Politicas Saude 5

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AULA 5

POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE

Profª Tania Maria Santos Pires


INTRODUÇÃO

A ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

A implantação da politica de Atenção Primária à Saúde (APS) constituiu-se


no passo mais importante para a democratização do acesso à saúde no Brasil. Os
passos dados nessa direção vieram justamente com o processo de
redemocratização política do país, com a discussão da justiça e equidade e a
necessidade de dar-se novos rumos às políticas públicas de saúde no Brasil e no
mundo.
A evolução das compreensões e dos conceitos do que vem a ser saúde e
doença estão na base dessa mudança, como a primeira grande discussão que
embasa as alterações que se fizeram no sistema de saúde.
O papel da familia e da comunidade é outro fator que se destaca na
produção de saúde e doença e que anteriormente não era levado em
consideração. Reconhecer esses componentes é fundamental para que se
implante um sistema abrangente e humano nas politicas de saúde.

TEMA 1 – NOVOS SIGNIFICADOS DE SAÚDE E DOENÇA

Durante longo tempo no Brasil, o sistema de saúde esteve focado em


atender a doença e por mais que esforços tenham sido feitos na tentativa de
vencer a doença, os resultados demonstrados nos indicadores de saúde foram
muito pequenos. A proposta do SUS aponta a saúde como novo objetivo das
ações. A lei orgânica da saúde fala que o dever do SUS consiste nas ações de
promoção, proteção e recuperação da saúde.
Há uma evidente mudança de foco entre os dois objetivos. Um estava
focado na doença e o outro está focado na saúde, por isso há necessidade de
mudança nos conceitos internalizados nos profissionais de saúde ao longo de
décadas, para que um outro olhar seja criado. A isso chamamos de mudança de
paradigma.

1.1 Conceito ampliado de saúde e doença

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No início do século, o mundo ainda sofria as consequências das grandes
epidemias, sem antibióticos, sem vacinas, com pouco conhecimento da
microbiologia e, portanto, é evidente que os cientistas voltariam seu interesse para
o controle da doença.
Na década de 1930, surgem os primeiros conceitos de saúde. Um deles,
muito representativo é o conceito elaborado por Leriche, cientista francês, que diz
que “saúde é a vida no silêncio dos órgãos” (Leriche, 1931). Ao analisarmos o
conceito de Leriche, notamos que o seu conceito de saúde e doença se restringe
aos fatores biológicos, ou seja, estritamente ao funcionamento do corpo.
Quase vinte anos mais tarde, o mundo ainda sofria com as consequências
da segunda guerra mundial. Os traumas que acometeram as pessoas, mesmo
aquelas que não haviam sido presas ou agredidas diretamente, já eram intensos,
imagine então as consequências sobre aqueles que foram diretamente atingidos?
Mulheres pararam de menstruar sem causa orgânica aparente, grande número de
pessoas desenvolveu comportamentos estranhos, com crises de tremores, dores
intensas em todo o corpo, alterações do sono, sensação de medo e insegurança
constantes, no entanto seus corpos aparentemente estavam saudáveis.
Esta realidade levou a recém-nascida Organização Mundial da Saúde
(OMS), no ano de 1948, a elaborar o conceito de saúde que se tornou oficial e
reconhecido até hoje “saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e
social e não apenas a ausência de doença” (OMS, 1948).
Esta definição expressa a realidade daquele momento. Como dizer que
pessoas que enfrentaram o pós-guerra estariam saudáveis? Mesmo que na época
não se conseguisse identificar quais eram as doenças, é claro que eles não
estariam saudáveis.
Apesar de ser inovador para a época, pelo fato de considerar o bem-estar
como referência e não apenas o funcionamento do corpo, este conceito provoca
atualmente muitas críticas devido o entendimento do termo completo. De fato,
quem teria saúde, segundo este conceito? Quem poderia ter um completo bem-
estar de modo constante? Provavelmente respondendo a estes questionamentos
surge o conceito elaborado por Dubos, outro cientista francês, que disse que
“saúde é o resultado do equilíbrio dinâmico entre o individuo e o seu meio
ambiente” (Dubos, 1965).

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O conceito de Dubos atende de forma melhor a complexidade do processo
saúde e doença. Se de fato pudéssemos saber quanto de nós está contido no
corpo, veríamos que é muito pouco.
Os estudos da sociologia e psicologia comprovaram o conceito de Dubos.
Como seres sociais e intensamente emocionais, o nosso corpo é afetado pelas
nossas emoções e responde a todos esses estímulos. Esses estudos mostram
que crianças deixam de crescer adequadamente se forem privadas de afeto;
homens sozinhos tem mais risco de adoecer e de morrer do que homens casados;
pessoas amarguradas sentem mais dor do que pessoas que sabem perdoar,
enfim tudo mostra que complexidade humana não pode ser restrita e explicada
por meio do corpo.
Sendo assim, doença não mais é o que se pensava que fosse, ou seja,
alterações do funcionamento do corpo que podem ser causados por agressões
infecciosas ou simplesmente pelo envelhecimento ou degeneração e passa a ser
qualquer alteração, de qualquer origem, que possa alterar a qualidade de vida das
pessoas interferindo de modo negativo no seu equilíbrio pessoal.
Esses conceitos abririam uma nova perspectiva para se compreender o que
é saúde e doença de forma mais ampla e mais justa. A partir de então pode ser
observada a influência de outros componentes na produção de saúde e doença,
como a fé, atitudes positivas com relação a si mesmo e aos outros, a capacidade
de perdoar a si mesmo e aos outros, o desenvolvimento da resiliência em
situações críticas, ajudar aos outros em suas dificuldades. Esses componentes se
mostraram tão importantes que estudos sobre longevidade mostram que estas
atitudes impactam mais positivamente a qualidade de vida do que ter o colesterol
na dosagem certa.

1.2 Uma proposta de saúde integral

Apesar de tão lógica, esta forma de pensar sobre saúde e doença não é
facilmente aceita pela maioria dos profissionais de saúde. Isto acontece devido o
modelo de formação aplicado nas universidades. Os profissionais de saúde são
formados dentro dos grandes hospitais e sua formação está centrada na doença
e no modelo biomédico.

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As ciências da saúde, sobretudo a medicina, aprofundam-se no
entendimento da fisiopatologia, que é o estudo de como as doenças funcionam,
mas a intensa especialização nos leva a perder a visão integral da pessoa, com
suas angústias e dúvidas, alegrias e recursos pessoais, enfim, toda a sua história.
As pessoas tornam-se segmentadas em seus vários sistemas e aparelhos e
acontece uma grande dificuldade para juntar tudo de novo, por isso não se
encontram respostas satisfatórias para a doença.
O modelo proposto é um modelo integral de saúde, com a visão da pessoa
como um todo, entendendo que mesmo em pessoas com o mesmo diagnóstico,
o seu adoecimento é diferente, porque serão experiências diferentes com
impactos diferentes nos seus corpos. Neste modelo, consideram-se as questões
sociais, familiares e comunitárias, a profissão e o trabalho exercido, as amizades
construídas, os valores e princípios consolidados na vida. O que somos, ainda o
seremos ao envelhecer, na saúde ou na doença e isto nos diferencia como
pessoas.

TEMA 2 – A IMPLANTAÇÃO DA APS NO BRASIL

A implantação da atenção primária à saúde no Brasil foi acontecendo aos


poucos. Ao implantar-se a Estratégia Saúde da Família em 1994, a ideia do
atendimento territorializado já tinha sido testada em etapas anteriores de acordo
com o desenvolvimento desse mesmo modelo em outros países. Neste tópico,
vamos analisar as etapas da implantação da atenção primária à saúde no Brasil
nos 7 ciclos descritos por Mendes (2012).

2.1 A primeira etapa da APS no Brasil: de 1920 a 1970

No início da década de 1920, os problemas sanitários vividos pelos


brasileiros eram graves e desafiadores para as autoridades de saúde. Além disso,
70% da população vivia em áreas rurais, sem qualquer tipo de assistência publica,
morrendo de doenças infecciosas e parasitárias. Diante dessa situação, o foco da
saúde pública estava nas grandes endemias e epidemias.
Em 1925, provavelmente por influência das mudanças implantadas no
Reino Unido de acordo com a proposta do relatório Dawson, a Universidade de
São Paulo (USP), em associação com os órgãos públicos da saúde do Estado,

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implantou os primeiros centros de saúde de São Paulo, inaugurando o primeiro
ciclo de evolução da APS no Brasil. Isso é muito importante, porque estávamos
ainda na etapa da revolta da vacina, no modelo de polícia médica, com medidas
impositivas para o saneamento das epidemias. A implantação de centros de
saúde sinaliza o início da transição do modelo de polícia médica para o modelo
de educação sanitária, focando na prevenção das doenças e medidas sanitárias.
O segundo ciclo inicia-se na década de 1940 com a criação do Serviço
Especial de Saúde Pública (SESP), atualmente chamada de Fundação Nacional
de Saúde (FUNASA). O SESP foi criado em parceria entre o governo americano,
Fundação Rockefeller e governo brasileiro, com o objetivo de sanear as áreas de
interesse de exportação de borracha da Amazônia, e do minério de ferro no Vale
do Rio Doce (Renovato; Bagnato, 2010).
As ações do SESP foram tão efetivas que se estenderam para todo o
nordeste e depois para todo o Brasil. Eram inspiradas no modelo sanitarista
americano e foi pioneiro na criação de unidades de saúde de APS que articulavam
ações de assistência à saúde e de prevenção (Mendes, 2012).
O terceiro ciclo inicia-se na década de 60 e desenvolve-se nas Secretarias
Estaduais de Saúde, nas Unidades de Saúde do SESP, ampliando o modelo de
assistência, agora direcionada à atenção materno-infantil (Mendes, 2012).
O quarto ciclo acontece nos anos 1970 e já sofre influência das discussões
da Alma-Ata. Seu início acontece no Nordeste do Brasil deliberado pelo Decreto
78.307 que determina o programa de interiorização de serviços básicos de saúde
em comunidades com até 20 mil habitantes, com o objetivo de melhorar as
condições de saúde da região. O segundo artigo do Decreto delineia as ações
mais importantes, descrevendo-as como ações de saúde de baixo custo e alta
eficácia. Os chamados “mini postos” deveriam ser integrados aos sistemas de
saúde das regiões, estabelecendo uma referência regionalizada em cidades
maiores que pudessem apoiar as unidades menores e deveriam ser integradas
aos diversos organismos públicos ligados ao sistema nacional de saúde (Brasil,
1976).
Esse modelo de atuação médica e de ações básicas, foi questionado por
corporações médicas sendo julgado como sendo uma medicina pobre para
atender os pobres, medicina simplificada, porém nada mais era do que o modelo
do médico generalista em prática em muitos países desenvolvidos com ótimos

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resultados. As ações foram tão bem aceitas que o programa foi intensificado, com
aumento significativo das unidades de saúde que passaram de 1.122 em 1974,
para 13.739 em 1984 (Mendes, 2012).

2.1 A segunda etapa da APS no Brasil: As décadas de 1980 e 1990

No início dos anos 1980 manifesta-se uma grande crise financeira do


INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Essa
crise levou ao questionamento dos planejadores de saúde sobre a efetividade do
sistema que comprava serviços da rede privada, com baixo controle de ações,
todas dentro de um modelo curativo focado nos eventos agudos.
De certo modo, a crise do INAMPS fortaleceu as discussões sobre um novo
modelo de atenção conforme proposto em Alma-Ata e que já se mostrara exitoso
com a implantação das ações de interiorização da saúde. Diante da situação, foi
feita a proposta da implantação das Ações Integradas de Saúde (AIS),
inaugurando a quinta etapa de ações da APS.
Essas ações consistiam em integrar as ações dos três níveis de governo,
com os seus órgãos competentes e prestadores de serviços em saúde, como
hospitais filantrópicos e de ensino, junto com as Secretarias Estaduais e
Municipais de saúde. As unidades de saúde passaram a atender também os
usuários da previdência, porém isso causou uma alteração no modelo de atenção,
que deixou de ser generalista para adequar-se ao modelo adotado pelo INAPMS.
O sexto ciclo começa no início dos anos 1990 com a municipalização da
saúde. A partir de então os municípios passam a organizar e ampliar as suas
Unidades de Saúde para adequá-las a um novo padrão de assistência. Em 1992,
duas cidades já estavam aplicando modelos de APS. Curitiba implantava o projeto
piloto de medicina de família na US Pompéia, com apoio de médicos canadenses,
e Niterói o modelo cubano, mas ainda naquele momento não havia um modelo
brasileiro instituído.
O sétimo ciclo da APS começa com a implantação do Programa Saúde da
Família, em 1994.
Após a criação do SUS, havia necessidade de encontrar-se um modelo de
atenção primária. Neste momento, somaram-se as experiências já desenvolvidas
anteriormente, como também as influências dos principais países em Atenção

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Primária, como Inglaterra, Canadá e Cuba, para a formação do modelo brasileiro
de Atenção Primária à Saúde.
A implantação do PSF juntou-se a um outro programa que foi muito
bem-sucedido, o Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS),
implantado em 1991. A primeira experiência do PACS aconteceu no Ceará em
1987, como parte de um programa para combate à seca. Este programa foi tão
bem-sucedido que teve seu modelo ampliado para todo o país.
O PSF foi ampliado rapidamente para todo o Brasil mediante parceria e
financiamento das 3 esferas governamentais. Seus resultados positivos,
sobretudo demonstrado nos indicadores de saúde, o colocaram na condição de
Estratégia de governo, passando a ser denominado desta forma a partir de 2006.
Seu objetivo é “contribuir para a reorientação do modelo assistencial a partir da
atenção básica, em conformidade com os princípios do SUS, imprimindo uma
nova dinâmica de atuação nas Unidades Básicas de Saúde, com a definição de
responsabilidades entre os serviços de saúde e a população” (Brasil ,1997)

TEMA 3 – PRINCÍPIOS E ATRIBUTOS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA

Para que a APS possa exercer o seu papel de orientadora ou modeladora


dos sistemas de saúde, ela deve executar suas principais funções e demonstrar
as características que a identificam no sistema de saúde. Essas características
são denominadas de atributos ou princípios da APS. A seguir, analisaremos estes
atributos e as principais funções da APS no sistema de saúde.

3.1 Princípios da Atenção Primária à Saúde

A APS é a porta de entrada do sistema de saúde ou o primeiro ponto e


contato com o sistema. A atenção à saúde começa e se continua por meio da
APS. O paciente é inserido pelo cadastro, atendido e acompanhado dentro da
APS no seu território de residência. Caso necessite ser encaminhado para outro
ponto da rede, seu encaminhamento será feito por meio da APS, para onde o
paciente voltará para continuidade da sua atenção.
O paciente e sua família serão acompanhados por longo tempo dentro da
APS, em que vários serviços deverão ser ofertados por toda a equipe. Isso se
chama longitudinalidade da atenção. Uma relação de empatia é estabelecida

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entre as famílias e as equipes de saúde, formando um vínculo que em si mesmo
é terapêutico.
A APS deve ofertar um conjunto de serviços que atendam as necessidades
do usuário em vários aspectos, incluindo os aspectos da promoção, proteção e
recuperação da saúde, ou seja, uma atenção integral de acordo com cada
necessidade apresentada.
Mesmo sabendo que nem todos os problemas terão sua resolução na APS,
esta sempre será a articuladora e coordenadora dos cuidados na rede de atenção.
Para que isso aconteça, é essencial que seja criada uma estratégia de
comunicação entre os pontos da rede, para prover a APS do conhecimento
necessário das ações de saúde providas aos pacientes e assim possa dar
continuidade do cuidado.
Focalização familiar: a partir de um olhar sistêmico, considera-se que o
paciente é a família, com as suas forças e fragilidades, sua capacidade de produzir
saúde ou doença. O ser humano nasce, cresce e se desenvolve dentro de uma
construção familiar, que sendo analisada dentro do modelo sistêmico, influencia
todos os processos de saúde e doença coletivos e individuais.
Orientação comunitária: reconhece a importância do meio ambiente social
ou contexto em que vivem as famílias. A comunidade constitui-se na expressão
do coletivo construído pelo grupo ali inserido e significa de alguma forma proteção
para os que estão no seu espaço. Entender esse processo é entender a formação
de saúde e doença no foco da coletividade.
Competência cultural: corresponde a habilidade a ser desenvolvida pelas
equipes de saúde na APS, de comunicar-se com as famílias e comunidades,
dentro de suas linguagens culturais. Deve existir uma troca de saberes entre a
equipe de saúde e a comunidade atendida, de modo que a equipe se aproprie do
conhecimento ali produzido, revertendo-o numa estratégia de trabalho, produtora
de saúde.

3.2 As três principais funções da APS

As funções da APS essenciais da APS são a resolubilidade, a comunicação


e responsabilização.

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A resolubilidade é demonstrada na competência técnica das equipes de
saúde, na sua capacidade de dar respostas positivas às situações que se lhes
apresentam. A APS, quando resolutiva, é capaz de resolver até 90% das
demandas de saúde de uma comunidade, encaminhando apenas aquilo que foge
de sua abrangência técnica. Uma estratégia para que esse resultado seja
alcançado é a capacitação contínua das equipes, com cursos de especialização,
participação em congressos, dando preferência para contratação de profissionais
com a formação em APS. As residências são consideradas o padrão ouro da
formação técnica profissional em saúde.
A função de comunicação relaciona-se com a ordenação do fluxo na rede
de atenção. A APS deve ser capaz de comunicar-se ativamente com os outros
pontos da rede de atenção de modo a estabelecer a troca de informações sobre
o paciente atendido em vários outros pontos da rede. Esta função favorece o
acompanhamento do paciente dentro da APS.
A responsabilização pela população adscrita significa um completo
comprometimento da equipe de saúde, de modo a atuar nas diversas demandas
levantadas dentro do seu território, interagindo com os diversos setores atuantes.

TEMA 4 – A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMILIA

A Estratégia Saúde da Família (ESF) é a proposta brasileira para a


implantação definitiva da APS no território nacional. Apesar da ESF de ter se
mostrado muito bem-sucedida, ainda não corresponde a totalidade da APS no
Brasil, porque ainda temos o modelo chamado de atenção básica, resíduo do final
do INAMPS, que funciona com pediatria, clínica médica e ginecologia. Esse
modelo hibrido acontece nas capitais que iniciaram sua atenção primária na
década de 1980 e 1990 nesse modelo e o mantem por questões administrativas,
no entanto a ESF tem se ampliado, apoiada em novos incentivos para que alcance
a totalidade da população.
Discutiremos nesse tópico os dois principais pilares da prática de atuação
da ESF que a diferenciam como estratégia de trabalho em saúde: atuação em
território e atuação em equipe.

4.1 Atuação em território

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A decisão de trabalhar dentro de um determinado território foi o grande
ganho para a implantação da ESF no Brasil, sendo na verdade um dos seus
fundamentos. Este modelo de certa forma impõe a responsabilização da equipe
com uma definição de locais e tarefas específicas. O território se relaciona a
delimitação do espaço e posse da terra, ou seja, domínio do local. Apesar do
sentido ser aplicado de modo diferente, é importante entender-se que de fato é
isso que se desejou que as equipes sentissem na sua relação com a comunidade
sob sua responsabilidade, uma percepção de apropriação dos cuidados
fornecidos em consonância com os atributos da APS.
A extensão do território de abrangência da Unidade de Saúde deve ser
suficiente para que a equipe possa acessar a comunidade à pé, tanto quanto a
comunidade possa acessar os serviços de saúde caminhando no máximo por
trinta minutos. Isso significa que a área mais distante da Unidade de Saúde não
deveria ser além de três quilômetros.
No entanto, há que se atentar para outras características do território que
se relacionam à geografia local sobretudo nos territórios rurais, com poucas
modificações estruturais. É necessário saber se o território está em área terrestre
propriamente dita ou sobre rios, como acontece na Amazônia; se está em áreas
elevadas, morros ou montanhas, ou em baixadas; e quais as vias e condições de
acesso que a comunidade dispõe.
O estudo das características físicas do território encontra-se diretamente
ligadas às vulnerabilidades existentes na população que nele habita. Nesse
aspecto, inicia-se a parte mais importante da territorialização propriamente dita
que é a inclusão da análise populacional naquele território.
As pessoas moradoras das áreas de abrangências caracterizam o território.
Ali observamos seu modo de vida, os equipamentos sociais disponíveis, sejam de
origem estatal públicas como creches, Unidades de Saúde, Unidades de apoio
social, abastecimento, delegacias, ou aquelas de origem privada, como igrejas,
pequenos comércios, bares, restaurantes.
É também de vital importância o conhecimento do poder paralelo existente
na área, evidentemente sem identificação clara, mas muito presente na vida das
pessoas e que influenciam o trabalho em saúde, como é o caso do tráfico de
drogas, que infelizmente se faz presente em todas as grandes cidades.

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4.2 Atuação em equipe

Outra significativa mudança deu-se por conta do trabalho em equipe.


Apesar do termo ser bem conhecido de todos, trabalhar em equipe não significa
apenas trabalhar junto com outras pessoas. Na verdade, requer-se o
desenvolvimento de habilidades para o desenvolvimento desse formato de
trabalho, como capacidade de comunicação, habilidade de ouvir e considerar as
opiniões outras pessoas, estar aberto a novos conceitos e tentativas, saber lidar
com os maus resultados como aprendizado conjunto e não tentar achar culpados
para situações que foram acordadas em grupo.
O líder da equipe é aquele que melhor desenvolve este conjunto de
habilidades e torna-se naturalmente uma referência dentro do grupo de trabalho.
Seu papel é identificar na equipe as habilidades pessoais que se destacam e que
podem ser mobilizadoras do processo de trabalho. Ele é um articulador entre os
potenciais que se demonstram no grupo, por isso uma de suas tarefas e distribuir
as tarefas de acordo com o melhor potencial de sua equipe.
Acima de tudo este líder deve ser um facilitador do diálogo e um pacificador,
para administrar os conflitos que surgem dentro da equipe. Seu desafio é não
permitir que os problemas se manifestam de forma pessoal, ou seja, se
personifiquem em alguém, elegendo um culpado e sim, focar nos processos de
trabalho. Em caso de atitude imprópria de algum membro da equipe, é dever do
líder manifestar-se a respeito da atitude da pessoa que ensejou o problema em
questão e tomar as providências cabíveis dentro do sistema de trabalho. O bom
líder leva a equipe a produzir o seu melhor e potencializa todo o trabalho do grupo,
compartilhando o sucesso.
As equipes das Unidades de Saúde devem seguir os protocolos da gestão.
Entendendo que a ESF é uma Estratégia de governo, o Ministério da Saúde
elaborou as diretrizes centrais como linhas prioritárias de trabalho, porém a gestão
municipal e estadual deve estabelecer as suas próprias prioridades em
consonância com as diretrizes do Ministério da Saúde.
A gestão estadual orienta e respalda os pequenos municípios, enquanto
que o grandes municípios têm autonomia para estabelecer seus programas e
protocolos, de modo a respaldar tecnicamente suas equipes por meio de planos
de educação continuada, materiais e notas orientativas, fluxos definidos e

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estratégias de apoio assistenciais como teleconsultoria, telessaúde, consulta
compartilhada com especialistas focais e suporte de especialidade em
ambulatório de referencia com elaboração de plano de cuidado e devolutiva para
seguimento na APS.

TEMA 5 – ENCONTROS DAS CULTURAS NA APS: EDUCAÇÃO EM SAÚDE

Uma das ações mais destacadas ao se trabalhar em APS é ser capaz de


realizar os encontros entre a cultura dos profissionais de saúde e a cultura da
população. Os profissionais de saúde não levavam em consideração os aspectos
culturais da população e a influência deles sobre as condições de saúde. Além
disso, há muito tempo as populações têm seus tradicionais arranjos de cura, seja
um chá de efeito conhecido ou um benzimento para espantar o mau olhado. Essas
crenças devem ser utilizadas pela APS com as considerações pertinentes e com
todo respeito às crenças das pessoas.
Por outro lado, o encontro das culturas cientifica e popular favorece os
processos de educação em saúde, que o braço direito da promoção de saúde,
uma das principais tarefas do SUS.

5.1 O que é educação popular em saúde?

A ideia de educação popular vem da necessidade de criar-se um


pensamento crítico e provocar uma reação das pessoas simples, analfabetas que
eram exploradas por latifundiários em toda a América Latina. Ainda como
agravante, regimes militares dominavam a América do Sul, direcionando a
educação de modo a evitar qualquer tipo de pensamento crítico gerador de
oposição. Nesse cenário surge o entendimento que a educação seria o
instrumento emancipatório se ela construísse a capacidade crítica, desvendasse
o caminho, sendo assim a libertação da opressão.
O modelo de educação popular estendeu-se para a saúde mantendo sua
natureza política e neste sentido vem ao encontro das discussões que embasam
a promoção de saúde e o controle social, ou seja, a participação popular
consciente e esclarecida, com tomadas de decisão livres, com empoderamento
popular e autonomia. Paulo Freire é o referencial desse ideal na educação com o
seu livro A pedagogia do oprimido.

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A Educação Popular em Saúde configura-se como um processo de
formação e capacitação que se dá dentro de uma perspectiva política de
classe e que toma parte ou se vincula à ação organizada do povo para
alcançar o objetivo de construir uma sociedade nova de acordo com seus
interesses. Ela é caracterizada como a teoria a partir da prática e não a
teoria sobre a prática como ocorre na educação em saúde tradicional.
(Maciel, 2009)

Na prática, o processo educativo acontece valorizando as práticas


populares e seus saberes, utilizando-se daquilo que faz sentido para as pessoas
naquele local e seus significados. A partir do momento em que as equipes de
saúde compreendem estes princípios e os aplicam, ao invés do modelo
tradicional, acontece maior adesão e consolidação de saberes em saúde.
Cito como ilustração desse modelo uma experiência de um jovem médico
residente de medicina de família, supervisionado por mim, que implantou um
momento de educação em saúde, fazendo uma roda de chimarrão. Para quem
não conhece essa realidade, é uma prática tradicional de alguns estados,
sobretudo no sul do Brasil, onde pessoas se reúnem para tomar chimarrão e
conversar. Num momento já pactuado, Dr. André sentava-se para tomar
chimarrão e convidava seus pacientes. Muitos senhores vinham para a roda e a
conversa surgia naturalmente, sobre muitas coisas, mas afinal, sempre surgia
algum assunto sobre doença, e André deixava o assunto rodar, junto com o
chimarrão. As pessoas davam suas opiniões, compartilhavam suas vivências com
aquele tema, ensinavam remédios e aconselhavam-se mutuamente.
André notou a melhoria da adesão de seus pacientes aos tratamentos e viu
também crescer a roda de chimarrão, além de sua grande popularidade naquela
comunidade.

5.2 A Política Nacional de Educação Popular em Saúde

Nesse sentido, em 2012 foi publicada a Política Nacional de Educação


Popular em Saúde trazendo como um dos objetivos contribuir para a melhoria da
qualidade de vida, diminuir as desigualdades sociais e assim promover a
erradicação da pobreza no Brasil (Brasil, 2012). O conceito de educação popular
em saúde segundo a PNEPS resgata o seu sentido original ao relacioná-la ao seu
papel emancipatório.

Educação Popular é compreendida como perspectiva teórica orientada


para a prática educativa e o trabalho social emancipatórios,

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intencionalmente direcionada à promoção da autonomia das pessoas, à
formação da consciência crítica, à cidadania participativa e à superação
das desigualdades sociais. A cultura popular é valorizada pelo respeito
às iniciativas, ideias, sentimentos e interesses de todas as pessoas, bem
como na inclusão de tais elementos como fios condutores do processo
de construção do trabalho e da formação. (Brasil, 2012)

A educação popular ligada ao setor da saúde, teve importante papel na


construção de diversas politicas publicas fundamentais ao SUS, como a Politica
Nacional de Atenção Básica, A Politica Nacional de Ações Estratégicas e
Participativas (PARTICIPASUS), A Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares no âmbito do SUS, A Politica Nacional de Promoção de Saúde,
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e A Política Nacional
de Saúde Integral da População LGBT (Brasil, 2002). Todas essas políticas
traduzem discussões de representantes do controle social, para implementação
de políticas relevantes.
Um dos pontos referenciais da educação popular em saúde é a valorização
do saber popular. Na cultura popular ligada à saúde estão os saberes dos raizeiros
e benzedeiros, espalhados por todo o Brasil, sobretudo nas regiões norte e
nordeste. Todos nós conhecemos os chás terapêuticos e outras formas de
utilização das plantas e raízes. Os profissionais de saúde devem saber fazer o
encontro das duas culturas de conhecimento e tratamentos.

NA PRÁTICA

Maria José 35 anos, divorciada, mãe de dois filhos. Consulta na Unidade


de Saúde com queixa de dor abdominal. Relata que tem essa dor desde a
adolescência, com períodos de melhora e piora. Descreve a dor de muitos modos,
associando-a e algo que caminha, difusa no abdômen, em outros momentos
concentrada na região pélvica. Relata que seu abdômen incha, aumenta tanto que
há quem pergunte em alguns momentos se está grávida.
Exame físico normal, ginecológico sem alterações, preventivo normal,
ultrassonografia de abdômen normal, exames laboratoriais normais. Já fez
também endoscopia e colonoscopia, sem alterações. Tomou vários tipos de
remédios prescritos, desde remédio para vermes e para gastrite, fez dietas de
restritivas para lactose e glúten.

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Maria José tem um longo caminho de investigação clínica centrado no seu
sintoma e tratamentos com resultados negativos. Pergunto sobre sua história, sua
infância, sua relação com a mãe, com o pai. Nesse momento suspira e fica calada.
Digo para ela que a origem de sua dor não está no seu abdômen e sim nas
suas emoções. Ela me conta um pouco da infância sofrida, do pai chegando em
casa bêbado, da mãe que sofria violência, de ficar escondida embaixo da cama
rezando para o pai sair de casa ou dormir. Então, eu faço a pergunta que
realmente desejava fazer: “Alguma vez você sofreu molestação sexual?”.
Ela me olhou assustada e respondeu: “Nunca me fizeram essa pergunta
antes”.
Então justifico meu questionamento: “Faço a pergunta porque o seu
sintoma demonstra isso”.
Maria José cobre o rosto com as mãos e chora. Conta sua dolorosa
experiência aos 7 anos de idade e diz que nunca pensou que pudesse falar sobre
isso algum dia.
Após o atendimento, a encaminhei para psicologia e iniciei seu tratamento
para ansiedade e depressão.

FINALIZANDO

A implementação da Atenção Primária no Brasil significou ampliação do


acesso à saúde, mas também significou uma mudança na forma de ver a saúde
e doença. Os sistemas de saúde estavam voltados para as doenças, mas pouco
se voltavam para a saúde. Essa mudança obriga a uma mudança de paradigma
na formatação dos modelos de atenção e de gestão.
Estudamos a implantação e evolução histórica da APS no Brasil desde os
primeiros postos de saúde em São Paulo na década de 1920 e também com a
fundação SESP na Amazônia e no Nordeste na década de 1940, e ampliação da
assistência por meio das ações de interiorização da atenção básica nos anos
1970.
A implantação da ESF na década de 1990 marca a implantação de uma
politica nacional de atenção básica no Brasil, com ações territorializadas e
trabalho em equipe.

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A APS está pautada por princípios e atributos que destacamos como suas
características como ser a porta de entrada do sistema de saúde, a
longitudinalidade da atenção, ser a coordenadora dos cuidados na rede de saúde
entre outros, assumindo sempre a responsabilidade pelo cuidado integral no seu
território de abrangência. A APS de qualidade é resolutiva em até 90% ou mais
para as necessidades de saúde da população, além de considerar os aspectos
culturais da comunidade.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto n. 78.307, de 24 de agosto de 1976. Aprova o programa de


interiorização das ações de saúde e de saneamento do Nordeste e dá outras
providências. Diário Oficial da União, 1976.

_____. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. Saúde da Família:


uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília:
DAB/SAS/Ministério da Saúde,1997.

_____. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.


Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS. Brasília, 2012.

MENDES, E. A construção social da atenção primária à saúde.CONASS,


2015.

RENOVATO, R.; BAGNATO, M. H. O serviço especial de saúde pública e suas


ações de educação sanitária nas escolas primárias. Educar em Revista, n. 2,
Curitiba, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/er/nspe2/17.pdf. Acesso
em: 24 mai. 2022.

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