em como as coisas se beneficiará — mesmo que ela
manifestam para nós em nossa consciência. eventualmente prejudique em algo, de
(O mesmo vento pode ser agradável para modo geral ela será benéfica a quem agiu,
um e desagradável para outro, dependendo ainda que possa ser caracterizada pelas
das ações passadas destes). eventuais consequências funestas a outro
(ou seja, da mesma forma, o resultado pode
Posso dizer que o carma nada mais é do que ter algo de bom, ou algo de principalmente
a interdependência natural sem a lucidez? bom, com algumas características ruins).
Mas como um instante de raiva pode Não consegui entender bem isso de dedicar
destruir tanto mérito? méritos fazer crescer exponencialmente o
bom carma. não é injusto com pessoas que
Digamos que você recebeu um fazem milhares de atos bons e não os
apartamento impecavelmente pintado, dedicam? E ainda por cima os "perdem" por
fruto do seu mérito acumulado. Porém, um um momento de ira?
tempo após a entrega, você deixa
desatendida uma panela cheia de óleo no Quando você pergunta sobre justiça, você
fogão, e ela se incendeia. Por acaso você concebe que o budismo tenha, como as
consegue evitar um incêndio, mas as religiões teístas, uma noção de uma
paredes antes impecavelmente brancas, realidade que é feita para Deus, e, algumas
agora estão cobertas por uma camada de vezes, feita para os seres humanos. No
fuligem gordurosa. Se alguém já tentou budismo a realidade é o que é. Não foi o
Buda que inventou as regras do carma, e mas por outro lado, não podemos garantir
aliás, o budismo não afirma nenhuma forma nenhum resultado.
de deus que as teria planejado ou
arquitetado. As noções de carma surgem O que significa gerar mérito? Acumular
por simples observação a partir da mérito leva por si só à liberação total?
meditação, portanto elas não podem ser
"justas" ou "injustas". O budismo não Gerar mérito significa agir coerentemente
propõe nenhuma teleologia cósmica, na direção da felicidade temporária e
apenas, dada uma situação real, propõe definitiva para você e para outros seres. Isto
certas medidas para evitar o sofrimento. é, além de não prejudicar os outros, trazer
benefício. A palavra "coerente" é
De toda forma, é interessante a observação importante, está ligada ao treinamento da
de que o carma, para quem não tem um mente, isto é, percebemos que nossos
caminho espiritual, é quase que aleatório, obstáculos em trazer felicidade aos outros
porque a pessoa não tem noção das causas são nossas tendências e hábitos negativos
e consequências, e nem geralmente uma — assim os identificamos e produzimos
mente disposta a esse exame. Isso é antídotos, e geramos hábitos positivos.
totalmente verdade. Dessa forma, tanto a ação direta em
benefício dos outros quanto o treinamento
O mesmo tipo de reflexão surge quando para a ação mais coerente (a prática
uma pessoa que foi "boa" nessa vida, no formal), ambos geram méritos.
budismo acaba podendo renascer, na
próxima vida, numa circunstância bem O acúmulo de méritos é necessário, mas
infeliz. Primeiro, não sabemos o carma das não é suficiente para atingir a liberação ou
infindáveis vidas passadas antes dessa. a iluminação completas. Além do acúmulo
Depois as circunstâncias do momento da de méritos é necessário treinar na
morte são muito imponderáveis: ela pode sabedoria, o reconhecimento da realidade,
morrer com raiva, ela pode ter vários tipos da vacuidade, em todas as coisas. Isto é,
de morte ruim. De toda forma, a bondade usando o símile famoso do sonho,
que ela exerceu nessa vida é uma força reconhecê-las como um sonho.
positiva que tem uma consequência
positiva: nem que seja irrisória, em alguns A beleza feminina é vista no Budismo como
casos, perante, como se diz, "um momento algo positivo ou como uma possível
de raiva". "armadilha"?
Esse tipo de reflexão evita que pensemos no A beleza de qualquer gênero, e mesmo de
carma como um mero videogame, onde animais, é um fruto do carma positivo ligado
tudo é linear e compreensível. Não essencialmente a prática de paciência ao
podemos nos portar de forma aleatória, longo de várias vidas.
Nosso apego pela beleza, nossa e dos Praticar compaixão altera nossa aparência
outros, no entanto, é negativo. É possível física? Percebi que pessoas boas tem boa
admirar algo sem apego, mas não é comum. aparência e pessoas malvadas, aparência
Com a prática é normal que se torne mais ruim.
comum admirar sem apego.
Isso não é absolutamente acurado, mas de
Quando vemos alguém belo, devemos forma geral, bem geral, e com um grão de
regozijar pelo mérito dessa pessoa. Quando sal, é verdade.
vemos um casal onde um é feio e o outro
bonito, devemos regozijar pelo mérito do Particularmente, mesmo uma pessoa com
feio em usufruir de sua bela companhia. boa aparência hoje, se for "malvada", com
Dessa forma, nós mesmos acumulamos certeza foi boa em vidas passadas. A boa
méritos. aparência é o resultado de bom carma nesta
e em vidas passadas, embora as
E a feiura então é fruto de mau carma? E circunstâncias precisem estar presentes —
quanto ao Buda, ele é o mais belo dos ou seja, o bom carma pode se manifestar a
seres? qualquer momento ou levar muito tempo
para se manifestar. Por isso surgem as
Claro. Porém, como todas as coisas, os exceções.
juízos também são interdependentes, e
coemergentes — o que quer dizer que pela É importante não confundir causa com
nossa falta de mérito, achamos belo o que resultado. O fato de uma pessoa ser bonita
não é tão belo, e achamos não tão belo o hoje não quer dizer que hoje ela seja uma
que é efetivamente belo — se nosso carma boa pessoa. Ela está vivenciando o
for realmente ruim, achamos belo o que é resultado de boas ações que praticou antes,
feio, e feio o que é belo. Então o mérito faz possivelmente em muitas outras vidas. Ela
o belo não só do ponto do objeto quanto do pode ou não seguir produzindo esse bom
ponto do observador. mérito, e portanto hoje pode ou não ser
uma boa pessoa.
Quando no zen se diz "qual é o som de uma
só palma", é interdependência, Ainda assim, todas as experiências positivas
coemergência. A palma que bate na outra são frutos de mérito. O mérito, sem
tem um som, a que bate na parede, outro sabedoria, é totalmente mundano, isto é,
som. É a mesma palma, sons diferentes. O ele só diz respeito a coisas temporárias,
mérito afeta o objeto observado, o felicidades que no fundo são insatisfatórias.
instrumento de observação, o modelo É através da motivação e da sabedoria que
utilizado para desenhar o instrumento, os o mérito vai se tornar coadjuvante na
órgãos dos sentidos e a consciência — tudo iluminação.
de forma interdependente.
447. Posso ser belo, sem ter méritos? A vá a polícia ou algo assim, apenas quer dizer
beleza pode não ser uma experiência que ela não faz isso por raiva ou vingança,
positiva? O que acontece, por exemplo, no mas para proteger outras mulheres.
caso de uma menina ser bela em uma aldeia
com homens agressivos, por exemplo, que Conhecer e se interessar pelo budismo
a estuprem? nesta vida é sinal que você provavelmente
acumulou méritos?
A circunstância geral da beleza é positiva.
Ela pode, claro, ser coadjuvante de Claro. E você acumula méritos para, caso
condições negativas. A beleza, como o você não se ilumine, você tenha alguma
resultado de todos os méritos, é fonte de chance de encontrar os ensinamentos
sofrimento, no sentido mais profundo de novamente. Como estes ensinamentos
sofrimento no darma, mesmo quando é sobre as verdadeiras causas da felicidade
evidentemente "boa". Os méritos negativos temporária, e sobre a felicidade definitiva,
(o carma negativo) é fonte de sofrimento e são raros, e eles permitem não só um sonho
o carma positivo também é fonte de bom, uma vida boa, mas a possibilidade de
sofrimento, e é isso que quer dizer dukkha, dar sentido a toda a existência, e atingir um
insatisfatoriedade. estado de liberdade, criatividade e
compaixão vastas e profundas,
Por outro lado, normalmente o que se diz é beneficiando extremamente a si próprio e
que o estupro não tem a ver com beleza ou aos outros, gerar méritos com isso em
mesmo sexualidade, e é sim apenas uma mente, em particular com o benefício dos
forma de violência. Uma pessoa nascer outros em mente, é o melhor motivo para
numa cultura de estupro é fruto de mau amealhar méritos.
carma sem dúvida, e se algo é usado como
justificativa para esse estupro, por parte dos Por que nos períodos de saga dawa e luas
estupradores (como aparência ou modo de cheias os carmas são potencializados?
vestir), isso é apenas uma junção de
circunstâncias e causas, que tem a ver com Pela interdependência com as aspirações
o carma ruim de todos os envolvidos. dos budas, bodisatvas e praticantes do
Infelizmente, os perpetradores do crime passado que fizeram práticas intensas sob
estão fazendo um ser sofrer, e gerando mais as mesmas circunstâncias na mesma época.
sofrimento para si no futuro, enquanto que
a vítima pode ou não usar essa triste Isto é, através da interdependência com
oportunidade como purificação de carma – eventos como a iluminação do Buda e a
isto é, na medida em que ela tiver raiva ou repetida prática da sanga ao longo dos
queira vingança, a experiência será ainda milênios, a nossa própria prática, ao
mais negativa para ela. Se há uma coisa boa preencher essas aspirações e estar em
no carma ruim é que ele pode ser continuidade com esses períodos em que se
purificado. Isso não quer dizer que ela não
insatisfatória, e portanto, mais uma forma Eles também contam com méritos de
de sofrimento disfarçado. incontáveis vidas passadas, além do que o
carma nunca é infinito, então uma hora se
Isso significa que quando eu ofereço meus esgota. Uma combinação desses três
méritos a todos os seres, realmente estou fatores: ajuda externa, mérito próprio e
compartilhando meu carma positivo? impermanência é o que faz que nenhum dos
Pessoas recebem estes méritos? Saem da reinos seja "eterno" pra ninguém.
minha mente e afetam outros seres?
Dedicar o mérito é multiplicar o mérito?
O efeito que isso tem sobre os outros seres
depende dos méritos deles. O efeito que O mérito depende de quanta sabedoria da
isso tem sobre você, curiosamente, é o de inseparatividade se tem. Quanto maior sua
transformar o mero gerar de méritos em sabedoria, mais mérito. E dedicar
sabedoria. É um passo na direção de incrementa mérito e sabedoria,
reconhecer o sonho, e não apenas sonhar dependendo pode "multiplicar"
algo melhor, que é o que méritos ordinários, intensamente o mérito.
não dedicados, produzem.
Dedicar mesmo uma ação irrisória para um
O mérito é transferido de um ser ao outro? único ser pode produzir iluminação, se se
tiver a sabedoria de um quase-buda.
A noção de separação entre os seres surge
com a ignorância. Parte da prática de Não haveria como, por exemplo, ter
dedicação de méritos envolve reconhecer a acumulado mérito o suficiente para
inseparatividade natural entre todos os renascer como um semideus, doar esse
seres. mérito todo para a iluminação dos seres e
assim ter que renascer novamente como
Considerando-se os seres nos infernos ou os humano por causa da transferência de
famintos ou os semideuses e deuses ou mérito? Ou mesmo como animal?
todos os não humanos que não conseguem
praticar o darma, quando dedicamos os Bom, temos dois equívocos aqui.
méritos a todos os seres, isso os ajuda de
alguma forma? É só através disso que O mérito de um deus ou semi-deus, do
conseguem sair de seu estado e nascer ponto de vista do darma, é inferior a de um
como humanos, com chance de iluminação? ser humano. O ser humano tem mais
chance de praticar o darma.
Sim, os ajuda. Mas essa não é a causa única
que pode impelí-los na direção de Então podemos falar em mérito mundano e
renascimentos melhores e, eventualmente, o mérito que leva no caminho espiritual.
da iluminação.
O mérito de renascer no reino dos deuses da própria prática do darma que ele
ou semi-deuses é um obstáculo a fortalece e torna possível.
iluminação, então é uma forma de carma
negativo, sobre certo aspecto. Esse é o O mérito mundano é aquilo que as pessoas
primeiro equívoco. ignorantes consideram que é mérito, isto é,
condições temporárias "boas" de todo tipo,
O outro é que o mérito seja uma quantia como riqueza e carisma. Se essas
absoluta, como num banco. Ele não é. Ele circunstâncias impedem a pessoa de
depende totalmente da sabedoria que praticar o darma, porque ela fica muito
reconhece a vacuidade. Assim o seu mérito envolvida nelas, na verdade elas não são
de dedicar pode ser infinitamente maior do meritórias, elas só parecem meritórias. O
que o mérito da ação, isso dependendo da mérito verdadeiro é o mérito que leva à
sua sabedoria. iluminação, então esse é o mérito espiritual.
A prática de dedicação de méritos em si Qual a diferença entre ter mérito e não ter.
incrementa a sabedoria. Portanto os Pode dar um exemplo?
méritos aumentam para todos. E não só
isso, o seu mérito pessoal é protegido ao ser Ter mérito significa encontrar
oferecido. Ele permanecendo vinculado a circunstâncias propícias para o
uma entidade impermanente, também é desenvolvimento de sabedoria, e portanto,
impermanente. Quando ele se vincula à da iluminação.
inseparatividade, à vacuidade, então o
mérito se torna infinito e indestrutível. E é Os seres nos reinos superiores tem mérito
isso, também, juntamente com a própria no sentido de terem boas condições
sabedoria, que produz a iluminação. mundanas, mas elas não levam a sabedoria,
Iluminação significa sabedoria incessante nem a iluminação. Pelo contrário, os levam
reconhecendo a vacuidade e mérito infinito, a não ter interesse em coisas profundas, e
um estando inextricavelmente ligado ao na prática do darma, por exemplo.
outro.
Milarepa uma vez quebrou o único objeto
Qual a diferença entre mérito mundano e pessoal que possuía, uma tigela de barro, e
mérito que leva ao caminho espiritual? cantou de felicidade porque a tigela havia
Dedicar é uma maneira de transformar lhe dado mais um ensinamento sobre a
mundano em espiritual? impermanência. Isso é mérito, do ponto de
vista do darma.
Sim, dedicar é uma prática que leva a
transformar o mérito aparente em mérito Ao rezar para alguém acreditando que isso
verdadeiro. Reconhecendo lhe refresca alguma coisa, o praticante não
inseparatividade e vacuidade, isto é, através está se comportando como se fosse um
Deus oculto que se compadece de todos os
Curiosamente, quem mais se beneficia com Sim, mas não é certo que isso vai acontecer.
o dedicar de méritos a alguém é a própria De toda forma, algum benefício o animal
pessoa que dedica. O objeto da oração obterá. Você gera méritos e os dedica em
recebe algum benefício, coemergente com nome do animal, e ademais, para o
o mérito que tenha gerado por si só, mas o benefício de todos os seres.
benefício maior é de quem ora. Portanto é
possível até mesmo fazer uma segunda, Como se dedica méritos?
uma terceira, uma "n" dedicação de
méritos. Se ao gerar esse mérito Existe a dedicação de méritos e a prática de
mantivermos esse mérito apenas para "nós dedicação de méritos. A dedicação de
mesmos", sem dedicar, daí o mérito é méritos é o que um Buda faz com seus
naturalmente mais sujeito à méritos. Nós fazemos a prática, isto é, nos
impermanência, dura muito pouco, e é aspiramos dedicar os méritos. Nós fazemos
muito pequeno. Por isso é minha melhor um gesto artificial que imita os Budas, e
vantagem não ser egoísta com meu mérito: enquanto a sabedoria vai brotando, a
quanto mais verdadeiramente não egoístas artificialidade vai se dissipando, e a
somos, melhor nos damos. dedicação se torna natural. Podemos usar
uma formulação como "dedico meus
Se a intervenção é eficaz — por exemplo, se, méritos como todos os Budas os dedicam",
ao menos em parte, devido a uma oração de ou alguma entre centenas ou milhares de
alguém, um papel que a pessoa a ser preces já compostas e tradicionais.
beneficiada precisaria recolher do chão é Podemos fazer através de uma prece, em
resgatado antes de cair, e ele não precisa se voz alta, ou, se formos capazes, através de
abaixar — o mérito é tanto de quem orou um samadhi, uma realização meditativa —
quanto de para quem se ora. E podemos o melhor deles sendo a realização da
sempre dedicar vez após vez. vacuidade. A dedicação de méritos só é
possível com a sabedoria — então
treinamos na dedicação de méritos para Uma pessoa gera carma na medida em que
revelar a sabedoria, e nos ocupamos da ela age intencionalmente e com isso
sabedoria para possibilitar a dedicação de prejudica os outros. Se uma pessoa ajuda
méritos. outra por compaixão, ela não gera carma
ruim. Se por negligência ela solta no mundo
Uma pessoa morre e deixa um testamento, uma pessoa que vai continuar causando
nele ela diz que todos os bens devem ser negatividade, então, nesse caso ela gera
doados aos pobres e instituições de mau carma ligado a sua negligência.
caridades. Mesmo depois de morta, essa
pessoa acumula esses méritos? Mas então não é necessariamente
negligência? Digo, ele sabe que o rapaz
Claro. Se uma pessoa se inspira por um matou alguém, e o ajuda a ser absolvido
poeta que morreu há séculos, mesmo que porque esta é sua profissão. E ajudar
ele não tivesse intenção de publicar aquele alguém por compaixão, mesmo que isso
poema, ele gera muitos méritos. Que dizer acabe causando mal de outra pessoa, ainda
então de ações de generosidade que é uma boa ação?
perpassam gerações?
Pode ser negligência ou não. Se ele o
Mas também é possível dizer que ela já gera absolve sabendo e podendo saber que ele
os méritos ao fazer o testamento. pode cometer mais crimes, é negligência.
Senão, a pena humana não é substituta para
Supondo que alguém doe dinheiro para um o sofrimento que inevitavelmente ele vai
mendigo na rua e depois esse dinheiro seja ter. Na visão budista a prisão só é adequada
gasto com drogas, por exemplo. Mesmo se não é punitiva, mas para evitar que
que a motivação do doador seja positiva, cometam crimes, e, para, se possível,
como fica essa questão? recuperar a pessoa de forma que ela seja
confiável novamente.
O carma é essencialmente bom, com
elementos ruins na medida da indiferença e Então, um advogado que absolva alguém
negligência com que foi oferecido o em que ele não deveria confiar, porque vai
dinheiro. Além de estar atento, interessado seguir cometendo crimes, esse advogado
e cuidar do outro ao máximo, também, ao gera mau carma. Já um advogado que
fazer oferendas, devemos abandonar os absolve alguém que não cometerá mais
preconceitos. crimes, não gera carma.
nível mahayana é extremamente benéfica e Nós, que somos mais tímidos, pedimos para
essencial para a prática — isto é, é essencial que o carma fique lá, escondidinho, para
fazer essa prática continuamente, dia após quando desenvolvermos essa visão
dia, em qualquer caso. destemida.
Há alguma forma de dar um calote no De que forma que a vítima de uma agressão
carma? pode usar o fato como purificação de
carma?
Quando se diz "dar calote" no carma se quer
dizer que a pessoa não deve achar que Isso, ela naturalmente purifica carma ao
sofrendo voluntariamente ela vai estar sofrer não voluntariamente. Na medida que
pagando alguma coisa. Se ela pode não ela se coloca disponível ao sofrimento, sem
sofrer, ela deve evitar o sofrimento — ela que isso seja benéfico a ninguém, nessa
não precisa, só porque se considera culpada medida não haverá purificação. É
de algo, ficar numa situação de sofrimento. importante explicar isso, porque senão a
próxima pergunta será "porque um Budista
Gerar mérito e sabedoria é a melhor não se autoflagela para purificar carma, ou
proteção quanto ao carma. Você cria não manda alguém bater nele?"
circunstâncias boas e assim o que seriam
500 bilhões de anos no inferno se Porém, na medida em que ela sente raiva ou
transformam em 15 minutos de dor de outras aflições mentais com relação ao
cabeça. agressor, ela gera novas propensões, e se
ela revida em corpo, fala ou mente
Enfim, quando uma pessoa está muito (planejando um revide), embasada em
próxima da realização, ela chama todos os aflições, e não em compaixão por si própria
credores cármicos para devorarem dela e pelo agressor, ela gera carma. Então ela
tudo que puder ser devorado. Em outras não aproveita a oportunidade de purificar o
palavras, tudo que pode ser devorado, carma sem gerar mais carma, que é gerar
destruído, não é fonte de refúgio. Estivemos compaixão.
dando solidez e criando apego por este
corpo e essas coisas em que confiamos, mas Se a pessoa tem uma doença, por exemplo,
nenhuma dessas coisas é causa verdadeira e fica autocentrada, ela não purifica muito
de felicidade. Assim, uma pessoa que esteja carma. Agora, se ela gera compaixão
acima da esperança e do medo chama os através do próprio sofrimento, porque
demônios para um banquete, e assim entende melhor o sofrimento de muitos
purifica vastas quantidades de carma — ou outros com a mesma condição, ela purifica
o esgota completamente — numa única muito carma e gera mérito.
vida, numa única sessão de prática.
Por isso é uma oportunidade em aberto, ao
contrário de outras tradições, onde o
Nos países em que há pena de morte, para Aprendi que no budismo o carma não é
quem vai o eventual mau carma das visto como um castigo, mas sim como o
execuções? reflexo de estruturas mentais. Como então
o budismo explica acidentes trágicos com
Para quem quer que regozije com a morte. pessoas que ajudam muito as outras?
Também para aqueles que por negligência
Se o carma fosse tão linear, nenhum ladrão Tudo é carma? Ou seja: uma criança que
poderia experimentar felicidade após o sofre qualquer tipo de violência está
crime, mas de fato há muita felicidade falsa pagando por erros cometidos no passado?
em usufruir do roubo, talvez por toda uma
vida. Não obstante, em vidas futuras o Sim, todo sofrimento vem de produzir
sofrimento causado se manifesta. sofrimento no passado. Mas não existe a
noção de "pagar", porque se a pessoa
Da mesma forma, todos nós temos muito (criança) apenas sente raiva enquanto está
carma positivo e negativo acumulados por sofrendo, ela está apenas gerando mais
incontáveis vidas sucessivas. Se todo nosso carma — então ela não purifica nada. É um
carma negativo se manifestasse agora, pouco pior, por certo ângulo.
mesmo que nessa vida não tenhamos feito
nada de errado, vivenciaríamos um Por outro lado, é incorreto pensar "ela fez,
sofrimento muito pior do que uma morte agora paga", e não ajudar por algum motivo
em uma catástrofe. de vingança "na vida passada ela foi um
assassino, agora tem o que merece". O
Da mesma forma, nosso carma positivo não ensinamento de carma não nos dá nenhum
se manifesta todo de uma vez. tipo de perspectiva de "vingança" impessoal
da natureza, e sim a perspectiva de grande
As causas e condições precisam se formar, compaixão por aqueles que produzem hoje
para então a nossa experiência subjetiva as causas de grande sofrimento futuro.
colocar um rótulo positivo ou negativo nela, Então em vez de ficar "satisfeito" pelo
de acordo com tendências habituais de sofrimento da criança hoje, por más ações
muitas vidas acumuladas. do passado, você fica é triste pelos que hoje
cometem más ações, porque eles vão sofrer
Se o carma funcionasse de forma imediata como ela. Isso nos faz ter compaixão de
ou relativamente imediata, ninguém quem produz sofrimento, não só de quem
cometeria desvirtude. As pessoas cometem simplesmente sofre.
desvirtude porque não sabem que estão
bebendo veneno. Se elas passassem mal Se a pessoa não tem essa perspectiva, ela
após o primeiro gole, não tomariam o apenas pensa em culpa e responsabilidade
segundo. Elas seguem bebendo veneno — e o ponto aqui é compaixão. Você não diz
porque parece gostoso, até que um dia o "muito bem", não está nada bem. E quando
colesterol finalmente entope uma veia você mesmo sofre, você não pensa apenas
crucial. Mesmo que ela saiba que vai "puxa, eu fiz algo muito errado", você pensa
entupir, ela segue mais o impulso e o hábito "que ninguém passe pelo que estou
do que o conhecimento de que no futuro passando", isto é, que ninguém gere estes
aquilo vai dar errado. resultados. Essa é a perspectiva correta com
relação ao carma. Em outras palavras,
quando vemos um malfeitor sofrendo (e só
quem sofre é malfeitor), nós não mau carma? E se é pelo carma, qual o
regozijamos, nós temos compaixão. Da sentido de se tomar vacinas e remédios?
mesma forma, quando vemos um malfeitor
se "dando bem", nós não ficamos com raiva, A causa primária de todo sofrimento é a
mas apenas novamente, temos compaixão, ignorância. Ela produz o mau carma, que
porque sabemos que eventualmente as produz as fragilidades, que produzem as
causas encontrarão condições de produzir causas eficientes. Você pode extirpar o
resultados — gerando sofrimento. sofrimento pelos ramos ou pela raiz, e de
fato, do jeito que você puder. Mas é melhor
Compaixão na causa e no resultado. Essa é pela raiz. Enquanto você não elimina a
a perspectiva correta. Ademais, carma é um ignorância, você lida com as causas
ensinamento provisório, isto é, não é o que eficientes, indo no médico e tomando
de mais profundo o Buda ensinou. É remédios. Uma coisa não exclui a outra, e
essencial refletir sobre carma, mas também você não precisa abandonar nenhuma
é essencial refletir sobre a tentativa de evitar o sofrimento.
insubstancialidade de todas as causas e
condições como sonhos bons e pesadelos. Mas é importante entender uma causa que
explica o funcionamento de algo (causa
Até se uma pessoa é destra, canhoto ou eficiente) e uma causa que explica o porquê
ambidestra é por causa do carma? último de algo (causa primária) — essa é
uma diferença teísta e aristotélica, mas
Claro, até se uma pessoa tem uma pintinha serve nesse contexto. Se a pessoa tem um
no nariz. Não existe no budismo efeito sem determinado distúrbio no corpo, você pode
causa. dizer que é por causa de uma bactéria —
mas porque o sistema imunológico dessa
Porque algumas pessoas morrem mais cedo pessoa deixou a bactéria entrar e ficar? Daí
que outras? Seria efeito do carma? você vai para ambiente e genética. Mas
porque o ambiente é assim? Porque a
Sim, a morte extemporânea, fora de hora — genética é assim? Por causa do carma. E
isto é, numa idade em que normalmente porque o carma é carma? Por causa da
não se espera que a pessoa devesse morrer ignorância. Essa é a causa primária.
— se deve a ter matado seres, nesta ou em
outras vidas. Assim, se a pessoa quer ter O budismo não acaba vendo deficientes,
uma longa vida, e ter o mérito de uma longa por exemplo, de uma forma que pode ser
vida nesta e em outras vidas, ela deve injusta, já que suas mazelas são
proteger a vida de outros seres. consequência de algo que fizeram? Isto não
é apenas um dogma?
Afinal, as doenças são causadas por
bactérias, vírus e defeitos genéticos ou pelo Qualquer coisa que produza sofrimento é
fruto de mau carma. Não existe sofrimento
sem ações negativas que o geraram. No sofrendo de câncer no hospital você precisa
entanto, em vez de nos focarmos no desenvolver por aquele que hoje mata e
preconceito nas pessoas que sofrem devido vende drogas, e que está gerando
a suas ações passadas, que tal evitar sofrimentos ainda maiores para si no
completamente o preconceito contra futuro. Olhar uma pessoa que sofre ou que
aquelas que agem negativamente? Todos vai sofrer e ver apenas um culpado é grande
nós temos o potencial para qualquer ação ignorância.
negativa, por pior que seja. Porque então
nos consideramos melhores ou olhamos "A mesma compaixão (...) você precisa
com desdém para aquelas que agem, hoje, desenvolver por aquele que hoje mata e
negativamente? Eles são objetos de vende drogas" Se o budismo é verdadeiro,
compaixão maior do que aqueles que tudo bem. Mas se é equivocado, essa
sofrem os frutos de suas ações passadas. negação da responsabilidade dos seres por
Não é vergonha nenhuma sofrer — há seus atos me parece perniciosa. Não é?
grande vergonha em olhar para aqueles que
agem negativamente (agora e no passado) Carma é responsabilidade. O que é negado
com uma mente preconceituosa. é culpa. Onde você leu que não há
responsabilidade?
Justiça é ver os seres com equanimidade,
sem preferir uns pelos outros, sem vê-los Evidentemente que não é pernicioso, caso
nas suas necessidades peculiares. Injustiça contrário as civilizações budistas — onde
seria, por exemplo, uma visão que tivesse todos acreditam nessas coisas, e onde,
por um deficiente maior compaixão do que embora existam poucos crimes, existem
por alguém que, agora, age negativamente. crimes — seriam consideradas bárbaras e
Mas as pessoas são assim, de um elas infelizes — o que não acontece. De fato,
sentem pena, do outro aversão e raiva. essa seria a verdadeira atitude de um
Justiça é evitar pena por um e desprezo por cristão também — para um cristão que leve
outros, e usar simplesmente a compaixão. a sério a palavra do Novo Testamento.
E, ademais, ninguém precisa acatar nenhum A ideia de julgar quem comete negatividade
ensinamento budista sem o colocar em como se aquela negatividade fosse algo
teste. Então, por definição, não existem mais que um obscurecimento adventício,
dogmas no budismo. Nesse caso que você que seja uma espécie de marca permanente
cita, uma mera reflexão sobre compaixão e de mal cravada no cerne daquele ser, é a
equanimidade — ausência de preconceitos ideia mais perniciosa que existe. É a
— já purifica qualquer ideia errônea que reificação do "eu" assumindo sua mais
uma pessoa que pensou as coisas pela hedionda forma.
metade poderia ter com relação ao
ensinamento do carma. A mesma "Ninguém precisa acatar nenhum
compaixão que você tem pelas crianças ensinamento budista sem o colocar em
teste" Como se pode colocar em teste de realidade ou as coisas que acontecem sigam
maneira razoável a afirmação de que a necessariamente ditames e expectativas de
deficiência adquirida ou congênita de seres humanos ou divinos. Já que não há
alguém é fruto de mau carma? uma noção de criação, as coisas podem
perfeitamente não ser justas. O Buda não
Através da prática de meditação. Ao tem responsabilidade nenhuma pelas coisas
estabilizar seu foco, regular a exposição, serem do jeito que são — ele apenas ensina
encontrar a nitidez perfeita para a análise um caminho para superarmos o sofrimento,
dos fenômenos internos e externos, a que é também uma experiência de ser
interdependência se torna clara. senciente, não uma coisa que exista por si
Eventualmente você pode até lembrar das só na estrutura das coisas.
incontáveis vezes em que você mesmo foi
deficiente (porque se fixar nisso? Cada Depois, essa pergunta é comum e creio que
circunstância em que você sofreu, até por já a respondi algumas vezes. O fato da
um motivo frívolo), e cada uma das causas. pessoa não saber que fez algo de errado não
a exime da responsabilidade pelo que fez:
Um conhecimento completo de todas as se sofremos algo hoje, é porque em
causas e condições só um Buda pode ter. momentos passados causamos sofrimento.
Mas um conhecimento parcial de Se hoje somos virtuosos e causamos
carma/interdependência é razoavelmente felicidade aos outros, é bem provável que
fácil de obter. E, além disso, pensar de nossas experiências futuras reflitam estas
acordo com isso, aceitar o experimento de ações — mas todos nós temos uma pilha de
pensamento, é o mais benéfico para você e experiências boas e ruins criadas por ações
para os outros. Então a pessoa já se no passado, e o momento em que essas
beneficia no mero examinar experiências ocorrerão é totalmente
cuidadosamente essa questão e fazer os indeterminado.
experimentos.
De outra forma, não "pagamos" através de
Como o budismo explica o porquê de coisas sofrimento: nós purificamos o carma, não o
horríveis acontecerem com determinadas "pagamos". Essa é uma diferença crucial.
pessoas? Se for para "pagar por suas Não há uma contabilidade, nem uma culpa.
atitudes na outra vida" como existiria uma Há apenas responsabilidade, e o fato, até
"justiça" nisso, caso a pessoa seja uma mesmo confortador, de que as experiências
pessoa realmente boa/pura nessa de sofrimento tem origem no fato de que
encarnação? causamos sofrimento a outros — mesmo
que sejamos quase perfeitamente virtuosos
Bom, primeiro você está supondo que o nessa vida, vamos reconhecer algumas
budismo considere o samsara justo: ele não ações nossas que causaram sofrimento. Da
necessariamente é justo. Justiça é um valor mesma forma que fomos capazes dessas
humano. No budismo não se propõe que a pequenas ações, podemos, no passado e no
Às vezes, quando eu falo essas coisas, me O samsara não é o mundo, mas um sonho
surpreendo que o que as pessoas sabem causado por aflições mentais. O maior
sobre budismo são coisas como "desapego problema das pessoas que não acreditam
de posses materiais" e "reencarnação". Esse em infernos e reino dos deuses não é elas
tipo de visão é googolplex vezes mais não acreditarem nesses reinos, mas elas
importante do que abandonar posses (e isso acreditarem demais na experiência
só é importante para o hinayana, a forma humana, e não serem capazes de duvidar
mais inferior de budismo), e bem mais dessa experiência — e, mais importante,
importante que a noção de renascimento. reconhecer sua transitoriedade.
Sua Santidade o Dalai Lama chega a dizer
que isso é mais importante do que o refúgio Segundo o budismo, esse corpo aqui
no Buda — e até pelo simples autointeresse, também é um corpo sonhado — e não só é
se a pessoa refletir bem e fizer os sonhado, mas é foco de grande apego, que
experimentos, sem se filiar a religião é uma distorção emocional, nós confiamos
alguma e fazer prática alguma, a pessoa muito nele, nós nos identificamos com ele
deveria adotar tal visão. — e isso leva ao sofrimento, porque ele
evidentemente não dura muito.
A noção de carma do budismo parece meio Em essência, por exemplo, todos nós somos
radical demais. Não consigo, por exemplo, capazes da mesma compaixão. No nível
sequer imaginar o que um ser teria que atômico, o mesmo número de átomos de
fazer para merecer uma temporada em um led, a lampadinha que indica que o Caps
alguns dos infernos que os textos Lock do seu teclado está acionado ou não, e
descrevem. Parece injusto, cruel demais. de uma estrela tem a exata mesma energia.
Se tem a mesma massa, eles tem a mesma
"Se eu acredito no Carma? Não, eu não energia. Mas, por causas e condições, um
acredito. Se eu pratico de acordo com o está sendo excitado por um pouquinho de
carma? Sim, eu pratico." Essas foram as eletricidade, e o outro está no meio de uma
palavras de Phakchok Rinpoche ensinando reação termonuclear, assim essa energia
aqui no Brasil. num caso liberada e no outro apenas um
pouquinho de luz é emitida. Da mesma
impermanente, e uma hora, após centenas sua vida de gato) refletir sobre suas ações e
de vidas em renascimentos inferiores, pode tentar direcionar seus hábitos. Ainda assim,
começar uma curva ascendente. facilmente reparamos que há gatos de
melhor ou pior índole — mesmo que
Não saber o que se está fazendo faz parte tenham recebido basicamente o mesmo
da geração de carma ruim em qualquer dos tratamento quando filhotes. Isso indica que
reinos. Um ser humano não sabe também o há diversidade genética, mas que mais do
que está fazendo quando cria as causas de que isso, há diversidade na formação de
sofrimento futuro. Se soubesse, não agiria hábitos (que segundo o budismo, é o que
assim. Sabedoria é bem diferente de está por trás de um ser surgir em meio a
racionalidade, e os animais possuem uma determinada configuração genética e
alguma racionalidade, ainda que ambiental).
rudimentar.
A simpatia que uma pessoa tem por uma
A ideia de que os animais são irracionais é espécie animal em detrimento de outras
teísta, embasada na ideia de que alguns pode ter relação com vidas passadas?
seres são criados diferentes. Se a pessoa
acredita na evolução das espécies, então ela Sim, mas não necessariamente porque ela
é obrigada a concordar que não existe nada renasceu mais como aquele animal — pode
essencialmente diferente entre um homem simplesmente ter desenvolvido o hábito,
e um outro mamífero qualquer, ou pelo como pode ter desenvolvido o hábito nessa
menos um outro ser qualquer com um vida.
cérebro razoavelmente desenvolvido. Não é
uma diferença qualitativa, é uma diferença Vírus e bactérias que provocam doenças são
quantitativa. dignos de compaixão?
resolvido, mas como no budismo há uma Essas teorias não são comprovadas. Se
série de seres sencientes sutis e minúsculos, forem, com certeza será útil pensar dessa
então, embora não sejam os mesmos, é forma.
adequado sentir compaixão pelos
incontáveis seres em qualquer milímetro Já que não há definição científica de
cúbico de ar. Se as bactérias por acaso consciência — nem uma boa definição de
forem sencientes, podemos incluí-las. "sentimento" fora da área da psicologia (em
que você precisa de expressões como a fala
Atrelar o caráter de senciente à presença de e os gestos). Então... o melhor conselho é
um sistema nervoso não é materialista? que, se você quiser ter compaixão até
mesmo por uma mesa, tudo bem, pode
Esse critério é o máximo que a ciência atual ajudar no seu treinamento de compaixão.
pode prover. Podemos utilizá-lo "com um
grão de sal". O critério budista efetivo é a Se todo mau sofrido é consequência de
verificação empírica, através da prática de ações passadas, como se deram os
meditação. primeiros crimes?
Plantas não são dignas de compaixão?! Eu No sentido relativo, todo sofrimento vem
pensava que existia alguma evidência de de ações passadas. No sentido absoluto,
que elas têm sentimentos. Especialmente não há os três tempos de passado presente
as plantas carnívoras. Se uma colônia de e futuro. O Buda não respondia perguntas
cupins está destruindo uma árvore de 200 sobre causas primeiras porque elas
anos, de que lado ficar? Simpatizo mais com invariavelmente não levam a nada.
a árvore.
O Buda aconselhava a analisar, na nossa
As plantas carnívoras são um objeto de experiência diária, se produzir sofrimento
debate no budismo, mas ainda há consenso aos outros não causava sofrimento em nós
de que plantas não tem sensações, muito mesmos, e daí ampliar indefinidamente
menos sentimentos — e portanto não são para o passado e para o futuro.
seres sencientes, e não são objetos Indefinidamente é uma boa palavra. Não há
apropriados de compaixão. Os cupins, por primeiras causas no budismo, porque um
outro lado, com certeza são, ainda mais um sonho não é algo autocontido. Você já viu
número grande deles. um sonho começar? Quando você acorda,
você lembra uma experiência, e lembra uma
Li que as plantas possuem um sistema sequência de fatos, mas não lembra como,
nervoso químico, e que seres unicelulares quando e porque esse sonho começou. E de
agem como uma grande rede consciente. fato, a hora no sonho é a mesma hora
Para mim, tudo é digno de compaixão. acordado?
Porque não seria assim?
Para o budismo tudo que diz respeito a simplesmente não poderiam se libertar do
carma ocorre no tecido do sonho. samsara, isto é, não haveria Budas. Um
Buda é exatamente alguém totalmente livre
Com relação a sua resposta à "tudo é de impulsos do hábito, e que age
carma?" Se todo mal sofrido hoje é totalmente livre. Ele não possui carma
consequência de más ações passadas, os nenhum.
que praticam crimes hoje são impelidos por
alguma força? Ou seja, são instrumentos do Então é possível agir além dos impulsos, os
carma? impulsos não são totalmente
determinados, e o carma pode ser
Não. O carma é a ação em si, e a ação ocorre esgotado. Mas, na nossa situação atual, não
por uma combinação de fatores externos e temos liberdade e agimos por impulsos, que
internos — mas o fator determinante não é são em certo grau determinados, e portanto
causal, é de, propriamente, um agente não temos liberdade. Aquilo que o fumante
incondicionado. Se tudo fosse chama de "liberdade", no budismo é
condicionado, não haveria possibilidade de chamado de aprisionamento. Tem a
alguém acabar com carma. Assim, por mais aparência de uma escolha deliberada, mas
que as circunstâncias externas e internas não é.
levem alguém a cometer algo, existe
sempre uma liberdade, que é a natureza de Existe motivação e ação dentro do samsara
Buda. Apenas um Buda revelou essa que não surja exclusivamente do carma? É
natureza completamente, e portanto é correto considerar que quanto menos
completamente livre, e não gera carma condicionados, mais conseguimos agir por
algum. liberdade ou toda ação é necessariamente
cármica?
Todos os meus impulsos são devido a
carmas passados? É possível agir sem ser Existe uma confusão entre carma-ação e
influenciado pelo carma? carma-resultado. O carma resultado não
influencia decisivamente nas ações. Existe
Quanto a primeira pergunta: não! De forma sempre liberdade. A ação pode ser filtrada
alguma. Seus impulsos são em certa medida ou condicionada pelas aflições mentais, mas
moldados por hábitos e pelo resultado de sempre existe liberdade perante as aflições
carmas passados, mas não essencialmente. mentais — só não é muito frequente, para
Você sempre possui a liberdade de não agir nós, que temos prática ruim, exercê-la.
de acordo com os hábitos. Se suas ações
fossem determinadas simplesmente pelas Então sim, quanto menos condicionados
ações passadas, então não haveria pelos hábitos e aflições, mais livre é a ação
necessidade de prática — que é o que o — até a ação iluminada de um Buda, que é
liberta de seus impulsos habituais e permite totalmente livre de aflições, hábitos e
liberdade de ação. Nesse caso as pessoas condicionamentos. Esse potencial já está
presente em todos os seres, mas em geral relação causal entre específicos (matei,
não é exercido. serei morto, ou viverei uma vida mais curta;
cometi conduta sexual imprópria, nascerei
Não há justiça e vingança divinas (nêmesis) em lugares sujos, com parceiros
no Budismo? desagradáveis, etc.)?
Não. O carma é absolutamente impessoal. Tudo que pode ser explicado quanto a isso,
o nexo causal ético como reconhecido pelos
Todos os seres ignorantes, é claro, podem meditadores no budismo, é, como todo o
cometer vingança, inclusive deuses resto do budismo, verificado
mundanos. Mas isto os fará sofrer no empiricamente através da prática.
futuro, e quem é vítima dessa "vingança" só
tem essa fragilidade por carmas que Uma situação particular não é normalmente
cometeu no passado — como acontece reconhecida como causada por outra
entre seres humanos. situação particular — só para quem possui
onisciência. Eu só posso inferir, de forma
Justiça é uma prática budista chamada geral, que se sofro, é porque causei
"equanimidade". Não é uma característica sofrimento. Os sofrimentos específicos e as
impessoal das coisas. A equanimidade causas específicas, só podem ser
implica ter compaixão por todos os seres reconhecidos através de uma "memória
que sofrem, independentemente de total", coisa que só um Buda possui. E
gostarmos ou não deles. generalizações são só isso: generalizações.
Isto é, de forma geral conduta sexual
O carma não é justo, ele é meramente imprópria provoca renascimento em
exato. Então, se há alguma justiça no lugares sujos. Nem sempre, mas os
budismo, é uma das qualidades a professores do passado afirmaram haver
desenvolver, não algo que existe e a que uma tendência de correlação (no caso mais
estamos simplesmente sujeitos. que correlação, algum nexo causal) entre as
duas coisas.
Quem faz a contabilidade do carma?
No budismo não há deus ou teologia
Se você esquentar a água, ela ferve. Não subjacente ao processo cármico: dentro do
precisa nenhum intermediário, tal como um contexto do carma, positivo ou negativo,
grupo de anjos, para fazer cada uma das tudo é sofrimento. O Buda não inventou
bolhas. nem criou o mundo e as regras da
ignorância. A ignorância opera totalmente
A menos que se pense no universo como independentemente da vontade do Buda.
dotado de um propósito moral, aplicando
uma justiça do tipo "olho por olho, dente Se você reparar, outras pessoas fazem
por dente", qual é o propósito de afirmar a perguntas exatamente ao estilo que você
está fazendo, isto é, "mas porque o budismo Mas porque causas produzem efeitos
explica as coisas assim, isso não soa bem": correspondentes? Como essa determinação
do ponto de vista do budismo, ele não tem se forma?
responsabilidade, nem o Buda, sobre como
as coisas são. Apenas há uma depuração Na causalidade material é fácil de acreditar,
epistêmica dos modos de observação (é só não? Se você plantar uma semente de
através do reconhecimento direto das macieira, vai nascer maçã, e não jiló.
operações da mente que o nexo causal ético
pode ser reconhecido). Agora, se não soa Bom, a causalidade material é subsumida na
correto para você, o budismo não tem causalidade ética. Isto é, um pequeno
responsabilidade nenhuma sobre isso. Ou conjunto de coisas (como todo o nosso
você desiste de perseguir as únicas universo material) parece se portar de
ferramentas epistêmicas que permitiriam forma relativamente coerente (se isso,
esse exame, ou você as executa. Do jeito então aquilo), mas isso se deve ao fato de
que você fala, me parece que você nossas estruturas mentais produzirem esse
considera essas ideias absurdas ao ponto de tipo de sonho de materialidade.
não valerem o exame de, supostamente,
várias vidas de meditação. Então, não há Em outras palavras, a explicação funcional
muito que se possa fazer. (semente de maçã, macieira) é um
subconjunto pequeno da explicação ética:
O Buda (e o budismo por extensão) não tem os seres humanos e as maçãs existirem num
responsabilidade nenhuma sobre como as mesmo mundo e terem conexão, e uma
coisas são. As pessoas em contato com pessoa particular ter acesso a uma maçã
tradições outras pensam que, como há um particular num momento particular. Essa
deus criador, etc., justiça divina, um plano explicação não pode ser fornecida de forma
para as coisas, etc., que a explicação budista funcional, porque envolve agência.
também implique essas coisas, e esteja
talvez diretamente ligada a elas. O Buda não Porém há uma analogia entre a causalidade
é um "grande arquiteto", não tem funcional e a causalidade ética, elas não são
responsabilidade nenhuma senão sobre de forma alguma a mesma coisa, e nem se
como aliviar o sofrimento dos seres. O que portam exatamente da mesma forma: mas
se apresenta, não foi o Buda que fez, a sua elas tem o mesmo tipo de coerência causal.
ignorância, não foi o Buda que produziu. O Isto é, resultados quaisquer não surgem de
que o Buda apresenta é só uma uma ação determinada. De uma ação
identificação objetiva dos fatos através da determinada, surgem resultados
depuração de ferramentas epistêmicas determinados. O nexo opera exatamente da
(meditação). mesma forma.
subconjuntos das conexões éticas, isto é, o há estrutura, podemos nos rebelar contra a
mundo material é um pequeno subconjunto ignorância, e isso é o darma.
do mundo mental, fica fácil entender que as
relações causais também existem, de forma Mas eu não consigo reconhecer a causa de
análoga, nas conexões que não são um resultado cármico, embora eu consiga
meramente funcionais. Em outras palavras, reconhecer causas materiais, como uma
não pode nascer um tipo muito diferente de semente de maçã produzir uma macieira.
sofrimento para o agente um sofrimento Por que isso é assim?
causado por esse agente. Quer dizer,
algumas vezes pode ser difícil inferir uma Claro, eu e você podemos observar que
causa em particular a partir de um efeito, derrubar um copo de vidro da mesa, 99%
porque, da mesma forma que com o mundo das vezes, vai produzir a quebra do copo.
material, nem todas as variáveis são sempre Veja aí que há uma generalização, porque
conhecidas. Mas pela observação, mesmo em alguns casos o copo, dependendo da
sem entender porque, podemos inferir que construção, e também do material que
de determinados elementos, outros encontra no chão, não vai quebrar se cair de
elementos particulares surgem, e nunca uma determinada forma especifica. Mas de
certos outros elementos particulares. forma geral, essa é uma causalidade
imediata. Nada tem a ver com moral.
Num sentido último, o nexo causal (seja ele
material ou o mais amplo, ligado à mente), Quanto tempo levou para os seres humanos
é fruto da ignorância. As estruturas da entenderem que era a terra que girava em
ignorância possuem um efeito de torno do sol? Rádio e eletromagnetismo,
retroalimentação, que é a própria reificação quanto tempo demorou para observar,
ou teimosia, a renitência dos aspectos gerar os instrumentos, etc., para detectar
causais. De fato, o fato da ignorância ser essas coisas e entender suas causalidades
previsível (não exatamente racional, mas puramente materiais?
bastante determinada), é o que permite
que ela seja reconhecida e dissolvida. Se a Então, é claro, sem shamata, da mesma
ignorância fosse um processo totalmente forma que sem um laboratório, você
livre, ela não geraria o carma, e nem a consegue examinar parte bem pequena da
poderíamos identificar como ignorância. É causalidade (geralmente puramente
porque a ignorância se estrutura que uma material ou sensorial) que 1) opera dentro
estrutura pode ser reconhecida e do tempo que você consegue manter
derrubada. Se ela fosse apenas uma massa atenção; 2) dentro do escopo que os
amorfa de qualquer coisa (como algumas sentidos imediatos, pouco cultivados e sem
pessoas inferem a realidade seja, e são treinamento, podem exibir. Evidentemente
chamadas de "niilistas" pelo budismo), não um dos resultados automáticos de shamata
haveria sentido em qualquer tipo de ação, a é lembrar vidas passadas e conseguir
favor ou contra essa massa amorfa. Como
Existe uma explicação no Budismo para as Agora, outro aspecto da questão é que,
causas de grandes catástrofes naturais que além de cada pessoa envolvida poder estar
matam milhares de pessoas? passando por uma experiência diversa — e
as que possuem a mesma experiência tem
Carma coletivo. Outro dia eu estava vendo um carma mais coletivo, e assim por diante,
um desses documentários de vida animal, e o que não fica claro é se você está usando a
As variantes realistas do budismo são raro, mas da mesma forma indica que a
consideradas inferiores pelo mahayana. No interdependência foi cultivada.
mahayana todo e qualquer fenômeno é
ligado a todos os outros, e há intercausação O que quer dizer no budismo a palavra
entre todos eles. Portanto, não há espaço "interdependência"?
para o acaso.
De uma forma simples, significa que cada
É preciso frisar, no entanto, que não há evento está interconectado com todos os
determinação nas ações dos seres. A outros. "Criar uma interdependência"
natureza de buda é totalmente significa agir de forma que um padrão se
indeterminada e acausal, e assim as ações forme. Portanto, se a pessoa quer ter
não são frutos do acaso, mas tampouco são conexão com alguém, dar um presente a
frutos de determinação. essa pessoa é uma forma de ser lembrado.
E mesmo quando não for lembrado, existe
Quanto as pessoas que nascem em lugares aquela ação e suas consequências.
onde o budismo é minoritário e acabam se
tornando budistas. Elas descobrem e se Há os doze elos da originação
aproximam do budismo por acaso ou estão interdependente, e muitos ensinamentos
predestinadas a isso? profundos sobre interdependência. No
fundo, interdependência é a própria
Para o budismo não existem os extremos de vacuidade, o fato de que não existem
acaso ou predestinação. Nem o acaso nem eventos discretos, ou uma essência para os
o destino, mas o mérito amealhado através eventos. O sonho surge por
do cultivo de hábitos e ações positivas ao interdependência, e interdependências
longo de várias vidas é o que produz auspiciosas nos fazem felizes, enquanto
circunstâncias felizes. A interdependência interdependências inauspiciosas nos fazem
pode ser cultivada, e no caso do budismo, sofrer.
há o cultivo deliberado da interdependência
auspiciosa com os ensinamentos. Assim, Pensando numa resposta anterior, em que
mesmo numa cultura onde o budismo é alguém falava em destino ou acaso, de fato
predominante, é o conjunto de virtude é importante entender que a
amealhada através de ações e hábitos interdependência não cai em nenhum
positivos, e a interdependência desses extremos. Esse é um entendimento
cuidadosamente cultivada com os bem raro — a maioria de nós opera como se
ensinamentos, que vai permitir que a as coisas ocorressem aleatoriamente, ou já
pessoa não apenas participe de sua cultura estivessem registradas em pedra. O
como um observador indiferente, mas que budismo chama esses dois extremos de
se aprofunde nos ensinamentos. niilismo e eternalismo — os termos só são
Evidentemente, numa cultura que não usados dessa forma por budistas. Num
promove esses valores, isso é ainda mais desses extremos o agente é vítima de uma
Enquanto temos nosso corpo, nosso corpo ser por causa de carma negativo em outras
gera impacto. Se esse impacto vai ser vidas?
predominantemente positivo ou negativo, é
nossa prerrogativa — nós decidimos. Algum Sim, e mais do que isso, quando discute-se
impacto negativo sempre será gerado as desvirtudes, a desvirtude de
enquanto houver um corpo — assim é comportamento sexual inadequado produz
imprescindível gerar virtude de forma vasta. esse resultado, entre outros.
De forma que esse impacto negativo se
torne irrisório perante o benefício gerado. Em outras palavras, uma pessoa ao causar
sofrimento a si e a outros através da ação
Mau carma futuro pode agir no presente? sexual, no futuro encontra sofrimentos tais
como renascimento nos infernos, e, em
Não, se você ainda não agiu não tem carma. casos mais suaves, parceiros desagradáveis
Carma é ação. O carma funciona no tecido e instáveis em vidas futuras — bem como
da própria ilusão de coerência causal. nascer em locais sujos e poluídos.
"Má sorte" ou "boa sorte", como podem — e carma misto, um pouco bom e um
estes serem resultados de minha ações pouco ruim — , portanto, no geral, não dá
passadas? para saber.
3.4. Morte, renascimento, reinos
Com a interdependência, não há lugar para O que é samsara? Vejo essa palavra muito
o fortuito. Tudo que ocorre está interligado frequentemente em textos budistas e
com todo o resto. Segundo os outros contextos, mas não consigo
ensinamentos, a causalidade, que brota da entender.
ignorância, produz resultados de acordo
com as ações. Assim, se você causa Samsara é "experiência cíclica", ou o fato de
sofrimento, você sofre. Se você traz que todas as experiências condicionadas
felicidade, você vivencia felicidade. pelas aflições mentais (raiva, orgulho,
apego, inveja e ignorância) produzem
Como explicar a existência de pessoas que sofrimento. Em outras palavras, é o mundo
tem características muito positivas que surge através de nosso engajamento
misturadas a outras muito negativas? em corpo, fala e mente filtrado por essas
aflições.
Todos nós temos potencial para qualquer
combinação possível de hábitos e Samsara é maior do que a experiência dessa
tendências, e qualquer um de nós tem o vida e desse corpo, isto é, é a experiência de
potencial de revelar as qualidades inerentes sofrimento vinculada as aflições mentais
da natureza de buda. Qualquer situação em que produz todos os corpos que vivenciam
termos de hábitos é adventícia e sofrimento.
temporária.
No sentido mais estrito, quando existe a
Mas e quando simultaneamente causamos experiência de tempo e espaço, produzidas
felicidade para alguém e sofrimento para pelo veneno da ignorância, há samsara.
outro?
Assim, realmente não é um conceito fácil, e
Temos um carma misto, e, se nas exatas começamos apenas estudando a
mesmas proporções, neutro. Nesse caso, só profundidade do sofrimento das diversas
perdemos tempo. Por isso carma neutro é circunstâncias humanas e animais que
considerado carma negativo. conhecemos, e eventualmente ampliamos
isso para toda experiência possível
Ganhar na loteria ou num outro jogo de azar embasada em alguma aflição mental. E,
qualquer é fruto de bom carma, mau carma quando reconhecermos a aflição base, a
ou não dá pra saber? ignorância, finalmente teremos entendido o
que é sabedoria, e estaremos livres do
Num caso específico, com sabedoria, dá samsara. Por enquanto, trabalhamos com
para saber. Como pode ser ambas as coisas uma versão grosseira do veneno da
ignorância que é uma espécie de preguiça toda a vida. É uma grande oportunidade,
ou indiferença, o sofrimento que advém da que normalmente é desperdiçada por
negligência, por exemplo, e enfim aqueles que não possuem prática de
chegaremos ao entendimento de meditação. Para os que não tem confiança
causalidade, espaço e tempo como em sua prática de meditação, budistas ou
reificações da luminosidade. não budistas, os budistas veem um
momento de grande dificuldade, confusão e
Para onde vamos após nossa morte? sofrimento. Uma pessoa que levou uma
vida bastante ética tem uma chance melhor
Após sonhar a morte, sonhamos um de sofrer menos, mas mesmo uma pessoa
renascimento — se ele vai ser bom ou ruim, muito boa, sem a prática de meditação,
isso depende do carma. A não ser os seres pode sofrer bastante e envolver-se em
despertos, para eles só há lucidez. muita confusão durante o processo de
morte até o próximo renascimento — e daí
Segundo o budismo, o que acontece com a em diante.
pessoa depois da morte?
O que ocorre com a consciência após a
O sonho continua. O sonho pode piorar, morte?
principalmente se a pessoa não agiu de
forma ética durante a vida. Ou ele pode Depende da consciência. As consciências
melhorar, se ela praticou a virtude. Uma ligadas aos seis sentidos (5+consciência da
pessoa que pratica meditação, pode, mente) vão desaparecendo uma a uma até
durante a vida ou a morte, acordar do a morte (na verdade, inclusive quando você
sonho. E também ela pode seguir num toma uma anestesia geral, ou em sono
sonho lúcido, durante a vida ou a morte. profundo, ou coma). Essas consciências
desaparecem. A consciência base, é a
Normalmente a pessoa sofre muito logo fundação para os novos surgimentos. Antes
antes de morrer e durante o processo de dos surgimentos existe a oportunidade de
morte. Só um grande praticante — que é reconhecer o estado de abertura e repousar
bem raro — tem confiança na sua prática na nele, sem fixação. Se não meditamos
hora da morte e penetra lucidamente nas durante a vida, normalmente ele passa
experiências que surgem. quase imediatamente, e passamos a
alucinar — quem alucina é uma consciência.
Como budistas encaram a morte? Sofrem Depois cansada de não ter uma
menos? Acham natural? Ou depende de estabilidade, e simplesmente ser jogada de
como se morre? um lado para o outro (pelos ventos do
carma), ela se fixa a algo que considera
Depende da forma de budismo, mas em atraente, e assim ela se vincula a um novo
geral é um momento delicado e crucial, nascimento.
para o qual se deve se preparar durante
Como devemos reagir diante da morte de disponível para qualquer um. Porém, sem a
um ente querido? prática durante a vida e as instruções de um
professor qualificado, vai ser difícil haver
Sem desespero, sem choro. Praticar o que reconhecimento e estabilidade nesse
se sabe, patrocinar práticas em nome dele, reconhecimento. Nesse caso a pessoa deve
e evitar brigas e discussões com os parentes lembrar do Buda Amitaba e aspirar renascer
e amigos próximos, principalmente sobre as numa terra pura, para ter mais facilidades
posses do falecido. de praticar.
verdade (se é o caso ou não) você secundárias deste corpo estarão ligadas a
reconhece a mesma coisa. outras ações particulares e às aflições
mentais causadoras dessas ações
Para ser budista é preciso acreditar em particulares.
outras vidas além desta?
Você acredita que já foi uma barata em
Sim, você não pode ser solipsista. outra vida?
Mas se além disso você quis dizer outras Num dia bom não acredito nem mesmo que
vidas SUAS além desta vida, isto é, sou um ser humano agora! Também um dos
renascimento.... bem, nesse caso você pode maiores problemas dos humanos é o
usar alguma coisa do budismo para especismo, e a arrogância com que lidam
melhorar sua qualidade de vida e dos outros com outras formas de vida. O regime nazista
ao seu redor, mas para praticar o budismo transformou os judeus em insetos, o
com profundidade e com efeitos caminho do meio vê todos os seres como
duradouros, será necessário pensar em budas. Agora você escolhe seu lado.
muitas vidas.
"O caminho do meio vê todos os seres como
O que são seres sencientes? Quem são eles? budas." Baratas têm tanta dignidade assim?
Isso me parece tão extremo.
São seres que possuem mentes e portanto
são capazes de sofrer. São o objeto de Eu e uma barata não somos essencialmente
compaixão, o que inclui todos os humanos, diferentes, eu apenas tenho mais
todos os animais e mais algumas classes de capacidade, neste momento, para a
seres (pretas, narakas, asuras e devas). arrogância ou para a compaixão. Não existe
nenhuma diferença entre não reconhecer a
Tenho preferido, nessas respostas, usar a dignidade da barata e a dignidade ela
expressão "seres-mães", para lembrar que mesma como um valor por si só. Não
cada ser senciente já foi nossas mães várias reconhecer a dignidade do outro é não
vezes ao longo de incontáveis vidas. reconhecer a própria dignidade.
O que leva uma pessoa a renascer como O nosso senso comum é carregado de
animal? Ter levado uma "vida de animal"? O pressupostos extremos. Um pressuposto
que seria isso? extremo é o de que esse nosso corpo
humano é mais do que um sonho. Outro
Procrastinação, preguiça, desinteresse, pressuposto extremo é olhar para o outro e
covardia, tédio, falta de engajamento — má não ver um Buda, e sim uma barata. Da
vontade. A pessoa treinando nesses estados nossa perspectiva distorcida, o estado atual
mentais produzirá um corpo das coisas parece extremo — mas isso se
correspondente — e as características deve apenas às nossas próprias projeções.
mérito, eles podem ser importantes. mesmo é correta a ideia de que elas
Precisamos de mérito porque caso "podem" ter sido nossas mães, nós
contrário, temos obstáculos na nossa pensamos em todos os seres como TENDO
prática — obstáculos que impeçam a sido nossas mães. Mas não é por isso que
prática, como falta de tempo, doenças, vida não os matamos. Não os prejudicamos
curta, turbulência social, falta de casa e porque sofrem, ponto. Do ponto de vista do
alimento durante essas 50.000 horas iniciais NOSSO próprio treinamento, daí é
e as demais de vipassana, e assim por interessante experimentar com essa
diante. Ademais, 50.000 horas é para perspectiva de ver todos como mães — ou
aqueles atletas espirituais profissionais, a qualquer que seja o ser por quem temos
maioria dos budistas não vai fazer isso — e grande consideração, caso não achemos
gerar mérito vai ser a única prática deles. nossa mãe muito especial. Por exemplo, se
Para estes, ter compaixão, generosidade, e odiamos nossa mãe, e adoramos nosso
as outras qualidades é mais crucial ainda. cachorro ou nosso gato, podemos pensar
Portanto, se pensar em renascimentos que nossa mãe já foi nosso cachorro ou
como barata nos ajuda nisso, faz sentido gato. Porque ela já foi, ou porque é bom
pensar assim. Se não nos ajuda — e em pensar assim. ESSE ponto depende da
alguns casos pode não ajudar, podemos capacidade da pessoa, mas em ambos os
esperar para a verificação. casos, é bom para a pessoa.
Em geral o que obstaculiza as pessoas não é Em uma das respostas você afirma que os
exatamente a noção de explicações sem animais possuem uma racionalidade
muita evidência, mas sua própria falta de rudimentar e que não estamos tão distantes
mérito. Após se dizer repetidas vezes que a assim deles. Não somos superiores em
pessoa precisa se dedicar para atingir, nada? Uma bactéria e um humano têm a
digamos, as qualidades que ela reconhece mesma importância? Poderia falar mais a
no lama — e que essa dedicação não inclui respeito?
crer em coisas que ela considera absurda —
a única coisa que impede a pessoa são seus Bom, a bactéria é um ponto de debate.
próprios preconceitos, seus próprios Embora ela evite toxinas e busque alimento,
obstáculos. porque ela não sente dor, é difícil
estabelecer ela como um ser senciente — e
Uma vez um colega meu na filosofia disse com certeza não é possível estabelecer ela
que os budistas não matavam baratas como um ser racional, nem mesmo de
porque elas podiam ter sido nossas mães racionalidade rudimentar.
em vidas passadas. Não é por isso que não
se mata baratas — mas mesmo em tom No caso dos seres que sentem, sim, esse é o
ficcional, pensar nelas como nossas mães critério, estejam eles em que nível de
ajuda em nossa compaixão. Então não há racionalidade estiverem.
problema com essa perspectiva. Nem
"Mesma importância", daí eu diria que não. budismo que isso não existe. Algumas vezes
No sentido de sua "essência", eles são a se fala em substrato da psique, como sendo
mesma coisa — o potencial é o mesmo. No as energias de hábito que são mais
sentido de suas qualidades, daí o ser arraigadas e passam de uma vida para a
humano é claro desenvolveu mais outra.
qualidades do que os animais. Mesmo um
ser humano profundamente negativo pode Já mente depende um pouco da linhagem.
se regenerar e fazer muito mais bem, ter De uma forma geral, mente é citta, isto é, a
muito mais compaixão, do que um animal. capacidade cognitiva. No budismo tibetano
muitas vezes se fala em duas mentes: a
Assim há dois pontos importantes: não há capacidade cognitiva pristina, inalterada,
diferença essencial (na racionalidade, na impessoal, que funciona como o espaço
capacidade de compaixão) entre os seres onde se desenrolam as memórias e a
sencientes. Mas há diferença qualitativa. discursividade. As memórias e a
Entre as diferenças qualitativas, o ser que, discursividade são a mente convencional, o
pelas causas e condições, manifesta ou espaço onde elas se desenrolam são a
pode manifestar mais compaixão, "vale mente última ou básica.
mais". O critério não é a racionalidade, mas
a capacidade para a compaixão. Como se dá a imortalidade da mente?
No Budismo existe alma? O que renasce? A mente discursiva, que produz uma noção
de pessoalidade, essa morre. Se é nela que
Não há alma, mas o carma não cessa estamos confiando, é por isso que
quando condições não estão presentes, ele sofremos. Se sofremos, é porque estamos
só se conecta com novas condições se confiando nela. Já o espaço de atenção, ou
apresentam. o foco básico dessa mente, não depende de
localidade ou corporeidade, e portanto ela
Nos diálogo com o rei grego Milinda, é não nascida. Como é não nascida, não
Nagasena responde essa pergunta dizendo pode morrer.
que é como uma lamparina que acende
outra lamparina — não é nem mesmo o É preciso também apontar que dependendo
fogo, nem é essencialmente diferente. um pouco do budismo, "imortalidade" é
visto com maus olhos. O Buda descreve
Qual a diferença entre alma e mente? como um dos obstáculos diretos ao
entendimento do darma desejar a
Essa diferença é peculiar ao budismo. imortalidade ou a existência de um
substrato eterno. Mas existem alguns
No budismo o que chamamos de alma é um ensinamentos que apontam para um
substrato pessoal imortal, uma essência da substrato que algumas vezes é confundido
pessoa que é indestrutível. Considera-se no com "eterno".
Sim, dualidade, renascimento, samsara, criando novas marcas que podem ser úteis
tudo isso faz parte da delusão da dualidade. onde quer que estivermos no futuro.
Na verdade nada disso ocorre, senão na
mente que sonha, deludida. Onde fica armazenada a informação de
fatos ou conhecimentos de outras
Por outro lado, os resultados das atitudes encarnações que às vezes supostamente
positivas e negativas é exatamente o que são relembrados? As memórias de uma
não morre — isto é, o resultado do carma pessoa sobrevivem quando não há mais
segue além do corpo. Em verdade, cada corpo e cérebro?
corpo é o resultado de um conjunto de
carmas que encontra uma nova forma de se O corpo, segundo o budismo, é um
"estabilizar" por um tempo. É um corpo de epifenômeno da mente. Daí que as coisas
sonho num mundo de sonho — ambos de sonho não precisam ficar propriamente
criados pelas tendências habituais e pelas armazenadas. O Buda não sabia apenas
marcas criadas pelas ações. suas vidas passadas, mas as vidas passadas
de todos os outros. Se fossemos fisicalistas,
É possível carregar o que aprendemos com como ele teria memórias de outros?
os ensinamentos para outra vida?
Agora, é interessante frisar que as
Para um determinado darma passar de uma memórias são mesmo perecíveis como o
vida para a outra ele precisa passar do nível cérebro. Quando alguém consegue
superficial dos conceitos — que é como a vislumbrar parte do tecido da
agitação das ondas — depois passar do nível impermanência, e reconhecer as causas
intermediário das correntes submarinas, de para as condições, entender como o carma
hábitos grosseiros, e penetrar no leito se formou, ainda que parcialmente, isso é
marinho, dos hábitos sutis. Para isso se faz um feito considerável. Significa que a
prática. Então em geral podemos não pessoa não está mais operando através de
lembrar das palavras dos ensinamentos, seu cérebro, da limitação particular que sua
mas podemos deixar certas marcas ignorância, aliada a causas e condições criou
profundas através principalmente da (o corpo), mas operando com a mente não
repetição regular de determinadas práticas, condicionada por essas causas e condições.
e essas podem ressurgir com mais facilidade Esse é um resultado da prática. É um tipo de
em vidas subsequentes. clarividência, um poder mágico, tornado
possível pela não reificação, em até certa
Por isso o mero ler e refletir não são medida, não precisa ser total, do sonho.
suficientes para um contato mais
aprofundado com o darma — é necessário Algumas escolas idealistas budistas
integrar as práticas que penetram no âmago propõem uma "consciência armazém", que
dos hábitos, dissolvendo os nocivos e uma entre outras 8 consciências. O caminho
do meio pode falar em termos da alaya
Todos os números são meras exposições Para tomar refúgio e praticar o darma é
didáticas. Subdividindo menos, são três preciso reconhecer que reificamos o sonho,
reinos, subdividindo mais, são 18+4+22, e dessa reificação – essa solidez que damos
sendo que um dos quatro pode talvez ser a algo que é irreal – é que surge o
dividido em mais, talvez. sofrimento. Então é preciso reconhecer a
natureza do sonho, e nosso hábito de
Os reinos budistas não seriam apenas reificação. Nesse escopo, é útil estudar
metáforas para estados psicológicos? vários tipos de sonhos possíveis,
Preciso acreditar na existência efetiva de categorizados de forma ampla como
vários céus e infernos? experiências boas e ruins de vários tipos, e
para isso podemos utilizar as descrições
A noção de vacuidade nos leva a não reificar tradicionais.
nenhuma existência, particularmente a não
reificar essa existência presente como seres Por que o Buda utilizou o termo "sonho"
humanos, como algo mais que um sonho. para descrever o samsara?
Então, evidente que há outros sonhos
possíveis. Porque ele é uma experiência e não é
substancial. A palavra "sonho" é uma das
Enquanto acreditarmos em algo que analogias preferidas para vacuidade.
verdadeiramente existe, não há
possibilidade de transcender o samsara. Por Se tudo se dissolve no momento da morte,
outro lado, se não entendemos que as até "os três venenos... a raiz do samsara"
experiências-de-sonho dos seres são reais (Livro Tibetano do Viver e do Morrer, p.
na medida em que se apresentam, não 323), como e de onde ressurge o carma que
haverá motivação alguma para transcender opera assim que se perde a chance de
o ciclo de existências. iluminação trazida pela fase da Clara Luz?
Por outro lado, se alguém de início tem No caso de uma pessoa que não tenha
dificuldade de entender que é a substância praticado o reconhecimento da natureza de
mente que cria a ilusão de solidez e sua própria mente durante a vida, isso é um
substancialidade, e cai em algum tipo de instante, e como num toque de mouse num
superstição materialista quanto a uma screensaver, tudo retorna como era. Esse é
existência não-como-sonho deste lugar, o motivo: por não ter se acostumado com o
nesse caso um ensinamento expediente estado natural, as aparências surgem
que psicologize essas noções pode ser novamente. De onde, há diversas
empregado. Então, não são apenas explicações. Como essas tendências não
obscurecem verdadeiramente a natureza ela volta ao sonho. Como eu disse, essa base
livre, ela esteve sempre presente, o tempo vislumbrada esteve sempre presente,
todo, inclusive agora, sem ser efetivamente nunca se ausentou. Então ela não é algo
maculada por todas as diversas novo em meio ao que se apresenta na
manifestações. Quando as diversas delusão. E a delusão é o mero jogo dessa
manifestações cessam, isso não faz liberdade, que se autoaprisiona por
diferença para esta natureza — e não faz liberdade. A continuidade do tecido cármico
tanta diferença para quem não se se dá pelo mesmo motivo que o tecido
acostumou com ela, porque logo as cármico se dá em primeiro lugar, não há
tendências se formam novamente, a partir diferença.
da mesma base de onde se formaram da
primeira vez. Em outras palavras, a A pausa não é um objeto de experiência, se
ignorância é renitente, embora ela tornar-se um objeto de experiência,
intermitente. A sabedoria é primordial e então não é a pausa, mas um mero filme
pura, nunca cessando em momento algum, parado. Há uma diferença entre uma pausa
e nunca sequer alterando sua intensidade, e um filme parado numa mesma cena. A
em meio a ignorância ou à lucidez. pausa implica o não se fixar na tela, muito
menos no observador.
Já a pergunta de onde a ignorância surge em
primeiro lugar é complicada: ela é um A dissolução da experiência é do mesmo
próprio exercício da liberdade primordial. sabor do seu surgimento. Ambas as
Porém, ao reificar as aparências e se experiências ocorrem no âmbito do filme. O
esquecer desta liberdade, surge o samsara filme não impede em nenhum momento a
e os 84.000 sofrimentos. experiência fora da tela, que está sempre
presente e disponível o tempo todo.
Mas se após a pausa é retomado algo
anterior a ela, aquilo que experimenta a De onde vem o movimento incessante do
pausa é o quê? Como a experiência deludida sonho?
individualizada pode se dissolver e ressurgir
como era antes? Não se está muito próximo O sonho vem da liberdade e da
aqui de uma noção ontológica? espontaneidade naturais da mente, com
todas as características próprias desta
Bom, não se fala em "noções" no budismo. indeterminação e não fixação. Ao
O que se tem é a experiência dos reificarmos essas características ocorrem
praticantes. Se fosse fácil como morrer nascimento, envelhecimento, doença e
escapar do carma, daí não haveria morte — pelo menos para nós, humanos,
necessidade para o darma do Buda. Existe que temos esse sonho semelhante ao de
uma janela de oportunidade na morte, mas outros humanos.
utilizar ela depende de nós. A pessoa tem
um pequeno vislumbre da realidade, mas
Se o planeta terra explodir, o samsara vai nos outros reinos o tempo todo — portanto
continuar rodando e o carma continuar mesmo que o número de seres permaneça
existindo? o mesmo, o que é incerto (e creio que era
um tipo de questionamento que a que o
Claro. O samsara é uma experiência que não Buda não se entregava), só pela realocação
depende da forma. Há samsara até na não de seres entre os reinos fenômenos
forma. Pode sumir todo o universo temporários como o crescimento
detectável e ainda assim pode haver populacional poderiam ser explicados.
sofrimento. De fato se diz que isso ocorre de
tempos em tempos. Onde posso conseguir referências em livros
ou online sobre as principais características
Como explica-se o renascimento em do reino humano? Preciso de maiores
conjunto com o crescimento populacional? detalhes para além do fato de que é o reino
mais valioso por ser aquele onde mais
Essa pergunta vem de três noções que não facilmente se atinge o despertar.
se aplicam ao budismo: que o número de
seres permaneça necessariamente Words of my Perfect Teacher tem
constante (o que é incerto), que a pessoa descrições detalhadas de todos os reinos.
renasça sempre como um só (muitos lamas Cada um dos 18 infernos é descrito em
renascem como mais de uma criança) e, detalhe, por exemplo.
principalmente — esse é o argumento
central — que o número de seres nos outros Os quatro principais sofrimentos do reino
reinos seja constante. Há tamanho número humano são o nascimento, a doença, a
de formigas, por exemplo... e pense em 14 velhice, e a morte. Os sofrimentos de não se
ratos por habitante em NY! Uma pequena conseguir o que se quer, não conseguir se
variação na ordem dos bilhões, livrar do que não se quer, e assim por
temporariamente, na população humana é diante.
minúscula se pensamos na variação
populacional de seres sencientes em geral. Os ensinamentos sobre reinos estão no que
se chama "preliminares externas", nas quais
No budismo todos os seres sencientes se reflete antes de tomar refúgio. São
podem renascer como qualquer outro ser chamados de "quatro pensamentos que
senciente. transformam a mente". Eles são 1) a
preciosidade do nascimento humano (com
Ao jogar pesticida sobre uma vasta área, por 18 itens no mínimo, mas o As Palavras do
exemplo, uma porcentagem desses insetos Meu Perfeito Professor tem 16 itens
mortos vai renascer ainda no reino animal adicionais); 2) carma; 3) impermanência e 4)
— outras grandes porcentagens vão para sofrimento. Neste quarto item estão as
cada um dos outros reinos — e hecatombes descrições dos infernos aos reinos dos
similares acontecem com seres humanos, e
Após refletir assim, a pessoa então passa a Todo mundo já esteve por todos os reinos,
prática de refúgio, geralmente com não centenas, mas infindáveis vezes. Então
prostrações, e enfim ela penetra nas toda gente por aí já foi um deva em outras
preliminares internas, que incluem vidas.
visualizações. Após praticar estas
preliminares até completar as acumulações Os deuses também podem alcançar a forma
(normalmente o número é 100.000 de de realização mais elevada que os budistas
cada), então a pessoa pode fazer a prática almejam ou essa só pode ser atingida pelos
do estágio do desenvolvimento e humanos?
eventualmente a prática do estágio da
consumação. Os deuses nem conseguem praticar o
darma, quanto mais atingir realização... Eles
Esta estrutura é comum a todas as formas nem se interessam por prática espiritual, a
de budismo tibetano, mas estruturas vida deles é boa demais — até que acaba.
semelhantes existem em outras formas de Mas eles podem renascer como humanos
budismo. Alguns professores adicionam (ou em qualquer outro lugar).
outras práticas preliminares — Dzongsar
Jamyang Khyentse Rinpoche tem um As entidades que habitam os outros
conjunto especial para seus alunos mundos que o Budismo acredita existir
ocidentais — que inclui leituras, trabalho também são humanóides,
social e outros itens, antes das (e algumas antropomórficas?
vezes durante as) reflexões.
Os devas do reino do desejo e os asuras tem
O que são os infernos no Budismo? corpos semelhantes aos humanos —
eventualmente com algumas diferenças,
São o resultado de ações negativas, isto é, mas bem melhores, mais flexíveis e mais
sofrimento muito intenso por um período belos, em todos os casos. Alguns asuras
muito longo de tempo. É como um pesadelo podem parecer "monstrinhos". Os devas do
extremamente longo. reino da não forma não tem corporeidade
(lendo-se a descrição, realmente parece o
que muito new age busca na prática
espiritual, mas segundo o budismo é uma fixado (não lembra os detalhes humanos,
forma de profunda ignorância), e os devas resta apenas o carma e o hábito).
da forma possuem formas corpóreas
variadas. Todos os corpos são corpos de Porque que cada um dos seis reinos têm um
sonho, mesmo no reino humano. buda?
tomar para provar que é veneno para si seria como Maquiavel falou: "O homem que
próprio. Isso seria inadequado. tenta ser bom o tempo todo está fadado à
ruína entre os inúmeros outros que não são
Agora, com relação a nossas ações já bons."
realizadas e as que vamos realizando,
principalmente as de fala, onde isso fica Segundo o ensinamento budista, a
bem claro, podemos rapidamente perseverança na bondade, mesmo para
evidenciar a ressaca moral quando falamos com quem nos prejudica, é essencial. Isso
rudemente em várias ocasiões, por inclui agir com dureza para evitar que o
exemplo. Então nós experimentamos nos outro prejudique principalmente a si
dedicar a erradicar a fala rude, e há próprio.
métodos para isso, um deles é
cuidadosamente, exatamente, examinar as A prática da paciência (e demais práticas de
consequências, e olhar para o outro, para a virtude) são essenciais para nós, até mesmo
vítima de nossa fala rude, com compaixão. para que não nos tornemos passivos diante
Assim, quando formos vítimas da fala rude, da desvirtude alheia.
podemos também desenvolver compaixão
pelo agressor. Ser bondoso é uma vitória por si só, os
outros critérios de “vitória” são baseados
É nesse sentido que funciona o em profunda ignorância.
experimento. Além disso, podemos
livremente experimentar com a virtude. Em Quais são, para o budismo, as virtudes?
como a virtude traz felicidade para nós
mesmos e para os outros. Virtude no budismo é o que produz
felicidade temporária e definitiva para os
Quem não é monge e decide não ter filhos seres. Há quatro qualidades
estará gerando mau carma? incomensuráveis: amor, compaixão, alegria
e equanimidade e seis perfeições:
Não. Só não está gerando um mérito generosidade, ética, paciência, empenho,
específico. Não gerar determinado mérito concentração e sabedoria.
não é carma negativo, é apenas não gerar
aquele carma positivo particular. Sugira uma prática para desenvolver a
paciência.
Da mesma forma o monge, enquanto
monge, não gera o mérito especifico de ter Procurar conviver com pessoas
filhos. desagradáveis.
O que fazer com aqueles de índole perversa, Omissão por covardia ou comodismo diante
que nos atrapalham em todos os nossos de uma injustiça que poderia ser impedida
projetos e que parecem imutáveis? Não gera mau carma?
O Buda pode mentir se isso eventualmente É verdade que o buda matou um homem?
trouxer algum tipo de benefício para os
seres? Como um Bodisatva, isto é, quando ainda
não era um Buda, numa vida passada, Buda
Claro. Exemplo clássico o do caçador que matou o capitão de um navio que causaria a
segue atrás do veado e nos pergunta para morte de 500 pessoas. Foi uma atitude
onde ele foi. Há formas de budismo que compassiva — ele não matou o ser por
ficam em silêncio, mas no mahayana raiva, indiferença ou cobiça (para o roubar,
certamente devemos apontar a direção usurpar seu posto, comer sua carne, vestir
oposta. sua pele — como fazemos com os animais).
Ele o matou com a única boa motivação de
Certamente devemos apontar a direção salvar vidas, então, nesse caso, o ato de
oposta? Mas e se o caçador tem uma matar foi uma virtude.
criança que precisa ser alimentada e não
sabemos? Aí a boa intenção nos livra do A diferença das capacidades mentais entre
mau carma mesmo que a criança morra por os animais implica diferenças na gravidade
causa do nosso altruísmo amador? do carma resultante de matá-los?
Fora do escopo de um praticante, fica difícil Não há nada de errado com sexo fora do
determinar. Creio que há jurisdições: as casamento, desde que não produza
sociedades mais tradicionais não aceitam sofrimento para ninguém.
bem a produção e o consumo de
pornografia; já as sociedades modernas tem No Catolicismo o casamento é indissolúvel e
nichos, não de praticantes, em que quem se une a uma mulher que já foi
precisamos talvez manter um grau liberal de validamente casada comete adultério. No
flexibilidade para acomodar as diferentes Budismo há algum problema em se unir a
visões dessa sociedade múltipla. Uma atriz uma mulher que já teve outros homens ou
pornográfica ainda é bastante já foi casada?
estigmatizada, e podemos dizer que sofre
Casamento é uma questão civil, baseada em iluminados. As coisas podem mudar para
costumes. O que quer que seja apropriado mais rígidas ou mais soltas, e ambas as
para uma época e local, está bem. Isso inclui coisas podem ser boas ou ruins — na
poligamia e poliandria — em sociedades e medida em que ambas as coisas podem
épocas que as aceitam bem. Não há levar os seres à desvirtude. Então não existe
nenhuma noção especial vinculada a generalidade quanto a posturas de ética
virgindade ou número de parceiros. pública. Como praticantes, cada caso é visto
como um caso. Budistas em posições
A união em família deve ser embasada na proeminentes, formadores de opinião,
prática das perfeições, fora isso, não há precisam, portanto, estar mais perto da
nenhuma especificação quanto ao que é um onisciência, para não apenas estarem
bom núcleo familiar — ou um bom aleatoriamente apoiando ou refutando
relacionamento entre as pessoas, quer estas ou aquelas tendências da cultura.
envolva troca sexual, afetiva, ou de outro
tipo. A ética budista é bastante simples, o que
causa sofrimento para você e para os outros
A promiscuidade, no entanto, em geral é um deve ser evitado — e você deve examinar
indício de que ações não virtuosas (como cada ação e tentar fazer o melhor para
desapontar os outros com promessas, ou evitar o que cause sofrimento para você e
criar falsas expectativas) estão sendo para os outros. Há croquis, como uma lista
realizadas. Mas há casos de seres de desvirtudes, como mentir e matar — mas
iluminados que pareceriam promíscuos a já vimos que há casos onde essas ações
nossos olhos, como Drukpa Kunley, um podem ser virtudes, ou pelo menos a menor
mahasiddha butanês que conduziu oito entre duas desvirtudes inescapáveis. É bom
alunas-namoradas à iluminação completa e lembrar também que a negligência e a
criou interdependência positiva com os indiferença também causam sofrimento.
ensinamentos para outras 3.000. Esses Sem causar dano algum, é só esse tipo de
casos são raros, mas há muitas histórias de coisa que se pode dizer. Dizer algo do tipo
seres iluminados que fogem "assistir Crimes and Misdemeanors do
completamente as convenções sociais de Woody Allen é condenado pelo budismo"
uma época, ou da maioria das épocas, e não faz nem sentido do ponto de vista
mesmo assim não estão cometendo budista — mesmo numa coisa tão específica
desvirtude. há tantas condições que podem tornar essa
atividade positiva, neutra ou negativa que
Com relação a postura pública, o budismo seria impossível para qualquer um, senão o
apoia os costumes da época e do lugar — e Buda, dizer se para uma determinada
quando eles estão em transição, há tensões pessoa, num determinado local, isto ou
naturais entre conservadores e aquilo é correto. Pior do que isso, o Buda
progressistas como em todas as formas de diria "mas você precisa reconhecer isso com
agregados de seres humanos não os próprios olhos" — então mesmo que a
dica do Buda seja perfeita, precisa, não mentir (sobre estar doente e não poder
irreparável — a deliberação ética é sua, é trabalhar, por exemplo) não é o ponto, mas
essa a instrução essencial do Buda. Se o o impacto que isso vai causar nos pacientes
Buda deliberasse por você, aí ele seria e nos seus colegas de trabalho é o que
culpado de muitas coisas — e os seres não importa.
teriam valor algum. A sua mente é o Buda,
você precisa revelar isso, então você precisa Agora, de fato se a pessoa tem consciência
despertar a onisciência latente, através de verdadeira e altruísta da raridade e
experimentos repetidos. O croqui é muito profundidade dos ensinamentos, e
simples, causou sofrimento, sofreu, e sofrer compromete-se a aplicá-los — nesse caso,
não é bom. Mas tudo que o Buda faz é ela pode escolher gerar um grande mérito
apresentar alguns conceitos genéricos, que em detrimento de um pequeno demérito.
você vai precisar, com seu trabalho Mas isso, como sempre, é caso a caso. E, em
intelectual e vivencial, verificar e aprender a todo caso, a pessoa precisa reconhecer que
usar em cada peculiaridade, cada está arcando com uma grande
momento, cada evento. O Buda pode te dar responsabilidade, porque ela não é
um prato de comida, mas ele não pode onisciente e desconhece todas as
comer por você. ramificações de seus atos. Com consciência
disso, ela age como for mais adequado —
Mentir para poder praticar o Darma tudo muitas vezes coisas pequenas podem se
bem? tornar grandes dilemas morais. Isso faz
parte da prática.
Não é bem assim. Você precisa examinar as
consequências da sua ação bem como sua Há escolas budistas que vão dizer que não
intenção — e ser essencialmente honesto se deve mentir em nenhuma hipótese, mas
dentro de suas capacidades de entender o no mahayana, para salvar a vida de um
que pode acontecer e quais são suas animal, por exemplo, se pode e se deve
verdadeiras motivações. mentir para um caçador. Um praticante do
hinayana ficaria em silêncio — evitando de
Assim, mentir que se está doente para faltar alguma forma mentir e também evitando
um dia de trabalho para ouvir ensinamentos ajudar o caçador — ou a presa. Porém o
que raramente são dados, de um professor mahayanista assume para si todo o
que raramente vêm a sua cidade... em geral sofrimento do carma de uma mentira para
o carma negativo é irrisório perante do ativamente proteger o animal. Isto é, se o
mérito gerado. Agora, se aquele era um dia animal foi para a direita, o mahayanista diz
importante no trabalho e você vai que ele foi para a esquerda. Ele nem mesmo
realmente deixar pessoas na mão, causar fica em silêncio.
sofrimento efetivo, daí a situação é
diferente. Digamos que você é um O que caracteriza "heresia" no budismo
profissional da área médica — mentir ou tibetano?
Pode dar um exemplo cotidiano do que é A ética budista tem algo a dizer sobre os
uma fala inútil e uma fala útil? downloads não autorizados de filmes,
músicas, livros, etc.? Essa ação produz
Muito simples, o que é informativo, carma negativo?
agradável, verdadeiro, é fala útil. Você fala
no momento adequado, o que deve ser Há grande debate nessa área. Porém,
falado, sem usar mal o tempo dos outros. segundo o Cânone Páli, uma coisa só é
Alguém pergunta "você é fulano:" e você diz roubada se é subtraída. Então cópia não é
"não, não sou". Fala inútil é quando você roubo. Mas, na medida em que causa
fala de coisas sem propósito, no momento sofrimento, há carma. O difícil é estabelecer
errado "você viu o jogo ontem?" Mesmo o que é sofrimento causado e felicidade não
que a pessoa goste de futebol, mas esteja causada – porque frustração de lucros não
ocupada de outra coisa, e especialmente no é exatamente sofrimento causado, e sim
caso onde uma pessoa não tem o menor felicidade não causada. De toda forma, a
interesse em futebol. Conversar sobre os prática de generosidade é muito
outros, de forma geral "viu como fulana é importante, além da mera ética.
louca?" e assim por diante.
Com certeza, porém, isto não se enquadra
Ser irônico e cáustico vai contra as leis do no voto de não roubar, porque o objeto
budismo? precisa ser “retirado”, você precisa privar a
pessoa de um objeto ou serviço. O carma
Não existem leis no budismo, mas se você existe mesmo que ela não perceba, ou
causa sofrimento aos outros com sua fala, nunca venha a saber que foi privada. No
isso resultará naturalmente em sofrimento caso de cópia, as expectativas de lucro dos
para você. Se você usar sua fala criadores e distribuidores (!) são frustradas
virtuosamente, então isso lhe trará – em que medida essas expectativas são
benefício. realistas, e o sofrimento é causado pela
cópia, ou não são realistas e a cópia não
Se a sua ironia, intensidade na fala, assim influencia neles, nessa medida há carma ou
por diante, for benéfica as pessoas num não há carma.
Personagens não são objetos de compaixão, Quem apoia ditaduras genocidas como as
apenas seres sencientes. Pode haver de Cuba e da China tem mau carma e vai pro
problema em treinar a mente para a inferno?
desvirtude com entretenimento, mas isso
depende unicamente de como a pessoa se
filmes de terror (ou algum outro gênero é muito curto, com o futuro sendo muito
específico). Se me dizem "ah, eu vejo para incerto.
espairecer — terror não me deixa
espairecer", então me irrita Da mesma forma, com relação ao modo de
profundamente. Eu assisto todo tipo de vida correto, ou, melhor dizendo, o modo
filme para "espairecer", e embora eu correto de ganhar a vida, um budista
abandone a prática o tempo todo, pelo deveria — a não ser que tenha elevada
menos estou ciente que ela nunca deve ser realização e consiga transformar essas
abandonada — então eu quero um dia ser atividades — abandonar uma atividade
capaz de ver qualquer tipo de filme, e não financeira que leve as pessoas a emoções
interessa se eu gosto ou não gosto. Algumas negativas ou inúteis. Assim, budistas, em
vezes assisto filmes ruins mesmo. Não tão geral, não devem ser donos de bar,
ruins que são divertidos ou é irônico assistir. lotéricas, e assim por diante. Mas pessoas
Filmes bestamente classe-mediamente nessas circunstâncias não são levadas a
boçais mesmo, sem nenhuma diversão ou abandonar suas atividades para poder
ironia. Meu objetivo é encontrar um jeito de abraçar a prática budista. Mesmo uma
não perder tempo mesmo na mais profunda pessoa que trabalhe num abatedouro pode
perda de tempo. Assim, alguns filmes são praticar o budismo, e, idealmente, não
um desafio de clichês, que impedem haverá pressão da sanga, apenas a pressão
qualquer tipo de reflexão, ou tomam tanto da própria consciência da pessoa.
a mente em banalidade e tédio, que para
mim pessoalmente é muito difícil de Praticar artes marciais gera carma
coadunar com a prática. Então é um bom negativo?
exercício encontrar a prática no tédio.
Algumas vezes eu até assisto com a coluna Marcial é "de guerra". Mas se for um
ereta, ou em postura de meditação. esporte, e não machuque ninguém, não há
problema. Pessoalmente, acredito que não
O Budismo tem algum ensinamento sobre há muita coisa boa em esportes de risco
jogos de azar e loterias? como a Fórmula 1, e esportes que
degeneram muito o corpo do atleta, como o
Jogos em geral, como fala inútil, são boxe. Ou esportes de alto risco como a F1,
"emoções inúteis". Como todas as outras onde parece que parte da emoção é saber
coisas, alguns praticantes são capazes de que as vidas dos participantes estão por um
integrar estas coisas como prática, outros fio — e onde já vimos tantos morrerem.
não. Aqueles que são capazes de Coisas como judô me parecem sensatas,
reconhecer, ou pelo menos estão em mas outras artes marciais de impacto, daí
dúvida, sobre sua capacidade de integrar não.
algum entretenimento ou emoção inútil
com a prática, devem abandonar isso e
procurar priorizar seu uso do tempo — que
O Budismo tem alguma sugestão sobre sobre quem a porta, e diz algo para quem a
castrar ou não castrar animais de vê sobre quem a porta — essas mensagens
estimação? são, no mínimo, arbitrárias — como
arbitrárias, são perda de tempo.
A maioria dos praticantes e professores
budistas que conheço castram seus animais Na resposta à pergunta sobre tatuagens,
de estimação. você falou em "gerar discursividade na
mente dos outros". Poderia por favor falar
Do ponto de vista do budismo, tatuar e ser mais a respeito? Especialmente: em que
tatuado são consideradas práticas condições a arte ajuda/atrapalha o darma?
inapropriadas? Por quê?
A pessoa que expõe uma tatuagem como
Tatuagens com temas ligados ao darma são que já abriu a boca sobre si mesma sem
ruins porque a pessoa desrespeita esses nem ter falado. É uma espécie de tagarelice.
símbolos com grande facilidade, e não pode E mesmo que ela esteja um pouco
se prostrar a eles. Além de gerar escondida... ela é feita para ser vista, por
discursividade na mente dos outros. O mero alguém, e para dizer algo. É uma espécie de
deitar sobre a imagem, ou deixar alguém publicidade ideológica, uma forma de
deitar sobre ela, e assim por diante, são reforçar a identidade e de se colocar no
desrespeitosos. mundo — aliás, é por isso exatamente que
elas são prezadas por quem as fazem.
Tatuagens com outros temas, de forma Porém, dificilmente passam mais do que
geral, são desnecessárias e embasadas em uma impressão de "olhe para mim", "veja o
vaidade, aumento de conceitualidade, e até que eu fiz deliberadamente".
mesmo, automutilação. No entanto,
dependendo da circunstância e motivação, Mas você deveria perguntar sobre isso a um
podem ser neutras ou até positivas. Não mestre qualificado. Eu não conheço
conheço professores budistas que impeçam nenhum que tenha tatuagens, mas seria
alguém de se tatuar. Mas, com certeza, é melhor encontrar algum — mesmo que ele
muito rara a circunstância onde a tatuagem as tenha feito antes do darma — e
produz mais benefício do que malefício. investigar de onde surge esse impulso.
Mesmo no caso onde ela seja
essencialmente neutra, e não perturbe Penso em fazer uma tatuagem com o
nenhuma mente, nem o portador, nem o mantra do guru. É apropriado?
tatuador — ela é uma perda de tempo e
recursos. Algum pequeno mérito pode De forma geral, como já respondido,
haver no regozijo temporário que alguém tatuagens não são recomendadas para
possa ter ao ver uma imagem bonita — mas praticantes — embora daí, no caso de
a mesma imagem fora da pele possuiria a tatuagens em geral, não ligadas ao darma,
mesma beleza. A imagem na pele diz algo possa se analisar caso a caso, e com certeza
possa existir situações de nicho onde haja sugerem alguns (controversos) estudos
benefício na prática de fazer tatuagens. Mas estatísticos?
tatuagens com motivos do darma não são
apropriadas de qualquer forma. A pessoa Os estudos são controversos porque com
nunca conseguirá se prostrar perante a certeza, na visão budista, só podem ser
representação do corpo, fala ou mente do equivocados. O budismo em geral não
Buda tatuada, e possivelmente dormirá em aceita em vingança estatal. Toda e qualquer
cima dela, e assim por diante. pena precisa vir com dois objetivos apenas:
1) impedir maior dano e, se possível 2)
Existe de fato a instrução de não se recuperar, reintegrar.
sublinhar/marcar textos ou livros budistas?
E a recomendação de se colocar os livros em Não acredita-se que a pena de morte possa
lugares altos nas estantes, ou não caminhar impedir maior dano.
sobre os textos? Não segui-las gera carma?
Como o Budismo encara a questão da
Sim, este é um treinamento da mente legalização do aborto?
bastante estabelecido, faz parte do voto de
refúgio (no darma). Com certeza gera O budismo sustenta que não há
mérito segui-lo, bem como uma comprovação sobre a natureza ou
interdependência desafortunada surge de qualidades da consciência, ou o que
não seguir essa simples etiqueta que definiria um assassinato nesse caso. Na
protege a mente do praticante. dúvida, para defesa de um possível
inocente, o budismo é contra o aborto e, de
De fato, todos os textos devem ser bem forma geral, contra a legalização do aborto.
tratados, em particular os religiosos, e em Também pela defesa de mães que
particular os budistas. Não se deve nem acreditando estarem operando livremente,
mesmo colocar uma estátua de Buda, um operam de acordo com considerações
vajra ou um sino acima de um texto budista. aleatórias que podem mudar rapidamente,
e assim produzir grande arrependimento.
Ao tratar os textos com respeito, o
conteúdo deles passa a ser lido dentro De toda forma, se os cientistas explicarem o
desse ambiente mental de respeito criado que é consciência, e quando ela começa —
pela formalidade. Esse é o sentido de toda como ela está vinculada ao sistema
prática formal e de todo o treinamento da nervoso, e assim por diante — além de
mente. teorias como emergentismo, etc. — mas
5.2. Aborto, pena de morte, eutanásia, suicídio uma comprovação efetiva, então o budismo
O que o Budismo diz sobre a pena de morte poderia aceitar o aborto daquele tecido que
para crimes hediondos? E se essa pena de não apresentasse consciência. Os cientistas
morte ajuda a reduzir homicídios e outros e o budismo concordam que embora se
crimes que causam muito sofrimento, como possa medir certas qualidades elétricas no
tecido, nenhuma delas pode ser atribuída, A consciência não pode ser algo
sem sombra de dúvida, a uma possibilidade independente do corpo?
ou não de haver sofrimento ali. Na dúvida,
preserva-se o tecido. Essa era uma das perguntas que o Buda não
respondia (se a mente é separada do corpo
Embora os cientistas queiram apresentar o ou não). Mas é possível responder sua
emergentismo ou o fisicalismo em geral pergunta dentro do contexto.
como verdades científicas, eles carecem
ainda de comprovação, e a crença Na originação interdependente em doze
injustificada na ciência não é efetivamente elos, a consciência, sendo o terceiro elo,
diferente de qualquer outra crença surge em conjunto e naturalmente, no
injustificada. quarto elo, com uma forma qualquer que
lhe sirva de base. Assim, o que acontece,
Diante do caso de uma menina quase pré- segundo o budismo, no caso do aborto, é
pubescente que tenha que abortar para que já há uma consciência atrelada ao
salvar a própria vida, qual seria a postura do tecido, da mesma forma que nossa
budismo? consciência está atrelada a esse tecido. Em
outras palavras, se a consciência fosse
Em qualquer questão em que uma vida independente de corpo, ao matar
esteja na dependência de outra, é decisão estaríamos apenas "liberando os espíritos"
do médico qual a vida tem maior chance de daqueles corpos, e o suicídio se tornaria
sobreviver, e sacrificar o outro para que uma prática espiritual.
aquele ser com maior chance viva. No caso
absurdamente raro em que dois seres A consciência surge coemergente com
tenham a mesma chance de viver, sem determinadas condições, por exemplo, a
sequelas, mas um dependa da morte do presença de certos tecidos. O que o
outro, então o mais novo tem precedência budismo argumenta, no caso do aborto, é
— a não ser que, por algum meio que o que os cientistas podem medir
miraculoso, se possa saber qual dos dois vai atualmente, ou podem considerar como
produzir mais benefício aos seres naquela base para a consciência (sistema nervoso
vida — nesse caso, deve-se salvar o mais central altamente desenvolvido) é baseado
benéfico aos seres. em meras conjecturas, já que não há, ainda,
definição científica para a consciência.
O mesmo no caso de um cão que tem
vermes na pele, por exemplo. Em geral os Par ao budismo, existe consciência desde o
budistas matarão o verme, embora há o momento da concepção. Mas para isso não
caso de Atisha, que cortou um bife da há evidência outra que a prática dos
própria carne para pousar os vermes, após meditadores, o que pode não ser suficiente.
retirá-los do cão. Então apenas se pede que a ciência
envolvida seja tratada com o devido rigor, e
que apenas quando uma definição clara e algum mérito, que é o mérito de gerar
definitiva de consciência surgir, possa-se interdependência com um bodisatva. Isso
tornar legal uma prática que depende dessa significa que por vidas sucessivas vamos
definição clara e definitiva. reencontrar esse bodisatva, e uma hora as
condições vão ser propícias e ele vai
Com tantos abortos no mundo, é possível conseguir nos ajudar. Só vai levar bem mais
que fetos de bodisatvas sejam abortados às tempo, devido as condições ruins que
vezes? Nesse caso, o mau carma de quem criamos com nossas ações.
aborta um bodisatva é pior do que o de
quem aborta uma pessoa comum? Sobre a eutanásia há algum consenso no
Budismo?
Sim, o fator predominante na formação do
carma é a intenção. As outras circunstâncias É considerada compaixão estúpida. Mas,
são os fatores secundários. O fato da pessoa por outro lado, o desejo por ela surge, na
não estar deliberadamente atingindo um maior parte dos casos, principalmente dos
bodisatva ameniza isso, como quando tratamentos médicos exagerados. O melhor
pisamos em formigas inadvertidamente — é saber quando parar o tratamento médico.
há carma, mas o carma por negligência é No caso de uma pessoa atrelada a
menor do que o carma por aversão ou máquinas, para o budismo, pelos mesmos
apego. motivos apresentados com relação ao
aborto, é inadequado desligar as máquinas.
O mesmo vale com fala rude. Você ralha
desnecessariamente com aquele atendente Mais do que isso, segundo o budismo o
no guichê. Você gera carma por fala rude. sofrimento pode muito bem ser pior após a
Mas o que você não sabe é que aquele morte, então acelerar o processo, sem uma
atendente é um bodisatva... mais carma certeza com relação a que experiência a
será gerado. pessoa vai ter, é baseado apenas em fé.
meio a essas tensões, depende só dele. Em fique subentendido no texto e não esteja
todo o caso, seu refúgio no Buda deve ser dito de forma direta, é a interpretação que
mais forte do que qualquer de suas qualquer professor budista atual daria.
inclinações. Se uma pessoa tem muito
desejo por sorvete, e não por buchada de O homossexual que supostamente alcançou
bode, ela não pergunta ao Buda se o a iluminação mencionado por você era um
budismo vai permitir que ela continue homossexual “praticante” ou vivia em
preferindo e usufruindo de sorvete. Ela castidade?
percebe que isso é apenas uma inclinação,
e que a fonte de refúgio não são nossas O mahasiddha não era um monge. Por
inclinações, mas o caminho do Buda. outro lado, embora ele fosse um
homossexual no caminho, ele não poderia
Em culturas onde a homossexualidade é ser um "Buda homossexual". Isso porque o
relativamente aceita, os problemas são homossexualismo é uma propensão, um
semelhantes aos dos heterossexuais. hábito. As doutrinas eternalistas vão querer
dizer que uma pessoa "é" alguma coisa.
Tradicionalmente, o contato sexual com a Mas, segundo o budismo, todos nós já
boca ou o ânus, e também masturbação, fomos todas as coisas, inclusive
são tidos como desvirtudes. Mas isso pode homossexuais, e hoje talvez alguns de nós
ser mais ou menos levado a sério de acordo não somos mais, nessa vida. Isso algumas
com sua comunidade e com o seu professor. vezes ofende algumas pessoas, porque em
No final, é a sua experiência, com relação ao geral se acredita que alguém "é" alguma
que é daninho ou não é daninho, que vai coisa. No máximo a pessoa está, e um Buda
determinar sua conduta ética. O seu nem mesmo "está", para si próprio.
professor pode também ajudar a definir o
que é aceito ou não. Resta lembrar que Um Buda não tem preferência de gênero, e
estes problemas também afetam se ele se engaja em atividade sexual, é só
heterossexuais, e que não há nenhum tipo para trazer benefício aos seres. Kukuripa,
de condenação com relação ao amor entre outro mahasiddha, tinha uma cadela por
duas pessoas, do mesmo ou de diferente namorada, e seu amor por ela foi parte da
gênero. prática espiritual que o levou a iluminação.
O mahasiddha gay tinha um namorado
No ocidente é muito comum vermos casais também, mesmo depois de iluminado. Mas
homossexuais praticando o budismo. ele de forma alguma estava preso ao arco-
íris do sonho, que é totalmente
É possível um homossexual se tornar impermanente. Em outras palavras, não
iluminado? existe Buda com inclinações pessoais,
apenas inclinações em nome das
Isso já aconteceu, pelo menos um dos 84 necessidades dos seres. Portanto, tornou-se
mahasiddhas era homossexual. Embora isso um display para ensinar pessoas com a
técnico, outra propensão, por exemplo, faz sentido agir de forma diferente em cada
seria o que nos fez nos conectar com a situação, e em certa medida respeitar os
língua portuguesa e nascer num país onde ditames culturais. Por outro lado, algumas
ela é falada, por exemplo, ou gostar de vezes é necessário violar os ditames
sorvete de baunilha mais do que de pudim culturais, se há clareza de que eles são
de leite condensado) como nefastos ou problemáticos. Então os
impermanentes. Por isso as propensões, costumes são uma "natureza" a reconhecer
principalmente se reificadas, são um e respeitar, mas não de forma absoluta, e
obstáculo a iluminação, porque há tamanha isso é importante ter em mente.
identificação do eu com algo. Eu SOU isso,
ou aquilo, não vai produzir a iluminação da Portanto o conceito de "natureza" é
pessoa. complexo, e sob certos aspectos, se pode
dizer que o homossexualismo é natural, e
O budismo considera o homossexualismo em outros, que não é. Ademais, a discussão
natural? é tão extrânea ao budismo que certas coisas
que se considera "natural", como por
A natureza, isto é, a realidade, o que exemplo, aflições mentais, devem ser
realmente existe, está, para o budismo, violados pela mente absolutamente "não
além de qualquer concepção e além de natural" (nesse sentido de não usual) do
qualquer parcialidade. Assim, propensões Buda!
não são naturais.
Da mesma forma, eu penso cá comigo que
Por outro lado, o que se quer dizer com isso homossexuais que entram nessa discussão,
em outras tradições é que ou Deus não primeiro valoram a natureza de acordo com
criou os seres assim, ou que a natureza o oponente, e daí querem participar. É um
humana (que inclui propensões humanas), problema de certos cristãos homossexuais.
não é assim. Certas "naturezas" não devem ser
respeitadas, e o que é natural não depende
Ademais, mesmo os construtos sociais de um criador ou de propensões. O que não
podem ser ditos "naturais". Isto é, para um é natural (em sentido biológico) não é o que
Butanês é natural casar com mais de uma é propriamente humano? É muito mais sutil
mulher, para a maioria dos ocidentais, isso do que se pensa.
não é natural.
Vejo uma grande mobilização da parte de
Em todos esses sentidos, o budismo não alguns religiosos para que o projeto de lei
tem muito a dizer. Primeiro, não há um que criminaliza a homofobia não seja
criador. Depois, as propensões humanas aprovado. O que pensa a respeito?
são impermanentes e mutáveis, e não são
definidas com autoridade por ninguém. Duas respostas: o estado, sendo laico, deve
Enfim, os costumes de cada lugar existem, e usar apenas critérios laicos, não religiosos,
para suas leis (inclusive aborto, que muitas que deve ser feito — ele até deu um croqui,
vezes é justificado com a crença quase mas deixou bem claro que era necessário
religiosa na capacidade da ciência atual em vermos por nós mesmos, e não apenas ouvir
medir ou detectar consciência, sendo que dele.
não há sequer uma boa definição científica
para essa palavra). Porque você usa o termo
"homossexualismo", e não
A segunda resposta é a de que as "homossexualidade"?
inclinações pessoais de alguém que digam
respeito somente a si mesmo (boas ou Não creio que o sufixo -ismo seja pejorativo,
más), não devem dizer respeito a lei. Crimes o próprio budismo o usa. De toda forma,
com motivação ideológica não precisam todas as propensões SÃO doenças, e mais
receber mais atenção do que crimes com do que isso, doenças são exatamente, por
motivação de ganância ou negligência. Mas definição, algo sem conotação moral.
essa não necessariamente é a visão budista. Então, não há nenhum objetivo de criticar o
Nos assuntos que não dizem respeito ao amor por pessoas do mesmo sexo; mas
budismo, a visão budista é a que se também não é interessante entrar numa
estabelecer nos meios civis. Isto é, o eterna esteira de eufemismos e
budismo apenas obedece as leis, desde que engenharias políticas da linguagem.
elas não firam explicitamente preceitos
budistas, e não se ocupa de formular leis ou Ademais, o "dade" do homossexualidade,
alterar leis que não digam explicitamente implica essência, e essa é uma das coisas
respeito a pontos essenciais da doutrina que o budismo nega. Não na
budista. homossexualidade, mas em qualquer
"dade". Então é irônica em muitos sentidos
Se houvesse um jeito de eliminar crimes essa questão: há a engenharia linguística, a
com motivação homofóbica, ou qualquer ofensa com o que não deveria ofender, a
outro, o budismo seria completamente a objetividade do sentido dos sufixos. Contra
favor. O que estamos falando, no entanto, é todas essas coisas, há um uso histórico do
como o budismo deveria tratar de uma termo: que não é o único.
legislação, e isso está fora, naturalmente,
de seu escopo. Ora, não sou especialista em LGBT, mas o
termo "queer" deixou de ser pejorativo e
Se o budismo determinasse leis, ele estaria virou bandeira de glória nos estudos do
acreditando que existe uma fonte espiritual assunto nos anos 90. Os termos contém
que poderia ditar como as relações história e sentido, mas não existem por si
humanas deveriam acontecer — mas o só. Eles são construídos. No sentido budista,
budismo não acredita em coisas desse tipo. "dade" é mais ignorante e mais pejorativo
O Buda sempre explicou o método para do que um mero "ismo". E evita também
vermos por nós mesmos o que é melhor e o algo do essencialismo orgulhoso.
patrocinando o impacto causado para desse fato e agir de forma a reduzir impacto
qualquer pequeno animal que seja morto ao máximo possível.
ou desalojado, ou perca o alimento que iria
comer. Portanto há muito carma em O próprio Buda comia carne, e aos monges
comprar arroz, carne, leite, frutas. do Sul da Ásia é vedado escolher a comida
que lhes é oferecida — eles tendo direito de
Agora, é preciso lembrar que comer por negar apenas um animal que tenha sido
apego, sem considerar o compromisso de especificamente morto para eles. Então, no
bodisatva ou o mero fato de que estamos cerne, o budismo está preocupado mais
nos sustentando — comer meramente por com reduzir danos e não escolher tanto o
prazer, possui alguma marca cármica. Isto é, que se come do que com uma dieta
não é totalmente isento de carma. Mas isso específica.
serve para qualquer tipo de comida,
dependendo do que nosso apego Se há carma na compra e consumo de chá,
manifesta. Então nada tem a ver com carne arroz, carne, leite, frutas, camisetas de
ou a violência do abate, mas com o processo algodão, celulares e etc., então não há
de comer em si. escolha, ou acumulamos carma ou
morremos de fome, frio e não participamos
O budismo tem algum ponto de vista sobre do mundo atual? E como é quitado esse
a alimentação do praticante? É necessário carma?
ser vegetariano ou algo do tipo? Dieta
especial? Como disse antes também, a única saída é
produzir mais benefício do que malefício, e
Depende de sua forma de vida, da sua minimizar o impacto como pudermos —
saúde, da forma de budismo que você segue sermos consumidores conscientes. Mesmo
e do seu professor. Em geral, nenhuma respirar ou se mover promove a morte de
tradição budista exige que alguém seja seres, e, portanto, carma negativo.
vegetariano ou tenha uma dieta específica
para ser praticante. Você acha que quem come carne é mais
desequilibrado e/ou agressivo?
Mas pode haver circunstâncias, ligadas a
local, forma de prática, forma de vida, Os hormônios na carne podem ter um efeito
professor etc., que podem gerar mais sobre o humor da pessoa, mas, falando em
pressão no sentido de um consumo com termos gerais, não. Muitos grandes
menor impacto. professores comem muita carne e são
extremamente gentis mesmo assim.
Em geral se aceita que tudo que
consumimos causa sofrimento em algum É verdade que o Dalai Lama precisa comer
lugar, portanto é preciso ter consciência carne às vezes?
Sim, por orientação médica — na medicina Da mesma forma que com o álcool, você
tibetana algumas vezes a carne é prescrita deve examinar como alterar sua mente é
para algumas condições. uma forma de se engajar em "cheap thrills",
5.5. Drogas e álcool emoções inúteis. Mesmo meditação
Há alguma restrição quanto a bebida e uso equivocada, tentando alterar o que quer
de drogas no budismo? que seja em sua mente, deve ser
abandonado. Mas você só deve abandonar
Você deve abandonar o que é prejudicial, o que você, por si mesmo e diretamente,
foi isso o que o Buda ensinou. através de um compromisso intenso
consigo mesmo — o que, se deve dizer, é
Usar drogas vai contra os preceitos do EXTREMAMENTE raro — reconhece como
Budismo? inútil, neutro ou negativo.
Todas as emoções inúteis são ou neutras ou Qual a relação do budismo com as bebidas
negativas. O que é neutro, por ser perda de alcoólicas?
tempo, é negativo.
Em geral, se a pessoa não quer sofrer nem
Porém, não é porque o Buda disse que causar sofrimento aos outros, intoxicantes
álcool não ajudava você que você deve devem ser evitados. A maior parte das
abandonar o álcool. Você deve abandonar o formas de budismo recomenda o abandono
álcool porque você mesmo percebe que é completo. No budismo tibetano é aceitável
inútil, neutro ou negativo. Você pode beber, desde que não se fique embriagado.
experimentar seguir, por algum tipo de A pessoa deve estar atenta a 1) pacto de
obediência, o que o Buda disse, mas mediocridade; 2) emoções inúteis são no
enquanto você estiver OBEDECENDO a mínimo uma perda de tempo; 3) as virtudes
preceitos, você não está praticando o requerem atenção, coerência e assim por
budismo. Você está praticando quando diante, ao intoxicar-se a pessoa está,
você mesmo, por você mesmo, reconhece o naturalmente, menos focada na virtude.
que é negativo e abandona. Mas isso exige Mas fora isso, como nas duas respostas
um comprometimento muito grande de não anteriores, cada pessoa sabe (ou deve
ser crédulo e apenas cegamente acreditar examinar e vir a saber) onde consegue
nas próprias opiniões. Você precisa exercer praticar e onde não consegue mais.
grande imparcialidade e ceticismo quanto a
seus próprios impulsos e ideias. Você talvez Aliás, esse é um bom exemplo. Nós, sem o
deva fazer isso com 1% mais de intensidade darma, somos como aquelas pessoas que
do que você faz com as próprias palavras do sempre acham que podem dirigir, mesmo
Buda, e isso vai ser uma demonstração de depois de estarem claramente bêbados.
grande fé e desprendimento. Estamos naturalmente bêbados de nossas
propensões, e não acreditamos que
podemos atingir a sobriedade através da
prática — nem mesmo isso, nós achamos rara, que é essa condição extremamente
que estamos em controle, agindo instável e impermanente em que nos
livremente, quando de fato estamos apenas encontramos, para fazer algo significativo.
nos autoenganando. Sem viver de forma significativa, não há
prática espiritual. E não é um manual ou
Então até que a pessoa seja madura o líder religioso e a mera obediência que vão
suficiente para examinar por si própria o prover um viver significativo, mas o
que ela é capaz ou não de fazer, ela precisa engajamento da pessoa com o ponto
de uma ética prescritiva, ela precisa essencial: diminuir o impacto e trazer
obedecer algo que é dito — ela precisa benefício. Evitar o sofrimento, produzir
seguir princípios que ela mesma criou ou mais felicidade.
aceitou — em outras palavras, ela precisa
tomar votos. Qual é a visão budista sobre o uso de
cannabis para pacificação e meditação?
Mas a ética prescritiva não é o que Qual é a opinião geral quanto ao uso da
interessa, principalmente, ao budismo. E erva?
sim sabedoria. O problema não é quando
você está curioso sobre o que o budismo A maconha agita o lung e não permite a
acha sobre isso ou aquilo, para ver se o prática de meditação. Depois de agitar o
budismo é um produto que se adequa a lung ela cria bloqueios nos canais sutis, que
suas necessidades de consumidor as pessoas confundem com um estado
espiritual. O problema não é quando você meditativo, mas que não é nada disso. É
tem alguém a quem perguntar, e considera apenas um estado particular da mente, e
as respostas de acordo com suas próprias um que não é particularmente saudável ou
inclinações, sendo o senhor de si mesmo e produtivo, mas ao que as pessoas algumas
decidindo o que faz ou não sentido no que vezes desenvolvem certa fixação. Isto é, elas
é meramente, meramente mesmo, dito. querem voltar vez após vez a este estado.
Isso é de importância pequena para o
praticante. Ela cria obstáculos para a prática que
podem se estender por mais de uma vida.
O que interessa ao praticante é quando não Em particular, no vajrayana, a pessoa vai
há a quem perguntar, e quando não há encontrar dificuldade para fazer
tempo de sobra para considerar hipóteses – visualizações e efetuar qualquer prática.
mas em todas as pequenas decisões morais:
abrir a boca para dizer qualquer coisa, dar Existe alguma escola budista que faz uso der
um passo em qualquer direção, e assim por alucinógenos? É verdade que muitos
diante. É nesses casos que importa mestres já usaram alucinógenos para
desenvolver uma visão honesta, integral e comparar o efeito com os efeitos da
vasta do sofrimento próprio e dos outros, meditação?
do aproveitamento de uma oportunidade
Nenhuma escola budista usa drogas de você pode até se beneficiar de ouvir
nenhum tipo. Alguns mestres usaram ensinamentos e receber bênçãos de
drogas, mas não as compararam com a professores. Mas só vai esperar que esta
meditação, mas com o samsara. Disseram conexão frutifique numa vida futura,
que é um super samsara, ou um samsara porque todos os esforços, em termos de
2.0. Isto é, mais confusão, mais delusão, meditação, se houverem, serão em vão.
mais torpor, mais autoengano, menos
clareza, menos lucidez, menos meditação. O A pergunta "eu posso praticar o budismo e
que se ouve é que quem usou drogas vai fazer ou continuar fazendo x" implica, por si
demorar muito mais para conseguir só, que a pessoa já sabe que há algo de
meditar, e, dependendo de fatores errado com o que está fazendo. E de fato,
coadjuvantes e do grau de uso, até mesmo para uma pessoa ou outra, certas coisas não
várias vidas de esforço em prática espiritual vão ser um obstáculo, mas para você,
antes de limpar os canais sutis e finalmente exatamente o que você acha importante,
obter resultados. Se a pessoa vendeu pode ser um obstáculo crucial. Tomar
drogas, claramente isso é causa para refúgio no Buda significa não idolatrar
renascimento inferior, ou ao menos um fontes de refúgio não confiáveis. Não
renascimento humano com deficiência idolatrar, colocar na frente do Buda, seus
grave. Isso eu ouvi. vedanas, suas preferências, suas pequenas
idiossincrasias. Muitas vezes, se não
Posso praticar budismo mesmo gostando de idolatradas, elas não são problema. Mas se
coisas mundanas? Por exemplo, posso a pessoa está pensando "eu seria budista se
fumar um baseado com os amigos e ouvir no budismo eu puder fumar maconha" ou
Bob Marley? como na pergunta anterior "se eu pudesse
beber", daí não há chance alguma. Se a
Há coisas mundanas e coisas mundanas. pessoa encontrar um professor que instrua
Coisas mundanas neutras ou benéficas, não dentro das necessidades da pessoa, que
há problema, são só perda de tempo. Já o grande mérito! A maioria de nós não tem
uso de drogas não vai permitir que se faça esse mérito, e a maioria de nós precisa estar
nenhum tipo de prática de meditação — disposto a abandonar o que quer que seja.
algumas vezes por mais de uma vida. No vajrayana, em particular, é o que quer
Chagdud Tulku Rinpoche disse que em que seja MESMO. Você não pode chegar
particular fumar (qualquer coisa) é com reservas perante o guru — onde quer
equivalente carmicamente a matar dezenas que estejam suas reservas, é aí que você vai
de pessoas, referindo-se aos bilhões de ser pisoteado.
seres sutis (provavelmente gandharvas),
que são mortos por essa fumaça. Então vai Eu falo de experiência pessoal, eu sei o que
ser muito difícil ter qualquer foco positivo é fumar maconha. Eu sei o que é o obstáculo
com toda essa negatividade. Assim, como — eu sei o que é ser confundido pela ideia
os animais que ouvem o som da concha, de positividade na droga. Tudo isso eu sei
bem. Enquanto você não estiver disposto a convenções antes de se achar além das
abandonar o que quer que seja, você não convenções. A diferença entre escolas é
tomou refúgio no Buda. Isso não quer dizer entre zero álcool e álcool que não deixe
que você precisa renunciar a tudo. De forma você bêbado.
alguma. Você precisa ter a mente que está
disposta a renunciar a qualquer coisa, se Resumindo: o comportamento dos
necessário, e a partir disso você precisa mahasiddhas não é o exemplo para os
renunciar a aquilo que você reconhece praticantes. Todo mundo sabe que eles são,
como daninho. Se você não tem a mente de exatamente, santos loucos, que fazem
reconhecer o que é daninho e de renunciar coisas que a gente não aceita normalmente.
quando reconhece, isso vai ser um Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche diz
obstáculo intransponível na prática budista. que embora a gente goste muito das
O Buda disse que nós temos sido escravos histórias e queira parecer como eles, se um
de nossos hábitos por vidas incontáveis. desses santos viesse bater na sua porta você
Eles são os nossos senhores e fazem de gato chamava a polícia. Não adianta querer fingir
e sapato conosco. Enquanto não que se está praticando além dos conceitos
reconhecemos nosso feitor, não seremos com uma mente cheia de conceitos.
livres. E se a pessoa quer ser livre, ela 6. Bom coração
precisa parar de fazer oferendas a deuses
mundanos. Isto é, ela precisa abandonar os O que é compaixão? Como praticar?
padrões de hábito e preferências (vedanas),
e se esforçar em desenvolver as qualidades Compaixão é querer aliviar o sofrimento dos
que trarão felicidade para ela e para os outros. Você pratica aliviando o sofrimento
outros. Sem compromisso com isso, dos outros, ou treinando para ter mais
independente de qualquer pergunta empatia, atenção e meios para ajudar os
específica que alguém volte a fazer sobre outros.
"no budismo posso x", não há chance
alguma de praticar o ensinamento do Buda. O que é exatamente compaixão? Como
exercê-la?
Budistas não podem consumir nenhum tipo
de bebida alcoólica? Mas e a história Compaixão é reconhecer o sofrimento do
daquele santo budista que parou o Sol para outro e ativamente se engajar
não ter que pagar a cerveja? internamente (por uma solução) como se
esse sofrimento fosse de fato nosso.
Há uma diferença entre escolas, e o
comportamento dos mahasiddhas quebra A compaixão superior é indistinguível da
convenções — eles fazem milagres, daí vacuidade, que é a capacidade de
podem tudo. Se você fizer milagres como reconhecer que todos os sofrimentos
parar o sol, daí você pode beber sem limites surgem, na sua raiz, de uma falta de
— você mostra que está além das reconhecimento da natureza livre de uma
E se eu tiver que abrir mão da minha Começamos lidando com nosso egoísmo
felicidade pela felicidade de outra pessoa. como ele já existe, sem nos enganarmos a
Qual seria a melhor decisão? respeito dele. E então, paulatinamente nós
simplesmente largamos, pouco a pouco ou
A fonte mais confiável de felicidade é ajudar de uma vez, essa atitude. Mas toda vez que
os outros. Todas as outras formas de o egoísmo surgir, tentamos ser egoístas
felicidade são inferiores. Portanto, para inteligentes, porque se queremos ser
Disse a uma amiga que meu desejo é gostar Se um ser deixar de gostar ou não gostar,
de todo mundo igualmente e ela disse que ele não se tornaria apático? Porque seria
isso é impossível. O que você acha? bom ser alguém que não gosta nem
desgosta? O melhor não seria, pelo menos,
Depende do que se quer dizer com gostar de tudo?
"igualmente", e "gostar" não é uma boa
palavra. Gostos e desgostos estão ligados a O darma não usa a língua de forma frívola,
hábitos mentais. No budismo praticamos porque ao estudar a mente é necessário ser
compaixão, que vai além de gostar e não preciso e um bocado técnico com a
gostar. No início pode parecer mais fácil ter terminologia.
compaixão de quem gostamos, mas com o
tempo é, de fato, mais fácil ter compaixão Gostar e não gostar são o que chama-se de
por quem não gostamos. "preferências", vedanas, que estão
vinculadas a hábitos. É claro que, se a
Mas sim, é possível atingir imparcialidade pessoa não é precisa com as palavras, ela vai
em termos de compaixão, basta para isso igualar compaixão por todos os seres com
preferência por todos os seres. A compaixão vijnana, 2. samskara, 1. avidia — que são os
pode ser também um hábito, para quem 7 primeiros dos doze elos).
não a reconhece como uma qualidade
natural — mas o que ela é de fato é uma A apatia também é um hábito mental, e a
qualidade natural, não uma preferência. O pessoa pode inclusive ter preferência,
treinamento em compaixão pode começar inclinação, gostar da apatia — o que é
com a formação de hábitos, mas no fundo causado pela ignorância. A psicologia define
ele não é um desenvolvimento da como "deficiência do afeto", isto é, falta de
compaixão, e sim um revelar, um empatia, compaixão.
reconhecimento, uma fruição de uma
qualidade natural. Então existe uma A compaixão é natural, incondicional, não
diferença muito grande entre preferência, causal, atemporal, criativa e cheia de bem-
que é algo artificial, embasado em aventurança. Ela pode ser treinada como
tendências e hábitos (adventícios e que um hábito, mas como ela é um hábito que
surgem da ignorância) e a compaixão, que se coaduna com a realidade fundamental e
em seu sentido mais real, é uma qualidade não corruptível em cada um de nós, o
espontânea da natureza de buda que todos abandono do hábito (positivo) quando a
possuem. compaixão surge por si só é a espontânea
manifestação das qualidades de um Buda.
As preferências são artificiais, parciais, Também é impossível compaixão completa
duais, separativas, temporárias, baseadas enquanto há preferências, gostar e não
em causas e condições (muitas vezes ao gostar. Compaixão portanto não é gostar de
ponto de se poder apontar "porque se tudo, e sim beneficiar e ter afeto por todos
gosta", ou se vincular ao eu, "isso é a minha independente das preferências, dos
cara"). Portanto, do jeito que preferências condicionamentos, das questões
são definidas no darma, não faz nenhum temporárias. A total superação da apatia é
sentido dizer "gostar de tudo", gostar é, ter compaixão, afeto, empatia, até por
necessariamente, gostar de algumas coisas, aqueles que nos desagradam, e
de algum jeito, por algum tempo, por algum principalmente por estes — porque com o
motivo. As preferências são totalmente tempo e com a prática da virtude, o que nos
condicionadas (tecnicamente, pelo desagrada é a ação negativa — e seres
"contato" dos órgãos dos sentidos com os envoltos em ações negativas são
objetos, com os próprios órgãos dos desagradáveis. Mas é exatamente por eles
sentidos, que são uma interface com nome- que mais abandonamos a apatia e geramos
e-forma, que são uma forma de estabilizar a a empatia.
consciência, que é um surgimento natural
das marcas e hábitos mentais, que são Se estamos falando com uma criança,
fundados na ignorância: 7. vedana, 6. podemos até dizer "é gostar de todos, de
spasha, 5. shadayatana, 4. nama-rupa, 3, tudo" — mas quando vamos criando um
vocabulário mais preciso e mais útil na
Permanecer por pelo menos quatro horas Qualquer item desses é possível no Brasil,
ininterruptas sem distração, sem torpor ou mas para quem quer realizar shamata,
agitação sutis — que são coisas que por si só como alguém que quer ser vitorioso numa
levam alguns meses ou anos de prática para
olimpíada, viajar é o menor dos problemas progredir em shamata. Isso não quer dizer
— se for necessário viajar. que uma hora, ou 15 minutos, ou 5 minutos
por dia não ajudem. É higiene, é como fazer
Quantos anos demora pra uma pessoa exercícios todos os dias, ou 3 vezes por
realizar shamata? semana. Você não vai ser um atleta
olímpico, mas você vai ter uma vida mais
Isso depende muito do carma individual, a feliz e saudável. Para realizar shamata você,
pessoa já pode ter praticado muito em vidas por outro lado, provavelmente precisará de
passadas, por exemplo. Alguns professores uma constituição cármica boa (como um
falam em 50.000 horas, em média, de atleta, que precisa um físico razoavelmente
prática. Praticando 12 horas por dia, dá uns bom para começar) e a dedicação
12 anos de retiro. Ou duas horas por dia, equivalente a de um atleta olímpico ou de
todos os dias, mais um retiro de um mês por um pianista de concerto
ano, todos os anos, de 11 horas de prática internacionalmente famoso: ou seja, você
por dia, por 50 anos. Porém, é bom lembrar vai precisar dedicar esse tipo de energia,
que Shamata não é uma prática essencial tempo — dedicação mesmo — à prática
para se atingir a iluminação. espiritual. São esses os praticantes que
chamamos de iogues, aqueles que tem uma
É possível atingir shamata dedicação apaixonada e intensa a muitas
progressivamente? Ou seja, através da horas de prática por dia, até 14 horas de
pratica de 1 hora por dia, depois de algum prática, por vários anos consecutivos (50
tempo, é possível atingir shamata sem anos, por exemplo, como um professor que
precisar ter ficado 4 horas sem perder o esteve no Brasil em 2009, Wangdor
foco? Rinpoche). Isso não quer dizer que nossos
esforços sejam inúteis, pelo contrário, eles
Você não entendeu. O resultado de nos ajudam nessa vida e em vidas futuras, e
shamata são as quatro horas de foco. Você eventualmente realizaremos shamata. Mas,
pode fazer uma hora por dia por algumas nessa vida, sem uma dedicação de várias mil
décadas ou vidas e atingir isso, ou pode horas de prática, é impossível, ou pelo
levar muito mais tempo. Depende do menos extremamente raro. O próprio Buda
volume de prática que você fez em outras fez prática ininterruptamente por seis anos.
vidas e de quão ética é essa vida e suas vidas
passadas. Normalmente, pelo menos Alguns professores ocidentais se perguntam
50.000 horas de prática são necessárias se algum ocidental já realizou shamata. Eu
para atingir shamata. Atingir shamata seria otimista, talvez haja uma meia dúzia
significa que você ficou quatro horas em de ocidentais que realizaram shamata até
foco, não que praticou por quatro horas hoje.
ininterruptas. Praticar por quatro horas é
muito fácil. Normalmente você vai precisar Qual a diferença entre shamata impura e
de muitos anos de prática ininterrupta para shamata pura?
Nesse caso poderá ocorrer uma "realização caminho. Então a sua prática de perfeições
espontânea", sem muita prática formal. vai ajudar sua prática de shamata. Em
Mas em geral não podemos contar com especial, a prática de moralidade ajuda a
isso. prática de shamata — mas essa não é uma
prática particularmente budista, nem é
Seria possível alcançar shamata apenas todo o resto do caminho budista (isto é
fazendo um retiro longo, sem se envolver apenas shamata e moralidade não vão
com o resto da pratica budista como a produzir iluminação).
prática de perfeições ou o Nobre Caminho
Óctuplo? Seria possível alcançar naturalmente o
shamata, sem um retiro, se a pessoa fizer
Sim, mas isso não produz o resultado do correta e completamente a pratica budista
caminho budista, só a realização de das 6 perfeições ou do Nobre Caminho
shamata. Mesmo os hindus praticam Óctuplo.
shamata, e atingem realização de shamata,
isso não quer dizer que eles pratiquem o A quinta perfeição e o sexto passo do nobre
nobre caminho (em todos os seus aspectos caminho óctuplo são a realização de
— já que moralidade, por exemplo, e modo shamata, sem a realização de shamata a
de vida correto, é uma prática comum a pessoa não atinge a sexta perfeição ou o
muitas formas de hinduísmo). sétimo e oitavo passos.
Ela é a base na qual o carma "se acumula", ceticismo, mas acreditar demais nessa
é impermanente (mutável, embora dure realidade como sólida e nada mais do que
mais do que uma vida). Os madhyamikas um sonho.
aceitam a noção meramente como um
método didático. Por outro lado, o objetivo da prática não é
fazer um ato extraordinário específico, mas
Na prática de meditação, quando se obtém o ato extraordinário que está acima de
certa estabilidade próxima de shamata, se todos: reconhecer o sonho como um sonho.
obtém acesso a este "substrato da
consciência", que é pessoal mas mais amplo Se você tiver dificuldade de ver sob essa
do que a pessoa nessa sua vida. Algumas perspectiva, assuma como algo metafórico:
pessoas erroneamente, quando atingem a meditação leva a uma sensação de
esse estado, acreditam estar próximas da ausência de peso corporal, que a pessoa
iluminação, porém alaya é apenas um vivencia como se estivesse “flutuando”,
pouco mais antiga e espessa do que nossa embora se as outras a veem flutuando, isso
consciência cotidiana, não é um âmbito de é parte do sonho delas.
sabedoria.
Com relação a atravessar paredes, a mesma
Quais são os seis superconhecimentos? coisa: como trata-se de um sonho, nada é
Como conseguí-los? substancial. E o âmbito metafórico é um
estado mental que não encontra nenhuma
São poderes mágicos tais como a lembrança obstrução para a sabedoria, onde se existe
de vidas passadas, ler a mente dos outros, na “forma” do próprio espaço.
poderes mágicos em geral, ver e ouvir coisas 7.2. Zen
distantes no tempo e no espaço, e dissipar
as contaminações da mente. Obtêm-se tais O que é zen budismo?
poderes através da prática de shamata. Eles
são úteis para se poder ensinar o darma. Zen é um conjunto de escolas budistas que
Não é necessário acreditar neles para se desenvolveram principalmente na China,
praticar o budismo, e eles não são o Japão, Coreia e Vietnã. A palavra Zen vem
objetivo principal da prática, então não do termo sânscrito "dhyana", que os
importam muito. chineses pronunciam C'han, e os japoneses
pronunciam como Zen.
Não acredito que alguém possa levitar
enquanto medita (já me disseram isso em Dhyana é um tipo de prática de meditação,
uma grupo budista). Procede que os e o Zen budismo dá grande ênfase a essa
budistas tenham crenças como esta? prática.
Quando você sonha de noite você pode O Zen (como uma tradição separada, não
voar? Então seu problema não é o como a prática de dhyana) não é comum na
Várias artes tradicionais estão ligadas ao O que é darma? Qual a relação de darma e
budismo. No caso do Haikai, como muitas zazen?
outras artes sofisticadas do período edo no
Japão, a ligação com o zen budismo é bem Darma é o ensinamento do Buda, o método
forte. que ele ensinou para atingir o mesmo que
ele atingiu, isto é, acordar.
Ao que parece o haikai surge de um satori,
ou uma realização espontânea de um Zazen é um método que se apoia no
praticante, que a então versifica. Mas com resultado, isto é, o estado de Buda, já
o tempo o satori não passou a ser tão presente e que é vivenciado através de
importante para a escrita de haikais, e hoje "apenas sentar". Então você senta
em dia é uma forma de arte muitas vezes acordado, senta com as coisas como elas
desvinculada da prática budista. são, sem alterar nada, sem fabricar nada. É
apenas sentar.
Na Índia medieval a forma de arte que
advinha da realização espiritual, o doha, era "O zazen é a prática sobre o próprio
mais comprido, e vinculado a uma melodia. resultado." Então a prática de "só sentar" já
Essa forma foi a que penetrou o tibete, com é completa em si? Já é um resultado? Mas é
mestres como Milarepa, por exemplo. São um resultado de que?
registradas milhares (se diz normalmente
100.000) canções espontâneas de Milarepa. O estado de buda é a base, o caminho e o
resultado. Quando ele é obscurecido pelas
Mas em geral a poesia budista, longa ou máculas adventícias da delusão, ele é a base
curta, embora embasada na realização do sobre a qual o caminho pode ser trilhado.
compositor, nem sempre tem um caráter
espontâneo ou está ligada a uma realização
Através dele, por ele mesmo, os quando chegasse ao 10, voltasse ao início.
obscurecimentos podem ser Isso é válido?
paulatinamente dissolvidos.
É uma prática de shamata já ensinada na
Quando ele revela a si próprio, ele é o índia clássica e que penetrou o c'han, o son
resultado. e o zen. É uma prática preliminar ao zazen
propriamente dito, que é apenas sentar
Portanto, apenas sentar é revelar o (contar respirações não é "apenas sentar").
resultado, o estado de Buda. Caso a pessoa
não consiga isso, então ela recorre a Por que o zazen é praticado virado para a
práticas causais, nas quais o resultado não parede?
está presente, como a meditação com e
sem esforço, a geração de mérito, e a Bom, não conheço tão bem o zen. Mas não
repetida audição de ensinamentos, fazer é essencial a parede. Ao que parece,
perguntas e contemplar. principalmente no início, é bom não ter
muitas distrações — e uma parede branca
As práticas do zazen são suficientes para pode ajudar. Depois, quando se avança na
conseguir ver a "vida como ela é"? prática, não se precisa da parede, nem
sequer da postura. Há também mais de um
Não sei se alguma prática budista tem como tipo de zazen, o soto zen, por exemplo,
objetivo ver "a vida como ela é". Talvez pratica o shikantaza, que é apenas sentar.
"reconhecer as coisas como são" seja Mas se pode fazer zazen com um objeto,
melhor — é possivel que essas duas como contar ou a respiração.
afirmações sejam equivalentes, ou não.
No zazen, apenas nos sentamos. Qual a
Mas com certeza o zazen não é um caminho relação disto, a não mente, com a shamata?
para resultados. O zazen é a prática sobre o
próprio resultado. Então zazen deveria ser A shamata é uma prática preliminar, com
sentar com o reconhecimento das coisas esforço.
como elas são, ou, apenas sentar. Se não é
assim, então a pessoa está tentando, Se a shamata é preliminar ao zazen, então
apenas tentando. Não está fazendo "apenas este seria uma forma de meditação
sentar", que é completo em si mesmo e não vipassana?
busca nenhum resultado outros que não
"apenas sentar". Se for, é, se não for, não é: estilo zen.
É natureza das coisas como elas são: Não vejo usarem a palavra "entidade",
luminosas e vazias. O que é vajra possui sete porque são vazias e não existem
qualidades: inseparativo, indestrutível, inerentemente. Entidades poderiam ser os
verdadeiro, sólido, estável, totalmente seres (entes) sencientes! Daí o número é
inobstrutível, totalmente invencível. grande.
Qual é a função do mala, o colar de contas, Existe algum mudra que beneficie a cura e a
no budismo? Usa-se no pescoço ou no cicatrização?
braço?
Os mudras são feitos no contexto da
Contar o número de recitações, ou prática. A prática é feita em corpo, fala e
prostrações. Qualquer lugar acima da mente. Há práticas de cura, mas é preciso
cintura é ok para usar o mala. executar toda a prática no contexto de uma
sadhana, com mudra, mantra e samadhi —
O que são mudras e para que servem? o que corresponde as atividades de corpo
fala e mente. Você pode aprender uma
A palavra "mudra", como muitas outras no prática assim de um professor qualificado,
vajrayana, aprende-se no contexto sagrado ou você pode pedir a ele, ou a todo um
do samaya. Mudra é um gesto, como o grupo de praticantes, que faça a prática em
gesto de um Buda ao dar ensinamentos. A benefício do doente.
prática do vajrayana consiste em mudra,
mantra e samadhi, isto é, o corpo, fala e Num centro de darma Vajraiana há estudos
mente do Buda. Sua postura (tanto física em grupo de livros ou textos dos mestres ou
como sua "postura", figurativo; sua energia, há somente os pujas?
compaixão, o seu "elã", sua "fala", sua
expressividade; e sua mente, sua realidade. Depende do centro. Mas em geral há estudo
Essas são as três mandalas. Ao também.
reconhecermos nossas próprias três
mandalas como inseparáveis das do guru, O que são sadhanas?
do deva e dakini, enfim, do Buda,
efetuamos a prática do vajrayana. Sadhana é o método para atingir a
realização, isto é, as instruções do guru. No
Mudra também é a consorte, ou o "selo" de vajrayana, ao nos relacionarmos com o
vacuidade em todos os fenômenos, isto é, guru, transformamos nossa vida numa
qual é além da manifestação, a aparência, a sadhana. São também os textos em que
verdadeira natureza, a verdadeira postura roteiros de meditação vajrayana são
do fenômeno? O fato de que é "como um anotados.
sonho", insubstancial, isto é, a ausência de
uma essência. A ausência de uma essência
absoluto é a própria iluminação. Os sidis são forma pura da deidade como algo vazio é
obtidos através da prática da sadhana, e do treinado desde o princípio através de a
refúgio no lama, yidam e khadro. visualizarmos numa forma "translúcida", e,
da mesma forma, a tendência habitual de
Sidis são poderes supranormais, operar através da dualidade é purificada
sobrenaturais? através da visualização concomitante de si
mesmo e dos fenômenos externos como a
Sidis geral podem ser mais um obstáculo deidade.
para a prática do que algo a se esperar ou
comemorar, e a maioria das tradições Quando essa tendência está purificada, a
budista desencoraja a busca de siddhis. deidade naturalmente se manifesta com
Mesmo assim, eventualmente, eles podem essas duas qualidades, clareza
ser usados como meios hábeis para (luminosidade, estabilidade e nitidez) e
beneficiar os outros. vacuidade (ausência de qualquer noção de
interno e externo).
Eles são como o oposto da mágica ou da
magia, em que somos iludidos por um Porém a internet não parece ser o local
mágico. O benefício último no budismo é adequado para esclarecimento sobre
reconhecer a natureza da realidade: para o prática de sadhana. Em geral esse
budismo vivemos em um engano de massa esclarecimento só é adequadamente
com relação ao que tomamos como real. Ao concedido pelo seu próprio guru.
ver que isto que tomamos não passa de um
sonho, ao nos depararmos, por exemplo, O que é tantra, afinal? É um conjunto de
com algo "miraculoso", podemos passar a ensinamentos budistas? Como fazer para
entender essa natureza onírica, e assim praticar o tantra?
deixar de tomar aquilo que é irreal como
real. Se, por outro lado, acabamos Tantra significa continuo, ou tessitura, e
entendendo que o miraculoso ou o significa que a natureza essencial da mente
sobrenatural são características da nunca se perde. Também indica a linhagem
realidade como a percebemos, nesse caso ininterrupta de ensinamentos de guru a
apenas aumentamos o nosso engano. aluno dentro do tempo e também fora do
tempo.
"A purificação da percepção dualista é a
forma clara porém vazia da deidade". Também é o título que se dá a uma classe
Poderias falar sobre esse ponto? de textos que lida com esses aspectos, tanto
no budismo quanto no hinduísmo.
A forma mais elevada de prática de sadhana
é a que combina simultaneamente estágio Tantrayana no budismo é o mesmo que
de desenvolvimento com estágio de vajrayana e mantrayana. Para praticá-lo
completude. Assim, o reconhecimento da você precisa receber uma iniciação de um
professor qualificado, que você reconhece vajrayana, que é uma forma exclusiva dos
como um Buda. Dessa forma você é budistas de nomearem o tantra.
apresentado a uma mandala de deidades, e
pode praticar o meio hábil ensinado pelo Existe mesmo, dentro do tantrayana, o tal
lama, chamado “sadhana”. A iniciação é "sexo tântrico"? Ou é apenas uma forma
uma mistura de bênção, autorização, inventada para ganhar dinheiro? Se existe,
compromisso no engajamento na prática, e o que é o sexo tântrico?
instrução sobre ela.
No tantra existe o "lavar pratos" tântrico,
A característica principal do tantra, que o que é reconhecer a pureza inata em todos
diferencia do mahayana em geral (o tantra os fenômenos. Qualquer coisa, sublime ou
é uma forma de mahayana) é o uso das extremamente comum, não interessa, pode
aflições mentais como combustíveis para a ser integrada na prática tântrica. O que não
prática espiritual. Ou seja, raiva, apego, e existe é uma intensificação de qualquer
assim por diante, são reconhecidos, entretenimento do samsara.
transformados e utilizados na sadhana. Isso
não significa que podemos nos deixar levar De fato a palavra é muitas vezes
pelas aflições, o que tem acontecido desde diretamente associada com a sexualidade
os tempos sem princípio, mas sim que nos por professores falsos, ou pelo menos é um
comprometemos com sua natureza pura, e indício para duvidarmos e fazermos um
usamos esse reconhecimento para exame mais minucioso deste pretenso
transformá-los. professor.
Assim, reconhecer a natureza da raiva, por Em que livros posso ter acesso a leitura
exemplo, é o revelar de uma sabedoria. O sobre como lidar com a sexualidade no
tantra em geral se foca na transmutação das vajrayana?
aflições em sabedoria, e o caminho
essencial do tantra se foca no Não creio que existam bons livros sobre o
reconhecimento da sabedoria auto- assunto. Mas, por outro lado, qualquer
ocorrente através da prática de guru ioga. ensinamento budista pode ser aplicado a
qualquer aspecto da existência. Portanto, se
O tantra é uma exclusividade do vajrayana? falta alguma coisa na percepção da pessoa,
ela precisa buscar isso com um professor
No budismo as duas palavras, e qualificado.
mantrayana, são absolutos sinônimos. É a
mesmíssima coisa, com nomes diferentes. A peculiaridade do vajrayana diz respeito ao
uso das aflições, como a raiva e o desejo,
Fora do budismo, acho que a maioria dos como combustíveis da prática espiritual.
hindus que fala em tantra não usa o termo Este ensinamento está ausente no
um caminho muito rápido para a liberação, oráculo como um ministro, alguém que dá a
mas com quebras de compromisso, um opinião, mas quem deve pensar em termos
caminho igualmente rápido para o inferno. de sabedoria é ele mesmo, e assim acatar
O próprio medo é um reflexo da raiva, então ou não a opinião do oráculo. Isto é, o
abandonar o medo é crucial para a prática oráculo é um mero servo do Dalai Lama e do
do tantra. governo tibetano.
A face da deidade irada é como a da mãe Protetor do darma que você se refere é um
que está vendo o carro veloz indo na ser que não existe ao nosso alcance? Como
direção de seu filho único. Esse é o se vivesse em outra dimensão? Pode ser um
atropelamento de todos os seres pelo ser iluminado ou não?
apego ao eu, pela reificação das aparências.
Ela não vai permitir que seu filho seja Está ao nosso alcance, ou pelo menos de
esmagado pelo samsara. Nós precisamos qualquer um que faça prática de protetores.
entender que estamos sendo abraçados Pode ser iluminado ou um bodisatva. Alguns
pela bondade da linhagem, e o professores falam deles metaforicamente,
compromisso é levar essa bondade a todos outros gostam de personificá-los como algo
os seres. Repousar nessa bondade é semelhante a "espíritos". Todas as formas
descobrir a intensidade que permite a ação de budismo aceitam seres nos cinco outros
iluminada irrestrita. reinos que não o humano com que não
temos contato através dos sentidos. Há
O oráculo, no budismo tibetano, é um inclusive animais sutis.
mestre que "recebe" alguma entidade? O
que ele acessa para entrar em transe e fazer O importante é entender que os pontos
previsões? essenciais para o budismo são a insatisfação
do samsara (todos os seis reinos) e a
Sim, ele se comunica com um protetor do possibilidade da conquista do estado
darma. Eles são muito raros, mesmo no iluminado através do caminho do bodisatva.
budismo tibetano. Uma meia dúzia ou Se não se opuserem a isso, e a conceitos tais
menos. Não é um fenômeno importante, o como impermanência e ausência do eu
budismo existiria muito bem sem ele — mas (além da insatisfatoriedade), então outras
as considerações políticas, principalmente, disciplinas e práticas são como matemática
e a proteção com relação a instabilidades ou geografia — podem ser úteis em alguns
sociais, isso faz a necessidade de oráculos — casos, mas não necessariamente para
isto é, é para gente em posição de poder, atingir a iluminação como algo direto. A
com muita fragilidade por causa disso, prática de protetores, portanto, existe no
como por exemplo o Dalai Lama. O grande contexto de meio hábil para propiciar as
iogue que pratica solitário na montanha condições para a prática espiritual — ela em
talvez nunca tenha visto um oráculo na vida. si só não é a prática principal, não é uma
Em todo caso, mesmo o Dalai Lama toma o prática exatamente espiritual, mas uma
Em geral a primeira prática que envolve Gradual e direto (o causal e o não causal)
desenvolvimento e consumação feita é o não são tidos como opostos, mas na visão
ngondro. Cada ngondro possui da imanência da sabedoria no tantra,
peculiaridades próprias, mas eles em geral ocorrem simultaneamente. Toda a prática,
possuem formas simples (mais ou menos desde o início, repousa no reconhecimento
demoradas, dependendo da prática) desses da própria natureza, e a do lama e da sanga,
dois estágios. Tendo treinado com o como sendo inseparável do corpo, fala e
ngondro, a pessoa passa a praticar uma mente do Buda. Com base nisso, a prática se
sadhana “principal”. desenvolve gradual ou instantaneamente,
com ou sem esforço, de acordo meramente
A prática começa com uma enorme com o acúmen do praticante.
diversidade de atividades, em particular se
focando nos votos de refúgio e bodisatva e Ao que se referem os termos externo,
em amealhar uma grande quantidade de interno e secreto na nomenclatura budista
méritos – com o aspecto de sabedoria breve ou budista tibetana?
e coroando esse esforço. Depois, com a
naturalidade que deveria advir dessas Muitas coisas, de formas diferentes. Um
repetições, refúgio, voto de bodisatva e exemplo... externo: mundo; interno: corpo;
acumulação de méritos vão ficando menos secreto: mente. Também corresponde aos
elaboradas e mais concisas, e a etapa de níveis de corpo, fala e mente. Mudra,
sabedoria vai ganhando elaboração e mantra e samadhi.
demorando mais. É aqui que o estágio do
desenvolvimento passa a ser central, Em termos de obstáculos, externo é o que
embora a consumação também passe a está fora de nosso controle nesta vida, as
cada vez mais ser focada. Enfim, a circunstâncias mais amplas, tais como
consumação é focada muito mais do que os epidemias, terremotos, e as mais próximas,
outros estágios, e num determinado ponto doenças, o atraso do trem, ser assaltado.
se torna simultânea com toda a prática, Interno é o que está fora de nosso controle
integralmente, e noutro ponto ao longo de várias vidas: hábitos e
determinado, também com toda atividade tendências, aflições mentais. Secreto é o
do praticante, formal ou informal, dentro que nos prende desde o início, a ignorância,
ou fora da sessão. Na verdade, quando o não reconhecimento do estado natural.
falamos em todos esses passos paulatinos,
isso não necessariamente ocorre nessa Também são as nossas falhas evidentes a
ordem: podemos começar com a instrução todos, as que sabemos mas os outros não
de integrar tudo, e ao reparar que nem conhecem bem, e as que nem nós mesmos
sempre conseguimos, seguimos a instrução estamos cientes.
logo anterior que nos pareça possível
praticar.
Enfim, eles utilizam esses três níveis para resultado. A essência da prática é o guru
falar de tudo. Refere-se a uma esfera global, ioga, como no vajrayana.
impessoal, coletiva, o mundo; a esfera
pessoal, própria, particular; e a uma esfera O dzogchen é para praticantes quase-
essencial, nem pessoal, nem impessoal — budas, de acúmen inigualável?
se é que se pode dizer isso.
7.4. Práticas avançadas Isso, o vajrayana como um todo também.
Imagine que mesmo um praticante da
Uma forma de autoliberação das aflições forma mais externa e inferior de tantra está
mentais é "olhando" para elas quando no máximo a 17 vidas da iluminação,
surgem e reconhecendo a vacuidade? Esse enquanto que um praticante do mahayana
observador que olha para as aflições existe vai levar 3 grandes kalpas, cada um com
até que ponto da prática? centenas de renascimentos....
Ah, essas práticas avançadas eu não Por outro lado, você não precisa guardar
entendo. Você precisa perguntar isso a um nenhum tipo de preconceito quanto a si
professor qualificado. mesmo. Se você tem o mérito, ele se
manifesta, aí você não precisa dizer “ah, eu
No veículo superior absolutamente tudo é não sou um quase-buda, isso não é para
acolhido como prática? Qualquer conteúdo mim”.
mental, seja ele aflitivo ou não?
Onde reside a diferença entre mahamudra
Sim. Nada, absolutamente nada, é e dzogchen? No método?
desperdiçado. Mas isso não significa se
entregar a aflições mentais, bem pelo Em termos do fruto, a realização dos dois
contrário. Na medida que elas surgem, elas corpos, mahayana, vajrayana, mahamudra
são autoliberadas. Isso significa que a e dzogchen são a mesma coisa. Em termos
energia delas, por si só, as esgota. E é por do método é que se diferencia. E é um
isso que se trata do veículo superior, que assunto complicado, eu nem ouso tentar
exige praticantes quase-budas, de acúmen entender essas coisas.
inigualável.
O que é Rigpa?
O que é dzogchen?
Rigpa é a natureza essencial da mente: livre,
É a redução de "dzogpa chenpo", a "grande criativa e compassiva. É o que resta quando
perfeição" ou "grande completude", que é marigpa (avidia, delusão, ignorância) se
tanto o resultado do caminho budista como dissipa.
um conjunto de métodos rápidos (diretos)
de reconhecer, estabilizar e expressar esse Poderia explicar o que é o corpo de arco
íris?
Se ela sabe, ela não tem deveres, ela faz o Tem uma história do hinduísmo que ilustra
que está de acordo com a sabedoria. esse ponto, que acho é narrada no livro do
Joseph Campbell, "O Poder do Mito". Nela
Isso falando de um Buda, que possui Indra está super feliz como uma leitoa,
sabedoria última. Se você está falando de amamentando uma grande ninhada. Um
meros saberes, bem, evidentemente que renascimento relativamente degradado, na
nem uma pessoa assim não deve pensar em compreensão hindu (e na budista também).
si mesma como "um sábio". Essa noção é Então vem uma outra deidade, não sei se é
prejudicial. Shiva ou outra, e, creio, na forma
politicamente incorreta de um açougueiro,
Por outro lado, a sabedoria é diretamente "libera" a leitoa, que então finalmente se
perturbadora para a ignorância. Então lembra que é Indra, e que sempre foi Indra.
realmente podemos nos sentir perturbados
por seres sábios. É nossa honestidade para Se Indra não pudesse ser uma leitoa, Indra
com nós mesmos e nossa perseverança na não seria Indra, né?
prática que devem nos guiar nesses
momentos. São bênçãos. Indra é Indra porque pode até mesmo se
9. Sabedoria tornar uma leitoa, e pior que isso, até
mesmo tem o poder de se esquecer que é
O que é vacuidade? Indra!
As coisas são ocas de uma existência É assim, na verdade, que surge a ignorância.
independente (ocas de algo que as deixe Exercemos a liberdade natural num ponto
"por si só"), isto é, de uma essência. tal que esquecemos dela, e passamos a
viver num mundo particular. O problema
Como e porque a nossa mente se engana? não é o mundo particular, mas essa
"liberdade de esquecer a liberdade" (de não
Pela sua própria liberdade ela se esquece de usufruí-la), essa é a ignorância. O pior de
sua liberdade e passa a operar de forma tudo: a ignorância não pode ser entendida
restrita. do ponto de vista da ignorância, muito
menos a sabedoria. Ambas ignorância e
"Se a natureza ilimitada não se sabedoria só são reconhecidas do ponto de
manifestasse de forma limitada ela não vista da sabedoria. A ignorância é ignorante
seria realmente ilimitada, pois teria a de si própria e do que encobre.
limitação de não manifestar-se
limitadamente." Está certa essa frase? Posso dizer que avidia é "simplesmente"
não lembrar da nossa natureza de buda?
Pior que está.
Talvez melhor não. Avidia é não reconhecer
a natureza de buda. Por certo aspecto, isso
cortar o lado direito de uma barra"? Através extremos. Ele não é nem mesmo certo, ele
da vacuidade, como o budismo vê o certo e é como é, além de certo e errado. Além não
o errado? significa "abandonando" o certo e o errado,
significa "nem mesmo fazendo sentido
A ética é o que está de acordo com a dizer" uma coisa assim.
realidade. A realidade é completamente
boa. Então na não dualidade, não há errado. Diz-se que, em verdade, tudo que vemos é
O errado surge da ignorância. Não ocorre a nossa própria mente. Quando um ser
de, ao superarmos a ignorância, atinge a iluminação, a mente dele se funde
integrarmos a ignorância ao que é real, com a mente dos outros seres? A mente dos
assim o errado é o que é irreal, o errado é a seres é separada?
dualidade.
Essa afirmação é cittamatra. Os
Não dualidade significa o estado natural das madhyamikas algumas vezes acusam
coisas, a separação surge por causas dizendo que está havendo reificação da
adventícias, e uma percepção filtrada pelas mente. Mas em termos de prática de
aflições mentais. Sem aflições, não há meditação, ela é muito útil (essa afirmação).
separação. Porque é errado martelar o
próprio dedo? Porque não queremos sofrer A mente não se funde, a mente não é
dor. Da mesma forma é errado martelar separada. Essas noções surgem por
outra pessoa, porque ela sente dor. Quando "máculas adventícias", isto é, por padrões
martelamos outra pessoa, isso é dual, e isso de hábitos baseados em uma visão
é equivocado, porque estamos vendo essa equivocada das coisas. As coisas nunca
pessoa como separada. Isso é não foram separadas.
dualidade: não martelar os outros. E não
porque isso é uma ordem do Buda, ou Você poderia explicar melhor quando disse
mesmo porque isso é o final de um que a minha mente nunca está
raciocínio "no fundo eu e o outro somos o verdadeiramente separada de nenhum ser?
mesmo", mas porque, da mesma forma que
com a nossa mão nesse momento, vemos o As noções de separação — ausência,
outro organicamente, naturalmente, além unidade, dualidade e multiplicidade — são
dos conceitos, como parte de nós. Antes criadas pela mente, isto é, são uma
disso, podemos obedecer mandamentos ou falsidade. Elas são uma função da
raciocinar "no fundo somos o ignorância, isto é, a mente que não se
mesmo/inseparáveis/indistinguíveis" — reconhece.
mas isso é um apenas remendo, uma
muleta. Às vezes funciona, às vezes não. O Mas se a realidade é boa, por que há tanto
resultado da prática budista é o corpo do sofrimento? Por que há tantas catástrofes
Buda, inseparativo com todos os naturais? Não seria o "bom" um ponto de
fenômenos, perfeitamente bom, e além dos vista e não uma realidade em si?
para nós, é certo para ele. E mais que isso, Se todos os fenômenos são
se ele é um ser realizado, é porque se interdependentes, como os 5 skandas, de
coaduna com a realidade, e portanto, nós onde surge a liberdade do ser?
estamos errados e ele está certo. Então o
certo dele é que é realmente certo. Não Do não condicionado, do que é real, não é
existe relativismo ou liberalidade em fenômeno, não é aparência.
nenhuma forma de budismo. A pessoa não
atinge a realização para obter a liberdade Mas se a pergunta é "como pode haver
de cometer erros: ela se torna basicamente liberdade com interdependência" —
incapaz de cometer erros, se totalmente liberdade é interdependência! Só porque
iluminada. cada coisa que você faz afeta todos os
outros e é afetada por todos os outros, isso
Como no exemplo que dei, nós não significa que não há liberdade. Há
(normalmente) não damos liberdade perante a noção de uma coisa
deliberadamente marretadas na própria separada. Separar é aprisionar.
mão, mas estamos muitas vezes dispostos a
marretar os outros. Isso ocorre porque não Você poderia, por favor, explicar: Se todos
vemos a realidade. Se víssemos a realidade, os fenômenos são interdependentes,
saberíamos que somos inseparativos, então então, quem é o observador que,
da mesma forma que não surge o ímpeto de aparentemente, se torna livre das
dar marretadas em si mesmo, não surge o sensações, percepções, pensamentos?
ímpeto de marretar o outro. E, além disso,
é possível reconhecer que há níveis ainda Não há nenhum fenômeno independente,
mais profundos de ignorância que o nosso, muito menos o observador. O observador é
pois existem aqueles que tem o ímpeto de especialmente dependente.
se auto marretar. A mesma compaixão que
temos por alguém que prejudica a si Quando dizemos "livre de sensações,
mesmo, devemos ter por alguém que percepções, pensamentos", isso não quer
prejudica a outro — não dualidade é dizer "sem essas coisas". Isso quer dizer que
essencialmente ver ISTO, que não há exatamente reconhecer a interdependência
diferença entre o meu sofrimento e o entre o objeto e observador, como um se
sofrimento do outro, entre a minha estabelece e se transforma em
dissipação do sofrimento e a dissipação do "colaboração" com o outro, isso por si só é
sofrimento do outro, e assim por diante. uma forma de liberdade. Se um dos
elementos estivesse "engessado" numa
Não é uma carta branca para fazer o que dá independência postulada, nesse caso, não
na telha em nome de uma suposta haveria liberdade.
realização mística. 9.1 Perguntas que encobrem a sabedoria
Existe algo que seja estável e real antes da Primeiro, não há esse passar. O estado
impermanência e do sonho? natural está sempre disponível, o tempo
todo. Não existe um momento em que ele
Nada que exista como um objeto deixe de ser natural e então as
separativo, portanto nada que possua um artificialidades "tomem conta". No entanto,
modo de existência, portanto não. nossa experiência não é essa, e é por isso
que chamamos isso de "ignorância". A falta
Porque tudo é impermanente? de reconhecimento surge por uma
liberdade, que é uma característica inata da
Na verdade nem tudo é impermanente. natureza da realidade. Todo tipo de
Tudo que é composto é impermanente. Por projeção surge por causa dessa liberdade,
outro lado, se você pode falar de algo, é nos envolvemos na projeção, e esquecemos
porque é composto. Como a delusão da realidade e da liberdade inata. Daí surge,
projeta esses elementos distintos, e uma coemergente com um ser ignorante, um
cadeia causal, e tempo e espaço, a liberdade Buda, que é uma expressão dessa liberdade,
naturalmente segue operando, e não para nos lembrar dela — e até um sistema
consegue sustentar a ignorância de forma de pensamento e uma série de
contínua. A impermanência é a porta da treinamentos. Se nossa experiência não
vacuidade, da sabedoria, portanto, porque fosse essa, não precisaríamos do darma.
é nessas "quebras" que se pode reconhecer
a liberdade operando além das fixações Então não há uma passagem, a ignorância é
particulares produzidas pela delusão e às fruto da liberdade, e o que há realmente é
o estado desperto de um Buda. A ignorância
é adventícia e instável, embora nos pareça como ela é, mesmo que isso não seja
sólida, porque a reificamos, ou seja, as diretamente reconhecido ainda, há mais
projeções da ignorância se somam sobre ela possibilidade de obter esse
mesma, como quando vamos ao cinema e reconhecimento.
ficamos tristes com a morte de um
personagem, e depois achamos "justa" a Quanto ao "porquê", não há, até onde pude
vingança, e assim por diante. É só uma tela perceber, qualquer conhecimento ou
com figuras luminosas, mas nós entramos afirmação teleológica no budismo. Em
em vários níveis de "ignorância" para outras palavras, o budismo não se ocupa de
apreciar um filme. Aliás, se o filme é bom, é explicar as coisas ou porque elas são dessa
exatamente porque nos prende dessa forma. Temos um problema, que é a
forma. Mas, é só um filme. insatisfatoriedade, e a partir disso
produzimos uma solução, que são os
O não reconhecimento da realidade e da métodos e ensinamentos. A imagem usual é
liberdade inata nos faz precisar dos a de uma pessoa que está com uma flecha
ensinamentos do Buda. O Buda é portanto enfiada no olho, perguntando ao cirurgião
uma projeção ou espelho de nossa própria como é a flecha, que cor ela tem, de onde
ignorância, é um aspecto de compaixão que ela veio, e assim por diante: o que importa
surge concomitantemente com o é retirar a flecha.
sofrimento que produzimos para nós
mesmos. Se vemos uma pessoa tendo um Então o "como" tem uma explicação
pesadelo, nós acordamos a pessoa "está tortuosa, porque é mesmo um pouco como
tudo bem", e então ela vê que não havia uma ilusão de ótica: entender o engano é
monstro nenhum, em momento algum. entender o que não é o engano, e daí vemos
Assim é com as aflições mentais, enquanto que era um engano, nada mais, nada menos
elas operam, elas parecem poderosas, mas que isso. A causa do engano é o próprio
elas tem menos substância que cinema ou engano, ele é um "engano enganoso", não é
monstros em sonhos. nem mesmo um engano de verdade. Você
entra numa sala escura e confunde uma
A ignorância é a raiz das aflições mentais corda com uma cobra, todo tipo de medo
que produzem os diversos sonhos e mundos surge. Alguém acende a luz, a corda não
ilusórios. Entender a liberdade que produz a tem nenhuma culpa de você a ver como
ignorância, é reconhecer a fonte dessa uma cobra. Você pode dizer que a corda
liberdade e dessa ignorância, que é a causou a experiência da cobra em você? A
sabedoria primordial. Portanto as corda não fez nada, você com sua
perguntas sobre ignorância, como surgem imaginação projetou todo tipo de coisa na
de dentro do escopo da ignorância, nunca realidade. E quando a luz acende, nunca
vão produzir o reconhecimento da houve cobra alguma, não é mesmo?
sabedoria. Começando-se da perspectiva da
sabedoria, ou seja, postulando a realidade
Já o "porque" não tem resposta, e na Mas o que acontece quando todo mundo se
verdade, é considerado uma pergunta meio ilumina não faz muito sentido se você pensa
sem sentido. que "todo mundo" é um conceito arbitrário,
parte do sonho, e a noção de que uma
Se a origem é perfeita, como e por que iluminação começa em algum momento no
surgiu o primeiro ser no samsara? tempo é também uma noção arbitrária,
parte do sonho.
Samsara é um engano, e o termo "samsara"
é um ensinamento para seres que operam Se o "eu" não existe, o que é que renasce?
de acordo com esse falso engano. Também De qualquer forma, não se deixa de existir
não há "origem", origem faz parte do com a morte física?
engano.
Renascer é "nascer de novo", isso significa
Quando a pessoa se assusta porque que uma nova ilusão de eu se forma com
confunde uma cobra com uma corda numa base no carma. Você, como um eu, não
sala escura, e ao acender a luz ela se alivia, existe agora mesmo. Com a morte você não
esse alívio é também um engano. Nunca se torna mais existente. Mas o sofrimento
houve cobra alguma, acender a luz nunca que você sente segue.
mudou nada com relação a corda ser uma
corda. Samsara é a cobra, nunca existiu, Por favor, explica melhor: "O que
quando a pessoa se ilumina ela não só se acontecerá com este mundo quando todos
"livra da cobra", ela reconhece que a cobra os seres atingirem a iluminação?" Porque
nunca esteve ali em momento algum. não faz sentido perguntar isso? Os mestres
dizem que é certo que todos "atingirão" a
Quem não renasce vai para onde? O que iluminação. A pergunta então é: mas e aí, o
acontecerá com este mundo quando todos que acontece?
os seres atingirem a iluminação?
Os mestres não dizem que é certo que todos
O mundo surge junto com o nascimento. Na atingirão a iluminação. Eu já vi lamas serem
verdade é um sonho, não há mundo. Nunca perguntados isso e rirem muito.
houve um mundo no sentido último — não
desse jeito, com tempo, espaço, localidade, Vai chegar um dia em que todos os seres
objetos. Essa noção de que existe algo que estarão livres da ignorância?
vai ficar vazio quando todo mundo for
embora, é achar que a sala é verdadeira O Buda não respondia essa pergunta,
enquanto os seres dançando dentro dela porque se você entender que a ignorância
são de sonho. Tanto a sala quanto os seres inclui noções tais como "um dia" e "todos os
são um sonho. É o mesmo sonho, a mesma seres", isto é, sem ignorância não há "um
ignorância. dia" nem "todos os seres", estes são objetos
da ignorância. Então é quase como
perguntar "a ignorância contém Eu tenho uma mente e você tem uma
ignorância?" isto é "a ignorância é ignorante mente. O números de mentes que existem
da ignorância?" Claro que sim, por outro é fixo ou elas podem ser "criadas"?
lado, não. Tudo que a ignorância sabe é
ignorância, por outro lado, ela não sabe Unidade e multiplicidade são criações da
nem mesmo que é ignorante. Todas as mente fixada (presa) na delusão e
perguntas que dizem respeito a tempo, conceptualização arbitrária. A separação
espaço, "todos", "nenhum", e assim por entre as mentes, bem como uma noção new
diante, estão ligadas aos quatro extremos age de unidade de mentes liquidificadas
que são a característica da ignorância — umas nas outras são extremos embasados
então é impossível responder uma pergunta na ignorância. Na visão budista, eu ter uma
que é formulada com base na ignorância mente separada da sua é uma verdade
sem dar uma resposta com base na convencional, e empírica, já que eu não
ignorância. Assim, é uma pergunta sem tenho acesso aos seus conteúdos mentais, e
resposta. O próprio Buda não dava essa acho que você não tem acesso aos meus.
resposta. Por outro lado, essa limitação é adventícia,
essa separação é causada por marcas
Segundo o Budismo, todos os seres se temporárias, e na sua essência, a vacuidade,
libertarão do sofrimento um dia, ou a coisa as duas mentes são e nunca deixaram de ser
não tem fim? O número de seres é finito? a mesma. A prática do budismo é o caminho
do meio, que vai além desses extremos,
Quanto a isso, há discussão. O próprio Buda sem tomar qualquer um deles por sólido.
ficava em silêncio com relação ao fim do
samsara (iluminação de todos os seres). Digamos que, numa situação hipotética,
Algumas tradições claramente dizem que, todos os seres se iluminem e a roda do
embora todos tenham natureza de buda, samsara desapareça. Qual seria o papel dos
muitos não irão nunca revelá-la. Para Budas após isso?
tempos compreensíveis e vastos, nem todo
mundo, é claro, vai se iluminar. Mas quando O Buda não respondia se o samsara teria ou
estamos falando em tempo budista... daí não um fim, mas a noção de "budas" só
foge da possibilidade da razão. São existe na mente dos seres sencientes, os
googolplexes de kalpas, que tem, cada um Budas não pensam em termos de budas
deles, bilhões de anos. versus seres sencientes.
9.2. O resultado: Buda
Agora, se o número total de seres aumenta,
diminui, ou permanece o mesmo — o Buda O que é "Buda"?
também não se metia a responder sobre
isso. "Buda" é um título que significa "desperto",
isto é, alguém que acordou para a
verdadeira natureza da realidade. Para o
budismo todos que não são Budas vivem ensinamento restante de nenhum Buda.
sob ilusões. Isto é, são 1001 Budas que surgem nesse
kalpa a partir de um estado em que os
Em outros termos significa alguém que ensinamentos do Buda anterior não são
aperfeiçoou completamente todas as mais sequer lembrados. Para cada Buda
qualidades (tais como as seis perfeições e as destes, que marca o início de um período
seis qualidades incomensuráveis) e onde existem os ensinamentos budistas, há
eliminou todas as máculas (tais como os centenas, milhares ou milhões... talvez
venenos e aflições mentais). bilhões, que ao longo do tempo em que seu
ensinamento persiste atingem o nirvana.
Normalmente usamos a palavra para se Durante o período de vida do Buda
referir ao Buda histórico, conhecido como Sakyamuni, que foram 42 anos após ele
Buda Shakyamuni, Gautama Buda e antes atingir a iluminação, ele levou cerca de 500
disso, como Sidarta Gautama. Ele nasceu praticantes ao nirvana. Muitos outros
uns 500 anos antes de Cristo, e embora, atingiram esse estado através dos
segundo o Budismo, ele não seja "o ensinamentos de seus alunos ao longo dos
primeiro Buda", é o Buda que primeiro tempos. Além do nirvana, muitos
ensinou nessa era histórica, e que é praticantes também se tornam efetivos
portanto a fonte de todos os ensinamentos Budas, mas como eles ainda estão num
Budistas conhecidos hoje. período em que os ensinamentos do Buda
Sakyamuni estão preservados, raramente
Alguém atingiu o nirvana antes de Buda nos referimos a esses seres iluminados
Sakyamuni (Sidarta Gautama)? como Budas, embora existam alguns casos
em que sim, praticantes ao longo do tempo
Nesse kalpa, que é um kalpa considerado que atingiram a iluminação também são
"bom" pois totalizará 1002 Budas, Buda chamados de Budas. Em todo caso, eles não
Sakyamuni foi o quarto Buda. Um kalpa é entram na contagem dos 1002 Budas num
um período em que um universo se forma, kalpa bom: estes são Budas que surgem
existe por um tempo, e desaparece. sem base no ensinamento preservado
Houveram muitos kalpas antes do presente historicamente de outro Buda, só em
kalpa, alguns sem Buda algum, outros com possivelmente lembranças de terem
bem mais Budas do que em nosso kalpa estudado com eles em vidas passadas.
"médio".
O que é um Buda? Quantos Budas existem?
Repare que um Buda não apenas atinge o Como eles surgem? Budas podem existir
nirvana, um Buda atinge iluminação simultaneamente? Buda disse para o
completa, e quando estamos falando desses Bodisatva Maytreia: "você será Buda daqui
1002, por exemplo, eles são 7 bilhões de anos". Ele estaria algo como
Samasambudas, isto é, Budas que surgem que "passando" o título?
sem a existência, naquele momento, do
Todo Buda é um arhat. Nem todo arhat é concentração e sabedoria (que é esse
um bodisatva. Nem todo arhat se torna um reconhecimento).
Buda.
Uma pessoa que atingiu a iluminação pode
Tatagata, Sugata etc. são títulos diversos regredir espiritualmente ou é irreversível?
para Buda.
"Atingir a iluminação" é modo de falar. A
Um arhat quando atinge o nirvana também iluminação é um não atingimento. É
desenvolve compaixão? Ou ele mantém irreversível.
algum tipo de frieza ou indiferença?
A iluminação é uma condição irreversível?
A compaixão no hinayana é com o objetivo
de atingir o nirvana, que é um objetivo para Por liberdade, um ser iluminado pode
si só. Então há compaixão, mas destituída vivenciar a ignorância. De fato, é assim
de coragem — é uma compaixão conosco nesse momento. Nossa condição
extremamente limitada. Os arhats não são básica, livre da ignorância, é incorruptível.
indiferentes ou frios, mas eles não se
consideram capazes de realmente ajudar os Os mestres podem perder sua realização?
outros no sentido em que um Buda ajuda.
Quando eles morrem, eles não se Sim. Mesmo bodisatvas de 10º nível podem
manifestam mais para benefício dos seres perder tudo. A única realização irreversível
— não por indiferença ou frieza, mas por é o estado de Buda.
falta de coragem ou por não se acreditarem
capazes (durante o treinamento). Se praticamos o vajrayana, devemos ver
nosso professor como o Buda, o que não
O que falta totalmente ao arhat é bodicita, quer dizer que ele seja o Buda — e em quase
esta sim está totalmente ausente. todos os casos o próprio professor vai dizer
que não é um Buda.
Como você descreveria uma pessoa
iluminada? Assim, professores que não são Budas
completamente realizados — ainda que nós
É uma pessoa que eliminou completamente treinemos nossa própria mente tentando
as três máculas e desenvolveu plenamente vê-los como Budas — podem perder
as seis perfeições. absolutamente tudo que obtiveram:
realização meditativa, erudição e
Isto é, eliminou aversão, apego e perspectiva espiritual.
indiferença e desenvolveu ao máximo,
transcendentemente através do As realizações que alcançarmos nessa vida
reconhecimento da vacuidade, poderão ser perdidas em vidas futuras?
generosidade, ética, paciência, empenho,
Todas as coisas que podem ser obtidas Sim, mas isso inclui a ausência completa das
serão, inevitavelmente, perdidas. A única aflições mentais e venenos mentais, e a
conquista que não é perdida é a conquista presença completa de todas as qualidades,
da iluminação, que não é propriamente tais como compaixão. Uma coisa não é
uma conquista, mas a revelação de nosso diferente da outra, mas na nossa
estado natural. Qualquer outra conquista perspectiva, pode parecer que o mero
que obtivermos, seja grandes acumulações reconhecimento não implica essas outras
de mérito, conhecimento, e assim por coisas.
diante, se dissiparão com o tempo.
O Buda precisa meditar?
De fato, no caso do mérito, existe a
dedicação de mérito, que é basicamente Não precisa. O que o Buda faz em sua mente
doar nosso mérito a todos os seres, de é impossível de descrever, mas a meditação
forma que o "reservatório geral", mais é uma prática para seres deludidos. Mesmo
duradouro, seja de benefício a todos. Ainda se tratarem de Budas completamente
assim, sem a sabedoria que revela a iluminados, em alguns casos a prática de
natureza das coisas como elas são, de forma meditação em geral, e com certeza algumas
atemporal, qualquer mérito acumulado é formas de meditação são desaconselháveis
meramente um instante de felicidade no para aqueles de grandes qualidades.
futuro. É melhor que transformemos essa
felicidade em oportunidade vasta para a Porque que quem alcança o nirvana e
prática, para dessa forma abrir nosso extingue toda dualidade torna-se
coração para a realidade que tudo permeia onisciente? O que é a onisciência nesse
e está além de causas e efeitos, e qualquer aspecto?
noção de eu-outro, fora-dentro e antes-
depois. Onisciência para o hinayana é o
conhecimento de todas as causas para
Quando Gautama tornou-se Buda, o que liberação. No mahayana, é o conhecimento
exatamente se despertou: o corpo, a mente de todos os darmas, isto é, das causas e
ou outra essência nele? condições de todas as coisas, e de sua
essência, vazia de independência.
Corpo, fala (emoções, energia) e mente. Isto
significa que cada um dos três âmbitos Quando extinguimos totalmente as aflições
acordou ou reconheceu o que realmente mentais isso é sinal de que obtivemos a
era desde o início. primeira onisciência. Isto é, só é possível
extinguir completamente essas coisas
A iluminação, seria o "reconhecimento" quando a onisciência do tipo hinayana está
direto de como as coisas realmente são, presente.
além das nossas projeções mentais?
Quando, por outro lado, estamos falando seres, que é o que importa. E há escolas que
em separatividade, dualidade, ela não é interpretam essa onisciência num sentido
extinta. Ela é reconhecida como nunca metafórico mundano, de alguém com um
tendo existido. Dessa forma, através da conhecimento vastíssimo, mas não
interconexão natural entre todas as coisas, completo.
o conhecimento da natureza verdadeira de
cada darma pode ser inferido. Em outras O exemplo tradicional para o conhecimento
palavras, conhecer completamente do Buda sobre o mundo relativo é que ele
qualquer particularidade é conhecer saberia cada uma das causas que teria
completamente todas as particularidades. causado uma cor específica em cada um dos
Então, não dualidade é igual a onisciência pontos da cauda de um determinado pavão.
no sentido mahayana. O mahayana em geral, e por consequência,
o vajrayana, toma isto como o padrão de
Como um corpo com um número finito de onisciência do Buda com relação aos
neurônios pode conhecer todos os fenômenos.
fenômenos nos três tempos, como
supostamente o Buda conhece? Buda hesitou antes de decidir ensinar sua
via de libertação para os homens. Como é
Evidentemente, para o budismo, a mente possível ser onisciente e hesitar?
não é o cérebro. O Buda só tem um cérebro
de sonho para beneficiar seres de sonho, Bom, em primeiro lugar, preciso lembrar
ele não acredita na existência inerente de que há controvérsia sobre o que
um cérebro. exatamente "onisciência" no caso do Buda
quer dizer. Mas não é necessário
(Mas mesmo se fosse, bastaria que os argumentar por essa via.
fenômenos dos três tempos fossem
também, finitos — porém, não é esse o Independentemente do que se queira dizer
caso, quer dizer, não é definido se é finito por onisciência, ela só foi completa — a
ou infinito.) iluminação — quando o Buda decidiu
ensinar. Antes ele podia ter atingido mera
Há dúvida sobre se Buda era ou não liberação — e era essa liberação que ele
onisciente? hesitou em ensinar. Ao decidir ensinar, essa
mesma atitude foi uma manifestação das
Não, mas há alguma discussão sobre o que qualidades, essencialmente da compaixão.
significa onisciência no caso do Buda. Há Portanto o próprio ato de ensinar algo que
escolas que dizem que o Buda sabia tudo não é ensinável é uma ação de um Buda, um
sobre todos os fenômenos, portanto sabia ato transcendente, inexplicável.
até consertar motocicletas antes delas
virem a existir. Há escolas que dizem que ele O Buda ainda estava sentado. Toda aquela
sabia tudo com relação à liberação dos sessão de prática do Buda, os seis dias
Em outras palavras, ele não usa a palavra Uma mente iluminada é totalmente
mesa para se referir ao objeto mesa porque desapegada a tudo? É uma mente que
seja isso a que ele esteja se referindo, ou pensa, mas reconhece tudo como apenas é?
aquele um objeto da percepção dele — mas Ou é uma mente vazia? Como é uma mente
porque essa é a nossa referência e esse o iluminada?
objeto da nossa percepção.
Ela é totalmente desapegada a tudo, o que
Enfim, a sabedoria do Buda não só é o mesmo que reconhecer as coisas como
reconhece as coisas como elas são, mas realmente são, é uma mente vazia, mas não
reconhece todas as possíveis distorções das é uma mente vazia de tudo e qualquer
coisas também como elas são, distorções. coisa, é uma mente vazia (como todos os
Ele não perde o reconhecimento de fenômenos também sempre foram, e
quaisquer distorções possíveis, e por isso mesmo nossa mente, do jeito que é agora,
ele é lúcido. Por isso também lucidez, é também) de reificação. Não reificar e
sabedoria e compaixão são a mesma coisa. desapegar é a mesma coisa. O apego é
meramente estar na dependência de algo
Como uma nota adicional, esse é um ponto reificado como externo, separado. Não
crucial para a dialética consequencialista, a existe nada externo, separado.
prasangika, visto que a própria noção de
uma lógica independente, privada, é A essência da mente iluminada é abertura,
considerada um engano. Então os claridade e afetuosidade. Abertura é não
prasangikas não só tomam os argumentos fixação, não dependência, liberdade.
dos outros como os outros os entendem (e Claridade é lucidez, interesse, inteligência,
os refutam, ambas as coisas sendo o curiosidade num sentido de se envolver
natural, considerando que quaisquer com as coisas. Afetuosidade é compaixão,
premissas são arbitrárias) como a própria empatia, capacidade de agir. Esse é o
concatenação entre os elementos potencial de todos os seres, que é
argumentativos é própria "do outro", e ela atualizado nos Budas.
é seguida "de acordo com o outro". Sua
Santidade o Dalai Lama muitas vezes
quem continua a crer numa existência Para onde vai um buda quando acorda?
independente. Quando deixa de se manifestar no sonho?
Ele vai para uma terra pura?
O Buda não criou as coisas. A pergunta
surge num entendimento das coisas que Um Buda não vai nem vem, não fica nem sai.
propõe que o sofrimento e a compaixão Na verdade, além de todos estes conceitos,
existam num mundo. O sofrimento e a porque são projeções do sonho, de uma
compaixão são qualidades da mente. ignorância básica que forma a noção do
espaço e da causalidade ordinários.
Então, aonde o ser acordado habita? Qual a
essência de um ser desperto? Quando esperamos que um Buda opere
como nossa mente espera que objetos
Um ser desperto está acordado para a operem, que possuem localização, surgem
realidade. Os seres dos seis reinos habitam por condições e desaparecem por
sonhos de ignorância, que parecem sólidos condições, não entendemos o que é Buda, e
apenas para suas respectivas ignorâncias, portanto não entendemos nossa própria
mas não existem de verdade. O estado natureza. É a reificação de noções como
desperto habita o espaço básico, prenhe de estas "deixa de se manifestar", "passa a se
todas as possibilidades, mas cuja textura é manifestar", que produzem todas as formas
livre de reificação que possa produzir a de sofrimento.
noção de "aqui" ou "ali".
Quando acordamos de um sonho na noite,
A completa inexistência de uma essência, a descobrimos que estivemos o tempo todo
vacuidade, é a "essência" (o que no mesmo lugar, em nossa cama. Da mesma
caracteriza) todos os seres, um ser desperto forma, o Buda acorda para o estado que
é alguém que reconhece isto, portanto sua sempre existiu, mesmo em meio ao sonho.
"essência" (o que caracteriza) é a realização Podemos usar palavras tais como "espaço
da vacuidade, o que é idêntico a compaixão. básico" ou "terra pura incondicionada" para
A natureza de Buda é, portanto, a total descreve-lo, mas estas palavras apenas
liberdade perante todas as fixações, a servem para acalmar nossa ignorância,
ausência de reificação das coisas falsas, tais dando pontos de referência que nos façam
como um "eu" ou uma "essência" dos pensar isso ou aquilo sobre o que é um
objetos e de si próprio. Essa claridade (com Buda. O que há de fato, além do sonho, só é
relação ao que é, ao que é real) possui um visto por quem acorda. Tudo que podemos
aspecto criativo, radiante e luminoso — que fazer, no sonho, presos às aparências do
é o aspecto de compaixão, a disponibilidade sonho, cheios de noções de tempo e
total, que vem dessa abertura total. espaço, sem falar em noções mais
grosseiras ainda do que essas, é ver as
coisas nesses termos. A partir da ignorância,
nunca reconheceremos a sabedoria.
Portanto, no mahayana o sonho humano do São as aflições mentais que levam alguém a
Buda é também apenas um sonho. Ao ser renascer. Quando usamos a palavra
perguntado sobre o que ele era, se era um "renascer" isso significa "ser levado pelo
Deus, um ser humano, um fantasma, o Buda carma (pelas ações de corpo, fala e mente
respondeu apenas "sou (estou) acordado". causadas por aflições mentais) a um
E é daí que vem o nome Buda: "sou Buda" nascimento". Portanto alguém que não
se traduz como "estou acordado". possua aflições mentais não renasce. A
mesma distinção entre grande vacuidade e
No Lankavatara o Buda diz "ensino pequena vacuidade se dá entre aflições
renascimento para os alunos de pouca mentais grosseiras e sutis. Um bodisatva de
capacidade. Para os de grande capacidade, 8º bhumi, portanto, renasce apenas através
ensino o que está além da vida e da morte." da aflições mentais sutis. As aflições
mentais sutis são as tendências de hábito,
Se o buda é aquele que realizou a como se fossem sementes estéreis. Elas não
vacuidade, então ele nunca deixa de chegam a ser perseguidas e se
renascer, ou melhor, de se manifestar? transformarem em aflições mentais
grosseiras, mas existem como "latências". história contada para um tipo de ignorância
Essas latências produzem um renascimento, que temos. Para outro tipo de ignorância, se
mas não um renascimento simplesmente vai dizer que o Buda é nossa própria
sem controle (como os sonhos bons e ruins natureza, que também nunca nos
durante nossa noite), mas um sonho abandona. Quando se fala em sabedoria,
direcionado com lucidez para benefício dos daí não há Budas ou seres sencientes, nem
outros. Ainda há algo a depurar, mas há um caminho budista e todas essas coisas. O que
grande grau de controle sobre o há é o que há para um ser que possui
nascimento. sabedoria, e eu não sei o que é isso. Mas
com certeza um Buda não guarda, para si, a
No caso dos Arhats, eles também noção arbitrária de si mesmo como um
dissolveram completamente as aflições Buda. Isso não quer dizer que ele não saiba
mentais grosseiras. Se eles dissolveram as que é um Buda, é diferente. Ele não tem um
aflições sutis, isso é ponto de debate. Mas "eu" que é um Buda, ele é uma mero sonho
com certeza no hinayana é ensinado que de Buda para uma pessoa que possui
eles não renascem mais. mérito.
No caso dos Budas, não há aflições mentais Os despertos estão no nosso sonho? Eles
grosseiras ou sutis, mas há as qualidades da possuem corpo físico?
mente, tais como generosidade. Um Buda
jamais temeria o tecido de sonho, e jamais Se nosso mérito não é suficiente, eles
abandonaria os seres, portanto, de acordo surgem com um corpo que o seu mérito
com os méritos dos seres, ele surge. Ele não pode entender. Ou seja, se o seu mérito é
surge de "seu próprio lado", isto é, para o maior, você não precisa ver o Buda
Buda, surgimento e não surgimento são substancialmente. Do lado dos Budas eles
etapas da ignorância. Um Buda não opera não possuem nada, e eles só estão no nosso
através de nascimentos ou mortes, que são sonho do nosso lado, pelo lado deles, só
causados pelos 12 elos da originação, que tem lucidez.
começam com a ignorância. Portanto é
incorreto dizer que, do ponto de vista do O que seria este sonho que você fala? O ser
Buda, ele nasça. Do ponto de vista dos seres iluminado (fora do sonho), quando "morre"
que se beneficiam do nascimento do Buda, se mistura a este fluxo incessante que dá
ele nasce. Do ponto de vista do Buda, este movimento a tudo, a vida? Ou Seja, ele
nascimento é uma mera encenação. perde a noção de "eu" e se mistura a tudo?
Mas a resposta mais simples é que o Buda Um ser iluminado não está fora do sonho —
nunca abandona os seres. Isto pode ser ele não teme o sonho. Ele só reconhece o
explicado de uma forma dual, como um sonho como ele é, um sonho. Quando ele
Buda lá fora que atingiu a iluminação antes morre é exatamente como quando ele vive
de nós e agora nos protege: essa é uma — na verdade ele morre como um display
(uma exibição, um show) para os outros, e Buda, portanto, não decidiria "ah, agora
ele também vive como um display para os chegou a hora de eu fazer um concurso
outros. Em "si mesmo" ele nem morre nem público" — ele veria as causas e condições
vive. Não há um "em si mesmo", ele apenas com sua onisciência, e se fosse benéfico
reconhece isto, ele não faz com que seja para os seres, ele poderia surgir em
assim — essa é uma diferença bem grande: qualquer lugar. Até mesmo como cobrador
o eu, agora, já não existe. Ele é só um de ônibus, camelô, presidente, hippie de
engano. feira de artesanato — mesmo como animal,
como presidiário, como prostituta. É claro
A noção de eu, o apego a um eu, é que, do lado dele, ele não é — como nós
perdida(o) muito antes da iluminação, mas também não somos — nenhuma coisa
isso não implica mistura alguma, muito particular. Mas, para benefício dos outros, e
menos a um "tudo" místico. A de acordo com suas necessidades e méritos,
inseparatividade com tudo (com cada coisa) um Buda pode manifestar qualquer forma.
já opera, o tempo todo: ela só é
reconhecida. Agora, o curioso é pensar que o ser com um
mérito infinito precisaria trabalhar para
É importante entender: o eu já não existe ganhar dinheiro. O maior problema dos
desde o princípio sem princípio, essa não seres com grande realização, nem vou dizer
existência é só reconhecida. Budas, porque Budas não tem problemas, é
ter tempo para utilizar beneficamente toda
O sonho é uma mera manifestação da a riqueza que recebem continuamente
liberdade incessante do estado desperto. como oferenda. O trabalho maior deles é
Ao reificarmos as aparências tais como oferecer a riqueza, não acumular.
"eu", "outro", "mundo" e as tomarmos por
reais, surge a insatisfatoriedade, A extinção das aflições mentais é o fim do
expectativa e medo, as aflições mentais e sofrimento?
todos os 84.000 sofrimentos. Em outras
palavras, deixamos de reconhecer o Buda, e Sim, a extinção das aflições é o fim do
nesse engano vagamos indefinidamente. sofrimento, o chamado "nirvana".
Sofrimento é definido como "presença de
Se uma pessoa revelar o estado de buda, aflições".
mesmo assim ela pode voltar a uma vida
normal? Por exemplo, passar num concurso É verdade que, quando se atinge o nirvana
público, ter família etc.? percebe-se que nada muda, que as coisas
sempre foram do mesmo jeito?
A vida sempre é normal, em particular para
um Buda. Um Buda não faz as coisas por Esta frase vem do zen. Elas nunca mudaram,
impulsos próprios, mas de acordo com as mas o que muda, e muito, é nossa
necessidades e os méritos dos seres. Um percepção. As coisas já são como elas são.
Nossa percepção cheia de aflições mentais, tornarem Arhats, e isso foi profetizado
no entanto, não nos permite ver as coisas também.
como elas são. Com o nirvana, nada muda
nas coisas — o que muda, e muito, é nossa Na visão mahayana, a iluminação é muito
percepção delas. Então faz sentido dizer superior ao estado de arhat. Diz-se que se
que nada muda, mas faz ainda mais sentido houverem 500 arhats (que atingiram o
dizer que, para nós, cheios de ignorância, nirvana) dentro da possibilidade imediata
tudo parece mudar. de ajuda do Buda, e um único bodisatva,
alguém que busca a iluminação e não
O nirvana é simplesmente uma percepção apenas o nirvana, o Buda escolhe ajudar o
da realidade obtida pelo desapego, que bodisatva. Ele puxaria um riquixá com esse
proporciona um alívio e uma paz único bodisatva e não ajudaria os
duradoura? praticantes que buscam o nirvana — um
objetivo inferior segundo o mahayana.
O nirvana não é uma percepção da Shantideva disse que um praticante do
realidade: é a percepção da realidade. As mahayana deveria sentir ânsia de vômito ao
outras percepções não são da realidade, são contemplar um objetivo inferior como o
de mundos filtrados pelas lentes das nirvana.
aflições mentais — entre elas o apego, sem
colocar o apego em primeiro lugar. Em Então, mesmo sendo uma realização
primeiro lugar está a ignorância. A paz no bastante elevada (o nirvana, o estado de
nirvana não é meramente duradoura, ela é arhat), ela não é considerada elevada o
definitiva. suficiente, e de fato considerada bem
inferior, na perspectiva do caminho do
Então a definição de nirvana é o bodisatva. Dentro do escopo do caminho do
reconhecimento da realidade além das bodisatva, a eliminação completa e
aflições mentais. As aflições mentais definitiva das aflições mentais ocorre no
produzem o samsara, portanto a eliminação oitavo nível de 10. Esta realização é
delas é o nirvana. equivalente a de um arhat, mas como o
bodisatva tem bodicita, e o arhat não tem,
É algo extremamente incomensurável a o 8º nível de um bodisatva é infinitamente
quem vive no sonho e não pratica? superior ao nirvana. O 10º nível é o último
antes de um Buda.
O nirvana é um resultado bastante raro.
Mesmo entre os alunos do Buda, enquanto Bodisatvas de 8º nível são também bastante
o Buda estava vivo, poucos atingiram esse raros.
resultado. Algumas centenas, talvez.
Chamam-se Arhats. Muitos alunos do Buda Qual a diferença entre iluminação e
estavam a uma ou duas vidas de se nirvana?
Nirvana é a extinção completa das aflições escape à impermanência. Até se pode dizer
mentais. Iluminação é nirvana mais a que a natureza de buda não é
conquista ou o revelar de todas as impermanente, se for possível
qualidades de um Buda. compreendê-la como algo não composto,
não separativo.
Iluminação e nirvana são estados distintos?
Pelo que entendi: Um Buda não dissolve sua Quando o Buda entra no Nirvana, ele se
mente no nirvana quando "morre", mas dissolve? Por isso ele não renasce mais? Ou
está constantemente presente em tudo que ele está apenas presente?
existe?
O Nirvana significa ausência de aflições
Há diferença entre nirvana e iluminação: mentais, então ausência dos reinos. Porém,
segundo o mahayana "nirvana" é o objetivo no caso do Buda, além de nirvana ele atingiu
do hinayana e iluminação o objetivo do a iluminação, o que significa que além de
mahayana. Shantideva diz que um dissolver os reinos, ele surge no sonho dos
bodisatva deveria ter ânsia de vômito ao reinos de acordo com os seres que sonham,
pensar em ir para o nirvana abandonando e isto é a prática de compaixão, uma das
os seres-mães no sofrimento. qualidades não necessariamente presente
em grande quantidade no nirvana, mas
A segunda colocação eu não afirmaria. Tudo presente em qualidade e quantidade
no Buda que era dissolvível se dissolve já no infinitas na iluminação. Portanto, do lado do
nirvana em vida. Nada muda após a morte, Buda, ele não está em reino algum, mas do
exceto que os seres, pela sua falta de nosso lado, ele surge no reino humano e nos
mérito, perdem uma referência. Por outro dá um exemplo humano, que podemos
lado, eles ganham um ensinamento sobre a seguir — devido a nosso mérito em
impermanência. conjunção com suas qualidades infinitas.
No caso mais específico de mestres em que Então, quando completamos certas práticas
reconhecemos um yidam, é simples, eles gerais, nosso professor nos dá a prática do
realizaram a prática daquele yidam yidam. Não devemos contar a ninguém
completamente. Se pensamos a prática do quem é nosso yidam, isso seria frívolo, seria
yidam como algo através do qual a pessoa uma gafe, visto que, se ainda não o
passa a ser algo que não era, não realizamos completamente, estamos
entendemos a prática do yidam. No apenas tentando nos promover. De fato,
vajrayana, quando tomamos uma iniciação isso vale para qualquer prática e qualquer
o mestre nos diz que somos o yidam, e diz coisa que fazemos no budismo, o melhor é
que temos o potencial para realizar o só comentar com quem participa daquela
nirmanakaya, o sambogakaya e o
O que é liberdade?