CARNEIRO - O Legado Da Escravidão No Brasil
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ideológica, cujo principal efeito tem sido manter as diferenças inter-raciais fora da
arena política, criando severos limites às demandas do negro por igualdade racial”3.
Estas condições apontadas por Hasenbalg, permitiram que a visão da demo-
cracia e cidadania venha se construindo tendo por paradigma às necessidades e
interesses das populações brancas, o conforto que elas desfrutam nas relações
sociais, ignorando as desigualdades existentes entre os diferentes segmentos raciais
e como essas desigualdades são produzidas por estigmas acerca da raça e dos gêne-
ros com impactos determinantes nas violações de direitos humanos no Brasil.
A outra matriz teórica é a força do pensamento de esquerda em nossa tra-
dição cultural, que ao privilegiar a perspectiva analítica da luta de classes secun-
dariza as desigualdades raciais, obscurecendo o fato da raça ser determinante na
configuração da estrutura de classes do país.
Essas duas matrizes ideológicas, o mito da democracia racial e a perspec-
tiva da luta de classes, têm, portanto, em comum, a minimização ou o não-reco-
nhecimento ou a invisibilização da importância do racismo para as questões dos
direitos humanos, da justiça social e para a consolidação democrática.
Nesse contexto, a contribuição que os movimentos sociais negros e de
mulheres vem oferecendo aos esforços contemporâneos de defesa da democracia
que a atual conjuntura impõe é afirmar em alto e bom som e cada vez mais, que
com racismo e com sexismo não haverá democracia, pois como afirma Boaventura Sousa
Santos, a missão dos movimentos sociais, é ser “a consciência do que não há”.
Então com esse mantra com racismo e sexismo não há democracia, esses movi-
mentos sociais contemporâneos tanto denunciam que racismo e sexismo pro-
duzem déficit democrático, como estabelecem as condições necessárias e ainda
inexistentes para a efetivação da experiência democrática para a maioria da popu-
lação no Brasil.
A democracia pressupõe primeiramente, o direito a ter direitos, e o pri-
meiro direito violado das racialidades oprimidas e subalternizadas pelo racismo
e pelo sexismo é o direito à vida.
É de Michel Foucault a concepção segundo a qual o século XIX assiste à
emergência de uma nova tecnologia de poder que ele denominou de biopoder,
concebido como a nova forma de exercício do poder soberano sobre a vida e a
morte, que se traduz no direito do Estado de decidir quem deixar viver e quem
deixar morrer. Essa é para Foucault a primeira função do racismo, estabelecer essa
distinção sobre quais as vidas que o Estado deve proteger e quais pode abando-
nar. A segunda função do racismo seria para Foucault promover a assepsia social
pela “eliminação dos inferiores, impuros, anormais ou diferentes pois: “é o que
vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura.”
Assim, para Foucault, “A função assassina do Estado só pode ser asse-
gurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo.”
(Foucault, 2002, p. 306).
É nessa perspectiva que inscrevemos a negritude no signo da morte no Brasil,
a partir das evidências das distinções que se apresentam no processo nascer-adoe-
cer-morrer, ou simplesmente no processo viver-morrer dos negros no Brasil.
O biopoder é uma biopolítica, em que gênero e raça articulam-se produ-
zindo efeitos específicos quanto ao viver ou morrer, demarca diferentes formas
de assunção do corpo-alvo segundo o gênero.
O controle sobre o gênero feminino negro se dá fundamentalmente pela
violação dos direitos reprodutivos das mulheres negras e pela violência domés-
tica e sexual que determina o feminicídio.
Sobre o homem negro, prevalece a violência racial institucional que pro-
move o genocídio da juventude negra. E para ambos, homens e mulheres negros,
estão disponíveis as mortes preveníveis e evitáveis que as comorbidades do aban-
dono social produzem. A pandemia do Covid 19 nos oferece diariamente exem-
plos, os mais cruéis da perspectiva genocida, que informam o abandono e descaso
do Estado para com os seres humanos que ele decretou como indesejáveis.
Assim, o biopoder instala os segmentos inscritos no polo dominado da
racialidade, numa dinâmica em que os “cídios”4, em suas diferentes expressões,
os abarca, os espreita como ação ou omissão do Estado, suportado pela conivên-
cia, tolerância ou indiferença de grande parte da sociedade. Extermínios, homi-
cídios, assassinatos físicos ou morais, pobreza e miséria crônicas, ausência de
políticas de inclusão social, tratamento negativamente diferenciado no acesso à
saúde, inscrevem a negritude no signo da morte no Brasil.
Tal como afirma Foucault são essas condições que permitem compreender
“porque os Estados mais assassinos são, ao mesmo tempo, forçosamente os mais
racistas.” (Foucault, 2002, p. 309). A esse processo genocida e eugenista informado
pelo biopoder, Achille Mbembe denominou de necropolítica.
4 Etimologicamente, “cídio” é definido como “(...) ação de quem mata ou o seu resultado, (...) deitar
abaixo, imolar. Dicionário Houaiss, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 714
5 Em seu livro “Vigiar e Punir”, Foucault caracteriza o panoptismo como um poder na forma de
vigilância individual e contínua, com intuito de controle, castigo e recompensa, e também como
forma de correção
6 Ibidem, pag.10