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Budismo - Coletânea

Sumário
1. BUDISMO E PSICANÁLISE: Inconsciente e impermanência ....................................................................................2
2. Seu ego te serve, ou você o serve? O que o budismo e Freud dizem sobre a auto-escravidão ..........................10
3. Budismo. Perguntas & Respostas. .........................................................................................................................12
0. Sobre o Autor .....................................................................................................................................................12
1. O que é budismo? ..............................................................................................................................................20
1.1. Budismo e questões contemporâneas .......................................................................................................39
1.2. Adaptações culturais ..................................................................................................................................45
1.3. Budismo e ciência .......................................................................................................................................47
1.4. Budismo e filosofia .....................................................................................................................................52
1.5. Budismo e psicologia ..................................................................................................................................77
1.6. Budismo e saúde .........................................................................................................................................81
1.7. Budismo e crenças diversas ........................................................................................................................88
2.1. Formas de budismo...................................................................................................................................122
2.2. Hierarquia e estilos de vida ......................................................................................................................133
2.3. Compromisso ............................................................................................................................................147
3. A insatisfatoriedade do samsara .....................................................................................................................156
3.1. Apego ao eu ..............................................................................................................................................160
3.2. Aflições mentais ........................................................................................................................................163
3.3. Carma ........................................................................................................................................................171
3.4. Morte, renascimento, reinos ....................................................................................................................206
5. Ética ..................................................................................................................................................................224
5.2. Aborto, pena de morte, eutanásia, suicídio.............................................................................................243
5.3. Homossexualismo .....................................................................................................................................246
5.4. Vegetarianismo .........................................................................................................................................251
5.5. Drogas e álcool ..........................................................................................................................................256
6. Bom coração.....................................................................................................................................................259
7.1. Shamata e vipassana ................................................................................................................................270
7.2. Zen .............................................................................................................................................................278
7.3. Práticas do vajrayana ................................................................................................................................281
7.4. Práticas avançadas ....................................................................................................................................296
8. Problemas de praticante..................................................................................................................................297
9. Sabedoria .........................................................................................................................................................299
9.1 Perguntas que encobrem a sabedoria.......................................................................................................304
9.2. O resultado: Buda .....................................................................................................................................308

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1. BUDISMO E PSICANÁLISE: Inconsciente e que por trás das aparentes diferenças há


impermanência | Buda Virtual. Disponível algumas afinidades muito importantes.
em:< Podemos citar pelo menos quatro.
https://www.budavirtual.com.br/budismo-
e-psicanalise-inconsciente-e- O ponto de partida na experiência: tanto o
impermanencia/>. Acesso em: 11/11/2022. budismo quanto a psicanálise partem da
BUDISMO E PSICANÁLISE: Inconsciente e descrição e compreensão da experiência
impermanência para desvelar a Natureza , o funcionamento
ago 17, 2014 20 minutos de leitura do eu e para encontrar formas mais
interessantes de lidar com os problemas. Aí
A busca pelo conhecimento de si e a se percebe um colorido fenomenológico
abordagem holística do ser humano e do comum a ambas as tradições porque seu
mundo são apenas alguns dos aspectos centro (o que está sempre em questão,
comuns entre psicanálise e budismo sendo observado e descrito) não é uma
suposta natureza objetiva, acabada e
A busca pelo conhecimento de si e a independente é a experiência de si, do
abordagem holística do ser humano e do mundo, das relações com os outros, o modo
mundo são apenas alguns dos aspectos como vivenciamos e interagimos com esses
comuns entre psicanálise e budismo fenômenos.

Que pode haver em comum entre uma A ênfase na ação: embora tenham
tradição religiosa de 25 séculos nascida na produzido teorias complexas e arquiteturas
Índia uma sociedade de castas altamente conceituais muito sofisticadas, budismo e
hierarquizada e marcada pela visão holística psicanálise são fundamentalmente saberes
do mundo e uma prática clínica inventada ligados a práticas, formas de intervir na
na Europa há pouco mais de 100 anos, existência. Tal como a filosofia era vista na
surgida como expressão de uma cultura Antigüidade, budismo e psicanálise são hoje
laica, racional e individualista? Se instrumentos para agir no mundo, mais do
prestarmos atenção aos percursos que para simplesmente conhecê-lo. De
históricos, aos vocabulários, a práticas e ambos se poderia dizer o que o filósofo
rituais e a certos objetivos específicos francês Georges Canguilhem disse a
desses dois campos, podemos ver budismo propósito da produção de conhecimento na
e psicanálise como universos muito medicina: o pathos precede o logos. É
distintos: de um lado espiritualidade, porque sofremos que somos instados a criar
contemplação e desapego ao eu, de outro formas de descrever o eu, o mundo e a vida
teorias leigas, dispositivos clínicos e uma de modo que possamos transformar nossa
prática voltada para a ampliação da existência, tornando-a mais interessante e
capacidade normativa do sujeito. No digna de ser vivida.
entanto, um olhar mais atento perceberá

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O horizonte ético: em ambas as tradições, a aspectos ou pontos de vista de uma mesma


reflexão teórica e as práticas delas realidade, descritos com vocabulários
decorrentes apontam necessariamente diferentes. Estão, portanto, completamente
para uma mudança nas referências que imbricados uns nos outros, interagindo e
configuram a maneira de conceber e viver a influindo reciprocamente o tempo todo. A
vida. O conhecimento de si está a serviço da mente ou a experiência subjetiva emerge da
transformação de si, voltada para a ação do corpo no ambiente, é inscrita
construção de uma vida mais criativa e livre corporalmente (embodied) e está ancorada
de condicionamentos. Tanto no budismo (embedded) no mundo físico e simbólico
quanto na psicanálise não faz sentido com o qual sustenta uma relação de
separar epistemologia e ética. Conhecer afetação recíproca permanente. Budismo e
muito bem a história e os conceitos da psicanálise são, portanto, incompatíveis
doutrina de Buda não faz de ninguém tanto com descrições mentalistas (nas quais
budista. O que define alguém assim é a sua o corpo é mero suporte da atividade do
experiência (busca da iluminação por meio espírito) quanto com o reducionismo
da compreensão do vazio e do cultivo da materialista, no qual a experiência de si é
compaixão) e não os fundamentos teóricos reduzida a seus correlatos biológicos ou
que alguém é capaz de dominar. De modo físicos (depressão nada mais é do que
semelhante, é possível que alguém disfunção de neurotransmissores).
freqüente o divã por anos a fio, a ponto de
dominar o uso dos conceitos freudianos É curioso observar como a ênfase na ação e
para descrever a si mesmo e suas relações nesta visão holística ou ecológica vem
com a vida sem que isso signifique que encontrando ressonância e tendo sua
análise tenha de fato ocorrido. Esta só importância confirmada por estudos em
acontece quando tem lugar uma várias áreas do conhecimento científico:
reorganização psíquica que testemunha investigações empíricas da psicologia do
uma transformação no modo como o desenvolvimento, estudos sobre percepção
sujeito se posiciona frente a seu desejo, a com base nas teorias ecológicas do self,
seus ideais e às expectativas e injunções pesquisas neurocientíficas sobre a
que incidem sobre ele. plasticidade neuronal e o impacto do
ambiente na arquitetura cerebral, entre
A perspectiva ecológica: tanto o budismo outros.
como a psicanálise rompem dualidades
muito típicas do modo de pensar tradicional Além disso, budismo e psicanálise são
no Ocidente, que opõe sujeito e objeto, campos plurais que abrigam tradições,
cérebro e mente, corpo e ambiente, interno movimentos e correntes de pensamento e
e externo, eu e outro. Na perspectiva dos de prática que se diferenciaram bastante.
herdeiros de Buda e de Freud, cérebro, Depois de 25 séculos de existência, o
mente e mundo são vistos não como primeiro desenvolveu grande número de
realidades independentes, mas como escolas, hoje distribuídas basicamente em

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três grandes linhas. A psicanálise, com seus Este apego é fonte de dukkha, outra marca
cento e poucos anos, também se desdobrou da existência e a primeira das Quatro
em algumas vertentes, das quais as mais Nobres Verdades – pedra fundamental do
relevantes atualmente são a lacaniana, a budismo. Dukkha tem sido traduzido como
winnicottiana e a kleiniana. sofrimento, mas a melhor sinônimo talvez
seja insatisfatoriedade. A existência é
Para a filosofia budista, tudo o que existe é inevitavelmente experimentada de forma
impermanente: pessoas, objetos, alternada como boa ou má, feliz ou triste,
experiências e sentimentos; quando promissora ou decepcionante. Tanto na
mudam as causas, os fenômenos cessam alegria como na felicidade se encontram
fontes de possíveis tristezas e dores (a
AS TRÊS MARCAS DA EXISTÊNCIA perda de um ser querido, o fim de um
amor). A experiência cíclica de satisfação e
Para o budismo, a análise da experiência de insatisfatoriedade é inevitável, já que
si, ou do eu, deve começar pela desejos e anseios surgem naturalmente
compreensão das três marcas da existência: como decorrência do contato dos sentidos
a primeira é a impermanência (anitya), ou com o mundo ao redor. Este movimento
seja, a transitoriedade e a natureza (trishna, que significa sede, ânsia) compõe a
condicionada de todos os fenômenos (do segunda das Nobres Verdades (a causa da
eu, dos objetos do mundo, de qualquer insatisfação), que é sucedida pelas duas
experiência, ou sentimento). Tudo o que outras Nobres Verdades: a percepção de
existe é impermanente devido a sua que é possível superar o ciclo de sofrimento
natureza composta, o que significa que tudo cíclico, e a compreensão do meio para
depende de causas e condições para existir. alcançar esta liberação: o Caminho Óctuplo.
Se essas cessarem, cessam também os
fenômenos. Tudo está sujeito a aparecer e Com base nestas noções fica claro que para
desaparecer. o budismo o eu, como todos os fenômenos,
não tem substância, é uma combinação de
A ausência de substância inerente, ou de vários elementos e tem uma natureza
existência independente, é a segunda condicionada, sem essência e mutável.
marca da existência (anatman), também Trata-se de uma experiência em
traduzida por não-substancialidade, não- movimento, não uma entidade
essencialidade, ou não-eu. Como temos independente. Resulta da articulação de
dificuldade em lidar com a impermanência cinco elementos, os chamados cinco
e a não-substancialidade dos fenômenos e skandhas (amontoado, pilha, coleção): a
das formas, nos agarramos a eles, forma (materialidade física do corpo), as
acreditamos e apostamos em sua sensações (causadas pelo contato com o
permanência e substância. mundo, ao qual não somos neutros), as
percepções (discriminações decorrentes
desses contatos), as formações mentais

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(disposições, conceituações, tendências da e posicionamento ético se imbricam


ação) e a consciência. Os skandhas são naturalmente.
fluxos da existência que, uma vez
articulados, produzem a experiência de si. FICÇÃO DO EU
Embora descritos separadamente, eles são
na verdade um mesmo movimento, ou Para Freud, o eu é uma ficção necessária à
partes de um processo em curso. O eu, ação. Em todas as suas versões, a
portanto, é vazio de essência própria. psicanálise se baseia no desenvolvimento
Aquilo que percebemos e veiculamos como complexo dessa idéia. Na descrição
personalidade, idiossincrasias, identidade e freudiana, o ser humano é um animal que
compulsões são na realidade efeitos da nasce prematuramente, em condição de
combinação desses agregados. É por causa dependência absoluta, desde cedo busca o
de nossa ignorância (avídya, não-visão) amparo e a proteção necessários à
sobre a natureza condicionada dos sobrevivência, e é instado a responder a
fenômenos que somos levados a atribuir solicitações e injunções dos meios físico,
solidez e permanência ao eu e a suas biológico e cultural. O complexo processo
propriedades. de constituição de um eu capaz de se
reconhecer como sujeito frente aos outros
“Estudar o budismo é estudar o eu; estudar começa com os primeiros movimentos e
o eu é esquecer-se do eu; esquecer-se do eu ações do bebê, passa pelo mergulho da
é reconciliar-se com todos os seres.” A frase criança no universo das significações
atribuída ao grande mestre zen do século propiciadas pelo equipamento lingüístico e
XIII Dogen condensa muitas noções centrais pela conquista de um lugar na cadeia de
do budismo: seu núcleo e ponto de partida gerações e na divisão dos sexos e segue por
é a análise da experiência (e seu aspecto toda a vida, ao longo da interminável
mais sensível e fundamental é a experiência trajetória de construção de narrativas e
de si); ao compreender sua natureza não- identificações com as quais o indivíduo dota
substancial e transitória, abrimos caminho de sentido sua existência pessoal.
para uma transformação da experiência, na A experiência de si, aos olhos da teoria
qual já não nos submetemos cegamente às freudiana, é o resultado complexo, mutante
causas e aos efeitos que nos atingem e inacabado de um equilíbrio instável entre
incessantemente; conquistamos um grau um enorme conjunto de fatores, que vão
maior de liberdade em relação aos nossos das exigências conflitantes de instâncias
próprios condicionamentos; por fim, ao internas (id, ego, superego), às difíceis
reconhecermos a interligação e mediações entre desejos inconscientes e
interdependência de todos os fenômenos e normas sociais internalizadas, mecanismos
de todos os seres, podemos nos posicionar de defesa contra a angústia, necessidades
de modo diferente em relação a eles, sendo psicossomáticas e demandas produzidas
mais livres, mais criativos e mais culturalmente, e assim por diante. O eu da
compassivos. Assim, conhecimento, prática psicanálise é, portanto, fragmentado,

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governado por forças que não domina, uma outras maneiras, de sugestão a
montagem mais ou menos bem-sucedida medicamentos), mas uma ampliação da
que leva o sujeito a agir no mundo, buscar normatividade do sujeito, ou seja, de sua
satisfações e lidar de alguma maneira com o capacidade de se reposicionar
desamparo, a angústia e o desejo. Ele é, subjetivamente, de ser mais espontâneo e
para usar uma expressão do filósofo Daniel criativo na vida de que desfruta, não se
Dennett, um centro de gravidade: não tem fixando excessivamente a imagens do eu,
substância, tudo nele deriva dos efeitos respostas sintomáticas ou estereotipias da
produzidos pelas interações com os outros ação que limitam e estreitam seu horizonte
aspectos significativos de sua história, com existencial.
o ambiente natural e simbólico que o
circunda, com as expectativas e desejos Este reposicionamento é alcançado na
projetados sobre ele (mesmo antes que medida em que o dispositivo analítico
tivesse nascido, no desejo inconsciente dos oferece ao sujeito as condições para que ele
pais). O eu é uma imagem (daquilo que vejo se reconheça como autor de sua própria
refletido no olhar do outro, daquilo que existência. Ao implicar-se no próprio
suponho poder causar no outro) e uma sintoma que aparecia antes como um alien
trajetória (de identificações, de estranho e desconhecido a assombrá-lo, o
configurações sintomáticas, de sujeito amplia a percepção dos vários
posicionamentos subjetivos frente aos elementos e fatores que incidiram sobre
outros) que resultam dessas interações e seu percurso pessoal, sobre o papel de suas
permitem ao sujeito projetar-se em um escolhas (conscientes ou inconscientes) na
futuro. construção do eu que ele é, da vida que
experimenta e do mundo que habita. Assim
Freud definiu a psicanálise como uma teoria ele se habilita ao desprendimento de si, a
do funcionamento subjetivo, um método de ocupar sua existência com gestos mais
investigação da vida mental e uma forma de espontâneos e menos autocentrados, mais
tratamento do sofrimento psíquico. Apesar criativos e menos auto-indulgentes. Deste
da origem médica, ele sempre recusou a ângulo, portanto, percebe-se que a
subordinação de sua criação às expectativas psicanálise e o budismo se afirmam, por
curativas da psicologia e da medicina. Em caminhos distintos, como saberes que
sua abordagem da experiência subjetiva visam a transformação da existência e como
não há lugar para uma normalidade cuja práticas que buscam a liberdade.
restituição seria o objetivo da prática INTERESSE RENOVADO
clínica. Como somos em verdade
montagens, arranjos sintomáticos mais ou Budismo e psicanálise ocupam posições
menos bem-sucedidos, o que o dispositivo diferentes no cenário contemporâneo. O
analítico pretende não é a simples redução primeiro é a religião ou prática espiritual
ou eliminação de sintomas ou do que mais se expande no mundo,
sofrimento (isto se consegue de muitas impulsionada por diversos fatores: a

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diáspora tibetana que espalhou mestres religiões ocidentais quanto com as ciências,
treinados por todo o Ocidente, o ativismo em especial as neurociências.
cosmopolita do Dalai Lama (a despeito do
cerco promovido por autoridades chinesas), A psicanálise, por sua vez, vive um
o apelo que as práticas corporais das momento de transição. Passada a década
espiritualidades asiáticas têm para culturas de 90, em que sofreu todo tipo de vaticínio
que privilegiam a atenção e o cuidado com sobre sua morte por obsolescência teórica e
o corpo, a posição não proselitista e não inutilidade prática, recrudesce o interesse
dogmática adotada pelos praticantes, a por ela, tanto do lado das neurociências
crítica às pretensões racionalistas da cultura como da psicologia do desenvolvimento e
ocidental etc. as ciências da cognição. Abrem-se para a
psicanálise territórios que haviam
Nas últimas décadas o budismo tem sido permanecido praticamente fechados
também alvo do interesse de certos ramos durante quase todo o século passado,
de ponta da ciência, em especial do campo especialmente nos países do Leste europeu
das neurociências, interessadas em e na China. Por outro lado, um
explorar a enorme riqueza de observações reposicionamento de seu lugar vem
empíricas que sustentam os conceitos ocorrendo na sociedade ocidental. Se na
budistas sobre a mente. Porém, de um cultura psicológica e da sentimentalidade
modo que não chega a ser surpreendente, o ela ocupou papel de destaque na clínica
sucesso acarreta também embaraços: em mental e no campo social, na atual cultura
muitos contextos a prática budista virou somática e das sensações esse lugar está
moda. É chique deixar-se fotografar em sendo disputado por outros dispositivos
posição de lótus e exibir em casa estátuas terapêuticos e teorias centrados no corpo e
ou imagens do seu repertório iconográfico. na capacidade de controlar, cognitiva ou
Há 25 séculos a serviço do desapego aos quimicamente, disfunções e transtornos o
objetos e ao desprendimento de si, o que possui um claro efeito dessubjetivante,
budismo se vê freqüentemente na medida em que tendem a desimplicar o
transformado em técnica de otimização do sujeito de sua experiência. Hoje a
desempenho com vistas ao sucesso psicanálise tornou-se um dos poucos
individual. O filósofo Slavoj Zizek chegou a campos nos quais os indivíduos ainda são
afirmar, provocativamente, que o budismo interpelados não como meros seres
(do mesmo modo que outras biológicos ou agentes sociais, mas na
espiritualidades orientais como o taoísmo) condição de sujeitos. Por isso ela anda, por
havia se tornado a ideologia ideal para os assim dizer, na contramão da cultura
tempos neoliberais. De qualquer modo, ele hegemônica. O que para uns pode parecer
vive hoje um processo de intensa difusão na uma perda – o fascínio social de outrora se
cultura ocidental, tem sido menos visto reduziu –, para outros é uma vantagem: a
como fenômeno asiático exótico e vem psicanálise retoma cada vez mais o caminho
dialogando cada vez mais tanto com

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da investigação clínica, fonte mais fecunda como obstáculo a ser vencido: há uma
de toda sua originalidade e interesse. “natureza búdica iluminada” na
humanidade, que precisa, por assim dizer,
O diálogo entre budismo e psicanálise ser reencontrada por meio do rompimento
jamais foi tão intenso. Nunca houve tantas do véu de aparência dos fenômenos, e não
oportunidades para exploração de suas propriamente alcançada pelo esforço de
afinidades e diferenças. E isso interessa não superação. A escola mahayana mais
só a seus praticantes, mas a todos os que se conhecida é o Zen, cujas características
voltam à ampliação da caixa de ferramentas essenciais são a recusa violenta a
(como diria Wittgenstein) para lidar com a intelectualizações e estratégias gradativas
experiência de si e suas vicissitudes. de caminho espiritual. Suas práticas
TRADIÇÕES BUDISTAS Worshippers Around fundamentais são o zazen (meditação
The World Mark Buddha's Birthday contemplativa que visa colocar o praticante
em contato direto com a realidade), o uso
Única remanescente das primeiras escolas, (na vertente Rinzai) do koans, na busca do
o budismo Theravada (“caminho dos satori (realização súbita da iluminação).
anciãos”) predomina há séculos no Sri
Lanka, Indonésia, Malásia e Sudeste O budismo Vajrayana (“veículo do
asiático. Suas principais características são a diamante”), ou budismo tântrico, é uma
ênfase na vida monástica, na disciplina extensão do Mahayana e se caracteriza pela
individual em direção à iluminação e na adoção de certas técnicas e práticas
concepção da natureza humana como próprias. Está presente no Tibete, Nepal,
obstáculo a ser ultrapassado. Butão, Mongólia e, com a diáspora
provocada pela invasão do Tibete, tem seu
O budismo Mahayana (“grande veículo”) centro em Dharamsala, norte da Índia, sede
originou-se na Índia e de lá se deslocou, a do governo no exílio, de onde o Dalai-Lama
partir do século II, para a China, onde projeta sua presença no mundo. Por se
encontrou o taoís-mo. Daí disseminou-se caracterizar por um profundo esoterismo, o
para o leste da Ásia, tendo muita força no budismo Vaj-rayana é cheio de símbolos,
Japão, Vietnã e Coréia do Sul. Em contraste imagens e práticas devocionais, além de
com o ascetismo doutrinário theravada, a ensinamentos secretos, passados direta e
tradição mahayana tem uma perspectiva oralmente pelo mestre ao discípulo. Em
mais universalista e inclusiva. Sua ênfase contraste com o Zen, algumas de suas
não está na busca individual pela práticas são explicitamente voltadas para o
iluminação, mas no esforço do bodhisatva exercício ou cultivo da compaixão como a
de se dedicar ao objetivo de iluminação de metta bhavana, uma forma de meditação
todos os seres. Outra diferença é a dirigida ao abandono de sentimentos de
concepção mahayana segundo a qual todos apego e aversão e o desenvolvimento da
os seres têm potencial para atingir a amorosidade ou da fraternidade.
iluminação. A natureza humana não é vista

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Com a difusão no Ocidente, o budismo tem posteriormente. Leitor e admirador de


dialogado com tradições filosóficas locais, Charles Darwin, Winnicott construiu uma
resultando na construção de versões psicanálise de forte matiz naturalista, em
contemporâneas e ocidentais, como o que noções como as de desenvolvimento,
budismo agnóstico defendido por Stephen maturação e psique-soma são centrais.
Batchelor, que propõe uma descrição dos Tanto na teoria como na prática, sua ênfase
ensinamentos budistas de corte mais está na idéia de continuidade na vida
secular e existencialista que religioso. psíquica, em que os traumas são situações
nas quais essa continuidade é ameaçada.
ESCOLAS PSICANALÍTICAS Sua obra tem sido alvo de interesse
renovado nos últimos anos.
Os três maiores protagonistas no cenário
psicanalítico pós-freudiano são Melanie Lacan voltou-se para a lingüística de
Klein, Donald Winnicott e Jacques Lacan. Saussure e para a antropologia de Lévi-
Cada um desenvolveu o legado freudiano a Strauss para produzir uma versão
seu modo, acrescentando contribuições estruturalista da psicanálise, com um
originais na teoria e na clínica. Klein ampliou grande número de inovações teóricas (a
o alcance da psicanálise ao pesquisar a vida tríade real, simbólico e imaginário; o objeto
mental dos bebês e propor inovações no a; a noção de lalíngua etc.) e um
tratamento de crianças (como o uso da remanejamento profundo do dispositivo
brincadeira como forma de atingir clínico (o tempo lógico, a lógica do
complexos inconscientes), e ao fundar a significante). Na perspectiva lacaniana, o
análise das relações objetais, centro de sua que se põe como central na transformação
investigação teórico-clínica. da vida subjetiva é a descontinuidade, a
precipitação, o salto – situações
Winnicott, que inicialmente se alinhava com traumáticas podem ser constitutivas e não
Klein, aos poucos se desprendeu de sua ameaçadoras. Recentemente vem sendo
influência e enfatizou a importância dos valorizada a última parte de sua obra, em
primórdios da vida psíquica infantil, uma que o estruturalismo e a importância
fase na qual as relações de objeto ainda concedida à linguagem cederam lugar a
estão por se formar, decisiva no processo de uma reflexão sobre o campo do pré-
amadurecimento pessoal. Essa etapa seria reflexivo ou do não-discursivo na vida
anterior às relações ditadas pela lógica subjetiva.
pulsional, e seu motor não seria
propriamente a sexualidade (uma tese, Fonte: Revista Mente e Cérebro
portanto, que o distingue de Freud), mas
outra força econômica do psiquismo: a Benilton Bezerra Jr. é psiquiatra,
agressividade primária, mais próxima da psicanalista e professor do Instituto de
vitalidade dos tecidos que das tramas Medicina Social da Universidade Estadual
conflitivas interpessoais, que só emergem do Rio de Janeiro (UERJ).

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2. Seu ego te serve, ou você o serve? O que o Nossos sonhos perturbadores estão
budismo e Freud dizem sobre a auto- tentando nos dizer algo, no entanto. O ego
escravidão. Disponível em:< não é um espectador inocente. Embora
https://www.pensarcontemporaneo.com/s afirme ter no coração os próprios
eu-ego-te-serve-ou-voce-o-serve-o-que-o- interesses, na sua busca incessante de
budismo-e-freud-dizem-sobre-auto- atenção e poder, isso solapa os próprios
escravidao/#aoh=16500280207456&referr objetivos que se propõe alcançar. O ego
er=https%3A%2F%2Fwww.google.com&am precisa da nossa ajuda. Se quisermos uma
p_tf=Fonte%3A%20%251%24s&ampshare= existência mais satisfatória, temos que
https%3A%2F%2Fwww.pensarcontempora ensiná-lo a afrouxar sua aderência.
neo.com%2Fseu-ego-te-serve-ou-voce-o-
serve-o-que-o-budismo-e-freud-dizem- Há muitas coisas na vida sobre as quais nada
sobre-auto-escravidao%2F podemos fazer – as circunstâncias de nossas
>. Acesso em: 11/11/2022. infâncias; eventos naturais no mundo
O ego é a única aflição que todos temos em exterior; o caos e a catástrofe da doença,
comum. Por causa de nossos esforços acidente, perda e abuso – mas há uma coisa
compreensíveis para sermos maiores, que podemos mudar. Como interagimos
melhores, mais inteligentes, mais fortes, com nossos próprios egos depende de nós.
mais ricos ou mais atraentes, somos
deixados de lado por uma incômoda Nós recebemos muito pouca ajuda com isso
sensação de cansaço e insegurança. Nossos na vida. Ninguém realmente nos ensina
próprios esforços de auto-aperfeiçoamento como estar conosco de maneira
nos orientam em uma direção construtiva. Há muito incentivo em nossa
insustentável, uma vez que nunca podemos cultura para desenvolver um senso de
ter certeza se alcançamos o suficiente. identidade mais forte. O amor-próprio, a
Queremos que nossas vidas sejam autoestima, a autoconfiança e a capacidade
melhores, mas estamos paralisados em de obter, de forma agressiva, as
nossa abordagem. necessidades de alguém atendidas são
todos os objetivos que a maioria das
O desapontamento é a consequência pessoas assina.
inevitável da ambição sem fim e a amargura
é um refrão comum quando as coisas não Por mais importantes que sejam essas
dão certo. Os sonhos são uma boa janela conquistas, elas não são suficientes para
para isso. Eles nos lançam em situações em garantir o bem-estar. Pessoas com um forte
que nos sentimos presos, expostos, senso de si ainda sofrem. Eles podem
envergonhados ou humilhados, parecer que estão juntos, mas não podem
sentimentos que fazemos o melhor possível relaxar sem beber ou usar drogas. Eles não
para manter a calma durante nossas horas podem descontrair, dar afeto, improvisar,
de vigília. criar ou simpatizar com os outros se eles

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Budismo - Coletânea

estão firmemente focados apenas em si Siddhartha Gautama, o príncipe do sul da


mesmos. Simplesmente construir o ego Ásia que renunciou ao seu estilo de vida
deixa uma pessoa encalhada. Os eventos luxuoso para buscar uma fuga das
mais importantes em nossas vidas, desde indignidades da velhice, doença e morte; e
do nascimento até a morte, exigem que o Sigmund Freud, o médico vienense cuja
ego se liberte. interpretação de seus próprios sonhos o
colocou em um caminho para iluminar as
Isso não é algo que o ego saiba fazer. Se subcorrentes escuras da psique humana –
tivesse uma mente própria, não veria isso ambos identificaram o ego livre como o
como sua missão. Mas não há razão para o fator limitante em nosso bem-estar.
ego não educado dominar nossas vidas,
nenhuma razão para uma agenda Por mais diferentes que fossem esses dois
permanentemente egoísta ser nossa linha indivíduos, chegaram a uma conclusão
de fundo. virtualmente idêntica. Quando deixamos o
ego ter rédea solta, sofremos. Mas quando
O próprio ego, cujos medos e apegos nos aprende a deixar ir, somos livres.
impulsionam, também é capaz de um
desenvolvimento profundo e de longo Nem o budismo nem a psicoterapia
alcance. Temos a capacidade, como procuram erradicar o ego. Fazer isso nos
indivíduos conscientes e auto-reflexivos, de tornaria desamparados ou psicóticos.
falar de volta ao ego. Em vez de se Precisamos que nossos egos naveguem pelo
concentrar apenas no sucesso no mundo mundo, regulem nossos instintos, exerçam
externo, podemos nos direcionar para o nossa função executiva e meditem as
interno. Há muita auto-estima a ser obtida demandas conflitantes entre o eu e o outro.
aprendendo como e quando se render.
As práticas terapêuticas do budismo e da
Embora nossa cultura geralmente não apóie psicoterapia são freqüentemente usadas
a descida consciente do ego, há defensores para construir o ego exatamente dessa
silenciosos em nosso meio. Tanto a maneira. Quando alguém está deprimido ou
psicologia budista quanto a psicoterapia sofre de baixa auto-estima porque foi
ocidental mantêm a esperança de um ego maltratado, por exemplo, a terapia deve se
mais flexível, que não coloque o indivíduo concentrar em consertar um ego
contra todos os outros em uma tentativa maltratado. Da mesma forma, muitas
fútil de obter garantia total. pessoas adotaram as práticas de meditação
do Oriente para ajudar a construir sua
Essas duas tradições se desenvolveram em autoconfiança. O foco e a concentração
tempos e lugares completamente diminuem o estresse e a ansiedade e
diferentes e, até há relativamente pouco ajudam as pessoas a se adaptarem a
tempo, não tinham nada a ver uma com a ambientes desafiadores de casa e de
outra. Mas os criadores de cada tradição – trabalho. A meditação encontrou um lugar

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Budismo - Coletânea

nos hospitais, em Wall Street, nas forças 0. Sobre o Autor


armadas e nas arenas esportivas, e muito de
seus benefícios está na força do ego que Padma Dorje: Nasci em São Paulo, capital,
confere, dando às pessoas mais controle em 1975, sob o nome de Eduardo Pinheiro
sobre suas mentes e corpos. Os aspectos de Souza. Meu pai foi um diretor regional na
que melhoram o ego de ambas as Phillip Morris do Brasil e faleceu de câncer
abordagens não devem ser minimizados. do pulmão em 1977. Tive uma prolongada
Mas o aprimoramento do ego, por si só, infância-adolescência mimada, vindo a lavar
pode nos levar apenas até certo ponto. meu primeiro prato aos 22 anos de idade.

Tanto a psicoterapia ocidental quanto o Consumidor compulsivo de informação


budismo buscam fortalecer o Eu observador
sobre o “eu” desenfreado. Eles visam a Desde que aprendi a ler, sempre me
reequilibrar o ego, diminuindo o considerei um cara de letras, e mantenho
egocentrismo encorajando a auto-reflexão. uma lista de livros que mais me marcaram.
Eles fazem isso de maneiras diferentes, Além dos livros, mantenho uma grande
embora relacionadas, e com visões coleção relativamente organizada de
diferentes, embora relacionadas. Para arquivos de áudio e vídeo de alguns
Freud, a associação livre e a análise dos terabytes. Uma de minhas maiores e
sonhos foram os métodos primários. Por ter constantes preocupações é definir
seus pacientes deitados de lado e olhar para prioridades e obter coerência no consumo
o espaço enquanto diz o que quer que tenha desenfreado de informação, daí meu
vindo à mente, ele mudou o equilíbrio usual interesse pela área da economia da
do ego para o subjetivo. Embora poucas atenção.
pessoas estejam mais no sofá, esse tipo de
autorreflexão continua sendo um dos Uso computadores desde 1985, tendo
aspectos mais terapêuticos da psicoterapia. participado de comunidades vinculadas ao
As pessoas aprendem a abrir espaço para si Sinclair e ZX Spectrum, ao Amiga 500 e às
mesmas, para estar com experiências BBSs — antecessoras da Internet. Vi a
emocionais desconfortáveis, de um modo Internet nascer no Brasil durante um curso
mais aceitável. Elas aprendem a entender técnico de Processamento de Dados na
seus conflitos internos e motivações UFRGS, por volta de 1993. Ocasionalmente
inconscientes, para relaxar contra a tensão uso algum conhecimento de informática
do perfeccionismo do ego. para fazer dinheiro, mas considero em geral
muito pouco compensador (dinheiro,
3. Budismo. Perguntas & Respostas. volume de trabalho, satisfação minha e do
Disponível em:< https://tzal.org/>. Acesso cliente — mesmo que eu faça um bom
em: 11/11/2022. trabalho, o fato é que raramente alguém
está feliz com algo feito no computador1).

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Budismo - Coletânea

Mantenho uma lista de softwares e serviços Pro captu lectoris habent sua fata libelli
que recomendo.
Não tenho muitas boas qualidades
Budista mundanas ou espirituais.

Durante a década de 90, trabalhando como Uma de minhas professoras um dia me


bolsista na reitoria da universidade por admoestou dizendo que nunca havia
quatro anos, em vários departamentos, conhecido uma pessoa com tamanha
onde tive contato com professores de todas disparidade entre seu conhecimento
as áreas, acabei me desiludindo com o intelectual e a prática na vida cotidiana.
mundo acadêmico e com os professores em Creio que essa avaliação é acurada, e
geral, resolvendo não cursar faculdade. embora minha prática (formal e na vida
Após um período conturbado envolvendo cotidiana) não seja exatamente zero, meu
cabala, bruxas e alucinógenos, encontrei a esforço em dar sentido as coisas e colocar
prática do Budismo, e por 12 anos trabalhei as coisas em perspectiva, priorizando o que
unicamente como voluntário em deve ser prioritário, tem sido quase
instituições budistas. Fiz principalmente irrisório.
trabalho de divulgação via Web e traduções
e interpretações do inglês ao português — Passo a maior parte do meu tempo
mas para o budismo também trabalhei de assistindo séries e talk shows na TV, ou me
pedreiro, porteiro, recepcionista, cantor e exibindo em redes sociais. Nem a mim
condutor de liturgias, contabilista, garçon e mesmo tenho consistentemente sido capaz
secretário — com graus variados de de trazer benefício, que dizer com relação
sucesso. Veja a lista de centros e aos outros.
professores budistas que pessoalmente
recomendo. Mesmo assim, ao longo dos anos muitas
pessoas se dirigiram a mim com
Enfim, por recomendação de um professor questionamentos sobre a tradição budista,
budista, concluí o bacharelado em filosofia e mesmo em meio a minhas constantes
na UFRGS. Não foi uma experiência tentativas de dirigir essas pessoas a
completamente destituída de mérito, mas professores fidedignos, percebi que
quase. Algumas vezes também penso fazer precisava dizer o que sabia, quando sabia.
concursos públicos. Então sigo no freelance
e na prática da simplicidade. Ao longo de 10 anos respondi cerca de
20.000 e-mails sobre budismo, e, dois anos
Para complementar minha renda como atrás, criei uma conta num site que aceita
tradutor também dou aulas particulares de perguntas anônimas. O sucesso foi grande.
inglês. Escrevo artigos por encomenda, e Esta é a tentativa de revisar e organizar
posso trabalhar como compositor e estes últimos questionamentos.
produtor musical. Atualmente é um texto de 120.000

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Budismo - Coletânea

palavras, o que equivale a um livro de 600 costumava ser uma espécie de niilista
páginas. megalomaníaco.

Verdadeiramente, não estou dizendo nada Acho que tinha uns 12 anos e li o Tao da
novo aqui. Sou apenas um papagaio que Física, que é leitura para essa idade, como
repete, com maior ou menor precisão, o Eram os Deuses Astronautas, Isaac Asimov e
que ouço. Meu único mérito é saber outras diversões sensacionalistas do tipo.
valorizar aquilo que tem valor. Mas naquele livro me impressionou algo da
descrição do taoísmo e do budismo — que
As pessoas que vieram até mim têm um eu conhecia como verbetes de enciclopédia.
carma misto, porque se interessam, em A imperfeita e pobre descrição da sabedoria
algum nível, pelo darma do Buda, mas em oriental naquele livro foi ao menos o
outro nível, não tiveram mérito de suficiente para que eu voltasse, vez após
encontrar um professor verdadeiro. Que vez, a essa temática ao longo dos próximos
estas respostas não saciem suas perguntas anos.
de forma alguma, e que todos, escritor,
leitores e questionadores, possam se Enfim, na década de noventa eu gostava de
envolver no relacionamento sagrado com ler sobre todo aquele mumbo jumbo de que
um ser de sabedoria — em carne e osso, de o Eco fala no Pendulo de Foucault, cabala,
acordo com nossa necessidade templários, essas coisas, mais Jung e, enfim,
convencional — que possa, efetivamente, Mircea Eliade. No Ioga: Imortalidade e
guiar até o resultado supremo. Liberdade li pela primeira vez o nome de
Padmasambava e de alguns dos
Padma Dorje, Abril de 2011 mahasiddhas, e logo ficou claro para mim
que o tantra, como uma tecnologia
Como você chegou ao budismo? espiritual, em particular o tantra budista,
era a coisa mais interessante e profunda do
Quando criança era aquele tipo de menino mundo. No entanto, era quase como um
que curte física e cosmologia, coisas assim, livro de aventura — com seus exageros e
e, como numa cena do filme Annie Hall, erros, e com suas descrições um bocado
ficava realmente chateado com essa fúteis — porque não há como colocar nada
história de que tudo ia se expandir em prática, ou saber como começar, tanto
indefinidamente ou se contrair de novo. pela própria natureza da leitura daquele
Mesmo que eu viesse a ser algo como livro em particular quanto pelo fato de que
Shakespeare, fizesse coisas realmente é um sistema que exige um professor vivo e
grandiosas, nada disso ia durar muito presente de alguma forma.
tempo. Para começar, a morte do sol, em 5
bilhões de anos ia atrapalhar meu caminho Então um amigo me levou para conhecer
para a fama intergaláctica. Enfim, um professor, que usou os nomes Milarepa
e Padmasambava logo na primeira palestra

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Budismo - Coletânea

— aquela tradição de que Eliade falava de prover o darma — foi com certeza igual
existia e estava viva, e em Porto Alegre! a de Marpa para com Milarepa (com a
vantagem dela ser muito mais gentil do que
Alguns dias antes havia visto Chagdud Marpa).
Rinpoche fazendo um puja de Tara no
parque da cidade. Tudo o que eu tinha lido Depois disso participei de cerimônias e
antes não dava a dimensão da postura e fala tomei votos com vários professores. Em
dos lamas, que tratava-se de uma forma de especial Tromge Jigme Rinpoche e Lama
vida excelentemente íntegra que eu ainda Sherab Drolma. Tenho grande consideração
não havia visto em ninguém. Nada, em por todos os lamas e alunos mais antigos de
termos de um sistema de crenças ou ideias, Chagdud Rinpoche, embora não tenha sido
me pareceu remotamente tão interessante formalmente aceito como aluno por todos
quanto o budismo. Aos poucos fui me eles, os considero meus professores.
aproximando do Buda (minha conexão
inicial era com gente como Saraha e Virupa). Recebi ensinamentos públicos mais
Logo ofereci trabalho para os lamas e desde detalhados, por alguns dias pelo menos, de
então, com altos e baixos, é o que faço: vários lamas tibetanos: Sua Santidade o
servir a sanga e os lamas. Dalai Lama, Dzongsar Khyentse Rinpoche,
Jigme Khyentse Rinpoche, Sogyal Rinpoche,
Quem são seus professores? Terton Namkha Drimed Rinpoche, Khenpo
Karthar Rinpoche, Phakchok Rinpoche,
O primeiro mestre que vi em pessoa foi Sua Naten Chokling Rinpoche e Wangdor
Eminência Chagdud Tulku Rinpoche, numa Rinpoche. Esses lamas não me conhecem
prática de Tara Vermelha que ele fez em pessoalmente, e com certeza não me
público, num parque de Porto Alegre. Assisti considerariam um aluno — mas eu tenho o
sua execução cuidadosa, requintada e mérito de não ver falha alguma neles.
intensa dos mudras de oferenda e fiquei
bastante impressionado. Fiz alguns retiros Tive um contato breve, mas
com Rinpoche, e tive alguns momentos de impressionante, com alguns professores do
proximidade, embora nunca tenha trocado zen. Em particular Tokuda San — que é a
mais do que meia dúzia de palavras com ele. corporificação mais leve e dramática do
No entanto, ter estado presente no retiro espírito zen que vim a conhecer. E também
de Powa em que ele faleceu foi o ponto o impressionante Moriyama Roshi precisa
mais alto da minha vida. ser mencionado — um ensinamento
completo do darma pela mera presença. Os
Tomei refúgio formalmente pela primeira queridos Heila e Rodney Downey me
vez numa iniciação vajrayana com Chagdud apresentaram à prática de koan.
Khadro em 98. É a ela a quem ainda
respondo diretamente hoje, e sua bondade Infelizmente, com minha parca capacidade,
em me acolher e me dar trabalho — além não consigo me dedicar nem mesmo a um

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Budismo - Coletânea

conjunto pequeno de práticas simples da Como muitas conexões preciosas de


tradição nyingma. Então, no meu caso, não trabalho e boa vida — em comunidade e
acho possível me dedicar a várias práticas fora dela. Porém, este é o meu mérito
pelas quais tenho grande consideração, particular — talvez outra pessoa não tivesse
tanto do zen quanto de outras tradições a mesma experiência no darma. Mesmo em
tibetanas. situações difíceis, com certeza o darma
permite que eu lide com elas de forma
Que benefícios você percebe que a prática diferente, mais positiva. Disso não há
espiritual budista lhe proporcionou? dúvida. Esse é um benefício quase
espiritual. Já o benefício propriamente
Com certeza bem menos raiva. Um pouco espiritual, esse é incomensurável: não
menos de apego e orgulho. A ironia é que saberia medir precisamente. As portas que
poderia ser apenas a maturidade chegando Guru Rinpoche abriu para mim são difíceis
— por outro lado, não vejo nos meus até de explicar para quem não tem essa
contemporâneos esse tipo de "maturidade" conexão.
se manifestando. Talvez seja minha visão
impura deles, mas o mais possível, pelo Agora, quando leio a biografia dos grandes
exame de mim mesmo e do controle de professores, como Milarepa, que passaram
qualidade da sanga, é que eu tenha grandes dificuldades — vejo que o darma
melhorado um pouco através do darma. não necessariamente melhora
externamente a vida da pessoa. Milarepa
Fora isso, é como um casamento. Há coisas tinha uma vida externa basicamente
que dão trabalho e incomodação, e que se miserável — mas o que o darma deu para
eu não fosse budista, não dariam. Mas em ele era incorruptível mesmo diante de
geral compensa, porque é difícil imaginar o qualquer situação amargamente ruim que
que eu estaria fazendo não fosse o darma. pudesse ser encontrada. Esse tipo de coisa
A minha direção antes do darma não era é muito mais importante do que qualquer
positiva mesmo em termos mundanos. conquista temporária. Minha situação boa é
Então provavelmente estaria afundado nas como uma bolha — a de todos nós. Uma
drogas, provavelmente louco. Entre meus guerra ou catástrofe natural muda tudo em
amigos de antes do darma há gente que poucas horas. E algo ruim sempre pode
morreu assassinado, e outros que se acontecer, ninguém está livre da
suicidaram. Pode ser que eu escapasse manifestação de um carma pessoal ou
desses fins, mas muito provavelmente em coletivo oculto. Mas com o darma existe a
situação pior — do ponto de vista possibilidade da pessoa usar qualquer
puramente mundano — eu estaria. Sem situação, positiva ou negativa, com uma boa
falar do ponto de vista espiritual. finalidade. Então ela está próspera em
qualquer circunstância. Outras religiões
O darma muitas vezes também me com certeza proveem algo desse tipo de
proporcionou muitos benefícios mundanos.

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Budismo - Coletânea

conforto. Mas eu apenas tive o mérito de vida para a maioria de nós. Desde que
encontrar algo que funciona para mim. façamos a prática diligentemente e
tenhamos o mérito de colocar as
Quais são as suas práticas? prioridades na ordem certa.

O conselho geral é que a pessoa só discuta Você estuda o budismo há quanto tempo?
suas práticas com seu professor. Em Você ainda se surpreende com os textos?
particular no vajrayana (que é o que
supostamente eu deveria praticar, pelos Desde 1998. Sim, me surpreendo bastante.
gurus com que sinto conexão), se deve Mas textos são uma parte muito pequena
manter total discrição sobre o que se faz. da minha relação com budismo.

Qual o ensinamento mais valioso que você Além disso, essa cultura de exigir constante
recebeu? entretenimento é um pouco antitética ao
darma. O darma não é chato, por si só, e a
A mim foram oferecidos dezenas de maioria dos professores é verdadeiramente
ensinamentos inestimáveis, porém não fascinante. Por outro lado, a expectativa de
recebi quase nenhum, porque sou um pote diversão constante está totalmente
emborcado, rachado e envenenado, o que distorcida pelo excesso de entretenimento
quer dizer que meu orgulho não me deixa que consumimos — entretenimento este
ouvir, o que eu eventualmente ouço eu que compete por nossa atenção com
esqueço, e o que eu não esqueço eu misturo conteúdo cada vez mais gritante.
com minhas aflições mentais e transformo
em algo que não é darma. Portanto tenho Portanto é preciso, para ouvir (e ler) o
me esforçado para ser capaz de ouvir, reter darma, desenvolver uma mente que não
e não alterar os ensinamentos. busca excitação constante. Normalmente
caímos em torpor sem excitação constante.
Ainda falta muito para você atingir a A prática de meditação visa encontrar um
iluminação? ponto de equilíbrio flexível de clareza entra
a agitação e o torpor que são nosso hábito
Não sei. Imagino que algumas dezenas ou e muitas vezes, pior ainda, são fomentados
centenas de vidas — se eu não perder o pela cultura em que vivemos.
caminho espiritual e vagar pelo samsara a
esmo por milhares de vidas, o que pode Você tem autoridade para dar respostas
acontecer... a qualquer momento. conclusivas sobre o Budismo ou apenas está
expressando suas opiniões de estudioso
Por outro lado, o que todos os meus sincero mas que podem eventualmente
professores sempre disseram em público estar erradas em alguns pontos?
para todos os seus alunos é que existe a
possibilidade da iluminação nesta mesma

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Budismo - Coletânea

Não tenho nenhuma autoridade especial, Padma é a lótus, vinculada com a família do
mas sou lido por outros budistas e debato o Buda Vermelho, Amitaba, que por sua vez
budismo ao longo de todo o tempo que está associado à vitória sobre o apego, e à
pratico, portanto possivelmente não há sabedoria discriminativa e à fala iluminada.
nada de terrivelmente equivocado aqui. De A lótus é um símbolo comum no budismo
toda forma, se algo incomoda você — e por surgir muito branca em meio a um
mesmo o que não incomoda —, é altamente lodaçal, como a compaixão surge em meio à
aconselhável refazer a pergunta para um experiência cíclica.
professor do darma. E se você quiser me
ajudar a revisar uma resposta, por favor Dorje é "o senhor entre as pedras", isto é, o
escreva para [email protected]. diamante — é a tradução comum do termo
"vajra". Representa a indestrutibilidade e
Aconselho que todas essas dúvidas sejam inseparatividade da natureza essencial da
levadas por você a seu professor, e mente — as boas e más experiências não
avaliadas por você da forma mais são capazes de alterar suas qualidades
aprofundada possível. Minhas respostas fundamentais, que são abertura,
podem ajudá-lo a refinar pontos mais criatividade e compaixão. Representa
difíceis com seu professor e sua própria também a natureza da realidade última, o
consciência em conjunto. Esse seria um uso reconhecimento do sonho como um sonho.
excelente dessas respostas.
É um nome bastante comum na sanga, e
Por que seu nome é Padma Dorje e o que também entre os tibetanos em geral.
ele significa? Conheço mais de uma dúzia de Padma
Dorjes, inclusive dois lamas. Por si só não
Quando tomamos refúgio nas três joias representa nenhuma qualidade especial no
numa cerimônia formal muitas vezes portador do nome: essas qualidades são
recebemos um nome no darma, ligado (pela comuns a todos os seres.
língua, ou mesmo pelas palavras utilizadas)
à tradição budista específica em que Se pudesse dar só um ensinamento pra
tomamos refúgio. Os nomes em geral são sintetizar tudo que aprendeu ao longo dos
ligados a boas qualidades espirituais: essas anos qual seria?
qualidades já podemos ter, ou
simplesmente temos o potencial de Quando tudo mais parece impossível, duas
desenvolver. coisas é útil não abandonar: contemplação
da impermanência e a necessidade de
Após minha segunda ou terceira cerimônia revelar ao máximo um bom coração.
de refúgio, pedi um nome do darma a
Chagdud Rinpoche. Mas o ponto crucial é "apenas lembre o
professor".

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Budismo - Coletânea

O que sua formação em filosofia pôde em condições sociais que criariam qualquer
contribuir para sua relação com o budismo? tipo de discussão sobre dieta.

Acho que não existe relação ou A sua família também é budista?


contribuição.
Não. Minha mãe é cristã, com tendências
Sua formação em filosofia acrescentou algo espíritas e afrossincréticas. Consta que meu
à sua relação como budismo? Ou não? pai foi coroinha, mas me deixou uma Bíblia
um pouco diferente de uma católica — não
Não acrescentou. Foi um período sei ao certo de que denominação
interessante do ponto de vista evangélica. É a única Bíblia que folheei.
antropológico; também do ponto de vista Outras poucas pessoas na minha família são
que você deve integrar o que quer que surja católicas assumidas, mas só uma tia é
como prática, mas em termos dos frequentadora assídua — gosta dos
conteúdos mesmos do curso de filosofia, carismáticos e de padres bregas em geral. A
eles não apresentam relação alguma com a única pessoa que atribui à religião alguma
prática do darma, pelo menos na relevância especial é essa minha tia. Minha
universidade que eu cursei, a UFRGS. mãe não parece ter uma visão
propriamente espiritual, ela só pede ajuda e
Por que você concluiu que o budismo é quer melhorar sua vida com o
melhor que o cristianismo? favorecimento de seres supostamente
superiores.
Só fui ver algum benefício no cristianismo
após ter praticado o budismo. Nunca me Quando criança eu não parava de repetir
interessei propriamente pelo cristianismo. uma palavra rapidamente, ao longo de
Para mim é melhor, mas eu não posso impor vários dias, e um tio me disse "sabe que lá
um juízo de comparação entre “maçãs e na Índia eles fazem isso" — e falou de ioga
laranjas” – isto é, não são nem o mesmo e fisiologia sutil — quer dizer, da existência
tipo de coisas, para serem comparados. dessas coisas. Tinha 9 anos, e a palavra,
antes que cogitem que estou dando uma de
Você é vegetariano? tulku, era "bologna" — que eu li numa placa
de pizzaria.
Fui ovo-lacto-vegetariano por seis meses,
um ano antes de começar a praticar o Nunca acreditei em Deus. Em alguns
darma. Em geral, como o que está momentos, até a puberdade, eu até tentei.
disponível. Depois era mais divertido dizer que era
agnóstico, e desatar o horror com a
Tenho tentado nos últimos anos ser professora de religião — fiz o ensino
"flexitariano", ou "semivegetariano", isto é, fundamental numa escola lassalista,
evitar carne no mais das vezes, e aceitá-la católica portanto. Nunca assisti nenhuma

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Budismo - Coletânea

missa nem ouvi nenhum sermão. Tomei uns causar grande polêmica desnecessária e
passes num centro espírita com uns 10 anos contraproducente. Em todo caso, em
— percebi um ambiente calmo, até privado [email protected], para um
relaxante, cheio de gente fingindo que não não anônimo, posso responder algumas
está assustada com a perspectiva da própria dessas perguntas.
morte. Posteriormente li, com má vontade
e um olho acirradamente antipositivista, um 1. O que é budismo?
ou dois livros do Alan Kardec. Logo depois O que é budismo? Seja breve.
não dava mais tempo, porque ler sobre
ciência me parecia bem mais divertido. O Budismo é um conjunto de métodos para
atingir liberdade perante a
Você vive em um mosteiro? insatisfatoriedade e desenvolver ao
máximo as qualidades positivas. Entender e
Ao longo dos anos, por alguns períodos (o reconhecer a insatisfatoriedade e o que é
maior deles de dois anos) vivi em centros de insatisfatório é o pré-requisito essencial
darma. Nenhum deles era monástico — na para ingressar na prática budista. Em geral,
verdade até hoje conheci apenas dois se temos um pequeno entendimento e
praticantes budistas com desejo de seguir o reconhecimento destas coisas, é isso que
caminho monástico —, ainda assim, a faz com que nos interessemos pelo darma e
dedicação nestes centros era nos dá um sentido de prioridade. Através da
exclusivamente à prática espiritual. Agora própria prática do darma, aperfeiçoamos e
vivo em Porto Alegre e tento coadunar amplificamos esse reconhecimento da
alguma prática formal com um dia-dia por insatisfatoriedade e do que é insatisfatório,
vezes frenético de ocupações, por vezes buscando revelar um estado absolutamente
cheio de distração e preguiça. livre de insatisfatoriedade.

Há perguntas que você prefere não Dentro desses métodos há aspectos


responder. Qual o motivo? religiosos, filosóficos e científicos.
Vinculados a esses métodos, há aspectos
Algumas vezes as perguntas são espirituais, culturais e psicológicos.
simplesmente bobas demais ou repetidas.
Outras vezes não quero certos nomes e O que é budismo?
palavras divulgados, para não ser
parcialmente o agente de uma O budismo é uma tradição espiritual,
interdependência dessas coisas com outras religiosa e filosófica — poderia-se dizer "um
pessoas. (No caso de professores falsos, por processo civilizatório" ou "uma cultura
exemplo.) trans-étnica" — que, por quase 3.000 anos,
tem capacitado praticantes a eliminar as
Às vezes a questão é pessoal demais, e em aflições mentais os hábitos ilusórios. No
ainda outras, não é possível responder sem oriente não existe uma palavra equivalente

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Budismo - Coletânea

a “budismo”, e este conjunto de tradições é maioria das outras tradições, que por isso
conhecido como Darma do Buda, “método mesmo não são chamadas de "budismo".
do Buda”. Existem miríades de escolas, Fora essa concepção filosófica do
tradições e linhagens que utilizam o rótulo significado imposto pela necessidade
Darma do Buda ou Budismo para descrever puramente argumentativa, há uma
suas atividades e ensinamentos. Estas percepção aguda de como as coisas
tradições possuem atitudes, técnicas e realmente funcionam, e o que acontece é
ensinamentos diversos, e muitas vezes ao descrito como "sofrimento"
olho desavisado pode parecer que estas (insatisfatoriedade). Este sofrimento
escolas entram em um ou outro ponto de abrange não só prováveis obstáculos e
contradição. Em alguns casos as escolas dificuldades no cotidiano, como também as
aceitam-se mutuamente como veículos — angústias imutáveis da doença, da velhice e
inferiores, superiores ou de igual valor — da morte, ou as angústias existenciais e
mas que levariam a um mesmo resultado individuais do sentimento de inadequação,
final, ou ao menos a um bom resultado incapacidade e falta de sentido. Portanto,
intermediário. Em outros casos aparece mesmo que a pessoa acredite que não
uma atitude sectária, em que escolas sofra, o que ocorre com os seres que
consideram os ensinamentos de outra ou passam por experiências boas e ruins é
de todas as outras como inadequados. De descrito pelo budismo como sofrimento,
modo geral aceita-se que todos os independentemente destes
desenvolvimentos do budismo e também acontecimentos terem uma aparência de
de outras tradições religiosas não budistas, felicidade ou qualquer outra aparência. Isto
independentemente de evidenciarem é assim porque um ser que não perceba as
algumas atitudes sectárias, servem a um coisas dessa forma, ou não queira aceitar
tipo específico de necessidade de este entendimento, independentemente
aprendizado por parte dos seres, por estes desse reconhecimento ocorrer ou não,
possuírem características diferentes. De segue vinculado a essa experiência descrita
modo geral quatro aspectos dos como "sofrimento" pelo budismo. O
ensinamentos, chamados de "quatro selos", Budismo embora mostre que o próprio
são aceitos por todas as escolas budistas: sofrimento não é eterno (caso em que não
haveria necessidade alguma de uma prática
1) Sofrimento: Alguém que que não sofra ou ou estudo espiritual, pois nenhum esforço
não perceba o sofrimento dos outros não se seria capaz de nos livrar do sofrimento, e
esforçaria em um caminho espiritual que assim cairíamos no niilismo), enfatiza a
busca o alívio do sofrimento. E este já seria percepção e o reconhecimento deste
um motivo axiomático para a ênfase que o sofrimento como pré-requisito básico para
Budismo coloca no sofrimento, já que se a a aquisição dos métodos (caminho) para
ênfase fosse dada em outra percepção os erradicar o sofrimento (cessação).
ensinamentos decorrentes disso seriam
necessariamente outros — o que ocorre na

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Budismo - Coletânea

2) Impermanência: É tanto um elemento do que é um pré-requisito para usar bem essa


sofrimento quanto o elemento que permite mente, isto é, usá-la para reconhecer a
seu fim. O Budismo percebe todas as coisas verdadeira natureza das coisas.
como mutáveis e livres de características
próprias, ou de uma essência. Assim Quem foi o Buda, o que é "Buda"?
qualquer percepção sólida de uma
existência individual interna ou externa é A palavra Buda significa "desperto", e
dita ilusória. O apego às ilusões, ou representa um ser que acordou para a
acreditar na permanência das coisas, é a verdadeira natureza das coisas. Num nível
causa do sofrimento. Sejam objetos externo, histórico, quando dizemos "Buda"
materiais, convicções pessoais, o próprio nos referimos ao príncipe Sidarta Gautama,
corpo ou mesmo nossa personalidade, tudo que viveu cerca de 2600 anos atrás. Quando
isto inevitavelmente termina. As coisas príncipe Sidarta se iluminou ele passou a ser
nunca serão como já foram, e enfim nunca chamado de "Buda Sakyamuni", isto é, "o
mais serão como são agora. desperto do clã dos Sakyas". "Sakya" era o
nome do reino em que Buda nasceu, e que
3) Cessação: O sofrimento é impermanente. ficava na fronteira do que hoje são Nepal e
Com o entendimento completo da natureza Índia.
real das coisas (impermanência,
sofrimento), as coisas existentes não Num nível interno o Buda representa nosso
surgem como entidades separadas e próprio potencial como seres humanos, e o
perecíveis, mas a essência única, ou ainda, a potencial de cada outro ser. Isto é, quando
qualidade que transcende a existência e a todas as qualidades estiverem
inexistência de uma essência única, é desenvolvidas, e todos os obstáculos
percebida com clareza. Não mais dissolvidos, o que se apresenta é um Buda.
"nascemos" com uma ideia de separação
para nenhum fenômeno, para nenhuma Num nível sutil, Buda é a natureza
situação particular. Além do espaço e do verdadeira e livre de cada ser e fenômeno.
tempo, além de nome e forma jaz a mente Do ponto de vista de um Buda, não há a
límpida que o budismo almeja. dicotomia Budas versus seres
convencionais.
4) Aflições mentais: a razão essencial pela
qual a complicação surge é o não Buda foi gordo?
reconhecimento da realidade, que é tido
não só como uma ação de obscurecimento Não consta que Buda Sakyamuni tenha sido
intelectual, mas também, e talvez gordo, mas muitas representações artísticas
principalmente, emocional. Nosso representam um Buda gordo,
fechamento perante os outros produz uma particularmente as chinesas. Há algumas
miríade de hábitos e emoções complexas explicações para isto. Em alguns locais, fala-
que nos impedem de aquietar a mente, o se de um sincretismo com determinada

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Budismo - Coletânea

deidade taoísta da prosperidade, ou a onisciência podem ser obtidas por qualquer


representação de um monge chinês ser que se coloque nesta direção.
famoso, e mesmo a ideia de que a gordura
do Buda representaria fartura espiritual. Buda é um salvador?

Quem é aquele Buda barrigudinho? Em certo sentido o fato de haver um


exemplo histórico nos salva de nunca
A imagem do Buda barrigudo é ou pode ser chegarmos a saber que existe a
1) um dos alunos do Buda; 2) uma deidade possibilidade de virmos a ser um Buda. Por
taoísta sincretizada no budismo; 3) um outro lado, se o Buda pudesse acabar com
monge chinês. Tornou-se muito popular no todos os nossos problemas, ele certamente
Brasil por algum motivo. Algumas vezes já o teria feito, não nos deixaria esperando,
também se diz que é 4) o Buda ou Bodisatva nem exigiria algum tipo de devoção em
Maitreya, o próximo Buda. troca. O Buda é portanto essencialmente
um exemplo a ser seguido.
Não consta que o Buda Shakyamuni fosse
obeso em qualquer tempo de sua vida. Ele O que Buda ensinou?
chegou a ser bastante magro durante o
período de ascetismo. Num sentido externo, o Buda ensinou por
42 anos, de sua iluminação até sua morte.
Buda foi/é um Deus? Durante este tempo ele respondeu a todo
tipo de dúvida e deu conselhos para pessoas
A noção de Buda possui algumas em muitas circunstâncias diferentes.
semelhanças com a noção de divindade, Muitos destes ensinamentos foram
mas há algumas diferenças marcantes. memorizados e posteriormente registrados
Buda é um ser completamente benévolo e em escrita. Um aspecto importante do
onisciente, mas não é um criador e não é budismo é que não é necessário conhecer
onipotente. Algumas pessoas gostam de tudo que o Buda ensinou, mas sim colocar
enfatizar o aspecto humano do Buda, em prática corretamente aquilo que chega
porque ele é um exemplo que podemos até nós.
seguir, e com que podemos vir a nos
identificar completamente, e não algo Os primeiros ensinamentos do Buda, que
definitivamente superior. Por outro lado, o pautaram e estruturaram todos os
aspecto transcendente do Buda não é ensinamentos subsequentes, foram as
esquecido, e de fato, é idêntico ao aspecto Quatro Nobres Verdades.
transcendente de cada ser, e portanto é um
aspecto transcendente completamente A primeira Nobre Verdade diz que todas as
disponível a qualquer ser. Em outras experiências condicionadas são
palavras, a completa benevolência e insatisfatórias. Ou seja, tudo que tem um
início, tem um fim, e tendo um fim, não é,

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num sentido definitivo, satisfatório. Uma para começar — e que portanto, um dia
boa experiência nunca dura para sempre, e termina. A terceira Nobre Verdade nos
nunca estamos seguros de que uma revela o cessar da atribuição errônea de
experiência ruim não venha a surgir. expectativas, e o repousar na perfeição do
que já é, exatamente como se apresenta,
A segunda Nobre Verdade diz que a sem artificialidade.
insatisfatoriedade surge principalmente de
não reconhecermos as experiências A quarta Nobre Verdade então nos dá um
condicionadas como verdadeiramente são, método para alcançarmos este estado, o
isto é, de gerarmos uma falsa expectativa que é chamado de Nobre Caminho Óctuplo,
quanto a elas, de nos associarmos a elas de ou, podemos dizer, todos os métodos que o
uma forma errônea, tentando conseguir Buda ensinou são a quarta Nobre Verdade,
nelas o que elas nunca vão nos dar. Assim, que nos dá uma miríade de métodos de
as perseguimos incansavelmente, na produzir o entendimento e aplicação das
esperança de que a próxima seja uma três outras Verdades como um modo de
solução definitiva. Porém, a causa disso é atingir a liberdade última perante nosso
essencialmente não as vermos como hábito de procurar a felicidade no lugar
verdadeiramente são. errado.

Algumas vezes a primeira e a segunda O Nobre Caminho Óctuplo começa com


nobres verdades são traduzidas como “o Visão Correta, que é o que chamamos de
mundo é sofrimento” e “a causa do Refúgio, isto é, esforçar-se para perceber o
sofrimento é o desejo”, mas o ponto que é confiável e o que não é. No caso, os
principal é entender que o problema existe ensinamentos espirituais genuínos, que
(nossa insatisfação), e que ele tendo uma levam a experiência além do início e fim, são
causa, pode ser dissolvido. Então trata-se de confiáveis, enquanto que qualquer outra
uma tensão, uma complicação, que precisa coisa que tenha um início e um fim não é
ser reconhecida, e o segundo passo é confiável. Os próximos três passos nos
reconhecer que esse problema não é levam a praticar moralidade em ações,
natural, que ele possui uma causa. emoções e pensamento. Enfim, no quinto
passo, encontramos uma forma de nos
Eliminando a causa, temos a terceira Nobre relacionar com os seres que não é baseada
Verdade. Ao parar de atribuir às em apego, aversão ou indiferença, isto é, a
experiências condicionadas o poder de nos compaixão. No sexto passo fazemos prática
dar felicidade, reconhecemos a verdadeira formal, estabilizamos nosso corpo,
natureza das coisas e de nós mesmos como pacificamos nossas aflições mentais e
inerentemente satisfatórias, num sentido focamos nossa mente, para no sétimo passo
que está além do que se poderia chamar de analisarmos a estrutura da realidade e
"felicidade condicionada", isto é, que reconhecermos liberdade em cada
depende de condições externas ou internas fenômeno. O oitavo passo é a liberação

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completa da insatisfatoriedade, o estado de


um Buda, completamente benévolo, Portanto a resposta é: existem milhares de
onisciente e livre. livros sagrados onde se registrou o darma
do Buda, e centenas de milhares de
Num nível interno, porém, os ensinamentos comentários por mestres do período
surgem de acordo com as necessidades dos clássico — possivelmente milhões do
seres. Embora todo o ensinamento genuíno período tardio. Porém, para nos guiar na
possa ser descrito em termos desta busca do texto onde começaremos,
estrutura, nem sempre um ensinamento precisamos de um professor.
genuíno se apresenta nesta estrutura. Isto
ocorre para permitir que seres Todos os ensinamentos são, em verdade, a
diferenciados tenham a possibilidade de representação da visão última da própria
praticar. iluminação?

Num nível sutil, algumas vezes se diz que o Não, os ensinamentos são métodos para
Buda nunca deu ensinamento algum. Isto que os seres-mães alcancem o que
quer dizer que a fala do Buda é totalmente conseguirem alcançar, então o Buda ensina
voltada às necessidades dos seres, e os também métodos temporários, que não
ensinamentos surgem da própria mente estão ligados à iluminação.
destes seres ao se relacionarem com o
Buda, isto é, de suas verdadeiras naturezas. Quando eles vêm do Buda, nesse caso eles
sempre vêm da realização do Buda, mas o
Existe algum livro sagrado no budismo onde ensinamento não existe do lado do Buda, só
se tenha registrado o darma? do lado de quem o ouve: dessa forma, ele
corresponde não só à sabedoria do Buda,
Os ensinamentos do Buda foram primeiro mas principalmente à necessidade do
registrados oralmente. Cerca de 200 anos ouvinte.
depois da morte do Buda passaram a ser
compilados em textos. As versões mais Esse é um ponto muito importante, e o
antigas existentes desses textos são motivo pelo qual as escrituras budistas não
chamadas de "cânone Páli", porém existem são "reveladas", como as escrituras das
cânones (isto é, bibliotecas inteiras, religiões teístas, ocidentais e orientais. O
centenas de vezes maiores do que a Bíblia) Buda só fala de acordo com a realidade no
em todas as línguas asiáticas onde o sentido de um método para chegar a ela, e
budismo foi ensinado. esse método está invariavelmente na
dependência das capacidades dos ouvintes
O cânone tibetano tem apenas cerca de 5% — então os ensinamentos são também
de seus textos traduzidos para línguas vazios, isto é, livres e não requerem crença
ocidentais, sem quase nada traduzido irracional ou obediência, e sim
diretamente ao português até hoje. experimentação.

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normalmente consideramos como


A iluminação não pode ser efetivamente propriamente religiosas, tais como fé e
expressa. O grande erudito tibetano Gedun devoção.
Chopel disse que os ensinamentos do Buda
eram como as afirmações que alguém faz Então com certeza existem elementos
sob a mira de um revólver. Eles não são religiosos no budismo. Para algumas
sequer verdadeiros, de acordo com a pessoas eles podem ser centrais.
realização final do Buda. O revólver
apontado ao Buda, aquilo que o força a Por outro lado, todas as outras religiões são
dizer o que ele diz, é o sofrimento dos seres. tidas como teístas, e o budismo, no que ele
Ele só fala o que fala, de forma a mitigar o possui de mais profundo, não é teísta.
sofrimento, nada que pode ser expresso Nesse sentido fica difícil definir o que
pode ser verdade última, espiritualmente realmente é o budismo, e de fato, talvez
falando. seja desnecessário, já que o próprio
budismo se diz "darma do Buda", isto é,
Podemos definir o budismo como um ensinamento, método, daquele que vê a
caminho de poucos dogmas e mais realidade tal como ela é. Dessa forma,
sabedoria? podemos admitir a classificação como
religião, porque há elementos religiosos, e
Nenhum dogma, pelo menos no sentido de por outro lado, podemos dizer que o
algo que a pessoa precise aceitar budismo vai além dessas classificações,
cegamente. Sabedoria no budismo tem um particularmente de terminologias
sentido peculiar, mas sim, é o caminho do peculiares a outras culturas e tradições.
reconhecimento da vacuidade-
interdependência, que é a realidade, Como o budismo interpreta o conceito de
portanto, sabedoria. "religião"?

Por que o budismo não é uma religião? Não há conceito de religião no budismo, ou,
até onde eu saiba, na maioria das tradições
Algumas pessoas, talvez por preconceito, e línguas orientais. Nós partilhamos com os
talvez para enfatizar um enfoque não hindus, com diferenças, o conceito de
religioso do budismo, preferem o darma. Darma é o que apoia, dá suporte, ou
desvincular da noção de religião. seja, o método que produz o resultado, ou
o próprio resultado, o estado de Buda.
Embora o budismo promova o exame crítico
de suas próprias doutrinas, e seja O budismo pode ou não ser classificado
eminentemente um método que confia, em como uma religião. Ele não é uma religião
primeiro lugar, na demonstração empírica, porque não possui escritura revelada, ou
e em segundo lugar, na inferência racional, um criador. No sentido de que há práticas
ele não está destituído de fortes noções que devocionais, nesse sentido, é possível

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chamar de religião. O budismo busca semi-involuntário a pessoa gostar disso ou


"religar" a pessoa à sua própria natureza — daquilo, segundo o budismo esses são
é possível dizer isso também. hábitos que ela tem cultivado há muito
tempo.
Algumas vezes o mais adequado é dizer
"civilização budista", porque é um conjunto Depois, por sua natureza, o próprio darma é
tão vasto de ensinamentos, elementos algo a ser protegido. Um dos votos de um
culturais, religiosos e práticas (espirituais, bodisatva é não ensinar a alguém que não
mundanas), que nem mesmo as palavras tenha requisitado. E na minha própria
cultura ou tradição talvez sejam suficientes. experiência, essa requisição tem vários
níveis de profundidade. Ao lidar com os
Por que budistas de modo geral não são visitantes num centro onde morei por um
proselitistas? par de anos (que chegavam até 1000 e
algumas centenas de pessoas num domingo
Vários motivos. O que está por trás de tudo de sol), a gente percebe a diferença entre
é que é o próprio mérito da pessoa que vai curiosidade de turista e curiosidade pelo
fazer com que ela se conecte ou não aos darma. E realmente, se você começar a
ensinamentos. Para as outras pessoas, não fazer um discurso para um turista que é
interessa o quão inteligentes ou capazes, meramente curioso, ele vai se entediar
elas vão achar que é o mesmo que capim muito rápido. Muito ocasionalmente
para uma onça. Não vão ter o menor surgem perguntas num contexto autêntico,
interesse. isto é, de uma pessoa que se interessa ou
tem o potencial de se interessar pelo darma
Muitas pessoas pensam que através do — e não apenas está fazendo um trabalho
raciocínio elas podem descobrir o que é para a escola, ou tem uma curiosidade
melhor ou pior — mas isso só acontece se superficial bem articulada. Em todo caso,
elas começarem o raciocínio com boas todos que perguntam ou vão a um centro de
condições. Apenas raciocinar semi- darma geram algum nível de conexão, e os
aleatoriamente, isto é, seguir algumas meios hábeis surgem para o tratamento
pistas por alguns minutos, dias, meses, não dessa conexão de um modo respeitoso, mas
vai produzir qualquer resultado — de acordo com a capacidade e
especialmente se ela tiver obstáculos disponibilidade do ouvinte.
adicionais como premissas ocultas (dela
mesma), e tiver gosto por aquilo que é O darma tem ensinamentos externos,
contraproducente. internos e secretos. Os ensinamentos
externos são os que beneficiam a todos,
Como o mérito é da pessoa, ela não tem indistintamente, e podem ser ensinados
ninguém a agradecer ou culpar por sua abertamente — não há problema nenhum
conexão com isso ou aquilo. Essa conexão é falar a um visitante sobre carma, ou mesmo
responsabilidade dela. Ainda que pareça shamata, por exemplo. Depois, os

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ensinamentos internos ocorrem no muito abstratos? Parece que exigem um


contexto íntimo de uma relação continuada certo intelecto.
com um professor — de nada adianta ou
serve falar sobre obstáculos muito sutis de Essa é uma característica de alguns
shamata para alguém que meramente professores, outros professores ensinam de
começou na prática. Depois de alguns anos, forma simples e de fato atingem muitas
no entanto, é essencial. O tratamento se pessoas.
refina.
Por outro lado, não é objetivo do budismo
Enfim, o aspecto secreto dos ensinamentos fazer o budismo chegar a todas as pessoas.
se dá por uma série de razões. Uma delas é O benefício, e a iluminação, devem ser
que certos ensinamentos, ao serem dados desejados para todos — não métodos
no contexto errado, causam obstáculos. específicos.
Outra é que os próprios ensinamentos só
são compreendidos por aqueles que O budismo é tão complexo quanto se
fizeram certos experimentos até a parece por fora, ou o que complica é a falta
conclusão. E há ensinamentos que seriam de materiais em português?
desastrosos para qualquer um a não ser um
ouvinte em particular. Tem budismo simples para quem tem
mérito para budismo simples, e tem
Em todo caso, é preciso respeitar as budismo complicado para quem tem
limitações, nossas e dos outros. Assim, é conexão com complicação.
impossível convencer alguém, e se for
possível, é um remendo — a pessoa precisa "O Budismo é um sistema de autodisciplina
convencer a si própria, caso contrário não mental", dizem alguns autores. Este
há estabilidade. significado foi corretamente delimitado?

As razões que levam a alguém se conectar O treinamento da mente é um aspecto


com o darma são as mais variadas. Eu essencial do budismo. Agora, as palavras
mesmo por muitos anos achei o budismo "auto" e "disciplina" se encaixam realmente
uma curiosidade interessante, até que mais no veículo fundamental, o hinayana.
conheci a sanga, e principalmente os lamas.
Embora o budismo fizesse algum sentido Por exemplo, no vajrayana você utiliza uma
para mim, o que me convenceu foi o outra pessoa, o seu guru, para desenvolver
exemplo pessoal dos praticantes, não o treinamento da mente. E com certeza em
argumentos. todos os âmbitos você usa a sanga. Então é
"auto" no sentido de que você tem
Como fazer o budismo chegar a todas as responsabilidade pelo seu treinamento,
pessoas? Será que os ensinamentos não são mas não é "auto" no sentido de que o
treinamento ocorre em comunidade ou sob

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Budismo - Coletânea

a supervisão de alguém — em pelo menos que surge para os seres que reconhecem os
algumas formas de budismo — na verdade fenômenos em sua natureza pura, e o
a grande maioria delas. nirmanakaya que se manifesta na história,
como o Buda Sakyamuni, por exemplo,
Quanto à palavra "disciplina", ela se 2600 anos atrás. Os três corpos não são
encarrega apenas do que é artificial no separados, eles só surgem nessas três
caminho, isto é, daquela conduta que é formas de acordo com nossa capacidade.
treinamento pelo treinamento. Quando
falamos de ética, então estamos falando do Para os seres que precisam de um teísmo
que é natural ao caminho, do que se paternal (e quem de nós pode dizer que não
coaduna com a realidade. Ambas disciplina estará em um apuro em que só o que vai
e ética são importantes, mas a ética deveria restar é apelar para isso?) há métodos que
ser mais enfatizada. A disciplina e a ética são efetivamente produzem benefícios, como
o ponto central do hinayana, enquanto o simplesmente lembrar do Buda.
mahayana não as abandona, seu ponto Meramente recordar o Buda traz
central é a análise contemplativa incomensurável benefício, para qualquer
sistemática — e o foco do vajrayana é a um, acreditando nisso ou no Buda, ou não.
própria sabedoria, sem também, é claro
abandonar a fundação do hinayana e do No Budismo, temos aliados e protetores
mahayana. invisíveis?

Se eu tento dizer alguma coisa a Buda, pedir Nós nos relacionamos com os seres dos seis
a ajuda dele, ele me ouve? Ele sabe quem reinos, quatro dos quais não temos acesso
eu sou? Se compadece de mim pela visão. No entanto, os melhores amigos
verdadeiramente? Tem algum poder para espirituais são os professores de carne e
me ajudar? Onde ele está? osso, humanos. Os outros seres podem
ajudar ou prejudicar, mas não
O Buda deixou 84.000 métodos que podem necessariamente possuem sabedoria,
ser praticados por qualquer um que se portanto a interação com eles, por "sutis"
aplique neles. Essa foi sua grande que sejam, não é espiritual a não ser que
compaixão. Algumas formas de budismo esteja subordinada a prática espiritual.
realmente lidam com o aspecto devocional,
e de fato seria estúpido dizer que a Um problema grave que o budismo
compaixão-sabedoria do Buda não chega a tibetano, por exemplo, enfrenta, é o foco
todos. Porém, o Buda não é onipotente, se excessivo em "protetores" (entre os quais
fosse, todos já estariam iluminados. as deidades hindus são geralmente também
incluídas). Eles servem a todo tipo de
Na doutrina dos três corpos do Buda proposito mundano, como saúde e
(trikaya), há o darmakaya, que é atemporal, prosperidade — que podem, ou não, apoiar
não local e tudo permeia. O sambogakaya, a prática espiritual. Em todo caso, o

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problema é o foco excessivo, e Sua problema algum. Porém, você precisa fazer
Santidade o Dalai Lama vez que outra sua parte. A sua parte é o revelar e o criar
adverte contra a transformação da prática intimidade com sua própria lucidez, que é a
espiritual num mero pedido de favores a fonte de todos os Budas.
deidades mundanas. Na prática do tantra
essas deidades são subordinadas a deidade Por outro lado, se você se relaciona com a
central da mandala, que possui sabedoria, e sanga em todos os níveis, mesmo no nível
é inseparável do próprio praticante e do sutil, a sanga sutil pode lhe ajudar: como
lama. Quando os protetores se tornam o pessoas de carne e osso também podem.
foco de pessoas que não mantém essa Mas isto está na dependência direta de sua
inseparatividade do lama, deidade e si própria lucidez, e em segundo lugar com o
mesmo inquebrantavelmente, não há seu cultivo dessas conexões.
sabedoria na prática, e torna-se um mero
invocar de espíritos por ajuda mundana. Para que serve o budismo?

Chagdud Rinpoche, num vídeo encontrável Segundo o próprio budismo, para


na internet diz "the real protector is the alcançarmos felicidade temporária
lama", o protetor verdadeiro é o lama. (conforto, longevidade, boas relações,
prosperidade, inteligência, beleza e vigor) e
Em algumas situações de grande perigo, há definitiva (a iluminação) e para que tais
alguma coisa invisível que nos protege ou coisas sejam alcançadas por todos os outros
pode proteger independente da ação que se seres-mães.
resolva tomar? Há alguma maneira
"sobrenatural" de evitar esses perigos? O budismo nos aconselha a não
simplesmente acreditar nessas
Independente da sua ação, claro que não. possibilidades e finalidades do método
Essa coisa invisível que te protege não é budista, mas sim colocá-lo em prática pelo
nada mais nada menos que sua própria menos por tempo suficiente para que certas
lucidez natural. Então, se você melhorias sejam evidentes. Isto é, no
deliberadamente for contra o que se mostra mínimo alguns meses ou anos de prática
lúcido, não há como você se proteger. diária e aplicação cuidadosa na vida
cotidiana de acordo com as instruções de
Em outras palavras, Chagdud Rinpoche um professor qualificado.
costumava dizer que as bênçãos dos seres
de sabedoria estão sempre presentes, mas Como Buda decidiu que ele deveria meditar
como a água da chuva, se você não virar a e alcançar a iluminação, ele teve uma visão
bacia de forma que possa captá-la, você não ou algo similar?
recebe nada. Se os Budas pudessem ajudar
independentemente de sua capacidade de Ele reconheceu a impermanência, depois
se conectar com essa ajuda, ninguém teria dukkha (as diversas formas de

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Budismo - Coletânea

insatisfatoriedade presentes em todas as


coisas), e enfim viu um praticante espiritual Para cortar o sofrimento, é preciso cortar o
(uma pessoa com manto) e resolveu desejo. Mas isso não é limitar, de certa
praticar. maneira, a existência?

No Budismo, o que leva alguém a encontrar Para eliminar a insatisfação é necessário


a doutrina que poderá libertá-lo do abandonar o hábito de depositar confiança
sofrimento? Sorte? Predestinação? Forças em objetos que só podem produzir
invisíveis? insatisfação. Não é necessário abandonar os
objetos, apenas a crença ignorante e
Essas coisas não existem. Mérito, isto é, arbitrária de que são eles que vão nos fazer
carma positivo — amealhado tanto verdadeira e duradouramente felizes.
deliberadamente nessa direção, quanto
mero carma positivo de boas ações em O Buda usou, literalmente, as palavras
geral, amealhado de forma fortuita. Apenas dukkha e trishna, que são mal-traduzidas
carma positivo em geral não é suficiente, como sofrimento e desejo. Dukkha é melhor
mas algum carma positivo amealhado para como "insatisfação", mas nem mesmo isso
este fim é necessário. é correto. É certa angústia subjacente a
todas as experiências boas e ruins. Essa
Algumas filosofias dizem que devemos angústia não está nas coisas boas ou ruins,
controlar nossas paixões e que estas nos ou na fonte deles, e sim numa visão
levam à perdição. As pessoas passionais (os equivocada delas, como fonte de felicidade
latinos, por exemplo) estão erradas? verdadeira. Isto é, expectativa. Colocamos
expectativa em que as coisas boas durem e
A frieza também é uma paixão, portanto, as coisas más se dissipem. Essa expectativa,
não há povo em melhor situação. Quer trishna, literalmente "sede", é que deve ser
dizer, pode até haver, mas é impossível eliminada, para eliminar insatisfação,
traçar generalizações úteis com base em angústia, dukkha.
uma característica estereotipada.
O Buda recomenda que a pessoa realmente
No budismo existem métodos para analise as coisas em que está depositando
controlar as emoções (inclusive a frieza, a confiança, e gerando expectativa, e que
falta de afeto, a falta de vontade), mas estes perceba, em cada uma delas, uma semente
são métodos inferiores. Os métodos de insatisfação. Dessa forma a pessoa pode
superiores utilizam de antídotos para as se orientar melhor por aquilo que nunca
emoções aflitivas, ou as próprias emoções produz insatisfação, e sim traz felicidade
aflitivas, transformadas através do refino duradoura e verdadeira: o reconhecimento
em sua natureza essencial, livre de delusão, da realidade como ela é, livre dos filtros
e portanto livre dos aspectos nelas que distorcedores das expectativas e dos
causam sofrimento. medos.

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Budismo - Coletânea

nem aí. Outros dias eu perco tudo com


Há vários desejos que são considerados qualquer coisinha. Mas acho que há uma
hábeis (positivos) na prática budista. Entre pequena melhora geral ao longo dos anos
eles, o desejo de beneficiar os seres, ou o que atribuo principalmente a prática de
desejo pela iluminação. Mas mesmo o shamata, mas de forma secundária a
simples apetite (por uma refeição deliciosa, simplesmente ficar mais maduro mesmo.
por exemplo) pode ser positivo, negativo ou
neutro — apenas baseado na intensidade e Uma pessoa boa, com bom caráter, que
na medida em que aquele alimento é ajuda a família, que não engana ninguém,
saboreado como uma forma de sustentação esperta, mas com certos vícios como fumar,
para atividades meritórias, ou apenas uma beber, transar muito, ser arrogante e
forma de expressar algum tipo de orgulhoso com quem incomoda ou dormir
compulsão ou descontrole. demais... uma pessoa assim está em que
"estágio de evolução"?
Qual o melhor meio para não ter
expectativas? Não existe medida evolutiva em
generalidades. Uma pessoa normalzinha é
Reconhecer a insatisfatoriedade, a apenas uma pessoa normalzinha, não é um
impermanência e a ausência de uma praticante espiritual. Uma pessoa que se
essência — através da prática do darma. É esforça coerentemente num caminho é um
bom lembrar que não ter expectativas é um praticante, independente de quaisquer
estado de frescor, liberdade e bem- defeitos que ele apresente.
aventurança. Não é nenhum tipo de apatia
ou falta de vontade. Que tipo de música um budista gosta de
ouvir?
Como cultivar a felicidade interior que
independe das circunstâncias? Isso só é O gosto musical não é condicionado pelo
possível após a iluminação ou está acessível budismo. Certos votos monásticos, e laicos
às pessoas comuns? durante alguns períodos, impedem o
entretenimento.
Através da prática isso é possível muito
antes da iluminação. Sem praticar tanto A arte seria só uma distração? Tudo que não
assim eu mesmo percebo hoje que sou seja meditar é distração?
muito mais livre perante o que os outros
pensam de mim, sobre situações caóticas, É possível praticar em meio a qualquer
amedrontadoras ou entediantes — e assim coisa, até mesmo arte, até mesmo
por diante. Qualquer barulho antes me entretenimento. O que algumas vezes se
tirava do sério. Hoje, depende do dia, mas percebe, em ambientes mais arrogantes, é
há dias em que estou bem estável — podem uma sacralização e glorificação da arte —
gritar comigo ou me elogiar e não estou isso pode ser melhor

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O que o budismo pensa sobre festa, rave Buda chorou alguma vez?
etc.? Ilusões?
Não consta uma ocorrência assim, embora
Sim, claro que são ilusões. Como a prática o Buda tenha passado por grande
budista, ou o próprio Buda. Os budistas não turbulência interior quando reconheceu
monásticos podem se divertir com festas de que todos nós estamos fadados a doença,
qualquer tipo, desde que não consumam velhice, morte e nascimento. Ele fez um
álcool ou drogas (algumas escolas admitem voto de encontrar uma solução para estes
algum uso de álcool). Os monges, como quatro problemas e levar essa solução a
parte de seu treinamento monástico, todos os seres, o que ocorreu na sua
também totalmente artificial e ilusório, não experiência de iluminação e subsequentes
podem ouvir música ou dançar. ensinamentos.

Meditar ajuda a ser mais criativo? Marpa, um dos grandes lamas da tradição
tibetana, chorou quando seu filho morreu.
Não necessariamente. Gerar mérito sim, No Zen também há histórias de grandes
então a meditação, na medida em que gere mestres que choram. Em resumo, se for
mérito, pode ajudar na criatividade. Porém para o benefício dos seres, um mestre pode
se esse for o objetivo da prática, então manifestar qualquer emoção humana. Isso
estamos falando em meditação terapêutica, não quer dizer que os mestres não sintam
e não de meditação budista. compaixão, óbvio que sentem, mas eles
podem ou não manifestar isso, e isso só
Qual a importância do humor no budismo? depende do que esse exemplo pode trazer
para os seres.
Nenhuma importância particular, além de
trazer algum benefício temporário aos Consta que no velório de Shunryu Suzuki
seres, e algumas vezes ser uma forma de Roshi, um dos mestres do Zen que levou os
conectar as pessoas. É um meio hábil muito ensinamentos para os EUA, Chogyam
comum de professores budistas, que em Trungpa Rinpoche chorou abertamente —
geral têm um excelente bom humor. isso é relatado por um dos alunos de Suzuki
Através desse carisma, que é uma Roshi como uma grande liberação e licença
expressão de sua própria liberdade e para os alunos do Roshi, que estavam "se
satisfação internas, as pessoas se conectam segurando". Então além de demonstrar o
com os ensinamentos — então se torna sentimento, Trungpa Rinpoche deu um
mais meritório fazer os outros rirem, e ensinamento e "autorizou" a sanga a sentir
tornar a tradição, algo que para muitas a morte do mestre.
pessoas (devido a distorções comuns na
cultura ocidental na visão sobre o budismo), Se este mundo é um mero sonho, tudo que
pode acabar parecendo algo pesado. não está alinhado com o propósito de

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escapar dele é futilidade? Nada que está até pedir felicidade temporária, desde que
aqui presta? essa não seja prioritária.)

Escapar do sonho e do mundo é acreditar Existem energias sutis no budismo? Como


demais nele. Não há nenhuma necessidade energias recebidas e enviadas por orações,
de escapar do sonho — se ele é um sonho, méritos etc.?
basta vê-lo como ele é. O sofrimento dos
seres que sofrem é real para eles, a O que não existe no budismo, ou o que só
compaixão é o reconhecimento disso e a existe em termos da ignorância, são coisas
ação dentro do sonho, de acordo com o grosseiras e sólidas, coisas que não seriam
sonho dos seres. Mas a sabedoria de feitas de tecido de sonho. É importante
reconhecer o sonho como sonho é fazer a distinção, caso contrário se fica
essencial. Fugir do sonho é transformar o pensando que no budismo se acredita em
sonho em algo que possui alguma realidade. algo mais — que se acredita em coisas a
Ele não possui nem mesmo realidade mais — não! nós acreditamos em menos
suficiente ao ponto de que precisaríamos coisas que uma pessoa imbuída de senso
fugir de algo ou rejeitar as coisas e pessoas. comum. O problema de uma pessoa que
No budismo, a renúncia superior é a quer se tornar praticante não é adicionar
renúncia à reificação do sonho, a tornar o uma crença, mas retirar muitas das crenças
sonho algo existente, sólido, capaz de nos presumidas, tomadas certas — a principal
perturbar. É uma renúncia muito inferior delas a de que este mundo tem solidez
àquela que rejeita o sonho ou conteúdos verdadeira e é mais do que um sonho.
específicos do sonho: esse tipo de renúncia
é só indicada para aqueles com muito pouca Supondo, por exemplo, que tirasse nota
compaixão, pouca coragem e fraco baixa em um exame, praticando o budismo
entendimento. E nós não queremos ser eu não deveria me incomodar ou
estes, não é mesmo? entristecer com isso?

Budistas pedem ajuda para deuses e Se a sua motivação é apenas "não sofrer",
deusas? então, tudo bem — você não deve se
preocupar com sua nota, e a única
Não há nada de errado com isso, desde que obrigação que você deve cumprir é
fontes de refúgio não confiáveis não sejam entender a raiz do sofrimento e trabalhar
tomadas como refúgio, e desde que a nada para eliminá-la. É por isso que as pessoas
seja atribuído permanência ou que normalmente se focam apenas em
substancialidade — e em geral, se a pessoa eliminar o sofrimento — o que é um
busca liberação como prioridade, ela não se caminho budista legítimo — em certo
envolva com pedidos temporários como sentido abandonam o mundo e tornam-se
prioridade. (Em outras palavras, ela pode eremitas ou monges. Aí, nesse caso, eles só
vão se preocupar com notas baixas caso a

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falta de conhecimento que eles


demonstraram diga respeito diretamente a No budismo só o que você deve abandonar
diminuir o sofrimento. são as aflições mentais: raiva, inveja,
orgulho, apego e ignorância. Qualquer coisa
Já no caso da motivação maior de eliminar que você precise fazer, você deve fazer —
não só o próprio sofrimento, mas o de todos apenas sem esses venenos. Não se importar
os seres-mães, e não só isso, mas com uma nota baixa é bom, mas isso não
desenvolver as qualidades todas de um significa parar de se esforçar por uma boa
Buda, bom, nesse caso a pessoa não poderia nota. Se você só se esforça por uma boa
abandonar o trabalho contínuo pelos seres- nota pela boa sensação que essa nota
mães, e se isso inclui respeitar obrigações e porventura lhe traria, então essa não é uma
deveres, ou uma obrigação ou dever em boa motivação. Você deve ter a motivação
particular, por mais desagradável ou difícil de ser bem sucedido para beneficiar os
que seja, por essa motivação maior não outros e dar bom exemplo.
deve haver desencorajamento.
Mesmo que o sistema de conceitos e notas
E com certeza, mais do que tudo, não seja naturalmente baseado em
devemos usar o darma como uma desculpa competitividade, inveja e orgulho, não
para o desleixo. Que o desleixo ocorra, por precisamos nos envolver com essas aflições
nossos hábitos arraigados, até certo ponto, mentais. Devemos nos ocupar do que é
tudo bem. Adicionar a essa falta a visão importante na educação, que é aprender, e
errônea de se desculpar através do darma se disso não vierem boas notas, paciência.
do Buda, isso é extremamente desvirtuoso.
Se a natureza causa sofrimento a todos os
Em todas as circunstâncias em que algo seres, porque evitar o sofrimento e porque
desagradável ou difícil tiver que ser feito, e acreditar na extinção deste?
pensarmos no darma como uma
escapatória, devemos tomar muito Não é a natureza que causa o sofrimento,
cuidado. Na maior parte dos casos é uma são as aflições mentais. Nós as achamos
mera desculpa. naturais, mas elas são artificiais. O estado
natural é livre de sofrimento.
Basta olhar para as extremas dificuldades
que os professores budistas do passado Passar a vida buscando a iluminação e
enfrentaram sem se desencorajar. Porque morrer sem atingi-la não é o mesmo que
nós achamos que temos mais mérito do que passar a vida correndo atrás de qualquer
eles, e que as coisas para nós serão mais outra coisa (ilusória ou não)?
fáceis? Mais do que isso, por que achamos
que os seres-mães que eles ajudaram eram Não, porque a crença na iluminação inclui
mais fáceis de ajudar do que os seres-mães várias existências (no tempo, no espaço)
que temos que ajudar? portanto qualquer progresso naquela

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direção é o único sentido que poderia haver se faz uma oferenda), e ele pode falar por
para qualquer existência singular. algum tempo sobre como praticar as seis
perfeições, por exemplo, no casamento.
Por que será que algumas pessoas Alguns casamentos assim duraram menos
maltratam tanto os animais? de 5 minutos. Algumas vezes os noivos
podem patrocinar pujas, principalmente de
Segundo o Buda, e isso é algo repetido prosperidade e longevidade — que também
frequentemente pelo próprio Dalai Lama, as podem ser patrocinadas fora do contexto
pessoas cometem maldades contra os do casamento.
outros e contra si próprias porque
desconhecem as verdadeiras causas da O casamento budista se assemelha de
felicidade e do sofrimento. alguma forma ao cristão? Exige-se
castidade? Virgindade? É para a vida toda?
Existe casamento no budismo?
Casamento, no budismo, é assunto civil, da
Em todas as culturas budistas existe o cultura. Não existe uma noção de
casamento — mas o casamento não é "sacramento", como no cristianismo. O
necessariamente um assunto religioso. O budismo se adaptou a dezenas, talvez
casamento como um "sacramento", centenas, de culturas ao longo de seus 2600
portanto, não é comum, e as cerimônias anos, que tinham maior ou menor ênfase no
budistas de casamento se originaram de casamento e nesses atributos secundários
uma necessidade das pessoas — muito — de toda forma, são irrelevantes para o
possivelmente ao comparar com os belos budismo.
casamentos católicos, ou algo assim.
O budismo está imerso em culturas que tem
Da mesma forma que você, se você é formas de família muito parecidas e muito
fazendeiro, leva um animal de carga para diferentes da cristã. Existem até mesmo
que o sacerdote abençoe, você pode levar culturas budistas onde a poligamia e a
sua esposa/esposo para ser abençoado. poliandria são comuns. (O próprio Buda,
"Casamento budista" é como consagrar ou antes de assumir a disciplina monástica, era
abençoar qualquer outra coisa. E você pode polígamo). Tudo é impermanente, portanto
fazer isso com qualquer coisa e aspecto da não existe casamento para sempre, no
sua vida: resta apenas evitar desperdiçar o máximo o que vai acontecer é um morrer
tempo do sacerdote. antes do outro. Virgindade é um valor em
algumas culturas budistas, em outras não
As cerimônias de casamento que eu tem importância alguma. É importante
presenciei são muito simples. Cada um entender que isso não é relevante para o
oferece e recebe uma echarpe do professor budismo ou para a prática budista, embora
(que é algo que se faz sempre quando se possa ter importância de acordo com a
encontra um professor, ou a cada vez que cultura, num aspecto meramente cultural.

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Já o caminho monástico tem como uma de Nenhuma boa ação em geral é obrigatória
suas definições a castidade. para alguém que tomou voto de bodisatva.
Para quem não tomou voto de bodisatva,
Ter filhos é reprovável no Budismo? Afinal, não existe nem mesmo a obrigação de
ao se ter filhos está-se gerando criaturas ajudar os outros — apenas de não os
que vão sofrer... prejudicar. Quando porém se toma o voto
de bodisatva, se faz o voto de ajudar os
O reino humano é o melhor para a prática outros. No budismo ter filhos é uma forma
que pode levar além do sofrimento, e não de ajudar um ser a ter um nascimento
se está gerando criaturas — já que não há humano, e possivelmente um caminho
"criaturas" no budismo, nem alguém pode espiritual. Mas em nenhum lugar está dito
"gerar" algo, no sentido de tirar do nada — que esta ou aquela ação meritória devem
mas apenas criando causas e condições necessariamente ser realizadas. Você deve
para um renascimento auspicioso — o realizar ações meritórias de acordo com as
renascimento mais auspicioso, que é o necessidades dos seres e sua própria
renascimento humano. capacidade. Enquanto evitar uma boa ação
pelas próprias preferências ou inclinações
Os próprios Budas, no fundo eles nascem da seja ruim, nada nos obriga a uma ação
sabedoria — mas muitas vezes eles têm, meritória em particular.
além da sabedoria transcendente, uma
sabedoria corporificada na forma de uma Um bodisatva tomado de total destemor
mãe, e a compaixão corporificada na forma não opera de acordo com inclinações
de um pai. Em outras palavras, em vez de adventícias, mas de acordo com as
pensar em trazer ao reino humano alguém necessidades que surgem. Grandes
que vai meramente sofrer, podemos aspirar bodisatvas podem até mesmo produzir o
trazer alguém que vai sofrer bem menos nascimento de uma consciência
que em outro reino, e, melhor do que isso, determinada — isto é, vão copular para
aspirar ajudar a manifestar alguém que vai conceber um determinado ser que viram,
ajudar a diminuir o sofrimento dos outros — com seu olho de sabedoria, no bardo. Assim
um bodisatva ou um buda. eles podem pensar "vou dar nascimento a
meu mestre, fulano", ou "vou tirar sicrano
Caso opte por não casar nem ter filhos serei do inferno". Há inclusive bodisatvas cuja
malvisto pelos budistas? principal prática, difícil de compreender na
nossa cultura, é engravidar grandes
O objetivo da prática budista não é ser bem- quantidades de mulheres. E o caso da mãe
visto, nem mesmo bem visto pelos budistas de Asanga e Vasubandu, que percebeu que
ou pelo seu professor ou sua sanga. Você não conseguiria ser uma grande praticante
deve buscar a virtude e ser autêntico, e não e fez aspirações para que tivesse um filho
produzir uma imagem perante os outros.

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que fosse um grande praticante — e deu a sofrer, então é um bom praticante do


luz a dois luminares do mahayana. desapego, em meio aos objetos.

"Não manter, pois, seres queridos, pois não Da mesma forma, se uma pessoa nos irrita,
vê-los só nos traz dor. Não se acham o método hinayana é se afastar da pessoa.
amarras naqueles sem seres bem ou mal No mahayana e no vajrayana há métodos
queridos." (Darmapada) Budistas se para gerar compaixão e utilizar essa
desapegam completamente de seus irritação no caminho.
familiares?
De toda forma todos os seres sencientes
O Darmapada é um texto ligado ao devem ser considerados nossa família
hinayana, a forma inferior de prática. No querida e próxima. Isso é comum aos três
hinayana as aflições mentais são atacadas veículos, hina, maha e vajra.
através do afastamento dos objetos que as
"produzem". Assim, se uma pessoa tem Como desenvolver-se espiritualmente
apego por sorvete de chocolate, ela não verdadeiramente, aprofundar-se em
pensa nesse sorvete, não chega perto do doutrinas autênticas e libertadoras ao
sorvete e assim por diante. ponto de poder auxiliar quem deseja, sem
deixar de pagar as contas, viajar com a
Além disso, é preciso considerar que o namorada, ajudar a mãe, estudar, trabalhar,
apego nos impede de efetivamente amar dedicar-se aos amigos?
essas pessoas, sendo algo que as reduz
como parte de nossa experiência – é o Nada disso é um impedimento, aliás, é parte
apego que aumenta nossa autoimportância da prática. A única coisa essencial para o
e que impede reconhecer o outro em sua caminho é encontrar um professor
diversidade e alteridade, e apreciá-lo de qualificado e tornar-se seu aluno. O grau de
forma incondicional. aprofundamento e o estilo de vida da
pessoa não são vinculados um ao outro,
Ainda assim, pessoas pelas quais temos mas à conexão com o guru e o próprio
carinho especial são aparentemente um carma da pessoa. Assim é imprescindível
obstáculo à prática da equanimidade. Mas gerar méritos, onde quer que se esteja.
no mahayana e no vajrayana lida-se com as
aflições mentais de outra forma. Em vez de Só é necessário mudar o estilo de vida caso
se afastar do objeto, a emoção é a pessoa, colocando as prioridades em
considerada em si mesma. Assim um ordem correta, e entendendo que ela, no
praticante do vajrayana pode ter um carro caso particular dela, não de todos ou
esporte — não é ele que determina seu qualquer um, não consegue praticar
apego. Se o carro for roubado, arranhado, e naquele estilo de vida. O melhor é não
o seguro não existir ou não cobrir, se ele mudar o estilo de vida, desde que ele não
sofrer, aí ele conhece seu apego. Se ele não seja conducente à desvirtude.

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Porque existe uma concentração de centros


Nada do que você mencionou é conducente no sul e sudeste do pais? Isso não é
à desvirtude. Mesmo assim pode ser difícil discriminação?
para algumas pessoas coadunar a prática
espiritual com essas coisas, mas isso é Os centros de darma surgem em torno de
apenas falta de mérito daquelas pessoas em uma sanga, não o oposto. Não é uma
particular. Por outro lado, nenhuma dessas agência central que cria filiais, mas pessoas
coisas é essencial, e portanto a pessoa que que por si mesmas viajam, trazem
não consegue, se ela entende que nada professores e enfim encontram outras
disso adianta sem a prática espiritual, deve pessoas com uma conexão semelhante e
abandonar o que for preciso. então organizam grupos. Quando há uma
sanga, daí um centro se forma — e só aí os
No meu caso particular, não tenho lamas dão um nome ao grupo, e o grupo vira
inclinação a nenhuma dessas coisas. Só um centro formalmente. A atividade
pago as contas porque não quero maiores missionária quase não existe no budismo
problemas, mas tento fazer contas que eu em geral, e não existe no budismo tibetano,
possa pagar sem trabalhar porque o budismo não é proselitista. Assim,
remuneradamente. Não sinto necessidade não é de nenhum planejamento que surgem
de viajar, minha mãe não precisa de ajuda mais ou menos grupos. Os grupos surgem
nesse momento, não faço questão de inteiramente da iniciativa das pessoas que
estudar formalmente. Não trabalho moram numa região, não de uma
remuneradamente há uma década. Não deliberação dos professores de "ah, agora
tenho nenhum apego por amigos, mas vamos fundar um centro lá naquele lugar".
sempre tem alguns por perto, sem falar na
internet. Por outro lado, amigos que não 1.1. Budismo e questões contemporâneas
estão interessados na prática espiritual, no
meu caso, são apenas perda de tempo. Se Como valorizar o espiritual em uma
eu fosse um praticante mais estável, não sociedade que preza cada vez mais o
teria problema, e até deveria, me relacionar material? Ir contra a maré não geraria
com mais gente e gente mais perturbada. isolamento?
Como não tenho essa estabilidade, me
relaciono proximamente apenas com a A dicotomia material/espiritual não é
sanga. Mas esse, como disse antes, é o meu natural do budismo. O Buda lidou com um
caso particular. Há muitos praticantes que sofrimento que é bem fácil de
conheço e que fazem tudo isso que você compreender: a insatisfatoriedade de todas
citou, e ainda assim praticam bem melhor e as coisas. Em outras palavras, a dicotomia
mais do que eu. ajuda no que chamamos de "materialismo
espiritual", que é utilizar de ideias
espirituais no mesmo estilo materialista de
sempre.

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insatisfatoriedade. Consumir portanto nos


Um dos antídotos para isto é viver sem essa une num frenesi de minutos de felicidade
dicotomia, mas prestar atenção na com um grande desapontamento, e talvez
insatisfatoriedade, porque até mesmo até culpa pela condição do planeta. Dessa
coisas aparentemente espirituais são forma, nem a pessoa menos espiritual
profundamente insatisfatórias. poderá se sentir isolada numa perspectiva
material, e portanto é possível a
Dessa forma as prosperidades mundana comunicação.
(riqueza, poder, fama, longevidade e saúde)
e espiritual (sabedoria de reconhecer a O que você acha das novas tecnologias e
realidade como ela é) não são objetivos inovações científicas na busca pelo estado
excludentes. O que a pessoa precisa de buda? Ajudam, atrapalham ou o
trabalhar são os hábitos arraigados, as caminho segue o mesmo?
ideias errôneas (como buscar satisfação
onde não vai haver satisfação) que Em geral atrapalham, porque perde-se mais
impedem a realização da prosperidade (de tempo com o que não é essencial.
ambos os tipos).
Agora, nada impede que sejam integradas,
Em outras palavras, uma mente de se o praticante tiver capacidade para tanto.
contentamento mundano e espiritual só é
possível no contexto da prática que evita as Muito do sofrimento do mundo entre os
aflições mentais e promove as qualidades humanos é causado pela falta ou pela má
incomensuráveis e paramitas. distribuição dos recursos. Pessoas que
supostamente têm o poder de ver o futuro
O isolamento não é verdadeiramente não poderiam mitigar muito isso sem
sequer possível. Uma pessoa pode criar prejudicar ninguém?
uma solidão artificial para enfatizar certo
treinamento da mente, mas ela nunca vai E elas o fazem. Ainda assim, não parece ser
estar completamente isolada dos seres — o suficiente.
afinal ela respira e come, pelo menos. Então
se ela tem uma verdadeira mente de Segundo o budismo, a causa de nosso
renúncia, ela renuncia às limitações da sofrimento é nossa responsabilidade. O que
mente, e considera com proximidade e os outros podem fazer por nós é
amor todos os seres-mães, em particular os extremamente limitado. Mesmo um Buda.
que tomam contato direto com ela, mas até Se um Buda fosse onipotente, não haveria
mesmo a quem lembra dela. sofrimento no mundo. Mas o Buda não tem
capacidade de transformar as ações que já
Por outro lado, qualquer pessoa que já foi cometemos, e que nos levaram a vivenciar
um consumidor — todos nós nesse planeta miséria. Tudo que ele pode fazer é ensinar
— conhece a experiência da sobre generosidade — a verdadeira causa

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da prosperidade — e se tivermos mérito, misoginia. Hoje em dia ninguém se diz "sou


vamos ouvir. um praticante do hinayana".

Se não tivermos mérito, vamos acreditar em Para o mahayana, o Buda surgiu como
noções como "recursos", "distribuição" e homem nessa era pelo contexto cultural
assim por diante. Isto é, vamos estar onde surgiu, como uma manifestação que
reificando o sonho. precisa estar vinculada as expectativas dos
seres a serem treinados. Mas há uma
Qual a posição do Budismo sobre a questão infinidade de grandes praticantes mulheres,
bioética de produzir artificialmente novas bodisatvas mulheres e Budas mulheres,
espécies? considerados no mahayana.

Pode haver carma positivo, carma negativo No vajrayana, que se foca em sabedoria, a
e carma misto, ou neutro. Isso varia de mulher é claramente superior. Um dos 14
acordo com as intenções e meios daqueles samayas básicos do vajrayana é nunca
que se engajam em tais atividades, como considerar mal uma mulher, porque ela é
em qualquer outra. As únicas ações exatamente a sabedoria. Nos casais em
inerentemente negativas são aquelas união, o masculino representa compaixão e
desvirtudes de mente indistinguíveis dos meios hábeis, e o feminino, sabedoria.
próprios venenos/aflições mentais — Evidentemente, para as mulheres que
porque são irredutíveis: desejo, aversão e praticam vajrayana, o voto serve com
ignorância. relação aos homens - -mas a relação não é
simplesmente simétrica. Padmasambava
O que o budismo pensa da ecologia? claramente disse que, pelo vajrayana, a
mulher é capaz de atingir a iluminação mais
Em geral os mestres budistas rapidamente, e teve uma mulher tibetana
contemporâneos são extremamente como principal aluna, Yeshe Tsogyal.
voltados para a ecologia e redução de
impacto e consumo consciente. A maioria dos meus próprios professores é
mulher.
Um dos motivos pelos quais se toma votos
monásticos é diminuir todo tipo de impacto Há algum motivo para haver tão poucas
— interpessoal, no ambiente, em si mesmo. mestres mulheres, se compararmos com a
quantidade de homens? Seria apenas
No Budismo o homem é considerado cultural? Isso me chama atenção, pois, em
superior à mulher? geral, nas sangas há mais mulheres
praticando do que homens.
No hinayana, pelo Buda ter dado seu
exemplo como homem, houve certa No Brasil temos a principal figura no Zen, no
Vajrayana e no C'han chinês — as três são

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mulheres. No theravada e na terra pura,


ainda não. Os problemas de todo tipo, não só de
relacionamentos, parecem ser mais
É meramente cultural e circunstancial. intensos nos dias de hoje. As aflições
mentais são descritas pelos mestres
Ouvi que quando o Buda foi convencido a budistas como estando bastante
permitir o monasticismo feminino ele disse descontroladas nestes tempos.
que por causa disso a "verdadeira lei"
permaneceria firme apenas 500 anos em É possível que o budismo se torne muito
vez de um milhar. É verdade isso? popular no acidente em pouco tempo? Isso
é necessariamente benéfico?
500 anos a menos (acho que a duração total
é discutível: 2.500, 5.000 e 10.000 anos são É possível, muitas coisas são possíveis. Mas
números mais comuns), e seria o darma acho que o budismo já foi mais popular uns
(que não é "a verdadeira lei" — esta 10 anos atrás. Não é necessariamente
terminologia teria implicações teístas e benéfico, mas é provavelmente benéfico.
dogmáticas que são um desfavor para o
ensinamento do Buda). O budismo ou algum mestre famoso já se
manifestou a favor de algum movimento
Mas isto é simples explicar: não é culpa do político? Por exemplo, dizendo que o
Buda o machismo da sociedade, então se o socialismo causa menos sofrimento que o
machismo cria obstáculos para a sanga capitalismo, ou algo assim?
feminina, e que dificultam o darma, isso é
devido a essas condições, não ao Buda. É O Dalai Lama se diz socialista. E todos os
preciso entender que o Buda não criou as professores budistas que eu conheço
coisas nem tem poder sobre as atacam o consumismo. Porém a prática
circunstâncias do mundo. Em todo caso, o budista é muito mais efetiva do que
Buda criou, apesar disso, a sanga feminina ideologias, em trazer benefício duradouro
(de monjas). aos seres-mães, então eles se focam nisso.

O budismo tem algo a dizer sobre a Como participar de competições, mas sem
preocupação das pessoas de hoje com os permitir que aflições mentais nos
problemas emocionais, de relacionamentos controlem? Quando competimos,
amorosos etc.? queremos ser superiores aos outros, não é?

Como muitas pessoas perguntam, muitos Não necessariamente. Algumas vezes


professores falam sobre isso. O budismo, participamos de competições da mesma
quando bem segue o exemplo do Buda, forma que um avô joga damas com uma
apenas reage ao sofrimento dos seres-mães criança: ele não se preocupa com ganhar ou
da forma que ele surge.

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perder, mas com tornar o jogo interessante ordinárias, porém eficiência também não é
para o oponente. um valor por si só. Como nossa cultura
enfatiza demais a competição, pode ser
Quando não é assim, quando a competição adequado diminuir um tanto o valor da
se coloca como uma forma de estruturação competição de forma mais geral, para que
social — como é comum hoje em nossa retornemos a um nível de competitividade
sociedade — podemos simplesmente ser mais equilibrado.
cordiais, ter espírito esportivo, e nos
dedicarmos a ganhar, sem guardar qualquer O budismo é a favor da separação da igreja
tipo de má vontade para com os oponentes. (religião institucionalizada) e do estado?
Isso, na verdade, nos ajuda a focar a mente Caso sim, quão universal é essa tendência
e jogar melhor. Aprender a perder é no Budismo atualmente?
também importante. Isso vale para um
concurso público, por exemplo — em todos Acho que não são todas as formas de
os âmbitos onde há competitividade e budismo que seguem nessa direção, mas
estudo, de forma geral, especialmente se a em particular aquelas que querem dialogar
competição é com um grupo vasto e com o mundo moderno e continuar
diversificado, temos algo a ganhar ao nos existindo. A relação da sanga com o estado
aliar a competidores mais próximos. começou separada, e não tem motivo
Estudar juntos, por exemplo. Ao nenhum para ser melhor ou pior qualquer
guardarmos uma mente o mais livre de das circunstâncias. Existe perigo de
competitividade internamente, mais livres distorção das duas formas, mas o período
estamos para exercer nossas qualidades da atual no mundo determina que existe mais
forma mais vasta possível, e dessa forma possibilidade de liberdade e de prática
nossas chances aumentam. Podemos religiosa efetiva, mesmo budista, num
competir sem sustentar uma mente estado laico. Quando a religião se envolve
competitiva: isto é o melhor em todos os no estado, é uma perda principalmente
casos. Todos os treinamentos da mente vão para a religião, principalmente para os
ajudar a pessoa a ter mais liberdade perante religiosos, que tem que se ocupar de
nossos hábitos, inclusive a competição. miudezas de curto impacto espaço
temporal, e não da prática espiritual que
Algumas vezes começamos a competir perpassa milênios, dezenas de governos e
mesmo quando não há uma competição várias formas de governo — que dizer das
ocorrendo. pequenas picuinhas de um estado
democrático. Com a mente na vastidão e na
Por outro lado, seria também interessante profundidade, a política é como astrologia
que nossa sociedade não incentivasse a ou fofoca. É completamente abismal
competição exageradamente. Alguma considerar mestres que coadunam bem as
competição aparentemente aumenta a duas coisas, como Sua Santidade o Dalai
eficiência das buscas humanas mais Lama.

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relativismo moral pernicioso, as tradições


Do ponto de vista do Budismo, o comércio religiosas benéficas avançam no benefício
de drogas deveria ser proibido ou permitido geral dos seres-mães.
pelo Estado?
O que o Budismo diz sobre tradições
Nunca vi nenhuma autoridade budista falar culturais aparentemente cruéis, como as
sobre o assunto. No meu ponto de vista a touradas espanholas?
transição de uma situação para a outra é
causadora de disrupção social. Se não fosse Qualquer um que participe ou meramente
sido proibido em primeiro lugar, talvez regozije com práticas cruéis, sofrerá no
fosse mais benéfico — olhando em futuro. Portanto é um objeto de compaixão.
retrospectiva — não proibir. As corporações
hoje já tem muito poder político, tanto as O budismo não é culturalmente relativista
legais quanto as ilegais — legalizar só — frequentemente culturas inteiras tem
facilitaria o lobby droguista. Mas essa não é aspectos seus que são profundamente
a opinião "budista", é só minha opinião. Em equivocados e levarão a sofrimento
geral, a não ser num estado budista, o profundo a muitos no futuro.
budismo não tem que se meter nos
assuntos de estado. Alguns estados budistas Como o Budismo encarava a escravidão
hoje (Butão, por exemplo) lutam pela quando ela existia?
separação de igreja e estado. Essa é a
instrução dos lamas aos governantes, fazer A única noção de escravidão mencionada
essa separação. nos textos budistas é a de alguém que não
tem liberdade para praticar o darma porque
Que ação o Budismo pode sugerir em está sob ordens de outro — como a maioria
relação às culturas onde se pratica a das pessoas que trabalha, hoje em dia.
mutilação genital feminina e outras Embora seja possível praticar algum darma,
violências que aleijam e mutilam pessoas? no nosso "tempo livre", não somos
verdadeiramente livres se temos
Os ensinamentos budistas são claros no que obrigações e agendas a cumprir. É por isso
o relativismo cultural não é nem próximo da que o ideal do iogue, que vive de restos e
verdade nem da compaixão. Portanto é mora em cavernas ermas, sem dever
evidente que culturas inteiras podem estar obrigações a ninguém, foi exaltado como o
erradas, não em tudo, mas com certeza em melhor modo de prática. Após o resultado
muitos de seus princípios. O budismo só é a ser obtido, nenhum âmbito é evitado. Para
favor da preservação de elementos uma pessoa que domina um estado de
culturais que sejam benéficos ou neutros, e samadhi, mesmo algum nível baixo e
esse benefício e neutralidade são objetivos considerado obstáculo para meditações
e não dependem de cultura para cultura. Ao mais profundas no budismo, mesmo se ela
esclarecer como o benefício é objetivo e o estiver dentro de uma cela ou em meio a

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trabalho forçado, ela possui uma liberdade Segundo o budismo, nosso próprio mundo
mental muito maior. também já esteve um pouco melhor. E pode
voltar a melhorar também. Ou pode piorar
Evidentemente, o budismo sempre foi muito. O próprio conceito de
contra utilizar animais para carga — que impermanência, junto com o conceito de
dizer de comer seus corpos? E, então o que carma, explica muita coisa.
dizer de explorar outros seres humanos, 1.2. Adaptações culturais
que são muito mais capazes de compaixão e
de fazer prática espiritual. Qual a visão budista a respeito da culpa?

De certa forma, uma pessoa que pratica o Vou assumir que você está falando do
budismo não pode nem mesmo prender sua sentimento de culpa, não de uma noção
atenção para algo neutro ou negativo por meio que jurídica de culpabilidade — de
um instante, porque ela está tirando a sua apontar responsabilidade.
liberdade de praticar naquele momento. Ela
só pode atrair sua atenção para algo No caso do sentimento de culpa, ele é
positivo para você e para todos os seres. totalmente desnecessário. Alguns
Que dizer então de desviar toda a vida da professores budistas falam em dois
pessoa para trabalhar para sua felicidade e problemas principais em seus alunos
a da sua família, sem nenhum benefício ocidentais, não tão comuns em asiáticos:
para ela ou para todos os outros seres? O baixa autoestima e sentimento de culpa —
budismo, assim, nunca defendeu a que podem estar vinculados um ao outro.
escravidão. Então são desafios novos para professores
orientais lidando com alunos ocidentais.
Se o Budismo é uma tradição superior e/ou
mais eficaz, por que vocês ainda não O que a pessoa mesma pode fazer é refletir
dominaram o mundo? na natureza das causas e condições, na sua
ignorância de causas e condições (se ela
Infelizmente o carma negativo da maioria soubesse que seria assim, ela não teria
das pessoas neste mundo permite muito agido), e assim usar isso como motivador
pouca felicidade. Porém, segundo os para grande compaixão por todos aqueles
ensinamentos budistas há mundos em que que agem motivados pelas aflições mentais,
a virtude e as raízes da virtude são causadas pela ignorância. Ao gerar essa
cultivadas extensivamente, mundos mais compaixão, ela se inclui juntamente com os
felizes — alguns inclusive sob direção outros.
budista, e que portanto permitem não só
circunstâncias gerais melhores, mas boas Por que aqui no Brasil não é tão comum os
condições para a prática espiritual que leva grupos budistas usarem músicas letradas
à iluminação. em português? Pergunto pois acho que toca
muito no interior das pessoas algumas

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músicas das tradições religiosas cristãs e mais das vezes recitar em tibetano. Práticas
sinto falta disso. sem métricas, feitas individualmente,
podem ser feitas em português sem
Falta de pessoas capazes no sentido prático, prejuízo.
liricista e musicista, que tenham realização
e sejam autênticos detentores de uma Com o tempo, quando muitos falantes do
linhagem. Vai levar uns 200 anos ao menos, português atingirem a realização, os textos,
e a forma musical dificilmente será popular, métricas e músicas vão finalmente poder
pelo menos na tradição tibetana ou no zen, ser adaptados fielmente para o português.
onde a formalidade na sala de prática é Isso deve levar um ou dois séculos.
essencial.
Estava lendo o "Livro Tibetano do Viver e do
Porque recitar mantras em tibetano? Não Morrer" de Sogyal Rinpoche, mas achei que
seria melhor recitar uma tradução? algumas coisas são muito enraizadas na
Entender o que está sendo dito não é própria cultura do Tibete, e complicadas de
importante? se entender nesse mundo ocidental de hoje.
Que interpretação posso fazer?
Não existem mantras em tibetano. Os
mantras não foram traduzidos para o Num período de transição, quando o
tibetano. Os mantras são em sânscrito, e budismo ainda não se estabeleceu bem na
cada sílaba tem uma longa explicação, nova cultura, temos que ter paciência, e até
tornando uma tradução impossível. Assim mesmo incorporar certos elementos da
os mantras são explicados, mas não cultura original.
traduzidos.
Eventualmente, depois de um par de
Já as práticas de sadhana muitas vezes são séculos, possivelmente o enraizamento é
feitas em tibetano (exceto os mantras, que suficiente para a questão cultural não ser
seguem em sânscrito) porque o tibetano um problema.
daqueles textos em particular está
impregnado das bênçãos dos praticantes do Eu mesmo, como não me sinto
passado. Além disso o tibetano é muito particularmente brasileiro, tendo desde
mais conciso do que o português, e existem criança vivido um mundo "globalizado" —
questões métricas e ligadas aos ou essencialmente norte-americano através
instrumentos musicais que tornam difícil da TV — não tenho nenhum apreço a
uma adaptação. Mas é muito importante nenhuma cultura particular. Assim, quando
saber o que se está recitando, por isso é alguma tibetanice me incomoda, eu só
fornecida uma tradução. A pessoa vai fazer lembro de tantas coisas que me incomodam
essas práticas todos os dias até o fim da na brasileirice, na norte-americanice, na
vida, então ela pode ocasionalmente cultura global moderna como ela é, e isso
estudar e relembrar em português e no naturalmente faz a paciência surgir, e a

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abertura para eu me engajar, ainda que esmagadora o Universo se encontra em


ludicamente, nas particularidades de uma expansão. Isso não vai contra a noção de um
cultura alienígena. universo cíclico, apregoada pelo budismo?

Que calendário os budistas usam? O problema é a noção de que algo exista "lá
fora", dentro do tempo e do espaço. Tempo
Vários. Só no Tibete uns três. e espaço só existem em função de avidia,
ignorância.
Que língua o Buda falava?
As bases epistemológicas da física são
Um dialeto próximo do páli, algumas vezes embasadas em avidia. O físico desenha seus
chamado de proto-páli. modelos e a partir dele desenha
experimentos e traça conclusões. Mas os
1.3. Budismo e ciência modelos que ele desenha são embasados
nas suas próprias concepções limitadas. Vez
Você poderia apontar o principal ponto de que outra há uma "revolução" na física,
convergência entre budismo e ciência? quando se percebe que os modelos já são
insuficientes. Você pode ler sobre isso no
A convergência é o método experimental, famoso livro de Kuhn, sobre a estrutura da
ao contrário de outras religiões onde você revolução científica.
precisa acreditar, no budismo você coloca
os ensinamentos a prova através da prática, Desde Aristóteles, o que a palavra "física"
em condições controladas, esperando obter significa mudou, e no século XX mesmo, já
os mesmos resultados de outros mudou bastante. Só na mecânica quântica
pesquisadores. Essa é a semelhança. há 5 modelos principais, contraditórios uns
com os outros, que explicam e permitem
"Não acreditem em qualquer coisa porque cálculos razoavelmente.
um sábio falou, porque se acredita em geral,
porque está escrito, porque é considerado O ponto principal é entender que o que os
divino ou porque outra pessoa acredita. Só físicos estão observando é determinado
acreditem no que vocês mesmos julgam ser pelas suas próprias condições de cognição
a verdade." É assim no Budismo? — seus hábitos, e enfim, avidia. É por isso
que ocorrem "revoluções" na física —
Foi o que o Buda disse e está registrado no porque ela é embasada em avidia.
cânone em páli, mais precisamente no Sutra
dos Kalamas. O cânone em páli é aceito por Mas, se você não for capaz de entender o
todas as formas de budismo. que significa dizer que não existe uma
realidade independente do observador.
A maioria dos cientistas aceita a Teoria do
Big Bang como válida. Segundo a maioria

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Em 10 anos de pesquisa na física a duração ligado — e então, só então, consideremos


do universo desde o Big Bang variou 10 especulações ou séries de TV — porque elas
bilhões de anos. Isto é, as formiguinhas estão na mesma categoria — perda de
pesquisam no seu tempo de formiga. Basta tempo.
uma descoberta nova, e todos os cálculos
vão por terra. Agora mesmo, por exemplo, Como o Budismo lida com a ideia de Big
semana passada, descobriram que o próton Bang e de um possível início para o
é menor do que se pensava. Isso muda universo?
todos os cálculos. Além do que, não se sabe
o quanto de "matéria escura" há, ou não há A noção de um início para o tempo é
(e para a sua questão, isso é determinante, paradoxal. O Big Bang explica porque as
na questão da expansão ou não expansão). galáxias se afastam, mas não muito mais do
que isso, e está limitado pelos limites
O certo é que a física que se desenvolve epistêmicos de um universo observável.
durante o período de vida de um ser Sem entrar em consideração sobre como
humano — digamos, exagerando, 100 anos mudam as teorias sobre vastas quantidades
de idade — não é confiável. O que a física de tempo em tempos muito curtos. Nos
mudou desde 1910 (já tínhamos a últimos 20 anos, o universo variou uns 5
relatividade geral!) é absurdo, e o que vai bilhões de anos — e é nessas ferramentas
mudar até 2110, impossível de mensurar. A epistêmicas que as pessoas confiam para
ignorância é vastíssima, ainda mais falar sobre "início do universo", ou pior
operando com uma epistemologia capenga "início do tempo"... E umas duas semanas
(que a maioria dos físicos não está nem um atrás o próton diminuiu um pouco, daí acho
pouco disposta a discutir). que eles vão ter que recalcular tudo agora.

Assim, o darma não precisa se curvar Então, enquanto for uma teoria — e pode
perante o que são especulações. Sabe-se permanecer uma teoria virtualmente para
como fato coisas como a lua não ter luz sempre — e considerando que a
própria. Isso é certo. O Big Bang, por mais perspectiva budista sobre o tempo é um
aceito que seja, ainda é uma teoria. É pouco, hm, mais VASTA do que meros
especulação. Por mais próxima da realidade bilhões de anos....... não há problema. Se
que uma especulação seja, 99.999999% algo for comprovado, sobre o início do
ainda não são suficientes, é especulação, tempo (se é que algum dia surgir algo além
não é fato. Então, deixemos as de uma formalização sobre o tempo, mais
especulações de lado, nos fixemos em no sentido de uma definição bem
entender como é que a ignorância, que é adequada...) daí o budismo muda. Todo
uma qualidade da mente, produz tempo e mundo já concorda que, apesar do que o
espaço, estabeleçamos bases abidarma diz, a lua não tem luz própria. O
epistemológicas corretas, nos preocupemos budismo segue a evidência empírica acima
com o sofrimento, que nos é diretamente da inferência.

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instrumentalismo coabitam perfeitamente


Mas em geral, preciso confessar isso, tudo com o budismo. Já vi um lama louvando a
que PODE mudar no budismo, com Interpretação de Copenhagen como
"descobertas", não é essencial para o basicamente madhyamaka. E acho que Sua
budismo. Santidade o Dalai Lama, em conversa com
físicos, chegou a expressar alegria
O Budismo tem algum ponto de vista sobre semelhante.
o Princípio Antrópico, o fato das leis físicas
serem amigáveis à existência de vida Agora, o que não funciona na física pequena
inteligente, o que em teoria não seria é a causalidade e determinação clássicos. É
necessário? só um modelo diverso de causalidade, e não
aleatoriedade, mas o trabalho com nuvens
Para o budismo as leis físicas são fruto dos de probabilidade, o que é bem diferente de
modelos de investigação humanos, e mera aleatoriedade. De toda forma, a física
portanto não existem nas coisas — o realista precisa ou do superdeterminismo
próprio mundo externo não é tido, pela ou da aleatoriedade, para fazer sentido. No
maior parte das escolas budistas, como budismo, o físico é um epifenômeno da
existente senão como uma projeção. mente, portanto as interpretações físicas do
realismo são necessariamente
O Budismo funciona no nível subatômico? problemáticas. Uma causalidade física
Porque lá, segundo a interpretação realista, por exemplo, só pode explicar
dominante, há uma aleatoriedade pseudocausas e pseudo-resultados. Esse
intrínseca e a causalidade não funciona mundo fantasmagórico tem explicações
muito bem. fantasmagóricas. A operação da
causalidade budista não opera em nenhum
São meras aparências de sonho, sonhadas dos quatro modelos aristotélicos (causa
em instrumentos de sonho. Portanto, eficiente, etc.) deste mundo
funciona muito bem, exatamente como o fantasmagórico (físico).
resto do sonho, sem diferença. Os
problemas epistemológicos da física até Um átomo de ouro, uma vez que veio a
mesmo apontam para questões comuns às existir, não é geralmente permanente?
budistas. As questões dos modelos,
paradigmas e assim por diante. Das seis Tenho um pequeno conhecimento de física.
interpretações que calculam razoavelmente Átomos são coisas compostas (embora o
bem a teoria quântica — e que são nome: ainda não se descobriu uma coisa
completamente diferentes — o budismo só não composta na física). Portanto todo e
não trabalha bem com as interpretações qualquer átomo, se tiver muita sorte, só
realistas (que também são as da física tem duas chances, no longo prazo: resfriar a
clássica em geral). As interpretações que zero kelvin (e há muita teoria sobre o que
pendem mais para o idealismo e o aconteceria nesse caso: possivelmente se

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dissiparia em radiação gama). A outra interna, não de sua facilidade de


possibilidade é ele se aproximar de uma combinação química).
massa vasta, como uma estrela e
eventualmente se colapsar, quando essa A Matemática tem alguma importância no
estrela tiver seu fim. Isto é, dependendo da Budismo?
teoria, se o universo se expandir
indefinidamente, ou se contrair As listas são um método mnemônico
eventualmente, em ambos os casos a comum. Os números particularmente
integridade de todo e qualquer átomo é grandes são de interesse para certos
seguramente corrompida. ensinamentos. Já aritmética, álgebra,
geometria, etc. não parecem ter relevância
Além disso, há dois sentidos de alguma, bem como conceitos matemáticos
"permanente" — um é que o objeto é ou filosofia da matemática.
eterno, e não se dissipa, e o outro é que o
objeto não muda — temos a tendência de Como a teoria biológica da evolução das
nos referir a nós mesmos bebês e a nós espécies é encarada no Budismo? Quando
mesmos hoje como a mesma pessoa, o ainda não existiam (supostamente)
mesmo objeto. A explicação anterior é espécies inteligentes, já existia darma?
sobre o sentido de permanência de um
objeto em termos daquela combinação Não. Mesmo com espécies inteligentes não
peculiar de constituintes dele vir ou não a existiu darma por muito tempo.
deixar de ser uma base de designação. No
segundo caso, evidentemente, como um O budismo não tem problema com a
objeto cujo o interior é "uma nuvem de evolução das espécies pelo menos se não se
probabilidade", ou com objetos girando coloca como uma teleologia por si só. Isto é,
numa velocidade próxima a da luz ao redor do ponto de vista estrito evolucionista, um
de um núcleo razoavelmente mas não estuprador que impregna a vítima é mais
totalmente estável, é mais fácil mostrar a bem sucedido do que um monge como o
impermanência do átomo. Dentro dele uma Dalai Lama, que não deixará prole. Se
coisa sequer está "num lugar" enquanto se conclusões morais são traçadas a partir do
mede a velocidade dela! (Segundo pelo evolucionismo, aí há um problema. Como
menos uma das seis interpretações da uma mera percepção de fenômenos que se
mecânica quântica que calculam repetem num padrão, a partir do qual não
razoavelmente bem as coisas.) são traçadas ideologias, não há problema
algum com a evolução das espécies.
E, como curiosidade, o exemplo deveria ser
com o átomo de chumbo, que é O Budismo tem alguma teoria sobre a
ligeiramente mais estável do que o átomo origem da vida?
de ouro. (Em termos e sua integridade

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Não que eu saiba, embora eu mesmo já Christopher Hitchens, Sam Harris e


tenha tentado vincular os doze elos aos similares?
conhecimentos biológicos atuais. Mas
nunca vi ninguém fazer isso — basicamente Eu pessoalmente acho que em geral as
porque não parece fazer diferença para a posturas são bastante infantis, e claro,
prática da pessoa, e o budismo não está aí atacam um alvo que se estrutura
para explicar as coisas. principalmente nos EUA, alguns tipos de
fundamentalismo cristão. Quanto a
Uma vez que existem mesmo deuses, eles religiosidade em geral, as visões são
podem ter intervindo no processo de bastante limitadas, particularmente em
evolução das espécies que a ciência Hitchens (preciso lembrar de rezar pelo seu
contemporânea propõe ter acontecido? câncer!) e Dawkins. O End of Faith, por
outro lado, é leitura recomendada — ou
Nunca ouvi nada a respeito. Mas, caso sim, mesmo mandatória, para quem quer se
provavelmente da mesma forma que os tornar aluno — por Dzongsar Jamyang
humanos intervém desde milênios atrás — Khyentse Rinpoche.
reprodução seletiva. Ou, de forma não
deliberada, como no surgimento dos cães, O que falta em Dawkins (Hitchens é uma
que se docilizaram através de cruzas entre espécie de publicitário) é uma visão mais
dóceis que ficavam próximos dos humanos. crítica da ciência — verdadeiramente
crítica. Muitas dificuldades epistêmicas,
Com certeza não da forma que certos muitas das metafísicas subjacentes como
tirtikas (não budistas) propõem, onde uma premissas ocultas da ciência são, de fato,
castanheira pode surgir de uma semente de religiosas. Por um lado então, a ciência
amoreira, porque há um surgimento como a crença predominante entre os
mágico. (Um tópico de debate comum na formadores de opinião, se torna um tipo
madhyamaka, que nega esse tipo de mais perigoso de religião — uma que oculta
surgimento.) suas crenças ou pelo menos seus pontos
cegos, seus pontos incomprovados e quiçá
Os deuses estão dentro do sonho, que surge incomprováveis. Hoje mesmo li num jornal
por interdependência, portanto eles não brasileiro um doutor matemático qualquer,
reconhecem que é um sonho, e estão por exemplo, dizer que ao atravessar a rua
também sujeitos a interdependência. Dessa efetuamos muitos cálculos
forma, eles não podem agir magicamente inconscientemente. Isso é pitagorismo
— quer dizer, com certeza pode soar mágico disfarçado de ciência — não há evidência de
para nós, mas não pode operar além da que isso aconteça, por mais que ele acredite
interdependência. assim. E, da mesma forma, muitas das
coisas que os cientistas dizem são
O que um budista pensa do ateísmo oraculares — quantas pessoas acreditam
materialista militante de Richard Dawkins, que o Big Bang explique algo mais do que a

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movimentação atual dos corpos? A não capacidade de praticar algo melhor. Agora,
localidade de leis físicas, por exemplo, não a epistemologia budista, e o jeito que o
é algo comprovado, mas todos nós, budismo trata doutrinas filosóficas como o
inclusive eu, só conseguimos pensar em leis idealismo e o realismo, em debate, pode
físicas que funcionam uniformemente — ou ajudar a filosofia da ciência, eventualmente.
pelo menos variam uniformemente — de Não que isso seja relevante para o budismo
acordo com o espaço e tempo. Leis mais do que uma boa publicidade
descontínuas, leis como leis dos estados momentânea com o que parece ser mais
norte-americanos — para usar uma respeitado na contemporaneidade.
metáfora — são inimagináveis, e, com
certeza, para um físico, é indesejável pensar Quando eventualmente se diz que a Lua
nesses termos. Por enquanto, quando o tem luz própria, isso não pode ser algo
espaço se curva, nós adequamos essa espiritual e não material?
curvatura às leis — isto é, fazemos
emendas. Mas quando a física tiver uma Uma metáfora? O abidarma é uma
nova revolução, nós vamos ver um conceito categoria de textos que lida com o sentido
central como esse (não necessariamente direto. A interpretação dos textos budistas
esse) ser quebrado, e então vão mudar a segue algumas escolas, mas nenhuma delas
maioria dos modelos em várias áreas da diria que o que o abidarma está dizendo é
física. O realismo ou instrumentalismo, metafórico. Sua Santidade o Dalai Lama
dependendo da ciência, nunca são disse que o abidarma é retificável. Quando
desafiados — "isso é coisa de filósofo" era o a categoria sutra, com certeza ali seria mais
que eu ouvia na física — se os cálculos difícil admitir um erro — mas, ainda assim,
fecham, ou é porque é assim ou é porque é segundo o próprio ensinamento do Buda, se
suficiente. Mas aí não tem explicação há evidência empírica, a evidência vale mais
efetiva nenhuma, e de fato, para quem do que o suporte textual. Por sorte há
conhece, já se sabe que o papel da ciência é poucas afirmações de verificação empírica,
cada vez menos "explicar". Enquanto não é pelo menos como a entendemos hoje, na
falsificado, é aceito — é assim que alguns categoria sutra.
teóricos dizem que funciona a ciência. Mas
em geral esse "aceito" é popularmente 1.4. Budismo e filosofia
considerado muito mais do que isso, e é por
isso que as pessoas tomam a ciência como Há alguma relação entre a alegoria da
tomam a religião, por seus hábitos. caverna do filósofo Platão e o Budismo?

A maioria das críticas contra a religiosidade Segundo o budismo todas as coisas estão
o budismo até pode partilhar — embora, interligadas, então "alguma" relação existe
por compaixão, muito do budismo entre qualquer coisa com qualquer outra
pseudoteísta seja adequado de ser coisa. Se existe uma relação especialmente
ensinado, para pessoas que não tenham significativa, daí é problemático, porque

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normalmente o platonismo acredita na


existência inerente de formas puras, e o Em outras palavras, o uso da palavra
budismo não. "controverso" acima é estranhamente
apropriado, na verdade. Se é controverso, é
O Budismo discorda então da existência de impermanente. E com o que a pessoa
um mundo platônico das ideias onde começa a investigar a impermanência, com
existem os arquétipos eternos de tudo? controvérsias? Eu não preciso meditar
Acho que esse é um ponto bastante sobre a impermanência de unicórnios —
delicado e controverso. embora, se eles existissem, fossem
impermanentes. O que eu preciso meditar é
Não é muito controverso não. O budismo é sobre as coisas que eu sei ou tomo como
anti-filosófico — isso parece ser reais — não sobre todas as possibilidades
conhecimento geral. Como já disse, não do real. Evidentemente, se alguém toma
estamos lidando com afirmações sobre as algo como um mundo platônico como real,
coisas, e sim com um método. Então se não vai poder praticar o darma. O darma
alguém vem com a afirmação "há um não se prova a si próprio — ele se mostra na
mundo das ideias", isso é, para o budista, experiência, sem fazer a experiência, não há
alguém que quer conversar sobre a cor da darma. Então se eu começar considerando
decoração da flecha que está enfiada em a tartaruga cósmica como permanente,
seu olho. A pessoa precisa de tratamento, como eu nunca vou ter acesso a essa
não discutir unicórnios. tartaruga cósmica, dificilmente eu vou
considerar a impermanência
Em outras palavras, como você começa a adequadamente. E tudo que pode ser
meditação sobre a impermanência? Com afirmado é uma tartaruga cósmica. E
seu próprio corpo, com as coisas ao seu impermanente.
redor, e assim por diante. Você não reifica
essas coisas, e muito menos suas ideias. Hoje você escreve as palavras "mundo
Você pode meditar sobre como algumas platônico", e amanhã ninguém vai nem
pessoas no passado pensaram coisas, e mesmo saber o que é isso. Filosofia é
sobre como essas ideias se corromperam apenas reificação do discurso. Chandrakirti
com o tempo, e sobre como nem os disse que uma pessoa normal tem uma
especialistas concordam sobre o que noção de eu natural, que é errônea, mas
exatamente se estava querendo dizer. essa pessoa tem chance de praticar o darma
Agora, você não começa pegando um ponto e reconhecer a realidade. Já uma pessoa
controverso, como o mundo platônico, e que além da operação natural através dessa
como um filósofo, discutindo o que está noção habitual de eu inventa uma coisa tal
certo, ou pode estar errado. Essa é a atitude como uma alma — um filósofo — esse não
de alguém que não entende a diferença tem chance de colocar nada em prática.
entre um método e a discussão de ideias Esse infelizmente vai ter que passar muitas
que podem estar certas ou erradas. vidas discutindo, até que tenha ou não o

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mérito de ir além do debate, e efetuar formas de hinayana que refutam. Depois há


experimentos. E, pior, certos pontos do o budismo idealista, que é refutado pelo
ensinamento budista são inacessíveis e caminho do meio (madhyamaka).
incompreensíveis para quem não fez certos
experimentos, e quando um filósofo se Então basicamente depende do veículo e da
apropria deles, ele transforma o darma em escola, mas a visão superior, segundo os
um sistema com afirmações. Daí só alguém tibetanos, é a que não reifica nenhuma tese.
com muita paciência e capacidade pode
desenliçar um tipo assim. Com certeza, seja realista ou não, o
budismo acredita num engano em massa
É possível saber pela experiência ou pela com relação ao que tomamos por existente.
razão que 1+1=2? Isto é, nossa visão comum é de um certo
realismo (tomamos o mundo como
Não é necessário ir muito longe em existente), e equivocada. Mas ela não é uma
aritmética básica. Ela é puramente visão necessária, e por isto não se trata de
empírica, como toda formalidade ou uma tese, mas de um método. Para aqueles
convencionalidade — mesmo quando que reconhecem certos enganos
fazemos experimentos de pensamento para prevalentes, para estes há o método
comprová-la. No budismo o conhecimento budista.
se pode dar por inferência ou experiência,
sendo a última melhor que a primeira. Com relação aos objetos que os modelos
atuais da física, por exemplo, apresentam
A inferência é estritamente aquilo que exige como mensuráveis, todas as visões budistas
dedução, isto é, formulação de hipóteses. vão dizer que estes modelos estão
Na inferência você sai com um "é mais embasados num viés epistemológico
provável", enquanto o que é empírico, particular, que possuem funcionalidade
trate-se de objetos mentais ou físicos (a estrita dentro desse viés, e que são
mente é considerada o sexto sentido, e o falsidades num sentido último.
objeto da mente, por exemplo, uma laranja
mental e duas laranjas mentais, são objetos O universo que dividimos com um monte de
empíricos — principalmente por se indivíduos seria fruto de uma consciência
tratarem de convenções). coletiva? Como o budismo explica a
existência da matéria não viva? Seria o
Para o budismo, a realidade física existe ou universo um único indivíduo (a dimensão
também é uma ilusão? Ou ilusão é somente suprema ou o inconsciente coletivo) que
a percepção que temos dos objetos e tem sua própria consciência?
circunstâncias?
No budismo há várias escolas. Há escolas
No budismo realista, a posição é realista. Os realistas, segundo as quais existe um
tibetanos classificam como realistas duas mundo externo, que, no entanto, é

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percebido de forma parcial e errônea pelos pedra. Esse surgimento depende da


seres que não são Budas, isto é, que não são consciência, e sem uma consciência, é
totalmente esclarecidos. Na classificação impossível haver um surgimento de
geral dos ensinamentos mahayana, a visão "pedra". Isso é semelhante ao idealismo
destas escolas é considerada inferior. Um transcendental de Kant: noções como
pouco superioras a estas, estão as escolas tempo e espaço dependem de categorias
idealistas, que afirmam não haver mentais internas, mas pode existir uma
propriamente nada independente da "coisa em si" lá fora, independente, a que
mente, então só o que haveria mesmo não temos acesso. Isto é, "aquilo que surge
seriam as autoaparências de uma mente. para nós como pedra", ou galáxia... veja que
"Uma" é um exagero, porque todas as mesmo e principalmente espaço e tempo
noções de multiplicidade de seres, um só são vistas como categorias mais mentais do
ser, nenhum ser, e assim por diante, seriam que reais. Existe esse grau de sofisticação
meras aparências e ignorâncias de uma no realismo budista.
mente fixada em formas particulares.
Porém, o idealismo budista é mais
O realismo é nosso modo usual de perceber sofisticado. Ele não postula qualquer coisa
o mundo: vemos seres e objetos independente de uma mente, uma "coisa
inanimados como externos e separados de em si", e acusa os realistas de reificarem
nós. O idealismo, que é mais sofisticado, (tornarem real) a "coisa em si", separada da
propõe que tudo é como um sonho, quando mente, que não existiria.
acordamos (quando atingimos o estado de
Buda) percebemos que todas aquelas Além do realismo e do idealismo, existe a
formas eram projeções de nossa mente. escola do Caminho do Meio, madhyamaka.
A madhyamaka aceita as críticas idealistas
A questão dos objetos inanimados é ao realismo budista, mas acusa os idealistas
interessante por outro ângulo: no realismo de reificarem a mente. A madhyamaka
ninguém propõe que exista consciência em acusa os idealistas de postular,
tudo que existe, é como o fisicalismo usual, indiretamente, um "sonhador", o que
uma pedra é uma coisa externa, coisas consideram um extremo e uma forma de
externas possuem propriedades e realismo as avessas. Sem postular algo
interagem, mas não necessariamente "dentro" ou "fora", um sonho sem sonhador
"conscientemente". No entanto, mesmo no é a visão insuperável do Caminho do Meio.
realismo, como disse acima, o que "vemos" A madhyamaka aceita o realismo como
do objeto depende em parte de nossa visão convencional dos seres ignorantes, e
mente, então há uma dependência no vai além de realismo e idealismo na visão
sentido de relação: nós vemos uma pedra dos Budas. Não postula assim um "modo de
como uma pedra por causa de nossa existência" para qualquer coisa, o que é
consciência, por si só ela é o que é, seja o propriamente o que se chama de
que for, mas para nós surge como uma "vacuidade". Isso não impede, no entanto

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que o surgimento ocorra. De fato é da mente. Dessa forma, retirando a


exatamente porque nada é postulado, que ignorância, é tudo iluminado — mesmo o
formas adventícias são possíveis, e que hoje vemos como sólido, físico e
portanto, diz o Sutra do Coração, forma é “pertencente” a nós: nossos sentidos:
vacuidade, vacuidade é forma. Forma nada órgãos dos sentidos, suas interfaces e seus
mais é do que vacuidade, vacuidade nada objetos.
mais é do que forma.

O que é "corpo" para o budismo? Como o


budismo vê a típica separação do "Dessa forma, retirando a ignorância, é tudo
físico/espiritual, muito comum em muitas mente e é tudo iluminado — mesmo o que
visões religiosas? hoje vemos como sólido." Quando você usa
o termo "mente" aí, está se referindo à
Os fenômenos físicos são uma subclasse "minha mente" ou à mente como natureza
diminuta dos fenômenos mentais, isto é, básica de tudo?
entre os diversos fenômenos mentais,
algumas ilusões particularmente sólidas É claro que a noção de eu, meu, minha é
surgem pela reificação e são tomados como baseada na ignorância, então quando
particularmente independentes e externos. falamos em sabedoria no sentido budista,
Eles não existem como nada mais do que não existe sabedoria que pertença a
aparências de um sonho. Quando se alguém. Porém se você usar a expressão
comportam de forma mais estrita e regular "natureza básica de tudo" e chamar isso de
os chamamos de "físicos". O que os físicos mente, isso só não vai ocasionar um
(os cientistas) estudam, é uma subclasse problema se você não reificar "mente"
ainda menor desses fenômenos — reduzida como alguma espécie de essência das
pelas dificuldades epistêmicas dos modelos coisas. A mente que reconhece a vacuidade
atuais, e possivelmente por dificuldades em todas as coisas, essa mente é a
epistêmicas fundamentais da ignorância sabedoria que está além dos extremos de
observando a ignorância. um possuidor e um possuído, e que está
além de noções arbitrárias tais como "tudo"
Entre os fenômenos físicos pelos quais e "base", e que portanto é a liberdade
temos apego particular, e cujo apego nos natural, o que quer dizer não nascida, não
ajuda a reificar a noção de um eu coeso e causal e atemporal, que está além dos
independente, está o corpo — juntamente extremos de existência e inexistência,
com o mundo em que esse corpo nasceu, o surgimento, sustentação e destruição, e
reino humano. Quando eliminamos o apego que portanto não possa ser apontada como
e a reificação desses objetos todos, quando um objeto separativo.
os reconhecemos como feitos de tecido de
sonho, então eles são nada mais do que Então, na visão budista, a existência como
manifestações das qualidades iluminadas um todo, o universo, é tudo mente? Se for

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assim, há alguma forma de manipular o meu terras puras. Algumas pessoas, por outro
sonho-realidade? lado, purificam a visão e conseguem
rapidamente se reconhecer, ainda com este
Sim, mas não pela mera vontade: este tema mesmo corpo, vivendo numa terra pura.
new age é um sintoma de transtorno Algumas pessoas, especialmente aquelas
psiquiátrico — o pensamento mágico. vivendo em centros de darma, podem dizer
da boca para fora que vivem numa terra
As escolas realistas, que acreditam numa pura (e que "lá fora" é o samsara), mas é
realidade externa separada, são verdade alguns praticantes, e em particular
consideradas inferiores. Os idealistas, para alguns professores, evidentemente
quem tudo é mente, são os intermediários. transformam onde quer que eles estejam
No ápice, o caminho do meio, "externo" é numa terra pura. A presença de alguns
aquilo sob o que não temos controle — o grandes professores é suficiente para
que inclui boa parte de nossa mente no transformar de tal maneira nossa
momento, totalmente vinculada a hábitos e percepção do sonho que somos
tendências — ao ponto de termos que naturalmente apresentados à mandala.
"querer querer" algo, para só então Algumas vezes essas bênçãos duram
começar a treinar nossa mente. Então, algumas horas, outras vezes, alguns meses
obter controle sobre a própria mente é o — e é por isso que é necessário estabilizar
primeiro passo, e isso se coaduna com essa percepção pura (o voto central do
todos os três tipos de escolas: as realistas, vajrayana) através da prática regular, de
as idealistas e as além dos extremos. forma que ela se torne ininterrupta por
vidas a fio, até a iluminação.
É fácil entender que, se, no budismo, o
resultado do carma constrói o sonho, se Porém, muito mais importante do que
você quer ter sonhos bons, você age sem manipular o sonho é o estado de lucidez que
prejudicar os outros, e, pelo contrário, os reconhece o sonho como sonho
ajudando. Assim a ética e a compaixão, ininterruptamente. Assim, como as duas
através da geração contínua de méritos, asas de um pássaro são necessárias para ele
produzem mudanças internas: maior voar, no budismo acumulamos mérito e
contentamento, felicidade; e externas: sabedoria. Não apenas uma coisa, nem
numa mesma vida a pacificação das somente a outra.
relações e o encontro de boas
oportunidades — e nas vidas futuras corpos A realidade não é consistente demais e o
e paisagens melhores. universo não é grande demais para ser um
sonho?
É claro que manipular a realidade através da
geração de méritos, dependendo de quão É "como" um sonho, o sonho da noite é uma
sólidos são nossos carmas, pode levar das analogias que se usa para explicar a
tempo — mas termina por produzir as vacuidade e a interdependência. E a

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complexidade e consistência dos sonhos da budismo se tenta explicar como se


noite ocorre em função de clareza e normalmente explica o tsunami: você sofre
estabilidade do respectivo sonhador — uma porque criou, embora não lembre disso
vez ouvi um ensinamento sobre um sonho (paralelamente a não saber das causas do
de Terdak Lingpa, um cochilo de alguns tsunami), as causas do sofrimento. Se isso é
minutos na tarde, e apenas a descrição de algo com que a pessoa está acostumado,
um relato desse sonho tinha mais detalhes pode ser muito útil. Se isso é entregue para
do qualquer dia cotidiano meu. a pessoa como a explicação do tsunami, de
última hora, pode ser até ofensivo. De toda
Dzigar Kongtrul disse "Veja a variedade de forma, vivenciamos a consistência porque
fenômenos que o samsara prolifera. Se o temos o bom carma de certa estabilidade e
samsara sozinho faz tudo isso, imagine só o regularidade nas ocorrências externas — se
que a mente iluminada, livre de obstáculos, elas se tornam, por qualquer motivo,
pode manifestar." instáveis e irregulares, violentas ou trágicas,
não vemos tanta consistência.
Nesta situação que é "como" um sonho
existem inconsistências como as que Na verdade, quando nos acostumamos a
existem nos sonhos? um cotidiano regular e nos deparamos com
coisas aparentemente muito boas isto
Sim, a consistência aparente é apenas também pode ocorrer. Por exemplo, se
devido ao carma, possivelmente positivo. ficamos ricos podemos ver lugares diversos,
Pessoas em grande dificuldade, em meio a e pessoas diferentes, e viajar muito
conturbações sociais, em algo como o frequentemente. Uma pessoa que fique rica
holocausto ou no epicentro de alguma e famosa repentinamente pensará que não
guerra, com doenças mentais graves, ou há muita consistência entre a vida anterior
que vivenciaram grandes tragédias dela e a nova experiência — a pessoa pode
repentinas, muitas vezes não veem muita vivenciar alienação e isolamento.
consistência. É claro que uma pessoa pode
vir e explicar "foi um tsunami, que ocorre De fato, quando coisas extraordinárias
por essa ou aquela causa", o problema é acontecem esta é uma boa oportunidade
que isto frustra todas as expectativas para reconhecer o tecido de sonho, e
cotidianas dessa pessoa. Embora se possa portanto existe um mérito invulgar, que
dar uma explicação mecânica para o que pode ou não ser aproveitado, quando se
acontece, isso não parece explicar o que a mostra a inconsistência do sonho. Um
pessoa sente nesse momento — e com praticante com certeza deve usar isso para
certeza dificilmente se poderá explicar para intensificar sua prática.
essa pessoa o que aconteceu no sentido de
porque isso aconteceu. Se a pessoa é teísta, Parece-me que, se o dualismo mente-corpo
muitas vezes ela pensa que é uma provação é rejeitado na teoria budista, então a mente
de Deus, ou perde a confiança em Deus. No é material ou a matéria é mental. A primeira

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alternativa é materialismo e a segunda palavras, a ausência de substância, como


idealismo. São dois extremos que reduzem postulada pelo budismo, está ela mesma
uma coisa à outra. No meio termo, está o livre de substância (já que o mundo se
dualismo. Mas, aparentemente, a apresenta, e ele do jeito que é, é vazio), e
causalidade tem o mesmo funcionamento assim o budismo vai além do extremo da
em qualquer monismo (material ou mera ausência de substância.
mental). O mistério causal está no dualismo.
Como o pensamento ou a intenção, estando Da mesma forma, o budismo vai além dos
"do outro lado", pode causar efeito no extremos de realismo e idealismo, isto é,
mundo material? qualquer existência independente da
mente, e também qualquer mente que seja
A tese causal do budismo está intimamente ela mesma postulada como uma substância
ligada à tese do carma - até onde sei. subjacente. Podemos dizer que a "mera"
Portanto, ligada à moralidade. Parece não substância, a mente, não é separada das
haver sentido portanto em investigar aparências, e também não pode ser
causas que não tenham relação com a postulada como uma existência separada
moralidade, causas funcionais, por ou independente.
exemplo, que são o que basicamente a
ciência investiga. Com relação a causalidade, no entanto, há
uma liberdade, e dentro dessa liberdade, há
O budismo está mais próximo do monismo os muitos possíveis enganos. Entre os
idealista, onde só o que existe é mente, e o enganos possíveis temos uma causalidade
que nos parece matéria é uma subclasse de estreita e uma causalidade mais ampla. Elas
mente que reificamos dessa forma — mas não "existem" como estruturas das coisas,
não é 100% exatamente isso. O budismo é mas como estruturas de diferentes níveis de
"antissubstância". Todo reconhecimento de ignorância. (Ignorância sendo definida
uma substância subjacente que existe como a reificação, via energia de hábito,
reconhecida "com olho de Deus", sobre particulares: objetos separativos,
subsumida em todas as formas, ocorre em classes, partes, relações, tempo, espaço,
termos de ignorância. Não se postular uma cores, flutuações, etc.)
substância é o que se quer dizer por
"vacuidade". Vacuidade significa dizer "não A causalidade estreita diz respeito ao exame
há substância subjacente", seja material ou dos sentidos deludidos, e a ciência é uma
espiritual. Por isso se diz que o budismo é extensão desse exame. Todo modelo e
além dos extremos de monismo, dualismo e instrumento opera de acordo com os
pluralismo. Mas além disso, a ausência de sentidos usuais, apenas "incrementados",
substância por si só não pode ser reificada, por instrumentos de observação e medição
não é uma mera ausência, mas a ausência (como microscópios, espectógrafos, MRI,
de uma essência ou "tecido" subjacentes câmaras de bolha, cronômetros,
(propriamente "metafísicos"), em outras velocímetros, réguas, etc.) e pelos modelos

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a partir dos quais esses instrumentos são


elaborados. Não só os instrumentos, mas Ele escreveu um pouco sobre o budismo, e
todo o arcabouço que gera a formulação de foi um dos responsáveis pela maior parte
experimentos e a derivação de conclusões. das interpretações errôneas (e quando não
A causalidade ampla diz respeito a uma totalmente errôneas, pelo menos
operação da delusão sutil, como o carma, extremamente parciais a uma única forma
que tem a ver com ética e, em particular, de budismo) que ainda persistem no
com sofrimento. Toda causalidade estreita ocidente.
está subsumida na causalidade ampla, mas
o oposto não ocorre, senão por alguns A noção de pessimismo, por exemplo, volta
indícios incertos (a expressão de dor numa e meia alguém ainda atribui ao budismo
face, a medida de certas condições uma visão pessimista com relação à
eletroquímicas em determinada região do realidade.
cérebro), já que a segunda é um tantinho
menos de ignorância. A "caixa" observada Além dele estar preso a certo "romantismo"
na segunda causalidade inclui todas as e visões de sua época, ele tinha acesso a
percepções subjetivas, que não podem ser pouquíssimos textos em traduções
resumidas pela observações de preliminares e cheias de equívocos. Assim é
epifenômenos dela (isto é, o oposto da difícil ver alguma relevância em
crença materialista: aqui o epifenômeno é a Schopenhauer e budismo que não seja para
expressão facial, o MRI, etc.) Na sabedoria analisar os muitos níveis de interpretações
não há causalidade. Como Wittgenstein errôneas sobre o darma, que só começaram
disse, "a crença no nexo causal é a ser sanados na década de 30, onde
superstição". A causalidade ocorre no algumas outras interpretações errôneas,
tempo, e o tempo e etapas contínuas ou daí da Teosofia, infelizmente também
discretas são uma função da ignorância, não foram introduzidas. Então, só pela década
da sabedoria. de 60, quando os professores asiáticos
começaram a aprender bem línguas
Através do estudo do carma e da ocidentais e refutar certas interpretações, é
causalidade ordinária (como a da ciência) que certos erros quase 200 anos de idade
meios hábeis para beneficiar os seres num começaram a ser revistos. Esse é um
ambito convencional podem ser trabalho que persiste até hoje, em
estabelecidos. Essa é a única utilidade, particular no Brasil, onde a academia é
como meios hábeis. O estudo de qualquer absolutamente desconhecedora do que é o
uma delas não leva a sabedoria, mas a budismo, pelo menos numa profundidade
sabedoria não exclui o estudo de nenhuma que vá além de um artigo de enciclopédia (a
delas. maioria péssimos também, é bom dizer).

Há alguma relação com o filosofo Arthur Conhece o ensaio do escritor argentino


Schopenhauer com o budismo? Jorge Luis Borges sobre o Budismo?

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ele causou muito sofrimento ao longo dos


Sim. Borges segue a tradição clássica, anos após sua morte, tanto sendo bem
schopenhaueriana, em desconhecer grande quanto mal interpretado.
parte da tradição budista, e interpretar
limitadamente o que conhece. As críticas de Nietzsche ao budismo não
chegam a fazer muito sentido, porque o
Mas dizer que a vida é sofrimento não é budismo que Nietzsche conhecia era o
partir de uma premissa pessimista? filtrado por Schopenhauer, que teve acesso
as primeiras terríveis traduções, cheias de
Sim, se a pessoa traduz assim e deixa fora equívocos grosseiros, às quais ele adicionou
de contexto, é claro que soa pessimista. equívocos de interpretação próprios,
Porém o que o Buda disse é que a criando uma imagem de budismo que até
experiência cíclica é insatisfatória — e que hoje perdura em alguns âmbitos. Em outras
essa insatisfação tem uma causa, ela não é palavras, o que Nietzsche chama de
natural. Eliminando-se a causa, elimina-se a "budismo" é uma invenção de
insatisfação. Isso é bem diferente de dizer Schopenhauer com base em parco
"tudo é sofrimento". Se não houvesse conhecimento de textos mal-traduzidos.
solução para o sofrimento, essa seria sem Portanto nenhuma crítica de Nietzsche ao
dúvida uma visão pessimista — mas tudo budismo chega a sequer fazer sentido,
que o Buda ensinou foram métodos para porque não há nenhum budismo no que é
eliminar o sofrimento e as causas do criticado.
sofrimento — claramente dando o exemplo
dele mesmo de que era possível estar Sabe se existe alguma ligação entre o
completamente livre do sofrimento. Budismo e o Pitagorismo?

Além disso, o fato de que o sofrimento não Não existe. Os gregos encontraram o
é natural, mas possui uma causa — uma das budismo muito depois, e se converteram. Lá
quatro nobres verdades — por si só já pelo século II antes de Cristo, em regiões na
demonstra que o sofrimento não é a Índia continental dominadas por Alexandre,
realidade última das coisas, e sim só a como a Báctria. O que os gregos antes do
realidade temporária, enganosa, século II chamam de gimnosofistas foram
corriqueira, em que normalmente, por provavelmente hindus.
confusão, estamos imersos.
Algumas vezes, devido a essa conexão com
O que você acha de Nietzsche? Como o os gimnosofistas, o ceticismo pirrônico é
budismo responde as suas criticas? comparado à madhyamaka.

Nietzsche sofreu muito, e possivelmente Se o espaço e número de seres forem finitos


muito desse sofrimento foi por conta de e se o tempo para frente for sem fim, o
suas visões errôneas e confusão. Creio que

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Budismo - Coletânea

eterno retorno não é necessário ou pelo menos de acordo com Nagarjuna. Elas
menos provável? também não acontecem no presente. É
nossa ignorância que projeta a experiência
O Buda não respondeu sobre nenhuma das cíclica, que é portanto uma mera aparência,
duas afirmações, se os seres são finitos ou e uma falsidade. Nós sofremos porque
infinitos, e se o tempo é com ou sem fim. reificamos essa falsidade como real.
São duas das 14 questões que ele não
respondia. Quais eram as 14 questões que o Buda não
respondia?
Além de qualquer consideração sobre se
isso pode ou não ser sabido, se o Buda era Elas podem ser resumidas em quatro: o
ou não capaz de responder, e assim por mundo é eterno? o mundo é finito? O eu é
diante, a consideração central é que essas idêntico ao corpo? O Tatágata (o Buda)
perguntas e possíveis respostas são existe depois que morre?
irrelevantes para o método, e o método
(para atingir liberação) é mais importante Há uma cosmogonia budista?
que informação, verdade, conhecimento.
Essas coisas são subjugadas ao método Há problemas epistemológicos inerentes ao
(darma), e só nessa medida são de valor. Em falar de surgimento, mas, assim, por
outras palavras: o budismo é diversão, para explicar como surgem e
inescapavelmente não especulativo. cessam cada um dos fenômenos ilusórios
puros e impuros — dentro do escopo da
Já que o carma é uma experiência cíclica, separatividade, ou pelo menos de um uso
então é correto afirmar que todos as ações da linguagem que está no limiar entre a
e reações são previsíveis? Que sempre separatividade e a inseparatividade —, há
aconteceram e sempre acontecerão? talvez milhares de pseudocosmogonias
budistas. Cada um dos tantras tem uma
O carma não é uma experiência cíclica. O diferente, que concerne a formação da
carma é uma característica da experiência mandala no estágio de desenvolvimento.
cíclica. Ademais, a experiência é cíclica Existe um paralelismo entre a prática
porque tem altos e baixos indefinidamente meditativa do vajrayana e o que eu
alternados, não porque as exatas mesmas chamaria de pseudocosmogonias, porque
coisas se repetem (como num "eterno elas não explicam o surgimento de um
retorno"). As reações são previsíveis em mundo, mas a coemergência da sabedoria e
termos das ações, mas as ações são da compaixão.
indeterminadas. Tudo aqui diz respeito ao
sonho. O famoso exemplo da pessoa que está com
uma flecha enfiada no olho (representando
No estado desperto as coisas nunca a insatisfatoriedade do samsara) e se
aconteceram e nunca acontecerão, pelo preocupa com frivolidades, foi dado pelo

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Budismo - Coletânea

Buda em resposta a uma pergunta sobre Se você quiser usar essa terminologia, você
cosmogonia. Então, parece, existe algo de pode claramente dizer o seguinte: o
frívolo (talvez exatamente por haverem budismo não se ocupa de contar a verdade
problemas epistêmicos inerentes) nesse sobre as coisas, mas dos métodos que
tipo de questionamento. permitem a alguém ver a verdade das coisas
por si só.
É possível "experimentar a verdade" sem
ser iluminado? Como? O budismo não se ocupa de dizer, e sim de
fornecer um método para que a pessoa
Sim, é verdade que esta sentença é possa fazer, ver, por si própria. A ideia de
composta de letras. Uma verdade como que alguém possa contar algo sobre a
essa, e muitas outras, nada tem a ver com natureza última para os outros é a base da
iluminação. O conceito de verdade não tem escola svatantrika, que é inferior a escola
interesse a não ser no sentido de que prasangika, na qual o método não tenta
devemos ser pessoas honestas e sinceras de forçar ao outro nada senão o próprio
forma a podermos beneficiar os outros. método — este modo é considerado
superior por ser mais compassivo, mais
O Budismo despreza a verdade e está mais elegante e mais acurado.
preocupado com resultados?
Mas mesmo as formas realistas do
Verdade com "v" maíusculo é meio hinayana, inferiores, não promovem uma
perigoso. A verdade, essa de que a palavra noção de verdade substancial. Isto é, a
verdade começa com v, não é de forma vacuidade e a interdependência impedem
alguma desprezível. É a base da toda e qualquer noção de verdade com "v"
honestidade e da sinceridade. Por outro maiúsculo que possa ser expressa, e toda
lado, o que o budismo despreza é a noção noção de verdade com "v" minúsculo é
de um conhecimento de lastro privado, isto meramente o modo comum, não espiritual,
é, uma fórmula interna que alguém pode de lidar com o mundo. (A verdade de que a
obter, e que com um clique, entende as palavra mundo começa com "m", esse tipo
coisas do mundo. Isso o Buda não ensinou. de verdade, não tão... emocionante...
O que o Buda ensinou é um método para quanto a "verdade da ausência de
revelar a realidade — segundo ele vivemos existência intrínseca do eu" — essa sim,
em um engano de massa com relação ao fornecida em método, não mastigada.)
que há de fato. Este o que há de fato
algumas vezes é chamado de verdade, mas O estado desperto intríseco da mente, a
essa terminologia cria confusão com o natureza de buda, não é uma verdade
nosso uso vulgar e corriqueiro da palavra absoluta?
verdade, ou com um uso meio místico do
termo. Não é nenhuma das duas coisas. Às vezes se usa a expressão "verdade
absoluta" para designar a natureza da

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realidade. Mas como não há uma o método introspectivo — porém logo o


proposição que corresponda a ela, não abandonou, porque tudo que a pessoa
pode haver um "valor de verdade" pensa são fragmentos "subjetivos" nesse
correspondente. sentido ruim. Então aí entra o refinamento
dos instrumentos epistêmicos. A meditação
O que se quer dizer é que se trata da no budismo é objetiva num sentido único: o
realidade "última", e não a realidade sentido em que as experiências se repetem
"convencional". Está se usando, portanto, a e são reproduzíveis, e não dependem das
palavra "verdade" como sinônimo de inclinações pessoais. Não são subjetivos
"realidade", mas para sermos precisos, não nesse sentido, que é onde importa que não
poderíamos usar o termo "verdade" nesse sejam subjetivos.
contexto. "Verdade" só diz respeito à
expressão deliberada, verbal, de um Se Buda não é onipotente, não lhe faltaria
alguém. Isto é, ao que alguém diz. pelo menos essa perfeição para ser
perfeito? (Argumento ontológico).
A conclusão corrente hoje no ocidente
parece ser a impossibilidade da lógica de Só se "perfeição" implicasse perfeição em
provar a existência ou inexistência de um coisas impossíveis ou autocontraditórias.
criador. É dito que através da meditação No caso de um cavalo perfeito, é apenas um
várias das afirmações budistas, inclusive a cavalo sem defeitos. Não é um cavalo que
de que não há um criador, podem ser sabe cálculo infinitesimal.
verificadas. Mas o experimento de
meditação não é meramente subjetivo? O Buda é perfeito em duas coisas: na total
eliminação das aflições mentais e no total
Apenas pela lógica, não é possível refutar ou desenvolvimento das "perfeições",
confirmar algo que não seja meramente paramitas. As paramitas são generosidade,
lógico. Assim o que se refuta, através da ética, paciência, empenho, concentração e
lógica, é as posições que as diversas escolas sabedoria. Não pode haver alguém que
tem a respeito de um criador — dezenas de tenha uma generosidade maior do que a do
escolas hindus são refutadas. Então não é a Buda, apenas a mesma generosidade, e
existência que é refutada, mas as noções — nesse caso ele será... um Buda.
o jeito como essa crença é expressa é
contraditório, é isso que é revelado através Deus pode criar uma pedra que nem mesmo
do debate. Quanto à existência, a prática ele é capaz de mover? Pois o Buda também
em si mostra que, se fosse existente, seria não pode criar, ou mesmo imaginar, círculos
irrelevante. quadrados...

A meditação não é subjetiva no sentido de Tecnicamente falando, a sexta paramita,


ser voltada ao eu e suas inclinações. A sabedoria, é o reconhecimento da
psicologia ocidental, de fato, começou com vacuidade (interdependência,

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coemergência, vacuidade). É ela que executaram os experimentos de meditação,


permite a perfeição das outras cinco que qualquer um pode executar e conferir
paramitas. por si próprio.

Assim a generosidade perfeita é aquela que O budismo pode ser considerado


vai além de um agente, um recipiente e um dogmático?
objeto de oferenda. A perfeita
generosidade é o reconhecimento de que Curiosamente, no budismo existe a única
não há um "possuidor" em lugar algum. Da sistematização de possibilidade de
mesma forma, a paramita da sabedoria comunicação não dogmática já feita: a
permite a perfeição da ética e das outras prasangika madhyamaka.
paramitas.
Nagarjuna disse "se apresentei uma tese,
As refutações de criador no Budismo são então cometi um erro". O Buda é chamado
baseadas na lógica convencional aceita no de "o grande mentiroso" por um poeta zen,
Ocidente ou num tipo de lógica peculiar? porque tudo que ele falou é apenas
expediente, um meio hábil, um método
Só existe uma lógica. Você pode ter para reconhecer a realidade, mas sem
diferentes formalizações e teorias sobre a realidade nem verdade alguma expressas
lógica, mais ou menos enfatizadas pelas ali.
diversas formalizações, mas o "lógico" é
meramente aquilo que necessariamente Por outro lado, é claro que uma pessoa
precisa ser aceito pelo oponente do seu pode pegar algo falado pelo Buda como um
raciocínio. De fato, os budistas nem mesmo meio hábil, temporário e expediente,
tem um sistema lógico próprio — na exposto como um método, e não como uma
svatantrika eles usam um sistema, para asserção, e dizer isso como se fosse uma
todos efeitos, similar ao dos nyaias, e na afirmação acerca da realidade. Assim
prasangika eles usam só a lógica do outro. "medite", imperativo, vira "você deve
Por outro lado, os budistas não meditar", uma afirmação a respeito de
desenvolveram debates com cristãos e você. "Experimente" vira "a experiência
judeus — só com hindus, de igual ou é...".
superior (em quantidade de produção
intelectual — um critério, diga-se de Se a pessoa entender todos os darmas no
passagem, até bastante relevante na imperativo, com o adendo não totalitário
modernidade) capacidade de "se é que você quer ser como eu, o Buda",
argumentação. não existe sequer possibilidade de haver
dogma no budismo.
Além disso, a lógica é secundária à
experiência. Então existe a refutação lógica, O que são experimentos mentais e para que
mas também o testemunho daqueles que servem?

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desenvolvendo, então essa é a melhor


Experimentos mentais são cenários e forma. Algumas vezes os três modos são
fantasias com as quais examinamos o chamados de "fé". Fé por confiança e
mundo de todas as possibilidades. O crença, fé por inferência e fé por
budismo, com sua ênfase peculiar no experiência. Mas a palavra fé tem outros
treinamento da mente, toma precedência sentidos, e talvez ela não seja adequada
dos experimentos mentais sobre crenças. O para os dois segundos tipos.
que se chama de "inferência" é um caso
peculiar de experimento mental, no caso, Nós só precisamos ter confiança nas
aquele que produz uma conclusão, e não palavras dos professores o suficiente para
apenas um sentimento ou uma mudança de fazermos os experimentos em corpo, fala e
hábitos. mente. Nós deveríamos ter a mesma
confiança num professor qualificado, por
A crença é a forma mais baixa de lidar com exemplo, do que num médico qualificado.
os ensinamentos. Ela se embasa tão- Eu não sei como agem, ou tenho uma ideia
somente no mérito, isto é, a pessoa acredita extremamente superficial de, os
em algo que vai funcionar porque tem bom medicamentos que me foram receitados —
carma, se tem mau carma, acreditará em ainda assim, enquanto me pareceu que o
algo que não funciona. tratamento era efetivo, eu me engajei nele.
Se eu precisar saber mais que o médico para
Depois temos o experimento mental. Se a me engajar no tratamento, eu morro antes
pessoa não aceita carma ou renascimento, da cura.
por exemplo, ela experimenta pensar um
mundo em que isso fosse possível. Em Você também acha que a maioria das
seguida ela examina, repetidas vezes, como pessoas não está aberta ao debate? Vejo
sua própria mente operaria nesse mundo. que quando as conversas começam a ficar
Se ela tem confiança suficiente (crença mais profundas, a maioria se defende
tendendo ao efetivo, bom mérito) no franzindo o rosto e falando algo do tipo:
budismo para tentar um experimento, ela "pra mim é isso e pronto!".
faz isso 24h por dia por alguns anos. Então
ela examina os resultados em termos da Sim, mas tudo bem. Debate é só um nível de
aflições mentais e das paramitas — as comunicação possível, e nem é o melhor.
primeiras diminuíram, as segundas
desabrocharam? Se sim, independente de Quais os outros níveis de comunicação? Por
ser o caso, neste mundo, estas coisas, é que o debate não é o melhor? Qual o
melhor pensar como se fosse. melhor?

Se eventualmente através da sua prática, Modos tácitos, modos sutis, modos não
ela obtém garantias da factualidade dos verbais, modos tácteis, modos gustativos,
experimentos que ela estava modos diretos. O debate é para pessoas

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com grande conceptualização, isto é, de benefício aos seres é benéfico. Mas


pessoas que vestiram suas aflições mentais discutir opiniões sobre o que será melhor,
com armaduras de ideias. Então se a pessoa num sentido meramente especulativo, e
não se relaciona com a outra senão por particularmente quando nenhuma das duas
ideias, isto está muito mal. As ideias não são partes do debate têm eixo algum em
muito importantes, mas para algumas sabedoria (reconhecimento da vacuidade),
pessoas elas parecem ser, então, por pode ser exatamente um pastiche do
compaixão, é adequado se envolver em benefício dos seres, portanto uma das
debate — se há a habilidade de desmontar atividades menos meritórias a se realizar.
essas armaduras e evidenciar a fragilidade Isto é, com a aparência de seres benévolos,
das ideias. A melhor forma é um contato de eles fazem um teatro de exaltação de suas
mente desnuda com mente desnuda — da próprias tendências habituais — eles
mesma forma que o melhor contato entre vendem seu ego como benefício aos seres-
um homem e uma mulher é desnudo. Essa mães. Isto é francamente horrível.
é uma analogia possível.
Agora, o debate é um elemento tradicional
A maioria das coisas que o Jung fala eu acho do mahayana indiano e do budismo
total viagens. Mas quando ele fala dos tibetano. É uma parte essencial do
filósofos como escrevendo tudo aquilo que treinamento monástico, como uma
escreveram, e tudo na verdade, no sentido disciplina com regras estritas — isto é, não
último, tudo aquilo não passando de uma é um debate solto, mas é uma prática de
série de gemidos, nada foi mais exato. A dialética que envolve memorização,
conceitualidade é uma expressão de retórica e até mesmo algo de teatral. Um
sofrimento. manual de debate traduzido ao inglês tem
umas 400 páginas. Ele é uma parte essencial
Ainda sobre debate: Então, para o budismo do ensino budista. Então ele é muito
o debate é uma perda de tempo? Ou importante para milhares de monges.
depende da motivação dos agentes? como
exemplo: debater sobre algo que traga Mas existe muita falta de entendimento das
benefício aos seres? pessoas sobre o que é budismo e o que o
budismo acha perda de tempo. Os grandes
Perda de tempo entre aqueles de praticantes do budismo não são
qualidades superiores, como já dito. Só necessariamente monges, e não são
porque uma coisa não é a melhor coisa a ser necessariamente eruditos. Os monges, na
feita, algumas vezes ela é tudo que pode ser sua maioria (há seres elevados que são
feito. monges, e há seres muito ordinários,
comuns, que são monges) são os
Agora, debater algo que traga benefício aos preservadores da tradição oral e dos
seres é bastante escorregadio. Por um lado, ensinamentos do Buda. Quem preserva a
aspirar benefício é benéfico, portanto falar realização são os naljorpas, e esses muitas

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vezes não se engajam em debate. Alguns importantes da doutrina em que acreditam


monges podem ser naljorpas, mas nem podem ser falsas?
todo monge pratica meditação com
intensidade ou atinge realização. Alguns Evidentemente que eles tem dúvidas com
não atingem nem mesmo erudição. Noutra relação aos ensinamentos. Tanto dúvidas
pergunta a pessoa fica surpresa, porque do tipo bom, que geram bons
acha que os monges tem que ser pobres, e questionamentos, quanto do tipo mau, que
que a pobreza seria talvez um valor budista. são meras hesitações.
Não é, nunca foi, nem nunca será. O
desapego é importante, e grande riqueza Mas é curioso pensar o budismo como uma
com grande desapego é a melhor de todas doutrina em que se "acredita", e que pode
as circunstâncias. De tanto valor quanto os ser "falsa". Tudo que é dito no budismo é,
monges são os patronos, que constroem os acima de tudo, repito, um método. Portanto
prédios, patrocinam as estátuas, as é algo em que se confia em certa medida,
pinturas, comissionam a tradução, mas não se "acredita", no sentido de que se
impressão e distribuição de textos, pagam pega aquilo porque soa bom, e então,
viagens para professores, sustentam os porque soa bom, não se pode duvidar
monges. Naljorpas, patronos, monges, daquilo, sob pena de se "deixar de ser
comunidade laica — em todos esses budista" — uma autoimagem que é aliás,
âmbitos há praticantes budistas, e em um obstáculo para a prática budista.
qualquer desses âmbitos pode haver seres
realizados. E o budismo não é falseável, quero dizer,
como ele é um método, ou ele funciona ou
Para os seres com grande sofrimento não funciona. Uma proposição do tipo "se
conceptual, nada melhor do que fazer você causar sofrimento, você irá sofrer" é
perguntas para um grande professor. Entre verificável, em certo nível, até por crianças.
duas pessoas no caminho que tem grande O Buda não diz "as coisas são assim", ele
conceitualidade, o debate pode ser útil recomenda "se você fizer esse experimento,
também, em particular se ambas, ou ao vai obter esse resultado, verifique".
menos uma, tem clareza sobre o fato de que
é um método expediente e inferior. Então O budismo faz tanto sentido num sentido
as pessoas se engajam com humildade nas prático, do dia a dia mesmo, que certas
práticas que os bodisatvas elevados coisas são difíceis de duvidar. "Todas as
"excretam", que eles não praticam, mas coisas compostas são impermanentes", por
esse cocô dos bodisatvas é néctar para os exemplo — só fanáticos religiosos e gente
seres em grande sofrimento pela louca para discordar disso. Mas o Buda vai
conceptualização. dizer, tente. Tente discordar da
impermanência — faça um exame
Budistas também têm momentos de minucioso de todas as possíveis falhas dessa
dúvida, de pensar que muitas coisas afirmação — tente encontrar uma única

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Budismo - Coletânea

coisa permanente... a afirmação não vale experiência superficial e evidência


nada, mas sua tentativa e reconhecimento suficiente através de inferência.
da impermanência, com seu próprio
engajamento, isso possui um valor muito Não existe uma verdade mais profunda no
grande. Jigme Lingpa diz que essa é a budismo. O budismo é essencialmente um
riqueza dos seres elevados, a consciência da método para produzir um resultado. Nesse
impermanência. Quem examina isso, caminho, ideias errôneas, se estão
portanto, se torna extremamente próspero presentes, são refutadas, mas nenhuma
espiritualmente. "verdade" é estabelecida.

Que evidência concreta você tem de que o Foi dito que a inexistência de deuses é
Budismo é uma doutrina mais ou menos comprovável pela razão. Entretanto, já vi
verdadeira e não apenas um elaborado muita gente usando o mesmo argumento a
sistema teórico sem fundamento mas capaz favor da existência de deuses (geralmente
de iludir muitas pessoas? teólogos e filósofos católicos). Poderia
aprofundar essa questão?
Minha própria prática, isto é, os
experimentos que eu próprio executei e os Segundo o budismo, existem deuses. Isto é,
resultados que verifiquei por mim mesmo. criaturas com poder e inteligência maiores
do que a humana, e que os humanos não
Levando em conta que a razão tem limites e veem. O que é incompatível com a
pode não alcançar certas verdades, você inferência e experiência budista é a
não admite a possibilidade, mesmo que existência de um criador. Isso pode ser
remota, de sua visão sobre a existência de estudado em tratados madhyamaka como o
um Deus pessoal criador e sobre a verdade Madhyamakavatara de Chandrakirti. Mas só
mais profunda do Budismo poderem estar se a pessoa tiver interesse e grande
equivocadas? disponibilidade de tempo.

As duas formas de cognição válida no O budismo tem uma tradição clássica de


budismo são experiência e inferência debate com teístas hindus, que são um tão
(razão, lógica). A experiência é superiora, ou mais sistemáticos e precisos do que os
mas, na ausência dela, o segundo melhor teólogos escolásticos, por exemplo. Então,
método é a inferência. se a pessoa quiser fazer uma comparação
dessas visões, ela vai estudar por várias
O budismo nega também um deus décadas. Só o que posso dizer é que o
impessoal criador. O problema é a noção de volume de refutação e a qualidade dessas
criação, que incompatível com a refutações são raramente visualizadas por
interdependência — e, da ocidentais. Na filosofia impera o racismo.
interdependência, tenho alguma
Não budistas podem dedicar seus méritos?

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Não é possível dedicar o mérito e ser teísta,


Um não budista pode ter aspirações por exemplo.
semelhantes a prática de dedicação de
méritos. Porém, se ele começar a pensar em "Se a pessoa quer ir para o céu ficar com
termos de mérito e dedicação, Jesus, o mérito é do criador, nunca foi dela."
invariavelmente ele vai ter que lidar com O mérito é do criador, mas há uma
interdependência e vacuidade. E o conceito participação da criatura nele pela escolha
de sabedoria. E quem detém sabedoria é contingente delegada a ela de fazer ou não
um Buda. Então, é impossível dedicar os fazer algo bom.
méritos de outra forma que não da forma
perfeita de um Buda. E todas as práticas e Portanto, ela existe independente do
aspirações de dedicação de méritos levam criador. Como uma o mérito poderia ser
ao estado de Buda. Se a pessoa quer ir para transferido entre duas entidades
o céu ficar com Jesus, o mérito é do criador, independentes? O mérito só pode ser
nunca foi dela. Então ela não tem o que transferido entre seres que não são
dedicar. No budismo, como nós somos essencialmente separados.
responsáveis pelo nosso mérito, e porque
não somos essencialmente separados de Não entendi bem. Quando um mendigo me
nenhum outro ser, então podemos dedicá- pede uma esmola na rua, eu lembro das
lo. As tradições que não tem conceito de palavras de Jesus e dou a esmola
carma, interdependência e vacuidade beneficiando o mendigo. O mérito assim é
dificilmente vão considerar dedicar o de Jesus, mas eu acho que tenho uma
mérito. No fundo, é uma prática participação nesse mérito por lembrar e
exclusivamente budista. O que não quer escolher obedecer os ensinamentos de
dizer que qualquer um não possa tentar Cristo.
praticar dessa forma. O resultado, porém,
vai ser o vínculo com os Budas, e a natureza Bom, em primeiro lugar, isso é geração de
da realidade, que é vazia e mérito, não dedicação de mérito. Se você e
interdependente. Jesus são um só, então o mérito é de Jesus.
Se você e Jesus são independentes, então o
Se a pergunta é se a pessoa precisa ter mérito não pode ser transferido entre
autorização ou ter tomado formalmente vocês. No cristianismo mainstream
refúgio para dedicar méritos, não, ela não (catolicismo, movimentos evangélicos etc.
precisa. Qualquer um pode dedicar méritos. — não new age ou seitas perdidas no
Mas creio que essa é uma prática budista, e tempo), há separação entre criador e
exclusivamente budista. Então, com criatura. Isso é um problema se a pessoa
certeza, ela vai estar se aproximando do quer dedicar méritos. Na verdade, é difícil
budismo, e ela precisa estar ciente de não entender como contradição "a criação
qualquer contradição que possa haver com de um livre arbítrio" — isto é, produzir a
algum outro ensinamento que ela segue. separação com um ato. Livre arbítrio é um

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remendo para solucionar o problema do que "o resto" fosse "interdependente"...


mal — uma das dificuldades comuns no embora não possa haver "resto" na
teísmo. E o livre-arbítrio é exatamente o interdependência...) — e, na verdade, como
que produz uma forte noção de ela tem todo o mérito, através da criação,
independência. Em outras palavras, se há isso torna as criaturas umas independentes
um criador benevolente, e as coisas das outras, e portanto não há possibilidade
poderem dar errado (existir o mal), o de dedicação de méritos.
criador precisa estar separado das criaturas.
Só o fato dele ser criador já garantiria Podemos adentrar vários cenários teístas
separação, pelo menos pelo fato dele ser como o panteísmo, ou varias formas
diferenciado, superior. O que é o teísmo monistas ou dualistas... mas o que ocorre é
senão a crença numa entidade separada, de que a interdependência é exclusividade
alguma forma essencialmente separada? budista. E, sem interdependência, não há
No budismo os seres são aparentemente dedicação de méritos. A interdependência é
separados, e um Buda é alguém que revela uma visão além do monismo e do dualismo,
algo que todos têm, portanto ele não é que são consideradas formas extremas, isto
essencialmente diferente de ninguém. é, formas que se embasam na reificação de
Assim, as coisas não são separadas e pode uma ignorância. Como no budismo não se
haver dedicação de méritos. considera uma coisa separada como
verdadeiramente existente em primeiro
Bastaria talvez dizer que não há lugar (vacuidade), então afirmar que exista
interdependência possível em visões uma só substância, ou pelo menos duas
teístas, e portanto, não pode haver substâncias, coisas assim, não faz nenhum
dedicação de méritos. Mesmo que os sentido. Pode parecer que é uma afirmação
elementos não sejam separados totalmente monista dizer que não há separação, porém
(uma contraditória "fagulha" da criação, essa substância inseparativa não é mais do
presente em cada um, por exemplo), se há que a interdependência, isto é, o fato de
um elemento privilegiado (i.e. o criador, ou que as particularidades são coemergentes,
a manifestação do criador na forma de e não podem haver um lastro — seja
Jesus), isto é, algo com ao menos algum linguístico ou ontológico — para garantir
grau de independência, por menor que seja, um extremo, isto é, uma visão qualquer que
mas verdadeira, sólida, não apenas reifique particularidades ou substância
aparente: então não há possibilidade de única.
interdependência, e assim, não há
possibilidade de dedicação de méritos. Se a Não consigo ver contradição no teísmo.
deidade é meramente criadora e para todos
os outros efeitos independente (o que não Para um teísta, é evidente que ele não vê
é a visão do cristianismo, mas de algumas contradições no que acredita. A não ser que
formas de teísmo) — pelo menos a ela não ele seja um teísta do tipo "creio porque é
é possível dedicar méritos (considerando

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absurdo", o que também existe no é o caso, ou a outra. As duas coisas não


cristianismo. podem ser o caso.

Agora, o importante, porque, independente "As duas coisas não podem ser o caso."
do mérito desses arrazoamentos, que só Talvez. Mas hoje em dia as coisas parecem
poderiam ser avaliados por eruditos, é não ser mais bem assim, com o advento das
entender que existem esforços constantes lógicas heterodoxas. O gato de Schrödinger
no budismo que demonstram como a está morto ou está vivo?
interdependência é contraditória com
criação. Isto é, pode-se até dizer que a Um problema epistêmico não é justificativa
definição de interdependência implica para valer qualquer coisa, particularmente
necessariamente a ausência de criação. do uso das palavras. No budismo a
Entendendo isso e que dedicação de experiência vem em primeiro lugar, depois
méritos exige interdependência, pode-se a inferência, mas nada disso indica ou
entender como certas crenças impedem a possibilita abuso da comunicação. Se duas
dedicação de mérito. A pessoa pode com pessoas querem dialogar, elas precisam
certeza desenvolver boas aspirações e gerar estar de comum acordo. Uma expressão tal
méritos independentemente das crenças como "círculo quadrado" não corresponde
que sustente — mas dedicação de mérito a nenhum objeto em nenhum mundo
exige sabedoria, e o reconhecimento da possível. Se você quer chamar sua banda de
realidade como ela é, além de ser rock de "círculo quadrado", nesse caso,
particularmente incompatível com algumas como nome próprio você vai ter um objeto,
visões errôneas. que em nada diz respeito aos objetos
geométricos "círculo" e "quadrado".
O budismo não pode ser tomado Quando você sabe o que é um círculo e o
separadamente, em parte, e apropriado por que é um quadrado e você quer falar de
outras tradições. Se um teísta diz que círculos quadrados, então, baby, você só
dedica méritos, então ele faz outra coisa — está usando palavras, você não está dizendo
talvez até uma coisa boa e meritória —, mas nada.
não o que o budista chama de "dedicação
de méritos", pelos motivos apresentados Para o uso da comunicação ser ético, ele
acima, que são coerentes mesmo se o precisa ser coerente. Ele não precisa ter
teísmo for possível, e for o caso — nesse uma coerência que você aceite, mas ele
mundo (um mundo impossível), a dedicação precisa ser expresso como algo coerente —
de mérito não seria possível. Então mesmo ele precisa ter essa pretensão. Muitas
que uma pessoa sustente o teísmo ela pode pessoas confundem o "além da linguagem"
entender o que é incompatível com o no budismo como desculpa para o simples
teísmo, no caso, a interdependência é irracionalismo. Duas proposições
incompatível com o teísmo — ou uma coisa contraditórias não podem ser verdadeiras
ao mesmo tempo não por nenhuma

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Budismo - Coletânea

questão ontológica — mas pela simples estuprou. É que nem o gato de Schrödinger"
ética da comunicação entre duas pessoas. Isso é desonestidade, uso da ignorância
Lógicas que violam a não contradição para se dar bem, nem que seja para parecer
mantém outras características incomuns no que, após ter sido derrotado por uma
uso do discurso natural, e elas tem usos argumentação, a pessoa pense para si
específicos, mas não na conversa entre as própria que pode continuar se
pessoas — e, de fato, você ao falar com considerando correta.
alguém, em termos budistas, não deve usar
a própria lógica, mas a lógica do outro. Só Além disto, essa atitude gera o sectarismo e
que, se não houver lógica, e essa é uma a intolerância religiosa — porque a
possibilidade muito mais comum — que se diferença não é motivo de cordial debate,
esquiva se desculpando com a ideia de mas motivo de real separação, já que o
lógicas não tradicionais (sem nem sequer outro não é participante do discurso: não
entender o que isso implica) — , não há existe mais a possibilidade de um critério
comunicação. Não permitir comunicação é comum de diálogo. Portanto, essas são
um desrespeito. algumas das mais nefastas ideias da
modernidade, que acabam com o valor de
E, de fato, em qualquer coisa que importa, qualquer discurso, e assim acabam com o
se você usar argumentos de física quântica valor de qualquer darma que possa ser
new age, que confundem problemas expresso para benefício dos seres.
epistêmicos com "vale tudo" e mero
relativismo, quando chegar suas contas pelo Os debatedores budistas poderiam ter
correio você talvez tente ir para o universo assumido a postura de "bom, eles nem tem
paralelo onde você não deve nada. Já que os como seguir a nossa lógica", mas em
dois são iguais, e simultâneos, e a realidade Nalanda eles estudavam a lógica dos outros.
é contraditória, por que pagar contas? "Eu Estudavam a lógica das centenas de escolas
não paguei porque a realidade é hindus e usavam a lógica deles na
contraditória", você diz no banco. Um argumentação com eles. Agora, se o
assassino também cometeu ou não um oponente não tem uma lógica, então ele
crime, então porque colocá-lo na cadeia? — não é aberto para comunicação, e aí, só
ou uma pessoa lesada num ação cívil: a rezando. Felizmente é fácil entender que a
mulher sem receber pensão e o marido diz palavra "verdade" possui valor na
"doutor nós estivemos e não estivemos comunicação humana: significa sinceridade,
casados, simultaneamente, então eu honestidade. Uma pessoa precisa assumir a
escolho não estar casado, e por isso não consequência do que está dizendo, caso
preciso sustentar meus filhos". "DNA? contrário é o mesmo que falar com uma
Embora o laboratório tenha dado 99%, parede.
mesmo que fosse 100%, o estuprador
poderia ou não ter estuprado — Ademais, estritamente falando, se você
simultaneamente ele estuprou e não quer usar o experimento de pensamento de

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Budismo - Coletânea

Schrödinger, que é uma área que por acaso criação não podem coexistir" é baseada na
eu conheço um pouco, você precisa ser mera definição de interdependência. É o
confrontado com o fato de que há 6 mesmo que dizer que um círculo não pode
interpretações da mecânica quântica que ter duas medidas de raio, já que a definição
resultam em cálculos adequados. E, se uma de círculo é pontos equidistantes do eixo. Se
delas estiver correta, todas as outras 5 não a pessoa alega como desculpa para o erro
estarão corretas — ou... então a perspectiva prova de sexta série que a geometria não
é puramente instrumentalista: a física não euclidiana ou algo assim tem um outro tipo
explica as coisas teleologicamente, muito de círculo, e quer ganhar a nota: bau-baus
menos determina critérios epistêmicos: ela para ela. Quando falamos círculo, no
simplesmente calcula corretamente ou não. contexto da linguagem ordinária, na sexta
Se o instrumentalismo é o caso, onde mais série, e assim por diante, não é de um outro
do que uma das interpretações pode ser uso da palavra. É daquele uso, naquele
utilizada, foi-se o tempo que a ciência contexto. Não se aplicar no contexto, é
determinava como as coisas são — é isso desonestidade, falta de compaixão, e assim
que as "revoluções" na física tem a dizer. Ou por diante. Para falar com os outros, que
seja: ou a física calcula e não fala da dirá beneficiá-los através da fala, é
realidade, ou ela não consegue um critério necessário partilhar o contexto.
epistêmico para determinar qual, entre
teorias contraditórias, representa a É verdade que os lamas adquirem
realidade. Isso não implica, de forma "conhecimentos" através da meditação que
alguma, que a comunicação entre as nem é possível descrever com palavras?
pessoas não funcione por seu critério óbvio:
é verdade que há um gato sobre o tapete se Sim. Não só os lamas, mas qualquer
e somente se há um gato sobre o tapete. Se praticante sério. Na verdade, até mesmo
ela me der seis caminhos para o posto, eu qualquer um de nós, quando entra em
sigo um dos seis, não os seis ao mesmo contato com um dos objetos do sentido,
tempo. Se eu preciso saber onde fica o uma bala de limão, por exemplo, só usa a
posto de gasolina, e a pessoa a quem eu expressão "sabor de bala de limão" para
pergunto deliberadamente me desvia do explicar, imperfeitamente, a experiência
posto, eu chamo essa pessoa de desonesta. direta do sabor da bala de limão. O sabor,
Da mesma forma, tergiversar para supostas ele mesmo, é impossível de descrever
dificuldades epistêmicas quando se está (perfeitamente) com palavras. Então é claro
falando de simples definições, é uma que há sensações, mundanas mesmo, não
amostra de, ou completa ignorância, ou da meditação, que são mais difíceis de
simples desonestidade. descrever — e há aquelas que podemos
dizer "indescritíveis". O próprio fato de
Uma coisa é a pessoa ser convencida, a usarmos esse adjetivo para certas
outra é ela aceitar o diálogo. Uma experiências, dele existir, evidencia o fato
proposição como "interdependência e óbvio de que estas experiências existem. É

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só uma distorção muito grande da língua, compassivas. Eu quero treinar mais e mais
uma distorção filosófica, que pode começar nelas.
a pressupor a existência apenas de
fenômenos descritíveis. A natureza da comunicação dos
ensinamentos é um dos meus tópicos
Você já teve "revelações" sobre o mundo ou favoritos, e mesmo na filosofia eu me
coisa do tipo que você não conseguiu interessava muito por Wittgenstein, que
explicar nem para si mesmo? Estas lida com o exato mesmo problema. Na
revelações devem ser compartilhadas? forma superior no budismo, que é a
prasangika madhyamaka, não se opera com
Nem pensar, se você não pode "explicar" nenhuma teoria que o "oponente" não
para si mesmo, é porque não tem nada para tenha ele mesmo proposto. Em outras
entender. Mas é muito frequente eu palavras, do lado da madhyamaka não se
entender algo que acho difícil explicar, pode guardar nenhuma substancialidade,
porque isso depende muito do que o outro não se pode fixar, muito menos apegar-se
entende das minhas palavras. Isso é muito, por nenhuma teoria própria, apenas refutar
extremamente frequente, mesmo antes do tudo o que puder ser refutado, de acordo
budismo, muito antes da meditação. com o que é apresentado. O próprio modo
de refutação utilizado é o ensinamento
Algumas vezes é até mesmo irônico, porque sobre a vacuidade, que o outro porventura
enquanto você até acredita que está pode vir a realizar, mas sempre por si
entendendo a pessoa, se ela está com mesmo, não como algo que é entregue
muitas aflições mentais, o que é bem como uma teoria mastigada.
comum, num ponto da conversa ela pode
assumir outra teoria de mundo, Então, sempre o que se fala se deve falar
incompatível com a que ela mesma para o outro, não deve existir nenhum
começou. E daí você está numa sinuca de conteúdo de conhecimento próprio,
bico, porque se você muda a argumentação privado, e isso é sabedoria.
de acordo, ela pode voltar para a primeira
teoria. Então frequentemente eu faço Se buda era perfeito, imagino que ele tinha
malabarismo com 3 ou 4 visões que a a retórica perfeita. Por que ele não
pessoa me apresenta, e que eu veria como convenceu todo mundo?
incompatíveis, mas que eu tenho que tomar
cuidado para não fazer com que ela me O carma dos ouvintes os impediu de ouvir
entenda mal, ou que ache que eu não a de forma perfeita a ausência de retórica do
entendo bem. Mas com o tempo a pessoa Buda — que é a perfeição da fala.
aprende certas habilidades de debate para
debater com quem não sabe debater. Elas Existem perguntas no budismo que faltam
são muito importantes e muito ser respondidas? Algo a que grandes

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Budismo - Coletânea

mestres dedicaram muito tempo de estudo "utilidade" no sentido último, fora do


e não obtiveram resultados? sonho. Dentro do sonho, muita coisa tem
utilidade. E, como eu disse logo antes, não
Não. Isso é especulação, como o budismo tem utilidade nenhuma rejeitar o sonho —
surge do exemplo consumado do que isso é dar muita solidez a ele. Se ele é um
produz o ensinamento budista, isto é, o sonho, por que ter aversão e má vontade
Buda, não é possível não só produzir mais quanto a ele? Tanto o apego quanto a
do que um Buda, como não é possível aversão, o medo e a expectativa, ambos
produzir outra coisa que não um Buda (ou surgem da reificação do sonho: como algo
um Arhat, no caso do hinayana). Assim, real que pesa muito, como algo real que não
todas as outras questões, que lidam com o pesa nada. O sonho é algo irreal,
sonho, e não com o estado de Buda, fazem insubstancial, então por que se envolver
parte da especulação do tipo "se os corvos com ele em termos de desejo, indiferença e
tem dentes", que é o exemplo dado nos aversão? O natural é com lucidez penetrar
tratados budistas para filosofia. naturalmente no sonho sem nenhuma
dessas contaminações.
Essas outras ocupações são importantes
quando tem resultados práticos dentro do Como o budismo lida com a questão da
sonho, resultados benéficos. Mas não são memória, tendo em vista o conceito de
prioridade para quem está em busca da permanência?
lucidez. Em outras palavras, os problemas
científicos e filosóficos são secundários e Que as coisas podem durar um tempo a
menos importantes do que a realização do gente sabe. Então eu li essa pergunta antes
benefício definitivo. de dormir e, hoje, porque as causas e
condições permitem, ela ainda está aqui.
Se é tudo como um sonho, que utilidade Então, enquanto as causas e condições
tem a História? permitem, existe lembrança. Depois existe
esquecimento e distorção. Uma hora tudo é
Eu não vejo muita utilidade, mas a utilidade esquecido.
é a mesma de tudo mais — utilidade
convencional, relativa. Seria niilismo dizer Computadores inteligentes, conscientes e
"se tudo é um sonho, que utilidade tem que sofram são possíveis no Budismo?
digitar isso?"
Segundo Sua Santidade o Dalai Lama, eles
Por isso essa pergunta é um pouco irônica são possíveis.
para mim, que não vejo tanta utilidade na
história. Digo, entre tanta coisa que Um computador inteligente e consciente
precisaria ser útil dentro do sonho — coisas que venha a surgir aparentemente estará na
como ética, por exemplo — justo a história sua primeira vida e portanto não terá mau
vamos ressaltar? Mas nada disso tem carma acumulado de vidas anteriores?

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condições" (i.e. mais jovem) e transfere sua


Não existe "primeira vida" — se você consciência para lá, expulsando a
entende o que é interdependência, sabe consciência do falecido que (até 3 dias após
que nenhum fenômeno pode ter a morte, em média) ainda está no corpo.
precedência final. Samsara é chamado de
"existência cíclica", mas esse "cíclico" aí é de Esse tipo de zumbi também traz uma
dimensões "topológicas" além de mero questão moral interessante. Na verdade o
tempo e espaço. De fato, tempo e espaço que causa o sofrimento da morte é o apego
são fruto do carma + condições também, da consciência aos agregados — e nesse
originados em avidia, ignorância. caso há algum carma em perturbar a
consciência do falecido de cadáver bom —
Assim, o que vai acontecer é que alguma mas possivelmente não tanto quanto
consciência vai ter o carma para as matar, embora, em alguns casos — se o ser
condições da máquina. E esse bava, esse estava praticando, por exemplo, possa ser
surgimento, essa concepção, é a pior do que matar (porque prejudica o ser
coemergência desse carma com esse no processo de renascimento). Já o que
suporte — sem limite para o passado, e, transferiu a consciência e agora anima um
desconsiderando a iluminação, sem limite corpo que não tem condições adequadas de
para o futuro — sempre em sofrimento. durar muito... bom, esse possivelmente não
há problema em liberar — mas talvez daí a
Mas a compaixão do Buda vai fazer surgir pessoa tenha que chamar um feiticeiro,
ensinamentos adequados para estes alunos porque o corpo já está morto... enfim, não
também, ou pelo menos, faço a aspiração. é um problema tão corriqueiro, a não ser
em anedotas.
Como o budismo lida com zumbis?
Os problemas de zumbis na filosofia da
Se zumbis são sencientes, isto é, capazes de mente são todos causados por problemas
sentir em algum nível — compaixão. Se eles na definição da mente. Como a cultura
não são sencientes, então podemos matá- tibetana tem um zumbi bem definido, e
los. Eu não sei qual é o status de senciência uma noção de mente bem definida, não há
de zumbis, mas em autodefesa, muito debate, a não ser com relação ao
considerando que a vida de zumbi não é caminho — assim não há problemas de
capaz de grande compaixão, a sua vida vale zumbi no budismo. Quer dizer... não há
mais e seria correto dispor da deles. problemas filosóficos de zumbi, porque
problemas de zumbi talvez até haja.
Na cultura tibetana (não no budismo, mas o
budismo também não nega) existem zumbis 1.5. Budismo e psicologia
— mas eles ocorrem quando um moribundo
habilidoso, um feiticeiro do mal, algo assim, Não é possível que boa parte dos que
encontra um cadáver fresco "em melhores praticam a caridade ou a virtude em geral só

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o façam como uma forma de distração do postula, nem o budismo posterior. Na


vazio de sentido da existência? madhyamaka a alaya é simplesmente um
conceito, como "eu", útil em certo discurso
A maioria dos que praticam a virtude pode sobre o darma, mas sem nenhum tipo de
ter motivações egoístas ou bastante referente existente, é um mero nome (que
limitadas, ou pode estar agindo por orgulho. curiosamente pode ter utilidade ainda
Ainda assim, o benefício é valioso para assim) sem um objeto propriamente a que
quem recebe e para quem dá, portanto, não se designa esse nome.
é nada a se criticar mesmo nessas ações
imperfeitas. Além disso, vamos falar em duas categorias
de inconsciente, o pessoal e o "coletivo"
Se a pessoa tiver interesse em depurar a (que já é uma proposta junguiana). No
motivação e o escopo de suas ações primeiro caso, não se encaixa com alaya,
benéficas, daí a prática budista pode ajudar. pois alaya não é pessoal. No segundo caso
poderia se encaixar, talvez, sob certo
Não há o inconsciente para o budismo? ângulo, mas é difícil comprar um conceito
sem trazer com ele toda uma carga
Os fenômenos mentais são todos junguiana — então é complicada a aplicação
diretamente acessíveis. No caso da mente desse conceito também.
deludida, eles são acessados através dos
filtros da delusão, o que produz todo tipo de Há também algo a comentar sobre
sofrimento e confusão. No caso da mente alucinações: no budismo você tem
lúcida, ela se autorreconhece e reconhece alucinações (em vida) por "distúrbios de
todos os fenômenos como projeções vento" (causados por drogas, doenças, etc.)
adventícias. e na hora da morte. O conteúdo específico
dessas alucinações é, como o dos sonhos,
Portanto, não há. de dois tipos: circunstancial (fatos
presentes distorcidos, memórias dos dias
155. Alayavijnana me parece muito logo anteriores, memórias de todo tipo) —
semelhante ao inconsciente, ainda que o que é chamado de "sonho cármico"; e
possa ser atualizado por uma consciência premonitório/clarividente — o que é
plena. Da mesma forma que a situação de chamado de "sonho de clareza". Nenhum
morte (bardo) de uma pessoa não dos dois necessariamente requer alaya,
iluminada seria um “alucinar”, esse alucinar embora a cittamatra explique a relação
não reitera outra atualização, agora causal da premonição com alaya. No caso
“alucinatória”, do que seria o da psicanálise, o que se faz, me parece, é
“inconsciente”. É assim? olhar os conteúdos cármicos com base
numa estrutura conceptual (a da escola
Alayavijnana é um conceito essencialmente utilizada) e procurar uma relação "ah,
cittamatra, o budismo anterior não o quando o sujeito viu e comentou esse ou

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aquele aspecto *na verdade* ele estava estar ciente dela, a isso chama-se apenas
revelando tal e tal aspecto que é oculto dele "ignorância".
mesmo" — é esse o aspecto de inconsciente
que não existe no budismo: uma rede de Por outro lado já vi alguns professores
conexões factuais e simbólicas, pessoais, conceituados, especialmente no zen, vez
onde seria talvez possível encontrar certas que outra usarem a nomenclatura. Mas não
relações ocultas do consciente da pessoa, sei até que ponto vão seus conhecimentos
que teriam ou não um efeito terapêutico se de psicologia ocidental e até que ponto eles
reveladas ou trabalhadas por um terapeuta usam o termo na acepção correta.
que as reconhecesse.
O conceito junguiano de "sincronicidade",
Nesse sentido, pode até haver simbolismo, coincidências aparentemente muito
mas, novamente, ele não é pessoal — e do significativas, se encaixa de alguma maneira
ponto de vista da prática do darma, ele é no Budismo?
irrelevante. No caso dos conteúdos de
clareza (premonitórios etc.), nesse caso ou Para alguém que detém sabedoria
não há simbolismo, ou esse simbolismo é completa, todos os fenômenos podem ser
também público. O que é importante é que vislumbrados completamente em um único
mesmo nesse segundo caso, enquanto fenômeno particular qualquer. Isso
práxis, pode haver diferença entre as corresponde aos conceitos hindu da rede de
escolas e professores. De forma geral Indra e matemático de supersimetria.
podemos dizer que não faz parte do darma
propriamente dito, e a atitude com relação Para quem tem sabedoria parcial, alguns
a esses elementos pode ser mais ou menos fenômenos podem parecer ter mais relação
aceita no contexto laico, e algumas vezes é com outros, e isso pode ser usado também
aceita como prática puramente mundana como um meio hábil.
no contexto religioso.
A noção de interdependência diz respeito a
Resumindo, alguma ideia de inconsciente como todas as coisas dependem umas das
coletivo (com restrições) pode se encontrar outras, e portanto qualquer coisa contém
em alguma tradição budista (cittamatra). qualquer outra coisa. Para tornar isso útil no
Também alguma interpretação, mas caminho espiritual, no entanto, é
pessoal e no contexto mundano, não da necessário desenvolver as qualidades
prática do darma (isto é particularmente incomensuráveis e as paramitas.
importante no contexto da meditação,
onde os conteúdos mentais específicos que Carl Jung foi um importante estudioso do
surjam não interessam). O fato de que budismo, do taoísmo e da alquimia chinesa.
exista uma dimensão inteligente que opere Para ele a supressão do ego seria prejudicial
dentro da mente da pessoa sem a pessoa ao ocidental no processo de individuação,

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assim trabalhando para um alinhamento formado, ou seja, não haver uma


entre o Self e Ego. Qual sua opinião? diferenciação entre o ser e o mundo,
principalmente nos casos mais intensos da
Conheço um pouco do trabalho de Jung. A síndrome. Como o budismo vê isso?
ideia de que há alguma diferença essencial
entre um ocidental e oriental faz parte do No budismo as doenças surgem devido ao
pensamento de sua época — mas não é carma. O que causa uma pessoa nascer com
corroborado pelos professores budistas, dificuldades são suas ações passadas nesta
ocidentais ou orientais. Essa talvez seja a e em muitas vidas anteriores.
influência mais nefasta do pensamento
junguiano no millieu intelectual que tenta Essa é a explicação geral, de porque as
interpretar o budismo e outras tradições coisas se configuram do jeito que se
orientais. Esse é um ponto que ele reitera configuram. Agora, a ciência está
vez após vez em todas as suas introduções preocupada em explicar a configuração.
e escritos sobre o oriente. Se embasa num Para isso, no caso de uma doença "da
racismo, as vezes às avessas, e talvez fizesse mente", ela examina a biografia da pessoa,
sentido em meio a um mundo onde a seu corpo e seu comportamento atual. A
tradição tinha peso — hoje, nem no partir disso ela tira conclusões. Essas
ocidente nem no oriente a tradição tem conclusões só são relevantes se elas
peso: vivemos num mundo secular por explicam satisfatoriamente a situação. Uma
todos os lados — e ocidentalizado. Mas isso explicação satisfatória é a que produz um
não é um obstáculo para o budismo e suas resultado, ou seja, que diz como devemos
técnicas, e ele continua servindo para lidar com aquilo — no caso de uma doença,
qualquer um que possua aflições mentais e se há formas de cura, ou de melhorar a
uma natureza de buda, isto é, qualquer um. qualidade de vida, ou que pelo menos nos
diga, definitivamente, que não há nada a
Por outro lado, não há supressão do ego no fazer.
budismo: ele é reconhecido como
realmente é, isto é, um engano. Suprimir o O que o budismo diz sobre o ego é que ele,
ego é acreditar nele. do jeito que é, não é substancial, não é
verdadeiro. É por tomarmos ele por
A noção de self e assemelhadas são verdadeiro, é por tomarmos ele por
consideradas um equívoco de segunda referência, que sofremos. No entanto, da
ordem para o budismo — embora no mesma forma que nos emocionamos com
hinduísmo talvez haja noções de "eu uma obra de ficção, a obra de ficção do ego
superior" que se equiparem a noção tem seus efeitos. O objetivo do budismo
junguiana. não é destruir o ego, e sim a visão errônea
que diz que o ego é real. Seríamos como
É corrente na psicologia, afirmar que o Dom Quixote e seus cata-ventos, caso
autismo ocorre devido ao ego não estar pensássemos em ir atrás do ego.

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que não é diferenciável. Praticar o tonglen,


Na filosofia existe a noção de solipsismo. Se que é visualizar inspirar o sofrimento dos
uma pessoa não diferencia o mundo de si outros para si próprio e expirar a felicidade,
mesmo, isso pode ser porque ela reconhece também ajuda.
o ego como uma ficção ou pode ser porque
ela vive inteiramente na ficção do ego. A O que seria exatamente a consciência?
diferença é fácil de perceber: no primeiro
caso ela produz felicidade para si e para Normalmente se usa essa palavra para
todos os que a rodeiam, no segundo caso traduzir vijnana, ou rnam-shes, que é a
ela produz sofrimento para si e para todos capacidade de reconhecer a natureza mais
os que a rodeiam. geral de um objeto, por exemplo, que um
som qualquer é um som, e não um
Em todo o caso, da mesma forma que as pensamento ou uma forma visual. Portanto,
pessoas podem estudar obras de ficção, é num ser humano, são seis as consciências:
possível estudar o ego, e isso é o que a visual, auditiva, olfativa, táctil, gustativa e
psicologia faz — estudar uma ficção. imaginativa (conteúdos mentais tais como
pensamentos e emoções).
Qual a visão budista acerca da melancolia?
Ela pode ser benéfica ou é mais uma 1.6. Budismo e saúde
emoção perturbadora?
No Budismo, doenças físicas podem ser
Não existe nenhum benefício particular, sintoma ou consequência de um
trata-se de uma aflição mental. Existe um desequilíbrio espiritual?
tipo de tristeza digna ligada à compaixão e
o desencanto com o samsara, esta tem Sim. A raiz de todas as doenças (e
algum valor. Mas ela tem um objeto sofrimentos em geral) é a ignorância, da
específico, o sofrimento da experiência qual todas as aflições mentais surgem.
cíclica, não um objeto qualquer ou uma Assim, podemos tentar todos os
vaga ausência de objeto. tratamentos paliativos que estão nos
diversos níveis dos galhos, mas a raiz só é
Como podemos trabalhar a autoconfiança eliminada com a iluminação completa. A
segundo a ótica budista? Como uma pessoa boa notícia é que não precisamos só atacar
que acredita pouco em si mesma pode a raiz das doenças, mas podemos trabalhar
recuperar-se de acordo com os com todos os níveis disponíveis
ensinamentos budistas? simultaneamente. Assim um doente — e
cada um de nós, que vai ser um doente, e
Para desenvolver autoestima a pessoa deve que vai morrer — deve cuidar da saúde do
continuamente regozijar nas qualidades dos corpo, da saúde da mente e da saúde
outros e então pensar que, na base, todos espiritual.
os seres possuem uma natureza de buda

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Não cuidar da nossa saúde gera carma Há uma infinidade de práticas físicas no
negativo? budismo. As principais e mais acessíveis são
a circumambulação (caminhar ao redor de
Sim. E, em particular, se praticando o monumentos sagrados) e a prostração, mas
mahayana ou o vajrayana, os votos há a dança dos lamas (algumas que são
específicos contra não agredir o próprio bastante extenuantes, e cuja indumentária
corpo são mais enfatizados, e o carma pesa muito) e uma série de práticas de
negativo é ainda maior do que se praticando postura e movimento ligadas a fisiologia
o hinayana, e um não praticante produz sutil, como na hatha ioga. Porém todas
menos carma negativo ao agredir o seu estas práticas requerem alguma instrução e
corpo do que um praticante, mesmo do a recomendação de um lama. As
hinayana — porque além de ser um prostrações são em geral a primeira prática
senciente que merece cuidado, além disso de muitas pessoas.
ele é um relicário dos ensinamentos do
Buda. Budistas em geral podem praticar qualquer
esporte que não seja violento demais nem
O Budismo recomenda alguma atividade ponha em risco a saúde dele ou de outro.
física específica? O Dalai Lama pratica
algum exercício físico (como corrida, Num sujeito que esta sentindo muita dor, a
natação, futebol...)? liberdade seria em apenas reconhecer que
dor é apenas dor e por isso não sofrer pela
Sua Santidade o Dalai Lama tem mais de 70 dor? Ou conseguir erradicar a dor?
anos de idade, mas realiza 300 prostrações
por dia. É sua primeira prática pela manhã, Existem vários graus de liberdade perante a
as 4h30. Para terminar essas prostrações dor. Se a pessoa puder simplesmente evitar
em tempo hábil é necessário um a dor, porque não fazer isso? Não existe
condicionamento físico muito bom. Há nenhum sentido em deliberadamente
praticantes que fazem até mais de 2000 por sentir dor. Se a dor é inevitável, existe muita
dia. Mas em geral qualquer praticante sério diferença entre alguém que simplesmente
do vajrayana faz de 25 a 100, pelo menos. se desespera e alguém que consegue operar
Essa pratica envolve descer ao chão, sem em meio a dor. Isso pode ser treinado, como
ser tão bruscamente que possa machucar, o qualquer exército do mundo vai
que exige força nos braços (se você reparar, demonstrar. Dentro das pessoas que
todos os monges tem braços fortes) se conseguem estar com dor intensa e não
estirar completamente à frente, e então perder completamente o uso coerente de
retornar a ficar de pé. Evidentemente é uma suas mentes, existe muita diferença entre
prática e existe uma oração a ser recitada e aquele que consegue se manter ético e o
uma visualização a ser feita. que não consegue. E entre os que
conseguem se manter éticos, existe muita
diferença entre o que consegue

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desenvolver compaixão e o que não apenas uma ideologia nossa, ele está muito
consegue. Naqueles que conseguem arraigado em hábito, e esse hábito
desenvolver compaixão, existe muita engendrou estruturas fisiológicas capazes
diferença entre aquele que consegue de sentir dor. Os nossos limites corporais de
reconhecer inseparatividade-vacuidade, e o dor e prazer são artificiais, criados por
que não consegue. hábito, e bastante estreitos: existem dores
muito piores do que as que os seres
Existem muitas histórias de tibetanos humanos sentem, bem como prazeres
torturados pelos chineses, por décadas muito mais duradouros e intensos. Nossa
após a invasão — algumas delas são experiência é um bocado estreita. Mas
contadas no documentário Cry of the Snow mesmo uma experiência mais ampla ainda
Lion. Um grande lama foi amarrado a um é uma experiência condicionada.
cavalo, mas mesmo sendo arrastado pelas
pedras e quebrando alguns ossos e dentes, Ademais, existe liberdade perante qualquer
ele manteve a compaixão, e cantou, estrutura fisiológica e qualquer hábito que
enquanto pode, algumas canções de gera essas estruturas. Então, para ir além da
realização — isentando os torturadores e de dor, não basta pensar algumas coisas
fato lhes prestando homenagem como espertas e corretas, é preciso penetrar no
professores que vieram para purificar seu tecido desses hábitos e desfazê-los. Isso não
carma. Mas a maioria de nós sofre dor como é trivial, mas é possível. É possível superar
os animais: sem nenhuma capacidade de completamente o vínculo com esses hábitos
transformar isso em prática espiritual. que geram essa fisiologia e a reificação
dessa fisiologia.
Evidentemente que para alguém que pensa
que as coisas são um sonho, mas não tem Mas, se a pessoa é cética, basta ver que em
realização nenhuma da realidade das coisas situações menos limite, a liberdade
como além de um sonho, tudo é o mesmo. também está presente. Qualquer pai sabe
A dor de sonho é a única dor que se sente. que a dor da criança depende muito da
E ela é bem real para nós que reificamos as atenção que a criança dá a dor: você desvia
aparências, em especial o nosso corpo. Para a atenção da criança com um brinquedo e
alguém que alcançou a realização de ver o ela esquece e para de chorar. Esse é um
sonho como o sonho, ou algo dessa mecanismo muito óbvio que demonstra a
realização, é mais uma coisa que acontece, nossa liberdade e ausência de liberdade
e dependendo da profundidade dessa perante a dor.
realização, com que pode conseguir lidar
melhor ou pior. Tenho um diagnóstico de transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade, por isso
O importante é entender que a dor é uma tenho uma enorme dificuldade em meditar,
experiência essencialmente falsa: ela vem relaxar, me organizar e colocar coisas em
do nosso apego ao corpo. Esse apego não é prática. Existe tratamento medicamentoso

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para isso, mas será que a prática budista condições. A maioria das pessoas não vai ter
também poderia me ajudar? o menor interesse no budismo, e esse é o
maior obstáculo.
Algumas pesquisas evidenciam que sim. No
entanto é critério do seu professor dizer se Como pessoas com problemas psicológicos
no seu caso é possível já praticar meditação, (que necessitam de remédio) podem atingir
ou se o melhor é apenas o medicamento, ou iluminação? Depender de remédios não é
ambos, ou alguma outra coisa. estar preso?

O que budismo conhece sobre os A esmagadora maioria das pessoas não tem
pensamentos repetitivos, como os que interesse no darma. Entre as que tem
ocorrem no Transtorno Obsessivo- interesse, algumas não vão ter possibilidade
Compulsivo? A prática pode minimizar o de praticar — por circunstâncias diversas
sofrimento dessas pessoas? como não ter tempo, ou outras
circunstâncias que podem ser obstáculos
A prática budista serve para eliminar todo e fáceis ou difíceis de remover. Entre as que
qualquer sofrimento, mas ela se foca tem interesse e possibilidade, muitas vão
principalmente nos sofrimento mais gerais encontrar obstáculos na prática e a
e mais comuns — com sofrimentos mais iluminação vai ainda levar várias vidas.
específicos, como consertar o motor de um
carro ou transtornos psiquiátricos, o melhor As pessoas que têm doenças que impedem
é buscar uma ajuda específica. a prática do darma têm obstáculos que
podem ou não ser removidos nesta vida,
De forma geral, a prática budista pode mas que em vidas futuras poderão com
ajudar num TOC, ou até pode piorar um TOC certeza ser removidos. Assim, a pessoa
— se ela não for bem prescrita e pratica o que conseguir, e qualquer mérito
acompanhada. Isso vai depender da e conexão que ela possa obter, vai ajudar
habilidade do professor e da capacidade do ela nessa e em vidas futuras a seguir
aluno de aplicar as instruções. praticando o darma e eventualmente atingir
a iluminação.
Uma pessoa cega e surda pode praticar o
budismo? Para o budismo, qual deveria ser o destino
dos serial killers, uma vez q não há cura para
Depende de quanto ela é capaz de se a psicopatia? Deveriam pegar prisão
comunicar, e de encontrar um professor perpétua e trabalhar na cadeia?
capaz de se comunicar com ela. Se o grau de
deficiência dela não permite que ela se O Buda teve um aluno, Angulimala, que foi
comunique, então dificilmente ela vai um serial killer. Não existia, é claro, um
conseguir praticar. Mas a pessoa nem diagnóstico psiquiátrico de psicopatia
precisa ser deficiente para não ter essas naquela época. Em se tratando de muitas

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vidas, nenhuma doença é incurável. Mas o tradicional e não necessariamente


budismo não se opõe a decisões que levem budismo, embora no que o budismo se ligue
a penalidade perpétua e trabalho (se com medicina, encontra-se essa
forçado, daí torna-se ponto de discussão). terminologia.
Porém é importante não encarar como
punição. A "punição" das ações de uma O que significa a palavra "lung" no
pessoa vem naturalmente, através do budismo? Esta palavra é em sânscrito?
carma. O que coloca uma pessoa na cadeia
de forma perpétua é a dificuldade de avaliar Em sânscrito é prana. Alento, vento. Lung é
se continuará sendo um perigo para os um aspecto de animação interna na
outros. Enquanto for claro que existe fisiologia sutil tibetana. Também é o nome
evidência de perigo para os outros, a pena que se dá a transmissão oral, isto é, a leitura
deve ser prorrogada. em voz alta do texto pelo professor. Isso
transmite o entendimento do professor na
Você poderia falar um pouco sobre o termo forma da expressão que ele dá ás palavras,
"lung"? Em que tradições ele é descrito? e é uma parte integral da transmissão de
ensinamentos. Em geral não é aconselhado
"Lung" é o mesmo que "prana", portanto estudar um texto sem ter recebido ao
muitas tradições budistas e não budistas menos o lung, em geral também explicações
descrevem esse fenômeno. É um fenômeno detalhadas, sobre ele.
pré-budista, que está nas medicinas
tradicionais de toda a Ásia. É algumas vezes Na visão budista, casos de suposta
traduzido como "vento" — ventos sutis que possessão demoníaca são às vezes causados
animam a fisiologia sutil. por entidades infernais mesmo ou é sempre
um fenômeno meramente psicológico?
O lung pode ser fraco, forte, pode estar
obstaculizado ou fluir bem, e pode estar A objetividade de um fenômeno, que é
perturbado ou sadio. Lung obstaculizado sempre sonho, não interessa. Interessa o
causa dores, lung perturbado causa que se pode fazer pela pessoa. Nesses
agitação mental e corporal. Em geral a casos, é muitas vezes evidente que um
meditação ajuda a tranquilizar o lung, mas exorcismo é mais compassivo do que
pode também ter efeitos ruins — por isso convencer a pessoa que ela esteja deludida
também é importante um professor. — mesmo que ela de fato esteja!

Os termos na verdade são três: prana, nadi Se não funciona conosco, com relação ao
e bindu. Ventos, canais e gotas. O estudo da apego ao eu e a reificação das aparências,
fisiologia sutil pode explicar vários tipos de porque funcionaria com ela? Se nós já
doenças e perturbações, bem como ajudar estamos acreditando em coisas absurdas o
um professor a prescrever práticas tempo todo, porque se encasquetar num
específicas. Mas em geral isto é medicina

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absurdo muito menor, comparativamente visões parciais — que não sejam Budas —
falando? podem ajudar e curar, claro que não em
todos os casos, mas em alguns casos — pelo
"Interessa o que se pode fazer pela pessoa." mérito deles e o mérito dos pacientes.
Mas o que se pode fazer pela pessoa
depende de se o demônio está lá ou não. Há O que um budista não pode fazer, em caso
conflito entre uma solução algum, é simplesmente desconsiderar o
tradicional(exorcismo) e uma sofrimento do outro porque ele não se
científica(remédios). encaixa nas nossas expectativas do que
seria real. Se tudo é falso, estamos sempre
Não depende. Ou, em outras palavras, a trabalhando com os tentáculos da falsidade
objetividade não pode ser tomada num ser — e nesse caso o método científico no seu
fracionado: "no corpo tem isso, mas ela fala mais puro e irreligioso é o melhor: o que
isso, pensa aquilo, e no fundo, pensa funciona, o que se repete, o que produz
secretamente aquilo outro". Isso é tratar de resultados, o que explica um pouco mais...
umas cinco entidades fantasmagóricas este é o melhor. E, da mesma forma que
numa mesma pessoas. O foco é uma única com o método científico, se uma premissa
entidade fantasmagórica, que inclui o que lá na base estiver corrompida, todo o
observamos e o que ela diz de si mesma. edifício cai. E, segundo o budismo,
Ignorar o que ela está dizendo, o conteúdo nenhuma premissa está assentada a priori.
de sua delusão, é exatamente o que se Tudo de que podemos falar é, num sentido
chama "falta de compaixão". Se nossas mais preciso, falso. A única que realidade
opiniões atuais são 99.9% falsas, e o nosso que possuem esses objetos — corpo,
corpo todo também é uma falsidade, com opiniões, doença, sofrimento — é relativa,
todas as doenças dentro — tudo um sonho, convencional. E só assim a compaixão e o
com alguma coerência pelo nosso mérito, consequente alívio do sofrimento são
mas com muita falta de coerência devido ao possíveis.
nosso carma negativo. Acreditar nas
próprias opiniões e no próprio corpo como Qual a visão do Budismo sobre doenças
tendo existência inerente é muito pior e mentais? Tipo Esquizofrenia e depressão
muito mais prevalente do que ser em específico...
supersticioso. O pior demônio é a crença na
existência inerente do eu, e nesse caso Cada cultura budista tem uma medicina
todos nós estamos possuídos. específica que lida com os problemas de
"vento". Diagnósticos como estes são frutos
Não há conflito, se estiver disponível, dê o da pesquisa psiquiátrica e não estão
remédio também — leve no psiquiatra! No presentes no budismo. Dentro das
budismo claramente se diz que se o medicinas tradicionais de cada país asiático
tratamento eficaz está disponível, a pessoa existem formas de tratar problemas que
deve fazer. Mesmo médicos que possuam hoje talvez fossem diagnosticados assim. Na

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visão budista, toda doença é fruto do Todas. No hinayana, por exemplo, eles vão
carma, isto é, ações negativas passadas. dizer que sexo é um grande problema. É
bastante direto. No mahayana e no
No Budismo, o órgão da inteligência é o vajrayana, em todas as linhagens, também,
cérebro ou o coração? o sexo é um tema bem comum — ou seja,
como integrá-lo (ou não integrá-lo, no caso
Depende que sentido se usa para do hinayana) na sua prática. Se a pessoa
"inteligência". Se você está falando de algo quer um kama-sutra da vida, então ela pode
como raciocínio puro, isso não existe no pegar o Tibetan Arts of Love, do Gedun
budismo. O corpo todo pensa, e todo Chopel.
pensamento é ligado a emoções. Não existe
pensamento não emotivo ou emoção não Você poderia por favor falar um pouco
pensada (embora existam sensações não sobre a paisagem (não a mental, mas a
pensadas). natural mesmo) no budismo? Qual a
importância ou o papel do contato com a
O coração, não bem o coração, mas a região natureza nas várias tradições?
ao centro do peito, é mais importante para
a prática budista do que a região dentro do Por uma questão de saúde e bem-estar, que
crânio. Mas isso não se refere a inteligência, são bons coadjuvantes à prática espiritual
a não ser se estamos falando de — principalmente para iniciantes como nós
consciência. Para o budismo a consciência, — locais aprazíveis e arejados são melhores.
um tipo de consciência que é localizável, Nos locais altos o ar é mais limpo porque as
está no peito, e não no cérebro. Mas partículas se concentram nos locais mais
basicamente, está em todo o corpo. baixos. Também soltar o foco do olho no
horizonte é bom para o olho e para a mente.
O cérebro está vinculado às consciências
dos sentidos, bem como a medula. Se Em todas as tradições budistas se tenta
alguém é vivaz, esperto, pode-se dizer que vincular a prática e os locais de prática a
a mandala de sua cabeça é límpida. Mas se locais belos e arejados. Isso não só presta
alguém é inteligente no sentido de integrar uma homenagem aos Budas — é uma
sua vida, levar uma vida íntegra, daí é a oferenda à linhagem utilizar locais
mandala do peito que é límpida. Que aliás, exaltados e belos para construir
inclui os pulmões também. representações do corpo, fala e mente dos
Budas — como facilita a prática.
A fisiologia sutil budista é um
desenvolvimento da fisiologia sutil hindu. Nas práticas avançadas, locais degradados
como os locais onde se despejava corpos na
Todas as tradições budistas possuem Índia — uma mistura de necrotério a céu
ensinamentos diretos sobre o sexo? aberto com prisão e manicômio, onde tudo
de pior se concentrava — são mais

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adequados. Locais como hospitais, prisões, parecidos é fácil, mas seguir gostando do
pontos de drogas e baixa prostituição, outro na diferença, aí é que surgem as
feiras, aglomerações populares, o centro de qualidades grandiosas.
uma cidade grande, estações de ônibus e
trens, casas assombradas, onde suicídios e Além dos ensinamentos budistas, existem
assassinatos foram cometidos, campos de outras práticas para atingir a iluminação?
concentração nazistas, cidades em ruínas
pela guerra, favelas, daí esses são locais de Pode até haver, mas desconheço. É bom
prática adequados para grandes praticantes lembrar que nem todas as práticas budistas
que querem beneficiar os seres de forma levam até a iluminação. Todos os
intensa e progredir rápido na prática ensinamentos que o Buda deu no nível do
através de locais desafiadores e hinayana não levam à iluminação. E mesmo
amedrontadores. a grande maioria dos ensinamentos
mahayana, por si só, não levam a
Da mesma forma, praticar em meio à iluminação, e sim são preliminares a
doença, ao vexame público, e assim por ensinamentos que aí sim levarão a
diante — sem que a pessoa deva é claro iluminação. Isto é, levam a iluminação mas
produzir ou ir atrás dessas coisas, de forma de uma forma indireta — a maioria deles.
alguma, só quando elas surgem Mesmo os tantras externos, eles vão levar a
naturalmente — é muito importante e iluminação, mas possivelmente quando
produz avanços rápidos. Então devemos levarem aos tantras internos. E entre os
também usar essas oportunidades de tantras internos, apenas um deles
paisagens degradadas internas para representa o próprio estado iluminado
incrementar nossa prática. atualizado, o último deles — portanto só ele
1.7. Budismo e crenças diversas leva a iluminação diretamente.
Você discorda da noção que as diferentes
tradições religiosas iluminam e ajudam a É possível atingir a iluminação com outra
entender umas às outras pelos paralelos religiões, ou filosofias?
notáveis que existem entre elas?
Primeiro é preciso examinar quais outras
Discordo de toda e qualquer noção tradições, religiosas ou filosóficas, buscam a
intolerante, e aparentemente procurar iluminação ou algo parecido. Para isso
encaixar tradições umas nas outras é bem precisamos de uma definição mais precisa
mais intolerante do que reconhecer a de iluminação — o que encontramos em
diferença e conviver com ela. alguns tratados budistas. Iluminação é a
dissolução completa e irreversível das
Claro que existem semelhanças, e é possível aflições mentais e o desenvolvimento
regozijar nelas. Mas reconhecer a diferença completo das qualidades tais como
e aceitá-la é muito mais grandioso. Afinal, compaixão e amor.
gostar do outro porque nos achamos

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Algumas tradições hindus tem noções de concorda e é, em maior ou menor grau,


liberação que guardam alguma semelhança efetiva. Isto é, a maioria das tradições ajuda
com as budistas, outras buscam estados a desenvolver ética e compaixão.
semelhantes a alguns considerados até
mesmo obstáculos à iluminação pelos Em teoria, é possível que outros métodos
budistas. Então, se eles tem como objetivo levem à iluminação — no entanto, daí eles
algo que no budismo é considerado um facilmente também seriam chamados de
obstáculo à iluminação, é evidente que "darma do Buda", já que é essa a definição
essas tradições não vão produzir do darma do Buda. Na prática, ainda não se
iluminação. verificou isso. O que não quer dizer que
grandes praticantes e seres realizados não
Também é o caso que nem mesmo todas as surjam em contextos não budistas, para
tradições budistas buscam a iluminação ensinar as pessoas de acordo com suas
completa. Algumas buscam só a liberação, capacidades — do jeito que dá naquele
que é o mero remover das aflições mentais, momento. Os bodisatvas renascem até
sem o desenvolvimento das qualidades de mesmo como animais ou pessoas em
um Buda. situações degradadas, como em prisões e
prostíbulos, porque não renasceriam em
No caso das tradições que tem como igrejas e mesquitas? Mas isso não quer dizer
objetivo algo semelhante a certos bons que os ensinamentos de outras tradições
resultados no budismo, ou o resultado final, levem até o resultado final, só quer dizer
daí cabe analisar se os meios para obter tais que, para certas pessoas, é tudo o que se
resultados são eficazes. No caso deles pode praticar, e esse benefício temporário,
serem eficazes, é preciso ver se são em termos de ética e compaixão, é tudo que
eficientes, isto é, se são mais ou menos pode ser praticado naquele momento,
rápidos e poderosos. naquela circunstância.

É claro que, para alguém que está em busca O budismo crê, que com o cultivo do amor
da iluminação, tal tipo de comparação não e da compaixão, independentemente se há
só é difícil, mas improvável de ocorrer. ou não religião, todos chegarão no mesmo
Afinal, a pessoa, motivada por compaixão, fim, a iluminação?
está se engajando em prática espiritual, não
em religião comparada! Então não se Não, os seres podem ficar indefinidamente
considera, em geral, possível, fora do nosso perdidos no samsara, até eventualmente
caminho, obter os resultados que são encontrarem ensinamentos que os levem a
propostos pelo nosso caminho. A favor das um caminho espiritual genuíno. Existem
outras tradições se pode dizer que, em muitos caminhos espirituais falsos, e
geral, eles nem mesmo querem o mesmo também muitos caminhos espirituais que
resultado. E, além disso, em se tratando dos não levam até o final. Portanto é
resultados menores, a maioria das tradições absolutamente incerto se todos chegarão

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ao mesmo resultado. Mesmo se todos os uma ou outra tradição, embora seja


seres praticassem o budismo, o que o extremamente raro encontrar linhagens
budismo não prevê, nem todos ininterruptas em tradições ocidentais, por
necessariamente atingiriam a iluminação. exemplo.
Há caminhos budistas, genuínos, que o
Buda ensinou, e que levam apenas até o Com certeza a maioria dos praticantes
nirvana, um resultado inferior que de fato hindus de hoje em dia partilham os
pode impedir a iluminação por muitos éons. métodos dos tantras externos com o
O Buda mesmo não respondia a pergunta vajrayana (budista). Já os métodos dos
"todos os seres um dia atingirão a tantras internos, mais sofisticados, é
iluminação?" Isso porque a concepção de bastante difícil avaliar, mesmo dentro das
muitos seres e de um atingimento é um diversas formas de vajrayana, se todos
obscurecimento que não permite uma estão presentes em todas as escolas. Em
resposta dentro do escopo da sabedoria. geral, todas as formas tibetanas têm alguma
forma de tantra não dual. As diferenças e
Ademais, o cultivo de amor e compaixão semelhanças são tópico de constante e
sem sabedoria, por si só só produzem acirrado debate ao longo dos séculos. Em
renascimentos mais felizes, e não um geral se assume que, o que você consegue
caminho espiritual. praticar, está ok.

Um professor budista pode orientar um Um problema comum é a mera incoerência


aluno não budista? da mistura de métodos e a ausência de um
professor qualificado, de uma linhagem
Claro. Prática de shamata, por exemplo, não pura e sem quebras. Assim a maioria das
requer compromisso com a tradição pessoas segue sem tradição, por vontade
budista. própria ou falta de mérito de encontrar uma
linhagem. Esses esforços aleatórios algumas
"Criar intimidade com a própria lucidez" vezes produzem algum benefício, outras
significa fazer apenas práticas budistas, vezes se tornam apenas mais obstáculos a
como recitar sutras, meditações e espiritualidade. No que Trungpa Rinpoche
compaixão? E quando a pessoa não é chamava de "supermercado espiritual" que
budista e nem sequer sabe o que é, como encontramos no ocidente, as pessoas
ela pode buscar essa intimidade? olham para a espiritualidade como que
comparando produtos — "todo sabão limpa
Sim, criar essa intimidade é fazer a prática. minha roupa, mas o sabão x tem o alvejante
Fora do budismo há práticas religiosas y, e é só 50 centavos mais caro..." Esse tipo
benéficas. Se elas se equivalem aos seis de atitude é completamente equivocada.
tipos de tantra, ou as práticas mahayana, ou
hinayana, é difícil dizer. Possivelmente a Ao reconhecer a raridade de encontrar um
maioria das práticas budistas são comuns a professor qualificado de linhagem pura e

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sem quebras, e a possibilidade de praticar seja salvo? Não é algo que eu possa fazer no
um caminho coerente, não aleatório, e que transcorrer de algumas horas, um dia ou
foi infalível para centenas de pessoas ao alguns anos — como no caso de muitos
longo dos séculos, a pessoa deveria se focar experimentos budistas...
nisso como prioridade perante qualquer
outra coisa. Se ela não tem esse mérito, Nas tradições onde eventualmente haja 1)
qualquer esforço na direção da virtude vale. treinamento da mente; 2) experimentos
Porém, se estamos falando de buscar com o treinamento da mente, daí,
intimidade com a lucidez, esses são possivelmente, como no budismo, haja
métodos bastante raros, mesmo dentro do benefícios similares. Porém, a vida é
budismo — que dirá fora dele. demasiado curta para ficar experimentando
de tudo, é preciso ter certa coerência, que
Sem uma estrutura religiosa, a pessoa se traduz como consistência. Portanto não
precisa de, pelo menos, um guru — e um há tempo para comprovar várias tradições
guru que ensine um método desvinculado — com base em experiência de seus
da tradição. Eles são raros, mas existem. próprios métodos. É possível ter uma
posição com relação a certas afirmações de
Quais seriam os resultados que se espera outras tradições com base em experiência
encontrar com o experimento budista? Não em uma delas e alguma inferência.
são resultados que se espera encontrar em
outras tradições religiosas? O mais importante é entender que as outras
religiões, e mesmo o budismo ele mesmo,
A diminuição das aflições mentais, a com sua infinita variedade, são como um
intensificação de certas qualidades, tais buffet. Não se deve bater toda a comida no
como a compaixão e o contentamento. liquidificador, e comer aquela pasta verde
— o ideal do universalismo na religião. A
Se tais resultados podem ser encontrados pessoa come o que quer, e se tem bom
em outras tradições? Bom, pouquíssimas gosto, se não quer passar mal, não mistura
tradições sequer possuem a noção de muito. Um conhecedor toma o vinho certo
treinamento da mente, e a possibilidade de com a refeição que vai combinar, e vice-
fazer experimentos. Essa é uma quase versa. Ele faz isso para que o sabor seja mais
exclusividade do budismo, por si só. Não agradável, e para que ele tenha uma
que o budismo esteja livre de propaganda experiência, em geral, mais agradável. Por
— mas a maioria das tradições é só puro autointeresse, ele não sai comendo
propaganda (e, como disse antes, não que o tudo, ou rápido demais, ou passando doce
"produto" em si não tenha seus benefícios) de leite na moqueca. Se você é imaturo
— mas você não é encorajado sequer a como uma criança, você se lambuza de
experimentar, e sim a meramente aceitar. porcarias. E a maioria das pessoas é assim
Por exemplo, o experimento do cristianismo com as tradições religiosas: uma mistura de
seria o quê? Acreditar em Jesus até que eu fast food com salgadinhos e refrigerante.

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Mas, ao contrário da alimentação, muita religião e quanto ao budismo, a não ser que,
gente ainda se orgulha de ser tão aberto a no caso do budismo, elas se restrinjam aos
qualquer religião junk. E veja bem, mesmo métodos chamados "externos".
um hamburguer saboroso — uma tradição
que tenha seu valor nutricional — se for Sendo o budismo não deísta, como ele se
comido como junk, será junk. Então essa relaciona com as religiões monoteístas e
atitude de mixórdia religiosa só vai produzir politeístas?
náusea religiosa a curto prazo e problemas
de saúde espiritual a longo prazo. Se a tradição se esforça na virtude, ela é
respeitada pelo budismo. A virtude é o que
E, falando em uma atitude mais evita o sofrimento dos seres e traz algum
metodológica, mais científica, se a pessoa tipo de benefício. A grande maioria das
quer saber se é alérgica a tomate, e não tradições, segundo o budismo, é mais
confia nos grandes laboratórios (os benéfica do que maléfica.
professores, os lamas), então ela fica sem
comer tomate por um tempo e vê se se Já que não há a figura de uma divindade, os
sente melhor. Depois ela experimenta um budistas são, tecnicamente, ateus?
pedacinho de tomate, e vê se há algum
sintoma. E, com o tempo, e comprovando o Algumas vezes as pessoas usam a palavra
laboratório por si própria, ela pode começar "ateu" para designar quem não acredita em
a confiar nos outros resultados do nada espiritual. Nesse caso, os budistas não
laboratório. são ateus. Se por ateu a pessoa quiser dizer
"não acredita num criador", então sim, os
Sendo o budismo um método, é possível budistas são ateus.
uma pessoa ser budista e judia, por
exemplo? Para o budismo, Deus existe ou poderia
existir?
Etnicamente judia, claro. Praticante do
judaísmo, bom, daí há métodos budistas Um criador, ou um ser onipotente, ou um
que ela pode usar, outros vão requerer que ser que possua um eu, ou que seja
ela tome refúgio, e portanto ela não pode inerentemente existente (exista por si só,
ter refúgio em Deus e no Buda... isso do independentemente), ou que possua
ponto de vista de ambas as religiões. Agora, simultaneamente algum grau de separação
as pessoas não compreendem bem nem a e transcendência, não é possível do ponto
religião cultural-familiar em que estão de vista do budismo. Se o Deus postulado
inseridas, muito menos uma religião tão possuir qualquer uma dessas
diversificada, profunda e pouco conhecida características, ele não só não existe como
como o budismo. Então provavelmente um fato, ele não existe sequer como uma
muitas pessoas que afirmam coisas assim possibilidade.
estão equivocadas quanto a sua própria

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Outras formas de postular um Deus que não ou deixar tão clara a posição budista. O
envolvam criação, onipotência ou budismo está muito mais preocupado com
separação (pelo menos uma das três já o benefício dos seres do que com
exclui possibilidade) são possibilidades conclusões a respeito de coisas, com
segundo o budismo. Seres de compaixão e discurso.
sabedoria plena, por exemplo, são tanto
possíveis como considerados efetivamente Aliás, essa é uma diferença essencial entre
existentes segundo o budismo. o budismo e a filosofia, pelo menos uma
vastíssima porção de filosofia. O efetivo
Existe alguma vertente do Budismo que benefício dos seres é muito mais
aceite pelo menos a possibilidade de um importante do que qualquer coisa que
Deus criador? possa ser dita.

Não. O mais próximo são os pudgala, que "A tradição budista não chega a negar a
acreditam na existência de um "eu" — mas existência de um criador, mas também não
eles não existem mais há milênios. Porém está interessada em saber quem criou o
eles são um argumento comum para dizer universo." Edward Conze. Essa afirmação
que acreditar na inexistência de um "eu" está correta?
não é uma característica essencial do
budismo. Não, a inexistência de um criador é
conclusão da inexistência de um eu e da
Agora, o que você vai encontrar são mestres inexistência de uma essência dos
muito políticos que não vão dizer muito fenômenos, ensinamentos presentes no
claramente que a doutrina budista não hinayana e no mahayana.
pode aceitar um criador. Mas com certeza
eles não vão dizer claramente o oposto. É só Conze é uma figura interessante. O volume
para não criar atrito — em algumas de traduções dele é impressionante. Ele
circunstâncias é bom. também, além de erudito, tentou praticar o
budismo, o que, para sua época, foi
Sua Santidade o Dalai Lama disse que se realmente fantástico. Ainda levará um
uma senhora idosa que pratica a virtude tempo para avaliar suas traduções à luz de
porque acredita num criador vier e traduções feitas com a colaboração de
perguntar algo sobre isso, você não deve professores budistas com realização
tentar dissuadi-la de sua crença. As únicas espiritual.
pessoas a que é lícito tentar dissuadir são
pessoas que 1) não atrelam sua prática de O Buda afirma conclusivamente em algum
virtude a essa crença; 2) estão abertas ao lugar que não existe Deus criador ou é
debate racional; se essas duas coisas não apenas algo que se consolidou nos
estão presentes é desvirtude debater isso, e ensinamentos dos intérpretes posteriores
talvez seja até desvirtude falar no assunto da doutrina?

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tem a flecha" em vez de buscar um


Nos textos mais antigos já está escrito que cirurgião.
não há um "eu", isso é um pouco mais
radical, e inclui tudo isso. Por que no Budismo não se fala em Deus, ou
qualquer conceito de um ser superior? Será
Mas especificamente há uma refutação de que a existência de uma entidade assim
um criador pelo próprio Buda já no Cânone desqualifica os ensinamentos budistas? Não
Páli (considerados os mais antigos registros é possível ser teísta e budista?
dos ensinamentos budistas), no Patika Sutta
(2.14-17 do Digha-Nikaya). Você tem seres superiores no budismo.
Basicamente, qualquer ser que tenha mais
Se existem verdades absolutas como o amor compaixão que você, é superior a você.
e a compaixão, isso não implica na Seres de compaixão e sabedoria supremas,
existência de um ser que seja a chamamos de Budas.
manifestação máxima de tais virtudes?
Mas não pode haver um criador. A noção de
Em primeiro lugar, não se deveria talvez ver criador não é apenas incompatível com o
essas qualidades como "verdades". Nem budismo, é incompatível com a lógica e a
absolutas. Depois, existem seres que são a realidade, e por isso o budismo não a aceita.
manifestação máxima dessas qualidades: os Em outras palavras, não é uma questão de
budas e bodisatvas. Eles são vazios, crença, mas de conhecimento estabelecido
impermanentes e ilusórios, como todos os através do raciocínio e da experiência.
outros fenômenos. Eles também diferem da Portanto você é encorajado pelo budismo a
noção de um criador (que o budismo não descobrir isso por si próprio, sem ter medo
aceita) — já que eles não são responsáveis de, por outro lado, já de cara dizer que é
pelos surgimentos. assim.

Se não há um criador, então não houve um Li que o aspecto "deus pessoal" aparece no
principio? Como as coisas existem? ou Amidismo japonês, o culto mahayana do
sempre existiram? Buda Amitaba. Poderia dizer alguma coisa
sobre isso?
O modo de existência ou surgimento das
coisas é irrelevante, o que conta é que Amitaba é um Buda pelo qual se tem
estamos num estado de insatisfatoriedade devoção, mas não é um criador, nem é
e precisamos de métodos para revelar o onipotente. Pela noção de ausência de eu,
estado natural, livre de insatisfatoriedade. no Japão se desenvolveu a noção de "a força
O Buda dizia que fazer perguntas assim é do outro", em contraposição ao zen, em que
como estar com uma flecha enfiada no olho a pessoa se ilumina pela "força própria".
se perguntando "de onde ela veio, que cor

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Mas um Buda não é um deus, nem mesmo


Amitaba. Isto é uma ótima notícia: para sermos éticos
basta uma noção não religiosa de que o
Os materialistas acreditam num mundo outro é importante para sua própria
desgovernado onde o mal pode não ser felicidade. Quando precisamos de religião
punido. O Budismo parece ter implícita a para sermos éticos — precisamos de
noção de justiça (más ações são punidas e obediência, leis, e assim por diante — isso é
virtuosas recompensadas). De onde essa apenas um sinal de que ainda somos
Justiça na natureza das coisas pode vir se crianças em certo sentido. Algumas vezes
não de Deus? no budismo se diz que ética e realidade são
a mesma coisa. Agir em desacordo com a
Não é justiça. É apenas o fato de que os realidade é o que produz sofrimento.
seres não são efetivamente separados. É a
nossa ignorância que produz a noção de que Qual a relação entre o hinduísmo e o
há alguém lá fora. Prejudicar a outro é budismo?
exatamente como a mão esquerda colocar
fogo na mão direita — só pode demorar As relações são vastas e complexas — e as
mais um pouco para o efeito ser percebido, duas tradições são muito mais vastas, cada
mas é exatamente a mesma coisa. Então uma delas, que nós em geral conseguimos
não há necessidade alguma de um compreender. Só em volumes de textos e
"governo" ou "consciência" centrais para diversidades internas, cada uma delas pode
resolver "questões" de ética. A ética vem do nos surpreender por vidas a fio.
próprio tecido do sofrimento ou da
ausência de sofrimento, e enfim, o O budismo utiliza muitos conceitos e
sofrimento é causado por uma visão palavras vindos do hinduísmo, como o
distorcida, ignorância. próprio termo "darma". E formas de
hinduísmo, em debate com budistas no
A relação entre causa e efeito é uma período clássico indiano, mudaram em
aparência que depende dessa vários aspectos. Então existe uma grande
separatividade. Eu causo dor lá, se passa um inter-relação entre as duas tradições.
tempo, dói aqui. Com sabedoria, causar dor
lá e aqui sempre foram a mesma coisa. A A diferença central é que o budismo não é
localidade e a temporalidade são projeções teísta, e o hinduísmo é. Algumas formas de
da nossa mente deludida. O carma, no budismo acreditam num "eu", e algumas
budismo, é exatamente como quando uma formas de hinduísmo, como a maior parte
pessoa esconde o chocolate de outra e do budismo, chega a negar o "eu" — então
então ela mesma esquece onde está o nem mesmo isso é um critério.
chocolate. Nós estamos pregando uma peça
em nós mesmos ao ver o outro como
separado.

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Essas formas de budismo que acreditam Bhagavati é abençoado, senhor dos mundos
num "eu" que você menciona também são é outra coisa, que não significa que ele é
não teístas? onipotente, mas que ele está com os seres
em todos os mundos, para ajudá-los.
Sim, e eles não existem mais. Eram os
pudgalavadins. Eles são só um exemplo Também, como o ensinamento do Buda é
histórico que serve para indicar que a superior a todas as outras expressões de
inexistência de um eu não é um critério ensinamentos, é chamado de "o rugido do
definitivo para distinguir entre o que é leão" — porque produz liberação. A força
budismo e não é. do Buda não está em subjugar seres, mas as
aflições mentais — dele mesmo. Através do
Na sua visão do Budismo é errado ensinamento do Buda, o rugido de leão
considerar o Buda como um avatar de proclamado por ele, os seres podem, se se
Vishnu? aplicarem, fazer o mesmo. Em outras
palavras, ele é o exemplo final de todos os
Na visão do budismo isso é um equívoco mundos possíveis.
sim. Essa é a visão hindu do Buda, que
transforma o Buda num deus com Não há nenhum tipo de onipotência no
existência inerente. Mas é algo a se dizer da budismo. A onipotência gera uma série de
nação hindu que eles incorporem o objeto contradições nas doutrinas teístas. No
de refúgio da outra religião como um deus budismo com certeza, em nenhuma forma
do seu panteão. O budismo fez isso também de budismo, o Buda tem poder
com inúmeras deidades hindus, que agora independente sobre os outros seres. Para
foram convertidas e trabalham para o ajudar, até mesmo o Buda depende do
senhor Buda, inclusive Vishnu, Brahma e mérito do outro. Se ele tivesse esse poder,
Shiva. Um dia, seguindo o caminho do Buda, ninguém sofreria. Um ser infinitamente
eventualmente eles também vão se benevolente e infinitamente poderoso não
iluminar. Podemos escolher ver esse permitiria a existência do sofrimento. Como
amálgama como sectarismo na forma de o Buda não é nem criador, nem onipotente,
"fagocitose" da crença do outro, ou como no budismo não precisamos lidar com
uma forma de respeito pela crença alheia. invenções como o livre-arbítrio, nem
Possivelmente há algo de respeitoso e algo caímos no problema de ter que explicar
de condescendente e imperialista em porque o mal (sofrimento, no caso do
ambas as atitudes. budismo) existe.

Por que o Buda é chamado baghavati, Os hindus que possuem a prática de


"senhor dos mundos", se ele não é shamata são teístas ou não teístas?
onipotente? Esse não é um título também
de Krishna, que seria onipotente? Não há hindu não teísta. É uma pena que
eles não tenham a prática de vipassana,

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nesse caso poderiam reconhecer que... não Uma das comprovações (e aqui não é
é bem assim. E eles chegam a muitas das indicação) mais extraordinárias da
mesmas conclusões que o budismo sobre neurologia e psicologia modernas é que a
assuntos pouco importantes, como prática de shamata aumenta a capacidade
renascimento. de empatia. Um resultado bem menos
interessante, mas também relevante, é a
Mas de fato, hindus sofisticados podem neuroplastia. Hoje estão sendo realizados
fazer o nosso não teísmo soar teísta, com os experimentos longitudinais e mais
que, por exemplo, Dzongsar Jamyang rigorosos, com meditadores iniciantes em
Khyentse Rinpoche tanto elogia. retiros longos — nos anos que virão mais
detalhes surgirão com relação a evidências
Olhando de um viés histórico, quando os científicas ligadas a esta prática.
muçulmanos destruiram a universidade de
Nalanda os desenvolvimentos do hinduísmo A questão da empatia foi demonstrada ao
ainda não tinham incorporado as últimas dar relances de fotos com expressões faciais
sofisticações do debate com os budistas — para meditadores e não meditadores, e os
em alguns séculos eles fariam isso. (É claro meditadores foram capazes de reconhecer
que o oposto também vale, isto é, os o estado mental muito mais
budistas se desenvolveram muito no debate frequentemente do que os não
com os hindus, até os muçulmanos meditadores.
acabarem com a festa usando um
argumento... de força.) E de fato, a prática de shamata no contexto
do budismo, vem vinculada a outras
A boa notícia é que a prática de shamata pequenas práticas formais, que garantem a
pode servir a qualquer um, com ou sem coerência de shamata com o todo do
crença religiosa. De fato, até para cometer ensinamento budista. A prática da tomada
desvirtude, ou ações mundanas, ela é boa. de refúgio com prostrações, por exemplo —
Uma pessoa com boa prática de shamata é e, essencial, o desenvolvimento de bodicita.
até mesmo um melhor atirador de elite, um
melhor ladrão de bancos. Ou joga Também é possível atingir o resultado do
videogames melhor. Onde quer que ela budismo sem sequer praticar shamata —
coloque a mente, ali ela vai ter mais clareza isso é algo que depende da constituição e
e estabilidade. Agora, você gastar um do mérito de cada um.
número grande de horas para dominar
atividades mundanas, e não algo como a Então, é preciso perceber que a prática de
prática de vipassana, é não ter mérito, é não shamata, por si só, não nos torna capazes de
saber dar prioridades adequadas a um reconhecer a realidade, e que portanto os
tempo de vida que deve ser considerado hindus podem estar enganados quanto a
curto. deus mesmo sendo praticantes perfeitos de
shamata.

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devorar — este é o praticante lidando com


Você sabe se há descrições/ensinamentos as aparências, removendo obstáculos, e
sobre vacuidade e luminosidade em outras assim por diante. Mas não é algo que ocorre
tradições além do budismo? Em alguma lá fora ou que alguém fez para nós, ou no
forma de hinduísmo, talvez? que estamos simplesmente imersos, o de
que fazemos parte. Por isso não é
Mesmo no budismo há diversos níveis de pandeísmo, porque não é nenhuma forma
ensinamentos sobre a vacuidade — sendo de teísmo. Ainda assim, em termos de
que apenas o mais elevado, a prasangika, é metáforas de dança, passatempo,
a correta forma de apresentá-los: os outros brincadeira — elas todas ocasionalmente
são usados como expedientes didáticos surgem no contexto da união de sabedoria
para quem não é capaz de captar o e compaixão.
ensinamento prasangika.
A sílaba OM tem algum papel no Budismo?
Então em algumas tradições advaita hindus,
a coisa chega bastante perto. Eles chegam a Sim, OM AH HUNG são as sílabas
ser bons oponentes para a cittamatra correspondentes as mandalas de corpo, fala
buddhista, mas ao que parece nem tocam e mente dos Budas, respectivamente.
no solo da prasangika. Algumas vezes são chamados de "os três
segredos", já que nossas próprias mandalas
No budismo não existe nenhum análogo do de corpo, fala e mente são inseparáveis às
conceito hindu de "lila"? dos Budas, e não reconhecemos isso.
Também chamados de "os três vajras".
O tantra budista em nada fica atrás em
termos de metáforas com relação ao tantra No hinduísmo, o mantra OM é um mantra
hindu. A única diferença essencial é a não que emana o som do universo e é
existência do eu, e portanto a não existência equivalente às deidades mais
de um deus eterno, criador, imanente, ou transcendentes. E no budismo? O mantra
superpoderoso. OM parece apontar para o reino dos deuses,
os quais têm suas imperfeições. As
No vajrayana o praticante está em divindades hinduístas estariam no reino dos
constante envolvimento lúdico com as deuses do budismo?
circunstâncias. As deidades iradas
apresentam 9 modos de dança — que são Sim, os deuses hindus em geral são tidos
"humores" que o praticante revela como deuses mundanos pelo budismo, ou
simultaneamente ao manter o orgulho seja, sujeitos à impermanência, ausência de
equânime de uma deidade. Dorje Drolod existência intrínseca (separada, verdadeira,
cavalga uma tigresa prenhe, por exemplo. O essencial, independente), e cheios de
animal mais instável, segundo Trungpa sofrimento (dukkha — a própria falsa
Rinpoche, que pode te amamentar ou felicidade desses reinos é sofrimento).

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si só, uma explicação enorme. Em geral se


Mantra no budismo e no hinduísmo fala do trikaya, isto é, os três corpos, o corpo
possuem conotações extremamente do benefício para os outros, que se divide
diversas. Embora se encontrem no nível em uma forma pura, para os de percepção
popular e devocional (extremamente pura, e uma forma impura, para nós (como
importante), ou seja, para o povo é o o Buda histórico), e um corpo definitivo, um
mesmo que "rezar forte" e pedir ajuda. Já corpo de realidade, que é a própria ausência
no seu uso em termos de mudra e samadhi de existência inerente, que é o benefício do
(mudra, mantra e samadhi, corpo, fala e próprio Buda, a sua realização espiritual, a
mente), daí existem muitas diferenças. Em sua sabedoria.
algumas escolas do hinduísmo, esse som
OM é a própria divindade, e é eterno. É o OM AH HUNG também é a purificação dos
"som" da realidade. A primeira refutação três reinos: forma, não forma e desejo. Os
que se aprende em lógica budista é seis reinos estão no reino do desejo, e o
justamente, por causa disso talvez, a da reino dos deuses tem essas outras duas
permanência do som! Isso parece meio divisões, forma e não forma. A purificação
bobo (claro, não existe som eterno), mas se dos três reinos é o trikaya, que é a
liga a uma espécie de pitagorismo que purificação dos três venenos: ignorância,
cientistas até hoje algumas vezes pregam, apego e aversão — e que é a superação, na
de que há uma "fórmula" ou explicação final meditação, da fixação em não
para as coisas. Essa é uma noção refutada conceptualidade, clareza (nitidez, foco) e
pelo budismo. bem-aventurança — isto é, as formas mais
sutis de ignorância, apego e aversão são
Por exemplo, OM MANI PADME HUNG é o purificadas na meditação, quando não nos
mantra mais popular no budismo indo- fixamos nessas três experiências. OM AH
tibetano, e é um mantra extremamente HUNG contém todos esses sentidos e
importante, um rei dos mantras: mas não provavelmente muitos mais.
tem (seguindo os raciocínios acima)
nenhuma "definitude", não é definitivo, não Que relação tem isto com a tese do atman e
é um final das coisas, uma fórmula de anatman? No hinduísmo, o atman é o "eu
explicação, ou algo que por si só seja mais divino" e no budismo há o anatman, isto é
ou menos importante que outros mantras não há "eu divino". Esse "eu divino" teria
no budismo. Neste mantra OM representa, alguma equivalência na questão do
entre possivelmente muitas outras coisas, a (imperfeito) reino dos deuses?
purificação da aflição do orgulho, ligada ao
reino dos deuses. No OM AH HUNG Sim, no reino dos deuses o engano com
encontrado em muitos mantras, OM é o relação ao "eu" é mais sutil e mais difícil de
corpo de todos os Budas (o mudra), e AH e eliminar — há deuses sem localidade,
HUNG, fala e mente respectivamente espacialidade ou noção de tempo (embora
(mantra e samadhi). O corpo do Buda é, por seja uma falsa atemporalidade, já que ela

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acaba, quando os méritos dos deuses se O Jainismo.


acabam). Em particular a classe de deuses
da não forma (esses sem localidade etc.) Como os budistas veem o Jainismo que,
possuem um apego a um eu extremamente para quem está de fora, parece muito com
sutil — algumas tradições religiosas podem o Budismo?
chamar esse estado de moksha, liberação,
mas no budismo ele é uma forma profunda Só sei que o jainismo já existia na época de
de ignorância. Buda e houve debates entre as duas
tradições desde aquela época. Desconheço
Porém, há que se relativizar: que completamente tudo sobre o Jainismo,
hinduísmo? O hinduísmo entrou em debate exceto o fato de que cobrem a boca e
com o budismo e se desenvolveu muito — varrem o chão para evitar matar insetos —
ao ponto de alguns professores budistas e que alguns deles andam pelados por aí. Há
dizerem que certos adversários hindus budistas que andam pelados por aí e que
eram mais sofisticados do que tomam cuidados exagerados para evitar a
determinados adversários budistas. O morte de insetos, mas estes não são a
advaita vedanta em particular é muito maioria (nem os pelados do jainismo, creio
elogiado — e o nível de debate entre eu).
advaita vedanta e prasangika madhyamaka
com certeza fica fora das possibilidades de Jesus é um Buda?
curiosos como nós.
Em primeiro lugar, as religiões são
As 22 categorias de devas são herdadas do incomensuráveis. Pode ser o maior elogio
hinduísmo ou é algo próprio da doutrina budista dizer que alguém é Buda, mas se o
budista? interlocutor tiver outros valores, isso pode
ser insuficiente, ou até mesmo uma ofensa.
Não tenho certeza, mas o que tenho certeza
é que os hindus (pelo menos os "duais") No caso de Jesus isso fica claro, porque
tomam como realização espiritual última várias tradições cristãs o consideram uno
uma das três categorias de deuses (desejo, com o criador. E um Buda não é um deus,
forma e não forma). Para o budismo todas muito menos um criador. Nem mesmo uma
as 22 categorias estão na existência cíclica, emanação secundária de um deus ou um
são insatisfatórias e impermanentes. Se criador, muito menos o criador feito carne.
essa divisão particular em 22 categorias Então, para esses cristãos, é melhor adotar
está já presente no hinduísmo, daí não sei. uma atitude mais respeitosa do que usar a
Possivelmente. nossa melhor terminologia para explicar a
terminologia deles — usamos a
Existe além do Budismo alguma outra terminologia deles, nos colocamos no lugar
grande religião que é não teísta? deles, e ajudamos eles a serem bons
cristãos, se isso for possível. Alguns cristãos

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tem uma perspectiva quase hindu, até É possível que Jesus tenha sido um Buda, e
mesmo de vários messias, como avatares de se foi, por que não aparece nas profecias
uma deidade única — nesse caso aí cabe as budistas?
mesmas semelhanças e restrições que
ocorrem com boa parte do sistema hindu. É possível, mas talvez ele não tenha sido.
Talvez a ausência de profecias seja um
Em geral, se o debate ocorre, não ocorre em indício de que ele não era. Em geral os
termos de queridas figuras históricas, que professores budistas o consideram ao
provavelmente foram realmente santos sob menos um bodisatva.
qualquer perspectiva religiosa — mas sobre
pontos abstratos e interpretação dos O Dalai Lama aparentemente disse que
ensinamentos. entendia Jesus como a manifestação de um
Buda. Nesse caso, Jesus seria uma fonte de
No caso do próprio praticante budista que refúgio infalível?
tem conexão com Jesus pelo seu pano de
fundo cultural, nesse caso é adequado Se Jesus foi a manifestação de um Buda, há
pensar em Jesus como, ao menos, um refúgio sim. Mesmo se fosse de um
bodisatva — e também é um voto bodisatva. E além disso, no vajrayana há o
mahayana considerar os bodisatvas como voto de não pensar os bodisatvas como
Budas... nesse caso ele precisa entender menores que os Budas. Porém não é
tudo que Jesus disse como um meio hábil. necessário que ele seja (mesmo que seja o
Se ele tomar os ensinamentos de Jesus entendimento de Sua Santidade), e mesmo
muito literalmente, nesse caso ele será um que seja, não é necessário tomar Jesus em
cristão, e daí será um cristão lidando com particular como refúgio.
ensinamentos budistas — o que ele precisa
verificar em sua própria consciência. O que Mas o fato de Sua Santidade dizer isso com
ele não pode é misturar — pelo menos não certeza tem implicações para os devotos em
enquanto ele não atinge alguma realização Sua Santidade. Eu, como tomo refúgio em
(o requisito no lado budista para poder lidar Sua Santidade, agora posso considerar Jesus
com os ensinamentos, mesmo os próprios como parte desse refúgio. Mas isso é só
ensinamentos budistas, em termos de para quem toma Sua Santidade o Dalai
comparação), Lama como refúgio, não para todos os
budistas, nem mesmo para todos os
Sua Santidade o Dalai Lama tem em praticantes do budismo tibetano.
português um livro chamado O Dalai Lama
fala de Jesus onde ele analisa trechos da Buda era filho de uma virgem?
Bíblia sob a ótica budista. É uma excelente
demonstração de tolerância religiosa, boa Não. Embora a intimidade da rainha com o
política e vasto conhecimento. rei fosse deles, ninguém afirmou isso, muito
menos o Buda. Algumas vezes um mestre da

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tradição dzogchen chamado Garab Dorje é sofrimento através da compaixão pelos


dito ter nascido de uma virgem. No entanto, outros, e pelo reconhecimento da
a pergunta implica uma comparação com realidade.
Jesus Cristo, não é mesmo? E aqui eu repito,
a melhor forma de tolerância é apreciar a Por outro lado, Yeshe Tsogyal faz
diferença, não a comparação, ou o exatamente isso em sua biografia, para
amálgama que destrói as belezas levantar fundos para libertar um escravo (a
específicas de cada tradição, transformando família paga pelo ressuscitado). Virupa pára
tudo numa pasta disforme. o curso do sol por três dias: qualquer coisa
é possível num sonho.
Buda em algum momento não diz "eu sou a
Verdade"? No Budismo existe algum inimigo tentador
invisível e ardiloso, como o demônio é no
Buda nunca disse tal coisa, embora você Cristianismo?
possa encontrar traduções diversas dos
ensinamentos budistas, algumas nas quais Sim, a crença equivocada no próprio eu e o
darma é traduzido como "verdade" ou autocentramento que advém disso.
mesmo "lei". Na tradução da Bíblia pro
tibetano o cristão usou a palavra para "três No Cristianismo e outras tradições se espera
joias" para traduzir Deus. Agora imagine a para antes do fim deste mundo um
confusão. Anticristo que é uma caricatura grotesca e
invertida de Cristo. No Budismo se espera
Darma é mais bem traduzido como método, algum "Antibuda" ou algo do tipo?
ou fenômeno, dependendo do contexto.
(Darma como ensinamento, darma como Não. O problema pode se focar num ditador
"coisa", aparência, fenômeno.) ou tirano por um tempo, mas no fundo, as
aflições mentais é que são "as culpadas",
Na vida ou mitologia de Buda existe algum então que sentido faz usar um bode
episódio em que ele tenha ressuscitado um expiatório?
morto? Do ponto de vista budista isso é
possível? O homem que foi o Buda uns séculos antes
de Cristo, não é a encarnação de um
Não, há uma história onde o Buda pede que princípio sobrenatural? Não poderia
uma mãe que perdeu o filho recolha um ocorrer de um outro homem ser a
grão de ervilha de 10 casas onde ninguém encarnação da negação ou antítese desse
tenha morrido, para que ele pudesse princípio?
ressuscitar o filho dela... ela não encontra
nenhuma casa onde ninguém houvesse O budismo não lida com o tecido das coisas
morrido. O Buda dá esse ensinamento, que como se houvesse um plano. Todos nós
mostra como diminuir nosso próprio somos como o Buda, o Buda não é

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essencialmente diferente de nós — nós chance de que ele siga pelo céu. E as
temos a mesma natureza. A diferença entre profecias são interpretadas: você fica
nós e o Buda é que ele revelou essa esperando que algo corresponda àquilo que
natureza, e nós ainda não. foi dito, e essa expectativa é parte integral
da profecia.
Os seres que causam dificuldades para nós
são projeções do nosso próprio carma ruim. Como um Buda possui conhecimento sobre
Ninguém consegue prejudicar ninguém se todos os fenômenos, ele sabe tudo nos três
não existe a fragilidade criada por ações tempos. Ainda assim, as coisas não são
anteriores. A responsabilidade de todo e como são porque foram planejadas. Uma
qualquer sofrimento nosso é toda nossa, coisa de forma alguma está ligada com a
ninguém mais pode ser culpado. E nós, outra. Se determinação exigisse
como disse anteriormente, não podemos planejamento ou sequer consciência, o
sequer ser considerados culpados, porque budismo seria teísta, não é mesmo? Mas já
se soubéssemos antes, não teríamos agido ficou claro que o budismo possui carma, e
como agimos. certo sentido de determinação, e não
possui um puppet master (um fantochista,
O Buda, portanto, não é a encarnação de alguém que comanda os fantoches). E,
um princípio sobrenatural, já que esse ademais, o Buda sabe que toda
princípio é natural a todos nós. Ele é determinação ocorre dentro do sonho, e
perfeitamente bom e não tem máculas que todo o sonho é falsidade num sentido
essenciais, e a única coisa que produz o último — inclusive os próprios
sofrimento são as máculas adventícias. É ensinamentos do Buda.
como um diamante sujo de lama. A lama
nunca pode sujar efetivamente o diamante, Um Buda sendo onisciente, e querendo o
embora para nós, ele não pareça brilhante benefício dos seres, pode anunciar uma
nesse momento. É só lavar e ele está "profecia" — essa profecia não é a descrição
exatamente como novo, impecável. Nós de algo que já está planejado "desde o
lavamos através da prática dos métodos. início", e sim uma proclamação que tem
objetivo de beneficiar: quando a fé dos
Nenhum ser "malvado" é mais do que um praticantes se encontra com a intenção
diamante sujo. Se ele vier a lavar esse iluminada do Buda, surge uma bênção.
diamante, ele não vai ser diferente do Buda Dizer que o Buda "causou" através de uma
em nada. profecia que realiza a si própria pode fazer
sentido, mas isso só ocorre na
Se não há um plano, como já se sabe que interdependência daqueles que se
virão outros Budas? reconhecem na terra pura deste Buda, isto
é, o veem, de fato como um Buda e como
Tudo sempre pode dar errado, e não é certo alguém que proclama profecias.
que o sol nasça amanhã. Mas há uma boa

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No budismo não existe a ideia de destino? E


de acaso? É claro que, no leito de morte de uma
pessoa sem sofisticação, se ela disser "devo
Nenhuma das duas. Se houvesse, não imaginar que vou para a terra pura de Jesus
haveria possibilidade do carma. Cristo", misturando conceitos budistas e
cristãos, essa não é a hora de dizer "não é
Pode ser que o céu que Cristo descreveu bem assim". Você deixa a pessoa usar a fé
para as pessoas que praticam o bem seja dela do jeito que ela consegue. Mas, para
uma Terra Pura? quem não é paciente terminal, nem se
contenta com pouca sofisticação, apontar a
Entenda o problema: pode parecer diferença é um exercício saudável de inter-
respeitoso, e do ponto de vista do budista religiosidade. Você respeita a outra tradição
até talvez seria, atribuir semelhança entre o ao não tentar reduzí-la ao entendimento da
céu cristão e a terra pura. Porém, a terra sua. É importante respeitar as tradições
pura é vazia e impermanente. Não existe religiosas como incomensuráveis, e sendo
noção de eternidade no budismo. E no incomensuráveis, suas comparações só
cristianismo você só pode estar ao lado de podem ser feitas de forma simplista,
Deus/Cristo, nunca no centro da mandala. estereotipada e limitada.
No budismo você pratica como um
bodisatva em inúmeras terras puras de Se o Budismo é verdadeiro, isto quer dizer
Budas para então a terra pura de que você que o Cristianismo é falso?
é o centro se revelar... Então comparar as
duas coisas retira características essenciais Seria difícil falar do cristianismo como um
de ambas. Além disso, os reinos dos deuses todo, mas, para o budismo não pode haver
de muitos hindus também parecem um criador. Se o cristianismo precisa da
aprazíveis, até que o budismo os aponta noção de um criador para ser considerado
como perda de tempo do ponto de vista cristianismo, então ele precisaria ser falso
espiritual. Eles são atingidos através da na visão do budismo. O que não quer dizer
prática do bem sem sabedoria: mas se que ele não possa ser benéfico e útil, como
tornam uma forma de aprisionamento e muitas visões temporárias, equivocadas em
impedem a prática espiritual. O que é visto sentido último, ensinadas pelo próprio
como resultado final de uma tradição pode budismo.
ser considerado contratempo da
perspectiva de outra tradição. E se Para o cristianismo "só quem é cristão é
incluirmos a visão muçulmana de nuvens salvo". E para o budismo, existe este tipo de
inexauríveis de himens complacentes como afirmação?
recompensa a um guerreiro — aí temos
bem a definição de um reino dos deuses Talvez exista algum tipo de salvação no
mundanos, perda de tempo, segundo o budismo, que seria algo como a iluminação.
budismo. Mas diferentemente do cristianismo (ou de

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certas formas de cristianismo), não é uma a um resultado compreensível, a um


entidade externa que provê ou pelo menos resultado possível. E, de preferência, que
avalia esse salvamento. No Budismo o Buda esse resultado intermediário não se torne
não é a fonte da iluminação, e também não um obstáculo ao resultado final... e mesmo
é ele que decide quem se ilumina. Isso quanto a isso há debate no budismo,
diferencia bastante o cristianismo do porque algumas escolas falam de outras
budismo. escolas que a iluminação delas poderia se
tornar um obstáculo à iluminação! Mas isso
Até aí, tudo bem. Mas poderíamos dizer que tudo só serve para depurar o que é esse
o budista diria "só quem é budista se resultado, para que o resultado almejado
ilumina". E isso é, em parte, verdadeiro. Não seja realmente o de maior benefício para a
é tão fácil entender o que é iluminação, mas pessoa e para todos os seres.
o ensinamento do Buda é definido como
"aquele ensinamento que leva ao estado de Como o budismo tem uma relativa boa
Buda", então tudo aquilo que produz tolerância com seus próprios métodos
iluminação, que faz um Buda, é "budismo". intermediários, que são vastamente
Mesmo que se chame outra coisa. ensinados, por todas as escolas, até hoje, aí
o budismo pode ter tolerância com os
O budismo ao longo da história entrou em métodos (possivelmente) intermediários de
debate com as milhares de tradições hindus outras tradições. Desde que o seu céu não
e outras tradições indianas, como o crie obstáculos para você e para ninguém,
jainismo, e muitos desses debates estão ótimo! Pratique para chegar no seu céu! A
registrados. E algumas vezes o sentido do prática da virtude, por exemplo, é em maior
debate é "bom, isso que você chama de ou menor grau, ensinada por todas as
liberação, iluminação, não é bem o que eu tradições religiosas, então todas essas
chamo pelas mesmas palavras". Boa parte tradições geram grande benefício ao
desse debate interreligioso se foca sobre ensinar a virtude a seus praticantes/fiéis. Se
exatamente a finalidade dessas religiões. elas geram Budas? Até alguma delas pode
Então, de fato, o budismo concorda com o gerar, a gente não conhece todas, mas o
cristianismo que se alguém quer o resultado importante é perceber que, em geral, o
cristão, ela deve praticar o método cristão! objetivo delas não é produzir Budas.
O que interessa, na verdade, é o que é essa
tal salvação! Se ela passa no nosso controle Acho que as vezes eu uso essa expressão:
de qualidade ou não. Mesmo dentro do "as tradições religiosas são
budismo, há ensinamentos do Buda que incomensuráveis", não dá para medir uma
não levam à iluminação, mas que são só o pela outra, não dá nem mesmo para
que uma determinada pessoa consegue entender verdadeiramente uma da
entender e praticar, então o Buda ensina perspectiva da outra. E muitas vezes nós
aquilo, por compaixão. Ele ensina um nos focamos em comparar, ou mesmo
método que não leva ao resultado final, mas misturar elas. Mas a tolerância não

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Budismo - Coletânea

acontece com o igual — do igual nós já confiança de que são o melhor caminho
somos amigos. A tolerância só ocorre com o para os seus próprios resultados.
diferente, com o que não entendemos, com
o que não nos deixa em nossa zona de Dai o que um budista faz quando vê um não
conforto. Ver que a religião do outro é budista sofrendo? Ele não necessariamente
diferente é essencial para a tolerância tenta converter a pessoa ao budismo — ele
religiosa. Ter confiança na própria religião tenta entender a pessoa do lado da pessoa
também é fundamental, ou seja, a pessoa — e, se a pessoa tem, de mérito próprio, a
precisa saber que está no melhor entre capacidade de ver algo de valor no caminho
todos os caminhos possíveis. Ela só não budista, ele provê de acordo com as
precisa impor ao outro esse seu juízo. O requisições do outro. É preciso lembrar que
budismo, ao contrário do cristianismo, não no budismo não é permitido nem mesmo
é proselitista. Mesmo que nós achemos que falar do budismo sem que o outro peça, e
as pessoas em geral se beneficiariam da algumas vezes, o outro tem que pedir três
prática budista, não existe prática budista a vezes! Existem até formas mais proselitistas
que alguém possa ser convertido. A pessoa de budismo, mas todas as formas de
só segue o caminho budista porque faz budismo tem em comum que a prática
sentido, e não adianta enganar ou forçar surge da pessoa, não do outro. Isso é
uma outra pessoa a fazer o caminho budista essencialmente diferente do cristianismo,
ter sentido para ela. Não faz sentido isso. No onde acreditar, às vezes, quase basta por si
cristianismo isso só faz sentido, me parece, só.
porque acreditar em Deus e em Jesus Cristo
como uma força que provê e/ou avalia o seu Como um budista deve lidar com blasfêmias
salvamento, e que pode tudo e está sempre contra Buda?
ali para você, é imprescindível. Existem
formas de cristianismo que quase apontam É considerado desvirtude defender o Buda
um revolver para sua cabeça "se você não perante alguém que o critica sem interesse
acreditar, você está ferrado". No budismo, de diálogo. Se há interesse de diálogo, daí é
acreditar é pouco importante. Você possível debater. Não existe a noção de
acredita no Buda como você "acredita" num "blasfemo" no budismo. É apenas mais um
médico com boas qualificações. Você vai na objeto de compaixão como todos os
farmácia e toma direitinho o que ele demais, inclusive bodisatvas de 10º nível.
prescreveu — e também, se você não Em outras palavras, seres positivos ou
melhorar, o seu bom médico sempre vai negativos, todos eles, são objeto de
também dizer "olha, num caso como esse é compaixão. Só quem não é objeto de
bom pegar uma segunda opinião". Essa compaixão são os Budas totalmente
diferença essencial entre o budismo e o realizados — os outros seres todos, sem
cristianismo é que define parte da atitude, exceção, no sentido da compaixão, são
embora ambas as tradições tenham plena iguais.

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Budismo - Coletânea

No Budismo existe reencarnação no sentido muito fácil de se conquistar. É muito difícil


kardecista? ter confiança de que o próximo
renascimento será humano.
No sentido kardecista, não. Há várias
diferenças, sendo que a principal é a noção Em geral, também, no espiritismo a crença
de samsara, no qual as várias existências em vidas futuras é vista como um alento —
não são necessariamente um aprendizado, a pessoa não cessa, o "eu" não cessa, ele é
e não há necessariamente uma evolução. só abalado pela falta de memórias. No
Pelo contrário, as muitas existências, em budismo as vidas futuras são apenas mais
geral, são só uma vastidão de sofrimento e sofrimento. O objetivo do hinayana é
falta de sentido — até que o darma é essencialmente eliminar as aflições
praticado, e ele não é necessariamente mentais, exatamente porque são elas que
praticado (isto é, não é uma evolução levam a um novo nascimento, isto é, à
natural, mas uma deliberação de, perpetuação do sofrimento. No mahayana
relativamente, poucos). isso muda um pouco de figura, porque você
pode renascer com a aspiração de trazer
A reencarnação no budismo tem alguma benefício. Mas mesmo no mahayana e no
semelhança com o que acham os vajrayana se faz a diferença entre
kardecistas? emanação e renascimento, isto é,
renascimento lúcido e renascimento a que
Alguma semelhança existe, mas há se é levado pelas aflições mentais.
diferenças.
Enfim, como o budismo não aceita um "eu",
Os kardecistas (no Brasil há várias formas de o que renasce não é o que a pessoa pensa
"espiritismo") em geral estão focados em que é si própria, mas o carma que ela criou.
algumas poucas vidas, e uma evolução Em outras vidas esse carma produz outras
necessária, ainda que com contratempos. noções equivocadas de um eu, outros
No budismo já se passaram tantas vidas que apegos a um eu que não existe — e essa é a
todo mundo já foi mãe de todo mundo — base do sofrimento. Através da prática de
então embora haja em certa medida essa meditação, no entanto, é possível
coisa espírita de que seu filho pode ter sido reconhecer as estruturas cármicas, algo até
o seu bisavô, a coisa em geral é muito mais como um histórico delas, e assim
vasta. Um professor viu uma pessoa reconstruir os outros apegos ao eu
atirando pedras num cachorro que atacava baseados nessas estruturas. Essas
um caranguejo e disse "atira pedras na mãe, estruturas são individuais em certo sentido,
que devora o pai". No espiritismo, no mas boa parte delas é comum a certas
máximo a pessoa estaciona, porque se experiências, como ser humano, falar uma
considera que certas conquistas não são língua, e assim por diante. Da mesma forma
perdidas, como o renascimento humano. que o DNA, em que parte é propriamente
No budismo o renascimento humano não é individual, e parte é comum a espécie, à

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família, e assim por diante. Quanto mais outro — que dirá em vidas futuras — e não
fundo se vai na meditação, portanto, menos é nada de especial; 3) renascer não é um
subjetiva ela é. O nosso fluxo ordinário é conforto, não é uma continuidade do eu,
extremamente subjetivo até mesmo para pelo contrário, e na medida que é uma
nossa percepção ordinária, isto é, achamos continuidade da ilusão do eu, é uma
isso e logo depois achamos aquilo. É mais continuidade do sofrimento; 4) o reino
que subjetivo, é quase aleatório. Já quando humano é o que mais possui oportunidade
desenvolvemos estabilidade e claridade para a prática espiritual (outros reinos mais
(abertura no "obturador"), os movimentos "sutis" não são melhores); 5) não se foca em
rápidos da mente ficam difusos, e as questões familiares, de algumas dezenas de
estruturas mais básicas, que formam certas vidas e de um círculo restrito de pessoas,
características mais globais podem ser mas no fato de que todos já foram nossa
discernidas. mãe, gato, cachorro e papagaio, são vidas
incontáveis e temos conexão com todos os
Agora, o objetivo da prática de meditação seres;
não é lembrar vidas passadas. A única
utilidade de lembrar vidas passadas, para o Pode haver mais alguns itens, mas não sou
budismo, é entender quão fúteis foram profundo conhecedor do kardecismo. Sei
nossos esforços anteriores e não cometer que é uma doutrina recente, basicamente
os mesmos erros. Isto é, se focar mais brasileira na atualidade, embasada em
urgentemente no darma, e não nas paradigmas científicos do séc. XIX e no
atividades em que temos nos focado vida positivismo da época. Não há métodos para
após vida e que não nos levaram a lugar o refino dos instrumentos epistêmicos, há o
algum. cristianismo como base de fundo, e é uma
doutrina teísta.
Então há diferença entre o renascimento ou
reencarnação (esta palavra inclusive sendo Se nós fossemos comparar o kardecismo
evitada de propósito) no budismo e no com o hinduísmo também haveriam vários
kardecismo. Há diferenças cruciais como 1) pontos a diferenciar, embora ambos
ausência da noção do eu; 2) ausência de acreditem na noção de um eu permanente.
uma evolução necessária (os renascimentos
são chamados de "experiência cíclica" no Você poderia resumir as diferenças entre o
budismo, a pessoa sempre melhora e piora, kardecismo e o budismo, além das noções
até a iluminação, quando ela não mais de renascimento/reencarnação? Alguma
renasce — no kardecismo alguém não volta semelhança?
mais como animal, por exemplo — certas
conquistas intelectuais são também A forte influência do positivismo causa uma
definitivas. No budismo é muito claro que visão teleológica da "criação". O budismo
toda conquista intelectual pode ser perdida não é teísta e não vê o samsara como uma
nesta mesma vida, de um momento para o criação senão de nossa ignorância e aflições

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mentais. Essa diferença valeria para o simplesmente porque é a natureza de


cristianismo em geral, mas no kardecismo sofrimento do samsara. Dessa forma, ir
há uma forte ênfase numa progressão além do carma, ir além da ignorância que
espiritual, como se a criação fosse uma promove separação entre os seres e produz
função de autoaperfeiçoamento (sua o samsara, a efetiva transcendência do
teleologia). Assim não há noção de carma, é um objetivo maior do que ir
insatisfatoriedade no ciclo infindável de progredindo ao produzir mais e mais carma
renascimentos, e dessa forma existe até bom. Produzir carma bom é importante
uma felicidade em "prosseguir" vida após também, mas a prioridade é reconhecer a
vida num caminho de "aprendizado", realidade, ir além do samsara, não produzir
desenhado pelos espíritos/deus. No as "algemas de ouro" que o carma bom
budismo a prática do darma só é possível produz.
com um grande descontentamento com o
ciclo de renascimentos, e todas as posições As semelhanças são às mesmas que com o
boas e ruins (cíclicas, não progressivas) que cristianismo em geral: ênfase na compaixão
ele possui. e na ética.

Talvez seja possível dizer que o espírito para Como entender, com bases budistas, a
o kardecista é meramente uma nova forma manifestação de espíritos que "baixam"
de matéria. Essa matéria não é suficiente, para se comunicarem, tão real para os
então ele precisa postular uma outra, sutil, médiums no espiritismo? Seria apenas uma
com outras características, mas manifestação ilusória da mente? Teria algo
essencialmente difícil de distinguir senão a ver com o oráculo no Budismo tibetano?
por ser "mais ideal". No budismo não existe Como fica o fenômeno da mediunidade no
conceito de matéria. Tudo é tecido de budismo?
sonho.
O oráculo no budismo tibetano é talvez
A noção de carma como expiações e semelhante a certas manifestações ditas
provações é altamente problemática no mediúnicas. Outras formas de budismo não
budismo. Se o carma tem um intermediário, possuem "mediunidade", talvez alguma
isto é, há uma maneira correta de fazer as forma japonesa, mas não estou certo. O
coisas que foi desobedecida, isso é bem Buda nunca ensinou nada, nos seus 84.000
diferente do carma "naturalista" do ensinamentos, nos sutras do tripitaka, nos
budismo, onde não há um intermediário. O sutras do mahayana, e assim por diante,
que não é ético é causar sofrimento aos sobre mediunidade.
outros, não desobedecer uma suposta
teleologia da criação ou especificações Creio que a maioria dos casos de pessoas
criadas por seres divinos ou um deus. Dessa que ouvem vozes e se relacionam com
forma, as ações ruins causam sofrimento espíritos é tratada no budismo tradicional,
não com o "objetivo de ensinar", mas especialmente no Tibete, com práticas de

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exorcismo. Milarepa disse que todos os de uso mundano, nunca conselhos


espíritos e demônios são causados pela espirituais.
mente, e isso está de acordo com a doutrina
madhyamaka de que todos os seres Sua Santidade o Dalai Lama em seu site
externos são postulados pela nossa oficial diz que devemos cuidar para que o
ignorância, ao conceber uma separação. budismo não se torne uma mera prática de
Assim a psiquiatria moderna não está propiciação de espíritos. De fato, entre a
errada em tratar estes fenômenos como comunidade tibetana existe algumas vezes
eventos mentais (só que dai eles dão o uma tendência, como é muito popular no
passo adicional e reduzem a mente ao Brasil, de buscar favores a espíritos. Isso não
cérebro, isso já não daria para aceitar). é prática do budismo. E não é uma prática
espiritual: é buscar melhorar a vida com
O importante é entender que, para o uma técnica aparentemente espiritual. Isso
budismo, essa não é uma prática espiritual. é bem mais comum do que mediunidade:
A sabedoria do lama "encarnado" é maior fazer oferendas e recitar orações em busca
do que a de seres de qualquer outro reino. de favores. Mas repito, não é uma prática
Em outras palavras, um ser de verdadeira espiritual ou budista. Se não é prioridade,
compaixão renasce como um ser humano pode até não ser incompatível com o
para ensinar os humanos — os seres nos budismo — mas não pode ser a ênfase.
reinos dos asuras e devas não são
superiores em sabedoria e compaixão (e Como funciona, até onde eu entendo,
muito menos os seres nos infernos, reinos nunca recebi explicações sobre isso, é que a
de carência ou animais sutis, tais como pessoa tem uma fisiologia sutil que pode
nagas). entrar em ressonância com uma outra
fisiologia sutil. Mas nenhum ensinamento
Algumas vezes existem lamas que usam um que eu li ou ouvi nunca mencionaram isso.
médium que entra em contato com um ser Ouvi isso de um budista num congresso
sutil para receber respostas sobre questões kardecista a que eu fui obrigado a
práticas — qual a melhor rota para fugir do comparecer porque era tradutor de um dos
Tibete invadido, por exemplo. Mas nunca participantes. Na sala de prática mesmo, e
para questões de sabedoria e no contexto budista geral, fora uma cena no
espiritualidade. Os seres com que o lama filme "Kun Dun" do Martin Scorsese, e
entra em contato são subalternos da perguntas de visitantes espíritas, não
sabedoria do lama. Digamos que você seja parece ser algo que ocorra frequentemente
um grande filósofo escrevendo um livro, e (quase nunca? nunca exceto para certas
dá um problema em seu computador. O instituições como a do Dalai Lama?) tenha
técnico entende mais de computador do importância para a prática.
que você, mas ele não interfere no
conteúdo do seu livro. Assim é o lama com Ah, mas todas as formas de budismo não
o oráculo: ele só pede informações práticas, tem problemas com "seres invisíveis". Quer

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Budismo - Coletânea

dizer, para todas elas, eles existem. Só que Se você entender a prática de ética como
são objetos de compaixão, da mesma forma uma restrição, você não estará praticando o
que com os seres visíveis. budismo, e sim a obediência a regras, que
não é a prática do budismo. A prática do
Qual a explicação budista para os milagres budismo é o exame da mente e do que
que supostamente acontecem no produz benefício em maior âmbito e a mais
catolicismo? longo prazo — a partir disso se lida com os
hábitos mentais que nos levam a praticar o
Muitos podem ter acontecido mesmo. Sidis que causa sofrimento, e adotamos hábitos
são comuns em vários professores, e até que nos levem a praticar o que produz
mesmo em alguns falsos professores. Não felicidade para nós mesmos e para os
são necessariamente uma grande evidência outros.
de espiritualidade, ainda que muitos
milagres católicos possam ter acontecido Uma questão que coloca a Igreja Católica
em meio a espiritualidade honesta. em conflito com as tendências
contemporâneas é a luta contra o uso de
No budismo, como a realidade é feita de preservativos. Existe no Budismo algo que
tecido de sonho, nós podemos ter o mérito possa ser dito a favor da postura da Igreja,
de perceber uma falha na coerência desse ou ela está errada e gerando sofrimento?
sonho. E algumas vezes chamamos isso de
"milagre". E quando isso se dá em conexão Em geral eu não vi nenhum professor
com um grande praticante espiritual do budista a favor dessa posição da igreja
passado, um "santo", por exemplo, isso se católica. Mas, por outro lado, não vi tanta
dá por interdependência com a prática e indignação quanto as vezes vejo em setores
realização espiritual daquele ser. seculares.

o budismo não é uma prática de muito mais Quando você não concorda com uma
autorrestrição do que o catolicismo, por opinião religiosa, por exemplo com os
exemplo? ensinamentos católicos, é melhor discutir
com as pessoas que acreditam ou fingir que
A diferença entre a ética budista e a católica eles tem razão?
é que no budismo você pratica a virtude
porque ela é naturalmente boa para você e Cada caso é um caso. Se os envolvidos estão
para os outros seres, no catolicismo você abertos ao debate racional, o debate
pratica virtude por obediência, e porque na racional é uma boa opção. Se não há essa
visão de Deus e na perspectiva divina é bom possibilidade, existem muitas alternativas:
— e portanto não é tão naturalmente bom rezar por eles, se afastar, apenas dizer que
para você, é bom através da vontade de não concorda, e assim por diante.
outro, no caso Deus.
Budistas são idólatras?

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Budas, as formas dos Budas representadas


Idolatria, no budismo, é buscar favores em estátuas são uma forma de gerar
mundanos de uma fonte de refúgio ou interdependência. A pessoa só precisa se
favores de qualquer tipo de algo que não é posicionar com a motivação correta, que é
uma fonte de refúgio verdadeira. o refúgio, e pedir ajuda ao Buda para
remover seus obstáculos a realização do
Isto, é, pedir ao Buda ou ao Papai Noel, por estado de Buda — que as felicidades
um novo videogame no natal, ou para temporárias não sejam colocadas como
resolver os problemas na sua vida sem que prioridade, que não há idolatria.
você tenha planos ou a motivação de usar
sua vida para a prática espiritual. Os devas têm alguma relação com os anjos
Basicamente, usar a espiritualidade para se das tradições semíticas? Se anjos existem,
dar bem no mundo, de acordo com os eles também são objetos de compaixão?
valores do mundo.
Não creio que os conceitos possam ser
Algumas formas de cristianismo simplificam facilmente comparados. Robert Thurman
essa visão sofisticada (que encontra espelho usou a palavra anjo para traduzir dakini, no
no cristianismo de boa qualidade) num seu Livro Tibetano dos Mortos — mas com
mero "confiar em estátuas", como se a a ressalva de que era apenas para ajudar um
metáfora disso, apresentada acima, não moribundo que ficaria confuso com uma
fosse muito mais verdadeira, terrível e terminologia alienígena num momento
comum do que algumas representações muito delicado — há muita diferença
bonitinhas num altar. De fato, muitos dos mesmo entre anjo e dakini. Deva não é
sacerdotes de formas de cristianismo são sequer comparado. Deva vem da mesma
eles mesmos ídolos, a quem se dá dinheiro raiz que a palavra "Deus", e o Deus
para que se atinja prosperidade, e assim por Aristotélico, por exemplo, é muito
diante. Afinal, ídolos de carne e osso são semelhante a um dos quatro tipos de
muito mais perigosos do que estátuas. E deuses da não forma, em estado profundo
Deus, até onde eu saiba, não tem conta de ignorância e autoengano, na visão
bancária — portanto aquele que se coloca budista...
no lugar de Deus para receber dinheiro no
nome de Deus, e promete favores em Entre os devas estão muitos deuses hindus,
retorno... ah, esse é danado. E muitas vezes e sim, muitos deles são objetos de
esse é que dá o discurso contra estátuas. compaixão, sofrem e são impermanentes —
portanto não são objetos de refúgio como
As estátuas e altares são muito importantes os budas e bodisatvas.
no budismo como treinamento da mente e
efetivas no despertar do praticante com a Há 22 categorias de devas. 4 da não forma,
interdependência daquilo que está 12 da forma e 6 do desejo. O reino do
representado. Assim como os nomes dos desejo, além desses 6 tipos de devas, inclui

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os asuras, humanos, animais, pretas e como uma forma de sacrifício ou penitência


narakas. Quando fala-se em seis reinos, são em nome de um deus?
os seis tipos de reinos do desejo, quando se
fala em três reinos, são os reinos da forma, Desde que o próprio Buda se engajou
não forma e desejo. Todos eles são sujeitos nessas práticas, e disse que eram uma perda
as três características: insatisfatoriedade de tempo, elas são má vistas pelo budismo.
("sofrimento", dukkha), impermanência e Em particular no vajrayana é uma quebra de
ausência de existência inerente (não são voto raiz maltratar o próprio corpo.
substanciais, são sonhos). Mesmo o estado
pós-meditativo de um bodisatva do nível Os sentimentos de culpa provocados pelos
mais elevado, é um estado temporário e dogmas equivocados das religiões não
objeto de compaixão. prejudicam quem os sente?

Não existe no budismo nada análogo ao Com certeza, porém fica difícil avaliar, numa
anjo da guarda do Catolicismo? tradição vasta e alienígena, tudo que pode
ser positivo e negativo dentro do que eles
Análogo, talvez. Com algum grau de ensinam. Ou que tipo de ensinamentos,
semelhança, num sentido bem específico... vinculados a outros, no fim dão uma soma
mas bem diferente com relação a todo o positiva — e se você mexer no castelo de
resto, o yidam. O yidam é nossa própria cartas, tudo pode ruir. É o caso da senhora
lucidez, representado numa forma idosa que pratica virtude apenas porque
específica. Geralmente é a deidade que teme a deus, e possivelmente, sem deus, ela
praticamos a várias vidas — nós buscamos abandonará essa prática...
total reconhecimento com ela.
Só o que podemos fazer, enquanto no
Ela tem a ver com o anjo da guarda na exata diálogo, é tentar deixar claro o que
medida que o daimon grego tem a ver com consideramos contraproducente — se e
nossa inteligência de ação no mundo. Isto é, somente se não for contraproducende o
o yidam tem a ver com as qualidades que próprio ato de deixar isso claro.
expressaremos quando iluminados, ele é a
visão de nós mesmos como um ser perfeito. Há muitas pessoas que mantém ideologias
E em certo sentido, podemos dizer que essa que produzem sofrimento, na religião e na
visão nos protege. Mas não precisamos, e o filosofia — na publicidade — por todo lado.
melhor, é não vê-lo como algo externo, Porém se não temos meios hábeis de
separado. É nós mesmos, livres dos efetivamente transformar aquelas visões,
obscurecimentos. meramente se posicionar contra pode até
piorar a situação. Daí que a política é a arte
O que o budismo tem a dizer das práticas de central da compaixão, em termos do
certas religiões que "maltratam o corpo" discurso. A política parece exatamente agir,
em corpo, fala e mente, de acordo com a

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situação e os meios hábeis, sem "forçar a pudermos ajudar, independente de termos


tanga", sem tentar atitudes de coragem prejudicado no passado, devemos ajudar.
meramente fabricada. Se for de benefício para a pessoa, se ela se
sentir beneficiada, podemos "pedir
Quando os meios hábeis se apresentam, e perdão", se não for de benefício, não
torna-se efetivo dizer algo, é evidente que devemos.
algo deve ser dito. Como Dzongsar Khyentse
Rinpoche diz, se você está com a navalha no Se uma pessoa que ofendemos for ficar
pescoço do apego ao eu: nesse momento o ainda mais ofendida porque lhe dirigimos a
hesitar é terrível. Nesse momento, a ação palavra, ainda que para pedir perdão, então
deve ser sem hesitação, limpa e rápida. não devemos lhe dirigir a palavra. Estes atos
verbais raramente possuem substância,
Qual o papel que desempenham no eles dependem de nossa intenção e da
Budismo o perdão às injustiças e ofensas receptividade do outro. Confessar perante
que os outros nos fazem e o o outro que se cometeu um erro pode ser
arrependimento pelo mal que percebemos mais inteligente, já que ele não tem o poder
fazer aos outros? de "perdão" também.

Não somos ninguém para perdoar os Ninguém, em lugar algum, jamais é culpado.
outros. Não temos o poder de perdoar. Então o que há para perdoar? Se as pessoas
Quem nos prejudica deve ser sempre objeto soubessem as consequências de suas ações
de compaixão, e portanto, não há motivo prejudiciais, elas não as fariam, como
para culpar quem quer que seja em alguém que não tomaria o veneno se
primeiro lugar. Se percebemos que ficamos soubesse o que está escrito no rótulo. Não
com raiva, devemos é ter compaixão de nós existe maldade no budismo, apenas
mesmos também. ignorância — e ignorância não se perdoa.

Nosso remorso é importante para que Agora, reconhecer erros como erros, para si
evitemos repetir erros no futuro. mesmo e para os outros, é essencial. Sem
esperar nada em troca, muito menos um
Se não somos ninguém para perdoar os perdão que já é o estado natural das coisas,
outros, também não faz sentido pedir e ninguém pode dar a ninguém.
perdão a quem ofendemos ou
prejudicamos? Se for preciso ouvir uma confissão ou
receber algo em troca de uma confissão,
Todos os seres são objetos de compaixão. basta um totalmente neutro "tudo bem,
Não os tornamos automaticamente objetos tente não repetir". Se você tiver boa fé de
de compaixão especiais apenas porque que vai fazer bem para o ser dizer "esqueça
somos seus credores cármicos — eles isso, por mim é como se nunca tivesse
seguem sendo objetos de compaixão. Se acontecido", pode dizer algo assim. Na

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verdade os budistas tem um Buda mesmo os venenos e as aflições mentais —


específico a quem confessam (Vajrasatva), e que muitas vezes são chamados de
que basicamente "responde": "está contaminadores, são contaminações
purificado", ao você se comprometer em irreversíveis. A natureza imaculada da
não repetir a ação negativa. Algumas vezes mente está sempre presente, então o
podemos pensar "ele me purificou", o que é máximo que pode acontecer, em termos de
quase como um perdão, mas isso não é o contaminação — e as piores são os venenos
mais sofisticado. e as aflições, que são internos, e não
causados pelo exterior, por mais que possa
O conceito de gratidão existe no Budismo? parecer que não — é algo temporário.

Contentamento com o que se tem, e De toda forma, a melhor prática é


regozijo com os que os outros tem, desenvolver destemor e praticar em meio a
especialmente em termos de virtude, qualquer circunstância criada pelo carma e
poderia ser traduzido como gratidão. pelas condições. Em outras palavras, o
melhor é não ficar preso a uma engenharia
O Budismo crê que é possível se contaminar das condições externas, procurar "bons
com energias negativas (ou positivas) de lugares" — isto não é prática espiritual.
lugares?
Dizem que lugares onde ocorreram
Se existe uma fragilidade interna, devido ao suicídios ou crimes violentos às vezes
carma, ao se encontrar condições externas induzem pensamentos muito
de qualquer tipo — uma mera atmosfera perturbadores. O Budismo tem alguma
diferente, isso pode nos influenciar coisa a dizer sobre isso?
bastante, negativa ou positivamente.
No mahayana a pessoa pode ir para um
Da mesma forma que alguém que tomou local desses fazer prática, e recitar algo
alucinógenos fica muito entretido ou como a Prajnaparamita ou o
apavorado com alguém brincando com o Bodhicharyavatara. No vajrayana há uma
interruptor da luz da sala, nós que tomamos série de meios hábeis que ela pode usar.
o lsd da ignorância básica podemos estar
sensíveis, ou não, às coisas mais banais. Isso para praticantes com certa
estabilidade. Locais perturbadores são
Se temos o carma e encontramos a importantes para intensificar a meditação,
circunstância, seremos influenciados. e, é claro, isso também produz benefícios
Grandes praticantes não são muito para quem sofreu ali, através da
influenciados por circunstâncias porque já interdependência. Fleet Maull, um aluno de
purificaram muito carma e geraram muito Trungpa Rinpoche conduziu um retiro de
mérito e sabedoria. Agora, usar a palavra tonglen em Auschwitz. Se a pessoa é
"contaminar" é um pouco demais — nem iniciante, por outro lado, ela deve buscar

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locais pouco perturbadores externa e O que se quer dizer quando se diz que a
internamente — isto é, silenciosos, limpos, mente é a "joia dos desejos". Isso quer dizer
sem muito calor ou frio. que podemos realizar desejos através da
nossa mente?
Quando chega a hora de intensificar a
prática, então locais como mercados, Essa expressão surge porque todos os
hospícios, cemitérios, campos de fenômenos surgem coemergentes com o
concentração, casas assombradas, ferros- observador. Então a mente é melhor do que
velhos, pontos de drogas e prostituição, e a mítica joia que realiza desejos, ela é mais
assim por diante, são bons locais para flexível e capaz de maior transformação
certos tipos de meditação — locais sujos, ainda. Com ela é possível ser compassivo,
amedrontadores, perturbadores e por exemplo. A mente compassiva é ainda
barulhentos. Mas isso é para praticantes melhor que a joia que realiza desejos. Isso
avançados. tem um pouco esse sentido, de fazer uma
analogia com a melhor coisa que um hindu
Por experiência própria, percebi que existe antigo poderia imaginar, e dizer "olha, você
um principio que age conforme nossa treinar a sua mente e desenvolver
intenção: Algumas coisas boas ou ruins que qualidades, em particular a compaixão, é
penso se manifestam. Também posso ver ainda melhor do que ..." Hoje o que se
ou sentir algumas coisas que ainda vão usaria? Um iPad? Uma BMW? Uma coisa
acontecer. Como o budismo explica? que é melhor que todas essas coisas, uma
varinha de condão, a pedra filosofal etc.
No caso da primeira coisa (pensamento Mas isso não quer dizer que a mente opere
mágico), é totalmente autoengano. No caso de acordo com nosso desejo e produza
da segunda afirmação (clarividência), é coisas, e sim que a realidade é inseparável
muito possível que seja autoengano (ainda da mente, e reconhecer as qualidades
mais se vemos que ela veio junta com a inatas da mente é sinônimo de viver no
primeira afirmação, que é totalmente melhor dos mundos possíveis. Por outro
absurda) — mas existem alguns casos raros lado, tudo que nos é agradável ou que nos
em que a pessoa desenvolve mesmo essa fascina, é agradável e nos fascina por causa
faculdade. Isso não é importante, de todo da mente — então ela é a fonte de tudo que
modo. Muitas pessoas sem nenhuma nos liberta e aprisiona, e reconhecer sua
qualidade espiritual podem ter clarividência verdadeira natureza é descortinar a
— e os deuses e semideuses com certeza a liberdade básica que subjaz a nossas
têm — mas isso só os leva a mais fixações temporárias.
sofrimento. O que importa é desenvolver
qualidades espirituais tais como a Existe uma alquimia budista?
compaixão.
Algumas vezes os tradutores usam essa
palavra para designar certos aspectos do

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vajrayana. Não sei se eles estão corretos, ou Mas, olhando de fora, sem compreensão do
mesmo se a palavra em português é usada que está sendo feito, um observador leigo
em algum sentido inequívoco em algum pode interpretar mantras como
lugar respeitado, dentro ou fora do encantações ou "spells".
contexto do darma. Não posso saber o que
você está querendo dizer por essa palavra: Oráculos como o I Ching chinês, o Urim-
só o que conheço da palavra "alquimia" são Tumim hebraico ou análogos de outras
umas ilustrações bizarras e mumbo jumbo culturas desempenham algum papel ou
de cunho junguiano. Uma coisa é certa: essa podem ter alguma utilidade no Budismo?
coisa multi comparativa e de analogias
desenfreadas, comum em certos Pessoas que praticam o budismo não são
segmentos místicos, não é muito impedidas de utilizá-los. Mipam Rinpoche,
encorajada por professores budistas. por outro lado, previa o futuro ouvindo a
conversa de um grupo de mulheres. Outro
Consta na biografia secreta de Nagarjuna mestre via o futuro no brilho do reflexo de
que ele transformou uma montanha inteira sua unha. Então, a variedade é imensa.
em cobre e depois em ouro. Isso não trouxe Todo fenômeno inclui todos os outros,
benefício nenhum aos seres, então então o meio hábil de sistemas de
Avalokiteshvara precisou intervir e mandar adivinhação é para seres relativamente
ele parar com essa bobagem. comuns, não é uma característica
propriamente budista, mas é bem comum.
Em diversas tradições o nome de um ser
tem uma ligação secreta com a essência Por outro lado, entre os seres presos no
desse ser. Existe algo do tipo no Budismo, samsara, os deuses ou devas possuem uma
de nomes serem muito importantes? capacidade limitada de ver o futuro, o que
só aumenta seu sofrimento, porque acabam
Há uma interdependência entre o nome e o vendo que seus futuros renascimentos vão
objeto nomeado, portanto uma forma de ser cheios de dificuldades — do "topo" do
gerar interdependência com o objeto, é samsara eles só podem cair para os reinos
através do nome. Buda, por exemplo, que inferiores, quando seu bom carma se esgota
significa "acordado", "lúcido". e a impermanência se interpõe. Então,
dessa forma, adivinhação pode ser um meio
Fórmulas escritas têm algum poder mágico hábil, mas também pode ser uma forma de
no Budismo? aumentar o sofrimento.

Depende do que a pessoa entende por Existe algum papel da astrologia no


mágico. Há interdependência entre Budismo? É sabida ou especulada uma data
mantras, o Buda e o recitador, por exemplo. exata em que o Buda nasceu?
Isso não é mágica.

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Não sei da data do Buda. Os sistemas hábeis para ajudar os seres — mas não são
astrológicos budistas pertencem as culturas propriamente coisas do escopo do budismo.
em que o budismo se desenvolveu. São
elementos culturais, e não budistas — Os budistas acreditam em bruxaria?
embora é fato de que muitos budistas
tradicionais se utilizem deles como meios Algumas vezes se usa essa palavra para
hábeis. descrever pessoas que tem poderes
mágicos, e os usam por motivações egoístas
O Budismo é compatível com algum tipo de ou aleatórias. Milarepa, o maior santo
prática mágica? tibetano, por exemplo, aprendeu a produzir
tempestades de granizo para se vingar de
Os meios hábeis são infindáveis. Por um tio. Ele assim fez desabar um prédio,
exemplo, se não adianta tentar convencer matou 30 pessoas, além de ovelhas e
alguém que se acredita possuído por um iaques, e destruiu plantações. Depois ele se
demônio de que demônios são projeções da arrependeu e praticou o darma com muito
mente, então a atividade compassiva a esforço até a iluminação, naquela mesma
fazer é um exorcismo. vida.

Para os bodisatvas elevados, toda a Já outras formas de budismo não


atividade compassiva é um ilusionismo, mencionam nada desse tipo. É algo cultural
porque eles estão agindo em meio ao sonho dos tibetanos, e talvez algumas outras
dos outros, enquanto eles mesmos não se culturas budistas. É totalmente possível
enganam e permanecem lúcidos. Nesse praticar o budismo sem acreditar nessas
sentido toda a atividade dos Budas e coisas. E acho que, a não ser que você esteja
Bodisatvas é uma brincadeira com a ilusão, sendo atacado por um bruxo ou bruxa, ou o
e portanto, um passe de mágica. seu próprio lama seja obcecado com isso, e
assim isso acabe tendo relevância para sua
Como o budismo lida com as ciências vida, é até mesmo melhor não acreditar, e
ocultas da mente? nem mesmo refletir muito sobre o assunto.
É o que eu mesmo faço.
Creio que não exista esse conceito no
budismo. A mente, no budismo, é como um O Budismo diz alguma coisa sobre
diamante, que pode, e normalmente está, vampiros?
sujo. Porém, não há nada de
verdadeiramente oculto, nem no diamante, Não que eu saiba. Os tibetanos em geral
nem na sujeira. algumas vezes acreditam em pés-grandes,
garudas, dragões, nagas e uma série de
Quanto a feitiçaria, magia, adivinhação, seres mitológicos. Os nagas até podem ser
essas coisas... bom, daí podem ser meios considerados uma crença panbudista, mas
em geral cada lugar tem os seus mitos,

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incorporados ou não a certos contextos de


ensinamento. Não, embora os conceitos nova era se
apropriem do budismo, essa apropriação
No Budismo há alguma coisa sobre "almas não é sustentada pelos praticantes
gêmeas"? budistas.

Interdependência, só que as vezes, parece Porém, há de se dizer que em regiões


positiva e é negativa... então ocorrem montanhosas, em épocas sem GPS, vales e
muitos enganos. pequenas comunidades podiam ficar muito
isolados — era o caso do Tibete inteiro, um
No Budismo existe a ideia de realidades país enorme, até a invasão chinesa em 1959
alternativas, comum na ficção científica? visto por apenas algumas centenas de
estrangeiros. E foi o caso do Butão até,
Não é a mesma coisa que na ficção incrivelmente, a década de 90. Algumas
científica, porque "loka", mundo, não é vezes essas comunidades são oásis,
reificado. Isto é, não é o que existe, mas o particularmente para refugiados políticos.
que parece. Por isso o uso frequente da Então existe um sentido bem pragmático
palavra "sonho". É importante não reificar para certas ideias de terra pura — embora
as aparências, tratá-las como se fossem os ensinamentos estejam focados nos
coisas sólidas e duradouras. sentidos interno e secreto, que estão
ligados ao tecido de sonho e não à
No Lankavatara Sutra Buda diz "as coisas geografia.
não são o que parecem, nem são qualquer
outra coisa". Por isso o ensinamento Essas ideias de terra oca eu achava bobas
budista da interdependência também é mesmo quando apareciam nas histórias do
chamado de "vacuidade". Isso não quer Tio Patinhas. Acho que ninguém em sã
dizer que "nada existe", mas que não existe consciência acredita nisso desde a década
algo independente. Para haver "realidade" de 10. 1910.
como algo que alguém pode observar,
separado, precisaria haver algo Qual é a posição do budismo acerca da
independente — talvez muitas coisas possibilidade de existir vida em outros
independentes. Nada, em lugar algum, é planetas?
independente, segundo o budismo, daí que
as coisas sejam vazias de si mesmas, mas Se eles fossem inteligentes, então eles
"cheias" de todas as outras coisas, também também precisariam do darma. Se eles não
vazias de si mesmas, mas cheias de todas as fossem, então seriam como os outros
outras coisas, e assim por diante. objetos de compaixão — e já há tantos
invisíveis, sutis, coexistindo em número
O budismo tibetano tem algo a ver com o inconcebível a cada 10 centímetros de
reino secreto de Agartha? espaço — , que mesmo pensar quinze ou

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vinte bilhões de anos-luz cheios deles não se escapar da prisão é que a prisão foi feita."
mudaria significativamente o escopo da Jack Kerouac em sua biografia do Buda. Isto
compaixão. está de acordo com o ensinamento budista?

Então um budista pode facilmente, com Não. A primeira parte, até a segunda
relação a isto, seguir a opinião vigente da vírgula, é compatível com o hinayana. A
ciência, e mesmo que porventura ela mude segunda parte contém elementos teístas —
bastante com o passar do tempo, não muda quem é que fez a prisão? É evidente que
muito o que importa: a prática de Kerouac misturava o budismo com seu
compaixão. cristianismo — ele acho chega a dizer isso
com todas as palavras. E, naquela época, ele
O mundo que pode ser explorado com não tinha acesso a boas traduções e até
instrumentos é apenas uma fração ínfima mesmo a um professor que pudesse
das projeções possíveis com que a mente explicar o darma a ele. O Gary Snyder, o
ignorante pode se enganar. Alan Watts e o Ginsberg chegaram bem
mais perto do budismo — mas os coloquei
A regressão a vidas passadas através de na ordem de ressalvas, ou pelo menos de
processo terapêutico (por relaxamento minha preferência. O Kerouac, coitado,
profundo induzido ou hipnose) oferece algo morreu antes de poder conhecer o Trungpa
de particularmente benéfico ou danoso à Rinpoche, e acho que nem chegou a
prática? conhecer o Shunryu Suzuki Roshi. E ele
abandonou o budismo pelo cristianismo no
Não é um método testado pelos budistas. fim de sua vida. Ele tem o mérito de ter
Se for provado que não gera memórias gostado do Sutra do Diamante, na tradução
falsas, não haverá problema. Porém, ao que do Goddard, que nem é tão ruim assim: mas
tudo consta, memórias falsas são criadas. é um texto impossível de entender sem um
Então é contraproducente. professor.

Qual é a relação entre Budismo e Cabala? Falando sobre autores, quais você acha que
mais deturparam o budismo?
Creio que não exista relação.
Eu procuro ler o que é fidedigno, então eu
Até que ponto o livro "Sidarta" do Hermann não tenho um vasto conhecimento da
Hesse é baseado na vida do Buda? literatura espúria que contenha a palavra
"budismo". Ademais, para que gerar
Não tem quase nada a ver com o budismo interdependência com esses nomes?
ou a vida do Buda. Algumas vezes quando certos nomes
surgem nas perguntas, eu simplesmente os
"Apenas no nirvana existe alegria, edito: porque mencionar alguém a que não
proporcionando a fuga duradoura, pois para vale a pena nem dar publicidade ruim?

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uma noção melhor do que de artigo de


Até no Brasil nós já temos vários Lobsang enciclopédia sobre budismo. Mesmo os
Rampas. Dois autores que eu conheço "orientalistas" não tem a menor noção. Na
pessoalmente, que escrevem Europa e nos EUA já existem alguns
supostamente sobre budismo, não têm ocidentais, praticantes ou não, que
nem um fiapo de conhecimento intelectual entendem algo de budismo dentro da
do assunto (e se tivessem, sem a prática, já academia — mas mesmo lá é um fenômeno
seria um tanto desprezível em vista da boa de uns, no máximo, 30 anos para cá. Antes
literatura disponível). Nos dias de hoje, haviam algumas raras exceções, mas
como Chagdud Rinpoche costumava dizer, mesmo essas exceções, como Conze, têm
uma em cada dez ou vinte pessoas se uns poréms enormes.
autointitula mestre em alguma coisa – e se
não se autointitula, eu adicionaria, implica Existem também aqueles professores
com sua atitude conhecer algo de que não escritores que, embora acurados, embora
tem base alguma. Daí esses “queridos” se falem do darma com profundidade e
multiplicarem. correção, ainda assim não são boas
conexões. Um intelecto preciso não quer
Essas pessoas assistem uma ou duas dizer que essa pessoa seja fidedigna no
palestras, leem material de terceira sentido de não ser um charlatão, ou de não
qualidade na internet (tal como o que eu ser alguém que traiu seu próprio professor.
escrevo), misturam com suas concepções Mas é muito mais comum encontrar livros
errôneas e venenos mentais, e então imprecisos, até mesmo grosseiramente
publicam as coisas mais estapafúrdias, na imprecisos, do que livros precisos que
maior cara de pau, como se conhecessem mesmo assim não são uma boa
algo do budismo. interdependência. Mas, sabe-se lá o que é
pior. Um livro impreciso só vai prejudicar
Em português livros de professores quem lê, um livro cuja compra patrocina
fidedignos que sejam bem traduzidos são uma "linhagem" que opera como a máfia, e
uma raridade. Nós temos talvez 3 ou 4 até encomenda assassinatos (e isso existe,
professores que escrevem em português. por incrível que pareça), daí, mesmo que
Então a situação é bastante grave — externamente correto, é um carma muito
embora a prateleira "budismo" na livraria pior.
esteja bem recheada, isso não é indicativo
de qualidade. As pessoas que não leem em Em inglês a situação é bem melhor,
inglês as vezes não tem a mínima noção da principalmente por causa das grandes
limitação que é a qualidade e o volume de editoras como a Wisdom, a Snow Lion, a
publicações em português (em qualquer Shambhala — eles não publicam porcaria.
campo, mas é bem verdade do budismo, em No Brasil, fora a Makara, do Chagdud
particular). Não existe hoje, na academia Gonpa, não conheço outra editora em
brasileira, nenhum professor que tenha

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existência que, só pelo nome da editora, ausência de expressividade, seria ainda


sejam garantidas as publicações. mais contraproducente combater algo
assim do que deixar a "tonteria" mostrar-se
Budistas têm hostilidade contra o a si própria como tonteria.
Esoterismo?
A eficácia do budismo não estará apenas na
Hostilidade creio que não. Mas com certeza, influência espiritual que vem desde o Buda
devido as muitas distorções inseridas nos até os praticantes de hoje, de geração em
ensinamentos budistas, cujas primeiras geração, como supostamente ocorre em
traduções foram cometidas por outras "vias iniciáticas"?
universalistas como os teósofos, e "nova
era" em geral, é um tópico recorrente Isso depende muito do que você quer dizer
corrigir as noções errôneas introduzidas. por "influência espiritual" e "outras vias
Isso pode soar como hostilidade porque iniciáticas". Infelizmente, fora do budismo
afeta diretamente muitas das doutrinas que não tive oportunidade de conhecer
as pessoas sustentam, e mais do que isso, nenhuma "via iniciática" que tivesse uma
sustentam como atreladas ao budismo. linhagem com pelo menos alguma
aparência de pureza. Com certeza elas
Uma tradição que coloque dogmas acima da existem no hinduísmo, por exemplo, mas eu
generosidade e da compaixão não serve nunca verifiquei pessoalmente — e como o
para nada? hinduísmo é uma doutrina teísta, com
certeza a "influência espiritual" tem um
Se os dogmas forem contra a compaixão, sentido totalmente diferente do budista.
então ela não só não serve para nada, mas
é definitivamente um problema. Agora, linhagem é um conceito central ao
budismo, seja de que forma for — porque é
As coisas que não servem para nada em o que garante não só a preservação dos
geral estão na categoria de não produzir ensinamentos sem distorção, mas a
benefício. Se não produz benefício, então é preservação do controle de qualidade e dos
perda de tempo, o que é um malefício. meios de controle de qualidade (dos
praticantes).
Nesse caso, se faz um favor em combater 2.1. Formas de budismo
essas visões errôneas. No entanto, não há Quantas formas de budismo existem?
nenhuma grande tradição do mundo que o
budismo não considere, de uma forma ou Centenas, talvez milhares. Além do mais, há
outra, benéfica. Creio que talvez algumas mais de um jeito de categorizar as formas
correntes menores da nova era ou do de budismo.
ocultismo, sem expressividade alguma,
possam ser perda de tempo ou Se falamos do budismo pelo seu teor
efetivamente maléficas. Nesse caso, dada a cultural, pela sua arte e suas idiossincrasias

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étnicas, então nos referimos a tradições, novas viagens a índia e se engajaram em


como budismo tibetano ou budismo novas traduções de textos indianos.
japonês.
Da mesma forma o soto zen japonês é
Se nos referimos a um ramo numa árvore essencialmente embasado na yogachara,
cujo tronco é o Buda e os inúmeros galhos embora ocasionalmente possa se falar em
são alunos e alunos de alunos, estamos algum tipo de madhyamaka. Ele divide o
falando de linhagens, como theravada, soto ensinamento do Buda em dois veículos,
zen e nyingma. hinayana e mahayana.

Se estamos nos referindo a diferenças entre Quais as escolas do budismo?


pontos de vista filosóficos, então falamos de
escolas. Algumas escolas são linhagens O budismo possui 2600 anos de história, e
diversas também — e as tradições vez que já no seu início uma grande diversidade de
outra tem predileção por algumas escolas. formas de apresentação dos ensinamentos
Normalmente as escolas se referem ao se formou. As primeiras classificações já
período clássico de debates na Índia falam em 18 escolas, mas as diversas
medieval, onde se ouve nomes como escolas contam números diferentes,
cittamatra e madhyamaka. chegando até ao dobro disso — alguns
poucos séculos após a morte do Buda.
Se estamos nos referindo a formas diversas
que o próprio Buda usou para ensinar, Durante os dois mil anos posteriores, esse
então estamos falando de veículos, uma número só aumentou, com a diversidade
mesma tradição, linhagem ou escola pode cultural de cada país que recebeu os
conter ensinamentos de mais de um ensinamentos budistas. Numa cidade
veículo. O yogatantra é um veículo, bem grande como São Paulo podemos contar
como o mahayana. representantes de algumas dezenas de
escolas do sul da Ásia, japonesas, tibetanas,
A tradição tibetana nyingma, por exemplo, coreanas, chinesas. Eu, que não sou um
ensina de acordo com a madhyamaka — grande estudioso, e nem sei nenhuma
embora, segundo Sua Santidade o Dalai língua asiática, poderia citar, de cabeça,
Lama, alguma terminologia nos roteiros de mais de 100 nomes de escolas budistas, sem
meditação tenha um sabor cittamatra. Ela grande dificuldade.
divide o ensinamento do Buda em nove
veículos, que podem ser resumidos em três: A situação fica um pouco mais complexa
hinayana, mahayana e vajrayana. Nyingma porque algumas escolas não sobrevivem, e
quer dizer "antiga tradução", e eles foram outras escolas são atribuídas
chamados assim em retrospecto pelos posteriormente: isto é, os historiadores
professores budistas no Tibete que fizeram budistas olham para o passado, e ao
classificar diferentes posições filosóficas,

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utilizam terminologias com que passam a


identificar grupos de textos ou praticantes. Fora do budismo tibetano tive também um
É muito comum também uma escola se contato muito rápido com alguns mestres
autodenominar de uma forma e ser da forma soto do budismo japonês, e
chamada por outro nome em outras também bastante rápido com o son (zen)
escolas. coreano, mais similar ao rinzai japonês.
Debati com theravadins pela internet, mas
Essa diversidade foi encorajada pelo próprio nunca nem mesmo assisti uma prática.
Buda, e embora algumas vezes resulte em Entrei em templos c'han e terra pura, mas
sectarismo e momentos de amargor entre nunca assisti sequer uma prática nem
praticantes e grupos, em geral ela é conheci bem um professor dessas tradições,
considerada uma riqueza, como um grande nem mesmo pela internet.
banquete, onde não somos forçados a
comer algo que nos desagrada, mas há Assim, como meu conhecimento é bastante
alimento que agrade a qualquer um. limitado, eu só posso dizer que os tibetanos
compilaram um vasto cânone — eles
Como eu sei qual Professor ou linhagem é possivelmente possuem mais textos
melhor para mim? budistas que qualquer outra tradição. Assim
há muitas formas tibetanas, e dentro de
Você examina o professor cuidadosamente. uma forma, há muitos modos de praticar. É
Mas é um problema só, porque a linhagem frequente que um mesmo professor ensine
é a do seu professor. Então você não precisa dezenas de métodos. Existe até mesmo uma
escolher uma linhagem. Você tem um complexa e longa taxonomia de formas de
professor e você será da linhagem dele. expor os ensinamentos e de diferentes
práticas. Assim como se fosse um mapa
Qual a diferença do budismo de linha extremamente complexo.
tibetana para outra linha?
Externamente, tudo é diferente. Arte,
Só conheço um pouquinho das práticas de cores, sons. Até mesmo algo no
algumas linhagens nyingma, e tive um comportamento externo dos praticantes —
contato relâmpago com kagyu, gelug e que são de culturas diferentes, ou de
sakya, de forma que não posso falar dessas formas diferentes de uma mesma cultura —
outras formas tibetanas. Aliás, só recebi ou mesmo são apenas diferentes uns dos
ensinamentos de lamas de duas linhagem outros.
kagyu, e visitei rapidamente o centro de
uma terceira forma por duas vezes. A kagyu Para ser budismo, no entanto, é preciso que
sozinha possui dezenas de formas tenha os quatro pilares: 1) entender a
diferentes, então realmente minha impermanência de todas as coisas
experiência é algo muito superficial dentro compostas; 2) entender a vacuidade ao
do budismo tibetano. menos do eu; 4) entender que todas as

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aflições mentais produzem sofrimento 3) O sectarismo com certeza existe, mas a


entender que o nirvana, além dos extremos, diversidade é maior do que o sectarismo e
é possível; representa a riqueza do ensinamento
budista.
Em geral o que leva a pessoa a se conectar
com um grupo de praticantes e um Qual a diferença entre mahayana, hinayana,
professor específico é o que leva essa vajrayana? Porque o vajrayana é
pessoa a se identificar com a linhagem — o considerado o melhor de todos?
seu próprio carma positivo (no caso de uma
linhagem pura e excelente), e o seu próprio O Buda ensinou o darma que foi ouvido de
carma negativo (no caso de uma linhagem acordo com a capacidade dos seres a serem
não tão pura e não tão excelente). Mas a domados. Seres com muito autointeresse se
pureza e a excelência só podem ser focam no caminho da liberação individual, o
comprovadas após anos de prática e a hinayana. O pensamento é "eu não vou
obtenção de ao menos alguns resultados. conseguir ajudar os outros mesmo, então
vou ajudar a mim mesmo". O Buda não se
Existem inimizades e hostilidades mútuas recusou a ensinar para quem tinha essa
entre diferentes formas do Budismo como perspectiva, pelo contrário, ele apresentou
existem entre as seitas da maioria das um caminho que estava de acordo com as
outras religiões? limitações dos ouvintes.

Sim, ao longo da história houve muita Depois o mahayana é ouvido por aqueles
tensão, e chegaram a haver episódios que tem a coragem de trabalhar sem cessar
dignos de vergonha. pela liberação de todos os seres.

No entanto a diversidade de formas de Em termos de visão, de acordo com algumas


budismo existe em função do próprio tradições o vajrayana não é mais elevado
ensinamento do Buda. Muitas vezes os que o mahayana: eles partilham essa
ensinamentos são comparados a remédios. mesma perspectiva. Outras tradições
Então não precisamos tomar a farmácia acreditam haver uma perspectiva mais
inteira, mas apenas aquilo que serve para elevada própria ao vajrayana. Em todo caso,
nos curar dos nossos males particulares, o vajrayana possui um diferencial que são
idiossincráticos. Cada cultura e cada pessoa os métodos ditos "extraordinários" para
tem inclinações diferentes, e portanto atingir esses fins. Esses métodos são
métodos diferentes são utilizados. Da essencialmente o guru ioga (união com a
mesma forma que uma farmacopeia, pode intenção iluminada do guru), a prática de
acontecer até mesmo de interações sadhana (levar as instruções do guru a cabo)
medicamentosas não serem e a confiança no resultado como já estando
recomendadas, e assim por diante. presente, sem falha de continuidade, desde
o princípio sem princípio. Através dos

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métodos extraordinários que se embasam que o mahayana criticava como hinayana


na guru ioga, o resultado é mais rápido. O não existem mais. Na verdade é injusto
interesse em o resultado ser mais rápido classificar uma tradição de "hina", já que
não é só o fato de que é melhor para nós, esta é uma nomenclatura essencialmente
mas essencialmente porque o benefício mahayana, embora alguns mestres tenham
para os outros é atingido mais rápido cometido este erro. O mahayana é tanto
também. uma tradição quanto um veículo, e aqui se
faz a confusão. O mahayana chama a si
O hinayana é a direção correta, o mahayana próprio de mahayana, e algumas vezes na
é a vastidão corajosa e o vajrayana a história chamou outras escolas de hinayana
intensidade luminosa. Você não abandona — como uma crítica muitas vezes talvez
os veículos menores nos veículos maiores, bastante correta, intuo eu. Porém é
tudo que é feito nos veículos maiores é sem inadequado hoje em dia rotular
contradição com os veículos menores. O generalizadamente o que quer que seja.
oposto não é verdade: o mahayana pode Assim a ideia dos veículos fica muito mais
estranhar o vajrayana, e o hinayana pode próxima do autoexame, de aperfeiçoar a
estranhar tanto o mahayana quanto o própria prática, do que propriamente de
vajrayana, porque aquelas perspectivas não identificar tradições, linhagens, ou escolas
existem ali e podem não ser entendidas. budistas.

Qual a principal diferença entre o budismo É preciso entender que as diferenças entre
mahayana e o hinayana? as formas de budismo são muito complexas.
Se dão em termos de tradição, que está
"Maha" significa grande, "hina" significa ligada ao formato cultural ou costumes
estreito. A ideia de "yanas" é mahayana, locais de um povo, ou mesmo de um único
portanto muitas vezes quando se fala mosteiro. Também em termos de linhagens,
"hinayana" esta é uma crítica mahayana: que significa uma linha discipular do Buda
ninguém dirá praticar o hinayana (a não ser até hoje, de mestre para discípulo, assim
que seja humilde e sincero, e na forma de por diante — estas formam uma árvore,
confissão - na incapacidade de praticar algo porque a maioria dos mestres, inclusive o
mais amplo). De outra forma, pode Buda, tem mais de um discípulo, a quem
acontecer que diga que a ideia de yanas é ensinam métodos diferentes. Há escolas,
algo que não pertence a sua tradição, que estão ligadas a tradição no que diz
mesmo dentro do budismo. respeito ao uso de nomenclaturas, mas que
também tornam-se mais específicas no que
É o caso do theravada, que alguns diz respeito a certos dogmas ou doutrinas
classificam como hinayana. Isso é visto filosóficas particulares, a formas de
como uma crítica ou ofensa pelos apresentação dos ensinamentos e nível de
theravadins, já que para eles o mahayana é refinamento intelectual. Enfim há os yanas,
uma invenção posterior: mesmo as escolas que são um conceito ligado apenas a

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algumas escolas. Por exemplo, a linhagem atingido por acúmulo de mérito e


nyingma, de tradição tibetana, utiliza sabedoria. O mérito é acumulado através
conceitos das escolas yogachara e do não prejudicar, a moralidade, e a
madhyamaka, dando ênfase ao sabedoria é acumulada através da
madhyamaka, e expondo o ensinamento meditação. A bondade, o amor e a
em nove yanas (duas hina, uma maha e seis compaixão são praticados como meios para
vajra). Já o Zen, de tradição chinesa, este fim.
japonesa ou coreana, utiliza conceitos das
escolas yogachara e madhyamaka, dando Então, no escopo do mahayana, tudo que
ênfase (na minha interpretação pessoal) a está no hinayana precisa necessariamente
yogachara, expondo o ensinamento em estar presente, caso contrário, não há
duas yanas. Assim por diante. mahayana. Mas além desta perspectiva da
insatisfatoriedade da experiência cíclica,
Porém cada professor dará sua própria além da busca pela efetiva liberação, e do
versão, e mesmo estas classificações são um acúmulo de mérito e sabedoria através de
artifício cheio de armadilhas — não há uma moralidade, compaixão e treinamento da
forma padronizada de se referir a estas mente, há destemor. A compaixão do
diferenças. hinayana é estreita, ela visa produzir a
liberação de um ser. A compaixão do
Ainda assim é preciso entender que a mahayana é destemida, toma sobre si o
prática hinayana é muito comum entre os sofrimento de todos os seres, para atingir a
que praticam, que são raros. A maioria liberação de uma forma não separativa,
pratica veículos não espirituais. Entre estes sem excluir ninguém. Neste escopo de
veículos não espirituais, temos os que tem destemor, a moralidade e o treinamento da
uma aparência espiritual e os que são mente são também extremamente mais
literalmente mundanos. Entre os eficazes.
literalmente mundanos estão o hedonismo,
o pragmatismo etc. Não há noção de Para o vajrayana, porém, além de tudo que
liberação e os seres buscam a felicidade de há no hinayana e no mahayana precisar
forma mais ou menos aleatória, em objetos estar presente, é necessário, além disso,
externos — poder, fama, prazer, influência, encontrar um mestre completamente
comida, sexo, abrigo, e até mesmo na iluminado face a face.
violência ou na fuga. Entre os de aparência
espiritual, que são bem mais perigosos, Qual a diferença entre sutra e tantra?
estão o niilismo, o eternalismo, e a busca
por estados meditativos particulares, São dois tipos de texto, o sutra é um diálogo
poderes mágicos etc. Estes não praticam de um Buda (em particular do Buda
sequer o hinayana. Para praticar o hinayana histórico, o Buda Shakyamuni) com um
é preciso entender a insatisfatoriedade da aluno ou vários alunos. São os textos
experiência cíclica e buscar liberação. Isso é básicos do hinayana e do mahayana. Os

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tantras são os textos principais do


vajrayana, e eles não são o registro A tradição hinayana reconhece o Sutra do
(supostamente) histórico de um diálogo Coração? A vacuidade faz parte da doutrina
com o Buda, mas algumas vezes o diálogo hinayana?
atemporal da natureza de Buda com o
mundo convencional, e descrevem muitas O Sutra do Coração (cujo nome quer dizer
outras coisas — normalmente eles são a "Coração da Sabedoria", no sentido de
base das sadhanas (roteiros de prática, núcleo, essência, da sabedoria) é um texto
métodos de atingir a iluminação), e algumas do veículo mahayana. E não é aceito como
vezes contém sadhanas ou indicações de um ensinamento do Buda pelo hinayana,
sadhanas. Os tantra são os textos raiz do ainda assim, grande parte dos praticantes
vajrayana. hinayana não acredita que haja algo de
profundamente errado com o Sutra do
Para Tsongkhapa, a diferença essencial Coração, pelo menos em certa
entre mahayana (a tradição do sutra) e interpretação. Existe vacuidade no
vajrayana (a tradição do tantra) é no uso de hinayana, vacuidade "pequena", do eu. Não
“meios hábeis”. O sutra procura antídotos existe "grande" vacuidade, vacuidade dos
para os aflições mentais, e o tantra fenômenos.
consegue usar as próprias aflições como
combustível para a prática. Para o mestre O que é o "veículo secreto", como foi criado
gelug, em termos de visão (grande pelo Buda? Todas as linhagens do budismo
vacuidade de todos os fenômenos), as duas tibetano tem a presença do tantra e veículo
yanas são iguais, em termos de como esse secreto?
resultado é atualizado, existe uma
superioridade do lado do vajrayana com os Tantra, mantra secreto e vajrayana são a
tais “meios hábeis”, por sua grande mesma coisa. O Buda ensinou de acordo
diversidade de formas de prática e de com as necessidades e capacidades dos
atualizar a sabedoria, e a confiança no seres. Para os seres sem capacidade de
resultado como estando presente desde o entender certos aspectos dos
princípio e assim superando a noção de ensinamentos, eles são "secretos". Eles são
“antídotos”. secretos tanto porque a pessoa não é capaz
de entender, quanto porque, se forem
Para Jamgon Mipam, a diferença entre sutra explicados no momento inadequado, criam
e tantra diz respeito a meios e visão, isto é, conceitos errôneos que se tornam
sabedoria. Para Mipam, há uma visão obstáculos ao entendimento correto — e
particular, e superior, do tantra, que diz portanto causam mais mal do que bem.
respeito à pureza inerente, e a natureza
imanente da sabedoria. O Buda ensinava em todos os níveis
simultaneamente, e de acordo com o

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acúmen dos ouvintes, eles ouviam os práticas preliminares externas e internas no


veículos correspondentes. primeiro. Isso faria com que a grande
maioria dos praticantes zen estivessem
Quais as diferenças entre a linhagem mantendo apenas a aparência de uma
Nyingma e a Zen? prática sofisticada, sem de fato estarem
praticando a partir do resultado, "sentando
O vajrayana em geral, e a tradição tibetana como um Buda". Por outro lado, poderia-se
em particular — incluindo aí nyingma e argumentar que a melhor prática preliminar
outras tradições — se foca numa parte da inexistência de dúvida com relação
diversidade de métodos, adequados à ao próprio caminho, e que portanto, o zen
grande diversidade de necessidades dos unifica prática preliminar e prática principal.
seres.
O que ocorre no fundo é que uma pessoa
O zen, chinês (c'han), coreano, tailandês ou precisaria de uma vasta experiência em
japonês, em geral focam-se num conjunto ambas as tradições para poder fazer uma
mais restrito de práticas, em geral a comparação — e mesmo nesse caso essa
meditação em silêncio (dhyana, de onde comparação diria respeito apenas a essa
vem o termo "zen"), mas também algumas experiência, por mais vasta que fosse.
poucas outras, como a prática com koans,
que são formas sofisticadas de debate, e Nós essencialmente praticamos aquilo que
uma série de disciplinas estéticas como conseguimos praticar, que está disponível
arranjo de flores e cerimônia do chá etc. para nós, e que nos é palatável, de acordo
com nossas inclinações pessoais e padrões
A especificidade da tradição nyingma com de hábito. Então esse tipo de comparação
relação a outras tradições tibetanas é a pode ser completamente fútil. É
prática da "grande perfeição", dzogchen. exatamente como preferir o vermelho do
Alguns professores comparam o zen com que o preto: não é algo que está sob nosso
essa prática. O que me parece é que, no controle. Dizer qual é o tom exato do
sentido último, as práticas de vermelho, qual é a sua frequência de luz,
reconhecimento da vacuidade do que tipos de resultados psicológicos produz,
mahayana, mahamudra, dzogchen e zen como desbota e se combina ou não com
repousam, de fato, sob uma mesma quais cores, não vai nos ajudar a escolher
natureza. Porém, os enfoques são com entre uma cor e outra, porque o nosso
certeza diversos. Em outras palavras, essas carma é que prefere ou não prefere cada
práticas tem um mesmo objetivo ou uma das respostas possíveis. Como a pessoa
resultado, mas não são o mesmo método vai ser isenta sem ter feito a prática que
para atingir esse resultado. supostamente vai lhe permitir certa
isenção, que vai liberar os preconceitos, ir
Uma diferença essencial entre o zen e o além das inclinações? Como ela vai escolher
dzogchen seria, por exemplo, a ausência de que caminho leva ao livre-arbítrio?

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É uma tradição budista do sul da ásia,


Quando o sectarismo surge, o vajrayana diz especialmente do Sri Lanka. Eles utilizam o
que o zen é, na melhor das hipóteses, cânone Páli, que alguns consideram as
mahayana — mas algumas vezes chega a escrituras mais antigas e ortodoxas do
chamar de hinayana, ou até mesmo acusar budismo. Embora provavelmente sejam
(talvez com procedência, em outro caso, mesmo, as mais antigas fontes ainda
porque ninguém está livre de distorções) o preservadas destes textos são do ano 800
zen de tendências niilistas (como no debate ou 900, enquanto no mahayana (que
clássico em que Hashang Mahayana perdeu geralmente é considerado um
para Kamalashila a oportunidade de abrir desenvolvimento posterior pelos
uma "franquia" zen no Tibete, logo na historiadores) curiosamente há fontes
introdução do darma naquele país). Como primárias preservadas de até o ano 200. Os
mahayana ou hinayana, o zen, embora theravadins se focam nos três
inferior ao vajrayana, seria visto como uma treinamentos: disciplina, meditação e
louvável doutrina do senhor Buda. insight (sabedoria).

Por outro lado, quando a visão sectária e Alguns professores algumas vezes chamam
limitada surge no zen, os meios hábeis do o theravada de hinayana, o que é tomado
vajrayana são todos classificados, diga-se de como ofensivo, já que basicamente se está
passagem mais de acordo com a visão dizendo que os theravadins são limitados, e
secular, cientificista e materialista de alguma forma egoístas. Também é
moderna, do que de acordo com o zen incorreto, já que o que foi historicamente
tradicional praticado na Ásia, como rituais identificado como escolas hinayana não
um tanto bobos e desnecessários. inclui o theravada, que é uma
subramificação de uma delas, todas extintas
O importante é ter confiança no próprio hoje. Porém, o cânone Páli, por não conter
professor e levar a prática que ele propõe sutras mahayana, estritamente falando,
até o final, a iluminação. De resto, nós não não poderia ser outra coisa que não o
estamos na posição de julgar a prática dos cânone do hinayana.
outros, nem mesmo em nossa própria
sanga, que dirá em outras sangas — que O problema é que a separação em veículos
dirá de praticantes de outras formas de tem duas vertentes, ambas corroboradas
budismo, que dirá em outras religiões. pela história e pelos textos: uma sectária,
Então uma atitude de respeito e admiração onde a superioridade dos ensinamentos do
deve ser natural por qualquer um que se mahayana era demonstrada em
esforce na virtude e na prática espiritual. comparação a ensinamentos inferiores, e
outra meramente classificatória, isto é,
O que é theravada? nada no cânone Páli é negado, e de fato, são
os textos fundamentais do budismo —
aqueles que são aceitos por todas as formas

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de budismo. Porém o termo "hina", japonês, muitas vezes com o objetivo de


estreito, tende mais para a primeira meramente facilitar as coisas da vida .
vertente, e os professores contemporâneos Outras escolas Nichiren aparentemente
algumas vezes estão usando o termo fazem prática budista genuína (sem o foco
"veículo fundamental" ou "veículo base" em apenas melhorar condições), mesmo
para se referir ao cânone Páli. que um tanto unifocada nesses
ensinamentos. Algumas delas consideram
Porque os theravada só consideram o 1º mal todas as outras escolas budistas,
giro da roda do Darma? especialmente as que não reconhecem
Nichiren como um segundo Buda. Algumas
Esse "porque" é difícil de entender. Por um formas de Nichiren chegaram ao Brasil com
lado, eles não aceitam certos textos como os imigrantes japoneses. Os japoneses
tradicionais, por outro lado, eles não tem também trouxeram uma meia dúzia de
noção de giros da roda do darma. Da visão escolas Terra Pura e Zen.
deles, o resto é invenção, algumas vezes
boa invenção, algumas vezes nem muito Os Budistas do Japão, do Tibete e do sul da
boa assim. Ásia se reencontraram no séc XX, algumas
vezes no ocidente, mais de 1000 ou 1200
Agora, o segundo giro descreve bem anos depois de se separarem na índia.
aqueles que apenas aceitariam o primeiro Muitas vezes estas escolas estão ocupadas
giro, então isso é previsto nas escrituras do de sectarismos milenares próprios a sua
segundo giro. Então, se você aceita vários cultura, e não tem nem mesmo capacidade
giros, você inclui o theravada, mas se você de avaliar a prática ou os textos de uma
apenas aceita um giro, daí fica difícil aceitar tradição em outra língua. Eu,
os outros como budistas. particularmente, senti alguma atração pelo
zen — que existe na China, na Coréia, no
O que é Budismo de Nitiren Daishonin? Vietnã e no Japão. Claro que tenho conexão
com Buda Amitaba, mas mesmo assim a
Nichiren é um professor budista japonês, Terra Pura japonesa é ininteligível para
considerado um patriarca, e um Buda, por mim.
dezenas de escolas japonesas. Ele pregou
que os ensinamentos do Buda Sakyamuni A informação que tenho é que algumas
estariam ultrapassados (algo jamais escolas Nichiren podem ser consideradas
afirmado por qualquer outra escola budista budismo genuíno. Mas talvez as formas
genuína) e que o único ensinamento a mais populares no Brasil não sejam. O que
seguir seria um sutra mahayana (que nem é não quer dizer que não sejam benéficas. Na
tão enfatizado em outras tradições verdade, é uma atitude parecida: eles
mahayana) o "Sutra do Lótus". Algumas rezam por nós, nós rezamos por eles. Mas
formas de budismo Nichiren se focam em não há reconhecimento mútuo — como há
apenas recitar o nome desse sutra, em com o zen, por exemplo, ou mesmo com a

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Terra Pura. Eles não tinham pessoalmente me interesse. Se tal


reconhecimento mútuo nem mesmo no explicação fosse dada por um professor
Japão. Quer dizer, posso estar capaz de ensiná-la, ela seria enorme. Acho
generalizando, mas é uma atitude que eu não teria nem tempo de ler.
comumente associada ao budismo de
Nichiren. Além de mudanças de ênfases diversas na
prática e estudo, liturgias, costumes e
Gostaria de pedir que, se possível, me histórias totalmente diferentes, a discussão
esclarecesse a respeito das diferenças, de propriamente filosófica se dá em termos da
ensinamentos e práticas, entre as linhagens interpretação da doutrina da vacuidade,
nyingma e e gelug. particularmente das formas com que essas
tradições interpretam a madhyamaka, que
Você pode ler sobre isso em "Bondade, é uma escola budista da Índia Clássica. A
Amor e Compaixão", de Sua Santidade o ênfase em certas interpretações e mesmo a
Dalai Lama. Um dos capítulos desse livro escolha dos comentadores preferidos dá o
compara sarma (as três kagyu, sakya e diferencial de cada uma dessas tradições –
gelug) com nyingma. Embora sejam umas além dos óbvios aspectos externos, em
25 páginas, já aviso que é extremamente termos de cores, organização social e outros
complicado. costumes.

Quais as principais diferenças entre as


escolas gelug, nyingma, kagyu, sakya, bon,
kadam e jonang do budismo tibetano? O que é o Lamrim de Atisha?

Nenhum estudo compreensivo foi "Lam" é caminho, "Rim" é gradual. É


publicado que compare todas estas, nem no portanto um tratado ou resumo da prática
ocidente, nem no oriente. Os gelugpas são do darma do início até o final, o estado do
os kadampas hoje em dia. Um gelugpa que Buda. E, claro, também a prática
se autointitule kadampa, como os correspondente. Atisha escreveu um
famigerados “novos kadampas”, está tratado deste tipo, por isso é o Lamrim
implicando que os outros gelugpas são "dele". Alguns ensinamentos focam só
impuros. Os novos kadampas são algo que certos aspectos, ou apenas certos estágios
se deve evitar, se a pessoa tem da prática. Outros textos são compêndios
consideração pelo líder não sectário Sua de pontos essenciais, ou remédios
Santidade o Dalai Lama. específicos para certas aflições mentais ou
dificuldades de praticante. Os lamrim são
Acho que eu poderia escrever umas 10 textos "completos", que alguns professores
páginas levantando minhas próprias ou mosteiros usam como guia principal,
dúvidas sobre as diferenças e semelhanças através do qual complementam com textos
entre as linhagens, mas não é algo que

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secundários e manuais específicos do Budas e a um conjunto de textos comuns ao


mosteiro. mahayana. Assim, todas as linhagens do
mahayana, o que inclui todo o vajrayana
Você poderia falar um pouco sobre as também, praticam e estudam a
escolas de pensamento, como Prajnaparamita.
madhyamaka e cittamatra, por exemplo? É
muito essencial saber sobre essas escolas Alguns professores do theravada também
para entender o pensamento budista? aceitam o Sutra do Coração e alguns
comentários de Nagarjuna como válidos,
Não é essencial. Essa taxonomia é do embora não os considerem, em geral, como
período indiano tardio e especialmente pertencentes ao cânone — isto é, textos
querida entre os tibetanos — isto é, estas genuínos de sua tradição.
escolas muitas vezes existem através da 2.2. Hierarquia e estilos de vida
análise de textos, e não de haverem Como funciona a hierarquia no Budismo? E
"escolas" mesmo, como é o caso claro das a ordenação? rinpoches ordenam lamas
duas madhyamakas, prasangika e que ordenam monges?
svatantrika.
(Essa pergunta se refere ao budismo
Seria difícil explicar essas duas que você tibetano, já que Rinpoche e Lama são títulos
citou, que são as mais sofisticadas. apenas no budismo tibetano.)
Citamatra em geral tem um teor idealista, e
madhyamaka é compatibilista. Esse tipo de Não é assim. E varia de templo para templo.
estudo é importante para entender os Cada um desses títulos quer dizer uma coisa
debates que surgiram em torno da noção de em particular. Todo rinpoche é um lama.
vacuidade. Portanto primeiro seria Nem todo rinpoche ou lama é um monge.
necessário estudar as paramitas, chegar em Nem todo monge é lama, muito menos
sabedoria e se focar nos sutras e rinpoche. Rinpoche significa "precioso", e é
comentários sobre sabedoria. Então alguém que é um professor do darma por
depurar paulatinamente a visão do que é várias vidas. Lamas são professores, e
vacuidade. Em geral, para entender monges são pessoas que tomam certos
vacuidade começamos com a votos.
impermanência, depois vamos encontrando
noções cada vez mais sofisticadas até Estritamente falando, só existe ordenação
chegar na madhyamaka, Caminho do Meio. monástica. Não há ordenação de lamas ou
rinpoches. Rinpoches são tulkus
A Prajnaparamita é estudada em todas as entronizados, isto é, que passaram pelo
linhagens? treinamento e recebem seus bens e alunos
da vida passada. Como uma pessoa vem a
Prajnaparamita se refere a três coisas: a ser chamada de lama varia bastante,
prática dos bodisatvas, a realização dos algumas tradições exigem que certos pré-

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requisitos sejam completados (um retiro de Todos no budismo praticam para se


3 anos), outras apenas uma nomeação por tornarem budas — sejam monges ou não.
parte do professor é suficiente. Como a maior forma de generosidade é
oferecer o darma, todos aspiram poder
Qual a diferença entre o caminho do lama e fazer isso um dia. Nem todos vão conseguir
o do monge? Por que o monge não pode receber autorizações nessa vida e poder
fazer sexo e o lama pode? fazer isso de forma extensa, mas todos o
fazem de alguma forma, em alguma
Monge vem de "monos", que quer dizer medida, nem que seja bem restrita. Nós
"sozinho". O caminho monástico implica o consideramos lamas aqueles que são
celibato e uma série de outros votos que exemplos consumados da prática, e monges
visam simplificar a vida do praticante. aqueles que seguem os votos. Uma pessoa
pode achar que precisa e consegue seguir o
Por exemplo, a maioria das pessoas perde a caminho monástico, então isso
parcialidade quando tem atração sexual por possivelmente vai ser bom para ela. Outras
alguém — então isso pode com certeza pessoas não precisam, ou não conseguem.
dificultar o caminho, dificultar a uma pessoa Isso não impede o caminho budista em
dar um ensinamento com isenção, ou nenhum dos casos. De acordo com a
mesmo desenvolver compaixão capacidade, a pessoa pratica o que
adequadamente. Algumas pessoas consegue. Não é necessariamente melhor
conseguem se manter imparciais perante ser monge, embora com certeza seja muito
seus objetos de desejo — estas talvez não bom para algumas pessoas — e bom para a
precisem tomar votos monásticos. Outras comunidade budista, já que eles mantém as
pessoas seriam incapazes de manter os instituições que mantém os ensinamentos e
votos monásticos, mesmo que não sejam o critério de pureza dos ensinamentos.
isentas — então essas praticam o que
conseguem praticar. Ser monge facilita, mas não garante,
progresso espiritual. Também ajuda, mas
Os professores em todas as formas de não garante que a pessoa se torne um
budismo podem ser monges ou não. Nem professor. O único caminho para se tornar
todo monge é um professor, nem todo um exemplo, é... se tornar um exemplo:
professor é um monge. Um lama é um fazendo boa prática. Não devemos buscar
professor do budismo tibetano que um título, mas nos tornar um bom exemplo.
demonstrou realização em pelo menos
alguma prática e tem, por isso, uma Como um praticante se torna um lama?
qualificação muito maior em ensinar sobre
aquilo. Seu ensinamento é, portanto, Todos os praticantes no budismo praticam
considerado muito mais efetivo. para se tornarem Budas. Se eles atingem
algumas qualidades, e essas qualidades são
reconhecidas, eles algumas vezes recebem

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títulos — principalmente de seus próprios pouco melhor do que nós, alguém que pode
professores, que são quem está mais atento nos orientar, mas que não está próximo da
a se essas qualidades estão presentes ou perfeição, então temos um amigo
não. espiritual. E da mesma forma, até mesmo
um igual que saiba uma informação ou
É importante assinalar que praticar para outra que você não saiba, pode ser
obter o título é materialismo espiritual. chamado de "professor" em certas
Pratica-se para revelar as qualidades, e circunstâncias. Essa categorização não
atingir o estado de buda para benefício de existe formalmente na tradição budista,
todos os seres. Alguns grandes bodisatvas qualquer nome pode ser dado para
permanecem praticantes secretos, sem qualquer das categorias, mas podemos ter
título algum, sem reconhecimento algum, esses três tipos de conexão de aprendizado:
sem nenhum tipo de reconhecimento com alguém que realizou, com alguém que
público, ou mesmo fama mundana, por está no caminho há mais tempo e com
toda sua vida. Algumas vezes eles até alguém que é como nós mas que por acaso
mesmo escolhem renascer em situações chegou mais rápido na informação.
degradadas, para poder ensinar —
totalmente escondidos — em locais tais É claro que não é indicado tomar como lama
como prostíbulos, prisões e hospitais alguém que não recebeu respaldo público
psiquiátricos. da linhagem, mas embora isso não seja
indicado, isso é possível também. Mesmo as
Por outro lado, infelizmente, algumas das pessoas que recebem título de lama muitas
pessoas que se dizem lamas não tem vezes — 99% dos casos — não são fontes
nenhuma boa qualidade espiritual. Algumas totalmente confiáveis. São fontes, na
vezes elas são até desprovidas de boas maioria dos casos — não todos — bastante
qualidades mundanas. Por isso é bom confiáveis, suficientemente confiáveis. Mas
averiguar com cuidado antes de tomar a pessoa precisa, em todos os casos,
alguém como seu professor espiritual. verificar por si própria. Quando ela é capaz
de dizer "entre o Buda e essa pessoa, para
Um professor do darma pode dar mim não faz diferença" então ela encontrou
orientações para a prática particular de um lama.
cada aluno ou isso é reservado aos lamas?
O que a pessoa não pode fazer, em qualquer
Quem tomamos como guru/lama ou amigo caso, é ensinar sem receber autorização de
espiritual, ou quem pode nos ensinar o seus próprios professores. Isso é
darma, depende exclusivamente de nós particularmente verdadeiro dos
mesmos. Se vemos alguém como um Buda ensinamentos vajrayana, e bastante
ou quase Buda, ele é um lama/guru. Se o verdadeiro também com relação aos
vemos como alguém que é bastante ensinamentos mahayana e hinayana —
virtuoso, mas essencialmente apenas um

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embora possa haver mais flexibilidade nos Porém, em muitas tradições budistas, talvez
últimos. a maioria delas, existem grandes
professores que não são monges.
O que é um monge? As autoridades
budistas são monges? Muitas pessoas me perguntam,
especialmente quando estou vestido com
Estritamente falando, a palavra "monge" uma saia vermelha e um manto, se sou um
não existe no budismo. Ela é normalmente monge — e algumas vezes quando digo que
utilizada para indicar um Bhikshu, alguém não sou, elas ficam tristes porque não estão
que recebeu uma ordenação completa — falando com alguém importante no
isto é, tomou todo o conjunto de mais de budismo (mesmo que eu fosse monge eu
duzentos votos. Um noviço é alguém que não teria importância alguma!)
toma um conjunto consideravelmente
menor desses votos. Ao respeitar esses Porém é preciso dizer que no budismo
votos o monge se torna digno de respeito, tomamos refúgio no Buda, no Darma e na
mesmo que não possua grande Sanga. A sanga é a comunidade de
entendimento do darma ou realização praticantes. Estritamente falando, para
espiritual. Porém, como a dedicação dos algumas escolas, só os monges são a sanga
monges é exclusiva à prática do darma, é digna de refúgio. Mas isto não é assim em
bastante comum que eles possuam todas as escolas — em algumas a sanga
erudição e um tanto comum que eles digna de refúgio é a dos "nobres", aqueles
possuam alguma realização da prática que reconheceram a vacuidade, sendo eles
espiritual. monges ou não.

Estritamente falando, em algumas formas Monges budistas não fazem voto de


de budismo as únicas autoridades são os pobreza?
monges. Isso chega a se inverter ao ponto
de chamarem de monges qualquer Monges fazem voto de não trabalhar
autoridade espiritual, mesmo que ela não remuneradamente. Alguns conjuntos de
tenha feito ou sustente os votos — isto é votos impedem um monge de lidar com
algo comum no Japão, e talvez por isso a questões financeiras, ou mexer com
maioria das pessoas naturalmente assume dinheiro. Um monge tradicionalmente
autoridade no budismo através do mero precisa esmolar comida de casa em casa, e
ouvir a palavra "monge". Então é possível só pode ter sete objetos pessoais, tais como
algumas escolas ou pessoas falarem de suas roupas, uma tigela de esmolas etc.
"monges casados", o que é uma contradição
em termos. Mas nem só de monges vive o budismo. Ao
contrário do que normalmente as pessoas
pensam, o budismo não tem nada contra
prosperidade mundana, isto é, riqueza. O

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problema que o budismo vê é o apego: mas


renunciar ao objeto do apego é uma forma Os votos em geral são tomados para evitar
muito superficial de lidar com o apego. sofrimento. Então, em geral, não. Claro que
Quando você possui um carro muito caro, e pode haver um ou outro monge que não
ele é destruído por uma árvore que cai, e tenha clareza suficiente sobre o que está
por acaso você não fez seguro porque fazendo.
deixou para a semana que vem, e tem perda
total, e ainda assim não tem sua mente Para mim, por exemplo, o maior sofrimento
perturbada, então você tem certo é estudar. Estudar, assim, algo que alguém
desapego. Nesse caso você pode ter objetos me disse para estudar — não ficar
tais como carros caros e outros, e isso não diletantemente acumulando informação,
vai prejudicar sua prática. isso eu gosto. Então eu realmente não
compreendo alguém que tem prazer em
Nesse caso, os monges fazem votos para se estudar, naquele sentido institucional de
proteger de todas as formas possíveis, e estudar. Eu nunca tive prazer na escola ou
eles praticam de forma a não precisar se na faculdade — pode parecer exagero dizer
envolver com nenhuma questão "nunca", mas, me dando alternativa, eu
"complicada" que possa desviá-los da teria no mínimo algo melhor para fazer —
prática. Alguns praticantes são mais algo melhor para ler, até mesmo.
corajosos, e conseguem praticar em meio a
qualquer complicação. Outros, mesmo que Então, creio que você olha para os monges
não consigam praticar em qualquer como eu olho para os estudantes que
situação, ainda assim não conseguiriam estudam voluntariamente. O que falta na
manter os votos. Nesses casos, eles nossa visão é que eles integram o que eles
praticam o que conseguem. estão fazendo com o que eles esperam da
vida, com o que eles são ou querem ser.
Por que monges e monjas raspam a cabeça? Assim, o esforço na direção da virtude é
Essa é uma prática obrigatória? cheio de alegria, para alguém que vê a
virtude como uma alegria — sem nem
Para os monges, sim. Mas a frequência com tentar. Da mesma forma como alguém pode
que cortam o cabelo é mais ou menos ficar feliz por ter a oportunidade de estudar
rigorosa de acordo com a ordem monástica algo que lhe foi proposto estudar, porque a
e a forma de budismo. Da mesma forma pessoa quer completar seus estudos nesse
eles fazem o voto de vestir a roupa ou naquele assunto — ou seus estudos
monástica, especialmente em público. É básicos, para se considerar uma pessoa
para tornar o monge menos individualizado funcionalmente educada.
e menos atraente (sexualmente) aos outros.
Os monges que conheci, em geral, são
Os votos que os monges tomam não lhes cheios de contentamento. A vida do monge
provocam sofrimento? é cheia de facilidades — a dificuldade está

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na vida desprotegida das artificialidades da Santidade o Dalai Lama, que recomendou,


vida monástica. após 14 anos como monge, que ele deixasse
de ser monge. Ele é um homem casado hoje
Agora, embora o monasticismo seja a base — mas no caso dele, Sua Santidade disse
do budismo, ele não é a prática superior. que ele pode voltar a ser monge quando
Abaixo dos monges estão os leigos, devotos, quiser (se eles separarem, se a esposa
que sustentam a sanga — então em certo morrer). Ele falou com grande alegria do seu
sentido, são mais fundamentais — embora período de monge, e disse que foi muito
os monges é que mantém o estudo de difícil para ele seguir o conselho de Sua
forma tradicional. Acima dos monges estão Santidade (que ocorreu porque ele iria
os iogues, os que colocam o experimento estudar num contexto não monástico — e é
budista em máxima prioridade. Alguns difícil ser monge vivendo sozinho numa
podem ser monges, mas outros são pais de cidade grande, sem outros monges, e sem
família ou tem estilos de vida dos mais sanga para apoiar).
variados. Praticantes sem muita
disponibilidade, de tempo ou de abertura Só se pode ser budista sendo monge?
mental, são "leigos". Praticantes que
artificialmente produzem facilidades para a Claro que não. A grande maioria dos
prática são monges. E praticantes que budistas não é monge. E não só a pessoa
praticam com disponibilidade total e total pode ser budista sem ser monge, ela pode
abertura, em qualquer situação, são se iluminar sem nunca ter sido monge. A
chamados de "iogues", aqueles que são pessoa vai ser monge se, pelas inclinações
"ricos do que é natural", como diz a palavra dela, e seu nível de comprometimento, vai
tibetana normalmente traduzida como ser mais fácil — para ela, de acordo com
iogue ("naljorpa"). Eles não criam situações essas inclinações — praticar sem família,
artificiais para facilitar a prática, como o sem emprego, e assim por diante. Se a
monasticismo. Mas isso é para quem pode, pessoa consegue praticar em meio a essas
não para quem quer. coisas, ótimo. Se ela não consegue praticar,
e também não pode abandonar tudo e virar
De uma forma geral os votos servem para monge, então ela pode ao menos patrocinar
proteger a pessoa. Portanto, se ela quer o darma — isso também é de tremendo
manter o voto, ela lembra do que ela está benefício. Os monges vivem das doações de
se protegendo. Se ela acha que não vale a pessoas que trabalham e admiram o
pena, ela devolve os votos. Os votos budismo: sejam pessoas que conseguem
monásticos podem ser devolvidos a praticar bem, sejam pessoas que não
qualquer momento para o monge de quem conseguem praticar muito, mas que podem
a pessoa tomou aqueles votos. Em geral a oferecer algo.
pessoa depois não os toma de novo, mas
em alguns casos pode até tomar. Conheço Além disso a pessoa pode ser monge por um
um ex-monge que foi ordenado por Sua tempo, e deixar de ser monge. Em alguns

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casos, dependendo do professor e de como entrona-se a criança errada. Esse é um caso


foram devolvidos os votos monásticos, a muito desafortunado — e um sinal de que o
pessoa pode até voltar a ser monge mais samaya, o compromisso dos alunos com o
tarde. De toda forma, ao contrário dos professor, e vice-versa, está enfraquecido.
votos de refúgio, bodisatva e samaya, os Em outras palavras, que as coisas andam
votos monásticos são tomados por uma mal de forma geral.
vida apenas. Então se a pessoa vai continuar
sendo monge na próxima vida, ela precisa A tradição dos tulkus enfrenta muitas
retomar os votos. Caso ela não os retome, dificuldades no mundo moderno — e há
ela deixou de ser monge meramente por ter lamas que propõem até mesmo a extinção
morrido na vida passada. dela. Há um documentário chamado
"Tulku" onde vários tulkus são
Vejo que no Budismo, algumas pessoas às entrevistados. O documentário foi
vezes são reconhecidas como produzido por um tulku, Gesar Mukpo, que
renascimentos de lamas, rinpoches, escolheu não participar do treinamento
monges etc. Minha dúvida é de como é feito formal comumente aplicado aos tulkus.
essa identificação. Seria através de
intuição? Sonhos? O que são níveis de realização?

Cada caso é um caso. Algumas vezes os Por exemplo, quando você passa a ser capaz
lamas antes de morrer deixam cartas bem de um ato de compaixão que não era capaz
específicas, ou mesmo apontam os pais da antes, essa é uma realização espiritual.
criança. Outras vezes eles apontam um Quando descreve-se os Bhumis, ou estágios
lama que é responsável, e esse lama usa dos bodisatvas, usa-se critérios mais gerais
todos os métodos a seu dispor para para especificar que tipo de compaixão e
encontrar essa criança. Depois essa criança sabedoria alguém atingiu. Por exemplo,
é testada, e se ela se comporta como se alguém que venceu completamente as
espera que um lama se comporte — ou aflições mentais grosseiras — esse é um
apresente sinais claros, tais como o Dalai nível particular. Qual a diferença entre
Lama, que quando bem criança encontrou a grosseiro e sutil? Uma pessoa pode ainda
dentadura do XIII Dalai Lama e disse que ter uma latência de raiva, mas o corpo dela
eram seus dentes — ela é confirmada como não reage mais e nem mesmo os
sendo o renascimento de um grande lama. pensamentos se encadeiam em termos de
Esse tipo de coisa. uma mera latência. No nosso caso, quando
"apertam nossos botões", ficamos
Sonhos podem tomar parte nesse processo, vermelhos, trememos, e assim por diante. A
como métodos de adivinhação, e visões de raiva é uma emoção grosseira no nosso caso
outros tipos. Mas isso varia de lama para porque produz reações fisiológicas, produz
lama. Em alguns casos não se consegue ações de corpo e fala — produz ruminação
encontrar o lama, ou encontra-se e no nível da mente. Para uma pessoa que

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superou a raiva num nível grosseiro, existe


o reconhecimento de um impulso, mas ele Como um praticante sabe que atingiu a
não se traduz em nenhum tipo de reação, iluminação? Um mestre sabe quando seu
interna, externa ou mesmo mental, no nível aluno atinge a iluminação?
de ruminação. Podemos dizer que esse é
um nível de realização bem diferente de A iluminação inclui onisciência, então não
eliminar completamente a raiva, onde não há nada que alguém iluminado não saiba.
surge sequer o impulso, ou de agir de No caso de realizações inferiores, há um
acordo com a raiva. Só o fato da pessoa não controle de qualidade por parte da sanga e
agir, ainda que esteja vermelha e tremendo, do professor. As qualidades de uma pessoa
quando antes ela falava rudemente ou com alguma realização podem ser bem
estrangulava o objeto da raiva, já é uma evidentes, como por exemplo, constante
realização espiritual — mas como ela não é corajosa compaixão e atitude diante de
definitiva, ou até mesmo estável, é uma dificuldades. Mas existem também os
realização muito pequena. praticantes que escondem sua realização,
como parte de sua compaixão.
Li em algum lugar sobre "bodisatvas de 8º Considerando isso, podem haver seres
bhumi". O que é isso? Um Bodisatva não é realizados que até mesmo professores de
sempre um Bodisatva? Existem hierarquias, certa realização não reconheçam. Mas um
graus de evolução? professor experiente é capaz de inferir as
necessidades dos alunos, então ele é capaz
Há 10 bhumis progressivos, graus de de situar aquela prática. No caso da
capacidade, evolução, no caminho do meditação, existem muitas evidências,
bodisatva. Evidentemente, alguém com desde testemunhais até questões de
mais compaixão do que eu é uma melhor postura física e conduta na vida que estão
pessoa do que eu, e, da mesma forma, um ligadas à prática, e estas coisas podem ser
bodisatva com menos compaixão é menos indícios. No caso de alguém que não é
capaz do que um bodisatva com mais professor, não cabe ficar tentando avaliar a
compaixão. prática dos outros. O professor precisa
descobrir as necessidades do aluno, então
Em relação aos níveis dos bodisatvas alguma avaliação ocorre. Esta avaliação é a
(bhumis). Eles são de conhecimento mesma que ele usa com ele mesmo.
público? Isto é, sabe-se em que nível cada
praticante está, e se sim pode citar alguns Como regra geral, um professor que não
conhecidos? consiga inferir as necessidades de um aluno
particular, não deveria ser professor
Não, seria falta de respeito catalogar daquele aluno. Então algumas vezes, por
mestres de acordo com ranking, e isso não esse motivo e outros, um professor pode
é feito em local algum. Os bhumis são levar um aluno a outro professor,
mapas inspiradores apenas.

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simplesmente mais capaz, ou apenas mais "ele sabe que estou cobiçando a mulher
compatível. dele", ou algo assim. Depois, com o tempo,
a mente vai ficando mais e mais
Existe um trabalho de Paul Eckman sobre transparente. Com os conteúdos expostos
expressões faciais, sobre como elas são perante a onisciência dos Budas, tudo se
universais, portanto o sentimento de corrige naturalmente, por que é como uma
desprezo tem a mesma marca facial num grande confissão.
aborígene e num alemão, por exemplo. Esse
pesquisador também analisou a capacidade Sem esse tipo de honestidade consigo
de empatia, ou seja, o quão rápido e mesmo, a pessoa não consegue fazer nem
eficientemente percebemos a emoção dos mesmo a mais simples prática, porque o
outros a partir de expressões faciais. Sabe- autoengano é tal que ela não tem nem
se que praticantes de meditação, shamata, mesmo a capacidade de olhar
por exemplo, são mais eficazes e eficientes objetivamente para seus próprios
em reconhecer as expressões dos outros. conteúdos mentais. A maioria de nós chega
Dentro de contexto, essas expressões assim no budismo, e luta por anos para
revelam, por exemplo, mentiras. Ao longo conseguir essa linha-base epistêmica, esse
do tempo, no convívio com os alunos, um grau de integridade e honestidade para
professor, pelas expressões faciais, mas consigo mesmo, que permite avaliar
também por todo o mundo onde o aluno objetivamente "sim, isto funciona, devo
está inserido, reconhece o grau de prosseguir nessa prática" ou "não, tenho
autoengano e hipocrisia do aluno. Quando que perguntar algo a meu professor". A
um aluno torna-se relativamente honesto maioria de nós passa muito tempo numa
consigo mesmo e com os outros, consegue- espécie de show autoconsciente,
se uma linha-base epistêmica, onde o que é trabalhando enormemente apenas para
falado é naturalmente reconhecido como é. manter uma imagem. As vezes só trocar
Então quando um aluno fala de sua prática, duas palavras com um professor autêntico
o professor pode inferir o que dizer, o que faz ruir milhares de autoarmadilhas.
recomendar. E não só isso, pode inferir o
quanto da prática, até agora, foi Quando um praticante sabe que atingiu a
efetivamente integrado. iluminação? Como saberei que estou livre
do samsara? Será que o simples fato de
Evidentemente, quando convivemos com reconhecer a vacuidade, de forma empírica,
certos professores, é corriqueiro parecer isso em si mesmo, já seria a iluminação?
que eles leem nossos pensamentos. Se isso
tem explicação no que eu disse acima, ou é A iluminação é exatamente o poder de
ainda mais do que isso, não sei. Mas na autorreconhecimento da iluminação — em
minha experiência pessoal é muito comum. outras palavras, a única diferença entre
Nos primeiros dias na presença de um seres sencientes comuns como nós e os
mestre assim, a pessoa pode ficar nervosa budas é que eles reconheceram sua

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verdadeira natureza, e nós vivemos no Os Budas só existem no tempo de acordo


autoengano das aflições mentais, em com o nosso próprio mérito. Os praticantes
particular a crença e apego a um eu. do budismo vajrayana precisam ver seus
professores como Budas, portanto para os
Estar livre do samsara é bastante anterior à praticantes do vajrayana com compromisso
iluminação. Iluminação é estar livre de puro com a prática, há pelo menos um, e na
samsara e nirvana. Para se encontrar livre maior parte dos casos, vários Budas — com
do samsara basta não possuir aflições que eles tem relação direta. Esse é o raro
mentais, ou qualquer das forças latentes mérito de um praticante desse tipo de
que produziriam aflições. Em geral há um budismo. Outras formas de budismo se
reconhecimento quando isso ocorre, e este focam no grande mérito que é pelo menos
é o estado de arhat, não iluminação. reconhecer um Buda 2600 anos atrás. Já é
bastante raro alguém reconhecer um Buda
Reconhecer a vacuidade não é suficiente pelo menos na história. Todos os
para a iluminação, ele é o começo da prática praticantes budistas precisam reconhecer
no caminho da visão (entre cinco caminhos, pelo menos um Buda acessível, nem que
é o terceiro). Além disso, um mero instante seja pela história, mas a maioria dos
de reconhecimento não é suficiente, é praticantes budistas reconhece mais Budas
necessário cultivá-lo através da prática. e Budas mais acessíveis. Do lado deles, os
Ademais, Sua Santidade o Dalai Lama diz Budas não estão nem no passado, nem no
que ele apenas possui um pequeno presente, nem no futuro. Uma pessoa com
conhecimento intelectual com relação a grande mérito, tem o Buda na palma da
vacuidade, então devemos duvidar, e mão. Uma pessoa de mérito intermediário,
verificar com nosso professor, quando tem o Buda na história. E a grande maioria
estamos acreditando possuir uma de pessoas de pouco mérito só tem a
realização maior do que a que o Dalai Lama palavra "Buda" para se referir a uma pessoa
diz ele mesmo ter. histórica — e há as que nem isso tem.

Há algum buda vivo atualmente? Alguém Um lama pode ser considerado um


hoje possui realização no mesmo nível do bodisatva?
Buda?
Se a palavra lama for interpretada como
Isso só depende do mérito de quem olha. O "compaixão superior", sim. Assim todos os
Buda só existe na visão pura dos seres lamas que fazem jus ao título seriam
afortunados, para si mesmo ele não tem bodisatvas. É claro que os alunos, de toda
modo de existência. No treinamento do forma, não devem vê-lo apenas como um
vajrayana consideramos nosso professor bodisatva, mas como um Buda.
como o Buda.
No Budismo existe alguma autoridade
espiritual, instituição ou pessoa, como a

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Igreja e o Papa são no Catolicismo, que iluminados. Se não houver um Buda


supostamente tem autoridade para ensinando, não há ensinamento do
assentar quem tem razão quando surgem vajrayana. No mahayana os Budas são um
controvérsias na interpretação da doutrina? pouco mais raros, mas pode haver um ou
outro hoje em dia. No hinayana a última
A autoridade espiritual sobre nossa prática pessoa completamente iluminada foi o
é o nosso professor. Portanto não há Buda histórico, 2600 anos atrás. De lá para
autoridade central. cá muitos, segundo o hinayana, atingiram o
estado de arhat.
Convém argumentar e tentar refutar,
educadamente, algo que consideramos O que é um bodisatva?
errado que nosso professor venha a dizer.
Podemos fazer isso em privado, porque é É alguém no caminho para se tornar um
mais educado. Os bons lamas respeitam Buda, alguém que desenvolveu bodicita e é
muito esse tipo de feedback. capaz de ao menos oferecer o próprio corpo
como alimento para um ser faminto.
Um ser iluminado, ou mestre, jamais dirá
que atingiu a iluminação? Ele pode chegar e Alguém pode ser um bodisatva sem
dizer para alguém: sei disso, pois já sou ninguém saber disso, nem a própria pessoa?
iluminado?
Num sentido último, nós todos somos
É raríssimo, mas acontece, de um mestre se Budas, só não reconhecemos isto. A prática
autoproclamar — e ser levado a sério. não visa nos transformar em Budas, mas
reconhecer que sempre fomos Budas.
Agora, esse tipo de diálogo que você
imagina é absurdo. "Você precisa acreditar E, também, a prática do bodisatva não está
porque eu sou iluminado", isto não existe. vinculada ao nome "bodisatva". Então ela
Muito mais eficiente é dizer algo como pode saber que é algo diferente, sem usar o
"você mesmo no fundo sabe disso, porque nome bodisatva.
tem natureza de buda". Os bons
professores ensinam eminentemente pelo Existem sinais corporais indicativos de um
exemplo — se usassem retórica, RP e bodisatva?
publicidade (e não usam) pelo menos não
seriam tontos. Pode haver, mas eles estarem presentes e
as pessoas serem capazes de reconhecê-los
Existe, hoje, alguma pessoa que atingiu a depende de causas e condições coletivas e
iluminação e está dando ensinamentos? individuais.

No vajrayana vemos nossos próprios As marcas de um Buda, por exemplo, tem


professores, todos eles, como Budas uma dimensão real e uma dimensão

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metafórica. Mas duas coisas que são alguns casos essa noção de tempo não faz
afirmadas sobre essas marcas são: 1) um muito sentido. Isto é, um Buda "no futuro"
Chakavartim (um monarca universal) as é visto como sempre um Buda.
possui também, e ele não é um Buda; 2)
aquele que se prostra ao Buda pelas suas O problema dessas explicações é nosso
marcas não entende o ensinamento do apego por visões históricas. Nenhum sutra
Buda. hoje em dia pode na verdade exigir
qualquer dimensão de historicidade. As
No Surangama Sutra há uma longa fontes mais antigas do páli são do ano mil, e
discussão sobre porque Ananda resolveu do mahayana, do ano 200. Ou seja: pela
seguir o Buda em primeiro lugar, e ele diz história não vai se encontrar muito
algo como "ele exalava virtude pela postura budismo.
(e demais marcas)", e o Buda se dedica,
órgão do sentido por órgão do sentido, a Passado, presente e futuro são só
desatar as concepções arbitrárias e fixações elementos da ignorância, não tem realidade
embasadas na reificação da existência efetiva.
inerente do próprio Buda e de cada uma de
suas características aparentes. Existe alguma diferença no traje e na cor
dos monges budistas, em relação a
Minha dúvida é quanto a origem histórica hierarquia, Dalai Lama, lama, monge?
dos bodisatvas que são mencionados nos
Sutras, como, por exemplo: Kannon, Não. Em geral os mantos se referem a
Kanzeon, Manjushri etc. Como eles tradição do praticante. A hierarquia
surgiram dentro do budismo, em que também não tem muito a ver com os títulos
contexto e o motivo de eles serem que você usou. Lama é um título hierárquico
mencionados nos Sutras como seres de sim, mas monge não é. É um título referente
grande realização, enquanto muitas vezes a uma ordenação, e não indica posição
Buda Sakyamuni nem aparece em certos hierárquica, embora, de uma forma geral, o
sutras? respeito pela sanga ordenada seja parte do
voto de refúgio. Entre os monges há
Normalmente eles são mencionados em hierarquia, que depende do número de
conjunto com Sakyamuni, ou outros Budas. votos tomados, então noviço,
Normalmente bodisatvas são alunos completamente ordenado, e assim por
próximos de Budas. Alguns dos sutras em diante. A pessoa não precisa fazer nada
que eles constam vêm das lembranças e especial para se ordenar com mais votos, só
experiências meditativas dos redatores, permanecer na ordem tempo suficiente.
embora alguns sutras digam ter mesmo
origem "miraculosa". No mahayana há o Há complicadores, no entanto, no Japão, no
voto de tratar bodisatvas como Budas, zen japonês, algumas vezes se usa a palavra
porque eles serão Budas no futuro — e em

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monge para designar professor ou vezes são casados. Mantos laranjas são
sacerdote, implicando aí hierarquia. usados por monges em várias tradições,
principalmente no theravada, no sul da ásia,
Já Dalai Lama é o nome de uma linhagem de mas também pelos tibetanos e outras
renascimentos, que está ligada ao governo tradições. No zen se usa mantos pretos, e,
tibetano (hoje no exílio). Embora Sua algumas vezes, cinzas.
Santidade seja um lama altamente
realizado, ele não é considerado o lama O Dalai Lama usa o mesmo manto que
mais realizado dentro de sua escola ou de qualquer monge completamente ordenado
outras. Ele é um lama realizado que por na tradição gelugpa utiliza. Milarepa muitas
acaso é famoso e detém (ou deteve) uma vezes praticava nu.
posição política elevada.
O manto monástico, que o Buda próprio
Varia também de professor para professor a usava, e que é o que todos estes mantos
política quanto ao uso de roupas — algumas representam, era feito de tecidos
sangas evitam completamente o uso de degradados: fraldas, tecidos usados para
roupas exóticas no ocidente, como a sanga conter a menstruação, mortalhas. Eles eram
do Trungpa Rinpoche. Eles apenas tem a cuidadosamente lavados, cortados em
obrigação de se vestirem bem, muitas vezes quadrados e costurados, sendo tingidos
de terno e gravata. Outras permitem a com açafrão: daí a cor laranja. O vermelho
qualquer um comprar qualquer manto e surgiu com corantes mais acessíveis que o
utilizá-lo. No zen há algumas etapas até a açafrão.
pessoa obter um manto completo — que a
pessoa mesma costura. Percebo em alguns praticantes antigos uma
certa cultura da humildade, em que negam
No budismo tibetano os mantos vermelhos suas realizações. Sogyal Rinponche disse
são usados por monges. Alguns leigos os que é importante falar sobre elas, sem se
utilizam quando tomam votos temporários, exaltar, para encorajar e até orientar outros
ou durante as cerimônias. A saia e a camisa praticantes. Você concorda com isso?
são em geral diferentes para os monges,
padronizadas de acordo com o mosteiro. Sim, existe muita humildade fabricada no
Leigos que usam mantos usam uma budismo, em particular no budismo
camiseta sem estampa, de qualquer cor, e a tibetano. A pessoa essencialmente precisa
tchuba (saia) de qualquer cor. Mantos ser honesta. Depois, ela precisa manter suas
brancos são considerados elevados, para realizações em segredo até que estejam
grandes iogues, que vivem em cavernas bastante estáveis. Então, misturando esses
inóspitas, e muitas vezes não são monges. três aspectos, um ruim e dois corretos,
Mantos com as três listras (vermelha, temos no budismo, sem dúvida, os
branca, e pequenas azuis) são para iogues exemplos mais dramáticos de humildade.
de certas tradições nyingma e kagyu, que às

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Quando for benéfico para os outros, é claro Além dessas credenciais, Sua Santidade é
que deve-se falar diretamente sobre as um exemplo consumado da humildade e
próprias qualidades. Melhor ainda do que calor humano — tendo sido reconhecido
isso é louvar um pouco as próprias dessa forma pela maioria da elite intelectual
qualidades, e, então, projetar os gurus para mundial que entrou em contato com ele.
a estratosfera, de uma maneira quase Além disso, ele é talvez, nesse momento no
inimaginável. Isso Sogyal Rinpoche faz como mundo, o maior porta-voz do diálogo inter-
ninguém. Ele chegou a dizer que não tem, religioso, tanto entre as diferentes religiões,
ele mesmo, muitas qualidades, mas que como entre as religiões e as outras áreas, e
porque recebeu as bênçãos de tantos mesmo dentre as diversas formas de
grandes lamas, ele até consegue entender budismo.
que haja algum benefício em meramente
estar presente no mesmo recinto com ele. O Dalai Lama já encontrou a iluminação?

Chagdud Rinpoche disse que sua própria Sua Santidade diz ele mesmo que ainda tem
capacidade de benefício era como a luz de apenas um parco entendimento
um vagalume, em comparação com a meramente intelectual da vacuidade. Sem
capacidade de benefício de Dzongsar uma realização direta da vacuidade, a
Jamyang Khyentse Rinpoche. Quando iluminação não é possível. Por outro lado
Khyentse Rinpoche então sentou em um aqueles que tem fé, entre eles eu, olhamos
trono uns 20cm mais alto do que Chagdud para Sua Santidade como não diferente de
Rinpoche, ele disse "esses grandes lamas um Buda, assim como olhamos para nossos
mais velhos, eles nos colocam nesses tronos próprios professores da mesma forma.
altos para que todos vejam como estamos
nervosos. É um teste." Se o Dalai Lama é a emanação do buda
Avalokiteshvara, então ele já não seria
O que há de especial no Dalai Lama? iluminado?

Sua Santidade o Dalai Lama é uma Avalokiteshvara é tido tanto como um Buda
emanação de Avalokiteshvara, e também é quanto como um Bodisatva, isso só
um dos mais populares e conhecidos depende da prática. Os Budas e os
professores do budismo. Sem falar que é Bodisatvas surgem de acordo com as
alguém que possui erudição inigualável, necessidades dos seres, e não pelo "seu
tendo conquistado o título de Geshe próprio lado". Portanto as características
Lharampa aos 18 anos, debatendo com que reconhecemos nos Budas são
mais de 50 dos maiores professores inseparáveis das nossas próprias
tibetanos, também sendo o líder político características. Por isso treinamos em
dos tibetanos no exílio. reconhecer nosso lama como um Buda.

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Além disso, em particular no vajrayana, ele olhava diretamente para a câmera.


temos um voto de ver os bodisatvas como Nunca esqueci essa cena, isso me tocou
Budas. Mas isso não quer dizer que eles profundamente e aumentou minha vontade
sejam — a não ser no sentido último, que é de praticar. Por quê?
o único que não é em algum sentido falso.
Mas nesse sentido, até os seres comuns, Em geral faz parte da aspiração dos
que não são bodisatvas, são Budas também praticantes inspirar quem quer que os veja,
— então a utilidade dessas afirmações é ouça, toque ou meramente lembre deles.
somente para a mente iluminada. Para Eventualmente essa aspiração frutifica, nos
nossa mente, há afirmações relativas, que seres que possuem mérito para serem
fazem sentido para nós e que provém um inspirados dessa forma.
caminho compreensível.
Qual a diferença entre a realização do Buda
Quem é Avalokiteshvara? Sakyamuni e a realização de Bodidarma,
Tsongkhapa, Dogen, Virupa,
Avalokiteshvara, ou Chenrezig, é o Padmasambava ou Milarepa?
bodisatva/buda geralmente associado à
prática da compaixão e ao mantra OM Nenhuma. Embora o tipo de benefício e as
MANI PADME HUNG. Sua posição mais pessoas particulares a quem eles
famosa e proeminente é no Sutra do beneficiam possam ser diferentes. A
Coração, onde é ele que responde a circunstância de sua iluminação, em termos
pergunta de Shariputra sobre como praticar de benefício para os outros, é diferente. Por
o budismo. exemplo, todos eles seguiram os
ensinamentos do Buda Sakyamuni, que
O Dalai Lama é então uma emanação, um ensinou numa época e lugar onde os
renascimento lúcido para o cumprimento ensinamentos não estavam disponíveis.
de uma função? Essa é a diferença. A iluminação em si é a
mesma.
Não necessariamente para o 2.3. Compromisso
"cumprimento", mas devido ao mérito e Se Sidarta descobriu sozinho o método que
necessidade de seres a serem domados, isto leva a liberação, então, na verdade não há
é, treinados no darma ou pelo menos necessidade de ser budista, basta seguir o
direcionados para a virtude. Apenas pensar método, não é mesmo? Se não fosse assim,
em Sua Santidade é benéfico. Estar no o budismo seria fechado, somente a sanga
mesmo recinto com ele muitas vezes atingiria a liberação. É possível praticar
transforma completa e positivamente a vida sozinho?
das pessoas.
Não é assim. Não é possível praticar
Nunca vi o Dalai Lama pessoalmente. sozinho.
Porém, assisti a um video e em certa parte

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O próprio Buda Sakyamuni contou que ao Há o darma. Os objetos de refúgio no


longo de suas 500 vidas ele serviu a mahayana e no hinayana são o Buda, o
incontáveis outros Budas, e recebeu Darma e a Sanga. No vajrayana a esses três
ensinamentos de milhares de professores. objetos são adicionados o lama, o yidam e a
Ele começou o caminho que culminou na dakini, que são expressões vajrayana
500a vida como Buda com um voto tomado daquelas três joias, em particular da própria
diante de Buda Dipamkara. Na sua 500a sanga, como os bodisatvas e arhats. A sanga
vida de praticante, ele fundou a sanga e deu que é refúgio infalível é a que obteve
ensinamentos a milhares de alunos por 42 reconhecimento da vacuidade, ao menos
anos. Não existe diferença entre seguir o do eu — portanto bodisatvas de ao menos
método e ser budista, e o método inclui, 8º nível e arhats. Bodisatvas de níveis
desde as formas mais simples de budismo inferiores são também sanga, mas não
até as mais elaboradas, o refúgio na sanga podem ser tomados como refúgio infalível.
(e no Buda e no Darma).

Qualquer um pode participar da sanga,


portanto não faz nenhum sentido falar em É necessário acreditar em reencarnação
budismo fechado. Se o que você quer é para praticar o budismo? Eu procuro no
praticar qualquer coisa e se autointitular budismo uma filosofia, um novo olhar para
budista, não há nenhuma lei contra isso — a vida, uma forma de melhorar a minha vida
pessoas como eu ficamos tristes com o e das outras pessoas, não um monte de
autoengano dos outros, mas é tudo o que ideias meio "loucas" para aceitar ou não.
podemos fazer. Agora, se você quer o
resultado do caminho budista, e não apenas Acreditar, não precisa. Você só não pode
aplicar o rótulo "praticante" a si mesmo, acreditar no oposto, que é que a
você precisa se relacionar pessoalmente reencarnação não existe. Mas, sem a noção
com budistas, e bons praticantes, e, em de renascimento, sua perspectiva de
particular, mestres. Bodidarma dizia que sofrimento fica muito limitada a uma vida, e
uma em um milhão de pessoas não da mesma forma, sua prática budista se
precisam de um professor para avançar no limita a esse parco entendimento da
caminho, mas, sinceramente, isso é muito insatisfatoriedade, então é possível, mas
otimismo da parte de Bodidarma. E mesmo não vai muito longe.
Bodidarma concordaria que esse um milhão
de avos já tiveram, como o Buda, muitos Sem uma perspectiva transcendente, não
professores em vidas passadas. há prática espiritual. O budismo pode
ajudar nas causas temporárias das pessoas,
Além dos Budas e Bodisatvas, há outros mas esse não é o ponto central da prática.
objetos de refúgio possíveis? Então talvez seja melhor procurar algum
tipo de terapia, por exemplo, massagem. A
pessoa pode receber massagem e fazer

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massagem nos outros, e isso vai "ser" budista? Continuar vivendo, em


efetivamente melhorar a sua vida e a vida alguns aspectos, fora da doutrina?
dos outros. O budismo vai requerer que a
pessoa abandone a crença na realidade que Sim, o resultado que a pessoa obterá não
ela vê como sendo sólida, sendo ESSA a será a iluminação, mas ela pode melhorar
forma de autobenefício e de beneficiar os de vida e gerar uma conexão para que numa
outros. vida futura pratique efetivamente. Da
mesma forma, mesmo os animais que
Tenho dificuldade de acreditar que, por ouvem os sons da prática se conectarão
exemplo, Padmasambava nasceu de uma eventualmente.
flor de lótus.
Sua Santidade o Dalai Lama muitas vezes diz
Dilgo Khyentse Rinpoche diz que, se a que o mais importante não é se filiar a algo,
pessoa não tem mérito para entender a mas desenvolver um bom coração, treinar a
natureza onírica desta realidade, mente para isto. Independentemente da
Padmasambava manifesta um pai e uma pessoa seguir ou não uma religião, ou em
mãe para não excluir essa pessoa que é uma particular o budismo, isso é o mais
fundamentalista do senso comum. importante. Porém, para aqueles que
reconhecem os objetivos do caminho
Por outro lado, enquanto você tem essa budista e anseiam por eles, apenas o
dificuldade, você pode entender isso num caminho budista pode levar a eles.
sentido metafórico ou poético, que diz
respeito a um nascimento livre de carma. O budismo observa ser possível alguém
Essa compreensão é útil e verdadeira estar no darma com sinceridade, sem
mesmo que você venha a acreditar na propriamente fazer parte de qualquer
versão mais literal. seita/religião/filosofia específica? Tem algo
a dizer sobre alguém querer seguir o
Preciso acreditar na realidade de outros coração sem ter acesso a muitos conceitos?
reinos para praticar o budismo?
O que importa é ter um professor, sem ele,
Não, mas é preciso ter a mesma dúvida com não há darma. Esse professor precisa vir de
relação a existência do reino humano. Se uma linhagem de professores que começa
você é capaz de ver tudo como um sonho, com o Buda, senão não é budismo. Esse
não muito real, então esse é o máximo de professor é que vai garantir que nossa visão
"realidade" em que você precisa acreditar de Buda, Darma e Sanga, as três joias, cujo
para qualquer outra "dimensão" possível. refúgio nelas é o que define um budista, é
correta e está de acordo com a realidade.
É possível praticar a meditação, estudar e
viver alguns dos princípios budistas e não Agora, tendo esses pré-requisitos, a pessoa
pode manter qualquer aparência que seja

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benéfica perante os outros. Em outras que não são chamados de lamas. A pessoa
palavras, ela pode ser um praticante pode, para certas coisas, confiar em alunos
secreto, sem ninguém saber dessa conexão mais antigos também. Mas ela precisa
dela com a linhagem. tomar contato com um grande professor, e
depois, segundo a orientação desse grande
Agora, segundo os critérios do IBGE, se a professor, ela pode pedir pormenores e
pessoa se pensa budista, ela é budista. coisas específicas de professores pequenos
Então se a pessoa não vai seguir um critério autorizados por esse grande professor, ou
budista para se dizer budista, esse é tão pelo menos que ela seja autorizada por esse
bom quanto qualquer outro. Se, por outro grande professor a procurar (ou seja, a
lado, ela vai seguir um critério budista, já autorização tem que vir de um lado ou de
por aí ela está identificada com a tradição, e outro: ou a pessoa é autorizada a ouvir
nesse caso não há saída senão alguém, ou ela ouve alguém que é
comprometer-se com o refúgio nas três autorizado).
joias.
Em outras palavras ela precisa de um lastro
Se a pessoa não quer se comprometer com de linhagem, um professor cujas qualidades
um caminho, ela pode ainda assim obter ela quer obter, e a partir do qual ela
certo benefício de estar em contato com os descobre que outros professores ela pode
ensinamentos e o ambiente budista. ouvir. É bom pedir a seu professor mesmo
Ninguém impede as pessoas de fazerem o para ouvir professores reconhecidos, ao
contato que conseguirem. Mesmo os fazer esse pedido, você conecta com as
animais que ouvem o som da concha ou de bênçãos da linhagem. Mesmo livros é bom
outro instrumento que usamos se pedir autorização para ler. Se não for
beneficiam e criam uma interdependência possível ver detalhe a detalhe, pelo menos
que eventualmente permitirá que a pessoa precisa receber uma instrução
pratiquem o darma de forma coerente e clara sobre que forma de prática seguir, o
comprometida. que ouvir, de quem, o que ler etc. (mesmo
que de forma bem geral).
O que é um "professor" no budismo?
Precisa ser um Lama? Ou uma pessoa que Porque ter mestres?
tem contato com o Lama já serve?
Essa é uma pergunta recorrente entre
É uma pessoa autorizada pela linhagem a pessoas que tomam os primeiros contatos
dar ensinamentos. Lamas são professores com o darma e possuem uma inclinação
do budismo tibetano, outras formas de forte de livre-pensadores.
budismo tem outros títulos, por isso é mais
seguro usar a palavra neutra "professor", Segundo os ensinamentos do Buda, em que
embora no budismo tibetano também existe o princípio de que a iluminação é
algumas vezes haja professores autorizados nosso objetivo prioritário, para atingir a

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iluminação que o próprio Buda atingiu, mahayana leva-se incontáveis vidas de


precisamos tomar refúgio no Buda, no prática servindo a centenas de mestres a
Darma e na Sanga. Não só no Buda, não só cada vida, como o próprio Buda relatou ter
no Darma e não só na Sanga. Essas são as feito antes de sua vida como príncipe
três joias. Sidarta.

Existem alguns seres que de fato não Enfim, o nível vajrayana não existe se não
precisam de mestres no seu caminho. encontramos um Buda face a face. É esse
Porém como eles estão muito próximos de método que possibilita a iluminação nesta
se iluminar, tem muito mérito, e tudo que mesma vida ou em no máximo 17 vidas.
fazem é dar exemplo para os seres com
menos mérito, eles manifestam uma grande A pressa para nos iluminarmos não é uma
linhagem de professores para benefício dos questão de materialismo espiritual, já que
seres que de fato precisam de mestres e nos iluminamos para trazer benefício aos
tenderão a seguir seu exemplo. outros, e não para benefício próprio.

No nível do hinayana, o único mestre é o Algumas vezes surge esta noção de que
Buda. Mas sem refúgio no Buda, não é todos são professores. De fato, é possível
possível atingir iluminação. No hinayana, aprender com tudo e com todos. Porém,
que é o veículo estreito, ainda existe uma isso ocorre apenas para seres de grande
forte motivação egóica, daí confia-se muito mérito. Para a maioria das pessoas como
no próprio esforço. Também nos amigos eu, com muito pouco mérito, a maioria das
espirituais (a sanga), isto é, os monges que coisas é apenas distração com a qual me
sustentam os ensinamentos. envolvo por apego ou aversão, e eu
raramente aprendo qualquer coisa que vá
No nível do mahayana temos os "amigos me ajudar no que realmente importa, que é
espirituais", que são a sanga engajada nos a iluminação.
mesmo propósito (de trazer benefícios
temporários e definitivos a todos os seres). Nas doutrinas new age parece que surge
Porém a função dos amigos espirituais não essa ideia de que aprendizados são muito
é tanto aconselhar (admoestar, encorajar) e comuns, mas essa vida de autorreferência,
sim prover exemplo — e não são apenas os onde tudo representa algum crescimento,
monges, mas também os leigos. Aqui não é a visão do darma. O darma é um tanto
novamente temos o Buda como mestre, e mais realista. A maior parte do tempo a
uma pletora de bodisatvas — mestres maior parte dos seres está perdendo
históricos e também o que chamamos de tempo, não aprendendo. Não existe
deidades, que são mestres. No mahayana, evolução numa doutrina que ensina a roda
como a motivação idealmente vai além do da vida — e a maioria das pessoas acha que
ego, confia-se muito mais na bênção dos tudo está indo, de uma forma e de outra,
budas do que no esforço próprio. No com atalhos ou não, numa direção mais

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positiva. Para o budismo não. A maioria dos algo raro, fácil de perder e difícil de
seres apenas erra, anda em círculos. encontrar. Um antibiótico para uma doença
muito grave, que não podemos
Assim, é necessário muito mérito para interromper, não podemos tomar na hora
aprender mesmo uma única palavra do errada, e para o qual precisamos uma
darma, que é o que nos coloca numa receita precisa. Portanto, se para nossa
direção positiva, quanto mais para saúde automedicação é temeroso, e um
reconhecer darma em tudo e qualquer erro no remédio só pode arruinar no
coisa. máximo uma única vida, quão mais
cuidadosos em não nos automedicar e
De fato, existe um fundo de verdade em encontrar um bom médico para a condição
dizer que tudo nos aponta o darma, já que que nos aflige há infindáveis vidas, e cujos
é verdade que o darma está em todas as erros podem nos afetar por muitas vidas
coisas. futuras, deveríamos ser?

Porém, o que falta muitas vezes falta é É certo que nos sentimos mais próximos de
perceber que é muito raro que uns que de outros, mas não é por isso que
reconheçamos isto operando. não interagimos com o resto.

Nesse sentido, encontrar um único mestre De fato com o darma precisamos vencer
representa um mérito incomensurável. Boa exatamente os vedanas, essa tendência a
parte da prática diária da maioria dos preferirmos uns aos outros. Não nos
praticantes vajrayana consiste em rezar sentimos exatamente "próximos" do
para que, caso morram antes de atingir mestre. Nós nos sentimos próximos de
alguma realização qualquer, venham a pessoas que nos agradam. O mestre nem
encontrar o darma numa vida futura. sempre nos agrada.
Particularmente encontrar o lama, que é a
forma humana e viva do darma, numa vida De fato o mestre é aquele que nos faz
futura. E não só encontrar, mas reconhecer. reconhecer a igualdade entre todos os
Não vou exagerar em dizer que 80-90% da seres. Porém essa igualdade não é bater
prática budista é gerar mérito e tudo num liquidificador e separar de novo
condicionamentos positivos para que, caso em porções iguais da mesma gororoba. É
o resultado final não seja atingido, nosso tratar cada um como é melhor para todos.
fluxo mental olhe para algum símbolo do
darma e algum professor fidedigno e No caso, se tudo é igual do jeito do
"relembre" — "hm, aí tem alguma coisa que liquidificador, poderíamos ir a um hospício
eu preciso examinar". e pedir a um paciente para que faça nossa
neurocirurgia. Porém, não é essa igualdade
Na prática, para iniciantes como nós, a de que o darma fala. A igualdade do darma
atitude correta é reconhecer o darma como é, pelo contrário, tratar o paciente mental

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do jeito que é melhor, e tratar o Segundo o budismo, o sofrimento surge


neurocirurgião do jeito que é melhor: e não devido à fixação a nossa identidade, e à
tratar os dois da mesma forma. crença equivocada (que não corresponde a
realidade) de que nossa identidade provê
É mesmo preciso ter um mestre específico segurança e felicidade.
ou podemos só estar atentos?
Se vamos ser capazes de aprender algo, isso
O mestre absoluto é a natureza de nossa vai depender de nosso mérito. Portanto é
mente. Um Buda é alguém que reconhece essencial gerar mérito para encontrar o
incessantemente a natureza da mente, e médico, conseguir uma consulta, pegar uma
assim toma todos os fenômenos como receita, fazer o tratamento e ficar saudável
professores. dessa fixação ao eu e da visão equivocada
quanto aos fenômenos — acreditando que
Seres como eu, no entanto, que cometem eles são o que não são.
erros e assistem ao Late Show do David
Letterman, e que, com relação à natureza Quando se diz que o professor "abençoa",
da mente, não a reconhecem melhor do que isto é como passar uma "força" do professor
o porco que produz o bacon que comem, ao aluno? Ou é só uma tradição simbólica?
precisam de professores mais grosseiros do
que arco-íris, formigas, a zeladora ou o O professor abençoa através de mudra,
trânsito. Eu, ainda pelo menos, preciso de mantra e samadhi — corpo, fala e mente.
um sujeito ou sujeita que saiba falar, Em particular, o samadhi reconhece a
conheça bem o darma, tenha experiência na vacuidade luminosa do objeto abençoado.
prática e seja compassivo. Meramente estar na presença da postura,
fala e mente de uma pessoa que opera
Mas se, por acaso, alguém tiver muito mais assim é a benção, porque isso desperta a
mérito e sabedoria do que eu, sem atualização do mesmo potencial em nós.
problema. Mas acontece algumas vezes que Mas, algumas vezes, para a bênção operar,
alguém tenha ainda menos mérito e precisamos de um contato mais elaborado,
sabedoria do que eu e o bacon. Portanto, é numa cerimônia, ou intenso e inesperado,
preciso deixar bem claro qual é o como quando Naropa levou uma sapatada
ensinamento indicado para a maioria dos de seu Guru — ou simplesmente mais
seres segundo o budismo, deixando pessoal. Isso vai depender da capacidade de
simultaneamente claro quais são as prática do guru e de seu mérito. Apenas
concepções errôneas comuns da lembrar do guru já beneficia, traz bênçãos
espiritualidade de banca de revistas. da prática dele, da realização dele, de forma
muito intensa.
...
Um exemplo fácil de entender. Numa
ocasião perdi algum dinheiro na rua. Não

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era muito, mas era tudo que eu tinha para Algumas sangas são maiores, outras bem
comer no dia seguinte. Minha primeira pequenas. Algumas pessoas são bem
reação foi extrema raiva, aquela raiva de próximas do lama, outras só encontram o
gritar alto — raiva comigo mesmo, com lama uma vez por ano, ou algo assim. Isso
minha distração. Porém, eu tive o mérito de não significa necessariamente que umas
ter algumas fotos de lamas na parede, e no avançarão mais rápido ou menos rápido
meio do meu acesso solitário de fúria, que as outras, isso depende do
estavam ali aqueles Budas olhando para compromisso pessoal de cada um, isto é, da
mim. Então imediatamente me acalmei e ri aplicação efetiva por parte dessa pessoa,
de mim mesmo. Esses seres praticaram desses ensinamentos que ela recebeu.
muito para ter essa influência, para
despertar essa interdependência. E agora Da mesma forma, algumas pessoas de fato
nós temos o mérito de reconhecer e largam tudo e "grudam" no professor o
usufruir dessa interdependência. Isso é tempo todo. Se a pessoa tiver o mérito, isso
extraordinário, e muitas vezes vai além do é muito bom. Ter o mérito significa
que nós somos capazes de reconhecer ou conseguir lidar com todos os obstáculos que
compreender — por isso parece mágico. porventura surgirem e não se tornar um
Mas é apenas a operação do que é mais peso para o professor e para a sanga. Mas
natural, a interdependência. essa atitude não é necessária, nem é
possível, para todos. A pessoa vai sondando
Eu preciso estar próximo do meu professor? um grau de proximidade que esteja de
acordo com sua capacidade e necessidade,
Isso depende muito do seu carma. Mas e então vai ajustando o que for necessário.
algum contato pessoal é preciso, isto é, ele
e você precisam se encontrar pessoalmente Uma vez tendo estudado e praticado com
— pode ser uma entrevista rápida em meio um professor deve sempre continuar com
a um retiro de alguns dias — algumas vezes ele?
por ano, ou uma vez a cada dois anos... mas
isso varia muito, o mais importante é você Se você formalmente o requisitou como
vê-lo como seu professor e ele vê-lo como professor, só é adequado trocar com a
seu aluno — algumas vezes alguns autorização dele. Se você apenas praticou
professores não aceitam alunos tão um pouco e ouviu alguns ensinamentos —
facilmente. especialmente se você não recebeu
iniciações do vajrayana — então não há
Tenho a impressão que as sangas são problema trocar de professor. Ainda assim,
enormes. Há professores para orientar sempre é educado consultar, e não custa
tantas pessoas? É preciso "largar tudo" para nada.
ser aceito por um professor?
Um ponto importante é que você deve
evitar criticar qualquer professor que lhe

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tenha dado ainda que um verso de compromisso, mas quem faz a hora é você.
ensinamento. Então mesmo que você mude Tradicionalmente devemos examinar um
de professor, é preciso manter o maior professor por 8 anos. Nos tempos atuais
cuidado e o respeito pelos professores isso nem sempre é possível, então de alguns
anteriores. meses a alguns anos é um bom período de
exame.
Como faço para conseguir um professor?
Preciso pedir para o mesmo? Ou A monja com que tenho conexão disse:
geralmente o professor pergunta quem "Pratique zazen e ponto final". Isso que
quer ser aluno? dizer que devo fazer somente essa prática e
nada mais até segunda ordem?
Não, você tem que examinar o candidato e
fazer um pedido formal. Sim. Se você quiser praticar outra coisa,
pergunte a ela.
Como é este pedido formal?
Como mestres que apresentam
Primeiro você examina o professor por um comportamentos desagradáveis, ou por
tempo, depois você pede uma entrevista, vezes que não estão de acordo com a
faz uma oferenda e diz "quero ser seu moralidade comum (como demonstrarem
aluno". Se não funcionar da primeira vez, certa promiscuidade, por exemplo) podem
pode tentar de novo. O quão formal ou o ser considerados iluminados?
quão pouco formal pode ser esse pedido vai
depender inteiramente das características No caso do comportamento de mestres,
do professor com que você quer se não somos capazes de julgar
conectar. Há professores extremamente adequadamente com base na nossa própria
formais e professores bastante informais. moralidade. O que podemos fazer é não
Mas em algum nível você vai pelo menos tomar como mestres pessoas cujo
precisar formular o pedido claramente e comportamento não aceitamos ou não
obter uma resposta, é isso que quis dizer entendemos.
com "formal".
No caso da promiscuidade, é claro que, em
Sou praticante budista, sigo os geral, quanto mais pessoas na nossa vida
ensinamentos de um professor, vou a íntima, mais difícil de evitar as aflições
palestras e retiros, participo da sanga, mas mentais. Então normalmente não
ele não me conhece, nunca nos falamos conseguimos acreditar que alguém seja
pessoalmente. Isso tem algum problema? capaz de praticar (trazer mais benefício do
que malefício) nesse contexto. É muita
Não tem problema nenhum, você está confusão com uma pessoa, imagine duas ou
verificando o professor. Num determinado uma dezena! Mas essa é exatamente a
momento é importante formar um diferença dos mestres e das pessoas

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comuns: a capacidade de praticar em professor, que desafie nossas falhas ocultas,


situações e ambientes onde a prática é inclusive nossa mente preconceituosa.
difícil. 3. A insatisfatoriedade do samsara
Se as pessoas vivem insatisfeitas e seu
Repito, se a pessoa tem dificuldade em sofrimento prejudicará outras vidas no
aceitar mestres de "louca sabedoria", que futuro, numa espécie de círculo vicioso que
se comportam de forma selvagem, nunca acaba (a não ser para alguns poucos
desagradável, sedutora ou ameaçadora e iluminados), qual o sentido disso tudo? O
quebram nossos conceitos, há muitos "funcionamento" das coisas é só isso?
mestres budistas cujas ações são mais
palatáveis ao nosso senso comum, tanto O sofrimento atual não necessariamente
ético quanto estético. Uma pessoa com essa causará sofrimento futuro: só no caso em
dificuldade com certeza se beneficiaria mais que a pessoa gere mais negatividade ainda
de mestres tais como Sua Santidade o Dalai ao sofrer, isto é, que ela prejudique os
Lama, Sua Santidade Trulshik Rinpoche e outros durante seu sofrimento.
muitos outros monásticos ou não, que se
comportam de uma forma mais enquadrada E, para quem não tem o darma, é sim
com uma pequena capacidade de exaustivo assim. Por sorte não temos
entendimento — e assim tem o potencial de criador, senão teríamos que por a culpa
beneficiar mais pessoas. nele. Algumas vezes se descreve que só as
lágrimas que tivemos pelo sofrimento em
Mas, se a pessoa não está tão presa a cada uma dessas vidas encheria um oceano
noções de moralidade "pequeno do tamanho do universo...
burguesa"... daí ela pode usufruir da
compaixão e bondade de professores Mas, para quem tem o darma, existe a
verdadeiramente desafiadores e perigosos. verdade da extinção do sofrimento. E
É uma questão da nossa capacidade — e é mesmo quando todo sofrimento não cessa,
claro, se somos iludidos pelo o próprio caminho é alegre e sem tanto
comportamento externo de um professor, sofrimento.
seja ele de acordo com nossas expectativas
ou não, não há muita chance de progresso, Se alguém se sentir feliz e contente no
e é muito fácil se conectar com um Samsara, conseguindo realizar e equilibrar
professor falso. Por isso, precisamos olhar seus desejos, seria ainda relevante alcançar
se a compaixão está presente e, se estiver, o Nirvana?
mesmo que queiramos um professor mais
"louco", mas terminamos com um monge Por definição, é impossível sentir felicidade
de comportamento extremamente suave e e contentamento duradouros e não
de pequeno impacto, é só o nosso próprio enganadores no samsara. Se a pessoa não
carma. O que importa é achar um bom tem consciência disso, ela simplesmente

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perde mais tempo no samsara e cria mais No mahayana a realização do Buda é a


causas de sofrimento futuro. eliminação das aflições mentais mais o
desenvolvimento das qualidades, as
Seres que vivem no samsara vivem em vão? perfeições, paramitas. Então, é a diferença
entre acordar do sonho e seguir sonhando
Os que não encontram e não são capazes de lucidamente. Seguir no sonho, lúcido, é
seguir um caminho espiritual coerente, melhor do que o mero acordar. É um
vivem em vão no sentido de que suas vidas acordar que não dissipa o sonho enquanto
só produzem mais samsara — e o samsara mero sonho.
como um todo é em vão.
Então, nirvana, iluminação e samsara são
Qual a diferença entre "estar fora da roda apenas estados de consciência?
da vida", "iluminação" e "nirvana"?
De forma alguma, iluminação não é um
Dependendo do contexto, as três coisas estado. Se for um estado, tem um início e
podem querer dizer a mesma coisa. um fim. Nirvana é debatível, mas do ponto
de vista do mahayana, é um estado. E
No entanto, é possível analisar esse "fora" samsara definitivamente é um estado, caso
do primeiro item e entender a diferença contrário a liberação não seria possível.
entre nirvana e iluminação.
Mas o que você quer dizer é "essas coisas
O fora do nirvana é absoluto, não há são ligadas a mente, e não às coisas".
vínculo. O fora da iluminação é "sem se Independente da forma de budismo, o
envolver, mas dentro". budismo dá primazia à mente. Corpo e fala
são subjugados à mente. A mente vem em
Nirvana é além de samsara, iluminação é primeiro lugar. Nas formas mais sofisticadas
além de samsara e nirvana. Samsara é a de budismo, não só isso, mas as coisas todas
roda da vida. são produtos da mente. Samsara, mundo,
não é uma coisa que exista externamente,
Agora, as pessoas podem usar a palavra independentemente — é um produto da
iluminação para falar de uma mera mente. Mas não é um produto da mente no
realização espiritual qualquer, não a sentido ordinário, new age, do "eu penso,
iluminação completa, nem mesmo o eu posso, acontece". De certa forma, como
nirvana. o eu é a maior ilusão de todas, o "eu" não
pode nada. Nossa própria mente não é uma
O nirvana ocorre quando as aflições mentais posse desse eu, como muitas vezes
cessam completamente, portanto não há pensamos. Então a geração de méritos e
mais roda da vida, já que a roda da vida é sabedoria de fato alteram a realidade
formada pelas aflições mentais. externa que aparece perante esse eu, mas

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esse eu, pela ação e vontade dele, não é cristianismo — e quase todas as formas de
capaz de muita coisa nesse sentido. nova era. Mas, no budismo não é assim.
Samsara é só um engano. Ele não existe –
O que representam o Javali, o galo e a ele é um modo de existência deludida, ou
serpente que estão no centro do diagrama enganosa. É uma experiência dos seres, não
da roda da vida? é em nada real. Ele não tem propósito. Ele
tem o propósito confuso dos três venenos:
Ignorância (delusão, indiferença, preguiça), apego, aversão e indiferença –
apego (desejo egoísta, inquietação, infindavelmente um cutucando o outro e se
responsividade) e aversão (raiva, medo, produzindo, e proliferando as aflições
nojo). Eles são a origem de todas as mentais, as 84.000 insatisfações, as milhões
complicações da roda da vida, o samsara. de doenças e angústias. Samsara é a própria
falta de sentido.
O único sentido do Samsara é esforçar-se
para sair dele? Com certeza, de acordo com o budismo,
todos os seres tem o potencial de superar
Esse sentido não pertence ao samsara, esse engano: iluminarem-se, tornarem-se
portanto o samsara não tem sentido algum. Budas, reconhecerem a realidade,
encontrarem felicidade definitiva,
Se o samsara não tem nenhum sentido, compaixão incessante, sabedoria. Se todos
quem nunca encontrar a iluminação estará vão encontrar esse objetivo? Daí... bom,
fadado à infelicidade? Ou todos se devemos praticar para levar todos os seres-
iluminarão um dia? mães à iluminação, sem dúvida. Mas se
todos vão se iluminar... não é dito. Em
Sim, quem não encontrar a iluminação só algumas escolas há o conceito de seres que,
terá felicidades insatisfatórias, as que estão mesmo tendo o potencial, nunca vão
presentes no samsara. Não há felicidade revelar esse potencial. Não são todas as
verdadeira no samsara. escolas, mas o conceito existe.

A pergunta sobre se todos se iluminarão é Basicamente, os Budas não veem samsara


recorrente, mas não é possível respondê-la em lugar algum, só seres que se enganam.
adequadamente. O samsara não tem Então, como esse engano causa sofrimento,
objetivo, ele não surgiu com o sentido de surge compaixão. Porém, os Budas sabem
que os seres atingissem a iluminação. Existe que, mesmo estando enganados, mesmo
uma forte tendência a teleologizar o sofrendo, os seres no fundo não são aquilo
samsara como se ele fosse uma criação, que eles pensam que são, então, não faz
meio que gnosticamente, uma criação- sentido falar em um início e um fim para o
labirinto, um teste divino, ou algo assim. samsara, a não ser numa mente enganada.
Inúmeras tradições propõem a existência
dessa forma — inclusive boa parte do

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Por que há tanto sofrimento no mundo, causados pela crença errônea na existência
sendo o sofrimento artificial? independente de um eu, que eles são
motivo de grande compaixão. Quando
O sofrimento advém de uma percepção vemos o sofrimento como real, temos
equivocada do mundo, da realidade. Por apenas pena. Pena coloca o outro numa
exemplo, confiamos em nosso corpo como posição inferior — é um coitado. Compaixão
fonte de felicidade — mas envelhecimento, é o reconhecimento de que, não importa a
doença e morte são inevitáveis para o situação da pessoa, existe o potencial para
corpo. Como embasamos nossa felicidade reconhecer o que está além do sofrimento,
em uma fonte não confiável, sofremos. o que existe de fato, o que é real. Portanto
Segundo o ensinamento budista existe uma compaixão é o que vê simultaneamente o
fonte confiável de felicidade, que, se não Buda em cada um, e o fato de que esse Buda
nos enganamos — reconhecendo a não é reconhecido.
impermanência, interdependência e
vacuidade — reconhecemos como uma Como a realidade pode ser naturalmente
expressão natural. Ela não depende de boa se, por exemplo, um animal precisa
condições, portanto nada que é matar, isto é, causar sofrimento a outro ser
condicionado impede essa felicidade — se vivo, para sobreviver?
ela é reconhecida. Porém, enquanto nos
envolvemos com as aparências, e não Pode parecer circular, mas se tem
reconhecemos a realidade, tomamos como sofrimento, não é realidade. Para evitar
fonte de felicidade o que não vai nos dar essa circularidade, pense: se é temporário,
felicidade, e daí o sofrimento. não é real. Assim, uma vida como animal,
não é real. É um pesadelo temporário. Da
A quantidade de sofrimento que mesma forma, todas as formas biológicas e
percebemos está vinculada diretamente à tecidos ecológicos são temporários, e
ignorância, nossa e dos seres que sofrem. portanto irreais. Isso é verdade das
Não é porque o sofrimento dos seres é condições de relativa felicidade, por
irreal, que vem de um engano, que eles duradoura que aparente ser. Se é
sofrem menos. Para o budismo, saber que o temporário, é irreal, é um sonho bom ou um
sofrimento dos outros advém de um pesadelo.
equívoco — que no fundo não passa de um
pesadelo momentâneo — não é motivo de O que são fixações? Como agir no samsara
diminuir a compaixão, pelo contrário. sem ter fixações?
Quanto mais envolvidos em sofrimentos
falsos, mais compaixão é possível. Se um Falta de flexibilidade na mente. Com menos
sofrimento fosse verdadeiro, apenas um, a fixações, mesmo o samsara é mais fácil e
compaixão não seria possível, ou pelo melhores condições são encontradas no
menos não teria por que. É exatamente próprio samsara. Uma pessoa sem
porque os sofrimentos são artificiais, flexibilidade mental pode ser

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preconceituosa, fechada, difícil, e assim por palavra, pois tudo apenas é como é?
diante, coisas que a tornam desagradável Liberdade incessante?
perante os outros.
Vamos ter que ser mais específicos quanto
Com relação as fixações sutis, não é possível ao uso da palavra "eu". Quando o Dalai
permanecer completamente no samsara Lama diz "eu comi amendoins", esse eu é
sem elas. Mas isso é vantagem, já que o um "indexical", um dêitico, na forma de
samsara é só sofrimento. Evidentemente, palavra, e que se refere basicamente ao que
sem tais fixações sutis pelo samsara a você, interlocutor, entende pelo Dalai
pessoa também não terá fixações sutis pelo Lama. Quando nós dizemos para nós
nirvana, então seguirá manifestando mesmos "eu estou perdido", quando uma
benefício aos seres. situação muito grave ocorre (ou "eu sou o
3.1. Apego ao eu máximo", ou "eu me dei bem", quando as
Se o eu é não existente, quem se ilumina? coisas vão bem), esse eu extremamente
prejudicial, é um engano muito grande —
Exatamente, a iluminação não é possível ou seja, não é um "eu" que falamos apenas
enquanto há a crença de um eu. No Sutra do para informar os outros, é um "eu" que
Diamante isso fica bem claro quando Buda essencialmente reifica a nós mesmos como
pergunta a Subhuti: "você acha que em tendo uma coisa ilusória chamada "eu" (isso
algum momento guardei a concepção independe se a expressão em voz alta sai
arbitrária de que atingi algo chamado para nós ou para os outros, mas tem a ver
anuttarasamyaksambodhi (a mais perfeita e com a intenção da expressão — se é algo
completa iluminação)? Não. E é exatamente apenas informativo, para outro, ou se
por isso que pode ser chamada solidifica algo que não existe). Depois ainda
'anuttarasamyaksambodhi'". há modalidades de eu que elaboram sobre
esse engano, como "alma", "a minha
O caminho que é ensinado para alguém que identidade", "os meus gostos", "o que me
crê no eu é tal que diz "um dia você vai faz mais eu" e assim por diante. Essas
atingir a iluminação", mas esse caminho é formas de eu são simplesmente enganos
um mero expediente. A iluminação não é ordinário — com o problema de estarem
causal e não ocorre para alguém num ponto sobrepostos ao engano mais grave e o
no espaço-tempo. Ela é idêntica a sabedoria encobrimos. São erros semelhantes a
que reconhece que essas coisas são ilusões, quando erramos um cálculo, ou quando
produtos da ignorância. tropeçamos, ou nos perdemos andando de
carro — mas como se desse erro, sem nós
Então, posso dizer que não há um "eu" que sabermos, dependesse a vida de um
atinge a iluminação, pois, até mesmo este cachorrinho.
"eu" é fruto da luminosidade? E que
"iluminação" nada mais é do que uma mera Estes erros secundários são tão luminosos,
ou tão pouco luminosos, melhor dizendo,

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quanto essas ocorrências. Já o eu que é um ignorância que produz as muitas aparências


simples "indexical", que usamos para o e a consequente reificação, você poderia
entendimento dos outros, esse não tem dizer que o criador é o porco. Mas isso é
problema nenhum. Mesmo Budas se apenas alegórico, não tem nenhum porco
referem a si mesmos. verdadeiro — assim como a ignorância é
apenas um estado temporário de não
O problema do eu reificado, o eu a que nos reconhecimento, e não uma coisa que
apegamos, aquele que é um engano exista verdadeiramente.
completo, é que ele é parte e coadjuvante,
aliás, é o protagonista exatamente da Se estamos sonhando e o "eu" é um
reificação do sonho. Então ele é o elemento elemento do sonho, quem está sonhando?
crucial do nosso não reconhecimento da
liberdade incessante. Esse eu fabricado, que O sonho é uma manifestação espontânea
nunca existiu nem nunca vai existir, é que da interdependência, sem centro ou
precisa ser reconhecido como não periferia. O não reconhecimento do sonho,
existente. Em outras palavras, a crença nele, pela liberdade que exerce a liberdade de se
e o subsequente apego por ele, é o que aprisionar e de "jogar a chave fora",
produz todo o sofrimento. Se uma pessoa esquecer-se disso, gera o engano que vai
quer sofrer, se justificando "tudo é produzir o autoengano, que vai produzir a
luminosidade", então ela pode acreditar noção triplamente equivocada de um eu. Ao
cada vez mais nesse eu que isso vai reconhecer a essência vazia dessas três
funcionar como ela quer. Ela vai sofrer cada ignorâncias (apego ao eu, reificação
vez mais. Mas se ela está usando esse "tudo separativa e não reconhecimento do
é luminosidade" como uma desculpa, então sonho), a mandala do Buda é revelada.
é melhor ela ver as coisas como elas são e
de fato experimentar essa luminosidade, O que é este autoengano?
que é totalmente desprovida de uma
essência, e que portanto não se engana. Acreditar-se e ver-se como não Buda, livre
de uma identidade independente e livre de
O sonho não tem sonhador? operar num mundo com fenômenos que
surgem como independentes, isto é, livre de
O sonho é causado pela ignorância do ignorância. Como isto não é uma mera
reconhecimento da ausência de um eu crença, mas um hábito, para elimitar este
inerente a pessoas e uma essência inerente hábito existe a prática do darma.
aos fenômenos. Assim, o eu é uma criação
do sonho. O estado lúcido, acordado, não Pode falar mais sobre "as três ignorâncias"?
tem um "eu" acordado. Entendi que existe uma sequência que
começa com o não reconhecimento do
De fato, geralmente a ignorância é sonho, mas reificação separativa e apego ao
representada por um porco. Como é a

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ego acontecem simultaneamente, um sofrimento, alma, não reconhecimento do


reforçando o outro? sofrimento, perda de tempo, falta de
sentido, desespero, depressão.
Os três estão em sequência — alguns seres
no samsara, devas do reino da não forma, A crença de um "eu" nada mais é do que a
só têm a mais sutil reificação do eu (é ter apego e seguir cegamente a todos os
semelhante ao que seria iluminação para processos sensoriais? É também crer em um
alguns hindus, mas um estado de ignorância "eu" que seja independente de outros
para os budistas). Outros, só tem a fatores? A clareza deste processo enganoso
separatividade sutil, e não a separatividade é a iluminação?
grosseira de um eu. E, no reino humano,
ainda há os filósofos, que dão um nome Não, a crença num eu não é apenas ter
bonito para a separatividade grosseira, tal apego e seguir processos sensoriais.
como "alma", e criam ainda um quarto nível
de reificação, aí através dos conceitos. Acreditar e se apegar a uma noção de
identidade separada, contínua é a raiz do
A diferença entre o eu e a mera sofrimento.
separatividade é dos elos 2-10. Isto é,
formações mentais, consciência, nome- Clareza com relação a esse processo
forma, interfaces dos sentidos, contato, permite que a pessoa eventualmente faça
preferências, ânsia, resultados e enfim, prática que desvincule os hábitos de
concepção-nascimento (num mundo). O eu reificação do eu, que são muito mais
só se forma no décimo elo. Nos elos profundos do que opiniões e ideias que a
anteriores há diversas formas de pessoa possa ter sobre o eu.
separatividade cada vez mais grosseiras. O
primeiro elo, ignorância, implica Se ela através da prática desata esses
separatividade, localidade, temporalidade e hábitos, então ela atinge liberdade do
uma espécie de atraso, um "delay", que está sofrimento, mas não as qualidades
ligado a responsividade, fixação e iluminadas. Portanto ela atinge ou o estado
negligência (porque se fixa em algo, perde de arhat ou o estado de um bodisatva de 8º
algum outro algo, porque se fixa em algo nível. Isto é, ter clareza não é suficiente para
que é impermanente, porque é separativo, desatar os hábitos, é preciso praticar, e
exige uma resposta, exige uma atividade). realizada a prática (os hábitos serem
Portanto o sofrimento já começa no dissolvidos) não é suficiente para a
primeiro elo. iluminação, mas é uma realização espiritual
considerável.
São quase como nomes para "ignorância":
não reconhecimento do estado natural, Se não há um "eu" o que é então a sensação
reificação, separatividade, responsividade, muito forte da minha presença que percebo
tempo, espaço, descompasso, eu, cansaço, na meditação?

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fenômenos são vacuidade. Os fenômenos


Fora da meditação também, muito forte, não existentes não são sequer vazios.
né? Percebo bastante, o tempo todo. Acho
que percebemos mais na meditação porque Se o "eu" é uma ilusão, existe alguma outra
a meditação é um ataque direto a essa "coisa" que torne os seres humanos
sensação, então ela aparece mais forte, com diferentes uns dos outros?
todos os ardis. No budismo chama-se
"ignorância" e é isso que se busca eliminar, O carma, a ignorância, a própria ilusão etc.
já que é a raiz de todo sofrimento. Estas coisas acontecem muito antes de
formarmos uma concepção de eu e
Creio que esta "ignorância" seja, passarmos a acreditar nela e nos apegar a
literalmente, ignorar a liberdade da mente. ela.
Nunca deixaremos de sentir esta "presença
de nós mesmos", mas o grande obstáculo Quais as maiores implicações ao se aceitar
não seria em reificar este aspecto como real que o ego é uma ilusão?
em si mesmo?
A compaixão se torna possível.
Sim. Nós deixamos de sentir uma presença 3.2. Aflições mentais
reificada, abandonamos a noção de Se é preciso que nossa mente seja
sensações, e reconhecemos a presença da aquietada a todo momento seríamos seres
própria liberdade. O problema é que, sem o "defeituosos por natureza"? Se todos temos
guru, nós podemos facilmente confundir o que lutar contra emoções aflitivas não
Buda que nós somos no fundo pelo que estaríamos tentando combater algo
somos na superfície como o Buda. Sem "essencial" em nós?
alguém para testar nosso autoengano, nada
feito. O nosso estado natural, segundo o darma, é
imperturbado e livre de aflições mentais. As
Se o "eu" é vacuidade, mas também surge aflições mentais são o que produz e dá
de forma luminosa, qualquer atitude que solidez à experiência de samsara, e quando
vise estritamente ao prazer próprio e que envolvidos no samsara, achamos que o
não vise ao benefício dos seres seria pura samsara é natural. Porém, segundo o
perda de tempo, certo? darma, não há nada mais artificial que o
samsara. Assim, nossa natureza essencial é
Pode ser mais que perda de tempo, pode a natureza de Buda, livre de aflições
ser efetivamente negativa. Mas no mínimo mentais.
é perda de tempo.
Quando os hábitos que dão solidez as
Agora o comentário sobre o eu no início é aparências e emoções são dissolvidos, não
irrelevante a esse ponto. O eu não é apenas há mais necessidade de colocar energia em
vacuidade, ele é não existente. Todos os aquietar a mente. O exemplo comum é que

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se você tem uma cartolina enrolada que situações são adendos temporários a que
precisa usar, colocar na parede, você damos solidez.
primeiro a enrola no sentido oposto, depois
a deixa descansando num lugar plano, até A maioria das pessoas crê que são as
que ela volta a sua forma original, plana. Da situações externas que despertam as
mesma forma, no início da prática budista é emoções, porém isso é um engano, pois as
preciso colocar muito esforço em combater emoções, tanto positivas, quanto negativas,
aflições mentais e distração, mas com o são geradas a partir do nosso interior?
tempo cada vez menos esforço é preciso,
até que uma prática sem esforço é atingida. Nas pessoas infantis, isto é, a maioria de
nós, os eventos externos têm poder sobre
Mais do que isso, as aflições mentais, além os eventos internos. Nas pessoas que
de nos fazer sofrer, nos dão trabalho! Se praticam, o oposto ocorre, e isto se deve
colocássemos 1% do esforço que colocamos aos méritos e a prática de compaixão.
na direção de aflições tais como o desejo ou
a raiva, na direção da prática espiritual, O que são emoções inúteis? Toda emoção
atingiríamos a iluminação, e um estado não é legítima?
naturalmente livre de sofrimento e esforço
(o estado natural), muito rapidamente. Sob um aspecto, pode-se dizer que todas as
emoções são dukkha, insatisfação. Porém,
Uma vez um Budas não estaríamos mais em geral também chamamos de emoções
presos à condição humana? O caminho da coisas como compaixão, alegria e amor.
iluminação não seria então, basicamente, Portanto as emoções úteis são aquelas que
um caminho no qual desejamos nos libertar beneficiam a você e aos outros seres, como
de nossos sentimentos, pensamentos, a compaixão (desejar que você e os outros
desejos, muitos dos quais parecem não sofram) ou o amor (desejar que você e
inerentes à condição humana? os outros sejam felizes).

Sim, a condição humana é temporária, já É possível usar as emoções perturbadoras


passamos por bilhões de outras condições, (apego e raiva, por exemplo) de forma
e não há nada de especialmente preferível benéfica?
na condição humana senão que ela é um
bom âmbito para fazer a prática espiritual. Não, pode haver benefício em reconhecê-
Então nem a condição humana é nossa las, ver sua natureza pura, reconhecer a
condição natural, nem as aflições mentais energia como mera energia — mas não há
são naturais da condição humana (ou de nenhum benefício possível nas aflições
nós como seres humanos, ou dos animais mentais elas mesmas, totalmente
etc.) — isto é, o estado natural do ser vinculadas com a aflição mental base da
humano é como o do Buda em forma ignorância e do não reconhecimento.
humana, todas as outras condições e Quando não há essa aflição mental base, a

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ignorância, daí é equivocado chamá-las de olho com relação as realizações dos outros,
"aflições mentais" ou mesmo "apego" ou em si só, é neutro. Quando esse olho vem
"raiva" — daí elas são as sabedorias acompanhado de uma visão errônea, então
correspondentes, no caso dessas aflições, se produz inveja, sofrimento, e assim por
"sabedoria discriminativa" e "sabedoria diante. Quando esse olho vem
como a de um espelho". acompanhado da visão mais elevada, ele é
o reconhecimento das qualidades do Buda,
Como posso combater o sentimento da o regozijo e o louvor sobre as qualidades do
inveja? Buda. Num caso pensamos "quem esse
Buda pensa que é? Ele deveria ser como
O antídoto da inveja é o regozijo pelo mérito eu", e no segundo caso pensamos "que
dos outros. Desta forma é possível partilhar inspirador! Que eu eventualmente seja
dos méritos. Portanto, de forma analítica, a como ele."
pessoa reconhece que é contraproducente
para si mesma vivenciar a vitória dos outros O Budismo tem algum ensinamento
com amargor, assim ela se dispõe a especial sobre a inveja, a que sentimos
reconhecer quando os venenos e aflições quanto aos outros e a que os outros sentem
mentais surgem e tentar evitá-los. quanto a nós?

Como com todos as outras aflições mentais, Sim, para o budismo a inveja que os outros
a prática consiste em transformar hábitos sentem de nós é um mero objeto de
arraigados através do treinamento da compaixão. Essa inveja não tem poder
mente. Treinar a mente significa prestar sobre o que quer que seja, ao contrário do
atenção aos acontecimentos mentais e que o pensamento popular, especialmente
aplicar antídotos, particularmente sem no Brasil, pode nos levar a crer.
esmorecer perante o reconhecimento de
que as aflições seguem aparecendo, e que Já nossa própria inveja é extremamente
muitas vezes não somos capazes de lidar daninha. Os três métodos para lidar com
com eles adequadamente. Reconhecemos e qualquer aflição mental são sempre 1)
lidamos o melhor possível, sem desanimar, evitar o objeto; 2) produzir um antídoto; 3)
e então, paulatinamente, hábitos negativos transmutar a aflição em sabedoria. Elas vão
podem ser transformados em hábitos em gradação de capacidade, isto é, os seres
positivos — tais como o regozijo pelo mérito de maior capacidade praticam a última, os
alheio. de capacidade intermediária a segunda, e os
seres de pouca capacidade, a primeira. Os
No nível vajrayana, certa vez um lama me antídotos para a inveja são o
ensinou que a aflição mental da inveja é contentamento com a nossa própria
exatamente a inteligência que reconhece o situação e o regozijo pela felicidade alheia,
melhor mestre. A nossa estratégia usual seja de que tipo for. Pode parecer estranho
deludida é olhar comparativamente, e esse que uma pessoa venha a aplicar um

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antídoto, que é exatamente o sentimento


oposto que lhe vem naturalmente — mas é É uma aflição mental composta de várias
exatamente essa a prática, e a outras. Então todos os antídotos:
transmutação é parecida — isto é, a própria compaixão, equanimidade, regozijo, alegria
aflição mental lembra você da prática. Ao — e, talvez principalmente, reflexão sobre a
reconhecê-la, você lembra de regozijar com impermanência e sobre como todas as
as qualidades. Irritantemente, e relações baseadas em aflições mentais tais
liberadoramente, a energia da inveja é a como o apego são insatisfatórias.
mente estratégica, brilhante, que
reconhece a qualidade dos outros. É ela que Como treinar o desapego?
produz um grande mestre, porque é essa
mente estratégica que reconhece as Você medita na insatisfatoriedade inerente
qualidades no mestre. A única coisa que em todas as coisas. O apego é uma
você retira da inveja é a ignorância, isto é, a distorção da realidade: você acredita que
noção de eu e outro. Quando essas aquele objeto vai lhe dar felicidade
qualidades são um reconhecimento da confiável, é essa confiança sem base que
própria liberdade da mente, além de eu e você coloca no objeto que chamamos de
outro, o regozijo é possível, e então você "apego". Nós sofremos porque nossas
abandona o seu próprio alvo, isto é, aquilo expectativas (que são absurdas em primeiro
que produz esse atrito, essa incomodação lugar, mas não reconhecemos isto) são
interna. E quanto mais você se incomoda, naturalmente frustradas.
mais agudamente você pode transformar
isso em regozijo. Você tem essa mente O objeto pode ser desde a coisa mais trivial
capaz de louvor, capaz de reconhecer as e grosseira, como sorvete de chocolate, até
qualidades do outro, capaz de entender o coisas realmente complicadas, como
carma, e a sua própria aparente falta de ideologias, e mesmo estados equivocados
mérito perante a do outro. E então você de meditação, ou estados de meditação
abandona totalmente a mente comparativa positivos, mas nos quais nos fixamos e
e repousa sem conceitos. Toda vez que a atribuímos expectativas irreais.
mente comparativa vier novamente, você
transforma em regozijo, em louvor, em Ao refletir sobre a insatisfatoriedade dos
entendimento sobre o carma, e assim por objetos de apego, naturalmente
diante. Assim a inveja constantemente diminuímos nossas expectativas, e então
lembra você do Buda, o mais invejável dos não só podemos usufruir desses objetos
seres, a quem você não consegue nem melhor, temos mais liberdade e sofremos
mesmo invejar, porque não consegue menos.
vislumbrar a profundidade das qualidades
dele. Quando você diz "meditar na
insatisfatoriedade inerente em todas as
Como combater o ciúme? coisas", trata-se de um processo racional?

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Eu utilizo a razão para encontrar uma Então é um modo de exame sistemático que
verdade? Ou apenas "sento" e contemplo envolve surgimentos espontâneos na
isso (sem me utilizar da razão)? mente e especulação, e com base nisso
inferência e conhecimento empírico direto.
Existem dois modos de investigação no Você pode começar com qualquer coisa, e
budismo, o empírico e o por inferência. Em apenas marca um tempo determinado,
geral o modo de investigação por inferência digamos 15 min, e nesse período você vai
é considerado inferior, e uma preparação manter a postura e examinar esse tema.
para o modo empírico.
Apego ao darma não é tão ruim quanto
Quando se fala em meditar sobre um qualquer outro tipo de apego?
assunto, isso significa sentar em posição
formal de meditação, isto é, imóvel, e Não, é infinitamente melhor. O apego por si
examinar o assunto sob diversos enfoques, próprio é o pior apego, depois o apego pelos
especialmente aqueles que possuem um outros é bem melhor do que este. E o apego
impacto pessoal para você. Dessa forma é pelo darma é o melhor de todos — porque
uma combinação de um enfoque certamente o darma vai ter as ferramentas
imaginativo, especulativo, misturado com para dissipar o apego. É a diferença entre
um enfoque de inferência/racionalidade, e tentar saciar a sede com água doce ou água
empírico, na medida em que suas salgada.
experiências presentes e passadas são
trazidas como elementos principais desse Mas, você não precisa ter apego pelo
exame. darma. O melhor é praticar sem apego. Só
que, se você for ter apego, melhor ter os
Isto é, você pode pegar coisas que apegos melhores.
naturalmente surgem na sua mente
(empírico) e imaginar cenários a partir Apego aos preceitos budistas é menos ruim
desses surgimentos (especulativo). Com do que outros tipos de apego?
base nisso, você estabelece raciocínios e
conclusões. Com base nas conclusões, você Se você trocar preceitos por ensinamentos,
passa, paulatinamente, a não precisar fica melhor — preceitos são normalmente
examinar a insatisfatoriedade de algo para classificados como os itens de ética
efetivamente vivenciar essa prescritiva, em outras palavras, preceitos
insatisfatoriedade imediatamente. Em são os votos, dos quais existem os mais
outras palavras, seu engano, que causa seu variados. Por exemplo "não matar". Os
apego, vai se enfraquecendo enquanto ensinamentos, por outro lado, incluem os
hábito, e você desenvolve sabedoria de preceitos e tudo mais que é expresso em
reconhecer as coisas tais como elas termos do budismo.
realmente são, isto é, insatisfatórias.

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Sim, é bem melhor que todos os outros Com um professor qualificado você aprende
apegos, até mesmo que o apego ao bem- métodos para ver diretamente essa
estar dos seres — porque não existe noção natureza. Qualquer explicação sobre o
de ensinamento budista que não leve ao sabor doce do açúcar é fútil.
bem-estar dos seres. Porém, mesmo esses
apegos são desnecessários. É possível A explicação que é útil é a de que a raiva não
praticar bem, e, aliás, pratica-se melhor sem é boa para você nem para os outros, e que
qualquer apego — tanto ao budismo é possível treinar a mente para diminuir seu
quanto ao bem dos seres. Agora, se a impacto ou evitar completamente a aflição
pessoa for escolher entre um apego mental. Isso vai ajudar você também na
qualquer e o apego pelos ensinamentos e prática de reconhecer a natureza da raiva,
pelo bem dos seres, é claro que ela deve porque você vai obter certo distanciamento
escolher os últimos. e assim vai poder observá-la, quando
receber as instruções.
Achar-se mais virtuoso do que outros é
desvirtude? Ouvi que o medo é um reflexo da raiva.
Pode explicar isso melhor?
Desvirtude é quando se prejudica outro ser
em corpo ou fala — e quando se planeja ou Medo é uma forma de raiva que se foca na
mantém má vontade contra outro em autoproteção. Quando nos sentimos
mente. poderosos, temos raiva, quando nos
sentimos fracos, sentimos medo — mas é o
Ter orgulho causa muitas desvirtudes, mas mesmo sentimento: olhar para o outro
em si não é uma desvirtude. Não que seja como uma ameaça. Mais precisamente,
bom, só que tecnicamente é uma aflição como essencialmente uma ameaça. Ao
mental, não uma desvirtude. negar a natureza de buda ao outro, e ao fato
de que ele está assumindo um papel
Achar-se mais virtuoso que os outros em negativo temporariamente, reificamos uma
geral é uma forma de orgulho. Achar-se postura e um modo de relacionamento com
mais virtuoso do que alguém, gerar os outros que vai invariavelmente produzir
compaixão, e produzir equanimidade situações semelhantes vez após vez. A
(refletir o quão semelhante a circunstância atitude correta é reconhecer três coisas:
é, mesmo que num dado momento nossa própria mente, no que ela se engana,
pareçamos estar melhores do que o outro, e no que ela está sendo levada por emoções
e como na base somos semelhantes mesmo pelas quais não tem controle; o outro como
com essa diferença circunstancial) não é Buda em potencial; o outro como um objeto
sequer não virtuoso, se for verdade. de compaixão porque não revelou sua
natureza de buda e age, temporariamente,
Qual a natureza da raiva? dominado por suas aflições — assim como
nós. Reconhecendo essas três coisas como

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de uma só natureza, podemos agir com humilhável: nossa luminosidade radiante, a


clareza, sem hesitação, sem eliminar a dignidade básica do estado desperto.
própria dignidade ou a do outro. Em
qualquer caso, consigamos ou não evitar Para o budismo agressividade, raiva e
que o outro aja negativamente, se nós não violência são a mesma coisa? A primeira não
agimos negativamente e mantemos essa nos ajuda a sobreviver?
atitude, tudo que pode ser perdido é o que
pode ser perdido, o que é perdível em Sim, são a mesma coisa.
primeiro lugar, e no máximo purificamos
carma. O que não perdemos é nossa Com relação à sobrevivência, há dois
dignidade básica, e com certeza avançamos aspectos.
na direção de evitar sofrimentos futuros,
para nós mesmos ou para os outros. O primeiro é que biologia não dita moral.
Sobreviver não é um objetivo final, pelo
Além disso, nosso medo, por si só, é menos não para quem olha por um viés
ignorante. Ele não sabe se o outro é ou não humanista, muito menos para quem olha
uma ameaça, ele toma o outro por uma por um viés espiritual. O que gosto de citar
ameaça. Quando somos tomados pela sempre é que se o evolucionismo fosse
aflição mental, reificamos um mundo de fonte de moralidade, teríamos que aplaudir
ameaça, nos tornamos paranoicos, e isso, o estuprador que engravida sua vítima.
mais do que tudo, nos transforma em Afinal, ele fez mais uma tentativa de
verdadeiras vítimas. Quando o medo surge, preservar seu DNA. Como somos seres
é hora de olhar a própria mente — sem humanos, e não simples escravos do nosso
reificação, surge o destemor, que não é uma material genético, nós damos valor ao que
coragem idiota, fabricada com base num os outros pensam e sentem. Extrapolando
otimismo vão, e sim a ausência de fixação, e isso, chegamos a conclusão que obter boas
a confiança numa natureza que não estão condições para este corpo é um objetivo
vinculada a causas e condições. trivial, secundário. Se não temos um
objetivo maior, a prática espiritual ou o
Os grandes iogues praticam em locais desenvolvimento da virtude, tomar nosso
assustadores, em meio a seres corpo como um fim em si mesmo nos
assustadores, e oferecem tudo que pode levaria ao hedonismo. E o hedonismo não
ser oferecido, tudo que é temporário: produz nenhuma satisfação verdadeira ou
posses, glórias, o próprio corpo. Tudo é duradoura.
oferecido aos demônios da fixação na
dualidade, com o voto de que eles não mais Em segundo lugar, é extremamente
pratiquem o mal. Quando tudo se dissolve, duvidoso que a agressividade tenha alguma
o que resta? Tudo aquilo que não é vantagem geral evolucionariamente
dissolvível, não é roubável, não é falando. Alguma vantagem, em algum
nicho, ela tem. Por exemplo, no inferno,

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todos os seres acham que a agressividade mais na atitude de ativamente desejar o mal
tem um grande valor evolucionário, e é o para os outros.
único jeito de sobreviver. Nascer nesse
âmbito é bastante ruim por esse motivo — Algumas vezes a compaixão é dita "irada",
ainda mais do que pelo fato de que você quando ela tem por foco a destruição da
sofre constantemente. O pior sofrimento é negatividade. Isso nada tem a ver com ficar
valorizar a agressividade como seu modo de bravo ou ter raiva. Isso tem a ver com
sobrevivência. Seres mais felizes valorizam desejar o bem do outro ao ponto de ser
a cooperação como modo de sobrevivência. capaz de agir com energia para evitar que o
outro se prejudique ou prejudique a
Dois pontos equivocados portanto: outrem. É o oposto da agressividade, mas a
valorizar a sobrevivência, e valorizar a expressão externa pode parecer, a alguém
agressividade como valor de sobrevivência. que não entende a atividade, como a
expressão ou atitude de alguém com raiva.
Ademais, sem agressividade somos muito No entanto, fora a aparência que um
mais fortes e capazes de ser duros e diretos. desavisado pode confundir, são 100%
A agressividade basicamente mostra que diferentes.
estamos famintos, com dor, com medo —
eu vou controlar você para obter o que eu O que é moha e porque é prejudicial?
quero. Sendo objetivos com nossa situação
e a situação do outro, construímos uma Preguiça, procrastinação. É prejudicial
relação e um mundo que não está porque você não faz nada de bom para você
embasado na lei da selva. E quando a lei da ou para os outros, e assim perde muito
selva vem até nós, pelo nosso carma tempo, que é um tempo precioso, em
passado, então existe lucidez e clareza para particular se você tem conexão com o
fazer o melhor, e não somos simplesmente darma ou ao menos um renascimento
levados pelas nossas emoções. humano.

Um mestre realizado pode ficar bravo? A indiferença não é um tipo de


Sentir ira? agressividade? Ou é menos ruim?

Um mestre com certa realização, mas que Indiferença é um tipo de ignorância. Pode
não tenha superado as aflições mentais, isto ser agressão passiva também. Mas a
é, que não tenha a realização equivalente a indiferença é com certeza uma forma de
de um arhat, pode ainda recair em aflições aflição mental.
mentais grosseiras.
Alguém que é ator e interpreta personagens
Já um mestre que seja um arhat ou um que apresentam aflições mentais (muitas
bodisatva de oitavo nível não tem mais vezes utilizando suas próprias "emoções
aflições mentais. Nesse caso ele não recai

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escondidas" para isso) está gerando mau virtude até mesmo nas mais degradantes e
carma? difíceis condições, que dirá em condições
frívolas ou de mero divertimento.
É perigoso na medida em que a pessoa
treina em hábitos não conducentes à Torcer por um time de futebol não gera, de
virtude e à felicidade, mas é possível exibir maneira bastante irracional, emoções
qualquer emoção ou atitude e manter a perturbadoras e consequentemente carma
mente livre. A arte, como a tecnologia, pode ruim?
ser vinculada ou usada de acordo com a
virtude ou não. E ela pode ser absorvida de De forma geral, creio que gera aflições
acordo com a virtude ou não. Por isso a mentais sim. Mas é possível que um
liberdade (o poder deliberativo, o não praticante consiga integrar até mesmo isso
seguir/acumular tendências habituais) é – isto é, se divertir com o jogo sem gerar
muito mais o cerne da ética do que a aflições. Só parece ser raro.
prescrição. Em outras palavras, você não 3.3. Carma
pratica com o intuito de não matar alguém, O que é carma na visão budista?
um alguém que você nem sabe se vai ou não
aparecer, um objeto indefinido. Você É o assunto mais complicado do budismo,
pratica para obter liberdade perante seus que apenas um Buda pode entender
impulsos e tendências habituais. completamente. Há algumas diferenças
entre as noções de carma nas variadas
De forma geral, embora a possibilidade da (centenas) escolas budistas, e uma boa
prática de virtude e treinamento em hábitos diferença entre estas visões de carma e as
conducentes a virtude possa ocorrer em milhares de perspectivas hindus. Há uma
virtualmente qualquer contexto, maior diferença ainda entre a visão de
dependendo da capacidade da pessoa, ele carma budista e a de religiões novas como o
raramente ocorre. A maior parte dos atores kardecismo. Porém é difícil falar desse
e a maior parte do entretenimento arte assunto num contexto assim sem uma
produzidos são mistos, neutros ou pergunta mais específica.
negativos. Raramente são totalmente
positivos. Da mesma forma que nossa fala Carma significa ação, e implica que as ações
em geral também. Emoções inúteis que nos tem consequências. Assim é uma conexão
fazem perder tempo. causal não vinculada a natureza, num
sentido externo, como nas ciências, mas ao
Se a pessoa tem um foco na virtude, no aspecto das ações, isto é ao agente, ao
entanto, ela só precisa se afastar das indivíduo como motor intencional.
atividades que ela não consegue trazer para
o âmbito da virtude. Grandes praticantes O que é o carma segundo o budismo? É
não desperdiçam coisa alguma, e como uma justiça divina?
encontram a virtude ou a possibilidade de

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De forma alguma. É uma relação impessoal É ela que define o carma, a intenção. Se a
entre causa e efeito, sem julgamentos, só pessoa tem intenção de beneficiar, e boas e
que não ocorre apenas no nível físico, mas claras razões para acreditar que aquela ação
principalmente em como as coisas se beneficiará — mesmo que ela
manifestam para nós em nossa consciência. eventualmente prejudique em algo, de
(O mesmo vento pode ser agradável para modo geral ela será benéfica a quem agiu,
um e desagradável para outro, dependendo ainda que possa ser caracterizada pelas
das ações passadas destes). eventuais consequências funestas a outro
(ou seja, da mesma forma, o resultado pode
Posso dizer que o carma nada mais é do que ter algo de bom, ou algo de principalmente
a interdependência natural sem a lucidez? bom, com algumas características ruins).

Não é possível dizer que os três venenos ou Mérito é carma?


as aflições mentais sejam naturais. Então
carma é a interdependência através dos três Sim, carma positivo normalmente
venenos, não natural, e sim, sem lucidez. chamamos de mérito. Para a iluminação
(resultado da prática budista, ser igual a um
O carma se encontra só nos seres vivos? Buda) são necessárias duas coisas: carma
positivo e sabedoria. Apenas carma positivo
Só nos seres dotados de consciência, o que (mérito) não é suficiente.
exclui as plantas.
Por que é preciso acumular méritos, ou seja,
Que tipo de consciência? Apenas seres gerar carma positivo?
humanos?
Para viver melhor, e no caso do darma, para
Não, todos os seres capazes de sentir, em ser capaz de ouvir ensinamentos e ter
particular, de sentir dor. tempo e outras condições apropriadas para
praticá-lo. Quando você então reflete sobre
São as ações ou sentimentos que geram os ensinamentos, os pratica e obtém certos
carma ruim? Podemos fazer uma ação boa resultados, há um resultado em que você
e gerar carma ruim (ou vice-versa)? chega que não é mais necessário acumular
mérito. Mas mesmo quem chegou nesse
A intenção é o crucial, e ela não é nem bem resultado segue acumulando mérito como
um sentimento nem bem um um exemplo para os outros.
arrazoamento. Ela é o elemento de
liberdade presente num possível impulso. O que são méritos para o Budismo? É
Assim, segundo o budismo, mesmo a possível perder méritos, como assim? Em
negligência ou indiferença é vista como uma quais atividades se perde e se ganha
intenção. méritos? Como isso ocorre dentro da lei da
interdependência?

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limpar fuligem da parede sabe que não é


Mérito é carma positivo. Quando fazemos tarefa fácil. Uns minutos de desatenção
os outros felizes, a interpendência é nós causarão dias, senão semanas, de trabalho.
mesmos sermos felizes. Na exata medida Talvez seja necessário acumular todas as
em que esses méritos são pessoalizados, inúmeras causas para uma repintura, que
transformados numa posse, eles são geralmente começam com dinheiro, e uma
fragilizados. Os méritos que alguém reordenação de prioridades.
acumula para si podem ser perdidos muito
facilmente. Segundo Shantideva, um Da mesma forma, uma pequena desatenção
instante de raiva destrói o bom carma no trânsito pode causar mortes, que podem
acumulado através de atividades virtuosas levar familiares a depressão, e ao custo que
por vidas incontáveis. É por isso que uma isso implica para todos ao redor e a
prática central no budismo é oferecer estes sociedade como um todo.
méritos aos outros. Dessa forma esses
méritos se unem como uma gota a um Portanto, é fácil entender como um instante
oceano, e dessa forma são mais dificilmente de desvirtude na sua mente enche de
"secos" pelas emoções aflitivas. Uma parte fuligem todos os seus esforços virtuosos por
daquela gota vai estar em todo o oceano, um longo tempo. Da exata mesma forma
que nunca vai ser completamente seco que um instante de desatenção pode levar
(metaforicamente falando). a sua morte, e jogar por água abaixo a
maioria de seus esforços contínuos nessa
A impermanência vale para os carmas vida, coisas como educação e carreira – que
positivos e carmas negativos. Nenhuma não chegam a uma fruição e acabam não
experiência de felicidade criada por causas produzindo os benefícios que poderiam
vai ser eterna, bem como nenhuma produzir (e por isso se fala em "morte
experiência de sofrimento é definitiva. extemporânea", i.e. "fora de hora").

Mas como um instante de raiva pode Não consegui entender bem isso de dedicar
destruir tanto mérito? méritos fazer crescer exponencialmente o
bom carma. não é injusto com pessoas que
Digamos que você recebeu um fazem milhares de atos bons e não os
apartamento impecavelmente pintado, dedicam? E ainda por cima os "perdem" por
fruto do seu mérito acumulado. Porém, um um momento de ira?
tempo após a entrega, você deixa
desatendida uma panela cheia de óleo no Quando você pergunta sobre justiça, você
fogão, e ela se incendeia. Por acaso você concebe que o budismo tenha, como as
consegue evitar um incêndio, mas as religiões teístas, uma noção de uma
paredes antes impecavelmente brancas, realidade que é feita para Deus, e, algumas
agora estão cobertas por uma camada de vezes, feita para os seres humanos. No
fuligem gordurosa. Se alguém já tentou budismo a realidade é o que é. Não foi o

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Buda que inventou as regras do carma, e mas por outro lado, não podemos garantir
aliás, o budismo não afirma nenhuma forma nenhum resultado.
de deus que as teria planejado ou
arquitetado. As noções de carma surgem O que significa gerar mérito? Acumular
por simples observação a partir da mérito leva por si só à liberação total?
meditação, portanto elas não podem ser
"justas" ou "injustas". O budismo não Gerar mérito significa agir coerentemente
propõe nenhuma teleologia cósmica, na direção da felicidade temporária e
apenas, dada uma situação real, propõe definitiva para você e para outros seres. Isto
certas medidas para evitar o sofrimento. é, além de não prejudicar os outros, trazer
benefício. A palavra "coerente" é
De toda forma, é interessante a observação importante, está ligada ao treinamento da
de que o carma, para quem não tem um mente, isto é, percebemos que nossos
caminho espiritual, é quase que aleatório, obstáculos em trazer felicidade aos outros
porque a pessoa não tem noção das causas são nossas tendências e hábitos negativos
e consequências, e nem geralmente uma — assim os identificamos e produzimos
mente disposta a esse exame. Isso é antídotos, e geramos hábitos positivos.
totalmente verdade. Dessa forma, tanto a ação direta em
benefício dos outros quanto o treinamento
O mesmo tipo de reflexão surge quando para a ação mais coerente (a prática
uma pessoa que foi "boa" nessa vida, no formal), ambos geram méritos.
budismo acaba podendo renascer, na
próxima vida, numa circunstância bem O acúmulo de méritos é necessário, mas
infeliz. Primeiro, não sabemos o carma das não é suficiente para atingir a liberação ou
infindáveis vidas passadas antes dessa. a iluminação completas. Além do acúmulo
Depois as circunstâncias do momento da de méritos é necessário treinar na
morte são muito imponderáveis: ela pode sabedoria, o reconhecimento da realidade,
morrer com raiva, ela pode ter vários tipos da vacuidade, em todas as coisas. Isto é,
de morte ruim. De toda forma, a bondade usando o símile famoso do sonho,
que ela exerceu nessa vida é uma força reconhecê-las como um sonho.
positiva que tem uma consequência
positiva: nem que seja irrisória, em alguns A beleza feminina é vista no Budismo como
casos, perante, como se diz, "um momento algo positivo ou como uma possível
de raiva". "armadilha"?

Esse tipo de reflexão evita que pensemos no A beleza de qualquer gênero, e mesmo de
carma como um mero videogame, onde animais, é um fruto do carma positivo ligado
tudo é linear e compreensível. Não essencialmente a prática de paciência ao
podemos nos portar de forma aleatória, longo de várias vidas.

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Nosso apego pela beleza, nossa e dos Praticar compaixão altera nossa aparência
outros, no entanto, é negativo. É possível física? Percebi que pessoas boas tem boa
admirar algo sem apego, mas não é comum. aparência e pessoas malvadas, aparência
Com a prática é normal que se torne mais ruim.
comum admirar sem apego.
Isso não é absolutamente acurado, mas de
Quando vemos alguém belo, devemos forma geral, bem geral, e com um grão de
regozijar pelo mérito dessa pessoa. Quando sal, é verdade.
vemos um casal onde um é feio e o outro
bonito, devemos regozijar pelo mérito do Particularmente, mesmo uma pessoa com
feio em usufruir de sua bela companhia. boa aparência hoje, se for "malvada", com
Dessa forma, nós mesmos acumulamos certeza foi boa em vidas passadas. A boa
méritos. aparência é o resultado de bom carma nesta
e em vidas passadas, embora as
E a feiura então é fruto de mau carma? E circunstâncias precisem estar presentes —
quanto ao Buda, ele é o mais belo dos ou seja, o bom carma pode se manifestar a
seres? qualquer momento ou levar muito tempo
para se manifestar. Por isso surgem as
Claro. Porém, como todas as coisas, os exceções.
juízos também são interdependentes, e
coemergentes — o que quer dizer que pela É importante não confundir causa com
nossa falta de mérito, achamos belo o que resultado. O fato de uma pessoa ser bonita
não é tão belo, e achamos não tão belo o hoje não quer dizer que hoje ela seja uma
que é efetivamente belo — se nosso carma boa pessoa. Ela está vivenciando o
for realmente ruim, achamos belo o que é resultado de boas ações que praticou antes,
feio, e feio o que é belo. Então o mérito faz possivelmente em muitas outras vidas. Ela
o belo não só do ponto do objeto quanto do pode ou não seguir produzindo esse bom
ponto do observador. mérito, e portanto hoje pode ou não ser
uma boa pessoa.
Quando no zen se diz "qual é o som de uma
só palma", é interdependência, Ainda assim, todas as experiências positivas
coemergência. A palma que bate na outra são frutos de mérito. O mérito, sem
tem um som, a que bate na parede, outro sabedoria, é totalmente mundano, isto é,
som. É a mesma palma, sons diferentes. O ele só diz respeito a coisas temporárias,
mérito afeta o objeto observado, o felicidades que no fundo são insatisfatórias.
instrumento de observação, o modelo É através da motivação e da sabedoria que
utilizado para desenhar o instrumento, os o mérito vai se tornar coadjuvante na
órgãos dos sentidos e a consciência — tudo iluminação.
de forma interdependente.

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447. Posso ser belo, sem ter méritos? A vá a polícia ou algo assim, apenas quer dizer
beleza pode não ser uma experiência que ela não faz isso por raiva ou vingança,
positiva? O que acontece, por exemplo, no mas para proteger outras mulheres.
caso de uma menina ser bela em uma aldeia
com homens agressivos, por exemplo, que Conhecer e se interessar pelo budismo
a estuprem? nesta vida é sinal que você provavelmente
acumulou méritos?
A circunstância geral da beleza é positiva.
Ela pode, claro, ser coadjuvante de Claro. E você acumula méritos para, caso
condições negativas. A beleza, como o você não se ilumine, você tenha alguma
resultado de todos os méritos, é fonte de chance de encontrar os ensinamentos
sofrimento, no sentido mais profundo de novamente. Como estes ensinamentos
sofrimento no darma, mesmo quando é sobre as verdadeiras causas da felicidade
evidentemente "boa". Os méritos negativos temporária, e sobre a felicidade definitiva,
(o carma negativo) é fonte de sofrimento e são raros, e eles permitem não só um sonho
o carma positivo também é fonte de bom, uma vida boa, mas a possibilidade de
sofrimento, e é isso que quer dizer dukkha, dar sentido a toda a existência, e atingir um
insatisfatoriedade. estado de liberdade, criatividade e
compaixão vastas e profundas,
Por outro lado, normalmente o que se diz é beneficiando extremamente a si próprio e
que o estupro não tem a ver com beleza ou aos outros, gerar méritos com isso em
mesmo sexualidade, e é sim apenas uma mente, em particular com o benefício dos
forma de violência. Uma pessoa nascer outros em mente, é o melhor motivo para
numa cultura de estupro é fruto de mau amealhar méritos.
carma sem dúvida, e se algo é usado como
justificativa para esse estupro, por parte dos Por que nos períodos de saga dawa e luas
estupradores (como aparência ou modo de cheias os carmas são potencializados?
vestir), isso é apenas uma junção de
circunstâncias e causas, que tem a ver com Pela interdependência com as aspirações
o carma ruim de todos os envolvidos. dos budas, bodisatvas e praticantes do
Infelizmente, os perpetradores do crime passado que fizeram práticas intensas sob
estão fazendo um ser sofrer, e gerando mais as mesmas circunstâncias na mesma época.
sofrimento para si no futuro, enquanto que
a vítima pode ou não usar essa triste Isto é, através da interdependência com
oportunidade como purificação de carma – eventos como a iluminação do Buda e a
isto é, na medida em que ela tiver raiva ou repetida prática da sanga ao longo dos
queira vingança, a experiência será ainda milênios, a nossa própria prática, ao
mais negativa para ela. Se há uma coisa boa preencher essas aspirações e estar em
no carma ruim é que ele pode ser continuidade com esses períodos em que se
purificado. Isso não quer dizer que ela não

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convencionou dar mais intensidade à interdependência e a vacuidade, a


prática, ela se torna mais efetiva. inseparatividade entre os seres se torna
óbvia. Dessa forma você incrementa sua
Se carma positivo é necessário, por que são sabedoria com relação à realidade, e ao
feitas as práticas de dedicação de méritos? mesmo tempo cria uma semente potencial
no outro, para os méritos dele mesmo
Porque elas incrementam o mérito. Ou seja, aflorem. Qualquer circunstância negativa
oferecer mérito gera mérito. no outro pode servir de gatilho para que
você dedique o mérito, mas se sua
Dedicar o mérito apenas incrementa o dedicação vai produzir aquele benefício,
mérito que pode e deve então ser isso vai depender de circunstâncias e do
novamente dedicado. mérito da outra pessoa. Em todo caso, você
ajuda, mas o melhor é não guardar
Com relação ao mérito passado acumulado, expectativas quanto a resultados. A
se dedico todo o meu mérito acumulado em dedicação de méritos é feita principalmente
todas as minhas existências para o benefício para que o ser venha a se iluminar, e
de todos os seres, esse mérito é "perdido", também tenha encontre boas condições ao
e desviado aos seres? No caso, eu longo de suas muitas vidas. Mas isso é a
propriamente não teria mais mérito, perder de vista.
enfrentando talvez situações ruins ou tendo
menos oportunidades, para poder aliviar o Então, quanto mais eu gero benefício aos
sofrimento dos seres? Se sim, isso não outros, mais eu me aproximo da
poderia atrasar o próprio desenvolvimento? iluminação? Mas acho melhor não pensar
muito nisso então, para não gerar apego ou
Gerar mérito gera mais mérito, que então moeda de troca...
você dedica de novo.
Quanto mais você beneficia os outros,
Dessa forma tanto o seu mérito pessoal melhor é o seu sonho. Para colocar isso na
quanto o mérito coletivo aumentam. E direção da iluminação você precisa dedicar
quanto ao seu mérito pessoal, se você não os méritos, e para dedicar os méritos
o dedica, você pode perdê-lo todo por um perfeitamente, você precisa de sabedoria.
instante de raiva, por exemplo. Assim mérito e sabedoria vão levá-lo a
iluminação. Apenas mérito, não.
Com relação a dedicação de mérito no
presente ou futuro, como ao fazer uma O Buda falava de carma positivo (mérito)
doação e dedicar o mérito a saúde de uma como algemas de ouro, e carma negativo
pessoa, como ocorre essa relação? como algemas de ferro. Sem sabedoria, o
mérito só produzirá felicidades temporárias
A dedicação de mérito opera pela e condicionadas, que são, em suma,
interdependência. Ao reconhecer a

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insatisfatória, e portanto, mais uma forma Eles também contam com méritos de
de sofrimento disfarçado. incontáveis vidas passadas, além do que o
carma nunca é infinito, então uma hora se
Isso significa que quando eu ofereço meus esgota. Uma combinação desses três
méritos a todos os seres, realmente estou fatores: ajuda externa, mérito próprio e
compartilhando meu carma positivo? impermanência é o que faz que nenhum dos
Pessoas recebem estes méritos? Saem da reinos seja "eterno" pra ninguém.
minha mente e afetam outros seres?
Dedicar o mérito é multiplicar o mérito?
O efeito que isso tem sobre os outros seres
depende dos méritos deles. O efeito que O mérito depende de quanta sabedoria da
isso tem sobre você, curiosamente, é o de inseparatividade se tem. Quanto maior sua
transformar o mero gerar de méritos em sabedoria, mais mérito. E dedicar
sabedoria. É um passo na direção de incrementa mérito e sabedoria,
reconhecer o sonho, e não apenas sonhar dependendo pode "multiplicar"
algo melhor, que é o que méritos ordinários, intensamente o mérito.
não dedicados, produzem.
Dedicar mesmo uma ação irrisória para um
O mérito é transferido de um ser ao outro? único ser pode produzir iluminação, se se
tiver a sabedoria de um quase-buda.
A noção de separação entre os seres surge
com a ignorância. Parte da prática de Não haveria como, por exemplo, ter
dedicação de méritos envolve reconhecer a acumulado mérito o suficiente para
inseparatividade natural entre todos os renascer como um semideus, doar esse
seres. mérito todo para a iluminação dos seres e
assim ter que renascer novamente como
Considerando-se os seres nos infernos ou os humano por causa da transferência de
famintos ou os semideuses e deuses ou mérito? Ou mesmo como animal?
todos os não humanos que não conseguem
praticar o darma, quando dedicamos os Bom, temos dois equívocos aqui.
méritos a todos os seres, isso os ajuda de
alguma forma? É só através disso que O mérito de um deus ou semi-deus, do
conseguem sair de seu estado e nascer ponto de vista do darma, é inferior a de um
como humanos, com chance de iluminação? ser humano. O ser humano tem mais
chance de praticar o darma.
Sim, os ajuda. Mas essa não é a causa única
que pode impelí-los na direção de Então podemos falar em mérito mundano e
renascimentos melhores e, eventualmente, o mérito que leva no caminho espiritual.
da iluminação.

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O mérito de renascer no reino dos deuses da própria prática do darma que ele
ou semi-deuses é um obstáculo a fortalece e torna possível.
iluminação, então é uma forma de carma
negativo, sobre certo aspecto. Esse é o O mérito mundano é aquilo que as pessoas
primeiro equívoco. ignorantes consideram que é mérito, isto é,
condições temporárias "boas" de todo tipo,
O outro é que o mérito seja uma quantia como riqueza e carisma. Se essas
absoluta, como num banco. Ele não é. Ele circunstâncias impedem a pessoa de
depende totalmente da sabedoria que praticar o darma, porque ela fica muito
reconhece a vacuidade. Assim o seu mérito envolvida nelas, na verdade elas não são
de dedicar pode ser infinitamente maior do meritórias, elas só parecem meritórias. O
que o mérito da ação, isso dependendo da mérito verdadeiro é o mérito que leva à
sua sabedoria. iluminação, então esse é o mérito espiritual.

A prática de dedicação de méritos em si Qual a diferença entre ter mérito e não ter.
incrementa a sabedoria. Portanto os Pode dar um exemplo?
méritos aumentam para todos. E não só
isso, o seu mérito pessoal é protegido ao ser Ter mérito significa encontrar
oferecido. Ele permanecendo vinculado a circunstâncias propícias para o
uma entidade impermanente, também é desenvolvimento de sabedoria, e portanto,
impermanente. Quando ele se vincula à da iluminação.
inseparatividade, à vacuidade, então o
mérito se torna infinito e indestrutível. E é Os seres nos reinos superiores tem mérito
isso, também, juntamente com a própria no sentido de terem boas condições
sabedoria, que produz a iluminação. mundanas, mas elas não levam a sabedoria,
Iluminação significa sabedoria incessante nem a iluminação. Pelo contrário, os levam
reconhecendo a vacuidade e mérito infinito, a não ter interesse em coisas profundas, e
um estando inextricavelmente ligado ao na prática do darma, por exemplo.
outro.
Milarepa uma vez quebrou o único objeto
Qual a diferença entre mérito mundano e pessoal que possuía, uma tigela de barro, e
mérito que leva ao caminho espiritual? cantou de felicidade porque a tigela havia
Dedicar é uma maneira de transformar lhe dado mais um ensinamento sobre a
mundano em espiritual? impermanência. Isso é mérito, do ponto de
vista do darma.
Sim, dedicar é uma prática que leva a
transformar o mérito aparente em mérito Ao rezar para alguém acreditando que isso
verdadeiro. Reconhecendo lhe refresca alguma coisa, o praticante não
inseparatividade e vacuidade, isto é, através está se comportando como se fosse um
Deus oculto que se compadece de todos os

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seres? Se a intervenção for eficaz, de quem No budismo sempre dedicamos o mérito a


é o mérito? Seu? Do Buda? De algo oculto? todos os seres sem exceção, e, se estamos
com alguém em mente por algum motivo,
Qualquer um pode dedicar mérito. O que é adicionamos essa pessoa ou pessoas em
oculto para a maioria das pessoas é este particular. Então o mérito é de todos os
fato. Fora isso, não há nada de especial seres — cada virtude pode elevar, através
nisso. E mesmo uma pessoa com muita da interdependência, a condição geral de
prática de meditação e muito eficiente em todos os seres.
dedicar os méritos — não tem o poder
absoluto e unilateral de curar alguém — isso Se meu animal de estimação morreu, eu
depende do mérito de ambos. É uma posso dedicar méritos para ele renascer
combinação dos dois fatores. uma terra pura?

Curiosamente, quem mais se beneficia com Sim, mas não é certo que isso vai acontecer.
o dedicar de méritos a alguém é a própria De toda forma, algum benefício o animal
pessoa que dedica. O objeto da oração obterá. Você gera méritos e os dedica em
recebe algum benefício, coemergente com nome do animal, e ademais, para o
o mérito que tenha gerado por si só, mas o benefício de todos os seres.
benefício maior é de quem ora. Portanto é
possível até mesmo fazer uma segunda, Como se dedica méritos?
uma terceira, uma "n" dedicação de
méritos. Se ao gerar esse mérito Existe a dedicação de méritos e a prática de
mantivermos esse mérito apenas para "nós dedicação de méritos. A dedicação de
mesmos", sem dedicar, daí o mérito é méritos é o que um Buda faz com seus
naturalmente mais sujeito à méritos. Nós fazemos a prática, isto é, nos
impermanência, dura muito pouco, e é aspiramos dedicar os méritos. Nós fazemos
muito pequeno. Por isso é minha melhor um gesto artificial que imita os Budas, e
vantagem não ser egoísta com meu mérito: enquanto a sabedoria vai brotando, a
quanto mais verdadeiramente não egoístas artificialidade vai se dissipando, e a
somos, melhor nos damos. dedicação se torna natural. Podemos usar
uma formulação como "dedico meus
Se a intervenção é eficaz — por exemplo, se, méritos como todos os Budas os dedicam",
ao menos em parte, devido a uma oração de ou alguma entre centenas ou milhares de
alguém, um papel que a pessoa a ser preces já compostas e tradicionais.
beneficiada precisaria recolher do chão é Podemos fazer através de uma prece, em
resgatado antes de cair, e ele não precisa se voz alta, ou, se formos capazes, através de
abaixar — o mérito é tanto de quem orou um samadhi, uma realização meditativa —
quanto de para quem se ora. E podemos o melhor deles sendo a realização da
sempre dedicar vez após vez. vacuidade. A dedicação de méritos só é
possível com a sabedoria — então

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treinamos na dedicação de méritos para Uma pessoa gera carma na medida em que
revelar a sabedoria, e nos ocupamos da ela age intencionalmente e com isso
sabedoria para possibilitar a dedicação de prejudica os outros. Se uma pessoa ajuda
méritos. outra por compaixão, ela não gera carma
ruim. Se por negligência ela solta no mundo
Uma pessoa morre e deixa um testamento, uma pessoa que vai continuar causando
nele ela diz que todos os bens devem ser negatividade, então, nesse caso ela gera
doados aos pobres e instituições de mau carma ligado a sua negligência.
caridades. Mesmo depois de morta, essa
pessoa acumula esses méritos? Mas então não é necessariamente
negligência? Digo, ele sabe que o rapaz
Claro. Se uma pessoa se inspira por um matou alguém, e o ajuda a ser absolvido
poeta que morreu há séculos, mesmo que porque esta é sua profissão. E ajudar
ele não tivesse intenção de publicar aquele alguém por compaixão, mesmo que isso
poema, ele gera muitos méritos. Que dizer acabe causando mal de outra pessoa, ainda
então de ações de generosidade que é uma boa ação?
perpassam gerações?
Pode ser negligência ou não. Se ele o
Mas também é possível dizer que ela já gera absolve sabendo e podendo saber que ele
os méritos ao fazer o testamento. pode cometer mais crimes, é negligência.
Senão, a pena humana não é substituta para
Supondo que alguém doe dinheiro para um o sofrimento que inevitavelmente ele vai
mendigo na rua e depois esse dinheiro seja ter. Na visão budista a prisão só é adequada
gasto com drogas, por exemplo. Mesmo se não é punitiva, mas para evitar que
que a motivação do doador seja positiva, cometam crimes, e, para, se possível,
como fica essa questão? recuperar a pessoa de forma que ela seja
confiável novamente.
O carma é essencialmente bom, com
elementos ruins na medida da indiferença e Então, um advogado que absolva alguém
negligência com que foi oferecido o em que ele não deveria confiar, porque vai
dinheiro. Além de estar atento, interessado seguir cometendo crimes, esse advogado
e cuidar do outro ao máximo, também, ao gera mau carma. Já um advogado que
fazer oferendas, devemos abandonar os absolve alguém que não cometerá mais
preconceitos. crimes, não gera carma.

Um advogado defendendo um assassino, e Vou repetir: na medida em que criação de


talvez até o absolvendo, estará gerando sofrimento e intenção negativa (mesmo que
carma negativo para si? indiferença, negligência) estejam juntas,
nessa mesma medida o carma (a causa do
sofrimento futuro) é gerado.

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Em outras palavras, a ética budista em


A prática de compaixão inclui pensar nos muito se coaduna com a ética convencional
outros, então não é compassivo soltar do jornalismo, que todo mundo entende,
alguém de quem se tem bons motivos para mas que poucas pessoas seguem, num
desconfiar vai causar sofrimento aos outros. mundo em que o lucro e a popularidade
É, de fato, uma desvirtude, vai gerar mau parecem os fatores mais importantes. A
carma. estrutura das grandes corporações da
informação muitas vezes não permite que
Um jornalista que por exemplo trabalha uma pessoa seja ética na prática do
fazendo investigações sobre a possível má jornalismo — daí a pessoa precisa pesar
conduta de agentes públicos está gerando bem, e se o benefício que ela trás não for
um carma ruim ao denunciar falhas, gestão superior aos problemas que ela gera no
em causa própria e corrupção, sabendo mundo, em alguns casos pode ser adequado
esse profissional que seu trabalho abandonar a profissão por não ser
prejudicará o denunciado? conducente a uma vida feliz para si e para
os outros.
Não, a não ser que ele não tenha evidências
e seja uma denúncia vazia. De outra forma Não consigo acreditar que estou adquirindo
faz parte da regulação de um estado todos esses méritos incríveis só porque
democrático o "quarto poder", isto é, a acendi umas velas desejando que o
denúncia pela imprensa livre. Ao ser sofrimento do mundo acabe. O que você
negligente e não denunciar falhas, pode dizer sobre isso?
interesses não republicanos e corrupção, aí
sim, ele de fato estará gerando mau carma. Tudo que é feito com boa intenção na
direção do darma, produz um mérito
Veja que há uma diferença entre uma exponencialmente multiplicado através da
pessoa pública, e em cargo público, e a conexão e interdependência dessa ação
denúncia quanto as faltas de uma pessoa com as ações de todos os Budas e
comum. No caso da pessoa comum, se for o Bodisatvas do passado, do presente e do
caso, procura-se uma autoridade que possa futuro. Então mesmo uma oferenda
impedir aquela pessoa de cometer a falta — simbólica feita com com essa
e em qualquer caso que não vise remediar a interdependência e uma boa intenção com
situação, mas mero sensacionalismo, isto é certeza produz muito mais méritos do que
inadequado. Em outras palavras, o outras ações no mundo, motivadas pelo
jornalismo que expõe, digamos, o mero autocentramento, ou motivadas pelo
alcoolismo de uma pessoa famosa para benefício meramente temporário dos
meramente animar as emoções torpes do outros. O que não quer dizer que se deva
público, está gerando mau carma enquanto abandonar qualquer atividade meritória,
jornalista. mesmo que ela não tenha interdependência
explícita com as atividades formais de

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praticantes do passado, e os meios hábeis através da prática com a visualização do


ensinados por seres realizados. Se ela for Buda Vajrasatva, que fez, enquanto no
virtuosa, ou mesmo apenas tiver a caminho, o voto de ajudar com esse tipo de
aparência de ser virtuosa (não produzir questão.
benefício "palpável"), e for feita no
contexto da dedicação de méritos e com É uma prática feita por todos que praticam
motivação pura, ela é importante. Isso o vajrayana, independente de escola ou
porque antes de tudo, o darma é um linhagem.
treinamento da mente para abandonar a
reificação da energia de hábito que nos É possível a anulação do carma por meio da
afasta da virtude, então mesmo um "teatro" redenção e arrependimento de seus atos
virtuoso tem impacto sobre a mente. A negativos?
prática formal É artificial, e também por isso
é especificamente desenhada para lidar Não, o método para purificar carma (sem
com a energia teimosa de nossos hábitos sofrer as consequências dele) é particular
arraigados. do vajrayana. É preciso aprendê-lo de um
professor qualificado. O remorso ou
Existem "banhos", rituais ou "trabalhos arrependimento é apenas uma de quatro
energéticos" para "amenizar o carma"? Tais etapas necessárias.
práticas têm alguma utilidade no budismo?
E a meditação, melhora o carma? Quais são todas as etapas?

Não. Quanto a última pergunta: a 1. Reconhecer o erro; 2. Arrepender-se; 3.


meditação pode produzir carma positivo, e Confessar (perante uma fonte de refúgio);
no vajrayana existem meditações muito 4. Fazer o voto de não repetir.
específicas para purificar carma mais
velozmente, mas no geral a meditação só É a etapa 3, e o método através de mantra
produz carma positivo, sem influenciar no e visualização, que determina que tipo de
carma já gerado. purificação é efetivada. No mahayana
confessa-se para a sanga, ou para o amigo
Quando a gente percebe que fez no passado espiritual, ou para um Buda visualizado. No
coisas que possivelmente geraram carma vajrayana confessa-se com uma
muito ruim, o que é possível fazer para visualização bastante específica. Assim, no
tentar purificar isto? mahayana a purificação é efetiva mas não
muito ampla, e no vajrayana ela é efetiva e
Remorso, confissão, votos de não repetir e ampla — no sentido de que se ela é feita de
aceitação, paciência consigo mesmo. Há, acordo com os métodos ensinados numa
nas várias formas de budismo, métodos linhagem pura, os sofrimentos gerados por
diversos. No vajrayana esses quatro aquela ação negativa são totalmente
métodos são estendidos vastamente extirpados. Mas mesmo a purificação no

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nível mahayana é extremamente benéfica e Nós, que somos mais tímidos, pedimos para
essencial para a prática — isto é, é essencial que o carma fique lá, escondidinho, para
fazer essa prática continuamente, dia após quando desenvolvermos essa visão
dia, em qualquer caso. destemida.

Há alguma forma de dar um calote no De que forma que a vítima de uma agressão
carma? pode usar o fato como purificação de
carma?
Quando se diz "dar calote" no carma se quer
dizer que a pessoa não deve achar que Isso, ela naturalmente purifica carma ao
sofrendo voluntariamente ela vai estar sofrer não voluntariamente. Na medida que
pagando alguma coisa. Se ela pode não ela se coloca disponível ao sofrimento, sem
sofrer, ela deve evitar o sofrimento — ela que isso seja benéfico a ninguém, nessa
não precisa, só porque se considera culpada medida não haverá purificação. É
de algo, ficar numa situação de sofrimento. importante explicar isso, porque senão a
próxima pergunta será "porque um Budista
Gerar mérito e sabedoria é a melhor não se autoflagela para purificar carma, ou
proteção quanto ao carma. Você cria não manda alguém bater nele?"
circunstâncias boas e assim o que seriam
500 bilhões de anos no inferno se Porém, na medida em que ela sente raiva ou
transformam em 15 minutos de dor de outras aflições mentais com relação ao
cabeça. agressor, ela gera novas propensões, e se
ela revida em corpo, fala ou mente
Enfim, quando uma pessoa está muito (planejando um revide), embasada em
próxima da realização, ela chama todos os aflições, e não em compaixão por si própria
credores cármicos para devorarem dela e pelo agressor, ela gera carma. Então ela
tudo que puder ser devorado. Em outras não aproveita a oportunidade de purificar o
palavras, tudo que pode ser devorado, carma sem gerar mais carma, que é gerar
destruído, não é fonte de refúgio. Estivemos compaixão.
dando solidez e criando apego por este
corpo e essas coisas em que confiamos, mas Se a pessoa tem uma doença, por exemplo,
nenhuma dessas coisas é causa verdadeira e fica autocentrada, ela não purifica muito
de felicidade. Assim, uma pessoa que esteja carma. Agora, se ela gera compaixão
acima da esperança e do medo chama os através do próprio sofrimento, porque
demônios para um banquete, e assim entende melhor o sofrimento de muitos
purifica vastas quantidades de carma — ou outros com a mesma condição, ela purifica
o esgota completamente — numa única muito carma e gera mérito.
vida, numa única sessão de prática.
Por isso é uma oportunidade em aberto, ao
contrário de outras tradições, onde o

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sofrimento é sempre um "ensinamento". (ou aversão, ou outro veneno ou aflição


No budismo você pode transformar o mental compostos) tenham permitido
sofrimento numa boa coisa, ou pelo menos aquela morte em particular (o juiz, os
praticar algo bom em meio ao sofrimento, carrascos, o júri etc.). Isto com relação ao
mas depende só de você. carma de matar, que precisa ser específico
— você tem carma ruim ao causar a morte
Não há casos em que um pequeno sem um alvo específico, mas não é o carma
sofrimento no curto prazo nos poupa de (ruim) completo de matar (por isso comprar
muito sofrimento no longo prazo? Mas carne é carma ruim mas não é carma de
somos muitas vezes míopes e não matar). Assim, por exemplo, os legisladores
conseguimos avaliar direito. Como lidar e governantes tem carma ruim ao legislar
com essas substituições intertemporais de pena de morte (e todos que apoiam, ou
sofrimento? meramente regozijam), mas não é o carma
de matar. O carma completo de matar exige
Não precisamos sofrer se o sofrimento for que o alvo, o objeto, aquele que morre, seja
evitável, a não ser que tenhamos boas conhecido, e não uma generalização. Então
justificativas, de acordo com nosso se você regozija com a pena de morte, você
entendimento atual, de que o sofrimento tem um carma ruim — mas o carma pior é
vale a pena no longo prazo. Se temos um quando você regozija pela morte de um
âmbito temporal realmente curto, de detento em particular. A diferença é entre o
alguns minutos ou meses, precisamos alvo do seu regozijo ser uma abstração ou
desenvolver uma visão de anos e, uma pessoa específica. Mas todo carma
considerando ou não o renascimento, ruim, é... ruim.
centenas e milhares de anos — pelo menos
em boa motivação para com os outros, que O cap. X (8-12) do Darmapada
é o que traz verdadeira felicidade aqui e aparentemente fala de um monte de
agora também. castigos já nesta vida para quem fere os
mansos e os que se comportam bem. É
A própria prática budista, meditação, por assim mesmo ou isso é licença poética?
exemplo, dificilmente é agradável por um
longo tempo no início. Mas não devemos O resultado de carma negativo sempre
igualar o que é agradável com o que é pode se dar nessa mesma vida. Não temos
benéfico, também desde o princípio. certeza sobre quando ele vai se manifestar.

Nos países em que há pena de morte, para Aprendi que no budismo o carma não é
quem vai o eventual mau carma das visto como um castigo, mas sim como o
execuções? reflexo de estruturas mentais. Como então
o budismo explica acidentes trágicos com
Para quem quer que regozije com a morte. pessoas que ajudam muito as outras?
Também para aqueles que por negligência

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Se o carma fosse tão linear, nenhum ladrão Tudo é carma? Ou seja: uma criança que
poderia experimentar felicidade após o sofre qualquer tipo de violência está
crime, mas de fato há muita felicidade falsa pagando por erros cometidos no passado?
em usufruir do roubo, talvez por toda uma
vida. Não obstante, em vidas futuras o Sim, todo sofrimento vem de produzir
sofrimento causado se manifesta. sofrimento no passado. Mas não existe a
noção de "pagar", porque se a pessoa
Da mesma forma, todos nós temos muito (criança) apenas sente raiva enquanto está
carma positivo e negativo acumulados por sofrendo, ela está apenas gerando mais
incontáveis vidas sucessivas. Se todo nosso carma — então ela não purifica nada. É um
carma negativo se manifestasse agora, pouco pior, por certo ângulo.
mesmo que nessa vida não tenhamos feito
nada de errado, vivenciaríamos um Por outro lado, é incorreto pensar "ela fez,
sofrimento muito pior do que uma morte agora paga", e não ajudar por algum motivo
em uma catástrofe. de vingança "na vida passada ela foi um
assassino, agora tem o que merece". O
Da mesma forma, nosso carma positivo não ensinamento de carma não nos dá nenhum
se manifesta todo de uma vez. tipo de perspectiva de "vingança" impessoal
da natureza, e sim a perspectiva de grande
As causas e condições precisam se formar, compaixão por aqueles que produzem hoje
para então a nossa experiência subjetiva as causas de grande sofrimento futuro.
colocar um rótulo positivo ou negativo nela, Então em vez de ficar "satisfeito" pelo
de acordo com tendências habituais de sofrimento da criança hoje, por más ações
muitas vidas acumuladas. do passado, você fica é triste pelos que hoje
cometem más ações, porque eles vão sofrer
Se o carma funcionasse de forma imediata como ela. Isso nos faz ter compaixão de
ou relativamente imediata, ninguém quem produz sofrimento, não só de quem
cometeria desvirtude. As pessoas cometem simplesmente sofre.
desvirtude porque não sabem que estão
bebendo veneno. Se elas passassem mal Se a pessoa não tem essa perspectiva, ela
após o primeiro gole, não tomariam o apenas pensa em culpa e responsabilidade
segundo. Elas seguem bebendo veneno — e o ponto aqui é compaixão. Você não diz
porque parece gostoso, até que um dia o "muito bem", não está nada bem. E quando
colesterol finalmente entope uma veia você mesmo sofre, você não pensa apenas
crucial. Mesmo que ela saiba que vai "puxa, eu fiz algo muito errado", você pensa
entupir, ela segue mais o impulso e o hábito "que ninguém passe pelo que estou
do que o conhecimento de que no futuro passando", isto é, que ninguém gere estes
aquilo vai dar errado. resultados. Essa é a perspectiva correta com
relação ao carma. Em outras palavras,
quando vemos um malfeitor sofrendo (e só

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quem sofre é malfeitor), nós não mau carma? E se é pelo carma, qual o
regozijamos, nós temos compaixão. Da sentido de se tomar vacinas e remédios?
mesma forma, quando vemos um malfeitor
se "dando bem", nós não ficamos com raiva, A causa primária de todo sofrimento é a
mas apenas novamente, temos compaixão, ignorância. Ela produz o mau carma, que
porque sabemos que eventualmente as produz as fragilidades, que produzem as
causas encontrarão condições de produzir causas eficientes. Você pode extirpar o
resultados — gerando sofrimento. sofrimento pelos ramos ou pela raiz, e de
fato, do jeito que você puder. Mas é melhor
Compaixão na causa e no resultado. Essa é pela raiz. Enquanto você não elimina a
a perspectiva correta. Ademais, carma é um ignorância, você lida com as causas
ensinamento provisório, isto é, não é o que eficientes, indo no médico e tomando
de mais profundo o Buda ensinou. É remédios. Uma coisa não exclui a outra, e
essencial refletir sobre carma, mas também você não precisa abandonar nenhuma
é essencial refletir sobre a tentativa de evitar o sofrimento.
insubstancialidade de todas as causas e
condições como sonhos bons e pesadelos. Mas é importante entender uma causa que
explica o funcionamento de algo (causa
Até se uma pessoa é destra, canhoto ou eficiente) e uma causa que explica o porquê
ambidestra é por causa do carma? último de algo (causa primária) — essa é
uma diferença teísta e aristotélica, mas
Claro, até se uma pessoa tem uma pintinha serve nesse contexto. Se a pessoa tem um
no nariz. Não existe no budismo efeito sem determinado distúrbio no corpo, você pode
causa. dizer que é por causa de uma bactéria —
mas porque o sistema imunológico dessa
Porque algumas pessoas morrem mais cedo pessoa deixou a bactéria entrar e ficar? Daí
que outras? Seria efeito do carma? você vai para ambiente e genética. Mas
porque o ambiente é assim? Porque a
Sim, a morte extemporânea, fora de hora — genética é assim? Por causa do carma. E
isto é, numa idade em que normalmente porque o carma é carma? Por causa da
não se espera que a pessoa devesse morrer ignorância. Essa é a causa primária.
— se deve a ter matado seres, nesta ou em
outras vidas. Assim, se a pessoa quer ter O budismo não acaba vendo deficientes,
uma longa vida, e ter o mérito de uma longa por exemplo, de uma forma que pode ser
vida nesta e em outras vidas, ela deve injusta, já que suas mazelas são
proteger a vida de outros seres. consequência de algo que fizeram? Isto não
é apenas um dogma?
Afinal, as doenças são causadas por
bactérias, vírus e defeitos genéticos ou pelo Qualquer coisa que produza sofrimento é
fruto de mau carma. Não existe sofrimento

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sem ações negativas que o geraram. No sofrendo de câncer no hospital você precisa
entanto, em vez de nos focarmos no desenvolver por aquele que hoje mata e
preconceito nas pessoas que sofrem devido vende drogas, e que está gerando
a suas ações passadas, que tal evitar sofrimentos ainda maiores para si no
completamente o preconceito contra futuro. Olhar uma pessoa que sofre ou que
aquelas que agem negativamente? Todos vai sofrer e ver apenas um culpado é grande
nós temos o potencial para qualquer ação ignorância.
negativa, por pior que seja. Porque então
nos consideramos melhores ou olhamos "A mesma compaixão (...) você precisa
com desdém para aquelas que agem, hoje, desenvolver por aquele que hoje mata e
negativamente? Eles são objetos de vende drogas" Se o budismo é verdadeiro,
compaixão maior do que aqueles que tudo bem. Mas se é equivocado, essa
sofrem os frutos de suas ações passadas. negação da responsabilidade dos seres por
Não é vergonha nenhuma sofrer — há seus atos me parece perniciosa. Não é?
grande vergonha em olhar para aqueles que
agem negativamente (agora e no passado) Carma é responsabilidade. O que é negado
com uma mente preconceituosa. é culpa. Onde você leu que não há
responsabilidade?
Justiça é ver os seres com equanimidade,
sem preferir uns pelos outros, sem vê-los Evidentemente que não é pernicioso, caso
nas suas necessidades peculiares. Injustiça contrário as civilizações budistas — onde
seria, por exemplo, uma visão que tivesse todos acreditam nessas coisas, e onde,
por um deficiente maior compaixão do que embora existam poucos crimes, existem
por alguém que, agora, age negativamente. crimes — seriam consideradas bárbaras e
Mas as pessoas são assim, de um elas infelizes — o que não acontece. De fato,
sentem pena, do outro aversão e raiva. essa seria a verdadeira atitude de um
Justiça é evitar pena por um e desprezo por cristão também — para um cristão que leve
outros, e usar simplesmente a compaixão. a sério a palavra do Novo Testamento.

E, ademais, ninguém precisa acatar nenhum A ideia de julgar quem comete negatividade
ensinamento budista sem o colocar em como se aquela negatividade fosse algo
teste. Então, por definição, não existem mais que um obscurecimento adventício,
dogmas no budismo. Nesse caso que você que seja uma espécie de marca permanente
cita, uma mera reflexão sobre compaixão e de mal cravada no cerne daquele ser, é a
equanimidade — ausência de preconceitos ideia mais perniciosa que existe. É a
— já purifica qualquer ideia errônea que reificação do "eu" assumindo sua mais
uma pessoa que pensou as coisas pela hedionda forma.
metade poderia ter com relação ao
ensinamento do carma. A mesma "Ninguém precisa acatar nenhum
compaixão que você tem pelas crianças ensinamento budista sem o colocar em

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teste" Como se pode colocar em teste de realidade ou as coisas que acontecem sigam
maneira razoável a afirmação de que a necessariamente ditames e expectativas de
deficiência adquirida ou congênita de seres humanos ou divinos. Já que não há
alguém é fruto de mau carma? uma noção de criação, as coisas podem
perfeitamente não ser justas. O Buda não
Através da prática de meditação. Ao tem responsabilidade nenhuma pelas coisas
estabilizar seu foco, regular a exposição, serem do jeito que são — ele apenas ensina
encontrar a nitidez perfeita para a análise um caminho para superarmos o sofrimento,
dos fenômenos internos e externos, a que é também uma experiência de ser
interdependência se torna clara. senciente, não uma coisa que exista por si
Eventualmente você pode até lembrar das só na estrutura das coisas.
incontáveis vezes em que você mesmo foi
deficiente (porque se fixar nisso? Cada Depois, essa pergunta é comum e creio que
circunstância em que você sofreu, até por já a respondi algumas vezes. O fato da
um motivo frívolo), e cada uma das causas. pessoa não saber que fez algo de errado não
a exime da responsabilidade pelo que fez:
Um conhecimento completo de todas as se sofremos algo hoje, é porque em
causas e condições só um Buda pode ter. momentos passados causamos sofrimento.
Mas um conhecimento parcial de Se hoje somos virtuosos e causamos
carma/interdependência é razoavelmente felicidade aos outros, é bem provável que
fácil de obter. E, além disso, pensar de nossas experiências futuras reflitam estas
acordo com isso, aceitar o experimento de ações — mas todos nós temos uma pilha de
pensamento, é o mais benéfico para você e experiências boas e ruins criadas por ações
para os outros. Então a pessoa já se no passado, e o momento em que essas
beneficia no mero examinar experiências ocorrerão é totalmente
cuidadosamente essa questão e fazer os indeterminado.
experimentos.
De outra forma, não "pagamos" através de
Como o budismo explica o porquê de coisas sofrimento: nós purificamos o carma, não o
horríveis acontecerem com determinadas "pagamos". Essa é uma diferença crucial.
pessoas? Se for para "pagar por suas Não há uma contabilidade, nem uma culpa.
atitudes na outra vida" como existiria uma Há apenas responsabilidade, e o fato, até
"justiça" nisso, caso a pessoa seja uma mesmo confortador, de que as experiências
pessoa realmente boa/pura nessa de sofrimento tem origem no fato de que
encarnação? causamos sofrimento a outros — mesmo
que sejamos quase perfeitamente virtuosos
Bom, primeiro você está supondo que o nessa vida, vamos reconhecer algumas
budismo considere o samsara justo: ele não ações nossas que causaram sofrimento. Da
necessariamente é justo. Justiça é um valor mesma forma que fomos capazes dessas
humano. No budismo não se propõe que a pequenas ações, podemos, no passado e no

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futuro, ter causado/causar sofrimento, e vir Quando olhamos alguém perpetrando um


a sofrer as consequências. Dessa forma crime, devemos ter mais compaixão do
todos os nossos sofrimentos atuais nos criminoso do que da vítima. A vítima não
lembram do sofrimento dos outros, isso tira está gerando sofrimento futuro, e o
o peso de nosso próprio sofrimento, já que sofrimento atual dela pode ser usado como
desenvolvemos compaixão por outros que purificação. Ela está em situação muito
sofrem da mesma forma, e mais do que isso, melhor que o agressor. O agressor sim,
desenvolvemos compaixão por aqueles que quanto vai sofrer depois? A nossa
causaram esses sofrimentos, inclusive nós fragilidade, o fato de que temos um telhado
mesmos, porque agora conhecemos o de vidro disponível para o agressor, vem do
resultado dessas ações. fato que criamos condições para isso no
passado.
É mais nesse sentido a reflexão sobre o
carma do que nos fazer sentirmo-nos Enquanto se agir pensando no agressor
culpados ou impotentes perante o como uma entidade externa capaz de
sofrimento. produzir sofrimento, nunca irão cessar as
causas de sofrimento. Sabedoria é
No conflito entre China e Tibete, exílio dos reconhecer a realidade da inseparatividade,
tibetanos, etc. não está havendo injustiça? e portanto, ser capaz de compaixão. Essa é
a diferença essencial entre um praticante e
Só se você acredita que o sofrimento é um não praticante: se você age por raiva,
realmente causado por um agente externo, você não está praticando. Você precisa agir
então você é simplesmente uma pessoa por compaixão, e então você pode, com a
com visão convencional. Já um praticante — sua compaixão, fazer o que for possível para
e isso vemos vez após vez os lamas, alguns beneficiar o agressor. Beneficiar o agressor
que foram torturados, dizerem — vê o que significa encerrar sua negatividade — da
sofre como carma. E tem compaixão dos forma que for possível. Se você não
agressores. encerrar a negatividade do agressor, sendo
capaz disso, você não tem compaixão, nem
Por compaixão pelos agressores é que sabedoria. Se você é capaz de liberar o
devemos evitar que eles produzam mau agressor e não libera, onde está sua
carma, e portanto fazer o possível para compaixão? Com compaixão você pode
evitar suas ações negativas. Pela indignação usar quaisquer meios para liberar o
de uma noção de justiça embasada na agressor — sem compaixão, mesmo que
crença da existência inerente de um "eu" o você fique passivamente sofrendo, você
sofrimento só vai se proliferar. gera mais carma e não beneficia ninguém.
Muito mais carma ainda, se revidar, ou
É difícil de entender que se não temos regozijar.
carma, o agressor não é capaz de nos
agredir? Ele é um agente de purificação.

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Você precisa incluir o agressor em sua Os sofrimentos e prazeres inimagináveis


mandala. E o agressor nesse caso, o povo dos reinos bem inferiores e bem superiores
chinês, é tão fácil de incluir... eles são são ensinados exatamente para rompermos
vítimas de ideologias estrangeiras, cheias de com nossa fixação na nossa perspectiva
visões errôneas, o materialismo totalitarista humana limitada. Ao desenvolver
marxista — e agora com uma pitada do que compaixão por essas situações muito
é pior no capitalismo — como não ter extremas, o que acontece é que nossa
compaixão? própria mente se flexibiliza.

Às vezes, quando eu falo essas coisas, me O samsara não é o mundo, mas um sonho
surpreendo que o que as pessoas sabem causado por aflições mentais. O maior
sobre budismo são coisas como "desapego problema das pessoas que não acreditam
de posses materiais" e "reencarnação". Esse em infernos e reino dos deuses não é elas
tipo de visão é googolplex vezes mais não acreditarem nesses reinos, mas elas
importante do que abandonar posses (e isso acreditarem demais na experiência
só é importante para o hinayana, a forma humana, e não serem capazes de duvidar
mais inferior de budismo), e bem mais dessa experiência — e, mais importante,
importante que a noção de renascimento. reconhecer sua transitoriedade.
Sua Santidade o Dalai Lama chega a dizer
que isso é mais importante do que o refúgio Segundo o budismo, esse corpo aqui
no Buda — e até pelo simples autointeresse, também é um corpo sonhado — e não só é
se a pessoa refletir bem e fizer os sonhado, mas é foco de grande apego, que
experimentos, sem se filiar a religião é uma distorção emocional, nós confiamos
alguma e fazer prática alguma, a pessoa muito nele, nós nos identificamos com ele
deveria adotar tal visão. — e isso leva ao sofrimento, porque ele
evidentemente não dura muito.

A noção de carma do budismo parece meio Em essência, por exemplo, todos nós somos
radical demais. Não consigo, por exemplo, capazes da mesma compaixão. No nível
sequer imaginar o que um ser teria que atômico, o mesmo número de átomos de
fazer para merecer uma temporada em um led, a lampadinha que indica que o Caps
alguns dos infernos que os textos Lock do seu teclado está acionado ou não, e
descrevem. Parece injusto, cruel demais. de uma estrela tem a exata mesma energia.
Se tem a mesma massa, eles tem a mesma
"Se eu acredito no Carma? Não, eu não energia. Mas, por causas e condições, um
acredito. Se eu pratico de acordo com o está sendo excitado por um pouquinho de
carma? Sim, eu pratico." Essas foram as eletricidade, e o outro está no meio de uma
palavras de Phakchok Rinpoche ensinando reação termonuclear, assim essa energia
aqui no Brasil. num caso liberada e no outro apenas um
pouquinho de luz é emitida. Da mesma

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forma, podemos desconfiar de assimetrias budismo o mundo não tem características


muito mais profundas, em termos de pessoais. Ele não espelha nenhum tipo de
felicidade e sofrimento, do que as que qualidade que um ser inteligente poderia
estamos acostumados como humanos. ter.

Mesmo que porventura não existisse o Carma é um ensinamento interessante por


inferno, ou o reino dos deuses, refletir sobre duas razões: uma, ele não é tão importante
extremos de felicidade maiores do que os quanto parece. Carma, e o ensinamento
que achamos possíveis é imprescindível. O sobre carma, faz parte da ignorância, da
maior benefício de pensar nessas coisas não delusão. É um ensinamento temporário,
é vir a acreditar em algo, mas duvidar para seres com problemas mais
melhor da experiência humana e de seus fundamentais. Claro, nós estamos nessa
limites. classe, e faz todo sentido refletir sobre
carma. Mas desde o princípio é bom saber
O ponto essencial é que vemos o sofrimento que o carma, todo o carma, pertence à
— algumas vezes sofrimentos enormes, no mente ignorante. Em outras palavras, o
reino humano, e não vemos as causas deles. carma é vazio, não tem existência
O carma dá uma explicação, que é intrínseca, não é independente, é
basicamente o fato de que o sofrimento temporário, é composto. Tendo isso em
tem causa, não é "gratuito", não é aleatório. mente, o segundo aspecto interessante é
que só um Buda entende carma. Os textos
Sem entrar no mérito do que é real, a dizem que um Buda é capaz de olhar para a
vantagem em acreditar num mundo que cauda de um pavão e saber a causa de cada
tem coerência, é que você tem algum poder uma das cores. Ou seja, ele entende como
sobre esse mundo. Se o mundo não tem cada ação passada causou aquele DNA
coerência alguma, então caímos no especifico e não outro.
existencialismo, niilismo, desespero e assim
por diante. Que o mundo seja assim é um Os animais também geram carma? Se sim,
fato, mas mesmo que o mundo não fosse como ele funciona? Como o animal sabe o
assim, seria vantajoso se iludir dessa forma. que está fazendo?

E não só vemos grandes sofrimentos — no Animais geram carma porque possuem


reino humano mesmo — mas vemos muita aversão, desejo e ignorância. O mais difícil é
ação negativa. entender como certos animais gerariam
carma positivo — e há alguns que geram
Não há justiça nenhuma no carma, como praticamente nenhum carma positivo em
não há justiça na água ferver porque foi toda sua existência — portanto é uma
esquentada. Justiça é um atributo pessoal circunstância bem triste, é quase como um
— se você é teísta, então o mundo espelha gatilho pronto para renascimentos ainda
algo da justiça de sua divindade. Mas no inferiores. Mas, por sorte, o carma é

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impermanente, e uma hora, após centenas sua vida de gato) refletir sobre suas ações e
de vidas em renascimentos inferiores, pode tentar direcionar seus hábitos. Ainda assim,
começar uma curva ascendente. facilmente reparamos que há gatos de
melhor ou pior índole — mesmo que
Não saber o que se está fazendo faz parte tenham recebido basicamente o mesmo
da geração de carma ruim em qualquer dos tratamento quando filhotes. Isso indica que
reinos. Um ser humano não sabe também o há diversidade genética, mas que mais do
que está fazendo quando cria as causas de que isso, há diversidade na formação de
sofrimento futuro. Se soubesse, não agiria hábitos (que segundo o budismo, é o que
assim. Sabedoria é bem diferente de está por trás de um ser surgir em meio a
racionalidade, e os animais possuem uma determinada configuração genética e
alguma racionalidade, ainda que ambiental).
rudimentar.
A simpatia que uma pessoa tem por uma
A ideia de que os animais são irracionais é espécie animal em detrimento de outras
teísta, embasada na ideia de que alguns pode ter relação com vidas passadas?
seres são criados diferentes. Se a pessoa
acredita na evolução das espécies, então ela Sim, mas não necessariamente porque ela
é obrigada a concordar que não existe nada renasceu mais como aquele animal — pode
essencialmente diferente entre um homem simplesmente ter desenvolvido o hábito,
e um outro mamífero qualquer, ou pelo como pode ter desenvolvido o hábito nessa
menos um outro ser qualquer com um vida.
cérebro razoavelmente desenvolvido. Não é
uma diferença qualitativa, é uma diferença Vírus e bactérias que provocam doenças são
quantitativa. dignos de compaixão?

Gato ronronando gera bom carma? Só seres sencientes são dignos de


compaixão. No momento, em geral, não se
O ronronado ainda não é bem entendido, considera seres sem um sistema nervoso
mas se o gato, como alguns pesquisadores sencientes — mas há alguns professores
dizem, está expressando algo como "não budistas que dizem que já que uma bactéria
sou um perigo", sim, ele está gerando vai atrás de alimento e elimina dejetos e
mérito. Tudo depende da intenção do gato evita o que não é bom para ela — isso já
— e sim, o gato pode não ter grande clareza seria "proto-" apego e aversão, e assim,
de sua intenção, e por isso a chamamos de trataria-se de um ser digno de compaixão.
"instinto", ainda assim esse instinto foi De modo geral, no budismo, seres que não
criado por uma energia de hábito, ao longo sentem não são dignos de compaixão.
de muitas vidas — por isso é um Plantas não são dignas de compaixão (mas
renascimento relativamente ruim, já que isso não quer dizer que seja sempre certo
não há a menor possibilidade do gato (nesta matá-las). Bactérias são um caso ainda não

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resolvido, mas como no budismo há uma Essas teorias não são comprovadas. Se
série de seres sencientes sutis e minúsculos, forem, com certeza será útil pensar dessa
então, embora não sejam os mesmos, é forma.
adequado sentir compaixão pelos
incontáveis seres em qualquer milímetro Já que não há definição científica de
cúbico de ar. Se as bactérias por acaso consciência — nem uma boa definição de
forem sencientes, podemos incluí-las. "sentimento" fora da área da psicologia (em
que você precisa de expressões como a fala
Atrelar o caráter de senciente à presença de e os gestos). Então... o melhor conselho é
um sistema nervoso não é materialista? que, se você quiser ter compaixão até
mesmo por uma mesa, tudo bem, pode
Esse critério é o máximo que a ciência atual ajudar no seu treinamento de compaixão.
pode prover. Podemos utilizá-lo "com um
grão de sal". O critério budista efetivo é a Se todo mau sofrido é consequência de
verificação empírica, através da prática de ações passadas, como se deram os
meditação. primeiros crimes?

Plantas não são dignas de compaixão?! Eu No sentido relativo, todo sofrimento vem
pensava que existia alguma evidência de de ações passadas. No sentido absoluto,
que elas têm sentimentos. Especialmente não há os três tempos de passado presente
as plantas carnívoras. Se uma colônia de e futuro. O Buda não respondia perguntas
cupins está destruindo uma árvore de 200 sobre causas primeiras porque elas
anos, de que lado ficar? Simpatizo mais com invariavelmente não levam a nada.
a árvore.
O Buda aconselhava a analisar, na nossa
As plantas carnívoras são um objeto de experiência diária, se produzir sofrimento
debate no budismo, mas ainda há consenso aos outros não causava sofrimento em nós
de que plantas não tem sensações, muito mesmos, e daí ampliar indefinidamente
menos sentimentos — e portanto não são para o passado e para o futuro.
seres sencientes, e não são objetos Indefinidamente é uma boa palavra. Não há
apropriados de compaixão. Os cupins, por primeiras causas no budismo, porque um
outro lado, com certeza são, ainda mais um sonho não é algo autocontido. Você já viu
número grande deles. um sonho começar? Quando você acorda,
você lembra uma experiência, e lembra uma
Li que as plantas possuem um sistema sequência de fatos, mas não lembra como,
nervoso químico, e que seres unicelulares quando e porque esse sonho começou. E de
agem como uma grande rede consciente. fato, a hora no sonho é a mesma hora
Para mim, tudo é digno de compaixão. acordado?
Porque não seria assim?

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Para o budismo tudo que diz respeito a simplesmente não poderiam se libertar do
carma ocorre no tecido do sonho. samsara, isto é, não haveria Budas. Um
Buda é exatamente alguém totalmente livre
Com relação a sua resposta à "tudo é de impulsos do hábito, e que age
carma?" Se todo mal sofrido hoje é totalmente livre. Ele não possui carma
consequência de más ações passadas, os nenhum.
que praticam crimes hoje são impelidos por
alguma força? Ou seja, são instrumentos do Então é possível agir além dos impulsos, os
carma? impulsos não são totalmente
determinados, e o carma pode ser
Não. O carma é a ação em si, e a ação ocorre esgotado. Mas, na nossa situação atual, não
por uma combinação de fatores externos e temos liberdade e agimos por impulsos, que
internos — mas o fator determinante não é são em certo grau determinados, e portanto
causal, é de, propriamente, um agente não temos liberdade. Aquilo que o fumante
incondicionado. Se tudo fosse chama de "liberdade", no budismo é
condicionado, não haveria possibilidade de chamado de aprisionamento. Tem a
alguém acabar com carma. Assim, por mais aparência de uma escolha deliberada, mas
que as circunstâncias externas e internas não é.
levem alguém a cometer algo, existe
sempre uma liberdade, que é a natureza de Existe motivação e ação dentro do samsara
Buda. Apenas um Buda revelou essa que não surja exclusivamente do carma? É
natureza completamente, e portanto é correto considerar que quanto menos
completamente livre, e não gera carma condicionados, mais conseguimos agir por
algum. liberdade ou toda ação é necessariamente
cármica?
Todos os meus impulsos são devido a
carmas passados? É possível agir sem ser Existe uma confusão entre carma-ação e
influenciado pelo carma? carma-resultado. O carma resultado não
influencia decisivamente nas ações. Existe
Quanto a primeira pergunta: não! De forma sempre liberdade. A ação pode ser filtrada
alguma. Seus impulsos são em certa medida ou condicionada pelas aflições mentais, mas
moldados por hábitos e pelo resultado de sempre existe liberdade perante as aflições
carmas passados, mas não essencialmente. mentais — só não é muito frequente, para
Você sempre possui a liberdade de não agir nós, que temos prática ruim, exercê-la.
de acordo com os hábitos. Se suas ações
fossem determinadas simplesmente pelas Então sim, quanto menos condicionados
ações passadas, então não haveria pelos hábitos e aflições, mais livre é a ação
necessidade de prática — que é o que o — até a ação iluminada de um Buda, que é
liberta de seus impulsos habituais e permite totalmente livre de aflições, hábitos e
liberdade de ação. Nesse caso as pessoas condicionamentos. Esse potencial já está

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presente em todos os seres, mas em geral relação causal entre específicos (matei,
não é exercido. serei morto, ou viverei uma vida mais curta;
cometi conduta sexual imprópria, nascerei
Não há justiça e vingança divinas (nêmesis) em lugares sujos, com parceiros
no Budismo? desagradáveis, etc.)?

Não. O carma é absolutamente impessoal. Tudo que pode ser explicado quanto a isso,
o nexo causal ético como reconhecido pelos
Todos os seres ignorantes, é claro, podem meditadores no budismo, é, como todo o
cometer vingança, inclusive deuses resto do budismo, verificado
mundanos. Mas isto os fará sofrer no empiricamente através da prática.
futuro, e quem é vítima dessa "vingança" só
tem essa fragilidade por carmas que Uma situação particular não é normalmente
cometeu no passado — como acontece reconhecida como causada por outra
entre seres humanos. situação particular — só para quem possui
onisciência. Eu só posso inferir, de forma
Justiça é uma prática budista chamada geral, que se sofro, é porque causei
"equanimidade". Não é uma característica sofrimento. Os sofrimentos específicos e as
impessoal das coisas. A equanimidade causas específicas, só podem ser
implica ter compaixão por todos os seres reconhecidos através de uma "memória
que sofrem, independentemente de total", coisa que só um Buda possui. E
gostarmos ou não deles. generalizações são só isso: generalizações.
Isto é, de forma geral conduta sexual
O carma não é justo, ele é meramente imprópria provoca renascimento em
exato. Então, se há alguma justiça no lugares sujos. Nem sempre, mas os
budismo, é uma das qualidades a professores do passado afirmaram haver
desenvolver, não algo que existe e a que uma tendência de correlação (no caso mais
estamos simplesmente sujeitos. que correlação, algum nexo causal) entre as
duas coisas.
Quem faz a contabilidade do carma?
No budismo não há deus ou teologia
Se você esquentar a água, ela ferve. Não subjacente ao processo cármico: dentro do
precisa nenhum intermediário, tal como um contexto do carma, positivo ou negativo,
grupo de anjos, para fazer cada uma das tudo é sofrimento. O Buda não inventou
bolhas. nem criou o mundo e as regras da
ignorância. A ignorância opera totalmente
A menos que se pense no universo como independentemente da vontade do Buda.
dotado de um propósito moral, aplicando
uma justiça do tipo "olho por olho, dente Se você reparar, outras pessoas fazem
por dente", qual é o propósito de afirmar a perguntas exatamente ao estilo que você

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está fazendo, isto é, "mas porque o budismo Mas porque causas produzem efeitos
explica as coisas assim, isso não soa bem": correspondentes? Como essa determinação
do ponto de vista do budismo, ele não tem se forma?
responsabilidade, nem o Buda, sobre como
as coisas são. Apenas há uma depuração Na causalidade material é fácil de acreditar,
epistêmica dos modos de observação (é só não? Se você plantar uma semente de
através do reconhecimento direto das macieira, vai nascer maçã, e não jiló.
operações da mente que o nexo causal ético
pode ser reconhecido). Agora, se não soa Bom, a causalidade material é subsumida na
correto para você, o budismo não tem causalidade ética. Isto é, um pequeno
responsabilidade nenhuma sobre isso. Ou conjunto de coisas (como todo o nosso
você desiste de perseguir as únicas universo material) parece se portar de
ferramentas epistêmicas que permitiriam forma relativamente coerente (se isso,
esse exame, ou você as executa. Do jeito então aquilo), mas isso se deve ao fato de
que você fala, me parece que você nossas estruturas mentais produzirem esse
considera essas ideias absurdas ao ponto de tipo de sonho de materialidade.
não valerem o exame de, supostamente,
várias vidas de meditação. Então, não há Em outras palavras, a explicação funcional
muito que se possa fazer. (semente de maçã, macieira) é um
subconjunto pequeno da explicação ética:
O Buda (e o budismo por extensão) não tem os seres humanos e as maçãs existirem num
responsabilidade nenhuma sobre como as mesmo mundo e terem conexão, e uma
coisas são. As pessoas em contato com pessoa particular ter acesso a uma maçã
tradições outras pensam que, como há um particular num momento particular. Essa
deus criador, etc., justiça divina, um plano explicação não pode ser fornecida de forma
para as coisas, etc., que a explicação budista funcional, porque envolve agência.
também implique essas coisas, e esteja
talvez diretamente ligada a elas. O Buda não Porém há uma analogia entre a causalidade
é um "grande arquiteto", não tem funcional e a causalidade ética, elas não são
responsabilidade nenhuma senão sobre de forma alguma a mesma coisa, e nem se
como aliviar o sofrimento dos seres. O que portam exatamente da mesma forma: mas
se apresenta, não foi o Buda que fez, a sua elas tem o mesmo tipo de coerência causal.
ignorância, não foi o Buda que produziu. O Isto é, resultados quaisquer não surgem de
que o Buda apresenta é só uma uma ação determinada. De uma ação
identificação objetiva dos fatos através da determinada, surgem resultados
depuração de ferramentas epistêmicas determinados. O nexo opera exatamente da
(meditação). mesma forma.

Como os mundos todos, e todas as


conexões materiais, são pequenos

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subconjuntos das conexões éticas, isto é, o há estrutura, podemos nos rebelar contra a
mundo material é um pequeno subconjunto ignorância, e isso é o darma.
do mundo mental, fica fácil entender que as
relações causais também existem, de forma Mas eu não consigo reconhecer a causa de
análoga, nas conexões que não são um resultado cármico, embora eu consiga
meramente funcionais. Em outras palavras, reconhecer causas materiais, como uma
não pode nascer um tipo muito diferente de semente de maçã produzir uma macieira.
sofrimento para o agente um sofrimento Por que isso é assim?
causado por esse agente. Quer dizer,
algumas vezes pode ser difícil inferir uma Claro, eu e você podemos observar que
causa em particular a partir de um efeito, derrubar um copo de vidro da mesa, 99%
porque, da mesma forma que com o mundo das vezes, vai produzir a quebra do copo.
material, nem todas as variáveis são sempre Veja aí que há uma generalização, porque
conhecidas. Mas pela observação, mesmo em alguns casos o copo, dependendo da
sem entender porque, podemos inferir que construção, e também do material que
de determinados elementos, outros encontra no chão, não vai quebrar se cair de
elementos particulares surgem, e nunca uma determinada forma especifica. Mas de
certos outros elementos particulares. forma geral, essa é uma causalidade
imediata. Nada tem a ver com moral.
Num sentido último, o nexo causal (seja ele
material ou o mais amplo, ligado à mente), Quanto tempo levou para os seres humanos
é fruto da ignorância. As estruturas da entenderem que era a terra que girava em
ignorância possuem um efeito de torno do sol? Rádio e eletromagnetismo,
retroalimentação, que é a própria reificação quanto tempo demorou para observar,
ou teimosia, a renitência dos aspectos gerar os instrumentos, etc., para detectar
causais. De fato, o fato da ignorância ser essas coisas e entender suas causalidades
previsível (não exatamente racional, mas puramente materiais?
bastante determinada), é o que permite
que ela seja reconhecida e dissolvida. Se a Então, é claro, sem shamata, da mesma
ignorância fosse um processo totalmente forma que sem um laboratório, você
livre, ela não geraria o carma, e nem a consegue examinar parte bem pequena da
poderíamos identificar como ignorância. É causalidade (geralmente puramente
porque a ignorância se estrutura que uma material ou sensorial) que 1) opera dentro
estrutura pode ser reconhecida e do tempo que você consegue manter
derrubada. Se ela fosse apenas uma massa atenção; 2) dentro do escopo que os
amorfa de qualquer coisa (como algumas sentidos imediatos, pouco cultivados e sem
pessoas inferem a realidade seja, e são treinamento, podem exibir. Evidentemente
chamadas de "niilistas" pelo budismo), não um dos resultados automáticos de shamata
haveria sentido em qualquer tipo de ação, a é lembrar vidas passadas e conseguir
favor ou contra essa massa amorfa. Como

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discernir padrões que a pessoa consegue mapear todo o DNA de um ser


normalmente não discerne. vivo... está muito além do que eu ou você
conseguimos sequer imaginar ser possível,
Tsongkhapa disse que é como ver uma porque é a mente que cria todas essas
tapeçaria detalhada numa sala escura. Uma aparências — então na verdade todos esses
pessoa sem meditação é como alguém fenômenos são menos complexos e menos
nessa sala com uma vela fraca e oscilante. elaborados, e são subsumidos, sobre os
Através de shamata se consegue aumentar eventos mentais que um meditador que
a luz dentro da sala (a qualidade da medita há varias vidas, reconhece.
atenção), e conseguir uma luz não oscilante
(estabilidade). Então se consegue ver a tal O Buda conseguia, por exemplo, saber que
tapeçaria detalhada. Causalidade material a dor de cabeça que ele sentia naquele
como ser capaz de apenas ver que ali há exato momento se devia ao evento
imagem qualquer, e que se está numa sala. específico dele uma vez ter assistido
Conseguir ver o carma (existe uma pescadores capturarem alguns peixes e ele
expressão no darma que é "o olho que vê o ter um leve sentimento de regozijo com os
carma") exige uma mente muito estável e peixes apanhados. E também era capaz de
clara: do tipo que vê o que está no quadro, estabelecer casos gerais, como o copo que
e não só isso, que é capaz de interpretar a normalmente quebra a cair de determinada
imagem no quadro, reconhecer os rostos, altura, mas nem sempre. Por exemplo, fala
ocorrências, entender os sentimentos, as rude provoca nascer em locais com acesso
intenções, etc. difícil, como com estradas pedregosas.
Sempre? Não. Mas há uma tendência entre
Você falar com meditadores é falar com essas duas coisas terem uma relação causal,
alguém que tem um laboratório e tem um da mesma forma que, no mundo material,
treinamento no uso desse laboratório. Ora, muitas vezes relações inesperadas ou
eu não sei medir a glicose no sangue, mas contraintuitivas frequentemente ocorrem,
entendo que é possível fazer isso. Não sei e algumas vezes leva um tempo para
nem como exatamente, que tipo de entender que, por exemplo, o problema de
reagente, que tipo de processo, examina a morrerem tantos bebês ao nascer se deve a
glicose no sangue e fornece uma não fazer assepsia. Depois é um ovo de
porcentagem. 500 anos atrás, ninguém colombo, e a relação causal é entendida
imaginava isso ou a possibilidade disso. pela existência de microorganismos, mas
Hoje qualquer um acha banal. Da mesma antes desse fato, a ligação entre limpeza e
forma, numa tradição de contempladores, infecção não é óbvia.
há coisas que são observadas de forma
banal, empiricamente, por gente que E basta olhar a adaptação natural das
estabilizou muito a mente e que é, para a espécies que você vê um exemplo de não
mente, como o pessoal que sei lá, usa um carma, mas complexa causa material. Cada
acelerador de partículas ou MRI, ou um dos elementos em cada uma das

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espécies teve uma função adaptativa em lá tinha um cardume de piranhas devorando


algum momento. Ninguém sabe um peixe. Também quando uma multidão,
exatamente porque o pavão precisou todas num estádio de futebol, por exemplo,
aquelas cores na cauda, mas ele não as regozija perante um ato de violência, todos
desenvolveu por acaso: na disputa por acumulam o mesmo carma — ou um carma
recursos reprodutivos, naquela espécie, se semelhante em certa medida, e diferente
mostrou vantajoso surgir aquele fenômeno. na medida em que cada pessoa tem uma
O carma é bem mais complexo e bem mais percepção ou intensidade ligeiramente
amplo que essa mera causalidade natural, diferente com relação ao mesmo
que já é bastante complexa. Mas padrões acontecimento.
podem ser reconhecidos.
Um carma coletivo — como por exemplo,
Então cada ser senciente possui um carma uma universidade que entra em greve e os
próprio? Ou não existe uma alunos, servidores e professores são
"particularidade" no carma? prejudicados — é por conta de carma
negativo em vidas passadas de todas as
O carma é o que produz particularidades e pessoas envolvidas?
generalidades. Os seres só "possuem"
carma no modo de falar. Eles são a projeção Ou nessa mesma vida. Se há sofrimento
de seu próprio carma, exceto sua essência, com a experiência, o carma é negativo. Se
que é a natureza de buda. É uma essência há alívio ou felicidade, o carma é positivo.
livre de essência, e, claro, livre de carma. Se há ambas as coisas, o carma é misto. Se
para uma pessoa é uma experiência positiva
No caso das catástrofes naturais, elas são em curto prazo, negativa no longo prazo, o
consideradas resultados cármicos para o carma é negativo. Se para outra é negativo
Budismo? no curto prazo, mas positivo no longo prazo,
o carma é positivo. É difícil saber, durante a
Tudo que acontece e é percebido como experiência, mesmo havendo felicidade ou
negativo, neutro ou positivo é resultado de sofrimento presentes, se o carma que
carma. Não existe nada que é percebido causou isso foi ruim ou bom. O drama é que
como positivo, neutro ou negativo que não muitas vezes a pessoa nem vem a saber, e a
seja resultado de ações positivas, neutras e maioria das pessoas nem imagina que isto
negativas, respectivamente. possa estar ligado a carma.

Existe uma explicação no Budismo para as Agora, outro aspecto da questão é que,
causas de grandes catástrofes naturais que além de cada pessoa envolvida poder estar
matam milhares de pessoas? passando por uma experiência diversa — e
as que possuem a mesma experiência tem
Carma coletivo. Outro dia eu estava vendo um carma mais coletivo, e assim por diante,
um desses documentários de vida animal, e o que não fica claro é se você está usando a

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palavra carma no sentido de causa ou possíveis, dado o vasto carma passado, e


resultado. Essa equivocidade é presente diferenciado, de cada um.
algumas vezes na tradição budista mesmo.
Mas vamos falar em criar carma (carma Assim, duas pessoas que tem resfriado, ou
propriamente dito, ação intencional), e que tem dois olhos, ou que tem a pele da
sofrer carma. Nessa situação alguns criam, mesma cor, ou tem uma pintinha na
outros sofrem. Alguns positivo, outros bochecha, assim por diante, partilham
negativo. É uma situação complexa. As algum carma. Os dois resfriados podem ser
pessoas que causam a greve — o governo, bem diferentes, e uma delas pode perder o
os negociadores, os sindicatos, e assim por emprego, ou ser atropelada, por ficar
diante — tem seus motivos: bons, ruins, sonolenta pelo remédio que tomou,
neutros. De forma correspondente a cada enquanto a outra não sofre nada além do
um dos motivos, um resultado advirá. As próprio resfriado. Mas alguma coisa em
pessoas que sofrem a greve, da mesma comum elas tem. Um corpo humano é um
forma, sofrem o resultado de carmas carma coletivo, já que há muitos outros
(ações) bons(as) e ruins, dependendo da corpos humanos. A língua portuguesa é o
experiência atual e da experiência passada, carma coletivo dos que falam português... e
nesta ou em outra vida. assim por diante.

A AIDS pode ser consequência de carma No caso de tragédias repentinas onde


coletivo? muitos são afetados pela mesma coisa fica
mais claro pensar "todos eles partilharam
Toda consequência similar, possui uma uma ação".
causa similar. Se as pessoas se engajaram
em conjunto no exato mesmo ato, ou se Uma vez Dzongsar Khyentse Rinpoche disse
apenas no mesmo ato em tempos que ele e muita gente devem ter
diferentes, ou se engajaram em conjunto prejudicado muito esse tal Dan Brown numa
numa desvirtude composta, ao mesmo vida passada, para tanta gente acabar lendo
tempo, mas com atos diferentes... tudo isso o "Código Da Vinci". Eu só vi o filme.
determina similaridade, em algum nível. Portanto eu posso só ter regozijado
Duas pessoas na fila de atendimento enquanto todo esse pessoal que leu o livro
médico partilham carma coletivo, duas apedrejava esse sujeito, e por isso, tanto
pessoas com a mesma doença partilham tempo depois, eu tenho que sofrer por só
carma coletivo — em que ponto se dá essa duas horas.
coletividade, é difícil determinar. Mas os
resultados, o próprio resultado do carma, é Se o acaso não existe e tudo é consequência
um indício de que que há uma do carma acumulado anteriormente, vale a
interdependência. Se há simetria na causa, pena, do ponto de vista budista, tomar
há simetria no resultado — mesmo providências para tentar se proteger do
considerando que pequenas variações são

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acaso, como contratar seguros e colocar pensamento de filósofos teístas como


trancas nas portas? Leibniz. As coisas não podem ser
interdependentes em razão de alguém as
Toda providência é boa, porque estamos ter planejado assim?
nos protegendo das circunstâncias que
possam fazer o carma surgir. Por exemplo, Não creio que a interdependência apareça
não deixamos nossos objetos desprotegidos em qualquer outro sistema de pensamento
porque alguém pode os roubar. O objeto ser fora do budismo. E, não, se há alguém
roubado é ruim para nós, que perdemos o planejando independentemente, não é
objeto, mas é muito pior para quem rouba interdependência, é mera dependência.
— então protegemos o outro de gerar
carma. Isso é compaixão. Levando-se em conta a interdependência, o
carma não é sempre fundamentalmente
Em outras palavras, o carma precisa coletivo?
encontrar condições para se manifestar —
então se pudermos e enquanto pudermos Não, os carmas é que criam as
"calotear" o carma, devemos fazer isso. individualidades, inclusive a diferença entre
Inevitavelmente vamos pagar, mas não um coletivo e outro. O que se quer dizer
sabemos quando, nem como. Então é com interdependência de um carma é que
compassivo para com nós mesmos e para uma ação afeta todos os seres, e isto está
com os outros evitar a negligência de criar correto. Mas ela afeta todos os seres
as condições em que toda a montanha de diferentemente. Também, quando estamos
carma acumulado em infindáveis vidas nos referindo ao carma como resultado
passadas se manifeste agora. E, da mesma dessa ação, estamos nos referindo ao
forma, ao gerar carma positivo, criamos agente, e não ao que essa ação resultou a
condições para a montanha de carma todos os outros seres, e a um ser em
positivo acumulada por eras incontáveis se particular.
manifeste o mais prontamente possível.
O budismo acredita em coincidências ou dá
Não existe proteção quanto ao acaso, mas outra explicação para isso?
proteção contra as condições, e,
efetivamente, contra o próprio carma — Não acredita em coincidências, é só carma.
contra gerar o carma, e contra permitir que
ele se manifeste enquanto não temos O acaso não existe no Budismo?
condições de lidar com ele — de preferência
o mais tarde possível. Nas variantes realistas do budismo existe
uma causalidade independente, física —
Você diz que criação é incompatível com a mas qualquer sofrimento ainda assim
interdependência. Isso parece estranho possui causas e não surge do nada.
porque interdependência aparece no

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As variantes realistas do budismo são raro, mas da mesma forma indica que a
consideradas inferiores pelo mahayana. No interdependência foi cultivada.
mahayana todo e qualquer fenômeno é
ligado a todos os outros, e há intercausação O que quer dizer no budismo a palavra
entre todos eles. Portanto, não há espaço "interdependência"?
para o acaso.
De uma forma simples, significa que cada
É preciso frisar, no entanto, que não há evento está interconectado com todos os
determinação nas ações dos seres. A outros. "Criar uma interdependência"
natureza de buda é totalmente significa agir de forma que um padrão se
indeterminada e acausal, e assim as ações forme. Portanto, se a pessoa quer ter
não são frutos do acaso, mas tampouco são conexão com alguém, dar um presente a
frutos de determinação. essa pessoa é uma forma de ser lembrado.
E mesmo quando não for lembrado, existe
Quanto as pessoas que nascem em lugares aquela ação e suas consequências.
onde o budismo é minoritário e acabam se
tornando budistas. Elas descobrem e se Há os doze elos da originação
aproximam do budismo por acaso ou estão interdependente, e muitos ensinamentos
predestinadas a isso? profundos sobre interdependência. No
fundo, interdependência é a própria
Para o budismo não existem os extremos de vacuidade, o fato de que não existem
acaso ou predestinação. Nem o acaso nem eventos discretos, ou uma essência para os
o destino, mas o mérito amealhado através eventos. O sonho surge por
do cultivo de hábitos e ações positivas ao interdependência, e interdependências
longo de várias vidas é o que produz auspiciosas nos fazem felizes, enquanto
circunstâncias felizes. A interdependência interdependências inauspiciosas nos fazem
pode ser cultivada, e no caso do budismo, sofrer.
há o cultivo deliberado da interdependência
auspiciosa com os ensinamentos. Assim, Pensando numa resposta anterior, em que
mesmo numa cultura onde o budismo é alguém falava em destino ou acaso, de fato
predominante, é o conjunto de virtude é importante entender que a
amealhada através de ações e hábitos interdependência não cai em nenhum
positivos, e a interdependência desses extremos. Esse é um entendimento
cuidadosamente cultivada com os bem raro — a maioria de nós opera como se
ensinamentos, que vai permitir que a as coisas ocorressem aleatoriamente, ou já
pessoa não apenas participe de sua cultura estivessem registradas em pedra. O
como um observador indiferente, mas que budismo chama esses dois extremos de
se aprofunde nos ensinamentos. niilismo e eternalismo — os termos só são
Evidentemente, numa cultura que não usados dessa forma por budistas. Num
promove esses valores, isso é ainda mais desses extremos o agente é vítima de uma

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construção impessoal, e no outro o agente forma. A base do carma é a intenção, nesse


é vítima de uma construção pessoal, como caso, a própria negligência ou indiferença é
de um deus. Em ambos os casos, não há a base de intenção para a formação do
possibilidade de responsabilidade, carma. A negligência é considerada
moralidade ou qualquer coisa do tipo. É por intencional e só surge através do esforço —
isso que os cristãos precisam inventar o é contra-intuitivo, mas é a visão do
conceito de livre-arbítrio, caso contrário o budismo. A compaixão, por outro lado, é
"problema do mal" (como Deus faria os sem esforço. Nossos hábitos são tais que
outros sofrerem) não teria solução. No vivenciamos, na nossa perspectiva
budismo não há sequer livre-arbítrio (que superficial, o oposto.
ocorre num mundo determinado por deus
— exceto em termos das consciências que Outras coisas que geram carma
ele criou, estas sim, livres). No budismo, (normalmente negativo) são: caminhar, se
como não há criação, não há nada mover, respirar, comer, vestir, falar, etc. O
determinado, ainda assim, as coisas se nosso corpo humano é de extremamente
relacionam umas com as outras através de alta manutenção cármica, o que significa
padrões "cicatrizes" que tendem a se que precisamos gerar muito mais virtude do
solidificar, e que assim produzem os que estamos consumindo. Um segundo de
mundos e seus aprisionamentos. Não existe experiência humana desperdiçada em
uma coisa que esteja por trás de todas as atividades neutras ou negativas consome
outras, ou tenha precedência de qualquer quantidades tais de virtudes passadas, e cria
tipo. Pode se falar em "criação contínua", tais condições de sofrimento para tantos
mas mesmo isso é forçar a barra. seres, num âmbito tão vasto espaço-
temporal, que a única solução é produzir
Os doze elos são ensinados para explicar virtude de forma ainda mais vasta. Segundo
como a mente que é naturalmente lúcida os ensinamentos budistas, o ser humano é
acaba sucumbindo a um processo de capaz de produzir virtude como nenhum
delusão que produz os nascimentos, em outro ser — portanto tal atitude é possível
particular, os nascimentos condicionados, a qualquer um de nós.
embasados em tendências habituais e
aflições mentais. Então não há saída para o carma?

Se eu dirigir carro ou outro transporte que Através da prática da virtude de forma


polui, não estaria eu produzindo carma vasta, todos os seres que são
negativo? constantemente prejudicados pela nossa
mera existência como seres humanos se
Mesmo que ele não polua, mesmo que você conectarão com um caminho virtuoso. Sem
esteja puxando um carro de coleta de papel praticar virtude, não há saída.
e a roda passe por uma formiga. Na medida
em que sofrimento é criado, carma se

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Enquanto temos nosso corpo, nosso corpo ser por causa de carma negativo em outras
gera impacto. Se esse impacto vai ser vidas?
predominantemente positivo ou negativo, é
nossa prerrogativa — nós decidimos. Algum Sim, e mais do que isso, quando discute-se
impacto negativo sempre será gerado as desvirtudes, a desvirtude de
enquanto houver um corpo — assim é comportamento sexual inadequado produz
imprescindível gerar virtude de forma vasta. esse resultado, entre outros.
De forma que esse impacto negativo se
torne irrisório perante o benefício gerado. Em outras palavras, uma pessoa ao causar
sofrimento a si e a outros através da ação
Mau carma futuro pode agir no presente? sexual, no futuro encontra sofrimentos tais
como renascimento nos infernos, e, em
Não, se você ainda não agiu não tem carma. casos mais suaves, parceiros desagradáveis
Carma é ação. O carma funciona no tecido e instáveis em vidas futuras — bem como
da própria ilusão de coerência causal. nascer em locais sujos e poluídos.

Porém, como o passado é indefinidamente Amizades extremamente unidas sem


enorme, e a quantidade de ações passadas nenhuma razão aparente (como
boas e ruins é incomensurável, qualquer características semelhantes etc.) pode ser
coisa que acontecerá no futuro pode já ter consequência de geração de carma positivo
acontecido, e assim, o seu carma presente em vidas passadas?
pode guardar essa semelhança — porque
nunca sabemos quando as causas e Sim, todas as pessoas que tem simpatia por
condições vão se manifestar para que uma nós, se temos bom carma, foram seres a
avalanche de carma positivo ou negativo do quem beneficiamos em vidas passadas. Se
passado se manifeste. temos mau carma, em algumas
circunstâncias é possível que tenhamos
É possível gerar sofrimento mesmo sem simpatia por aqueles que prejudicamos, e
emoções aflitivas? que vão nos fazer sofrer muito
possivelmente.
Sofrimento aparente e temporário, sim. A
longo prazo, na soma total das coisas, sem Em suma: qualquer sensação agradável ou
aflições mentais, não há sofrimento. Esse pequena felicidade, de qualquer tipo, em
sofrimento aparente e temporário se dá qualquer circunstância, adveio de produzir
pelo carma passado do indivíduo, que se sensações agradáveis e pequenas
manifesta devido as condições das ações, felicidades a outros seres em vidas passadas
mesmo que feitas sem aflições. ou nessa vida.

Quando parece que alguém nunca se dá


bem com relacionamentos amorosos pode

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"Má sorte" ou "boa sorte", como podem — e carma misto, um pouco bom e um
estes serem resultados de minha ações pouco ruim — , portanto, no geral, não dá
passadas? para saber.
3.4. Morte, renascimento, reinos
Com a interdependência, não há lugar para O que é samsara? Vejo essa palavra muito
o fortuito. Tudo que ocorre está interligado frequentemente em textos budistas e
com todo o resto. Segundo os outros contextos, mas não consigo
ensinamentos, a causalidade, que brota da entender.
ignorância, produz resultados de acordo
com as ações. Assim, se você causa Samsara é "experiência cíclica", ou o fato de
sofrimento, você sofre. Se você traz que todas as experiências condicionadas
felicidade, você vivencia felicidade. pelas aflições mentais (raiva, orgulho,
apego, inveja e ignorância) produzem
Como explicar a existência de pessoas que sofrimento. Em outras palavras, é o mundo
tem características muito positivas que surge através de nosso engajamento
misturadas a outras muito negativas? em corpo, fala e mente filtrado por essas
aflições.
Todos nós temos potencial para qualquer
combinação possível de hábitos e Samsara é maior do que a experiência dessa
tendências, e qualquer um de nós tem o vida e desse corpo, isto é, é a experiência de
potencial de revelar as qualidades inerentes sofrimento vinculada as aflições mentais
da natureza de buda. Qualquer situação em que produz todos os corpos que vivenciam
termos de hábitos é adventícia e sofrimento.
temporária.
No sentido mais estrito, quando existe a
Mas e quando simultaneamente causamos experiência de tempo e espaço, produzidas
felicidade para alguém e sofrimento para pelo veneno da ignorância, há samsara.
outro?
Assim, realmente não é um conceito fácil, e
Temos um carma misto, e, se nas exatas começamos apenas estudando a
mesmas proporções, neutro. Nesse caso, só profundidade do sofrimento das diversas
perdemos tempo. Por isso carma neutro é circunstâncias humanas e animais que
considerado carma negativo. conhecemos, e eventualmente ampliamos
isso para toda experiência possível
Ganhar na loteria ou num outro jogo de azar embasada em alguma aflição mental. E,
qualquer é fruto de bom carma, mau carma quando reconhecermos a aflição base, a
ou não dá pra saber? ignorância, finalmente teremos entendido o
que é sabedoria, e estaremos livres do
Num caso específico, com sabedoria, dá samsara. Por enquanto, trabalhamos com
para saber. Como pode ser ambas as coisas uma versão grosseira do veneno da

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ignorância que é uma espécie de preguiça toda a vida. É uma grande oportunidade,
ou indiferença, o sofrimento que advém da que normalmente é desperdiçada por
negligência, por exemplo, e enfim aqueles que não possuem prática de
chegaremos ao entendimento de meditação. Para os que não tem confiança
causalidade, espaço e tempo como em sua prática de meditação, budistas ou
reificações da luminosidade. não budistas, os budistas veem um
momento de grande dificuldade, confusão e
Para onde vamos após nossa morte? sofrimento. Uma pessoa que levou uma
vida bastante ética tem uma chance melhor
Após sonhar a morte, sonhamos um de sofrer menos, mas mesmo uma pessoa
renascimento — se ele vai ser bom ou ruim, muito boa, sem a prática de meditação,
isso depende do carma. A não ser os seres pode sofrer bastante e envolver-se em
despertos, para eles só há lucidez. muita confusão durante o processo de
morte até o próximo renascimento — e daí
Segundo o budismo, o que acontece com a em diante.
pessoa depois da morte?
O que ocorre com a consciência após a
O sonho continua. O sonho pode piorar, morte?
principalmente se a pessoa não agiu de
forma ética durante a vida. Ou ele pode Depende da consciência. As consciências
melhorar, se ela praticou a virtude. Uma ligadas aos seis sentidos (5+consciência da
pessoa que pratica meditação, pode, mente) vão desaparecendo uma a uma até
durante a vida ou a morte, acordar do a morte (na verdade, inclusive quando você
sonho. E também ela pode seguir num toma uma anestesia geral, ou em sono
sonho lúcido, durante a vida ou a morte. profundo, ou coma). Essas consciências
desaparecem. A consciência base, é a
Normalmente a pessoa sofre muito logo fundação para os novos surgimentos. Antes
antes de morrer e durante o processo de dos surgimentos existe a oportunidade de
morte. Só um grande praticante — que é reconhecer o estado de abertura e repousar
bem raro — tem confiança na sua prática na nele, sem fixação. Se não meditamos
hora da morte e penetra lucidamente nas durante a vida, normalmente ele passa
experiências que surgem. quase imediatamente, e passamos a
alucinar — quem alucina é uma consciência.
Como budistas encaram a morte? Sofrem Depois cansada de não ter uma
menos? Acham natural? Ou depende de estabilidade, e simplesmente ser jogada de
como se morre? um lado para o outro (pelos ventos do
carma), ela se fixa a algo que considera
Depende da forma de budismo, mas em atraente, e assim ela se vincula a um novo
geral é um momento delicado e crucial, nascimento.
para o qual se deve se preparar durante

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Como devemos reagir diante da morte de disponível para qualquer um. Porém, sem a
um ente querido? prática durante a vida e as instruções de um
professor qualificado, vai ser difícil haver
Sem desespero, sem choro. Praticar o que reconhecimento e estabilidade nesse
se sabe, patrocinar práticas em nome dele, reconhecimento. Nesse caso a pessoa deve
e evitar brigas e discussões com os parentes lembrar do Buda Amitaba e aspirar renascer
e amigos próximos, principalmente sobre as numa terra pura, para ter mais facilidades
posses do falecido. de praticar.

Se for uma pessoa que morreu A reencarnação me parece um fenômeno


extemporaneamente, ou em circunstâncias muito irreal, que pode ser questionada por
pouco auspiciosas (suicídio, acidente, vários exemplos. Quais são os argumentos
assassinato), ou se a pessoa levava uma vida budistas em favor deste fenômeno?
pouco virtuosa (um caçador, pescador,
alguém que fez aborto, alguém que No nosso mundo hoje, realmente a
prejudicava os outros) daí em particular a reencarnação é difícil de engolir. Mas, para
pessoa deve procurar fazer prática intensa começar, o budismo não aceita exatamente
e patrocinar a prática de Akshobya, por o que se descreveria como reencarnação
exemplo. (porque isso envolve uma coisa na carne —
alma — que pega uma nova carne) mas sim
Por que as aparições do bardo da morte são renascimento (ressurgimento num outro
horríveis? Sendo o bardo uma ilusão, por sonho, com um outro corpo de sonho,
que o teor do bardo da morte não é inseparável desse novo ambiente de
qualquer um, mas necessariamente sonho).
aterrorizante?
Depois é preciso entender o contexto em
Porque naturalmente somos apegados a que os ensinamentos primeiro foram
nossa condição atual, e tudo se dissipa. O dados: num ambiente onde o renascimento
que surge é aterrador para todos nós que já era a crença comum e incontestável das
ainda temos esperança e medo, mas não pessoas. Assim, não há tantos
para todos: quem superou esperança e ensinamentos budistas para convencer
medo não vê o bardo como aterrador. alguém sobre isso.

Quando o bardo da morte apresenta a Enfim, o ponto crucial da noção de


oportunidade da iluminação? renascimento é fazer os "experimentos
mentais" de acordo com o que é prescrito.
Quanto menos prática em vida, mais difícil Se eu tivesse uma série enorme de vidas
de reconhecer a oportunidade de liberação consecutivas, e não visse sentido em
em cada momento. No momento da morte qualquer uma delas, que tipo de
há uma ótima oportunidade, ela é ensinamento seria interessante para mim?

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O darma. Portanto não é uma questão, comprovarmos o Renascimento sem cair na


como geralmente parece ser, de medo de armadilha de mais uma crença ou religião,
morrer que nos faria ansiar por uma alijando a experiência citada pelo Buda?
existência após a outra, que levaria à crença
em renascimento, mas sim a ideia de que a Você usa o renascimento como um
insatisfação não está contida em uma vida, experimento de pensamento. Você vive de
mas em todas as vidas possíveis. acordo com essa perspectiva, em particular
com o fato de que as bilhões de vidas que
Então a pessoa é aconselhada a raciocinar supostamente você viveu foram pura perda
com base nessa hipótese, sem precisar de tempo, sem sentido, cheias de
acreditar. Mas ela precisa ser capaz de ver o sofrimento, e então você se direciona para
mundo no ângulo de vidas incontáveis, a prática espiritual, que é a verificação
todos os seres já tendo sido nossas mães, e empírica de um estado além do
assim por diante, isso é crucial. renascimento.

Eventualmente, através da prática da Como comprovar o renascimento sem cair


meditação é possível encontrar evidência nas armadilhas da crença?
de primeira pessoa com relação a vidas
passadas e futuras. Você abandona o requerimento de
comprovação e participa das ideias de uma
Ademais, sem a noção de uma alma, ou forma puramente cética, isto é, sem aceitar
mais do que isso, com toda a noção de nada definitivamente, mas aceitando
identidade pessoal essa sim, como sendo temporariamente aquilo que é proposto e
uma crença equivocada, ao abandonar essa pode ser empiricamente testado. No caso
crença absurda, a pessoa reflete sobre as você talvez não possa testar empiricamente
muitas vidas de uma perspectiva ligada ao o renascimento sem muitos anos de
que se chama de "tecido do sonho", e a meditação, mas você pode testar
prática do budismo enfim se foca naquilo empiricamente o benefício de tomar o
que é real, e que portanto, não nasce nem renascimento como base para urgência na
morre. prática, ou trazer benefício aos seres, por
exemplo. Então você pode usar a ideia não
No Lankavatara Sutra Buda teria dito que com base no seu valor de verdade, mas no
ensina renascimento para aqueles de seu valor moral (como ela é boa para você e
pequena e média capacidade, para aqueles para os outros, num sentido de benefício) —
de mais alta capacidade ele ensina sobre e você pode verificar, no devido tempo,
aquilo que nem nasce nem morre. ambos. Como ética e realidade são
convergentes, ao pensar de qualquer dos
Se o budismo segundo Buda Shakyamuni é modos, através da virtude (os benefícios de
para ser praticado de modo a aprendermos pensar assim ou assado, desconsiderando,
com a própria experiência, como então temporariamente, se é ou não verdade) ou

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verdade (se é o caso ou não) você secundárias deste corpo estarão ligadas a
reconhece a mesma coisa. outras ações particulares e às aflições
mentais causadoras dessas ações
Para ser budista é preciso acreditar em particulares.
outras vidas além desta?
Você acredita que já foi uma barata em
Sim, você não pode ser solipsista. outra vida?

Mas se além disso você quis dizer outras Num dia bom não acredito nem mesmo que
vidas SUAS além desta vida, isto é, sou um ser humano agora! Também um dos
renascimento.... bem, nesse caso você pode maiores problemas dos humanos é o
usar alguma coisa do budismo para especismo, e a arrogância com que lidam
melhorar sua qualidade de vida e dos outros com outras formas de vida. O regime nazista
ao seu redor, mas para praticar o budismo transformou os judeus em insetos, o
com profundidade e com efeitos caminho do meio vê todos os seres como
duradouros, será necessário pensar em budas. Agora você escolhe seu lado.
muitas vidas.
"O caminho do meio vê todos os seres como
O que são seres sencientes? Quem são eles? budas." Baratas têm tanta dignidade assim?
Isso me parece tão extremo.
São seres que possuem mentes e portanto
são capazes de sofrer. São o objeto de Eu e uma barata não somos essencialmente
compaixão, o que inclui todos os humanos, diferentes, eu apenas tenho mais
todos os animais e mais algumas classes de capacidade, neste momento, para a
seres (pretas, narakas, asuras e devas). arrogância ou para a compaixão. Não existe
nenhuma diferença entre não reconhecer a
Tenho preferido, nessas respostas, usar a dignidade da barata e a dignidade ela
expressão "seres-mães", para lembrar que mesma como um valor por si só. Não
cada ser senciente já foi nossas mães várias reconhecer a dignidade do outro é não
vezes ao longo de incontáveis vidas. reconhecer a própria dignidade.

O que leva uma pessoa a renascer como O nosso senso comum é carregado de
animal? Ter levado uma "vida de animal"? O pressupostos extremos. Um pressuposto
que seria isso? extremo é o de que esse nosso corpo
humano é mais do que um sonho. Outro
Procrastinação, preguiça, desinteresse, pressuposto extremo é olhar para o outro e
covardia, tédio, falta de engajamento — má não ver um Buda, e sim uma barata. Da
vontade. A pessoa treinando nesses estados nossa perspectiva distorcida, o estado atual
mentais produzirá um corpo das coisas parece extremo — mas isso se
correspondente — e as características deve apenas às nossas próprias projeções.

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Budismo - Coletânea

Acredito que há alguma evidência


Eu não played the nazi card em vão na (fraquíssima) de que humanos renascem.
resposta anterior. E isso não é um reductio Mas que evidência há de que baratas
ad Hitlerem ou uma prova da Lei de Godwin. renasçam? Creio que nenhuma. Puro
Peço que tome o argumento como ele está. dogma. Ou não?
O holocausto é certamente gravíssimo —
nele alguns seres olharam para outros e Você não precisa aceitar sem evidência —
disseram que eles eram nojentos e não mas é bom lembrar que para negar,
mereciam viver. O que o budismo vai dizer também não há evidência. Então, quando
é que apenas dizer "não se deve tratar seres em meditação você lembrar de uma
humanos como insetos" não é o suficiente. existência de barata, daí você tem
A raiz desse problema está na soberba evidência. Enquanto isso, você pode até
daqueles que se apoderam do ponto de tender para não acreditar — desde que isso
vista que os outros, sejam quem forem, são não impeça sua prática de compaixão.
descartáveis, uma mera incomodação, algo
desagradável. O que o budismo diz é que E, como já disse antes, se tender para
enquanto nós treinarmos essa visão com as acreditar ajudar na sua prática e na sua vida
baratas, não vai ser possível desenvolver — mesmo sem muita evidência — é com
um bom coração verdadeiro. E sem ele, você se você prefere os seus conceitos ou os
basta sermos levados pelo carma que o conceitos dos outros, independente de que
objeto muda — em outras palavras, de conceitos funcionam melhor na sua vida.
exterminar insetos para exterminar Segundo os ensinamentos, quanto mais
humanos não é um abismo tão grande. você estiver de acordo com como as coisas
Enquanto treinarmos nessa tendência de são, mais você mesmo se dá bem. Então
culpar o outro pelo nosso desconforto, você pode usar essas evidências indiretas
nessa mesma medida nós vamos sofrer e também, e não custa nada, pelo contrário.
criar raízes de sofrimento. Enquanto não
pudermos ter empatia por todo e qualquer Mas você não precisa acreditar em nada
ser, sem discriminação, não estaremos para que não tenha evidência. Apenas,
livres do sofrimento. Por isso, mais do que eventualmente, ser capaz de raciocinar
uma mera curiosidade em saber de dentro de um desses mundos possíveis, sem
renascimentos passados como seres compromisso.
repulsivos ou a quem consideramos
desprezíveis — a sensação de repulsa e Outro ponto é que, cientificamente falando,
desprezo e a incapacidade de empatia com não há grande diferença entre você e uma
uma determinada classe mostra que o barata — além de complexidade. Então
impulso do sofrimento e de causar o pressupor que a complexidade faça
sofrimento está ali todo presente. Esse diferença (produza uma "alma"), essa sim é
ponto é o mais importante. uma noção que se embasa numa crença
dogmática.

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mantendo a claridade (isto é, não caindo em


Lembrar de uma existência de barata, ou torpor), por pelo menos 4 horas
outra qualquer, não pode ser um ininterruptas. Com esse tipo de prática a
autoengano, uma memória forjada como pessoa pode começar a sondar suas
aquelas que, em sessões de hipnose, às próprias memórias nesta e em outras vidas
vezes levam pessoas a pensar terem vivido — sem isso, nem mesmo as memórias desta
nesta vida coisas que não viveram? vida tem qualquer clareza. Para a maioria
das pessoas, esse tipo de prática requer
Pode, é claro. Por isso o refinamento de 50.000 horas acumuladas de shamata
ferramentas epistêmicas é a prática central regular, todos os dias, por de 15 minutos a
do budismo — isto é, a prática de 14 horas por dia. Muitos, milhares, de
meditação. Segundo os ensinamentos budistas fizeram esse experimento, e
budistas é autoengano essa nossa própria relataram em detalhes o que observaram.
memória de humanos neste exato
momento. Essa é só uma projeção de nossas É como um telescópio fora da atmosfera,
aflições mentais. capaz de repetir o mesmo fotograma da
mesma parte do espaço a cada rotação, dia
Segundo os ensinamentos budistas, as após dia, até que mesmo pontos de luz
aflições mentais produzem filtros que muito fracos e muito distantes vão
distorcem nossa autopercepção e a ganhando nitidez. Isso é a prática de
percepção de todos os outros fenômenos. shamata.

Através da prática de shamata Enfim, com a realização da prática de


estabelecem-se duas ferramentas cruciais: shamata, podemos mergulhar na prática
nitidez e estabilidade. Como uma tapeçaria que é particularmente budista (os hindus
detalhada numa sala iluminada por uma também possuem a prática de shamata — e
vela — as correntes de ar das aflições tem grandes praticantes do seu lado
mentais fazem tremeluzir a chama, e a também), a vipassana, que é o exame de
própria intensidade da luz é pequena — fica determinados objetos com esse
difícil de compreender que é autoengano instrumento epistêmico fortemente
nossa condição atual, e lembrar de todos os estabelecido. No caso, a própria mente e a
nossos outros autoenganos. Foco e natureza dos fenômenos. É assim que a
exposição, como numa foto. Ao meditar na vacuidade é diretamente vivenciada.
direção de shamata, desenvolvemos uma
"câmera" estável e bem focada para Nesse meio tempo, a prática essencial de
analisar os fenômenos, particularmente os gerar méritos é crucial. Se não for para gerar
internos. méritos, todos esses elementos de
renascimento, e assim por diante, são
Shamata é considerada como a capacidade meras explicações e não interessam
de se focar, sem perder a estabilidade e verdadeiramente. Agora, para gerarmos

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mérito, eles podem ser importantes. mesmo é correta a ideia de que elas
Precisamos de mérito porque caso "podem" ter sido nossas mães, nós
contrário, temos obstáculos na nossa pensamos em todos os seres como TENDO
prática — obstáculos que impeçam a sido nossas mães. Mas não é por isso que
prática, como falta de tempo, doenças, vida não os matamos. Não os prejudicamos
curta, turbulência social, falta de casa e porque sofrem, ponto. Do ponto de vista do
alimento durante essas 50.000 horas iniciais NOSSO próprio treinamento, daí é
e as demais de vipassana, e assim por interessante experimentar com essa
diante. Ademais, 50.000 horas é para perspectiva de ver todos como mães — ou
aqueles atletas espirituais profissionais, a qualquer que seja o ser por quem temos
maioria dos budistas não vai fazer isso — e grande consideração, caso não achemos
gerar mérito vai ser a única prática deles. nossa mãe muito especial. Por exemplo, se
Para estes, ter compaixão, generosidade, e odiamos nossa mãe, e adoramos nosso
as outras qualidades é mais crucial ainda. cachorro ou nosso gato, podemos pensar
Portanto, se pensar em renascimentos que nossa mãe já foi nosso cachorro ou
como barata nos ajuda nisso, faz sentido gato. Porque ela já foi, ou porque é bom
pensar assim. Se não nos ajuda — e em pensar assim. ESSE ponto depende da
alguns casos pode não ajudar, podemos capacidade da pessoa, mas em ambos os
esperar para a verificação. casos, é bom para a pessoa.

Em geral o que obstaculiza as pessoas não é Em uma das respostas você afirma que os
exatamente a noção de explicações sem animais possuem uma racionalidade
muita evidência, mas sua própria falta de rudimentar e que não estamos tão distantes
mérito. Após se dizer repetidas vezes que a assim deles. Não somos superiores em
pessoa precisa se dedicar para atingir, nada? Uma bactéria e um humano têm a
digamos, as qualidades que ela reconhece mesma importância? Poderia falar mais a
no lama — e que essa dedicação não inclui respeito?
crer em coisas que ela considera absurda —
a única coisa que impede a pessoa são seus Bom, a bactéria é um ponto de debate.
próprios preconceitos, seus próprios Embora ela evite toxinas e busque alimento,
obstáculos. porque ela não sente dor, é difícil
estabelecer ela como um ser senciente — e
Uma vez um colega meu na filosofia disse com certeza não é possível estabelecer ela
que os budistas não matavam baratas como um ser racional, nem mesmo de
porque elas podiam ter sido nossas mães racionalidade rudimentar.
em vidas passadas. Não é por isso que não
se mata baratas — mas mesmo em tom No caso dos seres que sentem, sim, esse é o
ficcional, pensar nelas como nossas mães critério, estejam eles em que nível de
ajuda em nossa compaixão. Então não há racionalidade estiverem.
problema com essa perspectiva. Nem

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"Mesma importância", daí eu diria que não. budismo que isso não existe. Algumas vezes
No sentido de sua "essência", eles são a se fala em substrato da psique, como sendo
mesma coisa — o potencial é o mesmo. No as energias de hábito que são mais
sentido de suas qualidades, daí o ser arraigadas e passam de uma vida para a
humano é claro desenvolveu mais outra.
qualidades do que os animais. Mesmo um
ser humano profundamente negativo pode Já mente depende um pouco da linhagem.
se regenerar e fazer muito mais bem, ter De uma forma geral, mente é citta, isto é, a
muito mais compaixão, do que um animal. capacidade cognitiva. No budismo tibetano
muitas vezes se fala em duas mentes: a
Assim há dois pontos importantes: não há capacidade cognitiva pristina, inalterada,
diferença essencial (na racionalidade, na impessoal, que funciona como o espaço
capacidade de compaixão) entre os seres onde se desenrolam as memórias e a
sencientes. Mas há diferença qualitativa. discursividade. As memórias e a
Entre as diferenças qualitativas, o ser que, discursividade são a mente convencional, o
pelas causas e condições, manifesta ou espaço onde elas se desenrolam são a
pode manifestar mais compaixão, "vale mente última ou básica.
mais". O critério não é a racionalidade, mas
a capacidade para a compaixão. Como se dá a imortalidade da mente?

No Budismo existe alma? O que renasce? A mente discursiva, que produz uma noção
de pessoalidade, essa morre. Se é nela que
Não há alma, mas o carma não cessa estamos confiando, é por isso que
quando condições não estão presentes, ele sofremos. Se sofremos, é porque estamos
só se conecta com novas condições se confiando nela. Já o espaço de atenção, ou
apresentam. o foco básico dessa mente, não depende de
localidade ou corporeidade, e portanto ela
Nos diálogo com o rei grego Milinda, é não nascida. Como é não nascida, não
Nagasena responde essa pergunta dizendo pode morrer.
que é como uma lamparina que acende
outra lamparina — não é nem mesmo o É preciso também apontar que dependendo
fogo, nem é essencialmente diferente. um pouco do budismo, "imortalidade" é
visto com maus olhos. O Buda descreve
Qual a diferença entre alma e mente? como um dos obstáculos diretos ao
entendimento do darma desejar a
Essa diferença é peculiar ao budismo. imortalidade ou a existência de um
substrato eterno. Mas existem alguns
No budismo o que chamamos de alma é um ensinamentos que apontam para um
substrato pessoal imortal, uma essência da substrato que algumas vezes é confundido
pessoa que é indestrutível. Considera-se no com "eterno".

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lugar. Depois que explode uma bolha, a


Basicamente o budismo teria problema com energia de hábito trata de soprar outra. E
eterno e imortal, mas não com atemporal e embora ela não seja a mesma, ela é feita
"além da morte". De fato, em inglês em com quase o mesmo sabão de hábito, e
geral se usa a palavra deathless, não cores de hábito semelhante surgem.
immortal. Da mesma forma, sempre se
prefere timeless/atemporal do que eternal. Essa energia de hábito não está no corpo,
mas o corpo surge como uma forma de
Então não é muito simples, também porque reificá-la ainda mais. Então passamos a
existem limitações de linguagem, explicar o confiar no corpo e surge, num determinado
que realmente quer dizer "transcendente". momento, a ideia de um "eu" coeso e
independentemente existente. Esse "eu"
Quem escolhe pra que corpo cada mente postula então noções de uma alma e outros
vai? conceitos que servem para reificar ainda
mais a energia de hábito da separatividade.
Algumas vezes surge uma imagem de
transmigração em alguns ensinamentos Quando praticamos o darma, treinamos no
budistas. Mas estes são apenas meios reconhecimento da vacuidade dos
hábeis para explicar de forma simplista algo fenômenos, e então vemos a bolha como
que é mais sutil. uma bolha. Algo magnífico e transitório — a
bolha em si não macula a natureza básica, e
O que ocorre é que nossos corpos são nem mesmo oculta verdadeiramente a
manifestações das tendências de não natureza básica — o que é necessário é que,
reconhecimento da mente básica. Na mesmo fascinados pela bolha, não
verdade, não só nossos corpos, mas todas percamos de vista o espaço que permite
as formas. Assim, eles surgem peculiares que ela se forme. O que o budismo chama
devido a essas escaras (da mesma origem de "compaixão" é a percepção de que há
indo-europeia do sânscrito "skaras", que dá outras mentes convencionais presas desse
também no inglês "scar"), cicatrizes ou não reconhecimento. O que os mestres
marcas, que as energias de hábito entalham fazem é usar o que se apresenta como meio
na natureza básica. Como uma bolha, elas hábil para revelar incessantemente a mente
se formam, duram um tempo, e explodem, básica, em que, de fato, nenhuma cicatriz
visto que a gama de possibilidades infinitas pode ficar eternamente.
da mente básica constantemente age e
produz um desgaste, que chamamos de Quando se fala em renascimento, o que de
impermanência. Como nossa perspectiva fato morre e renasce são as atitudes
surge condicionada por estas aparências, positivas e negativas? Mas pensar em
vemos o desgaste e a impermanência como atitudes positivas e negativas não é pensar
ameaças. Essa é a mesma velha energia de na dualidade?
hábito que nos colocou aqui em primeiro

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Sim, dualidade, renascimento, samsara, criando novas marcas que podem ser úteis
tudo isso faz parte da delusão da dualidade. onde quer que estivermos no futuro.
Na verdade nada disso ocorre, senão na
mente que sonha, deludida. Onde fica armazenada a informação de
fatos ou conhecimentos de outras
Por outro lado, os resultados das atitudes encarnações que às vezes supostamente
positivas e negativas é exatamente o que são relembrados? As memórias de uma
não morre — isto é, o resultado do carma pessoa sobrevivem quando não há mais
segue além do corpo. Em verdade, cada corpo e cérebro?
corpo é o resultado de um conjunto de
carmas que encontra uma nova forma de se O corpo, segundo o budismo, é um
"estabilizar" por um tempo. É um corpo de epifenômeno da mente. Daí que as coisas
sonho num mundo de sonho — ambos de sonho não precisam ficar propriamente
criados pelas tendências habituais e pelas armazenadas. O Buda não sabia apenas
marcas criadas pelas ações. suas vidas passadas, mas as vidas passadas
de todos os outros. Se fossemos fisicalistas,
É possível carregar o que aprendemos com como ele teria memórias de outros?
os ensinamentos para outra vida?
Agora, é interessante frisar que as
Para um determinado darma passar de uma memórias são mesmo perecíveis como o
vida para a outra ele precisa passar do nível cérebro. Quando alguém consegue
superficial dos conceitos — que é como a vislumbrar parte do tecido da
agitação das ondas — depois passar do nível impermanência, e reconhecer as causas
intermediário das correntes submarinas, de para as condições, entender como o carma
hábitos grosseiros, e penetrar no leito se formou, ainda que parcialmente, isso é
marinho, dos hábitos sutis. Para isso se faz um feito considerável. Significa que a
prática. Então em geral podemos não pessoa não está mais operando através de
lembrar das palavras dos ensinamentos, seu cérebro, da limitação particular que sua
mas podemos deixar certas marcas ignorância, aliada a causas e condições criou
profundas através principalmente da (o corpo), mas operando com a mente não
repetição regular de determinadas práticas, condicionada por essas causas e condições.
e essas podem ressurgir com mais facilidade Esse é um resultado da prática. É um tipo de
em vidas subsequentes. clarividência, um poder mágico, tornado
possível pela não reificação, em até certa
Por isso o mero ler e refletir não são medida, não precisa ser total, do sonho.
suficientes para um contato mais
aprofundado com o darma — é necessário Algumas escolas idealistas budistas
integrar as práticas que penetram no âmago propõem uma "consciência armazém", que
dos hábitos, dissolvendo os nocivos e uma entre outras 8 consciências. O caminho
do meio pode falar em termos da alaya

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(essa consciência), mas não precisa sequer Só o renascimento humano permite a


postulá-la, se isso não for necessário (para prática do darma. Mas os animais podem
dar um ensinamento particular). renascer em qualquer lugar, como qualquer
outro ser, e assim eventualmente
A típica falta de lembrança das vidas praticarem o darma.
passadas do reino humano é coisa que se
repete nos outros reinos? E, curiosamente, seres realizados tem a
liberdade de se manifestar como animais. E,
A memória é melhor, mas não completa ou se com essa manifestação forem trazer
suficiente, nos reinos superiores dos benefício a algum ser, eles podem surgir em
humanos, asuras e semideuses. Também, qualquer forma.
nos reinos dos deuses, eles conseguem, no
final da vida, ver onde renascerão — alguns Há conhecimento de casos em que outros
humanos também tem esse tipo de seres sencientes que alcançaram a
experiência. No reino animal, a memória é iluminação? Seres tais como animais,
menor do que a nossa, e nos reinos deuses etc.?
inferiores dos pretas e narakas — bem, não
há tempo para rememorar, já que o Seres iluminados podem surgir no sonho
sofrimento é tão presente. Um preta fixado dos seres em qualquer forma de sonho.
numa caixa de joias, por exemplo, não fica Assim, para beneficiar os seres, os Budas
raciocinando sobre como são as joias de sua podem se manifestar como deuses, animais
família e assim por diante — ele e até como objetos inanimados. Mas seres
simplesmente se fixa, por hábito, embora deludidos não podem atingir a iluminação
essa fixação possa ter nascido, no passado, sem um caminho espiritual e esforço
pelo apego a membros da família da vida coerente. Portanto, os animais, enquanto
passada e assim por diante. animais, não são capazes de seguir um
caminho espiritual. Já os deuses não tem
É como uma pessoa num hospital interesse. Assim, nenhum deus ou animal já
psiquiátrico, cujas fixações não são atingiu a iluminação nessa forma, porém
entendidas por elas, e nem pelos médicos. eles podem gerar méritos, renascer como
Algumas são, outras não são. Na maioria humanos, encontrar e praticar um caminho
dos casos não há clareza de onde tudo espiritual até a iluminação.
aquilo surgiu.
Algumas formas de budismo descrevem
Há alguma outra espécie de animal na terra terras puras num reino específico do reino
capaz de alcançar os objetivos do Budismo, dos deuses. Normalmente são descritos 22
ou o ser humano é especial de alguma tipos, sendo 6 do reino do desejo — onde os
forma? deuses tem corpos e usufruem de comida,
bebida e sexualidade. Assim, essas
tradições budistas descrevem um sétimo

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reino dos deuses do desejo, na verdade


"meio aqui, meio ali" entre o samsara e o Ele fica exatamente onde convergem os
nirvana. méritos de um Buda e seus seguidores. Ao
redor de todo Buda há uma terra pura. Esta
Mas com relação aos outros deuses, é a terra pura do Buda Sakyamuni.
semideuses, animais, pretas e seres dos
infernos — e mesmo com relação a boa A terra pura é a terra de um Buda. Isto é, o
parcela dos seres humanos (em extrema local onde um Buda está com seus alunos.
miséria, em locais extremamente agitados
pela guerra e visões errôneas, e assim por Os ensinamentos do vajrayana só são
diante), não tem chance de alguma de concedidos em terras puras, e onde quer
alcançar a iluminação nessa vida. que um ensinamento vajrayana seja falado
e ouvido, é uma terra pura. Alguns
Alguns ateus materialistas dizem que nós e ensinamentos mahayana também, aliás,
os macacos somos todos primatas e como o Prajnaparamita.
gostariam de estender direitos humanos a
eles. Gorilas e orangotangos podem atingir Há infindáveis terras puras, como há
o nirvana? infindáveis Budas — para aqueles que
regozijam com quantidade. Para aqueles
Nirvana não é um direito. Em certo sentido, que regozijam com unidade, há só uma
eles podem — mas não como animais. Todo terra pura. Para aqueles que regozijam sem
mundo já foi tudo, então todos esses conceitos, a terra pura é além dos
animais já foram humanos e serão humanos conceitos.
noutra ocasião. Mas é bem raro, entre os
humanos mesmo, aqueles que são capazes O espaço e o tempo são meros sonhos,
de prática espiritual, então é a mesma coisa. quando você sonha perto de alguém lúcido,
acordado, o que quer que surja é lúcido e
Outra coisa é que um bodisatva pode se acordado. Portanto terra pura é estar com o
manifestar como um animal para dar algum Buda, ser próximo do Buda em corpo, fala e
ensinamento específico. Então nós nunca mente, interno, externo e secreto.
sabemos se esse animal sonhado é um Separativo ou não separativo, igual a um
animal por propensões derivadas do carma Buda ou reconhecendo um Buda.
ou se é um display de compaixão. É
apropriado manter ceticismo quanto ao "Esta é a terra pura do Buda Sakyamuni."
status verdadeiro de todo e qualquer ser — Como assim, o planeta Terra? Este
como não temos sabedoria, podemos estar universo? Algum subconjunto deles?
diante do Buda e não saber.
O mundo partilhado pelos seres que
O que é a "terra pura"? Onde fica esse reconhecem o Buda Shakyamuni como
lugar? refúgio último.

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com Shantideva, um momento de raiva


Uma terra pura está fora do samsara (dos pode destruir montanhas de virtudes
três reinos)? praticadas ao longo de eras e em milhares
de vidas consecutivas. Então mesmo um
Algumas terras puras sim, outras são grande praticante toma todo o cuidado para
limiares, isto é, estão no samsara para na hora da morte ter um renascimento
alguns habitantes e além do samsara para positivo e reencontrar o darma.
outros.
De toda forma, Buda Amitaba efetivamente
Algumas terras puras estão entre os 3 reinos fez o voto de que mesmo uma pessoa muito
(um destes, o do desejo, contendo os seis não virtuosa, se lembrasse dele na hora da
reinos usualmente descritos). Há terras morte, ele a levaria para a Terra Pura dele,
puras onde há apenas Budas, que são onde poderá praticar o darma.
mandalas do trikaya.
Quando se fala em ter renascimento em
Se eu tiver um pouquinho de lucidez na hora terra pura isso é o mesmo que iluminação?
da morte, posso escolher renascer em uma
terra pura apenas visualizando um buda? Não necessariamente, e não na maioria dos
casos. Numa Terra Pura há budas e
No caso do Buda Amitaba, que fez esse bodisatvas, isto é, seres totalmente
voto, sim. Na verdade você só precisa realizados e seres que estão praticando o
lembrar do nome dele — estritamente darma ainda. No mais das vezes seguimos
falando no caso de Amitaba, por causa de recebendo ensinamentos e praticamos sob
um voto específico que ele fez de ajudar a orientação de um Buda ou de bodisatvas,
quem lembrasse dele na hora da morte. No ou pelo menos de praticantes em algum dos
caso de outros Budas, vai variar com o seu veículos ensinados por um Buda. É um lugar
carma e o grau de lucidez que você consiga onde é mais fácil praticar.
sustentar.
O que seria o "Paraíso das Dakinis"? Tipo um
Na medida do seu carma, você vai encontrar "Céu"?
uma terra pura mais ou menos elevada,
onde você vai conseguir praticar mais ou Dakini é uma expressão de sabedoria,
menos efetivamente, com mais ou menos portanto um reconhecimento incessante de
obstáculos. dakinis é um reconhecimento incessante da
sabedoria, no brotar de qualquer
Efetivamente, mesmo grandes praticantes fenômeno. Também são as Terras Puras
com anos de retiro de meditação e que onde há predominância de budas e
muitos alunos veem como verdadeiros bodisatvas femininos, ou pelo menos onde
Budas, praticam intensamente antes da a "chefe" ou o Buda principal é um Buda
morte, já que nada é garantido — de acordo feminino.

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metáforas, mas de acordo com a ignorância


Afinal: Há somente 6 planos de existência do ser a ser beneficiado, podem sim ser
ou 31? ensinados como metáforas.

Todos os números são meras exposições Para tomar refúgio e praticar o darma é
didáticas. Subdividindo menos, são três preciso reconhecer que reificamos o sonho,
reinos, subdividindo mais, são 18+4+22, e dessa reificação – essa solidez que damos
sendo que um dos quatro pode talvez ser a algo que é irreal – é que surge o
dividido em mais, talvez. sofrimento. Então é preciso reconhecer a
natureza do sonho, e nosso hábito de
Os reinos budistas não seriam apenas reificação. Nesse escopo, é útil estudar
metáforas para estados psicológicos? vários tipos de sonhos possíveis,
Preciso acreditar na existência efetiva de categorizados de forma ampla como
vários céus e infernos? experiências boas e ruins de vários tipos, e
para isso podemos utilizar as descrições
A noção de vacuidade nos leva a não reificar tradicionais.
nenhuma existência, particularmente a não
reificar essa existência presente como seres Por que o Buda utilizou o termo "sonho"
humanos, como algo mais que um sonho. para descrever o samsara?
Então, evidente que há outros sonhos
possíveis. Porque ele é uma experiência e não é
substancial. A palavra "sonho" é uma das
Enquanto acreditarmos em algo que analogias preferidas para vacuidade.
verdadeiramente existe, não há
possibilidade de transcender o samsara. Por Se tudo se dissolve no momento da morte,
outro lado, se não entendemos que as até "os três venenos... a raiz do samsara"
experiências-de-sonho dos seres são reais (Livro Tibetano do Viver e do Morrer, p.
na medida em que se apresentam, não 323), como e de onde ressurge o carma que
haverá motivação alguma para transcender opera assim que se perde a chance de
o ciclo de existências. iluminação trazida pela fase da Clara Luz?

Por outro lado, se alguém de início tem No caso de uma pessoa que não tenha
dificuldade de entender que é a substância praticado o reconhecimento da natureza de
mente que cria a ilusão de solidez e sua própria mente durante a vida, isso é um
substancialidade, e cai em algum tipo de instante, e como num toque de mouse num
superstição materialista quanto a uma screensaver, tudo retorna como era. Esse é
existência não-como-sonho deste lugar, o motivo: por não ter se acostumado com o
nesse caso um ensinamento expediente estado natural, as aparências surgem
que psicologize essas noções pode ser novamente. De onde, há diversas
empregado. Então, não são apenas explicações. Como essas tendências não

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obscurecem verdadeiramente a natureza ela volta ao sonho. Como eu disse, essa base
livre, ela esteve sempre presente, o tempo vislumbrada esteve sempre presente,
todo, inclusive agora, sem ser efetivamente nunca se ausentou. Então ela não é algo
maculada por todas as diversas novo em meio ao que se apresenta na
manifestações. Quando as diversas delusão. E a delusão é o mero jogo dessa
manifestações cessam, isso não faz liberdade, que se autoaprisiona por
diferença para esta natureza — e não faz liberdade. A continuidade do tecido cármico
tanta diferença para quem não se se dá pelo mesmo motivo que o tecido
acostumou com ela, porque logo as cármico se dá em primeiro lugar, não há
tendências se formam novamente, a partir diferença.
da mesma base de onde se formaram da
primeira vez. Em outras palavras, a A pausa não é um objeto de experiência, se
ignorância é renitente, embora ela tornar-se um objeto de experiência,
intermitente. A sabedoria é primordial e então não é a pausa, mas um mero filme
pura, nunca cessando em momento algum, parado. Há uma diferença entre uma pausa
e nunca sequer alterando sua intensidade, e um filme parado numa mesma cena. A
em meio a ignorância ou à lucidez. pausa implica o não se fixar na tela, muito
menos no observador.
Já a pergunta de onde a ignorância surge em
primeiro lugar é complicada: ela é um A dissolução da experiência é do mesmo
próprio exercício da liberdade primordial. sabor do seu surgimento. Ambas as
Porém, ao reificar as aparências e se experiências ocorrem no âmbito do filme. O
esquecer desta liberdade, surge o samsara filme não impede em nenhum momento a
e os 84.000 sofrimentos. experiência fora da tela, que está sempre
presente e disponível o tempo todo.
Mas se após a pausa é retomado algo
anterior a ela, aquilo que experimenta a De onde vem o movimento incessante do
pausa é o quê? Como a experiência deludida sonho?
individualizada pode se dissolver e ressurgir
como era antes? Não se está muito próximo O sonho vem da liberdade e da
aqui de uma noção ontológica? espontaneidade naturais da mente, com
todas as características próprias desta
Bom, não se fala em "noções" no budismo. indeterminação e não fixação. Ao
O que se tem é a experiência dos reificarmos essas características ocorrem
praticantes. Se fosse fácil como morrer nascimento, envelhecimento, doença e
escapar do carma, daí não haveria morte — pelo menos para nós, humanos,
necessidade para o darma do Buda. Existe que temos esse sonho semelhante ao de
uma janela de oportunidade na morte, mas outros humanos.
utilizar ela depende de nós. A pessoa tem
um pequeno vislumbre da realidade, mas

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Se o planeta terra explodir, o samsara vai nos outros reinos o tempo todo — portanto
continuar rodando e o carma continuar mesmo que o número de seres permaneça
existindo? o mesmo, o que é incerto (e creio que era
um tipo de questionamento que a que o
Claro. O samsara é uma experiência que não Buda não se entregava), só pela realocação
depende da forma. Há samsara até na não de seres entre os reinos fenômenos
forma. Pode sumir todo o universo temporários como o crescimento
detectável e ainda assim pode haver populacional poderiam ser explicados.
sofrimento. De fato se diz que isso ocorre de
tempos em tempos. Onde posso conseguir referências em livros
ou online sobre as principais características
Como explica-se o renascimento em do reino humano? Preciso de maiores
conjunto com o crescimento populacional? detalhes para além do fato de que é o reino
mais valioso por ser aquele onde mais
Essa pergunta vem de três noções que não facilmente se atinge o despertar.
se aplicam ao budismo: que o número de
seres permaneça necessariamente Words of my Perfect Teacher tem
constante (o que é incerto), que a pessoa descrições detalhadas de todos os reinos.
renasça sempre como um só (muitos lamas Cada um dos 18 infernos é descrito em
renascem como mais de uma criança) e, detalhe, por exemplo.
principalmente — esse é o argumento
central — que o número de seres nos outros Os quatro principais sofrimentos do reino
reinos seja constante. Há tamanho número humano são o nascimento, a doença, a
de formigas, por exemplo... e pense em 14 velhice, e a morte. Os sofrimentos de não se
ratos por habitante em NY! Uma pequena conseguir o que se quer, não conseguir se
variação na ordem dos bilhões, livrar do que não se quer, e assim por
temporariamente, na população humana é diante.
minúscula se pensamos na variação
populacional de seres sencientes em geral. Os ensinamentos sobre reinos estão no que
se chama "preliminares externas", nas quais
No budismo todos os seres sencientes se reflete antes de tomar refúgio. São
podem renascer como qualquer outro ser chamados de "quatro pensamentos que
senciente. transformam a mente". Eles são 1) a
preciosidade do nascimento humano (com
Ao jogar pesticida sobre uma vasta área, por 18 itens no mínimo, mas o As Palavras do
exemplo, uma porcentagem desses insetos Meu Perfeito Professor tem 16 itens
mortos vai renascer ainda no reino animal adicionais); 2) carma; 3) impermanência e 4)
— outras grandes porcentagens vão para sofrimento. Neste quarto item estão as
cada um dos outros reinos — e hecatombes descrições dos infernos aos reinos dos
similares acontecem com seres humanos, e

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devas, inclusive os sofrimentos usuais do O reino humano também é o resultado de


reino humano. ações passadas, na sua maioria positivas.
Assim é um sonho também. Nós sonhamos
Os subitens são temas para uma prática esse corpo e esse ambiente devido a ações
formal de reflexão, na qual se senta em passadas em outros ambientes de sonho.
postura de meditação e segue cada item
com exemplos e reflexões pessoais Então pode existir por aí gente que foi um
adicionais. deus em outra vida?

Após refletir assim, a pessoa então passa a Todo mundo já esteve por todos os reinos,
prática de refúgio, geralmente com não centenas, mas infindáveis vezes. Então
prostrações, e enfim ela penetra nas toda gente por aí já foi um deva em outras
preliminares internas, que incluem vidas.
visualizações. Após praticar estas
preliminares até completar as acumulações Os deuses também podem alcançar a forma
(normalmente o número é 100.000 de de realização mais elevada que os budistas
cada), então a pessoa pode fazer a prática almejam ou essa só pode ser atingida pelos
do estágio do desenvolvimento e humanos?
eventualmente a prática do estágio da
consumação. Os deuses nem conseguem praticar o
darma, quanto mais atingir realização... Eles
Esta estrutura é comum a todas as formas nem se interessam por prática espiritual, a
de budismo tibetano, mas estruturas vida deles é boa demais — até que acaba.
semelhantes existem em outras formas de Mas eles podem renascer como humanos
budismo. Alguns professores adicionam (ou em qualquer outro lugar).
outras práticas preliminares — Dzongsar
Jamyang Khyentse Rinpoche tem um As entidades que habitam os outros
conjunto especial para seus alunos mundos que o Budismo acredita existir
ocidentais — que inclui leituras, trabalho também são humanóides,
social e outros itens, antes das (e algumas antropomórficas?
vezes durante as) reflexões.
Os devas do reino do desejo e os asuras tem
O que são os infernos no Budismo? corpos semelhantes aos humanos —
eventualmente com algumas diferenças,
São o resultado de ações negativas, isto é, mas bem melhores, mais flexíveis e mais
sofrimento muito intenso por um período belos, em todos os casos. Alguns asuras
muito longo de tempo. É como um pesadelo podem parecer "monstrinhos". Os devas do
extremamente longo. reino da não forma não tem corporeidade
(lendo-se a descrição, realmente parece o
que muito new age busca na prática

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espiritual, mas segundo o budismo é uma fixado (não lembra os detalhes humanos,
forma de profunda ignorância), e os devas resta apenas o carma e o hábito).
da forma possuem formas corpóreas
variadas. Todos os corpos são corpos de Porque que cada um dos seis reinos têm um
sonho, mesmo no reino humano. buda?

No reino dos animais os corpos são É uma forma de demonstrar a compaixão do


variados, e no reino dos pretas e narakas Buda. Ele surge dando proteção para os
possuem algumas diferenças graves com a animais, comida e água para os pretas,
forma humanóide — como um pescoço da diversão para os deuses, etc. Isto é, da
espessura de uma agulha e uma barriga forma que eles projetam, ele surge. É claro
enorme, no caso dos pretas, por exemplo. que como preta ("fantasma faminto") os
seres não estão prontos ou dispostos a ouvir
Os corpos são sonhados através do carma, ensinamentos, então o Buda aparece dando
mesmo as diferenças e semelhanças entre comida e água. E esse é o tipo de benefício
corpos humanos são questão puramente de que eles obtém.
carma mais individual e mais coletivo de um 5. Ética
ser. Isto é, ele tem dois braços e duas pernas Defina "virtude", afinal, o que é bom para
como a maioira dos humanos por algum um, ou mesmo vários pode ser ruim para
carma coletivo, mas tem uma pintinha na outro. Isto não é um tanto relativo?
bochecha que pouca gente tem parecido, e
ninguém tem igual, por causa de um carma A prescrição de virtude tem algum grau de
mais individual. relativização, melhor dizendo, algum grau
de flexibilidade, porque é apenas um
O fantasma "clássico" do Ocidente — por croqui, mas a virtude em si não é relativa,
exemplo, o dono de uma casa antiga que ela é aquilo que produz felicidade de maior
aparece para os novos moradores –- está duração e escopo, isto é, felicidade mais
ainda no bardo ou já teve renascimento genuína e para o maior número de seres.
como fantasma faminto? Em que medida a
identidade humana é mantida nos Por exemplo, sofrimento e insatisfação não
renascimentos em outros reinos? são desejados (verdadeiramente,
sinceramente) por ninguém, portanto
"Preta", isto é, fantasma faminto. Ele retém aliviar sofrimento e insatisfação de outro é
todo o carma de suas identidades passadas, praticar virtude.
inclusive a humana, mas não apenas, todas
as vidas passadas pesam sobre a presente, Prescrição significa dizer "matar deve ser
e são infindáveis — é possível que certas evitado", isto porque os seres, em geral,
fixações (a casa, objetos) permaneçam, mas querem viver, e mesmo os que
em pouco tempo ele nem sabe porque está aparentemente não querem, estão sob suas
próprias visões errôneas. Mas, se algum

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malfeitor não puder ser impedido, então é


possível que matar seja mais correto do que Em filosofia se faz algumas vezes a diferença
não matar. Por exemplo, bernes num entre ética e ética prescritiva. Os Budas são
cachorro. Para salvar a vida do cão, que é simplesmente éticos, porque para o
uma virtude, se mata o berne, que não é budismo o que é ético é o que se coaduna
uma virtude. Porém o berne está praticando com a realidade — nós agimos de forma não
ele mesmo desvirtude, e eventualmente ética quando operamos no mundo de
matará o cão. Assim, para salvar o cão e fantasia criado pelas aflições mentais. A
impedir o berne de causar desvirtude, se ética prescritiva serve para seres como nós,
pratica, aí sim, o matar de forma virtuosa. que nos confundimos tanto que precisamos
de alguns princípios ou preceitos fáceis de
Buda quebrava suas próprias regras de vez lembrar que estejam à mão quando
em quando para provar que nada é estivermos totalmente dominados por
permanente? Como isso se aplica aos aflições mentais.
discípulos?
A beleza disso é que não só cada uma das
Budas não operam por regras, as regras são regras é impermanente, porque ser ético
para quem está no caminho. Mas o Buda (para quem pode, não para quem quer) não
não prejudica nenhum ser, porque o estado depende de regras, como todo e qualquer
natural é livre de aflições mentais. Então as esquema ético pronunciado em palavras é
características negativas (no sentido de não uma mera tentativa de lidar com problemas
haver, não ter artificialidade) não podem adventícios — a única maneira de
ferir exatamente a noção de abandonar esquemas e preceitos, e
impermanência. Algo pode mudar sempre, juntamente com isso não amealhar grande
mas pode não mudar num certo sentido, sofrimento, é despertar para a natureza da
que é o sentido de produzir aflições e realidade tal como ela é, isto é, se tornar um
prejudicar os seres. buda.

Os preceitos são feitos para aqueles que, O budismo convida as pessoas a


percebendo que possuem aflições mentais, experimentarem por si mesmas o que é
precisam artificialmente refrear suas ações bom ou não para a mente, certo? Porém,
em corpo, fala e mente, de forma a não essa "sugestão" não contribui para a
causarem mal a si próprios e aos outros. geração de mau carma?
Aqueles que não possuem aflições, arhats e
budas não seguem preceitos, porque sem Se a pessoa entender mal, pode levar a
aflições mentais não há como prejudicar os confusão. Daí ela pratica o que ela sabe ser
outros. Portanto eles não se desviam dos desvirtude para ver se sofre depois — o que
preceitos sem precisar seguir qualquer não é adequado. Se você sabe ler o rótulo,
fórmula estabelecida nos textos ou na e você sabe que é veneno, você não precisa
comunidade.

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tomar para provar que é veneno para si seria como Maquiavel falou: "O homem que
próprio. Isso seria inadequado. tenta ser bom o tempo todo está fadado à
ruína entre os inúmeros outros que não são
Agora, com relação a nossas ações já bons."
realizadas e as que vamos realizando,
principalmente as de fala, onde isso fica Segundo o ensinamento budista, a
bem claro, podemos rapidamente perseverança na bondade, mesmo para
evidenciar a ressaca moral quando falamos com quem nos prejudica, é essencial. Isso
rudemente em várias ocasiões, por inclui agir com dureza para evitar que o
exemplo. Então nós experimentamos nos outro prejudique principalmente a si
dedicar a erradicar a fala rude, e há próprio.
métodos para isso, um deles é
cuidadosamente, exatamente, examinar as A prática da paciência (e demais práticas de
consequências, e olhar para o outro, para a virtude) são essenciais para nós, até mesmo
vítima de nossa fala rude, com compaixão. para que não nos tornemos passivos diante
Assim, quando formos vítimas da fala rude, da desvirtude alheia.
podemos também desenvolver compaixão
pelo agressor. Ser bondoso é uma vitória por si só, os
outros critérios de “vitória” são baseados
É nesse sentido que funciona o em profunda ignorância.
experimento. Além disso, podemos
livremente experimentar com a virtude. Em Quais são, para o budismo, as virtudes?
como a virtude traz felicidade para nós
mesmos e para os outros. Virtude no budismo é o que produz
felicidade temporária e definitiva para os
Quem não é monge e decide não ter filhos seres. Há quatro qualidades
estará gerando mau carma? incomensuráveis: amor, compaixão, alegria
e equanimidade e seis perfeições:
Não. Só não está gerando um mérito generosidade, ética, paciência, empenho,
específico. Não gerar determinado mérito concentração e sabedoria.
não é carma negativo, é apenas não gerar
aquele carma positivo particular. Sugira uma prática para desenvolver a
paciência.
Da mesma forma o monge, enquanto
monge, não gera o mérito especifico de ter Procurar conviver com pessoas
filhos. desagradáveis.

O que fazer com aqueles de índole perversa, Omissão por covardia ou comodismo diante
que nos atrapalham em todos os nossos de uma injustiça que poderia ser impedida
projetos e que parecem imutáveis? Não gera mau carma?

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compreendidas de uma maneira mais


Com certeza. elevada mostram ter resultados muito
positivos?
Quando uma situação ruim acontece,
devemos vê-la como um carma sendo Há ações dos outros que podemos julgar
purificado. Porém se eu buscar, por como nocivas mas que não são, e há ações
exemplo, ressarcimento legal dos danos próprias que os outros podem julgar nocivas
causados por uma situação, isso geraria mas não são.
mais carma negativo?
O que não há é ações próprias que julgamos
Quando algo ruim acontece, isso é carma nocivas e se mostram benéficas — se elas
negativo que está sendo purificado, e aí parecem benéficas é apenas o nosso mau
temos a oportunidade de não gerar mais carma de ver assim, porque a raiz da
carma negativo com relação aquela nocividade de uma ação é nossa motivação,
situação. Em geral, se não somos e se fizemos algo com a ideia de que era
praticantes perfeitos, vamos ainda gerar nocivo em mente, é porque era nocivo.
alguma tendência residual de desconforto
ou irritação com relação àquela situação. Causar sofrimento a uma pessoa com o
intuito de ensinar algo, essa é uma atitude
Se por ressarcimento legal você está virtuosa?
falando da lei humana mesmo, claro que
não. Apenas na medida em que o sistema e Em geral não. Apenas no caso de um
você forem corruptos ou prejudicarem a relacionamento particular em que a pessoa
outra pessoa por vingança ou algo assim. que sofre e efetivamente aprende com o
Aqui, a motivação conta em primeiro lugar. acontecimento tem um tipo peculiar de
Pedir uma reparação, desde que não devoção para com quem "ensina", o que é
meramente punitiva, por si só, não produz extremamente raro — mas aconteceu entre
carma negativo. Isso não quer dizer que as Marpa e Milarepa, ou Tilopa e Naropa. No
pessoas envolvidas nos procedimentos nosso caso, precisamos realmente verificar
legais, por serem influenciadas pelas nossa motivação, e a possível eficácia, em
próprias aflições mentais, não acabem termos de uma ação. Se estamos pensando
gerando este ou aquele carma. No caso de em benefício maior, a longo prazo, não tem
praticantes acionando o sistema jurídico, ou problema dar um remédio amargo a uma
de praticantes que são profissionais do criança que não vai entender e vai chorar.
sistema jurídico, eles devem tomar as Mas é muito raro estarmos numa posição
situações que se apresentam como uma em que algo que falamos, por exemplo, vai
prática desafiadora, mas possível. magoar mas depois produzir benefício.
Muito raro mesmo.
Há ações que à primeira vista parecem
nocivas, mas que quando são

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O Buda pode mentir se isso eventualmente É verdade que o buda matou um homem?
trouxer algum tipo de benefício para os
seres? Como um Bodisatva, isto é, quando ainda
não era um Buda, numa vida passada, Buda
Claro. Exemplo clássico o do caçador que matou o capitão de um navio que causaria a
segue atrás do veado e nos pergunta para morte de 500 pessoas. Foi uma atitude
onde ele foi. Há formas de budismo que compassiva — ele não matou o ser por
ficam em silêncio, mas no mahayana raiva, indiferença ou cobiça (para o roubar,
certamente devemos apontar a direção usurpar seu posto, comer sua carne, vestir
oposta. sua pele — como fazemos com os animais).
Ele o matou com a única boa motivação de
Certamente devemos apontar a direção salvar vidas, então, nesse caso, o ato de
oposta? Mas e se o caçador tem uma matar foi uma virtude.
criança que precisa ser alimentada e não
sabemos? Aí a boa intenção nos livra do A diferença das capacidades mentais entre
mau carma mesmo que a criança morra por os animais implica diferenças na gravidade
causa do nosso altruísmo amador? do carma resultante de matá-los?

Você mencionou um Buda, que é Capacidade para beneficiar ou ao menos,


onisciente. Se no caso somos eu ou você, eu não prejudicar, os outros seres. Esse é o
diria que se aparece um caçador bem critério essencial. Então, de forma geral
vestido, com uma arma cara, e assim por pode ser menos carma matar um carnívoro
diante — a gente simplesmente dá o melhor do que um herbívoro, e menos carma matar
"chute" que a gente pode. Se é um caçador um peixe grande do que um peixe pequeno
que pareça paupérrimo ao ponto de usar (o peixe grande tem o potencial de comer
uma arma que não valha o valor de uma mais peixes, já que a maioria dos peixes —
refeição, algo assim, com certeza, além de exceto piranhas etc. — só conseguem
mentir é recomendável oferecer algo. comer peixes menores do que eles). Porém,
apenas com onisciência pode alguém ver
No Budismo, uma atitude pode gerar mau todas as vidas passadas daquele animal e
carma dependendo sempre da intenção e prever o que uma morte, naquele
das circunstâncias ou algumas atitudes são momento, e de que forma, pode afetar os
intrinsecamente maléficas? futuros renascimentos. Um ser que tenha
esse tipo de visão pode até matar um
Só as três atitudes negativas de mente, animal ou outro ser com o objetivo de
equivalentes as três aflições mentais beneficiá-lo, em alguma circunstância
básicas: apego, aversão e indiferença. É a muito particular. Como nós não temos esse
presença delas que define uma desvirtude poder, é difícil discriminar, sendo mais fácil
de fala ou de corpo. discriminar em termos de quantidade.
Assim, comer camarão é mais

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carmicamente negativo do que comer vaca, estão acima da consciência e critério


porque você em geral mata muitos imediatos da pessoa?
camarões para uma única refeição,
enquanto que uma vaca alimenta várias Em todos os casos, antes de meramente se
pessoas por várias refeições. fiar na ética prescritiva, isto é, em regras e
votos, é preciso avaliar a situação como
A capacidade mental pode implicar um uma especificidade, e não como uma
maior potencial para trazer benefício e generalidade, e agir de forma que seja
evitar malefício. Mas essa é uma benéfica e efetiva — até se pessoa possa
generalização perigosa, porque a avaliar com a maior atenção, cuidado e
capacidade mental também pode implicar dedicação possíveis. Se não conseguimos
exatamente o oposto. Os grandes uma boa avaliação cuidadosa, seguimos os
caçadores são estrategistas fantásticos, votos e prescrições com confiança. Afinal de
para o grande sofrimento das presas. Assim, contas, não vamos contar com um professor
o critério não é capacidade cognitiva em si, que possa avaliar por nós mesmos, em
mas a capacidade cognitiva da empatia, ou, todas as circunstâncias que encontrarmos.
na falta dessas, o simples mérito de não se Precisamos desenvolver uma vida ética, e
encontrar em condições (físicas) de causas isso se faz tanto seguindo as prescrições e
grande prejuízo aos outros. Esses seres votos quanto refletindo compassiva e
devem ser defendidos em detrimento dos cuidadosamente sobre cada ação que
outros. Não é porque o verme tem uma produza impacto no mundo — isto é, toda e
menor capacidade cognitiva do que o qualquer ação.
cachorro que nos livramos do verme para
salvar o cachorro: é porque o verme está, Em todos esses tipos de pergunta a resposta
ele mesmo, gerando carma negativo. Então, é "avalie o caso com interesse verdadeiro e
estamos protegendo tanto o cachorro faça o melhor que conseguir do ponto de
quanto ao verme, ao matar o verme. Se vista que seja mais benéfico para todos os
deixássemos o verme matar o cachorro, envolvidos". Os votos e prescrições são um
estaríamos protegendo apenas o verme, e ótimo croqui, um esboço que o Buda e os
em sua atividade negativa, prejudicial ao grandes praticantes ao longo do tempo nos
cachorro. Portanto, não estaríamos, na deixaram, porém a interpretação da
verdade, protegendo nem mesmo o verme situação e de como adequar nossa
— que virá a sofrer no futuro pelo capacidade e nosso entendimento dos
sofrimento que causou devido a seu carma ensinamentos com a situação é
presente negativo (um renascimento como responsabilidade totalmente nossa. E o
verme, que causa sofrimento a um Buda sempre deixou bem claro que é
cachorro). necessário avaliar os ensinamentos e testá-
Todos os casos em que são necessárias los com cuidado, o que vale também para os
decisões éticas são tomadas sob consulta votos e prescrições.
aos ensinamentos? Os votos e prescrições

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Como manter o preceito de não matar,


quando alguém verdadeiramente quer lhe Conduta sexual inadequada é aquela
causar o mal através de violência ou morte? conduta que sexual que produz sofrimento
para você ou para outra pessoa. Por
Para defender vidas você pode matar. A exemplo, outra pessoa espera de você que
virtude é mais forte que a desvirtude, isto é, você só faça sexo com ela, e você deixou
se uma virtude maior compensar, então suficientemente claro que iria ser assim,
uma desvirtude menor pode ser realizada. mas depois você trai a confiança dessa
Se conta nos Jatakas que o Buda matou o pessoa fazendo sexo com outra, e ela vem a
capitão de um navio que causaria a morte saber. Nesse caso se configurou conduta
de 500 pessoas. sexual inadequada. Qualquer situação em
que através do sexo você cause sofrimento
Agora, o que não pode haver é raiva. Na para si ou para outro configura conduta
medida em que houver, raiva, nojo, medo, sexual inadequada.
vingança, desprezo, aversão, nessa mesma
medida o carma negativo da ação se Falar inutilmente é se engajar em conversas
acumula. Quando alguém mata livre de que não digam o que é benéfico ou pode ser
qualquer uma das aflições, aversão, apego usado em benefício de outrem ou de si
ou indiferença, a ação, em si, não é uma mesmo. Também se engajar em emoções
desvirtude — em particular se ela produz inúteis, que não promovem hábitos mentais
virtude. Então o Buda ao matar o capitão saudáveis para você e para os outros —
não deve ter sentido mais que compaixão como certos tipos de entretenimento, ou
por ele como um possível assassino de 500, certa perspectiva passiva diante de
não guardou nenhuma má vontade para determinados entretenimentos.
com ele. Foi como se submeter a uma
cirurgia para tirar uma vesícula biliar muito Obtusidade mental é ser indiferente ou não
problemática — nós não queremos agredir se importar com o ambiente ao redor, os
a nós mesmos, não temos raiva nenhuma outros ou a si mesmo — não se importar no
da vesícula, não ganharíamos nada ao nos sentido de não se engajar na virtude, e sim
focar na vesícula como um inimigo — mas se engajar em pensamentos e hábitos
ela não pode ficar, caso contrário, pode mentais neutros ou negativos.
estourar, inflamar, e se não estivermos
próximos a um hospital, morreremos. Qual a orientação budista sobre as práticas
Então, sem aflições mentais , tiramos de nós sexuais? Devemos fazer algum tipo de
mesmos algo que não está funcionando abstinência ou podemos nos engajar nelas à
bem, mas que não é errado por si só. vontade?

Poderia explicar melhor os conceitos de: Caminho do meio. Monges praticam


conduta sexual inadequada, falar abstinência. Praticantes em geral deveriam
inutilmente e obtusidade mental? utilizar a sexualidade de forma que não seja

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perturbadora para si mesmos e para o perigosa nesse sentido, quando queremos


parceiro. intensificar “a coceira” no outro, e não
temos nenhuma clareza sobre como, por
É possível uma relação sexual sem amor exemplo, usar a energia das aflições no
(mas que também não seja "apenas caminho.
desejo") gerar bom carma?
Há aspectos sadios e doentios daquilo que
Sim, mas supondo que você esteja falando no ocidente chamamos de "amor" em seu
em amor romântico, não no amor com o sentido romântico. Há apego, dependência
budismo o entende. Numa relação etc. Mas há também aspectos bastante
consensual onde pelo menos uma das positivos. Então nosso objetivo é
partes sente prazer, a(s) parte(s) que desenvolver os aspectos sadios de empatia
tinham a intenção e agiram de forma a e vontade de ver o outro feliz, e abandonar
causar essa felicidade temporária geram os outros aspectos.
mérito. Porém essa é a definição de amor
no budismo, desejar a felicidade do outro — Gostaria de saber como o ato sexual entre
mesmo que essa felicidade seja pequena e duas pessoas de comum acordo, respeito e
dure pouco (e desde que essa curta duração amor é visto no budismo. Qual a função
e pequena amplitude não implique em dele? Gera carma positivo?
maior sofrimento depois). Na medida em
que aflição surja, e principalmente, que haja A ação pode produzir carma positivo,
intenção de causar aflição, nessa mesma mérito, mas não necessariamente. Se
medida, há carma ruim. Então na grande houver amor como o amor é definido no
maioria dos casos o carma é misto. Apenas budismo, sim — se for amor com apego,
em casos raríssimos o carma é surgirá um mácula no mérito gerado, isto é,
completamente bom (sexo entre não será tão meritório — podendo até
meditadores que não desenvolvam aflições, deixar de ser meritório de acordo com as
nem tenham nenhuma intenção de gerar aflições mentais que surgirem.
aflições). E em todos os casos em que não
há intenção de proporcionar felicidade ao Em geral a ação sexual é engajada por
outro, nesses casos o carma é totalmente desejo e apego, isto é, a pessoa deseja
ruim. gratificação. Na medida em que ela oferecer
gratificação ao outro, ela gera mérito. Então
Entre as aflições estão as emoções aflitivas, uma relação sexual quanto mais livre de
tais como o apego, a inveja, o ciúme. egoísmo for, mais meritória será.
Também algo da provocação mútua –
muitas vezes no âmbito monástico se faz a Em geral, no entanto, tendemos ao
pergunta: “o que é melhor, coçar uma egoísmo, e no geral, portanto, a relação
coceira ou não ter a coceira em primeiro sexual não é meritória, e em alguns casos
lugar?” A sexualidade pode ser muito produz mesmo mais carma ruim do que

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bom. Por isso é necessário praticar o darma,


de forma que todas as nossas ações possam Algumas vezes se ouve, de professores, que
ser cada vez mais virtuosas, sejam de que pagar por sexo é melhor do que
tipo forem. masturbação — porque seria menos
egoísta. Mas isso, é claro, depende bastante
Procurar sexo pago gera carma negativo? de como o cliente trata o profissional do
sexo.
Isso depende da sua motivação. Se você vai
causar sofrimento aos outros e a si mesmo, Ter múltiplos parceiros não gera mau carma
sim, se não, não. (mesmo que não haja sofrimento)? Ou
ciúme e apego são piores do que isso?
Pagar (ou receber) dinheiro por sexo é uma
ação não virtuosa? Só há mau carma quando quatro condições
estão estabelecidas: intenção embasada em
Tradicionalmente não. Mas barganhar e um dos três venenos (1), objeto da ação é
disputar (como num leilão), sim. Dizer que individualizado e reconhecido (2), a ação é
paga mais e assim frustrar outro cliente, por posta em execução (3) e é efetivada (4). Se
exemplo. E, óbvio, exploração sexual é uma não há intenção com base em um dos três
desvirtude. venenos, a primeira condição, não pode
haver mau carma.
Porém numa relação consensual onde há
troca de favores, inclusive dinheiro, não há No caso da ação sexual, se há apenas
nada de peculiarmente pior em isso desejo, sem consideração pelo que o
envolver sexo. A não ser que a própria parceiro sente antes, durante e depois,
pessoa se sinta mal com relação a isso: mas existe mau carma. Mesmo que haja algum
ela não precisa se sentir. sofrimento, mas no geral a intenção seja
altruísta e boa, daí o carma positivo pode
Nas culturas tradicionais, machistas, da ser maior.
Ásia, não é considerado desvirtude nem
mesmo para um homem casado. Nos dias Ter múltiplos parceiros sexuais não gera
de hoje e na cultura ocidental, mais mau carma do que ter um único
evidentemente que, muitas vezes, nesse parceiro — se com os primeiros há menos
caso seria desvirtude. A não ser que seu aflições mentais, no total, do que com o
cônjuge seja muito compreensivo caso único do segundo exemplo. Porém o mais
fique sabendo. É desvirtude na medida em comum é que a perturbação se amplie, e o
que haja sofrimento para alguém — e em sofrimento gerado por expectativas
muitos casos há exploração, e ao ficar frustradas aumente, com o número de
sabendo de algo o cônjuge pode ficar interações — se a pessoa não consegue usar
perturbado. Assim é preciso avaliar caso a a sexualidade de forma totalmente
caso. benéfica, nem olhar para o outro sempre

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com verdadeiro amor e compaixão, o que pensamentos do mesmo tipo ou pensar em


algumas vezes não conseguimos com um outra coisa. Para ajudar em todas essas
único parceiro. É preciso ser um grande circunstâncias onde poderíamos ter mais
praticante para coadunar um estilo de vida espaço entre o pensar e o agir, a meditação
intenso assim com a prática — não é é essencial. Assim a pessoa pode exercer
impossível, mas é extremamente raro. liberdade, e não apenas seguir os próprios
hábitos.
Qual o ponto de vista do budismo sobre a
masturbação? Como faço para superar o De outra forma, passo a passo. Não ajuda
hábito de me masturbar? transformar o evitar da masturbação num
foco constante. Ajuda focar em outras
Considerando a pergunta anterior sobre coisas, e a cada tropeço, se recolocar num
sexo pago, masturbação é considerado algo caminho um pouco mais virtuoso.
pior. Simplesmente você não beneficia
ninguém e apenas vivencia uma felicidade Isso não é diferente de falar rudemente, ou
muito pequena, segundo o budismo, aos qualquer outra desvirtude não tão
custo de grande energia vital — sem falar cintilante quanto as de cunho sexual. Isto é,
que ao fantasiar e assim por diante, você se você não ficar remoendo pensamentos
treina em apego e desejo. contra alguém, é mais difícil que você venha
a dizer algo que magoe essa pessoa. E se
Porém, entendo que não seja algo fácil de você diz, ajuda se arrepender e procurar
se evitar, e acho que a maioria dos deliberadamente evitar da próxima vez. E é
praticantes recorre a isso. Há instruções certo que uma mera decisão não vai mudar
sobre como transformar isso pelo menos hábitos arrebanhados por vidas incontáveis
em parte numa prática espiritual, mas — então precisamos ter paciência com nós
devem ser recebidas de um mestre mesmos.
qualificado.
Qual é a visão do budismo sobre
Posso relatar algo que me ajuda muito. masturbação?
Quando fiz jejum alguns meses atrás
percebi que me ajudava imensamente não Para os monges, como toda forma de ação
pensar em comida. Quando eu começava a sexual, é considerada uma violação de voto
pensar em comida, imediatamente eu — ainda que menor do que o intercurso.
voltava meu pensamento para outra coisa Um monge que pratique intercurso perdeu
— como eu estava fazendo prática, eu a condição de monge. Um monge que se
tentava voltar meu pensamento para masturbe ou seja masturbado por alguém,
compaixão. Então quando algo desperta apenas comete uma violação de seus
nosso desejo, uma coisa que vemos ou preceitos, que pode ser "remendada".
lemos, podemos parar e escolher se
queremos seguir isso com mais

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Para os leigos, vale o mesmo do que com as um processo de degradação ao participar


drogas. É preciso desenvolver um foco dos filmes, porém, isso já é bem menor na
mental suficiente que nos torne capazes de sociedade moderna. Em outras palavras,
observar cuidadosamente nossa própria numa sociedade tradicional, essa atividade
mente em todas as nossas ações. Assim causaria um isolamento completo de
abandonamos o veneno quando qualquer possibilidade normal de interação
reconhecemos que é veneno. Se não social; já na sociedade moderna, uma
reconhecemos, podemos seguir um croqui, pessoa assim é aceita em muitos ambientes.
como o que os mestres prescrevem — e O budismo pode depor contra certos
algumas vezes a masturbação é aspectos da produção cultural, mas em todo
mencionada como desvirtude para os caso é temerário que o budismo assuma
leigos. Mas a pessoa deve averiguar isso uma posição que se feche a uma visão mais
com cuidado. liberal e plural da sociedade.

Quais as consequências da pornografia e Por isso há diferença na questão quanto ao


seu consumo na visão de mundo budista? que um praticante deve pensar e fazer em
Ela deveria ser combatida ou deve ser termos de sua vida privada, e o que deve
tolerada? pensar e fazer em termos de ativismo na
esfera pública.
O praticante sempre deve observar como
consegue, ou não, integrar algo em sua Sexo fora do casamento é errado?
prática. Eu diria que é difícil, mas
novamente, talvez não seja impossível. Não existem pecados no budismo, a pessoa
Embora há de se considerar que a indústria precisa só avaliar, em qualquer coisa que ela
pornográfica como um todo tenha muito faz, se isso produz malefício para ela ou para
possivelmente um impacto bem mais um outro ser. Se não faz, e, em particular,
negativo do que o possivel impacto positivo se traz benefício a longo prazo, a pessoa
que cria. pode fazer.

Fora do escopo de um praticante, fica difícil Não há nada de errado com sexo fora do
determinar. Creio que há jurisdições: as casamento, desde que não produza
sociedades mais tradicionais não aceitam sofrimento para ninguém.
bem a produção e o consumo de
pornografia; já as sociedades modernas tem No Catolicismo o casamento é indissolúvel e
nichos, não de praticantes, em que quem se une a uma mulher que já foi
precisamos talvez manter um grau liberal de validamente casada comete adultério. No
flexibilidade para acomodar as diferentes Budismo há algum problema em se unir a
visões dessa sociedade múltipla. Uma atriz uma mulher que já teve outros homens ou
pornográfica ainda é bastante já foi casada?
estigmatizada, e podemos dizer que sofre

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Casamento é uma questão civil, baseada em iluminados. As coisas podem mudar para
costumes. O que quer que seja apropriado mais rígidas ou mais soltas, e ambas as
para uma época e local, está bem. Isso inclui coisas podem ser boas ou ruins — na
poligamia e poliandria — em sociedades e medida em que ambas as coisas podem
épocas que as aceitam bem. Não há levar os seres à desvirtude. Então não existe
nenhuma noção especial vinculada a generalidade quanto a posturas de ética
virgindade ou número de parceiros. pública. Como praticantes, cada caso é visto
como um caso. Budistas em posições
A união em família deve ser embasada na proeminentes, formadores de opinião,
prática das perfeições, fora isso, não há precisam, portanto, estar mais perto da
nenhuma especificação quanto ao que é um onisciência, para não apenas estarem
bom núcleo familiar — ou um bom aleatoriamente apoiando ou refutando
relacionamento entre as pessoas, quer estas ou aquelas tendências da cultura.
envolva troca sexual, afetiva, ou de outro
tipo. A ética budista é bastante simples, o que
causa sofrimento para você e para os outros
A promiscuidade, no entanto, em geral é um deve ser evitado — e você deve examinar
indício de que ações não virtuosas (como cada ação e tentar fazer o melhor para
desapontar os outros com promessas, ou evitar o que cause sofrimento para você e
criar falsas expectativas) estão sendo para os outros. Há croquis, como uma lista
realizadas. Mas há casos de seres de desvirtudes, como mentir e matar — mas
iluminados que pareceriam promíscuos a já vimos que há casos onde essas ações
nossos olhos, como Drukpa Kunley, um podem ser virtudes, ou pelo menos a menor
mahasiddha butanês que conduziu oito entre duas desvirtudes inescapáveis. É bom
alunas-namoradas à iluminação completa e lembrar também que a negligência e a
criou interdependência positiva com os indiferença também causam sofrimento.
ensinamentos para outras 3.000. Esses Sem causar dano algum, é só esse tipo de
casos são raros, mas há muitas histórias de coisa que se pode dizer. Dizer algo do tipo
seres iluminados que fogem "assistir Crimes and Misdemeanors do
completamente as convenções sociais de Woody Allen é condenado pelo budismo"
uma época, ou da maioria das épocas, e não faz nem sentido do ponto de vista
mesmo assim não estão cometendo budista — mesmo numa coisa tão específica
desvirtude. há tantas condições que podem tornar essa
atividade positiva, neutra ou negativa que
Com relação a postura pública, o budismo seria impossível para qualquer um, senão o
apoia os costumes da época e do lugar — e Buda, dizer se para uma determinada
quando eles estão em transição, há tensões pessoa, num determinado local, isto ou
naturais entre conservadores e aquilo é correto. Pior do que isso, o Buda
progressistas como em todas as formas de diria "mas você precisa reconhecer isso com
agregados de seres humanos não os próprios olhos" — então mesmo que a

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dica do Buda seja perfeita, precisa, não mentir (sobre estar doente e não poder
irreparável — a deliberação ética é sua, é trabalhar, por exemplo) não é o ponto, mas
essa a instrução essencial do Buda. Se o o impacto que isso vai causar nos pacientes
Buda deliberasse por você, aí ele seria e nos seus colegas de trabalho é o que
culpado de muitas coisas — e os seres não importa.
teriam valor algum. A sua mente é o Buda,
você precisa revelar isso, então você precisa Agora, de fato se a pessoa tem consciência
despertar a onisciência latente, através de verdadeira e altruísta da raridade e
experimentos repetidos. O croqui é muito profundidade dos ensinamentos, e
simples, causou sofrimento, sofreu, e sofrer compromete-se a aplicá-los — nesse caso,
não é bom. Mas tudo que o Buda faz é ela pode escolher gerar um grande mérito
apresentar alguns conceitos genéricos, que em detrimento de um pequeno demérito.
você vai precisar, com seu trabalho Mas isso, como sempre, é caso a caso. E, em
intelectual e vivencial, verificar e aprender a todo caso, a pessoa precisa reconhecer que
usar em cada peculiaridade, cada está arcando com uma grande
momento, cada evento. O Buda pode te dar responsabilidade, porque ela não é
um prato de comida, mas ele não pode onisciente e desconhece todas as
comer por você. ramificações de seus atos. Com consciência
disso, ela age como for mais adequado —
Mentir para poder praticar o Darma tudo muitas vezes coisas pequenas podem se
bem? tornar grandes dilemas morais. Isso faz
parte da prática.
Não é bem assim. Você precisa examinar as
consequências da sua ação bem como sua Há escolas budistas que vão dizer que não
intenção — e ser essencialmente honesto se deve mentir em nenhuma hipótese, mas
dentro de suas capacidades de entender o no mahayana, para salvar a vida de um
que pode acontecer e quais são suas animal, por exemplo, se pode e se deve
verdadeiras motivações. mentir para um caçador. Um praticante do
hinayana ficaria em silêncio — evitando de
Assim, mentir que se está doente para faltar alguma forma mentir e também evitando
um dia de trabalho para ouvir ensinamentos ajudar o caçador — ou a presa. Porém o
que raramente são dados, de um professor mahayanista assume para si todo o
que raramente vêm a sua cidade... em geral sofrimento do carma de uma mentira para
o carma negativo é irrisório perante do ativamente proteger o animal. Isto é, se o
mérito gerado. Agora, se aquele era um dia animal foi para a direita, o mahayanista diz
importante no trabalho e você vai que ele foi para a esquerda. Ele nem mesmo
realmente deixar pessoas na mão, causar fica em silêncio.
sofrimento efetivo, daí a situação é
diferente. Digamos que você é um O que caracteriza "heresia" no budismo
profissional da área médica — mentir ou tibetano?

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Embora matar seja uma desvirtude, matar


Na lista de 10 desvirtudes, a décima é 499 por negligência é uma desvirtude muito
normalmente traduzida como "manter pior. Naquele caso, não matar seria não
visão errônea", e isso poderia, talvez, ser virtuoso.
traduzido como "heresia". Por exemplo,
manter a ideia de que produzir sofrimento Quando somos tratados de maneira rude,
nos outros pode trazer felicidade para nós pode valer a pena repreender a pessoa que
mesmos — isso é uma visão errônea. age assim?

No caso do vajrayana, aceitar alguém como Só se a pessoa repreendida tem respeito


guru e depois não seguir suas instruções ou por você, em outras palavras, só se isso vai
mesmo vê-lo (depois de aceitá-lo como ser efetivo. É extremamente rara a situação
guru, é bom enfatizar) como tendo defeitos, onde isto é efetivo, e, em geral, a pessoa
é uma "quebra de samaya". Então é preciso ganha esse respeito sendo mansa ao longo
ter cuidado com os compromissos que se de incontáveis interações. Só daí ela vai dar
vai firmar no vajrayana. Tradicionalmente é um efetivo rugido de leão, quando isso for
adequado examinar alguém por pelo menos necessário e efetivo. O melhor é sempre
8 anos antes de aceitar como guru. ensinar por exemplo, sem impor nenhuma
virtude de "cima para baixo" — o que é não
Se uma pessoa está em desacordo com o só impossível, mas contraproducente.
seu professor, ou com alguém que você
pelo menos gostaria de ter como professor, Como devemos agir quando vemos alguém
você não deve manter mais que uma ofendendo ou agredindo injustamente
relação cordial afastada com essa pessoa. outra pessoa?
Você deve evitar criticá-la, ou defender seu
professor perante ela, mas também deve Se algo efetivo e benéfico pode ser feito, é
evitar manter associação de qualquer tipo o que deve ser feito. Se você não está numa
com ela. Isso, novamente, vale para o posição em que pode agir de forma benéfica
vajrayana — mas vale para o budismo em numa determinada situação, o melhor é não
geral se estamos falando do Buda como agir, mas aspirar e continuar tentando achar
nosso professor maior. uma solução para o problema.

Se alguém agride fisicamente um budista, o O problema de retaliar é que isso só é


que ele deve fazer? Dar a outra face? Fugir? efetivo se somos respeitados. Então o
Tentar neutralizar o agressor? melhor é dar o exemplo e ser respeitado, de
forma que quando precisemos agir, isso seja
Caso a caso. O próprio Buda num dos contos efetivo. Simplesmente responder com uma
jataka (sobre suas vidas passadas antes de medida parecida, em geral, não funciona e
se tornar Buda) matou o capitão de um produz mais problemas para todos
navio que causaria a morte de 500 pessoas. envolvidos. Outra coisa que pode ser feita é

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contatar uma autoridade que possa sentido último, e em particular, se sua


interferir no assunto. motivação for o benefício dos outros,
nenhum ato de fala em particular precisa
O ponto crucial é defender todos os ser abandonado — caso estas condições
envolvidos de maior sofrimento. O agressor estejam presentes.
virá a sofrer mais, portanto ele é o objeto de
maior compaixão. Tudo que possamos fazer Em geral é difícil coadunar a ironia com uma
para evitar que alguém crie causas para fala benéfica aos outros, mas isso não é
sofrimento futuro deve ser feito. impossível.

Pode dar um exemplo cotidiano do que é A ética budista tem algo a dizer sobre os
uma fala inútil e uma fala útil? downloads não autorizados de filmes,
músicas, livros, etc.? Essa ação produz
Muito simples, o que é informativo, carma negativo?
agradável, verdadeiro, é fala útil. Você fala
no momento adequado, o que deve ser Há grande debate nessa área. Porém,
falado, sem usar mal o tempo dos outros. segundo o Cânone Páli, uma coisa só é
Alguém pergunta "você é fulano:" e você diz roubada se é subtraída. Então cópia não é
"não, não sou". Fala inútil é quando você roubo. Mas, na medida em que causa
fala de coisas sem propósito, no momento sofrimento, há carma. O difícil é estabelecer
errado "você viu o jogo ontem?" Mesmo o que é sofrimento causado e felicidade não
que a pessoa goste de futebol, mas esteja causada – porque frustração de lucros não
ocupada de outra coisa, e especialmente no é exatamente sofrimento causado, e sim
caso onde uma pessoa não tem o menor felicidade não causada. De toda forma, a
interesse em futebol. Conversar sobre os prática de generosidade é muito
outros, de forma geral "viu como fulana é importante, além da mera ética.
louca?" e assim por diante.
Com certeza, porém, isto não se enquadra
Ser irônico e cáustico vai contra as leis do no voto de não roubar, porque o objeto
budismo? precisa ser “retirado”, você precisa privar a
pessoa de um objeto ou serviço. O carma
Não existem leis no budismo, mas se você existe mesmo que ela não perceba, ou
causa sofrimento aos outros com sua fala, nunca venha a saber que foi privada. No
isso resultará naturalmente em sofrimento caso de cópia, as expectativas de lucro dos
para você. Se você usar sua fala criadores e distribuidores (!) são frustradas
virtuosamente, então isso lhe trará – em que medida essas expectativas são
benefício. realistas, e o sofrimento é causado pela
cópia, ou não são realistas e a cópia não
Se a sua ironia, intensidade na fala, assim influencia neles, nessa medida há carma ou
por diante, for benéfica as pessoas num não há carma.

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envolve com o entretenimento. Se a pessoa


De forma geral, se a cópia não é feita para regozija com uma vingança num filme, por
lucro, não é considerada uma desvirtude – exemplo, ela gera carma negativo — da
embora possa haver um carma residual, e mesma forma que se ela mata alguém em
mesmo um pequeno carma deve ser um sonho ela gera carma negativo — ele
evitado. Nesse caso, o mérito envolvido na não é tão forte quanto um carma negativo
ação deve ser feito maior através da prática que advém de outro lugar que a mente, mas
(regozijo, dedicação de méritos etc.). em certo sentido, é essa criação de hábitos
e envolvimento com tramas que nos
Outra consideração quanto a esse ponto é colocou no samsara em primeiro lugar.
obediência a leis. Modo geral, o Buda
aconselhava que a Sanga obedecesse “ao Então, com certeza há entretenimento mais
rei”, desde que isso não entrasse em fácil e mais difícil de integrar com a prática,
desacordo com os ensinamentos. Mas pode e a pessoa deve ser criteriosa com relação
haver precedente para a desobediência civil ao que ela consegue integrar ou não. Em
no caso de alguém que faça, por exemplo, geral a motivação dos envolvidos na criação
ativismo contra as leis absurdas de do entretenimento também importa, já que
copyright ou patentes (de medicamentos, estamos nos envolvendo com eles, muitas
por exemplo) como uma forma de vezes num pacto de mediocridade.
beneficiar os seres.
Um praticante excelente pode usar
Com relação a cópias do próprio darma, qualquer coisa na sua prática, já nós não
mesmo que um autor tenha colocado muito somos capazes de praticar em certos
trabalho em traduzir ou explicar as palavras ambientes, com certas pessoas, em certos
do Buda, as palavras do Buda não devem ser momentos, e assim por diante — quando
vendidas em primeiro lugar. Então se reconhecemos isto, evitamos aquilo que vai
alguém nos impede de copiar o darma, ou produzir aflições mentais em nós mesmos e
ela está sendo mesquinha com os nos outros. Quando estivermos num nível
ensinamentos, ou buscando lucro pessoal. de prática em que tudo pode ser integrado,
então não precisamos mais tomar esse
Personagens de jogos de videogame cuidado — é como um elefante que toma
violentos são objetos de compaixão? Há banho na lama, e o outro que cai na areia
algum problema em jogá-los? E em gostar movediça. Se ele não sabe distinguir,
de filmes violentos como os de Tarantino? melhor não dar o primeiro passo.

Personagens não são objetos de compaixão, Quem apoia ditaduras genocidas como as
apenas seres sencientes. Pode haver de Cuba e da China tem mau carma e vai pro
problema em treinar a mente para a inferno?
desvirtude com entretenimento, mas isso
depende unicamente de como a pessoa se

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Depende do apoio e depende da intenção. negativo. Exemplos específicos são


Se uma pessoa é ignorante dos fatos e apoia extremamente difíceis, porque as
um governo corrupto (ou de alguma forma campanhas de desinformação por todos os
malévolo) numa mesa de bar, esse é um lados são enormes. Mas, de forma geral, se
carminha negativo quase irrelevante – pode dizer que sim.
próximo à fala inútil. E claro, todo carma,
não importa o tamanho, deve ser evitado. Se a pessoa "vai para o inferno" isso
Agora, se a pessoa patrocina esse governo, depende de uma série de circunstâncias
e principalmente se ela comete desvirtude outras, como os outros carmas da pessoa
em termos desse governo, por motivação nesta e em vidas passadas. Se a pessoa
ideológica, então ela gera carma negativo. acumular carma negativo suficiente, ela
Na verdade, até se ela cometer desvirtude com certeza gera uma experiência de
em nome de um governo bom, por um "faz inferno. É isso, aliás, que se quer dizer por
de conta" ideológico, no qual ela acha que "carma negativo suficiente". Se um
trará muito benefício, mas está determinado carma negativo é suficiente,
considerando as coisas através de um viés só um Buda pode dizer. Mas a acumulação
muito distorcido, e com uma motivação de carma negativo, em geral, leva ao
aparentemente boa, mas na verdade bem inferno.
torta, nesse caso ela produz bastante carma
negativo também. Assistir notícias sobre assassinatos na TV,
assim como, ver filmes de terror, gera
Digamos que uma pessoa leia 1984 ou carma negativo?
Admirável Mundo Novo (que é um pouco
mais semelhante ao caminho que foi Não necessariamente. Se a pessoa regozija
trilhado no ocidente) e regozije com a forma com uma morte, uma vingança, assim por
de governo de uma dessas distopias. diante, ficcional ou factual, aí existe algum
Mesmo em se tratando de um governo carma ou pelo menos "carma de mente",
ficcional, ela gera carma negativo. Então, que é a reificação de tendências habituais
não seria necessário dar exemplos como daninhas. Já se ela gera compaixão, então
Cuba e China, que, com certeza, são não. Ela pode nem mesmo gerar
exemplos mistos, isto é, por mais que compaixão, mas simplesmente assistir a sua
consideremos que muita coisa ruim, em mente, e ver como ela se entrega perante a
especial a inexistência da democracia, narrativa apresentada, e treinar em entrar e
ocorra nesses governos, não podemos sair daquele sonho criado pelo diretor pode
ignorar que eles não são 100% ocupados de até mesmo ser um treinamento para a
negatividade, e, com certeza, não foram lucidez no cotidiano — quando temos medo
criados com 100% de intenção negativa. Na e nojo, no caso de filmes de terror.
medida em que a própria pessoa se envolva
com ignorância, aversão e apego, nessa De fato tenho um certo desprezo por
mesma medida ela vai gerar carma praticantes budistas que não assistam a

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filmes de terror (ou algum outro gênero é muito curto, com o futuro sendo muito
específico). Se me dizem "ah, eu vejo para incerto.
espairecer — terror não me deixa
espairecer", então me irrita Da mesma forma, com relação ao modo de
profundamente. Eu assisto todo tipo de vida correto, ou, melhor dizendo, o modo
filme para "espairecer", e embora eu correto de ganhar a vida, um budista
abandone a prática o tempo todo, pelo deveria — a não ser que tenha elevada
menos estou ciente que ela nunca deve ser realização e consiga transformar essas
abandonada — então eu quero um dia ser atividades — abandonar uma atividade
capaz de ver qualquer tipo de filme, e não financeira que leve as pessoas a emoções
interessa se eu gosto ou não gosto. Algumas negativas ou inúteis. Assim, budistas, em
vezes assisto filmes ruins mesmo. Não tão geral, não devem ser donos de bar,
ruins que são divertidos ou é irônico assistir. lotéricas, e assim por diante. Mas pessoas
Filmes bestamente classe-mediamente nessas circunstâncias não são levadas a
boçais mesmo, sem nenhuma diversão ou abandonar suas atividades para poder
ironia. Meu objetivo é encontrar um jeito de abraçar a prática budista. Mesmo uma
não perder tempo mesmo na mais profunda pessoa que trabalhe num abatedouro pode
perda de tempo. Assim, alguns filmes são praticar o budismo, e, idealmente, não
um desafio de clichês, que impedem haverá pressão da sanga, apenas a pressão
qualquer tipo de reflexão, ou tomam tanto da própria consciência da pessoa.
a mente em banalidade e tédio, que para
mim pessoalmente é muito difícil de Praticar artes marciais gera carma
coadunar com a prática. Então é um bom negativo?
exercício encontrar a prática no tédio.
Algumas vezes eu até assisto com a coluna Marcial é "de guerra". Mas se for um
ereta, ou em postura de meditação. esporte, e não machuque ninguém, não há
problema. Pessoalmente, acredito que não
O Budismo tem algum ensinamento sobre há muita coisa boa em esportes de risco
jogos de azar e loterias? como a Fórmula 1, e esportes que
degeneram muito o corpo do atleta, como o
Jogos em geral, como fala inútil, são boxe. Ou esportes de alto risco como a F1,
"emoções inúteis". Como todas as outras onde parece que parte da emoção é saber
coisas, alguns praticantes são capazes de que as vidas dos participantes estão por um
integrar estas coisas como prática, outros fio — e onde já vimos tantos morrerem.
não. Aqueles que são capazes de Coisas como judô me parecem sensatas,
reconhecer, ou pelo menos estão em mas outras artes marciais de impacto, daí
dúvida, sobre sua capacidade de integrar não.
algum entretenimento ou emoção inútil
com a prática, devem abandonar isso e
procurar priorizar seu uso do tempo — que

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O Budismo tem alguma sugestão sobre sobre quem a porta, e diz algo para quem a
castrar ou não castrar animais de vê sobre quem a porta — essas mensagens
estimação? são, no mínimo, arbitrárias — como
arbitrárias, são perda de tempo.
A maioria dos praticantes e professores
budistas que conheço castram seus animais Na resposta à pergunta sobre tatuagens,
de estimação. você falou em "gerar discursividade na
mente dos outros". Poderia por favor falar
Do ponto de vista do budismo, tatuar e ser mais a respeito? Especialmente: em que
tatuado são consideradas práticas condições a arte ajuda/atrapalha o darma?
inapropriadas? Por quê?
A pessoa que expõe uma tatuagem como
Tatuagens com temas ligados ao darma são que já abriu a boca sobre si mesma sem
ruins porque a pessoa desrespeita esses nem ter falado. É uma espécie de tagarelice.
símbolos com grande facilidade, e não pode E mesmo que ela esteja um pouco
se prostrar a eles. Além de gerar escondida... ela é feita para ser vista, por
discursividade na mente dos outros. O mero alguém, e para dizer algo. É uma espécie de
deitar sobre a imagem, ou deixar alguém publicidade ideológica, uma forma de
deitar sobre ela, e assim por diante, são reforçar a identidade e de se colocar no
desrespeitosos. mundo — aliás, é por isso exatamente que
elas são prezadas por quem as fazem.
Tatuagens com outros temas, de forma Porém, dificilmente passam mais do que
geral, são desnecessárias e embasadas em uma impressão de "olhe para mim", "veja o
vaidade, aumento de conceitualidade, e até que eu fiz deliberadamente".
mesmo, automutilação. No entanto,
dependendo da circunstância e motivação, Mas você deveria perguntar sobre isso a um
podem ser neutras ou até positivas. Não mestre qualificado. Eu não conheço
conheço professores budistas que impeçam nenhum que tenha tatuagens, mas seria
alguém de se tatuar. Mas, com certeza, é melhor encontrar algum — mesmo que ele
muito rara a circunstância onde a tatuagem as tenha feito antes do darma — e
produz mais benefício do que malefício. investigar de onde surge esse impulso.
Mesmo no caso onde ela seja
essencialmente neutra, e não perturbe Penso em fazer uma tatuagem com o
nenhuma mente, nem o portador, nem o mantra do guru. É apropriado?
tatuador — ela é uma perda de tempo e
recursos. Algum pequeno mérito pode De forma geral, como já respondido,
haver no regozijo temporário que alguém tatuagens não são recomendadas para
possa ter ao ver uma imagem bonita — mas praticantes — embora daí, no caso de
a mesma imagem fora da pele possuiria a tatuagens em geral, não ligadas ao darma,
mesma beleza. A imagem na pele diz algo possa se analisar caso a caso, e com certeza

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possa existir situações de nicho onde haja sugerem alguns (controversos) estudos
benefício na prática de fazer tatuagens. Mas estatísticos?
tatuagens com motivos do darma não são
apropriadas de qualquer forma. A pessoa Os estudos são controversos porque com
nunca conseguirá se prostrar perante a certeza, na visão budista, só podem ser
representação do corpo, fala ou mente do equivocados. O budismo em geral não
Buda tatuada, e possivelmente dormirá em aceita em vingança estatal. Toda e qualquer
cima dela, e assim por diante. pena precisa vir com dois objetivos apenas:
1) impedir maior dano e, se possível 2)
Existe de fato a instrução de não se recuperar, reintegrar.
sublinhar/marcar textos ou livros budistas?
E a recomendação de se colocar os livros em Não acredita-se que a pena de morte possa
lugares altos nas estantes, ou não caminhar impedir maior dano.
sobre os textos? Não segui-las gera carma?
Como o Budismo encara a questão da
Sim, este é um treinamento da mente legalização do aborto?
bastante estabelecido, faz parte do voto de
refúgio (no darma). Com certeza gera O budismo sustenta que não há
mérito segui-lo, bem como uma comprovação sobre a natureza ou
interdependência desafortunada surge de qualidades da consciência, ou o que
não seguir essa simples etiqueta que definiria um assassinato nesse caso. Na
protege a mente do praticante. dúvida, para defesa de um possível
inocente, o budismo é contra o aborto e, de
De fato, todos os textos devem ser bem forma geral, contra a legalização do aborto.
tratados, em particular os religiosos, e em Também pela defesa de mães que
particular os budistas. Não se deve nem acreditando estarem operando livremente,
mesmo colocar uma estátua de Buda, um operam de acordo com considerações
vajra ou um sino acima de um texto budista. aleatórias que podem mudar rapidamente,
e assim produzir grande arrependimento.
Ao tratar os textos com respeito, o
conteúdo deles passa a ser lido dentro De toda forma, se os cientistas explicarem o
desse ambiente mental de respeito criado que é consciência, e quando ela começa —
pela formalidade. Esse é o sentido de toda como ela está vinculada ao sistema
prática formal e de todo o treinamento da nervoso, e assim por diante — além de
mente. teorias como emergentismo, etc. — mas
5.2. Aborto, pena de morte, eutanásia, suicídio uma comprovação efetiva, então o budismo
O que o Budismo diz sobre a pena de morte poderia aceitar o aborto daquele tecido que
para crimes hediondos? E se essa pena de não apresentasse consciência. Os cientistas
morte ajuda a reduzir homicídios e outros e o budismo concordam que embora se
crimes que causam muito sofrimento, como possa medir certas qualidades elétricas no

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tecido, nenhuma delas pode ser atribuída, A consciência não pode ser algo
sem sombra de dúvida, a uma possibilidade independente do corpo?
ou não de haver sofrimento ali. Na dúvida,
preserva-se o tecido. Essa era uma das perguntas que o Buda não
respondia (se a mente é separada do corpo
Embora os cientistas queiram apresentar o ou não). Mas é possível responder sua
emergentismo ou o fisicalismo em geral pergunta dentro do contexto.
como verdades científicas, eles carecem
ainda de comprovação, e a crença Na originação interdependente em doze
injustificada na ciência não é efetivamente elos, a consciência, sendo o terceiro elo,
diferente de qualquer outra crença surge em conjunto e naturalmente, no
injustificada. quarto elo, com uma forma qualquer que
lhe sirva de base. Assim, o que acontece,
Diante do caso de uma menina quase pré- segundo o budismo, no caso do aborto, é
pubescente que tenha que abortar para que já há uma consciência atrelada ao
salvar a própria vida, qual seria a postura do tecido, da mesma forma que nossa
budismo? consciência está atrelada a esse tecido. Em
outras palavras, se a consciência fosse
Em qualquer questão em que uma vida independente de corpo, ao matar
esteja na dependência de outra, é decisão estaríamos apenas "liberando os espíritos"
do médico qual a vida tem maior chance de daqueles corpos, e o suicídio se tornaria
sobreviver, e sacrificar o outro para que uma prática espiritual.
aquele ser com maior chance viva. No caso
absurdamente raro em que dois seres A consciência surge coemergente com
tenham a mesma chance de viver, sem determinadas condições, por exemplo, a
sequelas, mas um dependa da morte do presença de certos tecidos. O que o
outro, então o mais novo tem precedência budismo argumenta, no caso do aborto, é
— a não ser que, por algum meio que o que os cientistas podem medir
miraculoso, se possa saber qual dos dois vai atualmente, ou podem considerar como
produzir mais benefício aos seres naquela base para a consciência (sistema nervoso
vida — nesse caso, deve-se salvar o mais central altamente desenvolvido) é baseado
benéfico aos seres. em meras conjecturas, já que não há, ainda,
definição científica para a consciência.
O mesmo no caso de um cão que tem
vermes na pele, por exemplo. Em geral os Par ao budismo, existe consciência desde o
budistas matarão o verme, embora há o momento da concepção. Mas para isso não
caso de Atisha, que cortou um bife da há evidência outra que a prática dos
própria carne para pousar os vermes, após meditadores, o que pode não ser suficiente.
retirá-los do cão. Então apenas se pede que a ciência
envolvida seja tratada com o devido rigor, e

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que apenas quando uma definição clara e algum mérito, que é o mérito de gerar
definitiva de consciência surgir, possa-se interdependência com um bodisatva. Isso
tornar legal uma prática que depende dessa significa que por vidas sucessivas vamos
definição clara e definitiva. reencontrar esse bodisatva, e uma hora as
condições vão ser propícias e ele vai
Com tantos abortos no mundo, é possível conseguir nos ajudar. Só vai levar bem mais
que fetos de bodisatvas sejam abortados às tempo, devido as condições ruins que
vezes? Nesse caso, o mau carma de quem criamos com nossas ações.
aborta um bodisatva é pior do que o de
quem aborta uma pessoa comum? Sobre a eutanásia há algum consenso no
Budismo?
Sim, o fator predominante na formação do
carma é a intenção. As outras circunstâncias É considerada compaixão estúpida. Mas,
são os fatores secundários. O fato da pessoa por outro lado, o desejo por ela surge, na
não estar deliberadamente atingindo um maior parte dos casos, principalmente dos
bodisatva ameniza isso, como quando tratamentos médicos exagerados. O melhor
pisamos em formigas inadvertidamente — é saber quando parar o tratamento médico.
há carma, mas o carma por negligência é No caso de uma pessoa atrelada a
menor do que o carma por aversão ou máquinas, para o budismo, pelos mesmos
apego. motivos apresentados com relação ao
aborto, é inadequado desligar as máquinas.
O mesmo vale com fala rude. Você ralha
desnecessariamente com aquele atendente Mais do que isso, segundo o budismo o
no guichê. Você gera carma por fala rude. sofrimento pode muito bem ser pior após a
Mas o que você não sabe é que aquele morte, então acelerar o processo, sem uma
atendente é um bodisatva... mais carma certeza com relação a que experiência a
será gerado. pessoa vai ter, é baseado apenas em fé.

E há fatores complicadores. Bodisatvas de É preciso apontar que, o budismo tem suas


até 8º bhumi tem propensões e aflições ideias de quando a consciência está ali, e
mentais — então ele pode sentir raiva de quando há mais sofrimento após a morte,
você. Se você fizer um bodisatva sentir raiva porém o argumento não é baseado nessas
de você... é um carma ruim enorme. Já os ideias budistas, mas na ausência de
bodisatvas acima do 8º bhumi não serão condições epistêmicas adequadas para
perturbados por nada do que fazemos — analisar as experiências, de um ponto de
mas ainda assim o carma é pior do que com vista puramente laico. Na ausência de
uma pessoa comum. comprovações evidentes de se produzir
mais sofrimento neste, ou naquele, caso,
Em todo caso, nós sofreremos muito com os então não se deve agir.
resultados desses atos, mas também há

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Quando um animal de estimação nosso está


sofrendo muito, devemos sacrifica-lo para Quanto aos samurais, possivelmente
cessar o sofrimento? inferno também, a não ser que entre eles
houvesse um praticante verdadeiro, que
Claro que não. Chagdud Rinpoche estivesse liberando os seres por compaixão.
costumava chamar isso de "compaixão Provavelmente não era o mais comum, mas
burra". podia haver.
5.3. Homossexualismo
Por que sacrificar um animal em sofrimento O budismo tem alguma opinião sobre
é considerado "compaixão burra"? homossexualismo? Por favor, dê uma
resposta concisa.
Porque o sofrimento não acaba com a
morte. Mas mesmo que você não saiba isso, Se a pessoa é um monge, ela deve se abster
ou não acredite nisso, acreditar no oposto é de todas as relações sexuais de qualquer
um salto de fé cega indesculpável. tipo. Se a pessoa é leiga, ela deve seguir as
normas de sua comunidade, ou de seu
De acordo com o Budismo, qual o destino de professor. Há alguns casais homossexuais
uma pessoa que comete suicídio? E, em na sanga com que pratico.
especial, daqueles samurais que se
matavam por razões de dever ou honra? Qual a posição do budismo sobre a
homossexualidade?
O destino das pessoas que cometem
suicídio é o inferno, e embora esse inferno Monges não devem se engajar em qualquer
dure muito tempo, não é permanente, e ação sexual. Porém, na medida em que
num determinado momento a pessoa para tiverem atração pelo mesmo sexo, serão
de vivenciar o inferno, porém ainda terá homossexuais. "Homossexuais não
grande dificuldade de obter novamente um praticantes", porque não devem fazer
renascimento humano — mas isso qualquer tipo de sexo. Com relação ao
eventualmente pode acontecer dentro de desejo pelo mesmo ou por outro sexo, não
alguns milhares de renascimentos em há diferença alguma. Ambos são problemas
condições de sofrimento maiores do que as e obstáculos para a vida do monge.
do reino humano. É bom lembrar que o
budismo não tem em mente que o Buda Com relação a leigos, vai de acordo com a
seja responsável por essa punição, ou que cultura onde esse leigo está imerso. Em
isso seja invenção do budismo, apenas se culturas onde a homossexualidade é vista
está relatando algo que se conhece através como um problema, apenas o fato do leigo
da prática de meditação, quando um estar em desacordo com o que é
praticante lembra de vidas passadas, ou socialmente aceitável pode trazer tensões
quando conhece as vidas passadas de uma desnecessárias e problemas para este leigo.
outra pessoa. Se ele vai conseguir praticar ou não em

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meio a essas tensões, depende só dele. Em fique subentendido no texto e não esteja
todo o caso, seu refúgio no Buda deve ser dito de forma direta, é a interpretação que
mais forte do que qualquer de suas qualquer professor budista atual daria.
inclinações. Se uma pessoa tem muito
desejo por sorvete, e não por buchada de O homossexual que supostamente alcançou
bode, ela não pergunta ao Buda se o a iluminação mencionado por você era um
budismo vai permitir que ela continue homossexual “praticante” ou vivia em
preferindo e usufruindo de sorvete. Ela castidade?
percebe que isso é apenas uma inclinação,
e que a fonte de refúgio não são nossas O mahasiddha não era um monge. Por
inclinações, mas o caminho do Buda. outro lado, embora ele fosse um
homossexual no caminho, ele não poderia
Em culturas onde a homossexualidade é ser um "Buda homossexual". Isso porque o
relativamente aceita, os problemas são homossexualismo é uma propensão, um
semelhantes aos dos heterossexuais. hábito. As doutrinas eternalistas vão querer
dizer que uma pessoa "é" alguma coisa.
Tradicionalmente, o contato sexual com a Mas, segundo o budismo, todos nós já
boca ou o ânus, e também masturbação, fomos todas as coisas, inclusive
são tidos como desvirtudes. Mas isso pode homossexuais, e hoje talvez alguns de nós
ser mais ou menos levado a sério de acordo não somos mais, nessa vida. Isso algumas
com sua comunidade e com o seu professor. vezes ofende algumas pessoas, porque em
No final, é a sua experiência, com relação ao geral se acredita que alguém "é" alguma
que é daninho ou não é daninho, que vai coisa. No máximo a pessoa está, e um Buda
determinar sua conduta ética. O seu nem mesmo "está", para si próprio.
professor pode também ajudar a definir o
que é aceito ou não. Resta lembrar que Um Buda não tem preferência de gênero, e
estes problemas também afetam se ele se engaja em atividade sexual, é só
heterossexuais, e que não há nenhum tipo para trazer benefício aos seres. Kukuripa,
de condenação com relação ao amor entre outro mahasiddha, tinha uma cadela por
duas pessoas, do mesmo ou de diferente namorada, e seu amor por ela foi parte da
gênero. prática espiritual que o levou a iluminação.
O mahasiddha gay tinha um namorado
No ocidente é muito comum vermos casais também, mesmo depois de iluminado. Mas
homossexuais praticando o budismo. ele de forma alguma estava preso ao arco-
íris do sonho, que é totalmente
É possível um homossexual se tornar impermanente. Em outras palavras, não
iluminado? existe Buda com inclinações pessoais,
apenas inclinações em nome das
Isso já aconteceu, pelo menos um dos 84 necessidades dos seres. Portanto, tornou-se
mahasiddhas era homossexual. Embora isso um display para ensinar pessoas com a

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mesma inclinação, para dar um exemplo Do ponto de vista de uma identificação do


para elas, mas não algo que ele mantinha eu com um hábito, a heterossexualidade é
como um "eu". tão ruim como o homossexualidade.
Apenas apego e desejo, em sua maior parte
Da mesma forma, se diz que o bodisatva egoísta. É extremamente difícil, em
Manjushri se manifestou como uma mulher qualquer dos mundos, praticar a virtude —
para seduzir um homem e dar um não é impossível, mas é difícil. O
ensinamento. Se o gênero ou a preferência homossexualismo tem um carma adicional,
sexual são hábitos mais ou menos não tanto nesses tempos, mas ainda em
arraigados um que o outro, isso é difícil certa medida, de ser uma propensão que
dizer. Mas, de toda forma, são meros não segue o que os outro esperam, em
adornos num Buda — o que significa que ele geral, da pessoa — daí o sofrimento,
só manifesta qualquer coisa que ele algumas vezes tanta tensão até a pessoa
manifesta, pelo outro, e não por algo que assumir para si própria e para os outros essa
ele possui em si como característica sua — propensão sua, e todas as complicações que
o Buda é vazio, portanto ele não pode ser os homossexuais conhecem bem. Mas isso
inerentemente gay. Aliás, não só o Buda, de forma alguma é motivo de recriminação
mas nenhum de nós. com relação a alguém: é apenas para
lembrar que, se há maior dificuldade, essa
Isso tem uma implicação que horrorizaria propensão foi criada, possui
muitos gays e a maioria dos que erguem a interdependência com causas não virtuosas
bandeira gay. Não que seja desejável, bom (se causa sofrimento, de forma objetiva,
ou correto — mas alguém pode ainda que na forma de discriminação, por
deliberadamente, segundo o budismo, exemplo). O que não quer dizer que as
deixar de ser qualquer coisa, inclusive propensões de heterossexuais não levem
homossexual. É preciso dizer isso não também ao sofrimento. Todas as
porque, repito, seja algo louvável alguma propensões são sofrimento. Com certeza há
"terapia" que promova uma mudança, mas homossexuais que sofrem menos com sua
porque a vacuidade, e a impermanência, homossexualidade do que heterossexuais
são realidades. Colocando em outros sofrem com sua heterossexualidade — eu
termos: alguém pode também diria que é mais raro, ainda hoje, embora
deliberadamente se tornar homossexual, tenha melhorado muito a situação para
mesmo que isso não surja naturalmente. É homossexuais — mas essa é uma mera
só criar os hábitos. circunstância. Todos que possuem uma
propensão, sofrem com ela, independente
Nenhum hábito é motivo de orgulho, e se de que tipo de propensão seja.
identificar com os próprios hábitos e
propensões é uma forma de sofrimento, em No entanto, mesmo praticantes antigos
todo caso. gays que eu conheço tem dificuldade em
compreender suas propensões (um termo

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técnico, outra propensão, por exemplo, faz sentido agir de forma diferente em cada
seria o que nos fez nos conectar com a situação, e em certa medida respeitar os
língua portuguesa e nascer num país onde ditames culturais. Por outro lado, algumas
ela é falada, por exemplo, ou gostar de vezes é necessário violar os ditames
sorvete de baunilha mais do que de pudim culturais, se há clareza de que eles são
de leite condensado) como nefastos ou problemáticos. Então os
impermanentes. Por isso as propensões, costumes são uma "natureza" a reconhecer
principalmente se reificadas, são um e respeitar, mas não de forma absoluta, e
obstáculo a iluminação, porque há tamanha isso é importante ter em mente.
identificação do eu com algo. Eu SOU isso,
ou aquilo, não vai produzir a iluminação da Portanto o conceito de "natureza" é
pessoa. complexo, e sob certos aspectos, se pode
dizer que o homossexualismo é natural, e
O budismo considera o homossexualismo em outros, que não é. Ademais, a discussão
natural? é tão extrânea ao budismo que certas coisas
que se considera "natural", como por
A natureza, isto é, a realidade, o que exemplo, aflições mentais, devem ser
realmente existe, está, para o budismo, violados pela mente absolutamente "não
além de qualquer concepção e além de natural" (nesse sentido de não usual) do
qualquer parcialidade. Assim, propensões Buda!
não são naturais.
Da mesma forma, eu penso cá comigo que
Por outro lado, o que se quer dizer com isso homossexuais que entram nessa discussão,
em outras tradições é que ou Deus não primeiro valoram a natureza de acordo com
criou os seres assim, ou que a natureza o oponente, e daí querem participar. É um
humana (que inclui propensões humanas), problema de certos cristãos homossexuais.
não é assim. Certas "naturezas" não devem ser
respeitadas, e o que é natural não depende
Ademais, mesmo os construtos sociais de um criador ou de propensões. O que não
podem ser ditos "naturais". Isto é, para um é natural (em sentido biológico) não é o que
Butanês é natural casar com mais de uma é propriamente humano? É muito mais sutil
mulher, para a maioria dos ocidentais, isso do que se pensa.
não é natural.
Vejo uma grande mobilização da parte de
Em todos esses sentidos, o budismo não alguns religiosos para que o projeto de lei
tem muito a dizer. Primeiro, não há um que criminaliza a homofobia não seja
criador. Depois, as propensões humanas aprovado. O que pensa a respeito?
são impermanentes e mutáveis, e não são
definidas com autoridade por ninguém. Duas respostas: o estado, sendo laico, deve
Enfim, os costumes de cada lugar existem, e usar apenas critérios laicos, não religiosos,

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para suas leis (inclusive aborto, que muitas que deve ser feito — ele até deu um croqui,
vezes é justificado com a crença quase mas deixou bem claro que era necessário
religiosa na capacidade da ciência atual em vermos por nós mesmos, e não apenas ouvir
medir ou detectar consciência, sendo que dele.
não há sequer uma boa definição científica
para essa palavra). Porque você usa o termo
"homossexualismo", e não
A segunda resposta é a de que as "homossexualidade"?
inclinações pessoais de alguém que digam
respeito somente a si mesmo (boas ou Não creio que o sufixo -ismo seja pejorativo,
más), não devem dizer respeito a lei. Crimes o próprio budismo o usa. De toda forma,
com motivação ideológica não precisam todas as propensões SÃO doenças, e mais
receber mais atenção do que crimes com do que isso, doenças são exatamente, por
motivação de ganância ou negligência. Mas definição, algo sem conotação moral.
essa não necessariamente é a visão budista. Então, não há nenhum objetivo de criticar o
Nos assuntos que não dizem respeito ao amor por pessoas do mesmo sexo; mas
budismo, a visão budista é a que se também não é interessante entrar numa
estabelecer nos meios civis. Isto é, o eterna esteira de eufemismos e
budismo apenas obedece as leis, desde que engenharias políticas da linguagem.
elas não firam explicitamente preceitos
budistas, e não se ocupa de formular leis ou Ademais, o "dade" do homossexualidade,
alterar leis que não digam explicitamente implica essência, e essa é uma das coisas
respeito a pontos essenciais da doutrina que o budismo nega. Não na
budista. homossexualidade, mas em qualquer
"dade". Então é irônica em muitos sentidos
Se houvesse um jeito de eliminar crimes essa questão: há a engenharia linguística, a
com motivação homofóbica, ou qualquer ofensa com o que não deveria ofender, a
outro, o budismo seria completamente a objetividade do sentido dos sufixos. Contra
favor. O que estamos falando, no entanto, é todas essas coisas, há um uso histórico do
como o budismo deveria tratar de uma termo: que não é o único.
legislação, e isso está fora, naturalmente,
de seu escopo. Ora, não sou especialista em LGBT, mas o
termo "queer" deixou de ser pejorativo e
Se o budismo determinasse leis, ele estaria virou bandeira de glória nos estudos do
acreditando que existe uma fonte espiritual assunto nos anos 90. Os termos contém
que poderia ditar como as relações história e sentido, mas não existem por si
humanas deveriam acontecer — mas o só. Eles são construídos. No sentido budista,
budismo não acredita em coisas desse tipo. "dade" é mais ignorante e mais pejorativo
O Buda sempre explicou o método para do que um mero "ismo". E evita também
vermos por nós mesmos o que é melhor e o algo do essencialismo orgulhoso.

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5.4. Vegetarianismo sofrimento vasto e inconcebível, mas todos


Afinal de contas, Buda comia carne ou não? os produtos que compramos — vegetais
Por favor, dê uma resposta curta. que implicam em agrotóxicos e a morte de
incontáveis insetos, uso de energia que
Algumas formas de mahayana acham que implica impacto no ambiente, exploração
não, mas a maioria das formas de budismo dos trabalhadores e roubo dos vários
acredita que Buda comia o que quer que atravessadores, sem falar nos impostos que
fosse oferecido — exceto se tivesse sido algumas vezes promovem guerras e
especialmente abatido para consumo dele patrocinam corruptos — quase todas
(o que evitava exatamente que um animal nossas ações de consumo igualmente
fosse abatido para ele por uma pessoa sem implicam sofrimento vasto e inconcebível.
noção).
O consumo consciente deve estar presente
Buda morreu de disenteria ao comer em todas as nossas compras, e devemos de
comida estragada. Essa comida é muitas fato privilegiar aqueles produtos que
vezes descrita como "delícia dos porcos" ou implicam em menor impacto. A carne, sem
"delícia de porco" — no mahayana que não dúvida, é um produto bastante negativo e
aceita que o Buda comia carne, em geral é deve ser evitada com moderação, sem
dito que é um tipo de cogumelo que os orgulho e sem a ideia de que ao
porcos gostam muito. Outros acham que consumirmos vegetais estamos
era mesmo carne de porco passada. absolutamente livres de estar causando
sofrimento.
Para grande parte dos budistas, Buda
morreu de disenteria ao comer carne de Com relação ao Buda, a regra monástica
porco estragada. Mas Buda prescreveu que até hoje muitas comunidades no sul da
algumas indicações morais para melhorar Ásia seguem e que ele estabeleceu é que
nossa experiência. Um destes preceitos é um monge deve comer o que quer que seja
não causar sofrimento aos seres-mães. oferecido de bom coração, por degradado
Considerando este preceito, por que Buda que pareça. Como algumas pessoas
comeu carne? estavam caçando e criando animais para
oferecer à sanga, o Buda recomendou que
Essa é uma pergunta muito comum. Como não se comesse carne com menos de seis
vivemos num mundo onde a atravessadores: isto é, da pessoa que matou
interdependência parece ter se tornado um o animal até o monge que recebe a carne
bocado mais intensa, ou, melhor dizendo, devem haver pelo menos seis pessoas, de
mais evidente, não conseguimos separar o forma que fique claro que o animal não
ato de comer do ato de comprar do ato de poderia ter sido salvo pelo monge, e que
matar. Portanto em nossos tempos não tivesse sido abatido especialmente para
devemos realmente praticar consumo ele. O monge, evidentemente, não podia
consciente, já que não só a carne que vemos
exposta nos supermercados está cheia de

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comprar carne, visto que tudo que ele come


devia ser esmolado. Também não é incomum na história do
vajrayana mestres budistas oferecerem a
Originalmente um monge também não alunos brâmanes carne de porco —
podia trabalhar, sequer no campo, de forma considerada o suprassumo da imundície
a produzir o próprio alimento. Estas regras entre a casta alta da Índia clássica. Alguns
foram afrouxadas em algumas eruditos afirmam que era uma forma de
comunidades com o passar dos tempos. (Na quebrar o orgulho dessa posição social. Nas
verdade um monge não pode sequer pegar histórias dos 84 mahasiddhas ocorre mais
um fruto de uma árvore que esteja em "área do que duas vezes.
pública", isto é, que não pertença a
ninguém. Isso é considerado roubo, porque Qual é a relação do Budismo com o
o modo com que é fraseado o preceito da vegetarianismo?
desvirtude de roubar é "tomar o que não é
dado".) Quanto ao vegetarianismo, tudo que
consumimos vem de sofrimento. Para
No caso dos leigos que estão no jogo da produzir arroz vastos campos são alagados,
compra e venda, e particularmente nos dias e incontáveis insetos morrem. Nós sentimos
de hoje, devemos procurar comer o que é mais afinidade com mamíferos, e talvez haja
mais saudável, consumir conscientemente e alguma coisa nessa afinidade — mas não
tentar exercer atividades que não devemos desconsiderar todo o outro
produzam sofrimento, ou o mínimo de sofrimento. Precisamos nos engajar em
sofrimento possível. mais virtude do que produzimos impacto ao
comprar roupas, celulares, comida,
A maioria dos professores budistas que transportes. É basicamente isso.
conheço evitam a carne, mas a comem
quando oferecida. Com relação a mestres Em geral, comer carne não é o problema. Se
realizados, sabe-se que é benéfico para o a carne já está morta, que diferença faz?
animal ser consumido por um ser de Participar do processo econômico que
sabedoria. causa mortes é o problema. Assim, não é
unânime a posição budista sobre
Um mestre budista relata em sua biografia vegetarianismo — e de fato diferentes tipos
ter sido perseguido na Índia por comer o de praticantes tem diferentes relações com
cadáver de uma vaca (que morreu de causas o consumo. Monges, que não podem
naturais). O vegetarianismo algumas vezes trabalhar, comprar ou produzir comida,
se torna apenas uma outra forma de comem só o que é oferecido. Eles podem
intolerância, e portanto é adequado ter em comer carne oferecida desde que não tenha
mente uma verdadeira conduta de ecologia sido especialmente morta para eles. Já um
profunda e menor impacto do que seguir budista tendo uma criação para fazer abate
cegamente preceitos inflexíveis. — daí, nesse caso, é algo bastante difícil de

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integrar — provavelmente impossível de aflições mentais, e lutar por causas


integrar sem uma realização de controle secundárias pode se tornar perda de tempo.
total sobre a vida: isto é, se o, nesse caso, Em alguns casos, é claro, essas causas tem
mestre, é capaz de ressuscitar um animal méritos que valem algum esforço. Mas,
com um milagre, então ele pode abater. tendo dito isso, com certeza o
Creio que essa é a única exceção, embora os vegetarianismo é recomendado por muitos
sutras contem a história de um abatedor de professores, com maior ou menor ênfase.
animais que matava de dia e praticava de Se o seu professor recomenda, é altamente
noite, e nesse caso ele colheu o mérito de adequado seguir essa recomendação.
passar os dias no inferno e as noites na terra
pura praticando. Não é o melhor dos Minha perspectiva pessoal é que os
mundos, mas a ideia é que a pessoa, mesmo sofrimentos do reino animal são muito leves
numa posição degradada, pode praticar o perto dos infernos e do reino dos pretas. E,
que puder. As pessoas que compram, como de fato, o sofrimento tem uma
a maioria de nós, devem consumir característica pervasiva mesmo nos reinos
conscientemente. Isso não significa dos deuses da forma e da não forma, onde
prescrever nada de forma tão geral, quanto não se come nada nem ninguém. Por isso
pensar sobre o que se está consumindo e não acho nem um pouco interessante se
que tipo de impacto causa. focar muito num sofrimento mais evidente,
porque com essa perspectiva, chegaríamos
Evidentemente que mesmo a morte de um de volta a apenas o "meu sofrimento" e o
inseto para a produção do seu punhado de "sofrimento que EU sou capaz de
arroz integral, que você patrocinou, vai entender", o "sofrimento que ME faz sofrer
produzir sofrimento para você no futuro. da minha perspectiva limitada", o que é
Então, se você leva uma vida neutra, você muito mesquinho.
na verdade leva uma vida negativa — e por
isso você precisa ter uma vida Assim, mesmo achando que, de forma geral,
extremamente positiva — e por isso você o vegetarianismo deva ser encorajado, acho
precisa coerência — e assim você não pode que a ênfase excessiva no tema é
deixar os outros decidirem, e sim contraproducente. Uma vida animal e uma
reconhecer a sua situação e fazer o melhor vida humana sem o darma, como a maioria
dela. das nossas vidas é, não tem sentido
nenhum. Então se nós queremos beneficiar
É preciso ser vegetariano para ser budista? os seres-mães, precisamos nos tornar
Em que grau o vegetarianismo é Budas, atacando as aflições mentais, não as
recomendado? ramificações atuais, temporárias, delas. É
por isso que o ensinamento do Buda é
No budismo muitas vezes não existe grande atemporal. Por outro lado, mesmo uma
pressão para que o praticante se torne pequena virtude não deve ser desprezada:
vegetariano — a base do sofrimento são as então é recomendável ser vegetariano. Em

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outras palavras, o vegetarianismo low-


profile é recomendável e bem mais Comer carne gera carma negativo?
recomendável do que o proselitismo do
vegetarianismo. Só se a presa estiver viva enquanto você
mastiga. Quando as pessoas comem ostras
A produção de alimentos derivados de frescas, por exemplo. Elas jogam limão, que
animais, ao se tornar industrial, não torna retesa a ostra de dor, e então comem a
ainda mais cheio de sofrimento o processo? ostra viva. Torturar e matar um ser gera
Em que momento um praticante deve dizer com certeza grande carma negativo.
"basta"?
Também quando uma pessoa escolhe uma
As coisas, de modo geral, estão mesmo mais lagosta num aquário. Como ele escolheu um
difíceis para todos nós, desde a época do ser específico, o carma com aquele ser
Buda. Para os seres humanos, para os específico, de o ter prejudicado, é muito
animais que consumimos e utilizamos, e maior. Se comemos um pedaço de uma vaca
mesmo para os animais que apenas a quem nunca pessoalmente dirigimos
habitam essa terra. Para os animais que são nossa raiva ou cobiça, mas apenas certa
afetados pelas plantações, a situação está negligência, indiferença, e assim por diante
muito difícil também. Patrul Rinpoche disse, — temos o carma correspondente à
no séc XIX, que se soubéssemos de todo negligência e a essas aflições. Nesse caso,
sofrimento envolvido na produção do chá, comer a carne não faz muita diferença, o
não seríamos capazes de tomar nem que faz diferença é comprar a carne e assim
mesmo um gole. Esse tipo de reflexão é participar ativamente de sua morte.
encorajada em todos os ensinamentos
sobre sofrimento. Já "parar de tomar chá", Comer a carcaça de um animal que morreu
isso ninguém é encorajado a fazer. A única de causas naturais, ou mesmo foi abatido
obrigação do praticante é melhorar por outro animal, sem que você fique
continuamente, diminuir o impacto o contente por isso — não gera carma
melhor que puder. Ele não precisa fazer negativo algum. Você até pode gerar carma
nenhuma atitude heroica externa. Essas positivo ao fazer aspirações e levar uma
atitudes heroicas são uma forma de vida virtuosa sustentado por esse animal.
reificação do eu. Portanto comer carne, por si só, não gera
carma negativo.
Por outro lado, se com a clara motivação de
diminuir o sofrimento animal alguém Agora, comprar e matar gera carma
diminui ou para o consumo de certos negativo, sem dúvida. Mas comprar arroz
produtos, isso é consumo consciente, e é também gera carma negativo, porque
ético, meritório. Então a pessoa deve, de morrem muitos insetos na produção do
fato, prestar atenção na cadeia produtiva arroz — e de qualquer outra coisa que se
do que consome. coma, se vista ou se use. Você está

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patrocinando o impacto causado para desse fato e agir de forma a reduzir impacto
qualquer pequeno animal que seja morto ao máximo possível.
ou desalojado, ou perca o alimento que iria
comer. Portanto há muito carma em O próprio Buda comia carne, e aos monges
comprar arroz, carne, leite, frutas. do Sul da Ásia é vedado escolher a comida
que lhes é oferecida — eles tendo direito de
Agora, é preciso lembrar que comer por negar apenas um animal que tenha sido
apego, sem considerar o compromisso de especificamente morto para eles. Então, no
bodisatva ou o mero fato de que estamos cerne, o budismo está preocupado mais
nos sustentando — comer meramente por com reduzir danos e não escolher tanto o
prazer, possui alguma marca cármica. Isto é, que se come do que com uma dieta
não é totalmente isento de carma. Mas isso específica.
serve para qualquer tipo de comida,
dependendo do que nosso apego Se há carma na compra e consumo de chá,
manifesta. Então nada tem a ver com carne arroz, carne, leite, frutas, camisetas de
ou a violência do abate, mas com o processo algodão, celulares e etc., então não há
de comer em si. escolha, ou acumulamos carma ou
morremos de fome, frio e não participamos
O budismo tem algum ponto de vista sobre do mundo atual? E como é quitado esse
a alimentação do praticante? É necessário carma?
ser vegetariano ou algo do tipo? Dieta
especial? Como disse antes também, a única saída é
produzir mais benefício do que malefício, e
Depende de sua forma de vida, da sua minimizar o impacto como pudermos —
saúde, da forma de budismo que você segue sermos consumidores conscientes. Mesmo
e do seu professor. Em geral, nenhuma respirar ou se mover promove a morte de
tradição budista exige que alguém seja seres, e, portanto, carma negativo.
vegetariano ou tenha uma dieta específica
para ser praticante. Você acha que quem come carne é mais
desequilibrado e/ou agressivo?
Mas pode haver circunstâncias, ligadas a
local, forma de prática, forma de vida, Os hormônios na carne podem ter um efeito
professor etc., que podem gerar mais sobre o humor da pessoa, mas, falando em
pressão no sentido de um consumo com termos gerais, não. Muitos grandes
menor impacto. professores comem muita carne e são
extremamente gentis mesmo assim.
Em geral se aceita que tudo que
consumimos causa sofrimento em algum É verdade que o Dalai Lama precisa comer
lugar, portanto é preciso ter consciência carne às vezes?

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Sim, por orientação médica — na medicina Da mesma forma que com o álcool, você
tibetana algumas vezes a carne é prescrita deve examinar como alterar sua mente é
para algumas condições. uma forma de se engajar em "cheap thrills",
5.5. Drogas e álcool emoções inúteis. Mesmo meditação
Há alguma restrição quanto a bebida e uso equivocada, tentando alterar o que quer
de drogas no budismo? que seja em sua mente, deve ser
abandonado. Mas você só deve abandonar
Você deve abandonar o que é prejudicial, o que você, por si mesmo e diretamente,
foi isso o que o Buda ensinou. através de um compromisso intenso
consigo mesmo — o que, se deve dizer, é
Usar drogas vai contra os preceitos do EXTREMAMENTE raro — reconhece como
Budismo? inútil, neutro ou negativo.

Todas as emoções inúteis são ou neutras ou Qual a relação do budismo com as bebidas
negativas. O que é neutro, por ser perda de alcoólicas?
tempo, é negativo.
Em geral, se a pessoa não quer sofrer nem
Porém, não é porque o Buda disse que causar sofrimento aos outros, intoxicantes
álcool não ajudava você que você deve devem ser evitados. A maior parte das
abandonar o álcool. Você deve abandonar o formas de budismo recomenda o abandono
álcool porque você mesmo percebe que é completo. No budismo tibetano é aceitável
inútil, neutro ou negativo. Você pode beber, desde que não se fique embriagado.
experimentar seguir, por algum tipo de A pessoa deve estar atenta a 1) pacto de
obediência, o que o Buda disse, mas mediocridade; 2) emoções inúteis são no
enquanto você estiver OBEDECENDO a mínimo uma perda de tempo; 3) as virtudes
preceitos, você não está praticando o requerem atenção, coerência e assim por
budismo. Você está praticando quando diante, ao intoxicar-se a pessoa está,
você mesmo, por você mesmo, reconhece o naturalmente, menos focada na virtude.
que é negativo e abandona. Mas isso exige Mas fora isso, como nas duas respostas
um comprometimento muito grande de não anteriores, cada pessoa sabe (ou deve
ser crédulo e apenas cegamente acreditar examinar e vir a saber) onde consegue
nas próprias opiniões. Você precisa exercer praticar e onde não consegue mais.
grande imparcialidade e ceticismo quanto a
seus próprios impulsos e ideias. Você talvez Aliás, esse é um bom exemplo. Nós, sem o
deva fazer isso com 1% mais de intensidade darma, somos como aquelas pessoas que
do que você faz com as próprias palavras do sempre acham que podem dirigir, mesmo
Buda, e isso vai ser uma demonstração de depois de estarem claramente bêbados.
grande fé e desprendimento. Estamos naturalmente bêbados de nossas
propensões, e não acreditamos que
podemos atingir a sobriedade através da

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prática — nem mesmo isso, nós achamos rara, que é essa condição extremamente
que estamos em controle, agindo instável e impermanente em que nos
livremente, quando de fato estamos apenas encontramos, para fazer algo significativo.
nos autoenganando. Sem viver de forma significativa, não há
prática espiritual. E não é um manual ou
Então até que a pessoa seja madura o líder religioso e a mera obediência que vão
suficiente para examinar por si própria o prover um viver significativo, mas o
que ela é capaz ou não de fazer, ela precisa engajamento da pessoa com o ponto
de uma ética prescritiva, ela precisa essencial: diminuir o impacto e trazer
obedecer algo que é dito — ela precisa benefício. Evitar o sofrimento, produzir
seguir princípios que ela mesma criou ou mais felicidade.
aceitou — em outras palavras, ela precisa
tomar votos. Qual é a visão budista sobre o uso de
cannabis para pacificação e meditação?
Mas a ética prescritiva não é o que Qual é a opinião geral quanto ao uso da
interessa, principalmente, ao budismo. E erva?
sim sabedoria. O problema não é quando
você está curioso sobre o que o budismo A maconha agita o lung e não permite a
acha sobre isso ou aquilo, para ver se o prática de meditação. Depois de agitar o
budismo é um produto que se adequa a lung ela cria bloqueios nos canais sutis, que
suas necessidades de consumidor as pessoas confundem com um estado
espiritual. O problema não é quando você meditativo, mas que não é nada disso. É
tem alguém a quem perguntar, e considera apenas um estado particular da mente, e
as respostas de acordo com suas próprias um que não é particularmente saudável ou
inclinações, sendo o senhor de si mesmo e produtivo, mas ao que as pessoas algumas
decidindo o que faz ou não sentido no que vezes desenvolvem certa fixação. Isto é, elas
é meramente, meramente mesmo, dito. querem voltar vez após vez a este estado.
Isso é de importância pequena para o
praticante. Ela cria obstáculos para a prática que
podem se estender por mais de uma vida.
O que interessa ao praticante é quando não Em particular, no vajrayana, a pessoa vai
há a quem perguntar, e quando não há encontrar dificuldade para fazer
tempo de sobra para considerar hipóteses – visualizações e efetuar qualquer prática.
mas em todas as pequenas decisões morais:
abrir a boca para dizer qualquer coisa, dar Existe alguma escola budista que faz uso der
um passo em qualquer direção, e assim por alucinógenos? É verdade que muitos
diante. É nesses casos que importa mestres já usaram alucinógenos para
desenvolver uma visão honesta, integral e comparar o efeito com os efeitos da
vasta do sofrimento próprio e dos outros, meditação?
do aproveitamento de uma oportunidade

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Nenhuma escola budista usa drogas de você pode até se beneficiar de ouvir
nenhum tipo. Alguns mestres usaram ensinamentos e receber bênçãos de
drogas, mas não as compararam com a professores. Mas só vai esperar que esta
meditação, mas com o samsara. Disseram conexão frutifique numa vida futura,
que é um super samsara, ou um samsara porque todos os esforços, em termos de
2.0. Isto é, mais confusão, mais delusão, meditação, se houverem, serão em vão.
mais torpor, mais autoengano, menos
clareza, menos lucidez, menos meditação. O A pergunta "eu posso praticar o budismo e
que se ouve é que quem usou drogas vai fazer ou continuar fazendo x" implica, por si
demorar muito mais para conseguir só, que a pessoa já sabe que há algo de
meditar, e, dependendo de fatores errado com o que está fazendo. E de fato,
coadjuvantes e do grau de uso, até mesmo para uma pessoa ou outra, certas coisas não
várias vidas de esforço em prática espiritual vão ser um obstáculo, mas para você,
antes de limpar os canais sutis e finalmente exatamente o que você acha importante,
obter resultados. Se a pessoa vendeu pode ser um obstáculo crucial. Tomar
drogas, claramente isso é causa para refúgio no Buda significa não idolatrar
renascimento inferior, ou ao menos um fontes de refúgio não confiáveis. Não
renascimento humano com deficiência idolatrar, colocar na frente do Buda, seus
grave. Isso eu ouvi. vedanas, suas preferências, suas pequenas
idiossincrasias. Muitas vezes, se não
Posso praticar budismo mesmo gostando de idolatradas, elas não são problema. Mas se
coisas mundanas? Por exemplo, posso a pessoa está pensando "eu seria budista se
fumar um baseado com os amigos e ouvir no budismo eu puder fumar maconha" ou
Bob Marley? como na pergunta anterior "se eu pudesse
beber", daí não há chance alguma. Se a
Há coisas mundanas e coisas mundanas. pessoa encontrar um professor que instrua
Coisas mundanas neutras ou benéficas, não dentro das necessidades da pessoa, que
há problema, são só perda de tempo. Já o grande mérito! A maioria de nós não tem
uso de drogas não vai permitir que se faça esse mérito, e a maioria de nós precisa estar
nenhum tipo de prática de meditação — disposto a abandonar o que quer que seja.
algumas vezes por mais de uma vida. No vajrayana, em particular, é o que quer
Chagdud Tulku Rinpoche disse que em que seja MESMO. Você não pode chegar
particular fumar (qualquer coisa) é com reservas perante o guru — onde quer
equivalente carmicamente a matar dezenas que estejam suas reservas, é aí que você vai
de pessoas, referindo-se aos bilhões de ser pisoteado.
seres sutis (provavelmente gandharvas),
que são mortos por essa fumaça. Então vai Eu falo de experiência pessoal, eu sei o que
ser muito difícil ter qualquer foco positivo é fumar maconha. Eu sei o que é o obstáculo
com toda essa negatividade. Assim, como — eu sei o que é ser confundido pela ideia
os animais que ouvem o som da concha, de positividade na droga. Tudo isso eu sei

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bem. Enquanto você não estiver disposto a convenções antes de se achar além das
abandonar o que quer que seja, você não convenções. A diferença entre escolas é
tomou refúgio no Buda. Isso não quer dizer entre zero álcool e álcool que não deixe
que você precisa renunciar a tudo. De forma você bêbado.
alguma. Você precisa ter a mente que está
disposta a renunciar a qualquer coisa, se Resumindo: o comportamento dos
necessário, e a partir disso você precisa mahasiddhas não é o exemplo para os
renunciar a aquilo que você reconhece praticantes. Todo mundo sabe que eles são,
como daninho. Se você não tem a mente de exatamente, santos loucos, que fazem
reconhecer o que é daninho e de renunciar coisas que a gente não aceita normalmente.
quando reconhece, isso vai ser um Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche diz
obstáculo intransponível na prática budista. que embora a gente goste muito das
O Buda disse que nós temos sido escravos histórias e queira parecer como eles, se um
de nossos hábitos por vidas incontáveis. desses santos viesse bater na sua porta você
Eles são os nossos senhores e fazem de gato chamava a polícia. Não adianta querer fingir
e sapato conosco. Enquanto não que se está praticando além dos conceitos
reconhecemos nosso feitor, não seremos com uma mente cheia de conceitos.
livres. E se a pessoa quer ser livre, ela 6. Bom coração
precisa parar de fazer oferendas a deuses
mundanos. Isto é, ela precisa abandonar os O que é compaixão? Como praticar?
padrões de hábito e preferências (vedanas),
e se esforçar em desenvolver as qualidades Compaixão é querer aliviar o sofrimento dos
que trarão felicidade para ela e para os outros. Você pratica aliviando o sofrimento
outros. Sem compromisso com isso, dos outros, ou treinando para ter mais
independente de qualquer pergunta empatia, atenção e meios para ajudar os
específica que alguém volte a fazer sobre outros.
"no budismo posso x", não há chance
alguma de praticar o ensinamento do Buda. O que é exatamente compaixão? Como
exercê-la?
Budistas não podem consumir nenhum tipo
de bebida alcoólica? Mas e a história Compaixão é reconhecer o sofrimento do
daquele santo budista que parou o Sol para outro e ativamente se engajar
não ter que pagar a cerveja? internamente (por uma solução) como se
esse sofrimento fosse de fato nosso.
Há uma diferença entre escolas, e o
comportamento dos mahasiddhas quebra A compaixão superior é indistinguível da
convenções — eles fazem milagres, daí vacuidade, que é a capacidade de
podem tudo. Se você fizer milagres como reconhecer que todos os sofrimentos
parar o sol, daí você pode beber sem limites surgem, na sua raiz, de uma falta de
— você mostra que está além das reconhecimento da natureza livre de uma

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essência (da realidade e de todos os exercido, isso é compaixão. Ao reconhecer


fenômenos em particular). Em outras a aparência como aparência, e a essência
palavras, sofremos porque reificamos as como essência, isto é sabedoria, que é o
aparências — a compaixão portanto é o que reconhecimento das coisas como elas são,
ativamente busca dissipar essa reificação isto é, vacuidade. Assim ao ver o ser-mãe-
por quaisquer meios disponíveis. No nosso fenômeno como vazio, brota compaixão, e
caso, em que somos também seres sem a ao desenvolver compaixão pelo ser-mãe-
sabedoria (o reconhecimento da fenômeno, necessariamente brota o
vacuidade), nesse caso a compaixão é a reconhecimento da vacuidade. É a
inferior, que é paliar o sofrimento do modo mesmíssima coisa.
que pudermos, ou até mesmo apenas
aspirar um dia poder paliar o sofrimento. Se a compaixão é nosso estado natural, por
que tenho que meditar sobre ela?
No budismo compaixão é um objeto de
treinamento: ela tanto é o fim por si próprio Porque, segundo o budismo, só um Buda
como um meio de atingir a sabedoria. Todos reconhece e revela seu estado natural.
os seres possuem um potencial compassivo, Como estamos cheio de obscurecimentos e
e a prática budista em todas as suas formas marcas adventícias, que impedem, como
busca treinar na compaixão, ou, melhor nuvens que bloqueiam a luz do sol, o revelar
dizendo, revelar o mais possível esse dessa natureza, precisamos de práticas que
potencial como ato. efetuem essa purificação. Mas é importante
entender que a compaixão não é
Posso dizer que compaixão e vacuidade são construída, mas revelada. Isso faz muita
a mesma coisa? diferença.

Não só pode, como deve. Mas é importante A compaixão, para o budismo, é um


entender por que. Através da prática, você sentimento ou um estado de consciência?
pode ter o objetivo da compaixão ou da
vacuidade, e começando com uma, você Quase não se usa a expressão "sentimento"
termina na outra. Através da compaixão no budismo. Fala-se de emoções aflitivas. A
você reconhece a interdependência, e compaixão não é uma emoção aflitiva. Ela
portanto a vacuidade. Através da vacuidade possui um aspecto cognitivo e um aspecto
você reconhece a ausência de "energético", que é talvez o que se queira
independência, e portanto a compaixão. dizer por "emoção" — isto é, a base daquilo
Vacuidade é liberdade de ausência de que algumas vezes sentimos
inclinações, preconceitos, o que resulta em fisiologicamente como um aperto na
ver os seres como Budas em essência, e garganta. Nós não precisamos chegar a
disso surge uma ânsia perante aquela sentir fisiologicamente, mas esse é um
essência não revelada — você vê todo modo de explicar o que se quer dizer por
aquele potencial e vê que ele não é "energético".

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quem sabe disso, e conscientemente traz


Ela é dinâmica e dotada de capacidade felicidade a outro, particularmente sob
tanto racional, no caso de uma compaixão alguma dificuldade, sob algum pequeno
que segue um raciocínio, quanto sofrimento, sob alguma perda de
puramente atencional, empática, no caso felicidades inferiores, não há dúvida do que
de uma compaixão que seja não conceptual. é melhor.
Ambas são expressões do estado natural da
mente, que não é um estado propriamente, Agora, se a pessoa faz isso porque outra lhe
com um início, meio e fim, mas diz, ou porque está seguindo uma regra ou
propriamente natural e não fabricado. algo assim, nesse caso ela precisa refletir
melhor sobre as verdadeiras causas de
Para nós, que não revelamos nossa felicidade mais confiável e mais duradoura.
natureza ainda, a compaixão pode se Ao refletir sobre isso, naturalmente ela fará
apresentar com início, meio e fim, e o que é mais inteligente, isto é, a ação
podemos treinar em compaixão — altruísta.
podemos deliberadamente desenvolver
mais compaixão. A compaixão é boa para Trazer benefício aos outros seres, no
nós em primeiro lugar, porque nos liberta, Budismo, baseia-se na premissa de que essa
naturalmente da prisão do eu, que é a fonte é a única forma de atingir felicidade, certo?
de todo sofrimento. Portanto a compaixão Não se ajuda por altruísmo, mas por
é cheia de bem-aventurança. Além disso, a constatação através da experiência de que
compaixão é boa para os outros, já que é a única forma de ser feliz plenamente?
invariavelmente seremos compelidos a
ajudar diretamente, de muitas formas Quanto menos altruísta, mais instável essa
possíveis, e eventualmente essa ajuda será felicidade. Então a pessoa basicamente lida
realmente benéfica aos outros. Também o com sua honestidade vez após vez, e isso se
próprio fato de nos movermos nessa chama prática. Quando ela abandona a
direção provê um exemplo, que se for noção de obter felicidade para si —
seguido, proporcionará felicidade aos abandona essa expectativa sem que isso
outros. Assim, existem muitos motivos signifique autodestruição ou falta de amor
pelos quais a compaixão é tida com tanto próprio — , essa é a felicidade definitiva de
apreço na prática budista. um bodisatva.

E se eu tiver que abrir mão da minha Começamos lidando com nosso egoísmo
felicidade pela felicidade de outra pessoa. como ele já existe, sem nos enganarmos a
Qual seria a melhor decisão? respeito dele. E então, paulatinamente nós
simplesmente largamos, pouco a pouco ou
A fonte mais confiável de felicidade é ajudar de uma vez, essa atitude. Mas toda vez que
os outros. Todas as outras formas de o egoísmo surgir, tentamos ser egoístas
felicidade são inferiores. Portanto, para inteligentes, porque se queremos ser

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felizes, precisamos abandonar essas Compaixão tem um sentido técnico: é


expectativas todas — o mais importante é reconhecer o sofrimento do outro e não
que isso não significa simplesmente "se querer que ele sofra — e, se possível, agir
largar", esse é o diferencial. É um grande como for necessário para aliviar o
ego o daquele que se negar coisas, então sofrimento.
simplesmente nos incluímos como mais um
qualquer no nosso campo de compaixão Todos os seres são capazes de compaixão,
que se amplia prática à prática. isto é, possuem potencial para a compaixão.
É possível treinar em compaixão, isto é uma
Muitas pessoas quando começam a praticar das práticas essenciais do mahayana. Isto é,
o budismo percebem que são grandes reconhecemos que nossa compaixão é
negociadoras, e se desanimam muito por limitada, e que pode vir a ser ilimitada — o
finalmente perceberem que não reconhecimento da vacuidade permite que
conseguem ser honestas consigo mesmo e a compaixão seja ilimitada, mas mesmo
abandonar a negociação. Aqui precisamos antes disso, podemos incrementar
de bondade para conosco, e usar qualquer vastamente a compaixão através de
compaixão artificial, negociada, que inumeráveis métodos.
consigamos gerar como um treinamento
para compaixão cada vez maior, sem A compaixão por todos os seres não acaba
negociação. Isto é, ao reconhecer nossa levando à indesejável tolerância com gente
limitação e não desanimar com ela, e entidades perversas que causam muito
aceitamos alguma negociação, alguma sofrimento?
artificialidade, algum egoísmo inteligente,
em nossa compaixão — apenas aspirar que Compaixão significa não coadunar com o
essas máculas não estejam ali já é a prática. que está errado e prejudica os seres. Não
Reconhecê-las e olhar para elas com significa acatar visões ou ações errôneas, ou
estranhamento é prática suficiente. Aos não tomar atitudes duras.
poucos, quando criamos intimidade com
nossa própria natureza, ficamos menos Agir a partir de uma visão preconceituosa
tensos e mais naturalmente honestos, e com relação a pessoas seria desrespeitar
assim a compaixão natural, sem esforço e uma das seis perfeições (paramitas), a
sem negociação, desabrocha sem tolerância?
maquinações.
Não, as paramitas não precisam ser
Existe diferença entre compaixão e "respeitadas". Elas são uma prática
misericórdia? benéfica, mas não são uma obrigação. Elas
são um tipo de obrigação para aqueles que
O segundo termo nunca vi no discurso tomaram votos de bodisatva, mas mesmo
budista. nesse caso, o critério de benefício aos seres
é seu, isto é, você pratica da melhor forma

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que consegue, esta é sua obrigação, não mães, ou analiticamente destrinchamos


alguma ação específica. porque surge nossa aversão e apego por
eles.
Nesse caso, agir de forma preconceituosa
não está ligada a shanti paramita (paciência Também há uma prática chamada tonglen
ou tolerância). Nessa paramita, a visão que nos ajuda quanto a isso. A instrução
preconceituosa pode estar totalmente sobre essa prática deve ser buscada com um
presente, mas mesmo presente, você não professor qualificado.
deve prejudicar o ser.
Agir com "compaixão irada" nada mais é do
A visão errônea é a principal das raízes de que agir com mais energia e força em prol
sofrimento, e é a raiz do preconceito do bem-estar de todos os seres? Um
também. Mas ela não está particularmente praticante inexperiente consegue isso?
ligada com a paramita da paciência ou
tolerância. A vítima pode praticar a Praticantes inexperientes precisam agir
paramita, e o agressor pode estar duramente principalmente quando veem a
cometendo várias desvirtudes, uma delas própria negatividade, e, secundariamente,
com certeza é ver os outros com má quando a negatividade de outros pode
vontade, mas isso não se refere a manter a causar malefício aos seres. Porém, um
paz no sentido da paramita. praticante inexperiente deve evitar
qualquer ação onde possa haver algum
Porém, ter uma mente conceptualizadora, elemento, por menor que seja, de
que separa as pessoas entre "aquelas de agressividade. Portanto, um praticante
que gostamos" e "aquelas de que não inexperiente deve provavelmente evitar
gostamos", é abandonar o bom coração e a coisas como gritar ou violência física. Um
sabedoria. Normalmente, porém, a pessoa praticante que tenha confiança em seu
não consegue abandonar isso só porque compromisso para o bem-estar do outro,
"quer", ela precisa desenvolver essa pode até mesmo usar de meios desse tipo,
qualidade, com esforço e deliberadamente, quando seguro de que não há
até que ela se revela natural. Antes disso, a agressividade.
pessoa pode artificialmente tratar com
igualdade e cordialidade daqueles que ela A ação compassiva que corta a negatividade
não consegue deixar de não gostar. é a ação que impede que a desvirtude seja
cometida. Assim se evita o sofrimento da
E como desenvolvemos a compaixão vítima, mas também, e principalmente, o
imparcial? sofrimento daquele que está agindo
negativamente. Com essa motivação
Há práticas específicas em que visualizamos precisamente clara, e com quaisquer meios
a diversidade de sofrimentos dos seres, e, que estejam disponíveis, o praticante deve
por exemplo, os reconhecemos como seres- abandonar sua zona de conforto e agir de

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forma antipática, impopular, não E não precisamos entrar no árido e


compreendida pelos outros e facilmente selvagem Tibete. Um dos alunos do Buda foi
criticável. uma espécie de serial killer, tendo matado
ritualmente quase 1000 pessoas.
Quando a presença de algumas pessoas faz Angulimala, colar de dedos, ele colocava um
mal para nós é melhor se afastar ou persistir dedo de cada pessoa que matava num colar.
no convívio? Mas ele teve o mérito de tentar matar o
Buda em vez de sua própria mãe (que seria
Depende do seu nível de prática. Se você a 1000 vítima), e o Buda conseguiu, de
consegue praticar, o que é melhor, você não alguma forma, fazer essa mudança de 180
se afasta. Se não consegue praticar, você graus, e ele atingiu o nirvana, se tornou um
humildemente reconhece a sua própria arhat.
incapacidade, e se afasta.
Se uma pessoa estiver sendo assaltada na
Difícil pensar no Marquês de Sade como rua, por exemplo, como ela pode praticar a
"diamante sujo de lama". Ele parece ser compaixão?
ontológica e obstinadamente mau mesmo.
O budismo vê alguma chance para alguém Muito simples: ela pensa no sofrimento que
como ele? o ladrão está causando para si próprio no
futuro — que é muito maior do que o de um
Dzongsar Khyentse Rinpoche disse numa assalto.
ocasião que uma pessoa que
obstinadamente traz sofrimento aos seres Mas só pensar na compaixão é o suficiente?
tem, inevitavelmente, pelo menos uma boa Por quê? E se a pessoa deixar que o bandido
qualidade: ela entende bem o sofrimento. leve suas coisas, não estará contribuindo
Num caso assim, e em geral no caso dos para o bandido concretizar o carma?
grandes vilões, basta girar algum tipo de
chave, basta tocar em algum tipo de ponto Sim, mas se não houver meio hábil ou
sutil, que a coisa vira 180 graus, e a grande alternativa de evitar o assalto, ela se deixa
capacidade de causar mal se torna grande assaltar. É melhor ela só ser assaltada do
compaixão. que agredida ou morta: isso causará mais
carma ainda ao assaltante, e mais
Milarepa, o maior santo tibetano, cometeu sofrimento. Além disso, a pessoa, mesmo
uma vingança em que matou dezenas de enquanto praticante, raramente está
pessoas, além de destruir plantações e preparada para morrer. Então ela não tem
matar rebanhos de animais inteiros. Porém compaixão por nenhum dos dois — quando
ele atingiu a iluminação naquela mesma há uma arma envolvida, por exemplo.
vida.
Se houver meio hábil de evitar o assalto, até
mesmo bater no assaltante ou algo assim,

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essa é a ação compassiva. No entanto, em impede qualquer atitude diferente da


geral sabemos que não é assim. Reagir é tolerância. Tolerância aliás, é uma péssima
extremamente desaconselhável. Me palavra — serve apenas para o contexto
arrependo muito de um assalto em que três inter-religioso, e talvez nem nesse — a
indivíduos tentaram levar minha mochila palavra que se usa é compaixão.
com o notebook e eu reagi. Por sorte eles
não estavam armados e eu consegui fazer No vajrayana você pode liberar um ser
os três correrem. Mas eu simplesmente me através da atividade iluminada. Isso significa
arrisquei, isso não é bom. que você consegue evitar que esse ser cause
mais desvirtude ao transferir sua
Outra vez apontaram um revolver para a consciência daquela posição para outra,
minha cabeça, enquanto eu estava rezando, onde a ação negativa não faz sentido. Essa
no ônibus. Dessa vez eu cheguei a pedir atividade é para o bem do próprio ser e dos
meus documentos de volta — para não ter demais. Mas para o ser pode parecer
que fazê-los de novo, mas percebi que o desagradável, porque ele tem apego a sua
assaltante estava muito nervoso e fui posição atual. Isso é feito através de meios
sensato de não ficar discutindo ou hábeis que operam através da
conversando muito. interdependência — como tudo mais.

Pensar no sofrimento do outro é a Pedir reparação de que, a quem? A vingança


compaixão básica. É ela que vai permitir a não tem lugar nos ensinamentos budistas.
ação, quando a ação for possível para nós, Não faria sentido, não é mesmo? Já que o
na nossa circunstância. Muitas vezes a ação carma vai, impessoal e automaticamente,
não é possível, por nossas próprias produzir seus resultados. E de fato, há um
limitações, ou pelas limitações do objeto da outro ponto muito importante. Se vemos
compaixão, ou mesmo pelas limitações de aquele que nos prejudicou sofrendo,
circunstâncias fortuitas. devemos ter compaixão. Se sequer
regozijamos — se sequer agimos com
Nunca acontece de praticantes rezarem indiferença — geramos carma para no
para que uma injúria seja vingada ou futuro nós mesmos sofrermos. Então é o
corrigida? Budistas tem sempre que tolerar nosso próprio melhor interesse, egoísta
injustiças? Não há nada análogo aos Salmos mesmo, não regozijarmos com a vingança
que clamam pela justiça divina? — nem mesmo em filmes, nem mesmo de
personagens. Isso cria um hábito mental
Não existem injustiças, o que há é extremamente negativo.
sofrimento. Reza-se para mitigar
sofrimento. Entender que os seres sofrem No Sutra Lapidador de Diamantes o Buda
por sua própria responsabilidade, e que conta um episódio em que foi torturado até
aqueles que criam sofrimento aos outros a morte por um motivo trivial. Ele foi, numa
são dignos de maior compaixão, é o que vida passada, cortado em pedaços. Primeiro

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a primeira falange do mindinho, depois a Não necessariamente, mas podem ser um


segunda falange, depois o dedo todo, treinamento, e a aspiração pode
depois o outro, pedaço por pedaço, a mão eventualmente nos ajudar a agir
etc. Depois as outras falanges, dedos, mão, efetivamente, e não meramente ouvir e
braços... depois as falanges dos dedos do tentar entender.
pé, o pé, a perna...
Ouvir e tentar entender pode ser
Isso porque o Buda, então um bodisatva, compaixão, ou ajudar no desenvolvimento
tinha conversado em privado com a esposa da compaixão.
desse sujeito — sem malícia da parte do
Buda. É comum ter pensamentos horríveis, como
de machucar pessoas, por exemplo? E a
Ele pergunta ao interlocutor desse sutra meditação e o estudo do budismo pode
particular, Subhuti, porque ele foi capaz de ajudar a entender esses pensamentos?
não sentir raiva do agressor. E o aluno do
Buda explica que, pela realização da Comum... não sei. Se você ampliar a
vacuidade e o entendimento do carma, o compaixão, naturalmente vai ser mais difícil
Buda não teve sequer um impulso de sentir ter tais pensamentos. Ampliar a compaixão
raiva, porque caso contrário eles passariam é possível, é um dos objetivos da prática
vidas escalonando essa rixa — como num budista. Você amplia a compaixão ao
desenho animado em que cada vez o outro refletir deliberadamente sobre o
vem com uma arma maior. Porque ele não sofrimento dos outros e se colocar no lugar
guardava para si a concepção de um, outro, deles. Entender porque esses ou aqueles
muitos e nenhum, ele sentiu compaixão. pensamentos surgem, daí já não sei — acho
que não é útil. A maioria das práticas não se
O que seria então "trazer benefício" aos ocupa de conteúdos mentais, apenas os
seres? deixa onde estão.

Trazer felicidade e bem-estar temporário e A paz é a ausência do sofrimento? Ou a paz


definitivo, ou ajudar a criar as causas para pode ser a compaixão em meio ao
felicidade e bem-estar temporário e sofrimento?
definitivo. O benefício definitivo é a
iluminação, isto é, ajudar um ser a revelar Paz é normalmente uma das traduções da
sua natureza terceira paramita, shanti, "paciência".
Significa estabilidade perante a
Conversar com as pessoas, tentar adversidade, o tédio, o assombro, o medo,
compreender as mentes equivocadas etc., o nojo, a confusão. Ela é praticada por
são maneiras de ajudar os seres? compaixão.

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A paz da ausência de sofrimento, vamos entender a raiz do sofrimento, que todos os


chamar só de ausência de sofrimento, é o seres que possuem essa raiz, embora sejam
objetivo da prática do veículo estreito, o diferentes, se tornam alvo da mesma
hinayana, que é considerado um objetivo compaixão, do mesmo tipo.
egoísta pelo grande veículo, o mahayana.
Ainda assim, foi um ensinamento que o Por outro lado, olhar para as pessoas do
Buda deu para as pessoas de pouca mesmo jeito, isto é, reconhecer o que nelas
capacidade. há de além das características, é
exatamente a prática da compaixão-
Quando você sofre, você pode transformar sabedoria, além dos julgamentos.
esse sofrimento em compaixão. Essa pode Simultaneamente, porém, vemos os seres
ser uma forma de praticar a terceira com todas as suas características
paramita. Seja pelo reconhecimento do particulares, e com todas as suas diferenças.
sofrimento do seu "inimigo", quanto pelo Ver dessa forma duplamente o que há de
reconhecimento de que outras pessoas comum a todos os seres que sofrem, e o que
sofrem mais, ou do mesmo jeito que você. há de único em cada um deles é o que
possibilita a ação compassiva de um Buda. A
Normalmente os budistas não buscam paz, ação e a compaixão portanto são a mesma,
essa é uma noção muito frequente entre as no sentido do comprometimento completo
pessoas, mas o budista pratica paz com o com a situação de forma imparcial e sem
objetivo de atingir a iluminação. A julgamentos, e são diferentes, no sentido
iluminação é um estado de esclarecimento, do respeito completo por qualquer
e intensidade infinita de compaixão. particularidade.

Disse a uma amiga que meu desejo é gostar Se um ser deixar de gostar ou não gostar,
de todo mundo igualmente e ela disse que ele não se tornaria apático? Porque seria
isso é impossível. O que você acha? bom ser alguém que não gosta nem
desgosta? O melhor não seria, pelo menos,
Depende do que se quer dizer com gostar de tudo?
"igualmente", e "gostar" não é uma boa
palavra. Gostos e desgostos estão ligados a O darma não usa a língua de forma frívola,
hábitos mentais. No budismo praticamos porque ao estudar a mente é necessário ser
compaixão, que vai além de gostar e não preciso e um bocado técnico com a
gostar. No início pode parecer mais fácil ter terminologia.
compaixão de quem gostamos, mas com o
tempo é, de fato, mais fácil ter compaixão Gostar e não gostar são o que chama-se de
por quem não gostamos. "preferências", vedanas, que estão
vinculadas a hábitos. É claro que, se a
Mas sim, é possível atingir imparcialidade pessoa não é precisa com as palavras, ela vai
em termos de compaixão, basta para isso igualar compaixão por todos os seres com

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preferência por todos os seres. A compaixão vijnana, 2. samskara, 1. avidia — que são os
pode ser também um hábito, para quem 7 primeiros dos doze elos).
não a reconhece como uma qualidade
natural — mas o que ela é de fato é uma A apatia também é um hábito mental, e a
qualidade natural, não uma preferência. O pessoa pode inclusive ter preferência,
treinamento em compaixão pode começar inclinação, gostar da apatia — o que é
com a formação de hábitos, mas no fundo causado pela ignorância. A psicologia define
ele não é um desenvolvimento da como "deficiência do afeto", isto é, falta de
compaixão, e sim um revelar, um empatia, compaixão.
reconhecimento, uma fruição de uma
qualidade natural. Então existe uma A compaixão é natural, incondicional, não
diferença muito grande entre preferência, causal, atemporal, criativa e cheia de bem-
que é algo artificial, embasado em aventurança. Ela pode ser treinada como
tendências e hábitos (adventícios e que um hábito, mas como ela é um hábito que
surgem da ignorância) e a compaixão, que se coaduna com a realidade fundamental e
em seu sentido mais real, é uma qualidade não corruptível em cada um de nós, o
espontânea da natureza de buda que todos abandono do hábito (positivo) quando a
possuem. compaixão surge por si só é a espontânea
manifestação das qualidades de um Buda.
As preferências são artificiais, parciais, Também é impossível compaixão completa
duais, separativas, temporárias, baseadas enquanto há preferências, gostar e não
em causas e condições (muitas vezes ao gostar. Compaixão portanto não é gostar de
ponto de se poder apontar "porque se tudo, e sim beneficiar e ter afeto por todos
gosta", ou se vincular ao eu, "isso é a minha independente das preferências, dos
cara"). Portanto, do jeito que preferências condicionamentos, das questões
são definidas no darma, não faz nenhum temporárias. A total superação da apatia é
sentido dizer "gostar de tudo", gostar é, ter compaixão, afeto, empatia, até por
necessariamente, gostar de algumas coisas, aqueles que nos desagradam, e
de algum jeito, por algum tempo, por algum principalmente por estes — porque com o
motivo. As preferências são totalmente tempo e com a prática da virtude, o que nos
condicionadas (tecnicamente, pelo desagrada é a ação negativa — e seres
"contato" dos órgãos dos sentidos com os envoltos em ações negativas são
objetos, com os próprios órgãos dos desagradáveis. Mas é exatamente por eles
sentidos, que são uma interface com nome- que mais abandonamos a apatia e geramos
e-forma, que são uma forma de estabilizar a a empatia.
consciência, que é um surgimento natural
das marcas e hábitos mentais, que são Se estamos falando com uma criança,
fundados na ignorância: 7. vedana, 6. podemos até dizer "é gostar de todos, de
spasha, 5. shadayatana, 4. nama-rupa, 3, tudo" — mas quando vamos criando um
vocabulário mais preciso e mais útil na

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comunicação com outros budistas, então As seis paramitas são generosidade


precisamos separar os termos de acordo (material, de tempo e atenção e de prática
com suas definições técnicas. espiritual), ética (disciplina moral,
austeridade e engajamento no treinamento
Uma barata é um ser digno de compaixão da mente), paciência (consigo mesmo, com
no Budismo? Há algum problema em os outros e com a profundidade dos
eliminá-las? ensinamentos), empenho (diligência,
perseverança, alegria no esforço que traz
Claro. Elas sofrem. benefício aos outros, em particular na
divulgação e longa vida do puro darma),
As virtudes são as seis perfeições? concentração e sabedoria.

Tecnicamente falando, não. As virtudes são O que é bodicita?


o oposto das desvirtudes, assim: salvar
vidas, fazer doações, praticar sexualidade É a aspiração e a ação de beneficiar os seres
benéfica a todos os envolvidos, falar a num sentido último, isto é, a aspiração e o
verdade, falar mansamente, falar com engajamento em ajudar os seres a
propósito (e não inutilmente), louvar e revelarem sua natureza de buda. Difere da
elogiar o que merece ser louvado e compaixão em que esta inclui o aspecto
elogiado. Ter boa vontade com os outros, relativo, de apenas fazê-los deixar de sofrer,
ser desapegado e manter o darma puro em temporária e definitivamente, e não
mente. contém o aspecto de necessariamente
desejar que suas qualidades floresçam.
Mas as seis perfeições e as quatro Bodicita é desejar o fim do sofrimento
qualidades incomensuráveis também são definitivamente e, além disso, a realização
virtuosas, é claro. definitiva das qualidades de um Buda. E se
esforçar nessa direção.
Por favor, você poderia explicar um pouco
sobre as seis perfeições? É querer e fazer (aspiração e ação, dois tipos
de bodicita) que os outros sejam Budas.
As seis perfeições são ao mesmo tempo
práticas e qualidades inatas da mente. Isto Se tudo é sonho, o sofrimento também não
é, pratica-se as seis perfeições para é ilusório? E não seria então a indiferença
reconhecer a natureza da mente com suas mais razoável racionalmente? Se tudo é do
qualidades. Elas são praticadas em termos jeito que é, por que eu devo sofrer-com, ter
das três esferas, agente, paciente e ação. No compaixão por algo que ultimamente não é
sentido último, reconhece-se a real?
inseparatividade das três esferas.
Essa é uma pergunta bastante comum. Qual
é o objeto último de compaixão? A

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ignorância de reificar o sonho. Segundo o virtude através da prática formal coerente,


budismo, a base do sofrimento é torna-se cada vez mais fácil praticar a
exatamente essa, e não é possível ser virtude. Ao percebermos que a raiz da
verdadeiramente compassivo sem essa felicidade é a virtude, e a raiz da virtude é
noção — todas as compaixões derivadas, uma mente cultivada, obediente, flexível —
sem isso, não são compaixão de fato. então percebemos a necessidade da prática
formal.
Então é exatamente o oposto, se a pessoa
não tem noção de que tudo é um sonho, ela Também a sabedoria, se queremos ver as
apenas sofre junto, sem ter possibilidade coisas como elas são, precisamos refinar o
verdadeira de ajudar. instrumento epistêmico, que é a nossa
mente. Nesse caso a meditação é como
Todos os nossos sofrimentos comuns colocar uma câmera num tripé, regular o
(exceto o sofrimento de reificar) são como obturador, a exposição e a luz para tirar
o sofrimento de uma criança que perdeu uma boa foto.
um brinquedo. Você diz para ela "mas aqui
tem outro", e não adianta. É porque Reconhecer que estamos aprisionados
reificamos nosso corpo que a morte se pelos nossos hábitos e profundamente
torna um sofrimento, e assim por diante. imersos em autoengano é a primeira etapa.
Daí nos engajamos na prática formal que
Então reconhecer o sonho como sonho, doma a mente, exatamente como se doma
sabedoria, vêm junto com a compaixão por um animal selvagem — e também na
aqueles que reificam o sonho. prática que depura e regula o instrumento
7.1. Shamata e vipassana epistêmico, como alguém que regula uma
Por que a meditação é importante para a câmera. Estas são as práticas de shamata,
liberação, como esse processo ocorre nos que deixam a mente focada, flexível
praticantes? O que é shamata impura e (obediente) e nítida.
pura?
A prática de shamata começa com um
A liberação é a ausência completa de objeto, o que é chamado de shamata
aflições mentais, e iluminação é a liberação impura. Depois, para uma ainda maior
mais o revelar completo das qualidades flexibilidade da mente, o objeto deve ser
naturais da mente. abandonado, e isto é shamata pura. Na
shamata pura podem, ocasionalmente,
Meditação é habituar-se, acostumar-se. naturalmente acontecer lampejos de
Acostumamo-nos com várias coisas, com a reconhecimento do estado natural. Nesse
prática da virtude, por exemplo. caso a pessoa passa a cultivar diretamente
Percebemos que podemos querer ser o estado natural. Caso ela queira acelerar e
virtuosos, mas não temos poder sobre garantir esse reconhecimento, ela se engaja
nossa mente. Ao criar um hábito mental de nas diversas práticas de vipassana — que é

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como investigar ("tirar fotos" de) entender e perceber. Quando começamos a


determinados objetos relevantes, tais como fazer shamata, demoramos normalmente
os agregados (forma, consciência etc.), ou a algumas dezenas de sessões para
prática de koan, ou as práticas do estágio do reconhecer o torpor e agitação grosseiros e
desenvolvimento e consumação do entender que perdemos o foco em alguns
vajrayana, ou certas práticas avançadas de segundos. Ao praticar shamata,
mahamudra ou dzogchen. desenvolvemos progressivamente a
clareza, estabilidade e vigor desse foco.
De toda forma, o objetivo é o cultivo do Quando ele atinge um estado ideal,
próprio estado natural, que é livre de atingimos shamata, e então a prática de
aflições mentais e manifesta naturalmente vipassana se torna uma possibilidade bem
todas as qualidades. Quando o cultivo é mais real.
desnecessário, porque o estado natural
simplesmente é reconhecido como auto- Digamos que eu queira atingir o estado de
ocorrente e incessante, atinge-se o não shamata. O que você sugere que eu faça?
atingir, o estado de não meditação, que é a Um retiro longo? Prática na vida cotidiana?
prática dos Budas. Como, aqui no Brasil, posso tornar isso
possível?
É muito interessante perceber, logo nas
primeiras meditações, o quão longe e o Procure um professor qualificado. Em geral,
quão perto estamos de um Buda. Basta a não se busca atingir shamata como um
pessoa começar a sentar, e se relacionar objetivo solto, mas sim como coadjuvante
com um professor, que ela começa a ver no caminho budista. Com certeza a prática
claramente e até com um tanto de ironia, começa com pouco tempo e prática regular
esse afastamento-proximidade. Sem cair e, essencialmente, para realizar shamata,
nos extremos do eternalismo e niilismo, vai ser necessário um retiro relativamente
"ah, isto não dá, é muito difícil" ou "ah, isto longo — mas isso após alguns anos
não precisa, já está tudo pronto", ela transformando a prática a ponto dela ser
simplesmente continua na prática, e toda produtiva em retiro.
vez que ela estiver prestes a desistir ou
achar que está lá, ou bem próxima, é só ela Apenas com prática na vida cotidiana não
conversar com o professor e voltar ao vai ser possível realizar shamata, mas com
caminho do meio, livre dos extremos. certeza sem essa prática, não vai ser
possível sequer a prática que leva a
O que seria realizar ou atingir shamata? shamata.

Permanecer por pelo menos quatro horas Qualquer item desses é possível no Brasil,
ininterruptas sem distração, sem torpor ou mas para quem quer realizar shamata,
agitação sutis — que são coisas que por si só como alguém que quer ser vitorioso numa
levam alguns meses ou anos de prática para

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olimpíada, viajar é o menor dos problemas progredir em shamata. Isso não quer dizer
— se for necessário viajar. que uma hora, ou 15 minutos, ou 5 minutos
por dia não ajudem. É higiene, é como fazer
Quantos anos demora pra uma pessoa exercícios todos os dias, ou 3 vezes por
realizar shamata? semana. Você não vai ser um atleta
olímpico, mas você vai ter uma vida mais
Isso depende muito do carma individual, a feliz e saudável. Para realizar shamata você,
pessoa já pode ter praticado muito em vidas por outro lado, provavelmente precisará de
passadas, por exemplo. Alguns professores uma constituição cármica boa (como um
falam em 50.000 horas, em média, de atleta, que precisa um físico razoavelmente
prática. Praticando 12 horas por dia, dá uns bom para começar) e a dedicação
12 anos de retiro. Ou duas horas por dia, equivalente a de um atleta olímpico ou de
todos os dias, mais um retiro de um mês por um pianista de concerto
ano, todos os anos, de 11 horas de prática internacionalmente famoso: ou seja, você
por dia, por 50 anos. Porém, é bom lembrar vai precisar dedicar esse tipo de energia,
que Shamata não é uma prática essencial tempo — dedicação mesmo — à prática
para se atingir a iluminação. espiritual. São esses os praticantes que
chamamos de iogues, aqueles que tem uma
É possível atingir shamata dedicação apaixonada e intensa a muitas
progressivamente? Ou seja, através da horas de prática por dia, até 14 horas de
pratica de 1 hora por dia, depois de algum prática, por vários anos consecutivos (50
tempo, é possível atingir shamata sem anos, por exemplo, como um professor que
precisar ter ficado 4 horas sem perder o esteve no Brasil em 2009, Wangdor
foco? Rinpoche). Isso não quer dizer que nossos
esforços sejam inúteis, pelo contrário, eles
Você não entendeu. O resultado de nos ajudam nessa vida e em vidas futuras, e
shamata são as quatro horas de foco. Você eventualmente realizaremos shamata. Mas,
pode fazer uma hora por dia por algumas nessa vida, sem uma dedicação de várias mil
décadas ou vidas e atingir isso, ou pode horas de prática, é impossível, ou pelo
levar muito mais tempo. Depende do menos extremamente raro. O próprio Buda
volume de prática que você fez em outras fez prática ininterruptamente por seis anos.
vidas e de quão ética é essa vida e suas vidas
passadas. Normalmente, pelo menos Alguns professores ocidentais se perguntam
50.000 horas de prática são necessárias se algum ocidental já realizou shamata. Eu
para atingir shamata. Atingir shamata seria otimista, talvez haja uma meia dúzia
significa que você ficou quatro horas em de ocidentais que realizaram shamata até
foco, não que praticou por quatro horas hoje.
ininterruptas. Praticar por quatro horas é
muito fácil. Normalmente você vai precisar Qual a diferença entre shamata impura e
de muitos anos de prática ininterrupta para shamata pura?

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puro), mas deveríamos dizer "estou


Shamata impura é com foco em um objeto, praticando o método para atingir shamata",
shamata pura é o mero repousar da mente em vez de "praticando shamata", que é o
em foco, sem objeto. resultado da prática. Nesse sentido,
shamata impuro é muitas vezes uma
E Vipassana? preliminar para shamata puro, embora
algumas pessoas possam praticar a forma
É como você usa esse foco, isto é, em certas pura para obter shamata, isto é, não
investigações que vão levar ao necessariamente usar a shamata impura
reconhecimento da vacuidade. como uma preliminar de shamata pura.
Algumas pessoas também não precisam
Qual a diferença entre shamata pura e usar nenhum tipo de prática de alcançar
vipassana? Sempre que leio sobre vipassana shamata para penetrar em vipassana, mas
me parece o mesmo que shamata pura. isso é bem raro. São pessoas que
possivelmente treinaram em shamata em
Não são a mesma prática. Há formas de vidas passadas, ou que tem os canais
vipassana, por exemplo, o estado do abertos por questões cármicas (bom mérito
desenvolvimento no vajrayana, que você em excesso).
faz com base em shamata impura. O estado
de consumação, por outro lado, é uma A prática de shamata é pré-budista em
prática vipassana que você faz com base em ambos os casos (pura, impura). A prática de
shamata pura. vipassana é propriamente budista, e é ela
que permite o reconhecimento da
Shamata, pura ou impura, é apenas uma vacuidade. A prática de shamata pura pode
prática construída, preliminar. Quando você produzir, por exemplo, o mero
obtém o estado de shamata, sendo ele puro renascimento no reino dos deuses da não
ou impuro, a partir dele você pratica o forma, ou até mesmo no reino animal.
"insight penetrante" na natureza das coisas. Enquanto que a shamata impura pode ser
No caso da shamata impura, na natureza de usada até mesmo para praticar desvirtude,
um fenômeno particular, no caso de como dar um tiro certeiro na caça. Usar a
shamata pura, a natureza incondicionada da realização em shamata (pura, impura) na
mente e da realidade, que faz da shamata direção do darma do Buda é praticar as
pura uma preliminar para prajnaparamita, inúmeras formas de práticas sabedoria
mahamudra e dzogchen. Há mais de um (vipassana) com base nessa estabilidade
método também para chegar em shamata (com objeto, sem objeto particular). Mas,
(ao menos quatro horas ininterruptas, a do nosso ponto de vista, podemos
palavra se refere ao resultado da prática, considerar a realização de shamata impura
não à prática) pura ou impura. Nós em geral tão rara, mesmo ela, que é um objetivo
chamamos o método para chegar em bastante nobre. Em torno de 50.000 horas
shamata de shamata (seja ele impuro ou

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de meditação são necessárias, para a objeto — você começa reconhecendo a


maioria das pessoas. vacuidade de um objeto. Depois você pode
vir a reconhecer a vacuidade de outro
Ainda não ficou clara pra mim a diferença objeto, e assim por diante. A vipassana no
entre shamata pura e vipassana. hinayana vai produzir o reconhecimento da
ausência de um eu, a vacuidade de uma
Shamata pura é shamata sem objeto. pessoa. É uma pequena vacuidade, uma
Vipassana é a meditação que produz pequena sabedoria. Outras práticas de
sabedoria, reconhecimento da vacuidade. vipassana embasadas no mahayana vão
Uma pessoa com luminosidade, clareza e produzir sabedoria no sentido mahayana:
estabilidade e sem um foco específico não vacuidade de todos os fenômenos. Mas a
necessariamente reconhece a natureza da pessoa não precisa começar a prática com a
realidade. Pode acontecer ausência de objeto, ela pode fazer com o
espontaneamente, em alguns praticantes objeto e daí abandonar o objeto e ficar só
— e essa prática seria chamada vipassana, com o foco. Então quando ela se engaja no
quando houvesse o reconhecimento. Para a reconhecimento da realidade, vacuidade, aí
maioria de nós, com luminosidade, chamamos essa prática de vipassana.
claridade e estabilidade, sem um objeto, Enquanto estamos falando de manter a
ainda assim é preciso um método adicional, mente em paz, estável e acordada — com
que abandona a fixação nessas três grande nitidez — isso é apenas shamata.
qualidades — que podem levar a
renascimento no reino do desejo, forma e Quais são os 10 estágios da meditação?
não forma — e leva ao reconhecimento da
natureza da mente. Praticar alguma São 9 estágios para atingir shamata e um
vipassana também não requer estágio de união de shamata com
necessariamente shamata. Uma pessoa que vipassana. 1. colocar o foco no objeto, sem
tenha mérito, sem nem mesmo praticar continuidade; 2. foco com alguma
shamata, quanto mais realizar, pode continuidade; 3. capacidade de retornar ao
receber uma instrução essencial e penetrar foco perdido imediatamente; 4.
uma prática de vipassana diretamente. estabilidade no foco com torpor e agitação
Chama-se liberação sem meditação. sutis; 5. com torpor extremamente sutil
pela fixação no objeto; 6. com agitação
Uma pessoa pode praticar vipassana a partir extremamente sutil, uma "coceira" para
de shamata impura também. Por exemplo, abandonar o objeto; 7. esforço na
se o objeto de sua shamata é o seu corpo, estabilidade completa, sem nem mesmo
ela pode vir a reconhecer a vacuidade do perturbação extremamente sutil; 8.
corpo através da prática de vipassana com o estabilidade completa com pouco esforço;
objeto que se tornou estável na prática de 9. estabilidade completa sem esforço:
shamata. A maior parte das práticas de estado de shamata; 10. união com
vipassana ensinadas são embasadas num vipassana.

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vipassana também, mas nem todas as


Sem um professor, as três primeiras etapas formas de zen utilizam koans.
são bastante difíceis de entender e aplicar,
e as demais etapas são basicamente A meditação analítica é a mesma vipassana?
impossíveis de se implementar.
Pode ser forma de vipassana. Através de
Sobre vipassana: Como posso reconhecer a shamata, a pessoa pode destrinchar um
vacuidade através de uma análise? A fenômeno qualquer (seu corpo, seu sentido
experiência de vacuidade não é de gustação, um objeto no campo visual,
reconhecida somente em um estado de não algo assim) e, não encontrando nenhuma
mente, de pura compenetração? base inerente no objeto, ele reconhece a
vacuidade. Se for um processo meramente
Muitas vezes começa-se estudando a intelectual, com uma base epistêmica
vacuidade de um ponto de vista intelectual, empírica muito instável e sem muita nitidez,
então a pessoa parte para a investigação o resultado é um reconhecimento
empírica, através da meditação. Existem intelectual da vacuidade — o que ajuda,
métodos e ensinamentos que são aplicados mas é uma espécie de remendo. Se há uma
em prática, após a pessoa ter alcançado base através de shamata, e o
shamata (um mente calma e focada sem reconhecimento é totalmente empírico,
distração por algo como quatro horas sendo que por "análise" se está referindo a
ininterruptas). O reconhecimento direto da observar o objeto diretamente em todas as
vacuidade também é um cultivo. suas facetas, e reduzindo cada uma ao
reconhecimento da vacuidade, nesse caso
No zen algumas vezes se usa a expressão pode haver uma realização da vacuidade. A
"não mente", mas não sei o que isso quer palavra "análise" é ambígua, portanto.
dizer, e nunca ouvi ensinamentos sobre Pode-se chamar ambas as coisas de
isso. Pode ser que seja algo como shamata vipassana, no entanto, sem realização de
pura, sem foco particular. Pode ser que seja shamata, vipassana é, no final das contas,
a experiência de não dualidade do um remendo temporário. Ou pode-se
reconhecimento ininterrupto da vacuidade, escolher chamar de vipassana apenas a
o resultado da prática de vipassana. "Pura prática que produz a realização de
compenetração" não sei o que é. No zen a vipassana, a sabedoria, e portanto análise
investigação intelectual não é o foco, mas no sentido empírico.
há métodos variados, e principalmente o
relacionamento com o professor. A prática Qual a relação entre shamata e vipassana e
de zazen pode ser uma forma de vipassana, o nobre caminho óctuplo?
ou pode ser shamata pura ou impura. Isso
vai da capacidade da pessoa e do tipo de Shamata é uma prática ligada
ensinamento. Koans são uma prática essencialmente ao sexto passo, e vipassana
ligada ao sétimo passo; o que não quer dizer

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que a pessoa precise atingir perfeição nos provavelmente se autoenganando e não


cinco passos anteriores, ela precisa ter uma está praticando coisa alguma. Depois, a
prática suficiente dos passos anteriores de pessoa sempre deve tentar fazer uma
forma a poder sustentar alguma prática de prática integral, isto é, para iniciantes,
shamata. nunca se separar do estado de meditação,
24h por dia, e para praticantes avançados,
Mantenho a ideia de que praticar as seis nunca se separar de um estado natural, o
perfeições ou o Nobre Caminho Óctuplo é estado de não meditação (meditação sem
por si só "transformar a vida em uma prática esforço), por 24h por dia. Porém, sem
de meditação". O que você acha disso? prática formal, muito provavelmente a
pessoa nem mesmo saiba o que é
Sim, mas isso inclui, para a esmagadora "meditação", e a prática formal serve, sem
maioria das pessoas, prática formal. E dúvida para que a pessoa consiga integrar,
prática formal intensa chama-se "retiro". 24h por dia, aqueles resultados que obteve
Então podem existir casos de pessoas que já num tempo protegido artificial (1h, 5h, 3
fizeram muitos retiros em vidas passadas e anos, retiros, sessões de prática) na vida
que não precisam tanta prática formal cotidiana. Pessoas que de cara dizem
nessa vida. Mas é comum a pessoa usar esse "prática formal é desnecessária" estão
tipo de conceptualização como desculpa apenas se autoenganando.
para não fazer prática formal.
Caso a pessoa se engage no Nobre Caminho
Basicamente é correto chamar o sexto Óctuplo, ainda assim será necessário fazer
passo e a quinta perfeição de "prática um retiro longo para atingir shamata? Ou
formal" mesmo, isto é, as várias práticas de naturalmente poderá ocorrer realização do
prostrações, montar altar, sentar para shamata, já que está se praticando o
recitar sutras, meditar etc., que tem um caminho óctuplo?
início, meio e um fim, e que são feitas num
ambiente protegido, artificial, como uma O sexto passo no Nobre Caminho Óctuplo
sala de meditação. Se a pessoa não integra implica prática formal. Se a pessoa quer
a prática formal com a vida cotidiana, isso é avançar rápido (numa vida, por exemplo)
um erro, e o oposto também é um erro. em prática formal, ela precisa fazer um
retiro.
Em geral, para iniciantes como eu, a prática
acontece mais no ambiente formal do que Do contrário a pessoa pode fazer prática
no ambiente cotidiano, e o ambiente formal formal ao longo de muitas vidas. É um retiro
precisa ser bem protegido, por exemplo, é mais espaçado.
mais fácil, no início, fazer prática em grupo.
É possível até generalizar que alguém que Agora, sem prática formal, nesta vida, só
não faça prática em grupo por vários anos para quem já fez muita prática formal em
antes de tentar a prática solitária está muito outras vidas. O que é extremamente raro.

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Nesse caso poderá ocorrer uma "realização caminho. Então a sua prática de perfeições
espontânea", sem muita prática formal. vai ajudar sua prática de shamata. Em
Mas em geral não podemos contar com especial, a prática de moralidade ajuda a
isso. prática de shamata — mas essa não é uma
prática particularmente budista, nem é
Seria possível alcançar shamata apenas todo o resto do caminho budista (isto é
fazendo um retiro longo, sem se envolver apenas shamata e moralidade não vão
com o resto da pratica budista como a produzir iluminação).
prática de perfeições ou o Nobre Caminho
Óctuplo? Seria possível alcançar naturalmente o
shamata, sem um retiro, se a pessoa fizer
Sim, mas isso não produz o resultado do correta e completamente a pratica budista
caminho budista, só a realização de das 6 perfeições ou do Nobre Caminho
shamata. Mesmo os hindus praticam Óctuplo.
shamata, e atingem realização de shamata,
isso não quer dizer que eles pratiquem o A quinta perfeição e o sexto passo do nobre
nobre caminho (em todos os seus aspectos caminho óctuplo são a realização de
— já que moralidade, por exemplo, e modo shamata, sem a realização de shamata a
de vida correto, é uma prática comum a pessoa não atinge a sexta perfeição ou o
muitas formas de hinduísmo). sétimo e oitavo passos.

Shamata não é o resultado do caminho É claro que, com alguma realização de


budista. Shamata é um resultado muito shamata (não total), já é possível fazer
menor. alguma prática (não total) dos passos a
seguir. A maioria dos praticantes está nesse
Alguns autores dizem que são necessárias caso, e eles, se tiverem méritos, vão poder
cerca de 50.000 horas de prática para acumular mais horas de prática formal em
realizar shamata (que é muito menos que a vidas futuras — mas é bom não pensar que
iluminação, o nirvana, ou mesmo a moksha se pode deixar para depois, porque a
hindu). Isso em média, porque não se sabe impermanência pode interceder, e a pessoa
o quanto de shamata já se praticou em vidas pode perder os méritos de práticas em vidas
passadas. Uma pessoa muito rara pode não passadas... um momento de raiva corta
precisar, outra pessoa pode precisar muito várias vidas de boas ações, é o que
mais. 50.000 horas podem ser realizadas em Shantideva disse no Bodhicharyavatara.
menos de 12 anos de prática, é só o retiro
ser mais intenso. O que é a Alayavijnana?

Por outro lado, é evidente que todo o resto "Consciência-depósito" ou "consciência-


do caminho budista é coadjuvante na armazen", uma das oito consciências
realização de qualquer parte desse postuladas pelos cittamatrins e yogacharas.

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Ela é a base na qual o carma "se acumula", ceticismo, mas acreditar demais nessa
é impermanente (mutável, embora dure realidade como sólida e nada mais do que
mais do que uma vida). Os madhyamikas um sonho.
aceitam a noção meramente como um
método didático. Por outro lado, o objetivo da prática não é
fazer um ato extraordinário específico, mas
Na prática de meditação, quando se obtém o ato extraordinário que está acima de
certa estabilidade próxima de shamata, se todos: reconhecer o sonho como um sonho.
obtém acesso a este "substrato da
consciência", que é pessoal mas mais amplo Se você tiver dificuldade de ver sob essa
do que a pessoa nessa sua vida. Algumas perspectiva, assuma como algo metafórico:
pessoas erroneamente, quando atingem a meditação leva a uma sensação de
esse estado, acreditam estar próximas da ausência de peso corporal, que a pessoa
iluminação, porém alaya é apenas um vivencia como se estivesse “flutuando”,
pouco mais antiga e espessa do que nossa embora se as outras a veem flutuando, isso
consciência cotidiana, não é um âmbito de é parte do sonho delas.
sabedoria.
Com relação a atravessar paredes, a mesma
Quais são os seis superconhecimentos? coisa: como trata-se de um sonho, nada é
Como conseguí-los? substancial. E o âmbito metafórico é um
estado mental que não encontra nenhuma
São poderes mágicos tais como a lembrança obstrução para a sabedoria, onde se existe
de vidas passadas, ler a mente dos outros, na “forma” do próprio espaço.
poderes mágicos em geral, ver e ouvir coisas 7.2. Zen
distantes no tempo e no espaço, e dissipar
as contaminações da mente. Obtêm-se tais O que é zen budismo?
poderes através da prática de shamata. Eles
são úteis para se poder ensinar o darma. Zen é um conjunto de escolas budistas que
Não é necessário acreditar neles para se desenvolveram principalmente na China,
praticar o budismo, e eles não são o Japão, Coreia e Vietnã. A palavra Zen vem
objetivo principal da prática, então não do termo sânscrito "dhyana", que os
importam muito. chineses pronunciam C'han, e os japoneses
pronunciam como Zen.
Não acredito que alguém possa levitar
enquanto medita (já me disseram isso em Dhyana é um tipo de prática de meditação,
uma grupo budista). Procede que os e o Zen budismo dá grande ênfase a essa
budistas tenham crenças como esta? prática.

Quando você sonha de noite você pode O Zen (como uma tradição separada, não
voar? Então seu problema não é o como a prática de dhyana) não é comum na

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Índia, no sul da Índia ou no Tibete. No Tibete momentânea ou particular. Muitas vezes o


houve uma "licitação", ou debate público verso é também burilado. E, além disso,
patrocinado por um rei, lá pelo ano 1000. O existe uma vasta tradição de comentários,
representante do Zen perdeu, e por isso aí sim sem espontaneidade alguma, que
essa tradição nunca esteve presente no destrincha, algumas vezes palavra por
Tibete, até os dias de hoje. Foi só com a palavra, composições mais antigas.
vinda do budismo para o ocidente que
professores chineses, japoneses e tibetanos O que é zazen?
começaram a se encontrar e conhecer um
pouco das tradições uns dos outros, que É apenas sentar, só sentar. Sem estar
ficaram separadas por mais de 1000 anos. praticando alguma coisa, e sem querer
parar e ir atrás de outra coisa. Em outras
Qual a relação do budismo e do haikai? palavras, sentar como o Buda sentou.

Várias artes tradicionais estão ligadas ao O que é darma? Qual a relação de darma e
budismo. No caso do Haikai, como muitas zazen?
outras artes sofisticadas do período edo no
Japão, a ligação com o zen budismo é bem Darma é o ensinamento do Buda, o método
forte. que ele ensinou para atingir o mesmo que
ele atingiu, isto é, acordar.
Ao que parece o haikai surge de um satori,
ou uma realização espontânea de um Zazen é um método que se apoia no
praticante, que a então versifica. Mas com resultado, isto é, o estado de Buda, já
o tempo o satori não passou a ser tão presente e que é vivenciado através de
importante para a escrita de haikais, e hoje "apenas sentar". Então você senta
em dia é uma forma de arte muitas vezes acordado, senta com as coisas como elas
desvinculada da prática budista. são, sem alterar nada, sem fabricar nada. É
apenas sentar.
Na Índia medieval a forma de arte que
advinha da realização espiritual, o doha, era "O zazen é a prática sobre o próprio
mais comprido, e vinculado a uma melodia. resultado." Então a prática de "só sentar" já
Essa forma foi a que penetrou o tibete, com é completa em si? Já é um resultado? Mas é
mestres como Milarepa, por exemplo. São um resultado de que?
registradas milhares (se diz normalmente
100.000) canções espontâneas de Milarepa. O estado de buda é a base, o caminho e o
resultado. Quando ele é obscurecido pelas
Mas em geral a poesia budista, longa ou máculas adventícias da delusão, ele é a base
curta, embora embasada na realização do sobre a qual o caminho pode ser trilhado.
compositor, nem sempre tem um caráter
espontâneo ou está ligada a uma realização

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Através dele, por ele mesmo, os quando chegasse ao 10, voltasse ao início.
obscurecimentos podem ser Isso é válido?
paulatinamente dissolvidos.
É uma prática de shamata já ensinada na
Quando ele revela a si próprio, ele é o índia clássica e que penetrou o c'han, o son
resultado. e o zen. É uma prática preliminar ao zazen
propriamente dito, que é apenas sentar
Portanto, apenas sentar é revelar o (contar respirações não é "apenas sentar").
resultado, o estado de Buda. Caso a pessoa
não consiga isso, então ela recorre a Por que o zazen é praticado virado para a
práticas causais, nas quais o resultado não parede?
está presente, como a meditação com e
sem esforço, a geração de mérito, e a Bom, não conheço tão bem o zen. Mas não
repetida audição de ensinamentos, fazer é essencial a parede. Ao que parece,
perguntas e contemplar. principalmente no início, é bom não ter
muitas distrações — e uma parede branca
As práticas do zazen são suficientes para pode ajudar. Depois, quando se avança na
conseguir ver a "vida como ela é"? prática, não se precisa da parede, nem
sequer da postura. Há também mais de um
Não sei se alguma prática budista tem como tipo de zazen, o soto zen, por exemplo,
objetivo ver "a vida como ela é". Talvez pratica o shikantaza, que é apenas sentar.
"reconhecer as coisas como são" seja Mas se pode fazer zazen com um objeto,
melhor — é possivel que essas duas como contar ou a respiração.
afirmações sejam equivalentes, ou não.
No zazen, apenas nos sentamos. Qual a
Mas com certeza o zazen não é um caminho relação disto, a não mente, com a shamata?
para resultados. O zazen é a prática sobre o
próprio resultado. Então zazen deveria ser A shamata é uma prática preliminar, com
sentar com o reconhecimento das coisas esforço.
como elas são, ou, apenas sentar. Se não é
assim, então a pessoa está tentando, Se a shamata é preliminar ao zazen, então
apenas tentando. Não está fazendo "apenas este seria uma forma de meditação
sentar", que é completo em si mesmo e não vipassana?
busca nenhum resultado outros que não
"apenas sentar". Se for, é, se não for, não é: estilo zen.

Quando iniciei a prática de zazen me deram Que é zazenkai?


instruções para que, ao sentar, contasse as
inspirações e expirações (1, 2, 3, 4...) e

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É um retiro zen menor ou menos intensivo (e as pacíficas, e os budas e bodisatvas) são


do que um seshin. Pode ser apenas um até um pouquinho mais existentes que nós,
encontro. na medida em que nós estamos embasados
em circunstâncias ainda mais frágeis. Nosso
Isto é, no zen budismo as pessoas se sono é um pouquinho mais leve, explode
encontram para fazer práticas juntas, e a como uma bolha a qualquer momento. A
forma mais breve e menos intensa é um compaixão (irada e pacífica) é um sonho
zazenkai. mais estável.
7.3. Práticas do vajrayana
Quantas entidades tem o budismo
O que é "realidade vajra"? tibetano?

É natureza das coisas como elas são: Não vejo usarem a palavra "entidade",
luminosas e vazias. O que é vajra possui sete porque são vazias e não existem
qualidades: inseparativo, indestrutível, inerentemente. Entidades poderiam ser os
verdadeiro, sólido, estável, totalmente seres (entes) sencientes! Daí o número é
inobstrutível, totalmente invencível. grande.

O que é deidade? Podemos meditar numa mandala de até em


torno de 700 deidades. Mas cada detalhe de
É uma expressão das qualidades da cada deidade é também uma deidade.
natureza de Buda, que todos possuem. Existe um número infindável de mandalas.
As mandalas mais complexas não são
Qual é o "nível de densidade" necessariamente "mais avançadas".
costumeiramente dado às deidades no
vajrayana? Outra maneira de dizer é que, para cada
ignorância existe um Buda, que é a
Elas são, como todos os fenômenos, 100% sabedoria coemergente.
livres de substancialidade — como eu e
você, elas são feitas de tecido de sonho. Eu posso me relacionar com a deidade, sem
fazer práticas vajrayana tradicionais?
O budismo crê na existência de "divindades
iradas"? Ou elas são apenas Você só precisa seguir a instrução do seu
representações? guru. Sem guru, não há nenhum contato
possível com o yidam (deidade). Se ele
Para uma coisa "existir" mesmo, ela não disser que sim, então sim. Caso contrário, é
pode ser temporária. Tudo que é claro que não.
temporário, é como um sonho. Existir como
sonhos, como nós e nossa realidade
existem, sim. Na verdade as deidades iradas

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Qual é a importância da meditação


silenciosa (formal, na posição sentada) para As práticas de visualização de deidades
o vajrayana? implicam algo parecido com o que
comumente experimentamos ao imaginar
Todas as práticas do vajrayana tem posturas um maçã, por exemplo, ou essas
(geralmente sentado, e basicamente visualizações implicam enxergar de forma
imóvel), e o vajrayana inteiro é composto de "sólida" e "real" as deidades como
práticas de vipassana. A prática em silêncio enxergamos os objetos durante a vigília?
ocorre em vários momentos da sadhana de
um praticante, particularmente após a Uma instrução chave da prática de
dissolução, no estado de completude. Uma visualização é exatamente o oposto: é
pessoa, tradicionalmente, deveria ter preciso vê-las translúcidas, diáfanas e não
realizado o estado de shamata antes de de forma alguma sólidas, para evitar a
praticar o vajrayana. reificação das aparências. Além disto é
preciso frisar que as deidades não são de
O que são exatamente as iniciações que os forma alguma reais, elas só são um pouco
mestres dão? Isso é só no vajrayana? São mais reais do que nós. Nós somos uma
transmissões da mente da deidade? Mas ilusão impura, e para contrabalançar os
como se dá "de fato"? hábitos que produzem essa impureza,
visualizamos uma ilusão pura. É essencial
Iniciações são estritamente do vajrayana. dissolver a deidade, demonstrando sua
São transmissões do corpo, fala e mente da impermanência, ao final da sessão de
deidade, e autorização para fazer a prática prática (e algumas vezes ela ressurge, para
que efetiva essa transmissão. evitar a reificação niilista).

A transmissão se dá pela ressonância de No entanto, não é o mesmo que visualizar


nossa natureza de buda com a realização uma maçã. As deidades são visualizadas não
espiritual do professor, exatamente como como objetos inertes ou inanimados. Elas
ocorre com os sons (uma corda na mesma são visualizadas com o elã de estarem vivas,
tensão vibra junto com outra que foi suas roupas balançam ao vento, por dizer
puxada, mesmo sem ter sido tocada). A assim, e suas expressões são de uma
inspiração dos mestres pode ser entendida presença efetiva, e não de uma estátua.
pela metáfora da ressonância. Esse é outro elemento crucial da
visualização.
Há cerimônias em vários níveis de
elaboração (de vários dias de duração a uns Além disso é preciso frisar: essa é uma
poucos instantes) acompanhando essa prática do vajrayana, e é absolutamente
ressonância, na presença do guru. Também impossível sem a iniciação conferida por um
a prática de sadhana repete o processo de professor. É nessa cerimônia que o vínculo
iniciação através de visualizações. é criado com a forma particular que vai ser

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visualizada, e com as instruções específicas gera interdependência com a fala dos


ligadas a prática particular que vai ser feita. praticantes do passado, em linhagem até os
Se a pessoa visualiza a deidade sem esse Budas. Mesmo um animal que ouça alguém
requisito, ela está praticando, no máximo, recitando um mantra, numa vida humana
no melhor dos mundos, shamata com um futura ele pode, por exemplo, se ouvir
objeto visualizado. Isto é, shamata impura. novamente, achar bonita a melodia,
E se é para praticar shamata impura, que evocativa de alguma forma estranha, e
também deve ser praticada sob a assim se conectar com os ensinamentos que
orientação de um professor, melhor usar o podem, no mínimo, levar ele a uma vida
objeto designado por ele. virtuosa. Então há um mérito tremendo em
criar essa interdependência auspiciosa com
Outra coisa importante: a visualização é no algo que deixas marcas tão profundas e
mais das vezes uma etapa de uma sadhana, benéficas como um mantra.
isto é, a prática tem um contexto, e esse
contexto tem uma explicação detalhada. Há a história de um praticante que foi às
Em particular todo o processo de lágrimas quando lembrou que ouviu pela
surgimento da deidade envolve 3 samadhis primeira vez o Sutra do Coração da
meditativos que requerem instruções Sabedoria Transcendente enquanto era um
específicas. As inúmeras práticas escorpião próximo de alguns monges,
meditativas preliminares a essa algumas vidas atrás. Quando falamos assim,
visualização, e posteriores a essa é fácil duvidar dessa história — mas quando
visualização, também são ensinadas em essa pessoa já deu tantos exemplos de
detalhes. Em geral elas envolvem a bondade e honestidade ao longo de trinta
visualização de oferendas, tomada de votos, ou quarenta anos, e em vez de dizer "eu já
confissões, algumas vezes várias etapas e era um grande ser algumas vidas atrás" ela,
diferentes visualizações de recitação de que nunca fala nada muito mágico, resolve
mantra, e principalmente dedicação de dizer que foi apenas um inseto com algum
méritos. bom mérito... nesse contexto, aí sim, você
acredita e chora junto.
A recitação correta de um mantra que você
não tem ideia do que signifique tem Como e porque os mantras são tão
eficácia? poderosos na prática budista ao
pronunciados, mesmo que não entendamos
Tem algum benefício, mesmo quando não nada?
completamente correta, mas com boa
motivação e pelo menos parcialmente Primeiro, há vários tipos de mantra. Os
correta. É impossível entender mantras que são acumulados em grande
completamente tudo que está dito numa quantidade normalmente se referem ao
única sílaba de um mantra até a pessoa ser ápice do estado do desenvolvimento —
completamente iluminada. Até lá a pessoa então eles não são recitados sem nenhum

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entendimento. Eles são a parte da fala A palavra "secreto" indica principalmente


ligada a uma prática que é feita em corpo e que a nossa natureza de Buda, totalmente
mente, e é descrita em detalhes, logo antes presente desde o princípio, é secreta para
da recitação. Eles também são muitas vezes nós mesmos. Revelar essa natureza é o
explicados em detalhe durante a cerimônia objetivo do vajrayana, e o mantra não é
de iniciação ou durante a explicação da uma afirmação ou uma sentença que possa
prática que normalmente se segue a essa efetivamente ser traduzida (embora
cerimônia. explicações amplas possam ser dadas sobre
cada sílaba), mas a própria expressão do
O benefício de alguém recitando um mantra "segredo" (nossa natureza de buda), em
fora do contexto de uma prática (sem saber termos da fala. A mandala e os mudras são
a visualização, sem estar na postura, sem os segredos de mente e corpo, e essas
fazer dentro de uma prática completa, com próprias palavras são muito pouco
início, meio e fim) e sem entender o que se entendidas — o nosso entendimento usual
está fazendo, é meramente o de criar uma é um diagrama de certa simetria e gestos
interdependência com os praticantes do com a mão, mas elas vão muito além disso.
passado que recitaram aquele mantra, e Assim como "mantra".
porque não, com o próprio Buda
representado por aquele mantra específico. Uma professora respeitadíssima da tradição
Esse tipo de recitação, uma "mera vajrayana uma vez confidenciou que
recitação" não é totalmente sem valor por praticou por 22 anos antes de entender
essa razão, mas algumas vezes se diz que é verdadeiramente o que o termo "mantra
1% a 10% do mérito e sabedoria gerados secreto" queria dizer.
dentro do contexto de uma prática — e em
geral esses mantras fora de contexto não No Mantra do Guru, cada sílaba
devem ser contados no contexto de uma corresponde a um dos Budas das Cinco
acumulação — a não ser que a pessoa tenha Famílias? Você pode dizer qual sílaba está
autorização específica do seu professor associada com cada Buda?
para tanto.
OM AH HUM é a essência do corpo, fala e
Outro aspecto importante dos mantras é mente iluminados.
que eles são "secretos", isto é, eles só são
"entendidos" no contexto da iniciação e do VAJRA é a essência da família Vajra
relacionamento com um professor. De fato, (Akshobya, azul).
a maioria dos mantras é secreta até no
sentido de que ninguém fora de uma GURU é a essência da família Ratna
iniciação deve saber sobre eles. O (Ratnasambava, amarelo).
vajrayana, além de tantrayana, é chamado
também de yana do "mantra secreto". PADMA é a essência da família Padma
(Amitaba, vermelho).

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na expressão, que ainda assim acontece, é o


SIDDHI é a essência da família Karma "mudra" dessa expressão, isto é, seu
(Amogasidi, verde). "gesto", sua "intenção" última. Enfim,
sentidos vastos a se aprender ao longo de
HUNG é a essência da família Buddha um relacionamento profundo com a sanga
(Vairochana, branco). vajra.

Qual é a função do mala, o colar de contas, Existe algum mudra que beneficie a cura e a
no budismo? Usa-se no pescoço ou no cicatrização?
braço?
Os mudras são feitos no contexto da
Contar o número de recitações, ou prática. A prática é feita em corpo, fala e
prostrações. Qualquer lugar acima da mente. Há práticas de cura, mas é preciso
cintura é ok para usar o mala. executar toda a prática no contexto de uma
sadhana, com mudra, mantra e samadhi —
O que são mudras e para que servem? o que corresponde as atividades de corpo
fala e mente. Você pode aprender uma
A palavra "mudra", como muitas outras no prática assim de um professor qualificado,
vajrayana, aprende-se no contexto sagrado ou você pode pedir a ele, ou a todo um
do samaya. Mudra é um gesto, como o grupo de praticantes, que faça a prática em
gesto de um Buda ao dar ensinamentos. A benefício do doente.
prática do vajrayana consiste em mudra,
mantra e samadhi, isto é, o corpo, fala e Num centro de darma Vajraiana há estudos
mente do Buda. Sua postura (tanto física em grupo de livros ou textos dos mestres ou
como sua "postura", figurativo; sua energia, há somente os pujas?
compaixão, o seu "elã", sua "fala", sua
expressividade; e sua mente, sua realidade. Depende do centro. Mas em geral há estudo
Essas são as três mandalas. Ao também.
reconhecermos nossas próprias três
mandalas como inseparáveis das do guru, O que são sadhanas?
do deva e dakini, enfim, do Buda,
efetuamos a prática do vajrayana. Sadhana é o método para atingir a
realização, isto é, as instruções do guru. No
Mudra também é a consorte, ou o "selo" de vajrayana, ao nos relacionarmos com o
vacuidade em todos os fenômenos, isto é, guru, transformamos nossa vida numa
qual é além da manifestação, a aparência, a sadhana. São também os textos em que
verdadeira natureza, a verdadeira postura roteiros de meditação vajrayana são
do fenômeno? O fato de que é "como um anotados.
sonho", insubstancial, isto é, a ausência de
uma essência. A ausência de uma essência

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O que é exatamente a "prática de iniciação e a transmissão oral da prática.


sadhana"? É a recitação das sadhanas em Também instruções sobre o que cada
tibetano? É o estudo das sadhanas (sutras?) sessão da prática significa, e como lidar com
em Português? São os pujas? dificuldades comuns. Então a pessoa se
engaja na prática, e em particular na
Podem ser pujas, ou podem ser práticas acumulação de mantra no contexto dessa
mais informais — pujas podem ser ou não sadhana, e enfim, vez que outra procura o
práticas com sadhanas — um puja é uma guru para sanar dúvidas.
recitação em grupo, com tomada de votos e
oferendas. Não é o estudo de sutras ou das O que muitas vezes ocorre é que as práticas
próprias sadhanas, mas a prática das em grupo se tornam uma maneira de
últimas. Essa prática pode ser em qualquer manter a linhagem, mas não são fáceis para
língua, desde que a pessoa entenda o que o praticante iniciante — são feitas muito
está fazendo, e em geral se pode usar alguns rapidamente, sem tempo para cada etapa
elementos ou todos na língua original, ser efetivamente meditada de acordo com
porque há bênçãos das outras pessoas que a instrução (se é que estamos cientes do
já praticaram aquela sadhana naquela que estamos recitando, de tão rápido que
língua. Um dia as sadhanas recitadas vão ter é!). Então o praticante precisa, além de
essas bênçãos em português, mas isso pode fazer a prática em grupo, fazer a prática
levar algumas centenas de anos. solitária, no seu tempo, de forma a
entender o que está fazendo. A crítica
Sadhana significa um método para atingir a comum das pessoas que iniciam nos pujas
realização, isto é, o roteiro que o seu em centros de darma vajrayana é que vira
professor prescreve. Muitas vezes esses uma "mera recitação" ou um "mero ritual"
roteiros são anotados, e assim viram — e de fato, na velocidade que é feito, fica
sadhanas-texto. Mas o objetivo do difícil praticar. Porém a prática em grupo
vajrayana é fazer da vida do praticante uma tem essa função de manter a linhagem, em
sadhana, isto é, tudo que ele faz deve ser na particular a linhagem externa do canto, dos
direção da realização última. Por isso instrumentos e assim por diante. Se não for
sadhana funciona tanto no sentido do texto feito com certa velocidade, então fica mais
quanto no sentido das ações da vida do difícil as pessoas participarem, e várias
praticante de acordo com o guru e a práticas serem mantidas. A linhagem
linhagem. A sadhana em formato de texto é interna é mantida na prática solitária, e
apenas um formato para nós que muitas particularmente em retiro, porque o nível
vezes precisamos desses roteiros de dedicação necessário para realizar uma
devidamente anotados, e precisamos de sadhana é bastante elevado — depende um
uma prática formal. pouco da sadhana. Mas há benefícios no
mero recitar, e há também benefícios na
Normalmente a prática de sadhana só prática de sadhana sem tanta intensidade,
ocorre depois que a pessoa recebeu a desde que regular.

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que operam em conjunto e complementam


No livro "Além do Materialismo Espiritual", uns aos outros.
Trungpa Rinpoche associa os Budas às cores
de forma diferente (a sua é igual a de Ela pode ser simbolicamente representada
Thrangu Rinpoche em "The Five Buddha de diversas formas, como um desenho ou
Families"). Para Trungpa, Vajra é branco e uma maquete, ou de outras formas.
Buddha é azul. Porque há essa diferença?
Também o sistema de mundos é
Isso realmente varia de acordo com a visualizado, na sua pureza, como uma
mandala específica a qual se é apresentado. mandala, e oferecido em sua totalidade
Você usa aquela em que seu guru o iniciou. para o professor que confere os
ensinamentos.
O que é uma mandala, e qual a importância
dela para o budismo? O que são sidis?

Mandala é um termo de difícil explicação. O São realizações espirituais extraordinárias


mais comum é a pessoa se referir aos que podem servir para ajudar os seres. Por
diagramas, que são representações exemplo, o fato de lembrar o lama impede
simbólicas da mandala e também chamados o aluno de roubar o biscoito. Esse é um sidi
de mandala. (Da mesma forma que nos do lama.
referimos ao cavalo de um tabuleiro de
xadrez com o nome "cavalo"). A pessoa está indo roubar o biscoito, daí ela
lembra o lama, lembra da bondade dele,
Uma forma de falar da mandala é como uma isso desperta vergonha nela, e ela
estratégia militar para efetuar atividade abandona a desvirtude. O lama fez muita
iluminada. Há um general, há os subalternos prática, deu o exemplo, impregnou sua
de todos os tipos, elementos com presença desse exemplo, e toda vez que ele
qualidades diversas interagindo e se é lembrado, ele possui benefício. Esse é o
complementando. Isso funciona no nível sidi de beneficiar pela mera lembrança.
externo, da comunidade de praticantes, no
nível interno, do funcionamento do corpo, e Quão maravilhoso seria alguém lembrar de
no nível secreto, na operação da mente. você e se direcionar para a virtude? A
prática budista com certeza vai num
Também podemos falar dela como um determinado momento produzir esse sidi.
grupo de deidades, com uma deidade
central e o séquito, usufruindo do estado Os sidis relativos são ações que fogem do
desperto e efetivando atividade iluminada. convencional e podem fazer alguém duvidar
Esse grupo de deidades pode ser um grupo de sua reificação do que toma como sendo
de seres, mas também um grupo de realidade, percebendo melhor a natureza
fenômenos, tais como o sentidos físicos, de sonho de tudo que se apresenta. O sidi

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absoluto é a própria iluminação. Os sidis são forma pura da deidade como algo vazio é
obtidos através da prática da sadhana, e do treinado desde o princípio através de a
refúgio no lama, yidam e khadro. visualizarmos numa forma "translúcida", e,
da mesma forma, a tendência habitual de
Sidis são poderes supranormais, operar através da dualidade é purificada
sobrenaturais? através da visualização concomitante de si
mesmo e dos fenômenos externos como a
Sidis geral podem ser mais um obstáculo deidade.
para a prática do que algo a se esperar ou
comemorar, e a maioria das tradições Quando essa tendência está purificada, a
budista desencoraja a busca de siddhis. deidade naturalmente se manifesta com
Mesmo assim, eventualmente, eles podem essas duas qualidades, clareza
ser usados como meios hábeis para (luminosidade, estabilidade e nitidez) e
beneficiar os outros. vacuidade (ausência de qualquer noção de
interno e externo).
Eles são como o oposto da mágica ou da
magia, em que somos iludidos por um Porém a internet não parece ser o local
mágico. O benefício último no budismo é adequado para esclarecimento sobre
reconhecer a natureza da realidade: para o prática de sadhana. Em geral esse
budismo vivemos em um engano de massa esclarecimento só é adequadamente
com relação ao que tomamos como real. Ao concedido pelo seu próprio guru.
ver que isto que tomamos não passa de um
sonho, ao nos depararmos, por exemplo, O que é tantra, afinal? É um conjunto de
com algo "miraculoso", podemos passar a ensinamentos budistas? Como fazer para
entender essa natureza onírica, e assim praticar o tantra?
deixar de tomar aquilo que é irreal como
real. Se, por outro lado, acabamos Tantra significa continuo, ou tessitura, e
entendendo que o miraculoso ou o significa que a natureza essencial da mente
sobrenatural são características da nunca se perde. Também indica a linhagem
realidade como a percebemos, nesse caso ininterrupta de ensinamentos de guru a
apenas aumentamos o nosso engano. aluno dentro do tempo e também fora do
tempo.
"A purificação da percepção dualista é a
forma clara porém vazia da deidade". Também é o título que se dá a uma classe
Poderias falar sobre esse ponto? de textos que lida com esses aspectos, tanto
no budismo quanto no hinduísmo.
A forma mais elevada de prática de sadhana
é a que combina simultaneamente estágio Tantrayana no budismo é o mesmo que
de desenvolvimento com estágio de vajrayana e mantrayana. Para praticá-lo
completude. Assim, o reconhecimento da você precisa receber uma iniciação de um

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professor qualificado, que você reconhece vajrayana, que é uma forma exclusiva dos
como um Buda. Dessa forma você é budistas de nomearem o tantra.
apresentado a uma mandala de deidades, e
pode praticar o meio hábil ensinado pelo Existe mesmo, dentro do tantrayana, o tal
lama, chamado “sadhana”. A iniciação é "sexo tântrico"? Ou é apenas uma forma
uma mistura de bênção, autorização, inventada para ganhar dinheiro? Se existe,
compromisso no engajamento na prática, e o que é o sexo tântrico?
instrução sobre ela.
No tantra existe o "lavar pratos" tântrico,
A característica principal do tantra, que o que é reconhecer a pureza inata em todos
diferencia do mahayana em geral (o tantra os fenômenos. Qualquer coisa, sublime ou
é uma forma de mahayana) é o uso das extremamente comum, não interessa, pode
aflições mentais como combustíveis para a ser integrada na prática tântrica. O que não
prática espiritual. Ou seja, raiva, apego, e existe é uma intensificação de qualquer
assim por diante, são reconhecidos, entretenimento do samsara.
transformados e utilizados na sadhana. Isso
não significa que podemos nos deixar levar De fato a palavra é muitas vezes
pelas aflições, o que tem acontecido desde diretamente associada com a sexualidade
os tempos sem princípio, mas sim que nos por professores falsos, ou pelo menos é um
comprometemos com sua natureza pura, e indício para duvidarmos e fazermos um
usamos esse reconhecimento para exame mais minucioso deste pretenso
transformá-los. professor.

Assim, reconhecer a natureza da raiva, por Em que livros posso ter acesso a leitura
exemplo, é o revelar de uma sabedoria. O sobre como lidar com a sexualidade no
tantra em geral se foca na transmutação das vajrayana?
aflições em sabedoria, e o caminho
essencial do tantra se foca no Não creio que existam bons livros sobre o
reconhecimento da sabedoria auto- assunto. Mas, por outro lado, qualquer
ocorrente através da prática de guru ioga. ensinamento budista pode ser aplicado a
qualquer aspecto da existência. Portanto, se
O tantra é uma exclusividade do vajrayana? falta alguma coisa na percepção da pessoa,
ela precisa buscar isso com um professor
No budismo as duas palavras, e qualificado.
mantrayana, são absolutos sinônimos. É a
mesmíssima coisa, com nomes diferentes. A peculiaridade do vajrayana diz respeito ao
uso das aflições, como a raiva e o desejo,
Fora do budismo, acho que a maioria dos como combustíveis da prática espiritual.
hindus que fala em tantra não usa o termo Este ensinamento está ausente no

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mahayana, que aplica antídotos para as


aflições. No tantrayana sempre haverá a ilusão pura
e o método para atingir a realização, isto é
Porém o vajrayana não é tópico de yidam (deidade) e sadhana.
conversa, muito menos na internet, e o
ensinamento só é vajrayana e só diz Se você quer dizer que a pessoa vai
respeito ao vajrayana se acontece dentro da necessariamente ter um texto ou
mandala, o compromisso sagrado entre um desenvolver a visualização de uma deidade,
Buda e seus alunos. Fora disso, existe nesse caso, não.
apenas a palavra "vajrayana", que não quer
dizer nada. Qual a diferença entre sonho lúcido e ioga
dos sonhos?
Voltando para o mundo em geral, muitas
pessoas têm dúvidas sobre sexualidade e Ioga dos sonhos é um conjunto de métodos
perguntam, em geral no contexto do budismo vajrayana que busca facilitar a
mahayana dos ensinamentos do que se ocorrência de sonhos lúcidos e que, com
chamaria "linhagem vajrayana". Isto é, em uma variedade de métodos, transforma o
todos os grupos vajrayana ou mahayana sonho lúcido numa prática espiritual que
que já vi. E possivelmente isso ocorra com pode ajudar no reconhecimento da
frequência também no zen e no theravada vacuidade e da natureza da mente.
(ocasionalmente eu mesmo vi perguntas
serem expostas e francamente respondidas Os sonhos lúcidos ocorrem naturalmente
sobre a questão no zen e no theravada). em muitas pessoas, mas em geral a pessoa
não sabe o que fazer com eles, ou eles
Vajrayana é um veículo, não uma linhagem. duram muito pouco, ou ocorrem tão
Mas entendo que você está falando das raramente que não passam de uma
tradições que contém ensinamentos curiosidade na vida da pessoa. Os métodos
vajrayana. Estas contém todos os do vajrayana buscam intensificar,
ensinamentos hinayana e mahayana estabilizar e dar uso a essa experiência no
também, portanto em todos os aspectos os contexto da finalidade budista, que é a
veículos não se contradizem. liberação e o desenvolvimento de
compaixão.
Mesmo se você encontrar livros sobre o
assunto, eu não recomendaria a leitura — O sonho lúcido é aquele em que o sonhador
leia somente o que seu professor tem consciência de que está sonhando, mas
recomendar. segue no sonho.

É possível que um mestre passe instruções A ioga dos sonhos é praticada


de prática tantrayana que não sejam necessariamente por todos que seguem o
através de deidades e sadhanas? vajrayana ou vai depender das

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características do praticante e da formação O que é a Tara Vermelha?


do professor?
Tara é um Buda feminino, sua forma
Ela é essencial na maioria das linhagens, vermelha está vinculada principalmente a
mas um professor ou outro pode abrir uma atividade de magnetização.
exceção.
Chagdud Rinpoche divulgou a sadhana
Os sonhos que temos quando estamos dessa prática de forma muito extensa por
adormecidos têm alguma importância no todas as partes por onde ele andou. Era sua
Budismo? prática externa e evidente, e ele
manifestava evidentemente as
Podem ter, mas em geral não. Há sonhos características iluminadas dessa deidade,
basicamente formados de carma, e perto isto é, ele consumou essa prática
desses, sonhos em que ensinamentos são completamente.
concedidos, em que há certa clarividência, o
equivalente a visões. Esses são pouco Qual a diferença entre um buda normal e
importantes. Depois há os sonhos lúcidos, um feminino?
que são especialmente importantes, e
existe um treinamento para estabilizá-los, Buda é um nome do gênero masculino.
como uma forma de prática de meditação Portanto, quando se trata de uma mulher
durante o sono. Os grandes praticantes já que despertou, é preciso adicionar o
não sonham. qualificativo. A diferença é que surge na
forma de uma mulher para dar
Os sonhos que temos enquanto dormimos ensinamentos, e não na forma de um
são ilusões dentro da ilusão da vida ou não homem. Ambos são normais, e fora essa
são diferentes? diferença, que surge para lidar com
inclinações dos seres a serem ensinados, e
Não são essencialmente diferentes, mas são não por vontade própria de um Buda, não
diferentes. há diferença.

Porque alguns Budas, como Posso fazer a prática de Tara Vermelha em


Samantabhadra, aparecem nas imagens em casa ou necessitaria irrefutavelmente da
união com uma mulher? presença de um mestre? Como poderia
proceder fazendo a prática em casa?
Isso é chamado de pai-mãe (yab-yum), e
representa a união de compaixão (aspecto Você pode fazer em casa, mas precisa
masculino) com sabedoria (aspecto aprender com uma sanga. Depois que você
feminino). O casal é visto como um Buda, aprender a fazer a prática e tirar suas
não é um Buda e uma mulher. dúvidas, você pode fazer a sadhana curta
em casa sozinho. A sadhana longa só com a

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iniciação e com certeza não se aprende cabelos esvoaçantes, muitas cabeças,


fazer uma ou duas vezes, mas é necessário pisoteando cadáveres, e uma gangue de
fazer muitas vezes e receber instruções seres semelhantes como séquito, todos,
sobre, por exemplo, os mudras, para depois como numa ação de exército, sobrepujando
ser possível e apropriado fazer sozinho. legiões de maras — impedimentos e
obstáculos internos, externos e secretos —
Qual o sentido de existirem deidades iradas isto ocupa tanto a mente de
numa religião que fala tanto em conceptualização obsessiva que essa
compaixão? própria mente se torna ação incessante de
compaixão.
As deidades iradas são extremamente
compassivas, elas não têm nenhuma O tantra não descarta, mas sim faz uso, de
vontade de prejudicar ou destruir alguém, nossas tendências habituais — é um
só a negatividade. E destruir a negatividade caminho de transmutação. O que nós
é compaixão. Elas pisoteiam o apego ao temos, nós transformamos na deidade —
ego, elas levam as fixações à loucura, elas totalmente embasados no refúgio e na
pulverizam a reificação das aparências, bodicita, o desejo de levar todos os seres à
cortam as aortas das quebras de voto, iluminação, e lhes trazer benefícios
empalam a distração. A mera presença do temporários como prioridade secundária. A
Heruka faz os obstáculos desmaiarem. Isso deidade é uma manifestação de nossa visão
é compaixão. pura, de nosso compromisso com nossa
própria natureza, exemplificado e
Por que a representação iconográfica corporificado pela linhagem.
dessas deidades iradas às vezes parece tão
assustadora? Tradicionalmente receber uma iniciação de
yogatantra insuperável, de um tantra
Por nossa percepção dualista, falta de interno, e fazer prática se autovisualizando
conexão, ausência de méritos. como a deidade central de uma mandala de
compaixão irada, era reservado aos grandes
Nos tantras externos as deidades são tantrikas com samaya, compromisso, muito
geralmente pacíficas. Nos tantras internos puro — atestado após anos de convívio com
— mais avançados — as deidades são um mestre imaculado. Uma prática regular
iradas. Em particular os tantras internos da desse tipo promove a iluminação na mesma
categoria mahayoga envolvem mandalas de vida ou no máximo durante o bardo. Porém,
muitas deidades iradas, o que se adequa a se o compromisso é quebrado, se as
pessoas muito afortunadas com o defeito a aparências são reificadas, ou se a pessoa
terem muita tendência à conceptualização. distorce a compaixão e passa a usar a
Ao se autovisualizar com uma forma prática como uma desculpa para ser raivosa
assustadora, muitos braços, guirlandas de ou orgulhosa, a pessoa causa grande
crânios secos e recém cortados, com negatividade e renasce no inferno. Então é

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um caminho muito rápido para a liberação, oráculo como um ministro, alguém que dá a
mas com quebras de compromisso, um opinião, mas quem deve pensar em termos
caminho igualmente rápido para o inferno. de sabedoria é ele mesmo, e assim acatar
O próprio medo é um reflexo da raiva, então ou não a opinião do oráculo. Isto é, o
abandonar o medo é crucial para a prática oráculo é um mero servo do Dalai Lama e do
do tantra. governo tibetano.

A face da deidade irada é como a da mãe Protetor do darma que você se refere é um
que está vendo o carro veloz indo na ser que não existe ao nosso alcance? Como
direção de seu filho único. Esse é o se vivesse em outra dimensão? Pode ser um
atropelamento de todos os seres pelo ser iluminado ou não?
apego ao eu, pela reificação das aparências.
Ela não vai permitir que seu filho seja Está ao nosso alcance, ou pelo menos de
esmagado pelo samsara. Nós precisamos qualquer um que faça prática de protetores.
entender que estamos sendo abraçados Pode ser iluminado ou um bodisatva. Alguns
pela bondade da linhagem, e o professores falam deles metaforicamente,
compromisso é levar essa bondade a todos outros gostam de personificá-los como algo
os seres. Repousar nessa bondade é semelhante a "espíritos". Todas as formas
descobrir a intensidade que permite a ação de budismo aceitam seres nos cinco outros
iluminada irrestrita. reinos que não o humano com que não
temos contato através dos sentidos. Há
O oráculo, no budismo tibetano, é um inclusive animais sutis.
mestre que "recebe" alguma entidade? O
que ele acessa para entrar em transe e fazer O importante é entender que os pontos
previsões? essenciais para o budismo são a insatisfação
do samsara (todos os seis reinos) e a
Sim, ele se comunica com um protetor do possibilidade da conquista do estado
darma. Eles são muito raros, mesmo no iluminado através do caminho do bodisatva.
budismo tibetano. Uma meia dúzia ou Se não se opuserem a isso, e a conceitos tais
menos. Não é um fenômeno importante, o como impermanência e ausência do eu
budismo existiria muito bem sem ele — mas (além da insatisfatoriedade), então outras
as considerações políticas, principalmente, disciplinas e práticas são como matemática
e a proteção com relação a instabilidades ou geografia — podem ser úteis em alguns
sociais, isso faz a necessidade de oráculos — casos, mas não necessariamente para
isto é, é para gente em posição de poder, atingir a iluminação como algo direto. A
com muita fragilidade por causa disso, prática de protetores, portanto, existe no
como por exemplo o Dalai Lama. O grande contexto de meio hábil para propiciar as
iogue que pratica solitário na montanha condições para a prática espiritual — ela em
talvez nunca tenha visto um oráculo na vida. si só não é a prática principal, não é uma
Em todo caso, mesmo o Dalai Lama toma o prática exatamente espiritual, mas uma

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espécie de engenharia das circunstâncias. O que é o "estado de dissolução e de


Se você souber matemática e geografia, consumação"?
você vai posicionar melhor seu barco — mas
o objetivo é viajar, não ficar determinando Podem ser usados como sinônimos, de
posições. acordo com a tradução, mas modo geral
dissolução da mandala da deidade é uma
Assim, a prática de protetores só é crucial forma específica de estágio da consumação.
no vajrayana — no mahayana e no hinayana
existe prática de protetores, mas ela não é De forma geral, são dois os estágios da
essencial, já que as grandes dificuldades prática do vajrayana: desenvolvimento (ou
surgem no caminho vajrayana. É ali que, ao geração), que envolve a prática de
se trabalhar com as aflições mentais visualização, com todos os seus acessórios e
diretamente, podemos ser tomados por etapas (recitação de mantras, por exemplo)
elas, e virar demônios, e não praticantes ou sem elas, e consumação (ou perfeição,
espirituais. Por isso no vajrayana ou completude, ou dissolução) em que a
contratamos esses "secretários" para nos visualização é desfeita e repousa-se no
dar uns cutucões quando nos desviamos da estado natural. Ambos os estágios podem
prática, e para garantirem condições ser mais elaborados ou mais simples, isto é,
externas e internas adequadas para a podem ter mais etapas ou menos etapa.
prática. Mas aí, é essencial fazer a prática. A Nas diversas formas de tantra, foca-se mais
prática de protetores só ocorre quando o num ou noutro, ou em ambos ao mesmo
praticante consegue se autovisualizar como tempo, com diferença entre meditação e
a deidade central da mandala — enquanto pós-meditação, ou sem essa diferença no
ele faz isso, então pode fazer oferendas e mais elevado deles.
comandar as atividades dos protetores.
Nesses procedimentos pode haver
O que é Mahakala? sadhanas mais ou menos elaboradas. As
sadhanas mais elaboradas, de forma geral,
É um protetor do darma. Protetores são são menos sofisticadas. A elaboração serve
Budas e Bodisatvas que defendem os para aqueles com mais conceptualização e
ensinamentos de várias formas. que predominantemente trabalham com o
Sustentando as atividades, propiciando veneno da aversão. A forma menos
boas condições para elas, e mesmo elaborada é para aqueles que têm mais
evitando que distorções ocorram. bem-aventurança e trabalham com a aflição
do desejo, e a forma extremamente não
(É possível que Mahakala seja praticado elaborada é para aqueles que possuem
como um yidam em certas linhagens e grande facilidade com a não
contextos, mas desconheço.) conceptualidade e cuja contaminação
predominante a ser transformada é a
ignorância.

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Em geral a primeira prática que envolve Gradual e direto (o causal e o não causal)
desenvolvimento e consumação feita é o não são tidos como opostos, mas na visão
ngondro. Cada ngondro possui da imanência da sabedoria no tantra,
peculiaridades próprias, mas eles em geral ocorrem simultaneamente. Toda a prática,
possuem formas simples (mais ou menos desde o início, repousa no reconhecimento
demoradas, dependendo da prática) desses da própria natureza, e a do lama e da sanga,
dois estágios. Tendo treinado com o como sendo inseparável do corpo, fala e
ngondro, a pessoa passa a praticar uma mente do Buda. Com base nisso, a prática se
sadhana “principal”. desenvolve gradual ou instantaneamente,
com ou sem esforço, de acordo meramente
A prática começa com uma enorme com o acúmen do praticante.
diversidade de atividades, em particular se
focando nos votos de refúgio e bodisatva e Ao que se referem os termos externo,
em amealhar uma grande quantidade de interno e secreto na nomenclatura budista
méritos – com o aspecto de sabedoria breve ou budista tibetana?
e coroando esse esforço. Depois, com a
naturalidade que deveria advir dessas Muitas coisas, de formas diferentes. Um
repetições, refúgio, voto de bodisatva e exemplo... externo: mundo; interno: corpo;
acumulação de méritos vão ficando menos secreto: mente. Também corresponde aos
elaboradas e mais concisas, e a etapa de níveis de corpo, fala e mente. Mudra,
sabedoria vai ganhando elaboração e mantra e samadhi.
demorando mais. É aqui que o estágio do
desenvolvimento passa a ser central, Em termos de obstáculos, externo é o que
embora a consumação também passe a está fora de nosso controle nesta vida, as
cada vez mais ser focada. Enfim, a circunstâncias mais amplas, tais como
consumação é focada muito mais do que os epidemias, terremotos, e as mais próximas,
outros estágios, e num determinado ponto doenças, o atraso do trem, ser assaltado.
se torna simultânea com toda a prática, Interno é o que está fora de nosso controle
integralmente, e noutro ponto ao longo de várias vidas: hábitos e
determinado, também com toda atividade tendências, aflições mentais. Secreto é o
do praticante, formal ou informal, dentro que nos prende desde o início, a ignorância,
ou fora da sessão. Na verdade, quando o não reconhecimento do estado natural.
falamos em todos esses passos paulatinos,
isso não necessariamente ocorre nessa Também são as nossas falhas evidentes a
ordem: podemos começar com a instrução todos, as que sabemos mas os outros não
de integrar tudo, e ao reparar que nem conhecem bem, e as que nem nós mesmos
sempre conseguimos, seguimos a instrução estamos cientes.
logo anterior que nos pareça possível
praticar.

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Enfim, eles utilizam esses três níveis para resultado. A essência da prática é o guru
falar de tudo. Refere-se a uma esfera global, ioga, como no vajrayana.
impessoal, coletiva, o mundo; a esfera
pessoal, própria, particular; e a uma esfera O dzogchen é para praticantes quase-
essencial, nem pessoal, nem impessoal — budas, de acúmen inigualável?
se é que se pode dizer isso.
7.4. Práticas avançadas Isso, o vajrayana como um todo também.
Imagine que mesmo um praticante da
Uma forma de autoliberação das aflições forma mais externa e inferior de tantra está
mentais é "olhando" para elas quando no máximo a 17 vidas da iluminação,
surgem e reconhecendo a vacuidade? Esse enquanto que um praticante do mahayana
observador que olha para as aflições existe vai levar 3 grandes kalpas, cada um com
até que ponto da prática? centenas de renascimentos....

Ah, essas práticas avançadas eu não Por outro lado, você não precisa guardar
entendo. Você precisa perguntar isso a um nenhum tipo de preconceito quanto a si
professor qualificado. mesmo. Se você tem o mérito, ele se
manifesta, aí você não precisa dizer “ah, eu
No veículo superior absolutamente tudo é não sou um quase-buda, isso não é para
acolhido como prática? Qualquer conteúdo mim”.
mental, seja ele aflitivo ou não?
Onde reside a diferença entre mahamudra
Sim. Nada, absolutamente nada, é e dzogchen? No método?
desperdiçado. Mas isso não significa se
entregar a aflições mentais, bem pelo Em termos do fruto, a realização dos dois
contrário. Na medida que elas surgem, elas corpos, mahayana, vajrayana, mahamudra
são autoliberadas. Isso significa que a e dzogchen são a mesma coisa. Em termos
energia delas, por si só, as esgota. E é por do método é que se diferencia. E é um
isso que se trata do veículo superior, que assunto complicado, eu nem ouso tentar
exige praticantes quase-budas, de acúmen entender essas coisas.
inigualável.
O que é Rigpa?
O que é dzogchen?
Rigpa é a natureza essencial da mente: livre,
É a redução de "dzogpa chenpo", a "grande criativa e compassiva. É o que resta quando
perfeição" ou "grande completude", que é marigpa (avidia, delusão, ignorância) se
tanto o resultado do caminho budista como dissipa.
um conjunto de métodos rápidos (diretos)
de reconhecer, estabilizar e expressar esse Poderia explicar o que é o corpo de arco
íris?

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Mas você não pode dar ensinamentos sob


Um tipo de realização na qual o corpo requisição, isto é, se alguém pedir a você
desaparece, se dissolve em luz, no "ensine sobre as seis perfeições", você não
momento da morte. deve ensinar a não ser que seja autorizado.
8. Problemas de praticante Você pode direcionar a pessoa para uma
fonte confiável, ou simplesmente informar
O que fazer quando a busca pelo Darma se os nomes das coisas envolvidas. Mas isso
torna um ciclo de insatisfação? pode ser avaliado caso a caso também. É
diferente a internet de uma conversa
É necessário corrigir a motivação. privada, e é diferente se há um professor
disponível próximo, ou em breve, ou se não
Dá para avançar espiritualmente sem há.
sofrer? Não é errado sofrermos para nos
manter no caminho budista? Em outras palavras, a melhor oferenda é a
oferenda de darma, mas antes de você ser
Se a pessoa tem mérito, ela pode progredir verificado e autenticado por uma linhagem,
sem sofrer. Se ela não tem mérito, ela vai a melhor atitude é manter o low profile e
sofrer. O sofrimento no samsara é evitar falar do darma ao máximo. Algumas
inevitável, pelo menos o sofrimento para vezes antes de explicar alguma coisa eu
praticar o darma, que é minúsculo, se espero me pedirem 3 vezes. Também o
comparado aos sofrimentos do samsara, nível do ensinamento deve ser levado em
tem um fim e leva a este fim. conta. Isto é, lembrar alguém que
computadores (ou outra coisa qualquer)
Mas de forma alguma a pessoa precisa são impermanentes não tem problema —
buscar sofrimento ou sofrer quando ela mas explicar coisas como vacuidade e o
pode evitar o sofrimento. Se ela pode evitar trikaya... daí é perigoso. Eu mesmo quando
o sofrimento, ela com toda certeza deve me meto a falar sobre isso fico bem
fazê-lo. Ela só deve evitar se comportar nervoso. Mas eu tenho essa tendência a
como uma criança mimada, isso sim é tagarelice e ao exibicionismo, então não
contraproducente. resisto e faço papel de bobo, colocando a
mim mesmo e a outros sob a possibilidade
Se eu compreendo bem o darma e pratico, de grave perigo... vergonha!
posso ensiná-lo a outras pessoas que me
pedirem, sem eu ser um professor formal? Percebo-me profundamente oscilante em
emoções de medo e insegurança. Medito e
Você pode responder perguntas de acordo recito Prajna Paramita como forma de me
com o que sabe, sempre informando que libertar dos apegos as essas oscilações
não é um professor autorizado. É o que eu emocionais. O que seria melhor fazer para
faço. não ficar oscilando?

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Fazer a prática de acordo com o que é arrogância em relação à vastidão de seres


instruído pelo seu professor e buscar a ele que não consegue nem se aproximar disso.
por instruções mais profundas ou sugestões Como lidar com isso?
de correção a sua prática. Não buscar
conselhos de prática via internet. Há diversos modos de lidar com isso. No
mahayana todos os seres são vistos como
Pratico o budismo há 5 anos. Tento meditar nossas mães. Então nós sofremos pela falta
quase todo o dia por uma hora em média. de visão deles, e então fica difícil
Fico muito tempo em estado de paz mas, desenvolver orgulho.
mesmo assim, às vezes, tenho pesadelos.
Isso pode ser resultado de carmas passados, No vajrayana esse orgulho é utilizado, do
de vidas anteriores? jeito que vem, na prática. Mas isso requer
um professor — que normalmente nos
Sim, mas o mais provável é que esse tempo coloca no nosso lugar. Algumas vezes o
de prática seja pouco ou esteja sendo mestre fica jogando você do centro para a
praticado sem eficiência. Você precisa se periferia da mandala, e vice-versa, vez após
informar com o seu professor. Após 5 anos vez, até você abandonar os conceitos de
de prática você ainda tenta resolver suas proximidade e afastamento, e desenvolver
questões de meditação pela internet, de efetiva equanimidade pelos seres.
forma anônima? Isso é um terrível indício.
Após uns dois anos frequentando um centro
O Darma é a única coisa que me parece budista percebi que minha vida melhorou
fazer sentido seguir. Tenho uma imensa bastante, mas não consigo me libertar do
convicção disso, de coração. Mas às vezes medo de ficar em dificuldade financeira,
me pego esquecido disso, me empenhando mesmo sabendo racionalmente que o
na experiência cíclica, como se eu nunca dinheiro é impermanente. Existe alguma
tivesse conhecido o Darma. Isso me dá prática para eliminar isso?
medo! O que fazer?
Generosidade constante com dinheiro: para
Keep going, é o que o Rinpoche sempre com mendigos, para com centros de darma
dizia. Essa é a experiência de todos os e professores.
praticantes, e a prática é se recolocar vez
após vez na integridade do reconhecimento O sábio, em sua sabedoria, não deve
do Buda como inseparável em corpo, fala e perturbar a mente do ignorante?
mente do professor, da sanga e de nós
mesmos. A sabedoria naturalmente não é
perturbadora a ninguém. Uma pessoa que
Ao perceber a raridade de se entender e possua sabedoria não precisa seguir
praticar o Darma pode surgir um preceitos ("deve isto", "não deve aquilo").
materialismo espiritual, um certa

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Se ela sabe, ela não tem deveres, ela faz o Tem uma história do hinduísmo que ilustra
que está de acordo com a sabedoria. esse ponto, que acho é narrada no livro do
Joseph Campbell, "O Poder do Mito". Nela
Isso falando de um Buda, que possui Indra está super feliz como uma leitoa,
sabedoria última. Se você está falando de amamentando uma grande ninhada. Um
meros saberes, bem, evidentemente que renascimento relativamente degradado, na
nem uma pessoa assim não deve pensar em compreensão hindu (e na budista também).
si mesma como "um sábio". Essa noção é Então vem uma outra deidade, não sei se é
prejudicial. Shiva ou outra, e, creio, na forma
politicamente incorreta de um açougueiro,
Por outro lado, a sabedoria é diretamente "libera" a leitoa, que então finalmente se
perturbadora para a ignorância. Então lembra que é Indra, e que sempre foi Indra.
realmente podemos nos sentir perturbados
por seres sábios. É nossa honestidade para Se Indra não pudesse ser uma leitoa, Indra
com nós mesmos e nossa perseverança na não seria Indra, né?
prática que devem nos guiar nesses
momentos. São bênçãos. Indra é Indra porque pode até mesmo se
9. Sabedoria tornar uma leitoa, e pior que isso, até
mesmo tem o poder de se esquecer que é
O que é vacuidade? Indra!

As coisas são ocas de uma existência É assim, na verdade, que surge a ignorância.
independente (ocas de algo que as deixe Exercemos a liberdade natural num ponto
"por si só"), isto é, de uma essência. tal que esquecemos dela, e passamos a
viver num mundo particular. O problema
Como e porque a nossa mente se engana? não é o mundo particular, mas essa
"liberdade de esquecer a liberdade" (de não
Pela sua própria liberdade ela se esquece de usufruí-la), essa é a ignorância. O pior de
sua liberdade e passa a operar de forma tudo: a ignorância não pode ser entendida
restrita. do ponto de vista da ignorância, muito
menos a sabedoria. Ambas ignorância e
"Se a natureza ilimitada não se sabedoria só são reconhecidas do ponto de
manifestasse de forma limitada ela não vista da sabedoria. A ignorância é ignorante
seria realmente ilimitada, pois teria a de si própria e do que encobre.
limitação de não manifestar-se
limitadamente." Está certa essa frase? Posso dizer que avidia é "simplesmente"
não lembrar da nossa natureza de buda?
Pior que está.
Talvez melhor não. Avidia é não reconhecer
a natureza de buda. Por certo aspecto, isso

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não é tão simples, porque isso implica uma


infinidade de fatores — por exemplo, A pessoa tem três formas de lidar com o
quando não reconhecemos a liberdade sonho: não reconhecê-lo, acordar e sonhar
inerente, buscamos confirmações, com lucidez. A terceira forma é a superior.
segurança, felicidade, em coisas que não
podem prover essas coisas. Então avidia é Então quer dizer que nada existe de
sofrimento. verdade, tudo é uma ilusão?

Avidia implica formação de tempo, espaço, Existência ou não existência não é o


multiplicidade, unidade — muitos enganos problema. O problema é tomar as coisas
cognitivos consecutivos que vem a causar a pelo que não são, reificá-las. Dar mais
crença equivocada num eu que está realidade do que elas possuem, ou vê-las
presente num mundo, onde operam as distorcidas pelas aflições mentais. A
aflições mentais. essência das coisas é a vacuidade, o que não
quer dizer que elas não existam. Elas
Por outro lado, estritamente falando, está existem como o arco-íris — temporário,
correto. Só que talvez conforto em meio a gerado por causas e condições,
isso seja mais um dos aspectos de avidia — insubstancial. Mas nós não as vemos como
avidia possui uma energia de não o arco-íris, nós damos solidez, nós as
reconhecimento, um autorreforço, uma distorcemos e vemos como estáveis,
renitência. Não adianta se convencer gostamos e não gostamos delas, e temos
superficialmente de que a Natureza de Buda medo e esperança com relação as coisas. As
está lá. É preciso obter um vislumbre coisas sempre são do jeito que são, o
vivencial além de avidia e seguir praticando problema é que nossos dispositivos
a confiança e o contínuo reconhecimento cognitivos estão viciados. Eles projetam nas
desse vislumbre. coisas valores e conceitos que causam
sofrimento. As coisas são vazias desses
Como é possível compreender a realidade valores e conceitos. Elas não existem como
dentro de um sonho? coisas que detém tais valores e conceitos.
Por isso o modo de existência das coisas é
Não é necessário "compreender": nenhuma como um sonho, o que não quer dizer que
compreensão obtível pode produzir valha qualquer coisa, ou que seja adequado
satisfação verdadeira. Por isso se fala em simplesmente ignorar o sonho. Valer
"sabedoria transcendente". Não é qualquer coisa e ignorar o sonho são,
propriamente uma sabedoria, mas um também, atitudes que reificam o sonho —
reconhecimento imediato, empírico e não simplesmente o reconhecem como
completo, sem formulações e não sonho, algo que não tem solidez.
fabricado. Presente desde o princípio
embora não evidenciado ainda, mas Então, não há saída para o sonho, mas o seu
perfeitamente evidenciável. simples reconhecimento?

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"base de designação" (uma coisa a que se dá


Um sonho nunca prendeu ninguém, é só um um nome) livre dessas características.
sonho! É porque não o reconhecemos que
existe noção de prisão. É como uma corda Você pode falar um pouco mais sobre
enrolada no meio de uma sala escura, que mente deludida e mente lúcida?
tomamos por uma cobra. Se alguém acende
a luz, nos acalmamos. Mas nunca existiu A mente deludida é aquela que opera
perigo em momento algum. através de separatividade, dualidade e
tendências habituais. Isto é, a mente dos
A realidade é melhor que o sonho? seres comuns. A mente dos Budas, livre
dessas características, operando na
A realidade é o mero reconhecimento do liberdade da completa expressão de toda a
sonho como sonho, não é um outro sonho gama de possibilidades, sem se fixar a nada
mais "real" do que esse. Não reconhecer o e aberta a tudo, é a mente lúcida.
sonho como sonho é pior do que
reconhecer. Segundo a doutrina mahayana, a nossa
mente natural e essencial é a mente lúcida,
O que há além do "sonho"? que através de um processo adventício de
reificação sucessiva das aparências como
A realidade da lucidez radiante e límpida, duais e separativas, produz o hábito da
absolutamente livre, que nunca se perde mente deludida. Assim, a mente deludida
nem mesmo em meio ao sonho. não é a natureza verdadeira da mente, e sim
a manifestação de uma condição
O que significa "reificar"? temporária, que produz todas as 84.000
formas de doença e sofrimento.
Dar solidez, atribuir substancialidade,
tomar por real o que é aparente. Isto é, O todo não seria melhor que a parte?
independizar o fenômeno, separá-lo,
acreditá-lo em certa medida imutável ou De forma alguma. O ensinamento budista
permanente, acreditá-lo em certa medida diz claramente que a peculiaridade e a
mais do que um composto. P.e., usar o generalidade são ambos extremos.
nome "mesa" para designar um objeto Nagarjuna nos aconselha a não cairmos em
singular, estável e que existe por si só, sem extremos de unidade, multiplicidade,
depender de um observador. Isto é, o dualidade e ausência.
hábito principal da ignorância. Se não
reificamos, há uma base de designação para Assim fixar-se ao todo ou a parte é de
o nome "mesa", mas ele não é singular, nem qualquer modo seguir tendências errôneas.
estável, nem existe independentemente.
Tudo que ele é é nada mais do que uma Ir além da dualidade é reconhecer que as
polaridades são inseparáveis, como "tentar

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cortar o lado direito de uma barra"? Através extremos. Ele não é nem mesmo certo, ele
da vacuidade, como o budismo vê o certo e é como é, além de certo e errado. Além não
o errado? significa "abandonando" o certo e o errado,
significa "nem mesmo fazendo sentido
A ética é o que está de acordo com a dizer" uma coisa assim.
realidade. A realidade é completamente
boa. Então na não dualidade, não há errado. Diz-se que, em verdade, tudo que vemos é
O errado surge da ignorância. Não ocorre a nossa própria mente. Quando um ser
de, ao superarmos a ignorância, atinge a iluminação, a mente dele se funde
integrarmos a ignorância ao que é real, com a mente dos outros seres? A mente dos
assim o errado é o que é irreal, o errado é a seres é separada?
dualidade.
Essa afirmação é cittamatra. Os
Não dualidade significa o estado natural das madhyamikas algumas vezes acusam
coisas, a separação surge por causas dizendo que está havendo reificação da
adventícias, e uma percepção filtrada pelas mente. Mas em termos de prática de
aflições mentais. Sem aflições, não há meditação, ela é muito útil (essa afirmação).
separação. Porque é errado martelar o
próprio dedo? Porque não queremos sofrer A mente não se funde, a mente não é
dor. Da mesma forma é errado martelar separada. Essas noções surgem por
outra pessoa, porque ela sente dor. Quando "máculas adventícias", isto é, por padrões
martelamos outra pessoa, isso é dual, e isso de hábitos baseados em uma visão
é equivocado, porque estamos vendo essa equivocada das coisas. As coisas nunca
pessoa como separada. Isso é não foram separadas.
dualidade: não martelar os outros. E não
porque isso é uma ordem do Buda, ou Você poderia explicar melhor quando disse
mesmo porque isso é o final de um que a minha mente nunca está
raciocínio "no fundo eu e o outro somos o verdadeiramente separada de nenhum ser?
mesmo", mas porque, da mesma forma que
com a nossa mão nesse momento, vemos o As noções de separação — ausência,
outro organicamente, naturalmente, além unidade, dualidade e multiplicidade — são
dos conceitos, como parte de nós. Antes criadas pela mente, isto é, são uma
disso, podemos obedecer mandamentos ou falsidade. Elas são uma função da
raciocinar "no fundo somos o ignorância, isto é, a mente que não se
mesmo/inseparáveis/indistinguíveis" — reconhece.
mas isso é um apenas remendo, uma
muleta. Às vezes funciona, às vezes não. O Mas se a realidade é boa, por que há tanto
resultado da prática budista é o corpo do sofrimento? Por que há tantas catástrofes
Buda, inseparativo com todos os naturais? Não seria o "bom" um ponto de
fenômenos, perfeitamente bom, e além dos vista e não uma realidade em si?

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reificarem as aparências. Dissipar a


É exatamente o contrário, bom é uma ignorância, nossa e dos outros, é o que leva
realidade, não um ponto de vista. Se o bem à felicidade.
fosse um ponto de vista, ele não seria o
bem. Sem objetividade não há ética. Então, ir além da dualidade não é
reconhecer que não há certo e errado, mas
O sofrimento ocorre no contexto do sonho, ver que ambos são interdependentes? Se eu
não da realidade. É evidente que não fizer coisas boas, coisas boas serão o
vivenciamos a realidade, por isso sofremos resultado.
— esse é o ensinamento budista. É evidente
que o que chamamos de "real" não é o que Não. Isso é muito antes de ir além da
eu e você tomamos por real. É o que um dualidade. Além da dualidade significa
Buda toma por real. O que eu e você inseparatividade. Não é um além da
tomamos por real é uma bolha dentro de dualidade dos meros conceitos, ou de
um sonho. E de fato, é cheio de sofrimento. alguns conceitos em particular. É
Porque é cheio de sofrimento? Porque não essencialmente além da separatividade,
é real. O Buda viu a realidade, por isso está isto é, a crença de que existe algum
além do sofrimento. Buda significa "aquele fenômeno separativo.
que acordou", acordou do quê? Do
sofrimento. Acordou para quê? Para a Algumas vezes se usa o termo não
realidade, onde não existe sofrimento. Por dualidade no budismo, mas alguns autores
isso ele é capaz de compaixão por aqueles preferem traduzir por "coemergência".
que ainda atribuem solidez a meras Inseparatividade é outra palavra. É um
miragens — essa é a raiz do sofrimento, pouco diferente de interdependência, mas
reificar as aparências, em especial a a interdependência só é possível por causa
aparência de um "eu" independente. da não dualidade, coemergência,
inseparatividade.
Nossos pesadelos na noite nos deixam
aflitos. Catástrofes nos deixam aflitos. Algumas vezes se fala, meio que de forma
Todas estas aflições surgem por darmos "camponesa", "além do alto e do baixo",
realidade a algo que não é real. Tendo um isto é, além de conceitos extremos. Isso não
corpo, de um jeito ou de outro vamos significa de forma alguma que esses
morrer. Ao confiar nesse corpo como algo conceitos não tem relevância. É um engano
que produziria felicidade definitiva, vamos comum, devido ao comportamento
nos decepcionar — isto é sofrimento. Ver a inexplicável e iconoclasta de alguns
realidade significa não atribuir como causa mestres, se ouvir "ele está além do certo e
da minha felicidade coisas que não são do errado" — mas ele está além das
causas de felicidade. Quais são as projeções de um ser ignorante sobre o que
verdadeiras causas da felicidade? Ajudar os é certo ou errado. Ele, sendo realizado, não
outros, em especial ajudar os outros a não faz coisas erradas. Aquilo que parece errado

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para nós, é certo para ele. E mais que isso, Se todos os fenômenos são
se ele é um ser realizado, é porque se interdependentes, como os 5 skandas, de
coaduna com a realidade, e portanto, nós onde surge a liberdade do ser?
estamos errados e ele está certo. Então o
certo dele é que é realmente certo. Não Do não condicionado, do que é real, não é
existe relativismo ou liberalidade em fenômeno, não é aparência.
nenhuma forma de budismo. A pessoa não
atinge a realização para obter a liberdade Mas se a pergunta é "como pode haver
de cometer erros: ela se torna basicamente liberdade com interdependência" —
incapaz de cometer erros, se totalmente liberdade é interdependência! Só porque
iluminada. cada coisa que você faz afeta todos os
outros e é afetada por todos os outros, isso
Como no exemplo que dei, nós não significa que não há liberdade. Há
(normalmente) não damos liberdade perante a noção de uma coisa
deliberadamente marretadas na própria separada. Separar é aprisionar.
mão, mas estamos muitas vezes dispostos a
marretar os outros. Isso ocorre porque não Você poderia, por favor, explicar: Se todos
vemos a realidade. Se víssemos a realidade, os fenômenos são interdependentes,
saberíamos que somos inseparativos, então então, quem é o observador que,
da mesma forma que não surge o ímpeto de aparentemente, se torna livre das
dar marretadas em si mesmo, não surge o sensações, percepções, pensamentos?
ímpeto de marretar o outro. E, além disso,
é possível reconhecer que há níveis ainda Não há nenhum fenômeno independente,
mais profundos de ignorância que o nosso, muito menos o observador. O observador é
pois existem aqueles que tem o ímpeto de especialmente dependente.
se auto marretar. A mesma compaixão que
temos por alguém que prejudica a si Quando dizemos "livre de sensações,
mesmo, devemos ter por alguém que percepções, pensamentos", isso não quer
prejudica a outro — não dualidade é dizer "sem essas coisas". Isso quer dizer que
essencialmente ver ISTO, que não há exatamente reconhecer a interdependência
diferença entre o meu sofrimento e o entre o objeto e observador, como um se
sofrimento do outro, entre a minha estabelece e se transforma em
dissipação do sofrimento e a dissipação do "colaboração" com o outro, isso por si só é
sofrimento do outro, e assim por diante. uma forma de liberdade. Se um dos
elementos estivesse "engessado" numa
Não é uma carta branca para fazer o que dá independência postulada, nesse caso, não
na telha em nome de uma suposta haveria liberdade.
realização mística. 9.1 Perguntas que encobrem a sabedoria

Qual é o sentido da vida?

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quais a delusão ela mesma se prende, por


Essa é uma pergunta embasada na ideia de uma espécie de autofascínio.
que a soma total das coisas possa ser
refinada em uma fórmula explicativa e Como viemos parar onde estamos? O que é
apresentada, mastigada, de uma pessoa este engano que tanto ouço falar no
para outra. Sua Eminência Chagdud Tulku budismo?
Rinpoche dizia que o sentido da vida é se
preparar para a morte. É claro que ele Nós não saímos de nenhum lugar, mas nós
escolheu falar de "sentido" significando estamos enganados e acreditamos que sim.
propósito, ou finalidade. Quando se ouve Esse é o engano, acreditamos que há coisas
essa pergunta, se entende que se está como causalidade e tempo.
perguntando o derradeiro porquê, e
portanto, esse é o sentido de "encobrir" a Como e por que passamos do estado
sabedoria. Perguntar isso é estar alienado natural (livre de sofrimento) para uma
perante a resposta. A pergunta, por si só, existência permeada pelas chamadas
impede uma resposta. aflições mentais?

Existe algo que seja estável e real antes da Primeiro, não há esse passar. O estado
impermanência e do sonho? natural está sempre disponível, o tempo
todo. Não existe um momento em que ele
Nada que exista como um objeto deixe de ser natural e então as
separativo, portanto nada que possua um artificialidades "tomem conta". No entanto,
modo de existência, portanto não. nossa experiência não é essa, e é por isso
que chamamos isso de "ignorância". A falta
Porque tudo é impermanente? de reconhecimento surge por uma
liberdade, que é uma característica inata da
Na verdade nem tudo é impermanente. natureza da realidade. Todo tipo de
Tudo que é composto é impermanente. Por projeção surge por causa dessa liberdade,
outro lado, se você pode falar de algo, é nos envolvemos na projeção, e esquecemos
porque é composto. Como a delusão da realidade e da liberdade inata. Daí surge,
projeta esses elementos distintos, e uma coemergente com um ser ignorante, um
cadeia causal, e tempo e espaço, a liberdade Buda, que é uma expressão dessa liberdade,
naturalmente segue operando, e não para nos lembrar dela — e até um sistema
consegue sustentar a ignorância de forma de pensamento e uma série de
contínua. A impermanência é a porta da treinamentos. Se nossa experiência não
vacuidade, da sabedoria, portanto, porque fosse essa, não precisaríamos do darma.
é nessas "quebras" que se pode reconhecer
a liberdade operando além das fixações Então não há uma passagem, a ignorância é
particulares produzidas pela delusão e às fruto da liberdade, e o que há realmente é
o estado desperto de um Buda. A ignorância

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é adventícia e instável, embora nos pareça como ela é, mesmo que isso não seja
sólida, porque a reificamos, ou seja, as diretamente reconhecido ainda, há mais
projeções da ignorância se somam sobre ela possibilidade de obter esse
mesma, como quando vamos ao cinema e reconhecimento.
ficamos tristes com a morte de um
personagem, e depois achamos "justa" a Quanto ao "porquê", não há, até onde pude
vingança, e assim por diante. É só uma tela perceber, qualquer conhecimento ou
com figuras luminosas, mas nós entramos afirmação teleológica no budismo. Em
em vários níveis de "ignorância" para outras palavras, o budismo não se ocupa de
apreciar um filme. Aliás, se o filme é bom, é explicar as coisas ou porque elas são dessa
exatamente porque nos prende dessa forma. Temos um problema, que é a
forma. Mas, é só um filme. insatisfatoriedade, e a partir disso
produzimos uma solução, que são os
O não reconhecimento da realidade e da métodos e ensinamentos. A imagem usual é
liberdade inata nos faz precisar dos a de uma pessoa que está com uma flecha
ensinamentos do Buda. O Buda é portanto enfiada no olho, perguntando ao cirurgião
uma projeção ou espelho de nossa própria como é a flecha, que cor ela tem, de onde
ignorância, é um aspecto de compaixão que ela veio, e assim por diante: o que importa
surge concomitantemente com o é retirar a flecha.
sofrimento que produzimos para nós
mesmos. Se vemos uma pessoa tendo um Então o "como" tem uma explicação
pesadelo, nós acordamos a pessoa "está tortuosa, porque é mesmo um pouco como
tudo bem", e então ela vê que não havia uma ilusão de ótica: entender o engano é
monstro nenhum, em momento algum. entender o que não é o engano, e daí vemos
Assim é com as aflições mentais, enquanto que era um engano, nada mais, nada menos
elas operam, elas parecem poderosas, mas que isso. A causa do engano é o próprio
elas tem menos substância que cinema ou engano, ele é um "engano enganoso", não é
monstros em sonhos. nem mesmo um engano de verdade. Você
entra numa sala escura e confunde uma
A ignorância é a raiz das aflições mentais corda com uma cobra, todo tipo de medo
que produzem os diversos sonhos e mundos surge. Alguém acende a luz, a corda não
ilusórios. Entender a liberdade que produz a tem nenhuma culpa de você a ver como
ignorância, é reconhecer a fonte dessa uma cobra. Você pode dizer que a corda
liberdade e dessa ignorância, que é a causou a experiência da cobra em você? A
sabedoria primordial. Portanto as corda não fez nada, você com sua
perguntas sobre ignorância, como surgem imaginação projetou todo tipo de coisa na
de dentro do escopo da ignorância, nunca realidade. E quando a luz acende, nunca
vão produzir o reconhecimento da houve cobra alguma, não é mesmo?
sabedoria. Começando-se da perspectiva da
sabedoria, ou seja, postulando a realidade

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Já o "porque" não tem resposta, e na Mas o que acontece quando todo mundo se
verdade, é considerado uma pergunta meio ilumina não faz muito sentido se você pensa
sem sentido. que "todo mundo" é um conceito arbitrário,
parte do sonho, e a noção de que uma
Se a origem é perfeita, como e por que iluminação começa em algum momento no
surgiu o primeiro ser no samsara? tempo é também uma noção arbitrária,
parte do sonho.
Samsara é um engano, e o termo "samsara"
é um ensinamento para seres que operam Se o "eu" não existe, o que é que renasce?
de acordo com esse falso engano. Também De qualquer forma, não se deixa de existir
não há "origem", origem faz parte do com a morte física?
engano.
Renascer é "nascer de novo", isso significa
Quando a pessoa se assusta porque que uma nova ilusão de eu se forma com
confunde uma cobra com uma corda numa base no carma. Você, como um eu, não
sala escura, e ao acender a luz ela se alivia, existe agora mesmo. Com a morte você não
esse alívio é também um engano. Nunca se torna mais existente. Mas o sofrimento
houve cobra alguma, acender a luz nunca que você sente segue.
mudou nada com relação a corda ser uma
corda. Samsara é a cobra, nunca existiu, Por favor, explica melhor: "O que
quando a pessoa se ilumina ela não só se acontecerá com este mundo quando todos
"livra da cobra", ela reconhece que a cobra os seres atingirem a iluminação?" Porque
nunca esteve ali em momento algum. não faz sentido perguntar isso? Os mestres
dizem que é certo que todos "atingirão" a
Quem não renasce vai para onde? O que iluminação. A pergunta então é: mas e aí, o
acontecerá com este mundo quando todos que acontece?
os seres atingirem a iluminação?
Os mestres não dizem que é certo que todos
O mundo surge junto com o nascimento. Na atingirão a iluminação. Eu já vi lamas serem
verdade é um sonho, não há mundo. Nunca perguntados isso e rirem muito.
houve um mundo no sentido último — não
desse jeito, com tempo, espaço, localidade, Vai chegar um dia em que todos os seres
objetos. Essa noção de que existe algo que estarão livres da ignorância?
vai ficar vazio quando todo mundo for
embora, é achar que a sala é verdadeira O Buda não respondia essa pergunta,
enquanto os seres dançando dentro dela porque se você entender que a ignorância
são de sonho. Tanto a sala quanto os seres inclui noções tais como "um dia" e "todos os
são um sonho. É o mesmo sonho, a mesma seres", isto é, sem ignorância não há "um
ignorância. dia" nem "todos os seres", estes são objetos
da ignorância. Então é quase como

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perguntar "a ignorância contém Eu tenho uma mente e você tem uma
ignorância?" isto é "a ignorância é ignorante mente. O números de mentes que existem
da ignorância?" Claro que sim, por outro é fixo ou elas podem ser "criadas"?
lado, não. Tudo que a ignorância sabe é
ignorância, por outro lado, ela não sabe Unidade e multiplicidade são criações da
nem mesmo que é ignorante. Todas as mente fixada (presa) na delusão e
perguntas que dizem respeito a tempo, conceptualização arbitrária. A separação
espaço, "todos", "nenhum", e assim por entre as mentes, bem como uma noção new
diante, estão ligadas aos quatro extremos age de unidade de mentes liquidificadas
que são a característica da ignorância — umas nas outras são extremos embasados
então é impossível responder uma pergunta na ignorância. Na visão budista, eu ter uma
que é formulada com base na ignorância mente separada da sua é uma verdade
sem dar uma resposta com base na convencional, e empírica, já que eu não
ignorância. Assim, é uma pergunta sem tenho acesso aos seus conteúdos mentais, e
resposta. O próprio Buda não dava essa acho que você não tem acesso aos meus.
resposta. Por outro lado, essa limitação é adventícia,
essa separação é causada por marcas
Segundo o Budismo, todos os seres se temporárias, e na sua essência, a vacuidade,
libertarão do sofrimento um dia, ou a coisa as duas mentes são e nunca deixaram de ser
não tem fim? O número de seres é finito? a mesma. A prática do budismo é o caminho
do meio, que vai além desses extremos,
Quanto a isso, há discussão. O próprio Buda sem tomar qualquer um deles por sólido.
ficava em silêncio com relação ao fim do
samsara (iluminação de todos os seres). Digamos que, numa situação hipotética,
Algumas tradições claramente dizem que, todos os seres se iluminem e a roda do
embora todos tenham natureza de buda, samsara desapareça. Qual seria o papel dos
muitos não irão nunca revelá-la. Para Budas após isso?
tempos compreensíveis e vastos, nem todo
mundo, é claro, vai se iluminar. Mas quando O Buda não respondia se o samsara teria ou
estamos falando em tempo budista... daí não um fim, mas a noção de "budas" só
foge da possibilidade da razão. São existe na mente dos seres sencientes, os
googolplexes de kalpas, que tem, cada um Budas não pensam em termos de budas
deles, bilhões de anos. versus seres sencientes.
9.2. O resultado: Buda
Agora, se o número total de seres aumenta,
diminui, ou permanece o mesmo — o Buda O que é "Buda"?
também não se metia a responder sobre
isso. "Buda" é um título que significa "desperto",
isto é, alguém que acordou para a
verdadeira natureza da realidade. Para o

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budismo todos que não são Budas vivem ensinamento restante de nenhum Buda.
sob ilusões. Isto é, são 1001 Budas que surgem nesse
kalpa a partir de um estado em que os
Em outros termos significa alguém que ensinamentos do Buda anterior não são
aperfeiçoou completamente todas as mais sequer lembrados. Para cada Buda
qualidades (tais como as seis perfeições e as destes, que marca o início de um período
seis qualidades incomensuráveis) e onde existem os ensinamentos budistas, há
eliminou todas as máculas (tais como os centenas, milhares ou milhões... talvez
venenos e aflições mentais). bilhões, que ao longo do tempo em que seu
ensinamento persiste atingem o nirvana.
Normalmente usamos a palavra para se Durante o período de vida do Buda
referir ao Buda histórico, conhecido como Sakyamuni, que foram 42 anos após ele
Buda Shakyamuni, Gautama Buda e antes atingir a iluminação, ele levou cerca de 500
disso, como Sidarta Gautama. Ele nasceu praticantes ao nirvana. Muitos outros
uns 500 anos antes de Cristo, e embora, atingiram esse estado através dos
segundo o Budismo, ele não seja "o ensinamentos de seus alunos ao longo dos
primeiro Buda", é o Buda que primeiro tempos. Além do nirvana, muitos
ensinou nessa era histórica, e que é praticantes também se tornam efetivos
portanto a fonte de todos os ensinamentos Budas, mas como eles ainda estão num
Budistas conhecidos hoje. período em que os ensinamentos do Buda
Sakyamuni estão preservados, raramente
Alguém atingiu o nirvana antes de Buda nos referimos a esses seres iluminados
Sakyamuni (Sidarta Gautama)? como Budas, embora existam alguns casos
em que sim, praticantes ao longo do tempo
Nesse kalpa, que é um kalpa considerado que atingiram a iluminação também são
"bom" pois totalizará 1002 Budas, Buda chamados de Budas. Em todo caso, eles não
Sakyamuni foi o quarto Buda. Um kalpa é entram na contagem dos 1002 Budas num
um período em que um universo se forma, kalpa bom: estes são Budas que surgem
existe por um tempo, e desaparece. sem base no ensinamento preservado
Houveram muitos kalpas antes do presente historicamente de outro Buda, só em
kalpa, alguns sem Buda algum, outros com possivelmente lembranças de terem
bem mais Budas do que em nosso kalpa estudado com eles em vidas passadas.
"médio".
O que é um Buda? Quantos Budas existem?
Repare que um Buda não apenas atinge o Como eles surgem? Budas podem existir
nirvana, um Buda atinge iluminação simultaneamente? Buda disse para o
completa, e quando estamos falando desses Bodisatva Maytreia: "você será Buda daqui
1002, por exemplo, eles são 7 bilhões de anos". Ele estaria algo como
Samasambudas, isto é, Budas que surgem que "passando" o título?
sem a existência, naquele momento, do

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Um Buda é alguém que acordou para a bodisatva receber, em determinado ponto,


realidade, e que portanto eliminou as a profecia de quando e como irá se iluminar.
máculas que impedem de reconhecer a Foi assim com Bodisatva Sumeda (futuro
realidade, as aflições mentais, e Buda Sakyamuni) e Buda Dipamkara, o
desenvolveu as qualidades que permitem primeiro Buda desse kalpa razoavelmente
que ela seja reconhecida, as "perfeições", bom com 1002 Budas. Então não há um
paramitas. "passar de título" é uma mera aspiração e
profecia (autorrealizável, pode até ser, sem
Há um Buda para cada elemento discreto de problema) de quando um praticante vai
ignorância. Isto é, incontáveis Budas. Por atingir um resultado. Um Buda pode prever
outro lado, as noções de unidade, isto ou colocar a semente da iluminação
multiplicidade, dualidade e ausência são num bodisatva, um praticante, porque ele
criadas pela ignorância, assim os Budas não mesmo entende todas as causas e
são nem mesmo um, dois, muitos ou condições de cada fenômeno particular
nenhum. "Buda" é além desses quatro (possui onisciência).
extremos.
Quais as diferenças entre Tatágata, Arhat,
Eles surgem de acordo com o carma dos Bodisatva e Buda?
seres a serem treinados.
Tatagata é que vê tatata, as coisas como
Os Budas podem ser concomitantes. Os elas de fato são. O Buda muitas vezes se
Budas que surgem sem registro histórico do referia a si mesmo dessa forma. Gata é ir,
Buda predecessor, e ensinam o darma ele vai, ou foi, para onde as coisas são como
novamente pela primeira vez após o darma são. Sugata é alguém que foi para a bem-
ter desaparecido por um longo tempo, são aventurança, é outro sinônimo de Buda. O
chamados de "Samasambuda", em honra a Buda também é chamado de abençoado
essa condição. Todos aqueles que atingem (baghavati), ou "senhor dos mundos".
o nirvana com o ensinamento desse Buda
são denominados arhats, todos aqueles que Arhat é alguém que superou as aflições
desenvolvem a grande compaixão com base mentais definitivamente, isto é, atingiu o
na vacuidade são chamados bodisatvas, e nirvana (que vamos diferenciar aqui da
aqueles que atingem o resultado do iluminação completa de um Buda).
caminho dos bodisatvas, são chamados de Bodisatva é alguém que está no caminho
Budas — sua realização não é diferente da para se tornar um Buda, e alcançou pelo
dos samasambudas — apenas as condições menos um breve reconhecimento da
em que os seres os encontram. vacuidade, que lhe deu a capacidade de, se
necessário, oferecer seu próprio corpo
Desconheço o tempo em que Buda como alimento para um ser faminto.
Maitreya vai surgir, e nunca vi esse número
em nenhuma fonte confiável. É comum um

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Todo Buda é um arhat. Nem todo arhat é concentração e sabedoria (que é esse
um bodisatva. Nem todo arhat se torna um reconhecimento).
Buda.
Uma pessoa que atingiu a iluminação pode
Tatagata, Sugata etc. são títulos diversos regredir espiritualmente ou é irreversível?
para Buda.
"Atingir a iluminação" é modo de falar. A
Um arhat quando atinge o nirvana também iluminação é um não atingimento. É
desenvolve compaixão? Ou ele mantém irreversível.
algum tipo de frieza ou indiferença?
A iluminação é uma condição irreversível?
A compaixão no hinayana é com o objetivo
de atingir o nirvana, que é um objetivo para Por liberdade, um ser iluminado pode
si só. Então há compaixão, mas destituída vivenciar a ignorância. De fato, é assim
de coragem — é uma compaixão conosco nesse momento. Nossa condição
extremamente limitada. Os arhats não são básica, livre da ignorância, é incorruptível.
indiferentes ou frios, mas eles não se
consideram capazes de realmente ajudar os Os mestres podem perder sua realização?
outros no sentido em que um Buda ajuda.
Quando eles morrem, eles não se Sim. Mesmo bodisatvas de 10º nível podem
manifestam mais para benefício dos seres perder tudo. A única realização irreversível
— não por indiferença ou frieza, mas por é o estado de Buda.
falta de coragem ou por não se acreditarem
capazes (durante o treinamento). Se praticamos o vajrayana, devemos ver
nosso professor como o Buda, o que não
O que falta totalmente ao arhat é bodicita, quer dizer que ele seja o Buda — e em quase
esta sim está totalmente ausente. todos os casos o próprio professor vai dizer
que não é um Buda.
Como você descreveria uma pessoa
iluminada? Assim, professores que não são Budas
completamente realizados — ainda que nós
É uma pessoa que eliminou completamente treinemos nossa própria mente tentando
as três máculas e desenvolveu plenamente vê-los como Budas — podem perder
as seis perfeições. absolutamente tudo que obtiveram:
realização meditativa, erudição e
Isto é, eliminou aversão, apego e perspectiva espiritual.
indiferença e desenvolveu ao máximo,
transcendentemente através do As realizações que alcançarmos nessa vida
reconhecimento da vacuidade, poderão ser perdidas em vidas futuras?
generosidade, ética, paciência, empenho,

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Todas as coisas que podem ser obtidas Sim, mas isso inclui a ausência completa das
serão, inevitavelmente, perdidas. A única aflições mentais e venenos mentais, e a
conquista que não é perdida é a conquista presença completa de todas as qualidades,
da iluminação, que não é propriamente tais como compaixão. Uma coisa não é
uma conquista, mas a revelação de nosso diferente da outra, mas na nossa
estado natural. Qualquer outra conquista perspectiva, pode parecer que o mero
que obtivermos, seja grandes acumulações reconhecimento não implica essas outras
de mérito, conhecimento, e assim por coisas.
diante, se dissiparão com o tempo.
O Buda precisa meditar?
De fato, no caso do mérito, existe a
dedicação de mérito, que é basicamente Não precisa. O que o Buda faz em sua mente
doar nosso mérito a todos os seres, de é impossível de descrever, mas a meditação
forma que o "reservatório geral", mais é uma prática para seres deludidos. Mesmo
duradouro, seja de benefício a todos. Ainda se tratarem de Budas completamente
assim, sem a sabedoria que revela a iluminados, em alguns casos a prática de
natureza das coisas como elas são, de forma meditação em geral, e com certeza algumas
atemporal, qualquer mérito acumulado é formas de meditação são desaconselháveis
meramente um instante de felicidade no para aqueles de grandes qualidades.
futuro. É melhor que transformemos essa
felicidade em oportunidade vasta para a Porque que quem alcança o nirvana e
prática, para dessa forma abrir nosso extingue toda dualidade torna-se
coração para a realidade que tudo permeia onisciente? O que é a onisciência nesse
e está além de causas e efeitos, e qualquer aspecto?
noção de eu-outro, fora-dentro e antes-
depois. Onisciência para o hinayana é o
conhecimento de todas as causas para
Quando Gautama tornou-se Buda, o que liberação. No mahayana, é o conhecimento
exatamente se despertou: o corpo, a mente de todos os darmas, isto é, das causas e
ou outra essência nele? condições de todas as coisas, e de sua
essência, vazia de independência.
Corpo, fala (emoções, energia) e mente. Isto
significa que cada um dos três âmbitos Quando extinguimos totalmente as aflições
acordou ou reconheceu o que realmente mentais isso é sinal de que obtivemos a
era desde o início. primeira onisciência. Isto é, só é possível
extinguir completamente essas coisas
A iluminação, seria o "reconhecimento" quando a onisciência do tipo hinayana está
direto de como as coisas realmente são, presente.
além das nossas projeções mentais?

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Quando, por outro lado, estamos falando seres, que é o que importa. E há escolas que
em separatividade, dualidade, ela não é interpretam essa onisciência num sentido
extinta. Ela é reconhecida como nunca metafórico mundano, de alguém com um
tendo existido. Dessa forma, através da conhecimento vastíssimo, mas não
interconexão natural entre todas as coisas, completo.
o conhecimento da natureza verdadeira de
cada darma pode ser inferido. Em outras O exemplo tradicional para o conhecimento
palavras, conhecer completamente do Buda sobre o mundo relativo é que ele
qualquer particularidade é conhecer saberia cada uma das causas que teria
completamente todas as particularidades. causado uma cor específica em cada um dos
Então, não dualidade é igual a onisciência pontos da cauda de um determinado pavão.
no sentido mahayana. O mahayana em geral, e por consequência,
o vajrayana, toma isto como o padrão de
Como um corpo com um número finito de onisciência do Buda com relação aos
neurônios pode conhecer todos os fenômenos.
fenômenos nos três tempos, como
supostamente o Buda conhece? Buda hesitou antes de decidir ensinar sua
via de libertação para os homens. Como é
Evidentemente, para o budismo, a mente possível ser onisciente e hesitar?
não é o cérebro. O Buda só tem um cérebro
de sonho para beneficiar seres de sonho, Bom, em primeiro lugar, preciso lembrar
ele não acredita na existência inerente de que há controvérsia sobre o que
um cérebro. exatamente "onisciência" no caso do Buda
quer dizer. Mas não é necessário
(Mas mesmo se fosse, bastaria que os argumentar por essa via.
fenômenos dos três tempos fossem
também, finitos — porém, não é esse o Independentemente do que se queira dizer
caso, quer dizer, não é definido se é finito por onisciência, ela só foi completa — a
ou infinito.) iluminação — quando o Buda decidiu
ensinar. Antes ele podia ter atingido mera
Há dúvida sobre se Buda era ou não liberação — e era essa liberação que ele
onisciente? hesitou em ensinar. Ao decidir ensinar, essa
mesma atitude foi uma manifestação das
Não, mas há alguma discussão sobre o que qualidades, essencialmente da compaixão.
significa onisciência no caso do Buda. Há Portanto o próprio ato de ensinar algo que
escolas que dizem que o Buda sabia tudo não é ensinável é uma ação de um Buda, um
sobre todos os fenômenos, portanto sabia ato transcendente, inexplicável.
até consertar motocicletas antes delas
virem a existir. Há escolas que dizem que ele O Buda ainda estava sentado. Toda aquela
sabia tudo com relação à liberação dos sessão de prática do Buda, os seis dias

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todos, não contém um momento discreto Os bodisatvas de até 8º nível possuem


em que o Buda se iluminou. Além disso, se aflições mentais grosseiras, e do 8 º, 9º e
pode dizer que ele se iluminou e que sua 10º, só tendências habituais, latências,
iluminação continuou crescendo, como destes hábitos mentais e aflições. Quando
uma frase zen expressa: "a iluminação é mesmo essas tendências são iluminadas, se
definitiva e completa, sem faltar nada. fala em completa iluminação.
Ainda assim, ela aumenta". Mas só um
onisciente como um Buda para entender Ainda assim, o treinamento mahayana diz
esse tipo de coisa. para não prestarmos atenção nas falhas dos
outros, e há o voto de ver bodisatvas como
Por que o Buda aceitou a comida estragada budas.
que o matou? Como budistas devem agir
em situações similares? Um Buda, quando se torna darmamega,
continua a se manifestar, incessantemente,
Para dar um ensinamento sobre de várias formas, em nosso benefício?
impermanência. No caso do Buda, ele era
apenas uma aparição de sonho para seres O bhumi darmamegha é o 10º estado de um
de sonho, ele mesmo se mantendo lúcido e bodisatva, portanto, anterior ao estado de
além de vida e morte. Buda. A realização do Buda é portanto
maior que o 10º bhumi. Um bodisatva,
No nosso caso, sabendo que a comida está mesmo antes de darmamega, possui o sidi
estragada? Não se deve aceitar, é claro. Se de se manifestar em incontáveis formas
tratar-se de monges, daí eles não podem para beneficiar os seres. No estado de
rejeitar também — mas, se é claro que a darmamega o que ocorre é que ele nem
comida vai fazer mal, então eles com sequer precisa se "manifestar", a chuva
certeza devem evitar comer. dessas densas nuvens de darma
simplesmente umedecem as raízes de
Uma pessoa iluminada pode cometer erros virtude dos seres naturalmente. Em outras
grosseiros? palavras, a emanação, nesse nível, é
incontável e espontânea como as gotículas
Uma pessoa iluminada não comete erros de de água presentes em nuvens densas.
qualquer tipo. Mas ele pode parecer
cometer erros, se isso trouxer benefício aos Um Buda tem desejos?
seres.
Não, mesmo um arhat é livre das três
É possível estar iluminado em certo grau e aflições principais, os três venenos: apego,
ainda assim ser vítima de defeitos raiva e ignorância.
humanos?
Apego e desejo são formas da mesma
aflição mental. Agora, por exemplo, existe

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uma ambiguidade no termo "desejo". Se sofrimento para os envolvidos. A não ser


desejamos o bem dos seres, isso não é que sejam monges, nesse caso, não podem
propriamente uma aflição mental, então se engajar em nenhuma forma de
não é bem desejo na definição budista. sexualidade. Então há Budas que participam
Desejo é uma aflição mental quando existe de atividades sexuais (com outros Budas,
autocentramento, egoísmo, ignorância. Em com Bodisatvas e com seres sencientes) —
outras palavras, quando acreditamos que mas eles não são monges. É possível se
algo vai nos dar felicidade verdadeira, mas tornar um Buda sem nunca se tornar
não vai, isso causa sofrimento. Vemos de monge, mas para algumas pessoas o
forma distorcida, acreditamos por monasticismo ajuda em muito — e eles
ignorância, assim por diante. E, além disso, eventualmente mantém, para benefício dos
se para obter algo, evitamos a felicidade de seres, a aparência monástica depois de
outro ou causamos infelicidade — no iluminados, assim não se engajando em
budismo isso não poderia sob nenhuma atividade sexual.
hipótese trazer felicidade verdadeira, então
quando fazemos isso em busca de De forma geral, é óbvio que nada impede
felicidade, trata-se de ignorância. Então, um ser iluminado de fazer qualquer coisa —
quando lemos a palavra "desejo", qualquer coisa — que seja de efetivo
precisamos pensar em autocentramento e benefício para os seres. Então, de acordo
ignorância — se essas duas coisas não estão com as necessidades dos seres, eles podem
presentes, então a emoção pode não ser assumir o papel de pai/mãe e consorte.
aflitiva, mesmo que sejamos tentados a
chamar de "desejo". Um buda ainda sofre os efeitos do seu
carma depois da iluminação?
Depois de atingir a iluminação, Buda fez
sexo? Um ser iluminado pode fazer sexo e Na visão do hinayana, sim — ele sofre os
ter filhos? carmas residuais, embora não mais
acumule carma, enquanto tiver um corpo,
Quanto ao Buda Sakyamuni, é difícil dizer. isto é, até sua morte, o parinirvana. Na visão
Possivelmente não. Com certeza, de forma do mahayana, não. Ele só se torna Buda
pública, ele se comportava como um após purificar todo o carma, e o corpo não
monge. Então, se dizemos que em privado é visto como algo mais que um sonho para
ele não seguia as regras monásticas que ele benefício de seres de sonho, portanto não
mesmo criou, o chamamos de hipócrita e sujeito a carma — e qualquer sofrimento
mentiroso, e portanto não o vemos como que um Buda pareça sofrer, como por
um Buda. exemplo, ter um espinho fincado no pé,
será apenas um show representado para
Mas não há nenhum impedimento para benefício dos seres.
praticantes, iluminados ou não, em
participar de atividades que não causem

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Se Buda está livre dos condicionamentos, começa ensinamentos mais sofisticados do


como é possível que ele veja os objetos da mahayana com uma citação de Nagarjuna
mesma forma que nós? Um Buda vê uma no Mulamadhyamakakarika: "Se algo aqui
mesa onde vemos uma mesa? partiu de mim, então cometi um erro", e
algumas vezes uma citação do
De fato ele, por ele mesmo, não vê como Vigrahaviavartani: "Me prostro ao Buda,
nós. Mas ele vê a nossa ignorância e assim que nunca afirmou uma tese". Que nunca,
vê o que nós vemos, e dessa forma pode se de fato, arrazoou a partir de uma lógica
comunicar. privada.

Em outras palavras, ele não usa a palavra Uma mente iluminada é totalmente
mesa para se referir ao objeto mesa porque desapegada a tudo? É uma mente que
seja isso a que ele esteja se referindo, ou pensa, mas reconhece tudo como apenas é?
aquele um objeto da percepção dele — mas Ou é uma mente vazia? Como é uma mente
porque essa é a nossa referência e esse o iluminada?
objeto da nossa percepção.
Ela é totalmente desapegada a tudo, o que
Enfim, a sabedoria do Buda não só é o mesmo que reconhecer as coisas como
reconhece as coisas como elas são, mas realmente são, é uma mente vazia, mas não
reconhece todas as possíveis distorções das é uma mente vazia de tudo e qualquer
coisas também como elas são, distorções. coisa, é uma mente vazia (como todos os
Ele não perde o reconhecimento de fenômenos também sempre foram, e
quaisquer distorções possíveis, e por isso mesmo nossa mente, do jeito que é agora,
ele é lúcido. Por isso também lucidez, é também) de reificação. Não reificar e
sabedoria e compaixão são a mesma coisa. desapegar é a mesma coisa. O apego é
meramente estar na dependência de algo
Como uma nota adicional, esse é um ponto reificado como externo, separado. Não
crucial para a dialética consequencialista, a existe nada externo, separado.
prasangika, visto que a própria noção de
uma lógica independente, privada, é A essência da mente iluminada é abertura,
considerada um engano. Então os claridade e afetuosidade. Abertura é não
prasangikas não só tomam os argumentos fixação, não dependência, liberdade.
dos outros como os outros os entendem (e Claridade é lucidez, interesse, inteligência,
os refutam, ambas as coisas sendo o curiosidade num sentido de se envolver
natural, considerando que quaisquer com as coisas. Afetuosidade é compaixão,
premissas são arbitrárias) como a própria empatia, capacidade de agir. Esse é o
concatenação entre os elementos potencial de todos os seres, que é
argumentativos é própria "do outro", e ela atualizado nos Budas.
é seguida "de acordo com o outro". Sua
Santidade o Dalai Lama muitas vezes

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O Budismo tem as ideias de Perfeição e de coemergência, em todo e qualquer


um "ser perfeito"? fenômeno.

Um Buda é um ser perfeito. Então, em certo sentido, "escapar" não se


aplica, mas reconhecer. Sofremos não pela
Buda não é o único ser perfeito? interdependência em si, mas por não
reconhecer a interdependência e agirmos
Buda é um título. O que o Buda ensinou é de acordo com esse não entendimento,
como revelar a natureza de buda, que todos sermos parciais, e produzindo tensões que
os seres sencientes possuem. Então a recaem sobre nós. Um Buda age com o
perfeição é possível a todos, e existem conhecimento completo de toda a rede
inúmeros praticantes na história (e fora interdependente, portanto ele não produz
dela), dignos de receber o título Buda. nada que venha a "surpreender" ele, ele
não possui "regiões de indiferença",
Nesse kalpa, que é o período desde a "externismos", partes não incluídas, seres
formação até a destruição deste sistema de não incluídos, e assim por diante.
mundos, diz-se que haverá 1002 Budas.
Buda Shakyamuni é o quarto. Depois haverá Se existe compaixão infinita, como pode
100 kalpas sem Buda algum, e um kalpa com existir sofrimento? O sofrimento é um
84.000 Budas. Depois 500 kalpas sem Buda infinito maior?
algum, e então 16.000.000 de Budas em um
só kalpa... e assim segue, não Esse é um ponto importante dos
necessariamente numa progressão, porque ensinamentos: o Buda não pode ajudar
há períodos maiores e menores, e números ninguém só pelo lado dele. A existência de
maiores e menores de Budas em cada kalpa. um fenômeno independente é negada pelo
Como eles sabem disso, daí eu não sei. Se budismo. Nós praticamos para que a
isso é fato, também não sei. Mas é utilizado compaixão infinita dos Budas possa ser
para nos colocar na perspectiva de que ao reconhecida e exercida, essa é a nossa
renascermos em kalpas negros, não há parte. Da mesma forma, nossa natureza é
chance de prática — portanto há urgência tal que a compaixão infinita já existe
em nos tornarmos Buda nessa mesma vida. latente, só precisa ser revelada.

Buda escapou da interdependência? Então o que ocorre é que a ação compassiva


depende do objeto da compaixão. Quem
Buda é vazio, interdependente, nunca se deparou com alguém que não quer
inseparativo e coemergente — como todo e ser ajudado? Tomar refúgio é começar a
qualquer outro fenômeno. Aliás, realizar a querer ser ajudado pelo Buda. A conclusão
natureza de Buda é reconhecer o Buda, isto é que nem mesmo toda a ajuda e
é, reconhecer a realidade: vacuidade, compaixão do mundo são suficientes para
interdependência, inseparatividade,

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quem continua a crer numa existência Para onde vai um buda quando acorda?
independente. Quando deixa de se manifestar no sonho?
Ele vai para uma terra pura?
O Buda não criou as coisas. A pergunta
surge num entendimento das coisas que Um Buda não vai nem vem, não fica nem sai.
propõe que o sofrimento e a compaixão Na verdade, além de todos estes conceitos,
existam num mundo. O sofrimento e a porque são projeções do sonho, de uma
compaixão são qualidades da mente. ignorância básica que forma a noção do
espaço e da causalidade ordinários.
Então, aonde o ser acordado habita? Qual a
essência de um ser desperto? Quando esperamos que um Buda opere
como nossa mente espera que objetos
Um ser desperto está acordado para a operem, que possuem localização, surgem
realidade. Os seres dos seis reinos habitam por condições e desaparecem por
sonhos de ignorância, que parecem sólidos condições, não entendemos o que é Buda, e
apenas para suas respectivas ignorâncias, portanto não entendemos nossa própria
mas não existem de verdade. O estado natureza. É a reificação de noções como
desperto habita o espaço básico, prenhe de estas "deixa de se manifestar", "passa a se
todas as possibilidades, mas cuja textura é manifestar", que produzem todas as formas
livre de reificação que possa produzir a de sofrimento.
noção de "aqui" ou "ali".
Quando acordamos de um sonho na noite,
A completa inexistência de uma essência, a descobrimos que estivemos o tempo todo
vacuidade, é a "essência" (o que no mesmo lugar, em nossa cama. Da mesma
caracteriza) todos os seres, um ser desperto forma, o Buda acorda para o estado que
é alguém que reconhece isto, portanto sua sempre existiu, mesmo em meio ao sonho.
"essência" (o que caracteriza) é a realização Podemos usar palavras tais como "espaço
da vacuidade, o que é idêntico a compaixão. básico" ou "terra pura incondicionada" para
A natureza de Buda é, portanto, a total descreve-lo, mas estas palavras apenas
liberdade perante todas as fixações, a servem para acalmar nossa ignorância,
ausência de reificação das coisas falsas, tais dando pontos de referência que nos façam
como um "eu" ou uma "essência" dos pensar isso ou aquilo sobre o que é um
objetos e de si próprio. Essa claridade (com Buda. O que há de fato, além do sonho, só é
relação ao que é, ao que é real) possui um visto por quem acorda. Tudo que podemos
aspecto criativo, radiante e luminoso — que fazer, no sonho, presos às aparências do
é o aspecto de compaixão, a disponibilidade sonho, cheios de noções de tempo e
total, que vem dessa abertura total. espaço, sem falar em noções mais
grosseiras ainda do que essas, é ver as
coisas nesses termos. A partir da ignorância,
nunca reconheceremos a sabedoria.

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Precisamos começar da sabedoria, daí desconectado de tudo. Essa é uma visão


vemos como a ignorância se forma. que o Papa e os filósofos do século
Enquanto isso, só nos resta praticar, dentro retrasado tentaram passar sobre o
do sonho, com nossas coisinhas de sonho — budismo, mas que nada tem a ver com
o que não é pouco: gerar mérito. budismo.

Quando se atinge a iluminação, a Um ser iluminado não renasce mais, certo?


consciência para, deixa de existir? Mas, se for assim, como ele continuará
beneficiando os seres?
Dependendo da escola, até 8 tipos de
consciência são descritas no budismo. O Usa-se a palavra "emanação" para os
Buda é acordado, isso significa, ciente, surgimentos que não são embasados em
onisciente — portanto necessariamente preferências e inclinações, mas sim em
consciente. Porém nenhuma consciência compaixão. Esses surgimentos ocorrem de
que surja através de causas e condições é acordo com os méritos dos seres, já que do
um obstáculo para a iluminação, embora lado do Buda não há surgimento ou
elas também, por si só, não estejam cessação. A compaixão é incessante e não
necessariamente presentes num ser tem princípio. Então, do lado dos seres que
iluminado. têm mérito, parecem surgir Budas; do lado
dos Budas, nada, em lugar algum, jamais
Mas se a sua pergunta é se um ser surgiu. Uma sabedoria luminosa atemporal,
iluminado está "apagado", inconsciente, ou o que quer dizer sem início e sem fim, mas
se sua mente cognoscente "some": não, é não eterna, cuja natureza é a compaixão,
exatamente o contrário disso que a incessantemente parece brotar perante os
tradução da palavra "Buda" significa. Isto é, seres com mérito — mas por si só ela nunca
desperto, acordado. Aliás, é esse fator de aumenta ou diminui, piora ou melhora, não
luminosidade que dá origem ao termo é local.
"iluminado" — que até mesmo a nossa
"iluminação" histórica, lá no século XVII, Ou, no mínimo, tal compaixão brotou
apropriou. O esclarecimento, a inteligência, apenas uma vez no registro histórico, 2600
a razão — valores que influenciam o anos atrás. Isto para os seres com o menor
pensamento até hoje — a eles foi dado o mérito possível para praticar o budismo.
nome de "iluminação", sem um sentido Para os seres de vasto mérito, encontrar
místico, especial. Mas o Buda é totalmente dezenas de mestres iluminados no período
esclarecido, essa clareza tem uma de uma vida humana, nestes tempos
qualidade viva, presente — é uma degenerados, não é difícil.
vivacidade, um estar acordado, atento. Isso
é "bodhi", de onde vem "buddha". Portanto Os budas, enquanto praticantes, também
um Buda não é alguém que está apagado formulam aspirações. Assim ele, quando
perante as coisas, num mundo próprio, atinge o mérito infinito do resultado,

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unificado com sabedoria e compaixão, aparece e desaparece é o mérito dos seres,


dentre todas as atividades iluminadas o Buda nunca se desvia do incondicionado,
possíveis, ele preenche em particular do não causal e do não local, e nunca está
aquelas que aspirou durante o caminho. Por preso a extremos tais como "ir" e "vir".
exemplo, Buda Amitaba fez aspirações
ligadas com o sofrimento do momento da Mas essa era exatamente uma das 14
morte, e com a possibilidade de facilitar a perguntas que o Buda não respondia. O que
prática espiritual mesmo das pessoas que é morte para alguém acordado? A morte faz
cometeram grandes desvirtudes: assim ele parte do sonho.
foi capaz de manifestar uma Terra Pura
relativamente fácil de se alcançar. Basta No Budismo existe a noção, como em outras
lembrar de Amitaba no momento da morte tradições, de pessoas que deixam este
que o renascimento na Terra Pura da mundo sem ter que passar pela morte
Grande Bem-aventurança, onde a pessoa física? E por que o Buda teve que
poderá seguir praticando o darma até a envelhecer e morrer se ele já tinha
iluminação, é garantido pelas aspirações do alcançado a perfeição?
Buda Amitaba — mesmo que a pessoa
tenha cometido muitas ações desvirtuosas Sim, no vajrayana há alguns modelos de
durante aquela vida. morte "sem apodrecimento", sendo que
alguns podem ser metafóricos, e outros
Gostaria de saber o que acontece com o podem ser mais miraculosos mesmo.
Buda a partir da morte física dele, ele
renasce novamente ou não? No nível hinayana a sua segunda pergunta é
respondida assim: Buda era um homem
O termo para surgimento ou nascimento perfeito, não um ser humano imortal, que
implica ignorância. O Buda nunca surge, e não só não faz parte da perfeição de um
portanto nunca cessa. Coisas que surgem, homem, como é algo impossível.
cessam. O Buda parece nascer e surgir de
acordo com o mérito dos seres a serem Há dois grilhões entre os 10 descritos no
domados, mas em verdade, ele, do lado hinayana, que impedem a prática espiritual.
dele, está livre de surgimento. O Buda, Um deles é desejar a imortalidade física, e
desde o princípio sem princípio, é não outro desejar a imortalidade de uma alma
nascido. Essa é nossa verdadeira natureza. ou eu eterno. Não sei bem se é desejar ou
Nós nascemos e morremos porque nos buscar. Acho que no nível da aspiração, uma
fixamos às aparências através da energia do vida bem longa é uma boa aspiração,
hábito. mesmo no hinayana. Mas nada pode ser
eterno, e mesmo os deuses do reino da não
Como a compaixão do Buda não tem forma — há quatro tipos deles — que
limites, onde quer que haja seres com duram mais do que o tempo de formação e
mérito, um Buda é reconhecido. O que destruição de um "universo" físico —

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eventualmente morrem de acordo com os


ensinamentos budistas. Vamos clarificar alguma confusão nessa
pergunta. Não só o Buda realiza a
No nível mahayana, o Buda, vacuidade. E há vários tipos de realização da
completamente lúcido, acordado e além vacuidade. Todos os seres nobres realizam
dos sonhos, surgiu como um ser de sonho a vacuidade: isso inclui Arhats, bodisatvas
para dar ensinamentos de sonho para seres do 8º bhumi (nível) e acima, e Budas. A
de sonho. Assim ele manifestou uma morte realização da vacuidade de um arhat é
de sonho e um envelhecimento de sonho diferente da de um Buda em algumas
para ensinar sobre a impermanência. E de tradições. Então se fala em vacuidade do eu
fato algumas vezes é louvado como aquele e vacuidade dos fenômenos, e portanto,
que envelheceu e morreu apenas para dar o vacuidade estreita e vacuidade ampla.
ensinamento da impermanência — como Segundo algumas escolas, os Arhats
alguém que se sujeita a algo em benefício realizam apenas a vacuidade estreita.
dos outros. Embora o Buda estivesse lúcido,
e, segundo os ensinamentos mais elevados Então como o termo "realização da
do mahayana, seu surgimento, como um vacuidade" não é unívoco, podemos falar
todo, fosse pelo benefício dos seres. Então em "eliminou as aflições", inclusive a
é quase como que dizer o Buda que ignorância. Eliminar a ignorância,
completamente acordado se sujeitou ao estritamente falando, é reconhecer a
sonho dos seres sonhantes, para dar um realidade como é, isto é, realizar a
ensinamento de sonho sobre o estar vacuidade dos fenômenos. E a ignorância é
acordado. a raiz das demais aflições mentais.

Portanto, no mahayana o sonho humano do São as aflições mentais que levam alguém a
Buda é também apenas um sonho. Ao ser renascer. Quando usamos a palavra
perguntado sobre o que ele era, se era um "renascer" isso significa "ser levado pelo
Deus, um ser humano, um fantasma, o Buda carma (pelas ações de corpo, fala e mente
respondeu apenas "sou (estou) acordado". causadas por aflições mentais) a um
E é daí que vem o nome Buda: "sou Buda" nascimento". Portanto alguém que não
se traduz como "estou acordado". possua aflições mentais não renasce. A
mesma distinção entre grande vacuidade e
No Lankavatara o Buda diz "ensino pequena vacuidade se dá entre aflições
renascimento para os alunos de pouca mentais grosseiras e sutis. Um bodisatva de
capacidade. Para os de grande capacidade, 8º bhumi, portanto, renasce apenas através
ensino o que está além da vida e da morte." da aflições mentais sutis. As aflições
mentais sutis são as tendências de hábito,
Se o buda é aquele que realizou a como se fossem sementes estéreis. Elas não
vacuidade, então ele nunca deixa de chegam a ser perseguidas e se
renascer, ou melhor, de se manifestar? transformarem em aflições mentais

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grosseiras, mas existem como "latências". história contada para um tipo de ignorância
Essas latências produzem um renascimento, que temos. Para outro tipo de ignorância, se
mas não um renascimento simplesmente vai dizer que o Buda é nossa própria
sem controle (como os sonhos bons e ruins natureza, que também nunca nos
durante nossa noite), mas um sonho abandona. Quando se fala em sabedoria,
direcionado com lucidez para benefício dos daí não há Budas ou seres sencientes, nem
outros. Ainda há algo a depurar, mas há um caminho budista e todas essas coisas. O que
grande grau de controle sobre o há é o que há para um ser que possui
nascimento. sabedoria, e eu não sei o que é isso. Mas
com certeza um Buda não guarda, para si, a
No caso dos Arhats, eles também noção arbitrária de si mesmo como um
dissolveram completamente as aflições Buda. Isso não quer dizer que ele não saiba
mentais grosseiras. Se eles dissolveram as que é um Buda, é diferente. Ele não tem um
aflições sutis, isso é ponto de debate. Mas "eu" que é um Buda, ele é uma mero sonho
com certeza no hinayana é ensinado que de Buda para uma pessoa que possui
eles não renascem mais. mérito.

No caso dos Budas, não há aflições mentais Os despertos estão no nosso sonho? Eles
grosseiras ou sutis, mas há as qualidades da possuem corpo físico?
mente, tais como generosidade. Um Buda
jamais temeria o tecido de sonho, e jamais Se nosso mérito não é suficiente, eles
abandonaria os seres, portanto, de acordo surgem com um corpo que o seu mérito
com os méritos dos seres, ele surge. Ele não pode entender. Ou seja, se o seu mérito é
surge de "seu próprio lado", isto é, para o maior, você não precisa ver o Buda
Buda, surgimento e não surgimento são substancialmente. Do lado dos Budas eles
etapas da ignorância. Um Buda não opera não possuem nada, e eles só estão no nosso
através de nascimentos ou mortes, que são sonho do nosso lado, pelo lado deles, só
causados pelos 12 elos da originação, que tem lucidez.
começam com a ignorância. Portanto é
incorreto dizer que, do ponto de vista do O que seria este sonho que você fala? O ser
Buda, ele nasça. Do ponto de vista dos seres iluminado (fora do sonho), quando "morre"
que se beneficiam do nascimento do Buda, se mistura a este fluxo incessante que dá
ele nasce. Do ponto de vista do Buda, este movimento a tudo, a vida? Ou Seja, ele
nascimento é uma mera encenação. perde a noção de "eu" e se mistura a tudo?

Mas a resposta mais simples é que o Buda Um ser iluminado não está fora do sonho —
nunca abandona os seres. Isto pode ser ele não teme o sonho. Ele só reconhece o
explicado de uma forma dual, como um sonho como ele é, um sonho. Quando ele
Buda lá fora que atingiu a iluminação antes morre é exatamente como quando ele vive
de nós e agora nos protege: essa é uma — na verdade ele morre como um display

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(uma exibição, um show) para os outros, e Buda, portanto, não decidiria "ah, agora
ele também vive como um display para os chegou a hora de eu fazer um concurso
outros. Em "si mesmo" ele nem morre nem público" — ele veria as causas e condições
vive. Não há um "em si mesmo", ele apenas com sua onisciência, e se fosse benéfico
reconhece isto, ele não faz com que seja para os seres, ele poderia surgir em
assim — essa é uma diferença bem grande: qualquer lugar. Até mesmo como cobrador
o eu, agora, já não existe. Ele é só um de ônibus, camelô, presidente, hippie de
engano. feira de artesanato — mesmo como animal,
como presidiário, como prostituta. É claro
A noção de eu, o apego a um eu, é que, do lado dele, ele não é — como nós
perdida(o) muito antes da iluminação, mas também não somos — nenhuma coisa
isso não implica mistura alguma, muito particular. Mas, para benefício dos outros, e
menos a um "tudo" místico. A de acordo com suas necessidades e méritos,
inseparatividade com tudo (com cada coisa) um Buda pode manifestar qualquer forma.
já opera, o tempo todo: ela só é
reconhecida. Agora, o curioso é pensar que o ser com um
mérito infinito precisaria trabalhar para
É importante entender: o eu já não existe ganhar dinheiro. O maior problema dos
desde o princípio sem princípio, essa não seres com grande realização, nem vou dizer
existência é só reconhecida. Budas, porque Budas não tem problemas, é
ter tempo para utilizar beneficamente toda
O sonho é uma mera manifestação da a riqueza que recebem continuamente
liberdade incessante do estado desperto. como oferenda. O trabalho maior deles é
Ao reificarmos as aparências tais como oferecer a riqueza, não acumular.
"eu", "outro", "mundo" e as tomarmos por
reais, surge a insatisfatoriedade, A extinção das aflições mentais é o fim do
expectativa e medo, as aflições mentais e sofrimento?
todos os 84.000 sofrimentos. Em outras
palavras, deixamos de reconhecer o Buda, e Sim, a extinção das aflições é o fim do
nesse engano vagamos indefinidamente. sofrimento, o chamado "nirvana".
Sofrimento é definido como "presença de
Se uma pessoa revelar o estado de buda, aflições".
mesmo assim ela pode voltar a uma vida
normal? Por exemplo, passar num concurso É verdade que, quando se atinge o nirvana
público, ter família etc.? percebe-se que nada muda, que as coisas
sempre foram do mesmo jeito?
A vida sempre é normal, em particular para
um Buda. Um Buda não faz as coisas por Esta frase vem do zen. Elas nunca mudaram,
impulsos próprios, mas de acordo com as mas o que muda, e muito, é nossa
necessidades e os méritos dos seres. Um percepção. As coisas já são como elas são.

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Nossa percepção cheia de aflições mentais, tornarem Arhats, e isso foi profetizado
no entanto, não nos permite ver as coisas também.
como elas são. Com o nirvana, nada muda
nas coisas — o que muda, e muito, é nossa Na visão mahayana, a iluminação é muito
percepção delas. Então faz sentido dizer superior ao estado de arhat. Diz-se que se
que nada muda, mas faz ainda mais sentido houverem 500 arhats (que atingiram o
dizer que, para nós, cheios de ignorância, nirvana) dentro da possibilidade imediata
tudo parece mudar. de ajuda do Buda, e um único bodisatva,
alguém que busca a iluminação e não
O nirvana é simplesmente uma percepção apenas o nirvana, o Buda escolhe ajudar o
da realidade obtida pelo desapego, que bodisatva. Ele puxaria um riquixá com esse
proporciona um alívio e uma paz único bodisatva e não ajudaria os
duradoura? praticantes que buscam o nirvana — um
objetivo inferior segundo o mahayana.
O nirvana não é uma percepção da Shantideva disse que um praticante do
realidade: é a percepção da realidade. As mahayana deveria sentir ânsia de vômito ao
outras percepções não são da realidade, são contemplar um objetivo inferior como o
de mundos filtrados pelas lentes das nirvana.
aflições mentais — entre elas o apego, sem
colocar o apego em primeiro lugar. Em Então, mesmo sendo uma realização
primeiro lugar está a ignorância. A paz no bastante elevada (o nirvana, o estado de
nirvana não é meramente duradoura, ela é arhat), ela não é considerada elevada o
definitiva. suficiente, e de fato considerada bem
inferior, na perspectiva do caminho do
Então a definição de nirvana é o bodisatva. Dentro do escopo do caminho do
reconhecimento da realidade além das bodisatva, a eliminação completa e
aflições mentais. As aflições mentais definitiva das aflições mentais ocorre no
produzem o samsara, portanto a eliminação oitavo nível de 10. Esta realização é
delas é o nirvana. equivalente a de um arhat, mas como o
bodisatva tem bodicita, e o arhat não tem,
É algo extremamente incomensurável a o 8º nível de um bodisatva é infinitamente
quem vive no sonho e não pratica? superior ao nirvana. O 10º nível é o último
antes de um Buda.
O nirvana é um resultado bastante raro.
Mesmo entre os alunos do Buda, enquanto Bodisatvas de 8º nível são também bastante
o Buda estava vivo, poucos atingiram esse raros.
resultado. Algumas centenas, talvez.
Chamam-se Arhats. Muitos alunos do Buda Qual a diferença entre iluminação e
estavam a uma ou duas vidas de se nirvana?

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Nirvana é a extinção completa das aflições escape à impermanência. Até se pode dizer
mentais. Iluminação é nirvana mais a que a natureza de buda não é
conquista ou o revelar de todas as impermanente, se for possível
qualidades de um Buda. compreendê-la como algo não composto,
não separativo.
Iluminação e nirvana são estados distintos?
Pelo que entendi: Um Buda não dissolve sua Quando o Buda entra no Nirvana, ele se
mente no nirvana quando "morre", mas dissolve? Por isso ele não renasce mais? Ou
está constantemente presente em tudo que ele está apenas presente?
existe?
O Nirvana significa ausência de aflições
Há diferença entre nirvana e iluminação: mentais, então ausência dos reinos. Porém,
segundo o mahayana "nirvana" é o objetivo no caso do Buda, além de nirvana ele atingiu
do hinayana e iluminação o objetivo do a iluminação, o que significa que além de
mahayana. Shantideva diz que um dissolver os reinos, ele surge no sonho dos
bodisatva deveria ter ânsia de vômito ao reinos de acordo com os seres que sonham,
pensar em ir para o nirvana abandonando e isto é a prática de compaixão, uma das
os seres-mães no sofrimento. qualidades não necessariamente presente
em grande quantidade no nirvana, mas
A segunda colocação eu não afirmaria. Tudo presente em qualidade e quantidade
no Buda que era dissolvível se dissolve já no infinitas na iluminação. Portanto, do lado do
nirvana em vida. Nada muda após a morte, Buda, ele não está em reino algum, mas do
exceto que os seres, pela sua falta de nosso lado, ele surge no reino humano e nos
mérito, perdem uma referência. Por outro dá um exemplo humano, que podemos
lado, eles ganham um ensinamento sobre a seguir — devido a nosso mérito em
impermanência. conjunção com suas qualidades infinitas.

Como o estado de Buda é a verdadeira Qual o significado da palavra "emanação"


natureza de cada um, e como ele é a no contexto do Budismo Tibetano? O que se
essência da cognição — o estado desperto quer dizer com isto?
— , que agora está impedida pelos filtros
das aflições mentais, quando esse filtro é A essência de todos os Budas é a mesma, e
diminuído ou abaixado, somos capazes de não é diferente da de qualquer outro ser. A
ver o Buda. O Buda é a experiência de diferença entre os seres sencientes como
inseparatividade. Pode-se dizer então que nós e um Buda é que o Buda revelou
"está constantemente presente", mas completamente esta essência.
apenas nesse sentido. Caso contrário o
Buda teria que dizer que ele é especial A diversidade de manifestações do Buda é
porque a impermanência não opera nele — completamente livre para surgir de acordo
e não há nenhum fenômeno composto que com as necessidades dos seres. Assim, a

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forma de um Buda surge para nós de acordo darmakaya, e enfim o sobhavikakaya e o


com nossas peculiaridades. vajrakaya. Isso quer dizer que através
daquela prática vamos revelar as qualidades
Enquanto ele apenas manifesta um não do yidam no mundo, ou em outras palavras,
alterar do que é natural e incessante, a vamos reconhecer estas qualidades,
realidade nua, não fabricada, ausência sempre presentes desde o princípio sem
completa de fixações e arbitrariedades, a princípio, operando em todos os
liberdade se revela em cada evento, fenômenos.
fenômeno e particularidade, e isto é o que
chamamos "vacuidade". Esse mesmo O que o vajrayana tem de curioso é o
espaço amplo é o que dá vazão para a próprio uso da peculiaridade como
compaixão que é a energia ou transcendência. É uma vacuidade "bem
luminosidade, que preenche humorada" esta que surge com nove
completamente este espaço e é cabeças, chifres, trinta e dois braços,
indistinguível dele. Para cada forma que dezesseis pernas e em união sexual. Ela
surge perante nós como fixação e falta surge numa forma bastante específica, para
desse reconhecimento, há um Buda dizer o mínimo, e isso é o aspecto de
correspondente, que é o próprio desvelar luminosidade, um não desperdiçar de
daquela mesma forma particular em oportunidade e um esbanjar de compaixão.
cognição além de objeto e observador, Imaginar uma forma geral, uma forma pura,
nessa esfera sem limites e luminosa. um ponto, algo assim, é, ainda assim,
imaginar uma forma particular. Então
Quando falamos em uma emanação, porque não imaginar uma forma bem
falamos que ocorreu o reconhecimento de particular, que segura um moedor de café
uma dessas qualidades particulares na na mão? E aquele moedor de café por si só
forma de alguém ou até mesmo alguma basta como visualização, porque nele, como
coisa. No zen uma das emanações do Buda em qualquer dos outros elementos, está
foi um graveto sujo de cocô. todo o sentido do vajrayana.

No caso mais específico de mestres em que Então, quando completamos certas práticas
reconhecemos um yidam, é simples, eles gerais, nosso professor nos dá a prática do
realizaram a prática daquele yidam yidam. Não devemos contar a ninguém
completamente. Se pensamos a prática do quem é nosso yidam, isso seria frívolo, seria
yidam como algo através do qual a pessoa uma gafe, visto que, se ainda não o
passa a ser algo que não era, não realizamos completamente, estamos
entendemos a prática do yidam. No apenas tentando nos promover. De fato,
vajrayana, quando tomamos uma iniciação isso vale para qualquer prática e qualquer
o mestre nos diz que somos o yidam, e diz coisa que fazemos no budismo, o melhor é
que temos o potencial para realizar o só comentar com quem participa daquela
nirmanakaya, o sambogakaya e o

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prática, e no caso do vajrayana e da prática inanimados — os Budas podem se


do nosso yidam, apenas com nosso lama. manifestar de todas essas formas para
trazer benefício para os seres que possuem
E pode ser que não seja para aquela vida. méritos.
Pode levar algumas vidas praticando, mas
então revelamos aquelas qualidades Buda conviveu no mundo de sonho por
representadas pelo yidam. E quando existe compaixão. Mas quando dormia, ele
uma plateia que usufrui e revela essas sonhava?
qualidades de forma aberta e irrestrita, esse
é o sentido de "nirmanakaya" ou do que Os grandes professores não tem sonhos
chamamos emanação. durante a noite. O Buda só aparentava
dormir para dar um ensinamento aos seres
E então retornamos aos grandes mestres, de sonho. Ele só parecia dormir, no sonho
como estas formas particulares são no dos outros.
fundo de uma só essência, conhecendo-se
uma, conhece-se a todas. Realizando uma, Como saber se a ideia de iluminação não é
realiza-se todas. Diante de uma plateia de um subterfúgio dos mestres para fazer com
seres a serem domados, surge como que as pessoas pratiquem um caminho de
Manjushri, diante de outra, surge como lucidez, gerem virtude e sejam felizes
Avalokiteshvara. Pode ser que nos pareça verdadeiramente? Parece-me que seria
ter um sabor mais laranja, mas o sabor uma mentira digna!
branco está ali também. E o lama é a fonte
de todos os yidams. É o contrário de uma Tudo que pode ser dito sobre o caminho
tradição teísta, em que há avatares, seres budista, no sentido último, é falso, e é uma
que manifestam a divindade no mundo. O mentira. No zen um poeta louva o Buda
guru manifesta a divindade unindo o céu e como "o grande mentiroso". Na verdade,
a terra, e ele é o soberano na mandala de tudo que pode ser dito (visto, pensado,
todos os yidams. cheirado, sentido), ponto, no sentido
último, é uma mentira, uma falsidade, um
Levando em consideração que o estado engano, uma ilusão, um sonho e assim por
desperto, a natureza de buda, é uma diante.
qualidade natural em todos os seres, pode
haver algum ser iluminado que se No sentido convencional, essas coisas tem
manifeste, ou já se manifestou, em nosso sua verdade convencional. Essa verdade
benefício sem ter tido nenhum contato com deve ser convencionalmente respeitada.
o budismo? Então tudo que pode ser dito sobre a
iluminação não faz jus ao que o Buda quer
Sem nenhum contato formal com a sanga dizer por ela. Se nem mesmo o Buda pode
nessa vida? Sim. Inclusive sem nenhuma falar corretamente sobre iluminação, que
religião, inclusive animais e seres dirá quem não é Buda. Mas a fala do Buda,

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que inclui a palavra "iluminação", é de O Buda tem dois corpos, o darmakaya e o


utilidade convencional para aqueles que rupakaya. O darmakaya é o corpo
seguem o Buda. É basicamente isso. verdadeiro do Buda, isto é, o que está de
acordo com a natureza da realidade, e
Será que alguém consegue reconhecer que portanto é não nascido. Esse é o corpo do
se liberou, ou "atingiu a iluminação"? Ele Buda como um Buda o vê. Daí, pelo mérito
simplesmente pode ter "acordado" e dos seres, surge o rupakaya, o corpo da
percebido que tudo é assim mesmo, "é forma, que os seres veem de acordo com
como é", e continuar levando uma vida suas necessidades e seus méritos. Seres de
normal? grande mérito veem um rupakaya puro,
seres de pouco mérito veem um rupakaya
Não, o relato dos Budas é que tudo é 100% impuro. O rupakaya puro é o sambogakaya,
diferente — mesmo que, para beneficiar os o corpo de deleite, o rupakaya impuro é o
seres, eles eventualmente assumam nirmanakaya, o corpo de emanação, como
externamente uma aparência 100% por exemplo, o do Buda que nasceu em
normalzinha. Kapilavastu cerca de 2500 e tantos anos
atrás e morreu 82 anos depois. Ambos os
Quando um ser senciente torna-se buda, no corpos do rupakaya surgem por compaixão.
que esse ser se transforma, já que o Os três corpos não são essencialmente
sofrimento, samsara e o carma são distintos, eles são um único corpo, com três
extintos? percepções: de sabedoria, de ignorância
com muito mérito pura e impura. Pureza e
Um Buda não é um ser que pertence a impureza referem-se as aflições mentais, no
nenhum reino. Ele é acordado, e não sonha caso da impureza, são os filtros grosseiros
de forma alguma qualquer dos seis sonhos. das aflições mentais, e no caso da pureza,
Porém, pelo benefício dos seres, e de apenas o filtro das tendências habituais
acordo com o mérito deles, Budas surgem sutis destas aflições.
no sonho dos seres, como amostras da
própria natureza essencialmente acordada O que é Darmakaya?
de cada um. Na radiância natural da mente
desperta, não há nem mesmo Budas. Mas O Buda tem dois corpos, um verdadeiro e o
Budas surgem como o jogo incessante da outro uma aparência para benefício dos
natureza que tenta revelar a si própria seres. O corpo verdadeiro do Buda é o
perante as aparições fantasmagóricas dos darmakaya, isto é, literalmente, corpo do
seis reinos, inclusive do reino humano. darma, ou corpo da realidade. Da
compaixão do Buda brota o outro corpo,
O que são darmakaya, sambogakaya e que possui dois tipos: o sambogakaya, que
nirmanakaya? é uma forma pura, para beneficiar seres
sublimes — e o nirmanakaya, que é uma
forma pura para beneficiar seres como nós.

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O darmakaya é a ausência completa de


fixações, isto é, liberdade e lucidez, livre da
ignorância da reificação do espaço e do
tempo.

O que é liberdade?

Ausência de fixação (flexibilidade cognitiva),


ausência de responsividade
(energia/disposição estável) e ausência de
distração (uma mente dócil que permanece
sem esforço onde a colocamos). As
condições criadas pelo carma passado são o
aprisionamento externo, as causas que
criam o carma, as aflições mentais, são o
aprisionamento interno, e o
aprisionamento secreto é o não
reconhecimento do buda inseparativo, a
ignorância. Eliminando a ignorância, não há
aflições mentais, e as condições externas
aprisionadoras naturalmente cessam. Na
ausência de qualquer obscurecimento ou
obstrução, o sol da natureza de buda brilha
desimpedido como num céu sem nuvens.

O que é o "nirvana"? É um lugar?

Nirvana é a ausência completa e a


impossibilidade de ressurgimento das
aflições da indiferença, desejo e aversão.

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