Linguagem Juridica

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3.

3 Vocabulário Jurídico

Parece, à primeira vista, que o vocabulário jurídico não se limita apenas


aos termos de pertinência jurídica exclusiva. Ele se estende a todas as
palavras que o direito emprega numa acepção que lhe é própria. Ele engloba
todos os termos que, tendo ao menos um sentido no uso ordinário e ao menos
um sentido diferente aos olhos do direito, são marcados pela polissemia, mais
precisamente por esta polissemia que se pode chamar externa (em razão da
sobreposição de sentidos de uma mesma palavra no direito e fora do direito,
em oposição à polissemia interna). Estes termos de dupla pertinência são
muito mais numerosos que os termos de pertinência jurídica exclusiva.

A soma de todos estes elementos constitui um subconjunto da língua,


uma entidade distinta caracterizada, no seio do léxico geral, pela juridicidade
do sentido das unidades que a compõem.

Estas unidades são repertoriadas. Cada uma é definida nos dicionários


especializados. Seu conjunto bem merece o nome de vocabulário, se se aceita
considerar como tal toda subdivisão específica do léxico geral. Se se admite,
mais precisamente, que o conjunto dos termos empregados num domínio do
conhecimento para exprimir o caminhar desse conhecimento constitui o
vocabulário desse domínio, o direito, nesse sentido, tem seu vocabulário.

Resumidamente, pode-se dizer que o vocabulário jurídico é composto


pelos seguintes tipos de termos:

1. termos que possuem o mesmo significado na língua corrente e na


linguagem jurídica, por exemplo, hipótese, estrutura, confiança, reunião,
critério, argumentos, etc.;
2. termos de polissemia externa, isto é, termos que possuem um
significado na língua corrente e outro significado na linguagem jurídica;
por exemplo:
 sentença — na língua corrente significa uma frase, uma oração; já na
linguagem jurídica, significa a decisão de um juiz singular ou
monocrático;
 ação — na língua corrente significa qualquer ato praticado por alguém,
na linguagem jurídica é a manifestação do direito subjetivo de agir, isto
é, de solicitar a intervenção do Poder Judiciário na solução de um
conflito, podendo, assim, ser sinônimo de processo, demanda;
3. termos de polissemia interna, isto é, termos que possuem mais de um
significado no universo da linguagem do Direito; por exemplo:
 prescrição (prescrever) — pode significar na linguagem jurídica:
determinação, orientação, por exemplo: A lei prescreve em tais casos
que se aplique o art. pode também significar a perda de um direito pelo
decurso do prazo, por exemplo: O direito de agir, em tais casos,
prescreve em dois anos;
4. termos que só têm significação no âmbito do Direito; não têm outro
significado a não ser na linguagem jurídica; por exemplo, usucapião,
enfiteuse, anticrese, acórdão, etc.;
5. termos latinos de uso jurídico; por exemplo: caput, data venia, ad judicia,
etc.

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3.5 Características da Linguagem Jurídica

No seio da língua nacional, a linguagem jurídica se singulariza por


alguns traços que a constituem como linguagem especializada. A
especificidade dessa linguagem refere-se, como já vimos, à existência de um
vocabulário jurídico e às particularidades do discurso jurídico. Esta
especificidade pode ser analisada sob outro ângulo, se introduzirmos outras
considerações, como aquelas referentes às pessoas, ao assunto ou à história.
A linguagem do direito é, sob a reserva de uma ambiguidade que pesa sobre
todas essas características, uma linguagem de grupo, técnica e tradicional.
Esta ambiguidade de que se fala resulta de ser a linguagem jurídica ao mesmo
tempo culta (na sua origem), popular (por destinação), técnica (na produção).
Sua juridicidade a especializa quando sua finalidade é a de se destinar a todos.

Uma linguagem de grupo — a linguagem do direito é principalmente


marcada por aquele que “fala” o direito: por aquele que o edita (legislador) ou
aquele que o diz (juízes), mais amplamente, por todos aqueles que concorrem
para a criação e para a realização do direito.

Sob certo ponto de vista, a linguagem jurídica é uma linguagem


profissional. É a linguagem pela qual os membros das profissões judiciárias e
jurídicas exercem suas funções; aqueles que a empregam no cumprimento de
suas tarefas, os magistrados, os advogados, os tabeliães, etc. Não é, pois, a
linguagem de uma só profissão, mas de um ramo de atividades. Este caráter
profissional atenua-se, entretanto, pelos parlamentares e membros das
administrações que fazem uso da linguagem jurídica, sem ser profissionais do
direito.
Sob a mesma reserva, deslocando um pouco o ponto de vista, a
linguagem do direito é, mais amplamente, a linguagem da comunidade dos
juristas. A “família” dos juristas é mais ampla do que o círculo das profissões
jurídicas. A linguagem do direito é um traço comum daqueles que têm uma
formação jurídica. Nesses casos, ela é uma linguagem cultural.

A linguagem do direito não é, entretanto, para o grupo, um meio de


comunicação de uso interno. Nemo jus ignorare censetur. A linguagem do
direito tem a vocação de reinar não somente sobre as trocas entre iniciados,
mas na comunicação do direito a todos a ele sujeitos. Nesses casos, pode-se
dizer que a linguagem do direito é uma linguagem pública, social, uma
linguagem cívica. Esta destinação geral conduz a uma distinção essencial.

O domínio da linguagem do direito por um grupo é um “fato de posse”. O


fato linguístico e sociolinguístico é que a comunicação está sob a influência
quase exclusiva do emissor, não somente porque ele é linguisticamente o
agente da expressão e, fundamentalmente (em geral), o autor da mensagem,
mas porque ele domina, por profissão, tanto a expressão como o código (no
sentido linguístico) e o referente (o código, no sentido jurídico do termo).

Mas a consideração do destinatário da mensagem jurídica introduz na


análise contrapontos de caráter normativo. Ela faz de início reconhecer — é
uma evidência — que o domínio do grupo não estabelece em seu favor
nenhum monopólio de direito. Todos os cidadãos têm direito a manifestar sua
opinião. Sobretudo esta consideração com o destinatário lembra aos juristas a
função social da linguagem jurídica. A máxima “A ninguém é dado ignorar a lei”
implica dizer que a linguagem do direito é, senão a linguagem do povo, pelo
menos uma linguagem para o povo. O poder da linguagem cria, pois, para seus
detentores um dever de linguagem em relação a seus destinatários.

Uma linguagem técnica — A especialidade da linguagem do direito


refere-se também a sua tecnicidade. É a tecnicidade do próprio direito. A
especialidade da linguagem vem aqui da matéria. A linguagem jurídica é
técnica, principalmente por aquilo que ela nomeia (o referente);
secundariamente, pelo modo como ela enuncia (isto é, sobretudo por seu
vocabulário e por seu discurso).

Ela nomeia as realidades jurídicas, isto é, essencialmente as instituições


e as operações jurídicas, entidades que o direito cria, consagra ou modela.
Assim ela nomeia todos os níveis dos poderes públicos, todas as formas de
atividade econômica, as bases da vida familiar, os contratos, as convenções.
O direito nomeia igualmente as realidades naturais e sociais que ele
apreende e transforma em “fatos jurídicos”, atribuindo-lhes efeitos de direito.
Assim, ele nomeia os delitos e as situações jurídicas.

Mais geralmente o direito nomeia todos os elementos que o pensamento


jurídico recorta da realidade, para torná-los noções jurídicas, categorias (é este
recorte original que engendra o vocabulário técnico).

Enfim, os próprios enunciados do direito são também, frequentemente,


técnicos, porque eles seguem o pensamento jurídico em suas operações mais
árduas: interpretação, apreciação, pressuposição, qualificação, raciocínio, etc.

Uma tal tecnicidade contribui para excluir a linguagem jurídica da


comunicação natural. Mas é importante compreender:

1. que, nos limites acima traçados, a tecnicidade da linguagem do direito é


uma exigência irredutível da função social do direito;
2. que a disputa entre a linguagem técnica e a linguagem corrente (culta
padrão) é um problema mal colocado. De início porque a linguagem
corrente não é uma alternativa da linguagem jurídica. São dois
elementos complementares. A linguagem do direito baseia-se na língua
que a conduz. As marcas técnicas não são senão pontos em relevo
sobre o fundo claro da linguagem corrente. Em seguida, porque muitas
vezes se confunde a tecnicidade da linguagem jurídica com o uso de
arcaísmos, ao qual a tecnicidade não está necessariamente ligada.

Uma linguagem tradicional — A linguagem do direito é, na maior parte,


um legado da tradição. Pelas máximas do direito esta tradição é imemorável.
Para a linguagem legislativa e a linguagem judiciária, a referência é mais
recente. Pode-se dizer que a linguagem jurídica do século XX não difere
fundamentalmente daquela do século XIX. A especialidade da linguagem do
direito é, quanto a isso, inscrita na história. A perenidade relativa dessa
linguagem reforça e coroa sua originalidade.

Esta observação, entretanto, apresenta nuances que devem ser


esclarecidas, a fim de evitar graves mal-entendidos.

Deve-se deduzir que a linguagem do direito é arcaica? Na definição de


arcaísmo, a antiguidade é um elemento necessário, mas não suficiente. Tudo
que é arcaico é antigo, mas tudo que é antigo não é arcaico. A presença de um
termo velho ou mesmo antigo num texto de lei em vigor ou num aresto recente
não é suficiente para tachá-lo de arcaísmo. O arcaísmo não aparece senão a
partir do momento em que um fato de linguagem (termo ou torneio) que é
supostamente anterior a uma mutação jurídica e/ou linguística perde, pelo fato
desta mudança, a força que tinha no início do uso, para cair mais ou menos
rapidamente em desuso.

O critério de perda do uso, entretanto, vai depender da linguagem a que


se refere. Há muito menos perdas na linguagem jurídica, pois é raro que um
termo caia em desuso na comunidade dos juristas que é conservadora.

A impressão de arcaísmo que o leigo experimenta advém, muitas vezes,


porque a linguagem jurídica, para designar coisas correntes, continua a
empregar termos que não são mais do uso corrente, mas essa impressão não
procede quando a linguagem jurídica emprega, para designar as coisas
jurídicas, os termos de precisão que não têm nenhum equivalente no léxico
geral, por exemplo, enfiteuse, anticrese, etc. A raridade de seu emprego,
mesmo entre os juristas, não é índice de seu desuso, mas somente efeito da
raridade de suas aplicações.

Outro erro seria acreditar que a linguagem do direito é fixa. Ela evolui. A
importância do neologismo no vocabulário jurídico é a principal manifestação
dessa evolução. A renovação da linguagem do direito não é uniforme; varia em
função da área, manifestando-se principalmente nas matérias que são objeto
de reformas fundamentais. Essa renovação é sobretudo um ato de legislação.
Não somente porque a jurisprudência poderia ser mais conservadora, mas
porque o poder de nomear, sobretudo quando ela acompanha a reforma do
direito, é uma prerrogativa de soberania. O nominalismo é principalmente
legislativo.

É cômodo falar-se em linguagem do direito ou linguagem jurídica. Mas


essa expressão é enganosa se faz nascer a ideia de que uma tal linguagem
corresponde a uma realidade homogênea. A linguagem do direito é plural a
duplo título: ela é plurifuncional e pluridimensional.

No seu conjunto, a linguagem jurídica é uma linguagem prática. Ela está


a serviço do direito. Ela é ordenada à criação e à realização do direito.

Mas esta destinação global não impede que a linguagem jurídica


assuma uma pluralidade de funções; pelo contrário, unida ao direito, do qual é
a expressão, a linguagem assume as diversas funções. Assim, parece de início
que a linguagem jurídica, instrumento de elaboração da lei (no sentido genérico
do termo), do julgamento, das convenções e mesmo da literatura jurídica,
participa das funções legislativa, judiciária, da atividade contratual, da criação
doutrinária, da ação administrativa. A linguagem acompanha todas as fontes e
vias do direito. Ela circula em todos os canais da criação e da realização do
direito.
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3.6 Níveis da Linguagem Jurídica

A linguagem do direito compreende, pois, vários níveis. A suposição


global de uma única realidade é substituída pela observação de muitos níveis
linguísticos. Não existe uma linguagem jurídica, mas uma linguagem legislativa,
uma linguagem judiciária, uma linguagem convencional, uma linguagem
administrativa, uma linguagem doutrinária. O estudo do discurso jurídico não
pode ser feito a não ser por nível de linguagem.

Assim, levando-se em consideração que a finalidade é que atribui a


juridicidade à linguagem jurídica, pode-se detalhar seus níveis em:

1. linguagem legislativa — a linguagem dos códigos, das normas; sua


finalidade: criar o direito;
2. linguagem judiciária, forense ou processual — é a linguagem dos
processos; sua finalidade é aplicar o direito;
3. linguagem convencional ou contratual — é a linguagem dos
contratos, por meio dos quais se criam direitos e obrigações entre as
partes;
4. linguagem doutrinária — é a linguagem dos mestres, dos
doutrinadores, cuja finalidade é explicar os institutos jurídicos, é ensinar
o direito;
5. linguagem cartorária ou notarial — a linguagem jurídica que tem por
finalidade registrar os atos de direito.

A percepção dessas distinções não deve, entretanto, conduzir a


exagerar a sua importância. A rejeição da visão redutora de uma linguagem
jurídica monolítica não conduz à análise extrema de uma superposição de
níveis estanques, estranhos entre si. Há muita interferência e pontos comuns
entre os ramos legislativo, judiciário, doutrinário e outros, que impedem esta
visão contrária. Em cada um desses ramos, a verdadeira redistribuição
consiste em discernir aquilo que lhe é próprio e aquilo que é comum a todos,
isto é, o vocabulário jurídico, e pontos comuns na estrutura dos enunciados.

As distinções que põem em evidência a análise funcional da linguagem


do direito são fundadas sobre o emissor da mensagem jurídica. Sua
importância é primordial e mostra bem a influência preponderante daquele que
fala. Entretanto, o emissor não é tudo na comunicação. O destinatário também
é levado em conta. Tomar o destinatário em consideração introduz outras
distinções, sob o benefício de uma observação que não contradiz essas
distinções, porque essa observação é de ordem jurídica, mas pesa sobre as
distinções.

A máxima: “A ninguém é dado ignorar a lei”, que enuncia uma regra de


direito, dá à linguagem do direito sua dimensão natural. Se o direito é feito para
todos, a linguagem do direito também. O veículo conduz o direito aonde quer
que ele vá. Mas a decomposição do raciocínio faz ressaltar os pontos de
estrangulamento. Se ninguém pode se subtrair à lei alegando ignorá-la, a
exceção de incompreensão é tão inoperante quanto a exceção de ignorância. A
presunção de que cada um conhece a lei decorre da presunção de que cada
um a compreende. E, como a presunção é quase sempre irrefragável, pode-se
temer que a ficção jurídica seja agravada por uma ficção linguística.

Isto sugere, de maneira simples, mas firme, uma direção àquele que
fala. A máxima se volta contra o autor da mensagem. Ela requer dele a clareza,
exige que ele se faça compreender. A máxima jurídica tem um corolário
linguístico: o dever de ser claro. Se a ninguém é dado ignorar a lei, aquele que
faz a lei está sob a lei de saber fazer-se entender. Mas esse dever de clareza é
de ordem prescritiva, é uma recomendação linguística que depende, lato
sensu, do direito linguístico, não da observação linguística.

A tomada de consideração do destinatário faz ver que as relações que


se estabelecem entre o emissor e ele não se desenvolvem, de fato, na mesma
dimensão. Há dois tipos principais de relações.

Na comunicação mais aberta, a mensagem vai de um jurista a um leigo


(ou pelo menos a um destinatário que não se supõe ter uma formação jurídica).
É o caso não somente do texto da lei, mas também de todos os atos individuais
que são levados ao conhecimento daqueles a quem interessam, por uma
notificação. A comunicação se opera de iniciado a não iniciado.

A comunicação é mais fechada quando ela funciona entre iniciados,


todos dotados de uma formação jurídica. A relação da linguagem se estabelece
entre interlocutores de profissão: de advogado a advogado, de advogado a
magistrado. A mensagem de iniciado a iniciado circula de forma fechada.

A distinção dessas diversas relações não esvazia a consideração da


máxima evocada. Ela se afirma sobre outro plano. Aquele dos fatos. É uma
observação linguística que engendra consequências. Sob este ponto também,
a pluralidade reina sobre a linguagem do direito.

A linguagem do direito, pois, não é uma língua e não é una. Mas esta
linguagem existe sob a forma de dois elementos que a constituem in intellectu,
em seu vocabulário, e in actu, em seu discurso, em diversos níveis e diversas
relações que, sobre um fundo comum, fazem viver múltiplas manifestações.

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