6hollowknight Aprendizagem Monomito
6hollowknight Aprendizagem Monomito
6hollowknight Aprendizagem Monomito
Resumo
O herói ainda povoa o imaginário coletivo com encarnações em mídias modernas. Entre
elas, os videogames ocupam posição de destaque devido ao alto poder de interação.
Pensando nisso, o presente artigo busca compreender se os modelos da jornada do herói
propostos por Campbell e Vogler estão incorporados na narrativa de Hollow Knight
(2017). Os objetivos específicos são: a) relacionar o percurso do herói dentro do jogo com
as etapas do monomito; b) propor como uma mídia interativa incita a aprendizagem do
jogador. O procedimento metodológico se caracteriza pelo mapeamento das ações do
herói com o auxílio dos modelos de monomito. O acervo teórico deste trabalho é
composto por Campbell (2007); Kothe (2000); Vogler (2015); Gee (2003); Huizinga
(2019) e Reis (2018), que teorizam sobre o herói, os jogos e as narrativas digitais. Nossas
conclusões evidenciam que a história de Hollow Knight (2017) incorpora as etapas da
jornada do herói com o intuito de desafiar o jogador.
Abstract
The hero still populates the collective imagination with incarnations in modern media.
Among them, video games occupy a prominent position due to the high power of
interaction. With that in mind, this article seeks to understand whether the models of the
hero's journey proposed by Campbell and Vogler are incorporated into the narrative of
Hollow Knight (2017). The specific objectives are: a) to relate the hero's path within the
game with the stages of the monomyth; and b) to propose how interactive media
encourages player learning. The methodological procedure is characterized by the
mapping of the hero's actions with the help of the monomyth models. The theoretical
collection of this work is composed by Campbell (2007); Kothe (2000); Vogler (2015);
Gee (2003); Huizinga (2019) and Reis (2018), who theorize about the hero, games, and
digital narratives. Our evidence shows that the story of Hollow Knight (2017)
incorporates the stages of the hero’s journey to challenge the player.
1
Doutora em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Professora
Adjunta da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-mail: [email protected]
Graduando em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). E-
2
mail: [email protected]
Introdução
(2017) de forma que seja possível identificar as etapas do monomito. Por fim, temos as
considerações finais com as subsequentes referências adotadas.
O que seria o herói? Uma perspectiva mais abrangente pode ser apontada
conforme o pensamento de Martin Cezar Feijó quando o autor afirma que “[...] a história
da literatura é a história da passagem do herói divino para o herói humano” (FEIJÓ, 1984,
p. 63 apud ESPINELLY, 2016, p. 28). Esse pensamento indica que a figura do herói, de
alguma forma, está intrinsecamente relacionada ao macrocosmo da literatura num viés
histórico. Por enquanto, é preciso rememorar algumas noções preliminares para
posteriormente compreendermos a informação exposta.
Do ponto de vista clássico, o herói é um modelo de conduta, um ser próximo aos
deuses e superior aos mortais. É descrito em geral com virtudes diversas, tais como
inteligência, força e coragem, embora também carregue vícios e muitas vezes aja de forma
impulsiva. Hierarquicamente, os heróis clássicos pertencem à classe alta e podem ser
nomeados como “épicos” ou “trágicos” (KOTHE, 2000). Tais definições escapam do
mero formalismo e indicam percursos diferentes de grandeza e de baixeza: enquanto
Odisseu deve retornar à Ítaca e superar incontáveis adversidades, caracterizando assim
sua elevação como personagem, Édipo traça um percurso de queda, da conquistada
condição de rei de Tebas até o exílio.
A questão a ser notada é que o herói se transformou com o passar tempo, pois o
modelo clássico não mais conseguia englobar as novas dinâmicas sociais. Conquanto a
ideia de um herói perfeito paulatinamente tenha sido abandonada para abordar o sujeito
fragmentado da atual pós-modernidade, ainda assim, independente da época, o herói se
mantém como “[...] o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas
pessoais e alcançou formas normalmente válidas, humanas” (CAMPBELL, 2007, p. 28).
Isso significa que tratamos essencialmente de um ser capaz de se transformar, capaz de
realizar uma jornada interna ou externa e voltar diferente, com algo propício ao
desenvolvimento da humanidade.
Por certo ainda parece uma ideia grandiosa imaginar o sujeito contemporâneo em
tal demanda; entretanto, a suprema provação existe e ela representa o destino com o qual
todos devem ser sintonizados (CAMPBELL, 2007). Nesse viés, todo herói traça uma
própria jornada e está percorrendo um caminho de provas sequenciais, todo ser humano,
ao longo da vida, está vivendo uma busca pela transformação pessoal. Esse modelo (ou
jornada) foi originalmente concebido por Campbell como “monomito” e caracterizaria,
segundo o autor, um ciclo cosmogônico presente em todas as mitologias.
Mais tarde, o monomito foi adaptado por Vogler para englobar narrativas
modernas e foi assim definido pelo autor: “A Jornada do Herói é um conjunto
incrivelmente tenaz de elementos que brota incessantemente dos rincões mais profundos
da mente humana; diferente em detalhes para cada cultura, mas fundamentalmente o
mesmo” (VOGLER, 2015, p. 42). Cada etapa da jornada induz uma forma de crescimento
e está associada a diferentes modelos culturais, embora semelhantes no âmago.
De modo sumarizado, ambas as jornadas — de Campbell e de Vogler — indicam
que um determinado herói deve responder a um chamado à aventura. Caso o chamado
seja respondido, o herói abandona o mundo comum e viaja por regiões desconhecidas,
onde conhece aliados, inimigos e é testado continuadamente até alcançar a área da força
maior. Com os conhecimentos adquiridos, pode enfrentar a última provação e retornar
com algo capaz de curar a terra ferida, isto é, o mundo comum.
O crescimento no decorrer da jornada implica a reflexão de que o herói também
carrega profundas marcas psicológicas. Carl Jung, ao dissertar sobre o mito do herói no
desenvolvimento da consciência, afirma que “[...] a imagem do herói evolui de maneira
a refletir cada estágio de evolução da personalidade humana” (HENDERSON, 2016, p.
144). Esse comentário é valioso quando lembramos que os chamados ritos de passagem,
adotados por variadas sociedades tribais, significam a iniciação do adolescente aos
costumes da tribo, quando ele ou ela deve abandonar o mundo anterior e assumir novas
responsabilidades.
A conquista da maturidade sugere a transformação do sujeito. Se o herói deve
abandonar o mundo comum e peregrinar por regiões desconhecidas, conforme os modelos
do monomito, tal alegoria se associa diretamente tanto à provação exigida nos ritos de
passagem quanto aos mitos conservados pelas sociedades tribais, com personagens
heroicos de características variadas. Em meio às encarnações, a figura do herói se
consagra como um símbolo de vitória sobre o inconsciente, quando o homem emerge
amadurecido (HENDERSON, 2016). Sendo capaz de vencer os vícios da imaturidade, o
herói se relaciona profundamente com a passagem para a vida adulta.
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Conceituamos mídia da seguinte forma: “[...] o termo é rotineiramente empregado para se referir a
quaisquer meios de comunicação de massa — impressos, visuais, audiovisuais, publicitários — e até
mesmo para se referir a aparelhos, dispositivos e programas auxiliares da comunicação [...]”
(SANTAELLA, 2003, p. 53). São essencialmente suportes de comunicação e de informação, hoje bastante
diversificados.
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Embora os termos videogames, games, jogos digitais e jogos carreguem nítidas diferenças, neste trabalho
os usamos como sinônimos.
estarem direcionados para uma forma de jogo pré-digital, ainda esbanjam pertinência
suficiente em relação às manifestações atuais de jogo. Desde a ascensão dos arcades até
a cultura dos consoles, os games possuem uma função significante, regras e exigem ação
ativa do jogador, além de serem potencializados por poderosas ferramentas tecnológicas.
Em suma, recapitulando as informações anteriores, sabemos que os jogos
representam uma mídia moderna — no caso, estamos falando dos jogos digitais. O que
interliga os pontos discorridos até agora é o fato dos videogames, em diferentes níveis,
também apresentarem histórias únicas. Carlos Reis caracteriza as narrativas digitais com
os seguintes princípios: “[...] a crescente velocidade de processamento da informação, a
integração dinâmica de elementos multimídia (imagem, som, gráfico), o aumento da
capacidade de armazenamento das mensagens produzidas, a evolução dos sistemas
operativos [...] (REIS, 2018 p. 314). Tais narrativas, como bem comenta o autor, são
heterogêneas pela diversidade de elementos que compõem seus processos de significação.
Importante salientar que isso não as torna superiores em relação a outras formas de
narrativa, apenas significa que apresentam singularidades referentes às formas de
expressão do conteúdo.
Com base nas informações construídas na seção anterior deste artigo, é possível
inferir que o herói, considerando sua continua reencarnação ao longo do tempo, também
estará presente nas narrativas digitais. Sendo o game uma mídia interativa, o jogador, em
controle do personagem central — cujo papel nem sempre se limita ao de herói clássico
—, deve superar os desafios propostos na narrativa digital. Há casos em que essa aventura
do jogador muito se assemelha aos modelos do monomito de Campbell e de Vogler, como
veremos mais adiante.
Inclusive, cabe acrescentar que a experiência do jogador em um dado jogo não se
restringe a momentos de entretenimento. James Paul Gee, ao argumentar sobre o
potencial educativo dos jogos, diz: “[...] jogos são lugares particularmente bons onde
pessoas podem aprender a situar significados através de experiências incorporadas em um
domínio semiótico complexo e a refletir sobre o processo” (GEE, 2003, p. 26, tradução
nossa5). De modo conclusivo, o pensamento de Gee articula os tópicos discutidos até o
momento. O jogador, em controle de um personagem, atravessa a narrativa heterogênea
No original: “[...] video games are potentially particularly good places where people can learn to situate
5
meanings through embodied experiences in a complex semiotic domain and meditate on the process.”
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Literalmente, a tradução do jogo significa “Cavaleiro Vazio”.
arauto citado por Campbell como a criatura acorrentada. Um monstro aparenta estar
prestes a escapar da prisão, portanto, um herói deve agir para impedir maiores catástrofes.
A situação se torna mais complicada pelo fato de estarmos tratando de uma mídia
interativa. Nesse caso, o jogador, em controle do herói, também está aceitando a missão
proposta. Os controles iniciais do personagem simulam a introdução às regras do
universo, ou regras do jogo, responsáveis por dizer “[...] aquilo que ‘vale’ dentro do
mundo temporário por ele circunscrito” (HUIZINGA, 2019, p. 13, grifo do autor). O
movimento do personagem, o ataque e a habilidade de curar são ferramentas básicas,
regras de fundamentação do herói, por isso, ao aceitar o chamado à aventura, o jogador
deve dominá-las da melhor forma possível se quiser prosseguir sem maiores dificuldades.
Considerando que o herói não recuse o chamado, é comum seu encontro com uma
figura auxiliadora, que seria o mentor, “[...] cujos muitos serviços ao herói incluem
proteção, orientação, ensino, teste, treinamento e entrega de presentes mágicos”
(VOGLER, 2015, p. 173). Tanto a perspectiva de Vogler quanto a de Campbell
caracterizam o mentor, ou auxílio sobrenatural, como um ser de experiência elevada
capaz de guiar o herói. Em Hollow Knight (2017), ao alcançar a aldeia avistada
anteriormente, o jogador encontrará o primeiro NPC7 do jogo, figura que informa o herói
acerca da existência de um reino abandonado abaixo da aldeia. Pelos comentários do
ancião, fica explícito que diversos aventureiros são atraídos pelas riquezas do reino, mas
jamais retornam. Mais do que informar a respeito dos fatos citados, os comentários do
NPC alertam o jogador para os perigos vindouros.
Com a crescente periculosidade da aventura, devemos recapitular os pilares da
jornada construídos até o momento para melhor compreender os passos seguintes. O
jogador assume o controle do herói, responde ao chamado à aventura, aprende as regras
da realidade fictícia e, posteriormente, encontra uma figura de auxílio na aldeia. Daqui
em diante, descendo até as profundezas da aldeia, o jogador estará atravessando o
primeiro limiar da aventura, onde a área da força maior e as trevas o aguardam, ou seja,
o desconhecido (CAMPBELL, 2007). O pensamento de Campbell ilustra a necessidade
de enxergar a travessia do limiar como o momento em que o mundo anterior é deixado
para trás. No contexto do jogo, Hallownest, o reino abandonado, representa a maior área
do game, com inúmeras passagens interligadas e desafios ardilosos. Agora, o jogador
7
Significa Non-Playable Character, isto é, personagem não jogável.
O momento destacado acima representa o encontro com uma das várias placas
espalhadas pelo reino. Percebemos de imediato que o intuito do texto é atiçar a
curiosidade do jogador a respeito de algo grandioso escondido no coração de Hallownest.
Entretanto, para alcançar a verdade prometida, é imprescindível peregrinar até a capital
do reino, trajeto repleto de segredos onde o herói conhecerá aliados e inimigos diversos.
A questão a ser notada é a dualidade existente no percurso da jornada: o herói é a
identidade fantástica capaz de transformar a realidade fictícia, enquanto o jogador é o
guia dessa identidade (MONTENEGRO, 2023). A parceria construída entre essas duas
forças catalisa cada momento da narrativa do jogo, afinal, tratamos de uma mídia
essencialmente interativa.
Inclusive, é proveitoso reforçar o aspecto estrutural da obra. A liberdade para
explorar o mundo de Hallownest é engrandecida graças à organização da narratividade
do game, caracterizada pela não linearidade, isto é, “[...] uma história que o jogador opta
sobre o que quer experienciar primeiro, muitas vezes até podendo chegar ao desfecho da
narrativa sem ter explorado ao máximo todas as suas possibilidades” (RAMOS, 2019, p.
19). O apontamento de Ramos indica o caráter aberto de certos games que estimulam a
exploração do jogador. No caso de Hollow Knight (2017), podemos encontrar tanto uma
estrutura linear tal qual o monomito — evidenciada neste trabalho — quanto uma
estrutura não linear. Frente às possibilidades, o jogador ganha autonomia, uma vez que
sua experiência não está necessariamente pré-determinada.
Após desafios sequenciais, o herói está próximo de enfrentar algo grandioso, pois
agora ele está “[...] encarando o maior desafio e um oponente mais terrível ainda [...] É a
fonte da forma heroica e a chave para o seu poder mágico” (VOGLER, 2015, p. 217). O
pensamento de Vogler considera a Provação como o momento de maior tensão até agora.
De forma semelhante, Campbell também aponta a importância desse estágio da jornada,
todavia, ele postula, recorrendo a narrativas mitológicas, o caráter psicológico da etapa.
Em outras palavras, é comum o herói se perceber como resultado de duas forças distintas,
materna e paterna, forças que não estão dissociadas entre si. Elas são, na verdade,
complementares e caracterizam o movimento de destruição e de criação do universo
(CAMPBELL, 2007). A consequência dessa percepção apoteótica é a conquista de um
elixir, algo capaz de curar o mundo percorrido pelo herói.
Trazendo a compreensão acima para o universo de Hollow Knight (2017), é
possível citar o momento em que o jogador enfim conhece a origem do personagem
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No original: “All learning in all semiotic domains requires identity work. It requires taking on a new
identity and forming bridges from one’s old identities to the new one.”
O destino final em Hollow Knight (2017) leva o jogador ao Templo do Ovo Negro,
onde o confronto decisivo com a criatura acorrentada enfim ocorre. Conquanto o herói
saia vitorioso, ele morre no processo; contudo, os efeitos positivos da batalha acarretam
uma mudança no reino de Hallownest, o que evidencia de forma concreta a importância
da jornada heroica para ocasionar a transformação da realidade. Recapitulando o
pensamento de Vogler, esse ponto da jornada, denominado “Ressurreição”, pode implicar
a morte trágica no herói e o seu consequente renascimento, não necessariamente físico,
mas sim na lembrança de todos aqueles beneficiados pelas suas ações (VOGLER, 2015).
De modo semelhante, a finalização do monomito segundo o modelo de Campbell ressalta
a totalidade do herói enquanto senhor dos dois mundos, o comum e o fantástico, e a sua
infinita capacidade de mudar, afinal, ele é “[...] o patrono das coisas que se estão tornando,
e não das coisas que se tornaram, pois ele é” (CAMPBELL, 2007, p. 236, grifo do autor).
Com a conclusão do monomito, fica explícita a capacidade de metamorfose do herói,
traço condutor de sua humanidade.
Por fim, ao trazer a jornada do herói para a realidade de um game como Hollow
Knight (2017), percebe-se que os princípios subjacentes do ciclo cosmogônico, ou seja,
da caminhada espiritual compartilhada por diversas mitologias, estão inseridos na
narrativa do jogo. Desse modo, o jogador também vivencia momentos de transformação
e de aprendizagem ao desfrutar das particularidades de uma mídia interativa.
Considerações finais
Referências
GEE, James Paul. What video games have to teach us about learning and literacy.
New York: Palgrave Macmillan, 2003.
GIBSON, Ari; PELLEN, William. Hollow Knight. Adelaide: Team Cherry, 2017. 1
Jogo digital.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 9. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2019.