Cena Doentio

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Fragmento de cena do roteiro “Doentio”

de Paulinho Ramos (Personagens Sistema e Doente)

(Doente está costurando um tecido, enquanto Sistema fuma um cigarro ao seu lado).
SISTEMA: Desse jeito terei que chamá-la de grossa de novo.
DOENTE: (tosse) Maldita nicotina! Você fuma e eu que estou adoecendo.
SISTEMA: Chega de falácias, e vamos ao que interessa.
DOENTE: Camisetas?
SISTEMA: Sim. Trezentas, antes que o sol se vá.
DOENTE: (Ri) Impossível!
SISTEMA: Quer ser demitida?
DOENTE: Fique à vontade.
SISTEMA: Vai morrer de fome!
DOENTE: O que é a morte pra quem já morreu?
SISTEMA: Dramática.
DOENTE: Porque não contrata mais gente para ajudar?
SISTEMA: Precisa aprender a ser independente.
DOENTE: Isso não é independência, é exploração.
SISTEMA: Olha lá... essa acusação é muito grave.
DOENTE: Não quero perder tempo com você. Tentarei bater a meta.
SISTEMA: Ótimo. Sem pausas para descanso e certamente conseguirá.
DOENTE: Só não esqueça que doentes, não tem forças para trabalhar.
SISTEMA: DOENTES FRACOS!
DOENTE: Existem doentes fortes?
SISTEMA: Sim, todos sabem disso. Você não sabia? Mesmo doente, precisa trabalhar
para consumir.
DOENTE: Porque diabos tanto fala em consumo?
SISTEMA: Se não consome, é consumida.
DOENTE: E eu que sou filosofa...

(Doente fura o dedo com a agulha).


DOENTE: Ai... agulha miserável. (Chupa o dedo)
SISTEMA: Sangue e suor são frutos de um bom funcionário. Saliva cura furos?
DOENTE: É involuntário. A gente machuca e já quer lamber.
SISTEMA: Como um cão que lambe suas feridas. Precisa de um remédio?
DOENTE: Não. Já acostumei.
SISTEMA: Se quiser, pode comprar um pouco de saúde.
DOENTE: Você me adoece para depois vender o remédio.
SISTEMA: Ótimo negócio, não?
DOENTE: Não me faça perder a calma.
SISTEMA: Se a perder, deverá continuar trabalhando.
DOENTE: Eu não preciso que me diga o que tenho de fazer.
SISTEMA: Então faça!
DOENTE: Precisa comprar agulhas novas! É difícil trabalhar nessas condições.
SISTEMA: Flexibilidade. Isso que lhe falta.
DOENTE: Me faltam condições dignas de trabalho.
SISTEMA: De novo “dignidade”.
DOENTE: Essa sala miserável tem mais mofo que seu coração.
SISTEMA: Sala tão miserável quanto quem a utiliza.
DOENTE: O que está insinuando?
SISTEMA: Ora, que eu utilizo essa sala.

(Doente passa um tempo olhando nos olhos de Sistema e ele se sente invadido).

SISTEMA: O que foi? Quer entrar em mim?


DOENTE: E se entra fora?
SISTEMA: Quê?
DOENTE: Como pode ter tantos canudos e não dominar a língua portuguesa...
SISTEMA: Está me chamando de burro?
DOENTE: Coitado do burro... ser comparado com você. (Ri)

(Sistema irritado, bate na mesa)


SISTEMA: Escuta aqui. É melhor você cuidar melhor das suas palavras, se não além
de sem emprego, ficará sem língua.
DOENTE: (o encara) Vai fazer o quê? Corta-la?
SISTEMA: Que eu saiba, você só precisa das mãos e pés para costurar.
(Um tempo se olhando, uma tensão no ar. Sistema quebra o silêncio e começa a rir
freneticamente).

SISTEMA: Você tinha que ver sua cara agora. Parecia um frango medroso indo pro
abate.
DOENTE: Porque não me deixa em paz?

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