CARNEIRO - O Legado Da Escravidão No Brasil

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O legado da escravidão sobre a

democracia existente no Brasil1


Sueli Carneiro2

Boa noite a todas, todos e todes!


Quero inicialmente, mais uma vez, agradecer, na pessoa do professor
Alexsandro Santos, à Escola do Parlamento pela parceria que está nos permitindo
abrir, nesta noite, esse curso sobre Raça, Gênero, Democracia e Participação Política.
Um curso que contará com a expertise e brilhantismo de professores e pro-
fessoras tais como Hélio Santos, Jones Manoel, Gabriel Sampaio, Matheus Gato
Jesus, Luciana Brito, Edilza Sotero, Maria Betânia Ávila, Rosane Borges, Luiz
Augusto Campos, Vilma Reis, Allyne Andrade, Juarez Xavier, Selma Moreira,
Sales Augusto, Uvanderson da Silva, Douglas Belchior, Ricardo Henriques,
Juliana Gonçalves aos quais aproveito a oportunidade para também agradecer
por aceitarem participar dessa iniciativa e compartilhar com a nossa audiência
os seus saberes.
Então, tendo em vista que teremos o prazer e o privilégio de ouvir essas
referências que irão aprofundar as questões que esse curso se propõe a tratar,
pretendo nessa breve exposição inicial apenas ressaltar as dificuldades e desafios
com os quais temos nos defrontado nessa difícil jornada de mulheres e homens
negros para efetivar e desfrutar de princípios fundamentais da democracia que
são a igualdade de direitos e de oportunidades na sociedade brasileira.
Entendo que boa parte dessas dificuldades que temos enfrentado se devem
a duas matrizes teóricas que por longo tempo determinaram a visão sobre a natu-
reza das relações sociais no Brasil.
A primeira dessas matrizes teóricas, a noção de democracia racial como afir-
mou o sociólogo Carlos Hasenbalg, se constituiu em “uma poderosa construção

1 Participação de Sueli Carneiro na aula inaugural do Curso de Extensão Universitária Raça,


Gênero, Democracia e Participação Política no Brasil em parceria com o Geledés Instituto da Mulher
Negra em 22/09/20, transmitida online em https://www.facebook.com/eparlamento/
videos/328234174904517 a partir de 17’37”- texto fornecido pela autora.
2 Filósofa, feminista antirracista, escritora e ativista do movimento social negro brasileiro. Possui
Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (acesse a tese em https://repositorio.usp.
br/item/001465832), é fundadora e coordenadora executiva de Geledés — Instituto da Mulher Negra.

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ideológica, cujo principal efeito tem sido manter as diferenças inter-raciais fora da
arena política, criando severos limites às demandas do negro por igualdade racial”3.
Estas condições apontadas por Hasenbalg, permitiram que a visão da demo-
cracia e cidadania venha se construindo tendo por paradigma às necessidades e
interesses das populações brancas, o conforto que elas desfrutam nas relações
sociais, ignorando as desigualdades existentes entre os diferentes segmentos raciais
e como essas desigualdades são produzidas por estigmas acerca da raça e dos gêne-
ros com impactos determinantes nas violações de direitos humanos no Brasil.
A outra matriz teórica é a força do pensamento de esquerda em nossa tra-
dição cultural, que ao privilegiar a perspectiva analítica da luta de classes secun-
dariza as desigualdades raciais, obscurecendo o fato da raça ser determinante na
configuração da estrutura de classes do país.
Essas duas matrizes ideológicas, o mito da democracia racial e a perspec-
tiva da luta de classes, têm, portanto, em comum, a minimização ou o não-reco-
nhecimento ou a invisibilização da importância do racismo para as questões dos
direitos humanos, da justiça social e para a consolidação democrática.
Nesse contexto, a contribuição que os movimentos sociais negros e de
mulheres vem oferecendo aos esforços contemporâneos de defesa da democracia
que a atual conjuntura impõe é afirmar em alto e bom som e cada vez mais, que
com racismo e com sexismo não haverá democracia, pois como afirma Boaventura Sousa
Santos, a missão dos movimentos sociais, é ser “a consciência do que não há”.
Então com esse mantra com racismo e sexismo não há democracia, esses movi-
mentos sociais contemporâneos tanto denunciam que racismo e sexismo pro-
duzem déficit democrático, como estabelecem as condições necessárias e ainda
inexistentes para a efetivação da experiência democrática para a maioria da popu-
lação no Brasil.
A democracia pressupõe primeiramente, o direito a ter direitos, e o pri-
meiro direito violado das racialidades oprimidas e subalternizadas pelo racismo
e pelo sexismo é o direito à vida.
É de Michel Foucault a concepção segundo a qual o século XIX assiste à
emergência de uma nova tecnologia de poder que ele denominou de biopoder,
concebido como a nova forma de exercício do poder soberano sobre a vida e a
morte, que se traduz no direito do Estado de decidir quem deixar viver e quem
deixar morrer. Essa é para Foucault a primeira função do racismo, estabelecer essa

3 HASENBALG, Carlos. Raça e Mobilidade Social. In C. HASENBALG e N. V. SILVA (eds.),


Estrutura Social, Mobilidade e Raça. Rio de Janeiro: Iuperj/Vértice, 1988

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distinção sobre quais as vidas que o Estado deve proteger e quais pode abando-
nar. A segunda função do racismo seria para Foucault promover a assepsia social
pela “eliminação dos inferiores, impuros, anormais ou diferentes pois: “é o que
vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura.”
Assim, para Foucault, “A função assassina do Estado só pode ser asse-
gurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo.”
(Foucault, 2002, p. 306).
É nessa perspectiva que inscrevemos a negritude no signo da morte no Brasil,
a partir das evidências das distinções que se apresentam no processo nascer-adoe-
cer-morrer, ou simplesmente no processo viver-morrer dos negros no Brasil.
O biopoder é uma biopolítica, em que gênero e raça articulam-se produ-
zindo efeitos específicos quanto ao viver ou morrer, demarca diferentes formas
de assunção do corpo-alvo segundo o gênero.
O controle sobre o gênero feminino negro se dá fundamentalmente pela
violação dos direitos reprodutivos das mulheres negras e pela violência domés-
tica e sexual que determina o feminicídio.
Sobre o homem negro, prevalece a violência racial institucional que pro-
move o genocídio da juventude negra. E para ambos, homens e mulheres negros,
estão disponíveis as mortes preveníveis e evitáveis que as comorbidades do aban-
dono social produzem. A pandemia do Covid 19 nos oferece diariamente exem-
plos, os mais cruéis da perspectiva genocida, que informam o abandono e descaso
do Estado para com os seres humanos que ele decretou como indesejáveis.
Assim, o biopoder instala os segmentos inscritos no polo dominado da
racialidade, numa dinâmica em que os “cídios”4, em suas diferentes expressões,
os abarca, os espreita como ação ou omissão do Estado, suportado pela conivên-
cia, tolerância ou indiferença de grande parte da sociedade. Extermínios, homi-
cídios, assassinatos físicos ou morais, pobreza e miséria crônicas, ausência de
políticas de inclusão social, tratamento negativamente diferenciado no acesso à
saúde, inscrevem a negritude no signo da morte no Brasil.
Tal como afirma Foucault são essas condições que permitem compreender
“porque os Estados mais assassinos são, ao mesmo tempo, forçosamente os mais
racistas.” (Foucault, 2002, p. 309). A esse processo genocida e eugenista informado
pelo biopoder, Achille Mbembe denominou de necropolítica.

4 Etimologicamente, “cídio” é definido como “(...) ação de quem mata ou o seu resultado, (...) deitar
abaixo, imolar. Dicionário Houaiss, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 714

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Nesse contexto de uma “democracia de baixa intensidade”, expressão de


Boaventura Sousa Santos, essa democracia de baixa intensidade que temos expe-
rimentado historicamente, a resistência negra se configura em esforço dramá-
tico de preservação do primeiro e mais elementar dos direitos humanos, que é o
direito à vida.
Com racismo e sexismo não há democracia, e o segundo direito humano
violado dos negros nessa democracia de baixa intensidade em que vivemos é
o direito de ir e vir. A cena social se configura para os grupos subalternizados
racialmente como uma espécie de panoptismo5, estando os corpos negros sempre
submetidos à lógica do vigiar e punir.
São tipos humanos sob os quais pesa o estigma de suspeitos a priori. Daí por-
que a negros não se aplicam alguns dos princípios elementares de direitos huma-
nos: o de não ser preso ou detido arbitrariamente e o da presunção de inocência.
A interdição ao direito de ir e vir se torna possível pela construção em rela-
ção à coletividade negra, de um sentimento generalizado de “convicção íntima de
culpa”6. Convicção íntima de culpa é uma figura do campo jurídico que resvala
para o cultural e social, e no caso do negro a cor opera como metáfora de um crime
de origem, do qual a cor funciona como uma espécie de prova, de marca ou sinal
que justifica a presunção de culpa, e a culpa presumida pelo a-priori cromático
desdobra-se em punição a-priori, preventiva e educativa, que para Foucault con-
siste numa autorização para condenar sem provas”.
A suspeição transforma a cena social para os negros no espaço onde se
realiza a vigilância e a punição como tecnologias de controle racial.
Então, os atos infracionais dos negros são a consequência esperada e pro-
movida da substância do crime que é a negritude como afirmou recentemente a
juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, que condenou
um homem negro a 14 anos por organização criminosa e cometer furtos no cen-
tro de Curitiba. Como justificativa, ela escreveu em sua decisão que o suspeito é
“seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”. Portanto a
matéria punível é a própria racialidade negra.
Com racismo e sexismo não há democracia. A terceira forma de violação aos
direitos humanos dos negros diz respeito à impossibilidade aos negros e negras
de realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, objeto de diferentes

5 Em seu livro “Vigiar e Punir”, Foucault caracteriza o panoptismo como um poder na forma de
vigilância individual e contínua, com intuito de controle, castigo e recompensa, e também como
forma de correção
6 Ibidem, pag.10

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mecanismos de interdição que vão dos processos de seleção e alocação no mer-


cado de trabalho, no qual a brancura opera como critério de seleção preferencial
aos melhores postos e ocupações profissionais. Estão presentes no acesso diferen-
cial à terra ou às dificuldades colocadas para a sua preservação e titulação.
Seguem-se as dificuldades no acesso à educação de qualidade e as dificul-
dades interpostas pelas desconfianças sobre a educabilidade dos grupos étnicos e
raciais não hegemônicos, a desvalorização de seus valores culturais, a imposição
da aculturação nos valores ocidentais e a um conjunto de estratégias de reprodu-
ção da inferioridade cultural.
Com racismo e sexismo não há democracia. Quero aludir, por último, a
um direito persistentemente negado por diferentes modalidades de interdições,
o direito à participação política dos negros, seja como sujeito político que sus-
tenta a luta e resistência negra, sejam os limites impostos à representação polí-
tica institucional.
Comecemos pela democracia representativa que tem no voto seu ins-
trumento básico de funcionamento e que, conforme alerta a Plataforma Política
Feminista, o voto, “vigora no Brasil como se fosse a única prática legítima de
exercício de poder, apesar da forte crise de legitimidade de suas instituições. (...)
A democracia representativa ainda está impregnada dos perfis racista, sexista e
classista da sociedade brasileira, que consolidaram um poder hegemônico de face
masculina, branca e heterossexual, em que pesem as diferenças político-ideoló-
gicas entre os partidos. Essa situação tem sido ainda agravada pela política libe-
ral/conservadora vigente que, com seus mecanismos de poder junto ao sistema
econômico e ao sistema de comunicação de massa, restringe as possibilidades de
disputa política para muitos segmentos7.
Nesse sentido, a Plataforma Política Feminista oferece à sociedade a sua
contribuição para uma sociedade democrática e socialmente justa. Sinaliza clara-
mente para a urgência de instituição de um novo marco civilizatório no interior
do qual impõe-se a necessidade de avançar a democracia política porque com
racismo e sexismo não há democracia.
Por isso, Marielle Franco paira sobre nós como metáfora extrema de tudo
o que há para dizer sobre racismo e sexismo e a interdição ao direito à represen-
tação política para mulheres e negros. Um assassinato que contêm em si todos os

7 Plataforma Política Feminista aprovada na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (CNMB)


em 6 e 7 de junho de 2002. Parágrafos 12 e 13.

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elementos essenciais para a compreensão das relações raciais e de gênero no Brasil


e como essas relações se configuram no presente.
Marielle era a expressão completa ou síntese perfeita do que chamamos de
interseccionalidades que o feminismo negro aporta ao debate sobre as questões
de gênero em que se articulam gênero, raça, classe, território e identidade sexual.
Marielle Franco é assassinada no momento em que o protagonismo das
mulheres negras alcança o seu maior grau de visibilidade, afirma o seu lugar de
fala, demarca as condições necessárias para que o feminismo possa se tornar um
instrumento emancipatório efetivo para todas as mulheres, portador de um novo
contrato racial e de gêneros que desestabilize as hierarquias e violências físicas e
simbólicas instituídas pelo racismo e o sexismo.
Em entrevista sobre esse assassinato, a pesquisadora Flávia Rios afirma
que Marielle desempenhava um “mandato coletivo” e que esse crime “assassina
simbolicamente todas as mulheres que representam pautas coletivas na política.
Esse assassinato revela ainda a disposição de certos setores da sociedade em
levar às últimas consequências as formas de intimidação daquelas e daqueles que
se dispõem a defender os direitos fundamentais e a denunciar as suas violações.
A população negra, pelas condições históricas de exclusão que bem conhe-
cemos, tem enormes dificuldades para alcançar instâncias de poder em qualquer
dos espaços institucionais.
Chegar ao Parlamento tem sido experiência solitária de algumas poucas
mulheres negras, e quando uma representação política com a extraordinária
dimensão social como a de Marielle Franco é ceifada, provoca revolta e indigna-
ção, pois sabemos o esforço extraordinário que foi necessário para construir uma
liderança política como Marielle Franco e todo o esforço e tempo que demandará
construir uma nova representação com a densidade e potencialidade dela.
Digo sempre e reitero que Marielle era uma promessa de gestora pública,
uma promessa de mandato popular de deputada estadual, federal e senadora,
tudo o que nela se vislumbra como perspectiva de futuro.
Antes dela, somente Benedita da Silva encarnou e realizou essas expec-
tativas, trazendo pela primeira vez para a arena política essa síntese das múlti-
plas formas de opressão vividas pelas mulheres negras: mulher negra, favelada,
empregada doméstica, feminista, evangélica, vereadora, deputada federal, sena-
dora, ministra e governadora do estado do Rio de Janeiro.
Marielle espelhou com sua vida e seu curto mandato coletivo estórias que
falam de opressão, territórios segregados e barreiras rompidas por gestos heroicos
ou pequenas e cotidianas resistências. Mulheres negras, primeiro escravas, depois

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