SAAVEDRA, o Mundo Desdobrável

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SAAVEDRA, Carola. O MUNDO DESDOBRÁVEL: ensaios para depois do fim. Belo Horizonte: Relicário, 2021. (versão ebook).

 Livro composto por ensaios que trazem uma crítica à noção de literatura canônica na relação com a contemporaneidade. Tem-se nas
discussões um desfoque da ideia do EU – sujeito autor individualizado, repensando como esse sujeito autor lida com o mundo (natureza,
universo) na contemporaneidade e a partir de uma ideia de autor coletivo. Assim como, uma discussão quanto a função da literatura.
1. A escrita do fim do mundo (Constrói uma discussão para REPENSAR A LITERATURA NA RELAÇÃO COM AS CULTURAS
MARGINALIZADAS
 Há uma focalização quanto ao status/função da literatura/ficção no mundo contemporâneo “Diante da difícil tarefa de repensar
conceitos como humanidade,
A autora pensa essa função/status Esse repensar dá-se devido a
Enquanto forma de pensar o mundo, de natureza, cultura, subjetividade,
mediante o ato de repensar a noção “crise da mentalidade vigente: a
pensar certas situações/dilemas sociais, são justamente as culturas e
de literatura. O que é literatura? A razão cartesiana ocidental
conflitos e atuar como forma de reimaginar cosmogonias marginalizadas que
partir de um novo olhar e novas colonialista binária” (p.15) a
a inserção do humano na coletividade e no podem oferecer soluções, insihts e
visões de mundo: “indígena; afro- mentalidade euro-norte-
mundo/com a natureza na apontar caminhos a seguir. Ao
brasileiras; amefricanas” (p. 16). centrada.
contemporaneidade. menos uma luz ao sul da tempestade”
(p. 16).
A partir desse repensar e ruptura com a noção de literatura a autora traz uma nova visão
de pensar a literatura mediante as culturas que foram marginalizadas, trazendo suas É a partir dessas culturas que a autora repensa a função/status da literatura na
tradições/mitos/lendas e relações com o universo para pensar o valor estético das obras, contemporaneidade. A relação do sujeito autor com o mundo. A visão de mundo
ressaltando a forma que os sujeitos nessas culturas se constituem a partir da relação presente nessas culturas. Esse repensar se dá a partir da pergunta: O que é a literatura?
com a natureza. A partir desse questionamento há uma ruptura com ideia amplamente divulgada da
noção de literatura: obra escrita a partir de um ideal de racionalidade eurocêntrica.

 É mediante as visões de mundo dessas culturas que a autora busca repensar a literatura e sua função na contemporaneidade, no mundo
contemporâneo. A autora insere a noção de livro como Hiperobjeto (p. 11). “Gosto de
O ato de repensar a literatura além de romper com a noção de literatura
pensar o livro como um hiperobjeto, o livro não apenas como algo que
Mediante os conflitos sociais e canônica, rompe também com a ideia de dois “mecanismos” que configura
guardamos na estante, mas um acontecimento que inclui uma série de
políticos, as catástrofes naturais. essa ideia de literatura: O livro e a ideia do EU – sujeito individualizado que
pessoas: autor, editor, revisor, capista, [...]. E depois [...]: livreiros,
assume o lugar de autor da obra.
leitores do livro” (p. 11-12, destaque nosso).
Sujeito “Há tempos penso nas possibilidades da escrita, de uma literatura deslocada do
deslocado. A sujeito, onde tudo tem voz: o rio, a chuva, a floresta, o trovão e até as capivaras. A literatura sendo entendida como um elemento de comunicação entre
natureza em foco Uma escrita mais próxima do sonho, do transe, da alucinação, do que (ainda) não sujeitos, quebrando as barreiras espaciais e temporais, se inscrevendo em
e a relação dos sabemos que sabemos. Não um livro que escrevemos, mas um livro que nos escreve. um antes – passado – agora – presente – amanhã – futuro. Rompendo
sujeitos com esta. Uma literatura que se dá na compreensão (e humanidade) de que não somos nós que a também com a centralização do Eu. A literatura como espaço de
sabemos, mas ela que nos sabe” (p. 13, destaque nosso). comunicação com o mundo e com diversas compreensões desse mundo.
Diálogo entre diferentes
conceitos que o sujeito da Essas memórias podem vir de
obra captura no ato diferentes formas: cinema;
criador na relação com performance; mostra de arte. Nessas
2 A caligrafia enquanto coreografia “Sincron sua vivência. Trazendo, formas, as vozes desses sujeitos
 As variações dos gêneros, a experiência criativa izidade assim, à tona na obra a buscam se colocarem e serem
de memória de sujeitos ouvidas.
A autora aborda essa vozes”
Traz uma discussão ligada à noção de hipertexto, que diz questão a partir de sua subalternizados.
respeito a norma de separarmos a literatura por gêneros. A própria obra, que traz de A autora aborda essa construção da obra mediante a presença da memória, focalizando
autora questiona se não é a hora desses gêneros serem forma constante a relação a extinção da noção do OUTRO – dá o exemplo dos povos Selk’nam. Em nosso
pensados de forma intercalados, em uma mesma obra, para entre vozes diversas. contexto, seriam as populações indígenas e negras – vozes que na contemporaneidade
pensarmos a produção literária em voga. buscam ser ouvidas por meio de suas produções culturais que têm na memória seu locus
de constituição.

“O que é literatura? Costumamos associá-la à palavra escrita,


 A linguagem indígena: poética, metafórica, oral ou o contado com os deuses. como se esta fosse a única possibilidade. Gosto de imaginar que
Utilizando da cultura indígena “Em outras palavras, a literatura é toda linguagem metafórica, toda linguagem
Traz uma discussão do que seria literatura – a (Guarani), da linguagem comunicação com os simbólica: nosso corpo, uma árvore, um sonho, todo gesto de
partir da visão euro-norte-centrada – a desenvolvida pelos povos indígenas deuses se dá através da interpretação a partir deles é literatura. Um corpo que dança é
configurando como uma linguagem metafórica e na relação com a natureza, a autora poesia, da linguagem literatura, a adivinhação do formato da nuvem. O filho que cresce
poética. nos diz ser essa uma linguagem metafórica, isto é, no útero pode ser literatura. A voz que já não sai da garganta de
também metafórica, poética, mas daquilo que nós um homem, uma planta que perdeu as flores, um rio, um vulcão”
também oral. Desconstruindo com a chamamos de (p. 27-28).
ideia de estas culturas não literatura” (p. 27).
“Uma literatura menos fincada no “eu”: mais produzirem literatura. A literatura não se resume à
fincada na relação do corpo com a natureza, com o ideia de escrita europeizada
universo, fugindo ao ideal de literatura canônica, – uma caligrafia
que se tem a centralidade na racionalidade e na ideia “Voltando à frase de Ailton Krenak, a literatura indígena como coreografia. Ou seja, um tipo de
eurocêntrica.
do “eu”, do sujeito enquanto autor, sujeito literatura que incorpora a realidade, a fala dos ancestrais, o saber que passa pela dança, pelos
individualizado. Adentrando, assim, no literário os sonhos, pela fala sagrada. Por isso mesmo, uma literatura que não está presa ao livro, à sua
mitos, os sonhos, uma linguagem metafórica e tradição, mas que dialoga com o corpo, com os outros seres que povoam a terra. Uma literatura Literatura como coreografia:
poética que se baseia na relação dos povos indígenas menos ficada no “eu”” (p. 30-31, destaque nosso). dança; pintura; ritos, etc. O
com as divindades e natureza. Criando-se a partir do corpo na relação com a
coletivo, do “nós”. natureza e com a
ancestralidade.
A subalternização da mulher está
atrelada à construção social e política, e
não a questões biológicas. “A construção
3. Um teto todo nosso social e cultural [...] sentido político, de A autora constrói
como a sociedade ver esse corpo essa discussão em
 Uma literatura feminina? A restrição de gênero e o “teste da estante”. feminino, do seu lugar de poder (ou diálogo com Simone
desamparo, dentro da estrutura, no caso, de Beauvoir.
As vozes das mulheres A escrita feminina: uma MULHER, o gênero e a profundamente patriarcal e capitalista”
também foram silenciadas e particularidade inferior? política (p. 50).
subalternizadas.
A voz feminina, em nossa sociedade, quando chega aos espaços vem sempre sob alguns critérios, dentre estes
TORNAR-SE audível num universo masculino (literatura, temos a tutela pela voz masculina “foi ela, mas ela escreve bem porque escreve ‘como um homem’” (p. 39).
cinema, propaganda) – a escrita de mulheres durante muito Critérios que está presente na própria forma de inferiorização da obra feminina como Carolina Maria de Jesus
tempo foi vista como inferior, “de menor qualidade. O outro que, quando não estava sob a tutela da voz do jornalista Audálio Dantas, tinha (tem) sua produção adjetivada
da norma, o segundo sexo” (p. 38). A mulher sempre teve a como literatura inferior ou até mesmo documento social pela crítica. Adjetivação construída na relação entre
sua voz sob o poder discursivo do masculino. raça, gênero e classe.

 Há na literatura vozes mulheres, que indo contra as normatizações sociais, se inscrevem e instituem uma estética própria: Carolina Maria
de Jesus; Conceição Evaristo.
“Para a literatura, essas duas abordagens (A temática e a construção estética) têm diferentes
“Ao mesmo tempo que se discute a Essa desconstrução do viés binário só é
urgências (que se entrelaçam): por um lado é preciso um teto todo seu, e assim dar voz, corpo,
(im)possibilidade de uma expressão própria possível quando repensamos a literatura
contar as histórias que não foram contadas, permitindo a construção de uma identidade que
para as mulheres ou qualquer minoria, é por outros territórios (outras culturas):
integra em vez de excluir. Por outro, a literatura também é o âmbito da ambiguidade. É na
possível provar o contrário (sempre é) e indígena, afro-brasileira; feminina.
literatura que se pode desconstruir o pensamento binário que permeia toda a sua cultura, o
citar uma série de outras que fazem essa Repensando a literatura não mais a partir
pensamento do isto ou aquilo, se é homem ou mulher, hétero ou homossexual, bom ou mau,
travessia apontando outros caminhos. Essa da lógica binária que se constitui
sujeito ou objeto, bandido ou mocinho, deus ou o diabo, o céu ou o inferno, a salvação ou o
outra fala. Tanto no sentido temático quanto mediante uma visão de mundo
apocalipse. Contra um pensamento que apaga todas as demais possibilidades do espectro e, não
no estético, se quisermos falar de uma eurocêntrica.
só isso, que fossiliza o sujeito num tempo único e devastador” (p. 50-51).
estética vigente” (p. 49).

4 Permaescrita
 Um fazer literário e uma escrita caracterizada pelo “nós”: como parte de uma coletividade, fuga da ideia do “EU”.
Variações de gênero (poesia, ficção, romance, biografia): Exploração das fronteiras e margens: uma literatura que
“Aponta novas Algumas Ruptura com uma ideia de monogênero, há uma construção parta das fronteiras e margens em que os sujeitos
formas de escrever características: literária híbrida, constituída por vários gêneros. “Um subalternizados foram colocados. Essa exploração estando
literatura” (p. 58). permatexto seria assim um texto em que diversos gêneros atrelada, “ao tema, à história narrada, [...], ao formato, o modo
convivem e se retroalimentam, formando, como as plantas, de narrar” (p. 62), às culturas marginalizadas.
um sistema autossustentável” (p. 61) no mesmo livro.
O EU não é mais “A permaescrita talvez nos Fuga ao eu individualizado: surgimento do autor na relação com a
“O sujeito torna-se sujeito
senhor do próprio diga que cada livro não é um natureza, com as divindades, com os ancestrais. O eu não mais como
Racionalidade – não somente pautado na
razão (“penso, logo texto (p. 69). “É só objeto em si, mas que ele sujeito da obra. A obra é “ de todos os que vieram antes dele, porque
EU – inconsciente também está inserido num
existo”), mas numa lógica um reflexo a obra é fruto de todo um conhecimento anterior acumulado e
= o EU é uma
subterrânea, que segue as incompleto e sistema, que inclui muito transmitido, também de sua língua e cultura” (p. 63-64).
ilusão. mais do que um único livro,
suas próprias leis, quase ilusório, e as forças Construindo um texto que foge da hierarquia que rege a sociedade
sempre desconhecidas” (p. reais, são as do muito mais do que um único “Gosto de imaginar como seria a voz de um personagem fungo, sua
inconsciente” (p. 73). autor” (p. 64). forma de pensar, uma voz sem eu, uma voz-nós, pronta para
73).
desaparecer sem nunca sumir de todo” (p. 60-61).

 Na contemporaneidade constrói-se uma réplica surrealista (superstição, quimera, imaginação, onírico, deuses, xamãs).
“Tirando o uso mercadológico do selo realismo mágico, assim como o próprio Surrealismo, o que está em
Estão ligadas à realidade. A linguagem questão é a exposição das formas não hegemônicas de interpretar a realidade, de narrativas que sempre Uma literatura que se
presente é que as torna surrealista, a forma existiram (como a fala dos deuses, dos espíritos, dos xamãs, das plantas, dos animais, entre tantos constitui na relação com
que essas linguagens se constituem na outros), mas que, por transgredirem a razão dominante, ganham rótulos. Em outras palavras, talvez o culturas e visões de
relação com a natureza. estranhamento devesse ser transferido do objeto para o próprio sujeito, talvez devêssemos nos perguntar: que mundo marginalizadas e
visão de mundo é essa que adotamos, ou que nos foi dada, que nos faz exotizar (muitas vezes desmerecer) na relação com o
qualquer interpretação que não siga a razão moderna e instrumental?” (p. 93). inconciente.
5 O legado de Sancho
 Cultura letrada (o desenvolvimento da escrita) X Culturas ágrafas (Tradição oral).

Dom Quixote: surgimento do romance moderno: embate entre visões de mundo: Burguesia Cultura letrada: Quixote X Tradição Oral: Sancho “o tempo da oralidade e o tempo da
– Feudalismo: Surgimento da ideia de SUJEITO: EU – individualizado – subjetividade escrita” (p. 111).
burguêsa (p. 109).
 Repensar a literatura a partir da relação com diferentes culturas.

“Não mais uma literatura que nega uma série de aspectos relativos à fantasia, à oralidade, às raízes indígenas ou africanas, a estéticas não eurocêntricas, mas uma literatura
que integra (diferentes culturas e visões de mundo). Não com o objetivo de construir um híbrido, uma “nova literatura” hegemônica, mas, ao contrário uma literatura na qual
os opostos, os diversos grupos, etnias e visões de mundo coabitam a palavra” (p. 116-117, acréscimo nosso). Construir uma literatura expandida, que não se restrinja somente
a cultura eurocêntrica.
As instituições e
 Por uma literatura expandida sujeitos que Essas
QU
O conceito de literatura e o valor estético desta é definido pela sociedade. “Literatura E constituem a mesmas
Mas o que é uma é algo definido por uma sociedade específica num tempo específico, destinado a um NÓ sociedade instituições
literatura? público especifico. Nesse sentido, a literatura da forma que a vemos é um texto escrito S? elitista, criam a
com valor estético definido por nós” (p. 121). patriarcal e noção NÓS
capitalista. X OUTROS.
 Literatura de mulheres negras;
A expansão da literatura, assim, deve ocorrer a  Literatura indígena: atrelada à literatura Produções do outro: “O sistema cria categorias para
partir da reconfiguração do que é literário e valor infantil. Por quê? Devido à sociedade literatura naif – “uma classificar o que diz respeito a
estético, saindo dessa ideia de literatura atrelar as relações com a natureza (animais, menos literatura” – sem ‘nós’ e o que diz respeito aos
canônica, e adentrando uma noção de “literatura mitos, lendas) ao mundo infantil. valor estético de acordo outros” (p. 122).
que inclui o cotidiano, a oralidade, os mitos, a  Literatura infantil: também é uma literatura, com a norma eurocêntrica.
pintura e o próprio corpo. É para além de uma também tem valor estético. “ A grande
estética definida por grupos de poder: estado, literatura infantil é antes de tudo grande
universidades, mercado etc.” (p. 126). literatura” (p. 124).

 Reconfigurando o Cânone
“A
É necessário repensarmos as
O que entendemos “É importante repensar quem somos nós, quem desconstrução do A literatura como um
relações sociais para repensarmos
por cânone hoje é fala por nós, quem decide por nós e, cânone é um direito básico para a
a literatura, e, assim, o que se
definindo pelas principalmente, quem define quem devemos ser (e processo que humanidade, ligado à
configura como valor estético,
instituições que quem devemos ler), para, assim, sermos capazes de exige, educação,
pensando “outros valores
constituem a repensar uma literatura mais ampla, mais livre, paralelamente, alimentação, saúde.
estéticos, dando-lhes o mesmo
sociedade. mais aberta a outras vozes, outras escritas, outras uma
peso e importância” (. 125) dos
linguagens, outras histórias” (p. 124). reconstrução da
que são da cultura eurocêntrica.
sociedade” (p.
125).

 Reconfiguração do conceito de autor.


Outras narrativas: Que não se baseiem na lógica
Alguns pontos Livro como A ideia de racional eurocêntrica. “Aprender a tecer outras
Autor enquanto para Simbiogêneses: O autor
HIPEROBJETO: o livro narrativas a partir das narrativas silenciadas. [....]
indivíduo – ligado a reconfigurarmos não individual, o autor
não é somente escrito pelo A literatura como forma de tecer outras formas de
ideia de “obra como a ideia de numa relação com
sujeito individualizado, é se relacionar, outras perspectivas (não só a
propriedade privada” AUTOR: outros, em uma
também voltado para o narrativa vigente do cânone), outras formas de
(p. 128).
passado, o saber ancestral. coletividade. estar no mundo” (p. 131), de se relacionar com o
mundo contemporâneo a partir desses grandes
conflitos sociais, políticos e naturais.

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